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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Niterói, 2014.
1
Erika Cardoso
Banca Examinadora:
Niterói, 2014.
2
Somos feitos de carne, mas temos que viver como
se fossemos feitos de ferro.
Freud
Não há livro que não transporte consigo o seu
perigo. Baudelaire pode levar a todas as corrupções possíveis.
Jean Paulhan
3
À minha avó e minha mãe, mulheres cuja força e
coragem irão me inspirar para sempre.
4
Conteúdo
Agradecimentos............................................................................................................................. 8
Resumo ........................................................................................................................................ 11
Introdução ................................................................................................................................... 13
Capítulo 1. ................................................................................................................................... 18
O elefante na sala de estar. .......................................................................................................... 18
O excesso pornográfico. .......................................................................................................... 19
A arte de corromper ................................................................................................................ 25
O mau gosto pornográfico. ...................................................................................................... 27
A arte de se superar. ................................................................................................................ 29
A iconografia zefiriana. ........................................................................................................... 35
O universo dos catecismos. ..................................................................................................... 39
O vocabulário sexual ............................................................................................................... 42
O leitor como testemunha ....................................................................................................... 45
Começo, meio e fim: o sexo em seus três tempos. .................................................................. 46
Capítulo 2. ................................................................................................................................... 56
O sexo segundo Carlos Zéfiro. .................................................................................................... 56
Homem que é homem............................................................................................................ 64
Iniciativa.................................................................................................................................. 65
Técnicas de abordagem ........................................................................................................... 67
O sexo é masculino. ................................................................................................................ 71
Solteiros x Casados. ................................................................................................................ 73
Homens excepcionais .............................................................................................................. 78
A dupla face das mulheres ...................................................................................................... 81
Ser honesta .............................................................................................................................. 83
A mulher leviana ..................................................................................................................... 93
Nem tudo que reluz é ouro ...................................................................................................... 97
Falar sobre sexo é transgredir os costumes? ......................................................................... 100
Capítulo 3 .................................................................................................................................. 109
O pornógrafo ingênuo: Carlos Zéfiro entre a História e a Memória. ........................................ 109
“Carlos Zéfiro, porém, não se pertence mais” ......................................................................... 109
Anos 1970 e 1980: os paladinos de Carlos Zéfiro..................................................................... 110
O herói inusitado contra os inimigos da liberdade. ............................................................... 117
O pornógrafo ingênuo. .......................................................................................................... 124
5
O pornógrafo feminista ......................................................................................................... 125
Descobrindo Zéfiro: a conformação do mito. ....................................................................... 128
Do portão para fora: Seresteiro e mulherengo....................................................................... 129
Do portão para dentro: um homem de família. ..................................................................... 134
O pornógrafo Cult. ................................................................................................................ 137
Considerações Finais ................................................................................................................. 142
Bibliografia ............................................................................................................................... 146
6
7
Agradecimentos
Agradeço também ao meu orientador, Daniel Aarão Reis Filho, por toda a
atenção, a imensa paciência, as sugestões interessantíssimas e todo o zelo com que vem
acompanhando minha trajetória acadêmica, desde a graduação. É uma honra e uma
alegria poder contar com alguém que eu tanto admiro.
Portanto eu sou eternamente grata à Janaína Martins Cordeiro, que não contente
em ser uma amiga incrível, um apoio inestimável e manter a fé em mim nos momentos
de desespero, ainda trouxe para a minha vida as igualmente maravilhosas Mariana
Cordeiro, Lívia Magalhães, Isabel Leite e Larissa Jacheta Riberti. Obrigada por tudo,
meninas!
8
Eu não teria palavras para agradecer aos amigos incríveis que a UFF me trouxe,
e aos que vieram com eles. Jonathan Mendes, meu amado papusco, e Carla Martins, que
nunca deixaram a peteca cair, por mais maluca que a peteca estivesse; Júlia Cabo, que é
tão incrível, carinhosa, presente e compartilha comigo as informações relevantes mais
obscuras; Raíssa Simas com quem dividi muitas noites insones e muitos ansiolíticos,
que foi tão solidária aos meus desesperos e perspicaz nos seus conselhos e Rafael Le
Senechal, que é tão criativo e inteligente e me ensinou tanto sobre quadrinhos e sobre
pornografia. Essas pessoas maravilhosas passaram os últimos dois anos me apoiando,
ouvindo sobre as minhas descobertas e dificuldades, e me levando pra passear quando
nem eu sabia que estava tão cansada. Eu as amo demais.
Sou grata ainda a Julia Bragatto, por ser tão atenciosa e por todos os momentos
em que nos divertimos tanto; a Miguel Aguiar, por me aturar tão bravamente e me
passar as broncas certas; a Mariana Barbieri, pela sua honestidade e por todas as nossas
conversas extremamente construtivas e estimulantes; a Priscila Magiolo e Natália
Priore, que da longínqua e gloriosa Chiador vieram me visitar, me encher de alegria e
fazer leituras dramáticas dos catecismos na minha sala!; e a Nathália Bessa, por
estarmos aí pro que der e vier.
Agradeço também a João Volpi, por ter sido um amigo bom e paciente na maior
parte do tempo, por sua teimosia em achar livros que “não estão em lugar algum”
enquanto eu batia a cabeça na parede, pelas caronas e por ser tão providencial com a sua
internet móvel, nos meus dias de exclusão digital. Por todo o resto eu o perdoo.
Meu gato, E.T. Bilu Pompom, é uma figura importante nesse processo e não
poderia deixá-lo de fora. Apesar do péssimo hábito de comer meus catecismos e deitar
justamente nos livros que eu estou lendo, foi um companheiro fiel e paciente, e seu
“rom-rom” tornou as noites a fio no computador bem mais tranquilas.
9
E ao Pinguim, do Severo; Elaine, Hosana e Luci, do Manel; Luiz, do Vestibular
do Chopp e a todos os garçons e garçonetes de estabelecimentos menos frequentados, os
meus sinceros agradecimentos! Sem a merecida cervejinha ao fim de cada batalha, essa
dissertação não teria vingado!
10
Resumo
Abstract
During the decades of 1950 and 1960, especially, it was widely spread in Brazil
a clandestine literary style know as catecismo. Notwithstanding what the name may lead
us to believe, such publications completely lacked of any religious doctrine, except
when they presented nuns or reverends involved in their plots, subdued to their sexual
appetites. The catechisms were small magazines, mostly of 32 pages, printed in black
and white newsprint that narrated in detail stories of the sexual experiences of their
characters. They recounted and illustrated thoroughly.
11
Within numerous authors and illustrators of these catecismos, all of which were
under anonymity, only signing their work with anagrams or pseudonyms, one stood out
and became synonym of such genre: Carlos Zéfiro. That was the pseudonym chosen by
the public official, and author during his spare time, Alcides Aguiar Caminha.
The aim of the present work is to analyze the work of Carlos Zéfiro, relating it to
the moral context of the period in which was produced and reflecting on the memory
created around Zéfiro and his catechisms, process initiated in the decade of 1980 and
still ongoing.
Abstracto
Con este trabajo se busca analizar la obra de Carlos Zéfiro, relacionándola con el
contexto moral del periodo en que fue producida, reflexionando así sobre la
reconstrucción de la memoria relacionada a Zéfiro y sus catecismos, proceso que fue
iniciado en la década de 1980 y que aún se encuentra en curso.
12
Introdução
1
KFOURI, Juca. O fim de 30 anos de mistério. Playboy, n° 196, novembro de 1991.
2
Alcides Caminha foi autor de sambas de sucesso, como a Flor e o Espinho, composto em parceria com
Nelson Cavaquinho.
13
Bienal dos Quadrinhos, evento que apresentou o verdadeiro Carlos Zéfiro ao país,
Alcides disse ter começado a escrever os catecismos “nos idos de 1948”3. Embora
alguns editores afirmem ter comprado originais diretamente com Alcides até o começo
dos anos 1980 (Kfouri, 1991: 96), os livretos de Zéfiro já não faziam tanto sucesso e
essas tentativas de resgatá-los não vingaram. Estima-se, portanto, que a circulação dos
gibis tenha chegado ao fim na década de 1970.
Há, contudo, um consenso acerca do fato de que Zéfiro não foi o único,
tampouco o primeiro autor de catecismos. De acordo com Otacílio D’Assunção, embora
Zéfiro tenha ingressado no ramo quando o gênero já estava estabelecido, ele conseguiu
imprimir uma nova ótica aos catecismos, façanha que o levou a superar seus
antecessores e inspirar novos discípulos (D’Assunção, 1984: 11).
Alcides declarou ter produzido 862 quadrinhos, mas nem ele próprio possuía os
originais de todos, e, dentre os remanescentes, estima-se que esteja em circulação cerca
de 500 títulos, seja em reedições impressas ou disponíveis na internet4. Em entrevista à
revista Semanário5, ele alegou que seus filhos haviam se assenhoreado de todos os seus
catecismos. Ao programa Jô Soares Onze e Meia6 disse que não os guardou porque era
perigoso tê-los consigo. Nem mesmo os consumidores mais assíduos de catecismos
foram capazes de colecioná-los ostensivamente.
3
Jornal do Brasil, Caderno B, p. 6. 15/11/1991.
4
A editora carioca A Cena Muda vem reeditando, desde 2005, os catecismos pertencentes ao acervo dos
herdeiros. Já o site www.carloszefiro.com, mantido por um fã, disponibiliza cerca de 450 títulos online.
5
Semanário, n° 186/ FEV/1992. p. 18, 21.
6
Exibido em 25/11/1991, pelo SBT.
14
Determinada historiografia7 tem se dedicado nas últimas décadas ao estudo de
obras consideras pornográficas. As reflexões de autores como Lynn Hunt, Walter
Kendrick e do antropólogo Bernard Arcand, entre outros, ainda que versem sobre
objetos a princípio muito distantes dos catecismos, tendem a enriquecer, e muito, a sua
análise. A história da pornografia é, em última instância, a história das coisas havidas
como pornográficas em determinados tempos e lugares, por determinados grupos
sociais, baseando-se nos mais variados argumentos e valores.
7
Refiro-me, sobretudo, aos trabalhos El Museu Secreto (1995), de Walter Kendrick; A invenção da
pornografia (1999), organizado por Lynn Hunt e Esses livros que se lêem com uma só mão: leitura e
leitores pornográficos do século XVIII (2000), de Jean-Marie Goulemot.
8
Kfouri revelou a identidade de Zéfiro no artigo O fim de 30 anos de mistério, na edição de novembro de
1991 da revista Playboy.
15
meses depois, mas teve tempo de desfrutar de uma glória tardia e inusitada, já que ainda
nessa ocasião Alcides temia perder a aposentadoria por “conduta pública escandalosa”.
Mas nos anos 1990 sua obra já havia se tornado inspiração para artistas, tema de
livros, item de exposição, e Alcides foi louvado em virtude dela. Os catecismos haviam
sido alçados à categoria de arte e Carlos Zéfiro, apontado como seu principal expoente,
foi saudado como educador sexual de toda uma geração moralmente reprimida, como
transgressor rebelde de toda essa moral repressora, e como artista genial.
Sob a luz dos estudos sobre as relações entre História e Memória, a análise do
resgate de Carlos Zéfiro ganha contornos muito interessantes e reveladores dos anseios
e das questões que permeavam na sociedade brasileira, sobretudo na década que
promoveu esse resgate.
Meu interesse pelo tema surgiu quando apresentei um trabalho sobre Zéfiro na
aula de “História da cultura de massas”, ministrada pelo então doutorando Gustavo
Alonso, no ultimo semestre da minha graduação em História, na Universidade Federal
Fluminense. Na ocasião, embora eu mal conhecesse Zéfiro e não houvesse ainda parado
pra pensar no conceito de pornografia ou de erotismo, me intrigava que os materiais que
encenam o ato sexual fossem, ao mesmo tempo, tão populares e tão undergrounds,
estando, portanto, inseridos numa cultura de massas, sem, contudo, desfrutar da mesma
visibilidade dos outros materiais e objetos.
16
Essa falta, embora tenha me estimulado a encarar o desafio, quase me fez
desistir em alguns momentos. A escassez de bibliografia sobre o assunto, mesmo nos
catálogos de livrarias especializadas em títulos importados, a alegada dificuldade dos
organizadores de simpósios e congressos em “encaixar” um tema assim em mesas e o
risco constante de não ser levado a sério foram apenas alguns dos desafios enfrentados.
Sem contar, evidentemente, as dificuldades apresentadas pelo próprio objeto:
clandestinos, os catecismos não deixaram os rastros que tradicionalmente guiam as
investigações historiográficas, do mesmo modo que as práticas e hábitos sexuais das
sociedades, sobretudo as tão policiadas, como é o caso do Brasil de meados do século
XX, não podem ser aproximadas a não ser por indícios, pequenos fragmentos de
intimidades, medos, desejos, ousadias...
Mas as alegrias também foram muitas. Marc Bloch escreveu que descobrir a
única ciência cuja prática nos diverte, e a ela nos dedicarmos, é, propriamente, o que se
chama vocação. Ao fim desses dois anos de muito trabalho, posso afirmar que, a
despeito das “necessárias austeridades” que a investigação metódica imprime no ofício
do historiador, eu me diverti bastante. Conheci pessoas e trabalhos incríveis e, ao fim e
ao cabo, a jornada pelas fontes, que vão dos enredos de Carlos Zéfiro aos testemunhos
de seus antigos leitores, que eram apenas garotos quando os consumiam, escondidos e
cheios de culpa em banheiros de colégios; dos artigos de jornais, que relatavam as
terríveis consequências da transgressão sexual às páginas das revistas femininas que
ensinavam o be-a-bá de uma vida contida e decente, foi uma jornada incrível.
17
Capítulo 1.
9
Essas falas parecem ignorar, inclusive, o fato de existirem outros autores e ilustradores de catecismos.
18
com eles. Mas o que significa dizer que os catecismos de Zéfiro são pornográficos?
Mais do que isso, o que significa dizer que antes deles não havia pornografia?
O excesso pornográfico.
É fácil pressupor, a partir das falas de Piper, Gonçalo Júnior e Cirne que, para
eles, existe uma diferença entre pornografia e erotismo e, dados os objetos aos quais
dedicam suas análises10, a diferença consiste justamente no fato de Zéfiro representar o
sexo de forma explícita nos seus quadrinhos, que detalhavam claramente o que era
apenas insinuado em outras publicações. De acordo com essa premissa, os catecismos
inauguram a pornografia brasileira porque, supostamente, até então não havia
representação explícita dos órgãos genitais e do ato sexual.
10
Piper analisa as pin-ups brasileiras; Gonçalo Júnior, os gibis eróticos produzidos dentro dos limites da
lei, materiais com os quais Cirne também os está comparando.
19
outras qualidades e funcionalidades para além da representação sexual com o objetivo
de excitar. Bernard Arcand, que trabalha com a noção de que as definições de
pornografia servem para identificar certos produtos e condenar os responsáveis,
acrescenta que muitas vezes a escapatória é fazer com que eles sejam aceitáveis
inserindo-os num contexto que, por mais artificial que seja, é socialmente admitido
(Arcand, 1993: 31). Ou seja, acrescentando essa “coisa a mais”, é possível evitar as
condenações, reclamando a legitimidade do erotismo.
11
O termo é usado por Lynn Hunt (1999) e designa as produções nacionais de material pornográfico.
12
Nos anos 1980 foram escritos três livros dedicados à obra de Carlos Zéfiro e seus desenhos foram
objeto ou inspiração para diversas exposições.
13
Roberto Da Matta assina um artigo no livro A Arte Sacana de Carlos Zéfiro, onde defende a
“sacanagem” como uma forma particular de vivência e discurso sexual, da qual os catecismos seriam um
importante expoente. Acredito que o termo amortece o peso da palavra pornografia.
20
determinadas atividades, como o beijo ou o afagar carinhoso, não estão estaticamente
determinados no percurso da história.
Walter Kendrick nos alerta sobre o quão risível e egoísta seria supor que nossos
pais e avós, por cegueira ou estupidez, julgavam pornográficas as coisas erradas e que
nós, enfim, sabemos o que é pornografia (Kendrick, 1995: 16). Desde que o gênero
surgiu como categoria independente e distinta das artes e da literatura, na Europa, entre
meados do século XVIII e início do século XIX14, sua definição sofreu inúmeras
transformações que, em grande parte, acompanharam as transformações sociais,
sobretudo as que dizem respeito aos limites do tolerável.
14
A representação dos órgãos e das práticas sexuais não é uma prerrogativa desse período, mas ele é
apontado como aquele em que a pornografia surgiu por ter sido quando tais representações passaram a
compor um gênero à parte.
15
Kendrick demonstra que o termo foi inicialmente usado em tratados sobre a prostituição escritos por
médicos e higienistas, e em catálogos de arte, para designar objetos obscenos feitos sob o falso pretexto
da mitologia.
16
Obsceno é o que está em cena, mas não deveria estar. A palavra designa coisas para além daquelas de
conotação sexual, mas vem a calhar nessa situação, se considerarmos que a pornografia está expondo o
que, em tese, não deveria ser exposto.
21
Isso significava que no mundo literário as obras identificadas
pela expressão “para homens” variavam não apenas no estilo
narrativo de seus autores, mas, em especial, pela quantidade de
encontros sexuais relatados. (El Far, 2004: 194)
Esse trecho nos ajuda a esclarecer o quanto a perspectiva histórica é fundamental
para compreendermos a pornografia, um conceito que carece de reflexão. Desde que foi
definido e difundido, o termo já abarcou uma incrível variedade de materiais, boa parte
dos quais havia sido produzida séculos antes do próprio conceito que viria a defini-las
existir. Trata-se de uma questão importante, porque as tentativas de definir a
pornografia, ao longo dos tempos, vêm se mostrando uma tarefa inglória, como resume
Kendrick:
17
Os jornais genericamente conhecidos como “gênero alegre” surgiram nesse período e eram acusados
pela “imprensa séria” de serem pornográficos. Foram seguidos pelas “revistas galantes”, igualmente
sensuais, dirigidas ao público feminino, que surgiram nos anos 1920. Tais publicações circularam
legalmente durante sua existência, mas existem relatos de inúmeros outros panfletos e cartões postais
“pornográficos” que circulavam de forma clandestina.
22
combinavam imagens de mulheres sensuais seminuas com piadas de duplo sentido, e
em 1951 surgiu a Revista Copacabana, a primeira a exibir, exclusivamente, mulheres
seminuas.
Todas essas publicações viviam na corda bamba dos limites da lei, e se podem
parecer ao leitor contemporâneo um tanto ingênuas, no período em que circularam,
exibiam e nomeavam mais do que o prescrito pelas normas morais mais amplamente
difundidas, “afinal, onde mais poderiam ver mulheres daquela forma?” (Junior, 2010:
86). O álibi de muitas dessas publicações era o humor. Elas tinham o “algo a mais”, tão
necessário para justificar a circulação do sexo.
23
escondidos em bolsos e livros. Havia, então, três tipos de “livrinhos”: os de fotografia,
que eram mais explícitos, os narrativos e os que divulgavam reportagens com
aberrações do cotidiano. O testemunho de Nava aponta essa literatura perdida como
aquela que formou sexualmente os garotos e rapazes da sua geração, tal como os
catecismos, e especialmente os de Carlos Zéfiro, são apontados pelos garotos e rapazes
das décadas de 1950 e 1960 como a sua fonte de informação pedagógica (Carmo, 2011:
226).
