362 - Povos Originários 9

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Povos originários e comunidades tradicionais

Native peoples and traditional communities

Pueblos originarios y comunidades tradicionales


DIRETORES DA SÉRIE:

Prof. Dr. Nelson Russo de Moraes


Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Prof. Dr. Renato Dias Baptista


Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Profa. Dra. Angélica Góis Morales


Universidade Estadual Paulista (UNESP)

COMITÊ EDITORIAL E CIENTÍFICO:

Profa. Dra. Elvira Gomes dos Reis


Universidade de Cabo Verde – Cabo Verde

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Prof. Dr. Francisco Gilson Rebouças Porto Júnior


Universidade Federal do Tocantins (UFT)

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Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Tocantins, CESAF/Ministério Público

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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Profa. Dra. Leila Adriana Baptaglin


Universidade Federal de Roraima (UFRR)

COMITÊ TÉCNICO

Me. Anderson Rodolfo de Lima


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Me. Maria Laura Foradori


Universidade Nacional de Córdoba – Argentina

Fernando da Cruz Souza


Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Povos originários e
comunidades tradicionais

Trabalhos de pesquisa e de extensão universitária

Volume 9

Native peoples and traditional communities:


Research and university extension

Pueblos originarios y comunidades tradicionales:


Trabajos de investigación y extensión universitaria

Organizadores
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento
Alexandre de Castro Campos
Fernando da Cruz Souza
Ariadne Dall’Acqua Ayres
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

OBRA ORGANIZADA PELA

Obra financiada pelo INSTITUTO DE PESQUISAS AMAZÔNICAS E DE POVOS TRADICIONAIS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


NASCIMENTO, Carlos Alberto Sarmento do; CAMPOS, Alexandre de Castro; SOUZA, Fernando da Cruz; AYRES, Ariadne
Dall’Acqua (Orgs.)

Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e de extensão universitária – Volume 9 [recurso
eletrônico] / Carlos Alberto Sarmento do Nascimento; Alexandre de Castro Campos; Fernando da Cruz Souza; Ariadne
Dall’Acqua Ayres (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

329 p.

ISBN - 978-65-5917-362-4
DOI - 10.22350/9786559173624

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Povos Originários. 2. Comunidades Tradicionais. 3. Cultura. 4. Políticas Públicas. 5.Desenvolvimento Sustentável.


I. Título. II. Série.

CDD: 177
Índices para catálogo sistemático:
1. Comunidade e sociedade 177
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Editora da Universidade Federal de Roraima


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Equipe de Editorial Técnico – GEDGS/RedeCT


Fernando da Cruz Souza – mestrando na UNESP – Líder
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Me. Maria Laura Foradori – doutoranda na Universidad Nacional de Córdoba / Argentina
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Grupo de Estudos em Democracia e Gestão Social – GEDGS


(e-mail: [email protected] )
Rede Internacional de Pesquisadores sobre Povos Originários e
Comunidades Tradicionais – RedeCT (e-mail: [email protected] )
Av. Domingos da Costa Lopes, 780 – CEP 17.602-496 – Jardim Itaipú – Tupã – SP
Sumário

Prefácio 13
Patrick Maurice Maury

Capítulo 1 17
A comunidade de remanescentes do quilombo da Ilha da Marambaia: um breve
histórico do seu território e de sua luta pelo autorreconhecimento
The Quilombo Remaining Community of the Island of Marambaia: a brief history of its territory
and its struggle for self-knowledge
Cristiano Gomes de Oliveira
Márcio de Albuquerque Vianna
Palavras-chave: Quilombo da Ilha de Marambaia. Remanescentes. Ilha de Marambaia (RJ).
Keywords: Marambaia’s Island Quilombo. Remaining. Marambaia Island (RJ).

Capítulo 2 43
Narrativas caiçaras: resistências, permanências e pertencimento ao lugar
Caiçara narratives: resistance, permanence and belonging to the place
Larissa Gândara Simão
Luciene Cristina Risso
Palavras-chave: Povos Tradicionais. Território. Experiências. Unidades de Conservação. Reserva
Ecológica Estadual da Juatinga.
Keywords: Traditional peoples. Territory. Experiences. Preservation Units. State Ecological Reserve of
Juatinga.

Capítulo 3 75
O valor sociocultural da terra e do território para os povos indígenas afetados pela
usina hidrelétrica de belo monte: uma reflexão necessária
The socio-cultural value of land and territory for indigenous peoples affected by the Belo Monte
Hydroelectric Plant: a necessary reflection
Auristela Correa Castro
Martha Luiza Costa Vieira
André Cutrim Carvalho
Palavras-chave: Indígenas; Sociocultural. Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Território.
Keywords: Indigenous; Sociocultural. Belo Monte Hydroelectric Power Plant. Territory.
Capítulo 4 99
Resgatando a caça histórica de peixes-bois na Amazônia durante e após a ‘época da
fantasia’
Rescuing the historic hunting of manatees in the Amazon during and after the ‘fantasy time’
Salvatore Siciliano Renata Emin-Lima
Alexandra Fernandes Costa Marcelo Derzi Vidal
Palavras-chave: Conservação. Fauna silvestre. Espécie ameaçada. Populações tradicionais.
Keywords: Conservation. Wild fauna. Endangered species. Traditional populations.

Capítulo 5 126
Territórios quilombolas sobrepostos a UCS de proteção integral em Minas Gerais:
aspectos legais e conservação da natureza
Territories of quilombolas communities overlaps to protected areas of indirect use in minas
gerais: legal aspects and nature conservation
Raquel Faria Scalco
Bernardo Machado Gontijo
Palavras-chave: Unidades de Conservação. Comunidades Quilombolas. Minas Gerais. Sobreposição
Territorial. Conflitos Socioambientais.
Keywords: Protected Areas. Quilombolas Communities. Minas Gerais. Territorial Overlap. Socio-
environmental Conflicts.

Capítulo 6 162
Cartografia social no contexto de tragédias-crime ambientais: encontro entre
saberes para a construção de territorialidades em uma Aldeia Pataxó
Social cartography in the context of environmental tragedy-crime: encounter between
knowledge for the construction of territorialities in a Pataxó Village
Amanda Ribeiro Carolino Juliana de Lima Passos Rezende
Bernardo Carrusca Camilo de Oliveira Virgínia Simão Abuhid Burkhardt
Henrique Martins Cardiel Armindo dos Santos de Sousa Teodósio
Juliana de Lima Caputo
Palavras-Chave: Cartografia Social; Povos Indígenas; Tragédias; Conflitos Ambientais; Extensão
Universitária; Pataxó.
Keywords: Social Cartography; Indian People; Tragedy; Environmental Conflitcts; University-
Community Projects; Pataxó.
Capítulo 7 184
Conflitos territoriais no quilombo de Santa Rita do Bracuí (RJ): entre lutas e
resistências pela manutenção do bem viver
Territorial conflicts in the Quilombo of Santa Rita do Bracuí (RJ): between struggles and
resistance for the maintenance of good viver
Daniel Neto Francisco
Lucimar Ferraz de Andrade Macedo
Lamounier Erthal Villela
Palavras-chave: Especulação Imobiliária. Rio Bracuí. Territorialidade.
Keywords: Real estate speculation. Bracuí River. Territoriality.

Capítulo 8 207
Terras indígenas e mineração em rondônia: perspectivas para uma avaliação jurídica
Indigenous lands and mining in Rondônia: prospects for a legal evaluation
Karen Roberta Miranda João Vitor Carneiro da Silva
Amanda Pereira Serafim Neiva Araujo
Daniel Ferro Nobre de Lima
Palavras-chave: Amazônia; Demarcação; Extrativismo; Recursos naturais; Território.
Keywords: Amazon; Demarcation; Extractivism ; Natural resources; Territory.

Capítulo 9 242
Imagens e sobrevivências decoloniais: conhecimentos da terra
Images and decolonial survival: knowledge of the earth
Marisangela Lins de Almeida
Palavras-chave: Faxinais. Quintais domésticos. Conhecimentos. Mulheres. Imagens.
Keywords: Faxinais. Home Gardens. Knowledge. Women. Images.

Capítulo 10 262
Quelônios e ribeirinhos na Floresta Nacional de Caxiuanã, Pará
Turtles and riverine people in the National Forest of Caxiuanã, Pará
Daniely Félix-Silva José Benedito Alvarez Júnior
Juarez Carlos Brito Pezzuti Marcelo Derzi Vidal
Rosyvaldo Miranda dos Santos
Palavras-chave: Amazônia. Etnobiologia. Conservação. Quelônios. Reprodução.
Keywords: Amazon. Ethnobiology. Conservation. Chelonians. Reproduction.
Capítulo 11 297
“A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça”: a comunidade tradicional carroceira
de Belo Horizonte e região metropolitana
“The city is our road, our fight is in the cart”: the Traditional Carroceira Community of Belo
Horizonte and the metropolitan region
Emmanuel Duarte Almada
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira
Palavras-chave: Estudos Multiespécies. Racismo Ambiental. Ruralidades.
Keywords: Multispecies Studies. Environmental racism. Rurality.

Índice remissivo de assuntos e temas deste volume 325

Índice remissivo por assuntos e temas de toda a série de livros


(coletâneas de capítulos) da RedeCT 326
Prefácio

Patrick Maurice Maury 1

PENSAR COM A CABEÇA DOS OUTROS

Esta expressão, que acredito ser de Eduardo Viveiro de Castro num


debate na UNICAMP, ilustra perfeitamente, no meu ver a contribuição da
coleção Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pes-
quisa e extensão universitária. Sair do isolamento do pensar filosófico para
o “perspectivismo2” ajuda a praticar o diálogo com seres de outro natureza
e achar unidade e coletividade onde muitos só vêm minorias sem futuro.
A Rede CT ganhou autonomia na sua relação com Rede de Gestão
Social-RGS, com isto ambas cresceram continuando a participar mutua-
mente das respectivas atividades. Mas, a fragmentação não é sempre
benéfica, nem mesmo recomendável para avançar em questões de rela-
ções, em territórios, como percursos sociais, unidades de conservação,
bacias hidrográficas ou áreas costeiras e marinhas.
Este nono volume da coleção é um bom exemplo para refletir sobre
possíveis configurações de grupos de trabalho com capacidade de inter-
pretação sistémica. Por exemplo, nestas páginas: os três artigos que tratam
de quilombos apresentam tipos de ameaças relacionadas a categorias de
agentes/interlocutores particulares: Unidades de Conservação em Minas
Gerais, Áreas militares na restinga da Marambaia em Itaguaí, RJ e, Empre-
endimentos econômicos, na bacia do rio Bracuí, em Angra dos Reis, RJ. Da

1
Professor visitante. PEPEDT/UFRRJ
2
Conceito emblemático do pensamento de Eduardo Viveiro de Castro para falar da alteridade no diálogo entre
ameríndios e outros entes naturais como montanhas, bacias hidrográficas, florestas e animais...
14 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

mesma maneira, o processo Cultura-Organização-Educação é relacionado


com diversos desenhos de território: aldeias após a construção da barra-
gem de Belomonte, na bacia do Tapajós, PA, ribeira dos quelônios na
FLONA Caxiuanã, PA, extrativismo animal na Amazônia dos anos 1930 a
60, migrações de carroceiros em Belo Horizonte, MG. Em todos os casos e
possível recorrer a imagens para alcançar uma visão compartilhada e o
diálogo, mesmo em situações de antagonismo, como descrito nos artigos
sobre as imagens de “quintais agroflorestais/domésticos de duas comuni-
dades tradicionais de Faxinais da região Centro Sul do Estado do Paraná”
e, a cartografia social do dano sofrido pelos Pataxós em Brumadinho, MG.
Estas formas de imagens (mapa e gráficos) permitem organizar uma visão
compartilhada e acessível independentemente de educação formal, elegí-
vel para requerer direitos dos povos originários e comunidades
tradicionais.
Evidentemente podemos perguntar da razão de ser de tal encami-
nhamento e de que maneira poderia alterar a natureza e o grau de
influência da RCT. Alguns argumentos são: benefícios para a pesquisa, a
educação e a extensão; também recursos econômicos para as comunida-
des, defesas de seus direitos; mas talvez, o mais relevante seja a influência
da conexão dos lugares de memória (territórios de comunidades tradicio-
nais) com suas diásporas urbanas.
Um fato pode ser acrescentado para entender melhor o potencial de
universalização do pensar com a cabeça dos povos originários e comuni-
dades tradicionais: o desmonte do movimento sindical decorrente da
redução absoluta dos assalariados e a perda de influência política das or-
ganizações que ameaça diretamente os pactos de organização social, com
ênfase em previdência social, surgidos das desordens da crise econômica
e da segunda guerra mundial. Pode ser que o objeto (Pacto social) não seja
Volume 9 | 15

tão desproporcional nem tão afastado do proposito do prefácio de um vo-


lume da coleção da RCT quanto pode parecer a priori.
Algumas observações podem precisar essa perspectiva: os modelos
mentais da matriz ameríndia e outras culturas originárias da África, Aus-
tralia, Oceânica e mesma da Europa! Por exemplo os esquemas da Dádiva3
descrito por Marcel Mauss [1925], e do Hipercubo 4 de Barbara Glow-
czewski5, validado com os aborígenes e discutido no Brasil em curso oficial
com professores indígenas e, autoridades do candomblé
Outras evidências estão na audiência no Brasil e na difusão interna-
cional do pensamento de lideranças indígenas como Ailton Krenak, do vale
do Rio Doce (MG) e Davi Kopenawa6, da T.I. Yanomami (RR).
Finalmente, neste pensar com a cabeça dos outros, buscando elaborar
cenários futuros sobre a dádiva na economia solidária (ES) a partir da
abordagem relacional dos artigos deste 9º volume, incorporando o artigo
do PEPEDT7 sobre “Rede entre Comunidades Tradicionais e Entidades de
Extensões na Baia da Ilha Grande/RJ”, publicado no 6º volume, utilizaria
a matriz elaborada por Airton Cançado8 no seu artigo sobre Gestão social
e Economia solidária quando apresenta a ES como um movimento reu-
nindo três categorias de atores: Empreendimentos solidários, Assessorias
e Gestores públicos. Neste artigo Airton não esclarece se vê nesta matriz
as atividades da Extensão em Gestão social que ele define como uma “ma-
neira [participativa] de gerir um processo de tomada de decisão” como

3
Dar, Receber a dádiva, Retribuir a dádiva.
4
Demostra objetivamente um grau de complexidade do pensamento aborígene análogo à inteligência artificial-AI
5
Glowczewski, Barbara. Devires totêmicos, Cosmopolítica do Sonho. São Paulo, n-1 edições 2015, p.109-113
6
Davi Kopenawa, Albert Bruce. A Queda do Céu, Palavras de um xamã yanomami, São Paulo, Companhia das Letras,
2015, 720p. (com tradução para o francês, reeditada em livro de bolso).
7
PEPEDT/UFRRJ – Programa de Ensino Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas da
UFRRJ.
8
CANÇADO, Airton. Gestão Social e Economia Solidária – para além do mimetismo: outra gestão é possível?
REVISTA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA 10.1 (2016) 19-43.
16 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

um candidato natural para promover o processo de governança do movi-


mento!
Está questão ficará em aberto, anexada à sugestão para a Rede CT
ampliar sua internacionalidade ainda muito lusófona para acenar com
boas-vindas, nossos vizinhos ibero-americanos que já pensaram suas car-
tas constitucionais com a cabeça de seus povos originários.

Seropédica (RJ), 29 de novembro de 2021


Capítulo 1

A comunidade de remanescentes do quilombo da


Ilha da Marambaia: um breve histórico do seu território
e de sua luta pelo autorreconhecimento 1

The Quilombo Remaining Community of the Island of Marambaia:


a brief history of its territory and its struggle for self-knowledge
Cristiano Gomes de Oliveira 2
Márcio de Albuquerque Vianna 3

1 Introdução

Este capítulo começa por localizar a Ilha da Marambaia, no Estado do


Rio de Janeiro, uma região muito importante para o cenário nacional,
palco de muitas batalhas judiciais e repleto de tradições e história. Em se-
guida, iremos abordar um breve histórico do território da Ilha, relatar um
pouco da trajetória histórica da Marambaia, da implantação da Escola de
Pesca, das relações de convivência existentes entre os remanescentes qui-
lombolas, a Marinha do Brasil, a União. Por fim, trazer um pouco do
contato atual entre a prefeitura Municipal e os ilhéus, nesse processo de
luta pelo autorreconhecimento dos moradores como remanescentes qui-
lombolas. Com isso, comentamos as relações que envolvem a população
da Ilha ao longo dos séculos XIX e XXI.

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e de uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGEduCIMAT/UFRRJ).
Professor Efetivo da Prefeitura Municipal de Mangaratiba – RJ. Endereço: Rua Um, Qd: 71, Nova Sepetiba – Rio de
Janeiro – RJ. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/2274201811970613 E-mail: [email protected]
3
Doutor em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária (PPGCTIA/UFRRJ - Universidade Nacional de Rio
Cuarto - Argentina). Professor Adjunto do Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino (DTPE/UFRRJ).
Docente Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGEduCIMAT/UFRRJ). Link para o
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1194444335975667 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6751-7926 E-mail:
[email protected]
18 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Como objetivos, se apresentam: (1) valorizar e reconhecer a impor-


tância das histórias, práticas e saberes da comunidade e (2) dar
continuidade às obras e pesquisas realizadas em conjunto com os mora-
dores da Ilha da Marambaia.
A formação intelectual e pessoal de cada indivíduo é composta pelas
batalhas, trabalhos, registros, trajetórias, conquistas, derrotas etc. Nesse
sentido, não se deve resumir a educação somente à educação escolar, exis-
tem aprendizagens e produção de saberes em outros espaços,
denominadas de educação não formais, como, por exemplo, a participação
social em movimentos e ações coletivas (GOHN, 2011). É fundamental de-
sempenhar um papel compromissado com uma formação cidadã integral,
ressaltando-se a importância da reflexão sobre os mais diversos contextos.
Conhecer a trajetória do grupo ao qual se pertence e o processo his-
tórico de conquista do seu território pode auxiliar os indivíduos na tomada
de consciência pessoal, educacional e, também, no entendimento de sua
realidade. Portanto, este capítulo traz um recorte das relações vivenciadas
na Ilha da Marambaia, desde a época da morte do Comendador Breves até
o ano atual (2021), como uma importante ferramenta para o (re)conheci-
mento dos sujeitos e atores locais, assim como dos agentes comunitários e
dos educadores da escola pública instalada no local.

2. Localização da Ilha da Marambaia

A Restinga da Marambaia é considerada uma área militar e de segu-


rança nacional, que possui uma localização bem estratégica em termos
geográficos. Voltada para o seu interior estão a Baía de Sepetiba, a zona
industrial de Santa Cruz, o Porto de Sepetiba (na cidade de Itaguaí) e a
Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A. (NUCLEP) - empresa que projeta,
desenvolve, fabrica e comercializa equipamentos pesados para os setores
Nuclear; de Defesa; de Óleo e Gás; de Energia e outros.
Volume 9 | 19

A Restinga da Marambaia é uma área militar dívida em três porções


(Figura 1).

Figura 1 - Restinga da Marambaia e suas divisões.

Fonte: Facebook - Veteranos do Corpo de Fuzileiros Navais (2016).


A primeira porção possui limites com o bairro de Barra de Guaratiba, no munícipio do Rio de Janeiro,
sua entrada se dá através de uma ponte controlada pelo Exército do Brasil (Figura 2).

Figura 2 - Ponte Velha, desativada pelo exército, mais ao fundo a ponte Nova,
com acesso restrito a militares.

Fonte: Acervo pessoal. (2020)

A parte central fica sob a responsabilidade da Aeronáutica, nas divisas


entre as cidades de Itaguaí e do Rio de Janeiro. A Ilha da Marambaia está
20 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

na porção de terra controlada pela Marinha do Brasil, pertence ao Distrito


de Itacuruçá, em Mangaratiba - cidade turística, situada na região da Costa
Verde do estado do Rio de Janeiro.
A Base naval na Ilha, por ter acesso controlado por terra e mar, torna-
se um refúgio tradicional de presidentes da República que costumam fre-
quentá-la para períodos de descanso, principalmente, em datas
comemorativas como carnaval, natal e ano novo já que ela oferece belezas
naturais, praias reservadas, segurança, privacidade e tranquilidade, além
de evitar “desconfortos” com a imprensa.
“A distância entre o cais do Centro de Avaliação da Ilha da Marambaia
(CADIM) e o píer de Itacuruçá (no continente) é de 16,41 km (ou 10,20
milhas náuticas)” (OLIVEIRA e VIANNA, 2020, p. 24). Na Ilha reside uma
comunidade de remanescentes quilombolas que ocupam uma área con-
forme mostra a Figura 3, além dos militares que trabalham no local e das
visitas de presidentes da República.

Figura 3 - Desenho de Pablo das Oliveiras.

Fonte: Revista Existimos –2ª Ed. (2007)


Volume 9 | 21

3 Um breve recorte histórico da comunidade na Ilha da Marambaia

A Ilha da Marambaia, foi reduto do povo tupinambá, pertencia ao an-


tigo comendador Joaquim de Souza Breves, nascido em 10 de junho de
1804 e que veio a falecer em 30 de setembro 1889 (WILLEMAN, 2007),
pouco mais de um ano após a abolição da escravidão no Brasil, que veio
através da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888 e sancionada pela
princesa Isabel, filha do imperador D. Pedro II. Infelizmente, o Brasil se
destaca como o último país independente do continente americano a abolir
completamente a escravidão.
Joaquim de Souza Breves foi um dos moradores ilustres da antiga
cidade São João Marcos, um importante município do Rio de Janeiro e uma
das primeiras cidades tombada no Brasil, que em seguida precisou ser des-
tombada para despovoamento e demolição, pois serviu para a construção
da represa de Ribeirão das Lages, que iria gerar produção de energia elé-
trica e abastecimento para o município do Rio de Janeiro.
O comendador era um dos maiores fazendeiros de café e traficantes
de escravos da sua época, “senhor e possuidor de muitas terras, que se
espalharam nos antigos municípios pertencentes à província do Rio de Ja-
neiro: São João do Príncipe, Rio Claro, Mangaratiba, Itaguaí, Angra dos
Reis” (MOTTA, 2007, p. 296).
Segundo Willeman (2007), em 1856, o Comendador Breves se declara
proprietário da Ilha da Marambaia no livro de registros de terra da Paró-
quia de Itacuruçá, cujos terrenos cultivados compreendiam nos seus
limites a restinga e o mangue de Guaratiba. Pouco tempo antes era assi-
nado o decreto da Lei 601 de 18 de setembro de 1850, conhecido como “Lei
de Terras”, que dispunha sobre as terras devolutas do Império.
As senzalas da Ilha eram usadas como um enorme entreposto de “en-
gorda de escravos”, que vinham em condições muito penosas nos navios
22 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

e, como não podiam ser vendidos de imediato, ficavam na Marambaia até


que se recuperassem (NÓBREGA, 2005). Após essa engorda, os negros
mais fortes, os de bons dentes e os identificados como melhores reprodu-
tores eram transferidos para trabalhar em outras fazendas da região,
pertencentes ao comendador, no continente, ou vendidos por valores mais
elevados para diversos lugares do Estado do Rio de Janeiro (ALVES, 2010).
Na Figura 4, se encontra o prédio que no passado serviu como senzala
dos escravos dos Breves e que, atualmente, abriga o Alojamento de Trân-
sito de Oficiais da Marinha do Brasil no qual se organizam algumas das
cerimônias militares.
Segundo alguns dos remanescentes quilombolas atuais, mesmo com
o fim da escravidão, muitos negros da Marambaia continuaram a servir,
pois não sabiam que esse regime havia se encerrado. A posse pacífica dos
moradores da Ilha estabeleceu-se assim que houve a morte do proprietá-
rio. Esse grupo relata que, em sua última viagem a Marambaia, o
comendador Breves havia doado, apenas verbalmente, cada uma de suas
praias a um conjunto de famílias (ALVES, 2010).

Figura 4 - Imagem lateral da antiga senzala da fazenda dos Breves e


atual Alojamento de Trânsito de Oficiais da Marinha do Brasil.

Fonte: Acervo pessoal, fotografada no dia 15 de janeiro de 2020.


Volume 9 | 23

Essa versão local sobre o testamento é difícil de ser comprovada em


documentos, porém faz parte do repertório de histórias orais da comuni-
dade, carrega laços de pertencimento e transborda sentimentos que fazem
parte da identidade cultural local dos remanescentes quilombolas da Ilha
da Marambaia.
Em 1890, houve a abertura do testamento do Comendador, a Ilha da
Marambaia é deixada como herança para a sua viúva, Dona Maria Isabel.
Posteriormente, em 1891, dois anos após a morte do Comendador e três
anos após a abolição da escravidão, a Ilha foi vendida à Companhia Pro-
motora de Indústria e Melhoramentos. Em 1896, por ocasião da liquidação
forçada da Companhia, a propriedade foi transferida para o Banco da Re-
pública do Brasil, que entra em acordo com a União para que ela adquira
a Ilha definitivamente (WILLEMAN, 2007) (ALVES, 2010).
A aquisição de todas as benfeitorias da Ilha da Marambaia, acontece
com a publicação da Lei nº 1.316, de 31 de dezembro de 1904. Em 23 de
maio de 1906, a Ilha foi colocada à disposição da Marinha do Brasil que a
controla oficialmente, com presença de militares, desde 1908 ano da ins-
talação da Escola de Aprendizes de Marinheiros do Estado do Rio de
Janeiro, que funcionava na Praia da Armação. Entretanto, dois anos de-
pois, em 9 de junho de 1910, a escola foi transferida para a cidade de
Campos dos Goytacazes (RJ) (YABETA, 2014).

3.1 Escola de Pesca

O Abrigo Cristo Redentor foi reconhecido de utilidade pública, pelo


Decreto nº 4.682 de 19 de setembro de 1939, e se instala na Ilha com apoio
e patrocínio do presidente da república Getúlio Vargas, inaugurando um
período de grande prosperidade, glória e felicidade (NÓBREGA, 2005).
24 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Em 19 de agosto de 1943, pelo Decreto-Lei nº 5.760, foi autorizada a


celebração de acordo entre a União Federal que passa a transferência de
uma parte da Marambaia para uma organização, denominada “Fundação
Abrigo do Cristo Redentor”, que ficou responsável pela conclusão e o apa-
relhamento da Escola de Pesca de Marambaia, ou Escola de Pesca Darcy
Vargas, administrada pelo Dr. Raphael Levy Miranda, que proporcionou
oportunidades de ensino técnico e profissionalizante para jovens locais e
de diversas regiões do país (CAMINHA, 2019) (ALVES, 2010).

Figura 5 - Comitiva do presidente Getúlio Vargas chegando à Ilha da Marambaia, em bonde puxado por me-
ninos uniformizados, sendo recebida pela população, em 1940 (Agência Nacional, 23 jun. 1940)

Fonte: Caminha (2019).

Caminha (2019) afirma que, nessa época, ocorreu um fluxo migrató-


rio de trabalhadores e familiares de todo o Brasil em busca de emprego e
oportunidades. Os únicos estados sem representação foram o Rio Grande
do Sul, o Maranhão e o Pará.
A comunidade local viveu grandes momentos de avanços e prosperi-
dade com a criação da Escola de Pesca do Abrigo Cristo Redentor, que
Volume 9 | 25

mantinha dez pavilhões em suas dependências com: fábrica de beneficia-


mento de pescado para a fabricação de conservas e de óleo de fígado de
cação, igreja, fábrica de gelo, frigoríficos, padaria, lavanderia, fábrica de
confecção de redes de pesca, farmácia, hospital-maternidade, correio, ofi-
cina e estaleiro para reparo de embarcações, dependências técnicas para o
ensino da pesca, quarenta casas de pescadores, 12 residências de funcio-
nários e 15 para os empregados da seção industrial (NÓBREGA, 2005) e
(CAMINHA, 2019). Ainda hoje, muitas dessas instalações e as suas estru-
turas físicas são ocupadas pela Marinha.
A morte de Getúlio Vargas significou também uma perda significativa
do apoio financeiro e governamental (ALVES, 2010). Nóbrega (2005)
afirma que os moradores locais lembram com saudades da época de fun-
cionamento da Escola de Pesca. Porém, atualmente, existe um sentimento
de perda irrecuperável dos ganhos obtidos nesse passado.

Figura 6 - Alunos da EPDV reparando redes de pesca


(Agência Nacional, 2 jan. 1944)

Fonte: Caminha (2019).


26 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 7 - Alunos da EPDV aprendendo a construir barcos e consertar peças das embarcações
nos estaleiros da Escola (Agência Nacional, 2 jan. 1944).

Fonte: Caminha (2019).

Em dia 12 de fevereiro de 1971, através do decreto 68.224, foi autori-


zada a reintegração ao patrimônio da União dos bens móveis e imóveis da
Escola Técnica Darcy Vargas e da Fundação Abrigo do Cristo Redentor,
após decretar falência e ser desativada (NÓBREGA, 2005).
Segundo Yabeta (2014) ainda em 1971, a Escola de Pesca foi fechada
e a Ilha entregue a Marinha do Brasil. A partir dessa data, os moradores
da Marambaia começam a viver sob uma nova dinâmica social. A Marinha
assume o protagonismo novamente e cria o Centro de Avaliação da Ilha da
Marambaia (CADIM), na época, a denominação era Centro de Adestra-
mento da Ilha da Marambaia, uma Organização Militar (OM) subordinada
ao Comando do Pessoal de Fuzileiros Navais (CPesFN), que passou a fun-
cionar nas antigas dependências da Escola Técnica Darcy Vargas, após
declarar não possuir mais condições para manter o funcionamento da es-
cola.
Volume 9 | 27

Figura 8 - Instalação central do CADIM e uma das antigas instalações da Escola de Pesca.

Fonte: Acervo pessoal (2019).

3.2 As Relações entre os Remanescentes Quilombolas, Marinha do Brasil e a


União antes do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)

A partir de 1980, começam a acontecer alguns entraves na convivên-


cia entre os remanescentes quilombolas da Ilha da Marambaia e os
militares da Marinha do Brasil, que começa a mover ações na justiça para
retirada definitiva dos ilhéus (OLIVEIRA e VIANNA, 2020, p. 25).
O argumento principal da União para expulsão desses moradores era
de que no período entre 1905 e 1971, no qual a administração da Ilha foi
primeiramente da União e em seguida cedida a Marinha, teriam existido
diversas invasões a esse território. Portanto, eles não tinham direito jurí-
dico a posse das terras, não havia o reconhecimento da presença e nem da
existência de ex-escravos do comendador Breves e, além disso, as deman-
das da comunidade eram tratadas de forma superficial (YABETA, 2011).
Nobrega (2005) afirma que, em alguns destes processos judiciais, mora-
dores foram condenados antes mesmo de ter acesso ao seu conteúdo, sob
a alegação de serem invasores de área de segurança nacional.
Algumas famílias chegaram a ser expulsas de fato. Ao todo, foram
movidas 12 ações de reintegração de posse propostas entre 1996 e 2012
pela União contra os quilombolas. Yabeta (2011) indica que a Marinha
28 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

usou como estratégia a distribuição desses processos em diferentes Varas


Federais. Entretanto, a publicização do conflito tornou a Ilha objeto de
muitos estudos por diversos setores acadêmicos, tais como nas áreas de
Antropologia, História, Educação e Direito.
Um fator essencial na batalha judicial, que nem a Marinha e tão pouco
a comunidade da Ilha da Marambaia esperavam, foi a entrada do Superior
Tribunal de Justiça. Em sua decisão, no ano de 2009, os moradores seriam
caracterizados como remanescentes de quilombo e, por conta disso, não
poderiam ser expulsos de suas terras (YABETA, 2011).
As pressões exercidas pelos militares da Marinha acabaram influen-
ciando na habitação, ocupação territorial e na mistura familiar dos
remanescentes quilombolas e dos ex-funcionários da antiga Escola de
Pesca (NOBREGA, 2005). Muitos desses moradores foram expulsos para
os extremos da Ilha, enquanto os militares se concentraram na parte cen-
tral, que é voltada para o continente.
Hoje, apesar dessa divisão territorial ainda existir, o trânsito entre
militares e moradores é realizado sem grandes impedimentos, principal-
mente entre os mais jovens. Entretanto, ainda se pode perceber alguns
sentimentos de segregação e mal-estar que aumentam ou diminuem de
acordo com a chegada/saída de alguns comandantes. Nóbrega (2005) ex-
plica que esse fator pode ser entendido através da lógica militar que busca
uma separação entre o mundo civil e o militar ou ainda pelo sentimento
de que os ilhéus seriam considerados como “intrusos” de um território
militar.
Havia uma tensão criada nos espaços físicos e outra no campo psico-
lógico realizadas por diferentes meios, tais como ações de Reintegração de
Posse e proibições realizadas no local. Nóbrega (2005) cita que estas pres-
sões não se apresentavam apenas em âmbito judicial, algumas eram
Volume 9 | 29

realizadas, por vezes, de forma violenta no próprio território da Ilha da


Marambaia.
Entre 1971, até o começo do processo de titulação do território qui-
lombola, os moradores sofreram com as proibições da Marinha do Brasil
que derrubavam casas, não permitiam suas ampliações e reformas, des-
truíam às roças/hortas, restringiram o trânsito dos moradores e a pesca
na área. Havia também o controle da Marinha sobre o serviço de trans-
porte para o continente e uma falta de privacidade nas correspondências.
As novas famílias, formadas por meio de casamento, quando gera-
vam seus descendentes eram obrigadas a se amontoar em casas que
cresciam para dentro com divisões dos cômodos já existentes, o que gerava
mais transtorno para esses grupos familiares e dificultava ainda mais a sua
qualidade de vida (NÓBREGA, 2005).
Também existem relatos de processos envolvendo os líderes e repre-
sentantes legais do grupo, com a alegação de que influenciavam e
incitavam a comunidade contra os militares. Entre as principais reclama-
ções dos remanescentes quilombolas havia a falta de diálogo com a
Marinha do Brasil.
Atualmente, para acessar a Ilha da Marambaia é necessária uma per-
missão prévia da Marinha do Brasil, o trajeto realizado se inicia em
Itacuruçá, - Mangaratiba (RJ). O embarque pode ser de duas formas: em
um navio militar que realiza o deslocamento duas vezes ao dia ou através
de lanchinhas dos moradores, nessa última opção paga-se em média R$
30,00. Esse valor pode ser maior, quando o número de passageiros é pe-
queno. Depois de uma viagem que dura 1 hora e 40 minutos, na
embarcação militar, ou de 30 minutos, nas lanchinhas, chega-se à Ilha. A
Marambaia
30 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

é cercada de belezas naturais como cachoeiras, piscina natural e praias, as


quais nem todas possuem moradores. A maior parte deles reside na Praia da
Pescaria Velha, tendo também na Praia da Caetana, Praia do José, Praia do
Cutuca, Praia do Sítio, Praia Suja, Praia Grande e Praia do CADIM (OLIVEIRA
e VIANNA, 2020, p. 25).

No ano de 2002 o Ministério Público Federal deu entrada em uma


Ação Civil Pública contra a União e a Fundação Cultural Palmares pelo re-
conhecimento da comunidade como remanescente de quilombo e pelo
direito a manutenção de seu estilo tradicional de vida, com permissão para
plantar em roças e realizar obras, reparos e reformas em suas casas.
Em seguida, a Fundação Cultural Palmares concede aos moradores a
Certificação de Remanescente de Quilombo. Já em 04 março de 2003,
acontece a fundação da Associação da Comunidade dos Remanescentes de
Quilombo da Ilha da Marambaia – ARQIMAR que representa a luta pelos
direitos dos moradores que atua em diferentes assuntos jurídicos e com os
contatos que envolvem as relações Comunidade-Militares e Comunidade-
Prefeitura.
Desde a sua criação, a ARQIMAR luta pela garantia da permanência
dos moradores, pela posse da terra e pelo autorreconhecimento da comu-
nidade como remanescente quilombola. Essa luta ainda se mantém para
buscar melhorias para a comunidade principalmente em relação aos ser-
viços públicos. Uma das vitórias recentes da população é a possibilidade
de obter o Ensino Médio para os estudantes, esperando apenas a sanção
do governo do estado do Rio de Janeiro. Uma formação adequada pode
trazer mais força e organização política para os moradores, além de per-
mitir uma abordagem maior das práticas culturais desse grupo no
ambiente escolar.
Volume 9 | 31

A criação da ARQIMAR, acontece no mesmo ano da promulgação do


decreto 4887/03, um dos marcos importantes nas lutas pelo reconheci-
mento e titulação territorial quilombola, pois uma das particularidades
deste decreto está no fato dele tratar de direitos para as comunidades e
não apenas para um ser individual. “Logo, o título do território não é emi-
tido em nome das pessoas que compõem o grupo, mas sim no nome da
associação que representa a comunidade (YABETA, 2015, p. 3).”
Para muitas comunidades quilombolas do Brasil a garantia de titula-
ção das suas terras se configura em uma situação de difícil resolução. Entre
os principais complicadores podemos citar a morosidade dos processos ju-
diciários, confrontos com proprietários de terras particulares, disputas
com a União, especulação imobiliária, entre outros.
Yabeta (2011) afirma que acontecem muitas questões burocráticas
que impedem ou dificultam a titulação das comunidades como remanes-
centes de quilombo. Por exemplo, no caso da Ilha da Marambaia houve até
publicação de portaria por ordem da presidência nacional do Incra, pres-
sionada pela Casa Civil e pela Marinha do Brasil, para anular uma outra
publicação no Diário Oficial da União, do dia anterior, em favor da comu-
nidade.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, em 2009, a favor dos re-
manescentes quilombolas da Ilha da Marambaia, deu ainda mais força
para a comunidade local. O tribunal reconheceu o direito dos quilombolas
à posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até que fosse expedida a
titulação definitiva. A desapropriação das terras poderia significar um
risco a continuidade dessa etnia, das suas tradições e cultura. Dadas as
circunstâncias, o tribunal foi contra a ação de reintegração de posse mo-
vida pela União (CASTRO, 2013).
32 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

3.3 As Relações entre os Remanescentes Quilombolas, Marinha do Brasil e a


Prefeitura após a assinatura do TAC

Depois de muitas conversas, confrontos judiciais e disputas territori-


ais, os remanescentes quilombolas da Marambaia e os militares da
Marinha do Brasil assinam um Termo de Ajustamento de Conduta, em
2014, para buscar uma convivência pacífica, que contempla três aspectos:
“(1) a garantia de moradia e reconhecimento da comunidade quilombola,
aos moradores da Ilha da Marambaia; (2) a preservação da biodiversidade
e (3) a defesa nacional” (OLIVEIRA e VIANNA, 2020, p. 26).
A comunidade garantiu o direito a uma área de 53 hectares, ocupada,
na época, por 101 famílias (atualmente, segundo o censo escolar da Ilha,
existem cerca de 192 famílias, cerca de 400 pessoas e aproximadamente 17
casas em construção). Se estabeleceu um prazo máximo de 270 dias para
a conclusão do reconhecimento e titulação da comunidade quilombola pelo
INCRA, sendo fixado que a titulação da comunidade não afetasse a Área de
Preservação Ambiental (APA) de Mangaratiba. Buscou-se limitar os espa-
ços para ambos os grupos e foram redigidas regras para áreas comuns,
estabelecendo fronteiras e horários para os treinamentos militares com
armamento de guerra.
Yabeta (2015) esclarece que a certificação da comunidade como re-
manescente quilombola e a titulação do seu território são processos
distintos e responsabilidade de órgãos diferentes. A Fundação Cultural Pal-
mares realiza a certificação da autodeclaração como remanescente
quilombola e o INCRA realiza o processo administrativo pela titulação do
território com a finalidade de atender as demandas das comunidades qui-
lombolas. Portanto, cabe ao INCRA o reconhecimento, a identificação,
delimitação, demarcação e a titulação dos territórios quilombolas.
O território não é apenas a terra ou espaço ocupado de forma indivi-
dual. Ele corresponde a uma extensão comum ao grupo, definida pela
Volume 9 | 33

comunidade, responsável pela sobrevivência do grupo e de caráter simbó-


lico envolvendo laços de afetividade, religiosidade e memória (YABETA,
2015).
Em 08 de setembro de 2011, a eletricidade finalmente é levada para
as casas dos moradores da comunidade, transformando as suas vidas. Essa
era mais uma das exclusões que o grupo vivia, pois, até esse momento,
apenas a Marinha possuía geradores a óleo, com um valor bem elevado
chegando a aproximadamente R$ 74 mil mensais, para suprir suas neces-
sidades. Em pleno século XXI ainda parecia impossível que os ilhéus
poderiam usufruir dos benefícios da eletricidade, pois viviam sem um dos
itens básicos da modernidade, assim como muitos grupos desfavorecidos
socialmente.
Em 2014, a Fundação Cultural Palmares emite a certificação de au-
torreconhecimento para a comunidade. E em 13 de maio de 2015, o INCRA
divulga o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do ter-
ritório quilombola da Ilha da Marambaia, delimitando as áreas
pertencentes ao quilombo.
A comunidade recebe oficialmente a sua titulação em 17 de setembro
de 2015 e no dia 08 de novembro, do mesmo ano, os moradores realizaram
uma comemoração na Ilha da Marambaia, pela garantia do direito a posse
de suas terras. Essa solenidade cívico-militar contou com a presença dos
ilhéus, universitários convidados, membros de outras comunidades qui-
lombolas do Rio de Janeiro, imprensa, militares, representantes
municipais e do governo do estado do Rio de Janeiro, do Ministério Público
Federal, Ministério da Defesa e do ministro de Desenvolvimento Agrário
(extinto MDA, atualmente Sead - Secretaria Especial de Agricultura Fami-
liar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da
República). Assim aconteceu a assinatura do título de propriedade das ter-
ras quilombolas.
34 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

O presidente da ARQIMAR, na época, ressaltou a importância de con-


quistar a titulação que a comunidade tanto almejava, para que assim
pudesse se desenvolver com mais dignidade, justiça e igualdade. Com a
posse de suas terras, novas possibilidades se abririam como, por exemplo,
construção da sede da associação e das suas residências, além de melhorias
nas suas condições de vida e de resistência. Também revelou o seu desejo
e esperança por avanços para a comunidade quilombola e caiçara da Ilha
da Marambaia, rememorou a época da Escola Darcy Vargas, pediu por
mais esforços na implantação de políticas públicas na área da educação,
saúde, transporte, saneamento, valorização da cultura e, também, pelo an-
damento no reconhecimento da titulação de outras comunidades
quilombolas no Brasil. Segundo ele, as lutas pelo direito a pose do seu ter-
ritório começaram em torno de 1995 e 1997, quando tomaram consciência
de seus direitos, mas, formalmente, com a fundação da associação em
2003.
Uma ex-diretoras e ex-presidente da ARQIMAR, afirma que foi em
meio aos processos de reintegração de posse e às acusações de que os mo-
radores da Ilha eram na verdade “invasores” que as lutas pelo título da
posse tiveram seu início. Assim, os ilhéus recorreram ao Ministério Público
e só então descobriram a redação do Art. 68 da Constituição Federal, de
1988. Ela afirma que até os anos 2000 os remanescentes quilombolas da
Marambaia desconheciam tanto o Art. 68 quanto o decreto 4887/03,
sendo mais de 10 anos de lutas acirradas contra a negação de sua etnia e
contra os preconceitos tanto fora quanto na própria Ilha.
A primeira comemoração relativa ao dia da consciência negra, como
proprietários de suas terras, ocorreu no dia 20 de novembro de 2015. A
titulação foi considerada uma grande conquista para a comunidade, evi-
denciada não só pela possibilidade de domínio de suas terras e de realizar
construções/reparos em suas residências, mas também pelo histórico de
Volume 9 | 35

luta neste processo de reconhecimento de sua identidade cultural local,


que contou com o apoio de diversos parceiros como ONGs e universidades,
que reforçam um movimento de luta, de resistência e de empoderamento
para outras comunidades que ainda batalham pelo mesmo reconheci-
mento.
As relações de convivências na Ilha da Marambaia são repletas de ele-
mentos a serem analisados cautelosamente. Entre elas estão algumas
Ações Cívico Sociais (ACISO), como por exemplo a disponibilidade de
transporte entre o CADIM e Itacuruçá, na embarcação militar, que cos-
tuma fazer a viagem duas vezes por dia, geralmente, saindo do continente
às 7 horas e 15 minutos, no período da manhã, e as 18 horas, já no início
da noite.
O embarque é realizado seguindo a hierarquia militar, antes da en-
trada todos se identificam por nome ou número próprio para cada grupo,
militares, moradores, professores e visitantes permanentes, esses últimos
possuem numeração e todos possuem carteirinha de identificação, apenas
os visitantes “temporários” dos militares ou dos moradores são os que se
identificam apenas pelo nome e endereço de quem irá se responsabilizar
por eles.
A ordem de embarque é: primeiro o Comandante, seguido dos oficiais
pelas suas patentes, em seguida os fuzileiros, aspirantes, por fim profes-
sores e os moradores – por vezes essa ordem se modifica a depender do
oficial de comando de embarque. Quando há convidado dos militares eles
embarcam com esses, os últimos a entrarem são os convidados dos rema-
nescentes quilombolas. Os professores da escola, às vezes são chamados
logo de início, mas também podem ficar para o último grupo, junto com
os remanescentes quilombolas ou com os convidados desses.
36 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Existe, também, a prestação de serviço médico-ambulatorial em um


posto de saúde mantido pela Marinha que atende casos de menor urgên-
cia. A prefeitura colabora com profissionais, agentes de saúde, que buscam
um contato de prevenção mais direto com os ilhéus, porém, casos mais
graves e exames são realizados no continente, levados em lanchinhas dos
militares ou também dos próprios moradores.
Os militares e a prefeitura também trabalham em conjunto nas cam-
panhas, como a vacinação de animais domésticos dos moradores, e em
alguns projetos que envolvem os estudantes da unidade escolar, como dis-
tribuição de cestas básicas, projetos esportivos, ônibus para levar os alunos
em eventos etc.
A escola municipal quilombola possui professores cedidos pela pre-
feitura de Mangaratiba, porém, o transporte desses profissionais é
realizado pela Marinha do Brasil, o que traz impactos no funcionamento e
na rotina da escola, assim como nos horários das aulas. A composição das
turmas é diversa, multisseriadas nos anos iniciais e sexto e sétimo ano e
seriada para oitavo e nono do Ensino Fundamental, sendo de horário in-
tegral para os anos iniciais.
A comunidade batalha pela preservação de suas raízes culturais cons-
tantemente e nas últimas décadas vem resgatando práticas como o jongo,
a capoeira, o carnaval, o samba de roda, o artesanato e a história oral que
recontam a trajetória dos moradores da Ilha.
No Dia da Consciência Negra, a comunidade realiza uma grande fes-
tividade que costuma ocorrer na Praia da Armação, próxima as ruínas de
uma das antigas senzalas da Ilha da Marambaia, local de muitas histórias,
tradições e contos atuais de aparições que os moradores guardam um
imenso respeito. Muitos dos ilhéus não costumam frequentar o local por
considerar “carregado” pelo sofrimento dos ex-escravos e os que moram
nas proximidades dele buscam não sair das suas residências em horários
Volume 9 | 37

noturnos. Por conta do mau tempo, a festividade também acontece na sede


da ARQIMAR que se localiza na Praia Suja.
A festa tem início com os discursos de saudação aos presentes pela
presidente da ARQIMAR e de seus diretores, que destacam a importância
de preservar e manter a cultura dos antepassados viva, assim como abor-
dam a necessidade de continuar com a luta pelos direitos dos grupos
tradicionais e pela igualdade racial. Segue com as apresentações das ma-
nifestações culturais e encerra com a feijoada como cardápio principal,
com ingredientes doados pelos próprios moradores.
A atual sede da ARQIMAR foi finalizada apenas no ano de 2019 e não
ocorreu de forma simples, devido à necessidade de transporte do material
para a obra, pois os transportes de grandes quantidades de tijolos, sacos
de cimento e outros itens necessários para as construções das edificações
são bem difíceis.
Em 08 de janeiro de 2020, a prefeitura de Mangaratiba, através das
secretarias de Fazenda e Obras, Planejamento e Urbanismo, entregou a
licença de construção para os moradores da comunidade quilombola. O
encontro aconteceu na sede da ARQIMAR, com um café da manhã com
comidas típicas preparadas pelos moradores. Na solenidade, estiveram
presentes alguns políticos, entre eles o prefeito, vice-prefeito.
O primeiro ano, após o início das lutas pela titulação, no qual a co-
munidade não pode realizar a comemoração do dia 20 de novembro foi
em 2020, devido às restrições da pandemia e ao isolamento social reco-
mendado pelas autoridades de saúde governamentais. Entretanto, a
comunidade se organizou nas redes sociais principalmente pelo YouTube
e Facebook.
Em de março de 2021, representantes das Comunidades Quilombolas
(da Ilha da Marambaia e de Santa Rita e Santa Justina) de Mangaratiba se
reuniram com a prefeitura municipal, através da Secretaria de Assistência
38 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Social e Direitos Humanos, com a finalidade de dar início a regulamenta-


ção do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial.
O objetivo do encontro era de contemplar a adequação de leis muni-
cipais para incentivar a cultura quilombola, assim como promover
políticas públicas de valorização das comunidades negras e de outras et-
nias. A ideia era traçar estratégias para fortaleces a luta contra a
desigualdade racial e exaltar a memória Quilombola da cidade. A criação
do Conselho Municipal será para a elaboração dessas propostas. Outras
iniciativas apresentadas foram: o registro da Ilha da Marambaia como Pa-
trimônio Histórico-cultural e Imaterial da cidade; a inclusão da história
dos Quilombos de Mangaratiba no ensino municipal; e ainda, a elaboração
dos projetos ‘Pequena África’ e ‘Feira do Quilombo’, que vão disseminar a
cultura Quilombola e tradições locais para toda a população.
Ainda em março, o prefeito e o secretário de Cultura e Turismo visi-
taram a Ilha encontrando o Comandante do CADIM e a presidente da
ARQIMAR para apresentar projetos de desenvolvimento sustentável que
envolvam a população da Marambaia e “incentivar a criação de uma fonte
responsável de geração de renda e de incentivo à economia local”. A pro-
posta apresentada era voltada a investimentos na agricultura familiar e
ampliação do turismo sustentável na região. Os projetos estão em fase de
planejamento, pois a pandemia ainda impossibilita diversas ações.
Apesar dos remanescentes quilombolas serem considerados pelo Mi-
nistério da Saúde um dos grupos prioritários na vacinação contra o novo
coronavírus e, no município de Mangaratiba, a campanha de imunização
ter iniciado na segunda semana do mês de fevereiro de 2021, na Ilha da
Marambaia a primeira fase da vacina foi aplicada no dia 16 de abril e a
segunda dose em 09 de julho. Em junho a prefeitura realizou a doação de
cestas básicas as famílias quilombolas.
Volume 9 | 39

De acordo com Secretaria Municipal de Saúde de Mangaratiba


(SMSM), foram vacinadas, contra a COVID19, 216 pessoas com a primeira
dose e 221 com a segunda, entre 18 e 69 anos. A vacina aplicada foi a As-
traZenica realizada nas dependências da unidade escolar da Ilha. Os
profissionais da prefeitura em conjunto com militares da Marinha do Bra-
sil trabalharam na imunização. A vacinação foi muito importante para a
comunidade, pois alguns dos ilhéus necessitam sair para trabalhar e reali-
zar suas atividades cotidianas. Mesmo distante do continente a doença
também chegou no local, alguns moradores adoeceram e uma delas que
tinha 62 anos faleceu da doença na mesma semana do início da vacinação.

Considerações finais

A Ilha da Marambaia é um território que apresenta uma variedade de


elementos únicos para seus moradores. Ao conhecer um pouco da história
da localidade e as relações de poder vivenciadas na Ilha, os professores, os
agentes comunitários e os estudantes podem refletir com mais profundi-
dade sobre os aspectos da realidade que os cercam.
As questões que envolvem e consideram a formação da identidade
pessoal local precisam ser trabalhadas constantemente e, neste processo,
a escola pública da Ilha apresenta um papel primordial. Os educadores da
escola e aos agentes comunitários, que promovem atividades por meio da
associação (ARQIMAR), necessitam buscar a inserção e apropriação das
informações acerca do contexto sociocultural e histórico que a unidade es-
colar e a comunidade estão inseridas, pois isso influenciará extremamente
a sua prática.
Nesse sentido, ao buscar referências nos conhecimentos prévios dos
estudantes, nos saberes e fazeres da comunidade local, na sua história de
luta pela posse de suas terras e nos elementos presentes no cotidiano da
comunidade escolar, os educadores e agentes comunitários locais podem
40 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

ir além de uma práxis pautada na reprodução do currículo e métodos adi-


tados pela abordagem Tradicional de Ensino. Mais ainda, ao (re)conhecer
o contexto sociocultural e histórico da comunidade, suas ações possibilita-
rão a realização de práticas pedagógicas que atuem de forma
transdisciplinar, envolvendo conceitos que vão além do currículo formal e
descontextualizado da realidade local.
Sendo assim, levar os conhecimentos relativos aos direitos individu-
ais, que os membros das comunidades possuem, pode auxiliar no
sentimento de pertencimento, na diminuição das desigualdades sociais e
na luta pela consolidação de uma formação integral e cidadã dos educan-
dos. Por tudo isso, é essencial buscar o prosseguimento de projetos e de
investigações que auxiliem os moradores nesse processo de autorreconhe-
cimento.

Referências

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Legislação Informatizada.

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História, 2005.

OLIVEIRA, Cristiano G. de; VIANNA, Márcio de A. Capítulo 1: Etnomatemática, globalização


e identidade cultural local no contexto da educação quilombola. In: Povos
originários e comunidades tradicionais, Vol. 5: trabalhos de pesquisa e de
extensão universitária [recurso eletrônico] / Francisco Gilson Rebouças Porto
Júnior; et al (Orgs.), Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. p. 20-51.

YABETA, Daniela.. “Marinha versus Marambaia”: conflito pela titulação de um território


quilombola no Rio de Janeiro. In: V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2011, Porto Alegre. V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2011.

________. MARAMBAIA - História, Memória e Direito na luta pela titulação de um


território quilombola no Rio de Janeiro (c. 1850 - tempo presente). Tese (Doutorado
em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense (UFF). Niterói, 2014.
42 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

________. Projeto: Quilombos do Sul Fluminense - História, Memória e Direito na luta pela
titulação de seus territórios. In: 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2015, Curitiba. 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2015.

WILLEMAN, Estela Martini. Marambaia: “Ilha subversiva” múltiplos aspectos do processo


de formação de identidade no “território negro” remanescente de quilombo.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 167.
Capítulo 2

Narrativas caiçaras: resistências,


permanências e pertencimento ao lugar 1

Caiçara narratives: resistance, permanence and belonging to the place


Larissa Gândara Simão 2
Luciene Cristina Risso 3

1 Introdução

Antes mesmo dos primeiros raios de sol surgirem no horizonte, al-


guns pescadores já se preparam para sair em direção ao mar, enquanto
alguns senhores remendam as redes do cerco. Essa imagem recorrente
marca os dias da comunidade caiçara que habita a Praia do Sono, locali-
zada no sul de Paraty (RJ), uma comunidade tradicional que mantém sua
existência baseada nos ensinamentos que lhe foram passados há anos, mas
que, em contrapartida, não se cristalizaram, pelo contrário, acompanham
e dialogam com o presente.
Aqui o ‘tradicional’ carrega o sentido de tradição a determinados as-
pectos culturais, sentido de pertencimento a uma terra habitada há séculos
e que se tornou lugar para diversas comunidades, tradição no manejo de
recursos respeitando os próprios ciclos naturais, ou seja, sua capacidade

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e de uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas). Este capítulo é parte da dissertação de mestrado de SIMÃO, L.G., 2021.
2
Mestre em Geografia (UNESP). Endereço: Rua Doutor José da Silva Carvalho, 275. Jardim Lagoinha. Santa Rita do
Passa Quatro – SP. Endereço do currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1856725839362669
Endereço do ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7998-0931 E-mail: [email protected]
3
Doutora em Geografia (UNESP). Mestra em Conservação e Manejo de Recursos (UNESP). Graduada em Geografia
(UNESP). Professora Assistente Doutora da UNESP (Ourinhos/SP). Docente do Programa de Pós-Graduação em
Geeografia (UNESP/Rio Claro). Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1644614435495857 ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6238-356X E-mail: [email protected]
44 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

de recuperação. Com isso, o ‘tradicional’ não traz consigo o viés da crista-


lização, imutabilidade, mas sim, é base para entender a comunidade se
transformando e seguindo os caminhos traçados pela modernidade, se re-
fazendo em determinadas ações e não deixando de lado o que lhe
caracteriza por ser tradicional, seus vínculos sociais e rituais simbólicos
que cultivam com seu ambiente biofísico.
O Sono é um dos núcleos de ocupação da Reserva Ecológica Estadual
da Juatinga, uma unidade de conservação concretizada em 1992, e que foi
criada em um território já habitado por comunidades tradicionais há mais
de um século.
Essas áreas protegidas representam um modelo de pensar outras es-
tratégias e possibilidades de ser e existir com a natureza, promovendo a
proteção da sociobiodiversidade. Contudo, sua criação também pode tra-
zer conflitos socioambientais quando a implantação é feita verticalmente,
sem consultar as pessoas que já viviam ali anteriormente. Essa dicotomia
criada entre comunidades tradicionais e áreas protegidas geram conflitos
territoriais que culminaram, e ainda culminam, em expropriações e expul-
sões.
De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC), as unidades que permitem a coexistência de populações no seu
interior, utilizando os recursos de modo consciente, são denominadas de
Uso Sustentável, enquanto as que aceitam apenas pesquisas científicas
e/ou atividades de educação ambiental são as de Proteção Integral. A Re-
serva Ecológica Estadual da Juatinga possui uma singularidade especial,
pois ela é considerada como non edificandi, já que Reservas Ecológicas não
constam no SNUC (BRASIL, 2000). Depois da criação do sistema, a REEJ
tinha o prazo de dois anos para se recategorizar, no entanto, isso não foi
concluído até hoje.
Volume 9 | 45

No decreto de criação da Reserva (RIO DE JANEIRO, 1992) é possível


notar uma contradição legal, já que ele destaca a intenção de fomentar a
cultura das populações tradicionais ali fixadas, além de compatibilizar a
utilização dos recursos naturais com os princípios conservacionistas, no
entanto, reservas ecológicas, não permitem essas funções. Analisando o
decreto, fica evidente que a criação da reserva objetivou evitar possíveis
conflitos com a população já residente naquela área, contudo, devido às
restrições que passaram a ser impostas para os caiçaras, além da falta de
conhecimentos destes em relação ao que seja uma reserva e suas normas
e da falta de diálogo com o órgão gestor, constata-se que esse objetivo não
foi alcançado em sua totalidade.
Assim, é necessário recategorizar a reserva dentro do SNUC, pois
parte de seu território possui características de unidade de Proteção Inte-
gral e, nas vilas caiçaras, as características são de unidade de Uso
Sustentável.
Essa comunidade, que tem sua história marcada por conflitos e resis-
tências, medos e conquistas, não se coloca como vítima em consequência
das diversas batalhas já travadas, mas sim, como atora na luta por reco-
nhecimento na apropriação deste e na construção do seu próprio modo de
vida, dinâmico, que se altera e se adapta as mais diversas adversidades.
Assim, a partir das histórias de vivências e experiências por eles contadas,
foi possível perceber como fizeram desse espaço seu lugar e a importância
que representa para eles.
A origem dos conflitos teve início com a abertura de estradas na
região, como a estrada interestadual Paraty-Cunha que começou a ser
construída em 1956 e com a Rio-Santos (BR-101), inaugurada em 1974.
Consideradas frentes de expansão desenvolvimentista e com o objetivo de
integrar o país, as rodovias começaram a rasgar as belas paisagens até
46 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

então preservadas, chegando a lugares isolados, afirmando ser isso o


progresso.
Esse “progresso” trouxe consigo a urbanização, a degradação do meio
natural e a especulação imobiliária, um preço muito alto para os caiçaras,
já que esse “des-envolvimento” contrapõe-se ao envolvimento dos mes-
mos em relação às suas atividades e seu lugar.
Para tentar preservar a região do aumento dos interesses econômicos
e dos maciços investimentos públicos em projetos de infraestrutura, o go-
verno federal criou o Parque Nacional da Serra da Bocaina (BRASIL, 1971),
abrangendo parte dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo e a Área de
Proteção Ambiental de Cairuçu (APA Cairuçu) (BRASIL, 1983). Posterior-
mente, o Governo Estadual do Rio de Janeiro criou a REEJ, sobreposta a
APA, na tentativa de barrar a especulação imobiliária que se instalou for-
temente na área, responsável por conflitos que se arrastaram por anos.
Dentro deste contexto, este artigo envolve a poética da existência de
uma comunidade caiçara que habita um território que, recentemente, se
transformou em uma área protegida non edificandi. Logo, se dedicou a
compreender, através de narrativas das experiências caiçaras, os sentidos
de lugar, corroborado pelas lutas travadas para garantir a permanência no
território.

