Globalização e Os Fundamentos Da Cidadania

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 437

IV SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO

“Globalização e os fundamentos da cidadania”

Franca - UNESP
2021
UNESP – Universidade Estadual Paulista

Reitor
Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini

Vice-Reitor
Prof. Dr. Sérgio Roberto Nobre

Pró-Reitor de Pós-Graduação
Prof. Dr. João Lima de Sant’Anna Neto

Pró-Reitora de Pesquisa
Prof. Dr. Carlos Frederico de Oliveira Graeff

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


Diretor
Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Vice-Diretora
Profª. Drª. Nanci Soares

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca


Presidente
Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Membros
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa
Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes
Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti
Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira
Profa. Dra. Elisabete Maniglia
Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca
Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz Engler
Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva
Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França
Prof. Dr. José Duarte Neto
Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira
Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille
Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina
Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges
Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira
Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason
Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães
Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino
Prof. Dr. Murilo Gaspardo
Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira
Jackeline Ferreira da Costa
Murilo Gaspardo
(Organizadores)

IV SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO


“Globalização e os fundamentos da cidadania”

Câmpus de Franca
2021
© 2021 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Franca - Contato
Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca – SP
[email protected]
Diagramação e Revisão
Laura Odette Dorta Jardim (DTBD)
Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE)
Carlos Alberto Bernardes (STAEPE)
Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira
Márcio Augusto Garcia - ASS. ADM
Lucas Laprano
Giovanna Butrós de Oliveira
Coordenação Científica Organização dos Anais
Prof. Dr. Murilo Gaspardo Prof. Dr. Murilo Gaspardo
Prof. Dr. José Duarte Neto Adolfo Rafael Silva Mariano de Oliveira
Prof. Dr. José Carlos de Oliveira Jackeline Ferreira da Costa
Prof. Dr. Daniel Damásio Borges

Comissão Organizadora
Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Jackeline Ferreira da Costa
Alfredo Minuci Lugato Letícia Rezende Santos
Ana Luiza Cruz Maria Luiza Rocha Silva
Ana Luiza de Abreu Paiva
Geraldo Luiz Cabreira Paes Leme Mayara Paschoal Michéias
Isabela Dias Magnani Nathália Neves Escher
Ingrid Juliane dos Santos Ferreira Renan Lucas Dutra Urban

IV Seminário de Direito do Estado : “Globalização e os fundamentos da


cidadania” / Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira, Jackeline Ferreira da
Costa, Murilo Gaspardo (organizadores). – Franca:UNESP – FCHS, 2021.

438 p.
ISSN: 2526-0391

1. Direito Público. 2. Globalização. 3. Cidadania. 4. Estado.


I. Título. II. Oliveira, Adolfo Raphael Silva Mariano de. III. Costa, Jackeline
Ferreira da. IV. Gaspardo, Murilo.

CDD – 340
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira - CRB8/8773
Índices para catálogo sistemático:
1. Estado democrático de direito ............................ 341.201
2. Direito internacional público .................................. 341.1
3. Globalização ........................................................... 338.9
4. Democracia ......................................................... 341.234

PROGRAMAÇÃO

22/11/2016 (terça-feira)

Anfiteatro II
9h – 10h: Recepção e credenciamento dos participantes.
10h – Abertura e apresentação do Coral da FCHS/UNESP.
10h30 – Debate “Globalização e a efetividade dos direitos de cidadania”.
Mediador: Prof. Dr. José Carlos de Oliveira (DDPB/FCHS/UNESP).
Debatedores: Professores do Departamento de Direito
Público da FCHS/UNESP.

Anfiteatro II
19h – Recepção. 19h30 – Conferência: “Modelos transnacionais de
participação dos cidadãos”.
Conferencista: Prof. Dr. Giovanni Allegretti (Centro de Estudos Sociais –
Univ. de Coimbra, Portugal).
Coordenadora: Professora Dra Jete Jane Fiorati. (DDPB/FCHS/UNESP)
Debatedor: Professor Doutor Daniel Campos de Carvalho (UNIFESP).

23/11/2016 (quarta-feira)

9h - 12h e 14h - 17h: apresentações de trabalhos de pós-graduação e


iniciação científica (Salas de aula da FCHS/UNESP).

Anfiteatro II
19h - Recepção. 19h30 - Debate: “Governança global e democracia”.
Debatedores: Prof. Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias (Faculdade de Direito de
Ribeirão Preto/USP) e Prof. Dr Murilo Gaspardo (DDPB/FCHS/UNESP).
Coordenadora: Profa. Dra. Fernanda Mello Sant'Anna (DERI/FCHS/
(UNESP)
24/11/2016 (quinta-feira)

9h - 12h e 14h - 17h: apresentações de trabalhos de pós-graduação e


iniciação científica (Salas de aula da FCHS/UNESP).

Anfiteatro II
19h - Recepção. 19h30 - Conferência: “Cidadania e inovação institucional
na esfera global: as propostas de criação da Corte Penal Latino-americana
e da Assembleia Parlamentar da ONU”.
Conferencista: Prof. Fernando Iglesias (UCES e Univ. de Belgrano,
Argentina. Presidente del Consejo del World Federalist Movement).
Coordenador: Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges (DDPB/Coord. do
Programa de Pós-graduação em Direito/FCHS/UNESP).
Debatedor: Prof. Dr. Fernando Fernandes (DDPB/FCHS/UNESP).

25/11/2016 (sexta-feira)

Anfiteatro II
9h - Recepção. 9h30 - Conferência: “A interação entre os planos
internacional e constitucional: o papel da Constituição e a posição da
jurisdição constitucional em face da internacionalização do direito”.
Conferencista: Prof. Dr. Roger Stiefelmann Leal (Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo).
Coordenador: Prof. Dr. José Duarte Neto (DDPB/FCHS/UNESP).
Debatedor: Prof. Dr. Daniel Damásio Borges (DDPB
Público/FCHS/UNESP).
APRESENTAÇÃO

Em 2013, o Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP


organizou seu "I Seminário de Direito do Estado", o qual consistiu em duas
mesas de debates com professores convidados de outras instituições e do
próprio departamento sobre “Reforma Política nos 25 anos da Constituição
Federal de 1988”. Em 2014, nosso segundo Seminário abordou o tema
“Novas Perspectivas para a Democracia Brasileira” e, além das conferências
e debates, passou a compreender sessões de apresentações de trabalhos
de pós-graduação e graduação. Na terceira edição, em 2015, o tema foi
“Teorias da Constituição e novas concepções de cidadania”.
Nesta quarta edição do Seminário, o tema escolhido foi
“Globalização e os fundamentos da cidadania”, passamos a contar
com a participação de pesquisadores estrangeiros e tivemos um
expressivo crescimento na quantidade e diversidade de origens dos
trabalhos apresentados.
Desejamos a todos uma boa leitura e registramos nossos
agradecimentos à CAPES, que financiou este evento (PAEP 621913), à
Direção da FCHS/UNESP e ao Conselho de Departamento, a todos os
servidores técnico-administrativos da FCHS/UNESP, especialmente o
assessor do DDPB, Márcio Augusto Garcia, e aos discentes membros da
Comissão Organizadora.

Prof. Dr. Murilo Gaspardo


Departamento de Direito Público
FCHS/UNESP – Campus de Franca – SP
SUMÁRIO
TRABALHOS DE PÓS-GRADUAÇÃO
EIXO 1:
GLOBALIZAÇÃO, GOVERNANÇA GLOBAL E DEMOCRACIA

ARBITRAGEM E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O ADVENTO


DA LEI N. 13.129/2015
Renan Fernandes Duarte
Alfredo Minuci Lugato
Karina Lie Yoshi.......................................................................................17

O PROCESSO DE ACCOUNTABILITY EM UMA DEMOCRACIA


Felipe Cesar José Matos Rebêlo...............................................................29

VERMELHOS E VERDES: GUATTARI E A NOVA GRAMÁTICA


ECOLÓGICA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Felipe Henrique Canaval Gomes..............................................................49

IMPÉRIO DIGITAL MUTIDÃO CIBERNÉTICA


Fernanda Rocha de Moraes.......................................................................67

GLOBALIZAÇÃO E TUTELA PENAL: AS RESPOSTAS


DO ESTADO ANTE AS FOMAS DE CRIMINALIDADE
CONTEMPORÂNEA E A EMERGÊNCIA DE MODERNAS
TÉCNICAS INVESTIGATIVAS
Murilo Thomas Aires
Fernando Andrade Fernandes...................................................................85

AS DEMOCRACIAS E O ACOLHIMENTO AOS REFUGIADOS


DENTRO DO SISTEMA INTERNACIONAL
Geraldo Luiz Cabreira Paes Leme............................................................97
DEMOCRACIA, SOCIEDADE CIVIL, MOVIMENTOS SOCIAIS E
O ADVENTO DE UMA NOVA POLÍTICA
Jackeline Ferreira da Costa.....................................................................109

DIREITO COMUNITÁRIO SUPRANACIONAL EUTOPEU E A


INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO:
SUA REPERCUSSÃO NA DEMOCRACIA
Manoel Ilson Cordeiro Rocha.................................................................127

EIXO 2:
GLOBALIZAÇÃO, CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

O CERCEAMENTO DO DIREITO À PRIVACIDADE PELO


PODER PÚBLICO: DISCUSSÕES ACERCA DOS BLOQUEIOS
NAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS
Agnaldo de Sousa Barbosa
Louise Fernanda de Oliveira Dias
Marcus Vinícius de Faria........................................................................143

DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA TEÓRICA DE


MARTYA SEN: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A DEFESA DE
UMA POLÍTICA DE AUSTERIDADE ECONÔMICA NO ATUAL
CENÁRIO POLÍTICO-ECONÔMICO-SOCIAL BRASILEIRO
Aluísio de Freitas Miele
Marcelo Bidoia dos Santos
Luiz Gustavo Vicente Penna...................................................................165

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO


POLÍTICA: O PAPEL DO ESTADO NA QUARTA GERAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Marcelo Bidoia dos Santos
Aluísio de Freitas Miele
Luiz Gustavo Vicente Penna....................................................................183
GLOBALIZAÇÃO DA REPRESSÃO ÀS DROGAS
E TRANSNACIONALIZAÇÃO DO CONTROLE
SOCIAL: REFLEXOS NA POLÍTICA BRASILEIRA
DE REPRESSÃO ÀS DROGAS
Ana Carolina de Morais Colombaroli
Gabriel Frias Araújo
Ana Cristina Gomes................................................................................199

CASAMENTOS PREMATUROS EM MOÇAMBIQUE, UMA


VIOLAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA
Esteves Pedro Dina António Camacho...................................................213

A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE EM PERSPECTIVA


COMPARADA: AS EXPERIÊNCIAS DE BRASIL E COLÔMBIA
Fernanda de Castro Nakamura
Nathália Melazi Caobianco.....................................................................229

CIDADES GLOBAIS, RESISTÊNCIAS LOCAIS: CIDADANIA


E DIREITO À MORADIA NO CASO DA REMOÇÃO DA
VILA AUTÓDROMO PARA OS JOGOS OLÍMPICOS DO
RIO DE JANEIRO 2016
Fúlvia Maria Mendes
Victor Abdala de Toledo Piza .................................................................245

A PROXIMIDADE ENTRE IGREJA E ESTADO E A NECESSIDADE


CONSTITUCIONAL DE EXTINGUIR A ISENÇÃO DE IMPOSTOS
PARA INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS
Jéssica da Silva Belucci
Gabriel Fedoce Laranja
Paulo Eduardo de Mattos Stipp...............................................................261
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E MANICÔMIOS: A
AMBIGUIDADE DA DIGNIDADE EXISTENCIAL
Jéssica da Silva Belucci
Gabriel Fedoce Laranja
Paulo Eduardo de Mattos Stipp...............................................................273

A RACIONALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS EXECUTIVOS


FISCAIS E DA DÍVIDA ATIVA MUNICIPAL POR MEIOS
EFICAZES E ÁGEIS DE COMPOSIÇÃO E EXECUÇÃO
Juliana Balbino dos Reis
Ricardo Nunes de Oliveira......................................................................287

IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS


DO DIREITO À INFORMAÇÃO: ESTUDO DE CADO DO
PROJETO “OAB VAI À ESCOLA”
Lúcio Rangel Alves Ortiz........................................................................295

POLÍTICAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS NAS COMPRAS E


LICITAÇÕES PÚBLICAS, DIANTE DO CENÁRIO GLOBALIZADO
Silvia Cristina Mazaro Fermino
Marcela Francine Garavello....................................................................309

A INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA E SEUS IMPACTOS


NO UNIVERSO DO TRABALHO: CRISE ECONÔMICA,
DESEMPREGO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Nelma Karla Waideman Fukuoka
Victor Hugo de Almeida.........................................................................325

DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA NORMATIVA ÀS


AGÊNCIAS REGULADORAS: CUSTOS, CONTROLE E
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Renan Lucas Dutra Urban.......................................................................341
EIXO 3: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A TUTELA E
EFETIVIDADE DOS DIREITOS DA CIDADANIA

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA COMO DIREITO


INDIVIDUAL HOMOGÊNEO DE NATUREZA ASSISTENCIAL E
SUA TUTELA POR MEIO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Ana Cristina Alves de Paula
Henrique Lima de Almeida.....................................................................355

TRABALHOS DE GRADUAÇÃO
EIXO 2: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA
PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS

O DIREITO INTERNACIONAL E O COMBATE AO


TRÁFICO DE PESSOAS NO MUNDO GLOBALIZADO: O
PROTOCOLO DE PALERMO
Ana Beatriz de Araújo Cerqueira
Iatã de Almeida Barale............................................................................375

EL DESARROLLO DE LA COMPETENCIA MULTILINGÜE


COMO FORMA DE GARANTIZAR LA CULTURA DE LA PAZ
André Luís Vedovato Amato...................................................................391

CONTROLE SOCIAL E EXERCÍCIO DA ACCOUNTABILITY


VERTICAL NA INFRAESTRUTURA: AMPLIAÇÃO, CRIAÇÃO E
FORTALECIMENTO DE ARRANJOS PARTICIPATIVOS
José Augusto Marques de Souza.............................................................405

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO


POLÍTICA: FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS
NO BRASIL, NO MÉXICO E NA ESPANHA
Sofia Bertolini Martinelli........................................................................419
EIXO 1:

GLOBALIZAÇÃO,
GOVERNANÇA GLOBAL E DEMOCRACIA
ARBITRAGEM E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O
ADVENTO DA LEI N. 13.129/2015

Renan Fernandes Duarte*


Alfredo Minuci Lugato **
Karina Lie Yoshi***

INTRODUÇÃO

O cenário comercial internacional sofreu um vertiginoso


crescimento principalmente no contexto posterior à Segunda Guerra
Mundial. O processo de globalização foi o principal responsável pelo
aumento da acessibilidade dos mercados, resultando no desenvolvimento
do comércio internacional.
Nessa Nova Ordem Mundial, aumentou-se a dependência entre
os mercados, visto que nenhum país é capaz de prover todos os produtos
existentes no mercado internacional. Assim, a circulação de bens, pessoas
e dinheiro se faz imprescindível para o desenvolvimento comercial.
No entanto, o aumento das relações comerciais naturalmente
resulta no aumento de controvérsias comerciais, gerando a necessidade de
solucionar tais conflitos de forma a não prejudicar o andamento do comércio
internacional. Surgiu, assim, a arbitragem internacional como forma de
solucionar eventuais conflitos, promovendo a democracia no setor privado.
O Brasil vem ganhando destaque no assunto, mesmo tendo
ratificado tardiamente a Convenção de Nova Iorque e não tendo
assinado a Convenção de Washington para solução de conflitos
envolvendo investimentos. Ainda, historicamente, apresentou-se uma
relutância quanto à aplicação da arbitragem nas contratações públicas
(CARVALHO, 2013). A Lei n. 9.307/96 teve e tem papel importante para
o desenvolvimento da arbitragem no Brasil. Foi esta lei que proporcionou
a estruturação da arbitragem, inspirada na Convenção de Nova Iorque e
no modelo da UNCITRAL.
Além do mais, recentemente, a Lei n. 9.307/96 sofreu alterações
dadas pela Lei n. 13.129, de 26 de maio de 2015. Entre outras mudanças,
*
Mestrando em Direito na UNESP/Franca.
**
Mestrando em Direito na UNESP/Franca.
***
Mestrando em Direito na UNESP/Franca.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 17
esta lei incluiu, expressamente, a Administração Pública como possível
parte para dirimir conflitos por arbitragem conflitos, estes, que envolvam
direitos patrimoniais disponíveis.
Com essa mudança legislativa, busca-se analisar a possibilidade
de utilização da arbitragem nos contratos da Administração Pública,
a importância que a essa possibilidade tem e os possíveis motivos que
levaram à mudança na lei.
Para tanto, procura-se expor a mudança de papel que o Estado
sofreu recentemente, levando-o a se encaixar numa solução de controvérsias
de caráter privativo. Por tratar-se de pesquisa majoritariamente explicativa,
utilizar-se-á do método indutivo-dedutivo, aliado à pesquisa bibliográfica
e documental, resgatando-se à história do Estado para poder alcançar os
objetivos do estudo. Além disso, recorre-se à pesquisa da jurisprudência
nacional sobre o assunto. Então, busca-se analisar o contexto atual para
entender a mudança da Lei n. 9.307/96 e se tal mudança já era previsível no
cenário da arbitragem contemporânea, procurando concluir se a inclusão da
Administração Pública na arbitragem é do melhor interesse para o Brasil.
Com o novo papel assumido pelo Estado a partir do século XXI,
encarregado de crescentes responsabilidades para garantir os direitos
fundamentais e sociais, houve o aumento do déficit público. O Estado foi
diminuindo sua intervenção direta na economia, firmando, cada vez mais,
contratos com empresas privadas para atender as necessidades da população.
Nesse contexto, a arbitragem se faz importante para o gerenciamento das
relações entre entes públicos e privados a fim de assegurar os interesses
nacionais. No entanto, há debates e controvérsias envolvendo a hierarquia
de interesses públicos e quais devem ser resguardados antes de outros.
Importante salientar, por fim, que os contratos sobre assuntos
autorizados expressamente envolvendo a Administração Pública e
entes privados já possuíam cláusula arbitral. O que a Lei 13.129/2015
fez foi ampliar esse rol, o que pode causar preocupações sobre a
“contratualização” da função pública.

1 O ESTADO ATUAL E A ARBITRAGEM

A ideia do Welfare State engendrou a busca por um Estado que


proporcione condições mínimas de segurança e qualidade de vida a toda
população. Assim, como podemos notar pela Constituição Federal de 1988,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 18
prover os direitos humanos fundamentais - tais como saúde, segurança,
igualdade, educação, alimentação - são direitos de todos e dever do Estado1.
No entanto, tamanhas atribuições do Estado demandam fundos
econômicos capazes de suprir o custo da garantia de tais direitos a todos.
Assim, vemos que, pelo menos na realidade brasileira, os serviços públicos
geralmente são defasados, como se depreende das notícias cotidianas em
relação aos hospitais públicos, escolas públicas, corrupção nos sistemas
de segurança, entre outros. Por isso, já é do saber popular que o que
majoritariamente funciona no país são as instituições privadas, pagando-se
duas vezes (os impostos e o custo dos serviços privados) para se obter os
direitos constitucionais.
O modelo de intervenção direta na economia, entre outros fatores,
contribuiu para o aumento do déficit público (MONTEIRO, 2012, p.
109), visto que o Estado não estava conseguindo gerar condições para
proporcionar os direitos da população de maneira organizada e efetiva,
gastando mais do que podia e resultando em formas precárias de atender
as necessidades do povo.
Abre-se um novo mercado que apoia a iniciativa privada. O Estado
começa a delegar funções para que possa prover condições aceitáveis
ao desenvolvimento humano, firmando-se parcerias entre o Estado e
particulares. Em decorrência disso, as relações entre ambos para que haja
uma igualdade de tratamento mudaram, sendo crucial a questão da solução
de eventuais controvérsias, visto o temor da parte privada em se relacionar
com a Administração Pública que poderia tirar proveito de seu status.
Passa-se a dar mais relevo à igualdade de tratamento
contratual, tal como no direito privado, sem com isso deixar
de acatar as cláusulas exorbitantes, peculiares aos contratos
administrativos. À luz desses novos paradigmas, escudados
nos princípios jurídicos da igualdade, legalidade, boa-fé,
justiça, lealdade contratual, do respeito aos compromissos
recíprocos das partes etc., a Administração é conduzida
a perfilhar novos caminhos que busquem a solução
de controvérsias de modo mais rápido e eficaz para as
1
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas
e do patrimônio (...). Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado
e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 19
divergências que envolvam direitos patrimoniais disponíveis
nos contratos administrativos e que gravitam em torno das
cláusulas econômicas e financeiras. O escopo desta iniciativa
é o de preservar e conciliar interesses do concessionário e
da Administração (e dos usuários dos serviços) relativos à
boa, correta e justa governança da concessão outorgada, haja
vista tratar-se de modalidade do contrato administrativo de
colaboração (LEMES, 2003, p. 53).
As principais razões para tamanho crescimento se justificam pelo
alto número de processos instaurados no Judiciário, levando a uma lentidão
processual; maior privacidade que o procedimento arbitral proporciona;
quanto aos custos, chega-se a uma discordância de opiniões. O consultor
da FTI Consulting (grupo mundial de consultoria jurídica) Sidney Gomes
aponta que “a arbitragem é bem mais cara do que o Judiciário, mas muito
mais rápida e efetiva para uma empresa e a velocidade do julgamento se
sobrepõe ao fator custo” (ELIAS, 2016, on-line). No entanto, quanto aos
custos de transação, Selma Lemes defende que:
Pode-se dizer que as empresas entenderam as vantagens em
utilizar a arbitragem. Podem resolver com mais brevidade (em
comparação com o Judiciário) demandas contratuais e, seja
qual for o resultado (não obstante esperam sair vitoriosos em
seus pleitos), retirar de suas demonstrações financeiras esse
contingenciamento. Na linguagem econômica, reduzem-se
os custos de transação. A decisão em optar pela arbitragem
é tanto econômica como jurídica.(GRILLO, 2016, on-line)
Além das vantagens já mencionadas, a especialização é certamente
uma das que mais se destacam. Sabe-se que no Poder Judiciário, os
juízes são selecionados por concurso público e devem ter conhecimentos
sobre amplas áreas do Direito. No procedimento arbitral, os árbitros
são pessoas que trabalham na área comercial e mais especializados no
assunto, favorecendo o conhecimento mais profundo quanto às questões
postas na controvérsia. Desse modo, é mais interessante levar os conflitos
ao conhecimento de árbitros especializados, vez que “ao se possibilitar a
escolha de árbitros especializados, tanto esses quantos as partes podem
ter o mesmo grau ou graus aproximados de informação quanto à matéria
objeto do litígio” (KLEIN, 2010, p.64).
Por fim, com a recente alteração da Lei de Arbitragem, acredita-
se que o número de arbitragens pode aumentar por incluir expressamente
os contratos da Administração Pública:

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 20
Estamos vivendo um grande acréscimo no número de
arbitragens pelas instituições mais conhecidas do país
e, agora, com a reforma da lei de arbitragem que prevê
expressamente a possibilidade da sua utilização nos contratos
com a administração pública (grande contratante dos projetos
de infraestrutura), a tendência é que aumente ainda mais esta
prática no Brasil. (FREIRE apud GRILLO, 2016, on-line)

2 ARBITRAGEM DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

A arbitragem nas relações da Administração Pública foi alvo


de muitas controvérsias no âmbito jurídico. A jurisprudência quanto
ao tema não é uniforme2, levando a divergências nos casos concretos e
tornando a parte privada insegura ao realizar contratos em parceria com a
Administração Pública.
Há três questões que se destacam quanto aos motivos contrários:
a arbitragem é incompatível com a defesa do interesse público; o sigilo do
procedimento arbitral é incompatível com a transparência requerida para
os atos da Administração Pública; e que utilizar da arbitragem em questões
que envolvem o Poder Público desrespeita o princípio da legalidade, visto
que a Lei n. 9.307/1996 não tem previsão expressa dessa possibilidade.
2
INCORPORAÇÃO, BENS E DIREITOS DAS EMPRESAS ORGANIZAÇÃO
LAGE E DO ESPOLIO DE HENRIQUE LAGE. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA
DE IRRECORRIBILIDADE. JUROS DA MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA.
1. LEGALIDADE DO JUÍZO ARBITRAL, QUE O NOSSO DIREITO SEMPRE
ADMITIU E CONSAGROU, ATÉ MESMO NAS CAUSAS CONTRA A FAZENDA.
PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 2. LEGITIMIDADE DA
CLÁUSULA DE IRRECORRIBILIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL, QUE NÃO
OFENDE A NORMA CONSTITUCIONAL. 3. JUROS DE MORA CONCEDIDOS,
PELO ACÓRDÃO AGRAVADO, NA FORMA DA LEI, OU SEJA, A PARTIR DA
PROPOSITURA DA AÇÃO. RAZOAVEL INTERPRETAÇÃO DA SITUAÇÃO DOS
AUTOS E DA LEI N. 4.414, DE 1964. 4. CORREÇÃO MONETÁRIA CONCEDIDA,
PELO TRIBUNAL A QUO, A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DA LEI N. 4.686, DE
21.6.65. DECISÃO CORRETA. 5. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGOU
PROVIMENTO. (STF - AI: 52181 GB, Relator: Min. BILAC PINTO, Data de Julgamento:
14/11/1973, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 15-02-1974 PP-*****).
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO TC 003.499/2011-1. GRUPO I - CLASSE VII
- Plenário. TC 003.499/2011-1 [Apenso: TC 005.238/2011-0]. Natureza: Desestatização.
Entidade: Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Responsável: Alfredo
Pereira do Nascimento (057.276.004-30). Interessado: TCU. Advogados constituídos nos
autos: Walter Costa Porto (OAB/DF 6.098); Antônio Perilo Teixeira (OAB/DF 21.359);
Guilherme Augusto (OAB/DF 34.406); Juarez Freitas (OAB/RS 52.563); Alexandre
Pasqualini (OAB/RS 17.315); Ricardo Vaze Pinto (OAB/MG 73.786); José Vicente
Santini (OAB/DF 36.184). (...)9.2.1. a inaplicabilidade da arbitragem para resolução de
divergências relativas às questões econômico-financeiras do contrato de concessão, haja
vista o que dispõe o art. 24, inciso VII, da Lei 10.233/2001; (...).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 21
A disponibilidade, prevista no art. 1º da Lei de Arbitragem,
relaciona-se com a possibilidade do Poder Público deixar de decidir
unilateralmente sobre determinada questão e invocar o juízo arbitral para o
caso. A prática mostra que temos que ponderar entre interesses suscitados,
tentando encontrar um equilíbrio entre eles. Alexandre Monteiro, ao citar
Marques Neto, explora a temática, acreditando que o Poder Público já não
é mais o solucionador mais apropriado aos casos, ante a complexidade de
interesses e a falta de especialização:
(...) em função do inegável reconhecimento do pluralismo,
garantido pela Constituição, somado aos diversos objetivos
preconizados para a atuação estatal, pode-se afirmar, com
Marques Neto, que “noção de homogeneidade do interesse
público tem que dar lugar à heterogeneidade de interesses
públicos”. Deriva da reformulação de interesse público
exposta, marcada pela multiplicidade de interesses relevantes
e tutelados pelo Estado, igualmente, uma reformulação
do próprio princípio da legalidade estrita, ou da reserva
da lei formal, na medida em que o mecanismo consensual
clássico, preconizado pelo Estado Moderno, não mais
seria capaz de refletir e ponderar, na atuação concreta da
Administração Pública, a diversidade de interesses públicos.
(MONTEIRO, 2012, p. 113)
Além do mais, acredita-se que a utilização de instrumentos
consensuais potencializa a efetividade da atuação estatal, como prevista na
Constituição Federal3, resultando numa maior proteção dos bens jurídicos
a serem tutelados e, ao mesmo tempo, preservando os interesses privados
de maneira proporcional. Isso não significa que o Estado abre mão de sua
autoridade; apenas modifica o modo que o Estado exerce sua soberania,
vinculando-se mais diretamente à sociedade para que consiga atender
as demandas sociais, o que Jean-Pierre Gaudin define como “quebra de
paradigma” e “governar por contrato” (MONTEIRO, 2012).
De acordo com o exposto, na chamada Administração
Consensual, o princípio da legalidade estrita, ou da reserva
da lei formal, perde força, passando-se a admitir, pois, a
vinculação da Administração a obrigações ex voluntate,
nas quais, nada obstante a inexistência de renúncia por
parte do agente público, opta este pelo recurso à via
consensual, concretizando, com maior legitimidade e,
3
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 22
potencialmente, maior eficiência as finalidades públicas.
(MONTEIRO, 2012, p. 117)
A questão da confidencialidade já foi muito suscitada pela
compatibilidade do regime brasileiro com a Convenção de Nova Iorque
de 1958. O regime brasileiro impunha o procedimento chamado de “dupla
homologação”. Desse modo, controvérsias, que já eram solucionadas
fora do Brasil, quando adentravam no território para buscar seus efeitos,
deviam passar pela homologação pelo Poder Judiciário brasileiro, expondo
os dados do processo para o respeito ao princípio de publicidade dos atos
judiciais. Assim, a arbitragem não era vantajosa no Brasil, nesse quesito,
uma vez que as partes privadas tinham suas informações expostas, tais
como lucros e know how (CRETELLA NETO, 2007).
Selma Lemes defende que o assunto é geralmente previsto
nos regulamentos das instituições arbitrais e que, para a formação de
uma jurisprudência, auxiliando na criação de um consenso, bastaria
publicar as decisões com anonimato das partes e protegendo suas
informações mais confidenciais:
(...) ressaltamos que em razão do cunho científico que
as sentenças arbitrais encerram, no sentido de instituir
jurisprudência arbitral brasileira, é de todo conveniente a
possibilidade de reproduzir e divulgar o teor das decisões
arbitrais preservando a identidade das partes, tal como
é verificado nos ementários de instituições arbitrais
internacionais (...) (2003,p. 67).
A Lei de Arbitragem Brasileira não especificava quais partes
poderiam utilizar da arbitragem, mas com certeza não excluía a
Administração Pública. No entanto, a “omissão” da lei dava margem à
interpretação que o Poder Público não poderia ser parte na arbitragem
em respeito ao princípio da legalidade. No entanto, como podemos ver,
a legislação começou a mudar com a prática. Em 2005 os contratos de
concessão de serviços já incluíam procedimentos alternativos de solução
de controvérsias, como prevê o art. 23, XV, da Lei n. 8.987/1995. Tais
métodos buscavam assegurar tantos os interesses públicos quanto os
privados, visto a celeridade e especialização buscadas.
Os contratos administrativos, ainda que não se refiram à
concessão de serviços públicos, a teor do disposto no art.
54 da Lei nº 8666/93, devem enaltecer a solução arbitral, a
bem do interesse público. A boa e oportuna administração
da Justiça pelo Judiciário devem priorizar as questões que

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 23
não digam respeito a direitos patrimoniais disponíveis,
bem como é papel do Estado e de suas empresas públicas
e sociedades de economia mista envidar esforços neste
sentido, além de dar o exemplo à sociedade. Assim, matérias
que digam respeito aos interesses públicos derivados,
de natureza instrumental, devem ser solucionadas por
arbitragem (inclusive para otimizar a gestão pública, posto
que ao estabelecer o preço dos serviços ou obras o contratante
privado leva em consideração os custos que incorrerá com
possíveis e futuras demandas judiciais duradouras). Por isso,
decisões esporádicas e dissociadas da realidade (dir-se-iam
anacrônicas), no âmbito dos órgãos incumbidos de revisar os
atos administrativos, que ainda não se ativeram às modernas
técnicas administrativas existentes no novo cenário que une
contratante público e o privado, deveriam rever e analisar a
pertinência da arbitragem como meio idôneo de solucionar
diferendos contratuais. (LEMES, 2003, p. 63)
Em 2005, incluiu-se o art. 23-A e a previsão da possibilidade de
utilizar o procedimento arbitral ficou ainda mais claro4. Além do mais, em
2004 foi editada a Lei n. 11.079 - a respeito das parcerias público- privadas
- prevendo expressamente a possibilidade de utilização da arbitragem para
resolver eventuais conflitos conforme a Lei n. 9.307/1996.
Constata-se que a mudança na Lei de Arbitragem, provida pela
Lei n. 13.129/2015, não é grande surpresa para o âmbito arbitral brasileiro.
As mudanças foram acontecendo aos poucos, a cada interpretação dos
juristas, desde que a Lei n. 9.307/96 surgiu. Assim, o legislador acatou as
tendências nacionais e internacionais sobre o tema, atualizando a legislação
para que não haja espaço para dúvidas da participação da Administração
Pública na arbitragem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças socioeconômicas levaram a uma mudança de


comportamento do Estado, que passou a procurar investir nos bons
relacionamentos com entidades privadas a fim de que haja meios
econômicos de promover os fins da Administração Pública. Há uma nova
visão do que são os interesses públicos e como realmente preservá-los.
4
O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para
resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem,
a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23
de setembro de 1996.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 24
Assim, a legislação segue esse caminho ao atualizar sua redação
para incluir expressamente a Administração Pública como parte possível
de uma arbitragem, acabando com o argumento legalista incrustado em
algumas decisões dos tribunais brasileiros. Os negócios envolvendo
o poder estatal que contenham cláusulas ou compromissos arbitrais
não são proibidos, desde que a Administração Pública não renegue sua
autoridade e aplique a arbitragem a fim de otimizar e efetivar a defesa das
finalidades públicas.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Paulo O. Vantagens, desvantagens e peculiaridades da


arbitragem envolvendo o poder público. Arbitragem e Poder Público.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 329-346.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2004.
CARVALHO, André Castro. Restrições à arbitragem pelo Tribunal de
Contas da União. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo, v. 36,
p. 325-358, jan./mar. 2013.
COELHO, Daniel. A arbitragem envolvendo a administração pública e
o processo de homologação da sentença arbitral estrangeira no superior
tribunal de justiça. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 2.
Disponível em: http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-
direito-processual/volume-ii/aarbitragem-envolvendo-a-administracao-
publica-e-o-processo-de-homologacao-dasentenca-arbitral-estrangeira-
no-superior-tribunal-de-justica#topo. Acesso em: 10 out. 2016.
CRETELLA NETO, José. Comentário à lei de arbitragem brasileira.
Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 15-16.
FREIRE, José Nantala. Soluções em arbitragem crescem 73% em seis
anos, mostra pesquisa. Entrevistado por: Brenno Grillo. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2016-jul-15/solucoes-arbitragem-crescem-73-
seis-anosmostra-pesquisa. Acesso em: 06 out. 2016.
GOMES, Sidney. Arbitragem, alternativa à lentidão da Justiça.
[jan. 2016]. Entrevistador: Juliana Elias. Disponível em: http://www.
cartacapital.com.br/revista/884/justica-a-jato. Acesso em: 06 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 25
KLEIN, Aline Lícia. A arbitragem nas concessões de serviço público.
Arbitragem e Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 63-130.
LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na Administração Pública:
Fundamentos jurídicos e eficiência econômica. São Paulo:
Quartier Latin, 2007.
LEMES, Selma M. Ferreira. Análise da pesquisa arbitragens em
números 2010 a 2015. Disponível em: http://selmalemes.adv.br/noticias/
An%C3%A1lise%20da%20pesquisa%20arbitragens %20em%20
n%C3%BAmeros%202010%20a%202015.pdf. Acesso em: 02 out. 2016.
LEMES, Selma M. Ferreira. Arbitragem na concessão de serviços
públicos – arbitrabilidade objetiva, confidencialidade ou publicidade
processual? Revista de Direito Internacional e do Mercosul. Buenos
Aires, v. 6, p. 52-70, dez. 2003.
LEMES, Selma. Soluções em arbitragem crescem 73% em seis anos,
mostra pesquisa. Entrevistado por: Brenno Grillo. Disponível em: http://
www.conjur.com.br/2016-jul-15/solucoes-arbitragem-crescem-73-seis-
anosmostra-pesquisa. Acesso em: 06 out. 2016.
MONTEIRO, Alexandre Luiz M. Rêgo. Administração Pública
consensual e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação. São
Paulo, v. 35, p. 107-133, out./dez. 2012.
PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Arbitragem e Administração Pública
na jurisprudência do TCU e do STJ. Arbitragem e Poder Público. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 131-147.
REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar.
Francisco Rezek. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
SALOMÃO, Wiliander França. A arbitragem na administração pública.
In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 89, jun 2011. Disponível
em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=9627&revista_caderno=4. Acesso em 14 out. 2016.
TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e Parceria Público-Privada (PPP).
Parcerias público-privadas: um enfoque multidisciplinar. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005, p. 333-358.
VITA, Jonathan Barros. O desenvolvimento continuado de uma nova
visão da interação entre a arbitragem e o poder público. Arbitragem
no Brasil: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier
Latin, 2008, p. 199-219.
WALD, Arnoldo. A Convenção de Nova Iorque: o passado, o presente
e o futuro. Revista de Arbitragem e Mediação. v. 5. n. 18. p.
13-23-, jul./set. 2008.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 27
O PROCESSO DE
ACCOUNTABILITY EM UMA DEMOCRACIA

Felipe Cesar José Matos Rebêlo*

INTRODUÇÃO

O atual cenário jurídico-político global enseja muitas reflexões


acerca da viabilidade das instituições nos moldes atualmente circunscritos.
Um exemplo disso foi a crise financeira de 2008. As instituições
democráticas vigentes restaram insuficientes para combater os danos
provocados pelo capital financeiro em desacordo aos fins humanísticos
que as legislações em sua média exigem.
Um exemplo disso ocorreu na União Europeia, comunidade
regional de Estados que se perpetrou incapaz no combate aos danos
provocados pelo uso indevido do capital. As instituições democráticas
também não se observaram como porta-vozes suficientes para a defesa dos
direitos dos cidadãos.
Diante desse panorama, vislumbra-se no presente trabalho pensar
a teoria desenvolvida por David Held como uma alternativa ao modelo
democrático vigente, puramente nacional, e não internacional.
A Democracia Social Global será abordada em suas principais
matizes, bem como as estruturas que compõem a sociedade, tanto no plano
jurídico quanto econômico, sob o viés do modelo capitalista instaurado.
Dentro do estudo proposto, portanto, destacam-se como objetivos
propostos o estudo das instituições abordadas, como a democracia global,
bem como o processo de accountability dos agentes envolvidos, buscando-
se liames entre os mesmos, e como podem ser estruturados nos planos
fático, jurídico e político. Como metodologia a ser utilizada, citase para o
alcance dos fins do projeto em questão, que o método de abordagem a ser
adotado é o método hipotético-dedutivo, e o método de procedimento a
ser adotado na mesma é o que se baseia pelo levantamento bibliográfico,
expresso pelo método dissertativo-argumentativo.
Por fim, se concluirá acerca de como essas estruturas, e o modelo
democrático proposto podem se inter-relacionar, de forma a se constituir
*
Mestre e Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico (PPGDPE), São Paulo.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 29
uma instrumentalização hábil a tornar efetivamente o cidadão o titular da
vontade política, e não o poder econômico desvirtuado ou outros elementos
alienígenas ao bem comum.

1 A DEMOCRACIA SOCIAL GLOBAL E AS INSTITUIÇÕES


REGIONAIS: UMA NOVA DEMOCRACIA AO CIDADÃO

O mundo vive cada dia mais da intensificação da globalização,


fenômeno que afeta determinantemente os Estados Nacionais, as
Comunidades Regionais de Estados, enfim, a comunidade jurídica
internacional como um todo.
Perante essa realidade, a soberania dos sujeitos de direito
internacional envolvidos, o próprio caráter decisório das autoridades
competentes, resta afetado negativamente. A autodeterminação, nesse
sentido encarada como a possibilidade do sujeito de direito internacional
adotar as decisões de forma vital a seus interesses mais intrínsecos, adverte-
se como obstada em sua plenitude, e influenciada pelos elementos globais
externos, mormente o poder econômico.
David Held então visualiza a oportunidade de outros entes
participarem de forma mais decisiva do ambiente democrático discriminado
no contexto supra destacado, por sinal, entes que mantém interesse direto
na observância do processo decisório respectivo e que atenda aos interesses
das comunidades nacionais, ou de uma Comunidade Regional de Estados
especificamente considerada.
Assim, são deslocados para a arena democrática atores como
variadas organizações internacionais, organizações não-governamentais
e, principalmente, a sociedade civil. Quer se aumentar o espaço de
participação para esses entes, desenvolvendo-se uma política democrática
que se perpassa por normas e instituições, que permitam a maior
justificação possível dos cidadãos nas decisões relativas às suas vidas. A
democracia deixa de ser nacional, e passa a ser global, entre diferentes
estamentos políticos.
Held, portanto, trabalha com o conceito de democracia reflexiva,
no sentido de se reformular a política democrática, permitindo a maior
participação da sociedade não somente no processo de discussão, como
também no processo decisório. Almeja, isso sim, a reestruturação do
Estado e da sociedade, para que se aplique devidamente o que ele
denomina princípio da autonomia democrática, consistente em estimular a

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 30
participação e decisão ao máximo dos indivíduos no processo democrático.
É como o autor classifica a tomada de decisões coletivas através de
procedimentos de votação.
Como fechamento do sistema, idealiza a global governance como
uma política crucial à manutenção da realidade suscitada, compreendida
como a devida concatenação entre os diversos entes atuantes no
cenário internacional de forma a proporcionar o necessário processo
de accountability por parte dos governantes. Assim se quer não apenas
uma atuação política engendrada em termos responsáveis, como também
voltada precipuamente à defesa dos direitos humanos e da democracia,
como participação, decisão e cidadania.
O professor britânico, aliás, é bem claro quanto ao objetivo
perseguido com a democracia social global (HELD, 2006, p. 261):
My argument is not that „democracy‟ is the answer to all
questions – far from it, but that, when adequately clarified and
explicated, democracy can be seen to lay down a programme
of change in and through which pressing, substantive issues
will receive a better opportunity for deliberation, debate, and
resolution than they would under alternative regimes.
Diante dessa teoria de base, se busca auferir a aplicabilidade do
modelo democrático estruturado por David Held, como forma de oferecer a
cidadania um espaço mais decisivo no processo deliberativo governamental,
ainda mais em uma comunidade global cosmopolita1. Almeja-se, com isso,
evitar situações como a ocorrida na União Europeia com a crise financeira
de 2011, em que a cidadania foi desconsiderada quando da supressão de
direitos pelos órgãos governamentais competentes2.
David Held desenvolve sua teoria de base voltada para o âmbito
do Direito Internacional, e estrutura sua projeção com base no sistema
1
Compreendida, basicamente, como uma realidade de estreita interconexão
política e cultural.
2
Como exemplo da realidade citada, em que as decisões governamentais redundaram
na supressão de direitos dos cidadãos, em benefício do sistema financeiro e daqueles que
se utilizam dele, cita-se passagem que aborda o pacote de resgate direcionado à Portugal
após a deflagração da crise: “As autoridades portuguesas concordaram com uma redução
do déficit orçamentário, de 9,1% do PIB, em 2010, para 3% do PIB, em 2013. Vários
impostos seriam aumentados. Também se planejou um programa de privatizações de 5,5
bilhões de euros. Como parte de uma série de reformas para impulsionar o crescimento
e a produtividade, o salário mínimo seria congelado durante vários anos, as indenizações
trabalhistas seriam cortadas e o auxílio aos desempregados, reduzido. O zeloso primeiro-
ministro interino, José Sócrates, manteve sua tradição de verbosidade desacanhada. Não
só alegou ter conseguido acordo muito melhor que o da Grécia e da Irlanda, como também
insistiu em que o pacote não seria muito doloroso” (OVERTVELDT, 2012. p. 131).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 31
mundial de Estados e organizações internacionais, tendo-se a ONU
no ápice da estrutura.
Respeitando-se sua natureza de tese voltada ao âmbito do Direito
Internacional, é possível se desenvolver o pensamento de David Held
adequando suas ideias à estrutura da União Europeia3, Comunidade
Regional de Estados que deu o mais bem acabado exemplo de desrespeito
a cidadania pela inaplicabilidade contemporânea do atual modelo
democrático. Quer-se dizer que o raciocínio de David Held pode ser
desenvolvido como um todo, almejando-se a compreensão de um processo
mais participativo por parte do cidadão nas deliberações.
As Comunidades Regionais de Estados apresentam importância
vital no processo de condução da política internacional4, ainda mais
com a acentuação da globalização, tendo como pressuposto a integração
nesse processo. Elas devem coordenar as políticas públicas, econômicas e
sociais aos fins colimados pelas instituições, e não por interesses diversos.
Foram estes, aliados à estruturação sistêmica do capitalismo propensa
a crises, que ocasionaram a afetação econômica negativa mencionada,
e que prejudicam as decisões diárias dos Estados. Outrossim, apesar do
autor desenvolver sua tese para um âmbito maior, atinente à Comunidade
Mundial, é possível reduzir um grau porque a participação democrática
mais efetiva pressupõe a aproximação maior do cidadão com a esfera
política decisória, o que só é possível reduzindo-se as esferas políticas
consideradas. Ou seja, é mais fácil a estruturação do sistema com base
em um microcosmo democrático internacional, do que no macrocosmo
citado, que exige um maior aparelhamento e um maior pensamento acerca
de sua estruturação para cobrir todas as fontes de questionamentos que
possam surgir. Nesse quadro, é possível vislumbrar a devida estruturação
de microcosmos que constituirão o macrocosmo desejável, que preserve a
integridade democrática e um sistema mais acentuado de participação. A
3
Mesmo havendo a ciência que seu escopo de formação foi a recuperação da Europa
no pós-guerra e o estabelecimento de uma relação entre os envolvidos que inibisse futuros
conflitos bélicos, como Jean Monnet e Winston Churchill vislumbravam (MONNET,1986.
p. 197), a análise será voltada para a atualidade, e tendo por pauta para a solução das
deficiências visualizadas a concepção da democracia social global de David Held.
4
Frente a um mundo cada vez mais globalizado, essa assertiva deve ser considerada
nos seguintes termos (MARIANO, 2007. p. 125): “Os Estados, em vez de desaparecer,
adquirem uma nova lógica de operação, onde seu poder é limitado frente à expansão
das forças transnacionais que reduzem a capacidade dos governos de controlarem
os contatos entre as sociedades, e que impulsionam essas relações transfronteiriças.
Nessa perspectiva, os problemas políticos nem sempre podem ser resolvidos adequada
e nem satisfatoriamente, sem a cooperação com outras nações e agentes não-estatais
(Keohane e Nye, 1989)”.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 32
constituição daqueles da forma devida permite a criação de uma rede, que
poderá servir de alicerce ao macrocosmo designado.
Ademais, designa-se a União Europeia para o centro da análise,
e não outra forma de Comunidade Regional de Estados, por esta ser o
exemplo mais bem acabado de sujeito de Direito Internacional visualizável
nesse sentido. Em que pese a existência do Mercosul, da Unasul e de
outros modelos, aquele possui mais tempo de funcionamento e tem por
escopo, de forma mais concreta, a integração efetiva, abarcando tanto
fatores econômicos como de cidadania, o que não é relacionável às demais
comunidades, muitas vezes engendradas apenas para fins econômicos.
Retornado o raciocínio, diz-se que, verificada a crise financeira
mencionada, produto das crises normais ao sistema capitalista, os órgãos
inerentes daquela Comunidade Regional de Estados demonstraram
inoperância para a resolução dos problemas verificados. Nesse sentido,
os principais órgãos governamentais, quais sejam, a Comissão Europeia,
o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, não evitaram
que a deterioração financeira impedisse que os direitos adquiridos fossem
prejudicados, o que redundou em limitações consideráveis dos direitos
sociais anteriormente conquistados.
O que se verificou, na prática, foi uma relação de desequilíbrio
envolvendo o endividamento público nacional e o PIB da cada nação
individualmente considerada, e que superou o limite de 60% estabelecido
pelo Tratado de Maastricht, que criou a zona do euro.
Sem o controle efetivo da situação pelo Banco Central Europeu
ou pela ausência de um órgão com tal capacidade, acabou-se provocando
uma situação de dimensão propensa a causar a fuga efetiva de investidores
da Europa, bem como a proliferação do desemprego, o que culminou em
uma situação de comoção social naquele continente.
O Parlamento Europeu não fez valer os votos obtidos dos cidadãos
da União, o Conselho da União Europeia não se estruturou em escala
global para fazer preservar os interesses de todos os Estados-membros e a
Comissão Europeia permaneceu inerte como fonte executora das políticas
da União, até devido à defasagem legislativa imposta e coordenação com
os demais órgãos supracitados.
Os gastos públicos não foram devidamente acompanhados pelos
órgãos competentes, ou o foram mas em atendimento a interesses nem
sempre convergentes com os dos cidadãos, que viram seus direitos cortados
para a deflagração da mencionada crise.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 33
Além disso, os órgãos da União Europeia que poderiam contribuir
para fomentar a maior participação do cidadão no processo democrático,
fora os tradicionais mencionados, quais sejam, o Comitê Econômico e
Social Europeu, bem como o Comitê das Regiões5, não passam de meras
figuras decorativas na estrutura, uma vez que seus pareceres enviados ao
Conselho Europeu e à Comissão Europeia apresentam, somente, caráter
consultivo, não vinculando tais órgãos ao determinado em assembleias com
restritos representantes de grupos da sociedade civil, e grupos de pressão.
A cidadania reclama duas reivindicações básicas: os direitos
de participação e a respeitabilidade aos direitos constituídos. No mundo
atual, em que pese a globalização e a convergência de interesses diversos,
a cidadania não pode sofrer negativamente diante desse cenário.
Abordando-se o caso europeu, não é possível vislumbrar que,
em virtude de uma crise sistêmica do capitalismo, o sistema político e
democrático eleito ao invés de preservar os direitos constituintes da
cidadania, mormente os direitos sociais conquistados, permita que os
mesmos sejam retirados ou suprimidos para preservar o sistema financeiro,
que se perpetua com base em inconstâncias não só do sistema capitalista
como em atos inconsequentes daqueles que atuam nele, financistas e
especuladores unicamente preocupados com as taxas de lucros a serem
captadas. O cidadão, principal prejudicado nessa realidade, não viu canais
abertos para que sua voz não fosse apenas ouvida, mas considerada
decisivamente para evitar a diminuição substancial das virtudes básicas da
cidadania, no caso específico, a cidadania europeia.
Resgatando-se Held, é necessário estreitar a participação cidadã
no eixo democrático, para que a própria cidadania seja protegida. A
participação democrática e atuante no controle de decisões por parte de
mais organizações específicas e da própria sociedade civil se revela um
fator de suma importância a ser considerado. Caso aquilo tivesse ocorrido,
não se destacando órgãos de representação social com mera atribuição
figurativa, a sociedade teria um canal para estruturar políticas pontuais que
preservassem a cidadania em si, e não interesses divergentes constituídos
pela globalização no seio da reprodução capitalista.

5
O Comitê Econômico e Social Europeu representa a sociedade civil, encontrando-se
em seu bojo um fórum de debate. Divide-se em três grupos, referentes aos empregadores,
trabalhadores e interesses difusos. De outra monta, o Comitê das Regiões procura
abarcar os específicos regionalismos da União, assenhorando-se de suas peculiaridades,
e procurando a análise de temas mais voltados à política social, saúde, educação,
emprego, dentre outros

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 34
Não se pode restringir o processo decisório a apenas órgãos estatais
ou governamentais sem a percepção integral dos interesses que realmente
devem ser relevados. Held quer a reforma do sistema representativo, a
inclusão de outros caracteres no processo de participação da democracia,
mas sempre se trazendo o cidadão para o núcleo decisório, e com maior
incisividade. Por meio de organizações ou da sociedade civil tal forma
poderá adquirir nitidez. Com efeito, é nesse sentido que irá se desenvolver
o estudo pretendido, buscando-se harmonizar sua teoria ao caso pontual
escolhido, que se refere à União Europeia.
Em síntese, portanto, se almeja com a devida estruturação da
teoria da democracia social global de David Held uma cidadania mais
inclusiva e incisiva. Não obstante, para o desenvolvimento do argumento,
é de bom alvitre se considerar alguns aspectos temáticos.

2 O NOVO MODELO DEMOCRÁTICO E OS LIMITES DO


CAPITALISMO

A multipolaridade estatal, envolvendo uma enorme gama de países,


organizações internacionais e comunidades regionais de Estados, atende
aos desígnios decisivos do capitalismo. A funcionalidade capitalista se
interessa muito pela lógica do sistema de Estados (MASCARO, 2014, p. 96):
Além das razões internas de constituição da forma política
necessária à reprodução do capital, o capitalismo encontra
grande importância no estabelecimento de um sistema plural
de Estados. Em razão dos interesses externos do capital,
é proveitoso que haja um sistema de Estados, e não um
Estado geral mundial. A forma política capitalista há de se
revelar como estatal e inexoravelmente plural: somente com
a multiplicidade de Estados se estabelecem e se cimentam
plenamente os mecanismos da reprodução do capital,
porque a concorrência entre Estados dá unidade estrutural
e ideológica ao acoplamento entre a exploração da força de
trabalho e o interesse do capital nacional. A funcionalidade
capitalista da pluralidade dos Estados nacionais se revela
como a possibilidade de que a competição estabeleça uma
específica junção de classes e interesses dentro do território
de cada Estado, aumentando o grau de exploração interna
diante das variáveis exteriores.
Um Estado mundial, como a doutrina jurídica já idealizou,
notadamente Kelsen, não se adequa da forma desejável à reprodução social

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 35
capitalista. Com efeito, a persistência dos países que compõem o eixo do
capitalismo periférico atende ao sustentáculo de existência do capitalismo
central, marcadamente Estados Unidos da América e Europa Ocidental
(MASCARO, 2014, p. 97):
Os Estados se apresentam como unidades competitivas
entre si, clamando por reiterados sacrifícios das classes
trabalhadoras internas a fim de dar condições de
competitividade do capital nacional em relação ao capital
mundial. Nesse sentido, é improvável a existência de um
Estado mundial global, sob o risco de o capital e a política
perderem as vantagens e ganhos da competição entre Estados
plurais. As condições da concorrência capitalista necessitam
de unidades políticas distintas em benefício das lutas pela
valorização do valor.
Em virtude dessa consideração, se pode denotar a importância,
para a política mundial, dos sujeitos de direito internacional elucidados,
como utensílios que atendam às determinações do capitalismo.
A forma jurídica cumpre sua exigência diante desse quadro,
mantendo-se os entes atuantes conforme os desígnios de produção e
acumulação, sob o prisma, deve-se enfatizar, de uma capital financeiro
global de forças significativas.
Por isso, a singularidade das Comunidades Regionais de Estados
não é de menor relevância, uma vez que nelas pode se encarar mecanismos
de condução da política mundial. Se elas são controladas por Estados
determinados, a questão merece uma avaliação a parte. No entanto, seu
caráter de proeminência no processo decisório mundial não pode ser
abandonado, servindo de suporte para a implementação de políticas e
estruturas na vastidão global.
O que não se pode ignorar é o papel que desempenha o capital
financeiro em todo o processo desencadeado.
Com a globalização, a sua infiltração no interior dos Estados e
Comunidades Regionais de Estados permaneceu ainda mais facilitado.
O processo de especulação, de direcionamento das economias e decisões
nacionais passaram a ser uma realidade que se consolida cada vez mais.
Nesse circuito, não se pensa em qual atitude governamental será mais
proveitosa para o enriquecimento de direitos por parte do cidadão comum,
mais sim qual decisão será mais benéfica para o poder econômico que se
concentra em uma minoria, despreocupada com o bem comum.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 36
A disposição maior de direitos, como sabido, à classe trabalhadora,
se revela uma concessão normal do próprio sistema capitalista, como
ponto de equilíbrio na luta de classes que forma essa reprodução social.
Mantém-se a estrutura, a dominação, as formas sociais atuando em prol do
sistema capitalista, evitando-se rupturas violentas que possam ter o condão
de trazer perigo à própria existência duradoura da realidade retratada.
De outra forma, não se duvida que o socialismo se revelaria a um
momento de superação dessa forma de reprodução social que perdura a
anos. Um modelo socialista poderia contribuir para o verdadeiro alcance
da justiça social, acabando com os preconceitos da reprodução social
capitalista que apenas contribuem para a desigualdade social, a opressão e
a exploração do trabalhador.
No entanto, enquanto não é perpetrada a devida superação desse
fator realístico, enquanto não se vislumbra a síntese desse processo dialético
circundante, como Hegel vislumbrava, outras medidas também podem ser
buscadas para combater a desigualdade e a deformação social mencionada.
O Estado, a forma política, é construída como mecanismo de
manutenção do capitalismo, tendo como instrumento auxiliar para seus
desígnios a forma jurídica, a subjetividade jurídica. A estruturação da
forma governamental ainda se visualiza na prática e, enquanto não é
possível sua redução, deve-se pensar na persecução de uma realidade
melhor aos interesses do cidadão comum, com um acesso mais efetivo
ao poder governamental deliberativo, protegendo-se contra intromissões
externas e não condizentes com os caracteres básicos de um Estado
Nacional ou Comunidade Regional de Estados, ou seja, seus princípios
jurídicos básicos, que necessariamente englobam a realização do bem
comum e da justiça social.
Como o quadro que se pretende demonstrar não se quer tornar a
participação política uma obrigatoriedade.
Notadamente, quanto mais os cidadãos participarem, melhor
para o processo democrático e para a concreta efetivação dos direitos
veiculados. Não obstante, o real objetivo se estipula na ampliação da arena
e na incisividade do que é discutido, de forma a possibilitar a crescente
participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões, dando um
peso real à vontade popular.
A crise é inerente ao capitalismo. Ainda mais como ocorreu em
2011, contribui para a redução dos direitos da classe trabalhadora com a
consequente manutenção do poder do capital. Os membros integrantes do

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 37
capitalismo periférico, os integrantes mais frágeis de uma Comunidade
Regional de Estados (como é o caso da União Europeia) atuam direcionados
a fazer valer os escopos capitalistas dos países constituintes do capitalismo
central. Diante desse quadro, em que a ruptura definitiva com o sistema
de reprodução social capitalista não se operou, de forma a se chegar
ao socialismo, medidas de combate a essa retirada de direitos de forma
pusilânime necessitam de amparo.
Uma das regras atinentes ao direito internacional se refere à
coordenação entre os Estados, e não subordinação entre os mesmos.
Contudo, o que realmente se observa na prática é uma igualdade
formal estabelecida, e uma desigualdade material imperante, que leva à
subordinação de certos entes em relação a outros. Ou, em outras palavras,
à subordinação de países e Comunidades Regionais de Estados a outros,
ou ao mais devastador dos dominadores: o poder econômico e financeiro
despreocupado com as mazelas sociais.
A democracia acaba desempenhando, também, um papel
importante em todo o contexto analisado.
O regime democrático, que se apresenta como uma arena possível
para a perpetração da participação popular, recolhe um efeito negativo
em sua constituição característica. Ao invés de realizar o que se propôs,
cuida de criar mecanismos para o efetivo cerceamento dessa participação,
impedindo que as classes populares possam reivindicar apropriadamente a
concretização de direitos (MASCARO, 2014, p. 87):
Os resguardos dos direitos subjetivos fundamentais e dos
ritos e procedimentos previamente instituídos possibilitam
facultar a livre deliberação a um espaço temático já então
delimitado e formalizado. A aparente virtude da democracia
moderna seria a liberdade irrestrita de deliberação sobre
os assuntos. De fato, ela é conseguida na medida nos
mecanismos de apuração da vontade da maioria. Ocorre, no
entanto, que, balizada pelo direito, a ação política é ampla,
livre e voluntariosa justamente num espaço que é previamente
construído estatalmente. A forma política do capitalismo dá
o limite da própria liberdade da vontade democrática. (...)
As deliberações que envolvam um risco sistemático à
própria reprodução do sistema fazem levantar um bloqueio
advindo das outras forças que mantêm o encadeamento da
sociabilidade capitalista. Inexoravelmente, daí, o risco das
escolhas democráticas - ao se inclinarem pela alteração da

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 38
socialização político-econômica - será enfrentado com o
bloqueio da própria forma democrática.
De outra forma, o sistema democrático, por meio da forma jurídica
estabelecida, condiciona as subjetividades de forma a impor limites,
conformar as formas sociais, os sujeitos atuantes, de modo que se inviabilize
a luta pelos direitos, pela eliminação das desigualdades e injustiças. Enfim,
se inviabilize o movimento revolucionário pela concreção de direitos
iguais, mantendo incólume a estrutura da reprodução social capitalista.
É conhecido que o capitalismo não exige a democracia para a sua
perpetração. No entanto, se observa como o regime político mais adaptável
aos seus desígnios, que lhe permite o alcance de seus objetivos de melhor
forma, através da forma política convencionada, o Estado. Este, por sinal,
não é burguês e, sim, amolda-se burguês devido ao entrelaçamento entre
os institutos supra mencionados. Qualquer classe social pode preencher
o campo de direcionamento da forma política estatal, e o capitalismo
continuará mantendo sua estrutura basilar6.
Diante desses fatos, tendo-se ciência de que a democracia assiste
ao capitalismo, causando prejuízos ao cidadão, a pessoa que é explorada
no sistema capitalista, cumpre averiguar a aplicação da democracia social
global, inicialmente engendrada por David Held, de forma a auferir
respostas que prossigam no sentido de alavancar a cidadania nos limites que
se assemelham mais fidedignamente aos propósitos de uma equidade social.
A democracia social global pressupõe uma maior participação,
mormente no processo deliberativo, conforme se asseverou oportunamente.
Se o regime democrático liga-se pelas entranhas ao capitalismo,
e seus propósitos indesejáveis, necessário é se pensar medidas que possam
combater as dificuldades sociais retratadas.
A forma jurídica retrata o Estado, e as diversas unidades estatais
são moldadas conforme o interesse globalizado, mormente do capital
financeiro, do poder econômico discrepante.
Assim sendo, plausível é se pensar na estruturação da arena
deliberativa para o cidadão. Contudo, não se pode recair no erro
de tratar a questão no plano da individualidade, pois ocorrerá a
recorrência do mesmo erro.
A sociabilidade capitalista, basicamente, funda sua desenvoltura
no indivíduo singularmente considerado. Não há a preocupação com a
coletividade, com o todo social. A própria forma jurídica contribui para
6
Cf. MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2011.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 39
isso. Rege-se o mundo por um neoconstitucionalismo liberal, eivado de
procedimentos políticos que impedem a devida participação democrática.
Ao final das contas, acaba-se deturpando o próprio processo deliberativo
eleitoral (MASCARO, 2014, pp. 88-89):
As primeiras manifestações democráticas, ainda sem a
participação popular e a influência dos trabalhadores,
envolviam livres deliberações entre burgueses, a partir do
corte de um critério censitário de renda. Somente alterações
internas na sociabilidade capitalista - universalização do
salariado, pressão dos trabalhadores e dos grupos sociais
etc. - fizeram com que a democracia censitária evoluísse
para uma democracia ampla a partir da própria subjetividade
jurídica geral. A extensão da forma jurídica e o tratamento
dos cidadãos como indivíduos, não mais como classes,
dificultaram uma restrição da deliberação eleitoral apenas
para os possuidores de capital.
Márcio Bilharinho Naves reforça esse entendimento (2008, p. 110):
(...) é o sistema de representação política da democracia que
permite operar essa passagem. Através do sufrágio universal,
a condição de classe é negada pela atomização dos indivíduos
enquanto cidadãos, desprovidos de quaisquer vínculos com
outros em sua irredutível subjetividade. Quando vota, o
indivíduo alça-se à condição de cidadão, despojando-se de
sua vontade particular egoísta.
Como enuncia David Held, não só o processo democrático deve
ser remodelado. A própria sociedade civil merece sofrer uma transformação
em seu âmago, de forma a alterar conceitos estanques, e conscientizá-la
de que o combate contra as desigualdades pressupõe um posicionamento
diferenciado (HELD, 2006, p. 275-276):
The implications of these points are profound: for
democracy to flourish today it has to be reconceived as a
double-sided phenomenon: concerned, on the one hand, with
the reform of state power and, on the other hand, with the
restructuring of civil society (Held and Keane, 1984). The
principle of autonomy can only be enacted by recognizing
the indispensability of a process of double democratization:
the interdependent transformation of both state and civil
society. Such a process must be premised by the acceptance
of the axiom that the division between state and civil society
must be a central feature of democratic life, and of the axiom

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 40
that the power to make decisions must be free of illegitimate
constraints imposed by the private flows of capital and other
resources. But, of course, to recognize the importance of
both these positions is to recognize the necessity of recasting
substantially their traditional connotations.
Em outras palavras, deve se considerar a própria sociedade civil
como uma chave vital para o alcance de um regime democrático mais
apropriado aos fins sociais, e não de minorias (HIRSCH, 2010, p. 281):
Um justo slogan, que se apoia em uma modificação da
décima primeira tese sobre Feuerbach de Marx, acentua que
todos falam da sociedade civil, mas o problema é transformá-
la. A sociedade civil existente não é a base da democracia,
mas a sua transformação é o caminho para se chegar a
ela. Transformações sociais significam sobretudo luta pela
hegemonia, entendida como as representações dominantes
sobre a ordem e o desenvolvimento da sociedade.
Resgatando o ponto de vista heldiano, o mundo de hoje não se
contempla como o de ontem. O processo democrático deve acompanhar
essas alterações oponíveis.

3 INSTRUMENTALIZAÇÃO DE UM VIÉS DEMOCRÁTICO


MAIS PARTICIPATIVO NO ÂMBITO GLOBAL:
FUNDAMENTO E ACCOUNTABILITY

O controle democrático, das decisões que realmente irão


interessar ao domínio social, ao dia-a-dia de cada cidadão, que é explorado
constantemente em um círculo vicioso, passa a ser um imperativo.
Questões como essa restaram ausentes no processo democrático europeu,
que culminou na retirada de importantes direitos sociais do povo, para a
preservação dos interesses do sistema financeiro, que encontrou no Banco
Central Europeu seu principal defensor.
A reprodução social do capitalismo, pelos caracteres detalhados
no presente trabalho, denota-se um processo que promove a desigualdade
social, perpetrando injustiças, com as classes dominantes lucrando com
base na forma-mercadoria e na mais-valia, enquanto os trabalhadores notam
o valor que seu trabalho é imbuído às mercadorias se ver desperdiçado,
restando o trabalho assalariado um objeto de lucratividade.
A superação para o socialismo seria uma solução plausível. Não
obstante, enquanto não se constrói o devido caminho para essa proposta

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 41
progressista, encontra-se a proposta da Democracia Social Global,
moldada oportunamente, como uma possível chancela para o reequilíbrio
democrático, em que pesem as advertências feitas acerca da democracia
como instrumento de atendimento ao capitalismo.
A democracia impõe limites à participação popular. Os Estados
e Comunidades Regionais de Estados nada mais são do que células de
atendimento aos propósitos do capital, especificamente o financeiro
internacional. Contudo, essa lógica da forma jurídica, que impetra
bloqueios sistêmicos, pode ser alterada e afetada, desde que ocorram as
pertinentes reformas.
O desenvolvimento de instrumentos materiais que permitam
a concretização da participação popular, a deliberação mais efetiva, um
controle político mais presente pelo cidadão, nota-se um caminho que
exigirá modificações drásticas na forma jurídica imperante, ainda mais
quando se considera o modelo europeu como exemplo. A accountability
como um processo mais democrático de controle do processo decisório
merece atenção no processo , fomentando-se uma atuação mais
efetiva da sociedade civil.
Aprimorando-se esses instrumentos, de forma a engendrar
estruturas mais concretas de efetivação do plano pré-estabelecido, questão
que exige mais atenção de David Held em seu detalhamento, podem
fornecer condições para que se criem óbices à ingerência incongruente
com os desígnios de uma Comunidade Regional de Estados singularmente
considerada, fazendo valer a cidadania em detrimento do poder financeiro
indesejável canalizado pelo processo globalizante.
A democracia, ao invés de se manter como instrumento hábil
ao capitalismo, pode ser revertida em uma proteção mais sensata aos
interesses que realmente apresentam relevância, que são os concernentes
aos objetivos cidadãos e populares.
Visualzia-se, com esse encadeamento, um sistema democrático
realmente “mais democrático”, com o perdão da redundância, que no
seio de uma Comunidade Regional de Estados, como doutrina de direito
internacional que se procura adaptar ao caso concreto, poderá propiciar
um controle político pelo cidadão de forma a ensejar um rígido processo
de accountability referente aos governantes, que não poderão permanecer
reféns de interesses estranhos e externos sob prejuízo de configuração
de ato ilegal e contrário aos fins constitucionais previstos pela sociedade
respectiva. Deve ocorrer a obstrução de casos como o da União

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 42
Europeia. No plano global, se enxerga, claramente, a financeirização do
processo de acumulação, com organismos tais quais os Bancos Centrais
exercendo papel decisivo no processo deliberativo estatal
No caso europeu, foi isso que se verificou. Um Banco Central
Europeu voltado para o acerto fiscal da Comunidade Regional, levando
em menor grau de consideração as implicações negativas sobre
os direitos sociais dos cidadãos. E, de forma incontestável, restou
prevalecente sua orientação quanto às restrições orçamentárias, seguidas
pelos Estados membros.
A pressão pela criação de condições optimizadas nos Estados e
Comunidades Regionais de Estados, se queda observável nesse contexto.
A privatização da política encontra hegemonia no processo, como não
seria diferente em um contexto em que o poder econômico e financeiro
desvirtuado ganha robustez. Ou seja, atores políticos privados, como
grandes corporações e especuladores, influenciam de forma determinante
o poder decisório comunitário. Por sinal, há quem defenda que a própria
configuração das alianças regionais resulta em um processo de compensação
interestatal referente a perda de hegemonia frente ao desenvolvimento
descontrolado da globalização. E, em adição, como manutenção do próprio
sistema capitalista (HIRSCH, 2010, pp. 177-178):
Dessa forma, os governos procuram compensar a perda de
seu espaço de ação com a formação de alianças regionais.
Isso se inscreve no quadro de novas coerções pela
cooperação, que torna-se decisiva para os Estados “fracos”.
Os Estados “fortes” do centro capitalista consolidam a sua
posição através da criação de blocos econômicos regionais
(especialmente a União Europeia e a Zona de Livre-
Comércio Norteamericana). O resultado é um aumento
do significado das organizações internacionais - Fundo
Monetário Internacional, Organização para a Cooperação
e o desenvolvimento europeu, a Organização Mundial
do Comércio etc. - , que organizam e representam os seus
interesses comuns, como também o desenvolvimento de
relações e redes de cooperação pouco institucionalizadas, nas
quais não apenas as empresas multinacionais, como também
as organizações nãogovernamentais dos mais diferentes tipos,
desempenham um importante papel. Mas deve se considerar
que, desse modo, nenhum Estado isolado é independente do
plano político internacional. As organizações e os regimes
internacionais apoiam-se na cooperação de interesses, pelo

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 43
menos, dos Estados mais fortes, e são definidos e limitados
em sua ação por eles.
Com isso, se reproduz a dinâmica de exploração e valorização,
perpetrando-se o capitalismo de forma veemente com base no próprio direito
internacional, mormente o direito comunitário (MASCARO, 2014, p. 104):
O aumento do poder do direito internacional e das
organizações internacionais, na atualidade, revela a sua
natureza estrutural e a sua operacionalidade funcional.
No presente, dada sua maior fraqueza relativa perante o
grande capital plenamente internacionalizado, os Estados só
conseguem lograr um modelo mais estável de acumulação
numa frente ampla de coordenação política, econômica
e jurídica. Com isso, permite-se um estabelecimento de
padrões comuns ao capital, dando ainda maior esteio à
sua dinâmica de exploração e de valorização, o que gera,
também, uma crise político-econômica comum além de
modos engessados e unificados para seu tratamento – o
que se verifica, por exemplo, no caso da União Europeia.
Os atuais marcos jurídicos e institucionais internacionais
espraiados são, antes de uma contenção do capital, a sua
possibilidade de expansão ainda maior.
Não obstante seja essa uma realidade palpável, as instituições multilaterais
representam um papel importante na política global, como já se asseverou
anteriormente. Nesse sentido, cumpre remodelar devidamente seu processo
democrático, para direcionar a política global com a mola propulsora
correta, que se embasa na aplicabilidade dos direitos do cidadão,
e não do especulador.
O enfraquecimento dos mecanismos representativos deve ser
avaliado, uma vez que se pondera a perda de seu caráter decisivo frente à
supremacia do capital internacional (HIRSCH, 2010, p. 179):
A internacionalização do próprio aparelho de Estado, ou seja,
sua crescente dependência dos movimentos internacionais de
capitais e, ligado a isso, o deslocamento de importância entre
partes isoladas da sua administração, ocasiona uma perda
de significado dos aparelhos representativos de interesses
específicos da população e de eleitores, que tinham um
caráter “integrador”. Isso se expressa, por exemplo, no
desmantelamento das instituições fordistas corporativas e na
transformação dos antigos partidos “populares” reformistas
em máquinas eleitorais midiáticas, desligadas de sua base
sócia l. A consequência desse processo é que a relação entre

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 44
Estado e classes se torna mais complexa e a formação de
classes perde coerência em comparação com o fordismo.
A realidade desnuda, no final das contas, se denota pelo intenso
processo de concorrência internacional, mas atinente a termos produtivos.
Os singulares sujeitos de direito internacional descritos empenham-se
em atrair investidores e parceiros internacionais, direcionando todo seu
aparato político e estrutural para isso. Em detrimento desse fato, os efetivos
interesses dos cidadãos comuns, concernentes à manutenção e incremento
de seus direitos, podem restar prejudicados.
Em outros termos, diz-se que se busca primordialmente o incremento
da capacidade produtiva com vistas ao mercado econômico mundial.
Os compromissos sociais, vistos e decantados precipuamente
em ocasiões eleitorais, acabam sendo sacrificados em todo o processo.
Inadvertidamente, tem-se o condão de gerar maiores conflitos sociais, uma
vez que se denota lógico o aumento da rispidez do cidadão comum quando
vê seus direitos serem sacrificados em prol do poder econômico desvirtuado.
Essa lógica reflete a necessidade de sua alteração (HIRSCH, 2010, p. 182):
O resultado disso é que o processo global de acumulação
de maneira alguma, e agora menos ainda, se baseia na pura
dinâmica da concorrência empresarial e na ação das forças
de mercado, mas que, tal como antes, depende da regulação
política. Os “mercados” não são fenômenos naturais, mas
relações construídas política e institucionalmente - pela
garantia da propriedade privada, o sistema jurídico, o
controle de acesso e dos monopólios. A globalização e a
internacionalização do capital liga-se assim a um aumento do
significado da atividade estatal administrativa e legislativa,
ainda que sob formas modificadas em comparação com
o fordismo. Não é mais a defesa da indústria “nacional”
que está no centro, mas o asseguramento da capacidade
de concorrência internacional de setores escolhidos, a
liberalização do mercado em ligação com uma ”política de
ofertas” incentivadoras do investimento empresarial.
De fato, se costuma alinhar a existência da União Europeia
e Comunidades Regionais de Estados similares como mecanismos de
propensão e garantia do capitalismo. A forma jurídica instaurada, não se
pode negligenciar, pauta-se essencialmente por esse fulcro.
Todavia, tendo-se em mente o caráter proeminente das instituições
multilaterais na condução da política mundial, e enquanto não se viabiliza

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 45
a superação do modelo atual para um modelo socialista, que é uma
alternativa, mister é que se altere a condução na aplicação dos direitos.
O efetivo processo de democratização, que torne mais
inclusivo o caráter deliberativo, não se denota uma hipótese de menor
importância. Com efeito, a democratização mais incisiva, que passa pelas
organizações internacionais, pelas organizações sociais e se consolida nas
Comunidades Regionais de Estado, é um caminho que merece atenção
(HIRSCH, 2010, p. 290):
Um possível ponto de partida para isso seriam passos em
direção à democratização das organizações internacionais,
objetivando confrontar o constitucionalismo neoliberal
dominante com outro de caráter democrático. Isso seria
possível com a implantação de direitos formalizados
de informação e de participação para as organizações
sociais, tornando mais transparentes e controláveis as
decisões tomadas ali.
Se, ao momento, não se pode expurgar completamente o poder
econômico e financeiro desvirtuado, medidas tendentes à criação de
mecanismos neutralizadores e de efetivo combate merecem ser sopesadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a forma jurídica se atrele à forma política, sustentando


a reprodução social do capitalismo, com a forma-mercadoria aparecendo
como norte do sistema, importante se afigura estruturar saídas dentro
da realidade que se encontra para fazer valer a voz do cidadão, que,
caso disponha de mecanismos jurídico-democráticos para influenciar
decisivamente o processo deliberativo estatal e comunitário, ensejará um
momento histórico mais controlável pela soberania popular, em detrimento
de um sistema representativo captado e que, no cerne de todo o processo,
também merece remodelação.
A União Europeia, pelas condições que a circundam, se revela um
objeto palpável para o desenvolvimento mais contundente da Democracia
Social Global. Almeja-se que, caso o Mercosul e a Unasul alcancem o grau
de complexidade em sua estruturação como aquela, tomem medidas para
efetivamente fazer valer o processo democrático como ápice do controle
de decisões políticas e de recolhimento dos direitos sociais conquistados.
A partir do momento supracitado pode se começar a pensar em
uma democracia mais comprometida com seus constituintes, com seus
maiores beneficiários. Uma Democracia Social Global voltada à justiça
social, que perpassa Comunidades Regionais de Estados e sujeitos de
direito internacional envolvidos, valorizando, acima de tudo, os direitos
constituintes dessa ordem, e não de uma ordem globalizada indesejável que
se fundamenta no poder econômico que não pretende atingir aquele objetivo.
Pelo contrário, deseja a continuação das estruturas-mestras do capitalismo
como hoje se apresentam, fundadas na exploração e geração de riquezas
desproporcionais para as classes dominantes, ofuscando o verdadeiro
significado de cidadania, que se esprai por todas as classes sociais

REFERÊNCIAS

HELD, David. Models of Democracy. 3. ed. Stanford: Stanford


University Press, 2006.
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de
transformação do sistema capitalista de Estado. Rio de Janeiro:
Revan, 2010.
MARIANO, Karina Pasquariello. Globalização, Integração e o Estado.
Revista Lua Nova. São Paulo, n. 71, 2007.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2011.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2014.
MONNET, Jean. Memórias. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1986.
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: Ciência e Revolução. 2. ed. São
Paulo: Quartier Latin, 2008.
OVERTVELDT, Johan Van. O fim do Euro: a história da moeda da
União Europeia e seu futuro incerto. Rio de Janeiro: Elsevier. 2012.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 47
VERMELHOS E VERDES: GUATTARI E A NOVA
GRAMÁTICA ECOLÓGICA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Felipe Henrique Canaval Gomes*

INTRODUÇÃO

A crise ecológica não pode ser suficientemente compreendida


sem um retorno ao panorama geral das crises social, política e existencial.
A ecosofia é a uma filosofia que se propõe a articular os mais diversos
campos do saber guiada pelas crises ambientais, sociais e subjetivas.
O atual estágio do capitalismo mundial integrado (CMI) tem
como efeito o desenvolvimento de uma espécie de angústia coletiva
que favorece o reaparecimento ideologias ligadas à crise ambiental,
que pregam um retorno à “vida natural”. Por traz desse suicídio
social, que nega os avanços benéficos da sociedade contemporânea e
atomiza o indivíduo em um estado de natureza mítico, está o agir do
CMI que articula um constante processo de desterritoralização e cujos
efeitos erosivos à sociabilidade podem ser observados na crescente
homogeneização do inconsciente.
Isso levou, inclusive, a erosão da consciência operária, que, no
contexto da Guerra Fria, foi a linha de frente de resistência ao CMI. No
entanto, os estados socialistas adotassem o modelo do capitalismo de
estado e, por conseguinte, os mesmos modelos de internalização repressiva
do CMI (DELEUZE. GUATTARI, 2010).
Para se contrapor a uma ideia de revolução que estava então
associada aos percalços do estado soviético, Deleuze e Guattari (2010)
se desvincularam do conceito marxista de classe, para trabalharem com
a consciência dos movimentos de contestação à partir do conceito de
pequenos grupos (groupusculaire).
O movimento ambientalista, forjado nos desgastes entre as
ideologias capitalista e comunista durante Guerra Fria, assumiu parte
do discurso da esquerda, mas, sobretudo, tomou seu eleitorado e o
despolitizou, afastando-os mormente de temas como a exploração de
classes e a colonização ideológica do sistema sobre a constituição das

*
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo (FDRP/USP).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 49
individualidades. Para Guattari (1991b, 1992a), o surgimento dos khmers1
verdes, ou seja, uma esquerda que congregue a militâncias e os temas dos
partidos de esquerda, mas que também esteja atenta às demandas da crise
ambiental, é essencial para combater o risco de retrocesso que significa a
despolitização decorrente de um discurso que prega o retorno à vida natural.
A ecosofia seria, assim, a sua base de articulação do engajamento político.

1 ECO FILOSOFIA

Ao propor uma solução para cenário catastrófico que se aproxima


nos campos sociais, ambientais e psíquicos, Guattari afirma que a questão
que verdadeiramente se impõem é a de como promover uma revolução das
mentalidades a qual vise não apenas certo tipo de desenvolvimento baseado
sobre um produtivismo que perdeu toda finalidade humana2 (GUATTARI,
1992a) (tradução nossa). E continua:
Assim, lancinante, a questão retorna: como modificar as
mentalidades, como reinventar as práticas sociais que
restituiriam à humanidade - se ele já o teve um sentido de
responsabilidade não só para a sua própria sobrevivência,
mas também para o futuro de toda a vida neste planeta, a de
espécies vegetais e animais, tais como as espécies intangíveis,
tais como a música, as artes, o cinema, a relação entre tempo,
amor e compaixão pelos outros, a sensação de derretimento
no cosmos?3 (GUATTARI, 1992a, p. 1) (tradução nossa).
Para recompor os meios de ação coletiva adaptados ao atual
momento, Guattari propõe a ecosofia, uma filosofia capaz de articular esse
problema em três dimensões, sendo que cada uma delas é chamada de
ecologia. Dessa maneira, há uma ecologia ambiental, ligada às questões
de desequilíbrio ambiental e da relação humanidade/natureza; uma
ecologia social, que se reporta às questões do socius, notadamente as
1
Os khmers ou khmers vermelhos eram os integrantes do Partido Comunista da
Kampuchea, que governou o Camboja entre 1975 a 1979 e que pretendida um verdadeiro
retorno à natureza, por meio de uma sociedade comunista puramente agrária.
2
Confira o trecho traduzido: «Ce qui se trouve mis en cause ici, c’est une sorte
de révolution des mentalités afin quelles cessent de cautionner un certain type de
développement, fondé sur un productivisme ayant perdu toute finalité humaine»
3 «
Alors, lancinante, la question revient: comment modifier les mentalités, comment
réinventer des pratiques sociales qui redonneraient à l’humanité si elle la jamais eu le
sens des responsabilités, non seulement à légard e sa propre survie, mais également de
l’avenir de toute vie sur cette planète, celle des espèces animales et végétales, comme
celle des espèces incorporelles, telle que la musique, les arts, le cinéma, le rapport au
temps, l’amour et la compassion pour autrui, le sentiment de fusion au sein du cosmos?»

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 50
socioeconômicas; e uma ecologia mental, cujo campo é a subjetividade
humana (GUATTARI 1991b, 1999; QUERRIEN, 1996).
A ecosofia investiga as linhas de recomposição das práxis humanas
nos mais variados domínios (GUATTARI, 1999, p. 15), é a ciência de todos
os ecossistemas da natureza4 (GUATTARI, 1991b) (tradução nossa). Ela
procura garantir que natureza e cultura não sejam entendidas em separado,
pois, ao invés de estanques, elas devem ser apreendidas transversalmente:
tanto quanto algas mutantes e monstruosas invadem as águas de Veneza,
as telas de televisão estão saturadas de uma população de imagens e de
enunciados degenerados. Ao estabelecer seus pontos de referência, cada
eixo da ecosofia se desprende de paradigmas pseudocientíficos, já que ela
está implicada [em] uma lógica diferente daquela que rege a comunicação
ordinária entre locutores e auditores (...), diferente da lógica que rege a
inteligibilidade dos conjuntos discursivos (GUATTARI, 1999, p. 25).
Segundo Guattari, a ecosofia se guia por uma “lógica das
intensidades, que se aplica aos agenciamentos5 existenciais autorreferentes
e que engajam durações irreversíveis”. Uma vez que a lógica rígida
das ciências tradicionais se propõe a limitar muito bem seus objetos, a
ecosofia aposta em uma lógica das intensidades, ou a eco-lógica, [que]
leva em conta apenas o movimento, a intensidade dos processos evolutivos
(GUATTARI, 1999, p. 26-27). Em outras palavras, “a ecosofia se propõe
4 «
D’abord, c’est une science, la science des écosystèmes de toute nature».
5
O conceito de agenciamento, desenvolvido por Deleuze e Guattari, deriva da tradução
do conceito de agencement, que significa o processo de conciliar, organizar e encaixar.
Agenciamento é uma complexa constelação de objetos, corpos, expressões, qualidades e
territórios que se congregam em diferentes momentos para idealmente criar novas maneiras
de funcionamentos: “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões
numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
conexões”. Ele transparece como um conjunto de forças que se aglutinam em conjunto,
de modo que se aplica a todas as estruturas, desde aquelas de padrão de comportamento
individual a organização de instituições, a organização dos espaços e o funcionamento
das ecologias. Dessa maneira, os agenciamentos operam por meio do desejo como
máquinas abstratas, isto é, organizam-se a estabelecer relações com alteridades diversas;
o desejo é a energia circulante que produz conexões. De acordo com G. Livesey, autor do
verbete assemblage de The Deleuze dictionary, Deleuze e Guattari desenvolvem o que ele
chama de eixo horizontal e eixo vertical do agenciamento. O primeiro eixo ocupa-se do
agenciamento maquínico do corpo, das ações e das paixões e do agenciamento coletivo
da enunciação, que são os atos e as manifestações das transformações incorporais dos
corpos. O eixo vertical está relacionado ao conceito de território, que privilegia as ideias
de espacialidade e as geografias e cartografias do movimento, apresentando-o como um
contraponto ao conceito de história. Em resumo, por meio de sua multiplicidade, um
agenciamento é moldado pelas ações sobre uma ampla gama de fluxos. Cf.: DELEUZE,
G. GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. A. Guerra Neto e C.
Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995, v. 1, p. 16; PARR, A. The Deleuze dictionary. 2. ed.
revised. Edinburg: Ediburgh University Press, 2010, p. 18.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 51
a construir novas modalidades de ser em grupo em todas as escalas”6
(QUERRIEN, 1996) (tradução nossa).
A ecologia mental se depara com muitas situações, já que os
comportamentos individuais e coletivos são regidos por fatores diversos.
São considerados comportamentos de ordem racional, por exemplo,
principalmente, as relações de força e as econômicas. Outros, tidos como
“passionais”, ao contrário, parecem depender de motivações difíceis de
decifrar, mas que não poucas vezes conduzem indivíduos ou grupos a
agirem contrariamente aos seus interesses manifestos. Compreender essas
motivações passionais seria a tarefa da psicanálise (GUATTARI, 1985).
Deleuze e Guattari, em O anti-Édipo, reconhecem que “a grande
descoberta da psicanálise foi a da produção desejante, a das produções
do inconsciente”, embora a psicanálise tenha centrado o inconsciente no
que eles chamam de familismo, quer dizer, sob o jugo do papai-mamãe
e, ao invés de participar de um empreendimento de efetiva libertação, a
psicanálise se incluiu na obra mais geral da repressão burguesa (DELEUZE.
GUATTARI, 2010, p. 40 e 71).
Para Guattari, há um evidente reducionismo da psicanálise, que
tornou o inconsciente em matéria de especialistas, ou como ele relata
em Revolução molecular: [o inconsciente] está em vias de se tornar
propriedade privada!. Ele considera que a análise do inconsciente deve
se tomar assunto de todos, ou seja, isso significa que ela terá que renovar
seus métodos, diversificar suas abordagens, enriquecer-se em contato com
todos os campos da criação. Em resumo, fazer exatamente o contrário do
que a psicanálise oficial faz atualmente (GUATTARI, 1985, p. 172).
Como explica Buchanan (2008), Deleuze e Guattari quiseram
revolucionar o conceito de inconsciente, invertendo a noção freudiana de
que o inconsciente pressiona o consciente. Para eles, o inconsciente não
é um reservatório de desejos reprimidos que constrangem um ego sitiado,
mas uma máquina, porque são essencialmente ligadas a realidade: são
fabricadas, moldadas, recebidas e consumidas. Além disso, Guattari gosta
de frisar que as máquinas de produção da subjetividade variam, elas não são
algo do domínio de uma suposta natureza humana, mas como sistemas mais
ou menos territorializados de produção da subjetividade. Guattari explica:
(...) a máquina está sempre em diálogo com uma alteridade:
em seu ambiente tecnológico, humano, mas igualmente
por suas ligações filogenéticas com as máquinas que a
6
L’écosophie se propose de construire de nouvelles modalités de l’être en groupe à
«

toutes les échelles».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 52
precederam e aquelas que virão. Aparece aí uma nova forma
de alteridade: uma situada no tempo. Além da alteridade, a
máquina também estabelece a finitude: ela nasce, dá errado,
degrada-se, morre. Por esta razão, nós tínhamos expandido
o conceito de máquina, além das máquinas técnicas, para as
máquinas biológicas, sociais, urbanas, as megamáquinas,
linguísticas, teóricas e mesmo máquinas desejantes. Este
conceito é considerar, assim, a possibilidade de a máquina
de abolir a si mesma7 (GUATTARI, 1991a) (tradução nossa).
O inconsciente máquino é, na obra de Guattari, o ponto de
partida para entender as mutações do capitalismo e a composição das
forças políticas atuais.