Dois anos depois o mesmo jornal manifestava sua indignação com certas
folhinhas que estavam sendo produzidas no Rio. Estampavam-nas “fotografias ou
pinturas de mulheres desnudas”, e o redator não entendia porque não eram recolhidas
junto com as “revistas imorais”, acrescentando que as moças apresentavam-se com
“atitudes que se endereçavam ao instinto, não ao espírito”19. Trata-se de uma crítica
interessante, pois ironiza o argumento “artístico” das tais folhinhas e se pergunta se o
plágio20 seria agora mais um álibi para os transgressores.
18
Jornal do Brasil, p. 10, 13/08/1952.
19
Jornal do Brasil, p. 5, 18/12/1954.
20
A nota sugere que as folhinhas são imitações de uma famosa atriz, cujo nome não é revelado, que teria
posado para um calendário.
24
Nenhum desses materiais, entretanto, foi considerado pornográfico pelos
observadores das décadas seguintes. O fato de não exibirem os órgãos e as práticas
sexuais de forma explícita, e o fato de mesclarem o teor sexual de seu conteúdo com
elementos humorísticos ou veicularem, ao lado de figuras femininas provocantes,
notícias do mundo do teatro, da música, do cinema e demais amenidades, descolava tais
periódicos do gênero pornográfico aos olhos das gerações futuras. Em seu próprio
tempo, entretanto, causaram escândalo e receberam o rótulo acusatório e pejorativo da
pornografia.
A arte de corromper
A pornografia, além da fama de mostrar mais do que se deve, carrega ainda mais
um atributo que contribuí para o peso indigesto de sua designação: a capacidade de
degenerar seu consumidor. Laurence O’Toole, refletindo sobre o ponto de corte que
separaria a pornografia das demais representações do sexo, em especial das
consideradas artísticas, levanta dois aspectos importantíssimos. O primeiro deles diz
respeito ao argumento de que existem coisas que ofendem as “sensibilidades”. É fácil
compreender como o excesso, a exibição explícita de partes do corpo e dos
comportamentos que, em dado ambiente social não são exibíveis, fere as sensibilidades
da comunidade. Isso se relaciona com a questão acerca dos limites do tolerável, cujas
fronteiras, apesar de movediças, prosseguem presentes.
25
(Goulemot, 2000: 149). Não bastassem os efeitos físicos que a pornografia provoca, e
dos quais tratarei adiante, ela encena uma série de práticas e hábitos sexuais que,
frequentemente, não são legitimados pela sociedade, pela religião e pelo Estado.
Embora não sejam legitimadas socialmente, entretanto, tais práticas são amplamente
praticadas “entre as quatro paredes”, ou seja, legitimam-se “na alcova”.
Pereira chama a atenção para esse fato no Brasil durante a virada para o século
XX, quando surgiram os periódicos alegres. De fácil circulação, eles poderiam ser
adquiridos com muito mais facilidade que os livros, até então ainda muito restritos. É
interessante perceber que o primeiro desses jornais a merecer destaque, o Ba-ta-clan, foi
fundado em 1867 e era escrito em francês, o que nos leva a crer que seus volumes não
eram acessíveis a toda a população (Junior, 2011: 82). Em algumas décadas, entretanto,
o gênero se popularizou e a fartura de imagens ampliava ainda mais o público
consumidor, alarmando as autoridades e, é claro, as forças conservadoras e, em
particular, a Igreja (Pereira, 1997: 83).
26
limitados a pequenos grupos de homens letrados, eles não geravam temor, não eram
motivo de preocupação e não havia uma legislação dedicada a regulamentá-los. Mas
quando se tornaram públicos e não apenas um número maior de pessoas, mas também
uma maior variedade delas teve acesso a esses materiais, eles se tornaram um problema.
Para Arcand a pornografia pertence a uma classe curiosa de coisas que julgamos
conhecer muito bem, mas somos incapazes de definir. Se por um lado temos a certeza
de que a pornografia versa sobre as práticas sexuais, por outro nos confrontamos como a
impossibilidade de definir que tipo de representação sexual se enquadra na categoria.
“O que faz com que um objeto, uma imagem ou um gesto seja pornográfico, deixando
assim de ser artístico, erótico, patológico, ingênuo ou qualquer outra coisa?” (Arcand,
1993: 26). O questionamento de Arcand toca em um ponto nevrálgico da questão.
27
carne, associa a ela sujeira, as doenças, as brincadeiras
escatológicas, as palavras imundas. (Alexandrian, 1993: 8)
Existe, portanto, uma representação do sexo cuja legitimidade sugere uma
posição dentro dos limites do tolerável publicamente, ou seja, ela revela o bastante, sem,
contudo, extrapolar. E ela também é de bom gosto e representa uma sexualidade
sublime. É de se esperar, portanto, que essa representação seja respeitada por pessoas
igualmente sublimes e dotadas de muito bom gosto, característica que as afasta por
instinto das representações vulgares, apreciadas por pessoas baixas.
Pornografia e erotismo são termos que apontam para a relação que os objetos
que designam têm com a sexualidade, mas entre eles existe uma diferença sutil, que
evidencia, antes de tudo, uma distinção qualitativa, que Leite Jr. define como sendo
entre estabelecidos e outsiders (Leite Jr., 2006: 32). Sendo assim, nos termos de
Bourdieu, podemos afirmar que o debate sobre quais obras são ou não pornográficas,
que envolve a linha tênue, o limite, entre cada uma das categorias, é uma luta simbólica
pela legitimação de determinadas representações do sexo, que não deixa de ser “uma
batalha por legitimar um poder estabelecido através da distinção social” (Leite Jr., 2006:
35).
28
Se em algum contexto eles foram considerados explícitos demais e carentes de
elementos que pudessem levar a uma reflexão superior, que os levassem além da
excitação sexual, em outro momento, repentinamente, a situação se reverte.
A arte de se superar.
Kendrick define a pornografia como sendo não uma coisa, mas um argumento,
uma estrutura de pensamento, uma novela constante, na qual novos atores substituem os
antigos, mas os papéis permanecem mais ou menos inalterados (Kendrick, 1995: 16-
17). Trata-se de uma definição poética, mas nem por isso imprecisa. Há um consenso,
segundo esse autor, de que existem coisas pornográficas no mundo, mas não quanto ao
que vem a caracterizá-las, exatamente.
29
Entretanto, é preciso ressaltar que, ao que tudo indica, os catecismos ampliaram
o acesso à pornografia e, se não inauguraram uma nova estética, já que não é possível
afirmar que não havia representação explícita dos órgãos e das práticas sexuais antes
deles, contribuíram para difundi-la e foram, para muitos, a primeira experiência nesse
sentido. Joaquim Ferreira dos Santos, no texto que acompanha as reedições dos
catecismos publicadas pel’A Cena Muda, queixa-se de que, naquele tempo: “mulher
pelada, só nas revistas de naturismo sueco, e elas eram tão glabras, tão sexualizadas
quando a Frigidaire que chegava ao mercado” e prossegue dizendo que as musas de
Zéfiro “foram as primeiras mulheres nuas que todos viram” (Santos, 2005).
22
A associação entre leitura pornográfica e leitores de baixo calão vigora desde que o gênero se
constituiu. A interdição da pornografia, como observa Hunt e O’Toole, entre outros, está estritamente
relacionada à popularização do impresso e a democratização do livro na Europa, quando todos, inclusive
aqueles considerados inaptos para determinadas leituras, como mulheres e operários, tinham acesso a
elas.
30
classifica uma obra como popular ou erudita não é exatamente o seu conteúdo, mas os
seus usos (Chartier, 1988).
A enunciação pornográfica
31
leitores, têm como objetivo a excitação sexual. Lembremos que a nudez e o sexo não
são, por si só, excitantes, e que o uso que determinado material terá depende não só da
forma como seu conteúdo é representado, mas também do modo como a representação é
percebida pelo espectador. Do mesmo modo que nem toda representação do sexo é
passível de despertar o desejo sexual, mesmo que seja essa a sua intenção, os mais
diversos e inusitados materiais são, muitas vezes apropriados para esse fim, sem que
para isso tenham sido produzidos. O conceito de Goulemot, entretanto, é bastante útil na
análise de materiais produzidos, alegadamente, com essa intenção.
24
Jornal do Brasil. Caderno B, p. 6. 19/10/96
32
Quando perguntado se ficava excitado enquanto produzia os catecismos, respondeu que
normalmente isso acontecia, acrescentando que “isso a pessoa não pode evitar, né?”25.
Está claro, portanto, que os catecismos excitavam. Mais do que isso, está claro
que eram consumidos com esse objetivo. Não encontrei um único relato que se referisse
aos catecismos como uma leitura corriqueira, sem segundas intenções, à qual os leitores
se dedicavam sem experimentar “o tumulto fisiológico que ela ocasiona” (Goulemot,
2000: 10). Seria porque Zéfiro encenava o ato sexual? Seria porque em seus catecismos
deslumbravam-se corpos nus, antes, durante e depois do enlace?
Boa parte dos relatos de antigos leitores de Zéfiro parte de homens que eram
crianças ou adolescentes quando o consumiam. Entre eles é recorrente a afirmação de
que sua geração foi reprimida sexualmente e que não tinham outra fonte de informação
ou relação com o sexo além dos catecismos e que, na ausência deles, recorriam a
materiais “inadequados”, como as exaustivamente mencionadas revistas de nudismo
(Marinho, 1983: 5; Santos, 2005) e as imagens de mulheres que estampavam as páginas
da revista O Cruzeiro (Marinho, 1983:5). É Arnaldo Jabor quem relata de forma mais
detalhada o papel dos catecismos:
25
Revista Semanário, n° 186, FEV/1992. p. 18.
33
verdadeira, na medida em que esses são elementos realmente presentes na narrativa, que
a caracterizam e condicionam em certa medida a produção de tais efeitos. Trata-se de
uma condição apenas necessária, entretanto. A pornografia é, para esse autor, uma
estratégia de escrita e para produzir seus efeitos vale-se de técnicas e não do mero
acaso. (Goulemot, 2000: 99-100).
26
Na primeira metade do século XX surgiu, nos Estados Unidos, um gênero clandestino de publicação
que, tal como os catecismos, veiculava narrativas sexuais ilustradas em quadrinhos. Também conhecidas
como Tijuana Bibles, essas revistas traziam personagens icônicos da cultura popular americana, como
estrelas do cinema e personagens da Disney, todos praticando sexo.
34
estórias banais e de personagens chamados, por exemplo, de Nina Buceta de Aço”
(Cirne, 1990: 46).
A iconografia zefiriana.
27
As imagens foram extraídas de
http://www.carloszefiro.com/buildframe.php?mag=cigana&pg=0&pgmax=32&thetitle=Cigana.
35
Hélio Brandão28, que foi um dos principais editores e distribuidores dos
catecismos de Zéfiro, disse certa vez que era desejoso que o autor não soubesse
desenhar, não podendo, portanto, ser reconhecido pelo traço. Hélio revelou que era
“com muita força de vontade” que Zéfiro decalcava os desenhos de fotonovelas da
Editora Mex29.
Goulemot, escrevendo sobre a iconografia erótica, nos informa que, para o leitor,
as imagens são uma atração a mais, mas isso não implica em uma exigência, nem da
existência da imagem e nem da qualidade ou genialidade dela. No caso dos catecismos,
somos obrigados a considerar que sua estrutura em quadrinhos demanda o uso das
imagens. Todos os catecismos são ilustrados e todas as ilustrações, organizadas em
quadros, representam o que está sendo narrado. A história poderia, sem dúvida, ser
contada sem o auxílio das imagens, mas a presença delas em todos os volumes é uma
característica universal dos catecismos.
28
O grau de participação de Hélio Brandão nos catecismos permanece confuso. Até a identidade de
Carlos Zéfiro ser revelada, era comumente aceito que Hélio, além de editor e distribuidor dos catecismos,
colaborava diretamente na execução dos enredos. Posteriormente, embora tenha sido ele a principal
testemunha da identidade do autor, isso deixou de ser mencionado e Hélio passou a ser conhecido como
apenas mais um dos muitos editores dos catecismos.
29
Editora mexicana que atuava no Rio de Janeiro nos anos 1960.
36
Ainda assim, a repetição das figuras em Zéfiro e o desleixo berrante com que
algumas delas foram desenhadas, confirmam a hipótese de Goulemot segundo a qual a
função acessória da imagem é conectar o leitor com o texto, o que significa que “não se
pode julgar esse conjunto particular de imagens pela sua originalidade ou pela sua
qualidade gráfica, mas como para o próprio texto licencioso, tomando-se em
consideração a diferença que há entre o escrito e a imagem, por sua funcionalidade.”
(Goulemot, 2000: 167)
Outro aspecto importante do uso das imagens nos catecismos diz respeito à
disposição dos corpos. Ainda que ela instale o leitor fora do quadro representado, como
o observador oculto que é, e dificilmente os personagens “olhem” para esse leitor,
conscientes da sua existência30, todo o quadro é construído de forma a facilitar a visão
do leitor sobre os corpos e as atividades dos corpos. Os ângulos, as posições executadas
e, no caso de Carlos Zéfiro, os frequentes rituais de nudez, que culminavam na exibição
de cada parceiro individualmente, ressaltando os atributos sexuais de que dispunham,
são exemplares disso.
30
Em um catecismo chamado Rendez-vous, o narrador inicia a história falando diretamente com o leitor.
A imagem que a ilustra é o rosto desse mesmo narrador olhando para fora do quadro, em direção ao
espectador, mas essa é uma exceção.
37
Cuidado mesmo, Zéfiro tinha com os órgãos sexuais. Quando eram retratados,
especialmente durante a penetração, recebiam uma atenção e um nível de detalhamento
muito superior ao das demais cenas, o que indica uma especialização no quesito “parte
íntima”. Em alguns casos eles tomavam todo o quadro, repentinamente, saturando o
espaço visual com uma única parte do corpo. Muitos de seus melhores desenhos são
representações de pênis e vaginas. 31
31
As imagens foram retiradas dos catecismos Matilde,
http://www.carloszefiro.com/buildframe.php?mag=Matilde&pg=0&pgmax=32&thetitle=Matilde, e
Reencontro
http://www.carloszefiro.com/buildframe.php?mag=Reencontro&pgmax=32&pg=0&thetitle=Reencontro.
38
O universo dos catecismos.
32
Existem algumas exceções, como A Curra, na qual o protagonista está passando uma temporada na
Argentina.
33
Outro exemplo é uma adaptação de O Amante de Lady Chaterlley.
39
leitor, resumindo-se a esclarecer o local de qualquer cidade em que estavam os
protagonistas.
Os personagens também eram pessoas normais, que bem poderiam ser sua
vizinha ou o seu primo. Diferentes classes sociais, diversas profissões, cores, origens,
destinos, idades, preferências, limites, taras e medos foram representados. Embora a
maior parte desses personagens fossem jovens e desejáveis, Carlos Zéfiro representou
pessoas idosas e feias também. É verdade que a maior incidência desses casos recai
sobre homens feios e/ou velhos. Quando são mais velhos e bonitos, sua idade não
costuma interferir no desempenho sexual. Muito pelo contrário, tal elemento é apontado
como indicador de experiência, o que é bom, como é o caso de Gabriel, em O Viúvo
Alegre.
40
de curvas, peitos que eu vou te contar, sempre dispostas aos mais delirantes pegas com
bundas franqueadas sem qualquer cerimônia” (Santos, 2005).
O que está em jogo não são os belos pares de olhos de uma personagem. A
aparência do rosto de Cinira em A Marrequinha é compensada pelo seu corpo
escultural, que remete Ivan ao sexo. Mas às vezes não é necessário sequer um corpo
bonito para que um personagem entre nos jogos e peripécias da narrativa erótica. Em As
Aventuras de Parafuso, por exemplo, o protagonista trabalhava em uma fazenda isolada
e sentia um imenso tesão pela patroa, que julgava inacessível. Aliviava-se com os
animais da fazenda, chegando mesmo a causar ciúmes em um bode, até que um belo dia
descobriu uma choupana no meio mato, enquanto caçava. Espiando pela janela, viu que
lá havia uma mulher “feia que só briga de foice no escuro é pior: era corcunda e
vesga”34. A péssima aparência da mulher, entretanto, não desanimou Parafuso, que
justifica sua investida na pretendente dizendo que “a sacana era muda. Feia, corcunda,
zarolha e muda! Mas era mulher, estava viva e tinha boceta...”35. Ou seja, ela era
desejável não por seus atributos físicos ou seu charme, mas porque podia gozar e, mais
interessante ainda, podia proporcionar o gozo a Parafuso36.
34
Os Azares de Parafuso, p. 16.
35
Idem, p. 17.
36
A imagem foi retirada da página:
http://www.carloszefiro.com/buildframe.php?mag=AzaresDoParafuso&pg=0&pgmax=32&thetitle=Os%
20Azares%20Do%20Parafuso.
41
bonito, em Zéfiro, o que é “gostoso”, o que desperta desejo sexual, o que ativa a
imaginação do outro, fazendo-o refletir sobre o quão bom deve ser transar com aquela
pessoa. São os elementos, tal como nos alertou Goulemot, que funcionam como o mapa
da mina do êxtase sexual. São indícios revelados aos poucos e parecem anunciar que há
terra à vista! Os personagens masculinos, sobretudo, ficam atentos à virilha entrevista
por uma perna mal cruzada, ou destacada por uma calça justa, desejam os seios,
valorizados em decotes ou blusas apertadas. E, principalmente, eles analisam
milimetricamente a bunda da mulher. As nádegas femininas são tão importantes nos
catecismos que até mesmo a corcunda de Os Azares de Parafuso, cujo aspecto físico
medonho é muito reiterado na descrição do narrador e muito bem representado pela
ilustração, recebe uma colher de chá. De acordo com Parafuso “só a bunda escapava,
apesar de ser um pouco torta”37.
O vocabulário sexual
37
Idem, p. 26.
38
Teremos a oportunidade, mais adiante, de analisar catecismos controversos, nos quais, ao contrário do
que é comumente aceito, personagens são coagidos à prática sexual pela violência ou chantagem.
42
deles praticava sexo em silêncio, emitindo constantemente frases de aprovação, de
satisfação, comandos que direcionassem o parceiro para uma nova posição, ou mesmo
reclames de preocupação. Assim, os personagens iam se conduzindo durante o ato
sexual enquanto o leitor acompanhava: “Vá descendo a bundinha bem devagar,
Lídia”39; ou elogiavam o desempenho do parceiro: “Estou nas nuvens, Téo... como isso
é bom... como você é gostoso!”40; ou mesmo reclamavam de algum desconforto: “”Tira!
Tú tá me lascando no meio... Tá doendo... tira!”41.
Piper não poupa palavras ao elogiar os catecismos, nos quais, segundo ele “o
linguajar, ah, as palavras são perfeitas para cada ocasião! Poucas vezes a língua oral foi
transposta de modo tão apropriado para a escrita. Até os erros gramaticais são
empregados corretamente, eu diria – são insubstituíveis.” (Piper, 1976: 59)
39
Boas Entradas, p. 30.
40
Lia, p. 30.
41
O fugitivo, p. 20.
43
sua potência sexual. As referências não param por aí e, ao elogiar a vagina da amante, o
protagonista exclama: “hum... que grutinha apertada! E como tem musgo!”42.
42
Copacabana 1967, p. 9.