2 Identidade cultural caiçara e as relações de lugar e território

Segundo Cruz (2012), comunidades tradicionais são identificadas a


partir de traços de identidade cultural definidos, além de uma forte ligação
territorial constituída sobre um trabalho coletivo.
Essas populações tradicionais podem ser vistas como forte aliadas da
conservação da biodiversidade, pautando essa análise em uma exploração
de recursos limitada para sua subsistência, baseada na agricultura, princi-
palmente de mandioca e banana e da pesca artesanal. Atualmente, a base
Volume 9 | 47

da sua economia tem-se alterado, consolidando o turismo como principal


atividade em várias comunidades tradicionais, devido à abertura de rodo-
vias e à chegada da especulação imobiliária, como é o caso da REEJ.
Assim, o caboclo do litoral, conhecido como caiçara, recebe essa de-
signação devido ao resultado da convergência de diversos fatores de ordem
histórica, geográfica, política e econômica. Eles provêm da miscigenação
entre o colonizador português e o indígena do litoral, desde o século XVI.
Desta forma, esses caiçaras que habitam o litoral transformaram o
espaço em lugar a partir das experiências cotidianas. O conceito de lugar
na Geografia Tradicional sempre esteve ligado à noção de localização ab-
soluta. Somente com o advento da corrente humanista na década de 1970
que o interesse pelo lugar como categoria de análise da Geografia se con-
solidou de forma significativa. Esta corrente propõe “uma análise do lugar
como mundo das experiências intersubjetivas dos indivíduos. [...] funda-
mental para entender os sentimentos espaciais a partir da experiência
cotidiana, do simbolismo e do apego pelo lugar” (RODRIGUES, 2015, p.
5038). Essas experiências de lugar associam-se ao sentido de raiz, segu-
rança, ninho, acolhimento e pertencimento, adquiridos ao longo do tempo,
no dia a dia.
Em seu artigo, Rodrigues (2015, p. 5039) cita Lowenthal (1961) para
explanar as ideias deste último sobre o lugar, mostrando que para ele te-
mos um conhecimento muito restrito do planeta como um todo, mas
temos amplo conhecimento sobre a “delgada fração do globo” em que ha-
bitamos. Desta forma, “a experiência do indivíduo é essencial para
entender aspectos do lugar que ninguém, que não o tenha vivenciado pes-
soalmente, poderia saber”.
No livro “Espaço e lugar: a perspectiva da experiência” de Yi-Fu Tuan
(1983, p. 3), o autor explica o lugar como sendo “segurança e o espaço é
liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro”. Ainda de
48 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

acordo com o autor, “o lugar pode adquirir profundo significado para o


adulto através do contínuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos”
(TUAN, 1983, p. 37).
A experiência vivida no cotidiano é responsável por constituir o lugar,
que será criado através do tempo, já que quanto maior o período em que
se vive em um determinado lugar, maior apego e envolvimento se terá por
ele e mais profundas e significativas serão as experiências. “Viver em um
lugar é experienciá-lo, é estar ciente dele tanto nos ossos, como na cabeça”
(TUAN, 2018, p. 14).
Entende-se, portanto, que um espaço se torna lugar na medida em
que as experiências e vivências vão ocorrendo e trazendo afetividade e sig-
nificado para quem vive ali. O lugar constrói identidades sociais e culturais
enquanto ele é vivido. É nele que o indivíduo se expressa e encontra suas
referências pessoais. Um espaço se torna lugar no dia a dia, nas atividades
comuns de cada indivíduo, na complexidade de cada rotina, quando ele
passa a ser experienciado e valorizado. “Lugar é o sentido do pertenci-
mento, a identidade biográfica do homem com os elementos do seu espaço
vivido. No lugar, cada objeto ou coisa tem uma história que se confunde
com a história dos seus habitantes” (TUAN, 1983, p. 14).
E assim como o lugar, entendemos o território enquanto espaço apro-
priado, constituído por experiências diárias, apresentando, portanto, a
identidade de quem o habita, proporcionando segurança. Consequente-
mente, o lugar, para ser constituído, necessita dessas mesmas condições,
assim podemos afirmar que não existe território sem lugar.
Superando a visão tradicional, o conceito de território passou a ga-
nhar um novo enfoque a partir da década de 1980, entendendo sua fluidez
e constituições que ultrapassam a noção de poder intimamente ligada a
ele. Com isso, além do cunho político e econômico ele passou a agregar
uma visão cultural. Bonnemaison (2002), geógrafo francês, trouxe para o
Volume 9 | 49

debate um enfoque cultural, considerando os agentes sociais do território


e suas territorialidades segundo o vivido, auxiliando os trabalhos da Geo-
grafia Cultural, afirmando que “um território é [...] um tipo de relação
afetiva e cultural com uma terra, antes de ser um reflexo de apropriação
ou de exclusão do estrangeiro” (BONNEMAISON, 2002, p. 101).
Para o autor (2002, p. 86), o território possui uma função social e
uma função simbólica. Essa imaterialidade presente no território marca a
cultura e, devido à existência desta, é “que se cria um território”. Ele tam-
bém alega que a cultura:

Tende a ser compreendida como uma outra vertente do real, um sistema de


representação simbólica existente em si mesmo e, se formos ao limite do raci-
ocínio, como uma “visão de mundo” que tem sua coerência e seus próprios
efeitos sobre a relação da sociedade com o espaço. Para os geógrafos, a cultura
é rica de significados porque é tida como um tipo de resposta, no plano ideo-
lógico e espiritual, ao problema do existir coletivamente num determinado
ambiente natural, num espaço e numa conjuntura histórica e econômica colo-
cada em causa a cada geração (BONNEMAISON, 2002, p. 86).

Cultura e território não podem ser dissociados, segundo Bonnemai-


son (2002), pois o segundo depende do primeiro para ser criado e
constituído. É pela cultura que uma sociedade revela suas simbologias e,
assim, se consolida em um território, deixando suas marcas e se expres-
sando.

A ideia de cultura, traduzida em termos de espaço, não pode ser separada da


ideia de território. É pela existência de uma cultura que se cria um território e
é por ele que se fortalece e exprime a relação simbólica existente entre cultura
e o espaço. A partir daí, podemos chamar de abordagem cultural ou análise
geocultural tudo aquilo que consiste em fazer ressurgir as relações que existem
no nível espacial a “etnia” e a sua cultura (BONNEMAISON, 2002, p. 101).
50 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Calvente (1993, p. 20) afirma que no litoral a cultura caiçara está viva
há séculos e “não se extinguiu e nem se contrapôs em bloco à cultura do-
minante no processo de urbanização; vão coexistir, de forma simultânea,
práticas que recusam, aceitam ou apenas se conformam à nova lógica de
produção do espaço”.
Ainda segundo a autora (1993, p. 88), “assim como a cultura, o terri-
tório carrega uma grande carga de subjetividade: é como as pessoas veem
o espaço ao qual pertencem, no qual têm a familiaridade do cotidiano e de
densas relações sociais formadas por parentesco e vizinhança” e aponta
que a cultura está em pleno movimento, é dinâmica “e se transforma a si
própria sempre que necessário”.

Assim, a cultura caiçara subsiste, dentro de todo o processo de transformação


que o território está atravessando. É dinâmica, e não é possível procurar hoje
como cultura caiçara a forma de ver o mundo de décadas atrás, pois a trans-
formação do espaço exigiu a transformação da cultura. O dinamismo próprio
da cultura é que a faz surgir e se transformar (CALVENTE, 1993, p. 22).

A cultura caiçara e o conhecimento tradicional proveniente dela são


fundamentais para a formação de sua identidade. “A identidade caiçara é
uma identidade territorial de resistência simbólica, mais relacionada ao
passado que as possibilidades de um futuro” (CALVENTE, 2015, p. 154).
Essa expressão do vivido, a territorialidade é “[…] compreendida
muito mais pela relação social e cultural que um grupo mantém com a
trama de lugares e itinerários que constituem seu território do que pela
referência aos conceitos habituais de aproximação biológica e de fronteira”
(BONNEMAISON, 2002, p. 99-100). Pensando no que é fixo e no que é
mobilidade, Bonnemaison, (2002, p. 114) pensa o território em forma de
lugares hierarquizados, ligados por uma rede de itinerários:
Volume 9 | 51

[...] a territorialidade de um grupo ou de um indivíduo não pode se reduzir ao


estudo de seu sistema territorial. A territorialidade é a expressão de um com-
portamento vivido: ela engloba, ao mesmo tempo, a relação com o território
e, a partir dela, a relação com o espaço “estrangeiro”. Ela inclui aquilo que fixa
o homem aos lugares que são seus e aquilo que o impele para fora do território,
lá onde começa “o espaço”.

Para Saquet (2009, p.83), geógrafo brasileiro, existe uma diferencia-


ção entre espaço e território, “porém é fundamental reconhecer que
espaço e território não estão separados: um está no outro. O espaço é in-
dispensável para a apropriação e produção do território”. O autor entende
as dimensões políticas, econômicas, culturais e ambientais agindo direta-
mente na formação dos territórios, que:

[...] se caracterizam pelo controle e pelo domínio, pela apropriação e pela re-
ferência, pela circulação e pela comunicação, ou seja, por estratégias sociais
que envolvem as relações de poder, materiais e imateriais, historicamente
constituídas. Os homens têm centralidade na formação de cada território: cris-
talizando relações de influência, afetivas, simbólicas, conflitos, identidades etc
(SAQUET, 2009, p. 85).

Essas dimensões citadas por Saquet (2009) também são incorpora-


das pela territorialidade, segundo Haesbaert (2005). Para ele, a dimensão
cultural ainda merece destaque, já que todo território, além de funcional é
simbólico:

[...] todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes


combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço
tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território
é funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou
abrigo (“lar” para o nosso repouso), seja como fonte de “recursos naturais” –
“matérias-primas” que variam em importância de acordo com o(s) modelo(s)
de sociedade(s) vigente(s) (HAESBAERT, 2005, p. 6676).
52 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Desta forma, a partir das últimas décadas do século XX, fica evidente
a mudança de enfoque nos estudos sobre território com a incorporação da
dimensão cultural em sua análise. Nota-se a presença tanto da materiali-
dade quanto da imaterialidade nas suas concepções, fortalecendo a visão
simbólica do mesmo. Portanto, território é constituído de simbolismos,
identidades e memórias pela comunidade que o habita.

3 As unidades de conservação no Brasil e seus conflitos

No Brasil, a primeira UC criada foi o Parque Nacional do Itatiaia, es-


tabelecido em 1937 na divisa entre os estados do Rio de Janeiro e Minas
Gerais, próximo ao estado de São Paulo, na Serra da Mantiqueira. Tinha a
finalidade de proporcionar lazer e estimular as pesquisas científicas. Vale
ressaltar que a criação do Itatiaia foi considerada tardia, visto que o Brasil
representa uma das maiores biodiversidades do mundo.
Até a implantação do Código Florestal existiam cinco categorias de
áreas protegidas, sendo que nenhuma admitia a presença de comunidades
tradicionais em suas áreas: Parques Nacionais, Florestas Nacionais, Flo-
restas Protetoras, Florestas Remanescentes e Reservas Florestais.
Já em 1965, o Código Florestal passou a definir como unidades de
conservação: Floresta Nacional, Estadual e Municipal, Parque Nacional,
Estadual e Municipal e Reservas Biológicas. Reserva Legal e Áreas de Pro-
teção Permanentes não faziam parte dessa categoria.
Além do Código Florestal, outros órgãos foram criados no Brasil para
dar suporte à questão ambiental e contribuir na gestão dessas áreas pro-
tegidas como, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), criado em 1967.
Somente em 1992 passou a tramitar no Congresso Nacional o Projeto
de Lei nº 2892 com a finalidade de criar um sistema nacional de unidades
Volume 9 | 53

de conservação. Contudo, a Lei nº 9.985 que institui o Sistema Nacional


de Unidades de Conservação só foi aprovada em 2000.
De acordo com o SNUC, no art. 2º inciso I, as unidades de conserva-
ção caracterizam-se por ser um:

Espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicio-


nais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder
Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial
de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção
(BRASIL, 2000, p. 1).

Segundo Martins (2012), se por um lado a criação do SNUC permitiu


ao país inovar quanto à legislação, na organização e proteção dos recursos
naturais e na delimitação de espaços específicos para se tornarem unida-
des de conservação, por outro lado acabou gerando uma série de conflitos
ambientais e disputas por recursos abrangidos por esses espaços naturais
protegidos.
Vista a questão das comunidades tradicionais, ainda percebidas e tra-
tadas no Brasil em segundo plano, o Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de
2002, (BRASIL, 2002) proporcionou o reassentamento a elas, no entanto
muitas ainda sofrem com a questão da regularização fundiária e vivem
com receio de perder suas terras.
Seguindo a tendência global, a percepção de conflitos ambientais pas-
sou a ser discutida com mais importância no Brasil também no final do
século passado, depois de convenções, congressos e reuniões que aconte-
ceram pelo mundo que tratavam dos recursos naturais, sua
disponibilidade para as gerações futuras e uma possível forma de conter a
perda da diversidade biológica através da criação e implantação de áreas
protegidas.
54 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Contudo, essas áreas protegidas foram criadas e implantadas a partir


do modelo adotado nos Estados Unidos, espaços em seu estado originário,
sem interferência humana, retirando populações que há séculos perten-
ciam àquele território.
Com isso, a origem dos conflitos está atrelada a essas primeiras áreas
protegidas, baseadas na visão preservacionista, que muitas vezes não
apresentam uma regularização fundiária, como é o caso da REEJ. Elas des-
consideram a presença de populações em áreas vistas como selvagens ou
isoladas, por exemplo, e, até mesmo, a interação estabelecida entre esta e
o meio ambiente, colocando a diversidade sociocultural em segundo plano,
supondo que essas comunidades seriam incapazes de realizar um manejo
consciente dos recursos naturais. Os conflitos acontecem em territórios
sob a propriedade oficial do Estado, mas controlados, de fato, pelos resi-
dentes locais que exploram os recursos.
A criação de espaços naturais protegidos que excluem aqueles que
usufruem de seus recursos só tende a agravar as discordâncias entre eles.
Na verdade, a questão se dá com o ser, ser caiçara, detentor do conheci-
mento sobre o lugar e de seus recursos e estar vivendo em uma UC, criada
após a fixação dessa população no território e tendo que cumprir regras e
leis ambientais, muitas vezes, contraditórias com suas realidades e normas
carentes de legitimidade.
Nota-se ultimamente um interesse maior no debate pelas comunida-
des tradicionais e sua relação com a natureza, e, a partir de sua auto-
organização, empoderamento e fortalecimento perante os órgãos de ges-
tão de unidades de conservação e da Federação, Estados e Municípios,
essas comunidades vão ganhando espaço na participação dos processos
decisórios sobre seus próprios territórios. Não é mais admissível que a po-
lítica ambiental vigente, ignorando as práticas conservacionistas e
Volume 9 | 55

sustentáveis dessas populações, seja passível em não garantir a perenidade


das comunidades tradicionais.

4 Resistindo no território, permanecendo no lugar

A fim de entender a visão dos caiçaras sobre os aspectos aqui apon-


tados foram realizados trabalhos de campo para o local, possibilitando
entrevistar alguns moradores por meio de um roteiro planejado previa-
mente ao campo, com base nos objetivos de análise da pesquisa.
A escolha pelo método de pesquisa a partir da história oral se deu por
ser uma técnica que se utiliza das entrevistas para registrar narrativas das
experiências humanas e, desta forma, produzir conhecimento. A história
oral valoriza as experiências e a preciosidade da descoberta presente nos
diálogos e se contrapõe aos métodos científicos precisos, com hipóteses
previamente estabelecidas. “A chamada história oral, portanto se mostra
alternativa coerente com o tempo do vivido, privilegiado pelos aparelhos
dispostos pela tecnologia moderna para capturas documentais” (MEIHY,
2010, p. 180).
Um dos gêneros da história oral é a história oral temática, que, se-
gundo Meihy; Ribeiro (2011, p. 88), parte de um assunto específico e
preestabelecido a fim de ser esclarecido e desvendado.
Portanto, na história oral temática, a fala dos entrevistados é funda-
mental, pois ela ressalta os detalhes da história pessoal de quem a narra e,
visto que, em uma sociedade oral, como a comunidade caiçara, os saberes
tradicionais e a própria história de seu povo são transmitidos verbalmente,
de uma geração para outra. Desta forma, a oralidade se consagra como a
essência da continuidade do ser.
Para Meihy; Holanda (2007), a história oral se fundamenta em uma
dimensão social, que abrange a memória coletiva e a identidade social.
Portanto, os sujeitos entrevistados reconstituem, pelo crivo da memória, o
56 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

seu ser e estar no mundo, como pertencentes e representantes de uma


coletividade, transcorrida na questão identitária comum a uma sociedade.

Sob essa mirada, identidade e comunidade dependem de reflexões atentas à


dinâmica das mudanças sempre, porém sujeitas à memória narrativa resul-
tante da interação entre quem conta ou é entrevistado e quem ouve e trabalha
a transformação do código oral para o escrito. Sem a “contação”, ou seja, sem
o caso dito pessoalmente, no encontro direto que exige “olho no olho”, medi-
ante uma gravação que funciona como suporte, pouco poderia ser
“documentado”. A narrativa apreendida nesses moldes é a vida, o sopro, das
histórias, das fontes ou das narrativas. A situação dialógica direta implica res-
peito ao que é relatado e nem vale supor exatidão ou acuro das informações
(MEIHY, 2010, p. 181).

Portanto, quando falamos nas experiências vividas por um indivíduo


ou um grupo social, destaca-se que essas ocorrem, muitas vezes, pelos sen-
tidos que possuímos: visão, olfato, tato, audição e paladar. Os sentidos nos
proporcionam memórias significativas de um determinado lugar, ou então
são os responsáveis por tornar as experiências cotidianas e repetidas em
afetuosas para transformarmos um determinado espaço em lugar. Assim,
Tuan (1980), influenciado por Bachelard, desenvolve a noção de topofilia,
caracterizada pela afetividade expressa na relação do homem com o am-
biente, criando-se, a partir deste envolvimento, o lugar. “Topofilia é o elo
afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito,
vívido e concreto como experiência pessoal” (TUAN, 1980, p. 5).
Desta forma, lugar, na Geografia Humanista, se define como o real
significado de um dado espaço até então para um indivíduo ou um grupo
de pessoas que passa a criar, estabelecer, desenvolver laços afetivos por
meio de experiências do cotidiano, ocorrendo, até mesmo, uma mistura
das histórias de pessoas e desse espaço que se torna vivido, a partir das
memórias, vivências e interações.
Volume 9 | 57

Assim, quando perguntado aos caiçaras o significado do Sono para


eles, temos: “É o lugar que eu nasci, então é meu lugar, é meu imbigo.
Trabalhei muito fora, mas voltei, meu lugar é esse aqui, eu amo isso aqui”
(ARGEO DE CASTRO, 2020). Esta fala, principalmente a parte em que ele
diz “é meu imbigo”, demonstra uma relação extremamente profunda e ín-
tima com o lugar, com a sua terra, até mesmo visceral. Percebem-se aqui
os laços afetivos criados com a terra e o amor despendido a ela, percebe-
se a relação intrínseca entre sujeito e o lugar, a geograficidade.
Com a fala de Seu Argeo é possível compreender sua percepção de
lugar a partir da dimensão afetiva, enquanto caiçara nascido e criado no
Sono, como ele mesmo se reconhece: “sou caiçara, pra mim caiçara é nas-
cido na beira do mar, na beira da praia”. Pescador aposentado, Seu Argeo
viveu mais de cinquenta anos embarcado, trabalhando tanto no cerco na
Praia do Sono quanto na pesca industrial. Morou muitos anos no sul do
Brasil, mas sempre soube onde era seu lugar e, hoje, conta com uma feli-
cidade estampada no rosto, que não pretende mais sair dali e mostra, todo
orgulhoso, sua casa e seu quintal, a praia.
Marandola Jr. (2012, p. 228) diz que “[...] o lugar faz parte de nosso
cotidiano e como é a partir dele que nos inserimos no mundo. É pelo lugar
que nos identificamos, ou nos lembramos, constituindo assim a base de
nossa experiência no mundo”. Para o autor, o lugar é constituído no coti-
diano, aflorando o sentimento de pertencimento. “A constituição do lugar
e do eu são indissociáveis, pois têm os mesmos processos constitutivos”
(MARANDOLA JR., 2012, p. 244).
Segundo Little (2002, p. 10) “A noção de pertencimento a um lugar
diz respeito a grupos que surgiram historicamente numa área através de
processos de etnogênese e, portanto, contam que esse lugar representa seu
verdadeiro e único homeland”.
58 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Assim, além da experiência pessoal do indivíduo existem as experi-


ências vividas em grupo, as quais trazem memórias coletivas sobre uma
determinada área. Merleau-Ponty tratava do lugar a partir da ideia de
mundo vivido, incluindo “as experiências com o espaço e com as outas
pessoas pela intersubjetividade” (RODRIGUES, 2015, p. 5045).
Marandola Jr.; Mello (2009) afirmam que a tarefa de delimitar e men-
surar o lugar é complexa, pois dentre as categorias espaciais, “o lugar é a
de menor amplitude territorial” (embora seja extremamente fluído). Além
disso, é a categoria que mais está conectada à experiência e à afetividade,
estando “carregado de humanismo” e “constituindo-se no foco da experi-
ência humana”. Contudo, lugar também está atrelado ao coletivo através
da historicidade, da memória que um grupo estabelece no espaço.
Para Dona Elizabeth, o Sono “é tudo, a gente tem liberdade de sair,
pisar no mar” e continua:

Porque tem lugar que a gente não pode mais nem pisar no mar, [mas aqui] é
o pessoal trazendo os peixes, a gente vendo o peixe na canoa, puxando a rede
na praia. Já buscamo muita lenha, já buscamo muita mandioca plantada aí
nesses morro tudo no tempo dos meus avós, do meu pai, hoje em dia é tu-
rismo, ninguém mais quer saber de roça, de plantar. Fala hoje em roça perto
dos meus netos, até dos meus filhos mesmo, ninguém qué, tudo é o mais fácil
né. Nós fomo criado com peixe, caldeirada, pirão, hoje meus netos não come
peixe, já é outra geração né, só qué o mais fácil (ELIZABETH ARAÚJO ALBINO,
2020).

De acordo com a fala da entrevistada percebe-se que ela experiencia


o Sono no cotidiano e o descreve vivendo-o nas ações do dia a dia, ressal-
tando a pesca e a roça praticadas anteriormente e dando ênfase a principal
atividade econômica hoje, o turismo. Importante notar ainda a percepção
de Dona Elizabeth sobre as mudanças no modo de viver de acordo com as
gerações, pois quando ela diz que seus netos não comem peixe e só querem
Volume 9 | 59

o “mais fácil”, demonstra as alterações que foram ocorrendo nesse lugar


ao longo do tempo, as quais trouxeram, de um lado, uma não cristalização
dessa comunidade tradicional e, de outro, um diálogo com outras culturas
e influências trazidas pelos turistas que frequentam a praia.
Quanto ao território, o histórico de lutas das comunidades tradicio-
nais pela manutenção da sua cultura e garantia da permanência neste
transcorre gerações e se faz presente no dia a dia de muitas dessas comu-
nidades. Os caiçaras ocuparam as terras do litoral há séculos e ali
desenvolveram formas intrínsecas de uso dos recursos. “A terra e o mar
são prolongamentos das comunidades e com ambos o caiçara vive em ver-
dadeira comunhão espiritual, respeitando-os como fontes de vida”
(SIQUEIRA, 1984, p. 5).
Assim, o território, enquanto necessidade ontológica representando
as profundas relações homem-terra e, também enquanto categoria de aná-
lise da Geografia é um dos pontos-chave para entendermos os conflitos
travados pelos caiçaras da Praia do Sono, inserida em uma UC, e todos os
vieses por trás de sua criação.

As áreas protegidas representam um tipo específico de território que − se-


guindo as definições de Quijano − caberia dentro da noção de razão
instrumental do Estado. Em primeiro lugar, as áreas protegidas são criadas
pelo Estado mediante decretos e leis e conformam parte das terras da União,
sendo portanto terras públicas. Em segundo lugar, a criação dessas áreas in-
clui sofisticadas pesquisas científicas envolvendo um grande leque de
especialistas, mostrando o alto grau de conhecimento humano implicado ne-
las. Em terceiro lugar, as áreas protegidas estabelecem planos de manejo que
especificam com minuciosos detalhes as atividades permitidas e proscritas
dentro desses territórios. Em suma, as áreas protegidas representam uma ver-
tente desenvolvimentista baseada nas noções de controle e planejamento
(LITTLE, 2002, p.16).
60 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

O território expressa como vivemos, expressa nosso relacionamento


com a terra, expressa como nos apropriamos do espaço e exprimimos
nossa permanência neste, nossa existência.
Os acontecimentos passados, presentes na memória coletiva de quem
viveu o fato ou então de quem ouviu os mais antigos contarem, são funda-
mentais na compreensão das lutas pela permanência nesse território.

Aqui já teve um grileiro que queria toma isso aqui nosso, com descendência
de turco. Eu que fiz a ocorrência, eu que chamei o repórter pra nos socorrer,
eu que fiz a ligação toda. Nóis foi ameaçado com polícia armada, tinha búfalo
também. Os búfalos chegavam até aqui, vamo dize as parede de barro, agora
não é mais né, mas antes era de barro e os búfalo chegava até aqui, passava
aqui, a praia toda tinha cocô de búfalo, comia a roça toda, a parede da casa. Na
nossa época nóis bebia água da cachoeira, bebia água com cocô de boi, ele to-
mava banho aquele danado, adora uma água, adora uma lama, então nóis
fomo chocado com esse bicho aí, ele botou esse boi solto pra tirá nóis, nóis
comemo folha de banana, mas não saimo daqui. Teve gente que saiu sim, fico
só treze famílias, tinha duzentas e poucas e fico só treze e eu fui uma delas. Eu
tive no Rio, tive no Ministério da Fazenda, eu tive em reunião lá no Rio, Tri-
bunal de Justiça, tive em Paraty, acompanhei essa luta toda aí, tudo nas minhas
costas, carreguei essa luta toda nas costas. Os advogados, o juiz que nóis ti-
vemo as conversas falaram ó gente por dinheiro nenhum vocês vendem aquela
terra de vocês, não dão a terra de graça, não deixa ninguém entrar na terra.
Hoje vende por diz mil, cinco mil, três mil reais, tão dando terra ai. Sendo que
nóis, cabelo branco, 75 anos, eu não vendo um palmo de terra, porque é meu
e dos meus filhos, mas esses novinhos aí tão vendendo, tão botando gente de
fora pra caramba (ARGEO DE CASTRO, 2020).

Seu Argeo não deixou o seu território após as várias investidas por
parte do grileiro, que tentou tomar aquelas terras para si. Dona Elizabeth
também relembra da maior disputa pela qual seus familiares e amigos da
comunidade do Sono já passaram e conta que, na época, saiu da praia e foi
morar em Paraty, voltando algum tempo depois. Mas, na verdade, isso não
Volume 9 | 61

aconteceu com todas as famílias que deixaram o Sono, muitas delas aca-
baram não conseguindo voltar e a maioria foi morar em Paraty ou em
Ubatuba.

O medo que a gente tinha aqui era do doutor Gibrail, era um homem muito
rico né e disse que era o dono disso aqui tudo, era dono de muita terra, só que
ele lutava mais por isso aqui, ele tinha assim uma resinga sei lá, uma raiva do
pessoal aqui que dizia que era deles então a briga toda era aqui, com o pessoal,
então muita gente saiu por causa disso, nessa época. Ele levou alguma família
pra morar em São Paulo, deu emprego lá, mas a gente tinha esse medo,
quando ele chegava aqui com polícia, a gente era tudo pequeninho, não acos-
tumava com esse negócio de polícia na porta e a gente tinha esse receio, ele
intimidava. Meu sogro ficou, minha sogra, a gente foi morar em Paraty.
Quando eu sai eu tinha uns dezessete anos, fomo morar na Praia do Sobrado,
no Mamanguá, meu pai tinha terra lá, casa, depois eu voltei pra casar aqui,
com dezoito anos (ELIZABETH ARAÚJO ALBINO, 2020).

O barqueiro Sérgio, mesmo com seus vinte e quatro anos na época


da entrevista, conta com emoção a história da luta pelo seu território, que
ouviu de seus pais e de seus avós, e possui também um papel importante
na comunidade, já tendo participado da Associação de Moradores.

O Sono tá como local indefinido ainda de dono, tão numa briga lá em Brasília,
então a gente tá lutando pra ganhar nosso território, porque todo mundo tem
medo. Então nós tamo ainda na luta, o negócio não acabou, só que eles tem
que entender que nós tamo aqui há muitos anos, mas quem toma as decisões
nunca vieram no nosso lugar, quem fala que nós não somos caiçaras nunca
vieram ver o dia com a gente, quem toma a decisão se a pesca da cavala é em
tal época, o cara nunca pescou cavala na vida, então, tipo, se um cara lá em
cima chega um papel pra ele falando que não somos mais caiçara ele assina, aí
vem polícia cumprir sua tarefa e tira nós. Como era antigamente na época do
Gibrail, ele fazia um papelzinho pro povo ingênuo, trazia os jagunços armados
e tá aqui o papel, o pessoal na época via o papel e tinha medo. Hoje não, hoje
somos cabeça, só que se um cara lá de cima fizer um trato aí lascou, tira nós
62 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

daqui. Então nós ainda tá lutando pra conseguir nosso direito de terra. Eles
entra com muito dinheiro mesmo e nós somos carente, tamo brigando com os
mais fortes do Brasil, tem até agência de turismo que quer entrar aqui, então
é uma briga constante, cada dia que você acorda, você sendo liderança [na
época da entrevista, Sérgio era presidente da Associação dos Barqueiros e
membro da Associação de Moradores], todo dia você acorda com uma briga
pra briga. E tem muito morador que ainda não sabe disso, acham que a terra
é nossa, é nossa mesmo, só que os caras podem tá tomando da gente. É muito
triste isso, a gente perde várias coisas pra gente que não sabe da nossa reali-
dade. Eles julgam a gente (SÉRGIO DOS REIS CONCEIÇÃO, 2019).

Nota-se então que, a partir da perspectiva fenomenológica de territó-


rio, não basta apenas entendê-lo como político e material, faz-se
necessário entender a imaterialidade presente, fruto de sociedades que
deixam suas marcas, histórias e simbologias, a fim de se expressarem e
fazerem de um determinado espaço seu território.
Segundo De Paula (2011, p. 108), há uma lacuna de estudos sobre o
território enquanto fenômeno vivido, o que mais se aproximaria dessa dis-
cussão seria sua “dimensão vivida na forma de territorialidade”.
Territorialidade vista aqui como uma das faces através da qual se pode
olhar o território e que expressa sua vivacidade na memória coletiva. Essa
dimensão do vivido apresentada no sentido do que acontece no território,
suas dinâmicas internas, seus valores.

Territorialidade, comumente, referencia características e dinâmicas daqueles


que vivem no território, como: apropriação, desenvolvimento de identidades,
sentimento de pertencimento (BRUNET; FERRAS; THERY, 1993). Assim, ter-
ritorialidade diz respeito à dimensão vivida na medida em que denota fatores
que acontecem nas relações mais diretas entre as pessoas e o espaço. A terri-
torialidade é o qualitativo de qualquer fenômeno territorial, independente da
escala dele. A distinção entre territórios oriundos da dimensão vivida e a ter-
ritorialidade está no papel que a dimensão vivida tem dentro destas noções
(DE PAULA, 2011, p. 109).
Volume 9 | 63

Little (2002, p.3) enxerga “a territorialidade como o esforço coletivo


de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma
parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
‘território’” e entende que essa territorialidade não se faz presente nas leis
ou títulos, mas “se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que
incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com
sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território”
(LITTLE, 2002, p. 11).
A partir disso, o território das populações tradicionais se baseia em
séculos de efetiva ocupação carregando uma importância histórica às suas
reinvindicações, como é o caso da Praia do Sono, onde os caiçaras se apro-
priaram de um território, territorializaram-se e, ainda hoje, sofrem com
estratégias, por parte de grandes agentes econômicos, para desterritoria-
lizá-los. Portanto, quando impedidos de ocupar seus territórios e criarem
seus lugares, coloca-se em risco mais do que o habitar, coloca-se em risco
a própria existência.
Portanto, é do próprio viver a dimensão vivida - das ações do homem
sobre uma porção do espaço - que surgem os territórios. “Assim, a dimen-
são vivida não é apenas uma face do fenômeno, ela o funda” (DE PAULA,
2011, p 109). Refletindo sobre este trecho, podemos entender que foi assim
que se constituíram diversos territórios, entre os povos caiçaras, que ocu-
param e se apropriaram de um espaço e, que com o passar do tempo e de
suas vivências sobre esse espaço, criou-se o território, habitado por eles
até os dias de hoje, além da identidade e do vínculo afetivo, lutando pela
sua defesa e permanência no mesmo. Little (2002, p. 11) afirma que “os
territórios dos povos tradicionais se fundamentam em décadas, em alguns
casos, séculos de ocupação efetiva. A longa duração dessas ocupações for-
nece um peso histórico às suas reivindicações territoriais”.
64 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

E esses territórios constituídos a partir da dimensão vivida do espaço


se tornam lugares com lógicas socioespaciais conhecidas intimamente por
quem vive ali, já suas fronteiras e as intersubjetividades, até então invisí-
veis para quem é de fora, só serão apreendidas a partir da abordagem do
lugar.

Assim, a porção do espaço conhecida intimamente, onde se desenrola práticas


socioespaciais rotineiras ou especiais, se torna lugar. Por permitir ou promo-
ver essas práticas, o lugar se configura um campo de preocupação e cuidado.
Em outras palavras, as relações e práticas que constituem o que a pessoa é,
necessita ou deseja se imbricam ao lugar: geograficidade (DE PAULA, 2011, p.
119).

No que diz respeito à resistência perante a unidade de conservação


criada em seus territórios constatou-se:

Pra isso dar uma amenizada [especulação imobiliária], o sindicato rural, junto
com a comunidade acionaram o Minc, que na época era o Secretário de Meio
Ambiente ou o governador, não sei quem era na época e aí, rolou a proposta
de fazer uma área de proteção ambiental pra proteger a gente, caiçaras, e foi
criada a Reserva Ecológica da Juatinga em 90. Só que a ideia de criar essa re-
serva era de proteger os caiçaras dos grileiros e a gente ficar em paz, só que
quando foi fazer, eles colocaram no documento que era non edificandi e aí
começou outra briga, pra recategorizar e regularizar. Então essa unidade que
se criou não faz parte do SNUC, não existe, mas tem as leis que tem que ser
cumpridas, só que também tem uma APA, a reserva foi feita dentro da APA,
então a gente segue um pouco a lei da APA (LEILA DA CONCEIÇÃO, 2019).

Uma das primeiras recategorizações cogitadas para a área foi trans-


formá-la em parque e delimitar as vilas caiçaras como sendo de Uso
Sustentável. No entanto, a ideia de parque assustou alguns caiçaras pelo
fato da quantidade de regras para serem seguidas, voltadas totalmente
para a preservação.
Volume 9 | 65

Aqui no Sono, o Meio Ambiente queria mudar a reserva do Sono pra Parque
Nacional, só que os caiçara não aceitaram e nós não vamo aceitar ser Parque
Nacional porque aqui não podemo construí nada, não podemo desmancha
uma coisinha, não vamo poder melhorar nossa casa, porque se virar Parque
Nacional não vai poder mexer em nada, então nós não aceitemo, eles vieram
aqui querer mudar essa história aqui. Outra coisa é que eles proibiro nós de
plantar alguma coisa aqui, que nóis queria plantar um feijão, mas eles proi-
biro. Lá em cima, perto do poço do jacaré são uma baixada imensa que vai
embora, dá pra construir muita casa, inclusive o pessoal daqui pegou um pe-
daço, pra plantar, criar galinha, limpemo tudo, rocemo tudo, só que daí o meio
ambiente veio e embargaro tudo. O INEA que fala onde a gente pode fazer a
cozinha, os banheiros do camping, pra não sujar o riozinho, então eles anda-
ram proibindo, pra não fazer nada em beira de córrego, nem fossa, nem caixa
d’água. O pessoal do meio ambiente vem aqui, uma vez no mês eles vem ai
fazer reunião com o pessoal, chama o presidente da associação pra passar os
detalhe aqui do lugar, o que que tá acontecendo, o modo de construir, a ma-
neira de trabalhar na praia, sobre o lixo, tem que manter a ordem do barco vi
pegar, o dia certo, quem tem bar na beira da praia, restaurante tem que ter o
latão de lixo certinho, ó é uma série de regras que eles passa aí, tudo isso é
feito na associação, as reunião é tudo ali (EUZÉBIO JOSÉ ALBINO, 2019).

Segundo Zaqueu da Conceição, em entrevista realizada em julho de


2019:

Já teve esse negócio de parque nacional, já teve essas coisas aqui já, mas a
turma não aceitaram muito não, depois veio várias proposta pra cá, veio várias
coisa de INEA, mas não conseguiu não. Hoje eles faz o que, eles vem aqui pra
dar uma segurada, tipo assim, pra não dá muito movimento, quando vem au-
toridade a noite pra segurar porque é muito movimento, porque é perigoso
né, muito turista que vem, tem balada, então eles dão uma segurada, mas não
incomoda muito não. De vez em quando eles faz umas reunião aí, e alguns da
comunidade participa, alguns não, tem essa desvantagem também que a co-
munidade não se une muito pra ir na reunião. Eu aviso aqui na rádio da
reunião, mas não participam muito não, mas alguns participam, bem pouco.
66 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Há pouco tempo acreditava-se que a REEJ seria recategorizada em


Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), uma categoria que surgiu
na Amazônia brasileira, visto que seus objetivos e características condizem
com a realidade da praia e, principalmente, da comunidade caiçara que ali
vive e há tanto tempo faz uso dos recursos naturais de maneira sustentá-
vel, além de deter os saberes tradicionais tão importantes para o convívio
harmônico com a floresta.
Atualmente, analisa-se a possível mudança da REEJ para uma Re-
serva Extrativista (RESEX), pois os caiçaras acreditam que traria mais
visibilidade para o que é tradicional da comunidade, abrangeria com mais
eficiência a terra e o mar, conservaria, por exemplo, a pesca artesanal e
afastaria os barcos grandes da pesca industrial. Essa proposta, em 2019,
estava sendo discutida pelas lideranças para ser apresentada ao INEA.

Há uns anos atrás, uns cinco, seis anos atrás eu acho, a gente começou a tra-
balhar na recategorização da REEJ, que era pra ser recategorizada em 92, mas
isso nunca foi feito e aí a gente começou a brigar por uma RDS que é uma
Reserva de Desenvolvimento Sustentável e isso tá lá até hoje, teve uma audi-
ência pública que deu uma briga danada, porque do jeito que eles queriam a
gente não queria e aí teve a proposta também de se criar parques ao redor,
tipo fazer um miolo da RDS e parques em volta, só que eu não sou contra
parques não, eu acho que Antigos [praia vizinha do Sono, totalmente desabi-
tada] tinha que ser um parque, até pra proteger ele do jeito que tá. Pra mim
proteção é tudo que a gente quer. Porque se tivesse uma área de parque inibe
muito as pessoas, quem tem direito tem, e tem que respeitar, aqui não pode
construir gente de fora, não pode vender e pronto. Então tá nessa história de
recategorização ainda, o INEA quer fazer uma outra unidade que eu nem sei
que unidade é ainda, porque eles não apresentaram pra gente ainda, só que eu
tô com uma proposta, junto com o pessoal de Trindade da gente criar uma
RESEX, criar de Trindade pra cá, porque lá também tem área de parque e eles
passam por esses problemas e essa questão da RESEX dá muita visibilidade
Volume 9 | 67

pro tradicional, ela te dá o direito de pescar seu peixe, tira esses barcos gran-
des, aí você pode abranger o mar e a terra, então a gente tá com essa proposta
nova. Mais pra frente, quando o INEA vim com a proposta a gente quer ir com
outra. Porque antes, quando a gente quis a RDS a gente não tinha essa visão
da RESEX, só que de um tempo pra cá eu fui representante do caiçara do Brasil
em Brasília, da Comissão nacional, onde se junta todos os povos e comunida-
des do Brasil e eu sou fundadora do Fórum de Comunidades Tradicionais junto
com o pessoal do quilombo [o quilombo do Campinho fica próximo ao Sono],
então a gente precisa fazer com que o nosso povo entenda essa proposta nova,
porque na época falaram pra gente que era inviável fazer uma RESEX e era
melhor uma RDS, então a gente achou que fosse melhor fazer uma RDS, mas
já que a gente pode mudar pra outra então a gente quer uma RESEX, mas
ainda tem que amadurecer primeiro na cabeça das lideranças, porque dá um
trabalho, fazer que a comunidade entenda (LEILA DA CONCEIÇÃO, 2019,
[...]).

O fato é que essa discussão toda está caminhando bem lentamente e


as propostas de ambos os lados ainda precisam ser analisadas para se che-
gar a melhor opção, aquela que atenda de forma satisfatória as
necessidades dos caiçaras e o modo de vida dos mesmos. Ressalta-se que,
segundo Cavalieri (2003, p. 281):

A grande diferença entre as RESEX e a RDS encontra-se na relação com a


terra: enquanto na RDS um mosaico de terras é possível, na RESEX a terra
será de domínio público. Os moradores receberão a concessão do direito real
de uso. [...] A concessão do direito real de uso é o instrumento jurídico que
estabelece a permanência de populações em terras de domínio público, que
nunca podem ser usucapidas, tanto em áreas urbanas como rurais.

Para Conti; Antunes (2012), o Decreto nº 4.340 (BRASIL, 2002), que


regulamenta alguns artigos do SNUC, define que, no caso de populações
que vivem em áreas de Proteção Integral, deve ser estabelecido um Termo
de Compromisso, negociado entre o órgão gestor e a população,
68 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

determinando as condições de permanência enquanto estas não forem


reassentadas. Neste termo deve conter a delimitação das áreas ocupadas,
a demarcação necessária para garantir a conservação da natureza e os
deveres do órgão gestor em relação ao processo indenizatório,
assegurando às populações os seus costumes e suas fontes de subsistência.
Porém, concorda-se com Risso (2016, p. 117) ao afirmar que “se a bi-
odiversidade deve ser preservada, as culturas – caiçara, indígena,
quilombola – também são tão importantes quanto. Realocar populações
significa acabar com os laços topofílicos, com a identidade, com os saberes
tradicionais”.
Cabe ressaltar que os moradores da Praia do Sono não cogitam sair
de seu território, visto que residem ali desde muito antes da criação da
reserva. De acordo com Zeni Alvarenga dos Santos Albino, moradora da
Praia do Sono e ex-membro da Associação de Moradores, os caiçaras pos-
suem o título de posse da terra porque são nativos, mas não tem a
escritura. Também por ser uma unidade de conservação, não é permitida
a venda da terra para turistas e a execução de reformas precisa da autori-
zação do INEA - RJ. Para Euzébio José Albino, durante entrevista em julho
de 2019:

O INEA sempre tá vindo aqui, parece que hoje tão ai, eles vem fiscalizar, vem
olhar se tem alguma coisa errada, se tem alguma casa irregular, então é essas
coisas né. Às vezes assim a gente nem entende, acha ruim, mas é a lei né, tem
que ser tudo certinho. Têm uns quatro anos que teve uma lei pra demolir esses
quiosques na beira da praia, na Trindade demoliro, aqui no Sono eles passava
ai, olhava, não mexia com o pessoal, porque eles achava que aqui no Sono já é
um lugar tão difícil pra se ganhar dinheiro, então um quiosquezinho ali na
beira da praia, com a entrada do turismo agora é bom pro pessoal ganhar
dinheiro, porque a pesca agora tá cada vez tá fracassando mais na Praia do
Sono, aquela fartura de peixe que dava aqui já não dá mais. De antigos, mais
de idade ainda tem mais ou menos umas quinze pessoas que pesca, agora esses
Volume 9 | 69

novato aí tudo tem rede, só não trabalha na época do turismo, depois do car-
naval que caba o turismo aqui, já é difícil chega, aí eles vão trabalha tudo com
rede, esses bote que se vê aí na praia tudo tem rede, rede de tudo qualidade de
peixe.

Desta forma, observa-se que esse processo de especulação impen-


sado, iniciado com a construção de rodovias, ocasionou alguns impasses
para os indivíduos que ali residem. A criação da REEJ, como forma de bar-
rar a especulação imobiliária da área também não apresentou os
resultados desejados, trazendo empecilhos para os caiçaras. Logo, nota-se
a importância das lutas pela garantia de permanência no território, como
lugar de manifestação de sua cultura que é representado e narrado por
laços topofílicos, a partir de uma intensa geograficidade constatada em
campo.

Considerações finais

Adentrar no lugar desse povo simples, nas suas casas, nas suas vidas,
não como turista, mas vestida com as lentes de quem contaria essas histó-
rias posteriormente é de uma enorme responsabilidade, visto que foram
confiadas à pesquisadora narrativas de suas vidas, histórias que marcaram
e marcam profundamente o viver dessa gente. Acontecimentos passados
que preocupam muitos, devido à terra ainda não estar regularizada.
A vida no Sono gira em torno de um tempo que já foi apenas cíclico,
marcado pelos próprios ciclos naturais, acompanhando as estações do ano
e suas sazonalidades. Hoje, esses ciclos ainda não se desmancharam, mas
estão se esfarelando em troca de uma dualidade - verão x inverno - carac-
terizada pela principal fonte de renda, o turismo, presente no cotidiano
dos moradores dali.
Passar alguns dias no Sono pesquisando e ouvindo histórias é ser in-
serida nesse tempo que está se findando, o cíclico, é sentir-se acolhida por
70 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

aqueles que percebem em você um interesse e uma curiosidade que vão


além da maioria dos frequentadores que passam dias ali, mas não vivem a
comunidade. Muitas vezes, esses turistas vão embora sem trocar sequer
uma palavra com um caiçara, e não que isso seja um problema, mas esse
viver um determinado lugar é enriquecedor e traz uma expansão de cons-
ciência e trocas relevantes para a vida.
Assim, comprovou-se por meio da análise de conteúdos temáticos
que, esse lugar, palco das vivências caiçaras, se consolidou há anos como
o território dessa comunidade, que a vê como seu lar, que defende, luta e
resiste. É lugar da expressão de sua cultura, da sua identidade, onde se
estabelecem profundos laços topofílicos.
A comunidade é rica de natureza, são livres, possuem saberes que
jamais lhes serão tirados, entendem do tempo, do vento, da maré, de agri-
cultura, de pesca e essa é a verdadeira identidade caiçara, essa é a maior
riqueza desse povo.
Quanto à reserva, constatou-se que ela cumpriu, em partes, com seus
objetivos pensados durante sua criação. Ela freou a especulação imobiliá-
ria, barrando possíveis empreendimentos que viessem a ser construídos
no local, no entanto, as restrições ambientais são muitas e isso acaba afe-
tando os caiçaras, que deixam de realizar obras de melhorias nas suas
casas e quiosques ou até mesmo deixam a praia para morarem na cidade,
por conta das facilidades encontradas por lá. Quanto à recategorização,
será necessário aguardar as propostas entre INEA e comunidade para ve-
rificar se ela será fator determinante para uma menor tensão entre ambas
as partes.
Conclui-se ressaltando a importância de fortalecer e dar voz a histó-
rias como essas que foram contadas aqui, jornadas de resistências e
visibilidade a comunidades tradicionais e seus saberes transmitidos atra-
vés da oralidade.
Volume 9 | 71

Assim, encerrando aqui essas narrativas, que continuam potentes em


seus lugares de existência, nota-se que aqueles que possuem riquezas ma-
teriais, na verdade, se aprisionam em seus palacetes e a liberdade de fato
se restringe aos caiçaras, que desfrutam de uma riqueza que não pode ser
contabilizada.

Referências

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BRASIL. Decreto n° 89.242, de 27 de dezembro de 1983. Dispõe sobre a criação da Área


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providências. Brasília, dez. 1983.

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III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 2000.

BRASIL. Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Regulamenta artigos da Lei nº


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CALVENTE, M. del C.M.H. No território do azul-marinho. A busca do espaço caiçara.


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Márcia Manir Miguel Feitosa e Renata França Pereira, 2018.
Capítulo 3

O valor sociocultural da terra e do território para


os povos indígenas afetados pela usina hidrelétrica
de belo monte: uma reflexão necessária 1

The socio-cultural value of land and territory for indigenous peoples


affected by the Belo Monte Hydroelectric Plant: a necessary reflection
Auristela Correa Castro 2
Martha Luiza Costa Vieira 3
André Cutrim Carvalho 4

1 Introdução

No Brasil, os debates, anseios e as lutas dos povos indígenas são cons-


tantes, principalmente após serem impactados nas ilhas e margens do rio
Xingu com a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, pró-
xima ao município de Altamira no Estado do Pará, onde não foram levados
em consideração os modos de vida desses grupos minoritários, que histo-
ricamente vivem na bacia do rio Xingu, os quais reproduziam uma
concepção peculiar de existência e de relação com a terra, território e na-
tureza.

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Mestra em Cidade, Territórios e Identidades (UFPA). Doutoranda em Ciências Ambientais pelo Programa de Pós-
graduação em Sociedade, Natureza e Desenvolvimento (PPGSND/UFOPA em parceria com o Programa de Pós-
Graduação em Ciências Ambientais – PPGCIAMB/UFG). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/7429395441168502
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3979-929X E-mail: [email protected]
3
Mestre em História Social da Amazônia do Programa de Pós-graduação em História (UFPA). Assistente Social da
Universidade Federal do Pará (UFPA). Endereço: Rua Cândido Portinari, 1200, Brisa Sul Residence, Bloco Sírico,
Apartamento 303, Bairro Lourival Parente, Teresina-PI. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8495928749825169
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0452-1762 E-mail: [email protected]
4
Doutor em Desenvolvimento Econômico (UNICAMP) com pesquisa de pós-doutorado em Economia (UNICAMP).
Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas (FACECON) e do Programa de Pós-Graduação em Gestão
de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM/NUMA/UFPA). Link do Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1089731342748216
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0936-9424 E-mail: [email protected]
76 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Baseando-se em Eric Hobsbawm (2010), quando discute sobre o ban-


ditismo social - uma das formas mais primitivas de protesto social
organizado -, na maioria das vezes, esse fenômeno ocorre em condições
rurais, em que os oprimidos não alcançavam consciência política, e com o
desenvolvimento da sociedade dita moderna e capitalista começaram as
lutas entre as classes detentoras de terras com parte considerável da po-
pulação mais pobre expropriada, assim, a violência tornou-se cada vez
mais latente pela disputa de territórios ou, principalmente, por poder.
Neste contexto, apoiando-se em Hobsbawm, o professor Ferreras (2011, p.
215) observa que:

Desde a década de 1960, as aproximações da História Social ao fenômeno do


Banditismo Social estiveram fortemente marcadas pelos estudos desenvolvi-
dos por Eric Hobsbawm. Fernand Braudel tinha feito alguns avanços nesta
questão, porém, só quando Eric Hobsbawm publicou Primitive Rebels, em
1959, e Bandits em 1969, o Banditismo Social, como uma forma de resistência
camponesa, passou a fazer parte do elenco temático da História Social.

Na percepção de Hobsbawm (2010), porém, o bandidismo social re-


presenta um criminoso incomum que luta para combater a injustiça, a
opressão e a pobreza de seu povo causada pelos senhores feudais, reis e
dos próprios Estados. Desta maneira, é possível observar a resistência dos
povos indígenas impactados contra as mudanças socioeconômicas, consi-
derando que cada indivíduo teve que (re)criar um espaço de produção,
manutenção e resistência de seu antigo modo de vida.
Para Hobsbawm (2010), existem, decerto, notáveis variações de
região para região. Tais variações ocorrem em parte à geografia, em parte
à tecnologia e à administração, e em parte à estrutura socioeconômica.
Segundo a crença geral, o banditismo floresce em áreas remotas e
inacessíveis, tais como montanhas, planícies não cortadas por estradas,
áreas pantanosas, florestas ou estuários, com seu labirinto de canais e
Volume 9 | 77

cursos d’água, e é atraído por rotas comerciais ou estradas importantes,


nas quais a locomoção dos viajantes, nesses países pré-industriais, é lenta
e difícil.
O fato é que a disputa de terras e o monopólio da posse nas mãos de
classes economicamente poderosas são os principais impasses vividos pe-
las populações originárias, que residem em regiões ricas em recursos
naturais, como os povos indígenas da região do Xingu. Há condições alar-
mantes de ameaças vividas pelos indígenas, entre as quais, de acordo com
a Comissão Pastoral da Terra (CPT) estão a:

Mineração, as hidrelétricas e as madeireiras se expandem exigindo do poder


público a construção de linhões, portos, o asfaltamento e abertura de estradas
e de hidrovias e, consequentemente, a valorização das terras. Está pronto o
caldo para o aumento e o acirramento dos conflitos e, sobretudo, para o cres-
cimento da concentração da propriedade latifundiária. (CPT, 2015, p.10).

Na verdade, a história da Amazônia mostra o quão intenso e contínuo


é o interesse do grande capital em a ameaçar as vidas dos povos das flo-
restas, ribeirinhos, pesqueiros, quilombolas e indígenas que vivem uma
relação com a terra-natureza.
No passado, por exemplo, esse sentimento de revolta e conflito foi
visto com muita intensidade através da Cabanagem. Ricci (2001 apud
LAVAREDA, NEVES, 2018, p. 28) explica: “A Cabanagem foi um movi-
mento social empreendido por pessoas concretas, que viveram
temporalidades diferentes da nossa, com ideais, utopias e formas de arti-
culação do pensamento que lhes são próprias”. Para Ricci (2007, p. 06):

A revolução social dos cabanos que explodiu em Belém do Pará, em 1835, dei-
xou mais de 30 mil mortos e uma população local que só voltou a crescer
significativamente em 1860. Este movimento matou mestiços, índios e africa-
nos pobres ou escravos, mas também dizimou boa parte da elite da Amazônia.
78 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

O principal alvo dos cabanos era os brancos, especialmente os portugueses


mais abastados. A grandiosidade desta revolução extrapola o número e a di-
versidade das pessoas envolvidas. Ela também abarcou um território muito
amplo. [...] Chegou até as fronteiras do Brasil central e ainda se aproximou do
litoral norte e nordeste.

O que aconteceu no tempo passado é, de certo modo, um retrato fi-


dedigno do que tem acontecido no presente. Isso porque é possível
constatar uma relação de proximidade entre o movimento cabano e as co-
munidades indígenas nos seguintes termos: 1º) a diversidade sociocultural
entre os sujeitos envolvidos; o 2º) os conflitos socioeconômicos em épocas
diferentes, mas que são tão característicos da Amazônia, em especial do
Pará, em busca de território; e 3º) a reinvindicação por um direito justo e
legítimo.
Em termos contemporâneos, fica nítida a influência da UHE de Belo
Monte no modo de vida e, também, na tradição dos povos indígenas por
meio de sucessivas tentativas de mudanças culturais, inclusive em seus
hábitos alimentares.
A representação social às novas condições de vida e de trabalho
quanto à presente realidade dos povos indígenas que não foram impacta-
dos somente ambientalmente, mas, acima de tudo, socialmente e
economicamente, resultam em manifestações e lutas contínuas de repre-
sentantes desses povos e sujeitos com o objetivo de manterem suas
condições de vida preservadas.
O método utilizado para o desenvolvimento do artigo envolve uma
junção do método dedutivo, pois parte do geral, ou seja, a discussão em
torno do valor sociocultural da terra e do território para os povos
indígenas; e, também, o método indutivo porque considera o particular, o
quanto o seu modo de vida foi afetado pela UHE de Belo Monte.
Volume 9 | 79

Como o objetivo desta pesquisa é compreender o valor sociocultural


da terra e do território para os povos indígenas do Xingu, que foram afe-
tados diretamente pela UHE de Belo Monte, pode-se definir essa análise
como sendo do tipo exploratória de cunho qualitativo, como a pesquisa
exploratória requer a revisão bibliográfica, neste caso específico foi utili-
zada a revisão bibliográfica narrativa assentada em livros, artigos de
periódicos, teses, dissertações, monografias e outras referências importan-
tes, tal metodologia possibilitou analisar as novas condições de vida dos
povos indígenas do Xingu, no âmbito da implantação da UHE de Belo
Monte (GIL, 1991 apud DA SILVA, MENEZES, 2005, p. 83). Visando cum-
prir tal objetivo, o presente artigo foi estruturado em quatro seções, a
primeira seção trata da introdução, a segunda apresenta os aspectos me-
todológicos do referido artigo; a terceira seção discute o processo de
implantação da UHE de Belo Monte e suas implicações na terra e no terri-
tório pertencente aos povos indígenas; na quarta seção são feitas as
considerações finais.

2 Caracterização do processo de implantação da UHE de Belo Monte e suas


implicações na terra e no território dos povos indígenas

De acordo com Lídia Lacerda (2017, p. 80), no ano de 1975, a Eletro-


norte iniciou uma gama de estudos em torno do “Inventário Hidrelétrico
da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu”, próxima ao município de Altamira
no Pará, onde foi realizado o primeiro mapeamento do rio e o projeto de
localização de barramentos com o nome de Kararaô, que significa grito de
guerra em Kaiapó, fazendo parte de uma série de UHE que seriam implan-
tadas no rio Xingu, com destaque para a UHE de Jarina, Kokraimoro,
Ipixuna, Babaquara e Kararaô.
Segundo a mesma autora, na década de oitenta, este inventário foi
concluído dando início aos estudos para a construção do Complexo Hidre-
létrico de Altamira, com as UHE de Babaquara (com 6,6 mil Megawatts) e
80 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Kararaô (com 11 mil Megawatts) – esta última, por sinal, deu origem à
UHE de Belo Monte. Segundo o estudo daquele período, todas as usinas
exigiriam o deslocamento de, aproximadamente, sete mil índios de, pelo
menos, doze terras indígenas.
No mesmo período, houve a conclusão dos primeiros estudos de via-
bilidade da UHE de Belo Monte, surgindo assim as primeiras divergências
acerca do impacto socioambiental que levariam, posteriormente, à suspen-
são do financiamento da obra. Com a suspensão da obra naquela época,
foi feito uma ampla revisão dos estudos de viabilidade com diminuição da
área inundada e a garantia de não inundação das terras indígenas.
O projeto sofreu, entretanto, grande resistência de grupos e movi-
mentos sociais, entre eles dos povos indígenas, ribeirinhos e dos próprios
ambientalistas, resultando no evento, intitulado: “Encontro dos Povos In-
dígenas”, realizado na cidade de Altamira em fevereiro de 1989, que como
assevera Sevá Filho (2005) “enterrou” por um tempo o projeto.
Não é intenção desta pesquisa fazer um levantamento histórico deta-
lhado e extenso em torno da implementação da UHE de Belo Monte, mas
sim de apresentar os pontos mais importantes na implementação deste
grande projeto de empreendimento na região da Amazônia brasileira. A
representação visual da UHE de Belo Monte pode ser acompanhada pelo
mapa de localização contido na Figura 1.
Volume 9 | 81

Figura 1 – Mapa de Localização da UHE de Belo Monte

Fonte: Instituto Socioambiental (2010 apud SOUZA, 2016, p. 01-02).

Souza (2016, p. 01-02) define a UHE de Belo como uma “grande obra
de engenharia nacional”:

A obra foi iniciada em 2011 no Rio Xingu, no estado do Pará, na Amazônia


brasileira, e tem Altamira como cidade-polo. O Consórcio para Construção de
Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia S.A., reúne a grande en-
genharia nacional: Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz
Galvão, OAS e empresas menores. A Norte Energia S.A. é controlada pelo
grupo Eletrobras (Eletrobras: 15%, Chesf: 15% e Eletronorte: 19,98%), Enti-
dades de Previdência Complementar (Petros: 10%, Funcef: 10%), Belo Monte
82 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Participações S.A. (10%), Amazônia (Cemig e Light: 9,77%), Autoprodutoras


de Energia (Vale/Cemig: 9%, Sinobras: 1%), Outras Sociedades (0,25%).

No ano 2002, uma série de novos levantamentos foram apresentados


à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), inclusive o Estudo de Im-
pacto Ambiental (EIA) foi temporariamente paralisado a pedido do
Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Isso porque a UHE de Belo
Monte era considerada uma obra de vital importância para o Plano de Ace-
leração do Crescimento (PAC) do Brasil.
De fato, a mesma serviu como uma espécie de “carro-chefe” do Go-
verno Federal –liderado pelo (ex-)Presidente Luís Inácio Lula da Silva do
Partido dos Trabalhadores (PT) –, em decorrência dos investimentos que
seriam direcionados para um território carente de recursos financeiros, de
investidores, e do próprio Estado brasileiro enquanto Instituição. Para
Corrêa e Oliveira (2016, p. 60):

Dentre os vários megaprojetos e empreendimentos de infraestrutura do PAC


destinados para a região amazônica, o Aproveitamento Hidrelétrico de Belo
Monte ganha destaque e é apresentado pelo Governo Federal como um dos
principais símbolos da nova era de “aceleração do crescimento” e de “desen-
volvimento” do Brasil na atualidade, em particular da Amazônia. Esse
megaempreendimento está situado no sudoeste do Estado do Pará, na Bacia
do rio Xingu, em Vitória do Xingu, previsto para ser a terceira maior hidrelé-
trica do mundo (e a primeira totalmente nacional) com mais de 11.000
Megawatts de potência e com o maior investimento público do PAC.

