Loureiro Heitor de Andrade (2022!03!23 23-57-41 UTC)
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Loureiro Heitor de Andrade (2022!03!23 23-57-41 UTC)
Franca
2016
HEITOR DE ANDRADE CARVALHO LOUREIRO
Franca
2016
Loureiro, Heitor de Andrade Carvalho.
Pragmatismo e humanitarismo: a política externa brasileira e a
causa armênia (1912-1922) / Heitor de Andrade Carvalho Loureiro
– Franca : [s.n.], 2016.
230 f.
Esta tese foi julgada e aprovada para a obtenção do grau de Doutor em História no Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista
_________________________________________________________
Profª. Drª. Teresa Maria Malatian (orientadora)
Professora livre-docente, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca,
Universidade Estadual Paulista.
_________________________________________________________
_________________________________________________________
_________________________________________________________
_________________________________________________________
A Carlos Daghlian, in memoriam, professor emérito do Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas, campus da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” em São José do Rio Preto.
AGRADECIMENTOS
Eu agradeço também à minha família, especialmente aos meus pais e irmã, pelo
apoio e amor desde o início. Abaixo, eu reconheço o papel de diversas pessoas que foram
cruciais para o desenrolar desta pesquisa, seja pela amizade e inspiração ou por fornecerem
informações que abriram novas perspectivas neste trabalho: Ana Carolina Viotti, Anna
Aleksanyan, Antonio Henrique Campolina Martins, Ara Sanjian, Aram Adjemian, Archavir
Donelian, Arda e Doris Melkonian, Armen Kevork Pamboukdjian, Artsvi Bakhchinyan, Artur
Attarian, Athena Madan, Boghos Levon, Zekiyan, Cafer Sarikaya, Carlos Antaramián, Carlos
Daghlian, Carlos Luis Hassassian, Daniela Boudakian, Daniel Ohanian, Diran Avedian,
Eustáquio Donizete, Família Chahinian, Família Moreira Dias, Flávio de Leão Bastos Pereira,
Giovane Oliveira, Helenice Moreira Dias, Georges-Henri Ruyssen, Hagop Kechichian, Hakob
Matevosyan, Hayk Sahakyan, James Onnig Tamdjian, Khachig Tölölyan, João José Reis, Laís
Azeredo, Leandro Pereira Gonçalves, Leo Fernandes, Luiz César de Sá Júnior, Mateus França
Holmo “Poha”, Marcelo Mirzeian, Monique Sochaczewski Goldfeld, Naira Meliksetyan,
Nareg Seferian, Nittina Bianchi, Paulo Knauss, Pedro Bogossian Porto, Pedro Russo, Philipe
Arapian, Rafael Bara Alves, Renata Summa, Richard G. Hovannisian, Rodrigo Medina Zagni,
Rosirene Medina, Shant Melkonian, Simon Petrosyan, Sona Baloyan, Tamar M. Boyadjian,
Tatiana Medina Boudakian, Vahan Agopyan, Vahan Ter-Ghevondian, Vahe Sahakyan,
Vartan Matiossian, Vartan Waldir Boghossian, Victor Coutinho Lage, Victor “Triantopoulos”
Martins e Victor “Pino” Santos.
Nos anos 1910, a causa armênia aportou no Brasil por meio do trabalho do intelectual Etienne
Brasil na imprensa e em sociedades científicas no Rio de Janeiro que retratou os armênios
como um povo cristão do Oriente, alvo de toda sorte de perseguições por parte dos turcos
muçulmanos no Império Otomano. Lançando mão do discurso orientalista largamente
difundido no pensamento ocidental no seu tempo, Etienne Brasil buscou sensibilizar o
público-leitor e os tomadores de decisão brasileiros a apoiarem os armênios na luta pela
criação da República Armênia, cuja independência aconteceu, por fim, em 1918. Assim,
Etienne Brasil tornou-se representante diplomático da nova república no Brasil, o que deu a
ele o ensejo para dirigir-se ao Catete e ao Itamaraty em busca do reconhecimento oficial
brasileiro ao novo Estado e de apoio para sustentar a frágil república e sua população
composta, majoritariamente, por refugiados, sobreviventes do genocídio executado pelo
governo otomano a partir de 1915. O objetivo desta pesquisa é examinar como a chamada
“causa armênia” – conjunto de reivindicações jurídicas do povo armênio no sistema
internacional – chegou ao Brasil e tornou-se ponto de pauta na política externa brasileira.
Interessa compreender como as demandas armênias foram inseridas nessa agenda por um
grupo de interesse de tamanho reduzido, que conseguiu ter acesso aos tomadores de decisão
por meio de conexões pessoais, intensa propaganda na imprensa e uma leitura da política
internacional que indicava que o Brasil tentava se reposicionar no sistema internacional como
um ator de primeiro escalão após a Grande Guerra. Nesse contexto, a causa armênia foi
apresentada por Etienne Brasil e seus aliados como uma oportunidade para o governo Epitácio
Pessoa mostrar às Potências que o país estava pronto para lidar com desafios no cenário
global e era, portanto, merecedor do lugar de destaque que recebeu na Conferência de Paz de
Paris em 1919 e na Liga das Nações. A hipótese sustentada é que o apoio brasileiro à causa
armênia foi um ato pragmático do governo Epitácio Pessoa que buscava, por meio de uma
pauta humanitarista, angariar prestígio para o Brasil no sistema internacional. Todavia, isso
não se deu de maneira proativa. O governo brasileiro reagiu às pressões desse grupo de
armênios radicados no Rio de Janeiro e aos movimentos dos EUA no cenário internacional.
Desse modo, é crucial compreender como esse grupo funcionou como parte de uma diáspora,
atuando como uma força transnacional e que conseguiu aproveitar a permeabilidade do
sistema político brasileiro para inserir suas demandas. A metodologia consiste na análise de
arquivos no Brasil e exterior a fim de reconstituir a negociação entre armênios e brasileiros
para que esses últimos apoiassem as reivindicações dos primeiros nos fóruns internacionais,
além da leitura minuciosa da imprensa carioca nos anos 1910-1920, instrumento de
sensibilização da opinião pública para pressionar o Brasil a intervir. No final de 1920, o
governo brasileiro aceitou, finalmente, atuar como mediador na pacificação da Armênia,
balizado pelas ideias do humanitarismo moderno, mas guiado pelo pragmatismo, em busca de
prestígio no sistema internacional.
In the 1910s, Brazilian audience heard, for the first time, about the ‘Armenian Cause’ through
the work of the intellectual Etienne Brasil. At that time, Brasil published several articles
through the press and scientific societies in Rio de Janeiro, in which he portrayed the
Armenians as Christian people from the East which had suffered all types of persecutions by
the hands of the Turk-Muslims within the Ottoman Empire. Brasil’s reports were Orientalist
in nature, largely spread in western thought at the time as a way of appealing to the Brazilian
readership and decision-makers in order to support Armenians to create the Armenian
Republic. When Armenia became independent, in 1918, Etienne Brasil became the first
Armenian diplomatic representative in South America, which provided him an opportunity to
address his appeals to the Brazilian presidency and to the Minister of External Relations in
search of support to sustain the fragile republic whose population was majority composed by
refugees, and survivors of the genocide perpetrated by the Ottoman government after 1915.
This research aims to examine how the “Armenian cause” – range of juridical demands of the
Armenian people within the international system – arrived in Brazil and became part of the
Brazilian foreign policy agenda. Armenian demands were incorporated on this policy agenda
by a small interest group that had been able to obtain access to decision-makers through
personal connections and intensive press propaganda. Brazil was trying to realign itself within
the international system as a key player after the Great War. In this context, the Armenian
cause was presented by Etienne Brasil as an opportunity to show to the Powers that Brazil
was ready to deal with challenges in that new global scenario and, therefore, deserved the
prominent place that it had received at the Paris Peace Conference in 1919 and at the League
of Nations. The hypothesis is that Brazilian support towards the Armenian Cause was a
Pessoa administration’s pragmatic act that sought, through a humanitarian agenda, to gain
prestige at the global level. However, this did not happen proactively. The Brazilian
government responded to the pressure of this group of Armenians living in Rio de Janeiro and
the American moves at the international arena. As such, this group worked as part of a
diaspora acting as a transnational power, which could take advantage of the Brazilian political
system’s porosity to influence Brazil’s agenda.
The methodology consisted in analyzing files and documents from archives in Brazil and
abroad to reconstitute the negotiations between Armenians and Brazilians in order to get the
latter to support the former at the international fora, as well as analyzing the Rio de Janeiro’s
press in the 1910-20s, which were a tool to sensitize public opinion to push Brazil to take
action. In the late 1920, the Brazilian government finally accepted to act as mediator in the
conflict between Armenians and Turks imbued with the modern humanitarianism ideas, but
guided by the pragmatism and desire for prestige in the international system.
Keywords: Armenia. Brazilian foreign policy. Armenian Cause. Epitácio Pessoa. Etienne
Brasil.
ՍԵՂՄԱԳԻՐ
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16
2 GENOCÍDIO, DIÁSPORA E A REPÚBLICA DE 1918-1920 ............................................ 40
2.1 O crepúsculo otomano e a questão das minorias ........................................................ 40
2.2 A questão armênia no sistema internacional .............................................................. 44
2.3 Os Jovens Turcos........................................................................................................ 48
2.4 A Grande Guerra e o Genocídio ................................................................................. 52
2.5 A República Armênia (1918-1920) ............................................................................ 59
3 A CHEGADA DA CAUSA ARMÊNIA AO BRASIL ......................................................... 71
3.1 Do sacerdócio à pena: a formação do intelectual ....................................................... 72
3.2 Orientalismo e a causa armênia .................................................................................. 83
3.3 O Povo Armênio ....................................................................................................... 107
4 DAS PALAVRAS À AÇÃO: ETIENNE BRASIL E A LEGAÇÃO ARMÊNIA NO
BRASIL .................................................................................................................................. 115
4.1 A causa armênia no Brasil pós-Grande Guerra ........................................................ 115
4.2 A institucionalização das relações armênio-brasileiras ............................................ 124
4.3 A esperança do mandato brasileiro sobre a Armênia ............................................... 139
4.4 O reconhecimento brasileiro da independência da República Armênia................... 144
4.4.1 Leilão de Almas ................................................................................................ 146
4.4.2 As repercussões de Sèvres ................................................................................ 151
4.4.3 A efetivação do reconhecimento ...................................................................... 154
4.5 A ocupação bolchevique e o fim da Legação Armênia no Brasil ............................ 157
5 A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO MULTILATERALISMO
NAS DÉCADAS DE 1910-1920............................................................................................ 169
5.1 O Brasil na Grande Guerra ....................................................................................... 169
5.2 A participação brasileira na Conferência de Paz de Paris e na Liga das Nações ..... 172
5.3 A causa armênia na Liga das Nações ....................................................................... 179
5.4 A “missão humanitária” na Armênia e a “ilusão de poder” brasileira ..................... 182
6 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 202
Fontes listadas por arquivos consultados............................................................................ 207
Referências bibliográficas .................................................................................................. 212
Teses e dissertações ........................................................................................................ 212
Livros .............................................................................................................................. 213
Artigos e capítulos de livros ........................................................................................... 218
ANEXO .................................................................................................................................. 222
16
1 INTRODUÇÃO
A notícia foi recebida com entusiasmo pela comunidade armênia no país que há
décadas buscava atingir esse objetivo e despertou a ira da República da Turquia, que chamou
o embaixador brasileiro em Ancara para prestar esclarecimentos e convocou o seu diplomata
em Brasília para consultas. Ao Itamaraty, que se viu entre uma decisão legítima do Senado
Federal e os protestos de uma nação soberana, coube lamentar a atitude de Ancara e reafirmar
o princípio da independência de poderes, numa tentativa de convencer a Turquia que as
relações bilaterais não haviam mudado desde a aproximação entre os dois países em 2009,
quando Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), fez a primeira visita
oficial de um Presidente da República Federativa do Brasil2 ao país situado entre Europa e
Ásia. Relações essas que foram definitivamente seladas no ano seguinte, quando Turquia e
Brasil sentaram-se à mesa de negociações com o Irã para discutir o programa nuclear desse
1
Em armênio Երեւան, comumente transliterado como Erevan ou Ierevan em português. Neste texto,
optou-se por usar a forma Yerevan considerando a ampla difusão que essa grafia possui na literatura e
que ela representa adequadamente a fonética da palavra no idioma armênio.
2
Em outubro de 1876, o imperador do Brasil D. Pedro II visitou o sultão Abdul-Hamid II em
Constantinopla, capital do Império Otomano. GOLDFELD, Monique Sochaczewski. O Brasil, o
Império Otomano e a Sociedade Internacional: contrastes e conexões (1850-1919). Rio de Janeiro:
Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC) como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor em História, Política e Bens
Culturais, 2012, p. 151.
17
último, à revelia da política de sanções econômicas ao país dos aiatolás, defendida por
Washington e seus aliados.
3
Os massacres de armênios promovidos pelo sultão Abdul-Hamid II nos anos 1890 e os ocorridos na
região de Adana em 1909 – cf. Capítulo I – não são considerados pela maior parte da historiografia
como parte do genocídio armênio, que usualmente tem seu marco temporal inicial em 1915.
4
MILZA, Pierre. “Política interna e política externa”. In: RÉMOND, René (org.) Por uma História
Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, 2ª ed., p. 381.
18
5
Em 2011, a viúva de Varujan Burmaian, Hilda Diruhy Burmaian, foi designada Cônsul-geral
honorária da República da Armênia em São Paulo.
19
potência emersa após 1918, que se colocava no cenário internacional como líder dos países
latino-americanos ou até como locomotiva das nações americanas, quando os Estados Unidos
da América não preenchiam tal espaço. Assim, a consecução do apoio brasileiro à causa dos
armênios poderia ser celebrada pela pequena comunidade armênia do Brasil e, sobretudo, por
suas lideranças, como uma grande vitória político-diplomática.
Esta pesquisa tem como finalidade examinar como a chamada “causa armênia” –
conjunto de reivindicações jurídicas do povo armênio no sistema internacional6 – chegou ao
Brasil, ocupando um espaço nas páginas dos principais jornais do país nos anos 1910 e
reverberando na agenda da política externa brasileira, sobretudo no pós-guerra. Interessa,
principalmente, compreender como as demandas armênias foram inseridas nessa agenda a
partir de um grupo de interesse de tamanho reduzido, mas que logrou êxito em ter acesso aos
corredores dos palácios do Catete e Itamaraty por meio de conexões pessoais, intensa
propaganda na imprensa e uma leitura da política internacional que indicava que o Brasil
tentava se reposicionar no sistema internacional como um ator de primeiro escalão,
6
OHANIAN, Pascual Carlos. La Cuestión Armenia y las Relaciones Internacionales. Buenos
Aires/Yerevan: Academia Nacional de Ciencias de la Republica de Armenia, 2005, tomo V - 1919, p.
23.
20
aproveitando a crise europeia após quatro anos de guerra e o crescimento do poder dos EUA,
importante aliado desde o advento da República. Nesse contexto, a causa armênia era
apresentada por Etienne Brasil e seus aliados como uma oportunidade para o governo de
Epitácio Pessoa mostrar às Potências que o país estava pronto para lidar com assuntos
delicados no cenário global – abandonando a América do Sul como área de atuação por
excelência da política externa brasileira – e, portanto, merecedor do lugar de destaque que o
Brasil recebeu na Conferência de Paz de Paris em 1919 e na Liga das Nações. A hipótese aqui
sustentada é que o apoio brasileiro à causa armênia foi um ato pragmático do governo
Epitácio Pessoa que buscava, por meio de uma pauta humanitarista, angariar prestígio para o
Brasil no sistema internacional. Todavia, isso não se deu de maneira proativa. O governo
brasileiro reagiu às pressões desse grupo formado por poucas dezenas de armênios radicados
no Rio de Janeiro – e aos acenos de Woodrow Wilson no cenário internacional. Desse modo,
é crucial compreender como esse grupo funcionou como parte de uma diáspora interconectada
em diferentes partes do globo, atuando como uma força transnacional e que conseguiu
aproveitar a permeabilidade do sistema político brasileiro na Primeira República para inserir
suas demandas.
Décadas mais tarde, a causa armênia receberia mais um ponto para a sua vasta
pauta de reivindicações: o reconhecimento por parte da República da Turquia e da
comunidade internacional dos massacres ocorridos entre 1915 e 1923 contra a população
armênia otomana como um genocídio, termo que embora tenha uso corrente nos dias de hoje,
não surgiu antes dos anos 1940. Em 1944, o jurista judeu-polonês Raphael Lemkin publicou
21
sua obra O Domínio do Eixo na Europa Ocupada7, cujo capítulo IX intitulado Genocídio
apresentava ao mundo essa palavra que une o antepositivo grego génos – raça ou tribo, na
tradução de Lemkin – ao pospositivo latino -cidĭum – ação de matar – para gerar um termo
que expressasse o que Winston Churchill chamou alguns anos antes de “crime sem nome” 8.
Após a II Guerra Mundial, com intenso e obstinado trabalho de bastidores na recém-criada
Organização das Nações Unidas, Lemkin conseguiu que a entidade aprovasse a “Convenção
para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio” em 9 de dezembro de 1948, que
definiu genocídio como um crime pelo direito internacional.
7
LEMKIN, Raphael. El Dominio del Eje en la Europa Ocupada. Buenos Aires: Prometeo Libros;
Eduntref, 2009.
8
POWER, Samantha. Genocídio: a retórica norte-americana em questão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 54.
9
BLOXHAM, Donald. The Great Game of Genocide: imperialism, nationalism, and the destruction of
the Ottoman Armenians. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 215.
10
Cf. ÜNGÖR, Ugur Ümit; POLATEL, Mehmet. Confiscation and Destruction: The Young Turk
seizure of Armenian Property. Nova York/Londres: Continuum, 2011.
22
“redistribuição forçada de renda”11 seria assumir os riscos de arcar com uma política
compensatória que ameaçaria a burguesia nacional que impulsionava o nacionalismo turco no
apagar das luzes do Império e no raiar da República12. A negação do genocídio está, portanto,
no cerne da identidade nacional turca.
11
DADRIAN, Vahakn N. “Configuración de los genocidios del siglo veinte”. In: FEIERSTEIN,
Daniel (org.). Genocidio: la administración de la muerte en la modernidad. Buenos Aires: Eduntref,
2005, pp. 94-95.
12
BLOXHAM, D. op. cit., p. 14.
13
Cf. SÉMELIN, Jacques. Purificar e Destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios. Rio de
Janeiro: Difel, 2009.
14
Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio (1948)”. In: ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos Humanos: uma antologia –
principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a Bíblia até o presente. São Paulo:
Edusp, 2013.
15
SHAW, Martin. ¿Qué es el genocidio? Buenos Aires: Prometeo Libros/Eduntref, 2013, p. 17.
23
16
“[…] una forma de conflicto social violento o guerra, entre organizaciones de poder armadas que
apuntan a destruir grupos sociales civiles y esos grupos y otros actores que resisten esta destrucción.
[…] el concepto de acción genocida puede ser definido como acción en la que organizaciones de
poder armado tratan a los grupos sociales civiles como enemigos y apuntan a destruir su poder social
real o putativo, por medio de matanza, violencia y coerción contra individuos a los que consideran
como miembros del grupo.
Por tanto, el genocidio es un tipo de conflicto social desigual entre dos conjuntos de actores, que es
definido primariamente por el tipo de acción llevada a cabo por el lado más poderoso”. Ibid., p. 247.
17
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 14.
18
“[…] un tipo general de acción social, caracterizado por la combinación de objetivos destuctivo-
sociales y modalidades violentas y coercitivas, que establece un tipo especial de conflicto social
violento”. SHAW, M. op. cit., p. 248.
19
“[...] destruir el poder social de los grupos en el sentido económico, político y cultural”. Ibid., p.
249
20
Cf. LOUREIRO, Heitor. “Diálogos entre História e Direito: o conceito de genocídio e o caso
armênio” In: Revista Fórum de Ciências Criminais. Belo Horizonte: Fórum, v. 1, 2015, pp. 161-182.
24
Com isso em mente, cabe a advertência que esta pesquisa não se enquadra nos
chamados genocide studies, pois não há a pretensão de discutir pormenorizadamente o
genocídio armênio que também aqui é tomado como dado. O que está em tela é a diáspora
armênia que é, enquanto tal, consequência direta do genocídio, o que faz com que haja um
diálogo permanente com os estudos do genocídio, mas sempre em direção aos estudos da
diáspora de forma a compreender a relação existente entre pátria-mãe, país receptor e agentes
da diáspora. Dessa forma, importa entender os pontos de contato entre a política interna e
externa do Brasil, sobretudo no governo Epitácio Pessoa, além de compreender como uma
realidade estrangeira foi compreendida por uma coletividade nacional, isto é, a elite política
brasileira da virada dos anos 1910-192023.
O conceito de diáspora aplicado às Ciências Sociais é de uso recente, mas isso não
quer dizer que o fenômeno seja algo novo na História. Em realidade, para Tölölyan, as
diásporas são mais antigas do que o Estado-nação. As diásporas judaica, armênia e grega
existem a mais tempo do que os Estados de Israel, Armênia e Grécia, mencionando apenas as
três diásporas chamadas por ele de “clássicas” 26.
24
LESSER, Jeffrey. Uma Diáspora descontente: os nipo-brasileiros e os significados da militância
étnica 1960-1980. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
25
TÖLÖLYAN, Khachig. “The contemporary discourse of Diaspora Studies” In: Comparative Studies
of South Asia, Africa and the Middle East. Duke University Press, vol. 27, n. 3, 2007, p. 644.
26
Idem. “Rethinking Diaspora(s): Stateless Power in the Transnational moment. In: Diaspora: 5:1,
1996, p. 3.
27
Ibid., p. 10.
26
identificação entre seus membros, sejam entre os que estão em sociedades receptoras, sejam
entre os que estão na região de origem28.
Temos que pensar diáspora para além de um conceito em si mesmo e como pode
ser aplicado às ciências sociais, sobretudo com enfoque para as análises de relações
internacionais, observando como grupos diaspóricos podem atuar como forças transnacionais,
influenciando na ação de Estados nacionais e organismos interestatais. Inserir o conceito de
diáspora na análise significa contribuir para a construção de abordagens mais complexas que
visem a apreensão de atores sociais para além da esfera de Estados e instituições. Em trabalho
seminal, Yossi Shain e Aharon Barth discutem como o estudo das diásporas deve fazer parte
28
TÖLÖLYAN, K. op. cit., 2007, p. 642.
29
Ibid.
30
Ibid., pp. 648-9.
31
LESSER, Jeffrey. A Negociação da Identidade Nacional: imigrantes, minorias e a luta pela
etnicidade no Brasil. São Paulo: Unesp, 2001.
27
da teoria das Relações Internacionais. Para eles, as diásporas exercem uma função ímpar ao
influenciarem no funcionamento da terra natal a partir de ações praticadas nas sociedades
receptoras32. Contudo, a definição dos autores difere um pouco da formulação interdisciplinar
oriunda dos Estudos Culturais de Khachig Tölölyan. Para Shain e Barth, a ideia do trauma
fundador não está presente, tampouco o retorno. Mesmo assim, os pesquisadores abordam
como a diáspora age enquanto força transnacional para influenciar as decisões políticas na
terra natal. Nesse sentido, destacam a motivação principal para que um grupo diaspórico
intervenha nos assuntos da pátria-mãe, isto é, a impressão de que as decisões tomadas por lá
afetam todo o povo e não apenas os residentes. Não raramente, as diásporas têm relações
internacionais próprias que divergem daquelas da pátria-mãe.
Nesta pesquisa interessa observar como as diásporas podem agir não para
influenciar a pátria-mãe ou terra natal, mas a sociedade receptora e seus tomadores de
decisão, em prol de uma política externa que beneficie de alguma maneira o país de origem.
Essa capacidade depende da coesão interna do grupo étnico e do trânsito que possuem nas
esferas decisórias do país onde estão radicados33. Bons exemplos são os trabalhos das frações
diaspóricas armênias ao redor do mundo para obterem o reconhecimento do genocídio
armênio, ou ainda o lobby judaico nos EUA para manter o apoio norte-americano ao Estado
de Israel. Portanto, não podemos obliterar o papel que essas pessoas exercem nas relações
internacionais quando conseguem se reorganizar em comunidades em todos os cantos do
planeta. Uma vez estabelecidas e tendo condições materiais, essas comunidades de imigrantes
iniciam um trabalho de reconstrução das redes de sociabilidade, evoluindo rapidamente para a
criação de uma pauta política que, frequentemente, se volta contra os causadores da violência
em massa responsável pela dispersão.
32
SHAIN, Yossi & BARTH, Aharon. “Diasporas and International Relations Theory” In:
International Organization. Cambridge: the IO Foundation, n. 57, 2003, p. 451.
33
Cf. OGELMAN, Nedim; MONEY, Jeannette; MARTIN, Philip L. “Immigrant cohesion and
political access in influencing host country foreign policy”. In: SAIS Review. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, Vol. 22, n. 2, 2002.
28
vilas e cidades do Império Otomano. Até a segunda metade dos oitocentos, a ideia de uma
“nação” armênia no Império era restrita a noção de uma comunidade religiosa – conhecida
pela denominação em turco-otomano millet – cuja autoridade máxima era o patriarca da
Igreja. A partir de 1848, estudantes armênios radicados em Veneza e Paris foram os
propulsores de um movimento literário que arraigou tanto a língua armênia quanto as ideias
de pátria ou nação, criando espaços alternativos de pertença nacional fora dos limites da Igreja
e permitindo que armênios na Europa, Anatólia e Cáucaso compartilhassem ou disputassem
visões de nação. Essa possibilidade de imaginar a nação armênia emergiu justamente,
seguindo Benedict Anderson, quando essa elite intelectual que pendulava entre cidades
europeias e a terra natal – seja no Império Otomano ou Russo – logrou êxito em quebrar o
predomínio da Igreja no acesso à verdade ontológica por meio da escrita e na naturalização da
verticalidade social – na qual o patriarca da Igreja Apostólica Armênia seria o líder da nação,
pois assim definia as leis e costumes otomanos34. Após grade disputa entre diferentes grupos
de interesses dentro do millet e tensões com a Sublime Porta, o governo otomano aceitou em
1863 um texto laico que regulava direitos e deveres dos armênios no Império, conhecido pelo
nome de “constituição nacional armênia”, que garantia a eles certa autonomia cultural e
religiosa35. A partir desse momento começou a existir a construção de uma ideia de nação
para além dos limites de uma comunidade religiosa dentro do Império Otomano e passava a
tomar forma a ideia de Armênia enquanto Estado-nação independente, com fronteiras,
símbolos e tradições próprias, distintas daquelas dos impérios Otomano, Russo e Persa, onde
os armênios eram autóctones, e, portanto, tinham como terra natal, mas já não como pátria.
Há, então, a invenção da Armênia enquanto pátria-mãe de todos os armênios, ainda que suas
fronteiras físicas e mentais sejam fluidas. Essa fluidez fica clara quando da independência da
pequena República Armênia em 1918. Algumas lideranças armênias na diáspora, como
Boghos Nubar, se recusaram por algum tempo de chamar o país na Transcaucásia de
“Armênia” – assim como fariam os anticomunistas quando da existência da Armênia
Soviética alguns anos mais tarde – pois esse não abrangia os territórios pleiteados junto ao
Império Otomano nos fóruns internacionais, sobretudo as províncias orientais e a Cilícia, terra
natal para a maior parte dos armênios na diáspora. Dessa forma, quando nos referimos aqui a
pátria-mãe pela qual Etienne Brasil, diplomata armênio no Rio de Janeiro, trabalhava para ser
(re)conhecida e amparada pelo seu país receptor, temos em mente uma nação imaginada como
34
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do
nacionalismo. Edições 70: Lisboa, 2012, pp. 56-57.
35
TERNON, Yves. Les Arméniens: histoire d’un génocide. Paris: Seuil, 1996, 2ª ed., pp. 50-53.
29
o lar nacional de todos os armênios, ainda que, na realidade, aqueles territórios, bandeira e
idioma36 fossem estranhos para a maior parte deles.
36
A língua armênia tem dois dialetos principais: o armênio ocidental, então falado no Império
Otomano, que era, grosso modo, o dialeto usado pela comunidade armênia em Constantinopla e
elevado ao status de dialeto “padrão” pelos intelectuais armênios na capital otomana no século XIX; e
o armênio oriental, alavancado ao status de língua literária também no século XIX pela
intelectualidade armênia baseada em Tiflis, falado na Armênia Russa e Pérsia. Para além das
subdivisões da língua armênia – inclua-se ainda o grapar, ou armênio clássico, utilizado pela Igreja –
deve-se ter em consideração que a língua franca para os armênios otomanos era o turco-otomano,
idioma que, não raramente, era o único falado por armênios em algumas regiões, o que parece ser o
caso de Etienne Brasil. Cf. KARAPETIAN, Shushan. How Do I Teach My Kids My Broken
Armenian?: A Study of Eastern Armenian Heritage Language Speakers in Los Angeles. Los Angeles:
Ph.D., Near Eastern Languages & Cultures, 2014.
37
RODRIGUES, Leda Boechat. “Grupos de pressão e grupos de interesse”. In: Curso de Introdução à
Ciência Política. Brasília: Centro de documentação política e relações internacionais da Universidade
de Brasília, 1974, p. 146.
38
SANSON, Alexandre. Dos Grupos de Pressão na Democracia Representativa: os limites jurídicos.
São Paulo: Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como requisito para
obtenção do título de Doutor em Direito do Estado, 2013, pp. 93-94.
30
oprimido por muçulmanos e que, por isso, mereciam apoio do mundo ocidental “civilizado”,
na luta contra a “barbárie”. A partir de 1918 e o estabelecimento da República Armênia, esse
grupo de interesse se converteu em um grupo de pressão, quando Etienne Brasil coordenou
investidas pessoais e coletivas nos pontos de acesso aos tomadores de decisão do governo
brasileiro – sobretudo no Itamaraty, mas também no Catete durante o governo Epitácio Pessoa
– a fim de envolver o Brasil no esforço costurado nos bastidores da Conferência de Paz de
Paris para garantir aos armênios um Estado independente com as dimensões territoriais
historicamente almejadas, dilapidando assim a porção oriental do recém-derrotado Império
Otomano. O auge da pressão dos armênios no Brasil ocorreu quando Etienne obteve
permissão para representar diplomaticamente o país junto ao governo brasileiro. Utilizando
conexões pessoais construídas ao longo de anos de trabalho no Rio de Janeiro como
sacerdote, professor, jornalista e membro de diversas instituições educacionais e intelectuais,
Etienne identificou os pontos de acesso, conseguindo assim interpelar diretamente o
Presidente da República Epitácio Pessoa – numa quebra do protocolo diplomático – desejoso
que o Brasil reconhecesse a independência da Armênia e tomasse partido o mais rápido
possível em um esforço internacional coordenado pela Liga das Nações para garantir a
estabilidade do país e afastar a ameaça turca sobre os territórios prometidos aos armênios.
Contudo, por mais habilidoso e audaz que fosse Etienne Brasil no seu papel de
convencimento e por mais eficazes que fossem seus contatos e estratégias para ser recebido e
ouvido no Itamaraty e Catete, suas investidas precisavam ter lastro moral, político e
econômico para que as reivindicações de um pequeno e longínquo país fizesse sentido no
Brasil da virada dos anos 1910-1920. Para tanto, o intelectual apostou no binômio
pragmatismo x humanitarismo para convencer a sociedade receptora e tomadores de decisão
de que apoiar a causa armênia seria do interesse brasileiro.
39
LAYCOCK, Jo. Imagining Armenia: Orientalism, ambiguity and intervention. Manchester:
Manchester University Press, 2009, p. 113.
40
Ibid., pp. 146-147.
41
WATENPAUGH, Keith David. Bread from Stones: the Middle East and the making of Modern
Humanitarianism. Oakland: University of California Press, 2015, p. 32.
42
Ibid., pp. 59-60.
32
Embora seja sabido que a pretensa “neutralidade” é inexistente e que toda “ajuda
humanitária” endereçada estava intrinsicamente ligada a uma lógica colonial e nacional,
Watenpaugh chama atenção para o fato de que os envolvidos acreditavam que suas ações
eram altruístas e isentas de interesses outros além da compaixão. O historiador também
destaca como essa ideia de “neutralidade” no humanitarismo moderno foi transplantada para o
conceito de direitos humanos, assumindo um caráter de que esse último estaria “para além da
política”44. Jo Laycock observa a mesma ideia presente nos apoiadores da causa armênia na
Grã-Bretanha, onde “muitos armenófilos estavam empenhados em enfatizar a natureza ‘não
partidária’ de seus interesses na causa”45. A “seletividade” do humanitarismo moderno
também interessa, na medida em que a ajuda enviada pelo Ocidente era endereçada não para
todos os que precisavam, mas especificamente para os cristãos que eram alvo de perseguição
do Império Otomano, sobretudo armênios, embora houvesse milhares de muçulmanos e
outras minorias não cristãs em condições degradantes na região. Refletindo, por exemplo,
sobre a ajuda da Grã-Bretanha aos armênios, Watenpaugh afirma que “[…] a ação britânica
foi motivada não por uma noção universal de direitos humanos, mas por uma identificação
transitória da utilidade dos armênios para finalidades geopolíticas e como um ato de
solidariedade cristã para uma ‘nação’ cristã em risco.”46 Em outras palavras: “[…] durante a
Grande Guerra no Oriente Médio, algumas emergências humanitárias ensejaram uma resposta
humanitárias. Outras não”47. Nesse sentido, o humanitarismo moderno se distingue da ideia
contemporânea de direitos humanos, na medida em que o primeiro é particularista, enquanto o
último é universalista48. Também é importante notar como a imagem dos armênios como
“povo necessitado” foi forjada pela comunidade internacional e pela Liga das Nações após a
emergência da República da Turquia e a falência de um projeto de um Estado-nacional para
43
“[…] the humanitarianism addressed more than just a response to their bodily suffering; it
embodied a bureaucratically organized and expert knowledge-driven effort to repair their human
being, reconnect them to their communities, and restore them to humanity”. Ibid., p. 15.
