10 Segundos - Márcio Brasil

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Márcio Brasil

MÁRCIO BRASIL

10
SEGUNDOS
3º edição

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10 Segundos

Copyright © 2013 by Márcio Brasil


Direitos desta edição reservados ao Autor.

BRASIL, Márcio. 10 segundos. Santiago: Editora da Casa


do Poeta, 2013. 134p.

Revisão Ortográfica
Fernanda Fank

Arte da Capa
Sidnei Garcia

Diagramação
Tainã Steinmetz

CDD - B869

BRASIL, Márcio
10 Segundos/ Márcio Brasil; -- Santiago: Casa do Poeta, 2013.134
p., 3ª edição.
ISBN: 978-85-64886-09-4

Bibliografia

1.Literatura Brasileira. 2.Contos 3.Crônicas 4. Entretenimento


I. Título.

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SUMÁRIO

Sobre amores 07
Sobre sexo 49
Insólitos 71
Sobre Vida e Morte 93
Surreais 111

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Desde que me "conheço por gente", a caneta e os cadernos
foram companhias muito presentes. Objetos que me
permitiam acessar outras dimensões, viajar para outros
lugares, conhecer outras pessoas e aprender com elas. Se,
para o leitor, embarcar numa leitura é viajar, o mesmo
sentido tem também para quem escreve. Não existe escrita
sem leitura e, portanto, qualquer um que queira tornar-se
um aventureiro das letras, precisa saber como essa arte é
desenvolvida por outros que trilharam esse rumo.
Este livro reúne alguns contos minimalistas
publicados em minha coluna no jornal Expresso Ilustrado,
procurando driblar as limitações de caracteres. Já outros,
mais alongados são frutos da produção diretamente para
um blog que mantenho. Gosto de escrever contos, gênero
literário que permite que o leitor estabeleça uma rápida
conexão, adentre na história e possa concluí-la
rapidamente.
Acredito que o autor seja o menos qualificado ou
totalmente suspeito para fazer uma apreciação de sua
escrita, correndo o risco de querer tendencionar o leitor a
simpatizar com os temas propostos. Portanto, deixo o
leitor livre de uma classificação desse tipo. Só peço que
leia e faça o seu juízo de valor sobre os textos aqui
publicados. Já terá valido a pena ter lançado este trabalho
se após ler cada conto, o prezado leitor fizer a sua
consideração crítica ou reflexiva. Nem que seja por apenas
uns 10 segundos...

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Sobre amores...

O amor, ela dizia, era como um perfume caro que se


comprava para disfarçar o odor do corpo humano ou a
menta da pasta de dente. Podia até impregnar sua pele ou
refrescar sua boca, mas isso não fazia parte de sua
natureza. Era uma ilusão breve.

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Grandes esperanças
Era uma noite chuvosa, dessas em que os raios nos
causam um arrepio e os trovões chegam a assustar. Lá fora,
o vento criava açoites com a forte chuva, que despencava
fartamente. A queda da energia elétrica mergulhara a
cidade na escuridão. Dentro de casa ele andava com uma
vela grudada na tampa de um vidro de Nescafé, igual sua
mãe tantas vezes fez quando ele era criança.
Porém, ao contrário dela, ele não tinha medo da
tempestade. Achava bonito de ver a natureza mostrando a
sua força. Para ele, era uma noite bonita. Uma noite em
que a natureza mostrava uma de suas faces e ele a
respeitava por isso. A respeitava pelos sábados
ensolarados, pelos domingos calorosos e também por esta
sexta-feira chuvosa.
Não havia nada para fazer. Acostumado com a
comodidade da energia elétrica, ele não podia ligar seu
computador ou mesmo assistir a um DVD. "Como é que
nossos antepassados viviam? Como eles faziam com seus
e-mails?", pensa ele. Logo, apanha um livro na prateleira e
vai para o quarto. Recosta-se em seu travesseiro e abre as
páginas de Grandes Esperanças, de Charles Dickens.
Ele já havia lido esse livro em repetidas ocasiões,
mas vez por outra o tomava apenas para reler alguns
diálogos. Nesta noite ele o fez novamente durante algum
tempo, chegando a adormecer com o livro em seu peito. A
vela ao lado de sua cabeceira flamejava fracamente,

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perdendo o brilho e, aos poucos, sendo vencida pela


escuridão, que tomava conta do quarto.
Barulho na porta.
Uma, duas batidas. Ele abre os olhos na escuridão,
pensando ter ouvido algo. "Imaginei", pensa.
Pam-pam-pam.
Sim, havia alguém à porta. Mas quem a essa hora?
Ele levanta tateando pela casa, vai acender outra vela.
Pam-pam-pam na porta.
- Já vou
Ele avisa, enquanto acende outra vela e direciona os
passos rumo à porta da frente. O relâmpago revela uma
silhueta de mulher. Ao abrir a porta, um pé-de-vento
sopra a vela. Na escuridão, ele não decifra o rosto, mas
ouve a voz.
- Posso ficar aqui essa noite?
Ela diz, entrando. Ele, totalmente tomado pela
surpresa se mantém estático, ainda com a mão ao trinco da
porta.
- Eu posso?
Ela repete a pergunta.
- Oh, sim, claro...
Ele responde apalermado, com o coração tomado
por uma súbita aceleração.
- Desculpa aparecer assim...
Ela tenta justificar-se.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele pergunta, procurando esconder a alegria dela
estar ali, não importando o que tivesse acontecido.

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- Prefiro não dizer...
Ele controla a curiosidade, afinal, pouco importava.
A presença dela mesmo que fosse por breves instantes
enchia a casa (e a vida dele) de luz. Mesmo que a casa (e a
vida dele) estivessem mergulhados na escuridão.
- Que livro é esse em suas mãos?
Ela percebe. Ele não se deu conta que ainda o
segurava.
- É aquele do Dickens...
Ele revela.
- Ah, esse. Tem final infeliz...para ele.
Ela folheia as páginas iluminadas fracamente pela
vela.
- Bobagem folhear um livro no escuro, né?
Ela diz, enquanto ele a alcança uma toalha.
- Tu está molhada. Posso ver alguma roupa para ti.
Mas são as minhas, ou seja, vão ficar grandes em ti.
Ela sorri, não havia problema.
- Desde que tu me faça um café...
Ele separa a roupa e leva para ela. Depois, vai até a
cozinha preparar o café. Tinha mil perguntas para fazer a
ela. Algumas, ele teme a resposta. Para outras, ele tinha
grandes esperanças. Mas faz de conta agir normalmente,
como se todos os dias chegasse alguém à sua porta
pedindo-lhe pouso e café. Ela pensou em dizer que não
queria atrapalhar, mas sabia que ele iria responder com um
sorriso e dizer que ela não o atrapalhava de forma alguma.
Talvez até aproveitasse para dizer que ele a amava. Melhor
não perguntar o que estava implícito. Mesmo no escuro,
ela percebia o brilho no olhar dele. E sabia que seu
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coração se enchia de luz. Ela sabia o que significava para


ele e se via invadida por mil lembranças felizes e outras
nem tanto. Ele preparava o café com a máxima
concentração, como se aquela xícara de café fosse a coisa
mais importante do mundo. Queria agradá-la.
- Cuidado, está quente.
Bobo. Ele se achava um bobo em dizer coisas
óbvias. Mas era ela que o desnorteava, o tirava fora de seu
eixo, o transformava num menino inseguro e medroso.
Vulnerável, ele tenta não encarar os olhos dela e refugia-se
folheando novamente as páginas do livro. Ela bebe o café
enquanto passeia o olhar pela casa fracamente iluminada
pela vela. Às costas dele, em cima de uma armário, ela
percebe um porta-retrato com uma foto deles dois, juntos.
Ele se constrange. Fraco, bobo, patético, nostálgico, tolo.
- Esqueci de tirar daí, desculpe. Digo, pensei em
tirar, eu devia ter tirado só que...
Ela o surpreende, calando suas palavras com um
beijo. Um beijo com sabor de Nescafé. Ele a abraça.
Primeiro com ternura, depois com fervor. E deixa Grandes
Esperanças cair no chão...
No dia seguinte, após ter acordado tarde, ele recolhe
o livro no chão da sala. A luz da manhã invadia a casa
toda. Havia respingos de vela aqui e ali, mas nenhum
outro vestígio. Toalha e roupas estavam no lugar. "Foi
imaginação?", ele questiona, colocando a própria sanidade
em dúvida.

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Tomado por um misto de dor, tristeza e raiva ele
joga longe o porta-retrato. "Estou ficando senil", é o seu
diagnóstico.
Senta no sofá para chorar. Apesar do sol ultrapassar
os vidros da janela e repousar em seu rosto, ele achava-se
na mais completa escuridão. "Chega de autopiedade", ele
pensa, levantando-se para refazer-se com um gole de café.
Foi quando percebeu em cima da mesa aquela xícara pela
metade. E uma marca de batom.

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Admirador secreto
"Eu amo vc".
Assim, bem simples, foi o torpedo misterioso que
fez o telefone dela bipar, sem número identificado. Ela
sorriu.
Ou era brincadeira ou, de fato, tinha um admirador
secreto. Quem seria? Nada como um pequeno mistério
para tornar mais saboroso o Dia das Mulheres. E que
mulher não gosta de desvendar um mistério?
"Eu sempre amei vc".
Outro torpedo. Nossa. Alguém que sempre a amou.
Agora, sim, intrigou-se. Alguém, que ela não sabia quem
era, a amava. E ela? Amava alguém? Sua vida era dedicada
ao trabalho, aos estudos e aos pais.
"Eu sempre amarei vc. Não importa o mundo".
outra mensagem. Pronto, agora ela não iria
descansar até achar uma pista de seu Don Juan anônimo e
dar outro sentido à sua vida. E, quem sabe, ter alguém
para amar.
Podia ser o colega de trabalho, o vizinho, alguém
com quem cruzou o olhar na rua. Ou o antigo
namorado..., hmm, será que seu beijo ainda tinha aquele
sabor de quero-mais? Não, óbvio demais. Ela até que
tentou esquecer do assunto. Claro que o fato de começar
a usar roupas mais sexy, falar mais suave e caminhar
elegantemente foram detalhes. E, sim, cuidar todo e
qualquer movimento ou olhares dos seres masculinos ao
seu redor .

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"Vc é linda".
Ooutra mensagem. "Nossa, ele notou". Danou-se.
Agora, era ela quem estava apaixonada. Quem mandou
mexer com o coração de uma mulher que estava quieta?
Em breve, ele iria se revelar, marcar um encontro, mandar-
lhe flores ou...outra mensagem. O celular bipou.
"Oi, desculpe transtorno. Ignore mensagens
anteriores. Número errado".
Agora, mais do que nunca ela queria saber quem era
o mensageiro. Só para matá-lo.

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I'll Stand By You


Ela pôs para rodar um antigo CD, de uma trilha
selecionada só com músicas que marcaram a sua vida.
Nostálgica, revirava antigos diários à procura do endereço
de uma amiga com a qual há muito perdera o contato. Ela
soprava os cadernos empoeirados e se deixava levar numa
viagem rumo ao próprio passado e ria-se das bobagens que
escreverq, dos versos mal-feitos que compôs, dos
desabafos, dos sonhos, das esperanças, dos desejos
secretos, do relato do primeiro beijo.
Aquelas páginas cheias de orelhas faziam parte do
livro de sua vida e, bem ou mal escritas, contavam a
história de uma jovem inocente. Ora, ela ria de si mesma
lendo antigos pensamentos, ora enternecia-se...
Inesperadamente, viu cair de meio das páginas uma
flor amarelada e extremamente frágil ao toque mais
brusco.
No CD, Pretenders toca I'll Stand By You.
Delicadamente, ela recolhe a flor achatada e seca, sendo
invadida por um turbilhão de imagens. Do primeiro
homem que realmente amou.
Boba, sorria. Boba, chorava.
Nem lembrava mais o porquê de não estarem mais
juntos. Junto daquela flor lhe vinham à mente gestos,
palavras, promessas, abraços, beijos, olhares. Seu coração
apertou com as lembranças e as cobranças de uma vida
não vivida, de um caminho não percorrido. Hora de

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Márcio Brasil
abandonar o passado. Encontrado o telefone daquela
amiga, ligou para compartilhar antigas emoções.
A voz masculina que disse "alô" fez seu coração
acelerar. (que clichê, pensou. Era ele).
Desligou.
Não conseguia falar. Tudo tão rápido. No CD,
Pretenders ainda tocava I'll Stand By You...

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Em pedaços
Saudade.

Era o que ela sentia quando olhava para ele.


Saudade da pessoa que ele um dia foi.
Não era mais.
A magia, o encanto havia se quebrado. Se a paixão é
narcisista e só nos faz enxergar as familiaridades (eu gosto
disso, você também...), esse misto de raiva e decepção só
fazia apontar defeitos que antes, não fazia questão de
enxergar. Sentia que cada dia morria um pouco.
Sim, é verdade que morremos mesmo a cada dia,
nos aproximando do minuto fatal. Porém, percebia que
seus sentimentos desmoronavam a cada dia. Nesses
momentos, em que o pranto lhe escorria pela face, seu
coração apertava, pesava.
E ela sentia saudade.
Tinha saudade não mais do amor tresloucado e dos
gestos grandiloquentes dos primeiros atos de romance.
Tampouco tinha saudade do primeiro presente de
Dia dos Namorados. Tudo era apenas promessa, ilusão,
um conto de fadas, como toda relação inicia, fazendo com
que acreditasse que eram predestinados a viverem lado-a-
lado.
Nesse tempo, era como se a terra fosse preparada e
somente mais tarde, o amor brotasse como uma flor. E era
disso que ela sentia saudades. Saudade da forma como o
seu corpo se encaixava no dele (e como ele a recebia) nas

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noites chuvosas (ela tinha medo dos trovões). Saudade do
olhar de cumplicidade e do sorriso desabrido. Saudade do
cheiro e dos lábios carinhosos, não esses de hoje, frios e
indiferentes. Ele, hoje um estranho, dormia ao lado dela. E
ela tinha saudades de alguém que estava perto, mas que há
muito havia partido.

Em pedaços.

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Aluga-se um coração
Entre os classificados do jornal de domingo lá
estava um insólito anúncio, que não oferecia carro,
apartamento ou computador.
"Aluga-se um coração", era a singular mensagem
acompanhada do número do telefone para tratar do
negócio. De quem seria esse coração? A pessoa que
anunciou estaria com problemas cardíacos e, ao invés de
esperar na interminável fila dos transplantes buscou um
meio insólito de conquistar o almejado órgão?
Não. Talvez não fosse alguém buscando, mas sim,
oferecendo o seu coração. Poderia ser por falta de uso ou,
quem sabe, tivesse trocado o seu convencional por um
modelo sintético e mais avançado, o qual não incluía os
inconvenientes defeitos de se apaixonar e deixar a
insensatez gerada pela flecha do cupido dominar a razão e
a emoção, fazendo com que seu portador se lançasse em
aventuras tresloucadas do tipo que se vê em filmes
açucarados.
"Aluga-se um coração". Lá estava o anúncio. Preto
no branco. Frio. Insólito e inédito. Instigante e desafiador.
Seria um coração alado, avoado, desesperado,
descompassado, abobado, desapaixonado, sonhador,
aventureiro, atrasado, sincero, inocente, sacana, quebrado,
magoado pronto para ser atravessado pela lança do
desamor? Ou apenas pura carne, músculo, veias e sangue?
Esse coração estaria em bom estado, sem vestígios de
antigas paixões, marcas indeléveis de desilusões e

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desencontros, ou simplesmente fosse um coração que não
soubesse amar.
Não! Não existe coração que não saiba amar, mas
sim, aquele que não queira amar. Já aí, se entenderia a
razão do classificado. Um coração que não ama não tem
razão de continuar batendo. Alugue-se.

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10 Segundos

Nove meses
Ela estava com o envelope nas mãos, sem coragem
de abrir. Sentada na praça, mordia nervosamente o
canudinho mergulhado na lata de Fanta e olhava para os
lados. Estava esperando por ele. Alguns minutos atrasados
depois ele chegou, também nervoso, dando explicações
para o atraso. Não importava. Ela o aguardou para que,
juntos, abrissem o envelope mais importante de suas vidas,
o que iria mudar a forma como eles enxergavam as coisas
até esse dia, nessa praça.
Abriram.
- Estou grávida- ela disse.
Logo, veio um friozinho na barriga e ela ficou
tonta. Nervoso, ele a ajudou a sentar.
- E agora?- ela perguntou, na insegurança de seus 16
anos.
- Não sei, eu sou muito novo- respondeu ele.
- E eu, o que sou?- ela se desesperou. Ele jogou o
envelope no colo dela.
- Preciso pensar.
E foi embora (e não voltou mais..).
E, assim, ela ficou sozinha, com medo de tudo, sem
ter coragem para nada. Sentia-se frágil e insegura como
jamais tinha se sentido. Com o passar das semanas, foram
surgindo dificuldades e foram aparecendo ainda mais
responsabilidades. A pessoa que esperava que ficasse ao
seu lado não estava, porém, muitos outros a amparavam.
Ao contrário do que pensava, muitos se importavam com

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ela e a amavam. O medo que tinha de contar para os pais,
mostrou-se exagerado. Eles estavam, sim, ao seu lado.
Mesmo assim, ela tinha medo e acordava chorando, em
sua aflição de mulher. E assim foi, durante nove meses.
Foi numa manhã de primavera que, finalmente, ela
nasceu. Delicadamente os médicos colocaram aquela frágil
criaturinha em seus braços. E a menina-mãe mal se se
aguentava em sua ânsia de abraçá-la bem apertado, junto
ao seu corpo e beijá-la, em meio às lágrimas.
Durante nove meses, tinham sido uma só. Hoje ela
era mãe e a menina em seus braços era "Thaís". Os
pequenos olhinhos encaravam a mãe, que viu-se inundada
de uma coragem que jamais havia sentido antes.
- Tudo vai dar certo. Agora eu sei.- dizia com
lágrimas de alegria rolando por seu rosto...