2 CMI

O atual estágio do capitalismo mundial integrado (CMI) centra


seus focos de poder na produção de signos, de sintaxe e de subjetividade
que tende inexoravelmente para a destruição de antigas estruturas
territorializadas de agenciamentos inconscientes. No inconsciente
maquínico, o CMI tem como efeito o desenvolvimento de uma espécie de
angústia coletiva que favorece o reaparecimento de ideologias religiosas
ou incompatíveis com a complexidade da vida contemporânea, e, no caso
da onda ambientalista, criam mitos arcaicos, como o do retorno à “vida
natural” (GUATTARI, 1985, 1999).
A ecosofia social que, por sua vez, procura desenvolver práticas
específicas de “serem-grupo”, ou seja, trabalha com a reconstrução das
relações humanas em todos os níveis do socius, é profundamente afetada
pelo desenvolvimento do CMI. Um princípio comum às três ecologias é
de que seus territórios existenciais são precários, finitos, singulares, em
outras palavras, não se dão como um em-si, mas um para-si. Na linguagem
de Deleuze e Guattari (1995), são platôs, territórios de determinação
maleável por onde transitam diferentes movimentos de subjetivação8.
7 «
Car la machine est toujours en dialogue avec une altérité: dans son environnement
technologique, humain, mais également par ses liens philogénétiques avec les machines
l’ayant précédée et celles à venir. «Apparaît là une nouvelle forme d’altérité: celle
située dans le temps. En plus de l’altérité, la machine établit aussi la finitude : elle naît,
se détraque, se casse, meurt. Pour cette raison, on avait élargi le concept de machine,
au-delà des machines techniques, aux machines biologiques, sociales, urbaines, aux
mégamachines, linguistiques, théoriques et même aux machines désirantes. Ce concept
envisage donc la possibilité pour la machine de s’abolir elle-même».
8
O conceito de território é explorado por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, cujo
foco sobre ideias de espacialidade, como geografia ou a cartografia do movimento, são

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 53
Contudo, a subjetividade produzida pelo CMI é acautelada de qualquer
outra que não passe pelo crivo de seus aparelhos e quadros especializados,
como a psicanálise, o estado-nação, ou o corpo profissional:
Ela [a subjetividade] jamais deverá perder de vista que
o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, ao
mesmo tempo em extensão - ampliando seu domínio sobre
o conjunto da vida social, econômica e cultural do planeta e
em "intenção" infiltrando-se no seio dos mais inconscientes
estratos subjetivos (GUATTARI, 1999, p. 33).
O CMI potencialmente tem colonizado todo o planeta, já
que atualmente está em simbiose em todos os países, mesmo os que
historicamente haviam escapado a ele, e, sobretudo, por fazer com que
nenhuma atividade humana e com que nenhum setor de produção estejam
fora de seu controle. Este movimento de extensão geográfica se defronta
com um impasse: para Guattari, o CMI instala um constante processo
de desterritorialização, porque os processos capitalísticos não respeitam
os modos de vida tradicional e também os modos de organização
social, como a étnica, a grupal ou a de vizinhança, ou ainda dos estados
nacionais. A desterritorialização é um movimento que sempre escapa de
um território, como, exempli gratia, o comerciante que compra produtos
em uma região e os revende em outra ou seja, do ponto de vista sócio-
econômico-político atual, a maioria dos processos de integração é tem
como consequência a desterritorialização. O CMI, por sua vez, compõe
a produção e a vida social a partir desse próprio axioma, isto é, sempre
é capaz de reinventar novos axiomas de funcionamento ou suprimi-
los, integrando socioeconomicamente diversos territórios. O processo
de desterritorialização tem se tornado uma forma de recomposição
permanente do CMI, cuja integração diz respeito a um só tempo a estruturas
de produção e formação de poder e de legitimidade (GUATTARI, 1985;
GUATTARI. NEGRI, 2010).
apresentados como um antídoto para conceitos exclusivamente calcados sobre concepções
históricas. O conceito de território subsumi discussões históricas, pois seu significado é
a integralidade movimentos humanos sobre o espaço e o tempo. O conceito de território,
assim, não é fundado sobre uma categorização precisa. Ao invés de ser um espaço
firmemente determinado, o território é entendido como um espaço de transições cujas
dimensões são constantemente maleáveis. Os autores visam, assim, abolir os privilégios
nostálgicos ou xenófobos de quaisquer “terra natal”, ”pátria”, ”nação”, etc. e instituir
platôs, ou seja, zonas de intensidade contínua. Cf.: DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. A. Guerra Neto e C. Pinto Costa. São Paulo:
Ed. 34, 1995, v. 1; PARR, A. The Deleuze dictionary. 2. ed. revised. Edinburg: Ediburgh
University Press, 2010, p. 280-281.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 54
O CMI atua sobre uma dupla modalidade de opressão. Primeiro,
pela opressão direta no campo econômico e social através do controle
da produção de bens e das relações sociais por meio da coerção material
externa e a sugestão constante de conteúdos de significação. A segunda
maneira de opressão, tão intensa quanto à primeira, consiste na produção
da própria subjetividade por meio, sobretudo, do controle de máquinas da
sociedade industrial, da informática e dos meios de comunicação:
A produção da subjetividade pelo CMI é serializada,
normalizada, centralizada em torno de uma imagem, de um
consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei
transcendental. Esse esquadrinhamento da subjetividade
e o que permite que ela se propague, a nível da produção
e do consumo das relações sociais, em todos os meios
(intelectual, agrário, fabril, etc.) e em todos os pontos do
planeta (GUATTARI. ROLNIK, 1996, p. 40).
Um princípio particular a ecologia social, a ideia do “Eros
de grupo”, corresponde à conversão de uma qualidade específica de
subjetividade em processos coletivos. Apropriado pelo CMI, o “Eros de
grupo” é explorado conforme seus interesses, e esse processo de apropriação
do desejo pelo CMI ocorre principalmente por intermédio da mass midia.
A subjetividade produzida pelas máquinas capitalistas se esforça por gerar
uma consciência infantilizada, que tende a neutralizar todo o potencial
emancipatório da singularidade. Segundo Guattari, nas últimas décadas,
a grande mídia teve tal sucesso que não só a subjetividade operária linha
dura que fazia frente ao avanço do CMI se desfez, como o inconsciente
é agora colonizado por um delirante processo de homogeneização da
subjetividade (GUATTARI, 1999, 1992b).
Como resposta a tudo isso, Guattari sugere que “uma imensa
reconstrução das engrenagens sociais é necessária para fazer face aos
destroços do CMI” (GUATTARI, 1999, p. 44). Essa reconstrução deveria
passar pela constante mobilização da força de trabalho escamoteada
pelos avanços da desterritorialização do CMI, entretanto, sob uma nova
perspectiva que não cometa os mesmos equívocos da atuação política
operária linha dura.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 55
3 “ADEUS, LENIN”

Ecologia mental e ecologia social colocam o problema da introjeção


do poder repressivo por parte dos oprimidos, sobretudo, nas organizações
da classe trabalhadora, que se tornaram também instrumentos da repressão:
A maior dificuldade, aqui, reside no fato de que os sindicatos
e os partidos, que lutam em princípio para defender os
interesses dos trabalhadores e dos oprimidos, reproduzem
em seu seio os mesmos modelos patogênicos que, em suas
fileiras, entravam toda liberdade de expressão e de inovação
(GUATTARI, 1999, 32).
Maio de 1968 é um marco na história da esquerda ocidental9. De
certa forma, Guattari entende que depois desse evento, o discurso marxista
se esgarçou (apesar do texto marxiano ainda resguardar sua força). Por
outro lado, alguns teóricos do movimento operário vêm reforçando o
que Guattari chama de obrerismo ou corporativismo em decorrência de
práticas emancipatórias anticapitalistas, isto é, desconsideram outros
vetores ecológicos que não os incorporados diretamente nas relações de
trabalho. Ocorre, inclusive, uma espécie de involução da atuação desses
movimentos, posto que a antiga solidariedade que era exercida em
esfera internacional hoje é assumida primordialmente por associações
humanitárias (GUATTARI, 1999).
Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari discutem a importância
da Revolução Russa (1917-1921) ao forjar a consciência da classe
9
Maio de 1968 foi um dos maiores movimentos de massa da história da França, a maior
greve do século XX desde os Fronts Populares de 1936, a única grande insurreição depois
da Segunda Guerra Mundial, envolvendo algo em torno de nove milhões de trabalhadores
espalhados por toda a França, e que chegou mesmo a ter alguma abrangência na Itália.
Foi a primeira greve geral que se estendeu para além dos centros tradicionais de produção
industrial para incluir os trabalhadores nas indústrias de serviços, de comunicação
e cultura, abarcando toda a esfera de reprodução social. Nenhum setor profissional e
nenhuma categoria de trabalhadores deixaram de ser afetada pela greve, que atingiu todas
as cidades francesas. Guattari se definia como pertencente a uma geração cuja consciência
política havia nascido no “entusiasmo e ingenuidade” da resistência à ocupação nazista
na Segunda Guerra. Para ele, seus livros com Deleuze eram um retorno às questões
que foram deixadas para traz por outras revoluções e que Maio de 1968 havia criado
as bases necessárias para denunciar o fascismo de outrora. Assim, a obra dos dois tem
um marcante tom anticapitalista e é altamente simpatizante com a dimensão utópica que
veio à tona após Maio de 1968, cuja solução não era aceitar prontamente a transição
imediata ao comunismo. O argumento de Deleuze e Guattari é de que nunca se chegaria
a qualquer nova sociedade clamada pelos discursos militantes sem, antes de tudo, “não
nos despirmos de nossos velhos hábitos, nosso amor pelo poder”. Cf. ROSS, K. May ’68
and its afterlive. Chicago, London: The University of Chicago Press, 2002; GENOSKO,
G. Félix Guattari: an aberrant introduction. London: Continuum, 2002.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 56
trabalhadora e ao impor aos países capitalistas o reconhecimento da
bipolaridade de classe. Contudo, houve uma reviravolta dentro do processo
revolucionário, ou como eles escrevem: com a Revolução Russa nunca
sabemos quando as coisas começaram a ir mal (DELEUZE. GUATTARI,
2010, p. 78) e nem mesmo o legado de Lenin barrou o capitalismo de
estado que se desenvolveu na URSS e estava plenamente configurado no
final dos anos de 1960:
Mas este grande corte leninista não impediu a ressurreição
de um capitalismo de Estado no próprio socialismo,
como não impediu o capitalismo clássico de contornála,
prosseguindo seu verdadeiro trabalho de toupeira, sempre
cortes de cortes que lhe permitiam integrar na sua axiomática
seções da classe reconhecida, rejeitando para mais
longe, para a periferia ou para os enclaves, os elementos
revolucionários não controlados (não controlados tanto pelo
socialismo oficial quanto pelo capitalismo) (DELEUZE.
GUATTARI, 2010, p. 456).
Silbertin-Blanc (2013) explica que o conjunto de dificuldades
que repercutiram sobre o problema prático-político das lutas contra CMI
levaram Deleuze e Guattari a forjar o conceito de minorias e o aplicaram
a sua teoria política na tentativa de ser um substituto ao conceito marxista
de classe. Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari explicam que Sartre havia
aprofundado a crítica a esse conceito, uma vez que teria identificado
que não existe espontaneidade de classe, mas apenas de grupo: donde a
necessidade de distinguir os grupos em fusão e a classe que permanece
serial, representada pelo partido ou pelo Estado. Deleuze e Guattari
fizeram tal substituição, o que os permitiu lançar o desejo no centro do jogo
político: Frequentemente, os revolucionários esquecem ou não gostam de
reconhecer que é por desejo que se quer e se faz a revolução, e não por
dever (DELEUZE. GUATTARI, 2010, p. 340 e 457).
Os militantes marxistas, ao contrário de ativar o desejo, buscam
encarnar um poder. Para Guattari (1994) eles seriam sérios demais e não no
sentido positivo, porque eles perderam o senso de humor e certa qualidade
de contato com a sensibilidade popular o que os deixou isolados. Guattari
pensa que há muita intolerância entre esses militantes, já que querem
incarnar a verdade, ao invés de procura-la.
Dentro dessa visão dita tradicional de ação revolucionária de
esquerda herdada do século XIX, valia a teoria da “correia de transmissão”
que consistia, em geral, em uma organização de massas: precedida por

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 57
uma avant-garde revolucionária consciente, era seguida pela massa de
trabalhadores. Em termos práticos, isso significou que o partido tinha
ascendência sobre os movimentos de mobilização de base, o que, na verdade,
significava seguir o modelo do que vinha acontecendo nos chamados
países do bloco socialista, onde as castas dirigentes ocupavam posições
ditatoriais. Isso sujeitou a mobilização política de base ao autoritarismo
do partido e, por conseguinte, ao modelo hierárquico piramidal e ao culto
à personalidade dos líderes. Para Guattari (1994), é preciso se interrogar
inclusive sobre a validade da separação atual entre partido político,
organização sindical e movimento associativo ou coletivo de base, já que
a separação leva as decisões políticas importantes à alçada de militantes
profissionais, os quais, consequentemente, se tornam prisioneiros de uma
aparelhagem que os distancia da vida da base popular.
Guattari defende que a produção da subjetividade pode tornar-se
o eixo fundamental da recomposição dos movimentos de base:
Isso não significa que os aspectos reivindicativos das lutas, as
campanhas políticas devam ser deixadas de lado. Mas elas não
devem ocupar o essencial do terreno, como é frequentemente
o caso hoje. Tal mudança seria impacto significativo no nível
organizacional10 (GUATTARI, 1994) (tradução nossa).
Isso implica em um constante questionamento das instituições
existentes e em uma política de abertura a mudanças nesses tempos subjetivos.
Guattari relata um caso que ele chama de sindicalismo territorial,
o qual não trata apenas da defesa de interesses dos trabalhadores
sindicalizados, mas inclusive das dificuldades enfrentadas pelos
desempregados, mulheres, crianças e a juventude de um bairro do subúrbio
de Santiago no Chile. Ele conta que todos participavam da organização
de programas educacionais e culturais e que estavam envolvidos em
ações de saúde higiene, ecologia e planejamento urbano. Enfim, como ele
mesmo escreve: É preciso também salientar que tal alargamento do campo
de ação bons olhos pelas instâncias hierárquicas do aparelho sindical!11
(GUATTARI, 1994) (tradução nossa).

10 «
Ce qui ne signifie pas que les aspects revendicatifs des luttes, les campagnes
politiques devraient être laissés de côté. Mais ils ne devraient plus occuper l’essentiel
du terrain, comme cest souvent le cas aujourdhui. Une telle réorientation aurait des
incidences importantes sur le plan organisationnel».
11 «
ll faut dailleurs signaler quun tel élargissement du champ daction ouvrière est loin
dêtre vu dun bon oeil par les instances hiérarchiques de lappareil syndical!».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 58
4 “KHMERS VERDES”

Segundo Guattari (1999), o domínio da ecologia social passa por


dois tipos de momentos: há os momentos de conflito, em que agentes são
conduzidos a fixar objetivos comuns (e a se comportarem como militantes),
mas também há momentos em que as subjetividades coletivas e individuais
voltam a prevalecer, sem preocupação com relação às finalidades coletivas;
ou seja, para Guattari, a lógica dos conflitos sociais não mais impõe resolver
os contrários, como o queriam as dialéticas hegeliana e marxista.
A esquerda e os movimentos operários se organizaram em torno
da questão social e do combate às desigualdades. O movimento verde,
por sua vez, surgiu da preocupação ambiental, dos desastres nucleares, da
Guerra Fria e da recusa da opressão onde quer que isso proliferasse e do
desejo urgente de ser livre do controle capitalista do medo onde quer que
ele se impusesse 12 (GUATTARI, NEGRI, p. 76) (tradução nossa).
Os movimentos verdes franceses, aponta Guattari (1992a), tinham
se revelado incapazes de constituírem-se como movimentos de base
(diferentemente do que acontecia na Alemanha), pelo menos até o início
dos anos de 1990, data dos últimos textos de nosso autor. Para Guattari,
subsumidos sob as questões de ordem ambiental e política, os verdes não
integram às suas reivindicações a solução de problemas sociais, o que
revelaria sua articulação limitada a pequenos grupos (groupusculaire),
bem como sua dificuldade de se articularem a outros segmentos políticos:
Se se interpela os ambientalistas sobre o que eles vão
fazer para ajudar os desabrigados em sua vizinhança, eles
respondem geralmente que isso não é responsabilidade
deles. Se você perguntar como eles abandonam suas práticas
de grupos pequenos e de certo dogmatismo, muitos deles
reconhecem o mérito da questão, mas têm vergonha de
encontrar soluções!13 (GUATTARI, 1992a) (tradução nossa).
Os verdes não são suficientemente abertos ao diálogo com outros
grupos. Segundo Guattari (1990), eles propagam uma política de inspiração
malthusiana em relação aos seus quadros e membros em potencial; o que
12 «
wherever it proliferates and from the urgent desire to be freed from the fear of
capitalist control wherever it is imposed».
13 «
Si vous interpellez les écologistes sur ce quils comptent faire pour aider les clochards
de leur quartier, ils vous répondent généralement que ce nest pas de leur ressort. Si vous
demandez comment il pensent sortir de leurs pratiques groupusculaires et dun certain
dogmatisme, nombre d’entre eux reconnaissent le bien-fondé de la question, mais sont
bien embarrassés pour y apporter des solutions !».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 59
os leva, a serem vistos como entidades externas dentro dos movimentos
associativos. Além disso, suas estruturas partidárias tendem a ligações
endógenas, sempre operando na lógica dos pequenos grupos.
Os movimentos ambientalistas atuais, segundo Guattari, às
vezes optam deliberadamente por recusar todo e qualquer engajamento
político em grande escala, já que eles associaram suas imagens à de uma
pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados
(GUATTARI, 1999, p. 36-37). Eles não põem em causa o conjunto
da subjetividade e das formações do poder capitalístico e beiram ao
escapismo de um retorno à natureza, quando não põe a serviço de um
mercado de ecologia.
Apesar disso, Guattari reconhece que a geração verde capturou
uma quantidade expressiva do eleitorado socialista, centrista e não
engajado na França, por causa de sua não vinculação. Eles são tidos como
não-sectários, em particular por sua aceitação ao duplo pertencimento
(militante verde e qualquer outra militância), apesar de permanecem
globalmente como como um movimento inconsistente, unicamente
cristalizado ao redor de uma mentalidade de mídia de massa e sem função
democrática real. Existe, então, um problema em se substituir o mito da
classe operária revolucionária pela defesa do meio ambiente, já que se
está a substituir um mito totalizante e totalitário por outro. Em outras
palavras, mesmo os radicais verdes, os khmers verdes, aqueles que pregam
um regresso incondicionado rumo uma vida natural, não conseguem
fugir da padronização e da homogeneização do CMI, uma vez que seus
processos de afirmação não levam em conta a heterogeneidade de grupos e
a singularidade dos indivíduos (GUATTARI, 1991b, 1992a).
Nos dias de hoje, as sociais democracias foram convertidas
ao CMI, ou pelo menos estão sob o primado do livre mercado, já que o
colapso internacional do socialismo extinguiu a bipolaridade: Devemos
pensar, nessas circunstâncias, que isto está por desaparecer, como o
proclama a palavra de ordem de alguns ecologistas: nem direita, nem
esquerda?14 (GUATTARI, 1992a) (tradução nossa). Contra estas posições,
Guattari considera que polarizações progressivas devem ser esperadas
por meio de padrões mais complexos de acordo com termos menos
jacobinos, mais federalistas, mais dissensuais, em comparação com o
qual irá restaurar as diferentes versões do conservadorismo, centrismo

14
Doit-on penser, dans ces conditions, que celle-ci est appelée a disparaître, comme le
«

proclame le mot d’ordre de certains écologistes : «ni gauche, ni droite»?».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 60
ou neofascismo15 (GUATTARI, 1992a) (tradução nossa). As formações
partidárias tradicionais estarão misturadas a vários componentes do estado,
ameaçando fragilizar o já combalido sistema da democracia.
Além disso, o crescente descontentamento do eleitorado é
resultado da falta de capacidade de transformação das ações políticas.
Com isso, a militância dos partidos perde respaldo social e não é capaz de
lidar com um crescente eleitorado descontente, além de flagrante falta de
convicção por parte dos cidadãos que continuam a votar.
Para Guattari, o movimento ambientalista flerta com um
totalitarismo brando, ao mesmo tempo em que é uma alavanca extraordinária
para práticas sociais e questões éticas, sociais e subjetivas.
O compromisso com a perspectiva verde, contudo, não é apenas
uma questão de ideais e de comunicação de massa, mas também, e talvez
principalmente, de práticas de renovação social, uma vez que a ecologia
ambiental, tal como existe hoje, não fez senão iniciar e prefigurar a ecologia
generalizada que aqui preconizo e que terá por finalidade descentrar
radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique
(GUATTARI, 1999, p. 36). O tecido social, sob a influência do consumismo
e da mídia, tornou-se politicamente passivo, sujeito à opressão decorrente
dos processos de homogeneização do CMI. As organizações políticas
tradicionais vivem em simbiose com essa passividade: elas se tornaram
incapazes de promover o debate sobre as questões realmente importantes
e de mobilizar os eleitores.
Para Guattari, se os movimentos marxistas e ambientalistas
imitarem os padrões do CMI em seu funcionamento nos organismo
políticos (estado, partido, movimento de base, etc.), eles inexoravelmente
irão tornar-se a impotentes, sob o risco da rápida extinção de sua influência.
Eles devem partir da premissa de que como os dois movimentos de
ecologia política linha de frente existentes, vermelhos e verdes, apesar de
seus méritos, não atendem as demandas reais do período atual, isto é, têm
deficiências que precisam ser sanadas antes que sua ação política se torne
mais consistente. Para isso, é preciso voltar-se a para a instauração de uma
verdadeira democracia ecosófica:
Afigura-se necessário que os componentes de vida que
existem dentro de cada um desses movimentos se organizem
em conjunto com os movimentos associativos a fim de
15 «(...)
selon des modalités moins jacobines, plus fédéralistes, plus dissensuelles, par
rapport à laquelle se restitueront les différentes moutures du conservatisme, du centrisme,
voire du néo-fascisme».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 61
preparar uma reestruturação global do movimento de
ecologia política. Este movimento futuro deve ser pluralista
e profundamente infiltrado na sociedade a partir de coletivos
de base e de coletivos setoriais (...). [O movimento] Deve
desenvolver um espírito de mútua tolerância, simpatia e dar
um lar e apoio no local todas as iniciativas sociais, de cultura
e de pesquisa, nos domínios da vida urbana, da educação,
da saúde, dos meios de comunicação alternativos... Ele
também deve se preocupar com uma reinvenção necessária
do sindicalismo na França, um sindicalismo que deverá se
engajar pelos desempregados, pelos marginalizados, pela
vida de bairro...16 (GUATTARI, 1990) (tradução nossa).
Por todas estas razões o diálogo entre os movimentos marxistas e
ambientalistas parece essencial. Apesar dos avanços do CMI colocarem em
questão a continuidade da existência do homem no planeta, o risco de um
retorno a um status quo ante é perder de vista a mobilização e a informatização
que o atual sistema possibilita. É preciso, sobretudo, uma nova valorização
do trabalho, sendo que os valores de uso e de desejo (GUATTARI, 1994)
devem se firmar sobre as trocas capitalistas. É a mobilização da força de
trabalho coletivo que envolve todo o planeta o elemento mais significativo
capaz de prevenir o avanço da destruição da biosfera:
O futuro imediato, é preciso admitir, se apresenta geralmente
como um dia por demais sombrio. Todavia, os potenciais de
inteligência coletiva e de criatividade não deixam de ser
menores e também pressagiam reviravoltas extraordinárias.
Cabe a nos trabalhar cada um de sua maneira à medida de
nossos meios17 (GUATTARI, 1994) (tradução nossa).

16 «
Il apparaît nécessaire que les composantes vivantes qui existent au sein de chacun
de ces mouvements sorganisent entre elles et en liaison avec le mouvement associatif afin
de préparer une recomposition densemble du mouvement décologie politique. Ce futur
mouvement devrait être pluraliste et profondément implanté dans la société à partir de
collectifs de base et de collectifs sectoriels. Il devrait attacher une importance primordiale
à toutes les questions relatives à lémancipation féminine. Il devrait développer un esprit
de tolérance mutuelle, de convivialité et constituer un lieu daccueil et dappui à toutes
les entreprises dinitiative sociale, de culture et de recherche, dans les domaines de la
vie urbaine, de léducation, de la santé, des médias alternatifs Il devrait également se
préoccuper dune nécessaire réinvention du syndicalisme en France, un syndicalisme qui
deviendrait en prise sur les chômeurs, les marginaux, la vie de quartier »
17 «
Lavenir immédiat, il faut le reconnaître, se présente généralement sous un jour assez
sombre. Mais les potentialités dintelligence et de créativité collective nen demeurent
pas moins immenses et laissent également augurer d’extraordinaires retournements de
situation. À nous dy travailler chacun à notre façon et à la mesure de nos moyens».

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 62
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise ecológica está ligada a uma crise mais geral nos campos
do social, da política e da existência. A ecologia ambiental, tal como a ela
se constitui nas últimas décadas, iniciou a prefiguração de uma ecologia
generalizada e Guattari defende uma descentralização radical das lutas
sociais e das maneiras de assumir a própria psique. O movimento operário
ficou preso a um esquema totalizante que o transformou em uma engrenagem
do CMI, apesar de ter surgido como tentativa de ruptura. A ecologia
ambiental, por outro lado, oferece um panorama de atuação política mais
ampla que permitiu vislumbrar as consequências de uma atuação política
integrada entre as diversas crises que põe em cheque a atuação do CMI. Os
verdes têm sua ação política marcada pela não vinculação sectária e pela
liberdade de reprodução dos conteúdos de subjetividade, não apenas por
que uma revolução se faz pela mobilização do desejo.
Uma nova esquerda, segundo Guattari, deve se valer do potencial
ainda inexplorado de emancipação das forças de trabalho, não obstante,
sob o influxo das técnicas políticas inauguradas pelos verdes, não só
porque uma revolução se faz com base no desejo, mas também porque a
crise ambiental é indissociável da crise socioeconômica.
No entanto, a leitura da política contemporânea focada nos aspectos
de reprodução da subjetividade contemporânea parece um tanto ingênua
frente até mesmo os processos de reprodução ideológica do CMI. Em certo
sentido, parece que Guattari acerta no diagnóstico da crise atual e suas várias
dimensões, mas a solução que ele oferece, mesmo sob o mérito de explorar
a autenticidade subjetiva, padece das limitações de tentar revolucionar a
sociedade capitalista a partir do desejo. Como ela não oferece parâmetros
claros de atuação, ela abre margem para a violência e o despotismo.
O texto de Guattari não é fácil de ser interpretado e suas soluções
parecem estar distantes da prática, ou expressos em um jargão conservador,
parecem utópicas demais. Acreditamos que isso se deve ao esforço de
renovação psicossocial da obra de Deleuze e Guattari cujo significado,
ainda que marcado pela investigação da interiorização do fascismo nas
sociedades capitalistas democráticas, apresenta diversos desafios. O
cientista do direito parece poder se apropriar desses conceitos apenas no
nível da zetética, já que o projeto de Guattari não parece fazer considerações
sobre o nível dogmático normativo das sociedades modernas senão no que
tange à psicanálise.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 63
REFERÊNCIAS

BUCHANAN, I. Deleuze and Guattari’s anti-Oedipus: a reader’s


guide. London: Continuum, 2008.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo
e esquizofrenia. Trad. L. B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34,
2010, Coleção TRANS.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Trad. A. Guerra Neto e C. Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995, v. 1.
GENOSKO, G. Félix Guattari: an aberrant introduction.
London: Continuum, 2002.
GUATTARI, F. As três ecologias. Trad. M. C. F. Bittencourt. 9. ed.
Campinas: Papirus, 1999.
GUATTARI, F. Écologie mentale: la passion des machines.
Entretien avec Félix Guattari. Terminal. Paris, n. 55, p. 44-45,
octubre – decembre, 1991a.
GUATTARI, F. Écologie et mouvement ouvrier. Chimeres, [1994].
Disponível em: http://www.revue-chimeres.fr/drupal_chimeres/
files/21chi10.pdf. Acesso em: 07 jun. 2016.
GUATTARI, F. Quest-ce que écosophie? Entretien avec Félix Guattari.
Terminal. Paris, n. 56, p. 22-23, novembre – decembre, 1991b.
GUATTARI, F. La question de la question. Terminal. Paris, n. 57, p. 8-9,
frevrier – mars, 1992a.
GUATTARI, F. Pratiques écosophiques et restauration de la Cité
subjective. Chimeres, [1992b]. Disponível em: http://www.revue-
chimeres.fr/drupal_chimeres/files/17chi07 .pdf. Acesso em: 07 jun. 2016.
GUATTARI, F. Revolução molecular: pulsações políticas do
desejo. 2. ed. Seleção, prefácio e trad. S. B. Rolnik. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1985.
GUATTARI, F. Vers une nouvelle démocartie écologique. Chimeres,
[1990]. Disponível em: http://www.revue-chimeres.fr/drupal_chimeres/
files/ecoetpo.pdf. Acesso em: 07 jun. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 64
GUATTARI, F. NEGRI, A. New lines of alliance, new spaces of liberty.
Trad. M. Ryan, J. Becker, A, Bove and N. Le Blanc. London/New York:
Minor Compositions, Automedia, MayFlyBooks, 2010.
GUATTARI, F. ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed.
Petropolis: Ed. Vozes, 1996.
PARR, A. The Deleuze dictionary. 2. ed. revised. Edinburg: Ediburgh
University Press, 2010.
QUERRIEN, A. Broderies sur Les Trois Écologies de Félix Guattari.
Chimeres, [1996]. Disponível em: http://www.revue-chimeres.fr/drupal_
chimeres/files/28chi06.pdf. Acesso em: 07 jun. 2016.
ROSS, K. May ’68 and its afterlive. Chicago, London: The University
of Chicago Press, 2002 SILBERTIN-BLANC, G. Politique et état chez
Deleuze et Guattari: essai sur le matérialisme historico-machinique.
Paris: Presses Universitaires de France, 2013.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 65
IMPÉRIO DIGITAL MUTIDÃO CIBERNÉTICA

Fernanda Rocha de Moraes*

INTRODUÇÃO

Que futuro a internet nos reserva? Uma dominação imperial


através de redes de vigilância e controle ou uma autonomia das multidões
através de processos de produção comunicacional colaborativa que
potencialize as singularidades? O problema em questão impõe diversos
desafios, sobretudo porque ele se localiza entre o limiar do que conhecemos
e do que ainda é mero devir. Este é o risco de se trabalhar com as análises
sociais, que se moldam e renovam a todo tempo e cuja complexidade não
pode ser completamente abarcada, mas apenas representada a partir de
procedimentos intelectuais que simplificam o todo, tornando-o inteligível.
Em outras palavras, o ofício do cientista social é um que inclui, além da
observação, escolhas metodológicas. Ao trabalhar com um tema tão atual,
mas cujas consequências ainda não são completamente compreensíveis,
devemos estar atentos para não cairmos nas armadilhas da análise desonesta
da realidade, por outro lado, devemos nos abrir para as possibilidades de
construções e transformações sociais mais solidárias. Afinal de contas,
como bem descreveu Eduardo Galeano, a utopia é o horizonte: um local
inalcançável que nos faz nos faz mover em frente.
Nossa análise terá como pressuposto teórico duas obras escritas
em co-autoria por Michael Hardt e Antonio Negri no início deste século:
“Império” e “Multidão”. O período histórico abordado pelo artigo é o
presente, chamado por alguns autores de pós-modernidade e por outros
de Sociedade da Informação. Sua principal característica, segundo Hardt
e Negri, é a ascensão de um mercado e, consequentemente, de uma
ordem mundial. Hoje, os fatores primários de produção e troca - dinheiro,
tecnologia, força de trabalho e bens - atravessam com facilidade e rapidez
fronteiras nacionais, dando origem a circuitos de produção global. Isto
altera o poder regulatório do Estado1, fonte tradicional e detentor legítimo
*
Mestranda em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, com orientação da Professora Doutora Maria Paula
Dallari Bucci. Pesquisadora bolsista pelo programa CAPES/PROEX.
1
Devemos enfatizar que não estamos sustentando aqui que nesse interregno os Estados
deixem de ser poderosos, e sim que seus poderes e funções estão sendo transformados num

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 67
do monopólio da força desde a modernidade. Em seu lugar, surge uma
ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando - em resumo, uma
nova forma de supremacia: o Império (HARDT e NEGRI, 2003, p. 10).
Dentro deste contexto, a internet, transnacional por natureza,
surge como elemento com elevada capacidade de alterar a regulação
e a distribuição de forças na sociedade. Ela nada mais é do que uma
rede composta por sistemas autônomos (fala-se em “rede de redes”),
interconectando diversos computadores através de uma infraestrutura de
comunicação compartilhada e aberta. Sua operacionalidade e governança
é garantida não por instituições estatais, mas pela forma como a rede é
estruturada, isto é, sua arquitetura2. A rede digital, ao permitir a circulação
irrestrita e em tempo real de informação, altera os sistemas de poder3,
constituindo-se como arena de intensas disputas políticas cujos resultados
ainda não estão definidos. Inicialmente, os criadores da internet acreditavam
que ela iria invariavelmente revolucionar a sociedade rumo a um sistema
democrático radical em que todos os indivíduos seriam livres e senhores
de seus destinos. Hoje, contudo, há um verdadeiro ceticismo quanto à
potencialidade libertadora das redes, cada vez mais concentradas em

novo arcabouço global.(...) Saskia Sassen chama este processo de “desnacionalização”.


Os Estados continuam a desempenhar um papel crucial na determinação e na manutenção
da ordem jurídica e econômica, sustenta ela, mas suas ações se orientam cada vez mais
para a emergente estrutura de poder global, e não para os interesses nacionais. Nessa
perspectiva, não existe contradição entre o Estado-nação e a globalização” (HARDT e
NEGRI, 2005, p. 213). Neste sentido, é muito ilustrativo o exemplo de Thomas Frank
(2004, pp. 423-424) sobre o poder do mercado e como ela se traduz em violência a partir
de uma relação global e nacional. Narra ele que a Colômbia teria recebido do governo
Clinton um pacote de ajuda militar bilionário. Neste período, diversos organizadores de
sindicatos foram assassinados, de tal forma que, em 1997, eles correspondiam a 50% dos
ativistas mortos em todo o mundo. Ele conclui, portanto, que os retornos de capital da
Nova Economia têm origem não só na criatividade, mas na violência tradicional, isto é,
operada pelo poder estatal.
2
Na década de 1990, prevalecia a crença de que o ambiente digital não poderia ser
regulado. Em 2000, o professor de direito e idealizador do Creative Commons, Lawrence
Lessig, publica o livro Code and Other Laws of Cyberspace, afirmando que a rede não
só pode ser como ela é regulada: seu funcionamento é determinado pelos protocolos de
rede definidos pelos programadores o código é lei. Em suma, o sistema normativo que
estrutura o ambiente virtual é composto por regras impostas não pela sanção social e
não pelo Estado, mas pela arquitetura de um espaço particular (LESSIG, 2006, p. 24).
Contudo, pela falta de instituições capazes de estabelecer os valores mais importantes a
serem preservados, a internet pode tanto se tornar um ambiente cada vez mais aberto e
democrático ou, ao contrário, controlado e vigiado. (LESSIG, 2006, pp. 25 e 27)
3
Segundo Manuel Castells (2015, p. 29), as relações de poder que fundamentam e
legitimam as instituições organizadas da sociedade são construídas através de processos
comunicacionais e, portanto, dependem da cultura, da tecnologia e dos sistemas de
comunicação existente

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 68
poucas empresas4, tendência que chamaremos de “Império Digital”. Mas
isso não significa o desaparecimento das potencialidades transformativas
da rede mundial de computadores. Ao contrário, o poder global do capital
só poderá ser rompido por uma potência que seja também ela transnacional,
construída por redes de solidariedade distribuídas nos diversos níveis
mundial, regional, nacional e global. O ciberespaço permite a interação
simultânea e cooperativa entre múltiplas singularidades, dando origem
a movimentos sociais contrapostos ao poder imperial. Chamaremos este
contrapoder de Multidão Digital.
Trata-se, portanto, de uma construção dialética5 que tem por
pressuposto dois conceitos políticos fundamentais: a soberania e a
democracia. Por isso, de um lado, tem-se o surgimento de um superpoder
autoritário, restrito e global e, de outro, a contestação e resistência desta
força totalizante através da estruturação de novas formas de cidadania. O
objetivo do trabalho é analisar estas mudanças político-sociais apresentadas
por Michael Hardt e Antonio Negri sob o ponto de vista exclusivo da
expansão da comunicação digital e suas formas de controle, vigilância
e liberação social. Ficam de fora da análise, portanto, outros sistemas
primordiais de concentração de poder como o financeiro e militar (bélico).
O artigo será dividido em três partes. No primeiro momento,
apresentaremos os conceitos de Império e Multidão para Hardt e Negri,
destacando os pontos de maior afinidade com o recorte temático proposto.
Em seguida, apresentaremos em que medida a internet, ao contrário do
que idealizado pelos seus criadores, tem servido como força concentradora
de poder na mão de pouquíssimos centros de tecnologias de ponta que
em conjunto com os governos das grandes potências utilizam cada vez
mais esta forma de coleta de dados global como instrumento de vigilância,
controle e formação de mercados extremamente rentáveis. Por fim,
analisaremos em que medida o sonho de transformação das relações
econômicas, políticas e sociais pode ser alcançado a partir da organização

4
Fala-se em gigantes da internet, ou, ainda, nas cinco grandes (big five): Amazon,
Apple, Facebook, Alphabet (empresa que detém a Google) e Microsoft.
5
Castells, de forma semelhante, também trabalha com forças dialéticas compostas,
de um lado, pelo poder (materializado nas instituições) e, de outro, pelo contrapoder
(exercido pela sociedade civil), sendo estes fatores de poder organizados pelos processos
comunicativos. Com a comunicação digital, há uma nova configuração na interação
entre os produtores e consumidores de informação, já que a mensagem é autogerada,
sua recuperação é autodirigida e sua recepção e recombinação são autosselecionadas. O
sociólogo espanhol denominou esta nova dinâmica comunicacional de “intercomunicação
individual (2015, p. 29).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 69
de um contrapoder disperso, mas cada vez mais numeroso, capaz de
construir uma solidariedade global digital de resistência.

1 IMPÉRIO E MULTIDÃO: SOBERANIA DO CAPITAL


GLOBAL VS. FORÇA VITAL DAS MASSAS

No ano 20006, Michael Hardt e Antonio Negri publicam a obra


Império, na qual defendem a ascensão de uma nova forma de soberania
global, erigida após o fim dos regimes coloniais e a queda do governo
soviético. Diferentemente do imperialismo, baseado no sistema de
Estados-nação e no estabelecimento de fronteiras territoriais, o Império
é descentralizado e desterritorializado, ele opera identidades híbridas
e hierarquias flexíveis, incorporando todos os locais do globo dentro de
suas fronteiras abertas. Desta forma, a soberania global do Império surge
e se alastra concomitantemente ao “crepúsculo da soberania moderna”
(HARDT e NEGRI, 2003, p. 12). O exercício do poder é reconfigurado e,
para ser exercido de forma efetiva em escala global, passa a atuar em rede.
Por isso, Hardt e Negri, compreendem que o processo de
globalização atual é algo completamente novo na história humana7.
Ele não representa uma mera ampliação e aceleração dos processos de
produção e troca mundial inerente ao capitalismo, mas o surgimento de
um novo paradigma de poder e organização das estruturas sociais. Embora
apresente linhas de continuidade com o sistema anterior8, possui elementos
estruturais que o torna um acontecimento qualitativamente distinto: o
poder é estruturado a partir de uma noção comum e global de regulação
material (a constituição do Império) e é operacionalizado pelo mercado
mundial, em contraposição às formas tradicionais baseadas em contratos
e tratados (Ibid. 11 e 272). Contudo, longe de ser um processo uniforme,
6
Conforme destacado no prefácio, a construção teórica do Império tem como marco
temporal inicial e final, respectivamente, a Guerra do Golfo Pérsico e a guerra do Kosovo.
7
Esta visão tem origem na análise de Lênin sobre a expansão imperialista do
capitalismo. Segundo este autor, o sistema de fronteiras estatais fixas do imperialismo
com o tempo se tornaria um obstáculo para a expansão do capital. A necessidade de
realização plena de um mercado mundial levaria à destruição das barreiras que delimitam
o interior e o exterior, dando origem, a depender do desenrolar da história: ou à revolução
comunista mundial ou ao império (HARDT e NEGRI, 2003, p. 251-254).
8
Nas palavras de David Held (1992, p. 32): “(...) uma coisa é afirmar que há elementos
de continuidade (...) outra coisa é afirmar que não existe nada de novo sobre os aspectos
de suas formas e dinâmicas ( ). Enquanto rotas comerciais e expedições militares
conseguiam ligar populações distantes através de extensos laços de causa e efeito, o
desenvolvimento contemporâneo na ordem internacional liga pessoas através de múltiplas
redes de transição e coordenação, reordenando toda a noção de distância”.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 70
a integração em torno da autoridade central do mercado mundial se dá de
forma fragmentária e desigual, coexistindo diversos regimes de reprodução
social (Ibid, pp. 272-273), dando origem ao que alguns denominam de
“governança sem governo”9.
A ascensão do Império é caracterizada pela indefinição dos
limites tempo-espaciais do exercício do poder. Hoje as guerras não são
mais travadas entre Estados, mas contra ideias e conceitos (“guerra às
drogas”, “guerra ao terror”) e por isso o alcance e a duração são incertos10.
Esta necessidade de vigilância contínua para manutenção da ordem social
e para a preservação de valores humanos universais é o fundamento
de legitimidade da soberania imperial (Ibid, p. 33). A organização
do poder global dá origem a um novo constitucionalismo em que as
funções desempenhadas pelas diversas fontes11 de poder global não estão
claramente separadas12, mas são manipuladas do alto: “a cola que segura
os diversos corpos e funções da constituição híbrida é o que Guy Debord
chama de espetáculo” (Ibid, 339 e 342-343). A atual integração capitalista
global requer mais do que a dominação econômica ou militar, mas a
mobilização de toda a superestrutura econômica, política e ideológica:
o biopoder (FARIAS, 2013, p. 84). Para compreendermos este processo,
contudo, precisamos voltar nossa atenção aos processos de produção, troca
e consumo contemporâneos: “a fonte de normatividade imperial nasceu
de uma máquina, uma nova máquina econômica-industrialcomunicativa,
em resumo uma máquina biopolítica globalizada” (HARDT e NEGRI,
9
A “governança sem governo” não significa o fim do Estado-Nação, mas o surgimento
de redes de conexão global e regional que conectam Estados, instituições internacionais,
empresas e atores transnacionais, uns com os outros, “transformando a soberania em um
exercício compartilhado de poder ( ) emergindo assim um sistema global de governança,
tanto formal quanto informal” (HELD e MCGREW, 2003, p. 11).
10 “(...)
quando o inimigo está tão mal definido, há o perigo de contínuos prolongamentos
da 'guerra'. Desde o 11/9 o governo Bush vem estendendo a luta. Inicialmente, era contra
os terroristas transnacionais. Depois passou a ser também contra os regimes que os
abrigam (...). O alvo estendeu-se posteriormente aos países suspeitos de terem armas de
destruição e massa (...). O resultado é uma ordem mundial mais instável do que antes.”
(FERREIRA, 2004, p. 314)
11
Hardt e Negri (2003, 331-333). apresentam como funções que antes eram exercidas
pelos Estados e que passaram a ser desempenhadas de forma supranacional: o poder militar,
dominado pelos Estados Unidos, mas, sempre que possível, exercido em colaboração
com outros estados pelo sistema das Nações Unidas; o poder econômico e monetário,
exercido pelo G7 e pelas corporações transnacionais que organizam o mercado mundial e
o poder democrática exercido pelo o povo global, constituído por forças díspares.
12 “
Hoje estamos novamente numa fase genética de poder na qual funções são vistas
basicamente do ângulo das relações e da materialidade da força, e não da perspectiva
de um possível equilíbrio e da formalização do arranjo definitivo total.” (HARDT e
NEGRI, 2003, p. 337)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 71
2003, p. 59). É preciso, pois, descer “à morada oculta da produção”
(Ibid, 2003, p. 226)
A passagem da Sociedade Industrial, baseada na operação de
máquinas, para a Sociedade Informacional, baseada na inteligência
cibernética, altera a qualidade e a natureza do trabalho e que passa a
englobar não apenas atividades manuais e materiais - o trabalho industrial
(que permanece, mas se torna cada vez mais móvel e flexível) - mas
também atividades intelectuais e comunicativas - o trabalho imaterial
(Ibid, 2003, p. 229 e 311 e 2005, p. 134-135, 150 e 217). Devido a ausência
de distinção entre o econômico, o político, o social e o cultural fala-se em
produção biopolítica13. Dois aspectos explicam esta alteração nas relações
laborais: de um lado a crescente manipulação de símbolos e abstração do
trabalho por meio de uma máquina específica e universal: o computador.
Por outro, o aumento do trabalho afetivo, baseados no contato e na
interação, real ou virtual.
Yochai Benkler, no livro “The Wealth of Networks”, de forma mais
radical, chega a defender a emergência de uma nova estrutura econômica
não mais baseada nas leis do mercado e no direito de propriedade, mas na
produção de valor e riqueza a partir da interação cooperativa dos indivíduos
dispersos em uma rede de inteligência difusa. Ele chama este novo sistema
de “economia da informação em rede” (BENKLER, 2006, pp. 2-7 e 32). Um
sistema baseado na descentralização da produção e na troca de informação
de tal forma que o trabalho é exercido não apenas no mercado, mas pelos
indivíduos enquanto seres que agem, criam e dão significados a suas vidas,
individual e socialmente (Ibid, p. 34). Com isso, o controle disciplinar
fabril, baseado em um sistema de relações lineares - a chamada linha de
montagem -, é deixado para trás, substituído por um sistema interativo cuja
produção de riqueza depende da cooperação dos pontos interconectados
na rede - cooperação abstrata (HARDT e NEGRI, 2003, p. 297 e 2005, p.
256). Apesar desta dispersão territorial, o monitoramento computacional
permite que “O controle da atividade operária” seja potencialmente
individualizado e contínuo no panopticon virtual da produção em rede
(HARDT e NEGRI, 2003, 318). Do ponto de vista global, esta centralização
do comando está materializada em cidades-chave do sistema mundo que
13
Os autores diferenciam os conceitos de biopoder e produção biopolítica. Embora
ambos tenham como característica a incidência na vida social como um todo, o biopoder é
exercido pela autoridade soberana, sendo transcendente. Já a produção biopolítica atua de
forma horizontal, nas relações de trabalho cooperativas, sendo imanentes às sociedades.
A análise do biopoder nos permite compreender o Império (soberania), A análise da
produção biopolítica nos permite compreender a Multidão (democracia).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 72
concentram serviços financeiros e tecnológicos: as cidades globais, ou
ainda, as cidades controle. (Ibid, pp. 316-318).
Em sequência a este primeiro livro, os autores escrevem Multidão14
cujo objeto de análise é a construção de um projeto de democracia global.
Ela estaria pautada na ideia de multidão e constituiria a outra face da
globalização em contraposição ao Império: enquanto esta estabelece
hierarquias e mecanismos de controle; aquela cria novos mecanismos de
cooperação, colaboração e solidariedade global, o que tornaria possível
a ação conjunta. A multidão constitui-se como uma nova forma de
compreensão dos agregados sociais, diferente de conceitos anteriores como
povo15, massa e classe operária, respectivamente, pela sua multiplicidade
de singularidades (unidas, porém, não únicas); enorme diferenciação
interna e abertura para incluir as diversas formas de trabalhadores que
compõe a cadeia de produção da economia global. (HARDT e NEGRI,
2005, p. 12 E 13 e 139). Para que ela possa se contrapor ao poder do capital
global, contudo, a multidão precisa de um projeto politico e para isso ela
precisa reconstruir as formas constitutivas da organização social (Ibid, pp.
247-248; 268-369 e 275).
Trata-se de um processo político de construção democrática,
em que tudo que é geral ou público deve ser reapropriado e gerido pela
multidão. A gestão cooperativa do comum consolida o poder da multidão
que, por sua vez, fornece um sujeito social e uma lógica de organização
social que torna possível a realização da democracia global. Esta, por sua
vez, constitui-se como a força política contraposta à soberania imperial.
Quanto mais as comunidades utilizarem as redes comunicativas e
colaborativas para fazerem mais por si mesmas, tanto no campo econômico
como político e social, mais o caráter parasitário da dominação soberana
se acentuará. De fato, e este é o ponto central: a multidão pode se constituir
14
O tema da Multidão como força contrária à soberania do Império global havia sido
formulado já no livro Império, porém de forma vaga. Algumas questões ficaram por
responder, como por exemplo: “de que maneira a multidão constituirá a si mesma como
sujeito político?” (BROWN e SZEMAN, 2006, p. 93)
15
O povo é tanto o elemento intermediário de legitimação do poder soberano, como a
forma de soberania utilizada pelos movimentos sociais para substituição da autoridade
vigente e tomada de poder. É uma abstração, um corpo orgânico, que reduz a liberdade e
individualidade das partes para formar um todo organizado hierarquicamente acima das
partes. Esta legitimação, baseada em um elemento transcendente, tem como consequência
a supremacia da autoridade estabelecida sobre a população em geral, ou seja, ela reproduz
processos de dominação. “Essa relação ambígua entre o povo e a soberania explica a
permanente insatisfação que vimos observando como o caráter não-democrático das
formas modernas de organização revolucionária, o reconhecimento de que as formas de
dominação e autoridade contra qual lutamos permanentemente reaparecem nos próprios
movimentos de resistência”.(HARDT e NEGRI, 2005, p. 116-117 e 211).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 73
como instância de poder decisório. A obrigação política, neste contexto, só
terá legitimidade quando for fruto da vontade ativa da multidão e cessará
quando ela deixa de existir. Em suma, opoder político deixa de estar na
mão da autoridade governante e passa para a dos governados (HARDT e
NEGRI, 2005, p. 283; 420-421 e 424-426).

2 GLOBALIZAÇÃO E O IMPÉRIO DIGITAL

Os sistemas produtivos da sociedade informacional impactam


nos processos de subordinação do trabalho: se antes ele era formal,
baseado na ideia de autonomia individual e liberdade de contrato, agora
a subordinação do trabalho ao capital torna-se real e o capitalismo se
expande para todas as fronteiras. A compreensão desta nova dinâmica
social pressupõe o reconhecimento da natureza peculiar do sistema global
atual, mediado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação
(HELD, 1992, p. 33 e HARDT e NEGRI, 2003, p. 368). A internet tem um
papel central no desenvolvimento destes mecanismos de subordinação ao
mercado global: transformamos nossas casas, nossos carros e até nossa
diversão em trabalho; a cada clique, trabalhamos para o capital. Isto pode
gerar uma servidão em rede, a partir da exploração desta dispersão de
trabalhadores capazes de trabalhar a qualquer hora e em qualquer dia: “O
obo da exploração em rede deve ser reconhecido quando vem travestido
com a pele de cordeiro de gadgets brilhantes” (LOVINIK, 2008, p. 223).
Antes, a disciplina era exercida por instituições como as escolas,
as igrejas, as prisões, as fábricas. Elas regulavam o comportamento através
do exercício repetido de rotinas que atuavam diretamente sobre nossos
corpos. Fala-se, atualmente, na passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle (HARDT e NEGRI, 2003, p. 350). Isso não significa
que a disciplina perdeu sua importância, ao contrário, para Hardt e Negri
ela é o mecanismo central do mercado mundial, o que muda é a forma
como ela é exercida na construção do Império. Se antes ela era exercido
de maneira linear, isto é, a partir do estabelecimento da ordem por uma
máquina administrativa coerente e baseada no pressuposto da proteção do
interesse público, hoje a administração dos conflitos deve ser feita de forma
fractal, isto é, não pela imposição única, mas pelo controle das diferenças:
“o problema da administração não é um problema de unidade mas de
multifuncionalidade instrumental” (Ibid, p. 362). É preciso governar as
autonomias, o que só é possível através de processos comunicacionais.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 74
As redes sociais desempenham muito bem este papel ao permitirem
que diversas forças e pontos de vista coexistam em uma mesma estrutura,
sem que estas diferenças ameacem o status quo. O último documentário de
Adam Curtir, da BBC inglesa, Hypernormalisation, mostra como a mídia
social funciona como um sistema de pacificação social. Segundo ele, a
política tem se tornado um grande espetáculo movido pela manipulação dos
sentimentos, em especial a raiva. Nós os extravasamos online e enquanto
pensamos que estamos expressando nossa opinião, estamos na verdade
enriquecendo as corporações responsáveis pelas mídias sociais. Somos
componentes constituintes deste sistema comunicativo que ao tentar
abarcar toda e qualquer ideologia, impossibilita que mudanças efetivas
operem no seio da sociedade, sem que isto corresponda a um aumento de
conhecimento e um enriquecimento cultural global16.
Talvez uma das expressões mais claras desta alienação pelas
redes tenha sido descrita por Eli Praiser, em seu livro The Filter Bubble:
What the Internet Is Hiding From You. Os filtros-bolhas são algoritmos
(robôs) cuja função é filtrar os dados de tal forma que cada pesquisa
retorne um conjunto de informações customizadas para cada usuário,
conforme seu histórico de acesso, com o objetivo de tornar viável a busca
por informação na infinidade de dados que trafegam na rede17. Por outro
lado, embora necessários, os buscadores acabam decidindo que elementos
serão considerados relevantes para cada argumento pesquisado e quais
não, o que os denota de um poder enorme (CARDOSO, 2006, p.315).
Esta questão torna-se ainda mais delicada se levarmos em conta que uma
única empresa (o Google) domina, desde 2001, quase todo o mercado de
filtros (Ibid, p. 323). O surgimento destas ferramentas de busca decorre da
própria evolução da internet, de um ambiente desregulamentado e restrito
majoritariamente ao público acadêmico para um ambiente mediado
por normas jurídicas capazes de preservar as necessidades oriundas do
16
Ao contrário, McChesney cita vários autores que, recentemente, têm defendido o
empobrecimento intelectual pelo advento das redes, tais como Nick Mohammed (2012),
Mark Bauerlein (2007), Jaron Lanier (2012), Virginia Eubanks (2011), Russel Banks
(2011), Sherry Turckle (2012), etc
17
O autor português Gustavo Cardoso (2006, pp. 307-323), enfrentando a questão da
memória e dos filtros na internet, destaca que, diferentemente do que se pensa, a memória
gerada pela rede é limitada tanto pela diversidade caótica de informações disponíveis
como pelo fato de as ferramentas de pesquisa não disponibilizarem todo o universo
possível de páginas de fato existentes para um determinado assunto. Assim, se a ideia de
“porteiros” (gatekeepers) utilizada para conceituar o controle das informação feito pelos
editoriais das mídias de massa tradicionais pode ser aplicado, por analogia, . Disto conclui-
se que, se a internet surge como ferramenta capaz de alterar as estruturas verticalizadas
das organizações burocráticas, ela também desenvolve suas formas de controle.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 75
comércio eletrônico. Desta forma, o valor dos chamados buscadores
está relacionado com a sua capacidade de orientar os usuários em suas
navegações (Ibid, p. 316). Assim, embora normalmente não haja uma
pré-determinação a partir de requisitos ideológicos, as pesquisas são
condicionadas a motivos comerciais, reforçando o poder do capital. Por
isso, Eli Praiser defende a necessidade de inserir nestes robôs, dominados
por fórmulas matemáticas e voltados para interesses comerciais, algum
tipo de controle que seja também ético.
Além disso, este exagero das redes demonstra um desgaste dos
conceitos de colaboração e de cooperação18 frente ao que Cass Sunstein
denominou de “atomismo ético” que consistiria no surgimento de um tipo
de usuário consumidor que pensaria apenas em seus interesses egoísticos
e não nos interesses compartilhados de forma coletiva. Isto tornaria
o ambiente digital cada vez mais polarizado e fragmentado. Ora, se o
amálgama que sustenta o Império, conforme salientado anteriormente, é
o espetáculo, na sociedade digital ele, ao mesmo tempo que impõe uma
certa uniformidade de ação e pensamento baseada no consumo, cria
a falsa noção de individualidade a partir de teclas de vídeos cada vez
mais personalizadas - o”espetáculo de curta duração” (LOVINK, 2008,
p. 202). Isto cria uma distopia em termos de convivência democrática,
porque dificulta o enriquecimento através do debate de ideias distintas
(SUNSTEIN, 2007, p. 4 e 18): “suponha que pessoas com certa visão política
aprendam apenas sobre autores com a mesma visão fortalecendo, assim,
seus julgamentos pré-existentes ( ) em uma sociedade democrática, isso
não pode ser problemático?” (SUNSTEIN, 2007, p. 21). Assim, as novas
tecnologias podem, ao invés de contribuir para o fortalecimento de uma
democracia deliberativa, esvaziar estruturas associativas e comunitárias
de caráter intermediário entre o Estado e o indivíduo, como por exemplo,
partidos, sindicatos, associações e movimentos cívicos coletivos.
A ideia de que a internet deva conduzir necessariamente a uma
revolução político democrática é falsa, já que ela pode servir tanto para
promover como de enfraquecer a ação coletiva e a coesão social. Na
verdade, o que tem ocorrido é o surgimento de monopólios poderosos que
concentram quase todos os recursos da comunicação digital e, com isso,
controlam e manipulam os processos regulatórios deste setor19. Fazem
18
O autor exemplifica isto de algumas formas, mas uma bastante ilustrativa é a sensação
que normalmente se tem em de que os debates online são sempre abandonados no meio,
sendo incapazes de atingir uma conclusão.
19
Segundo McChesney (2013, 166), as empresas monopolistas oriundas da dita
revolução digital atingiram recordes históricos de mercado. Em 2012, quatro das

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 76
isso, por exemplo, aumentando o controle e proteção sobre a propriedade
imaterial, através de leis de patente e copyright. De fato, a reprodução infinita
de bens imateriais no ambiente online desafia o conceito de propriedade,
pautado na ideia de escassez e, portanto, representa uma ameaça ao capital
global. Como estas violações não podem ser eficazmente combatidas pelas
forças policiais tradicionais, é preciso construir um sistema jurídico robusto
que legitime a proteção desta nova forma de propriedade privada. Vale
ressaltar que o argumento do estímulo à criatividade (justificação racional
que embasa a construção destas ferramentas jurídicas) perde cada vez
mais sentido em um mundo onde a produção depende cada vez mais dos
esforços coletivos e dispersos da rede. Ao contrário, estas leis restritivas
têm servido como barreiras à inovação20. O próprio desenvolvimento e
dinamismo tecnológico da Internet só foram possíveis pela cultura adotada
em seus primórdios, por seus criadores, que culminou em uma arquitetura
de rede baseada na abertura, liberdade e cooperação21 (LOVINIK, 2008, p.
207). Hoje, contudo, a tendência é que a internet se torne um ambiente cada
vez mais fechado. Este produto, antes fruto do trabalho coletivo, solidário
e criativo dos programadores, torna-se propriedade privada de capitalistas
monopolistas e uma das atividades econômicas mais concentradas e menos
competitivas do mundo. (HARDT e NEGRI, 2005, pp. 234-244 e ).
Por fim, o exército e as agências de inteligência governamental
têm entrado cada vez mais neste mercado, já que ele fornece um
mecanismo de controle e a vigilância relativamente barato e praticamente
infalível, que McChesney chama de estado de segurança nacional.
dez maiores empresas norte-americana, segundo o valor de mercado, eram gigantes
da internet: Apple, Microsoft, Google e AT&T. Vale lembrar que a IBM, que produz
hardware, também estava na lista. Reforçando o argumento de McChesney, podemos
citar ao recente aquisição da Warner Co pela AT&T. http://www1.folha.uol.com.
br/mercado/2016/10/1825533-fusao-entre-att-e-timewarner-preocupa-democratas-
e-republicanos.shtml
20
Em certa medida, a propriedade privada nos torna obtusos ao nos fazer pensar que
tudo o que tem valor deve ser propriedade privada de alguém. Os economistas não se
cansam de nos dizer que um bem não pode ser preservado e utilizado de forma eficiente
se não for de propriedade privada. A verdade, contudo, é que a vasta maioria do nosso
mundo não é de propriedade privada, e é exclusivamente graças a este fato que a nossa
vida social pode funcionar (...)A ciência cairia em porto morto se não fossem comuns
nossas grandes acumulações de conhecimento, informação e método de estudo. A vida
social depende do comum. (HARDT e NEGRI, 2005, p. 244-245)
21
Esta “revolução” só foi possível graças a ideia de códigos-fonte abertos, que
possibilitava a interação de diversos programadores na resolução de problemas, o que
resulta em softwares melhores. A democracia da multidão (abordada no item 4), segundo
Hardt e Negri (2005, p. 425), deve ser entendida, analogamente, como uma sociedade
dos códigos-fonte abertos, isto é, uma cujo códigos-fonte seja revelado para que todos
possam contribuir, cooperativamente, na construção de programas sociais melhores.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 77
Temse presenciado um aumento na aprovação de leis de cibersegurança,
legitimadas sob o argumento de repressão a crimes de terrorismo ou de
abusos cibernéticos cometidos contra crianças e adolescente, mas que
possibilitam a espionagem em detrimento das liberdades civis dos cidadãos
de todo o mundo. Esta, por sua vez, é operada em parceria com os poucos
gigantes da internet22 (para quem o acesso a dados pessoais é mais fácil)
que, em contrapartida, recebem vultuosos23 recursos públicos do governo
na venda destas informações24, formando-se assim um complexo militar-
digital, conforme revelado pelos documentos publicados pela Wikileaks
(McCHESNEY, 2013, p. 202-203). Dentro deste contexto, o papel de
vigilância global desempenhado pelos Estados Unidos (prioritariamente) e
pela Europa se acentua, já que a maior parte das grandes empresas de rede
encontra-se naquelas jurisdições: os países mais poderosos passam a deter
dados sensíveis e/ou valorosos, produzidos pela inteligência comunicativa
mundial, aumentando ainda mais o abismo entre países pobres e ricos.

3 A MULTIDÃO CIBERNÉTICA E A COEXISTÊNCIA DAS


SINGULARIDADES NO GLOBAL

A capacidade tecnológica de processamento e transmissão


simultânea de dados e conteúdos de diversos lugares tornou possível o
surgimento de uma sociedade em que pessoas, em pontos espaciais distintos
e independentemente das fronteiras institucionais, possam se interconectar
através da rede, trabalhando de forma conjunta e coordenada, de forma
a encontrarem soluções criativas para problemas comuns. A emergência
desta “economia da informação em rede” alteraria radicalmente a
estrutura social, já que as relações interindividuais não precisariam mais
ser mediadas, passando a ocorrer diretamente e de forma autônoma e
descentralizada. (BENKLER, 2008, pp. 10-12 e 15). Soma-se a isto, a
centralidade das invenções intelectuais criativas, principal fonte de valor
da sociedade informacional. Com isso, a distinção entre o econômico e o
22
Julian Assange, em palestra recente, afirmou que o Google e o Facebook possuem
mais dados pessoais que a agência de inteligência americana (NSA). Para ele, isto
consolidaria a supremacia de um novo modelo de negócios mundial: “o capitalismo
de vigilância”. http://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2016/07/google-e-
facebook-coletam-mais-dados-que-euadiz-fundador-do-wikileaks.html.
23
O autor destaca o aumento de 250 vezes no gasto com inteligência pelo governo
americano na ultima década.
24
Como exemplo destas “tenebrosas transações” o autor cita uma investigação
do Congresso que descobriu o recebimento de 1,3 milhões de dólares por empesas
de telefonia móvel para prestares, ilegalmente, informações sobre seus usuários
(McCHESNEY, 2013, p. 207).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 78
político tenderia a desaparecer, revolucionando as bases da democracia
contemporânea (BROWN e SZEMAN, 2006, pp. 102-103).
Esta lógica institucional é o que Hardt e Negri chamam de
democracia das multidões. Nela, “cada um de nós usaria do tempo de
nossas vidas e de nosso trabalho para votar constantemente sobre cada
decisão política” (HARDT e NEGRI, 2005, p. 438). Isto, em nosso
entender, só é possível com o advento das novas tecnologias de informação
e comunicação, que permitem a distribuição em escala global e em tempo
real dos bens imateriais25. Do ponto de vista dos movimentos sociais,
estas têm desempenhado um papel tático fundamental: embora não sejam
elemento constitutivo, são catalizadoras e ampliadoras destes movimentos.
Isto porque as redes sociais possibilitam a construção de comunidades,
baseadas em laços precários e temporários, a partir de uma pluralidade de
questões e identidades. Por isso, diferenciam-se das estruturas políticas
tradicionais, mais estáveis e pautadas pela construção de significados
unificados. A multidão está assentada na ideia de abertura: fontes, fronteiras
e conhecimento aberto. (LOVINK, 2008, p. 191-193; 218 e 242).
A ascensão do protagonismo individual na Web e a massificação
da comunicação digital impõem desafios para o exercício da cidadania.
Soma-se a isso o fato de diversos problemas sociais não poderem mais
ser resolvidos dentro das fronteiras nacionais. Com isso, a demanda por
participação efetiva ganhou novos contornos, em detrimento da ideia
moderna de consentimento, auferido pelas urnas eleitorais. A democracia
precisa ser repensada a partir de um novo entrelaçamento de forças
tranfronteiriças (HELD, 1992, p. 20-22). A ideia de multidão digital,
portanto, está relacionada com a construção de uma sociedade civil26
em âmbito global que, a partir de uma filosofia de abertura e cooperação
baseada na ação individual e coletiva, tornar-se capaz de tomar decisões
políticas por si mesma. Assim, ela constitui-se como força capaz de se
opor ao espetáculo que sustenta o Império. Este sistema, baseado na
liberdade e autonomia, ocasiona o que Hardt e Negri denominam de
25
A”comunicação é a forma de produção capitalista na qual o capital teve êxito em
submeter a sociedade inteira e globalmente ao seu regime, suprimindo todos os caminhos
alternativos. Se algum dia a alternativa puder ser proposta, ela terá de surgir de dentro da
sociedade da submissão real e demonstrar todas as contradições que existem no coração
dela” (HARDT E NEGRI, 2003,. p. 368)
26
Hegel, um dos primeiros autores a falar sobre a sociedade civil, defendia que
o indivíduo só é dotado de “objetividade, verdade e moralidade” quando passa a ser
membro do Estado. A intermediação ente os cidadãos e o soberano ocorre no bojo das
formas associativas que constituem a sociedade civil, de tal sorte que, na Idade Moderna
as relações sociais estavam verticalmente estruturadas, a partir de instituições e fronteiras
nacionais bem delimitadas. (HEGEL, 1997, p. 215-217).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 79
explosão de singularidades (LOVINK, 2008, p. 196 e 2002; BROWN e
SZEMAN, 2006, p. 99; BENKLER, p. 2006, p. 22). O desafio, portanto,
é transpor, sem prescindir, o âmbito da individualidade na construção
verdadeiramente democrática do comum27. A constituição deste corpo
político centrado na multidão ainda está em andamento. Para darmos
alguma concretude a este projeto, concluiremos apontando brevemente os
diversos eventos de contestação popular que eclodiram no mundo a partir
de 2011. Manuel Castells, em seu livro Redes de Indignação e Esperança,
faz uma cartografia desses movimentos da era digital, desde a Islândia e a
Primavera Árabe até os Movimentos Occupy, os Indignados na Espanha
e as Jornadas de Junho, no Brasil. Apesar das peculiaridades de cada um,
Castells elenca elementos comuns que caracterizariam o que ele denomina
de movimentos sociais em rede. Em primeiro lugar, quanto a sua estrutura,
eles são multimodais (operam online e offline). Quanto ao espaço em que
operam, eles são locais e globais, expressando preocupações de caráter
humanitário e cosmopolita ao mesmo tempo em que pretendem alterar
problemas locais bem específicos. Quanto ao ambiente, eles ocupam,
simultaneamente, os espaços cinernéticos e os espaços coletivos da cidade
(prédios, praças, ruas e demais ambientes urbanos), criando um terceiro
espaço que lhes permite desafiar a ordem: o espaço de autonomia. Quanto
à estrutura, estes são movimentos descentralizados, sem líderes, de tal sorte
que as deliberações são tomadas e coordenadas pelos diversos nós dispersos
na rede. A mídia digital tem um papel central na agregação destas pessoas
que compartilham angústias comuns. Ela cria uma solidariedade capaz de
romper com o medo e o isolamento, sentimento que se transforma em
esperança, embora isso não se concretize necessariamente em demandas
programáticas bem definidas.
Em seu último livro, Hardt e Negri analisam o mesmo objeto. Os
autores partem do pressuposto de que o sistema repressivo contemporâneo
teria criado quatro subjetividades: o endividade, o mediatizado, o
securitizado e o empobrecido. Por isso, estes movimentos representam
uma profunda descrença com o sistema político representativo (p. 16)
que se tornou inefetivo frente ao poder do mercado global. Os autores
27
Interessante destacar aqui o conceito de comunidade para Hermann Heller. Para
ele o desenvolvimento organizacional dos agrupamentos sociais é fruto de um processo
histórico, podendo ser identificadas duas formas puras: a sociedade e a comunidade.
Enquanto a primeira consiste na junção de indivíduos para o alcance de uma finalidade
racionalmente vantajosa, firmada pelo contrato, a segunda tem fundamento em laços de
convivência, que extrapolam a finalidade racional, envolvendo também relações afetivas.
(HELLER, 1968, p. 118).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 80
concluem que estes movimentso ainda não constituiram uma estrutura
capaz de derrubar o poder dominante, todavia, a partir da criação de novas
subjetividades que contestam as anteriormente citadas, os movimentos
estão criando um manual de como criar e viver em uma nova sociedade
(2014, 128). Em sentido análogo, Castells defende que, embora estes
movimentos não sejam pragmáticos, eles são importantes, pois visam
a alterar os valores da sociedade. Eles preocupam-se muito mais com o
processo de transformação de consciências que com os resultados políticos
imediatos de curto prazo: o que esses movimentos sociais em rede estão
propondo em sua prática é uma nova utopia no cerne da cultura da sociedade
em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da
sociedade. (2013, pp. 133-134).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O futuro já chegou e ele é digital. Desde seus primórdios, a internet,


por possibilitar a intercomunicação direta de seus usuários, tem se apresentado
como ferramenta tecnológica capaz de radicalizar a democracia. Isto porque
ela possibilita que as multidões, formadas por uma multiplicidade de
singularidades, tomem decisões políticas independentemente das estruturas
de dominação hierárquica dos Estados e do mercado. Isto ameaça o poder
soberano do Império. Como resposta, o que se observa é uma concentração
cada vez maior do espaço online como propriedade privada de conglomerados
gigantescos que passam a possuir além da estrutura por onde a comunicação
trafega, o próprio conteúdo (dados) desta conversação global. Esta riqueza,
produzida pela inteligência coletiva, passa a ser selecionada, classificada,
arquivada e deixa de ser de todos para se tornar um produto patenteável.
Mais, nosso futuro passa a ser moldado a partir da previsão destes oráculos
robôs. Neste ambiente de predição, o controle social passa a operar a partir
de sistemas de simulação da realidade, que massifica os desejos, tornando
tudo “likes” e “opiniões” vendáveis e consumíveis. Aqueles que não se
adequem a este sistema passam a ser monitorados em nome da segurança
coletiva. O Império torna-se digital.
Todavia, podemos ser mais que meros usuários passivos. A internet
permite a construção de espaços dinâmicos e abertos, onde novas identidades,
culturas e práticas sociais podem ser coletivamente experimentadas. A
comunicação é produtiva não apenas de valores econômicos ou de controle,
ela produz também subjetividade (HARDT e NEGRI, 2005, p. 332). É

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 81
neste processo múltiplo e plural que se pode vislumbrar a constituição da
Multidão enquanto força política capaz de combater o Império. Tal como
ele, ela alastra seu poder através das redes digitais, por meio da construção
de discursos e realidades de contrapoder baseados no reconhecimento da
riqueza das diversidades, transformando-se em Multidão cibernética.
Que caminho tomaremos? É impossível adiantar. O futuro é um
projeto em construção: “devemos nos preparar para ele, ainda que a sua data de
chegada seja desconhecida” (HARDT e NEGRI, 2014, p. 136) . Será preciso
assumir posição nesta intrincada rede global que o mundo contemporâneo
representa e que desde o ataque de 11 de setembro tem assumido feições mais
sombrias, com o recrudescimento democrático em nome da preservação da
segurança. Por outro lado, o aumento de manifestações populares e espontâneas,
tanto no Oriente como no Ocidente, demonstram que uma força ainda difusa
se acumula no seio da sociedade global. Conforme esta força cresce, mais o
poder imperial tende a fortalecer sua resistência autoritária. Por isso, se estes
parecem ser tempos sombrios, talvez a escuridão seja só o prelúdio de uma
mudança que está por vir e que será incontrolável: o crepúsculo que antecede
a autora dos novos tempos. Concluo, pois, com uma visão otimista dos autores
que inspiraram a reflexão desenvolvida neste trabalho:
A criação da multidão, sua inovação em redes e sua capacidade
de tomada de decisão em comum tornam hoje a democracia
possível pela primeira vez. A soberania política e o governo
do uno que sempre solaparam qualquer verdadeira noção de
democracia, tendem a parecer não só desnecessários como
absolutamente impossíveis. ( ) A autonomia da multidão e
suas capacidades de auto-organização econômica, política e
social privam a soberania de qualquer papel. ( ) Quando a
multidão finalmente se torna capaz de governar a si mesma,
a democracia é possível (HARDT E NEGRI, 2005, P. 426)

REFERÊNCIAS

BENKLER, Yochai. The Wealth of networks: how social


production transforms markets and freedom. Washington: US
Library of Congress, 2006.
BROWN, Nicholas; SZEMAN, Imre. O que é Multidão? Questões
para Michael Hardt e Antonio Negri. Tradução de Miltn Ohata. Novos
Estudos, 75, Julho, 2006.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 82
CARDOSO, Gustavo. The Media in the network society: Browsing,
news, filters and citzenship. Lisboa: CIES – Centre for Research and
Studies in Sociology, 2006.
CASTELLS, Manuel. O Poder da comunicação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2015.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança. Movimentos
sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CASTELLS, Manuel. Multidão. Rio de Janeiro, São Paulo:
Editora Record, 2005.
CASTELLS, Manuel. Império. Rio de Janeiro, São Paulo:
Editora Record, 2003.
FARIAS, Flávio Bezerra. O imperialismo global: teorias e consensos.
São Paulo: Cortez, 2013.
FRANK, Thomas. Deus no céu e o mercado na terra. Rio de Janeiro/
São Paulo: Editora Record, 2004.
FERREIRO, Argemiro. O império contra-ataca: as guerras de George
W. Bush antes e depois do 11 de setembro. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração: isto não é um
manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito.
Tradução Orlando Victorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HELD, David. Democracy: From City-States to Cosmopolita Order?
Political Studies. 40 (n.1). Agosto, 1992. pp. 10 – 39.
HELD, David; MCGREW, Anthony. The Great Globalization Debate.
Em HELD, David e MCGREW, Anthony. The global transformations
reader: an introduction to the globalization debate. 2ª edição.
Polity Press, 2003 (1-50).
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou,
LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. New York: Basic Books. 2006.
LOVINK, Geert. Zero Comments: blogging and critical internet culture.
Nova York: Routledge, 2008.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 83
McCHESNEY, Robert. Desconexión Digital: Como el capitalismo
está poniendo a Internet em contra de la democracia. Tradução de Alba
Dedeu. Barcelona: El Viejo Topo, 2013.
SUNSTEIN, Cass R. Republic.com-2.0. Princeton: Princeton
University Press, 2007.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 84
GLOBALIZAÇÃO E TUTELA PENAL: AS RESPOSTAS
DO ESTADO ANTE AS FOMAS DE CRIMINALIDADE
CONTEMPORÂNEA E A EMERGÊNCIA DE MODERNAS
TÉCNICAS INVESTIGATIVAS

Murilo Thomas Aires*


Fernando Andrade Fernandes**

INTRODUÇÃO

A configuração da sociedade impôs uma maior abertura externa


dos países em nome do desenvolvimento da Economia, de forma que o
Mercado tomou proporções verdadeiramente globais. Em virtude deste
processo, acentuou-se a proteção do Mercado pelo Ordenamento Jurídico.
No entanto, o Estado, que surgiu forte na modernidade, fundamentado na
soberania e na territorialidade, vem se mostrando insuficiente em face da
amplitude e da complexidade tomada pelo Mercado.
Essa preocupação econômica chega ao Direito Penal, dada à
relação de dupla via estabelecida entre este e a configuração da sociedade.
Assim, o Direito Penal, que bem se prestava às funções do Estado, passa a
ter um novo foco: a proteção das relações econômicas.
O novo posicionamento do Estado, por vezes, aparentemente o
distancia do ideal de Estado Democrático de Direito, modelo previsto na
Constituição Federal brasileira. E, como o modelo de estado e o modelo
de direito penal estão intimamente ligados, essa nova posição se reflete no
Sistema Jurídico-Criminal.
Neste contexto é que o trabalho apresenta o objetivo geral de
analisar o novo posicionamento do Estado em face do Mercado, observando
especialmente a coerência das respostas estatais ao problema, mormente
no âmbito criminal, com o modelo de Estado constitucionalmente previsto.
Em vista da intensidade com que vem se lançando ao Ordenamento
Jurídico brasileiro respostas de natureza jurídico-criminal as quais,
aparentemente, se distanciam do ideal do Estado Democrático de Direito,
justifica-se plenamente a abordagem do tema. Além do mais, o tema se
*
Discente do curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais - Unesp Câmpus Franca
**
Professor Assistente Doutor do curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Unesp Câmpus Franca

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 85
mostra de extrema complexidade, já que envolve tanto assuntos de direito
substancial e processual penal, como de direito constitucional, econômico,
e internacional, sendo o aprofundamento realizado neste trabalho essencial
para o esclarecimento do problema, e para o regular exercício da tutela
penal do Estado em conformidade com seu próprio Ordenamento Jurídico.
Para tanto, o método científico de abordagem utilizado foi
o dedutivo, observando-se os métodos de procedimento histórico,
comparativo, monográfico e funcionalista. Já em relação às técnicas
aplicadas, lançou-se mão das técnicas abrangidas pela documentação
indireta, quais sejam, a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental.

1 O MODELO DE ESTADO E O MODELO DE DIREITO PENAL

O modelo de Estado é estipulado através das linhas mestras


axiológicas definidas na base normativa do Ordenamento Jurídico, criando
certas expectativas de realização e concreção dos valores que estabelece,
de modo até a exigir objetivamente essa realização (FERRAZ JÚNIOR,
1996). Afinal, muito embora o modelo de Estado seja formalmente definido
pelo texto constitucional, no Estado dito material a promessa de concreção
dos valores que o modelo reflete não se resume à sua previsão legal, mas
impõe o dever de se transformá-los em realidade.
É nesse sentido que se afirma que o modelo de Estado implantado
no Brasil com a Constituição de 1988, doutrinariamente denominado
de Estado Material, não se satisfaz com a mera normatização deste ou
daquele valor, mas com sua efetiva aplicação, com sua real concretização
(ROBALDO, 2007). E não só em razão da hierarquia das normas, mas
também por essa busca da concretização dos valores estabelecidos é que o
modelo de Estado se mostra como a base axiológica para toda a construção
normativa de um Ordenamento Jurídico. Em outras palavras, o modelo
de Estado representa verdadeira institucionalização de uma determinada
organização social (FERNANDES, 2003), tanto no que se refere ao seu
aspecto formal, quanto no que toca à sua materialização.
Além disso, no plano material esta íntima relação se dá porque o
Direito Penal está estreitamente interligado à configuração da sociedade.
Com efeito, o Direito Penal representa parte indissociável da sociedade
(JAKOBS, 2003), verdadeira identidade desta, já que se envolve nas suas
questões mais relevantes e profundas, o que por si só já indica o caráter
excepcional da atuação do sistema jurídico-criminal. Afinal, o sistema

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 86
social recebe influências do ambiente (inputs), o que se reflete diretamente
nos subsistemas, quanto mais no subsistema jurídico, sendo os problemas
mais graves também tratados pelo subsistema jurídico-criminal, o que
demonstra claramente o influxo da sociedade no Direito Penal, no que se
refere a seus problemas mais graves.
No entanto, essa relação entre o modelo de Estado e o modelo
de Direito Penal não se dá em uma única direção, mas sim em uma dupla
via, com interferências recíprocas entre um e outro (FERNANDES,
2003). Isto porque se nessa relação caberia à sociedade (sistema social)
chamar o Direito Penal (subsistema jurídico-criminal) a tratar os novos
e graves problemas sociais, até que o subsistema jurídico como um todo
atingisse a adequada complexidade na regulação desses problemas, ao
Direito Penal cabe, por sua vez, pela via do processo comunicativo, frisar
à sociedade que deve ter em conta certas máximas que se consideram
indisponíveis” (JAKOBS, 2003).
Assim, considerando que o modelo de Estado não se resume
à sua previsão legal, como também importa na realização dos valores
que prega, sua estreita relação com o modelo de Direito Penal é
constatada de maneira lógica.
Portanto, o modelo de Estado e o respectivo modelo de Direito
Penal estão intimamente ligados, conectados através de uma relação de
dupla via, sobretudo no que se refere à verdadeira realização dos valores
postos pelo modelo constitucionalmente eleito.

2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO MODERNO ATÉ O MODELO DE


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

As consequências advindas das debilidades da sociedade


política medieval - caracterizada pelo fracionamento dos territórios e
da autoridade, pelas relações de suserania, aspectos estes inseridos em
Estados de dimensões vastas e imprecisas - determinaram as características
fundamentais do Estado Moderno, sobretudo a soberania e a territorialidade
(DALLARI, 2003), calcadas no ideal de unidade. Assim, o Estado
Moderno nasce forte, dotado de ordem e poder próprios, tendo a soberania
como seu inabalável fundamento, materializando-se, de início, no Estado
Absolutista, em que a autoridade estatal se prendia à pessoa do governante.
A Revolução Francesa consolidou o modelo de Estado Liberal,
que traz como ponto fundamental a limitação do poder soberano, antes

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 87
ilimitado no Estado Absolutista. Construído com base nos ideais burgueses,
o Estado Liberal revela uma central preocupação com a realização de um
mercado natural, em que se caracteriza a abstenção do Direito em regulá-
lo, mas simplesmente em assegurar a liberalização econômica, em que
a igualdade estritamente formal das partes asseguraria o equilíbrio entre
os contratantes. Desse modo, o Estado Liberal se utilizou do ideal do
Estado de Direito perpetuando, além da limitação do poder soberano, a
igualdade legal estrita, de modo que um sem número de iniquidades de
perpetuaram sob a égide da lei.
Com o recrudescimento das desproporções ocasionadas pelo
Estado Liberal, a crise do liberalismo, e o crescimento das reivindicações
sociais, sobretudo dos trabalhadores, dá-se lugar ao Estado Social, também
denominado Estado do Bem-Estar Social. Admitiu-se, então, a necessidade
de um Estado que interviesse nas ordens social e econômica. O Direito,
que na ordem liberal parava nas portas da fábrica, agora não só entra como
se insere nas relações que lá ocorrem (MOREIRA, 1973, p. 88).
No entanto, a extensão das funções do Estado acaba por ser uma
exigência do próprio processo de acumulação do capital (GRAU, 2001, p.
21), já que a concessão de determinados direitos às massas foi uma atitude
direcionada à pacificação social justamente para funcionamento tranquilo
do mercado. E, foi justamente essa superficialidade da proposta trazida
pelo Estado Social de Direito que veio à tona seu esgotamento.
Enfim, não bastaria o reconhecimento de direitos sociais se ainda
se consagrasse somente o império da lei, interpretando-se a necessidade
de também outorgar o poder à democracia popular, o que deu origem
aos ideais do modelo de Estado Democrático de Direito. O Estado
Democrático de Direito não se resume à junção daquilo que se entende por
Estado Democrático e Estado de Direito, mas cria um novo conceito que
supera estas acepções (SILVA, 2012). Tem como fundamento basilar, além
do princípio da legalidade, a promoção da dignidade da pessoa humana.
Sobre os aspectos do Estado Democrático de Direito, toma-se aquilo que
preceitua José Afonso da Silva na análise deste modelo (SILVA,2012):
“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza
há de ser um processo de convivência social numa sociedade
livre, justa e solidária (art 3º, I), em que o poder emana do
povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente
ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único);
participativa, porque envolve a participação crescente do
povo no processo decisório e na formação dos atos de governo;

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 88
pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e
etnias e pressupõe o diálogo entre opiniões e pensamentos
divergentes e a possibilidade de convivência de formas de
organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser
um processo de liberação da pessoa humana das formas
de opressão que não depende apenas do reconhecimento
formal de certos direitos individuais, políticos e sociais,
mas especialmente da vigência de condições econômicas
suscetíveis de favorecer seu pleno exercício. (...) O certo,
contudo, é que a Constituição de 1988 não promete a
transição para o socialismo com o Estado Democrático de
Direito, apenas abre as perspectivas de realização social
profunda pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve,
e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e
que possibilita concretizar as exigências de um Estado de
justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.”
Assim, o Estado Democrático de Direito tratasse de um
conceito novo, consistindo na “inserção da lei fundamental do Estado
Democrático nas estratégias de justiça política” (CANOTILHO, 2001,
p. 459), tendo com seu valor maior, além do princípio da legalidade, a
dignidade da pessoa humana.
Em suma, o Estado Moderno, moldado a partir das consequências da
sociedade política medieval, surge forte e soberano, pautado na valorização
da unidade territorial, tendo como fundamental característica a soberania, o
que se materializou por excelência no Estado Absolutista. Posteriormente,
com o surgimento e a evolução do ideal constitucional, prevalecerem três
modelos, os quais estabeleciam, cada um de sua forma, as ações e limitações
do ente estatal, sendo eles o Estado Liberal, o Estado Social de Direito, e,
por fim, o Estado Democrático de Direito. Este é o modelo frequente nas
cartas constitucionais contemporâneas, sobretudo na Constituição Federal
brasileiro de 1988, sendo ele pautado pela legalidade, pela democracia
popular, e fundamentalmente pela dignidade da pessoa humana.

