Nietzsche Educador

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

D541n

Dias, Rosa Maria -


Nietzsche Educador / Rosa Maria Dias. – São Paulo:
Pimenta Cultural, 2024.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-930-7
DOI 10.31560/pimentacultural/2024.99307

1. Nietzsche. 2. Educador. 3. Educação. 4. Cultura.


5. Professor. I. Dias, Rosa Maria. II. Título.

CDD 370.7

Índice para catálogo sistemático:


I. Educação – Reflexões Interdisciplinares
Simone Sales – Bibliotecária – CRB: ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 a autora.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

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Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Cronologia.................................................................................................. 10

Introdução...................................................................................................12

CAPÍTULO 1
Nietzsche Professor
a escolaridade de Nietzsche.................................................................................15
O professor Nietzsche................................................................................. 20
O projeto filosófico
de Nietzsche educador................................................................................ 25
Considerações extemporâneas................................................................ 31
Ruptura com Wagner
e afastamento da universidade............................................................... 35
Nietzsche:
uma lembrança querida....................................................................................................40

CAPÍTULO 2
A incultura moderna................................................................................ 47
A individualidade para Nietzsche........................................................... 57
Como educar a si mesmo........................................................................... 59
A descoberta de Schopenhauer............................................................. 63
A imitação criadora........................................................................................ 65
Os preconceitos da educação................................................................. 69
O gênio..................................................................................................................72
Os três egoísmos............................................................................................ 73
A ciência e o cientista...................................................................................75
Uma nova concepção de cultura............................................................ 78

CAPÍTULO 3
Educação e cultura.................................................................................. 81
Tendências que minam a educação..................................................... 82
“A língua é minha pátria”............................................................................ 85
Críticas aos estabelecimentos de ensino ......................................... 93
A ciência e a arte............................................................................................ 96
A filosofia............................................................................................................ 98
O filósofo e o artista
reclamam seus direitos.............................................................................. 104

Conclusão.................................................................................................108

Referências................................................................................................111

Índice Remissivo......................................................................................114
CRONOLOGIA
1844 15 de outubro: Friedrich Wilhelm Nietzsche nasce em Roecken, na Saxônia. Era o primeiro filho do
pastor luterano Larl Ludwig Nietzsche com Franziska.
1845 Nascimento de sua irmã, Elizabeth.
1849 Morte de seu pai.
1850 A viúva e os filhos instalam-se em Naumburg.
1858 Ingressa na escola de Pforta.
1861 Conhece Gersdorff; compõe músicas; toma conhecimento de “Tristão e Isolda”, de Wagner.
1864 Diploma-se em Pforta com distinção em quase todas as matérias, menos matemática. Matricula-se na
Universidade de Bonn, no curso de teologia, onde permanece por dois semestres, estudando teologia e filologia.
1865 Abandona a teologia e transfere-se para a Universidade de Leipzig. Descobre Schopenhauer.
1866 Janeiro: primeira conferência sobre Teógnis na Sociedade Filológica. Conhece Erwin Rohde.
1867 Outubro: começa o serviço militar. É dispensado em consequência de uma queda de cavalo. Publica
seu primeiro ensaio de filologia.
1868 Novembro: conhece Richard Wagner.
1869 É nomeado professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia (Suíça) e ensina grego nas
classes superiores do Pädagogium. Em maio, primeira visita a Wagner e a Cosima, em Tribschen, perto
de Lucerna. Conhece o historiador Jacob Burckhardt.
1870 Faz palestras sobre o Drama musical grego e Sócrates e a tragédia. Redige “A visão dionisíaca do
mundo”. Conhece o teólogo Franz Overbeck. Serve como enfermeiro voluntário na guerra franco-
prussiana. Atacado de difteria, regressa à Basiléia.
1871 Redige, em Lugano, “O nascimento da tragédia no espírito da música”.
1872 Publica “O nascimento da tragédia”. Profere cinco conferências, intituladas: “Sobre o futuro de nossos
estabelecimentos de ensino”.
1873 Redige “A filosofia na época trágica dos gregos” e “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”.
Publica sua primeira “Extemporânea: David Strauss, o devoto e o escritor”.
1874 A segunda e a terceira extemporâneas são publicadas: “Da utilidade e desvantagem da história para a
vida” e “Schopenhauer como educador”.

SUMÁRIO 10
1875 Escreve a quarta “Extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth”. Em novembro, conhece aquele que
será seu amigo até o final de sua vida, Peter Gast.
1876 Assiste ao Festival de Bayreuth. Decepcionado e doente deixa Bayreuth e Wagner.
1878 Publica “Humano, demasiado humano” – um livro para espíritos livres.
1879 Demite-se da Universidade da Basiléia. Começa sua vida de errante. Publica “Opiniões e sentenças
variadas”, primeiro complemento de “Humano, demasiado humano”.
1880 Durante o inverno de 1879-80, publica “O andarilho e sua sombra”, segundo complemento de “Humano,
demasiado humano”.
1881 Publica “Aurora”. Em agosto, próximo de um rochedo, à beira do lago de Silvaplana (Engandine), tem a
revelação do “Eterno retorno”.
1882 Publica “A gaia ciência” – as quatro primeiras partes. A quinta parte aparece em 1886.
1883 Em janeiro, escreve a primeira parte de “Assim falou Zaratustra” – um livro para todos e para ninguém.
Richard Wagner morre em Veneza, aos 69 anos. Em julho, escreve a segunda parte de “Zaratustra” e
publica as duas partes.
1884 Redige a terceira parte de “Assim falou Zaratustra”.
1885 Com suas pequenas economias, manda imprimir 40 exemplares da quarta parte de Zaratustra e não
consegue reunir sete nomes interessados em ler o livro.
1886 Publica, também à próprias custas, “Para além do bem e do mal”. Escreve prefácios para livros já
publicados: “Humano, demasiado humano”, “O nascimento da tragédia”, “Aurora” e “A gaia ciência”.
1887 Publica a “Genealogia da moral” e redige o “Niilismo europeu”.
1888 Escreve o “Caso Wagner”, “O crepúsculo dos ídolos”, “O Anticristo”, “Ecce homo”. Elabora “Nietzsche
contra Wagner” e “Ditirambos de Dionísio”.
1889 Crise de demência em Turim. É levado pra a Basiléia e internado na clínica psiquiátrica. É transferido para Iena.
1890 Nietzsche deixa a clínica de Iena.
1897 Morte da mãe. Elizabeth leva Nietzsche para Weimar.
1900 Em Weimar, morre no dia 25 de agosto. Três dias depois, é sepultado em Roecken.

SUMÁRIO 11
INTRODUÇÃO
“Um dia virá
em que só se terá
um único pensamento:
a educação.”
Nietzsche, Fragmentos póstumos (1875)

Nietzsche, durante toda a sua vida, preocupou-


-se com a educação e a cultura, mas foi em seus primeiros
anos como professor no Pädagogium e na Universidade da
Basiléia que se debruçou sobre os problemas concretos do ensino
secundário e superior. Com fina acuidade, observou estar diante de
um sistema educacional que abandonara a formação humanista
em proveito de uma formação cientificista; a consequente vulga-
rização do ensino tinha por objetivo formar homens tanto quanto
possível úteis e rentáveis, e não personalidades harmoniosamente
amadurecidas e desenvolvidas. Atento a tudo o que se relacionava à
educação, Nietzsche decidiu denunciar os “métodos antinaturais da
educação” e as tendências que a minavam.

Antes de abordarmos a ação de Nietzsche como educador e


seu pensamento sobre a educação, fazem-se necessárias algumas
observações. Por se tratar do estudo de um filósofo que une pensa-
mento e vida, tem um modo próprio de filosofar, encontra sua alegria
na busca e na transitoriedade, e, por isso, não teme ver de diferentes
pontos de vista os contrastes que a vida lhe oferece – por tudo isso,
e para não perder a coerência do seu pensamento – limitaremos
nossa análise ao momento em que Nietzsche explica de maneira
mais detalhada os problemas relacionados à educação e à cultura.

SUMÁRIO 12
Privilegiaremos seus trabalhos compreendidos entre 1870 e
1876 para evitar o equívoco de algumas interpretações, as quais, por
analisarem diversos trechos sem fazer referências às datas em que
foram escritos, induzem o leitor a ver contradições onde há apenas
pontos de vista diferentes de um autor cujo pensamento está sem-
pre em constante evolução. Por vezes, citaremos trechos de “Ecce
homo”, texto autobiográfico de 1888, no qual Nietzsche, num olhar
retrospectivo, fala de aspectos de sua vida e do conjunto de sua obra;
só utilizaremos, contudo, aquilo que puder servir de esclarecimento
para o período escolhido. Depois de 1876, encontraremos reflexões
esparsas acerca de problemas educacionais, mas não mais relacio-
nadas às instituições de ensino.

Por entendermos que seu pensamento sobre a educação


ainda se mantém vivo e por guardarmos com ele uma relação de
afinidade, buscamos interpretá-lo, apropriarmo-nos dele e recor-
tá-lo naquilo que ainda nos possa ajudar a compreender nossos
problemas de ensino. Assim, convidamos o leitor a acompanhar,
sem pressa, a vida de Nietzsche como professor, seu pensamento
a respeito da cultura e da educação e suas críticas ao sistema
educacional da época.

Destinaremos o primeiro capítulo deste estudo a apresentar


aspectos da vida de Nietzsche que tenham relação com seu projeto
educativo. Nos dez anos em que exerceu a profissão de professor, ele
não deixou de relatar, em cartas e escritos, suas expectativas como
educador, suas esperanças numa renovação cultural da Alemanha e
suas decepções com o ambiente universitário de seu tempo.

No segundo capítulo, apresentaremos a concepção nietzs-


chiana de educação e cultura e sua crítica ao sistema educacional.
Educação e cultura, para Nietzsche, são inseparáveis. Não existe
cultura sem um projeto educativo, nem educação sem uma cultura
que a apoie. A educação recebida nas escolas alemãs parte de uma
concepção historicista e dá origem a uma pseudocultura, que nada

SUMÁRIO 13
mais é do que um simulacro de outras culturas. Cultura e educação
são sinônimos de “adestramento seletivo” e “formação de si”; para
a existência de uma cultura, é necessário que os indivíduos apren-
dam determinadas regras, adquiram hábitos e comecem a educar-se
a si mesmos e contra si mesmos – ou melhor, contra a educação
que lhes foi inculcada.

Dedicaremos o terceiro capítulo a expor as críticas de


Nietzsche ao ensino administrado aos jovens no Gymnasium1 e na
universidade e suas propostas de mudança para essas etapas de for-
mação escolar. No que diz respeito ao Gymnasium, toda a sua crítica
está centrada no ensino da língua alemã. Os professores, em lugar
de ensinar os jovens a escreverem bem, preocupam-se em analisar a
língua como se esta fosse um corpo morto. Para Nietzsche, a profa-
nação do corpo da língua e a desfiguração da língua alemã pela cul-
tura jornalística constituem o maior dos atentados à vida e à cultura.

Em relação à universidade, Nietzsche critica principalmente


o “método acromático”, considerando inaceitável que um ensino se
caracterize essencialmente pela exposição oral do professor e pela
participação pouco expressiva do aluno. Tampouco concorda com a
maneira como são tratadas a arte e a filosofia, já que essas discipli-
nas não têm como fazer frente à tendência cientificista que vigora na
universidade, pois se encontram dominadas pela “ciência histórica”.
Para ele, nem o Gymnasium nem a universidade podem ser consi-
derados instituições que promovam a cultura, porque não formam
indivíduos aptos a exercer plenamente todas as potencialidades de
seu espírito, nem capazes de combater a barbárie na cultura.

1 O Gymnasium equivale aos antigos ginásio e colegial, que atualmente, no Brasil, equivale ao
segundo segmento do ensino fundamental, que abrange do 6º ao 9º ano.

SUMÁRIO 14
1
NIETZSCHE
PROFESSOR
A ESCOLARIDADE
DE NIETZSCHE
Em Naumburg, na Turíngia, começa a escolaridade de
Nietzsche. Depois da morte de seu pai, quando Friedrich tinha ape-
nas cinco anos, a família sai de Roecken, na Saxônia Prussiana, e ins-
tala-se em Naumburg. Nietzsche é criado num meio exclusivamente
feminino: mãe, irmã, avó paterna e duas tias. Em Naumburg, recebe
o ensino elementar. Sobressai-se como uma criança de inteligência
superior, apaixonada pelos livros e pela música, a qual, mais tarde,
exercerá uma decisiva influência em sua vida e em seu pensamento.
Em 1858, aos 14 anos, é enviado ao internato de Pforta, a fim de pre-
parar-se para a profissão de pastor, a mesma de seu pai, Karl Ludwig.

Pforta era conhecida por seu ensino inspirado na tradição


humanista e por sua disciplina austera. Ali se procurava minis-
trar o estudo da língua e da literatura alemãs segundo os moldes
clássicos; ensinavam-se as três línguas sagradas (hebraico, grego
e latim) e tinha-se a preocupação de educar os alunos na prática
de uma vida religiosa.

Nos três primeiros anos, Nietzsche segue rigorosamente


a disciplina do internato, considerando-a um meio para formar
homens completos – tanto intelectual quanto fisicamente. Lê com
a avidez de um erudito, estuda sem descanso. A sede de conheci-
mento não lhe dá sossego.

Aos poucos, porém, passa a refletir sobre essa sua busca


ávida de conhecimento: o que havia lucrado com ela? Começa,
então, a se dar conta de que todo o saber que acumulara se achava
dissociado da vida. Descontente, sonha com um tipo de educação
que não se afaste da vida. Admite que a árvore do conhecimento e
a árvore da vida não são a mesma coisa, mas recusa a ideia de que
devam estar separadas. Resolve voltar-se para si mesmo, para seus
gostos particulares. Refugia-se na música, medita sobre seus poetas
prediletos – Byron, Schiller, Hölderlin.

SUMÁRIO 16
Em 1860, ainda no colégio Pforta, funda com dois amigos a
Germânia – sociedade cuja proposta era discutir questões ligadas à
arte, à música e à literatura e incentivar a produção de textos, poe-
mas e composições musicais que seriam submetidos à apreciação
sincera desse círculo de amigos.

Apresenta à Germânia, em 1861, seu primeiro trabalho:


“Destino e história”. É possível também que a dissertação escrita
por ele sobre Hölderlin2, intitulada “Carta a um amigo em que lhe
recomendo a leitura de meu poeta preferido”, tenha sido fruto da
atmosfera dessa sociedade. Na época em que escreveu esse tra-
balho escolar, Nietzsche era um dos poucos alemães que haviam
adivinhado a grandeza de Hölderlin. Tido hoje como um dos maiores
poetas do século XIX, Hölderlin era então um desconhecido, consi-
derado no meio acadêmico uma espécie de “bárbaro ininteligível”,
uma simples curiosidade da literatura alemã. Isso fica evidente pela
anotação que o professor escreve no texto de Nietzsche: “Desejaria
dar ao autor o amigável conselho de se guiar por um poeta mais
sadio, mais claro, mais alemão.” A apressada atitude de um professor
avesso à novidade e vítima de um preconceito faz com que Nietzsche
adquira muito cedo a convicção de que suas preferências não eram
as mesmas de seus professores, de que era preciso preservá-las
contra o espírito mesquinho de seu tempo.

2 Johann Cristian Friedrich Hölerlin (1770-1843), escritor alemão, conhecido como “Werther da
Grécia”. Influenciado por Schiller, escreveu seus hinos aos ideais da humanidade: à liberdade, à
harmonia, à beleza, à amizade, ao amor, à audácia, ao destino. Encontrou em Susette Gontard
seu ideal feminino e por ela se apaixonou. Celebrou-a na poesia sob o nome de Diotima, como
encarnação da beleza eterna. Nessa fase da criação artística de Hölderlin, sobressai-se o romance
“Hyperion”. O herói do romance, Hyperion, aspira a harmonia com a natureza, compreendida como
manifestação divina. Ele encontra a realização desse ideal na Grécia Antiga, descobrindo o lado
dionisíaco, exaltado depois por Nietzsche. Também influenciado pelo estudo dos gregos, compôs
o drama Empédocles, que permaneceu inacabado. Em 1801, apareceram os primeiros sintomas de
alienação mental, e em 1806 foi internado no manicômio de Tübingen, de onde saiu pouco depois.
Morreu em 1843, em estado de total alienação. A morte de Hölderlin passou quase despercebida;
pouco mais de um terço de sua produção poética se encontrava publicada.

SUMÁRIO 17
Em 1868, pouco antes de se tornar professor de filologia clás-
sica na Universidade da Basiléia, Nietzsche escreve sobre o período
que passara em Pforta:
Eu mesmo, em grande parte, fui encarregado de minha
própria educação. Meu pai [...] morreu prematuramente:
faltou-me a direção firme e refletida de uma inteligência
masculina. Quando, ao sair da infância, entrei no colégio de
Pforta, só conhecia um sucedâneo da educação paterna:
a disciplina uniforme de uma escola bem organizada. Mas
essa rigidez quase militar, que, destinada a agir sobre a
massa, trata o indivíduo de maneira fria e superficial, só
fazia com que eu me refugiasse em mim mesmo. Contra
um regulamento cego, preservei minhas aspirações e
meus gostos particulares, vivi no culto secreto de algu-
mas artes, esforcei-me em quebrar o rigor de uma rotina
inflexível, entregando-me à busca exacerbada do saber
universal e de suas alegrias. Por pouco não me tornei
músico. Desde a idade de nove anos, de fato, sentia pela
música o mais vivo interesse, [...] tinha adquirido conhe-
cimentos teóricos que não podiam ser considerados os
de um simples diletante. Entretanto, somente perto do
final de minha escolaridade em Pforta, observando-me,
abandonei inteiramente a ideia de uma carreira artística:
esse lugar foi logo ocupado pela filologia.

Apesar das críticas que endereça ao internato, Nietzsche


reconhece que recebeu sua formação numa boa escola. Nos seis
anos passados ali, adquire toda a sua formação científica e, sobre-
tudo, sólida base de seu saber humanístico. Estuda as línguas grega,
latina e hebraica e a literatura da Antiguidade; aprende a se conhe-
cer e a saber para que serve uma boa escola.

Ao deixar Pforta, já se delineara para ele o horizonte da filo-


logia; entretanto, sente-se incerto quanto ao seu futuro e indeciso
quanto à escolha da profissão. Sem querer entregar-se exclusiva-
mente à filologia, resolve seguir o que já lhe era familiar: a profissão
de seu pai. Em 1864, matricula-se na Universidade de Bonn como

SUMÁRIO 18
estudante de teologia. Ali, porém, permanece pouco tempo. No ano
seguinte, muito a contragosto de sua mãe, abandona o curso.

Apesar de não querer afastar de si tantas coisas que contri-


buíam para sua formação – os inúmeros interesses que satisfaziam
todos os seus gostos particulares –, e ainda com medo de tornar-se
um profissional medíocre, decide-se pela filologia. A princípio, ela
não lhe interessa totalmente. Nesse momento de sua vida, qualquer
especialização lhe teria sido penosa. Com certeza teria fechado os
livros e aberto o piano, se Ritschl, seu mestre e um filólogo com-
petente, não tivesse percebido seu dom para a filologia. Disse ele a
Nietzsche: “Se quiser ser um homem forte, torne-se mestre de um
único objetivo, insista no seu trabalho.” Nietzsche ouve o conselho e
submete-se à disciplina que a filologia lhe impõe.

Em 1865, Ritschl é nomeado professor em Leipzig. Nietzsche


segue-o. Um acontecimento fortuito altera sua vida. Descobre o livro
de Arthur Schopenhauer, “O mundo como vontade e representação”.
Iluminado por Schopenhauer, dedica-se com vontade ao seu traba-
lho sobre Teógnis. Apresenta o texto a Ritschl, que o felicita caloro-
samente. Acreditara em Nietzsche, e tinha razões para isso: nunca
havia lido algo semelhante escrito por um aluno.

A tarefa da filologia deixa-o entrever um novo caminho: o de


educador. Em agosto de 1967, Nietzsche escreve:
Em Leipzig, limitei-me a observar como se ensina, como se
transmite aos jovens o método de uma ciência. Também
me esforcei em aprender como deve ser um mestre, e não
estudar apenas o que se estuda na universidade. Meu
objetivo é tornar-me um mestre verdadeiramente prático
e, antes de tudo, despertar nos jovens a reflexão e a capa-
cidade crítica pessoal indispensável para que eles não
percam de vista o porquê, o quê e o como de uma ciência.

Nietzsche, como educador, não tinha interesse em se tornar


um vasculhador de textos antigos, fechado em seu gabinete, nem

SUMÁRIO 19
em criar um círculo de alunos atentos, que seguissem indiferentes
à vida que os rodeava. Pretendia, isso sim, incentivá-los a um olhar
singular sobre determinada ciência, conduzi-los de modo a poderem
criar uma humanidade rica e transbordante de vida.

É preciso agir e viver para aprender e compreender – eis o


preceito segundo o qual Nietzsche pretendia educar seus alunos.

O PROFESSOR NIETZSCHE
Aos 24 anos, por recomendação de Ritschl, Nietzsche é
convidado para ser professor de filologia clássica na Universidade
e no Pädagogium3 da Basiléia, na Suíça. Para obter o diploma de
fim de curso, faltava a tese de doutorado, mas os professores de
Leipzig, levando em consideração seus trabalhos publicados na
revista “Rheinisches Museum”, dirigida por Ritschl, concedem-
-lhe o título de doutor.

Assim, o “demoníaco destino” o seduz com uma cátedra de


filologia. Aceita o destino e a cátedra, mas não sem certa hesitação,
como se pode depreender na carta endereçada a um amigo de colé-
gio, Carl von Gersdorff, na noite de 11 de abril de 1869:
O último prazo expirou; chegou a última noite que passo
na minha pátria. Amanhã de manhã partirei para o vasto
mundo. Vou dedicar-me a uma nova e inabitual tarefa,
numa pesada e abafante atmosfera de deveres e de obri-
gações. Mais uma vez é preciso dizer adeus. O tempo
dourado em que a atividade é livre, ilimitada, em que
cada minuto é soberano, em que a arte e o universo se
oferecem aos nossos olhos como um mero espetáculo de

3 “Pädagogium era como se denominava a escola secundária humanista, o liceu clássico. Na Universidade
de Basiléia, os docentes da Faculdade de Filosofia tinham de lecionar também às classes superiores do
Pädagogium.” Nota de Paulo César Souza, tradutor para o português de “Ecce homo”, p. 167.

SUMÁRIO 20
que mal participamos, esse tempo passou irrevogavel-
mente. Reina agora a dura deusa, a obrigação cotidiana.
“Bemooster Burche zieh’ich aus...” Conhece essa emocio-
nante canção de estudante? Sim, sim, chegou a minha
vez de ser um filisteu. Um dia ou outro, aqui ou além, o
ditado realiza-se sempre. As funções e as dignidades
são coisas que nunca se aceitam impunemente. Todo o
problema reside em saber se as cadeias são de ferro ou
de linha. Tenho ainda suficiente coragem para romper,
se necessário, qualquer elo e recomeçar, de uma outra
maneira ou em outro lugar, uma nova vida. Não adquiri
ainda a postura curvada tão característica do professor.
Zeus e todas as musas me preservem de ser filisteu,
homem abandonado pelas musas, homem de rebanho!
Não vejo como me poderei tornar no que não sou. É certo
que a partir de agora faço parte do gênero dos filisteístas,
do “homem especializado”, e é natural que uma ocupação
diária, uma concentração incessante do pensamento em
certos conhecimentos e certos problemas entorpeçam
um pouco a livre sensibilidade do espírito e ataquem, em
suas raízes, o senso filosófico. Mas imagino que posso
aceitar o perigo mais tranquilamente do que a maior
parte dos filólogos: a seriedade filosófica está em mim
enraizada muito profundamente. Os verdadeiros e essen-
ciais problemas foram-me sempre mostrados pelo grande
mistagogo Schopenhauer, de modo que não corro o risco
de desviar-me de forma desonrosa da “Ideia”. Injetar
esse novo sangue à minha ciência, comunicar aos meus
ouvintes essa seriedade schopenhauriana, que brilha na
fronte do homem sublime, esse é o meu voto, a minha
esperança audaciosa. Quero ser mais que um instrutor de
bons filólogos. Penso nos deveres dos mestres de hoje:
preocupo-me com a geração que vem depois de nós.
Tudo isso me ocupa o espírito. Uma vez que temos de
suportar a nossa vida, que ela seja estimada pelos outros,
quando tivermos a felicidade de escapar dela.4

4 Numa carta dirigida ao amigo Paul Deussen (20 de outubro de 1868), Nietzsche diz que a filologia
era para ele uma ocupação secundária, que estava a serviço de sua vocação filosófica: “Falando
mitologicamente, vejo a filologia como um aborto da deusa Filosofia.”.

SUMÁRIO 21
Com esses objetivos, chega à Basiléia em 19 de abril de 1869.
No começo de maio, já está em plena atividade. Todos os dias da
semana, a partir das sete horas da manhã, dá cursos na universi-
dade sobre a história da lírica grega e sobre as “Coéforas”, de Ésquilo,
para um grupo de sete alunos. No Pädagogium, ministra dois cursos
às terças e sextas e outro às quartas e quintas. Lê com os alunos
o “Fédon”, de Platão.