43
Os azares de Parafuso, p. 12.
44
Idem, p. 27.
44
Goulemot observa nos textos que analisa um recurso que é muito presente nos
catecismos. A estratégia da narrativa, nesse caso, consiste em combinar o uso reiterado
do verbo “gozar” e seus sinônimos com o discurso espontâneo e até inarticulado do
gozo, quando a fala se constituiu em gritos, gemidos, palavras e frases entrecortadas.
Dessa forma, os personagens zefirianos anunciavam ao parceiro e ao leitor seu orgasmo
em meio ao delírio, como Denise, enquanto seu irmão lhe pratica sexo oral: “Paulo...
ui... gostoso... joinha... tua língua... ui... lá dentro... jóia... Paulo...”45 ; como o marido da
fogosa Luisa: “Ai, Luisa, vou gozar... vou... Go-o-o-zaaar...”46; ou ainda como Lia,
sendo preparada por Téo para finalmente “perder” a virgindade: “Téo, tua boca sempre
me botou louca!... chupa mais... mais... quero... gozar... na.... tua... boca... mais...”47.
45
Minha doce maninha, p. 18.
46
Frutos proibidos, p. 21.
47
Lia, p. 29.
45
leitor invade o quadro e é uma presença distante, mas ainda assim presença. Como bem
resumiu Otacílio D’Assunção, os catecismos “abriam as portas da intimidade de um
casal ou um personagem escolhido ao acaso para os leitores ávidos por uma boa
punheta” (D’Assunção, 1986: 26).
46
A narrativa de Carlos Zéfiro prezava pela progressão. Ele próprio ser orgulhava
do que é muito elogiado por seus leitores: seus catecismos não começavam com sexo. O
começo de um catecismo típico geralmente situava o leitor no contexto em que a
história iria se desenrolar. Assim, em Ester o narrador inicia seu relato informando
como a sua futura parceira foi parar na sua vida e como a personalidade misteriosa da
jovem chamou sua atenção:
47
ela não padece de nenhum mal, mas parece esperar até estar certo disso, até que um dia,
enfim, ele avança no jogo da moça e os dois transam.
O narrador de Lili é mais afoito. No seu ultimo dia de férias, pede um lanche à
empregada da fazenda em que está hospedado e percebe que ela “não era lá tão ruim”.
Imediatamente insiste para a jovem fique um pouco com ele, segura sua mão, chama de
“meu amor” e na terceira página já estava abraçado com a moça, anunciando que
conseguiu tranquiliza-la.
Esses são apenas alguns exemplos dos inúmeros começos de Carlos Zéfiro, que
tinham em comum o fato de anunciarem, de alguma forma, o que estava por vir. Havia
o cuidado, nos catecismos, de demonstrar que a aventura sexual era conquistada, de
alguma forma, e que para isso havia muitos meios. Não raramente o personagem
conquistador, que geralmente era também o que narrava, estudava as condições em que
sua investida se daria, valendo-se de estratégias específicas para cada tipo de parceiro.
Uma vez conquistado o parceiro, não se perdia tempo em rendê-lo com prazer.
As preliminares eram muito importantes nos catecismos e não é raro que em algumas
histórias elas ocupem mais páginas que a penetração em si. Costumava-se começar com
beijos apaixonados na boca, nas mãos, na nuca e eles levavam a abraços e ao toque nas
zonas tidas como erógenas. Muitas vezes um personagem hesitante e preocupado era
convencido a transar pelas preliminares, evidenciando um princípio universal dos
catecismos, segundo o qual ninguém, por mais virtuoso ou frio que seja, resiste ao
prazer.
48
personagens despiam-se para o leitor, e exibiam sua nudez a ele. É quando os atributos
físicos, que antes poderiam estar escondidos pela roupa ou pela timidez, finalmente se
revelavam plenamente e, caso existissem dúvidas, ficava então claro o quanto o
personagem havia sido feito para o prazer. Ao se despir em A Marrequinha, Ivan surge
no quadro com o pênis ereto e chama a atenção de Cinira, chamando também a do
leitor: “Veja como estou, Cinira!”51. Ele mostra, então, o quanto está equipado e
disposto para o sexo.
Após tirar completamente sua calcinha, Téo ainda pede que ela se vire de frente
para admirá-la por completo, solicitação que foi atendida com requinte de sedução, já
que Téo repara na “pose estudada” da jovem, que tornou a visão ainda mais espetacular.
É então a vez de Lia fazer seus pedidos: “Pronto, Téo. Já sabes como eu sou. Agora
quero também te ver nu.”54. Também Téo se exibe para Lia, que ao vê-lo nu declama:
“Eu sabia que você era maravilhoso! Nossos filhos serão lindos!”55. Trata-se de uma
fala muito interessante, pois evidencia a importância que a nudez adquire ao mostrar
como o outro é. A mera visão do corpo do parceiro é parte integrante da aventura. O
51
A Marrequinha, p. 20.
52
Lia, p. 18.
53
Idem, p. 24.
54
Idem, p. 26.
55
Idem, p. 27.
49
passo a passo dos acontecimentos é vivido pelo leitor por tabela, e é de se esperar que a
excitação progressiva dos personagens possa ser acompanhada por ele.
Embora a maioria dos casais de Zéfiro fosse composta por um homem e uma
mulher, existiram catecismos em que homens transaram com homens e mulheres com
mulheres. Ménages dos mais variados tipos, envolvendo duas mulheres e um homem,
dois homens e uma mulher ou uma mulher, um homo e um heterossexual 56 . Outros em
que homens e/ou mulheres transaram com animais de várias espécies. Diversos
segmentos da sociedade foram também representados, entregues ao prazer. Dos ricos
aos pobres, dos padres e freiras aos hippies e mendigos.
Zéfiro parecia prezar pelo básico bem executado, com poucos acréscimos. Dessa
forma, a maioria dos catecismos se estrutura seguindo uma fórmula mais ou menos
coerente, que começa com preliminares, que consistem basicamente em sexo oral e
masturbação mútua, e é seguido pela penetração vaginal, que é executada normalmente
no estilo “papai-e-mamãe”, “de quatro”, ou com o homem deitado por cima da mulher
de costas, e finalizado pelo sexo anal, praticado “de quatro” ou com a mulher, ou o
homem a ser penetrado, deitada de costas encima do parceiro.
56
A questão da representação da homossexualidade nos catecismos será melhor trabalhada no segundo
capítulo.
50
Contudo, alguns personagens de Carlos Zéfiro têm gostos ou inspirações
repentinas um pouco exóticas, se comparadas com a maioria. Em A Lavadeira, por
exemplo, o homem se masturba na axila da parceira. A insaciável Luisa, de Frutos
Proibidos, entretanto, é possivelmente o melhor exemplo de sexualidade diversa. Ela
propõe ao amante uma coisa “divertida” e ordena que ele busque uma corda nos seus
guardados. Não contente em amarrá-lo nu em uma viga, “Luisa iniciou uma dança
lasciva em que empinava o ventre, abria bastante as pernas, mostrando a vagina
escancarada”, proporcionando ao amante uma visão tão excitante que seu pênis, “duro e
avermelhado, dava pinotes de tesão”57. Decidida a torturá-lo ainda mais, Luisa, que
chamava o amante de “meu macho escravo”58, proibiu-o de gozar enquanto ela passava
a língua em seu pênis. Obrigou-o ainda a lamber seus seios e seu ânus, antes de, por
fim, permitir-se ser penetrada, primeiro pelo ânus, depois pela vagina. E isso tudo
aconteceu com ele amarrado. Luisa também transava com seu cachorro de estimação e
no fim das contas conseguiu protagonizar um ménage com o amante e o marido.
57
Frutos Proibidos, p. 9.
58
Idem, p. 10.
51
qualquer complexidade psicológica justamente porque tal elemento seria uma
indesejável ao leitor e uma interferência na produção dos efeitos pornográficos. Em
alguns catecismos são justamente os elementos psicológicos e os traços de
personalidade dos personagens que vão ditar a forma do catecismo: como, quando e
porque tal pessoa se entrega, e pra quem.
Depois disso Roberto arrumou uma namorada. A jovem Lalá era muito mais
experiente que ele e, numa noite, conduziu-o até um jardim escuro. Roberto não
59
O Campeão, p. 32.
52
percebeu suas intenções e quando Lalá, nua, ofereceu seus seios para que ele chupasse e
virou a bunda para que ele penetrasse, Roberto achou graça. Lalá, impacientemente,
conduz o pênis do rapaz até a sua bunda, mas o membro de Roberto não endurecia. No
fim das contas Lalá acabou transando com o policial que fazia a ronda na frente de
Roberto, enquanto lhe proferia palavras duras e humilhantes.
Muitas histórias tiveram continuação. Otacílio acredita que, embora elas sempre
tenham sido uma tendência desde o início da carreira de Zéfiro, em meados da década
de 1960 ela se acentuou. Eu fui hipie é, possivelmente, aquela que sobreviveu ao tempo
com mais volumes, e Otacílio a classifica como um “autêntico folhetim pornográfico”
(D’Assunção, 1986: 30). Essa saga é narrada em primeira pessoa por uma jovem que
foge de casa com um hippie e, a partir daí, vive inúmeras aventuras sexuais. São quatro
volumes remanescentes, embora o quarto termine com a promessa de um quinto. Outras
sequencias tiveram uma continuação possivelmente ao sucesso que o primeiro volume
teve, como é o caso de As Aventuras de João Cavalo.
53
Esse foi o catecismo mais vendido, ao lado de A Pagadora de Promessas. A
história gira em torno de João Cavalo, um homem que sofre muitas desventuras por ter
um pênis imenso. Nenhum parceiro quer transar com João e ele é enxotado até mesmo
pelas prostitutas e homossexuais, personagens que são normalmente representados por
Zéfiro como grandes admiradores de homens “bem dotados”, e sempre aptos para o
sexo. João encontra enfim uma parceira cuja vagina tem proporções adequadas para
receber seu órgão sexual e, pela primeira vez na vida, João Cavalo consegue transar
com uma mulher introduzindo nela o seu órgão sexual inteiro. O desfecho da história
sugeria que os dois iam viver felizes para sempre, mas Zéfiro acabou escrevendo outra
aventura com esse personagem: João Cavalo na Fazenda.
Boa parte dos catecismos que sobreviveram ao tempo, entretanto, são histórias
únicas, isoladas, nas quais um enredo quase sempre muito bem amarrado descortinava,
perante um leitor atento e curioso, as diversas etapas de uma aventura sexual. o fato de
Zéfiro imprimir essa progressão nas suas histórias contribuiu para a fama que hoje lhe
caracteriza, de professor de sacanagem.
Mas em Zéfiro, por mais evidente que seja essa urgência e essa intenção clara de
funcionar como um aditivo do desejo sexual, os elementos instrutivos são muito
presentes e óbvios. Ele detalha posições e técnicas menos ortodoxas com uma riqueza
maior de detalhes do que dedica às clássicas. Além disso, são muitas as suas dicas ao
leitor, dadas às vezes de forma direta, a respeito da higiene dos sexos, dos métodos para
que a gravidez ou o rompimento do hímen sejam evitados e até mesmo sobre que
canções são apropriadas para serem ouvidas durante o sexo.
De forma menos direta, o processo de corte e sedução, que nos catecismos toma
mais páginas do que é de se esperar em um material feito única e exclusivamente para a
excitação sexual, é bastante instrutivo quanto às técnicas a serem usadas para conquistar
cada tipo de parceiro. Todas as etapas da aventura sexual são pedagogicamente
detalhadas na grande maioria dos catecismos, e as técnicas de abordagem, sedução e
54
persuasão são, ao meu ver, as que desfrutam de maior destaque. Nesse sentido os
catecismos encerram, sim, as peculiaridades didáticas que Goulemot aponta como sendo
prerrogativa da literatura libertina, conjugando-os com aqueles títulos da pornografia.
55
Capítulo 2.
56
Outras, falas, entretanto, apresentam os catecismos como painéis da vida sexual
brasileira. Da Matta acredita que o universo retratado por Carlos Zéfiro abre “um leque
de preferências e escolhas de valor inestimável para o conhecimento de nossa própria
sexualidade como sociedade” e que, lendo os catecismos, “estamos diante de padrões
sexuais dominantes” (Da Matta, 1983: 28-29). D’Assunção acredita que o maior mérito
de Zéfiro tenha sido “reproduzir fielmente o inconsciente coletivo sexual de sua época”,
na medida em que “suas histórias apresentavam toda uma gama de personagens e
estereótipos familiares aos seus milhões de leitores” (D’Assunção, 1986: 12).
Qual o papel dos catecismos, afinal? Eles são um relato de como essas gerações
transavam ou, ao contrário, apresentaram a elas as inúmeras possibilidades sexuais das
quais se privavam? Como nos alerta Peter Gay, “por razões bastante obvias, as relações
sexuais, sendo experiências das mais íntimas e das mais importantes, também são as
mais esparsamente documentadas” (Gay, 1988: 61). Seria extremamente difícil e
indubitavelmente questionável um trabalho historiográfico que se dedicasse a comparar
as práticas expressas nos catecismos com o cotidiano dos inúmeros casais formados ao
longo dos vinte anos em que circularam de forma mais expressiva.
Vinte anos esses que contribuem para embaralhar o cenário. As décadas de 1950
e 1960 emergem como quase antagônicas no imaginário nacional. Não por acaso são
comumente conhecidas como os anos dourados e os anos rebeldes, respectivamente. De
acordo com essa perspectiva corrente, teríamos, por um lado, uma sociedade retrógada e
conservadora, que mantinha encerrada no leito conjugal sua sexualidade e condenava à
ignorância os seus jovens. Homens seriam criados para transar com quem quisessem e
casar-se com as jovens que a isso se negassem. Por outro lado, teríamos a rebeldia e a
liberdade dos anos 1960, quando a mini-saia, a pílula anticoncepcional e outros ícones
da liberalização do sexo teriam, enfim, rompido os grilhões e a todos os homens e
mulheres teria sido permitido experimentar os prazeres do sexo.
O que aconteceu com a sociedade brasileira de meados do século XX? Teria sido
ela convertida ao amor livre ou aqueles homens insensíveis, juntamente com suas
esposas frígidas, teriam sido abduzidos e levados embora para outro lugar, dando
espaço aos arrojados e conscientizados sujeitos de 1960?
57
evidenciar e corrigir as concepções errôneas que se arraigaram
em nossa visão da cultura vitoriana como um mundo tortuoso e
insincero no qual maridos da classe média saciavam sua luxúria
mantendo amantes, (...), enquanto suas tímidas e obedientes
esposas, sexualmente anestesiadas, desviavam todo o seu
imenso potencial amoroso para os afazeres domésticos e a
educação dos filhos. (Gay, 1988: 15).
A questão fundamental para Gay não é desmentir a visão predominante e
cristalizada da cultura burguesa do século XIX, que ele reconhece não ser
completamente fictícia, mas evidenciar e “recuperar os conflitos, a ambivalência e a
diversidade” dessa cultura (Gay, 1988: 15). Não se pode dizer que todos os vitorianos
levavam a mesma vida sexual prescrita pelas normas sociais predominantes, do mesmo
modo que não se pode dizer que não as respeitavam, ou que elas não influenciavam, ou
mesmo determinavam de algum modo suas vidas.
58
um dos mais efetivos deles, a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), foi
grupo formado por mulheres que se definiam publicamente como mães, esposas, donas
de casa e reivindicavam sua condição de ser privado (Cordeiro, 2008: 180), reafirmando
um modelo de feminilidade comumente associado aos anos 1950.
Joan Scott conceitua gênero como sendo um dos elementos que constituem as
relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos, e também como o primeiro
modo de dar significado às relações de poder (Scott, 1995: 86). Trata-se de uma
definição importante ao longo desse capítulo, na medida em que a construção das
relações de gênero fundamentada na diferença sexual na sociedade brasileira do período
baseia-se na execução de papéis definidos pela própria distinção, legitimada por um
discurso que se justificava na natureza intrínseca dos sexos. A partir desses discursos e
dessas práticas, a mulher constitui-se um ser naturalmente doméstico e frágil, em
oposição ao homem, aventureiro e forte por natureza.
Para Courtine o século XX, sobretudo a partir da sua segunda metade, assiste à
crise da virilidade, condicionada por uma série de fatores e fenômenos, dentre os quais,
60
De acordo com o autor, masculinidade não contempla a complexidade da questão. Segundo ele, até o
início do século XX não se exortava os homens a serem masculinos, mas a serem viris, apostando,
inclusive, que a adoção do termo na segunda metade desse século seja sintomática da crise da virilidade.
59
destaca-se a emancipação das mulheres e a liberalização dos costumes, que, segundo o
autor, repercutiu em efeitos paradoxais:
A cada vez mais aparente subversão das fronteiras entre os sexos no Brasil, em
meados do século XX, gerou discursos preocupados com que a instituição familiar, tão
sagrada entre nós, fosse abalada pelo comportamento de mulheres que se comportavam
cada vez mais como homens, e com o perigo de que, como a Família, a Pátria também
fosse desestruturada. Proliferam, portanto, discursos e ditames que procuram controlar a
situação de risco em que determinados segmentos da sociedade acreditavam estar as
hierarquias tradicionais.
Tanto os anos dourados quanto os anos rebeldes foram muito prolíficos no que
diz respeito aos preceitos comportamentais. Circularam diversas revistas, sobretudo nas
destinadas ao público feminino, dicas e receitas para o bem portar-se, assim como os
alertas contra o mau caminho. Nas suas páginas fica claro que existiam expectativas de
comportamento, sobretudo para as meninas e mulheres de classe média61, e que tais
61
Evidentemente essas revistas, e os preceitos por elas difundidos, representam apenas um dos diversos
focos de variados discursos acerca do sexo e da sexualidade. O fato de se dirigirem a um público
60
expectativas abrangiam desde o cuidado de si, a manutenção da beleza e da juventude,
quanto as formas de relacionar-se com o outro. De forma menos clara, mas ainda assim
reveladora, é possível perceber também como era difícil adequar-se às expectativas, seja
em virtude das tentações e ciladas do caminho, seja porque homens e mulheres sentiam
compartilhar uma incompreensão mútua.
consumidor feminino e de classe média restringe, evidentemente, o universo representativo delas. Por
outro lado, entretanto, tais publicações defendiam um modelo predominante de família, baseado da
distinção dos papéis desempenhados por homens e mulheres no interior delas, apresentado como algo
natural e, portanto, independente da classe social ou localização geográfica dessa família (Bassanezi,
1993: 115)
61
assim como os conselhos e soluções apresentadas pelas consultoras são bastante
interessantes. Nessas sessões são sanadas dúvidas e esclarecidas questões de natureza
emocional – o que muitas vezes estava relacionado à sexualidade – de leitoras e leitores
confusos e em conflito. Embora a maioria dos consultórios não divulgue a pergunta
feita pelos leitores, as respostas dadas pelas revistas dão indícios muito interessantes das
questões que os alarmavam.
62
O desviante, para Gilberto Velho, não está excluído da cultura predominante no
seu meio social, mas tem, a respeito de alguns aspectos dela, uma leitura divergente,
podendo ainda portar-se de forma ajustada em outros assuntos (Velho, 1974: 27). Trata-
se de uma reflexão muito importante para o que pretendo aqui, na medida em que nos
permite integrar as diversas dimensões da realidade sociocultural dos brasileiros de
meados do século XX, que interpretavam seus papeis, distribuídos conforme seus sexos,
relacionando expectativa social e ímpeto individual, muitas vezes de forma ambígua.