3 O MODELO DE DIREITO PENAL NO MODELO DE ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Conforme ilustrado, o Estado Democrático de Direito, fundado na


dignidade da pessoa humana, tem como uma de suas principais características
o processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão. Sendo
esse um real valor deste modelo de Estado, vê-se refletida a importante e

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 89
clássica característica do Direito Penal de ultima ratio, o que, por conseguinte,
pressupõe que os problemas sociais a serem objeto de atuação do Direito
Penal devam ser aqueles de maior complexidade e gravidade.
Essa característica subsidiária é o que permite ao Direito Penal
manter coerência com o modelo do Estado Democrático de Direito. Afinal,
em uma sociedade em que se promove a liberação da pessoa humana das
formas de opressão, só pode se permitir a repressão estabelecida pelo
Direito Penal de maneira excepcional.
Não se quer dizer que o subsistema jurídico-criminal se valha
pelo preenchimento de espaços vazios de atuação de outros subsistemas
de natureza jurídica. Mas impõe simplesmente limitá-lo à atuar naquilo
que é de maior complexidade e gravidade na sociedade (TOLEDO, 1994,
pp. 14-15). Essa necessária limitação do poder punitivo demonstra que
no Estado Democrático de Direito o sistema de responsabilidade penal se
aproxima do extremo chamado “direito penal mínimo”.
São estabelecidos dois extremos de tipos de sistemas de
responsabilidade penal, definidos a partir de maiores ou menores vínculo
garantistas estruturalmente internos ao sistema, e da quantidade e qualidade
das proibições e das penas nele estabelecidas (FERRAJOLI, 2010). Estes
dois extremos são denominados “direito penal mínimo” e “direito penal
máximo”. Dada a grande limitação do poder punitivo intrínseca ao Estado
Democrático de Direito, tem-se a aproximação do modelo de sistema de
responsabilidade penal do direito penal mínimo.
A verificação dos limites à atuação do Direito Penal no modelo
de Estado previsto na Constituição brasileira, e dessa aproximação ao
extremo chamado de direito penal mínimo, decorre no desenvolvimento
de vários dos princípios fundamentais previstos (de maneira expressa ou
não) na Constituição Federal brasileira de 1988.
Diante da impossível correspondência perfeita entre legislação e
jurisdição, há de se distinguir a certeza em duas espécies, ambas relativas e
subjetivas, cada qual associada a um extremo de modelo de Direito Penal.
Para o direito penal máximo, a certeza a ser perseguida está baseada no
foco de que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que
também algum inocente seja punido. Já no que se refere ao direito penal
mínimo, a certeza está apoiada na ideia de que nenhum inocente seja
punido à custa da incerteza de que algum culpado também fique impune
(FERRAJOLI, 2010, p. 103)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 90
Portanto, observado o modelo de Estado Democrático de Direito,
no qual se valoriza o processo de libertação da pessoa humana das formas
de opressão, tendo ainda como valor maior a dignidade da pessoa humana,
um modelo de Direito Penal coerente a estas diretrizes deve se aproximar
ao máximo do extremo do direito penal mínimo, assentando as limitações
do poder punitivo à ultima ratio.

4 ESTADO E MERCADO NA SOCIEDADE GLOBALIZADA

Na sociedade contemporânea sobrevieram novas condições as


quais influenciaram drasticamente na forma de viver do ser humano. Essas
novas condições implicam em várias questões quanto ao modelo do Estado,
já que esta definição representa a institucionalização da organização social.
Logo, se surgem novos aspectos da organização social, é óbvio o choque
com o modelo de Estado.
A configuração atual da sociedade sofre os efeitos daquilo que se
chama de globalização. A globalização se dá em um fenômeno complexo
de contornos ainda difusos. O que se permite dizer, sem sombra de dúvidas,
é que os processos de globalização apresentam um caráter multifacetário,
de dimensões econômicas, sociais, tecnológicas, políticas, religiosas,
culturais, e também, por óbvio, jurídicas (MASI, 2015).
Com efeito, os impulsos causados pela corrida capitalista
tiveram plena influência em um desenvolvimento por vezes interligado
da tecnologia e da Economia, havendo severas críticas a uma chamada
“nova desordem mundial”, causada por um processo de recrudescimento
do Estado em face do Mercado (BAUMAN, 1999).
Salientando, o processo de globalização proveniente da sociedade
contemporânea acarretou o desenvolvimento do Mercado de maneira
transnacional. Tal dimensão fez com que o Estado se tornasse débil em
face do Mercado, havendo uma grande mudança sobre os referenciais
da soberania e da territorialidade. O Mercado toma tamanha proporção,
que seu bom andamento é considerado fundamental para as relações
humanas, tanto no âmbito nacional, como internacional, de forma que
a ocorrência de crises em sua seara pode causar nefastos prejuízos à
humanidade. Consequentemente, há uma maior preocupação com a
regulação do Mercado, com o objetivo de garantir esse bom andamento,
o que se reflete nas relações internacionais, na governança global, etc.
Assim, o Mercado toma proporções globais, gerando riscos globais, e a

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 91
necessidade de controle efetivo desses riscos; enquanto o Estado se torna
insuficiente para esse controle.
Ocorre que determinadas flexões legislativas resultantes desse
novo direcionamento não refletem como fim último as pessoas, mas sim
o próprio desenvolvimento e controle do Mercado, em detrimento das
pessoas, o que se mostra incongruente com um Estado Democrático de
Direito, centrado na dignidade da pessoa humana. Ademais, conforme se
verá, são estabelecidas medidas que resultam justamente na supressão de
determinadas garantias fundamentais.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana não é um obstáculo
necessário ao desenvolvimento econômico. Aliás, a própria Constituição
Federal reserva princípios protetores da ordem econômica baseados no
Estado Democrático de Direito, como a livre iniciativa, e a livre concorrência.
No entanto, embora seja este o disposto na previsão constitucional
do modelo de Estado, sua materialização não se apresenta como
formalmente estabelecido. O modelo que se materializa, sobretudo com
a nova posição transnacional do Mercado, expressa um comportamento
eminentemente excludente advindo deste mesmo Mercado, com um homo
aeconomicus sem compromisso com a dignidade da pessoa humana, em
que a economia livre se apresenta como custo ao homem e a sua liberdade
(SANTOS, 2015). Este custo tem sido cobrado através do Direito Penal.
Sendo assim, ainda que haja a formal e expressa previsão do modelo
de Estado Democrático de Direito na Constituição Federal brasileira de
1988, não são bem os valores advindos desse modelo que se materializam.

5 A OPÇÃO POLÍTICO-CRIMINAL E O REFLEXO DAS NOVAS


TÉCNICAS INVESTIGATIVAS

Conforme já observado, a sociedade contemporânea, de


forte característica econômica, sofre um processo em que o Estado se
fragiliza em face do Mercado, sendo o bom desenvolvimento deste uma
preocupação global. Mais uma vez, as transformações da sociedade levam
questões ao Direito Penal, emergindo novos tipos, representados no Brasil
por exemplos como a Lei nº 9.613 de 3 de março de 1998, que dispõe sobre
os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos; e a Lei nº 8.137
de 27 de dezembro de 1990, que define crimes contra a ordem tributária,
econômica, e contra as relações de consumo.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 92
Sem se adentrar profundamente ao Direito Penal Econômico,
observa-se que se queda complexa a análise da ocorrência do fato típico,
principalmente no que se refere ao elemento subjetivo (dolo/culpa). Tais
crimes, por vezes, carecem de resultado naturalístico, o que também
evidencia a insuficiência de determinados instrumentos geralmente
utilizados pelo Estado. Essa dificuldade também se reflete no tocante à
investigação da ocorrência desses delitos. Ou seja, essa dificuldade também
se reflete no âmbito do processo penal.
Observemos aquilo que dispõe o artigo 4º, incisos I e II, da
Lei nº 8.137/90, alterados pela Lei nº 12.529/11, sobre um dos crimes
contra a ordem econômica:
Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar
do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando,
total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer
forma de ajuste ou acordo de empresas; II - formar acordo,
convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a)
à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou
produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por
empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento
da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
Atentando-se aos dispositivos, vê-se que ambos os tipos penais
criados falam em acordos de empresas, o que já expressa a complexidade
do sujeito ativo. No que toca à dificuldade investigativa da persecução
penal, nota-se além de não haver um resultado puramente naturalístico
a ser conferido, os elementos do tipo são de difícil, senão impossível,
constatação por meio de uma única modalidade de prova. Ademais,
raramente há evidências eminentemente físicas desses acordos.
Além da consequente complexidade de verificação das condutas
nucleares desses novos tipos penais, a execução desses delitos é realizada
de forma altamente clandestina. O desenvolvimento tecnológico permitiu
que tanto essas novas condutas penalmente tipificadas, como as já
estabelecidas em outras épocas, fossem praticadas de outras formas, e com
um elevado grau de clandestinidade.
Ademais, os novos recursos trazidos pelo desenvolvimento
tecnológico permitem o aprofundamento da clandestinidade na execução
dos delitos, de modo que os rastros de comunicação entre os agentes ativos
podem ser facilmente disfarçados, quando não propriamente excluídos.
Não existem mais cartas, telegramas, ou bilhetes a serem interceptados,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 93
nem mesmo linhas telefônicas convencionais de comunicação. Sequer
a comunicação virtual se dá como anteriormente, utilizando-se de
plataformas alternativas às normalmente utilizadas (e rastreadas).
A opção político-criminal tomada a partir dessas novas preocupações
tem se dado, em uma de suas vertentes, no estabelecimento de novos meios
de prova direcionados a essa nova realidade, entre eles a interceptação
telefônica, a prova indiciária, bem como a própria delação premiada e outras
formas de colaboração. Tais meios de prova tem, em geral, como pressuposto
para sua funcionalidade o afastamento de garantias fundamentais.
Com efeito, a utilização do processo penal como instrumento de
política criminal, em busca de uma complementariedade funcional entre o
Direito Penal material e o processo penal, requer o balanceamento entre a
eficiência, a funcionalidade, de um lado, e a tradição garantista do processo
penal de outro, sendo possível o afastamento de determinadas garantias
que não sejam fundamentais à tutela da dignidade da pessoa humana na
ocasião (FERNANDES, 2001).
Contudo, a prática penal reflete verdadeira supressão de garantias
(como as ditas operações da polícia federal brasileira), de forma a justificar
essa supressão pela necessidade de proteção do mercado, mesmo que em
detrimento da dignidade humana. Ou seja, os valores materializados não
são bem aqueles ditados pelo modelo de Estado Democrático de Direito,
o que se retrata na opção político-criminal refletida pelas modernas
técnicas investigativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado Moderno surge forte, norteado pela unidade


territorialmente, e fundamentado na soberania. Há uma evolução de modelos
de estado, sobretudo a partir do ideal do estado constitucional. Baseado
neste ideal tem-se o Estado Liberal Burguês, que passa ao Estado Social
de Direito, até que se chega ao modelo de Estado Democrático de Direito,
o qual se vê pautado não só pela legalidade, e pela democracia popular,
como também pela incondicional tutela da dignidade da pessoa humana.
A globalização impôs uma maior abertura externa dos países
em nome do desenvolvimento da Economia, de forma que o Estado
vem perdendo espaço em face do Mercado, mostrando-se até mesmo
insuficiente em face deste. E com a dimensão tomada pelo Mercado, sua
proteção passa a ser um novo foco do Poder Público.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 94
Este novo posicionamento do Estado, por vezes, aparentemente o
distancia do ideal de Estado Democrático de Direito, modelo previsto na
Constituição Federal brasileira.
E como modelo de estado e modelo de direito penal estão
intimamente interligados, esse afastamento chega ao Direito Penal,
através das opções político-criminais, o que se materializa nos novos tipos
penais que estão sendo criados pelo Estado, bem como substancialmente
pelos novos procedimentos de prova que vêm sendo estabelecidos,
como a adoção dos acordos de leniência, da colaboração premiada, da
interceptação telefônica, etc.
Essas técnicas vêm causando prejuízo da tutela da dignidade da
pessoa humana em nome da proteção do desenvolvimento econômico, o
que por si só expressa a materialização de outra coisa que não o modelo de
Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas.


Tradução: Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1999.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução: Sebastião Nascimento. 2.
ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6. ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2007.
CANOTILHO, Gomes. Constituição dirigente e vinculação do
legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24.
ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
FERNANDES, Fernando Andrade. O Processo Penal como
Instrumento de Política Criminal. Coimbra: Almedina, 2001.
FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e
jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-criminais. In:
COSTA ANDRADE, Manuel da et al. (Org.). Liber discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 53-83.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 95
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal.
Prefácio da 1 ed. italiana, Norberto Bobbio. 3 ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2010.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Constituição Brasileira e modelo
de Estado: Hibridismo Ideológico e Condicionantes Históricas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São
Paulo: Malheiros, 2002.
JAKOBS, Gunther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito
penal funcional. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes.
Barueri: Manole, 2003.
MASI, Carlo Valho. MORAIS, Voltaire de Lima. Globalização e o direito
penal. Revista Liberdades, São Paulo, v. 18, jan/abr. 2015.
MOREIRA,Vital. A ordem jurídica do capitalismo.
Coimbra: Centelha, 1973.
ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Modelo de Estado x Direito
Penal. Disponível em: http://www.iuspedia.com.br 12 dez. 2007.
Acesso em: 25 out. 2016.
SAAD-DINIZ, Eduardo; Casas Fábio; COSTA, Rodrigo de Souza.
(Orgs). Modernas técnicas de investigação e justiça penal
colaborativa. São Paulo: LiberArs, 2015.
SANTOS, Rafael Padilha dos. O princípio da dignidade humana
como regulador da economia no espaço transnacional: uma proposta
de economia humanista. Tese (Doutorado em Ciência Jurídica) -
Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI, Itajaí: 2015. Disponível
em: http://www.univali.br/Lists/TrabalhosDoutorado/Attachments/69/
Tese%20-%20 RAFAE L%20PADILHA%20-%202015%20-%20Dupla.
pdf. Acesso em: 25 out. 2016.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35 ed.
São Paulo: Malheiros: 2012.
TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de
acordo com a lei 7.209 de 11-07-1984 e com a Constituição Federal de
1988. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 96
AS DEMOCRACIAS E O ACOLHIMENTO AOS
REFUGIADOS DENTRO DO SISTEMA INTERNACIONAL

Geraldo Luiz Cabreira Paes Leme*

INTRODUÇÃO

O mundo globalizado, que redefine constantemente as fronteiras


de tempo e espaço permitindo o intercâmbio socioeconômico bem como
a comunicação entre diversas realidades e culturas, desloca e compartilha
problemas de uma determinada região para outra. Independentemente
da proximidade territorial, os resultados colocam muitas vezes à prova
certos posicionamentos previamente assumidos e propostos por sujeitos
de direito internacional, como no caso de Estados democráticos que
assinaram tratados objetivando a proteção dos direitos humanos em seus
mais variados aspectos.
Interesses globais, econômicos e mercantis, capitaneados por
democracias consolidadas por vezes aceleram e reforçam desigualdades
e conflitos dentro de determinadas sociedades e culturas que não
desenvolveram seus processos de democratização. Por democracia,
neste contexto, entende-se basicamente como um Estado que regula suas
relações por meio de um pacto de não agressão entre grupos políticos
distintos buscando colocar fim aos problemas de maneira pacífica
(BOBBIO, 2000, p.202).
Um dos atuais desdobramentos globais de conflitos existentes é
o deslocamento forçado em massa de indivíduos oriundos, por exemplo,
de regiões tomadas pelo grupo fundamentalista sunita Islamic State in
Iraq and Syria (ISIS), conhecido também por Estado Islâmico (EI). Como
efeito surge uma grande quantidade de refugiados em todo o mundo que
buscam proteção para a perseguição que sofrem.
O presente artigo questiona se o instituto do refúgio, que fora
positivado no século XX e aderido por diversos países democráticos,
encontra efetividade nas garantias previstas pelos signatários e como
são monitoradas e coordenadas através da participação do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Justifica-
se tal questionamento pela necessidade de compreender os motivos que
*
Advogado e Mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
UNESP, Franca/SP, Brasil

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 97
levam os Estados a aderirem tratados de auxílio humanitário aos conflitos
e problemas internacionais que, ao menos inicialmente, não lhe dizem
respeito e como essas questões são tratadas quando colocadas perante
situações reais, como no caso da crise migratória.
Dentre os objetivos do trabalho pretende-se descrever o que está
previsto e o que é necessário para o reconhecimento do status de refugiado
pelos Estados diante do sistema internacional e suas consequências, bem
como analisar as relações globais entre agentes potencialmente envolvidos
na temática, seja de maneira direta ou de maneira indireta.
O trabalho faz uso do método bibliográfico para compreender
os tratados internacionais que dizem respeito aos refugiados (Convenção
de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967
de Genebra), e ainda apresenta referenciais teóricos necessários ao
debate e especulação da problemática central relacionada aos institutos
mencionados como democracia, governança global, sistema internacional,
dentre outros, colaborando para as conclusões do trabalho. Não menos
importante, o presente artigo demonstra parte das questões levantadas por
meio de fatos noticiados e veiculados por reportagens jornalísticas.
A questão dos refugiados como tema inserido na problemática
de um sistema internacional indica que os esforços empregados de
governança global para segurança, estabilidade e cooperação política em
favor do desenvolvimento, deveriam em princípio voltar-se para a solução
daquilo que é comum a todos os países, contendo o aumento de conflitos
(ALMEIDA, 2008, p.216). Entretanto muito ainda deve ser realizado
para expandir a igualdade das decisões globais, levando em consideração
a soberania de todas as nações, posto que, talvez, partes dos problemas
decorram do fato de que o sistema não é composto em sua integralidade
por democracias e quando assim o for, deverá verificar-se uma maior
efetividade e legitimação plena da atuação dos organismos internacionais.

1 O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E O REFÚGIO

Em que pese a humanidade sempre ter incorrido em diversos


conflitos cujas consequências consistiam na perseguição, desalojamento
ou ainda no extermínio de vários indivíduos e comunidades, foi a partir do
século XX que se passou a dar maior relevância e atenção para a questão
da proteção humanitária no sistema internacional.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 98
A proteção e busca por soluções que utilizassem menos violência,
que antes era concedida e discutida por liberalidade entre reinos e países
de forma discricionária e limitada à apenas alguns deles, ganhou sensível
estímulo com a institucionalização junto ao Direito Internacional,
inicialmente nas Convenções de Paz de Haia e na Liga das Nações. Contudo,
o avanço fundamental ocorreu com o advento da criação da Organização
das Nações Unidas em 1945 e posteriormente com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948. Neste sentido, Flávia Piovesan (2011,
p. 196) explica que:
A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem
pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao
consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo,
é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana,
titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer para a
Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito
único e exclusivo para a titularidade de direitos. [...]. A
dignidade humana como fundamento dos direitos humanos
e valor intrínseco à condição humana é concepção que,
posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados
e declarações de direitos humanos, que passaram a integrar o
chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Tais proteções foram viabilizadas através dos princípios da
humanidade e da solidariedade da comunidade internacional, que
reconhece no outro a igualdade enquanto condição de existência e que
através de ações solidárias conferem o caráter coletivo para cooperação
entre os países para o alcance da paz, transferindo o caráter filosófico para
o caráter legal (JUBILUT e APOLINÁRIO, 2012, p.28 e ss.).
Dando prosseguimento aos trabalhos referentes ao Direito
Internacional dos Direitos Humanos, as questões e temas que demandavam
especial atenção passaram a ser reguladas por meio de organismos e tratados
próprios como é o caso do refúgio, do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (ACNUR) de 1950 e da Convenção de 1951
Relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 de Genebra.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR) é um órgão comissariado da ONU, de caráter apolítico e com
escritórios espalhados por todo o globo, que dentre as suas funções e
objetivos busca providenciar a proteção internacional e soluções para os
problemas dos refugiados, realizando o diálogo político entre os Estados
que receberão os refugiados, bem como organizações não governamentais

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 99
que também auxiliam na inserção, por exemplo, profissional e social, dos
indivíduos que se encontram nessa situação de vulnerabilidade, como
apresenta Liliana Jubilut (2007, p.151 e ss.).
A determinação da condição de refugiado tem sua positivação
alcançada com a Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e
ampliada com o Protocolo de 1967. Há também o “Manual de Procedimentos
e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado”1, elaborado
pelo ACNUR, que busca orientar autoridades governamentais e demais
profissionais que trabalhem com o assunto, assentado nos conhecimentos
práticos e teóricos acumulados sobre o tema.
A condição clássica para o reconhecimento do status de refugiado
baseia-se na perseguição ou fundado temor de perseguição (não precisando
ser materializada) em razão da raça, nacionalidade, opinião política,
religião ou pertencimento a determinado grupo social. Existem também
limites sobre quem pode obter o status de refugiado, que são as cláusulas
de exclusão, e quando a proteção oferecida deve parar de existir, cláusulas
de cessação, ambas previstas nos diplomas internacionais já mencionados.
Tal reconhecimento se dá por meio de declaração, não sendo uma
faculdade do Estado, mas o exercício de um direito individual do sujeito
em perseguido, bem como o cumprimento dos deveres que o Estado
que acolherá os refugiados assumiu junto à comunidade internacional
ao ratificar Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e
o Protocolo de 1967, cabendo ao mesmo a criação e implementação de
políticas que possibilitem a integração dos refugiados no novo país.
Complementa Jublilut (2007, p.115) acerca do
tema e de sua realidade:
Analisando a realidade factual do instituto do refúgio,
verifica-se que as violações aos direitos humanos, e, em
especial, aos cinco direitos assegurados como motivos para o
reconhecimento do status de refugiado, ocorrem de modo mais
frequente e sistemático quando há o advento de uma guerra
ou de outros distúrbios da democracia, tais como ocupação

1
O “Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de
Refugiado”, que realiza a análise e interpretação dos termos da Convenção de 1951 e
do Protocolo de 1967 de modo a dirimir possíveis dúvidas quanto à compreensão dos
objetivos previstos nos respectivos tratados para que os Estados que ratificaram os tratados
possam bem aplicá-los encontra-se disponível em: http://www.acnur.org/fileadmin/
scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013/Manua l_de_
procedimentos_e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_refugiado. Acesso
em: 03 nov. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 100
de territórios ou governos despóticos que não primam por
respeitar as garantias individuais fundamentais [...].

2 A ATUAL CRISE MIGRATÓRIA E SEUS DESDOBRAMENTOS

Segundo o ACNUR em parceria com bancos de dados de


governos e agências, estimase que 65,3 milhões de pessoas até o final do
ano de 2015 foram deslocadas por guerras e conflitos em todo o mundo,
sendo que 21,3 milhões são reconhecidas como em situação de refúgio2.
Conclui-se também um constante aumento do deslocamento forçado no
mundo todo, atingindo os mais altos níveis já registrados até o momento,
conforme demonstra o relatório anual do ACNUR, “Tendências Globais”3.
Tem-se que no século XXI, boa parte dos conflitos existentes
já não mais ocorrem entre Estados, classicamente concebidos como
únicos detentores de uma força bélica para que se estabeleça a “ordem”,
considerando limites territoriais. Para Hobsbawm (2007, p.44 e 45):
[...] vivemos em uma era de conflitos armados endêmicos
de extensão mundial, que em geral se travam no interior
dos países, mas que são magnificados por intervenções
estrangeiras. Embora a dimensão militar desses conflitos seja
pequena, quando avaliada nos termos do século XX, eles
causam um impacto relativamente enorme e duradouro sobre
a população civil, que é, cada vez mais, sua maior vítima.
Como se pode imaginar existem consequências não apenas para os
indivíduos que procuram fugir dos conflitos, mas também para os Estados
destinos dos deslocamentos, que passam a ter sua estrutura e organização
desestabilizada em face do grande número de demandantes por proteção
humanitária internacional.
Os noticiários internacionais vêm relatando quase diariamente
a crise dos refugiados, que mesmo sendo global, atinge de maneira
ímpar os países próximos ao Iraque e Síria (afetados internamente pelos
conflitos com o Estado Islâmico), como por exemplo, Turquia e Líbano4,
estendendo-se pela Europa através do Mar Mediterrâneo.
2
Todos os dados fazem parte do relatório “Tendências Globais” da ACNUR lançado
em 2016 no Dia Mundial do Refugiado, 20 de junho, disponível em: http://www.acnur.
org/portugues/noticias/noticia/deslocamentoforcado-atinge-recorde-global-e-afeta-uma-
em-cada-113-pessoas-no-mundo/.Acesso em: 03 nov. 2016.
3
O relatório completo de “Global Trends, forced displacement in 2015” e encontra-se
disponível em: https://s3.amazonaws.com/unhcrsharedmedia/2016/2016-06-20-global-
trends/2016-06-14-Global-Trends2015.pdf, Acesso em: 03 nov. 2016..
4
Mesmo com a maior crise migratória que a Europa já sofreu, são os países que fazem

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 101
Os altos números de solicitações de refúgio, bem como demais
deslocados que não são configurados como refugiados pelos critérios
vigentes, coloca em choque as possibilidades reais e materiais de cada país
em receber essas massas e o que foi assumido de responsabilidade perante
a comunidade internacional através dos tratados firmados. Como apresenta
Otfied Höffe (2005, p.425):
Em todo caso, sempre voltam a surgir questões referentes
às capacidades suportáveis por cada país: imagine-se que
milhões de legítimos solicitantes de asilo se dirigissem a
um único Estado, muito abastado, mas de bem pequenas
dimensões territoriais. Este Estado ficaria sobrecarregado
não somente em função de sua extensão territorial e de
seu poderio financeiro. Dificilmente suportaria as questões
relativas à compreensão linguística e à integração social.
Tais colocações encontram vasto terreno quando observa-se
que as políticas de imigração revelaram-se insuficientes, inclusive, e se
não principalmente, por parte daqueles países de consolidada tradição
democrática que fazem coro na proteção dos Direitos Humanos, mas
que revelam-se incapazes de solucionar os problemas encontrados, tanto
individualmente quanto coletivamente5.
A falta de ações concretas e a demora em efetiva-las, que no caso
dos refugiados desdobram-se em vários momentos, tal qual a acolhida
emergencial, identificação e o reassentamento (inserção dos refugiados
nas sociedades conferindo trabalho e educação, por exemplo)6, são apenas
parte dos problemas envolvendo os refugiados.
Tal crise abre margem considerável para atos variados de violência
e consequentemente de medo, tanto dos refugiados para com os nativos
e seus Estados, tanto dos nativos e Estados para com os refugiados. Por
partes dos Estados existe o receio de que ao receber os refugiados, não se
consiga distinguir civis de militantes terroristas disfarçados, aumentando
fronteira com as zonas de conflito que recebem maior parte dos refugiados. Ver “Os
países que mais recebem refugiados”, disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2015/09/150910_vizinhos_refugiados_lk, Acesso em: 30 out. 2016.
5
Inúmeras são as denúncias de violações de direitos humanos relacionadas à crise
migratória, ver “Europa: políticas de migração europeias colocam vidas e direitos
humanos em risco”, disponível em: https://anistia.org.br/noticias/europa-politicas-de-
migracao-europeias-colocam-vidas-e-direitos-humanos-emrisco/. Acesso em: 30 ago.
2016.
6
A União Europeia não conseguiu por hora cumprir com os objetivos estabelecidos,
conforme pode-se ver em “UE distribuiu apenas 3,5% dos refugiados que
prometeu há um ano”, disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/28/
internacional/1475057959_651744.html. Acesso em: 08 set. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 102
assim o risco de tornarem-se potenciais alvos de atentados terroristas. O
inverso ocorre com a xenofobia7 crescente e fortalecimento de grupos
nacionalistas que sentem-se ameaçados pelos refugiados, inclusive
sobre aspectos econômicos e culturais, aumentando a hostilidade das
comunidades e dificultando a inserção dos refugiados nos novos países
(HOBSBAWM, 2007, p.91 e 92).
Dentro dos elementos apresentados, não vislumbra-se, ao menos
a curto prazo, qualquer solução definitiva para a crise dos refugiados,
que é apenas um dos tantos exemplos de graves problemas pelos quais o
mundo de hoje sofre. Este tipo de problemática possui origens em questões
estruturais que trazem para a discussão a atual organização das relações
globais, bem como as forças e os agentes que delas fazem parte, como
buscará abordar e elencar alguns deles no próximo tópico.

3 AS DEMOCRACIAS E O SISTEMA INTERNACIONAL

Como já mencionado, após a Segunda Guerra Mundial, através


do advento da criação da Organização das Nações Unidas em 1945 e
da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a estrutura
internacional alterou-se de sobremaneira, passando a ter a manutenção da
paz como um dos objetivos basilares e consequentemente a proteção aos
direitos humanos em todos os seus desdobramentos.
Tal mudança colocou o homem como paradigma da sociedade
e não mais o Estado, devendo este ser o meio para a proteção daquele,
seja em âmbito nacional ou internacional. Assim, o Estado passa a abrir
mão de parte considerável de sua estrutura vigente, conforme explica
Höffe (2005, p.382):
As Nações Unidas foram fundadas por Estados soberanos
que, ao ratificarem a Carta, renunciaram a uma parte de sua
soberanidade, caminhando na direção de uma República
Mundial federal. O reconhecimento dos direitos humanos tem
uma relação direta com a auto-restrição da soberania interna.
No interior de cada Estado, surge então o compromisso com
uma elevada medida de democracia qualificada. E, com a
renúncia ao uso e mesmo à ameaça da força, restringe-se
inclusive a soberania externa.
7
Relatos de xenofobia e demonstração de descontentamento por parte da população
alemã, sem do um dos países que mais recebeu refugiados nos últimos tempos. Ver:
“Merkel faz apelo contra xenofobia em meio a gritos de “traidora””. Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/25/internacional/1440530517_008776.html,
Acesso em: 08 set. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 103
E ainda, outro aspecto da restrição da soberania dos Estados,
é que eles também passaram a sofrer fiscalização por parte de
organismos internacionais, submetendo informes da situação interna,
que digam respeito principalmente aos tratados por eles firmados
(BIERRENBACH, 2011, p.30).
Paralelamente a evolução da criação de um sistema mundial de
governança, baseado em tratados e organismos internacionais, passou-se a
construir gradativamente uma sociedade internacional, aliado aos avanços
tecnológicos, não apenas do ponto de vista econômico, mas ainda do sócio-
cultural. Esse processo de globalização também cria formas de exercício
de poder, controle e influência das decisões que são tomadas coletivamente
no âmbito internacional, seja nas relações privadas, envolvendo empresas,
ou nas relações públicas, comprometendo Estado, que buscam de certa
forma uma mútua proteção. Leva-se ainda em conta para o estudo que
a redimensão de noções espaciais e temporais, passam a transferir o que
antes eram apenas fenômenos locais para a esfera global, e vice e versa
(VIEIRA, 2013, p.73 e ss.).
Os fenômenos locais mencionados não são apenas positivos
ou benéficos, a exemplo dos avanços tecnológicos compartilhados pelo
mundo, mas também podem ser demonstrados na forma de problemas,
como é o caso dos refugiados. Entretanto, para solucionar a crise migratória,
fosse talvez necessário interferir nos países que criam ou estão envolvidos
diretamente com os conflitos, que acabam por forçar o deslocamento de
milhares de pessoas.
Ocorre que tal fato seria inconcebível, levando em consideração
o respeito à soberania de cada país e o princípio da não intervenção.
Atitudes que implicam no uso da força devem passar pela aprovação da
comunidade internacional e de seus órgãos competentes como o Conselho
de Segurança da ONU ou a Assembleia da instituição. Afirma-se em um
primeiro momento, que as Nações Unidas enquanto principal expoente
organizado de uma governança mundial possui órgãos semelhantes aos
que estruturam um Estado, como a Assembleia Geral que viria a ser o
Poder Legislativo e o Secretário-Geral sendo algo semelhante ao Poder
Executivo (HÖFFE, 2011. p.383).
A ONU pode vir a ser classificada como um interessante
instrumento de governança mundial, que nos dizeres de Paulo Roberto de
Almeida (2008, p. 203):

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 104
A governança enquanto tal, isto é, instituições e mecanismos
dotados de mandatos originais para a administração de
interesses comuns dos Estados membros em determinadas
áreas de interface recíproca, emerge gradualmente no
plano setorial desde a constituição das primeiras uniões
intergovernamentais para o tratamento de assuntos técnicos
(como comunicações, transportes, propriedade industrial, etc.)
Mas ao longo dos anos revelaram-se inúmeras limitações a uma
prática concreta de governança mundial que fosse desempenhada pela
ONU e pelo atual sistema de organizações internacionais.
Os organismos apenas possuem o poder que é conferido pelos
Estados membros, de maneira voluntária, e esse mesmo poder não se revela
suficiente para que possa exercer coerção aqueles que descumprirem os
pactos firmados de forma livre e independente, sempre restando algum
vínculo com potências que possuam poder real (seja em termos bélicos
ou econômicos) ou que financiam estas instituições, que ficam a mercê de
possíveis instabilidades políticas (HOBSBAWM, 2007, p.30 e ss.).
Enveredando por estes caminhos, retomam-se as colocações
apresentadas por Norberto Bobbio (2000, p.201) que questiona: “Pode
um Estado ser plenamente democrático em um universo (ainda) não
democrático?”. O autor italiano apresenta que a ONU possui o que pode
ser chamado de “inspiração democrática”, pois mesmo conferindo uma
igualdade política para os Estados que compõem a Assembleia, ainda
restam questões que são decididas de forma não democrática, como é
possível observar na seguinte fala (BOBBIO, 2000, p.198):
Falo de inspiração democrática e não de democracia tout
court porque, com respeito ao primeiro ponto, as garantias
dos direitos do homem no sistema internacional se detêm,
salvo algumas tímidas exceções, nos umbrais do poder
soberano dos Estados singulares, graças aos efeitos do
princípio da não-intervenção; com respeito ao segundo
ponto, porque ao lado da Assembleia, que se fundamenta no
princípio democrático da igualdade política que é regulada
pelo princípio igualmente democrático da maioria, instala-
se o Conselho de Segurança, no qual é reservado a cada
um dos cinco membros permanentes o direito de veto sobre
assuntos não procedimentais.
Dentre as soluções, além de intervenções de terceiros, sejam eles
Estados ou organismos internacionais destinados à governança mundial
estaria a ampliação do sistema democrático para todos os países do globo.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 105
Entretanto Hobsbawm (2007, p.18) assevera que valores que fazem parte
da cultura ocidental, tal qual a democracia e os direitos humanos, não são
produtos que possam ser impostos de maneira forçosa, sem que o ambiente
em que se propõem tal ideário esteja minimamente predisposto para tanto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No sistema internacional ainda não é possível esperar que os


conflitos sejam todos resolvidos de maneira pacífica, conforme o intento da
criação e manutenção da Organização das Nações Unidas, justamente pelo
fato de que este sistema não é composto em sua totalidade por democracias.
Muito ainda depende dos esforços dos Estados e das instituições
em zelar pela observância e proteção dos direitos humanos firmados nos
tratados internacionais. Para tanto mudanças em todos os níveis se fazem
fundamentais, tanto do comprometimento de cada país, tanto da forma em
que são decididas as diretrizes coletivas que dizem respeito aos problemas
que toda a comunidade internacional sofre.
Em termos internos, cabe aos países elaborar políticas públicas
junto aos órgãos de cada governo para a reinserção das populações
refugiadas, promovendo o enriquecimento cultural que surge a partir das
diferenças existentes. E por fim, mediante termos globais, o processo
decisório deve ser ampliado de forma efetiva, deixando de lado a influência
que um ou outro país, em razão de seus interesses, possam vir a exercer.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil no contexto da governança


global. In: Governança Global. Cadernos Adenauer, Rio de
Janeiro, v. 9, n. 3, 2008.
BIERRENBACH, Ana Maria. O conceito de responsabilidade de
proteger e o direito internacional humanitário. Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2011.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de María Hernandez.
3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 106
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução
de José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Tradução de Tito
Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos refugiados
e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo:
Editora Método, 2007.
JUBILUT, Liliana Lyra; APOLINÁRIO, Silva Menicucci de Oliveira
(Orgs.). Assistência e proteção humanitárias internacionais: Aspectos
teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin, 2012.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional
internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos
direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São
Paulo: Saraiva, 2011.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 12. ed. Rio de
Janeiro: Record. 2013.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 107
DEMOCRACIA, SOCIEDADE CIVIL, MOVIMENTOS
SOCIAIS E O ADVENTO DE UMA NOVA POLÍTICA

Jackeline Ferreira da Costa*

INTRODUÇÃO

O pensamento político e social ocidental apresenta grandes


dicotomias que colocam em oposição diversos conceitos, como paz/guerra,
homem/mulher, capitalismo/socialismo, razão/emoção, coletivo/individual,
governante/governado, representante/representado. Nessa linha, dá-se a
contraposição dos conceitos público e privado, estreitamente relacionados às
atuações do Estado e da sociedade civil na esfera do sistema político brasileiro.
A democracia no Brasil, respaldada pela Constituição de 1988,
é participativa, mesclando elementos da democracia representativa e da
democracia direta, conforme parágrafo único do art. 1º da Constituição:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A representação
como forma de governo ganhou força com os ideais de Montesquieu,
quando este destacou a capacidade do povo em escolher seus representantes
mas sua incapacidade de exercer o poder diretamente em “O espírito das
leis”. Em contrapartida, Rousseau se opõe, em “O contrato social”, à ideia
de representação do povo, pois a vontade geral não poderia ser alienada
nem representada. Segundo sua visão, os deputados seriam comissários que
não estariam aptos a concluir definitivamente, portanto, toda lei, para ter
validade, deveria ser retificada pelo povo.
As ideias de público e privado se relacionam a essas definições
de democracia. O público refere-se ao Estado, composto no nosso
ordenamento pelos representantes do povo; enquanto o privado relaciona-
se com o cidadão individualmente, com suas aspirações e desejos
particulares, membro da sociedade civil. O grande embate se dá quando o
cidadão, movido por interesses, ocupa os espaços públicos. Esse embate
pode ser visto tanto quando o representante do povo coloca seus interesses
privados acima do interesse público nas tomadas de decisão do poder,
causando uma crise de representatividade, como quando o cidadão procura
*
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCHS/
UNESP, Campus de Franca.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 109
exercer a democracia de forma direta impulsionado por essa deficiência
de representação. Embora a titularidade do poder pelo povo seja prevista
constitucionalmente, como já mencionado, quando esse poder é exercido,
causa incômodo àqueles que ocupam a esfera pública.
O conceito de sociedade civil já foi estudado por diversos autores,
desde Aristóteles até Hegel e Marx, passando por Bobbio e Gramsci. Já
no Brasil, Avritzer destaca os diversos entraves para o surgimento da
sociedade civil nos países da América Latina. A análise da sociedade civil,
no entanto, não deve se restringir ao campo teórico, uma vez que ela tem
se manifestado de diversas maneiras ao longo da história.
Com as revoluções industrial e tecnológica, distâncias foram
diminuídas, aproximando continentes e civilizações. O papel da Internet se
mostra primordial nessa discussão. Movimentos sociais contemporâneos
demonstram um fortalecimento e um alcance amplificado pelo uso das
redes sociais. A interconectividade proporcionada pelo meio eletrônico gera
novos espaços de discussão, dando forças ao advento de uma nova política.
Entretanto, quem são os atores dessa nova política? A investigação acerca
dessa temática terá como enfoque o caso brasileiro, considerando-se todos os
obstáculos colocados à frente do acesso à informação, que não é igualitário.
O presente trabalho justifica-se devido à contemporaneidade do tema
estudado. Movimentos sociais organizados através de redes sociais demonstram
a força com que essa nova política tem conquistado seu espaço, mas que ainda
apresentam grandes deficiências por causa de uma desigualdade persistente
no acesso aos meios de comunicação. Dentre seus objetivos, encontra-se a
apresentação dos conceitos de sociedade civil com destaque à relação com
o contexto a que estão inseridos, a análise crítica dos movimentos sociais
contemporâneos e o exame dos aspectos de uma nova política emergente.
O estudo se deu a partir da utilização do método hipotético-dedutivo, o qual
se apresenta pela hipótese da emergência de uma nova política na sociedade
civil no contexto da globalização, a fim de confirmá-la ou negá-la. Para isso, a
análise histórica do conceito de sociedade civil também foi realizada.

1 A SOCIEDADE CIVIL

1.1 Conceitos de sociedade civil

O conceito de sociedade civil teve sua origem como a tradução do


termo aristotélico Politike Koinonia para o latim. No entanto, a sociedade

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 110
civil, como elemento de prima importância na ciência política, já foi
objeto de estudo de diversos autores ao longo dos séculos. O conceito de
sociedade civil está entrelaçado ao de sociedade política, sendo por vezes
confundidos. Entretanto, sociedade civil também se relaciona à sociedade
civilizada, como a société civile de Rousseau, a qual não a distancia da
concepção de sociedade política, visto que aquela é parte desta, embora o
autor a veja como momento negativo do desenvolvimento histórico.
Destaca Norberto Bobbio que hoje sociedade civil apresenta-se
como uma das pontas da dicotomia sociedade civil/Estado, devendo-se
definir Estado e delimitar sua extensão para que se possa fazer o mesmo
com aquele. Como definição negativa, essa contraposição pode ser
entendida como se a sociedade civil fosse a esfera das relações sociais não
reguladas pelo Estado e que, portanto, se autorregulam. Pensadas dessa
maneira, essas relações não-estatais apresentam concepções diversas,
podendo ser pré-estatais, anti-estatais ou pós-estatais.
O pré-estatal refere-se às associações às quais o Estado se
superpõe para regulá-las sem vetar-lhes o ulterior desenvolvimento ou
impedir-lhes a contínua renovação. O antiestatal, por sua vez, adquire
uma conotação axiológica positiva ou negativa, dependendo do ponto
de vista, onde se manifestam as instâncias de modificação das relações
de dominação, formando-se grupos que lutam pela emancipação do
poder político, são os contra-poderes. Já o pós-estatal representa o ideal
de uma sociedade sem Estado, a partir da dissolução do poder político,
da reabsorção da sociedade política pela sociedade civil, acepção essa
presente no pensamento de Gramsci.
Bobbio afirma que dar uma definição positiva de sociedade
civil é tarefa árdua pois trata-se de fazer um repertório de tudo
aquilo que foi desordenadamente empregado pela exigência de
circunscrever o âmbito do Estado.
Na democracia representativa, os partidos políticos assumem
papel importante para a sociedade civil, visto que deveriam transmitir
as demandas provenientes dessa ao poder político. Analisando as mais
recentes teorias sistêmicas da sociedade global, Bobbio afirma que a
sociedade civil ocupa o espaço reservado à formação das demandas (input)
que se dirigem ao sistema político e às quais o sistema político tem o dever
de responder (output). Portanto, o contraste entre sociedade civil e Estado
põe-se então como contraste entre quantidade e qualidade das demandas e
capacidade das instituições de dar respostas adequadas e tempestivas. “[...]

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 111
uma sociedade torna-se tanto mais ingovernável quanto mais aumentam
as demandas da sociedade civil e não aumenta correspondentemente
a capacidade das instituições de a elas responder, ou melhor, com a
capacidade de resposta do Estado alcançando limites talvez não mais
superáveis” (BOBBIO, 2011, p. 36), é onde se dá a crise. Nessa linha,
Bobbio destaca que essa ingovernabilidade remete à crise de legitimidade.
A expressão “sociedade civil” ligada a Estado ou sistema político
deriva dos pensamentos de Marx e Hegel. O primeiro autor moderno a
dar um papel fundamental no estudo da sociedade civil foi Hegel, quando
reconheceu que nem o Estado nem a família eram capazes de estabelecer
as determinações para a vida dos indivíduos nas sociedades modernas.
Para ele, sociedade civil implicaria “[...] nas determinações egoístas e
individualistas provenientes da ação dos indivíduos no interior do sistema
das necessidades e na procura de um princípio ético que, para Hegel,
jamais poderia ser proporcionado pelo mercado” (AVRITZER, 1994, p.
33). Sua interpretação é complexa pois apresenta a sociedade civil entre
família e Estado, sem ser simplesmente família e nem chegando a ser
uma forma completa de Estado. A sociedade civil é, na visão de Hegel,
uma figura histórica e é colocada abaixo do Estado. Ainda que forma
inferior de Estado, corresponde ao significado tradicional de societas
civilis, relacionado à pólis. A interpretação aristotélica do termo define a
societas civilis como uma sociedade natural e o Estado é o prosseguimento
natural da sociedade familiar; diferentemente de Hobbes, para o qual a
mesma societas civilis contrapõe-se ao estado de natureza e é constituída
pelo acordo entre indivíduos que decidem sair desse estado de natureza e
constituir uma sociedade artificial.
Já para Marx, a sociedade civil se reduziria ao sistema de
necessidades (economia capitalista), a qual não representa uma instituição
intermediária na construção da vida ética. A visão marxiana é redutiva,
colocando a sociedade civil como o lugar das relações econômicas
ou das relações que constituem “a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política”. Sociedade civil é, portanto, o conjunto
das relações interindividuais da base material que estão fora ou antes do
Estado, como o “estado de natureza” ou “sociedade natural”. A sociedade
civil assemelhar-se-ia ao estado de natureza hobbesiano, da guerra do
homem contra o homem.
Com inspiração marxiana, Gramsci apresenta uma visão de
sociedade civil um pouco diferente, em que ela é a esfera na qual agem os

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 112
aparatos ideológicos que buscam exercer uma hegemonia e, através dessa,
obter o consenso. Gramsci procurou construir um conceito de sociedade
civil a partir da crítica aos dois autores mencionados.
Gramsci critica em Hegel a redução da ideia de sociedade
civil à defesa de uma esfera dominada pelo direito de
propriedade. Para ele, a polícia e a administração da
justiça que Hegel considera instituições da sociedade civil,
constituem na realidade instituições particularistas de defesa
da dominação de classe. Gramsci critica Marx pela redução
economicista da ideia de sociedade civil. Ele será o primeiro
autor a perceber a sociedade enquanto o lugar por excelência
da organização da cultura e a propor um entendimento
multifacetário das sociedades modernas, de acordo com o
qual esta deve ser entendida enquanto interação de estruturas
legais, associações civis e instituições de comunicação
(AVRITZER, 1994, p. 34).
O ressurgimento do conceito de sociedade civil no Leste Europeu
deu-se com a proposta de Adam Michnik, que propôs uma terceira
via em oposição ao estado soviético após as tentativas fracassadas de
democratização na Hungria e na Tchecoslováquia. Essa terceira via iria
limitar a atuação do Estado através da organização da sociedade sem opor
finalmente sociedade e Estado. Nesse cenário, pode-se concluir que a
sociedade civil aparece ligada a movimentos que questionam os canais
representativos e que propõem novas formas societárias de organização,
a partir de “movimentos democratizantes autolimitados que procuram
proteger e expandir espaços para o exercício da liberdade negativa e
positiva” (AVRITZER, 1994, p. 36).
Tal definição resgataria em Hegel a ideia de um espaço
político para o exercício da vida ética, resgataria em Marx
a contradição entre o espaço da interação e a operação
do mercado, e em Gramsci a necessidade de conceber a
sociedade em articulação com a esfera da reprodução da
cultura. Todavia, nenhum dos autores acima conseguiria
oferecer-nos um modelo capaz de localizar a sociedade civil
no interior de sociedades complexas e multidiferenciadas.
Habermas é outro autor que merece ser mencionado que,
entretanto, não ofereceu um conceito de sociedade civil, mas que pode
ser extraído de seu trabalho. Ele construiu uma teoria social dualista na
qual diferenciou as lógicas do sistema e as lógicas do mundo da vida. A
sociedade seria um dos componentes estruturais no mundo da vida, ao

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 113
lado da cultura e da personalidade. Quando atores concordam sobre sua
condição, eles partilham uma tradição cultural e tornam-se membros de
um grupo social solidário.
Cada sociedade desenvolve instituições capazes de assegurar
a transmissão da cultura, a integração e a socialização. As
sociedades civis, quaisquer que sejam as suas formas,
pressupõem uma estrutura jurídica e uma constituição que
articula os princípios subjacentes à sua organização interna.
No entanto, no contexto de um mundo de vida organizado
[...], a sociedade civil existe somente onde exista garantia
jurídica da reprodução das várias esferas na forma de um
conjunto de direitos (ARATO, COHEN, 1994, p. 154).
Andrew Arato e Jean Cohen conceituam a sociedade civil de Habermas
então como parte de “[...] uma dimensão do mundo da vida assegurada
institucionalmente por um conjunto de direitos que a pressupõem, ao
mesmo tempo em que a diferenciam das esferas da economia e do Estado”
(ARATO, COHEN, 1994, p. 156).
Independente do conceito dado, a sociedade civil foi e deve ser
analisada em seu contexto, diferenciando-a de outros conceitos, como os
das sociedades doméstica, natural ou religiosa.

1.2 O surgimento da sociedade civil no Brasil

Leonardo Avritzer (1994, p. 271) aponta que a ideia de sociedade


civil ressurgiu no cenário teórico e político das sociedades ocidentais nos
anos 1980, ressurgimento associado a três fenômenos: 1º) o esgotamento
das formas de organização política baseadas na tradição marxista, com a
consequente reavaliação da proposição marxiana de fusão entre sociedade
civil, Estado e mercado (Kolakowski, 1974) (Cohen, 1982); 2º) o
fortalecimento nos países centrais do Ocidente da crítica ao desempenho do
estado de bem-estar social, pelo reconhecimento de que as formas estatais
de implementação de políticas de bem-estar não são neutras (Habermas,
1984), surgimento de novos movimentos sociais que reivindicam que o
Estado respeite a autonomia de determinadas arenas societárias (Evers,
1984), (Melucci, 1985) e (Offe, 1985); 3º) os processos de democratização
ora em curso na América Latina e na Europa do Leste, uma vez que a ação
dos atores sociais e políticos seriam parte da reação da sociedade civil ao
Estado (Arato, 1981) (Weffort, 1989).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 114
O autor aponta que, ao contrário dos países da Europa Ocidental
e da América do Norte, o surgimento da sociedade civil nos países da
América Latina deu-se como um fenômeno relativamente novo, uma vez
que, embora presente no discurso político, era quase absoluta sua ausência
nas práticas políticas dominantes. “Nesse sentido, a análise do conceito
de sociedade civil teria que explicar a forma pela qual atores sociais
reapropriaram uma tradição presente no nosso discurso político e rejeitado
na nossa prática política e social” (AVRITZER, 1994, p. 274).
Avritzer indica que os conceitos de sociedade civil segundo as
formulações da filosofia política do século XIX aparecem relacionados
à modernidade ocidental. Aparece, primeiro, associada a processo de
diferenciação entre Estado e mercado, direito privado e direito público,
limitando e regulando as estruturas sistêmicas do mercado e do Estado. A
sociedade civil aparece também associada às potencialidades do sistema
legal moderno, conectando indivíduos sem a intermediação da autoridade
pública, uma vez que a sociedade seria controlada por direitos positivos.
E, por fim, o conceito de sociedade civil implicaria o reconhecimento de
instituições intermediárias entre o indivíduo de um lado, e o Estado e o
mercado de outro. Países de inserção tardia na modernidade, como o Brasil,
teriam o problema da especificidade das estruturas políticas e sociais e da
forma específica como tais estruturas se conjugaram com as estruturas da
modernidade, quando aqui se instalaram (AVRITZER, 1994, p. 279).
O surgimento da sociedade civil brasileira está associado a
três fenômenos principais: 1º) o surgimento de atores sociais
modernos e democráticos; 2º) a recuperação por esses atores
da ideia de livre associação na relação estadosociedade, lado
a lado com o questionamento de formas privatistas de relação
estado-sociedade; 3º) a constituição de estruturas legais,
público e políticas capazes de levar à institucionalização
dos anseios político-culturais da sociedade civil. O processo
pelo qual esses atores surgiram, adquiriram uma nova
identidade democrática e passaram a pressionar o Estado
e o sistema político a se adaptarem a uma nova concepção
acerca da moderna institucionalidade democrática foi um
longo processo que certamente não chegou ainda ao final
(AVRITZER, 1994, p. 285).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 115
2 SOCIEDADE CIVIL, INTERNET E MOBILIZAÇÕES SOCIAIS

2.1 Rebeliões e revoluções pelo mundo

As revoluções são marcos recorrentes na história do Brasil


e do mundo. Na modernidade, as principais revoluções que podem ser
apontadas como de grande significado para a atual conjuntura política em
que vivemos são quatro: a Revolução Inglesa (Revolução Puritana, 1640
Revolução Gloriosa, 1688), a Revolução USAmericana (Independência
dos EUA, 1776), a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Haitiana
(1804). Enquanto os movimentos ocorridos na Inglaterra, na França e nos
Estados Unidos demonstram uma ruptura com o absolutismo monárquico,
a Revolução Haitiana apresenta um pioneirismo na abolição da escravatura
negra, mobilizada pelos próprios escravos, muito antes de a abolição ser
regulada por interesses econômicos.
Na história brasileira, muitas rebeliões também eclodiram, entre
elas, pode-se citar os movimentos separatistas da Inconfidência Mineira
(1789), da Conjuração Baiana (1798) e da Revolução Farroupilha (1835),
os movimentos emancipacionistas da Revolução Pernambucana (1817) e
da Sabinada (1837), a Cabanagem (1833), a Balaiada (1838), o embate
político da Revolução Praieira (1848), os movimentos messiânicos da
Guerra dos Canudos (1896) e da Guerra do Contestado (1912), a Revolta
da Vacina (1904), a paulista Revolução Constitucionalista (1932) e o
próprio Golpe Militar de 1964, que culminou na derrubada do presidente
João Goulart. Em geral, essas revoltas citadas apresentam em comum
um descontentamento político com o governo vigente. Diretamente
relacionados ao sistema político, destacam-se o Movimento das “Diretas
Já”, no qual a população foi às ruas em apoio à proposta de emenda à
Constituição do deputado Dante de Oliveira a fim de que se possa votar
diretamente para Presidente da República em meio à ditadura militar,
e o Movimento “Caras-Pintadas”, que pediu o impeachment do então
Presidente Fernando Collor de Mello em 1992. Outro movimento que
merece destaque foi o Movimento Sufragista, que visava o direito de
sufrágio às mulheres. A luta pelos direitos políticos das mulheres teve uma
baixa voz durante a Revolução Francesa, porém influenciou pensadores
na Inglaterra, onde o movimento cresceu com mais vigor. Os escritos de
Mary Wollstonecraft (1792), William Godwin (1793), Helen Taylor e John
Stuart Mill (1869) tiveram grande importância na defesa desses direitos.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 116
O primeiro país a garantir o sufrágio foi a Nova Zelândia, em 1893. No
Brasil, esse direito só foi garantido no ano de 1932 e teve como líder
fundamental Bertha Lutz.
Já no século XXI e em um passado recente, eclodiram algumas
revoluções de cunho político forte, principalmente no Oriente Médio e
norte da África. Em 2009, protestos no Irã questionaram os resultados das
eleições presidenciais daquele ano. Entre os anos de 2010 e 2011, deu-se
início ao que ficou conhecido como Primavera Árabe, com manifestações
populares na Tunísia, no Egito, na Líbia e na Síria, que demonstravam
o descontentamento com o governo em vigor e reivindicavam melhores
condições de vida. A Primavera Árabe influenciou outras mobilizações,
como o Occupy Wall Street, em Nova York (EUA), que ganhou
inspirações ao redor do mundo.

2.2 Brasil, junho de 2013

Nos anos de 2012 e 2013, ocorreu uma onda de manifestações


populares no Brasil contra o aumento das passagens de ônibus,
intensificando-se no mês de junho de 2013, paralelamente a outros
protestos que ocorriam na Turquia. No entanto, agregaram-se aos protestos
diversas reivindicações, principalmente de cunho político, como o pedido
genérico de fim da corrupção. Essas manifestações ficaram conhecidas
como as Jornadas de Junho.
O cientista político André Singer critica essa denominação e
identifica três fases das manifestações de junho de 2013. A primeira
concentrou-se no pedido de redução do preço das passagens do transporte
público, adotando modelos utilizados pelo Movimento Passe Livre (MPL)
em anos anteriores. As primeiras mobilizações foram cenário de intensa
violência policial, com a desculpa de conter as depredações de patrimônio
ainda que a grande maioria dos manifestantes marchasse de forma pacífica.
O auge do movimento deu-se na segunda fase, em que o uso
desmedido da força policial atraiu simpatia do público. Embora algumas
reivindicações mostrassem um teor utópico e até cômico, aliaram-se a elas
tantas outras de caráter mais efetivo. Manifestações devido aos gastos
exorbitantes com as obras para a Copa do Mundo de 2014 eram recorrentes,
assim como cartazes pedindo escolas e hospitais “padrão FIFA”. A terceira
fase reuniu mobilizações com objetivos específicos. Deram-se protestos
contra a PEC 37/2011, elaborada pelo deputado Lourival Mendes (PTdoB-

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 117
MA), na qual previa a proibição de investigações pelo Ministério Público.
Outro projeto que sofreu represálias públicas foi o Projeto de Decreto
Legislativo 234/2011, também conhecido como ‘cura gay”, apresentado
pelo deputado e pastor evangélico João Campos (PSDB-GO) e aprovado
pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida
pelo pastor Marco Feliciano.
Como resposta aos protestos, o governo brasileiro anunciou
algumas medidas, como a inserção da corrupção no rol dos crimes
hediondos e o arquivamento da PEC 37. Os aumentos das tarifas de ônibus
também foram revogados. No entanto, novos aumentos tornaram a ocorrer.
Mesmo não tendo consequências tão palpáveis, as manifestações abriram
o espaço dos protestos nas ruas à população, que não se apresentavam
em grande escala desde o impeachment do presidente Collor.
Singer identifica a heterogeneidade social que compôs as manifestações e
denomina-as “Jornadas de Juno”, pois cada um via nas nuvens levantadas
nas ruas a forma de uma deusa diferente.

2.3 Internet, mobilizações, redes sociais: emergência de uma


“nova política”?

O exercício da democracia participativa pela sociedade civil


ganhou novos meios com o advento da internet, proporcionando uma
nova infraestrutura para a produção e difusão de informações. Através
desse instrumento, é possível conectar os cidadãos e ampliar suas
relações entre si, proporcionando ações políticas em escala local, nacional
e até transnacional.
A internet, portanto, é terreno fértil para que mobilizações sociais
ganhem força e forma, promovendo assim uma maior oportunidade de
engajamento da sociedade civil, que não se limita a intervir nos meios
que conhece pessoalmente, mas, agora, ampliando o seu alcance tanto de
informação adquirida quanto o de pessoas que podem ser influenciadas
pelo pensamento divulgado. Além disso, a internet acaba sendo
ferramenta que une aqueles que pensam de modo semelhante e que se
mobilizam pelas mesmas causas.
O movimento Occupy Wall Street, grande influenciado pela
Primavera Árabe, por exemplo, teve sua origem com a convocação dos
americanos pela revista canadense Adbusters, a fim de que se protestasse
contra a influência das grandes corporações financeiras no governo

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 118
estadunidense. A manifestação teve grande repercussão mundial, causando
inspirações ao redor do globo, como em Frankfurt, na Alemanha, e em
São Paulo, no Brasil. No entanto, com o passar do tempo, a ideia inicial
do protesto ganhou conotações diversas, dando origem a ações como a
do Occupy Sandy Recovery, que organizou voluntários para ajudar os
atingidos pelo furacão que atingiu a costa leste dos EUA em 2013. A
grande difusão desse movimento se deu em razão do uso da internet.
Como já mencionado, o papel das redes sociais foi decisivo para a
concretização das manifestações de junho de 2013 no Brasil. Mas não somente
para elas. Após as Jornadas de Junho, outras mobilizações se deram, porém
mais pontuais. A heterogeneidade presente em 2013 deu espaço a grupos
específicos nas manifestações de 2014. O grito de “não vai ter Copa” foi
substituído pelos gritos em frente às televisões durante os jogos. Teve Copa.
Alguns protestos continuaram, mas sem a força do ano anterior ao evento.
Com a derrota de 7 a 1 do Brasil no futebol e uma eleição
presidencial acirradíssima no mesmo ano, protestos, dessa vez direcionados
ao governo reeleito, reacenderam a chama das manifestações. Em 2015,
com a intensificação da crise econômica e os estouros de escândalos de
corrupção, mobilizações pró-impeachment tomaram conta das ruas.
Aliado a isso, deu-se a perda do apoio presidencial no Legislativo e,
embora manifestantes contra o impeachment tenham mostrado um número
significativo tanto quanto o outro lado nos protestos e fora deles, o processo
de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff foi iniciado pela Câmara dos
Deputados e, posteriormente, aprovado pelo Senado. Essas mobilizações
da sociedade foram impulsionadas, sem dúvida alguma, pelos veículos
de comunicação, como a, ainda reinante, televisão aberta e a internet.
Comparando-as com as Jornadas de Junho, abstrai-se a semelhança de
que todas traduzem uma necessidade de reinvenção da democracia, visto a
cada vez maior descrença na representatividade política.
A “nova política” emergente refere-se à participação virtual da
sociedade nos assuntos públicos. Nunca antes a informação local e global
foi tão acessível, nunca antes foi tão fácil difundir a própria opinião. O
papel das redes sociais Facebook e WhatsApp é central nessa discussão.
Contudo, é necessário ter cautela e perceber a persistente desigualdade
da sociedade brasileira. Assim como no Facebook, em que são utilizados
algoritmos que fazem aparecer na linha do tempo notícias e publicações
que mais agradem à pessoa, o acesso à tecnologia também é, de certa
maneira, manipulado. De acordo com o site Internet World Stats, até 15

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 119
de novembro de 2015, haviam 117,6 milhões de usuários de internet no
Brasil, o que corresponde a 57,6% de penetração na população. A difusão
dos smartphones tem ajudado na ampliação do acesso, porém quase
metade dos habitantes ainda não tem essa possibilidade. Uma nova política
já está em processo, entretanto quem são os atores dessa política deve ser
analisado sempre criticamente.
A seletividade de informação apresentada pelos meios de
comunicação ainda é uma realidade que não deve ser ignorada e nem,
contudo, tornada absoluta.
Certamente, a possibilidade de controle social aumenta com
o modelo de comunicação de massa de cima para baixo e do
centro para a periferia. No entanto, as formas generalizantes
de comunicação desprovincializam, expandem e constituem
novos públicos. Além do mais, o desenvolvimento técnico
dos meios eletrônicos de comunicação não conduz,
necessariamente, à centralização, tal como parece evidente
atualmente. Portanto, nesse caso, as alternativas são entre a
lógica manipulativa da indústria cultural e a emergência de
contrapúblicos e contraculturas capazes de utilizar os novos
meios de comunicação de massa de formas não hierárquicas
(ARATO, COHEN, 1994, p. 168-169).

2.4 Movimentos sociais

Alberto Melucci é um reconhecido intelectual europeu na área


das Ciências Sociais com formação em Sociologia e Psicologia que
estudou muito a respeito dos movimentos sociais, os quais, para ele,
seriam fenômenos discursivos e políticos, localizados na fronteira entre as
referências da vida pessoal e a política. Em entrevista a Leonardo Avritzer
e Timo Lyyra, Melucci esclareceu algumas ideias sobre o tema. Para ele,
“os movimentos sociais constituem aquela parte da realidade social na
qual as relações sociais ainda não estão cristalizadas em estruturas sociais,
onde a ação portadora imediata da tessitura relacional da sociedade e do
seu sentido” (MELUCCI, 1994, p. 190). Dessa maneira, os movimentos
sociais constituiriam uma lente por meio da qual problemas gerais
poderiam ser abordados.
O estudioso destaca a importância entre diferenciar os níveis de
estruturas políticas e institucionais, pois muito frequentemente apenas os
efeitos diretos sobre as instituições políticas são levados em consideração.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 120
Existe um nível no qual a ação direta dos movimentos
sociais afeta diretamente os sistemas políticos, obrigando-
os a produzir algum tipo de reação que pode ser mais ou
menos democrática, conforme a natureza do sistema político
envolvido. Nesse sentido, a influência direta dos movimentos
sociais sobre os sistemas políticos pode ser de três tipos: uma
ampliação dos limites da política; uma mudança nas regras
e procedimentos políticos; e uma transformação nas formas
de participação no interior dos sistemas políticos. No que
diz respeito tanto às instituições políticas quanto aos atores
sociais tradicionais, partidos políticos, sindicatos, grupos de
pressão, todos eles são afetados pelos movimentos sociais.
Esses são os efeitos diretos sobre as instituições políticas.
Mas existem também os efeitos indiretos, que são muito
mais difusos e que podem ser medidos em pelo menos dois
níveis, o primeiro deles sendo uma mudança na vida das
organizações. Em geral, os movimentos sociais produzem
novos modelos organizacionais que são incorporados em
firmas, grandes corporações, serviços públicos, escolas,
sistemas educacionais, etc. Novos modelos de organização
são gerados e, por motivos óbvios os movimentos sociais
produzem novas elites políticas para essas instituições e
organizações. Finalmente, existe uma transformação na
cultura e na moral (mores). Hábitos e linguagem são mudados
institucionalmente porque uma nova linguagem é assimilada.
Por exemplo, hoje nós falamos uma linguagem que incorpora
preocupações ecológicas, preocupações com a igualdade de
gênero, e estes são resultados institucionalizados da ação dos
movimentos sociais. Hoje nós adotamos diferentes atitudes
na relação homem-mulher, assim como na relação frente
à natureza e, uma vez institucionalizados, eles se tornam
parte do discurso dos grupos dominantes. Essa é uma lista
analítica dos possíveis efeitos dos movimentos sociais.
Evidentemente, a incorporação dessas mudanças depende
do grau de abertura dos sistemas políticos e da relação
entre sistema político e Estado, isto é, da forma pela qual a
representação e a tomada de decisão são efetivadas em uma
determinada sociedade (MELUCCI, 1994, p. 191-192).
Melucci afirma que movimentos sociais são cheios de paixão,
são formas “quentes” de ação, que não podem ser reduzidos à ação social,
estigmatizando-se o restante como irracional. “Eles não são irracionais,
mas são uma forma apaixonada de ação que é bastante significativa para

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 121
a mudança social. Afinal, se não houvesse paixão, por que alguém se
importaria em transformar?” (1994, p. 200).
Eles constituem o resultado de fenômenos sociais diferenciados.
Eles crescentemente representam o outro polo do nosso dilema
cultural e sistêmico. Desse modo, eles deixam claro que
estamos lidando com um dilema. Mas por que eles estão mais
próximos do discurso dominante ou dos interesses dominantes,
eles podem ser facilmente utilizados no interior do sistema
político como instrumentos para o enfraquecimento de outras
formas de mobilização coletiva. Todavia, sociologicamente
falando, o entendimento do fenômeno nos encaminha na
direção de ultrapassar a distinção esquerda-direita como uma
distinção significativa do ponto de vista sociológico. [...] em
termos da utilidade analítica, eu não vejo como se poderia
qualificar um movimento como de esquerda ou de direita
simplesmente pela sua forma de mobilização. Por exemplo,
como distinguir os skinheads de hoje, na Itália e na Alemanha,
que eram interpretados como sendo de esquerda.
Como exemplo de movimentos que vão além da discussão entre
esquerda e direita, Melucci cita a questão do aborto, em que a principal
pergunta é “quem tem o direito de decidir?”, uma vez que entra em
questão o direito do poder público de interferir com a reprodução. Na
China, por exemplo, o aborto é imposto como controle de natalidade,
portanto, segundo sua lógica, ser contra o aborto seria um movimento
progressista lá. A respeito do Brasil e do número de mulheres que
sofrem consequências devido a abortos ilegais, o estudioso diz que esse
é um exemplo de como devemos ser cuidadosos ao tratar da questão:
“Aqui não existe simplesmente esquerda ou direita. Nós devemos, em
primeiro lugar, colocar a questão no contexto histórico e político para
compreender a direção do conflito no interior de uma determinada
sociedade” (MELUCCI, 1994, p.204).

3 SOCIEDADE CIVIL E POLÍTICA NO BRASIL

3.1 Atuação da sociedade civil e parcerias do Estado com o


terceiro setor

No Brasil, após o papel central que a sociedade civil teve para


o fim da ditatura militar, afirma Bernardo Sorj que, muitas vezes, entre
os atores que apoiam a luta pela democratização, encontram-se setores

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 122
que veem a democracia de forma puramente instrumental e até mesmo
membros com um lado “obscuro”. “Na prática, a sociedade civil reflete
e potencializa divisões e tensões da sociedade, e setores da sociedade
civil podem permanecer numa zona nebulosa onde o compromisso com a
democracia não é certo” (SORJ, 2007).
Com a finalidade de exercer a cidadania de uma maneira
teoricamente mais efetiva, houve um aumento do terceiro setor após a
redemocratização. O primeiro setor refere-se ao Estado; o segundo setor, ao
privado. Terceiro setor é aquele formado por associações e entidades sem
fins lucrativos, como as ONGs, a fim de gerar serviços de caráter público.
Tradicionalmente, o terceiro setor seria constituído por
organizações comunitárias, esportivas ou religiosas. Um novo tipo
de ONG, com financiamento externo e formada a partir do discurso
de responsabilidade social de empresas privadas, passou a ganhar
espaço no cenário sócio-político, proporcionando novos caminhos de
atuação da sociedade civil.
Entretanto, uma característica a ser destacada é que as
organizações, como forma de representação da sociedade e também
de meio de participação política, não podem continuar com o discurso
de voz conjunta da sociedade. Como bem salienta Sorj, em tempos de
democracia, a permanência deste discurso produz efeitos inversos, de
despolitização da sociedade e de deslegitimação do Estado democrático,
vez que cria a ilusão de que a sociedade pode ser representada “em seu
conjunto”, sem levar em conta a tensão constante entre os diferentes
grupos sociais. O reconhecimento da diversidade de vozes é essencial
para a atuação da sociedade civil perante o Estado, e o terceiro setor é
um modo de alcançá-lo.

3.2 Sociedade civil e judicialização da política

Em meio às desesperanças com os poderes Executivo e Legislativo,


os quais, por definição, deveriam agir representando o povo de acordo com
os interesses deste, a sociedade civil passou a buscar no Poder Judiciário a
solução dos problemas políticos. A primeira busca recente de um “herói”
que resgatasse os valores perdidos na política foi a direcionada ao Ministro
Presidente do STF Joaquim Barbosa quando realizou o julgamento do
Mensalão, nome popular dado à Ação Penal 470, do qual foi relator, dentre
os anos de 2012 e 2013. O objeto do Mensalão foi acerca do julgamento

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 123
do crime da compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional. O
julgamento da Ação foi concluído após um ano e meio.
Mais recentemente, outra figura do judiciário, dessa vez na
primeira instância, estampou capas de jornais com a promessa de limpeza
da corrupção: Sérgio Moro, juiz federal que comanda o julgamento dos
crimes da Operação Lava Jato, que conta com o envolvimento de políticos e
grandes empresários, sendo um dos maiores casos de corrupção e lavagem
de dinheiro até então apurados.
Embora a ascensão do Poder Judiciário no imaginário da sociedade
civil seja acalentadora para sanar os maniqueísmos necessários à população,
a forma acrítica que se dá isso é algo preocupante, revelando a séria
deficiência de crença na própria legitimidade do povo. Quando se volta ao
único poder que não é composto por representantes eleitos pela população
como solução, evidencia-se que a sociedade não acredita em si mesma e
prefere que outras pessoas, das quais não se sabe os ideais ou pelo o que
luta, tomem decisões por ela. Campanhas virais e petições online a favor da
presidência de Moro são uma realidade. Porém, a sociedade civil não deve
se basear pontualmente na judicialização da política e na busca de líderes
messiânicos, e sim participar das esferas em sua totalidade, através de meios
como o terceiro setor, a internet, as manifestações e as ações individuais,
reconhecendo as pluralidades que compõem a democracia participativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como base o presente estudo, é possível concluir que, embora


o conceito de sociedade civil já tenha sido objeto da análise de muitos
pensadores, o contexto a que ele está inserido é de extrema importância,
como também a devida diferenciação desse com outros conceitos muitas
vezes confundidos, como o de sociedade doméstica, natural e religiosa.
Sua análise teórica, no entanto, apresenta-se insuficiente.
No plano prático, movimentos sociais - protagonizados, portanto,
pela sociedade civil - descontentes politicamente, são cada vez mais
frequentes ao redor do mundo, principalmente após o advento da Internet
e sua consequente diminuição de distâncias. Esse estreitamento nas
distâncias cria o cenário perfeito para o surgimento de uma “nova política”.
Contudo, a forma como ela é praticada e a quem ela serve são questões que
devem ser examinadas criticamente, uma vez que o acesso à informação é
por vezes restrito, quando não, manipulado.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 124
Movimentos sociais não são uma novidade proporcionada pela
Globalização tecnológica, pelo contrário, foi mostrado que eles podem
adquirir várias características, podendo ir desde movimentos populares
a elitistas, mas que, em geral, demonstram um descontentamento com o
cenário político contemporâneo a eles. Em contextos de crise como esse,
a sociedade civil busca alternativas para a solução de seus problemas,
podendo cair nas mãos da falácia de um “salvador da pátria”, o qual, por
mais bem intencionado (ou não), dificilmente apresentará uma fórmula
atemporal de resolução dessa crise. Outro aspecto a ser salientado é a
diversidade encontrada na sociedade civil, sendo que sua heterogeneidade
deve ser respeitada e aproveitada em prol do bem comum.

REFERÊNCIAS

ARATO, Andrew; COHEN, Jean. Sociedade civil e teoria social. In:


AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e democratização.
Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 147-182.
AVRITZER, Leonardo. Modelos de sociedade civil: uma análise
da especificidade do caso brasileiro. In: AVRITZER, Leonardo
(Coord.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del
Rey, 1994. p. 269-308.
AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil: além da dicotomia Estado-
Mercado. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e
democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 23-40.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade - Para uma teoria
geral da política. 9. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2011. p. 13-52.
iG São Paulo. Relembre os principais protestos ao redor do mundo nos
últimos anos. Último segundo. Disponível em: http://ultimosegundo.
ig.com.br/mundo/2013-06-18/relembre-osprincipais-protestos-ao-redor-
do-mundo-nos-ultimos-anos.html. Acesso em: 12 jun. 2016.
INTERNET World Stats. Internet usage and population in South
America. Disponível em: http://www.internetworldstats.com/stats15.htm.
Acesso em: 11 jun. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 125
MELUCCI, Alberto. Movimentos sociais, inovação cultural e o papel do
conhecimento: uma entrevista de Leonardo Avritzer e Timo Lyyra com
Alberto Melucci. In: AVRITZER, Leonardo (Coord.). Sociedade civil e
democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 183-211.
MONEDERO, Juan Carlos. ¿Posdemocracia? - Frente al pesimismo
de la nostalgia, el optimismo de la desobediencia. Nueva Sociedad. n.
240, 2012. p. 68-86.
SINGER, André. Classes e Ideologias Cruzadas. In: Brasil, Junho de
2013 - Dossiê: Mobilizações, Protestos, e Revoluções. Novos Estudos
Cebrap, n. 97, p. 23-40, nov./2013.
SORJ, Bernardo; FAUSTO, Sérgio (Org.). Internet y Movilizaciones
Sociales: transformaciones del espacio público y de la sociedad civil. São
Paulo: Plataforma Democrática, 2015.
SORJ, Bernardo; FAUSTO, Sérgio (Org.). Sociedade Civil e Política
no Brasil. In: SORJ, Bernardo; OLIVEIRA, Miguel Darcy. Sociedade
civil e democracia na América Latina: Crise e reinvenção da política.
São Paulo: iFHC, Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, 2007. p. 59-72.
SUBIRATIS, Juan. ¿Nueva Política? Argumentos a a favor e
dudas razonables. In: BLANCO, Agustín, CHUECA, Antonio,
BOMBARDIERI, Giovanna (Ed.). Informe España 2015, n. 22, Madrid:
Fundación Encuentro, 2015. p. 445-464.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 126
DIREITO COMUNITÁRIO SUPRANACIONAL EUTOPEU E A
INTERNAIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO:
SUA REPERCUSSÃO NA DEMOCRACIA

Manoel Ilson Cordeiro Rocha*

INTRODUÇÃO

a) Delimitação do problema: O direito comunitário supranacional


europeu resultou numa internacionalização, no bloco comunitário, do direito
administrativo. As normas produzidas no âmbito da comunidade europeia
pelo parlamento europeu também alcançam o direito administrativo
aplicável aos Estados membros. É uma experiência nova e relevante do
ponto de vista da configuração do Estado Moderno, já que afeta a soberania
num campo sensível, que é a administração pública e a gestão da burocracia
estatal. Também é uma experiência ainda não totalmente dimensionada.
Justificativa: A democracia, o Estado de Direito e a proteção dos
direitos humanos são conceitualmente vinculados ao modelo de Estado
Moderno, de poder soberano e de fronteiras objetivamente delimitadas
para essa perspectiva de sociedade política. O direito comunitário
europeu, em seu estágio de supranacionalidade, significa uma ruptura da
soberania estatal e, consequentemente, de tudo o que representa. O direito
administrativo comunitário, que resulta desse processo, é um importante
exemplo desse processo de ruptura e do desafio que se apresenta para as
sociedades. Diante da relevância dos Estados que compõe a comunidade
europeia, essa transformação pode ser paradigmática. Prevalecendo
o modelo europeu num futuro próximo, a repercussão sobre o debate
democrático e sobre a proteção dos direitos humanos é inquestionável.
Se não é possível afirmar seu inteiro teor, já é possível definir condições
necessárias para a preservação desses princípios.
Objetivos: Sabe-se que o direito administrativo repercute na
eficácia das políticas públicas de proteção e garantia dos direitos humanos
e repercute no nível de democracia. A partir dos fundamentos tradicionais
do Estado e do nível de ruptura que este fenômeno proporciona, pretende-se
especular premissas para uma reflexão democrática de uma nova ordem, as
hipóteses para o que pode ocorrer com as políticas públicas de perspectiva
*
Pesquisador doutor em Direito vinculado à Universidade de Araraquara, à Fundação
Educacional de Ituverava e à Faculdade de Direito de Franca.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 127
democrática. Também se pretende apresentar a internacionalização do
direito administrativo em decorrência do direito supranacional comunitário
europeu e relacionar esta internacionalização com a democracia e com a
proteção dos direitos humanos.
Uma hipótese é a estagnação da evolução democrática e protetiva
da União Europeia em razão do afloramento dos nacionalismos, das crises
imigratórias e da competição agressiva e destruidora do capitalismo liberal
globalizado. Outra hipótese razoável é a consolidação das instituições
que a União Europeia criou, como o parlamento europeu, o euro etc.,
enraizados numa identidade europeia que se forma, a ponto do cidadão
europeu não admitir retrocesso.
d) Metodologia: Trata-se de uma pesquisa em fontes bibliográficas,
segundo a conjugação dos métodos dialético e dedutivo. Foram consultadas
doutrinas nacionais e estrangeiras. Chegou-se a hipóteses seguras, em
conformidade com os métodos e com as fontes.

1 BASES DO DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU

A União Europeia é resultante da evolução mais significativa


do direito comunitário internacional. As modalidades de comunidades
econômicas foram experimentadas neste percurso numa sequência lógica
e gradual, o que propiciou parte do sucesso europeu, com uma maturidade
necessária. Naturalmente, foram condições sócio-políticas diferentes
das demais comunidades ocorridas ou propostas como, por exemplo, o
NAFTA, o MERCOSUL e a ALCA. Os europeus enfrentaram desafios
únicos e ainda há barreiras a transpor. A tipologia a seguir corresponde ao
“mapa” histórico do Direito Comunitário Europeu.
a) Tipologia das comunidades internacionais contemporâneas
- Para evitar confusões terminológicas, é necessário iniciar por alguns
conceitos básicos, como comunidade e direito comunitário. Enquanto
comunidade é o agrupamento por laços de identidade e por interesses
comuns, direito comunitário é um conceito específico das comunidades
de Estados, que trata das normas internacionais aplicadas às relações de
integração entre os Estados (ROCHA, 2012, p. 103). A integração regional
entre os Estados é o mote deste direito comunitário. As comunidades
internacionais estatais possuem normas que são contempladas dentro do
Direito Internacional Público. Mas hoje se formou como um verdadeiro
ramo desse direito: o Direito Comunitário Internacional. Também algumas

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 128
dessas comunidades possuem organizações internacionais destinadas à
sua condução. Atualmente as comunidades internacionais que se destacam
são as econômicas. Há um conjunto de modalidades de comunidades
econômicas, mas nada impede que os Estados formulem variações.
A sequência abaixo, por mais que represente uma sequência evolutiva,
também não obriga os Estados a segui-la: i) Zona de integração fronteiriça
- É a comunidade que se forma numa microrregião fronteiriça, envolvendo
um conjunto de municípios vizinhos pertencentes a Estados diferentes.
O objetivo é facilitar as relações que naturalmente se formam entre as
comunidades municipais vizinhas, geralmente de natureza comercial,
além do trânsito de pessoas, que contribui para a formação de famílias,
para o uso de serviços públicos, para a participação em eventos públicos,
etc; ii) Zona de união alfandegária - É a zona comunitária entre Estados
que reduzem as barreiras comerciais burocráticas recíprocas. Muitas vezes
o comércio internacional é inviabilizado pela dificuldade dos mercados
atenderem às exigências dos compradores. Parte destas exigências tem o
propósito de reduzir a pressão comercial e proteger o produto local. Mas
essas exigências acabam por atingir produtos que a demanda local necessita.
A união alfandegária reduz as formalidades técnicas de documentação,
exigidas, por exemplo, em matéria sanitária, ambiental, de pesos e
medidas, etc; iii) Zona de livre comércio - É a comunidade entre Estados
que libera o comércio recíproco das tarifas de importação e exportação.
Facilita também as barreiras burocráticas para a circulação de mercadorias.
É a modalidade mais frequente; iv) Zona de preferências aduaneiras
- É a zona de livre comércio acrescida de uma Tarifa Externa Comum
(TEC). A Tarifa Externa Comum impõe aos membros da comunidade
um padrão único de tarifas para as importações e exportações com países
de fora da comunidade. A intenção é evitar que os produtos estrangeiros
de Estados sem acordo de livre comércio entrem pelas fronteiras do
vizinho comunitário. A TEC é fundamental para o funcionamento do
livre comércio, mas é de difícil implantação porque a análise das tarifas
impostas aos Estados não membros é realizada produto por produto
comercializado, conforme as condições de demanda e produção de cada
Estado comunitário; v) Mercado Comum - É a comunidade internacional
que amplia a livre circulação de mercadorias para a livre circulação de
pessoas, capitais e serviços. A integração nesta modalidade é mais efetiva,
pois envolve as populações. Mas o mercado comum exige a instalação de
mecanismos comuns de controle fronteiriço para os que não são partes da

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 129
comunidade, pois agora há mais interesses envolvidos, como as políticas
imigratórias e as políticas fiscais sobre o fluxo de capitais. É a partir de um
Mercado Comum que a presença de um direito administrativo comunitário
se faz efetivo, com políticas, normas e atos administrativos para as
relações que se formam com o propósito comunitário, como a atuação da
administração na prestação de serviços para o cidadão comunitário, na
defesa dos consumidores, na gestão da política econômica e monetária;
vi) União econômica - É a evolução natural de um mercado comum, pois
a circulação de riquezas num âmbito de um verdadeiro mercado implica
no surgimento de uma moeda única, um banco central único, um órgão de
regulação permanente da comunidade (um parlamento), um judiciário para
questões da comunidade e uma política de redução da desigualdade regional
com a distribuição de recursos públicos de fundos criados na comunidade.
Envolve não somente direito comunitário, mas Direito Comercial, Direito
Constitucional, Direito Administrativo, etc. É efetivamente neste tipo que
há um Direito Administrativo comunitário (usando-se como referência a
experiência europeia). Especialmente por conta da supranacionalidade
das normas, com a autonomia normativa que possibilita a consolidação
do sistema administrativo, além da distribuição tripartite ao modo de
Montesquieu, com uma gestão administrativa relativa, e também com
a maior integração e a sua repercussão na circulação de bens, pessoas e
serviços (ROCHA, 2012, p. 103).
b) A Europa e a sua trajetória no Direito Comunitário - A primeira
experiência relacionada ao Direito Comunitário Europeu foi a Comunidade
do Carvão e do Aço (CECA), criada no pós-guerra, em 1952, entre
Alemanha Ocidental, França, Itália e Benelux, como uma comunidade
de livre comércio de carvão e aço para a reconstrução da indústria de
base desses países. A experiência evoluiu para uma comunidade de livre
comércio mais ampla, a CEE, pelo tratado de Roma, de 1957 (em 1965
CECA e CEE se fundem), onde o nível de integração regional evoluiu para
a adoção de uma política tarifária externa comum (equivalente à TEC) e
políticas comuns para agricultura, transporte e circulação de mão-deobra.
Em 1992, com o Tratado de Maastricht, a CEE passa a chamar-se
Comunidade Europeia (CE). Neste período outros Estados aderiram ao
bloco: Reino Unido, Irlanda, Dinamarca, Grécia, Espanha e Portugal. Em
1993 é fundada a União Europeia, resultante da fusão das comunidades
europeias, mas com uma natureza diferente: uma união econômica, com

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 130
moeda comum, banco central e integração normativa supranacional em
política econômica pelo parlamento europeu (UNIÃO EUROPEIA, 2016).
Além da política de livre circulação de pessoas, bens e capitais,
das políticas comuns para agricultura, desenvolvimento regional, comércio
e pesca, a UE avançou para um sistema de regulação autônoma sobre
estes temas, a caracterizar a supranacionalidade; também avançou para
uma política mais incisiva de investimentos do bloco nas particularidades
dos membros com fins à realização destas políticas; avançou, por
consequência, na regulação e controle destes investimentos, com um
direito administrativo comunitário; por fim avançou com a zona do euro,
um sistema monetário, em torno de uma moeda comum, que repercute na
economia e na integração dos membros (UNIÃO EUROPEIA, 2016). A
supranacionalidade europeia, com a competência atribuída ao Parlamento
Europeu para legislar sem a necessidade de ratificação dos Estados
membros, representa uma das grandes transformações para a concepção
política do Estado contemporâneo, uma aposta para o futuro do Estado.
A União Europeia também possui uma divisão segundo o modelo de
Montesquieu, com órgão executivo (Comissão Europeia), legislativos
(Conselho da União Europeia e Parlamento Europeu) e judiciário (Tribunal
de Justiça da União Europeia) (UNIÃO EUROPEIA, 2016).

