Indentidade Cultural e Música

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XXXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa, 2021

Música, memória e identidade cultural: algumas reflexões

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SIMPÓSIO: ST-7. Música popular: formação,


pesquisa, performance e fruição

Leonardo de Fontes Barbosa


[email protected]
Mestrando (Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE) / Bolsista CAPES

Resumo. Este artigo objetiva refletir sobre como música, memória e identidade se relacionam. Para
isso, foi construído um quadro com referenciais teóricos e empíricos que pudessem embasar
pesquisas nesta direção. Tendo em vista as dificuldades inerentes à própria natureza dos conceitos
aqui discutidos, buscou-se referências cuja abordagem fosse de caráter multidisciplinar, com
contribuições de áreas como Antropologia, Etnomusicologia, História e Sociologia. Alguns desses
trabalhos abordam essas temáticas no âmbito cultural mais amplo, outros, por sua vez, enfocam o
papel da música nesse processo. Nesse sentido, buscamos traçar relações entre esses trabalhos,
mantendo o enfoque nos processos que envolvem a música.

Palavras-chave. Música. Cultura. Memória. Identidade cultural.

MUSIC, MEMORY AND CULTURAL IDENTITY: SOME REFLECTIONS

Abstract. This article aims to reflect on how music, memory and identity are related. For this, a
framework was built with theoretical and empirical references that could support research in this
direction. In view of the difficulties inherent in the very nature of the concepts discussed here,
references were sought whose approach was of a multidisciplinary nature, with contributions from
areas such as Anthropology, Ethnomusicology, History and Sociology. Some of these works address
these themes in a broader cultural context, others, in turn, focus on the role of music in this process.
In this sense, we seek to trace relationships between these works, keeping the focus on the processes
that involve music.

Keywords. Music. Culture. Memory. Cultural identity.

1. Introdução

O fenômeno musical é praticado em todas as culturas. A música constitui parte da


trama que compõe o tecido cultural. Até o momento, não se sabe de nenhuma cultura que não
a tenha como uma de suas formas de expressão, isto porque é quase certo que não existe cultura
sem música. É preciso, no entanto, problematizar o conceito “música”. O que entendemos por
música, situados dentro de uma certa tradição, diz respeito à forma como lidamos com este
fenômeno. Consiste, acima de tudo, numa percepção construída historicamente. Outras
culturas, ainda que tendo estabelecido algum contato com a chamada “cultura ocidental”, se
relacionam com o fenômeno sonoro cada uma à sua forma, sendo muitas vezes música, religião
e dança exercidas como expressões indissociáveis.

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Por esse motivo, encontraremos na música os aspectos mais amplos da cultura e


vice-versa. Aquela reflete estes elementos ao mesmo tempo em que ajuda na construção e
reformulação da cultura. Dessa forma, entendemos que música e cultura estão em constante
interação dialética (BLACKING, 2007).

A memória, recurso individual e coletivo, constitui, preserva e estabelece as


condições de mudança dos elementos simbólicos que compõem as identidades culturais. É por
meio das memórias e dos saberes preservados que as culturas ao redor do planeta perpetuam
seus conhecimentos, passando de geração para geração, através de mecanismos dentre os quais
se destaca a linguagem (oral e escrita). Neste sentido, falar em cultura quase sempre diz respeito
aos processos formativos que, para tanto, necessitam de organismos ou instituições que se
encarregam de transmitir os saberes, valores, comportamentos e representações.

Buscamos discutir, com este artigo, as relações entre música, memória e identidade.
Para isso, foi construído um quadro com referenciais teóricos e empíricos que pudessem
embasar pesquisas nesta direção.
Este artigo encontra-se dividido em quatro partes. Na primeira, que corresponde ao
segundo tópico, buscamos problematizar o conceito de identidade cultural, com enfoque no
problema da “identidade nacional”. No terceiro tópico, discutiremos sobre a relação entre
música e cultura, trazendo algumas definições desses conceitos a partir das lentes da
antropologia e etnomusicologia. No quarto tópico, procuramos correlacionar os conceitos de
“memória” e “lembrança”, trabalhados respectivamente por Reily (2014) e Sarlo (2006),
buscando refletir sobre alguns processos nas culturas que atravessam as identidades culturais.
Partimos do pressuposto de que música, memória e identidade estão intrinsicamente
relacionadas, constituindo, como já destacado, as bases de toda e qualquer cultura. No quinto e
último tópico, discutiremos alguns exemplos empíricos com o intuito de pensar a música
enquanto ferramenta nos processos de construção das identidades culturais.