63
décadas, no que diz respeito às relações sexuais, e aos preceitos comportamentais que a
envolvem.
As análises acerca dos homens representados por Carlos Zéfiro nos catecismos
costumam se limitar ao fato de que eles eram geralmente solitários, solteiros,
sexualmente experientes, bonitões e com um forte atrativo sexual, fosse pela proporção
do pênis ou pela habilidade com que faziam uso dele (D’Assunção, 1986: 50). De fato,
grande parte dos catecismos é protagonizada por personagens assim, mas essa não é
uma regra e, além disso, dentro desses quesitos, Zéfiro conseguiu variar.
64
palavras de D’Assunção, “Zéfiro ia muito além, ensinava verdadeiros modelos de
comportamento, ainda que despretensiosa e intuitivamente. (...). Zéfiro mostrava como
seduzir uma mulher, isto é, qual a técnica da abordagem a ser utilizada para levá-la
eficientemente para a cama.” (D’Assunção, 1986: 158).
Iniciativa
Podemos supor que Corina é uma mulher de modos avançados, ainda assim,
entretanto, é César quem beija a jovem artista. Por mais que Corina tenha emanado
sinais muito claros de seu interesse, a estratégia de César foi fingir ignorá-los. Talvez
porque ela estivesse acostumada a ser cortejada, como ela própria confessou durante o
jantar, talvez porque quisesse atiçar seu desejo fazendo-se de difícil e desentendido,
mas, desde o princípio, César a desejava e empregava seu método específico para
conquistar seu interesse.
62
A artista. p. 13.
63
Idem. p. 32.
65
Em Anita, da coleção Memórias de um bom advogado, o homem avista uma bela
mulher na praia e, após admirá-la a distância por um tempo, emprega uma tática de
aproximação, que ele mesmo descreve: “interessado em travar conhecimento com
aquela beldade, lancei mão de um recurso: levantei-me peguei a peteca e comecei a
jogá-la. Dali a pouco, propositalmente, dei-lhe um tapa mais forte e fi-la cair perto
dela.”64. Como Anita responde à sua aproximação, ele prossegue, até que finalmente a
puxa para si durante um mergulho no mar, e a beija. Trata-se de mais um exemplo de
como os homens zefirianos se aproximam de seus objetos de desejo, normalmente se
fazendo de desentendidos, mas ainda assim, no lugar de quem toma a iniciativa.
Uma vez próximos, eles tentam beijá-las ou tocam-lhes alguma parte do corpo,
sempre atentos à reação. Em Hilda, a mineirinha, Carlos consegue levar para jantar uma
vendedora por quem se interessou. Em seguida eles vão ao cinema, onde Carlos testa
sorrateiramente os limites da jovem:
No caso de Hilda acho emblemático que eles avancem a ponto da moça atingir o
orgasmo sem sequer tirar a roupa dentro de um cinema. Trata-se de um ambiente
público, e os personagens de Carlos Zéfiro não transavam em público. Podiam transar
ao ar livre, o que, aliás, era bastante comum nos catecismos, mas esses locais estavam
desertos, ou pelo menos os personagens acreditavam nisso. Apesar de público,
entretanto, o cinema é escuro e reservado, possibilitando alguns avanços, como esse
64
Anita – memórias de um bom advogado. p. 5.
65
Hilda, a mineirinha. p. 4.
66
catecismo nos permite atestar. Não por acaso os cinemas eram uma grande ameaça à
honra das jovenzinhas dos anos 1950 e 1960.
E embora Hilda tenha consentido tão docilmente com as carícias de Carlos, este
percebe em seu desmaio um sinal de sua inexperiência, e declara que, estando ele
acostumado com mulheres “fáceis”, não soube como agir diante daquela situação. A
fala de Carlos compara Hilda, cuja reação perante o prazer é desmaiar, às mulheres
“fáceis”, que presumivelmente estariam acostumadas às sensações de prazer. Trata-se,
em ultima instância, do que um homem precisa saber, nos catecismos, para calcular sua
abordagem: será fácil ou difícil?
Técnicas de abordagem
Foi assim que Severino, pouco a pouco, foi rompendo os limites de Mercedes
em O Fugitivo. Primeiro ele a convenceu a deixá-lo cheirá-la, depois a lhe mostrar os
seios, e finalmente a deixar que ele lhe beijasse e acariciasse os mamilos. Mercedes
sentiu muito prazer com isso, e não foi difícil convencê-la a permitir que Severino
levantasse seu vestido e friccionasse o pênis entre suas coxas. Além de proporcionar
prazeres seguros, na medida em que mantinha intacto o hímen da jovem e não corria o
risco de engravidá-la, Severino prometia juntar dinheiro para se casar com Mercedes,
que nesse caso era seduzida tanto física quanto moralmente a compactuar com o
amante. Chegaram a praticar sexo anal antes que, finalmente, Severino conseguisse
eliminar de vez as resistências da jovem e romper seu hímen.
67
“primeira vez”, respondeu-lhe serenamente que não fazia mal, mas desejava que ele lhe
fizesse sexo oral antes.
Algumas donzelas, entretanto, não foram persuadidas pelas carícias e nem pelas
promessas de seus amantes. Muitas se renderam ao prazer com práticas alternativas,
como Lídia, de Boas Entradas, que praticou sexo oral e anal com Júlio, mas evitou a
penetração vaginal. Lídia pôde confiar no seu parceiro, que respeitou sua vontade de
manter intacto o hímen, mas a protagonista de Alice não teve a mesma sorte. Enquanto
praticava sexo anal com o namorado, que prometeu não fazer mais nada além disso, o
rapaz confundiu os orifícios e acabou penetrando sua vagina. Havia tempo de evitar o
erro, mas o namorado decidiu ir em frente e descumprir o acordo.
Nos catecismos foi representado ainda o homem que, por alguma razão, está há
muito tempo sem transar e, afoito, transforma-se em um caçador. Esses casos são muito
claros porque Zéfiro geralmente esclarece a situação periclitante na qual se encontra o
personagem, e, não raramente, o narrador faz questão de frisar que em outra situação
não teria prestado atenção na moça, mas que para falta da qual padeciam, elas pareciam
a solução perfeita. Carlos, o protagonista de A Arrumadeira, é um excelente exemplo
disso.
Segundo ele, em uma situação normal deixaria a moça em paz, mas o pânico o
tornava apto a transar até mesmo com uma “múmia”68. Ao contrário da maior parte dos
homens zefirianos, o desesperado Carlos não perde tempo armando um plano para
conquistar Luisa com lábia e persuasão. Certa tarde passa a mão na bunda da jovem,
“como que sem querer”, e recebe dela um “olhar fulminante”69. O desgosto da jovem
66
A arrumadeira. p. 2.
67
Idem. p. 3.
68
Idem. p. 4.
69
Idem. p. 6.
68
não o detém, e ele a agarra “violentamente” e lhe dá um beijo demorado que o fez
“gozar com vontade”70, recebendo em troca um bofetão.
Como Luisa passou a evitar sua presença, Carlos armou um plano escuso para
conseguir o que queria. Passou a deixar pequenas importâncias espalhadas pelo quarto
e, quando algo sumiu, acusou a jovem de furto e exigiu transar com ela como condição
para não levar o caso a público. Luisa consente e, como é de costume nos enredos de
Carlos Zéfiro, acaba achando a ideia muito boa, sente prazer com Carlos e promete
voltar na noite seguinte.
70
Idem. p. 7.
69
mulata, algum detalhe aponta para sua condição social inferior, quando isso não é feito
escancaradamente.71
De acordo com Becker, “o grau em que um ato será tratado como desviante
depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele” (Becker,
2008: 25), de forma que alguns indivíduos que cometem atos desviantes podem não ser
punidos socialmente com a mesma severidade que outros. Isso pode ser exemplificado
nos catecismos se observarmos a origem social dos personagens, sobretudo femininos.
Carlos Zéfiro tende a representar mulheres ricas e elegantes como mais propícias
a trair ou a se insinuar sexualmente a desconhecidos. Essas personagens não sofrem as
consequências de seus atos. Mesmo Mônica, a jovem que pretendia se casar e buscava
um pretendente, em A Escolha, é descrita como rica e inteligente. Ele teve percalços no
caminho referentes à natureza incomum de seus candidatos, que se recusaram a transar,
mas esses erros de análise não culminaram em uma imagem pública negativa para
Mônica. Cabe ressaltar que o único homem com quem Mônica obteve sucesso, o que se
comportou conforme sua natureza masculina foi o motorista de seu pai. Esse catecismo
ridiculariza os rapazes pertencentes ao círculo social de Mônica, que não souberam ser
homens, evidenciando essa capacidade em um homem trabalhador.
Boa parte das adulteras de Carlos Zéfiro são respeitáveis senhoras de classe
média, ou mesmo ricas esposas de figurões. No recato de seus lares, com os maridos
ausentes, elas andam nuas e insinuantes, prontas a se entregarem ao primeiro homem
que cruzar porta adentro. Elas não são abandonadas por seus maridos e nem flagradas
71
A representação dos personagens negros nos catecismos merece, ainda, uma reflexão mais profunda.
Se, por um lado, as mulheres negras são comumente representadas por personagens pobres, por outro, é
notada a ausência de homens negros. Trata-se de uma questão interessante, posto que a sexualidade do
homem negro é amplamente explorada pela pornografia, seja em alusões à pênis enormes ou à sua
potência sexual. Considerando que os catecismos são monocromáticos, seria interessante ainda uma
análise que se dedicasse às formas com que Zéfiro diferenciava as personagens, conforme fossem negras,
mulatas, caboclas ou brancas, pelos traços físicos, pelos cabelos, etc. Essas são questões muito
interessantes que merecem ser analisadas, mas que, justamente por ensejarem reflexões complexas, não
seriam viáveis num trabalho dessa natureza. Sendo assim, optei por apenas pontuá-las, frisando a sua
importância.
70
por seus serviçais, a não ser que por uma ou outra criada que acaba entrando no jogo,
eventualmente.
O sexo é masculino.
De uma maneira geral, fica evidente nos catecismos uma máxima muito
enraizada na sociedade brasileira, desde muito antes das décadas analisadas, e por muito
tempo depois: o ímpeto sexual faz parte da natureza do homem. Não é razoável esperar
que um homem resista à sua própria natureza.
71
penetrar completamente são os animais da fazenda. Parafuso sofre de mal semelhante,
isolado em uma fazenda com sua atraente patroa, por quem morre de tesão, ele se alivia
com cabras e éguas até encontrar uma mulher nos arredores, que, como ele próprio frisa
ao leitor, apesar de muito feia, ao menos era uma mulher.
Nos catecismos não só era desejoso que um homem tivesse experiências sexuais,
como não se esperava menos dele. Esse era o seu papel. Embora não se possa dizer que
os discursos regulamentadores do sexo demandassem publicamente a prática sexual dos
homens antes ou fora do casamento, isso era socialmente tolerado e, em alguma medida,
esperado. A honra masculina não estava condicionada, como no caso das mulheres, à
sua pureza sexual. Pelo contrário, “tinha-se horror ao homem virgem, inexperiente”
(Priore, 2011: 166). Um homem honrado era aquele que desempenhava bem o seu papel
de chefe de família, provedor.
Os homens zefirianos raramente tinham alguma crise moral a ser resolvida. Eles
dificilmente hesitavam diante de uma oportunidade sexual e não há um único
personagem decidido a manter sua virgindade, “guardando-se” para o casamento. Pelo
contrário, o enredo tende a valorizar o garanhão colecionador de parceiras e aventuras
sexuais, enquanto o tímido é frequentemente ridicularizado ou sofre tantos traumas que
necessita de uma volta por cima para ter um bom desfecho.
Nesse caso, a redenção do personagem chega quando ele assume sua faceta
masculina, viril, ou seja, porta-se conforme o esperado de seu sexo. É o caso de O
Campeão, no qual o personagem que respeitava o recato da namorada deixa de fazê-lo
quando se descobre vítima de um complô do qual ela faz parte. De forma semelhante, o
protagonista de A Desforra, cuja timidez e o nervosismo levaram-no a ser cruelmente
humilhado pelas mulheres, resolve mudar essa situação tornando-se um destruidor de
corações. Ambos tomam, em algum momento, uma atitude que reverte suas posições de
castos ou inaptos para sexualmente ativos e dominantes.
72
excitada, decide se casar e elege três homens entre os seus conhecidos para tentar
“resolver seu caso”73.
O primeiro deles foi um poeta, que ela convidou ao seu apartamento. Após horas
de “conversa erudita”74, o pretendente não havia ainda tomado a iniciativa, que como
sabemos, é sua obrigação. Mônica então resolve apostar suas fichas: beija o sujeito,
acaricia-o, faz com que ele a acaricie e no fim das contas está nua na sua frente. Ele
nada mais faz além de recitar versos elogiando sua beleza. Pensando encorajá-lo,
Mônica comporta-se como uma “entendida no assunto”75 e deita-se no sofá. O poeta,
desconcertado, questiona sua virgindade e, achando ser melhor assim, Mônica declara
não ser mais virgem. O sujeito se decepciona e vai embora acusando Mônica de ser uma
perdida que matou suas ilusões.
Solteiros x Casados.
73
A escolha. p. 5.
74
Idem. p. 7.
75
Idem. p. 10.
73
2011: 166). Caso tentassem com mulheres honestas as familiaridades próprias das
levianas, entretanto, estavam apenas cumprindo seu papel de homens e agindo conforme
sua natureza. Cabia a elas estabelecerem os limites que, de forma dialética, seriam a
razão pela qual prosseguiriam honestas ou penderiam para o lado das levianas.
Diante da cena, Dilma, a esposa traída com a cumplicidade da própria irmã, fica
indignada. Roberto, por sua vez, declara ao leitor: “inexplicavelmente não senti revolta
ao ser traído. Dilma estava ali ao meu lado para a desforra. Comecei a lhe alisar a
bunda.”78. E assim Roberto aproveita a oportunidade para se vingar da esposa e do
homem com o qual ela o traía, ao mesmo tempo em que se deleita com uma mulher
atraente.
76
O Castigo. p. 4.
77
Idem. p. 6.
78
Idem. p. 14.
74
atentamente o que fazem seus esposos e se esforçam para superá-los, entre os
resmungos de que tal ou qual posição não é praticada em casa.
Em junho de 1951 corria a notícia de que Sebastião havia matado a esposa com
quem vivera por 27 anos, com um único tiro no coração, após surpreendê-la em
“flagrante adultério”. Em depoimento o assassino confesso disse já ter perdoado a
mulher em duas outras ocasiões, mas ela não tomava emenda79. Já o comerciante Erico
fez questão de flagrar a sua bela esposa Olga, em “colóquio amoroso” com o amante
dentro de sua própria casa, acompanhado pela Radio Patrulha e um detetive de Polícia80.
Essas duas tragédias têm em comum o fato de envolverem homens que deixavam em
casa suas esposas para trabalhar, e esposas que aproveitavam esse momento para
encontrar-se com outros homens.
79
Ultima hora. 18/06/1951. p. 2.
80
Idem. 08/11/1951. p. 5.
75
negócios, negligenciara como marido. Precisava dar um jeito na situação. Elsa estava
magoada.”81
Como foi amplamente difundido pelas revistas de comportamento dos anos 1950
e 1960, a felicidade conjugal era considerada uma responsabilidade e uma obrigação da
esposa. Carla Bassanezi, analisando duas revistas de ampla circulação entre 1945 e
1964, uma de linha mais conservadora e outra que pode ser considerada um pouco mais
liberal82, observa que essa responsabilidade pode ser relativizada, mas não
completamente refutada.
81
Acerto. p. 5.
82
Jornal das Moças e Cláudia.
83
Alba. p. 11.
76
FRIA!”84. Dois anos depois, os esposos não haviam se tocado novamente, e Alba,
traumatizada com a acusação, “fechou as pernas instintivamente”85.
84
Idem. p. 12.
85
Idem. p. 13.
86
Idem. p. 25.
87
Idem. p. 27, 28.
88
Idem. p. 26.
77
Homens excepcionais
Tal como Neco, a maioria dos homens zefirianos parecem muito preocupados
com o prazer de suas parceiras. Mesmo Carlos, de A Arrumadeira, que transou com
Luisa contra a vontade dela, à base da chantagem, preocupou-se em estimulá-la
previamente. É extremamente raro, por exemplo, que um homem não pratique sexo oral
com a parceira antes ou depois da penetração, e as preliminares são frequentemente
muito apreciadas pelas mulheres.
78
mulher, sobretudo se honesta, a render-se ao prazer supremo da penetração se ela fosse
previamente estimulada. A excitação feminina é uma etapa importante para esses
homens na medida em que é a partir dela que a mulher revela seu fraco pela
sensualidade e cede.
O recado que esse catecismo passa não poderia ser mais claro: cão que ladra não
morde. Além disso, Carlos Zéfiro alerta aí para o erro que é pensar que o sexo bem
praticado é aquele em que o homem tem muitos orgasmos. Ao contrário, em boa parte
dos catecismos é a mulher quem é levada a gozar inúmeras vezes, enquanto o homem
mantém-se firme e controlado durante muito tempo. Como já foi dito, o prazer feminino
89
O Afobado. p. 7.
90
Idem. p. 32.
79
reafirma a potência sexual do homem e, portanto, nada mais natural que os personagens
se dedicarem ao prazer de suas parceiras. Além disso, quanto mais as personagens
femininas gozavam, mais elas queriam gozar, o que proporcionava ao homem zefiriano
a oportunidade de ter uma amante. A chance de persuadir uma virgem a se deixar ser
penetrada aumentava se o homem a excitasse. Do mesmo modo, mulheres eram
encorajadas a praticar sexo anal com seus parceiros a partir das carícias preliminares e
do desempenho obtido na penetração vaginal.
Todas essas histórias terríveis têm em comum o fato de que, no fim das contas,
as mulheres gostavam do sexo. Mesmo em Garotas Virgens, história na qual uma das
jovens chantageadas grita e pede socorro durante todo o ato sexual, a sua irmã, que a
tudo observa, sente-se extremamente atraída e voluntariamente se entrega ao sujeito. Ou
seja, se a primeira garota não sentiu prazer com ele, essa comunhão serviu para que a
segunda se interessasse e, essa sim, gozasse plenamente. E a última página do catecismo
esclarece que o homem manteve por meses as duas jovens como amantes, indicando
que, de alguma forma, a primeira acabou convertida.
80
E embora isso não justifique afirmações como a de Da Matta, de acordo com
quem não havia lugar para violência nos catecismos (Da Matta, 1983:32), os fins
parecem justificar os meios e, apesar do método escuso empregado pelo homem, sua
habilidade em fazer a vítima gozar parece, nos catecismos, exercer a função de salvá-lo
do estigma de mau caráter. Analisando essas histórias em comparação à já citada Alba, é
possível perceber que o verdadeiro vilão em Zéfiro é aquele que, tal como o marido
bruto e relapso da protagonista, não compensa sua violência proporcionando prazer. E
ele não faz porque não é capaz disso, ao contrário dos demais personagens que, por
força da natureza ou cálculo pensado, fazem-se deleitáveis enquanto deleitam.