A questão política teve um papel preponderante em torno das muitas


mudanças para continuidade da UHE de Belo Monte, fundamentalmente
por ter partido com certa insistência pelo próprio PT, como identifica Melo
(2005, p. 57 apud Corrêa e Oliveira, 2016, p. 60):
Volume 9 | 83

Antônia Melo, liderança do Movimento de Mulheres e do MXVPS na região,


relata o sentimento de “esperança de mudança” com a ascensão do PT e de
Lula à presidência, mas, também, de decepção com a posição assumida em
desengavetar o projeto de Belo Monte. Ela denuncia a retomada de grandes
projetos para a região amazônica, em especial para o Xingu, associada e bali-
zada por outras frentes econômicas de expansão da fronteira, expressas nos
interesses de grandes empreendimentos minero-metalúrgicos do capital in-
ternacional. Ademais, salienta a aliança com políticos e grupos de empreiteiras
(grupo do PMDB, comandado por Sarney, no controle do Ministério de Minas
e Energia), que passam a compor um forte, heterogêneo e conflitante bloco
hegemônico em defesa de uma política energética e de um modelo de desen-
volvimento, com a retomada do papel do Estado em parceria com o capital
privado nacional e transnacional, para a reprodução de acumulação capitalista
e de elites políticas, com forte papel de setores e partidos do espectro da es-
querda.

Na prática, a UHE de Belo Monte continuou em desenvolvimento,


mesmo oito anos depois do leilão para construção e operação da UHE, sím-
bolo de inadimplência socioambiental e desrespeito às populações
atingidas, entre elas, ribeirinhos, extrativistas, comunidades indígenas,
oleiros.
No ano de 2010, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-
sos Naturais Renováveis (IBAMA) conferiu a licença prévia de Belo Monte,
tendo como parâmetro para isso um acordo (questionável) de troca por
um vigoroso pacote de medidas de mitigação e ressarcimento, conhecidas
como condicionantes socioambientais para viabilidade da usina.
Dentre as medidas compensatórias previstas, estavam as “ações an-
tecipatórias” de saúde, educação e saneamento básico às quais deveriam
preparar a região para receber a obra, precavendo e minimizando os prin-
cipais conflitos sobre esses serviços públicos, que inevitavelmente
ocorreriam em virtude do aumento populacional.
84 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

As ditas “ações antecipatórias”, que estavam compreendidas no


acordo de troca, previam o direito de reassentamento em condições simi-
lares àquelas em que antes moravam todas as comunidades diretamente
afetadas pela obra de Belo Monte, dentre elas, os povos indígenas. Souza
(2016, p. 01-02), porém, traz à baila uma importante observação:

A Usina é sem dúvida o investimento em infraestrutura mais polêmico dos


governos do PT, fortemente combatido por ambientalistas devido aos seus im-
pactos ambientais e sociais recriminados internacionalmente. Todavia, é certo
o impacto civilizador da energia elétrica, assim como os avanços em infraes-
trutura uma vez que o cumprimento das condicionantes estabelecidas no
processo de liberação da obra representa ganhos socioambientais para Alta-
mira, notadamente no campo do saneamento básico. Evidentemente que a
construção da Usina não precisava ser o caminho para a conquista de serviços
sociais básicos, mas interessa-nos a partir do fato consumado (a consecução
da obra) discorrer sobre Belo Monte com o intuito de refletir sobre desenvol-
vimento e efeitos políticos pertinentes.

O cenário atual do projeto é considerado nas suas proporções físicas


uma grandiosa obra da engenharia, como dito anteriormente, sendo vista
como a terceira maior hidrelétrica do mundo, e com a sua produção inter-
ligada ao sistema nacional pelo linhão de Tucuruí, de vital relevância para
as políticas de desenvolvimento econômico-energético do Governo Fede-
ral. Resta, a partir de agora, discutir o significado da UHE de Belo Monte
para aqueles que foram mais atingidos: os povos indígenas do Xingu.

2.1 O significado da Usina Hidrelétrica de Belo Monte para os povos


indígenas das Ilhas do Xingu: o território como terra sagrada dos índios

O capítulo “Dos Índios” da Constituição Federal de 1988 é resultado


de uma reação às políticas explícitas de “desindianização” e “emancipação”
colocadas em curso durante o regime militar e, também, junto as modifi-
cações realizadas na ordem internacional advindas da Convenção 169 da
Volume 9 | 85

Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indígenas e


Tribais, adotada em Genebra na Suíça, no ano de 1989, e promulgada no
Brasil através do Decreto nº 5.051/2004, revogado, posteriormente, e que
está em vigência por meio do Decreto nº 10.088 de 2019.
Nela consta os contornos do regime do indigenato atualmente em vi-
gor no Brasil, segundo o qual, os governos deverão assumir a
responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessa-
dos, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos
desses povos e garantir o respeito pela sua integridade. Essa ação deve
incluir medidas que promovam a plena efetividade dos direitos sociais,
econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e
cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições.
Nesta visão, parte-se da premissa de que a relativização de valores e
princípios constitucionais é admitida até o limite em que reste preservado
o núcleo essencial do direito fundamental. Nas palavras de Silva (2018, p.
492): “A principal demanda da vida indígena, a terra, é apresentada como
condição fundamental para a continuidade da vida e da saúde, a reprodu-
ção social, sua autodeterminação e seu etnodesenvolvimento”.
Em conformidade com a Constituição Federal do Brasil de 1988 e com
as disposições da Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2016), Terra Indí-
gena (TI):

[...] é uma porção do território nacional, de propriedade da União, por um ou


mais povos indígenas, por ele(s) utilizada para suas atividades produtivas, im-
prescindível à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e necessária à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costu-
mes e tradições. Trata-se de um tipo específico de posse, de natureza originária
e coletiva, que não se confunde com o conceito civilista de propriedade privada

Sobre essa questão, Silva (2018, p. 493) acrescenta que:


86 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Ainda no parágrafo § 2º [da Constituição Federal do Brasil de 1988]: “As ter-


ras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios
e dos lagos nelas existentes”.

No Brasil, uma mácula histórica segue sem o devido tratamento: o


etnocídio. O termo etnocídio deixa claro que o desrespeito aos direitos ali
estabelecidos são uma grave ameaça à sobrevivência e autonomia socio-
culturais dos povos indígenas da Amazônia.

Pode-se considerar como ação etnocida, no que concerne às minorias étnicas


situadas em território nacional, toda decisão política tomada à revelia das ins-
tâncias de formação de consenso próprias das coletividades afetadas por tal
decisão, a qual acarrete mediata ou imediatamente a destruição do modo de
vida das coletividades, ou constitua grave ameaça (ação com potencial etno-
cida) à continuidade desse modo de vida. (Sobre a noção de etnocídio, com
especial atenção ao caso brasileiro – Eduardo Viveiros de Castro) (BRASIL,
2015, n.p.).

Vale ressaltar que os indígenas têm, ao longo dos anos, estabelecido


uma relação com a natureza, em que o respeito para com a terra tem sido
pautado pelo sistema de trocas e reciprocidade, ou seja, retira-se o sus-
tento, os alimentos necessários para a sobrevivência, entretanto, ao
mesmo tempo mantém com a natureza uma relação harmoniosa e de equi-
líbrio, que faz com que a ação não seja apenas de exploração, mas
ambientalmente sustentável nos termos contemporâneos.
Ao longo dos tempos, as sociedades contemporâneas têm passado por
inúmeras transformações, resultantes do decurso histórico, que influen-
ciam os aspectos constitutivos de suas respectivas estruturas sociais. Em
contrapartida, a cultura indígena possui uma raridade sem medida relaci-
onada às demais sociedades, pois estes têm um olhar mais abrangente em
Volume 9 | 87

relação ao mundo, não são – em sua ampla maioria – restringidos e conti-


dos pelo capitalismo, pela moda, tecnologia, beleza, estética, etc. O sentido
da vida para eles é oriundo da natureza, suas lendas, seus mitos, suas his-
tórias, algo que interferem intensivamente em sua vida cotidiana.

2.2. Belo Monte e suas implicações socioculturais para os povos indígenas


do Xingu

Dentre os segmentos presentes no amplo conjunto social, as comuni-


dades indígenas caracterizam-se por sua especificidade e complexidade,
não podendo ser definida em uma concepção determinada e única. Tais
instabilidades e indeterminações promovem as vivências de experiências
diferenciadas.
Isto posto, analisar as percepções dos povos indígenas sobre um pro-
cesso contínuo de mudanças direcionado à sua realidade implica captar
subjetividades diversas, decifrando olhares múltiplos. Desvelar um uni-
verso de valores e significados impõe compreender as expressões dos
povos indígenas como meio de alcançar suas necessidades e anseios, bem
como seus estímulos e perspectivas.
O processo de mudança expressa a existência de um processo contí-
nuo de desconjuntamento, requerendo aos povos indígenas a flexibilidade
para se adaptar às novas situações, e, por conseguinte, lançando-os diante
de grandes desafios. Nestas condições, pode-se afirmar que os povos indí-
genas estão vivenciando um processo de reconstrução econômico-social.
Na visão de Galizoni (2000, p. 34):

[...] cada terreno se relaciona ao conjunto de terras que formam o território


de uma comunidade. A terra é não só um espaço para a produção de alimentos
e bens, mas constitui-se nessa superfície pela qual se deslocam fluxos de rela-
ções humanas, é um plano onde ocorre a construção da identidade dos grupos
e a produção de diferença dentro do sistema social.
88 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

No caso da UHE de Belo Monte, no momento em que os indígenas


sofrem a restrição de acesso aos recursos para reprodução ou continuidade
do modo de vida, aos quais tinham livre acesso anteriormente, acabam
sofrendo em perdas intrínsecas às relações diretas ao uso do seu território,
da sua cultura, dos seus recursos materiais e imateriais, principalmente os
relativos ao significado.
Dentro de tais condições, a tarefa de dar significação ao novo ambi-
ente requer e desses povos novas habilidades, além de demandar uma
transformação dos espaços, assim como das classificações e significações
referentes ao ambiente anterior, além de implicar perdas referentes aos
vínculos que para esses povos são sagrados no que tange às suas relações
com a natureza e o meio ambiente, nesse ínterim estão em questão seus
direitos de povos indígenas, agrega-se a isso o direitos à moradia, retirá-
los do seu território significa perder o local de moradia, assim como dos
vínculos com seu antigo território.
A retirada de povos indígenas de seu modo de vida específico e a rea-
locação desses povos em assentamento, além de significar violência contra
esses povos, também se acentua como “um genocídio sistêmico”, pois os
submete a modos de vida que não condizem com sua realidade anterior,
também revela omissão por parte do Estado, já que a obrigação de proteger
e assegurar os direitos dos indígenas, conforme preconiza a constituição e a
legislação pertinente aos povos indígenas (CIMI, 2015, p. 23).
Para o indígena, o espaço, o ambiente no qual ele vive tem um signi-
ficado, mais profundo, o indígena e o ambiente estão imbrincados como
um organismo único, em interação, em simbiose, não podem ser separa-
dos, posto que, para eles:

O patrimônio indígena é composto pela terra em sua dimensão territorial e


em seus usos de acordo com as normas e os costumes das sociedades indíge-
nas. Os acidentes geográficos, os recursos naturais, os marcos míticos, os
Volume 9 | 89

cemitérios, os sítios arqueológicos, além dos bens produzidos e dos manejos


ambientais; as roças, as sementes, as técnicas de caça, coleta, pesca e de agri-
cultura; as edificações tradicionais, assim como as atuais escolas, os postos de
saúde, a radiofonia; as artes, os artesanatos e outras manufaturas, todos estes
itens compõem o patrimônio indígena. Além destes, os bens materiais, tais
como os saberes tradicionais, as línguas narrativas, os rituais, as expressões
religiosas e os conhecimentos específicos, somam-se aos direitos autorais, ao
direito de imagem e ao direito intelectual. As terras indígenas e todo esse con-
junto de elementos elencados são de usufruto exclusivo dos povos que as
habitam, conforme determina a Constituição Federal, constituindo crime a sua
violação (CIMI, 2015, p.48).

Diante disso, retirá-los de suas terras e realocá-los em assentamen-


tos, significa usurpar seus diretivos, significa- negar-lhes o direito a
existência, privá-los de manter suas expressões religiosas, significa crime
contra um povo e contra a Constituição. Caso nada for feito, os recursos
adquiridos no ambiente do rio serão desestruturados em um ambiente de-
senvolvido com critérios estranhos à prática, mormente por ser um
sistema de ideias contrárias aos povos indígenas. Para além será, no mí-
nimo, a homogeneização cultural aos povos indígenas, como foi visto no
passado, pode-se repetir.
Fica claro que a construção da UHE de Belo Monte afetou diretamente
as condições de vida local e, dentre eles, os povos indígenas moradores de
ilhas do Xingu que se habituaram a viver de forma – em larga escala – da
pesca, da caça e da relação com o ambiente que tem como formas de vida,
desenvolvimento e manutenção, o fortalecimento e a valorização de suas
identidades, línguas, culturas, religiões, etc.
Isso porque com a inundação de suas áreas de ocupação original, es-
sas comunidades foram submetidas a novas condições de vida, o que tem
comprometido a garantia de necessidades básicas, tais como: educação,
atenção à saúde digna e eficiente, oportunidades de trabalho, espaços de
90 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

cultura e lazer. São, desta forma, demandas que influenciam a sua consti-
tuição como sujeitos de direitos.
As ações mitigatórias em torno da construção de uma barragem de-
veriam, senão melhorar as condições de vida dos atingidos, ao menos
deveria manter igual ao padrão de vida anterior à implementação do pro-
jeto, visto que, estes não possuem condições de fazer frente aos impactos
acarretados. Tais implementações se transformam em execução de ativi-
dades etnocidas, que até o advento da Constituição Federal de 88,
justificaram o aniquilamento dos povos indígenas e a sua inclusão forçada
à cultura dominante do processo de produção capitalista pautada na busca
do lucro.
Como amplamente citado, os índios parecem ter sido apagados da
história de ocupação das terras em litígio. O motivo disso, além dos escu-
sos interesses do mercado em regiões estratégicas, ocorre pela própria
necessidade de imposição do capital. Nos dizeres de Carvalho (2017, p.
132):

Quando o capital se apropria da terra como um meio de produção, ela se trans-


forma em terra de negócio, isto é, terra destinada à exploração do trabalho
alheio e, no momento, em que o capitalista se apropria da terra, ele o faz com
o objetivo de obter lucro ou renda da terra.

O pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, é ratifi-


cado pela análise científica de estudiosos críticos da construção da UHE de
Belo Monte, como para Fearnside (2011, p. 5), que levanta as mesmas pre-
ocupações com o megaempreendimento afirmando que:

[...] vários impactos biológicos e sociais são previstos com a redução dos níveis
da água do rio Xingu no trecho abaixo da barragem principal, como problemas
para a navegação e os efeitos sobre a floresta aluvial em toda a área afetada
pelo rebaixamento do lençol freático, extinção local de espécies, escassez da
Volume 9 | 91

pesca, aumento de pressão fundiária e de desmatamento, migração de não-


índios, ocupação desordenada do território, proliferação de epidemias e dimi-
nuição da qualidade da água.

Os diferentes sujeitos históricos, inseridos no domínio das coletivida-


des, apresentam demandas específicas que carecem de respostas por parte
do Estado, requerendo ações interventivas quanto às suas necessidades de
ordem distintas, como educação, saúde, moradia, trabalho. Assim, há uma
necessidade de um novo olhar sobre a condição dos povos indígenas mo-
radores de ilhas do Xingu que foram impactados com a idealização da UHE
de Belo Monte, focalizando suas expressões, anseios e principais necessi-
dades.
Portanto, compreender o contexto desse grupo significa também le-
vantar suas principais questões e conhecer formas e estratégias de
promover possibilidades de se vivenciar uma vida cidadã em contrapartida
a um contexto de exclusão social.
É necessário, deste modo, uma nova visão sobre o espaço que não
seja de superfície, mas sim de profundidade. Neste contexto, pode-se pen-
sar em modos de espacialização diferentes, estabelecidos por sistemas
culturais e sociais distintos, implicando em processos de objetivação e sub-
jetivação específicos, onde os indígenas apenas visam pôr um limite onde
habita ou não deixar o seu povo ser massacrado pelos dominadores.
É relevante ressaltar estudos anteriores sobre representações, que
possibilitaram entender as relações estabelecidas, as concepções construí-
das, compartilhadas e defendidas no interior dos povos indígenas. Neste
sentido, as relações ecológicas em um sistema de objetos diferenciados,
exigem novas disposições e desempenhos que até o momento representa-
ram um conjunto de desafios para a coletividade.
92 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Considerações finais

No Brasil, as questões indígenas devem ser discorridas e conferidas


pela FUNAI e, em vista disso, e diante da relevância dos territórios e de
seus recursos naturais para a reprodução do modo de vida dos grupos in-
dígenas.
Considerando que as restrições de uso dos territórios vinham se acir-
rando nos últimos anos, com tendência de potencialização a partir do
funcionamento da UHE Belo Monte, o atestado de viabilidade da hidrelé-
trica destacava algo que acabou acontecendo na região: sem a
implementação de mecanismos efetivos de proteção das terras indígenas,
as condições objetivas para a reprodução física e cultural desses grupos
seriam severamente comprometidas.
O colapso socioespacial já previsto, em consequência da construção
da UHE de Belo Monte, desponta sem obstáculos. Na atual conjuntura, o
processo de fragmentação das práticas socioculturais das comunidades in-
dígenas figura como consequência das imposições capitalistas na região.
Para os povos indígenas e tribais, que vivenciam in loco as agruras
decorrentes da UHE de Belo Monte, a noção de território consolida um
modo de vida, que dependente também dos ciclos sazonais de seus rios e
das riquezas naturais da floresta. Por isso a questão cultural é assaz im-
portante, pois os territórios são canais que transmitem de geração em
geração uma cosmologia agregada, isto é, um conhecimento único, que
deve ser protegido e preservado.
De fato, chocam-se frontalmente com a representação simbólica e
cosmológica de seus habitantes tradicionais indígenas, como também aos
impactos socioculturais, onde há o sentimento de ameaça – a todo mo-
mento – associado às concepções cosmológicas e identitárias relacionadas
à terra, ao território e ao Rio Xingu.
Volume 9 | 93

Essas representações confirmam o sentimento de rejeição pelo em-


preendimento de Belo Monte. Estes conflitos têm produzido uma série de
graves problemas na região, tais como: ameaça à integridade física dos
índios; exploração dos recursos naturais das tribos indígenas; invasão, ex-
pulsão e expropriação territorial; possibilidade de conflitos interétnicos;
desestímulo às práticas sustentáveis de subsistência tradicionais; deses-
truturação das cadeias de transmissão de conhecimentos tradicional;
aumento da exposição dos índios à prostituição; alcoolismo, envolvimento
com drogas e violência dentro e fora das tribos indígenas.
Mesmo agora, os povos indígenas desenvolveram sobre o território
um conjunto técnico – baseado numa relação com a terra e mobilizando
elementos de implicação nas relações sociais – que permitiu pôr em prática
uma organização social própria. É preciso compreender que as condições
de continuidade da vida indígena envolvem uma lista interminável de
ameaças, tanto para os povos que vivem nas florestas quanto para os que
vivem na caatinga sertaneja, dos ribeirinhos do sertão aos litorâneos, que
passam a assumir uma vida de migrantes, entrando nas “filas” do proleta-
riado urbano, ou nos índices de pobreza dos grandes polos urbanos e do
hinterland brasileiro.
No ano de 1967 foi criada FUNAI (Fundação Nacional do Índio) com
o intuito de “estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política
indigenista”, no entanto, conforme o Relatório Violência contra os Povos
Indígenas no Brasil dados de 2015, tais direitos têm sido infringidos, de-
turpando o que assegura a Lei indígena, conforme o relatório, tais povos
são submetidos a condições deprimentes, a torturas, perseguições, sejam
estes jovens, mulheres, crianças e/ou idosas (BRASIL, 1967; CIMI, 2015).
De fato, a aceitação social de que as terras indígenas são “direitos ori-
ginários”, ou seja, antecedem a criação do próprio Estado brasileiro, é
fundamental para os processos de demarcação, considerando as pressões
94 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

constantes do grande capital através do agronegócio que estende os pro-


cessos de expropriação dos povos indígenas de suas terras.
Enquanto esses povos viverem sob as determinações do sistema ca-
pitalista, as conquistas políticas e constitucionais dos povos originários,
ainda, atuarão de forma significativa para garantir certas estratégias de
proteção da vida destes povos.
A relação de equilíbrio que os povos indígenas têm conseguido esta-
belecer ao longo de gerações, serve de exemplo também para que a
sociedade, tida como desenvolvida e moderna na esfera de atuação do dito
capitalismo de mercado, possa parar e refletir sobre a necessidade imedi-
ata de rever os paradigmas estabelecidos e voltar a ter uma relação de
contemplação e trocas de reciprocidades com o meio ambiente.
Fica claro que os povos indígenas têm uma conexão sociocultural pro-
funda e única com a terra que habitam. Essa conexão persiste no Brasil,
apesar de séculos de colonização, deslocamento e repressão que suas iden-
tidades culturais sofreram, ainda mais em tempos de negacionismo,
obscurantismo e de atitudes reacionárias.
Portanto, é preciso entender que as “vozes” dos indígenas brasileiros,
principalmente os que foram afetados pela UHE de Belo Monte no Xingu,
clamam por mudanças em defesa de sua cultura, identidade, terra, terri-
tório e, é claro, por melhores condições de vida para que, ao final, sejam
respeitados enquanto cidadãos brasileiros.

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Capítulo 4

Resgatando a caça histórica de peixes-bois na


Amazônia durante e após a ‘época da fantasia’ 1

Rescuing the historic hunting of manatees in the


Amazon during and after the ‘fantasy time’
Salvatore Siciliano 2
Alexandra Fernandes Costa 3
Renata Emin-Lima 4
Marcelo Derzi Vidal 5

1 Introdução

Os animais representam alimento base para milhões de seres


humanos, sendo a fauna silvestre uma importante fonte de proteína para
as populações humanas que vivem em áreas de florestas tropicais
(PEZUTTI, 2009; ABERNETHY et al., 2013; CHAVES et al., 2018). No
entanto, em nível global, milhares de espécies animais encontram-se

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Doutor em Zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ (MN/UFRJ). Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Atua na pesquisa em saúde silvestre, etnobiologia e conservação de recursos naturais. Endereço: Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Av. Brasil, 4.365, Manguinhos. Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Link para o Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2471615656999141 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0124-8070 E-mail:
[email protected]
3
Doutora em Ecologia Aquática e Pesca pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisadora colaboradora do
Instituto Bicho D’água: Conservação Socioambiental. Atua na pesquisa, manejo e monitoramento de mamíferos
aquáticos no Nordeste e região Amazônica do Brasil. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8521868092891043
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7560-0113 E-mail: [email protected]
4
Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ). Pesquisadora do Museu Paraense
Emílio Goeldi, Setor de Mastozoologia. Atua na biologia e conservação de mamíferos aquáticos do Brasil. Link para
o Lattes: http://lattes.cnpq.br/9249838863447997 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5593-1449 E-mail:
[email protected]
5
Doutor em Biodiversidade e Conservação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Pesquisador do Centro
Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais
(CNPT/ICMBio). Atua na pesquisa e manejo de recursos naturais, turismo com fauna silvestre e conflitos envolvendo
populações tradicionais-fauna silvestre. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/0861725321644797 ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-9434-7333 E-mail: [email protected]
100 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

ameaçadas de extinção, muitas delas devido à caça indiscriminada


(FUCCIO et al., 2003).
No Brasil, antes da chamada “Lei de Proteção à Fauna” (Lei n° 5.197,
de 3 de janeiro de 1967), não havia estratégias de manejo ou controle efe-
tivo da caça pelas agências governamentais, sendo suas diversas
modalidades praticadas nas diferentes regiões do país (TOMAS et al.,
2018). Este histórico de sobrecaça a várias espécies da fauna silvestre afe-
tou de tal forma suas populações que, muitas vezes, levou-as ao quase
desaparecimento ou à sua extinção comercial, situação que ocorre quando
animais são tão raros que o valor obtido com o comércio do produto da
caça não mais compensa o esforço investido para sua obtenção (TOMAS et
al., 2018).
Na Amazônia, o resultado da caça em grande escala também decor-
reu em redução e extinção local das populações dos animais mais caçados
(PEZZUTI, 2009). Outras espécies podem estar com suas populações re-
duzidas em níveis de abundância que não permitem que elas cumpram
funções ecológicas extremamente importantes, como polinização e disper-
são de plantas economicamente exploradas e controle biológico de pragas
(REDFORD, 1992; PEZUTTI, 2009).
Animais pequenos, com baixa biomassa, são pouco visados pelos ca-
çadores. Preferência é dada a espécies de maior porte (JEROZOLIMSKI;
PERES, 2003; PEZUTTI, 2009), e grandes mamíferos como a queixada
(Tayassu pecari), o caititu (Pecari tajacu), a anta (Tapirus terrestris) e os
veados (Mazama spp.) estão entre os animais mais procurados, sendo des-
tinados não só para o consumo familiar, mas também para a
comercialização de suas peles e couros (BODMER et al., 1994).
A comercialização de peles e couros de animais silvestres amazônicos
aconteceu por quase um século, abastecendo um vigoroso mercado mun-
dial por meio do abate de milhões de mamíferos e répteis (REDFORD;
Volume 9 | 101

ROBINSON, 1991). Este período, que foi dos anos 1900 a 1960, aproxima-
damente, ficou conhecido como “Época da Fantasia”, nome dado em
referência às peles e couros exportados para os mercados da moda norte-
americano e europeu, especialmente.
Em uma Amazônia aparentemente prístina, onde o homem se esta-
beleceu preponderantemente ao longo dos cursos d’água, a forte pressão
de caça para abastecer o mercado internacional levou à depleção dos esto-
ques de diversos animais aquáticos e semiaquáticos, como jacarés
(Melanosuchus niger, Caiman crocodilus), capivaras (Hydrochoerus
hydrochaeris), ariranhas (Pteronura brasiliensis), lontras (Lutra longicau-
dis) e peixes-bois (Trichechus spp.) (ANTUNES; SHEPARD;
VENTICINQUE, 2014; ANTUNES et al., 2016). Somente nas décadas de
1930 e 1940, aproximadamente 19 mil peixes-bois foram abatidos e seus
couros contribuíram para abastecer o mercado internacional de peles de
animais silvestres (NUNES-PEREIRA, 1944; DOMNING, 1982). Neste
mesmo período, estimulado pela expressiva demanda, ocorreu uma gigan-
tesca comercialização de jacarés jovens e adultos, vendidos inteiros ou
somente seus ventres, flancos e caudas (ANTUNES; SHEPARD;
VENTICINQUE, 2014). Por um longo período, os principais mercados im-
portadores foram os Estados Unidos, a Argentina e países da Europa, como
Inglaterra, Escócia e Alemanha (ANTUNES; SHEPARD; VENTICINQUE,
2014).
As peles e couros dos mamíferos silvestres amazônicos eram utiliza-
dos para a fabricação dos mais diversos itens, como calçados, coldres,
luvas, capas de armas, coletes, cintos, assentos de cadeira, vestimentas,
bolsas, pulseiras de relógio, dentre outros (FERREIRA, 1972; MEDEIROS,
1972; BENCHIMOL, 1977; DANIEL, 2004; ANTUNES; SHEPARD;
VENTICINQUE, 2014). As peles mais cobiçadas e caras, também chamadas
de “peles de luxo” ou “fantasias” eram aquelas extraídas do maracajá-açu
102 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

(Leopardus pardalis), do maracajá-peludo (L. wiedii), da onça-pintada


(Panthera onca), do peixe-boi, da ariranha e da lontra (ANTUNES;
SHEPARD; VENTICINQUE, 2014; ANTUNES et al., 2016).
Passados mais de 50 anos da promulgação da Lei de Proteção à
Fauna, essa política não resultou na conservação das populações de muitas
espécies da fauna brasileira, como era esperado (TOMAS et al., 2018), e
mesmo nas últimas décadas, a caça de animais silvestres permanece su-
prindo uma demanda presente tanto em áreas rurais como urbanas para
o consumo e comercialização de carnes exóticas (CAMPOS, 2009;
PEZZUTI, 2009; RIBEIRO et al., 2016; CHAVES et al., 2018).
Assentamentos humanos maiores e acesso mais fácil aos mercados
para venda de carne de caça fizeram com que o abate de animais silvestres
amazônicos alcançasse números elevados, capazes de esvaziar os estoques
das suas populações (PEZZUTI, 2009). Redford (1992) estimou que 19 mi-
lhões de vertebrados são abatidos anualmente pela caça de subsistência e
outros quatro milhões pela caça comercial. Nasi et al. (2011) estimaram
que aproximadamente um milhão de toneladas de carne de caça sejam
consumidas anualmente somente nas áreas rurais, quantidade bastante
inferior à indicada por Peres (2000), que estimou 23,5 milhões de animais
abatidos anualmente, quando considerado o tamanho da população rural
amazônica. Levando em conta os números de animais abatidos na Amazô-
nia percebe-se claramente que a atividade não é sustentável (ROBINSON;
BODMER, 1999).
Considerando que conhecer o modo de ação dos caçadores, seu estilo
de vida e suas práticas cotidianas são informações essenciais para o deli-
neamento e adoção de políticas públicas destinadas à conservação da fauna
silvestre, apresentamos e discutimos neste capítulo informações sobre a
caça de peixes-bois na Amazônia brasileira durante a “Época da Fantasia”
e sua fase posterior, onde ainda se realiza a caça voltada para o consumo
Volume 9 | 103

familiar, afora outros usos. Nosso propósito é traçar uma ponte entre a
pujante fase da caça comercial e os tempos de preservação de espécies
ameaçadas, que tiveram início nos anos 1980 e se consolidaram em im-
portantes iniciativas de proteção aos peixes-bois.
O valioso acervo de dados aqui apresentado mostra uma nítida apro-
ximação entre os depoimentos de antigos caçadores de peixes-bois e a
validação pelos métodos de pesquisas acadêmicas sobre ecologia e hábitos
de vida destes animais, que até os dias presentes carecem de maiores e
mais qualificados estudos.

2 Métodos de pesquisa

Neste capítulo são apresentadas informações coletadas de forma es-


pontânea, não sistemática, entre os anos 1990 e 2020, junto a 12 antigos
caçadores e pescadores, membros de comunidades tradicionais de cinco
localidades nos estados do Amazonas, Pará e Maranhão (Figura 1). Em
pesquisas etnobiológicas, frequências de tamanho amostral grande rara-
mente são importantes (CROUCH; MCKENZIE, 2006; MASON, 2010), o
que justifica o tamanho amostral neste estudo.
As entrevistas foram guiadas por um roteiro semiestruturado, con-
tendo perguntas abertas e fechadas relacionados aos usos dos peixes-bois,
as quais abordaram aspectos sobre sua biologia, locais de ocorrência, há-
bitos de vida e alimentares, e ameaças à conservação, incluindo registros
de caça e outros aspectos tradicionais (Figura 2). Assim como em outros
estudos etnoecológicos (ZAPPES et al., 2016, PRADO et al., 2017; VIDAL;
MOURA; MUNIZ, 2019), as entrevistas foram realizadas em locais consi-
derados apropriados pelos entrevistados (residência, centro comunitário,
porto da comunidade) e o pesquisador apresentou-se como membro de
uma instituição de pesquisa para evitar associações com autoridades ou
104 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

órgãos fiscalizadores ambientais. As entrevistas foram realizadas indivi-


dualmente por meio de diálogos com os entrevistados visando evitar
interferências de outros atores (SCHENSUL; SCHENSUL; LECOMPTE,
1999), momento em que se deixava claro o objetivo da pesquisa e garantia-
se o anonimato dos entrevistados, deixando-os mais confortáveis para res-
ponder às perguntas.

Figura 1 – Mapa indicando as localidades na Amazônia mencionadas nas entrevistas com antigos caçadores
e pescadores de peixes-bois: Alcântara (Maranhão), Algodoal (leste do Pará), Abaetetuba (Baixo rio Tocan-
tins, Pará), Soure e Salvaterra, Costa leste da Ilha do Marajó (Pará), e Coari (Amazonas).

Elaboração: Moreira-Junior, R. H.
Volume 9 | 105

Figura 2 – Peixe-boi-marinho (Trichechus manatus manatus),


um dos mamíferos aquáticos mais ameaçados no Brasil

Crédito: Baleia, R.

Os entrevistados relataram informações abrangendo os ambientes


mais diversos, desde as várzeas e lagos da Amazônia Central, como as re-
giões de Coari, no Amazonas, e o Baixo Rio Tocantins e a Costa da Ilha do
Marajó, no Pará, até Alcântara, na Amazônia litorânea do Maranhão. Por-
tanto, os dados aqui apresentados refletem a ocorrência e hábitos de vida
das duas espécies de peixes-bois: o amazônico (T. inunguis) e o marinho
(T. manatus manatus). Em algumas áreas, como na Costa da Ilha de Ma-
rajó, estas espécies ocorrem em simpatria e sintopia (BONVICINO et al.,
2020), o que reveste de grande valor as informações aqui apresentadas
sobre aspectos da anatomia e de hábitos de vida desses mamíferos aquáti-
cos.
As respostas relacionadas às perguntas abertas foram padronizadas
por meio de categorias que agrupavam as respostas obtidas, facilitando
106 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

assim a interpretação dos relatos (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Para compa-


ração das informações contidas nas falas dos entrevistados foi utilizada a
técnica de informações repetidas em situação sincrônica, em que o mesmo
questionário foi aplicado a todos os entrevistados (GOLDENBERG, 1999;
OPDENAKKER, 2006). Foi ainda realizada análise de correspondência en-
tre as falas dos entrevistados e a literatura científica corrente.
Por envolver coleta de dados sobre espécie ameaçada, com ocorrência
dentro e fora de Unidades de Conservação, a pesquisa foi cadastrada e au-
torizada no Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade –
SISBIO (números 30327-1 e 54305-1), gerido pelo Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade – ICMBio.

3 Desenvolvimento

3.1 Recolonização de áreas históricas de ocorrência de peixes-bois na Costa


Norte

Um dos fatos mais notáveis que surgiram nas entrevistas foi a afir-
mação de que peixes-bois-marinhos são avistados com certa regularidade
em regiões que se assumiam como exterminados pela caça. Algumas des-
sas áreas foram visitadas por renomados zoólogos nos anos 70 e 80 do
século passado, os quais constataram a provável extinção local desses ma-
míferos aquáticos.
Os relatos mais significativos são o de Domning (1981), que ao visitar
a Costa Leste do Marajó, no Pará, e a região do Baixo Rio Mearim, no Ma-
ranhão, falhou em apontar a presença de sirênios na maior parte das áreas
visitadas, e, portanto, assumiu que haviam desaparecido localmente.
Dessa forma, as entrevistas realizadas desde os anos 2000 já indicavam
uma tênue, mas possível reocupação dessas áreas tradicionais (ou históri-
cas) da presença de peixes-bois onde, de tão comuns e ‘lentos’, chegam a
ser assinalados como ‘abestados’ (entrevistado de Viseu, Pará). Para os
Volume 9 | 107

pescadores, os peixes-bois já estão ‘se acostumando’ com as pessoas e, em


algumas áreas como Soure e Salvaterra, na Ilha do Marajó, podem ser vis-
tos mesmo por turistas. “Peixes-bois buiam no Garrote, em Soure, e na
Vila de Jubim, em Salvaterra [...]” (entrevistado de Joanes, Ilha de Marajó).
Esses pontos de agregação de peixes-bois são conhecidos como “boiadou-
ros”, que por várias vezes foram indicados nas entrevistas. “Em frente ao
Rasgado tem um boiadouro [...]” (entrevistado de Alcântara). Esses pontos
de agregação foram descritos por Luna et al. (2008), mencionando que os
peixes-bois podiam ser encontrados em boiadouros, ou abrigos, locais com
boa disponibilidade de alimento e berçários.
Recentemente, Bonvicino et al. (2020), ao rever todas as áreas de
ocorrência de Trichechus spp. no Brasil, comprovaram a reocupação re-
cente de muitas áreas costeiras e fluviais por esses mamíferos, o que está
de acordo com as informações obtidas junto aos pescadores. Fica demons-
trado uma impressionante correspondência entre a fala dos entrevistados
e a ocorrência comprovada por encalhes de peixes-bois em distintos tre-
chos da costa e do interior dos Estados do Pará e Maranhão (SOUSA;
MARTINS; FERNANDES, 2013; CONCEIÇÃO et al., 2020; VIDAL et al.,
2021)⁠.

3.2 Alimentação/Dieta dos peixes-bois

Merece destaque os relatos dos entrevistados sobre a dieta dos pei-


xes-bois (Trichechus spp.) visto que, de modo geral, estão bastante
alinhadas com a literatura especializada. A menção às plantas altamente
concordantes com a literatura e reportadas como itens alimentares dos
sirênios (BEST, 1981) surgiram nas entrevistas, com destaque para o mu-
riru (ou mureru, Limnobium spongia), o capim-navalha (Leersia
hexandra), o arroz-selvagem (Oryza spp.), a batatarana (Ipomoea squa-
mosa), a canarana (Echinochloa polystachya), o feijão (Phaseolus pilosus),
108 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

a aninga (Montrichardia sp.), o mangue (Rhizophora mangle) e o paturá


(Crenea maritima). Boa parte dessas plantas foi também mencionada em
estudos etnobotânicos sobre a dieta do peixe-boi-amazônico no Parque
Nacional de Anavilhanas, na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, na
Floresta Nacional do Tapajós e nas Reservas de Desenvolvimento Susten-
tável Mamirauá e Amanã (COLARES; COLARES, 2002; GUTERRES-PAZIN
et al., 2014; CREMA et al., 2019), assim como para o peixe-boi-marinho
em sua área de ocorrência no Nordeste do Brasil, onde são relatados o
consumo de macroalgas e angiospermas marinhas (LIMA, 1999; BORGES
et al., 2008).
Curiosamente, a citação para o consumo de ‘lodo’ surge em Crema et
al. (2019) [samambaia ou lodo: Utricularia breviscapa e U. foliosa] que
também deixa a dúvida se seria de fato uma planta, ou a própria lama do
fundo dos rios. Em nosso estudo, um informante do Amazonas mencionou
que "o peixe-boi chupa o lodo em cima d'água [...]", o que nos faz crer que
se trata de Utricularia spp., uma planta comum em lagos amazônicos
(LOPES et al., 2015). Essa admirável coincidência de relatos e percepção
por parte de antigos caçadores da necessidade de os peixes-bois suprirem
sua dieta em períodos de jejum é bem descrita na literatura acadêmica.
Best (1983) cita que “peixes-bois-amazônicos quando restritos aos poços
de água funda nos lagos da Amazônia Central durante a estação seca, não
têm qualquer fonte aparente de alimentação (macrófitas aquáticas), até as
águas subirem cerca de 1-2 metros [...]”. Ainda segundo esse autor, “isto
indica que os peixes-boi poderiam comer material vegetal de origem au-
tóctona [sic] ou alóctona [sic], morto no fundo do lago, utilizando
fermentação pós-gástrica para obter o máximo valor nutritivo desse ma-
terial”. Nesse aspecto, ainda mais notável seria a percepção de um
entrevistado de Coari, no Amazonas, ao mencionar que o “peixe-boi come
castanharana ... fruta que cai e vai para o fundo, o peixe-boi come [...]”.
Volume 9 | 109

Curiosamente, chama a atenção que essa informação do consumo de uma


fruta pelo peixe-boi-amazônico não esteja mencionada até o presente mo-
mento na literatura especializada (sensu BEST, 1981; COLARES;
COLARES, 2002; CREMA et al., 2019). O nome comum “castanharana” é
atribuído na região das Anavilhanas, Amazonas, à Eschweilera albiflora
(Lecythidaceae), que ocorre tanto no igapó quanto em terra firme
(ICMBIO, 2017), árvore comum nas margens dos rios amazônicos, especi-
almente naqueles com solo arenoso, pobre em nutrientes como no rio
Negro. Seus frutos são apreciados pelos ribeirinhos. Portanto, é perfeita-
mente plausível que esses frutos caiam na água e sejam consumidos pelos
peixes-bois, constituindo desse modo uma suplementação alimentar nos
meses de menor oferta de plantas comestíveis. Sendo assim, é notável que
o informante tenha reportado um item alimentar dos peixes-bois ainda
não assinalado na literatura acadêmica, o que atribui à etnoespécie “casta-
nharana” um elevado valor.
A citação para o consumo da aninga (Montrichardia arborescens) por
peixes-bois na região de Abaetetuba, no Baixo Rio Tocantins, é digna de
nota. Essa planta é dominante nesses ambientes e, portanto, deve ter alta
relevância na dieta dos sirênios em toda essa região. Para a área costeiro-
marinha, como por exemplo, Soure e Salvaterra, na Ilha do Marajó, no
Pará, assim como em Alcântara, no Maranhão, existem menções ao con-
sumo de mangue-siriba (Avicennia germinans), capim-agulha e paturá
(Figura 3). Contudo, os nomes locais trazem diferenças na identificação
das espécies, como no caso do capim-agulha, que na região Norte refere-
se à Spartina alterniflora (LINS et al., 2014), e no Nordeste trata-se de Ha-
lodule wrightii, considerado um dos principais itens alimentares do peixe-
boi-marinho nesta região (LIMA, 1999; FAVERO et al., 2020; RODRIGUES
et al., 2021).
110 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 3 – Ambiente aquático na Ilha do Marajó, Pará,


evidenciando a presença de itens alimentares dos peixes-bois

Crédito: Siciliano, S.

3.3 Capacidade auditiva e produção de sons

Dentre os aspectos biológicos relatados que mais chamaram a aten-


ção, destaca-se a percepção de que o peixe-boi 'escuta demais'. “Até de
bater na canoa ele escuta e se espanta [...]" (entrevistado de Coari, Ama-
zonas). Assim como a habilidade em produzir sons. "Uma vez cheguei no
lago e estava coalhado de peixe-boi 'urrando', o 'chefe' dos peixes-bois
dava urros, como de boi [...]" (entrevistado de Coari, Amazonas). A capa-
cidade auditiva dos sirênios e sua habilidade em produzir sons audíveis
aos humanos são dois aspectos da biologia desse grupo de mamíferos aqu-
áticos que foram estudados mais a fundo apenas em tempos recentes
(O’SHEA; POCHÉ, 2006; UMEED; ATTADEMO; BEZERRA, 2018). A lite-
ratura corrente evidencia que as vocalizações dos peixes-bois são
Volume 9 | 111

utilizadas durante a alimentação, diversão, comportamento de cópula, em


situações alarmantes e na interação entre mãe e filhote (HARTMAN, 1979;
BENGTSON; FITZGERALD, 1985)⁠.
Para os caçadores entrevistados, era de suma importância perceber a
capacidade auditiva dos peixes-bois, que permitia a aproximação da canoa
ao animal se não houvesse qualquer barulho na água. Os entrevistados
relataram ainda que os peixes-bois são capazes de se comunicar por meio
de “urros”, talvez usados em algum tipo de dominância, hierarquia de
grupo ou acasalamento. Esta informação é corroborada em trabalhos que
afirmam que as vocalizações do peixe-boi-da-Flórida (T. m. latirostris)
atinge altas frequências (variando de 2kHz a 5kHz), assim como as do
peixe-boi-amazônico, que atinge entre 1.2 e 4kHz (SOUSA-LIMA; PAGLIA;
DA FONSECA, 2002).

3.4 Sobre usos e costumes dos peixes-bois pelas populações ribeirinhas e


costeiras

Os relatos de usos e costumes dos peixes-bois variaram bastante en-


tre regiões e de acordo com necessidades próprias de cada entrevistado,
mas chama a atenção o uso de partes dos animais na etnomedicina. “O
couro é usado para emplastro, curar 'rasgadura', tipo infusão [...]” (entre-
vistado de Algodoal, Pará). “Eu guardava o couro para fazer remédio [...]”
(entrevistado de Soure, Marajó). É notório que pescadores certamente so-
frem frequentes lesões nas articulações devido ao esforço repetitivo de
trabalho durante as atividades de pesca, o que pode explicar a necessidade
de uso de ‘remédios’ de acordo com essa finalidade. Já outro informante,
de Algodoal, Pará, mencionou que havia jogado uma costela de peixe-boi
no poço, para que este ambiente aquático não secasse no período do verão.
E o caso mais singular seria o de um pescador que havia guardado um
crânio de peixe-boi-marinho em Soure, Ilha de Marajó, como um misto de
peça de decoração e amuleto. Segundo esse pescador, os peixes-bois vivem
112 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

‘muitos anos’ e assim ele desejava que sua mãe vivesse ainda muitos anos,
tal qual o peixe-boi. Importante frisar que a doação deste crânio para a
ciência (SICILIANO et al., 2007), foi a comprovação de que T. manatus não
estava desaparecido daquela região como havia considerado Domning na
década de 1980.
Interessante ainda notar que parece haver uma relação explícita en-
tre a presença de peixes-bois e os meses de chuva, ou seja, maior aporte
de água pluvial aos ambientes aquáticos, o que pode ser crítico em comu-
nidades marinho-costeiras do Pará e Maranhão. “Aqui é mais fácil avistar
peixes-bois na época das chuvas, no inverno, por causa da 'baixa' tempe-
ratura da água, que os faz boiar mais fácil para se esquentar; mas eles
estão presentes na área o ano todo [...]” (entrevistado de Alcântara, Mara-
nhão). Essa maior probabilidade de visualizar os peixes-bois nos períodos
chuvosos foi corroborada em estudo que acessou o Conhecimento Ecoló-
gico Local (CEL) em comunidades da Costa Leste da Ilha de Marajó, no
qual um dos entrevistados afirmou que "tem peixe-boi no verão e no in-
verno, sendo mais no inverno, nas águas grandes de março", indicando
que os ribeirinhos têm conhecimento sobre a sazonalidade de ocorrência
naquela região (SOUSA; MARTINS; FERNANDES, 2013).
Em relação à caça mais tradicional, o informante mais longevo, com
90 anos (em dezembro de 2020), morador de Novo Airão, Amazonas,
mencionou que o couro dos peixes-bois “era levado para Manaus para pro-
duzir sapatos e bolsas [...]”. Segundo Domning (1982) e Nunes-Pereira
(1944) os couros do peixe-boi e da anta eram salgados e vendidos por qui-
lograma, e tinham aplicações industriais, tais como em mangueiras,
correias de transmissão, polias e peças de teares. De acordo com Antunes
et al. (2014), as peles de jiboia (Boa constrictor), sucuriju (Eunectes muri-
nus), iguana ou camaleão (Iguana iguana), jacuraru ou tejuaçu
Volume 9 | 113

(Tupinambis teguixin), jacuruxi (Dracaena guianensis), jacaré-açu e ja-


caré-tinga eram utilizadas para produzir sapatos, malas, carteiras, caixas,
estojos, cigarreiras, cabos de bengalas e de guarda-chuvas, chapéus, jaque-
tas, gravatas e luvas.
No estado do Amazonas, a bacia do rio Purus é um dos locais com
histórico de intensa caça, onde Nunes-Pereira (1944) recomendou a cria-
ção de áreas protegidas para o peixe-boi-amazônico. Utilizando o método
de entrevista com caçadores naquela região, Souza et al. (2014) identifica-
ram por meio dos relatos que num período de dez anos (2004-2014),
aproximadamente 460 peixes-bois foram mortos dentro da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Infelizmente, a caça perdura
até hoje, alimentando um mercado ilegal de venda de carne. Outro estudo
utilizando o CEL mapeou o estado da caça na bacia do rio Urucu, município
de Coari, também no Amazonas. Naquela região, o arpão (Figura 4) é o
instrumento mais usado para caçar peixes-bois, mas os entrevistados des-
tacaram também o uso de tornos [“Metia os tornos nas venta dele para
morrer [...]”, peças cônicas de madeira que são introduzidas nas narinas
e matam os animais por asfixia (FRANZINI et al., 2013).
114 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 4 – Detalhe do arpão, petrecho utilizado na caça de


peixes-bois marinhos e amazônicos. Acervo GEMM-Lagos

Crédito: Siciliano, S.

“Eu peguei um peixe-boi com arpão num boiadouro; arpão cansava


o peixe-boi; é o 'peixe' que tem mais força dentro d'água [...]”, afirmou um
pescador entrevistado em Algodoal, Pará. Outro entrevistado em Alcân-
tara, Maranhão, relatou que até a década de 1990 ele ainda caçava peixes-
bois (Figura 5) com uso de arpão, mas que foi avisado que era proibido e
então parou a atividade. O uso do arpão como petrecho de pesca mais uti-
lizado na caça de peixes-bois é citado por Luna et al. (2008).
Volume 9 | 115

Figura 5 – Caçador de peixes-bois entrevistado em Alcântara, Maranhão

Crédito: Siciliano, S.

3.5 Ameaças aos peixes-bois

Os petrechos de pesca, tanto ativos como passivos, são potenciais


ameaças aos peixes-bois. A captura acidental destes sirênios em redes de
arrasto de camarão, redes de emalhar e de espera já foram registrados no
Ceará (MEIRELLES, 2008). No Pará, há relatos de peixes-bois presos den-
tro de currais de pesca no rio Arari, região costeira na Ilha do Marajó, e de
um exemplar capturado acidentalmente em rede de pesca (SOUSA, 2018;
GEMAM, dados não publicados). Parente et al. (2004) compilaram os da-
dos de encalhe em outros estados do Nordeste e comprovaram a captura
de peixes-bois em redes de pesca e com arpão na Paraíba, Rio Grande do
Norte e Pernambuco.
116 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Um dos informantes de Soure, no Pará, relatou a presença de um


peixe-boi num curral: “Tinha 200 quilos, foi cortado com machado e a
carne foi vendida [...]”. Outro entrevistado relatou que “quatro ou cinco
peixes-bois foram encontrados em currais nos últimos anos e liberados
com vida; o menor tinha aproximadamente 40 quilos. Um que morreu foi
doado à comunidade. Em média cada peixe-boi tem entre 200-250 quilos
[...]”. “Outro peixe-boi foi capturado em Vigia e levado vivo para Belém
[...]”.
Segundo os informantes, havia muitos currais em Soure, no Pará,
mas a atividade de curralista está em declínio. De acordo com Lima et al.
(1999), os currais foram desativados na maior parte do litoral do Nordeste,
com exceção do litoral do Ceará, Pernambuco e Alagoas. Os peixes-bois,
principalmente os jovens, entram nessa armadilha para se alimentar das
algas fixadas às madeiras e acabam ficando presos acidentalmente, sendo
mortos intencionalmente a pauladas ou facadas. Felizmente é crescente o
número de relatos de pescadores e/ou moradores que se deparam com
peixes-bois dentro dos currais e que são liberados vivos. “Encontramos
um peixe-boi no curral há uns dois anos, em 2004; pesava cerca de 400
quilos, se debateu muito, ficou ferido na barriga, foi liberado vivo, acabou
entrando em outro curral e foi solto novamente e conseguiu ir embora
[...]”. “Outro foi capturado em outro curral há uns quatro anos, em 2002
[...]”.

Considerações finais

O acervo de entrevistas aqui reunidas proporciona uma formidável


fonte de informações sobre a caça histórica de peixes-bois na Amazônia
durante a ‘Época da Fantasia’, assim como na fase posterior à caça comer-
cial. Aliado a essas entrevistas, colheu-se um valioso acervo sobre os
hábitos de vida e ecologia dos peixes-bois, em uma oportunidade única de
Volume 9 | 117

resgate histórico dessas informações. Foi possível traçar um retrato da


vida do ribeirinho amazônico que utilizava o peixe-boi para seu consumo
e renda, beneficiando-se de um recurso ainda abundante, que podia ser
explorado ao longo de todo o ano. Ainda que em alguns meses pudesse ser
mais difícil capturar os peixes-bois, não havia a percepção clara de que eles
mostravam sinais de escasseamento em qualquer parte, ou mesmo não
eram percebidos como tal, supondo-se como um recurso sempre disponí-
vel. Não raro, a caça de peixes-bois era comparada em nível de dificuldade
com a dos pirarucus (Arapaima gigas), uma vez que esses peixes também
requerem habilidades especiais dos ribeirinhos para serem capturados.
As entrevistas renderam ainda uma expressiva variedade de dados
sobre a dieta dos peixes-bois, incluindo até mesmo itens ainda não relata-
dos na literatura científica, como o consumo da ‘castanharana’ na região
de Coari, Amazonas. Nessa mesma linha, coube aos antigos caçadores des-
crever a importância de algumas plantas para a dieta e consequente
sobrevivência dos peixes-bois no período de verão amazônico, quando
pode haver escassez de gramíneas e outras plantas aquáticas. Durante esse
jejum, os peixes-bois poderiam comer material vegetal morto no fundo
dos lagos, utilizando fermentação pós-gástrica para obter o máximo valor
nutritivo desse material. A informação de que os peixes-bois ‘chupam o
lodo do fundo’ demonstra uma grande capacidade de percepção por parte
dos entrevistados que, dessa forma, alinha-se com o descrito na literatura
científica.
A produção de sons pelos peixes-bois foi um aspecto notável surgido
a partir das entrevistas, fato esse que ainda requer mais estudos pelos es-
pecialistas. A percepção de que os peixes-bois apresentam boa audição foi
fundamental para garantir o sucesso de sua captura, o que explica o fato
de que muitos caçadores trabalhavam sozinhos, deslocando-se com muita
118 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

suavidade em suas canoas pelos lagos, rios e boiadouros em busca dos pei-
xes-bois.
São ricas também as descrições de usos dos peixes-bois além da ali-
mentação convencional. A confecção de remédios e emplastros surge em
diferentes cenários, com funções variadas. Ainda mais curiosa seria a ana-
logia clara entre a presença de peixes-bois e a época de chuvas, ou de água
doce mais abundante, o que remete ao uso de partes do corpo dos peixes-
bois com a finalidade de garantir a perenidade dos poços d’água. E mais
notável é a associação entre a longevidade conhecida dos sirênios com o
uso de ossos e outras partes como amuletos, normalmente ligados ao de-
sejo de um ente querido viver com longevidade.
E por fim, foi a partir das entrevistas com os antigos caçadores e pes-
cadores em distintas partes do litoral amazônico, com destaque para a Ilha
do Marajó, no Pará, e Alcântara, no Maranhão, que se demonstra a reco-
lonização desses ambientes pelos peixes-bois, onde foram abundantes até
o século passado. Os dados recentes obtidos por programas regulares de
pesquisa, como o Projeto Peixe-boi, do ICMBio, e o Grupo de Estudos de
Mamíferos Aquáticos da Amazônia, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que
registram encalhes e avistagens, apontam para uma ampla concordância
com essas áreas de ocorrência recente e uso regular pelos sirênios em toda
a costa amazônica. As informações obtidas junto a pescadores e caçadores
de áreas interiores e costeiras da Amazônia muito têm contribuído para o
sucesso dos programas de pesquisa em localizar e estudar as populações
remanescentes de peixes-bois, direcionar esforços de sensibilização para
sua conservação e implantar programas de reabilitação e manejo dos sirê-
nios.
Volume 9 | 119

Agradecimentos

S. Siciliano é bolsista de produtividade do CNPq e tem apoio do Pro-


grama INOVA Fiocruz. As viagens de campo na região do Marajó entre
2005 e 2010 contaram com recursos dos Projetos Piatam Mar e Piatam
Oceano. A viagem a Novo Airão em 2020 contou com apoio do ICMBio,
por meio do Programa ARPA.

Referências

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Capítulo 5

Territórios quilombolas sobrepostos a UCS


de proteção integral em Minas Gerais:
aspectos legais e conservação da natureza 1

Territories of quilombolas communities overlaps to protected areas of


indirect use in minas gerais: legal aspects and nature conservation
Raquel Faria Scalco 2
Bernardo Machado Gontijo 3

1 Introdução

A criação de Unidades de Conservação (UCs) é uma importante es-


tratégia utilizada para a proteção dos recursos naturais e da
biodiversidade. Porém, muitas áreas onde estas UCs são criadas coincidem
com áreas utilizadas e/ou habitadas por populações tradicionais que de-
pendem destes recursos para a reprodução de suas práticas sociais. Estas
comunidades, na grande maioria das vezes, são cerceadas do desenvolvi-
mento de muitas atividades pela gestão das UCs, principalmente daquelas
de proteção integral, que são mais restritivas à presença humana e ao uso
dos recursos naturais.
Estes povos tradicionais possuem, em geral, formas de uso e apropri-
ação dos recursos naturais dos quais dependem, diferente da sociedade

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Doutora em Geografia (UFMG). Professora Adjunta do Curso de Turismo da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM - Câmpus Diamantina). Endereço: Av. João Antunes de Oliveira n° 1945. Taj Mahal.
Diamantina/MG. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/1858387591943845 ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-2042-783X E-mail: [email protected]
3
Doutor em Desenvolvimento Sustentável (UNB). Professor Associado do Instituto de Geociências da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/0882015654292509 ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5012-9652 E-mail: [email protected]
Volume 9 | 127

envolvente e preservaram durante várias gerações as terras que tradicio-


nalmente ocupam. Este é o caso de algumas UCs de proteção integral de
Minas Gerais criadas em áreas habitadas e/ou utilizadas por comunidades
quilombolas. Em pesquisa de doutorado, concluída em 2019, foram iden-
tificados 7 casos em Minas Gerais em que esta sobreposição acontece,
sendo eles: Parque Estadual Lagoa do Cajueiro (PELC) com a comunidade
quilombola da Lapinha; Parques Estaduais do Rio Preto (PERP) e do Pico
do Itambé (PEPI) com a comunidade quilombola Mata dos Crioulos; Par-
que Estadual da Serra das Araras (PESA) com a comunidade quilombola
Barro Vermelho; Parque Estadual da Serra Negra (PESN) com a comuni-
dade quilombola São Gil; Parque Estadual Serra do Intendente (PESI) com
a comunidade quilombola Cubas; Parque Nacional das Sempre-Vivas
(PNSV) com as comunidades quilombolas Vargem do Inhaí e Quartel do
Indaiá; e Reserva Biológica da Mata Escura (REBIO) com a comunidade
quilombola de Mumbuca. A localização destes casos de sobreposição pode
ser visualizada no mapa da figura 1, a seguir.
Destaca-se que os resultados aqui apresentados constituem-se num
recorte de uma pesquisa maior, desenvolvida no doutorado em Geografia
da UFMG (SCALCO, 2019), na qual foi realizado um levantamento dos ca-
sos de sobreposição entre territórios quilombolas e unidades de
conservação de proteção integral em Minas Gerais (analisando quais são,
quantos são, onde ocorrem, quais as estratégias utilizadas no enfrenta-
mento dos conflitos e as possíveis soluções).
Para este recorte, tem-se como objetivo geral analisar a relação das
comunidades quilombolas com a natureza nos casos de sobreposição
identificados na pesquisa. Além disso, pretende-se compreender como
esta sobreposição pode influenciar o status de proteção da biodiversi-
dade, por meio de propostas de desafetação, recategorização e redução de
128 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

limites e propor formas de conciliação de interesses, direitos e usos des-


tas áreas sobrepostas, com base nos instrumentos legais existentes.

Figura 1: Mapa de localização dos casos de sobreposição em Minas Gerais.

Fonte: elaboração da autora, 2019.


Volume 9 | 129

Entende-se que estas situações de sobreposição geram conflitos entre


gestores das UCs e as comunidades quilombolas, que, muitas vezes, cul-
minam em propostas de recategorização, redução de limites e desafetação
das UCs, que podem favorecer agentes externos interessados na implan-
tação de projetos de deseenvolvimentistas.
Desta forma, aponta-se para o fato de que a forma como estas comu-
nidades utilizam os recursos naturais de seus territórios é altamente
compatível com os objetivos das UCs. Assim, a conciliação de direitos e de
usos dos recursos naturais no interior destas áreas protegidas parece ser
a melhor alternativa, visando o fortalecimento mútuo destes dois agentes
mais fracos (comunidades quilombolas e órgãos gestores de UCs) frente a
um inimigo comum, qual seja a pressão do capital para avanço de suas
fronteiras sobre estes territórios.