A 28 de maio, pronuncia no anfiteatro da universidade sua


aula inaugural: “Sobre a personalidade de Homero”. Muito aplaudido
pelo numeroso público presente, regozija-se com o sucesso e con-
solida sua posição na universidade.

Mas não é só o trabalho que o absorve: dedica a Wagner


suas horas livres. Conhecera-o em 1868 e admirava tudo o que ele
compusera. E Wagner era profundo conhecedor de Schopenhauer, o
que o tornava ainda mais querido aos seus olhos. Passa a frequentar
a casa do músico e torna-se seu amigo íntimo. Nietzsche testemu-
nha todos os seus projetos; Wagner transforma-se em depositário de
todas as suas esperanças de renovação cultural da Alemanha. Tudo
isso faz Nietzsche acreditar que encontrara um verdadeiro mestre,
alguém capaz de guiá-lo.

Tomado de entusiasmo pelo ambiente artístico que respira


na casa da família de Wagner, Nietzsche escreve para Erwin Rohde
(3 de setembro de 1869):
Tenho também como você a minha Itália, com a diferença
de que só posso reservar para ela os sábados e os domin-
gos. Ela se chama Tribschen e sinto-me já, ali, como em
minha casa. Nestes últimos tempos estive lá quatro vezes
seguidas em um pequeno espaço de tempo e, além disso,
uma carta faz o mesmo caminho quase que semanal-
mente. Caro amigo, o que ali aprendo e vejo, o que ouço, é
impossível ser descrito. Schopenhauer e Goethe, Píndaro
e Ésquilo não morreram.

SUMÁRIO 22
Em Tribschen, às margens do lago dos Quatro Cantões, numa
encantadora solidão rodeada de montanhas, tinha Nietzsche a sua
Itália, o seu refúgio de artista. Na Basiléia, a poucos quilômetros da
vila de Wagner, exercia sua cansativa profissão.

Desde os primeiros anos de sua atividade como professor,


sabe que não poderá suportar por muito tempo o mundo acadê-
mico, o enclausuramento em uma disciplina. Sua instintiva aversão
pela especialização, pela cultura enciclopédica e livresca com que
os professores pretendiam educar seus alunos, e sua ambição em
ser mais do que um simples professor cresce a cada dia. A carta que
escreve a Rohde, em 15 de dezembro de 1870, é um prenúncio de seu
afastamento da universidade, que se dará em 1879:
Preste atenção às ideias que rumino. Permaneçamos
por mais alguns anos nesta vida universitária, consi-
deremo-la um sofrimento rico em ensinamentos, que é
preciso suportar com seriedade e com certa expectativa.
Que seja particularmente uma aprendizagem da profis-
são de educador, tarefa na qual estou empenhado. Mas
meu objetivo, eu o coloquei um pouco mais alto. Com o
passar do tempo vejo por mim mesmo o que significa
a teoria schopenhaueriana sobre a sabedoria universi-
tária. Não há na universidade lugar para um indivíduo
radicalmente autêntico e nada de verdadeiramente revo-
lucionário poderá ter aí seu ponto de partida. Portanto,
só seremos verdadeiros mestres se usarmos de todas as
alavancas possíveis para nos arrancar desta atmosfera
e se formos realmente homens e não apenas intelectu-
ais, mas sobretudo homens superiores. Com respeito a
isso, também sinto necessidade de ser absolutamente
verdadeiro. E é que não suportarei por muito tempo o
ambiente das universidades.

Nietzsche despreza o sistema educacional que tem sob seus


olhos. Esse sistema visa a promover o “homem teórico”, que domina
a vida pelo intelecto, separa vida e pensamento, corpo e inteligên-
cia. Em lugar de procurar colocar o conhecimento a serviço de uma

SUMÁRIO 23
melhor forma de vida, coloca-o em função de si próprio, de criar mais
saber, independentemente do que isso possa significar para a vida.

Assim, avesso à erudição acadêmica, o jovem professor


Nietzsche sonha com um ideal de educação que o estudo dos gre-
gos pré-platônicos lhe revelara, uma educação ancorada nas experi-
ências da vida de cada indivíduo, em que “os modos de vida inspiram
maneiras de pensar e os modos de pensar criam maneiras de viver”5.
Em abril de 1879, escreve a Rodhe: “Ciência, arte, filosofia crescem
tão juntas em mim, que um dia parirei centauros.”

A 19 de julho, explode a guerra entre a França e a Alemanha.


Contaminado pelo entusiasmo bélico, Nietzsche sente vontade de
se alistar. Acredita que Otto von Bismarck, o primeiro-ministro prus-
siano, com seu projeto de unificar os 39 estados alemães num impé-
rio, tinha condições de promover uma renovação cultural do país.
Por ter renunciado à nacionalidade prussiana e adquiro a cidadania
suíça, ao assumir o posto de professor na Basiléia, não pôde se incor-
porar ao Exército alemão. Em agosto, recebe das autoridades suíças
permissão para participar da guerra como enfermeiro. Sua passa-
gem pelo conflito é rápida: logo contrai difteria e disenteria, o que o
obriga a deixar o campo de batalha para tratar-se na Alemanha. Uma
vez restabelecido, retoma seu posto de professor na Suíça.

Embora seu entusiasmo tenha sido passageiro, sua decep-


ção, no entanto, foi profunda. Pouco antes do término da guerra, já
havia perdido toda a simpatia por Bismarck. Já não podia suportar
o fato de o Estado arvorar-se como o mentor da cultura, quando,
na verdade, visava apenas a seu interesse; já não acreditava em
nacionalismos. O que importava era preservar a cultura alemã,
ameaçada pela guerra de conquista. Nietzsche lembra-se, então, da
Germânia, a sociedade literária que criara com Carlo von Gersdorff

5 É deste modo que Gilles Deleuze, no seu livro Nietzsche, refere-se ao ideal de educação de Nietzsche.

SUMÁRIO 24
e Paul Deussen, nos tempos de ginásio, e pensa em organizar, nes-
ses mesmos moldes, uma espécie de “convento laico”, uma “escola
para educadores”, onde os amigos serviriam de professores uns
aos outros, discutiriam e trabalhariam juntos pela cultura alemã. A
confraria de amigos não chegou a se realizar, pelos motivos mais
diversos e certamente mais corriqueiros, mas Nietzsche não desiste
de seus projetos de renovação cultural6.

O PROJETO FILOSÓFICO DE
NIETZSCHE EDUCADOR
Durante o inverno de 1870-71 Nietzsche adoece. Sofre de
tal modo que tem de pedir licença de suas obrigações, retirando-se
para Lugano7, de onde escreve para Rohde:
É certo que Vischer me escreveu para aqui uma vez,
mas sua carta não continha uma só palavra referente a
nossa solicitação. Em contrapartida, soube por alto, em
Basiléia8, depois de ter-te escrito e antes da minha par-
tida, que o “filósofo” Steffensen vê o projeto com má von-
tade. Imagina como fiquei vulnerável a partir do momento
em que ficou claro o meu schopenhauerismo, o que, aliás,
nunca escondi. Tenho, além disso, e antes de mais nada,

6 A posição de Nietzsche diante da guerra sofre uma mudança bem rápida, como se pode observar
nessas duas cartas endereçadas a sua mãe, datadas com apenas cinco meses de diferença. Na
primeira, de 16 de julho de 1879, mostra-se entusiasmado: “Temos vivido muito alegres no crepús-
culo da paz. E agora estala esta tempestade, a mais horrível de todas. Como estou triste de ser
suíço. Trata-se de nossa cultura! E para isso não há sacrifício que seja suficiente! Ah! Esse maldito
tigre francês!” Na segunda, de 12 de dezembro de 1870, escreve: “Cada vez são menores minhas
simpatias pela atual guerra de conquista empreendida pela Alemanha. Cada vez me parece mais
ameaçado o futuro de nossa cultura alemã.”
7 Carta para Erwin Rohde, 29 de março de 1871.
8 Nietzsche refere-se ao projeto de ceder a Rodhe sua cátedra de filologia, encarregando-se ele da
de filosofia, na mesma Universidade da Basiléia.

SUMÁRIO 25
que me dar a conhecer e legitimar-me como filósofo. Com
esta intenção, terminei um pequeno escrito, intitulado
“Origem e fim da tragédia”, a que só faltam alguns reto-
ques. Acredito que teremos que esperar ainda um pouco,
pelo menos até a festa de S. Miguel, época em que, se
tudo correr bem, se resolverá nosso assunto. A verdade
é que, assim, se prolongará ainda mais o triste estado de
excitação e de insatisfação – nosso perpetuum mobile –, e
teremos ainda muito tempo, nesta expectativa tão pobre
de esperanças, para pôr à prova nosso sangue-frio de
filósofos! [...] Entre muitos momentos de desencoraja-
mento e de depressão, tenho gozado alguns de grande
elevação, cujo eco pode ser encontrado no pequeno
ensaio de que te falei. Em relação à Filologia, sinto-me
cada vez mais distante, tendo por ela o maior desprezo
que se possa imaginar. Tudo o que pudesse alcançar por
esse lado – elogios, censuras, e até as mais altas glórias
– me faz tremer de horror. Habituo-me progressivamente
a viver como filósofo e já creio em mim! Estou preparado
para tudo. E não me causaria a mínima surpresa se viesse
a me tornar poeta. Não disponho de uma bússola capaz
de me indicar a que estou destinado e, no entanto, no fim
das contas, tudo me parece ter sido guiado por um gênio
bom. Nunca imaginei que, não tendo uma clara visão dos
meus fins, nem ambicionando nenhum cargo público,
alguém pudesse sentir-se tão sereno e lúcido como me
encontro. [...] Ora é um trecho de uma metafísica, ora
de uma nova estética que vejo delinear-se; após o que
me dedico ainda a um novo princípio de educação, que
implica a total negação de nossos Gymnasium e universi-
dades. [...] Orgulho e extravagância são palavras que mal
exprimem meu “estado de vigília” espiritual. Este estado
permite-me considerar minha posição universitária como
coisa secundária e mesmo penosa, e até a cátedra de
Filosofia só me preocupa por tua casa, pois a considero
também como coisa provisória.

Por essa carta, dirigida ao filólogo e amigo Rohde, Nietzsche


deixa claro que, de fato, é impossível continuar como professor de
filologia, já que dela se sente cada vez mais afastado. Ainda quando

SUMÁRIO 26
estudante em Leipzig, Nietzsche não tinha mais dúvidas quanto a sua
vocação de filósofo. Quis doutorar-se em filosofia, chegando mesmo
a redigir, com esse objetivo, um texto intitulado “Esquemas funda-
mentais da representação”. Mas, por estar inscrito na universidade
como filólogo, não lhe foi concedida permissão para elaborar sua tese
em filosofia. Desde essa época, vive um conflito incessante entre sua
profissão de filólogo e seu instinto filosófico. Assim, na Basiléia, com
a possibilidade de deixar a cátedra de filologia para Rohde e assumir
a de filosofia, a qual se encontrava vaga com a saída de Teichmüller,
entrevê a oportunidade de trabalhar mais próximo de seus interesses
pessoais, mesmo sem grandes esperanças e com a firme convic-
ção de que também essa cátedra seria coisa provisória. Nietzsche
redige um pequeno texto, “Origem e fim da tragédia”, gênese de O
nascimento da tragédia, para “legitimar-se como filósofo”. Mas algo
de que já suspeitava se concretizou: Vischer, o diretor administrativo
da universidade, ao saber que o nome de Nietzsche não receberia a
aprovação do professor oficial de filosofia da Basiléia, Karl Steffensen,
deixou de colocá-lo entre os concorrentes à cátedra, temendo que,
com a recusa oficial de seu nome, Nietzsche renunciasse a seu posto
de professor na universidade e no Pädagogium.

Sem resposta para seu projeto, Nietzsche, antes de retomar


suas atividades profissionais, detém-se em Tribschen, na volta de
Lugano para a Basiléia, a fim de discutir com Wagner a estrutura de
seu livro. Essa visita deixa marcas profundas em “O nascimento da
tragédia”. Seduzido pelas ideias de Wagner, reelabora seu projeto
sobre os gregos e enfoca-os segundo a perspectiva da obra wagne-
riana. Acredita que o drama musical wagneriano poderia levar a uma
renovação cultural da Alemanha.

No final de 1871, aparece nas livrarias seu primeiro “cen-


tauro” – “O nascimento da tragédia no espírito da música”, dedicado
a Wagner: “ afirmo que considero a arte como a tarefa suprema e
a atividade propriamente metafísica desta vida, no sentido em que

SUMÁRIO 27
entende o homem a quem eu quis dedicar este livro, como um luta-
dor sublime que me precedeu neste caminho.”

O primeiro exemplar é para Wagner, que imediatamente


responde: “Nunca li nada de tão belo quanto o seu livro! Aí tudo
é magnífico! Escrevo-lhe de forma impetuosa, porque a leitura me
transporta para além de toda medida e preciso primeiro recobrar os
sentidos para ler seu livro como se deve.”

No meio acadêmico, contudo, a acolhida é gelada. Salvo


alguns amigos, ninguém lê o livro, ninguém compra. Nietzsche envia
um exemplar a Ritschl, que se recusa a responder. Os outros mestres
de filologia reagem com hostilidade e silêncio e acusam-no de uti-
lizar seu saber filológico como instrumento de propaganda wagne-
riana. Nietzsche é declarado “cientificamente morto”. O “Literarische
Zentralblatt”, revista de Leipzig na qual colaborara quando estudante,
nega-se a publicar um pequeno texto de Rohde a favor do livro.
Nietzsche lamenta o fato e escreve a Carl von Gersdorff:
Meu livro terá bastante dificuldade para se fazer conhe-
cer; um excelente artigo escrito por Rohde para a
“Literarische Zentralblatt” foi recusado pela redação. Era
a última possibilidade de que uma voz séria se pronun-
ciasse a favor de meu livro numa publicação científica;
agora, não espero mais nada – senão maldades e tolices...
Mas confio, e digo-te com a maior convicção, que a minha
obra abrirá caminho, pausada e silenciosamente, através
dos séculos. Exprimem-se nela, pela primeira vez, algu-
mas verdades eternas; é impossível que elas não tenham
ressonância. Nada quero para mim, e muito menos o que
se chama fazer carreira. No momento, trabalho com sere-
nidade nos meus problemas pedagógicos.

No início de 1872, Nietzsche pronuncia, na Sociedade


Acadêmica da Basiléia, cinco conferências “Sobre o futuro de nos-
sos estabelecimentos de ensino”. É ouvido por um público atento
e numeroso. Entre os presentes encontra-se Jacob Burckhardt, o
grande professor de História da Arte na Universidade da Basiléia, a

SUMÁRIO 28
quem Nietzsche admira. Verdades irrefutáveis, críticas veementes ao
sistema educacional alemão estavam sendo ditas. Depois das confe-
rências, Burckhardt comenta com um amigo:
O senhor deveria tê-lo ouvido! Em alguns momentos, dei-
xava-se tomar pelo entusiasmo; depois, ressurgia numa
profunda aflição; e, a bem da verdade, não vejo ainda
como os humaníssimos ouvintes devem ter tomado par-
tido na questão. De um fato, pelo menos estávamos certos:
tratava-se de um homem altamente dotado, que possui
tudo de primeira mão e tudo distribui da mesma maneira.9

Um problema de garganta, porém, fez com que ele interrom-


pesse a série de conferências. Esse contratempo durou pouco, mas as
outras duas conferências anunciadas não foram retomadas. Wagner
insistiu para que ele as publicasse. O apelo foi inútil: Nietzsche não
se deixou convencer.

No final de maio, aparece a primeira crítica à obra “O nasci-


mento da tragédia”. O helenista Wilamowitz-Möllendorf publica um
panfleto intitulado “A filologia do futuro, réplica a Friedrich Nietzsche”,
no qual condena a obra de Nietzsche por considerá-la dema-
siado literária, demasiado imaginativa, não científica e, sobretudo,
não filológica. Nietzsche atacara os universitários; e Wilamowitz
falava em nome deles.

Com a publicação de “O nascimento da tragédia”, Nietzsche


comprometera-se verdadeiramente. Essa obra lhe custou a perda da
estima do mundo erudito e de sua reputação de sábio, a tal ponto
de, no inverno de 1872-73, dar sua aula diante de uma sala quase
vazia. Ele, que havia sido recebido com entusiasmo pelos estudantes,
via-os agora recusando seus cursos.

Os estudantes alemães tinham o hábito de ir de lugar em


lugar à procura de bons professores. De 1869 a 1872, a fama de

9 Citado por Scarlett Marton em Nietzsche, p. 20.

SUMÁRIO 29
Nietzsche havia atraído curiosos. Mas a rejeição de filólogos a sua
obra repercutiu muito mal no mundo acadêmico alemão. Se durante
três anos fora um mestre que merecia ser conhecido, agora se tor-
nava um dos que convinha esquecer.

Nietzsche lamenta o ocorrido, não por sua carreira, mas por


ter causado à pequena Universidade da Basiléia a perda de alguns
alunos. Numa carta a Erwin Rohde, de novembro de 1872, comenta
esse fato, por ele não esperado:
Meu querido amigo, vamos resistir. Aqui o fato mais
recente, e que me afeta um pouco, é a ausência de filólo-
gos, na nossa universidade, para o semestre de inverno,
fenômeno bem singular que você interpretará sem dúvida
como eu o interpreto. Soube também do caso de um
estudante que queria seguir aqui os cursos de filologia
e que foi retido em Bonn. Contente, ele escreveu a seus
parentes que graças a Deus escapara de uma universi-
dade onde eu ensinava. A Santa Vehme10 fez bem o seu
dever. Façamos de conta que não é nada. Mas que minha
pequena universidade tenha prejuízos por minha causa
é duro de suportar. Temos 20 estudantes a menos que o
semestre passado. Mal posso dar um único curso sobre
a retórica dos gregos e dos romanos. Tenho dois alunos:
um deles é germanista, o outro, jurista.

Mesmo com poucos alunos, mesmo desgostoso com os


deploráveis métodos pedagógicos de sua época, Nietzsche perma-
nece fiel a eu posto e ensina com dedicação aos alunos que lhe são
confiados. Excelente professor, sabe que no fundo pode exercer uma
influência considerável sobre a jovem geração.

10 A Santa Vehme era um tribunal secreto estabelecido na Alemanha para atingir aqueles que esca-
pavam da justiça comum. Os condenados eram enforcados ou apunhalados pelos iniciados, que
eram muito numerosos.

SUMÁRIO 30
CONSIDERAÇÕES EXTEMPORÂNEAS
Durante os últimos meses de 1872, Nietzsche prepara cursos
para a universidade e redige “A filosofia na época trágica dos gregos”,
um estudo sobre os filósofos pré-platônicos: Tales, Anaximandro,
Heráclito, Parmênides e Anaxágoras. Investiga-os não com o olhar
do filólogo que se debruça sobre os textos para vasculhá-los em suas
minúcias, mas com a visão do “filósofo médico”, que se preocupa
com a cultura. O estudo dos pré-platônicos levou-o a perceber o
quanto era inútil à vida a “compulsão do saber a qualquer preço”,
tão frequente nos meios universitários. Ensinou-lhe também que o
saber deveria servir a uma melhor forma de vida, como o era entre
os gregos. Por isso, sente que lhes deve um tributo: mostrar ao povo
alemão a verdadeira cultura. Pensa, a princípio, em publicar alguns
capítulos de seu livro, mas desiste. Tornara-se demasiado severo
consigo mesmo, e não achava que seu manuscrito já pudesse ser
publicado como livro. Leva-o para Bayreuth, para lê-lo com amigos,
entre eles Wagner, que ali se instalara para acompanhar de perto a
construção do “Festspielhaus” (casa de espetáculos)11.

Todavia, o projeto de Wagner de criar um teatro em Bayreuth


corria mal: faltava-lhe dinheiro. O tempo da nova cultura estava
prestes a não ser edificado. Era preciso agir. Nietzsche pega nova-
mente da pena, mas dessa vez para exercitar-se na perigosa arte
da polêmica. Decide pôr em prática uma máxima de Stendhal,
que “aconselha a fazer a entrada na sociedade com um duelo”.
Escreve de 1873 a 1875 quatro textos polêmicos, denominados
“Considerações extemporâneas”.

11 Em suas anotações de 1874, Nietzsche define o filósofo como “o médico da civilização”. Nesse
sentido, filosofar significa interpretar e diagnosticar os “males da civilização”, encontrar remédios
para curá-la ou então envenenar aquilo que a destrói.

SUMÁRIO 31
O primeiro adversário é o teólogo David Strauss, que dá o
nome a sua primeira “Extemporânea: David Strauss, o devoto e o
escritor” (1873). A burguesia alemã considerava Strauss o seu pensa-
dor por excelência. Nietzsche ataca as ideias e a forma de sua obra “A
antiga e a nova fé”. Ao criticá-lo, é à cultura alemã que Nietzsche visa;
cultura que, a seus olhos, nada tem de próprio, sendo “desprovida de
sentido: sem substância, sem meta, uma mera opinião pública”.

Ainda nessa sua primeira “Extemporânea”, Nietzsche assi-


nala que Bismarck confinara o espírito alemão no nacionalismo,
confundira a cultura com glórias militares e políticas, extirpara o
“autêntico espírito alemão em proveito do Império Alemão”. E isso
tanto era verdade que nem mesmo o sucesso das forças alemãs, em
1870, provara a superioridade da cultura alemã sobre a francesa. Pelo
contrário: a França não perdera nada do seu prestígio, e os alemães
continuavam dela dependendo, imitando-a sem nenhum talento na
maneira de se comportar em sociedade, arrumar suas casas, conce-
ber suas peças teatrais e seus concertos e escrever seus livros. Isso
explicava o abandono a que os “filisteus da cultura” haviam relegado
seus artistas e gênios: Goethe, Schiller, Lessing, Kleist, Hölderlin,
Schopenhauer e Wagner. Não percebiam que, enquanto a Alemanha
não reconhecesse seus artistas, não existiria um povo alemão capaz
de erigir a cultura como uma obra de arte viva.

A primeira “Extemporânea” foi bem recebida. Teve leito-


res atentos: o orientalista Ewald, de Göttingen; o velho hegeliano
Bruno Bauer; e o historiador Karl Hillebrand, que definiu o livro de
Nietzsche como o melhor texto polêmico em língua alemã. Overbeck
e Romundt, amigos de Nietzsche, também aprovaram sua ousadia.

Em 1874, Nietzsche publica a segunda “Extemporânea: Da


utilidade e desvantagem da história para a vida”. Nesse ensaio, denun-
cia o enfraquecimento da cultura causado pela expansão sem limites
da “ciência histórica”, que estaria esterilizando a vida. Critica também
os historiadores universitários, vendo neles seres empanturrados de

SUMÁRIO 32
saber, meros expectadores do passado, e não criadores da vida e
cultura. Protesta contra a educação histórica com que os professores
pretendiam instruir seus alunos, tornando-os, pelo acúmulo de saber,
incapazes de recriar a vida a partir de suas experiências. Convida os
jovens a se educarem a si mesmos, de tal modo que pudessem se
desfazer de seus hábitos e da educação que lhes fora inculcada.

Esse livro não recebeu nenhum comentário na imprensa. Os


wagnerianos se calaram – afinal, a obra não falava de Wagner. Os pro-
fessores universitários guardaram-se em silêncio – tinham boa memó-
ria, continuavam a reconhecer no professor Nietzsche um adversário.
Os amigos de Nietzsche assistiram desolados ao insucesso da obra,
que tanto lhes agradara. Erwin Rohde observou: “É um trovão, e não fará
mais efeito do que um fogo de artifício numa caverna. Mas um dia será
reconhecido, será admirada a sua coragem e essa precisão com que
Nietzsche coloca o dedo na nossa pior ferida.”

Ainda em 1874, Nietzsche publica a terceira “Extemporânea:


Schopenhauer como educador”. Para escrever esse ensaio, recorre
às anotações que fizera para a sexta e a sétima conferências, não
proferidas, “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino”.
Nessa “Extemporânea”, homenageia Schopenhauer, não em seu
sistema de pensamento, mas na sua existência enquanto filósofo,
capaz de fornecer um exemplo e servir como modelo para os que
pretendem educar-se. Critica os filósofos universitários e sua mania
de erudição. Insiste no papel crítico da filosofia e no seu poder de
transformação da ordem estabelecida.

Em julho de 1876, aparece nas livrarias a quarta “Extemporânea:


Richard Wagner em Bayreuth”, que deveria constituir-se numa home-
nagem a Wagner pelo Primeiro Festival de Bayreuth. Nesse ensaio,
Nietzsche critica os mercenários da arte: os empresários gananciosos,
o público ávido de prazer e de diversão, a mediocridade e a presunção
dos artistas que transformavam a arte em mercadoria de luxo. A esses,
ele contrapõe a criança de Bayreuth, que dava dignidade à arte e à vida.

SUMÁRIO 33
Nietzsche tinha a intenção de escrever ainda nove
“Extemporâneas”, mas decide interromper esse trabalho. Inspiradas
em um projeto nitidamente educativo, as quatro “Extemporâneas”
lhe pareciam suficientes como “grito de alerta e de advertência
à juventude”.

Agora, o trabalho com as aulas lhe ocupava muito tempo.