2 DIREITO ADMINISTRATIVO COMUNITÁRIO EUROPEU E


SUA REPERCUSSÃO INTERNACIONAL

O direito comunitário europeu evoluiu para a formação de um


direito administrativo comunitário e deste, para um direito administrativo
que se internacionaliza, pelo menos no âmbito da comunidade.
Esse direito se caracteriza por produzir uma uniformização do
direito administrativo dos Estados-membros; por criar uma legalidade
típica; criar um ato transnacional; por afetar o regime jurídico de diversos
institutos administrativos, entres os quais discrimina Paulo Otero:
São hoje visível nos seguintes principais domínios: (i) A
contratação pública, incluindo regras sobre o procedimento
administrativo contratual e as garantias contenciosas
específicas;(ii) A atividade econômica dos poderes públicos,
designadamente a formulação de um conceito de empresa
pública e a sua sujeição genérica ao Direito da concorrência,
além de uma profunda alteração da matéria referente à gestão
dos serviços públicos;(iii) A definição de regras em matéria

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 131
política económica e monetária, política social, educação,
formação profissional e juventude, saúde pública, defesa dos
consumidores, investigação e desenvolvimento tecnológico,
sem embargo de outras políticas comunitárias;(iv) A função
pública, envolvendo os princípios da livre circulação de
trabalhadores e da abolição de toda a discriminação em
função da nacionalidade entre os trabalhadores dos Estados-
membros e uma redefinição dos critérios de acesso ao
emprego público;(v) O urbanismo e o meio ambiente;(vi)
A responsabilidade civil do Estado pelo incumprimento do
Direito Comunitário;(vii) Em termos contenciosos, além da
violação da legalidade comunitária ser fonte de invalidade
dos actos das Administrações dos Estados-membros,
observa-se a projecção das normas comunitárias sobre o
direito processual nacional. (OTERO, 2003, p. 464).
Há um novo direito administrativo, e é um direito administrativo
que se distingue por ser comunitário. O seu sentido inverso também é válido,
um direito comunitário que, por repercutir tanto no direito administrativo,
é um direito comunitário que é predominantemente administrativo.
Uma tal “contaminação” da normatividade interna pela
ordem jurídica comunitária, reforçando a complexidade do
sistema jurídico, abre hoje uma nova dimensão ao Direito
Administrativo: a caracterização da Comunidade Europeia
como sendo uma “Comunidade de Direito Administrativo”,
gera naturais efeitos sobre a legalidade administrativa
de cada um dos Estados-membros, assistindo-se a um
fenómeno de comunitarização ou europeização do Direito
Administrativo, não obstante a Comunidade Europeia não
dispor ainda de um Direito Administrativo sistematizado
(OTERO, 2003, p. 457). A reforma, eventualmente próxima,
do direito constitucional europeu só poderá vir confirmar
uma realidade já hoje indesmentível: a incidência do direito
comunitário nos direitos administrativos dos Estados-
membros é de tal monta que vários autores falam já numa
verdadeira “comunitarização” ou “europeização” dos
direitos administrativos nacionais (SOUSA, 2008, p. 66).
O novo direito administrativo, que é fruto do modelo que a
integração comunitária europeia adotou, é um direito administrativo
que deve observar a composição entre os ordenamentos, como
observa Colaço Antunes:

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 132
O direito administrativo abandonou definitivamente o
Estado, que é agora um artefacto do passado, o paraíso
perdido. É no ordenamento jurídico compósito da União
Europeia que se devem procurar os critérios iluminantes em
relação às categorias fundantes do direito administrativo. Se
quisermos estudar este ramo de direito público para ver o
futuro temos que olhar para lá do Estado (ANTUNES, 2012,
p. 143). A natureza composta e multinível do ordenamento
jurídico europeu (comunitário) implica a necessidade
de colaboração entre as Administrações nacionais e a
Administração comunitária (integração vertical) e uma
crescente colaboração transnacional entre as várias
Administrações dos Estadosmembros da União Europeia
(integração horizontal) (ANTUNES, 2012, p. 150).
Essa composição aproxima-se, conforme Paulo Otero, de um
modelo federativo, um “federalismo de execução”.
Vigora no Direito Comunitário, por efeito do Tratado e de
desenvolvimento jurisprudencial, uma regra que confia
normalmente à competência dos Estados-membros a execução
de decisões comunitárias, criando assim um verdadeiro
“federalismo de execução”. (OTERO, 2003, p. 471).
Entretanto, essa conclusão, a nosso ver, se restringe mesmo para
a observação do modelo de execução comunitária, porque o que está em
jogo também é o paradigma das sociedades políticas. Conforme Colaço
Antunes, a União Europeia é a atual referência para a forma política
hegemônica, a substituir o Estado Moderno.
A União Europeia é a atual forma histórica de um
ordenamento jurídico de fins gerais, em substituição do
Estado como penúltima personalização (histórica) de
um ordenamento jurídico geral. O ordenamento jurídico
da União Europeia é um ordenamento compósito, que
integra os ordenamentos nacionais com base nos princípios
fundamentais do primado e do efeito direto, de criação
jurisprudencial (Tribunal de Justiça da União Europeia -
TJUE) (ANTUNES, 2012, p. 149).
A nova administração pública comunitária se fundamenta,
naturalmente, numa “nova legalidade administrativa”. “Nova” porque
corresponde a uma autoridade legitimadora distinta da fórmula tradicional
e, consequentemente, produzida sob condições distintas, quais sejam, a) a
conjugação entre direito nacional e direito comunitário, a romper com o

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 133
padrão normativo soberano; b) uma predominância da norma comunitária,
no que é de regulação comunitária, a reforçar a tese do acaso do Estado
soberano (qualquer tentativa de ver na União Europeia um super Estado é
sem fundamento, pois a integração sequer se aproxima disto); c) uma nova
tipologia de atos administrativos, próprios do direito comunitário.
Quanto às condições a) e b), há um novo paradigma para a legalidade,
uma legalidade derivada de uma sincronia entre os ordenamentos jurídicos
(bem distinta de uma possível comparação com a integração imaginada
pelo monismo kelseniano para o direito nacional e o direito internacional).
A legalidade comunitária, de tipo “federativa”, sem ser estatal. Neste
sentido pode-se ver a opinião dos autores portugueses consultados:
O Direito dos Estados-membros encontra-se vinculado a
respeitar, segundo impõem os princípios do primado e da
aplicabilidade directa, o Direito Comunitário.O Direito
Comunitário constitui, neste sentido, uma ordem jurídica
que se sobrepõe ao Direito dos Estados-membros no âmbito
das respectivas atribuições concorrentes, estabelecendo os
princípios que estes últimos devem respeitar. Existe aqui
uma repercussão tão intensa do Direito Comunitário sobre
os Direitos Nacionais que poderá mesmo considerar-se que
gera um tal grau de convivência que aquele deixa de ser um
corpo jurídico separado do Direito de cada um dos Estados-
membros (OTERO, 2003, p. 463).A integração numa união
económica e monetária, em exigências de convergência
orçamental (como acontece actualmente com o pacto de
estabilidade e crescimento) têm inevitáveis consequências
sobre o dimensionamento da administração pública em
sentido orgânico e em sentido material, impondo reformas
que estão na ordem do dia em diversos Estados membros.
Por outro lado, a integração europeia tem acentuado a
governamentalização dos sistemas de governo dos Estados-
membros, efeito de índole sobretudo político-legislativa que
acaba, contudo, por se projectar nas fronteiras da actuação
governamental administrativa, e não apenas na matéria da
transposição de directivas (SOUSA, 2008, p. 120).
Quanto à nova tipologia (c) de atos administrativos, Colaço
Antunes expõe bem as suas razões, próprias do ambiente comunitário:
É indiscutível constatar que, frequentemente, os atos
administrativos são eficazes em âmbitos territoriais
mais amplos ou mais acanhados em comparação com o
âmbito de vigência das normas que aplicam, podendo,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 134
inclusive, a eficácia de um ato ditado por um órgão de
uma Administração nacional ultrapassar a “fronteira” e
projetar-se noutros ordenamentos nacionais. Esta realidade
comunitária explica o nascimento de uma nova figura: o ato
administrativo transnacional. (...). A justificação desta nova
figura assenta na necessidade de satisfação plena das quatro
liberdades fundamentais da União Europeia (livre circulação
de pessoas, bens, serviços e capitais). Exemplificando, se a
norma jurídica aplicável à autorização de novos alimentos
ou ingredientes alimentares é a mesma para 27 Estados
membros da União Europeia, resultava incompreensível que,
no mercado interno, uma empresa que produza tais bens e os
queira pôr em circulação tivesse que obter 27 autorizações
(ANTUNES, 2012, p. 152).
Há várias classificações na doutrina. Uma síntese delas distribui
os atos administrativos comunitários nas seguintes categorias, também
segundo Colaço Antunes:
há toda uma tipologia de ato administrativo transnacional.
Temos, assim, atos administrativos com eficácia transnacional
automática (por exemplo, as cartas de condução), atos que
são objeto de decisões comuns (por exemplo, autorização
de comercialização de novos produtos alimentares) e ainda
atos sujeitos a (mútuo) reconhecimento (por exemplo, o
reconhecimento, em regra, passivo, de títulos acadêmicos de
outros Estados através de um ato de equivalência). A situação é
diferente quando o título de legitimação é uma norma ou tratado
internacional, o que implica do Estado receptor um ato de
homologação do título acadêmico. (ANTUNES, 2012, p. 154).

3 DESAFIOS DO DIREITO COMUNITÁRIO ADMINISTRATIVO


EUROPEU E A DEMOCRACIA

Pressupondo que a União Europeia e seu direito administrativo


comunitário seja o paradigma para o direito administrativo e para as
sociedades políticas hegemônicas no século XXI, a repercussão para a
perspectiva democrática precisa de um delineamento. É preciso identificar
premissas, já que para esta análise ainda há de se somar muitos elementos
a definir (entre eles, a estabilidade da União Europeia e a capacidade do
modelo em tornar-se paradigma).
A premissa a), para a sobrevida democrática, é a necessidade de
que o novo direito administrativo não se desvencilhe do ideal do Estado

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 135
de Direito, a preservar, naturalmente, o princípio da legalidade. Se a União
Europeia significa um novo modelo de sociedade política hegemônica, se
não possui o fundamento do Estado Moderno, que é a condição soberana
do poder, até que ponto isto pode afetar a estrutura pública de gestão e o
seu funcionamento burocrático pautado na legalidade?
Para além de existirem todas as características próprias do
ordenamento geral, a democraticidade e politicidade têm
agora outra densidade. Os fins deixaram de ser limitados para
alcançarem um nível geral; o indivíduo é um verdadeiro sujeito
jurídico e um cidadão europeu, titular de direitos fundamentais,
atingindo a justa promoção de sujeito optimo jure do
ordenamento jurídico europeu (ANTUNES, 2012, p. 124).
Os processos de globalização e reformulação sistêmica neoliberal
confirmam um enfraquecimento do Estado Moderno, mas também um
enfraquecimento do Estado Social e, em certa medida, do Estado Liberal,
em sua face jurídica de arcabouço protetivo das liberdades individuais sob
o título de Estado de Direito.
Um Estado menor e, quando isso não for possível (o que é
comum), um Estado mais eficiente. A eficiência administrativa não é
sinônimo de neoliberalismo, mas se situa no mesmo patamar das respostas
para a crise atual do Estado e da administração. A concorrência global afeta
principalmente a gestão orçamentária do Estado, para além de um juízo
valorativo do modo de gestão, a eficiência (a opção ótima) é, naturalmente,
a primeira resposta. O que se vê, recorrentemente, para a teoria do Estado
e da administração pública em geral, é que o discurso da eficiência
administrativa, atual e voraz, se confronta com o princípio da legalidade.
Passamos de uma sociedade política a uma sociedade
organizacional, entendida essa última como uma sociedade
de gestão sistêmica e tecnocrática que serve de legitimação
e referência aos direitos da pessoa e, portanto, define uma
liberdade de maneira totalmente privada. Isso inclui o
pressuposto equivocado de que o livre mercado geraria
necessariamente sistemas democráticos, já que as pessoas
que têm livre opção econômica tenderiam a exigir também
a livre opção política das democracias multipartidárias
(DUPAS, 2003, p. 59).
Há, atualmente, um alargamento da ideia de legalidade, a
confundir-se com juridicidade (a legalidade inerente também nos
princípios e na conjugação das normas). Essa compreensão, atual, traz

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 136
também o risco (ou necessidade) de uma flexibilização do conceito para
uma compatibilização outros princípios em conflito.
A premissa b) é a preservação do sujeito cidadão, diante do perigo
das vicissitudes da sociedade pós-moderna (individualismo exacerbado
e a desagregação das sociedades política e civil). Que esta perspectiva
pós-moderna para a democracia não encontre na forma europeia
comunitária um terreno fértil.
O exercício da democracia é a luta permanente dos sujeitos
contra a lógica dominante dos sistemas. No entanto, o espaço
da liberdade está se reduzindo progressivamente a um ato de
consumo. A internacionalização das mídias e o progressivo
rompimento do delicado equilíbrio de fronteiras entre Estado,
sociedade civil e indivíduo fazem a prática dessa liberdade
dissociar-se cada vez mais da ideia de compromisso com sua
sociedade e seu meio cultural. A democracia passa, assim, a
ser ameaçada em duas frentes principais: o individualismo
extremo, que abandona a vida social aos aparelhos de
gestão e aos mecanismos de mercado; e a desagregação das
sociedades política e civil (DUPAS, 2003, p. 11).
Tradicionalmente (para o modelo de Estado em crise,
especialmente nas sociedades centrais europeias), o cidadão é um sujeito
de articulação política com o Estado, em crescente regulação e proteção de
direitos. Em certa medida, a sociedade comunitarizada em nível continental
significa uma diluição das instâncias (de regulação e de implementação
de políticas públicas). Mas também há o elemento cultural pós-moderno,
de um indivíduo que não se vê mais como um cidadão tradicional. Onde
a coletivização de sua voz pelas representações tradicionais não fazem
mais sentido, porque ele não se comunica mais assim, porque também
não corresponde às suas formas de se socializar (seu modelo de família,
de trabalho, de laser - a diluição das formas de família, a virtualização do
trabalho e do laser, etc.).
A premissa c) é que a proteção dos direitos humanos não adquira
uma rota de retrocesso. Esses momentos de transformação sistêmica são
perigosos no sentido de reverter, inverter ou abandonar processos. Não
necessariamente a União Europeia ou os processos que ocorrem sob o
título de pós-modernidade, coincidentes ou não com a comunidade, são
sinônimos de desregulação social, de desproteção do indivíduo, do cidadão
e do Estado de Direito, mas há um modo operativo dos sistemas sociais
novos. Na pós-modernidade, segundo Freitag, entre outros paradigmas,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 137
há a substituição do político como campo de debate sobre as normas
fundamentais pelo campo político como lugar de soluções para problemas
particulares; os direitos do homem universalistas e colocados em prática
na legislação geral são substituídos por direitos da pessoa, protegendo
particularismos privados e sancionados pela via de litígios judiciários; a
legalidade e a legitimidade é substituída pela operatividade e eficácia; a
expressividade coletiva e a instrumentalidade privada é substituída pela
expressividade privada e instrumentalização do coletivo; a justificação
a priori (questão de direito) é substituída pela avaliação pragmática a
posteriori (questão de fato); a hierarquia das normas é substituída adaptação
funcional (FREITAG, 2002).
Há um sentido de pragmatismo e eficiência com risco de
atropelamento das conquistas sociais emancipadoras do indivíduo. Por
outro lado, o indivíduo não é mais o mesmo, então há que se perguntar,
que direitos esse novo indivíduo precisa, para se proteger?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A União Europeia assumiu a vanguarda contemporânea dos


modelos políticos que se pretendem hegemônicos. É a comunidade
internacional mais evoluída. O estágio atual, de união econômica, resultou
num direito administrativo comunitário e dele, a incerteza quanto às
políticas públicas de proteção de direitos fundamentais, de efetividade do
Estado de Direito e de garantia do debate democrático. Por outro lado, a
Europa possui uma tradição progressista em matéria de direitos humanos
e de democracia. É a compatibilidade entre o direito comunitário e a
democracia que se apresenta como um desafio.
A democracia é a forma de governo que a modernidade elegeu, é
a idealização mais sedutora da política. Entretanto, só a conhecemos numa
perspectiva estatal, não há experiência de organização política democrática
que signifique uma forma de governo e que se aplique a um poder diferente
de uma sociedade política com um povo e sobre um determinado território.
Neste campo, há experiências democráticas, não há uma democracia. A
comunidade internacional ainda é embrionária no papel da cidadania em
seus fóruns de decisão.
O debate sobre a proteção dos direitos humanos e da democracia
deve ser contínuo e deve observar as transformações das instituições e
das relações de poder. A globalização é uma generalização de fenômenos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 138
econômicos e políticos ocorridos a partir das últimas décadas do século
passado e que ainda apresenta novidades e desafios. O vigor da formação
de blocos regionais como comunidades de Estados também pode ser
associada a essa época, pelo menos a sua caracterização atual não pode ser
dissociada dos efeitos da globalização econômica.
A administração pública, e a sua regulação, em termos de
União Europeia, ainda está por definir o seu papel no futuro próximo
(comunitária, globalizada, pós-moderna ou o que se apresente como
síntese paradigmática). Mas somente continuará a tradição democrática
europeia se cumprir o papel de preservar a) os fundamentos do Estado
de Direito, em especial, o princípio da legalidade; b) o protagonismo do
sujeito cidadão; c) a trajetória protetiva positiva dos direitos humanos.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Luís Filipe Colaço. A ciência Jurídica Administrativa.


Coimbra: Almedina, 2012.
DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o
privado. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
FREITAG, Michel. L`oubli de la société: pour une théorie critique de
la postmodernité. Rennes: Universitaires de Rennes, 2002.
OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da
vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003.
ROCHA, Manoel Ilson Cordeiro. Direito Internacional Público.
Resumido. Franca-SP: Ribeirão Ed., 2012.
ROCHA, Manoel Ilson Cordeiro. Curso de Ciência Política e Teoria
Geral do Estado. 2ª ed. Franca-SP: Ribeirão Ed., 2013.
SOUSA, Marcelo Rebelo de. MATOS, André Salgado de. Direito
Administrativo Geral. Tomo I. Introdução e princípios fundamentais.
Alfragide/Portugal: Dom Quixote, 2008.
UNIÃO EUROPEIA. https://europa.eu/european-union/index_pt. Acesso
em: 29 set. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 139
EIXO 2:

GLOBALIZAÇÃO, CIDADANIA
E POLÍTICAS PÚBLICAS
O CERCEAMENTO DO DIREITO À PRIVACIDADE
PELO PODER PÚBLICO: DISCUSSÕES ACERCA DOS
BLOQUEIOS NAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS

Agnaldo de Sousa Barbosa*


Louise Fernanda de Oliveira Dias**
Marcus Vinícius de Faria***

INTRODUÇÃO

Os esteios da globalização somados as inovações na área de


tecnologia da informação, comunicação e processamento tornaram os
antigos modelos teóricos de vigilância tanto da literatura distópica de
Orwell, quanto o filosófico-social de Foucault, incapazes de explicar a
manifestação da vigilância na contemporaneidade. Coube a Bauman, em sua
perspectiva de vigilância líquida, fundamentar e analisar o modelo atual de
reestruturação panóptica, ou como ele designa “pós-panóptica” sobre uma
sociedade pela qual os mecanismos de vigilância estão se manifestando
de forma ainda mais sutil e adentrando a esfera da privacidade. Assim,
as redes sociais virtuais como Facebook, WhatsApp apresentam-se como
mecanismos de vigilância líquida, na qual todos vigiam a intimidade
uns dos outros e vice-versa, além de serem eles próprios produtores e
expositores de sua privacidade. Em um primeiro momento é importante
o questionamento de que, diante dessa nova roupagem social, qual a
nova perspectiva que poderia ser apontada para o direito fundamental a
privacidade. E, nesse contexto se encontraram os bloqueios impostos ao
software Whatsapp e também de valores significativos das contas bancárias
do Facebook como forma de coagi-los a fornecer informações particulares
dos indivíduos, de sua privacidade à Justiça.
Assim, primeiramente foi desenvolvida uma análise crítica da
produção teórica acerca da estruturação da vigilância líquida e do direito
fundamental a privacidade, com a finalidade de buscar compreender suas
configurações e a relação entre eles. Após, foi promovida, ainda, a partir
*
Pesquisador doutor em Direito vinculado à Universidade de Araraquara, à Fundação
Educacional de Ituverava e à Faculdade de Direito de Franca.
**
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
Graduanda em Direito. Bolsista CNPq/PIBIC.
***
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
Graduando em Direito. Bolsista Fapesp.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 143
de pesquisa empírica nas mais diversas fontes como jornais e revistas
(Folha de S. Paulo, Estadão, O Globo, Veja, Época, Carta Capital e Isto
É), Com o objetivo de analisar a conjuntura social atual na perspectiva
da globalização e aprimoramento dos mecanismos de comunicação,
processamento e informação, a nova dinâmica da sociedade de vigilância
pela infusão dos mecanismos de comunicação telemática e a configuração
do direito a privacidade diante da atual estruturação social e investigar os
bloqueios judiciais impostos ao funcionamento do aplicativo WhatsApp e
os bloqueios de montantes nas contas bancárias do Facebook, a partir da
fundamentação jurídica dada a essas decisões e sua incidência no direito
fundamental do individuo a privacidade.

1 O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO PROBLEMA: A


PERSPECTIVA ATUAL DA VIGILÂNCIA NA SOCIEDADE

Os estudos que relacionam controle social à vigilância possuem


uma longa trajetória, contudo, diante do desenvolvimento das tecnologias
de informação, processamento e comunicação é preciso que se discorra
sobre uma nova percepção da questão da vigilância na sociedade
contemporânea e se os tradicionais modelos teóricos do grande irmão de
Orwell e do panóptico de Foucault continuam a refletir adequadamente a
conjuntura social. Antes da análise sobre os modelos teóricos de vigilância
é preciso ter em mente que “informação é poder” e com base nisso Víctor
Gabriel Rodríguez aponta:
[...] na denominada sociedade da informação, o fluxo
informativo permite, no mínimo, alterar as relações de poder
e o modo como ele é exercido. O exercício do comando
pela força física, salvo raras exceções, perdeu lugar para o
conhecimento e, principalmente, para o controle que se poder
levar a efeito sobre cada individuo através da capacidade de
obtenção de dados. (RODRÍGUEZ, 2008, p.21)
A literatura distópica da obra 1984 de George Orwell apresenta,
pela perspectiva da personagem Winston Smith, um monitoramento
contínuo sobre a sociedade exercido pelo Estado. A vigilância na obra
se apresenta tanto no monitoramento dos vizinhos delatores de Winston,
quanto nas teletelas - que são uma espécie de televisor com capacidade de
monitorar, gravar e espionar a população e, também, nos diversos cartazes
espalhados pelo território com os dizeres: “O Grande Irmão está de olho
em você” (ORWELL, 2005, p.12).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 144
Na análise filosófico-social, a proposta do panóptico para
vigilância foi primeiro pensada por Jeremy Bentham (1748 -1832); o
panóptico seria uma obra arquitetônica circular, com celas ao redor de
um pátio e uma torre central. A torre permite uma vigilância onipresente,
porque o espaço seria inteiramente observado, sem que o observador fosse
visto e, ainda, exercia um efetivo controle social, sem violência física,
porque ainda que não houvesse ninguém na torre central para exercer a
vigilância, os habitantes da cela não podem saber e sentem sobre si o peso
da observação. Nessa perspectiva, a mera possibilidade de vigilância já
é suficiente para exercer controle social. Foucault (2011) percebeu no
mecanismo de Bentham uma máquina de criar e sustentar o poder, uma
chave para a compreensão e configuração das sociedades modernas,
porque o panóptico é uma tecnologia politica, adaptada às escolas, fábricas,
hospitais e quartéis.
De acordo com Falk e Rodrigues (2015):

As técnicas de vigilância como forma de controle social,


todavia, estão longe de ser apenas uma preocupação teórica
de filósofos utopistas e romancistas distópicos, constituindo,
em verdade, um fator constantemente presente em nosso
cotidiano, ainda que de modo imperceptível. A obsessão
pela vigilância e pelo controle na sociedade contemporânea
aumentou sensivelmente nas últimas décadas com a
generalização de um sentimento de medo e insegurança
coletivos, sendo claramente perceptível em escala global
principalmente após os eventos que marcaram o fatídico 11
de setembro 2011. (FALK; RODRIGUES, 2015, p.4)
Eles enfatizam que após o atentado de 11 de setembro de 2011,
a demanda da sociedade por segurança aumentou, tanto no setor público
quanto no privado, e também no ambiente virtual. Nesses setores reina
uma noção onipresente de insegurança, que pode ser contra terroristas,
hackers, ou simplesmente contra o desconhecido. É importante ressaltar
que essa busca por uma “segurança” constante, de certa forma, tem atingido
e cerceado a privacidade, porque o olhar onipresente das câmeras estão em
todo e qualquer lugar, inclusive em nossos próprios bolsos com nossos
telefones celulares, prontas para serem utilizadas e registrar qualquer
fato, a qualquer momento.
A respeito da configuração atual da sociedade, Falk e Rodrigues
(2015) argumentam que os modelos teóricos de Orwell e Foucault não são

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 145
mais suficientes para refletir o atual problema de vigilância na sociedade
contemporânea, porque:
Como a tecnologia tornou-se parte da textura que compõe
a vida nas sociedades contemporâneas, o fenômeno da
vigilância atualmente se distingue das formas tradicionais
de controle social. A tecnologia possibilita a coleta,
armazenamento, processamento, classificação e transmissão
de informações numa dimensão nunca antes sequer
imaginada. Portanto, não se trata de uma “versão eletrônica
da vigilância”, mas de um fenômeno qualitativamente novo
que transcende a distância, a escuridão, o tempo e as barreiras
físicas. (FALK; RODRIGUES, 2015, p.5)
Nessa perspectiva surge o conceito baumaniano de vigilância líquida.
Para Zygmunt Baumann (2014, p.7) a vigilância é uma dimensão-chave
do mundo moderno, que ele também chama de modernidade líquida. A
vigilância “se insinua num estado líquido” e é um aspecto cada vez mais
presente nas notícias diárias, o que reflete sua crescente importância em
muitas esferas da vida. Assim, o modelo de Orwell seria falho porque não
prevê a vigilância feita pelas empresas através da coleta e armazenagem de
dados dos indivíduos por meio de seu acesso à rede, para o mapeamento
do mercado consumidor, bem como o de exercer uma influência sobre
esse mercado com propagandas diretamente posicionadas. Já o modelo
panóptico de Foucault é visto por Bauman (2014, p.12) como “apenas
mais um modelo de vigilância” e o modelo vigente hoje, que instaura uma
vigilância liquida deve ser entendido como “pós panóptico”. Assim:
A arquitetura das tecnologias eletrônicas pelas quais o poder
se afirma nas mutáveis e moveis organizações atuais torna
a arquitetura de paredes e janelas amplamente redundante
(não obstante firewalls e Windows). E ela permite formas
de controle que apresentam diferentes faces, que não tem
uma conexão óbvia com o aprisionamento e, além disso,
amiúde, compartilham as características de flexibilidade e
da diversão encontradas no entretenimento e no consumo.
(BAUMAN, 2014, p.13)
Dessa forma, como a própria vigilância apresenta-se em uma
perspectiva atualizada, líquida e com uma influência ainda mais sutil na
vida do individuo é preciso analisar a questão da privacidade em uma ótica

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 146
da sociedade contemporânea, estruturada com base na grande influência
das tecnologias de informação, processamento e comunicação.

2 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA PRIVADA

A Constituição Federal declara em seu art.5º, X como invioláveis


a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Desde
logo, é perceptível que a Constituição estabelece tratamento diferenciado
entre vida privada e intimidade, ao reconhecê-las como direitos
fundamentais distintos.
Pela hermenêutica fala-se na regra de que em um texto jurídico
inexistem palavras inúteis. Se levarmos essa regra em consideração, é
salutar que se estabeleça a diferenciação entre os conceitos de intimidade
e privacidade. Muito embora, aponta criticamente Manoel Gonçalves
Ferreira Filho (1990, p.35-36), ao comentar esse dispositivo em específico,
“na verdade, nesta Constituição, é praticamente impossível aplicar a regra
segundo a qual num texto jurídico inexistem palavras inúteis”, partidários
dessa ideia, como Luis Alberto David Araújo e Pedro Frederico Caldas,
utilizam privacidade e intimidade como sinônimas.
Partindo da primeira premissa, a de que o constituinte escolheu
por apontar vida privada e intimidade como dois conceitos distintos, Víctor
Gabriel Rodríguez (2008, p.25) em estudo sobre a intimidade, dá aporte
para a compreensão de ambos os direitos. Ele faz alusão à teoria das esferas
de Hubmann que posteriormente foi aprimorada por Henkel, ambos juristas
alemães na tentativa de compreender privacidade, intimidade e segredo.
Segundo a mencionada teoria das esferas, a proteção da personalidade
apresenta três círculos concêntricos e distintos. O primeiro círculo é
também o maior e recebe o nome de Sphärentheorie, ele diz respeito à vida
privada, ou privacidade; é o círculo que abrange os outros dois. O círculo
do meio é a Intimsphäre, e corresponde a intimidade. Por fim, o terceiro
e último círculo, o menor deles e mais fechado é o Geheimsphäre e diz
respeito aos segredos documentais ou informações secretas.
Víctor Gabriel Rodríguez entende que seja matéria de Direito
Penal apenas questões tocantes à intimidade e conclui que:
Parece-nos que a distinção entre vida privada (ou privacidade)
e intimidade é mais uma questão de riqueza de linguagem
que de outro tema, o que não significa, entretanto que não
exista diversidade semântica entre elas. Não é preciso uma
grande investigação linguística para que se perceba que

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 147
de fato pode haver fatos pertencentes à vida privada que
não sejam necessariamente íntimos. Portanto, entende-se
que a vida privada tem maior amplitude de significado. E
se existe significado mais amplo para alocução que para o
vocábulo, impossível concordar de todo com a posição de
que inexista relevância jurídica na distinção: no exercício da
atividade hermenêutica, por certos efeitos práticos surgem
da distinção. (RODRÍGUEZ, 2008, p.31)
José Afonso da Silva (2007, p.206 ) estabelece predileção pelo uso
do termo direito à privacidade, “num sentido genérico e amplo, de modo a
abarcar todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade,
que o texto constitucional em exame consagrou”. Essa mesma abordagem
é feita pelo Código Civil, cuja menção ao direito à privacidade é feita no
art.21, este dispositivo, por sua vez encontra-se no capítulo referente aos
direitos da personalidade e como tal possui atributos como inviolabilidade,
irrenunciabilidade, imprescritibilidade e instransmissibilidade.
A epistemologia jurídica estabelece há tempos o uso da dicotomia
público e privada, a ponto de dividir o próprio Direito em dois ramos,
o público e o privado. Entende-se que na esfera pública encontram-se
certos fatos ou ações que podem estar a conhecimento de todos, já a
esfera privada, em contraposição a anterior, trata de assuntos que devem
ser restritos ao conhecimento de um indivíduo ou de um grupo fechado e
desse conhecimento surge à compreensão de vida privada ou privacidade,
separada e distinta de vida pública. Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(2009, p.83) ao comentar o art.5º, X da Constituição Federal, entende que
a vida privada em oposição à vida pública, como aquela desenvolvida fora
dos olhos do público, é a vida no interior de um grupo reduzido e fechado,
o ambiente de convívio e compreende a intimidade pessoal.
José Afonso da Silva (2007, p.208) enfatiza que a tutela
constitucional da privacidade visa proteger a pessoa, de particularmente,
dois atentados que podem ser contra o segredo da vida privada ou contra a
liberdade da vida privada. Nessa perspectiva o segredo é percebido como
uma “expansão da personalidade” que pode ser atentada pela divulgação,
quando se leva a público algum evento relevante à vida pessoal e familiar e
também pela investigação, no tocante a pesquisas relativas à vida particular
e familiar da pessoa, este envolve a proteção contra a conservação de
documentos obtidos de forma ilícita.
Ainda, na proteção constitucional dada à privacidade podemos
ver a proibição da invasão de domicílio (art. 5º, XI da CF), à violação de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 148
correspondência, comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas (art.5º. XII, CF); a exceção a este último dispositivo é dada
nele próprio, quando enuncia: salvo, no último caso, por ordem judicial,
nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal1; bem como em caso de estado de
defesa (art.136, §1º, I, b e c) e estado de sítio (art.139, III). (grifos nossos)
No entendimento da privacidade como um atributo da
personalidade, Danilo Doneda (1) expõe:

A privacidade é componente essencial da formação da pessoa.


A sutil definição do que é exposto ou não sobre alguém, do
que se quer tornar público ou o que se quer esconder, ou a
quem se deseja revelar algo, mais do que meramente uma
preferência ou capricho, define propriamente o que é um
indivíduo - quais suas fronteiras com os demais, qual seu
grau de interação e comunicação com seus conhecidos, seu
familiares e todos os demais. (DONEDA, 2009, p.83)

Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1993, p.445) aponta que o direito


à privacidade, por ser um fundamento em si mesmo, permite a noção de
que: “a privacidade de um indivíduo só se limita pela privacidade de outro
individuo (como a liberdade de um só encontra limite na liberdade de outro)”.
Com as colocações feitas é possível destacar que a escolha do
trabalho pelo termo privacidade deve-se ao seu sentido mais amplo que
intimidade e além de sua abrangência, ainda é capaz de compreender o
próprio conceito de intimidade, mesmo sendo distinto dele. A privacidade é,
então, um direito fundamental e um atributo da personalidade humana, que
diz respeito à vida construída fora das vistas da comunidade, no máximo
dentro de um grupo pequeno e ainda define as fronteiras do individuo e seu
grau de interação e comunicação tanto com a comunidade, quanto com seu
pequeno grupo de convívio, cabendo a ele e somente a ele, definir o que
quer de seu interior que seja exposto na esfera privada e o que quer que
seja mantido na esfera pública.

1
BRASIL,CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
Acesso em: 26 Out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 149
2.1 A privacidade na Internet

Com a intensificação promovida ao fenômeno da globalização


pelo advento da Revolução Tecnológica, no final do século XX, a base
material da sociedade foi modificada pelo fato da revolução em seu cerne
de transformação, o desenvolvimento e aprimoramento das tecnologias
de informação, processamento e comunicação. Dentre as inovações nas
tecnologias de telecomunicações, duas merecem destaque especial, sendo
elas o computador e a Internet; essa última promove a integração entre
pessoas simultaneamente nos mais diversos pontos do globo, é, sendo
assim rompe com as fronteiras terrestres de forma virtual. O fato é que
com as novas tecnologias de informação, processamento e comunicação,
os dados comunicativos não são mais efêmeros como acontecia, por
exemplo, com a ligação telefônica, que se perdia com o tempo; as formas
atuais de comunicação são capazes de armazenar esses dados. Além
disso, o acesso a Internet deixa rastros e, assim, surgem os chamados
cookies, que são arquivos de texto cuja principal função é armazenar as
preferências dos usuários sobre um determinado website. Nesse sentido,
como salienta Sidney Guerra:
À medida que a pessoa se dispõe a “navegar” pela internet
sua privacidade fica extremamente comprometida. É
que com cada clique do mouse a pessoa vai deixando seu
caminho marcado pela rede e, consequentemente os seus
hábitos, seus vícios, suas necessidades e suas preferências.
(GUERRA, 2004, p.78)
Doneda (2008, p.30, II) afirma que a proteção de dados pessoais
é um direito fundamental, garantido pela Constituição em seu art. 5º, XII;
e, ainda entende que essa proteção é um direito derivado diretamente
da privacidade e, por isso, “a tutela da privacidade abrange a proteção
dos dados pessoais”. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990, p. 38) ao
comentar sobre esse dispositivo entende: "Sigilo de dados. O direito
anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem
dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui
são os dados informáticos (v. incs. XIV e LXXII)".
Juliana Nolasco Ferreira (2016) aponta para uma percepção tríade
da privacidade, porque esta se estabelece de empresas para com pessoas, do
Estado para as pessoas e de pessoas entre pessoas e são nessas três formas
de relação que esse Direito deve ser tutelado. Porque como aponta Guerra:

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 150
A informação passou a ocupar ponto central na sociedade
contemporânea, associando-se a ideia de poder, evidenciando
a relevância adquirida pela informática como ciência e
como processo. A atividade informática se desenvolve em
quatro momentos: na obtenção, no armazenamento, no
processamento e transmissão da informação; em todos pode-
se aviltar, com muita facilidade, o direito à privacidade da
pessoa humana. (Grifos nossos) (GUERRA, 2004, p.82)
A armazenagem das preferências dos usuários por meio de
cookies, promove o chamado efeito “filtro bolha” da Internet, pelo qual a
pessoa se vê presa e condicionada ao recebimento de informações sempre
semelhantes àquelas que mais buscava, com pouca possibilidade de saída
desse jogo de informações, isso porque as empresas e o Estado utilizam-
se desses dados para traçar um perfil dos indivíduos e atuar sobre eles,
promovendo uma relação entre os interesses do Estado e das empresas
com as preferências individuais. Dessa forma, ainda que o indivíduo
não se importe com o fato de terceiros terem acesso a suas informações
de privacidade, o problema se apresenta quando, por exemplo, não se é
possível imaginar quais inferências seriam feitas sobre o indivíduo, a partir
de rastro na Internet, pelas pessoas que tem acesso às suas predileções.

3 O MARCO CIVIL DA INTERNET E A TUTELA DA


PRIVACIDADE

A lei nº12.965 de 23 de abril de 2014, também chamada de Marco


Civil da Internet, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para
o uso da Internet no Brasil; é dividida em cinco capítulos: I- Disposições
Preliminares, II- Dos Direitos e Garantias dos Usuários, III- Da Provisão
de Conexão e de Aplicação da Internet, IV- Da Atuação do Poder Público
e V- Disposições Finais; e possui trinta e dois artigos.
Antes de analisarmos especificamente as disposições do Marco
Civil da Internet que de alguma forma atinjam o campo da privacidade,
seja para adentrar seu íntimo ou para protegê-la, é necessário que sejam
destacados os direitos do indivíduo na Internet:
Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da
cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua


proteção e indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 151
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações
pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas
armazenadas, salvo por ordem judicial; (...)
VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais,
inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações
de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e
informado ou nas hipóteses previstas em lei;
VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso,
armazenamento, tratamento e proteção de seus dados
pessoais, que somente poderão ser utilizados para
finalidades que: a) justifiquem sua coleta;
b) não sejam vedadas pela legislação; e
c) estejam especificadas nos contratos de prestação de
serviços ou em termos de uso de aplicações de internet;
IX -consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento
e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma
destacada das demais cláusulas contratuais;
X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido
a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao
término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses
de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei;
XI - publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos
provedores de conexão à internet e de aplicações de internet;
XII - acessibilidade, consideradas as características físico-
motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do
usuário, nos termos da lei; e
XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do
consumidor nas relações de consumo realizadas na internet.
Art. 8o A garantia do direito à privacidade e à liberdade
de expressão nas comunicações é condição para o pleno
exercício do direito de acesso à internet. (BRASIL, Lei
12.965, de 23 de abril de 2014)
A seção II do capítulo III trata especificamente sobre a proteção
dos registros, dos dados pessoas e das comunicações privadas, primeiro
entende que a guarda e disponibilização dos registros de comunicação2
e acesso3 às aplicações e também o conteúdo das comunicações privadas
2
Conforme a Lei 12.965/14, em seu art. 5º, VI são registros de conexão o conjunto
de informações relativas à data e hora de inicio e termino de uma conexão à internet, a
duração desta conexo e o endereço de IP (código atribuído a um terminal de rede que
permite sua identificação, conforme art.5º, III)
3
São registros de acesso a aplicações de Internet, conforme o art.5º, VIII da Lei

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 152
deve preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das partes
envolvidas. O provedor que for responsável por armazenar esses dados só
pode disponibilizá-los mediante ordem judicial, em respeito ao disposto
no art.7º da referida Lei.
Ainda nesta seção, o art.10, §3º entende que o respeito à intimidade,
à vida privada, honra e imagem, para a guarda e disponibilização dos dados
mencionados não impede o acesso aos dados cadastrais que informem a
qualificação pessoal, filiação e endereço por autoridades administrativas
que detenham competência legal para a sua requisição.
Conforme art.13, o administrador autônomo, aquela pessoa
física ou jurídica que administra blocos de IP deve manter os registros de
conexão pelo prazo de um ano, sobre sigilo e em ambiente controlado e de
segurança. Essa responsabilidade não pode ser transferida a terceiros e o
prazo pode ser aumentado, como medida cautelar, a pedido de autoridade
policial, administrativa ou do Ministério Público.
Depois de requerido a manutenção dos registros de conexão
por prazo superior a um ano, tem-se sessenta dias contados da data do
requerimento, para ingressar com pedido de autorização judicial de
acesso aos registros.
Os registros de acesso não podem ser guardados por provisões de
conexão (art.14), mas o provedor de aplicações de Internet deve mantê-los
sob o prazo de seis meses, em ambiente controlado e de segurança, sobre
sigilo. E conforme disposto:
Art. 15 § 1o Ordem judicial poderá obrigar, por tempo
certo, os provedores de aplicações de internet que não estão
sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso
a aplicações de internet, desde que se trate de registros
relativos a fatos específicos em período determinado.
§ 2o A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério
Público poderão requerer cautelarmente a qualquer
provedor de aplicações de internet que os registros de acesso
a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por
prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto
nos §§ 3o e 4o do art. 13.
§ 3o Em qualquer hipótese, a disponibilização ao
requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser

12.965/14 as informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação


(conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado
à Internet, art.5ºVI)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 153
precedida de autorização judicial, conforme disposto na
Seção IV deste Capítulo.
(BRASIL, Lei 12.965, de 23 de abril de 2014)
Verifica-se, dessa forma, que em regra, os dados do usuário em
seu acesso à Internet - registros de conexão, de acesso, comunicação
privada e afins devem ser guardados por prazo determinado, em ambiente
seguro e controlado, sempre sobre sigilo e respeitando os seus direitos,
como por exemplo - à intimidade, vida privada, honra e imagem. Como
exceção, esse prazo pode ser aumentado e autoridades podem ter acesso a
eles por ordem judicial.

4 OS BLOQUEIOS NO BRASIL

O primeiro bloqueio ao serviço prestado pelo WhatsApp foi


determinado pelo juiz Luiz Moura Correa, da Comarca de Teresina, Piauí,
em 11 de fevereiro de 2015. O segundo, pela juíza Sandra Regina Nostre
Marque, de São Bernardo do Campo, em 17 de dezembro de 2015. O terceiro,
pelo juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto. A quarta, pela juíza
Daniela Barbosa Assumção de Souza, da comarca de Duque de Caxias,
em 19 julho de 2016. Por fim, a Justiça Federal do Amazonas, em primeira
instância, bloqueou R$ 38.000.000,00 pela mesma razão (G1, 2016).
Nenhuma dessas sanções foi admitida pelas instâncias superiores
quando do julgamento de recursos. O então presidente do STF (Supremo
Tribunal Federal), Ricardo Lewandowisk, em 19 de julho de 2016, a pedido
do PPS (Partido Popular Socialista), suspendeu liminarmente a decisão da
juíza de Duque de Caxias (MORAIS, 2016).

5 OPINIÃO VEICULADA NA MÍDIA

5.1 Breve nota sobre o método

A coleta para angariar opiniões veiculadas na mídia sobre o


tema contou com as matérias contidas nos sítios eletrônicos da Folha de
São Paulo, do Estado de São Paulo e do Consultor Jurídico. Para acessar
apenas artigos de opinião sobre o tema, houve a opção pela utilização de
termos específicos. Assim, não foram contabilizadas matérias cujo intento
é apenas informar sobre os bloqueios judiciais ao WhatsApp.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 154
A pesquisa na Folha de São Paulo, no portal do acervo, iniciou-se
com os termos bloqueio WhatsApp em páginas que também continham
ao menos um dos termos opinião ou “editoriais”. Nessas condições,
foram localizadas dezoito páginas, das quais, duas foram excluídas por
pertencerem ao caderno “Mercado” e outras duas ao caderno “Cotidiano”.
Não obstante, ainda foram excluídas duas ocorrências por indicarem
apenas as chamadas da primeira página. Das restantes, um artigo de
opinião da área “Tendências e debates” também foi excluído, pois somente
comparava a preocupação com o Poder Judiciário no caso dos bloqueios
com os da jucialização da saúde. Assim, neste jornal, resultou-se no total
de onze matérias acessadas para análise, dos quais sete são posições dos
leitores expostas na área “Painel do Leitor”.
No acervo do jornal o Estado de São Paulo a pesquisa foi realiza nos
mesmos termos que na Folha. Desse modo, foram listadas seis ocorrências,
que, na verdade, totalizam apenas três, já que o portal as duplicou pelo
aparecimento plural de expressões como “WhatsApp” ou “Bloqueio”.
Das três, uma foi excluída por não apresentar nenhum dos termos
buscados. Então, para a devida análise, restaram duas ocorrências, sendo
que uma delas pertence à categoria “Fórum do Leitor”.
Por fim, no portal do Consultor Jurídico, com o mesmo intento,
cingiu-se a busca às páginas de artigos e de colunas com as mesmas
expressões. Dessarte, foram indicadas quatorze ocorrências, das quais
sete foram proscritas por limitarem-se a expor os destaques da semana e a
retrospectiva do ano de 2015.
Das restantes, duas foram também excluídas por não abordarem
o tema, mas somente compará-lo a outras situações e uma por ser
“originalmente publicada na Folha de São Paulo”, de sorte que já foi
computada. Nesse ínterim, foram examinadas quatro ocorrências.

5.2 Opinião de leitores

Como as críticas dos leitores publicadas no “Painel do Leitor”,


da Folha de São Paulo, ou no “Fórum do Leitor”, do Estado de São Paulo,
não denotam qualquer preocupação argumentativa, mas sim somente a de
informar ser o responsável contra ou a favor, optou-se por diferenciá-las
apenas nestes itens, “Contra” ou “a favor” dos bloqueios. Assim, do total
de nove ocorrências, oito na Folha de São Paulo e uma no Estado de São
Paulo, apenas uma foi favorável.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 155
O portal do Consultor jurídico não contém área para
expressão de leitores.

5.3 Opinião de articulistas e colunistas

Como apresentado, com o método empregado, nove publicações


foram analisadas. Dessas, uma, “O desafio do WhasApp ao Leviatã” de
autoria de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Juliano Maranhão e Marcelo
Finger (2016), não se propôs a apresentar uma opinião contra ou a favor,
mas apenas a expressar a necessidade de se legislar sobre a atividade
criptográfica empregada pelo aplicativo. Por esse motivo, foi excluída
da apresentação entre contrários ou favoráveis aos bloqueios, todavia,
aproveitada para a análise argumentativa.
Dessarte, das oito restantes, apenas uma se posicionou a favor
da medida judicial, de autoria de “N. de R.”, publicada no Estado de São
Paulo (R., 2016). Nestes textos, foi possível identificar nove argumentos,
delineados nas próximas linhas:

5.3.1 Argumentação contra os bloqueios

5.3.1.1 Proporcionalidade

Um dos argumentos mais utilizados pelos contrários aos


bloqueios judiciais impostos ao WhatsApp foi pautado no Princípio
da Proporcionalidade. Para os autores que aplicaram esse argumento
(SCHWARTSMAN, 2015; COSTA, 2016; FOLHA, 2016; LOPES
JR, COLLI, 2016), a tentativa de coerção aplicada pela Justiça pune
demasiadamente os milhões de usuários do aplicativo.

5.3.1.2 Incapacidade do WhatsApp fornecer os dados requisitados

Por esta perspectiva (FOLHA, 2016; LOPES JR, COLLI, 2016;


FERRAZ JÚNIOR; MARANHÃO; FINGER, 2016; SCHWARTSMAN,
2015), a empresa que o controla, o Facebook, não poderia fornecer as
informações requeridas nas decisões. Isso porque a chave criptográfica
pertence ao aparelho celular do receptor das mensagens, de sorte que mesmo
a empresa não tem acesso a elas. Assim, forneceria uma sequência de códigos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 156
sem relevância probante. Este argumento, ainda que de modo isento, foi
utilizado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, razão pela qual alocado neste item.

5.3.1.3 Princípio da razoabilidade

Segundo Freide (2016) e Lopes Jr, Colli (2016), os bloqueios


impostos extrapolam limites impostos pelos interesses coletivos, de sorte
que infringem o princípio da razoabilidade.

5.3.1.4 Fora da jurisdição brasileira

Esta fundamentação foi invocada por dois articulistas (COSTA,


2016; SCHWARTSMAN, 2016) e declara que, como os dados do aplicativo
estão armazenados fora do Brasil, os pedidos feitos pelo Ministério Público,
e aceitos pelo Judiciário, não estão sujeitos à Jurisdição brasileira.

5.3.1.5 Ausência de previsão legal

Também empregada duas vezes (COSTA,2016; FOLHA,2016),


afirma que, mesmo pelo Marco Civil da Internet, o aplicativo não poderia
ser bloqueado. Nas palavras de Marcos Costa:
Também não há, em nosso ordenamento, previsão legal para
que tais sanções desproporcionais sejam aplicadas. O Marco
Civil da Internet não o autoriza. As sanções de "suspensão
temporária das atividades" ou de "proibição de exercício
das atividades", previstas nos incisos III e IV do seu artigo
12, fazem referência expressa e inequívoca ao artigo 11. Ou
seja, a sanção ali prevista é a de suspensão ou proibição das
atividades de "coleta, armazenamento, guarda e tratamento"
de dados, quando irregularmente praticadas, e não suspensão
ou proibição completa do serviço prestado por essas
empresas, atingindo usuários legítimos das ferramentas
online por elas disponibilizadas. (COSTA, 2016).

5.3.1.6 Princípio da Individualização da pena

Apresentado apenas uma vez (SCHWARTSMAN,2015), pelo


que declara o jornalista e filósofo, como o bloqueio nada mais é que uma
pena imposta ao Facebook, o princípio da individualização da pena é

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 157
válido. Assim, não seria possível impingir o malogro aos usuários por
uma conduta da empresa.

5.3.1.7 Limitação ao poder geral de cautela

Para a articulista Bárbara Lupetti (2016), o Poder Geral de Cautela


concede ao juiz a possibilidade de utilizar os meios que considera mais
necessários para a efetividade ao processo. Contudo, para ela, esse Poder
não se aplica ao processo penal, de modo que injustificado nos processos
que resultaram no bloqueio do aplicativo.

5.3.2 Argumentação a favor dos bloqueios

O único artigo a favor dos bloqueios judiciais impostos ao


aplicativo apresenta três argumentos:

5.3.2.1 Jurisdição brasileira

Segundo o autor, tratado apenas pelas iniciais N. de R., a empresa


deve se submeter à jurisdição nacional, posto que presta serviços neste país.

5.3.2.2 Princípio da Igualdade

Por esta fundamentação, o fato do aplicativo ter milhões de


usuários não pode ser considerado pela Justiça, sendo tratada como
qualquer outra, ainda que de pequeno porte.

5.3.2.3 Princípio da ordem Jurídica

Este argumento é usado pelo autor pela perspectiva que uma decisão
judicial expressa a vontade da polução, retratada na legislação nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que se extrai do art.5º, IV, V, IX, XII e XIV combinados


com os arts 220 a 224 da CF. As formas de comunicação regem-se pelos
seguintes princípios básicos: (a) observado o disposto na Constituição, não
sofrerão qualquer restrição qualquer que seja o processo ou veículo porque
se exprimam; (b) nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 158
embaraço à plena liberdade de informação jornalística. A liberdade de
comunicação envolve também a escolha dos meios de exteriorização do
pensamento e da difusão de informações.
Ao contrário do que, por esses motivos, indicavam as hipóteses de
trabalho, as opiniões veiculadas na mídia não demonstram preocupação com
possíveis violações ao direito de intimide e de privacidade. Há, contudo, uma
inquietude quanto à capacidade da empresa prestar total sigilo às mensagens
enviados pelo aplicativo através da criptografia. Para Tércio Sampaio Ferraz
Júnior, Juliano Maranho e Marcelo Finger (2016), por exemplo, existe a
necessidade de debate sobre essa capacidade pelo Legislativo.
Destarte, as fontes perquiridas demonstram a assimilação da
denominada “vigilância líquida”. Os argumentos de articulistas e de
colunistas contrários à medida judicial tem como escopo a proporcionalidade
ou a razoabilidade da pena imposta aos usuários do WhatsApp e, portanto,
não contra a tentativa do Estado em acessar comunicações privadas. Não
há matérias benfazejas à proteção dada à intimidade e à privacidade pelo
Facebook, mas, tão somente, sobre a possibilidade de aplicação ou não
da pena de suspensão do serviço e a vicissitudes que seus clientes por ela
encontram, de tal sorte que o sistema de proteção parece, pelo que se infere,
dirimir o direito à comunicação livre.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Paula Leite. Tribunais devem aceitar e-mails e mensagens


de celular como provas processuais. Consultor Jurídico. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-06/paula-leite-barreto-tribunais-
aceitar-provaseletronicas. Acesso em: 29 out. 2016.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ed.2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Tradução de Roneidi
Venâncio Majer. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. v.1.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 159
COLLI, Maciel; LOPES JÚNIOR, Aury. Bloqueio do WhatsApp
não resolve nenhum problema da investigação. Consultor Jurídico.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-22/limite-penal-
bloqueio-whatsapp-nao-resolve-nenhumproblema-investigacao.
Acesso em: 29 out. 2016.
COSTA, Marcos da. Bloqueio do aplicativo WhatsApp pune a empresa e
a sociedade brasileira. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.
conjur.com.br/2016-mai-03/marcos-costa-bloqueio-aplicativo-whatsapp-
punesociedade. Acesso em: 29 out. 2016.
DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. A tutela da privacidade no
Código Civil de 2002. Anima: Revista Eletrônica do Curso de
Direito da Opet, v. 1, p. 89-100, 2009. Disponível em: http://www.
anima-opet.com.br/pdf/anima1/artigo_Danilo_Doneda_a_tutela.pdf.
Acesso em: 25 nov. 2016.
DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. Iguais mas separados: o habeas
data no ordenamento brasileiro e a proteção de dados pessoais. In:
Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais. n. 09, 2008.
DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto; VIOLA, Mario. Risco e
Informação Pessoas: o Princípio da Finalidade e a Proteção de dados
no Ordenamento Brasileiro. In: Revista Brasileira de Risco e Seguro.
Rio de Janeiro, v.5, n.10, p.85-102. Out. 2009/mar.2010. Disponível em:
http://www.rbrs.com.br/arquivos/RBRS10-4%20Danilo%20Doneda.pdf.
Acesso em: 26 out. 2016.
ESTRADA, Roberto Duque. Certeza ou insegurança, esquecimento ou
lembrança? Eis a questão do RERCT. Consultor Jurídico. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-27/consultor-tributario-
esquecimento-ou-lembranca-eisquestao-rerct. Acesso em: 29 out. 2016.
FALK, Matheus. RODRIGUES, Renê Chiquetti. O problema da
vigilância na sociedade da informação tecnológica: considerações
introdutórias. In: V Congresso Iberoamericano de Investigadores
e Docentes de Direito e Informática – Rede CIIDDI, 2015, Santa
Maria, RS. Anais (on-line). Disponível em: http://coral.ufsm.br/
congressodireito/anais/2015/6-15.pdf. Acesso em: 26 out. 2016.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à
privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: Revista
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.88, 1993.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67231.
Acesso em: 26 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 160
FERREIRA, Juliana Nolasco. Acessando a Rede: um olhar sobre a
formação da agenda para a regulação da internet no Brasil. Dissertação.
Escola de Administração de Empresas de São Paulo, 2014.
FERREIRA, Juliana Nolasco. DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto.
Privacidade e Vigilância: desafios para a internet brasileira. Auditório
do IBCCRIM São Paulo, IBCCRIM, 2016. (Comunicação oral).
FERREIRA, Paulo. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São Paulo. São
Paulo, n. 31. 889, p. A3, 24 de julho de 2016.
FERREIRA, Rubens da Silva. A sociedade da informação como
sociedade de disciplina, vigilância e controle. In: Información, cultura y
sociedade/31 /9diciembre 2014. p.109-119. Disponível em: http://www.
scielo.org.ar/pdf/ics/n31/n31a07.pdf. Acesso em: 26 out. 2016.
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Comentários à Constituição
Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990. v.1.
FINGER, Marcelo; FERRAZ JR. Tércio Sampaio; MARANHÃO,
Juliano. O desafio do WhatsApp ao Leviatã. Folha de São Paulo. São
Paulo, n. 31.918, p. A3, 16 de ago. 2016.
FOLHA DE S. PAULO. Justiça virtual. Folha de São Paulo. São Paulo,
n. 31. 808, p. A2, 4 de maio de 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de
Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis: Vozes, 2011
FRIEDE, Reis. Bloqueio do WhatsApp mostra necessidade de se
repensar atuação do Judiciário. Consulto Jurídico. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2016-mai-14/reis-friede-bloqueio-whatsapp-
gera-reflexaojudiciario. Acesso em: 29 out. 2016.
G1. WhastsApp bloqueado: relembre todos os casos de suspenção do
app. G1, 19 de julho de 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/
tecnologia/noticia/2016/07/whatsapp-bloqueadorelembre-todos-os-casos-
de-suspensao-do-app.html. Acesso em 29 out. 2016.
GORZ, A. O Imaterial: Conhecimento, Valor e Capital. São
Paulo: Annablume, 2005.
GUEDES, Márcio. WhatsApp fora do ar. O Estado de São Paulo. São
Paulo, n. 44.836, p A2, 20 de julho de 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 161
GUERRA, Sidney Cesar Silva. O Direito à Privacidade na Internet:
uma discussão da esfera privada no mundo globalizado. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2004.
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1995.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São
Paulo: Editora 34, 1999.
LUCHETE, Felipe. Bloqueio Judicial do WhatsApp em todo país foi
destaque da semana. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.
conjur.com.br/2015-dez-19/bloqueio-judicial-aplicativo-whatsapp-foi-
destaquesemana. Acesso em: 29 out. 2016.
LUCHETE, Felipe. Decisão de afastar Eduardo Cunha foi destaque.
Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-
mai-07/ranking-noticiasdecisao-afastar-cunha-camara-deputados-foi-
destaque. Acesso em: 29 out. 2016.
LUCHETE, Felipe. Regra que limitava defesa de presídios federais foi
destaque. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.
br/2016-jul-30/ranking-noticiasregra-limitava-defesa-presidiosfederais-
foi-destaque. Acesso em: 29 out. 2016.
LUCHETE, Felipe. Terceiro bloqueio judicial ao aplicativo WhatsApp
foi destaque na semana. Consultor Jurídico. Disponível em: http://
www.conjur.com.br/2016-jul-23/ranking-noticias-terceiro-bloqueio-
aplicativowhatsapp-foi-destaque-semana. Acesso em: 29 out. 2016.
LUPETTI, Bárbara. Bloqueio do WhatsApp mostra que Judiciário não
é tão democrático quanto pensam. Consultor Jurídico. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2016-mai-08/barbara-lupetti-bloqueio-
whatsapp-mostraarbitrariedade-processo. Acesso em: 29 out. 2016.
MORAIS, Camila. STF determina desbloqueio do WhatsApp e derruba
decisão de juíza. El Pais, 19 de julho de 2016. Disponível em: http://
brasil.elpais.com/brasil/2016/07/19/politica/1468941131_714293.html.
Acesso em: 29 out. 2016.
MORATO, Moisés Moricochi. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São
Paulo. São Paulo, n. 31. 31.670, p. A3, 18 dez. 2015.
O ESTADO DE SÃO PAULO. A verdadeira face do MPL. O Estado de
São Paulo. São Paulo, n 44.651, p A2, 17 jan. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 162
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Ed. Companhia
Editora Nacional, 2005.
PEDRO, Valentin. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São Paulo. São
Paulo, n. 31. 886, p. A3, 21 jul. 2016.
PEDROSA, Naor. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São Paulo. São
Paulo, n. 31. 31.807, p. A3, 3 maio 2016.
PEREIRA, Túlio. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São Paulo. São
Paulo, n. 31. 31.807, p. A3, 3 maio 2016.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político
na pós modernidade. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2013.
SANTOS, Renata; UIP, David. WhatsApp, Justiça e Saúde. Folha de São
Paulo. São Paulo, n. 31.932, p. A3, 5 set. 2016.
SCHWARTSMAN, Hélio. Eterno bloqueio do mesmo. Folha de São
Paulo, n 31. 885, p. A2, 20 jul. 2016.
SCHWARTSMAN, Hélio. O affaire WhatsApp. Folha de São Paulo.
São Paulo, n. 31. 31.670, p. A3, 18 dez. 2015.
SILVA, Eugênio de Araújo. Bloqueio do WhatsApp. Folha de São
Paulo. São Paulo, n. 31. 809, p. A3, 5 maio 2016.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29.
ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
STRECK, Lênio Luiz. O ano foi de ativismo e não terminará tão cedo.
Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-
dez-22/retrospectiva-2015-ano-foi-ativismo-nao-terminaratao-cedo.
Acesso em: 29 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 163
DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA TEÓRICA
DE MARTYA SEN: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE
A DEFESA DE UMA POLÍTICA DE AUSTERIDADE
ECONÔMICA NO ATUAL CENÁRIO POLÍTICO-
ECONÔMICO-SOCIAL BRASILEIRO

Aluísio de Freitas Miele*


Marcelo Bidoia dos Santos**
Luiz Gustavo Vicente Penna***

INTRODUÇÃO

As perspectivas dos direitos sociais no Brasil é tema tocante aos


direitos humanos e candente no atual cenário político, econômico e social.
Este cenário traz uma série de debates e interpretações, muitas vezes
deslocados de qualquer embasamento teórico e prático, bem como afastado
de qualquer estudo sobre o tema. Isto porque a análise parte apenas de
uma questão, há tempos tida como equivocada, de que desenvolvimento
significa crescimento econômico, bem como que a implementação de uma
política de redução dos gastos públicos que enseja aumento do PIB e,
consequentemente, crescimento econômico.
Esta questão está intimamente ligada à defesa de uma política
econômica de austeridade e, em tempos recentíssimos, em termos de
Brasil, à Proposta de Emenda à Constituição 241 que traz um limite

*
Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
-UNESP. Aluno Especial do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Coordenador da Comissão de Cultura
da 80ª Subseção da OAB/SP. Advogado.
**
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF). Mestrando em
Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FDRP-USP). Bolsista do Programa Erasmus + para período sanduíche na Università
degli Studi di Trento - Itália. Advogado.
***
Graduação em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas
Unidas. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho - UNESP. Professor Substituto de Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia
do Departamento de Direito Público da UNESP (concurso válido até 2014). Professor
de Direito Penal e legislação Penal da Faculdade de Direito São Luis, de Jaboticabal.
Professor convidado colaborador da Faculdade de Direito de Franca (FDF). É membro do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Atua no Grupo de Pesquisa (UNESP): Núcleo
de Estudos da Tutela Penal dos Direitos Humanos (linha de pesquisa: Formas de Violação
dos Direitos Humanos com Repercussão Jurídico penal). Advogado.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 165
para as despesas públicas, com a finalidade de diminuir a trajetória de
crescimento de gastos públicos.
A partir da Teoria de Amartya Sen (desenvolvimento como
liberdade), o presente trabalho busca apontar os desafios e as novas
perspectivas dos direitos humanos, a necessidade de superação de um
enfoque jurídico estrita e unicamente formal, a importância de políticas
públicas na promoção de oportunidades e a superação desta associação do
desenvolvimento exclusivamente com a questão do crescimento econômico.
Em um segundo momento o objetivo é traçar uma breve crítica
sobre a defesa de uma política de austeridade econômica no atual cenário
político-econômico-social brasileiro e uma concisa crítica a PEC 241.
Para enfrentar o tema, a compreensão do fenômeno jurídico em
sua globalidade, mormente perante a globalização, exige a superação de
um paradigma que traz no seu bojo uma concepção formalista do direito,
de auto suficiência (validade formal) e completude (mecanismos de ajustes
puramente internos), separada das relações sociais, políticas e econômicas
e transdisciplinares (economia e sociologia) (FLORES, p. 90-91)1. Esse
paradigma diz respeito à autorregulação do mercado sem a participação do
Estado na Economia e o corte de gastos em políticas públicas. É preciso
estudar e discutir até que ponto a funcionalidade e eficácia dos direitos
humanos é atingida a partir de um direito, de uma política pública, de
concepção exclusivamente formal e a partir de uma política governamental
exclusivamente “preocupada” com a economia, concebida e voltada
exclusivamente para o corte de gastos públicos, para frear a trajetória de
crescimento destes gatos.

1 DIREITO E DESENVOLVIMENTO

1.1. Desenvolvimento como liberdade: a teoria de Amartya Sen

A tentativa de reduzir a teoria do desenvolvimento como liberdade


de Amartya Sen em poucas linhas é ao mesmo tempo uma tarefa árdua
e tranquila. Árdua pela complexidade do tema envolvido e dos vários
1
Joaquín Herrera Flores chamou a concepção exclusivamente formalista do direito
de utopia e realizou uma crítica lúcida, afirmando que esta leitura do direito é “não
ideológica” e “não política” e desde su versión fuerte como débil, esta lectura del derecho
“selecciona”, jerarquiza y separa los diferentes componentes que constituyen el fenómeno
jurídico en su globalidad y complejidad, invisibilizando o difuminando, como veremos,
las posiciones ideológicas y políticas del mismo sustentadas en la visión patriarcal, vale
decir, sexista de la realidad social.”. (FLORES, p. 90-91).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 166
enfoques que perante este pode ser delineado. Tranquila porque a teoria de
Sen nos brinda com um método e uma clareza ímpar sobre o tema.
Para este autor, o desenvolvimento de uma sociedade deve ser
avaliado de acordo com as liberdades substantivas2 que os indivíduos de uma
determinada sociedade possuem. As liberdades e sua expansão são vistas,
portanto, como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento.
(SEN, 2010, p. 25-26)
Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva
da liberdade seja colocada no centro do palco em conjunto com o
indivíduo. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente
envolvidas dada a oportunidade na conformação de seu próprio destino,
e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos
programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm papéis amplos
no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São papéis
de sustentação, e não de entrega sob encomenda. A perspectiva de que a
liberdade é central em relação aos fins e aos meios do desenvolvimento
merece toda a nossa atenção. (SEN, 2010, p. 77)
Os papéis instrumentais da liberdade encampam as facilidades
econômicas (oportunidades na utilização de recursos econômicos com a
finalidade de consumo, produção ou troca), oportunidades sociais (na forma
de serviços de educação, meio ambiente saúde, etc.), segurança protetora
(impede que a população seja reduzida à miséria, à fome e à morte),
liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão, participação,
diálogo político e eleições livres) e garantias de transparência (inibição da
corrupção, das transações ilícitas e das irresponsabilidades financeiras).
Esses direitos, essas liberdades são chamadas por Sen de “liberdades
instrumentais” que se inter-relacionam e tendem a contribuir para a
capacidade geral do indivíduo. Essas liberdades são obtidas através de
políticas públicas eficazes apontadas para a melhoria de vida do indivíduo
e da população como um todo, atingindo os direitos humanos. (SEN, 2010,
p. 58-60) Portanto, dá-se importância para as políticas públicas orientadas
e vocacionadas a melhoria da condição de agente de cada indivíduo.
Nesse passo, a privação da liberdade está vinculada com a
carência de serviços públicos e assistência social, bem como com a
negação de liberdades políticas e civis, que restringem a participação dos
indivíduos na vida política, social e econômica de uma dada sociedade.
2
Como liberdades substantivas compreendidas por Sen pode ser citado a capacidade de
evitar a pobreza máxima, a fome, a desnutrição e as liberdades associadas a alfabetização
e participação na vida política de determinada sociedade.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 167
(SEN, 2010, p. 17). Tão logo, a privação da liberdade está diretamente
relacionada com a oportunidade que um indivíduo tem de se vestir bem,
de ter acesso à água ou saneamento básico, a liberdade de saciar a fome,
a uma educação adequada, moradia apropriada, participação política, etc.
Em outras palavras, há de existir oportunidades econômicas, liberdades
políticas, poderes sociais e condições habilitadoras3 para cada indivíduo.
As disposições institucionais que proporcionam estas oportunidades são
ainda influenciadas pelos exercícios das liberdades das pessoas, mediante a
liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas
que impelem o progresso dessas oportunidades”. (SEN, 2010, p. 18).
Há, de fato, uma análise integrada das atividades econômicas,
sociais e políticas, que envolve uma multiplicidade de instituições,
organizações e muitas condições de agentes relacionados de forma
interativa. A qualidade das instituições de cada sociedade influenciam o
desenvolvimento, sendo as instituições as regras do jogo em uma dada
sociedade. Elas representam os limites estabelecidos pelos indivíduos para
disciplinar as relações e interações humanas, principalmente nas relações
políticas, sociais e econômicas (NORTH, p. 3-5)4; de forma a reduzir a
incerteza na medida em que definem e limitam o conjunto de escolhas dos
indivíduos. (FERREIRA, p. 65) Assim, são as disposições institucionais
apropriadas, que levará a tipos distintos de liberdades reais, a partir da
expansão das capacidades (oportunidades) dos indivíduos.
3
Por condições habilitadoras SEN entende acesso a boa saúde, educação básica e
incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas.
4
Para North as instituições são as regras do jogo em uma dada sociedade, representam
os limites estabelecidos pelos indivíduos para disciplinar as relações e interações
humanas. As causas do crescimento econômico de uma sociedade, segundo o autor, estão
relacionadas com a sua ordem institucional e a forma como implementa arranjos sociais
que propiciem retornos para os indivíduos e para a sociedade. “Institutions are the rules
of the game in a society ore, more formally, are the humanly devised constraints that
shape human interaction. [ ] Institutions reduce uncertainty by providing a structure to
everyday life. They are a guide to human interaction, so that when we wish to greet friends
on the street, drive an automobile, buy oranges, borrow money, form a business, bury or
dead, or whatever, we know (or can learn easily) how to pergorm these tasks. We would
readily observe that institutions differ if we were to try to make the same transactions
in a different country [ ]. (NORTH, p. 3-4). Para North há dois tipos de instituições, as
formais e as informais. As formais são as constituições, regras, regulamentos, direitos de
propriedade, leis ordinárias, dentre outros. Já as instituições informais são aquelas que
abarcam normas de comportamento, convenções, costumes, crenças, valores, códigos de
conduta, etc. Estas instituições limitam a ação dos indivíduos e de entes sociais como
empresas, funcionários públicos, sindicatos, consumidores, igrejas, escolas partidos
políticos, juízes ONGs. Trata-se de definir instituições como “restrições”/limites. Para
uma compreensão da obra e do pensamento de Douglass North ver SALAMA, Bruno
Meyerhof. (SALAMA, 2011).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 168
A compreensão da inter-relação das liberdades instrumentais5 é
de suma importância, pois quer dizer que o acesso a uma delas viabiliza a
promoção de outra, reforçando umas às outras. Por exemplo, a participação
do indivíduo na política, o diálogo público, permiti que ele discuta políticas
públicas, em um claro acesso à liberdade política.
A importância da condição de agente do indivíduo na teoria de
SEN é visível e se torna ponto fulcral para o presente artigo, mormente na
consecução da cidadania. O agente é o indivíduo que pode agir e ocasionar
mudanças e cujas realizações podem ser julgadas conforme seus próprios
valores e objetivos. Assim, ter o indivíduo como agente é tê-lo como
membro do público e como participante efetivo em ações políticas, sociais
e econômicas. Ao proporcionar as oportunidades sociais adequadas, os
indivíduos podem moldar o seu próprio destino, fazer suas escolhas e
beneficiar uns aos outros. (SEN, 2010, p. 26)6.
Nesse sentido, a teoria de Amartya Sen se aproxima de Adam
Smith, tendo inclusive admitido que muitas de suas ideias estão embasadas
na filosofia de Smith. (SEN, 2010, p; 323). Talvez a principal influência se
dá quando Sen admite a importância da participação aberta dos indivíduos
na sociedade, o argumento smithiano não apenas admite, mas exige, a
consideração das opiniões dos outros, que estão distantes e próximos.
Esse procedimento para alcançar a imparcialidade é, nesse sentido, aberto
em vez de fechado e limitado às perspectivas e aos entendimentos da
comunidade local”. (SEN, 2012, p. 17).

5
Amartya Sem afirma que “As verdadeiras questões que têm de ser abordadas
residem em outra parte, e envolvem observar amplas inter-relações entre as liberdades
políticas e a compreensão e satisfação de necessidades econômicas. As relações não
são apenas instrumentais (as liberdades políticas podem ter o papel fundamental de
fornecer incentivos e informações na solução de necessidades econômicas acentuadas),
mas também construtivas. Nossa conceituação de necessidades econômicas depende
crucialmente de discussões e debates públicos abertos, cuja garantia requer que se faça
questão da liberdade política e de direitos civis básicos.” (SEN, 2010, p. 195).
6
SEN, op. cit., p. 26. Esta concepção de indivíduo como agente traz uma aproximação
com Kant e a máxima do homem como fim, o sujeito social e participativo, em que
as escolhas estejam compreendidas como lei universal (reflexão moral). “[...] realmente
as verdadeiras questões que têm de ser abordadas residem em outra parte, e envolvem
observar amplas inter-relações entre as liberdades políticas e a compreensão e satisfação
de necessidades econômicas. As relações não são apenas instrumentais (as liberdades
políticas podem ter o papel fundamental de fornecer incentivos e informações na solução
de necessidades econômicas acentuadas), mas também construtivas. Nossa conceituação
de necessidades econômicas depende crucialmente de discussões e debates públicos
abertos, cuja garantia requer que se faça questão da liberdade política e de direitos civis
básicos [...]” (KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Valério Rohden e Udo
Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 224.)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 169
Sen ainda afirma que toda a sua teoria é inútil se a democracia
é compreendida como mero procedimento. O desenvolvimento
integral demanda um desenho institucional de democracia que propicie
oportunidades, sendo que a democracia não é um "remédio automático".
Para tanto, SEN destaca que a democracia deve ser efetiva em três
âmbitos conexos: a) sua importância direta para a vida humana, ou seja,
a capacidade de participação social e política do indivíduo; b) seu papel
instrumental, ou seja, aumentar o grau de participação e reivindicações das
pessoas; c) seu papel construtivo na conceituação de 'necessidades' (como
a compreensão das 'necessidades econômicas' em um contexto social).
Nesta perspectiva, roga-se atenção para os direitos civis e políticos dos
indivíduos, relacionadas com as suas participações, debates, e dissensões
abertos. Em outras palavras a discussão de políticas públicas, a participação
dos sujeitos, dos indivíduos; a discussão pública, o envolvimento de vários
setores é primordial. (SEN, 2010, p. 195-204).

1.2. O indivíduo no centro da questão e a importância das políticas


públicas: entre o direito internacional e a Constituição Federal de
1988

A ideia de desenvolvimento está intimamente ligada com o


conceito de indivíduo, com a noção de indivíduo participativo, como
trabalhado na teoria de Amartya Sen. Tal fato pode ser observado no quadro
jurídico do direito global, na Declaração Universal dos Direitos Humanos
19487, na Carta das Nações Unidas de 19458 e na Convenção de Viena
de 19939, que percebe o desenvolvimento sob espeque da valorização da
figura do ser humano e a importância da promoção dos seus direitos.
7
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo [...]Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram,
na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor
do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram
promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
8 [...]
a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,que por duas vezes, no
espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito
dos homens e das mulheres [...]. (Carta das Nações Unidas.).
9
Considerando que a promoção e a protecção dos direitos do homem constituem
questões prioritárias para a comunidade internacional e que a Conferência dispõe de uma
oportunidade única de efectuar uma análise global do sistema internacional dos Direitos
do homem e do mecanismo de protecção dos direitos do homem, por forma a efectivar
e, consequentemente, a promover uma maior observância desses direitos, de forma justa

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 170
Esta valorização do ser humano como foco central do
desenvolvimento, a sua participação pelos dispositivos internacionais vai
ao encontro do desenvolvimento como liberdade proposto por Sen, na
medida em que defende o aumento das liberdades dos indivíduos, com
fulcro na sua participação ativa, ou seja, o desenvolvimento alinhado a
ideia de promoção do indivíduo.
A Constituição Federal de 1988 recepcionou as cartas,
declarações e convenções internacionais. No caso brasileiro, as
questões do desenvolvimento10 e dos direitos econômicos e sociais estão
constitucionalmente previstas e demandam políticas públicas vocacionadas
a sua consecução como condição de sua eficácia e efetividade. Tem-se
como pressuposto, portanto, a compreensão de que as políticas públicas
são instrumentos de ação dos governos (government by policies) para a
realização de direitos e concretização de ditames constitucionais, mormente
dos direitos dos indivíduos11.
Segundo BUCCI (2013a, p. 257-258),
o que caracteriza idealmente a política pública, como
objeto de interesse para o direito, distinto dos atos jurídicos
e atividades que a compõem, é a existência de um regime
de efeitos jurídicos combinados, articulados ou conjugados
decorrentes desses mesmos atos e atividades, ou dito
vulgarmente, a sua “amarração jurídica”12.

e equitativa. Reconhecendo e afirmando que todos os direitos do homem derivam da


dignidade e do valor inerente à pessoa humana, e que a pessoa humana é o tema central
dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, devendo, consequentemente, ser
o seu principal beneficiário e participar activamente na concretização de tais direitos e
liberdades. (Convenção de Viena).
10
COUTINHO acentua que A Constituição de 1988 emprega o termo desenvolvimento
dezenas de vezes (em diferentes sentidos), elege a igualdade (assim como o
desenvolvimento e a fraternidade) como um valor supremo, prevendo também que a
pobreza e a marginalização devem ser erradicadas, bem como reduzidas as desigualdades
sociais e regionais. (COUTINHO, 2013a, p. 72).
11
BERCOVICI afirma que ao dispor sobre o desenvolvimento nacional e a redução das
desigualdades regionais como objetivos a serem alcançados, o artigo 3º da Constituição
Federal “fundamenta à realização de políticas públicas para a concretização do programa
constitucional”. (BERCOVICI, p. 302.). O autor ainda atesta que “o próprio fundamento
das políticas públicas é a necessidade de concretização de direitos por meio de prestações
positivas do Estado, sendo o desenvolvimento nacional a principal política pública,
conformando e harmonizando todas as demais.” (BERCOVICI, p. 42).
12
Coutinho ainda assinala que “o direito é tudo menos indiferente quando se trata
de trajetórias de desenvolvimento. Ele não apenas define e cristaliza, a seu modo,
fins substantivos, como ainda molda e forja instituições encarregadas de persegui-los,
influenciando, ainda, as ações e processos destinados a implementar políticas públicas”.
(COUTINHO, 2013. p. 95).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 171
Dessa feita, se torna importante a análise de como o Estado se articula
com a iniciativa privada na promoção do desenvolvimento econômico e da
redução das desigualdades sociais. A focalização da discussão, deste modo,
parte essencialmente da concepção do papel do Estado e da visualização
da ordem econômica e social sob matiz constitucional, pois é a partir
destas concepções que devem ser estruturadas qualquer estratégia de
desenvolvimento, qualquer ação, qualquer orientação de políticas públicas
para o desenvolvimento econômico e social e a consequente redução das
desigualdades. A estruturação, implementação e análise de determinada
política pública perpassa por uma metodologia de caráter interdisciplinar,
em que a metodologia jurídica dialoga com métodos próprios da economia,
ciência política e da administração pública (BUCCI, 2013b, p. 23).
Para avançar na análise, discussão e compreensão do papel
do direito no desenvolvimento é imperioso abandonar aquela visão
simplesmente teórica. O desígnio é dar lugar para a interação de
conhecimentos e técnicas de outras áreas de estudos, dentro de uma análise
prática e de intersecção com outros campos do conhecimento. Nesse
sentido, TRUBEK e SCHAPIRO (2012. p. 28 et. seq.) buscam refletir os
estudos dos acadêmicos de direito e dos formuladores de políticas públicas
e superar os trabalhos pautados apenas no plano teórico, abrindo o campo
do direito e desenvolvimento para o experimentalismo, descoberta
e diálogo horizontal.
Essa perspectiva de experimentação traz no seu bojo a ideia de
empirismo, de mergulhar internamente nas instituições para compreender
o papel do direito frente ao desenvolvimento. Assim, a análise de políticas
públicas exige que “o jurista ´suje as mãos´, isto é, debruce-se sobre elas e
enfronhe-se em seus meandros e minúcias, observando-as, descrevendo-as
e compreendendo-as” (COUTINHO, 2013, p. 199). É importante, nesse
passo, compreender que não basta que haja políticas públicas redistributivas,
que tenha como objetivos combater a desigualdade, carrear crescimento
econômico, desenvolvimento econômico e social, em uma mítica visão
de que está fazendo valer as determinações constitucionais. Mister se faz
observar se na realidade prática determinada política pública alcança graus
de efetividade quanto ao desenvolvimento econômico e social, superando
as análises que apenas consideram a vigência jurídica stritu sensu.
As políticas públicas são, portanto, os mecanismos (instrumentos)
dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido o resgate, a promoção

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 172
dos direitos humanos é de suma importância para que se alcance
esse desenvolvimento.
Diante do raciocínio que se emprega, da compreensão do
desenvolvimento como liberdade e da colocação do indivíduo no centro da
questão, não se pode admitir políticas públicas que venha a tratar apenas
da questão econômica (redução dos gastos com o crescimento do PIB) e
privilegiar um determinado setor em detrimento dos demais.
A compreensão do desenvolvimento está entre o político, o
econômico, o social e o cultural, sendo certo que nas últimas décadas, o
tema desenvolvimento vem sendo associado a questões como democracia,
direitos humanos, acesso aos mercados, sustentabilidade ambiental e,
principalmente, a questão da desigualdade social, deixando de ser associado
apenas com a ideia de crescimento econômico13.

2 A NOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO: DA POLÍTICA DE


AUSTERIDADE E A PEC 241

Na grande parcela das vezes a discussão sobre desenvolvimento


tem como foco principal, de forma equivocada conforme demonstrado, o
crescimento econômico, partindo de uma premissa, que não é falaciosa,
mas sim insuficiente. Esta premissa quase sempre vem no bojo de uma ideia
de que sem crescimento econômico é impossível investir no campo social,
que o crescimento econômico traz a possibilidade de investir na educação
e na saúde, por exemplo, como se fosse a panaceia dos males, como se o
desenvolvimento se reduzisse a noção de crescimento econômico.
Na verdade há um desvirtuamento da questão do desenvolvimento,
ao encontro do que foi defendido no tópico anterior, neste caso mais
especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento econômico.
A conceituação de desenvolvimento econômico é bastante peculiar e é
bastante difícil. Em verdade, há muitas formas de definir o desenvolvimento
dado que a palavra não possui significado unívoco e não é produto de
uma perspectiva explicativa ou de uma análise individual. Tampouco é
um conceito atemporal (COUTINHO, p. 19). O termo desenvolvimento
econômico não pode ser confundido com crescimento econômico.

13
Como exemplo da superação do entendimento do desenvolvimento apenas sob o
matiz do crescimento pode citar os seguintes estudiosos do tema: Amartya K. Sen (para
quem desenvolvimento não se dá com crescimento e acumulação de capital, mas sim com
a garantia de liberdade real para os indivíduos) (SEN, 2010), David Trubek (TURBEK;
SANTOS, 2006) e Diogo Coutinho (COUTINHO, 2013).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 173
Growth is not the same thing as development and the
difference between the two has been brought out by a number
of recent contributions to development economics. I shall
take up the complex question of the content of economic
development presently. But it can scarcely be denied that
economic growth is one aspect of the process of economic
development. And it happens to be the aspect on which
traditional development economics – right or wrongly – has
concentrated. (SEN, 1983)
No entanto, este nos parece ser o caminho das políticas públicas
de austeridade, na medida em que apostam em uma redução dos gastos
públicos, contenção da inflação e crescimento do PIB, leia-se crescimento
econômico, esquecendo-se de debater publicamente se estas medidas
proporcionaram o aumento das capacidades do indivíduo.
Segundo Antônio Casimiro Ferreira a palavra austeridade é
uma palavra-ação que está ligada ao ato austerizar, ou seja, de tomar um
processo de implementação de reformas políticas e econômicas conduzidas
por um caminho de disciplina social e cultural ao rigor e à contenção
econômica. A austeridade é uma política voltada à contenção das despesas
do Estado, aumento dos impostos, redução do salário e privatizações do
setor público. Atesta o autor que a política de austeridade é baseada na
atuação dos governos em difundir a mensagem de que para sair da crise
não há alternativas, ou seja, é baseada em um discurso de ameaça e do
medo. (FERREIRA, 2012).
Por um lado, o Estado surge como detendo o monopólio da
austeridade legítima, instrumento através do qual assume as
tarefas de combater a crise, impedindo a bancarrota nacional,
e de proteger os indivíduos da incerteza face ao futuro. Por
outro lado, aprofunda o processo de desmantelamento do
Estado Social, cujo núcleo é a proteção coletiva dos danos
particulares através do triplo processo de privatização dos
bens públicos, de individualização dos riscos sociais e de
mercadorização da vida social. (FERREIRA, 2012).
Em verdade, o Estado de Austeridade impõe a ideia de que não há
alternativas e de que a saída da crise perpassa pela concepção de que todos
tem que assumir os erros, como se toda a sociedade fosse culpada pela crise,
transferidos os custos desta para a sociedade. Esta política se dissemina
em outras medidas, como: impostos, cortes salariais, cortes na pensão e
subsídios, reforma do sistema de saúde, flexibilização negativa do direito
de trabalho, etc. O Governo exatamente vende a ideia de uma emergência

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 174
social clamando pelo sacrifício em nome do bem comum. Nesse passo,
esta política se aproxima de uma política liberal consequencialista, ou seja,
utilitarista, em que as distribuições injustas de sacrifícios são aceitáveis
caso se alcance o bem estar da sociedade. (FERREIRA, 2012).
Ao analisar a realidade portuguesa FERREIRA traz à tona um
estudo realizado pela Comissão Europeia em 2011, A comparison of
Six EU Countries, entre 2009 e 2011, em seis países (Grécia, Portugal,
Espanha, Reino Unido, Irlanda e Estônia), constatou-se que Portugal é o
país onde as medidas de austeridade exige maior esforço financeiro dos
mais pobres do que dos mais ricos. (FERREIRA, 2012). Boaventura de
Sousa Santos, ao também analisar a política de austeridade portuguesa,
refere a este propósito a “desmedida das medidas da austeridade”, ou seja,
a política anticrise da austeridade impactou nos serviços sociais e tem
aumentado as desigualdades sociais. (SANTOS, p. 69 e ss)
Todas essas críticas de Antônio Casimiro Ferreira estão presentes
na PEC 241, que propõe um limite máximo de despesas primárias para
cada um dos poderes da União igual às despesas primárias executadas
em 2016, atualizadas anualmente pelo IPCA (Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo, o índice oficial de medida da inflação), por um
prazo de 20 (vinte) anos. Depreende-se da leitura da PEC e das suas 28
emendas que haverá um considerável corte em políticas públicas como
transporte, habitação, saúde, educação, por exemplo. Estas medidas
atingem, exatamente as camadas mais pobres da sociedade brasileira.
Assim, com base no que se defende como desenvolvimento
neste artigo, os princípios da austeridade constituem fontes de direito
de constitucionalidade totalmente questionável e que, por isso, merece
atenção e amplo debate participativo.
Amartya Sen, ao falar sobre o tema atesta que
O que defendo é que a melhor maneira de pensar sobre estes
problemas reside no debate público e no raciocínio público.
Pegando no que falamos antes sobre os planos de austeridade,
acho que deveriam ser alvo de um maior debate, em vez
de se deixar a discussão apenas nas mãos dos mercados
financeiros e dos bancos. A discussão deve estar nas mãos
do público. É preciso diálogo público e, claro, conhecimento
técnico, inclusive de economistas. Muitos economistas são
críticos em relação a estas realidades, não sou o único, pelo
que o seu contributo seria importante nesta discussão que
estamos a ter. Qualquer debate público que permita a ambos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 175
os lados falarem e ponha em consideração as suas visões é
muito importante. (SEN, 2011)
Paul Krugman (2015), ao opinar sobre o referendo ocorrido na
Grécia, em que os gregos escolheriam sobre aceitar ou não as demandas
de Troika (Insituição que representa os interesses dos credores) que
visavam aumentar a política de austeridade grega defendeu que os
gregos deveriam votar não,
To understand why I say this, you need to realize that most -
not all, but most - of what you’ve heard about Greek profligacy
and irresponsibility is false. Yes, the Greek government
was spending beyond its means in the late 2000s. But since
then it has repeatedly slashed spending and raised taxes.
Government employment has fallen more than 25 percent,
and pensions (which were indeed much too generous) have
been cut sharply. If you add up all the austerity measures, they
have been more than enough to eliminate the original deficit
and turn it into a large surplus. […]Finally, acceding to the
troika’s ultimatum would represent the final abandonment
of any pretense of Greek independence. Don’t be taken in
by claims that troika officials are just technocrats explaining
to the ignorant Greeks what must be done. These supposed
technocrats are in fact fantasists who have disregarded
everything we know about macroeconomics, and have been
wrong every step of the way. This isn’t about analysis, it’s
about power — the power of the creditors to pull the plug
on the Greek economy, which persists as long as euro exit is
considered unthinkable.
No mesmo sentido foi o posicionamento Joseph Stiglitz (2015):
De fato, mesmo que a dívida da Grécia seja reestruturada
além do imaginável, o país continuará em depressão se
os votantes se comprometerem com a meta da troica no
referendo surpresa a ser realizado no fim de semana. Em
termos de transformar um déficit primário enorme em
um superávit, poucos países conseguiram qualquer coisa
parecida com o que os gregos fizeram nos últimos 5 anos.
[ ] Devemos ser claros: quase nada do montante enorme de
dinheiro emprestado para a Grécia foi de fato para lá. Ele
foi para pagar credores do setor privado - incluindo bancos
franceses e alemães. A Grécia pegou apenas uma miséria,
mas pagou um preço alto para preservar o sistema bancário
destes países ( ) Mas novamente, não é sobre dinheiro. É
sobre usar prazos para forçar a Grécia a se ajoelhar e aceitar

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 176
o inaceitável não apenas medidas de austeridade, mas outras
políticas regressivas e punitivas( ) Um voto no “não” pelo
menos abriria a possibilidade de que a Grécia, com sua forte
tradição democrática, poderia agarrar seu destino em suas
próprias mãos. Os gregos poderiam ganhar a oportunidade
de moldar um futuro que, apesar de talvez não tão próspero
como no passado, tem muito mais esperança do que a tortura
injusta do presente. Eu sei como eu votaria. (Exame, 2015).
O que se observa, no caso brasileiro, é que as crises estão associadas
aos processos de “legitimação performativa” que correspondem a uma
intervenção estratégica dos poderes políticos dominantes, acompanhada
pelos discursos da necessidade e da exceção, do medo, no sentido do
entendimento de Antônio Casimiro Ferreira. Isto pode ser visto claramente
quando o Ministro da Fazenda Henrqiue Meireles vem a público e diz que
“não há possibilidade de prosseguir economicamente no Brasil gastando
muito mais do que a sociedade pode pagar”. (El País, 2016).
A imposição da política de austeridade como via de sentido único
para a saída da crise, nesse caso representada em sua essência pela PEC
241, é uma política pública equivocada, na medida em que centraliza e
evoca a questão do desenvolvimento como crescimento econômico e que
este será alcançado com o corte de gastos públicos. Nesse passo pode-se
afirmar que o que está sendo examinado é se há sentido em dar prioridade a
um único objetivo, redução das despesas públicas, enquanto, por exemplo,
se tolera taxas de crescimento de desemprego. Na visão adotada neste artigo
nos parece um erro tal conduta. A elaboração de qualquer política pública,
como esta de austeridade representada pela PEC 241, deveria priorizar
a real eliminação de privação de liberdades (oportunidades), o que não
acontece. “O comedimento financeiro tem um bom fundamento lógico e
impõe exigências fortes, mas suas demandas devem ser interpretadas à
luz dos objetivos globais de políticas públicas [...] avaliada dentro de uma
ampla estrutura de objetivos sociais”. (SEN, 2010, p. 187) .
Assim, não segue o governo brasileiro, nos parece que a política
de austeridade adotada, que a PEC 241, não leva em consideração a redução
da privação das liberdades (oportunidades) dos indivíduos. Tem-se apenas
uma medida de viés econômico, voltada para a contenção de gastos, sem
qualquer menção ou pauta sobre os problemas sociais. É patente que se trata
de uma política pública que não foi discutida, que não teve a participação
dos indivíduos, que não trouxe a possibilidade do debate público, inclusive
com a participação dos grandes estudiosos sobre o tema.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 177
Não há um objetivo claro na PEC 241, não se vislumbra um
contexto sistêmico que trabalha as estruturas e que alcance objetivos sociais
também. Não se vislumbra nos objetivos da PEC 241/2016 uma proposta de
equilíbrio estrutural das contas públicas com a finalidade, aqui defendida,
para uma política pública eficaz, de preservar a capacidade do Estado de
oferecer políticas públicas. Esta política de teto de gastos públicos poderá
trazer uma redução de gastos na educação14, saúde, habitação e transporte,
solapando ainda mais as liberdades dos indivíduos.
Como diz Sen, ao analisar a política de austeridade econômica
europeia, “a retificação dessa anomalia (comedimento financeiro) requer
não a crítica ao comedimento financeiro, e sim um exame mais pragmático
e receptivo de reivindicações concorrentes dos fundos sociais”. (SEN,
2010, 192). Não há qualquer indício de que esta política econômica venha
trazer uma promoção, um desenvolvimento democrático, inclusivo e com
justiça social, respeitando os direitos humanos.
A conduta a partir de um viés econômico de austeridade único,
sem se preocupar, sem dialogar com as liberdades defendidas por Sen pode,
ao contrário, diminuir ainda mais as liberdades substantivas. A proposta de
uma ação de comedimento financeiro, ainda que importante, não se trata
de uma política que pode se sustentar isoladamente. Nos parece que essa
política de austeridade, hoje estampada pela PEC 241, merece uma ampla
discussão, dando-se prioridade ao desenvolvimento dos recursos humanos
e do aumento das capacidades dos indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hodiernamente no Brasil, devido a “peculiar” situação político-


econômica vivenciada, a discussão para a retomada do crescimento e
desenvolvimento se pauta no argumento, para lá de retórico, e admitimos
14
Uma singela interpretação da justificativa da PEC induz a esta assertiva: O momento
econômico em que o país vive requer medidas de ajuste que tragam a trajetória da dívida
pública para níveis sustentáveis. A PEC nº 241/2016 vem com o objetivo de impedir que
as despesas primárias continuem a crescer acima da inflação. No entanto, ao fixar os
novos mínimos nas áreas de Saúde e Educação, a PEC utiliza como referência os mínimos
de 2016, que, devido à queda de arrecadação, representarão valor inferior a o que será
executado nesse ano. A presente emenda visa, portanto, garantir que os novos mínimos
não representem perda de recursos para as duas áreas frente ao valor executado em 2016.
Pretende-se, portanto, partir de uma base de cálculo maior para que as áreas de saúde e
educação não sofram queda real de recursos de um exercício para o outro. Ademais, o
texto que propomos ressalva as despesas discricionárias de reduções que poderiam ser
observadas pelo aumento de outros itens da despesa. Assim, garantimos o não retrocesso
dos investimentos nas áreas. (BRASI, PEC 241)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 178
atrativo, de que há de ter prudência financeira, e que se deve viver nos limites
próprios dos recursos. Para tanto, adotar-se-ia uma política de austeridade
e consequente redução dos investimentos e fomento das políticas públicas.
Fato comprovado pela Proposta de Emenda Constitucional 241 de 2016.
O discurso político de que há de “cortar gastos”, diminuir a inflação
e carrear um equilíbrio orçamentário não convence na medida em que ele
é tido como objetivo único, desprendido da prioridade real que deve ser a
eliminação da privação de oportunidades acarretada pelo analfabetismo,
concentração de renda, acentuado desemprego, corrupção, sistema de
saúde precário, etc. A necessidade de estabilidade macroeconômica
deve ser avaliada a partir de uma ampla estrutura de objetivos sociais,
a partir de um estudo que não se desvencilhe das questões sociais que
são (re)conhecidas no Brasil. Na verdade, trata-se de uma racionalidade
econômica neoliberal, que perpetua as desigualdades, a concentração de
renda e o aumento das privações das liberdades. Portanto, a redução dos
objetivos políticos exclusivamente à necessidade de proteção jurídica da
esfera econômica é um grave equívoco.
Tão logo, para uma análise jurídica apropriada (direitos humanos
como liberdade) é preciso ampliar o conceito de direito, devendo encampar,
para além do viés formal/normativo, o político/social/cultural/econômico
e o institucional/estrutural. Assim, a sociedade globalizada, liderada por
uma política neoliberal, de há muito não suporta essa concepção formalista
(jurídico-positiva) do direito e, principalmente, dos direitos humanos,
mormente diante de um cenário cultural multifacetado, policêntrico
e “heterogêneo”. Há que se admitir e avançar em concepções plurais,
interdisciplinares, em construções abertas e, porque não, transgressoras. A
política econômica não deve ser analisada em caráter estanque, distanciada
das questões sociais, deve ser estudada, analisada, pensada e desenvolvida
com a participação dos cidadãos, com o intuito de revitalizar a cidadania
e propiciar acesso (oportunidades) aos serviços públicos, amenizando as
contradições carreadas pelo neoliberalismo internacional.
Parece-nos que o “Governo Temer”, por meio da PEC 241,
vai de encontro ao que deve se ter como linhas de seguimento para o
desenvolvimento do país, tendo em vista seu retorno exclusivo para o
crescimento econômico, para a regulação orçamentária, ao invés de um
pensamento e de uma política pensada e (re)criada de forma interdisciplinar.
Parece-nos que há uma preocupação econômica sem qualquer ligação,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 179
estudo e pensamento com a questão social (educação, meio-ambiente,
habitação,etc.), ao invés de alterar as instituições.
O desenvolvimento que se propõe é aquele cuja economia deve
ser vista e contextualizada a partir do ser humano e da humanidade, e que
precisa colocar esse ser humano e esta humanidade como objetivo principal.
Não se releva que o Brasil precisa “gastar melhor”, de forma
mais eficiente, mas sempre preservando a fomentação da educação,
saúde, segurança, desenvolvimento sustentável e geração de emprego,
sempre promovendo a participação dos indivíduos e a redução das
privações das liberdades.
Assim, a PEC 241 precisa ser amplamente discutida, com a
participação da sociedade, levando-se em consideração outras alternativas
à redução dos gastos públicos, que não a imposição de um teto que poderá
trazer redução dos investimentos das políticas sociais. Uma política que
tenha objetivos também fulcrado no aumento das liberdades dos indivíduos.