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Namoro virtual
Era madrugada e eles ainda continuavam
conversando pelo Skype. Às vezes, dialogavam até o
amanhecer. Nem importava que fossem trabalhar com
sono ou olheiras. Importava que eram namorados e
estavam curtindo o melhor período da paixão: o da
descoberta de afinidades.
- Não acredito que você é fã do Bee-Gees. Eu
também!!
- O que? Você também gosta de comer poleta com
leite? Não tá me debochando? Rssrs
- Ah, não. Você também assiste Caverna do
Dragão?
Pronto.
Tinham descoberto que eram "almas gêmeas" e
estavam, assim, apaixonados. A cada conversa, descobriam
mais coisas em comum, veja só. Já namoravam há quase
seis meses, sem sequer terem se visto uma única vez.
Enviam-se e-mails, scrapps e tinham galerias de fotos um
do outro em seus computadores. Até páginas em comum
nas redes sociais.
O romance ia tão bem que decidiram se encontrar
pela primeira vez. Então, ele viajou 500 km para encontrar
sua namorada virtual. Se encontraram.
Era esquisito conversar, assim, sem ser por uma web
cam.
- “Ele não é tão alto como parecia”- pensou ela.

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- “Ela não é tão magra como aparentava” observou
ele.
Mas, enfim, logo estavam conversando sobre os
mesmos assuntos que os uniu naqueles longos papos
durante meses. Ele era romântico. Ela era idealista.
Pouco tempo depois, veio a proposta de casamento.
E eles casaram. E durante algum tempo, foram felizes.
Realmente tinham muitas coisas em comum e Eles já
sabiam disso.
O que ainda não sabiam era que existiam inúmeras
outras coisas em que eles discordavam. De início, uma
discordiazinha aqui e outra ali. Um dos lados cedia e tudo
ia bem. Até cada um começar a defender o seu front com
unhas e dentes. Foi aí que a paixão começou a desandar.
Um foi deixando de gostar do outro, mesmo que ambos
ainda gostassem de comer polenta com leite e ouvir Bee-
Gees.
Sei lá, faltava alguma coisa naquela relação que não
estava mais dando certo (uma tela de computador?). Eles
até que tentaram. Ele mantinha o seu computador na sala.
O dela ficava no quarto. De vez em quando, teclavam por
alguns minutos antes de ficarem off um para o outro. Mas
teclar não era mais a mesma coisa. Talvez faltasse a
distância, talvez faltasse o que hoje sobrava: eles se
conheciam demais. O que aconteceu depois foi inevitável
para o fim do casamento. Ela o flagrou com outra. No
Skype.

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10 Segundos

Laços de ternura
Ambos nasceram em 1950, em meses diferentes. 14
anos se passaram e, em 1964, estudavam no mesmo
colégio. Seus olhos testemunharam as transformações da
época. Em 1965, ele notou o seu jeito de caminhar. Ela
parecia deslizar pelo pátio da escola. Em 1966, sentaram
lado-a-lado no ônibus.
Em 1967, eram colegas de aula. Para eles, 1969,
não foi lembrada pela chegada do homem à lua, foi o ano
de seu primeiro beijo. Em 1973, ele a pediu em
casamento. Em 1974, ela disse o sim. Em 1976, ele a
traiu. Em 1977, ela pediu divórcio. Em 1981, reataram.
Em 1983, assistiram juntos Laços de Ternura. Ele jurou
amá-la para sempre. Em 1984, ela fugiu com outro.
Em 1985, ela escreveu uma carta, pedindo perdão e
dizendo que o amava. O carteiro entregou o envelope a
uma vizinha, que extraviou a carta, que ele nunca leu. Eles
sempre se amaram.
Em 2013, ele é guiado pelos corredores do
supermercado por sua netinha, de 03 anos, espevitada. A
pequena esbarra numa senhora e derruba sua cesta.
Ele ajuda a recolher as verduras e olha em seus
olhos. Os mesmos que, em 1969, o encantaram. Ele não
repara nas marcas de um rosto de 57 anos. Diante dele,
novamente a garota de 19 anos, para quem jurou amor
eterno. Passaram-se tantos anos e, engraçado, parece que
foi ontem. Ela pensa no que dizer. "Você leu a carta? Não

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Márcio Brasil
significou nada?". Não, ela resolve calar. Ele força o joelho
para levantar. Osteoporose.
-Vamos embora, vô- insiste a pequena. Eles
encaram-se uma última vez.
- Crianças.-Ele desculpa-se.Dá de ombros.
Suspiram. Ela sorri e encosta seus dedos nos dele, quando
ele a alcança o maço de couves que caíra no chão...

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10 Segundos

Guerra particular
A discussão se estendia, a ponto de terem perdido a
noção de tempo. Podiam ter se passado minutos que eram
como horas ou, de fato, se passado longas horas de muitos
ataques e ofensas. O estopim da briga?
Nem lembravam mais, na ânsia da raiva. No
momento em que cada um defendia o seu front, novas
munições eram utilizadas e lançadas em território inimigo
e cada ataque resultava num contra-ataque e, assim, a
batalha se renovava a cada minuto.
Cada qual, tentava gritar mais alto ou ter a última
palavra como desfecho do embate, mas isso era
praticamente impossível. Naquele momento, se odiavam
mais do que tudo e abrir a guarda ou mostrar a bandeira
branca era inaceitável para qualquer lado. Faziam uso de
suas metralhadoras acusatórias mas, ao mesmo tempo,
fingiam não se ferir com as palavras.
- Maldito dia em que te conheci. Você é a pior
pessoa do mundo- ele disse. Foi nesse momento em que
ela foi atingida.
Ela até que tentou encontrar alguma granada verbal
para jogar no inimigo, mas não encontrou. Engasgou e as
lágrimas lhe vieram aos olhos. Era hora de bater em
retirada.
-Eu te odeio”, ela respondeu, enquanto se lançava
para atravessar a rua e ir embora. Ele virou as costas e se
foi para o outro lado, vitorioso. Cega de raiva, ela não
enxergou o carro, que a atropelou. O grito dela lhe atingiu

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Márcio Brasil
mais do que qualquer coisa. Ele se virou e viu o seu corpo
de 1,60 ser arremessado a uma altura considerável e atingir
o solo.
Seu coração pesou uma tonelada.
Instantes depois, a multidão se aglomerava em
torno dela, que fechava os seus olhos. Ambulância.
Hospital. Correria. Oxigênio. Médicos. Transfusão.
Dois dias depois, ao abrir os olhos o viu. Com a
mesma roupa, a barba crescida, com olheiras profundas.
Ela suspirou. Ele estava atento a sua respiração. Ambos se
olharam e ele se entregou às lágrimas.
-Eu te amo, ele disse.
- Eu sei”, ela sorriu...

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Lógica e sentimento
Eram dois jovens namorados descobrindo os
mistérios do amor. Foi Lógica que cedeu às investidas
apaixonadas de Sentimento e resolveu dar uma chance ao
rapaz. No príncipio, ela se encantava com as sem-razões
dele em querer conquistá-la. Ele mandava flores, bombons,
dava toques no celular e escrevia poemas. Às vezes,
também a convidava para ir ao cinema. Ele gostava de
filmes românticos e ela preferia Woody Allen. Mas os
dois também foram descobrindo muitas afinidades (e
nenhum defeito) e até já planejavam casar e ter uma filha,
que se chamaria Felicidade. Fazia dois anos que estavam
juntos, mas Sentimento julgava que Lógica não retribuía à
altura todo o carinho que ele lhe devotava.
- Mas não peço que me faça ou diga nada. Por que
fazer algo por ti que não seja expontâneo pra mim?
Foi a resposta de Lógica. Sentimento encheu os
olhos. Queria que ela também mostrasse seu amor.
- Não posso mostrar o quanto te amo. Não sei se o
que sinto é tanto quanto devo ou quanto tu mereces, pois
não compreendo o que seja o amor.
Sentimento não acreditava no que ouvia. Como a
Lógica podia ser tão fria? No Dia dos Namorados, ele
ficou em casa controlando os impulsos que tinha de
declarar seu amor por ela aos quatro cantos. Agora, ela é
que teria que provar que também o amava. Só que ela não
o fez. E ele ficou lá, chorando e ouvindo músicas
românticas, com o coração partido. (Será que ela tinha

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Márcio Brasil
outro?). Ela sentia falta dele e de seu romantismo
exacerbado, mas aceitou sua decisão de se afastar.
Resignada, pensava que talvez Sentimento fosse mais feliz
assim, livre.
E os dois não se falaram mais e o namoro, quase
noivado, terminou. Na saída de uma sessão de cinema, o
senhor Tempo (ele era paciente) e a dona Experiência (ela
era compreensiva) lamentaram a ausência daquele bonito
casal que saia abraçado e comendo pipoca.
- É uma pena. Eram tão lindos juntos. Mas não
souberam combinar, a Lógica com o Sentimento.

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10 Segundos

Sobre amores e cores


Num dia de chuva e vento, ele voltava para casa.
Seu guarda-chuva não era dos melhores e, na verdade, já
tinha algumas barbatanas tortas que ele insistia que
voltassem ao lugar e esquecessem de obedecer as ordens
do vento. Cruzou por centenas de outros guarda-chuvas
de cores mil, até que se chocou com uma sombrinha cor-
de-rosa (como é a a cor do céu dos apaixonados...).
Ela derrubou as pastas de escritório que carregava.
Ele entortou o guarda-chuva e arrebentou as barbatanas
em definitivo. Ajudou a recolher os papéis dela no chão e
recuperou outros que tentavam ganhar o céu, num balé
aéreo. Ele se molhava, mas sentia o perfume que ela usava.
Eternity.
- Eu te dou uma carona debaixo do meu guarda-
chuva.
Ela ofereceu. Ele, queria pedi-la em casamento...

***

O garoto chorava e não queria largar da mão de sua


mãe, que o levava ao primeiro dia de aula da sua vida.
-Vá conhecer seus coleguinhas
Mas ele não queria. Aquele era um mundo estranho,
cheio de estranhos. A mãe enxugava as suas lágrimas e
quase se deixava convencer pelos seus apelos de levá-lo de
volta para casa.

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Márcio Brasil
Foi quando uma amiga chegou, trazendo sua
filhinha, um pequeno anjo vestido de um azul cor-de-céu.
Se recompondo diante do olhar da menina, o garoto secou
as lágrimas e retribuiu o sorriso doce, corajoso e
inspirador diante dele. A menina lhe estendeu a pequena e
delicada mão.
- Vamos entrar juntos.
Ele tocou nos seus dedos, sem desviar de seus olhos
brilhantes e do sorriso cheio de vida. E, confiantes um no
outro, caminharam de mãos dadas até a sala de aula, ante o
olhar orgulhoso de suas mães. Foi nesse dia em que ele
conheceu o seu primeiro amor, mesmo sem saber o porquê
de seu coração bater mais forte perto dela...

***

Tudo tinha que ter lógica para ela. Era matemática e


acreditava em resultados exatos e precisos. Tudo preto no
branco. Se gostasse de poesia, teria estudado Letras. Mas
não acreditava nisso. Desprezava poesia e odiaria receber
flores (ela dizia). Para ela, o coração era simplesmente um
órgão muscular cuja função era bombear o sangue
vermelho para o organismo.
Algo lógico e nada a ver com a descrição alienada de
adolescentes apaixonadas e tolas, contagiadas pela
síndrome de Cinderela (sempre à espera de um príncipe a
lhe tomar nos braços). O amor, para ela, era uma farsa
inventada para disfarçar nossos instintos primários de
seleção natural e acasalamento (lógico que o ser humano é
um animal, ainda que racional). Algo exato.
33
10 Segundos

O amor, ela dizia, era como um perfume caro que se


comprava para disfarçar o odor do corpo humano ou a
menta da pasta de dente. Podia até impregnar sua pele ou
refrescar sua boca, mas isso não fazia parte de sua
natureza. Era uma ilusão breve. Ela podia viver sem
perfume, assim como podia viver sem amor. (E se o
príncipe se desencantasse sentindo o bafo e o chulé da
Cinderela ao calçar-lhe os sapatinhos de cristal?) Era fácil
desconstruir mitos.
Deus? Uma lenda criativa, tão inventiva quanto o
Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa. Para ela, a
explicação divina para todas as coisas foi o tempo perdido
para achar a verdade sobre todas essas coisas. "Tudo
nasce, cresce e morre. Acontece com uma planta, acontece
com um sapo, acontece com uma bactéria e não há nada
de romântico ou misterioso nisso. É pura lógica,
matemática e cronologia".
Tudo tinha que ter lógica.
Mas o que ela não conseguia entender era por que,
entre seis bilhões de pessoas no planeta, foi se apaixonar
justamente por aquela pessoa? O que tinha ela de tão
especial, a ponto de destruir toda a visão de mundo que
ela possuia e revirar seus conceitos pelo avesso? "Meu
Deus, me permita viver esse amor", ela pediu, após mais
uma noite insone e sem lógica...

***

34
Márcio Brasil
Ele tinha aceitado o conselho dos amigos e resolveu
participar do tal grupo de terceira idade. Vivia sozinho,
mas ao contrário do que os velhos amigos pensavam, ser
sozinho não era de todo o mal. Ele fazia os seus horários,
dormia até a hora que queria, comia de vianda, fazia suas
caminhadas, deixava a roupa espalhada e pedaços do jornal
que lia por toda a casa.
E ninguém reclamava de outros hábitos peculiares.
Depois de ter sido casado por 40 anos, ele reaprendia a
viver uma vida de solteiro. E não era tão mal assim. Só
ainda não havia se acostumado com aquele espaço vazio
no sofá, ao seu lado na hora do chimarrão ou da novela
(as horas cor-de-cinza e de saudade).
Ela não estava mais aqui e ele, bem, ele era um
velho. Naquele dia, no grupo de terceira idade, ele dançou.
Até que a cãibra lhe fez perder o compasso.
- Já passei por isso também- ela disse, sentando ao
seu lado.
- Pela cãimbra?- ele perguntou, bem humorado. -
Não. Por achar que minha vida tinha terminado com
morte de meu marido- respondeu aquela senhora, que não
pintava o cabelo, nem maquiava as marcas da passagem do
tempo.
- E como superou?
- Percebendo que o mundo foi criado em nome do
amor. E também que o tempo que temos é muito curto e
que os medos que alimentamos são ilusórios. Como o de
dizer que me apaixonei por ti. Ele sorriu, como uma
criança no primeiro dia de aula...

35
10 Segundos

***

Dois estranhos cruzam seus caminhos numa rua


qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma
praça verde e arborizada qualquer. "Pode ser ela", ele se
indaga. Ela, ele não sabe o que pensa, incapaz de ler
pensamentos ou, simplesmente, de decifrar ou perceber as
sutilezas femininas.
Seus passos são apressados e carregados de
compromissos profissionais. Ficam paralelos por uma
fração de segundos, mas - sabe aquelas cenas de filme em
que tudo fica em câmera lenta?
Foi o que aconteceu aqui- ela passou ao lado dele,
que invadiu-se de mil pensamentos, de mil frases para
dizer, de uma vontade indescritível de desvendar aquele ser
encantador que cruzava ao seu lado (e que
inexplicavelmente não era notado pelos outros ao redor,
como que acostumados a conviver com uma força da
natureza absurdamente bela e enigmática, como a Lua).
Em segundos, estavam distantes um do outro para, sei lá
quando, cruzarem seus caminhos novamente.
Restou a ele gravar as cenas em sua memória,
retroceder seus passos e apertar o slow-motion para
decorar aqueles poucos segundos em que a mulher mais
apaixonante do mundo cruzou seu caminho numa rua
qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma
praça verdejante qualquer...

***

36
Márcio Brasil

Ela passou a noite escrevendo poesia. Estava triste,


profundamente. Tudo por causa de um amor. Num de
seus versos descreveu que "o amor é a maior força do
universo. Mas os que se vêem tomados por essa força se
tornam intensamente fracos".
Ela sabia o que descrevia e transformava a tristeza
em poesia. Ela lembrava dele, do seu amor (que a deixou
intensamente fraca). Já havia partido (em pedaços?) e
estava longe. A distância não era apenas física, mas
cronológica.
Os dias, meses e anos passavam impiedosos e ela
acreditava no seu retorno. "Talvez não como fomos, duas
pessoas que se conheciam em corpo e alma. Mas como se
fosse a primeira vez, quando você sorriu para mim e
acreditamos que seria para sempre", ela escrevia em seus
versos. Em seguida, boba, rasgava as páginas.
Especialmente ao ouvir Por Enquanto, em que Renato
Russo diz na canção que "o prá sempre, sempre acaba".
Renato sempre soube das coisas. Ela abriu as janelas e
deixou o vento entrar, fechou os olhos e sentiu a brisa
brincar com seus cabelos. Ela era bela, intensamente bela,
pelos sentimentos que nutria.
E resolveu que não iria mais se fechar para o
mundo. "Por que um romance do passado parece tão mais
confortável de abraçar, com seus erros e acertos, do que
estar aberta ao futuro, estranho e distante diante de nossos
olhos?", se perguntou. Ela decidiu que não seria mais fraca
e que o amor lhe daria forças.

37
10 Segundos

Amando a si própria, sem esperar pelo amanhã ou


fazer planos de romances embalados por trilhas sonoras da
novela das oito. "O verdadeiro amor surgirá sem
cobranças, sem exigir mudanças, compreendendo minhas
falhas humanas, e será intensamente lindo, aos meus olhos.
O verdadeiro amor será sublime, será fiel. E será simples,
como meus versos e complexo como o meu coração.
Como é a beleza de uma rosa e a textura de suas pétalas",
escreveu a poetisa (sem escrever...) com a ponta dos dedos
no azul do céu, onde as nuvens se uniam tomando a forma
de um coração, à espera de um pôr-do-sol encantador...