Os constantes ataques dos filósofos universitários já não reper-
cutiam tanto, e, assim, apareciam mais alunos. Os estudantes
Heinrich Köselitz – a quem Nietzsche rebatizou Peter Gast (Pedro,
o hóspede), e que se tornaria seu dedicado amigo e secretário – e
Heinrich Wideman saíram de Leipzig para frequentar suas aulas.
Durante o inverno de 1874-75, conseguiu reunir alunos para três cur-
sos diferentes: história da literatura grega, “A retórica”, de Aristóteles
e “Édipo rei”, de Sófocles.

Ainda assim, parece-lhe difícil conciliar sua atividade pro-


fissional e sua vocação pessoal. Revolta-se contra as servidões
numerosas que tem de suportar para continuar na atividade acadê-
mica. Sente-se, por vezes, muito vulnerável, como admite na carta a
Gersdorff, de 13 de dezembro de 1875:
Exercito-me em despojar-me da ânsia que os faz per-
der o sossegado e magnífico domínio do conhecimento
conquistado. Tenho resistido, mas por estar muito preso
aos deveres de meu cargo, bem contra meu desejo e
com muita frequência, ainda surpreendo em mim mesmo
essa ânsia de conhecer. Mas, pouco a pouco, entrarei no
meu caminho. Um modesto lar, uma vida absolutamente
ordenada, com um plano para cada dia; nenhum desejo
de honras, nem de vida em sociedade, a companhia de
minha irmã, cuja presença torna tão pacífico e nietzs-
chiano tudo o que me rodeia, a consciência de ter exce-
lentes e carinhosos amigos, a posse de 40 bons livros (e
outros tantos não absolutamente maus), a felicidade de
ter encontrado educadores em Schopenhauer e Wagner
e nos gregos – objeto de meu trabalho cotidiano –, a con-
fiança em que não me hão de faltar de agora em diante
bons alunos – tudo isso preenche a minha vida.

SUMÁRIO 34
RUPTURA COM WAGNER
E AFASTAMENTO DA UNIVERSIDADE
Outro problema de saúde, no início de 1876, afasta Nietzsche
por três meses de suas atividades acadêmicas. Sua saúde piora muito
e ele tem certeza de que sofre de uma doença cerebral, a mesma que
matara seu pai aos 36 anos. O médico proíbe as leituras e prescreve
repouso e um único alimento: leite. Não se deixa abater; sobretudo,
não se desespera. Tem uma filosofia para a doença; já sabe como
transfigurá-la: “Ela traz esperanças, e não é uma obra de arte”, diz
ele, “ainda ter esperanças?”12 Sabe também que os sofrimentos cor-
porais vêm sempre misturados a crises espirituais e, por isso, não
pode conceber que se possa recuperar a saúde só com remédios
e regimes. É preciso mais, é preciso uma atitude diante da doença:
“Para nós”, escreve a Malwida von Meysenburg:
[...] o segredo de toda possível cura consiste em adquirir
uma determinada dureza de epiderme que diminua nossa
grande vulnerabilidade e nos permita suportar melhor os
sofrimentos íntimos. Não nos deve contrariar, nem nos
abater tão facilmente, o que nos venha do exterior. Pelo
menos, a mim já não me atormenta, assim como não
sofre com fogo aquele que arde exterior e interiormente.
O meu lar, preparado pela minha irmã, e no qual entrarei
dentro de alguns dias, terá de ser para mim como uma
nova pele forte e dura. Faz-me feliz o “ver-me” já na minha

12 Em “Ecce homo”, num olhar retrospectivo sobre a sua doença, nos anos que passou na Basiléia,
afirma que considerava sua enfermidade um dom benéfico, pois por meio dela pôde escapar aos
obstáculos que entravavam seu próprio destino. “Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim
mesmo; a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio. Um ser tipica-
mente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente
são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver. De fato, assim
me aparece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mesmo, saboreei todas
as boas e pequenas coisas, como outros não as teriam sabido saborear – fiz da minha vontade de
saúde, de vida, a minha filosofia... Pois atente-se para isso: foi durante os anos de minha menor
vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de auto-restabelecimento proibiu-me a uma
filosofia da pobreza e do desânimo...” (Por que sou tão sábio, 2).

SUMÁRIO 35
casinha de caracol, da qual estenderei com carinho meus
tentáculos para você e para poucos mais. Perdoe-me a
animalidade da expressão.

Embora não se refira ao motivo de seu sofrimento, pode-se


ter certeza de que se prepara para o rompimento, nos meses subse-
quentes, com Wagner, o qual, aos seus olhos, mostrava-se cada vez
mais tirânico e sem forças para tornar os homens grandes e livres
a seu redor. Em julho de 1876, ao receber seu exemplar de “Richard
Wagner em Bayreuth”, o compositor escreve a Nietzsche: “Amigo! O
seu livro é prodigioso! Onde aprendeu a conhecer-me assim? Venha
depressa e fique aqui desde os ensaios até as apresentações.”

Nietzsche aceita o convite. Sem estar totalmente restabele-


cido, sem esperar o final do semestre de suas atividades na univer-
sidade, fixado em 28 de julho, viaja para estar presente à abertura
oficial do Primeiro Festival de Bayreuth. Assiste à apresentação da
“Tetralogia”13. Aquilo de que desconfiava, no entanto, se confirma:
Wagner era apenas um homem de teatro. Sua música servia de
narcótico à alta burguesia; sua arte tornou-se uma mercadoria de
luxo; seu público, composto por políticos e gente da sociedade, era
medíocre, ávido de prazer e de divertimento. Como pudera acreditar
que o drama musical wagneriano seria capaz de converter a arte
em potência educadora da nação? Tudo se passava como se esti-
vesse sonhando. Não reconhecia nada, nem mesmo Wagner. Em
vão folheava suas recordações. Nem uma sombra de semelhança
com Tribschen, “Ilha dos bem-aventurados”; nem sombra de seme-
lhança com os dias ansiosos e esperançosos em que fora colocada
a primeira pedra do teatro, festejada por um grupo de amigos. “Que
havida acontecido? – Haviam traduzido Wagner para alemão! O
wagneriano havia se assenhoreado de Wagner!” Assim, Bayreuth

13 A Tetralogia é composta das seguintes peças: “Ouro do Reno”, “Tristão e Isolda”, “Os mestres canto-
res de Nuremberg” e “Crepúsculo dos deuses”.

SUMÁRIO 36
não era a cada da cultura, e o drama musical wagneriano não tinha
condições de promover o renascimento da arte alemã.

Desiludido, doente, atarefado com a preparação de seus pró-


ximos cursos, Nietzsche deixa Bayreuth. Jamais esquecerá Wagner
e os momentos sublimes que passara em Tribschen, mas nunca o
perdoará por haver condescendido aos alemães, pois “onde reina, a
Alemanha corrompe a cultura”.

Mais uma vez, a saúde o impede de retornar suas ativida-


des profissionais. Por isso, a Universidade da Basiléia concede-lhe
uma licença prolongada. A dolorosa doença deu-lhe esse presente,
e Nietzsche fica-lhe grato. Deixa a Basiléia ao final de outubro e parte
para a Itália, na companhia de Paul Rée14 e Alfred Brenner, um de
seus alunos. Os três haviam aceitado o convite de Malwida15 para
passarem alguns dias em uma vila que ela alugara em Sorrento.

Em Sorrento, Nietzsche vê pela última vez Wagner, que tam-


bém estava ali para repousar, depois do sucesso de suas apresen-
tações em Bayreuth. A presença de Wagner no círculo de amigos
incomoda Nietzsche, que se mostra frio e distante. Não mais se
deixa seduzir, nem se permite contaminar pelo entusiasmo com que
Wagner falava da composição que preparava, “Parsifal”.

No final de novembro, depois da partida de Wagner, os qua-


tro amigos passam seus dias conversando e lendo juntos. Estudam
o curso (àquela época, ainda não publicado) de Jacob Burckhardt
sobre a cultura grega. Leem Heródoto, Tucídides, Platão e, entre
os autores modernos, Michelet, Voltaire, Diderot e Stendhal. Leem

14 Paul Rée é autor de “Observações psicológicas” (1875) e “Origens dos sentimentos morais”. Foi,
durante alguns anos, amigo e companheiro de leitura de Nietzsche, mas a paixão dos dois amigos
por Lou Salomé fez com que se desentendessem no final de 1882.
15 Malwida von Meysenburg era admiradora de Wagner e de Schopenhauer. Conhecera Nietzsche
em 1872, na festa de lançamento da pedra fundamental do Festspielhaus em Bayreuth. Fundou o
primeiro jardim de infância em Hamburgo. Escreveu uma autobiografia, intitulada Memórias de
uma idealista (1876), que muito impressionou Nietzsche.

SUMÁRIO 37
também o “Novo Testamento”. Nietzsche concluiu sempre o debate,
não deixando de fazer comentários como filósofo e como filólogo16.

Nessa pequena comunidade de amigos, Nietzsche retoma


seu velho sonho da criação de uma academia ao estilo grego, onde,
num ambiente de emulação, seria praticada uma educação mútua
e se usariam os livros escritos pelos membros a comunidade como
anzóis, a fim de atrair novos adeptos para a confraria de amigos.
Edificariam a “escola de educadores”, a “universidade livre”, na qual
cada um poderia educar-se a si mesmo.

No verão, deixa Sorrento rumo às estações termais da Suíça.


Leva consigo um desejo: renunciar a seus encargos na universidade.
Um ano de recolhimento espiritual, de convívio como os amigos, o faz
ver nitidamente que a causa principal da sua enfermidade é a enorme
violência que, na Basiléia, tem de exercer sobre si próprio. Que ado-
ece por estar constantemente em desacordo consigo mesmo, por ter
a sensação de uma existência perdida, de uma tarefa não preenchida,
de um ideal não realizado. Mais uma vez, chega à conclusão de que
se utiliza da filologia para fins mais elevados, e que é mais do que um
filólogo. De que suas atribuições na universidade e no Pädagogium
não lhe deixam muito tempo para o essencial, ou seja, para escrever
seus livros, com as horas roubadas de sua profissão ou conquistadas
pela sua doença, do que com seu trabalho universitário.

Mas não é ainda nesse ano que deixa seu posto de professor.
Em setembro, antes de retomar suas aulas, Nietzsche dita e seleciona

16 Quando recebe de Wagner o livreto de “Parsifal”, Nietzsche comenta-o com Seydlitz, em uma carta
de 4 de janeiro de 1878: “Ontem recebi o ‘Parsifal’, que me foi enviado por Wagner. As minhas
primeiras impressões, à primeira leitura, foram as seguintes: toda a obra está cheia do espírito
da Contra-Reforma, e nela há muito mais de Liszt do que de Wagner. Além disso, acostumado
ao grego e ao demasiado humano, acho a produção wagneriana limitada em excesso, dentro
do cristianismo e do tempo. Sobretudo, há no ‘Parsifal’ uma absoluta falta de carne e, em troca,
demasiado sangue. [...] Por último dir-lhe-ei que não me agradam as mulheres histéricas. Muito do
que se suporta no cotidiano, já não o é em cena.”

SUMÁRIO 38
com Peter Gast a massa de aforismos que compõem a primeira parte
do “Humano, demasiado humano”, trabalho que se prolongará até o
final de janeiro de 1878, quando o livro é publicado17.

Em fevereiro de 1878, apresenta ao presidente do conselho


da universidade seu pedido de demissão no Pädagogium. Alega que,
por motivo de saúde, não pode continuar com essas atribuições, mas
que, como o médico lhe dera alguma esperança de cura, pode per-
mitir-se ficar com seus encargos na universidade.

Permanece ainda três semestres na universidade. O número


de seus alunos aumenta a cada período. Por sua dedicação às aulas
e aos alunos, tornara-se alguém que merecia ser ouvido. Na metade
de 1878, porém, está no limite de suas forças. Seu estado de saúde se
agravara: as crises se sucediam, e as dores oculares obrigavam-no a
permanecer a maior parte do tempo sentado no quarto em penum-
bra. As enxaquecas não o abandonam, e os acessos de vômito
tornam-se contínuos.

Em 2 de maio, apresenta sua carta de demissão à univer-


sidade. Seu afastamento do mundo universitário não tardaria, mas
só a doença acaba por fazê-lo decidir-se a deixar definitivamente a
cátedra de filologia.

Graças ao emprenho do amigo Overbeck18, a municipalidade,


a sociedade acadêmica e a Universidade da Basiléia concedem-lhe
uma pensão de 4 mil francos por ano, pelos serviços prestados à
cultura na Suíça. Esse dinheiro lhe permitirá viver modestamente até
o final de sua vida, em 1900.

17 Em “Ecce homo”, Nietzsche fala da ajuda que o amigo e músico Peter Gast lhe dera quando pre-
parava a publicação de “Humano, demasiado humano”: “ no fundo é o senhor Peter Gast, então na
Universidade da Basiléia, e a mim muito afeiçoado, quem tem este livro na consciência. Eu ditava,
a cabeça enfaixada e dolorida, ele escrevia, e corrigia também – ele foi, no fundo, o verdadeiro
escritor; eu fui apenas o autor.” (p. 76).
18 Franz Overbeck (1837-1905) era professor na Universidade da Basiléia. Ensinava Teologia e Crítica
ao Cristianismo do século XIX.

SUMÁRIO 39
Em julho de 1879, após dez anos como professor, Nietzsche
deixa definitivamente Basiléia, “em estado de quase desesperação,
mas ainda com alguma esperança”. Viverá os dez anos seguintes
como filósofo errante, como “o virtuose dos passeios solitários”.19

NIETZSCHE:
UMA LEMBRANÇA QUERIDA
Poucos professores foram tão estimados pelos alunos
quanto Nietzsche. Seu temperamento, suas maneiras, o charme de
sua personalidade afável fascinava-os. Tinha o poder de entusiasmar
os jovens para a disciplina que ensinava. Excelente professor, não
visava ao simples acúmulo de conhecimento – pelo contrário, insis-
tia no desenvolvimento do senso crítico e da atividade criadora de
cada um. Incitava os alunos a exprimirem livremente suas opiniões,
incentivava-os a fazerem suas leituras pessoais e as controlava fre-
quentemente. Não precisava castigar, porque punha para trabalhar
mesmo os alunos mais relapsos.

19 Em carta a Peter Gast, datada de 4 de abril de 1883, Nietzsche parece ver com bons olhos a propos-
ta que Overbeck lhe faz de voltar a ensinar na Basiléia. Atente-se para o que ele diz: “Agora dê-me
um conselho: Overbeck preocupa-se muito comigo [...] fez-me recentemente a proposta de voltar
para a Basiléia, para ocupar um posto não na universidade, mas no Pädagogium, na qualidade
de professor de alemão. Esta proposta é boa a tal ponto que quase conseguiu me convencer; e
as minhas razões para aceitá-la fundamentam-se no clima e no ambiente. Overbeck diz-me que,
no caso de eu aceitar, não faltariam meios de renovar meu trabalho na Basiléia. Recordam-se de
mim com prazer e, para falar a verdade, não fui dos seus piores professores. Tomar-se-iam em
consideração, para regular a duração de meu trabalho, o estado de meus olhos e a minha pouca
resistência. A presença de Jacob Burckhardt, um dos poucos homens ao lado de quem gosto de
me sentir, incita-me também a aceitar a proposta de Overbeck.” (19). Mas, apesar da insistência de
Overbeck, Nietzsche nunca mais retomou sua profissão de professor.

SUMÁRIO 40
Tais elogios foram extraídos de relatos deixados pelos alunos
de Nietzsche. Para não perder a singularidade de cada olhar e sentir
afetividade com que foram ditos, nada melhor do que do que ler os
próprios depoimentos.

Louis Kelterborn, aluno de Nietzsche no Pädagogium, escreve


em suas “Memórias”20:

Minhas relações pessoais com Nietzsche duraram 10 anos,


de 1869 a 1879. O mesmo olhar de veneração que quando ainda
adolescente de 17 anos punha sobre o mestre genial, cuja presença
me era tão estimulante, eu o poria mais tarde sobre ele, sempre que
tinha a felicidade de encontrá-lo no meu caminho. O que mais cau-
sava admiração é que ele nos dava a impressão de ser bem mais
velho, não só quando assistíamos a suas aulas, mas também quando
o observávamos no seu cotidiano. Dava a impressão de que a dife-
rença de idade entre nós não era de apenas sete anos, mas muito
mais, apesar do entusiasmo juvenil e cheio de confiança no futuro
que o animava. [...] Na primavera de 1869, quando o jovem filólogo
foi nomeado para a cadeira de grego na universidade e no nosso
Pädagogium, eu era aluno do final do segundo ciclo nesse estabe-
lecimento. Lembro-me ainda da sensação causada pela sua pessoa
e pelo seu ensino, e também da impressão deixada por sua aula
inaugural sobre Homero, tão interessante pelas qualidades artísti-
cas e poéticas quanto importante sob o ponto de vista científico. No
mês de maio de 1870, o conselho Visher, responsável pela instrução
pública da Basiléia, apresentou à nossa classe o novo professor de
língua, literatura e filosofia gregas, ressaltando que, apesar de ser
ainda muito jovem, era um professor eminente e um brilhante exem-
plo, digno de todo o nosso respeito. Nós ficamos muito entusias-
mados e, durante os meses que se seguiram, nos comportamos da
mesma forma que os faríamos em relação a um professor graduado

20 Esses depoimentos foram extraídos do livro de Genevieve Bianquis, “Nietzsche devant ses contem-
poraines”, e da biografia de Nietzsche por Curt Paul Janz.

SUMÁRIO 41
que estivesse ali para nos iniciar no mundo da beleza e do pensa-
mento grego, e, sempre que o abordávamos, o fazíamos com o maior
respeito. Sua maneira de se dirigir aos alunos nos era absolutamente
nova e despertava em nós o sentimento de nossa própria personali-
dade. Soube, desde o início, estimular-nos para que tivéssemos um
maior interesse pelo estudo, talvez mais ainda de maneira indireta,
pelo seu saber e pelo seu exemplo, do que de maneira direta, ao nos
declarar, por exemplo, que todo homem deveria pelo menos uma vez
na vida se dar ao trabalho de consagrar ao estudo um ano inteiro,
fazendo da noite o dia, e que esse ano tinha chegado para nós. Ele
não nos considerava em bloco, como uma classe ou um rebanho,
mas como jovens individualidades, e também nos convidava a
visitá-lo em sua casa.
Sua maneira de se exprimir, ponderada, solene, tão cui-
dada e, no entanto, tão natural, do mesmo modo que
todas as suas atitudes e seu comportamento, sua maneira
de abordar alguém, de cumprimentá-lo, era realmente
harmoniosa, de uma grande unidade de estilo, se isto
se pode dizer. Além disso, um de seus principais obje-
tivos era de nos estimular para uma atividade pessoal.
[...] O mais engraçado foi quando um dia nos apresen-
tou o seguinte enigma: Que é Filosofia, ou um filósofo?
Ninguém conseguiu responder e o próprio Nietzsche se
esquivou diante da pergunta. [...]

Aceitei de bom grado seu convite para visitá-lo em sua


casa, principalmente na época em que uma entorse
obrigou-o a ficar no quarto. [...] Foi uma oportunidade de
observar melhor os traços infinitamente atraentes de seu
rosto: a boca eloquente mesmo em silêncio prolongado;
o queixo redondo e cheio; a cor saudável da pele; o nariz
enérgico e bem desenhado, as narinas frequentemente
abertas; a testa alta e luminosa, receptáculo de grandes
e elevadas ideias e de um pensamento sempre ativo. Os
cabelos lisos, castanho-claros, penteados para trás; o
farto bigode com reflexos ruivos cobrindo quase com-
pletamente a boca, segundo ele, seu “respirador”; seus
olhos magníficos, luminosos e expressivos, cuja única

SUMÁRIO 42
imperfeição era uma forte miopia. Finalmente, o som
especial de sua voz, a rica modulação da fala, a espantosa
capacidade de síntese e a propriedade de expressão e
particularmente a sonoridade simpática de seu riso, tão
cordial, tão franco, tão sadio, sem vulgaridade, sem mal-
dade – um riso que jamais ouvi igual e que guardei intacto
na minha memória. [...]

Durante a conversa, o professor Nietzsche procurava ouvir


mais do que falar; através de perguntas estimulava seu
interlocutor a exprimir livremente suas opiniões, mesmo
quando se tratava de um de seus alunos. Mas o que me
uniu particularmente a ele, desde as primeiras visitas, e
me levou a renová-las e a aceitar o convite para acompa-
nhá-lo em suas caminhadas, quando ocasionalmente o
encontrava na rua, foi seu temperamento essencialmente
musical. A maior parte de nossas conversas girava em
torno de questões musicais, no centro das quais brilhava
a estrela de Richard Wagner. Desde a primeira visita, ele
me confiara que tinha outrora hesitado, como eu mesmo,
a se consagrar inteiramente à música, que havia aprofun-
dado seus conhecimentos musicais com a maior serie-
dade e que havia buscado informação não nos manuais
modernos, mas nas fontes antigas, de onde nossos mes-
tres clássicos tinham tirado seu saber. [...]

O que contribuiu muito para fazer crescer minha simpatia


e minha admiração pelo novo professor foi a entusiástica
estima que tinha pelo nosso grande historiador de arte,
Jacob Burckhardt. [...] Nietzsche gostava de repetir que
estava persuadido de que nenhuma universidade podia
ter um professor de igual valor. [...]

Um dia, Nietzsche abordou a questão do ensino na


Alemanha, onde não era realmente possível aprender a
falar e a escrever corretamente a língua alemã. Confessou
a dificuldade que tinha antes de considerar uma frase
digna de ser impressa e de estar completamente satis-
feito quanto a sua melodia e a seu ritmo. Declamava-a
para experimentar a cadência, o acento, a tonalidade e o
movimento métrico e, também, para testar a clareza e a
precisão da ideia expressa.

SUMÁRIO 43
No semestre de 1872-73, éramos apenas dois alunos no
curso de retórica grega e latina. Por isso, Nietzsche nos
propôs ministrar o curso em sua casa. Reuníamo-nos
três noites por semana naquela casa confortável e ele-
gante, onde escutávamos, anotando-as, as frases que
ele nos ditava de seu caderno encapado de fino couro
vermelho. Às vezes, parava de falar, ora para refletir
sobre o que ele mesmo acabara de dizer, ora para nos
deixar assimilar bem o que fora dito. [...] Em cada curso,
sua exposição se concentrava exclusivamente sobre o
tema tratado, mas nós tínhamos, no entanto, por vezes,
a oportunidade, antes ou depois da exposição, de ouvi-lo
discorrer sobre os assuntos mais diversos. Claro que não
faltei a uma única aula.

O depoimento de Louis Kelterborn não é o único. Também


Traugolt Siegfried (aluno de Nietzsche durante o ano esco-
lar de 1869-70) conta suas experiências durante seu convívio
com o jovem professor:
Cada um de nós tinha como ponto de honra estar à altura
das exigências de Nietzsche, e aquele que, por preguiça
ou por ignorância, o decepcionava recebia a censura de
seus colegas. [...] Sua gentileza e sua atenção encoraja-
vam os alunos a trabalhar e os incitavam a se exprimir
livremente. [...] Um velho pastor emeritus, que foi aluno
de Nietzsche pouco depois de nós, contou-me recente-
mente que tinha sido outrora um jovem tímido e inseguro.
Que um dia Nietzsche, depois de fazer um relato emo-
cionante sobre o processo de Sócrates e de sua defesa
diante dos juízes, pediu a seus alunos para virem recitar
junto a sua mesa o discurso de Sócrates. Encorajado por
seu professor, o jovem pastor, ainda que com o coração
batendo, decidiu tentar a experiência. Conseguiu conten-
tar completamente seu professor, que, amigavelmente,
lhe sorriu. “Nesse dia”, disse-me o jovem pastor, “eu me
encontrei; minha timidez desapareceu e agradeci a meu
venerado professor Nietzsche que soube dar apoio ao
jovem inseguro que eu era e despertar assim meus dons”.

SUMÁRIO 44
Outro depoimento aparece sob a forma de um artigo anô-
nimo num suplemento de domingo de 13 de outubro de 1929:
No início de 1869, o professor Visher, presidente do conse-
lho administrativo da Universidade da Basiléia, entrou na
classe seguido de um jovem de ombros largos, aspecto
robusto, altura média, pele bronzeada, cabelos castanhos,
testa alta e expressiva, com um grande bigode cuidado-
samente penteado. Através de grossos óculos de aro de
ouro, ele observava com seus grandes olhos, com um ar
um pouco tímido e assustado, os 18 jovens que fixavam
sobre ele olhares curiosos. [...] A despeito de seu gênio
calmo, tímido e modesto, Nietzsche podia, ao falar, deixar-
-se levar pela beleza de seu tema, a modo Sófocles, das
três às quatro. Nietzsche deu uma magnífica aula sobre
a tragédia grega. O entusiasmo o impedia de parar. Às
quatro e vinte, falava ainda, e nós o escutávamos mudos
de entusiasmo. Um aluno que tinha às quatro horas aula
de música olhava muitas vezes para o relógio. Nietzsche,
encabulado, retirou-se da sala, desculpando-se mil vezes.
Mas nós teríamos gostado de ouvi-lo ainda mais. [...]