2 Metodologia

Esta pesquisa possui caráter qualitativo, envolvendo coleta de dados


primários e secundários, sendo utilizados os procedimentos metodológi-
cos abaixo descritos.
Primeiramente, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre temas
relacionados às UCs, direito das comunidades quilombolas, território e
conflitos.
Na sequência, foi feita pesquisa documental, com coleta de materiais
e documentos oficiais sobre as UCs e as comunidades quilombolas envol-
vidas nos casos de sobreposição aqui identificados, recorrendo-se aos
seguintes órgãos: IEF, ICMBio, INCRA, UFMG, UFVJM e UNIMONTES.
Posteriormente, foram realizados trabalhos de campo para reconhe-
cimento das UCs e das comunidades quilombolas e para realização de
entrevistas semiestruturadas com líderes ou presidentes de associações
130 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

comunitárias, gestores de UCs, ONGs, órgãos públicos e pesquisadores en-


volvidos com a questão. As entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo
utilizada a técnica de análise de conteúdo, com base na metodologia des-
crita por Bardin (1977). Assim, foram criadas diversas categorias e
subcategorias para o agrupamento dos sintagmas (recortes do texto), den-
tre elas destacam-se aquelas que interessam neste recorte da pesquisa,
quais sejam: a Relação das Comunidades Quilombolas com a Natureza;
Conflitos entre Órgãos Gestores de UCs e Comunidades Quilombolas; a
Pressão do Capital sobre as UCs e os Territórios Quilombolas; e Instru-
mentos Legais para a Conciliação de Direitos e de Usos das Áreas
Protegidas.
Destaca-se que para a realização da pesquisa obteve-se autorização
do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, do IEF e do ICMBio.
Executando-se as etapas descritas, foi possível fazer um cruzamento
entre os depoimentos dos sujeitos da pesquisa, a análise documental dos
dados secundários, a base teórica e as observações feitas em campo, per-
mitindo o alcance dos objetivos propostos.

3 Desenvolvimento

3.1 Territórios quilombolas e Unidades de Conservação: sobreposição


territorial e direitos conflitantes

A criação de UCs sempre afeta as populações residentes, principal-


mente quando se tratam de UCs de proteção integral, instituídas próximas
ou justapostas a territórios de comunidades tradicionais, coibindo a reali-
zação de diversas atividades, sem considerar a dependência desses grupos
sociais em relação aos recursos naturais da UC e as formas de uso dos
mesmos, diferentes da sociedade hegemônica, estabelecendo uma relação,
em tese, mais próxima e sustentável com a natureza.
Volume 9 | 131

Desta forma, são criadas situações em que lógicas diferenciadas de


acesso e uso dos recursos naturais se chocam, causando diversos conflitos
socioambientais entre comunidades tradicionais e gestores de UCs. Para
além disso, estas situações expõem também o choque de direitos funda-
mentais previstos na Constituição Federal: o direito ao meio ambiente
equilibrado, que tem na criação das UCs uma de suas principais estratégias
de efetivação; e o direito territorial e à identidade cultural das comunida-
des quilombola.
No que se refere aos aspectos legais das comunidades quilombolas, a
primeira menção quanto aos seus direitos foi em 1988, no texto da Cons-
tituição Federal Brasileira e no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT). No artigo n° 216, § 5 da Carta Magna está previsto o
seguinte: “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos” (BRASIL, Constituição
Federal Brasileira, 1988, art. 216). Já o ADCT garante a estas populações o
direito à propriedade definitiva de suas terras, previsto no artigo 68°: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emi-
tir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, ADCT, 1988, Art. 68°).
Somente em 2003 foi regulamentado o procedimento para identifi-
cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, por meio
do Decreto n°4.887. Este instrumento legal traz a definição de remanes-
centes das comunidades dos quilombos:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins


deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opres-
são histórica sofrida (BRASIL, Decreto n° 4.887, 2003, Art. 2°).
132 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Tais características devem ser comprovadas por meio da autodefini-


ção como quilombola pela própria comunidade, ressaltando-se a
necessidade da consciência da identidade coletiva e do sentido de perten-
cimento ao grupo. Este autorreconhecimento como quilombola prevê a
possibilidade de permanecer em seu território, considerado como as “ter-
ras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cul-
tural” (BRASIL, Decreto n° 4.887, 2003, Art. 2°, § 2o), levando-se em
consideração para sua demarcação critérios de territorialidade indicados
pelos membros da comunidade.
Na grande maioria das vezes, o processo de autorreconhecimento de
comunidades quilombolas tem sido parte de um processo que se constitui
a partir de conflitos, de disputas pela posse e/ou uso do território, de luta
pela autonomia e soberania no uso dos recursos naturais, como forma de
garantia de sua identidade cultural. Desta forma, este processo se torna
uma estratégia político-territorial na busca pela garantia de seus direitos
fundamentais.
A Convenção n°169 da OIT sobre povos tribais, instituída no Brasil
em 2004, por meio do Decreto n°5.051/2004, reconhece o direito dos po-
vos indígenas e tribais como direito fundamental, tendo como
consequência principal sua aplicação imediata. Um aspecto importante
desta Convenção diz respeito aos direitos territoriais destes grupos sociais,
como apontado em seu artigo 14: “dever-se-á reconhecer aos povos inte-
ressados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que
tradicionalmente ocupam” (BRASIL. Decreto n°5.051, item 1, artigo 14°,
2004). Assim, a Convenção reconhece o direito desses povos de permane-
cerem em seu território e utilizarem os recursos naturais para a
Volume 9 | 133

reprodução de suas práticas sociais, sendo a sua remoção das terras tradi-
cionalmente ocupadas permitas somente excepcionalmente e seu retorno
deve ocorrer assim que cessarem as causas que motivaram a remoção.
Além disso, esta Convenção prevê o direito de participação, informação e
decisão sobre questões que os afetem direta ou indiretamente.
No que se refere à criação de UCs, a Lei n° 9.985/2000, que institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), foi criada com o
objetivo de regulamentar o artigo n° 225 da Constituição Federal de 1988,
que preconiza a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para a presente e para as futuras gerações. Para assegurar
esse direito, uma das obrigações do Poder Público é a criação, em todas as
unidades da federação, de espaços territoriais especialmente protegidos,
ou seja, as UCs (BRASIL, Constituição Federal Brasileira, 1988).
Essa lei classifica as UCs em dois grandes grupos: as UCs de Proteção
Integral e as UCs de Uso Sustentável. Essas últimas, foco desta pesquisa,
são criadas com o objetivo de “preservar a natureza, sendo admitido ape-
nas o uso indireto dos seus recursos naturais” (BRASIL, Lei n° 9985, 2000,
art. 7°, § 1o.). Nesse grupo de UCs, a presença humana no interior das mes-
mas não é permitida, mas as populações tradicionais podem permanecer
em seu interior indefinidamente enquanto não forem feitos a indenização
e o reassentamento das mesmas, mediante o estabelecimento de normas
e ações destinadas à compatibilização de sua presença com os objetivos da
UC (BRASIL, Lei n° 9.985, 2000, Art. 42°).
O Decreto n° 4.340/2002, que regulamenta a lei do SNUC, estabelece
em seu Capítulo IX os critérios para o reassentamento das populações tra-
dicionais, enfatizando que serão respeitados o modo de vida e as fontes de
subsistência destas populações. Estabelece, ainda, que as condições de per-
manência das populações tradicionais em UCs de Proteção Integral serão
134 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

reguladas por termo de compromisso. Porém, é suscitada a inconstitucio-


nalidade do artigo 42° da Lei n° 9.985/2000, bem como do Capítulo IX do
Decreto n° 4.240/2002 ao aplicá-lo às comunidades quilombolas, dada a
proteção constitucional de seus territórios, anteriormente mencionada.
A Lei n° 9.985/2000 prevê, ainda, em seu artigo 4°, os objetivos do
SNUC e dentre eles está o de “proteger os recursos naturais necessários à
subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu co-
nhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.”.
(BRASIL, Lei n° 9.985, Art. 4º, 2000). Porém, o SNUC não define quais
comunidades podem ser consideradas tradicionais, uma vez que o item
que tratava de tal assunto foi vetado (item XV, do Art. 2º).
Vale aqui analisar também o Plano Estratégico Nacional de Áreas Pro-
tegidas (PNAP), instituído pelo Decreto n° 5.758/2006, que reconhece
como áreas protegidas as UCs, as Terras Indígenas e os Territórios Qui-
lombolas, suscitando a importância de todas elas para a conservação da
biodiversidade e dos recursos naturais brasileiros. O PNAP destaca entre
seus objetivos específicos, “solucionar os conflitos decorrentes de sobrepo-
sição das unidades de conservação com terras indígenas e terras
quilombolas”. Tem-se, ainda, como uma de suas diretrizes, assegurar os
direitos territoriais das comunidades quilombolas e dos povos indígenas
como instrumento para a conservação da biodiversidade. Além disso, o
PNAP dedica um capítulo inteiro para tratar das terras indígenas e terras
ocupadas por comunidades quilombolas, estabelecendo objetivo geral, es-
pecíficos e estratégias para estas áreas protegidas.
Assim, destaca-se que, apesar do SNUC muitas vezes afirmar a ne-
cessidade de reassentamento das comunidades tradicionais sobrepostas a
UCs onde sua presença não seja admitida, em outro instrumento legal
mais recente é averiguado que existe um entendimento sobre a importân-
cia dos povos tradicionais para a conservação da natureza e sobre a
Volume 9 | 135

importância de se minimizar os conflitos entre estas comunidades e os ór-


gãos gestores de UCs. Portanto, data a inconstitucionalidade do artigo n°
42 da Lei n° 9.985/2000 e os artigos que o regulamentam do Decreto n°
4.240/2002, quando aplicados às comunidades quilombolas, não há no
cenário nacional e internacional legitimidade para medidas de desapropri-
ação e reassentamento de povos e comunidades tradicionais de UCs de
proteção integral, sem prévia defesa e sem oferecimento de alternativa a
estes povos, já que vários instrumentos legais protegem a sua identidade
e seu direito ao território (CHACPE, 2014, p.66).
Desta forma, as UCs já criadas de forma sobreposta a territórios qui-
lombolas devem procurar conciliar os direitos fundamentais envolvidos,
sendo garantido constitucionalmente o direito desses povos tradicionais
ao uso e posse de seu território. Isso posto que, para além da garantia
constitucional, os usos que estas comunidades fazem de seus territórios,
em geral, são compatíveis com os objetivos de conservação da natureza,
propostos pelo SNUC.

3.2 A Relação das Comunidades Quilombolas com a Natureza

A maior parte das comunidades quilombolas analisadas nesta pes-


quisa ocupam seus territórios desde o final do século XIX, estando
localizadas estrategicamente em locais de difícil acesso, permanecendo in-
visibilizadas durante muito tempo. Esta estratégia de resistência
possibilitou que a maior parte das comunidades desenvolvesse diversas
atividades para garantir a sua sobrevivência e autossuficiência. Neste sen-
tido, uma característica bastante recorrente nas comunidades analisadas é
a pluriatividade, sendo que as atividades socioeconômicas preponderante-
mente desenvolvidas por elas são a agricultura familiar, pequena pecuária
extensiva e extrativismo vegetal.
136 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

A agricultura, em geral, é uma atividade que envolve os membros da


família, produzindo-se para a subsistência e para a venda de excedentes
em feiras e mercados, com plantio de vários gêneros alimentícios e, em
alguns casos, com produção de farinha, fubá, rapadura, mel e cachaça. A
pecuária é desenvolvida criando-se poucas cabeças de gado, em geral “na
solta”, sendo utilizada como uma poupança, ou seja, como forma de ter
um capital de giro para ser resgatado em momento de dificuldade. Já o
extrativismo vegetal é realizado com o objetivo de diversificar a alimenta-
ção (frutos do cerrado), complementar a renda (flores), para utilizarem
como remédios caseiros (plantas medicinais) ou para confecção de utensí-
lios domésticos (cipós). Ressalta-se a importância em todas as
comunidades de programas sociais do governo e da aposentadoria no
complemento da renda de grande parte das famílias.
As atividades socioeconômicas descritas acima, em geral, são desen-
volvidas com baixo impacto ambiental, baixo uso de insumos e pouca
mecanização, como descrito a seguir:

Vai roçar ali, porque ali é tudo manual. Lá ninguém tem nada se não for ma-
nual. Se for roçar uma rocinha, é braçal. Só para você ver, como que o IEF vai
pensar que uma pessoa dessas vai destruir a natureza, se ele roça uma rocinha
braçal, com uma foice, derruba com um machado. Nem uma motosserra não
tem. Para derrubar é com o machado. Para limpar aquele mantimento, é com
inchada. Então, não tem como ele destruir a natureza. Ele vai cultivar é um
quintal, o que ele dá conta de cuidar. Mas se eu tivesse maquinário, motos-
serra, aí tudo bem, eu podia até concordar com o IEF, ia ser ruim até para nós
no dia de amanhã. Mas o que o pessoal faz lá não dá prejuízo (entrevista com
membro de comunidade quilombola, 2018).

Desta forma, entende-se que estas comunidades historicamente de-


senvolveram formas de uso dos recursos naturais que respeitam e
Volume 9 | 137

conservam a biodiversidade, da qual são altamente dependentes, como


apontado no trecho de entrevista abaixo:

A forma de vida dessas comunidades é compatível com as unidades de conser-


vação, com a preservação da natureza, porque elas enxergam o homem como
parte da natureza e dependem dos elementos da natureza nas suas práticas
cotidianas com o conhecimento que possuem sobre o manejo dos recursos na-
turais. Utilizam de forma a conservar parte desses recursos exatamente
porque possuem uma relação harmoniosa com a natureza (entrevista com re-
presentante do terceiro setor, 2018).

Destaca-se que a própria relação dessas comunidades com a natureza


favoreceu a diversificação da vegetação, considerando a teoria de que a
biodiversidade é fruto também da ação humana, principalmente nos casos
das matas (presentes nas comunidades de Lapinha e Mumbuca) e do ma-
nejo das sempre-vivas (no caso das comunidades Mata dos Crioulos e
Vargem do Inhaí), como visto no relato abaixo:

E é um entendimento completamente equivocado, inclusive da origem da bi-


odiversidade. Porque os arqueólogos e vários estudos já comprovaram que a
Amazônia é antropogênica e, portanto, as matas todas são antropogênicas. A
diversidade é fruto da pegada humana. Então, você está preservando o que?
Ao invés de preservar sistemas que produzem. Um entendimento também do
que é agrodiversidade, agrobiodiversidade. Que não é porque é agricultura que
não é diversidade (entrevista com pesquisador, 2018).

Em função dessa relação harmoniosa e da dependência dos recursos


naturais é que as comunidades quilombolas historicamente conservaram
as áreas onde vivem e desenvolvem suas atividades, antes da criação das
UCs. Neste sentido, em todas as comunidades pesquisadas há uma vege-
tação nativa preservada, rios e córregos com boa qualidade de água, dentre
138 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

outros fatores ambientais, que estão associados às práticas cotidianas des-


tas comunidades, sendo fruto de um conhecimento tradicional,
historicamente construído e passado de geração para geração. O relato a
seguir demonstra essa questão:

Se lá tem uma unidade de conservação hoje, essas pessoas que moram lá até
hoje, eles cuidaram (...). Então, hoje, lá onde eu vivo e essas famílias, lá tem
córrego preservado, tem matas, por quê? As pessoas que moram lá dentro
respeitaram, eles fazem é plantar um pé de feijão, uma mandioquinha, para
sobreviver, para eles mesmos (entrevista com membro de comunidade qui-
lombola, 2018).

Este conhecimento tradicional que eles possuem não pode ser igno-
rado pela gestão das UCs, já que estas comunidades estão ali há várias
gerações e a presença delas não degradou a natureza. Então, é preciso que
haja um diálogo entre este conhecimento tradicional, baseado na ação prá-
tica e cotidiana e o conhecimento teórico produzido pela academia e pelos
órgãos de pesquisa. Neste sentido, o fato de muitas UCs no Brasil e em
Minas Gerais terem sido criadas exatamente sobre os territórios de povos
e comunidades tradicionais reafirma que este conhecimento empírico e
estas práticas tradicionalmente desenvolvidas por estes povos, têm um ca-
ráter realmente sustentável.

Não é uma coincidência ter comunidades tradicionais na maioria dos lugares


onde há um interesse das unidades de conservação. Então, é preciso que essas
unidades de conservação reconheçam o papel dessas comunidades, reconhe-
çam que elas têm algo a aprender com essas comunidades, que essas
comunidades têm uma forma de viver, não só uma forma de produzir, de con-
viver, que favorece a preservação (entrevista com pesquisador, 2018).

Esta não é uma situação específica de Minas Gerais ou do Brasil, con-


forme aponta Bensusan (2004, p.70):
Volume 9 | 139

Estima-se que oitenta e seis por cento das áreas protegidas da América do Sul
são habitadas ou têm seus recursos utilizados pelas populações de seu entorno.
Esse número permite vislumbrar a perversidade embutida no modelo de áreas
protegidas que exclui populações humanas. Em outras palavras, as populações
tradicionais preservam a biodiversidade de suas terras e, justamente por suas
áreas possuírem biomas preservados, acabam tendo que se retirar delas.

Neste sentido, é preciso considerar, no processo de gestão das UCs,


esta relação que os quilombolas historicamente desenvolveram com a na-
tureza. E compreender que esta é uma das características identitárias
desses grupos sociais diferenciados. É preciso, ainda, compreender que a
criação e implantação dessas UCs vêm cerceando o desenvolvimento de
diversas atividades tradicionalmente desenvolvidas por eles, gerando con-
flitos entre os membros destas comunidades e os órgãos gestores das UCs.

3.3 Conflitos entre Órgãos Gestores de Unidades de Conservação e


Comunidades Quilombolas em Minas Gerais

Entende-se por conflitos ambientais aqueles que envolvem relações


de poder sobre os recursos naturais, estabelecidas pelos agentes que pos-
suem interesses diferenciados e conflitantes em relação à base de produção
e reprodução material e simbólica dos recursos. Zhouri e Laschefski (2010,
p. 16) argumentam que o campo dos conflitos caracteriza-se pela diversi-
dade e pela heterogeneidade dos atores e dos seus modos de vida. Muitos
autores desenvolveram conceitos semelhantes, porém, o que se apresenta
mais completo e que mais se aproxima da análise a ser aqui realizada é o
de Acselrad, que foi quem trouxe a discussão sobre este assunto para o
Brasil:

Os conflitos ambientais são, portanto, aqueles envolvendo grupos sociais com


modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo
origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas
140 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

sociais de apropriação do meio que desenvolvem, ameaçada por impactos in-


desejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos – decorrentes
do exercício das práticas de outros grupos. O conflito pode derivar da disputa
por apropriação de uma mesma base de recursos ou de bases distintas, mas
interconectadas por interações ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo
solo, pelas águas etc. (ACSELRAD, 2004, p. 26).

Os conflitos entre órgãos gestores de UCs e comunidades quilombo-


las aqui analisados têm como causa direta a disputa pelo uso e apropriação
das áreas de sobreposição entre territórios quilombolas e UCs de proteção
integral. Neste sentido, caracterizam-se, na concepção de Zhouri e Las-
chefski (2010), como conflitos ambientais territoriais, uma vez que
envolve sobreposição de reivindicações de atores diversos, com lógicas de
uso e apropriação do território diferentes, sobre um mesmo recorte espa-
cial. Para além dessa disputa aparente que caracteriza o conflito, é preciso
compreender que existem fatores mais profundos que interferem e aju-
dam a entender a origem destes conflitos.
O primeiro deles refere-se à pressão do capital que, historicamente,
vem expropriando as comunidades quilombolas de seus territórios tradi-
cionais. Dourojeanni (2004) aponta que os conflitos ambientais
envolvendo UCs e comunidades residentes são causados, dentre outros as-
pectos, pelo avanço de projetos de desenvolvimento econômico e de
ocupação das áreas próximas às UCs, com o consequente aumento da pres-
são pelos recursos que estão no interior das mesmas.
Com os processos de expansão de fronteiras agrícolas, projetos de
plantio de eucalipto, mineração e pecuária, desenvolvidos entre as décadas
de 1940 e 1980, em Minas Gerais, muitas destas comunidades começaram
a perder parte de seus territórios tradicionais. Nos anos finais da década
de 1990 e início dos anos 2000, se deu a criação das UCs aqui analisadas,
geralmente de forma impositiva e sem consulta pública à população
Volume 9 | 141

atingida. Assim, estas comunidades mais uma vez foram expropriadas de


seus territórios tradicionais, desta vez pelos órgãos ambientais e se viram
“encurraladas” entre as UCs e os projetos relacionados ao avanço do
capital.

Eu acho que a origem do conflito, para mim, não é a questão específica com o
quilombola. A questão da origem que eu vou dizer aqui ela vale para território
quilombola, ela vale para a questão indígena, ela vale para toda a amplitude
do que se tem aceitado e reconhecido como comunidades tradicionais. A ori-
gem que eu penso é que as frentes desenvolvimentistas avançaram bastante,
e os territórios naturais que sobraram estão dentro das unidades de conserva-
ção, tanto de proteção integral, quanto de uso sustentável. E aí essas
comunidades se viram oprimidas diante dessas frentes impactantes, se voltam
e começam a enxergar a sua possibilidade de manutenção da relação com a
natureza naquelas unidades que foram protegidas por lei e, portanto, estas
frentes impactantes, invadiram menos estas unidades, prejudicaram menos
[...]. E ao enxergar no território que ficou protegido como unidade de conser-
vação e ao tentar utilizá-lo, essas comunidades sofrem com a restrição
ambiental promovida por esses decretos. Então, o conflito é uma expectativa
de uso de um lado, e uma restrição publicada em lei, por outro lado, diante de
uma falta de territórios alternativos que foram totalmente ocupados, devasta-
dos e tomados por essas frentes impactantes. É onde eu vejo a origem do
processo (entrevista com representante de órgão ambiental, 2018).

Há, então, o choque entre lógicas diferentes de uso e apropriação do


território ou multiterritorialidades (HAESBAERT, 1997) sobrepostas, nas
quais sujeitos diferentes constroem territorialidades diversas e distintas
sobrepostas a um mesmo território, gerando inevitavelmente conflitos so-
ciais e territoriais. Desta forma, a territorialidade capitalista (que impõe
um uso degradador do meio ambiente e expropria os territórios de comu-
nidades tradicionais) se sobrepõe à territorialidade quilombola (que
demanda o uso tradicional destas mesmas áreas para reprodução de suas
142 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

práticas sociais); e também se sobrepõe à territorialidade preservacionista


(que impõe o não-uso da área, restringindo muitas atividades tradicionais
e/ou de empresas interessadas no desenvolvimento de atividades impac-
tantes nestes territórios). Neste sentido, o conceito de conflitos ambientais
se encaixa nestas situações, uma vez que se referem à disputa pelo uso e
apropriação do território por grupos sociais diferenciados, envolvendo re-
lações de poder assimétricas e interesses conflitantes pelos recursos
naturais.
Pode-se perceber que a forma impositiva e restritiva como as UCs são
criadas e geridas também influencia no conflito. Neste sentido, o histórico
truculento de criação destas UCs, a falta de participação das comunidades
neste processo, a ausência de informação prévia, livre e informada sobre
aspectos que afetem diretamente estas comunidades, e as diversas restri-
ções de uso dos recursos naturais impostas após a criação das mesmas
foram aspectos que vieram à tona na discussão sobre a origem destes con-
flitos.

Hoje é o uso dessas pessoas no Parque, esse é o principal problema, e de como


a gente regrar isso. Porque a gente está tendo incêndios enormes, que eu acho
que a gente consegue diminuir, se a gente se aproximar das pessoas e as pes-
soas se aproximarem da gente. Entender o Parque de forma diferente. Está
aqui, é uma realidade, vamos fazer o que? E nós também, o Parque é uma
realidade, as pessoas estão ali, vamos fazer o que? É conversar e construir uma
solução em conjunto. Então, esse é um conflito, é o problema central do con-
flito. Que ele é resultado de todo um processo equivocado, desde a sua criação,
a procedimentos adotados. (entrevista com representante de órgão ambiental,
2018).

Além das restrições de uso, o medo das pessoas em deixar suas terras
e serem desapropriadas também foi citado como origem do conflito. A par-
tir do momento em que estas comunidades percebem a ameaça que paira
Volume 9 | 143

sobre a sua permanência em seus territórios tradicionais, elas passam a se


posicionar mais efetivamente no conflito. “Para mim o fato gerador desse
embate, além desse conflito pontual de moradia, de multas, é o medo que
as pessoas têm de serem desapropriadas, porque as pessoas não querem
sair dali” (entrevista com pesquisador, 2018). Nesta seara, ressalta-se que
o conflito eclode quando as UCs são implantadas restringindo os usos que
as comunidades quilombolas faziam anteriormente, nestes mesmos terri-
tórios.
Destaca-se que os agentes envolvidos no conflito (UCs, comunidades
quilombolas) possuem interesses, organizações, estruturas institucionais,
força e poder diferentes. E nessa seara, não apenas estes agentes se cho-
cam, mas também a pressão do capital sobre estas áreas, que já pode ser
entendida como uma ameaça constante, como será discutido na sequência.

3.4 A Pressão do Capital sobre as UCs e os Territórios Quilombolas;

A pressão das frentes desenvolvimentistas interessadas em avançar


suas fronteiras ameaça não só as comunidades quilombolas, mas também
as UCs, seja por meio de propostas de desafetação e redução de limites,
por agentes econômicos interessados nos usos que podem ser feitos de
seus recursos naturais, seja por meio de projetos de lei que enfraquecem
o SNUC e suas ferramentas de proteção da natureza, como analisado no
trecho da entrevista transcrito abaixo.

O que acirra o conflito para mim é a falta de territórios para que se desenvolva
o uso harmônico da natureza por essas populações, tomada pela frente dos
projetos desenvolvimentistas. E o que tem sobrado são as unidades de uso
sustentável e de proteção integral (entrevista com representante de órgão am-
biental, 2018).
144 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Desta forma, o conflito acaba ocorrendo, então, entre os dois lados


mais fracos dessa situação, quais sejam as comunidades quilombolas e as
UCs. Porém, voltando à análise da relação entre as comunidades quilom-
bolas e a natureza, este conflito não deveria existir, visto que, em geral, os
quilombolas têm uma relação harmônica com a natureza, sendo altamente
dependente de seus ciclos e de seus recursos para a sua sobrevivência,
como já apontado anteriormente. Além disso, tanto as UCs como os terri-
tórios quilombolas devem ser entendidos como áreas protegidas, quando
se toma o PNAP (BRASIL, Decreto n°5.758, 2006) como referência. Neste
sentido, há uma divergência ideológica e de entendimento sobre o conceito
de natureza, sobre o uso e apropriação do espaço e sobre o próprio enten-
dimento de áreas naturais protegidas, como apontado no relato abaixo:

Eu acho que há uma falta de comunicação por conta de perspectivas e de en-


tendimento do que são áreas protegidas. Ambas são categorias de áreas
protegidas, se a gente seguir o PNAP. Então, é um equívoco, uma falta de visão
e de comunicação e uma rejeição da parte ambiental à parte social, que deriva
de um conceito de natureza, deriva de um problema do que está se lutando e
não contra o que está se lutando [...]. Eu acho que o PNAP tinha que ser for-
talecido (entrevista com pesquisador, 2018).

Destaca-se que todas as comunidades quilombolas e as UCs analisa-


das nesta pesquisa sofrem ou já sofreram algum tipo de pressão ou ameaça
advinda da possibilidade de implantação de projetos desenvolvimentistas,
sejam relacionados à mineração (nas comunidades quilombolas Mata dos
Crioulos, Vargem do Inhaí, Quartel do Indaiá, São Gil e Cubas; e nas UCs
PERP, PNSV, PESN), monocultura de eucalipto (Barro Vermelho, PESN,
PERP, PNSV), agronegócio (Barro Vermelho, Lapinha e Mumbuca, PESA,
PELC e REBIO), especulação imobiliária (REBIO e PESI) ou pelo uso dos
recursos hídricos (REBIO). Os relatos abaixo, explicitam esta questão:
Volume 9 | 145

E quando tem a expansão do agronegócio, por exemplo, que substitui os espa-


ços, cria áreas de pastagem, planta braquiária, não deixa mais nada nascer, ou
o eucalipto, essas monoculturas que acabam sendo extremamente nocivas. E
me parece que sim, que essas frentes desenvolvimentistas também pressio-
nam as comunidades quilombolas (entrevista com representante de órgão
público, 2018).

Com certeza existe essa pressão nas comunidades. [...] Essa pressão do capital
em cima desses povos subalternos, ela é intensa e não vai findar tão cedo. Se
pensarmos em nível estadual, a proposta do Romeu Zema é flexibilizar as leis
ambientais para o agronegócio. Ontem eu estava lendo no Estado de Minas, o
pessoal do PT pedindo para ele não mexer nas leis ambientais, não flexibilizar,
porque elas são justas, correspondem à realidade que nós estamos vivendo. O
Matheus Simões, que está coordenando, avisou que eles vão mexer nestas leis
ambientais, que vão flexibilizar. Ou seja, é mais um ataque feroz para cima
desses povos, que guardam e protegem esses locais. (entrevista com pesquisa-
dor, 2018).

Este último relato é bastante significativo, no sentido de que as pro-


postas dos atuais Governos Federal e Estadual são de flexibilização das
normas ambientais, justamente no sentido do avanço das fronteiras agrí-
colas e da mineração. Neste aspecto, tanto as comunidades quilombolas
quanto as UCs estão ameaçadas por serem redutos que ainda conseguem
barrar estes projetos, mas que têm sido pressionadas por estas frentes de-
senvolvimentistas.
Neste sentido, as UCs de proteção integral são instrumentos impor-
tantes que impedem ou inibem este avanço, uma vez que, em seu interior,
o desenvolvimento de atividades causadoras de degradação ambiental é
proibido e, para serem desenvolvidas em seu entorno, deve ter uma
anuência da UC. Os relatos a seguir corroboram com esta afirmação.

Porque essas frentes desenvolvimentistas também estão ficando saturadas do


ponto de vista externo, e também estão olhando para dentro e vindo disputar
146 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

esse uso interno. Propostas de Lei, por exemplo, que poderá minerar em até
10% dentro de unidade de proteção integral, ela tem essa característica, uma
disputa do território interno a partir de uma saturação do território externo.
Só que para essas comunidades que são mais frágeis do ponto de vista da pon-
deração política de forças, essa saturação se deu antes, então, estão sofrendo
essa pressão há muito mais tempo (entrevista com representante de órgão
ambiental, 2018).

Foi bom porque também tinham os fazendeiros, os grileiros de terras que es-
tavam tirando as terras do quilombo e eles estão lá estes fazendeiros, e depois
que criou a Reserva nós não temos, assim, nós estamos dentro do quilombo,
mas assim nós ficamos mais protegidos. Que às vezes os fazendeiros eles acha-
vam que as terras eram deles. Às vezes, se não tivesse criado a Reserva, às
vezes nós teríamos conflitos com eles. Mas hoje nós não temos por causa da
Reserva. Essa questão é um ponto positivo. (entrevista com representante de
comunidade quilombola, 2018).

Claro que o fato de serem territórios quilombolas também barra al-


guns desses processos. No entanto, estas comunidades são mais frágeis e
vulneráveis em um eventual jogo de forças contra o capital. Acrescente-se
também o fato de que estes territórios ainda não estão titulados e, por-
tanto, não possuem proteção legal efetiva. Os relatos abaixo reafirmam a
importância destes territórios para diminuir estas ameaças:

O Parque protege da pressão do capital, mas o quilombo também protege. A


titulação tem três condições: indivisível; imprescritível, titulou, nunca mais vai
deixar de ser quilombo; e inalienável, eles não podem vender. O que mata o
povo do agronegócio é que a terra de quilombo vai sair do mercado de terras,
e a mão de obra deles, que eles pagam merreca para o povo. (entrevista com
pesquisador, 2018).

Pelo fato de ser território quilombola a gente hoje, eu falo com você com cla-
reza por eu ser hoje presidente da Associação Quilombola, você segura muita
coisa (entrevista com membro de comunidade quilombola, 2018).
Volume 9 | 147

Assim, há uma sobreposição de direitos fundamentais e estes direitos


devem ser equacionados, visando proporcionar o máximo de benefícios,
seja para garantir a continuidade da existência das comunidades quilom-
bolas como grupos sociais diferenciados, seja para garantir a continuidade
da proteção ambiental das UCs. Os instrumentos legais para a conciliação
destes direitos serão apresentados na sequência.

3.5 Instrumentos Legais para a Conciliação de Direitos e de Usos das áreas


de sobreposição

Destaca-se a importância das UCs para a proteção da biodiversidade


e das culturas e dos meios de subsistência dos povos e comunidades tradi-
cionais. Porém, o que se verifica nos últimos anos é uma desestabilização
das UCs, tornando-as suscetíveis a alterações na categoria de manejo e em
seu tamanho, geralmente com o intuito de atender a interesses econômi-
cos. Tais mudanças têm contribuído para uma diminuição da proteção da
biodiversidade, para um enfraquecimento das políticas de conservação da
natureza, e do próprio SNUC, por meio da “epidemia” de recategorização,
redução de limites e desafetação de UCs (SCALCO & GONTIJO, 2017). Es-
tes processos visam atender demandas de projetos desenvolvimentistas
interessados na expansão de suas fronteiras sobre as áreas das UCs:

O Brasil vive uma ofensiva sem precedentes às áreas protegidas. Pressões para
desfazer ou diminuir o tamanho ou o status de proteção de Unidades de Con-
servação promovidas por integrantes da base parlamentar do governo Michel
Temer e com forte lobby dos setores ruralista e de mineração têm encontrado
espaço para prosperar, com o apoio do Palácio do Planalto. A ameaça paira
sobre cerca de 10% do território das unidades de conservação federais, numa
estimativa conservadora. Ofensiva contra as áreas protegidas vai de Norte a
Sul do país e envolve uma área de cerca de 80 mil quilômetros quadrados,
quase o tamanho do território de Portugal (WWF, 2017, p.1).
148 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Por outro lado, o processo de titulação dos territórios quilombolas


pelo INCRA é muito longo e bastante moroso, o que acaba gerando inse-
gurança e frustração em muitas comunidades. Além disso, o INCRA
trabalha com um quadro reduzido de funcionários e também não tem sido
priorizado na destinação de recursos pelo Governo Federal. Assim, a maior
parte das comunidades quilombolas recebe o título de autocertificação e
fica aguardando por um longo período a continuidade dos processos,
sendo que muito raramente eles chegam ao final, com a titulação do terri-
tório tradicional pleiteado. Ademais, todas as UCs e comunidades
quilombolas aqui analisadas sofrem ou já sofreram ameaças advindas da
expansão de projetos de desenvolvimento econômico.
Portanto, entende-se que tanto as comunidades quilombolas como
UCs são lados fracos frente ao avanço do capital e são setores que estão
sendo cada vez menos priorizados nas atuais políticas governamentais. O
cenário político econômico aponta para um desmantelamento destas
áreas, estando ameaçado tanto o direito das comunidades quilombolas,
quanto o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Desta
forma, pondera-se que a parceria e união de forças entre estes dois lados
seria a forma mais interessante de resolução negociada destes conflitos
advindos da sobreposição de áreas de UCs com territórios de comunidades
quilombolas. O trecho da entrevista transcrita abaixo corrobora com esta
afirmação:

Os órgãos ambientais e as comunidades têm interesse na preservação. Então,


ao invés deles estarem em conflito, eles deveriam se unir para encontrar um
modelo que protegesse esse território contra a pressão do latifúndio. Enquanto
elas não se unirem e não encontrarem esse modelo a gente vai estar brigando
entre irmãos, digamos assim, em um plano maior. Então, para o futuro dessas
comunidades, desses territórios e da natureza, no contexto em que a gente
Volume 9 | 149

vive, de uma grande pressão do capital e do agronegócio, é urgente que os


órgãos ambientais se deem com as comunidades, estejam do lado das comu-
nidades e não se opondo ao direito das comunidades (entrevista com
pesquisador, 2018).

Acrescenta-se que reduzir limites ou recategorizar UCs podem causar


danos ainda maiores à proteção dos recursos naturais, visto que diversos
setores econômicos têm interesses imensos nestes processos de recatego-
rização, redução de limites e desafetação de UCs e podem se utilizar desses
conflitos para se beneficiarem. Desta forma, estas propostas, apontadas
como alternativas para a solução dos conflitos de sobreposição aqui iden-
tificados, nem sempre é interessante. Esta estratégia pode aumentar a
vulnerabilidade das comunidades a outros fatores externos, principal-
mente aqueles vinculados à força do capital, relacionados à pressão
imobiliária, mineradoras, fazendeiros e outros agentes econômicos, de-
pendendo da capacidade de governança da comunidade para a gestão de
seu território (BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014, p.106).
Neste sentido, a flexibilização da gestão das UCs de proteção integral,
com o objetivo de compatibilizar alguns usos por comunidades quilombo-
las com a proteção de seus recursos naturais parece ser a forma mais
adequada de conservar o meio ambiente e atender às demandas destas
comunidades. A colocação de Figueiredo corrobora com esta afirmação:

Populações tradicionais e meio ambiente sempre estiveram unidos frente a


inimigos comuns, desde a colonização aos dias de hoje, se constituindo em
elementos associados e compatíveis, sendo inconcebível um representar ame-
aça ao outro. A sobreposição entre terras indígenas ou quilombolas e unidades
de conservação, sejam de uso sustentável ou de proteção integral, ou a pre-
sença de outras comunidades tradicionais no interior dessas áreas protegidas
é algo, mais do que natural, quase inevitável ou necessário, caso em que estes
espaços territoriais especialmente protegidos devem sofrer dupla afetação
(FIGUEIREDO, 2012, p.32).
150 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

É preciso, então, compreender quais são os usos demandados pelas


comunidades quilombolas no interior das UCs e tentar compatibilizar es-
tes usos com a conservação dos recursos naturais. Isso, por meio de
parcerias, de diálogo, do estreitamento das relações entre órgãos gestores
e comunidades. Mas para que esta conciliação de fato aconteça é preciso
superar a dicotomia e essa separação entre ambiente e sociedade, e com-
preender que estes povos e comunidades tradicionais possuem
perspectivas societárias diferentes da sociedade hegemônica. E mais que
isso, passar a enxergá-los como parceiros e como exemplos a serem segui-
dos. Isso posto que a nossa sociedade urbano industrial tem se mostrado
cada vez mais insustentável na forma como usa os recursos naturais e trata
as externalidades geradas por suas atividades socioeconômicas. O depoi-
mento abaixo é bastante significativo neste aspecto:

Eu acho que existe sim a possibilidade de formalizar uma relação que seja pro-
veitosa dos dois lados, entre as unidades de conservação e as comunidades.
Mas para isso, precisa haver uma mudança na forma como as unidades de
conservação percebem as comunidades tradicionais. Elas precisam perceber
as comunidades tradicionais como parceiras, e elas precisam reconhecer, so-
bretudo, o papel que essas comunidades tiveram e têm para a preservação
dessas áreas. Porque esses órgãos ambientais, essas unidades de conservação
são recentes na história. E as comunidades tradicionais não são recentes na
história. Não é uma coincidência ter comunidades tradicionais na maioria dos
lugares onde há um interesse das unidades de conservação. Então, é preciso
que essas unidades de conservação reconheçam o papel dessas comunidades,
reconheçam que elas têm algo a aprender com essas comunidades, que essas
comunidades têm uma forma de viver, não só uma forma de produzir, de con-
viver, que favorece a preservação [...]. E é só a partir dessa abertura que será
possível fazer um documento que não seja uma trapaça, que não seja um do-
cumento pró-forme para acabar com um conflito pontual, mas que deixa
várias brechas para que as coisas não sejam cumpridas. Então, eu vejo essa
Volume 9 | 151

possibilidade, se as unidades de conservação se abrirem para reconhecer o pa-


pel que as comunidades tradicionais têm na preservação, tanto que elas
tiveram no passado, o papel que elas têm no presente e o papel que elas podem
ter no futuro (entrevista com pesquisador, 2018).

Um interessante instrumento a ser utilizado para a conciliação de di-


reitos e interesses entre conservação da biodiversidade e uso do território
por povos e comunidades tradicionais em UCs de proteção integral é o
termo de compromisso. A elaboração e o uso desse instrumento é regula-
mentado pela Instrução Normativa n° 26, sendo entendido como:

[...] instrumento de gestão e mediação de conflitos, de caráter transitório, a


ser firmado entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais residen-
tes em unidades de conservação onde a sua presença não seja admitida ou
esteja em desacordo com os instrumentos de gestão, visando garantir a con-
servação da biodiversidade, as características socioeconômicas e culturais dos
grupos sociais envolvidos (BRASIL. INSTITUTO CHICO MENDES DE
CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Instrução Normativa n° 26, 2012,
art.2°, I).

Em agosto de 2018, o Governo do Estado de Minas Gerais também


publicou uma Instrução Normativa tratando do assunto, estabelecendo
que os Termos de Compromissos devem ser firmados entre o IEF, a Se-
cretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA), Comissão
Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT) e os Povos Tradicionais cujos terri-
tórios tradicionais estão sobrepostos às UCs Estaduais.
Estes termos de compromisso devem ser construídos de forma con-
junta com as comunidades tradicionais usuárias de recursos naturais do
interior das UC, até porque são eles que conhecem o contexto, a forma de
uso, as demandas e necessidades para cada área a ser utilizada. Além disso,
devem contar com o acompanhamento do Conselho Consultivo da UC. Nos
152 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

casos das UCs Estaduais é necessário ainda o acompanhamento de um


grupo de trabalho instituído no âmbito da Comissão Estadual de Povos e
Comunidades Tradicionais.
Destaca-se que o termo de compromisso é um importante instru-
mento que permite o atendimento das demandas de uso dos recursos
naturais dentro das UCs de proteção integral, com regras e normas pré-
estabelecidas, que permitam que este manejo dos recursos ocorra de
forma a também considerar a importância da conservação ambiental da
área. O depoimento abaixo enfatiza a importância desse acordo entre co-
munidade e órgão gestor de UC, da necessidade de que ele seja construído
por meio do diálogo e da possibilidade de que a própria comunidade se
torne uma parceira da conservação daquelas áreas.

Eu acho que é possível, sim, ter esse diálogo, porque com acordo, com diálogo
a gente acaba tirando umas dúvidas que ficam na cabeça das pessoas, através
de um acordo, de uma conversa [...]. Eu acho que poderia ter, mas eu queria
que alguém lá de dentro explicasse qual é o conflito que existe entre as famílias
e o Parque. Porque, segundo a gente sabe, não pode ter família dentro de um
parque. Mas eu já ouvi falar aí fora que existe família em Parque, sim. Que
inclusive eles tiveram um conflito, depois eles sentaram, conversaram e hoje
essas famílias ajudam a cuidar desse lugar. Eu acho que é possível. Eu acho
que tendo uma conversa eu acho que a comunidade é claro que ia aceitar (en-
trevista com membro de comunidade quilombola, 2018).

Outra questão apontada nas entrevistas é que o termo de compro-


misso, por ser um instrumento transitório, ele permite que rapidamente
sejam gerados benefícios para as comunidades, por permitir o uso direto
de recursos naturais no interior das UCs, e por possibilitar a vivência e a
convivência desta situação, antes de se ter uma solução mais definitiva,
para se ter clareza da real necessidade de se fazer ou não a recategorização
ou a redefinição de limites das UCs.
Volume 9 | 153

Quando é colocado que o primeiro ponto é desafetar, eu não acho que é legí-
timo, eu não acho. Mas eu acho que a gente perde muita energia até que o
Parque seja derrubado para, a partir daí, a gente começar a gerar algum tipo
de benefício para essa comunidade. E se a gente fosse para o outro caminho,
a gente poderia talvez já rapidamente ter um termo de compromisso com es-
sas comunidades e já voltar a dar benefícios para elas. O Parque continuaria
lá. Com o amadurecimento disso, lá no futuro, ambas as partes virem que o
impacto não é grande, que a conservação continua, que a comunidade está
tendo um retorno positivo, que a desafetação, a recategorização seriam um
consenso novamente, do próprio órgão juntamente com a comunidade (entre-
vista com representante de órgão ambiental, 2018).

Assim, o termo de compromisso traz segurança jurídica, tanto para


as comunidades que podem utilizar as áreas do interior das UCs sem medo
e conhecendo de fato as regras de uso daqueles espaços; como para a pró-
pria gestão da UC que estará autorizando o uso direto dos recursos
naturais em uma UC de proteção integral.
Além do termo de compromisso, o zoneamento e o plano de manejo
da UC também podem ser instrumentos que viabilizem a permanência e
uso dos recursos naturais pelas comunidades no interior das UCs de pro-
teção integral. Por meio desses instrumentos é possível o estabelecimento
de áreas de uso intensivo e áreas de ocupação temporária, onde, mediante
regras pré-estabelecidas, pode haver o manejo de recursos naturais; e
áreas intangíveis, onde o acesso e uso podem ser restringidos como forma
de preservação permanente, como apontado no trecho de ume entrevista
transcrita abaixo:

O plano de manejo poderia ser um instrumento interessantíssimo também


para disciplinar o uso em uma unidade de proteção integral, pelo zoneamento.
E se for o caso, você ter áreas intangíveis. Porque o conceito de proteção inte-
gral, para você ter áreas intangíveis para servir de fonte de recursos naturais,
154 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

ele é um conceito interessante. Ele não é um conceito a ser desperdiçado, não.


O problema é que às vezes você faz sem muito critério, aqui é tudo proteção
integral, aqui é tudo uso sustentável. Aí fica muito distorcido. Mas dentro de
uma área de uso sustentável você poderia ter regiões intangíveis, para servir
como áreas fonte, relictos ali até para garantir a pesquisa. E você poderia ter
do mesmo jeito na proteção integral, áreas de uso e áreas intangíveis, caso a
caso (entrevista com representante de órgão ambiental, 2018).

Neste sentido, seria necessário se pensar em um zoneamento que


atendesse aos usos e demandas das comunidades, e ao mesmo tempo con-
siderasse a importância de se ter também áreas intangíveis. O roteiro
metodológico para elaboração de planos de manejo (BRASIL, INSTITUTO
CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE, 2011) prevê
que as áreas no interior de UCs de proteção integral, onde tenham usos
por comunidades tradicionais ou moradias, sejam definidas como zonas
de ocupação temporária. E, nestas áreas, além das atividades de fiscaliza-
ção, proteção e educação ambiental, está previsto também a realização das
atividades descritas no termo de compromisso. Neste sentido, o próprio
termo de compromisso seria um instrumento para regulamentar a utili-
zação destas zonas temporárias.
Outro instrumento de conciliação de direitos que foi citado nas en-
trevistas é o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS). Este
instrumento é regulamentado pela Portaria nº 89, de 15 de abril de 2010,
e pode ser emitido pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) do Mi-
nistério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em favor das comunidades
tradicionais. O objetivo principal desta Portaria é:

Disciplinar a utilização e o aproveitamento dos imóveis da União em favor das


comunidades tradicionais, com o objetivo de possibilitar a ordenação do uso
racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis na orla marítima e
fluvial, voltados à subsistência dessa população, mediante a outorga de Termo
Volume 9 | 155

de Autorização de Uso Sustentável - TAUS, a ser conferida em caráter transi-


tório e precário pelos Superintendentes do Patrimônio da União (BRASIL,
Portaria n°89, 2010, art. 1°).

Esta autorização de uso poderá ser emitida para a utilização das áreas
tradicionalmente utilizadas para moradia ou para uso sustentável dos re-
cursos naturais, e que se configuram como patrimônio público da União.
No caso específico desta pesquisa, o uso da TAUS foi citado para o caso da
comunidade quilombola da Lapinha, que se autoidentificam também como
vazanteiros, para o uso das margens do rio São Francisco. De acordo com
esta Portaria, o TAUS pode ser emitido exclusivamente a grupos cultural-
mente diferenciados que possuem formas próprias de organização e
utilizam áreas da União e para sua reprodução cultural, social, econômica,
ambiental e religiosa (BRASIL, Portaria n°89, 2010, art. 4°).
Embora exista esta possibilidade, este instrumento ainda não foi emi-
tido para a Comunidade Quilombola da Lapinha, porque há a necessidade
de definição da Linha Média de Enchentes Ordinárias do rio São Francisco
para que possam ser delimitadas as Áreas de Preservação Permanente
(APPs) nas margens do São Francisco que efetivamente pertencem à União
e, por consequência, que podem ser alvo destas TAUS.
Por fim, foi citada também como uma possibilidade de garantia dos
direitos territoriais também da comunidade quilombola da Lapinha o tom-
bamento de reminiscências históricas dos antigos quilombos, previsto no
artigo 216 da Constituição Federal brasileira, que trata do patrimônio cul-
tural do país e preconiza o tombamento de todos os documentos e os sítios
detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. (BRASIL.
Constituição Federal, 1988, art. 216, § 5º). No território desta co-
munidade quilombola foram identificados locais em que foram achados
diversos artefatos utilizados pelos ex-escravos, confirmando tratar-se de
156 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

uma área em que eles se fixaram, pela possibilidade de desenvolvimento


da agricultura e da pesca, conforme depoimento abaixo:

E o outro lugar é o lugar onde historicamente quilombolas, no período da es-


cravidão viveram. Foi encontrado lá cachimbos de barro, pilão de pedra, coisas
que eles historicamente utilizaram [...]. Então, este lugar que está dentro do
Parque, eles também querem, porque é um lugar histórico, próximo aos fura-
dos. Aquela região ali era onde os quilombolas no período da escravidão
ficavam. Porque os quilombolas na verdade eles viviam andando na região. E
aí tem relatos de que as mulheres ficavam fixas na região por um determinado
tempo, não construíam casa nem nada, e depois saiam. Mas tinham pontos
em que eles permaneciam. E na região dos furados como dá para você desen-
volver uma agricultura, que eles chamam de agricultura de furados, porque
tem água sem precisar ir ao rio. E tem um furado que o rio jogava água lá e
tinha peixe, então, eles não precisavam ir ao rio. Aí, então, era um lugar que
tinha uma frequência grande de quilombolas. E eles, então, falaram que isso
aí nós queremos (entrevista com pesquisador, 2018).

O pedido de tombamento desta área pelo IPHAN (Instituto do Patri-


mônio Histórico e Artístico Nacional) já foi realizado, dada a presença de
vestígios arqueológicos e marcos geográficos que consagram historica-
mente que tais locais eram utilizados pelos antepassados desta
comunidade. Porém, o processo ainda não foi concluído. A expectativa é
de que, ao ser tombada, esta área, mesmo estando no interior de um Par-
que Estadual, passe a ser utilizada e gerida pela comunidade quilombola.
Após a análise de todos estes instrumentos que visam compatibilizar
as demandas das comunidades quilombolas com a conservação dos recur-
sos naturais no interior das UCs, entende-se que os instrumentos legais
existem, são interessantes, mas até o momento, ainda não estão garan-
tindo, na prática, os direitos das comunidades quilombolas ao seu
território e à sua reprodução social. Isso posto que os processos para dis-
ciplinar estes usos muitas vezes são longos e burocráticos, sendo que em
Volume 9 | 157

alguns casos não há o interesse dos órgãos gestores das UCs e demais ór-
gãos envolvidos em viabilizar o processo, ou ainda não são acionados pelas
comunidades quilombolas, em função da falta de confiança e diálogo entre
órgãos gestores das UCs e comunidades quilombolas, resultado de uma
relação conflituosa historicamente construída.

Considerações finais

As comunidades quilombolas, além de serem corresponsáveis pela


conservação das áreas das UCs, possuem usos de recursos naturais, em
tese, compatíveis com os objetivos do SNUC. Assim, as comunidades qui-
lombolas e os órgãos gestores de UCs poderiam se unir para lutar contra
outros atores que possuem interesses contrários à conservação da natu-
reza, como o avanço das fronteiras agrícolas, as mineradoras, a
especulação imobiliária e outros fenômenos característicos da nossa soci-
edade urbano-industrial. Assim, ressalta-se o lado perverso desse conflito
socioambiental, no qual dois lados que originalmente foram ou deveriam
ser aliados (UCs e povos e comunidades tradicionais) na conservação dos
recursos naturais, lutam e se enfraquecem mutuamente, enquanto os in-
teresses do grande capital na área só têm aumentado. Esta união entre
povos e comunidades tradicionais e UCs é ainda mais necessária no atual
cenário de desmantelamento das políticas ambientais e daquelas relacio-
nados aos direitos das minorias (como os povos e comunidades
tradicionais).
Assim, reafirma-se que a presença das comunidades quilombolas em
UCs de proteção integral pode contribuir com a conservação dos recursos
naturais, desde que sejam estabelecidos acordos e parcerias entre os agen-
tes envolvidos e que sejam utilizados os instrumentos existentes que
normatizam o uso dos recursos naturais no interior das UCs, como os ter-
mos de compromisso, os Planos de Manejo e Zoneamentos de UCs, os
158 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) ou o Tombamento de


Reminiscências de Antigos quilombos.
Desta forma, este capítulo pretende explicitar que, quando se tratam
de povos e comunidades tradicionais que vivem ou utilizam recursos de
UCs de proteção integral, a melhor alternativa é a flexibilização da gestão
das mesmas, para evitar perdas maiores advindas da desafetação, redução
de limites ou recategorização da área e/ou da pressão que o capital já
exerce sobre estes territórios.
Pondera-se, portanto, que a construção de parcerias, acordos, termos
de compromisso ou pactos pela conservação são necessários. Mas é preciso
superar esta dicotomia entre UCs de proteção integral e comunidades tra-
dicionais, e partir para a construção de um entendimento de que ambas
estão do mesmo lado, e que podem ser parceiras e aliadas no uso e na
conservação dos recursos naturais das UCs.

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Desenvolvimento e Conflitos Ambientais – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010,
(11-31).
Capítulo 6

Cartografia social no contexto de tragédias-crime


ambientais: encontro entre saberes para a construção
de territorialidades em uma Aldeia Pataxó 1

Social cartography in the context of environmental tragedy-crime:


encounter between knowledge for the construction
of territorialities in a Pataxó Village
Amanda Ribeiro Carolino 2
Bernardo Carrusca Camilo de Oliveira 3
Henrique Martins Cardiel 4
Juliana de Lima Caputo 5
Juliana de Lima Passos Rezende 6
Virgínia Simão Abuhid Burkhardt 7
Armindo dos Santos de Sousa Teodósio 8

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Graduada em Geografia (PUC/MG). Pesquisadora/mestranda no Programa de Pós-graduação em Administração
(PPGA- PUC/MG). Endereço: Rua 11, nº 131/Bairro Jardim Primavera - Ribeirão das Neves/MG. Link Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9269896971140579 E-mail: [email protected]
3
Graduando em Ciências Biológicas (PUC/MG). Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6034531310345523 E-mail:
[email protected]
4
Graduado em Ciências Biológicas (PUC/MG). Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5532596590983254
E-mail: [email protected]
5
Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia e Tratamento da informação Espacial
(PUC/MG). Professora Adjunto do departamento de Geografia e Pedagogia do Instituto de Ciências Humanas
(PUC/MG). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/7847685257402283
E-mail: [email protected]
6
Mestre em Ecologia Conservação e Manejo da Vida Silvestre (UFMG). Professora Assistente no Departamento de
Ciências Biológicas (PUC/MG). Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9555177616223449 E-mail:
[email protected]
7
Mestre em Geologia (UFRJ). Professora Assistente no Departamento de Ciências Biológicas (PUC/MG). Link para o
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2142463948054969 E-mail: [email protected]
8
Doutor em Administração (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).
Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Administração (PUC/MG). Link para o Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2167878748442691 ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7835-5851 E-mail:
[email protected]
Volume 9 | 163

1 Introdução

Tragédias-crimes ambientais em territórios onde habitam comuni-


dades tradicionais têm sido cada vez mais frequentes no contexto
brasileiro (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Isso porque parte relevante des-
ses territórios contém recursos naturais que despertam a atenção do
Estado e dos grandes empreendimentos, que se inserem nestes territórios
no intuito de explorar tais recursos (DIAS; OLIVEIRA, 2018). Por esse mo-
tivo, grande parte destes territórios acabam sendo delimitados como área
de preservação ambiental, objetivando evitar tais ações predatórias acon-
teçam. Muitas atividades predatórias são desenvolvidas em nome de um
suposto desenvolvimento desses territórios, que na verdade aprofunda a
tragédia dos povos indígenas e do patrimônio ambiental, desconsiderando
outras formas de se viver nos territórios que não se inscrevam no ideário
civilizacional pautado pela busca pelo desenvolvimento territorial, como
aquelas fundadas no chamado “Bem-Viver” (ACOSTA, 2016; ACOSTA;
BRAND, 2018).
Em 1981 foi criada a lei n° 6.938/81 (BRASIL, 1981) que implementa
a Política Nacional do Meio Ambiente, tendo como um de seus focos, cons-
cientizar a preservação dos territórios, a fim de alcançar a recuperação e
melhoria na qualidade ambiental, como mecanismo de evitar as ações pre-
datórias executadas por empresários em nome do desenvolvimento
socioeconômico. (CASTRO, 2007). No caso das comunidades indígenas, ao
analisar o contexto brasileiro, os povos originários, desde a colonização,
sempre foram alvo de exploração e violência (DIAS; ALMEIDA, 2010;
CASTRO, 2007). Destacam-se que os motivos que envolvem tal violência e
exploração dizem respeito à posse de terras. A Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, no artigo 231º, garante aos povos indígenas
o direito originário à posse permanente das terras que tradicionalmente
164 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

ocupam e à proteção dos seus usos, tradições e costumes: “As terras tradi-
cionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes” (BRASIL, 1988, p. 133)
De acordo com Dias e Almeida (2010, p. 31) “em toda a América havia
inúmeros povos distintos que foram chamados de índios pelos europeus
que aqui chegaram” classificados pelos portugueses com o intuito de via-
bilizar os objetivos da colonização. Nas investidas etnocêntricas, o
colonizador era a referência. Assim, os nativos foram classificados em dois
grupos de índios: “aliados” e “inimigos”. Entretanto mesmo diante de todo
o preconceito, escravidão e perseguição que os povos indígenas sofreram
e sofrem até os dias de hoje, é também possível destacar a resistência des-
ses povos frente às adversidades. Segundo Castro (2007) boa parte dos
conflitos envolvendo as aldeias indígenas diz respeito à posse de terras,
uma vez que para estes, a terra é um elemento simbólico na qual são de-
senvolvidas as atividades produtivas voltadas para a subsistência e o
sentido da existência indígena se inscreve. Assim, apresentam forte depen-
dência em relação à natureza e ao patrimônio natural, os quais são os que
mantêm seus modos particulares de vida.
Cabe destacar que além das violações de direitos ligadas à condição
de indígenas outras violações, tão graves quanto essas já apontadas, se
manifestam em diferentes territórios do país que vivenciam conflitos am-
bientais, notadamente aqueles conflitos relacionados ao extrativismo mais
especificamente à extração mineral (COELHO, 2012, 2017). Todo esse ce-
nário constitui uma realidade de ausências, mas também muitas potências
e possibilidades da luta pela chamada justiça ambiental (ACSELRAD, 2002,
2018).
A partir dessa perspectiva, o presente trabalho tem como ponto de
partida apresentar a Cartografia Social desenvolvida com os Pataxós Hã
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Hã Hãe Naô Xohã, situados na divisa entre os municípios de Brumadi-


nho/MG e São Joaquim de Bicas/MG.
O presente trabalho surgiu a partir de intervenções de extensão uni-
versitária realizadas no Município de Brumadinho, ações estas que foram
coordenadas e realizadas por grupos de professores e extensionistas da
PUC Minas. As orientações epistemológicas e metodológicas que funda-
mentam esse trabalho extensionista remetem à noção de Epistemologias
do Sul (SANTOS, 2007; SANTOS; MENESES, 2009), Ecologia de Saberes
(MORIN, 2008), racionalidade ambiental (LEFF, 2009), Pesquisa Enga-
jada, Dialógica, Crítica e orientada para a transformação social
(CUNLIFFE, 2020; POZZEBON, 2018; POZZEBON; PETRINI, 2013;
POZZEBON; RODRIGUEZ; PETRINI, 2014), Pedagogia do Oprimido
(FREIRE, 1997, 2001), Teatro do Oprimido (BOAL, 2014) e razão sentir-
pensante (BORDA, 1987, 1994; MARTÍN-CABRERA, 2014). Nesse sentido,
o trabalho assume características de pesquisa implicada nas lutas por di-
reitos dos povos indígenas e na promoção da justiça ambiental, assumindo
compromisso essencial com o protagonismo, autonomia e centralidade
(ANDRADE; CARNEIRO, 2009; GOLSTEIN; BARCELLOS; MAGALHÃES;
GRACIE, 2013; DIAS; OLIVEIRA, 2018) dos povos indígenas na produção
de saberes orientados para o resgate de sua territorialidade, promoção da
sustentabilidade e regeneração de territórios implicados em tragédias-
crime corporativas da mineração, como é o contexto de Brumadinho/Mi-
nas Gerais (GASPARO, 2019).
Os Pataxós apresentavam uma demanda por demarcação de territó-
rio, após a tragédia-crime da ruptura da barragem de rejeitos de
mineração da mina Córrego do Feijão da companhia Vale, em Brumadi-
nho, no ano de 2019. Uma das comunidades nas quais os projetos de
extensão da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)
166 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

atuaram foi essa aldeia Pataxó. As interações com essa comunidade indí-
gena indicaram que uma demanda relevante seria avançar na
compreensão da territorialidade desse grupo no contexto do pós-tragédia-
crime. Com isso, optou-se por trabalhar com o mapeamento participativo
da área que eles ocupavam às margens do Rio Paraopeba. Esta, que é uma
ferramenta que possibilita a participação coletiva e inclusiva dos sujeitos
na percepção e demarcação de seu território de vivência. O Mapeamento
Participativo é uma abordagem interativa, dentro do rol de estratégias me-
todológicas da Cartografia Social (GORAYEB; MEIRELES, 2014), que busca
a representação do espaço, de acordo com o conhecimento das populações
locais permitindo aos integrantes do processo criar seus mapas represen-
tando os elementos mais significativos e percebidos por essa população.
De acordo com Andrade e Carneiro (2009) esse tipo de mapeamento
é um importante instrumento para a compreensão do uso do espaço pelas
comunidades, que assumem o protagonismo na construção de represen-
tações acerca de sua inserção nos territórios, se tornando sujeitos ativos,
ao contrário dos sujeitos passivos, condição de pró-atividade que rara-
mente os povos indígenas assumem na produção cartográfica brasileira.
Nos tópicos subsequentes do presente artigo, apresentamos a base
teórica que orienta nossas reflexões, discutindo os temas da Territoriali-
dade e da Cartografia Social. Em seguida, fizemos breves notas
metodológicas e descrevemos criticamente a construção cartográfica pro-
tagonizada pelos Pataxós no contexto de agravamento das violações de
direitos após a tragédia-crime de 2019 em Brumadinho. Após essa discus-
são, fechamos o artigo apontando novas agendas de pesquisa engajada e
atividades extensionistas na urgente agenda de suporte à promoção dos
direitos dos povos indígenas no Brasil e no mundo.
Volume 9 | 167

1.1 Território e Territorialidades

Território é uma expressão que possui diferentes significados sendo


no senso comum, a interpretação de um espaço, uma área administrada
pelo Estado sobre a qual ele exerce a sua soberania. Como um espaço social
qualquer, e entre alguns. Para os geógrafos, até trata-se de um espaço de-
finido e delimitado por relações de poder e espaço marcado e defendido
por espécies animais (HAESBAERT, 1997). Este último, também podendo
ser definido pela etologia (estudo do comportamento animal) como sendo
‘Espaço de vida’ ou pela antropologia através do termo alemão que surgiu
durante a segunda guerra “Lebensraum” (Espaço Vital).
Ainda segundo Haesbaert (1997) pode-se ter um sentido totalmente
abstrato, como o “território da filosofia”, quanto muito concreto, o “terri-
tório dos Estados-nações”. A palavra que tem origem do latim: territorium,
que é por sua vez derivado de terra, figurava nos tratados de agrimensura,
que é um ramo com objetivo de medição de terras, significando “pedaço
de terra apropriada”. Magnaghi (2000) diz que o território não existe na
natureza, sendo que este é um êxito dinâmico, estratificado e complexo de
sucessivos ciclos de civilização; é um complexo sistema de relações entre
as comunidades nele inseridas, suas culturas e o meio-ambiente.
Little (2003) ressalta que no Brasil existe uma diversidade fundiária
associada a uma imensa diversidade sociocultural, citando ainda que cada
uma das múltiplas sociedades indígenas possuem formas próprias de se
inter-relacionar com os ambientes geográficos nas quais estão inseridas,
sendo essas relações formadoras de um dos mais importantes núcleos da
diversidade fundiária e sociocultural. Diz ainda que, por todo o território
nacional, os remanescentes das comunidades quilombolas formam outro
desses importantes núcleos. Porém, esta imensa, e diversa, gama de gru-
pos humanos costuma ser agrupada em diferentes categorias, sendo elas:
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“comunidades tradicionais”, “populações autóctones”, “povos rurais”, “so-


ciedades locais” e/ou “culturas residentes”. E esta diversidade fundiária do
Brasil, até recentemente, foi pouco conhecida no país e pouco reconhecida
oficialmente pelo Estado brasileiro.
A questão fundiária brasileira torna-se uma problemática centrada
nos processos de ocupação e afirmação territorial, o que é algo que vai
muito além do tema de redistribuição das terras, pela inclusão dos diversos
grupos não-camponeses nessa problemática, sendo assim, dentro do
marco legal do Estado, irão remeter às políticas de ordenamento e reco-
nhecimento territorial. Isso fica estabelecido pelas mudanças ocorridas no
cenário político do país nos últimos vinte anos e não surge apenas como
uma mudança de enfoque por mero interesse acadêmico (LITTLE, 2003).
Para melhor compreensão, primeiramente, precisa-se entender a di-
ferença entre os conceitos “território” e “territorialidade”. Little (2003)
define a territorialidade por: “esforço coletivo de um grupo social para
ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu
ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’”. Este consi-
dera que a teoria de territorialidade, na antropologia, tem sua renovação
partindo de uma abordagem de que todos os grupos humanos possuem,
integralmente, uma conduta territorial. Sendo assim, como já citado, “ter-
ritório” seria definido por “espaço de vida”, enquanto “territorialidade”, o
esforço do grupo para pertencer a um “espaço de vida”.
Apesar do importante papel da territorialidade, na constituição de
grupos sociais, esse tema tem recebido, nas décadas recentes, um trata-
mento marginal na disciplina de antropologia. Isso se deve por diferentes
linhas de pesquisa, como exemplo a etologia. Nesta linha de pesquisa
ocorre uma apropriação do conceito de territorialidade para explicar o uso
do espaço através do instinto animal. Outro exemplo é da linha de pesquisa
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que existe dentro da própria antropologia, que usa da limitação de recur-


sos e densidade populacional para explicar o conceito de territorialidade
humana. Esta última abordagem limita-se a certos tipos de sociedades de
pequena escala, tornando-se um problema, por não possuir muita aplica-
ção aos grandes Estados-Nação contemporâneos (LITTLE, 2003).