44
Ibid., p. 20.
45
“Many Armenophiles were keen to stress the 'non-party' nature of their interest in the cause”.
LAYCOCK, J. op. cit., p. 25.
46
WATENPAUGH , K. op. cit., 2015, p. 21.
47
“[…] during the Great War in the Middle East, some humanitarian emergencies prompted a
humanitarian response. Some did not”. Ibid., p. 32.
48
Ibid., p. 137.
33
os armênios49, como forma de aplacar a opinião pública ocidental após anos de pressão dos
apoiadores dos armênios que defendiam a importância de garantir àquele povo um torrão
nacional. Nas palavras de Richard Hovannisian, “se a questão [armênia] era uma questão de
sobrevivência física e política para o povo armênio, era igualmente um problema de
comprometimento moral e honra para o mundo civilizado” 50.
Essa imagem foi, em grande parte, construída por meio de ações de organizações
não vinculadas a governos, como as diversas missões protestantes norte-americanas e
europeias que estavam no Império Otomano desde o final do século XIX na tentativa de
converter os chamados “cristãos primitivos” às diversas ramificações do protestantismo. Esses
grupos de missionários atuavam em pequenas vilas e cidades otomanas, oferecendo
infraestrutura básica de saúde e educação para as populações que lá viviam, criando uma
estrutura semissecular, o que permitia a colaboração com a sociedade otomana51. Muitos
desses missionários escreviam relatórios, artigos e livros sobre as experiências que
vivenciaram no interior do Império Otomano, sobretudo durante a Grande Guerra e o
genocídio, mas também sobre as dificuldades do pós-guerra. Esses escritos criaram um novo
gênero na literatura norte-americana, cujas histórias de sofrimento e superação davam a tônica
das narrativas e ajudavam a criar empatia entre o povo norte-americano e os armênios em
dificuldade na Anatólia e Levante.52 Por outro lado, esses mesmos textos aprofundavam a
imagem do Ocidente acerca do Império Otomano e do Oriente, como uma terra de selvageria
e barbárie onde haveria de acontecer uma “missão civilizadora”, cuja humanização e
modernização seria o “fardo do homem branco”53, para lembrar o célebre poema de Rudyard
Kipling escrito em 1899. Watenpaugh assim resume a criação de uma imaginação humanitária
entre o “sujeito” – Ocidente – e o “objeto” – o “oriental” – da ação, levando em consideração
o surgimento de grupos de interesse e o estabelecimento de pontos de contato entre as duas
partes, gerando empatia através de um discurso que valoriza narrativas civilizatórias que, ao
fim, desagua nas pragmáticas necessidades políticas e morais ocidentais para com o grupo-
alvo da ação humanitária:
49
Ibid., p. 28.
50
“if that [Armenian] question was a matter of physical and political survival for the Armenian
people, it was equally a matter of moral commitment and honor for the civilized world”.
HOVANNISIAN, Richard G. The Republic of Armenia: from London to Sèvres, February-August
1920. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1996, vol. III, p. 372.
51
WATENPAUGH, D. op. cit., 2015, pp. 17-18.
52
Ibid., p. 26.
53
Ibid., p. 5.
34
54
“Creating or perhaps becoming an object of humanitarianism was an accretive act that derived not
just from the severity of need but also from the way groups and individuals in need became inscribed
in the humanitarian imagination. In this sense, the humanitarian imagination is the organizing
principle of organized compassion: it is defined by historical encounters between the subjects and
objects of humanitarianism; by the existence of constituencies, advocacy groups, and diasporas; by
the prevailing logics of civilizations narratives; and by how successfully empathy is created and then
sustained. The humanitarian imagination is additionally shaped by how the salvation of those in
danger meets the political and moral needs of the humanitarian subject, and whether or not those
helped are gauged to be deserving of that help. The most critical feature of the humanitarian
imagination, however, is how the emergency is formulated and then understood as a problem for
humanity because it is a problem of humanity. […] it is an emotional and intellectual response that is
built on more than an acknowledgement of the humanity of the object, but is formed through narrative,
photographic imagery, and formal identification in an act of class, social, or religious solidarity.”
Ibid., pp. 33-34.
35
possui – trazendo para o debate na imprensa e nos círculos políticos a necessidade moral e o
dever civilizatório do povo e do governo brasileiro em apoiar os armênios.
55
In-between spaces, no original.
56
LAYCOCK, J. op. cit., p. 19
57
“Instead images of Armenia have been characterised by ambiguity and fluidity”. Ibid., p. 11.
58
“[...] muito próxima ao centro de toda a política européia no Leste, estava a questão das minorias,
cujos 'interesses' as Potências, cada uma a seu modo, afirmavam proteger e representar. Judeus,
ortodoxos gregos e russos, drusos, circassianos, armênios, curdos, as várias pequenas seitas cristãs:
todos esses eram objeto de estudos, planos e projetos das Potências Européias, que improvisavam e
construíam a sua política oriental”. SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do
ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 265.
36
A ideia inicial para esta pesquisa nasceu do contato com arquivos particulares de
famílias de imigrantes armênios em São Paulo, bem como com as bibliotecas e arquivos das
entidades comunitárias, onde há um grande número de jornais, revistas, panfletos e livros
produzidos pelos armênios em São Paulo desde os anos 1920. Durante essas incursões, surgiu
a figura de Etienne Brasil, mencionado en passant em alguns textos e publicações
comunitárias60 como o primeiro diplomata da Armênia no Brasil, sem maiores detalhes sobre
sua biografia ou trajetória profissional. Causava estranheza a falta de informações sobre esse
indivíduo de nome peculiar que foi o primeiro representante diplomático da efêmera
República Armênia (1918-1920) no Rio de Janeiro, onde havia poucos armênios e quase
nenhum traço de uma vida comunitária. Pairava no ar a dúvida de como e porque uma
representação diplomática armênia foi estabelecida na então capital federal nos anos 1910 e,
sobretudo, qual teria sido a sua ação junto ao Catete e ao Itamaraty.
59
LAYCOCK, J. op. cit., p. 33.
60
Cf. VARTANIAN, Yeznig. Brazilioh Hay Kaghuthë: Badmagan Degheguthiunner ev
Jamanagakruthiun 1860-ên mintchev 1947-i Vertchë. Buenos Aires: Siphan, 1948.
37
Assim, para além de uma história da política externa brasileira vis-à-vis a causa
armênia que pode ser apreendida por meio dos documentos diplomáticos, podemos analisar
como a retórica de Etienne Brasil – apresentando os armênios como um povo cristão oprimido
e ameaçado pelo poder imperial otomano muçulmano – ajudou a lançar as bases do
humanitarismo moderno no Brasil. Movimento semelhante pode ser observado na Europa e
nos EUA, sobretudo com relação à questão latente de como lidar com milhares de
sobreviventes que não tinham pátria nem terra e se acumulavam em campos de refugiados no
Oriente Médio.
61
Tais documentos foram citados pela historiadora em sua tese de doutorado. Cf. GOLDFELD,
Monique Sochaczewski. op. cit.
38
Brasil ao Ministério de Relações Exteriores. Nesse fundo não há as cartas recebidas por
Etienne desde o Itamaraty, tampouco as missivas enviadas pelo governo armênio dando
instruções de como ele deveria proceder enquanto representante diplomático – esses
documentos provavelmente se perderam, pois não havia à época uma instituição armênia no
Brasil para custodiá-los. Contudo, ainda há outra parte desse corpus que pode ser consultado:
são as cartas enviadas por Etienne Brasil à Delegação da República Armênia em Paris, que
comandava de fato a política externa do país entre 1918 e 1920, depositadas nos arquivos da
Federação Revolucionária Armênia em Massachusetts, EUA, cuja consulta não é permitida
devido a questões logísticas e estratégicas. Entretanto, alguns pesquisadores que tiveram a
chance de trabalhar nesses arquivos antes deles serem definitivamente fechados conseguiram
fazer cópias em microfilme de uma parte do acervo e assim, contando com a colaboração
desses, foi possível consultar as cartas de Etienne Brasil aos seus superiores.
dos séculos do que rotular de “declínio” ou “crise” um período que começaria em 1683,
quando o exército otomano falhou na conquista de Viena, até 1922, com a proclamação da
República da Turquia, intervalo temporal que é, a rigor, mais extenso do que o apogeu do
Império Britânico66. Indubitavelmente, foi nos Oitocentos que o que a historiadora chama de
“fase final otomana” obteve contornos dramáticos. Para os armênios, povo que naquela altura
estava dividido entre os domínios dos impérios otomano e russo, a crise otomana aparecia
como a oportunidade de reivindicar maior autonomia e direitos junto à Sublime Porta67, que
se encontrava pressionada pelas Potências europeias, desejosas de maior capilaridade nos
negócios otomanos. A questão das minorias no Império foi, então, instrumentalizada por
atores como o Império Russo e a Grã-Bretanha para interferir nos assuntos otomanos em
nome da proteção dos súditos cristãos do sultão que viviam há muito com status diferenciado
dos turcos e outros grupos muçulmanos, não obstante tentativas malfadadas de reformas como
os decretos conhecidos como Tanzimat, que preconizavam o otomanismo, isto é, a ideia de
que todos os habitantes do Império seriam iguais pelo fato de serem todos otomanos, numa
tentativa de secularização e modernização da estrutura teocrática turca que proibia os cristãos
ascensão na burocracia otomana ou taxava-os suplementarmente68.
O período do Tanzimat – que é mais comumente situado entre 1839 e 1876 – foi
profícuo na proposição de alterações na estrutura burocrática e fiscal do Império Otomano
com vistas à sua reestruturação numa tonalidade mais ocidental, mas pouco efetivo de fato. A
finalidade última, de acordo com Alan Palmer, era a reorganização do exército, que não seria
possível sem um novo sistema tributário que fosse capaz de arrecadar mais e de forma mais
eficiente69. Para Donald Quataert, “o objetivo das reformas era, por um lado, suprimir os
privilégios legais dos muçulmanos e, por outro, levar a que os cristãos sob os auspícios da
proteção europeia voltassem a submeter-se à jurisdição do Estado otomano e ao seu sistema
judicial”70. Outras medidas também estavam na alça de mira dos idealizadores da
reestruturação, como o desenvolvimento de um sistema educacional secular, a garantia do
direito à propriedade e igualdade religiosa, propostas que tiveram alcance reduzido. O
66
GOLDFELD, Monique Sochaczewski. “O Império Otomano e a Grande Guerra”. In: Revista
Brasileira de Estudos Estratégicos. Rio de Janeiro: Luzes/Instituto de Estudos Estratégicos (UFF), nº
5, vol. I, 2015, p. 242.
67
Sublime Porta (Bab-i Ali) ou simplesmente Porta, alcunha dada ao governo otomano.
68
BLOXHAM, D. op. cit., p. 31.
69
PALMER, Alan. Declínio e Queda do Império Otomano. São Paulo: Globo Livros, 2013, pp 110-
111.
70
QUATAERT, Donald. O Império Otomano: das origens ao século XX. Lisboa: edições 70, 2008,
pp. 88-89.
42
impacto maior do Tanzimat foi sentido em 1856, quando por pressão ocidental na esteira do
armistício entre otomanos e russos que pôs fim à Guerra da Crimeia, o então sultão
Abdülmecid emitiu dois éditos que garantiriam a igualdade entre muçulmanos e não
muçulmanos e a modernização do sistema de recolhimento de impostos que tiraria das mãos
de líderes locais a arrecadação, centralizando-a71. Contudo, nos confins do Império Otomano,
como na Anatólia ou na Bósnia-Herzegovina, as reformas do Tanzimat foram recebidas pelas
elites muçulmanas locais com resistência e hostilidade, que não abriram mão de seus
privilégios como a arrecadação de impostos, o que significou para os não muçulmanos –
armênios, inclusive – na prática, uma dupla taxação: uma pelas autoridades locais, outra pelos
agentes da Sublime Porta.
Ainda que fossem uma minoria numerosa – cerca de dois milhões – no Império
Otomano, os armênios não constituíam maioria demográfica que pudesse servir de base para
um território nacional autônomo – ao contrário do que acontecia com os gregos nos Bálcãs,
por exemplo – e estavam espalhados pela Anatólia Oriental – ou Armênia Ocidental,
composta pelas províncias de Van, Erzurum, Bitlis, Diyarbakir, Harput e Sivas, onde
armênios e curdos eram os grupos majoritários – e pela Cilícia – outrora um reino armênio,
também chamado de “Armênia Menor”, onde os armênios eram entre 20-25% da população
local no século XIX72. Embora a maior parte da população armênia fosse composta de
camponeses, havia uma dinâmica elite urbana ligada a atividades comerciais e burocráticas
em grandes cidades como a capital do Império, Constantinopla, e Esmirna – hoje İzmir – que
estavam em contato permanente com outros armênios residentes em outros centros urbanos
importantes da região como Tiflis – hoje Tblissi, capital da atual República da Geórgia – e
Baku – capital da atual República do Azerbaijão – além de outros que estavam integrados à
alta sociedade de cidades europeias como Londres, Paris e Genebra. A prosperidade de alguns
homens de negócios armênios somada à piora da condição de vida de toda a população do
interior do Império Otomano ajudou a criar, entre os muçulmanos, um estereótipo do cristão
bem-sucedido que lucrava enquanto os demais pagavam as contas. Nas palavras do
historiador britânico Donald Bloxham:
71
Ibid., p. 127.
72
Ibid., p. 39.
43
Essa elite armênio-otomana buscava dar educação europeia aos seus filhos,
incialmente em escolas francesas, inglesas e norte-americanas, estabelecidas no Império numa
espécie de efeito colateral das malfadadas reformas do Tanzimat, que lograram, contudo, abrir
o Império Otomano a uma maior penetração econômica e social do Ocidente, seja por meio
do capital financeiro, seja por meio de missões religiosas que fundaram instituições de ensino
e filantropia no país. Os filhos das elites buscavam seus diplomas superiores em universidades
da Grã-Bretanha, França, Império Alemão ou Russo, ajudando a forjar uma identidade
nacional secular74. A influência da cultura política ocidental somou-se ao que Bloxham chama
de renascimento cultural armênio no século XIX, quando uma literatura em idioma vernáculo
se desenvolveu e lançou as bases para o protonacionalismo desse povo, que iria desabrochar
de fato com a eclosão da chamada “questão oriental” depois da Guerra Russo-Turca de 1877-
78, ou seja, a questão de autonomia e garantia de direitos aos povos não muçulmanos do
Império Otomano75. Nos termos de Benedict Anderson, “A juventude era, sobretudo, a
primeira geração a adquirir uma educação europeia em número significativo, o que a
demarcava linguística e culturalmente da geração dos seus pais, bem como da vasta multidão
dos colonizados da mesma classe etária”76.
Outro processo importante foi a mudança no sistema de millet nos anos 1850. Um
millet era uma comunidade – seja ela armênia, grega, judia, católica ou protestante – chefiada
pelo líder religioso máximo de cada grupo que tinha poderes civis, fiscais, educacionais e
penais sobre seus fiéis, ainda que ele estivesse em última instância subordinado ao sultão
otomano. No caso do millet armênio, o chefe era o patriarca da Igreja Apostólica Armênia –
posteriormente os millets armênios católico e protestante foram criados – e em 1863 logrou
73
“[...] the anti-Christian stereotype was founded upon urban merchants, moneylenders, and
‘middlemen’ and rural traders; upon certain regions and elements of the agricultural economy,
notably in Cilicia; and upon the association of Armenian success with Westernalization and foreign
influences, because of the Armenian trade networks. The prominence of some individual Armenians of
capitulatory benefits seemed to confirm a picture of Christians not pulling together with the Muslim
population in the interests of the state on whose territory they dwelled.” Ibid., p. 41.
74
SAHAKYAN, Vahe. Between Host-Countries and Homeland: Institutions, Politics and Identities in
the Post-Genocide Armenian Diaspora (1920s to 1980s). Ann Arbor: A dissertation submitted in
partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy (Near Eastern Studies) in
the University of Michigan, 2015, p. 37,
75
BLOXHAM, D. op. cit., pp. 44-45.
76
ANDERSON, B. op. cit., p. 163.
44
A questão armênia atingiu a esfera internacional com a vitória das tropas tsaristas
na Guerra Russo-Turca em 1878 e a solicitação armênia para que a Rússia colocasse na pauta
dos tratados pós-guerra a autonomia e proteção desse povo. Apesar do aceite russo – que
contou com armênios em suas fileiras durante os combates contra o Império Otomano,
inclusive em postos de comando do exército tsarista – a autonomia dos armênios nas
províncias orientais do Império Otomano foi vetada pelos representantes britânicos que
temiam a ampliação da influência russa naquela região, sendo substituída por uma menção
vaga a um compromisso da Sublime Porta em garantir a segurança dos armênios ante os
assaltos curdos e circassianos, no artigo 16 do Tratado de San Stefano em 3 de março de
187879. A discordância entre as Potências ocidentais e os beligerantes fez com que o Tratado
fosse revogado e um congresso fosse realizado em Berlim, entre junho e julho do mesmo ano,
afiançado por Bismark. Nessa ocasião, algumas pautas da questão oriental avançaram e
Sérvia, Montenegro e Romênia garantiram suas independências, ainda que a Bulgária não
tenha tido a mesma sorte. Os armênios enviaram uma delegação mista, formada por religiosos
e leigos, chefiada por Mkrtich Khrimian, ex-patriarca armênio de Constantinopla (1869-73) e
77
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 38.
78
Como os circassianos, que hoje reivindicam que foram alvo de um processo genocida nos anos
1850-60. Cf. KREITEN, Irma. “A colonial experiment in cleansing the Russian conquest of Western
Caucasus, 1856-65”. In: Journal of Genocide Research. Routledge, 11:2, 2009.
79
TERNON, Y. op. cit., pp. 63-65.
45
figura central na construção do discurso de criação de uma pátria armênia nas províncias
orientais da Anatólia80.
80
SAHAKYAN, V. op. cit., pp. 38-39.
81
TERNON, Y. op. cit., p. 69.
82
BLOXHAM, D. op. cit., p. 45.
83
SAHAKYAN, V. op. cit., pp. 42-43.
84
Ibid., pp. 45-47.
46
85
Ibid., p. 48.
86
Ibid., pp. 48-49.
87
“As they worked out the balance of their doctrine, for both the Hnchaks and the ARF [Dashnak]
nationalism came to predominate over socialism. The Hnchak goal was the creation of an independent
socialist Armenia; the ARF’s was, as a first stage at least, an autonomous Armenia under Ottoman
suzerainty”. BLOXHAM, D. op. cit. p. 49.
88
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 54.
47
89
McMEEKIN, Sean. O Expresso Berlim-Bagdá: o Império Otomano e a tentativa da Alemanha de
conquistar o poder mundial, 1898-1918. São Paulo: Globo, 2011, p. 57.
90
BLOXHAM, D. op. cit, p. 51.
91
O Banco Otomano foi fundado com capital anglo-francês em 1863. PALMER, A. op. cit., p. 137.
92
BOGOSIAN, Eric. Operation Nemesis: The assassination plot that avenged the Armenian Genocide.
Nova York: Little, Brown, 2015, pp. 55-56.
93
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 51.
94
BLOXHAM, D. op. cit., p. 53.
48
1870 e 1910, cerca de 100 mil armênios emigraram e entre 1890 e 1910 pelo menos 741 mil
hectares de propriedades armênias foram ilegalmente tomadas ou confiscadas por
representantes do Estado” 95.
95
“Between 1870 and 1910 some 100,000 Armenians emigrated, and between 1890 and 1910 at least
741,000 hectares of Armenian property were illegally taken or confiscated by representatives of the
state”. Ibid., p. 48.
96
Ibid., p. 55.
97
Cf. DEMOYAN, Hayk (org.). Armenian Genocide: Frontpage Coverage in the World Press.
Yerevan: Armenian Genocide Museum-Institute, 2014.
98
BLOXHAM, D. op. cit., p. 58.
49
oriundas das bordas do Império – onde era mais sensível a fragmentação do país99 –
defendiam o panturquismo para que o território otomano recuperasse seu tamanho de outrora
e que os milhares de muçulmanos refugiados após os conflitos com o Império Russo e as
guerras nos Bálcãs pudessem ser reassentados100. Para Eric Hobsbawm, o grupo
Ansiosos por mudanças, as minorias viam com bons olhos a ascensão dos
chamados Jovens Turcos, o que fez com que o Dashnak apoiasse o grupo na tentativa de
restringir constitucionalmente o poder de Abdul-Hamid II e, assim, dar mais autonomia aos
armênios otomanos102. Logo, o partido desmobilizou parte de seus grupamentos armados que
haviam sido organizados para a autodefesa contra as investidas das tropas do sultão, num giro
em direção ao constitucionalismo e à política parlamentar. O Hnchakyan, embora também
tenha defendido a via parlamentar logo após a ascensão do CUP, refutou qualquer
possibilidade de aliança com os Jovens Turcos por entender que a política para as minorias
desse grupo intencionava, no limite, a assimilação aos valores turcos por meio do rótulo
homogeneizante do “otomanismo”103.
Contando também com o apoio de boa parte das forças armadas e de grupos
muçulmanos descontentes com a crise econômica e política que tomava conta do Império há
décadas, o Comitê União e Progresso assumiu de fato o poder em 1908, sem depor Abdul-
Hamid II, que permaneceria como peça figurativa até o ano seguinte, quando uma tentativa de
99
“[...] foi na Turquia Europeia que a interferência externa foi mais incômoda e a autoridade imperial
foi mais fortemente questionada”. MAZOWER, Mark. Salônica: cidade de fantasmas: cristãos,
muçulmanos e judeus – 1430-1950. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 283.
100
BLOXHAM, D. op. cit., p. 59.
101
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2003, 8ª ed., pp. 393-
394.
102
O mesmo aconteceu com os gregos. MAZOWER, M. op. cit., p. 290. O historiador norte-
americano Sean McMeekin afirma que em 1896 o Dashnak se aliou ao CUP para preparar a derrubada
do sultão, num putsch debelado pelos serviços de inteligência da Porta. McMEEKIN, S. op. cit., p. 75.
103
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 54.
50
contragolpe orquestrada por forças leais ao sultão fez com que ele fosse exilado para Salônica,
sendo seu irmão entronado em seu lugar. A constituição otomana suspensa por Abdul-Hamid
II foi restaurada e Enver, principal líder do movimento, anunciou ao chegar vitorioso em
Salônica: “Cidadãos! Hoje o soberano arbitrário desapareceu, o governo ruim não mais existe.
Somos todos irmãos. Não há mais búlgaros, gregos, sérvios, romenos, judeus, muçulmanos
[omite-se os armênios] – sob o mesmo céu azul, somos todos iguais, orgulhamo-nos todos de
ser otomanos!”104. Entretanto, a queda do sultão e a restauração da ordem constitucional não
foram suficientes para estancar a crise política, cuja principal fonte era a fragmentação da
porção otomana nos Bálcãs, onde nações cristãs buscavam independência num movimento
que dilapidava o que Perry Anderson definiu como “centro nevrálgico” do Império105 ao
mesmo tempo em que criava um fluxo de refugiados muçulmanos que foram reassentados
pela Porta ao longo das estradas de ferro que cortavam a Anatólia e as províncias orientais,
densamente povoadas por armênios. Bloxham estima que a região recebeu 400 mil imigrantes
muçulmanos, num território que até meados do século XIX tinha aproximadamente 56% de
população não muçulmana106.
104
“Mais tarde”, continua Mazower sobre Enver, “viria a decisão desastrosa de ingressar na Grande
Guerra do lado da Alemanha, a subsequente campanha militar no Cáucaso, o genocídio armênio e sua
fuga e morte nos campos de batalha da Ásia Central durante a guerra civil russa”. MAZOWER, M. op.
cit., pp. 285-286.
105
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1989, 2ª ed., p. 383.
106
BLOXHAM, D. op. cit., p. 63.
107
Ibid., p. 60.
51
o bispo Kud Mekhitarian que nos anos 1920 chegaria em São Paulo e se tornaria um dos
principais organizadores da nascente comunidade armênia na cidade108.
A radicalização dos Jovens Turcos atingiu contornos ainda mais dramáticos nos
primeiros anos da década de 1910, quando revoltas em Damasco e no Iêmen, mas sobretudo a
perda da região de Trípoli para a Itália em 1911 e a derrota na Guerra dos Bálcãs entre 1912-
13 (anexo: Figura 3) deram espaço para a ascensão dentro do Comitê União e Progresso de
um grupo mais radical liderado pelos três paxás: Ismail Enver, Mehmet Talât109 e Ahmed
Cemal110, numa espécie de golpe dentro do golpe consumado em janeiro de 1913111. Os três
ocuparam os principais postos do governo otomano e amplificaram para todo o país a retórica
turcófila e anticristã, com a defesa da homogeneização do Império Otomano pautada pelo
nacionalismo turco e pelo Islã. Boicotes de negócios gregos e armênios foram organizados e
incentivados pelos Jovens Turcos, nunca tentativa de enfraquecer o poder econômico dos
cristãos ao mesmo tempo em que fortalecia os dos muçulmanos a fim de criar uma “burguesia
turco-muçulmana”, nos termos de Donald Bloxham, e uma economia nacional dominada por
“cidadãos confiáveis”112. A Guerra nos Bálcãs e a deterioração das relações turco-armênias
fizeram com que os grupos armênios que ainda mantinham algum tipo de diálogo com o CUP
deixassem de apoiá-lo, retomando a negociação com as Potências europeias e com o Império
Russo para que esses tomassem parte na questão das minorias otomanas, o que resultou num
plano de reformas esboçado pelos russos com o apoio do patriarca armênio em Echmiadzin –
localidade na chamada “Armênia Russa”, isto é, fora das fronteiras otomanas – que foi
rapidamente condenado pelos alemães que viam na proposta uma tentativa tsarista de
promover a autonomia armênia para anexar em momento oportuno as províncias otomanas
ocupadas por aquele povo. Para Talât e os líderes do CUP, o pedido de intervenção das
lideranças armênias em um momento que a fragmentação imperial era dramática foi a gota
d’água. Na visão da cúpula do Comitê, ou a questão armênia encontrava uma solução “para os
próximos 50 anos”, ou o Império Otomano perderia a Anatólia assim como havia perdido os
Bálcãs113.
108
MEKHITARIAN, Kud. Husher yev Veryishumner. Antilias, Líbano: Patriarcado Armênio da
Cilícia, 1937, p. 97.
109
Ou Talaat, como é lido.
110
Frequentemente grafado como Djemal, conforme pronúncia da letra C na língua turca.
111
BLOXHAM, D. op. cit., p. 60.
112
Ibid., pp. 63-64.
113
Ibid., p. 65.
52
114
A Bósnia-Herzegovina havia sido província otomana até os anos 1908-09, quando foi anexada pelo
Império Austro-Húngaro. MACMILLAN, M. op. cit., 2014, pp. 404-438.
115
McMEEKIN, S. op. cit., p. 55.
116
MACMILLAN, M. op. cit., 2014, p. 408.
117
Ibid., p. 404 e 420. Cf. também McMEEKIN, S. op. cit.
118
McMEEKIN, S. op. cit., p. 134.
53
A sorte otomana parecia ter virado em abril de 1915, quando as forças turco-
germânicas do V Exército derrotaram a marinha britânica que tentava atravessar os estreitos
que dividem a Europa da Ásia – e cortam a capital otomana no meio – considerados a
119
BLOXHAM, D. op. cit., p. 66.
120
MACMILLAN, M. op. cit., 2014, p. 465.
121
McMEEKIN, S. op. cit., p. 210.
122
Ibid., p. 339.
54
123
Ibid., p. 220.
124
AKÇAM, Taner. The Young Turks’ Crime Against Humanity: the Armenian Genocide and ethnic
cleansing in the Ottoman Empire. Princeton: Princeton University Press, 2012, pp. 341-371.
125
“[…] the war was used as a cover for the genocide, yet it the crime could not perforce have been
planned against an unsure future, such planning as there was must have developed after the
declaration of war” BLOXHAM, D. op. cit., pp. 66-67.
55
126
Sobre o trabalho (compulsório ou não) de armênios na construção de ferrovias como a lendária
Berlim-Bagdá, Sean McMeekin frisa, em diversas oportunidades em seu livro, como a deportação de
armênios atrapalhou os planos de finalizar a estrada de ferro planejada pelos alemães. McMEEKIN, S.
op. cit., passim.
127
BLOXHAM, D. op. cit., p. 77.
128
HOLQUIST, Peter. “The politics and practice of the Russian occupation of Armenia, 1915-
February 1917”. In: SUNY, Ronald Grigor; GÖÇEK, Fatma Müge & NAIMARK, Norman M. A
Question of Genocide: Armenians and Turks at the end of the Ottoman Empire. Nova York: Oxford
University Press, 2011, p. 151.
56
convencendo o governo do CUP que tinha uma quinta-coluna nas mãos. Por
seu lado, os autores armênios, embora concordando que alguns concidadãos
haviam se envolvido em atividades guerrilheiras, argumentavam que tinham
somente fornecido ao governo otomano um pretexto conveniente para o que,
na realidade, fora um ato deliberado e premeditado de genocídio129.
129
McMEEKIN, S. op. cit., p. 275.
130
Ibid., p. 281. Porém, praticamente culpando os armênios pelo que viria, ele conclui: “Os armênios
tinham todos os móvitos possíveis para se armar e a fim de se proteger e buscar a ajuda dos russos e
seus armamentos, mas, com isso, inevitavelmente provocaram a própria repressão que temiam”. Ibid.,
p. 281.
131
Eric Hobsbawm afirma genericamente que “A Primeira Guerra Mundial produziu a morte de um
incontável número de armênios pela Turquia – a cifra mais aceita é de 1,5 milhão – o que pode ser
considerada como a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma população”. HOBSBAWM,
Eric. The Age of Extremes. Nova York: First Vintage Books, 1996, p. 50. Donald Bloxham trabalha,
por sua vez, com a estimativa de um milhão de armênios otomanos mortos, avalizado por pesquisas
demográficas sobre o período da Grande Guerra.
132
Que iriam compor o que alguns chamam de grande diáspora armênia, diferenciando assim
migrações forçadas que aconteceram em outros períodos da história desse povo. SAHAKYAN, V. op.
cit., p. 1.
57
A extensão dos massacres foi rapidamente conhecida pelo Ocidente, que era
inundado por relatórios de diplomatas, missionários e correspondentes internacionais sobre o
que acontecia com os armênios no interior do Império Otomano. Em maio de 1915, França,
Grã-Bretanha e Império Russo – por pressão desse último – emitiram uma declaração
conjunta acusando o Império Otomano de ser responsável por “crimes contra a humanidade –
e civilização” cometidos contra os armênios134. Originalmente, os aliados cogitaram declarar
o governo otomano culpado por crimes contra a humanidade e “cristandade”, mas esse último
termo foi substituído pela ideia de civilização, ilustrando o que Keith David Watenpaugh
afirma ser um dos componentes-chave do humanitarismo moderno: a fusão – e, algumas
vezes, confusão – das ideias de civilização e humanidade e a equalização de um conceito
ecumênico – embora marcado pela matriz protestante – de cristandade com civilização135.
Enquanto isso, a leste das fronteiras otomanas, nos territórios ocupados por
armênios na Transcaucásia – comumente chamados de Armênia Russa, resultado da expansão
tsarista no início do século XIX no Cáucaso – alguns milhares de armênios que haviam
conseguido fugir do Império Otomano em direção ao Leste se juntaram a outros tantos que
haviam permanecido do lado russo no front de batalha, sob a liderança dos Dashnaks e de
133
Cf. ÜNGÖR, U. & POLATEL, M. op. cit.
134
POWER, S. op. cit., p. 29. Cf. também HOLQUIST, Peter. The Russian Empire as a “Civilized
State”: International Law as Principle and Practice in Imperial Russia, 1874-1878. Washington, D.C.:
The National Council for Eurasian and East European Research, 2004.
135
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, pp. 59-60.
58
136
TER MINASSIAN, Anahide. La République d’Arménie. 1918-1920. Bruxelas: Editions Complexe,
1989, pp. 49-51.
59
137
Ibid., pp. 54-56.
138
Ibid., p. 72.
60
e nem mesmo do governo armênio e mantiveram suas tropas mobilizadas que entravam em
confronto com turcos e azerbaijanos na região sul da Transcaucásia139.
Meu governo não tem qualquer precedente sobre o qual possa se apoiar. Ele
não beneficia de qualquer herança do governo anterior. Nem mesmo herda
reservas constituídas pelo poder central. Ele deve começar tudo do início.
Ele deve estabelecer um organismo viável e funcional a partir de um caos
informe e de um monte de ruínas. Por outro lado, o governo vê o país em um
estado que só pode ser qualificado por uma palavra: catastrófico!141
Além das dificuldades internas – como, por exemplo, dar asilo a 450 mil
refugiados, combater epidemias de cólera e tifo e crises de abastecimento – os armênios
precisavam se afirmar no cenário internacional, aproveitando o final da Guerra para tentar
garantir territórios que haviam sido perdidos para os vizinhos nos meses anteriores. Com
efeito, grupos armados armênios conseguiram recuperar alguns territórios do derrotado
Império Otomano, enquanto disputavam outros com a Geórgia. Simultaneamente,
representantes armênios pressionavam as Potências na Conferência de Paz de Paris em 1919.