REFERÊNCIAS

BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estados e constituição.


São Paulo: Max Limonad, 2003.
BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional. PEC 241.
Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2088351. Acesso em: 18 out. 2016.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica
das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de
análise de políticas públicas. Fórum Administrativo: Direito Público,
Belo Horizonte, v. 9, n. 104, p. 20-34, out. 2009. Disponível em: http://
dspace/xmlui/bitstream/item/5816/PDIexibepdf.pdf?sequence=1. Acesso
em: 13 de jan. 2016.
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, Organização das Nações Unidas, 1945.
PORTUGAL. Presidência do Conselho de Ministros. Resolução
da Assembleia da República n.º 67/2003. Aprova para adesão, a
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de
Maio de 1969. Diário da República, 1 Série A, n. 181, p. 4662-4773.
Disponível em: https://dre.pt/application/conteudo/645765. Acesso em:
09 set. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 180
COUTINHO, Diogo Rosenthal. Direito, desigualdade e
desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013.
ONU - Organização das Nações Unidas - Declaração Universal
dos Direitos Humanos da ONU (1948). Disponível em: http://www.
pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/2decla.
htm. Acesso em: 12 set. 2016.EL PAIS. Entenda o que é a PEC
241 e como ela pode afetar sua vida. Disponível em: http://brasil.
elpais.com/brasil/2016/10/10/politica/1476125574_221053.html.
Acesso em: 20 out. 2016.
EXAME. Como 3 vencedores do Nobel votariam no referendo
da Grécia. Disponível em: http://exame.abril.com.br/economia/
como-3-vencedores-do-nobel-votariamno-referendo-da-grecia/.
Acesso em: 11 set. 2016.
FERREIRA. Antônio Casimiro. Sociedade da Austeridade e direito do
trabalho de exceção. Porto: Vida Econômica, 2012.
HERRERA FLORES, Joaquiín. Los Derechos Humanos en el Contexto
de la Globalización: Tres Precisiones Conceptuales. In: RUBIO, David
Sánchez; FLORES, Joaquín; CARVALHO, Salo de. (Org.). Direitos
humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria
crítica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p. 72-109.
KRUGMAN, Paul. Greece over the brink. The New York Times.
Disponível em: http://www.nytimes.com/2015/06/29/opinion/paul-
krugman-greece-overthe-brink.html?_r=0. Acesso em: 11 set. 2016.
NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic
perfomance. New York: Cambridge University Press, 1990.
SALAMA, Bruno Meyerhof. Sete Enigmas do Desenvolvimento em
Douglass North. Revista Economics Analysis of Law Review, v. 2, n. 2,
p. 404-428, jul./dez, 2011.
SANTOS, BOAVENTURA de Sousa. Portugal: ensaio contra a
autoflagelação. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2012.
SCHAPIRO, Mario Gomes; TRUBEK, David. Redescobrindo o
direito e desenvolvimento: experimentalismo, pragmatismo e diálogo
horizontal. In: SCHAPIRO, Mario Gomes; TRUBEK, David. Direito e
desenvolvimento: um diálogo entre os BRICs. São Paulo: Saraiva, 2012.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 181
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SEN, Amartya. Entrevista concedida ao jornal português Público. [16
de março de 2011]. Disponível em: https://www.publico.pt/economia/
noticia/amartya-sen-a-europa-devia esperar-pelo-momento-certo-para-
reduzir-a-divida-publica-1485029. Acesso em: 11 de set. 2016.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEN, Amartya. Development: Which way now? The Economic Journal,
v. 93, n. 372, p. 745-762, 1983. Disponível em: http://darp.lse.ac.uk/
PapersDB/Sen_(EJ_83).pdf. Acesso em: 02 ago. 2016.
STIGLITZ, Joseph. Europe’s Attack on Greek Democracy. In Project
Sybdicate. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/
commentary/greecereferendum-troika-eurozone-by-joseph-e--stiglitz-
2015-06?barrier=true. Acesso em: 11 set. 2016.
TRUBEK, D.; SANTOS, Alvaro. Introduction: The Third Moment in
Law and Development Theory and the Emergence of a New Critical
Practice. In: The New Law and Development: A Critical Appraisal.
New York: Cambridge University Press, p 1-18, 2006.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 182
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO
POLÍTICA: O PAPEL DO ESTADO NA QUARTA GERAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Marcelo Bidoia dos Santos*


Aluísio de Freitas Miele**
Luiz Gustavo Vicente Penna***

INTRODUÇÃO

Justiça: a permanente busca do Direito. Sentimento intrínseco


que surge no peito de quem é alvo de uma injustiça, a justiça aparece
como que por oposição; é inata àquilo que falta. Por sua vez, o Direito é o
meio que define e limita as regras de acesso à realização da justiça. E, se
o Direito enquanto instrumento sistematizado se materializa, sabidamente,
desde Ur-Nammu e Hamurabi, não é difícil imaginar que já muito antes,
a partir do sapiens sapiens, o Homem construía regras na busca pelo que
acreditava ser o justo.
Contemporaneamente a prática da justiça guarda íntima relação
com os aparelhos do Estado que, estruturados pelo Direito, preveem e
garantem sua realização. Em tempos de Estado Democrático de Direito,
em que o papel estatal vincula-se a uma prestação positiva com escopo
de concretizar as gerações (ou dimensões) dos direitos humanos; o papel
do Direito (por conseguinte do Estado) deve estar compromissado com a

*
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF). Mestrando em
Direito e Desenvolvimento pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - Universidade
de São Paulo (FDRP-USP). Bolsista do programa Erasmus + para período de estudos na
Università degli Studi di Trento - Itália. Advogado.
**
Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -
UNESP. Aluno Especial do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Coordenador da Comissão de Cultura
da 80ª Subseção da OAB/SP. Advogado.
***
Graduação em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU). Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho - UNESP. Professor Substituto de Direito Penal, Medicina Legal e Criminologia
do Departamento de Direito Público da UNESP (concurso válido até 2014). Professor
de Direito Penal e legislação Penal da Faculdade de Direito São Luis, de Jaboticabal.
Professor convidado colaborador da Faculdade de Direito de Franca (FDF). É membro do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Atua no Grupo de Pesquisa (UNESP): Núcleo
de Estudos da Tutela Penal dos Direitos Humanos (linha de pesquisa: Formas de Violação
dos Direitos Humanos com Repercussão Jurídico penal). Advogado.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 183
realização da justiça pautada nos direitos humanos constitucionalmente
positivados, i.e. os direitos fundamentais.
As transformações que despontaram desde meados do século
anterior e se intensificam com a virada do milênio mantiveram a necessidade
de se rever o direito e os ideais de justiça nessa nova era que se inaugura.
Mais do que isso, as mudanças parecemnunca ter sido tão rápidas,
criando desafios em tempo recorde. A globalização encurtou distâncias e
relativizou de vez o espaço-tempo. Mas o progresso tem seu preço, e, ao
reestruturar a civilização em cadeia global, deixou em aberto um vácuo de
novos problemas e desigualdades com os quais as três gerações de direitos
fundamentais não lidam sozinhas.
As mudanças oriundas do avanço científico, notadamente no
campo da biociência e da tecnologia da informação e comunicação
(TICs), lançaram bases para o reconhecimento de uma nova geração de
direitos fundamentais: a quarta geração. Dessarte, para melhor entender
a necessidade do surgimento (e do reconhecimento) de uma nova geração
de direito fundamental, fez-se necessário contextualizar a referida
transformação em moldes científicos.
Para tanto, foi utilizado material bibliográfico e documental como
técnicas de pesquisa, partindo de Manuel Castells como marco teórico
juntamente com outros autores da sociedade da informação para então
avançar junto à análise dos documentos produzidos pela Cúpula Mundial
para a Sociedade da Informação (CSMI). Por último, refletiu-se, com
Paulo Bonavides, sobre o aparecimento de uma nova geração de direito
fundamental. Para a execução do projeto, utilizou-se do método dedutivo-
indutivo junto ao monográfico. A conclusão aponta para o reconhecimento
jurídico da quarta geração de direitos fundamentais como modo de
fundamentar políticas públicas, por parte do Estado, que resultem na
efetiva inclusão social do indivíduo, agora exposto a um novo paradigma:
a sociedade da informação.

1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: UM NOVO PARADIGMA

A sociedade da informação, também chamada de sociedade em


rede1, refere-se a um novo paradigma sociopolítico, econômico e cultural
1
Há pouca concordância no que se refere aos termos sociedade informacional,
sociedade da informação, ou até sociedade em rede, termo cunhado por Manuel Castells.
No entanto, correndo o risco da discordância, utilizarse-á tais termos como sinônimos.
Para uma distinção entre os termos, Ver: CASTELLS, Manuel. A Era da Informação:
Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 1.A Sociedade em Rede. 17ª Ed. Trad.: Roneide

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 184
surgido a partir da chamada “revolução digital”, que engloba cada vez
mais todos os países, em maior ou menor medida.
O início dessa revolução científico-tecnológica começou em
meados do século XX, devido às demandas bélicas por eletrônica e alta
tecnologia de informação, ocorridas durante a Primeira e Segunda Guerra
Mundial. (HOBSBAWN, 2014, p. 260). A partir de então, o terreno estava
preparado para posterior desenvolvimento civil.
Mas a difusão em massa das novas tecnologias que propiciaram
o novo paradigma só aconteceria a partir da década de 1970, quando do
surgimento de grandes marcos na história do desenvolvimento das TICs
e também da biotecnologia, como a invenção do microprocessador, do
microcomputador e dos sistemas da Microsoft, a criação da engenharia
genética, além da produção de fibra ótica em grande escala e da
Internet, sendo a última guinada tecnológica dada na década de 1990,
(CASTELLS, 2016, pp. 95-113).
As constantes revoluções das TICs criaram a sociedade em rede,
isso porque a lógica do funcionamento em redes tornou-se aplicável a todos
os tipos de atividade e contextos conectados eletronicamente. A partir daí,
o paradigma econômico e tecnológico, que desde a revolução industrial
era baseado em insumos baratos de energia, passou para uma mudança
baseada em insumos baratos de informação. (CASTELLS, 2016, p. 88).
Com isso, Castells elenca cinco características que formam a base material
da sociedade da informação.
A primeira característica é que a informação é sua matéria-
prima: as tecnologias agora existem para agir sobre a informação e não
apenas a informação para agir sobre a tecnologia. A segunda concerne à
penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias em todos os ramos da
vida individual e coletiva. A terceira destaca a lógica de redes, aplicável
a todos os processos e organizações, e ainda implica reconhecer que
quanto mais as redes se expandem, mais tendem a crescer. A quarta,
diz respeito à flexibilidade que engloba os processos - organizações e
instituições podem ser alteradas e modificadas sem se desfazer de sua base
material, mediante reprogramação e adaptação. A última característica
revela a tendência de convergência de tecnologias específicas para um
sistema altamente integrado de modo que cada nova descoberta tende a se
integrar às antecessoras o resultado da lógica compartilhada na geração da
informação. (CASTELLS, 2016, pp. 124-125).

Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2016. pp. 84-85 - nota de rodapé.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 185
O novo paradigma transformou, assim, toda os aspectos da
sociedade. Dado a brevidade do trabalho, não se tem intenção de discorrer
em minúcias sobre todas as faces do novo paradigma. Em termos rasos,
pode-se resumir o pensamento do autor ao aparecimento de uma nova
forma de produção, de uma nova economia surgida na reestruturação do
sistema capitalista, da sociedade, da política e da cultura como um todo,
que agora passa a agir de forma interconectada, não mais em escala local/
nacional, mas em uma rede global, propiciada pela revolução no campo da
tecnologia da informação e comunicação.
Para Castells, uma nova economia surgiu em escala global no
último quarto do século XX, chamada por ele de informacional, global
e em rede2. Na nova economia, a própria informação se torna o produto
do processo produtivo, de modo que os produtos das novas indústrias de
tecnologia da informação são os dispositivos que processam a informação
ou o próprio processamento em si (CASTELLS, 2016, p. 135-136).
O avanço das TICs reorganizou, ao redefinir a economia, o
próprio modelo empresarial, agora organizado em rede em meio a
globalização, e dotado de maior flexibilidade e interatividade, graças ao
advento da Internet:
Em consequência disso, todos estavam tecnologicamente
capacitados a adotar a forma de organização em rede,
contanto que a empresa estivesse capacitada para a inovação
administrativa. [...] Nessas condições, a cooperação e os
sistemas de rede oferecem a única possibilidade de dividir
custos e riscos, bem como de manter-se em dia com a
informação constantemente renovada. Mas as redes também
atuam como porteiros. Dentro delas, novas oportunidades
são criadas o tempo todo. Fora das redes, a sobrevivência
fica cada vez mais difícil3.

2“
É informacional por que a produtividade e a competitividade de unidades ou agentes nessa
economia (sejam empresas, regiões ou nações) dependem basicamente de sua capacidade
de gerar, processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos.
É global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação, assim
como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação,
tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma
rede de conexões de agentes econômicos. É rede porque, nas novas condições históricas,
a produtividade é gerada, e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre
redes empresariais. Essa nova economia surgiu no último quartel do século XX porque a
revolução da tecnologia da informação forneceu a base material indispensável para sua
criação.” (Idem, p. 135).
3
Idem, p. 237.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 186
A reestruturação do sistema econômico-empresarial afetou
as relações de trabalho. Em geral, as novas TICs estão redefinindo os
processos de trabalho, melhorando empregos de alta qualificação à medida
em que elimina outros tantos através da automação na indústria e no setor
de serviços. “São, geralmente, trabalhos não especializados o suficiente
para escapar da automação, mas são suficientemente caros para valer o
investimento em tecnologia para substituí-los”. (CASTELLS, 2016,
p. 312). Daí, qualificações cada vez maiores são exigidas na estrutura
ocupacional, com base numa educação especializada incluída a digital.
Contudo, essa reestruturação não parece contribuir diretamente
para o desemprego de forma direta: ao contrário, a longo prazo tende
a gerar mais empregos (e.g., a eliminação de empregos no eixo Norte,
ocasionadas pelo comércio global, levou a criação de milhões de empregos
no Sul). O que corre, porém, é a degradação das condições de trabalho que
assume diferentes formas em diferentes contextos, como: instabilidade de
emprego nos Estados Unidos; subemprego no Japão; “informalização”
e desvalorização da força de trabalho nos países em desenvolvimento;
e marginalização do trabalho rural em econômicas subdesenvolvidas
e estagnadas (CASTELLS, 2016, p. 340). Sem embargo, a divisão
resultante dos padrões de trabalho e a polarização da mão de obra não são
consequências inexoráveis do progresso tecnológico, mas é determinada
socialmente e projetada administrativamente no processo de reestruturação
capitalista (CASTELLS, 2016, p. 313).
No que tange às mudanças político-culturais, destaca-se alguns
pontos. As novas modalidades de comunicação deram origem ao Hipertexto
modalidade textual muito mais versátil e ampla de informações do que as
anteriores. Assim, o Hipertexto é uma face técnica que compila as diversas
modalidades comunicacionais somadas à possibilidade de interação entre
os usuários que podem complementar, corrigir, contestar, recortar e/ou
reproduzir aquele texto, baseado na interação de links, cujo maior símbolo
sistêmico hoje é a World Wide Web (www), e revela especial interesse
para a pedagogia (LÉVY, 2011, p. 40).
À medida em que a conectividade se difunde, tornando-se uma
cultura, o hipertexto evoluiu, concretizando-se como nova modalidade
textual, essencial para a interatividade na nova cultura. Essa, por sua
vez, depende de atores educados a lidar com ela para explorar seu
potencial ainda que concordemos que: “Os novos meios de comunicação

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 187
eletrônica não divergem das culturas tradicionais: absorvem-nas”
(CASTELLS, 2016, p. 453).
No atual contexto, a comunicação possui a vantagem de reunir
todas as expressões culturais sob o mesmo teto digital, viabilizando
a comunicabilidade em rede e a socialização da mensagem - que agora
pode atingir um sem número de pessoas, mesmo partindo de um único
indivíduo - ao passo que as outras mensagens estão fadadas a uma
tendente marginalização, o que reforça o valor da conectividade na
nova cultura em rede.
Do ponto de vista da sociedade, a comunicação eletrônica
(tipográfica, audiovisual ou mediada por computadores)
é comunicação. [...]. É precisamente devido a sua
diversificação, multimodalidade e versatilidade que o novo
sistema de comunicação é capaz de abarcar e integrar todas as
formas de expressão, bem como a diversidade de interesses,
valores e imaginações, inclusive a expressão de conflitos
sociais. Mas o preço a ser pago pela inclusão ao sistema é
a adaptação a sua lógica, a sua linguagem, a seus pontos de
entrada, a sua codificação e sua decodificação. Por isso é tão
importante para os diferentes tipos de efeitos sociais que haja
o desenvolvimento de uma rede de comunicação horizontal
multinodal do tipo da internet, em vez de um sistema
multimídia centralmente distribuído como na configuração
do vídeo sob demanda4.
A inclusão do cidadão nessa dimensão multinodal é justamente o
que dá causa à atividade política na rede. Natural, já que as transformações
ocasionadas em função das TICs sempre guardaram especial valor na
relação com o poder político, desde o nascimento da escrita e depois da
imprensa, até o surgimento da mídia: rádio-TV (LÉVY, 2015, pp. 57-58).
Destarte, as TICs possuem elevado potencial político ao propiciar
a interação dos cidadãos entre si e com o governo de forma mais rápida
através de plataformas digitais, promovendo desde o aperfeiçoamento
da democracia e de suas modalidades diretas e semidiretas, até o uso
do governo eletrônico na gestão pública e na fiscalização individual da
máquina pública por parte dos cidadãos (visualizada, e.g., na Lei de

4
Idem, p. 457.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 188
Acesso a Informação)5; da militância eletrônica e em rede6 até o combate
à opressão e à luta por direitos humanos7.
Ademais, também se reconhece, como expresso nos documentos
da Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (CSMI), o uso particular
das TICs na expansão e fortalecimento dos Direitos Fundamentais, como
liberdade de expressão, crença, reunião, associação e etc8. Desse modo, a
plataforma digital, ao misturar virtualidade e realidade, é um veiculador
político cada vez mais apto a servir de instrumento de proteção e luta política.

1.1. A Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (CSMI)

A preocupação com o tema vem desde o século passado. Mas foi


na virada do século, em 2000, que líderes mundiais se reuniram na sede
da Organização das Nações Unidas (ONU) para adotar a Declaração do
Milênio. Com a Declaração, as nações se comprometeram em reduzir a
pobreza global, em uma série de oito objetivos conhecidos como Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ODM). O oitavo objetivo pretende:
“Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento”. Dentre as
(sete) metas elencadas para alcança-lo, a sétima consiste: “Em cooperação
com o setor privado, tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias,
em especial das tecnologias de informação e comunicações”9.
Em 2003, os países signatários da ONU (incluindo o Brasil)
realizaram a primeira fase da CMSI, em Genebra - Suíça. Nessa ocasião,
5
O uso da rede, em especial da Internet, expande a eficácia do princípio da publicidade
da administração pública, do qual exemplo está contido na Lei 12.527/2011, em que se
destaca (Art. 8º, § 2o) o dever dos órgãos e entidades públicas em promover a divulgação
de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas, sendo obrigatória a
divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).
6
Um tipo de agentes que surge em meio a transformação da identidade cultural, é
justamente os movimentos sociais organizados de forma descentralizada e integrada
em rede, como é o caso do movimento ambientalista, suportado por redes nacionais e
internacionais de atividade descentralizada; dos movimentos feministas e até mesmos dos
movimentos religiosos fundamentalistas. (CASTELLS, Manuel. A Era da Informação:
Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 2. O Poder da Identidade. 8ª Ed. Trad.: Klauss
Brandini Gehardt. São Paulo: Paz e Terra, 2013. p. 426). Para maior aprofundamento
sobre esses movimentos sociais, ver também: CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação
e Esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
7
Cf. ZICCARDI, Giovanni. Resistance, Liberation Technology and Human Rights in
the Digital Age. Dordrecht: Springer, 2013.
8
Disponível em: http://workspace.unpan.org/sites/Internet/Documents/UNPAN96078.
pdf. Acesso em: 27 out. 2016. p. 9, Itens 41-47 do documento de resultados apresentado
na reunião de alto nível da Assembleia Geral para a reavaliação da implementação
dos resultados da CSMI.
9
Disponível em: http://www.un.org/millenniumgoals. Acesso em: 27 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 189
foram criados: uma declaração de princípios10 uma agenda e um plano de
ação, preocupado principalmente com o problema da brecha digital (i.e. o
hiato existente entre os indivíduos conectados e desconectados) e o uso de
compartilhamento de informações e seus benefícios correlatos ao acesso às
TICs. A segunda etapa, ratificando os compromissos de Genebra, ocorreu
em Túnis, em 2005.
Em 2015 foi realizada a CMSI +10, para estudo dos resultados após
dez anos decorridos. Em consonância com os novos objetivos elaborados
pela ONU, os [17] Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS11), a
CMSI +10 apresentou seus resultados em maio de 2016, novamente em
Genebra. Na ocasião, progressos e problemas foram destacados.
Entre os avanços, pode-se destacar a difusão das TICs como parte
da superação da brecha digital. Entre 2001 e 2015, a população com acesso
à telefones móveis e rede 2G cresceu de 2.2 bilhões de usuários para 7.1
bilhões, cobrindo um percentual de 95% da população mundial. De igual
modo, o número de pessoas conectadas online cresceu de 2.2 bilhões em
2005, para 3.2 bilhões de pessoas em 2015, representando 43% do mundo
- um número estimulante pelo progresso, mas que revela ainda há muito
que se fazer12.
Não obstante, muitas barreiras ainda se apresentam, como a
diferença de acesso entre gêneros (apenas 41% das mulheres tem acesso
à internet) e do acesso aos conteúdos (estimativas apontam que 80% do
conteúdo online estão disponível em apenas 10 línguas). Outro problema se
destaca entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. Enquanto
nos países desenvolvidos 80% dos domicílios tem acesso à internet, esse
10
Os dois primeiros princípios da declaração são esclarecedores quanto aos objetivos
da cúpula: “1. Nós, os representados dos povos do mundo, reunidos em Genebra de 10
a 12 de dezembro de 2003 para a primeira fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade
da Informação, baseando-nos nos objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas,
respeitando plenamente e apoiando a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
afirmamos o nosso desejo e compromisso comum em construir a uma Sociedade da
Informação que seja centrada na pessoa, inclusiva e orientada ao desenvolvimento,
na qual cada pessoa possa criar, ter acesso, utilizar e compartilhar informações e
conhecimento, colocando as condições para que os indivíduos, as comunidades e os
povos possam desfrutar permanentemente das próprias potencialidades no favorecimento
do seu desenvolvimento sustentável e no melhoramento de sua qualidade de vida. 2. O
nosso desafio é desfrutar as potencialidades da tecnologia da informação e comunicação
para promover as metas de desenvolvimento enunciadas na Declaração do Milênio [...]”.
[Tradução Própria]. Disponível em: http://www.itu.int/net/wsis/docs/geneva/official/dop.
html. Acesso em: 01 out. 2016.
11
Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/.Acesso em: 27 out. 2016.
12
Disponível em: http://workspace.unpan.org/sites/Internet/Documents/UNPAN96078.
pdf. Acesso em: 27 out. 2016. p. 4 e 5, Item 14.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 190
número é de apenas 34% nos países em desenvolvimento - i.e. 1/3 dos
países em desenvolvimento13.
Ademais, apenas o acesso material às TICs não basta, é necessário,
igualmente, que se promova a educação digital dos indivíduos, como
modo de propiciar a correta e mais eficaz utilização das TICs em direção
aos ideais visados. Significa dizer, em outras palavras, promover a justiça
substancial em detrimento de uma igualdade meramente formal.
Assim, o documento elaborado pela CSMI reconhece o papel
exercido pela difusão das TICs no mundo contemporâneo, relativo às novas
oportunidades de interação social, aos novos modelos de negócio e ao
crescimento econômico; bem como reconhece que a conectividade, inovação
e o acesso às TICs tiverem um papel importante em propiciar o progresso
em direção aos ODM, destacando-se sua função na erradicação da pobreza
e na busca pelos novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável14.
Além de seu potencial em dar transparência aos governos, aprimorar a
democracia e fortalecer os Direitos Humanos. No entanto, também entende
há muito que se fazer para alcançar um desenvolvimento global.
Para ilustrar o uso das TICs no desenvolvimento, cita-se algumas
das Linhas de Ação elaboradas pela Cúpula, como: acesso à informação
e conhecimento; cooperação regional e internacional; identidade e
diversidade cultural, diversidade linguística e conteúdo local; bem
como os usos concernentes às TICs, relacionados: à gestão pública
(E-government), negócios (E-business), educação (E-learning), saúde
(E-health), empregos (E-employment), meio ambiente (E-enviroment),
agricultura (E-agriculture) e ciência (E-science)15.
Para alcançar os objetivos, estruturados nas Linhas de Ação, a
CSMI invoca, a todo momento, a participação conjunta dos governos
e interessados. No presente trabalho, o foco recairá sobre o papel
concernente ao Estado. Entretanto, antes de prosseguir, salienta-se um
novo aspecto jurídico relevante: o aparecimento da quarta geração de
direitos fundamentais.

13
Idem, p. 6, itens 21 e 22.
14
Idem, p. 3, itens 4 e 5.
15
Disponível em: https://publicadministration.un.org/wsis10/WSIS-Action-Lines-and-
Facilitators. Acesso em: 27 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 191
2 A QUARTA GERAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Norberto Bobbio diz que os direitos não nascem todos de uma


vez, mas são frutos de uma evolução histórico-cultural (BOBBIO, 2004,
p. 5). As gerações dos direitos fundamentais são comumente divididas em
três, e se relacionam respectivamente, para fins didáticos, com o lema da
revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
A primeira geração remete ao Estado Liberal que se seguiu
à queda do regime absolutista na Europa do século XVIII.
Diz respeito aos direitos individuais focados na liberdade
em resistência ao Estado, exigindo desse uma postura
negativa, absenteísta, protegendo as liberdades básicas como
expressão, reunião e crença (LENZA, 2012, p.958).
A segunda surge no século XIX, em oposição ao Estado liberal,
e se relaciona com os direitos socioeconômicos. Pautadas pela igualdade,
esses direitos demandam uma postura ativa do Estado em prestar serviços
sociais. Aqui, os direitos se relacionam com o trabalho, a seguridade social,
a saúde, a educação e a subsistência humana. (LENZA, 2012, p. 959).
Já a terceira geração começa a ser pensada após o final da
Segunda Grande Guerra e a criação da ONU, com tendências a cristalizar-
se no final do século XX. Sua finalidade é a proteção do gênero humano
e se funda na ideia de fraternidade (solidariedade), englobando o direito
ao desenvolvimento, à autodeterminação, ao meio ambiente equilibrado,
ao patrimônio comum da humanidade; enfim, direitos difusos em geral.
(LENZA, 2012, pp. 959-960).
Retomando a ideia de que os direitos fundamentais são geracionais,
passa-se a investigar o surgimento de uma nova geração de direitos a partir
do paradigma informacional. Para Bobbio, esses direitos correspondem ao
meio ambiente; à privacidade do indivíduo - exposto a manipulação estatal
por conta das novas TICs; e à manipulação genética. Para ele:
Os direitos da nova geração, como foram chamados, que
vieram depois daqueles em que se encontraram as três
correntes de idéias do nosso tempo, nascem todos dos
perigos à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do
aumento do progresso tecnológico16.
Numa linha parecida com Bobbio, o professor Uadi Lammêgo
Bulos refere-se à quarta geração de direitos fundamentais como sendo o
16
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Nova ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 209.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 192
direito dos povos, relativos à informática, softwares, biociências, eutanásia,
alimentos transgênicos, clonagem e outros elementos ligados à engenharia
genética (BULOS, 2010, p. 516).
Já para Paulo Bonavides, para quem os direitos de quarta geração
consubstanciam a globalização dos direitos fundamentais, tal categoria
engloba os direitos à informação, à democracia direta e ao pluralismo.
(BONAVIDES, 2004, p. 573). Em posição semelhante se coloca Marcelo
Novelino. (NOVELINO, 2008, p. 229). Esse posicionamento se mostra mais
interessante para o presente trabalho, pois, como bem notou Ingo Sarlet:
A proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posições
que arrolam os direitos contra a manipulação genética,
mudança de sexo e etc., como integrando a quarta geração,
oferece nítida vantagem de constituir, de fato, uma nova
fase no reconhecimento dos direitos fundamentais,
qualitativamente divergente das anteriores, já que não se
cuida apenas de vestir com roupagem nova reivindicações
deduzidas, em sua maior parte, dos clássicos direitos de
liberdade17.
No contexto de uma sociedade da informação em que o
conhecimento e a comunicação sugerem uma nova forma de organização
hegemônica da política (latu sensu); e em que o pluralismo se intensifica,
abrindo caminho para a propagação da democracia participativa, imperioso
é discutir a necessidade do reconhecimento dessa última geração.
O direito à informação constitui corolário lógico das liberdades
de crença, expressão e imprensa constantes do rol da primeira geração.
Já o direito à comunicação aparece como um prolongamento decorrente
do progresso rumo à democracia, incluído na terceira geração. Aliás, a
comunicação e a informação já eram objeto de debate no âmbito ONU18.
E não poderia ser diferente. Os avanços da tecnologia da
informação e comunicação expandiram exponencialmente o potencial
democrático ao permitir que a comunicação se realize a qualquer distância
e em tempo real entre os indivíduos. A superação do espaçotempo dá forma
a contornos reais de participação democrática direta. Esse feito reforça o
próprio Estado Democrático de Direito ao proporcionar a intensificação
17
SARLET, Ingo. Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 51.
18
A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu Art. XIX: “Todo ser
humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de,
sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”. Disponível em: http://www.onu.
org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em: 19 jul. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 193
da luta pelo Direito, através da difusão de canais digitais que dão voz
às minorias, pluralizando o debate político. Ademais, como destacado,
também atua como maximizador dos direitos fundamentais.
A democracia direta, inerente à quarta geração, é agora
materialmente possível dado os avanços das TICs, e legitimamente
sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do
sistema (BONAVIDES, 2004, p. 571); e se propõe a disputar um espaço
antes monopolizado por grupos hegemônicos, como a grande mídia
ou grupos financeiros.
O exercício da democracia direta legitima o cidadão que ganha
um real poder de decisão política, além de garantir maior fiscalização sobre
o controle estatal. E vai além, propicia também uma vigilância do cidadão
enquanto fiscal e intérprete da constitucionalidade dos direitos positivados
- o que, aliás, promete ser um grande passo na esteira do pensamento de
Peter Häberler, acerca da interpretação constitucional pluralista19.
E mais: as TICs propiciam não só uma evolução da justiça
material, notadamente no fortalecimento da cidadania; mas também uma
evolução procedimental da justiça institucional (como é o caso, e.g. do
recente processo eletrônico já em voga no país), contribuindo para a
diminuição da burocracia e para o aumento da economia, celeridade e
efetividade processual.
Nesse contexto, o Direito deve reconhecer o valor dos novos fatos
que agora se impõem e adaptar-se às novas exigências sociais - sob pena de
ignorar a justiça. Porque em tempos de Sociedade da Informação, o acesso
às TICs, à educação tecnológica, à informação correta, à democracia direta
e à comunicação constituem elementos fundamentais para a estruturação
e o desenvolvimento da nova ordem política, socioeconômica e jurídica.
Essa nova perspectiva não quer olvidar o compromisso com
os direitos fundamentais anteriores. Ao contrário, o reconhecimento de
uma nova geração de direitos não invalida as anteriores, nem autoriza
o retrocesso. É evidente que prioridades devam ser estabelecidas na
busca pela justiça. Porém, é impossível ignorar os novos desafios que
se agora apresentam.
Para além da globalização econômica é necessário globalizar
a política, e, quanto aos direitos humanos, essa globalização dá-se pela
universalização dos direitos fundamentais no campo institucional i.e.
19
Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta
dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e
“procedimental” da constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2002.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 194
sua concretização. Nesse sentido: “A globalização política na esfera da
normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás,
correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado Social”
(BONAVIDES, 2004, p. 573).
Dessarte, e dado que direitos são reivindicações histórico-
políticas bem-sucedidas, o reconhecimento do surgimento de uma nova
geração de direitos fundamentais mostra-se uma alternativa filosófica e
institucionalmente coerente para lidar com os problemas nascidos ante a
mudança de paradigma para a sociedade da informação, tendo o condão
de demandar do poder político medidas positivas que imponham sua
concretização na luta pela inclusão social.

3 O PAPEL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NA


QUARTA GERAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Assumindo que as TICs terão papel crucial em promover, acelerar


e medir os 17 ODS, o documento final da CSMI+10 convoca os governos, a
sociedade civil, o setor privado, o terceiro setor e as comunidades técnico-
acadêmicas a integrar a aproximação das TICs para implementar os ODS.
Nessa esteira, ilustra o valor das TICs pelo potencial que o crescimento
no uso da Internet tem em reduzir a pobreza e criar empregos através
do incremento da eficiência e transparência no governo. Também cita a
possibilidade do uso das TICs em criação de bancos de dados de doenças
e como isso pode ajudar os governos a tomar decisões quanto às áreas
de saúde, reunindo informações sobre pessoas de risco, conhecimento de
especialistas e o monitoramento da propagação de doenças por profissionais
de saúde. Ademais destaca a possibilidade de equalizar a justiça de gênero
em relação às mulheres, através do e-voting e do e-learning, bem como de
sua utilização para denúncias anônimas20.
Nesse desiderato, a CSMI elegeu, desde 2005, como Linha de
Ação número um (C1), o “Papel das autoridades públicas de governo e
todos os interessados na promoção das TICs para o desenvolvimento”.
Para a Cúpula, o papel das autoridades públicas de governança é crucial
na promoção das TICs para alcançar melhores resultados. Em geral, o
Estado deve promover e-strategies, incluindo a capacitação humana21:
o fornecimento de um ambiente propício para as TICs florescerem pode
20
Disponível em: https://publicadministration.un.org/wsis10/WSIS-Action-Lines-and-
Facilitators. Acesso em: 27 out. 2016. p. 4.
21
Disponível em: http://www.itu.int/net/wsis/docs/geneva/official/poa.html#c1.
Acesso em: 27 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 195
acelerar a implementação do ODS. O desenvolvimento de capacidades
(entenda-se, uma educação digital que dê conta de instruir os usuários no
uso correto e eficiente das TICs), em particular para os grupos vulneráveis,
é tão importante como é uma política orientada pela demanda e por
assistência técnica.
As autoridades públicas e outras partes interessadas têm um papel
conjunto em minimizar as ameaças que vêm com as TIC, como a segurança
cibernética, proteção de dados, etc. Nesse sentido, destaca-se a existência
de uma necessidade contínua para o desenvolvimento de estruturas legais e
de execução para manter-se com a velocidade do avanço tecnológico. Uma
cultura global de segurança on-line precisa ser promovida e desenvolvida
por todas as partes interessadas. Para a CSMI, um espaço seguro on-line
vai certamente acelerar o progresso da realização do ODS22.
A implementação dessas e demais medidas contidas nas Linhas
de Ação da CSMI, demandam uma postura ativa do Estado no sentido
de promover, não só políticas públicas que visem à educação digital
do indivíduo e a consciência a respeito das novas tecnologias e suas
utilizações; mas também em fornecer os meios materiais necessários para
tanto, a contar com a infraestrutura pública e os meios materiais privados
para uso individual de cada cidadão.
Tais ações que envolvem a prestação material do Estado esbarram,
necessariamente, na capacidade estatal, limitada por sua finitude econômica
é a chamada “reserva do possível”, uma espécie limitação jurídica e fática
dos direitos fundamentais, pautado pelos recursos efetivamente dispostos
pela administração. (SARLET e FIGUEIREDO, 2008, p. 30).
Sem embargo, o Estado pode promover esse desenvolvimento não
só através da prestação material direta, mas também através do incentivo
da indústria nacional de TICs, do comércio internacional e de parcerias
público-privadas, com o terceiro setor, a sociedade civil e a comunidade
técnico-acadêmica - como elencado na Linha de Ação C1 da WSIS. Assim
como o Estado iniciou a revolução das TICs (CASTELLS, 2016, p 122), a
ele também incumbe promover a boa continuidade do processo, mediante
a promoção de políticas públicas que visem superar os novos desafios, e
para o que, o reconhecimento da quarta geração de direitos fundamentais
mostra-se fator de legitimação.

22
Idem, p. 5.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 196
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A era digital transformou a economia e a divisão do trabalho,


convertendo o capitaldinheiro em capital-informação. Do mesmo modo,
revolucionou a cultura e o campo aplicável à política. Nesse ínterim, o
acesso às fontes de informação e à educação digital deve ser fomentado e
promovido através de uma postura ativa do Estado. Do contrário, aumenta-
se a brecha digital que redunda em desigualdade econômica, social e
política. A sociedade da informação que agora se apresenta depende dessa
universalização pluralística para ser justa.
A democratização da comunicação não compreende apenas
o aumento numérico do acesso aos meios de comunicação (embora
essencial), mas também na ampliação das fontes e da participação recíproca
dos atores políticos com a possibilidade dos cidadãos interagirem entre si,
bem como de uma educação correlata apta a lidar com o novo paradigma.
Para que isso ocorra é necessário encarar a quarta geração dos direitos
fundamentais como fruto autônomo de um processo evolutivo e não como
mera amálgama dos direitos anteriores.
Assim, um caminho lógico para a superação dos novos desafios
trazidos pelo aparecimento da sociedade da informação aponta para o
reconhecimento da quarta geração de direitos fundamentais, consubstanciado
no papel social que é inerente ao Estado Democrático de Direito, como modo
de fundamentar políticas públicas que estejam alinhadas com as Linhas de
Ação da CSMI, visando os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Uma vez consolidada essa visão, torna-se possível exigir do Estado
um poder-dever de criar mecanismos de promoção de políticas públicas,
em cooperação com os demais setores interessados, que se incumbam de
lidar com os novos problemas oriundos da sociedade da informação, com
vistas ao aprimoramento democrático e à globalização política.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson


Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São
Paulo: Malheiros, 2004.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 197
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade
e Cultura. Vol. 1. A Sociedade em Rede. 17. ed. Tradução de Roneide
Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade
e Cultura. Vol. 2. O Poder da Identidade. 8. ed. Tradução de Klauss
Brandini Gehardt. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos
sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta
dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e “procedimental” da constituição. Trad.: Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX:
1914-1991. 2. ed. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia
do ciberespaço. Tradução de Luis Paulo Rouanet. São Paulo:
Folha de S. Paulo, 2015.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento
na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2011.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. São
Paulo: Método, 2008.
SARLET, Ingo. Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva
do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações.
In: SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos
fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008.
ZICCARDI, Giovanni. Resistance, Liberation Technology and Human
Rights in the Digital Age. Dordrecht: Springer, 2013.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 198
GLOBALIZAÇÃO DA REPRESSÃO ÀS DROGAS
E TRANSNACIONALIZAÇÃO DO CONTROLE
SOCIAL: REFLEXOS NA POLÍTICA BRASILEIRA
DE REPRESSÃO ÀS DROGAS

Ana Carolina de Morais Colombaroli*


Gabriel Frias Araújo**
Ana Cristina Gomes***

INTRODUÇÃO

O mundo vive, há mais de um século, o que pode ser chamado de


“guerra às drogas”. Foi em 1912 que se realizou a Primeira Conferência
Internacional sobre o Ópio, em Haia. Embora as suas decisões tenham
sido em grande parte abandonadas pela maioria dos países signatários, o
projeto ali apresentado saiu triunfante.
A partir da década de 1960, com a popularização da maconha e
do LSD (que, juntamente com outros elementos culturais, são vinculados
à contracultura e aos movimentos de contestação), o consumo de drogas
ganha o espaço público e consequente visibilidade. Como reação, é gerado
um pânico moral, deflagrador de uma produção legislativa intensa em
matéria penal, justificando os primeiros passos para a transnacionalização
do controle sobre os entorpecentes.
No ano de 1961, o paradigma proibicionista foi mundialmente
implantado, sob a coordenação da ONU e sob o patrocínio dos Estados
Unidos da América, a partir da Convenção Única sobre entorpecentes.
Os países signatários se comprometeram a punir com severidade o novo
inimigo, ou seja, o produtor, vendedor ou consumidor de drogas.
Nesse momento, estabelece-se o discurso que fundará a ideologia
da diferenciação, traçando uma nítida distinção entre o usuário e o
traficante de drogas, ou seja, entre doente e delinquente (DEL OLMO,
1990, p. 34). Além do processo de demonização das drogas, a ideologia da

*
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP.
Financiamento da Pesquisa: FAPESP
**
Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP.
***
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP.
Doutoranda pela Universidad de Salamanca.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 199
diferenciação possibilitou o uso político dos entorpecentes pelas agências
repressivas, criando um novo inimigo (CARVALHO, 2013, p. 62-65).
O Brasil não fica a parte do processo e insere-se em definitivo
na política internacional de combate às drogas sob a égide do regime
militar. Desde então, a política de drogas no Brasil tem se pautado pelas
convenções e tratados internacionais, intensificando-se a política belicista.
A globalização da repressão às drogas e a transnacionalização do
controle social têm como finalidade suprimir as fronteiras nacionais para
o combate à criminalidade. Corresponde a uma ideologia caracterizada
por uma concepção abstrata e ahistórica da sociedade, destacando-se
fundamentalmente os princípios do bem e do mal, da culpabilidade,
necessária nesse momento como centralizadora e unificadora das “normas
universais” que deveriam ser impostas (DEL OLMO, 1984, p. 90).
O presente trabalho pretende examinar a influência da
transnacionalização da ideologia “guerra às drogas” sobre o tratamento
penal dado a elas no Brasil, bem como sobre as configurações político-
criminais do modelo brasileiro de combate às drogas. Para tanto, parte
se de uma pesquisa de caráter eminentemente bibliográfico no intuito
compreender de que forma a legislação e a política de drogas nacionais
foram influenciadas pelo processo de globalização do combate às drogas.

1 O PARADIGMA PROIBICIONISTA

O proibicionismo pode ser definido como “uma forma


simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em
relação a determinado conjunto de substâncias”. Os desdobramentos do
proibicionismo, no entanto, vão muito além das convenções internacionais
e leis nacionais, modulando a compreensão contemporânea acerca das
substâncias psicoativas, estabelecendo limites arbitrários entre “drogas
legais” (como álcool e tabaco) e drogas ilegais (como a maconha, a
cocaína, o crack, entre outras), além de condicionar a própria produção
científica, que, ao menos até o final do século XX, era em sua maioria
voltada contra as drogas.
O proibicionismo é fruto de um conjunto de fatores sociais e
econômicos existentes - radicalização do conservadorismo puritano nos
EUA, interesse da indústria farmacêutica pela monopolização das drogas,
conflitos geopolíticos do século XX e o clamor das populações urbanas por
“lei e ordem”, diante do caos urbano. Embora a participação dos EUA seja

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 200
essencial para tornar o proibicionismo algo universal, conjunturas locais
na mesma direção ajudaram a fazer o fenômeno uma realidade global
(FIORE, 2012, p. 9).
A despeito das peculiaridades do paradigma proibicionista, ele
parte, basicamente, de dois elementos fundamentais: o primeiro, de que as
pessoas não precisam usar as drogas, e que seu uso é danoso por si mesmo,
não podendo ser permitido; o segundo, de que a melhor forma de o Estado
proibir o uso de drogas é perseguir e punir os produtores, vendedores e até
mesmo seus usuários.

2 A MUNDIALIZAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS

O paradigma proibicionista é predominante na abordagem


internacional da questão das substâncias psicoativas ilícitas. Em 1972,
Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos da América,
declara guerra às drogas.
Nos anos 1970, o controle mundial de psicoativos havia alcançado
um nível de alta regulamentação, e seu documento mais relevante era
a Convenção Única da ONU sobre psicotrópicos, de 1961. Tal tratado
representava um compêndio de décadas de convenções multilaterais que,
desde 1909, no Congresso de Xangai, vinham restringindo a livre produção,
venda e consumo de drogas estimulantes, como a cocaína, e narcóticas,
como os opiláceos. As normas internacionais tinham por objetivo banir
todo o uso que não fosse considerado para fins médicos.
Os Estados Unidos, durante todo esse processo, tiveram papel
fundamental na defesa das legislações antidrogas restritivas. A postura
estadunidense, com Nixon, toma forma de combate direto às drogas
ilícitas, diferenciando países produtores de países consumidores dessas
substâncias. Nessa distinção funda-se uma hábil estratégia de política
externa, numa lógica binária, que identificada países-fonte e, portanto,
agressores, e países-alvo, vítimas das subterrâneas máfias globais:
o sudeste asiático se encarregava da heroína, assim como o
México e o Caribe incumbiam-se de projetar maconha dos
EUA. Na América do Sul, uma droga bastante marginal
desde os anos 1920, a cocaína, passava a substituir a
marijuana nos negócios ilícitos dos traficantes locais. As
culturas de maconha existentes em solo estadunidense,
que desde os desertos de Nevada e do Oregon abasteciam
o mercado interno, não foram elencadas pelo governo

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 201
nos EUA como uma preocupação, já que era necessário
angariar apoio político e social para ações internacionais de
interceptação e erradicação de colheitas ilícitas de papoula e
coca (RODRIGUES, 2011, p. 257)
A guerra às drogas apresentava-se, assim, como uma postura
governamental voltada, de um lado, para a exteriorização do problema
da produção de psicoativos e, de outro, para a repressão interna aos
consumidores e organizações narcotraficantes. De uma só vez, a guerra
às drogas servia como artifício de política externa e, através da associação
entre drogas psicoativas a grupos específicos e dissonantes, como recurso
para disciplinarização, vigilância e confinamento de grupos sociais
ameaçadores à ordem interna, como os negros, os hispânicos e os pacifistas.
No âmbito internacional, as normas acordadas na Organização
das Nações Unidas seguiram a mesma linha de repressão total às drogas.
O LSD e a maconha foram condenados em adendos à Convenção Única,
uma vez que neles não eram vistas quaisquer propriedades medicinais.
O máximo de avanço alcançado pela política de drogas estadunidense e,
consequentemente internacional, foi a adoção da ideologia da diferenciação,
considerando que os consumidores deveriam receber atenção especial na
qualidade de enfermos.
A meta final continuou sendo a abstinência, a sobriedade em prol
da saúde individual e do bem-estar social. As décadas de proibicionismo,
no entanto, não trouxeram a erradicação do consumo mas, pelo contrário,
nos trouxe gravíssimos efeitos colaterais.

3 BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO SOBRE DROGAS NO


BRASIL

A criminalização do uso, porte e comércio de substâncias


entorpecentes no Brasil remonta ao período das Ordenações Filipinas,
mas somente ao final da década de 1930 se pode verificar o início de
uma política proibicionista sistematizada, estruturada com a criação de
sistemas punitivos autônomos, objetivando demandas específicas e com
processos de seleção e incidência regulados com independência de outro
tipo de delito. Embora, com a publicação do Código Penal (Decreto-Lei
2.948/1940), a matéria tenha sido recodificada, logo inicia-se na legislação
pátria - especialmente no que diz respeito aos entorpecentes - um amplo
processo de descodificação, com consequências drásticas para o descontrole
da dogmática jurídico-penal.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 202
A partir da década de 1960, com a popularização da maconha e
do LSD (que, juntamente com outros elementos culturais, são vinculados
à contracultura e aos movimentos de contestação), o consumo de drogas
ganha o espaço público e consequente visibilidade. Como reação, é gerado
um pânico moral, deflagrador de uma produção legislativa intensa em
matéria penal, justificando os primeiros passos para a transnacionalização
do controle sobre os entorpecentes. Nesse momento, estabelece-se o
discurso que fundará a ideologia da diferenciação, traçando uma nítida
distinção entre o usuário e o traficante de drogas, ou seja, entre doente e
delinquente. O primeiro é absorvido pelo discurso médico, representando
o estereótipo da dependência. Recai, sobre esse último, o discurso
jurídico-penal e o estereótipo de criminoso, corruptor da moral e da saúde
pública (DEL OLMO, 1990, p. 34). Além do processo de demonização
das droga, a ideologia da diferenciação possibilitou o uso político dos
entorpecentes pelas agências repressivas, criando um novo inimigo
(CARVALHO, 2013, p. 62-65).
A globalização da repressão às drogas e a transnacionalização do
controle social têm como finalidade suprimir as fronteiras nacionais para
o combate à criminalidade. Corresponde a uma ideologia caracterizada
por uma concepção abstrata e ahistórica da sociedade, destacando-se
fundamentalmente os princípios do bem e do mal, da culpabilidade,
necessária nesse momento como centralizadora e unificadora das “normas
universais” que deveriam ser impostas (DEL OLMO, 1984, p. 90). Como
em qualquer processo de universalização cultural, os argumentos essenciais
para a repressão da delinqüência são invocados de forma autônoma e
distantes das especificidades locais.
O Brasil insere-se em definitivo na política internacional de
combate às drogas com a aprovação e promulgação da Convenção Única
sobre Entorpecentes, já sob o regime militar, em 1964. No entanto, com o
Decreto-Lei 385/1968, contrariando a orientação internacional e rompendo
com a ideologia da diferenciação, passa-se, no país, a criminalizar o usuário
com pena idêntica àquela imposta ao traficante.
Após três anos de vigência do referido decreto, a Lei Anti-Tóxicos
(Lei 5.736/1971) adequa o sistema brasileiro de repressão às drogas
ao modelo internacional, redefinindo as hipóteses de criminalização,
modificando o rito processual, inovando na técnica de repressão aos
entorpecentes e marcando, definitivamente, a descodificação da matéria.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 203
Dá-se início, então, à alteração do modelo repressivo consolidado na Lei
6.368/1976, atingindo o ápice com a Lei 11.343/2006.
A Lei 6.368/1976 faz nítida a dicotomização entre usuário/
dependente e traficante que, apesar de aparecerem integrados no texto,
criam, em verdade, dois estatutos proibitivos diferenciados, moldados,
respectivamente, sob a lógica médico-psiquiátrica e jurídico-política, com
sanções e medidas autônomas aos sujeitos criminalizados (CARVALHO,
2013, p. 75). A referida lei traz consigo também o aprofundamento da
repressão, ao estender as penas do tráfico também às condutas de remessa,
preparo, fornecimento e transporte (e não somente às de importação,
exportação e venda de drogas, previstas no revogado art. 281 do Código
Penal), ao aumentar substancialmente as penas e dar ampla margem de
discricionariedade judicial para sua aplicação. Ademais, torna crime
autônomo a “associação para o tráfico” e cria causas especiais para o
aumento da pena, sem prever causas especiais de diminuição da pena para
condutas de menor potencial ofensivo. Desta forma, penalidades severas
passaram a ser aplicadas indiscriminadamente, sem diferenciar o pequeno
do grande traficante de drogas, especialmente porque o alvo da incidência
das agências de controle penal acaba recaindo sobre a juventude pobre
recrutada para a prática do pequeno varejo.
Seria possível imaginar que, após o processo de redemocratização
do país, com a promulgação da República em 1988 e uma nova conjuntura
nacional que buscava romper comas políticas repressivas dos governos
militares, ocorreriam profundas alterações em matéria de repressão penal.
O que se constata, em verdade, é um grande paradoxo: ao mesmo tempo em
que se verifica grandes conquistas no reconhecimento de direitos e garantias
individuais, inclusive dos encarcerados, são também previstos indicativos
repressivos de grande impacto no texto constitucional (BOITEUX, 2014,
p. 87). - em conformidade com o perfil traçado pela Convenção contra o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas da ONU
(1988), solidificando a política repressiva dos anos 1990 - o tratamento
constitucional dado às drogas aprimorou o modelo repressivo vigente
durante o período ditatorial. O seu tratamento é equiparado ao dos crimes
hediondos (CF, art. 5º, XLIII), com efeitos significativos nas esferas penal,
processual e penitenciária. Ao determinar a elaboração da Lei de Crimes
Hediondos, prevendo inafiançabilidade e insuscetibilidade de graça ou
anistia, a Constituição legitimou um estatuto que é fruto de movimentos
criminalizadores autoritários. Com a Lei de Crimes Hediondos (Lei

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 204
8.072/1990) e, posteriormente, coma Lei do Crime Organizado (Lei
9.034), intensifica-se a política criminal belicista das décadas anteriores.
Desde o início da década de 1990, debateu-se no Congresso Nacional
a necessidade de reforma integral da Lei de Drogas de 1976, com projetos de lei
que apresentavam medidas despenalizadores a discriminalizantes, centrados
na lógica da redução de danos, e outros que diagnosticavam a necessidade de
incremento da punitividade. Um complexo quadro de reformas legais e práticas
repressivas desembocaram na nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). A nova
Lei contemplou alterações substanciais no modelo legal de incriminação, com
especial destaque para o desdobramento da repressão ao comércio ilegal em
inúmeras hipóteses típicas e pela descarcerização da conduta de posse para
uso pessoal. No entanto, a base ideológica da Lei 11.343/2006 não só mantém,
mas reforça o sistema proibicionista inaugurado pela legislação anterior. A
pena mínima para o crime de tráfico é consideravelmente aumentada (de
três para cinco anos) e as hipóteses de incidência dos substitutos penais são
restringidas, justificadas pelo legislador pela necessidade de endurecimento
do combate ao tráfico. A ideologia da diferenciação foi consolidada no novo
estatuto, em detrimento de projetos políticos moldados a partir da política de
redução de danos e a despeito da crítica criminológica relativa ao fracasso da
política de guerra às drogas.
A Lei 11.343/2006, assim como a legislação anterior, não
determina parâmetros seguros para diferenciação entre as figuras do usuário,
pequeno, médio e grande traficante de drogas e atribui às autoridades, no
caso concreto, ampla margem de discricionariedade (MARONNA, 2014,
p. 44; BOITEUX et. al., 2009, p. 10, BOITEUX, 2014, p. 92).

4 CRÍTICA À POLÍTICA PROIBICIONISTA: EFEITOS


COLATERAIS

Primeiramente, partimos do pressuposto de que os danos


individuais e sociais decorrentes do uso de entorpecentes não
justificam a sua proibição.
Drogas consideradas legais, a exemplo das substâncias como
bebidas alcóolicas, bebidas estimulares (como cafés, chás e energéticos) e
o tabaco, possuem também substâncias psicoativas. No entanto, situam-se
fora da lista da ONU sobre drogas, e seu comércio é legal na maioria dos
países, de modo que sua compra e consuma são de decisão exclusivamente

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 205
individual para os adultos e são maciçamente consumidas por milhões
de pessoas no mundo.
As drogas de uso médico, por exemplo, também possuem riscos
na forma de efeitos colaterais não previsíveis e, até mesmo, letais. O
Estado, no entanto, limita-se a regular a produção e a comercialização,
sendo de responsabilidade, mais uma vez, exclusiva dos indivíduos, a sua
utilização, obedecendo as prescrições médicas. Em alguns casos, há droga
que ficam totalmente disponíveis nas gôndolas das farmácias, não sendo
necessário sequer receituário. Drogas como ansiolíticos e antidepressivos,
ainda que com fiscalização permanente, são com frequência vendidas no
mercado clandestino, e fazem parte de diversos estoques domésticos.
As drogas acima enumeradas são todas psicoativas e têm
grande potencial de dano, seja fisiológico, seja mental, podendo levar
a comportamentos perigosos e graves quadros de dependência. Uma
parte significativa delas é bastante tóxica, gerando grande número de
mortes acidentais por ano. Isso não faz com que elas sejam consideradas
prescindíveis, e muito menos, proibidas (FIORE, 2012, p. 14).
Os seres humanos, historicamente, fazem uso de drogas, seja para
enfrentar doenças, diminuir a ansiedade, aliviar a dor, despertar prazer,
estimular ou mesmo facilitar relações sociais. Não é a proibição que fará os
homens e mulheres a deixarem de fazê-lo. O Estado exagera ao promover
interdições ao uso de substâncias psicoativas por meio da criminalização,
impedindo pessoas adultas a dispor de seus próprios corpos.
Além disso, se a justificativa do Estado é a de “proteger os
indivíduos” dos efeitos danosos de das substâncias psicoativas, deveria
estender a interdição ao campo geral das drogas (lícitas), comportamentos e
inclusive alimentação. Tal justificativa não se sustenta, uma vez que o Estado
age discricionariamente, favorecendo determinados grupos econômicos, ao
proibir algumas drogas e permitir a ampla utilização de outras.
O século XX, marcado pelo proibicionismo, foi o período
histórico que mais viu o crescimento do consumo das drogas, sejam
elas legais, sejam elas ilegais. Não queremos afirmar que a proibição
gera na população um desejo maior de consumir drogas, mas sim, que
o proibicionismo falhou miseravelmente em seus objetivos, deseja de
erradicá-las, seja de contê-las. Um fenômeno complexo como este não
pode ser contido meramente através de um marco regulatório binário, que
divide as substâncias psicoativas em permitidas e proibidas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 206
A proibição da produção, comércio e consumo de drogas estimula
o surgimento e crescimento de um mercado clandestino, criando e
fomentando uma série de problemas sociais. A produção de entorpecentes
é o mercado criminoso mais lucrativo do mundo, e utiliza-se amplamente
da violência armada para a manutenção de seus interesses. Ora, “o mercado
remunera o risco” e, em decorrência disto, o tráfico de drogas experimenta
altíssimas margens de lucro, principalmente no setor de distribuição em
larga escala. Os ganhos altos permitem a compra de armamento pesado,
além da corrupção de setores da polícia e da burocracia estatal.
A atuação policial, no entanto, volta-se quase que exclusivamente
para o combate de pequenos comerciantes de drogas, que são, via de
regra, oriundos das camadas mais pobres da sociedade, que são presos
cotidianamente, inflando a população carcerária, ao passo que, descartáveis,
são quase que imediatamente repostos pelo chefes do tráfico.
A guerra às drogas transforma-se, então, numa guerra aos pobres.
O caso brasileiro é muito ilustrativo. Declarando o objetivo de combater o
tráfico, foram estabelecidas UPPs nas favelas de áreas valorizadas do Rio de
Janeiro; o exército ocupa morros, fazendo “mandados de busca coletivos”
nas comunidades, o que os permite invadir centenas, ou até milhares de
residências. O principal interesse na guerra às drogas mostra-se, então,
o controle social, que permite ao Estado selecionar os seguimentos da
população que deseja reprimir, ou mesmo massacrar, independente de o
comércio e consumo se dar em todas as classes sociais. A periferia fica
com a guerra, enquanto as áreas nobres da cidade ficam com as drogas.
Segundo a lógica introjetada nas políticas de segurança pública,
os traficantes são considerados inimigos sociais, negando-lhes a condição
de pessoa, considerando-os tão somente sob o aspecto de ente perigoso,
privando-os de direitos individuais, transformando-os em alvos que devem
ser destruídos. Isso se dá especialmente com os pequenos varejistas,
negros, pobres e moradores de periferia, uma vez que impera a lógica que
identifica automaticamente as classes subalternas como agentes do crime,
classes perigosas, e as favelas e bairros periféricos como áreas de risco.

5 O ENCARCERAMENTO POR DROGAS NO PAÍS

A hiperinflação carcerária é uma das consequências mais


reveladoras das políticas repressivas, implementadas nas últimas
décadas. O sistema penitenciário brasileiro, que sempre foi marcado pela

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 207
superlotação, diante de uma política repressiva, experimentou uma piora
ainda maior de suas condições carcerárias. As prisões brasileiras figuram
uma situação de extrema superlotação, com os internos mantidos em
condições que configuravam tratamento cruel, desumano ou degradante.
O aumento do percentual de presos cumprindo pena por tráfico de
drogas e o aumento da população carcerária brasileira é, em grande parte,
decorrente da maior severidade penal com relação ao tráfico de drogas.
Diante do quadro de aumento da pena mínima do crime de
tráfico, a equiparação a crime hediondo, que resulta em maior tempo de
cumprimento da pena para obter transferência de regime e livramento
condicional, bem como a ausência de distinção legal objetiva entre usuário
e traficante, a Lei de Drogas constitui-se uma das principais causas para
o aumento desproporcional do número de pessoas encarceradas no país.
O país viu seu número de encarcerados triplicar proporcionalmente
entre 1992 e 2012. O tráfico de drogas é hoje, o segundo crime com maior
representatividade carcerária, ficando atrás somente do crime de roubo.
Além disso, a seletividade da aplicação do sistema penal faz com que
os crimes de droga tenham uma representatividade maior das minorias
(étnicas e mulheres) entre os condenados.
O Brasil ocupa, hoje, o quarto lugar no ranking mundial de
encarcerados, contanto, em dezembro de 2012, com 548.003 pessoas
presas. Dentre esses, 138.198, ou seja, 25,21%, estão presos por
tráfico de drogas (BOITEUX, 2014, p. 94), sendo que, no ano de 2005,
anteriormente à entrada em vigor da lei de Drogas, os presos por tráfico
de entorpecentes representavam 9,10% da população carcerária brasileira
(BOITEUX, 2014, p. 94).
Quando analisamos as detentas do sexo feminino, o aumento da taxa
de encarceramento por tráfico de drogas é ainda mais expressivo. Segundo
os dados mais recentes disponibilizados pelo Departamento Penitenciário
Nacional, em dezembro de 2012 haviam, no Brasil, 35.199 mulheres presas,
representando cerca de 6,4% do total da população total encarcerada. Embora
esse possa parecer um número pequeno, deve-se atentar para o fato de que a taxa
de crescimento do número de mulheres presas no Brasil cresceu 173,7% desde
20051, e elas representavam cerca de 5,5% do total da população carcerária
nacional. Deste modo, a curva de crescimento carcerário feminino se mostra
muito mais acentuada do que a curva de crescimento carcerário masculino.
1
No ano de 2005, anteriormente à entrada em vigor da Lei de Drogas, havia
20.264 mulheres presas no Brasil, perfazendo 5,47% da população carcerária
brasileira (BRASIL, 2013).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 208
Embora, em termos absolutos, haja mais homens presos por tráfico
de drogas, em termos relativos, as mulheres estão super-representadas entre
os condenados por esse crime. Observa-se um aumento desproporcional
do encarceramento feminino, de modo que 10,63% das condenadas por
crimes ligados a drogas são do sexo feminino. Ao observar a população
carcerária feminina, verifica-se que 60% delas estão presas por tráfico -
e, a pena aumentada para esses crimes, acaba por agravar ainda mais a
situação de super encarceiramento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo proibicionista de combate às drogas mostrou-se


um fracasso. A própria Organização das Nações Unidas, por meio de
documento da Comissão Global da Política de Drogas das Nações Unidas,
considerou-a um fracasso, e pedem que os países considerem a possiblidade
de legalização, ao menos, da maconha.
A repressão penal sobre as drogas ilícitas é cara, incapaz de
proteger a saúde pública, pois o consumo não foi controlado, as drogas
são cada vez mais potentes e as penitenciárias estão lotadas de pequenos
traficantes. O mercado negro instaurado pelo banimento legal dos
psicoativos tornou-se uma pujante economia negociadora de compostos
produzidos, transportados, vendidos e usufruídos na clandestinidade. A
violência trazida na esteira das máfias narcotraficantes e as consequências
individuais do uso de substâncias adulteradas e ministradas sem segurança
produziram vozes críticas dentro de Estados proibicionistas.
Atualmente, o combate às drogas é visto por alguns grupos de
médicos e cientistas sociais, principalmente europeus, australianos e
estadunidentes, como uma guerra que nunca terá fim, que deveria ser
substituída por uma outra ótica, posto que o fim do consumo é impossível,
e buscasse minimizar os perigos para aqueles que optaram pelo uso.
Faz-se imprescindível pensar em soluções que envolvam a
despenalização e descriminlalização do uso e da posse de drogas, uma
visão reformista, genericamente conhecida como “redução de danos”, que
pretende buscar formas e administrar o hábito de utilizar drogas psicoativas,
uma vez que o contrário é impossível, além de uma tarefa politicamente
intencionada, tanto a nível interno quanto a nível internacional.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 209
REFERÊNCIAS

BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento


da população penitenciária brasileira e alternativas. In SHECAIRA,
Sérgio Salomão (org). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo:
IBCCRIM, 2014. p. 83-103.
BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela Wiecko Wolkmer de; VARGAS,
Beatriz; BATISTA, Vanessa Oliveira; PRADO, Geraldo Luiz
Mascarenhas; JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano. Tráfico de drogas
e constituição: Um estudo jurídico-social do tipo do art. 33 da Lei de
Drogas diante dos princípios constitucionais-penais. Brasília/Rio de
Janeiro: UnB/UFRJ, 2009.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil:
estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2013.
CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES (CELS);
MINISTERIO PÚBLICO DE LA DEFENSA DE LA NACIÓN;
PROCURACIÓN PENITENCIARIA DE LA NACIÓN. Mujeres
en prisión: los alcances del castigo. Buenos Aires: Siglo
Veinteuno Editores, 2011.
DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de
Janeiro: Revan, 1990.
DEL OLMO, Rosa. América Latina y su criminologia. México:
Siglo Veinteuno, 1984.
FACIO, Alda; CAMACHO, Rosalía. Em busca das mulheres perdidas -
ou uma aproximação - crítica à criminologia. In: Mulheres: vigiadas e
castigadas. São Paulo: CLADEM Brasil, 1995, pp. 39-74.
FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas. Novos estudos-
CEBRAP, São Paulo, n. 92, p. 9-21, 2012. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010133002012000100002&
lng=en&nrm=iso. Acesso em: 18 abr. 2016.
ILGENTRITZ, Iara. As drogas e o novo perfil das mulheres
prisioneiras no estado do Rio de Janeiro. 2003. Disponível em: http://
www.mamacoca.org/FSMT_sept_2003/pt/doc/ ilgenfritz_drogas_
mulher_prisioneira_pt.htm. Acesso em: 17 abr. 2014.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 210
MARONNA, Cristiano Avila. Os novos rumos da política de drogas:
enquanto o mundo avança, o Brasil corre o risco de retroceder. In
SHECAIRA, Sérgio Salomão (org). Drogas: uma nova perspectiva. São
Paulo: IBCCRIM, 2014. p.43-64.
RODRIGUES, Thiago. Política de drogas e a lógica dos danos. Revista
Verve, São Paulo, v. 3, n. 3, 2011.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Reflexões sobre as políticas de drogas. In
SHECAIRA, Sérgio Salomão (org). Drogas: uma nova perspectiva. São
Paulo: IBCCRIM, 2014. p. 335-265.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 211
CASAMENTOS PREMATUROS EM
MOÇAMBIQUE, UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA

Esteves Pedro Dina António Camacho*

INTRODUÇÃO

O Casamento prematuro (precoce) vem merecendo atenção


especial uma vez que, quer nas localidades, quer nos grandes centros
urbanos, essa prática tornou-se cada vez mais aceite, mesmo com toda
danosidade que possa representar para a sociedade moçambicana. Durante
muito tempo esse fato, enquanto danoso, ficou escondido debaixo do
manto de uma sociedade machista e patriarcal, todavia, mais recentemente
constatou-se que Moçambique é um dos países com maiores incidências
de casamentos prematuros no mundo.
Uma pesquisa realizada pela Unicef (2014) mostrou que
Moçambique ocupa a 11ª posição no mundo, a 10ª posição no continente
Africano e a 2ª posição na África Austral. Num país cuja a população
é maioritariamente jovem, com cerca de 12,6 milhões de crianças,
correspondentes a 52% da população
Constata-se que no universo das mulheres casadas, 52% casaram-
se antes dos dezoito anos, 18% antes dos quinze anos1 e que o maior índice
de ocorrência dessa modalidade de casamento se dá na zona rural numa
percentagem de 56% contra 36% das zonas urbanas2, sendo a população
feminina, pobre e de baixa escolaridade a mais afetada. Esse fenômeno
distribui-se geograficamente pelas províncias do país, sendo destacadas as
províncias do centro e norte como as que mais contribuem negativamente
na estatística na seguinte proporção: Nampula (24%), Zambézia (18%),

*
Mestrando em Direito na Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, Brasil. Bolsista do CNPq/MCT.
1
UNFA-MOÇAMBIQUE. Gravidez na adolescência: desafios e respostas de
Moçambique, Maputo: 2013. Disponível em: http://countryoffice.unfpa.org/mozambique/
drive/SWOP_Suplemento, p. 6.
2
UNFA-MOÇAMBIQUE. Casamento prematuro e gravidez na adolescência em
Moçambique: Resumo e análises. Maputo: 2015. Disponível em http://countryoffice.
unfpa.org/mozambique/drive/SWOP_Suple mento, p.6. e http://www.unicef.org.mz/wp-
content/uploads/2015/07/PO_Moz_Child_Marriage_Low_Res.pdf, p. 3.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 213
Cabo Delegado, Tete e Manica (9%), Sofala (8%), Niassa (7%), Inhambane
e Gaza (5%), Maputo (4%) e Maputo Cidade (2%)3.
O Código Civil (Decreto nº 47344, de 25 de Novembro de
1966) e a Lei da Família (Lei 10/2004) estabelecem respetivamente
a idade civil aos 21 anos idade e a idade núbil aos 18 anos, portanto, a
ocorrência de casamentos prematuros, constitui uma violação a legislação
pátria e aos direitos da criança, do adolescente e da mulher plasmado na
legislação internacional.
A ausência de proteção estatal efetiva, a inacessibilidade ao
sistema educacional formal e de saúde, a inexistência de um tratamento
especializado às crianças em razão da sua condição de menoridade
contribui para o aumento ou a manutenção do status quo do índice do
casamento prematuro.
Tanto a Convenção sobre os Direitos da Criança e Adolescente
(1989), Declaração Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981),
Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança (1979), como a
Declaração de Genebra (1924), ao defenderem uma proteção especifica
às crianças e adolescentes, dada à especial vulnerabilidade que apresenta,
atribuem aos Estados signatários o desafio de assumir o protagonismo no
intuito de assegurar a não violação do bem jurídico protegido. Apoiado
nestas premissas e suas normatizações, angariase aqui a tentativa de refletir
em processos de mitigação, a fim de que a luta contra essas violações
não restrinja-se à meras proclamações retóricas. A análise, tendo como
base a realidade sócio-jurídica moçambicana, vai se valer do método
exploratório4, através de referencial teórico adequado ao tema.

1 RAZÕES DA OCORRÊNCIA DOS CASAMENTOS


PREMATUROS

O surgimento do casamento prematuro possui contornos mais


retrógrados, na medida em que, apenas com uma compreensão do
contexto global, entenderemos porque as mulheres são vítimas desse mal
social. Parafraseando Rodrigo Pereira5, a história da mulher no direito
3
MOÇAMBIQUE. Ministerio da Saude (MISAU). Instituto Nacional de Estatística
(INE) e ICF International (ICFI). Moçambique Inquérito Demográfico e de Saúde
2011. Calverton, Maryland, USA: MISAU, INE e ICFI. 2013
4
Nas palavras de Gil (1999, p.41): “pesquisa exploratória é utilizada no momento em
que o pesquisador entra em contacto com as fontes de colecta de dados, alcançando maior
familiaridade com o problema, com vista a torna-los mais explícito”.
5
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores param o
direito da família. Belo Horizonte: Livraria do advogado, 2006.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 214
é de ausências, sem autonomia e entregue ao regime de incapacidades,
alicerçada na base da divisão sexual do trabalho. Desta feita, as atribuições
sociais são criteriosamente cunhadas tendo em vista a negativação da
mulher, sustentada por um consenso social. Assim a mulher para existir
deve se entregar ao silêncio sepulcral, como demostra o aforismo de Lacan:
a mulher não existe, numa clara crítica ao fato da mulher apresentar um
discurso sempre associado ao discurso masculino. Esse silêncio sagrado
e litúrgico sempre lhe foi exigido, mesmo diante das mais perversas
atrocidades protagonizadas em sua direção, pois ela sempre esteve na
condição subalterna no sistema patriarcal, devendo obediência aos homens
(ao pai antes de se casar e ao marido depois de se casar).6
“Este corpo é inacabado como de uma criança, está desprovido
de sémen como de um homem estéril. Doente por natureza,
consegue construir-se mais lentamente na matriz, por causa
da sua debilidade técnica, mas envelhece rapidamente
porque tudo que é pequeno chega mais rapidamente ao seu
fim, tanto nas obras artificiais como nos organismos naturais.
Tudo isso porque as fêmeas são por natureza, mais fracas e
mais frias e a sua natureza deve ser considerada deformidade
natural7(Grifo nosso).
Diante desses fundamentos, com pilares na barbárie, a mulher
vendo suas capacidades forçosamente reduzidas, assumiu o rótulo do
ator mais frágil8 do cenário desenhado, ocupando, os papeis que lhe
foram atribuídos em função da sua “deformidade natural”. Já no âmbito
doméstico, desterrada do cenário público e político, sua força produtiva
nunca foi devidamente considerada9. Esse aparato repressivo, deixou a
mulher fora do sistema educativo formal, evidentemente com raríssimas
exceções, como afirma Duby e Perrot “Votadas ao silêncio da reprodução
materna e doméstica afastadas do teatro em que defrontam heróis, senhores
dos destinos, auxiliares por vezes, raramente atrizes “ e, nesses caso, só
por excecional falha do poder”.10
Ora a desconstrução da pretensa superioridade masculina é um
processo que vem sendo desenvolvido por diversos movimentos que
6
SAFFIOTI, Heleieth. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 29.
7
DUBY, Georg; PERROT, Michelle. Historias das mulheres no ocidente. São Paulo:
Ebradil, 1990, p.142.
8
SAFFIOTI, Heleieth. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 34.
9
BERENICE DIAS, Maria. Manual de direitos das famílias. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 101.
10
DUBY, Georg; PERROT, Michelle. Historias das mulheres no ocidente. São Paulo:
Ebradil, 1990, p.170.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 215
lutam pela isonomia dos direitos entre os gêneros, fortemente ligado a
nova conjuntura política, econômica, religiosa, ética, etc, porém importa
referir que os “fatores geradores do apartheid feminino, hoje muito menos
acentuado nas sociedades ocidentais, estão na essência da própria cultura
e cuja tradução fazem parte os ordenamentos jurídicos”.11
Embora, em tese, a desigualdade do gênero tenha sido superada
no Direito moçambicano, essa assertiva não se confirma na medida em
que os avanços legislativos (artigos 3512 e 3613 da Constituição), não foram
suficientes ultrapassar a desigualdade material entre homens e mulheres.
Como bem afirma Pereira “igualdade insere também os princípios da
autonomia e o da dignidade da pessoa humana”14. Assim, a construção
social do “ser e dever ser” mulher - criança dentro do papel que ela deve
desempenhar, está na base de todas as eventuais causas que se podem
apontar dentro do contexto social, político, econômico em que as crenças
culturais, as práticas costumeiras contra legem violam os direitos da
mulher e da criança. Uma vez identificada a causa principal, as restantes
são causas subalternas que, para sua manifestação, são totalmente
dependente da primeira.
As violações dos direitos e da dignidade da criança passam
camufladas dentro da correlação de forças socialmente estruturadas entre
adulto e criança, homem e mulher, no bojo da construção dualística como
afiança Sánchez Rubio “A partir dele, mostrar-se-á de que maneira nosso
imaginário jurídico se orienta [ ] paradigma da simplicidade que dualiza,
hierarquiza, amputa e reduz a realidade em geral [ ].”15
Neste contexto, o casamento prematuro é uma das manifestações
hierárquicas visíveis, em que a mulher (criança) ocupa seu lugar de
coadjuvante “sem voz”, uma vez que ela não escolhe a condição a que
é submetida. Sendo uma prática cultural, o casamento prematuro é visto

11
CUNHA apud CUNHA PERREIRA, Rodrigo da. Principios fundamentais
norteadores do direito da família. Belo Horizonte:Del Rey, 2006, p.143.
12 “
Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão
sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica,
lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais,
profissão ou opção política.”
13 “
O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política,
económica, social e cultural.”
14
PERREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores param o
direito da família. Belo Horizonte: Livraria do advogado, 2006.
15
SÁNCHEZ RUBIO, David. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de
emancipações, libertações e dominações. Porto alegre: Livraria do Advogado, 2014, p.25.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 216
como um fator de realização da mulher por ascender ao lar tão desejado
por ela e pela família.16
Outras razões que se pode associar à primeira são níveis de
educação baixo, verificado sobretudo nas zonas rurais, que conduz a
falta de informação e a pobreza. Para reduzir os encargos domésticos, as
famílias “entregam” suas filhas ao casamento prematuro, como afere as
tendências apresentadas pela UNICEF: as raparigas de 15 a 19 anos nos
20% da população mais pobre têm mais probabilidade de se casarem do
que as famílias em melhor situação, embora a prática ocorra em todos
níveis sócio “económico da sociedade”.17

2 EFEITOS SOCIAIS E PSICOSSOCIAS

Não se pode falar dos efeitos psicossociais sem conectá-los a


dignidade humana, que vem positivada na Constituição de Moçambique
(art. 3) sem apresentar “ad litteram” o seu conteúdo semântico, para tanto,
os intérpretes encontram significados a partir do marco de Emanuel Kant,
que traz a compreensão ética da natureza do ser humano18. Sendo o homem
portador da consciência moral, o torna capaz de responsabilidade e liberdade.
Segundo relatório Mundial sobre a Violência Saúde (Gil, 2014),
a violência é o maior problema de saúde pública no mundo, as vítimas da
violência impostas pelo casamento prematuro padecem de doenças físicas
e psicológicas como a depressão, transtornos de ansiedade e transtorno
de stress pós traumático, que se manifesta através do medo, desejo de
suicídio, distúrbios alimentares e de sono, dores de cabeça e de estomago,
mal estar geral, dificuldades de concentração e memória, síndrome da
hiper vigilância, pesadelos, flashback19, desconfiança permanente de tudo
e de todos, dissociação. Essa violência pode aumentar os fatores de risco
para a saúde como uso de drogas, abuso de uso do álcool, tabagismo e
distúrbios alimentares, que podem estar na origem de doenças cardíaca,
câncer, suicídio e o HIV/SIDA.

16
Para as famílias ter uma filha “casada” é uma honra, por isso seguem a lógica
“melhor casar logo enquanto existe um pretendente”, não se importando com a idade do
pretendente e nem da filha.
17
UNICEF e MISA. Violência, exploração e abuso sexual de criança: análise
jornalística e recomendações para os medias. Maputo, 2008, p.9.
18
PERREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores param o
direito da família. Belo Horizonte: Livraria do advogado, 2006, p.96.
19
É um fato acontecido no passado inserido em um momento atual, através da
lembrança das pessoas

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 217
Todavia, cada vítima tem uma reação peculiar, nas
palavras de Gil (2014):
De um modo geral, “o tipo de reacção dos pacientes
é determinado por sua estrutura psicológica. A sua
personalidade, destacando-se a personalidade pré-mórbida
ou a existência de perturbação psicológica anterior” A
confusão de ideias (desespero, raiva, irritabilidade, medo
da dor e da morte), choro fácil, distanciamento afectivo, é
outros sinais ou sintomas psicológicos que ocorrem com
frequência. (Gil(2014:12)
O casamento prematuro, para além de cercear o acesso à educação
formal, provocar complicações de saúde como a fistula obstétrica, é
uma das causas principais da mortalidade no período neonatal (34,9%),
verificadas frequentemente nas crianças nascidas de mães adolescentes.20

3 CASAMENTO PREMATURO

A ordem jurídica moçambicanos (Lei 10/2004), define casamento


como sendo a união voluntária e singular entre um homem e uma mulher,
com propósito de constituir família, mediante comunhão plena de vida
(art7). Para além da união civil, a lei prevê a união religiosa e tradicional
desde que se observe os requisitos exigíveis para um casamento
civil e que se registre no cartório para que produza os mesmos efeitos
jurídicos da união civil.
Para tanto, é necessário atentar aos impedimentos dirimentes
absolutos: idade inferior a dezoito anos; demência notória, a interdição ou
inabilitação por anomalia psíquica, o casamento anterior não dissolvido, o
parentesco na linha reta, o parentesco em segundo grau da linha colateral
(art.30). Aos impedimentos dirimentes relativos e impedientes: a afinidade
na linha reta, a condenação de um dos nubentes, o prazo inter nupcial,
o parentesco até ao quarto grau da linha colateral, o vínculo da tutela,
curatela ou administração legal de bens, vínculo que liga o acolhido aos
cônjuges da família de acolhimento, pronúncia do nubente pelo crime de
homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o cônjuge de outro,
enquanto não houver despronúncia ou absolvição por decisão transitada
em julgado (art.3132).

20
UNFA-MOÇAMBIQUE. Gravidez na adolescência: desafios e respostas de
Moçambique. Maputo, 2013, p. 15.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 218
Importa referir que constitui exceção ao impedimento dirimente
absoluto no quesito idade, o casamento da mulher ou do homem com
mais de desasseeis anos, quando ocorra circunstância de reconhecido
interesse público e familiar e houver consentimento dos pais ou dos legais
representantes (art30).
Ora, abstraindo-se os elementos valorativos, podemos aduzir que o
casamento prematuro é uma forma de “constituição de família” e que segue
a mesma lógica das outras modalidades de casamentos dentro do ordem
jurídica moçambicana, que é da união de pessoas de sexos diferentes com
firme propósito de coabitar em plena comunhão. Desta feita é casamento
prematuro, aquela união que envolve um homem e/ou uma mulher antes
completar 18 anos de idade, portanto, as mesmas premissa dos casamentos
formais e/ou uniões informais são válidas, com exceção da menoridade.