As ações e escolhas das mulheres nos catecismos encontram eco nos preceitos
comportamentais dirigidos às mulheres de carne e osso do período. Um eco inverso,
evidentemente. Tudo o que as revistas femininas pregam que não deve ser feito, como
forma de evitar o perigo do deslumbre, do engodo ou da boca pequena, as personagens
de Carlos Zéfiro fazem, seja por inocência, necessidade, excesso de confiança ou
vontade.
82
Os conselhos dados às mulheres, surpreendentemente, se parecem muito com os
dados aos homens que pretendem desfrutar de seus favores sexuais. Ambos partem da
premissa de que, exposta ao perigo a mulher provavelmente fraquejará. Os catecismos
representam diversas situações exemplares dessa desconfiança geral, na medida em que
mulheres honestas, equipadas diante de um homem habilidoso e de uma oportunidade,
geralmente representada pela privacidade, transgridem os preceitos. Nesse sentido, era
preciso regulamentar a virtude feminina, e cuidar que ela fosse preservada.
Cabe ressaltar que a tríade mítica formada pela mulher honesta, a leviana e o
homem que pode circular por ambas as esferas, além de muito enraizada na nossa
sociedade há muito tempo antes de Zéfiro, continua persistente. Em seu estudo sobre o
funk carioca, Adriana Carvalho Lopes dedica páginas muito interessantes ao assunto. A
autora identifica, nas performances dos bondes e dos MCs, por um lado, o “jovem
macho sedutor”, a quem é permitido tanto o sexo casual como o amor romântico, e por
outro, as figuras femininas, divididas entre as fiéis e as amantes, que nada mais são que
a releitura moderna e funkeira da honesta e da leviana (Lopes, 2011: 171).
Ser honesta
83
encenam, exclusivamente, relações sexuais envolvendo um homem e uma mulher
casados. Nos outros, com exceção dos casos de estupro e chantagem, nos quais a
relação sexual começa contra a vontade da mulher, os parceiros estão transando antes,
ou fora, do casamento, e na maioria das vezes não têm pretensão de casar91.
Desse modo, as comunhões sexuais nos catecismos são, na maioria dos casos,
outsiders. Como foi dito, é tolerado que o homem pratique sexo antes ou fora do
casamento, porque é compreendido que sua natureza assim o impele. À mulher,
entretanto, isso é terminantemente proibido pelas regras sociais e morais que regem a
sexualidade brasileira, de modo que as desviantes, nesse caso, são elas.
91
Há também os casos em que os personagens praticam sexo com seus cônjuges, mas também com outros
parceiros, no mesmo catecismo.
84
“Carlos, que impressão você teria de uma garota que, com tão pouco conhecimento de
um homem fosse com ele para um hotel?”92. Carlos, sem argumentos sólidos, responde
apenas: “Bem... não sei... talvez...”.
Eles fazem o resto da viagem em silêncio sem que Carlos insista mais. Nesse
tempo, Rinalda parece ter refletido melhor e resolveu arriscar-se. Ela decide ir com
Carlos, mas sob a condição de que ele cumpra a promessa de não tentar nada com ela.
Carlos, de fato, se comporta muito bem. Enquanto estão desfazendo suas malas, seus
corpos se tocam e ambos não resistem ao ímpeto de se beijarem, mas não foi
premeditado. O beijo é, contudo, interrompido por um funcionário do hotel. Carlos
decide então tomar um banho demorado, para deixar Rinalda à vontade, e enquanto isso
reflete: “Preciso agir com a máxima cautela com esta garota. É do interior, arisca. Será
que é virgem ainda?”93. E enquanto Rinalda toma banho, Carlos continua matutando:
“Preciso dar um jeito de comer estar garota sem quebrar minha jura. Que farei?”94.
Carlos sabe, portanto, que precisa de uma estratégia infalível, porque a jovem é
honesta e arredia. Caso ele a assedie de forma ousada, ela pode escapulir de seus dedos,
ofendida. Por outro lado, entretanto, Rinalda assentiu em ir com ele para o hotel, mesmo
depois de mostrar-se ciente de que tal atitude não é esperada de uma mulher que se dê
ao respeito, ou, para ser mais exata, que espere respeito de um homem.
92
Viagem a Santos. p. 13.
93
Idem. p. 19.
94
Idem. p. 19.
85
apontada como um sinal de que o hímen estava intacto, e foi assim que mendigo que
desvirginou a protagonista de Eu fui hipie se convenceu de sua condição. Pegando nos
seios da jovem, ele concluiu: “é... você tem peito de quem é mesmo cabaço!”95.
95
Eu fui hipie. Vol. 2. P. 30.
96
Embora os catecismos sejam em preto e branco, o narrador descreve o provocante vestido de Luisa.
86
estejam ali. Ao afirmar categoricamente que para cada tipo de mulher existe uma
estratégia diferente, o autor comunga com os preceitos que distinguem mulheres e
homens a partir do argumento do sexo, e as mulheres entre si pela sua adequação aos
preceitos previstos para o seu sexo.
A protagonista da saga Destino foi enganada pelo namorado, mas de uma forma
diferente. Ela consentia algumas liberdades ao rapaz e os dois estavam acostumados a
trocarem carícias avançadas. Em uma dessas ocasiões, o rapaz acabou rompendo o
hímen da jovem contra a sua vontade. Grávida, abandonada pelo namorado, expulsa da
casa da tia, a sofrida jovem é obrigada a ganhar a vida como prostituta. Gabriel, em O
viúvo alegre, relata resumidamente a tragédia vivida pela mulher de seus sonhos,
contando que “era a mesma de sempre: um namorado cheio de conversa + um momento
de delírio + incompreensão dos pais + falta de prática na vida = prostituição.”98.
Essas personagens depararam com uma figura que assombrava o imaginário das
mulheres de meados do século XX, sobretudo as donzelas: o aproveitador. Esse homem
mal intencionado, que abusaria da confiança de uma mulher, tomaria todas as liberdades
97
Edy. Vol. 1 e 2.
98
O viúvo alegre. p. 24.
87
possíveis com ela e a abandonaria à própria sorte depois, com a honra despedaçada
(Bassanezi, 2011: 616; Priore: 2011: 166).
Destinos trágicos.
99
O Fugitivo. p. 25.
100
Idem. p. 6.
88
era bem visto socialmente, e sob as mulheres solteiras recaíam preocupações
financeiras, na medida em que seriam dependentes do lar paterno sem um marido.
Outra jovem descrita por Efélia tornou-se instável com o namorado depois de
perder com ele a virgindade, gerando muitos conflitos no relacionamento. Três anos
depois de transar pela primeira vez, sofria de depressão e falava em suicídio, aflita “por
que não correspondera ao amor dos pais, à confiança que eles depositaram nela, porque
os iludira”.101
101
Jornal do Brasil, p. 7, 12/06/1966.
89
decepcionando-lhe e envergonhando-lhe a alma, pela existência a fora”102. Vejamos
que, apesar da ênfase nos danos psicológicos causados por experiências prematuras, a
vergonha é um elemento danoso nesse caso.
O problema, portanto, é tanto maior quanto mais difícil de resolver. Mais de uma
década depois, José Carlos Oliveira escrevia em sua coluna no Jornal do Brasil que,
pouco a pouco, habituava-se à independência feminina. Ele relata que uma amiga
resolveu que seria mãe solteira. “Era maior de idade”, escreveu ele, e “não tinha
problemas financeiros”104. Trata-se de uma jovem que, deliberadamente, decidiu
engravidar. Cabe salientar que a amiga de José Carlos tomou essa decisão porque estava
apaixonada por um homem. Vendo que o relacionamento não teria futuro, concluiu que
queria ter um filho dele, em especial. Ela não decidiu ser mãe pela experiência de ser
mãe solteira, mas por desejar um fruto daquela relação, que para ela era muito
importante. E ela podia. Tinha dinheiro e independência.
102
Idem.
103
Ultima Hora, p. 7, 25/01/1952.
104
Jornal do Brasil, Caderno B, p. 3, 07/09/1965.
105
Jornal do Brasil, p. 14, 01/06/1957.
90
A revista Realidade teve um número suspenso e recebeu duras críticas em 1966,
acusada de ser “uma ofensa à família e à dignidade da mulher brasileira”. Entre os
artigos mais criticados do número, estava um que, segundo o juiz responsável pelo
embargo, fazia uma exaltação à mãe solteira106. A revista foi, nessa ocasião, acusada de
querer promover a revolução nos costumes e na moral brasileira107, provocando uma
“psicose coletiva”, ao expor ao ridículo “uma série de costumes que não podem ser
abandonados da noite para o dia”108. Chocava a determinados segmentos sociais que a
revista, entre outras coisas, naturalizasse a condição de mãe solteira, ao invés de
defender “com unhas e dentes que essas moças, com idade entre 16 e 20 anos, fossem
educadas para saber distinguir o bem do mal e o que representa por um filho no
mundo”109. Um bispo chegou a se manifestar quanto à publicação, dizendo que os
caridosos e misericordiosos sabem respeitar a mulher que, “após sua imprudência, teve
a coragem de guardar uma vida”, mas que, de modo algum, essa pode ser considerada
uma “situação normal, desejável, e muito menos merecedora de ser enaltecida”110
106
Jornal do Brasil, p. 16, 31/12/1966.
107
Jornal do Brasil, p. 7, 03/01/1967.
108
Jornal do Brasil, p. 7, 04/01/1967.
109
Idem.
110
Jornal do Brasil, p. 16, 31/01/1967.
111
91
É muito comum que, uma vez abandonadas, elas vivam em desonra, sobretudo
quando não são ricas ou auto-suficientes de alguma forma. Embora Carlos Zéfiro
dificilmente represente essas jovens caídas como promíscuas, e em alguns casos chegue
mesmo a redimi-las, como fez com a protagonista de Destino, indicando talvez certa
condescendência com seus trágicos erros de avaliação, as consequências são cruéis e
fartamente exemplificadas.
Algumas desviantes, entretanto, são justificadas nos catecismos. Como foi dito
anteriormente, Carlos Zéfiro representou homens traídos por suas esposas. Entre as
adúlteras fulguram aquelas cujo enredo demonstra que foram praticamente obrigadas a
trair, como é o caso de já citada Alba. Presa a um casamento ruim, vítima de uma
experiência sexual traumática, por dois anos Alba viveu na mais completa castidade,
sem transar com o marido e com mais ninguém. A solidão não a deixou desesperada de
112
Ultima Hora. 8/11/1951. Página 5.
113
Ultima hora. 18/06/1951. p. 2.
92
excitação... Ao contrário, ela resignou-se e tornou-se melancólica114. Carlos Zéfiro
costuma representar mulheres se masturbando na solidão de suas vidas, até que apareça
o homem que as salve, mas Alba, nem isso faz. Quando ela ouve a voz de Neco cantar
ao longe, está de suéter folgado, descansando em um sofá do seu sítio. Pode-se dizer
que Alba se apaixona pela voz de Neco, e depois da experiência sexual dos dois, ela
declara estar diante do homem ideal, a quem nunca abandonará.
A mulher leviana
114
Alba. p. 14.
115
Idem. p. 17.
93
a diferença entre os sexos. Com uma vida sexual ativa e diversificada, essas mulheres se
aproximam muito do lugar do homem e são interpretadas como seres corruptos, na
medida em que estão indo contra a natureza. A leviana não precisa ser corrompida. Não
são as carícias do homem que despertam nela o desejo sexual. Ao contrário, ela
corrompe, ela desperta e atiça. Nos jornais do período, as mulheres levianas
protagonizam escândalos e são pivôs de terríveis crimes.
Nas vésperas do homicídio, “embora sabendo que todos conheciam sua condição
de casada”, Marlene era vista “constantemente” na companhia de um rapaz, “com quem
passeava bastante, na presença de quem quer que fosse”. Essa informação, além de
confirmar o que Marlene “era realmente”, é exemplar também do papel de polícia moral
que a comunidade cumpria. Uma mulher casada, que sabe que todos sabem que é
casada, passeando constantemente com um homem que não é o seu marido, parece
quase tão ofensivo à comunidade que a vê em tal situação, quanto é para o próprio
marido.
94
atributos físicos são ressaltados, ainda que totalmente fora de contexto. Wanda, que foi
assassinada pelo homem com quem vivia maritalmente, “desde jovem mostrava-se dona
de um espírito inquieto”. Ganhou o apelido de “boneca” depois de conquistar o título de
Miss Jacarepaguá e foi “girl” do Teatro Madureira. Os jornais a descreveram como
“bela”, “insinuante” e “volúvel”, no parágrafo da reportagem intitulado “mulher
leviana”117.
A partir daí ela começa uma verdadeira epopeia sexual, ao longo da qual, por
mais contratempos que lhe aconteçam, o sexo está ali para aliviá-la. Essa personagem
não sofre, não lamenta, não titubeia e, mesmo quando transa por força das
circunstâncias, aproveita a oportunidade para ampliar seus conhecimentos e avaliar as
sensações.
117
Correio da Manhã. 25/03/58. P. 5.
95
“membro” de seu “macho”. Sem calcinha e nem sutiã, Luisa dirige-se ao apartamento
do amante, toda de vermelho118.
118
A imagem foi extraída de:
http://www.carloszefiro.com/buildframe.php?mag=Frutos&pg=0&pgmax=32&thetitle=Frutos%20Proibi
dos.
96
Cansada, Luisa finalmente dormiu, mas acabou sonhando que transava com o
amante Rodrigo e desandou a falar durante o sono. Seu marido ouviu e a despertou
enfurecido. Luisa tentou negar qualquer acusação, mas como o marido continuava
furioso, tratou de pular em cima dele e seduzi-lo com sexo oral. Os dois transaram
novamente entre acusações de que ela era uma “suja sem vergonha” e ele um “corno
manso”, elementos que, ao que parece, apimentaram o relacionamento. Luisa, em um
pico de afronta, ameaçou transar com o amante na frente do esposo, para que este a
visse gozar.
O triunfo de Luisa foi tamanho, que na manhã seguinte seu marido, de fato,
sugeriu que ela convidasse Rodrigo para dormir com eles. Não só Rodrigo aceitou o
convite, como Luisa orquestrou toda a situação, dizendo quem ficava onde, fazendo o
que. Por fim ela manifesta do desejo de ser duplamente penetrada, ao que os dois
homens prontamente atendem. O ultimo quadro desse catecismo deixa a dúvida no ar:
“Conseguiu Luisa o que queria. Agora possuía dois membros a sua disposição. Será que
chegavam?”119.
119
Frutos Proibidos. p. 32.
97
consequências, outra, ninguém soube. Logo, Virgínia, você não pode ficar assim nesse
desânimo.”120
Trata-se de uma lógica bastante presente nos catecismos de Carlos Zéfiro. Como
já foi dito, os personagens não eram afeitos a exibições públicas de sua sexualidade,
sobretudo as mulheres, sobre quem recaíam as principais consequências. Na privacidade
de apartamentos, escritórios, quartos de hotel, barcos e diversos outros ambientes que
podem ser resumidos por “entre quatro paredes”, os personagens de Carlos Zéfiro
fizeram de quase tudo um pouco. O ar livre, embora fosse muito apreciado por Carlos
Zéfiro, que retratou muitas histórias em matagais, beiras de riacho e praias, era propício
somente quando deserto, sem testemunhas.
98
Embora o conselho de Maysa seja bem relaxado e não se paute em uma crítica
severa e agressiva à candidata ao adultério, o seu teor se assemelha muito ao discurso
conservador segundo o qual um marido provedor e honrado é um primor que não deve
ser desprezado. O discurso de Maysa se constrói no sentido de demover a leitora de seus
planos adúlteros. Meses depois, entretanto, escreveu à coluna outra leitora, que por sua
vez já havia consumado o ato e temia as consequências.
Ela havia dado um 3x4 ao amante, com uma declaração de amor escrita. Quando
pôs fim ao caso, o amante inconformado continuou a persegui-la e calhou de ameaçá-la
com o tal 3x4. Maysa ressalta, em seu conselho, que “pecados de amor muitas vezes não
são descobertos, e caem no esquecimento depois que a gente se arrepende”, mas o erro
primordial consiste na existência do 3x4, que é eterno. Depois disso, Maysa aconselha a
jovem a esperar sem se desesperar, porque provavelmente o ex-amante não levará a
cabo suas ameaças, mas adverte que, se alguém tocar nesse assunto futuramente, ela
dever morrer jurando que entre os dois não houve nada além de um 3x4, porque
“adultério, meu bem, não se confessa, se descobre”121.
A má fama era uma das piores inimigas da mulher e, por tabela, atingia seu pai
e, quando casada, seu marido. Algumas desviantes “conseguiram escapar à pecha de
leviana ou mal falada”, mantendo as aparências de respeitáveis (Bassanezi, 2011: 622),
o que significa que mantiveram em segredo suas ousadias sexuais. Nesse sentido, a
técnica de praticar sexo de formas alternativas à penetração vaginal para conservar o
hímen pode ser crucial a uma mulher solteira. Lídia, de Boas Entradas é apenas mais
um caso de virgem que pratica sexo anal como alternativa para manter intacto o hímen,
espécie de atestado de qualidade da jovem para um casamento futuro, técnica que, além
disso, elimina o risco de gravidez.
121
Ultima Hora. 04/08/1960. p. 13.
99
Para D’Assunção, as moças da época: “faziam de tudo, menos deixar que o
macho tirasse o ‘selo de garantia’. Valia qualquer coisa: chupadas, pau nas coxas, só a
cabecinha, dar o cu, e principalmente isso. Dava-se o cu com uma facilidade incrível
nesses dias.” (D’Assunção, 1986: 82).
100
com as consequências. Não é raro que as virgens só consintam com a penetração anal,
como meio de manterem intactos seus hímens. E menos raro ainda é que, arriscando-se
e consentindo com a penetração vaginal, elas paguem preços altíssimos.
A saga Eu fui hipie, embora seja a única que verse sobre hippies, basta para
concluirmos algumas coisas acerca da sua opinião sobre o tema. Ela é narrada por uma
jovem que se declara uma garota “sacana”, “curiosa” e “livre”, e compartilha com o
leitor seu histórico sexual. Apesar do título, entretanto, no primeiro volume não há nada
que a remeta ao movimento hippie. Ela simplesmente sentia uma libido insaciável desde
muito jovem, e já praticava sexo oral com os comerciantes da redondeza antes de
menstruar pela primeira vez. Apenas na metade do 2° volume, surge um hippie na
história, que ela descreve como “barbudo, sujo, malcriado, mas dono de uma senhora
pica”122.
A jovem acaba fugindo com o hippie, não sem antes roubar as joias da mãe e o
dinheiro do pai. Na sua primeira noite de foragida, abrigada com o hippie embaixo de
um viaduto, um mendigo surge querendo transar com ela, que procura proteção no
companheiro. O hippie expressa sua adesão ao amor livre isentando-se de qualquer
responsabilidade, deixando o mendigo livre para fazer o que quiser com a jovem. No 3°
volume, ainda acompanhada pelo hippie, a moça é levada a praticar sexo oral e depois a
transar com o caminhoneiro com o qual os dois pegam carona. Quando ela manifesta o
desejo de tomar banho, o hippie lhe impede, alegando que assim ela perderia o
“gostinho”124. O hippie ainda bate na jovem, obriga-a a se prostituir quando o dinheiro
122
Eu fui hipie. Vol. 2. p. 14.
123
Idem. p. 18.
124
Eu fui hipie. Vol. 3. p. 18.
101
acaba e, quando ele é preso, no 4° volume, ela transa com o delegado em troca de sua
liberdade.
