Oração para Desaparecer 1st Edition Socorro Acioli Download PDF

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Oração para Desaparecer 1st Edition


Socorro Acioli

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
parte i: Você trouxe todas as palavras
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.

parte ii: Os ossos dela não estão lá


1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.

parte iii: A língua de fogo avisou


1.
2.
3.
4.
5.
6.

Oração para Desaparecer

Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de
minhas rezas.
João Guimarães Rosa

… assalta-me o desejo de convocar os poetas, os sociólogos, os pintores, os


romancistas e os músicos do Brasil e pedir-lhes que vejam, mas vejam
longamente, a igreja de Almofala. […] Vinde poetas e vinde sábios, vinde
celebrar comigo este caso de vento e areia, e o índio disperso e a soterrada
igreja.
Carlos Drummond de Andrade,
“Areia e vento”, Correio da Manhã,
17 de novembro de 1946
Para Júlio Camilo,
que dissolve e recria meu tempo
parte i
você trouxe todas as palavras
1.

Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a


boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos
alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos
para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada,
fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do
meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me
desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.
Quando eu já suplicava pelo fim, o buraco me apertou como uma mão
gigante de terra, envolveu meu corpo inteiro e começou a me expulsar. Os
olhos lacrados, a hora do parto, a boa hora de Nossa Senhora, as palavras se
repetiam no pensamento tomado de desespero.
Comecei a sentir os músculos, ossos, nervos, minha pele toda invadida
pelo espírito impetuoso de um parafuso, a forma humana preservada, não
virei bicho nem pó. Girava para cima com ritmo e firmeza, sem fazer
esforço, na pressão lenta da terra, cada vez mais forte ao redor do meu eixo,
apertando dos lados, empurrando no meio das pernas, pelas plantas dos
pés. O monstro subterrâneo estava decidido sobre meu destino: queria me
expulsar dali.
Dois pares de braços surgiram cavando, falando, abrindo espaço para a
luz. Buscavam por mim. Duas mãos encontraram meu pescoço, seguraram
pelos lados e puxaram com força. Outro par de mãos agarrou minha
cabeça. Ouvia suas vozes apressadas comentando como era pesada,
cuidado para o pescoço não quebrar e matar de uma vez, puxe o braço
com jeito para não arrancar o ombro, que pele fria, será que a criatura está
viva? e se sair morta, o que faremos? deixa de asneira, eles saem vivos
sempre, você sabe que é assim.
Os dois mudaram a estratégia e me arrancaram pelas axilas com vigor e
gemidos de esforço. Atravessei a terra tossindo muito. É uma rapariga, ela
disse. Passou um pano molhado no meu rosto e repetia que estava tudo
bem, que era preciso calma, enquanto um homem me enrolava em duas
mantas, cobria meus peitos e minhas costas. Eu estava nua, com medo e
morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro
gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda
não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas
vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer.
Voltei a enxergar graças ao zelo dela, limpando minhas pálpebras com
muita paciência. Meu corpo estava completamente nu e sem pelos em
nenhum lugar. Passei a mão na cabeça e gritei, assustei os dois. Estava
careca. Os cabelos ficam no caminho, o chão arranca, a mulher disse, mas
logo vão crescer, não te preocupes. Falava o essencial e continuava
limpando com cuidado, as orelhas, a pele, o pescoço, o dedo enrolado em
um tecido fino cutucava os ouvidos. Suas mãos me devolviam a dignidade,
seus olhos não largavam de mim.
De vez em quando ela pedia que eu não ficasse nervosa, que me
acalmasse, que me daria sopa com pão, chá quente e boa dormida. Todos
vocês chegam com muita fome, depois dormem uns dias, ela disse, quando
acordar arranjaremos sua vida, sem susto nem espanto. Não adiantava
tentar me acalmar, tudo era puro assombro. Perguntou se eu conseguiria
ficar em pé e colocar meus braços sobre os ombros deles. Estava fraca
demais. O homem me pegou no colo e me levou até a casa, perto da cova
de onde saí.
Tentei falar, mas tossi de novo. Entramos pela porta de trás e fomos
direto para um pequeno quarto, ao lado da cozinha. Os dois me deixaram
em uma poltrona larga de couro marrom, forrada com alguns lençóis em
um local escuro e bagunçado.
Senta-te aqui, fica parada, não sai por enquanto. É preciso permanecer
mais ou menos meia hora sentada para que o sangue volte a correr direito
pelo corpo e a pressão regularize, o homem explicou nesses termos. Depois
deveria tomar banho. Antes de deixar o quarto ele levantou minhas duas
pernas e as apoiou em um pequeno banco, também forrado com uns
trapos manchados, dizendo que era para ajudar a ativar a circulação. Abriu
uma maleta de couro e me examinou com aparatos de médico. Respiração.
Lanterna nos olhos e ouvidos. Aperto no braço, na barriga com sua mão
fria e avermelhada. Disse que parecia estar tudo bem, por enquanto, só
muito suja por dentro, mas iria melhorar com os dias.
A mulher voltou com outra toalha, limpando meus pés. Eu seguia atenta
às temperaturas, à benevolência dos exames do doutor, à certeza dos olhos
dela. Na parede ao lado da cama havia um batente alto de alvenaria cheio
de velas antigas, de cores e de formatos diferentes, ceras derretidas,
retorcidas, pavios dormindo. Ela acendeu algumas antes de sair, deixou
fogo e luz. Senti cheiro de estrume, passei muito tempo com aquele fedor
de enterro por dentro do meu nariz, mesmo dias depois de estar limpa.
Um pouco de chá amargo, um prato de sopa e um pedaço de pão. Foi a
primeira refeição que fiz com eles, enquanto me observavam.
— Deixa a chávena aqui na mesa, assim tu tomas a sopa na bandeja com
mais jeito.
Eu não sabia o que era chávena. Quase bebi a sopa direto do prato, de
tanta fome. Comi o pão de uma vez e ainda tossia, engasgava, mas o
desespero pela comida era maior. O chá quente dissolveu a terra da
garganta, um alívio.
Agora podes tomar banho, ela autorizou, arrumando na cadeira ao lado
da banheira um pijama de flanela azul, de tamanho bem maior que o
meu; um par de meias, um vestido preto, um casaco verde, roupa de baixo,
um pedaço de sabão. Enquanto eu comia, eles encheram uma banheira
com água tão quente que fumaçava, ali dentro do quarto mesmo. Faziam
tudo juntos, sincronizados, pareciam treinados para aqueles gestos de
cuidar de uma morta-viva. A água caía na banheira de ferro antiga e de pés
elegantes. Ao lado havia uma cama e um baú.
— Demora-te no banho, lava as partes todas, esfrega-te com esta esponja.
Tenho outras, arranjei um pacote quando soube que tu chegarias, podes
usar tudo. Limpa os dentes, é importante tirar a sujeira das gengivas
também. Descansa, depois do banho tu podes dormir, a cama está pronta.
Ela adivinhou meu desejo de falar e avisou que não seria bom fazer
muito esforço nos primeiros dias.
— Eu sou Florice. Este é o doutor Fernando, meu marido. Ele é
médico, saberá fazer o que for preciso para recuperar tua saúde. Depois tu
me dizes o teu nome.
Seria impossível descansar com tanto nojo da minha imundície. Tirei os
panos de cima de mim e entrei na banheira para passar o frio, o corpo nu,
tonto e fraco, sem equilíbrio. Fechei os olhos dentro da água, a perfeição
da temperatura, um lago de alívio sob a luz das velas. Parecia lógico e
prudente aceitar que algo gravíssimo acontecera. Voltei a achar, dessa vez
com calma, que eu estava morta. Alguém me matou e tudo ao meu redor
era o além. Então era assim a Morte, uma senhora de olhos azuis chamada
Florice, prestimosa, racional, um pouco apreensiva, mas jamais surpresa.
Uma aberração surgiu do solo, no quintal, mas isso não alterava sua calma,
como se me conhecesse.
Se fosse uma situação real, com pessoas vivas, não sei o que teria sido de
mim, onde eu teria sido largada, chamariam a polícia, pensava tudo isso ao
mesmo tempo, minha cabeça acelerada. Cheguei a me convencer de que
talvez aquilo fosse uma área de transição, um descanso para o que viria
depois. Vida e morte são mistérios que ninguém alcança. Tudo o que se
fala sobre nascer e morrer é mera aposta. A morte é dolorosa, mas talvez o
nascimento seja pior, e minha desgraça estava ali, entre uma coisa e outra.
Era estranho que o corpo doesse tanto, nos músculos, na pele, aquela
dor de cabeça, sentir fome, sentir frio, ter a carne tão viva ainda. O
desligamento das sensações viria aos poucos, devia ser assim.
Alisei meu corpo com as mãos buscando algo que explicasse o
acontecido: tiro, facada, ferida, inchaço, costura, tumor. Achei um corte no
braço esquerdo, fundo, do ombro ao cotovelo, e outro no pescoço, e
machucados, pontos roxos, arranhões, pancadas. Os cortes maiores não
sangravam, mas estavam abertos e com terra por dentro. Ardia. Eu não
estranhava minha própria pele. Fui capaz de alguma maneira, apertei
minhas coxas, achei tudo forte, farto, os músculos, as carnes, os seios, as
pistas eram só essas. A última esperança que tinha era o corpo, minha
única posse, mesmo sem saber se eu era só uma sobra de vida que
desapareceria com os dias.
Mergulhei. A banheira era larga e funda o suficiente para ficar uns
segundos imersa. Foi quando percebi um colar de búzios boiando, preso ao
meu pescoço, cheio de areia que saía de dentro das conchas e se dissolvia
na água, e que veio comigo não sei de onde, em testemunho de não sei o
quê. Recobrei um pouco da lucidez. Até hoje, quando estou confusa,
cuido do meu corpo, lavo a cabeça, deixo que a água me ajude a voltar
para a minha pele.
A temperatura foi baixando muito rápido e tive de sair da banheira, me
enxugar, vestir a roupa, as meias, calçar os estranhos sapatos de esquentar
pés e abrir a porta para tentar chamá-la. Havia voz: Florice! Ela veio
correndo com o marido e perguntei se eles sabiam como eu morri, se
estava mesmo morta, onde era aquele lugar, tudo atropelado.
— Ela fala brasileiro — Fernando disse, sorrindo, pois para ele era boa
notícia.
Perguntaram meu nome. Não lembrava. Não havia nenhum registro de
resposta nos meus pensamentos para a pergunta que coloca uma pessoa na
vida de outra.
Nada aparecia na cabeça, imagem, lembrança, nenhuma pessoa, isso
me desesperou e eles disseram que seria melhor dormir, pois a chegada
confunde as ideias, no dia seguinte eu lembraria de tudo.
— E se eu não lembrar?
— Todos lembram.
2.