Quando traduzíamos, exigia que o fizéssemos em bom ale-


mão; ele mesmo falava uma língua admirável, sem nenhum acento
saxão. Mesmo fora da sala de aula, Nietzsche usava sempre uma
linguagem cuidada. [...]
Era um homem de poucas palavras, mas sua alegria era
visível quando um aluno medíocre conseguia um bom
resultado. Cada um de nós ficava contente ao receber
dele por um trabalho oral a expressão: muito bem. Sua
cordialidade, sua atenção incitava ao trabalho. Preparava
os alunos para que soubessem falar espontaneamente,
sem recorrer às anotações. Demonstrava a todos a
mesma delicadeza. Não deixava transparecer nenhum
desprezo pela massa de alunos indiferentes, nem pelos
mais fracos ou menos dotados.

Se Nietzsche era parcimonioso nos elogios, usava mais


raramente ainda de reprimenda. [...] Nunca o víamos irri-
tado, nunca elevava o tom da voz, nem se alterava [...].

SUMÁRIO 45
Um outro aluno de Nietzsche, também anônimo, deixa
seu relato, dessa vez para contar fatos engraçados ocorri-
dos em sala de aula:
Nietzsche pedira a seus alunos que lessem durante as
férias a descrição do escudo de Aquiles e que fizessem
espontaneamente um trabalho sobre ele. Na volta às
aulas, perguntou a um aluno: “Você leu a passagem em
questão?” O aluno, embaraçado, respondeu que sim, que
tinha lido o texto, embora não o tivesse lido. “Bem, então”,
disse Nietzsche, “descreva-nos o escudo de Aquiles”.
Durante o silêncio que se seguiu, Nietzsche deixou pas-
sar os dez minutos que lhe teriam sido necessários para
expor completamente o assunto, andando pela classe
lentamente, com um ar atento, como tinha costume de
fazer. Depois, sem perder uma palavra a mais, disse:
“Bom, agora que o senhor nos descreveu o escudo de
Aquiles, continuemos.”

Esse aluno de Nietzsche ainda nos relata um outro fato, ocor-


rido em sala de aula quando traduziam um determinado texto do
grego para o alemão: “Um aluno lia tranquilamente a tradução alemã
que escondia debaixo de sua carteira; Nietzsche disse-lhe: ‘É estra-
nho, você parece ter em sua edição uma versão diferente da minha’.”

Esses relatos não deixam dúvida: Nietzsche, de fato, tinha a


personalidade de um educador. Estimulava os alunos na busca de
seus próprios interesses, ouvia com atenção suas opiniões pessoais,
preparava escrupulosamente seus cursos, corrigia minuciosamente
seus trabalhos e mantinha-os, com raro dom, motivados para a
matéria que lhes ensinava.

SUMÁRIO 46
2
A INCULTURA
MODERNA
Toda reflexão de Nietzsche sobre a educação tem como
finalidade principal denunciar o fato de o saber ter se tornado
um luxo, um capital improdutivo com o qual nada se tem a fazer,
e protestar contra a “formação histórica” imposta à juventude na
Alemanha de Bismarck.

Segundo Nietzsche, a educação que os jovens alemães rece-


bem nas instituições de ensino funda-se numa concepção de cultura
histórica que, ao privilegiar os acontecimentos e as personagens do
passado, retira do presente sua efetividade e desenraiza o futuro.
Uma história, um pensamento que não servem para engendrar vida
e impor um novo sentido às coisas só podem ser úteis àqueles que
querem manter a ordem estabelecida e o marasmo da vida cotidiana.

É pensando na juventude e confiando nela que Nietzsche


grita: “Já basta de cultura histórica”. “De resto, abomino tudo aquilo
que me instrui sem aumentar e estimular imediatamente minha ativi-
dade.”21 – com essa citação de Goethe, Nietzsche inicia sua agenda
“Extemporânea” e dela tira a seguinte conclusão: deve-se abomi-
nar o ensino que não vivifica e o saber que esmorece a atividade. O
homem deve aprender a viver, e só se utilizar da história quando ela
estiver a serviço da vida.

Para Nietzsche, é preciso ser jovem para compreender seu


protesto. Sua aversão à cultura e à educação de sua época pode ser
mal interpretada, isto é, pode ser considerada absurda e indigna do
poderoso movimento histórico do século XIX22, mas seja como for, ele
não deixa de exprimi-la. Sente-se filho do tempo presente, porém
ousa descrever e tornar público um sentimento muito pouco atual
para sua época. “É uma liberdade que me concedo a mim mesmo,
enquanto filólogo clássico, porque não vejo para que poderia servir a

21 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, prefácio,


22 Nietzsche, ao falar do “poderoso movimento histórico do século XIX”, refere-se ao hegelianismo de
sua época, que erigiu a história como um sucedâneo da religião.

SUMÁRIO 48
filologia no nosso tempo, senão para lançar uma ação intempestiva
contra esta época, sobre esta época e, assim o espero, em benefício
do tempo que há de vir.”23

Os “espíritos históricos” confundem cultura com cultura his-


tórica. Por isso, a erudição alemã tornou-se uma espécie de saber em
torno da cultura, um saber falso e artificial. Falso e artificial porque
tolera a contradição entre vida e cultura. A cultura, na perspectiva de
Nietzsche, só pode nascer, crescer, desenvolver-se a partir da vida
e das necessidades de vida. Mas os alemães, por sua vez, têm a
cultura apenas como um adorno, uma “flor de papel decalcada sobre
a vida” ou um confeito de açúcar para enfeitá-la.

Que forças fundam a cultura artificial e operam a disjunção


entre a vida e cultura? O excesso de história, o saber a qualquer
preço, a ruminação do passado, a cultura da memória – são essas
forças que separam a cultura da vida. Quando a história se põe a ser-
viço da vida passada, alerta Nietzsche, torna-se coveira do presente.
Depauperiza e provoca a degenerescência da própria vida. Longe
de alimentá-la, mumifica-a. Fossiliza o próprio tempo. O excesso de
história conserva a vida, mas não sabe fazê-la nascer; por isso, só faz
depreciar a vida em transformação.

É preciso ficar claro que Nietzsche não tem a ingenuidade


de opor à história a ausência de sentido histórico. O que discute é
em que medida a história pode ser útil à vida. Analisa as causas e
descreve os sintomas da doença histórica: a expansão do saber e o
consequente enfraquecimento da cultura. Nós não somos feitos para
o saber, é o saber que é feito para nós. A vida tem necessidade da
história, e a história é própria do ser vivo. O excesso de história, no
entanto, envenena a vida.

23 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 1.

SUMÁRIO 49
Nas anotações feitas durante a primavera de 1873, um ano
antes da publicação da segunda “Extemporânea”, Nietzsche define
o filósofo como “médico da civilização”. Se a história faz parte, por
princípio, da natureza humana e seu excesso deixa o homem doente,
então se trata de vê-la segundo uma perspectiva médica. É preciso
saber até que ponto o estudo da história é comandado pela vida e
não por uma necessidade de “conhecimento puro”. O que Nietzsche
propõe para a cultura histórica é uma questão de dosagem. Não se
trata de negar o sentido histórico, mas de conter o seu domínio, de
conduzi-lo a uma justa medida. Absorvida em pequenas doses, ela
não envenena a vida nem a cultura, embora, em doses excessivas,
mate tudo o que quer nascer:
Para determinar em que medida o passado deve ser
esquecido, sob pena de se tornar o coveiro do presente,
é necessário conhecer a medida exata da força plástica
de um homem, de uma nação, de uma civilização, quer
dizer, a capacidade de crescer por si mesmo, de transfor-
mar e de assimilar o passado e o heterogêneo, de cica-
trizar suas feridas, de reparar suas perdas, de reconstruir
as formas destruídas.24

O artista, homem ativo por excelência, não deixa que a


massa do saber histórico o submerja, porque sabe que ela retiraria
de si o único poder que lhe cabe na terra: o da criação. Busca o
passado, porque tem necessidade de modelos que não consegue
encontrar ao seu redor. Absorve e transforma em sangue próprio
todo o passado, o seu e o dos outros, para utilizá-lo em sua obra,
mas sabe também que todo ato criador nasce de uma atmosfera
não histórica, de um estado de esquecimento. Para realizar sua obra,
o artista “esquece a maior parte das coisas para realizar uma só, é
injusto para com o que está atrás de si e só conhece um direito, o

24 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 1. Nietzsche dá o nome


de força plástica de um homem, de uma nação, de uma civilização à capacidade que tem de
assimilar o passado e encontrar em si a energia necessária para crescer, agir e criar.

SUMÁRIO 50
daquele que vai ser.”25 Mas o homem de cultura histórica, diferente
do artista, utiliza-se da história para alijar o presente de sua efetivi-
dade: por toda parte, arrasta consigo as “indigestas pedras do saber”.
Desconhece a “força plástica” de que dispõe para digerir a multiplici-
dade de conhecimentos que pode armazenar sem perigo para o seu
desenvolvimento harmonioso, pois é ela que transforma em sangue
e carne todo o alimento intelectual e, de uma maneira geral, todas as
suas experiências. Orgulha-se de sua cultura histórica, porque esta o
coloca no fim da história.

Para Nietzsche, a cultura histórica padece da “crença para-


lisante” de uma representação teológica, herdada da Idade Média.
Em outras palavras, “sofre do pensamento da proximidade do fim
do mundo”, do terror do “Juízo Final”. Na origem do abuso da história,
está o pessimismo cristão. Sob a máscara da erudição, esconde-se
uma “teologia camuflada”26. A cultura histórica – “o olhar para trás,
fazer as contas, concluir, procurar consolo no que foi, por meio de
recordações” – prediz uma conclusão da vida sobre a Terra e “con-
dena tudo o que vive a viver o último ato”. Tudo sobrevive sob esta
máxima: “é bom saber todo o acontecido, porque é tarde demais
para fazer algo de melhor”27.

Esse sentimento de desesperança ensombrece toda edu-


cação e cultura superiores e impede que o novo venha a existir.
Contudo, para se ter uma cultura superior, não basta despojar a
cultura de sua artificialidade, de sua crença no fim do mundo, de
seu “verniz histórico”. Também é necessária uma tarefa educativa, um
trabalho árduo, lento e penoso.

Já que os eruditos alemães utilizam-se da história para


desenraizar qualquer tipo de educação que não tenha por objetivo

25 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 1.


26 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 8.
27 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 8.

SUMÁRIO 51
transformar os indivíduos em seres aptos a ganhar dinheiro e servir
de maneira eficiente a cultura vigente, fica a questão: onde encon-
trar educadores que possam trazer de novo para a vida a “ciência
da história”? A educação alemã tem como fundamento o saber, e a
utilidade – sua alma – exige de seus servidores uma atitude passiva
e receptiva. Como fundar, então, uma cultura autêntica?

Nietzsche descarta de antemão a possibilidade de o educa-


dor ser um “filisteu da cultura”, pois este nada mais é do que um
produto da cultura da memória. Por encontrar sempre em sua volta –
nas instituições públicas, nas escolas, nos estabelecimentos de arte
– pessoas dedicadas a se regalar com o “pó das minúcias bibliográfi-
cas” e por acreditar que a cultura existe para preencher suas neces-
sidades, sente-se o digno representante da cultura de sua época.
Para Nietzsche, o “filisteu da cultura” nada mais é do que “um ser
empanturrado de mil impressões de segunda mão, sempre disposto
a discorrer sobre o Estado, a Igreja, a filosofia e a arte”28, que se trans-
porta para o passado e nele faz seu ninho: um gênio que nunca saiu
da garrafa. Uma criatura robusta, amiga das comodidades, dando ao
poder estabelecido a certeza de que jamais lhe causará embaraço.

O exame da literatura escolar e pedagógica dos últimos


decênios levou Nietzsche a constatar que, apesar das flutuações dos
programas e da violência dos debates, o projeto educativo continua
a ser o mesmo: a formação do “homem erudito”. O monótono cânone
da educação poderia resumir-se nestes pontos: o jovem aprenderá o
que é cultura e não o que é vida, isto é, não poderá de modo algum
fazer suas próprias experiências; a cultura será insuflada no jovem
e por ele incorporada sob a forma de conhecimento histórico; seu
cérebro será entulhado de uma enorme quantidade de noções
tiradas do conhecimento indireto das épocas passadas e de povos
desaparecidos, e não da experiência direta de vida. Se, porventura, o
jovem sentir necessidade de aprender alguma coisa por si próprio e

28 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 2.

SUMÁRIO 52
desenvolver “um sistema vivo e completo de experiências pessoais”,
tal desejo deverá ser abafado. Em compensação, terá a possibilidade
de, em poucos anos, acumular em si mesmo as experiências memo-
ráveis do tempo passado.

Todo sistema educacional é concebido como se o jovem


pudesse descobrir sua vida nas técnicas passadas. Como se a vida
não fosse um ofício que é preciso aprender a fundo. Quem qui-
sesse pulverizar esse tipo de educação deveria, segundo Nietzsche,
ser o porta-voz da juventude, iluminá-la com uma nova concep-
ção de educação e cultura. Mas como atingir esse objetivo, tão
estranho a sua época?

Antes de tudo, acreditando em um outro tipo de educação,


o qual não se nortearia pelos mesmos princípios que fundam a
pseudocultura. A Alemanha do século XIX crê na verdade eterna de
sua educação e no seu “estilo de cultura”29, mas, na verdade, falta tal
estilo, pois a cultura é a:
[...] unidade de estilo artístico em todas as manifestações
vitais de um povo. Saber muito e ter aprendido muito não
são nem um meio necessário, nem um signo de cultura,
mas combinam-se perfeitamente com o contrário da
cultura, a barbárie, com a ausência de estilo ou com a
mistura caótica de todos os estilos.

Por encontrarem sua marca em toda parte, os “filisteus da


cultura” concluem que a cultura alemã possui unidade de estilo. Mas
a unidade de que se vangloriam é a de não possuir nada por eles
mesmos. Procuram imitar modelos por toda parte, elevando o cos-
mopolitismo à altura de uma instituição:
Parece-me, por vezes, que os homens modernos expe-
rimentam um tédio tão grande no convívio com outros
homens que acabam por considerar indispensável se
tornarem interessantes e, para isso, valem-se de todas as

29 Friedrich NIETZSCHE, David Strauss, o devoto e o escritor, § 1.

SUMÁRIO 53
artes. Pedem aos seus artistas que os sirvam como pratos
apimentados e temperados, condimentam-se com todas
as especiarias do Oriente e do Ocidente e, certamente,
exaltam então um perfume dos mais interessantes, chei-
ram ao mesmo tempo a Oriente e a Ocidente.30

Quando Nietzsche denuncia o caráter imitativo dos alemães,


não tem por objetivo contrapor à mistura caótica de todos os estilos
uma cultura nacional; pelo contrário, critica o nacionalismo exacer-
bado dos que confundem cultura com as glórias militares dos exér-
citos prussianos. Quando afirma a originalidade do espírito alemão,
dos seus filósofos e artistas nacionais, é para lutar contra a imitação
superficial dos costumes, das artes e da filosofia de outros povos e o
consequente desenraizamento da cultura alemã.

O segredo dissimulado da cultura moderna, sua verdade


eterna, é que ela não possui nada de próprio, tendo-se tornado
alguma coisa que se assemelha a uma “enciclopédia ambulante”,
uma película que envolve os costumes, as artes, as filosofias, as
religiões e o conhecimento alheio: “mas o valor das enciclopédias
está apenas no seu conteúdo e não no invólucro, na sua encader-
nação de couro; é desta forma que a cultura moderna inscreve qual-
quer coisa do gênero: ‘Manual de cultura histórica para homens de
exterior bárbaro’.” 31

O saber absorvido sem medida aparente pelo homem deixa de


atuar como motivo transformador, não aflora, permanece escondido
e forma o que Nietzsche chama de sua “interioridade” – um amon-
toado de coisas acumuladas desordenadamente. A oposição entre
interior e exterior no homem é, na verdade, o sintoma mais evidente
de uma cultura decadente e da ausência de uma unidade de estilo.

30 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 6.


31 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 4.

SUMÁRIO 54
O homem moderno oscila entre dois polos: o exterior e
o interior. Ora apresenta-se, como diz Zaratustra, com “basófias e
enchendo o peito” para dissimular a pobreza do interior; ora quer
fazer acreditar que tem um rico interior e não o manifesta por modés-
tia. Desagregado e em ruína, dividido, desconfiando das sensações
que ainda não receberam o selo das palavras, o homem passa a ser
um organismo sem vida, que tem o direito de dizer “cogito ergo sum”
(penso, logo existo), mas não “vivo ergo cogito” (vivo, logo penso)32.

O que Nietzsche deplora na educação é a disjunção entre


corpo e espírito. Sua concepção de educação, fortemente influen-
ciada pelos gregos, considera que corpo e espírito devam ter o
mesmo desenvolvimento, sem que haja a hipertrofia de nenhum
desses dois elementos. Reprova também o fato de a educação de
sua época não ter como objetivo formar personalidades fortes, mas
sim homens teóricos.

Sendo assim, pode-se concluir que o excesso de história, a


cultura livresca, a separação do corpo e do espírito levam Nietzsche
a dizer que a Alemanha não tem exatamente uma cultura. Se ela
existe, é apenas uma cultura artificial, e não a expressão direta da
vida; um suplemento, um excedente. Poderíamos desfazer-nos dela
sem o menor prejuízo para a vida, pois é apenas um conjunto de
adornos para tirar o homem de seu tédio. A Alemanha não possui
uma cultura, nem pode tê-la, em virtude do seu sistema educacio-
nal. A partir do reconhecimento dessa verdade, afirma Nietzsche,
deverá ser educada a primeira geração dos que irão construir
uma cultura autêntica.

Todavia, essa geração deverá educar-se a si mesma e contra


si mesma – isto é, terá de formar novos hábitos e uma nova natureza,
desfazer-se de sua primeira natureza, abandonar seus primeiros

32 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 10.

SUMÁRIO 55
hábitos, de tal modo que diga: “Que Deus me defenda de mim, da
natureza que me foi inculcada.” 33

Todas as ações ligam-se a apreciações de valor, e todas as


apreciações de valor são ou pessoais ou adquiridas – e estas últimas
são, sem sombra de dúvida, as mais numerosas. As pessoas subme-
tem-se mais às convenções do que às suas próprias convicções. No
primeiro parágrafo de “Schopenhauer como educador”, Nietzsche
relata a seguinte passagem: perguntaram a um viajante, que havia
percorrido muitos países e conhecido vários povos, qual a qualidade
que mais encontrara nos homens. Sua resposta foi esta: uma pro-
pensão à preguiça: por toda parte, encontrara homens entediados,
escondendo-se atrás dos costumes e das opiniões alheias. Por pre-
guiça e temor ao próximo, os homens se comportam de acordo com
as convenções e seguem a moda do rebanho. Que motivo tem para
adotar sempre as opiniões e as apreciações de valor de seu seme-
lhante? Em uma palavra, o hábito. Desde a infância, convivem com
as apreciações de valor de seus avós. São guiados por esses juízos
adquiridos e raramente pensam na sua aprendizagem. Desde crian-
ças, são albergues abertos a tudo e, como todo mundo, acreditam
que a maior virtude é estar conforme as opiniões de todos.

Mas para desprender-se e defender-se das virtudes do reba-


nho é necessário que os homens engulam a seguinte verdade, como
um remédio amargo: a primeira virtude do homem é ousar ser ele
mesmo. É preciso triunfar sobre si mesmo, isto é, sobre a natureza
que lhe foi inculcada e o tornou inepto para a vida. Para Nietzsche,
não há espetáculo mais hediondo do que ver um homem que se
despojou do seu “gênio”, do seu criador e inventivo. Falta-lhe medula.
Só tem fachada. Assemelha-se a um “fantasma da opinião pública”.

O fato de o homem ser uma singularidade e, como todo caso


único, não se repetir deve encorajá-lo a viver segundo sua própria lei

33 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 10.

SUMÁRIO 56
e medida. Ele tem de mostrar por que nasceu em determinada época
e não em outra, pois só desse modo fará justiça a seu próprio tempo.
Portanto, só deve respeitar uma única instituição: sua própria alma.

A INDIVIDUALIDADE PARA NIETZSCHE


Na interpretação do que seja a individualidade para Nietzsche,
dois contrassensos devem ser evitados.

Quanto ao primeiro – a existência de um verdadeiro eu –,


Sarah Kofman observa que é possível fazer uma primeira leitura
inteiramente metafísica do individualismo de Nietzsche.

Convocar o indivíduo para a tarefa “de chegar a si mesmo”


é uma questão constantemente abordada por filósofos e moralis-
tas. Foi sempre prerrogativa de filósofos e moralistas convidar o ser
humano a buscar sua natureza íntima, “a conhecer a si mesmo”. Para
isso, bastaria que o indivíduo se despojasse dos artifícios que cobrem
o seu íntimo. Poder-se-ia pensar que, de certa forma, o mesmo se dá
com Nietzsche. Entretanto, não se pode aplicar uma leitura metafí-
sica à questão do individualismo de Nietzsche. A crítica da noção de
sujeito, de consciência, de “eu” é uma constante em sua obra. Desde
os seus primeiros escritos, Nietzsche repudia a ideia espúria de um
“eu” fixo e estável, a qual contribui, em muitos aspectos, para a vida
gregária, pois, no fundo, esse “eu” é igual a todos os outros “eus”
gregários. É uma mistificação que deve ser superada, o depositário
de todo o ideal burguês, de todo o preconceito que recebemos de
nossos pais e avós.

O “eu” a que Nietzsche se refere é algo que se almeja e se


supera, e não uma substância fixa. Assim, não existe para Nietzsche
um “verdadeiro eu”, pois ninguém pode estar certo de ter-se des-
pojado de todas as suas máscaras. Por trás de cada máscara, há

SUMÁRIO 57
sempre muitas outras máscaras; por trás de cada pele, muitas outras
peles: “Se é verdade que a lebre tem sete peles, o homem pode des-
pojar-se de setenta vezes sete peles e ainda não poderá dizer: eis
realmente o que você é, não é mais um invólucro.”34

O outro contrassenso é confundir o individualismo niet-


zschiano com o do Romantismo, cuja tese básica é a seguinte: o
indivíduo, pra se constituir como tal, precisa diferenciar-se da socie-
dade como um todo e, ao mesmo tempo, diferenciar-se de todos os
outros indivíduos, de modo que possa tornar-se uma singularidade
insubstituível, um ser único. Essa tese parece ter produzido um eco
na filosofia de Nietzsche. Em várias afirmações de “Schopenhauer
como educador”, Nietzsche refere-se ao homem como “o milagre de
uma única vez”. “Todo homem sabe muito bem que está no mundo
somente uma vez, como um caso único, e que jamais o acaso,
por mais caprichoso que seja, reunirá uma segunda vez uma tão
estranha diversidade multicolorida num todo tal como ele é.”35 No
entanto, só à primeira vista o individualismo de Nietzsche asseme-
lha-se ao do Romantismo.

De fato, nessa tarefa de “chegar a si mesmo”, o indivíduo deve


distanciar-se da cultura artificial, assim como da massa gregária.
Mas Nietzsche de modo nenhum afirma que o homem busca um
“eu” perdido no fundo de seu ser como a um ponto fixo, nem que
esse “eu” só pode ser encontrado em si mesmo e não em qualquer
coisa externa a ele. Pelo contrário, Nietzsche vê a tentativa de querer
descer ao fundo de si como uma tarefa inútil:
É além disso um empreendimento penoso, perigoso,
vasculhar assim em si mesmo e descer violentamente
pelo caminho mais curto ao fundo de seu ser. Como é
arriscado ferir-se com isso de modo que nenhum médico
possa curar. E ainda mais: para que isso seria necessário,

34 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.


35 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.

SUMÁRIO 58
se tudo é testemunha de nosso ser, nossas amizades
e inimizades, nosso olhar e a pressão de nossa mão,
nossa memória e o que esquecemos, nossos livros e os
traços de nossa pena?36

O que revela a “lei fundamental de nosso ser” é o conjunto


dos objetos que nos preenchem e dominam. A sucessão dos “obje-
tos venerados”, isto é, o que temos amado, o que nos atrai, o que nos
tem feito feliz e a comparação que se pode estabelecer entre eles, é
isto que revela nossa individualidade:
[...] compara estes objetos, vê como se completam, se
ampliam, se enriquecem, se iluminam mutuamente, como
formam uma escala graduada com que elevaste a ti
mesmo; pois teu verdadeiro ser não está escondido dentro
de ti, mas, ao contrário, infinitamente acima de ti, ou pelo
menos daquilo que consideras habitualmente por teu eu.37

Assim, para Nietzsche, a formação autêntica não é uma volta


ao “eu” verdadeiro, nem o desmascaramento dos obstáculos fictícios
que entravam a cultura do “eu”. O “eu” é uma construção, um “cultivo
de si” permanente. Para ousar ser um “si mesmo”, é preciso, antes de
tudo, uma tarefa educativa.

COMO EDUCAR A SI MESMO


Para dar um exemplo de como educar a si próprio, Nietzsche
fala, em “Schopenhauer como educador”, de suas experiências do
domínio da educação. Em tom confessional, descreve um fragmento
de sua personalidade educadora:

36 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.


37 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.