Carlos Zéfiro representou ainda relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e,
por isso, muitos comentadores defendem veementemente que ele era um entusiasta do
homossexualismo. Para D’Assunção ele “tratava o assunto com certa simpatia, e jamais
ridicularizava as figuras gays que volta e meia apareciam em suas histórias”
(D’Assunção, 1986: 132).
Primeiramente, Carlos Zéfiro não parece considerar que um homem que penetra
outro homem seja homossexual. O que garante a sua heterossexualidade, nesse
contexto, não é o sexo praticado exclusivamente com mulheres, mas a inviolabilidade
de seu ânus. Desde que não seja penetrado e nem pratique sexo oral em outro homem,
esse personagem não tem a sua masculinidade questionada.
102
Da Matta leva em consideração essa diferença entre os homossexuais e aqueles
que transam com os homossexuais sem, contudo, serem assim classificados nos
catecismos. Para ele,
103
havia passado por internações para tentar curar sua “anormalidade” e sua esposa acusa
Delgado, o amante, de ter se empenhado para “pervertê-lo”. Embora ambos fossem
considerados “anormais”, “portadores” do homossexualismo, Delgado “possuía um
temperamento extrovertido, dono de um amoralismo completo, que lhe permitia os mais
repugnantes excessos”, e sua incapacidade de manter-se fiel a Décio teria levado este a
uma crise “extremada” de ciúmes, que resultou no crime125.
Fica claro nesse exemplo que a necessidade em dividir o mundo entre feminino e
masculino engendrou formas de interpretar o comportamento homossexual atribuindo
aos indivíduos desviantes facetas estereotipadas. Não me espantaria que a reportagem
atribuísse a Décio o papel “ativo” da relação.
125
Ultima Hora, p. 9, 16/05/1953.
126
Rendez-vous, p. 2.
104
Já o sexo entre mulheres, embora não apareça tanto nos catecismos, é melhor
trabalhado. Embora as amantes não sejam fisicamente estereotipadas, existe a mulher
masculina, que geralmente já é experiente no assunto e é descrita como “lésbica
convicta”, que convence outra mulher a experimentar “algo novo”. Esse é o caso de
Amores Proibidos, catecismo no qual Heloisa narra que uma colega de trabalho, Lúcia,
após lhe mostrar uma fotografia em que duas mulheres estão praticando o “69”, propõe
que as duas façam o mesmo. Heloisa hesita alegando não saber se isso seria “normal” e
“direito”, mas é beijada com tanto fogo pela colega que acaba cedendo. Lúcia beija
“como homem” e “seu corpo alto e musculoso parecia mesmo masculino”127,
evidenciando uma máxima constante nos catecismos que descrevem o sexo entre duas
mulheres: uma delas, precisa fazer as vezes de um homem.
Lúcia manifesta o desejo de praticar sexo anal com Heloisa, ao que essa lamenta
o fato da amante não ter um pênis. Lúcia ausenta-se momentamente, e quando retorna
Heloisa percebe que “sobre seu sexo ostentava um soberbo caralho de plástico,
sustentado por correias”128. A gravura ilustra Lucia orgulhosa, de braços abertos,
exibindo seu acessório e perguntando à parceira: “E agora, Heloisa, pareço um
macho?”129. As duas põem-se a transar e Heloisa observa que Lucia “fodia como um
verdadeiro homem”130.
Esse catecismo evidencia uma máxima recorrente nos catecismos que retratam o
sexo entre duas mulheres: o homem faz falta. O mais comum é que surja um homem e
que ele tome parte da aventura, transando com as duas mulheres, como ocorre em
Pensão Familiar. Mas, quando isso não acontece, uma delas tem que se portar como um
homem para que a outra fique satisfeita. Curiosamente, dois homens transando não
sentem falta da penetração vaginal. Na pior das hipóteses, as nádegas invariavelmente
afeminadas do sujeito que é penetrado são suficientes para suprir a ausência de uma
mulher.
127
Amores proibidos, p. 8.
128
Idem, p. 24.
129
Idem.
130
Idem, p. 28.
105
catecismos legitimassem tais práticas. É preciso ter em mente ainda que a pornografia,
enquanto gênero, busca para si temas e combinações que podem ser consideradas
clichês pornográficos. A representação do incesto ou de religiosos praticando sexo, por
exemplo, são corriqueiras em obras pornográficas desde que o gênero se estabeleceu.
A prática do sexo anal talvez seja a maior bandeira de Carlos Zéfiro. Apesar das
falas como a de D’Assunção, de acordo com quem era muito natural que as donzelas
permanecessem virgens valendo-se de tal artifício, o sexo anal permaneceu, por muitas
décadas, sendo publicamente rechaçado. Raramente nomeado, sendo substituído por
expressões como “práticas não naturais” ou “anormais”, essa modalidade causava
muitos transtornos aos casais. Dona Diamantina Paulino, em 1951, assassina confessa
do marido, alegou em sua defesa que este era um “tarado” que a obrigava, inclusive
ameaçando-a com uma arma, “a práticas não condizentes com sua situação de
esposa”131, e que a “anomalia sexual” da qual sofria o esposo fazia de sua vida um
“verdadeiro suplício”132.
O relatório de 1976, publicado por Delcio Monteiro de Lima, afirma que o coito
anal ainda era considerado perversão até mesmo pelas prostitutas, e que as mulheres que
o praticavam não sentiam prazer algum, só o faziam para satisfazer seus parceiros, e
ainda assim tinham dificuldade em admiti-lo por vergonha. A má fama do sexo anal,
contudo, remontava muitas décadas antes de Zéfiro, inclusive entre aquelas que
ganhavam a vida com o sexo. Carmo reproduz algumas falas de Gilberto Freyre acerca
do preconceito com que as prostitutas brasileiras encaravam as estrangeiras,
indiscriminadamente chamadas polacas. De acordo com Freyre, a bunda avantajada das
mulatas brasileiras atraíam clientes interessados no coito anal, que elas rejeitavam e
aconselhavam a ir procurar as polacas que, por sua vez, vivendo em situação de
rebaixamento dentro de uma profissão já bastante rechaçada socialmente, eram as mais
131
Ultima Hora, p. 2, 17/12/1951.
132
Idem, p. 5, 15/01/1952.
106
dispostas a aceitar a prática tanto do sexo anal quanto do oral, que também não
desfrutava de boa fama (Carmo, 2011: 204).
A avó revela à neta que jamais permitiu tal coisa, e que também ela devia negar-
se a isso. A segunda briga do casal, segundo a avó, teria vindo quando seu esposo, a
quem ela havia permitido dar beijos na sua vagina, aproveitou-se para enfiar ali a
língua. Mais uma vez ela se revoltou, e sua ira só aumentou em seguida, quando ele
sugeriu que ela lhe praticasse sexo oral. De acordo com seu relato, a avó teve uma vida
sexual saudável e feliz com o esposo, mas sempre resistindo a esses pedidos. Ao fim,
ela conclui seu conselho dizendo a neta: “Agora você já sabe como deve agir. Nada de
sacanagem. O homem é sempre um tarado. Gosta de chupar e ser chupado... gosta de
comer cu... não faça nada disso... dê só a boceta.”133. A neta, embora responda
positivamente ao conselho da avó, reflete sobre como “antigamente era diferente”, e faz
na lua de mel tudo o que a avó havia lhe alertado contra.
133
Conselhos Quadrados, p. 14.
107
gozarem nessa modalidade, os personagens masculinos elogiam a parceira, dizendo que
elas são “mulheres completas”.
Além do sexo anal, outra prática sexual muito controversa a que Carlos Zéfiro
rende homenagem é, sem dúvida, a masturbação. Seus personagens se masturbam
sozinhos, se masturbam como preliminares para o sexo, e, em um movimento auto-
referente típico da pornografia, masturbam-se lendo pornografia.
134
A Noite, p. 7, 13/04/1962.
108
Capítulo 3
Roberto Da Matta.
109
desde antes mesmo que se soubesse quem ele era, ou se era alguém, até quando a
imagem mítica de um educador devasso foi complementada com a do simpático senhor
Alcides Caminha.
Além disso, embora não existam provas embasando tal informação, estima-se
que a tiragem média inicial de um catecismo fosse de 5 mil exemplares, que depois
136
Diário de Notícias. Caderno 2. 05/03/1973.
137
Idem.
110
eram reproduzidos informalmente. Alguns títulos, como A Pagadora de Promessas e As
Aventuras de João Cavalo, teriam atingido a impressionante marca de 30 mil cópias
vendidas. Enquanto eram produzidos, portanto, os catecismos não eram tão raros assim.
Nesse sentido, sua alegada escassez, já alardeada em 1973 nesse jornal, deve-se ao fato
de que, enquanto estavam sendo produzidos e consumidos nas décadas anteriores, toda
essa importância e preciosidade não eram sentidas pelos consumidores, que não se
preocupavam em guardá-los. Pesava sobre eles a fama indigesta da pornografia, que
historicamente acompanha materiais tidos como descartáveis, que não gozam de
nenhum valor depois de cumprir sua função excitante.
138
República dos Livros. 11/01/1980. Capa.
111
circulação e não só têm seu valor de uso drenado, como trazem para qualquer uso
prático eventual a pecha do sacrilégio.” (Meneses, 1994: 18).
Fundamenta a possibilidade de que tal conversão seja um processo em curso não
apenas a dificuldade já evidente em adquirir tais objetos, mas também a sua presença
em espaços como museus e exposições de arte. Em 1985 o Parque Lage abrigou a
exposição Velha Mania, na qual foi o exposto o trabalho de 112 desenhistas brasileiros.
A Carlos Zéfiro e seus catecismos foi reservado um espaço todo especial: o banheiro do
casarão. O expectador que de lá se aproximava encontrava “a tênue resistência de uma
cortina negra”, protegendo o ambiente iluminado por uma luz vermelha, lembrando os
velhos cabarés. Lá dentro as paredes estavam cobertas por 10 desenhos de Zéfiro,
ampliados em xérox, e o espaço foi considerado pela imprensa o “chamariz”139 e a
“grande vedete da exposição”.140
Na ocasião Zéfiro os catecismos ainda eram chamados de “histórias pornôs”,
mas também já se esclarecia que haviam sido substituídos pelo heavy porn e invocava-
se Walter Banjamim para explicar o fenômeno, comparando o declínio de Zéfiro ao dos
retratistas extintos com o advento da fotografia.141 Mais que isso, o organizador da
mostra, Marcos Lontra, que também era o diretor do Parque Lage, dizia que Zéfiro era
didático em outra pedagogia, que não a das artes sexuais: sua opinião era de que os
artistas haviam se esquecido como desenhar uma mulher nua142 e, nesse sentido, a arte
zefiriana poderia inspirá-los.
Em 1987 os catecismos foram um detalhe charmoso de outra exposição,
Arqueologia Urbana, que reunia objetos das décadas anteriores, pertencentes ao acervo
do colecionador Paulo Mariozzi. Dessa vez os catecismos estavam meio escondidos na
lateral de uma poltrona antiga, que compunha um quarto que Mariozzi identificava
como de uma costureira do Catete.143
Moacyr Cirne afirmou que, diante dos materiais eróticos e pornográficos atuais,
Carlos Zéfiro foi superado e sua obra tem valor documental. Esse autor substitui a
função excitante, o poder da enunciação pornográfica dos catecismos, pelo valor
histórico, simbólico, que esses materiais passam a ter. Como também coloca Ulpiano
Meneses, a função do objeto antigo é significar o tempo. Ao perderem sua
139
Jornal do Brasil. Caderno B. p. 8. 09/08/1985.
140
Jornal do Brasil. Caderno B/capa. 09/08/1985.
141
Idem.
142
Idem.
143
Jornal do Brasil. Caderno B. p. 10. 16/05/1987.
112
funcionalidade original, a de excitar sexualmente seu consumidor, os catecismos foram
superados e passaram a gozar de um valor histórico.
Para Meneses, “seus compromissos (dos objetos históricos) são essencialmente
com o presente, pois é no presente que eles são produzidos ou reproduzidos como
categoria de objeto e é às necessidades do presente que eles respondem.” (Meneses,
1994:19). Tal reflexão vem a endossar a adequação dos usos e dos discursos sobre
Carlos Zéfiro às discussões acerca da memória.
Não apenas a irrevogável importância dos catecismos já era, então, ressaltada,
como Carlos Zéfiro já se confundia com o gênero, fenômeno que, consequentemente,
legava ao esquecimento os inúmeros outros autores e ilustradores anônimos que ele
havia superado ou inspirado com sua técnica. Carlos Zéfiro já se consolidava como o
grande representante do gênero, no fundo, o único digno de menção, na medida em que:
144
Idem.
145
Jornal do Brasil. Caderno B. p. 11. 12/02/1986.
113
alunos sacanas de Carlos Zéfiro, que embora trouxesse catecismos de outros
desenhistas e autores, falava mesmo é de Zéfiro.
Marinho, na introdução de seu primeiro livro, revela aos leitores que sua
motivação para organizar a antologia é:
Refletindo sobre a decadência vivida pelos catecismos a partir dos anos 1970,
D’Assunção afirma que, apesar dos pesares, as histórias continuaram circulando, ainda
que em escala muito menor e com alterações arbitrárias efetuadas pelos editores
clandestinos. Ainda assim, entretanto, o autor lamenta que:
114
para nossas leituras solitárias, aquele que foi o nosso melhor
professor de sacanagem, aquele Zéfiro que pode ostentar um
artigo na frente: O Zéfiro... esse não volta mais. Mas o homem
vai e o mito fica. O mito Zéfiro, sim, esse continua vivo e
onipresente na mente de todos os brasileiros, um muso
inspirador para as sacanagens daqui pra frente. (D’Assunção,
1984: 177).
Joaquim Marinho, por sua vez, conclui que:
Carlos Zéfiro virou lenda. Acho que foi melhor: seres lendários
são especialmente talhados para simbolizar anseios de liberdade.
Daí que hoje seu nome me fascina, numa terra desmemoriada e
aos poucos perdendo até a esperança. (Marinho, 1983: 12).
Além de compartilharem o receio de que os catecismos não sobrevivam ao
tempo e aos seus últimos leitores originais, Marinho e D’Assunção compartilham
também a certeza de que Zéfiro se tornou um mito, uma lenda. É muito interessante
perceber que, embora não seja possível afirmar que a identidade de Carlos Zéfiro não
importasse, afinal muitos dos indivíduos engajados na preservação da memória de
Zéfiro nesse período são verdadeiros cruzados no encalço de suas pistas, a mitologia em
torno do autor existe independente da sua materialidade.
Poucos meses antes do mistério ser revelado, em julho de 1991, uma edição do
programa Dóris só para maiores foi dedicada a Carlos Zéfiro. Entre os depoimentos de
um e outro artista ou entusiasta, uma dramatização protagonizada pelo ator Paulo Beti
fantasiava uma dessas teorias. Nela, um Zéfiro viril e sério via-se atarefado em sua
gráfica quando uma bela jovem surgia para ajudá-lo. Diante dos questionamentos da
jovem, que encontra um catecismo entre os papéis, o Zéfiro fictício lamenta a perda de
seu prestígio para as revistas dinamarquesas, quando é convidado pela jovem a buscar
115
inspiração para novas histórias. Enquanto os dois transam, a gráfica pega fogo,
queimando os dois e todos os originais dos catecismos146.
146
O programa foi exibido em 30/07/1991, pela Rede Globo.
116
Acredito, contudo, que a emergência dessa memória na década de 1980 guarda
outros contornos e significados para além da simpatia dos intelectuais engajados na sua
preservação. Tais signos, como veremos, ecoam, muitas vezes, dos próprios discursos
saudosos de seus admiradores.
117
Falando em democracia, veio 1964. A Redentora não poupou
ninguém neste país e até o sexo foi considerado coisa subversiva
e corrupta. As revistinhas sumiram do mercado junto com os
jornais de esquerda, e os consumidores foram para a
clandestinidade, temerosos de uma busca por parte da polícia ou
do Exército (Marinho, 1983: 10).
A fala de Marinho é especialmente interessante por evidenciar elementos que
costumam ser recorrentes nos discursos construídos acerca dos anos ditatoriais,
sobretudo os proferidos no contexto da redemocratização, como é o caso. Ao dizer que
ninguém foi poupado da ditadura, Marinho endossa a tese apontada por determinada
historiografia147 como aquela que sobressai nas construções de memória sobre o
período: “a sociedade viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso exorcizar, ou
seja, a sociedade não tem, e nunca teve, nada a ver com a ditadura” (Reis, 2005: 9).
Ninguém foi poupado, todos foram vítimas de uma imposição indesejável, arbitrária.
Marinho vai além, ressentindo-se de que em 1964 até o sexo passou a ser
considerado subversivo e corrupto, dando a entender que antes as coisas eram diferentes
e atribuindo aos governos autoritários pós-1964 a responsabilidade pelo
recrudescimento dos costumes e da liberdade sexual. Notemos ainda que a impressão do
autor acerca desse impacto leva-o a concluir que não só a pornografia e os jornais de
esquerda tiveram o mesmo destino sumário, como também os seus consumidores
viveram uma espécie de clandestinidade, por estarem sujeitos à coerção policial e
militar por parte do governo.
Mais adiante em seu texto, Marinho, que é um colecionador de pornografia
declarado, dá mais detalhes sobre os riscos e contratempos que a vigilância moral da
ditadura lhe causou. Sua paixão surgiu aos 15 anos, quando ele pôs as mãos em seu
primeiro catecismo, assinado por Carlos Zéfiro. Desde então se tornara um ávido
consumidor de material erótico, e apesar das baixas que sua coleção sofria
sazonalmente, provocadas por suas crises de culpa cristã, chegou aos anos 1980 com um
respeitável acervo de 5.000 títulos, além de vídeos e slides. Sobre sua experiência
durante os anos ditatoriais, a conclusão de Marinho é que “não era fácil ser um
colecionador de erótica e brasileiro ao mesmo tempo” (1983: 11).
O autor lamenta a suspensão de suas assinaturas de revistas pornográficas
estrangeiras, proibidas de entrar no Brasil por Armando Falcão e se ressente por suas
correspondências terem sido sumariamente violadas pelos Correios, passando pelo
147
Refiro-me, sobretudo, aos trabalhos de Daniel Aarão Reis, Denise Rollemberg, Gustavo Alonso e
Janaína Cordeiro.
118
extremo de ter sido obrigado a registrar sua coleção na Polícia Federal, como se ele
fosse “colecionador de explosivos ou armas militares privativas das Forças Armadas”
(1983: 11). Ainda assim, entretanto, ele perseverou amparado pela ideia de que:
Um dos valores da erótica, acredito, é o fato de ela representar
ao longo da História a ânsia de liberdade humana, liberdade e
alegria de viver, de usufruir dos bons prazeres que o corpo
oferece. Enquanto celebração do princípio vital, a erótica
sempre foi odiada e perseguida pelos que odeiam a vida e a
liberdade. E o meu espaço de resistência contra os inimigos da
vida e da liberdade instalados no Brasil era a erótica, a minha
coleção de pornografia que precisava ser defendida e continuar
crescendo. (Marinho, 1983: 11).