4 A CRIANÇA, DA INSTABILIDADE E A VULNERABILIDADE

Pela definição, para a materialização do casamento prematuro,


é necessário o envolvimento de pelo menos uma criança ou adolescente.
Pode uma criança assumir responsabilidades matrimoniais?
A expressão “criança e adolescente” insere em si a dimensões
político-social na medida em que esses atores se deparam com constantes
afrontas a cidadania na realidade jurídica de muitos ordenamentos. Tanto
a Convenção sobre os Direitos da Criança, nos artigos 2, 3 4, 5, 6, como
o Estatuto da Criança Adolescente (ECA) de 1999, nos artigos 5, 6, 9, 12,
estabelecem a criança e adolescente como sujeitos de direitos e entes em
processo específico de desenvolvimento.
Segundo a Convenção dos Direitos da Criança, adotada pelas
ONU em 20 de novembro de 1989, é criança todo ser humano com idade
cronológica até 18 anos, exceto se existir uma lei no país signatário que
confere a maioridade abaixo do estipulado a priori. Para a ONU, nesta
Convenção, é criança todo ser humano que não tenha 18 anos, distanciando-
se, portanto, da dualidade entre infância (criança) versus adolescente.
Moçambique, segue a terminologia da Convenção da ONU
e da Carta Africana dos Direitos e Bem Estar da Criança, não estabelecendo
diferenciação legal entre criança e adolescentes como ocorre em outros
ordenamentos jurídicos.
Embora com extrema imprecisão jurídica, o termo criança alcança
indivíduos com idade inferior ou igual a 15 anos, situação essa que foi

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 219
introduzida em 2006 pela Resolução 32/2006 do Conselho de Ministro
de Moçambique, denominada de Estratégia de Desenvolvimento Integral
da Juventude, a qual estabelece a diferença entre criança e jovem, sendo
jovem o indivíduo que se encontra no intervalo etário de 15 a 35 anos, o
que subliminarmente se subtrai que abaixo dos 15 anos sejam considerados
crianças. Todavia, vale lembrar que o Código Civil moçambicano define
maioridade plena, maioridade civil, aos 21 anos de idade (art.130), salvo
exceções demandadas do artigo 124, o qual estabelece a emancipação
por anuência dos representantes legais. De outra forma, a Constituição
moçambicana define a maioridade política aos 18 anos (art.26). O
indivíduo pode votar e ser votado, ou seja, exercer plenamente a cidadania.
O Código Penal moçambicano estabelece a maioridade penal aos 16 anos,
idade em que se pode imputar responsabilidade por condutas tipificadas
como crime (art.75).
Em outros países, como o Brasil, a diferenciação entre criança e
adolescente é nítida. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei
8.069, de 1990, que versa sobre a proteção das crianças e adolescentes,
estabelece que é criança pessoa com idade inferior a 12 anos e adolescente
a pessoa que esteja na faixa etária dos 12 aos 18 anos (art.2º). Só em caso
excecionais a adolescência vai até aos 21 anos de idade (art.142º).
O conceito de “criança e adolescente” varia de ordenamento
para ordenamento, alguns coincidem com a definição adotadas pelas
organizações internacionais. Os tratadista da matéria tendem a estabelecer
diferenças entre os dois conceitos sendo, como assevera Frota “[ ]
a compreensão de que ser criança resume-se em ser feliz, alegre,
despreocupado, ter condições de vida próprias ao seu desenvolvimento, ou
seja, a infância é considerada o melhor tempo da vida [...] adolescência se
configura como um momento em que, naturalmente, o indivíduo torna-se
alguém muito chato, difícil de se lidar e que está sempre criando confusão
e vivendo crises [...]21
Na linha complementar Belloni afirma que “criança é a pessoa,
o cidadão com direitos, e deve ser considerada um ator social, sujeito do
seu processo de socialização, um consumidor com poder, um indivíduo
emancipado em formação, isto é, o que está aprendendo ou não a exercer
os seus direitos.”22 Assim, falar da infância é olhar do ponto de vista
21
FROTA, Ana Maria Monte Coelho. Diferenças concepções da infância e adolescência:
a importância da historicidade para sua construção. Estudos e Pesquisas em Psicologia.
Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 146-161, abr. 2007.
22
BELLONI, Maria Luiza. O que é sociologia da infância. Campinas, SP:
Autores Associados, 2009.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 220
sociológico, usar categorias para compreender fenômenos sociais, como
classe, gênero, escolaridade que podem ser entendidas como uma variável
explicativa de diferentes formas, dominantes ou não.
Becker assegura que o conceito epistemológico da palavra
advém do latim, ad para e olescer - crescer, que seria crescer para alguma
coisa. Esta seria a fase mais problemática do ser jovem23, na mesma
perspectiva assevera o Levisk que os adolescentes, por suas características
biopsicossocial, tende espontânea e naturalmente a passar ao ato, com maior
incidência a descarregar seus impulsos agressivos e sexuais diretamente,
através de processos primários. Isto é, através de vias eferentes. Estas
são vias de expressão rápida e buscam a satisfação imediata dos desejos,
sem passar pelos critérios de avaliação, simbolização e linguagem que
caracterizam o processo secundário.24
A adolescência consubstancia um processo, em que demanda
várias alterações psíquicas complexas, que determinarão para cada
indivíduo, uma identidade específica. Nas palavras de Aberastury &
Knobel destacam-se quatro momentos cruciais, “os lutos”: pelos pais
da infância, pela identidade infantil, pelo corpo infantil perdido e pela
fantasia da bissexualidade.25
A adolescência é fase intermédia entre a infância (criança) e a
vida adulta. Esse período marcado pela erupção físico, mental, emocional,
sexual e social e em alcançar metas sociais e culturalmente esperadas. Há
nítidas mudanças corporais na puberdade que culmina com o seu total
crescimento e o enquadramento social do “eu”.26
Ora, em relação a terminologia adolescente Eisenstein vai além e
estabelece limites cronológicos “Os limites cronológicos da adolescência
são definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) entre 10 e
19 anos (adolescents) e pela Organização das Nações Unidas (ONU)
entre 15 e 24 anos (youth), critério este usado principalmente para fins
estatísticos e políticos.”27
23
BECKER, Daniel. O que é adolescência. São Paulo SP, Brasiliense, 8ª ed. 1999
24
LEVISKY, David Léo. Adolescência e violência: consequência da realidade
brasileira. In LEVISKY, David Léo (Org). Aspectos do processo de identificação do
adolescente na sociedade contemporânea e suas relações com a violência. São Paulo:
Casa do psicólogo, 2000, p.21.
25
LEVISKY, David Léo(Org). Adolescência e violência: consequência da realidade
brasileira. In ROOSEVELT, M. S. Cassorla; ELIZABETH L. M. Smeke. Comportamento
suicida no adolescente: Aspectos Psicossociais, 2000, p. 99.
26
EISENSTEEIN, Evelyn. Adolescência: definição, conceitos e critérios. Adolescência
& Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-6, jun. 2005, p. 6.
27
EISENSTEEIN, Evelyn. Adolescência: definição, conceitos e critérios. Adolescência
& Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n.º 2, p. 1-6, jun. 2005, p. 6.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 221
Na maioria dos países a maioridade é alcançada aos 18 anos,
todavia, diante da existências de outros critérios de definição o conceito se
torna “flexível e confuso” segundo os hábitos culturais.28
Essa constante busca por um conceito mais ajustável de “criança”,
“adolescente” e “jovem”, demostra uma clara preocupação com as atitudes
dos menores no grupo social, ficando claro que tanto na infância (criança)
e como na adolescência, o indivíduo é incapaz de construir um raciocínio
perene em relação a sua personalidade, tornando-se suscetível de várias
mutações tendo em vista a sua fase de construção, obviamente fortemente
influenciada/influenciável pelo ambiente social circundante. Neste
momento, os ideais narcísicos mais primitivo ligados à onipotência, à
negação da realidade e à cisão podem predominar no ego, com consequente
perda ou diminuição do senso crítico e da autonomia individual29, o que
nos leva a concluir que os indivíduos com idade inferior a 18 anos são
vulneráveis e não possuem maturidade suficiente para agir livremente.

5 A CRÍTICA

Ora, legalmente, para que o casamento exista é necessário, antes


de mais nada, esteja presente a liberdade de anuir das partes, haja vista o
artigo 7 da lei 10/2004, a qual define como casamento a união voluntária,
no sentido de consentimento, anuência, aquiescência das partes, e singular,
no sentido monogâmico e não poligâmico, entre um homem e uma
mulher com propósito de constituir família mediante comunhão plena de
vida. Do texto legal podemos aferir que toda união que não se encaixe
dentro das premissas “voluntária” e ”singular” não deve ser considerado
efetivamente casamento.
Como visto anteriormente, um adolescente possui características
biopsicossocial que tende a espontaneidade e a descarregar seus impulsos
agressivos e sexuais diretamente através de processos primários sem o
devido escrutínio, portanto, é mister afirmar que o adolescente não está
dotado de maturidade suficiente para avaliar a extensão dos compromissos
que assume ao casar-se, neste caso, não se pode falar em consentimento
consciente e nem tão pouco em exercício da liberdade. Conforme demanda
28
EISENSTEEIN, Evelyn. Adolescência: definição, conceitos e critérios. Adolescência
& Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n.º 2, p. 1-6, jun. 2005, p. 6.
29
LEVISKY, David Léo. Adolescência e violência: consequência da realidade
brasileira. In LEVISKY, David Léo (Org) Aspectos do processo de identificação do
adolescente na sociedade contemporânea e suas relações com a violência. São Paulo:Casa
do psicólogo, 2000. Pag.22

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 222
da lei, em Moçambique a idade núbil é fixada em 18 anos de idade, salvo
exceções de até 16 anos, no fundando interesse público e familiar com
consentimento dos país ou representantes legais, que segundo nosso
entendimento, não deviam existir. O menor de idade (criança), não é capaz
de dar seu consentimento moral válido para se casar, e toda união em
que uma ou ambas partes são menores de idade é uma união forçada, e
portanto, inválido. O casamento prematuro para além de ser uma forma de
violência de gênero, por afetar na sua maioria as mulheres, é também uma
violação aos direitos da criança, por impor sob pressão/manipulação, com
argumentos espúrios, motivados por razões econômicas, culturais e sociais.
Nessa perspectiva, a lei moçambicana que versa sobre o
casamento, deixa uma lacuna, na medida em que. Só pode-se falar de uma
lacuna do Direito quando as normas existentes (legais, contratuais, ou de
direito consuetudinário) não satisfazem completamente a intenção geral do
Direito, dirigidas a determinadas relações jurídicas ou grupo de relações
jurídicas.30 Assim a lei 10/2004 ao abrir a exceção supra, cria condições
para que se perpetue casamentos de crianças (menor de 18 anos de idade),
desde que seja no interesse familiar ou no interesse público, com o risco
da exceção virar a regra, como pode ser constatado pela alta ocorrência
de casamento prematuro. Outro perigo subjacente à esta lacuna refere-se
a amplitude de possibilidades cabíveis na condição do interesse familiar
ou do interesse público, na medida em que o interesse familiar ou público
pode não coincidir com interesse da criança, ou ainda, o interesse familiar
atentar a dignidade da criança.

6 ESTRATÉGIAS DE ERRADICAÇÃO

Quanto às estratégias de eliminação da violência contra a criança


advinda da prática de casamentos prematuros, embora com visíveis avanços
governamentais na criação das Lei 10/2004, Lei 7/2008, na ratificação da
Convenção dos Direitos da Criança da ONU, da Carta Africana dos Direitos
e Bem Estar da Criança, da Convenção sobre Eliminação de Todas Formas
de Descriminação contra a Mulher, é imprescindível para mitigação desse
fenômeno danoso o seguinte: investimento massivo na educação formal
por forma a contornar a tendência dos indicies de casamentos prematuros
nas comunidades menos escolarizadas, alteração dos padrões culturais, no
sentido de superar o preconceito contra a mulher que ínsito ao modelo
30
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Larego. 3ed
Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 1997. Pag.431

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 223
social posto, machista; nisto, a educação jurídica deve ser disseminada nas
comunidades (sobretudo a rural) como forma de incentivar ao exercício de
direito e da cidadania.
O fato do casamento prematuro ser tolerado em Moçambique,
acaba impossibilitando o enquadramento infracional nos casos em que as
crianças que se casam na faixa entre 16 aos 18 anos, visto que é permitido
por lei (já supra citada exceção), dificulta a intervenção e o controlo por
parte das autoridades, nesta senda urge a necessidade de eliminar o conflito
entre as leis comunitárias e as leis formais, alterando o número 4 da Lei
10/2004, suprimindo a exceção da idade núbil; criação de uma política
pública voltada a reduzir os fatores de risco que induzem ao casamento
prematuro, como programas de educação com acesso a bolsas de estudo
para as crianças vulneráveis, redução dos níveis de pobreza, desenhar plano
estratégico que alavanca a autonomia das mulheres, a criminalização do
casamento prematuro.
Neste diapasão, Collet apud Gil (2014), salienta a importância de
incluir nos debates e mecanismo de informação a clarificação dos aspetos
como “violência sexual”, “abuso sexual”, “assédio sexual”, “violência
baseada em gênero”, uma discussão aberta sobre a igualdade de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Moçambique continua a ocupar um dos lugares de destaque na


questão de violação dos direitos da criança em particular e da mulher em
geral, a prática de casamento prematuro culturalmente aceite constitui
um dos fatores dessa classificação. Essa cultura de desrespeito pelos
direitos da mulher tem o beneplácito do sistema patriarcal existente, onde
apenas casos ligados a essa violação são penalizados, contradizendo todos
dispositivos legais internacionais ratificado pelo Estado moçambicano.
As consequência da institucionalização do casamento prematuro
são catastróficas, impactando diretamente na incidência da gravidez precoce
e o consequente aumento da mortalidade neonatal, do abandono escolar,
o aumento e a manutenção dos índices de pobreza na população feminina,
etc. Desta feita, é urgente a adopção de medidas com vista a estacar essa
tendência, através de sensibilização e promoção de denuncia pública, uma
vez que, a continuação dessas práticas podem comprometer uma geração.
A mudança legislativa sobre a problemática é urgente, a atual lei
que rege a questão do casamento não serve aos interesses da criança, mas a

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 224
interesses alienígenas que defendem a continuidade das práticas machistas.
As práticas Culturais-Sociais da comunidade que atente que atente a
dignidade da pessoa humana (no caso da Mulher) deve ser abandonada.
Para tal, o envolvimento comunitário é necessário (sensibilização das
comunidades locais, suporte social, ativistas da comunidade, grupos de
autoajuda, capacitar praticantes de medicina tradicional, coordenação do
trabalho dos técnicos de saúde mental).31

REFERENCIAS

BECKER, Daniel. O que é adolescência. 8. ed. São


Paulo: Brasiliense, 1999.
BELLONI, Maria Luiza. O que é sociologia da infância. Campinas-SP:
Autores Associados, 2009.
BORGES, Paulo Cesar Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração social
versos trabalho escravo. In: BORGES, Paulo Cesar Corrêa. (Org.)
Tráfico de pessoas para exploração sexual: Prostituição e trabalho
escravo. São Paulo: NETPDH: Cultura académica, 2013. (tutela penal
dos direitos humanos, 3).
BRAÇOS, António Domingos. Educação pelos ritos de iniciação:
contribuição da tradição cultural ma-sena ao currículo formal das escolas
em Moçambique. Dissertação (Metrado em Educação e Currículo) –
Programa de Pós graduação Pontifica Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo, 2008.
BRASIL, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Aprova o estatuto da criança
e adolescente. Diário oficial. Brasília, 13 de julho de 1990.
CHIZIANE, Paulina: Ensaios sobre a convenção sobre os direitos da
criança: põe dinheiro onde está tua boca. Maputo: UNICEf, 2014.
Disponível em http://www.unicef.org/mozambique/pt/media_15894.html.
Acesso em: 23 jun. 2015.
Comissão africana dos direitos dos povos. Carta Africana dos direitos e
bem estar da criança. Banjul, [190-]. Disponível em http://www.achpr.
org/pt/instruments/child. Acesso em: 20 jun. 2015.

31
VICENTE, Jose G. Violação sexual de menores em Moçambique: impunidade ou
defesa de tradições? Lima, 2014. Disponível em http://www.alapop.org/Congreso2014/
DOCSFINAIS_PDF/ALAP_2014_FINAL766.pdf. Acesso em: 30 out. 2015.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 225
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do advogado, 2005.
DUBY Georg; PERROT Michelle: Historias das mulheres no ocidente.
São Paulo: Ebradil, 1990.
EISENSTEEIN, Evelyn. Adolescência: definição, conceitos e critérios.
Adolescência & Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-6, jun. 2005.
FRANCISCO. Albino: situação dos casamentos prematuros em
Moçambique, tendências e impacto. Maputo, 2014. Disponível em
http://www.rosc.org.mz/index.php/ component/docman/doc_view/195-
situacao-dos-casamentos-prematuros-em-mocambiquetendencias-e-
impacto-eventos-mmas. Acesso em: 05 abril 2016.
FROTA, Ana Maria Monte Coelho. Diferenças concepções da infância e
adolescência: a importância da historicidade para sua construção. Estudos e
Pesquisas em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 146-161, abr. 2007.
Gil, A. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. ed. São Paulo:
Editora Atlas, 1999.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José
Larego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
LEVISKY, David Léo. Adolescência e violência: consequência da
realidade brasileira. In: LEVISKY, David Léo (Org). Aspectos do
processo de identificação do adolescente na sociedade contemporânea
e suas relações com a violência. São Paulo: Casa do psicólogo, 2000.
MOÇAMBIQUE. Lei 10, de 25 de agosto de 2004. Aprova a lei da
família e revoga o livro IV do código civil. Boletim da república.
Maputo, 25 de agosto 2004, suplemento 342, n 34.
MOÇAMBIQUE. Lei 35 de 31 de dezembro 2014. Aprova o código penal
moçambicano. Boletim da república. Maputo, 31de dezembro 2014.
MOÇAMBIQUE. Lei no. 7/2008, de 09 de julho (Lei de Promoção e
Proteção do Direito da Criança). In: Fundação para o Desenvolvimento
da Comunidade. Coletânea de Legislação Nacional de Proteção da
Criança. Maputo, 2009.
MOÇAMBIQUE. Resolução 32 de 21 de Setembro 2006 - Aprovação
da Estratégia de Desenvolvimento Integral da Juventude. Boletim da
república. Maputo, 21 de set. 2006.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 226
ONU. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os
Direitos da Criança (Resolução no. 19/90). Disponível em: https://www.
unicef.pt/docs/pdf_publicacoes /convencao_direitos_crianca2004.pdf.
Acesso em 3 out. 2015.
PERREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais
norteadores param o direito da família. Belo Horizonte:
Livraria do advogado, 2006.
ROOSEVELT, M. S. Cassorla; ELIZABETH L.M. Smeke.
Comportamento suicida no adolescente: Aspectos Psicossociais, 2000.
SAFFIOTI, Heleieth. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987.
SÁNCHEZ RUBIO, David. Encantos e desencantos dos direitos
humanos: de emancipações, libertações e dominações. Porto alegre:
livraria do advogado, 2014.
SILVA, Juliio. Ritos de iniciação ou de passagem existentes em
Moçambique. 2009. Disponível em: http://www.wlsa.org.mz/artigo/
itentidades-no-contexto-dos-ritos/. Acesso em: 23 jun. 2015.
SILVESTRE, Eleutério. Moçambique: Secretismo e violações ameaçam
o valor de ritos de iniciação em Moçambique. 2013. Disponível em
http://www.dw.com/pt/secretismo-eviola%C3%A7%C3%B5es-
amea%C3%A7am-o-valor-de-ritos-de-inicia%C3%A7%C3%A3o -em-
mo%C3%A7ambique/a-1732749. Acesso em: 23 jun. 2015.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Direitos humanos urgente. São
Paulo: Oliveira Mendes, 1998.
UNFA-MOÇAMBIQUE. Gravidez na adolescência: desafios e
respostas de Moçambique. Maputo: 2013. Disponível em: http://
countryoffice.unfpa.org/mozambique/drive/ SWOP_Suplemento_
paginacaofinal0312134.pdf. Acesso em: 23 jun. 2015.
UNICEF e MISA. Violência, exploração e abuso sexual de criança:
análise jornalística e recomendações para os medias, Maputo, 2008.
Disponível em: http://www.unicef.org/mozambique/UNICEF_MISA_
Analise_de_Imprensa_e_Recomedacoe s_-_Proteccao_da_Crianca_
Novembro_2008.pdf. Acesso em: 25 jun. 2015.
UNICEF. Moçambique: para cada criança. Maputo, 2007. Disponível
em: http://www.unicef.org/mozambique/FOR_EVERY_CHILD_booklet_
Portuguese_Final_3011 06.pdf. Acesso em: 23 jun. 2015.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 227
UNICEF-MOÇAMBIQUE: Educação: progresso e desafios. [200-].
Disponível em http://www.unicef.org/mozambique/pt/education.html.
Acesso em: 25 jun. 2015.
VERDADE: desistência da criança da escola mina o ODM. Maputo,
2015. Disponível em: http://www.verdade.co.mz/nacional/45610-
desistencia-das-criancas-da-escola-mina-odm. Acesso em: 23 jun. 2015.
VICENTE, Jose Gil. Violação sexual de menores em Moçambique:
impunidade ou defesa de tradições? Lima, 2014. Disponível em: http://
www.alapop.org/Congreso2014/ docsfinais_pdf/alap_2014_final766.pdf.
Acesso em: 30 out. 2015.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 228
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE EM
PERSPECTIVA COMPARADA: AS EXPERIÊNCIAS
DE BRASIL E COLÔMBIA

Fernanda de Castro Nakamura*


Nathália Melazi Caobianco**

INTRODUÇÃO

Recentemente praticamente todos os países da América Latina


passaram por reformas no âmbito da prestação de serviços públicos,
especialmente na área da saúde. Dentre os diversos fatores estruturais e
políticos geradores de tal mudança, não se pode olvidar da transição entre o
modelo vigente até 1970/1980, vinculado a políticas desenvolvimentistas,
e a necessidade de um ajuste econômico de caráter liberal que se
impôs nos anos 1980/1990.
A liberalização da economia e os processos de mudança
macroeconômica, impostos pelas organizações financeiras internacionais,
pregaram a redução das funções do Estado e incentivaram uma
reforma intensa nas políticas sociais, especialmente nos países latino
americanos. Na área da saúde, os novos modelos caracterizaram-se
pela descentralização, introdução da política de mercado e o estímulo
à participação privada, diminuindo o âmbito de atuação do Estado e os
custos com os serviços públicos.
Levino e Carvalho (2011) dispõem que os movimentos de reforma
se distinguiram em dois pólos, a depender do modelo adotado. Conforme
os autores, nos países onde houve a concepção de um Estado mínimo,
a saúde passou a ser vista como mercadoria; já em países pautados na
solidariedade e na cidadania, foram criados modelos universais e de
assistência integral, como o Sistema Único de Saúde (SUS); sendo que
entre os dois extremos foram desenvolvidos modelos intermediários, que
variam na amplitude do acesso e cobertura, nas modalidades de afiliação
aos seguros e na integração entre o público e o privado.
Nesse patamar, Fleury (2002) esclarece que é importante notar
que as reformas não foram homogêneas e simultâneas em todos os países,
*
Advogada. Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
**
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”.
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 229
no entanto, seguiram uma mesma agenda de privatização e seletividade,
buscando reduzir o tamanho do Estado.
Dessa forma, o presente artigo busca abordar a heterogeneidade
nos mecanismos de proteção à saúde na América Latina e como as falhas na
estrutura e aplicação desses processos no Brasil e Colômbia contribuíram
para o surgimento e intensificação do fenômeno da judicialização.
Essencial, portanto, entender no que consiste a judicialização. Embora
não haja uma conceituação unânime, a judicialização da política, em
seu aspecto geral, é entendida como uma ”transferência de poder para as
instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais”,
de questões relevantes política, social ou moralmente. (BARROSO, 2011,
p.130). Assim, conforme bem explica Fleury (2012), a judicialização nada
mais é do que o uso da ferramenta judicial como forma de exigir direitos
que deveriam ser garantidos pela atividade legislativa e executiva.
Destaque-se que esse contexto de ativismo judicial intenso,
segundo Amandino Teixeira Nunes Junior (2008), se desenvolve de
maneira diferente em cada sociedade, a depender de suas particularidades
históricas, culturais e econômicas. Por esse motivo, o presente estudo
optou por uma análise comparada entre dois países da América Latina,
Colômbia e Brasil, destacando as principais diferenças entre os sistemas
de saúde por eles adotados e como isso permitiu o surgimento e constante
aumento do fenômeno da judicialização da saúde em cada nação. Nosso
principal objetivo é dar substrato a um debate mais amplo a respeito das
causas e efeitos do controle judicial de políticas públicas, fenômeno atual
e que tem se intensificado nas últimas décadas.

1 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À SAÚDE EM


AMBOS OS PAÍSES

A Colômbia é um Estado Social de Direito, organizado em forma


de República Unitária, caracterizada pela descentralização e autonomia
de seus territórios. No que diz respeito ao direito à saúde, a Constituição
colombiana de 1991 ao introduzir os direitos sociais em seu texto, limitou-
se a dar-lhes o status de serviço público, sem atribuir-lhe natureza de direito
fundamental. Essa situação só foi modificada em 2015, com a promulgação
da Ley Estatutaria de Salud, que alterou o texto constitucional para garantir
status fundamental ao direito à saúde.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 230
Seguindo a tendência dos demais países sul americanos nas décadas
de 1980 e 1990 e os ditames das entidades internacionais, a Colômbia,
através da Lei 100 de 1993, criou um sistema obrigatório de seguro de
saúde, o “Sistema General de Seguridad Social em Salud’’ (SGSSS) sob
um modelo de política neoliberal cuja organização descentralizada e
funções bem especializadas/delimitadas visavam alcançar maiores níveis
de eficiência e qualidade na prestação pública de saúde. Esse modelo é,
segundo a classificação de Fleury (2012), chamado de plural ou “pluralismo
estruturado”, uma vez que se baseia em mecanismos de mercado.
No Brasil, a saúde foi tomada como um direito fundamental,
social, universal, devendo ser garantida a todos os cidadãos brasileiros,
fazendo parte, assim, das promessas da Carta Constitucional de 1988. (Art.
6º da CF/88). Com vistas a possibilitar a exigência de tal direito, o artigo
5º, XXXV e LXXIV da Constituição Federal (CF) estabeleceu o direito
integral e gratuito à justiça aos mais necessitados e garantiu a todos a tutela
jurisdicional preventiva ou reparatória relativa a um direito.
A CF/88 estabeleceu as diretrizes de um Sistema Único de
Saúde regido pela Lei 8080/90, que tem como missão a prestação de
serviços de saúde de qualidade e de forma gratuita a toda a população
que dele se socorra. Diferentemente do que ocorre na Colômbia, em que
os cidadãos pagam diretamente uma taxa de acordo com sua capacidade
financeira; o financiamento do SUS provém da receita de impostos e dos
orçamentos das três esferas de gestão (União, Estados e municípios), ou
seja, é financiado por toda a sociedade, de forma direta e indireta. (art.195
da CF/88). A estruturação política e administrativa do Sistema Único de
Saúde reflete a necessidade de se ter no Brasil qualidade e eficiência na
prestação dos serviços públicos. No entanto, as diretrizes que permearam
a sua criação ainda não encontraram a sua plena efetividade. Isso pode
ser atribuído aos problemas relacionados aos investimentos em serviços
de saúde, que acarreta a falta e a deficiência na prestação dos serviços
de saúde, culminando na intensificação judicialização desse direito após
a promulgação da CF/88.

2 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM PERSPECTIVA


COMPARADA

A Carta Constitucional colombiana de 1991, como já fora


dito acima, incluiu os direitos sociais como serviços públicos, ou seja,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 231
de responsabilidade estatal, sem consagrar a eles o status de direito
fundamental. No entanto, trouxe importantes instrumentos de acesso
à justiça, através dos quais os cidadãos que tenham qualquer direito
cultural, social ou político violado possam exigi-lo frente ao poder
Judiciário. As ações de Tutelas, previstas no artigo 86 da Constituição,
são o meio legal mais utilizado para tal finalidade e seu incremento ano
a ano revelam a ineficácia institucional em garantir a concretização dos
direitos sociais à população colombiana.
Segundo dados divulgados pela Defensoria Del Pueblo, em
2014 foram propostas 498.240 tutelas, o maior número desde que esse
mecanismo foi previsto em 1991, e que representa um aumento de 9,62%
com relação ao ano anterior. Deste total, mais de 23%, ou seja, cerca de
118 mil ações, estão relacionadas com direito à saúde, número que pode
ser ainda maior, tendo em vista que muitos cidadãos também requerem
prestações de saúde ao invocar o direito à petição ou à seguridade social.
Os litígios em saúde, segundo Juanita Durán e Rodrigo Uprimny,
começaram quase de forma paralela à implementação do Sistema General
de Seguridad Social en Salud e só cresceram, elevando cada vez mais os
custos com o cumprimento das decisões judiciais. Pelo gráfico acima é
possível notar que no ano de 2008 houve um pico do número de tutelas de
saúde interpostas, número que foi reduzido entre 2009 e 2010 em virtude
da Sentencia T-760, mas que se manteve alto desde então, revelando que
as violações a esse direito persistem.
Desmistificando o argumento de muitos críticos do ativismo
judicial, os dados fornecidos pela Defensoria Del Pueblo demonstram
que o número de tutelas propostas pelos cidadãos do regime contributivo
(48,62% do total) não é muito maior que aquelas propostas pelo regime
subsidiado (41,70% do total), desconstruindo a ideia de que o acesso
à justiça seria um privilégio das classes mais abastadas e, portanto,
acentuaria as desigualdades já existentes entre os regimes de contribuição
e subsidiado. (DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2006-2008).
Outra característica interessante é que o número de tutelas
solicitando tratamentos inclusos no POS, ou seja, que deveriam ser
concedidos imediatamente pelas EPS é muito elevado, significando
61,70% das tutelas do regime contributivo.
A intervenção do Judiciário na saúde colombiana se intensificou
com as inovações trazidas pela Constituição de 1991, entre elas a criação
da Corte Constitucional e de mecanismos de acesso cidadão à justiça, como

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 232
as ações de tutela. Tal como no Brasil, na Colômbia também se instalou
forte tensão entre os poderes executivo e judiciário, questionando-se qual
o limite da atuação da Corte Constitucional nas políticas públicas de saúde.
Segundo Oscar Parra-Vera e Alicia Ely Yamin (LA SENTENCIA
T-760 de 2008), nas últimas décadas a Ação de Tutela tem sido o
meio mais utilizado para a proteção do direito à saúde na Colômbia
e a Corte Constitucional1 tem consolidado diversas formas de ativismo
judicial nesta seara.
Até o ano de 2008 a atitude do judiciário frente às demandas por
saúde se limitava a conceder os pedidos, determinando o cumprimento dos
contratos de saúde, em que não há que se falar em ativismo judicial, vez
que os tribunais nada criavam, apenas exigiam o adimplemento de uma
obrigação assumida entre prestadora e afiliado.
Assim como no Brasil, a ineficácia da prestação e a ausência de
regulação e controle do sistema colombiano de saúde pelos entes nele
envolvidos fez com que a população se socorresse do judiciário que, sob
o respaldo da proteção da Constituição, passou a exercer função anômala.
Em 2008 o aumento expressivo e constante do número de ações
em saúde fez com que a Corte Constitucional colombiana tomasse uma
importante e polêmica decisão. A corte emitiu a Sentencia T-760, que
constitui um conjunto de determinações dirigidas a todos os envolvidos na
prestação do direito à saúde com o intuito de melhorar a situação caótica
em que o sistema se encontrava e garantir o acesso a serviços de qualidade,
consequentemente diminuindo o fluxo de litígios.
Foram identificadas as principais falhas do sistema e ordenou-se
medidas que visavam corrigir tais deficiências. Dentre os diversos pontos
atacados pela decisão pode-se citar a necessidade de atualização periódica
dos benefícios incluídos no POS para assegurar o fluxo adequado de
recursos financeiros.
À época, o tribunal reforçou o entendimento de que o direito à saúde,
embora não o dissesse o texto constitucional, é um direito fundamental e
subjetivo, de aplicabilidade imediata.Determinou ainda que o governo adotasse
medidas concretas para a unificação dos Planos Obrigatórios de Saúde dos
regimes contributivo e subsidiado, no entanto o poder executivo quedou-se
inerte. Importante notar que a Sentencia T-760 não determinou deveres
ilimitados ao Estado, pelo contrário, assinalou que o direito à saúde contém
1
A Corte Constitucional foi criada pela Constituição de 7 de julho de 1991 e é
responsável por garantir o respeito à integridade da Carta Política, conhecendo de
maneira exclusiva sobre os assuntos de constitucionalidade. Disponível em: http://www.
corteconstitucional.gov.co/lacorte/.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 233
um núcleo essencial que deve ser garantido a toda população, respeitados os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Desse modo, o órgão reiterou
o entendimento no sentido de condicionar a concessão de medicamentos
e procedimentos que estivessem fora do POS a critérios como a condição
financeira, o mínimo vital do paciente, possibilidades de substituição por
insumos mais baratos e à prescrição médica. Assim foi posto na decisão:
"O direito à saúde é um direito fundamental autônomo [ ]
Porém isso não significa que o direito à saúde seja ilimitado
no tipo de prestação que cobre. O plano de benefícios não
tem que ser infinito toda vez que pode se circunscrever às
necessidades e prioridades conforme determinado pelos
órgãos competentes para alocar de maneira eficiente os
recursos disponíveis"(tradução nossa).2
Destaque-se, a Corte foi sensata ao limitar as demandas que não
estejam previstas na política pública de saúde (POS), mas a indeterminação
do termo “mínimo vital” traz grande subjetivismo e impede uma compreensão
clara do que é ou não garantido ao cidadão pelo Estado. Tal questão também
é causa de embate doutrinário no Brasil, em que os críticos da judicialização
apontam que o somente o “mínimo existencial” seria de responsabilidade
estatal e, o que ultrapassasse tal limite, traria prejuízos ao sistema como um
todo e à sociedade. Também aqui a expressão não tem conteúdo delimitado,
gerando questionamentos de diversas naturezas e insegurança jurídica.
A determinação da Corte quanto à unificação dos regimes só foi
concretizada quase quatro anos após a Sentencia T-760, quando em 2012 o
plano de unificação foi finalizado e igualou as prestações previstas no POS,
mas manteve a diferença entre a Unidad de Pago por Capitación (UPC)3 dos
dois regimes. Isso significa que a unificação não passou de mera retórica,
uma vez que manteve diferentes verbas financeiras para o cumprimento
do mesmo rol de serviços, com igual qualidade. Recentemente (2015) fora
implantado um plano piloto nas cidades de Bogotá, Medellín, Santiago de
Cali e Distrito Especial, Industrial e Portuario de Barranquila, em que se
igualou a UPC do regime subsidiado à do contributivo.
2
No original: “El derecho a la salud es un derecho fundamental autónomo [ ]. Pero
ello no significa que el derecho a la salud sea ilimitado en el tipo de prestaciones que
cobija. El plan de beneficios no tiene que ser infinito toda vez que puede circunscribirse
a las necesidades y prioridades que determinen los órganos competentes para asignar de
manera eficiente los recursos disponibles””
3
Unidad de Pago por Capitación: é um valor anual que reconhece o sistema a cada
EPS por cada um dos afiliados, a fim de garantir/ cobrir a prestação dos serviços de
saúde contidos no Plano Obrigatório de Saúde. Ele é calculado pelo Ministerio de Salud e
Proteccion Social e leva em conta diferentes aspectos, como os grupos de risco por idade
sexo, zonas geográficas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 234
Apesar da reforma formal do sistema e dos esforços da Corte em
emitir dezenas de autos visando ao cumprimento das determinações da
Sentencia T-760, o fato é que os altos índices de corrupção interna, desvio
de recursos e satisfação de interesses alheios ao bem público persistiram e
atravancaram a eficácia do sistema.
Essas problemáticas tem fundamento na estrutura do modelo, que
tem como um dos pilares as empresas privadas (EPS), que seguem a lógica
de mercado e visam mais ao lucro que ao bem comum e, para aumentar
seus ganhos, opõem barreiras ao acesso dos usuários aos serviços de saúde.
O ciclo da judicialização, portanto, tem início na negativa
administrativa (EPS) em cumprir com os contratos de saúde, fazendo
com que os pacientes recorram ao Judiciário e impedindo que essa intensa
espiral de judicialização seja rompida.
Ante a persistente desigualdade do sistema de prestação de saúde
na Colômbia e a insatisfação popular, em fevereiro de 2015 o Presidente
Juan Manuel Santos Calderón e o ministro Alejandro Gaviria Uribe
sancionaram a “Ley Estatutaria de Salud” (Lei nº 1751), a qual converte a
saúde em um direito fundamental autônomo.
Lei estatutária, na Colômbia, é uma norma de hierarquia
superior às outras leis, pois altera a Constituição, tal como as emendas
constitucionais brasileiras. A elevação da saúde à norma fundamental
reforça o posicionamento já consolidado pela Corte Constitucional e
significa que o direito a saúde agora se encontra acima de qualquer
consideração econômica/ administrativa e deve ser garantido a todos
igualmente na medida de suas necessidades. Seu artigo sexto dispõe que o
acesso aos serviços de saúde deve ter continuidade, sem ser interrompido
por razões administrativas ou econômicas. Além disso, impõe ao Estado o
dever de expandir gradual e continuamente o acesso à saúde e a qualidade
de sua prestação, convergindo para a integralidade das prestações.
Com isso, objetiva-se que o governo promova progressivamente
a ampliação dos benefícios até que consiga atender a todas as necessidades
da população, o que fará com que, futuramente, o POS deixe de existir,
criando-se apenas uma lista explícita com os serviços não garantidos pelo
Estado (como os de natureza estética, os de eficácia não comprovada/
experimentais e os que devem ser prestados no exterior). Isso significa que
se antes os pacientes só tinham direito ao que estava contido no POS, com a
aplicação da nova lei só não terão direito ao que estiver no rol de exclusão.
Outra importante disposição (art.23) pretende pôr fim aos abusos
da indústria farmacêutica colombiana ao decretar que os preços dos
princípios ativos de medicamentos passam a ser política de Estado, de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 235
modo que sejam controlados pelo governo nacional com base nos valores
internacionais de referência.
Afirma-se que a lei acabará com os “paseos de la muerte”, uma
realidade a que muitos colombianos estão, infelizmente, inseridos e que se
caracteriza pela recusa das EPS e IPS em atender casos de urgência, amparando-
se na obrigação de filiação do usuário, exigindo, por exemplo, apresentação do
carnê de beneficiário; burocracia que pode gerar consequências irreparáveis,
como a morte do cidadão nas portas dos hospitais. A nova lei determina a
obrigação das instituições prestadoras de serviço em atender as urgências,
sem impor obstáculos, exigir taxas ou solicitar autorizações.
Por se tratar de uma lei atual e que depende de inúmeras legislações
ordinárias para regulamentação dos dispositivos, ainda não é possível inferir
que ela vá de fato promover tudo quanto pretende e gerar a diminuição do
número de ações judiciais. Embora seja destacado por muitos críticos que a
reforma não olvidou acabar com um dos maiores problemas do sistema de
saúde colombiano, o enriquecimento das EPS (intermediárias e parasitas de
recursos estatais), os efeitos da reforma promovida pela Lei Estatutária da
Saúde só poderão ser sentidos com o passar dos anos e proporcionalmente
ao empenho estatal em concretizá-la de maneira eficaz.
Já no Brasil, o direito à saúde deve ser garantido pelo Estado
por meio de políticas sociais e econômicas que visem a garantia plena
desse direito em face de todos os cidadãos brasileiros. No contexto de
incapacidade do Poder Público em atender às demandas sociais e de
expressa previsão normativa dos direitos sociais fundamentais, é que o
direito à saúde no Brasil deixou de ser uma preocupação das instâncias
tradicionais (Executivo e Legislativo) e passou a fazer parte do Poder
Judiciário, que tem como missão garantir a concretização da Carta Maior.
(BARROSO, 2012, pp. 23-32).
Nesse âmbito, em face da impossibilidade de o Sistema Único de
Saúde abarcar todos os titulares do direito à saúde em suas especificidades,
a judicialização se apresenta como a expressão das "reivindicações e modos
de atuação legítimos de cidadãos e instituições para a garantia e promoção
dos direitos de cidadania amplamente afirmados nas leis internacionais e
nacionais”. (VENTURA et. al., 2010, pp. 77-100).
A judicialização da saúde no SUS representa o acúmulo de
inúmeros indicadores ruins que vêm persistindo ao longo dos anos, deixando
à mostra a incapacidade do Poder Público em prover o acesso universal à
saúde pública, bem como, a falta de infraestrutura dos hospitais públicos,
unidades básicas de saúde e unidades de pronto-atendimento; a escassez
dos recursos humanos seja pela falta de profissionais capacitados seja pela

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 236
existência de profissionais mal remunerados; além da escassez financeira,
que sobrevive a escândalos de corrupção e desvio de verbas, o que resulta
em longas filas de espera por atendimentos, falta de leitos hospitalares
atraso no fornecimento de tecnologias necessárias à prestação dos serviços,
em especial na assistência farmacêutica que apresenta os maiores índices
de judicialização no Brasil. (GOMES et. al., 2014, pp. 139-156).
Frente a tal cenário, desde a década de 90 até os dias de hoje,
a judicialização da saúde no Brasil vem tomando ares cada vez mais
expressivos, impactando um aumento de quase 300% no gasto total com
tecnologias em saúde requeridas junto ao Judiciário, ou seja, passando
de R$83,1 milhões em 2009 para R$243,9 milhões em 2011. (GOMES
et. al., 2014, p. 140).
A maior parte das ações judiciais sobre o direito à saúde versa
sobre assistência farmacêutica, como o fornecimento de medicamentos e
insumos, o que denota o caráter extremamente curativo das demandas,
conforme gráfico elaborado pelo Ministério da Saúde:

Fonte: IDISA – Instituto de Direito Sanitário Aplicado. Disponível em:


http://www.idisa.org.br/site/documento_4062_0__medicamentos-excepcionais-
e-prioridades-desaude-no-brasil.html
Verifica-se pelo gráfico acima a intensificação do fenômeno no
Brasil, o qual suscita inúmeras questões de ordem política e judiciária,
principalmente no que se atine à gestão do sistema de saúde e ao sistema
de repasse e aplicação de verbas pelos entes federativos no SUS.
No que se refere ao âmbito político, verifica-se que em ambos
os países analisados a judicialização é um fenômeno presente e intenso
e que tem gerado conflitos entre os Poderes Estatais constituídos, dado

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 237
que a presença do Judiciário no âmbito político sempre é vista como
indevida e malversada.
No âmbito judicial, a crescente demanda por tutelas de saúde
fez com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se atinasse para tal
problemática e passasse a discutir sobre suas causas, bem como mapear as
experiências dos tribunais na judicialização da saúde. Fruto desse esforço
foi a publicação no ano de 2013 de um relatório decorrente da pesquisa
intitulada “Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiências”.
Nessa pesquisa, foram constatadas algumas características em
comum nas ações judiciais de saúde em todos os Tribunais do Brasil,
sendo estas: (i) foco curativo das demandas - as ações versam em sua
maioria sobre o fornecimento e garantia de medicamentos, tratamentos,
próteses e etc.; (ii) predominância da litigação individual; (iii) tendência
de deferimento final e antecipação de tutela pois, pode-se dizer que 99%
das ações tem caráter de urgência; (iv) pouca menção nas decisões judiciais
a respeito da audiência pública do STF em 2009 que procurou levantar
questões para buscar soluções à judicialização da saúde no Brasil - o que
será tratado com maior detalhes no tópico a seguir; (v) pouca menção
às contribuições do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nas decisões
judiciais, especialmente no que se refere às Recomendações nºs 31 e 36
que trazem parâmetros para a atuação do Judiciário na judicialização da
saúde; (vi) pouca menção ao Fórum Nacional e Comitês estaduais de
saúde, que trazem inúmeros estudos sobre o fenômeno no Brasil que são
de grande contribuição para a comunidade jurídica; (vii) tendência de
utilização do Núcleo de Assistência Técnica (NAT) que foi implantado
a partir das discussões da audiência pública sobre a judicialização da
saúde em 2009 do STF, especialmente nas capitais, apesar de não haver
qualquer menção à função dos NATs nas decisões judiciais, vez que
se afiguram como uma estratégia para a atividade judicante em saúde.
(ASENSI; PINHEIRO, 2015).
Anteriormente, no ano de 2009, já atento à realidade brasileira, o
então Presidente do Supremo Tribunal, Ministro Gilmar Mendes, convocou
uma audiência pública a fim que fossem discutidas soluções e alternativas
atinentes ao direito à saúde (BRASIL, 2009). Nela, foram pensadas diversas
propostas que visam contornar as causas e os efeitos da judicialização,
sendo que duas foram as mais citadas, o "aprimoramento das instâncias
regulatórias no Brasil, seja ao que se refere à concessão de registro para
acesso ao mercado brasileiro - ANVISA - seja pela incorporação de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 238
tecnologias no âmbito do SUS", e, a necessidade de o "Judiciário levar em
consideração os Protocolos Clínicos e as Diretrizes Terapêuticas (PCDT)
do Ministério da Saúde, os quais devem ser atualizados periodicamente".
(GOMES et. al., 2014, p. 148).
Além dessas propostas, outras chamaram a atenção como o
fornecimento de Assessoria Técnica ao Judiciário, por meio da criação dos
Núcleos de Assessoria Técnica (NAT) que devem oferecer assessoria e
consultoria aos magistrados, a fim de assessorá-los em suas decisões, e,
alternativas relativas à escassez de recursos financeiros na saúde pública.
(GOMES et. al., 2014, pp. 150-151).
O resultado dessa audiência pública foi observado nos
anos que se seguiram, com a providência de algumas medidas que
representaram alguns avanços na área da saúde, como a promulgação
da Lei nº12401/11 que trata sobre a assistência terapêutica e a
incorporação de tecnologia em saúde no SUS; e, a Lei Complementar
nº141/12 que regulamentou a Emenda constitucional nº29, referente à
aplicação mínima de recursos financeiros pelos entes federativos nos
serviços de saúde pública. Por outro lado, ficou mais do que evidente
que as políticas de saúde apresentam falhas no que tange à aplicação
e concretização dos princípios do SUS e, que por conta dessas falhas,
os usuários passaram a ver no Judiciário um meio efetivo de garantia,
não um meio excepcional de se pleitear o direito, bem como, não se
observou a elaboração de uma lei de responsabilidade sanitária que
se configuraria em um importante instrumento contra a mágestão nos
serviços públicos de saúde. (GOMES et. al., 2014, p. 154).
Assim, é fácil perceber que o fenômeno da judicialização da saúde
no Brasil ainda está longe de ser contornado, apesar de alguns avanços
observados no Sistema Único de Saúde, o que se sucedeu com isso, foi
o reconhecimento de novas matérias em temas de Repercussão Geral no
STF como: a inserção de novos atores em defesa dos direitos e garantias
fundamentais, como o Ministério Público, que teve sua legitimidade
questionada nas ações que visam o fornecimento gratuito de medicamentos
no ano de 2010 (Repercussão Geral nº 262); o estudo sobre a necessidade
de bloqueio de verbas públicas para o fornecimento de medicamentos, de
2010 (Repercussão Geral nº 289); o reconhecimento da responsabilidade
solidária entre os entes federativos no dever de prestar assistência à
saúde no ano de 2014, em face da competência comum (Repercussão
Geral nº 793); o controle judicial relativo ao descumprimento dos entes

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 239
federativos com relação à aplicação mínima dos recursos financeiros em
saúde, conforme LC nº141/12, de 2014 (Repercussão Geral nº 818), dentre
inúmeros outros temas relativos à saúde que ainda fazem parte do cotidiano
do Judiciário brasileiro.
Em vista dos dados aqui apresentados referentes ao Brasil,
verifica-se que um dos grandes desafios é a diminuição das ações judiciais
e o estudo de estratégias que visem contornar o fenômeno da judicialização
da saúde, vez que o sistema único de saúde, em alguns estados brasileiros,
apresenta índices extremamente negativos, o que denota um sistema com
uma gestão que precisa de uma reestruturação e de uma articulação maior
entre os entes federativos.
Os estudos sobre o fenômeno tomaram importância vertiginosa
ao longo dos anos, ante a necessidade de se garantir um direito sem,
contudo, atentar-se para o fato de que sem um sistema de saúde voltado
às necessidades do usuário, é impossível conceber uma diminuição no
número de ações judiciais, pois sempre aparecerão casos que não serão
passíveis de tutela, seja por falta de previsão normativa, seja por falta de
recursos, seja por conta de uma ação dentro do sistema de gestão que ainda
impede e atravanca o amplo acesso aos serviços de saúde.
A conclusão a que se chega ao analisar o fenômeno da judicialização
da saúde no Brasil é a de que o SUS é uma via de mão dupla, ou seja, em
que se tem um caminho para a utilização dos serviços com acesso limitado,
com os recursos já disponíveis, e, outro para quem tem o acesso irrestrito
garantido por meio de ações judiciais, o que poderia ser amenizado com
uma gestão pública eficiente voltada aos interesses dos usuários e com a
correta aplicação dos recursos públicos destinados à saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração os sistemas de saúde do Brasil e


Colômbia, temos que ambos são frutos de um sistema político caótico
e um executivo ineficaz, que acaba por fomentar a desigualdade social
e a descrença da população nas instituições. A judicialização crescente
que se observa nesses países não passa de consequência dessas falhas
do poder público aliada à maior conscientização da população sobre
seus direitos. A pressão social tem feito com que o Judiciário assuma
as rédeas da situação e garanta a concretização do direito à saúde, ao
menos, aos que lhe procuram.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 240
Não obstante a semelhança no que tange à principal
consequência, a judicialização, a análise comparada dos sistemas
brasileiro e colombiano nos permite traçar algumas diferenças,
principalmente no que se refere à estruturação dos sistemas de saúde,
conforme maior ou menor influência da política neoliberal. O modelo
colombiano, chamado de pluralismo estruturado, apesar de recentemente
tornar a saúde um direito fundamental e guiar seu sistema pelo princípio
da universalidade, coloca a execução e gestão da saúde a cargo de
empresas privadas (especialmente as Entidades Promotoras de Saúde)
que tão somente visam o lucro, deixando a população ao alvedrio de
um sistema cheio de falhas estruturais. Já no caso brasileiro, apesar das
inúmeras falhas estruturais e das contradições internas do sistema único,
observa-se que a responsabilidade pela prestação, plena e irrestrita, do
serviço de saúde é de responsabilidade exclusiva do Poder Público, que
deve, inclusive, fiscalizar o serviço prestado pelos hospitais particulares,
conforme disposições constitucionais previstas na Constituição de 1988.
Quanto à progressão do número de ações em saúde, podemos notar
que, apesar dos esforços por sua diminuição, como através da Sentencia
T-760 na Colômbia e das inúmeras estratégias no Brasil, fato é que ambos
se encontram mergulhados num contexto de intenso ativismo judicial que
só tende a aumentar.
Assim, pode-se dizer que após a análise dos sistemas aqui
estudados, chega-se à conclusão de que é impossível garantir o direito à
saúde por meio de um sistema cheio de entraves e contradições internas
que impedem que o usuário acesse os serviços de forma plena e irrestrita.
Também é inviável se alcançar uma prestação eficaz quando o lucro
de empresas privadas está acima do interesse público, como ocorre na
Colômbia. Certo é que, além de padecerem de uma reestruturação na
gestão pública dos sistemas, buscando desburocratizar e voltar os olhos
aos usuários, ambos os sistemas necessitam de uma aplicação intensa de
recursos financeiros a fim de atender a maioria das demandas em saúde, já
que financeiramente impossível atender a todas elas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 241
REFERÊNCIAS

ABADIA, Cesar Ernesto; OVIEDO, Diana Goretty. Bureaucratic


Itineraries in Colombia. A theoretical and methodological tool to assess
managed-care health care systems. Social Science e Medicine. Bogotá-
CO, v. 68, 2009, p. 1153-1160.
ARRETCHE, Marta Teresa da Silva. Estado federativo e políticas
sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan. São
Paulo: FAPESP, 2000, p. 202.
ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Coord). Judicialização
da saúde no Brasil: dados e experiências. Conselho Nacional de
Justiça, Brasília, 2015. Disponível em: http://cnj.jus.br/files/conteudo/
destaques/arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a5650 06.pdf.
Acesso em: ?? jan. 2016.
BRASIL. Senado Federal. Secretaria de Informação Legislativa.
Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=215628&norma=228560. Acesso em: 15 jan. 2016.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Despacho Convocatório de
Audiência Pública, publicado em: 5 de março de 2009. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/
anexo/Despacho_Convoc atorio.pdf). Acesso em: 24 mar. 2016.
CORTE CONSTITUCIONAL. Defensoría del Pueblo. La tutela y
el derecho a la salud. Disponível em: http://www.corteconstitucional.
gov.co/relatoria/autos/2011/a110-11.htm Período 2006-2008.
Acesso em: 24 mar. 2016.
Departamento de assuntos jurídicos internacionais. Escritório de
Cooperação. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/
treaties/A-52.htm. Acesso em: 24 mar. 2016.
DRESCH, Renato Luís. O Acesso à Saúde Pública e a Eficácia das
Normas de Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS. In: Para
entender a gestão do SUS. 2015, p. 3-7. Disponível em: http://www.
conass.org.br/biblioteca/pdf/colecao2015/CONASS-DIREITO_A_
SAUDEART_18.pdf. Acesso em: 24 mar. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 242
FLEURY, Sonia. Judicialização pode salvar o SUS. Saúde em Debate.
Rio de Janeiro, v. 36, n. 93, p. 159-162, abr./jun. 2012. Disponível
em: http://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/acompanhe/
eventos/hotsites/2015/ ciclo_judicializacao_saude/documentos/material_
referencia/artigo_sonia_fleury.pdf. Acesso em: 24 mar. 2016.
GIOVANELLA, Ligia; et. al. (orgs). Sistemas de salud en Suramérica:
desafios para la 2012. Universalidad la integralidad y la equidad/Instituto
Suramericano de Gobierno en Salud. Rio de Janeiro: ISAGS, 2012.
GOMES, Dalila F, et al. Judicialização da saúde e a audiência pública
convocada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009: o que mudou de lá
para cá? Revista Saúde Debate, Rio de janeiro, v. 38, n. 100, p. 139-
156, jan./mar. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/
v38n100/0103-1104-sdeb-38-100-0139.pdf. Acesso em: 24 mar. 2016.
LA SENTENCIA T-760 de 2008, su implementación y impacto: Retos
y oportunidades para la justicia dialógica. Disponível em: http://www.
corteconstitucional.gov.co/relatoria/autos/2011/a110-11.htm. Acesso
em: 24 mar. 2016.
LEVINO, Antônio. Análise comparativa dos sistemas de saúde da
tríplice fronteira: Brasil/Colômbia/Peru. Rev. Pan-Americana de Salud
Pública, v.30, n.5, 2011, p.490-500.
MINISTÉRIO DE SALUD Y PROTECCIÓN SOCIAL. Ley Estatutária
nº 1751, Disponível em: https://www.minsalud.gov.co/Normatividad_
Nuevo/Ley%201751%20de%202015.pdf. Acesso em: 3 mar. 2016.
NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A Constituição de 1988 e a
judicialização da política no Brasil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 45, n. 178, abr./jun. 2008.
ONU. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia geral
das nações unidas. Disponível em: http://www.direitoshumanos.
usp.br/index.php/OMSOrganiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-
Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacaomundial-da-saude-omswho.
html. Acesso em: 07 jan. 2016.
VENTURA Miriam; PEPE, Vera Lúcia Edais; SCHRAMM, Fermin
Roland; SIMAS Luciana. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a
efetividade do direito à saúde. Rio de Janeiro: Physis, Revista de Saúde
Coletiva, ano 20, volume 1, pp. 77-100, 2010. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S010373312010000100006&script=sci_arttext.
Acesso em: 17 out. 2015.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 243
CIDADES GLOBAIS, RESISTÊNCIAS LOCAIS:
CIDADANIA E DIREITO À MORADIA NO CASO DA
REMOÇÃO DA VILA AUTÓDROMO PARA OS JOGOS
OLÍMPICOS DO RIO DE JANEIRO 2016.

Fúlvia Maria MendesVictor*


Abdala de Toledo Piza**

INTRODUÇÃO

A Vila Autódromo é uma comunidade localizada na cidade do


Rio de Janeiro, próximo ao terreno antes ocupado pelo autódromo de
Jacarepaguá, onde hoje se situa a Vila Olímpica, e à beira da lagoa da Barra
da Tijuca. A comunidade ganhou relativa notoriedade por sua proximidade
com a sede principal do maior evento esportivo já realizado no país, e
também por seu histórico de resistência às demolições e desocupações,
que se intensificaram pela primeira vez com a realização dos Jogos
Pan-Americanos de 2007.
Esta comunidade já foi alvo de inúmeros estudos científicos e
reportagens de jornais brasileiros e internacionais. Todavia, ainda carece
este objeto de estudo tão profícuo e atual, uma reflexão que o coloque
em contraposição aos temas tradicionais da ciência política e da teoria
geral do Estado, quais sejam: a noção de cidadania e participação popular.
Ademais, para a melhor abordagem do histórico e da representatividade da
Vila Autódromo em face das diversas remoções ocorridas no país em torno
dos megaeventos, urge pensar a cidade como uma categoria fundamental
de análise, compreendendo como a sua reestruturação pós-industrialização
e pós-globalização afetou o percurso histórico que até então orientava a
construção e estruturação das zonas urbanas.
Este artigo pretende investigar o papel da cidadania local em
face dos megaeventos globais. O objetivo específico é refletir através do
estudo de um caso singular, o da remoção da Vila Autódromo, comunidade
localizada na Barra da Tijuca/RJ, a forma como esses megaeventos
alteram o cotidiano das cidades e de que maneira eles impactam direitos
fundamentais, como o acesso à moradia. Desta maneira, o artigo se divide
em três partes: a primeira buscará elucidar o conceito de cidadania e a sua
*
Graduada em Arquitetura e Urbanismo, pós-graduada em Gestão Ambiental, pela
Universidade de Uberaba.
**
Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 245
relação com a vida urbana, problematizada pelos geógrafos, sociólogos e
urbanistas que se dedicam ao estudo da cidade; a segunda tentará aprofundar
o tema dos megaeventos, como a Copa do Mundo de Futebol, realizada
em 2014, e os Jogos Olímpicos de 2016, entendendo qual a lógica por
trás desses espetáculos esportivos globais na nova concepção de cidade;
por fim, na terceira parte haverá um aprofundamento do histórico da Vila
Autódromo e das medidas que foram tomadas para efetivar o direito à
moradia daqueles cidadãos removidos por conta da construção do Parque
Olímpico da Barra da Tijuca. A conclusão buscará formular questões acerca
da efetividade das políticas públicas de moradia e dos novos mecanismos
de cidadania em face do contexto urbano atual.

1 CIDADES GLOBAIS E CIDADANIA: O DIREITO À CIDADE


NA NOVA CONFIGURAÇÃO URBANA

A cidade antiga, concebida como centro administrativo de


um dado território, ligada, sobretudo, à posse de escravos; a cidade
medieval, concebida como um epicentro aristocrático e comercial que
se contrapunha ao campo; e a cidade pós-revolucionária, concebida
sob a égide do humanismo e como centro das artes e da burguesia; não
existem mais. Esses modelos urbanos datados pouco se relacionam com as
metrópoles globais características do apogeu do capitalismo e do turbilhão
de eventos que caracteriza o século XX. Essa primeira diferenciação é
absolutamente necessária num percurso investigativo que trabalhará o
papel dos megaeventos no contexto das cidades globais, uma vez que
parece haver uma impertinência em caracterizar a cidade a partir do seu
modelo antigo. Em Henri Lefebvre, percebe-se justamente a emergência
de se pensar um novo modelo de cidade, um novo urbanismo e um novo
sentido na superação da relação campo cidade com hegemonia do primeiro.
(LEFEBVRE, 2001, p.11).
A realidade historicamente construída, como contraposição
de períodos, evidentemente apresenta marcas e evidências de tempos
pretéritos. Todavia, o que se quer clarear é a percepção já consolidada de
que o desenvolvimento das cidades no capitalismo é muito diverso daquele
anterior a ele. No capitalismo consolidado não se fala mais na cidade como
simples centro administrativo e político, como local de exercício pleno
da cidadania e da política, ou mesmo do urbano apenas como centro de
trocas. Percebe-se a cidade pósrevolução industrial como a revalorização

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 246
do espaço urbano e da relação cidade capital. A cidade deixa de ser apenas
a depositária do capital acumulado, deixa de valorizar-se meramente pelo
uso, e passa a ser organizada também como um valor de troca. A cidade
deixa de ser apenas um lugar para o consumo e passa a ser ela também um
item de consumo. (LEFEBVRE, 2001, p. 20).
Entende-se assim, que o modelo urbanístico e social necessário
para a formação das cidades não reflete diretamente a segregação espacial
alcançada apenas pela reestruturação da cidade industrial. Sendo assim, os
conceitos tradicionais de cidadania devem ser devidamente sobrepostos
à nova realidade citadina. O capital acumulado pela classe dominante no
processo de industrialização é priorizado na aplicação majoritariamente
para fins lucrativos, reforçando a distinção entre classes, remodelando o
tecido urbano para interesses econômicos, iniciando o que se define por
urbanismo excludente. A partir deste novo modelo e suas contradições é
que se deve compreender o lugar da cidadania na sociedade contemporânea.
Destaca-se ainda, em apressada contextualização, o período
marcado pela crise de reestruturação produtiva, ocorrido em meados de
1970 com os países desenvolvidos. Momento evidenciado pela prática
procedente a estruturação territorial, caracterizado pela diminuição de
investimentos relativos às políticas públicas por parte dos Estados, que dá
início à plena aceitação das teorias econômicas neoliberais. Esse momento
histórico singular, de contenção das despesas estatais e avanço da lógica de
mercado, marca também a mudança na perspectiva administrativista das
cidades para uma perspectiva empreendedora. (HARVEY, 2005, p. 166).
Esta formulação teórica de David Harvey, a reificação das cidades como
fenômeno característico da crise produtiva do fim dos anos setenta, traz
algumas premissas. Harvey aponta a parceria público-privada como força
motriz peculiar dessa mudança na concepção urbana, em que “a iniciativa
tradicional local se integra com o uso dos poderes governamentais locais,
buscando e atraindo fontes externas de financiamento, e novos investimentos
ou novas fontes de emprego”. (HARVEY, 2005, p. 170). Compreende
ainda, este desenvolvimento empreendedor como especulativo, uma vez
que não racionalmente planejado e coordenado. (HARVEY, 2005, p.171).
Essa nova configuração urbana característica da vigência do
neoliberalismo foi sobreposta pela crise deste sistema econômico, a crise
de 2008. De acordo com João Sette Whitaker Ferreira, para combater a
degradação urbana consequente à crise mundial de 2008 e atrair capital
globalizado, criou-se uma solução: o investimento em obras arquitetônicas

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 247
potenciais de aspectos culturais como museus e óperas. Solução criada
pelo socialista francês François Mitterand, conhecida também como
“renovação urbana”, qual possuía como objetivo a reconfiguração
cenográfica das cidades, atraindo turistas e propiciando o “marketing
da cidade”. (FERREIRA, 2014, p.8). Com a nova imagem, ocorreria
ainda a valorização imobiliária diante um raio próximo de tais marcos,
possibilitando o novo método de retorno financeiro. Em contrapartida,
projetos sociais foram deixados de lado, visto que investir em gastos
menores e concentrados impulsionariam a economia, diferentemente
ocorreria com investimentos voltados ao interesse social.
Percebe-se que esse denso quadro de crise produtiva e especulativa
gerou uma mudança no paradigma das cidades. Os cidadãos urbanos
passam a experimentar um aprofundamento da segregação socioespacial
motivada pela necessidade premente de se estruturar o tecido urbano para
a atração de investimentos internos e externos. É evidente, portanto, que a
sua dimensão de direitos será afetada pela nova realidade que se impõe por
interesses e ideologias do capital internacional em momentos de crise. A
velha perspectiva da cidade, como espaço coordenado para a aglutinação
de pessoas, dá lugar a uma cidade propositalmente desorganizada, onde
a luta por investimentos faz criar brechas na legislação que orienta a
expansão e modernização das cidades. Tem-se, pois, o que Carlos Vainer
conceitua como “cidade de exceção”, um espaço onde “a lei torna-se
passível de desrespeito legal, e parcelas crescentes de funções públicas do
Estado são transferidas a agências livres de burocracia e controle político”.
(VAINER, 2011, p.10).
Tem-se, por óbvio, que existe uma vinculação jurídica entre o
Estado e o povo que o constitui. Segundo Dalmo Dallari, essa relação
imperativa torna todos aqueles que participam da constituição do Estado
como cidadãos. (DALLARI, 2015, p.104). Essa conceituação manualística
é fruto do aprimoramento das ideias de autores clássicos como Jellinek.
Cidadão é, portanto, aquele indivíduo que compõe um determinado Estado,
participando das decisões que caracterizam sua soberania, gravitando em
torno dele uma miríade de direitos e deveres. É notório também que o
avanço dos direitos humanos incorporou ao patrimônio jurídico dos
indivíduos não apenas o direito de ser livre em face do arbítrio Estatal, mas
uma série de direitos sociais e transgeracionais que compõe uma complexa
teia de garantias fundamentais. O art. 6º da Constituição Federal de 1988

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 248
prevê como garantia fundamental dos indivíduos o direito à moradia,
componente essencial dos chamados “direitos sociais”.
A primeira instância de poder que paira sobre os cidadãos é
justamente o poder municipal, órgão controlador da cidade. Este poder,
como os demais, também está sujeito à ordem jurídica nacional, devendo
respeitar os direitos e garantias fundamentais e lutar para efetivar aqueles
direitos que dependem da ação positiva do Estado. Evidente, todavia, que
trata-se de uma concepção idealizada da estrutura estatal. A perspectiva
empírica tem demonstrado a incapacidade do ente estatal em promover
os desígnios que o próprio legislador constitucional consagrou. O que se
verifica é a vinculação do Estado, aqui compreendido em todas as suas
esferas, aos interesses do capital globalizado justamente porque é essa
lógica que orienta o sistema.
Nos termos da municipalidade, essa lógica é ainda mais corrosiva
à cidadania dos habitantes urbanos, pela necessidade de competição
entre as diversas cidades para a atração do capital. Essa querela por
investimentos gera flexibilização dos direitos dos cidadãos, na busca do
melhor assentamento dos interesses econômicos. Conforme corrobora
Carlos Vainer, “uma gestão eficiente supõe a capacidade de aproveitar as
oportunidades, mais rapidamente que os concorrentes”. (VAINER, 2011,
p.3). O parâmetro fundamental da nova lógica urbana já identificada por
Lefebvre e Harvey, é aprofundada por Vainer pelo conceito preciso de
“cidade de exceção”, justamente porque o fundamento da cidadania, que é
ser dotado de direitos e deveres e compor um determinado estado soberano,
é distorcido e flexibilizado pela lógica competitiva das cidades. A cidadania
da “cidade de exceção” é uma cidadania de ocasião, condicionada pelo
interesse do grande capital a um dado território urbano.

2 CIDADES GLOBAIS E MEGAEVENTOS: A NOVA


TRANSFORMAÇÃO URBANA

Esta nova transformação urbana descrita é radicalizada quando


se trata dos megaeventos globais, como a Copa do Mundo de Futebol
e os Jogos Olímpicos de Verão. Trata-se da radicalização deste período
pós 1970, que transformou estes megaeventos esportivos em uma grande
oportunidade de atração do capital global como forma de remodelamento
das cidades sede. Estes eventos contam com a vantagem de serem
popularmente aceitos e enquadrados na teoria do marketing da cidade,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 249
porém, com o diferencial na dimensão do retorno econômico. Segundo
Raquel Rolnik, os Jogos Olímpicos e outros eventos voltados ao esporte
ocorriam até os anos de 1930 com baixo impacto na configuração urbana.
(ROLNIK, 2014, p.66).
Em 1984, os Jogos Olímpicos sediados em Los Angeles contaram
com forte patrocínio privado, atingindo o lucro com mais de US$ 200 milhões
aos promotores, despertando maior o interesse de capital globalizado.
Porém, somente em 1992, com os jogos ocorridos em Barcelona, surge o
novo urbanismo do espetáculo, modelo até hoje referência para as cidades
sedes desses grandes eventos. Conforme menciona a arquiteta brasileira,
“agora, não são mais vendidos apenas os produtos associados aos Jogos,
mas também a própria cidade, exposta numa vitrine global impulsionada
pela mobilização de corpos e almas propiciada pela competição esportiva”.
(ROLNIK, 2014, p.67).
Diante deste contexto, os governantes perceberam o potencial
econômico dos megaeventos, junto à oportunidade de requalificar a
cidade, aquecendo o mercado imobiliário e a construção civil. Há uma
argumentação direcionada aos benefícios destes eventos globais para a
qualidade de vida e o incremento da infraestrutura urbana. Obviamente, a
Federação Internacional de Futebol Associados (FIFA) e o Comitê Olímpico
Internacional (COI) notaram o potencial lucrativo de seus eventos-produto,
transformando espetáculos esportivos em grandes negócios. Há uma
ênfase nos padrões de adequação e na exclusividade na comercialização
de tais eventos. Estas demandas acabam por adensar as excepcionalidades
na legislação urbana, tornando mais nítida a flexibilização da cidadania.
As cidades sede destes eventos tornam-se “cidades vitrines”, os padrões
impostos modernizam o cenário urbano, resultando no reconhecimento
internacional e na atração de vultosas quantias de capital.
De acordo com João Sette Whitaker Ferreira e complementando
a investigação, os grandes eventos começaram nos países desenvolvidos,
alavancando grandes obras de “reabilitação” urbana, como no caso
do Stade de France, localizado na periferia norte da capital francesa.
(FERREIRA, 2014, p.11). Posteriormente, tais eventos foram direcionados
aos países em desenvolvimento, o que, de acordo com o autor, ocorreu por
motivos estratégicos, visto que a opinião pública foi se tornando resistente
em face dos impactos econômicos negativos, especialmente do déficit
considerável gerado para a concretização destes espetáculos esportivos.
(FERREIRA, 2014, p.11).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 250
O direcionamento para os países em desenvolvimento é evidente
na última década. As Copas do Mundo de Futebol de 2010 e 2014 ocorreram
na África do Sul e no Brasil, e os torneios de 2018 e 2022 serão realizados
respectivamente na Rússia e no Catar. Assim também, as Olimpíadas de
2008 foram realizadas em Pequim, e os Jogos de 2016 ocorreram no Rio
de Janeiro. Desta forma, observa-se uma lógica econômica dos países em
desenvolvimento, que aceitam sediar estes eventos, procurando sempre
a atração do capital e a modernização de suas cidades e equipamentos
esportivos. A fragilidade econômica de tais países faz com que as exceções
à legislação urbana sejam ainda mais gravosas e o custo da adequação
severamente mais elevado.
A cidade dos megaeventos são as chamadas “cidades vitrines”,
seguindo os padrões impostos pelas organizações, incluindo arquiteturas
contemporâneas de alto padrão, requalificando o urbanismo para receber o
novo público. A “cidade” é então transformada, ruas se tornam arborizadas,
o transporte público se moderniza com a melhor tecnologia, a revitalização
é inquestionável. Ocorre, porém, que os grandes benefícios fazem parte do
território urbano central, suficiente para impulsionar o “marketing” para
as externalidades. Diverso é o que ocorre com a cidade real, periférica,
esta camuflada do público internacional. Nestas áreas o urbanismo segue
precário, o transporte público ainda é lotado e insuficiente, e a paisagem
urbana é desarmoniosa.
Nesse sentindo, verifica-se na cidade do Rio de Janeiro um
processo que data da primeira eleição de César Maia, de imposição de
flexibilização como regra no planejamento urbano e na descentralização
da cidade, com enfoque em novas áreas de investimento. A área simbólica
dessa mudança de eixo urbano é a Barra da Tijuca, conforme já identificava
Glauco Bienenstein em 2003, ao afirmar:
Desse modo, a combinação de tais transformações pode ser
reconhecida na Barra da Tijuca, lida e/ou percebida como nova
centralidade seletiva e socio-espacialmente fragmentada,
especialmente se considerarmos a peculiaridade restritiva
dos novos objetos que vêm sendo implantados nessa área da
cidade. (BIENENSTEIN, 2003, p.22).
Essa perspectiva de gestão empresarial da cidade agrava-se com
a eleição do Rio de Janeiro para sede de grandes eventos mundiais. O
processo até agora descrito, de alteração das formas de administração
urbana, e do acirramento dessas formas com a recepção dos megaeventos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 251
globais, toma contornos ainda mais drásticos na realidade urbana do
Rio de Janeiro. Como descrito, o processo que remonta a 1993, com
o primeiro mandato de César Maia, prolonga-se pelas prefeituras de
Luiz Paulo Conde e Eduardo Paes. Todavia, esse processo é coroado,
primeiramente, com o experimento menor que representou a organização
dos Jogos Panamericanos de 2007, e, posteriormente, com a organização
de importantes jogos da Copa do Mundo de 2014, incluindo a final do
torneio, e a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 na capital fluminense.

3 OS JOGOS OLÍMPICOS DO RIO DE JANEIRO E O CASO DA


VILA AUTÓDROMO

A vitória do Brasil para sediar os Jogos Olímpicos de 2016


ocorreu em 02 de outubro de 2009, em Copenhague, na Dinamarca. O
país do futebol, que já possuí uma tendência à cultura de jogos e esportes,
debruçou-se sobre o evento, com a intenção de proporcionar um nível
de excelência jamais visto. Pode-se dizer que mesmo diante algum
despreparo e algumas falhas durante o percurso, o resultado final chegou
muito próximo ao esperado. A infraestrutura construída tornou o Rio de
Janeiro um legítimo cartão postal do país, agregando sua beleza natural às
intervenções arquitetônicas e urbanas.
As regiões do Rio de Janeiro que abrigaram os investimentos
voltados aos Jogos concentram-se em áreas privilegiadas: Região Deodoro,
que inclui o Parque Radical, Centro Olímpico de Tiro, Centro Aquático de
Deodoro, Arena da Juventude, Centro Olímpico de Hóquei, Estádio de
Deodoro e Centro Olímpico de Hipismo; região do Maracanã, fazendo
parte desta o Estádio Olímpico João Havelange, Maracanã, Maracanãzinho
e Sambódromo; região de Copacabana, qual engloba a Marina da Glória,
Arena de Vôlei de Praia, Estádio da Lagoa e Forte de Copacabana e por
último a região da Barra, onde faz parte o Rio Centro, Vila dos Atletas,
Parque Olímpico e Campo Olímpico de golfe.
Os recursos utilizados para as devidas reformas e novas instalações
provenientes aos Jogos decorreu do governo federal e municipal e parceria
público-privada. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, o custo total
dos Jogos superou em 51% ao planejado, conforme estudo realizado pela
Universidade de Oxford. (FOLHA DE S. PAULO, 2016).
Obviamente, essa caracterização otimista da realização dos
Jogos Olímpicos esconde toda a problemática urbana das cidades que

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 252
sediam eventos desse porte. A supervalorização imobiliária decorrente do
evento intensificou a fragmentação do tecido urbano do Rio de Janeiro,
percebendo-se claramente uma cidade com características diversas e
contraditórias. A supervalorização imobiliária pressupõe a exclusão geral
de determinada parcela da população carioca, impedindo cada vez mais
um espaço unificado.
O projeto desenvolvido para o Parque Olímpico dos Jogos de
2016 representa este cenário. O Parque Olímpico, localizado na Barra
da Tijuca é fruto de um concurso internacional, vencido pelo escritório
britânico AECOM. De acordo com o arquiteto responsável pelo projeto,
Adam William Bill Hanway, a inspiração veio das praias e montanhas do
Rio de Janeiro. (CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DO
BRASIL, 2016). Faz parte da formação do Parque as seguintes estruturas:
Arenas Cariocas 1, 2 e 3, Velódromo, Arena do Futuro, Estádio Aquático,
Centro de Tênis, Centro Aquático Maria Lenk e Arena do Rio. O parque
possui característica multifuncional, seguindo o conceito de “arquitetura
nômade”, isto é, após os eventos as obras serão adaptadas para outras
finalidades, o transformando em um amplo complexo esportivo para atletas
de alto rendimento e fins educacionais, com a proposta de adaptação para
quatro escolas, voltadas aos estudantes da rede municipal.
Conforme as análises das imagens do projeto divulgadas pelo
escritório vencedor do concurso, o parque, localizado em um perímetro
triangular na Barra da Tijuca, foi claramente projetado sem considerar a
maior parte da existência da Vila Autódromo, que margeia a Lagoa da
Tijuca e faz fronteira com os muros do terreno. As primeiras imagens
do projeto comprovam que nunca houve, por parte dos organizadores
do evento e da prefeitura, a intenção de manter os moradores da Vila
Autódromo naquela região.
Em meio às constantes ameaças de remoção e a carência no
âmbito habitacional, a Vila Autódromo criou o Plano Popular Vila
Autódromo, aprovado pelos moradores em assembleia em Agosto de
2012. Com a ajuda de profissionais e membros da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense, o Plano Popular
solicita uma “uma cidade democrática e uma nova forma de planejar a
cidade”. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E PESCADORES DA
VILA AUTÓDROMO, 2012, p.5). Para isto, foi diagnosticado em
diversos estudos realizados, através de levantamento físico e levantamento
econômico e social, as inúmeras carências no que se relaciona a habitação

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 253
e saneamento básico, acessibilidade e mobilidade urbana, equipamentos e
serviços públicos. O plano foi fundamental não apenas para diagnosticar
as necessidades, como também apresentar propostas de soluções viáveis,
buscando a efetivação do direito à moradia. O Plano Popular foi vencedor
do prêmio Urban Age, promovido pela London School of Economics e
pelo Deutsche Bank, concorrendo com 170 projetos sociais do Rio de
Janeiro, fazendo com que se destacasse internacionalmente. O prêmio no
valor de (USD $80mil), foi direcionado aos moradores para a construção
de uma creche comunitária e reforma da associação de moradores.
No Plano Popular, o direito à moradia é corroborado pela menção
às legislações protetivas deste direito social: (1) A Constituição Federal de
1988 estabelece a moradia como direito social fundamental, (2) Resolução
da Assembleia Geral da ONU de 1966, subscrita pelo Brasil em 1992,
defende o direito de todos à moradia adequada, caracterizada pelo custo
acessível, pela disponibilidade de serviços e infraestrutura, acessibilidade,
localização e adequação cultural da habitação. Inclui nesse conceito a
segurança jurídica da posse, e proteção ao cidadão das ameaças e remoções
forçadas e (3) A Lei 11.124, de 16 de junho de 2005, a Constituição Estadual
e a Lei Orgânica Municipal determinam a utilização prioritária de terrenos
de propriedade do Poder Público para a habitação de interesse social.
Vários foram os argumentos utilizados com o intuito de
concretizar a total remoção da Vila Autódromo, começando pelo plano
estratégico do Governo 2009-2012, apresentado pelo prefeito Eduardo
Paes, incluindo dentre suas metas a redução em 3,5% das áreas ocupadas
por favelas no Rio, sendo que a Vila Autódromo estava formalmente
incluída entre as 119 favelas com projeção de remoção. (ASSOCIAÇÃO
DE MORADORES E PESCADORES DA VILA AUTÓDROMO, 2012,
p.8). Além do mais, argumentos como proteção ambiental e área de risco
de inundação foram incluídos para fortificar a defesa da necessidade de
eliminar a área da comunidade, argumentos estes que não são aplicados
em todas as circunstâncias, e partem da premissa de que não haveria forma
de adequar ambientalmente a comunidade em questão.
Historicamente, a Vila Autódromo se constituiu como comunidade
formal em 1987, através da Associação de Pescadores da Vila Autódromo,
atingindo desde então vários ganhos nas melhorias, inclusive com apoio
governamental. Ao longo dos anos, várias famílias foram assentadas
legalmente e, em 2005, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro decretou
parte da comunidade como Área de Especial Interesse Social por meio

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 254
da Lei Complementar n°74/2005. Conforme afirma o texto legal, em seu
art. 1º, ficam permitidos na área que compreende a Vila Autódromo os
usos para “I- residencial multifamiliar; II- de comercial e serviços; III-
hoteleiro; IV- equipamentos esportivos; e V- os destinados a atividade
de lazer e diversões de natureza turística”. (PREFEITURA DO RIO DE
JANEIRO, Lei Complementar n. 74, de 14 de janeiro de 2005).
Compreende-se neste estudo, que diante diversos fatores que
possibilitariam facilmente a remoção total da Vila, ocorre em contrapartida
o poder da ação popular que mais uma vez resistiu às pressões, mesmo
com imensas dificuldades e mantendo a minoria da população residente.
Manifestações e reuniões diante a prefeitura foram realizadas e as respostas
sempre utilizavam o álibi de que a remoção era necessária, pois vinha de
uma exigência do COI. Para complementar a justificativa da necessidade
da retirada da comunidade, o Secretário Especial das Olimpíadas Rio 2016
alegou que deveriam ser garantidas as condições de segurança através da
criação de uma área livre onde a comunidade está inserida, inclusive na
faixa marginal da Lagoa de Jacarepaguá. Sem sucesso, todas as justificativas
vindas do poder político e privado foram refutadas pela Defensoria Pública
em 2010, que notificou o COI de sua discordância. (ASSOCIAÇÃO DE
MORADORES E PESCADORES DA VILA AUTÓDROMO, 2012, p.9),
Sabe-se, todavia, que o processo de remoção da Vila Autódromo
prosseguiu, apesar das diversas instituições e forças populares que se
aglutinaram em torno da causa. O processo de remoção foi lento, iniciado
em 2015 com a primeira demolição e seguido de uma série de outras ações
demolitórias por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro. O panorama da Vila
hoje é de apenas poucas moradias, tendo a maioria dos moradores optado
por um apartamento no conjunto habitacional do Minha Casa, Minha Vida,
chamado “Parque Carioca”. Conforme afirma Carine Botelho Previatti:
Estima-se que, pelos termos assinados que foram anexados
aos processos pela prefeitura, das 557 famílias que
habitavam a região da Vila Autódromo, 349 pessoas tenham
optado pelo Parque Carioca, 88 preferiram indenizações
que totalizaram um valor de R$ 24.341.960,00 e 50 famílias
ainda permanecem no local (PREVIATTI, 2016, p.255)
O conjunto habitacional “Parque Carioca” fica na estrada do
Jacarepaguá, próximo ao local onde se situava a Vila. Todavia, algumas
reclamações foram relatadas pela Organização Não-Governamental
RioOnWatch, relacionadas, sobretudo, à má administração dos condomínios

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 255
e à não entrega das escrituras dos imóveis. (RIOONWATCH, 2016).
Ademais, verifica-se que a desocupação foi desigual, pois as famílias
mais abastadas que ocupavam o local conseguiram as mais vultosas
indenizações, conservando a possibilidade de adquirir propriedades de
padrão semelhante. Enquanto isso, a maioria dos moradores de condição
econômica inferior acabou por optar pelo conjunto habitacional, arcando
com os problemas já apresentados. (PREVIATTI, 2016, p. 255-256).
Por fim, com a predominante insistência por parte do poder
público, conseguiu-se enxugar ainda mais a população da Vila, diminuindo
de 50 famílias para apenas 20, que resistiram à todas pressões e ameaças
(EL PAÍS, 2016). Dentre os fatores que diferem do Plano Popular, pode-se
destacara proposta que estimava a construção de 50 unidades habitacionais
de diferentes tipologias, para atender à necessidade das diversidades
familiares, previstas com três alternativas de moradias: unidades
unifamiliares, sobrados e pequenos prédios de 4 pavimentos. No entanto,
foram construídas 20 casas modelo padrão com aproximadamente 60 m².
O caso da Vila Autódromo prova que o interesse do capital externo e a
execução dos megaeventos de fato está alheia aos processos democráticos
e as legislações locais, agravando o âmbito exclusivista e corroborando a
ideia já mencionada de se pensar um novo modelo de cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo buscou referenciar um percurso histórico das cidades e


problematizar a questão do acesso à moradia digna e ao lugar da cidadania na
nova realidade urbana imposta, primeiramente, pelo reordenamento próprio da
industrialização e, posteriormente pela mudança no paradigma administrativo
do espaço urbano. Esse primeiro trajeto, referenciado especialmente nas obras
de Lefebvre e Harvey, permitiu pensar o papel do conceito tradicional de
cidadania numa realidade que claramente não o abarca. A conclusão primeira
e orientadora das demais reflexões é a de que a cidadania urbana atual é
orientada pelas necessidades do mercado e pelos interesses espaciais: trata-se
de uma cidadania de ocasião, flexível ao sabor dos contextos.
Essa primeira conclusão permitiu enxergar a radicalização dos
processos urbanos, com o advento dos grandes eventos como verdadeiras
“janelas de oportunidades”, a partir da problematização trazida por
autores que se dedicaram à compreender a lógica dos grandes eventos,
como Rolnik e Ferreira. Essa visão foi aprimorada pelo conhecimento da

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 256
realidade urbana do Rio de Janeiro, referenciada por autores fluminenses,
como Vainer e Bienenstein. A percepção evidente e fundamentada é de
que os grandes eventos radicalizam a lógica primeiramente diagnosticada
pelos autores clássicos, tornando a flexibilização das normas citadinas, e
consequentemente, a porosidade da cidadania urbana, mais evidente.
Essa segunda conclusão permitiu uma melhor análise da situação
da Vila Autódromo, a partir de seu histórico e das tentativas de turbação e
resistência dos moradores. Esse objeto sintomático de uma realidade mais
ampla permitiu a verificação de que as políticas públicas de moradia não
são eficientes quando se trata de uma comunidade historicamente assentada
em uma região visada pelo mercado imobiliário. Percebe-se, da análise do
caso da Vila Autódromo, o que se previu na primeira reflexão apresentada:
a cidadania de seus moradores é condicionada ao contexto em que se
inserem. No caso, o comportamento dúbio do poder público em relação
a este território, por um momento consagrando sua ocupação por meio da
instalação de equipamentos públicos, por outro elencando argumentos para
dissolver a comunidade, demonstra a fragilidade do espectro de direitos do
cidadão em face de interesses que lhe sobrepõe.
Todavia, uma reflexão ainda inacabada e que pode trazer
questionamentos necessários à problemática apresentada é o papel da
resistência nesse contexto. Verifica-se que a Vila Autódromo foi capaz
de aglutinar diversas vozes resistentes no seu percurso de tentativa
de permanência. Ainda que não necessariamente bem sucedida, essa
resistência aponta para a urgência de meios populares e democráticos
de planejamento urbano. Conforme afirmam Borja e Castells, em uma
perspectiva de concretização dos novos sentidos da cidade:
Num momento histórico caracterizado pela globalização
da economia e pelas políticas de abertura dos mercados,
pela descentralização política, revalorização dos âmbitos
e identidades locais ou regionais e pela multiplicação de
demandas sociais heterogêneas que não se sentem satisfeitas
pelas respostas estatais, o Projeto de Cidade (ou de região),
baseado num Plano Estratégico de consenso social,
representa grande oportunidade democrática. (BORJA E
CASTELLS, 1996, p. 166).
A perspectiva destes sociólogos urbanos é justamente estruturar a
expansão urbana a partir de um amplo consenso social, que só poderá ser
feito com a superação das instâncias políticas tradicionais. Essa visão é
contraposta pelas ideias de Harvey, Vainer e outros, por prever a perspectiva

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 257
de gestão empresarial e desburocratização. Todavia, é necessário como
perspectiva científica começar a reflexão e investigação das novas formas
de estruturação urbana, mesmo aquelas embrionárias. Nesse sentido, o
plano popular da Vila Autódromo, já anteriormente citado, é um exemplo
de organização territorial democrática que permite pensar novos modelos
de participação popular, dada a crise das instituições democráticas
representativas e sua inabilidade em lidar com questões contemporâneas.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E PESCADORES DA VILA


AUTÓDROMO. Plano popular da Vila Autódromo - Plano de
desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural. 2012.
BIENENSTEIN, Glauco. Espaços metropolitanos em tempos
de globalização: um estudo de caso do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2003.
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. As cidades como atores políticos.
Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 45, Jul. 1996.
CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DO BRASIL.
Rio 2016: Parque Olímpico foi escolhido por Concurso Público de
Arquitetura. Disponível em: http://www.caubr.gov.br/rio-2016-parque-
olimpico-foi-escolhido-por-concurso-publico/. Acesso em: 28 out. 2016.
EL PAÍS. Vila Autódromo, a comunidade que venceu os Jogos
Olímpicos. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/25/
politica/1469450857_996933.html. Acesso em: 25 out. 2016.
FERREIRA, João Sette. Um teatro milionário. IN: JENNINGS, Andrew,
et al. Brasil em Jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? São
Paulo: Boitempo, 2014.
FOLHA DE S. PAULO. Custos olímpicos do Brasil estão 51% acima do
orçamento, alerta relatório. Folha de São Paulo. Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/esporte/olimpiada-norio/2016/07/1789709-
custos-olimpicos-do-brasil-estao-51-acima-do-orcamento-alertarelatorio.
shtml. Acesso em: 20 out. 2016.
HARVEY, David. A produção capitalista no espaço. São
Paulo: Annablume, 2005.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar n. 74 de
14 de janeiro de 2005. Modifica a legislação de trecho da subzona
A-16-A do Decreto nº 3.046. Disponível em: http://mail.camara.rj.gov.
br/APL/Legislativos/contlei.nsf/1dd40aed4fced2c5032564ff0062e
425/6ac956bdce1be32d032577220075c824?OpenDocument.
Acesso em: 21 out. 2016.
PREVIATTI, Carine Botelho. Segregação socioespacial na realização
dos Jogos Olímpicos Rio 2016 na região da Barra da Tijuca, RJ:
comunidade Vila Autódromo. Dissertação (Mestrado em Ciências) -
Universidade de São Paulo-USP. São Paulo, 2016, 278 f.
ROLNIK, Raquel. Megaeventos: Direito à moradia em cidades à venda.
IN: JENNINGS, Andrew, et al. Brasil em Jogo: o que fica da Copa e das
Olimpíadas? São Paulo: Boitempo, 2014.
VAINER, Carlos. Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de
Janeiro. Anais do XIV Encontro Nacional da Associação Nacional de
Planejamento Urbano (ANPUR), v. 14, 2011.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 259
A PROXIMIDADE ENTRE IGREJA E ESTADO
E A NECESSIDADE CONSTITUCIONAL DE
EXTINGUIR A ISENÇÃO DE IMPOSTOS PARA
INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS

Jéssica da Silva Belucci*


Gabriel Fedoce LaranjaPaulo**
Eduardo de Mattos Stipp***

INTRODUÇÃO

O Estado tem como função proporcionar e resguardar os direitos


fundamentais declarados na Carta Magna: Moradia, educação, vida digna,
enfim, todos os princípios que a Constituição Federal optou em defender
como essencial. O Estado tratou de resguardar direitos importantes e
íntimos da sociedade, por exemplo, igualdade material e não só formal,
além da laicidade do Estado.
Não se trata de uma crítica a uma igreja ou religião, mas sim,
de uma reflexão acerca do papel que o Estado e a igreja têm. Somente
entendendo o espaço de cada um desses organismos sociais é que se
entende aonde eles devem começar e findar.
Igrejas com níveis exorbitantes de fiéis surgem a cada dia em todas
as esquinas e, por não ser fiscalizado e não haver taxação de impostos,
essas instituições religiosas acabam criando oportunidade para a prática de
atos ilícitos sem que o Estado perturbe.
Este trabalho justifica-se pela necessidade de demonstrar como
o não pagamento de impostos por instituições religiosas vem servindo de
meio para realização de atos ilícitos por pessoas má intencionadas. Além
disso, tem como objetivo mostrar a importância de um Estado laico, sem
vantagens ou discriminações a nenhuma religião.
O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas. No
primeiro capítulo será abordado um breve histórico da origem da religião
no mundo e como ela é tratada na Constituição Federal.
*
Discente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.
**
Discente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.
***
Docente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 261
No segundo capítulo serão abordadas as religiões existentes
no país e como as leis e os partidos políticos interferem ou não nessas
instituições. O terceiro capítulo trará uma explanação história da taxação
de impostos no país, relacionando com outras instituições de caráter não
religioso. Por fim, o quarto capítulo tratará da atual situação da taxação de
impostos no país e como a falta dessa cobrança é prejudicial ao Estado.