Essa representação era composta por duas figuras principais.
A primeira era Boghos Nubar, abastado homem de negócios cuja fortuna familiar
teve origem no Cairo, onde ele fundou e presidiu a União Geral Armênia de Beneficência
(UGAB) em 1906, instituição filantrópica para ajuda dos armênios atingidos pelas
139
Ibid., pp. 83-86.
140
Ibid., pp. 112-116.
141
« Mon gouvernement n’a aucun précédent sur lequel il puisse s’appuyer. Il ne recueille aucun
héritage du gouvernement antérieur. Il n’hérite même pas de réserves constituées par le pouvoir
central. Il doit tout commencer depuis le début. D’un chaos informe et d’un monceau de ruines, il doit
tirer un organisme viable et fonctionnel. D’autre part, le gouvernement trouve le pays dans un état qui
ne peut être qualifié que d’un seul mot : catastrophique! » Hovhannes Katchaznouni, 3 de agosto de
1918 apud TER MINASSIAN, A. op. cit., pp. 114-115.
61
perseguições no Império Otomano. Boghos Nubar foi indicado como “representante do povo
armênio na Europa” no contexto do final da Guerra dos Bálcãs pelo patriarcado armênio142 e
usava todo seu prestígio e redes de contatos para ter acesso aos tomadores de decisão das
Potências. Orbitavam em torno de Boghos Nubar indivíduos como Archag Tchobanian, poeta
radicado em Paris e líder do partido democrata liberal armênio, que seria um dos primeiros
contatos que o então padre Etienne Brasil teria com lideranças armênias de relevo mundial,
ainda no ano de 1913. O filantropo foi também o responsável, após negociações com Paris e
Londres, pela criação da Legião do Oriente, divisão militar estrangeira, incorporada ao
exército francês em 1916, composta por voluntários armênios de diversas partes do mundo e
por combatentes independentes com o intuito de libertar a região da Cilícia do Império
Otomano. De acordo com o pesquisador Narciso Binayán, somente da Argentina cerca de 170
homens deixaram o porto do Rio da Prata rumo à Marselha com o objetivo de ingressar na
Legião143. Esses combatentes ocupariam a Cilícia sob supervisão francesa ao final da Grande
Guerra – cumprindo o acordo de Sykes-Picot – e ali permaneceriam até Paris reconhecer a
soberania turca em 1920 e retirar seus contingentes da região, promovendo uma nova onda de
perseguições aos cerca de 150 mil armênios que haviam retornado a cidades como Marash e
Adana contando com a segurança oferecida pelas tropas francesas144. Não obstante, a Legião
do Oriente foi uma das bases para formação do exército da recém-proclamada república145.
142
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 57.
143
CARMONA, Narciso Binayán. Entre el Pasado y el Futuro: los armenios en Argentina. Buenos
Aires: Editorial Armerias, 1996, p. 91.
144
TER MINASSIAN, A. op. cit., p. 172.
145
Cf. VARNAVA, Andrekos. “French and British Post-War Imperial Agendas and Forging an
Armenian Homeland after the Genocide: The Formation of the Légion d’Orient in October 1916” In:
The Historical Journal, 57, pp. 997-1025.
146
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 58.
62
território que ligasse a “república araratiana” à Cilícia, o que fez com que Aharonian ajustasse
o foco de suas reivindicações e encampasse a agenda do filantropo147. A aproximação foi
consolidada em dois congressos no começo de 1919, nos quais houve o consenso de que
haveria de acontecer um esforço de união em nome de uma “Armênia livre e independente”, o
que durou pouco tempo, pois o Dashnak, partido da situação na república, clamava para si e
seu governo o direito a autoridade executiva e legislativa sobre os assuntos armênios148. O
cisma fez com que ambas as delegações frequentassem os fóruns internacionais
independentemente, mas foi o grupo de Aharonian o reconhecido pela comunidade
internacional como representante legítimo da República Armênia. De acordo com Richard
Hovannisian “os Aliados podiam ter muito mais respeito e confiança em Boghos Nubar, mas
foi Avetis Aharonian o convidado a apor a assinatura no Tratado de Sèvres”149. Foi ele quem
nomeou Etienne Brasil o representante diplomático armênio no Brasil e se tornou o principal
interlocutor do intelectual radicado no Rio de Janeiro durante o seu período em ofício. Para
Ter Minassian, todavia, as diferenças políticas não impediam que ambos os representantes
trabalhassem pela causa armênia, ainda que adotando estratégias e discursos distintos150. Na
prática, Boghos Nubar representava os interesses e anseios dos armênios ocidentais, oriundos
do Império Otomano – o que incluía bem-sucedidos homens de negócios otomanos que
mesmo antes do genocídio viviam em grandes centros europeus – enquanto Aharonian, com
o seu mandato assegurado pela República Armênia e pelo Dashnak, ficou associado com os
chamados outrora de “armênios russos”, isto é, aqueles que habitavam a Transcaucásia e seus
principais centros, como Tiflis e Baku. O desafio dos líderes de ambos os grupos era a
consecução da unificação armênia, com os territórios otomanos e caucasianos, abarcando,
assim, o interesse de todos. As tensões se tornavam mais visíveis quando, por exemplo,
durante a barganha geopolítica, Aharonian e o governo da república aceitaram abrir mão de
determinados territórios na Anatólia visando a manutenção de outros na Transcaucásia, o que
enfurecia sobremaneira Boghos Nubar e os armênios ocidentais.
147
TER MINASSIAN, A. op. cit., pp. 158-159.
148
SAHAKYAN, V. op. cit., pp. 59-60.
149
“Allied officials might have far more respect for and confidence in Boghos Nubar, but it was Avetis
Aharonian whom they were to invite to affix his signature to the Treaty of Sèvres”. HOVANNISIAN,
R. op. cit., 1996, p. 372.
150
“Separados ou unidos, Boghos Nubar e Avedis Aharonian buscaram o reconhecimento da
República armênia, a obtenção do repatriamento dos refugiados armênios na Turquia, a garantia de sua
realocação por uma força de ocupação aliada e a encontrar um poder mandatário”. TER MINASSIAN,
A. op. cit., p. 168.
63
Com os olhos do mundo voltados para as decisões que líderes tomariam sobre os
rumos da Europa, jornais brasileiros enviaram correspondentes especiais para cobrirem as
negociações. Um desses periódicos, o carioca A Epoca, deu amplo espaço às informações
enviadas pelo seu correspondente sobre a “questão armênia” no âmbito da Conferência151.
Segundo o correspondente, nenhuma delegação havia recebido uma recepção tão calorosa dos
demais delegados quanto a armênia, especialmente por parte dos ingleses, norte-americanos,
mas também dos franceses – de fato, segundo Robert Suny, a conferência teve em seus
primeiros momentos uma atmosfera pró-Armênia152. Para o jornalista, era com “natural
constrangimento” de quem poderia ter evitado que os armênios fossem perseguidos no
Império Otomano, mas não o fizeram, que as Potências recebiam com “alegria” suas
reivindicações, as quais estariam em plenas condições de atender. Porém, a vasta extensão
territorial requisitada dificilmente seria aceita pelas Potências, incluindo a França, que tinha
interesse na cidade portuária de Alexandreta, que os armênios também incluíam em suas
aspirações. Além disso, a incorporação dos referidos territórios a um Estado armênio faria
com que esse país tivesse uma população majoritariamente não armênia, uma vez que os
massacres alteraram a demografia das províncias litigiosas que tinham agora predominância
populacional turca e curda. À guisa de conclusão, o jornalista afirmou que, embora inviável,
negar os territórios seria “sancionar a política turca de perseguições e massacres...”. Embora
houvesse um descompasso entre as aspirações armênias e a disposição das Potências em
atendê-las, a Conferência de Paz de Paris parecia ser o momento em que a autodeterminação
sairia da imaginação de nacionalistas românticos e tomaria forma sob o auspício moral de
Woodrow Wilson:
151
A Epoca. Rio de Janeiro: 10 de abril de 1919, p. 1 (HDB/BN).
152
SUNY, Robert. Apud LAYCOCK, J. op. cit., p. 196.
153
“[…] groups aspiring to self-determination formed delegations, selected representatives,
formulated demands, launched campaigns, and mobilized publics behind them. They composed and
circulated a flood of declarations, petitions, and memoranda directed at the world leaders assembled
in Paris and directed at public opinion across the world. Many of the petitioners adopted Wilson’s
rhetoric of self-determination and the equality of nations to formulate their demands and justify their
64
aspirations, both because they found his language appealing and, more importantly, because they
believed it would be effective in advancing their cause”. MANELA, Erez. The Wilsonian Moment:
self-determination and the international origins of anticolonial nationalism. Nova York: Oxford
University Press, 2007, pp. 4-5.
154
Ibid., p. 17.
155
WATENPAUGH, K. op. cit,, 2015, p. 73.
156
HOVANNISIAN, Richard. “The Armenian Genocide and US post-war commissions” In:
WINTER, Jay (org.). America and the Armenian Genocide of 1915. Nova York: Cambridge
University Press, 2003, p. 259.
157
BADIE, Bertrand. O Diplomata e o Intruso: a entrada das sociedades na arena internacional.
Salvador: Edufba, 2009, p. 39.
158
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, p. 182.
65
159
Memorandum sobre a Questão Armênia: apresentado ao conselho dos ministros das relações
exteriores. Nova York: Conselho Nacional Armênio da América, 07 de março de 1947.
160
OHANIAN, Pascual Carlos. La Cuestión Armenia y las Relaciones Internacionales. Buenos
Aires/Yerevan: Academia Nacional de Ciencias de la Republica de Armenia, 2010, tomo VI, pp. 317-
318.
161
Ibid., p. 59.
162
Ibid., p. 318.
66
O governo armênio não tinha moeda forte para estabelecer e manter postos
diplomáticos; faltava pessoal diplomático profissionalmente treinado; e
frequentemente se via no meio de rixas arraigadas e conflitos pessoais nas
diferentes comunidades armênias. Os representes diplomáticos armênios, por
sua vez, eram repetidamente exasperados pelos longos atrasos no
recebimento do essencial para suas funções, incluindo credenciais
apropriadas e informações básicas sobre a República Armênia, órgãos
governamentais, líderes, regulações para passaportes e vistos, hino, moeda,
selos, regulações sobre investimentos estrangeiros, etc.164
Apesar dos desafios, a questão armênia aparentava caminhar para uma resolução
no começo de 1920. Em 19 de janeiro, o Conselho Supremo das Potências Aliadas e
Associadas – composto pelos mandatários de Grã-Bretanha, França e Itália – reconheceu o
poder instituído na Armênia como um governo de facto, ainda que restasse as questões
fronteiriças a serem resolvidas. Em 23 de abril, os EUA seguiram a mesma decisão do
Conselho. Poucos dias depois, o Conselho Supremo reunido em San Remo – acrescido de um
representante japonês – requisitou que os norte-americanos assumissem o mandato sobre a
Armênia e que Woodrow Wilson ficasse responsável por arbitrar as contendas territoriais
entre turcos e armênios. Embora o mandato nunca tenha se concretizado, Wilson aceitou a
tarefa de produzir o laudo arbitral que era visto como crucial para a paz no Oriente
Próximo165. As fronteiras de Wilson garantiriam à Armênia um território de mais de 155 mil
km²,166 uma população a princípio estimada de três milhões de pessoas – da qual 50% seria
composta armênios residentes na região e refugiados regressos; 40% por turcos, curdos e
tártaros; e o restante por gregos, yezidis, russos, assírios, dentre outros – e acesso ao mar
163
MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a Construção da Nacionalidade. Bauru: Edusc, 2001, p. 16.
164
“The Armenian government had no hard currency to establish and maintain diplomatic posts; it
lacked professionally trained diplomatic personnel; and it was often caught in the middle of deep-
seated rifts and personality conflicts within the various Armenian communities. The Armenian
diplomatic representatives, in turn, were repeatedly exasperated by the long delays in receiving the
Essentials of their position, including proper credentials and basic information about the Armenian
republic, its governing organs, its leaders, its passport and visa regulations, its national hymn, Money,
and postage, its regulations regarding foreign investment, and so forth”. HOVANNISIAN, R. op. cit.,
1996, p. 386.
165
PAPIAN, Ara (org.) Arbitral Award of the President of the United States of America Woodrow
Wilson: full report of the Committee upon the arbitration of the boundary between Turkey and
Armenia. Washington, November 22nd, 1920. Yerevan: Modus Vivendi, 2011, pp. ii-iii.
166
À guisa de comparação, a Armênia Soviética possuía menos de 30 mil km²
67
Armênios por todo o mundo fervorosamente esperavam que sua antiga pátria
fosse restaurada em um Estado-nação moderno sob tutela e proteção do
Ocidente. Os Aliados tinham os recursos militares e econômicos, a
autoridade política e o prestígio moral para fazer da livre e independente
Armênia uma realidade168.
167
Full report of the committee upon the arbitration of the boundary between Turkey and Armenia. In:
PAPIAN, A. op. cit., pp. 69-73.
168
“Armenians around the world fervently hoped that their ancient homeland would be called back
into being as a modern nation-state under the guidance and protection of the West. The Allies had the
military and economic resources, the political authority, and the moral prestige to make a free and
united Armenia a reality.” HOVANNISIAN, R. op. cit., 1996, p. 1.
169
Ibid., p. 374.
68
no Azerbaijão era garantida por 70 mil homens do Exército Vermelho no Cáucaso, que seriam
utilizados para pressionar Geórgia e Armênia a seguirem o mesmo caminho170. Ao mesmo
tempo, os bolcheviques armênios que criticavam os rumos que o governo dashnak dava ao
país – o qual definiam como “pequeno-burguês” – se fortaleciam com a presença vermelha na
região171.
170
Ibid., pp. 200-201.
171
Ibid., p. 208.
172
LAYCOCK, J. op. cit., p. 198.
69
seria assinado na cidade suíça de Lausanne o tratado que acabaria de vez com as pretensões
armênias sobre as províncias orientais da Anatólia. O Tratado de Lausanne de 1923
reconhecia a recém-proclamada República da Turquia, bem como suas fronteiras naquele
momento, ignorando Sèvres e não fazendo menção alguma aos armênios. Na opinião de Vahe
Sahakyan173 e Keith David Watenpaugh174, Kars e Lausanne selaram a questão armênia que
ficou relegada por décadas a uma questão da burocracia soviética. Nas palavras de Alan
Palmer:
173
SAHAKYAN, V. op. cit., p. 61.
174
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, p. 89.
175
PALMER, A. op. cit., p. 264.
70
espécie de “governo no exílio” que lutaria a partir da diáspora para que o Tratado de Sèvres
fosse respeitado e para que a Armênia se libertasse da ocupação bolchevique. Essa
polarização na diáspora aumentou após a II Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, quando,
não raramente, desavenças entre armênios de diferentes grupos políticos terminavam em
debates acalorados, agressões físicas, prisões e, eventualmente, mortes.
Contudo, a análise não deve se restringir ao escopo tradicional dos estudos das
Relações Internacionais nos quais os atores estão circunscritos aos Estados ou às grandes
instituições não estatais como, por exemplo, a Liga das Nações. Há que se pensar na ação de
uma diáspora como uma força transnacional cujos atores operam, em maior ou menor grau, de
maneira independente, ainda que suas ações sejam pautadas por um ou mais centros
decisórios de onde emanam algumas diretrizes. Esses atores, os quais Khachig Tölölyan
chama de “elites da diáspora”176, não agem exatamente como agentes “táticos”, que executam
as políticas formuladas pelos agentes “estratégicos”, conforme entendimento de Jean-Baptiste
Duroselle177. Não raramente, as elites da diáspora, que atuam como representantes de países
não reconhecidos, exercem tanto as tarefas estratégicas quanto as táticas, pois a conexão com
a pátria-mãe é por vezes falha ou inexistente, não sendo possível que as decisões aos desafios
urgentes postos nas sociedades receptoras sejam sempre homologadas por um governo central
ou esfera correlata. Para Tölölyan:
As elites que dominam, financiam e compõem as organizações diaspóricas,
sustentam suas conexões com a pátria-mãe e mobilizam os armênios étnicos
são constituídas por clérigos, ricos filantropos e inúmeros pequenos
doadores que financiam as principais instituições; os empregados
politicamente mobilizados e voluntários que compõem suas organizações; e
por último, mas não menos importante, pelos acadêmicos, intelectuais,
176
TÖLÖLYAN, Khachig. “The Armenian Diaspora as a transnational actor and as a potential
contributor to conflict resolution”. In: Capacity Building for Peace and Development: roles of
diaspora. Toronto: University for Peace/United Nations, High level expert forum, booklet 1, 2006.
177
DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo Império Perecerá: teoria das relações internacionais.
Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial, 2000, pp. 101-102.
72
A biografia de Etienne Brasil não é clara e as poucas pistas que existem são
dúbias, mas é possível rastrear sua trajetória graças aos seus artigos na imprensa brasileira e
armênia, aos prefácios que ele escrevia às suas próprias obras e às poucas pesquisas que
abordaram tangencialmente a trajetória desse intelectual. Embora tenha chegado ao Brasil
oriundo da França, ele nasceu em 25 de dezembro de 1882 em alguma parte do Império
Otomano181. Em um jornal carioca de junho de 1911, há uma nota que informa sobre a
178
“The elites that dominate, fund, and staff diasporic organizations, sustain their links with the
homeland, and mobilize ethnic Armenians are constituted by the interlocking personnel of the clergy;
the wealthy philanthropists and the numerous smaller donors who fund major institutions; the
politically mobilized employees and volunteers who staff those organizations; and, last but not least,
the scholars, intellectuals, journalists and artists who engage in diasporic cultural production and
both draw from and intervene in the culture and debates of the homeland”. TÖLÖLYAN, K. op. cit.,
2006, pp. 24-25.
179
Idem, 1996, p. 19.
180
MALATIAN, T. op. cit., pp. 14-15.
181
O ano de nascimento é avalizado pelo banco de dados da Biblioteca Nacional, onde alguns livros de
sua autoria estão depositados, assim como pelos documentos de seu processo de naturalização
73
Nem mesmo as razões pelas quais Etienne Brasil teria abandonado seu nome de
batismo e adotado o pseudônimo que ele carregaria pelo resto da vida são claras. As fontes e a
bibliografia não convergem sobre qual seria o nome verdadeiro do intelectual. Para Vartan
Matiossian, baseado em informações fornecidas por Richard Hovannisian187, o nome de
batismo de Etienne Brasil seria Iknadios Etian, que teria sido convertido na versão francófona
Ignace Etienne. Contudo, as fontes indicam que essa informação é imprecisa. Há no livro de
matrícula do liceu francês Saint-Benoît em Istambul – onde Etienne afirma ter estudado188 – o
registro de um estudante chamado “Et. Iknadossian”, de religião católica, que teria estudado
depositados no Arquivo Nacional. O dia e o mês constam na coluna social do jornal Gazeta de
Notícias de 25 de dezembro de 1915, com votos de feliz aniversário. Gazeta de Notícias. Rio de
Janeiro: 25 de dezembro de 1915, p. 5. (HDB/BN).
182
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 06 de junho de 1911, p. 2 (HDB/BN). Um ano depois, a
naturalização foi decretada sem efeito. Idem. Rio de Janeiro: 12 de maio de 1912, p. 2 (HDB/BN).
183
A Época. Rio de Janeiro: 30 de novembro de 1912, p. 3 (HDB/BN).
184
Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 15 de setembro de 1916, III-800, p. 12, Museum of Literature
and Art after Yeghishe Charents, República da Armênia (MLA/RA).
185
A Rua. Rio de Janeiro: 26 de fevereiro de 1916, p. 1 (HDB/BN).
186
BRASIL, Etienne. Compendio de Philosophia: lógica, psychologia, historia da philosophia. Rio de
Janeiro: Leite Ribeiro & Maurillo, Editores, 1917, p. XIV.
187
HOVANNISIAN, R. op. cit., p. 430.
188
BRASIL, Etienne. La France au Brésil. Rio de Janeiro: Besnard Frères, 1920, p. IX.
74
189
BRASIL, E. op. cit., 1920, p. XI.
190
Idem. “Le fétichisme des nègres du Brésil”. In: Anthropos. Viena: Bd. 3, H. 5/6, 1908, p. 881.
191
Base de Dados Nacionalidades, Arquivo Nacional, nº processo E.3.925, código 24391 (AH).
75
ao Rio de Janeiro; e, por fim, Etienne Brasil, nome com o qual assinou a maior parte de seus
artigos e livros e que apresentou às autoridades brasileiras para efetuar seu pedido de
naturalização. Há ainda pelo menos uma ocorrência de um artigo na imprensa em língua
armênia – no Hayrenik de 4 de abril de 1919, publicado em Boston – no qual o nome do
intelectual aparece como “Dr. Stepan Brazil, professor do Liceu Francês”192, lançando mão
assim do equivalente em armênio – Stepan – de Etienne. Não se sabe, todavia, se a mudança
foi feita pelo próprio intelectual ou se foi uma escolha dos editores do periódico.
192
Hayrenik (Հայրենիք). Boston: 4 de abril de 1919, p. 1.
193
A Igreja Católica Armênia não deve ser confundida com a Igreja Apostólica Armênia – ou
gregoriana, em alusão a Gregório, “o Iluminador”, seu fundador – sendo essa última autocéfala desde
o Concílio da Calcedônia em 451, cuja autonomia precede a divisão entre católicos e ortodoxos, não
sendo ela parte de nenhuma das duas denominações. Os armênios católicos, por outro lado, embora
tenham um patriarcado próprio reconhecido por Roma, são subordinados ao Vaticano desde o século
XVIII e possuem rito distinto de sua co-irmã gregoriana. Cf. SAPSEZIAN, Aharon. Cristianismo
Armênio. São Paulo: Bentivegna Editora, 1997.
194
TERNON, Y. op. cit., pp. 48-49.
195
Legação Armênia no Brasil, 25 de janeiro de 1921, AHI, 281/2/4.
76
Armênio e um dos papabili no conclave que escolheu o substituto do Papa Pio XII naquele
ano. Na coluna, Figueiredo comenta, em tom de deboche, que quando algum indivíduo ganha
projeção internacional não tardava a aparecer parentes no Brasil196. Sem entrar no mérito da
veracidade da afirmação de Etienne Brasil ao colunista, é fato que Terzian era uma das
lideranças religiosas armênias mais proeminentes no cenário internacional no início da década
de 1920. Ao mencionar, em correspondência ao diretor de negócios diplomáticos do
Itamaraty, que o “[...] chefe dos armênio-católicos, o cardeal Terzian, meu tio [...]”197 havia
proibido padres armênios de esmolarem Etienne pode ter aproveitado o ensejo da
comunicação diplomática para mencionar que era próximo de um influente líder armênio da
época e, assim, agregar prestígio à sua própria imagem. Contudo, a veracidade da informação
é posta em dúvida quando se observa que Terzian nunca ocupou o posto de cardeal da Igreja
Católica, ao contrário do que mencionou Etienne Brasil. Poderia ser apenas um ato falho, se
não fosse cometido por um ex-sacerdote que dizia ser sobrinho de uma das mais altas
autoridades eclesiásticas de seu tempo, ou apenas uma “promoção” concedida por ele ao seu
alegado tio a fim de impressionar seu interlocutor. Não obstante tal interrogação, Vartan
Matiossian, citando um periódico armênio de Marselha de 1917, não parece ter dúvidas sobre
o parentesco entre Etienne e Terzian198. Em 1920, em seu livro, Etienne Brasil reafirmou ser
sobrinho “do patriarca supremo da Igreja Armênia, Mgr. Terzian, e parente próximo de outras
personalidades”199.
196
Diário da Noite. Sexta-feira, 7 de novembro de 1958, p. 4 (HDB/BN).
197
Legação Armênia no Brasil, 25 de janeiro de 1921, AHI, 281/2/4.
198
MATIOSSIAN, V. op. cit. A informação do periódico franco-armênio foi reproduzida pelo
Kotchnak (Կոչնակ). Boston: 15 de setembro de 1917, p. 1123 (MATENADARAN/RA).
199
BRASIL, E. op. cit., 1920, p. IX.
200
Diário Oficial da União. Rio de Janeiro: 13 de janeiro de 1921, p. 3.
201
O Paiz. Rio de Janeiro: 23 de janeiro de 1923, p. 7 (HDB/BN).
77
202
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1920 (ARFA).
203
Verdjin Lur. Istambul: 23 de maio de 1922, p. 4 apud: MATIOSSIAN, V. op. cit.
204
Etienne Brasil a Mikayel Varandian. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1923 (ARFA).
205
Naturalização de Etienne Ignace Brasil ou Etienne Brasil. NE 3.925, ano 1925, código 24391, not.
713, fl 3/30.
206
O Paiz. Rio de Janeiro: 4 de agosto de 1922, p. 1 (HDB/BN).
207
O Imparcial. Rio de Janeiro: 2 de maio de 1924, p. 2 (HDB/BN).
208
Naturalização de Etienne Ignace Brasil ou Etienne Brasil. NE 3.925 ano 1925, código 24391, not.
713, fl. 4/30 (AH).
209
BRASIL, E. op. cit., 1908; BRASIL, Etienne. “La Secte musulmane des Malès du Brésil et leur
révolte en 1835”. In: Anthropos. Viena: Bd. 4, H. 1, 1909.
78
210
BRASIL, E. op. cit., 1909, p. 70. Todas as citações foram adaptadas para o português atual.
211
“Previous massacres of Armenians and other Christian minorities in the Ottoman Empire had
usually been explained in reference to the particular characteristics of the empire or the nature of 'the
Turk'. Explanations were couched in terms of racial difference, religious conflict, degeneracy and the
nature of the Ottoman state or the conflict between 'East' and 'West'. These explanations, though often
portrayed as 'scientific' or objective, were not used in a systematic or logical manner; they were
conflated or manipulated almost at will in order to create a negative stereotype of 'the Turk' and a
sympathetic image of the Armenians. Common to all sectors of British public opinion was an
acceptance that the Ottoman Empire, particularly its borderlands, was prone to descend into violence
at the slightest cause”. LAYCOCK, J. op. cit., p. 109.
79
O que Etienne Brasil faz no prefácio à edição brasileira do seu artigo sobre a
revolta dos malês é, porém, distinto: ele lança mão de um acontecimento presente – o
massacre de armênios em Adana – para explicar a “ferocidade” muçulmana que fez com que a
“população branca da Bahia” experimentasse uma “horrorosa matança” nos anos 1830. Nesse
sentido, ele não parece se esforçar para ser “científico” ou “objetivo”, nos termos de Laycock,
mas, ao contrário, não esconde a subjetividade de seu convencimento de que a violência é
algo inerente ao Islã, não importando a época ou o lugar.
Esse artigo repercutiu por muito tempo nos meios intelectuais brasileiros. Em
1933, o estudo sobre os malês foi enviado por Luísa Gallet – viúva do compositor Luciano
Gallet – a Mário de Andrade, após encontrar “por sorte” a revista na qual foi publicado e se
lembrar de que o assunto interessava ao escritor paulistano212. Em obra célebre sobre a revolta
dos malês publicada nos anos 2000, João José Reis cita algumas vezes o trabalho do “jesuíta
Etienne Brazil” como fundador de uma interpretação da rebelião como uma espécie de guerra
santa empreendida pelos negros muçulmanos na Bahia, tese essa que “tem sido desde então
repetida por inúmeros autores, com maior ou menor grau de sofisticação”213. Em outra
passagem, Reis pondera algumas inferências feitas por Etienne:
Numa curta passagem de seu artigo de 1901 [sic] sobre os malês, Etienne
Brasil escreveu: “o fim primordial da conspiração era aclamar uma rainha,
depois do extermínio da raça branca”. Convenhamos que, num texto de 57
páginas, o autor foi brevíssimo sobre o que considerava o objetivo principal
do movimento de 1835. Não sei onde Brazil foi buscar essa ideia, um tanto
extravagante, de que homens muçulmanos se dariam ao exaustivo trabalho
de exterminar a raça branca para colocar no poder uma mulher, aliás pagã
[...]214.
212
Carta de Luísa Gallet a Mário de Andrade. 6 de agosto de 1933. Série Correspondências, acervo
Mário de Andrade, MA-C-CPL3423. Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP).
213
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, edição revisada e ampliada, p. 272.
214
Ibid., p. 301.
80
Outro artigo, “O fetichismo dos negros no Brasil”, publicado dois anos depois,
também foi bastante difundido216, embora não tenha tido a mesma repercussão do anterior. Há
uma referência a esse texto em um caderno de anotações da professora e crítica literária
Marlyse Madeleine Meyer relacionado à pesquisa que ela realizava sobre a influência turca
em terreiros de umbanda na cidade de Codó, Maranhão217.
215
Idem. “Um balanço dos estudos sobre as revoltas escravas da Bahia” In: ______ (org.) Escravidão
e Invenção da Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 91.
216
BRASIL, Etienne. “O fetichismo dos negros no Brasil”. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: T. 74, v. 124, pp. 193-260, 1911
217
Anotações de Marlyse Madeleine Meyer. Sem data. Acervo. Marlyse Madeleine Meyer. MMM-
CAD096-002 (IEB/USP).
218
O Paiz. Rio de Janeiro: 26 de julho de 1910, p. 12 (HDB/BN).
219
O Seculo. Rio de Janeiro: 23 de novembro de 1909, p. 3 (HDB/BN).
220
Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: tomo XVI, [referente ao]
ano de 1903, 1912, p. 5 (HDB/BN).
221
Em seu currículo, Etienne Brasil afirma ser membro, além das entidades já mencionadas, do Museu
Nacional, da Sociedade Geográfica de Lisboa, dos Institutos Histórico e Geográfico de Pará, São
Paulo e Bahia Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro: 4 de outubro de 1919 (ARFA).
222
Cf., por exemplo, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 24 de outubro de 1911 (HDB/BN).
223
Não confundir com o Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, fundado em 1957.
224
Rui Aniceto Nascimento Fernandes pincela o cenário intelectual niteroiense dos anos 1910-20 no
qual Etienne Brasil se integrou quando chegou ao Rio de Janeiro. Cf. FERNANDES, Rui Aniceto
Nascimento. Historiografia e a identidade fluminense: A escrita da história e os usos do passado no
Estado do Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950. Rio de Janeiro: Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutor em História, 2009, pp. 58-59.
81
como paraninfo e presidente honorário o Barão do Rio Branco. Etienne Brasil compôs a
primeira diretoria na condição de Primeiro Secretário225.
225
WEHRS, Carlos. “Instituto Histórico e Geográfico Fluminense – sua fundação”. In: Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGRJ, 1994-1995, po. 106-109.
226
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 24 de maio de 1912, p. 2 (HDB/BN).
227
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 4 de julho de 1911 (HDB/BN).
228
O Malho. Rio de Janeiro: nº 604, ano XII, 11 de abril de 1914, p. 23 (HDB/BN).
229
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro: 4 de outubro de 1919 (ARFA).
230
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 24 de maio de 1912, p. 2 (HDB/BN).
231
O Seculo. Rio de Janeiro: 25 de novembro de 1913, p. 3 (HDB/BN).
82
A associação com os sírios era usada de maneira instrumental por Etienne e outros
compatriotas, como Levon Apelian que figurava, frequentemente, na diretoria de entidades
sírias do Rio de Janeiro e batizou seu negócio de importação e exportação de tecidos de “Casa
Libanesa”235. Em carta a Avetis Aharonian em 1919, Etienne Brasil afirma que, na
reorganização do Centro Armênio do Rio de Janeiro, Levon Apelian iria ocupar a cadeira da
presidência, pois “era um negociante muito rico que estava no meio dos sírios (que são mais
de 120.000 no Brasil!), tendo sido eleito presidente desses”236. Assim, Etienne usa o prestígio
de Apelian junto aos sírios do Brasil para convencer Aharonian que sua rede de contatos tem
influência o suficiente no país para trabalhar em prol dos interesses armênios. Por outro lado,
em alguns momentos a preferência de alguns pela identidade síria irritou o ex-padre. Em
novembro de 1920, Etienne rompeu com um de seus aliados, David Boghossian, quando esse
último solicitou passaporte armênio, cujo aceite foi condicionado pelo representante
diplomático da República Armênia na América do Sul a uma declaração oficial renunciando à
sua identidade síria, o que foi recusado pelo solicitante237. Com o passar dos anos, os
armênios do Brasil procurariam se distanciar da imagem dos árabes. Nas palavras de Jeffrey
Lesser, “os líderes da comunidade armênia [...] formada em fins do século XIX, definiam seu
232
MALATIAN, T. op. cit., pp. 21-22.
233
O Imparcial. Rio de Janeiro: 8 de abril de 1915, p. 9 (HDB/BN).
234
A Razão. Rio de Janeiro: 5 de abril de 1921, p. 4 (HDB/BN). Grifos nossos.
235
Dentre cargos que ocupou em entidades como a Cruz Vermelha Sírio-Brasileira, Apelian foi eleito
presidente do Club Syrio Brasileiro em 1918, instituição a qual ele era também o principal
patrocinador. O Paiz. Rio de Janeiro: 19 de abril de 1918, p. 10 (HDB/BN); para a “Casa Libaneza”,
cf. A Epoca. Rio de Janeiro: 31 de julho de 1918, p. 28 (HDB/BN).
236
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1919 (ARFA).
237
Idem, 4 de novembro de 1920 (ARFA).
83
lugar de forma ainda mais agressiva, tentando separar-se dos imigrantes ‘árabes’. Eles
insistiam em que os armênios eram brancos, e ‘uma etnia legítima e heroicamente
ocidental’”238.