A casa era um depósito dos vestígios de muitas vidas. Diante da porta do


quarto, havia uma sala pequena. Das marcas retangulares nas paredes
imaginei os quadros. Uma máquina de costura em silêncio, uma cadeira
sem assento e uma espessa camada de poeira, que denunciava abandono.
Um piano de madeira escura servia agora apenas como a prateleira de
retratos desbotados de casais, mulheres, homens, crianças que partiram
deste mundo muitos anos antes.
Ao lado vi outra sala, um pouco menos suja. E vi Fernando. A mesa
posta contrastava com o cenário ao redor porque, no meio dela, havia uma
flor. Uma garrafa branca com água e uma rosa amarela de Almofala, como
eu saberia depois. Um dos dois saiu no frio para buscá-la e dar outra ordem
ao lugar do nosso pequeno-almoço.
Florice estava cozinhando enquanto uma mulher cantava no rádio.
Fernando puxou uma cadeira para mim. A menina conseguiu descansar?
Sentiste alguma dor na cabeça, no corpo, estás bem? O sono foi reparador,
sim, mas não resgatou nenhum traço de memória. Ele perguntaria isso a
seguir e já adiantei que não recuperei nada.
Interrompeu o exame, mudou de assunto, alinhou a colher com a mão
direita, o garfo com a esquerda e contou que o capricho da mesa era graças
a uma mala de apetrechos trazidos pela esposa. Toalha de mesa, copos,
chávenas, pratos, talheres, tudo era deles. Florice só sabe estar cercada de
beleza, ele disse, só anda com as coisinhas dela. Os dois perfumados,
penteados, bem-vestidos. Especialmente ele, Fernando, e sua inabalável
elegância e olhar sempre atento a todos os meus gestos. Não era só
cuidado; havia curiosidade e um pouco de medo, um sentido de alerta.
As bagagens estavam no chão, uma mala aberta e outra fechada. Perto
delas, um pacote enrolado com plástico preto e barbante, em cima de um
cobertor dobrado, parecia um bebê morto e preparado para um enterro.
Não tive tempo de perguntar o que era, nunca esqueci a sensação que me
causou aquele embrulho, aterrorizante como um choque frio. Durou
segundos minha vista ali, logo Florice encheu minha xícara de café e o
cheiro me acordou. Só depois de tomar metade e de comer algo comecei a
falar e a fazer perguntas: como fui parar naquele lugar, o que aconteceu, se
eu estava morta, se ela era a Morte e ele era Deus, ou a Morte e seu
auxiliar. Os dois riam, achavam divertida a minha confusão. Até que veio a
sentença:
— Você trouxe todas as palavras.
Foi Fernando quem disse. Perguntei de novo o que tinha acontecido
comigo e Florice foi direta: sabemos muito pouco sobre isso, só recebemos
o aviso de que alguém chegaria no chão deste lugar, e foi preciso correr
para o teu resgate. De repente estávamos concentrados em falar a sério
sobre todo aquele absurdo.
— E como vocês souberam?
— Recebemos um telefonema.
— E o que disseram de mim? Não explicaram nada?
— Nada. Foi uma conversa breve. Mandaram que viéssemos à Almofala,
esta aldeia, buscar uma mulher e desligaram o telefone. Nós já sabíamos
que iria acontecer um dia conosco, mas demorou muito. Abrimos o mapa
de Portugal, eu e Florice, e vimos seis aldeias com o mesmo nome, cada
uma menor que a outra, seria um código? Almofala é uma palavra árabe,
significa acampamento temporário. Al mohala. Os mouros foram deixando
muitos pelo caminho. Ficamos sem saber o que fazer, imaginamos mil
sentidos, uma senha, um enigma. Estávamos perdidos.
— E como descobriram?
— Recebemos outra ligação pedindo desculpas pela confusão e
explicando que era a Almofala perto de Caldas da Rainha.
— E só?
— Só. Falou do pó de café, mas disso eu já sabia.
— O que pó de café tem a ver com isso?
— Quando se recebe o aviso da chegada do Ressurrecto a gente joga pó
de café no lugar onde quer que a terra se abra, ajuda no caminho. Meu avô
fazia assim porque alguém disse a ele.
— Ressurrecto? Eu sou isso?
— É como meu pai chamava. Pessoas que iam morrer, mas por um triz
escaparam e voltaram à vida em outro lugar.
— E qual o sentido disso?
— A menina ainda não percebeu que quase nada na vida faz sentido?
Algumas coisas são obrigatórias, é preciso fazer e já está. Desde pequena eu
sei que temos de jogar o pó de café no terreno e aguardar a criatura que vai
chegar, receber, cuidar de todas as maneiras até que a pessoa vá embora
por decisão própria, são as regras. E entre um acontecimento e outro, rezar
para que nada de mal nos ocorra. Achei que não aconteceria mais, que por
algum motivo eu poderia estar livre, mas tu vieste. Se a gente começar
com isso de entender ninguém termina mais essa conversa e temos muito a
fazer.
— Quem ligou, era homem ou mulher?
— Mulher. Apresentou-se como Regina, nada mais.
— Quem é essa Regina? Por que ela sabe de mim?
— Não faço ideia, menina, nunca a vi na vida. Ela só disse essas coisas e
desligou. Falava rápido demais, um entusiasmo de ideias, mas consegui
entender e cá estamos. Chegamos semana passada e arranjamos esta casa.
Fizemos vigília para esperar teu desenterro, obedecendo à ordem da razão
mística que nunca entenderemos, como dizia meu pai.
— Mas por quê? O que vocês querem comigo?
— Queremos nada. É uma obrigação a cumprir, só isso. Salvamos a tua
vida, a menina deveria agradecer.
Florice tentou encerrar a conversa, aborrecida, irritada, resmungando.
Ficou me perguntando se eu queria algo mais, que era bom comer
bastante pois devia ter perdido vitaminas. Da bruma ao corpo, de novo.
Fernando retomou a conversa:
— Lembraste teu nome, uma letra, um som?
— Não.
— Vais lembrar. Mas escuta: esta casa não é nossa, como já expliquei.
Não somos daqui, alugamos só para te receber e já vamos embora amanhã.
Ainda dá tempo de passear um pouco pela aldeia, tu precisas andar para
reequilibrar a circulação, funções vitais. É necessário.
— Eu vou ficar aqui?
— Não, claro que não. Vamos te levar para a casa da irmã de Florice, no
Norte. De lá seguimos a nossa vida, tu segues a tua e não estarás
desamparada nesse começo. Moramos em um apartamento em Lisboa, na
casa de minha cunhada tu terás mais conforto. Ela vive sozinha, vai gostar
da tua companhia, já falamos com ela. Depois tu decides teu destino,
quando lembrar. Alguns voltam para casa, outros ficam, é escolha tua, mas
por enquanto é nossa responsabilidade cuidar de ti até que essa fase de
confusão passe.
Então eles cuidariam de mim, mas eu deveria seguir a minha vida em
breve. Eu, que não sabia que vida tive, sem pistas daquilo que fui e não sei.
Voltei para o quarto, peguei um dos casacos, o verde, de veludo, e calcei
um par de botas que cabiam três pés dentro de cada uma.
Na porta, Fernando disse que iria comigo caminhar, mas que seria
rápido para não despertar a curiosidade das pessoas. Almofala era uma
aldeia pequena, uma e outra casa habitada, com roseiras no jardim, flores
saindo dos muros, datas antigas sobre as portas, tomada por gatos peludos
de todos os tipos.
A maioria das construções estava abandonada. O som das pedras sob
nossos sapatos quebrava o silêncio frio e triste. Estávamos no alto de uma
montanha, o cume do mundo, o mais perto possível do céu.
Dobrando à esquerda da casa vimos uma igrejinha no alto, em formato
triangular, vazia e de portas fechadas. Um homem que arrancava mato das
pedras do muro veio falar com Fernando. Entendi que se conheciam do
primeiro dia, trataram do aluguel, ele perguntou se estava tudo bem na
casa, acho que tentava entender o que fazíamos ali, porque metralhava as
perguntas olhando para mim. Fernando explicou que procurou uma aldeia
tranquila e alta para uns dias de descanso com a sobrinha doente.
Para evitar seu olhar estupefato, achei prudente subir os degraus, entrar
na igreja e me sentar um pouco, mas estava trancada. Havia uma rosa
vermelha no batente, fresca, recém-colhida. Talvez deixada por alguém
que iria levá-la para algum santo e deu com a porta fechada.
Os dois conversavam e o homem falava de Almofala, contava que os
idosos foram morrendo e que as famílias nunca voltaram para reclamar as
casas, que tudo morria junto com quem partia e talvez fosse culpa das
almas do fosso, os mortos da Santa Inquisição. Os enforcamentos
aconteciam ali, os corpos eram jogados lá — ele apontava com precisão,
colocando seus olhos nas palavras para explicar a geografia do desterro,
sem precisar a data, parecia um ato de sempre, enforcar, jogar no buraco
da morte.
Dei a volta para não ouvir mais. Encontrei uma portinha lateral, talvez
estivesse aberta. Quando subi os degraus, todas as portas começaram a
sacudir, várias mãos ao mesmo tempo, um movimento orquestrado pelo
vento. Continuei subindo e com mais um passo, mais de perto, estavam
sacolejando a madeira com violência, implorando para sair, mais forte e
mais alto. Isso acontecia com a porta principal, a lateral e as janelas,
sincronizadas, e teria de ser, então, trabalho de umas tantas pessoas. Eu
ouvia um murmurar de longe, confuso, tive medo, mas os homens
conversavam normalmente, não pareciam ouvir nada. Desci correndo e
escorreguei na areia.
Fernando olhou para mim espantado, ajudou-me a levantar e adiantou
nosso retorno, sem entender meu susto, minhas palavras desconexas, em
voz bem alta, repetindo que estavam tentando abrir as portas e as janelas,
que era preciso salvar as almas presas dos enforcados. Alguns moradores
começaram a aparecer pelas ruelas, e o rumor da forasteira louca já estava
se espalhando, pelo visto, coisa fácil de acontecer em um lugar morto,
onde nunca há novidades e são tão poucos os vivos. Despediu-se
explicando ao homem que precisava cuidar da sobrinha doente, que já
iríamos embora. Voltei para casa chorando e amaldiçoando o fosso vazio da
minha memória.
3.