2. Identidade cultural como problema

A condição de existência de uma cultura – em qualquer que seja o tempo e espaço


em que ela se localize – a forma como se comunicam os indivíduos e como eles interagem com
o meio à sua volta, são fatores que fazem emergir as explicações necessárias para a manutenção
e reprodução dessa cultura. Na tentativa de dar respostas às questões existenciais, das mais
elementares às mais complexas (como por exemplo, a questão do “por que estamos aqui” e a

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de compreensão o meio à nossa volta), os indivíduos de qualquer cultura vão se utilizar do


arcabouço simbólico que lhes foi legado pelos ancestrais como também vão desenvolver os
meios necessários para aprimorá-los cada vez mais. A identidade cultural é produto, digamos
assim, desse arcabouço e se constitui a partir de uma relação dialética entre os planos simbólico
e concreto: no dia a dia, nas festividades promovidas etc. Importante destacar que à medida em
que esses indivíduos ou grupos reivindicam uma identidade cultural, por mais “estática” que
possa parecer, eles o fazem recriando, dando novos contornos a ela.

Nesta seção, buscamos problematizar o conceito de identidade cultural de modo a


levantar os pontos e questões que interessam aos objetivos e limites deste trabalho, mais
alinhados com os debates sobre “identidade nacional”. Entretanto, aproveitamos para destacar
uma ausência: as questões relacionadas à identidade de gênero e racial. Infelizmente, por razões
de espaço, não serão problematizadas aqui1. Questões que, por sinal, podem e merecem ser
problematizadas por meio dos fenômenos musicais.

Reiterando, acreditamos que a forma como uma sociedade compreende o mundo e


se compreende nele constitui a sua identidade cultural. De um modo geral, as identidades são
construídas a partir do contato com o “outro”, a partir do contato com o “diferente” (relação
amigo x inimigo), por meio dos símbolos e representações colocados em jogo. Constituem-se
em “espaços imaginários”, mas que interferem plenamente no plano concreto, se expressando
sobretudo por via do fenômeno artístico. Uma determinada identidade cultural estabelece uma
“atmosfera” (simbólica e prática) que dá aos indivíduos respostas para as suas questões,
orientando a forma como pensam, agem e, de um modo geral, como se comportam. Essa
identidade cria uma rede e estabelece uma atmosfera de “comunhão”, que garante a produção
dos recursos materiais necessários para a reprodução da vida (HALL, 2006; SILVA, 2020).

Desde o final do século passado, o processo de globalização vem colocando “em


xeque” a noção de “identidade nacional”, fortificada em meados do século XIX, através de
fatores dentre os quais se destacam a própria expansão do capitalismo, com a consolidação dos
mercados globais. E, também relacionado a isso, novas formas de sociabilidade foram
construídas pelo consumo global e desterritorializado, a partir dos intercâmbios estabelecidos
entre as diferentes culturas localizadas em pontos distintos do globo, ao ponto de mudanças que
são tomadas em uma determinada nação afetarem o equilíbrio de uma outra. Esses processos

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Alguns direcionamentos e aprofundamentos a essas questões podem ser encontrados em DAVIS (2016);
HAIDER (2019).

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permitiram o surgir de uma nova sensibilidade, de uma nova sociedade, que Manuel Castells
chamou de “sociedade em rede”. Uma nova sociedade possível em virtude dos notáveis avanços
das tecnologias da comunicação (CASTELLS, 2020).
Para Hall (2006), as identidades modernas, nesta nova “fase da humanidade”,
parecem “flutuar” no espaço, ao mesmo tempo em que estão se reinventando a todo momento.
A reformulação das identidades permite novas configurações no tecido das culturas ao redor do
planeta. A música exerce um papel fundamental neste processo, nela também são processadas
estas mudanças. Na última seção deste artigo, discutiremos sobre a música como ferramenta na
construção das identidades culturais.