38
Márcio Brasil
Um sorriso no céu
Aos 22 anos, Clarissa era a moça mais bonita do
bairro, da universidade e, dizem,até da cidade. Era boa
filha, boa profissional e também dedicada nos estudos.
Trabalhava de dia, estudava à noite e seguia uma rotina
quase normal à das outras garotas.
Porém, não costumava ir à baladas, barzinhos e,
dificilmente, estava em rodas de amigos. Não bebia, nem
fumava, não discutia religião e nem fazia questão de
entender futebol ou falar retóricas. Pretendentes para ela
não faltavam, pois todos gostariam de namorar uma garota
como Clarissa: apaixonante, atraente, inteligente,
deslumbrante, inacreditável.
No entanto, ela não tinha olhos para ninguém. Se
isolava em seu mundo de quatro paredes e se perdia em
meio a livros (como Clarissa, de Érico Veríssimo). Entre
sorrisos e lágrimas, cantava Antologia, de Shakira ou
perdia horas na internet, vendo a vida acontecer nas redes
sociais.
Clarissa estava só. Tinha na parede de seu quarto o
quadro O Nascimento da Vênus, de Boticelli e se sentia
como a própria deusa desnuda em cima da concha, mas
como se estivesse fechada dentro dela, alheia ao mundo
(ou protegida dele?). Ingênua, rabiscava sentimentos em
seu diário. Clarissa teve poucos namorados, os quais nada
representaram. Nenhum foi capaz de compreendê-la, nem
de tocar o seu nobre e meigo coração de alguma forma.
Tampouco foram capazes de enxergar a tristeza de seu

39
10 Segundos

semblante. Os homens que conhecera tinham o péssimo


hábito de serem idiotas e agirem como idiotas (também,
esperar o quê de idiotas?).
Os dias passavam e o coração de Clarissa apertava e
ela sentia saudades de algo, cada vez que olhava as estrelas,
incapaz de explicar o que era. Clarissa acreditava em
destino, em almas gêmeas e em amor verdadeiro.
Para ela, o mundo era permeado de magia e sentia
isso na beleza de tudo. Adorava a lua minguante que, para
ela, parecia o sorriso do gato de Alice solto no ar.
Se reconhecia minúscula, ao olhar para as estrelas e
sentia que, em algum lugar, alguém também olhava, com a
mesma aflição para o infinito.
Era como uma conexão telepática. Sabia que, em
algum lugar do planeta, perto ou longe, estava a pessoa
que completaria a outra metade de sua alma dividida.

40
Márcio Brasil
As time goes by
Ele comprou ingresso para assistir a estreia de um
filme que estava atraindo a atenção das pessoas daquela
época.
O filme era longo, mas o emocionou muito.
Principalmente depois, na saída, quando avistou pela
primeira vez um rosto que jamais esqueceu. Imaginou-se
como o próprio Rhett Butler, encantado por Scarlett, a
heroína que prometeu que jamais iria sentir fome
novamente.
Não sabia quem era a moça, só sabia que ela gostava
de cinema, ou não teria comparecido àquela concorrida
sessão. Na ânsia de reencontrá-la tornou-se assíduo
frequentador das matinês. Certa feita, triste com o destino
de Heathcliff e Cathy Linton, avistou, rápido, o rosto que
tanto aguardava.
Mas a moça acabara de entrar num carro de aluguel,
deixando para trás o apaixonado que ignorava existir.
"Gostaria que o vento uivasse em meus ouvidos o nome
dela, pelo menos", suspirou.
Anos se passaram e ele nunca mais a viu, apesar de
ter feito do cinema a sua religião. Até que um dia, ao final
de uma sessão, uma moça chorava a silenciosa despedida
de olhares de Rick Blane e Ilsa Laszlo.
- Eles não ficaram juntos no final, não é justo-
comentou ela.
As luzes se acenderam e ele percebeu que era ela, a
moça que habitava os seus sonhos. Sentiu seu coração se

41
10 Segundos

confortar ao vê-la ali, ao seu lado, conversando com ele,


justamente num momento em que pensava que nunca mais
a veria.
- Foi melhor assim- disse ele
- Por que- ela indagou
- Porque Ilsa estava dividida entre o amor de Victor
Laszlo por ela e o amor dela pelo canalha do Bogart?
- Quem é Bogart?
- Humphey Bogart. O ator que interpretou Rick, o
dono do bar.
- Não gosto de pensar assim. Para mim, filmes
contam histórias de pessoas, em algum lugar do mundo,
que vivem esses sentimentos de alguma maneira. Não acho
que essa história seja apenas de atores que decoraram um
texto.
Ele sorriu e resolveu instigar a imaginação dela
- Então como acha que seguirá a vida dessas pessoas
depois do que acabamos de testemunhar?
Ela pensou um pouco e respondeu.
- Tenho certeza que Ilsa vai voltar para Casablanca
e vai ser feliz ao lado de Rick, a quem ama de verdade. E
ela dançará muito ao som das canções do Sam,
especialmente As Time Goes By. E ambos sempre terão
Paris para recordar...
Na saída do cinema, ele comprou pipoca e ofereceu
o seu casaco para protegê-la do frio invernal. E esse não
foi o fim, mas o início de uma bela história.

42
Márcio Brasil

Romance de inverno
- Lembra daquela noite superfria de inverno em que
tu tirou o teu casaco e me envolveu para que eu não me
resfriasse e a gente continuasse no banco da praça, dando
nome para as estrelas?, perguntou a esposa, após 10 anos
de casamento, para o seu marido. Ele, que fazia o cálculo
das despesas do mês, respondeu que não lembrava.
- Como não?, surpreendeu-se ela - Não acredito.
Foi quando tu se declarou apaixonado...
Disse, tentando preencher a falha na memória dele.
- Olha, eu não lembro mesmo, mas se tu está
dizendo..
Foi a resposta. Atônita, ela nada disse. Ele só
analisava as despesas a serem cortadas. Ela resolveu tentar
mais uma vez.
- Mas lembra o que aconteceu depois?
- Depois do quê?
Ele se impacientou com a impertinência da esposa,
que atrapalhava a sua Matemática.
- Depois da declaração, ora. Não está ouvindo?
- Estou. Esse é o problema. Não vê que estou
ocupado? Vai assistir a tua novela.
Resignada, ela foi saindo da sala, mas parou na
porta e tornou a olhar para o marido. "Ele não pode ter
esquecido", pensava. "Só nós dois estávamos lá. Se ele
esqueceu, apenas eu mantenho a lembrança. Ninguém mais
no mundo sabe disso. Se eu também vier a esquecer, algo

43
10 Segundos

lindo e único vai se apagar para sempre, como se nunca


tivesse acontecido”.
Ela lamentou que o tempo tenha sido impiedoso e
que, além de trazer marcas, tenha apagado tantos
momentos felizes. Não de sua mente, mas da pessoa que
considerava o amor de sua vida. Ela olhava para ele: com
um óculos de descanso, entre calculadora e papéis, a fronte
tensa de preocupação e lembrou daquele garotão
inconsequente por quem havia se apaixonado. Se ele
estivesse aqui, certamente deixaria qualquer cálculo para
depois e faria amor com ela em cima das contas do mês.
No entanto, aquele garoto agora parecia sepultado,
enforcado por uma gravata ou atropelado pela prestação
do carro novo. Tinham hoje uma vida de luxo, diferente
das inúmeras dificuldades dos primeiros anos. No entanto,
o mais importante havia ficado para trás: a vida, a
cumplicidade, a paixão desenfreada.
Ela não queria perder suas lembranças, nenhum dos
momentos que viveu. Passou a relembrar de vários
momentos felizes da vida a dois. Decidiu que iria escrever
em seu diário, cada um deles, em detalhes para que os
bons momentos se perpetuassem.
Registrou principalmente os pequenos bons
momentos, os diminutos, imperceptíveis, os fáceis de
esquecer. Queria esmiuçar e compreender um universo de
sentimentos existentes em microssegundos do dia-a-dia.
Escreveu até cansar. Depois, foi até o marido que havia
adormecido em cima das contas.

44
Márcio Brasil
- Naquele noite, nós nos beijamos pela primeira
vez...
Ela sussurou em seu ouvido, esperando que o
subconsciente dele resgatasse a memória perdida e o
fizesse lembrar de um tempo em que contar estrelas numa
noite de inverno era a melhor coisa do mundo.

45
10 Segundos

Ângela
Vestida de branco, ela entra no salão. Passos lentos
e calculados. O sorriso era o mais bonito que o mundo já
vira surgir em seu rosto. O coração acelerado, invadido
por uma alegria que jamais sentira em toda a sua vida, até
então. Um coração que não cabia em si com tanta alegria e
que, ainda bem, encontrara outro coração para dividir
tanta emoção.
No semblante do outro, a compreensão e a
confiança no olhar. Ao seu lado, a pessoa que a
completava, sua outra metade. O seu elo encontrado.
Duas almas tornando-se uma só, unidas fisicamente
pelo contato das mãos entrelaçadas. Espiritualmente,
voavam como dois anjos. A delicadeza de seus passos fazia
crer que ela pisava em pedaços de nuvens, flutuando no ar.
E ela iluminava a noite com seu sorriso. O mais
bonito que o mundo já viram surgir em seu rosto.
Em volta, rostos de todas as matizes. Sorrisos de
todas as nuances e aplausos de todos os tons. Em tela, a
simbologia do amor verdadeiro, da busca coroada de êxito.
"Sim", ela disse. "Sim", ele também respondeu. E a
aliança então os uniu. Todos aplaudem. Os românticos
choram. Os sonhadores idealizam. E os realistas?
Desdenham, talvez. E, à sua maneira também choram e
idealizam. Amor, quem sabe? Daqueles que não se
realizam...

***

46
Márcio Brasil

Durante a cerimônia de casamento de sua amiga,


Ângela encara-se no espelho do toalete. Finge retocar a
maquiagem. No reflexo, encara a tristeza de seu olhar e
tenta compreender-se como ser humano. Tenta
compreender suas ações, suas emoções complexas, suas
atitudes desconexas. Ela foge de quem quer estar perto.
Ela nega o amor que sente, quando o que mais
queria era abraçá-lo com toda a sua estúpida alma, cheia
de defeitos e anseios. Ela reluta, quando só queria baixar a
guarda.
Ela sorri, querendo chorar. No salão, o amor. No
rosto, a dor. Angela respira fundo e aprisiona todos os
beijos, abraços e sonhos mais uma vez e estanca todas as
lágrimas. Antes de entrar em cena, retoca a maquiagem. A
noite é de festa...

47
10 Segundos

48
Márcio Brasil

Sobre sexo...

Clarissa suspira fundo, percebendo que ainda lhe


restam alguns segundos de autocontrole, que ainda pode
interromper o percurso atrevido das mãos e da língua
quente de seu amante, antes que ele alcance a sua calcinha,
os seus pelos pubianos e aí, entregue-se mais uma vez no
chão, no colchão, em cima da mesa ou debaixo do
chuveiro...

49
10 Segundos

50
Márcio Brasil
Várias variantes
O marido chega em casa de madrugada. A mulher
está na sala, acordada. Veja ocorre neste cenário em um
acontecimento extraordinário em oito dimensões paralelas
e compare as possibilidades que são várias e variantes:

1ª dimensão
O marido entra furtivo. A mulher, toda magoada, o
fuzila com uma pergunta.
- Posso saber onde o senhor estava?
- Pois sim, benzinho. Lembra que eu tinha dito que
iria jogar futebol?
- Claro. E vocês ficaram sete horas seguidas
jogando?
- Mas é claro que não, sua booooba. Depois do
jogo, fomos tomar umas cervejas na casa do Alfredo.
- Engraçado. Ele ligou há horas perguntando de ti.
- Alfredo, ora, Alfredo. Que cabeça a minha.
Confudi. Eu quis dizer na casa do Peeeeeedro.
- ...Que ligou logo depois que tu saiu, avisando que
teria de viajar às pressas e não participaria do jogo.
- Mas tu pensa que só tem um Pedro nessa cidade?
- E esse cheiro de perfume vagabundo?? E essa
mancha de batom?? E essa mordida no teu pescoço??
- Eu tenho uma explicação...
- Tu tem outra????

51
10 Segundos

A mulher chora. O gato mia. O cachorro late. O


bebê acorda. O homem deita e dorme. Amanhã ele
explica...

2ª dimensão
O marido entra. A mulher está à sua espera na sala
de jantar. A mesa estava posta e ela estava à sua espera.
- Eu cozinhei te esperando. E tu chega a essa hora...
- Ôoo. Parece que tu adivinhou que eu tava com
fome...

Pratos, travessas e talheres são arremessados em


direção ao marido.

3ª dimensão
O marido tenta entrar. A chave não colabora. Sua
esposa se aproveitou da breve de horas para ligar pro
chaveiro e trocar a fechadura. Todas as roupas dele estão
em de sacos de lixo desses que são vendidos nos
mercados. Pelo menos ela tinha separado um saco só para
cuecas e meias. Ela era uma mulher prática. O marido pega
o celular e liga para a casa do amigo (de onde tinha
acabado de chegar)
- Dae, Pedrão. Ainda tem bebida aí...? E a
muglerada?

4ª dimensão

52
Márcio Brasil
Antes de abrir a porta, ele ouve uma música. Não
define o que é. Abre a porta devagarinho. E ouve a música.
Era Elis Regina. Atrás da Porta.
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei sobre o teu corpo e
duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei prá maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua.

Ele sente um arrepio ao ouvir essa música. Pensa em


dar meia volta, mas a esposa percebe que ele chegou.
Pergunta onde ele estava até essas horas. Ele desconversa.
- Essa música foi escrita pelo Chico Buarque, né?
- É, acho...
- Vamos ouvir o resto juntinhos. Tava com
saudades suas...

53
10 Segundos

E depois da Elis, trocaram por um disco do


Roberto. E ouviram Cavalgada até o amanhecer.

5ª dimensão
O marido chega. Silêncio na casa. Sua mulher não
estava. Ele encontra um bilhete onde estava escrito
"direitos iguais".

6ª dimensão
O marido chega. A mulher estava dormindo. Ele
deita de mansinho para não acordá-la. Passa as mãos de
leve por suas costas. Toda manhosa ela diz que já estava
exausta de tanto sexo.
- Como assim, sexo?

7ª dimensão
Ele entra. Está escuro. Em seguida, ele vê um clarão.
E volta a ficar escuro. O sangue dele escorre pelo tapete da
sala.

8ª dimensão
Ele entra. A mulher está na sala e pergunta.
- Onde tu tava?
- Putz, na casa do Pedro. Tava difícil de sair de lá.
Maior agito, teve strip pôker...
- Hmmm, strip pôker, é?
- Aham, aham...
- E tu ficou com alguém?

54
Márcio Brasil
- Bah, bota merda. Acabei ficando, sim.
- A mina era massa?
- Uma louca muito boa.
- E aí, comeu?
- Até comi, mas não gozei. A guria era cheia das
frescuras.
- Então, vamos pro quarto. Tava aqui te esperando.
- Faz um strip pra mim?

55
10 Segundos

James Blunt e Flores Mortas


Clarissa se arrepiava quando era beijada no pescoço.
E por causa disso se tornava um alvo fácil nas mãos de
Fernando. Após uma pequena discussão, eles se beijavam
ferozmente. Ele a beijava ao mesmo tempo em que
agarrava com firmeza o seu cabelo e até dava-lhe uns
puxões. Já ela, mordia o lábio inferior dele, segurando-o
entre os dentes até que ele produzisse um "ai", que a
excitava. Era nesse momento que ele revidava e descia até
o pescoço dela, deslizava a língua por sua nuca,
umedecendo-a com saliva, e sussurrando qualquer coisa
nos seus ouvidos.
Num instante, suas mãos já estavam debaixa da
blusa dela, percorrendo suas costas com a ponta dos dedos
(os pelos dela ficavam eriçados), ziguezagueando por sua
pele como que disfarçando a próxima parada: os seus
seios. Ele aperta o seu corpo contra o dela, puxando sua
cintura fina com força fazendo-a sentir sua excitação.
Neste momento, Clarissa suspira fundo, percebendo
que ainda lhe restam alguns segundos de autocontrole, que
ainda pode interromper o percurso atrevido das mãos e da
língua quente de seu amante, antes que ele alcance a sua
calcinha, os seus pelos pubianos e aí, entregue-se mais uma
vez no chão, no colchão, em cima da mesa ou debaixo do
chuveiro.
- Não! Espera!
Ela diz, arrependendo-se de ter dito. Mas se
mantém firme na decisão.

56
Márcio Brasil
- Eu não quero mais. Não desse jeito.
Fernando se irrita. Ela queria continuar com a
discussão que já durava horas. Eram amantes. Ele era
comprometido. Clarissa era jovem e ele era um homem
mais velho.
Mas ela não queria mais tê-lo pela metade, não
queria mais continuar sendo a outra" Não queria mais ser
um nome masculino disfarçado na agenda do celular dele
para que a vaca não descobrisse sobre os dois.
- Nós dois, Fernando. Somos um clichê. Iguais a
outros tantos. Iguais aos de novelinhas bestas. Tu vai
seguir me enrolando e eu vou seguir acreditando que vai
largar dela e ficar comigo. Vou seguir na esperança de que
tu me prove que gosta de mim, como tanto diz. Mesmo
sabendo que é ela que dorme abraçada contigo. É ela
quem tem o melhor de ti. Para mim, ficam essas migalhas
de carinho, de tesão, de aventura proibida, de tua
"ninfeta". Fogosa. Gostosa. Desencanada. Mas tu escolheu
ficar com ela, porque tem medo de tomar uma decisão, aí,
vai pelo caminho mais fácil. E isso dói, sabia? Dói pensar
nisso. Dá ódio! Quer nadar até mim, mas pensa que pode
se arrepender depois e não encontrar o seu porto seguro.
Típico clichê. Foda-se, cara. Cai na real. Diga logo a
verdade.
- Não diz isso, amorzinho. Tu sabe que eu te amo...
- Eu sei que tu ama é tirar a minha calcinha. Quer
me colocar de quatro ou quer que eu te faça sexo oral. Eu
sei que tu ama é estar no meio das minhas pernas. Eu sei
que tu ama é de gozar em mim e gemer. E suar. E revirar
os olhos de tesão. É patético. Ambos somos patéticos. Eu,
57
10 Segundos

por estar me prestando a esse papel e tu...não se enxerga?