SUMÁRIO 59
Quando outrora eu me abandonava à minha fantasia, a
fazer projetos, acredita que o terrível esforço, o temível
dever de me educar a mim mesmo, me seria poupado
pelo destino, porque, no momento oportuno, encontraria
um filósofo para me educar, um verdadeiro filósofo ao
qual se pudesse obedecer sem mais reflexão, em quem
se teria mais confiança do que em si mesmo. Em seguida,
é verdade, perguntava-me por quais princípios ele pode-
ria nortear minha educação. Perguntava-me o que ele
diria das duas máximas que estão em voga na nossa
época. Uma exige que a educação identifique desde cedo
o ponto forte de seus alunos e dirija então todas as suas
energias, todas as suas forças e todo o brilho do sol sobre
ele a fim de tornar madura e fecunda esta única virtude. A
outra máxima quer, ao contrário, que o educador tire par-
tido de todas as forças existentes, cultive-as e faça reinar
entre elas uma relação harmoniosa.38

A primeira postura focaliza um centro e deixa as outras for-


ças na obscuridade. Trata-se de uma educação despótica, cujo pro-
duto é um ser distorcido, inepto em todas as outras coisas para as
quais não foi preparado e, muitas vezes, mesmo naquilo em que foi
treinado. A segunda abordagem, por sua vez, coloca todos os dons
no mesmo plano, todos sendo iluminados ao mesmo tempo. Essa
é uma educação democrática, cujo produto é o homem burguês,
o animal de rebanho.

A oposição entre o dom dominante e as outras forças exis-


tentes é própria de uma educação decadente. Em primeiro lugar,
porque o dom, o centro, não é anterior à aprendizagem, mas o pro-
duto de uma aprendizagem: aquele que aprende dota a si mesmo.
Em segundo lugar, porque sem as outras forças o centro tende a
desaparecer. Se o dom nada mais é do que um “instinto mais forte
que obedeceu por mais tempo a uma mesma regra”, ele só pode
continuar a existir, a ser dominante, se os outros instintos não forem
eliminados e se continuarem trabalhando sob seu comando.

38 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 2.

SUMÁRIO 60
Na tentativa de superar sua época, Nietzsche sonhava encon-
trar um filósofo-educador que o ajudasse a educar a si mesmo. Esse
filósofo deveria ter por princípio ajudá-lo a descobrir sua “força cen-
tral” e impedi-la de exercer um domínio sobre todas as outras forças,
a ponto de excluí-las; um verdadeiro filósofo, capaz de elevá-lo acima
da deficiência do tempo presente, alguém que o ensinasse a ser
“simples e honesto no pensamento e na vida, portanto intempestivo
no sentido mais profundo da palavra.”39 Embora tal filósofo-educador
lhe faltasse, ele continuava procurando-o.

Não o achou na universidade. Os filósofos acadêmicos eram-


-lhe “pessoas absolutamente indiferentes”; faltava-lhes vida, sim-
plicidade e honestidade: “Sua atividade consistia em fazer alguma
coisa a partir do resultado de outras ciências, a ler jornais nas horas
de lazer e a frequentar concertos.”40

Se não se encontram mestres na universidade, onde estão


os filósofos-educadores, os médicos da humanidade para guiar os
homens na sua educação? Eis a tese principal de Nietzsche: ainda
não existem esses educadores, mas quando existirem não poderão
fazer muito pelos seus alunos, a não ser se tornarem seus libera-
dores, ou seja, criando as condições para que o educando seja
eu próprio educador:
Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que
precisarás passar para atravessar o rio da vida, ninguém
exceto tu, somente tu. Existem, por certo, inúmeras vere-
das, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-
-te do outro lado do rio; mas isso te custaria a tua própria
pessoa: tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo
um único caminho, por onde só tu podes passar. Para
onde leva? Não perguntes, segue-o.41

39 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 2.


40 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.
41 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.

SUMÁRIO 61
Diante da desolação em que se encontra a cultura con-
temporânea, e na falta de verdadeiros “médicos da civilização”, de
“educadores liberadores”, Nietzsche busca um modelo, um iniciador.
Alguém que pudesse imitar, que não fosse um “manual encarnado”
nem uma “abstração encadernada”. O exemplo que procurava deve-
ria ser dado “pela vida visível e não apenas pelos livros; deveria, pois,
ser dado, como ensinavam os filósofos da Grécia, pela expressão do
rosto, atitude, vestuário, alimentação, costumes, mais ainda do que
por aquilo que é dito ou escrito.”42

Nietzsche – tal como Goethe, que se voltou para o passado


porque, em sua época, não pôde encontrar entre os que o rodeavam
caracteres para utilizar em sua obra – volta-se então para a histó-
ria, buscando-a como um antídoto para furtar-se à influência para-
lisante de sua época:
Se, de modo geral, a história não fosse nada mais do que
“o sistema universal da paixão e do erro”, o homem teria de
ler nela assim como Goethe aconselha que leia o Werther,
como se ela clamasse: “Sê um homem e não me sigas!”
Por felicidade, porém, ela guarda também a memória dos
grandes que combateram contra a história”.43

É esta outra história que os que querem se educar a si mes-


mos devem procurar. O valor de um pensamento não está no conhe-
cimento que pode fornecer, mas na vida que pode sugerir. O que se
deve extrair de um sistema não é sua verdade, mas o “fragmento de
personalidade que ele contém, a única verdade irrefutável”.

42 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 3.


43 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 8.

SUMÁRIO 62
A DESCOBERTA DE SCHOPENHAUER
Em 1865, Nietzsche descobre Schopenhauer; não a presença
viva dele, mas um livro, “O mundo como vontade e representação”,
exposto na vitrine de uma livraria em Leipzig. Toma-o nas mãos e exa-
mina uma página. O vigor de uma frase, a exatidão com que as pala-
vras estavam escritas o perturbam. Sem saber quem era o demônio
que soprava a seu ouvido “Volta para casa com este livro”, compra-o.

Já em seu quarto, abre o tesouro que adquirira e deixa o


sombrio pensador agir sobre ele. Um único desgosto o inquieta:
seis anos antes, Schopenhauer ainda estava vivo; teria sido possível
se aproximar dele e com ele conversar. Durante 11 dias, mal dorme:
deita-se às duas horas, levanta-se às seis. Lê com avidez as 2 mil
páginas do livro e confessa que sabia desde as primeiras palavras
que leria com atenção toda a obra de Schopenhauer:
Na verdade, o fato de tal homem ter escrito aumentou o
prazer de viver nesta Terra. De minha parte, ao menos,
desde que conheci esta alma, a mais livre e a mais vigo-
rosa, ela me fez dizer dele o que ele próprio dissera de
Plutarco: “Mal lancei os olhos sobre ele, ganhei uma perna
ou mesmo uma asa”. É ao lado dele que eu me colocaria,
se o dever me impusesse escolher uma pátria na Terra.44

Nietzsche impressiona-se com o estilo de Schopenhauer;


este não escreve à maneira dos eruditos que desconhecem o sabor
das palavras, o equilíbrio das frases. O estilo de Schopenhauer lhe
faz lembrar Goethe: só diz o que é profundo e o que comove. Não se
utiliza dos meios artificiais da retórica, nem escreve com paradoxos,
porque não quer seduzir: “Schopenhauer jamais quer aparecer, pois
escreve para si mesmo e ninguém se apraz em ser enganado; sobre-
tudo um filósofo que se erigiu esta lei: “Não engane ninguém, nem a ti

44 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 2.

SUMÁRIO 63
mesmo”45. Se quisermos imaginar um leitor para Schopenhauer, “que
fala para si mesmo”, devemos supor um filho sendo instruído pelo
pai: um discurso rude diante de um ouvinte que escuta com amor.

Schopenhauer incomodava-se pouco com as castas acadê-


micas, não via a vida por intermédio das opiniões alheias. Teve o
privilégio de ver “o gênio de perto, não somente em si, mas fora de si,
em Goethe: por esse duplo espelhamento ele foi informado e adver-
tido a fundo sobre todos os alvos e culturas de erudição.”46 Aspirava
a ser independente do Estado e da sociedade. Não temia entrar em
contradição com a ordem existente, pois respeitava uma única ver-
dade: a que trazia em si mesmo. É este o exemplo que Nietzsche
tira de Schopenhauer.

O que desolava Nietzsche é o fato de Schopenhauer não ter


servido de modelo aos seus contemporâneos, sendo vítima de uma
“conspiração do silêncio”. “O mundo como vontade e representação”,
publicado em 1818, foi jogado entre papéis velhos e vendido a peso.
Condenaram-no por dar mais valor a sua filosofia do que a seus
contemporâneos. Seu infortúnio foi ter aprendido com Goethe que,
para salvar a existência de sua filosofia, era preciso defendê-la a todo
custo contra a indiferença. Daí a terrível inquietação em que vivia e
seu júbilo com o menor traço de notoriedade. Totalmente isolado,
sem um único amigo, sempre em busca de homens para comparti-
lhar ideias, Schopenhauer lutou sozinho contra seu tempo.

Todo pensador que trabalha para a cultura é um pensador


solitário, escreve Nietzsche. E corre perigo. Por ser um “grande acu-
mulador de forças históricas e fisiológicas”, de matérias explosivas
contra a sua época, arrisca-se a ser colhido numa rede de mal-en-
tendidos, a ser mal interpretado, porque os que professam a opinião
pública acreditam ser os únicos a poder manifestar suas opiniões.

45 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 2.


46 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 7.

SUMÁRIO 64
O pensador solitário sabe que, em qualquer circunstância, continu-
ará a perecer ainda mais diferente do que é; ainda que só queira
ser leal consigo mesmo, estará privado de tudo o que o homem
normalmente deseja: a segurança de uma carreira fácil, a honra e
o reconhecimento. Seu destino será o isolamento; onde quer que
viva, viverá num deserto ou numa caverna. Se por medo da solidão
abdicar de seu “gênio” e deixar afrouxar as rédeas de seu talento,
sucumbirá como homem e viverá como um fantasma em meio às
opiniões científicas.

Por isso, é com entusiasmo que relata seu encontro com


Schopenhauer: aumentou sua potência de agir e seu prazer de
viver na Terra. Com a exposição de sua experiência, na procura e
no encontro de um pensador que o ajudou em sua formação, não
tem como meta apenas falar em sua causa própria, mas, de algum
modo, fazer sua experiência servir a outros que, como ele, queiram
se educar: “Certamente, existem muitos outros meios de um indiví-
duo encontrar-se a si mesmo, escapar ao atordoamento no qual se
move habitualmente como se estivesse no interior de uma nuvem
escura e de ser ele mesmo, mas não conheço outro melhor que o de
se lembrar de seus mestres e de seus educadores.”47

A IMITAÇÃO CRIADORA
À primeira vista, pode parecer estranho ouvir Nietzsche
recomendar aos que querem se educar que procurem um modelo
para imitar. É bom lembrar que Nietzsche critica o “filisteu da cultura”
justamente pelo fato de ser um imitador, um espectador da vida e do
pensamento alheio, e não autor de sua vida e de seus pensamentos.
Para evitar mal-entendidos, é preciso compreender a que tipo de

47 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 1.

SUMÁRIO 65
imitação Nietzsche se refere, e como se aproximar de um modelo
que ao mesmo tempo eduque e eleve.

Nietzsche adverte para o perigo que corre todo imitador.


A dignidade de um pensador ou artista, a sua superioridade sobre
todos os outros homens pode fazer com que os que queiram imi-
tá-los fiquem de fora da comunidade dos ativos. De que modo isso
pode acontecer? A imagem do grande homem pode produzir uma
cisão na alma e na personalidade do indivíduo, de tal forma que ele
comece a viver em dupla direção: em contradição consigo próprio e
voltado para quem deseja imitar. Isso fatalmente lhe retirará todo o
poder de agir, e seu pensamento não poderá ser outro: “Não poderei
fazer melhor do que ele; portanto, permanecerei não fazendo nada.”
Assim, novamente o indivíduo se deixa imobilizar: “Se tudo já está
feito, é melhor cruzar os braços e esperar o fim da história.”

A imitação a que Nietzsche se refere não é a imitação do


“filisteu da cultura”, nem a imitação a que pode sucumbir um jovem
bem-intencionado. A imitação, para ele, é ativa, deliberada, constru-
tiva, e permite a reconstrução do modelo, a superação de si mesmo
e a anulação do efeito paralisante de sua época. Como bem escreve
Lacoue Labarthe, em seu livro “A imitação dos modernos”:
Assim, a luta de Nietzsche contra a imitação e a cultura
histórica consiste, no essencial, numa conversão da
mimesis [...] converter a mimesis é torná-la viril. É fazer
com que ela deixe de tomar a forma da submissão para
tornar-se realmente criadora. E, se na imitação passiva
ocorre um mau relacionamento com a história, é esse
mesmo relacionamento que é preciso converter e trans-
formar em relacionamento criador.48

Em suma, Nietzsche propõe uma imitação criadora. Não se


trata de repetir passivamente o modelo, mas de encontrar o que

48 Lacoue-LABARTHE, Philippe, “L’Imitation des Modernes”, p. 101. Labarthe usa, neste texto, o conceito de
mimesis como sinônimo de imitação e também de imitação ativa, isto é, de recriação da realidade.

SUMÁRIO 66
tornou possível sua criação. É a imitação da “história monumental”,
isto é, do que é exemplar e digno de ser imitado, e deve visar “a
superar o modelo”. Imitar o modelo quer dizer mimetizar sua força
criadora e transformadora. O exemplo é um estímulo para a ação e
para uma nova configuração.

É interessante notar que, com a concepção de imita-


ção criadora – imitar não o pensamento contido no sistema, mas
a atividade criadora que produziu o pensamento – presente na
segunda “Extemporânea”, Nietzsche não estava muito longe daquilo
que diria em “Ecce homo” (1888), ao reler “Schopenhauer como
educador”: “Não se tratava de Schopenhauer educador, mas de
Nietzsche educador49”.
Na terceira e na quarta “Extemporâneas” são contra
isso levantadas, como indicações para um mais elevado
conceito cultura, para restruturação do conceito “cultura”,
duas imagens do mais severo amor de si, cultivo de si,
tipos extemporâneos par excelence, plenos de soberano
desprezo por tudo o que ao seu redor se chamava “Reich”,
“cultura”, “cristianismo”, “Bismarck”, “êxito” – Schopenhauer
e Wagner, ou, em uma palavra, Nietzsche...

E, mais adiante, ele diz:


Agora que olho para trás e revejo de certa distância
as condições de que esses escritos são testemunho,
não quero negar que no fundo falam apenas de mim.
Wagner em Bayreuth é uma visão do meu futuro; mas em
Schopenhauer como educador está inscrita minha história
mais íntima, meu vir a ser. Sobretudo meu compromisso!50

Para Nietzsche, tomar Schopenhauer como modelo signi-


ficou, em primeiro lugar, cultivar-se: “Estou bem longe de crer ter
compreendido Schopenhauer corretamente; aprendi apenas a me

49 Friedrich NIETZSCHE, Ecce Homo, p. 98.


50 Friedrich NIETZSCHE, Ecce Homo, p. 102.

SUMÁRIO 67
compreender um pouco melhor através de Schopenhauer; é por
isso que lhe devo o maior reconhecimento.”51 Em segundo lugar,
tornar-se ele mesmo – Nietzsche. Para resolver um problema de
educação, para exprimir ideias inusitadas, Nietzsche foi obrigado a
balbuciar em voz estrangeira, a usar a máscara de Schopenhauer.
Para tornar-se um, para fazer a psicologia do erudito, teve necessi-
dade de ser muitas coisas em muitos lugares, teve necessidade de
ser também um erudito.

Como o “homem é uma espécie cujas qualidades ainda não


estão fixadas”, para poder chegar a si mesmo, elevar-se e “transfor-
mar-se numa espécie superior”, ele tem necessidade da educação,
do cultivo de si, embora, para isso, deva perguntar-se: Para que vivo?
Que lição devo tirar da vida? A essas perguntas, o homem comum
responde apressadamente: Para tornar-me um bom cidadão, um
erudito ou um comerciante. Mas o homem que está voltado para
criar uma cultura autêntica deve responder: Para elevar-me e produ-
zir os grandes homens.
A humanidade deve constantemente trabalhar para
engendrar grandes homens. É esta a sua tarefa, e mais
nenhuma outra. Como seria bom aplicar à sociedade
e a seus fins um ensino que se poderia tirar a partir da
observação de todas as espécies do reino animal e vege-
tal – para elas, só importa o exemplar individual superior,
o mais raro, o mais poderoso, o mais complexo, o mais
fecundo –, que prazer seria se os preconceitos enraizados
pela educação quanto à finalidade da sociedade não ofe-
recessem uma resistência obstinada.52

Mais quais seriam esses “preconceitos enraizados pela edu-


cação”, que impedem a formação de uma espécie superior?

51 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, Primavera-verão de 1874, 34[13].


52 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 6.

SUMÁRIO 68
OS PRECONCEITOS DA EDUCAÇÃO
Duas correntes, aparentemente opostas, mas igualmente
nefastas em seus resultados, dominam os estabelecimentos de ensino
alemães. De um lado, a ampliação tanto quanto possível da cultura;
de outro, a sua redução e enfraquecimento. A primeira tendência
procura levar à cultura um número cada vez maior de indivíduos. A
segunda exige que a cultura abandone suas pretensões à soberania
e se consagre à defesa dos interesses do Estado. Assim, adquirir
cultura significaria capacitar os indivíduos a ganhar dinheiro, pôr
rapidamente mãos à obra ou então ingressar nos quadros do Estado.

São esses, em suma, os preconceitos que impedem a huma-


nidade de criar os grandes homens. “Por que se dedicar a alguns
quando o objetivo da educação deve ser o desenvolvimento de
todos?” – objetariam os partidários da ampliação da cultura. Os par-
tidários da redução da cultura alegariam que o homem deve defender
os interesses do Estado e não os de um indivíduo. Nietzsche observa
que pode parecer absurdo se devotar a um homem, mas que é ainda
mais absurdo deixar que o número decida, quando se trata de mérito
e de valor. A educação, como vem sendo dada, não tem por objetivo
criar “personalidades harmoniosamente desenvolvidas”; pelo contrá-
rio, os indivíduos, com esse tipo de educação, não chegam sequer
a amadurecer. O amadurecimento seria um “luxo que os afastaria
do mercado de trabalho”. Os economistas da educação e da cultura
desenvolvem os jovens com as palavras da fábrica – mercado de tra-
balho, oferta e procura, produtividade. Concluíram entre si um con-
trato de trabalho e “decretaram a inutilidade do gênio”. O resultado é a
vulgarização do ensino e o consequente enfraquecimento da cultura.

Para reverter o estado em que se encontra a educação,


Nietzsche propõe as seguintes questões: “como a tua vida, que é
vida individual, adquire o mais alto valor, o mais profundo significado?

SUMÁRIO 69
Como ela é menos esbanjada?”53 De antemão, descarta a possibili-
dade de a vida adquirir valor devotando-a ao Estado; pois o Estado,
diz ele em “Assim falou Zaratustra”, é o lugar “onde o lento suicídio
de todos chama-se ‘vida’.” A vida só tem sentido quando se vive
pelo exemplar mais raro, e não em proveito do grande número, que,
tomado isoladamente, constitui-se de exemplares de menor valor. Se
a natureza tem por finalidade criar o “exemplar individual superior”,
por que a cultura não teria o mesmo objetivo? Afinal, a meta da cul-
tura não seria ajudar a natureza em sua tarefa?

A finalidade da natureza é sempre produzir os exemplares


mais raros – que seriam, na espécie humana, o filósofo, o artista e o
santo. Falta-lhe, no entanto, senso prático, e quase nunca encontra
os meios apropriados para realizar seus fins. Engendrando o filó-
sofo e o artista, ela quer tornar inteligível e significativa a existência
humana, mas raramente consegue bons resultados. Sobretudo em
relação ao filósofo, observa Nietzsche, seu embaraço é grande. A
natureza titubeia quando quer fazê-lo servir ao interesse geral. “A
natureza lança o filósofo como uma flecha entre os homens; ela não
visa, mas espera que a flecha se fixe em algum lugar.”54 A flecha lan-
çada ao acaso raramente atinge o alvo, e o filósofo erra solitário em
sua época. O mesmo se dá com o artista. Sem dúvida, o artista realiza
sua obra cumprindo a vontade da natureza, para o bem dos homens,
mas sabe que eles não a compreenderão e a amarão como ele a ama.

No campo da cultura, escreve Nietzsche, a natureza é tão


pródiga como quando planta e semeia. Mas ela realiza sua meta de
maneira muito grosseira, o que a obriga a despender muitas forças:
“O artista e o filósofo testemunham contra o sentido prático da natu-
reza na escolha de seus meios, embora eles sejam a melhor prova da
sabedoria de seus fins. Eles sempre tocam poucas pessoas, quando

53 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, §6.


54 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, §7.

SUMÁRIO 70
deveriam tocar a todos, e mesmo estas poucas não são atingidas
com a força que o filósofo e o artista imprimiram ao seu projétil.”55

A tarefa da cultura deve ser ajudar a natureza a gerir melhor


suas economias: “Suas despesas excedem em muito suas receitas;
a despeito de toda a sua riqueza, acabará um dia por se arruinar.
Seria mais sábia se tomasse como regra: pouca despesa e cem
vezes mais de lucro.”56 Segundo Nietzsche, a natureza seria mais
econômica se produzisse menos artistas e filósofos e mais pessoas
receptivas aos artistas e filósofos. Mas, como isso não é de sua
alçada – pois a natureza precisa de seus intérpretes amorosos, do
artista e do filósofo, para iluminar-se e tomar conhecimento de si –,
prossegue com sua produção.

Todavia, a cultura tem de aperfeiçoar a natureza; tornar-se


seu complemento natural, e não um suplemento artificial; perseguir
os mesmos fins da natureza, isto é, propor-se a acelerar a vinda do
filósofo, do artista e do santo e mantê-los presos à sociedade. Os
que conhecem o aspecto de “desrazão da natureza” devem procurar
soluções para isso. De nada adianta consumir todas as suas forças
para criar filósofos e artistas, se estes vierem a ser como alguns
cometas, que passam sem deixar rastro.

A cultura não exige dos que a servem apenas intenções e


experiências pessoais. Ela exige atividade, isto é, um ato determi-
nado de combate pela cultura, de luta contra as instituições que não
tenham por objetivo “engendrar o gênio” e a “maturação de sua obra
em si e em torno de si”.

55 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 7.


56 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, §7.

SUMÁRIO 71
O GÊNIO

O QUE É O GÊNIO PARA NIETZSCHE?


Não pretendemos fazer aqui uma exposição da teoria do
gênio em Nietzsche, nem mostrar sua filiação a Schopenhauer e, por
intermédio deste, a Kant. Indicaremos apenas alguns aspectos da
teoria do gênio em Nietzsche que tenham interesse para a questão
da educação e da cultura. O gênio é a grande natureza contempla-
tiva armada para a criação eterna57. A extensão da alma, a força da
imaginação, a atividade do espírito, a abundância e a irregularidade
das emoções – tudo isso compõe o caráter do gênio. É sensível a
todas as formas de expressão da natureza. A floresta e o rochedo, a
tempestade e o sol, a flor solitária e o murmúrio das águas vêm ao
seu encontro e falam sua língua.

O nascimento do gênio não depende da cultura: é uma


dádiva da natureza, mas “foi amadurecido e nutrido no seio materno
da cultura de um povo – enquanto, sem esta prática que o protege e
o aquece, ele estará na impossibilidade absoluta de desdobrar suas
asas para seu voo eterno.”58

O percurso do gênio é sempre penoso e solitário. Por ser ori-


ginal, isto é, ver sempre as coisas pela primeira vez, é vítima de uma
série de mal-entendidos. Enquanto os homens comuns e os eruditos
se preocupam com o esquadrinhamento do que é útil e chamam a
isso de cultura geral, o gênio está além das motivações interesseiras
e interessadas e tem uma visão de conjunto do conhecimento e da
vida. É um “homem-destino”, um instrumento do fundo criador da vida,

57 CF. Friedrich Nietzsche, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 138.


58 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 120.

SUMÁRIO 72
investido de uma missão cósmica de preservar a vida e fazê-la fruti-
ficar. Ultrapassa a compreensão, mas não a percepção dos homens.

OS TRÊS EGOÍSMOS
Os setores que promovem a cultura deveriam ter como
meta a criação do gênio. Entretanto, sua finalidade é outra. Esse
desvio ocorre, segundo Nietzsche, por interferência de três egoís-
mos: o egoísmo das classes comerciantes, o egoísmo do Estado e
o egoísmo da ciência.

■ O egoísmo das classes comerciantes

As classes comerciantes necessitam da cultura e a fomen-


tam, embora prescrevendo regras e limites para sua utilização. Eis o
seu raciocínio: quanto mais cultura, maior consumo e, portanto, mais
produção, mais lucro e mais felicidade. Os adeptos dessa fórmula
definem a cultura como um instrumento que permite aos homens
acompanhar e satisfazer as necessidades de sua época e um meio
para torná-los aptos a ganhar muito dinheiro. Assim, os estabele-
cimentos de ensino devem ser criados para reproduzir o modelo
comum e formar tanto quanto possível homens que circulem mais
ou menos como “moeda corrente59”. Com a ajuda de uma formação
geral não muito demorada, pois a rapidez é a alma do negócio, eles
devem ser educados de modo a saber exatamente o que exigir da
vida e aprender a ter um preço como qualquer outra mercadoria.
Assim, os estabelecimentos de ensino devem ser criados para repro-
duzir o modelo comum e formar tanto quanto possível homens que
circulem mais ou menos como “moeda corrente”. Com a ajuda de
uma formação geral não muito demorada, pois a rapidez é a alma

59 Cf. Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, §6.

SUMÁRIO 73
do negócio, eles devem ser educados de modo a saber exatamente
o que exigir da vida e aprender a ter um preço como qualquer outra
mercadoria. Assim, para que os homens tenham uma parcela de feli-
cidade na Terra, não se deve permitir que possuam mais cultura do
que a necessária ao interesse e ao comércio mundial.