Despertei quando Florice bateu na porta e me chamou para tomar um


chá de tília, prometendo que acalmaria minhas ideias, sem que ela mesma
estivesse tranquila. Lembrei de sonhos confusos que tive, cenas cortadas
com facas, um homem muito perto de mim, falando alto. Acordei
assustada com os gritos dele, furioso dentro do sonho, misturados às batidas
dela, suaves.
Enquanto demos quatro passos lentos até a mesa, contou-me que
descobriu um pé de tília no quintal e estava contente por isso, era seu chá
preferido. Tomamos muito em Portugal, ela explicou, abrindo espaço para
esse assunto sem qualquer interesse ou relação com a tragédia que eu vivia,
como se estivesse tudo bem.
Fernando me aguardava à mesa, com um caderno e uma caneta em
mãos. Florice também. O dela era gasto, velho, uma capa de papelão azul-
marinho dobrado e desdobrado, com as pontas já se desfazendo. O dele,
um caderninho novo, de capa vermelha. Sua fala foi um percurso de coisas
numeradas, organizadas, a única ordem que meus pensamentos
conseguiram obedecer. Combinaram aquela conversa. Decidiram sobre o
que cada um falaria e até que ponto poderiam me dizer coisas, um evento
ensaiado.
Primeiro ele repetiu que não perdi as palavras, voltou a esse ponto com
insistência, olhando nos meus olhos, pausando a voz para que eu
entendesse que aquilo era sério e importante, poderia compor meu tempo,
determinaria o meu futuro, eu não tinha percebido ainda. Alguns chegam
mudos aqui e só voltam a falar meses depois, meu caso era um intercurso
improvável e milagroso. Ele me pediu para acreditar, pois só isso me
ajudaria a resolver tudo mais rápido, lembrar quem sou, voltar para casa.
Estava viva, não morri, sobrevivi ao insólito.
Segundo: meu passado poderia aparecer nos sonhos e eu precisaria
anotar com muita dedicação, em detalhes, mesmo que parecesse uma
coisa sem sentido ou sem importância. Eu iria lembrar de tudo em algum
momento. Os sonhos guardam o que é nosso e nos devolvem quando
precisamos, ele disse, contando que pelos caminhos de dentro as memórias
voltaram da viagem escura.
— Escreve tudo no caderno. Sabemos que é difícil para ti não lembrar
nada da tua vida nem das pessoas. Não perceber o que te aconteceu é
devastador, mas os outros chegaram quase sempre mudos, soltando
grunhidos que ninguém entende, latem, miam, um festival de horrores. As
palavras vieram, isso é muito bom, mas tem paciência. É como reconstruir
uma cidade depois de um terramoto. Tu te desfizeste, foi uma categoria de
morte, mas não daquelas que encerram a vida. É uma ressurreição,
entendes?
Claro que eu não entendia. Eu acreditava nele, havia um esforço sincero
para me fazer perceber, muito profundamente, que me entregava uma
chave importante para seguir, mas eu me revoltava.
— Quem são os outros todos?
Florice ouvia tudo de cabeça baixa, olhando seu caderno, prestes a
explodir com minha irritação, apertando os lábios, controlando o ânimo,
apressando os gestos e a ponta dos dedos contornando a borda da capa,
com unhas pintadas e bem cortadas. Fernando sustentava o olhar em mim.
As tarefas entre os dois estavam bem divididas: ela cuidava do meu corpo
por obrigação e ele, dos pedaços de alma que levei, por caridade.
Perguntei também o que achavam que aconteceu na igrejinha da aldeia,
ela disse que pode ter sido alguma confusão mental, é comum no meu
estado. Além de rapariga, sou louca, era isso que ela pensava de mim, essa
égua do meu ódio. Não havia nada lá, as portas estavam imóveis, ele
garantiu, olhou com atenção, não escutou coisa nenhuma. Tive certeza de
que muitas pessoas queriam sair de lá de dentro, mas eles disseram que eu
não me importasse, que os primeiros dias e meses eram assim mesmo,
aconteciam fatos inexplicáveis.
— Ou eu posso ser louca. Se não sabemos de nada, posso ser qualquer
coisa.
— Os Ressurrectos chegam sempre confusos. Eu conheci muitos loucos
na vida e os piores estavam sempre convencidos de que eram ótimas
pessoas — Florice resolveu falar.
— O que é ser Ressurrecto, afinal? Por que isso aconteceu comigo?
— Já te disse antes. Significa quem morre sem morrer, enterrados que
saem da terra. Não é qualquer morto, são os escolhidos para isso. Quem
começa uma vida nova. Meu avô repetia exatamente isso quando
tocávamos no assunto. O que aconteceu contigo é parte da história da
minha família há anos, um absurdo que nunca entendemos, quase um
delírio, não contamos para ninguém, sempre foi nosso segredo. Tu não
podes falar nada, percebes? Nunca poderás falar. Os que chegaram para
nós estão registrados neste caderno. Cada um com uma origem diferente.
— Sempre saem da terra?
— Os que chegam para minha família, sim. Tu és a vigésima oitava e a
primeira mulher. Mas meu avô falava que havia outras formas de chegar.
— Esse corte no meu braço, no pescoço, essas marcas e pancadas, vocês
sabem o que foi? Estou muito ferida. Quem me enterrou, quem fez isso
comigo?
Não sabiam. Fernando quis dizer algo, mas Florice tocou sua mão e o
interrompeu. A sensação se repetiria muitas vezes: ele ficava prestes a dizer
qualquer coisa que ela não permitia. Ela abriu o caderno e passou as
páginas. Nome, data de chegada, data de saída, algumas linhas a mais.
Mostrou muito rapidamente. Na página vinte e oito havia a data e a hora
do meu desenterro, descrição física, pouca coisa.
Recebi o caderno vermelho em branco e prometi me esforçar. Eu
saberia anotar? Se dependia de mim, garanti que iria fazer o certo: escrever
os sonhos.
— Não sei se isso vai ajudar em alguma coisa, meus sonhos são ilusões
de cabeça confusa.
— É o contrário. Só o sonho é real.
Ele explicou mais uma vez, com paciência, que alguns dos Ressurrectos
que conseguiram voltar para as suas casas de origem, seus países, foram os
que perseguiram as pistas dos sonhos, de forma consciente ou vaga, mas era
o único jeito de voltar. Os Ressurrectos sempre têm fortes motivos para
fazer a viagem, ele disse.
— E qual teria sido meu motivo?
— Deve ter alguma relação com as tuas cicatrizes. Foram cortes fundos,
quem fez isso queria o teu mal. Tu lutaste uma batalha violenta, isso é
certo.
— Eu morri e recebi outra chance por qual motivo?
— Não sabemos, realmente, mas aconteceram absurdos, era o pai de
Florice quem contava os casos. A esta altura da minha vida sei que
qualquer coisa é possível. Não sou mais ingênuo de acreditar que uma
ordem única rege tudo, ou que nossa cabeça pode entender os desígnios do
mundo. Não pode. Só nos resta aceitar e seguir vivendo porque estamos
nessa aventura às cegas. Todos nós. Quando a gente acha que entendeu
tudo, o caos aparece para relembrar que não somos coisa nenhuma.
Depois dessa conversa eles não queriam dizer mais nada, mudaram o
tema, entramos no modo prático da vida: arrumar objetos, organizar a
bagagem, estudar a rota da viagem pelo mapa. Partiríamos para a casa de
dona Fátima, cunhada de Fernando, mas antes iríamos passar uns dias em
Lisboa. Mostraram o mapa de Portugal, a travessia que faríamos até lá, o
nosso lugar naquele país, pequeno e estreito na Europa, o nome do
continente, ele explicava como se eu fosse criança. Pediram desculpas por
não mostrar o mapa do Brasil, não o tinham em mãos. Levavam o de
Portugal pela necessidade.
A rota de saída de Almofala passaria por São Clemente, Venda da Costa,
Venda da Natária, Cumeira da Cruz, Chões, Alvorninha, Chiote,
Zambujal, Vila Nova, Outeiro, Casal do Rei, Casais da Boavista, Ribeira de
Crastos, Carrasqueira, Vidais, Mosteiros, Trabalhia, Matoeiro, Imaginário,
Caldas da Rainha. Eu guardei esse papel, deixei dentro do caderno, por
isso sei os nomes até hoje.
Os dois tinham gosto de apontar no mapa os lugares onde nasceram,
onde viveram, onde estão seus parentes, os sítios mais bonitos, as viagens,
as paisagens. Falaram da muralha de Óbidos, da casa que alugaram com
uma laranjeira cuja copa invadia a janela do quarto quando eram jovens e
comemoravam o terceiro ano de casamento. Adoravam o Porto, Coimbra,
Sintra, Mafra, Aveiro, Braga, decorei alguns nomes mas estava cansada,
não era um bom momento. Eu não estava ali porque escolhi. Desejaram
que eu aproveitasse a sorte de renascer em Portugal. Não conseguia ter essa
ideia tão bem-acabada de renascimento, mas gostava do esforço para me
alegrar.
Antes de ir embora fui ver de onde saí. O buraco estava coberto e
Florice plantou uma muda de oliveira em cima, contou que trouxe de casa,
era um ritual de chegada dos Ressurrectos que seu avô ensinou. Aninhou a
mudinha na terra enquanto eu me recuperava na primeira noite, diz ela
que isso me ajudou e eu nem sei. A árvore absorveria o que ficou de mim
pelo caminho.
Deixamos a casa de carro e vimos que o movimento nas poucas ruas
estava diferente. A igrejinha de Almofala só abria uma vez a cada três
meses. Um padre de Caldas da Rainha passava o fim de semana na aldeia,
atendia aos pedidos de batismo, confissão, extrema-unção, exorcismos e
casamentos, tudo junto, os sacramentos, as ilusões da vida, a certeza do
fim. Já estávamos de saída, todos no carro, mas Florice pediu para descer e
rezar um pouco.
Era um padre jovem. Sentia-se bem porque Deus o escolheu como
pároco de Almofala, aquela terra de sofrimentos, e ali ele percebia com
mais força que sua vocação se cumpria, ele disse. Engraçado, de Deus eu
lembrava. É preciso ter muita fé para achar que foi Deus que cuidou dos
detalhes banais da vida terrena, mas era o que eu sentia naqueles dias, a
crença também veio comigo, mesmo que depois tenha se perdido.
De portas abertas e cheia de gente, a minúscula igrejinha encrustada em
um triângulo trazia Almofala de volta à vida. A missa já estava em
andamento quando entramos e nos sentamos no penúltimo banco, do lado
esquerdo. A pequena interrupção gaguejante e o olhar do padre fizeram
com que todos virassem para nos ver, um trio estranho. Um casal elegante,
uma moça careca e malvestida olhando o mundo com visível perturbação.
Minha audição alcançava os sussurros desde a primeira fila e ouvi os
comentários:
— É essa aí a rapariga.
— O aluguel da casa foi pago por um mês, mas só ficaram alguns dias.
— Disseram que iriam embora pelo agravamento do estado de saúde da
enferma.
— Será que é cancro?
— Não, parece lunática, minha mãe tem uma prima assim, eu percebo
de longe.
— Pobrezinha, é jovem ainda. Não sabemos que tipo de doença.
— Estou convencida de que é lunática.