1 RELIGIÃO E ESTADO

Existe uma proximidade no Brasil entre Estado e religião. Desde a


colonização, a presença e a importância do catolicismo (religião oficial de
Portugal,) foi ímpar e semelhante a pouquíssimos outros lugares no mundo.
A relação profunda entre o Estado monárquico do reino de Portugal
e Brasil não se finda com a ascensão do Rio de Janeiro como capital do
Império. É bem verdade que houve uma autorização de professar novas
religiões no reino, algo surpreendentemente novo para os brasileiros, mas
nem de longe alterava a intimidade entre o Estado detentor de poderes e
uma igreja que cada vez mais detinha poderes financeiros e políticos.
O fim do império deu término, em teoria, a um Estado brasileiro
que detinha uma religião oficial, porém, ao longo dos anos foi normal mover
o Estado em prol de uma moral e ética advinda de uma ideia religiosa.
O laicismo reafirmado na Constituição Federal Democrática
de 1988 já em seu próprio corpo, mais claramente em seu Preambulo,
é relativizado quando se afirma estar promulgando sob “a proteção de
Deus”. Tal texto, tão atual e moderno, expressa a forma em que a religião
e, principalmente, a religiosidade está impregnada no Brasil.

2 AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS E AS LEIS NO PÁIS

O Brasil se transformou no último século. Houve uma


república de Marechais e coronéis de café e leite, uma ditadura de um
“velhinho carismático”, um curto espaço de presidentes eleitos, uma
ditadura sangrenta e americanizada, redemocratização, impeachment do
“collorido”, o sociólogo, o metalúrgico, a guerrilheira na presidência e
um impeachment presidido por um presidente da câmara que estava com
dois pés na cadeia, mas as mudanças não ficaram à exclusividade do
campo político, houveram mudanças no campo econômico, populacional,
tributário, legal e, evidentemente, religioso.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 262
O catolicismo perdeu força (mas ainda é a maior religião
professada no Brasil), o protestantismo encontrou uma demanda extensa
e frutífera e as religiões advindas da cultura africana encontraram uma
pseudoliberdade. O neopentecostalíssimo trouxe ao Brasil uma igreja mais
carismática, alegre, bem abrasileirada, ganhou fieis e poder financeiro.
Em poucos anos tornou-se normal igrejas em todas as esquinas,
depois duas em cada rua, três e agora surgem a era dos templos gigantescos.
Eis que surgiu Salomão, ou sua riqueza. O Brás nunca ouvira falar tanto
em fé, tampouco tanto em dinheiro.
Não se pretende nesse trabalho criticar uma religiosidade, mas
encontrar os limites da igreja e do Estado. O Brasil é um pais intervencionista,
presencial, isso não é necessariamente ruim, mas significa que qualquer
mínimo ato legal que o Estado celebre altera significativamente a vida do
mais humilde cidadão do brasileiro.
Em entrevista, explica Karnal sobre o que é ser laico:
O laico não se opõe ao religioso, o laico se opõe ao clerical.
Essência é um pensamento típico de uma religião metafísica.
Espinosa nos ensina que corpo e alma são apenas uma coisa.
Separar perfeitamente corpo e alma e entender que a essência
é a alma é uma postura dominante entre certas teologias
cristãs. O corpo não pertence a este plano, é uma casca, é um
veículo que serviu para sua alma voltar a esse mundo, caso
do reencarnacionismo cristão, como o kardecista, ou para
existir uma só vez, caso do Catolicismo. Você não necessita
de religião institucional para estabelecer espiritualidade. Há
muitas pessoas fora desse sistema que estabeleceram densa
espiritualidade. (LEANDRO; KARNAL, 2015).
Com um Estado tão “grande”, ou seja, tão próximo à esfera
íntima, membros do legislativo e do executivo que tentam importar suas
crenças a leis e a processos educacionais ferem o Estado laico confirmado
na Carta Magna de 1988.
Com a proximidade entre igreja e Estado nasce a proximidade
entre política e religião. Igrejas de nível de fiéis exorbitantes decidiram que
não poderiam lutar pelo cristianismo apenas na esfera religiosa devendo
partir para uma agremiação política, semelhante para alguns com o poder
temporal do papa na idade média.
Surgem partidos como PSC (Partido Social Cristão), PRB (Partido
Republicano Brasileiro) que é um partido fundado e formado em maioria
por membros da Igreja Universal do Reino de Deus, PSDC (Partido Social

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 263
Democrata Cristão), PTC (Partido Trabalhista Cristão) entre outros que
recebe influência indireta.
Nasce a nova direita brasileira. Grupos de oração no Congresso,
oitiva de ungido do Senhor e processos. “Viva a família” gritam! Não era
Jesus a quem eles representavam? Esqueceram-se quando chegaram ao
Congresso, o discurso deveria ser laico.
Crucifixos em lugares públicos já foi motivo de discussão, como
no artigo “O Estado não tem o direito de ostentar símbolos religiosos” do
procurador Federal da AdvocaciaGeral da União, Átila da Rold Roesler
(2010), orações em escolas é motivo de confronto constante entre a
bancada religiosa e os defensores da Constituição Federal, mas nada
é mais assustador do que a “Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
99/11, que concede a entidades religiosas de âmbito nacional o poder
de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de
Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF)”.
Tal emenda dá poder a Instituições como Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), Convenção Geral das Assembleias de Deus
do Brasil e Supremo Concílio das Igrejas Presbiterianas do Brasil de
acionar o Supremo Tribunal Federal sobre legislações que ferem preceitos
religiosos. Evidentemente o preceito religioso deles.
Em 2014 houve um fenômeno político conservador no Brasil
que fez com que a nação pudesse ser chamada de República Cristã do
Brasil, surgiu um Congresso conservador e tacanho tal qual o de 1964,
um “centrão” de congressistas que impedia e aprovava o que bem
entendia e congressistas que não conseguiram diferenciar o Congresso
Federal de um templo.
Eis que mesmo que a lei preserve o ser humano, respeite o Pacto
de São José da Costa Rica e não respeite a doutrina cristã de alguma
importante igreja brasileira, está aí a mais dura inconstitucionalidade.

3 IMPOSTOS

Além da proximidade notória entre o Estado e a igreja no Brasil,


também deve-se atentar com a beneficie que o Estado dá a tais instituições
e as consequências de tais ações.
O Brasil está entre os 10 países que mais cobram impostos no
mundo. Essa política pública acredita em um Estado mais presente do que
omisso e isso acaba sendo necessário, não se trata de uma crítica, uma vez

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 264
que o artigo não almeja discutir economia política, mas uma explanação
de realidade social.
As escolas brasileiras particulares têm vivido fadigadas pelo peso
de impostos que parecem mitológicos tendo em vista a função social de
tais “empresas”, a educação. Nas palavras de Fernando Barão e Eugênio
Machado Cordaro (2016) desde 2007 as escolas particulares sofreram
reajustes indignos a suas funções e o peso de tal escolha é irracional.
Foi, e ainda é, muito difícil entender porque o setor de
educação, teoricamente tido como estratégico para o
crescimento e fortalecimento do Brasil, foi justamente
o escolhido para sofrer o impacto de uma tributação 50%
mais alta do que os demais setores. Apesar de, ainda assim,
o Simples se mostrar melhor do que os demais sistemas,
o impacto para as escolas foi da ordem de 3,5% da receita
- uma enormidade em um setor com margens de lucro
relativamente baixas. (BARÃO; CORDARO, 2016).
Em entrevista a Paulo Saldaña (2012), Ozires Silva apresenta uma
ótica preocupante em relação ao ensino superior privado e os impostos a este
setor, ele afirma que tributações próximas a 30% do valor da mensalidade
pesam ao aluno, impossibilita um salário digno aos professores e ainda
colabora para 40% dos alunos matriculados não se formarem por falta de
capacidade financeira.
Eis uma dicotomia institucional, o Estado dá mais incentivo a
igrejas do que a escolas. Estudar torna-se uma missão difícil e resguardadas
a poucos. É bem verdade que medidas sociais influenciadas pelo
Estado como FIES - “Financiamento Estudantil”, PROUNI “Programa
Universidades para Todos”, “Ciência sem fronteiras”, ajudaram a uma
grande quantia de jovens sonhadores graduar-se.
Tais números não são sequer aceitáveis levando em conta a
demografia brasileira. Em regiões menos industrializadas ainda hoje é sonho
o segundo grau, logo se discute se há um incentivo tão resultante assim.
Comparando a proximidade entre o Estado e religião e Estado e educação,
conclui-se, que em um contexto histórico já exposto anteriormente, a
proximidade com a religião, e a religiosidade, é infinitamente superior do
que a com a educação.
Se a distância entre Estado e educação já eram grandes, tornou-se
abissal com as medidas adotadas pelo governo Temer no ano de 2016. A
crise financeira serviu de argumento para o fim de medidas de incentivo a
educação até então adotado pelo Estado. Ciência sem Fronteiras viu seu

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 265
fim, o FIES vive um momento de incerteza e há de vir um teto de limite
de gastos na educação.
Uma população religiosa não é motivo para preocupação de
ninguém, tampouco de alegria. Há um discurso moralista que cristãos, ou
teístas, são em essência pessoas mais equilibradas, dignas de confiança,
do que pessoas ateias. Evidente que discursos como estes se esquivam de
personagens históricos como Adolf Hitler (cristão), Richillieu (cardeal -
cristão), Alexandre VI (papa - cristão) e acabam por agremiar seguidores
de discursos demagogos.
O que deve preocupar a todos cidadãos que prezam por seu Estado
de Direito é um Estado que beneficia igrejas e por outro lado prejudicam
setores indispensáveis para o crescimento social. Vive-se em tempos de
crise mundial que afetou significativamente o país. O governo aumentou
taxa de juros, diminuiu incentivo fiscal, diminuiu pacotes sociais para reter
gastos e tentar diminuir a inflação.
Pacotes fiscais como estes doem na sociedade, embora
muitas vezes necessário. Tem-se arranjos fiscais mais duros e mais flexíveis,
Levy, Barbosa e Meirelles1 mostrou isso no bolso, mas todos afetam em
cheio o trabalhador. Quando o Estado patina, os trabalhadores sofrem,
os estudantes sofrem, as mães de casa sofrem. Aumenta-se impostos,
diminui investimentos, o que diminui empregos, e a inflação alimenta-se
amorosamente do salário do mais pobre trabalhador. Uma reportagem no
site da Globo explica:
O objetivo do pacote anunciado é colocar R$ 66,2 bilhões
extras no caixa do governo. Parte desse dinheiro deve
vir do corte de gastos, o que corresponde a pouco menos
de 40% do total. Os outros 60%, ou seja, mais R$ 40,2
bilhões, o governo pretende conseguir aumentando a
receita, ou seja, aumentando impostos e contribuições.
(GOVERNO BRASILEIRO, 2015).
Eis que surge uma crítica que deve ser analisada com a mais
profunda seriedade de todos os setores sociais. Se o Estado precisa
aumentar sua arrecadação e diminuir seus gastos e faz isso aumentando
os impostos do trabalhador, por que não cobrar impostos de instituições
religiosas ao invés de onerar ainda mais o cidadão?

1
Últimos Ministros Da Fazenda. Joaquim Levy e Nelson Barbosa nos anos de 2014
e 2015 no governo da presidente Dilma Rousseff e, atualmente, Henrique Meirelles no
governo do presidente Michel Temer

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 266
Não se trata de incentivo a criação de mais impostos. É obvio que
há impostos em quantidades faraônicas, mas qual o sentido de onerar o
trabalhador, escolas e deixar isento instituições religiosas?
Partindo desta premissa deve-se analisar as consequências que tal
exceção provoca. Não havendo cobrança de impostos por parte do Estado
às instituições religiosas, torna-se prático abrir templos e mais templos,
dando oportunidade para que líderes religiosos pratiquem atos ilícitos.
Não há aqui uma intenção de afirmar que todos os protestantes
têm em seus líderes figuras de mafiosos, ou que todos os padres vivam
de movimentos religiosos que servem de faixada para lavar dinheiro. Ao
invés disso, o que se apresenta é que a proximidade entre igreja e Estado,
hoje, prejudica a ambos, como se fosse um ciclo vicioso que prejudica e
mata o Estado, sua produtividade e o cerceia de ambiguidades.
A não taxação de impostos a instituições religiosas, cria
oportunidade para indivíduos mal-intencionados praticarem seus atos
travestidos de uma imagem que o Estado não os perturbará, como “padre
Moacir” suspeito de corrupção e lavagem de dinheiro na operação “Lava-
Jato”. Ele supostamente teria lavado dinheiro para o ex-senador do Distrito
Federal Gim Argello e o ex-governador Agnelo Queiros.
Os investigadores trabalham com a hipótese de que o
dinheiro depositado na conta da igreja de Brasília é parte da
propina que Gim Argello recebeu para manter executivos
de empreiteiras bem longe das comissões de inquérito que
investigavam corrupção na Petrobras no Senado e na Câmara,
há dois anos. Gim, Agnelo, o padre e as empreiteiras negam
tudo, claro. (LAVA JATO APURA, 2016).
Os pastores Sebastião Braz Neto, Felipe Jorge Freitas e Francisco
de Moura são outros exemplos de pessoas que buscaram situações sociais
que facilitariam sua conduta criminosa. Eles foram presos em flagrante
traficando armas de fogo da Bolívia.
Segundo a polícia, o grupo contou que as armas vieram
da Bolívia e seriam entregues a traficantes do Morro do
Martins, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio
de Janeiro. Os fuzis são do modelo M-15, de fabricação
norte-americana, marca Bushmaster, Modelo M-15, calibre
5,56. As armas estavam escondidas em compartimentos de
fundo falso nas portas dianteira e traseira e assento traseiro
do veículo. O policial rodoviário Valter Favaro disse, “é um

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 267
armamento usado em guerra, muito potente, muito moderno.
É uma arma extremamente perigosa”. (SANTOS, 2015)
Quando tais atos criminosos aparecem configurados por membros
de entidades religiosas é fácil identificar discursos anticlericais que
afirmam que as religiões produzem criminosos ou frases extremistas que
generalizam toda a instituição religiosa. Eis o ônus que a igreja obtém com
a proximidade entre Estado e igreja.
Impostos podem ser algo que dificulta a vida do cidadão, apesar
de útil e necessário, e, certamente, dificultará a vida de muitas comunidades
religiosas de distintos credos, mas não ceifará sua existência.

4 A RELIGIÃO NA POLÍTICA

Há uma discussão que a sociedade deve tomar para si. É justo,


ou legítimo, as bancadas que defendem suas religiões? O preceito da
democracia representativa é o poder que os representantes detêm graças a
escolha da população. Mas e as religiões, que graças ao conceito histórico,
tem menor quantidade de membros? Devem ser menos respeitadas?
Felizmente a Constituição Federal preza pela igualdade, o que
é a força movedora dessa discussão, uma vez que é uma contradição
um grupo político defender seu credo em desfavor a outrem, graças a
sua eletividade que corresponde a superioridade numérica de fieis (que
também são eleitores).
Políticos como pastor Marco Feliciano, PSC-SP, é um exemplo
claro de político que foi eleito graças a sua função religiosa e a expressão
numérica de fieis de seu credo.
Sua proposta, naturalmente, visa agradar a quem o elegeu,
eleitores estes evangelizados por ele mesmo.
Não há a intenção de dizer que o nobre deputado se publicita
enquanto fala de Deus, mas evidente que encaminha seus fiéis a votarem em
quem defende a Deus. O verdadeiro Deus, o deles. Há um indireto ataque
ao laicismo? É controverso. A democracia é controversa, por isso existe.
É essa controvérsia que está em discussão, quando se escolhe
líderes religiosos para criar leis, ataca a discussão, o devir democrático e,
naturalmente, a assassina em seu mais nobre princípio. Não é um defeito de
uma religião ou de outra, é de sua natureza acreditar que ela prega a verdade
e que seu Deus é o verdadeiro. Isso pode ser positivo enquanto instituição
religiosa, mas extremamente nocivo quando levado para o Estado.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 268
A igreja vive sob a égide de uma uniformidade, uma crença
única, hegemônica, já o Estado democrático vive sob a égide da
heterogeneidade, a controvérsia, a discussão, caso contrário é um Estado
autoritário. É a natureza de cada uma, não se altera, a igreja não vive
sem um credo, um Estado democrático descaracteriza-se, morre, quando
existente sob um credo uno.
A história já cansou de mostrar quão grave essa proximidade
pode ser. Idade média, a era Bórgia com seu famoso papa e seu Duque
Florentino2, cardeal Richellie, dentre outros. O Brasil precisa olhar, com
urgência, o passado para não se afundar em mares já navegados por
nossos antepassados.
Uma descrição comum de um culto evangélico não fossem
os pastores, deputados, falando de um púlpito improvisado
no plenário Nereu Ramos da Câmara dos Deputados de um
país laico chamado Brasil. E se o (até então) presidente da
Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), anunciado do púlpito ao
entrar no recinto pelos pastores João Campos (PSDB-GO) e
Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ), não tivesse deixado de lado
a agenda oficial para participar da celebração e tirar selfies
com pessoas que se amontoavam ao seu redor. (DIP, 2015).
Enquanto o Brasil valorizar mais um congressista que fala em
nome de Deus, transforma o plenário em igrejas e ignora o laicismo do
Estado, do que congressistas que militam por educação de qualidade,
taxação de impostos em igrejas e grandes fortunas, ele continuará a sofrer
com taxas altíssimas de analfabetismo, IDH baixo e miséria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vê-se nas cidades um crescimento da religiosidade, a cada rua


uma nova igreja é aberta e a cada dia novas denominações surgem, sem
qualquer fiscalização. Sendo assim, após analisados os fatos e a realidade
das instituições do país, observa-se a urgente necessidade de mudanças.
Por meio do pagamento de impostos, seria menos costumeiro e mais
difícil, pessoas mal-intencionadas usarem igrejas como véu para fins
ilícitos, enganando, tirando vantagem de fiéis inocentes, lavando dinheiro
ou realizando outros crimes.

2
Nicolau Maquiavel em sua brilhante obra “O Príncipe” explana extensivamente
acerca da importância histórica do Duque Valentino, filho do papa Alexandre VI.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 269
Se, segundo a Constituição Federal, o Estado é laico, não existe
real motivo para dar privilégios às instituições religiosas, e se esse benefício
é concedido por causa do trabalho social que realizam, então é obrigação
delas declarar como estão gastando esse dinheiro. Não se pode confundir
obras de caridade com enriquecimento institucional.
Construções de templos como o de Aparecido (católico) e o de
Salomão (protestante) nada tem a ver com obras de caridade e demonstração
de fé pública, mas com caracterização de formação e enriquecimento
institucional religioso. É inviável, indefensável a isenção de impostos a
igrejas, mas dificilmente líderes religiosos legislarão contra si mesmos.

REFERÊNCIAS

10 países com maiores impostos e menor retorno para a população.


Disponível em: http://exame.abril.com.br/economia/noticias/10-
paises-com-maiores-impostos-e-menorretorno-para-a-populacao.
Acesso em: 09 mai. 2016.
BARÃO, Fernando; CORDARO Eugênio Machado. Carga Tributária
das Escolas: Aumento constante. Disponível em: http://www.humus.
com.br/news/financeiro6.htm. Acesso em: 08 mai. 2016.
DIP, Andrea. Bancada evangélica cresce e mistura política e religião
no Congresso. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2015/10/19/bancadaevangelica-cresce-e-mistura-politica-e-
religiao-no-congresso.htm. Acesso em: 12 mai. 2016.
Governo brasileiro anuncia cortes no orçamento e aumento de impostos.
G1. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/09/
governo-anuncia-cortes-no-orcamento-eaumento-de-impostos.html.
Acesso em: 09 mai. 2016.
Lava Jato apura se ex-senador transformou igreja em lavanderia
de dinheiro com aval de padre. Disponível em: http://www.
msn.com/pt-br/noticias/brasil/lava-jato-apura-se-exsenador-
transformou-igreja-em-lavanderia-de-dinheiro-com-aval-de-padre/
arBBsKLYf?li=AAggXC1&ocid=mailsignout. Acesso em: 10 mai. 2016.
Leandro Karnal fala como a religião pode destruir ou salvar vidas em
nome de Deus. Disponível em: http://www.radiometropolefm.com.br/
noticia/2119/leandro-karnal-falacomo-a-religiao-pode-destruir-ou-salvar-
vidas-em-nome-de-deus-/. Acesso em: 08 mai. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 270
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Partidos políticos registrados no
TSE. Disponível em: https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/
registrados-no-tse. Acesso em: 07 mai. 2016.
ROESLER, Átila da Rold. O Estado não tem o direito de ostentar
símbolos religiosos. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.
br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7252.
Acesso em: 31 out. 2016.
SALCEDO, Gabriela. Comissão dá a igrejas poder de questionar
leis no STF. Disponível em: http://congressoemfoco.uol.com.br/
noticias/comissao-da-a-igrejas-poder-de-questionarleis-no-stf/.
Acesso em: 09 mai. 2016.
SALDAÑA, Paulo. Imposto sobre escolas não ajuda educação.
Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/
geral,imposto-sobre-escolas-nao-ajuda-educacaoimp-,957848.
Acesso em: 08 mai. 2016.
SANTOS, João. Pastores da Igreja Mundial são presos por
tráfico. Disponível em: http://www.s1noticias.com/pastores-da-
igreja-mundial-sao-presos-por-trafico-dearmas.html#axzz4866deb1b.
Acesso em: 10 mai. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 271
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E MANICÔMIOS: A
AMBIGUIDADE DA DIGNIDADE EXISTENCIAL

Jéssica da Silva Belucci*


Gabriel Fedoce Laranja**
Paulo Eduardo de Mattos Stipp***

INTRODUÇÃO

Falar sobre a loucura nunca foi fácil, está internalizado na


sociedade que a melhor, ou talvez única forma de tratá-la é por meio da
internação, independente da vontade do internado. A história do tratamento
psiquiátrico no mundo prova que nem sempre manter a pessoa isolada da
família e do convívio social auxiliará em seu tratamento, mas foi necessária
muita luta por parte dos médicos que apoiavam uma reforma na medicina.
O movimento da reforma psiquiátrica, que ganhou força na
década de 70 no Brasil com a mobilização de profissionais da saúde mental
e familiares de pacientes insatisfeitos com os métodos praticados na
época, é uma luta pelos direitos de pacientes psiquiátricos, denunciando a
violência praticada nos manicômios e propondo a construção de uma rede
de serviços e estratégias comunitárias para o tratamento dessas pessoas.
Este trabalho justifica-se pela necessidade de demonstrar que os
direitos fundamentais previstos na Constituição Federal são garantidos
também a pessoas que estão passando por tratamentos de doenças mentais
e tem como objetivos promover maior conscientização sobre o tratamento
dessas doenças e incentivar a inclusão deles, provando que a internação
compulsória não é uma boa solução. O trabalho foi realizado por meio
de pesquisas bibliográficas. No primeiro capítulo será abordada a história
da loucura no mundo, baseando-se nas ideias de Foucault, em seu livro
“A história da loucura na Idade Clássica”. Também serão analisadas as
primeiras instituições brasileiras, de acordo com a apostila “Memória
da Loucura”, elaborada pelo ministério da saúde brasileiro. O segundo
capítulo tratará sobre os direitos fundamentais e as políticas públicas de
*
Discente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.
**
Discente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.
***
Docente do curso de Direito. UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 273
saúde mental no Brasil, trazendo uma análise da Lei nº 10.216/2001, que
tem por finalidade proteger e garantir os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redirecionar o modelo assistencial em saúde mental.
O terceiro capítulo explicitará uma breve análise da rotulação
estigmatizante entre o que é considerado “normal” e “anormal”, baseando-
se nas ideias de Howard S. Becker, em seu livro “Outsiders”. Por fim,
o quarto capítulo trará um breve histórico sobre Franco Basaglia e sua
importância para a reforma psíquica na Itália também no Brasil.

1 A HISTÓRIA DA LOUCURA

1.1. A origem da loucura no mundo

A lepra foi uma das primeiras causas de exclusão social, durando


longos anos, até o fim da Idade Média, doentes eram tratados como monstros
e trancafiados em casas e hospitais construídos exclusivamente para eles.
Lá sofriam maus tratos, abandono e serviam de ratos de laboratório para
práticas médicas clandestinas. (FOUCAULT, 1972, p. 7).
A luta foi grande, porém por volta de 1550 a lepra foi vencida.
Entretanto, as estruturas da exclusão permaneceram e, em uma época em
que os Direitos Humanos não tinham nem planos de existir, ficava claro
que não demoraria muito para uma nova rejeição social ocorrer.
Cerca de dois ou três séculos depois, em uma cultura diferente,
pobres, vagabundos, presidiários e "loucos" assumem o papel do
abandonado, porém agora com um sentido diferente, além de excluídos,
também necessitavam de reintegração espiritual.
Comida, utensílios domésticos, especiarias e loucos. Essa era a
carga dos navios de contrabandistas diariamente na Europa. Talvez como
forma de proteger os moradores, talvez para evitar que eles ficassem
perambulando entre os muros da cidade, os loucos eram levados de um
canto a outro e abandonados nas cidades mais distantes.
A loucura sempre atraiu os homens, segundo Michel Foucault
(1972, p. 30), em seu livro História da Loucura na Idade Clássica:
Nesta adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir
sua loucura como uma miragem. O símbolo da loucura será
doravante este espelho que, nada refletindo de real, refletiria
secretamente, para aquele que nele se contempla, o sonho de
sua presunção. A loucura não diz tanto respeito à verdade e

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 274
ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele
acredita distinguir.
No século XVII, várias casas de internamento foram criadas na
intenção de combater aqueles considerados loucos, estima-se que mais de
um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa dessas
casas, mesmo que por alguns meses. Além disso, o poder absoluto fez uso
das cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias, sem estimar qual a
consciência jurídica que poderia gerar tais práticas.
Em 1656, é assinado um decreto em Paris, do Hospital Geral.
Por meio dele, vários estabelecimentos já existentes são agrupados sob
uma administração única: a Salpêtrière. Todos são agora destinados aos
pobres de Paris, lá eram alojados e alimentados os que se apresentavam
de espontânea vontade, ou aqueles que para lá eram encaminhados pela
autoridade real ou judiciária.
Para zelar pela boa conduta e ordem geral, foram nomeados
diretores, que atuavam não só nos hospitais, como também na cidade,
recolhendo aqueles que deveriam ser internados. Nas palavras de
Foucault. (1972, p. 57):
Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito
de execução contra o qual nada pode prevalecer o Hospital
Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia
e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão
(...). Em seu funcionamento, ou em seus propósitos, o
Hospital Geral não se assemelha a nenhuma ideia médica. É
uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que
se organiza na França nessa mesma época. Está diretamente
ligado ao poder real que o colocou sob a autoridade única do
governo civil; o Grande Dispensário do Reino, que constituía
antes, na política da assistência, a mediação eclesiástica e
espiritual; vê-se repentinamente posto para fora de circuito.
Os Hospitais Gerais eram instituições que não tinham conotação
de instituição médica, esta começou a ser identificada a partir de
transformações iniciadas no final do século XVIII, e assim, aos poucos,
os considerados loucos deixaram de ser levados de cidade a cidade,
e foram sendo internados nesses hospitais, surgindo então a internação
compulsória, motivo de muito estudo e polêmicas até hoje.
Não se pode deixar de ressaltar que apenas por meio dessas
internações é que foram possíveis avanços na área da psiquiatria, como diz
o historiador Roberto Machado (1981, p. 63) “O hospício é considerado o

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 275
a priori da percepção médica”. Sem o isolamento, não haveria produção do
saber, sendo assim a internação é o a priori dos estudos psiquiátricos que
permitiram classificar a loucura como doença.
Por mais que houvessem benefícios para a medicina da época,
havia muita discussão sobre internar pessoas, privá-las de sua liberdade,
principalmente tendo em vista que os maiores avanços ocorreram na
Revolução Francesa, que tinha como base a liberdade, fraternidade e
igualdade. (MACHADO, 1981, p. 161).
A loucura passa então a ser tratada como alienação mental, o que
gerou grandes problemas na nova sociedade francesa, pois o louco estava
alheio às regras sociais era considerado um sujeito irracional, incapacitado
por sua condição de doente, sendo assim não poderia ser reconhecido como
cidadão. Esta situação apresentava à sociedade uma série de contradições e
exigia uma norma jurídica para solucioná-la. (BRITTO, 2004, p. 16).
Foi elaborada então a lei de 1838, repercutindo por todo o mundo
ocidental. Ela integrava a psiquiatria e o Estado através da regulamentação
da internação psiquiátrica fornecendo legitimidade para o ato da internação,
repercutindo até hoje a ideia social de que o tratamento da loucura só é
possível quando realizado em instituição fechada.

1.2. A primeira instituição brasileira

No século XIX, depois de muitas transformações econômicas


advindas da abertura dos portos, da intensificação do comércio e da
implantação de manufaturas no Rio de Janeiro em 1808, o Brasil passa a
integrar uma nova ordem capitalista internacional. (BRASIL, 2008, p. 19).
Porém, em 1830 ainda não existia tratamento para os doentes mentais no
Brasil. Aqueles que tinham condições eram mantidos isolados em casa,
longe dos olhares da cidade, já os mais pobres viviam trancafiados nos
porões da Santa Casa de Misericórdia ou soltos pelas ruas da cidade.
Então, nesse novo Brasil, as mudanças também chegam na
medicina, criando grande interesse em tudo o que diz respeito ao social, e
o papel dos médicos passa a ter um objetivo claro: combater a desordem
da cidade. Os hospitais deixam então de se localizar no centro da cidade e
passam a ser uma nova “máquina de curar”. Nesse contexto, é inaugurado
em 1852, no Rio de Janeiro, o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro.
O Hospício de Pedro II era como uma prisão de loucos, os internos eram

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 276
isolados da sociedade, tinham como norma terapêutica o trabalho e, como
num panóptico, eram observados a todo momento.
Com 140 leitos, instalado na praia da Saudade, em uma chácara
afastada do centro da cidade, o hospital psiquiátrico veio para desafogar a
Santa Casa de Misericórdia, que se encontravam em condições insalubres.
Construído com dinheiro de subscrições públicas, o edifício, em
estilo neoclássico, era provido de espaços suntuosos e decoração de luxo,
e passa a ser popularmente conhecido como o “palácio dos loucos”.
A amplidão dos espaços, a disciplina, o rigor moral, os passeios
supervisionados, a separação por classes sociais, os diagnósticos e a
constante vigilância dos enfermos representam o nascimento da psiquiatria
no Brasil. (BRASIL, 2008, p. 20).

1.3. Diferença entre Doença Mental e Deficiência Intelectual

Segundo o Instituto Paradigma (2016):


Para entender a diferença entre doença mental e deficiência
intelectual é necessário que se compreenda os seguintes
aspectos: A doença mental pode ser entendida como um
conjunto de comportamentos e atitudes capazes de produzir
danos na performance global do indivíduo, causando
impactos na sua vida social, ocupacional, familiar e pessoal.
Não é possível se construir uma única definição deste
conceito uma vez que o entendimento de saúde mental
também está associado à construção de critérios subjetivos,
pautados em valores e diferenças culturais. Em 1995 a
Organização das Nações Unidas - ONU, altera o termo
deficiência mental para deficiência intelectual, com o objetivo
de diferenciá-la da doença mental (transtornos mentais que
não necessariamente estão associados ao déficit intelectual).
Portanto, a pessoa com deficiência intelectual caracteriza-
se por ter um funcionamento intelectual significativamente
inferior à média, acompanhado de limitações significativas
no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das
seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidados,
vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso
de recursos comunitários, autossuficiência, habilidades
acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança.
De acordo com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
- APAE (2016), quase sempre a deficiência intelectual costuma ser
resultado de uma alteração no cérebro causada por condições genéticas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 277
Além disso, uma pessoa com necessidades especiais também pode ter
sofrido com distúrbios na gestação, problemas no parto e até mesmo após
o nascimento. Dentre os principais tipos de deficiência intelectual estão as
síndromes de Down, X-Frágil, Prader-Willi, Angelman e Williams, sendo
que o Transtorno Mental pode ocorrer em 20% ou até 30% dos casos de
Deficiência Intelectual.
A psicóloga Luciana Helena Silva (2016) afirma que a idade do
diagnóstico da Deficiência Intelectual vai até os 18 anos. No geral, no caso
do Transtorno Mental não se tem uma idade estabelecida. Outra diferença
está no tipo de diagnóstico, o indivíduo com Transtorno Mental sem
comorbidades não apresenta QI rebaixado quando adequadamente tratado.
É comum o Deficiente Intelectual apresentar quadro irreversível
e exigir terapias mais específicas para preservação, desenvolvimento das
potencialidades existente.
Sendo assim, a pessoa com deficiência intelectual caracteriza-se
por ter um funcionamento intelectual significativamente inferior à média,
acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo
em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação,
autocuidados, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de
recursos comunitários, autossuficiência, habilidades acadêmicas, trabalho,
lazer, saúde e segurança.

2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS


DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL

O primeiro título da Constituição brasileira é chamado “Dos


Princípios Fundamentais” e estabelece que um Estado Democrático de
Direito tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da
pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo político.
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), estabelece em seu artigo V que “ninguém será submetido a tortura
ou castigo cruel, desumano ou degradante”, princípio que foi literalmente
reproduzido em nossa Constituição Federal (art. 5º, III).
“Acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo
às suas necessidades” (art. 2º, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 10.216,
de 6 de abril de 2001). Mesmo sendo garantido por lei, a defesa dos direitos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 278
humanos e da dignidade das pessoas com transtornos mentais ainda está
longe de ser efetiva.
Mesmo com os avanços médicos e tecnológicos, ainda existem
instituições que se encontram muito aquém de tais princípios, os pacientes
são duplamente violados em seus direitos. Por um lado, sofrem o estigma
e o preconceito social por causa da sua condição de portadores de doença
mental. Por outro, ao invés de receberem um tratamento digno e adequado
como os demais doentes, ou são vítimas de terapias nada consentâneas
com a dignidade humana ou são mantidos reclusos e até castigados, em
clara violação aos seus direitos individuais. (GONÇALVES, 2004).
Além do estigma social existente em relação às pessoas portadoras
de doenças mentais, a internação representa outra dificuldade na vida deles
que, após saírem, enfrentam problemas para se adaptar a sociedade.

2.1. Lei 10.216/2001

O Governo Federal editou a Lei nº 10.216/2001, que tem


por finalidade proteger e garantir os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redirecionar o modelo assistencial em saúde mental.
Conforme esta lei, todos os pacientes que padecem de transtornos mentais
têm direito a acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, adequado
às suas necessidades, bem como ser tratado com humanidade e respeito,
e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua
recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade. Além
disso, estes pacientes deverão ser protegidos contra qualquer forma de
abuso e exploração, tendo garantia de sigilo nas informações prestadas
a respeito de sua doença e com direito à presença médica, em qualquer
tempo, para esclarecer a necessidade ou não de uma possível hospitalização
involuntária. Os pacientes podem ter livre acesso aos meios de comunicação
disponíveis e devem receber o maior número de informações a respeito de
sua doença e de seu tratamento.
O artigo 3º da Lei 10.216/2001 confirma ser de responsabilidade
do Estado “o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência
e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais,
com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada
em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições
ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de
transtornos mentais“.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 279
Os artigos 4º e 6º desta mesma Lei preveem que só ocorrerá a
internação quando os demais recursos extra hospitalares se mostrarem
insuficientes para o tratamento, sendo necessário para tal um laudo
médico que caracterize os motivos da internação. Há ainda nesta lei
exigências para a internação hospitalar, seja ela voluntária, involuntária
ou compulsória, exigindo laudo médico circunstanciado em qualquer das
hipóteses. (art. 6º, Lei 10.216/01).
Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades,
só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes. § 1º O tratamento visará, como
finalidade permanente, a reinserção social do paciente
em seu meio. § 2º O tratamento em regime de internação
será estruturado de forma a oferecer assistência integral à
pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços
médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais,
de lazer, e outros. § 3º É vedada a internação de pacientes
portadores de transtornos mentais em instituições com
características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos
recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos
pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.
Ainternação, porém, não deve ser um fim em si mesmo. O tratamento
dado ao portador de transtorno mental caracterizado pela internação, pelo
que se observa da legislação vigente, deve ser apenas um meio utilizado
para que este possa obter a reinserção social. (GONÇALVES, 2004).
Vale ressaltar que todos os direitos acima indicados, bem como os
demais previstos ao longo do texto da Lei 10.216/2002, devem ser cumpridos
pela instituição médica, de modo que os pacientes possam exercê-los
integralmente, sob pena de responsabilidade daquele que os desrespeitar.

3 ROTULAÇÃO ESTIGMATIZANTE ENTRE “NORMAL” E


“ANORMAL”

Desde muito cedo, principalmente na psicologia e na psiquiatria,


um dos maiores problemas foi delimitar a fronteira entre o normal e o
patológico, ou seja, saúde mental de doença mental. Os limites e fronteiras
do normal ao contrário do que se pensa não são fixos e imóveis, mas
extremamente flexíveis.
Para o sociólogo Howard S. Becker (2008, p.88), o desvio ou
transgressão das regras socialmente estabelecidas é característico das

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 280
sociedades e de todos os grupos sociais em que são estabelecidas normas,
princípios e valores morais que norteiam a vida das pessoas, servindo
como padrões de conduta.
Quando indivíduos não agem em conformidade com o padrão
esperado, são classificados como desviantes. Segundo Becker (2008, p.52),
o desvio é uma concepção sociológica relativista, pois existe ambiguidade
a partir do momento em que os indivíduos estão inseridos em vários grupos
sociais ao mesmo tempo, afinal, o referencial de cada um deles possui
diferenças, que fazem com que estas pessoas infrinjam as normas de algum
dos grupos. Porém, também existem normas e princípios que são comuns a
todos os grupos sociais. Antes de um ato ser visto como desviante, e antes que
qualquer indivíduo possa ser rotulado e tratado como desviante por cometer
o ato, alguém precisa ter criado a regra que define o ato dessa maneira.
Para que uma regra seja criada, o dano precisa ser descoberto e
mostrado, alguém deve chamar a atenção do público para esse problema,
e assim, ser criada a regra. Assim aconteceu com a loucura, criaram-
se rótulos à essas pessoas que passaram a ser considerados anormais.
(MENDES; VIEIRA, 2012).

4 FRANCO BASAGLIA E A REFORMA PSÍQUICA NA ITÁLIA

4.1 Estrutura psíquica italiana e a lei 180 da Itália

A Itália como qualquer país da época só conhecia um modelo de


tratamento psiquiátrico, o totalitário. Não distinto a descrição de Machado de
Assis da Casa Verde no conto “O Alienista”, os hospitais de tratamento psíquico
não se preocupavam com uma avaliação do problema, indivíduo - indivíduo, o
diferente deveria ser retirado do convívio social e ser levado para ser curado.
Essa visão racionalista na psiquiatria começou, na década de 1960, a ser
fortemente combatida por médicos e estudiosos da área como Franco Basaglia.
A ideia dominante de que a medicina psiquiátrica deveria ser problema-solução
começou a ser vista como um erro, o que realmente importava era uma terapia
que visava por meio de um processo gradativo chegar a doença.
A transformação do modelo clássico da psiquiatria deve
ser obtida pela desinstitucionalização. O processo de
desinstitucionalização iniciou-se na década de 60 com um
grupo de psiquiatras que, a partir da observação do manicômio
de Gorizia (Itália), criticaram a ação do paradigma racionalista

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 281
(problema-solução) em psiquiatria. Segundo esses psiquiatras,
a terapia deve ser entendida não tanto como uma relação
individual entre médico e paciente, mas, sobretudo, como
um organizado de teoria, normas e prescrições. É em geral o
processo pelo qual se liga o diagnóstico ao prognóstico, que
conduz da doença à cura. (KYRILLOS NETO, 2003).
Basaglia assumiu como diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia
em 1961 e logo decidiu provocar mudanças significativas no tratamento
com os internos e com o estado do prédio. Logo percebeu que não bastava
pequenas alterações no tratamento e no prédio, quando a assistência
psiquiátrica e a relação sociedade e loucura eram deficitárias.
A lei 180 da Itália não foi proposta por Basaglia, porém é conhecida
como “Lei Basaglia” por ter sofrido influência direta do médico que lutava
por uma mudança real no tratamento psiquiátrico no país. A lei foi aprovada
com quase unanimidade, uma vez que apenas os fascistas votaram contra a
proposta alegando não ser uma via financeira boa.
A expressão Lei Basaglia não deixa dúvidas quanto à extensão
da vitória do Movimento Antimanicomial nesta primeira e
fundamental rodada de institucionalização. Segundo Franco
Basaglia, apenas os fascistas não apoiaram, alegando que
não havia cobertura financeira, e não porque admitissem ser
contra seu conteúdo. (GOULART, 2008, p.5).
A transformação do sistema psíquico italiano foi o ápice de uma
transformação social e cultural que a Itália vivia naquele momento. Em
meio a uma guerra política instaurada no país ente os partidos políticos e
a extrema esquerda que agora caminhava para o terrorismo como ação do
grupo, nascia uma mudança significativa nos sistemas de internação, desde
a forma que eram internados os pacientes à forma que recebiam alta. A
primavera do tratamento psiquiátrico na Itália não demoraria para se tornar
uma meta para muitos outros países. A conquista em relação aos Direitos
Humanos que a “lei Basaglia” representou, tornou-se o sonho de vários
pesquisadores, estudiosos e médicos no mundo todo.

4.2 A experiência e opinião de Basaglia sobre o tratamento de


doenças psíquicas no Brasil

Basaglia teve papel significante na reforma psiquiátrica brasileira.


Após sua participação no “Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos
e Instituições” em 1978 ele retornou no ano seguinte ao Brasil e visitou o

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 282
hospital Colônia em Barbacena, Minas Gerais. Comparou o hospital aos
campos de concentração nazista e deu importante destaque da imprensa a
situação do hospital. O psiquiatra Paulo Amarante afirma:
Em Barbacena, Basaglia comparou a colônia de alienados
a um campo de concentração, reforçando nossas denúncias
de maus-tratos e violência. Sua presença aqui recebeu
tratamento e atenção especiais da imprensa, além de dar
origem ao clássico documentário de Helvécio Ratton, Em
nome da razão, de 1980, um marco da luta Antimanicomial,
ao lado de uma premiada série de reportagens de Hiran
Firmino, publicadas inicialmente no Estado de Minas e
posteriormente pela Editora Codecri sob o título Nos porões
da loucura, de 1982. (AMARANTE, 2006, p. 04).
Apesar de não ser um caso inusitado, o hospital mineiro se
sobressaia, uma vez que já havia se tornado motivo de denúncia desde o
governo de Jânio Quadros (1961) como a própria autora de “Holocausto
Brasileiro”, Daniela Arbex descreve. Porém, na opinião de Amarante
(2006, p. 05), o médico que participou ativamente da reforma psiquiátrica,
o protagonismo de Franco na reforma psiquiátrica brasileira foi em Santos,
na década de 1980, quando um hospital psiquiátrico particular, após
inúmeros casos de morte, foi desapropriado pela prefeitura e iniciou-se
uma revolução estrutural na instituição.
O sistema “extramuros” ganhou vida e a estrutura ortodoxa
e rudimentar se decaiu. Com a influência, experiência e destaque que
Basaglia trazia para aquela experiência, provou ser possível, também
no Brasil, um modelo humanista de tratamento manicomial. O doente já
não poderia ser visto como ganho - mais objetivamente sobre hospitais
particulares-, tampouco como experiência viva para médicos.
A partir dessa fagulha, ganhou força pensamentos como o de Paulo
Delgado deputado que propôs em 1989 uma lei que regulamentava o sistema
psiquiátrico brasileiro. Apesar do texto de lei só ser aprovado com um atraso
prodigioso e com alteração no corpo do texto, a proposta trouxe força para
uma mudança social no modo de ver os “doentes mentais”, levando para a
opinião pública a discussão até então abafada. No dia 27 de março de 2001 a
lei foi aprovada pelo Congresso Nacional. (GOULART, 2008, p.15).
Contudo, Amarante nos apresenta grandes problemas a serem
enfrentados sobre o tema. A lei e o processo de reforma nos levou a um
patamar evolutivo da ciência psiquiátrica, mas há muito em se transformar

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 283
socialmente. A ideologia de doente, médico e estigmatizado deve ser
repensada, analisada sem exterioridade e superficialidade.
Quando uma sociedade defende que uma parte dos seus
membros não pode conviver com os demais, cumpre a
nós compreendermos os motivos e intervir. Por que não
podem viver como nós, conosco, em nosso meio? Por
que são negros? Por que são índios? Por que são loucos?
(AMARANTE, 2006, p.5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova política de saúde mental, que teve início com a reforma


psiquiátrica, visa o tratamento em rede substitutiva, em locais que o
paciente possa frequentar sem precisar passar longos períodos internado,
distante da convivência com sua família e amigos.
Esse movimento de desconstrução do hospital psiquiátrico não é
simples, ele implica num processo político e social complexo, e precisa de
apoio tanto das instituições quanto da comunidade. Apesar da existência
da Lei n. 10.216, de 06/04/2001, também é necessária a criação de uma
legislação específica para tutelar de fato e garantir os direitos fundamentais
dos portadores de doenças mentais.
Por fim, constata-se que o hospital psiquiátrico surge como
uma instituição legitimadora da violência e a internação compulsória
caracteriza-se como retrocesso por exigir do direito a resolução do grande
desafio pela busca da desinstitucionalização da loucura.

REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo. Rumo ao fim dos manicômios: A luta


Antimanicomial, o mais importante movimento pela reforma psiquiátrica
no Brasil, teve início durante o regime militar e ainda enfrenta desafios.
Disponível em: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/rumo_
ao_fim_dos_manicomios_4.html. Acesso em: 08 set. 2016.
APAE-ASSOCIAÇÃO DE PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS.
Sobre a Deficiência Intelectual: O que é? Disponível em: http://www.
apaesp.org.br/SobreADeficienciaIntelectual/Paginas/O-que-e.aspx.
Acesso em: 08 set. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 284
BALLONE, G. J. O que são transtornos mentais. 2008. Disponível em:
www.psiqweb.med.br. Acesso em: 18 maio 2016.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Memória da
loucura: apostila de monitoria. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/memoria_
loucura_apostila_monitoria.pdf. Acesso em: 12 maio 2016.
BRITTO, Renata Corrêa. A internação psiquiátrica involuntária e a
Lei 10.216/01: reflexões acerca da garantia de proteção aos direitos da
pessoa com transtorno mental. 2004. Disponível em: http://thesis.icict.
fiocruz.br/pdf/brittorcm.pdf. Acesso em: 09 de ago. 2016.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São
Paulo: Editora Perspectivas, 1972.
GONÇALVES, Flávio José Moreira. Manicômios e o princípio da
dignidade da pessoa humana: estudos preliminares à luz do Direito e
da Bioética. Opinião Jurídica - Revista do Curso de Direito da Faculdade
Christus, Fortaleza, v.2, n.4, 2004, p.57-68.
GOULART, Maria Stella Brandão. Os 30 anos da “Lei Basaglia”:
aniversário de uma luta. Disponível em: http://www.mnemosine.
com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/viewFile/131/pdf_118.
Acesso em: 30 ago. 2016.
INSTITUTO PARADIGMA. Qual a diferença entre doença mental e
deficiência intelectual? Disponível em: http://www.institutoparadigma.
org.br/pergunte/particiapacaosocial-e-direitos/264-qual-a-diferenca-entre-
doenca-mental-e-deficiencia-intelectual. Acesso em: 30 ago. 2016.
KYRILLOS NETO, Fuad. Reforma psiquiátrica e conceito de
esclarecimento. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S167944272003000100006. Acesso em: 30 ago. 2016.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de
Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1981
MENDES, Maria Eugenia Gonçalves; VIEIRA, Natália
Borges. As causas e efeitos da rotulação de “desviantes” na
sociedade. 2012. Disponível em: http://www.viajus.com.br/viajus.
php?pagina=artigos&id=4644. Acesso em: 30 ago. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 285
SILVA, Luciana Helena. Deficiência intelectual x transtorno mental:
interfaces e diferenças. Disponível em: http://www.rolandia.apaebrasil.
org.br/noticia.phtml/51053. Acesso em: 12 mai. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 286
A RACIONALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS
EXECUTIVOS FISCAIS E DA DÍVIDA ATIVA
MUNICIPAL POR MEIOS EFICAZES E ÁGEIS DE
COMPOSIÇÃO E EXECUÇÃO

Juliana Balbino dos Reis*


Ricardo Nunes de Oliveira**

INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje, nove em cada dez execuções fiscais existentes


no Tribunal de Justiça de São Paulo são valores oriundos das dívidas ativas
municipais, ou seja, dos 11 milhões de processos executivos em trâmite
9,8 milhões são das municipalidades. A problemática reside no contexto
de que tais execuções têm hidratado, crescentemente, o judiciário paulista
e brasileiro e não se encontra, infelizmente, correspondência com aumento
das arrecadações municipais, mesmo com o braço judicial amparando a
possibilidade de cobrança.
As execuções alocadas na esfera judicial encontram-se
prejudicadas por inúmeros incidentes que, à medida que vão surgindo
provocam, automaticamente, a paralisação da marcha processual e, este
feito, ora prejudicado, sem o devido andamento, gera perdas tanto para o
município, detentor do crédito em aberto, como para o judiciário que tem
suas prateleiras servidas de um amontoado de papel estático aguardando
a vindoura, fatal e esperada prescrição intercorrente. Para agravar, ainda
mais, temos a existência de devedores, em condições reais de quitar o
débito, agraciados pela falta de critérios proveitosos no cadastro municipal,
como para simples localização, quando necessária, cumulada com a inexata
classificação dos créditos inscritos, quando ajuizados, que resultam em
uma desconcentração de esforços para que a cobrança seja viável.
Desse modo, este trabalho vêm de encontro à necessidade extrema
das municipalidades recuperar seus créditos até então, considerados

*
Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista"Julio de Mesquita Filho"
(Unesp de Franca). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras de Catanduva (2006).
**
Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista"Julio de Mesquita
Filho" (Unesp de Franca).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 287
perdidos afastando a protelação política da busca destes créditos e avocando
mecanismos eficazes para perceber os valores mencionados.

1 OBJETIVO

Este trabalho busca impor, portanto, melhor aproveitamento da


estrutura das Varas de Fazenda Pública e dos Anexos de Execuções Fiscais
através de uma melhoria dos mecanismos de cobrança, ora extrajudicial, ora
judicial, sendo esta última focada somente para contribuintes inadimplentes
cuja localização seja conhecida e que disponham de patrimônio suficiente
visando que os créditos expressivos e não prescritos sejam percebidos e
direcionados aos cofres.
Sempre será bem vinda a aceleração do procedimento
administrativo de cobrança dos créditos municipais, evitando-se outro
problema hoje comum:
A propositura política irresponsável de milhares de processos
executivos fiscais na véspera da prescrição, apenas para evitá-la, resultando
em outra quantidade de autos com várias execuções fiscais certas do
insucesso, tudo contrariando a possibilidade de arrecadação municipal e
em benefício dos grandes e pequenos devedores.
O ajuizamento destes débitos, sem qualquer critério, somente
para evitar a certa prescrição, um efeito antieconômico, ou seja, gerará
despesas de processamento superiores aos respectivos valores que a regra
legal almeja. Vamos obter, da mesma forma, prejuízos à municipalidade em
razão das ações ajuizadas com créditos já prescritos, tudo para atravancar a
marcha processual na contramão de execuções com possível resultado de
arrecadação eficaz e certa.
Para isso impõe-se a necessidade de combater o desinteresse do
Executivo Municipal, em especial, e a impossibilidade técnica ou material
das lançadorias, controladorias, onde houver, e procuradorias, que dão
andamento às execuções fiscais, em sua maioria inexpressiva ou inviável.
Estes feitos congestionam as unidades judiciais e demonstram
o claro interesse da administração pública em implantar os dispositivos
técnicos adequados, materiais e recursos humanos necessários para
eliminar tais entraves e melhorar a qualidade da cobrança administrativa
ou extrajudicial e racionalizar o emprego da via forense.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 288
2 METODOLOGIA

Para desenvolvimento deste trabalho foi utilizada a


seguinte metodologia:
Estudo de Caso: Este trabalho será desenvolvido através da coleta
de dados junto às municipalidades, em especial a de Monte Alto e Pirangi
no Estado de São Paulo, serviram de modelo experimental para análise de
experiências. Da mesma forma tal coleta foi realizada junto ao órgão Judiciário
fazendo, também o uso de um Setor de Conciliação, Mediação e Arbitragem
que serviu, também, como modelo experimental deste trabalho no intuito de
aferir o resultado e corrigir frações do processo a ora desencadeado.
Pesquisa de Campo: Foram coletadas informações dos cidadãos
ora inadimplentes, preservando a sua identidade, mas coletando dados
acerca da sua condição financeira, social e profissional, buscando entender
o que ocorreu para que surgisse tal débito em aberto.
Levantamento bibliográfico: Serão usadas, para este estudo
autores, que poderão compor o quadro base da pesquisa.

3 DESENVOLVIMENTO

A ação de Execução Fiscal é o procedimento especial para que a


Fazenda Pública exija de seus contribuintes inadimplentes o crédito devido,
formalizado por um contrato, ou por imposição tributária, utilizando-
se da via Judiciária.
Por esta via, a Procuradoria, órgão do ente credor, busca, junto
ao patrimônio do executado, bens que satisfaçam o crédito que está sendo
cobrado por meio desta dita execução fiscal.
O processo executivo fiscal esta alicerçado em um título executivo
de origem extrajudicial, contabilmente conhecido como Certidão de
Dívida Ativa ou, popularmente, C.D.A., que será fundamento para a
cobrança da dívida existente e que nela está representada. Constituída esta
C.D.A. temos a existência, agora, de um título real que possui liquidez e
condições de exigibilidade.
Mas para chegarmos a expedição desta C. D. A. um caminho
deverá ser percorrido. A exigência de quitação desta peça exequível terá
que ter, em primeiro lugar, uma formação Legal que, certamente, poderá,
com segurança, ser objeto de exigência. A maioria destes instrumentos
tem sua origem nos tributos, taxas de serviços contratados com pagamento

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 289
posterior, e raramente, eventuais ressarcimentos ao erário por força de
contrato, decisão administrativa, judicial.
A primeira ocorrência de ineficácia encontra-se nos próprios órgãos
com função cadastral dos entes. O Procurador Municipal, responsável
pelas execuções, esbarra na ausência de dados palpáveis e seguros para
subsidiar a execução que, ou é ineficaz pela formulação de constituição
ou pela falta ou erro, muitas vezes inescusável, dos dados necessários para
qualificação do devedor e sua localização.
No final do ano de 2013, início de 2014, na cidade de Monte Alto,
interior de São Paulo, das aproximadas 1.500 (mil e quinhentas) Execuções
Fiscais que ali adentraram, cerca de aproximadas 350 foram extintas por
possuírem um valor de exigibilidade menor que 1 (um) salário mínimo
nacional vigente. Foram aproximados R$ 70.000,00 (setenta mil reais) que
deixaram de ser convertidos aos cofres públicos por infeliz manobra que
dispensa comentários. Destas mesmas 1.500 (mil e quinhentas) Execuções
houve cerca de 300 que permaneceram em curso e razão da não localização
do réu, ausência de qualificações precisas para a sua localização como a mera
inscrição do CPF. Tais execuções tiveram oportunidades de obter um titulo
sadio no cadastro inicial da inscrição ou por operações de recadastramento
comuns. O que chama a atenção foi que as 900 ações restantes tiveram suas
citações e intimações focadas, em um primeiro momento, no convite inicial
de uma composição que seria proveitosa e interessante para que, além de
sanar o débito existente com a municipalidade teriam, em contrapartida, sua
cidadania resgatada sob a forma serviços prestados com qualidade, em face
da possibilidade maior de investimento.
A outra problematização sanada veio através de um Projeto de Lei
de autoria de um Vereador da mesma cidade que, de maneira inovadora,
analisou, sob um perfil socioeconômico, o programa de recuperação fiscal
conhecido popularmente como REFIS ou, em algumas cidades o PROFIS,
que, comumente eram cópias dos mesmos projetos dos anos anteriores e
tinham como o valor mínimo da parcela 10% do Salário Mínimo Nacional.
Sob a ótica social, o legislador observou que a parcela do tributo
devido, transformado em CDA, que tem maior origem na cobrança do
IPTU, cumulada com a parcela atual do mesmo imposto, considerando
que à época do texto do REFIS originário era mínima, passou, em razão da
melhoria do Salário Mínimo, acima do índice inflacionário, a criar em outra
ponta, um problema social e resolveu desvincular o impasse financeiro
pontual dos programas de REFIS vindouros.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 290
O Projeto diminuiu o valor da parcela mínima e tinha como novo
fator gerador do acordo a Unidade Fiscal Municipal, a Condição Social
e Econômica do Assistido, e a formalização da exigência após estes
critérios serem atingidos.
Tal projeto foi vitima de veto do executivo e, o mesmo veto foi
vítima da desconsideração legislativa gerando uma ADIN, sanada pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, considerando que a criação de despesas
tem caráter inconstitucional mas, por outro lado, viam com bons olhos a
hidratação dos cofres públicos com iniciativas de captação de receita que
considerem não somente a questão financeira delicada do Município mais,
também, o interesse social coletivo daqueles menos abastados.
Outra razão do sucesso foi o convite judicial para que os credores,
psicologicamente tocados com a cobrança, se dirigissem a municipalidade
antes da audiência de composição para regularização dos débitos.
Tanto na vinda do executado ao Judiciário como ao Executivo,
provocada pela judicialização do título, quando encontrados, era feita uma
atualização de todo um cadastro para que, em eventos futuros, a ineficácia
cíclica seja diminuída.
Outra problemática detectada junto às municipalidades foi a
impossibilidade de exigibilidade dos títulos prescritos, não executados
junto ao judiciário. Estes títulos, lamentavelmente, deixam de ser
exigíveis pelo fator demora na sua cobrança e eventual judicialização. Esta
ocorrência tem sua decretação de ofício em razão das diretrizes do Código
Tributário Brasileiro.
O Artigo 174 prevê a prescrição do título executivo, contado de
sua constituição definitiva, em cinco anos. Esta regra deve ser observada
pelos operadores para que não ocorra o prejuízo ao erário mas, todavia,
isso infelizmente não ocorre pois, ou pela falta de cuidado, ou pela
impossibilidade de cumprir um invencível número de trabalho deixando
estas execuções no rol das impossibilitadas de percepção.
Assim, as municipalidades devem se atentar à possibilidade de
deslocamento de funcionários, de setores menos importantes, para atuar
junto ao lançador e procurador na organização e remessa diária destas
Certidões a um setor que possibilite uma composição, administrativa
no momento, sob o crivo da condição social e econômica do devedor e,
também, para um processamento rápido e eficaz destes títulos seja na via
administrativa, seja na via judicial.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 291
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após esta análise observamos que a recuperação dos valores


convertidos em Dívida Ativa são vitimados por decisões políticas dos
agentes que, per faz et nefas, acabam protelando o envio destes títulos
ao setor responsável pela cobrança extrajudicial e judicial. Este atentado,
ocasionado pela falta de conhecimento administrativo, gera um custo
elevado na administração com a produção de execuções de maneira rápida,
sem critérios, eivados de eficácia, e certamente fadadas ao insucesso. Não
obstante as decisões políticas para o andamento desta cobrança foram
identificadas imperícias, negligências e desatenção dos agentes públicos
desde um simples cadastro de contribuinte que, em eventual execução,
impossibilita a cobrança até atos de improbidades que potencializam o
prejuízo ao já sofrido cofre público.
As ações de cobrança devem ser fiscalizadas pelo legislativo
constantemente, com responsabilidade, promovendo indicações acerca
da melhoria deste trabalho evitando, assim, perdas, em sua maioria,
catastróficas, para aqueles que utilizam do serviço público, comumente
carente de investimentos.
Sistemas eficazes de cobrança de tributos, cadastro, processamento,
composição, execução e elaboração de Projetos de Leis, com observância
social e econômica, como os programas de recuperação fiscal tendem a
melhorar a forma de percepção e, consequentemente, a arrecadação dos
valores. Um programa de recuperação fiscal, sem este cuidado, somente
gera mais despesa uma vez que, para tudo se tem um gasto e, este gasto
deve ser compensado na sua eficácia.
A utilização dos centros judiciais de solução de conflitos, ou
setores de conciliação é uma excelente ferramenta para tal exigência pois
dá-se a imagem de possível intervenção judicial àqueles que acreditam
estar agraciados pela demora e pelo valor irrisório do débito inscrito.
Pessoas ligadas ao processo de exigibilidade devem, também,
estar isoladas do contexto político e, por isso, devem estar investidas de
cargo para que a possibilidade de fuga do foco laboral seja inexistente e a
atividade a mais rentável e inequívoca possível.
Neste giro de ideias a racionalização para exigência de títulos da
Dívida Ativa deve estar afastada do conteúdo político e atrelada, mais do
que nunca, a uma atividade mecânica e ágil, de certo modo fria (desprovida

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 292
de quaisquer sentimentos humano) para sim, cumprir seu papel social e
resgatar a cidadania dos inscritos e eventuais executados.
Um setor, seja ele de controladoria, de tributos, rendas, ou
qualquer que seja seu nome, deverá, sempre, primar pela eficácia e pelos
resultados positivos para que o mínimo das certidões cheguem ao Judiciário
permitindo que este poder se ocupe ações realmente relevantes a sociedade.
O Novo Código de Processo Civil brinda a possibilidade de
composição, existente no diploma anterior. É certo que a receita pública
é um direito indisponível mas, o próprio poder público, tem a obrigação,
dentro de um contexto constitucional, tutelar o cidadão não somente na
questão de saúde e educação e outros direitos, sejam eles personalíssimos
ou fundamentais em especial mas deve, ao detectar a ausência de receita
por parte daquele devedor, procurar resgatá-lo à sua condição de bom
pagador. Na mesma linha de ideias, o poder público deve ser implacável
com aqueles que se recusam a contribuir em face de rendimentos e bens
que possuem, não cabendo justificar tal conduta, seja do devedor, seja
de funcionário ou agente público. Tanto as crises empresariais privadas
como as crises do poder público, devem ser contidas pelo planejamento
de atitudes eficazes e sérias, acompanhadas perenemente por setores que
agreguem receita e planejem investimentos bem como por outros órgãos
que solucionem as pendências reais de maneira exemplar.

REFERÊNCIAS

CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 3. ed. São Paulo:


Atlas, 2009.
CRETELLA NETTO, José. Curso de Arbitragem. Rio de
Janeiro: Forense, 2004.
FANUCCHI, Fábio. A decadência e a prescrição em direito tributário.
2. ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1971.
GRINOVER Ada Pelegrini, Kazuo Watanabe e Caetano Lagrasta
Neto, coordenação. Mediação e Gerenciamento do Processo. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2008.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários ao código tributário
nacional. Coord. de Carlos Valder do Nascimento. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1998.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 293
MORAIS, Roberto Rodrigues. Reduza Dívidas Previdenciárias, 2008,
on-line, Portal Tributário. http://www.portaltributario.com.br/obras/
dividasprevidenciarias.htm.
VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e Prática da Mediação. Paraná:
Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, 1998.
VILELA, Marcelo Dias Gonçalves (coord.). Métodos Extrajudiciais de
Solução de Controvérsias. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 294
IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DO DIREITO À INFORMAÇÃO: ESTUDO DE
CADO DO PROJETO “OAB VAI À ESCOLA”

Lúcio Rangel Alves Ortiz*

INTRODUÇÃO

A globalização, como processo socioeconômico irreversível, afeta,


diretamente, a soberania das nações, nos seus órgãos estatais, o que delimita
a problemática do seu impacto no direito de acesso à informação, direito
este consagrado nos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos, uma
vez que a realidade atual que a Internet, as novas tecnologias de informação,
de comunicação e eletrônicos, as relações institucionais empresariais,
sindicais e da sociedade civil fazem com que gerem conflitos sociais, que
configuram lides jurisdicionais e administrativas, no exercício da cidadania.
A justificativa do presente trabalho se relaciona com a proposta neoliberal
da globalização que busca e propõe a desregulamentação do Estado, com
a flexibilização de estruturas trabalhistas, previdenciárias, ambientais e
consumeristas, o que, muitas vezes, mina e deslegitima instituições do
Estado que protegem o cidadão. E por referida problemática, é necessário
observar, de modo crítico, como se proporciona o direito à informação,
em órgãos públicos, principalmente, a fim de legitimar a transparência
dos seus atos, uma vez que podem ser provocadas demandas de políticas
públicas para o devido exercício da cidadania.
O objetivo do presente estudo é contextualizar a globalização em
relação ao acesso à informação, como direito humano, que estimula cidadãos
e cidadãs participativos, sejam como usuários e usuárias de serviços
públicos, sejam, como consumidores e consumidoras, trabalhadores e
trabalhadoras, empreendedores ou empreendedoras, o que deve então o
direito a informação ser objetivo, acessível, compreensível e realizável.
No âmbito do acesso às informações, as políticas públicas podem ser
executadas pelo Estado e por instituições da sociedade civil, como é o caso
da Ordem dos Advogados do Brasil, o que faz parte o objetivo deste artigo,
que é assimilar o direito à informação pelos órgãos públicos num contexto
da globalização da economia.
*
UNESP Campus Franca, Mestrando Profissional em Planejamento e Análise
de Políticas Públicas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 295
A metodologia utilizada é bibliográfica e conjugada com estudo
de caso do projeto “OAB vai à Escola”, que vão abordar como o direito à
informação é impactado pela globalização e como ele pode ser utilizado
na realidade de hoje.

1 DESENVOLVIMENTO

A proposta do desenvolvimento é abordar, primeiramente,


a questão da globalização da economia, depois, o direito de acesso à
informação, apresentar, suscintamente, o estudo de caso do projeto “OAB
vai à Escola” e no final, abordar os impactos da globalização no direito de
acesso à informação.

1.1 A Globalização da Economia

Conforme Guerra (2001), a globalização é a modernização contínua


de expansão de fronteiras geográficas, territoriais, políticas, militares e
econômicas, que podem impor ou destruir culturas. Segundo o autor:
De fato, a globalização do mundo expressa um novo ciclo
de expansão do capitalismo, como modo de produção e
processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de
amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades,
regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes
sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações.

A chamada aldeia global proporcionada, atualmente, pelas


tecnologias de informação e comunicação (TIC), a transformações sociais
estabelecem novos paradigmas de rupturas de fronteiras inimagináveis, o
que faz a sociedade se reorganizar no mundo jurídico, a fim de estabelecer,
por exemplo, o que é o mundo virtual e o mundo real ou universal, perante às
inúmeras informações. Perante a globalização, novos significados insurgem
na pluralidade e diversidade de ideias, o que muitas vezes, compromete o
mundo jurídico, em questões jurisdicionais e administrativas.
Já, Borges (2012), aborda que a globalização compreende
fenômenos sociais, econômicos políticos e culturais, que direta ou
indiretamente, afeta o mundo jurídico de reduzir o Estado à condição
primitiva humana e moralidade pública, em várias formas de alienação.
Sustenta Borges que o Estado é reduzido na afasia entre a ordem jurídica
e a ordem social, pois a sociedade é multifacetada nos mecanismos de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 296
resolução de conflitos, o que evidencia mecanismos e regras de regulação
e solução de conflitos.
Godoy (2004) aponta da seguinte maneira
o termo globalização:
Percebe-se uma globalização em termos tecnológicos, na
medida em que a cibernética delineia fluxo de informações
[19] que altera regimes de produção e de consumo. Do ponto
de vista político a globalização recontextualiza a soberania,
acenando com modelos democráticos que prenunciam novo
equilíbrio de forças e que é marcadamente muito sutil [20].
Culturalmente, intercâmbios modelam o paradoxo de uma
destruição criativa [21], prenhe de sonhos, pesadelos e
ceticismo [22], identificando um imperialismo de instrução
que é característico do nicho cultural capitalista.
Godoy apresenta o lado mais crítico do mercado capitalista, pois
a soberania nacional nesta situação é recontextualizada, no sentido de que
culturas são destruídas por causa da cultura imperialista capitalista, a qual
modela o mundo a sua imagem, o que então provoca o Estado impotente.
Vieira (1997) expõe que a globalização é um processo complexo,
contraditório e multidimensional, o que requer uma panaceia econômica
viável para o desenvolvimento, o que requer uma governabilidade global,
o que faz a democracia ser menor.
Segundo Formiga (2012):
A globalização é um processo de interação e integração
entre pessoas, empresas e governos de diferentes nações, um
processo conduzido pelo comércio, investimento internacional
e ajudada pela tecnologia informacional. Esse processo
tem efeitos sobre o meio ambiente, cultura, nos sistemas
políticos, no desenvolvimento econômico, prosperidade e no
bem-estar físico das sociedades ao redor do mundo.
Portanto, a globalização é um fenômeno que regulariza o direito
internacional, o que então requer regulamentar a efetividade dos direitos
humanos, pois o referido fenômeno força uma supranacionalidade de
regras observadas e fiscalizadas por órgãos internacionais, que atendem
interesses mais econômicos.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 297
2 DIREITO À INFORMAÇÃO

O direito à informação é um direito imprescindível para o exercício


da cidadania, quando se trata de acesso do conhecimento dos direitos,
pois é de interesse prioritário para o pensamento filosófico jurídico e
político, no sentido de que os serviços públicos devem atender os cidadãos
e cidadãs, em conjunto com participação e acesso à justiça e aos órgãos
púbicos, como condição de meio para alcançar o propósito de ciência
e consciência do interesse e direito do cidadão. Assim, a informação é
condição sine qua non para a devida educação para a cidadania, conforme
o propósito defendido por Ruffa (1993), o que reforça a sua utilização de
modo intelegível para o devido conhecimento dos seus próprios direitos.
Silva (1997), por sua vez, expressa que a palavra informação
designa um conjunto de condições e modalidades de difusão ou à
disposição para o público, sob forma de elemento de conhecimento, ou
de notícia, ou de ideia ou de opinião. Assim, todo fato, acontecimento e
situações de interesse geral pode ser também de interesse jurídico, o que
direciona então existir o direito de informar e o direito de ser informado, o
que vai então corresponder à liberdade de informação ou manifestação de
pensamento pela palavra, por escrito ou por qualquer outro meio de difusão,
conforme interesse da coletividade. Portanto, o acesso à informação é um
direito constitucional, de caráter individual, seja coletivo, jornalístico ou
de exercício profissional.
Bonavides (1997) situa o direito à informação na quarta geração
ou gestação de direitos, no decorrer da história dos direitos humanos, que
depende da concretização da sociedade abertura para o futuro, de máxima
universalidade, no plano de todas as relações de convivência, em dimensão
principal, objetiva e axiológica, de irradiar eficácia normativa a todos
os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico, onde então reside a
globalização política com o princípio da legitimidade de se comunicar.
Bobbio (1992) vai destacar o desenvolvimento dos direitos
humanos, após a Declaração de 1948, em que direitos se tornaram
mais universais e positivos, pois além de proclamados e reconhecidos,
devem ser protegidos pelo Estado, e inclusive para novos carecimentos,
principalmente, quanto a crescente quantidade e intensidade de
informações, o que requer a necessidade de o homem não ser enganado,
excitado ou perturbado, e que tem o direito de expressar suas próprias
opiniões e o direito à verdade das informações.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 298
Lafer (1988) contrasta o direito à informação em relação ao direito
da intimidade, pois ambos os direitos têm integridade moral de ser humano,
tanto de liberdade democrática quanto participação adequada, autônoma e
igualitária na esfera pública, o que então implica procurar, receber e difundir
informações e ideias por qualquer meio de expressão ou não. Portanto, o
direito à informação está ligado ao direito de opinião e de expressão.
Vieira (1997) faz uma análise crítica do acesso à informação,
quanto a questão da sua subjugação na economia mercadológica, o
que deixa a cidadania em segundo plano no seu exercício de direito de
acesso, conhecimento, investigação jornalística, busca da verdade e de
comunicação entre as pessoas.

3 O ESTUDO DE CASO DO PROJETO “OAB VAI À ESCOLA”

Conforme a cartilha do “Projeto OAB vai à Escola” da Ordem dos


Advogados do Brasil, da 57ª Subsecção, de Guarulhos, estado e seccional
de São Paulo, do ano de 2015, que de fato, é formada por dezessete
membros, cuja presidente é Rosaret Alcaide Claro e a elaboradora da
cartilha é Valéria Schneider do Canto.
O projeto OAB vai à Escola é um projeto que visa levar aos jovens
do ensino público, que estão no terceiro ano do ensino médio, informações
e conhecimento sobre seus direitos e deveres para terem melhor
conhecimento do exercício de sua cidadania, pois uma vez conscientes
sobre seus direitos e obrigações, terão condições de buscar e concretizar
seus direitos consagrados na Constituição Federal e nas leis.
A forma que o projeto se aplica é que a Comissão da OAB vai
à Escola, formada por advogados, esses se dispõem, voluntariamente, a
entrar em contato com as escolas do ensino público para fazerem palestras
nas salas de aulas dos referidos jovens estudantes, tendo o diretor da
escola, o coordenador pedagógico do ensino médio e os professores se
comprometam durante suas aulas a abrirem o espaço para os referidos
advogados palestrarem sobre determinados temas de direito, que são
planejados para o tempo necessário para as devidas palestras, para tirar
dúvidas, abrindo espaço para as perguntas dos estudantes e informes da
OAB enquanto instituição, conforme consentimento da unidade escolar.
O projeto, além de preparar e realizar palestras, incentiva a criação
de campanhas da defesa dos direitos, abaixo-assinados com solicitações de
políticas públicas para concretização de direitos em órgãos públicos, bem

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 299
como incentiva os estudantes a participarem das associações comunitárias
ou de bairros para se inserirem na comunidade onde residem para buscar
melhorias de condições da localidade.
Logo, o projeto enfatiza a importância da informação útil para
proporcionar conhecimento de direito e cidadania, de modo consciente,
participativo e até transformador, no sentido de envolver engajamento por
parte dos estudantes na comunidade.
A origem do projeto OAB vai à Escola foi decorrente do idealizador
Nelson Alexandre da Silva, presidente da OAB Subseção de Guarulhos,
o qual teve grande êxito na aceitação e disseminação do projeto com as
palestras nas escolas na Diretoria Regional de Ensino de Guarulhos, o que
então a OAB Seccional Paulista, também denominada OAB Subseção São
Paulo (que abrange todo o estado de São Paulo) fez da ideia se tornar
uma comissão do projeto a nível estadual, o que então disseminou nas
231 (duzentas e trinta e uma) subseções do estado. Posteriormente, a
OAB Nacional, representada pelo Conselho Federal da OAB, também
adotou e disseminou o projeto para todas seccionais (seções) em todo o
Brasil, ou seja, em todos os estados. A ideia do projeto é simples, mas que
trabalha, intrinsecamente, a informação sobre leis, direitos e deveres, o
que em si, provoca insurgir questionamentos dos estudantes e novas ideias
para buscar a concretização dos seus próprios direitos e que se cumpram
as leis e a Constituição, o que muda a mentalidade de como agir em
determinadas situações.
E os principais temas que são palestrados para os jovens
estudantes do ensino médio são: Direitos Fundamentais Constitucionais
(Artigo 5º da Constituição Federal), Lei sobre as Drogas, Consolidação
das Leis Trabalhistas, Alienação Parental, Alimentos, Bullying, Direito
Ambiental, Crimes Cibernéticos e Internet Segura, Tributos e Direito do
Consumidor, Aborto, Corrupção, Guarda e Reconhecimento de Paternidade,
Divórcio, Diversidade Sexual, Estatuto da Criança e do Adolescente, Nova
Configuração familiar, Previdência Social, Roubo e Furto e Tribunal do Júri.
Os temas tratados do referido projeto chamam muita a atenção
dos jovens estudantes e provoca até mobilizações de campanhas, abaixo-
assinados e até concurso de redações sobre o tema a ser sorteado, o que
mobiliza, praticamente, quase todas as escolas do ensino público estadual.
Por parte da comissão do projeto, é elaborada a cartilha para disseminação
de informações e, a cada ano, há reformulação conforme necessidade de
atualização e o que está em voga nas situações cotidianas que impactam

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 300
configurações no mundo jurídico, o que faz o projeto ser muito importante
para o devido desenvolvimento de cidadania para os jovens, que estão
terminando o ensino médio e entrando no mercado de trabalho ou vão
fazer curso técnico ou curso superior.
E para o projeto ter êxito, é necessário que os advogados
palestrantes se preparem e estejam atualizados sobre os temas jurídicos e a
realidade provocada pela globalização sócio-política-econômica e cultural
no mundo jurídico o que vai de encontro de verificar que há impactos
nos costumes nas relações de trabalho, de consumo, em relação ao meio
ambiente, ao comércio e empreendimentos.
Constata-se que o projeto “OAB vai à Escola” é uma política
pública decorrente da própria OAB, como instituição da sociedade civil
e autarquia, que se imbuiu de estimular a cidadania mais consciente
e participativa aos estudantes concluintes do Ensino Médio. O referido
projeto se caracteriza como modelo da teoria do grupo na abordagem de
políticas públicas, no sentido que auxilia estudantes com seus interesses
em concretizar seus direitos e que podem proporcionar demandas em
relação ao Poder Público, seja na esfera administrativa no Poder Executivo
e Legislativo ou jurisdicional e administrativo no Poder Judiciário.

4 OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO NO DIREITO DE


ACESSO À INFORMAÇÃO

A globalização trouxe vários reflexos em todos os campos do


conhecimento e das atividades humanas, o que veio mudar a realidade
de vários povos, várias nações, organizações, empresas e instituições da
sociedade civil. Um dos impactos mais perfectíveis no mundo jurídico,
diante das mudanças na economia, na sociedade, na política e na cultura, é
o pluralismo abrangente de vários sistemas jurídicos estatais e não estatais,
como é o caso da Lex Mercatoria no direito do comércio internacional,
que também afeta os direitos humanos, logo, o direito à educação, direito a
informação, direito do consumidor, direito do trabalhador, direito ambiental
e direito tributário. Conforme defende Borges (2012), a globalização
faz repensar na forma de aplicar o direito nas relações econômicas que
vão afetar de como as informações serão repassadas aos consumidores
pelos produtores, fornecedores e comerciantes, e como vão contratar
trabalhadores, se terão o devido cuidado para com o meio ambiente e como
vão repassar os impostos e demais tributos de determinadas mercadorias.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 301
Outro impacto perceptível, conforme Vieira (1997), é que a
globalização provoca uma nova percepção imprescindível a tendência de
declínio do Estado nacional, o que o acesso à informação pode provocar
uma organização maior de nível internacional da sociedade civil, por suas
organizações e instituições, o que poderia provocar uma anarquia global
diante do despotismo econômico capitalista imperialista e neoliberal.
Para Carvalho (2013), a autora verifica o impacto da globalização
da informação pelo uso de novas tecnologias de informação e comunicação,
o que faz o conhecimento ser construído e disseminado, pelo método de
educação à distância, o que facilita o crescimento exponencial eletrônico da
informação na promoção do desenvolvimento do conhecimento e do saber.
Já para Godoy (2004), o autor sustenta que a informação revela
problema de meios de comunicação, no sentido de verificar propósito e
valores dos direitos humanos no plano conceitual dos direitos denominados
naturais. Há, aí, o retorno da dicotomia do jusnaturalismo e positivismo,
que o direito de acesso à informação seja o centro da questão para verificar
paradigma e axiologia jurídicos.
Em relação a Formiga (2012), o autor observa que o processo
da globalização impacta nos novos meios de comunicação, logo, na
informação e no direito de acesso à informação, dentro do contexto da
fragilidade estatal nacional e necessidade de internacionalização do direito
à informação, o que já tem garantia nos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos como Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Por sua vez, Guerra (2001) aborda que a globalização afeta,
drasticamente, a disseminação da informação pelo meio da Internet e
mídias eletrônicas correlatas, no sentido de que características individuais,
familiares e culturais sejam afetadas sendo violadas a intimidade e a
privacidade, principalmente, de pessoas expostas ao público, o que pode
gerar fragilidade de direito de resposta, indenizações ou reparações por
danos morais, afetando assim direitos de personalidade, principalmente,
quanto à questão da honra e da moral.
Homci (2015) enfatiza o papel das novas mídias informacionais,
que são decorrentes do processo de globalização, de influenciam direito
e comunicação nas variadas relações jurídicas, o que tem se constatado a
facilitação doa acesso à informação, principalmente, dos meios jurídicos,
o que é capaz de profundas mudanças socioeconômicas, principalmente,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 302
influenciar a opinião pública, o que provoca produção de sentido e
percepção moral, seja de caráter ético, estético e ideológico, pois pode
render iniciativas positivas, como o processo virtual, como pode gerar
problemas como o crescimento descontrolado de crimes virtuais por
causa do tratamento inadequado das informações. Por fim, Lastres e
Albagi (1999) defendem que o processo de globalização trouxe impactos
econômicos, políticos e sociais, tendo a informação e o conhecimento
papeis principais na evolução e desdobramento de forças hegemônicas em
nível global, como também, provocaram modificações substantivas nas
relações, forma e conteúdo do trabalho informacional, ou seja, nas relações
de trabalho e emprego, que gerou agregação de valor e valorização do
capital, pois até provocou nova dinâmica política de contestar e desafiar o
poder dos Estados-Nações, o que fez insurgir blocos econômicos políticos
regionais, organismos multilaterais e grupos transnacionais, o que fez a
informação, além de gerar conhecimento, provocou algo a ser controlado
sobre o material e intangível diante da realidade das redes de informação
e comunicação em nível planetário, o que então provocou novos modelos
e instrumentos institucionais, normativos e reguladores na indústria,
economia tecnologia e inovação.
As autoras defendem que o impacto da globalização no acesso
à informação e ao conhecimento tem as seguintes dimensões: espacial
(expansão dos mercados e das relações internacionais de trabalho),
social (linha divisória dos capacitados para aprendizagem e inovação e
os marginalizados da técnica-produtiva), econômica (organizações mais
dinâmicas e competitivas em varia dos segmentos no processo inovador da
informação e conhecimento), política-institucional (formatos institucionais
e estratégias em relação a nova realidade).
Há uma notória percepção de impacto da globalização no
acesso à informação e no direito de informação, conforme exposto pelas
autoras acima, de que houve avanços nas Tecnologias da Informação e
da Comunicação (TIC), com o devido desenvolvimento de integração das
informações em nível mundial, o que proporcionou inovar e difundir novas
tecnologias, logo, novos conhecimentos e desenvolvimento de pesquisa
científica e acadêmica, o que então, também, provocou crescimento de
patentes de novos produtos comerciais e industriais de tecnologias de
softwares, de bioengenharia, de robótica, da medicina e geradoras e
fornecedoras de energias. Nas relações de trabalho, Lastres e Albagi
(1999) expõem que surgiu uma nova produtiva determinante denominada

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 303
“capital-informação”, o que tornou critério para uma nova realidade de
empregabilidade, ou seja, um perfil de exigência do capital humano. E da
vida social, a globalização impacta as TIC, no sentido de gerar novos anseios
e relações consumeristas, o que faz expandir a produção e a circulação de
produtos ou mercadorias e a comunicação em si para possíveis prestações
de serviços, que só aumentam a cada dia.
Nas demandas de políticas públicas, de acordo com Lastres e
Albagi (1999), a globalização traz novos desafios para a informação como:
1) desenvolvimento de novas formas de produção e comercialização de
bens e serviços que requer novas questões éticas, políticas, sociais e
jurídicas na era da informação e do conhecimento; 2) ascensão de novas
forças econômicas, políticas, sociais e culturais de caráter mundial que
requer subordinação de políticas e normas nacionais e supranacionais; 3)
aprofundamento de delimitação de fronteiras entre economias avançadas
e periféricas e seus segmentos sociais e como responder ao novo padrão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese as considerações finais, como conclusão, sobre os


impactos da globalização no direito de acesso à informação, o esboço
teórico apresenta possibilidades de aprofundamento a respeito das políticas
públicas em relação ao tema sobre a informação.
O pluralismo jurídico, as relações econômicas em relação ao
meio ambiente, o declínio do Estado nacional, o crescimento exponencial
das tecnologias eletrônicas de informação e comunicação, o problema dos
meios de comunicação em relação aos direitos humanos, a necessidade
de regulamentação da internacionalização do direito à informação em
tratados de direitos humanos de modo específico, o cuidado da intimidade,
privacidade, honra e moral como direitos e regras jurídicas a limitarem o
uso do direito de acesso à informação, a influência do acesso à informação e
direito à informação na formação de opinião pública pelos meios midiáticos,
o desdobramento de novas forças hegemônicas em escala global nas
relações de trabalho e emprego, o desenvolvimento de novos conhecimentos
decorrente de informações com pesquisa científica e acadêmica e de novas
patentes, a determinante do “capital informação” no capital humano e
a necessidade de responder a novas demandas de políticas públicas em
relação ao acesso e disseminação da informação para pontuar questões
éticas e jurídicas, políticas, normas nacionais e supranacionais e delimitação

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 304
de fronteiras entre países desenvolvidos, em desenvolvimento e não
desenvolvidos como resposta ao novo padrão do acesso e disseminação da
informação são os principais impactos trazidos no presente artigo. O projeto
“OAB vai à Escola” vai de encontro em relação aos seguintes impactos da
globalização em relação à informação, quando que os voluntários do projeto,
os advogados palestrantes, preparam-se para transmitir informações sobre
o mundo jurídico aos estudantes secundaristas diante da realidade global,
principalmente, quando se trata de Internet e novas tecnologias, que afetam
relações sociais que configuram relações jurídicas.
Enfim, o presente artigo suscita desdobramentos sobre o tema da
globalização e o direito à informação para novos estudos de caso para
debater e formular políticas públicas a respeito deste valioso direito de
acesso à informação, direito tão básico e essencial, de caráter de direito
humano e fundamental em matéria de constituição, como necessário
para adquirir e gerar conhecimento e exercer a cidadania consciente,
participativa e plena.