■ O egoísmo do Estado

O Estado também deseja a extensão e a generalização da


cultura, e tem em mãos os instrumentos para isso. Tem interesse no
desenvolvimento intelectual de uma geração, para fazê-la servir e
ser útil às instituições estabelecidas. Quer fazer acreditar que é fim
supremo da humanidade, não havendo dever maior para o homem do
que servi-lo; apresenta-se como o “mistagogo da cultura”, o mentor
das artes, quando, na verdade, visa apenas ao seu próprio interesse
– ou seja, formar quadros de funcionários para mantê-lo existindo.60

■ O egoísmo da ciência

Em terceiro lugar, vêm o egoísmo da ciência e a singular


atitude de seus servidores: os cientistas. Enquanto se entender por
cultura o progresso ciência, esta passará impiedosa e gelada diante
do grande homem que sofre, pois vê em todo lugar problemas de
conhecimento. A principal característica do cientista é a avidez insa-
ciável por conhecimento. O avanço a qualquer preço e a toda velo-
cidade; a pesquisa cada vez mais “produtiva”, no sentido econômico
da palavra; o culto idolátrico do real, “fazendo justiça aos fatos” – eis
o que caracteriza a ciência.

O cientista, como Nietzsche faz observar em seu livro “Assim


falou Zaratustra”, é o “homem sanguessuga”61, que substitui o culto
dos valores divinos pelo culto da ciência. Míope para tudo que está
fora de sua lente de aumento, é incapaz de olhar para além de suas

60 Cf. Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 127.


61 Friedrich NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra. “A sanguessuga”.

SUMÁRIO 74
próprias botinas; preocupado com as mais minúsculas questões
– por exemplo, com o “cérebro da sanguessuga” –, transforma o
próprio conhecimento numa sanguessuga que escarifica e mutila a
própria vida. Com a pretensão de tudo julgar objetivamente, disseca,
apalpa, despedaça; em suma, anatomiza o que chama de realidade e
reza a ladainha dos “coveiros do presente”: “Tudo merece perceber”.

A CIÊNCIA E O CIENTISTA
A concepção de ciência não se mantém inalterada ao longo
da obra de Nietzsche. No período que vai aproximadamente de
1870 a 1876, a ciência é o saber que destrói as ilusões salutares à
sobrevivência dos homens.

Tudo analisar e decompor esteriliza a força criadora humana.


A vida tem necessidade de um olhar que a embeleze, pois ela só é
possível “pelas miragens artísticas”. O homem da ciência retira o véu
benfazejo que cobre a vida e a embeleza, e isso tudo em nome do
real e da verdade. Nietzsche, ao criticar a ciência, não visa aniquilá-
-las, mas conter seus excessos. A vida em pedaços garante menos
vida para o futuro do que a vida enfeitiçada por algumas quimeras.

A luta do cientista pela verdade, pelo novo e raro, em opo-


sição ao velho e tedioso, é apenas um pretexto para encobrir a
personalidade que quer afirmar-se. Pode-se encontrar no cientista
uma vontade de encontrar “determinadas verdades”, mas isso “por
servidão para com certas pessoas, para com as castas, para com
as opiniões, para com as igrejas e para com os governos reinan-
tes, porque ele sente que presta serviço a si próprio, colocando a
verdade de seu lado.”

SUMÁRIO 75
Nietzsche, com a acuidade de um grande psicólogo, fareja
as entranhas da alma do cientista e revela suas qualidades mais
fundamentais. Destas, a primeira é a retidão e simplicidade. A sim-
plicidade do cientista não vale grande coisa. No campo da ciência,
raras vezes é fecunda, pois se prende ao habitual. Como tudo o que
é novo exige uma mudança de ponto de vista, a honestidade da
qual os cientistas costumam gabar-se venera a opinião em curso,
acusando a falta de juízo de quem defende o novo. A doutrina de
Copérnico, por exemplo, encontrou oposição porque tinha contra ela
o hábito. A segunda qualidade do cientista é a perspicácia para as
coisas que se encontram ao alcance de seus olhos, aliada à maior
miopia quando trata de julgar algo fora de seu campo de visão. Só
vê pedaços e limita-se a deduzir sua coesão. Está condenado a ver
fragmentos e nunca a totalidade.

A terceira qualidade do cientista é a natureza vulgar e pro-


saica das suas inclinações e aversões. Dotado dessas qualidades,
ele tem êxito sobretudo no que diz respeito à história. Adultera os
fatos passados para adequá-los ao que conhece. A quarta qualidade
do cientista é a frieza e pobreza de sentimentos, que o predispõe
para a dissecação. A quinta qualidade é a “ideia medíocre que tem
de si mesmo” – em outras palavras, sua modéstia. A sexta qualidade
é a fidelidade que dedica aos seus mestres e educadores. Devota a
eles gratidão, pois sabe que foi por meio deles que pôde fazer parte
do meio científico. Sem a ajuda deles e seguindo seu próprio cami-
nho, jamais conseguiria chegar aonde chegou.

A sétima qualidade é a rotina profissional que encaminha


o cientista sempre na mesma direção, sempre seguindo o hábito.
A rotina torna-o “colecionador”, “exegeta”, “fabricante de índex”.
Instrui-se e faz investigações sempre no mesmo domínio, simples-
mente porque não pensa que existam outros. A oitava qualidade é
o medo do tédio. Enquanto o verdadeiro pensador busca o ócio, o

SUMÁRIO 76
cientista comum não sabe o que fazer com ele. Procura os livros,
escuta o que os outros pensaram e se diverte com tal ocupação.

A nona qualidade é a importância que dá ao ganha-pão.


Serve-se da verdade quando ela pode ser útil aos que lhe dão dinheiro
e títulos. Por isso, estabelece uma fronteira entre as verdades úteis e
as que não merecem ser exploradas, porque não lhe trazem nenhum
lucro. A décima qualidade é o respeito que tem aos colegas e o temor
de seu desprezo. Vigiam-se mutuamente, de tal modo de seu des-
prezo. Vigiam-se mutuamente, de tal modo que a verdade da qual
dependem tantas coisas – o pão, a função, os títulos – seja batizada
com o nome do inventor. Rendem homenagens ao autor de uma
descoberta, para que, mais tarde, ele lhes retribua com a mesma
moeda. Os erros e as contradições são ruidosamente desmascara-
dos, a fim de que não haja muitos competidores. Muitas vezes, abafa
uma verdade autêntica para dar lugar a um erro proveitoso.

A décima primeira qualidade é a vaidade. O cientista quer


se o único em determinado domínio do conhecimento e, assim, tor-
nar-se objeto da curiosidade da comunidade acadêmica nacional e
internacional. A décima segunda qualidade é o apreço ao jogo. Sua
diversão consiste em encontrar pequenos nós na ciência e desatá-
-los, desde que não lhe causem muito esforço, pois não quer perder o
espírito esportivo. A décima terceira qualidade é o espírito de justiça,
qualidade nobre, que deveria expandir-se mais entre os cientistas.

O egoísmo da classe dos comerciantes, o egoísmo do


Estado, o egoísmo da ciência resumem-se, pra Nietzsche, no fato
de servirem-se da cultura em benefício próprio. Visando ao lucro, os
negociantes exigem educação e cultura. O Estado, “o patrão de todos
os egoísmos inteligentes”, utiliza-se da cultura para se promover. O
cientista acredita fazer algo para a cultura, quando, na verdade, está
a serviço de suas próprias necessidades. As três potências egoístas
desviaram a cultura de seus objetivos e impediram que a tarefa da
educação fosse o desenvolvimento pleno de todas as potencialidades

SUMÁRIO 77
humanas. Conclui-se daí que não existem instituições para a verda-
deira cultura, ou seja, para aperfeiçoar a natureza e acelerar a vinda
do filósofo e do artista – em suma, do gênio.

UMA NOVA CONCEPÇÃO DE CULTURA


Nietzsche afirma que é preciso desviar o olhar das institui-
ções alemãs, criando outras cujo objetivo não seja construir uma
cultura decorativa. Essas novas instituições terão de recusar toda
educação histórica e propor outro tipo de educação que não tenha
suas raízes na Idade Média nem considere o erudito medieval como
modelo de formação perfeita.

Com a convicção de estar se aventurando em um terreno


novo da pedagogia, Nietzsche, para opor-se à educação de sua
época, propõe uma outra concepção de educação e cultura: “um
problema de educação sem equivalente, um novo conceito de cultivo
de si, defesa de si até a dureza, um caminho em direção à grandeza.”
Um adestramento, em oposição à domesticação.

Cultura e educação, para Nietzsche, são sinônimos de “ades-


tramento seletivo” e “formação de si”. Na época das “Considerações
extemporâneas” e de “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de
ensino”, ele ainda não tinha nítida a distinção que mais tarde iria fazer
entre “adestramento seletivo” e “domesticação”. Em um fragmento
de 1888, observa que não há pior confusão do que a de se confun-
dir domesticação (Zähmung) e adestramento (Züchtung). Para ele,
adestramento significa “um meio enorme de acumulação de forças
da humanidade, de tal modo que as gerações possam continuar a
construir a partir do trabalho das que as precederam, desenvolver-se
e tornar-se mais fortes, não somente exteriormente, mas interior-
mente, organicamente.”

SUMÁRIO 78
A educação moderna é, para Nietzsche, sinônimo de domes-
ticação. O ideal desse tipo de educação é formar o jovem para ser
“erudito”, comerciante ou funcionário do Estado, transformá-lo em
uma criatura dócil e frágil, indolente e obediente aos valores em
curso. Quando concebida como “adestramento seletivo”, a educa-
ção tem outros objetivos. Adestrar um jovem significa fazê-lo obe-
decer a certas regras e adquirir novos hábitos, torná-lo senhor de
seus instintos e hierarquizá-los, de modo que o instinto de “saber a
qualquer preço” não se sobreponha. O produto desse adestramento
não é um indivíduo fabricado em série, adaptado às condições de
seu meio, a serviço das convenções do Estado e da Igreja, mas um
ser autônomo forte, capaz de crescer a partir do acúmulo de forças
deixadas pelas gerações passadas, capaz de mandar em si mesmo,
sem precisar recorrer a qualquer instância autoritária. Tem-se, então,
alguém que se atreve a ser ele mesmo e a destacar-se do homem
comum, capaz de agir voltado para o futuro, e não apenas para a
sociedade existente.

O sentido da vida não reside na manutenção das instituições,


nem no progresso destas; ele está nos indivíduos. Por isso, toda edu-
cação e toda cultura devem ser um adestramento. Tal deverá ser a
biografia de todos os homens: um despojamento perpétuo das coi-
sas mortas, semelhante à troca diária que fazemos de nossos trajes.
A vida deve refletir nossa originalidade, pois “cada um, no fundo, é
gênio, na medida em que existe uma vez e lança um olhar inteira-
mente novo sobre as coisas. Multiplica a natureza, cria por este novo
olhar.”62 “Salvem seu gênio!, é o que preciso gritar para as pessoas,
liberem-no. Façam tudo para libertá-lo.” 63 “Devemos sempre refa-
zer tudo para nós e somente para nós; por exemplo, medir a ciência

62 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, primavera-verão de 1874, 34 [8].


63 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, Primavera-verão de 1875, 5 [182].

SUMÁRIO 79
com esta questão: o que é a ciência para nós?, e não: o que somos
nós pra a ciência?” 64

Uma cultura autêntica pressupõe a fusão da vida e da cul-


tura, a partir da necessidade vital de um povo e do desenvolvimento,
na “justa proporção”, de todos os seus instintos e dons, de modo
que frutifiquem em ações e obras e criem, no estilo da obra de
arte, uma unidade viva.

Um povo, uma nação, uma cultura, uma civilização são pen-


sados por Nietzsche a partir do modelo da arte, ou melhor, como
atividade criadora de “belas possibilidades de vida”. A fim de fun-
dar uma civilização, para a qual Beethoven já escreveu a música,
é preciso que a cultura alemã viva e aja em conformidade com as
aspirações mais nobres de seu povo, reviva o passado exemplar de
forma a encontrar um modelo para o futuro e, finalmente, limite o
domínio da história – isto é, reserve um lugar mais alto para a vida, de
tal modo que ser cultivado signifique possuir uma tradição contínua
de conhecimentos e de pensamentos nobres, prolongá-los em si e
transformá-los em ações.

64 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, março 1875, 3 [69].

SUMÁRIO 80
3
EDUCAÇÃO
E CULTURA
TENDÊNCIAS QUE MINAM A EDUCAÇÃO
Em suas conferências “Sobre o futuro de nossos estabele-
cimentos de ensino”, Nietzsche examina, tal como um arúspice, as
entranhas do sistema educacional de sua época. O Estado e os
negociantes são os primeiros grandes responsáveis pela depau-
peração da cultura. Eles entravam a lenta maturação do indivíduo,
a paciente “formação de si”, que deveria ser a finalidade de toda a
cultura, exigindo uma formação rápida, para terem a seu serviço fun-
cionários eficientes e estudantes dóceis, que aprendam rapidamente
a ganhar dinheiro. Mas isso não é tudo. Exigem também uma educa-
ção aprofundada, que lhes permita boa especialização para poderem
ganhar ainda mais dinheiro. A pressa indecorosa leva os estudantes,
numa idade em que ainda não estão amadurecidos o suficiente, a se
perguntarem qual profissão devem escolher.

Todavia, não são apenas o Estado e a classe dos comercian-


tes os únicos responsáveis pelo empobrecimento do ensino e seu
consequente reflexo negativo na cultura. A própria ciência, cujos
métodos de estudo se aplicam em tudo conhecer, tem como única
preocupação criar homens teóricos, sugando, assim, as “forças vivas
da juventude”. Como a exploração do homem em proveito da ciên-
cia é um princípio comumente admitido nos estabelecimentos de
ensino, ninguém mais discute seu valor para a vida.

As duas tendências da educação que vigoram no sistema


educacional na época de Nietzsche, a ampliação máxima da cul-
tura e a redução da cultura, embora aparentemente opostas, estão
conjugadas para perseguir os mesmos objetivos das três forças – o
Estado, os negociantes e a ciência – que, em última instância, nada
mais fazem do que trabalhar para o enfraquecimento da cultura.

A primeira tendência, a da “ampliação máxima”, pretende


que o direito à cultura seja acessível a todos, e exige que para isso

SUMÁRIO 82
seja seguido o dogma da economia política: “tanto conhecimento
e cultura quanto possível – logo tanta produção e necessidade
quanto possível – daí tanta felicidade quanto possível: eis mais
ou menos a fórmula.”65

A segunda tendência, a “da redução da cultura”, pretende que


os indivíduos consagrem sua vida à defesa dos interesses do Estado
e exige que seus servidores procurem uma especialização, isto é,
sejam “fiéis às pequenas coisas” e ao Estado.

Aliada a essas tendências, encontra-se, segundo Nietzsche,


a cultura jornalística. Esta é a confluência das duas tendências ante-
riores, o lugar onde se encontram e dão as mãos. A cultura ampliada,
a cultura especializada e a cultura jornalística se completam para
formar uma só e mesma incultura.

De acordo com Nietzsche, a cultura jornalística vai substi-


tuindo aos poucos a verdadeira cultura. O jornalista – o “mestre do
instante”66, o “escravo de três M: o momento presente, as maneiras
de pensar e a moda” – passa com pressa e ligeiramente sobre as
coisas. Escreve sobre o gênio e vem tomando o seu lugar, “do guia
eleito para sempre”, e lançado por terra sua obra. Mas, enquanto o
jornalista vive do instante e graças ao gênio de outros homens, as
grandes obras emanam do desejo de permanecer, sobrepujando o
tempo por meio da força da criação.

Assim, enquanto o sistema pedagógico estiver atrelado à


ampliação e à especialização, não se poderá falar em uma educa-
ção voltada para a cultura, pois aquelas duas tendências, aliadas à
cultura jornalística, são contrárias aos desígnios da natureza, isto é, à
criação do gênio, “à manutenção de sua obra em si e fora de si.”

65 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 94.


66 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos póstumos: primavera-verão de 1874, 35 [12].

SUMÁRIO 83
Nietzsche adverte: não confundam cultura de massa com cul-
tura popular67. Elas não são sinônimas: “Pela instrução elementar obriga-
tória para todos, não se chega ao que se chama de cultura popular a não
ser de uma forma grosseira e artificial.” Segundo Nietzsche, a cultura
popular é a que está ligada à terra natal e aos costumes locais: “onde
o povo conserva seus instintos religiosos, onde continua a trabalhar no
sistema poético de suas imagens míticas, em que permanece fiel aos
seus costumes, ao seu direito, ao solo de sua pátria, a sua língua.”68

Ao separar o popular e a massa, Nietzsche quer deixar claro o


perigo que corre a cultura ao permitir que as classes iletradas sejam
contaminadas pelos valores de sua época. Isso ocasionaria a perda
do solo e das tradições de onde o gênio se nutre e amadurece.

Os partidários da cultura de massa, como pretexto de levá-la


a todos os recantos do planeta, destroem a cultura diferenciada de
cada povo – desviando-os de seu “sono salutar”, de seu sistema poé-
tico de imagens míticas, de suas ilusões sadias, para seduzi-los com
a linguagem da fábrica e submetê-los às leis da oferta e da procura.
Acima de tudo (e aqui a crítica de Nietzsche se faz mais intensa), a cul-
tura de massa reduz tudo ao menor denominador, a ponto de excluir
tudo o que é grande. É por recusar o nivelamento que Nietzsche
acredita ser preciso manter a classe iletrada afastada da classe dos
letrados. A cultura vulgarizada, difundida em todos os lugares, fabrica
um edifício de opiniões convencionais, no qual camadas inteiras da
população se movem indolentes e com falso entusiasmo.69

A proliferação cada vez maior de escolas e a multidão de


professores despreparados enfraquecem a cultura, a ponto de não

67 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 119-120.


68 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 120.
69 Nietzsche coloca suas esperanças numa renovação cultural nas “classes inferiores e iletradas”.
É com elas que se encontra, segundo ele, a cultura de um povo, por isso teme que a classe dos
letrados contamine essas classes com a cultura apressada de sua época.

SUMÁRIO 84
se poder fundar nenhuma “hierarquia natural”, nenhum privilégio,
nenhum respeito ao gênio.

Esse tipo de educação tem, segundo Nietzsche, seus dias


contados. O primeiro que ousar denunciar os pressupostos da ins-
trução moderna, tiver a coragem de romper com o estabelecido,
evidenciar o contraste entre a verdadeira e a falsa cultura – esse
homem encontrará eco em outras pessoas que, como ele, sofrem
com o enfraquecimento do espírito pedagógico, desejando pelo
menos libertar seus herdeiros de tal peso.

Com o propósito de restaurar a cultura alemã, Nietzsche exa-


mina as instituições de ensino responsáveis pelas diferentes etapas
de formação dos adolescentes – o Gymnasium, a escola técnica e a
universidade –, denunciando o que as envenena e indicando remé-
dios para combater o mal. Quanto ao Gymnasium, Nietzsche tem
muito a dizer. Para ele, ainda não se fizera nada por essa etapa de
formação dos estudantes, talvez a mais importante, pois vai refle-
tir-se nas fases posteriores do aprendizado. Logo, toda renovação
deverá começar pelo Gymnasium.

Mas por onde começar a buscar uma alternativa? A essa per-


gunta bem-intencionada, Nietzsche responde na experiência que se
teve no Gymnasium, na reflexão sobre suas próprias experiências nas
instituições pedagógicas, no que agradou e desagradou.

“A LÍNGUA É MINHA PÁTRIA”70


Descontente com sua experiência da prática da “composi-
ção alemã” no Gymnasium e com a profunda erosão sofrida pela
língua ao longo dos anos, Nietzsche indica diferentes perspectivas

70 Verso da música “Língua”, de Caetano Veloso.

SUMÁRIO 85
para uma reformulação desse ensino. Ele vê na aprendizagem cons-
cienciosa da língua materna e da arte de escrever uma das tarefas
essenciais da escola secundária. O tempo em que se falava bem pas-
sou. A língua alemã encontra-se contaminada pelo “pretenso estilo
elegante” do jornalismo. Todas as pessoas falam e escrevem mal. O
acesso dos semiletrados ao poder provocou uma drástica redução
da riqueza e dignidade da língua. A questão, no entanto, não é ape-
nas de pobreza vocabular – trata-se também da má utilização dos
recursos oferecidos pela língua.

A tarefa de uma escola de alta qualidade deve ser, por isso,


“adestrar linguisticamente” o estudante, fazê-lo começar a levar o
estudo do vernáculo a sério, pois o declínio da força vital da língua
contribui para a degeneração da cultura. Se o professor não conseguir
incutir nos jovens estudantes uma “aversão física” por determinadas
palavras e expressões com que os habituaram os jornalistas e os
maus romancistas, é melhor, segundo Nietzsche, renunciar à cultura.

No Gymnasium, o professor de alemão deve chamar a aten-


ção de seus alunos para a inadequação vocabular e proibi-los de
usar os lugares-comuns despejados pela imprensa. Para isso, é
necessário analisar os clássicos linha a linha, palavra por palavra,
e estimular os alunos a exprimirem um mesmo pensamento várias
vezes e cada vez melhor. Manuseando os múltiplos recursos da sin-
taxe, os menos capazes adquirirão um medo sagrado da língua, e
os mais dotados, um nobre entusiasmo por ela: “E ninguém acredite
que seja fácil criar esse sentimento de aversão física; mas também
ninguém espere chegar a um julgamento estético por outro caminho
que não seja o caminho penoso da língua, e não pela ciência linguís-
tica, mas pelo adestramento linguístico.”71

Nietzsche compara tal tarefa aos esforços e sensações expe-


rimentados pelo soldado, quando este aprende a marchar:

71 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 108.

SUMÁRIO 86
São meses penosos; teme-se que as fibras se rompam,
perde-se toda esperança de executar algum dia cômoda
e facilmente os movimentos e posições dos passos que
se aprendem artificial e conscientemente; vê-se com
terror como se é grosseiro e desajeitado em colocar um
pé diante do outro e teme-se ter desaprendido qual-
quer forma de caminhar e de nunca aprender a correta.
E súbito se percebe que os movimentos artificialmente
estudados tornaram-se um novo hábito e uma segunda
natureza e que a segurança e a força que tinha antiga-
mente o passo vêm reforçadas e mesmo acompanhadas
de uma certa graça; sabe-se então como é difícil marchar
e pode-se debochar do empírico grosseiro ou do diletante
da marcha com gestos elegantes.72

A educação começa com hábito e obediência, isto é, com


adestramento. “Adestrar linguisticamente” o jovem não significa
domesticá-lo com um acúmulo de conhecimentos históricos acerca
da língua, mas sim fazê-lo construir determinados princípios, a par-
tir dos quais possa crescer por si mesmo, interior e exteriormente.
Significa tornar-se senhor de seu idioma e continuar a construir uma
língua artística, a partir do trabalho dos que o precederam, único
meio de assegurar um futuro para o alemão. O “adestramento lin-
guístico” – em outras palavras, o estudo da língua levado a sério – é
o primeiro requisito para uma verdadeira cultura.

Em lugar dessa instrução puramente prática pela qual o mes-


tre deve habituar seus alunos a uma “severa educação de si no domí-
nio da língua”, o professor do Gymnasium prefere a “erudição histó-
rica”, isto é, trata o idioma como se este estivesse morto. A cultura
histórica enraizou-se de tal modo na cultura alemã que até o “corpo
vivo” da língua é estudado anatomicamente, como se não se tivesse
mais nenhuma obrigação para com o passado e o presente. Não é
por acidente, observa Nietzsche, que a estrutura filológica da edu-
cação tenha produzido seres tão fieis à Prússia. Deram formalismo à

72 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 108.

SUMÁRIO 87
língua, mas não forma; combinaram engenhosamente a gramática e a
ausência de humor; transformaram a palavra alemã num peso morto.

A cultura começa quando o vivente é tratado como algo vivo.


Para isso, faz-se necessário que a linguagem seja vivida, e não ape-
nas falada. A língua é um organismo vivo, infinitamente complexo,
mas ainda assim um organismo. Tem dentro de si uma força vital
e certos poderes de absorção e crescimento, mas, se continuar a
ser manuseada pela torrente de jornais e livros despejados pelas
novas impressoras da Alemanha de Bismarck, caminhará rapida-
mente para a dissolução.

A crítica estética nos jornais literários chegou às instituições


de ensino e corrompeu o gosto estético de professores e alunos. Os
estudiosos leem resenhas e críticas, em lugar dos próprios livros.
Quando os leem, seu gosto já está tão contaminado que passam
aos estudantes seus preconceitos e conhecimentos mal assimilados.