3. Música na cultura, cultura na música


Por cultura, tomamos como pressuposto a formulação clássica de Edward Tylor
(1832-1917), que é considerada como um dos pilares da antropologia moderna: “todo complexo
que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR, 1871, p. 01 apud
LARAIA, 2001, p. 25). Esta noção de cultura compreende tudo o que se refere aos modos de
“ver” e “viver” no mundo, e tudo que o ser humano produz orientado por suas percepções. No
mundo, pessoas e grupos, dos mais variados lugares, constroem suas identidades, crenças e
expressões a partir das condições materiais inerentes ao tempo e espaço em que se movem.
Neste âmbito, ao refletirmos sobre questões que envolvem as relações entre música e cultura,
devemos tomar como ponto de partida a ideia de que a forma como uma determinada cultura
compreende e se relaciona com a música é algo que foi construído historicamente e que está
intrinsecamente relacionado à forma como elas organizam os seus recursos materiais mais
amplos.
De acordo com Blacking, a música “é um sistema modelar primário do pensamento
humano e uma parte da infraestrutura da vida humana” (BLACKING, 2007, p. 201). O que
definimos e entendemos por “música” diz respeito à forma como entendemos e lidamos com o
fenômeno sonoro. Constitui-se em uma percepção construída e compartilhada historicamente
pela nossa cultura, dentro de uma tradição determinada, sendo constantemente ressignificada à
medida que as sociedades se transformam ao longo do tempo.
Segundo Blacking (2007), a concepção de “música” é algo problemático, visto que
se trata de uma representação que foi gestada dentro de um contexto histórico-cultural muito
específico. Em outras palavras, é uma percepção, um conceito, dentre tantos outros que buscam

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compreender este fenômeno e atribuir significados a ele. Por outro lado, esse mesmo autor
considera tal conceito “oportuno” na medida em que ele permite uma certa apreensão para a
realização de estudos (BLACKING, 2007).
A forma como as sociedades compreendem e se relacionam com a música está em
estreita relação com a forma como elas se organizam culturalmente (política e
economicamente). Do mesmo modo, a estruturação de uma sociedade define as condições de
produção e recepção da música. Blacking apontou para a relação dialética entre música e
sociedade. Segundo ele, é possível localizar no interior da música, nos seus elementos
semióticos, a sociedade e as estruturas que a constituem; do mesmo modo que na sociedade
encontramos os elementos que constituem a música. Para Blacking (2007), a música não
somente reflete os aspectos da cultura, mas também contribui para a sua construção e para o
seu funcionamento. Ele propõe que compreendamos não apenas as relações mais superficiais
entre música e sociedade, mas também as conexões intrínsecas e como a música sintetiza
elementos mais gerais da cultura através dos seus elementos estéticos.
A música não tem a função de transformar a sociedade, tendo em vista que sua
“finalidade” é o próprio fazer musical. Contudo, “o fazer musical pode ser uma ferramenta
indispensável para a intensificação e a transformação da consciência como um primeiro passo
para transformar as formas sociais” (BLACKING, 2007, p. 208), isso porque a música pode ser
pensada como “força ativa na formação de ideias e da vida social”, por fazer parte do
emaranhado que compõe o tecido cultural, o que faz com que ela esteja articulada aos demais
aspectos da cultura que estão em movimento.