1.2 Cartografia Social: dimensões conceituais e metodológicas

A cartografia social é considerada uma abordagem teórico-metodoló-


gica voltada para as práticas de pesquisa e construção de mapeamentos
participativo-colaborativos e inclusivos, destinados a fomentar o protago-
nismo e o engajamento comunitário, frente à resolução de demandas
advindas de grupos e populações vulneráveis, bem como, de povos e co-
munidades tradicionais. Logo, trata-se de um ramo da ciência cartográfica
que busca realizar mapas de forma crítica e participativa, demarcando e
caracterizando espacialmente contextos territoriais conflituosos a partir
de seus símbolos (GORAYEB; MEIRELES, 2014).
O uso da cartografia social está atrelado à construção do conheci-
mento e saberes de forma compartilhada, o instrumento mais utilizado
nestas práticas cartográficas é o mapeamento participativo, uma vez que,
este propicia que os próprios sujeitos da ação construam seus mapas, cri-
ando seus respectivos elementos com base em seus conhecimentos e
vivências acerca do território ao qual estão inseridos. Acselrad (2013)
afirma que:

A cartografia social serve para dar visibilidade aos grupos sociais, seus territó-
rios, territorialidades, representações, identidades, conflitos e lutas por
reconhecimento de direitos, bem como, auxiliar na ampliação do conheci-
mento dos grupos sociais sobre seus territórios, sobre suas histórias e sobre
os usos que fazem de seus recursos naturais, além de contribuir para os pro-
cessos de reivindicação, de defesa e de proteção dos territórios e de seus
recursos, fortalecendo organizações indígenas, e ampliando o diálogo entre os
170 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

povos tradicionais e as instituições governamentais e não governamentais


(ACSELRAD; 2013, p.18).

Durante muitos anos, em decorrência da forte hegemonia do Estado,


a construção de mapas que expressavam a realidade dos territórios ficou
a cargo desta instituição. Com o surgimento da cartografia social esse pro-
cesso se tornou mais democrático, e com isso as próprias comunidades
passaram a cartografar sua realidade utilizando os mapas sociais como
forma de reivindicar suas demandas, e viabilizar a construção de políticas
públicas para seus territórios. Alberdi (2012) assegura que a Cartografia
Social é praticada em oposição ao modelo hegemônico, sendo uma cons-
trução territorial em que as relações de poder são transformadas a partir
da participação ativa dos habitantes presentes no território, onde o inte-
resse coletivo se esforça para orientar as políticas implementadas.
Segundo Acselrad e Viégas (2013) “as forças envolvidas nas práticas
da cartografia social têm refletido, portanto, em grande proporção, lutas
sociais por reconhecimento identitário e territorial” (ACSELRAD; VIÉGAS;
p. 10). Pode-se constatar que para além da dimensão territorial envol-
vendo o uso da cartografia social, existe também a dimensão identitária,
pois durante o processo de construção dos mapas, os sujeitos pertencentes
aos territórios cartografados, constroem suas representações a partir dos
processos afetivos, de vivências e outras dimensões subjetivas que ocor-
rem nestes respectivos espaços. Com base nisso, ao invés de designar aos
mapas uma lógica de representatividade e cientificidade, faz-se necessário
considerá-los somente quanto à sua utilidade e simbologia e ao quão os
mesmos são efetivos quanto ao cumprimento dos objetivos pelos quais fo-
ram elaborados (ACSELRAD, 2013).
Um ponto a ser destacado nas práticas da cartografia social, diz res-
peito à relação do pesquisador com os sujeitos que compõem o campo em
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que a ação é desenvolvida. Ao adentrar no território das comunidades, faz-


se necessário ter uma postura lateral ao campo, ou seja, um diálogo hori-
zontalizado, e o compartilhamento de conhecimentos e ideias. Na
construção dos mapas participativos, os saberes tradicionais e comunitá-
rios são a base do processo, desse modo faz-se necessário uma
neutralização do conhecimento por parte do pesquisador, frente à media-
ção destes processos.
Contudo, esta prática consiste em um “pesquisar com, e não pesqui-
sar sobre”, o que implica afirmar que é preciso ouvir mais do que falar. Na
elaboração dos mapas, o reconhecimento tradicional nem sempre é evi-
dente. É a partir do diálogo de saberes que o conhecimento local pode se
expressar. A interação entre sujeitos, com conhecimento técnico e sujeitos
com conhecimento tradicional, deve ser objeto de reflexão por parte dos
pesquisadores do processo cartográfico e seus métodos, de modo a se al-
cançar o diálogo entre técnicas e saberes e evitar a imposição de um sobre
o outro, ou ainda que se excluam mutuamente (ACSELRAD; VIÉGAS,
2013).

2 Desenvolvimento

A partir da tragédia crime ocorrida em Brumadinho, quando a rup-


tura de uma barragem de rejeitos de mineração matou centenas de
pessoas e atingiu indiretamente milhares de outras, a Reitoria da PUC Mi-
nas, por meio da Pró Reitoria de Extensão (PROEX), mobilizou docentes
com experiências no campo da extensão universitária, para a proposição
de um conjunto de iniciativas emergenciais, de curto e médio prazos que
viriam a constituir o Programa PUC Minas e Brumadinho - Unindo Forças.
Este programa fundamenta-se nas diretrizes da extensão universitária
(BRASIL, 2018) e na Política de Extensão Universitária da PUC Minas (PUC
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MINAS, 2006) que a orientam e ressaltam a necessidade de contato, prin-


cipalmente diálogo, com as comunidades atingidas.
O Programa buscou integrar ações emergenciais no território com
atividades formuladas a partir do mapeamento da situação atual dos ser-
viços e iniciativas presentes e atuantes na comunidade, como também de
lideranças locais e atuação de grupos governamentais. Esperava-se que
este mapeamento pudesse contribuir para o aprofundamento das propos-
tas elaboradas, visando assim uma maior efetividade na resolução das
demandas apresentadas pela população e na segurança dos direitos viola-
dos.
Um dos projetos que foi desenvolvido dentro deste programa foi o
“Escola Livre de Formação”, que se propôs a atuar como espaço de com-
partilhamento e disseminação de conhecimento e saberes qualificados
pelos setores e áreas de conhecimento existentes na Universidade, visando
favorecer o empoderamento e retomada da vida e trabalho das comunida-
des impactadas pela tragédia-crime. Dentro deste projeto, foram
elaboradas e aplicadas uma série de práticas que visavam atingir tais pro-
postas, buscando sempre a participação popular e estímulo do
protagonismo das figuras centrais dos grupos focais trabalhados. Pen-
sando em trabalhar a valorização do conhecimento tradicional, buscou-se
uma primeira interação com a aldeia Pataxó, possibilitando que desenvol-
vêssemos a cartografia participativa com base nas demandas da
comunidade.

2.1 Mapeamento Participativo na Aldeia Hã HÃ HÃE NAÔ XOHÃ

Ao se tratar do mapeamento participativo desenvolvido com os Pata-


xós Hã Hã Hãe Naô Xohã, este teve como foco fomentar o protagonismo
dos indígenas no reconhecimento da demarcação do território ao qual es-
tão inseridos. Vale ressaltar que não se tratou de um mapeamento político
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administrativo, e sim uma prática que teve como objetivo proporcionar a


participação dos indígenas, para que os mesmos pudessem mapear seu
espaço de vivência, delineando seus saberes e suas histórias, bem como
suas reivindicações acerca deste território. Deste modo, antes da efetivação
do mapa construído coletivamente pelos membros da aldeia, foram reali-
zadas visitas frequentes à comunidade a fim de estabelecer laços afetivos
com os indígenas e também conhecer os modos de vida destes sujeitos, e
a relação destes com aquele território.
Com base nas visitas realizadas de setembro a novembro de 2019, foi
possível identificar que a Aldeia Pataxó apresentava uma demanda por de-
marcação do seu território. Portanto, em uma das reuniões do Projeto de
Extensão Escola Livre de Formação em Brumadinho, o grupo avaliou que
seria interessante desenvolver um mapeamento em que os membros da
comunidade fossem os protagonistas do processo. A partir disso, a pro-
posta foi apresentada aos líderes da comunidade para que eles pudessem
conhecer a cartografia social, aqui no caso utilizando a metodologia do
mapa mental participativo.
Após a aprovação das lideranças da aldeia, a construção do mapa foi
agendado e os extensionistas do projeto, junto com os professores perten-
centes ao mesmo, foram até o território para aplicar a metodologia com os
indígenas. Como mencionado anteriormente neste capítulo, o mapea-
mento foi realizado no dia 23 de novembro de 2019, com duração de três
horas para a efetivação do mesmo. As primeiras visitas, constituíram de
entrevistas semi-estruturadas, para se conhecer a relação de uso da biodi-
versidade, com o Rio Paraopeba, enfim, a relação que tem com o espaço
que ocupam, conhecer e ouvir as lideranças e seus relatos sobre a chegada
na localidade, e como tem sido a vida após a tragédia-crime. Ao chegar no
território, o grupo do Escola Livre de Formação foi muito bem recebido
pela comunidade, e buscou dialogar com os membros da aldeia, e também
174 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

andar pelo território antes de iniciar a construção do mapa. Uma das ca-
racterísticas da cartografia social, é respeitar o tempo dos sujeitos da ação
(aqui no caso, os indígenas), pois são eles que vão compor o mapa, logo é
necessário acompanhar o ritmo e o tempo dos mesmos.
Após a aproximação com o território, iniciamos o processo de cons-
trução do mapa. A princípio, houve resistência por parte dos indígenas,
principalmente os mais velhos, uma vez que eles alegaram que não sabiam
desenhar e escrever, e com isso não iriam participar do processo. Contudo,
a construção do mapa foi satisfatória, especialmente pelo engajamento dos
mais jovens. Outro ponto foi as adversidades e conflitos existentes entre
os membros da comunidade. No entanto, mesmo diante das dificuldades
iniciais, foram estabelecidas conversas com a comunidade e aos poucos foi
possível levar os indígenas para a atividade.
No primeiro momento, uma das mulheres da aldeia mostrou-se a
mais engajada naquela atividade, com isso a mesma conseguiu através do
seu entusiasmo, despertar o desejo dos demais no processo. Um fato inte-
ressante nesta prática foi a participação ativa dos jovens da aldeia, eles
participaram ativamente o tempo todo durante o processo. A foto figura 1
abaixo ilustra o início do mapeamento participativo desenvolvido pelos in-
dígenas.
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Figura 1: Início da construção do mapa mental da Aldeia Pataxó Hã Hã Hãe Naô Xohã.

Fonte: arquivo dos próprios autores.

Algo que chamou bastante atenção no desenvolvimento do mapa so-


cial dos Pataxós, foi a forma como eles optaram por representar suas casas.
Eles acharam mais viável que cada morador desenhasse sua casa ou me-
lhor “Kijeme” no linguajar Patxohã, e isso fez toda diferença, pois as casas
ficaram distintas e carregadas de símbolos e histórias específicas de cada
família, que foram sendo narradas durante a execução dos desenhos. Ao
desenhar o Rio Paraopeba, que é um dos principais elementos da natureza
que os indígenas utilizam em suas práticas cotidianas e de sobrevivências,
os Pataxós o pintaram com barro, para representar a destruição do mesmo
pela lama de rejeitos da barragem da Mina Córrego do Feijão, durante a
elaboração do mapa muitos deles diziam que o “rio morreu”, devido a sua
contaminação. Em uma das visitas realizadas na aldeia antes da efetivação
do mapa, um dos membros da comunidade ao ser questionado sobre a
relação dos indígenas com rio antes da tragédia-crime, disse que:

Por que o rio, que nem eu falei, o rio dava pra gente pescar, tomava banho,
lavar louça, tomar banho. Mas assim pra consumir mesmo pra tomar não
176 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

dava, aí a gente pegava de lá pra tomar, pra consumir mesmo e cozinhar (Re-
lato de Morador da Aldeia).

Com o rompimento da barragem, os indígenas não puderam mais


consumir a água do rio Paraopeba e isso refletiu e causou diversos danos
para a comunidade, principalmente na agricultura de subsistência, que era
uma das atividades exercidas por eles. Uma questão que incomodava e ge-
rava preocupação nos Pataxós, era o possível contato com a lama do
rejeito, uma vez que, já havia a contaminação do solo, e o material parti-
culado presente no ar estava causando alergias e doenças de pele nos
indígenas e também nos animais da comunidade, principalmente os ca-
chorros, em decorrência do contato dos mesmos com a água:

A gente percebeu porque eles adoecem muito e antes eles não adoeciam não.
Eles tá... como é que fala, a veterinária da Vale vem buscar eles, porque tem
muito metal pesado e aí eles ficam tomando a água do rio e tomando banho
que não pode. Aí a gente espera deles aí só adoecer mesmo, criar um câncer,
isso aí. Fica até ruim pra gente, por que eles tomam banho aqui aí brincam
com meus filhos, porque a gente não pode ter contato com a água, se sacodem
e o solo da gente contamina as hortas da gente, porque a gente usa a horta
sem cerca, porque a gente gosta, é o costume (Relato de Morador da Aldeia).

Durante o processo em que o mapa foi sendo construído outras nar-


rativas foram surgindo, e à medida que os extensionistas iam
acompanhando o desenvolvimento, também perguntavam aos indígenas
sobre os significados dos termos, desenhos e símbolos que eles utilizaram
na elaboração desse documento artesanal, a fim de conhecer a cultura da
comunidade, suas práticas de vivência e saberes tradicionais. Nessas con-
versas com os indígenas, pode-se identificar o maior engajamento da
comunidade na elaboração do mapa, tanto que, após uma hora de ativi-
dade, quase toda a comunidade já estava participando, aqueles que não
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estavam desenhando auxiliavam na posição dos elementos no mapa. Logo,


o diálogo dos extensionistas com os indígenas foi primordial para estabe-
lecer confiança, laços afetivos e maior participação no processo.
Nas práticas da cartografia social, é possível estabelecer trocas de sa-
beres com as comunidades. Com os Pataxós, não foi diferente, ao longo do
mapeamento, os indígenas foram desenhando a vegetação da aldeia e ex-
plicando aos extensionistas os benefícios daquelas plantas para a saúde das
pessoas, e também sobre a utilização destas para o artesanato que as mu-
lheres da aldeia desenvolvem. Como mencionado anteriormente, os
Pataxós sobrevivem da agricultura, pesca e artesanato como forma de sub-
sistência, porém as duas primeiras práticas foram diretamente afetadas
com a tragédia-crime, então eles tiveram que dedicar ao artesanato como
fonte de renda das famílias.
Passadas três horas de muita troca de saberes, diálogos e vivências,
os indígenas terminaram o mapeamento participativo da comunidade. Foi
um momento de muita alegria e satisfação por parte da comunidade, uma
vez que, a construção do mapa se tornou um motivo de divertimento para
os Pataxós. Um ponto a ser destacado nessa experiência com os Pataxós,
foi a forma como essas práticas em que são aplicadas metodologias parti-
cipativas, propicia a imersão em um território formado por forças,
sentimentos, afetos, que a todo momento durante a prática fortalecia-se o
espírito de coletividade e união entre os membros da comunidade. Abaixo
deixamos registrado a figura 2, que caracteriza o produto final construído
pela comunidade.
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Figura 2: Mapa final construído pelos Pataxós Hã Hã Hãe Naô Xohã.

Fonte: arquivo dos próprios autores

Considerações finais

A experiência do mapeamento participativo com os Pataxós Hã Hã


Hãe Naô Xohã, foi uma atividade altamente satisfatória para os indígenas,
pois os mesmos tiveram a oportunidade de construir o mapa de seu terri-
tório com autonomia e sob o viés de suas percepções e vivências naquele
espaço. Durante a produção do mapa foi possível identificar conflitos exis-
tentes no território e atenuá-los através do trabalho coletivo e
comunitário, que propiciou não apenas o mapa mental participativo da
Aldeia, mas também o diálogo entre os pares sem que houvesse divergên-
cias entre os mesmos.
Visto que identificamos a relação dos indivíduos da comunidade com
o seu território, tornou possível entender também a relevância que um
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território possui para as pessoas que ali vivem e como que impactos, de
qualquer natureza, pode afetar estes indivíduos, tornando o método uma
ferramenta importante durante os estudos de avaliação de impacto ambi-
ental e demais processos de licenciamento. Não só dentro do universo do
licenciamento ambiental, como o método se demonstrou eficaz para en-
tender as implicações de um crime ambiental no cotidiano das pessoas
afetadas, mesmo que indiretamente, e eficaz também para encontrar for-
mas de atenuação de conflitos sociais dentro de uma comunidade.
Importante ressaltar que mesmo que tenha sido relatado até aqui
uma experiência com uma comunidade tradicional indígena, a capacidade
adaptativa da cartografia social permite que esta seja aplicada não só em
outras comunidades tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos por
exemplo, mas também em demais regiões que possuam algum conflito en-
volvendo seu território, seja este inserido em uma realidade de zona rural
ou urbana. Da mesma forma, o método não precisa necessariamente
abranger grandes grupos, podendo ser aplicado em instituições educacio-
nais ou até mesmo comerciais, visto que o necessário para a execução é
reconhecer primeiramente a relação dos indivíduos e/ou grupos sociais
existentes ali, para que em conjunto com estes se delimitam os pontos de
conflito e a demanda principal, para os quais o produto seja capaz de ilus-
trar, de forma clara e didática.
Espera-se que as discussões e reflexões de nosso artigo sirvam de ins-
piração para mais e melhores discussões, vinculadas ao campo da
pesquisa-ação, a cartografia social, a justiça ambiental e ao contexto de
territórios que vivenciam tragédias-crime ambientais não apenas orienta-
das para os povos indígenas, mas a toda sorte de povos e comunidades
assumidas como não desenvolvidas, atrasadas e esquecidas ou tornadas
invisíveis por uma racionalidade econômica e política sustentada por falá-
cias desenvolvimentistas. Não apenas o destino e os direitos dos povos
180 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

tradicionais estão em xeque, mas o de todas as sociedades contemporâ-


neas, sejam elas tradicionais ou urbanas e industrializadas. O ensino,
pesquisa e extensão produzidos na universidade contemporânea não po-
dem prescindir, como vem fazendo ao longo dos séculos, da “razão sentir-
pensante” dos povos indígenas na sua luta pelo direito de existir e resistir
em todos os territórios, sobretudo os maculados por tragédias-crime como
a de Brumadinho/MG.

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Capítulo 7

Conflitos territoriais no quilombo de


Santa Rita do Bracuí (RJ): entre lutas e resistências
pela manutenção do bem viver 1

Territorial conflicts in the Quilombo of Santa Rita do Bracuí (RJ):


between struggles and resistance for the maintenance of good viver
Daniel Neto Francisco 2
Lucimar Ferraz de Andrade Macedo 3
Lamounier Erthal Villela 4

1 Introdução

O presente artigo busca promover uma análise do território do Qui-


lombo de Santa Rita do Bracuí a partir das dimensões conflituosas que
vem promovendo um processo histórico de desterritorialização, principal-
mente, a partir dos processos de especulação imobiliária e as ações de
grilagem em terras tradicionais.
Tal pesquisa foi desenvolvida a partir de duas entrevistas presenciais,
devido ao contexto ainda limitante da pandemia do Covid-19. Por isto,

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Doutorando em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária (PPGCTIA/UFRRJ). Mestre em Desenvolvimento
Territorial e Políticas Públicas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mediador à Distância no
Centro de Educação à Distância do Estado do Rio de Janeiro. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/
8201364422268688 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2587-034X E-mail: [email protected]
3
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária (UFRRJ). Mestre
em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Assistente Social pela Prefeitura Municipal de Itaguaí (RJ). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2936893561013851 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8091-7844 E-mail: [email protected]
4
Doutor em Economia Aplicada pela Université Paris III (Sorbonne Nouvelle). Professor Departamento de
Economia/ Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (UFRRJ). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT) e do Doutorado em Ciência, Tecnologia e Inovação em
Agropecuária (PPGCTIA). Link para oLattes: http://lattes.cnpq.br/0265624345647321 ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-8506-4454 E-mail: [email protected]
Volume 9 | 185

optou-se pela sintetização dos critérios de análise, buscando favorecer a


análise das dimensões conflituosas em torno do território quilombola. Isto
porque, mesmo diante o cenário da pandemia global os desafios presentes
para a manutenção do território e da sua identidade se manifestam de
forma latente.
Para além disto, a presente pesquisa busca refletir criticamente
acerca das definições estáticas de territórios, muitas vezes apropriadas
pelo campo de ação do poder público, e, que ocasionam políticas públicas
que não contempla as realidades, reivindicações e interesses locais; muitas
vezes por não estabelecer este diálogo com a territorialidade.
Desta forma, a presente pesquisa busca: apresentar um referencial
teórico sobre os conceitos de território e desterritorialização, articulando-
os aos campos da antropologia crítica e das relações do material e do ima-
terial, que envolve o simbólico, e, não necessariamente são homogêneos.
Além disto, busca-se correlacionar o território ao conceito de bem-viver,
como uma categoria aglutinadora, capaz de promover identidade e esta-
belecer caminhos para a preservação ambiental e a promoção da
territorialidade quilombola. Depois disto, elencam-se os principais confli-
tos do Quilombo de Santa Rita do Bracuí, a partir da percepção das
representações locais.

2 Das concepções teóricas de território

Esta seção traça um caminho de teorização acerca do conceito de


território, que é apontado por Haesbart (2003) como um conceito
polissêmico, e, que pode refletir diferentes concepções e focos de visão a
partir de onde o pesquisador (e o leitor) se situam: uma primeira posição,
mais tradicional, pode ser de cunho jurídico-político. E abarca o constructo
“território” como um espaço controlado, delimitado, e, que, muitas vezes
é refletido nos planos e nas diretrizes das políticas públicas de forma
186 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

prescritiva – havendo um excesso de formalidade na sua delimitação, o


que pode gerar imprecisões. Uma segunda dimensão: a cultural, busca
abranger as dimensões do simbólico e das relações sociais;
compreendendo o território como um fenômeno que comporta elementos
subjetivos. Já a terceira posição teórica possuí um caráter mais
fundamentado na esfera econômica e nas suas dimensões (relações de
trabalho, empresariais, de capital e investimentos, etc.).
Para uma melhor delimitação do conceito de território neste estudo,
torna-se relevante a definição de Perico (2009), que o define como aquele
elemento que pode ser: “(...) referido, reconhecido e identificado – en-
quanto unidade da gestão política que o distingue e o atribui existência, de
certa forma institucionalizada” (PERICO, 2009, p. 10).
Pode-se sintetizar o termo “forma institucionalizada”, como um ele-
mento que concede vida e características estruturais a um dado território.
Não sendo, necessariamente, um espaço de institucionalização apenas uni-
tário – como as unidades geográficas, refletidas em municípios, estados ou
províncias. Isto porque o território pode: “constituir-se num espaço des-
contínuo” (PERICO, 2009, p. 10). Por isto, Haesbart (2004) e Saquet
(2010) concedem um olhar da geografia sobre o conceito de território con-
tornando suas dimensões políticas, sociais e simbólico-culturais, e, não
apenas a partir das definições ou demarcações de limites administrativos.
No caso específico a ser abordado neste capítulo, o caso do Quilombo
do Bracuí, o processo local de desterritorialização e de conflitos territoriais
colocam a prova a possibilidade de se questionar e refletir, também, sobre
as dimensões limitantes que as definições estáticas das áreas reconhecidas
como de comunidades tradicionais podem gerar. Entretanto, não há aqui
um esforço para minimizar a importância do território tradicional, mas ao
contrário, denota-se o relevante papel de fortalecer estes espaços, mesmo
Volume 9 | 187

quando se encontram em quadros de segmentação ou descontinuidade ge-


ográfica. Sob tal perspectiva se endossa a ideia de que o território é um
elemento intrinsecamente complexo, que envolve dimensões do material
e do imaterial; do tangível e do intangível (SAQUET, 2010).
Desta forma, mais a frente neste capítulo, se demonstra como se deu
o processo de fragmentação de parte do território quilombola; que como
o passar dos anos e de gerações, sob fortes pressões de especulação e gri-
lagem de terras, ainda sobrevive com uma identidade local e um
movimento remanescente de quilombolas organizado.
O território pode apresentar uma gama complexa de relações de po-
der entre os indivíduos que o compõe. Por isto, deve-se notar a relevância
das interfaces institucionais presentes sobre cada campo em observação,
uma vez que os territórios podem apresentar diferentes “campos de po-
der”. O conceito de campos de poder de Foucault (2014), relaciona o
conceito de poder às relações estabelecidas entre os agentes locais. Dentro
desta concepção, Raffestin (1993) resume que: “O poder está presente nas
ações do Estado, das instituições, das empresas (...)” (RAFFESTIN, 1993,
p. 33). O poder é efetivado no cotidiano, baseado nas ações de controle e
dominação, que pode ser exercido na sociedade e nas coisas (espaço físico,
recursos naturais, etc.). Estas conformações efetivas do poder são concei-
tuadas por Raffestim (1993) como: “trunfos de poder”. Canais que
concedem o domínio, e o poder de mando (RAFFESTIN, 1993).

2.1 Aos desafios da desterritorialização

Faz-se necessário, ainda, avançar no debate em torno dos processos


que fragilizam os territórios. O principal deles é a desterritorialização, um
fenômeno que guarda em si uma ampla gama de referências e de olhares
epistêmicos (que vão desde aqueles voltados à desterritorialização como
processos de deslocalização de empresas – correlacionando território ao
188 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

espaço físico – até aqueles que abordam a sua dimensão cultural)


(HAESBART, 2003).
Outra concepção de desterritorialização também difundida é a que
envolve o domínio (ou não) de determinado território (HAESBART, 2003).
Ou seja, a capacidade ou “descapacidade” de apropriação efetiva de um
determinado grupo social. Esta vertente está alinhada à compreensão do
poder e da efetivação deste nas dimensões territoriais (RAFFESTIN, 1993);
abrangendo desta forma, as disputas e os conflitos existentes neste.
A presente pesquisa envolve as duas dimensões anteriores para pro-
mover uma análise que corrobora coma a construção da análise de Little
(2003), que observa como central a problemática das ocupações e a afir-
mação dos territórios tradicionais – dimensões que envolvem o
ordenamento e o reconhecimento das terras no Brasil. Logo, é possível
avançarmos, também, no sentido de reforçar as dimensões simbióticas en-
tre a cultura e a territorialidade (LITTLE, 2003). Territorialidade ou o seu
oposto, a desterritorialidade, estão envolvidas em um conjunto de formas,
símbolos e signos que definem como determinado grupo social se estabe-
lece e se relaciona em seu território.

2.2 O Bem-viver como eixo de territorialidade

A proposta de refletir sobre os espaços e territórios das comunidades


tradicionais deve, sobretudo, renunciar às concepções prescritivas e de cu-
nho eurocêntricas. As abordagens que envolvem os estudos das
comunidades tradicionais, das políticas públicas e das ações em torno des-
tes territórios devem seguir um caminho pela autonomia (distanciando se
das fórmulas pré-moldadas), e que desague no diálogo e na inclusão das
próprias comunidades, e, de suas compreensões de mundo.
Como destaca Quijano (2000) o bem-viver, também denominado
“bien vivir”, está atrelado a retomada de uma via de pensamento dos povos
Volume 9 | 189

da América Latina segundo suas próprias bases culturais. Processo que


Echeverría (2015) define como uma descolonização do modo de viver, pen-
sar, e produzir a noção de desenvolvimento. O desenvolvimento com base
no bien vivir tem por consequência a perspectiva de promover uma vida
em comunidade com harmonia entre a natureza e os interesses sociais.
O marco histórico da Constituição Equatoriana de 2008, instituída
por meio da “Asamblea Constituyente de Montecristi” (Assembleia Cons-
tituinte Nacional do Equador), realizada entre os anos de 2007 e 2008,
teve como finalidade maior a construção uma nova redação do texto cons-
titucional do país, contemplando desde então os direitos da natureza
(Pachamama). Em seu Artigo 72, o instrumento legal define para além do
direito à existência da natureza e seus sistemas e biomas; mas também
busca garantir os direitos: à manutenção e à regeneração dos seus ciclos
vitais; processos fundamentais para o equilíbrio e a manutenção da vida.
Conforme apontam Sampaio et al. (2017), a prática do bem viver en-
volve uma nova postura que envolve aprendizados e um novo
posicionamento humano, rejeitando o antropocentrismo e a centralidade
das relações humanas baseadas na economia.

Há um conjunto de esforços, denominado aqui de ecossocioeconomia urbana,


que se acredita que traga aprendizados para compreender os antecedentes da
crise ambiental e cujo pressuposto se baseia nas mesmas assimetrias que exis-
tem entre ser humano e natureza, derivadas do antropocentrismo, que
presidem a relação ser humano x ser humano (SAMPAIO et al. 2017, p. 41).

Tal concepção questiona a tendência de “domínio do homem” sobre


as demais coisas e, se torna importante na medida em que também ajuda
a desmistificar paradigmas como o do desenvolvimentismo (como algo
inegociável), ou, mesmo, como a cultura que promove uma ideia homogê-
nea de modernidade (LÓPEZ; PEÑA, 2021). Questionamentos importantes
190 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

para o contexto das comunidades tradicionais, que, por vezes, são aponta-
das como áreas “a serem desenvolvidas”, “a serem urbanizadas”, ou, que
precisam ser modernizadas. Na verdade, a lógica em questão passa prin-
cipalmente pela decolonialidade dos saberes (fortalecendo os saberes
tradicionais), dos seres (dando eminência aos indivíduos e suas culturas
originárias), e, dos poderes (fortalecendo os modelos de ação destas co-
munidades) (LÓPEZ; PEÑA, 2021).

3 Metodologia

A presente pesquisa se estrutura como um estudo de caso de caráter


qualitativo, tendo como dimensão estrutural as percepções, compreensões
e falas dos participantes. Neste sentido, foram realizadas duas fases distin-
tas da pesquisa. A primeira, envolveu um momento de pesquisa
participante onde os autores puderam interagir com uma representante
do Quilombo do Bracuí junto à reunião do Colegiado Territorial da Baía da
Ilha Grande (BIG), onde houve um espaço para a fala sobre a situação do
território quilombola e sobre uma Carta Manifesto contra o projeto da Pe-
quena Central Hidrelétrica a ser instalada no Rio Bracuí. Neste momento
foram pré-definidas algumas dimensões trazidas pela fala da represen-
tante quilombola, que estruturaram as perguntas a serem aplicadas no
segundo momento da pesquisa.
As entrevistas foram realizadas com duas representantes da comuni-
dade; e ocorreram de forma presencial (junho de 2021) já havendo a
possibilidade de pesquisa de campo presencial, uma vez que ambos os en-
trevistados já encontravam imunizados com as duas doses da vacina
contra o Coronavírus. As entrevistas foram realizadas a partir da aplicação
de um mesmo roteiro de perguntas abertas, oferecendo margens para um
diálogo a partir das reflexões e posicionamentos trazidos pelos entrevista-
dos.
Volume 9 | 191

A pesquisa congrega os passos da pesquisa etnográfica crítica


(MAGALHÃES et al. 2017), fundamentando a análise dos dados obtidos se
deu por meio da análise do discurso coletado junto aos entrevistados do
Quilombo de Santa Rita do Bracuí. As categorias de análise foram estabe-
lecidas a partir do método de categorização em Bardin (1977).

4 O caso do quilombo do Bracuí (RJ)

O Quilombo de Santa Rita do Bracuí se encontra a cerca de 30 km do


centro urbano da cidade de Angra dos Reis (RJ). O Quilombo busca o re-
conhecimento de suas terras e a sua titulação junto ao Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desde 2006. A área é reconhe-
cida e certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) desde fevereiro
de 1999, adquirido pela luta dos remanescentes locais pelo reconheci-
mento de suas origens e, igualmente importante para fomentar a
preservação da cultura e da história local. No entanto, até o ano de 2021 o
processo de titulação das terras quilombolas do Bracuí ainda não foi con-
cluído. Em agosto de 2020 o Ministério Público Federal (MPF), por meio
da Procuradoria da República no Rio de Janeiro, recomendou que o INCRA
e a Prefeitura Municipal de Angra dos Reis direcionem medidas efetivas
para a conclusão do processo; reconhecendo o território quilombola (MPF-
RJ, 2021).
A regularização fundiária da região é uma luta presente não apenas
entre as reivindicações da comunidade quilombola; a Aldeia Sapucaí, for-
mada pelos índios guarani, e, vizinha da área do quilombo foi homologada
como área indígena em 1995. No entanto, a luta pelo reconhecimento da
posse e direito do território advém da década de 1980. Período em que o
processo de crescimento urbano e especulação imobiliária ganham força
ao longo da Rodovia Rio-Santos (BR-101). Deve-se ressaltar que este pro-
cesso de crescimento desordenado ganha impulso com a fixação de
192 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

megaempreendimentos na região da Baía da Ilha Grande, como as Usinas


Nucleares (1972-1980) e o antigo estaleiro Verolme (instalado em 1959 e
que atinge o seu auge em 1979) (RIBEIRO, 2007; DE JESUS, 2021; SILVA,
2021).
Os megaempreendimentos transformam mais que a paisagem e o
mercado de trabalho na região; até então voltados essencialmente para as
atividades rurais. Mas, que passam a ter uma dinâmica urbana cada vez
mais acentuada. Entretanto, a falta de um processo de planejamento ur-
banístico e ambiental tornam o território da Baía da Ilha Grande um
território em disputa, como aponta Ribeiro (2007).
No caso do Quilombo do Bracuí, o seu território é formado a partir
da antiga configuração das terras da antiga “Fazenda de Santa Rita do Bra-
cuí”, produtora de água-ardente, e, sob a propriedade de José de Souza
Breves, com cerca de 260 alqueires (ABBONIZIO, DE SOUZA, RAMOS,
2016). Com a Lei Euzébio de Queiroz, que firma a proibição do tráfico de
pessoas no Brasil, a fazenda cai em grande declínio econômico. E décadas
mais tarde o seu dono registra um testamento deixando a posse destas
terras aos ex-escravizados que ainda viviam ali (MATTOS et al. 2009).
Território este que foi cortado pela construção da Rodovia Mário Co-
vas (Rio-Santos) ainda na década de 1970. E, que, posteriormente, foi alvo
de conflitos fundiários, invasões, especulação imobiliária, e, crescimento
populacional com a chegada de trabalhadores dos megaempreendimentos
locais.
Neste contexto de crescimento desenfreado a porção do Bracuí situ-
ada entre a Rodovia Rio-Santos e o mar é a que sofre maior impacto; com
conflitos territoriais fortemente ligados com a chegada de empreendimen-
tos de turismo na região. Abbonizio, De Souza e Ramos (2016) observam
que neste contexto, a grilagem de terras e a expulsão da população rema-
nescente de determinadas áreas com forte interesse do capital:
Volume 9 | 193

É importante destacar a construção de um condomínio de luxo na parte lito-


rânea da antiga fazenda, antecedido por um processo violento de expulsão dos
moradores, que tiveram suas casas incendiadas, lavouras arrasadas e outros
tipos de coerção para abandonar a área de interesse imobiliário (ABBONIZIO,
DE SOUZA, RAMOS, 2016, p. 397).

Este processo retirou ainda, o acesso direto da comunidade ao mar.


O que trouxe, segundo uma das falas das entrevistadas, uma forte ruptura
da vida quilombola e, também, na própria dimensão simbólica-afetiva da
relação entre a comunidade e o mar como um local onde os mais velhos
aqui puderam crescer em contato constante com a pesca e tirando alimen-
tos do mar. Neste sentido, vale ressaltar como um relato histórico que
ainda neste período a conexão do quilombo com o mar e a pesca era forte:

Eu até falo para as crianças que o mar era como se fosse o nosso supermer-
cado. A gente ia lá e trazia de tudo: mariscos, ostras, peixes, tudo sabe. Se a
gente não tinha nada de caça para comer, a gente ia no mar; tinha as pessoas
que tinha as canoas, elas pescavam e traziam os peixes. Mas hoje em dia não
tem mais isso, o mar agora é todo fechado... tem as áreas que a gente não pode
pescar, aqui perto, por causa dos hotéis e dos condomínios com lanchas (En-
trevistada 1 na comunidade).

A expansão do turismo na região é correlacionada com a abertura da


Rodovia Rio-Santos, que valorizou os terrenos da região, e, ao mesmo
tempo, trouxe uma ligação rápida entre as comunidades da Baía da Ilha
Grande e a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Contudo, este processo
é criticado pela fragilidade que gerou às comunidades tradicionais de cai-
çaras, indígenas e quilombolas da região.
Atrelado a este processo, a chegada de novas empresas as margens
da rodovia e a expansão constante da população local levam, também, a
194 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

um processo de fragmentação dos terrenos. Uma vez que grande parte da


população já não trabalhava mais com a agricultura:

As pessoas foram ficando cada vez mais ligadas a cidade; os trabalhos nas em-
presas (Petrobrás; Brasfels; na construção de prédios, de condomínios, etc. (...)
Aí o povo foi parando de depender da roça, foi deixando de plantar. Aí foram
dividindo alguns terrenos, inclusive alguns aqui do lado de cima da rodovia,
vendendo seus terrenos (Entrevistada 1 na comunidade).

Por isso, mesmo dentro da área que busca a titulação no INCRA exis-
tem propriedades não definidas como de remanescentes de quilombo. O
que promove uma certa confusão para quem vê o território, sem compre-
ender a sua história e o seu processo de lutas e de resistência frente a
especulação imobiliária. O processo de titulação das terras do quilombo
busca reaver 07 propriedades que estão dentro do território quilombola
em titulação, mas que não são mais pertencentes de famílias remanescen-
tes e nem são de pessoas que moram ali. No geral são utilizados como
estabelecimentos comerciais; e não como moradias de famílias.
Já no caso das famílias não quilombolas que realmente residem no
território, não havendo outro imóvel para moradia, a ARQUISABRA tem o
desejo de mantê-los no território, pois não descaracterizam o território e
as suas atividades.
Em entrevista com representantes da comunidade nota-se uma forte
fragmentação do tecido social local pela venda histórica de terrenos em
porções menores para pessoas advindas de fora do território. Processo
engendrado, muitas vezes, pelo aliciamento dos proprietários locais, para
que pudessem vender terrenos por preços irrisórios. Uma das
entrevistadas observa que em alguns casos as pessoas chegam ao
quilombo dizendo não ter dinheiro para comprar um terreno em outro
lugar. Mas, depois que se instalou nas terras do quilombo, construíram
Volume 9 | 195

casas enormes e muradas, bem fora dos padrões das residências locais.
Este é outro fator que merece destaque: a construção de imóveis de
famílias não remanescentes, normalmente, segue um padrão atípico para
os padrões de construção do quilombo. Um dos pontos a se destacar é que:

As construções de famílias de fora do quilombo, são dessas casas com muros


altos. Elas são bem fora do padrão quilombola, a gente não uso muros, man-
tem um contato mais aberto com o terreiro, com os vizinhos e a natureza
(Entrevistada 1 na comunidade).

Por consequência deste processo de fragmentação dos lotes do Qui-


lombo, pode-se notar também uma descaracterização do território, o que
envolve a dimensão paisagística e a apropriação do território. Mas, envolve
também, a dimensão simbólica do pertencimento quilombola, uma vez
que ao inserir um número cada vez maior de construções não quilombolas,
o território perde suas características históricas de ocupação do solo e de
interação com a comunidade em si. Desta forma, um desafio local é pro-
duzir uma dimensão cultural homogênea que abarque, também, as
famílias não quilombolas, replicando a estes as dimensões do bem-viver,
do bem comum e das tradições comunitárias.
O recente processo de vacinação contra a Covid-19 é um exemplo
deste descompasso entre a percepção do território quilombola para a pre-
feitura e, a real concepção deste território para a comunidade em si. Neste
sentido, a Associação de Remanescentes do Quilombo do Bracuí
(ARQUISABRA) busca pelo reconhecimento de toda a comunidade de ori-
gem quilombola, mesmo daquelas famílias que não se encontram na área
reconhecida atualmente como quilombo. Como explicita as entrevistas:

A Secretaria de Saúde acha que Quilombola são só as famílias da parte não


asfaltada da estrada do Bracuí. Aí pega as famílias aqui e as de lá de cima. Mas
o Bracuí é grande e em todo o lugar do Bracuí nós temos família quilombola.
196 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

(...) Primeiro a nossa luta se deu porque eles não queriam vacinar os conju-
gues, por exemplo, se tem um quilombola que se casou com uma pessoa que
não é quilombola. Eles queriam vacinar apenas o quilombola e os filhos, divi-
dindo até as famílias (Entrevistada 1 na comunidade).

Neste sentido, a luta dos moradores foi pelo reconhecimento do nú-


cleo familiar, a partir da identidade e da dimensão simbólica do
pertencimento ao território, e, consequentemente, à própria categoria de
quilombola. Mas o desafio de reconhecimento do quilombo e da definição
de quilombola no Bracuí envolve também a desmistificação da ideia de
território apenas como um elemento único e contínuo. De acordo com os
moradores a prefeitura não reconhece uma grande parte do território
como quilombola, principalmente, porque existem casas de pessoas que
não possuem origem quilombola na região. Um ponto que dificulta a defi-
nição de políticas públicas adequadas para a comunidade e, ainda,
atrapalha o reconhecimento das famílias remanescentes que moram nes-
tas áreas não reconhecidas.
As falas a seguir expressam este descompasso entre a falta de reco-
nhecimento das famílias quilombolas e da própria compreensão do poder
público sobre o processo histórico da comunidade:

Para você ver o asfalto vem até ali; na outra gestão do prefeito ele disse pra
nós que aquela parte de baixo não era quilombo. Aí colocaram asfalto naquela
parte. E nessa parte sem asfalto é a parte que a prefeitura reconhece como
área quilombola. Quer dizer, então o quilombo não precisa de asfalto? (...) O
projeto da prefeitura é asfaltar só onde eles dizem que não é quilombo (Entre-
vistada 1 na comunidade).
Quando eles fizeram o asfalto até lá na frente nos brigamos, reivindicamos
pelo asfalto aqui para a gente também. Mas o asfalto parou lá (...). Ficamos
aqui com a estrada de barro, e não asfaltaram aqui até hoje porque eles dizem
que lá não é quilombo. A gente queria que fosse colocado aqueles bloquetes
(paralelepípedo), porque ele drena melhor a água das chuvas, não teria risco
Volume 9 | 197

para as casas mais baixas do nível da rua, e, manteria a característica histórica


daqui (Entrevistada 2 na comunidade).

Já na primeira fala fica nítida que a visão por parte do poder público
municipal é de que um território de comunidade tradicional está ligado ao
atraso. O projeto de pavimentação da prefeitura não cobriu a área que o
órgão define como “território quilombola”, em contrapartida, os represen-
tantes da ARQUISABRA observam que grande parte da população
quilombola deseja que fossem colocados paralelepípedos na estrada do
quilombo e não asfalto. Neste sentido, pode-se frisar a falta de comunica-
ção entre o poder público local e a comunidade, uma vez que nem mesmo
esta reivindicação foi acolhida pela prefeitura.
Para além disto, é importante frisar que alguns proprietários da re-
gião do quilombo mais distante da rodovia (parte ainda não asfaltada)
desejam que a seja colocado asfalto na parte superior da Estrada Santa Rita
do Bracuí. O que demonstra que diante algumas temáticas o território não
possuí uma unanimidade total, obviamente, uma vez que alguns interesses
se divergem.
As figuras abaixo apresentam, respectivamente, as placas com infor-
mações turísticas sobre o quilombo e sobre a escravidão no Brasil; e, ao
lado, o local onde acaba a estrada asfaltada do território quilombola e, onde
inicia a estrada de chão (área onde a prefeitura define como o início do
quilombo:
198 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 1 – Estrada Santa Rita do Bracuí (início da parte não asfaltada):

Fonte: Autores (2021).


Volume 9 | 199

A incompreensão sobre o que é o território quilombola é registrada


também por parte da população do município, que segundo falas das en-
trevistadas, questiona porque o quilombo precisa de uma área que
segundo eles, é tão grande. As falas a seguir expressam

Sempre perguntam: “Nossa, mas pra quê que vocês querem tanta terra; (...)
porque ficar com a área só pra vocês, vocês têm certeza? Tem tanta gente pre-
cisando de terra (...)”. E muitas pessoas já tentaram invadir essa parte aqui de
cima e é resistência sempre (...) (Entrevistada 1 na comunidade).
O que parece as vezes é que o povo preto não tem direito a ter alguma coisa.
Acho que no Brasil é assim, a gente tem que sempre lutar. (...) E muitas vezes
dizem que a gente não tem direito de morar aqui (Entrevistada 2 na comuni-
dade).

Como indica a figura a seguir, o território do Quilombo de Santa Rita


do Bracuí reivindicado pelos moradores e pela ARQUISABRA envolve parte
da porção abaixo da BR-101, e a porção acima que fica entre o Parque Na-
cional da Serra da Bocaina e o Rio Bracuí:

Figura 2 – Localização do Território de Santa Rita do Bracuí:

Fonte: Google Maps (2021).


200 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

A invasão de terras do quilombo é um desafio ainda relatado pelos


moradores. E que merece atenção tanto da comunidade local, como tam-
bém, do poder público. Isto porque, em alguns casos, simplesmente
demarcam uma porção de terra e reivindicam a sua posse de maneira to-
talmente informal. O que se caracteriza como uma grilagem de terras em
área ainda não titulada:

Aconteceu com a minha sobrinha e já aconteceu com muita gente aí. A pessoa
chegou pra gente e disse: “(...) olha, eu comprei isso aqui, está loteado”. (...)
Aqui mesmo, a gente perdeu a beira do rio porque a pessoa disse que tinha
comprado de fulano, mas não apresentou documento nem nada. Aí fomos na
justiça, mas a justiça pediu que eu comprovasse que a área era minha. (Entre-
vistada 1 na comunidade).
É muito complicado porque a própria lei não entende. Ou não quer entender,
porque eles dizem que a gente tem que ler tudo e comprovar a posse, a área
delimitada milimetricamente definida. A gente acaba se sentindo como ladrão
(Entrevistada 2 na comunidade).

A falta da titulação das terras como área quilombola ajuda a ampliar


a insegurança jurídica dos moradores remanescentes frente aos processos
de grilagem de terra. Como apontado na entrevista, a justiça acaba corro-
borando para a manutenção de fraudes e invasões na localidade, ao passo,
que exige dos quilombolas a comprovação de titularidade para que se
possa impedir a invasão de terceiros. Este impasse no ordenamento jurí-
dico promove uma inversão de valores, uma vez que a comunidade, no
papel de herdeira destas terras acaba tendo que comprovar a sua posse, e,
sem poder, devido ao moroso processo de reconhecimento da área do qui-
lombo.
Outro fator que incide sobre os desafios do Quilombo é que muitas
destas terras são classificadas como Área de Preservação Permanente
Volume 9 | 201

(APP), pois se situam na margem do Rio Bracuí. De acordo com a fala de


moradores a Secretaria de Meio Ambiente de Angra observa que nesta re-
gião não pode construir imóveis, plantar, retirar a vegetação nativa, etc.
Por isto, são áreas que a comunidade utiliza historicamente para lazer
junto ao rio.

No verão a gente usava a beira do rio para lazer, para as crianças, pra pesca;
e, a gente usava pra passear. (...) Agora não, tá cercado ali, e a gente prefere
não arrumar problema. (...) Mas como ali é Área de Preservação Permanente
é importante que a prefeitura garanta a conservação da área, porque ela é im-
portante pra nós (Entrevistada 2 na comunidade).

Para além do uso da área para lazer, algumas falas da comunidade


demonstram o valor afetivo do Rio Bracuí, ameaçado não apenas pela es-
peculação imobiliária mais também pelo projeto da Pequena Central
Hidrelétrica (PCH) Paca I e II, questão que será abordada mais à frente. No
que diz respeito à dimensão simbólica do rio e das suas áreas de margem,
é importante observar que inclusive o papel de destaque que a comunidade
dá para a importância do rio, do seu fluxo e de suas margens como ele-
mentos vivos e que possuem uma dinâmica própria.

Estas terras são do rio e devem ser mantidas assim. Até porque é a vazão do
rio, quando ele enche é ali que as águas dele escoam e fluem (Entrevistada 1
na comunidade).
Aquela área do rio é muitas vezes vista como suja, como vazia, e nem sempre
as pessoas de fora entendem. Mas ela tem um valor muito grande pra a gente,
como comunidade que utiliza o Rio Bracuí no dia a dia (Entrevistada 2 na co-
munidade).

A forte integração entre a comunidade quilombola e os sistema natu-


ral é perceptível, também, em outras falas quando os entrevistados
questionam a noção errônea de desenvolvimento como um sinônimo de
202 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

urbanização, de alteração/degradação dos sistemas naturais. Neste sen-


tido, outra crítica promovida pela associação do território é o Projeto da
Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Paca I e II, no Rio Paca, em Bananal
(São Paulo), que desagua no Rio Bracuí. E, além disto, de acordo com o
projeto do empreendimento, apesar da barragem não ficar situada no ter-
ritório quilombola, as turbinas da geração de energia ficariam na Serra da
Bocaina já no Rio Bracuí – área próxima ao Quilombo do Bracuí; além
desta estar na área do Parque da Serra da Bocaina – classificado em 2019
como Patrimônio da Humanidade, sendo parte do primeiro sítio misto
(material e imaterial) reconhecido no Brasil. Além disto, a região também
abriga o território indígena guarani (Aldeia Guarani do Bracuí), sendo
também, um risco para a manutenção das atividades de caça e pesca da
comunidade indígena que utiliza o Rio Bracuí e a região da Serra da Bo-
caina para caça.
De acordo com as falas locais outras questões do projeto despertam
receio e o total desinteresse da população em receber o empreendimento:

As turbinas devem ficar bem aqui na serra, muito próximas do quilombo e da


aldeia guarani. O nosso medo é o barulho que essas turbinas poderão fazer
aqui no vale (...). Isso pode afugentar os animais, as aves, e atrapalhar muito
a nossa vida, porque qualquer barulho aqui espalha pela mata (Entrevistada 1
na comunidade).
Nosso medo dessa hidrelétrica afetar o rio que a gente usa pra pesca, pro tu-
rismo de base comunitária, lazer das crianças... Será que não vai mudar a
temperatura das águas? A vida dos peixes? Porque tudo isso impacta nas nos-
sas vidas também (Entrevistada 2 na comunidade).

Ponto que indica o potencial da categoria do bem-viver e da constru-


ção de uma dinâmica de unidade do território em prol de sua manutenção:
histórica, cultural, política-institucional, social e ambiental. Neste sentido,
Volume 9 | 203

a escola do bairro, denominada como: Áurea Pires da Gama Dias, é reco-


nhecida desde 2015 como escola quilombola. Um outro elemento que
indica a possibilidade de produzir sinergias em torno da manutenção e
difusão da cultura quilombola, fortalecendo os lações simbólicos entre os
alunos e o território. Da mesma forma, a dimensão do bem-viver já abor-
dada em atividades da escola, pode ser um fator preponderante para
ampliar a unidade cultural entre a população local quilombola e não qui-
lombola.

Considerações finais

Torna-se necessário romper com a compreensão equivocada de si-


tuar os territórios (inclusive os territórios tradicionais) como verdadeiras
“ilhas”, que não sofrem diversas consequências pela falta de um arcabouço
de políticas territoriais que reflitam sobre a promoção e a manutenção dos
seus tecidos sociais, e das suas dimensões culturais, identitárias e de pre-
servação dos laços tradicionais. No caso específico do Bracuí aponta-se tal
necessidade de reflexão a partir de dois pontos fundamentais: o primeiro
deles é a própria condição do território quilombola, que se apresenta de
maneira descontínua, mas ainda com fortes traços identitários e de terri-
torialidades (mesmo diante o histórico processo de desterritorialização).
Pode-se notar que a Associação dos Remanescentes do Quilombo de Santa
Rita do Bracuí (ARQUISABRA) traçou caminhos para a manutenção e a
promoção dos valores quilombolas, como o funcionamento da escola local
como uma escola quilombola. E, até mesmo, pela sua ação ativa pelo reco-
nhecimento dos direitos quilombolas frente ao poder público local
(elementos que fortalecem a (re)territorialidade). Não obstante, um se-
gundo ponto que merece reflexão, são os fortes processos de especulação
imobiliária e grilagem de terras, que provoca insegurança, e, reforça a ur-
gência pela titulação das terras quilombolas junto ao INCRA.
204 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Atrelada a esta segunda dimensão de análise sobre o território (e suas


fragilidades) é importante destacar o papel do Rio Bracuí, não apenas
como vetor do lazer e do turismo de base comunitária local; mas também
por ele envolver outras dimensões sistêmicas dos conflitos vivenciados no
território. O primeiro deles é o uso e a posse inadequada das terras de APP,
que além dos conflitos fundiários presentes, podem causar, ainda, uma fu-
tura desconfiguração da paisagem rural; e, podendo desaguar em outros
efeitos e problemas como: futuras dificuldades no curso do rio, derivadas
pelo desmatamento de suas margens (assoreamento); o uso impróprio dos
recursos hídricos locais, que pode ser derivado de ligações impróprias de
esgotamento.
Além de outras questões de dimensão sistêmica, que envolvem o rio
local e o projeto da Pequena Central Hidrelétrica. A PCH estabelece o uso
de parte superior do rio para abrigar as suas turbinas, podendo trazer ou-
tros riscos à vida aquática, e, produzindo futuras alterações em seu fluxo
d´água, em sua temperatura, etc. Pontos que necessitam de maior análise
por parte de órgãos competentes, uma vez que o estudos produzidos até
então são pouco esclarecedores quanto a tais dimensões e sobre a garantia
dos direitos das comunidades no entorno do Rio Bracuí.
Denota-se a importância do bem-viver e do bem comum como di-
mensões capazes de articular e promover a manutenção do tecido social
local, principalmente entre as faixas etárias que utilizam a escola local (de
base quilombola), o que pode auxiliar a reduzir os conflitos locais nas pró-
ximas gerações. No entanto, os riscos sistêmicos promovidos pelos
processos de grilagem e especulação imobiliária necessitam de uma inter-
venção estatal, principalmente, por meio da conclusão do processo de
titulação – oferendo o mínimo de segurança jurídica e maior dignidade à
população local.
Volume 9 | 205

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brazil/ acessado em: 20 dez. 2020.
Capítulo 8

Terras indígenas e mineração em rondônia:


perspectivas para uma avaliação jurídica 1

Indigenous lands and mining in Rondônia:


prospects for a legal evaluation
Karen Roberta Miranda 2
Amanda Pereira Serafim 3
Daniel Ferro Nobre de Lima 4
João Vitor Carneiro da Silva 5
Neiva Araujo 6

Britada em bilhões de lascas/ deslizando em correia transportada/ entupindo


150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas/ - o trem maior do mundo,
tomem nota -/ foge minha serra, vai/ deixando no meu corpo e na paisagem/
mísero pó de ferro, e este não passa.
Carlos Drummond de Andrade

1 Introdução

O poema de Carlos Drummond de Andrade que assume a epígrafe


deste texto intitula-se A Montanha Pulverizada e descreve os efeitos da

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos (Universidade Federal da Grande Dourados). Endereço: Rua
Vereador Mário Sibim, nº 2546, Vila Flora, Espigão do Oeste, Rondônia, Brasil. Link do Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7856931723683655 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8047-0795 E-mail:
[email protected]
3
Graduanda em Direito (UFRO). Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8482034832375575 ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5619-0956 E-mail: [email protected]
4
Graduando em Direito (UFRO). Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/2826400502996247 ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-9575-9727 E-mail: [email protected]
5
Graduando em Direito (UFRO). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/9693196530026232 E-mail:
[email protected]
6
Doutora em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Professora Adjunta da Universidade Federal de Rondônia
(UFRO). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/7300866906734717 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3252-
4514 E-mail: [email protected]
208 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

mineração sobre a paisagem de Minas Gerais, no município de Itabira,


terra natal do modernista. No mesmo poema, Drummond recorda a
história da montanha: “Era coisa dos índios e a tomamos”. Assim, a poesia
define o recorte deste estudo: a relação e os efeitos da mineração com e
sobre as comunidades indígenas brasileiras, sob o prisma ambiental, pela
predação da economia extrativista ou pela manutenção do modo de vida
tradicional.
A pesquisa se localiza na Amazônia Legal como recorte geográfico,
região de maior concentração de terras indígenas no Brasil. Ademais, op-
tou-se pelo estado de Rondônia em detrimento de outros 9, pois é um
estado recentemente impactado por ingerência de megaprojetos (UHEs,
rodovias, portos, etc.). Assim como, geograficamente encontra-se no
acesso da Amazônia através do Centro-Oeste do Brasil.
Diderot e D’Alembert (1752, apud SOMAIN, 2018, n.p., grifo nosso),
filósofos iluministas, definiram o Brasil, em sua Encyclopédie, como:

Grande país da América do Sul, limitado a norte, a leste e sul pelo mar, e a
oeste pelo país das Amazonas e o Paraguai: a costa, que é de cerca de 1 200
léguas de comprimento por 60 de largura, pertence aos Portugueses. O inte-
rior do país é habitado por povos selvagens e idólatras, que desfiguram seus
rostos para parecer mais formidáveis aos seus inimigos: diz-se que são cani-
bais. Os mais conhecidos são Topinambous, Marjagas e Onétacas. Esta parte
do Novo Mundo é muito rica.