Como ir contra essa crescente profanação do corpo do


idioma, em que a pobreza da linguagem corresponde à pobreza das
opiniões? Como dar à língua alemã um estilo que não seja o jorna-
lístico, pretensamente elegante e imitado das letras francesas? Se a
atitude historicista levou os alemães a adornarem sua cultura com
o estilo de todos os povos de todas as épocas; se a própria lingua-
gem sofre com o artificialismo da cultura, a ponto de não possuir
uma unidade de estilo, a não ser a uniformização que lhe é dada
pela cultura jornalística – então, é preciso voltar aos clássicos da
língua alemã, estimá-los, e isso só é possível por meio de um “ades-
tramento linguístico”.

Embora os estabelecimentos pedagógicos abordem desde o


Gymnasium a civilização dos gregos e latinos, Nietzsche julga o sis-
tema incapaz de prover uma formação humanística. Cultura clássica é
saber usar com “seriedade e rigor artístico a língua materna”. A instru-
ção – como forma histórica e científica – em nada vinha contribuindo

SUMÁRIO 88
para isso. É no trabalho com a língua que se pode perceber o apreço
ou o despareço de uma cultura pela arte. Nas escolas alemãs, quase
nada resta da herança de Goethe, nem se sente a preocupação em
se formar uma língua artística.

Por isso, de nada adianta apresentar aos alunos um Homero


ou um Sófocles, sob o pretexto de lhes dar uma “cultura formal”, se
esta de pouco lhes servirá. Seria melhor que a aproximação dos
jovens com o mundo helênico, infinitamente afastado, se desse por
meio do interesse provocado pelo estudo dos clássicos – por exem-
plo, Goethe, Hölderlin, Kleist, Lessing, Winckelman, Schiller, poetas
e artistas que, por trazerem a cultura da Antiguidade no próprio san-
gue, saberiam despertar o gosto pela arte e o respeito aos clássicos
e, talvez, estimular os dons artísticos em seus leitores.

Assim, antes de fazer desfilar aos olhos do estudante toda


a galeria dos gregos, como se ele estivesse diante de um museu, o
professor deveria ajudá-lo a “aprender por si mesmo”, a “pensar por si
mesmo”, a “estetizar por si mesmo” – pois nem os professores secun-
dários estão capacitados a ensinar cultura clássica, nem os alunos
estão preparados para receber a massa de cultura histórica com que
se pretende educá-los.

Mas há ainda outro domínio – o da “composição alemã”73 –,


por meio do qual os professores exercem seu poder de maneira
prejudicial ao desenvolvimento do aluno. Nietzsche não gosta da
dissertação e da redação sobre temas específicos, estabelecidos
à revelia do aluno. Sofreu na própria pele a imposição de escre-
ver quando seu pensamento ainda não estava, para isso, sufi-
cientemente amadurecido.

Desde os primeiros anos de Gymnasium, requer-se do aluno


que descreva sua vida, seu desenvolvimento e outros assuntos por

73 Cf. Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 103.

SUMÁRIO 89
si mesmos antipedagógicos. Nietzsche alerta para o pecado origi-
nal que a pedagogia comete contra o espírito do educando, quando
exige que este produza redações a partir de uma lista de temas; essa
atividade, além de estéril, vai comprometer todo texto literário que
ele porventura venha a escrever.

Além desses assuntos vagos e gerais, o professor quer


que o aluno disserte sobre obras poéticas e problema éticos ou,
então, descreva personagens históricas, na forma de uma “pintura
de caracteres”. Como conclusão da dissertação, pede ao aluno que
faça uma apreciação crítica do tema selecionado. Tudo isso diante
de indivíduos surpresos e indecisos, perturbados pela enorme
variedade de assuntos.

Qual é a atitude do professor diante dessas redações? O


que reprova e louva nessas composições? Ele exige a originalidade,
o enforque pessoal, mas a originalidade, em última instância, fica
reduzida à escolha numa lista de temas. Reprova, sobretudo, a forma
exagerada de se expressar e a autonomia do pensamento – ou seja,
tudo o que, no modo de ver de Nietzsche, é próprio dos muitos
jovens. Nas escolas, louva-se principalmente aquilo que estiver de
acordo com os pontos de vista do professor. Obtém-se, assim, uma
“mediocridade uniforme”.

Nietzsche prossegue sua análise da “comédia da redação


alemã”, mostrando ainda que o professor se comporta como um
juiz, julgando sem parcimônia os que têm e os que não têm talento.
Desses veredictos, feitos às pressas, saem os jornalistas e os maus
romancistas, os que se apropriaram dos métodos, dos truques e do
tom superior de seus professores.

Segundo o filósofo, muito poucos conseguem realmente


se fazer entender por escrito. Assim, a única atitude digna de um
verdadeiro estudante é não recuar diante de um trabalho paciente
e minucioso com a palavra escrita, nem diante dos esforços para

SUMÁRIO 90
formar e exercer as qualidades indispensáveis à criação. Todos
os escritores são grandes trabalhadores, escreve Nietzsche em
“Humano, demasiado humano”. Por isso, “evitem falar de dons natu-
rais, de talentos natos. Podem-se citar nomes de grandes homens,
em diferentes domínios, que foram pouco dotados, mas eles
adquiriram essa grandeza, tornaram-se, fizeram-se gênios.”74 E isso
graças a uma paciente consciência do trabalho do artesão, daquele
que aprende perfeitamente a formar as partes, antes de se arriscar a
formar um grande conjunto.

Preocupado com a crescente deterioração da língua alemã,


Nietzsche, ainda em “Humano, demasiado humano”75, dá uma receita
de como formar um bom romancista: escrever mais de 100 ensaios
de uma ou duas páginas, em que toda palavra supérflua seja banida;
exercitar-se diariamente na redação de novelas, até encontrar a
forma mais densa, mais eficaz; recolher e descrever infatigavelmente
tipos, caracteres; contar e ouvir contar, observando o efeito produ-
zido; viajar como um paisagista, um pintor de costumes; tornar-se
um fino psicólogo, de tanto perscrutar os motivos das ações huma-
nas e colecionar dia e noite observações... Consagrem-se dez anos a
esse exercício variado, e então o que foi criado na oficina poderá se
apresentar à luz da rua.

Contudo, enquanto o professor cultivar a redação na escola


como se esta fosse um dilúvio de escritura, fazendo o aluno encher
papel e incentivando temas vagos; enquanto a língua for tratada
como um “corpo morto” e seu método não constituir um “adestra-
mento prático”, que incentiva um trabalho mais minucioso da palavra
– enquanto isso acontecer, os alunos não saberão se expressar e
permanecerão prisioneiros de si mesmos, pois “saber falar e escrever
significa tornar-se livre”76.

74 Friedrich NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, I, § 163.


75 Cf. Friedrich NIETZSCHE Humano, demasiado humano, I, § 163.
76 Friedrich NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 37 [ U II 7 c.] 37 [8].

SUMÁRIO 91
Há, segundo Nietzsche, um “remédio escondido” na insti-
tuição do Gymnasium, remédio que, de certa forma, pode contribuir
muito para a renovação do estudo da língua alemã – os exercícios
de tradução do latim: “É com eles que se aprende o respeito por
uma língua ficada pelas regras, pela gramática e pelo léxico. É aí que
se aprende o que é um erro.”77 A disciplina gramatical certamente
não pode proporcionar o sentimento de beleza helênica, escreve
Nietzsche, mas dá uma noção de erro gramatical e de regra. O hábito
da tradução afina os ouvidos para as nuanças da palavra, fecunda a
língua e, embora não ensine a escrever com originalidade, habitua o
estudante a ler com sentimento artístico. Infelizmente, esse remédio
aos poucos está desaparecendo do Gymnasium – ou, então, não vem
sendo ministrado corretamente.

Assim, o crescente desprezo pela formação humanística e


o aumento da tendência cientificista nas escolas; a proliferação de
estabelecimentos destinados à educação, sinônimo de diminuição
da qualidade de ensino; a instrução dirigida por questões históricas
e científicas, e não por um adestramento prático; o abandono do
ensino na formação de um sentido artístico da língua, em favor de
um duvidoso estilo jornalístico; a ênfase dada à profissionalização, no
intuito de criar pessoas aptas a ganhar dinheiro – tudo isso impede
que o sistema educacional volte-se para a cultura.

Segundo Nietzsche, o homem deve fazer tudo pela sua exis-


tência e sobrevivência, mas tudo o que fizer com esse objetivo não
pode ser chamado de cultura: “Toda educação que deixa entrever
no fim da carreira um cargo de funcionário, ou um ganha-pão, não
constitui uma educação para a cultura, como nós a compreendemos,
mas uma indicação do caminho pelo qual se salva e se protege o
indivíduo na luta pela existência.”78

77 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 111.


78 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 132.

SUMÁRIO 92
CRÍTICAS AOS ESTABELECIMENTOS
DE ENSINO
Nietzsche não vê com hostilidade a implantação e a pro-
liferação na Alemanha das escolas técnicas. Pelo contrário: ali, os
indivíduos aprendem a calcular convenientemente, a dominar a lin-
guagem para a comunicação e adquirem conhecimentos naturais e
geográficos. Em suma, de certo modo, elas cumprem, e com retidão,
seu objetivo, que é o de formar negociantes, funcionários, oficiais,
agrônomos, médicos e técnicos. O que Nietzsche censura, ao afir-
mar que a cultura não é “serva do ganha-pão e da necessidade”, é
o fato de o Gymnasium e a universidade se terem voltado para a
profissionalização e, apesar disso, continuarem a acreditar que são
lugares destinados à cultura, quando na verdade não se distinguem
muito da escola técnica em seus objetivos.

Da escola humanista idealizada por Friedrich August Wolf79,


que tinha por objetivo formar homens cultos, capazes de exercer
plenamente todas as potencialidades de seu espírito, pouco resta. A
tendência à profissionalização encontrada no Gymnasium desdobra-
-se na universidade. A escola secundária, ao preparar os jovens para
“a autonomia” que desfrutarão na universidade, já delineia os obje-
tivos culturais a serem ali aprofundados. A universidade, segundo
Nietzsche, não pode ter a pretensão de desempenhar o “papel
importante de centro motor”, pois sua estrutura pode ser conside-
rada um simples desenvolvimento do Gymnasium.80

Nietzsche não poupa críticas ao ensino superior. Começa por


investigar o significado daquela autonomia de que os universitários
tanto se orgulham: “Quando um estrangeiro quer conhecer o sistema

79 Friedrich August Wolf (1759-1824) fez uma reforma no ensino secundário alemão e muito contribuiu
para o desenvolvimento dos estudos clássicos na Alemanha.
80 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 150.

SUMÁRIO 93
de nossas universidades, ele pergunta primeiramente, com insistên-
cia: “Como o aluno está ligado à universidade?” Respondemos: “Pelo
ouvido, é um ouvinte.” O estrangeiro se espanta. “Apenas pelo ouvido?”,
pergunta mais uma vez. “Apenas pelo ouvido”, respondemos mais
uma vez. “O estudante ouve.”81 Neste pequeno diálogo, está contido
o essencial do ataque de Nietzsche à universidade. Os estudantes
creem-se livres e autônomos, quando, na verdade, estão presos pelo
ouvido e deixados a sua própria sorte: sem guias e autossuficientes.

“Uma boca que fala, muitos ouvidos e menos da metade


de mãos que escrevem – eis o aparelho acadêmico aparente, eis a
máquina de cultura da universidade posta em atividade.”82 O profes-
sor fala. Os alunos escutam. Em geral, o professor quer ter “o maior
número possível de ouvintes, em caso de necessidade ele se con-
tenta com alguns, quase nunca com um só.”83 Mas muitas vezes “o
estudante escreve ao mesmo tempo que escuta. São os momentos
em que está preso ao cordão umbilical da universidade. Ele pode
escolher o que vai ouvir, ele não tem necessidade de acreditar no
que ouve, ele pode tapar o ouvido quando não quiser ouvir.”84

Para Nietzsche, a “liberdade acadêmica” é o nome que se dá


a esta dupla anatomia: de um lado, uma boca autônoma; de outro,
orelhas autônomas. Atrás desses dois grupos, a uma relativa distân-
cia, está o vigilante Estado, lembrando, de tempo em tempos, que
deve ser ele “o objetivo, o fim e a quinta-essência desses procedi-
mentos de fala e de audição.”85

81 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 152.


82 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 152.
83 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 152.
84 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 153.
85 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 153.

SUMÁRIO 94
O estilo “acromático”86 de ensino é justamente o oposto do
que Nietzsche entende que deva ser a educação na universidade. Ali,
onde se deveria exigir do aluno um treinamento rigoroso, inventou-se
a autonomia. Tal autonomia nada mais é do que uma domesticação
do aluno, para torná-lo uma criatura dócil e submissa aos interesses
do Estado e da burguesia.

Os alunos podem ser autônomos quando na companhia de


amigos e em atividades artísticas, mas não são autônomos na uni-
versidade. A liberdade de poder escolher os cursos que querem ouvir
e a liberdade de não escolher nenhum é um direito que a academia
lhes faculta – só que, próximos à realização dos exames, devem ins-
talar-se nos auditórios lotados e ouvir, caso contrário não estarão
aptos a assegurar a sua profissionalização.

Todavia, o estudante sofre com a prisão de seu sentido audi-


tivo e com a pauperização da cultura. Servindo-se dessa “liberdade
acadêmica”87, sem saber o que se esconde por trás, pretende repro-
var, justamente, o sistema educacional. Por meio dela, quer fazer
frente ao estado de domesticação em que se encontra o homem e
tornar-se um indivíduo livre. Na sua inexperiência, no seu desejo de
autonomia, considera-a um paradigma para toda a educação futura.

No entanto, a ilusão da “liberdade acadêmica” acaba não se


mostrando benéfica. O estudante ressente-se quando percebe que
não existem, na universidade, educadores para guiá-lo; tem neces-
sidade, ante a ambiguidade da existência e a perda das opiniões
tradicionais, de alguém que o ajude a chegar a si mesmo.

Se a primeira crítica de Nietzsche ao ensino superior dirige-


-se à “liberdade acadêmica”, a segunda está centrada no fato de a
universidade não formar indivíduos para a cultura.

86 Nietzsche denomina acromático o método de ensino que privilegia a exposição oral do professor
e a audição do aluno.
87 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 152.

SUMÁRIO 95
É necessário conter a tendência histórico-científica e pro-
fissionalizante na universidade – tendência que exige da educação
um preparo mais rápido, aprofundado apenas o bastante para trans-
formar os indivíduos em servidores eficientes – e fazer com que a
instituição se volte para os problemas da cultura, ou seja, para as
questões essenciais colocadas pela condição humana. Dessa forma,
Nietzsche propõe que se investigue como essas questões estão
colocadas no conjunto da arte e da filosofia, as únicas disciplinas
capazes de moderar a feição histórico-científica que se espa-
lha pela universidade.

A CIÊNCIA E A ARTE
A universidade não tem nenhum comportamento que indi-
que seu apreço pela arte, afirma Nietzsche. Isso não quer dizer
que ali não haja professores com inclinação ou gosto pela arte. O
problema é que, apesar de existirem matérias que ensinem histó-
ria da arte, a universidade não pode dar ao estudante um “ades-
tramento artístico”88.

E para que poderia servir o “adestramento artístico” do jovem?


Em uma única palavra, para a vida – disciplinado o “instinto desenfre-
ado de conhecimento”, que domina todos os outros instintos, a ponto
de colocar a vida em perigo. Na universidade, um “adestramento
artístico” contrabalançaria os efeitos nefastos da compulsão de
saber a qualquer preço e disciplinaria o “instinto de conhecimento”
e a própria ciência. Pois a ciência, ao querer conhecer a vida custe o
que custar, “destrói as ilusões” que ajudam o homem a viver. Incapaz
de dar sentido e beleza à existência, de considerar a vida em seu
conjunto, coloca por terra o único ambiente em que se pode viver.

88 Friedrich NIETZSCHE, Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, p. 155.

SUMÁRIO 96
Ao instinto desenfreado da ciência, que tudo quer conhecer,
que revira a vida e a vasculha em seus mínimos detalhes, Nietzsche
opõe a arte. Esta, ao contrário da ciência, não se interessa por tudo o
que é “real”, não quer tudo ver, nem tudo reter – é anticientífica.

Mais importante ainda: a arte, em lugar de dissecar a vida,


é fonte de dissimulação. Numa época em que vida e cultura estão
separadas, a arte tem um papel fundamental: afirmar a vida em
seu conjunto. Reforça certos traços, deforma outros, omite mui-
tos outros, tudo em função da vida, da transfiguração do real. Em
suma, a arte nos liberta, ao passo que a dura e cotidiana experiência
do real nos submete.

Não se pode extrair da exposição de Nietzsche um projeto


de “adestramento artístico” do jovem universitário, como foi feito
em relação ao “adestramento linguístico”. Mas, embora não indique
explicitamente como deva ser realizado tal adestramento, Nietzsche
deixa bem clara a sua finalidade.

Por meio dessa educação para a arte, o jovem universitário


seria capaz de, primeiro, contestar a pretensão científica de tudo
conhecer; segundo, conduzir o conhecimento de modo a fazê-lo
servir a uma melhor forma de vida; terceiro, devolver à vida as ilu-
sões que lhe foram confiscadas; quarto, restituir à arte o direito de
continuar a cobrir a vida com os véus que a embelezam.

Todavia, segundo Nietzsche, a universidade alemã não soube


utilizar de um “adestramento artístico”, nem teve interesse em conter,
por meio da arte, as tendências cientificistas. Em vez de a arte de
servir como antídoto à contaminação da cultura pela ciência, o sábio
erudito serviu-se dos métodos científicos para investigar a arte. A
música, por exemplo, é objeto de dissecação, como se fosse possível
analisar com erudição o êxtase. É desse modo que os professores
universitários demonstram seu apreço pela arte – apresentando-se
como seus peritos, quando na realidade gostariam de suprimi-la.

SUMÁRIO 97
A FILOSOFIA
Se a universidade não abre suas portas para a arte, tam-
bém não as abre para a filosofia. A esse respeito, a tese principal de
Nietzsche é a seguinte: o ensino universitário da filosofa não prepara
o estudante para pensar, agir e viver filosoficamente; pelo contrá-
rio, o “instinto natural filosófico” é imobilizado pela cultura histórica.
Na universidade, a filosofia está “política e policialmente limitada à
aparência erudita”. Por isso, “permanece no suspiro ‘mas se...’, ou no
reconhecimento: ‘era uma vez’. 89

As questões históricas introduziram-se de tal modo na filoso-


fia universitária que esta se resume em questões como: o que pensa
tal ou qual filósofo? Como estar certo de que determinado texto tenha
sido por ele escrito? E, finalmente, merecerá tal lição ser realmente
aprendida? Essa maneira neutra de tratar a matéria desenraizou a
filosofia universitária de todos os problemas fundamentais. Em lugar
de levar os estudantes a levantarem questões sobre a existência,
preocupa-se com as minúcias da história da filosofia; assim, a filoso-
fia reduz-se a um ramo da filologia. Como consequência, do mesmo
modo que a filologia está interessada apenas nas etimologias, e não
em um trabalho com a palavra viva, a filosofia restringe-se a estudar
o pensamento morto, que não mais serve à vida.

A crítica de Nietzsche à filosofia universitária (que aparece


na mesma época das “Extemporâneas” e “Sobre o futuro de nossos
estabelecimentos de ensino”) está sob a influência de um ensaio de
Schopenhauer, “Sobre a filosofia universitária”, que faz parte de seu
livro “Parerga e paralipomena”, publicado em 1851.

Em breves palavras, pode-se dizer que para Schopenhauer


não existem filósofos na universidade, mas professores que vivem

89 Friedrich NIETZSCHE, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, § 3.

SUMÁRIO 98
da filosofia, interessados em pensar no que seus interesses materiais
exigem e no que convém ao Estado e à religião. Nietzsche retoma e
aprofunda as críticas de Schopenhauer quanto à relação da filosofia
com o Estado e a cultura histórica.

No modo de ver de Nietzsche, o filósofo universitário é


o “anti-sábio” por excelência. É o filósofo do Estado, da religião, o
colecionador dos valores em curso, o funcionário da história que se
mascara com a filosofia para sobreviver. Assim como Schopenhauer,
Nietzsche acha que não existem filósofos na universidade, mas ape-
nas professores de filosofia, engrenagens uteis à sobrevivência da
maquinaria do Estado.

O que os filósofos universitários não haviam percebido é que


o Estado moderno não era mais aquele idealizado por Platão. Este
considerava necessária a criação de um organismo social comple-
tamente novo, no qual a formação do jovem ateniense não depen-
desse dos pais (que consideravam loucura a vocação filosófica dos
filhos e, por isso, condenaram Sócrates a tomar cicuta, sob a acusa-
ção de “corromper a juventude”). Mas o Estado moderno, a que as
almas se devotam completamente, como a abelha à colmeia, não
tem nenhuma intenção de criar novos “Platões”.

Se a natureza lança os filósofos como uma flecha para atingir


um alvo, deveria ser dever do Estado ajudá-la nesse processo, inter-
ferindo na cultura e na organização social. Mas acontece justamente
o contrário. Quem impede a produção e a perpetuação dos filósofos
são os próprios filósofos universitários, que vivem do Estado.

Quando o Estado promove a filosofia, favorece um número


de homens que podem “viver de sua filosofia”90, transformando-a
num ganha-pão. Ora, como se acredita que quem vive de algum ofí-
cio também dele entende, os professores se comportam diante de

90 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.

SUMÁRIO 99
um público como mestres no assunto, especialistas em filosofia e,
portanto, verdadeiros filósofos, que podem escolher e ensinar o que
julgam ser digno da atenção de suas audiências.

Nietzsche crê que Platão e Schopenhauer jamais poderiam ter


sido filósofos universitários, pois representariam um perigo para o Estado:
Em qualquer lugar em que tenha havido sociedades,
governos, religiões, opiniões públicas poderosas, em
resumo, em qualquer lugar onde tenha havido tirania,
ela execrou o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao
homem um asilo onde nenhuma tirania pode penetrar, a
caverna da interioridade, o labirinto do coração: o que não
agrada aos tiranos.91

O Estado teme os filósofos solitários e a filosofia em geral.


Por isso, tenta atrair para si o maior número de filósofos universitá-
rios, “que lhe deem a impressão de ter a filosofia do seu lado.”92 Se
chega a pôr em perigo a permanência do sistema, o filósofo sofre
uma “conspiração do silêncio” ou, então, é excluído e chamado de
louco, por se colocar numa posição superior e desejar ser árbitro
das ações do Estado.

Para poder ensinar, o filósofo universitário é obrigado a apre-


sentar não a verdade livremente procurada, mas as doutrinas que o
Estado julga necessárias à sua existência:
Tem de suportar ser considerado por ele como se tivesse
renunciado a perseguir a verdade em todos os seus esca-
ninhos. Pelo menos, enquanto for favorecido e empre-
gado, tem de reconhecer ainda, acima da verdade, algo
superior – o Estado. E não meramente o Estado, mas ao
mesmo tempo tudo o que o Estado exige para o seu bem:

91 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 3.


92 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.

SUMÁRIO 100
por exemplo, uma forma determinada de religião, a ordem
social, a organização militar.93

Mas será que os filósofos se deram conta dos compromissos


e restrições que teriam de suportar ao se submeterem? Em alguns
professores, a pergunta agirá como dinamite, “mas a maioria se con-
tentará em sacudir os ombros e dizer: pode-se ser grande e puro
nesta terra sem fazer concessão à baixeza humana?”

Esse compromisso com o Estado coloca em perigo o futuro


da filosofia. Primeiro, porque é o Estado quem escolhe seus servido-
res filosóficos, na exata proporção de sua necessidade de preencher
os quadros das instituições, além disso, outorga-se a competência
de escolher quem são os bons e os maus filósofos. Segundo, porque
obriga os professores a permanecerem nos seus postos e instruírem
todo jovem que deseja seus serviços, e isso num horário fixado de
antemão. Nietzsche pergunta: pode um filósofo, de boa-fé, compro-
meter-se a, diariamente, ensinar alguma coisa?
E a ensiná-la diante de qualquer um que queira ouvir?
Ele não tem de se dar a aparência de saber mais do que
sabe? Não tem de falar, diante de um auditório desco-
nhecido, sobre coisas que somente com o amigo mais
próximo poderia falar sem perigo? E, em geral: não se
despoja de sua mais esplêndida liberdade, a de seguir seu
gênio, quando este chama e para onde este chama, por
estar comprometido a pensar publicamente, em horas
determinadas, sobre algo predeterminado? E isso diante
de jovens! Um tal pensar não está de antemão como que
emasculado? Um dia, ele poderia sentir: hoje não consigo
pensar em nada, não me ocorre nada que preste – e ape-
sar disso teria de se apresentar e parecer pensar!94

Para Nietzsche, o esquema acadêmico foi tão bem montado


pelo Estado que não permite ao professor sofrer com a falta do que

93 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.


94 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.

SUMÁRIO 101
dizer, pois nem o professor nem o aluno pensam por si mesmos. A
cultura histórica e científica foi planejada pelo sistema universitário
para preencher qualquer lacuna. Há mesmo quem acredite que o
filósofo universitário não precisa ser um pensador, constituindo no
“máximo um repensador e um pós-pensador”95, um conhecedor eru-
dito de todos os pensadores, com os quais sempre poderá contar
para poder dizer algo aos seus alunos.