Fiquei na ponta do banco, de cabeça baixa, fechei um pouco os olhos


para ouvir o canto, a música em coro improvisado, a voz do padre em
destaque, aquilo era familiar e me trouxe conforto. Meu transe de paz só
foi interrompido por uma mulher que chegou perto de mim, com um
menino. O povo todo cantava olhando para o padre, já tinham esquecido
de nós, menos eles. A mulher e o menino. Menos aquele outro homem na
janela. Menos o jovem, na outra janela. E as duas idosas, gêmeas, muito
magras e com fiapos de cabelos brancos e longos, quase um emaranhado
de teias e poeira da cabeça até os ombros, uma cabeleira só para duas
pessoas. A mulher com o menino olhava muito séria e, enquanto eu a
observava, não percebi que chegou ao meu lado uma menina de uns sete
anos, tão junto de mim que falou baixo, no meu ouvido com um
movimento discreto:
— Já vais?
Sorri para ela e disse sim. Sorri para as outras pessoas em pé, nas janelas.
Não responderam o cumprimento, apenas olharam para mim. A cor e a
forma as distinguiam dos outros da igreja e então entendi.
Não sei o que fui antes de esquecer tudo, mas no momento em que me
concentrava naqueles corpos descobri que era capaz de ver os mortos. Não
era espantoso, deve ter sido sempre assim, a ideia não me deu medo, mas
era angustiante. A menina continuava ali e disse que iria comigo.
É difícil lembrar dessa cena, tenho vontade de chorar. Isso tudo, os
primeiros dias. Eu retomo a sensação de sufocamento. Se você não se
importar, eu gostaria de fazer uma pausa agora para beber água. Estou
contando muito rápido?
— Não te preocupa, estou a gravar. Aceitas um sumo de laranja?
— Só água, obrigada. E talvez uma taça de vinho. Mas veja: dos
primeiros dias lembro algumas coisas com detalhes, mas depois da saída de
Almofala os acontecimentos foram diferentes. Não sei se vou conseguir
continuar da mesma maneira, quase minuto a minuto.
— Talvez o caderno ajude. Anotaste os sonhos, certamente.
— Sim, anotei o que foi possível, aos poucos tive sonhos mais longos,
mais claros, em alguns tive certa lucidez. Aqui está o caderno.
— Gostaria de ver, quando for possível. Será importante para o meu
trabalho.
— O senhor não tem perguntas?
— Sim, mas o correto é sempre escutar primeiro.
4.

Fernando pediu que eu tentasse dormir durante a viagem para evitar


certa indisposição. Disposto e indisposto eram palavras que ele usava muito
para classificar o estado geral das pessoas de acordo com a saúde, o humor,
a qualidade do sono, a reação dos órgãos às alterações de temperatura, a
alegria, a esperança, a situação do nariz. Tu precisas sonhar para ter algum
alívio, ele quase suplicava. Era sempre um assunto muito sério o tema dos
sonhos, quase um tratamento para minha salvação. São os delírios do
desvelo que vão te salvar, ouvi muito essa frase até decorar, delírio e
desvelo. Não sei se eu sabia dessas palavras antes.
— É bonito.
— O quê?
— Delírio do desvelo. Soa familiar no meu trabalho.
— Confesso que sua profissão me impressiona, você é muito calmo para
um criminoso.
— Não é tudo crime, só uma parte. E o delito bem-feito é arte, exige
paciência. A frieza e o autocontrole são os segredos dos estrategistas bem-
sucedidos. Continua a contar, por favor, nosso tempo é curto para tantas
coisas. Então começaste o caderno de sonhos nesse dia?
— Sim. Abri o caderno pela primeira vez e não estava totalmente em
branco, havia uma frase na primeira página, no meio: Livro das Visões.
Não era a letra de Florice, eu tinha visto quando abriu o caderninho e
passou as páginas na minha frente. Ela escrevia com ondas, curvas, uma
caligrafia muito enfeitada em contraste com a dele, de linhas retas, três
palavras. Livro das Visões.
Na segunda página comecei:
Saí de um buraco na terra da Almofala, em Portugal. Estava nua e careca,
só usava um colar de búzios. Não sei o meu nome. Fui salva por um casal de
idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira. Consigo
ver os mortos. Não lembro de nada. Acredito em Deus.
Anotei essas palavras e guardei o caderno, era o que eu sabia sobre mim
até ali. Estávamos no carro a caminho de Lisboa, um automóvel limpo e
bem cuidado que Fernando dirigia. Florice consultava o mapa de vez em
quando. Eu obedeceria à ordem de dormir de qualquer maneira, estava
quase sempre muito cansada no primeiro mês, outubro, disso me lembro
bem, a sensação de cansaço permanente, de sono, tontura, corpo fraco.
Foi em trânsito que começou a temporada dos tais delírios do desvelo.
Abrir o caderno acionou algum mecanismo, e comecei a sonhar. Na
primeira vez tive um sonho que me pareceu muito longo, com cenas
entrecortadas. Vi as mãos de uma mulher furando búzios pequenos,
enfiando o fio por eles, organizando o universo, pois as coisas brilhantes no
céu se movimentavam no ritmo dos seus braços. A mesma mão pequena
abriu a barriga de um peixe morto e tirou um búzio maior lá de dentro.
Lavava na água de sal, enxugava e o colocava no meio, mas o sangue das
mãos não saía.
Era um rei dentre os outros, mais marrom, mais brilhante. S­e­guiu com
os búzios menores do outro lado até arrematar o arco completo. Estava
pronto o colar, igual a este aqui, que veio comigo. Abaixei a cabeça e ela
colocou o presente no meu pescoço, falando coisas que não entendi, eu
não reconhecia aquela fala. Pude ver seu rosto, era um sonho de boa luz.
Fiz esforço para identificar qualquer coisa, o lugar, a voz… O delicioso
som do mar.
— O marulho.
— Sim, o marulho. Só pude descobrir que ganhei o colar de uma
senhora de quem eu gosto muito. Senti amor por ela, imenso amor,
quando a abracei. Ainda posso sentir, era como saber tudo, enxergar tudo,
ouvir tudo, depois dali eu poderia vencer qualquer guerra insurgente, era
pura força em um abraço. Chegaram outras pessoas, era ela e outra, depois
outra e outra, muitas me abraçavam sem que a mulher saísse do lugar,
todas sangravam, eu também, confusa, tempo embaralhado. Elas queriam
falar comigo, eu afundava em muitos braços, uma festa silenciosa, voltando
ou partindo, não sei se era um adeus ou se me recebiam de volta, se riam
ou se choravam. Puseram o peixe morto no mar e ele voltou a viver, saiu
nadando e deixando sangue na água azul. Passei muito tempo fantasiando
o retorno, seria assim, mas às vezes pensava se não era a preparação de
partida, o sonho trazendo uma lembrança. O vento era forte, perturbou
minha vista, desligou meus ouvidos e eu acordei, dentro do carro, com a
esperança de que eu voltaria, de que ainda me esperavam na praia.
Meu rosto no reflexo do vidro do carro. Acordei e vi, não pareço com
ela, a mulher do outro lado da minha vida. Desejei que tivesse dito alguma
coisa, o primeiro sentimento depois do sonho foi de ter perdido tudo de
novo. Procurava sangue nas mãos. Tinha esperança de lembrar de mim,
queria que as memórias voltassem pelo caminho certo. Talvez elas ainda
estivessem atravessando o mesmo buraco sob a terra por onde viemos eu,
meu corpo, minhas palavras e meu colar de búzios.
Quando Florice percebeu que acordei ficou conversando comigo,
tentando mostrar mais ou menos em que ponto do mapa estávamos. Eles
disseram várias vezes que queriam me levar a um lugar muito importante
quando chegássemos a Lisboa. Riam um para o outro, comentavam
baixinho, brincando de fazer segredo. Pelos cálculos precisos de horário e
distância, ainda seria dia claro e daria tempo, sim, de ir até lá.