O que somos? O que existe entre nós?
- Porra!
Diz Fernando, irritado, enquanto ajeita o cinto da
calça.
- Porra, sim. É nisso que se resume a nossa relação.
Tu vem. E a genta transa. E espalha o teu esperma no meu
corpo. E vai suado para o chuveiro, e então se livra do
meu cheiro e corre para dormir com a tua mulher. Talvez,
antes de dormir vocês rezem uma ave-maria jcomo o vovô
e a vovó já faziam. Porra é o que fica de ti para mim. Ou
então esses presentinhos que me traz. CDs do James
Blunt? Por favor, né! Flores? Até hoje não aprendeu que eu
não gosto de flores mortas. Quer que eu me contente com
isso? Ridículo. Pensa que sou uma tola que vou seguir
acreditando em tua conversa idiota de "oh, eu te amo e
vou largá-la para viver contigo que é quem me faz feliz?".
Eu vou te esquecer. Eu vou amar alguém que me ame e
trepe comigo até a madrugada, mas que esteja ao meu lado
quando eu acordar...
Fernando tenta abraçá-la, na intenção de calar sua
boca com um beijo. Clarissa fica ainda mais furiosa.
- Eu disse não. E eu digo nunca. Quero que vá
embora e me esqueça. E esqueça que um dia me conheceu.
E nunca mais volte aqui porque eu não quero mais saber
de ti. E te odeio porque tu fez eu te amar. E vou te odiar
para sempre porque...
- Tu me ama?
- ....

58
Márcio Brasil
- Ei, calma. Deixa eu te abraçar. Só um abraço e vou
embora. Prometo.
- Eu não quero mais isso...
- Tá bem, eu sei. Vou pegar minhas coisas.
- Espera. Me abraça.
- Estou aqui. Shiiii.
- Eu só queria que as coisas fossem diferentes...
- Eu também...
- Sinto tanto a tua falta...
- Eu só penso em ti...
- Mesmo?
- É, sim.
- ...
- Vou pegar minhas coisas...
- Não! Deixa aí. Fica mais uma hora.
- Só se me der um beijo...
- Vamos pro quarto?

59
10 Segundos

Encontro (Im) perfeito


Ele não gostava de usar gravatas. Não se sentia
confortável com aquele negócio apertando o seu pescoço.
Só as tolerava quando tinha algum compromisso formal,
como um casamento ou festa de formatura. Por isso, foi
um tanto peculiar a sua decisão de usar gravatas nessa
noite. Era apenas um jantar, mas ele estava usando
gravatas. E não só: também um par de meias finas e um
terno impecávelmente alinhado.
Por um momento, questionava se não havia
colocado perfume demais,pois ainda estava sentindo
aquele cheiro adocicado passadas uma hora depois de ter
colocado, a ponto de lhe dar uma certa dor de cabeça.
Talvez tivesse mesmo exagerado.
Mas, de que outra forma iria se apresentar perante
aquele monumento que estava sentada diante dele? O
nome do anjo?
Gabriella. Até o nome era de um anjo. A mulher
mais colossal que ele já havia conhecido. E que,
incrívelmente, havia aceitado sair junto com ele. Talvez
fosse uma forma dela fazer caridade, ele pensou. Bobagem.
Ele estava arrasando. E o que é mais incrível: ela ria das
mesmas piadas manjadas que ele contou a vida inteira para
os amigos, que sequer esboçavam alguma reação. Eram uns
ignorantes, mesmo.

Ela o compreendia. E ria, com seu sorriso formado


por dentes perfeitos. E a boca mais desejosa que já viu

60
Márcio Brasil
diante dele, ornamentada por um batom brilhoso. Como é
que elas chamam aquele negócio mesmo?
Glóss. Bonito de ver. Ruim de beijar. Tudo bem,
ele a perdoava por isso. E também por aquele vestido
preto (matador), com alcinhas atrás de sua nuca, as quais
prendiam aquele decote provocante. Ele se controlava para
não olhar. Descontando a hora em que ela se virou para o
lado e pediu Foie Gras para o garçom.
Aproveitou para mirar-se naquele decote.
Mentalmente, o comparou a uma pequena comporta de
uma imensa barragem, insuficiente para conter uma
enxurrada. Era como se a qualquer momento aqueles seios
fartos fossem saltar para fora. Seios. S-e-i-o-s.
Seeeeeiosssss...
Sem dúvida que eram os mais belos seios que ele já
tinha visto. Imaginava se todo o investimento que faria
naquele restaurante caro lhe dariam a oportunidade de pôr
a mãos naqueles peitos.
- O que deseja, senhor? – perguntou o garçom,
trazendo-o de volta a realidade.
- Peitos...
- Perdão?
- Aham. Quero peito...de peru. E vinho.
O garçom trouxe o pedido de ambos. Pouparemos
o leitor de uma detalhada narrativa a respeito destes
momentos. E também sobre o valor despendido pelo
jantar. A pergunta aqui é: eles transaram? Vamos pular
direto para o apartamento dela. (aliás, foi decisão dela ir
para lá, após a famosa pergunta: no seu AP ou no meu.
Foram para o dela).
61
10 Segundos

A noite estava apenas começando. Eles continuaram


bebendo vinho. E dançavam ao som de Michael Bolton.
Estava tudo perfeito: a lareira, o vinho, a dança, a música.
Tudo muito civilizado e romântico. Até que ela o
largou no meio When I Fall In Love. Deu uns três passos
para trás, encarando-o de forma insinuante. Secou a taça
de vinho e a jogou na lareira. Em seguida, levou aos mãos
para trás da nuca e começou a desatar aquele lacinho. A
comporta se abriu e veio aquela enxurrada que ele tanto
aguardava. A partir daí, a civilidade foi por água abaixo e
ele libertou o seu homem das cavernas interior. Ou Conan,
o Bárbaro. Ou Krull, o conquistador. A noite foi perfeita.
Já era de manhã quando ele acordou. Olhou para
aquela deusa nua ao lado dele. Que bom. Não havia sido
um sonho. E poderia contar para todos os seus amigos
sobre a noitada. Eles o invejariam. Bocejou e lembrou do
sonho que tivera: via-se nadando nu numa barragem.
Ninguém estava olhando e ele sentira a vontade de
fazer xixi dentro da água. Que sonho mais esquisito.
Bem, era hora de levantar e ele inclinou-se com
cuidado para retirar o seu braço debaixo da cabeça dela,
sem acordá-la. Foi nesse momento que percebeu a
tragédia: a cama estava molhada.
Voltou a deitar abruptamente. Não era possível.
Isso não pode ter acontecido, não com ele, não naquele
momento. O vinho, claro, tivera um efeito devastador
durante as horas de sono. Lembrou da sua mãe e daquela
vez em que ela colocou o seu colchão para secar ao sol

62
Márcio Brasil
bem na frente de casa, o que fez seus amiguinhos sacarem
o que tinha acontecido e lhe importunado durante meses:
- Mijão, mijão!
Não. Ele só podia estar dormindo. O seu
“amiguinho” que tanto orgulho tivera lhe dado na noite
anterior, não poderia lhe causar essa decepção depois de
tantos anos. O que ele iria contar para os amigos? Sobre a
noite em que ficou com Gabriella e.... Não!! Eles jamais
poderiam saber disso. Gabriella se mexeu na cama. Ele
parou de respirar por um instante. E agora? Quando ela
acordar? Se ele conseguisse trocar a roupa de cama...
Tentou novamente mover o braço, debaixo da
cabeça dela, mas parou no meio do caminho. Ela poderia
acordar e descobrir o ocorrido. O que ele iria dizer? Quem
sabe, se usasse um secador de cabelo, um ferro de passar,
algo assim.
Mas, para usá-lo teria de dar uma pancada na
cabeça dela, se certificar de que não iria acordar com o
barulho.
Diacho.
O que fazer numa hora dessas? Quem sabe o
melhor fosse usar da sinceridade, conversar com Gabriella,
contar o que aconteceu e pedir milhões de desculpas. Foi
algo involuntário. Mas é claro que isso poderia pôr fim a
uma bela história de amor. O pior acabou acontecendo:
Gabriella acordou.
- Ei, tu já está acordado...
- Pois é...
- É impressão minha ou a cama está molhada?

63
10 Segundos

Ele parou de respirar pela segunda vez, ficou


vermelho-roxo-azul. Antes que pudesse dar alguma
explicação, ela o interrompeu.
- Olha, não quero que tu pense mal de mim...
- Me desculpe, Gabriella, eu sei o que tu vai dizer.
Realmente, foi uma coisa involuntária e...
- Eu estou com incontinência urinária.
- Hein?
- É isso aí. E nós bebemos muito vinho, né?
- Quer dizer que tu fez xixi na cama?
Um tanto corada, ela admitiu. Mas a naturalidade
com que ela fez isso o acalmou. Depois tomaram café
juntos e conversaram um pouco mais. Antes de ir embora,
ela lhe deu o seu telefone.
- Tu me liga?
- Claro.
E ele foi embora, mas nunca ligou. Pudera. Aquela
mijona...

64
Márcio Brasil
Bolo frito com sexo e chimarrão
Os dois amigos chimarreavam ao final de uma tarde.
Um costume de muitos anos. Conversavam sobre todos os
assuntos. Falavam desde a crise econômica mundial até a
performance de cada clube participante dos campeonatos
esportivos. Quando dava aquele vazio na conversa, de uns
poucos segundos, o compadre olhava para o céu e
reclamava da falta de chuva, dando início a um longo
debate sobre a falta de incidência e os prejuízos na lavoura
e etc. A esposa do dono da casa estava por ali, prendada,
sempre perguntando se precisavam de qualquer coisa.
- Um bolinho frito com canela?
- Brigado, comadre.
O compadre adorava os bolinhos fritos que ela
preparava. Já tinha provado com canela, com açúcar
mascavo, com temperos exóticos. Enfim, cada vez era um
sabor diferente. Após deliciar-se com mais um pedaço de
bolo, era inevitável o compadre elogiar a dedicação da
comadre. Dizia que o amigo era de sorte por ter casado
com ela, muito prendada, uma grande companheira. E
além de tudo muito bonita e prendada.
- Tu acha ela bonita, então, compadre?
E o compadre ficou vermelho com a pergunta do
amigo. Tinha dito no sentido de elogiar, não era de seu
feitio cobiçar a mulher alheia. Apenas quis dizer da sorte
que o amigo tinha de ter uma companheira como ela.

65
10 Segundos

- Não fique corado, compadre. Te faço essa


pergunta porque...bem, eu tenho uma coisa para lhe pedir.
E confio em ti.
- Pois pode confiar.
- Como tu sabe, instalei aí no rancho uma internet.
A gente fica proseando com os camaradas, pesquisa as
coisas. Fica sabendo da cotação do milho, da soja, do
quilo do boi vivo. E também conhece outras pessoas
através dos messenger, chates, orkute, feicebuque, uébecam
e essas coisas.
- Sei, sei. Meu filho passa pendurado nessas coisas.
- Pois bem. A gente acabou conhecendo uns casais
aí que ensinam umas receita para o casamento não ficar na
rotina, tu sabe como é...
- Sei, sei...
- E aí, funciona mais ou menos assim. Eu empresto
a minha prenda pro outro vivente e ele me empresta a dele.
É uma modernidade. O sujeito cobre a tua patroa, mas tu
não vira corno, porque tu também tá cobrindo a dele. Fica
elas por elas.
- Me dá um mate ligeiro que eu engasguei com essa
prosa...
- Não fique corado, compadre. Tu parece que é do
tempo de socar milho no pilão. Tem que aprender com os
jovens. Se é bom para eles, é bom para nós.
- Tá bem, tá bem. Mas onde é que o compadre
precisa de mim?

66
Márcio Brasil
- Bom, eu ainda não experimentei essas troca e não
sei como vou me comportar. Então, eu precisava que tu
cobrisse a minha mulher, enquanto eu fico avaliando...
- C-como é que é?
- Tu não acha ela bonita?
- A-Acho, mas não pensei em...
- Deixa de bobagem, então. Taí a oportunidade.
- Mas tu é meu amigo. Não posso trair a nossa
amizade.
- Mas se sou eu que estou deixando, tchê. Pode
botar as mão.
- Preciso pensar sobre isso...
- Mas será o pé da coruja? Não tem que pensar
nada. É só fazer. Mulher, pode vir.
E o marido chama a esposa, que surge de banho
tomado, fazendo o compadre perceber que a coisa já
estava mais ou menos arranjada. "Pode te pelar", ordena o
marido, puxando a toalha que envolvia o belo corpo da
patroa, que se achega próxima do compadre, já nervoso e
excitado. O marido avisa que vai botar uma música, como
costuma ver nos filmes.
Sem muita opção, ele acaba colocando um CD do
Evonir Machado. "Eu sou fodido quando eu chego na
zona, eu sou fodido quando eu chego na zona, faço amor
com as empregadas, mas primeiro vou na dona", diz uma
das músicas.
E a patroa se roçando no compadre. E o compadre
se roçando na patroa. E o marido retorcendo a toalha nas
mãos, olhando aquela função toda. As roupas do

67
10 Segundos

compadre no chão. A comadre e o compadre por cima do


sofá. E o marido avaliando e gostando daquilo tudo.
Lá pelas tantas, ele resolve tomar as rédeas da
situação e ora ordena para o compadre, ora para a esposa
para fazerem assim ou assado.
E foi assim durante algumas horas. Depois de
concluídos os trabalhos, a esposa se levanta para tomar
banho. O compadre, já mais solto e assanhado, faz
menção de querer acompanhá-la, mas o marido sentencia.
- Deixa que ela vá sozinha.
Foi a dica para ele se vestir e tomar o rumo de casa,
mais ou menos como um cusco magro. Passou-se alguns
dias e o compadre não tinha cara de ir na casa do amigo.
Não sabia como seria recebido. Mas acabou cruzando
com ele no mercado.
- Mas tchê. Tu não me apareceu mais. Se ofendeu
com alguma coisa?
- Não, capaz. Só não tive tempo....
- Ora, deixa de bobeira. Vai lá tomar um chimarrão.
A mulher tem umas receitas novas de bolinho frito.
E ele foi. Só que, diferente de outras vezes, ele se
arrumou para ir. Tomou banho, fez a barba, passou
perfume. E se foi para a casa do amigo, que, logo,
estranhou aquela produção.
- Mas e esse perfume fedorento? Mas vai te esfregar
com um bombril. Deixou até a bomba do mate
perfumada, tchê...
Antes que o compadre se envergonhasse da
observação, a comadre o salva.

68
Márcio Brasil
- Eu gostei.
- Agradecido. E esse seu bolinho tá cada vez mais
gostoso.
- Obrigada. Mas o compadre notou que não estou
usando nada por baixo?
O compadre deu uma olhadinha para o amigo, que
após sorver um mate fez um arram, limpando a garganta e
consentindo o que viesse por acontecer. E assim, mais uma
vez o compadre se atracou com a comadre e foi aquela
safadeza.
Agora, ele já conhecia os caminhos do prazer e sabia
mais ou menos agradá-la melhor. Já era como uma dança,
onde um acompanha o ritmo do outro. O compadre só
perdeu o compasso quando viu o amigo com uma câmera
nas mãos.
- Para que isso?
- Te aquieta que eu tô filmando para analisar
melhor depois e discutir os detalhes com a mulher.
Apesar de aborrecido com a câmera, o amigo
continuou a função toda. A comadre teve até o desaforo
de espalhar alguns bolinhos fritos pelo corpo e convidá-lo
a comer, o que ele fez com dupla satisfação. E o marido
filmava tudo com muita atenção e, de vez em quando,
também pegava um bolinho frito.
Depois de algum tempo, terminada a lida, eles se
foram todos tomar mate. Com o detalhe que o marido era
o único que estava de roupa.
- Essa água está pelando de quente- ele reclamou,
com o olhar fixo no vídeo da câmara, conferindo a
gravação.
69
10 Segundos

- Não ficou muito bom. Vamos ter que refazer


outro dia...
Pronto. Assim, o amigo já deixava engatilhado uma
terceira vez que arrendaria a sua esposa para o compadre.
E depois da terceira, ainda teve a quarta, a quinta e a sexta
vez. Depois disso, um belo dia, o compadre recebeu um
telefonema. Era a esposa. Estava apaixonada por ele.
Direta, ela disse que queria sair para trepar, sem ser às
vistas do marido. Do outro lado do telefone, ela ouvia o
silêncio do compadre, até que este resolveu.
- Olha, vamos parar por aqui. Safadeza até vá lá.
Mas traição, não. Ora, se eu vou botar chifre no meu
amigo?
E dali em diante, ele não atendeu mais telefone e
nem respondeu os e-mails do amigo. Era melhor assim,
antes que a coisa ficasse mais séria. De vez em quando, aos
finais de tarde, ele chegava a sentir falta do amigo e
daquelas prosas que iam desde a crise econômica mundial
até a performance de cada clube participante dos
campeonatos esportivos. E, claro, aquele chimarrão amigo
com a água muitas vezes pelando de quente. Ele só não
gostava muito de lembrar dos bolinhos fritos com canela.
Foram eles que terminaram com uma amizade tão
bonita...

70
Márcio Brasil

Insólitos

Ele levantou-se da cama e caminhou até a cozinha,


evitando de pisar em cacos de vidro. Há duas horas, os
dois tiveram uma terrível discussão, mais uma. Ele abriu a
geladeira e pegou uma garrafa de água mineral e a bebeu
num gole só, matando a sede e tirando o gosto do sexo
dela que ainda sentia em sua boca...