Passados quase 3 séculos, ainda é notória a ideia do contraste entre


“selvagens” e “civilizados”, a fim de justificar a colonização do território
amazônida (nisto inserido o estado de Rondônia) por massas migratórias
nos tempos da Ditadura Militar (1964-1985), cujo argumento permanece
em voga para justificar projetos de infraestrutura na região.
Isso porque impera-se a ideia de uma região a ser ocupada e conquis-
tada, de modo que as relações travadas entre os povos da floresta (povos
Volume 9 | 209

indígenas, ribeirinhos, pequenos camponeses, seringueiros, castanheiros,


etc.) com grupos de fora da Amazônia (corporações, latifúndios, multina-
cionais, garimpeiros, etc.) ainda são nos formatos dos séculos de
colonização (BERTA, 2013).
A ideia da Amazônia desabitada, inóspita e erma protagonizou o ima-
ginário dos militares por todo século XX, que promoveram a investidura
colonial pelos 21 anos que monopolizaram o poder da República. No en-
tanto, o mote do “integrar para não entregar”, que personifica este
imaginário, perdura nas esferas de poder do Estado até então.
Zhouri et. al (2005) conceitua essa predisposição do Poder Público
brasileiro como o paradigma de adequação ambiental, através do qual o
Estado legitima a apropriação da natureza por razões econômicas contra
comunidades marginalizadas, desrespeitando, inclusive, os direitos dos
povos indígenas.
A fragilidade das instituições, em especial aquelas que tem por tarefa
implementar a agenda ambiental, e.g., Instituto Nacional do Meio Ambi-
ente (IBAMA), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) e Fundação Nacional do Índio (FUNAI), demonstra que as garan-
tias de Estado em prol da manutenção, preservação e conservação
ecológica estão sob investida. O presente estudo aborda o fronte da mine-
ração nesse cenário geral.
Nesse sentido, o Projeto de Lei 191/2020, que propõe a regulamenta-
ção da mineração em Terras Indígenas promovida por grupos ruralistas,
como demonstração do iminente interesse de setores da sociedade brasi-
leira pela riqueza mineral sob Terras Indígenas (TIs). Tal interesse
também foi replicado na esfera estadual, em Rondônia, mediante audiên-
cia pública discutindo a temática, promovida pelo governador Marcos
Rocha junto ao ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e o depu-
tado federal Chrisóstomo de Moura, em 2019.
210 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Assim, a presente pesquisa pautou-se sobre uma metodologia ex post


facto para, conforme explica Coutinho (2014, p. 330), “observar e medir –
não manipular –, de forma retrospectiva e em contextos naturais, em
busca de possíveis relações”. A partir do levantamento documental e dos
casos apresentados, pela lógica dedutiva, verificar-se-á a correspondência
das hipóteses seguintes, a fim de descrever os aspectos jurídico-políticos
da expansão da mineração sobre Terras Indígenas.
Assumiu-se como principal hipótese a seguinte afirmativa: a demar-
cação de Terras Indígenas é o maior fator de preservação ambiental na
Amazônia frente à degradação da floresta pela atividade antrópica. Isso se
justifica conforme a proposição seguinte: a inércia do Estado na definição
jurídica de Terras Indígenas é responsável pela expansão da mineração na
Amazônia brasileira.

2 Desenvolvimento

O bioma amazônico corresponde a uma área que se estende desde as


encostas orientais do oceano Atlântico até as Cordilheiras dos Andes e é
composto por parte do território de nove países da América do Sul (Brasil,
Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e
Venezuela), sendo que 69% dessa área total está situada no Brasil
(FERREIRA; VENTICINQUE; ALMEIDA, 2005).
A denominação do espaço amazônico brasileiro como Amazônia Le-
gal foi criada no início da década de 50 pela Lei nº 1.806/53, a ideia era
passar de . A norma estabelecia que a Amazônia brasileira passasse de um
conceito estritamente geográfico para uma perspectiva política. Buscava-
se com a atualização legislativa melhorar as políticas públicas e o planeja-
mento de desenvolvimento para a região (ARAUJO; MORET, 2016).
A Amazônia Legal brasileira corresponde a 59% do território total do
país, sendo composta por Amazonas, Acre, Amapá, Mato Grosso e parte
Volume 9 | 211

do estado do Maranhão, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins, possuindo


775 municípios, onde viviam em 2000, segundo o Censo Demográfico,
20,3 milhões de pessoas (12,32% da população nacional), sendo que
68,9% desse contingente em zona urbana (IBGE, 2020).
Entre as políticas englobadas pelo plano político da Amazônia Legal
estão os processos de demarcação de terras indígenas. Para deixar claro o
que seriam esses territórios, tem-se em mente a reflexão de Barbosa
(2017) que, em um primeiro momento, a terminologia dada a terras indí-
genas oscila, uma vez que se altera de acordo com o significado discutido
no meio jurídico ou instrumentalizado pelos povos tradicionais.
Dessa forma, entende-se no sentido jurídico “terras” como sendo um
gênero que abraça algumas espécies, quais sejam: terras tradicionalmente
ocupadas, reserva, propriedade dominial e terras interditas. As terras tra-
dicionalmente ocupadas representam a relação de vínculo histórico do
povo originário com esses espaços. As reservas são espaços artificiais deli-
mitados pelo Estado a fim de conservar o meio ambiente e os povos tidos
como integrantes da paisagem.
As terras interditas, por sua vez, são expedientes administrativos de
proteção de povos isolados. Por fim, tem-se as propriedades dominiais,
cuja ocupação está anunciada pelo Código Civil brasileiro de 2002
(BARBOSA, 2017). Com as terminologias que se relacionam às terras indí-
genas estabelecidas, será apontado o caminho percorrido para que passem
a ser juridicamente reconhecidas: o processo de demarcação.
Desse modo, o processo de demarcação de terras indígenas é um pro-
cesso administrativo movido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e
pelo Ministério Público Federal, sendo ratificado pela Presidência da Re-
pública, ou seja, é um processo que compete ao Poder Executivo. Apesar
de ser um processo que compete ao Poder Executivo, essa competência
tem sido frequentemente questionada.
212 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

A Constituição Federal de 1988 assegura aos povos indígenas direitos


às terras por eles ocupadas, competindo à União demarcar, proteger e fa-
zer respeitar os bens de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas,
conforme artigo 231. A CF/88 indica que a posse tem caráter permanente
e garante o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
existentes de forma inalienável, indisponível e imprescritível, bem como
prevê a nulidade e extinção de atos que objetivarem ocupação, domínio,
posse ou exploração das riquezas naturais desses territórios.
Esses direitos também são assegurados pela legislação internacional,
a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.051/04. A Convenção esta-
belece em seu artigo 6º a obrigatoriedade da consulta livre, prévia e
informada e dá a esses povos a escolha quanto ao processo de desenvolvi-
mento de suas áreas, na medida que isso afeta suas vidas, culturas, crenças
e bem-estar (artigo 7º).
Apesar das normas que garantem direitos aos povos originários e a
proteção da Amazônia brasileira, há uma frente buscando legitimar e le-
galizar a exploração predatória dos recursos naturais e a mitigação dos
direitos desses povos. Entre as formas encontradas por esses atores para
atingirem os direitos constitucionalmente resguardados, tem-se a expan-
são de obras de infraestrutura, aumento do desmatamento e queimadas,
bem como a tentativa de liberação da mineração em terras indígenas, tema
que será aprofundado com enfoque no estado de Rondônia.

2.1 Demarcação de Terras Indígenas em Rondônia

Em relação às modalidades de Terras Indígenas, o estado de Rondô-


nia possui atualmente: 25 Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas;
uma Reserva Indígena ainda não regularizada; e uma Terra Indígena In-
terditada. Das 25 Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas do estado,
Volume 9 | 213

em relação às fases do seu procedimento demarcatório, o estado possui:


quatro Terras Indígenas em estudo (Kaxarari, Puruborá, Rio Cautário, Ta-
naru), uma Terra Indígena declarada (Rio Negro Ocaia), uma Terra
Indígena homologada (Rio Omerê) e 19 Terras Indígenas regularizadas
(FUNAI, 2021). As Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas e com si-
tuação jurídica regularizada no estado estão detalhadas na Tabela 1.

Tabela 1 – Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas e com situação jurídica regularizada do estado de
Rondônia.

TERRA ETNIA MUNICÍPIOS ÁREA (ha)


INDÍGENA

Igarapé Lage Pakaa Nova Guajará-Mirim; Nova Mamoré 107.321,18

Igarapé Gavião de Ji-Paraná 185.533,58


Lourdes Rondônia

Igarapé Pakaa Nova Nova Mamoré 47.863,32


Ribeirão

Karipuna Karipuna Porto Velho; Nova Mamoré 152.929,86

Karitiana Karitiana Porto Velho 89.682,14

Kaxarari Kaxarari Lábrea; Porto Velho 145.889,98

Kwazá do Rio Kwazá; Parecis 16.799,88


São Pedro Aikanã

Massaco Povos Alta Floresta D’Oeste; São Francisco do Guaporé 421.895,08


isolados

Pacáãs Novas Pakaa Nova Guajará-Mirim 279.906,38

Parque do Cinta Larga Juína (MT); Vilhena 1.603.245,98


Aripuanã

Rio Branco Tupaiu; Alta Floresta D’Oeste; São Francisco do Guaporé 236.137,11
Makuráp

Rio Guaporé Makuráp Guajará-Mirim 115.788,08


214 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Rio Mequens Sakurabiat Alto Alegre dos Parecis 107.553,01

Rio Negro Pakaa Nova Guajará-Mirim 104.063,81


Ocaia

Roosevelt Cinta Larga Rondolânia; Pimenta Bueno; Espigão D’Oeste 230.826,30

Sagarana Pakaa Nova Guajará-Mirim 18.120,06

Sete de Suruí de Rondolândia; Espigão D’Oeste; Cacoal 248.146,93


Setembro Rondônia

Tubarão Laiana; Chupinguaia 116.613,37


Latunde Aikanã

Uru-Eu-Wau- Uru-Eu- Alvorada D’Oeste; Governador Jorge Teixeira; Campo Novo 1.867.117,80
Wau Wau-Wau de Rondônia; Mirante da Serra; São Miguel do Guaporé;
Cacaulândia; Costa Marques; Jaru; Guajará-Mirim;
Seringueiras; Nova Mamoré; Monte Negro

Fonte: Funai, 2021. Org.: autores.

Do ponto de vista histórico, a demarcação das terras indígenas tradi-


cionalmente Ocupadas do estado de Rondônia é uma conquista para as
populações indígenas, pois estas tiveram que enfrentar, ao longo de déca-
das, as consequências causadas pela morosidade do procedimento que
garante os direitos sobre seus territórios ocupados originariamente.
Anteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988, há no ano
de 1981 a demarcação das primeiras Terras Indígenas em RO: Igarapé
Lage, Igarapé Ribeirão e Rio Negro Ocaia, as três por meio do Decreto nº.
86.347/1981; em seguida, no ano de 1983, houve a demarcação de mais
duas: a Sete de Setembro por meio do Decreto nº. 88.867/1983, e a Iga-
rapé Lourdes por meio do Decreto nº. 88.609/1983 (TERRAS INDÍGENAS,
2021). Em 1986, houve a demarcação de outras duas no estado: a Karitiana
pelo Decreto 93.068/1986, e a Rio Branco pelo Decreto nº. 93.074/1986;
no ano de 1989, houve a demarcação de mais uma: a Parque do Aripuanã,
pelo Decreto 98.417/1989 (TERRAS INDÍGENAS, 2021).
Volume 9 | 215

Já na década seguinte, no ano de 1991, houve a demarcação de quatro


Terras Indígenas: Pacaás Novas, por meio do Decreto nº. 256/1991; Roo-
sevelt, por meio do Decreto nº. 262/1991; Tubarão Latunde, pelo Decreto
nº. 259/1991; e a Uru-Eu-Wau-Wau, a maior em extensão do estado, pelo
Decreto nº. 275/1991 (TERRAS INDÍGENAS, 2021).
Em 1992, foi demarcada uma Terra Indígena: a Kaxarari; em seguida,
no ano de 1996, foram demarcadas mais três: a Rio Guaporé, a Rio Me-
quens e Sagarana; logo após, em 1998, foram demarcadas mais duas:
Massaco e a Karipuna; por fim, a última demarcação no estado foi a Terra
Indígena Kwazá do Rio São Pedro, no ano de 2003 (TERRAS INDÍGENAS,
2021).
Destaca-se que a última demarcação no estado ocorreu em 2003, isto
é, há cerca de 18 anos atrás, de modo que existem diversas Terras Indíge-
nas cujo procedimento de demarcação está paralisado ou possui alguma
pendência conforme será aprofundado no tópico seguinte, o que contribui
para o aumento da violência contra essas populações e para as invasões
em seus territórios.
Além disso, a morosidade no processo de demarcação prejudica a
preservação do meio ambiente. Isso porque há uma relação direta entre a
regulação jurídica das áreas protegidas e a manutenção das florestas.
Nesse contexto, compreender a importância das áreas protegidas é crucial
para entender os complexos processos de ataque ambiental que elas so-
frem.
A Amazônia brasileira compreende um perfil de importância ambi-
ental gigantesco, afinal, além de ter uma fauna e flora plural, dispõe de
uma ampla diversidade de solos, climas, substratos geológicos e de bacias
hidrográficas. Para assegurar uma maior proteção e conservação dessas
áreas, criou-se ao longo dos anos, mecanismos legislativos para assegurar
216 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

um maior cuidado no que tange às explorações incidentes nessas áreas


preservativas.
Um dos mecanismos foi a implementação das áreas protegidas, por
exemplo: as Terras Indígenas, nestas, a intransigência acometida nos pro-
cessos de demarcações superou a intensa utopia de preservação ambiental,
afinal,

Divergências vividas pelos povos indígenas são passíveis de serem apontadas,


contudo nenhuma é mais grave do que a falta da aplicabilidade da legislação
vigente capaz de garantir os direitos inerentes à manutenção da tradição e
diversidade. Há negligência e descaso por parte do Estado, o qual deveria ser
a garantia frente à luta pelos indígenas, mas este, apesar de tantos apelos,
ainda se coloca ao lado do pensamento liberal, o qual perpassa pelos interesses
dos grandes fazendeiros e exploradores de minérios (ANDRIGHETTO;
DANIEL RUBENS CENCI, 2017, p. 21).

Essa situação pode ser exemplificada por meio das figuras a seguir,
as quais demonstram o interesse, bem como a exploração, de minérios em
áreas protegidas e em seus entornos, o que causa pressão nesses espaços
e nas comunidades que ali vivem em harmonia com a natureza.
Volume 9 | 217

Figura 1: Áreas protegidas do Estado de Rondônia

Fonte: Terras Indígenas.org, 2021.

A Figura 1 aponta todas as áreas protegidas no Estado de Rondônia,


entre elas áreas de conservação e terras indígenas. Em amarelo, tem-se as
áreas de conservação estaduais; na coloração rosa, estão as áreas de con-
servação federais e em laranja apresentou-se as terras indígenas. Pela
imagem de satélite percebe-se que as áreas protegidas estão com a sua
vegetação praticamente intocada, em contrapartida, o restante do territó-
rio do Estado possui apenas pequenos pontos com maior densidade
vegetativa.
218 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 2: Áreas protegidas e mineração no Estado de Rondônia

Fonte: Terras Indígenas.org, 2021.

Por sua vez, a Figura 2 traz em seu bojo, além das áreas protegidas,
os espaços que estão sob ameaça de atividades mineradoras. A imagem
aponta em verde todas as áreas que estão com solicitação para extração;
em amarelo, espaços que estão sob interesse em pesquisar a possibilidade
de extração mineral e em vermelho as áreas com foco de extração mineral.
As imagens demonstram que em áreas nas quais inexiste proteção
legal, há uma tendência acentuada de requerimentos para extração e pes-
quisa de minérios. Quanto às áreas de conservação, federais e estaduais,
algumas já cederam a exploração ou a pesquisa e requerimentos para ela.
Por outro lado, percebe-se a influência direta da resistência à exploração
Volume 9 | 219

natural nas terras indígenas, sendo elas as áreas mais resilientes ao avanço
da degradação ambiental.
Para explicar o avanço das atividades mineradoras nas áreas de con-
servação, pode-se apontar que “um dos problemas para o funcionamento
das Unidades de Conservação é que elas são frequentemente invadidas, o
que contribui para dificultar sua regularização fundiária.” (ABRAMOVAY,
2019, p.78). Em outras palavras, alguns atores de má-fé se apropriam des-
sas áreas na esperança de que a ocupação seja em algum momento
legalizada, usufruindo de suas potências naturais.
A grilagem, as tentativas de pesquisa de mineração e o desmatamento
florestal são bem explicadas por Veríssimo (2021) que divide a Amazônia
brasileira em quatro grupos, quais sejam: arco do desmatamento, cidades,
áreas florestadas e áreas sob pressão. Nessa divisão, o arco do desmata-
mento que corresponde ao Maranhão, sul do Pará, Mato Grosso e se
estende ao longo da BR-364 que atravessa o estado de Rondônia, é a área
mais afetada da floresta, largamente utilizada para fins agropecuários. As
cidades, por sua vez, são aglomerações urbanas que estão situadas no in-
terior da floresta.
Por último, mas a divisão mais importante para o presente estudo
está a Amazônia sob pressão, reconhecida pela tendência cada vez maior
de grilagem, garimpo e exploração de madeira, situada no entorno do arco
do desmatamento e das cidades cuja economia depende diretamente da
exploração natural (VERÍSSIMO, 2021).
A partir das figuras 1 e 2 e das divisões da Amazônia apresentadas
por Veríssimo (2021), constata-se que as terras indígenas estão em cons-
tante zona de pressão, visto que há um avanço nas tentativas de pesquisa
e exploração minerária em seus entornos, ocasionando, quando efetivadas
uma compressão no interior de suas terras e consequentemente mudanças
no cotidiano dessas populações tradicionais.
220 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

As especificações métricas do que é considerado entorno de áreas de


preservação são diversas. A Resolução do Conselho Nacional do Meio Am-
biente (CONAMA) nº 302 de 20 de março de 2002, no bojo de seu artigo
3º, incisos I, II e III, descreve como entorno a distância de 30 (trinta) me-
tros para os reservatórios em áreas urbanas e 100 (cem) metros para áreas
rurais. A norma limita ainda em 15 (quinze) metros em reservatórios de
geração de energia elétrica com até 10 (dez) hectares e 15 (quinze) metros,
no mínimo, para reservatórios não utilizados para geração de energia elé-
trica ou abastecimento público e que possuam até 20 (vinte) hectares de
superfície situado em área rural.
Apesar da resolução do CONAMA trazer uma perspectiva do que seria
o entorno, ela se limita apenas às Áreas de Preservação Permanente de
reservatórios artificiais, ficando alheia aos demais entornos existentes,
como o caso das terras indígenas. Contudo, caso utilize por analogia as
teorias fronteiriças, tem-se que o método cartográfico e, portanto, a limi-
tação fixa de áreas já encontra-se ultrapassado.
Isso porque, a sociedade é fluída, logo, as fronteiras e o que seriam as
zonas fronteiriças (entornos) também o são, sendo o alcance de impacto
em uma sociedade dificilmente limitado ao que diz as normas prescritas
por personagens alheios às questões específicas de cada lugar, portanto, o
entorno seria efetivamente delimitado pelo capital humano que ali se en-
contra (NEWMAN, 2003).
Ademais, a iniciativa de maior implicação jurídica referente ao pro-
cesso de demarcação de Terras Indígenas é a Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) nº 215/2000, do deputado federal Almir Sá do estado
de Roraima. O conteúdo da referida PEC acresce ao art. 49 da CF/88 den-
tre as listadas competências do Congresso Nacional, propõe: “XVIII -
aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
e ratificar as demarcações já homologadas” (BRASIL, 2000, p. 16399).
Volume 9 | 221

A proposta se justifica nos seguintes termos:

No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ve-


rifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio
do Poder Executivo - sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses
e situações concretas dos estados-membros, tem criado insuperáveis obs-
táculos aos entes da Federação (BRASIL, 2000, p. 16399, grifo nosso).

Nota-se o caráter estadual-provinciano dos interesses evocados, de


maior expressão em dimensão federal no Congresso Nacional. Igualmente,
destaca-se a atuação dos poderes estatais estaduais, tais como o Decreto
Lei nº 25.780/2021, do Governo de Rondônia, e a Lei nº 1.453/2021, da
Assembléia Legislativa de Roraima, que dispõe sobre a lavra do ouro, am-
bos estados governados por políticos eleitos em 2018 pelo mesmo partido:
Partido Social Liberal.
Afinal, Sá (2000, p. 16399, grifo nosso) argumenta na justificação da
PEC: “com tal providência outorga-se um inédito nível de segurança jurí-
dica às demarcações das terras indígenas”. Contudo, como expressa
Barbosa (2017), a segurança jurídica, comumente evocada muito serviu ao
malefício das populações tradicionais em favor de direito adquirido contra
legem, pois o esbulho renitente sobre terra indígena trata-se, essencial-
mente, de privatização sobre propriedade pública da União, assim como da
violação de direito originário e da autodeterminação dos povos originários.

2.2 Inércia estatal e as consequências da mineração em Rondônia

Como já exposto, as demarcações de Terras Indígenas no estado de


Rondônia concentrou-se temporalmente no devir do poder constituinte
originário de 1988, cujos efeitos quanto à matéria produziu o último
resultado em 2003, sob o primeiro governo Lula. Desde então, não
ocorreram novos avanços à territorialização das comunidades originárias.
222 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Evidência endossada por Sasso (2019, p. 216): “Quanto mais próximo


da promulgação da Constituição, maior o número de terras demarcadas”.
A justificativa dada pelo autor é a variável da mobilização política formada
pelo movimento das Diretas Já da década de 80, que efetivamente favore-
ceu as populações tradicionais e seus territórios. Todavia, a ínfima
demarcação durante os governos petistas se explica pela agenda econô-
mica do neodesenvolvimentismo congregada ao neoextrativismo, que
apostou numa fórmula econômica agroexportadora (GUDYNAS, 2015;
SASSO, 2019; ARAUJO; GARZON, 2020).
Considerando o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que será
melhor aprofundado adiante, quando mineração e latifúndio se associa-
ram (SILVA, 2012), faz-se adequada a definição de Sasso (2019, p. 229):
“O principal inimigo da causa indígena hoje é a bancada ruralista, [...] é
possível dizer que a bancada controla ¼ (um quarto) do Congresso Nacio-
nal.” Ainda assim, a associação entre mineração e agronegócio é observada
também no caso histórico do Grande Carajás, onde 0,7% dos proprietários
possuíam 51% da terra, pondo em tensão o sistema agrário em prol de um
“viés latifundiário” (HALL, 1987, p. 537, tradução nossa).
Dessa sorte, opta-se pela resposta jurídica à inércia administrativa
formulada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (apud POMPEIO,
2021, p. 9) em prefácio do livro “A Formação Política do Agronegócio”:

As terras indígenas não são criações nem concessões do Estado. O que compete
constitucionalmente ao Executivo é regularizar essas terras e protegê-las, além
de, no prazo de cinco anos, demarcá-las e homologá-las. Sendo assim, por não
ter concluído essas demarcações e homologações, a União está inadimplente
há mais de 27 anos.

A experiência de comunidades indígenas com o garimpo, por outro


lado, é variável conforme a gerência destas sobre sua terra. Comunidades
Volume 9 | 223

como a Baniwa e a Waiãpi tiveram um trajeto sui generis com a lavra do


ouro, exercendo-a com parcimônia, cujos recursos se destinaram à defesa
do território ou à economia artesanal. Contudo, mesmo exercendo a ativi-
dade, os Baniwa sofreram com a invasão garimpeira que reivindicava o
direito da extração mesmo dentro da terra indígena (IUBEL, 2020).
No entanto, a agência dos povos originários não pode ser tida como
homogênea. As palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa expressam a
escatologia da mineração para essa comunidade, cujo minério é tido como
maléfico: “Escavando tanto, os brancos vão acabar até arrancando as raí-
zes do céu” (KOPENAWA; ALBERT, 2019, p. 284).
Afinal, o xamã denomina os garimpeiros pelo termo urihi wapopë,
que significa os comedores de terra, pois destroem a floresta e os rios da
terra Yanomami em busca do ouro, cuja lavra expele a oru a wakixi, fu-
maça tóxica que contamina os homens, os animais, as florestas e os rios
(KOPENAWA; ALBERT, 2019).
Em razão disto, Iubel (2020, p. 299) explica: "Para os Yanomami, por
exemplo, o ouro é intocável”, ao contrário da visão garimpeira, pela qual:
“O ouro em si é absolutamente tocável, desejável, extraível, negociável,
desde que assumidos os riscos dessas relações.” (IUBEL, 2020, p. 301). Di-
ante disso, urge compreender o porquê da omissão e da morosidade no
procedimento de demarcação.
Além das causas já apontadas, a inércia estatal na regularização de
terras indígenas também é ocasionada pelo enfraquecimento do órgão res-
ponsável por conduzir o procedimento, o que ganhou força a partir do ano
de 2019, de modo que “a FUNAI foi paulatinamente sendo fragilizada, seja
na diminuição dos seus recursos orçamentários, seja no desmantelamento
de sua estrutura fundiária, responsável pelos procedimentos demarcató-
rios” (CIMI, 2019, p. 31).
224 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Além disso, houve a nomeação de agentes alheios ao indigenismo para


a presidência e diretorias, a suspensão de procedimentos demarcatórios e
revisão dos que estavam em andamento, e o não pronunciamento em con-
flitos judiciais envolvendo interesses indígenas e territórios, como
reintegrações de posse que seriam benéficas (CIMI, 2019). Tais medidas cor-
roboram para o cenário estático encontrado em Rondônia, ou seja, há 18
anos sem uma nova demarcação. No estado, existem 27 Terras Indígenas
que possuem alguma pendência administrativa, detalhadas na Tabela 2.

Tabela 2 - Situação das Terras Indígenas com pendência administrativa em Rondônia

SITUAÇÃO TERRA POVO MUNICÍPIO

A identificar Cujubim do Rio Cautário Kujubim Guajará Mirim e Costa Marques


(3)
Migueleno (Rio São Miguel) Migueleno São Francisco do Guaporé, Seringueiras e
São Miguel do Guaporé

Puruborá do Rio Manuel Puruborá Seringueiras, São Miguel e São Francisco


Correia

Declarada Rio Negro Ocaia Oro Wari Guajará-Mirim


(1)

Portaria de Tanaru Isolados Chupinguaia, Corumbiara e Parecis


Restrição (1)

Sem Arikem (C. Estivado) Desaldeados Ariquemes


providências
(22) Cabeceira Rio Marmelo Isolados Machadinho D´Oeste

Cascata/Cassupá/Salomãi Cassupá e Chupinguaia


Salamãi

Djeoromitxi/Jabuti Jaboti e Alta Floresta do Oeste


Djeoromitxi

Guarasugwe-Riozinho Guarasugwe Pimenteiras do Oeste

Igarapé Karipuninha/Serra Isolados Porto Velho e Lábrea


Três Irmãos
Volume 9 | 225

Kampé Kampé Ji-Paraná

Makurap Makurap Rolim de Moura

Mata Corá Desaldeados Costa Marques

Nambikwara-Sabanê Nambikwara e Vilhena


Sabanê

Pântano do Guaporé Isolados Pimenteira

Parque Nacional do Bom Isolados Porto Velho, Alto Paraíso e Buritis


Futuro

Paumelenhos Paumelenhos Costa Marques

Rebio Jaru Isolados Ji-Paraná

Rio Candeias Isolados Porto Velho

Rio Cautário/Serra da Isolados Costa Marques e Guajará-Mirim


Cutia

Rio Formoso/Jaci Paraná Isolados Nova Mamoré, Guajará Mirim, Campo


Novo e Buriti

Rio Jacundá Isolados Cujubim, Itapuã do Jamari, Candeias do


Jamari e Porto Velho

Rio Muqui/Serra da Onça Isolados Alvorada d´Oeste e Urupá

Rio Mutum Isolados Porto Velho e Nova Mamoré


Paraná/Karipuna

Rio Novo e Cachoeira do Isolados Guajará Mirim


Rio Pacaas Novas

Wajuru Wayoro Alto Alegre do Parecis e Alta Floresta

Fonte: CIMI, 2019. Org.: autores.

Verifica-se que há um total de 22 Terras Indígenas que se encontram


sem qualquer providência administrativa, isto é, cujo procedimento de de-
marcação não iniciou nenhuma das suas fases, sendo em sua maioria
226 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

povos isolados. Esse cenário aumenta os riscos da "desterritorialização, ou


seja, a retirada das comunidades de suas terras. Para, posteriormente, co-
locar essas terras à disposição do mercado” (CIMI, 2019, p. 52).
Apesar do território do estado ser contemplado com as Terras Indí-
genas da Tabela 1, as populações indígenas que nelas habitam e delas
sobrevivem sempre tiveram a sua continuidade e os seus direitos básicos
ameaçados pelo desenvolvimento de atividades voltadas à exploração dos
recursos naturais. Isso porque a história e economia do estado foi deter-
minada por ciclos exploratórios e de migração populacional (ARAUJO;
MORET, 2016).
Destacam-se: o ciclo da borracha conjuntamente a construção da Es-
trada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), da extração mineral (ouro,
cassiterita e o diamante), da extração de madeira, da agropecuária e o ciclo
de construção de projetos hidrelétricos, dos quais não houve “grandes le-
gados à população porque, no extrativismo - o foco desses ciclos -, não se
deixam resultados nos quesitos econômicos, ambientais e sociais, mesmo
que a promessa seja de desenvolvimento e de progresso” (ARAUJO;
MORET, 2016, p. 169).
Esses ciclos ocasionaram diversos conflitos com as populações indí-
genas e foram causados principalmente pelo desrespeito aos seus
territórios, marcando a história do estado. É o caso do massacre do Para-
lelo 11, ocorrido em 1963, em que os interesses de uma empresa de
extração de borracha se sobrepuseram a ponto de um avião contratado
derrubar dinamite na aldeia da etnia Cinta-Larga, fato que causou a redu-
ção da sua população e gerou repercussão internacional, obrigando o
governo a criar o Parque do Aripuanã e demarcá-lo, (RIBEIRO, 2013), lo-
calizado entre os municípios de Vilhena (RO) e Juína (MT).
Nesse sentido, no ano de 2019, o relatório “Violência Contra os Povos
Indígenas do Brasil”, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário
Volume 9 | 227

(CIMI), apontou 21 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de re-


cursos naturais e danos diversos ao patrimônio no estado. A Terra
Indígena que mais recebeu invasões foi a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-
Wau, que registrou uma estimativa de 180 invasões. As demais Terras In-
dígenas do estado que sofreram com as invasões foram: Karipuna,
Roosevelt, Sete de Setembro, Igarapé Lourdes, Rio Negro Ocaia, Igarapé
Lage, Igarapé Ribeirão e Pakaas Novas (CIMI, 2019).
No tema da extração mineral, as Terras Indígenas também possuem
um histórico de violência. É o caso da Terra Indígena Roosevelt, localizada
entre Rondolândia (MT), Pimenta Bueno e Espigão D’Oeste (RO). Essa
Terra Indígena abriga uma das maiores reservas de diamantes do mundo,
além de ser habitada pela etnia Cinta-Larga, que desde a descoberta oficial
de diamantes ocorrida em 1999 (CURI, 2005), tem sofrido com a invasão
e confrontos com garimpeiros interessados na exploração do minério.
A atividade do setor minerário está em franca expansão no estado,
como demonstra a “Nota Técnica 001/2019: Cartografia da Mineração em
Terras Indígenas de Rondônia”. Existem 5.436 solicitações/registros para
atividade mineral no estado, sendo que há uma grande pressão do setor
para que haja autorização da mineração nas Terras Indígenas, com regis-
tros para exploração mineral em 19 delas (SILVA; LIMA, 2019). As áreas
das Terras Indígenas que possuem tais pedidos para mineração estão de-
monstradas no Mapa 1, a seguir.
228 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Mapa 1: Áreas das Terras Indígenas com pedido de exploração mineral em Rondônia (2019).

Fonte: Silva e Lima, 2019

O Mapa 1, que considera 21 Terras Indígenas de Rondônia, evidencia


que 11 delas possuem mais de 30% do seu território requerido para a ati-
vidade minerária e em sete Terras Indígenas a área requerida supera 60%,
com destaque para a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que possui 45%
do seu território requerido (SILVA & LIMA, 2019).
Na TI Uru-Eu-Wau-Wau, especialmente, ressalta-se a concomitância
entre casos de invasões e solicitações para mineração (CIMI, 2019; SILVA
& LIMA, 2019), parcialmente explicável pela extensão geográfica da Terra
Indigena, a maior do estado. Tal evidência reitera a problemática deste
texto, que analisará a seguir a evolução das demarcações de Terras Indí-
genas em Rondônia, suas controvérsias e a relação existente entre o
processo de demarcação e a preservação das florestas.
Volume 9 | 229

2.3 Efeitos socioambientais da mineração

Após destrinchar os argumentos jurídicos em defesa das Terras Indí-


genas, apresenta-se a tese da estratégica e pragmática função das Terras
Indígenas na economia brasileira e na ecologia mundial, a fim de endossar
a hipótese do texto. Além de outros métodos de exploração da floresta
amazônica que impactam seu ecossistema, como a madeireira, a minera-
ção também é vetor de desmatamento. Vale dizer que a atividade da
extração mineral exige o apoio de relevante quantidade de máquinas de
grande porte, especialmente na lavra do ouro, que incluem aviões como
parte da logística (ABRAMOVAY, 2019).
As mudanças climáticas e o aumento dos gases de efeito estufa tam-
bém são efeito do desmatamento, ampliado pelas “ameaçadas pela
mineração, pela expectativa de legalização da grilagem e pela exploração
madeireira, conduziria a um aumento da temperatura regional entre 4,2 e
6,4 graus Celsius, com impactos desastrosos dentro do ciclo hídrico”
(ABRAMOVAY, 2019, p. 59).
Sobre a relevância da preservação ecológica das Terras Indígenas
rondonienses, “um ambiente frágil”, vale-se do estudo dos geógrafos Silva
e Bastos (2011, p. 93) sobre a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau:

Frágil porque as condições que oferecem em termos de solos, vegetação aliado


à geologia, hidrogeomorfologia e geomorfologia locais para implantar projetos
que envolva agropecuária e mineração, principalmente, trariam prejuízos ir-
reversíveis tanto para o ecossistema quanto para as populações indígenas que
dependem desse espaço para tirar seu sustento e conservação de sua identi-
dade cultural.

Acrescenta-se,

Caso houve um processo de antropização incontrolável na TIUEWW, com des-


matamento, teríamos como conseqüências o assoreamento das bacias como o
230 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

do Jamari e Madeira comprometendo a geração de energia elétrica na UHE de


Samuel e dos futuros empreendimentos energéticos do Estado, impedindo a
navegação dos rios Guaporé e Madeira, ocasionando prejuízos ao desenvolvi-
mento do Estado. (SILVA; BASTOS, 2011, p. 93-94).

Por sua vez, as consequências socioambientais são incalculáveis, isso


porque ainda carecem de estudos aprofundados. Contudo, já é possível
descrever os danos causados pelo uso de mercúrio à saúde de fetos, crian-
ças e idosos, assim como para a fauna e flora que estejam em áreas
impactadas, também menciona-se a dependência econômica gerada na re-
gião que se dedica à atividade mineradora (ENRÍQUEZ, 2007). Por último,
vale apontar que a falta de demarcação e de fiscalização das áreas em pro-
cesso de reconhecimento desprotege as áreas e as pessoas, o que dá ensejo
ao aumento de violência em virtude da disputa pelas terras e suas riquezas
(MATHIS, 2016).
Para compreender o contexto da mineração, é preciso inferir a exis-
tência de todo um mecanismo de extração, exploração e degradação
contemporânea: o neoextrativismo, que é disposto pela interferência in-
fluente na economia por setores exploratórios e exportadores na economia
nacional. Dentre as atividades exploratórias, a exploração mineradora des-
taca-se pela extração de recursos naturais, voltados à exportação,
pautando-se por um discurso de desenvolvimento do país e de interesses
nacionais (GOMIDE et al., 2018).
Com a globalização, os efeitos da mineração tomaram proporções ex-
ploratórias diferentes da ideia central do neoextrativismo de contribuir
com a economia nacional, acabando por gerar cada vez mais prejuízos
econômicos, bem como, ambientais. Os exemplos dos países a seguir, re-
movem grandes volumes de matéria da natureza, ocasionando impactos
ambientais e sociais.
Volume 9 | 231

A mineração atua, especialmente em países como Brasil, Peru, Co-


lômbia e Bolívia, na remoção intensa de materiais (areias, pedras e
agregados) de alto impacto ambiental para abastecimento de mercados in-
ternos, ou seja, sem exportação. Entretanto, evidencia-se que não somente
o abastecimento interno se aproveita desse extrativismo, como pensado
por Gudynas, as exportações ocorrem com materiais mais valiosos como
o ouro e o diamante. O saldo de áreas protegidas esgota-se nesta parte do
processo, onde o ápice da degradação ambiental se instala com: contami-
nação de rios com o mercúrio, desmatamento e impactos na
biodiversidade atrelados ao impacto nas populações locais (GUDYNAS,
2015).
No Brasil, a noção legal de um conceito para a mineração apenas sur-
giu em 2020 com a inclusão do Artigo 6-A (agregado pela Lei nº 14.066,
de 30 de setembro de 2020) no Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de
1967, que dispõe sobre o Código de Minas/Mineração. A nova redação
aborda uma conceituação ampla da mineração. Nesse conceito, traz-se
uma abrangência não somente de caráter exploratório, mas, de toda uma
dinâmica de conceituação da técnica a priori e de fechamento de ciclo a
posteriori, conforme:

Art. 6º-A. A atividade de mineração abrange a pesquisa, a lavra, o desenvolvi-


mento da mina, o beneficiamento, o armazenamento de estéreis e rejeitos e o
transporte e a comercialização dos minérios, mantida a responsabilidade do
titular da concessão diante das obrigações deste Decreto-Lei até o fechamento
da mina, que deverá ser obrigatoriamente convalidado pelo órgão regulador
da mineração e pelo órgão ambiental licenciador. (BRASIL,1967, n.p.).

A legislação se preocupou em delimitar aquele que faz a performance


da mineração, mas, em menor escala. Todavia, é importante ressaltar que
existe uma divergência quanto à proporção de exploração nos conceitos,
232 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

afinal, dois deles estão em vigência com pontos de inconsonância entre si.
O inciso I do art. 70 do Decreto Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967,
considera que:

I - garimpagem, o trabalho individual de quem utilize instrumentos rudimen-


tares, aparelhos manuais ou máquinas simples e portáveis, na extração de
pedras preciosas, semi-preciosas e minerais metálicos ou não metálicos, vali-
osos, em depósitos de eluvião ou aluvião, nos álveos de cursos d’água ou nas
margens reservadas, bem como nos depósitos secundários ou chapadas (gru-
piaras), vertentes e altos de morros; depósitos esses genericamente
denominados garimpos (BRASIL,1967, n.p.).

Ainda assim, o artigo 10 da Lei nº 7.805, de 18 de julho de 1989, ex-


põe:

Art. 10. Considera-se garimpagem a atividade de aproveitamento de substân-


cias minerais garimpáveis, executadas no interior de áreas estabelecidas para
este fim, exercida por brasileiro, cooperativa de garimpeiros, autorizada a
funcionar como empresa de mineração, sob o regime de permissão de
lavra garimpeira (BRASIL,1989, n.p., grifo nosso).

Precisamente, a lavra garimpeira pode, por analogia, equiparar-se à


garimpagem. Porém, o presumido baixo volume de extração e as distri-
buições irregulares dos garimpos no Brasil torna dispensável a utilização
de uma atividade de pesquisa mineral prévia. É relevante notar que majo-
ritariamente os garimpos no Brasil atuam ilegalmente, mesmo sendo
possível a obtenção de autorização para o ato, afinal, o garimpo é equipa-
rado à prática mineradora quanto aos regulamentos (GOMIDE et al.,
2018). Contudo, toda atuação garimpeira em terras indígenas é invaria-
velmente ilegal, apesar dos esforços em mudar tal situação jurídica.
Volume 9 | 233

2.4 Mineração na Amazônia: lições a serem aprendidas

Os casos anteriormente mencionados do Programa Grande Carajás e


da Terra Indígena Raposa Serra do Sol funcionam como exemplos históri-
cos da dinâmica político-econômica e dos conflitos sociais envolvendo a
mineração na Amazônia. Desses casos é possível retirar lições que podem
ser enquadradas no cenário de expansão de projetos de infraestrutura e
de exploração de recursos naturais, a exemplo da mineração, no estado de
Rondônia.
O Programa Grande Carajás, instituído pelo Decreto-Lei nº 1.813/80,
foi um complexo que conjugava projetos de infraestrutura da Estrada de
Ferro Carajás-São Luís-Itaqui, dos portos marítimos de São Luís e Ponta
Madeira, do porto fluvial de Barcarena e da Hidrelétrica de Tucuruí, con-
juntamente a exploração florestal e agropecuária, mas sobretudo a
exportação da matéria-prima mineral (RIBEIRO, 2013). Isso evidencia a
conjugação de projetos de exploração ambiental em torno de focos minei-
ros, isto é, não se é construído apenas um projeto, mas um conjunto deles.
Além das intenções econômicas, o aspecto da expansão-nacional em
busca de matérias-primas esteve presente no projeto faraônico citado. A
construção da UHE Tucuruí deu-se como apêndice do complexo industrial
metalúrgico, cuja operação depende da oferta da energia da usina
(RIBEIRO, 2013). Todavia, a UHE carrega em sua construção a intenção
do general Couto de Magalhães por um “verdadeiro boulevard do grande
centro do Brasil” (RÊGO, 1947, p. 374).
Contudo, a viabilidade financeira do projeto é questionável, vide que
“nunca foi claro que tais benefícios poderiam ser esperados de um pólo
metalúrgico rudimentar”, afinal, o complexo industrial recorria também
ao carvão vegetal das glebas desmatadas, logo, “tinha tremendos custos
ambientais que não poderiam ser sustentados a longo prazo,
234 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

especialmente dado o baixo valor da commodity resultante” (CARVALHO,


2001, p. 131, tradução nossa).
Carvalho (2001, p. 138, tradução nossa) afirma que o processo deci-
sório quanto ao Programa Grande Carajás, apesar de amplamente
questionado por setores locais (comunidades indígenas, campesinato, sin-
dicatos), nacionais (Comissão Pastoral da Terra, Instituto Socio-
Ambiental), e ONGs internacionais após a redemocratização, manteve-se
atado por “grupo com ligações clientelistas com o setores e agências do
Estado continuam a se beneficiar de fortes conexões políticas e maior
acesso ao processo político”.
Ademais, a situação do trabalho da população local foi abalada, como
Ribeiro (2013, p. 155) explica: “a mão de obra excedente, móvel e poliva-
lente”, empregada na construção da infraestrutura do Programa, sem
acesso à terra, destinava-se ao garimpo e à produção de carvão vegetal.
Nesse processo, babaçuais e castanhais, pomares e postos de trabalho para
as populações tradicionais da região, são desmatados em função da espe-
culação fundiária pela pecuária (RIBEIRO, 2013). Formou-se sobre esta
região, conforme a reflexão de Sales e Mathis (2015), um exército indus-
trial de reserva no Carajás; assentado sobre o desemprego e o
subemprego, conservando baixo o custo da mão-de-obra.
Em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, destaca-se que o
julgamento da Petição nº. 3.388-Roraima pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) levou até Brasília o litígio entre duas coalizões opostas. Conforme a
definição de Marcelle Silva (2012), tratam-se de diferentes grupos de pres-
são com interesses congregados contrários ou favoráveis da demarcação
contínua da referida Terra Indígena e da consequente expulsão dos fazen-
deiros de arroz no território.
Em defesa do direito à autodeterminação dos povos e do modo de
vida tradicional, arguiu a advogada Joênia Wapixana (apud YAMADA;
Volume 9 | 235

VILLARES, 2010, p. 156) perante o STF, no julgamento da Terra Indígena


Raposa Serra do Sol:

A terra indígena não é só casa para morar, mas o local onde se caça, onde
pesca, onde se caminha e onde os povos indígenas vivem e preservam sua cul-
tura. A terra não é um espaço de agora, mas um espaço para sempre.
Queremos viver conforme nossos usos e costumes. Conforme nossas tradi-
ções, num ambiente de harmonia e respeito com todos.

A propaganda do desenvolvimento econômico apresentada pelo me-


gaprojeto minerário do Grande Carajás, explicitada falsa pela literatura
consultada, repete-se hodiernamente na macroescala da Amazônia e na
microescala de Rondônia, por ocasião de novas investiduras do extrati-
vismo conjugado a projetos econômicos diversos (e.g., hidrelétricas,
hidrovias, rodovias, plantações, etc.).
Frente isto estão os povos indígenas, cujos direitos e interesses de-
monstram-se inconciliáveis perante a predação minerária. No exemplo da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, percebe-se que a coligação de grupos
favoráveis à mineração permeia por vias institucionais e até mesmo ilegais
a conquista da riqueza mineral subterrânea sob as Terras Indígenas. Suas
ações implicam, no âmbito jurídico, na controvérsia e no desrespeito aos
direitos dos povos originários.
Tais controvérsias são igualmente observadas no recorte do estado
de Rondônia, uma vez que é evidente e notável a morosidade no procedi-
mento de demarcação de Terras Indígenas, além do crescente interesse
minerário na região, como constatado e afirmado neste estudo.

Considerações finais

Diante do exposto, o presente estudo direcionou a suas balizas na his-


tória da Amazônia, da mineração e da Terra Indígena, a fim de investigar
236 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

o ensejo mineiro iminente sobre Terras Indígenas em Rondônia. Aqui va-


leu-se dos exemplos do empreendimento do Programa Grande Carajás no
Pará, no Tocantins e no Maranhão, no âmbito mineiro; e do julgamento
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no Amapá, no âmbito dos direitos
indígenas.
A demarcação das Terras Indígenas é um processo de garantia da
aplicação dos direitos fundamentais assegurados pela CF/88. A interpre-
tação dessa garantia se faz pela salvaguarda dos direitos dos povos
originários e das suas terras. Nessa atribuição, as terras que já possuíam
determinado uso ao tempo anterior do processo de demarcação, devem
ser devolvidas pelo reconhecimento desse direito.
Contudo, diversos artifícios tentam vituperar a garantia desses direi-
tos, por exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional 215/2000, que
teve como escopo a delegação exclusiva do dever da demarcação das terras
dos povos indígenas e quilombolas ao Congresso Nacional. Assim, a tenta-
tiva da criação de métodos que facilitem a atuação da mineração em Terras
Indígenas se une com a definição de injustiça ambiental na seara dos des-
tinamentos dos danos ambientais.
Desse modo, as consequências da mineração em Terras Indígenas,
instigadas e fortalecidas pela inércia estatal na demarcação de áreas pro-
tegidas, abrange questões ambientais, políticas, jurídicas e sociais.
Tratando-se de questões jurídicas, é perceptível que a inação do Estado
provoca insegurança jurídica e uma série de ilegalidades que vão contra ao
que prescreve tratados e convenções assinadas e ratificadas pelo Brasil,
assim como a própria Constituição Federal de 1988.

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Capítulo 9

Imagens e sobrevivências decoloniais:


conhecimentos da terra 1

Images and decolonial survival: knowledge of the earth


Marisangela Lins de Almeida 2

1 Introdução

Segundo Samain (2003), antropólogos e historiadores são fotógrafos


que se ignoram. Ao procurar imergir, mergulhar e entender os meandros
e significações da cultura humana, fazem um trabalho de varredura e es-
cavação, atuando como colecionadores de fotografias à procura de índices,
de signos de sentidos. Na sua interpretação, ambos não se dão conta de
que são os próprios fotógrafos de uma cultura e de uma história que pro-
põem, solidariamente, a construir. Assim, se ao construir uma narrativa
histórica, construímos fotografias/imagens, deve-se compreender que
produzimos tais imagens textuais dentro de um campo epistemológico.
Como mostrou Alzandúa (2000), a prática da escrita e o próprio campo do
conhecimento orienta-se em cânones eurocêntricos. Nesse sentido, desen-
volvo minha análise teórica e metodológica considerando que o
conhecimento é marcado geo-historicamente e está relacionado à dife-
rença colonial, como observou Mignolo (2012).

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Mestra em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Doutoranda em História pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Rua Costa Rica, 100 - Bairro Engenheiro Gutierrez –
Irati/PR. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0565403301453162 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5110-6022
E-mail: [email protected]
Volume 9 | 243

Atenta ao fato de que as imagens pensam e fazem pensar (SAMAIN,


2012) elaborou uma reflexão conduzida por fotografias e narrativas orais,
e a partir dessas fontes problematizo, partindo da perspectiva decolonial,
os significados do conhecimento camponês no processo de cultivo de ali-
mentos nos quintais faxinalenses da região Centro Sul do Estado do
Paraná. Discuto a respeito da complexa problemática das práticas tradici-
onais e saberes ancestrais – que atravessam e são atravessadas por
relações de gênero e memória – relacionando-os às concepções de tempo-
ralidades sobrepostas no seu tratamento histórico.
A análise possui como base fotografias e narrativas orais de mulhe-
res, moradoras do faxinal Rio do Couro, localizado no município de Irati e
Faxinal do Salto, município de Rebouças. As fotografias dos quintais faxi-
nalenses foram produzidas por mim em trabalho de campo, entre os anos
de 2017 e 2019, assim como as entrevistas. As fotografias, aliadas às nar-
rativas orais, nos permitem problematizar os conhecimentos das mulheres
faxinalenses aplicados no solo para a produção de alimentos para a família
e para a comunidade, criando paisagens. Como observou Fávero (2014, p.
6): “as paisagens, enquanto expressões da ação humana projetadas no es-
paço revelam as opções, contradições e disputas que deixam marcas nos
territórios”.
Por outro lado, a modernidade, traduzida nas práticas e racionalida-
des do agronegócio, disciplinarizou, dominou e alisou a natureza. No
campo, de modo geral, e nos faxinais, de forma específica, as inúmeras
espécies de fauna e flora, a diversidade de cores, cheiros, sabores estão
sendo substituídas por traçados retos e lineares dos monocultivos de soja
e/ou eucaliptos.
Como concentro-me nas práticas de cultivo da terra e nos seus signi-
ficados, as análises de Wedig e Menashe (2013) são relevantes. Para as
autoras, a comida, para além de sua dimensão material e fisiológica, é “boa
244 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

para pensar. Por sua vez, Achinte (2014; 2015) também chama atenção
para as implicações culturais do ato de comer. Mostrando a relação entre
comida e colonialidade, o autor demonstra que comer é mais que alimen-
tar-se, pois ele se converte num complexo sistema de relações
socioculturais. Para ele, a colonialidade e as suas formas – de poder, de
saber e de ser – também está presente como dispositivo de classificação
alimentar.
Para Achinte (2014), cozinhar, comer e, acrescento cultivar, são
enunciações de padrões culturais e de poder, que contribuem para a cons-
trução da hierarquização social. A partir da concepção do autor de que
alimentos para além de nutrir significam, problematizo os conteúdos sim-
bólicos das práticas que envolvem o ato de plantar/cultivar alimentos a
partir de práticas tradicionais. Pois, como observou Ploeg (2008), a tradi-
ção dos estudos camponeses tem negligenciado a forma de se praticar
agricultura.

2 Desenvolvimento

A modalidade de campesinato denominada Faxinal, é um modo de


utilização em comum das terras existente, com maior relevância, no Cen-
tro sul do Paraná. Sua singularidade reside na forma organizacional em
que o caráter coletivo se expressa na forma de criadouro comum
(SCHORNER e CARVALHO, 2016). Essas comunidades se caracterizam
por adotar um modo particular de uso comum de seu território e dos re-
cursos naturais, onde as criações de bovinos, suínos, caprinos, equinos e
aves vivem soltas na área de criar (onde localizam-se as moradias e os
quintais), as aguadas também são compartilhadas. Um grande cercado,
construído e mantido a partir de trabalho comunitário, separa os dois es-
paços para que os animais criados à solta não adentrem as plantações da
roça. Observamos, contudo, que esta divisão binária entre terras de criar
Volume 9 | 245

e terras de plantar, centrada na coordenação do espaço, não se apresenta


de forma homogênea em todas as comunidades.
No imaginário social e, mesmo na literatura clássica sobre o tema,
persiste a tendência de interpretar o modo de vida faxinal como resquício,
como algo atrasado e fadado ao desaparecimento, tal como escreveu
Chang (1988, p. 109): “Finalmente, [...] cremos que dentro de 10 ou 12
anos, o sistema faxinal não mais fará parte do setor produtivo rural do
Paraná”.
Inserido na noção de “ciclos econômicos” a abordagem prognosticava
o fim do que a autora denominava “sistema faxinal”. Tal abordagem – re-
correntes nos estudos dos anos 1980 e 1990 – estava/á alinhada à
concepção de linearidade temporal. O modo de vida faxinal, nessa concep-
ção temporal, caminharia do atraso para o moderno (uso de máquinas
pesadas, de agrotóxicos e venenos), quando suas características, como vi-
mos acima, desapareceriam, engolidas pelo progresso dos monocultivos.
Modernidade e atraso são concepções que remetem à ideia de um
tempo linear, cristalizado, que avança e engole. Mas não haveria uma ca-
pacidade de invenção e outras temporalidades possíveis? Sem a pretensão
de dar conta, mas problematizar essa questão, selecionamos o espaço do
quintal como objeto de análise primordial.
246 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 1: Quintal faxinalense.

Fonte: Fotografia de Marisangela Lins de Almeida, 2017.

Esse quintal, um dos vários fotografado por mim em 2017 – quando


me dediquei a observar/conhecer os quintais de diferentes faxinais do Es-
tado – impressionou-me pelo contraste de cores e a diversidade de plantas.
Guardei a fotografia com carinho. Algo me intrigava toda vez que “pas-
sava” por ela, mas não possuía ainda ferramentas do conhecimento para
olhá-la e lê-la na sua intrigante profundidade como forma que pensa, como
apontou Samain (2012). Agora, mergulhando meu olhar nela, penso na
imagem como potência de arquivo e de vida e que, portanto, constitui-se
como problemática histórica. O enigmático percurso do azul do céu, pas-
sando pelo verde das plantas, ao marrom da terra, proporciona elementos
para pensar formas de representações “outras” de um imaginário e de um
saber-fazer camponês. Não existe imagem simples, alertou-nos Samain
(2003).
Volume 9 | 247

A fotografia do quintal insere-se num complexo sistema de represen-


tações simbólicas e de sociabilidades impressos na ruralidade, indicando
também um saber-fazer. Nos faxinais, o quintal é um espaço amplamente
encontrado nas moradias, contíguo a casa. Devido à prática de criação de
animais à solta, eles precisam ser cercados para que estes não danifiquem
as roças. Os cultivos são bastante variados, encontram-se árvores frutífe-
ras, ervas medicinais, flores, legumes, verduras, temperos, hortaliças,
entre outros. Ele é, assim, e ao mesmo tempo, uma horta, uma farmácia,
um pomar e um jardim. A produção é, geralmente, destinada exclusiva-
mente para o consumo familiar, e são, predominantemente, espaços de
domínio feminino. É onde a conversa flui, o orgulho brota, e o saber-fazer
das mulheres faxinalenses se manifesta na sua reinvenção criativa.
Esta imagem é também potência de memória. A fotografia do quintal
favorece e permite pensar nas nuances do trabalho feminino na terra, os
desdobramentos e significações de plantar alimentos, comida, para si, para
a família e vizinhos, que envolve uma extensa rede de trocas. Saber a
época, a lua, os procedimentos de armazenamento e as práticas de troca
(fundamentais para a soberania e autonomia alimentar e produtiva da fa-
mília e da comunidade, defesa do seu patrimônio genético e do
estabelecimento e/ou consolidação de relações de reciprocidade) informa
a respeito de sobrevivências de regimes outros de saber, impressos nas
memórias das mulheres da comunidade.
A atividade nos quintais, talvez mais que em outro espaço dos faxi-
nais, é orientada por um conhecimento tradicional. As narrativas abaixo
nos auxiliam nessa reflexão:

O quintal é um lugarzinho que se possa plantar coisas que faça bem para a
saúde. Eu planto com orgânico, não uso nada de veneno. No esterco vem mais
bonito que no adubo da cidade. Eu uso esterco de galinha. O da vaca é muito
úmido, apodrece as plantas, o de cavalo eu acho que resseca. O esterco deixa a
248 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

terra úmida. O adubo seca a terra. Até com a folhaceira das árvores é bom de
plantar. Pega as folhas secas e joga no quintal. Esterco debaixo do pinheiro, as
pontinhas de sapé são muito boas. Sem agrotóxico fica mais saudável. Eu acho
que não depende de agrotóxico, a verdura dá sem veneno e adubo da cidade
[...] ainda segunda fui buscar muda de batata salsa na Maria. Trocamos se-
menteira de tomate, rama de mandioca. Aqui no faxinal ainda existe muito
isso, essa troca de sementes. Trocamos semente de abóbora. Igual tomate,
uma semeia antes, daí troca, porque uma tem uma qualidade, a outra tem de
outra qualidade, daí troca, entende? Essa época é bastante trocado, por causa
que é mais coisas e é época. Planto alface, repolho, couve flor, tempero, salsi-
nha, cebolinha, várias coisas, varia da época. Mandioca, agora é época de
plantar, tomate, melão, pepino, também é hora de plantar, daí é um troca-
troca de muda da mulherada. Agora é a época que se planta mais as coisas,
tem coisa que se plantar fora de época não dá. E tem a lua também. É bom
plantar na lua cheia. Se for plantar batata na lua nova broqueia tudo. A batata
tem de plantar na minguante [...] O melão a gente tira a semente, lava e coloca
para secar no sol, numa peneira, abóbora e tomate a mesma coisa, coloca num
vidro e conserva na geladeira, dura de um ano para o outro. E a maioria das
sementes que nós temos é troca que a gente faz, trocamos muda também. Eu
aprendi com a mãe, desde nova a gente lidou.

O quintal é quase uma farmácia [...] a gente quase não fica doente, mas
quando fica pega no quintal. A salvinha é muito boa pra infecção na garganta,
erva cidreira é pra dor de cabeça, poejo pra gripe, calêndula é boa para quei-
madura, só que tem de conhecer as ervas.