Cochilei várias vezes ao longo da viagem, mas foi possível perceber


como estavam mais leves e bem-humorados na volta para casa. Ouviam
música bem baixinho, cantarolavam de vez em quando. Meus ouvidos são
sensíveis demais aos sons. Naqueles primeiros dias tive certa dificuldade
com o tempo, nunca lembro bem quantas horas durava cada situação.
Ainda não sou muito boa nisso, em quantificar minutos, perco rápido tudo
o que passa, meus pensamentos são um labirinto infinito, eu vou e vou e
vou e não sei mais nem por onde voltar. Despertei de vez chegando a
Lisboa, gostaria de continuar dormindo em um canto silencioso, mas
aconteceu exatamente o contrário.
Paramos o carro e precisamos andar alguns minutos. Os dois
caminhavam de mãos dadas um pouco à minha frente, e aquela cidade
deu ao par uma nova energia. Pareciam outras pessoas, a Morte e o Vice-
Morte estavam bem vivos ali ao lado do rio.
Pelo cansaço e desconforto dos sapatos, eu estava sempre uns bons
passos atrás. Usava um vestido preto, que pelo tamanho certamente não era
dela, e nem sei onde ela arranjou essa roupa. Levou na mala para Almofala
junto com tantas coisas, a muda de oliveira, comidas, utensílios, aquilo que
me serviu. O vestido era estranho, mas ao menos o tecido grosso e o casaco
verde por cima me protegiam do frio. Não me vi no espelho, não tenho um
retrato desse tempo, não sei com o que eu parecia, daquele jeito, de
chapéu, tão despreparada para andar em público. Olhavam para mim e
dava vontade de dizer que se enxergassem, cada um mais estranho que o
outro, deveriam cuidar de suas vidas.
A névoa de Lisboa cobria meus olhos, podia ser alguma doença na vista
ou a perturbação normal da minha situação. Perto das pessoas apareciam
sombras e massas de luz, isso me incomodava, eu gostaria de não ver nada
estranho, queria descansar, parar em algum lugar tranquilo e esperar um
momento, esperar até uma paz qualquer se acomodar em mim, mas nada
me sossegava. Gostava de respirar o vento fresco, apesar da sensação ruim.
Eles pareciam satisfeitos com minha companhia e descobri, nas
conversas posteriores, que não tiveram filhos. Estavam felizes naquele
passeio, mesmo andando com uma criatura que não pertencia a nada e
atraía olhares de espanto.
O lugar que eles queriam me mostrar com tanto gosto e entusiasmo era
a Torre de Belém. Paramos em frente e eu não vi nada de tanta emoção,
mas fingi meu melhor sorriso. Era bonito. Fernando iniciou um discurso
solene ao explicar que dali partiam as caravelas que descobriram o Brasil,
que dali os destinos de Brasil e de Portugal se encontraram, o nosso fado.
Ele explicava tudo com detalhes, orgulhoso, professoral, tentando dar
sentido ao que me aconteceu, e eu estava exausta, achando muito penoso
ouvir a palestra, sem energia, cansada, querendo que tudo aquilo acabasse
logo, mas fazia de conta que prestava atenção. Sou brasileira e acho que
isso sempre foi a coisa mais importante a descobrir direito, o que é isso, o
que trouxe comigo que só existe porque sou uma criatura do Brasil.
Olhando a torre antiga, dos homens antigos, dos países antigos e das
caravelas que não existem mais, eu só pensava em restaurar a força do meu
corpo. Algo naquele discurso me incomodava demais, mesmo
reconhecendo a boa vontade do homem. Era um esforço para me dar
algum sentido, alguma noção de ordem, mas não me agradava em nada,
parecia a lógica de um castigo.
Pedi para me sentar na grama ou ir embora logo. Ele seguiu falando que
era o lugar onde nossa história começou a se cruzar pela primeira vez e
depois nos cruzamos de vez com minha chegada, uma Ressurrecta,
tentando mostrar que devia existir alguma ligação entre as duas coisas.
Florice contou que seu pai achava que os Ressurrectos voltavam para
onde deixaram um pedaço perdido da sua alma. O espírito é um só, entra e
sai dos séculos, os corpos nascem e morrem e as partes da alma vão se
espalhando, ela revelava. Não tive energia na hora para ir além, fazer mais
perguntas. De vez em quando eu lembrava que ela me chamou de
rapariga, não tinha esquecido, guardei a mágoa, ficava pensando no
motivo. Para que isso? Para que chamar de rapariga logo no primeiro dia?
— Em Portugal isso não é insulto. Rapariga é o mesmo que moça, no
Brasil, mulher, é um modo normal.
— Não ria, hoje eu sei, estou contando tudo da forma como aconteceu,
não foi o que o senhor me pediu? Naquele dia eu estava indignada porque
lembrava da palavra como insulto, a memória dos significados ficou
intacta. Mas isso era o menos importante, eles me tratavam bem e tiveram
responsabilidade com minha vida, não sou ingrata. Até ali o que me
chocava mesmo era ter sido enterrada viva, com tanta crueldade, não sei se
os outros Ressurrectos também foram. Eu tinha certeza de que algo ruim
tinha acontecido antes, não parecia uma travessia para resgate de pedaço
de alma, nenhuma busca espiritual, era uma tragédia violenta. Não tenho
como saber quando, se faz muito tempo, se ainda estão vivas as pessoas
com quem sonhei. Não sei, por exemplo, se a travessia obedeceu ao fluxo
dos dias. Pode ser que eu tenha voltado no calendário.
— Pode ter sido um salto temporal para qualquer lado.
— Talvez eu nunca saiba.
— Tua vida tem sido enganar Chronos, amar a Kairós.
— Não conheço essas criaturas. Não sei quem amei ou enganei.
— Volta ao relato do passeio em Lisboa, por favor. Não te perca nos
meus comentários, eu também tenho um labirinto na cabeça.
Pois, todos temos.

Ainda na Torre de Belém, fiz muito esforço para parecer interessada


quando elogiavam a bravura e a inteligência dos navegantes. Contaram
tudo, que o Brasil já era habitado por selvagens, que existem cartas
contando a saga heroica, a descoberta da beleza dessas terras, que
aconteceram lá as mortes mas é assim mesmo na história das civilizações,
os povos invadem, matam por necessidade e novos mundos se descobrem,
Portugal também sabe disso, foram muitas invasões.
— Eles não dizem por mal, é o que está nos livros.
Na verdade lembro quase nada do que disseram, só tontura e palavras
soltas, confusão. Minha cabeça às vezes funciona como uma fábrica
impiedosa de pensamentos massacrantes.
Fomos embora da Torre porque eu não me sentia bem e eles acharam
que era fome, tontura, doença, precisávamos comer alguma coisa.
Decidiram jantar no Bairro Alto e me apresentar ao bacalhau com migas e
ao vinho da casa; fui aprendendo o nome das comidas, me ensinavam tudo
ao mesmo tempo, a história de Lisboa, os pratos tradicionais, o terremoto, o
que é Península Ibérica, os mouros, os azulejos, o castelo de São Jorge, as
Sete Colinas, e eu só precisava de silêncio. E comida. Estar de barriga
cheia me deixava bem.
Fernando me tratava como se eu fosse uma criança que nasceu adulta,
pronta para capturar o mundo todo em poucos dias, porque em breve a
vida me cobraria algumas coisas, foi o que eles me disseram. Eu seria
portuguesa e precisava perceber Portugal. Perceber uma nova vida em
Portugal.
A refeição durou muito tempo, foi decisiva. Seria necessário definir
algumas coisas antes de chegarmos a Aboim da Nóbrega. A irmã de Florice
já estava sabendo de tudo, já tinha conhecimento dos Ressurrectos desde
criança, mas para facilitar as coisas seria bom inventar uma narrativa que
fosse convincente para os outros, a casa vivia cheia de amigos, sua vida
social era intensa.
Precisamos escolher seu nome, ela disse.
Perguntaram de novo se eu não lembrava de nada, uma letra, um som,
se seria palavra curta ou mais longa, nada. Nada. Sobre o Livro das Visões,
queriam saber se havia algo novo. Nada. Expliquei o borrão dos sonhos,
comecei a chorar mais uma vez, o peso de ser uma névoa. Fernando olhou
nos meus olhos:
— Eu tenho uma sugestão desde que chegaste. É o nome que meu
coração diz quando olho para ti.
— E qual é?
— Cida. Não só porque tu chegaste assim, mas porque gostamos da
história de Nossa Senhora Aparecida a um menino em Portugal que era
mudo e começou a falar. Há outra no Brasil, acho que fica bem.
— É assim que falamos de ti entre nós. Já dissemos para minhas irmãs
que tu tens cara de Cida.
Aceitei ser Cida, por puro cansaço. Fiz que sim, sorri de leve. Levaria a
marca deles dois comigo, já que fizeram meu parto da cova. Não tinha por
que recusar o nome novo, não me restava nada além de aceitar que as
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The Project Gutenberg eBook of Les Peterkins
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Title: Les Peterkins

Author: Mark Twain

Translator: François de Gaïl

Release date: December 23, 2023 [eBook #72486]

Language: French

Original publication: Paris: Mercure de France, 1910

Credits: Véronique Le Bris, Laurent Vogel and the Online Distributed


Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by the
Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica))

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK LES


PETERKINS ***
LES PETERKINS
DU MÊME AUTEUR
Contes choisis, traduits par Gabriel de Lautrec et précédés d’une
étude sur l’humour 1 vol.
Exploits de Tom Sawyer détective, et autres nouvelles,
traduits par François de Gail 1 vol.
Un Pari de Milliardaires, et autres nouvelles, traduits par
François de Gail 1 vol.
Le Prétendant américain, roman traduit par François de Gail 1 vol.
Plus fort que Sherlock Holmès, traduit par François de Gail 1 vol.
Le Capitaine Tempête, et autres contes, traduit par Gabriel de
Lautrec 1 vol.

MARK TWAIN

Les Peterkins
ET AUTRES CONTES

TRADUITS PAR

FRANÇOIS DE GAIL

PARIS
MERCVRE DE FRANCE
XXVI, RVE DE CONDÉ, XXVI
MCMX

JUSTIFICATION DU TIRAGE:

Droits de traduction et de reproduction réservés pour tous pays.