4. Memória, lembrança e identidade cultural


A memória é um mecanismo fundamental para a existência humana, tanto no plano
individual quanto no social. A respeito do primeiro, o órgão responsável pelo gerenciamento
das memórias é o cérebro humano. O nosso cérebro armazena, gerencia e organiza as memórias,
de tal modo, que elas passam a constituir-se em redes ou mapas neurais que conectam diferentes
áreas por meio de sinapses e são responsáveis pela realização de atividades básicas como:
comer, estudar, falar, caminhar, praticar exercícios físicos etc. É por meio da capacidade que o
cérebro tem de armazenar as informações, por meio de processos neurofisiológicos, que os seres
humanos vivem e interagem em sociedade. A aprendizagem reside justamente nesse processo,
no armazenamento da “coisa aprendida” e que pode ser acessada em qualquer outro momento
da vida (REILY, 2014).

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Vejamos, brevemente, como o fazer musical envolve diferentes áreas do cérebro.


Por exemplo, o ato de tocar um instrumento musical conecta, por meio das redes neurais, uma
gama de áreas do cérebro que, juntas, permitem o fluir da execução musical. Vejamos o quão
complexo é o que, para nós, parece ser uma “simples experiência”.
A performance musical – seja qual for seu instrumento, ou se você canta ou rege –
envolve [o recrutamento d]os lóbulos frontais [...] para o planejamento do seu
comportamento, assim como o córtex motor na região posterior do lóbulo frontal, logo
abaixo do topo da cabeça, [para acionar os movimentos necessários] e o córtex
sensório, que dá um retorno tátil para que você possa saber se foi acionada a tecla
correta no instrumento ou se a batuta foi para onde você pretendia leva-la. [...]
Lembrar a letra recruta os centros linguísticos, incluindo as áreas da Broca e de
Wernicke, bem como outros centros linguísticos nos lóbulos temporal e frontal
(LEVITIN, 2006, p. 86 apud REILY, 2014, p. 3).

Tendo isso no horizonte, para a discussão nesta seção, buscamos articular alguns
elementos discutidos por Suzel Reily, sobre “música” e “memória” (REILY, 2014), com um
recorte que abrange etnomusicologia em diálogo com as neurociências e a psicologia; e Beatriz
Sarlo, sobre “lembrança” e “passado” (SARLO, 2007). As autoras, respectivamente, discutem
sobre o papel que a memória e a lembrança exercem na constituição das identidades culturais,
seja para: a) reforçar os ideais tradicionais de uma cultura como; b) reivindicar a sua
transformação, a partir da emergência do “novo”. Acreditamos ser possível um diálogo entre
as duas autoras, no tocante a esses conceitos, de modo que permite jogar luz nos processos e
disputas travados em torno das identidades culturais que aqui nos interessam.

Reily (2014) busca pensar a música articulando um debate etnomusicológico com


contribuições das áreas da psicologia e neurociências. Segundo a autora, a memória é uma
“prática”, isso porque “lembrar envolve nossa agência; mobilizamos nossas memórias de modo
a articular saberes díspares e formas de imaginar ligações entre o eu e o outro, tanto no presente
quanto no passado” (REILY, 2014, p. 2).

As informações de todo e qualquer aprendizado (vale destacar que estes processos


acontecem por via da ação articulada entre os nossos sensores: – audição, visão, olfato, tato,
paladar), a partir da interação que estabelecemos com o meio no qual estamos inseridos, são
armazenadas no nosso cérebro e, junto a elas, outras sensações também poderão e certamente
serão associadas. Por este motivo, é muito comum que, ao escutarmos uma música, por
exemplo, tenhamos a sensação de que fomos “transportados” para um determinado momento
passado de nossas vidas, trazendo com ela uma série de recordações que muitas vezes vêm
associadas com imagens, cores, cheiros, gostos. Desta forma, “na medida em que

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desenvolvemos práticas diárias, tanto de ordem individual quanto social, influenciamos, pela
nossa agência, o assentamento e reforço de nossas práticas memoriais” (REILY, 2014, p. 4).