Embora o período posterior a 1915 seja o mais fértil de Etienne Brasil como
articulista, após o chamado para o exame admissional da faculdade não é mais possível
encontrar textos assinados pelo intelectual na condição de padre. Mesmo que alguns jornais
ainda o apresentasse assim239, dali em diante o tratamento dado ao ex-religioso seria de
“doutor”, “senhor” ou “professor”240. Isso nos leva a acreditar que o início dos estudos de
Direito e o abandono da batina sejam acontecimentos interligados, ainda que, a exemplo do
que ocorre com outros acontecimentos de sua vida, o motivo e o momento exatos do
abandono do sacerdócio não sejam totalmente conhecidos241. Pode-se especular que uma das
razões tenha sido de cunho afetivo: no processo de naturalização de Etienne Brasil, consta que
ele se casou com a portuguesa Maria Emília Gonçalves da Mota em 25 de junho de 1918242,
com quem viveu até 1944, quando a mesma morreu. Alguns anos antes, em 1916, o jornal A
Lanterna, a fim de ironizar o editorial de outro periódico, lança mão de um chiste atribuído a
Etienne Brasil que dizia “[...] entre nós, a única [classe] casta é a dos sacerdotes e assim
mesmo, como diz o Dr. Etienne Brazil, quando não são tentados pelas comadres...”243.
O primeiro artigo assinado pelo intelectual que versa sobre temas do Oriente data
de 30 de novembro de 1912 e foi publicado no A Epoca. Trata-se de uma carta aberta ao
238
LESSER, J. op. cit., 2001, p. 110.
239
Talvez por desinformação, um periódico juizforano ainda se referia a Etienne Brasil como padre
muitos anos depois dele ter abandonado o sacerdócio. O Pharol. Juiz de Fora: 9 de fevereiro de 1919,
p. 2.
240
Em abril de 1916, a Gazeta de Notícias publicou artigo assinado por José N. Daher no qual o aturo
se refere a Etienne Brasil como ex-padre, o que indica que a essa altura sua renúncia ao sacerdócio já
fosse conhecida no Rio de Janeiro. Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 10 de abril de 1916, p. 4.
(HDB/BN).
241
Curiosamente, em 1918 há uma nota no jornal O Imparcial informando da aprovação de Etienne
Brasil em todas as cadeiras referentes ao primeiro ano da graduação em Direito. Provavelmente ele
postergou o começo do seu novo bacharelado até esse ano. O Imparcial. Rio de Janeiro: 10 de março
de 1918, p. 7 (HDB/BN).
242
Naturalização de Etienne Ignace Brasil ou Etienne Brasil. NE 3.925 ano 1925, código 24391, not.
713, fl. 13v. (AN)
243
A Lanterna. Rio de Janeiro: 19 de dezembro de 1916, p. 1 (HDB/BN).
84
cônsul do Império Otomano em São Paulo, Munir Sureyya Bey, intitulada Não somos turcos!
Carta aberta ao Exmo. Munir Suraya Bey: cônsul som jurisdicionados [sic]244. Em um texto
agressivo, repleto de sarcasmo e linguagem pouco usual a um sacerdote, Etienne Brasil ataca
ferozmente a representação diplomática do Império Otomano no Brasil, questionando a
legitimidade do representante do sultão no país.
Foi contra o abrigo diplomático dos representantes turcos no Brasil que Etienne se
insurgiu. Depois de “pôr um grande ponto de interrogação sobre o [...] título de cônsul”, o
autor argumenta que até caberia a Sureya Bey defender os interesses dos “Osmanlis”, mas
esses, “por um sentimento sobejamente justificado de medo ou de vergonha, jamais ousariam
profanar estas terras de luz e progresso”. Dito isso, Etienne Brasil usa o pronome “nós” para
se referir às minorias que viviam dentro das fronteiras otomanas e rechaçar o rótulo de
“turcos”: “Quanto a nós – Sírios, Armênios, Gregos etc... – não somos turcos. Energicamente
repelimos esse título ominoso que nos seria, além de tudo, sobremodo injurioso”. Em seguida,
o padre utiliza uma série de adjetivos para qualificar o Império Otomano ao seu modo:
O império turco, para nós, é uma execrável praga e flagelo de cerastas que
assola, desde poucos séculos, o nosso pulquérrimo país; o crescente e o
alcorão (“horresco reirens”) são as duas serpentes de Laocoon, torturando
nos seus “orbes” [...] os dois filhos do Sol Nascente, o balcânico e o
anatólico; o sultanato dos Osmanlis é o polvo parasita, monstrum horrendum
244
A Epoca. Rio de Janeiro: 30 de novembro de 1912, p. 3 (HDB/BN).
245
GOLDFELD, M. S. op. cit., pp. 148-155.
246
Ibid., pp. 179-183.
85
Não foi possível encontrar uma resposta pública de Munir Sureyya Bey aos
ataques lançados pelo padre Etienne Brasil, mas a historiadora Monique Sochaczewski
Goldfeld afirma que o cônsul temia o alcance que os artigos de cunho nacionalista publicados
por armênios e libaneses na imprensa brasileira poderiam ter248. Porém, não são apenas com
247
“In opposition to the image of Armenians as innocent victims the Turks were portrayed as the
embodiment of barbarism. Longstanding orientalist stereotypes of the Turks as the barbaric, lustful
and fanatically religious perpetrators of atrocity once again came to the fore. Accounts of the
massacres associated the Turks with particular acts of violence, including rape, mutilation and the
murder of innocent women and children. They depicted the Turks as sadistic, delighting in violence,
and provided grim accounts of the tortures they had devised for their victims.” LAYCOCK, J. op. cit.,
pp. 81-82.
248
GOLDFELD, M. op. cit., p. 185.
86
argumentos nacionalistas que Etienne Brasil sustenta seu discurso, e sim com concepções
prévias e estereótipos sobre o chamado “Oriente” que permeavam o imaginário do “Ocidente”
da época. Cabe aqui analisar o discurso “orientalista” de Etienne Brasil, pois o mesmo está
presente durante toda a sua trajetória intelectual como articulista e diplomata e é definidor de
algumas estratégias retóricas utilizadas tanto na imprensa quanto nas missivas diplomáticas
para convencer o leitor da urgência de suas reivindicações. Em suma, o orientalismo foi a
saída encontrada pelo intelectual para fazer com que suas demandas alcançassem o público
brasileiro, superando assim o desafio definido por Tölölyan acerca de como as elites da
diáspora inserem suas pautas na sociedade receptora249.
249
TÖLÖLYAN, K. op. cit., 1996, p. 19.
250
A Rua. Rio de Janeiro: 3 de dezembro de 1914, p. 2 (HDB/BN).
251
LESSER, J., op. cit., 2001, p. 27.
87
era comum nos discursos coloniais, de forma que aquilo que era aplicável para o Egito
poderia ser usado indistintamente na Síria, Palestina ou Índia252, Etienne afirma que “O
oriental, durante dezenas de séculos, deu provas exuberantes de sua inteligência fecunda e de
sua pujante vitalidade. O turco de verdade, pelo contrário, traz na sua testa, marcados a
ferro, os estigmas do selvagem: a preguiça e o instinto de destruição”253. Ou seja,
diferentemente do que pensava lorde Cromer – encarregado inglês para o Egito entre 1882 e
1907 – para quem “a mente do oriental [...] é eminentemente carente de simetria. Seu
raciocínio é dos mais descuidados”254, Etienne Brasil reforça as virtudes intelectuais do
oriental não muçulmano e relega ao turco o papel de incapaz que usualmente era dado a todos
os não europeus pelas mentes coloniais.
Quando Etienne Brasil se refere ao turco, ele está se referindo tanto ao grupo
étnico majoritário e dominante no Império Otomano – que por vezes ele chama de osmanli,
em alusão ao fundador da dinastia otomana – quanto a todo e qualquer muçulmano. Isso é
perceptível no artigo Não Somos Turcos! quando ele afirma que um “verdadeiro turco (de
raça e de religião)” dificilmente aportaria no Brasil. Ao atacar o Islã, comparando-o com
serpentes mitológicas, Etienne Brasil lança mão da imagem corrente dessa religião como uma
ameaça real da civilização europeia e anexa a esse imaginário os turcos e o Império Otomano,
fundindo-os em um só corpo que seria a institucionalização do mal, uma “execrável praga e
flagelo de cerastas”, em suas próprias palavras. Quando intitula o Império Otomano como
252
SAID, E. op. cit., p. 70.
253
A Rua. Rio de Janeiro: 10 de janeiro de 1914, p. 5 (HDB/BN). Grifos nossos.
254
SAID, E. op. cit., p. 71.
255
MAZOWER, M. op. cit., pp. 290-291.
88
“império dos turbantes”, o então religioso explora a imagem que se tem sobre o Oriente turco-
muçulmano. Edward Said sumariza a questão nos seguintes termos:
[...] não é preciso procurar uma correspondência entre a linguagem usada
para retratar o Oriente e o próprio Oriente, não tanto porque a linguagem
seja imprecisa, mas porque nem está tentando ser precisa. O que está
tentando fazer [...] é ao mesmo tempo caracterizar o Oriente como estranho e
incorporá-lo esquematicamente num palco teatral cujo público, gerente e
atores estão voltados para a Europa, e apenas para a Europa256.
256
SAID, E. op. cit., pp. 113. Grifos do autor.
257
A Epoca. Rio de Janeiro: 14 de maio de 1913, p. 7 (HDB/BN).
89
Alguns meses depois, o padre enviou uma nova carta a Tchobanian com muita
deferência e empolgação, o que indica que a sua primeira missiva foi respondida e seus
pedidos foram atendidos. Nessa correspondência de novembro de 1913, Etienne afirma que
estava cuidando da publicação de uma série de artigos, da proferição de algumas conferências
sobre a Armênia no Rio de Janeiro e também da tradução e publicação de poemas do próprio
poeta em português259, o que só viria a acontecer um ano mais tarde260. Para Etienne, os povos
oprimidos da Ásia Menor conseguiriam derrotar os turcos, pois “a união faz a força”. Assim,
seria necessário amplificar os trabalhos do Centro Oriental, emitindo um chamado a todos os
“patriotas” que desejam a independência para que se engajem nesse movimento. No mesmo
documento, o padre destaca a importância de uma aliança com os búlgaros para o controle da
258
Provavelmente era a Carta de Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 4 de agosto de 1913, III-797,
pp. 1-2 (MLA/RA).
259
Carta de Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 16 de novembro 1913, III-798, pp. 3-4 (MLA/RA).
260
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 6 de dezembro de 1914, p. 2 (HDB/BN).
90
Trácia e que assim que sua missão estivesse terminada no Brasil, ele transferiria as atividades
do Centro Oriental para Paris, o que nunca ocorreu.
261
A Rua. Rio de Janeiro: 1 de abril de 1914 (HDB/BN).
262
SAID, E. op. cit., p. 89.
91
retóricos limitam aquilo que Walter Benjamin certa vez chamou de [...] princípio da
‘criatividade’”263.
O primeiro artigo dessa série que o orientalista escreveu para o A Rua é intitulado
“Os drusos e os metualis”266. Nesse texto, Etienne Brasil divide o Líbano, “que é a flor da
Síria” em três povos principais: os libaneses “propriamente ditos” cristãos, os drusos pagãos e
os metualis267 muçulmanos. Detendo-se apenas nos dois últimos, o autor afirma que em
algum momento da história ambos se uniram contra o avanço otomano, mas que, em 1860, os
drusos, incitados pelo sultão otomano, massacraram a população maronita, criando uma
rivalidade entre esses e os libaneses. Ao fornecer mais detalhes sobre os dois grupos, Etienne
Brasil escreve: “Quanto á religião dos nossos drusos, peço um minuto de espera a fim de
poder virar sete vezes a língua na minha boca [...] Quanto aos metualis, eles são muçulmanos,
semisselvagens e não excedem de poucos milhares”. Embora carregado de estereótipos, o
parágrafo final é mais revelador: “N.B. Felizmente para o imortal Oriente, esses turcos, drusos
e outros ‘ejusdem farinoc’ serão varridos nesta guerra. Nunca poderiam, aliás, embaçar a
gloria dos Armênios, dos Sírios e dos Árabes”. Esse e outros artigos foram reunidos e
263
Ibid., p. 41.
264
A Rua. Rio de Janeiro: 3 de dezembro de 1914 (HDB/BN).
265
SAID, E. op. cit., p. 51.
266
A Rua. Rio de Janeiro: 6 de janeiro de 1915 (HDB/BN).
267
Em um livro sobre a Síria, Etienne Brasil (1918, p. 23) define os metualis como “[...] muçulmanos
xiitas, partidários de Ali. Carregam consigo um pouco de terra persa por toda parte. Evitam o contato
com os cristãos e as outras seitas, além de não serem poluídos!”
92
enviados por Etienne a Archag Tchobanian na França, a fim de mostrar que “a imprensa do
país, graças a campanha que eu comecei, começa a se inteirar sobre a sorte dos pobres
armênios”268.
268
Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 28 de fevereiro de 1915, III-800, pp. 9-10 (MLA/RA).
269
COMPAGNON, Olivier. O Adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra. Rio de Janeiro:
Rocco, 2014, p. 70.
270
O Imparcial. Rio de Janeiro: 20 de março de 1915, p. 9 (HDB/BN).
271
A Noite. Rio de Janeiro: 3 de abril de 1915, p. 2 (HDB/BN).
93
centro de suas atenções. Em 5 de abril de 1915, foi publicado o artigo “os armênios
revoltaram-se”, com os subtítulos: “que é Zeitun?” e “o Daschnak e o Droschak em ação”272.
Nas linhas seguintes, Etienne Brasil noticia a resistência dos armênios da cidade de Zeytun,
na Cilícia, organizada por dois partidos revolucionários armênios: o Daschnak e o Droschak,
nos quais “todo bom armênio está inscrito [...] e contribui, pelo menos pecuniariamente, para
a obra benemérita da independência nacional.” Além dos tradicionais exageros do autor –
como, por exemplo, afirmar que a resistência poderia ser “fatal” para os turcos, ou que
existam 10 milhões de armênios no mundo – esse artigo contém equívocos basilares de
entendimento da política armênia. Com efeito, o Dashnak era o maior partido político dos
armênios e teve papel crucial na resistência de algumas vilas e cidades às investidas
genocidas. Contudo, nunca existiu um partido denominado Droschak – “bandeira”, em
armênio – sendo esse o nome dado ao jornal dashnak que circulava por várias cidades da
Europa e Oriente Médio a partir dos anos 1890. Provavelmente, Etienne Brasil confundiu o
órgão dashnak com outro partido socialista armênio, o Hnchakyan, também organizador da
resistência armênia. Após cantar as glórias da “Tróia armênia” – conforme o autor se refere à
Zeytun – o intelectual afirma que os armênios serão essenciais para os aliados vencerem a
guerra no Cáucaso e Ásia Menor. Em suas palavras: “Os soldados saíram dos seus redutos; as
mulheres zeituniotas (essas belas e fortes criaturas) pegarão em armas. A alma nacional
armênia acordou como de uma profunda letargia. Desta vez a turcalhada será mesmo varrida”.
Há aqui uma subversão da relação de gênero que frequentemente povoava a narrativa dos
massacres armênios que circulavam no Ocidente, na qual o homem era descrito como o
soldado responsável pela defesa da pátria, do território e das mulheres, enquanto essas últimas
eram retratadas através do prisma de uma “vitimização passiva”273. Etienne, ao contrário, dá
certo protagonismo às mulheres de Zeytun, afirmando que elas combateriam o inimigo com
sua força – sem, contudo, deixar de mencionar a beleza.
Ainda em abril de 1915, em artigo publicado apenas dois dias antes da data que
simboliza o início da perseguição dos armênios otomanos, Etienne Brasil disserta sobre os
saques à cidade portuária de Esmirna274, localidade otomana banhada pelo Mar Egeu, de
grande influência e presença grega. Após apresentar a cidade ao leitor, destacando sua
população de 200 mil habitantes dividida igualmente entre cristãos e turcos, o rico legado
272
Idem, 5 de abril de 1915, p. 4 (HDB/BN).
273
LAYCOCK, J. op. cit., p. 132.
274
O nome turco dessa cidade é Izmir. Etienne Brasil grafou originalmente como “Smyrna”. A Noite.
Rio de Janeiro: 22 de abril de 1915, p. 2 (HDB/BN).
94
grego, a qualidade dos tapetes armênios e das frutas ali produzidas, bem como da descoberta
do “túmulo da mãe de Jesus” nos arredores, o autor denuncia os sucessivos saques que vem
ocorrendo, promovidos por “voluntários osmanlis” e por “uma tribo muçulmana [...]
semisselvagens, de vestuário esquisito, desordeiros renitentes e muito temidos, que
aproveitam todas as oportunidades para os seus atos de vandalismo” contra os quais as
autoridades otomanas nada fazem.
Depois desse artigo, afora alguns textos isolados sobre História do Brasil e outros
assuntos, há um longo período de silêncio do fecundo articulista. A partir do dia 20 de maio
de 1915, é possível encontrar anúncios diários de Etienne Brasil no A Rua oferecendo seus
serviços como professor de latim, lógica e matemática275. Em julho, há uma nota na Gazeta de
Notícias que afirma que o intelectual havia conseguido isolar um elemento extraído da
pitangueira que poderia substituir a anilina, em falta no mercado276. Nesse ínterim, a
necessidade de intensificar suas atividades profissionais pode ter arrefecido o orientalista. A
exceção é um artigo publicado no jornal Pacotilha de São Luís do Maranhão em 13 de julho
de 1915, intitulado “Duas pátrias, não!”, no qual Etienne Brasil mostra descontentamento com
a legislação brasileira que define a nacionalidade de crianças nascidas no país cujos pais são
europeus277. Para ele, o conflito das leis brasileiras com as europeias criava indivíduos “[...]
anfíbios e dupla pátria. [...] Durante a presente guerra europeia, todos eles são naturalmente
brasileiros! Mas amanhã, quando o Brasil os chamar às armas, todos eles correrão a buscar
certidões nos consulados estrangeiros”. A preocupação de Etienne residia especialmente nos
“[...] perigosos e tão falados focos germânicos de Santa Catarina278”. Com o desenrolar da
guerra e a deterioração da situação dos armênios no Império Otomano, os alemães seriam
unidos aos turcos no discurso do intelectual como causadores de todos os males. Nas palavras
de Antônio dos Reis Carvalho, intelectual contemporâneo a Etienne Brasil, “Os alemães, que
são a alma desta tríplice, nefasta e híbrida aliança teuto-austro-turca, cometem hoje os crimes
pavorosos dos conquistadores mais cruéis de todos os tempos”279. No discurso de Etienne e de
275
A Rua. Rio de Janeiro: 20 de maio de 1915, p. 2 (HDB/BN).
276
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 14 de julho de 1915, p. 4 (HDB/BN).
277
A legislação brasileira vigente na época definia os filhos de alemães nascidos no Brasil como
brasileiros, por conta do princípio do jus soli, enquanto a legislação alemã definia os mesmos como
alemães pelo princípio do jus sanguinis. COMPAGNON, O. op. cit., p. 109.
278
Pacotilha. São Luís do Maranhão: 13 de julho de 1915 (HDB/BN).
279
Apud COMPAGNON, O. op. cit., p. 77.
95
Com o aparente interesse crescente dos leitores brasileiros sobre a situação dos
armênios, Etienne Brasil voltou a tratar do tema publicamente em dezembro do mesmo ano,
não pelas vias jornalísticas, mas por meio de uma conferência promovida pela Associação
Cristã de Moços – conhecida mundialmente pela sigla YMCA. No dia 16 daquele mês, o
intelectual proferiu a conferência “o povo armênio” em sessão presidida pelo embaixador dos
280
LAYCOCK J. op. cit., p. 119.
281
COMPAGNON, O. op. cit, p. 71.
282
WERFEL, Franz. Os Quarenta Dias de Musa Dagh. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
283
A Epoca. Rio de Janeiro: 2 de outubro de 1915, p. 2 (HDB/BN).
96
EUA no Rio de Janeiro, “cujo governo”, de acordo com a nota, “tem manifestado muito
interesse pela sorte do heroico povo, que combateu os turcos nos três Caucásios (russo, turco
e persa)”284. Essa foi a primeira investida conhecida de Etienne Brasil junto a um diplomata
em favor da “causa armênia”, uma prática que se tornaria rotineira a partir de então. A
palestra foi adicionada por Etienne Brasil ao seu currículo na seção “serviços prestados à
Armênia” que seria enviado em 1919 a Avetis Aharonian para persuadir o político acerca das
suas credenciais intelectuais para ser o representante da República Armênia na América do
Sul285.
284
O Paiz. Rio de Janeiro: 16 de dezembro de 1915, p. 5 (HDB/BN).
285
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1919 (ARFA).
286
A Rua. Rio de Janeiro: 26 de fevereiro de 1916, p. 1 (HDB/BN).
287
Embora o número de voluntários armênios da Argentina engajados nas fileiras da Legião do
Oriente tenha sido estimado por Narciso Binayán entre 115 e 170 homens. BINAYAN, N. op. cit., p.
91.
97
288
Apud BRUNETEAU, Bernard. O Século dos Genocídios: violências, massacres e processos
genocidários da Arménia ao Ruanda. Lisboa: Instituto Piaget, 2004, p. 68.
289
JONES, Adam. Genocide: a comprehensive introduction. Londres e Nova York: Routledge, 2011,
2ª ed., pp. 155-161.
290
BALAKIAN, Peter. The Burning Tigris: the Armenian Genocide and America’s response. Nova
York: Harper Perennial, 2003, p. 282.
98
Ciente desse paradoxo, no mesmo A Rua, Etienne Brasil continuava seus esforços
para comprovar que os armênios eram expressivos numericamente o suficiente para
constituírem uma república independente. No dia 6 de março foi publicado o artigo “O povo
armênio – quantos indivíduos pertencem à raça haigana?”292 no qual o autor apresenta uma
tabela com estatísticas de quantas pessoas – e de que povos – habitavam as províncias
orientais do Império Otomano na ocasião do Congresso de Berlim em 1878. Segundo esses
dados, havia cerca de 1,1 milhão de armênios nessas províncias, o que faria desse povo o mais
numeroso na região, à frente inclusive dos turcos e curdos. Nos dados contemporâneos
apresentados por Etienne, aparece a cifra de 1,5 milhão de armênios por toda a “Turquia”, que
somados aos 2,5 milhões da Rússia, 700 mil da Pérsia e 1,5 milhão da “dispersão”,
totalizavam 6,2 milhões de armênios no mundo293. Ou seja, segundo as estimativas
apresentadas, de 1878 para 1916, período que presenciou dois processos genocidas, a
população armênia teria crescido ao invés de encolher. O próprio Etienne Brasil reconhece, no
mesmo artigo, que, durante o sultanato de Abdul-Hamid II na última década do século XIX,
cerca de 800 mil armênios teriam morrido294. Apesar dos constantes exageros, o autor
apresenta o número de 300 imigrantes armênios no Brasil, o que parece, em cotejamento com
a literatura sobre o assunto295, um número aceitável para o ano de 1916. Nessa época, não
interessava ao autor superestimar o número de armênios residentes no Brasil, como a
comunidade armênia faria por muitas vezes ao longo do século XX ao pressionar os políticos
brasileiros a assumirem uma postura de defesa da causa armênia nas diferentes esferas de
poder.
291
LAYCOCK, J. op. cit., p. 182.
292
A Rua. Rio de Janeiro: 6 de março de 1916, p. 1 (HDB/BN).
293
Ainda que o somatório apresentado por Etienne Brasil desses mesmos números tenha sido 5,7
milhões.
294
Apesar dos números mais aceitos girarem entre 80 e 200 mil. JONES, A. op. cit., p. 153.
295
KECHICHIAN, Hagop. Os Sobreviventes do Genocídio: imigração e integração armênia no Brasil,
um estudo introdutório. São Paulo: Tese de doutorado em História Social, FFLCH/USP, 2000, pp.
313-32.
99
só viria a ser largamente utilizado no final dos anos 1960, justamente em substituição à ideia
de “dispersão”. Em livro publicado em 1918, Etienne Brasil também se refere às colônias
sírias pelo mundo como diáspora296, usando essa palavra como sinônimo intercambiável de
“dispersão”.
296
“Infelizmente, os limites estreitos deste opúsculo não me permitem a descrição pormenorizada das
colônias sírias da diáspora, verdadeiras colmeias de operosidade”. BRASIL, Etienne. Os Syrios. Rio
de Janeiro: Besnard Frères, 1918, p. 61.
297
A Epoca. Rio de Janeiro: 9 de março de 1916, p. 4 (HDB/BN).
298
“The standard of civilization of the Armenians . . . is on a higher level than that of those beings with
whom the young people are forced to associate.” Karen Jeppe apud: WATENPAUGH, Keith David.
“Between communal survival and national aspirations: Armenian Genocide refugees, the League of
Nations, and the Practices of interwar humanitarianism”. In: Humanity: an international journal of
Human Rights, Humanitarianism, and Development. Vol. 5, n., 2, 2014, pp. 166-167.
299
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 13 de março de 1916, p. 1 (HDB/BN).
100
deliberar sobre assuntos como a moção de apoio a Portugal, contando, inclusive, com um
secretário. Esse telegrama destinado ao diplomata português marca a inauguração de uma
nova etapa da estratégia do intelectual na tentativa de angariar apoio à causa armênia: a
fundação de uma entidade que representasse interesses em nome do povo armênio. De acordo
com o pesquisador Vartan Matiossian, o Centro foi criado com a ajuda de Mihran Latif e
outros imigrantes com a finalidade de organizar os armênios no Rio de Janeiro, arrecadar
fundos e apoio político para auxiliar os compatriotas perseguidos no Império Otomano300.
Após algum tempo, o Centro tornou-se inoperante, sendo reativado por Etienne em 1919301
provavelmente para provê-lo de algum abrigo institucional comunitário, a fim de que ele
pudesse dirigir-se a Avetis Aharonian e outras autoridades, apresentando assim certo respaldo
da coletividade a qual pertenceria.
Um dos artigos mais agressivos escritos por Etienne Brasil sobre os turcos é o
intitulado “Que farão os Estados Unidos? Os turcos queimaram vivos dois americanos”,
publicado em A Epoca de 19 de março de 1916302. O texto narra que dois missionários norte-
americanos, que acompanhavam as deportações dos armênios, foram queimados, e conta com
detalhes das localidades onde os assassinatos teriam ocorrido, bem como das circunstâncias e
dos nomes das vítimas. Novamente, o que chama a atenção para além da notícia é o discurso
do autor ao relatar o acontecido: “os osmanlis, que sempre foram canibalescamente ferozes e
cruéis, parecem ter levado ao paroxismo os seus instintos de suínos e de chacais, na presente
guerra, mercê da influência dos exemplos bárbaros da Germânia”. Em seguida, ele afirma que
os turcos matam – além dos armênios – indistintamente todos os não muçulmanos, pois “o
turco boçal, com efeito, não sabe distinguir entre as várias nações. Para ele, fora de sua odiada
e abjeta nação, somente existem ‘guiáws”, isto é, “infiéis”. Na conclusão, o autor faz votos
pela eliminação dos turcos: “os osmanlis, que já estavam no último degrau da civilização,
acabam de passar ao nível das feras e dos brutos mais imundos. Resta, agora, serem tratados
como merecem”.
Foi somente em abril de 1916 que houve uma reação aos artigos de Etienne Brasil
na imprensa fluminense. A Gazeta de Notícias, órgão que também publicava textos e notas do
300
MATIOSSIAN, Vartan. Haravayin Koghmn Ashkharhi: Hayere Latin Amerikayi mej skizben
minchev 1950. Antelias, Líbano: Patriarcado Armênio da Cilícia, 2005. [“O confim austral da Terra:
os armênios na América Latina desde as origens até 1950”, em tradução livre do armênio].
301
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1919 (ARFA).
302
A Epoca. Rio de Janeiro: 19 de março de 1916, p. 9 (HDB/BN).
101
autor em suas páginas, com tiragem de 25 mil exemplares303, fez uma entrevista com José N.
Daher, diretor do jornal Al Barid, a fim de fornecer um contraponto a uma carta que Etienne
Brasil havia publicado dias antes no mesmo periódico, classificando as diferentes raças
otomanas304. Daher – que, segundo o jornal, era “sírio legítimo, pois nasceu no Líbano, e
adota a religião cristã” – condenou categoricamente as afirmações do articulista armênio. Para
o sírio, “o Dr. Etienne Brasil, que conhece tanto as cousas da Síria como eu as da Islândia, faz
afirmações só pela vontade de fazê-las”. O intuito principal era desmontar a tipificação do
armênio que define como sírios os cristãos orientais e turcos os muçulmanos. Para ele, o fato
da maioria dos sírios residentes no Brasil serem cristãos não quer dizer que o cristianismo seja
a religião predominante na Síria, pois, com exceção do Líbano, a maior parte do povo sírio é
muçulmano. Assim sendo, quando Etienne Brasil ataca a “colônia turca” brasileira, ele está
atacando os sírios, pois são esses que constituem a maior parcela dessa comunidade. Daher dá
a entender que Etienne credita aos turcos os problemas da colônia síria do Rio de Janeiro, o
que é refutado pelo sírio. Em sua opinião, Etienne Brasil, “para dar extração ‘aos seus
conhecimentos das cousas do Oriente’”, distorceu a verdade para validar seus argumentos.
A mesma Gazeta de Noticias abriu espaço, seis dias depois da entrevista do sírio,
para a publicação de um ofício do armênio endereçado à “Grande Comissão Portuguesa Pró-
Pátria” sob o título “Boicotem os turcos! Mas não persigam os sírios”305. Esse texto instala
definitivamente o debate entre Etienne e Daher. O articulista argumenta que o boicote
português à Alemanha deveria ser estendido aos aliados desse país, principalmente ao Império
Otomano, “que são os homens mais selvagens do globo terrestre”. Em seguida, Etienne alerta
para o perigo dos alemães residentes no Brasil promoverem um “boicote ao boicote”
português, e por isso o apoio da colônia árabe seria indispensável. Para tanto, seria necessário
distinguir a heterogênea colônia em seus três grupos: “os sírios verdadeiros, oriundos de raça
nobre; [...] os sírios degenerados ou traidores que por ignorância, ou banditismo esqueceram o
seu título de orientais, só “turcaram” e se fizeram propagandistas da peste osmanli; os turcos
verdadeiros, todos eles mulçumanos e pestiferados”. São os “sírios verdadeiros”, de acordo
com Etienne, protegidos e admiradores da França e Rússia, que devem ser poupados do
boicote. Entretanto, a fim de saber quem são os verdadeiros, os portugueses deveriam
consultar um “libanês de confiança”, não o cônsul da Turquia, tampouco o diretor do “’Al-
Balid’ [sic], (papelucho de três leitores e meio!) [que] se venderam aos turcos por duzentos e
303
COMPAGNON, O. op. cit., p. 70.
304
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 3 de abril de 1916, p. 2 (HDB/BN).
305
Idem, 8 de abril de 1916, p. 1 (HDB/BN).
102
vinte e dois réis e fazem propaganda pró-Germânia”. As linhas finais do artigo mantêm o tom
tradicional: “Basta de hipocrisias e de ambiguidades. Ou turcos ou sírios; precisamos saber
quem é sírio, quem é turco, a fim de dar a cada um o tratamento que merece”.
A reação de José Daher não tardaria e viria dois dias depois pelas páginas do
mesmo jornal306. O sírio acusa Etienne de “crime de lesa história” e afirma que dará ao rival
“[...] lições de história síria e religiosa em que pretende passar por entendido como orientalista
[...]”. O primeiro ponto que Daher se ateve foi, novamente, na questão étnico/religiosa que
Etienne Brasil explora recorrentemente. Para ele, Etienne não sabe “distinguir nacionalidades
e ensinar história religiosa e geografia política” e questiona em que obra o armênio teria
extraído a informação que o sírio “verdadeiro” seria cristão. Na sequência, questiona as datas
e os acontecimentos narrados pelo armênio, sobretudo acerca dos conflitos entre drusos e
libaneses. O tom irônico do sírio aumenta ao comentar que Etienne Brasil se julga conhecedor
da história dos sírios “tanto na Síria como no Brasil e na Argentina (perdão, ele, segundo
disseram-me, chamou-se lá Etienne Argentina)”. Sempre se referindo ao armênio como
“ilustre conhecedor das cousas do Oriente”, Daher põe em dúvida as cifras de libaneses que
imigraram para a França, delatando o suposto exagero de Etienne e termina criticando a
atitude do intelectual que teve “audácia ao ponto de intrigar os sírios com a colônia
portuguesa no Brasil”. Contudo, para o sírio, a tentativa do armênio não funcionou, pois
“Portugueses e sírios se conhecem e todos têm nítida concepção do que é Pátria” e conclui
afirmando que: “[...] O Sr. cônsul do Império Otomano e o diretor do jornal sírio ‘Al-Barid’,
que a sua boa educação quis denominar de papelucho, estão inteirados dos seus deveres de
otomanos e de patriotas.”
Após a contenda, alguns meses se passariam até que Etienne Brasil publicasse
outro artigo sobre assuntos orientais. Mas, se as suas atividades como articulistas estavam
adormecidas, seu empenho em articular politicamente apoio à causa armênia era cada vez
maior. Em 30 de junho de 1916, surgiu em um jornal carioca a transcrição de uma mensagem
do secretário particular do embaixador dos EUA no Rio de Janeiro afirmando que, conforme
havia sido acordado durante reunião, o diplomata concordava em participar de uma campanha
para arrecadar fundos para os armênios em necessidade e se empenhar para que a quantia
fosse enviada para Nova York e de lá para Etchmiadzin – Santa Sé da Igreja Apostólica
306
Idem, 10 de abril de 1916, p. 4 (HDB/BN).