71
10 Segundos

72
Márcio Brasil
O catador
Um catador de papel de uma grande cidade passa na
frente de um luxuoso hotel. Ele estaciona sua gaiota perto
do meio-fio e se põe a recolher algumas caixas de papelão,
olhando de soslaio para os engravatados, madames e
poodles que entram no prédio. Na porta, um funcionário
embequecado usando luvas brancas e chapéu abre a porta
para quem chega e quem sai, sempre com um largo sorriso.
Sol quente, calor demais, suor, horas de trabalho e
cansaço. O catador coloca os papelões dentro da gaiota e
se retira devagar, ainda tem muitas quadras para carrocear
antes de ir para casa. Alguém diz:
- Senhor?
O catador não dá bola. Tinham dito "senhor". É
claro que não seria com ele. Ninguém lhe tratava por
"senhor". Ele ouve passos. Alguém toca o seu braço. Era
um funcionário do hotel que cuidava da garagem.
- Deixe que eu estaciono o seu veículo.
E, sem cerimônia ou demonstrar desdém, assume a
condução daquela gaiota suja e enferrujada, tal como se
dirigisse uma Mercedez, conduzindo-a até o
estacionamento. O catador fica sem entender, até que o
porteiro do hotel o chama.
- Senhor, por gentileza...
Sem entender nada de nada, ele vai até o porteiro. O
que teria feito de errado? Será que havia alguma coisa
valiosa entre aquelas caixas de papelão que recolhera? Será
que iriam chamar a polícia ou coisa assim? Talvez fosse

73
10 Segundos

melhor fugir, talvez fosse melhor dialogar. E ele foi até o


porteiro de luvas brancas com intenção de pedir desculpas
pelo que tivesse feito de errado. Ainda que sequer soubesse
o que tenha feito. Tirou o boné desbotado e limpou o
suor antes de encarar o porteiro que, robóticamente, lhe
escancarou um sorriso. Em seguida, abriu a porta do hotel
para o catador.
- Entre, por favor e sinta-se plenamente à vontade.
"Plenamente", o porteiro disse. E não apenas lhe
sorriu com a boca escancarada, mas também com os olhos.
O catador foi entrando naquele saguão de mármore tão
enorme que produzia eco do barulho que seus chinelos
Havaiana (pé dum, pé doutro) faziam em seus calcanhares.
Há anos, passava todos os dias na frente do enorme prédio
e até evitava olhar para dentro, sentindo-se insolente.
Não hoje.
Ele tinha sido convidado a entrar, sabe-se lá por
qual motivo. E foi entrando, esperando que o enxotassem
a qualquer momento. Mas, curioso como uma criança, ele
foi se encantando com tudo aquilo que estava diante dele.
Coisas que ele já tinha visto ou ouvido falar pelas novelas
da Globo. Um funcionário do hotel se achega, atencioso,
perguntando de sua bagagem.
- Eu...não tenho nada, não, moço.
- Então, deixe que eu carrego o seu chapéu!
E com todo o respeito e reverência, o rapaz se põe a
carregar o boné do catador, conduzindo-o até a porta do
elevador.

74
Márcio Brasil
- Entre! Quer que eu o leve até a sua suíte ou o
senhor gostaria de conhecer o nosso restaurante?
- Eu...não sei. Posso dar uma olhadinha no
restaurante?
Já que ele tinha oferecido, por que não? Quando
chegasse em casa, o catador poderia contar para a esposa e
seus cinco filhos a respeito desse dia. E também para os
primos. E os vizinhos. E um dia, até para os netos.
Chegaram no restaurante, onde homens e mulheres bem
vestidos e perfumados saboreavam pratos
requintadíssimos. Ao enxergá-lo, o gerente do restaurante
não fez cerimônia. Estendeu a mão para cumprimentá-lo
alegremente e, em seguida, puxou a cadeira para que
sentasse.
- O senhor nos daria o privilégio de desfrutar das
especialidades de nosso restaurante? Faço questão. E vou
mandar que lhe tragam o melhor vinho que temos. Sinta-
se plenamente à vontade! Sua estadia é por nossa conta!
E ali estava o catador, admirado com as maravilhas
desse novo universo. Os bacanas, como costumava chamar
os engravatados, eram realmente bacanas. Gente educada,
os bacanas. Tratavam-lhe bem e sequer se importavam
com seus chinelos Havaiana, sua camiseta velha e sua calça
surrada. Não julgavam pela aparência.
Depois de deliciar-se com as comidas e os vinhos, o
catador foi levado para a suíte. Entrar naquele quarto foi
como se entrasse num disco voador. Bastava apertar um
botão que o ar ficava quente ou frio. Bastava apertar um
botão para que uma tela de cinema se iluminasse. Bastava
apertar um botão que a banheira lhe massageava o corpo
75
10 Segundos

escalavrado. E o vaso sanitário, então? Era mais limpo que


os copos de massa de tomate que usava para beber cerveja.
Da janela do quarto, ele enxergava um outro universo,
uma outra cidade, que não era a mesma cidade de todos os
dias. Ele via prédios que nunca tinha visto, praças que não
pareciam estar ali, um trânsito tão perfeito. E ele, que
nunca tinha voltado o seu olhar para cima estava vendo a
vida acontecer, lá embaixo. E bem ao longe enxergava a
pontinha do bairro onde morava, lá no morro. Toca o
interfone. Era o pessoal da recepção, preocupado com o
seu bem-estar. "Se desejar alguma coisa", ofereceram.
- Quero jogar canastra!
Em dois minutos, vieram três funcionários. Um
trazia o baralho. Outros dois vieram para formar as
duplas. E durante algumas horas, o catador jogou canastra
e tomou cerveja com seus (agora) amigos do luxuoso hotel
de onde catava papelão. Pareciam velhos conhecidos. E
talvez fossem mesmo. Ele até se sentiu culpado por não
reconhecê-los da rotina diária de cruzar por ali em frente,
sequer arriscar um oi ou uma olhada de consideração.
Talvez eles lembrassem dele e, hoje, casualmente no dia do
seu aniversário o estivessem presenteando com um pouco
de gentileza.
- Acho que preciso ir. Perdi a minha rota hoje, mas
valeu a pena.
Os funcionários do hotel ficaram preocupados com
sua decisão de ir embora
- Mas por que? O senhor não gostou de nosso
hotel?

76
Márcio Brasil
- Que avaliação o senhor fez de nosso serviço?
- Alguma coisa não está de seu agrado?
Ele não entendia o porquê de tanta preocupação.
Queriam saber da sua opinião. Mas, para ele, que não
entendia muito dessas coisas de gente bacana, estava tudo
bem. Se despediu dos novos amigos. E até deu o seu boné
de presente para um dos rapazes. Na recepção apertou a
luva branca do porteiro, que desejou que ele voltasse em
breve. E lhe escancarou um sorriso colgate. O outro
funcionário vinha conduzindo a gaiota de papelão. E, feliz
da vida, o catador voltou a cumprir o seu ofício. Chegou
em casa atrasado e todos riram de sua história, de seu
delírio.
- Vocês vão ver. O pessoal é meu amigo!
E foi tanto que riram-se dele, e foi tanto que ele se
revoltou com as provocações, que fez questão de levar a
mulher e os filhos para o acompanhar no dia seguinte. Ele
nem levou a gaiota para não atrapalhar. Como o hotel
tinha muitos quartos, seus amigos achariam um cantinho
para seus parentes passarem um dia de bacanas, como ele
tinha passado. Ao chegar na recepção do hotel com a
mulher e a filharada, o homem do sorriso colgate olhou-os
como se fossem cárie.
- Peço que se retirem daqui antes que chame a
polícia!
- Mas sou eu, lembra? O pessoal aí é meu amigo!
Outro dia a gente até jogou canastra...
- Não vou pedir de novo para que saiam!

77
10 Segundos

O homem fechou a cara e não se mostrou disposto


a dar explicações. O filho mais novo do catador puxou-lhe
pela camisa.
- Vem pai. Vambora!
Alguns metros dali uma pilha de papelão. Pena não
ter trazido a gaiota, mas não podia perder todo aquele
material. E cada filho juntou algumas caixas para levar
para casa. No meio do lixo, o seu boné desbotado, com o
qual tinha presenteado um funcionário do hotel.
- Eles devem ter ficado magoados porque eu quis ir
embora...
Resignou-se. E foi embora com sua família. Um
pouco cuidava as caixas de papelão nas lixeiras. Outro
pouco olhava para o alto dos prédios...

78
Márcio Brasil
Meu amigo, meu inimigo
O seu Armando chegou em casa reinento. Antes de
abrir a porta da frente, deu uma ralhada no cachorro que
veio lhe receber todo faceiro, mas com as patas sujas,
carimbando sua calça fina.
- Já prá lá, jaguara!
Sua esposa lhe aguardava no quarto lendo um livro e
só de ouvir o jeito com que ele jogou as chaves em cima da
mesa, ela já deduziu o que tinha acontecido.
- Perdi no pôquer. Mas eu juro que aquele filho de
um carcamano do Francesco tava roubando. Eu não perco
daquele jeito, de jeito nenhum.
Mas nem era tanto com o dinheiro que Armando se
importava. Ele não suportava era a forma debochada com
que o outro se vangloriava de tê-lo tirado do jogo, após
rapelar todas as suas fichas e o seu dinheiro.
- E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!! –
Lembrava claramente da cara debochada do amigo. Ou,
melhor, do falso amigo. Aquele desgraçado.
Armando não conseguia dormir lembrando daquele
riso insuportável. Nunca tinha percebido o quanto
Francesco podia ser irritante. Mas precisava dormir. No
outro dia, levantou cedo procurando esquecer do
malfadado pôquer. Durante o café, sua esposa lia a metade
do jornal que tinha as sociais e as fofocas dos artistas,
enquanto seu Armando lia a parte da política e dos
esportes.

79
10 Segundos

- Olha aqui. Saíram as fotos do casamento da filha


do Francesco. Eles pagaram duas páginas. E em cores.
E mostrou para o marido que se enxergou numa das
fotos. Tinha saído vesgo e feio. E no jornal de sábado. Ele
já se irritou cedo nesta manhã. Antes de sair de casa, deu
uma ralhada com o cachorro que se aproximou para fazer
festa e já levou um coice do dono.
- Já prá lá, jaguara!
E, assim, seu Armando chegou ao trabalho. Ele era
dono de uma loja de roupas chiques, que ficava ao lado da
padaria de seu Francesco. Geralmente, quando cruzava em
frente à loja do amigo, costumava cumprimentá-lo com
um aceno. Às vezes, até conversavam por um instante
sobre o que tinham lido no jornal naquela manhã, durante
o café. Mas não hoje.
Seu Armando nem olhou para o lado, pois não
queria enxergar a cara deslavada daquele indecente
descendente de italianos que vieram clandestina-mente nos
navios, iguais aos ratos. Ao entrar em sua loja, pegou os
últimos instantes de um diálogo entre uma cliente com a
sua funcionária.
- Olha, eu realmente achei bonito esse vestido, mas
não vou levá-lo. Parece cheirar a fritura.
Seu Armando entrou na conversa.
- Oh, não minha senhora. Sou o dono da loja e
peço-lhe desculpas, mas é que existe uma padaria bem ao
lado e o cheiro de frituras certamente é deles, não daqui.
Mas a mulher não quis saber, agradeceu e foi
embora. Seu Armando ficou chateado com o ocorrido.

80
Márcio Brasil
Ainda mais depois de sua funcionária dizer que não era a
primeira vez que aquilo acontecia.
- Toda manhã o cheiro de fritura invade a loja e
temos esse problema. Isso quando não são as baratas. Esta
peça está cheia delas.
Seu Armando havia tomado uma decisão. Não ia
mais deixar que o carcamano estragasse seus negócios e
arruinasse com o seu humor. Assim, ele chamou seu
advogado e perguntou o que poderia fazer nesse caso. Ele
queria, a todo custo, que o carcamano viesse lhe pedir
desculpas.
- Olha, seu Armando. Lhe aconselho o seguinte:
vamos entrar logo com uma Ação de Indenização por
Perdas e Danos. Afinal, o senhor está sendo prejudicado
em seus negócios...
Enquanto esperava pela resposta de seu cliente, o
advogado dava baforadas com a fumaça de seu charuto,
instigando o cliente a não demonstrar fraqueza, pois além
de ser prejudicado financeiramente, estava sendo
humilhado pelo ex-amigo e parceiro de pôquer, que lhe
rapelou na última partida.
- E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!!
A imagem debochada do carcamano estava fresca
em sua mente. Armando autorizou o advogado a ir adiante
com o processo.
- É claro que, para isso, vou precisar que o senhor
adiante um dinheiro...
Armando foi até o cofre, pegou o talão de cheques e
passou ao advogado a quantia solicitada. Dias depois,

81
10 Segundos

Armando via entrar porta adentro em sua loja o seu algoz,


espumando de raiva, com o processo em mãos.
- O que significa isso??
- Desculpe, mas só falarei através de meu
advogado... -respondeu, displicentemente, arqueando as
sobrancelhas.
- Ah, é assim?? Então, me aguarde!!
Passaram alguns dias, Armando estava terminando
de tomar o seu café, recebeu uma ligação de sua
funcionária avisando que havia uma ordem de despejo
para ser cumprida. O locatário do ponto comercial era o
carcamano. Armando saiu rápido de casa, irritadíssimo,
esquivando-se das patas do cachorro.
- Já prá lá, jaguara!
Chegou em sua loja, pegou a ordem de despejo e
entrou espumando de raiva na padaria de Francesco.
- O que significa isso, seu carcamano? Alguma vez
eu atrasei o pagamento da peça que tu me aluga?
- Nunca atrasou o pagamento, mas também nunca
assinou contrato. Era no fio do bigode. E estou
precisando aumentar o espaço aqui da padaria. Afinal, não
quero que o cheiro dos pastéis prejudique ninguém...
- É assim?
- Por favor, agora estou ocupado. Qualquer coisa,
fale com meu advogado...- respondeu Francesco, que até
aceitaria um pedido de desculpas, mas tinha sido
aconselhado por seu advogado a não afrouxar.
Armando chegou na loja, pegou o telefone e
chamou o advogado imediatamente. Em seguida, pediu

82
Márcio Brasil
para a sua mulher trazer de casa o jornal em que sua foto
tinha sido publicada no casamento da filha de Francesco.
- Quero que o processe pelo uso de minha imagem
sem autorização. Saí ridicularizado. Minha honra foi
maculada. E isso aqui foi página paga.
E, assim, mais um processo e mais um cheque na
mão do advogado de Armando. Francesco, por sua vez,
colheu depoimentos com seus colegas de pôquer e reuniu
provas de que Armando lhe chamava de "carcamano"
pelas costas e emitia várias outras declarações
discriminatórias à sua pessoa. E, assim, chamou seu
advogado e entrou com um processo de Dano Moral
contra o seu vizinho e ex-amigo.
Armando não sabia mais o que fazer, pois estava
perdendo dinheiro com os processos, mas precisava
restaurar a honra da família. Após meses de brigas e
discussões e mau-humor, sua esposa anunciou que queria
se separar.
- Tu anda obsessivo, ausente e não te amo mais.
Meu advogado vai te procurar para acertar sobre a pensão
e a minha parte na casa...
E, assim, era mais um processo e mais trabalho para
o advogado de Armando. Nesse meio tempo, como a loja
estava fechada à espera de outro local, ele também foi
processado na Justiça do Trabalho por sua funcionária
que exigia o pagamento de horas extras.
Por sua vez, Francesco que tinha ampliado a sua
padaria também estava enfrentando problemas. Estava
sendo processado por vários clientes que alegavam que o
local estava infestado de baratas. E, assim, foi obrigado a
83
10 Segundos

pagar as indenizações e uma multa da Vigilância Sanitária.


Para piorar a situação, ele andou perdendo muito dinheiro
no pôquer e estava sendo processado por calote. E, assim,
um e outro estavam prejudicados financeiramente.
Em contrapartida, seus advogados tinham ganhado
muito dinheiro à custa de suas desavenças.
Passados alguns meses, Armando não era mais dono
de uma boutique. Ele tinha agora um brechó de roupas
usadas, onde ele próprio atendia. Já Francesco
administrava um trailer de cachorro-quente. Certo dia,
ambos estavam no supermercado. Armando comprava
ração para o cachorro, (que fazia festa e lhe sujava as
calças quando o via chegando em casa) e Francesco
comprava pães e salsichas para seu trailer. Era um
encontro inusitado e embaraçoso que deixava um ar de
não-sei-se-cumprimento-não-sei-se ignoro.
Até que Francesco fez qualquer comentário.
- O preço do pão tá uma vergonha...
- E a ração de cachorro, então?
Silêncio. Cada um estica o pescoço para o carrinho
um do outro.
- E como vai a vida?
- Bem, bem, bem...
- Olha, eu tenho que te pedir desculpas...
- Que é isso? Eu é que peço teu perdão...
E ambos apertam as mãos e retomam a amizade ali
mesmo, entre as prateleiras do mercado. E o pedido de
desculpas de um e outro, que parecia tão difícil há meses

84
Márcio Brasil
atrás, saiu espontâneo e sincero nesse momento, agora que
estavam pobres.
- Tá convidado para ir jantar lá em casa,
Armando....
- Só se eu puder levar meu jaguara, Francesco...