A “memória coletiva”, como discutida por Maurice Halbwachs (1990), diz respeito
ao processo de socialização dos indivíduos, que serve para estabelecer e reforçar as relações
com um determinado grupo ao qual pertencem. A identidade de um indivíduo, segundo
Halbwachs, que parte de uma corrente durkheimiana, é construída a partir da relação e interação
que um indivíduo estabelece com o seu grupo. Neste processo formativo, que passa pelas
instâncias cognitivas do consciente e inconsciente, o indivíduo incorpora, na sua subjetividade,
os comportamentos e valores do seu grupo, ao mesmo tempo em que tende a rechaçar aqueles
que o grupo repudia (HALBWACHS, 1990). No entanto, estes processos não ocorrem de forma
mecânica ou unilateral como podem parecer. Existem diversos elementos da “cultural oficial”
que tanto os indivíduos como os grupos podem reivindicar, contestar e até negociar, com certa
capacidade de agência. Consideramos mais adequadas as abordagens que pensam agente e
estrutura, indivíduo e sociedade em interação dialética.

Acerca das disputas que os grupos sociais travam pela memória, Reily (2014)
destaca o papel do corpo nesse processo, em especial às repressões e violações cometidas por
alguns grupos sobre outros. Neste sentido, a memória “é também um espaço de contestação,
marcado por interesses ideológicos, econômicos e culturais. O corpo, em particular, constitui
um foco de contestação da memória social” (REILY, 2014, p. 11).

A “lembrança”, como discutida por Sarlo (2007), evoca e faz referência a um


passado. Caracteriza-se como um processo que ocorre no presente, no agora, mas que diz
respeito sobretudo ao passado, a algum momento que foi vivenciado por um indivíduo ou grupo
e que geralmente remete às características de uma identidade cultural. Este passado, que
(re)surge a partir das interações no presente, a partir das demandas do presente, possui uma
outra dimensão: lança o seu olhar para o futuro. Busca estabelecer, com isso, um fio de
continuidade entre passado, presente e futuro.

A “lembrança” e a “memória”, portanto, são responsáveis pela forma como os


indivíduos compreendem e se compreendem no mundo. Ambas orientam a forma como esses
indivíduos pensam e se comportam; construções que se dão a partir das interações estabelecidas
entre indivíduos e o meio em que vivem. Neste sentido, Sarlo vai reiterar aquela concepção de
que “o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar

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e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio” (SARLO, 2007, p.


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Assim, memória e lembrança, quando resgatadas pelos grupos sociais, no presente,


buscam evocar o passado e quase sempre o fazem assumindo um certo caráter essencialista,
conservador e, em alguns casos, até mesmo reacionário. Isto acontece porque “manipular o
passado”, para alguns grupos que detêm o poder, o controle dos meios de produção e o aparato
do Estado, contar a versão da “história oficial”, aos seus ditames, não é tão difícil. Desse modo,
a partir de uma dada visão do passado, esses grupos minoritários, as elites, vão buscar os
elementos e/ou as experiências em prol da manutenção de uma dada ordem. A volta ao passado
é quase sempre para reivindicar a preservação de um espaço do presente, uma condição ou uma
ordem que estejam em crise (submetidas à mudança), sendo disputadas por outros grupos.
Consiste em uma tentativa de estabelecer um contínuo, uma continuidade, com o intuito de
manter as coisas do jeito que se encontram. No entanto, este processo também pode ser, em
grade medida, “libertador”. É
justamente porque o tempo do passado não pode ser eliminado, e é um perseguidor
que escraviza ou liberta, sua irrupção no presente é compreensível na medida em que
seja organizado por procedimentos da narrativa, e, através deles, por uma ideologia
que evidencie um continuum significativo e interpretável do tempo (SARLO, 2007,
p. 12).

Portanto, essas discussões por Reily (2014) e Sarlo (2007), em torno dos conceitos
de “memória” e “lembrança”, são extremamente importantes, porque jogam luz nos processos
de funcionamento e organização das culturas, e como nelas os indivíduos e grupos sociais
agenciam e reivindicam suas identidades culturais – sobretudo por meio de disputas –, em
condições históricas e materiais específicas. A música se processa neste meio do mesmo modo
que também contribui para o processamento destes movimentos. Diante disso, na quinta e
última seção deste artigo, veremos que a música se revela uma “ferramenta” fundamental na
construção e no reforço das identidades culturais.