Assim como a fotografia, as narrativas acima nos


convidam/convocam a pensar, em termos decoloniais a respeito de
conhecimentos situados à contrapelo (BENJAMIM, 1987) da lógica da
modernidade. Na prática cotidiana de trabalho no quintal é preciso
conhecer os ciclos da lua, as finalidades das plantas, particularmente das
ervas medicinais, técnicas de adubação e armazenamento das sementes
(crioulas), avaliar a topografia da terra e produtividade do solo. O passado,
Volume 9 | 249

apesar de potente, “encoberto” ao nosso primeiro olhar no registro


fotográfico, se oferece na completude das narrativas femininas.
É Warburg (2015) que nos convida a pensar a respeito da impureza
do tempo e considerar sobrevivências ao processo colonizador. A estética
do espaço dos quintais e as práticas não colonizadas que o envolvem nos
orientam na compreensão das sobrevivências temporais.
Para as mulheres faxinalenses, no exercício de seus saberes/fazeres,
o passado não está morto, encerrado, mas junta-se ao presente com outras
temporalidades. Assim, “Eu aprendi com a mãe”; “A batata tem de plantar
na minguante”, “até com a folhaceira das árvores é bom de plantar”, são
expressões que indicam esse fato. No quintal, a partir dos conhecimentos
tradicionais, acontece um encontro de tempos diversos e sobrevivem/re-
sistem práticas ancestrais de cultivo.
Desta forma, estes são conhecimentos destoantes de uma racionali-
dade moderna – diferente do modo empresarial e capitalista de fazer
agricultura – por tratar-se de um aprendizado geracional, transmitido,
adaptado e ressignificado através da experiência. De acordo com Giraldo
(2018, p. 80), o conhecimento das camponesas e camponeses não podem
ser separados do seu contexto de vida, ele existe em imbricação contínua
com o lugar habitado. Desse modo, a elasticidade na temporalidade ima-
nente aos ciclos agrícolas e temporários, reciprocidade nas relações
comunitárias e a complementaridade entre a paisagem e as superfícies de
cultivo são aprendizagens que surgem da participação ativa com o territó-
rio habitado.
A construção das narrativas das entrevistadas (T. e M.), citadas acima
– resultantes de entrevistas a respeito de quintais e sementes crioulas –
ocorre a partir um conjunto de saberes ancestrais. Embora refiram-se a
uma prática comum atualmente (troca de sementes, técnicas de aduba-
gem) nessa comunidade, reporta-nos a um tempo passado, imemorial,
250 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

pois, como nos diz Agambem (2005, p. 119), toda concepção de história,
bem como formas de cultura, é sempre acompanhada de certa experiência
do tempo.
Mas em que consiste o conceito de Tradicional? É tradicional se tem
como referência a tradição? Como fica o tradicional nas sociedades mo-
dernas? Como apontou Koselleck (2014) a graças à capacidade analítica de
“estratos do tempo”, pode-se reunir num mesmo conceito a contempora-
neidade do não contemporâneo. A respeito do conceito de tradicional. Paul
Little (2002) afirma que há uma tendência de associar esse elemento ana-
lítico às concepções de imobilidade histórica e atraso econômico. Contudo,
“conceito de ‘tradicional’ tem mais afinidades com uso recente dado por
Sahlins (1997) quando mostra que as tradições culturais se mantêm e se
atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação” (LITTLE,
2002, p. 22).
As narrativas de nossas entrevistadas nos fornecem elementos para
problematizar a dinâmica dessas tradições culturais faxinalenses. Isto nos
leva ao texto de Montenegro (2006), que advoga a respeito da importância
de “rachar as palavras” ao analisar e interpretar narrativas, ou seja, com-
preender e considerar que os sujeitos e o conteúdo do que narram, bem
como suas memórias, estão inscritos na cultura local. A narrativa da Srª
Terezinha, por exemplo, construída no interior do seu quintal – espaço
onde, orgulhosamente, mostrava as plantas (ervas medicinais, árvores
frutíferas, verduras, temperos, hortaliças, legumes, flores) ensinava a res-
peito do processo de escolhas e armazenamento das sementes, técnicas e
ciclos de plantio, colheita, consumo e as relações de reciprocidade – suscita
questões referentes à organização do coletivo nos faxinais, ao tempo, a ex-
periência e a memória. Ela informa sobre regimes de saberes baseados em
conhecimentos ancestrais, que acontecem no quintal e que são constante-
mente ressignificados.
Volume 9 | 251

O Faxinal Rio do Couro, onde vive outra entrevistada (T.) e sua famí-
lia, soma-se aos 226 faxinais do Paraná mapeados pela Associação Puxirão
Faxinalense (MEIRA, VANDRESEN e SOUZA, 2009), é representativo do
que pode ser compreendido como faxinal, pois, segundo Carvalho (1984),
o cercamento completo do seu criador comunitário, em seu perímetro, re-
monta ao início do século XX. Atualmente, o seu criadouro comum está
bastante restrito, uma vez que diversas cercas individuais, chamados pelos
moradores de “fechos”, obstruem a livre circulação de pessoas e animais,
comprometendo o acesso aos recursos naturais, como pastagens e agua-
das, e, consequentemente, do modo de vida faxinalense. Entretanto,
apesar do tecido social afetado, práticas de uso e manejo de sementes cri-
oulas, relações de reciprocidade, solidariedade e ajuda mútua são mantidas
pelas moradoras e moradores da comunidade.
Nesse sentido, consideramos as interfaces entre tempo e espaço nos
quintais faxinalenses, apreendidas pelo registro fotográfico, pois como
apontou Samain (2012, p. 30) “as imagens pertencem a ordem das coisas
vivas” e, como tal, nos permitem pensar elementos de uma ruralidade
ameaçada constantemente pela racionalidade do agronegócio. Os aponta-
mentos de ordem antropológica do autor nos permitem romper a
superfície da imagem e problematizar a relação entre paisagens plurais e
as concepções de tempos que orientam sua criação/produção/existência.
A figura 1, apesar de não conseguir alcançar a dimensão da diversi-
dade de quintais existentes nos faxinais, proporciona, uma visualidade
parcial da pluralidade de cultiváveis (hortaliças, frutas, ervas medicinais
flores, entre outros) existente neles. Para além, é possível pensar essa plu-
ralidade no âmbito das cores, sabores, texturas e temporalidades. Nossa
preocupação está nas relações e práticas que envolvem os saberes e as ex-
periências das mulheres nos quintais. Essas relações e práticas possuem
“vida póstuma”, nos termos de Warburg (2015), pois embora soterradas
252 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

pela modernidade, continuam vivas e atravessam tempos e espaços. War-


burg (2015) nos permite problematizar essas multiplicidades de tempos,
isto é, “tempos em relevos” que coexistem nos quintais faxinalenses e nos
regimes de saberes imemoriais em questão.
A narrativa da B., também moradora do faxinal Rio do Couro nos
fornece ferramentas para pensar o quintal e suas temporalidades.

Sementes crioulas a gente sempre usa, quase tudo, na verdade. Semente de


abóbora, de pepino, de tomate, feijão, de tudo, madura no pé, daí colhe e fecha
no vidro. Feijão, por exemplo, feijão crioulo, se colocar no fundo do vidro al-
godão com álcool e acender e colocar o feijão, não caruncha, daí dá pra plantar,
porque dura muito tempo. De um ano para outro. E aqui, nós mulheres troca-
mos as sementes também.

Oakley (2004) denomina os quintais como santuários da agrobiodi-


versidade, pois esses espaços configuram uma das formas mais antigas de
manejo da terra, possuindo uma importante função na conservação da bi-
odiversidade. Nos faxinais, os quintais são fundamentais para a
reprodução familiar, pois os alimentos produzidos são, comumente, dire-
cionados ao consumo familiar. Na reflexão sobre sementes crioulas e
saberes, os apontamentos de Shiva (2003, p. 23) são elucidativos. Segundo
ela, quando o saber local aparece de fato no campo da visão globalizadora,
fazem com que desapareça negando-lhe o status de um saber sistemático
e atribuindo-lhe os adjetivos de “primitivo” e “anticientífico”. Analoga-
mente, o sistema ocidental é considerado o único “científico” e universal.
Entretanto, os prefixos “científico” para os sistemas modernos e “anticien-
tífico” para os sistemas tradicionais de saber têm pouca relação com o
saber e muita com o poder. Para ela, há uma distorção evidente no que diz
respeito às variedades de sementes: as variedades nativas, produzidas e
utilizadas pelos agricultores de todo o Terceiro Mundo, são chamadas de
Volume 9 | 253

“sementes primitivas”, já as variedades criadas pelos especialistas moder-


nos em centros internacionais de pesquisa agrícola ou por grandes
empresas transnacionais de sementes são chamadas de “avançadas” ou
“de elite” (SHIVA, 2003, p. 67).
Contudo, a racionalidade do agronegócio, cada vez mais presente no
Faxinal Rio do Couro, ameaça a existência dos quintais e o conjunto de
práticas ancestrais que o orientam. Nas áreas de plantar (onde se localizam
as roças) e mesmo na de uso comum, os cultivos de soja, eucalipto e tabaco
são predominantes atualmente. A roça, um dos espaços considerados de
domínio masculino, opera agora sob a égide do agronegócio.

Figura 2: plantação de eucaliptos em terras faxinalenses.

Fonte: Fotografia de Marisangela Lins de Almeida, 2017.

Essa imagem permite pensar o contraste entre harmonia (verificado


na imagem 1) e dominação do tempo e do espaço (imagem 2), pois a raci-
onalidade do agronegócio não comporta tempos múltiplos, mas opera com
254 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

a lógica de um tempo “liso”, homogêneo. A estética do espaço do agrone-


gócio baseia-se na capacidade de disciplinarização da natureza
(geometrizando-a) e do tempo; ela é filha do ideal de ciência e de pro-
gresso, da racionalização da agricultura.
Para Shiva (2003, p. 17), antes de serem transferidas para o solo, as
monoculturas ocupam a mente. Ela as chama de monoculturas mentais,
que geram modelos de produção que destroem a diversidade e legitimam
a destruição baseadas na concepção de progresso. Segundo a perspectiva
da mentalidade monocultora, a produtividade e as safras parecem aumen-
tar quando a diversidade é eliminada e substituída pela uniformidade. A
partir disso, dizemos que a dinâmica e a diversidade das práticas agrícolas
tradicionais faxinalenses bem como a produção decorrente, representam
uma produção de paisagens pelos homens e mulheres dos faxinais, resul-
tado da maneira pela qual estes(as) pensam sua relação com o espaço.
Como observamos, é uma paisagem heterogênea e que vai sendo constan-
temente ressignificada, não se parecendo em nada com a paisagem lisa,
homogênea e ortogonal do agronegócio, verificada na imagem 2. A base
do conhecimento para trabalhar a terra é sua experiência no tempo e es-
paço.
Desse modo, propomos um questionamento: o fim da pluralidade nas
paisagens rurais faz/fará desaparecer também sistemas de saberes? En-
tendemos que na nova maneira de conceber a terra e de produzir
agricultura, a partir de monocultivos, a experiência é empobrecida.
Para Benjamim (1987, p. 115):

Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da


técnica, sobrepondo-se ao homem [...] Aqui se revela, com toda clareza, que
nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que re-
cebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois
qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o
Volume 9 | 255

vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século


passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem
nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateira-
mente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza.
Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais pri-
vada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.

A passagem nos faz pensar na substituição da técnica. Nos quintais e


nas plantações consorciadas predominam formas plurais de cores, sabo-
res, texturas, imaginários, relações. No espaço do agronegócio vigora a
linearidade temporal e espacial, traduzida na organização simétrica, orto-
gonal, da disposição dos pés eucalipto (figura 2), de soja e outros
monocultivos. A perda da experiência se traduz na mecanização. A homo-
geneização do tempo/espaço soterra a experiência. Na reflexão de
Benjamim sobre a experiência (1987, p. 115): “Quem encontra ainda pes-
soas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? [...]
Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer,
lidar com a juventude invocando sua experiência? ” Quem?...

Considerações finais

Como assegura Leff (2004, apud Giraldo, 2018, p. 33-34), o conheci-


mento já não apenas nomeia, descreve, explica ou compreende a realidade.
A ciência e a tecnologia moderna alteram e desequilibram o mundo que
buscam conhecer. Elas intervêm na natureza, recodificando-a, capitali-
zando-a, sobreeconomizando-a, convertendo-a em um recurso útil para a
produção e para o crescimento econômico.
As informações reunidas para a tessitura da análise nos permitem
detectar aspectos sobre a dinâmica temporal nos quintais, espaço histori-
camente constitutivo do saber-fazer feminino e, como vimos,
provocadores para problematizar aspectos relacionados à coexistência de
256 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

camadas temporais e autonomia camponesa. Como vimos, as ruralidades


e os conhecimentos camponeses são elásticos. Enquanto espaços da vida
cotidiana, os quintais possibilitam explorar/avaliar o alcance do projeto
colonizador e as práticas de resistências a ele?! Os conhecimentos ances-
trais sobrevivem à modernidade. Penso nessas práticas – presentes nos
quintais faxinalenses e no cultivo consorciado – como elementos relacio-
nados à autonomia e soberania alimentar. Mais do que isso, são
conhecimentos diretamente ligados às sobrevivências de regimes “outros”
de saber, de ser e de poder, que o par colonialidade/modernidade soterrou,
mas não deu conta de destruir.
Mignolo (2017, p. 2) argumenta que a “modernidade” é uma narra-
tiva cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa que constrói a
civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao
mesmo tempo, o seu lado mais sombrio, a “colonialidade”. Logo, segundo
ele, a colonialidade é constitutiva da modernidade, não há modernidade
sem colonialidade. Historicizando a ideia de modernidade, Mignolo (2017)
defende que a colonização do espaço e do tempo são os dois pilares da
civilização ocidental. Como bem argumentou Mignolo (2010, p. 18) a retó-
rica da modernidade cria expectativas do que “deveria ser”, segundo ele,
“son estas expectativas naturalizadas las que operan en la colonialidad del
ser, del sentir (aesthesis) y del saber (epistemología). “Como debería ser”
es el horizonte trazado por la fe puesta em la marcha hacia adelante”.
Nesse sentido, as imagens referentes aos quintais sugerem um fazer
e um pensar decolonial. A paisagem produzida na terra, destoante da pai-
sagem do agronegócio – lisa, homogênea, universal, um vestígio na terra
da dominação colonial – sugere uma desobediência Aesthetica, nos termos
de Mignolo (2014). As paisagens, apreendidas nos registros fotográficos,
no colocam a questão de que os conflitos de diferentes ruralidades podem
ser problematizados.
Volume 9 | 257

Para Samain (2012, p. 160), “as fotografias são tecidos, malhas de si-
lêncios e de ruídos. Precisam de nós para que sejam desdobrados seus
segredos. As fotografias são memórias, histórias escritas nelas, sobre elas,
de dentro delas, com elas”. São as películas de nossa existência. Assim, a
fotografia, mesmo as recentes, nos convidam, nos convocam a pensar.
Assim, as imagens pensadas e discutidas nesse ensaio foram selecio-
nadas pelo fato de nos suscitar questionamentos referentes ao tempo, a
experiência e a memória e informar sobre regimes de saberes baseados
em conhecimentos ancestrais, constantemente ressignificados numa rura-
lidade ameaçada. Esses conhecimentos consistem em todo um corpus
desenvolvido ao longo de muitas décadas e ensinado a cada geração atra-
vés do uso pragmático. O conhecimento camponês precisa dessa
experiência cotidiana. É um tipo de conhecimento totalmente dependente
do seu relacionamento com o meio. Se trata de um conhecimento locali-
zado, que não pode ser pensado independentemente da sua prática/práxis
cotidiana e da experiência do mundo (GIRALDO, 2018, p. 81).
A partir disso, dizemos que a dinâmica e a diversidade das práticas
agrícolas tradicionais não podem ser vistas como estagnação ou atraso, em
oposição ao moderno. Ao contrário: essas práticas, bem como a produção
que daí resulta, representa, segundo Ploeg (2008, p.42-43), “um de seus
principais campos de batalha, na qual eles constróem, reconstroem e de-
senvolvem uma combinação de recursos específica, equilibrada e
harmonizada”.
Por fim, como argumentaram Espinoza et.al (2013) a descoloniali-
dade nos permite ir transformando âmbitos do nosso viver. Mignolo
(2017) sugere que, nós, estudiosos e pensadores decoloniais, podemos con-
tribuir ao agir no domínio hegemônico da academia, onde a ideia de
natureza como algo fora dos seres humanos foi consolidada e persiste, pois
não estamos acima da natureza: somos parte dela. A proposta decolonial
258 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

contribui para pensarmos uma perspectiva multiespécie, nos termos de


Haraway (2008).
Defendemos que os quintais agroflorestais faxinalenses devem ser
entendidos como laboratórios "ao ar livre" - locais de experimentação, co-
laboração e negociação entre humanos e não humanos - e destacamos sua
importância contínua para a agrobiodiversidade, memória e continuidade
sociocultural frente à modernização do meio ambiente. Os quintais domés-
ticos são manifestações de histórias profundamente enraizadas de
experimentação com diversidade da vida faxinalense

Referências

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moderno y las memorias del paladar. In: GOMEZ, Pedro Paulo (et.al.). Arte y
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Capítulo 10

Quelônios e ribeirinhos na
Floresta Nacional de Caxiuanã, Pará 1

Turtles and riverine people in the National Forest of Caxiuanã, Pará


Daniely Félix-Silva 2
Juarez Carlos Brito Pezzuti 3
Rosyvaldo Miranda dos Santos 4
José Benedito Alvarez Júnior 5
Marcelo Derzi Vidal 6

1 Introdução

Declínios populacionais de quelônios em muitas partes da América


do Sul levaram os governos de diferentes países a implementarem progra-
mas de conservação. Entre as principais medidas de manejo estão a

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Doutora em Ciências Biológicas, com ênfase em Ecologia (UERJ). Bióloga/Consultora Ambiental; Membro da Rede
de Pesquisa para Estudos sobre Diversidade, Conservação e Uso da Fauna na Amazônia (RedeFauna). Atua na
pesquisa, conservação e manejo da fauna silvestre, e etnobiologia e uso dos recursos naturais por populações
tradicionais. Endereço: Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA. Av. Perimetral,
1901, Terra Firme, Belém – PA, Brasil. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0438362161059532 ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4854-7219 E-mail:[email protected]
3
Doutorado em Ecologia (UNICAMP). Professor Titular da Universidade Federal do Pará/Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (UFPA). Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/3852277891994862
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5409-8336 E-mail:[email protected]
4
Especialista em Manejo e Conservação da Fauna Silvestre e Exótica (Faculdade Unyleya). Biólogo da empresa Egis
Engenharia e Consultoria, atua como Coordenador de Manejo e Resgate de Fauna nas áreas de influência da
Mineração Paragominas S.A. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8347902744514932
E-mail: [email protected]
5
Graduado em Ciências Biológicas (UFPA). Consultor ambiental autônomo. Link para o Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7047026406058360 E-mail: [email protected]
6
Doutor em Biodiversidade e Conservação (UFAM). Pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da
Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT/ICMBio). Atua na pesquisa e manejo de
recursos naturais, turismo com fauna silvestre e conflitos envolvendo populações tradicionais-fauna silvestre. Link
para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/0861725321644797
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9434-7333 E-mail: [email protected]
Volume 9 | 263

proteção dos locais de desova e o translocamento de ninhos para locais


protegidos (CANTARELLI; HERDE, 1989; SOINI, 1997; FAGUNDES et al.,
2021). No entanto, para o real conhecimento do status de conservação das
espécies amazônicas de quelônios, historicamente consumidas (PEZZUTI
et al., 2010; FÉLIX-SILVA ET AL., 2018), faz-se necessário, além de estudos
populacionais, o diagnóstico das diferentes formas e intensidade de uso,
para que possa ser realizado um preciso planejamento das ações de ma-
nejo e conservação deste grupo faunístico.
Os quelônios aquáticos amazônicos têm um longo histórico de utili-
zação pelas populações humanas, que é anterior à chegada do colonizador,
com posterior intensificação da utilização comercial para a exportação do
óleo, produzido a partir dos ovos da tartaruga-da-Amazônia, Podocnemis
expansa (SILVA COUTINHO, 1868; BATES, 1892). No começo do século
XX, o óleo deixou de ser um produto comercial, mas o consumo de animais
adultos permaneceu, constituindo até hoje um recurso alimentar signifi-
cativo para as populações ribeirinhas.
Nas últimas décadas, a pressão de coleta tem-se voltado cada vez mais
para as espécies menores (SMITH, 1974; PANTOJA-LIMA et al., 2014;
PEZZUTI, 2020), sobretudo o tracajá (Podocnemis unifilis), que é captu-
rado intensamente em toda a bacia amazônica. Nos grandes rios de água
branca, como o Solimões, Purus, Juruá, Madeira e Amazonas, a iaçá ou
pitiú (Podocnemis sextubercultata) talvez seja hoje a espécie mais captu-
rada. Na bacia do rio Negro, a irapuca (Podocnemis erythrocephala) e o
cabeçudo (Peltocephalus dumerilianus) assumem maior importância,
tanto para subsistência quanto em uma escala de comercialização local
(MITTERMEIER, 1975; REBÊLO; LUGLI, 1996; REBÊLO; PEZZUTI, 2000;
VOGT, 2001; PEZZUTI et. al., 2004; PEZZUTI, 2020). Na região estuarina
da bacia amazônica, o muçuã (Kinosternon scorpioides) tem importância
histórica na alimentação das populações ribeirinhas locais (SILVA
264 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

COUTINHO, 1868; JOHNS, 1987), e hoje constitui um produto comerciali-


zado regionalmente e que pode ser comprado nas feiras de Belém e de
diversas cidades do interior. Nesta mesma região, a perema (Rhyno-
clemmys punctularia) também é uma espécie rotineiramente capturada e
consumida (FÉLIX-SILVA; PEZZUTI, 2009).
A partir de 1967 passou a existir a proteção legal da fauna brasileira
e também a proteção efetiva das tartarugas-da-Amazônia durante o perí-
odo reprodutivo, em tabuleiros (grandes praias fluviais onde há
significativa quantidade de desovas) nos estados do Amazonas, Pará, Ron-
dônia e Roraima. Há ainda a proteção com base na participação
comunitária, como na Reserva Extrativista (RESEX) do Médio Juruá e na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá (FACHÍN-
TERÁN, 1999, 2003; FACHÍN-TERÁN; THORBJARNARSON, 2000;
PEZZUTI; VOGT, 1999).
A conservação das espécies de quelônios amazônicos é importante
não somente para a preservação da biodiversidade, mas também para que
se garanta a manutenção de um alimento importante para as comunidades
locais (VOGT et al., 1994; FÉLIX-SILVA, 2009; PEZZUTI, 2020). No en-
tanto, ainda há carência de informações fundamentais para o manejo
adequado das populações de quelônios aquáticos amazônicos, tais como a
abundância e a densidade populacional de quelônios e seus ninhos, o uso
de ambientes ao longo do ano, as áreas de vida e os padrões migratórios
sazonais. Com base no exposto, este estudo teve o propósito de investigar
a ocorrência e os principais parâmetros reprodutivos das populações de
quelônios da Floresta Nacional (Flona) de Caxiuanã, bem como entender
a importância deste recurso pelas populações ribeirinhas que habitam esta
região.
Volume 9 | 265

2 Métodos de pesquisa

2.1 Caracterização da área de estudo

O estudo foi desenvolvido em 24 comunidades situadas nas Baías de


Caxiuanã e dos Botos, interior da Flona Caxiuanã, município de Melgaço,
Pará (Figura 1). A Unidade de Conservação foi criada em 1961, abrange
330.000 hectares e constitui uma das mais bem preservadas regiões da
Amazônia inserida no ecossistema das várzeas estuarinas do rio Amazo-
nas. Na Flona Caxiuanã há a Estação Científica Ferreira Pena (ECFPn),
gerida pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).
A região da Flona Caxiuanã é composta por vegetação de várzea,
igapó, terra firme e manchas de savana, sendo cortada por uma complexa
rede de drenagem (FERREIRA et al., 2012; ICMBIO, 2012). O clima é clas-
sificado em Ami de Koppen, com estações chuvosa (dezembro-maio) e seca
(junho-novembro) bem definidas (LISBOA, 2002), que influenciam forte-
mente o ciclo hidrológico que envolve a seca, enchente, cheia e vazante
(FÉLIX-SILVA et al., 2018).
Historicamente, os habitantes da região praticavam a extração da se-
ringa (Hevea brasiliensis) associada à roça, a coleta de castanha-do-Brasil
(Bertholletia excelsa) e de outros produtos florestais, e da venda de carne
e pele de animais silvestres (DE LA PEÑA et al., 1990). Atualmente as fa-
mílias criam animais domésticos para consumo, venda ou troca (MAUÉS;
MOTTA-MAUÉS, 1977; ICMBIO, 2012). Após a criação da Flona Caxiuanã
houve um processo acentuado de esvaziamento da ocupação humana ori-
ginal, envolvendo indenização a 20% das famílias (mais de 350 famílias
habitavam a região). Atualmente, as comunidades ribeirinhas situam-se
na “Zona de Amortecimento” Unidade de Conservação.
266 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 1 – Limites da Floresta Nacional de Caxiuanã e localização


da Praia do Ibama e base da ECFPn, em Melgaço - Pará.

2.2 Diversidade e distribuição de quelônios na Flona Caxiuanã

Para o registro das espécies de quelônios ocorrentes na Flona Caxiu-


anã foram utilizadas capturas experimentais, procura ativa, relatos de
moradores sobre captura e consumo, registro de carapaças encontradas e
identificação de desovas.
Para as atividades de captura, marcação e soltura de animais adultos,
foram utilizadas redes de espera (malhadeira), espinhéis (conjunto de
anzóis iscados), armadilhas iscadas (hoop), covos iscados (armadilhas
confeccionadas artesanalmente com cipó) e procura ativa, todas com apoio
de pescadores experientes da região. Os artefatos de pesca foram
instalados em diferentes pontos da Flona Caxiuanã, em diferentes fases do
ciclo hidrológico. Cada animal capturado foi identificado, medido, pesado,
marcado e, posteriormente, liberado no local de captura (CAGLE, 1939;
FÉLIX-SILVA, 2009; IBAMA, 2016).
Volume 9 | 267

2.3 Uso dos quelônios por moradores da Flona Caxiuanã

Para a investigação do uso de quelônios foram aplicadas entrevistas


semiestruturadas (SEIXAS, 2005) com 60 moradores da região. As entre-
vistas foram individuais, envolvendo 40 homens e 20 mulheres que
desenvolviam atividades de caça e/ou pesca ou que possuíam algum co-
nhecimento de uso dos recursos faunísticos. Durante as entrevistas, os
moradores locais foram questionados quanto às espécies de quelônios co-
nhecidas e que ocorrem na área, e para tal, foram utilizadas pranchas
fotográficas de diferentes espécies de quelônios. Em seguida, foi solicitado
que os entrevistados caracterizassem as formas de uso (consumo e prefe-
rências) relacionadas às espécies mencionadas.

2.4 Ecologia reprodutiva de quelônios

O monitoramento reprodutivo foi realizado na Praia do Ibama (Fi-


gura 1), que possui 227 m de extensão, largura máxima de 12,65 m na
maré alta e 18,07 m na maré baixa. Esta área foi selecionada por constituir
um importante sítio de desova para os quelônios da região, especialmente
para P. sextuberculata e P. unifilis, com desovas eventuais de P. expansa.
A praia é constituída por areia de textura fina e uniforme, apresentando
inclinação suave e altura máxima de 1,01 m em relação ao nível da água.
A área de desova foi monitorada ao longo de todo o período de
oviposição. Pela manhã, toda a extensão da praia era percorrida para a
detecção das desovas da noite anterior, a partir dos rastros das fêmeas e
pelo solo recentemente perturbado (FACHÍN-TERÁN, 1992; SOUZA;
VOGT, 1994; PEZZUTI; VOGT, 1999). Para cada ninho encontrado foram
registrados (i) a data de oviposição, (ii) a profundidade final da câmara de
ovos (distância entre a superfície e a base da câmara de ovos), (iii) a
268 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

distância do ninho em relação à água e à vegetação, e (iv) a altura do ninho


em relação ao nível da água no dia da desova.
Após 40 dias de incubação, os ninhos passaram a ser vistoriados para
o registro de sinais indicando a iminência da eclosão dos filhotes (Pezzuti;
Vogt, 1999). Para cada ninho eclodido foram contados o número de filho-
tes vivos, o número de embriões mortos, o número de ovos sem
desenvolvimento aparente e o número de filhotes mortos. Em sete ninhos
foram instalados coletores remotos de dados (data-loggers) junto aos ovos
para o registro da temperatura de incubação. Além disso, a temperatura
superficial dos ninhos também foi mensurada com o auxílio de um termô-
metro digital.

3 Desenvolvimento

3.1 Diversidade e distribuição de quelônios

Na Flona Caxiuanã foram registradas dez espécies de quelônios a par-


tir de capturas experimentais. Os inventários anteriores de herpetofauna
de Caxiuanã (Bernardi et al., 2002) documentavam a ocorrência de apenas
quatro espécies (Chelonoidis denticulata, Platemys platycephala, Rhino-
clemmys punctularia, P. unifilis).
Uma carapaça de P. expansa fêmea adulta foi encontrada em uma das
residências da comunidade Pedreira. O animal foi capturado na Baía de
Caxiuanã e consumido pelos moradores. Além disso, também foram iden-
tificados ninhos de P. expansa na Praia do IBAMA.
De acordo com entrevistas com moradores, as pitiuás ou iaçás (P.
sextuberculata) são capturadas principalmente durante a desova nas
praias da Baía de Caxiuanã, sendo eventualmente capturadas também com
rede malhadeira. Provavelmente também são capturadas durante as pes-
carias do mapará (Hypophthalmus sp.), exercidas por pescadores de fora
Volume 9 | 269

da Flona. Nas pescarias experimentais não foi capturado nenhum indiví-


duo desta espécie.
Os tracajás (P. unifilis) são constantemente capturados com redes
malhadeiras ou com armadilhas tipo covo iscadas com frutas da floresta
de igapó. Esta espécie foi capturada a partir de captura experimental com
redes de espera, e também foi registrado um evento de predação de um
indivíduo macho por um gato-maracajá (Leopardus wiedii) na Praia do
IBAMA.
De acordo com os moradores, os cabeçudos (P. dumerilianus) ocor-
rem principalmente nos igarapés de Caxiuanã. Além disso, em algumas
casas foram observados diversos cascos de animais que foram consumi-
dos. Na região, eles são capturados pelos ribeirinhos com armadilhas tipo
covo iscadas com peixe, as quais são confeccionadas artesanalmente com
cipó titica (Heteropsis sp.) e arumã (Ischnosiphon sp.). Nas pescarias ex-
perimentais foram capturados indivíduos desta espécie com este mesmo
tipo de armadilha.
Um jaboti-lalá (Mesoclemmys gibba) foi capturado em uma das tri-
lhas da ECFPn, e outro exemplar foi encontrado mantido cativo em uma
das residências da comunidade Pedreira. Embora o matamatá (Chelus fim-
briatus) não tenha sido capturado, este foi mencionado pelos moradores
como uma espécie ocasionalmente avistada, principalmente em locais sem
correnteza, como ressacas e remansos nos afluentes da Baía de Caxiuanã.
As duas espécies de jabotis, o amarelo ou carumbé (C. denticulata) e
o vermelho (C. Carbonaria), são constantemente encontradas nas trilhas
da ECFPn. Peremas (R. punctularia) foram capturadas com covos iscados
com peixe tanto no igarapé Curuá, em locais com pouca correnteza e
grande profundidade, como também nas cabeceiras do igarapé Curuaí, em
ambientes rasos. Nas comunidades Pedreira e Laranjal, estes animais são
capturados para o consumo, durante a estação seca, colocando-se fogo em
270 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

áreas de aningal e cavando-se pequenas valas. Para escaparem do fogo, os


animais entram nestas valas e são posteriormente capturados manual-
mente pelos ribeirinhos.
Uma muçuã (K. scorpioides) foi capturada manualmente nas mar-
gens do igarapé Curuá. O jaboti-machado (P. platicephala) foi capturado
em diversas ocasiões, próximo à ECFPn.

3.2 Importância dos quelônios para a população ribeirinha da Flona


Caxiuanã

As entrevistas realizadas contribuíram para a identificação da ocor-


rência e distribuição das espécies de quelônios na Flona Caxiuanã (Tabela
1). Além disso, também foi possível verificar a importância que este grupo
faunístico tem para as populações que residem na região. A alimentação
na região é baseada predominantemente na pesca e na caça, mas os que-
lônios aparecem como itens importantes da dieta dos moradores. Embora
os quelônios sejam intensamente consumidos, os jabutis (C. carbonara e
C. denticulata) e o tracajá são as espécies mais frequentemente consumi-
das na região ao longo de todo o ano (17,98% e 14,98%, respectivamente)
e os jabutis são as espécies preferidas entre os entrevistados.

Tabela 1 – Espécies, etnoespécies, ambientes de ocorrência e tipos de


registros de quelônios amazônicos na Flona Caxiuanã, Melgaço - Pará.
Espécie Etnoespécie Ambientes Tipo de Registro
P. unifilis Tracajá Rio Curuá, Baía de Caxiuanã Captura com redes malhadeiras;
entrevistas
P. expansa Tartaruga Baía de Caxiuanã Captura e consumo pelos moradores;
entrevistas
P. Iaçá ou Pitiuá Praias da Baía de Caxiuanã Captura manual de fêmeas desovando;
sextuberculata entrevistas
P. dumerilianus Cabeçudo Diversos afluentes, Captura com covos iscados; carapaças
principalmente o igarapé de animais consumidos; entrevistas
Curuá
M. gibba Jaboti lalá Floresta de terra firme Captura por moradores; encontro
ocasional na floresta; entrevistas
Volume 9 | 271

P. platicephala Jaboti Floresta de terra firme Encontro ocasional na floresta;


machado entrevistas
C. carbonaria Jaboti Floresta de terra firme Encontros ocasional na floresta;
vermelho entrevistas
C. denticulata Jaboti amarelo Floresta de terra firme Encontros ocasional na floresta;
entrevistas
R. punctularia Perema, Igarapés (Curuá, Curuaí) Captura com covos iscados; coleta
Aperema utilizando fogo; entrevistas
K. scorpioides Muçuã Igarapé Curuá Captura manual; entrevistas

3.3 Ecologia reprodutiva de quelônios

Nos dois anos de monitoramento reprodutivo, P. sextuberculata foi a


primeira espécie a desovar na região, com as desovas ocorrendo entre me-
ados de julho a outubro. Em 2004, 72% das posturas ocorreram nos 20
primeiros dias de desova com picos de postura nesse período (Figura 2a).
O período de oviposição de P. unifilis na região ocorre entre meados
de agosto até outubro. Em 2004, 88% das posturas ocorreram nos últimos
sete dias de desova, com picos de postura nos dias 29 e 30 de setembro e
2, 6 e 7 de outubro (Figura 2b). Os pontos localizados no número zero se
referem aos dias em que não foi identificada nenhuma subida ou postura.
Em 2003 foram registradas quatro desovas de P. expansa, todas na
primeira semana de outubro. Destes, apenas uma ficou intacta, pois uma
foi coletada pelos moradores e outras duas transferidas pelos agentes do
IBAMA para a base física. A sobrevivência deste ninho foi surpreendente,
com 90 filhotes eclodidos, porém todos os filhotes apresentaram deformi-
dades na carapaça, em maior ou menor grau. Em 2004, a única desova de
tartaruga-da-Amazônia foi em 21 de setembro, na Praia do IBAMA.
272 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 2 – Distribuição temporal do número de fêmeas de a) P. sextuberculata e b) P. unifilis


subindo à praia sem desovar (subidas) e de fêmeas que subiram e nidificaram (posturas)
na Praia do IBAMA, na Flona Caxiuanã - Pará, entre 18 de julho a 4 de outubro de 2004.

a)

b)
Volume 9 | 273

Em 2003 foram identificados 89 ninhos, sendo 67 de P. sextubercu-


lata, 18 de P. unifilis e quatro de P. expansa. Os ninhos de P. expansa foram
transplantados pelos funcionários do IBAMA, o que tornou possível o mo-
nitoramento de apenas um dos ninhos sob condições naturais. Em 2004
foram identificados 148 ninhos, dos quais 130 de P. sextuberculata, 17 de
P. unifilis e apenas um de P. expansa (Tabela 2). Nas outras praias da re-
gião foram identificados apenas ninhos vazios, dos quais os ovos já haviam
sido coletados por usuários da região ou predados por animais.

Tabela 2 – Número total de ninhos e de ovos, média de ovos por ninho, número de ovos eclodidos e perdidos de
Podocnemis que desovaram na Praia do IBAMA, entre 2003 e 2004, na Flona Caxiuanã, Melgaço - Pará.
Nº de Nº total de Nº médio Nº ovos Nº ovos
Ano Espécie
ninhos ovos ovos/ninho eclodidos perdidos
P. -
67 436 108 328
sextuberculata
2003 P. unifilis 18 169 - 40 129
P. expansa 4 133* - 88* 45*
Total 89 697 - 188 509
P. 15,2
130 1975 810 1165
sextuberculata
2004 P. unifilis 17 329 19,4 175 135
P. expansa 1 94 - 20 74
Total 148 2398 - 1005 1374
* dados de um único ninho.

O período de eclosão dos filhotes de P. sextuberculata no ano de 2004


foi de outubro a dezembro, com o tempo médio de duração da incubação
de 54 dias (variando de 43 a 89 dias). Para P. unifilis o período de eclosão
foi novembro a dezembro, e a duração média da incubação foi de 55 dias
(variando de 46 a 68 dias).
As amostras do substrato dos ninhos de P. sextuberculata deposita-
dos em 2004 tiveram maior proporção de areia de classe média (69,52%),
seguida pela areia grossa (20,45%). A quantidade de matéria orgânica no
interior das covas foi de apenas 0,42%. A duração da incubação não foi
274 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

afetada pela granulometria. Porém, a taxa de eclosão diminuiu com o au-


mento da proporção de grãos médios (Figura 3). O número reduzido de
ninhos de P. unifilis não permitiu a realização de testes semelhantes.

Figura 3 – Relação entre a taxa de eclosão (%) e a proporção de areia média nos ninhos
de P. sextuberculata, depositados em 2004, na Flona Caxiuanã, Melgaço – Pará
(N = 26; R2 ajustado = 0,2560; g.l. = 1; p = 0,0049).

A temperatura média de incubação registrada nos ninhos de P. sex-


tuberculata foi de 29,3 °C. A temperatura superficial dos ninhos foi
registrada apenas em 2004. Neste ano, a temperatura média dos ninhos
durante o dia (6:00 hs às 18:00 hs) foi de 38,4 °C para P. sextuberculata e
de 35 °C para P. unifilis. Durante o período da noite (18:00 hs às 6:00 hs),
a temperatura média superficial dos ninhos foi de 24,2 °C para P. sextu-
berculata e de 24,6 °C para P. unifilis.
Em 2003, a taxa de eclosão média foi 0,30 e 0,27 para P. sextubercu-
lata e P. unifilis, respectivamente e em 2004, a taxa de eclosão média foi
de 0,41 para P. sextuberculata e de 0,52 para P. unifilis. As características
físicas dos sítios de desova não afetaram a taxa de eclosão para P. sextu-
berculata e P. unifilis nos dois anos considerados.
Volume 9 | 275

A duração da incubação dos ovos de P. sextuberculata não foi influ-


enciada por qualquer das variáveis físicas investigadas em ambos os anos.
No entanto, para os ninhos de P. unifilis depositados em 2004, esta foi
influenciada pela temperatura superficial dos ninhos (Figura 4a).
Os ninhos de P. sextuberculata monitorados em 2004 tiveram as
maiores temperaturas internas com o aumento da distância em relação à
vegetação (Figura 4b).
A razão sexual foi verificada apenas para 2004 e foi 0,35 para P. sex-
tuberculata (35% de machos), enquanto P. unifilis teve a razão sexual
média de 0,58. Nenhuma das variáveis incluídas nas análises afetaram sig-
nificativamente a razão sexual dos filhotes das duas espécies.

Figura 4 – a) Relação entre a temperatura superficial dos ninhos (°C) de P. unifilis e a duração
da incubação (em dias) (N= 17; R2= 0,444; R2 ajustado= 0,315; Erro padrão da estimativa= 5,938; p=
0,011); b) Relação entre a temperatura interna dos ninhos (°C) de P. sextuberculata e
a distância da vegetação (em metros) (N= 8; R2 ajustado= 0,6685; g.l. = 1; p= 0,0081).
Monitoramento realizado em 2004, na Flona Caxiuanã, Melgaço - Pará.

a)
276 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

b)

Durante o monitoramento realizado em 2003, a principal causa de


perda de ovos de P. sextuberculata e P. expansa foi a coleta, enquanto P.
unifilis teve a maior parte dos seus ninhos perdidos por alagamento (Ta-
bela 3). No ano de 2004, a única causa de perda de ninhos de P.
sextuberculata foi o alagamento, e esta foi influenciada pela altura do sítio
de oviposição (p= 0,00), enquanto P. unifilis teve como única causa de
perda de ninhos a predação (Tabela 3). Nos dois anos de monitoramento,
o lagarto jacuraru (Tupinambis spp.) foi o predador de ovos de quelônios
na praia monitorada. De forma geral, a principal causa de perda de ovos
identificada para a região em 2003 foi a coleta por moradores, e em 2004
foi o alagamento dos ninhos.
Volume 9 | 277

Tabela 3 – Causas de perda de ninhos de P. sextuberculata e P. unifilis em


2003 e 2004, na Flona Caxiuanã, Melgaço - Pará.
Predados Alagados Coletados Eclodidos
Ano Espécie Ninhos
N (%) N (%) N (%) N (%)
P. sextuberculata 67 11 (16,4) 15 (22,4) 22 (32,8) 19 (28,4)
P. unifilis 18 0 (0) 10 (55,6) 4 (22,2) 4 (22,2)
2003
P. expansa 4 0 (0) 1 (25) 2 (50) 1 (25)
Total 89 11 (12,4) 26 (29,2) 28 (31,4) 24 (27)
P. sextuberculata 130 0 (0) 21 (16,1) 0 (0) 109 (83,9)
P. unifilis 17 3 (17,7) 0 (0) 0 (0) 14 (82,3)
2004
P. expansa 1 0 (0) 0 (0) 0 (0) 1 (100)
Total 148 3 (2) 21 (14,2) 0 (0) 124 (83,8)

4 Discussão

4.1 Diversidade e distribuição de quelônios

Na Amazônia brasileira ocorrem 18 espécies de quelônios, sendo 16


aquáticas e semiaquáticas e duas terrestres (SOUZA, 2005; RUEDA-
ALMONACID et al., 2007). Entre os Podocnemidídeos que ocorrem no Bra-
sil, P. expansa e P. unifilis são amplamente distribuídas por toda a bacia
Amazônica (PRITCHARD; TREBBAU, 1984; REBÊLO; PEZZUTI, 2000;
VETTER, 2005). P. sextuberculata aparentemente é mais restrita aos rios
de água branca, enquanto P. erythrocephala e P. dumerilianus têm distri-
buições mais restritas à bacia do rio Negro e em outros afluentes de águas
pretas e claras (PRITCHARD; TREBBAU, 1984; VETTER, 2005).
A região da Flona Caxiuanã apresenta alta diversidade de quelônios
aquáticos. Das 18 espécies de quelônios conhecidas para a Amazônia, 11
têm ocorrência confirmada para esta região, representando 61.1% das es-
pécies com ocorrência na Amazônia. No entanto, quando se observa o
número de espécies que ocorrem na região com base no conhecimento
local, esse número sobe para 12, representando 66.7% (FÉLIX-SILVA et
al., 2018). Das espécies mencionadas durante as entrevistas e com a utili-
zação de fotografias, apenas Rhinemys rufipes não tem distribuição nesta
região, pois é espécie endêmica da Amazônia ocidental (SANCHEZ, 2008).
278 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Além disso, as outras espécies que não coincidiram entre as capturas e as


menções dos moradores foram R. punctularia e Mesoclemys raniceps. Es-
tas são espécies mais crípticas quando comparadas aos podocnemidídeos
ou testudinídeos, por exemplo. Portanto, sua visualização e consequente
captura tornam-se mais difíceis. Além disso, não são espécies historica-
mente utilizadas, seja para consumo ou para fins medicinais, e as taxas de
encontro com estas espécies é considerada baixa, quando comparada aos
podocnemidídeos ou testudinídeos e, portanto, espera-se que sejam espé-
cies menos mencionadas como conhecidas.
A partir de depoimentos dos moradores da região, no passado havia
consumo e comercialização de quelônios adultos em pequena escala. Como
o esforço de captura realizado incluiu também a utilização de técnicas lo-
cais, sobretudo os covos, pode-se sugerir que os resultados encontrados
refletem o esgotamento local dos estoques. No entanto, a única área siste-
maticamente amostrada foi a região do igarapé Curuá, com algum esforço
de pesca com covos e malhadeiras no igarapé Puraquequara e com covos
e arrasto na Baía de Caxiuanã, próximo à boca do rio Caxiuanã.

4.2 Reprodução

Na Flona Caxiuanã foram monitorados um total de 89 ninhos em


2003 e 148 em 2004. Essa diferença se deve ao fato de que o monitora-
mento de ninhos em 2003 pode ter começado após o início da desova e,
consequentemente, que alguns ninhos não tenham sido identificados. Este
fato sugere, portanto, que o número de ninhos em 2003 está subestimado.
O número de ninhos é baixo quando comparado a outras áreas de desova,
porém relevante, já que esta região é localmente apontada como a princi-
pal área de desova na Baía de Caxiuanã.
P. sextuberculata, foi a espécie com maior número de ninhos deposi-
tados e desovou em uma praia pequena, estreita e baixa, sujeita à
Volume 9 | 279

influência de maré em uma baía formada pelo vale afogado do Rio Anapu.
Porém, esta espécie normalmente desova em praias arenosas, de sedimen-
tos mais espessos, situadas em ambientes lóticos de rios de águas brancas
(PEZZUTI; VOGT, 1999; PANTOJA-LIMA, 2007; VOGT, 2008). No rio
Xingu, rio de águas claras ou verdes (SIOLI, 1991), esta espécie desova
abundantemente no seu trecho inferior, mas já próximo à sua foz junto ao
Amazonas, não ocorrendo a montante deste rio (CARNEIRO, 2008).
O tracajá, espécie que também utiliza a praia monitorada, é extrema-
mente versátil quanto ao ambiente de desova (SOUZA; VOGT, 1994;
FACHÍN-TERÁN; VON MÜLHEN, 2003; VOGT, 2008; FÉLIX-SILVA,
2009). Na Flona Caxiuanã foram identificados ninhos desta espécie em
roçados situados a até 180 metros de distância da margem do Igarapé Cu-
ruá, próximo à área deste estudo (ALMEIDA et al., 2005).
É frequente a desova esparsa e praticamente isolada de P. expansa
em praias com baixa produção de ninhos e de filhotes, podendo ocorrer
em menores quantidades que as de seus congêneres (PEZZUTI, 1998;
RAEDER, 2003). Esta situação é resultado do histórico de utilização da es-
pécie em larga escala, e destoa do padrão observado nos históricos
tabuleiros protegidos inicialmente por seringalistas, por comunidades ri-
beirinhas e pelo Projeto Quelônios da Amazônia (PQA/RAN) (BATES,
1892; ALHO, 1982; ALHO; PÁDUA, 1982; LIMA, 2007; FAGUNDES et al.,
2021). Um dos ninhos transferidos em 2003, que teve alta taxa de eclosão,
também apresentou deformidades morfológicas de todos os filhotes eclo-
didos. Embora não seja comprovável, este incidente pode ser atribuído à
manipulação dos ovos durante sua transferência.

4.3 Distribuição temporal de desovas

O início do mês de julho foi o período de concentração da atividade


de nidificação de Podocnemis sextuberculata. Este fato é de conhecimento
280 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

dos moradores da região, os quais consideram que a “força” da iaçá (perí-


odo de maior intensidade de desova) ocorre no início deste mês. Por outro
lado, no Rio Trombetas, P. expansa nidifica somente depois que a água
atinge seu nível mais baixo (ALHO; PÁDUA, 1982) e costuma desovar mais
tardiamente em comparação com as outras Podocnemis no Rio Purus
(LIMA, 2007). Na região de Caxiuanã, a postura da tartaruga ocorre entre
o final de novembro e início de dezembro, com variações entre os anos.
Para os moradores, a sequência cronológica de desova tem início com as
iaçás, seguidas pelos tracajás e por fim, as tartarugas. Para Vanzolini e Go-
mes (1979), as diferentes espécies de Podocnemis não desovam
sincronicamente e há variação intraespecífica no período de desova entre
as regiões.
O início do período de nidificação depende do início da vazante, com
variações entre os anos (ALHO; PÁDUA, 1982). Os moradores de Caxiuanã
garantem que as densidades de ninhos nas praias eram maiores do que as
observadas hoje. No entanto, moradores de outras localidades coletam
muitas fêmeas e ovos na Praia do IBAMA, a despeito da presença dos vi-
gias, o que pode ter contribuído para a redução do número de desovas.
Embora tenha uma pequena extensão de praia sem cobertura vegetal, a
praia do IBAMA tem altas temperaturas, o que pode ter levado a uma pre-
dominância na nidificação nessa área aberta. Schwarzkopf e Brooks (1987)
compararam as temperaturas e características de ninhos de Chrysemys
picta com locais escolhidos aleatoriamente, e constataram que os substra-
tos dos locais selecionados para a construção de ninhos são mais quentes.
Embora não tenham encontrado diferenças entre as características nos ni-
nhos e nos pontos aleatórios, concluíram que a inclinação e a ausência de
vegetação provavelmente são características selecionadas pelas fêmeas
para escolher locais mais quentes. Janzen (1994) encontrou uma forte re-
lação entre a cobertura vegetal e a razão sexual em C. picta, e também
Volume 9 | 281

sustenta a hipótese de que as fêmeas podem selecionar o local de oviposi-


ção baseando-se na cobertura vegetal. A presença ou ausência de
vegetação foi fator determinante na temperatura experimentada pelos
embriões e na razão sexual de Graptemys ouachitensis e G. pseudogeogra-
phica em Wisconsin, nos Estados Unidos (VOGT; BULL, 1984).

4.4 Taxa de eclosão dos ninhos

As taxas de eclosão observadas para P. sextuberculata (2003: 30%;


2004: 41%) e P. unifilis (2003: 27%; 2004: 52%) são consideradas baixas
quando comparadas a outras regiões na Amazônia. Na RDS Mamirauá,
Pezzuti e Vogt (1999) observaram que 98% dos embriões de P. sextuber-
culata tiveram seu desenvolvimento completado. Lima (2007) observou
que, a partir de dados coletados entre os anos 1994 e 2003, na Reserva
Biológica (Rebio) do Abufari, no Amazonas, esta mesma espécie teve a taxa
de eclosão média de 83% e P. unifilis foi 77%. No Reservatório da UHE
Tucuruí, no Pará, entre 2006 e 2007, a taxa de eclosão para ninhos de P.
unifilis variou entre 75 e 82% (FÉLIX-SILVA, 2009). Este autor sugere
que, para esta espécie, a taxa de eclosão é extremamente variável (65 a
90%) e depende da região em questão e das decorrentes condições locais.
Vários são os fatores que podem contribuir para o insucesso dos
embriões. As características físicas do ambiente tais como o tipo de
substrato, a profundidade da câmara de ovos, a umidade, a distância dos
ninhos para o corpo d’água mais próximo, a inclinação da superfície e a
altura do ninho são fatores que podem contribuir para o sucesso de eclosão
dos filhotes (FERREIRA-JÚNIOR, 2003; FÉLIX-SILVA, 2009). Além disso,
o período em que os ovos são depositados (PEZZUTI; VOGT, 1999), a
variação climática anual e o estado de saúde da fêmea também contribuem
para o sucesso de eclosão. Somado a isso, a praia monitorada é estreita, de
baixa elevação, e situada numa região sob influência de maré. Os ninhos
282 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

de Podocnemis são sensíveis ao alagamento, e sua submersão, mesmo que


por algumas horas, pode ser o fator responsável pelas taxas de eclosão
observadas.
Neste trabalho, a taxa de eclosão foi afetada pela granulometria. A
areia grossa proporciona maior volume poroso e, portanto, maior condu-
tividade térmica (FERREIRA JÚNIOR; CASTRO, 2003). Ovos incubados em
substratos com maior condutividade térmica têm o período de incubação
reduzido e consequente aumento do sucesso reprodutivo. Portanto, as bai-
xas taxas de eclosão identificadas tanto para P. sextuberculata quanto para
P. unifilis podem ser atribuídas também ao tipo de substrato predomi-
nante na região estudada.

4.5 Duração da incubação dos ovos

Na Flona Caxiuanã, os ninhos de P. unifilis com temperaturas super-


ficiais mais elevadas desenvolveram-se mais rapidamente e eclodiram
mais cedo. O período em que os ovos permanecem nos ninhos pode ser
influenciado diretamente pelas características físicas do ambiente e pelo
período em que os ovos são depositados, já que afetam as propriedades
térmicas dos ninhos (FERREIRA-JÚNIOR, 2003; FÉLIX-SILVA, 2009). O
período de incubação dos ovos pode ter relação direta com a sobrevivência
dos embriões e com a razão sexual dos filhotes, já que ovos incubados a
altas temperaturas têm seu período de incubação mais curto, o desenvol-
vimento embrionário acelerado (BULL; VOGT, 1979; SCHWARZKOPF;
BROOKS, 1987; GEORGES, 1989) e, consequentemente, o aumento da so-
brevivência (SCHWARZKOPF; BROOKS, 1987) e a razão sexual desviada
para fêmeas (SOUZA; VOGT, 1994).
O período de incubação para P. sextuberculata foi menor que o ob-
servado na RDS Mamirauá por Pezzuti e Vogt (1999) em 1996 (63,7 dias)
Volume 9 | 283

e por Bernhard (2001) em 1999 na mesma praia (62,2 dias), e que o regis-
trado para P. unifilis por Fachín-Terán e Von Mülhen (2003) nos lagos de
Mamirauá. Neste último estudo, os ovos depositados em substrato arenoso
desenvolveram mais rápido (61,7 dias) quando comparados àqueles depo-
sitados em substrato argiloso (72,8 dias). Félix-Silva (2009) registrou
períodos de incubação em torno de 71 dias em 2006 e de 68 dias em 2007
para ninhos de P. unifilis no Lago da UHE Tucuruí, no Pará.
A duração de incubação é diretamente influenciada pelas caracterís-
ticas do ambiente de incubação. O tipo de substrato do sítio de oviposição
(e.g. tamanho do grão, textura, umidade) está intrinsecamente relacio-
nado à temperatura de incubação dos ovos (SOUZA; VOGT, 1994;
FERREIRA JÚNIOR; CASTRO, 2003; PIGNATI et al., 2013). O substrato
com grãos maiores experimenta maiores temperaturas. Os ninhos cons-
truídos nestes microambientes e com grande exposição ao sol terão a
duração da incubação mais curta (SOUZA; VOGT, 1994; FACHÍN-TERÁN;
VON MÜLHEN, 2003; FERREIRA JÚNIOR; CASTRO, 2003). Na FLona Ca-
xiuanã foram identificados ninhos em substratos que variaram de areia da
classe média a grossa, com pouca matéria orgânica, o que pode ter contri-
buído para períodos de incubação comparativamente curtos.

4.6 Razão sexual e temperatura interna dos ninhos

A razão sexual de P. sextuberculata registrada para a Praia do Ibama


foi desviada para fêmeas, resultado dentro do esperado já que a
temperatura interna dos ninhos desta espécie aumentou com a distância
da vegetação e a maior parte dos ninhos estava exposta, sem vegetação
associada. Além disso, a temperatura interna média registrada foi de
29,3ºC, enquanto a temperatura superficial foi de 38,4ºC. Para Vogt e Bull
(1982) fêmeas desta espécie são produzidas a partir de 29,5ºC, ou seja, as
284 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

temperaturas registradas para os ninhos de P. sextuberculata no presente


estudo foram altas o suficiente para gerar ninhos desviados para fêmeas.
A razão sexual de P. unifilis foi levemente desviada para machos
(0,58). Os ninhos desta espécie tendem a ser depositados mais próximos
à vegetação (ESCALONA; FA, 1998; FÉLIX-SILVA, 2009), o que pode des-
viar a razão sexual para o sexo masculino. Além disso, a temperatura
média superficial dos ninhos foi de 35 ºC, o que nos leva a crer que a tem-
peratura de incubação interna foi bem mais baixa. Souza e Vogt (1994), no
rio Guaporé, estimaram a temperatura pivotal para esta espécie de 32,1 ºC
em condições de laboratório, e ovos incubados a 31 ºC produziram 80%
machos.
A razão sexual está diretamente relacionada às características do am-
biente e às variações climáticas (VOGT; BULL, 1982; SOUZA; VOGT, 1994;
FERREIRA JÚNIOR; CASTRO, 2003; FERREIRA JÚNIOR, 2009). Portanto,
ambientes mais quentes podem produzir uma população desviada para
fêmeas, e vice-versa, já que a temperatura de incubação é responsável pe-
las diferenças nas proporções sexuais na maioria das espécies de quelônios
(SOUZA; VOGT, 1984; JANZEN; PAUKSTIS, 1991).

4.7 Causas de perda de ninhos

Em 2003, a principal causa de perda de ninhos de quelônios foi a


coleta por moradores, mesmo com a área de desova estando localizada a
aproximadamente 150 metros da base física do ICMBio. No ano seguinte,
não foi identificada perda por coleta ou predação, o que pode ter ocorrido
em função do acampamento para o monitoramento montado na própria
praia.
Em várias partes da Amazônia as taxas de coleta de ovos são elevadas,
atingindo, em alguns casos, até mesmo 100% dos ninhos (MITCHELL;
QUIÑONES, 1994; SOINI, 1995; PEZZUTI, 1998). No Parque Nacional do
Volume 9 | 285

Jaú, Amazonas, 90% dos ninhos de quelônios encontrados (P. unifilis e P.


erythrocephala) foram coletados (REBÊLO et al., 2005). No Lago de Tucu-
ruí, a principal causa de perda de ninhos de P. unifilis foi a coleta por
moradores (FÉLIX-SILVA, 2009), também observado por Escalona e Fa
(1998), no rio Nichare-Tawadu, na Venezuela. Em um estudo realizado
com P. unifilis no Rio Aguarico, no Equador, a principal causa de perda de
ninhos foi a coleta, seguida pela inundação (CAPUTO et al., 2005).
Na Flona Caxiuanã, os ninhos mais atingidos pelo alagamento foram
os de P. sextuberculata, embora em 2003 também tenha ocorrido perda
considerável de ninhos de P. unifilis. Apenas um ninho de P. expansa foi
perdido por esta causa, em 2003. As marcas dos níveis mais altos de maré
indicam claramente que estes ninhos ficaram temporariamente submer-
sos, o que provavelmente levou à perda dos embriões por afogamento. A
destruição de ninhos pela variação do nível do rio é comum e extrema-
mente variável entre os anos, podendo ser nula ou eliminar
completamente a produção anual, em casos extremos (ALHO, 1982;
PEZZUTI; VOGT, 1999; READER, 2003). Dessa forma, a altura do ambi-
ente em que os ovos são depositados é a principal característica para evitar
este tipo de perda (FERREIRA-JÚNIOR, 2009; FÉLIX-SILVA, 2009).
A taxa de predação dos ovos de quelônios aquáticos amazônicos de-
penderá do ambiente de nidificação, da disponibilidade de predadores no
ambiente e das características dos ninhos, pois quanto mais rasos são os
ninhos, maior é a predação (FERREIRA JÚNIOR, 2003). Além disso, a pre-
dação natural é um fenômeno dependente da densidade das covas, sendo
maior nos locais onde há maiores concentrações de desovas (PEZZUTI;
VOGT, 1999; NORRIS et al., 2018). O lagarto jacuraru foi o principal pre-
dador de ovos de quelônios neste estudo. Vários autores apontam este
lagarto como o principal predador de ninhos de quelônios amazônicos
(e.g. SOINI, 1995; BATISTELLA, 2003; FACHÍN-TERÁN; VON MÜLHEN,
286 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

2003; FÉLIX-SILVA, 2004, 2009). Soini (1995) sugere que ninhos de P.


sextuberculata depositados em praias arenosas são menos atingidos por
localizarem-se mais distantes da área de atividade do lagarto, o que não
ocorre para o tracajá, pois este tende a desovar em locais próximos à ve-
getação (ESCALONA; FA, 1998; FÉLIX-SILVA, 2009).