85
10 Segundos

10 segundos
Em silêncio, ele olhava para a sua bela esposa
deitada e quase dormindo ao seu lado na cama. Há 30
minutos, os dois estavam com seus corpos colados e
cobertos de suor. Ele deslizou a mão por suas costas
macias e nuas, causando leves arrepios nela, que costumava
gostar dessa sensação.
Há 32 minutos eles gozaram juntos, depois de
muito sexo. Em silêncio, ela sentia os dedos do esposo
deslizarem por seu corpo, num carinho frio.
Há 50 minutos ele tirava a roupa dela e chupava os
seus seios com voracidade. Naquele instante, nenhum dos
dois queria falar mais nada e ficavam ouvindo o próprio
silêncio e adivinhando cada suspiro um do outro como se
fosse o prenúncio para algo que seria dito. Nenhum dos
dois quis dizer mais nada.
Ele levantou-se da cama e caminhou até a cozinha,
evitando de pisar em cacos de vidro. Há duas horas, os
dois tiveram uma terrível discussão, mais uma. Ele abriu a
geladeira e pegou uma garrafa de água mineral e a bebeu
num gole só, matando a sede e tirando o gosto do sexo
dela que ainda sentia em sua boca. Há duas horas e quinze
minutos ela arremessou uma travessa com lasanha no chão.
Depois de beber, ele foi até a torneira e encheu
novamente a garrafa, colocando-a de volta na geladeira.
Sabia que ela implicava quando ele as deixava pela metade
ou quando o flagrava bebendo no bico. Há três horas, ele
pediu o divórcio mais uma vez. No quarto, ela tentava

86
Márcio Brasil
dormir buscando esquecer as palavras duras que ele mais
uma vez proferiu, com sua fúria.
Há cinco horas ela cozinhava para ele, esperando-o.
Com os olhos fechados, ela ouviu o barulho na cozinha.
Por algum milagre, ele devia estar enchendo a garrafa de
água. Há sete horas ela ligou para sua melhor amiga para
chorar as mágoas, acreditando que ele estava se
encontrando com a amante.
No banheiro, ele fechou o zíper de sua calça e
puxou a descarga. Olhou-se no espelho, desgostoso com
sua própria imagem. Há seis horas, ele prometeu para
alguém que iria se separar. Ele caminha até o quarto onde
repousa o seu filho e lhe beija a face. Há dois anos, ele o
levava para o colégio pela primeira vez. Ela ouviu o
barulho na porta do quarto do menino, o pai dele havia
entrado lá. Há oito anos eles foram juntos no
ginecologista.
No quarto, o menino dormia com seu MP3 nos
ouvidos. Ele não queria ouvir a briga dos pais. Há oito
anos, ele fazia fotos enquanto ela o amentava no peito. Ele
fechou a porta do quarto e atravessou a casa sem fazer
barulho. Pegou sua chave, abriu a porta dos fundos e
caminhou em direção a garagem.
Há 10 anos ele conheceu sua esposa. Ela era linda e
compreensiva. No quarto, ela ouviu o barulho da chave na
porta dos fundos. Será que ele estava saindo furtivamente
para encontrar aquela vadia de novo?
Há nove anos, os dois ficaram noivos. Ela se vestiu
rapidamente para seguí-lo, pois não aguentava que isso

87
10 Segundos

continuasse acontecendo, não era isso o que queria para a


sua vida.
Na garagem, ele pensou várias coisas ao mesmo
tempo, parecia que sua vida tinha se passado diante de
seus olhos, todas as horas de sua existência com a
velocidade de um piscar.
Há oito anos, ele jurou que iria ficar com ela até que
a morte os separasse e beijou seus lábios coloridos de
batom.
Vestida, ela atravessou a casa, correu até a porta dos
fundos e saiu para fora. Ela ouviu um som retumbante na
garagem, alguma coisa tinha acontecido. Ela abriu a porta
e o enxergou com a cabeça mergulhada numa poça de
sangue e uma arma na mão.
Há 10 segundos ele se matou...

88
Márcio Brasil
Pobres e ricos
Era inverno. O termômetro marcava zero grau, mas
ele dormia confortável em seu quarto climatizado e
envolto em edredons. Dirigiu-se ao chuveiro, onde uma
ducha quente lhe deu bom dia.
Era inverno. O frio castigava o seu corpo já tão
escalavrado. Outro dia, um sem-teto, como ele, havia
morrido por hipotermia. Dormia no fundo de uma
construção, envolto em trapos velhos e fedidos.
Usou o shampoo que havia encomendado. Custou
R$ 50, mas valia a pena. Deixava os seus cabelos mais
sedosos.
Arriscou lavar-se um pouco na pia do banheiro da
praça. Ele já não aguentava o seu próprio cheiro.
Seu café da manhã: fazia questão de uma mesa farta,
afinal, o seu dia era longo. Pão, queijo, presunto, leite,
patê, bolo e, às vezes, ovos mexidos. Jogou fora um saco
de bolachas. A ignorante da empregada comprara o sabor
que ele detestava.
Seu café da manhã: um saco de bolachas que
encontrara numa cesta de lixo ornamentada. O saco estava
pela metade, mas ele comeu apenas três bolachas, afinal, o
dia era longo e, sabia, a fome voltaria.
No caminho para o trabalho, parou para
cumprimentar e conversar com amigos. Era uma pessoa
popular, agradável, sabia contar piadas, dava boas gorjetas,
era fino, elegante e agradável. Todos gostavam de sua
presença.

89
10 Segundos

Perambulou durante horas pelas ruas. Enxotou um


cachorro que revirava uma cesta de lixo, mas dividiu com
o cusco magro a pouca comida que encontrou numa
marmitex amassada. Grato, o cachorro balançou o rabo.
Naquele dia (e em outros dias), ninguém dirigiu o olhar
para ele, que não existia. A não ser como um obstáculo a
ser desviado.
No fim da noite, ambos dormiram. Cada um
sonhou com uma vida que não era a sua. Ao acordarem,
no dia seguinte, a dúvida: ele era um homem pobre que
sonhava ser rico, ou era um homem rico que sonhava que
era pobre? Ou seria um homem rico por fora e pobre por
dentro ou pobre por dentro e rico por fora? Ou...

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Márcio Brasil
Natureza humana
E até aquele dia, eles viveram felizes. Um homem
e uma mulher, numa ilha deserta, em algum lugar do
oceano pacífico. Viviam em meio a adversidade da vida
urbana. Um dia se encontraram, se apaixonaram e
resolveram deixar tudo para trás e viver o seu grande amor.
Se casaram e foram morar naquela ilha.
Com as próprias mãos construiram uma cabana
para se abrigar das intempéries. Lá, em meio a uma terra
inóspita tinham tudo o que precisavam para viver, longe
de tudo e mais próximos emocionalmente do que nunca.
Lá, só tinham um ao outro. Quando ele estava doente, ela
o cuidava e vice versa. À noite, conversavam durante horas
em volta do fogo, olhando para para um céu
maravilhosamente cheio de estrelas, algo impossível de ser
visto em uma área urbana.
Plantavam, colhiam e viviam uma vida simples.
Tinham planos de serem felizes para sempre. E foram. Até
aquele dia...
Numa tarde qualquer, viram surgir um homem
das águas. Descobriram que ele era sobrevivente de um
naufrágio. Trataram de suas feridas e o ajudaram.
Quando se curou, passou a ajudar na pequena
lavoura, se integrando aquela micro-comunidade. Agora, o
casal tinha um amigo com quem contar. E, assim, seguiam
felizes. Agora, a mulher tinha sido dispensada de algumas
atividades, como a pesca. Durante horas, os homens

91
10 Segundos

sumiam, voltavam rindo e com muitos peixes. Se tornaram


grandes amigos.
Mas algo havia mudado. Ela já não recebia mais a
mesma atenção. E olhar as estrelas não tinha o mesmo
encanto. O marido dava mais atenção ao novo amigo do
que a esposa e isso causava tristeza para a mulher.
Ao mesmo tempo, o intruso, como ela se referia
intimamente, não só lhe dava atenção, como a cortejava. E
o que é pior, ela começava a gostar. "Algo vai acontecer",
em seu íntimo, ela previa o pior. À noite, tinha sonhos e
imaginava-se nos braços dele, o intruso.
Acordava sentindo-se culpada, pensando no
marido. Numa noite, seu esposo não estava ao seu lado.
Claro, só podia estar tagarelando com o intruso. E
procurou-os. Não muito distante, encontrou-os.
Os dois, beijando-se. À luz das estrelas.

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Márcio Brasil

Sobre Vida e Morte

- Espere. Façamos um acordo. Hoje, nesse instante,


te peço que não cumpras a tua função. Não a leve e deixe
que eu sopre novamente a sua face para que não se
desampare a este pequeno que recém cruzou o véu.
Morte encara Vida.
- E?.
Vida chega próximo da irmã.
- E te darei aquele beijo...que eu mesma sinto
desejo.

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10 Segundos

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Márcio Brasil
Chimarrão com o pai
O pai ainda morava no velho rancho. Foi lá que ele
construiu a sua vida e criou o único filho. Hoje, o velho
morava só. A companheira de tantos anos tinha passado
para o outro lado. Ele acreditava que ela o estaria
esperando quando chegasse a sua vez de partir. Ele
mateava ao final de uma tarde, quando seu cachorro, o
Magrão, começou a latir. Viu o seu filho chegando,
abrindo a portão e indo até ele, pronto para abraçá-lo.
- Olá, meu pai. Vim tomar um chimarrão contigo...
O velho se emocionou em ver o filho e o abraçou.
Fazia anos que o guri tinha casado e ido embora. O velho
encheu a cuia e alcançou para o filho. Ele parecia
diferente, com um olhar mais maduro.
- Pai, quero te dizer que tudo o que aprendi contigo
foi valioso. Que devo ao senhor tudo o que sou...
O velho balançou a cabeça.
- Deixa disso, guri. Tu é muito mais sabido que eu,
um ignorante. Fez tua vida e ganhou o mundo...
O filho sorriu.
- É, eu tinha essa idéia tola de querer ganhar o
mundo, de querer vencer, acumular riquezas, de ter uma
vida melhor. Eu achei que sabia muita coisa, que iria
mudar muita coisa, que iria ganhar muitas coisas. Mas, pai,
te digo: não há riqueza maior do que o amor que o senhor
e a mãe me deram. Não há, para mim, outro lar nesse
mundo, senão aqui, onde nasci. O engraçado é que eu tive
que sair daqui e percorrer o mundo para descobrir que

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10 Segundos

tudo o que eu mais precisava para ser feliz sempre esteve


aqui, exatamente do lugar que eu deixei para trás.
O telefone toca dentro da casa. O velho se levanta.
- Filho, vai enchendo o mate que já volto...
Abruptamente, o rapaz segura a sua mão. O
cachorro olha a cena atento.
- Antes do senhor ir, quero que saiba que eu te amo,
pai. E que ela mandou dizer que continua o amando para
sempre, como prometeu...
O guri estava esquisito, mesmo. O velho foi atender
ao telefone. Era a sua nora, chorando, gritando, arfando,
descontrolada.

- ENCONTRARAM O CORPO DELE ESMAGADO NAS


FERRAGENS. MORREU HÁ UMA HORA ATRÁS...

O velho derrubou o telefone e correu para a


varanda. A cuia do mate estava cheia, à sua espera. E o
cachorro latia sem parar na direção do portão...

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Márcio Brasil
Instinto de mãe
Parecia que toda a vizinhança tinha vindo assistir
aquele trágico espetáculo. O fogo consumia a residência de
madeira enquanto os bombeiros tentavam extinguir as
chamas. Na calçada, vários objetos foram salvos. Mas essa
não é a história de uma família que teve a casa incendiada
e, sim, de um pedido de ajuda que não foi ouvido, nem
pelas pessoas que socorriam objetos, nem pelos curiosos
hipnotizados pelas chamas.
Luka tinha cansado de correr e latir para os
humanos e arriscou-se pelos corredores em chamas na
busca por suas crias. Eles estavam abrigados embaixo da
pia, assustados. Lambeu-os, balançou o rabo e empurrou-
os para fora com o focinho, na intenção de que eles a
seguissem.
Mas os pequenos se recusavam e se aninhavam
junto do corpo da mãe. Luka uivou mais uma vez, na
esperança de ser ouvida. Mas, quem iria se importar com
eles?
Detrás de um armário surge uma figura negra que a
cachorra conhecia bem, era a gata Safira (que muitas vezes
perseguiu pelo pátio).
Safira ousa se aproximar de Luka e seus filhotes,
mas sem tirar os olhos da rival. E, assim, abriu a boca e
agarrou pelo pescoço um dos filhotes, arrastando-o para
fora da casa.
Em seguida, voltou a vencer as chamas e a fumaça
para buscar o outro filhote. A essa altura Luka respirava

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10 Segundos

com dificuldade, asfixiada, incapaz de se levantar. O olhar


das duas cruzou uma vez mais. "Cuide deles por mim",
Luka parecia dizer, se entregando ao cansaço.
Uma viga despenca e por pouco não atinge a gata,
separando-a de Luka. Safira corre para fora, com o
cachorrinho na boca. Um dos bombeiros vê a cena e se
compadece do esforço da gatinha. Logo, imagina que
podem haver mais filhotes a serem resgatados.
Ele enfrenta o fogo e encontra Luka, resignada com
seu destino. Ele a toma nos braços e a leva para fora. O
homem do fogo coloca a cachorra ao lado dos filhotes,
que se aninham junto da mãe. E o bombeiro logo sai para
tratar dos humanos.
Safira vai se achegando de Luka, que respira o ar
puro e mantém o olhar (de gratidão?) fixo na gata. E
Safira lambe as suas feridas...

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Márcio Brasil
Vida & Morte
Eram irmãs e tinham funções semelhantes e a
mesma importância para o equilíbrio do universo. De vez
em quando, até cruzavam caminhos, mas nunca cruzavam
olhares. Cada qual fazia o seu trabalho, silenciosamente,
sem se importar com a outra. Ouviam lamentações a
respeito de uma e de outra, e admiravam-se mutuamente,
sem nunca terem trocado uma única palavra. Certo dia,
porém, um golpe do destino, fez com que algo mudasse.
Uma humana estava com dificuldades no parto e havia
risco tanto para ela, quanto para a criança em seu ventre.
Seu esposo, ébrio, aguardava desesperado no saguão
do Hospital. Ajoelhado no chão ele rezava pelas vidas de
sua amada e de seu herdeiro. Eis que uma bela mulher de
vestes alvas, aproxima-se, compadecida de sua dor e toca-
lhe a face.
- Acalma-te, criança. Conheço-te deste o teu
primeiro choro. Sois incapaz de compreender o tênue véu
da existência. Não te desesperes- ela o consola.
Ele rechaça, gritando.
- Não sabe do que está falando. É a minha mulher e
o meu filho que podem morrer!
- Nada acontecerá com teu rebento. Eu sou Vida e
acompanho o teu filho...
Num piscar de olhos, a mulher desaparece de sua
visão, como se nunca tivesse estado ali. Alucinação?Na sala
de parto, ela contempla o desespero de uma mãe, com
lágrimas, suor e sangue no rosto, dando suas últimas

99
10 Segundos

forças para que o filho nascesse. Ao seu lado, uma jovem


de trajes escuros e olhos negros. Alguém que ela conhecia
muito bem: sua irmã, Morte. Foi a primeira vez que elas
cruzaram seus olhares infinitos. Foi nesse instante que as
duas se apaixonaram...
Os médicos faziam de tudo para salvar a vida da
mãe e de seu filho durante o parto, desconhe-cendo serem
anfitriões das Irmãs Eternas, invisíveis aos seus olhos. Os
aparelhos indicavam que aos poucos a mãe ia se
despedindo da vida. A Morte, ao seu lado, encarava Vida
à sua frente. Uma, indicava a luz para a criança que nascia.
A outra, aguardava a mãe para acompanhar-lhe até a porta
de saída.
- Raramente nos cruzamos, não é mesmo?, disse
Morte.
Vida sorri. O menino está nascendo.
- Nascido do sangue ele vem ao mundo. Seu pai o
aguarda, acreditando amá-lo desde já. No entanto,
desconhece seu destino, tampouco sabe de onde veio este
Ser. Só o amor de uma mãe é algo infinito. Ela se esvai
para que a criança alcance minhas mãos. Te peço que não
a tomes ainda- diz Vida.
- Teus olhos são lindos. E tristes- diz Morte.
- Atendo teu pedido em troca de um beijo-oferece
Morte. Mesmo ansiando por isso, Vida repreende.
- Como podes negociar um capricho em troca de
algo que não te pertence?.
Morte chega bem junto de Vida e a encara de perto.

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Márcio Brasil
- Acaso os deuses não podem manifestar seus
caprichos? Só quero sentir teus lábios e a mulher poderá
dar a luz- barganha.
Vida a encara.
- No momento em que a vi, tomei-me de um
sentimento comum aos humanos. Poderia acariciar o teu
rosto e entregar-me aos teus braços. Amo-te. Mas nego-te.
Pois meu amor pelos pequenos é maior.
Morte meneia a cabeça.
- Eis a tua criança.
O médico retira a criança, que recebe o sopro de
Vida e chora. A mãe sorri e derrama a sua última lágrima.
Morte lhe toca a fronte e lhe suga o sopro, que Vida
concedera para aquela fêmea há um par de décadas atrás.
- Alguém nasce, alguém morre. Triste sina- ela
ironiza.
- Notaste como somos parecidas? Tu as retira de
um lugar e as conduz até aqui. Eu as retiro daqui e as levo
para outro plano. A diferença é que eles te celebram. A
mim, eles temem. Terrível simetria- diz Morte enquanto
ampara a jovem mãe, que não compreende o diálogo que
testemunha, e chora ao tentar abraçar o filho com seus
braços intangíveis, que não conseguem tocar o pequeno
corpo que repousa nos braços do médico.
- Ela morreu- diz uma enfermeira, observando os
sinais vitais.
- Fazer o quê?- dá de ombros Morte.
- Espere. Façamos um acordo. Hoje, nesse instante,
te peço que não cumpras a tua função. Não a leve e deixe

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10 Segundos

que eu sopre novamente a sua face para que não se


desampare a este pequeno que recém cruzou o véu.
Morte encara Vida.
- E?.
Vida chega próximo da irmã.
- E te darei aquele beijo...que eu mesma sinto
desejo.
Morte acaricia os cabelos de Vida.
- Veja só. Caprichos de uma deusa. Mas tu bem
sabe que preciso levar alguém que esteja contigo.
Vida consente.
- Mas não a estes, eu te peço.
Morte concorda.
- Dê-me teus lábios.
E as duas se beijam. Enquanto isso, os médicos
comemoram a retomada dos sinais vitais da jovem mãe.
- Ambas somos infinitamente belas juntas, diz
Morte para Vida antes de se despedir. No corredor,
alguém vai até o pai dar a notícia de que mãe e filho estava
bem. Mas um ataque cardíaco fulminante o encontrara
antes...