Esta é, segundo Nietzsche, a concessão mais perigosa que


os filósofos fazem ao Estado. Comprometem-se a fazer o papel do
erudito, do historiador da filosofia. A empregar todo o seu tempo em
conhecer apenas sistemas que a história apresenta como sendo dig-
nos da atenção de todos, veneram o passado e devotam à morte as
novas ideias, que ainda não receberam o selo da consagração:
A história erudita do passado nunca foi a ocupação de
um filósofo verdadeiro, nem na Índia nem na Grécia; e
o professor de filosofia, ao se ocupar com um trabalho
dessa espécie, tem de aceitar que se diga dele, no melhor
dos casos: é um competente filólogo, antiquário, conhe-
cedor de língua, historiador – mas nunca é um filósofo. E
isso, diante da maioria dos trabalhos de erudição feitos
por filósofos universitários, um filólogo tem o sentimento
de que são malfeitos, sem rigor científico e, o mais das
vezes, detestavelmente fastidiosos.96

Pensa-se, fala-se, escreve-se, ensina-se filosofia, mas tudo


isso dentro dos limites da história da filosofia. Dessa fora, cumpre-se
o desejo do Estado, que teme o desconhecido e os que pensam por
si mesmos, isto é, a partir de experiências renovadoras: “Quem deixa
que se interponham entre si as coisas, conceitos, opiniões, passados,
livros, quem, portanto, no sentido mais amplo, nasceu para a história,

95 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.


96 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.

SUMÁRIO 102
nunca verá as coisas pela primeira vez e nunca será ele próprio uma
tal coisa vista pela primeira vez.”97

Em vez de educar o estudante para pensar e viver filosofica-


mente, adestrando-o contra a compulsão de saber, o ensino univer-
sitário acaba por desencorajá-lo a ter opiniões próprias, em função
da massa de conhecimentos históricos que é obrigado a assimilar. A
universidade não está voltada para a educação filosófica, mas para a
“prova de filosofia”. Assim, ao invés de atrair pessoas para a atividade
de pensar, afasta-as.98

Para concluir sua análise crítica, Nietzsche diz que a filosofia


universitária é transformada numa “coisa ridícula”99, pois se tornou,
nas mãos de uma “multidão de pensadores puros”, uma ciência
pura – isto é, um pensamento concebido como universal, abstrato,
neutro, desvinculado da vida e das forças vitais. Nietzsche adverte:
enquanto a filosofia existir como pensamento reconhecido pelo
Estado, permitindo que este a dirija, ela não deixará de ser ridícula.
E a verdade que os filósofos julgam ser a origem de todas as suas
buscas não passa de uma verdade a serviço do Estado, dos valores
correntes e da ordem estabelecida: “A verdade aparece como uma
criatura bonachona e amiga das comodidades, que dá sem ces-
sar a todos os poderes estabelecidos a segurança de que jamais
causará a alguém o menor embaraço, pois, afinal de contas, ela é
apenas ciência pura.”100 Nietzsche observa ainda que uma cultura
decadente pouco pode fazer pelo pensamento, a não ser engendrar
uma filosofia doente.

97 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.


98 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.
99 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 8.
100 Friedrich NIETZSCHE, Schopenhauer como educador, § 3.

SUMÁRIO 103
O FILÓSOFO E O ARTISTA
RECLAMAM SEUS DIREITOS
Se a filosofia deixou de ter um lugar ao sol, como restituir-lhe
seus direitos? Em “A filosofia na época trágica dos gregos”, Nietzsche
incita o homem corajoso a repudiar e a banir a filosofia com palavras
semelhantes às que Platão utilizou para expulsar os poetas trágicos
de seu Estado – mas com a condição de que ela, como os poetas
trágicos, pudesse falar e defender-se. Ela poderia dizer então:
Povo miserável! É culpa minha se em vosso meio vaguei
como uma cigana pelos campos e tenho de me esconder
e disfarçar, como se fosse eu a pecadora e vós meus juí-
zes? Vede minha irmã, a Arte! Ela está como eu: caímos
entre bárbaros e não sabemos mais nos salvar. Aqui nos
falta, é verdade, justa causa: mas os juízes diante dos quais
encontraremos justiça têm também jurisdição sobre vós e
vos dirão: – Tende antes uma civilização, e então ficareis
sabendo vós também o que a Filosofia quer e pode.101

A primeira medida a ser tomada para ouvir a voz da filosofia,


para retirá-la da concha da quietude onde se encontra escondida
e disfarçada, seria divorciá-la da universidade. Em “Schopenhauer
como educador”, Nietzsche propõe a instauração de um “tribunal
superior”, que vigie e julgue a cultura que a universidade desenvolve
e divulga. A filosofia poderia ser esse tribunal. Sem poderes confe-
ridos pelo Estado e sem honras, poderia prestar seu serviço livre do
espírito do tempo – e do temor inspirado pelo tempo.

O pior que o filósofo corre numa sociedade enferma é ter


o destino de um viajante solitário, forçado a abrir caminho num
ambiente hostil (furtivamente, ou aos empurrões e de punhos

101 Friedrich NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, § 8.

SUMÁRIO 104
cerrados), pois tem contra si o espírito gregário organizado, o qual
teme ver abalado tudo o que o mantém vivo.

Na civilização grega, o filósofo tinha o poder de denunciar


o perigo que a sociedade corria e encontrar “belas possibilidades
de vida”. A fim de restituir-lhe esse poder, Nietzsche insiste em que
a filosofia se desvincule do Estado. Para ele, o filósofo é um centro
de forças imensas, que modifica todo o “sistema das preocupações
humanas” e põe em perigo o que quer se manter gregário.

Enquanto o filósofo não estiver ligado à sociedade por uma


necessidade indestrutível, enquanto não tiver ao seu redor uma
sociedade sadia, pouco pode fazer pela cultura, a não ser denunciar
o que a torna doente e o que a destrói.

A vida precisa de uma cultura sadia, e, para isso, são impres-


cindíveis instituições de ensino voltadas para a cultura. Elas não exis-
tem ainda, mas devem ser criadas. Não devem ter por objetivo criar
o pequeno-burguês, que aspira a um posto de funcionário ou a um
ganha-pão qualquer; ao contrário, precisam voltar-se para a criação
de indivíduos realmente cultos, formados a partir da necessidade
interna da fusão entre vida e cultura e capazes de exercer toda a
potencialidade de seu espírito.

Essas instituições devem ainda ajudar a natureza na cria-


ção do gênio, filosófico e artístico, e protegê-lo da “conspiração
do silêncio” com que sua época o exclui. Quanto a esse aspecto,
poder-se-ia perguntar por que Nietzsche vê como necessárias
instituições para criar o gênio, já que o gênio, para nascer, nunca
precisou delas, nem das “muletas da cultura”, crescendo no solo
de uma cultura nacional, seja ela falsa ou verdadeira. A essa
possível objeção, Nietzsche tem uma resposta: os que pensam
dessa maneira raciocinam historicamente e erigem dogmas para
não favorecer o gênio. Não resta dúvida de que os alemães estão
contentes com seus gênios, haja vista o número de momentos

SUMÁRIO 105
com que, por todo o país, se honra a memória de seus gênios.
Mas, ao deduzir daí que não é preciso fazer nada pelo gênio, con-
dena-se à morte tudo o que vive e estabelece-se o raciocínio de
que tudo já está feito.

Querem ouvir, diz Nietzsche, o canto de um solitário?


Ouçam Beethoven. A música de Beethoven serve para lembrar
aos alemães que os espíritos dos quais se orgulham foram pre-
maturamente sufocados, por não encontrar acolhida na cultura
que os rodeava. Kleist102 , por exemplo, suicidou-se, e Hölderlin, “o
Werther da Grécia”, morreu louco. Schopenhauer, Goethe, Wagner
sobreviveram graças ao fato de serem da “natureza do bronze”,
mas o efeito de suas lutas, de seus sofrimentos, está gravado nas
rugas de seus rostos.

Elogiam a polivalência de Lessing – crítico e poeta, arque-


ólogo e teólogo –, mas não levam em conta aquilo que o obrigou à
“universalidade”: a miséria, que o acompanhou durante toda a sua
vida. Como Goethe, os alemães deveriam lamentar que esse homem
tenha sido obrigado a resistir num mundo de inércia, forçado a
polemizar sem descanso.

102 Heinrich von Kleist (1777-1811), poeta e dramaturgo alemão. Ingressou no exército prussiano
em 1792. Depois de sete anos, abandonou a carreira militar, entregando-se ao estudo da física,
matemática, direito, latim e filosofia. A leitura de Kant provocou a primeira grande crise de sua
vida, destruindo-lhe a confiança no valor do conhecimento e mostrando-lhe a impossibilidade
de atingir a verdade absoluta. Em 1801, partiu precipitadamente para Paris e daí para a Suíça, com
propósito de se fazer lavrador e pôr em prática o ideal de Rousseau. A partir de então, levou uma
vida de errante. Profundamente desiludido consigo mesmo e com a evolução dos acontecimentos
políticos, amargurado pela incompreensão dos contemporâneos e dos próprios familiares, decidiu
suicidar-se, juntamente com Henriette Vogel, sua amiga íntima, atacada de doença incurável. Suas
principais obras: Penthesilea (1807) e Prinz Fr. V. Hamburg (1810).

SUMÁRIO 106
Será, pergunta ainda Nietzsche, que os alemães podem pro-
nunciar o nome de Schiller103 sem corar? Será que a cor de sua face
tingida pela morte não diz nada aos que o elogiam?

Por trás dos elogios e das honrarias, Nietzsche vê esconder-


-se o ódio dos “filisteus” contra a grandeza que está à vista. Essa
veneração serve para camuflar a incapacidade de tirar proveito do
passado e para livrar-se do peso de fazer alguma coisa para o que
vive e o que quer nascer.

Com todos esses argumentos, Nietzsche deixa claro o tra-


tamento que os alemães dão aos seus gênios e quebra o dogma de
que não seria preciso fazer nada por eles, já que os gênios, apesar de
tudo, continuariam nascendo. Com isso, prova a necessidade de criar
instituições para educar o corpo e o espírito do indivíduo, incentivan-
do-o a cultivar-se e tornando-o capaz de abrigar e proteger o gênio.

Isso significará um enorme esforço para os que se propõem


a trabalhar para a cultura, pois terão de substituir um sistema edu-
cacional que tem suas raízes na Idade Média por um outro ideal de
formação. Contudo, deverão iniciar essa tarefa sem demora, já que
dela depende toda uma geração futura.

103 Johann Friedrich von Schiller (1759-1805), poeta e dramaturgo alemão. Influenciado pelas espe-
culações estéticas de Kant, escreveu “Sobre o encanto e a dignidade”, “Sobre a poesia ingênua
e poesia sentimental”. A maior peça da dramaturgia alemã é sua obra-prima, a trilogia histórica
Wallenstein (1800). Dentre suas obras de dramaturgia, até hoje encenadas com sucesso, des-
tacam-se também Maria Stuart (1801) e Wilhelm Tell (1804; Guilherme Tell). Foi muito amigo de
Goethe. Sua obra é muito popular na Alemanha.

SUMÁRIO 107
CONCLUSÃO
“Educar os educadores”
Mas os primeiros devem começar
por se educar a si próprios.
e é para esses que eu escrevo.”
Nietzsche, Fragmentos póstumos: primavera-verão de 1875

Será que o pensamento de Nietzsche pode ser usado, hoje,


como um instrumento para se pensar a educação? Será que seu
exemplo ainda pode servir para nos educar e, consequentemente,
educar a quem educamos?

Não há dúvidas quanto a essas questões. Como vimos em


outros capítulos deste trabalho, suas teses nunca foram tão atuais.
Nietzsche apontou problemas que, apesar dos esforços de alguns
educadores bem-intencionados, ainda não foram resolvidos. Um
deles – e talvez o mais grave – é o ensino da língua materna, até
hoje um grande desafio. Cada vez mais, abandona-se a formação
humanista, em favor de uma educação voltada para as necessida-
des do parque industrial. Isso incentiva os indivíduos a um preparo
rápido – uma profissionalização – que os torne aptos a trabalhar na
“fábrica da utilidade pública” e a servir como técnicos na maquinaria
do Estado. Uma formação humanista seria um luxo que os afastaria
do mercado de trabalho.

Como filósofo-educador e “médico da cultura”, Nietzsche


repensou as questões de educação a partir das necessidades vitais
(que não se resumem à sobrevivência), e não às do mercado de tra-
balho, criado para satisfazer as exigências do Estado e da burguesia
mercantil. Adotou a vida como critério fundamental para todos os

SUMÁRIO 108
valores da educação e, com isso, destruiu as convicções que susten-
tavam o sistema educacional de sua época.

Sua filosofia é o reflexo de sua personalidade, a história de


uma lenta formação pessoal, fruto da confrontação constante de seu
pensamento com o mundo exterior. Ainda que incompreendido por
seus contemporâneos, sugeriu práticas pedagógicas e foi ele mesmo
um exemplo de educador.

Na terceira “Extemporânea”, ao falar de suas experiências na


procura de um educador que fosse um “liberador”, Nietzsche deixa
claro o que já escrevera em “A filosofia na época trágica dos gregos”:
que busca em um pensador não seu sistema de pensamento, mas
um “fragmento de personalidade” contido nesse sistema, “a única
realidade eternamente irrefutável”; que o valor de uma filosofia não
reside na esfera do conhecimento, mas na vida; que a filosofia e a
vida de um pensador deviam ser apreciadas como apreciamos uma
obra de arte, por sua beleza e por servir como modelo de uma “bela
possibilidade de vida”. Por conterem tanta “invenção, audácia, deses-
pero e esperança” e trazerem alegria e força, derramando “luz sobre
a vida de seus sucessores”, essas vidas são preciosas e merecem ser
salvas do esquecimento.

Se o produto mais genuíno de um filósofo é sua vida, então


ela diz respeito tanto àquele que a criou como aos outros homens.
Assim, podemos perguntar: o que significa para nós esse filósofo, o
que ele nos pode dar, e em que seu exemplo pode nos alimentar?

Retenhamos por um momento que a vida de um pensador é


sua obra de arte, que podemos descobrir nela novas possibilidades de
vida. Acrescentemos ainda que um filósofo, como quer Nietzsche, só
pode ser estimado quando puder servir de exemplo – e esse exemplo
deve ser dado, como ensinam os filósofos da Grécia, por sua atitude,
sua maneira de se vestir e alimentar e seus costumes, mais do que
pelo que diz ou escreve. Será que, considerando-se sua vida e seu

SUMÁRIO 109
pensamento, pode-se tomar Nietzsche como exemplo, assim como
ele tomou os gregos? E mais: o que significa tomá-lo como exemplo?

Antes de tudo, tomar Nietzsche como exemplo significa


educar-se incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pes-
soal e uma capacidade de pensar por si; aprender a ver, habi-
tuando o olho no repouso e na paciência; dominar o “instinto
do saber a qualquer preço”, utilizando este princípio seletivo: só
aprender aquilo que puder e abominar tudo aquilo que instrui sem
aumentar ou estimular a atividade; manter uma postura artística
diante da existência, trabalhando como artista a obra cotidiana;
“dar à vida o valor de um instrumento e de um meio de conheci-
mento”, procedendo de modo que os falsos caminhos, os erros, as
ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único
objetivo – a educação de si próprio.

Em suma, tomar Nietzsche como exemplo não é pensar


como ele, mas sim pensar com ele. “Nietzsche” não é um sis-
tema, nem mais um pensador com um programa de educação.
Nietzsche, como afirma Gérard Lebrun, “é um instrumento de tra-
balho insubstituível”.

SUMÁRIO 110
REFERÊNCIAS
Obras de Nietzsche

Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

Considérations inactuelles I et II. In: Fragments posthumes: été 1872 - hiver 1873-1874.
Trad. Pierre Rusch. Paris: Gallimard, 1990.

Considérations inactuelles III et IV. In: Fragments posthumes: début 1874 - printemps
1876. Trad. Henry-Alexis Baatsch, Pascal David, Cornélius Heim, Philippe Lacoue-Labarthe
et Jean-Luc Nancy Paris: Gallimard, 1988.

Correspondance I: juin 1850 - avril 1869. Trad. Henry-Alexis Baatsch, Jean Bréjoux,
Maurice Gandillac. Paris: Gallimard, 1986.

Correspondance II: avril 1869 - décembre 1874. Trad. Jean Bréjoux, Maurice Gandillac.
Paris: Gallimard, 1986.

Despojos de uma tragédia: correspondência inédita. Trad. Ferreira da Costa. Porto,


Editora Educação Nacional, 1944.

Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Max Limonad, 1985.

Fragments posthumes: Automne: 1887 - Mars 1888. Trad. Pierre Klossowski. Paris:
Gallimard, 1976.

Fragments posthumes: Début 1888 - Janvier 1889. Trad. Jean-Claude Hémery. Paris:
Gallimard, 1976.

Friedrich Nietzsche: obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

Humain, trop humain I et Fragments posthumes (1876-1878). Trad. Marc B.de


Launay, Paris: Gallimard, 1988.

La naissance de la tragédie. Trad. Michel Haar, Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc


Nancy, Paris: Gallimard, 1977.

SUMÁRIO 111
La philosophie à l’époque tragique des grecs. In: Écrits posthumes: 1870-1873. Trad.
Jean-Louis Backes, Michel Haar et Marc B. de Launay, Paris: Gallimard, 1975.

La volonté de puissance. Trad. Geneviève Bianquis, Paris: Gallimard, 1974. 2 volumes.

Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e Mazino


Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1975/1984. 8 v.

Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Edição crítica organizada por Giogio


Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988.

Sur l’avenir de nos établissements d’enseignement. In: Écrits posthumes: 1870-1873.


Trad. Jean-Louis Backes, Michel Haar et Marc B. de Launay, Paris: Gallimard, 1975.

Biografias de Nietzsche

(1) HALÈVY, Daniel. Nietzsche. Paris: Grasset, 1944.

(2) JANZ, Curt Paul. Nietzsche biographie. Trad. De Launay. Paris: Gallimard, 1984, 3
volumes.

(3) MARTON, Scarlett. Nietzsche. São Paulo: Brasiliense, 1983.

Sobre Nietzsche

(4) ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. Paris: Gallimard, 1958, 3 volumes.

(5) BIANQUIS, Geneviève. Nietzsche devant ses contemporaines. Mônaco: Éd. du


Rocher, 1959.

(6) DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.

(7) DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Paris: PUF, 1965.

(8) FINK, Eugen. La philosophie de Nietzsche. Paris: Minuit, 1965.

(9) KAUFMANN, Walter. Nietzsche: philosopher, psychologist antichrist. New Jersey:


Princeton University Press, 1974.

SUMÁRIO 112
(10) KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la métaphore. Paris: Payot, 1972.

(11) KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la scène philosophique. Paris: Union Générale


d’Éditions, 1979.

(12) KOFMAN, Sarah. “O/Os ‘conceitos’ de culturas nas Extemporâneas ou a dupla


dissimulação”. In: Nietzsche hoje? Trad. Milton Nascimento e Sonia Salztein Goldberg.
São Paulo: Brasiliense, 1985.

(13) LACOUE-LABARTHE, Philippe. L’imitation des modernes. Paris: Éd. Galilée, 1986.

(14) LEBRUN, Gérard. “Por que ler Nietzsche hoje?”. In: Passeios ao léu. São Paulo:
Brasiliense,1983.

(15) MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

SUMÁRIO 113
ÍNDICE REMISSIVO
A E
adestramento 14, 78, 79, 86, 87, 88, 91, 92, 96, 97 economistas 69
Alemanha 13, 22, 24, 25, 27, 30, 32, 37, 43, 48, 53, 55, 88, 93, 107 educação 12, 13, 14, 16, 18, 24, 26, 33, 38, 48, 51, 52, 53, 55, 59,
alma 52, 57, 63, 66, 72, 73, 76 60, 61, 68, 69, 72, 77, 78, 79, 81, 82, 83, 85, 87, 92,
95, 96, 97, 103, 108, 109, 110
arte 14, 17, 20, 24, 27, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 43, 52, 80, 86, 89,
96, 97, 98, 109 educadores 25, 34, 38, 52, 61, 62, 65, 76, 95, 108
artista 23, 50, 51, 66, 70, 71, 78, 104, 110 egoísmo 73, 74, 77
autonomia 90, 93, 95 ensino 10, 12, 13, 14, 16, 28, 33, 41, 43, 48, 68, 69, 72, 73, 74, 78,
82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 92, 93, 94, 95, 96,
B 98, 103, 105, 108
Beethoven 80, 106 escolaridade 15, 16, 18
C escolas técnicas 93
capacidade crítica 19, 110 especialização 19, 23, 82, 83
cátedra 20, 25, 26, 27, 39 espírito 10, 14, 17, 21, 27, 32, 38, 54, 55, 72, 77, 85, 90, 93, 104,
ciência 11, 14, 19, 20, 21, 32, 52, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 82, 86, 105, 107
96, 97, 103 Estado 24, 52, 64, 69, 70, 73, 74, 77, 79, 82, 83, 94, 95, 99, 100, 101,
cientista 74, 75, 76, 77 102, 103, 104, 105, 108
civilização 31, 50, 62, 80, 88, 104, 105 F
classes 10, 20, 73, 84 filologia 10, 18, 19, 20, 21, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 38, 39, 49, 98
comerciantes 73, 77, 82 filosofia 10, 14, 24, 25, 27, 31, 33, 35, 41, 52, 54, 58, 64, 96, 98, 99,
composição alemã 85, 89 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 109
conhecimento 10, 16, 23, 34, 40, 50, 52, 54, 62, 71, 72, 74, 75, 77, formação humanista 12, 108
83, 96, 97, 106, 109, 110 G
consciência 34, 39, 57, 91 gênio 26, 45, 52, 56, 64, 65, 69, 71, 72, 73, 78, 79, 83, 84, 85, 101,
conspiração do silêncio 64, 100, 105 105, 106, 107
convento laico 25 Germânia 17, 24
corpo e espírito 55 Goethe 22, 32, 48, 62, 63, 64, 89, 106, 107
cultivo de si 59, 67, 68, 78 grego 10, 16, 38, 41, 42, 46
cultura artificial 49, 55, 58 Gymnasium 14, 26, 85, 86, 87, 88, 89, 92, 93
cultura histórica 48, 49, 50, 51, 54, 66, 87, 89, 98, 99, 102 H
cultura jornalística 14, 83, 88 hebraico 16
D história 10, 17, 22, 32, 34, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 55, 56, 62, 66, 67,
domesticação 78, 79, 95 76, 80, 96, 98, 99, 102, 103, 109

SUMÁRIO 114
Hölderlin 16, 17, 32, 89, 106 P
Homero 22, 41, 89 Pädagogium 10, 12, 20, 22, 27, 38, 39, 40, 41
humanidade 17, 20, 61, 68, 69, 74, 78 poetas 16, 17, 89, 104
I profanação 14, 88
imitação 54, 65, 66, 67 professores 14, 17, 20, 23, 25, 29, 33, 40, 84, 88, 89, 90, 96, 97,
98, 99, 101
individualidade 57, 59
profissionalização 92, 93, 95, 108
L
pseudocultura 13, 53
latim 16, 92, 106
R
Lessing 32, 89, 106
realidade 66, 75, 97, 109
liberdade acadêmica 94, 95
rebanho 21, 42, 56, 60
língua alemã 14, 32, 43, 86, 88, 91, 92
renovação cultural 13, 22, 24, 25, 27, 84
linguagem 45, 84, 88, 93
Ritschl 19, 20, 28
língua materna 86, 88, 108
Romantismo 58
literatura 16, 17, 18, 34, 41, 52
literatura alemã 17 S
Schiller 16, 17, 32, 89, 107
M
Schopenhauer 10, 19, 21, 22, 32, 33, 34, 37, 54, 56, 58, 59, 60, 61,
máscaras 57, 58
62, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 98, 99, 100, 101,
massa 18, 39, 45, 50, 58, 84, 89, 103 102, 103, 104, 106
mercado de trabalho 69, 108 simplicidade 61, 76
mestre 19, 22, 30, 41, 83, 87 singularidade 41, 56, 58
mimesis 66 sistema educacional 12, 13, 23, 29, 53, 55, 82, 92, 95, 107, 109
música 10, 16, 17, 18, 27, 36, 43, 45, 80, 85, 97, 106 sociedade 17, 24, 31, 32, 34, 36, 39, 58, 64, 68, 71, 79, 104, 105
N T
nacionalismo 32, 54 Teógnis 10, 19
natureza 17, 50, 55, 56, 57, 70, 71, 72, 76, 78, 79, 83, 87, 99, 105, 106 teologia 10, 19, 51
Naumburg 10, 16 Tribschen 10, 22, 23, 27, 36, 37
Nietzsche 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25,
U
26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, Universidade da Basiléia 11, 18, 25, 28, 30, 37, 39, 45
55, 56, 57, 58, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, V
70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 84,
virtude 55, 56, 60
85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98,
99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, vulgarização 12, 69
110, 111, 112, 113 W
O Wagner 10, 11, 22, 23, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38,
originalidade 54, 79, 90, 92 43, 67, 106

SUMÁRIO 115

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