103
307
O Imparcial. Rio de Janeiro: 30 de junho de 1916, p. 7 (HDB/BN).
308
MORGENTHAU, Henry. A História do Embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um
dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
309
A Rua. Rio de Janeiro: 12 de agosto de 1916, p. 2 (HDB/BN).
310
A Lanterna. Rio de Janeiro: 3 de dezembro de 1916, p. 1 (HDB/BN).
104
brasileira, para além das páginas dos jornais. Em carta a Archag Tchobanian em setembro de
1916, Etienne chama sua atenção para a presença de Rui Barbosa em Paris, “o homem que
mais tem influência no Brasil [a quem] o povo tem uma verdadeira adoração”. Na opinião do
intelectual, se Tchobanian conseguisse uma audiência com Rui Barbosa, o jurista brasileiro
mostraria interesse pelos armênios e tornaria o Brasil simpático à causa desse povo,
proferindo discursos nesse sentido, o que seria uma grande vitória para a pequena coletividade
do Rio de Janeiro, onde “nós não somos mais que sete armênios”311. Ademais, angariar a
simpatia de Rui Barbosa e, consequentemente, da sociedade brasileira, iria resultar no mesmo
efeito nas demais repúblicas da América Latina. Etienne encerra a missiva ao poeta clamando
para que o compatriota “não deixe passar essa bela ocasião de servir fortemente à nossa
pátria”.
O ano de 1917 foi mais dedicado às atividades como professor e escritor de livros
didáticos do que ao ativismo político. Mesmo assim, a contribuição para os jornais acerca dos
assuntos orientais, embora tenha sido reduzida, não cessou. Em fevereiro desse ano, Etienne
Brasil publicou texto sobre a restauração do califado árabe pelas mãos do xarife de Meca,
Hussein idn Ali el-Aun, que reivindicava a sucessão de Maomé, fazendo dele a autoridade
máxima do Islã. O califado era unificado ao sultanato otomano, sendo o monarca de
Constantinopla tanto uma autoridade política quanto religiosa. Assim, para o orientalista “a
recente restauração do califado árabe foi, para o mundo muçulmano, o acontecimento mais
notável da presente guerra. Ela, sem dúvida alguma, precipitará a queda do trono já bem
carcomido do sultão dos turcos”312. Contudo, Etienne se equivocou nos fatos que expôs: o que
Hussein proclamou em 1916 foi o Reino de Hejaz – na porção oriental da península arábica,
onde está a cidade de Meca – e se revoltou contra a Porta, lutando ao lado dos britânicos na
Palestina e Síria313. O califado só seria reivindicado de fato por Hussein em 1924, quando a
Assembleia Nacional da Turquia aboliu oficialmente a instituição314, ainda que a Grã-
Bretanha tenha incentivado líderes do Islã na península arábica a reivindicá-lo durante a
311
Etienne Brasil somente contabilizava como armênio aqueles compatriotas que trabalhavam consigo
em prol da causa. Carta de Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 15 de setembro de 1916, III-800, pp.
11-12 (MLA/RA).
312
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 25 de fevereiro de 1917, p. 5 (HDB/BN).
313
HOURANI, Albert. Uma História do Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 2ª
ed., pp. 319-320.
314
PALMER, A. op. cit., p. 265.
105
Grande Guerra, a fim de enfraquecer a autoridade que o inimigo otomano poderia ter sobre
100 milhões muçulmanos súditos da coroa britânica315.
315
McMEEKIN, S. op. cit., p. 85.
316
A Rua. Rio de Janeiro: 7 de abril de 1917, p. 2 (HDB/BN).
317
BALAKIAN, P. op. cit., pp. 291-292.
318
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1920 (ARFA).
319
A Epoca. Rio de Janeiro: 12 de junho de 1917, p. 4 (HDB/BN).
106
O artigo sobre Urfa foi um dos últimos escritos pelo autor em 1917. Por outro
lado, as suas incursões político-diplomáticas aumentaram no mesmo período. No dia 1º de
novembro, uma semana após o Brasil ter declarado guerra contra a Alemanha, Etienne Brasil
endereçou telegrama ao Ministro de Relações Exteriores congratulando-o pela atitude
brasileira e colocando-se à disposição do chanceler: “O nome do Brasil irá eletrizar de
esperança os oprimidos do Cáucaso. A Armênia cultíssima e eterna mártir implora um gesto
enfim salvador da maior República sul-americana. Aceitai, Sr. ministro, os serviços
incondicionais da pequena colônia armênia do Rio”322. A entrada do Brasil na Grande Guerra
320
Kalos thanatos – bela morte – e euklees thanatos – gloriosa morte – são os conceitos gregos para
esse tipo de construção realizada por Homero. VERNANT, Jean-Pierre. “A ‘Beautiful Death’ and the
disfigured corpse in Homeric Epic”. In: ______. Mortals and Immortals: Collected Essays. Princeton:
Princeton University Press, 1991, pp. 50-51).
321
“Armenian women were represented as devout, innocent Christians under constant threat of
abduction, 'outrage' and slavery in a Turkish harem. Reports of women who committed suicide in
order to 'protect their honour' abounded. These women were praised for their actions and portrayed
as martyrs for their faith”. LAYCOCK, J. op. cit., p. 83.
322
O Imparcial. Rio de Janeiro: 1 de novembro de 1917, p. 5 (HDB/BN).
107
deu o ensejo para Etienne usar da influência e notoriedade que havia obtido em anos como
articulista e professor – tendo trabalhado, segundo Richard Hovannisian, como tutor de filhos
de diplomatas estrangeiros e altos funcionários do governo brasileiro323 – para obter inserção
junto ao Itamaraty no intuito de angariar apoio à causa armênia. Esse telegrama marca o
primeiro de muitos contatos que o intelectual faria com o governo brasileiro em busca da
simpatia da Presidência da República e da Chancelaria.
323
HOVANNISIAN, R. op. cit., 1996, p. 430.
324
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 12 de novembro de 1917, p. 3 (HDB/BN).
325
O mesmo poema, “Meu Pesar”, de autoria de Bedros Turian e tradução de Alberto de Oliveira, foi
publicado no Correio da Manhã naquele ano. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 10 de dezembro de
1917, p. 2 (HDB/BN). Em carta para Archag Tchobanian três anos antes, Etienne Brasil já havia
submetido uma tradução de Bedros Turian feita por Alberto de Oliveira, “o príncipe dos poetas”, em
suas palavras, para a apreciação do colega francês. Provavelmente trata-se do mesmo poema. Carta de
Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 9 de fevereiro de 1914, III-799, p. 5 (MLA/RA).
326
MATIOSSIAN, V. op. cit.
108
A capa do livreto mostra os picos do Monte Ararat com uma estrela de cinco
pontas a emanar luz do cume (anexo: Figura 5). O Ararat é uma figura frequentemente
evocada por armênios e armenófilos para dotar a história desse povo de uma ancestralidade
que remonta aos tempos do Velho Testamento, quando a Arca de Noé teria encalhado na
montanha após o dilúvio bíblico330. Dessa forma, utilizar o Ararat como símbolo da nação
armênia reforça a ideia da intrínseca ligação desse povo com o cristianismo, associando-o
com a “civilização” europeia e tornando-o mais próximo do público ocidental que tinha pouca
familiaridade com a história dos armênios, mas poderia facilmente encontrar a referência à
montanha matriz desse povo em qualquer bíblia ao alcance das mãos. Cria-se, assim, uma
“paisagem mental” que auxilia a angariar apoio ocidental: “Armênios morreram em terras
bíblicas. Monte Ararat, Tarsus e Constantinopla eram nomes que eram parte de uma tradição
sagrada comum para americanos católicos, protestantes e judeus”331. A afirmação também é
verdadeira para os brasileiros. Na capa do livreto, logo abaixo do cume da montanha, há a
didática inserção da inscrição “Ararat” e a representação de uma figura feminina cujo corpo
está voltado para a sua esquerda e a cabeça para a direita, mirando o horizonte. A mulher,
simbolizando a Armênia está vestida com capacete, armadura que envolve seu busto e braços
e uma longa saia, carregando um escudo na mão esquerda e uma espada na mão direita,
327
MALATIAN, T. op. cit., p. 100.
328
VARTANIAN, Y. op. cit.
329
A cópia que tivemos acesso é, na realidade, uma fotocópia oriunda do acervo do historiador Dr.
Hagop Kechichian.
330
“e, no décimo sétimo dia do sétimo mês, a arca encalhou sobre as montanhas de Ararate.” Gênesis
8:4.
331
LEONARD, Thomas C. apud LAYCOCK, J. op. cit., pp. 122-123.
109
ambos abaixados. Há ainda grilhões quebrados próximo ao pé direito, sugerindo que a batalha
de libertação do país foi vencida.
332
BRASIL, Etienne. O Povo Armenio. Rio de Janeiro: edição do autor, 1917, p. 1. Grifos do autor.
333
GRAMSCI, Antonio. “Armenia – Grido del Popolo, 11 de março de 1916”. In: CAPRIOGLIO,
Sergio (org.). Antonio Gramsci: cronache torinesi, 1913-1917. Turim: Einaudi, 1980, pp. 184-185.
334
MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Globo livros, 2014, p. xx.
335
LAYCOCK, J. op. cit., pp. 109-112.
110
Para Etienne Brasil, a questão armênia nasceu com a queda do Reino Armênio da
Cilícia – ou Armênia Menor – no século XIV e o consequente fim da última unidade
administrativa autônoma que os armênios teriam até 1918, se intensificando após o Congresso
de Berlim em 1878 quando as Potências discutiram as fronteiras otomanas após uma série de
conflitos entre esses últimos e os russos. Assim, fica claro que para Etienne a questão armênia
era uma questão nacional e territorial, cujo significado prático seria a autonomia da Armênia,
muito distinto de outros entendimentos da “questão” que preconizavam direitos para os
armênios no Império Otomano.
336
“[...] and the most unspeakable tragedy is Armenia.” The Globe, 2 de dezembro de 1915, p. 4 apud:
ADJEMIAN, Aram. The Call from Armenia: Canada’s response to the Armenian Genocide. Montreal:
Corridor Books, 2015, p. 40.
337
Ibid., pp. 116-119.
338
BRASIL, E. op. cit., 1917, pp. 1-2.
111
As páginas subsequentes não fogem do estilo apresentado pelo autor nos artigos
escritos para a imprensa, exaltando a Armênia por suas maravilhas naturais e o povo por sua
tenacidade, a qual os turcos puderam testemunhar durante as tentativas de assalto às cidades
armênias que se entrincheiraram e resistiram:
Na maior parte do livreto, Etienne Brasil analisa a língua, religião, literatura, arte,
indústria e comércio dos armênios, elementos esses que seriam essenciais para “avaliar o grau
de adiantamento de uma raça”342. Dessa forma, o autor se esforça para mostrar domínio do
tema, enumerando datas, acontecimentos, elencando nomes de personalidades da história
armênia ao longo dos séculos, e se esquiva de assuntos pantanosos como, por exemplo, a
língua armênia, sobre a qual se limitou apenas a dar características gerais, justificando-se:
“não me cabe aqui fazer uma exposição completa da gramática haigana”. Ao que tudo indica,
o autor não dominava a língua armênia. Segundo Vartan Matiossian, ainda na infância
339
Ibid., pp. 3-4. Grifos do autor.
340
Ibid., p. 6.
341
Ibid., p. 7.
342
Ibid., 1917, p. 8.
112
Etienne Brasil teria deixado de falar armênio343. A informação é oriunda do periódico armênio
Kotchnak, de Boston, em 1917, no qual consta que ele teria esquecido o idioma materno344.
Suas limitações nessa língua, embora não admitidas por ele, são visíveis no livreto. É
sintomática a afirmação de que o Dachnaktsutun – teria alternado seu nome para
Daschnakzagan345, quando, na realidade, a primeira palavra é um substantivo que significa
“Federação” e serve como alcunha para a Federação Revolucionária Armênia, a última é um
adjetivo – “federado” – e designa os membros desse partido. A falta de domínio do idioma
não seria relevante se o próprio Etienne Brasil não tentasse esconder o desconhecimento
daquela que deveria ser, aos olhos da sociedade receptora, sua língua materna. No debate
supracitado entre o escritor e o jornalista José Daher, o sírio coloca um ponto de interrogação
na alegação de Etienne de ter: “estudado com afinco toda a Turquia, conhecendo várias
línguas (?) da região”346. Curiosamente, há algumas cartas enviadas por Etienne a Avetis
Aharonian entre junho e julho de 1920 que estão em armênio – ainda que a maior parte da
correspondência trocada entre os dois tenha sido em francês –, mas que provavelmente foram
escritas por outrem e apenas firmadas pelo intelectual347. Enfim, na sua autoavaliação,
reconhecer suas limitações no idioma era o mesmo que demonstrar uma fraqueza perante seus
adversários, como político e como intelectual. Contudo, o domínio da língua não era regra
entre os armênios otomanos, principalmente aqueles que viviam na Cilícia, próximo ao Mar
Mediterrâneo. Segundo Keith David Watenpaugh, muitas crianças sobreviventes do genocídio
oriundas de Marash e Aintab falavam um dialeto turco mesclado com palavras armênias e
foram aprender o armênio ocidental tal qual falado pelas elites intelectuais armênias de
Constantinopla nos orfanatos e escolas mantidos pela Near East Relief em Aleppo348.
343
MATIOSSIAN, V. op. cit.
344
Kotchnak (Կոչնակ). Boston: 15 de setembro de 1917, p. 1123 (MATENADARAN/RA).
345
BRASIL, E. op. cit., 1917, p. 20.
346
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 10 de abril de 1916, p. 4 (HDB/BN). O ponto de interrogação
está presente no texto original.
347
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 30 de junho de 1920 e 26 de julho de 1920
(documentos em armênio, ARFA).
348
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, p. 115.
113
349
BRASIL, E. op. cit., 1917, p. 22.
350
TOYNBEE, Arnold J. Atrocidades Turcas na Armênia. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
351
LAYCOCK, J. op. cit., p. 105.
352
Data também do mesmo período a tradução para o português de “A supressão dos armênios:
método alemão, trabalho turco”, de René Pinon.
353
DUROSELLE, J. op. cit., pp. 113-114.
354
O Imparcial. Rio de Janeiro: 20 de maio de 1918, p. 3 (HDB/BN).
114
355
O Combate. São Paulo: 21 de maio de 1918, p. 1 (HDB/BN).
115
Por ter sido o único país sul-americano a enviar tropas para a Europa a fim de
combater ao lado dos aliados durante a Guerra, o Brasil teve direito a enviar três delegados
para a Conferência de Paz em Paris. O prestígio do Brasil na Conferência, que prometia
alterar a ordem mundial como era concebida, fez com que Etienne enxergasse uma
possibilidade de inserção para a causa armênia na esfera multilateral a partir dos
representantes brasileiros que iriam à Paris. Na expectativa que o país se juntasse às Potências
em defesa da Armênia, conforme sua leitura da política internacional inferia, em dezembro de
1918, Etienne Brasil recebeu dois emissários da comunidade armênia que começava a se
organizar em São Paulo – Elian Naccach356 e Lázaro “Ghazar” Nazarian357 – que se juntaram
a ele, Levon Apelian e Mihran Latif a fim de pedirem aos delegados brasileiros que
intervissem em prol da causa armênia nos fóruns da Conferência de Paz em 1919358. A
escolha dos nomes não foi aleatória. Naccach (1876-1963) e Nazarian, radicados em São
356
Também grafado como Elia ou Elias.
357
Tesoureiro do ramo do Partido Socialdemocrata Hnchakyan em São Paulo nos anos 1930.
VARTANIAN, Y. op. cit., p. 246.
358
Correio Paulistano. São Paulo: 18 de dezembro de 1918, p. 4 (HDB/BN).
116
Paulo, davam um caráter nacional às reivindicações capitaneadas por Etienne Brasil. Do lado
fluminense, Levon Apelian – definido por um jornal carioca como “um dos mais ricos
comerciantes desta praça”359 – se mostraria sempre ativo nas atividades propostas pelo ex-
padre; por sua vez, Mihran Latif exercia uma função essencial para garantir a inserção dos
interesses do grupo de armênios no governo e no Itamaraty.
359
A Epoca. Rio de Janeiro: 1 de agosto de 1918, p. 2 (HDB/BN).
360
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 21 de maio de 1929, p. 3 (HDB/BN).
361
Mihran Latif não foi o único engenheiro armênio que foi trazido das universidades europeias para a
construção de obras no Brasil. Nos anos 1890, um conterrâneo de Latif chamado Gregório Hovian –
ou Howyan – foi o responsável pelo projeto de captação de águas pluviais e esgoto da cidade mineira
de Juiz de Fora, após ter trabalhado em obras semelhantes na capital francesa. O plano não foi
aprovado pelas autoridades do município, mas a complexidade do projeto chamou a atenção por
muitos anos e ainda hoje é citado em textos de engenharia. Em 2004, a empresa de saneamento e
abastecimento de água da cidade publicou o fac-símile do projeto de Hovian. HOWYAN, G.
Saneamento e expansão da cidade de Juiz de Fora: águas e esgotos; retificação de rios, drenagem.
Trad. Walquíria Corrêa de Araújo C. Vale. Juiz de Fora: Funalfa Edições. 2004.
362
KECHICHIAN, H. op. cit., p. 37.
363
GOLDFELD, M. op. cit., p. 171, nota 185.
117
ferrovias no Nordeste e no interior do Sudeste, bem como para tomar parte na reforma
urbanística de Pereira Passos no Rio de Janeiro, sendo o responsável pela “Avenida Beira
Mar”. Ele ainda foi responsável por usinas hidroelétricas nos estados do Rio de Janeiro e São
Paulo, além de manter negócios na mineração em Minas Gerais364. Sua filha casou-se com
Alberto Betim Paes Leme, catedrático de Mineralogia do Museu Nacional e da Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, filho de Luís Betim Pais Leme, com quem Latif havia
trabalhado na Estrada de Ferro Leopoldina365. O armênio manteve relações com políticos por
toda a sua vida. Em 1940, o então ex-presidente Artur Bernardes, vivendo na Suíça, serviu-se
do amigo Brás Velloso como “ajudante de ordens” para fazer chegar até as mãos de Mihran
Latif uma carta de agradecimento366. O armênio tinha ainda como advogado Rui Barbosa367.
364
Tribuna Armênia. São Paulo: Outubro, novembro, dezembro de 1965, p. 2.
365
Etienne Brasil afirma em missiva a Avetis Aharonian que a “Senhora Betim Paes Leme, filha de
Mihran Latin” doou 1.500 francos em prol dos órfãos armênios. O armênio afirma que “o Dr. Paes
Leme nos ajudou muito e ainda poderá fazer mais” e pede que Aharonian envie uma carta de
agradecimento ao engenheiro e que solicite ao governo armênio uma condecoração ou título ao
doador, assim como a Levon Apelian. Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 18 de julho
de 1920 (ARFA).
366
Washington Luis a Brás Velloso, Seção de Manuscritos, Cofre 50.5.-30 – Coleção Marília Velloso
Pinto (BN).
367
Mihran Latif a Rui Barbosa, 14 de fevereiro de 1887, Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).
368
BRASIL, E. op. cit., 1920, p. IX.
118
superiores na França. Além da supracitada ida dos armênios ao Catete para pressionar a
delegação brasileira a intervir junto às Potências pela causa armênia, em outra reunião, um
ano mais tarde, Mihran Latif – a quem o jornal se referiu como banqueiro – fez questão de
pedir ao jornalista que cobria o encontro que publicasse que a sua ida ao Catete era
exclusivamente para tratar das questões concernentes à Armênia, “não se tratando de nenhum
outro assunto”369, o que demonstra que era notório que ele possuía outros interesses junto ao
governo federal. Em carta a Archag Tchobanian em fevereiro de 1919, Etienne Brasil afirma
que Epitácio Pessoa, então chefe da delegação brasileira na Conferência de Paz de Paris,
conhecia as reivindicações armênias graças as boas relações que tinha com Mihran Latif370. O
próprio Latif escreveu ao amigo Rui Barbosa um ano antes, quando o nome desse último era
cogitado para ser o chefe da delegação brasileira na Conferência – posto o qual ele recusaria
em 3 de dezembro – pedindo apoio à causa armênia:
369
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 12 de outubro de 1919, p. 2 (HDB/BN).
370
Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 4 de fevereiro de 1919, III-800, p. 13 (MLA/RA).
371
Mihran Latif a Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1918, CR 762 (11) (FCRB).
119
Nessa missiva, Latif adota o mesmo discurso da Armênia mártir proferido por
Etienne Brasil ao longo de sua carreira intelectual, atribuindo ainda à religião o papel causal
do genocídio. Também está claro a desilusão do engenheiro com as Potências europeias que
não tomaram as medidas necessárias para pôr em execução os termos do Tratado de Berlim e
a esperança que seria da América – mais precisamente do Brasil e de Rui Barbosa – que sairia
uma nação capaz de defender os interesses armênios na arena internacional.
Mil novecentos e dezenove foi um ano agitado na agenda de Etienne Brasil, pois,
além de suas funções costumeiras, ele intensificou suas ações como líder de um grupo de
interesses junto aos governos brasileiro e armênio. Logo na primeira quinzena do ano, o ex-
padre foi aos jornais desmentir um telegrama enviado pela agência Reuters que relatava uma
suposta vitória dos georgianos sobre os armênios. Segundo o intelectual, a informação dada
sobre o Cáucaso por um correspondente localizado na Mesopotâmia fazia tanto sentido
quanto uma notícia sobre o Rio de Janeiro enviada por um jornalista em Buenos Aires373.
372
Etienne Brasil a Rui Barbosa, Rio de Janeiro 5 de novembro de 1918, CR 235/1 (4) (FCRB).
373
O Paiz. Rio de Janeiro: 12 de janeiro de 1919, p. 7 (HDB/BN).
374
“Centre Arménien du Brésil a son excellence monsieur Domício da Gama, Ministre de affaires
étrangères du Brésil”. In: Legação Armênia no Brasil. Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1919.
Arquivo Histórico do Itamaraty 281/2/4 (AHI).
120
fazendo coro assim às pretensões de Boghos Nubar e de outros membros da elite da diáspora
armênia que esperavam unificar a região com a república na Transcaucásia.
Como Mihran Latif tinha apenas função honorífica, seria Kaisserlian o principal
aliado do ex-padre na divulgação da causa na imprensa e nos círculos políticos da sociedade
receptora. Mais tarde naquele mesmo ano, Etienne informaria a Aharonian que Kaisserlian
fora designado pelo Centro Armênio do Rio de Janeiro o representante dos armênios do Brasil
junto à Delegação em Paris378, nomeação essa que não parece ter sido solicitada pelo chefe
dos armênios na França. Em janeiro de 1920, a sugestão de Etienne era de que seu amigo
fosse indicado como alto comissário de comércio da Armênia no Brasil379, no contexto da
reorganização consular que ele tentava convencer Paris a fazer, e em junho daquele ano, o ex-
padre foi ainda mais incisivo ao oferecer os serviços de Kaisserlian380. Contudo, algo abalou a
375
A Noite. Rio de Janeiro: 8 de março de 1919, p. 2 (HDB/BN).
376
No final dos anos 1940, Kaisserlian aparece como diretor responsável do periódico Hayastani
Dzayn – “Voz da Armênia” – editado por Yervant Mekitarian, principal liderança dos
socialdemocratas Hnchaks em São Paulo. VARTANIAN, Y. op. cit., p. 537.
377
A Rua. Rio de Janeiro: 14 de março de 1919, p. 2 (HDB/BN).
378
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1919 (ARFA).
379
Idem, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
380
Idem, 23 de junho de 1920 (ARFA).
121
relação dos dois. Etienne escreveu a Aharonian, em outubro de 1920, exclusivamente para
tratar do compatriota. O intelectual afirma que “Apesar da nossa boa impressão no começo,
esse senhor novo no Brasil buscou atrapalhar a vida da colônia, razão pela qual nossos
compatriotas isolaram-no”. Segundo Etienne, Kaisserlian teria se passado por representante
de cooperativas de negociantes armênios no Brasil e, dessa forma, teria obtido, junto a
companhias armênias na Europa, uma grande remessa de mercadorias, fugindo em seguida
para o Velho Continente – possivelmente para Paris, acredita o remetente – causando assim
“grandes prejuízos aos nossos compatriotas e ao bom nome do comércio armênio no
Brasil”381. Poucos dias depois, Etienne volta a escrever a seu chefe, dizendo que Kaisserlian
era partidário de Boghos Nubar, que havia sido expulso do Dashnak de Genebra e que
mantivera relações amigáveis com os turcos durante a Guerra, tentando tornar seu compatriota
persona non grata em todas as esferas possíveis. Etienne encerra a carta afirmando que “a
Armênia não precisa de maus elementos” 382.
381
Idem, 9 de outubro de 1920 (ARFA).
382
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1920 (ARFA).
383
A Epoca. Rio de Janeiro: 8 de fevereiro de 1919, p. 8 (HDB/BN).
384
Carta de Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 4 de fevereiro de 1919, III-800, p. 13 (MLA/RA).
385
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 12 de junho de 1919, p. 1 (HDB/BN).
386
Durante a Guerra, Etienne organizou uma festa “dos pequenos aliados”, em homenagem a
Armênia, Bélgica e Sérvia. Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1919
(ARFA).
122
que os territórios armênios que estavam sob controle turco fossem restituídos e que a
indenização correspondente seria assumida pelos “armênios trabalhadores e ativos”387. Por
mais abastado que fosse Latif ou qualquer outro armênio no mundo, não havia condições
materiais para que tal proposta fosse concretizada e não há registros de que ela sequer foi
cogitada. O conteúdo das cartas endereçadas aos dirigentes de algumas nações do mundo era,
portanto, fruto de uma postura proativa de Etienne Brasil, ao invés de uma reação às ordens
emitidas pelos centros decisórios da causa, seja em Paris ou no Cáucaso. Isso pode ser
comprovado por meio de correspondência enviada por Etienne a Aharonian em 4 de janeiro
de 1920 na qual, dentre outras observações, o recém-nomeado representante diplomático da
República Armênia no Brasil informa aos seus superiores em Paris sobre a carta de Latif388,
intencionando demonstrar assim iniciativa de ação dos armênios brasileiros em prol da causa.
Uma carta de Etienne Brasil a Tchobanian resume a estratégia dos armênios para
ganhar terreno no Brasil. Ao poeta, ele afirmou estar “fazendo tudo que era possível para a
propaganda de nosso país”, tendo ele próprio publicado 263 artigos sobre “a Armênia e seus
direitos” na imprensa brasileira até então389. Ademais, Etienne se preocupava com a
articulação política para ganhar adeptos no alto escalão da política brasileira. Ao mesmo
tempo em que recomendava a Tchobanian se aproximar de Epitácio Pessoa, que estava na
França com a delegação brasileira na Conferência de Paz, por esse ser um conhecedor da
causa armênia graças à influência de Mihran Latif, o ex-padre planejava enviar uma carta às
delegações presentes na Conferência com a assinatura de diversos intelectuais e políticos
brasileiros a fim de pedir a “independência integral da Armênia”390. O redator da missiva,
segundo Etienne, deveria ser Rui Barbosa que seria, na sua avaliação, provavelmente eleito o
novo presidente da república nas eleições de 13 de abril de 1919. Contava a favor dos
armênios a “amizade íntima” entre Barbosa e Mihran Latif, descrito como “um armênio muito
rico, patriota, engenheiro notável, muito estimado nos meios financeiros, políticos, bem como
na alta sociedade das famílias”, a quem ele indicaria para ser o “Ministro da Armênia para a
América do Sul”. Simultaneamente, Etienne articulava para contar com o apoio de Rui
Barbosa. Em carta enviada ao jurista em 24 de fevereiro, escrita em francês e assinada por ele
387
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 4 de janeiro de 1920, p. 1 (HDB/BN).
388
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
389
Etienne Brasil a Archag Tchobanian, 4 de fevereiro de 1919, III-800, p. 13 (MLA/RA).
390
Ibid., p. 14.
123
e Agop Kaisserlian, há a solicitação para que Barbosa receba-os em entrevista para firmar a
carta que estaria pronta assim que Mihran Latif estivesse curado de uma enfermidade391.
391
Etienne Brasil e Agop Kaisserlian a Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1919, CR
235/1 (4) (FCRB).
392
NASLIAN, Jean. Les Memoires de Mgr. Jean Naslian: eveque de Trebizonde, sur les événements
político-religieux en proche-orient de 1914 à 1928. Beirute: Patriarcado da Cilícia dos Armênios
Católicos, 2009, vol. 1 e 2, p. 582.
393
Ibid., p. 943.
394
Ibid., pp. 581-582.
395
WATENPAUGH, K. op. cit., 2014, pp. 173-175.
124
Síria396. Por conta disso, o “presidente da delegação nacional” armênia pedia que campanhas
de arrecadação de fundos fossem iniciadas pelo mundo a fim de ajudar os refugiados, “Em
nome das viúvas e órfãos dos nossos mártires e heróis; em nome dos deportados, que ainda
padecem nos desertos do desterro, a delegação nacional faz apelo aos armênios de todos os
países e conta com seu patriotismo”. Segundo Kechichian, não seria a primeira vez que
dinheiro era arrecadado no Brasil e destinado à Boghos Nubar. Em 1917, Elian Naccach – um
dos enviados de São Paulo para se encontrar com os delegados brasileiros no Rio – à frente da
“Sociedade Armênia de Beneficência”397, teria enviado 25 mil francos ao político armênio na
França, atitude repetida no ano seguinte398, embora as informações de periódicos armênios –
do francês Armênia e do Kotchnak, de Boston – dão conta de 15 mil francos399. Merece
destaque ainda a introdução que Etienne faz antes de transcrever o telegrama, dando como
certo que a Liga das Nações havia determinado que os EUA exercessem um mandato sobre a
Armênia, garantindo, assim, a independência.
396
A Noite. Rio de Janeiro: 6 de março de 1919, p. 4 (HDB/BN).
397
Não confundir com a União Geral Armênia de Beneficência (UGAB), fundada no Cairo em 1906
pelo mesmo Boghos Nubar Paxá, mas que só teria filial no Brasil nos anos 1960.
398
KECHICHIAN, H. op. cit., pp. 40-41.
399
Kotchnak (Կոչնակ). Boston: 15 de setembro de 1917, p. 1123 (MATENADARAN/RA).
400
“Centre Arménien du Brésil a Ministre de affaires étrangères du Brésil”. Rio de Janeiro, 26 de
maio de 1919, 281/2/4 (AHI)
125
de turcofobia, que o acompanhou durante anos como articulista e escritor. Mesmo com a
pretensão de atuar como um diplomata, ofício que tem seus códigos, etiquetas e jargões, o
intelectual não abre mão da linguagem propagandística baseada na missão civilizatória
ocidental. A falta de traquejo renderia, mais tarde, reclamações por parte do Itamaraty, que
reclamava em anotações anexas às cartas de Etienne Brasil que o armênio quebrava os
protocolos ao se dirigir diretamente ao Presidente da República, ignorando os trâmites
diplomáticos, algo que nem os ministros plenipotenciários tinham autorização para fazer401.
401
“Directoria Geral dos Negocios Diplomaticos e Consulares ao Ministro de Relações Exteriores”.
Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1920, 281/2/4 (AHI).
402
Pierre Loti foi publicado no Brasil em 1913. Cf. LOTI, Pierre. A Turquia Agonisante. Rio de
Janeiro: Casa A. Moura, 1913.
403
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1919 (ARFA).
126
No mês seguinte, o intelectual informou Paris que ele e “outros bons elementos da
colônia” estavam reorganizando o Centro Armênio na capital brasileira cuja presidência seria
ocupada por Levon Apelian, tendo Agop Kaisserlian como vice e ele próprio como secretário-
geral. A “presidência geral de todos os armênios do Brasil” continuaria a ser exercida por
Mihran Latif, em um movimento político de Etienne que garantiria, em teoria, a liderança de
seu aliado mais poderoso sobre todas as organizações armênias do Brasil, o que incluiria as de
São Paulo, onde meses mais tarde alguns armênios questionariam as posições políticas do ex-
padre e colocariam em questão sua autoridade como articulador político da diáspora armênia
no Brasil404. A assinatura do remetente ao final da carta já está acompanhada de sua nova
função, “secretário-geral do Centro Armênio”, posto que garantiria a Etienne a direção da
entidade – e do grupo de interesses o qual lidera – sem qualquer ônus econômico ou político,
os quais eram arcados por Latif e Apelian.
Em outubro, Etienne Brasil escreveu a Aharonian para tratar do comércio entre
Brasil e Armênia. Ele afirmou que havia conseguido reunir um grupo de “capitalistas” que
estariam dispostos a exportar “para o Oriente e a Armênia, café, cacau, mate (chá brasileiro),
manganês e outros artigos sob demanda”405. Em troca, os comerciantes esperavam receber
seda, tapetes, frutas secas e outros artigos que Etienne garantiu que os armênios poderiam
prover. O governo brasileiro estaria inclinado a providenciar um navio que transportaria as
mercadorias em questão – além de alguns víveres como farinha e feijão – caso o governo
armênio apresentasse garantias por meio de um banco. O navio poderia ser enviado a Batumi,
Trebizonda, Esmirna, Constantinopla, Cilícia ou Egito e os negociantes armênios da França
ou Armênia que desejassem participar da transação deveriam procurá-lo. Para caminhar com
as negociações, Etienne afirma da “urgência” do assunto, pressionando Aharonian para que o
governo armênio providenciasse as garantias bancárias necessárias, o que nunca aconteceria.