102
Márcio Brasil
De um suicida
Ele acompanhava notícias sobre suicídios, mas não
se prendia a aspectos emocionais. O que questionava era
por que tal ou qual método havia sido escolhido em vez
deste ou daquele. Para ele, esse papo de que a existência é
sagrada era furado. Desacreditava de qualquer existência
não-material.
- Deus? Tolice, ilusão, alucinação coletiva. A pessoa
morre e se apaga. Vira pó. Se acaba- dizia. Mas ele não era
tão frio quanto aparentava.
Certa feita, se apaixonou. Se não fosse ateu, diria
que os olhos da amada eram divinos. Se acreditasse em
anjos, afirmaria que ela era um. Se acreditasse em Deus,
diria que ela era sua alma-gêmea. À ela dedicou a vida.
E, quando a perdeu, à ela dedicou sua morte. Não
suportava a dor física no peito por perdê-la. A vida
tornou-se um fardo e não importava o amor da família ou
dos amigos. Não existiam mais sonhos ou primavera.
Morreria por aquele amor. Iria apagar a sua existência.
Viraria pó. Se acabaria. Assim, matou-se.
A dura realidade: tão logo a força vital abandonou
seu corpo, foi arrastado para outro plano. Descobriu que,
sim, existia vida pós-morte. E tão verdadeira quanto
aquela que tinha abandonado.
Abriu os olhos e viu-se fincado junto a um solo
mortificado e podre, cheio de cadávares lamentosos. Ele,
na forma de uma árvore humanóide, inerte. Fazendo-lhe

103
10 Segundos

companhia, hárpias terríveis que arrancavam pedaços de


sua carne para se alimentar.
Olhou para os seus braços, transformados em
galhos e viu pendurado, balançando como roupa no vento,
o seu corpo vazio. Sentia dores inimagináveis, com sua
carne sendo rasgada, constantemente.
Por vezes, frio intenso. Por vezes, calor
insuportável. Gritou, chorou e compreendeu que aquela
era a sua pena eterna por ter negado a própria vida, por ter
sido estúpido, egoísta e cometido suicídio.

104
Márcio Brasil
Último beijo
Perdido no emaranhado de sua mente, ele
perambula pelas ruas centrais da cidade. Tinha mil e um
compromissos a cumprir: dívidas para pagar, dinheiro para
receber, a escola dos filhos, prazo de trabalhos estourando.
Mas, para ele, nada disso importava. Só o que
importava era aquelas malditas folhas de ofício que faziam
sua maleta pesar uma tonelada: os papéis do divórcio.
- Você é ausente demais. Só pensa no seu trabalho.
Deixou de me amar? Não sente mais desejo por mim?
Tem outra?
Ele ouviu isso e muito mais mil vezes.
Invariavelmente essas frases se faziam acompanhar de
algum objeto sendo arremessado em sua direção e se
espatifando na parede ou no chão.
Cada vez que isso acontecia, ele suspirava, dava de
ombros e ia ler a seção de cultura do jornal. Sua vontade
era de sair correndo pela rua gritando até lhe acabar o
fôlego ou até estourarem as suas cordas vocais. Não podia
fazer isso. Precisava da energia para trabalhar e para
continuar respirando e existindo.
Um dia, após retornar de uma viagem de trabalho (e
ele fazia essas viagens pois precisava das diárias para
equilibrar o orçamento familiar), encontrou o inevitável
recado de adeus, com instruções de como separar os seus e
os meus, será melhor assim, você não verá mais as crianças
enquanto não nos acertamos na frente do juíz, sem
recentimentos, mas o amor acabou e não quero te odiar.

105
10 Segundos

"Por favor, assine os papéis do divórcio e mande para o


meu advogado", era o post scriptum.
Ele assinou e colocou o papel dentro da pasta.
Ficou a noite em claro, olhando para uma foto que
remetia a um tempo feliz. Amanheceu e já era hora de ir
para o trabalho.
Ele perambulava pelas ruas centrais da cidade,
perdido no emaranhado de sua mente. Foi quando cruzou
o seu olhar com o de uma moça linda, cabelos escuros e
pele alva, alta, olhos de um negro intenso, tão intenso
quanto o das roupas que vestia. Ela parou diante dele.
- Fernando...
Ele já tinha ouvido dizerem o seu nome milhões de
vezes, mas não proferido por uma voz tão intensa, doce,
melancólica, suave, forte. Ouvir seu nome, era como ouvir
uma canção.
- Eu sou a Inevitável. Nos encontramos novamente
e, como da outra vez, você não conseguiu sublimar a raiva
contida em seu coração. Seu destino seguiu o mesmo curso
de outrora...
- Não estou com raiva, estou com vontade de
chorar.
- Você tem raiva, sim. Está com o coração prestes a
explodir. E eu vim para aliviar a tua dor.
- Por favor, eu preciso de alívio.
- Então, me beije.
Ele fitou os olhos de um negro intenso daquela
linda mulher de pele alva e vestes escuras, em seguida
observou aqueles lábios carnudos que ele desejava beijar.

106
Márcio Brasil
E beijou.
Foi o seu último beijo, antes de seu coração bater
pela última vez e seu corpo tombar inerte na calçada...

107
10 Segundos

O caminho
Ele tentava parar. Sabia que as pessoas o julgavam e
condenavam, atribuindo a ele inúmeros defeitos. Alguns,
ele reconhecia, outros, vinham de graça, dizia. Mas, se
questionava. "Será que sou assim?". A resposta, ele não
sabia. Como também não sabia dizer os motivos pelos
quais entrou por esse caminho. "Experimenta aí", foi o
que um amigo lhe disse.
E ele experimentou durante anos.
E, adivinhe, acabou gostando. Achava que tinha mil
motivos para isso. Era sua forma de se rebelar, de ir contra
o sistema. Mas, preferia não apontar suas razões.
Tinha medo de que seus argumentos fossem
considerados ridículos ou mesquinhos. Mas ele tentava
parar. Já tinha perdido amigos. Já tinha perdido
oportunidades. E, sabia, estava perdendo a dignidade.
"Você faz seu próprio inferno", ele pensava nisso.
E tentava parar. Queria, sim, ser alguém na vida.
Queria, sim, ter importância para alguém. Queria, sim,
mostrar que também chorava. Que também sentia. Que
também era humano.
A verdade é que o mal o havia alcançado e ele não
sabia como fugir disso. Para dentro do poço, nenhuma
mão se estendia em sua direção. Em suas remotas
lembranças de infância, pensa no avô, que o tomava no
colo e dizia: "será um grande homem". E ele tinha
vergonha de ter traído o exemplo e a memória do avô.
Não era um grande homem. Era um grande viciado. Mas

108
Márcio Brasil
ele tentava parar. Apesar de viver nas trevas, ele buscava
alguma luz, mas só achava apoio entre os seus iguais, entre
aqueles com quem dividia ilusões.
"Experimenta aí". E ele experimentava. Num
momento de êxtase (ecstasy?), viu-se caminhando em
direção a uma luz muito intensa. Emocionado, ele abriu os
braços e chorou: tinha encontrado o seu caminho.
De dentro do trem, o maquinista avistou aquele
jovem, com os braços abertos, percorrendo os trilhos
rumo a locomotiva. E ele tentava parar...

109
10 Segundos

110
Márcio Brasil

Surreais

Nem bem deu tempo de se desesperar e, trash, viu o


seu braço esquerdo ser arrancado do corpo
misteriosamente. O sangue jorrava e ele gritava.
Em seguida, seu braço direito foi decepado. O
mesmo veio a acontecer com a perna direita, arrancada por
alguma força invisível.

111
10 Segundos

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Márcio Brasil
Canção de Ninar I
Era uma grande casa de madeira, de dois andares,
com enormes janelas. Através delas via-se a silhueta das
árvores lá fora à luz da lua cheia. Quando o vento soprava,
os galhos balançavam dando um aspecto ainda mais
fantasmagórico para as árvores, que pareciam sombras
tenebrosas a rondar aquele casarão. Vez por outra, uma
coruja assentava-se sob os grossos troncos e emitia aqueles
seus cantos pavorosos.
Ur-uhhhhhhhh. Ur-uhhhhhhhhhhhhhhh!
Era quase meia-noite. Por essa hora, a lua já estava
alta fazendo com que a claridade dela alcançasse o berço
daquela menina, de cinco anos. Ela estava sozinha em casa.
Até essa hora da noite, nem sinal de seus pais. E ela não
conseguia dormir de jeito nenhum.
Mesmo porque, ela havia dormido quase que a
tarde inteira, enquanto seus pais ainda estavam em casa.
No entanto, por volta das 20h, ela acordou. E ninguém
mais estava em casa. A não ser a criança. Sozinha.
E o que é pior: no escuro.
Durante horas ela ensaiou levantar para acender o
interruptor e, pelo menos, sentir-se um pouco mais segura.
Mas ela tinha medo. E se, ao levantar, surgisse uma mão
debaixo da cama que lhe pegasse pelo pé e a arrastasse para
algum lugar pavoroso? Ou ainda, que a pouco centímetros
de tocar no interruptor algo puxasse a sua mão e, dando
gritos horrendos, lhe engolisse numa só bocada ou um
pedaço por vez? Ou ainda, que nada disso acontecesse,

113
10 Segundos

mas que ao clicar no interruptor de luz descobrisse que


nenhuma lâmpada se acenderia. Que a luz tivesse faltado.
Ou pior: tivesse sido desligada. Nesse caso, por quem?
Com que intuito?
Ela não sabia. Era uma criança de cinco anos,
sozinha em casa. Numa casa que, aliás, tinha um daqueles
relógios-gongo. À meia-noite ouviu o penoso som das
badaladas.
Blein. Blein. Blein. Blein. Blein. Blein.
Bleeeeeeeeeeeeinnnnnnnnnnnnn.
A partir daí, tudo piorou. As silhuetas das árvores
tornavam-se mais assustadoras. Os galhos batiam nas
janelas e arranhavam o vidro. A pouca claridade que
refletia da lua, tornava-se ofuscada pela sombra de
algumas nuvens. A coruja cantava pavorosamente (e dava a
impressão de que era cada vez mais perto).
E ainda parecia ouvir ruídos por toda a casa de
madeira. E ela se estalava toda. Se já fosse crescida, a
menina pensaria que tais estalos eram normais, já que a
madeira recebia a luz solar durante o dia e à noite voltava
a se contrair. Daí, os estalos. Mas como uma criança de
cinco anos iria pensar nisso?
É óbvio que, para ela, aqueles barulhos se tratavam
de pisadas pelo assoalho e cada vez mais perto do quarto.
Será que a porta estava trancada? O negócio era continuar
rezando para o anjo da guarda, enquanto se enfiava para
debaixo das cobertas, prendendo cada uma das pontas do
cobertor com o corpo. Ali, ela estava protegida.

114
Márcio Brasil
Poucos segundos depois, agora ela tinha certeza,
ouvia passos. Era claríssimo. Eram passos pelo corredor.
De repente, a porta do seu quarto se abriu, fazendo um
barulho de gelar a espinha.
NNNNnheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeec -
E escancarou-se. E vieram os passos. Era passos que
se arrastavam. Eram passos que se arrastavam e ao mesmo
tempo arranhavam. A criança parou de respirar para ouvir
melhor. Mas o que ouviu em seguida foi uma canção:
- NaaAAAnnNa, nenééÉÉém. QueeEEe a
CuuUUuuUuca vem PegAr. PapAi fOi prá rOOOoooÇa.
MaaAAAmãeeEEEe já vai chegaAAAaaaRRrrrRRRrr......
A criança, enfim, respirou aliviada. Era verdade.
Agora lembrava. Realmente, o papai tinha saído cedo para
ir para a roça. Só voltaria no dia seguinte. E a mamãe,
bem, ela já estava para chegar. Coisa boa. Mas..., péra lá.
Se o papai foi pra roça e a mamãe não estava....
... então, quem é que tinha cantado aquela música?
- AHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!

115
10 Segundos

Canção de Ninar II
O bebê detestava a maioria dos adultos. Se tivesse
uma boa mira e pleno domínio de sua coordenação
motora (ele estava trabalhando nisso) acertaria a
mamadeira ou uma fralda cheia na testa daqueles bobos
que vinham lhe atormentar em volta do berço.
- Ai, nenê. Bilú, bilú, bilúúúúúúúú. Blu, blu, blu!
(Que linguagem era essa? Coisa de retardado)
- Ui, que guzu, guzu, guzuzu. Que coisa mais
guzuzinha!
(Ei, meu. Tinha que filmar essas caras epiléticas e
pôr no YouTube)
- Cadê o nenê?? Cadê o nenê??? Cadê o nenêêêêÊ???
(Valia a pena responder?)
Putz, que gente idiota. O pior é que o bebê sabia
que seu destino era se tornar um deles. Olha só onde ele
foi se enfiar. Já tinha certeza que nenhum daqueles tontos
seria capaz de sanar as suas dúvidas. Qual era o sentido da
vida? O que aconteceu à Atlântida? Quem construiu as
pirâmides? Existe vida lá fora?
Bem, a essa altura já sabia que teria de descobrir
sozinho. A não ser que perguntasse coisas mais simples,
como a razão do Tata (assim ele se apresentava) ter
aqueles pêlos bobos debaixo do nariz. Ou porque o
colinho da Mã era tão gostoso. Sem falar naquele líquido
saboroso que ela lhe oferecia tão aconchegadamente. Mas,
tava aí outra dúvida. Por que é que o Tata não tinha tetos?
Vai saber...

116
Márcio Brasil
O problema é que toda a vez que o bebê tirava um
tempo para refletir, nos intervalos entre uma soneca e
outra, vinha algum daqueles retardados lhe importunar.
- Ai, o nenê, o nenêêê. O nenezinhoooo. Que
cooOOoisa mais tchutchuquinha-zinhazinhaa.
(Dai-me paciência)
Não tinha jeito. O negócio era usar daquela arma
que ele tanto sabia manejar com eficiência: o choro. Ele já
sabia que bastava abrir o berreiro para espantar os chatos.
Claro, alguns ainda tentavam remediar a situação.
- Pronto, pronto, pronto!
Mas ele só se acalmava na presença do Tata ou da
Mã. Isso era inegociável. Fora, claro, alguma daquelas
titias bonitas e de sorriso acalentador. Um dia o Tata
cantou uma história que deixou o bebê intrigado.
- Boi, boi, boi. Boi da cara preta. Pega essa criança
que tem medo de careta.
Taí uma coisa que ele nunca tinha ouvido falar.
Que boi era esse? Aliás, o que era um boi? E quem disse
que o bebê tinha medo de careta. Ele simplesmente as
desprezava.
Certo dia, o bebê foi com o Tata e a Mã para a
fazenda dos vovôs, que eram como outros Tatas e Mãs. Só
que de cabelos brancos e carinhas engraçadas. Não tinham
dentes, igual a ele.
Só sei que eles jogavam cartas, despreocupados do
pequeno, que dormia em seu bercinho, colocado à sombra
de uma árvore. O bebê acordou sentindo alguma presença
em volta do berço. Só podia ser um daqueles chatos.
Mas,quando abriu os olhos enxergou ele:
117
10 Segundos

O boi da cara preta.


Ele o encarava com seus grandes olhos e enormes
chifres. Ele lhe encarava, mas não emitia nenhuma
daquelas frases de retardado. Só fazia alguns barulhos
ameçadores com o nariz, enquanto raspava a pata no chão.
O bebê teve vontade de abrir o berreiro, mas ficou
receoso.
Foi a essa altura que os adultos se deram conta: a
porteira da mangueira estava escancarada e o boi de cara
preta estava ao lado do pequeno.
O bebê só lembra que ouviu o grito apavorado da
Mã...
... E o berro do boi.

118
Márcio Brasil
O deus das formigas
Um fato totalmente irrelevante na vida daquele
grande homem. Tão irrelevante que ele sequer lembra.
No entanto, numa tarde da infância, aos nove de
idade, ele brincava de Deus.
Com uma lâmpada cheia d'água, ele queimava as
formigas na calçada. A lâmpada recebia os raios do sol
que, focalizados através do vidro, se tornavam mortais
para os bichinhos.
- Eu sou Deus, sintam a minha ira- ele dizia.
De vez em quando, o Deus das formigas cansava da
lente e interagia: delicadamente recolhia alguma
formiguinha e fazia suas experiências. Primeiro, retirava
uma por uma das patas e, por fim, as anteninhas.
Assim, se punha a observar o sofrimento das
formigas. Quando cansava de brincar de Deus, ele ia
tomar nescau e comer bolachas.
O tempo passa.
Hoje, aquele homem não mais desmembra formigas.
Mas brincar de Deus foi um hábito que ele não conseguiu
abandonar. Hoje, ele interage com as pessoas. Rouba.
Engana. Mata. Trai. Atropela. Queima. Destrói.
Corrompe. Desrespeita. Deseduca. Trafica. E ele seguia
sendo feliz em sua infelicidade. Até que num belo dia, lá
estava ele caminhando pela calçada. O sol forte sob sua
cabeça o fazia suar. Suava demasiadamente, a ponto de
sentir uma leve dor de cabeça. "Que cheiro de
queimado",ele se queixou. Em seguida, estupefato,

119
10 Segundos

percebeu que seus cabelos estavam em chamas. Nem bem


deu tempo de se desesperar e, trash, viu o seu braço
esquerdo ser arrancado do corpo misteriosamente. O
sangue jorrava e ele gritava.
Em seguida, teve seu braço direito decepado. O
mesmo veio a acontecer com a perna direita, arrancada por
alguma força invisível.
E seu tronco estava ali, mergulhado numa poça de
sangue. Em seu desespero, olhou para cima e enxergou
uma formiga gigantesca, que vinha lhe arrancar a perna
esquerda. E arrancou tudo. Só faltaram as anteninhas.