TABLE
LES PETERKINS

(D’APRÈS PEABODY HALE)


C’était bien le moment de se livrer à l’étude des langues. Les Peterkins
venaient d’entrer dans leur nouvelle maison, beaucoup plus confortable que
la précédente; ils devaient avoir la place pour toute chose et toute chose à sa
place.
Elisabeth-Elisa n’oubliait pas combien leur ancienne installation était
peu pratique; pendant longtemps, en effet, pour jouer du piano, elle avait été
obligée de s’asseoir dans la galerie de l’autre côté de la fenêtre. Mᵐᵉ
Peterkins se souvenait des difficultés qu’elle éprouvait au sujet des nappes
de table.
La nappe supérieure se trouvait dans une malle rangée contre la porte
d’une grande armoire située sous l’escalier; la nappe du dessous était
renfermée dans un tiroir de la grande armoire; de sorte que, lorsqu’il
s’agissait de changer les nappes, il fallait retirer et mettre de côté la malle
pour pouvoir ouvrir l’armoire, car on devait d’abord se servir de la nappe
du dessous; après cela, il fallait remettre en place la malle pour l’ouvrir et
en extraire la nappe supérieure.
Après tous ces déplacements, il était encore nécessaire de déplacer la
malle pour dégager la porte de l’armoire qui contenait la boîte à couteaux.
Ces déménagements successifs occasionnaient naturellement une grande
perte de temps.
Maintenant que la nouvelle maison des Peterkins était suffisamment
grande, ils trouveraient le moyen de tout loger. Agamemnon se réjouissait
surtout de l’installation de la nouvelle bibliothèque. Dans leur ancienne
maison, il n’y avait pas de pièce spéciale pour les livres: les dictionnaires
étaient au premier étage, chose fort incommode, et les volumes de
l’encyclopédie répartis en plusieurs endroits. Ainsi, les volumes de A
jusqu’à P se trouvaient au rez-de-chaussée, tandis que tous ceux de Q
jusqu’à Z étaient classés dans différentes chambres du premier étage.
Malheureusement on ne pouvait jamais se rappeler si la section de A à P
comprenait la lettre P.
—Je montais toujours au premier étage pour chercher P, disait
Agamemnon, et je m’apercevais que le volume se trouvait en bas; à chaque
instant c’était une nouvelle confusion.
Naturellement, maintenant, la nouvelle maison des Peterkins se prêtait
mieux à la vie studieuse. En ayant tous les livres dans la même pièce, on
évitait une grande perte de temps pour les chercher.
M. Peterkins suggéra à chacun des siens d’apprendre une langue
différente. S’ils voyageaient un jour à l’étranger ce serait on ne peut plus
commode: Elisabeth-Elisa pourrait parler français avec les Parisiens,
Agamemnon allemand avec les Allemands, Salomon-John italien avec les
Italiens; Mᵐᵉ Peterkins parlerait espagnol en Espagne; quant à lui, il
aborderait à la fois toutes les langues orientales en commençant par le russe.
Mᵐᵉ Peterkins n’était pas très décidée à apprendre l’espagnol; car toute
sa famille avait juré qu’elle n’irait jamais en Espagne à cause de son horreur
pour l’Inquisition. Mᵐᵉ Peterkins d’ailleurs partageait cette horreur avec ses
enfants.
Les voyages à l’étranger lui souriaient peu et elle avait toujours déclaré
qu’elle ne quitterait pas le sol natal avant qu’un pont fût jeté sur
l’Atlantique! (Or il n’en était pas encore question.) Agamemnon déclarait
qu’il ne fallait jurer de rien, que chaque jour on faisait de nouvelles
découvertes et qu’un pont ne serait assurément pas plus difficile à inventer
qu’un téléphone; dans les temps anciens on se servait déjà de ponts. La
question des professeurs vint alors sur le tapis. On pourrait certainement en
trouver à Boston. S’ils venaient tous le même jour il serait facile de
transporter trois d’entre eux dans le petit break. Agamemnon irait au-devant
d’eux, puis les reconduirait; de cette façon il s’habituerait à leur
conversation à l’aller comme au retour.
Monsieur Peterkins se documenta sur les langues orientales: on lui apprit
que le sanscrit était la base de toutes ces langues; aussi proposa-t-il à toute
sa famille de commencer par le sanscrit; ils n’auraient ainsi besoin au début
que d’un seul professeur et pourraient ensuite bifurquer sur les autres
langues.
Mais sa famille préféra apprendre des langues différentes. Elisabeth-
Elisa savait déjà un peu de français; elle avait essayé, sans grand succès,
d’en placer quelques mots à l’exposition du centenaire, mais elle s’était
aperçue qu’elle venait de lier conversation avec un Maure qui ne
comprenait pas le français.
M. Peterkins objecta qu’il leur faudrait plusieurs pièces pour leurs études
si tous les professeurs venaient à la même heure; mais Agamemnon lui fit
remarquer qu’ils se serviraient de dictionnaires différents. M. Peterkins était
d’avis qu’il vaudrait mieux avoir tous les professeurs en même temps, car
chaque élève pourrait, en plus de la langue qu’il étudierait, attraper des
bribes des autres langues; d’après lui le meilleur moyen d’apprendre à
parler une langue étrangère était d’entendre parler les autres autour de soi.
Mᵐᵉ Peterkins objecta que sa maison ressemblerait à une tour de Babel;
elle en prit cependant son parti.
Agamemnon signala une autre difficulté: naturellement il leur fallait des
professeurs étrangers qui parleraient chacun leur langue maternelle; mais,
dans ce cas, comment faire pour les inviter à venir à la maison, leur
expliquer la combinaison de la voiture, et arranger la répartition des heures
de leçon? Agamemnon se demandait comment on pouvait se tirer d’affaire
avec un étranger lorsqu’on était incapable de lui exposer ce qu’on désirait.
Elisabeth-Elisa répondit qu’en pareil cas les signes et la pantomime
devaient rendre de grands services. Salomon-John et les jeunes garçons se
mirent aussitôt à mimer. Elisabeth-Elisa expliqua que le mot «langue»
signifiait à la fois «langage et organe de la parole»; ils pouvaient donc
montrer leur langue pour se faire comprendre.
Comme exercice pratique, les jeunes garçons figurèrent les professeurs
étrangers parlant chacun leur langue maternelle; Agamemnon et Salomon-
John firent semblant de les inviter à venir instruire la famille au moyen
d’une série de signes.
M. Peterkins déclara que leur succès était admirable, et qu’ils pourraient
presque aller à l’étranger sans étudier les langues; il encouragea ses enfants
à se faire comprendre par signes. Pourtant, comme le pont n’était pas
encore construit, il vaudrait peut-être mieux attendre et cultiver les langues.
Mᵐᵉ Peterkins craignait que les professeurs étrangers ne se considérassent
comme invités au lunch: Salomon-John, en effet, n’avait cessé de montrer
sa bouche en l’ouvrant, la fermant et en sortant sa langue; il semblait plus
par là vouloir les inviter à manger que leur demander des leçons de langues.
Agamemnon suggéra qu’ils pourraient emporter avec eux les divers
dictionnaires lorsqu’ils iraient trouver les professeurs; cela exprimerait
qu’ils désiraient des leçons et les professeurs n’y verraient pas une
invitation au lunch.
Mᵐᵉ Peterkins trouvait plus prudent de préparer un lunch pour les
professeurs au cas où ils prendraient la visite pour une invitation, seulement
elle ignorait ce qu’ils mangeaient d’habitude. M. Peterkins pensa qu’il
serait très bon d’apprendre ce détail en fréquentant des étrangers, car, avant
de quitter leur pays natal, ils auraient ainsi l’occasion de s’habituer aux
plats étrangers. Les petits garçons se réjouissaient beaucoup à l’idée de
manger de nouveaux mets. Agamemnon avait entendu dire que la soupe à la
bière était le régal favori des Allemands et il se proposait, dès sa première
leçon, de s’en faire expliquer la préparation.
Salomon-John savait que tous les étrangers aiment beaucoup l’ail, aussi
pensa-t-il que les professeurs seraient enchantés de sentir une odeur d’ail
dans la maison dès leur première leçon, et qu’ils apprécieraient beaucoup
cette délicate attention.
Elisabeth-Elisa voulait faire à une de ses parentes habitant Philadelphie
la surprise de lui parler français. Aussi désirait-elle commencer ses leçons
avant la visite annuelle de sa famille de Philadelphie. Il y eut un léger retard
dans l’exécution de ces projets: M. Peterkins préférait trouver des
professeurs établis depuis peu dans la région, car il ne voulait pas subir la
tentation de parler anglais avec eux; il désirait des professeurs récemment
débarqués en Amérique, et il revint un soir chez lui avec une liste complète
des étrangers nouvellement arrivés. La famille Peterkins décida qu’elle
emprunterait aux Bromwicks leur break pour le premier jour, et M.
Peterkins et Agamemnon partirent en voiture à la ville pour ramener tous
les professeurs. L’un était un Russe, qui voyageait pour son plaisir et n’avait
nullement l’intention de donner des leçons; peut-être y consentirait-il, mais
dans tous les cas il ne savait pas un mot d’anglais.
M. Peterkins avait dans son porte-cartes les cartes des messieurs qui lui
avaient recommandé les différents professeurs; accompagné
d’Agamemnon, il alla d’hôtel en hôtel pour les convoquer. Il les trouva tous
très polis, tous prêts à venir après les explications données au moyen des
signaux convenus. Ils avaient oublié les dictionnaires, mais Agamemnon
possédait un guide qui pouvait les remplacer et qui sembla très approprié
aux étrangers.
M. Peterkins dut se contenter d’un professeur russe, car il ne trouva
aucun maître de sanscrit nouvellement débarqué dans le pays.
Mais voici qu’une difficulté inattendue surgit lorsqu’ils mirent dans la
même voiture le professeur russe et le professeur d’arabe; ce dernier était
Turc et portait un fez sur sa tête; il s’assit au fond de la voiture! Ils se
regardèrent de travers et s’invectivèrent chacun dans leur langue sans que
M. Peterkins pût comprendre un traître mot. Etait-ce du russe, était-ce de
l’arabe? En tout cas il sautait aux yeux (ou plutôt aux oreilles) que les
individus ne voulaient à aucun prix se trouver dans la même voiture. M.
Peterkins était au désespoir; il avait oublié la guerre turco-russe! Quelle
gaffe énorme il venait de commettre en invitant le Turc!
Une foule de curieux s’était groupée devant l’hôtel. Le professeur
français pria très poliment le Russe de monter avec lui dans la première
voiture; mais une autre difficulté se présentait: le professeur allemand se
carrait tranquillement dans le fond de cette voiture!!!
Le professeur français avait à peine mis le pied sur le marche-pied qu’il
invectiva violemment le professeur allemand; ce dernier, furieux, sauta de
la voiture par la porte opposée, fit le tour en courant et le saisit au collet. A
n’en pas douter, l’Allemand et le Français ne pouvaient pas habiter
ensemble la même voiture! Pendant ce temps-là la foule des curieux
augmentait toujours.
Agamemnon, fort heureusement, savait dire en allemand le mot
«monsieur»; s’adressant au professeur allemand, il l’invita par signes à
prendre place dans l’autre voiture.
L’Allemand consentit à s’asseoir aux côtés du Turc. Enfin les voitures se
mirent en marche: M. Peterkins avait l’Italien à ses côtés, le professeur
français et le Russe étaient assis derrière et se parlaient sur un ton aigre qui
laissait supposer à M. Peterkins qu’ils n’étaient pas complètement d’accord.
Le voyage d’Agamemnon s’effectua dans un profond silence: l’Espagnol
assis à côté de lui semblait d’humeur maussade, tandis que le Turc et
l’Allemand n’échangèrent pas un traître mot.
En arrivant à la maison, ils furent reçus par Mᵐᵉ Peterkins et Elisabeth-
Elisa; par une délicate attention pour le professeur espagnol, Mᵐᵉ Peterkins
avait jeté sur ses épaules une mantille de dentelle. M. Peterkins introduisit
les professeurs dans la bibliothèque, mais il eut soin de les installer chacun
à une respectable distance l’un de l’autre. Salomon-John chercha le
dictionnaire italien et s’assit à côté du professeur italien. Agamemnon, avec
un dictionnaire allemand, se rapprocha du professeur allemand. Les jeunes
garçons montrèrent au Turc leur livre de «contes arabes». M. Peterkins
essaya d’expliquer au professeur russe qu’il ne possédait pas de dictionnaire
russe et qu’il avait espéré apprendre le sanscrit avec lui; de son côté Mᵐᵉ
Peterkins essaya de faire entendre à son professeur qu’elle n’avait pas de
livres espagnols. Elle oublia momentanément sa terreur de l’Inquisition et
essaya de lui glisser quelques mots en se servant de termes anglais
prononcés très lentement et en altérant son accent le mieux qu’elle pouvait.
L’Espagnol s’inclina, parut prendre grand intérêt à sa conversation, et se
montra très poli.
Pendant ce temps, Elisabeth-Elisa sortait au Parisien les quelques
phrases qu’elle connaissait. Elle parlait plus facilement français qu’elle ne
comprenait son professeur; lui, saisissait parfaitement ce qu’elle disait. Elle
récita son vocabulaire et ânonna l’exercice suivant: J’ai le livre.—As-tu le
pain?—L’enfant a une poire.—L’enfant sait-il sa leçon?
Le professeur écouta avec grande attention et répondit très distinctement
à chaque question. Soudain, après avoir récité une de ses phrases, elle se
leva, courut vers sa mère, et lui chuchota à l’oreille:—Ils ont, je crois,
commis l’erreur que vous redoutiez; ils se croient invités au lunch! il vient
de me remercier de notre aimable invitation à déjeuner.
—Ils n’ont pas pris leur déjeuner! s’exclama Mᵐᵉ Peterkins en regardant
l’Espagnol: il semble affamé! Qu’allons-nous faire?
Elisabeth-Elisa courut consulter son père. Qu’allaient-ils faire?
Comment leur faire comprendre qu’ils étaient invités à donner une leçon et
non au lunch? Elisabeth-Elisa pria Agamemnon de chercher le mot
«apprendre» dans le dictionnaire (apprendre devant signifier enseigner).
Hélas! ils s’aperçurent que ce mot voulait à la fois dire apprendre et
enseigner! Qu’allaient-ils faire?
Les étrangers se tenaient maintenant assis silencieux dans leur coin
respectif. L’Espagnol paraissait de plus en plus blême. Allait-il donc
s’évanouir? Le Français tortillait et effilait ses moustaches en regardant
l’Allemand. Que faire si le Russe venait à attaquer le Turc et si l’air
narquois du Parisien finissait par exaspérer l’Allemand?
—Il faut leur donner quelque chose à manger, dit M. Peterkins à voix
basse; cela les calmera.
—Si seulement je savais ce qu’ils ont l’habitude de manger! continua
Mᵐᵉ Peterkins.
Salomon-John suggéra qu’aucun des professeurs ne savait ce que son
voisin avait l’habitude de manger: on pouvait donc leur offrir n’importe
quoi.
Mᵐᵉ Peterkins se montra plus hospitalière que son fils, et déclara
qu’Amanda pourrait préparer du bon café. M. Peterkins proposa un plat
américain. Salomon-John envoya un des jeunes garçons chercher des olives.
Bientôt on servit le café et un plat de fèves bouillies; peu après arrivèrent
les olives, le pain, des œufs à la coque et quelques bouteilles de bière.
L’effet fut prodigieux! Chaque individu se mit à parler sa propre langue
avec volubilité; Mᵐᵉ Peterkins versa du café à l’Espagnol qui s’inclina avec
grâce. Tous aimaient la bière, tous aussi les olives.
Le Français s’étendit longuement sur «les mœurs américaines».
Elisabeth-Elisa supposa qu’il faisait allusion à l’absence de nappe sur la
table. Le Turc souriait, le Russe parlait avec animation. Au milieu du
brouhaha produit par ces différentes langues, M. Peterkins répétait d’un air
navré:
—Comment leur ferons-nous donc comprendre qu’ils doivent nous
donner des leçons?
Au même instant la porte s’ouvrit et donna passage à la parente de
Philadelphie qui, arrivée le jour même, venait faire sa première visite.
En entendant le bruit tumultueux de ces différentes conversations, elle
recula d’effroi. La famille se précipita au-devant d’elle avec joie. Tous en
même temps lui demandèrent de leur servir d’interprète auprès des
professeurs. Pouvait-elle leur venir en aide? Pouvait-elle expliquer aux
étrangers qu’on attendait d’eux des leçons? Des leçons! A peine avaient-ils
prononcé ce mot que leurs hôtes se dressèrent tous comme un seul homme,
la face rayonnante de joie. C’était le seul mot anglais que tous
connaissaient. Ils étaient venus à Boston pour «donner des leçons». Le
voyageur russe espérait ainsi apprendre l’anglais. Cette idée de leçon
semblait leur plaire plus que le déjeuner. Assurément, ils donneraient bien
volontiers des leçons. Le Turc sourit à cette perspective. La glace était
rompue: les professeurs savaient maintenant qu’on attendait d’eux des
leçons.
PERCE, MON AMI, PERCE!
I
Je prie le lecteur de vouloir bien jeter les yeux sur les vers suivants et de
me dire s’il leur trouve vraiment un caractère pernicieux:

Conducteur, quand tu reçois l’argent,


Perce, en présence du voyageur,
Un ticket bleu de dix cents,
Un ticket brun de huit cents,
Un ticket rose de quatre cents,
Perce en présence du voyageur!
(En chœur:)
Perce, mon ami, perce avec soin,
Perce, en présence du voyageur!

Je trouvai ces vers dans un journal, il y a quelque temps, et les relus deux
ou trois fois. A partir de cet instant, ils prirent possession de mon cerveau.
Pendant tout le temps du déjeuner, leur cadence se répercuta dans ma tête, si
bien qu’à la fin du repas, lorsque je roulai ma serviette, je fus incapable de
savoir si j’avais mangé ou non. La veille, je m’étais tracé mon programme
de travail pour le jour suivant: un drame poignant dans la nouvelle que
j’écris en ce moment.
Je me retirai chez moi pour composer ma tragédie; je pris ma plume,
mais mon esprit obsédé répéta comme un refrain: «Perce en présence du
voyageur.» Je luttai de toutes mes forces pendant une heure, mais ce fut
peine perdue. «Un ticket bleu de dix cents, un ticket brun de huit cents»,
etc.;—ces vers bourdonnèrent à mes oreilles sans trêve ni relâche.
C’était pour moi une journée perdue, je ne le comprenais que trop
maintenant. Je renonçai à mon travail et pris le parti de faire un tour en
ville; mais à peine sur le trottoir, je m’aperçus que mes pieds marquaient la
cadence de ces maudits vers. N’y tenant plus, je ralentis le pas; mais rien
n’y fit: le rythme de ces vers s’accommoda de ma nouvelle allure et
continua à me poursuivre.
Je rentrai chez moi et souffris de cette obsession pendant tout le reste de
la journée; je me mis à table machinalement, et mangeai sans m’en rendre
compte; un mal de tête violent me prit, je criai d’agacement et me promenai
de long en large. Je me couchai, mais dans mon lit je ne fis que me tourner
et me retourner, poursuivi par les mêmes rimes. A minuit, devenu presque
enragé, je me levai et essayai de lire, mais à chaque ligne il me sembla que
je lisais: «Perce en présence du voyageur.» Au lever du soleil, je ne me
possédais plus, et chacun se demanda avec stupéfaction pourquoi je répétais
ce refrain idiot: «Perce, oh! perce en présence du voyageur.»