Etienne parece querer justificar tanto no Brasil quanto na Armênia as vantagens comerciais
que poderiam existir a partir do reconhecimento brasileiro da pequena república do Cáucaso,
além de garantir aos armênios – e outros imigrantes – que tinham negócios no Rio de Janeiro
que fossem financeiramente beneficiados em troca de apoio às demandas que Etienne fazia
junto ao Catete e a Paris.
Em 11 de outubro, Etienne novamente reuniu uma comitiva de armênios do Rio
de Janeiro e São Paulo para visitar o presidente Epitácio Pessoa e agradecê-lo pelo papel do
Brasil na Conferência de Paz de Paris em prol das reivindicações armênias, embora ele não
404
Idem, Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1919 (ARFA).
405
Idem, Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1919 (ARFA).
127
mencione que papel teria sido esse. Contudo, em carta enviada dias mais tarde a Aharonian
para informá-lo dos resultados da reunião com o presidente, Etienne afirma que Pessoa teria
respondido da seguinte forma o agradecimento armênio:
O Brasil não fez mais que seu dever de justiça. Quanto a mim, nutro uma
grande simpatia por vossa nação; durante meu governo eu farei todo o
possível para estabelecer boas relações políticas e comerciais com a
Armênia406.
Na reunião, uma carta foi lida pelos representantes armênios que se pronunciavam
em nome de Boghos Nubar, Avetis Aharonian e todas as comunidades armênias da
“dispersão”, que felicitavam e agradeciam a intervenção brasileira. De acordo com o
documento, “as vossas notabilidades inscreveram os seus nomes ao lado dos de Gladstone,
James Bryce, Wilson, Clemenceau e outros defensores da Armênia”. Como recompensa, urgia
o início do intercâmbio comercial entre Brasil e Armênia, no qual “primorosos tapetes e
sedas, os nossos deliciosos azeites e frutas da Cilicia poderão pagar o café e demais
preciosidades de vossa terra”. Porém, o trecho mais revelador é a conclusão da missiva:
Diante do papel preponderante que os Estados Unidos terão na assistência à
Armênia, liames especiais ligar-nos-ão ao continente americano. Eis aí por
que solicitamos o auxílio do vosso governo nesta hora suprema em que se
está decidindo a sorte definitiva da Armênia gloriosa e mártir407.
406
Idem, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1919 (ARFA).
407
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 12 de outubro de 1919, p. 2 (HDB/BN).
128
408
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1919 (ARFA).
409
Idem, 3 de janeiro de 1920, p. 4 (HDB/BN).
129
Não satisfeito, ele se dirigiu quatro dias mais tarde diretamente a Epitácio Pessoa,
lembrando ao presidente as palavras de apoio à causa que ele havia pronunciado antes de
embarcar para Paris, ainda não como presidente da república, mas como chefe da delegação
brasileira na Conferência de Paz411. Etienne afirmou que o Brasil nunca hesitou em
reconhecer nações cujos governos haviam sido alterados, agindo assim com relação a Cuba,
Panamá e Portugal, que sofreram rupturas políticas, mas invariavelmente foram reconhecidos
em poucas semanas como legítimos pelo governo brasileiro. Assim, o diplomata enumerou as
razões pelas quais o Brasil deveria agir da mesma forma para com a Armênia: I) a Armênia
contava com uma população de cinco milhões de pessoas – em um exagero estatístico já feito
antes por Etienne – ou seja, muito mais do que a Grécia, Sérvia e Bulgária, países
reconhecidos mundialmente; II) os EUA haviam mandado uma missão de reconhecimento à
Armênia – comandada pelo General James G. Harbord, homem de confiança de Woodrow
Wilson, que tinha a tarefa de avaliar se o mandato dos EUA era viável e concederam dois
empréstimos ao governo armênio. Tais atitudes, segundo Etienne Brasil, “equivale[m] a um
reconhecimento implícito”. Assim sendo, o diplomata conclui seus argumentos com um apelo
final:
[...] o reconhecimento da República Armênia não somente será bem acolhido
pela Europa, porque a voz do Brasil é desinteressada; como ainda provocará
o reconhecimento pelas demais Potências; duas Repúblicas sul-americanas
prometeram imitar imediatamente o ato do Brasil. Este gesto nobilíssimo
facilitará a defesa de nossas reivindicações perante a mesa da Paz.
410
Etienne Brasil a Azevedo Marques. Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1920, 281/2/4 (AHI). Após
tentar, sem sucesso, no início dos anos 1910, Etienne Brasil somente conseguiria se naturalizar
brasileiro em 1925. Base de Dados Nacionalidades, nº processo E.3.925, código 24391 (AN).
411
Etienne Brasil a Epitácio Pessoa. Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1920, 281/2/4 (AHI).
130
[...] Esperamos que V. Exa., que já ergueu a voz e nosso favor, inscreverá,
ao assinar o decreto de reconhecimento da República Armênia já organizada,
o seu nome e o do Brasil em caracteres de ouro nos corações dos Armênios e
na História da Armênia.
412
A Epoca. Rio de Janeiro: 14 de maio de 1913, p. 7 (HDB/BN).
413
A Rua. Rio de Janeiro: 15 de janeiro de 1920, p. 3 (HDB/BN).
131
Ainda no mesmo mês, Etienne recorreu a jornais do sul do país, de forma a tornar
a causa armênia mais conhecida fora do eixo Rio-São Paulo. Em entrevista dada a um
periódico carioca e replicada por jornais de Florianópolis e Porto Alegre, o representante
diplomático afirma que a Constituição da Armênia foi feita com molde nas Cartas dos EUA e
do Brasil, pois, “desta última foram julgadas muitas disposições superiores às da norte-
americana”415. No dia seguinte, em um jornal gaúcho, há a informação de que da Constituição
brasileira veio a resolução “que dispõe que a Armênia não se empenhará em guerra de
conquista”416, o que, em realidade, era inspirado no artigo 4º de um decreto de 22 de maio de
1790 da Assembleia Constituinte da França revolucionária, posteriormente incorporado à
constituição francesa de 1791417. No dia 28, Etienne Brasil desmentiu que a Holanda
assumiria um mandato sobre a Armênia, pois o país possuía autonomia, e os territórios
litigiosos ficariam sob jurisdição internacional418. Alguns meses depois, ele também negaria a
possibilidade de um mandato italiano419 e também belga420, sendo esse último o mesmo país
ao qual ele havia solicitado intervenção menos de um ano antes. A razão para o aparente
desdém do representante diplomático que havia dito, em documentação oficial pouco tempo
antes, que aceitaria um mandato até dos hotentotes caso fosse preciso, foi o reconhecimento
da República Armênia pelas Potências, conforme ele mesmo divulgou por meio da imprensa
no começo de fevereiro de 1920421. No final de janeiro, França, Grã-Bretanha e Itália haviam
reconhecido o governo de Yerevan, embora o senado norte-americano ainda se recusasse a
414
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1920 (ARFA).
415
Republica. Florianópolis: 25 de janeiro de 1920, p. 3 (HDB/BN).
416
A Federação. Porto Alegre: 26 de janeiro de 1920, p. 2 (HDB/BN).
417
COGGIOLA, Osvaldo. Capitalismo: origens e dinâmica histórica. São Paulo: edição do autor,
2014, p. 281.
418
A Rua. Rio de Janeiro: 28 de janeiro de 1920, p. 2 (HDB/BN).
419
Idem, 2 de novembro de 1920, p. 3 (HDB/BN).
420
O Paiz. Rio de Janeiro: 15 de julho de 1920, p. 4 (HDB/BN).
421
A Razão. Rio de Janeiro: 9 de fevereiro de 1920, p. 2 (HDB/BN).
132
422
BALAKIAN, P. op. cit., p. 359.
423
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
424
Arturo Alessandri ao presidente da República da Armênia. Santiago do Chile, 23 de dezembro de
1920 (ARFA).
425
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
426
Oblitera-se o Equador, razão pela qual o ex-padre passaria meses pedindo que Paris ratificasse suas
credenciais para que a sua jurisdição passasse a cobrir também Quito.
427
Idem, Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
428
Idem, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1920 (ARFA).
429
Idem, Rio de Janeiro 15 de janeiro de 1920 (ARFA).
133
intervisse junto aos diplomatas brasileiros na capital francesa, pois, na mente do ex-padre, o
Itamaraty não tomaria nenhuma decisão de política externa concernente a Armênia sem
consultar seus funcionários na França. Por isso, Etienne insistia que Aharonian recebesse “um
grande amigo da Armênia”, Rui Barbosa, – até então cotado para ser o representante
brasileiro no Conselho da Liga das Nações – na estação de trem quando de sua passagem por
Paris, além da necessidade de uma audiência com Gastão da Cunha, embaixador brasileiro na
cidade430. Nesses encontros, Aharonian deveria mencionar Latif de quem os brasileiros seriam
próximos e aludir a possibilidade do abastado homem de negócios ser o embaixador armênio
para a América do Sul, pois:
Dr. Mihran Latif é muito rico; seu palácio já é uma embaixada frequentada
por diplomatas, pela alta aristocracia e por pessoas de altos negócios. [...] O
Dr. Epitácio Pessoa é um amigo particular do Dr. Latif, assim como o
Ministro do Exterior Azevedo Marques e muitos altos políticos. O Dr. Latif
nos prestará grande serviços sem nada nos demandar431.
Além de usar a influência e riqueza de Latif para abrir portas para as aspirações
armênias – e as suas próprias – no Brasil, Etienne explorou conexões pessoais em todos os
níveis possíveis. Em missiva a Aharonian no começo de fevereiro, ele afirma que “é sabido
que o Presidente Epitácio Pessoa ama muito sua mulher e sua filha, Srta. Laurita, e eu
aproveitei do aniversário dessa última anteontem para endereçar, pelas mãos da Sra. Latif, um
tocante apelo das mulheres armênias às mulheres brasileiras”432. Contudo, não é possível
saber até que ponto as afirmações de Etienne sobre a influência de sua rede de contatos são
reais. Na mesma carta a Aharonian, ele indica que iria tentar o agendamento de uma audiência
com Azevedo Marques por meio do subsecretário de Estado, Diniz Pinehiro, um ex-colega da
Faculdade de Direito, estratégia essa que causa estranheza na medida em que Latif poderia
intervir diretamente junto a Pessoa ou Azevedo Marques usando seus laços de amizade com
essas figuras o que eliminaria a necessidade do diplomata acionar escalões mais baixos para
ser recebido pelos tomadores de decisão.
430
Idem, ibid.
431
Idem, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1920 (ARFA).
432
Idem, ibid.
134
Rio de Janeiro e em Yerevan que pudessem atrapalhar seus planos para as relações bilaterais.
Irritava-o o laconismo de Aharonian ao responder suas cartas e a morosidade dos tomadores
de decisão armênios para atender seus pedidos. Alegavam eles que a nomeação de Latif para
o cargo de embaixador e outras questões burocráticas só poderiam ser definidas após a
assinatura do tratado de Sèvres e o posicionamento oficial do governo armênio em Yerevan
sobre essas matérias, não competindo à delegação em Paris criar mais representações
diplomáticas ou nomear pessoal além do que já havia sido feito433. Também incomodava
Etienne o tratamento ambíguo dispensado pelos tomadores de decisão brasileiros que, ao
mesmo tempo em que o recebiam com deferência e atenção, prometiam resoluções rápidas
para as demandas armênias que, na prática, estavam se arrastando por mais tempo que o
diplomata previa. Enquanto funcionários do Itamaraty como o secretário Fernandes Pinheiro
diziam a ele que o reconhecimento brasileiro era “pura formalidade”434, a protelação
encontrava escusas em questões tidas como mais relevantes, como a resolução do arresto de
navios brasileiros pela Alemanha durante a Guerra435.
433
HOVANNISIAN, R. op. cit., pp. 431-433.
434
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1920 (ARFA).
435
Idem, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1920 (ARFA).
436
Idem, Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1920 (ARFA).
135
Etienne Brasil parece ter escrito essa carta – datada do mesmo dia da audiência
com Pessoa – para formalizar, textualmente, o que havia sido conversado entre os dois. Não
obstante, conforme indicado por uma anotação anexada à missiva, o documento foi devolvido
ao remetente por não seguir o protocolo do Itamaraty, dirigindo-se diretamente ao Presidente
437
Idem, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1920 (ARFA).
438
Idem, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1920 (ARFA).
439
Idem, Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1920; e 20 de fevereiro de 1920 (ARFA).
440
Idem, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1920 (ARFA).
441
Etienne Brasil a Epitácio Pessoa. Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1920, 281/2/4 (AHI).
442
Idem, 20 de fevereiro de 1920, 281/2/4 (AHI).
136
443
Etienne Brasil a Azevedo Marques. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1920, 241/2/13 (AHI).
444
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1920 (ARFA).
445
O Paiz. Rio de Janeiro: 28 de fevereiro de 1920, p. 4 (HDB/BN).
446
HOVANNISIAN, R. op. cit., p. 343.
447
Etienne Brasil a Rodrigo Octavio. Rio de Janeiro, 3 de maio de 1920, 241/2/13 (AHI).
448
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1920 (ARFA).
449
Idem, Rio de Janeiro, 21 de abril de 1920 (ARFA).
450
Idem, Rio de Janeiro, 11 de abril de 1920 (ARFA).
137
ele batalhava para ser visto pelas autoridades brasileiras como um diplomata que seria, nos
termos de Raymond Aron, “a unidade política em nome da qual fala”451; e segundo e mais
importante, para que sua unidade política fosse reconhecida como um ente soberano e
independente pelo Rio de Janeiro, do contrário, seu cargo não teria legitimidade. No dia 25
daquele mês, mais um passo foi dado em direção a sua acreditação como diplomata: Etienne
acusou o recebimento dos documentos que investiam poderes para responder pela República
Armênia na América do Sul, além de livros e revistas que serviriam para o estudo da história
dos armênios e a promoção da causa no subcontinente452, ainda que a continuidade dos
pedidos por informações acerca dos símbolos cívicos armênios indique que ainda era precária
a condição de seus trabalhos como diplomata, carente de dados precisos sobre o país o qual
representava.
451
ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 52.
452
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 25 de março de 1920 (ARFA).
453
Idem, Rio de Janeiro, 21 de abril de 1920 (ARFA).
138
454
Idem, ibid.
455
Idem, Rio de Janeiro, 28 de abril de 1920 (ARFA).
139
teria sugerido que fosse criado um banco armênio-americano para facilitar o comércio
bilateral, o que o diplomata armênio no Rio de Janeiro acreditava que poderia abrir portas
para a concessão de empréstimos à República Armênia.
456
Telegrama de Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 3 de maio de 1920 (ARFA).
457
Etienne Brasil estima em mil pessoas o número de armênios que viviam na Argentina por volta de
1920 – segundo ele, eram 2 mil em 1908 – concentrados em Buenos Aires e Córdoba. As entidades
teriam a seguinte divisão: Dashnak, 70 membros; Beneficência – provavelmente UGAB – 100
membros; Hnchak, 30 membros; alguns Ramkavar e outros grupos menores. Etienne Brasil a Avetis
Aharonian. Rio de Janeiro, 3 de maio de 1920 (ARFA).
458
COMPAGNON, O. op. cit., p. 70.
459
A Noite. Rio de Janeiro: 15 de maio de 1920, p. 1 (HDB/BN).
140
Não obstante o destaque dado pelo jornal A Noite para a notícia oriunda de
Londres e corroborada por Etienne Brasil, amplamente reproduzida por órgãos de imprensa de
diversas cidades do país, não há na pasta referente à Legação Armênia no Brasil no Arquivo
Histórico do Itamaraty documentos que comprovem a articulação de Wilson com Brasil ou
Argentina para a construção de um mandato sobre a Armênia. Por isso, é necessário voltar à
fonte da notícia para dissipar as dúvidas que pairam sobre o artigo do jornal carioca e as
afirmações do representante diplomático. No dia 10 de maio de 1920, portanto, cinco dias
460
The Times. Londres: 22 de abril de 1920, p. 15.
461
Cf. ADJEMIAN, A. op. cit.
462
Cf. AVEDIAN, Vahagn. “The Armenian Genocide of 1915 from a Neutral Small State’s
Perspective: Sweden”. In: Genocide Studies and Prevention: an international journal. International
Association of Genocide Scholars: Vol. 5, Issue 3, Article 8, 2010.
463
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1920 (ARFA).
464
Um estudo feito pelo general norte-americano James G. Harbord em 1919 estimou em 570 milhões
de dólares e a mobilização de 59 mil soldados para a execução do mandato. ADJEMIAN, A. op. cit.,
p. 85.
141
antes do furo de reportagem do A Noite, foi publicada uma carta no jornal londrino The Times
endereçada aos editores desse órgão. O texto era uma resposta aos artigos publicados ao longo
das semanas anteriores que discutiam qual seria o destino do mandato sobre a Armênia após a
iminente recusa dos EUA. Assinada por Sir Robert William Perks, baronete e ex-membro do
parlamento britânico, a carta indaga se era correta a atitude dos Aliados em deixar a Armênia
a mercê da própria sorte após o fracasso de encontrar um mandatário para aquela nação. À
guisa de conclusão, Perks questiona:
Não há nenhuma esperança de que essa missão humana e cristã, que a
poderosa República da América do Norte julga-se incapaz de executar, uma
das ricas e progressistas repúblicas da América do Sul, auxiliada pela
experiência administrativa britânica, possa tentar e, para sua honra
duradoura, ser bem sucedida?465
Assim, fica evidente que não foi Woodrow Wilson quem fez referência ao Brasil
ao pensar que o país poderia assumir o mandato. Nação alguma foi mencionada pela carta no
The Times, ao contrário do que a manchete do A Noite afirma. A menção a “uma das ricas e
progressistas repúblicas da América do Sul” foi feita por um aliado de primeira hora da causa
armênia na Grã-Bretanha, que militava ao lado de figuras como o ex-Primeiro Ministro Lorde
William Gladstone e James Bryce. Desde os anos 1890, havia na ilha um movimento de
políticos em apoio às reivindicações armênias466. Em 1919, um ano antes da carta do The
Times, Perks havia se pronunciado em uma audiência pública no Methodist Central Hall
Westminster, ao lado de outras autoridades, mostrando preocupação com a questão do
mandato norte-americano sobre a Armênia e a anexação da Cilícia à nova república467. Ou
seja, a carta publicada pelo jornal era apenas mais um pronunciamento em meio a tantos
outros que mostrava a apreensão em torno da consolidação da República Armênia e seus
territórios. O pedido para que uma nação sul-americana assumisse o mandato, portanto, era
mais uma esperança de resolução da questão do que uma realidade.
A vaga menção de uma nação sul-americana envolvida com uma questão tão
crucial para o futuro da Armênia fez com que Etienne Brasil tomasse a dianteira da questão e
se pronunciasse no jornal com que mantinha laços estreitos há anos, assumindo que a
informação vinda de Londres se referia a uma resolução tomada nos altos círculos decisórios
465
“Is it beyond the region of hope that this Christian and humane task, which the powerful Republic
of North America may find herself unable to undertake, one of the wealthy and progressive Republics
of South America, aided by British administrative experience, may attempt and to her lasting honour
successfully achieve?” The Times. Londres: 10 de abril de 1920, p. 8.
466
PALMER, A. op. cit., p. 178. LAYCOCK, J. op. cit.
467
ARMENIA AND THE SETTLEMENT. Londres: The Armenian Bureau, 1919, p. 37.
142
da política mundial. Concedeu entrevista ao jornal dizendo que o assunto era tratado com
sigilo, mas que a informação procedia, pois “o nosso grande protetor, o presidente Wilson”
havia indicado o Brasil e a Argentina para que um dos dois assumisse a responsabilidade.
Para Richard Hovannisian, a ideia de Argentina e Brasil, uni ou bilateralmente, assumirem o
mandato sobre a Armênia era de autoria do próprio diplomata468. Contudo, em uma das cartas
enviadas por Etienne a Aharonian no dia seguinte à publicação do artigo no A Noite, ele
afirmou que em reunião com o embaixador norte-americano no Rio de Janeiro Edwin V.
Morgan, o diplomata teria dado uma “solução magnífica: um mandato coletivo de duas ou três
potências americanas”469. Ante a essa “solução” supostamente dada por Morgan, Etienne
planejava que Argentina e Brasil se unissem aos EUA – com o apoio da Liga das Nações –
para que o mandato sobre a Armênia fosse executado e, para tanto, ele iria consultar os
chanceleres sul-americanos, assim como Garegin Pastrmachian – também conhecido como
Armen Garo – representante diplomático armênio nos EUA e alta liderança Dashnak, mentor
do assalto ao Banco Otomano em Constantinopla em 1896. Todavia, não é possível concluir
se Morgan de fato mencionou a Etienne a solução e, se o fez, em que medida era uma opinião
pessoal do diplomata norte-americano ou uma – pouco provável – orientação de Washington.
É sabido, todavia, que Etienne entrou em contato com Pastrmachian um mês mais tarde – a
pedido de Aharonian – para solicitar que o diplomata armênio nos EUA enviasse a ele
determinada soma de dinheiro para manutenção das atividades políticas na América do Sul470.
468
HOVANNISIAN, R. op. cit., p. 432.
469
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1920 (ARFA).
470
Etienne Brasil a Garegin Pastrmachian. Rio de Janeiro, 29 de junho de 1920 (ARFA).
471
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 23 de maio de 1920 (HDB/BN).
143
república do Cáucaso472. A Aharonian, Etienne afirmou que Epitácio Pessoa havia prometido
comparecer ao evento – o que não aconteceu – e o presidente brasileiro teria autorizado o
diplomata armênio a escrever para Paris informando que ele seria simpático à ideia do
“mandato ou protetorado”, dando aspas a Pessoa em sua missiva:
O entusiasmo de Etienne Brasil era tamanho que ele rascunhou possíveis cenários
para o mandato conjunto a ser exercido sobre a Armênia e enviou-os a Avetis Aharonian,
juntamente com os direitos e deveres de tutor(es) e tutelado, nos seus termos. Para ele, havia
três possibilidades de tutoria: a) um mandato exercido somente por Brasil ou Argentina; b)
Brasil ou Argentina, com ajuda dos EUA; c) Brasil, Argentina e EUA coletivamente. Aos
tutores caberia fornecer a Armênia armas, munições e víveres; cuidar das instituições e
administração; ter a responsabilidade de reunir os “armênios pobres da dispersão e das
cidades turcas no território da República Armênia”; num mandato que duraria entre cinco e
dez anos. Aos tutelados, caberia “considerar como débito público o dinheiro fornecido pelo
tutor; aceitar os conselheiros e comissários do tutor; conceder privilégios para o comércio do
tutor”474. Nesse sentido, completamente convencido da eficácia e viabilidade de seus planos,
Etienne solicitava a Aharonian autorização para requisitar formalmente junto aos governos de
Argentina e Brasil a proteção desses países nos termos pensados por ele, além de pedir uma
nomeação diplomática em separado para cuidar dos interesses armênios na Argentina, de
forma a atender as exigências diplomáticas daquele país475. Não obstante sua proatividade,
entusiasmo e otimismo, não há evidências que os tomadores de decisão armênios – divididos
em disputas políticas em torno de questões cuja resolução passava longe do Rio de Janeiro –
tenham considerado o esboço feito por Etienne Brasil ou ao menos tenha-o levado a sério. Um
sinal da – pouca – atenção dispensada ao ex-padre são suas constantes reclamações sobre a
falta de respostas desde Paris. No final de maio de 1920, Etienne reclamou que já eram oito
472
Diretor geral a Azevedo Marques. Rio de Janeiro, 26 de maio de 1920, 281/2/4 (AHI).
473
Epitácio Pessoa, citado por Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1920
(ARFA).
474
Idem, ibid.
475
Buenos Aires não reconhecia o posto de “representante diplomático” e exigia que Etienne fosse
ministro plenipotenciário para reconhecê-lo Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 29 de
maio de 1920 (ARFA).
144
cartas sem resposta – a última teria sido em 2 de março – e que isso causava grande prejuízo a
sua missão diplomática476. Antes de reclamar explicitamente, o diplomata parecia tentar
entender os motivos da ausência de réplicas por parte de Paris, enviando telegramas com
perguntas que haviam sido feitas anteriormente nas missivas477 – em um sinal de desconfiança
da eficiência do serviço de correios – e até mesmo remetendo cartas e telegramas em
armênio478 – provavelmente redigidos por Agop Kaisserlian – em um esforço de compreender
se o que causava a ausência de comunicação era, eventualmente, algum tipo de barreira
linguística – o que era pouco provável, tendo em vista que tanto Etienne quanto Aharonian
eram fluentes em francês, idioma que usavam para se corresponderem.
476
Idem, ibid.
477
Telegrama de Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1920 (ARFA).
478
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 30 de junho de 1920; Idem, Rio de Janeiro, 26
de julho de 1920; Telegrama de Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 27 de julho de
1920 (ARFA).
479
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 29 de maio de 1920 (ARFA).
480
Idem. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1920 (ARFA).
481
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 29 de maio de 1920, p. 5 (HDB/BN).
145
nacionais da Armênia e do Brasil, ao custo de cinco mil francos arcados pelo genro de Latif,
Alberto Betim Paes Leme – era Luciano Gallet, marido de Luísa Gallet, a mesma que em
1933 acharia casualmente o artigo de Etienne sobre os malês e o enviaria a Mário de
Andrade482. Segundo a nota da Gazeta de Noticias, Epitácio Pessoa, “por uma questão de
protocolo, não compareceu, nem se fez representar, visto como o governo brasileiro não
reconheceu oficialmente aquela Republica oriental”. A revista O Malho publicou, em 5 de
junho, uma foto dos presentes ao evento (anexo: Figura 7).
482
O nome do maestro e de outras personalidades está em uma nota enviada para Avetis Aharonian
por Etienne Brasil, que pedia para o político armênio escrever uma mensagem de agradecimento às
pessoas elencadas que participaram da festividade. Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro,
29 de maio de 1920 (ARFA).
483
Etienne Brasil a Mario Ruiz de los Llanos. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1920 (ARFA).
484
Idem, ibid.
485
COMPAGNON, O. op. cit., p. 129.
146
486
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 23 de junho de 1920 (ARFA).
487
Idem, Rio de Janeiro, 18 de julho de 1920 (ARFA).
488
SLIDE, Anthony [org.]. Ravished Armenia: and the Story of Aurora Mardiganian. Jackson:
University Press of Mississippi, 2014.
489
BALAKIAN, P. op. cit., p. 313.
147
custava cerca de 25 centavos de dólar em 1919, o assento para assistir ao drama de Aurora –
que contava com a própria sobrevivente como atriz no papel de protagonista – poderia custar
até dez dólares, cujo valor seria revertido aos orfanatos que se dedicavam a cuidar das
crianças armênias490. Estima-se que 30 milhões de dólares foram arrecadados em bilheteria,
convertidos para a Near East Relief manter orfanatos para jovens armênios no Oriente Médio.
Enquanto isso, Aurora Mardiganian, atriz de sua própria história, recebia cerca de 10 dólares
por mês para trabalhar no filme e sofria com a exploração do diretor e dos produtores. Com
pouco domínio da língua inglesa, a sobrevivente foi convencida por um roteirista – Harvey
Gates, que se tornou, junto da esposa, guardião legal da jovem – a assinar a autorização para o
uso de sua imagem, acreditando se tratar de um ensaio fotográfico. Porém, ao invés da sessão
de fotos, Aurora foi levada para Los Angeles onde filmaria por longas horas a dramatização
da perseguição que ela e sua família viveram no Império Otomano. Na filmagem de uma das
cenas, a sobrevivente sofreu uma queda que resultou em um tornozelo quebrado, o que não
pareceu motivo suficiente para os produtores interromperem as filmagens, obrigando-a a
caminhar e a continuar a gravar, não obstante a fratura491. Para Donna-Lee Frieze:
Leilão de Almas foi uma sensação, não apenas porque era bem trabalhado –
de fato, recebeu apenas algumas críticas indiferentes [...] – mas também
porque a publicidade focava em estupro, redenção, religião e raça. Como
Meg McLagan pontua, Leilão de Almas “foi uma coprodução de interesses
comerciais e de direitos humanos meio-cristão, meio-humanitário”. Como o
genocídio é lembrado é influenciado pelo filme redescoberto; a navegação
entre os movimentos de direitos humanos no início do século XX; as
“imagens e narrativas intensas” [...] e, o mais controverso, o foco do filme na
violência sexual.
[...]
Assim, a fama efêmera de Mardiganian coincidiu com a breve existência da
República Democrática Armênia492.
No Brasil, a película foi exibida com o nome de Leilão de Almas e foi trazida ao
país pela Companhia Brasil Cinematrographica, proprietária do Odeon, uma das principais
490
ADJEMIAN, A. op. cit., pp. 44-47.
491
FRIEZE, Donna-Lee. "Three Films, one genocide: Remembering the Armenian Genocide through
Ravished Armenia(s)" In: ELTRINGHAM, Nigel; MACLEAN, Pam [org.]. Remembering Genocide.
Routledge, 2014, p. 42.
492
“Ravished Armenia was a sensation, not because it was highly crafted – indeed it received only a
few lukewarm reviews […] – but because the publicity focused on rape, redemption, religion and race.
As Meg McLagan points out, Ravished Armenia ‘was a coproduction of commercial and quasi-
Christian-quasi-humanitarian human rights interests’ […]. How the Genocide is remembered is
influenced by the rediscovered film; the navigation between human rights movements in the early
twentieth century; the ‘affect-intensive images and narratives’ […]; and, more controversially, the
film’s focus on sexual violence. […] Thus, Mardiganian’s ephemeral fame coincided with the brief
existence of the Democratic Republic of Armenia”. Idem, pp. 44-45.
148
salas de exibição do Rio de Janeiro. Ainda em maio de 1920, a Companhia começou a inserir
chamadas para a estreia do filme – que só aconteceria em 5 de julho daquele ano – na
imprensa carioca, publicando relatos sobre o massacre de armênios e imagens da película. Na
revista Palcos e Telas, de 13 de maio, é possível encontrar um anúncio de meia página sobre a
obra:
Leilão de Almas
O mais horroroso quadro da história da humanidade descrito por uma
testemunha de vista, vítima também de mil e uma atrocidades, a heroína
AURORA MARDIGANIAN.
O filme que o Odeon vai exibir dentro em breve não é obra da imaginação
exaltada de um escritor fecundo em descrever crimes inomináveis – é a
história de uma desgraçada moça armênia entregue como o povo do seu país
à barbaresca sanha dos turcos.
O que ali se vê consta de relatórios oficiais é a verdade apurada em
numerosos documentos, enérgicos brados de revolta do Visconde de Bryce
[sic], embaixador da Inglaterra e de Henry Morzenthan [sic], ministro
americano.
É enfim Aurora Mardeganian [sic] que conta ao mundo a sua própria
história!494
493
Palcos e Telas: revista theatral cinematrográphica. Rio de Janeiro: 13 de maio de 1920 (HDB/BN).
494
Idem, Rio de Janeiro: 3 de junho de 1920 (HDB/BN).
495
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 2 de abril de 1926, p. 12 (HDB/BN).
149
1994496. Outra cena, que parece ser o início do filme, foi encontrada mais recentemente, em
2015, e mostra um ator representando o embaixador norte-americano em Constantinopla,
Henry Morgenthau, contando a história dos massacres para crianças ao seu redor. O diplomata
foi um dos principais denunciantes do genocídio durante a Guerra, engajando-se pessoalmente
em reuniões com Mehmet Talât e outras autoridades otomanas na tentativa de evitar que
armênios fossem deportados. A publicação de sua biografia com detalhes sobre as
negociações para salvar pessoas da morte repercutiu sobremaneira no Ocidente, tornando o
autor conhecido não só entre armenófilos, mas entre o público-leitor em países como os EUA,
Canadá e Grã-Bretanha e, em menor grau, na América Latina, onde alguns de seus artigos
originalmente publicados no The New York Times – periódico no qual tinha um canal aberto
para denunciar a execução do genocídio – foram traduzidos e republicados497. A inserção de
sua figura nas primeiras cenas do filme dava à produção respaldo e credibilidade, além da
possibilidade de usar o nome e o cargo de Morgenthau – além de Bryce, outro célebre
armenófilo – na publicidade. Todavia, a fama de Morgenthau não ecoava com tanta força no
Brasil, a ponto de uma edição de Palcos e Telas apresenta-lo como Arthur Margenthau [sic],
embaixador da Alemanha498.
A exibição não ficou restrita apenas à capital federal, chegando também a São
Paulo, Recife e Cuiabá499 ainda em 1920 e em Vitória, Espírito Santo, em 1922500. Na maioria
dos anúncios na imprensa havia a menção ao alto custo dos ingressos nos EUA. De acordo
com o Jornal do Recife, os dez dólares cobrados em Nova York equivaleriam a 60$000
réis501, cerca de 1.200 reais em valores atuais502. Com isso, de alguma maneira, a Companhia
Brasil Cinematographica tentava justificar o preço que cobraria no país pela admissão nas
salas de cinema que exibissem a película: “é um filme de alto valor que custou à
COMPANHIA BRASIL CINEMATROGRAPHICA algumas dezenas de contos de réis e que
por isso só pode ser exibido a preços extraordinários”503 (ênfase no original). De fato, o valor
do ingresso foi de 2$000 – 40 reais em valores atuais –, o dobro do praticado normalmente
496
FRIEZE, D. op. cit., p. 38.
497
MORGENTHAU, H. op. cit.
498
Palcos e Telas: revista theatral cinematrográphica. Rio de Janeiro: 24 de junho de 1920 (HDB/BN).