120
Márcio Brasil
Eterna Guerra
Frente a frente o bem e o mal, representados tal
qual o I-Ching.
Éramos combatentes, dispostos a morrer por nosso
reino, se fosse preciso. Acreditávamos no caráter de nosso
rei e nos ideais de igualdade e justiça que nos haviam sido
inspirados. À nossa frente, o inimigo.
Observávamos seus passos ruidosos como quem
observa a própria imagem num espelho. Porém, uma
imagem distorcida. A sombra negra do outro era contrária
a tudo que julgávamos correto. Eram inimigos da justiça,
da honra e da igualdade. Nosso inimigo era sorrateiro e
desprovido de virtudes.
Sua existência era uma afronta à soberania de nosso
rei e à angelical figura de nossa rainha. Valia à pena
morrer por nosso glorioso rei. Valia a pena morrer por
nossa divina rainha.
Assim, avançamos com cautela. De forma
estratégica, partimos para cima do inimigo. Porém, nossas
defesas vacilaram.
O mal não possui limites e sua sombra não pode ser
subestimada. Com seus cavalos negros, avançaram
ceifando alguns dos nossos, conquistando precioso espaço
para que os seus sacerdotes malevólos lançassem mão de
suas artimanhas, invadindo nosso reino com sua lábia
tenebrosa.
Assim, outros de nós, ao ouvirem tais palavras
enfeitiçadas (e plenas de mentiras), e que diziam coisas

121
10 Segundos

agradáveis e nocivas, também foram dizimados, derrotados


por suas fraquezas.
À esta altura, lutávamos poucos de nós. Somente
um cavaleiro ainda resistia bravamente.
Nosso reino estava em chamas, nossas torres
abaladas, assim como a própria fé dos nossos religiosos,
diante do fim. Assim, nós, os remanescentes, pudemos
perceber que o reino de cá, não era diferente do reino de
lá. Que a sujeira também se escondia sob a tinta branca de
nossas casas e que os ideais de justiça e igualdade
proferidos por nosso rei era apenas uma ilusão, com a qual
ele regava nossos sonhos e que garantia a realidade de
privilégios.
À esta altura, o covarde já se escondera, buscando
preservar sua coroa. Não valia a pena lutar por ele. Era
indigno morrer por um rei humano ou crer nas mentiras
dos bispos, de vestes alvas e corações trevosos.
Mas ainda havia a rainha. Exposta, abandonada por
seu companheiro infiel, beberrão e luxurioso. Como era
frágil o nosso reino que, em chamas, mostrava toda a
sujeira que nunca havia sido vista.
Nossa rainha chorava, mas corajosa, lançava-se à
morte.
Não valia a pena lutar por nosso rei, nem pelo frágil
reino corrupto que ele erguera. Mas valia a pena lutar pela
rainha e, principalmente, pela fé que pulsava em meu
coração e que me fazia acreditar num Deus, diferente
daquele descrito pelos religiosos de minha terra. Assim, de
forma audaciosa e, até atrevida, coube a mim aproveitar-

122
Márcio Brasil
me de um momento de glória do inimigo para chegar
próximo do imperador negro e cravar-lhe minha espada.
Xeque-Mate.

123
10 Segundos

Criacionando a criação
Deus estava entretido com seu passatempo
preferido: jogava dados com o universo, ante o olhar do
professor Einstein.
E eram vários dados, sendo que cada um continha
uma galáxia inteira. Cada dado jogado transformava
enormemente os rumos das civilizações. Deus gargalhava
com as possibilidades, mas sabia o que fazia. Einstein
torcia o nariz para a brincadeira do velho, uma criança
boba.
- Fique tranqüilo, não esqueça que tudo é relativo,
Albertão
Nisso, surge Eigual Emecedois, o gêmeo de Einsten,
porém, mais jovem que ele, que retornava de uma breve
viagem no tempo. Einstein estranhou, pois sabia, nunca
teve irmão gêmeo. "Agora tem", disse Deus, num risinho
contido, ante a cara estupefata do físico. Seu duplo havia
viajado pela História e até trouxe uma recordação do
passeio. Era um macaquinho bodoso, chamado Charles
Darwin, muito do esperto que havia formulado umas
teorias aí.
Ele dizia que depois do homem, na escala
involucionária, estava o macaco. Alguém o achou
audacioso e inverteu sua teoria.
Einstein deu uma espiada no velho, que dormia com
os dados na mão. Estava cansado e roncava
profundamente. "Ele parece maluco, mas o mundo está
em boas mãos", pensou. Enquanto isso, seu gêmeo se

124
Márcio Brasil
enveredou pelos "buracos de minhoca" para visitar outros
mundos. Prometeu que, na volta, traria algum agrado.
O dia estava tedioso e Einstein resolveu ir ao
relojoeiro. Nesse meio tempo (que não existe), a Terra
virava uma confusão só: guerras irracionais, transgenias
diversas, mutações, desequilibrio do clima, oceanos
degradados, florestas destruídas, miséria, imoralidades,
crimes.
Um caos. Ainda assim, a maioria dos homens
considerava aquilo normal, pois aceitava e até gostava dos
novos tempos, sem questionar. Eigual havia esquecido de
levar Darwin, que agora brincava de dados com o
universo. E, Deus observava a tudo com um olho só.

"Há duas coisas infinitas: o universo e a tolice dos


homens." (Albert Einstein)

125
10 Segundos

O filho do Super-Homem
- Mãe, pede para o Super-Homem vir me ver?

Foi esse o pedido que o pequeno Michel de 08 anos


fez à sua mãe, Clarissa, com sua voz fraquinha e cansada.
Numa situação normal, ela poderia explicar que o herói só
existia nos filmes e nos desenhos que ele assistia e nas
revistas em quadrinhos que lia.
O garoto adorava o herói e tinha bonecos,
lancheiras, tênis e até uma capa vermelha que amarrava no
pescoço para correr em volta da casa com os braços
abertos, fingindo voar. Mas isso quando ele era um
menino saudável. Hoje, a sua rotina era praticamente casa-
hospital-casa-hospital. Há meses, o pequeno enfrentava
uma luta pela vida. Apesar de ter um coração nobre e
corajoso no sentido metafórico, no real, ele sofria com o
câncer, que definhava o seu pequeno corpo.
Michel já tinha enfrentado várias batalhas pela vida
e, não raras vezes, esteve perto de morrer. Mas ele insistiu
e se manteve. Há menos de uma semana, uma grave crise
respiratória o trouxe de volta ao hospital, mas ele vinha se
recuperando. Como dizer para uma criança nessas
condições que o seu ídolo não existia?
- Mamãe vai ligar para o Super-Homem. Ele vai vir
te visitar, sim.
ela disse, segurando as lágrimas.
- Promete, mamãe?
Ela prometia.

126
Márcio Brasil
Assim que o menino adormeceu, Clarissa se dirigiu
ao corredor do hospital. Escorou-se próximo a uma janela
e acendeu um cigarro, fixando o seu olhar na vida lá
embaixo, aquele movimento todo de carros e de pessoas.
Visto dali de cima, do quarto andar, tudo parecia feio,
desorganizado e barulhento.
Um interminável movimento de vai e vem, um
formigueiro humano. Seu pensamento vôou nessa
comparação entre homens e formigas. Talvez, em virtude
do cansaço. Em seguida, voltando a si, sacou o celular da
bolsa e ligou para o pai do Michel, o seu ex-marido.
Hoje, ela era uma mulher casada e as aflições de
criar o filho eram divididas com o seu atual marido.
Porém, para o que tinha em mente, só poderia contar com
ele, o pai do menino, seu antigo amor. Apesar dele se
revezar com ela no hospital e cumprir suas obrigações
paternas, ela não mais morria de amores por ele (como
outrora). Na verdade, se cumprimentavam só com olhares
e trocavam instruções peculiares de pais separados que
dividem a atenção do filho.
- Preciso que tu faça isso pelo Michel, por favor...
Finalizou ela, ao telefone, desligando o aparelho e
deixando ele proferir para ninguém a palavra "beijos".
Mais tarde, vencida pelo cansaço, Clarissa
adormecia na poltrona ao lado da cama de Michel.
Suavemente, era despertada pelo roçar de dedos em sua
face. Era o seu marido.
- Estava te olhando dormir. Tu tem que ir para
casa. Chame o pai do Michel para vir aqui um pouco.
Precisa de uma cama para descansar...
127
10 Segundos

Ela olhou no relógio, já estava na hora dele aparecer


mesmo, mas pontualidade nunca tinha sido o seu forte.
Pelo menos com o filho, poderia ter mais consideração.
- Eu estou bem, meu querido. Quero ficar aqui mais
essa noite. Não vou me sentir bem em casa.
- Aquele cara é um irresponsável mesmo.
"Psst", ela o repreendeu.
- Não fale isso na frente do Michel.
Mas o menino assistia a um desenho animado na
televisão e pouca atenção dava aos dois. E o soro
dependurado no suporte pingava o veneno químico em
suas veias abertas nos bracinhos inchados.
- Bem, então terei que passar a noite contigo...
Resolveu ele, sentando numa cadeira. Clarissa pegou
a bolsa e foi até a janela do quarto para acender um
cigarro.
Abriu a bolsa, pegou o isqueiro e, quando foi
acender o cigarro, surpreendeu-se ao voltar o seu olhar
para o formigueiro humano, logo abaixo. Num instante,
ela colocou tudo de volta e ordenou para o marido.
- Vamos sair daqui do quarto. Michel, querido, nós
vamos aqui fora tomar uma água e já voltamos...
Ela disse, arrastando o seu companheiro porta afora,
deixando-o sem entender nada. Michel ficou sozinho no
quarto assistindo ao seu desenho na TV. Alguns minutos
depois deles terem fechado a porta, uma figura colorida
aparece na janela. Michel reconhece o traje vermelho e
azul, a capa e o "S" no peito e grita.
- Super-Homem!!.

128
Márcio Brasil
Ele entra pela janela, saindo detrás das cortinas
esvoaçantes.
- Olá, Michel. Eu vim te visitar, como tu queria.
À medida que o herói vai se aproximando do
garoto, ele reconhece aquela figura imponente, um tanto
supreso.
- Ah, é tu papai.
- Sim, meu anjo. Sou eu.
- Como o senhor chegou aqui? É alto...
- Eu vim voando, Michel...
- Voando, pai?
O garoto ficou confuso, mas devia ser verdade. Eles
estavam no quarto andar do hospital. Ele acreditou no pai,
que continuou a história.
- Chegou a hora de eu te contar um segredo, que
fica sendo só nosso... eu sou o Super-Homem.
Michel, envolto com máscara de oxigênio, olha
atentamente para aquele homem próximo dele, tocando
em sua fantasia com a ponta dos dedos, deslizando a mão
sobre a capa vermelha e se questionando sobre algo que
nunca tinha se dado conta. Seria possível?
- Verdade, pai? O senhor é mesmo o Super-
Homem?
- Sim, meu querido. Eu nunca tinha te contado,
nem mesmo para a sua mãe, porque... preciso manter em
segredo. Mas eu sei que tu é corajoso... e eu confio em ti.
Sei que guardará esse segredo e não vai contar para
ninguém.
- Não vou não, se o senhor me diz para não fazer
isso...
129
10 Segundos

- Meu filho, eu quero dizer que nós te amamos e


que tu é forte. Vai dar tudo certo. Vai te recuperar, sair
desse hospital em breve. E nós poderemos nos divertir
muito ainda...
- O senhor me leva para voar?
- Sim, eu te levo para voar... mas não hoje. Eu quero
que tu descanse e continue sendo forte, sendo... de aço. A
sua mãe precisa disso, eu preciso disso, que tu continue
sendo corajoso, forte, porque tudo vai terminar bem. Tu
vais ver...
- Eu acredito no senhor...pai, digo, Super-Homem.
- Esse é o nosso segredo...
O gigante beija a fronte do menino com muita
delicadeza. Ele sorri. O pai olha para a janela da porta, vê
sua ex-esposa acompanhando a cena com lágrimas nos
olhos. Por um instante, o olhar dos dois se entrelaça e à
distância parecem dizer mais do que muito já disseram
quando estiveram próximos.
- Eu tenho que ir, meu querido.
- Eu sei, pai. O senhor precisa salvar as pessoas.
- Sim, é isso mesmo.
Ele se vira em direção a janela e olha para baixo. O
pessoal do Corpo de Bombeiros o aguardava com uma
grua de salvamento à altura do parapeito, como havia
combinado com o capitão, que era seu amigo e estava lhe
quebrando o maior galho de sua vida.
- Por isso o senhor foi embora, não é mesmo?
O pai vira-se com a pergunta do filho.

130
Márcio Brasil
- O senhor não pôde ficar com a minha mãe para
protegê-la... e não revelar a sua identidade...para poder
continuar salvando as pessoas. Mas eu sei que o senhor a
ama... ela é a sua Lois Lane, né?
Por um instante, ele reflete sobre as palavras do
garoto. Olha para as suas vestes, sentindo-se um tanto
ridículo por estar naquela situação, com aquela fantasia
ultrapassada de Carnaval. Como ele aceitou fazer isso? Em
seguida, olha novamente para a porta, tentando vê-la, mas
ela não estava mais lá. Volta o seu olhar para o filho.
- Esse é mais um segredo que nós dois vamos ter
que dividir...
Ele se despede de Michel com o olhar, fecha a
cortina e entra cuidadosamente na grua. Ele sempre teve
medo de altura, mas teve de encarar esse medo por causa
de Michel. Enquanto os bombeiros o descem lentamente,
ele vai lembrando do telefonema que recebeu da ex-esposa.
- Ele quer conhecer o Super-Homem. E tu vai ser o
Super-Homem dele...
Ela praticamente ordenou. Sempre foi boa em dar
ordens.
- Olha, eu faria qualquer coisa por ele, mas...
Ele tentou argumentar. Mas ela sentenciou.
- Então, faça!
Ele disse "beijos", mas ficou no ar. Ela já tinha
desligado. Foi a partir daí que ele começou a correr atrás
de uma fantasia. Ela nunca imaginaria toda a peregrinação
que ele fez até chegar à janela do quarto andar onde
Michel estava. Em todo o trajeto elevado, na volta para o

131
10 Segundos

chão seguro, uma inevitável música não saía de sua cabeça:


Superman Theme, de John Willians.

***

Michel abraça a sua mãe com carinho.


- Eu te amo, mamãe. É a melhor mãe do mundo...
Pelo resto da noite ele se manteve feliz, disposto,
com um brilho diferente no olhar, o qual esteve um tanto
apagado. Perguntou dos coleguinhas da escola, falou sobre
as coisas que gostaria de fazer quando saísse do hospital e
deu boas risadas, apesar da voz rouquinha e fraca. Clarissa
olhava para ele, frágil e lembrava de suas primeiras
palavras, de seus primeiros sorrisos, de seus primeiros
passos.
Algumas noites de agonia ela o abraçou tão
fortemente, como que desejando que ele voltasse para o
seu ventre e, protegido de todo o resto, pudesse nascer de
novo, saudável.
Mas, naquela noite, Clarissa se sentiu em paz e com
a esperança renovada. Naquela noite, ela dormiu
confortável na desconfortável poltrona ao lado de Michel,
que também descansava do tormento das quimioterapias.

***

No meio da noite, Michel acorda sentindo uma leve


brise no rosto. Levanta um pouco a cabeça e olha em
direção a janela que estava aberta, fazendo com que as

132
Márcio Brasil
cortinas dançassem à mercê do vento. Do lado de fora,
uma figura que ele conhecia bem.
Era o Super-Homem, ou melhor, o seu pai. Michel
livra-se da máscara de oxigênio, retira o soro das veias e
levanta com suavidade, evitando acordar sua mãe, que
dormia ao seu lado. Ele vai até a janela e vê o seu pai
sorrindo e flutuando no ar.
- Oi, Michel. Ainda quer dar aquele passeio?
- Para onde o senhor vai me levar?
- Vou te levar para o céu, meu anjo. Vou te levar
para voar...
O pai estende a mão, convidando. Michel aceita,
mas antes corre até a sua mãe e lhe dá um beijo no rosto,
carinhosamente.
- Eu estou pronto, pai.
Os dois se dão as mãos e em seguida começam a se
afastar da janela flutuando. Michel se vê invadido por uma
sensação indescrítivel, que jamais experimentara, sentia-se
leve como uma pluma, tendo a brisa a lhe acariciar o rosto.
Lá embaixo, via a cidade em movimento, a praça onde
brincava com a turma, o seu colégio, a rua de sua casa, a
piscina do vizinho, tudo pequenininho. Nesse momento,
ele estava voando de mãos dadas com o maior herói do
mundo, que era o seu pai. Viu-se invadido por uma
sensação de amor infinito, de bondade suprema e teve
vontade de agradecer por isso.
Dali de cima, o mundo era muito mais bonito,
organizado e tranquilo. Dali de cima, o mundo parecia
estar em paz.
- Tu está pronto para voar mais alto?
133
10 Segundos

- Para onde?
- Já te falei, meu querido...para o céu.
Michel vira-se para tentar enxergar o prédio do
hospital, mas ele aparecia minúsculo, bem ao longe de
onde estavam. Pensou na sua mãe, no sofrimento que ela
vinha passando e no que iria passar. Mesmo sem conseguir
enxergar (não tinha visão de raio-x), ele sabia que nesse
momento, os médicos já estavam tentando trazê-lo de
volta, em vão. Sabia também que sua mãe não se
conformava e teve vontade de chorar. Mas estranhamente
viu-se invadido por uma sensação de tranquilidade.
- Tudo é amor, meu filho...
- Pode me levar para o céu, sim, pai.
E os dois foram subindo cada vez mais,
distanciando-se deste plano físico, superando a superfície,
deixando para trás a estratosfera, a mesosfera,a atmosfera.
Para o alto e avante.

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