5. Música como ferramenta para a construção de identidades culturais


Nesta seção, buscamos demonstrar as funções que colocam a música na condição
de “ferramenta de transmissão e organização” da cultura, tanto no plano simbólico quanto no
plano concreto, seguindo aquela linha de raciocínio destacada por Blacking (2007). A música
contribui, neste sentido, para a construção e para o reforço das identidades culturais. Para isso,
analisaremos três exemplos empíricos.

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Antes de adentrarmos propriamente nos exemplos, façamos uma pequena digressão


em alguns pontos importantes. A música, como ferramenta cultural, conecta a memória
(individual e coletiva) aos elementos simbólicos culturais. Ela é um potente mecanismo de
expressão cultural tendo em vista que ela está presente em quase todas as festas e eventos
promovidos em diversas culturas. Não é difícil de observar que, em muitas tradições,
encontramos a “música” atrelada à dança e às cerimônias religiosas. De um modo geral, talvez
possamos arriscar em dizer que a música cumpre um papel de congregar as pessoas e de
conectá-las com o imaginário simbólico compartilhado com os seus grupos. Consiste, nesse
sentido, em uma ferramenta altamente eficaz de transmissão e de reforço dos valores e costumes
culturais. Reforça, nos indivíduos, um dado sentimento de pertencimento ao coletivo,
agenciando, com isso, suas identidades.

A memória, como já discutimos, é central para a sobrevivência dos seres humanos.


Vimos também o quão complexo é o que para nós parece ser um simples ato de tocar um
instrumento musical. Para que isso seja de fato efetivado, se faz necessário desde o
armazenamento de memórias a um recrutamento de distintas áreas pelo nosso cérebro, por meio
de processos neurofisiológicos que se relacionam com os aspectos culturais. Uma experiência
musical, seja ela tocar ou escutar uma música, não consiste em apenas perceber certa
organização sonora de maneira racional por um indivíduo, mas envolve também o nosso lado
emocional assim como também a nossa experiência coletiva.

Nas experiências musicais, as identidades estão sendo negociadas a todo instante,


ainda que na maioria das vezes não tenhamos plena consciência desses movimentos e tampouco
do quanto são contraditórios. Consumimos aquilo que gostamos e não “perdemos tempo” com
o que não gostamos. E, nesse ato, estamos reforçando nossas identidades e as negociando, a
todo instante. Todos esses processos se amarram e se interseccionam às identidades culturais.

Por último, a atividade musical está indissociavelmente ligada à memória. Isso


porque nada escapa a ela. A música contribui para o processo de socialização dos indivíduos na
medida em que ela reforça elementos simbólicos e de pertencimento ao grupo, elementos que
se fazem presentes na memória e no imaginário socialmente compartilhado. Vejamos, a seguir,
algumas experiências musicais que apontam para essa direção.

Reily (2014), em um dos exemplos abordados em seu artigo, comenta a respeito


das tradições bárdicas. Os bardos eram uma classe de profissionais contratados pela nobreza
para contar as estórias e façanhas épicas que tanto agradavam aos cortesãos, no contexto da

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Idade Média. Faziam isso por meio do canto. Tendo, para isso, desenvolvido um sistema
musical particular.

As tradições bárdicas, por exemplo, mantinham especialistas encarregados de guardar


em suas memórias a história do grupo e para conseguir esta proeza, quase sempre
codificavam a informação em estruturas musicais. Nas ilhas britânicas do período
medieval, por exemplo, a realeza e os chefes de clás sustentavam bardos que,
acompanhados por harpas, cantavam poemas épicos sobre as façanhas e genealogias
de seus patronos (REILY, 2014, p. 4).