499
O Matto-Grosso: orgam do Partido Republicano Matto-grossense. Cuiabá: 2 de setembro de 1920,
p. 2 (HDB/BN).
500
É provável que o filme tenha sido exibido em outras salas pelo país. Diário da Manhã. Vitória: ano
XVI, nº. 158, 21 de fevereiro de 1922, p. 5 (HDB/BN).
501
Jornal do Recife. Recife: 1 de novembro de 1920, p. 6 (HDB/BN).
502
De acordo com o conversor de valores do website “Acervo” d’O Estado de São Paulo. Disponível
em: http://acervo.estadao.com.br/. Acesso em: 23 de set. 2016.
503
Palcos e Telas: revista theatral cinematrográphica. Rio de Janeiro: 1 de julho de 1920 (HDB/BN).
150
Leilão de Almas parece ter sido um sucesso de bilheteria em seus primeiros dias
em cartaz, para júbilo dos responsáveis pela Companhia, orgulhosos dos esforços
publicitários feitos na imprensa, conforme relato na Palcos e Telas três dias depois da estreia:
Apesar da visibilidade inesperada para a questão armênia dada pelo filme, Etienne
Brasil não parecia muito contente em ter outra pessoa ou grupo trabalhando no assunto fora de
sua alçada. No dia 9 de julho, o Correio da Manhã acusou o recebimento de uma carta dois
dias antes assinada por “um amigo da Armênia”, na qual o remetente afirmava que o Odeon
“estava ganhando muito dinheiro” e, ao contrário do que havia acontecido nos EUA, nenhuma
504
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 11 de julho de 1920, p. 16 (HDB/BN).
505
Idem, ibid.
506
A Scena Muda. Rio de Janeiro: nº 35, 24 de novembro de 1921 (HDB/BN).
507
Palcos e Telas: revista theatral cinematrográphica. Rio de Janeiro: 8 de julho de 1920 (HDB/BN).
Ênfase no original.
508
Idem. Rio de Janeiro: 27 de janeiro de 1921 (HDB/BN).
151
parte desse montante seria destinado aos órfãos armênios em necessidade. Continua o
remetente anônimo:
Mundialmente, o filme foi uma dentre muitas ações realizadas para levantar
recursos para os armênios, explorando a imagem de mulheres e crianças cristãs sofrendo no
Oriente nas mãos dos turcos muçulmanos, em um discurso reproduzido por Etienne Brasil nos
jornais cariocas. Entre julho e agosto, Etienne teria arrecadado em prol dos órfãos três mil
francos graças as doações de Apelian e da filha de Mihran Latif, além de outros mil por meio
de uma festa beneficente organizada para esse propósito em Manaus por Levon Rumian –
professor universitário a quem Etienne tentava nomear como cônsul armênio na capital
amazonense – dinheiro esse que seria enviado às autoridades armênias por meio do Banco
Francês e Italiano511.
509
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 9 de julho de 1920, p. 12 (HDB/BN).
510
Idem. Rio de Janeiro, 11 de julho de 1920, p. 16 (HDB/BN).
511
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1920 (ARFA).
152
do Tratado foi concretizada, para revolta de muitos militares turcos que desertaram e
engrossaram as fileiras de Mustafá Kemal e de seu governo paralelo em Angora que,
evidentemente, não reconhecia a validade do acordo de Sèvres512.
Enquanto isso, Etienne dava explicações a Paris sobre o porquê do Brasil e outras
repúblicas sul-americanas não terem reconhecido a independência armênia, mesmo após a
celebração do Tratado de Sèvres. Segundo o diplomata, os problemas eram causados, “apesar
todos meus esforços”, por conta das grandes distâncias entre as capitais da América do Sul,
uma vez que ele centralizava todo o trabalho no Rio de Janeiro, bem como pela constante
troca de governantes e diplomatas, o que desfazia redes de contatos que levavam tempo para
serem reconstruídas515. Assim, ele reclamava sutilmente sobre a morosidade de Paris em
atender seus pedidos, sobretudo a criação de novas representações diplomáticas no
subcontinente e do envio de documentos que o tornasse ministro plenipotenciário em
substituição ao cargo de representante diplomático, desdenhado pela maioria dos governos da
América do Sul, o que fazia de Etienne dependente de suas conexões pessoais para ser
considerado um diplomata pelos tomadores de decisão das nações com as quais procurava
construir alianças. No caso do Brasil, o representante diplomático culpava a “apatia” do
512
PALMER, A. op. cit., pp. 253-254.
513
Etienne Brasil e Rodrigo Octavio. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1920, 281/2/4 (AHI).
514
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro: 26 de agosto de 1920, p. 2 (HDB/BN).
515
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1920 (ARFA).
153
chanceler Azevedo Marques pela lentidão do reconhecimento, a quem Epitácio Pessoa teria
prometido contatar sobre a matéria, em audiência realizada entre o mandatário brasileiro,
Etienne e o ministro da agricultura Simão Lopes, cujo filho também havia sido seu aluno. Na
Argentina, seus contatos com Eduardo Hachikyan renderam-lhe um convite por parte da
comunidade armênia local para visitar Buenos Aires, viagem essa que ele planejava realizar
em novembro, após hesitar em aceitar dada a ligação de seu aliado – quem Etienne
recomendara a Aharonian como cônsul-geral da Armênia na capital argentina – ao comitê
local do Dashnak. Desde seus anos como articulista acerca dos assuntos orientais, Etienne
Brasil realizava leituras confusas sobre a política armênia e mesmo ao corresponder-se com
uma das figuras públicas mais importantes da Armênia, suas assertivas não são muito
apuradas. Não raramente, é possível encontrar certo tom de criticismo de Etienne Brasil com
relação ao Dashnak, mas ele parecia esquecer-se que o próprio Aharonian e a maioria dos
políticos da República Armênia eram membros do partido.
516
O Jornal. São Luís: 11 de setembro de 1920, p. 1 (HDB/BN).
517
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1920 e; Rio de Janeiro, 3 de
setembro de 1920 (ARFA).
154
Um consulado também deveria ser criado na capital paulista, mas Etienne agia
com mais cautela ao propor nomes para ocupar o posto. Apesar de seu principal aliado em
São Paulo ser Elian Naccach, Etienne indicou em algumas cartas que seus compatriotas
naquela cidade estavam emitindo opiniões contrárias às dele e às do governo armênio. Em
setembro, ele havia mencionado que “os bons elementos da colônia estão muito satisfeitos
que o Sr. Boghos Nubar não assinou o Tratado de Sèvres” em carta a Aharonian521 – que foi o
representante da Armênia escolhido pelas Potências para assinar o documento – o que é mais
um indício que havia divergências sobre os rumos políticos no seio dos armênios do Brasil.
Em outros momentos, Etienne deu sinais de que os compatriotas de São Paulo eram mais
próximos às ideias de Boghos Nubar do que ao grupo de Aharonian que efetivamente
governava a República Armênia, o que poderia ser, de alguma maneira, uma ameaça a sua
518
Idem, Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1920 (ARFA).
519
Araujo Jorge a Etienne Brasil. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1920, 281/2/4 (AHI).
520
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1920 (ARFA).
521
Idem, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1920 (ARFA).
155
[...] mas é ela que tem agido de maneira incorreta em toda a América.
Composta de negociantes, bastante ignorantes e falantes de árabe, ela tem
uma [palavra ilegível] deplorável. Até agora aquela gente parece não
conhecer a República Armênia. [...] Eu soube, por carta confidencial, que
eles escreveram recentemente ao Sr. Boghos Nubar perguntando se eles
deveriam “reconhecer a República e seus delegados!”523 (Grifo e aspas do
autor).
522
Idem, Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1920 (ARFA).
523
Idem, Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1920 (ARFA).
524
Idem, Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1920 (ARFA).
525
Idem, Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1920 (ARFA).
526
Idem, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1920 (ARFA).
527
Telegrama de Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1920 (ARFA).
156
528
A Rua. Rio de Janeiro: 5 de novembro de 1920, p. 4 (HDB/BN).
529
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1920 (ARFA).
530
Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1920. Disponível em:
https://goo.gl/2ziah9. Acesso em: 16 ago. 2014.
531
VARTANIAN, Y. op. cit.
532
Telegrama de Etienne Brasil a Azevedo Marques. Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1920, 281/2/4
(AHI).
157
crédito da República, bem como para que encontrassem uma “solução justa” para a questão da
Cilícia em favor dos armênios533.
Mais tarde naquele mês, no dia 16, Etienne enviou telegrama a Aharonian com as
perguntas “perigo grave? Aliados aderiram?” e com a afirmação “eu solicitei intervenção do
Brasil”534. Com a primeira pergunta, o diplomata tentava obter maiores informações sobre os
rumores que chegavam ao Brasil sobre a sovietização da Armênia. Com a segunda, pedia
notícias sobre as negociações que ocorriam na Liga das Nações, com a participação dos EUA,
que garantiriam a manutenção da independência armênia. Na última frase do telegrama,
Etienne informava que iria novamente solicitar audiência com Pessoa para tentar convencer o
presidente brasileiro a intervir em favor dos armênios.
533
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1920 (ARFA).
534
Telegrama de Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1920
(ARFA).
158
Ademais, segundo ele, os “elementos de Boghos Nubar” criavam “na surdina todo tipo de
dificuldades” para a realização de seu trabalho535, sem especificar quem seriam esses
elementos ou que tipo de oposição faziam.
Apreensivo pela possibilidade de ver a Armênia circunscrita uma vez mais por
governo outro que não o dos próprios armênios – o que, no limite, custaria, além da
independência do Estado que ele representava, também seu cargo e influência – Etienne
vociferou contra aqueles que ele julgava que estariam traindo a Armênia. Sua indignação não
perdoou nem mesmo a França, farol cultural para ele e muitos intelectuais brasileiros e
armênios de sua geração, nação que ele mesmo tinha chamado de “protetora desvelada e
segunda pátria de todos os orientais” em artigo em 1913536. No final de novembro de 1920,
Etienne acusava o governo de Alexandre Millerand, sucessor de Georges Clemenceau – quem
os armênios viam com simpatia – de trair a Armênia em prol de outros interesses menos
nobres e ameaçava iniciar uma campanha na América do Sul contra a França:
Apesar dos atos indignos e miseráveis do governo atual (guiado pelos judeus
da Bolsa de Paris) na Cilícia e na questão de intervenção suscitada pelo Sr.
Viviani537, eu acho que o verdadeiro povo francês não está a par de tal
conduta vergonhosa e desleal. Parece-me que a boa política para nós é
continuar a buscar a amizade do povo francês.
Minha indignação é tanta que se a Armênia vir a ser sacrificada pelos erros e
acordos [...] do governo francês, eu consagrarei o resto dos meus exércitos a
fazer uma guerra [...] contra o país, na imprensa e em discurso em toda a
América do Sul, uma propaganda mais terrível do que aquela que eu lancei
contra os turcos538.
É pouco provável que Etienne Brasil estivesse de fato disposto a entrar em uma
polêmica na imprensa com a França, com seus diplomatas e com toda a influência que os
franceses exerciam nos círculos políticos e intelectuais no Brasil dos anos 1920. No cenário
hipotético do ex-padre – cuja carreira docente e intelectual, é bom lembrar, estava
intrinsicamente ligada ao Liceu Francês no Rio de Janeiro –, decidir por afrontar abertamente
as decisões de política externa francesa era ainda menos plausível que algum tomador de
decisão, burocrata ou jornal aceitasse endossar seus argumentos em prol da Armênia e em
detrimento da França. No começo de dezembro, o diplomata cogitaria a criação de “grupos
antieuropeus” na América do Sul para punir o governo francês “que ajuda os bolcheviques-
535
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1920 (ARFA).
536
A Epoca. Rio de Janeiro: 14 de maio de 1913, p. 7 (HDB/BN).
537
René Viviani (1863-1925), ex-ministro de relações exteriores e representante da França na Liga das
Nações em 1920.
538
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1920 (ARFA).
159
539
Idem. Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1920 (ARFA).
540
Idem. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1920 (ARFA).
541
HOVANNISIAN, R. op. cit., pp. 433-434.
160
com a Armênia542. Porém, a assinatura do pacto entre armênios e bolcheviques fez do apoio
da Liga e dos países supracitados letra-morta, ainda que as conversas em Genebra
continuassem dezembro adentro, pois havia o entendimento que a anexação da Armênia pela
Rússia poderia ser uma medida temporária543.
Também Etienne Brasil tinha a esperança que a ocupação russa fosse uma
estratégia para cessar “a invasão dos infames turcos e ganhar a amizade dos russos”544
enquanto os EUA e a Liga das Nações – representada por Brasil e Espanha – viabilizavam a
tão esperada e prometida ajuda à Armênia. “Há muito tempo”, escreveu o diplomata a
Aharonian, “nós temos sido joguetes das potências da Europa [...] Desta vez, se necessário,
vamos nos unir até mesmo ao diabo para que salvemos a nossa Armênia”545. Em outra
missiva, poucos dias depois, ele afirmou:
Em meio a todas essas incertezas, Epitácio Pessoa recebeu uma vez mais o
diplomata no Catete, em audiência na qual Etienne Brasil agradeceu ao presidente pelo
trabalho de Rodrigo Octávio na Liga das Nações em favor dos armênios – referindo-se à
disponibilidade brasileira para intermediar, junto com a Espanha e os EUA, a resolução dos
conflitos entre armênios e turcos547 – e sugeriu que “duas grandes cidades brasileiras
adotassem duas cidades da Armênia para protegê-las”.
Etienne Brasil encerrou o ano de 1920 distribuindo uma nota à imprensa negando
os “boatos saídos de Constantinopla” sobre a sovietização da Armênia. Segundo o diplomata,
a comunicação com o Cáucaso estava interrompida desde outubro e as únicas notícias que
mereciam atenção eram aquelas oriundas da delegação armênia em Paris. Em suas palavras:
Em hipótese alguma renunciaremos ao tratado de Sèvres e à amizade dos
aliados. Ultimamente, quer a questão da Cilicia, quer a dos socorros
libertadores da República Armênia têm progredido muito, e há seguras
esperanças de que poderemos em breve libertar o país quer dos assaltos de
Mustafá Kemal, quer da pressão sovietista550.
549
MILZA, P. op. cit., pp. 369-370
550
A Razão. Rio de Janeiro: 27 de dezembro de 1920, p. 8 (HDB/BN).
162
Pessoa “não mudou de opinião sobre nós e continua a nos proteger”, mesmo com as notícias
cada vez mais difíceis de refutar acerca da ocupação bolchevique da Armênia. Enquanto isso,
os armênios de São Paulo continuavam a desafiá-lo ao entrarem em contato com Boghos
Nubar. No Chile, seu aliado Alejandro Manuguian informava que Santiago também mantinha
o apoio aos armênios, o que Etienne definiu como “uma vitória”551. Na esfera comercial,
Etienne mantinha seus planos de criar um banco para facilitar o intercâmbio entre a América
do Sul e os armênios e contava com a ajuda de seu irmão Bernard Ignace, que seria nomeado
cônsul honorário do Brasil em Sófia em breve, para a consecução desse projeto. Isso indica
que o diplomata armênio não pretendia recuar ante as dificuldades enfrentadas pela Armênia,
por Aharonian e por ele mesmo, cada vez mais isolado na sua própria coletividade e
desgastado politicamente nos círculos decisórios e na imprensa no Rio de Janeiro.
Diante de um cenário cada vez mais nebuloso, Etienne Brasil parecia mais à
vontade para dar declarações e pronunciamentos mais salientes e menos diplomáticos. Em
correspondência a Aharonian, ele não hesitou em opinar sobre os rumos que a Armênia
deveria tomar para reverter o quadro adverso e sugeriu que superior:
551
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1921 (ARFA).
552
Idem, ibid.
553
A Noite. Rio de Janeiro: 24 de janeiro de 1921, p. 1 (HDB/BN). Etienne também reportou a
ocorrência no Chile a Paris. Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de
1920 (ARFA).
163
Brasil alegou, ele havia recebido telegramas de Lênin com recomendações para que os
diplomatas armênios espalhados pelo mundo reconhecessem o novo governo da Armênia ou
se preparassem para entregar os bens e os arquivos das legações a um delegado soviético
designado. Com informações oriundas do Rio de Janeiro, via telégrafo, A Provincia de Recife
noticiou que o encarregado soviético pela legação armênia no Brasil seria um alemão, que
viria acompanhado de “vários maometanos turcos, vestindo batina e inculcando-se de padres,
a fim de agitar os meios sírios, armênios, gregos e judeus residentes do Brasil para, por esse
meio, implantar o bolchevismo”554. Dizendo-se alarmado, Etienne Brasil teria entregado a
documentação à polícia para que a prisão dos agentes de Moscou fosse realizada tão logo eles
aportassem no país. Paralelamente a essas denúncias, o armênio insistia, via imprensa, na
validade de suas credenciais e na legalidade de seu posto diplomático no Brasil555.
O alarme soado por Etienne sobre uma invasão bolchevique acompanhada por
muçulmanos disfarçados de padres não teve muito fôlego. No dia 27 de janeiro, um jornal da
comunidade espanhola de São Paulo publicou a notícia espalhada pelo armênio com
pinceladas de deboche556. Dois dias depois, o periódico carioca A.B.C. dispensou várias linhas
para atacar Etienne Brasil e denunciar o “bluff”, criado a partir da nota publicada no A Noite.
Sob o título “Uma Gran-Via diplomática: A Epopeia da Armênia transforma-se no Brasil em
‘Vaudeville’”, o periódico provoca o “ex-clérigo e atual diplomata sem credenciais”,
afirmando que seus ataques a Lênin não são coerentes com as suas atitudes passadas, quando
o mesmo apresentava documentos assinados pelo líder bolchevique que garantiriam as
fronteiras armênias. No parágrafo final, o A.B.C. conclui:
Agora o espectro do maximalismo serve de ponto de apoio para o obscuro e
“sui-generis” ministro renovar as suas investidas. E quem sabe se em tudo
isso não há um pouco de imaginação do Sr. Etienne apavorado com a
hipótese da vinda de um delegado legítimo da Armênia que lhe tirará as
glorias? Daí, talvez, a sua lembrança de pedir para o seu compatriota o
castigo policial que se dá aos indesejáveis...557
554
A Provincia. Recife: 26 de janeiro de 1921, p. 1 (HDB/BN).
555
A Noite. Rio de Janeiro: 27 de janeiro de 1921, p. 2; A Rua. Rio de Janeiro: 27 de janeiro de 1921,
p.1; Correio Paulistano. São Paulo: 27 de janeiro de 1921, p. 5; Diario da Manhã. Vitória: 27 de
janeiro de 1921, p. 3 (HDB/BN).
556
Diario Español. São Paulo: 27 de janeiro de 1921, p. 7 (HDB/BN).
557
A.B.C. Rio de Janeiro: 29 de janeiro de 1921, p. 10 (HDB/BN).
164
farsa, o armênio lançou mão de dois fatos: a presença de indivíduos que mendigavam pelo
Brasil alegando serem padres armênios e; o receio que havia na Europa da infiltração de
“emissários pan-islâmicos” financiados pelos alemães para iniciar a guerra santa nas colônias
europeias558. Assim, Etienne fundiu nesses misteriosos homens os elementos mais temidos no
Ocidente e criou a figura do perigoso delegado alemão com um mandato bolchevique
acompanhado por inúmeros muçulmanos, todos a mando de Lênin. Ocorre, desse modo, a
demonização do outro, na esperança de que, se por ventura Moscou enviasse um representante
oficial de seus interesses para o Rio de Janeiro, as autoridades em alerta negariam entrada ao
estrangeiro e manteriam a interlocução com o armênio.
Enquanto seu nome era alvo de críticas nos jornais, Etienne Brasil tentava
desesperadamente obter apoio do Itamaraty e de Epitácio Pessoa para manter-se reconhecido
como representante diplomático da Armênia no Rio de Janeiro. No dia 25 de janeiro, o
armênio dispensou as exigências protocolares e enviou mensagens simultâneas ao chanceler
Azevedo Marques, ao Diretor de Negócios Estrangeiros, Araújo Jorge, e ao Presidente da
República, todas em papel timbrado em francês e armênio no qual é possível ler “o
representante diplomático da republica armênia para a América do Sul”. Para o primeiro,
Etienne Brasil pedia que o Brasil interviesse junto às “grandes potências” para fazer valer as
fronteiras armênias conforme haviam sido traçadas por Wilson e consolidadas pelo Tratado de
Sèvres, bem como a criação de um mandato sobre a Cilícia559. Ao Diretor, o armênio alertou
sobre o perigo dos falsos padres armênios, mas que não aparentam ter ligações com o
bolchevismo, embora seja crucial prendê-los para que não gerem confusão com os
“bolchevistas vestindo batinas”. Etienne garantiu ao diplomata que os indivíduos em questão
não são armênios, pois não sabem o idioma e que um padre armênio não estava autorizado a
mendigar, segundo orientação do Patriarca da Igreja Apostólica Armênia e de Terzian, líder
dos católicos armênios e supostamente seu tio560. A Epitácio Pessoa, o armênio defendia suas
credenciais de representante do “governo legítimo da Armênia”, desmentindo o que havia
sido publicado no Jornal do Commercio do mesmo dia, e rogava “ao alto espírito humanitário
e à grande simpatia que vós manifestastes pela minha desventurada pátria; e dos meus
esforços e sacrifícios vós mesmo sois testemunha” para que o presidente intervenha de modo
a obrigar o periódico mencionado a retificar as informações publicadas561. Alguns dias mais
558
McMEEKIN, S. op. cit., p. 327.
559
Etienne Brasil a Azevedo Marques. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1921, 281/2/4 (AHI).
560
Etienne Brasil a Araujo Jorge. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1921, 281/2/4 (AHI).
561
Etienne Brasil a Epitácio Pessoa. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1921, 281/2/4 (AHI).
165
tarde, possivelmente sem ter obtido uma resposta positiva – ou mesmo resposta alguma – de
Epitácio Pessoa, Etienne Brasil se dirigiu à Associação Brasileira de Imprensa para apresentar
as suas credenciais diplomáticas na esperança de que a aceitação de seus documentos pela
entidade pudesse mitigar o estrago feito pelo artigo do Jornal do Commercio562.
562
O Paiz. Rio de Janeiro: 2 de fevereiro de 1921, p. 4 (HDB/BN).
563
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 16 de fevereiro de 1921, p. 5 (HDB/BN).
564
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 19 de fevereiro de 1921, p. 1 (HDB/BN).
166
565
A Provincia. Recife: 22 de maio de 1921, p. 1 (HDB/BN).
566
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1921 (ARFA). Grifos no
original.
567
Cf. RUYSSEN, G. op. cit.
568
Gastão da Cunha a Avetis Aharonian. Paris, 31 de março de 1921 (ARFA).
167
capital francesa confirmaria a ciência do Rio de Janeiro com relação a nomeação de Etienne
no dia 18 de abril569, quando o Exército Vermelho já havia retomado o controle da Armênia,
destituindo novamente o Dashnak e estabelecendo definitivamente no país o regime que
duraria até 1991.
Etienne Brasil não voltou a se manifestar sobre a situação do país, seja pelas vias
diplomáticas ou por meio da imprensa. Os periódicos, contudo, continuavam a divulgar os
acontecimentos na Armênia oriundos das agências de notícias. A visita dos armênios à
residência de Rodrigo Octavio é significativa do declínio do prestígio de Etienne: embora
ainda conseguisse articular para ser recebido pelo alto escalão diplomático, tal encontro não
poderia ser realizado no Itamaraty. Em agosto, o ex-representante diplomático estava presente
no embarque dos delegados brasileiros que iriam participar de mais um compromisso em
Genebra, no âmbito da Liga das Nações, o que indica que ele voltou a defender seus
interesses de maneira pessoal e informal570.
Em 1922, Etienne Brasil formou-se em Direito e passou a advogar no Rio de
Janeiro, profissão que exerceu até sua morte em 15 de março de 1955571. Mesmo no novo
ofício, ele não abandonou a faceta acadêmica. Em pouco tempo, começou a escrever e
publicar artigos e livros sobre Direito, ambicionando se tornar uma referência nos estudos
jurídicos. Em 1938, ele escreveu uma carta ao político paulista Plínio Barreto a fim de
agradecer uma resenha elogiosa que o mesmo teria feito sobre o trabalho “Renovação das
Locações”. Junto com a carta de agradecimento, o intelectual – e agora jurista – anexou outros
textos de sua lavra “sobre um dos cantos mais obscuros do Direito universal”572.
Uma vez iniciada sua nova carreira, o intelectual não se ocupou mais de assuntos
concernentes à causa armênia. Nos anos 1920-30, com a chegada de um grande número de
imigrantes, a causa passou a ser centralizada nas instituições comunitárias criadas em São
Paulo, onde permanece até os dias atuais, mesmo depois da independência da Armênia da
URSS em 1991 e da criação de representações diplomáticas oficiais no Brasil.
569
Embaixada do Brasil na França a Avetis Aharonian. Paris, 18 de abril de 1921 (ARFA).
570
Correio Paulistano. São Paulo: 11 de agosto de 1921, p. 1 (HDB/BN).
571
De acordo com o livro de registros do cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, Etienne Brasil,
armênio, naturalizado brasileiro, morreu aos 72 anos vitimado por um colapso cardíaco e
arteriosclerose generalizada. Seu corpo foi sepultado no mesmo jazigo de sua esposa, Maria Emília da
Mota Brasil, falecida onze anos antes.
572
Carta de Etienne Brasil a Plínio Barreto. 15 de fevereiro de 1938. Série Correspondências, acervo
Plínio Barreto, PB-C-CP-0204 (IEB-USP).
168
573
MELLO, Flávia de Campos. “O multilateralismo na Política Externa Brasileira” In: Carta
Internacional. Associação Brasileira de Relações Internacionais, vol. 7, n. 2, 2012, p. 164.
574
BUENO, Clodoaldo. Política Externa da Primeira República: os anos de apogeu – de 1902 a 1918.
São Paulo: Paz e Terra, 2003, pp. 352-359.
575
COMPAGNON, O. op. cit., p. 47.
170
navios brasileiros por submarinos alemães, que o Brasil declarou estado de guerra contra o
país do Kaiser, tornando-se o único país sul-americano a se engajar no conflito. O contingente
brasileiro enviado para a Europa era composto de treze oficiais aviadores que ingressaram nas
fileiras da Royal Air Force, uma centena de médicos que serviram na França até fevereiro de
1919, além da Divisão Naval em Operações de Guerra, composta por dois cruzadores e quatro
contratorpedeiros. Apesar dos esforços brasileiros, a frota só pôde entrar no Mar Mediterrâneo
um dia antes do armistício, após cumprir quarentena por conta de uma epidemia de gripe
espanhola576.
576
CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. 4ª ed.
Brasília: editora da UnB, 2011, pp. 224-227
577
COMPAGNON, O. op. cit., p. 35.
578
Ibid., p. 60.
579
Ibid., pp. 51-53.
580
Pacotilha. São Luís do Maranhão: 13 de julho de 1915 (HDB/BN).
581
COMPAGNON, O. op. cit., p. 58.
171
foram sentidas mais intensamente582. Nesse sentido, a imprensa teve um papel central.
Gradualmente, os jornais tomaram uma postura pró-Aliados em artigos que imputavam a
culpa pela Guerra e pela crise mundial às Potências Centrais. É nesse contexto que cresceu a
demanda por artigos acerca do Oriente e do Império Otomano, uma das alegadas partes
causadora do mal que assolava a Europa, juntamente com o Império Alemão. Nas palavras de
Olivier Compagon:
Num momento em que a figura do jornalista não existe ainda de maneira
totalmente autônoma e muitas vezes se confunde com as do político, do
diplomata ou do escritor polígrafo, a imprensa é o primeiro revelador dessa
inflexão que se representa entre as elites ao mesmo tempo que constitui uma
prova para setores mais amplos da população583.
582
Ibid., pp. 118-119.
583
Ibid., p. 68.
584
Ibid., pp. 74-76.
585
Cf. RODRIGUES, Fernando da Silva. Os jovens turcos e o projeto de modernização profissional do
Exército brasileiro. In: Anais do XXIV Simpósio Nacional de História – História e
multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos. São Leopoldo: Unisinos, 2007.
586
COMPAGNON, O. op. cit., pp. 101-104.
172
Apesar do impacto nulo das tropas brasileiras nos rumos da Grande Guerra, o
envio de contingente foi crucial para obter a simpatia dos Aliados durante as negociações de
paz em 1919. Ao entrar na guerra alegando “solidariedade continental”, o Brasil se colocou
claramente em defesa dos interesses norte-americanos e demonstrou a vontade de participar
como protagonista das decisões no mainstream do sistema internacional588. Para Eugênio
Vargas Garcia: “Nessa fase de transição, o Brasil também teve sua parcela de envolvimento
político na Europa, embora esta evidentemente não pudesse ser comparada à norte-
americana”589. Compagnon sumariza o esforço do Brasil nos seguintes termos: “Nem por isso
[impacto nulo das tropas brasileiras] o Brasil deixa de entrar rapidamente para o campo dos
vencedores e, como tal, participar das negociações de paz”590.
587
Ibid., p. 142.
588
GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto
Alegre/Brasília: UFRGS/FUNAG, 2000, pp. 27-28.
589
Idem. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: Editora
UnB/FUNAG, 2006, p. 34.
590
COMPAGNON, O. op. cit., p. 143.
591
GARCIA, E. op. cit., 2006, p. 48.
173
592
BARACUHY, Braz. “A crise da Liga das Nações de 1926: realismo neoclássico, multilateralismo e
a natureza da política externa brasileira”. In: Contexto Internacional. Rio de Janeiro: vol. 28, nº 2,
julho/dezembro de 2006, p. 366.
593
GARCIA, E. op. cit., 2006, pp. 57-59.
594
PESSOA, Epitácio. Pela Verdade. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. vol. XXI,
tomo I, p. 31. (Obras Completas de Epitácio Pessoa).
595
MACMILLAN, Margaret. Paz em Paris, 1919: a Conferência de Paris e seu mister de encerrar a
Grande Guerra. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 24.
596
WILSON, Woodrow. “Discurso dos Catorze Pontos (1918)”. In: ISHAY, Micheline R. (org.).
Direitos Humanos: uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos
desde a Bíblia até o presente. São Paulo: Edusp, 2013, p. 494.
174
Para Jean-Jacques Becker, foi a criação da Liga das Nações o principal motivo de
Wilson ter se tornado o primeiro presidente norte-americano em exercício a sair de seu país e
aportar na Europa, a fim de participar da Conferência de Paz de Paris598. Nas primeiras
reuniões de janeiro de 1919, Wilson costurava a criação da entidade com o primeiro-ministro
britânico Llyod George e o presidente francês Georges Clemenceau, esse último mais
resistente à ideia do norte-americano599. Mesmo com ressalvas das partes envolvidas, uma
comissão foi estabelecida para esboçar a organização da entidade, estruturada em três
organismos principais: Assembleia, na qual cada Estado teria direito a um voto; Conselho,
com assentos permanentes ocupados pelas Potências – a saber, EUA, Reino Unido, França,
Itália e Japão – e eletivos – escolhidos por meio de sufrágio da Assembleia; e a Secretaria-
Geral, de caráter administrativo600. Essa estrutura formal da Liga era até então uma novidade
para as Potências, acostumadas a fazer política internacional por meio de tratados e decisões
de gabinetes como nos tempos do Concerto da Europa durante o século XIX. A existência de
uma convenção que regia a entidade, bem como de uma assembleia deliberativa com espaço
para todos os países, incluindo os não europeus, fizeram da Liga das Nações, em teoria, a
consolidação dos valores liberais de democracia e do diálogo entre as nações601.
597
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, p. 94.
598
BECKER, Jean-Jacques. O Tratado de Versalhes. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo:
Unesp, 2011, pp. 149-150.
599
Para Rodrigo Medina Zagni, todavia, a ideia da criação da Liga das Nações foi pela primeira vez
aventada em um memorando do Foreign Office para Llyod George no outono de 1916. ZAGNI,
Rodrigo Medina. Identidades em Guerra: Imperialismo e cultura nas relações entre Estados Unidos e
América Latina durante a Segunda Guerra Mundial (os casos de Brasil, Argentina e México). Curitiba:
CRV, 2015, p. 186.
600
Ibid., pp. 151-152.
601
DUNBABIN, J. P. “The League of Nations’ place in the International System”. In: History.
Volume 78, Issue 254, 1993, pp. 431-433.
602
Cf., por exemplo, Rodrigo Medina Zagni: “Todas as teorias liberais que se referem à ordem
internacional têm origem no pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant, cujos pressupostos
fundamentais do que designou como ‘ordem republicana’ foram expostos na obra ‘A Paz Perpétua”,
de 1795”. ZAGNI, R. M. op. cit., p. 188.
175
impedisse o apelo às armas do mais forte para a conquista. Tal paz seria fruto de uma “aliança
geral e perpétua para a preservação, a cada um dos aliados, do território e de todos os direitos
que eles possuem efetivamente pelos últimos tratados”603. O abade ainda definiu, no quinto
artigo de seu projeto, que seria necessária uma “assembleia perpétua” sediada em uma
determinada cidade que definiria todas as questões concernentes à segurança e ao bem comum
dos aliados. Contudo, Saint-Pierre advertia que
603
SAINT-PIERRE, Charles de. “Resumo do projeto de Paz Perpétua (1713)”. In: ISHAY, M. op. cit.,
p. 192.
604
Ibid., pp. 197-199.
605
ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Julgamento sobre a Paz Perpétua (1756)”. In: ISHAY, M. op. cit., pp.
201-202.