Não só Carlos Zéfiro, a quem o autor decide homenagear pela “rebeldia juvenil”,
“inocência” e “simplicidade” que ele “cada vez mais representa”, é um “monumento do
imaginário nacional”, como o próprio Marinho se reivindica um resistente à ditadura em
virtude do seu papel de consumidor e colecionador inveterado de pornografia. Como já
havia denunciado Denise Rollemberg, nas releituras dos anos ditatoriais “tudo teria sido
resistência, em geral democrática”, até mesmo, ainda que tenha faltado à longa lista da
autora, o consumo de material pornográfico. “Tudo resistência” (Rollemberg, 2008:
379-380).
O relato de Marinho ignora momentaneamente o fato de que os catecismos
foram clandestinos desde seu surgimento, em 1950, e atribui seu sumiço das bancas ao
golpe de 1964, que tratou a pornografia do mesmo modo com que teria tratado os
jornais de esquerda. Desde então o erotismo teria sido perseguido. Mas os tempos
mudavam e Joaquim podia compartilhar sua paixão com as novas gerações, aquelas que
não tiveram a oportunidade de conhecer Carlos Zéfiro e o seu significado.
Fica claro nesse discurso a associação de Zéfiro, seja pelo conteúdo de seus
catecismos, as temáticas abordadas ou as condições clandestinas em que circulavam, às
questões que estavam em pauta na década de 1980. O processo de redemocratização
mobilizou a sociedade e foram apontadas formas de resistência, heróis e bodes
expiatórios.
Atribuir aos catecismos, sua produção e seu consumo, a condição de um ato de
resistência a um regime autoritário implica numa problemática muito visitada pela
historiografia recente: o uso indiscriminado do termo resistência. Embora não exista
uma definição clara e consensual para o termo, as reflexões mais recentes148 dissertam
148
Refiro-me, sobretudo, às reflexões de Ayla Aglan (2008), François Bédarida (1986), Jaques Sémelin
(1994).
119
sobre seus usos e seu estatuto, e de forma recorrente, apontam que a resistência implica
numa ação que é coletiva e consciente.
Mesmo considerando, portanto, o período em que Zéfiro produziu sob a sombra
de um regime autoritário, o termo não lhe cabe, tampouco aos colecionadores de seus
catecismos. Para Jaques Sémelin as noções de desobediência e dissidência são mais
apropriadas às ações individuais, o que não necessariamente se aproxima de um ato
resistente, na medida em que desobedecer uma lei não implica, necessariamente, em
contestar o estado das coisas, o poder, ou a lei propriamente dita. E Zéfiro desobedecia
às leis pós-64 tanto quanto desobedecia às anteriores, na medida em que o conteúdo de
seus catecismos já era motivo de interdição antes mesmo de que começasse a produzi-
los.
Otacílio D’Assunção, não acha que os catecismos desapareceram em 1964. Ele
aposta que a estreia de Zéfiro no ramo dos catecismos tenha acontecido em 1956 ou
1957149, e que ele teria encerrado suas atividades por volta de 1970, quando as
dinamarquesas nuas e em cores substituíram as monocromáticas heroínas zefirianas no
mercado consumidor. Apesar disso, entretanto, o autor aponta “a paranoia gerada pela
ditadura militar brasileira, então no seu auge”150, como um acelerador desse processo.
Acredito que falas como a de Marinho e D’Assunção, que atribuem o
desaparecimento dos catecismos ao golpe e à ditadura, mesmo reconhecendo, como é o
caso do segundo, a influência de outros fatores, esteja relacionada às questões
levantadas por Carlos Fico acerca da confusão entre a censura política e moral.
Como observa esse autor, mesmo considerando que toda censura é um ato
político, é possível estabelecer a distinção nítida entre aquela de um cunho estritamente
político e a de viés moral (Fico, 2004). Embora a prática da censura pelo Estado esteja
comumente associada a períodos de exceção, a censura moral, como política de Estado,
não é uma especificidade de períodos ditatoriais no Brasil. Ela encontra seus
fundamentos numa longa tradição de defesa da moral e dos bons costumes, que visa à
proteção e a manutenção de valores ligados à integridade da família cristã, um dos
pilares tradicionais na sociedade brasileira. Nesse sentido a censura moral pode ser
149
O autor afirma que os catecismos circularam por quase toda a década de 1950 e 1960, mas Zéfiro, em
especial, teria iniciado sua carreira mais tarde.
150
A citação foi retirada do verbete “Carlos Zéfiro”, disponível em:
http://www.ota.com.br/otapedia/zefiro.html
120
compreendida como um dos elementos inerentes a uma cultura política151, que
transcende a natureza claramente autoritária do Estado.
Como esclarece El Far, a legislação republicana, inicialmente, não havia se
preocupado com os entretenimentos de cunho sexual (El Far, 2004: 280). A profusão de
livros e jornais considerados pornográficos, que se popularizaram no Brasil a partir da
segunda metade do século XIX, entretanto, alarmava parte da imprensa e da sociedade,
que clamava providências das autoridades.
A primeira reação efetiva e polêmica partiu do então diretor geral dos Correios,
Ignácio Tosta, que além do cargo público ocupava-se ainda da presidência de uma
agremiação religiosa denominada Círculo Católico. Incomodado com o sucesso dos
chamados jornais alegres, que além de serem vendidos livremente pela capital podiam
ser adquiridos por reembolso postal, Tosta baixou uma circular proibindo os
funcionários dos Correios de transportarem tais publicações.
O episódio mobilizou a imprensa e a sociedade da época. De um lado, havia
aqueles que apoiavam a iniciativa de Ignácio Tosta contra a onda de imoralidade que
eles acreditavam assolar, sobretudo, a capital federal. De outro, havia os que
questionavam a constitucionalidade da ação e temiam pela liberdade de imprensa.
A circular de Tosta não foi um caso isolado. Em 1912 foi criada a Liga Anti-
Pornografia, mais tarde nomeada Liga pela Moralidade, cuja militância contra a
“indecência” motivou ações inconstitucionais por parte da polícia, que mesmo sem
amparo legal apreendia materiais considerados imorais (El Far, 2004: 279).
151
BERSTEIN, Serge. Cultura Política. In: RIUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma
história cultural. Lisboa: Estampa, 1988.
121
presentes no teatro, no cinema, na música, na literatura, enfim, nos veículos de
entretenimento, uma herdeira direta do DIP.
152
Em ambos os casos é clara a associação entre imoralidade e subversão política, sendo a “degeneração
moral” apontada como um artifício para subverter a ordem e desestabilizar o Estado.
153153
Diário da noite. São Paulo. 04/maio/1963. P. 9.
154
Disponível em: http://radioativoblog.blogspot.com.br/2009/12/carlos-zefiro-os-bons-tempos.html
122
desafiava os governos autoritários, emergindo como “um verdadeiro guerrilheiro erótico
invisível”, “quase um herói nacional da rapaziada”, que “em plena ditadura militar
desafiava a repressão” com os seus catecismos, “minas eróticas, prontas para explodir o
moralismo verde-oliva do horroroso governo militar” (Baraldi, 2007).
Tanto os que acreditam que Zéfiro foi uma vítima, quanto os que acreditam que
ele foi um transgressor da ditadura compartilham a memória balizada na ideia de que a
repressão moral e a censura são prerrogativas do período autoritário. Em ambos os casos
o golpe civil-militar de 1964 é um marco definitivo, um divisor de águas, uma ruptura
inquestionável, mas em cada uma das análises, surte um efeito distinto. Se para as
primeiras o aparato repressor interditou Zéfiro, para as segundas foi a sua motivação.
A defesa da moral e dos bons costumes foi, indubitavelmente, uma bandeira dos
movimentos civis que apoiaram o golpe e um projeto dos governos militares que se
seguiram a ele. É importante perceber, apesar disso, que a perseguição aos materiais e
manifestações contrários a tal projeto não é um fenômeno restrito a tal movimento e tem
raízes muito remotas na nossa tradição política e moral.
Nas poucas entrevistas que deu após ser descoberto, Alcides Caminha, o homem
por trás de Carlos Zéfiro, não chegou a mencionar o golpe ou a ditadura civil-militar.
Sempre que perguntado sobre a razão para ter se mantido tão ferrenhamente apegado ao
seu anonimato, respondia que era em virtude da Lei 1711, que regia o funcionalismo
público e previa a demissão de funcionários em casos de incontinência pública e
conduta escandalosa, e que mesmo depois de aposentado ele preferiu manter seu
segredo para “não causar uma situação”.
Alcides chegou a relatar alguns apuros, como o vivido na tarde em que foi à
livraria de Hélio Brandão entregar uns originais e encontrou o amigo cercado por
detetives. Mas ele conseguiu disfarçar, folheando as edições de ouro, e o pior que lhe
aconteceu foi pegar o ônibus errado, em meio à afobação, e ir parar na Pavuna. Mesmo
Brandão, cuja prisão nos anos 1970 é frequentemente alardeada pela memorialística em
torno catecismos, relatou ao cartunista Jaguar que as prisões costumavam acontecer por
intriga da oposição: a concorrência dedurava, ele ia detido, mas em seguida era solto e
absolvido, não chegando a ser condenado. Segundo ele a própria polícia o procurava,
querendo saber quando sairia o próximo catecismo.
Em 1988 uma nota publicada no Jornal do Brasil informava o interesse de uma
emissora francesa em documentar a trajetória artística do ainda desconhecido Carlos
Zéfiro e sua influência na cultura brasileira. A nota era concluída com a afirmação de
123
que “Zéfiro pode ser considerado o primeiro sexólogo brasileiro, uma espécie de Marta
Suplicy da Ditadura”.155 A comparação indignou Marta Suplicy156, mas, mais uma vez,
a existência de uma memória que associa Zéfiro e seus catecismos ao período ditatorial
na década de 1980, ressaltando, nesse sentido, sua importância para a educação sexual
em tempos repressivos, fica evidente.
O pornógrafo ingênuo.
155155
Jornal do Brasil. p. 6.01/08/1988.
156
Jornal do Brasil. p. 10. 05/08/1988.
157
Drama erótico franco-italiano, dirigido por Bernardo Bertolucci e estrelado por Marlon Brando.
Estreou em 1972, mas só foi liberado para as plateias brasileiras em 1980.
158
Drama erótico franco-japonês, dirigido por Nagisa Oshima, de 1976.
124
exatamente, mas a ideia que naquele momento ele representa: sexo sim, porém
simpático, inofensivo. Nesse contexto a memória construída em torno de Carlos Zéfiro
o aponta como o ícone de um tempo em que até a pornografia era, supostamente, mais
inocente e menos escandalosa. Essas falas descontextualizavam os catecismos da
ambiência moral em que foram produzidos, ao longo dos anos 1950 e 1960, quando
eram o que havia de mais moderno e explícito em pornografia disponível e, portanto,
não eram nada inocentes, para compará-los com o que a indústria erótico-pornográfica
estava produzindo nos anos 1980, quando a tecnologia, assim como a disponibilidade
moral dos envolvidos na mencionada indústria, havia se desenvolvido e alcançado o
cinema e a TV. Perto de filmes coloridos que exibiam de forma explícita os órgãos e o
ato sexual, tudo em movimento, os rústicos quadrinhos de Zéfiro não poderiam se mais
do que ingênuos. E sua memória foi resgatada, atendendo aos anseios presentes.
O pornógrafo feminista
159
A crítica feminista à modernidade e o projeto feminista no Brasil dos anos 70 e 80. In:
http://www.ifch.unicamp.br/ael/website-ael_publicacoes/cad-3/Artigo-2-p45.pdf.
125
tira o foco da desigualdade para a peculiaridade, que prioriza o autoconhecimento, a
saúde e o prazer femininos.
No livro Os alunos sacanas de Carlos Zéfiro, no qual os artigos são todos
assinados por mulheres, exceto a introdução, do autor Joaquim Marinho, a escritora
Regina Echeverria tece uma crítica aos “radicalismos” que estimulam a disputa entre os
sexos. Segundo ela, “desde que algumas mulheres resolveram ir para a tevê nos dizer
como é que faz o que a gente já nasce sabendo, a questão da sexualidade feminina
raramente ultrapassa uma folclórica discussão”, e defende que os catecismos “nos
colocam diante da óbvia constatação de que, na cama, a luta entre os sexos inexiste em
princípio”, na medida em que os catecismos tratam “homens e mulheres sem tirar
sardinha pra lado nenhum”. Ela vai adiante, afirmando de Carlos Zéfiro:
No mesmo livro, a antropóloga Maria José Silveira afirma em seu artigo que na
prática Carlos Zéfiro foi um autêntico precursor do feminismo, no que o feminismo tem
de bom, já que seus catecismos evidenciam que as mulheres têm prazer, sabem tomar
iniciativas, sempre revestem de paixão o ato sexual e que, com raras exceções, as
narrativas nos catecismos não dão espaço ao moralismo. De acordo com ela, maior de
1968 e o seu “é proibido proibir” representa um marco para a liberdade sexual feminina,
tanto mais importante por libertar mulheres criadas sob muitas regras e tabus, que não
viram sequer seus pais trocando carinhos, e que possivelmente Carlos Zéfiro tem uma
parcela de importância nesse marco (Silveira, 1986: 16).
Em um contexto de rearranjos, Zéfiro é resgatado com o olhar e os anseios do
presente. Os aspectos de Carlos Zéfiro, considerados altamente positivos por seus
comentaristas dos anos 1980, superavam em importância qualquer elemento negativo
que porventura fosse detectado na sua narrativa. Otacílio D’Assunção, autor da obra
mais crítica entre as três publicadas sobre o tema, dedica algumas páginas de seu livro à
abordagem de conservadorismos e preconceitos inerentes aos catecismos, mas concluí
ao final:
126
Zéfiro está mais do que redimido por tudo o que fez.
Possivelmente, ao morrer, irá direto para o céu, tamanha foi a
importância que teve para toda uma geração, pois no fundo, só
fez o bem. Mesmo os conceitos ideologicamente “errados” que
poderia transmitir em suas histórias nada mais eram que o
reflexo de todo um contexto coletivo dos anos 50/60
(D’Assunção, 1984: 169).
127
Descobrindo Zéfiro: a conformação do mito.
160
Jornal do Brasil. 15/11/1991. pp. 6.
128
relação a ela. Sobre as declarações de Barbosa, Alcides dizia que, havendo tanta gente
querendo se passar por Zéfiro, era melhor que o tirassem dessa e deixassem que os
outros o fossem (Kfouri, 1991: 96), e que a tentativa do amigo não chegou a magoá-lo e
que ele deveria estar precisando de dinheiro para tentar o golpe161.
Além de ter sido um pacato funcionário público, datiloscopista, que batia ponto
no Departamento Nacional de Imigração, no Ministério do Trabalho, Alcides foi
também compositor, parceiro de Nelson Cavaquinho e Guilherme Brito em sambas de
sucesso, como A Flor e o Espinho, Notícia e Capital do Samba. Cerca de vinte
composições suas foram gravadas por nomes de sucesso, como Elisete Cardoso, Nelson
Gonçalves e Noite Ilustrada165. Mesmo sem gostar de bebida e de jogo, Alcides foi um
161
Idem.
162
Semanário n°186. FEV/1992. p.18, 21.
163
Idem.
164
Jornal do Brasil. 07/07/1992. Pp. 6.
165
Correio Brasiliense, 06/05/1979. pp. 31.
129
frequentador no Ponto dos Compositores, reduto boêmio que ficava em frente ao Teatro
Carlos Gomes, na Praça Tiradentes166.
Segundo Adailton, Dona Serrat, que se apaixonou pela voz de Alcides antes
mesmo de vê-lo, toda sexta-feira engomava do terno branco do marido para que ele
fosse cantar nas serestas e as relações extraconjugais dele eram conhecidas por toda a
família. Ainda de acordo com Adailton, a dupla-moral empregada na criação dos filhos
repercutiu em comportamentos distintos diante das constantes traições do pai, por parte
das filhas e filhos de Alcides. Enquanto as filhas chegaram mesmo a agredir fisicamente
uma das amantes dele que achou por bem procurá-lo na casa de sua família, os filhos até
166
Os arredores dessa praça no centro do Rio de Janeiro, inclusive, foram o cenário de muitos episódios
das muitas vidas de Alcides/Zéfiro. Além dos encontros frequentes com seus amigos sambistas, era na
Tiradentes que Hélio Brandão, amigo de Alcides e um dos principais distribuidores dos catecismos,
mantinha sua livraria. Muitas aventuras zefirianas foram criadas lá, depois do expediente.
167
Jornal do Brasil. 15/11/1991. pp. 6.
130
participavam de algumas aventuras do pai. Apesar de ter mantido um único casamento
até a morte, ele afirmava ter tido “tantas mulheres que é impossível calcular quantas
foram”, antes de reconhecer que sua esposa, Dona Serrat, “é uma santa, pois a tudo
perdoou”168.
De acordo com Alcides sua estreia no mundo das sacanagens clandestinas se deu
por acaso. Ele fazia uns bicos no Hospital da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, e um
colega de trabalho certa vez apareceu com umas revistas eróticas italianas e pediu que
ele reproduzisse alguns desenhos. A experiência inspirou Alcides a criar suas próprias
histórias, apoiando sua prancheta sobre um roupeiro velho que havia no quarto.
168
Idem.
131
Como todo o processo de execução, distribuição e venda dos catecismos era
feito de forma clandestina, não é possível rastrear determinadas informações que,
indubitavelmente, seriam muito preciosas para um pesquisador, tais como o número de
tiragem, venda ou mesmo o preço cobrado por cada volume. Há informações de que
títulos como A Pagadora de Promessas e As Aventuras de João Cavalo ultrapassaram a
impressionante marca de 30.000 exemplares vendidos169, mas não há como provar essa
estimativa. Do mesmo modo não é possível mapear todos os envolvidos no processo de
distribuição, muito embora relatos como o de Joaquim Marinho, que comprava seus
catecismos na longínqua Manaus, ou de Moacyr Cirne, que alega ter encontrado títulos
de Zéfiro na França e na Itália, endossem a hipótese de que esses materiais eram
sistematicamente reproduzidos de maneira informal e enviados para os mais
inimagináveis cantos.
Alguns relatos testemunham que não era muito simples adquirir um catecismo.
Joaquim Marinho conseguiu, na sua mocidade, cantar o jornaleiro Antônio invocando a
amizade de longa data que este mantinha com seu pai. Marinho vivia em Manaus, e
segundo seu fornecedor de catecismos, semanalmente chegavam à banca de 3 a 4 novos
títulos, vindos do Recife (Marinho, 1983: 5-6). Ao que tudo indica, não bastava chegar
à banca e pedir um Carlos Zéfiro. Era preciso ganhar a confiança do vendedor e fazer
por onde mantê-la. Os que não tinham essa sorte, entretanto, podiam contar com a
generosidade dos amigos. Sabemos que os catecismos eram compartilhados em rodas de
amigos, entre os colegiais, e em ambientes tipicamente masculinos, como barbearias e
banheiros públicos.
169
Semanário. Op.Cit.
132
Embora a repressão policial seja relativizada em muitos discursos, incluindo aí o
do próprio Hélio Brandão, que apesar de ter sido detido em posse de um carregamento
de catecismos em 1970 afirma que os próprios policiais eram consumidores assíduos, a
discrição dos jornaleiros não era fruto de uma paranoia qualquer.