A segunda experiência foi retirada de Clifford Geertz (1997), no ensaio intitulado


A arte como um sistema cultural. Um dos exemplos trabalhados pelo autor é o da poesia
marroquina, que pode ser dividida em: cântico corânico (cuja temática principal é sacra, com
base no Alcorão) e poesia dos marroquinos (cujos temas seriam de caráter profano,
corriqueiros). De acordo com Geertz, na tradição muçulmana, a “palavra”, por intermédio da
poesia, tem um poder não somente estético, mas cumpre uma função na transmissão dos valores
e costumes culturais. Em linhas gerais, o cântico corânico e a poesia marroquina exercem uma
função importante na organização e manutenção das sociedades em que são praticados,
contribuem para a organização tanto do plano simbólico quanto do plano concreto.
O terceiro e último exemplo é o da fábrica e gravadora de discos Rozenblit (1950-
1980), em Recife (PE). Essa gravadora possuía um selo chamado Mocambo que, de acordo com
a bibliografia dedicada ao assunto, era destinado à produção e ao fomento da música local
pernambucana. Observando a produção do selo Mocambo (o que pode ser facilmente feito por
meio das plataformas digitais), se nota uma gama de expressões musicais consideradas típicas
de Pernambuco, como frevo, ciranda, coco, maracatu, dentre outras. Temos aqui uma produção
que foi orientada, em grande medida, por um certo discurso de identidade regional, que
reivindica uma suposta identidade regional nordestina (ALVES SOBRINHO, 1993; TELES
2000).

6. Considerações finais

O quadro construído neste artigo, buscou refletir sobre como música, memória e
identidade se relacionam. No que diz respeito à “memória”, podemos pensá-la como um
mecanismo que “dá liga” entre os elementos que compõem uma cultura: comportamentos e
valores, características que, de um modo geral, vão compor e moldar as identidades culturais.
A memória enquanto mecanismo individual, como vimos, a partir de um olhar mais detido nos
processos neurofisiológicos, gerenciados pelo cérebro humano; é a principal responsável pela

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aprendizagem humana, a partir do armazenamento das informações, por meio de “mapas” ou


“redes neurais” (REILY, 2014).

A memória enquanto mecanismo cultural ou “memória coletiva” (HALBWACHS,


1990), diz respeito à socialização de um indivíduo com os demais integrantes da sua cultura. A
subjetividade de um indivíduo é formada neste momento, a partir da interação que ele
estabelece com o seu grupo e com o meio à sua volta. Neste sentido, todo e qualquer processo
de aprendizagem deve ser levado em consideração a partir de um determinado contexto sócio-
histórico. A memória, exerce papel fundamental neste processo.

Em suma, buscamos mostrar, com este artigo, que música e cultura não devem ser
pensadas como instâncias separadas, mas como processos que se atravessam e se interconectam.
Os elementos mais amplos da cultura e da sociedade são refletidos na música da mesma forma
que a música trabalha esses elementos mais amplos. A música contribui para a construção
simbólica de uma cultura de tal sorte que toda e qualquer mudança na cultura é também
processada pela música. Ela contribui para a construção, manutenção e reforço das identidades
culturais ao ponto dos grupos também disputarem pela sua hegemonia. Neste sentido, se
queremos entender o papel da música em uma determinada cultura, devemos buscar os meios
de produção e de consumo, em determinado contexto. Por fim, com efeito, se a memória exerce
papel fundamental na organização da cultura, ela também exerce um papel central na
organização da música. Estudar as relações entre música, memória e identidade pode abrir
novas perspectivas e dimensões ainda não exploradas.

Referências

ALVES SOBRINHO, A. Desenvolvimento em 78 rotações: a indústria fonográfica Rozenblit


(1953‐1964). 1993. 125 f. Dissertação (Mestrado em História) ‐ Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 1993.

BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de pesquisa. São Paulo, n. 16, p.
201-218, 2007.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. ed. 22. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2020. 629 p.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo. 2016. 248 p.

GEERTZ, Clifford. O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa, Petrópolis


(RJ): Vozes, 1997, p.142-181. In: Capítulo 5: A arte como um sistema cultural.

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HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta.
2019. 160 p.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. ed. 11. DP&A. 2006. 104 p.

HALBWACHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. (cap. 1). In: Memória
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge
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REILY, Ana Suzel. A música e a prática da memória: uma abordagem etnomusicológica.


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SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
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SILVA, Tomaz. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. ed. 15. Rio de
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TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000. 360 p.

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