II
Deux jours plus tard, un samedi matin, je me levai plus mort que vif et
sortis pour retrouver un ami très apprécié de moi, le Révérend M., auquel
j’avais donné rendez-vous pour visiter la tour de Talcott, distante de plus de
dix milles. Mon ami me regarda sans me poser la moindre question. Nous
partîmes; suivant son habitude, M. parla comme un moulin à vent. Je ne lui
répondais pas, car je n’entendais rien. Au bout d’un mille, M. me demanda:
—«Mark, êtes-vous souffrant? Vous me paraissez aujourd’hui
terriblement abattu, hagard et distrait. Voyons, qu’avez-vous?»
D’un air lugubre, sans enthousiasme, je lui répondis: «Perce, mon ami,
perce avec soin, perce en présence du voyageur.»
Mon ami me regarda froidement, parut très perplexe et ajouta:
—Je ne saisis pas ce que vous voulez dire, Mark. Votre réponse ne
contient rien qui me paraisse particulièrement triste et pourtant la façon
dont vous venez de prononcer ces paroles, le son pathétique de votre voix
me frappent péniblement. Qu’avez-vous donc?»
Je n’entendis même pas ses paroles, absorbé par mon refrain: «Un ticket
bleu de dix cents, un ticket brun de huit cents, un ticket rose de quatre cents,
perce en présence du voyageur.» J’ignore ce qui se passa pendant les neuf
autres milles. Cependant, tout à coup, M. posa la main sur mon épaule et
s’écria:
—Oh! réveillez-vous, réveillez-vous, je vous en prie; ne dormez pas
toute la journée. Nous voici arrivés à la tour, mon cher. J’ai parlé comme
une pie-borgne pendant toute cette promenade sans obtenir de vous une
réponse; regardez donc ce magnifique paysage d’automne! Vous qui avez
voyagé, vous devez pouvoir faire des comparaisons. Voyons, donnez-moi
votre opinion, que pensez-vous de ce point de vue?
Je soupirai tristement et murmurai: «Un ticket brun de huit cents, un
ticket rose de quatre cents. perce en présence du voyageur!»
Le Révérend M. s’arrêta net et d’un air très grave me contempla des
pieds à la tête, puis ajouta:
—Mark, ceci me dépasse: les paroles que vous venez de prononcer sont
les mêmes que tout à l’heure; je ne leur trouve aucune signification spéciale
et pourtant, quand vous les prononcez, j’éprouve un pénible serrement de
cœur. «Perce, perce en...» Comment est donc la suite?
Je repris le vers depuis le commencement et lui récitai la tirade
complète. Le visage de mon ami s’illumina:
—Quelle charmante et étrange consonnance! me répondit-il, on dirait de
la musique; quel agréable rythme! Je crois avoir attrapé la cadence; voulez-
vous me répéter ces vers encore une fois et je les saurai complètement par
cœur.
Je lui redis mes vers; M. les répéta en commettant une légère erreur que
je rectifiai; après la troisième audition, il les dit parfaitement bien. A ce
moment il me sembla qu’un lourd fardeau venait de dégringoler de mes
épaules; mon cerveau se sentit débarrassé de ce torturant refrain et
j’éprouvai une profonde sensation de repos et de bien-être. Mon cœur était
si léger que je me pris à chanter pendant une demi-heure, tandis que nous
rentrions doucement chez nous. Ma langue déliée se mit à parler sans
discontinuer pendant une grande heure; les paroles coulaient de ma bouche
comme l’eau d’une fontaine. Au moment de prendre congé de mon ami, je
lui serrai la main et lui dis:
—Quelle royale promenade nous venons de faire! Mais je constate que
depuis deux heures vous ne n’avez pas adressé la parole. Voyons, parlez, à
votre tour, racontez-moi quelque chose.
Le Révérend M. jeta sur moi un regard lugubre, poussa un profond
soupir et articula machinalement: «Perce, mon ami, perce avec soin, perce
en présence du voyageur!»
J’éprouvai une cruelle angoisse et pensai en moi-même: «Mon pauvre
ami, cette fois, il le sait, ton refrain.»—Je ne vis plus le Révérend M.
pendant deux ou trois jours. Mardi soir, il apparut de nouveau devant moi et
se laissa tomber comme une masse dans un fauteuil; il était pâle, abattu,
horriblement déprimé. Levant sur moi ses yeux éteints il me dit:
—Ah! Mark, quelle horrible découverte j’ai faite en apprenant vos vers!
Ils me poursuivent comme un cauchemar nuit et jour, heure par heure, sans
la moindre trêve. Depuis que je vous ai vu, j’ai souffert mort et passion.
Appelé samedi soir, par télégramme, je pris le train de nuit pour Boston: un
de mes meilleurs amis venait de mourir et sa famille me priait de prononcer
son éloge funèbre. Je m’assis dans mon compartiment et essayai d’élaborer
le plan de mon discours. Il me fut impossible d’aller plus loin que la
première phrase, car, à peine le train venait-il de s’ébranler en faisant
entendre le monotone «clac, clac, clac» des roues, que vos vers odieux
martelèrent mes oreilles avec ce bruit de roues pour accompagnement.
Pendant une heure, je restai assis dans mon coin et prononçai une syllabe de
ces vers à chaque claquement distinct des roues.
Un violent mal de tête étreignit mon crâne; j’eus l’impression que je
deviendrais fou si je restais plus longtemps assis à ma place. Je me
déshabillai donc et gagnai ma couchette. Je m’y étendis. Vous devinez ce
qui se passa:
Clac, clac, clac, un ticket bleu—clac, clac, clac, de dix cents—clac, clac,
clac, un ticket brun—clac, clac, clac, de huit cents—etc... perce en présence
du voyageur!

III
Impossible de fermer l’œil. En arrivant à Boston j’étais fou à lier. Ne me
demandez pas comment se passèrent les funérailles. Je fis de mon mieux,
mais chacune de mes périodes graves et solennelles commença et finit
invariablement par: «perce, mon ami, perce avec soin, perce en présence du
voyageur.» Pour comble de malheur, j’adoptai dans mon éloge funèbre la
cadence ondulée de ces vers néfastes et je vis, à ma grande stupeur, les
auditeurs distraits, complètement absorbés, battre la mesure en dodelinant
de leurs stupides têtes. Vous me croirez si vous voulez, Mark, mais avant la
fin de mon discours, l’assemblée tout entière, y compris les parents du
défunt, ses amis et les indifférents, hochaient placidement la tête à l’unisson
de mes paroles.
Lorsque j’eus fini, je m’enfuis dans la sacristie, exaspéré au plus haut
point; là je rencontrai une vieille demoiselle très âgée, tante du défunt, qui
était arrivée de Springfield trop tard pour pénétrer dans l’église. Elle me dit
en sanglotant:
—Oh! il est parti, c’est fini! Et je n’ai pas pu le voir avant sa mort.
—Oui, fis-je, il est parti, il est parti, il est parti!...
—Oh! vous l’aimiez bien, vous! Vous l’aimiez tant!
—J’aimais qui?
—Mais mon pauvre Georges, mon pauvre neveu!
—Lui! Oh! oui, certainement... certainement. «Perce, mon ami,
perce.»—Quelle misère!
—Merci, monsieur, merci pour ces bonnes paroles; sa mort me fait
tellement souffrir. Avez-vous assisté à ses derniers moments?
—Oui, je...—derniers moments de qui?
—De notre cher défunt.
—Oh! oui—oui—oui. Je le suppose.—Je le crois bien! oh! oui,
certainement j’étais là, j’étais là.
—Quelle douce consolation! Rapportez-moi ses dernières paroles. Qu’a-
t-il dit?
—Il disait, il disait (oh! ma tête, ma tête, ma pauvre tête!) il n’a cessé de
répéter: Perce, perce, perce en présence du voyageur! Oh! laissez-moi,
Madame! Au nom de ce qu’il y a de plus sacré, laissez-moi à ma folie, à ma
misère, à mon désespoir! «Un ticket brun de huit cents—un ticket rose de
quatre cents.»—Vraiment je n’y puis plus tenir!... «Perce en présence du
voyageur!»
Mon ami me regarda alors avec des yeux désespérés et me dit avec une
expression touchante:
—Mark, vous ne dites rien; vous ne me donnez pas le moindre espoir; ne
pouvez-vous donc pas m’apporter une parole de consolation? Hélas! le
temps n’est plus à l’espérance! Quelque chose me fait pressentir que ma
langue est condamnée pour toujours à répéter ce refrain macabre. Tenez, le
voici encore qui revient: «Un ticket bleu de dix cents—un ticket brun de...»
Ce murmure s’éteignit peu à peu; mon ami tomba dans une douce extase
qui apporta à ses souffrances un répit bienfaisant.
Pour le préserver d’une entrée imminente à l’asile des aliénés, je le
conduisis à l’Université la plus proche, et là, il put décharger le pénible
fardeau de ses rimes obsédantes dans les oreilles des pauvres étudiants.
Qu’est-il arrivé à ces étudiants? Je préfère me taire et ne pas faire connaître
le triste résultat de cette transmission.
Pourquoi ai-je écrit cet article? C’est dans un but élevé et très louable;
c’est pour vous avertir, lecteurs, que si quelque jour vos yeux rencontrent
ces rimes impitoyables, vous devez les fuir plus que la peste.
POURQUOI J’ÉTRANGLAI MA
CONSCIENCE
Je me sentais de bonne humeur, presque joyeux. J’approchai une
allumette de mon cigare et juste à ce moment on m’apporta le courrier du
matin. Sur la première enveloppe qui me tomba sous les yeux, je reconnus
une écriture qui me donna un frisson de plaisir. C’était une lettre de ma
tante Marie; cette chère tante, je l’aimais et la vénérais plus que n’importe
qui au monde. Elle avait été l’idole de mon enfance. La maturité,
d’ordinaire si fatale à certains enthousiasmes, n’avait pas été capable de
déloger ma tante de son piédestal. Pour vous donner une idée de la grande
influence qu’elle exerçait sur moi, je vous avouerai que tandis que tous les
autres s’évertuaient inutilement à me supplier de moins fumer, tante Marie
savait seule émouvoir ma conscience engourdie lorsqu’elle abordait ce sujet
délicat. Mais tout a une limite ici-bas. Un jour heureux vint enfin, où même
les admonestations de tante Marie ne surent plus m’émouvoir.
Ma tante vint passer un hiver auprès de nous et sa visite me causa un
grand plaisir. Naturellement elle me conjura d’un air très sérieux
d’abandonner ma pernicieuse habitude, mais dès qu’elle aborda ce sujet je
devins d’un calme, d’une indifférence absolus. Les dernières semaines qui
marquèrent la fin de cette mémorable visite s’écoulèrent comme un rêve
charmant et me procurèrent une paisible satisfaction. Assurément je
n’aurais pas savouré davantage mon vice favori si mon aimable bourreau
avait été lui-même un fumeur ou un zélé défenseur de cette habitude.
Eh bien! l’écriture de ma tante me rappela que j’étais très désireux de la
revoir. Je devinais facilement ce que pouvait contenir sa lettre. Je l’ouvris.
Comme je m’y attendais elle annonçait sa venue pour le jour même, par le
train du matin.
Je pensai en moi-même: «Je me sens en ce moment parfaitement
heureux et bien disposé; si mon plus implacable ennemi pouvait maintenant
se dresser devant moi, je réparerais bien volontiers les torts que j’aurais pu
avoir envers lui.»

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