Considerações finais

A quantidade de ninhos identificados e monitorados neste estudo


pode ser considerada baixa em comparação com outras áreas da Amazô-
nia, protegidas ou não (e.g. PEZZUTI; VOGT, 1999; RAEDER, 2003). No
entanto, os resultados deste trabalho nos levam a crer que os indícios são
de que a pressão de exploração deste recurso pelas populações ribeirinhas
da região levou ao esgotamento dos estoques, o que resultou em poucas
fêmeas desovando na região, mesmo com a intensa fiscalização da área.
A proteção de sítios de desovas importantes, de onde os ninhos não
são retirados, seja para o consumo ou para a transferência com objetivos
conservacionistas, favorecem a seleção pelas fêmeas de tais locais para ni-
dificarem. Além disso, a proteção de ninhos de quelônios possibilita que
diversas outras espécies de vertebrados, que também utilizam estes ambi-
entes, se beneficiem (SOUZA; VOGT, 1994, PEZZUTI; VOGT, 1999;
RAEDER, 2003; CAMPOS-SILVA et al., 2021). Por outro lado, além de não
ter como proteger todos os locais de desova, o consumo de ovos constitui
uma importante prática cultural em toda a região amazônica
(MITTERMEIER, 1978; JOHNS, 1987; REBÊLO; LUGLI, 1996; REBÊLO;
PEZZUTI, 2001; PEZZUTI et al., 2004; PEZZUTI, 2020) e, portanto, o zo-
neamento de áreas para a coleta e para a proteção integral é necessário
para que o esforço seja empregado adequadamente, tanto do ponto de
vista do orçamento disponível, quanto para que se tenha o apoio local mais
amplo, e não uma disputa entre agentes e usuários.
Volume 9 | 287

Não existem justificativas para que os esforços para a conservação e


o manejo de quelônios no mundo tenham se direcionado, quase que ex-
clusivamente, para a proteção e o patrulhamento dos locais de desova. Ao
contrário, a eficiência desta estratégia começa a ser devidamente questio-
nada, e hoje os esforços de conservação de quelônios devem se dirigir à
parte da história de vida destes animais com maior possibilidade de pro-
porcionar resultados palpáveis em longo prazo (CROUSE et al., 1987).
Portanto, é necessária uma estratégia para a proteção de alguns ambientes
importantes para as populações adultas, que possam abrigar estes animais
fora do período reprodutivo (CARNEIRO; PEZZUTI, 2015; FAGUNDES et
al., 2021).
Além disso, a estreita relação que as populações humanas têm com
os quelônios aquáticos, refletida a partir da percepção sobre as diferentes
formas de uso e da sua história natural (PEZZUTI et al., 2010; FÉLIX-
SILVA et al., 2018), pode ser usada como uma ferramenta importante para
a conservação na região e, consequentemente, para garantir a disponibili-
dade deste recurso para as populações humanas locais. Dessa forma, o
envolvimento local no manejo participativo de quelônios vem sendo apon-
tado como uma ferramenta que contribui de forma eficiente para a
conservação de quelônios (FACHÍN-TERÁN, 1999, 2003; FACHÍN-TERÁN
et al., 2000; CAPUTO et al., 2005; OLIVEIRA et al., 2016; CAMPOS-SILVA
et al., 2018, PEZZUTI et al., 2018). Assim, o planejamento e a gestão dos
recursos naturais em comunidades tradicionais não podem mais ser dis-
sociados do conhecimento local, de modo que hoje é imprescindível a
construção do diálogo com o conhecimento científico (SANTOS, 2013).

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Capítulo 11

“A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça”:


a comunidade tradicional carroceira de
Belo Horizonte e região metropolitana 1

“The city is our road, our fight is in the cart”: the Traditional Carroceira
Community of Belo Horizonte and the metropolitan region
Emmanuel Duarte Almada 2
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira 3

1 Introdução

Quem circula pelas ruas de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais,


ou das cidades que compõem sua região metropolitana, facilmente se de-
para com carroças, carregadas com entulhos, móveis, pequenas mudanças
ou materiais de construção, conduzidas por humanos e seus companhei-
ros equinos. Os carroceiros, como são conhecidos na capital mineira,
embora a um olhar desavisado, possam ser vistos apenas como trabalha-
dores que têm na tração animal sua fonte de renda, compõem na verdade
uma extensa rede sociotécnica composta por humanos e não humanos que
produzem formas próprias de territorialização e produção do espaço ur-
bano. As carroças são, antes de tudo, o artefato de um modo de vida que
se transforma e resiste ao evangelho do progresso da modernidade que

1
Considerando as legislações nacionais e internacionais de ética em pesquisa, de propriedade intelectual e do uso de
imagens, os autores deste capítulo são plenamente responsáveis por todo seu conteúdo (inclusive textos, figuras e
fotos nele publicadas).
2
Doutor em Ambiente e Sociedade (UNICAMP). Mestre em Ecologia (UFMG). Graduado em Ciências Biológicas
(UFMG). Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, Departamento de Ciências Biológicas, Kaipora –
Laboratório de Estudos Bioculturais. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/4322718529316744 ORCID 0000-
0001-7239-7551 E-mail: [email protected]
3
Doutorando em Antropologia (UNB). Mestre em Antropologia (UFMG). Graduado em Antropologia (UFMG). Link
para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/8304248878327235 ORCID 0000-0002-6169-3192, e-mail:
[email protected]
298 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

falhou em sua promessa de levar a cabo uma completa dominação das na-
turezas urbanas pelo modo de vida urbano-industrial. Porém, mais de um
século após a fundação da capital, carroceiros, carroças e cavalos seguem
mantendo vivos modos de vida “da roça” em meio ao concreto urbano. É
diante de um violento processo de criminalização e ameaça ao direito de
existir, que os carroceiros, em aliança com seus companheiros animais,
passam a habitar o conceito de comunidade tradicional (CARNEIRO DA
CUNHA, 2009; BRANDÃO E LEAL, 2012), configurando um ato cosmopo-
lítico de afirmação do direito à diferença.
As relações entre humanos e animais produziram paisagens, sociali-
dades e estiveram envolvidas em grandes transformações nas bases
materiais dessas existências mais que humanas. Como se observa em to-
dos os povos e comunidades tradicionais, os carroceiros também possuem
princípios próprios de classificar e conhecer o ambiente, para além das
dualidades humano-animal, natureza-cultura, tão caras à modernidade. É,
pois, de um esgarçamento das fronteiras entre humanos e animais que se
constituem o modo de vida carroceiro, como veremos ao longo do capítulo.
Essa vida mais que humana que habita a cidade letrada (RAMA, 2015), tem
sido criminalizada por movimentos de libertação animal, os quais, acio-
nando e aparelhando o Estado, buscam normatizar e impor um único
modo de coabitar o mundo com os animais.
Longe de ser relicto rural em meio ao ambiente urbano,
sobrevivência cultural anacrônica ou refúgio econômico da massa útil de
desempregados do capital organizado, a Comunidade Carroceira
apresenta o modo criativo como as vidas humanas e não humanas podem
produzir diversidade de mundos e de modos de existência, inclusive e
sobretudo nas cidades. Humanos, cavalos, jumentos, burros e mulas e toda
a multidão de seres que com eles coabitam a cidade, deixam rastros e
Volume 9 | 299

caminhos para além dos futuros monocromáticos prometidos pela


modernidade. Sigamos os sons, cheiros e ritmos das carroças.

2 Habitar a “roça grande”

Os carroceiros estiveram presentes na gênese de praticamente todas


as metrópoles brasileiras. Em um período em que inexistiam automóveis,
as carroças transportavam toda sorte de itens, como materiais de constru-
ção, resíduos, alimentos e água (TERRA, 2007; LOPES, 2013; PEREIRA,
2015; OLIVEIRA 2017). No caso de Belo Horizonte, construída no local an-
tes conhecido como Curral del Rey, as relações de trabalho entre equinos
e humanos já marcavam a paisagem que se transformaria na capital mi-
neira.
Embora possuam vínculos históricos e ainda estabeleçam relações
com tropeiros e muladeiros, os carroceiros configuram uma singularidade
própria. Os saberes sobre a vida e trabalho com os animais certamente
circularam e ainda circulam entre esses diferentes coletivos. Até as décadas
de 1960 e 1970, carroceiros e cavalos trabalhavam sem restrições por todo
o território da capital e cidades vizinhas, embora haja registros, já neste
período, de formas de cadastramento e emissão de autorizações para cir-
culação por parte do poder público.
Não há censo oficial ou levantamento específico sobre as populações
de carroceiros e de animais de tração em BH e municípios de sua região
metropolitana, apenas cadastros de trabalhadores e cavalos que acessam
as Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPVs, na capital) e
os Ecopontos (no município de Contagem). A estimativa existente, baseada
em uma dissertação de mestrado publicada na faculdade de veterinária da
UFMG em 2003, é a de que existissem, naquela época, cerca de 10.000
carroceiros em Belo Horizonte e Região Metropolitana (ALMEIDA, 2003).
Os saberes tradicionais desses homens e mulheres se transformaram a
300 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

partir daqueles herdados de antigos tropeiros, muladeiros e boiadeiros que


viviam nas comunidades rurais das cidades que compõem a RMBH. Ao
longo do tempo, outras pessoas, migrantes de várias partes do estado e do
país, bem como as nascidas nas periferias urbanas, foram sendo acolhidas
pela comunidade carroceira, na qual perpetuaram e transformaram esse
modo de vida tradicional. Desta forma, embora haja uma continuidade
histórica que remonta às tropas que adentraram os sertões do Brasil, e a
partir do encontro entre saberes indígenas, africanos e europeus, a Comu-
nidade Tradicional Carroceira de Belo Horizonte e região metropolitana
tem suas raízes no início do processo de ocupação desse território.
Ao longo da década de 1990 foram formuladas políticas públicas que
reconheceram os carroceiros como agentes de educação ambiental funda-
mentais para a política municipal de resíduos sólidos. Havia em certa
medida um reconhecimento público da identidade carroceira, como pode
ser observado pela existência da comemoração anual do dia municipal do
carroceiro, em Belo Horizonte, no primeiro domingo de setembro, desde
a publicação da Lei 8.093/2000, e em contagem desde a publicação da Lei
3.722/2003. No mesmo ano da publicação da lei, consolidou-se na capital
o sistema de reconhecimento do trabalho de carroceiros e cavalos. Belo
Horizonte foi pioneira no Brasil ao disciplinar a utilização de veículos de
tração animal através da Lei nº 10.293/2000. A cidade distribuiu compe-
tências relativas ao cuidado com os cavalos, à padronização das carroças e
à formação continuada dos carroceiros. A BHTRANS ficou responsável por
vistoriar, emplacar e licenciar as carroças, a Secretaria Municipal de Saúde
ficou responsável por vacinar os cavalos e fazer o controle parasitológico
e a Superintendência de Limpeza Urbana ficou responsável por receber e
fiscalizar os materiais transportados pelos carroceiros e seus cavalos. Esse
projeto funcionou com excelência, sendo sucessivamente premiado. Atra-
vés de um convênio entre a prefeitura e a Faculdade de Veterinária da
Volume 9 | 301

UFMG, havia campanhas de vacinação, que aconteciam nas 33 URPVs da


cidade. Esse sistema funcionou plenamente, sem grandes controvérsias,
ao menos durante o período de 2000 e 2014, sendo completamente des-
montado a partir de 2016.
Esse processo de desmonte foi iniciado com a publicação do Projeto
de Lei nº 832/2013 na Câmara Municipal de Belo Horizonte, cujo objetivo
era extinção gradativa dos veículos de tração animal dentro do prazo de
oito anos, proposta que desencadeou ampla resistência e a organização dos
carroceiros no “Movimento Carroceiros Unidos”. O movimento fez uma
grande carroceata no ano de 2014 e conseguiu que o propositor do projeto
desistisse de sua tramitação, fato que foi comunicado aos carroceiros e à
sociedade em geral em uma audiência pública realizada em novembro de
2014.
Em 2015, o Instituto Abolicionista Animal moveu Ação Civil Pública
(ACP) contra o município de Belo Horizonte, acusando-o de omitir-se com
relação a maus tratos cometidos contra animais de tração (IAA, 2015). A
ACP menciona normas nacionais e internacionais inexistentes ao afirmar
que os chamados direitos dos animais são matéria de convenção interna-
cional da UNESCO, com suposta subscrição pelo Brasil. Apesar das
fragilidades da ação e ignorando o autorreconhecimento dos carroceiros
como comunidade tradicional, a ACP culminou em um Termo de Acordo
assinado entre as partes (MPMG, 2018), ato que novamente excluiu carro-
ceiros e demais organizações.
Embora o referido PL 832/2013 tenha sido retirado de tramitação
após a mobilização dos carroceiros no ano de 2014, ele foi desmembrado
e reapresentado na forma dos Projetos de Lei, nº 142/2017 e nº 154/2017,
dessa vez com prazo de quatro anos para a proibição total da tração animal
no município. O PL 142/2017 foi aprovado em primeiro turno em 04 de
julho de 2017 e, desde então, a mobilização dos carroceiros conseguiu que
302 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

ele fosse retirado de pauta em diversas oportunidades, inclusive como


efeito da ampla articulação junto a movimentos de defesa do meio ambi-
ente e dos direitos humanos (ACCBM, 2018c, 2018d, 2020). Houve
inclusive uma recomendação da Defensoria Pública do Estado de Minas
Gerais especializada em direitos humanos, coletivos e socioambientais
(2019), para que houvesse processo de consulta e participação dos carro-
ceiros no processo, uma vez que eles configuram uma comunidade
tradicional. Todavia, no dia 15 de dezembro de 2020, o PL 142/217 foi apro-
vado em segundo turno pela CMBH. Ressalte-se que a votação se deu em
meio a pandemia de COVID-19, cerceando ainda mais o direito dos carro-
ceiros e carroceiras à participação. No dia 21 de dezembro, foi realizada
mais uma grande carroceata na região central de Belo Horizonte, o que
resultou em um acordo com o prefeito, que se comprometeu a se reunir
com os carroceiros antes de tomar qualquer decisão sobre o veto ou a san-
ção do projeto. Ignorando a ampla campanha #vetakalil, entretanto, o
prefeito sancionou a Lei 11.285 em 22 de janeiro de 2021.
Durante o processo descrito nos parágrafos anteriores, frente a todas
as tentativas de criminalização em curso, os carroceiros decidiram pela
criação da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos(as) de Belo
Horizonte e Região Metropolitana (ACCBM), fundada em agosto de 2018.
Importante destacar que no estatuto da fundação constam os “dez manda-
mentos do carroceiro”, que visam reafirmar os princípios éticos de relação
com os animais e com a sociedade. Naquela ocasião, os carroceiros e car-
roceiras declararam seu autorreconhecimento como comunidade
tradicional e seu interesse no processo de certificação junto a Comissão
Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
Por fim, é preciso destacar que todo esse processo, desde 2013, tem
sido marcado pela violência contra a comunidade carroceira. Seja em pro-
nunciamentos em audiências públicas, sessões ordinárias da CMBH, em
Volume 9 | 303

sites e em outras mídias, tanto parlamentares quanto ativistas da liberta-


ção animal se referem aos carroceiros de forma recorrente com discursos
de ódio, tratando-os como "vagabundos", “bárbaros”, "selvagens", “trafi-
cantes”, “doentes mentais”, "cruéis", dentre outros termos. A
disseminação desse discurso de ódio tem tornado os carroceiros alvos de
hostilidade pela população em seu cotidiano de trabalho, provocando he-
sitação e desconfiança em seus clientes, majoritariamente da classe média.
São inúmeros os relatos de carroceiros que sofreram violência verbal no
exercício de seu trabalho.

3 O mundo carroceiro

O modo de vida carroceiro envolve uma extensa rede de relações in-


terespecíficas e interétnicas que produzem formas singulares de
socialidade e de territorialização. Embora a relação entre equinos e huma-
nos seja central na vida carroceira, é notável a existência de muitas
espécies animais e vegetais nos quintais e terreiros dessas famílias, que
manejam cavalos, asnos, burros, galinhas e cabras, além de capim e plan-
tas medicinais.
O trabalho em parceria com os cavalos é orientado, obviamente, para
a geração de renda para as famílias carroceiras. Se em fins do século XIX
os tropeiros e muladeiros dos quais descendem se dedicavam ao trans-
porte de água e gêneros alimentícios, hoje os carroceiros atuam no
majoritariamente no transporte de resíduos sólidos. São contratados para
transportar podas de árvores, entulhos e móveis descartados. Esses mate-
riais são destinados às Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes e
Ecopontos (Figura 1). Além disso, as carroças são usadas para pequenas
mudanças, transporte de materiais de construção de casas e para o deslo-
camento de pessoas, como em visitas a parentes e amigos e no transporte
das crianças para a escola.
304 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 1 – Rotina de trabalho carroceiro.

Fonte: Ricardo A.P. de Oliveira

Como dito anteriormente, a vida carroceira, que compõe a paisagem


da capital e das cidades da região metropolitana, é composta de diversos
saberes herdados dos antigos tropeiros, ciganos, indígenas e quilombolas,
saberes estes transformados e atualizados no contexto urbano e rururbano
em que vive essa comunidade. A seguir apresentamos uma breve descrição
do modo de vida carroceiro em suas várias dimensões.

2.1 Relações de humanos com as espécies equina, asinina e muar

A vida carroceira é possível graças às complexas relações


interespecíficas constituídas no cotidiano de humanos e animais de tração.
Muito embora a história de domesticação e coevolução entre humanos e
cavalos remonte a mais de 5 mil anos (ALVES, 2017), os saberes
carroceiros foram herdados mais diretamente dos antigos tropeiros e
Volume 9 | 305

muladeiros que habitavam a região, nas diversas comunidades rurais que


foram sendo transformadas pelo processo de urbanização.
Cavalos, burros, jumentos e mulas são as principais espécies que
compõem as comunidades carroceiras. O número de animais que vive com
cada família carroceira é variável, mas em geral são pelo menos dois. Isto
porque carroceiros e carroceiras revezam os animais nos dias de trabalho,
permitindo o descanso adequado. O número de animais que fazem parte
de cada família também está associado com o número de pessoas envolvi-
das no trabalho de carroça, bem como do espaço disponível na casa ou nos
currais e baias utilizados pelos carroceiros. Entre as raças de cavalo, des-
tacam-se: Mangalarga comum, Mangalarga paulista, Campolino, Quarto
de milha, Bretão, Crioulo, Pecherrão, Árabe, Comum e Mangolino. As prin-
cipais raças de jumento, mulas e burros são: Pega, Espanhol e Campolino.
Embora burros e mulas sejam, na verdade, resultado do cruzamento entre
cavalos e jumentos, as raças deste último é que são utilizadas para sua
caracterização pelos carroceiros. Há também um grande número de deno-
minações utilizadas para as pelagens dos animais, referindo-se tanto a
coloração quanto a combinação das cores e padrões de coloração do corpo
destes animais. Os carroceiros relatam os seguintes tipos de pelagem:
branco, rosilho, rosado, bargado, pampa (pampa de baio, pampa de casta-
nho, pampa de preto, pampa de queimado, baio (baio, baio joão-de-barro,
baio saburuno, baio louro, baio marfim), apaluzo, castanho (castanho
claro, castanho escuro, castanho roxo), cardão, alazão, preto, tordilho, zu-
lego, rosio moura, pombo/gás/albino, pelo de rato, ferreira. Essa
expressiva diversidade de nomenclaturas sugere a riqueza do patrimônio
biocultural associado ao modo de vida carroceiro.
O trabalho entre carroceiros e animais de tração exige uma densa e
refinada de comunicação interespecífica. Para trabalhar na carroça, os
animais passam por um processo de doma e amansamento. Em geral, o
306 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

animal começa a ser amansado com três anos de idade e envolve dois
momentos. Primeiramente caminha-se com o animal no cabresto durante
um período de três a seis meses. Após esse período, passa-se a charretear
com o animal em dias alternados, em locais planos, para que ele possa se
acostumar com a arreata e pare de sentir “cócegas”. Para traquejar, ou
seja, para que o animal esteja de fato apto ao trabalho na carroça, todo o
processo pode levar um ano. Nem todos os carroceiros e carroceiras têm
os saberes necessários para amansar, havendo indivíduos especializados
nessa tarefa.
A convivência entre carroceiros e animais é marcada por variados
processos comunicativos, que incluem comandos de voz, movimentos das
rédeas e movimentos corporais. No caso dos animais, o olhar, a posição e
movimentos das orelhas e do rabo são os principais sinais utilizados para
se comunicar com os carroceiros. Por outro lado, os animais são capazes
de reconhecer seus companheiros humanos pelo cheiro, voz e até pelo som
do carro, mesmo à distância. É importante também destacar que todos os
animais têm nomes e por eles são tratados no dia a dia. Evocando o nome
do animal, os comandos são enunciados: “vamo sô (nome do animal)”
para andar; “psiu!” para parar e “sons de beijinhos” para começar a andar.
Ao contrário do que alegam os grupos e movimentos que tentam cri-
minalizar o modo de vida carroceiro, os animais são sujeitos que fazem
parte das comunidades carroceiras, parceiros e companheiros de trabalho.
Como grande parte dos carroceiros nas periferias das cidades não têm
acesso a currais, de forma recorrente os animais compartilham a habita-
ção com seus companheiros humanos, vivendo em baias no quintal e
terreiros das casas.
Por fim, é importante descrever as relações de cuidado dos carrocei-
ros com seus companheiros animais. Todos os dias, a rotina do carroceiro
se inicia pelo preparo dos animais para o trabalho. Isso geralmente implica
Volume 9 | 307

em banho, raspagem e fornecimento de alimento (Figura 2). Os alimentos


fornecidos para os animais são diversos, variando sua quantidade e com-
posição a depender do porte e idade do animal, dos recursos disponíveis e
do acesso a pastagens. Entre os alimentos utilizados no cuidado com os
animais destacam-se: feno, alfafa, capim (de diversas espécies, descritas a
seguir), palha de milho, cana, milho triturado, farelo de trigo, rapadura,
sal mineral, banana, cenoura e suplemento alimentar.

Figura 2 – Fotos dos trabalhos humano e animal

Fonte: Alexandre Rezende (foto superior à esquerda), Ricardo A.P. de Oliveira (demais fotos)

Os saberes associados ao modo de vida carroceiro incluem práticas


de cuidado, higiene, alimentação, bem como a fabricação e a manutenção
das carroças, instrumentos do trabalho humano e animal.
Os cuidados com a saúde dos animais envolvem uma mescla entre
práticas tradicionais e o acesso a tratamentos da medicina veterinária. No
último caso, busca-se o tratamento no Hospital Veterinário da
308 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Universidade Federal de Minas Gerais, clínicas particulares, por meio do


atendimento esporadicamente prestado pelo poder público e por projetos
de extensão universitária voltados ao atendimento dos animais dos
carroceiros. O cuidado de enfermidades corriqueiras ocorre a partir de
saberes tradicionais relativos ao uso de plantas como barbatimão, orelha
de cachorro, folha de algodão, picão, transagem, fumo de rolo, conta de
lágrima, sabugo de milho, caninha bambu, alho roxo, eucalipto e
assapeixe. Outros materiais são utilizados no preparo desses tratamentos,
como sal torrado, sal fino, chifre de boi, enxofre, querosene, cupim preto,
terra de formigueiro, cinza de fogão e óleo de cozinha. Além dos
medicamentos tradicionais, frequentemente recorre-se ao sagrado para a
busca da cura por meio de benzeções e unções, respectivamente por
católicos e evangélicos. Existem muitas outras formas de cuidado com os
animais que trabalham. Os carroceiros dizem ser importante garantir a
convivência dos animais de tração com outras espécies, tais como gatos,
cachorros e passarinhos, para a purificação e a proteção contra mau-
olhado. Para este fim também dizem ser importante o uso de apetrechos
vermelhos nos pés (patas traseiras).

4 O território carroceiro

O território habitado pelos carroceiros abrange Belo Horizonte e al-


guns municípios da Região Metropolitana. O modo de vida carroceiro é
caracterizado por grande circulação ao longo do território ocupado, seja
na rotina de trabalho de carretos e transportes, seja na realização de ca-
valgadas, visitas a amigos e parentes, catiras e coleta de gramíneas para
alimentar os animais.
A quase totalidade das famílias carroceiras vive em bairros de
periferia, vilas e favelas, mas sua rotina de trabalho envolve sobretudo
bairros de classe média, onde reside grande parte de seus clientes. É
Volume 9 | 309

comum também o deslocamento entre cidades, pois parte dos carroceiros


vive nas regiões limítrofes entre Belo Horizonte e outros municípios. Em
geral, carroceiros e carroceiras trabalham nos bairros vizinhos ao que
residem.
Como dito anteriormente, muitos cavalos vivem em baias construí-
das nos próprios quintais ou terreiros das casas de carroceiros. Outros,
por outro lado, vivem em currais coletivos, utilizados por mais de uma
família carroceira. Nos bairros mais afastados do centro da capital, é fre-
quente a existência de pastos. Os currais coletivos e os pastos estão
localizados em áreas públicas ou privadas, sendo estas últimas em regime
de aluguel ou cessão de uso, geralmente por acordos informais.
As beiras de córregos, lotes vagos e áreas verdes remanescentes tam-
bém constituem importantes elementos do território carroceiro. Nesses
espaços são coletados capins de diversas espécies, que são posteriormente
triturados e servidos aos animais como alimento. Há um importante saber
ecológico dos carroceiros sobre a taxonomia e ecologia dessas espécies de
capim. Dentre as principais espécies manejadas estão o capim elefante, ca-
pim napiê, capim angola/capim meloso, colonhão, capim napiê roxo e
gramão.
É comum também casos de carroceiros que deixam os animais soltos
parte do dia, para que possam pastar em lotes e outras áreas. Isto tem sido
um dos principais elementos mobilizados dentro do conflito ambiental en-
tre carroceiros e ativistas da libertação animal. A livre circulação de
animais em vias públicas pode provocar acidentes de trânsito e a busca
por alimento em sacos de lixo. No entanto, essa situação precisa ser enten-
dida dentro do histórico de avanço da urbanização nas cidades, com
redução de áreas verdes e extinção da zona rural. Assim, uma prática antes
suportada em uma paisagem mais verde, agora resulta em conflitos em
310 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

cidades cada vez mais impermeabilizadas, sem espaços para cavalos, ár-
vores ou córregos.

5 Saberes da carroça

As carroças mobilizam e são produzidas por diversos saberes associ-


ados a técnicas de construção e de condução, sendo artefatos centrais no
modo de vida dessa comunidade. São feitas por componentes de ferragens
e madeira, como jogo de rodagem, jogo molas espiral, caçamba (compos-
tas pela prancha, as laterais fixas e tampas removíveis), jumelo, varal,
contra-varal, corrimão, para-pé, barrotes, freios de borracha ou tambor.
As peças metálicas são basicamente parafusos e argolas, as quais são utili-
zadas para fixar componentes da arreata (cuadeira, recuadeira) e
correntes para travar na arreata. As madeiras mais utilizadas atualmente
para a fabricação das carroças são o roxinho, paraju e angelim.
As carroças antigamente, até cerca de quarenta anos atrás, eram
compostas por uma única prancha, sem laterais ou tampas, geralmente de
madeiras de braúna e/ou peroba rosa. Eram carroças “no toco”, como di-
zem os carroceiros, com sistema de freio rudimentar composto por
borrachas fixas em dois bastões de madeira posicionados atrás das rodas.
As carroças atuais, devido ao sistema de rodagem de dimensões menores,
bem como pelo tipo de madeira utilizada, se tornaram mais leves, deman-
dando menos esforço físico dos animais e dos carroceiros durante
trabalho.
A aquisição das carroças pode se dar tanto por meio de catiras, com-
pras direto em fazedores de carroça ou por meio da fabricação caseira
pelos próprios carroceiros. As carroças feitas por fábricas ou profissionais
especializados chega a custar R$5mil, construída com todos os componen-
tes novos. Mas a carroça caseira, que pode incluir o reaproveitamento de
Volume 9 | 311

peças e outros componentes, e feita pela mão de obra dos próprios carro-
ceiros, pode ter um custo de cerca de R$2mil a R$2,5mil. Há também
mestres no ofício de produção de carroças que, embora também façam
uma produção caseira de carroças, são reconhecidos como detentores de
saberes que garantem a fabricação de carroças de alta qualidade e durabi-
lidade. Esses fazedores de carroça são, de fato, mais uma das
especializações que compõem o modo de vida tradicional carroceiro.

6 As socialidades mais que humanas da comunidade carroceira

A Comunidade Tradicional Carroceira não se caracteriza pela posse


de um território com limites definidos. Antes, trata-se de uma comunidade
formada por uma extensa rede de relações entre famílias carroceiras de
Belo Horizonte e dos municípios da Região Metropolitana. Essa rede de
relações é alimentada e fortalecida pelas diversas formas de socialidade
carroceira.
Vale aqui destacar o caráter intergeracional da vida nas carroças (Fi-
gura 3). O trabalho na carroça frequentemente é herdado de pais, avós ou
tios, sendo as crianças inseridas no convívio cotidiano com os animais.
Embora em sua maioria os carroceiros sejam homens, há mulheres carro-
ceiras. Independente do gênero daquele que conduz a carroça, em alguma
medida toda a família é parte do mundo produzido pelas relações entre
humanos e cavalos. O trabalho na carroça frequentemente é feito com a
participação de um ajudante, que pode ou não ter vínculo de parentesco.
A comunidade carroceira, composta por humanos e animais, é mar-
cada pela diversidade étnica, intergeracional e de gênero, ainda que os
condutores das carroças sejam majoritariamente homens. Fonte: Alexan-
dre Rezende (fotos da figura 1, superior à esquerda e inferior à direita),
acervo ACCBM (fotos superior à direita e inferior à esquerda)
312 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Figura 3 – As famílias e diversidade carroceira

Fonte: autores.

A associação humano-equino, para os carroceiros, não é substituível


pela associação humano-máquina. A associação entre essas espécies é
parte de um modo de conceber o território, a cidade e a convivência ur-
bana. Um modo de vida é uma experiência comunitária de como viver
(INGOLD, 2019). A “identidade” se baseia sobretudo na história dos gru-
pos de que fizeram parte, dos lugares onde habitaram, das coisas que
fizeram em cada momento da vida e com quem. Essas experiências e a
ressonância delas com a de outros carroceiros é que configura a seme-
lhança entre os membros do que passaram a definir como comunidade
carroceira. A definição como comunidade carroceira se deu na última dé-
cada sobretudo em decorrência do “antigrupo” daqueles que passaram a
se mobilizar pelo fim da tração animal. Pois extinguir a tração animal é,
antes, extinguir um modo de viver.
Volume 9 | 313

Os laços de amizade, parentesco e solidariedade se estabelecem não


apenas entre carroceiros de um mesmo bairro ou cidade, mas também se
estendem por toda a RMBH. Uma das práticas importantes para alimentar
essas redes de relacionamento são as catiras. A catira é um sistema de
transação de bens e seres entre os carroceiros, baseada na confiança, em
códigos de ética e honra da palavra. Com ou sem a circulação de dinheiro,
pode-se catirar praticamente tudo, desde animais, arreatas e traias, até
outros elementos sem relação com o trabalho na carroça, como porcos,
galinhas, cabras, motocicletas etc. Aquele que adquire o bem pode fazê-lo
por meio do pagamento em dinheiro, geralmente com parcelas semanais
ou mensais, e por meio da “volta” de outros bens que sejam considerados
interessantes pela parte envolvida na catira, numa transação semelhante
ao escambo. A prestação de serviços também pode ser exercida como pa-
gamento da catira. Há, inclusive os chamados “catireiros”, sujeitos que
vivem basicamente da catira. Os catireiros em geral compram os animais
em cidades da zona rural e os revendem para os carroceiros, muitas vezes
já amansados. Embora a prática da catira seja disseminada entre toda a
comunidade carroceira, há indivíduos com maior e outros com menor ap-
tidão para a prática.
A existência da catira é atribuída frequentemente à influência do povo
cigano, o que atesta o caráter multiétnico da comunidade carroceira, com-
posta também de membros de acampamentos ciganos e da comunidade
quilombola de Mangueiras, em Belo Horizonte. Os ciganos, particular-
mente, são reconhecidos pelos carroceiros como exímios catireiros.
Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPVs) e
Ecopontos existem nos municípios de Belo Horizonte e Contagem, e estão
em processo de implementação em Ibirité e Santa Luzia. São outros
espaços importantes de encontro entre os carroceiros. Esses
equipamentos públicos destinados ao recebimento de resíduos
314 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

transportados pelas carroças são também espaços de convívio e trocas de


saberes e experiências.
A Comunidade Tradicional Carroceira também está em estreita rela-
ção com outros grupos que têm na relação com os equinos a base de suas
práticas, tais como as comitivas de cavalgada e de muladeiros, bem como
os ferradores. Ao longo de todo o ano, em geral nos finais de semana, esses
grupos realizam cavalgadas por diversos trajetos em Belo Horizonte e nas
cidades da RMBH. Esses eventos geralmente têm festas realizadas em cur-
rais ou pequenos ranchos como desfecho. Algumas dessas cavalgadas
também são realizadas como parte de festividades e celebrações religiosas,
especialmente de santos católicos. A maioria dos carroceiros é assídua a
esses eventos, comparecendo com suas próprias carroças ou charretes.
Frequentemente também participam com seus animais de sela, ao invés
dos animais que trabalham nas carroças. As cavalgadas também são mo-
mentos de fazer catiras e trocar saberes.
Todas essas formas de socialidade entre humanos, cavalos, jumentos,
burros e mulas conformam também uma linguagem própria, tanto oral
como corporal. Os modos carroceiros de se vestir, falar e perceber a cidade
são resultado dessa rede de relações interespecíficas produzidas na vida
com esses animais. Vários termos, palavras e expressões, próprias da lida
com os animais, currais, baias e carroças, distinguem o modo de vida car-
roceiro dos outros habitantes dessas cidades. Aliás, os carroceiros e
carroceiras são facilmente reconhecidos e são assim denominados pelos
outros grupos da sociedade, inclusive pelos ativistas da libertação animal.
A afirmação de que “a cidade é nossa roça” também se estende para o
campo da linguagem. As entonações, ritmos e sotaques “roceiros” são fa-
cilmente identificados nas conversas entre carroceiros.
Volume 9 | 315

7 O autorreconhecimento como comunidade tradicional:

Em 2018, como parte do processo de pesquisa e assessoria ao movi-


mento dos carroceiros frente às tentativas de criminalização de seu modo
de vida, iniciamos com eles a construção do seu Protocolo Comunitário
Biocultural, o qual ainda se encontra em vias de publicação. Paralelamente,
com o apoio de diversas organizações, como a Comissão Pastoral da Terra
e a Cáritas Brasileira – MG, apoiamos a criação da Associação dos Carro-
ceiros e Carroceiras Unidos(as) de Belo Horizonte e Região Metropolitana.
Ao longo das inúmeras reuniões, oficinas e encontros, os elementos
de tradicionalidade do modo de vida carroceiro se tornaram cada vez mais
explícitos e mobilizados nos discursos frente aos agentes do Estado e tam-
bém aos ativistas. Embora vereadores e outros atores que apoiavam a luta
acionassem a defesa do direito ao trabalho como elemento central da dis-
puta, os carroceiros sempre destacavam as dimensões de seu modo de vida
para além da dimensão econômica, enfatizando as socialidades, os afetos
e os saberes tradicionais que compõem as relações e coletivos multiespe-
cíficos produzidos com seus companheiros animais. A dimensão
comunitária da vida nas carroças também se tornou cada vez mais evi-
dente na atuação política de enfrentamento aos projetos de lei em curso.
Desta maneira, na assembleia de fundação da ACCBM, em agosto de 2018,
os carroceiros e carroceiras então reunidos se autodeclaram como Comu-
nidade Tradicional e passam a assim se apresentar nas arenas do conflito
ambiental em torno da disputa pelos sentidos das carroças e das relações
humano-animal (Figura 4). Naquela ocasião, os carroceiros e carroceiras
também declararam seu interesse no processo de certificação junto a Co-
missão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
Em janeiro de 2021, na Praça da Estação, região central de Belo Ho-
rizonte, a Comunidade Carroceira decide então enviar à Comissão
Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais o pedido de emissão da
316 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

certidão de autodefinição. O local de realização desta assembleia tem um


significado histórico importante para a comunidade carroceira, uma vez
que até por volta da década de 1970 era ali que centenas de carroceiros
aguardavam a chegada dos trens que traziam alimentos e diversos outros
itens que então eram levados pelas carroças até seus mais diversos desti-
nos.
No dia 25 de fevereiro de 2021, em Plenária Extraordinária, a CEPCT-
MG aprovou por unanimidade o pleito da Comunidade Carroceira. Em-
bora a garantia do direito de autodeclaração já esteja previsto nos
dispositivos legais existentes, de forma destacada na Convenção 169 da
OIT, o procedimento de emissão de certidão de autodefinição previsto na
legislação que regulamentou a criação da CEPCT tem se mostrado um im-
portante instrumento para o reconhecimento e garantia dos direitos dos
povos e comunidades tradicionais pelas políticas públicas.
Este processo em curso de habitar a categoria comunidade tradicio-
nal não se deu livre de controvérsias conceituais e táticas. Os carroceiros,
assim como nós enquanto pesquisadores, fomos (e ainda somos) constan-
temente acusados de estar “inventando cultura” ou mesmo de imprimir
um certo tipo de identitarismo em uma pauta que seria supostamente re-
lacionada estritamente às relações de trabalho. De fato, alguns
parlamentares que se aproximaram do movimento dos carroceiros ao
longo dos anos por diversas vezes os incentivaram a criar um sindicato.
Todavia, as atividades de produção exercidas por carroceiros e animais na
cidade, não são só alheias às formas de trabalho capitalistas como também
podem ser entendidas como uma negação e recusa tácitas a esse tipo de
relação. Carroceiros e carroceiras de forma reiterada manifestam em seus
discursos o prazer de trabalhar sem estarem subjugados à dominação e
humilhação de patrões. Somam a isso a alegria de possuírem uma auto-
nomia e controle do tempo, ainda que relativos.
Volume 9 | 317

Figura 4 – As lutas e a organização da Comunidade Tradicional Carroceira

Fonte: autores.

Acima e canto inferior esquerdo, carroceata contra o PL 142/2017,


que previa a extinção da tração animam em BH. No canto inferior es-
querdo, registro da fundação da ACCBM, em agosto de 2018. Fonte: acervo
ACCBM
A posição que a associação dos carroceiros afirmou publicamente foi
a de que estipular um prazo para a extinção do grupo é absurdo por si só.
318 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Além disso, estavam ressentidos com o descumprimento de dois compro-


missos assumidos pelo prefeito em reunião realizada em 2017:
primeiramente, que o município instalaria uma comissão envolvendo to-
dos os grupos implicados na questão da tração animal, incluindo as
secretarias municipais pertinentes, carroceiros, pesquisadores e ativistas.
Além disso, vetaria quaisquer projetos aprovados na câmara que viessem
a prejudicar os trabalhadores. Nem a comissão foi formada, nem o veto
total foi feito.
A depender de onde estávamos, quando os carroceiros batiam no
peito dizendo que têm orgulho de ser carroceiros e que querem continuar
a sê-lo para todo o sempre, era comum que gestores públicos e ativistas da
libertação animal olhassem com descrença para aquelas afirmações que
lhes pareciam absurdas. Para boa parte dos atores com os quais passamos
a interagir, havia uma certeza subentendida de que eles só trabalhavam
com carroças porque “não tinham outras opções”.
No âmbito acadêmico, a redução do modo de vida dos carroceiros à
condição de trabalhadores precários se coaduna com uma perspectiva eco-
nomicista que, ao modo das novas colonialidades engendradas pelo
projeto neoliberal, conduz a um apagamento das diversas ontologias e cos-
mologias que habitam a cidade. Situação análoga pode ser aplicada a
situação dos pescadores e garimpeiros artesanais do Rio Doce, atingidos
pelo crime da Samarco/Vale/BHP. Embora afirmem suas atividades como
parte de um modo de vida que inclui uma extensa rede de socialidades e
agenciamentos de coletivos multiespecíficos, a Fundação Renova, respon-
sável pelos processos de reparação, insiste em tratar esses grupos como
simples trabalhadores, no intuito de limitar suas obrigações ao pagamento
de indenizações por perdas econômicas.
Ao afirmarem em seu lema de luta que “a cidade é nossa roça”, a
Comunidade Carroceira destaca seu desejo de seguir produzindo seus
Volume 9 | 319

próprios mundos no espaço urbano. Não se trata apenas de garantia de


alternativas de fonte de renda e reinserção no mercado de trabalho. Trata-
se do direito à autonomia, à memória e a constante produção e cuidado
das relações mais que humanas que estabelecem com os animais, na
medida em que coabitam ruas, baias, quintais, pastos e currais.

Considerações finais

A luta da Comunidade Carroceira de BH e Região Metropolitana tem


importantes implicações para a mobilização e operação política e concei-
tual da tradicionalidade e das relações humano-animal. Por se tratar de
uma comunidade essencialmente urbana, explicita a diversidade de mun-
dos que compõem e habitam as cidades, ainda que o discurso hegemônico
reproduza o ideal nunca alcançado do total controle das naturezas, seja
pelo domínio do asfalto, dos cursos das águas ou de onde as plantas e ani-
mais podem ou não vicejar.
Os carroceiros também reivindicam o alargamento do conceito de po-
vos e comunidades tradicionais, abrangendo não apenas grupos cujo
território físico seja facilmente delimitável por georreferenciamento, mas
também comunidades constituídas por redes fluidas e em movimento,
compondo sempre novas paisagens e escapando aos modos convencionais
de se pensar e categorizar as comunidades. Por outro lado, a condição de
trabalhador, assumida pelos animais em sua relação com seus companhei-
ros humanos, também nos convida e reordenar a categoria comunidade
tradicional, não apenas como grupos humanos com formas próprias de
manejo ecossistêmico, mas enquanto comunidades multiespecíficas que
produzem paisagens, ecologias e formas de existências diversas e em cons-
tante transformação.
O conflito ambiental vivido pela Comunidade Carroceira também re-
vela o autoritarismo e o etnocentrismo que marca os movimentos de
320 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

libertação animal e seus possíveis desdobramentos para a garantia dos di-


reitos dos povos e comunidades tradicionais. Exemplo disso é a recente
tentativa de criminalização do abate religioso de animais pelas tradições
de matriz africana, por movimentos de libertação animal através de ação
no Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (OLIVEIRA et al.
2020). Embora tenha sido derrotada no Supremo Tribunal Federal, esta
ação expressa a constante ameaça que paira sobre as comunidades tradi-
cionais que se aliam a espécies companheiras (HARAWAY, 2003) animais,
de modos ontologicamente incomensuráveis com aqueles desejados pelos
ambientalismos a serviço a ideais modernizantes e evolucionistas, tanto à
esquerda quanto à direita do espectro político.
Embora o cenário de luta para os carroceiros seja desafiador, o au-
torreconhecimento como comunidade tradicional tem gerado
desdobramentos importantes. Ao longo do processo, tem ocorrido uma
aproximação com comunidades carroceiras de outras regiões do país,
como Montes Claros (MG), Juiz de Fora (MG), Itajubá (MG) e Natal (RN).
Além disso, a compreensão do modo de vida carroceiro para além da di-
mensão econômica ganhou maior espaço no tratamento das mídias sobre
a questão e na relação com movimentos sociais, partidos políticos e a aca-
demia.
Diante da luta da comunidade carroceira e dos mundos produzidos
por esse coletivo mais que humano, parodiamos Chico Buarque, e àqueles
que pensam que a História é carroça abandonada numa beira de estrada
ou numa estação inglória, afirmamos que a História é uma carroça alegre
cheia de um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a ne-
gue.
Volume 9 | 321

Agradecimentos

Este trabalho é resultado de um longo processo de pesquisa-exten-


são-militância junto a comunidade carroceira de Belo Horizonte. Todo
nosso agradecimento aos carroceiros e carroceiras que nos acolheram e
nos ensinam outros modos de viver e produzir a cidade. Também agrade-
cemos aos movimentos sociais e coletivos que tem se somado nesse grande
esforço para garantia do direito de existir. Em meio a tantas violências e
dores, nossas alianças são também fonte de esperança em um em um con-
texto de avanço do autoritarismo do racismo e aniquilação da diversidade
da vida. Seguimos na luta pela “roça grande”.

Referências

ALMEIDA, Vanessa de. Acidente de trabalho e perfil sócio e econômico de carroceiros


em Belo Horizonte nos anos 2001 e 2002. 2003. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, 2003.

ALVES, R..R.N. The etnozoology role working animals in traction and transport. In.
Ethnozoology: animals in our lives. Alves, RRN & Albuquerque UP (org.). Academic
Press, 2017, p. 339-350.

BRANDÃO, C. R.; LEAL, A. Comunidade tradicional: conviver, criar, resistir. Revista da


ANPEGE, v. 8, n. 09, p. 73-91, 2012.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

HARAWAY, Donna. The companion species manifesto: dogs, people, and significant
otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2003.

INGOLD, Tim. Antropologia: para que serve? Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

LOPES, Nian Pissolati. Homemcavalo: uma etnografia dos carroceiros de Belo Horizonte.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2013.
322 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

OLIVEIRA, Ricardo Alexandre Pereira. Carroça Livre: uma etnografia com os carroceiros
e cavalos da vila São Tomás e adjacências. – Belo Horizonte. Dissertação (mestrado)
– Universidade Federal de Minas Gerais, 2017.

OLIVEIRA, I..M.; NETO, P.M.F., OLIVEIRA, L.Q., LIMA, C.G.S., CHAGAS, E.M.D. Povos de
terreiro, abate religioso de animais não-humanos e a efetivação dos direitos à
liberdade religiosa e à segurança alimentar e nutricional. In.: Francisco Gilson
Rebouças Porto Júnior et al. (org). Povos originários e comunidades tradicionais.
Volume 5. Trabalhos de Pesquisa e Extensão Universitária. Porto Alegre, RS: Editora
Fi, 2020, p. 202-220.

PEREIRA, K.M. Cocheiros e carroceiros na cidade de Manaus (1900-1920). Revista


Eletrônica Mutações, v. 6, n. 11, p. 018-028, 2015.

RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

TERRA, Paulo Cruz. Tudo que transporta e carrega é negro? carregadores, cocheiros e
carroceiros no Rio de Janeiro (1824-1870). Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal Fluminense, 2007.

Outras fontes consultadas

ACCBM, 2018a. Ata de reunião entre o movimento dos carroceiros unidos de Belo
Horizonte e Região Metropolitana, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente/
Gerência de Defesa dos Animais e o gabinete do vereador Gilson Reis. 20 de junho
de 2018.

ACCBM, 2018b. Ata de reunião entre a Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos(as)
de Belo Horizonte e Região Metropolitana, a Defensoria Pública Especializada em
Direitos Humanos Coletivos e Socioambientais e a Gerência de Defesa dos Animais
da Secretaria de Meio Ambiente de Belo Horizonte. 07 de novembro de 2018.

ACCBM, 2018c. Nota de apoio aos direitos de carroceiros e cavalos contra o PL142/2017. 10
de setembro de 2018.
Volume 9 | 323

ACCBM, 2018d. Nota contra a terceira inclusão do PL142/2017 para votação. 14 de


dezembro de 2018.

ACCBM, 2020. Nota contra o PL142/2017. 31 de janeiro de 2020.

CMBH, 2013. Projeto de Lei nº 832/2013. Dispõe sobre a criação do Programa BH de bem
com os animais e redução gradativa do número de veículos de tração animal.

CMBH, 2017a. Projeto de Lei nº142/2017. Dispõe sobre a criação do Programa de Redução
Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e Humana no Município de Belo
Horizonte.

CMBH, 2017b. Projeto de Lei nº 154/2017. Autoriza o poder executivo a elaborar estudos e
parcerias para implantação do projeto “carreto do bem”.

CMBH, 2017c. Ata da 25ª reunião ordinária da comissão de administração pública da


câmara municipal de Belo Horizonte, na 1ª sessão legislativa da 18ª legislatura.
Tópico II, Audiência pública com a finalidade de discutir a “situação dos carroceiros
de Belo Horizonte perante o Projeto de Lei 142/2017, que “dispõe sobre a criação do
Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e
Humana no Município de Belo Horizonte e dá outras providências”, dia 01 de agosto
de 2017.

CMBH, 2019. Projeto de Lei nº738/2019. Altera o art. 11 da Lei nº10.119, de 24 de fevereiro
de 2011.

CMBH, 2019b. Encaminhamento de criação da Frente Parlamentar Cristã. 15 de março de


2019.

CMBH, 2020. 96ª Reunião Ordinária. Votação em segundo turno do PL142/2017. 15 de


dezembro de 2020.

DEFENSORIA PÚBLICA do Estado de Minas Gerais Especializada em direitos humanos,


coletivos e socioambientais. Ofício nº139/2019. Requisição da declaração de nulidade
da tramitação do PL142/17 por não observância da consulta pública - direito
324 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

comunidade tradicional – requerimento de retirada de pauta da sessão plenária


marcada para hoje. 08 de março de 2019.

ESCOLA DE VETERINÁRIA, UFMG, 2018. Parecer técnico sobre a necessidade do uso de


ferraduras de borracha pelos equídeos de tração nas ruas de Belo Horizonte, MG. 16
de outubro de 2018.

INSTITUTO ABOLICIONISTA ANIMAL (IAA), 2015. Ação Civil Pública com pedido de
antecipação de tutela em face do Município de Belo Horizonte.

MPMG, 2018. Coordenadoria Estadual de Defesa da Fauna. Termo de Acordo formulado


no âmbito da Ação Civil Pública 6002150-15.2015.8.13.0024.

NEWTON PAIVA, Centro Universitário. Clínica de Equinos, 2018. Parecer técnico acerca da
utilização de “ferraduras” de borracha em cavalos de tração no Município de Belo
Horizonte. 16 de outubro de 2018.

SLU, 2018. Ofício 0176/2018. Resposta à solicitação da ACCBM de informações e


esclarecimentos a respeito da situação dos carroceiros, cavalos e carroças em Belo
Horizonte.

SLU, 2019. Ata da reunião entre a Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos(as) de
Belo Horizonte e Região Metropolitana e a Superintendência de Limpeza
Urbana/Presidência, Diretoria Operacional e Departamento de Mobilização Social.
20 de março de 2019.

PBH, 2016. Decreto nº16.431, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Proteção e


Defesa dos Animais do Município de Belo Horizonte.

PBH, 2019. Razões do veto integral à proposição de Lei nº49/19, originária do PL738/2019.
13 de setembro de 2019.

PBH, LEI Nº 11.285, DE 22 DE JANEIRO DE 2021. Dispõe sobre a criação do Programa de


Substituição Gradativa dos Veículos de Tração Animal no Município e dá outras
providências.
Índice remissivo de assuntos e temas deste volume

ASSUNTOS E TEMAS CAPÍTULOS


Amazônia 8, 10
Belo Monte, Usina de 3
Bem viver 7
Bracuí, rio 7
Bracuí, Comunidade Quilombola de Santa Rita do 7
Carroceira, Comunidade Tradicional 11
Cartografia social 5, 6
Conflitos ambientais 6
Conservação ambiental 4, 10
Demarcação 8
Etnobiologia 10
Extensão universitária 6
Extrativismo 8
Fauna silvestre 4
Faxinais 9
Imagens 9
Imobiliária, especulação 7
Indígenas 3, 6
Juatinga, Reserva Ecológica Estadual de 2
Marambaia, Quilombo da Ilha de 1
Minas Gerais, estado de 5, 11
Mulheres 9
Multiespécies, estudos 11
Pataxó 6
Povos tradicionais 2, 4
Quelônios 10
Quilombolas 1, 5, 7
Quintais domésticos 9
Racismo ambiental 11
Recursos naturais 8
Reprodução animal 10
Ribeirinhos 10
Rio de Janeiro, Estado de 1, 7
Ruralidade 11
Sociocultural 3
Território e territorialidade 2, 3, 5, 7, 8
Tragédia ambiental 6
Unidade de conservação 2, 5
Índice remissivo por assuntos e temas de toda
a série de livros (coletâneas de capítulos) da RedeCT

ASSUNTOS E TEMAS VOLUMES/CAPÍTULOS


Afetividade 8/11;
Agricultura familiar e de subsistência 8/8; 9/9;
África/Diáspora Africana 2/1; 3/8; 6/7; 7/4;
Alemanha 2/2;
Amazônia 2/2; 3/3; 8/3; 9/8; 9/10; 10/3; 10/10;
Aquicultura 3/10;
Amapá, estado do 7/10;
Ancestralidade 1/6; 3/2; 3/8; 8/1;
Araponga (RJ), aldeia indígena 5/3;
Argentina 3/1;
Arte popular/Artesanato/Cestaria 8/5; 8/3;
Audiovisual/imagens 1/7; 9/9;
Bahia, estado de 3/13; 7/6;
Bananal, Ilha do (APA Cantão) 1/4;
Belo Monte, usina 9/3;
Bem viver 7/8; 9/7;
Bolívia 1/1;
Cabo Verde (Santo Antão/Alta Mira) 2/1;
Casas de comunidades tradicionais 8/9;
Caiçaras, comunidade tradicional de 3/10; 5/7; 7/2;
Canavieiras, RESEX 7/8;
Carroceira (MG), comunidade tradicional 9/11;
Cartografia social 9/5; 9/6;
Cerradeiros, comunidade tradicional de 1/8; 3/5;
Ciganos, comunidade tradicional de 10/2;
Colômbia 6/10;
Comunicação 3/15; 3/16; 3/17; 6/10; 8/6;
Conflitos ambientais/crimes ambientais/conservação 9/2; 9/3; 9/4; 9/5; 9/6; 9/10; 9/10;
ambiental
Conhecimentos, produção de 1/6; 1/8; 3/4; 4/6;
Conhecimento tradicional/saberes 1/8; 3/4; 3/22; 4/5; 5/2;
Cooperação internacional 2/2;
Corpo 3/9; 7/5; 8/3;
Cosmovisão 1/1; 3/1;
Covid-19 7/9; 10/4;
Criticidade/estudos decoloniais 5/8; 7/4; 7/7; 7/5;
Volume 9 | 327

Cultura/multiculturalismo/interculturalidade 1/1; 3/2; 3/12; 3/17; 3/20; 3/22; 4/9; 4/10; 5/1; 5/6;
5/7; 6/7; 7/1; 7/2; 7/7; 8/2; 8/3; 8/5; 8/11; 9/3; 10/1;
Danças tradicionais 3/2; 8/1;
Dendecultura 10/10;
Desmatamento 3/5;
Direitos e questões jurídicas 2/5; 2/6; 3/23; 7/1; 7/3; 7/7; 9/8;
Educação 2/2; 3/14; 4/3; 4/8; 4/9; 4/10; 5/1; 5/8; 6/3; 7/1; 7/2;
7/5; 7/6; 7/9; 7/10; 10/3; 10/6;
Educação Ambiental 7/8; 9/4; 9/8; 9/10;
Espírito Santo, estado de 5/10;
Etnobiologia 9/10;
Etnodesenvolvimento/Desenvolvimento Sustentável 2/7; 3/1; 7/8; 8/5; 9/9;
Etnografia/Imersão antropológica 2/3; 3/14; 4/1; 7/6; 8/8;
Etnomatemática 5/1; 7/2;
Extensão universitária 2/3; 4/2; 4/3; 5/4; 9/6; 10/3; 10/6;
Extrativismo/agroextrativismo 1/4; 9/8;
Faxinalenses, comunidades tradicionais 9/9;
Geração de renda 3/3;
Gerações e relações intergeracionais 8/7;
Geraizeiros, comunidade tradicional de 1/5; 2/7;
Gestão Social/comércio justo/economia solidá- 4/2; 10/9;
ria/inovação social
Grotão, comunidade quilombola 6/5;
Identidade/pertencimento comunitário 3/6; 3/12; 3/18; 5/1; 5/7; 5/5; 7/2; 7/5;
Indígenas, povos 1/7; 3/1; 3/12; 3/13; 3/15; 3/16; 3/17; 3/18; 3/19; 3/20;
3/23; 4/2; 4/3; 4/4; 4/5; 4/6; 4/8; 5/2; 5/3; 5/6; 5/8;
5/10; 6/1; 6/10; 9/3; 9/6; 10/11;
Infância e juventude de PCT 3/13; 7/6; 8/1;
Ilha Grande (RJ), Baía da 1/2; 4/1; 5/3; 5/4; 7/2; 8/8;
Imigrantes, comunidades tradicionais de 3/11; 9/9;
Jambuaçu (Mojú/PA), comunidade quilombola 10/10;
Juatinga, Reserva Ecológica 9/2;
Jurema Sagrada (PB) 10/7;
Juscelina (TO), comunidade quilombola 6/4;
Kaingang, povos indígenas 6/2;
Karipuna, povos indígenas 7/10;
Krenak, povos indígenas 6/2; 10/11;
Kurâ-Bakairi (MT), povos indígenas 4/10;
Lajeado (Dianópolis/TO), comunidade quilombola 1/6; 2/6; 3/2; 3/21; 5/5; 10/3;
Lendas e mitos 4/9;
Letos, comunidade tradicional de 3/11;
Língua/linguística 3/12;
Mangueiras (Salvaterra/PA), Vila das 6/3;
328 | Povos Originários e Comunidades Tradicionais

Makuxi (RR), povos indígenas 1/7;


Marambaia (RJ), comunidade quilombola 1/2; 9/1;
Maranhão, estado de 10/1;
Matinha (Guaraí/TO), comunidade de geraizeiros 1/5; 2/7;
Mato Grosso, estado de 3/16; 4/10; 10/9;
Matopiba 3/5;
Mêbêngôkre-Kayapó Gotirê, povos indígenas 4/8;
Memória 3/9; 5/5; 6/3; 7/9; 8/1; 8/7; 8/11; 10/11;
Mídias/internet 1/7; 3/16; 6/10; 8/4; 8/6;
Minas Gerais, estado de 4/4; 9/5; 9/11;
Missão Amazônia (UNESP) 2/3;
Mocajuba (PA) 7/4;
Mulheres 1/4; 3/7; 3/8; 6/3; 9/9;
Museologia 10/11;
Nahô Xohã (MG), comunidade indígena 4/4;
Natividade (Estado do Tocantins) 3/9;
Nhandereko Guarani-Mbya (RJ), povos indígenas 5/3; 10/8;
ODS 10/6;
Oriximiná (Pará), comunidade quilombola 3/3;
Oralidade 1/6; 8/7;
Pacoval (PA), comunidade quilombola 6/6;
Pará, estado de 3/3; 6/3; 6/6; 7/5; 10/10;
Paraíba, estado de 10/7;
Participação/controle social/conselhos 1/2; 3/12; 3/15; 3/20; 6/3;
Pataxó (sul da Bahia), povos indígenas 3/13; 9/6;
Patrimônio 8/2; 8/5; 10/11;
Peropava, comunidade quilombola 7/1;
PNAE 3/3; 6/6;
Pobreza/proteção social 6/9; 10/4; 10/7;
Políticas públicas 1/3; 2/6; 3/3; 3/18; 3/22; 3/23; 4/2; 6/6; 7/1;
Potiguara Mendonça do Amarelão, Comunidade Indí- 4/2;
gena
Povos e comunidades tradicionais (estudos gerais) 2/3; 2/4; 2/5; 3/1; 7/5; 7/6; 7/3; 8/4; 8/5; 8/8; 9/2;
9/4; 10/1; 10/2; 10/7; 10/8; 10/9;
Quebradeiras de Coco Babaçu, comunidades tradicio- 6/8; 6/9; 8/11;
nais de
Quilombola, comunidade tradicional 1/2; 1/6; 2/6; 3/2; 3/3; 3/7; 3/20; 3/21; 4/7; 5/1; 5/5;
5/10; 6/3; 6/4; 6/5; 6/6; 8/1; 8/6; 9/1; 9/5; 9/7; 10/5;
10/6; 10/10;
Redes de cooperação 5/4; 8/4;
Religião/religiosidade 5/9;
Responsabilidade Social Empresarial 2/7;
Ribeirinhos/pescadores artesanais, comunidades tra- 4/1; 7/2; 8/9; 8/8; 8/9; 9/10; 10/6;
dicionais de
Volume 9 | 329

Rio de Janeiro, estado de 1/2; 4/1; 5/3; 7/2; 9/1; 9/7;


Rio Grande do Norte, estado do 4/2;
Roraima, estado de 1/7; 3/12; 3/15; 4/6; 6/1; 6/10; 8/2;
Ruralidade 3/6; 9/9; 9/11;
Santana (MT), Aldeia indígena 4/10;
Santa Rita do Bracuí (RJ), comunidade quilombola 9/7;
São Paulo, estado de 2/8; 10/11;
São Roque, comunidade quilombola 4/7;
Saúde de povos e comunidades tradicionais 1/3; 7/9; 10/5;
Segurança Alimentar e Nutricional 3/22; 4/2; 5/9; 6/6; 9/9;
Seringueiros, comunidades de 8/10;
Tapajós, povos indígenas 5/6;
Terceiro setor 2/2;
Terenas, comunidades indígenas 3/16; 6/2;
Terras indígenas 2/8; 9/7; 9/8;
Terreiros, povos de 5/9; 10/7;
Território/territorialidade 1/4; 1/8; 2/1; 2/6; 3/6; 4/5; 6/4; 6/5; 6/8; 8/10; 9/2;
9/3; 9/5; 9/7; 9/8;
Tocantins, estado de 1/3; 1/4; 1/5; 1/6; 2/2; 2;3; 2/6; 2/7; 3/2; 3/7; 3/9;
3/19; 3/21; 4/8; 5/2; 5/5; 6/4; 6/5; 6/8; 6/9; 10/3;
10/8;
Truaru da Cabeceira (RR), povos indígenas 4/6;
Turismo 3/11; 4/7; 10/8;
Universidade/Cotas/Acesso 3/19; 3/21; 4/3; 5/2; 5/8;
Vanuíre (Arco-Íris/SP), Terra Indígena Índia 2/8; 6/2; 10/11;
Varpa (Tupã/SP), comunidade leta de 3/11;
Violência/Racismo/Preconceito 2/4; 3/7; 6/7; 9/11;
Xerente/Akwe-xerente (TO), povos indígenas 1/3; 3/14; 8/7;
Waraó, povos indígenas 6/1;
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