606
LIMA, Francisco Jozivan Guedes de. “As condições de possibilidade de efetivação da paz perpétua
segundo Kant” In: Opinião Filosófica. Porto Alegre: PUC-RS, Jul/Dez. de 2010, n. 2, v.1, p. 130.
607
KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM Pocket, edição para Kindle, posição 293.
Grifos do autor.
608
LIMA, F. op. cit.
176
609
ZAGNI, R. M. op. cit., p. 189.
610
SAINT-PIERRE, C. op. cit., p. 196.
611
BECKER, J. op. cit., p. 153.
612
SOARES, José Carlos de Macedo. O Brasil e a Sociedade das Nações. Paris: A. Pedone, Editor,
1927, p. 78.
613
HILTON, Stanley. “Brazil and the Post-Versailles World: elite images and foreign policy strategy,
1919-1929”. In: Journal of Latin American Studies. Cambridge University Press, Vol. 12, No. 2, Nov.
1980, p. 342.
614
SOARES, J. op. cit., p. 69.
177
com seus respectivos aliados para alcançar seus objetivos. Essa disputa marcou a participação
brasileira na Liga das Nações.
615
GARCIA, E. op. cit., 2006, pp. 350-357.
616
BARACUHY, B. op. cit., p. 377.
617
GARCIA, E. op. cit., 2000; SANTOS, Norma Breda dos. “Diplomacia e fiasco. Repensando a
participação brasileira na Liga das Nações: elementos para uma nova interpretação”. In: Revista
Brasileira de Política Internacional. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 46
(1), 2003, p. 97.
618
SANTOS, N. op. cit., p. 106.
619
SOARES, J. op. cit.
178
A postura brasileira de servir como lugar-tenente dos EUA na Liga das Nações –
mesmo que muitas vezes isso fosse apenas instrumento retórico – é perceptível desde 1920,
primeiro ano de funcionamento da entidade, em questões que extrapolavam a América Latina
e o escopo geopolítico e diplomático que o país tradicionalmente mantinha. Mas o
alinhamento do Brasil com os EUA é anterior às negociações em Genebra e data dos
primeiros anos da República, fortalecido durante a chancelaria do Barão de Rio Branco entre
620
CERVO, A. & BUENO, C. op. cit., p. 215.
621
ZAGNI, R. M. op. cit., p. 187.
622
GARCIA, E. op. cit., 2000, p. 57.
623
Idem, 2006, p. 393.
624
BUENO, C. & CERVO, A. op. cit, pp. 216-217.
179
1902 e 1912. Para Clodoaldo Bueno, o chanceler soube apreender o momento norte-
americano no sistema internacional, que já ocupava o posto de maior economia mundial e era
o parceiro comercial mais importante do Brasil, ultrapassando a tradicional aliada Grã-
Bretanha625. Foi também durante o período que Rio Branco esteve à frente da política externa
brasileira que a legação do país em Washington foi promovida a embaixada – 1905 –
ocorrendo o mesmo com a representação diplomática norte-americana no Rio de Janeiro. A
atitude brasileira selou a corroboração brasileira ao corolário Roosevelt que pregava a
intervenção enérgica norte-americana no continente americano ante a interferência europeia
nos assuntos continentais626. A proximidade entre os países foi sustentada pelos sucessores de
Rio Branco na pasta e sedimentada pela entrada do Brasil na Grande Guerra ao lado dos EUA
e da Entente, mas também com o envolvimento brasileiro em questões da política externa
norte-americana que extrapolavam os limites do continente.
625
BUENO, C. op. cit., p. 145.
626
Ibid., p. 155.
180
visível quando o Conselho Supremo das Potências Aliadas enviou uma carta a Woodrow
Wilson, em 25 de abril de 1920, pedindo que os EUA assumissem o mandato e que o
presidente norte-americano traçasse a fronteira que dividiria a Armênia dos territórios turcos.
Cinco dias depois, chegou a notícia que o Congresso dos EUA recusara o mandato, mas que
Wilson ainda mantinha o compromisso de trabalhar nos limites entre os dois países631.
631
Ibid., p. 2.
632
A historiadora armênia Edita Gzoyan faz uma síntese dos debates em torno desse tema no capítulo
3 de seu livro “A República Armênia e a Liga das Nações”. Cf. GZOYAN, E. op. cit.
633
Résumé de la correspondance échangée entre le conseil de la Société et le Conseil Suprême des
Puissances Alliés. op. cit., p. 3. (NAA/RA).
634
Ibid., p. 4.
635
ADJEMIAN, A. op. cit., p. 91.
182
Nessa mesma missiva, o Conselho da Liga pedia que todos os governos tomem
parte nessa missão em nome da entidade, individual ou coletivamente, que tem um “caráter
altamente humanitário” e não constitui em obrigação permanente.
636
« L’Assemblée, désireuse de collaborer avec le Conseil pour mettre fin dans le plus bref délai
possible à l´horrible tragédie arménienne, invite le Conseil à s’entendre avec les Gouvernements pour
qu’une Puissance soit chargée de prendre les mesures nécessaires en vue de mettre un terme aux
hostilité entre l’Arménie et les Kémalistes.» Correspondance entre le Conseil de la Société, le
Président des États-Unis d’Amérique et les différents membres de la Société, au sujet de l’Arménie, 25
de novembre de 1920, 430/1/1225 (NAA/RA).
637
Télégramme envoyé par le Conseil de la Société des Nations le 25 novembre 1920 au Président des
Etats-Unis d’Amérique. 430/1/1225, p. 6 (NAA/RA).
183
638
Réponse du Président des Etats-Unis. 1 de dezembro de 1920, 430/1/1225 (NAA/RA).
639
O comunicado de Azevedo Marques foi publicado pelo The New York Times em 2 de dezembro:
“I have the honor to inform your Excellency that the Government of Brazil is ready to contribute
alone, or jointly with other powers, to put an end to the situation of suffering Armenia”. The New York
Times. Nova York: 2 de dezembro de 1920, pp. 1-2; todavia, a comunicação entre o chanceler
brasileiro e o presidente do Conselho da Liga aconteceu em 30 de novembro de 1920. Cf. Réponse du
ministre des affaires étrangères du Brésil. Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1920, 430/1/1225, p. 11
(NAA/RA).
640
Réponse au Président Wilson. Genebra, 2 de dezembro de 1920, 430/1/1225, p. 12 (NAA/RA).
641
Réponse au Président du Conseil Espagnol. Genebra, 2 de dezembro de 1920, 430/1/1225, p. 13;
Réponse au Ministre des Affaires Etrangères Brésilien. Genebra, 2 de dezembro de 1920, 430/1/1225,
p. 14 (NAA/RA).
642
Etienne Brasil a Avetis Aharonian. Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1920 (ARFA).
184
Kemal643. O primeiro-ministro britânico Llyod George afirmou, por meio de seu secretário de
relações exteriores George Curzon, que a Grã-Bretanha não tem condições de aceitar
individualmente uma missão desse porte, mas que forneceria apoio moral e diplomático644, o
que reforçava o interesse da Coroa em se manter distante dos problemas armênios, já
expressado pelo primeiro-ministro em outras ocasiões. Os delegados do Canadá –
formalmente ainda um domínio britânico, mas que aderiu à Liga como uma nação separada –
recusaram qualquer tipo de apoio, seguindo as diretrizes de seu Primeiro Ministro. Não
obstante, os canadenses advogavam – em vão – que a Armênia fosse aceita como nação-
membro na Liga, apesar da oposição de Londres nessa matéria. No discurso de Newton
Rowell em defesa da admissão, o delegado canadense menciona o apoio brasileiro ao país
caucasiano:
643
Télégramme du Gouvernement Belge. Bruxelas, 4 de dezembro de 1920, 430/1/1225, p. 34
(NAA/RA).
644
Télégramme de M. Llyod George a M. Hymans. 2 de dezembro de 1920, 430/1/1225, p. 29
(NAA/RA).
645
“The Assembly earnestly hopes that the efforts of the President of the United States, energetically
supported by the Governments of Spain and Brazil and by the Council of the League, will result in the
preservation of the Armenian race, and in securing for Armenia a stable government exercising
authority throughout the whole of the Armenian State and the boundaries thereof may be finally
settled under the Treaty of Sèvres, so that the Assembly may be able to admit Armenia into full
membership of the League at its next Session”. “The Records of the First Assembly: Plenary Meetings,
p. 588; FO 371/4966, E16014/134/58, 16 de dezembro de 1920” apud ADJEMIAN, A. op. cit., pp.
100-101.
646
Lettera di Mgr Papadopulos a Mgr Cerretti, ACO, Armeni, fasc. 2801/28, nº 5025, Roma 13 de
janeiro de 1921. In: RUYSSEN, Georges-Henri (org.) La Questione Armena: documenti dell’Archivio
della Congregazione per le Chiese Orientali, vol. III. Pontificio Instituto Orientale & Valore Italiano,
2014, pp. 369-370.
185
Não é mera casualidade que as respostas mais simpáticas tenham sido oriundas do
continente americano. A Grande Guerra foi o marco de um distanciamento – mas não ruptura
– dos países latino-americanos com o Velho Continente e uma aproximação com os EUA.
Para Olivier Compagnon, a Guerra, vista como o “suicídio da Europa”, causou uma crise de
identidade na América Latina que tinha o Velho Continente como referência, o que fez com
que muitos países se voltassem para o continente americano em busca de novos paradigmas,
levando ao fortalecimento de ideias nacionalistas – sobretudo no plano cultural – e a
consolidação da imagem dos EUA como principal país no cenário internacional, em
substituição à Grã-Bretanha, movimento esse que havia começado em 1904 com o Corolário
Roosevelt650. Nesse sentido, ainda de acordo com o historiador francês, a Guerra foi vista
como um momento de consolidar a posição dos países americanos no sistema internacional,
além de ter sido o momento de Argentina e Brasil reivindicarem o papel de líderes das nações
latino-americanas perante o resto do mundo651.
647
Télégramme du Gouvernement de Panama. Sem data, 430/1/1225, p. 18 (NAA/RA).
648
Delegación de Chile a la Sociedad de las Naciones. Genebra, 22 de novembro de 1920 (ARFA).
649
Télégramme du Ministre des Affaires Etrangères du Venezuela. Caracas, sem data, 430/1/1225, p.
32 (NAA/RA).
650
COMPAGNON, O. op. cit., pp. 18-20.
651
Ibid., p. 61.
186
652
PESSOA, Epitácio. Mensagens ao Congresso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956,
vol. XVII (Obras Completas de Epitácio Pessoa), p. 255.
653
Etienne Brasil a Epitácio Pessoa. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1921, 281/2/4 (AHI).
654
GARCIA, E. op. cit., 2006, p. 83.
187
Assim, o envolvimento do Brasil não foi motivado apenas pelo apelo humanitário
amplamente explorado pela diplomacia armênia. Ainda que houvesse na imprensa do país
uma cobertura razoável do que acontecia na Armênia, bem como um número de imigrantes
que começavam a se organizar e ganhar visibilidade na sociedade receptora, não houve uma
comoção nacional em prol das vítimas do genocídio, como aconteceu nos EUA, que
legitimasse internamente a atitude do governo Epitácio Pessoa. O interesse na questão
armênia era pragmático e motivado por dois objetivos: I) estreitar laços diplomáticos com os
EUA e; II) garantir um assento permanente no Conselho da Liga das Nações. Conforme Braz
Baracuhy: “a grande estratégia de um país deve ser compreendida, em seu sentido amplo,
como uma concepção geral sobre a posição futura que este busca no sistema internacional”655.
Nesse sentido, a estratégia utilizada pelas elites de política externa do Brasil para alcançar a
posição que o país buscava – em curto prazo, o assento permanente no Conselho da Liga das
Nações – foi instrumentalizar uma questão humanitária para demonstrar as credenciais
brasileiras a fim de ocupar o espaço pleiteado.
655
BARACUHY, B. op. cit., p.365.
656
Em maio de 1915, França, Grã-Bretanha e Império Russo emitiram um documento conjunto
declarando o Império Otomano responsável pelos “crimes contra a humanidade” cometidos dentro de
suas fronteiras contra o povo armênio. POWER, S. op. cit., p. 29. Cf. também HOLQUIST, Peter. The
Russian Empire as a “Civilized State”: International Law as Principle and Practice in Imperial Russia,
1874-1878. Washington, D.C.: The National Council for Eurasian and East European Research, 2004.
657
WATENPAUGH, Keith David. “The League of Nations’ rescue of Armenian genocide survivors
and the making of modern Humanitarianism, 1920-1927”. In: The American Historical Review.
Chicago: The University of Chicago Press, Vol. 115, No. 5, 2010, pp. 1319-1321.
188
658
HILTON, S. op. cit., p. 352.
659
“O ambiente da política doméstica tornou-se afinal irrespirável e nada mais natural que tivesse
sugerido ao ditador da política externa um derivativo fácil e brilhante para as dificuldades que ele
próprio amontoou. Eis aí a gênese do episódio brasileiro na crise da Sociedade das Nações em 1926”.
SOARES, J. op. cit., pp. 13-14.
660
SANTOS, N. op. cit., p. 87.
661
BARACUHY, B. op. cit., p. 368.
662
MACMILLAN, M. op. cit., 2004, p. 99.
663
“[…] an almost total failure, except as an institution for collecting statistics”. HOBSBAWM, E.
op. cit., 1996, p. 34.
189
Contudo, a maior contribuição da Liga das Nações foi no sentido de servir como
lócus de reivindicações de países de menor expressão no sistema internacional, de minorias
étnicas não contempladas em Estados nacionais com fronteiras delimitadas e também no trato
com os refugiados e apátridas oriundos principalmente do genocídio de armênios, assírios e
gregos no Império Otomano a partir de 1915. O momento no qual a Conferência de Paz de
Paris, o Tratado de Versalhes e a Liga das Nações se materializou foi definido pelo
historiador Erez Manela como o “momento wilsoniano” quando minorias, povos colonizados
664
POWER, Samantha. O Homem que Queria Salvar o Mundo: uma biografia de Sérgio Vieira de
Mello. Tradução de Ivo Korytowski. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 20.
665
BECKER, J. op. cit., p. 201.
666
DUNBABIN, J. op. cit., p. 435.
667
Apud ZAGNI, R. M. op. cit., p. 187.
190
e países independentes de menor peso colocaram suas demandas em pauta, ainda que para
muitos deles o feedback não tenha sido o esperado. Portanto, trata-se, como Manela defende,
de remover as lentes eurocêntricas da análise da história dos acontecimentos de 1919 para
poder enxergar as experiências vividas pelos povos não europeus nesse contexto e a expansão
da sociedade internacional no século XX668.
Pessoa era visto como americanófilo por seus críticos, incluindo Rui Barbosa, que
via no paraibano e em Domício da Gama dois políticos “ultra-americanistas”671. Para Eugênio
Vargas Garcia, a escolha de Pessoa para a presidência agradou a Washington, que intensificou
uma postura de simpatia para com o Brasil na Conferência de Paz de maneira a cooptar
definitivamente o mandatário brasileiro para a sua área de influência. É nesse contexto que
surgiu a oportunidade de o Brasil ocupar um assento temporário no Conselho da Liga das
668
MANELA, E. op. cit., p. xii-5.
669
VISCARDI, Cláudia. O Teatro das Oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo
Horizonte: C/Arte, 2001, pp. 54-71.
670
Ibid., p. 285.
671
GARCIA, E. op. cit., 2006, pp. 62-63.
191
672
Ibid., pp. 66-68.
673
Ibid., p. 75.
674
Ibid., pp. 79-84.
675
CARONE, Edgard. A República Velha: evolução política (1889-1930). São Paulo: Difel, 1983, 4ª
ed. v.2, p. 334.
676
Ibid., p. 335.
192
Em seu primeiro discurso nos fóruns da Liga das Nações, Gastão da Cunha dava o
tom da retórica brasileira no Conselho da entidade, aproveitando o status de única nação
americana no órgão e o “mandato implícito” que o país teria recebido dos Estados Unidos
para agir como líder do continente. De acordo com Garcia:
677
GARCIA, E. op. cit., 2006, p. 84.
678
Ibid., p. 89.
193
679
Ibid., p. 98.
680
SHAIN, Y & BARTH, A. op. cit., p. 453.
681
OGELMAN, N.; MONEY, J.; MARTIN, P. op. cit., p. 146.
194
Contudo, era claro para Epitácio Pessoa e seus subordinados o papel secundário
que a questão armênia ocupava na sua agenda de política externa. Em reunião do Conselho da
Liga, Gastão da Cunha deixou claro que nada além dos assuntos que diziam respeito a
emergência do Brasil como uma liderança americana seria considerado de primeira
prioridade:
682
VISCARDI, C. op. cit., p. 62.
683
GARCIA, E. op. cit., 2006, p. 350.
684
Ibid., p. 370.
685
HOVANNISIAN, R. op. cit., 1996, p. 409.
195
686
James A. Malcolm a L. Pachalian, Délégation Nationale Arménienne. Lausanne, Suíça, 430/1/286,
pp. 64-65 (NAA/RA).
687
Afrânio de Melo Franco a José Félix Alves Pacheco. Ofício n. 18, de 6 de outubro de 1924. Fundo
AMF, 74,3,4, n. 78. (Seção de Manuscritos/BN).
688
Idem. Ofício n. 48, de 5 de março de 1925. Fundo AMF, 74,3,4, n. 78. (SM/BN).
689
Peter Balakian nos lembra que o patriarcado de Constantinopla tinha sua própria diplomacia e
mantinha contato com líderes estrangeiros independentemente do governo otomano. BALAKIAN,
Peter. “Introduction”. In: BALAKIAN, Grigoris. Armenian Golgotha: a memoir of the Armenian
Genocide, 1915-1918. Nova York: First Vintage Books Edition, 2009, p. xiv.
196
A questão é que o Brasil – assim como o Canadá e, de maneira mais ampla, todos
os países americanos – sempre figurava nos fóruns internacionais como um provável destino
de refugiados e apátridas. Em alguma medida, essa imagem era alimentada pelas próprias
elites políticas brasileiras. De acordo com a Folha de São Paulo de 22 de abril de 1966,
quando da inauguração do monumento às vítimas do genocídio armênio na capital paulista,
Rui Barbosa teria dito a um grupo de armênios em 1920: “Se o que procuram é uma pátria,
um céu a abrir vocês e seus entes queridos vão para o Brasil, terra generosa, que a tantos já
acolheu e os acolherá de braços abertos”694.
690
MEDEIROS E ALBUQUERQUE, José Joaquim de Campos da Costa. Quando Eu Era Vivo. Rio
de Janeiro: Record, 1982, pp. 212-213.
691
ADJEMIAN, A. op. cit., p. 32.
692
AVEDIAN, V. op. cit., p., 328.
693
WATENPAUGH, K. op. cit., 2015, p. 138.
694
Folha de São Paulo. São Paulo: quarta-feira, 20 de abril de 1966, 1º caderno, p. 9.
695
Da Delegação Nacional Armênia ao Secretário do Comitê Armênio de Manchester, Sr. Karnig
Findiklian. 13 de novembro de 1922, 430/1/630, pp. 13-14 (NAA/RA).
197
A missiva mais interessante dessa série é datada de maio de 1922 e foi escrita pelo
Arcebispo Ghevond Tourian, líder religioso dos armênios de Esmirna, ao presidente da
Delegação Armênia, Gabriel Noradougian. Nessa carta, o religioso questiona se Noradougian
tem conhecimento de algum acordo com o governo brasileiro para receber imigrantes
armênios, pois agentes de viagens operando em Esmirna estavam oferecendo passagens para
armênios embarcarem rumo ao Brasil. De acordo com o líder religioso, muitos armênios
haviam se registrado para a viagem e partiriam na primeira oportunidade698. A resposta da
Delegação Armênia veio cerca de um mês e meio depois, informando ao Arcebispo que a
partida de armênios rumo ao Brasil não era aconselhada, tendo em vista as notícias de
imigrantes russos que chegaram ao país e foram submetidos a trabalhos pesados e tratados
como escravos. Ademais, a ida de armênios para o Brasil agravaria ainda mais a dispersão
desse povo pelo mundo e dificultaria o plano de criar um lar nacional para os armênios em um
futuro próximo699. Essa era uma preocupação presente nas cabeças das lideranças armênias,
sobretudo as religiosas. Na mesma época, o bispo armênio de Bagdá criou um orfanato na
cidade para “prevenir a dispersão das crianças e garantir que elas não perdessem a identidade
armênia”700. O auxílio aos refugiados estava, assim, intrinsicamente ligado com o futuro dos
armênios enquanto nação e com o plano de criação de uma pátria unificada, reunindo os
territórios da Armênia Soviética com as províncias otomanas, cuja consecução estava
vinculada ao povoamento da região por armênios dispersos pelo mundo701.
696
Cf. BALAKIAN, Grigoris. op. cit.
697
Da Delegação Nacional Armênia ao líder religioso dos armênios de Manchester, Arcebispo
Grigoris Balakian. 28 de novembro de 1922, 430/1/987, p. 6 (NAA/RA).
698
Carta do Arcebispo Ghevond Tourian, líder religioso de Esmirna a Gabriel Noradougian,
Presidente da Delegação Armênia. 5 de maio de 1922, 430/1/738, p. 12 (NAA/RA).
699
Carta da Delegação Nacional Armênia ao Arcebispo Ghevond Tourian. 16 de junho de 1922,
430/1/738, p. 14 (NAA/RA).
700
“[…] prevent the dispersal of children and ensure they did not lose their Armenian identity”.
LAYCOCK, J. op. cit, p. 162.
701
Ibid., p. 164.
198
Etienne Brasil também alegou falta de empenho das lideranças armênias para
efetivar a imigração dos armênios para o Brasil. Segundo o diplomata, em carta para Mikayel
Varandian datada de 1923, ele teria conseguido junto ao governo brasileiro em 1921
“contrariamente aos hábitos do país, que não paga em geral o transporte dos imigrantes para o
interior” um navio que aportaria em Constantinopla para embarcar sete mil armênios.
Contudo, suas missivas para as lideranças armênias na capital otomana nunca foram
respondidas. De acordo com Etienne Brasil, apenas o redator do periódico armênio
Djagadamart se dirigiu a ele para informá-lo “com tristeza que o Patriarca não creria que o
Brasil oferecia tantas facilidades ‘e que não havia razão alguma para os armênios saírem da
Turquia”. Porém, a deterioração na situação dos armênios após a retirada francesa da Cilícia
fez com que o patriarcado revesse sua posição, mas, para Etienne, era tarde, pois “os armênios
não têm mais as facilidades de 1921. A atitude do patriarca e de nossos chefes causou uma
impressão muito ruim naquela ocasião”702.
Embora o Brasil figurasse nos fóruns que discutiam os problemas das minorias e
dos refugiados na Liga das Nações e mencionasse, ocasionalmente, a sorte dos sobreviventes
do genocídio armênio, não havia internamente um real esforço para auxiliar esses imigrantes
– uma vez que a afirmação de Etienne do cessão do navio brasileiro para retirar armênios do
Império Otomano, além de pouco provável, não é comprovável –, tampouco nos círculos da
política externa brasileira após a anexação da Armênia pela Rússia e a desqualificação de
Etienne Brasil como representante diplomático daquele país. O apelo humanitário que a causa
702
Etienne Brasil a Mikayel Varandian. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1923 (ARFA).
199
armênia emanava cessou de ecoar no Catete e no Itamaraty quando a Armênia deixou de ser
útil aos interesses pragmáticos das elites políticas brasileiras na missão de fazer com que o
país galgasse degraus na hierarquia do sistema internacional. Conforme sintetiza Eugênio
Vargas Garcia: “Ao final, a identificação do Brasil com os pequenos Estados cedeu lugar às
aspirações de grandeza nacional, açuladas com a perspectiva de ingresso no clube fechado das
grandes potências”703.
703
GARCIA, E. op. cit., 2006, p. 75.
704
Etienne Brasil a Avedis Aharonian. Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1920 (ARFA).
705
COMPAGNON, O. op. cit., p. 70.
706
VISCARDI, C. op. cit., p. 287.
200
Por outro lado, Etienne tentava manter o diálogo com os armênios em Paris, que
não reconheciam a anexação bolchevique da república no Cáucaso. Sua comunicação com
Paris procurava convencer os dirigentes armênios que o Brasil ainda permanecia um aliado,
ainda que tal assertiva não correspondesse à realidade. Em meados dos anos 1920, cultivar as
relações entre Brasil e os representantes armênios em Paris não interessava a nenhuma das
partes, o que fez com que Etienne Brasil perdesse sua inserção nos círculos políticos de
ambos, tanto da sociedade receptora quanto da pátria-mãe. Outros membros da elite da
diáspora, como Mihran Latif, permaneceram com prestígio na sociedade receptora, pois sua
influência era oriunda de seu capital e suas antigas relações com as elites políticas locais não
dependiam dos arranjos internacionais. Ao fim da experiência do Estado armênio
independente e da consolidação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Etienne
voltou a ser o que era no início dos anos 1910: um intelectual que vivia do exercício de
profissões liberais na capital do Brasil.
707
Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 20 de junho de 1921, p. 2 (HDB/BN).
201
que sugeriu a proibição da entrada de armênios no Brasil, pois eles seriam produtores de ópio
e estimulariam a produção do narcótico “especialmente dado o desenvolvimento da emigração
dos Amarelos, para os quais o ópio é uma perpétua tentação”708. Enquanto isso, intelectuais
como Alfredo Ellis Júnior criavam termos pseudocientíficos como “sírio-armenóide” para
classificar os imigrantes árabes e armênios em um estudo posteriormente encampado pelo
projeto político do governo Vargas709, governo esse que em 1933 recusou aderir a um estudo
feito pela Liga das Nações para elaboração de um estatuto internacional dos refugiados,
medida que beneficiaria, sobretudo, armênios e russos710.
708
Consulado do Brasil em Constantinopla ao Ministério de Relações Exteriores. Alexandria, 14 de
abril de 1930, 244/3/15 (AHI).
709
LESSER, J. op. cit., 2001, p. 117.
710
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do Mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus
refugiados do Nazifascismo (1933-1948). São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 62.
202
6 CONCLUSÃO
Na carta-resposta, Etienne afirma que na Argentina “nós não temos nada”, por
dois motivos. O primeiro seria a divisão política da coletividade armênia lá existente –
composta por cerca de 6 mil pessoas, de acordo com as suas estimativas – e o segundo seria a
precariedade de seu título de representante diplomático, que nunca foi confirmado pelo
governo armênio ou pela delegação diretamente aos países sul-americanos:
Tudo que consegui aqui não foi em virtude do meu título duvidoso, mas por
causa das minhas relações, pela influência de meus amigos e nada mais. [...]
Nossa delegação, ainda que seu esforço seja louvável, cometeu alguns erros
grandes que nos causou prejuízos incalculáveis 711.
Com essas palavras, Etienne Brasil tentava resumir o que teria sido o seu trabalho
diplomático no Brasil e na América do Sul em 1919 e 1920: uma mistura de voluntarismo
com a exploração de redes de contatos que o conectava com os círculos decisórios brasileiros
– e sul-americanos – além de intensa propaganda na imprensa, dando assim aderência às
demandas armênias no contexto da sociedade receptora.
711
Etienne Brasil a Mikayel Varandian. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1923 (ARFA).
203
Latif e Levon Apelian, e fez deles a sua base social, política e econômica. Uma vez que o Rio
de Janeiro dos anos 1910 não possuía um número de armênios significativo para dotá-lo de
apoio quantitativo ante a sociedade receptora, a estratégia utilizada foi a aproximação de
armênios com grande inserção social e econômica que pudessem servir como credenciais para
que Etienne Brasil fosse recebido nos círculos mais restritos da sociedade carioca. Em troca, o
intelectual – ele mesmo parte do que Tölölyan chamou de “elite da diáspora” – oferecia a
Mihran Latif e Levon Apelian seu trabalho como vetor da causa armênia no Brasil,
mobilizando argumentos nacionalistas, religiosos e emocionais para convencê-los a apoiar a
pátria-mãe em perigo, além de oferecer vantagens comerciais que poderiam ser exploradas
pelos homens de negócios armênios no Rio de Janeiro quando do reconhecimento da
independência da Armênia pelo Brasil e a consolidação daquela república no sistema
internacional.
aos tomadores de decisão no Brasil. Pouco a pouco, ele conseguiu convencer seus
interlocutores não armênios da relevância da causa e da necessidade de apoiar as
reivindicações de seus compatriotas, estabelecendo canais de comunicação com potenciais
apoiadores que variavam desde proprietários de jornais no Rio de Janeiro ou funcionários da
burocracia brasileira até diplomatas estrangeiros ou a Rainha da Bélgica. Ao mesmo tempo,
Etienne Brasil persuadiu intelectuais e políticos armênios sobre a sua utilidade na defesa dos
interesses armênios no Brasil – sobretudo comerciais e migratórios, no primeiro momento,
abrangendo, mais tarde, apoio político e, no limite, o mandato – até obter a permissão de Paris
para representar oficialmente a República Armênia na América do Sul. Assim, ele expandiu
sua influência no Rio de Janeiro, avalizado pelos compatriotas na cidade e pelas lideranças
armênias na Europa para trabalhar pela pátria que ele chamava de sua, buscando uma
aproximação com Epitácio Pessoa, seu gabinete e outros políticos influentes que deveriam ser
convencidos da urgência da causa.
Epitácio Pessoa, por sua vez, não pertencente às grandes oligarquias brasileiras
que comandavam a política nacional, “tenta mostrar-se independente das injunções
partidárias”712 apostando numa política externa vultosa enquanto enfrentava o oposicionismo
crescente no plano interno. Problemas na Bahia e Amazonas, a franca oposição dos militares e
a crescente ofensiva da imprensa mitigavam o apoio a Pessoa, cujo desgaste foi acentuado no
final de 1920, justamente quando as demandas armênias ganharam mais fôlego. Não por
acaso, foi nesse período que o Brasil reconheceu a independência da República Armênia e, ao
tomar conhecimento do chamado da Liga das Nações e dos EUA por um esforço conjunto
para manter a integridade territorial armênia, Epitácio Pessoa decidiu por responder
positivamente, juntando-se a Espanha no que se transformaria em uma missão humanitária.
Ao mesmo tempo em que o mandatário brasileiro se encontrava cercado de críticos e
opositores, ele deu um passo em direção às reivindicações armênias, aumentando seu
prestígio junto à coletividade armênia do Brasil, cujo poder econômico e social poderia lhe ser
politicamente útil, em um movimento que permitiu que seu governo pudesse explorar o
altruísmo, por meio do discurso humanitário, tanto no plano interno quanto externo. No fim, o
aceite brasileiro no esforço conjunto em prol dos armênios não se concretizou, mas o país
continuou a ser visto como um player importante no sistema internacional, ainda que longe do
status de potência, mas igualmente distante do espaço que as outras nações latino-americanas
ocupavam. Isso pode ser mensurado pela manutenção do Brasil no assento temporário do
712
CARONE, E. op. cit., p. 339.
205
Conselho da Liga até 1926, quando Artur Bernardes superestimou o poder brasileiro e retirou
o país da entidade, ou ainda pela nomeação do próprio Epitácio Pessoa para o posto de juiz da
Corte Permanente Internacional de Justiça em 1922, quando saiu do Catete, cargo que ocupou
até 1930.
713
Ibid., p. 350.
714
Etienne Brasil a Mikayel Varandian. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1923 (ARFA).
206
uma mudança de imagem que merece ser analisada com mais atenção em pesquisas futuras.
Sobre armênios, judeus e outros povos, um agente consular brasileiro no Oriente Médio
dissertou:
[...] não são de modo algum turcos ou árabes, mas uma mescla heterogênea
de toda as classes que vagabundam nos portos orientais. Judeus, armênios,
muçulmanos e cristãos de Trípoli, metualis, e na maior parte gente de raça e
origem indecisa.
Tais pseudo-turcos, verdadeiro lixo mediterrâneo, emigram, muito, pelo
contrário, para a infelicidade dos países que os hospedam e que se reduzem
hoje quase todos os países civilizados do mundo.
Estes são, com efeito, um elemento pernicioso, não por considerações de
raça ou motivos étnicos, mas porque não são um elemento produtor, não são
nem agricultores nem operários, mas apenas se entregam a ocupações
puramente parasitárias, vivendo da substancia da riqueza da nação, do
produto de trabalho ou outrem. Além disso, sem outro ideal senão o
dinheiro, hipócritas, insinuantes, costumeiros da fraude e da mentira,
desmoralizam o comércio e pervertem a mentalidade social do ambiente em
que penetram715. (grifo do autor)
Assim, o discurso orientalista por vezes utilizado por Etienne Brasil para
diferenciar armênios de turcos e criar empatia voltou-se contra os primeiros. Na segunda
metade dos anos 1920, justamente quando o país recebeu um grande número destes
imigrantes, armênios e outros não estavam na pauta do dia do Estado brasileiro. Incentivar a
sua imigração ou incorporar suas demandas significaria apoiar a entrada de um tipo de
imigrante que não interessava ao projeto vigente, aprofundado nos anos 1930 por Getúlio
Vargas. Pragmaticamente, o Brasil deu as costas para a causa armênia.
715
Consulado do Brasil em Constantinopla ao Ministério de Relações Exteriores. Alexandria, 14 de
abril de 1930, 244/3/15.
716
Idem.
207
Mihran Latif a Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1887, CR 762 (11).
______. Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1918, CR 762 (11).
• Comunidade armênia
Revista Cultural Brasil-Armênia. São Paulo: ano 2, nº 14, fevereiro de 1948.
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ANEXO
Figura 4: Fonte – BOYADJIAN, David. “The Woodrow Wilson Center Desecrates its
Namesake’s Legacy and Violates its Congressional Mandate”. In: Foreign Policy
Journal. 9 de maio de 2010.
226