Carlos Zéfiro não assinou todos os seus catecismos. Por outro lado, tão logo seus
enredos se destacaram, atraindo a atenção dos consumidores, a concorrência passou a
133
usar o seu pseudônimo como forma de vender mais e melhor. Além disso os catecismos
eram alvo de constantes reproduções ao longo dos anos, e nesse processo era comum
que fossem editados e passassem a compor Coleções, com capas e créditos
transformados. Os admiradores de Carlos Zéfiro insistem no fato de que a narrativa
zefiriana é inconfundível, mas, ao fim e ao cabo, todos os catecismos remanescentes são
imediatamente associados a ele.
A santa Dona Serrat viria a confessar mais tarde que em 48 anos de casamento
nunca pôs os olhos em um desenho, nem chegou a fazê-lo depois da morte do marido.
Mesmo sem vê-los, entretanto, Dona Serrat os detestava:
170
O Globo. 02/09/2001.
134
Além de poupar a esposa de qualquer envolvimento com suas atividades
clandestinas, quando perguntado se suas ideias libidinosas vinham desde a infância,
Alcides respondeu categoricamente que não, que muito pelo contrário, também sua
criação havia sido “cristã e muito séria”, e que nos tempos da escola, quando eram
organizados concursos de desenho, ele se lembrava muito bem de só desenhar navios e
caravelas. Em outra ocasião fez questão de ilustrar aos jornalistas a rigidez moral sob a
qual mantinha sua família, afirmando que escrevia suas histórias à noite e que, embora a
esposa soubesse, não as lia, e que os filhos não desconfiavam de nada. Acrescenta ainda
que quando um de seus netos lhe perguntou sobre os catecismos, foi repreendido com
uma bronca, pois era jovem demais para se ocupar desses assuntos171.
Alcides se gabava ainda de manter certa classe nos seus enredos. Ao afirmar sua
preocupação em não usar palavras de baixo calão, em não começar suas histórias
diretamente com sexo e em imprimir constantemente desfechos moralizantes em seus
enredos, o autor não deixa de expressar sua crítica à concorrência, que supostamente
não se preocupava com tais detalhes. Além de procurar distinguir seus catecismos dos
demais a partir de elementos que atenuam o conteúdo sexual dos enredos, Alcides
também construiu discursos que questionavam inclusive o caráter pornográfico deles:
171
Jornal do Brasil. 15/11/1991. pp. 6.
135
bailes no fim de semana em que, na saída, acontece a verdadeira
pornografia.172
Essa fala é especialmente interessante porque evidencia dois pontos nevrálgicos
da questão: ao mesmo tempo em que Zéfiro questiona o caráter pornográfico da sua
produção, aponta comportamentos corriqueiros dos anos 1990 como exemplos da mais
genuína pornografia. A sensação de Zéfiro, longe de representar uma hipocrisia
primária, revela contornos complexos que Alain Robbe-Grillet resumiu brilhantemente
na máxima “a pornografia é o erotismo dos outros”.
172
Idem.
136
Quase dez anos depois, o mesmo Jabor continua lamentando os rumos da
pornografia:
Lendo o livrinho de Zéfiro “O viúvo alegre”, perguntei-me:
Onde anda a boa e velha sacanagem de outrora? Sexo era
pecado e até hoje sinto falta daquele tempero culposo, criminal,
que fazia a fantasia nunca realizada mais desejada ainda. Não
havia essa cachoeira infinita de imagens que hoje nos assolam e
cegam por tanta visibilidade. Vemos tanto, que não enxergamos
quase nada. Hoje, a infinita libertinagem da indústria do sexo
acaba programando nosso desejo; somos masturbados por
fantasias industriais. Sabemos cada detalhe do rabinho, do
peitinho de cada mulher famosa, e o desejo se esvai por excesso
de exposição. (Jabor, 2004).
Tais trechos levam a uma reflexão curiosa: ao mesmo tempo em que Carlos
Zéfiro é um ícone da transgressão sexual de um tempo em que o sexo era um tabu
hermético e sua ventura foi justamente quebrá-lo, esse tempo chega a ser saudoso
quando comparado à atualidade, quando o sexo não é mais um segredo.
O pornógrafo Cult.
173
Jornal do Brasil. 23/04/1999. Caderno B.
174
Barulhinho Bom, o disco em questão, foi lançado em 1996. A capa e o encarte foram assinados por
Gringo Cardia, inspirado nos catecismos de Carlos Zéfiro.
137
genial e um elemento importante no cenário cultural brasileiro, o conteúdo sexual dos
seus desenhos ainda era um empecilho em determinados momentos. O kit promocional
criado por Gringo Cardia para o lançamento de Barulhinho Bom era composto por uma
caixa contendo o disco, um vídeo com clipes da cantora e dois catecismos. A caixa era,
originalmente, estampada com balões cheios de frases orgásticas e palavrões dos
catecismos, mas a gravadora a substituiu por uma caixa preta, lisa, sem frases, contendo
um único desenho: o rosto de uma personagem zefiriana.
Esse episódio demonstra um aspecto curioso do resgate de Carlos Zéfiro e da sua
sacralização pelo gosto legítimo, nos termos de Pierre Bourideu. Por mais que sua obra
tenha sido convertida em um artefato artístico e seus originais tenham adquirido um
valor simbólico muito distinto daquele que, originalmente, motivava seu consumo,
passando a ser considerados documentos, objetos históricos, seu inegável conteúdo
sexual ainda inspirava preocupações.
No fim da década de 1990 a arte zefiriana foi usada para uma causa nobre: uma
organização engajada na prevenção ao HIV promoveu uma campanha de
conscientização usando os desenhos de Carlos Zéfiro, com o objetivo de enfrentar a
resistência masculina ao uso de preservativos. A justificativa usada pelos organizadores
da campanha pela escolha de Zéfiro é bastante ilustrativa das questões que venho
tentando elucidar, acerca das mutações a que os objetos tidos como pornográficos estão
sujeitos e sua profunda relação com a questão do gosto.
De acordo com Márcia Vilella, acessora de comunicação do grupo responsável
pela campanha, Carlos Zéfiro foi escolhido a partir da constatação de que seus desenhos
tinham apelo entre os homens de todas as camadas sociais:
“Os homens das classes mais favorecidas enxergam nos
desenhos um trabalho artístico, cult, e se sentem atraídos pela
campanha. Os das classes menos favorecidas se sentem
mobilizados pelo próprio erotismo das ilustrações”175.
Essa fala revela muito claramente que, a essa altura, estava estabelecido que a
obra de Carlos Zéfiro reunia elementos que permitiam que pudesse ser apreciada
artisticamente, por indivíduos aptos e culturalmente equipados para isso, mas, ao
mesmo tempo, reunia também elementos excitantes, que permitiriam a outro segmento
social, desprovido do aparato cultural necessário à contemplação artística, desfrutar de
seus efeitos pornográficos.
175
Jornal do Brasil. 17/01/1999. pp. 5.
138
A cantora Marisa Monte também amadrinhou, ao lado de Juca Kfouri, a Lona
Cultural Carlos Zéfiro, fundada por Adailton Medeiros no bairro de Anchieta. É
interessante ressaltar que a Lona Cultural não é apenas um espaço batizado em
homenagem a Zéfiro. Muitos elementos confirmam a hipótese de que ela se constitui
um lugar de memória e um capítulo à parte na história de Zéfiro.
Adailton, que foi nascido e criado em Anchieta, desconhecia o fato de que o Sr.
Alcides Caminha era o homem por trás do já então famoso Carlos Zéfiro. A ideia inicial
era batizar a Lona em homenagem à atriz Fernanda Montenegro, que em dado momento
da vida teria morado no bairro. Quando soube a respeito de Zéfiro, ficou decidido que a
homenagem seria feita ao morador ilustre176.
De acordo com Adailton, Alcides era popular no bairro por suas atividades como
compositor, e por seu envolvimento na organização dos bailes de carnaval e torneios de
futebol. Poucos, entretanto, o associavam aos catecismos. A fundação da Lona, em
1999, cumpriria o papel de resgatar e preservar a memória de Alcides/Zéfiro como uma
figura importante não apenas para a comunidade, mas para a cultura nacional. Zéfiro
não estava presente apenas no nome da Lona. Sua estrutura foi pintada com desenhos
inspirados nos catecismos e o espaço abriga itens relacionados à trajetória do Alcides
compositor e poeta, e do Alcides/Zéfiro, desenhista pornográfico.
É muito interessante observar que, na comunidade em que viveu, Zéfiro é
lembrado tanto pelas atividades de seu pseudônimo quanto por seus trabalhos como
compositor. Em 2001 o Bloco do Boi, um bloco carnavalesco tradicional de Anchieta,
homenageou Carlos Zéfiro. O samba enredo, composto especialmente para a ocasião,
versava sobre as “sacanagens” de Zéfiro, reproduzia trechos famosos de composições de
Alcides e os foliões traziam estandartes com cenas dos catecismos177.
176
Entrevista dada à autora em 26/02/2013. Todas as informações sobre a Lona foram colhidas dessa
entrevista.
177
Idem.
178
O texto está presente em todas as reedições d’A Cena Muda, sob o título O grande sacana.
139
consensuais de que Zéfiro educou sexualmente o brasileiro e de que promovia a
igualdade entre os sexos em tempos de repressão. O texto termina com uma exaltação
ao ídolo: “Hoje, se é essa bendita sacanagem que se sabe ao redor, acenda uma vela pro
cara. Carlos Zéfiro, o pornógrafo ingênuo, libertou o tesão nacional. Saude-mo-lo.
Descasque-mo-lo.”
Em 2011 os catecismos fizeram parte da exposição Comics Stripped, no Museu
do Sexo em Nova York, sendo os representantes do quadrinho erótico brasileiro. É
muito simbólico que dentre os inúmeros cartunistas que se destacaram nessa
modalidade, o escolhido tenha sido justamente o que não sabia desenhar e decalcava
suas figuras de fontes como as fotonovelas e os livros de anatomia. Tal reflexão, longe
de pretender questionar a legitimidade de Carlos Zéfiro como representante da
pornografia ilustrada nacional, permite, mais uma vez, ponderar sobre o poder
unificador e identificador da memória.
Também em 2011 entrou em cartaz a peça Os catecismos segundo Carlos Zéfiro.
Escrita e dirigida por Paulo Biscaya Filho, a peça vale-se de um misto de artes cênicas e
cinema para contar a pitoresca trajetória de Zéfiro. No ano seguinte estreou no Festival
de Cinema do Rio o curta Zéfiro Explícito179. Muito aclamado pela crítica, o filme
percorre a trajetória de Carlos Zéfiro e conta com testemunhos de familiares e figuras
envolvidas no seu “redescobrimento”, como Otacílio D’Assunção e Juca Kfouri.
Desde 1980, portanto, pouco a pouco, tudo aquilo que se relaciona de alguma
forma a Carlos Zéfiro foi conquistando uma conotação quase mística. Zéfiro foi um
mistério desvendando homeopaticamente, num processo que envolveu desde a
interrogação de sua identidade, que foi inclusive reclamada por outros desenhistas 180,
até a incorporação de sua trajetória de vida, enquanto funcionário público, compositor,
boêmio, pai de família adúltero e suburbano à composição de sua obra.
As reflexões de Pierre Nora a respeito dos lugares de memória suscitam um
interessante debate acerca de tais elementos. Para esse autor, a necessidade de memória
é uma necessidade de História, e que a memória não existe, a não ser como um ato de
reviver e ritualizar elementos na tentativa de trazer identificação entre os indivíduos.
Assim, a memória são restos, vestígios, cuja função é tornar o passado próximo.
179
O documentário foi dirigido por Sergio Duran e Gabriela Temer.
180
Meses antes de Alcides Caminha declarar-se Carlos Zéfiro à revista Playboy, Eduardo Barbosa, outro
desenhista, alegou sê-lo e disponibilizou-se a dar uma entrevista ao jornalista Jaguar, mediante o
pagamento de uma quantia em dinheiro. A farsa foi desfeita com a aparição de Alcides. Adailton
Medeiros, no entanto, revelou Barbosa fazia isso porque precisava do dinheiro para um tratamento
médico e que Alcides não só sabia, como também apoiava.
140
Está presente, seja de forma explícita ou subjetiva, nos discursos empreendidos,
a partir dos anos 1980, sobre Carlos Zéfiro e seus catecismos, a noção de que algo
muito precioso e importante estava prestes a se perder no tempo. Os livros de Otacílio
D’Assunção e Joaquim Marinho trazem catecismos reproduzidos e são categóricos ao
afirmar que os catecismos estavam “desaparecidos”, deixado clara, portanto, a
consciência de que seu resgate era um resgate do esquecimento. Eles tratam os
catecismos como objetos capazes de trazer boas recordações aqueles que “antes eram
obrigados a esconder essas revistinhas debaixo de seus colchões” (D’assunção, 1983),
tanto quanto são preciosos para aqueles “que hoje não têm acesso a este monumento do
imaginário nacional” (Marinho, 1983). Não por acaso os livros trazem reproduções
completas dos catecismos181.
Tanto quanto esses autores preocupavam-se em manter vivos e em circulação os
catecismos que, segundo eles, são marcos libertários de uma geração reprimida de
muitos modos, os fundadores da Lona Cultural Carlos Zéfiro estavam preocupados com
a preservação da memória de Alcides Aguiar Caminha, cuja vida acrescenta ao mito de
Carlos Zéfiro as composições de sucesso e as poesias.
Também eles preocupavam-se com o fato da comunidade de Anchieta
desconhecer as facetas de seu morador ilustre e, por isso mesmo, não ser capaz de
honrá-las. Para Pierre Nora, é medo de esquecer, a incapacidade de lembra-se
espontaneamente, que nos leva a construir os marcos da memória, os pontos de
referência daquilo que deve ser importante e lembrado. A memória existente é, portanto,
História. Os lugares de memória, aqui exemplificados tanto pela Lona, que se constituiu
como um espaço de referencia ao trabalho de Carlos Zéfiro e de Alcides Caminha,
quanto pelos incessantes esforços de se reproduzir e divulgar os catecismos e sua
história na sociedade brasileira são, para Nora, a possibilidade de acessar um passado
unificado, uma memória reconstituída, que identifica e preserva o passado.
Desde o seu resgate, empreendido a partir de 1980, a imagem de Carlos Zéfiro e
os discursos acerca dela, se reproduzem de forma consensual. Cristalizou-se a imagem
de um artista genial e transgressor que representou a sexualidade brasileira, tanto quanto
a inspirou e instruiu. Nessas falas, Zéfiro é ao mesmo tempo inocente e sacana, e o
conteúdo dos catecismos revela sentidos, transgressões, liberdades e representações que
181
O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro traz duas histórias: Titia e A Desforra. Já A arte sacana de
Carlos Zéfiro conta com sete delas: O castigo, O resgate, Boas Entradas, Lia, O Fugitivo, Lili e Frutos
Proibidos.
141
poucas vezes dizem respeito à ambiência moral em que foram produzidos, mas sim
àquela em que são revistos.
Considerações Finais
143
sobre a memorialística construída em torno deles, podemos perceber que em muitos
momentos ela é balizada por esses elementos.
Em outros, o que fica evidente são os patamares que as representações do sexo e
da sexualidade estão sujeitos a galgar, no decorrer do tempo. A análise desse processo
revela, por um lado, as flexibilidades e recrudescimentos dos limites do tolerável em
cada sociedade, o que, em ultima instancia, nos permite observar o que é e o que não
pode ser pornográfico em determinados momentos, e por outro, as sacralizações do
gosto legítimo, que convertem determinados objetos em relíquias cheias de significado,
muitas vezes distintos daqueles com que originalmente foram confeccionados e
utilizados.
Os catecismos são, portanto, uma fonte riquíssima e ainda muito pouco
explorada. Ao longo da pesquisa pude levantar algumas de suas particularidades, mas o
custo disso foi negligenciar outras tantas, ou a elas dedicar apenas algumas poucas
pinceladas. Acredito, porém, poder ter contribuído para abrir uma clareira nesse terreno
ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, que abriga outras possibilidades
analíticas para as representações do sexo para além daquelas que dizem respeito ao
sexo, propriamente dito, e os mecanismos de dominação que ele engendra.
Apesar de toda comoção em torno de Carlos Zéfiro e seus catecismos, e de toda
a simpatia com que artistas e intelectuais brasileiros nutrem por eles, até hoje, as únicas
referencias bibliográficas diretamente relacionadas ao tema são os livros publicados por
Joaquim Marinho e Otacílio D’Assunção. Em inúmeras ocasiões foi alardeada alguma
promessa de pesquisa ou um esforço no sentido de organizar de forma mais sistemática
o legado de Zéfiro. Em 2001 a então diretora do acervo da Biblioteca Nacional, Suely
Dias, manifestou o interesse da instituição em adquirir a obra do polêmico Zéfiro. Os
catecismos seriam incorporados ao setor de obras raras do acervo, de acordo com Suely,
o projeto tinha como único empecilho justamente a dificuldade em adquirir os originais.
Ainda hoje, portanto, o maior acervo de catecismos é mantido por um fã, que
disponibiliza na internet todos os seus títulos. Do mesmo modo, a iniciativa de Adda Di
Guimarães, responsável pelas reedições impressas, é motivada mais pelo desejo de
manter em circulação os clássicos de Zéfiro que por qualquer outra coisa. Com exceção
da Livraria da Travessa, os títulos só podem ser encontrados na banca da proprietária,
especialidade em revistas antigas, porque as outras livrarias não se interessam pelos
catecismos.
144
Zéfiro continua sobrevivendo graças ao esforço de seus admiradores. E graças a
esse esforço, novas gerações vão se interessando por ele e se integrando à batalha pela
sua memória, como é o caso de Adailton Medeiros, que não conhecia e nem sabia que o
senhor ranzinza que cuidava do campo de futebol e implicava com os moleques da rua
era o mítico Carlos Zéfiro, que volta e meia pululava nos segundos cadernos da vida.
A forma como Zéfiro e seus catecismos têm sobrevivido ao tempo, além de ser,
ela própria, um interessante objeto de estudo, não deixa também, de determinar os
contornos com que as memórias em torno deles vão sendo construídas e reconstruídas.
As condescendências anacrônicas que permeiam a memória construída em torno
de Carlos Zéfiro refletem as ambivalências e contradições que compõem a própria
dinâmica dos preceitos comportamentais predominantes no Brasil. Somos tentados a
atribuir a determinados momentos históricos, que não raramente são adornados com
marcos relevantes à memória, características próprias ao comportamento sexual e
afetivo do brasileiro. Desse modo, os anos 1950 são repressivos, ao mesmo tempo em
que são românticos, ao passo que os anos 1960 são libertários, mas tal liberdade muitas
vezes se confunde com banalização do sexo. Não obstante, o tempo dos sexualmente
repressivos é também o tempo da efervescência democrática, e o tempo dos truculentos
e autoritários é o tempo dos sexualmente livres. E a trama se complica.
Nesse sentido, o assunto não está, certamente, esgotado, e não só os catecismos
abrigam ainda muitas outras possibilidades, como também a vida e a trajetória desse
indivíduo incrivelmente ativo, complexo e ambíguo, chamado Alcides Aguiar Caminha.
Para além deles, existe ainda uma enorme variedade de materiais, pessoas, discursos,
canções, peças de teatro e uma infinidade de outros veículos do que, em algum
momento, se chamou imoral, pornográfico, perigoso. Acredito que perguntar-se o
porque desses rótulos em determinado momento, e investigar de que modo eles foram
sobrevivendo ao tempo, ou, ao contrário, como e porque foram esquecidos, é um
desafio necessário ao historiador, que deve ser enfrentado.
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