REFERÊNCIAS

ARNAUD, A. O direito entre modernidade e globalização: lições


filosóficas do direito e do estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
BACCHI, Olsen Henrique. O impacto da globalização nas relações
sociais e integração na América Latina. Jus Navigandi. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/2479/o-impactoda-globalizacao-nas-relacoes-
sociais-e-integracao-na-america-latina . Acesso em: 20 ago. 2016.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Malheiros, 1997.
BORGES, Luiz Cláudio. Globalização e direito: Os efeitos da
globalização na Teoria Geral do Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XV, n. 96, jan 2012. Disponível em: http://ambitojuridico.
com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1105
8&revista_caderno=24. Acesso em: 19 ago. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 305
CARVALHO, Maria José P. F. O impacto da globalização da informação
e do uso das novas tecnologias como fatores facilitadores do acesso
à informação à distância geradores do conhecimento no espaço
da imigração portuguesa. EDICIC. Disponível em: http://www.
academia.edu/6753466/Carvalho_MariaJos%C3%A9._O_IMPACTO_
DA_GLOBALIZA%C3%87%C3%83O_DA_INFORMA%C3
%87%C3%83O_E_DO_USO_DAS_NOVAS_TECNOLOGIAS_
COMO_FATORES_FACIL ITADORES_DO_ACESSO_%C3%80_
INFORMA%C3%87%C3%83O_%C3%80_DIST%C 3%82NCIA_
GERADORES_DO_CONHECIMENTO_NO_ESPA%C3%87O_DA_
IMIGRA %C3%87%C3%83O_PORTUGUESA_EDICIC_2013_.
Acesso em: 20 ago. 2016.
FORMIGA, Pedro Gonsalves de Alcântara. Os reflexos da
globalização no Direito. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 04
out. 2012. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.
br/?colunas&colunista=36365_&ver=1363. Acesso em: 20 ago. 2016.
GODOY, A. S. M. Globalização e Direito no Brasil. Jus Navigandi.
Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/5797%3E/globalizacao-
e-direito-no-brasil. Acesso em 19 ago. 2016.
GUERRA, Sidney. Globalização, informação e o direito fundamental à
privacidade. Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea.
Ano III, 03.02.01. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/
globalizacao-informacao-e-o-direito-fndamental-aprivacidade-de-sidney-
guerra/. Acesso em 20 ago. 2016.
HOMCI, Arthur L et al. Os impactos da informação nas relações
sociais. E-Gov. Portal de Egoverno, inclusão digital e sociedade do
conhecimento, abril 2015. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br:8080/
portal/conteudo/os-impactos-dainforma%C3%A7%C3%A3o-nas-
rela%C3%A7%C3%B5es-sociais. Acesso em 20 ago. 2016.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
LASTRES, Helena e ALBAGLI, Sarita (org.). Informação e
Globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
OAB SÃO PAULO. Comissões. OAB vai à Escola. Disponível
em: http://www.oabsp.org.br/comissoes2010/oab-vai-escola.
Acesso em: 3 nov. 2016.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Secção São Paulo. 57ª
Subsecção. Guarulhos. Projeto A OAB vai à Escola. Disponível em: http://
www.oabguarulhos.org.br/anexos/doc01.pdf. Acesso em 20 ago. 2016.
RUA, Maria das Graças. Políticas Públicas. Florianópolis: Departamento
de Ciência da Administração/UFSC, 2012.
RUFFA, Ester. Educação: quem educa o cidadão? São
Paulo: Cortez, 1993.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São
Paulo: Malheiros, 1997.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 307
POLÍTICAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS NAS
COMPRAS E LICITAÇÕES PÚBLICAS, DIANTE
DO CENÁRIO GLOBALIZADO

Silvia Cristina Mazaro Fermino*


Marcela Francine Garavello**

INTRODUÇÃO

A Administração Pública, em todas as esferas governamentais,


ao efetuar licitações e contratos, se sujeita aos princípios constitucionais
da isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
eficiência, legitimidade e economicidade. A satisfação harmonizada
destes princípios é orientada pelo interesse público. Assim, podemos
dizer que as compras feitas pelos governos, são importantes instrumentos
de políticas públicas e desenvolvimento econômico.
Além disso, as compras feitas pelos governos por meio de
Licitações Públicas, podem tanto desenvolver a economia sustentável, como
proporcionar a competitividade, estimulando os mercados formais, proteção
à concorrência, fomento à tecnologia, arrecadação de tributos; incentivando
assim, a livre iniciativa, entre outros. Tudo isso corroborado pela Lei 8.666/93
e mais especificamente pela alteração trazida pela Lei 12.349/2011, a qual,
entre outros, visa promover o desenvolvimento nacional sustentável.
O presente trabalho pretende demonstrar que adotar procedimentos
sustentáveis, ou que visem o desenvolvimento sustentável não quer dizer
cerceamento de participação em compras e licitações públicas, mas sim optar
pela “proposta mais vantajosa para a administração pública”. Lembrando
que a proposta mais vantajosa nem sempre é a de menor preço, mas a
que atende melhor as condições almejadas pela administração. Pretende-se
também demonstrar que diversos órgãos públicos nacionais e internacionais
já estão adotando medidas sustentáveis em compras e licitações.
Finalmente, vislumbra-se o incentivo do poder público em
adotar medidas, ou seja, políticas públicas, voltadas ao desenvolvimento
sustentável, tendo em vista que o mundo clama por mudanças culturais de
forma a reverter a atual situação ambiental. Justifica-se essa pesquisa, em
razão da visão equivocada que se tem atualmente da adoção de algumas
*
Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo-USP-FDRP
**
Graduação em Direito pela Universidade Paulista.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 309
medidas de sustentabilidade em processos de compras públicas. Muitas
vezes, a adoção de medidas ou pré-requisitos para aquisição de bens ou
serviços públicos com características sustentáveis é tida como cerceamento
de competitividade, direcionamento licitatório ou falta de economicidade.
Ainda existe certo receio, por parte de órgãos fiscalizadores, em
aceitar tais medidas como politicamente corretas, sob o aspecto ambiental.
Desta forma, pretende-se demonstrar os benefícios da adoção de tais medidas,
bem como o cumprimento da legislação vigente e a urgente necessidade de
estimular a reversão ou, pelo menos, a preservação ambiental atual. Para
tal demonstração, a pesquisa visa exemplificar casos reais e atuais que
funcionam e despertam a visão sustentável da população em geral, bem como
das empresas. A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa será estudos de
natureza histórica, teórica e exemplificação com casos concretos.
Da perspectiva teórica, realizar-se-á uma análise quanto à
conceituação de elementos importantes da pesquisa como políticas
públicas, cidadania e sustentabilidade.
Quanto à natureza histórica, pretende-se demonstrar a adoção
de medidas sustentáveis ao longo do tempo, bem como a atual visão e
papel do Poder Público na adoção de medidas sustentáveis. Para isso,
pretendemos exemplificar as medidas utilizadas como políticas públicas,
por órgãos públicos, de forma a estimular a sustentabilidade.
A pesquisa bibliográfica buscará embasamento teórico em livros
e sites voltados à política, economia, ciência política e teoria do Estado,
além das bases de dados como: Athena, Periódicos Capes, Domínio
Público, Portal da Pesquisa, Scielo, entre outros. A título de exemplificação
buscará informações em municípios e outros órgãos públicos envolvidos
com a implantação das políticas públicas em sustentabilidade, para
demonstrar sua eficácia.

1 DESENVOLVIMENTO

1.1 Políticas Públicas e Cidadania

A Constituição Federal nos assegura direitos sociais fundamentais,


os quais são garantidos pelo Estado, como saúde, educação, segurança e
meio ambiente. Para que tal dispositivo constitucional seja cumprido, o
Estado se vale de políticas públicas, as quais envolvem os três poderes: o
Legislativo (cria por meio de leis), o Executivo (planeja e implementa) e

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 310
o Judiciário (controla a constitucionalidade). Assim, quando a sociedade
apresenta alguns problemas a serem considerados relevantes para a
coletividade, o poder público interfere, de forma a mediar a situação,
criando condições para tentar sanear os problemas. Daí surge políticas
públicas, ou seja, ações ou programas desenvolvidos pelo órgão público
direta ou indiretamente, com ou sem participação de outros entes públicos
ou privados, de forma a garantir determinado direito de cidadania.
Conforme entendimento de Leonardo Sechi “Uma política pública
é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público” SECHI (2012).
A autora Celina Souza resume políticas públicas como o campo do
conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o “governo em ação” e/
ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor
mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente) SOUZA
(2006). Desta forma, afere-se que a elaboração de leis ou normas, rotinas
administrativas, divulgação, entre outros, são políticas públicas desde que
estas atuem de imediato, sem perder de vista o ganho futuro, podendo
ser por iniciativa dos Poderes Executivo, ou Legislativo, individualmente
ou separadamente, a partir das necessidades e propostas da sociedade,
garantindo o direito de cidadania.
Podemos citar como exemplo prático de política pública dentro
da administração pública a forma de compra governamental. Tal política
pública visa à melhoria organizacional, bem como o resultado de outras
políticas como a boa gestão dos bens públicos, de forma a dar transparência
e eficiência aos atos administrativos. Ainda nessa ceara, podemos citar
a utilização da modalidade de licitação pregão como forma de tornar o
processo de compras mais eficiente, competitivo e transparente, além, é
claro de buscar o melhor preço. Outro exemplo de política pública nas
licitações é a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, trazido
pela nova redação dada pela Lei 12.349/2010 ao artigo 3º da Lei 8.666/93,
o que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto
no inciso II do artigo 1º da Constituição Federal. Sendo assim, as compras
públicas sustentáveis são políticas públicas introduzidas no ordenamento
jurídico, com fundamento constitucional no artigo 225, caput, dispondo
que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-
lo para as presentes e futuras gerações”. Igualmente o artigo 170 da Lei
Maior, ao tratar dos princípios da ordem econômica, incluindo a “defesa

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 311
do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme
o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação”.

1.2 Sustentabilidade e Fundamentos Legais

A sustentabilidade é vista como a busca pela harmonização de


objetivos sociais, ambientais e econômicos, que chamada de desenvolvimento
sustentável, elencando como objetivos da sustentabilidade: 1. Preservação
potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; 2. Limitação
do uso de recursos não renováveis; e respeito e realce para a capacidade
de autodepuração dos sistemas naturais. É também um valor, o qual requer
a promoção da qualidade de vida, como geração de emprego e renda;
desenvolvimento humano e econômico; acesso à educação e informação;
possibilidade do exercício da cidadania e democratização dos processos
decisórios; promoção do multiculturalismo; superação da desigualdade
social e ambiental; bem como o respeito a todas as etnias CANEPA (2007).
Embora o desenvolvimento sustentável seja gerado pela
sustentabilidade, um carece da existência do outro. O meio ambiente
é reconhecido como um direito de todos e a ele corresponde a Politica
Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei Federal nº 6.938, em
razão de vários problemas relacionados ao meio ambiente. Várias são as
políticas públicas que existem ou poderiam existir para tentar amenizar
ou extinguir os problemas que atingem a sociedade, tais como utilizar
“compras verdes” por parte da administração pública.
Alguns autores, como Miguel Plata Moreno, defendem a
Sustentabilidade como sendo um Princípio Geral do Direito, bem como
uma política pública, tendo em vista sua concepção referente aos elementos
constitutivos, como a equidade intra e intergeracional e depois os princípios
da solidariedade intra e intergeracional. (MORENO, 2010).
Para Ronald Dworkin, princípio é um padrão que deve ser
obedecido em virtude de externar uma exigência geral de equidade ou de
justiça ou, ainda outra dimensão relativa a moral. Além disso, a observância
dos princípios deve estar vinculada a uma melhora na situação econômica,
política ou social. (DWORKIN, 2002). Por essa definição, subentende-
se que a Sustentabilidade, no entendimento do autor estadunidense, é
um Princípio Jurídico. Além de ser um Princípio Geral do Direito, há

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 312
autores que sustentam a possibilidade do Princípio da Sustentabilidade ser
considerado um princípio constitucional.
Para afirmar que o Princípio da Sustentabilidade é um principio
constitucional, o autor Juarez Freitas leva em consideração, inicialmente,
o próprio preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1.988, in verbis:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL. BRASIL. Constituição (1988).
Embora o preâmbulo constitucional não tenha poder vinculante,
nota-se que a intensão do legislador foi, entre outras, a preocupação
com o desenvolvimento.
Além do preâmbulo, verifica-se no artigo 3º, inciso III da Carta
Magna que vislumbra também a erradicação da pobreza e da marginalização
bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.
A Constituição federal estabelece, em seu art. 170, VI, como um
dos princípios da ordem econômica a defesa do meio ambiente, a qual foi
complementada pela Emenda constitucional nº 42 de 2.003, ao prever a
possibilidade de tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.
O artigo 225, caput, da mesma norma máxima, destaca o dever
do Estado em preservar o meio ambiente, o que se efetiva com o uso de
poder de compra. O inciso IV do mesmo artigo exige estudo prévio de
impacto ambiental para toda obra ou atividade causadora de significativa
degradação do meio ambiente. Tais previsões constitucionais aliaram-
se à Lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), para originar
o artigo 12 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), o qual dispõe que, nos
projetos básico e executivo de obras e serviços, sejam considerados vários
requisitos, entre os quais o de impacto ambiental.
Muitas são as políticas públicas voltadas para o meio ambiente,
tanto partindo do Poder Executivo, quanto do Poder Legislativo, ou seja,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 313
criação de normas para a própria administração pública em busca de
contribuir com a sustentabilidade, como é o caso de sustentabilidade nas
licitações e compras públicas.
Algumas normas infraconstitucionais também foram alteradas
ou criadas, a fim de incluir critérios de sustentabilidade nas licitações e
contratações públicas, tais como:
a) Lei nº 12.187/2009 - Lei de Mudanças climáticas;
b) Lei nº 12.305/2010 - Lei da política Nacional de Resíduos Sólidos;
c) Lei nº 12.349/2010 - alteração do art. 3º da lei 8.666/1993,
onde incluiu como finalidade da licitação a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável.
d) Instrução Normativa nº 01/2010 SLTI NPOG e Decreto nº
7.746/2012, que regulamenta o artigo 3º da Lei 8.666/93, estabelecendo
critérios, práticas e diretrizes gerais de sustentabilidade nas contratações
realizadas pela administração pública federal.
e) Portaria nº 2/2010 da Secretaria de logística e Tecnologia da
Informação do ministério do planejamento Orçamento e Gestão que dispõe
sobre as especificações padrão de bens de tecnologia da informação no
âmbito da Administração pública Federal direta, autárquica e fundacional.
f) Outro instrumento foi a Agenda 21, documento final
da Conferência Rio-92, que estabeleceu um plano de ação para o
desenvolvimento sustentável, com destaque para o capítulo 4, que, ao tratar
das mudanças de padrões de consumo, relacionou várias atividades, tais
como o exercício da liderança por meio das aquisições pelos Governos,
de modo a aperfeiçoar o aspecto ecológico de suas políticas de aquisição.
Esse conjunto normativo permite que o administrador faça
a opção por contratações de bens, serviços e obras que atendam a
critérios sustentáveis e reduzam o impacto ambiental frente a outros
produtos ou serviços.

1.3 Licitações e compras sustentáveis

Em regulamentação ao artigo 37, XXI da CF, as compras da


administração pública são regradas, dentre outras, pela Lei das Licitações,
Lei nº 8.666/93, a qual, conforme artigo 3º visa obedecer aos princípios
constitucionais. Podemos dizer que a licitação nada mais é do que uma
forma de comprar bens e serviços para a Administração, de forma padrão,
com eficiência e menor preço para a Administração.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 314
[ ] procedimento administrativo pelo qual um ente
público, no exercício da função administrativa, abre
a todos os interessados, que se sujeitam às condições
fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade
de formularem propostas dentre as quais selecionará
e aceitará a mais conveniente para a celebração do
contrato DROMI (1975, p.92).
Além dos princípios constitucionais indicados para pautar
as licitações, Hely Lopes Meirelles relaciona: procedimento formal,
publicidade, igualdade entre os licitantes, sigilo das propostas, vinculação
aos termos do instrumento convocatório, julgamento objetivo e adjudicação
compulsória (MEIRELLES, 2003).
As compras públicas, bem como as licitações também inovaram
como política pública sustentável.
As licitações sustentáveis são, in verbis:
[ ] uma das políticas públicas para a preservação do meio
ambiente. A introdução de critérios de sustentabilidade
ambiental nas contratações públicas representa um novo
modo de agir do estado que responde a um anseio social de
viver com menor impacto no meio ambiente. SANTOS e
VILLAC (2015, p. 141).
Neste mesmo sentido, o art. 3º da Lei de Licitações estabelece que
“a licitação destina-se a garantir a seleção da proposta mais vantajosa para
a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável”.
Lembrando que a proposta mais vantajosa, não quer dizer a
proposta de menor valor, mas aquela que melhor atende o interesse
público, ou seja, é aquela que esta de acordo com as especificações técnicas
necessárias para sua utilização, escolhida em processo isonômico de livre
e ampla competição e por empresa que respeita a proibição constitucional
de “trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de
qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir de quatorze anos”.
Além disso, a melhor proposta deve ser oferecida dentre as
empresas que preencham os requisitos de habilitação exigidos, como
habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-
financeira e regularidade fiscal.
A política pública da promoção do desenvolvimento nacional
sustentável trazida na Lei 8.666/93 permite inclusive considerar fatores

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 315
como a geração de emprego e renda, o efeito na arrecadação de tributos e
desenvolvimento e inovação tecnológica realizada no país.
Outro Princípio sustentável normatizado é o da Ecoeficiência,
trazido no artigo 6º, V da Lei nº 12.305/2010:
Art. 6º São Princípios da política Nacional de
Resíduos Sólidos: (...)
V - a ecoeficiência, mediante a compatibilização entre o
fornecimento, a preços competitivos, de bens e serviços
qualificados que satisfaçam as necessidades humanas e
tragam qualidade de vida e a redução do impacto ambiental
e do consumo de recursos naturais a um nível, no mínimo,
equivalente à capacidade de sustentação estimada do planeta.
BRASIL Lei nº 12.305 (2000).
A Lei 12.349/2011 foi editada com o propósito de modificar
o artigo 3º da Lei 8.666/93, que passou a contemplar nos objetivos das
licitações públicas, entre outros, a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável. Diante dessa norma, percebe-se que a sustentabilidade
ambiental é dever do administrador público nas licitações públicas.
Para garantir cumprimento à legislação licitatória, os editais
e demais procedimentos devem atender, além dos demais princípios,
ao princípio da sustentabilidade na licitação, como por exemplo, as
consequências em matéria de qualificação técnica dos contratados. Embora
o princípio da ecoeficiência seja normatizado e o poder discricionário
do administrador público em adotar medidas sustentáveis nas compras
públicas, a sustentabilidade deve ser aplicada nas licitações sim, mas
de forma ponderada, de forma a não se sobrepor aos demais princípios,
mas conjuntamente com eles, para evitar polêmica na aplicação dessas
medidas. Neste sentido, disposições normativas sobre a utilização, pela
Administração, de compras e/ou licitações sustentáveis, já foram objeto de
questionamento judicial, motivo pelo qual já existe posicionamento sobre
a juridicidade dos critérios de sustentabilidade adotados para a contratação
de bens, obras e serviços pelo Poder Público.
Segundo alguns entendimentos, a opção por determinados bens
e serviços que atendem aos critérios de sustentabilidade contrariariam o
princípio da competitividade, pois muitos desses bens e serviços não são
usuais no mercado e são fornecidos por um número reduzido de empresas,
o que reduziria a competitividade nas licitações.
Podemos citar como exemplo a compra de papel reciclado,
computadores com selos de sustentabilidade, entre outros.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 316
Alega-se nesses casos a falta de economicidade, já que muitos
produtos ou serviços sustentáveis possuem custos mais elevados de
produção. Além disso, o custo inicialmente maior pode ser compensado
pelos benefícios trazidos pelos bens ou serviços sustentáveis, inclusive em
termos de economia financeira, tal como ocorre com os eletrodomésticos
com selo de eficiência energética, lâmpadas fluorescentes, entre outros,
que são inicialmente mais caros, mas que o menor consumo energético
compensa com a diminuição do valor das contas de energia.
O TJMG, na Apelação cível nº 1.0024.06.935535-2/2003, decidiu
pela plena legalidade da exigência de licenciamento ambiental para a
aquisição de bens móveis, fundado justamente na legitimidade do exercício
do poder normativo da Administração, cuja ementa diz:
Apelação cível. Ação anulatória. Decisão de inabilitação
em pregão. Exigência de licenciamento ambiental. Dec. nº
44.122/05. Litigância de má-fé. Ausência de comprovação.
No exercício de sua competência regulamentar, o Poder
Executivo poderá exigir a apresentação de licenciamento
ambiental para habilitação de empresa em licitação para
a aquisição de bens móveis, já que se afigura exigência
de qualificação técnica que não implica discriminação
injustificada entre os concorrentes, assegura a igualdade
de condições entre eles e retrata o cumprimento do dever
constitucional de preservação do meio ambiente. A
Administração Pública, além de observar a igualdade de
condições a todos os concorrentes, também atenderá aos
princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do
julgamento objetivo (art. 3º da Lei 8.666/93). A aplicação
da pena por litigância de má-fé deve ser dada apenas nos
casos de induvidosa prática de dolo processual. Recursos
conhecidos, mas não providos. BRASIL. Tribunal de Justiça
de Minas Gerais (2003).
Diante das normas vigentes e posicionamento do Tribunal, a adoção
de critérios de sustentabilidade para as licitações e contratações públicas
atende ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.
A questão da economicidade e competitividade é contornada
diante das disposições constitucionais sobre a ordem econômica e
sobre o meio ambiente.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 317
1.4 Compras públicas sustentáveis no mundo globalizado

Para implantar medidas de incentivo e transformação da


consciência da população, por meio de políticas públicas, o poder público,
ainda que impositivamente e com muitas barreiras e dificuldades têm
contribuído com avanços tecnológicos, participação social, imposição
de condutas por meio de normas de responsabilidade social, tanto
nacionalmente como internacionalmente.
No que se referem ao consumo, os governos exercem uma grande
influência nas questões ambientais, uma vez que possuem um poder de
compra considerável.
Autoridades públicas na Europa, por exemplo, têm um poder de
compra de 1 trilhão (aproximadamente 15% do produto interno bruto da
União Europeia). Deste montante, até 3/4 são utilizados na compra de
materiais de consumo e contratação de serviços, e o restante é gasto na
licitação de bens de capital (BIDERMAN et al, 2008).
Com esse poder em mãos e com a implementação de políticas de
aquisições sustentáveis, os governos são capazes de provocar mudanças
que impactam de forma muito positiva o meio ambiente.
As compras ou contratações públicas sustentáveis visam satisfazer
as necessidades atuais sem comprometer as futuras gerações.
Com a intenção de incorporar as ações sustentáveis, a Justiça do
Trabalho elaborou um Guia de Compras Públicas Sustentáveis, objetivando
também auxiliar os agentes envolvidos a adotarem medidas proativas e
investigatórias, indicando adoção de normas, regulamentos e boas práticas.
A Justiça do Trabalho, em seu Guia, inseriu diretrizes a serem
adotadas nas licitações, aquisições e demais contratações, como por
exemplo, a Preferência por produtos de baixo impacto ambiental, não
geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos,
bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos (Lei
12.305/2010), aquisição de produtos e equipamentos duráveis, reparáveis
e que possam ser aperfeiçoados (Portaria MMA 61/2008), observância às
normas técnicas elaboradas pela ABNT, nos termos da Lei 4.150/1962,
para aferição e garantia da aplicação dos requisitos mínimos de qualidade,
utilidade, resistência e segurança dos materiais utilizados, preferir adquirir
produtos constituídos no todo ou em parte por materiais reciclados,
atóxicos, biodegradáveis, conforme ABNT NBR 15.448-1 e 15.448-2, as
aquisições de bens de informática, como computadores devem observar

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 318
os critérios de segurança, compatibilidade eletromagnética e eficiência
energética previstos na Portaria Inmetro nº 170/12, mediante também
apresentação de certificados emitidos por instituições de confiança do
Inmetro, entre outras. Para implantação e utilização desse Guia, a Justiça
do Trabalho utilizou-se da elaboração da Resolução nº 103/2012.
É interessante notar que vários países já adotam medidas
sustentáveis nos procedimentos de compras e contratações, tais como:
Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Países Baixos, Noruega, África do
Sul, Japão, Suécia, Áustria, Coreia do Sul e Suíça.
A Coreia do Sul foi um dos primeiros países do mundo a aprovar
uma lei federal de licitação sustentável. Para garantir essa política o
governo criou um sistema de certificação ambiental e selos verdes para
identificar produtos e serviços sustentáveis.
Nos Estados Unidos há regulamentação que estabelece regras de
cuidado ao meio ambiente e à cidadania em licitações públicas (a aquisição
de materiais reciclados, como o papel, óleos lubrificantes refinados
novamente e pneus reaproveitados).
Em 2004 a União Europeia adotou novas normas sobre licitação
sustentável e neste mesmo ano, o Brasil recebeu apoio internacional de
entidades e organizações para iniciar as práticas e contratações sustentáveis.
Isso gerou diversas iniciativas, dentre elas o Projeto Promovendo Compras
Públicas Sustentáveis no Brasil, que buscou a promoção de políticas
e medidas de compras públicas sustentáveis em projetos piloto em São
Paulo e em Minas Gerais.
Vários outros órgãos instituíram políticas públicas, por meio de
normatização, para exercitar a sustentabilidade, desde tempos remotos,
valendo ressaltar alguns exemplos:
- Estado de São Paulo, por meio de decretos, como o Decreto
nº 49.674/2005 - dispõe sobre o controle ambiental de madeira nativa de
procedência legal em obras e serviços de engenharia; determina respeito
às normas ambientais e de fiscalização na utilização de madeira nativa na
contratação de serviços de engenharia.
- Estado de Mato Grosso, com a Lei Complementar nº 27/1999,
a qual dispõe sobre a instalação de dispositivos hidráulicos visando o
controle e redução de consumo de prédios públicos e comerciais.
- Distrito Federal, com a Lei nº 2.616/2000, que dispõe sobre
a utilização de equipamentos economizadores de água nas instalações

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 319
hidráulicas e sanitárias dos edifícios públicos e provados destinados ao
uso não residencial.
Alguns Municípios também estão caminhando no sentido de
adotar medidas sustentáveis nas compras públicas, como é o caso da
Câmara Municipal de Jaboticabal.
A Câmara Municipal de Jaboticabal, em uma licitação para
aquisição de computadores, solicitou, no termo de referência do edital,
que os equipamentos tivessem alguns selos sustentáveis, visando obter
equipamentos ambientalmente corretos, bem como a participação de
empresas que também tenham essa visão de sustentabilidade.
Ainda há entendimentos de que tais exigências frustram a
competitividade, como foi o caso da própria Câmara de Jaboticabal que
sofreu questionamento do Ministério Público local.
Mas a medida foi adotada visando, além de seguir o artigo 225 da
Constituição Federal, o artigo 3º da Lei 8.666/93, também proporcionar o
incentivo de políticas públicas sustentáveis e evitar a aquisição de produtos
que sejam fruto de descaminho, ou seja, equipamentos montados com
peças adquiridas sem legalidade, pois sabemos que muitas lojas adotam
esse procedimento na montagem de microcomputadores.
Os valores referentes à sustentabilidade precisam criar um modelo
de desenvolvimento que concilie o econômico com o socioambiental e da
necessidade de ações que atenuam as mudanças climáticas provenientes
das atividades humanas, bem como o próprio aumento populacional.

1.5 Selos ou Rotulagem Ambiental nas aquisições públicas

A exigência de selos ou certificações nas licitações públicas


também pode ser interpretada como uma forma de direcionamento das
compras, o que não é permitido pela legislação brasileira. No entanto, alguns
órgãos, mediante justificativa fundamentada, pode exigir a apresentação
de algumas certificações, prática essa que tem se tornado cada vez mais
comum, pois a certificação está relacionada à procedência e ao processo
produtivo e a Rotulagem Ambiental, por sua vez, é um mecanismo de
comunicação com o mercado sobre os aspectos ambientais do produto ou
serviço com o objetivo de diferenciá-lo de outros produtos.
Os selos verdes são definidos pela ISO (International Organization
for Standardization) como instrumentos confiáveis e precisos sobre
aspectos ambientais.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 320
Podemos citar alguns exemplos de certificações, como:
Forest Stewardship Council (FSC) - A certificação florestal
Forest Stewardship Council (FSC), tem o objetivo de atestar que um
empreendimento florestal (empresa, produtor ou comunidade), obtém
seus produtos de forma ambientalmente correta, socialmente benéfica e
economicamente viável.
CERFLOR - O Programa Brasileiro de Certificação Florestal
- CERFLOR é gerenciado pelo Instituto Nacional de Metrologia,
Normalização e Qualidade Industrial - Inmetro. O programa CERFLOR
procura avaliar se as florestas plantadas ou nativas estão sendo manejadas
de acordo com os requisitos estabelecidos pelas normas brasileiras,
servindo como indicativo de que a matéria-prima e os produtos dela
derivados provenham de uma floresta manejada de forma ecologicamente
adequada, socialmente justa e economicamente viável.
PROCEL - O Programa Brasileiro de Etiquetagem (PBE) atua
principalmente na área de produtos consumidores de energia elétrica.
Por meio da adesão voluntária dos fabricantes, ganhou dois importantes
parceiros: a Eletrobras, através do Programa Nacional de Conservação
de Energia Elétrica - Procel e a Petrobras, através do Programa Nacional
da Racionalização do Uso dos Derivados do Petróleo e do Gás Natural -
Conpet. O selo PROCEL DE ECONOMIA DE ENERGIA ou simplesmente
Selo Procel, foi instituído por Decreto Presidencial em 8 de dezembro de
1993 tem por objetivo orientar o consumidor no ato da compra, indicando
os produtos que apresentam os melhores níveis de eficiência energética
dentro de cada categoria, proporcionando assim economia na sua conta
de energia elétrica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o conteúdo pesquisado, bem como o que foi


exposto no trabalho e todas as condições ambientais atuais, vimos que há
grande preocupação com o meio ambiente. Por tais motivos buscam-se
soluções que garantam sustentabilidade.
Como os órgãos públicos, além de responsáveis por elaborar
políticas públicas que garantam a manutenção do direito de cidadania
e diante de seu forte poder de compra, tem buscado formular políticas
públicas sustentáveis voltadas às compras e licitações governamentais,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 321
como é o caso da alteração do artigo 3º da Lei 8.666/93, dentre outras
normas já implantadas.
A ideia de intervir nas compras públicas, de forma a preferir
produtos sustentáveis, bem como contratar ou adquirir produtos de empresas
que adotam padrões de sustentabilidade dentro do ramo que atuam, é
exatamente fomentar o consumo e utilização de bens e serviços que não
degradem ou ainda que prejudiquem menos o meio ambiente e/ou social.
Muitas vezes, essas medidas são encaradas como forma de
simular competitividade, cercear participação de algumas empresas, não
atender ao princípio da economicidade, entre outros.
Ao contrário disso, a intenção é exatamente oposta, ou seja,
é estimular que empresas que não possuem qualidade ou padrão
sustentável, se adequem no sentido de que em um futuro próximo a
maioria das empresas esteja adotando práticas sustentáveis de produção e
desenvolvimento naturalmente.
Além disso, a economia é visível a longo prazo e de forma
permanente, ao contrário do que se pratica atualmente visando apenas o
menor preço. Lembrando que o que deve ser buscado é a proposta que
melhor atenda ao interesse público.
Embora a adoção de tais medidas seja difícil e burocrática, em
razão da resistência de alguns órgãos públicos, órgãos fiscalizadores e até
mesmo das pessoas em geral de mudar comportamentos, a persistência
deve ser mantida para que se atinja um bem maior, como podemos observar
nos exemplos citados no presente trabalho.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2.010. Institui a Política
Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário Oficial,
Brasília, DF, 02 ago. 2010.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação cível nº
1.0024.06.935535-2/003. Apelantes: Município Montes Claros, adesiv:
Riadne Hellen Nery Nobre Rabelo. Apelados: Município Montes Claros,
adesiv: Riadne Hellen Nery Nobre Rabelo. Relator: Exmo. Sr. Des.
Dídimo Iinocêncio de Paula. Belo Horizonte, 13 de novembro de 2008.
BIDERMAN, Rachel. et al. Guia de compras públicas
sustentáveis: Uso do poder de compra do governo para a promoção
do desenvolvimento sustentável. GVCES- Centro de Estudos em
Sustentabilidade da EAESP, 2008. Disponível em: http://www.gvces.
com.br/arquivos/36/Guia-de-compras-publicas-sustentaveis.pdf.
Acesso em: 09 set. 2016.
CANEPA, Carla. Caminhos para o desenvolvimento
sustentável. Cidades sustentáveis: o município como lócus da
sustentabilidade. Srs Editora, 2007.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
DROMI, José Roberto. La Licitación pública. Buenos
Aires: Astrea, 1975.
GORCZEVSKI, Clóvis; TAUCHEN, Gionara. Educar para os
Direitos humanos, ou para a cidadania? In: GORCZEVSKI,
Clóvis (Org). Direitos Humanos, Educação e Cidadania. Porto
Alegre: UFRGS, 2007, p. 13.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São
Paulo: Malheiros, 2003.
MORENO PLATA, Miguel. Génesis, evolución y tendências
del paradigma del desarrollo sostenible. Cidade do
México: M. Á. Porrúa, 2010.
SANTOS, Murilo Giordan; VILLAC, Teresa. Licitações e Contratações
Públicas Sustentáveis. Belo Horizonte: Forum. 2015.
SECHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de analise,
casos práticos. São Paulo/SP: Cengage Learning, 2012.
SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura.
Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 323
A INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA E SEUS
IMPACTOS NO UNIVERSO DO TRABALHO: CRISE
ECONÔMICA, DESEMPREGO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Nelma Karla Waideman Fukuoka*


Victor Hugo de Almeida**

INTRODUÇÃO

A economia mundial vem enfrentando uma de suas crises mais


graves e prejudicando principalmente os trabalhadores. O desemprego,
como fenômeno coletivo que atualmente se mostra, é coetâneo da moderna
economia capitalista, apresentando-se como fenômeno estrutural em razão
da extrema divisão do trabalho, dos métodos de produção, da distribuição
e da acumulação de renda.
No cenário gerado desde então, novos paradigmas são ditados
pela ordem econômica mundial favorável aos países centrais e que
inexoravelmente se instala em face do atual processo de globalização,
refletindo nos países de economia dependente, como o Brasil, os seus
efeitos mais perversos, como, por exemplo, o agravamento do desemprego.
No mundo dos fatos, o ordenamento jurídico, de modo geral,
tenta contribuir com a recuperação econômica das empresas e incentivar a
produção capitalista, sem desconsiderar a posição social dos trabalhadores.
A lógica trazida é a de que devem ocorrer sacrifícios recíprocos
aos empregados e ao empregador. Mesmo assim, o ordenamento jurídico
pátrio não contempla a dispensa coletiva, inexistindo texto legal que
a defina e regulamente. Assim, ainda permanecem os trabalhadores
brasileiros à margem de qualquer garantia formal de emprego e sustento,
visto inexistirem regras positivas que coíbam a dispensa em massa como
artifício empresarial de diminuição de custos em sua produção.
Diante desse panorama, o presente trabalho tem por objetivo geral
examinar as consequências jurídicas, sociais e econômicas no mundo do
*
Mestranda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Franca .
**
Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Docente
na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho - UNESP/Franca, Graduação e Pós-Graduação. Membro Pesquisador
do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior, Seção Brasileira da Societé
Internacionale de Droit du Travail et de la Sécurité Sociale.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 325
trabalho geradas pela internacionalização da economia, principalmente a
partir da crise econômica mundial iniciada em 2008. Dentre elas, destaca-
se o agravamento do desemprego e a vulnerabilidade a que são submetidos
os trabalhadores por todo o globo. Como objetivo específico, visa examinar
o papel do Poder Público frente à dispensa coletiva arbitrária, sob o viés
da relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa
causa, consoante ao disposto no art. 7º, inciso I, da Constituição Federal.
Consideraram-se os mecanismos previstos na legislação laboral
brasileira, entendimentos jurisprudenciais e doutrinários recentes. Como
método de procedimento, adotou-se o levantamento de dados por meio
da técnica de pesquisa bibliográfica. E, como método de abordagem,
adotou-se o método dialético, para a compreensão e a interpretação
crítica e aproximada da realidade, partindo do pressuposto de que esta é
historicamente superável. A visão dialética deve ser compreendida pelo
dinamismo do raciocínio por entre a materialidade histórica, que trata da
organização social ao longo da história da humanidade. (LAMY, 2011)

1 CRISE ECONÔMICA E DESEMPREGO

O desemprego, como fenômeno coletivo que atualmente se mostra,


é coetâneo da moderna economia capitalista, apresentando-se como
fenômeno estrutural em razão da extrema divisão do trabalho, dos métodos
de produção, da distribuição e da acumulação de renda (COSTA, 1991). O
uso da tecnologia e a exigência de trabalhadores extremamente qualificados,
como heranças do modelo toyotista, cria um exército de reserva, pronto
para ocupar postos de trabalho, cada vez mais raros, elevando as taxas de
desemprego no contexto global (GONÇALVES; KNEIPP, 2013).
Nas palavras de Enoque Ribeiro dos Santos (2006, p. 83):
É inegável que a globalização da economia e seus efeitos
- abertura dos mercados, aumento da concorrência, maior
fluidez financeira, transferência de propriedade, novas
tecnologias, introdução de novos procedimentos eletrônicos
e de informatização, diminuição das margens de benefícios
concedidos aos empregados, alteração da política de pessoal
- ocasionam maior descentralização das empresas e são
responsáveis não apenas pelo recrudescimento do nível de
desemprego na economia, como também por transformações
profundas no mercado de trabalho.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 326
Neste contexto, é imperioso considerar os fatos políticos,
econômicos e sociais decorrentes da globalização econômica, que têm
imposto uma revisão crítica do processo judicial. Dentre eles está a crise
econômica de 2008 e 2009, que se originou da tendência do mercado
financeiro de crescer além do que permitem os recursos da economia real,
conforme evidencia Paul Singer (1968, p. 158):
Desde o seu início está o capitalismo sujeito a crises e, a
partir do momento em que ele passou a dominar a economia
de várias nações, estas crises adquiriram caráter cíclico e
passaram a desempenhar um papel decisivo no que se refere
à compreensão crítica do funcionamento do sistema.
Por crise se entende algo eventual, passageiro e esporádico. E
os riscos econômicos do empreendimento são sempre do empregador,
conforme preleciona o art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). Assim, pertencendo ao empregador os riscos do negócio, não se
pode transferi-los aos empregados, nem mesmo em épocas de acentuadas
turbulência. Tais riscos sequer podem afetar os direitos dos trabalhadores,
embora possam influenciar a continuidade do contrato de trabalho, caso a
empresa encerre suas atividades (MARTINS, 2000).
Apesar disso, os órgãos midiáticos constantemente noticiam
reações das empresas à crise através de demissões em massa, corte de
custos, fechamento de estabelecimentos, dentre outras medidas extremas.
No entanto, o núcleo de uma crise global não repousa na fria
análise mercadológica, mas, sim, num aprofundamento das desigualdades
sociais, na equidistância da justiça social e no empobrecimento da classe
trabalhadora (SOUTO MAIOR, 2000). Diante dessas inseguranças do
mundo do trabalho, o desemprego se mostra como a ponta mais visível
desse verdadeiro iceberg (MATTOSO, 1996), de acordo com Jorge Luiz
Souto Maior (2000, p. 181):
O problema do desemprego deve ser tratado com eficiência.
Não se pode reduzi-lo a resultado de mera operação
matemática: menor custo, menor desemprego, pois que isso
representa um engodo, não elimina o problema e, por causa da
precarização das relações de trabalho, gera outro problema,
qual seja, o aumento do fosso (um verdadeiro abismo) entre
ricos e pobres, aumentando a cada dia o número de pobres.
É evidente que a estrutura atual não consegue absorver o
desemprego com o necessário equilíbrio, já que a atual lógica global

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 327
favorece o desemprego e a diminuição do rendimento daquele que ainda
consegue trabalho. Numa análise qualitativa do desemprego, nota-se
que os empregos mais qualificados se preservam para os segmentos
de renda mais alta, embora em dimensão insuficiente para permitir a
contínua mobilidade socioprofissional. O resultado disso se apresenta no
“aprofundamento da crise de reprodução social no interior do mercado
de trabalho” (ANTUNES, 2011, p. 122), conforme esclarece Ana Paula
Tauceda Branco (2007, p. 19):
É certo que a mencionada crise atingiu, em cheio, a regulação
das relações individuais e coletivas de trabalho humano,
propondo-lhe mutações, por vezes teratogênicas, em nome
da “modernização” de seus fundamentos elementares e “
quiçá “ das premissas constitucionais vigentes, na medida
em que atinge e afeta, violentamente, a proteção de direitos
fundamentais constitucionais.
Todavia, para Souto Maior, o consequente achatamento das
garantias sociais não se dá em virtude de crise, pois os lucros do capital
têm sido cada vez maiores, mas em virtude da concorrência internacional
(SOUTO MAIOR, 2000). Por sua vez, a mudança na natureza do trabalho
também tem contribuído para a insegurança econômica dos trabalhadores,
uma vez que muitos deles já não conseguem encontrar empregos com
jornada integral e duração indeterminada (RIFKIN, 1995). Disto,
pode-se concluir que o Direito do Trabalho acaba se tornando a seara
jurídica mais suscetível às transformações decorrentes do processo de
globalização (GODOY, 2003).

2 O DESEMPREGO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Na tradição keynesiana, a discussão conceitual sobre o desemprego se


limita a uma análise do desemprego involuntário, isto é, dos que oferecem
força de trabalho disponível aos salários vigentes e não encontram
aproveitamento. Esse conceito, em seu uso original, liga-se aos períodos
de declínio da demanda agregada, principalmente em países capitalistas
desenvolvidos, onde esse desemprego tem sido, em grande parte, de
caráter cíclico (HOFFMAN, 1980), quando, subitamente, a mão invisível
do mercado falha (SINGER, 1968).
O despedimento do obreiro, quando ocorre pela manifestação
volitiva lícita do empregador, representa, além dos números, uma profunda
significação social, apresentandose como forma de desequilíbrio social.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 328
Por meio dela, os empregados perdem seus empregos involuntariamente, e,
consequentemente, o único meio de subsistência. E quando o desemprego
perdura, pode haver consequências degradantes para quem se vê obrigado
a ficar parado (SINGER, 1968).
A morte da força de trabalho global está sendo interiorizada por
milhões de trabalhadores que experimentam sua própria morte individual,
diariamente, nas mãos de empregadores que visam exclusivamente ao
lucro e nas garras de um governo desinteressado. São aqueles que esperam
o bilhete azul e, então, são forçados a trabalhar em jornada parcial mediante
salário reduzido ou são empurrados para as filas do seguro-desemprego.
A cada nova indignidade, sua confiança e sua autoestima sofrem mais
um golpe; tornam-se descartáveis, depois irrelevantes e, finalmente,
invisíveis (RIFKIN, 1995).
Porém, considera-se prejudicial, inclusive para a sociedade,
que uma parte da população ativa encontre-se durante certo período
desempregada, já que na perspectiva macroeconômica o desemprego
também implica um alto custo, em razão da produção que poderia ter sido
efetivada (MACHÓN MORCILLO; TROSTER, 1994).
Numa análise globalizada, aponta Sérgio Pinto Martins (2000)
que a perda de empregos gera uma cadeia de danos, envolvendo o
trabalhador (diminuição do padrão de vida para sua família com a perda
da renda; sentimento de inutilidade, desprestígio, impotência e rejeição
social, podendo ocasionar problemas familiares e doenças; surgimento
de problemas sociais, como a criminalidade, por exemplo); a empresa
(pode representar a diminuição da produtividade; perda de trabalhadores
qualificados, treinados e capacitados; redução do consumo); e também o
Governo (aumentos de recursos destinados ao seguro-desemprego, gerando
a necessidade do aumento da carga tributária para esse fim; diminuição do
número de trabalhadores recolhendo sua parte da contribuição previdenciária,
havendo diminuição na arrecadação da citada exação; o desempregado
continua usando os benefícios que a saúde pública proporciona, sem estar
contribuindo; há queda da produtividade nacional e, consequentemente,
do Produto Interno Bruto (PIB); aumento da criminalidade e da miséria em
certas regiões; diminuição do crescimento econômico do país).
A partir desse diagnóstico, pode-se concluir que os trabalhadores,
além de seres humanos que devem ser respeitados e ter sua dignidade
protegida, possuem um alto valor para a economia, pois são, na essência,
os consumidores que o capitalismo precisa para se manter vivo. Ou seja, “a

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 329
produção necessita do consumidor e necessita, portanto, do trabalhador”
(SOUTO MAIOR, 2000, p. 160).

3 A PROTEÇÃO AO EMPREGO E AS DISPENSAS COLETIVAS


NO CENÁRIO JUSLABORAL BRASILEIRO

A partir de 1988, o direito à garantia do pleno emprego passou a


ser previsto no art. 7º da Constituição, cuja norma estabeleceu ser direito
dos trabalhadores urbanos e rurais a relação de emprego protegida contra
a despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar,
que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.
Pela atual ausência da lei complementar trazida pela norma, o
empregador tem, então, um direito potestativo de dispensar o empregado,
ao qual este não pode se opor, salvo as exceções contidas na lei e desde
que arque com as reparações econômicas pertinentes. Em regra, terá o
empregado direito a aviso-prévio, 13º salário proporcional, férias vencidas
e proporcionais, saldo de salários, saque do FGTS, indenização de 40%
e direito ao segurodesemprego. Tendo o empregado mais de um ano de
prestação laboral para o mesmo empregador, haverá necessidade, também,
de assistência perante o sindicato ou a Delegacia Regional do Trabalho
(§1º do art. 477 da CLT) (MARTINS, 2012).
Por isso no Brasil as empresas praticam dispensas coletivas
imotivadas à semelhança das individuais. Isto é, demitem por simples
manifestação unilateral e potestativa de vontade (PANCOTTI, 2009). O
espectro protetor do Direito do Trabalho em caso de dispensa coletiva
é, no entanto, mais amplo em comparação com as dispensas individuais
(MARTINS, 2012), conforme atesta José Antônio Pancotti:
Esta afirmação sustenta-se nos fundamentos do Estado
Democrático de Direito preconizados na Constituição
da República [...]. Neste espectro de princípios basilares
explícitos na Constituição da República encontram-se os
fundamentos para sustentar que as dispensas coletivas
de trabalhadores por empresas - sejam por inovações
tecnológicas, automações, crises econômicas etc., ou por
suspensão de estabelecimentos - não são imunes a uma
rede de proteção de trabalhadores atingidos, em razão de
seus impactos econômicos e sociais. Esta proteção deve ter
outros parâmetros além daqueles que o Direito do Trabalho
expressamente concede aos trabalhadores que sofrem
demissões individuais (PANCOTTI, 2009, p. 57-58).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 330
O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, ainda carece
de regulamentação satisfatória e específica de tal fenômeno desde
pelo menos a vigência da atual Constituição. Em decorrência disso, a
presidente Dilma Rousseff editou, em 6 de julho, a Medida Provisória nº
680/2015, que criou o Plano de Proteção ao Emprego (PPE) e, em 19 de
novembro, sancionou a Lei nº 13.189/2015, que o instituiu em definitivo
no país. O PPE permite a redução da jornada de trabalho em até 30%
de empresas que estejam enfrentando dificuldades financeiras, com
diminuição proporcional nos rendimentos dos trabalhadores participantes
do programa. Em contrapartida, 50% da perda salarial desses empregados
é ressarcida com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, sendo que
o limite para essa compensação é de 65% do valor do maior benefício
do Seguro Desemprego.
Pelo Plano, apenas as empresas integrantes ficam proibidas de
dispensar arbitrariamente, ou sem justa causa, os empregados que tiverem
sua jornada de trabalho temporariamente reduzida, mas somente enquanto
vigorar a inscrição no programa e, após seu término, durante o prazo
equivalente a um terço do período de adesão. Para Nelson Mannrich,
O programa é tímido, pois o Governo está mais preocupado
com quanto vai ganhar ou perder. É tímido, ainda, se
examinados outros instrumentos já em vigor [...]. A própria
Constituição, no art. 7º, autoriza redução salarial, mediante
negociação coletiva. Porque não os aperfeiçoar? No fundo,
a preocupação maior do Governo é com a corrida ao seguro-
desemprego, com prejuízos ainda maiores ao já combalido
sistema. Em um Estado democrático de direito, preocupado
com graves questões sociais como o desemprego, haveria
mais espaço para debelar os efeitos deletérios da crise
econômica, agindo de forma mais abrangente e enérgica.
Basta ver a experiência de outros países, em situações como
essas [...]. Como se vê, no lugar da timidez e da excessiva
burocracia, poderia o Governo ter mais criatividade e de fato
proteger o emprego contra a grave crise que assola nosso
país (MANNRICH, 2016, online).
E a ausência de legislação acerca do tema da dispensa arbitrária
coletiva já delicado por sua natureza econômica e social o torna ainda mais
complexo, trazendo inúmeras questões de difícil equacionamento. A primeira
delas refere-se ao próprio conceito de dispensa coletiva (FELTRE, 2012).
De modo geral, é aquela fundada em razões exteriores à relação
laboral, sendo decorrentes de motivos estruturais, tecnológicos ou

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 331
conjunturais. Disso decorre que, ao contrário do que se pensa, a dispensa
coletiva não é forma de dispensa individual plúrima, porque nesta, para
cada demitido, pode haver causa diferente e normalmente tem o propósito
de substituição do demitido por outro empregado. Na dispensa coletiva,
a causa é única e o propósito é a redução do quadro de pessoal da
empresa (PANCOTTI, 2009).
Outra questão diz respeito ao procedimento da negociação e ao
conteúdo do ajuste coletivo propriamente dito, que abrangem os critérios
fixados para a dispensa, de maneira a proibi-la ou a determinar certas
providências para sua apuração. Em diversas publicações sobre o assunto,
não se é discutida a impossibilidade da dispensa, apenas se busca um
meio de evitar a demissão de mais funcionários que o necessário. Muitos
também sustentam que, pelo fato de não existir norma expressa a limite,
a dispensa coletiva poderia ocorrer “livremente”, pois o julgador estaria
restrito a decidir nos limites da lei (e lei não existiria) (TEODORO, 2009).
Mas, para Orlando Gomes:
A reorganização da empresa que implique diminuição
de seus efetivos deve ser submetida a controle da
autoridade administrativa.
A interessada tem de comunicar, com certa antecedência,
o seu projeto de reorganização, informando o número
de empregados, com as respectivas qualificações, que
sobrarão e a data provável da dispensa coletiva. Não
importa que a redução do pessoal decorra de uma
reestruturação da empresa ou de fusão de duas sociedades ou
incorporação de uma por outra.
No processamento da dispensa coletiva, a ser autorizada,
devem ser levados em conta:
a) os fatores econômicos peculiares à empresa;
b) a situação geral de emprego no ramo de atividade e
na região interessada.
Justifica-se a redução do pessoal se a reestruturação é
economicamente necessária ou propícia à preservação ou à
expansão da empresa, desde que a situação geral do emprego
permita a pronta reabsorção dos empregados dispensados.
Na França, o órgão administrativo de controle pode opor-se a
despedidas em massa suscetíveis de causar grave perturbação
na vida econômica de uma localidade, ou distúrbios sociais.
A intervenção estatal tem sido preconizada até o extremo
de pretender-se que dependa de sua aprovação qualquer
reestruturação de empresa que implique despedida coletiva
e em convenções coletivas de trabalho têm sido introduzidas

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 332
cláusulas que estipulam a proibição de despedir antes
de esgotadas outras possibilidades de evitar a dispensa
coletiva, como, por exemplo, a redução do horário de
trabalho. Contrabalança-se a oposição estatal assegurando-
se ao empresário uma indenização em ressarcimento do
prejuízo que, nesse caso, sofre em proveito da coletividade,
justificando-se esse seu direito na socialização da reparação
das conseqüências danosas da ação administrativa.
É de se exigir, quando menos, uma comunicação à autoridade
administrativa do trabalho para pô-la de sobreaviso, não
somente para que tome as providências quanto ao desemprego
dos futuros dispensados, proporcionando-lhes, se for o
caso, subsídios ou encaminhando-os a outros empregos,
mas também para fazer sentir aos trabalhadores que serão
dispensados a presença do Estado e seu interesse em obviar as
respectivas situações de desemprego (GOMES, s.d, online).
O debate jurídico é, assim, tomado pelo debate econômico e com
este se confunde. Isto porque o desemprego é um problema, também, da
ciência do Direito e não simplesmente da Economia, motivo pelo qual a
atividade hermenêutica constitucional é responsável por criar elos entre o
espectro da lei e o das aspirações e das necessidades sociais (BRANCO,
2007), conforme elucida Ana Paula Tauceda Branco:
Desvelada a tendência predominante entre os intérpretes e
os aplicadores do Direito Constitucional do Trabalho com
relação a tal norma jurídica, dada à sua redação talvez
pouco apropriada, no aspecto hermenêutico constitucional,
tudo impele a que se entabule uma interpretação não mais
subserviente somente aos interesses econômicos que tanto
valorizam a suposta ineficácia e a inefetividade de normas
relativas aos direitos fundamentais sociotrabalhistas, mas, ao
contrário, ousa firmar uma interpretação que, reconhecendo
a indubitável força normativa da Carta Constitucional, seja
inspirada na conjugação do Princípio Constitucional da
Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio do valor social
do trabalho humano em seu desdobramento de Garantia
(Relativa) do Emprego, protegendo a relação de emprego
contra as dispensas arbitrárias ou sem justa causa ao invés de
deixá-las ao arbítrio do interesse econômico e empresarial,
fazendo letra morta dessas normas fundamentais através
de uma interpretação que não guarda qualquer coerência
com o atributo da regra legal em apreço dessa norma de
aplicabilidade imediata (BRANCO, 2007, p. 69).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 333
De acordo com José Antônio Pancotti (2009), enquanto se verifica
a falta de regramento, a matéria em discussão vem sendo suprida em
alguns acordos e convenções coletivas através da introdução de cláusulas
que estabelecem os mais variados critérios para a demissão coletiva,
inspirados geralmente nos costumes (por exemplo, Plano de Demissão
Voluntária - PDV) ou nas diretrizes da Convenção nº 158 da OIT1.
Também em decorrência da falta de sensibilização do Legislativo,
convém realçar, com muito maior propriedade, o papel que tem sido
desempenhado pelo exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho,
que tem sido muito mais sensível a essas questões, mormente no âmbito de
primeiro grau de jurisdição, que, como se sabe, é exercido principalmente
pelos Tribunais Regionais do Trabalho (COSTA, 1991). Logo:
O Poder Normativo da Justiça do Trabalho vem sendo
provocado justamente porque, não havendo regras jurídicas
no sistema, de alguma maneira os atores sociais se vêem
compelidos à criá-las caso a caso. As únicas maneiras de
criação de normas jurídicas trabalhistas, além da legislação,
são o contrato coletivo de trabalho e a sentença normativa.
O conflito coletivo, entretanto, deve ser uma última
instância, recorrível se a negociação e a legislação não forem
eficientes no caso concreto. Não é salutar deixar que tudo
seja resolvido pelo conflito direto ou intermediado de forças
(GONÇALVES JÚNIOR, 2007, online)
A partir disso, desde 2009, em julgamento de dissídio coletivo
acerca da despedida de mais de 4 mil trabalhadores por uma grande
empresa, em face de grave retração econômica, fixou a Seção de Dissídios
Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho (TST), por maioria dos
votos, a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a
dispensa em massa de trabalhadores. Esse julgamento teve o importante
condão de estabelecer a diferenciação jurídica efetiva entre dispensas
meramente individuais e dispensas coletivas. Nesse quadro, enfatizou o
contingenciamento constitucional dirigido às dispensas massivas, as quais
deveriam se submeter à negociação coletiva trabalhista, apta a atenuar os
drásticos efeitos sociais e econômicos dessa medida.

1
Mencionada Convenção veio a estabelecer alternativas de regulamentação para o
enfrentamento da crise, com a finalidade de regular o término da relação de trabalho por
iniciativa do empregador e estabelecer garantias contra a dispensa individual ou coletiva,
disciplinando-as de modo diverso. O documento foi ratificado pela Brasil em 4 de abril
de 1995, para vigorar doze meses depois; porém, foi denunciada pouco tempo depois, em
20 de novembro de 1996.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 334
4 O PAPEL DO PODER PÚBLICO

Cabe aqui a reflexão sobre a ordem econômica estabelecida na


Constituição de 1988 que, em seu art. 170, optou pelo modelo capitalista
de produção, também conhecido como economia de mercado (art.
219), cuja base está na apropriação privada dos meios de produção e na
iniciativa privada (art. 170). Porém, a análise dos quatro princípios da
ordem econômica previstos no caput do citado art. 170 - valorização do
trabalho humano, livre iniciativa, existência digna, conformidade com
os ditames da justiça social - apontam no sentido da ampla possibilidade
de intervir na economia, e não somente em situações absolutamente
excepcionais (MORAES, 2010).
Ademais, as normas jurídicas constitucionais sociotrabalhistas
são típicos direitos humanos fundamentais dos trabalhadores e, via
de consequência, verdadeiras cláusulas pétreas, conforme se extrai do
parágrafo 4º do art. 60 da CF. Disso advém, naturalmente, a instância da
juridicidade e da efetividade plena desses direitos, já que, nessa condição,
devem ser tidos e respeitados pelo Poder Público Estatal como direitos
equiparáveis aos direitos individuais, no que concerne à sua função
precípua e à sua estrutura jurídica no Sistema.
Tal estrutura jurídica sistêmica acolheu esses direitos com
destacada importância, tanto por meio das normas originariamente
nacionais como em função daquelas estrangeiras que ingressaram pelas
portas dos parágrafos 2º e 3º do art. 5º da Constituição Republicana.
Por esse motivo, tais direitos têm força e poder para serem
cobrados quanto à sua concretização por meio do implemento de Políticas
Públicas Estatais que os viabilizem em respeito, “especialmente, à
Doutrina da Aplicação Progressiva, adotada pelo Brasil e que determina
que o máximo de recursos disponíveis seja utilizado para concretizá-los”
(BRANCO, 2007, p. 64). Segundo Ana Paula Tauceda Branco:
Isso é afirmado em consonância com o objetivo de justiça
social da República brasileira, pautada na reserva do possível
ante o inegável e expresso interesse do Estado brasileiro em
prever ou destinar recursos financeiros aptos a concretizarem
a busca do pleno emprego. Afinal, trata-se de um princípio
estabelecido prioritariamente pelo constituinte originário, na
qualidade de objetivo fundamental (incisos I e III do art. 3º)
e de finalidade essencial da República, estando, portanto, o
Poder Público a ele subordinado e, corolariamente, obrigado

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 335
a efetuar despesas públicas coerentes com as opções políticas
e as metas assumidas democraticamente, até que seu fim seja
efetivamente alcançado (BRANCO, 2007, p. 64).
Os direitos sociotrabalhistas constituem autênticos direitos
fundamentais da pessoa humana no ordenamento jurídico. E é exatamente
nessa espécie de direitos que o Estado encontra sua própria razão
de ser, motivo pelo qual se deve, a respeito deles, ser defendida sua
inquestionável efetividade.
Nessa seara, apesar de a Constituição Federal prever uma série de
garantias a esta classe, os fatores políticos atrelados aos econômicos impedem
que estes direitos sejam fielmente efetivados. A constitucionalização,
advinda com o Estado Social, consubstanciou-se na importante intenção de
converter em direito positivo várias aspirações sociais, elevadas à categoria
de princípios constitucionais protegidos pelas garantias do Estado de Direito
(MORAES, 2010). Logo, também é do Poder Público que a sociedade
espera pelas medidas garantidoras de uma vida social de bem estar e justiça.
Todavia, com a intensificação do advento da globalização, houve
a implantação do projeto neoliberal. O fim do welfare state e o capital cada
vez mais volátil apresentaram para o mundo um novo tipo de Estado, o
Estado mínimo; um Estado fiscalizador que não consegue mais dar respostas
a muitas questões, dentre elas o desemprego (GONÇALVES, 2013).
E o enfraquecimento dos Estados nacionais leva à existência de
uma extensão considerável de zonas que deixam de ser regidas pelas normas
do Estado de direito. De um lado, o Estado deixa de exercer funções que são
tradicionalmente de sua responsabilidade e, de outro, renuncia a normatizar
setores de atividades novos ou se revela incapaz de realizar (ALCOFORADO,
1994). Essa negligência do Poder Público se dá, principalmente, quanto à
vigência e a garantia dos direitos econômicos e sociais.
Há de se observar que o valor do trabalho humano tem sido atrelado
às possibilidades econômicas e não em correspondência às necessidades
humanas. Por mais que sejam negados ou se pretenda enunciá-los como
convergentes, titulares de capital e de trabalho são movidos por interesses
distintos (GRAU, 2008). E, quando chamados a dar resposta ao desemprego
estrutural, os Estados soberanos tentam atrair o capital, oferecendo para
ele benesses como isenção de impostos e redução dos encargos sociais,
flexibilizando os direitos dos trabalhadores e quebrando a lógica do Direito
protetivo (GONÇALVES, 2013).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 336
Daí porque o capitalismo moderno, renovado, pretende a conciliação
e composição entre capital e trabalho. Essa pretensão de conciliação e
composição entre ambos é instrumentalizada através do exercício, pelo
Estado, de uma série de funções (GRAU, 2008), inclusive como poder
político institucionalizado, intermediando o processo de convivência
conflitual inerente à vida em sociedade (JUCÁ, 2000). O direito é a via que
a sociedade possui para viver em um sistema contributivo de solidariedade,
mas o Estado é o ente garantidor dessa ferramenta (VIALOGO, 2015).
Esta ideia vai de encontro ao Estado mínimo neoliberal, de existência e
viabilidade reais duvidosas, mais próximas da doutrina marxista clássica
do fim do Estado do que de qualquer outro pensamento (JUCÁ, 2000).
Nesse sentido, elucida Jorge Luiz Souto Maior:
Como efeito desse fenômeno, atualmente, os papéis se
invertem. A burguesia que antes defendia o direito, dada
a sua concepção dogmático-formalista, que permitia um
enorme campo de atuação para a consecução de seus
interesses particulares, hoje ataca o direito (de cunho
social), exatamente porque esse campo ficou sensivelmente
reduzido. Para a burguesia, antes, o que valia era o apego à
lei; hoje, o seu desrespeito, a sua desmoralização. O mesmo
ocorrendo no que se refere ao Estado. Daí advêm as noções
de flexibilização do direito trabalhista, um direito social por
excelência, e do Estado mínimo. Aqueles que se beneficiam
do direito social deveriam defender a ordem normativa,
mas, levados pela ideologia neoliberal, acabam, também,
considerando o direito um mal, assim como o Estado
(SOUTO MAIOR, 2000, p. 214).
Torna-se cristalino, então, que o papel do Poder Público no Brasil
precisa ser submetido a uma verdadeira transformação para se adequar
ao mundo dos fatos e ser um verdadeiro instrumento de justiça social,
de redistribuição de renda e de inclusão social de largas camadas de
trabalhadores que vivem hoje no limbo do desemprego.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da internacionalização da economia, a crise financeira


ocorrida em 2008 nos Estados Unidos da América surtiu efeitos
avassaladores nos mercados globais. Por consequência lógica, todos estes
fatores afetaram a empregabilidade em escala também global, causando

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 337
o cotejamento de dispensas coletivas, dignidade dos trabalhadores,
preservação de empregos e empresas.
No cenário gerado desde então, principalmente nos últimos anos,
o Brasil tem sentido uma piora desse quadro, repercutindo nocivamente
no mundo do trabalho. Assim, o assunto se apresenta atual e de especial
relevância, na medida em que os novos paradigmas ditados pela ordem
econômica mundial se instalam em face do atual processo de globalização,
refletindo nos países de economia dependente, como o Brasil, os seus
efeitos mais perversos, como, por exemplo, o agravamento do desemprego
e a piora na condição de vida dos trabalhadores.

REFERÊNCIAS

ALCOFORADO, Fernando. Globalização. São Paulo: Nobel, 1997.


ANTUNES, Ricardo Luis Coltro. O continente do labor. São
Paulo: Boitempo, 2011.
BRANCO, Ana Paula Tauceda. A colisão dos princípios constitucionais
no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
COSTA, Orlando Teixeira da. Direito coletivo do trabalho e crise
econômica. São Paulo: LTr, 1991.
FELTRE, Andrezza Nazareth. Negociação coletiva como pressuposto
para a dispensa em massa. 2012. 101 f. Dissertação (Mestrado) -
FUMEC, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte.
Disponível em: http://www.fumec.br/anexos/cursos/mestrado/dissertacoes/
completa/andrezza_nazareth_feltr e.pdf. Acesso em: 26 jun. 2016.
GODOY, Arnaldo Moraes. Globalização e Direito: a mundialização do
capital e seus efeitos no modelo normativo brasileiro. Argumentum
Revista de Direito, Marília, v. 3, p. 49-80, 2003. Disponível em:
http://www.unimar.br/biblioteca/publicacoes/pos/Direito_vol_03.pdf.
Acesso em: 04 set. 2016.
GOMES, Orlando. Dispensa coletiva na reestruturação da empresa
- Aspectos jurídicos do desemprego tecnológico. Disponível em:
http://blogdopancotti.blogspot.com.br/2012/08/dispensa-coletiva-na-
reestruturacaoda.html. Acesso em: 10 jun. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 338
GONÇALVES, Antônio Fabrício de Matos; KNEIPP, Bruno Burgarelli
Albergaria. Reestruturação produtiva, globalização e neoliberalismo:
reflexos o modelo brasileiro e suas consequências na legislação
trabalhista. Revista do Advogado, São Paulo, n. 121, a. XXXIII,
p. 18-30, nov. 2013.
GONÇALVES JÚNIOR, Mário. Demissão coletiva. Academia
Brasileira de Direito, 3 jan. 2007. Disponível em: http://www.abdir.com.
br/doutrina/ver.asp?art_id=869&categoria=Lei%20Pel%C3%83%C2%
A9. Acesso em: 16 ago. 2016.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988.
13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
HOFFMAN, Helga. Desemprego e subemprego no Brasil. 2. ed. São
Paulo: Ática, 1980.
JUCÁ, Francisco Pedro. Renovação do Direito do Trabalho: abordagem
alternativa à flexibilização. São Paulo: LTr, 2000.
LAMY, Marcelo. Metodologia da pesquisa jurídica: técnicas de
investigação, argumentação e redação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
MANNRICH, Nelson. Programa de Proteção ao Emprego (PPE):
timidez e burocracia. Disponível em: http://jota.uol.com.br/programa-de-
protecao-ao-emprego-ppe-timidez-eburocracia. Acesso em: 18 jul. 2016.
MARTINS, Sérgio Pinto. A continuidade do contrato de trabalho.
São Paulo: Atlas, 2000.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 28. ed.
São Paulo: Atlas, 2012.
MATTOSO, Jorge. Emprego e concorrência desregulada: incertezas e
desafios. In: OLIVEIRA, Carlos Alonso Barbosa de; MATTOSO, Jorge
Eduardo Levi. (Orgs.). Crise e trabalho no Brasil: Modernidade ou
volta ao passado? São Paulo: Scritta, 1996.
MOCHÓN MORCILLO, Francisco; TROSTER, Roberto Luis.
Introdução à economia. São Paulo: Makron Books, 1994.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25. ed.
São Paulo: Atlas, 2010.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 339
PANCOTTI, José Antônio. Aspectos jurídicos da dispensa coletiva no
Brasil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região,
Campinas, n. 35, p. 39-67, 2009.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos
níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São
Paulo: Makron Books, 1995.
SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Fundamentos do Direito
Coletivo do Trabalho nos Estados Unidos da América, na
União Europeia, no Mercosul e a Experiência Brasileira. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006.
SINGER, Paul. Desenvolvimento e crise. São Paulo: DIFEL, 1968.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento
de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.
TEODORO, Maria Cecília Máximo; SILVA, Aarão Miranda da. A
imprescindibilidade da negociação coletiva nas demissões em massa
e a limitação de conteúdo constitucionalmente imposta. Âmbito
Jurídico, Rio Grande, XII, n. 64, maio 2009. Disponível em: http://
www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=6082. Acesso em: 04 set. 2016.
VIALÔGO, Tales Manoel Lima; NEGREIROS, Guilherme Enei Vidal
de. A demissão coletiva no direito brasileiro. Revista JurisFIB, Bauru,
v. III, a. III, dez. 2012. Disponível em: http://www.revistajurisfib.com.br/
artigos/1359118566.pdf. Acesso em: 30 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 340
DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA NORMATIVA ÀS
AGÊNCIAS REGULADORAS: CUSTOS, CONTROLE E
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA

Renan Lucas Dutra Urban*

INTRODUÇÃO

A delegação de competência normativa às agências reguladoras


implica atribuir a tais entes o poder de decidir não apenas questões
factuais, mas também problemas de moralidade política. Esse ponto,
apesar de subentendido na discussão sobre o déficit democrático das
agências reguladoras e de outras entidades administrativas, dotadas de
poder normativo1 não costuma ser explorado na literatura jurídica.
A afirmação de que a burocracia reguladora também faz escolhas
morais fere a leitura tradicional da teoria da separação dos poderes, que
não concebe a possibilidade de que outras instituições, senão as político-
majoritárias, profiram decisões com conteúdo político. Além disso,
destoa da corrente teórica que, ao idealizar as funções de fiscalização e
de ordenação das agências, concebe-as como entes politicamente neutros,
encarregados de emitir juízos tão somente técnicos acerca dos problemas
relativos à regulação.
O objetivo deste trabalho é discutir a possibilidade de que as
agências reguladoras corpos burocráticos não majoritários e pouco
responsivos à opinião pública façam escolhas valorativas, no contexto
do Estado Democrático de Direito. O presente estudo tem a seguinte
estrutura. No item 2, analisa-se a atribuição de competência normativa às
agências reguladoras como um ato de delegação, ou decisão de segunda
ordem. Nesse passo, analisa-se um primeiro problema relacionado à
delegação: os custos associados à decisão final. O item 3 aborda o tema do
controle das normas editadas pelas agências reguladoras. A partir da ideia
de capacidade institucional relativa, discute-se o problema da definição
da intensidade do controle sobre a atividade normativa regulatória. No
item 4, por fim, investiga-se a legitimidade da burocracia reguladora para
*
Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Campus de Franca.
1
No Direito Público brasileiro, a delegação legislativa é objeto de discussão desde o
período do Império. Os debates sobre o poder normativo de órgãos da Administração Pública,
assim, não se circunscrevem às agências reguladoras, embora tenham se intensificado a
partir da criação dessas entidades. Cf. VEIGA DA ROCHA, 2004, p. 175-195.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 341
deliberar sobre direitos fundamentais, na perspectiva da teoria do diálogo
entre as instituições.

1 DELEGAÇÃO LEGISLATIVA E CUSTOS

As agências reguladoras independentes surgiram, no Brasil, ao


longo da década de 90, no contexto das reformas estruturais por que passou o
Estado, visando ao fortalecimento de seu papel regulador da economia. Ao
transferir a responsabilidade da provisão direta de determinados serviços
de infraestrutura para o setor privado por intermédio da alienação de
empresas estatais e de concessões de serviços públicos o Estado brasileiro,
seguindo a tendência observada, a partir dos anos 80, no Reino Unido, na
Europa Ocidental, na Ásia e na América Latina (PRADO, 2005, p. 125),
criou entes de regulação ou lhes conferiu maior autonomia, reforçando os
mecanismos de intervenção indireta no domínio econômico.
O advento das agências reguladoras importou uma flexibilização
na doutrina clássica de separação dos poderes. Dotadas de autonomia
decisória, as agências de regulação exercem uma capacidade normativa de
conjuntura, instrumental à sua tarefa de disciplinar atividades econômicas
e serviços de relevante interesse social. Paralelamente às instâncias
legislativas, assim, apresentam-se como relevantes fóruns de decisão,
expedindo normas que inovam a ordem jurídica e restringem diretamente
os direitos dos administrados (VEIGA DA ROCHA, 2004, p. 29).
A atribuição de competência normativa à burocracia reguladora
pode ser vista como um ato de delegação, isto é, uma decisão de segunda
ordem2 por meio da qual uma instituição o Poder Legislativo busca minimizar
os custos3 associados à resolução de problemas complexos, transferindo
o ônus da decisão final para outra instituição a agência de regulação,
idealmente capaz de oferecer melhores respostas para tais problemas.
Nesse sentido, pode-se dizer que a delegação de competência
normativa às agências visa a um incremento de racionalidade e de
2
Decisões de segunda ordem são meta-decisões, isto é, decisões sobre como
decidir. Como afirmam Sunstein e Ullmann-Margalit (1998, p. 14), tais decisões
resultam do reconhecimento de dois fatos: o de que decisões de primeira ordem podem
estar erradas e o de que alcançar decisões de primeira ordem corretas pode ser algo
extremamente difícil ou custoso
3
O termo “custos” remete fundamentalmente à ideia de limitação de conhecimento de
uma autoridade para solucionar determinado problema. Abrange, de forma simplificadora,
duas categorias: os “custos de erro”, relacionados ao número e à magnitude dos
equívocos cometidos pelo decisor, e os “custos de decisão”, concernentes à necessidade
de que recursos escassos, como tempo e dinheiro, sejam despendidos na obtenção das
informações demandadas para a solução do problema. Cf. SUNSTEIN, 1999, p. 13.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 342
eficiência na regulação, assentando-se, basicamente, em dois pressupostos:
o de que o processo legislativo, em razão de seu tempo de maturação e da
sua não especialização, é incapaz de atender às demandas conjunturais
que emanam dos sistemas econômico e político-burocrático; e o de que
as agências reguladoras, em função de sua autonomia reforçada e de sua
expertise técnica, estão mais bem capacitadas para solucionar os problemas
complexos relacionados a esses sistemas (LOPES, 2008, p. 236-237).
Em termos gerais, a delegação implica, à primeira vista, uma
decisão de baixos custos tanto para o delegante cujo trabalho consiste em
exportar, para um terceiro, o ônus da decisão final como para o delegado
em face de suas melhores condições para resolver certo problema. Nesse
sentido, dado o binômio ônus ex ante ônus ex post, a delegação poderia ser
classificada como um caso especial de estratégia de segunda ordem do tipo
baixo baixo (SUNSTEIN; ULLMANN-MARGALIT, 1998, p. 22). Mas,
como toda estratégia decisória, também apresenta dificuldades.
A primeira dificuldade relacionada à delegação diz respeito aos
custos da decisão final. O ônus de decidir determinado problema pode
se mostrar extremamente pesado, à vista das limitações epistêmicas de
quem recebe a delegação. Nesse caso, os custos associados à tomada de
decisão se elevam, e a delegação se apresenta não como uma decisão de
segunda ordem do tipo baixo baixo, mas do tipo baixo alto (SUNSTEIN;
ULLMANN-MARGALIT, 1998, p. 20).
O controle dos atos normativos regulatórios é a chave para a
compreensão desse problema. As agências reguladoras não possuem a
última palavra sobre os assuntos relativos à regulação. Como todo ato
administrativo geral, os atos normativos regulatórios estão sujeitos a dois
tipos de controle: o judicial e o político (SUNDFELD, 2002, p. 26)4. O
controle exercido pelo Poder Judiciário decorre da regra da inafastabilidade
de jurisdição, prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Já o controle político é exercido sobretudo pelo Poder Legislativo, de duas
formas: (a) pela edição de decreto legislativo pelo Congresso Nacional,
4
Outra forma de controle sobre os atos normativos regulatórios é a realizada por
atores da sociedade civil, mediante participação nos procedimentos administrativos. As
leis que criaram as agências reguladoras preveem diversos mecanismos de participação
democrática, como as audiências públicas, as consultas públicas e os conselhos consultivos.
Sem prejuízo da necessidade de aperfeiçoamento destes mecanismos, a fim de propiciar
uma participação mais efetiva dos cidadãos, é certo que eles configuram um importante
canal de comunicação entre os atores da sociedade civil e os agentes reguladores,
permitindo, em maior ou menor medida, a influência direta daqueles na formação das
decisões tomadas por estes. Para uma análise empírica do funcionamento dos mecanismos
de participação pública no âmbito da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL),
cf. MATTOS, 2006, p. 267-300.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 343
quando tais atos exorbitarem do poder regulamentar ou dos limites da
delegação legislativa, nos termos do artigo 49, inciso V, da Constituição
Federal; ou (b) pela edição de uma lei em sentido formal, de maneira
a limitar a competência da agência reguladora para deliberar sobre
a questão legislada.
Qualquer mecanismo de controle tem como objetivo principal
corrigir os erros contidos nas decisões controladas. Assim, se determinado
ato normativo regulatório veicula um erro, espera-se que a revisão
judicial ou legislativa seja capaz de eliminá-lo. A objeção dos custos de
erro associados à tomada da decisão final pelas agências, dessa maneira,
é enfraquecida pela possibilidade de que os atos normativos regulatórios
sejam controlados por outras instituições.
A segunda dificuldade relacionada à delegação, porém, decorre
exatamente do controle das decisões finais. Trata-se do problema da
assimetria de informações, que, no contexto do controle das normas
regulatórias, se traduz - como se discutirá a seguir - nas melhores
condições das agências para decidir uma questão, em comparação com as
dos órgãos controladores.

2 CONTROLE DOS ATOS NORMATIVOS REGULATÓRIOS E


CAPACIDADE INSTITUCIONAL

Os atos normativos regulatórios envolvem, frequentemente,


questões técnicas complexas, isto é, problemas cuja compreensão e solução
exigem o domínio de conhecimentos científicos não triviais. As condições
das agências reguladoras para decidir tais problemas são garantidas por
seus dirigentes e quadros de assessoria, detentores, em tese, de um saber
técnico especializado e familiarizados com os assuntos atinentes ao setor
regulado (VERÍSSIMO, 2002, p. 226).
A complexidade técnica peculiar às normas editadas pelas
agências reguladoras suscita a questão das limitações epistêmicas das
instituições encarregadas de controlá-las. Ora, se a principal razão para
a delegação, enquanto decisão de segunda ordem, são as condições do
delegado para formular as melhores respostas para certas questões, então
subsiste o problema dos custos associados à tomada de decisão pelo
delegante, quando este - ou outro órgão, dotado de recursos equivalentes -
é incumbido de controlar e revisar as decisões proferidas por aquele.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 344
Na literatura jurídica, é frequente a menção às limitações dos órgãos
judiciais para controlar a atividade normativa das agências reguladoras.
Tais limitações decorreriam não apenas da falta de conhecimento técnico
especializado dos membros do Poder Judiciário, em geral, para decidir
as questões relativas à regulação, mas também da escassez de tempo e de
recursos financeiros desses órgãos para buscar e processar as informações
necessárias para a tomada de decisão.
Há grande discussão, além disso, acerca do impacto das decisões
judiciais sobre a política regulatória. Fala-se, nesse contexto, em elevação
do risco de incoerência regulatória, produto de decisões judiciais
segmentadas e excessivamente intrusivas. Por exemplo, a interferência dos
órgãos judiciais na definição do referencial teórico que orienta as medidas
regulatórias alça-os à posição de árbitros de querelas entre teorias e/ou
métodos científicos, o que redunda em problemas de déficit de legitimidade
tanto do ponto de vista da Ciência como do Direito (SCHUARTZ, 2009,
p. 12-13). Porém, mais do que isso, diz-se que tal intervenção prejudica
a coerência regulatória, na medida em que incide sobre uma estratégia
decisória adotada pela autoridade reguladora como forma de conferir
eficiência e racionalidade à sua atuação (JORDÃO, 2016, p. 151-154).
Outra preocupação diz respeito às consequências da atuação
judicial para a dinâmica regulatória. As atividades objeto de regulação
exigem prestações normativas expeditas, quase imediatas. A lentidão e o
formalismo, que tradicionalmente caracterizam os procedimentos judiciais,
comprometeriam, dessa maneira, a eficácia das normas regulatórias. Além
disso, argumenta-se que a correção ou a redução dos erros associados às
decisões normativas das agências reguladoras, por meio da revisão judicial,
importa, no limite, a paralisação ou a ossificação da ação regulatória.
Nesse sentido, os ônus impostos por decisões judiciais muito exigentes
desencorajariam a produção de normas jurídicas pelas agências, dadas as
restrições de tempo e de recursos dessas entidades (BREYER, 1986, p.
391-393; JORDÃO, 2016, p. 158-163).
A expertise técnica da burocracia reguladora atua, dessa maneira,
como um argumento em favor da adoção de uma postura de deferência
pelos órgãos controladores. Todavia, a ideia de que as agências são mais
aptas para resolver os problemas relativos à regulação subentendida, como
visto, na defesa da alocação de ampla competência normativa para esses
entes - veicula uma questão empírica que pode ser testada. Marcos Paulo
Veríssimo (2002, p. 225), por exemplo, observa que “[...] as agências

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 345
não são propriamente e sempre dirigidas por agentes públicos dotados
de especial capacitação técnica para as matérias que se colocam para
seu exame”. Pelo contrário - prossegue o autor, os órgãos de direção das
agências tendem a ser ocupados por não especialistas nas matérias técnicas
atinentes à regulação, até como forma de garantir algum pluralismo no
âmbito dessas entidades (VERÍSSIMO, 2002, p. 225).
Em termos gerais, a capacidade de uma instituição para decidir
determinada questão é sempre relativa, uma vez que suscetível de ser
graduada em função das habilidades e limitações concretas das outras
instituições também autorizadas a decidi-la5. No contexto específico
do controle dos atos normativos regulatórios, é possível que um órgão
controlador reúna condições de formular respostas apropriadas para
determinado problema atinente à regulação, em comparação com aquelas
sob as quais a agência atua6. A decisão sobre a intensidade do controle de
uma medida regulatória, implica uma análise institucional comparativa,
isto é, a consideração não apenas da capacidade da agência reguladora para
resolver as questões técnicas relacionadas à regulação, mas da capacidade
do órgão controlador para resolver as mesmas questões.
Os atos normativos, ademais, não possuem o mesmo grau de
complexidade, nem decidem apenas problemas técnicos. Como observa
Vermeule (2009, p. 2236), o processo normativo regulatório pressupõe dois
estágios, um relacionado a questões sobre fatos e outro relativo a questões
sobre valores. As questões sobre fatos envolvem a determinação de relações
de causalidade e a realização de predições (prognósticos). Demandam,
assim, o recurso às disciplinas científicas pertinentes, fornecedoras das
justificativas que suportam a pretensão de veracidade das proposições
teóricas e empíricas relacionadas a tais questões. Já as questões sobre
valores envolvem escolhas morais, e decorrem da necessidade de que os
agentes reguladores, tendo em vista a realização de determinados fins,
procedam a uma ponderação entre os princípios ou interesses concorrentes.
Desse modo, a análise institucional comparativa, que orienta
a decisão sobre a intensidade do controle, implica não apenas avaliar a
capacidade das instituições envolvidas - agência reguladora e órgão
controlador - para lidar com as questões factuais decididas pela norma
regulatória, mas também a capacidade dessas instituições para lidar com
5
No mesmo sentido, cf. BRADY, 2009, p. 135 e LIMA, 2012, p. 129.
6
Nesse ponto, a ideia de capacidade institucional relativa, aqui adotada como premissa,
coincide com o argumento das capacidades institucionais, na forma como desenvolvido
por Cass Sunstein e Adrian Vermeule (2002) e descrito por Diego Werneck Arguelhes e
Fernando Leal (2011).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 346
as questões valorativas solucionados pela norma. Ou seja, ela importa
examinar os recursos e os limites concretos das instituições para apreciar
tanto os problemas de perícia quanto os de moralidade política subjacentes
ao ato controlado7.

3 BUROCRACIA REGULADORA E DELIBERAÇÃO SOBRE


DIREITOS FUNDAMENTAIS

A constatação, de certa forma trivial, de que a burocracia


reguladora também profere decisões políticas, resolvendo questões morais,
suscita um terceiro problema relativo à delegação: o da legitimidade da
transferência do ônus da decisão final. Nesse ponto, é frequente a menção
a uma ilegitimidade da atividade normativa das agências, seja pela
ausência de investidura popular de seus dirigentes, seja por uma vedação
genérica, no texto constitucional, de delegação legislativa, seja, ainda, por
uma incompatibilidade entre o desempenho de função normativa por tais
entidades e a doutrina da separação dos poderes8.
O problema da legitimidade da delegação de competência
normativa às agências reguladoras é geralmente pensado em termos binários:
ou bem se considera que a atividade normativa regulatória é democrática
ou bem se considera que ela é antidemocrática. A caracterização do ato
de delegação como uma decisão de segunda ordem, no entanto, permite
visualizar tal problema como uma questão de grau.
Se, como assinalado, a delegação visa à produção de melhores
decisões, mediante transferência do ônus de solucionar determinados
problemas para um terceiro, idealmente mais bem capacitado para lidar
com tais problemas, então é possível considerar que a legitimidade da
delegação está também condicionada à qualidade das decisões finais.
Nesse sentido, as agências reguladoras, que recebem a delegação do Poder
Legislativo, podem ser consideradas tanto mais legítimas para editar
normas jurídicas e, por conseguinte, para promover e restringir direitos
dos administrados quanto maior for a qualidade de suas decisões.
A defesa substantiva da legitimidade da burocracia reguladora
para decidir problemas envolvendo direitos remete, de certa forma, à
7
Referimo-nos, aqui, a duas funções morais das regras jurídicas, em geral: a de coordenação,
correspondente à solução de problemas de incerteza e desacordo sobre questões de
moralidade política; e a de perícia, correspondente à solução de problemas de incerteza e
desacordo sobre questões factuais. Cf., no ponto, ALEXANDER, 1999, p. 531-536.
8
A propósito dos argumentos contrários à delegação legislativa, cf. VEIGA DA
ROCHA, 2004, p. 12-17; MATTOS, 2006, p. 206-208.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 347
teoria do diálogo institucional, desenvolvida, em suas diferentes vertentes,
especialmente pelos autores preocupados em discutir a adequação do
controle judicial de constitucionalidade em face do ideal de democracia.
Como visto, as agências reguladoras não possuem a palavra final
sobre as matérias relativas à delegação. Os atos normativos regulatórios,
na qualidade de atos administrativos, sujeitam-se ao exame de legalidade
realizado pelo Poder Judiciário. Além disso, a atribuição de competência
normativa a essas autarquias não implica abdicação, pelo Poder Legislativo,
da responsabilidade de deliberar sobre as matérias atinentes à delegação.
As normas editadas pelas agências, desse modo, também se submetem aos
mecanismos legislativos de controle e revisão dos atos normativos.
Apesar disso, a teoria do diálogo institucional, na medida em
que pressupõe a falibilidade das instituições e vincula a legitimidade de
uma autoridade para decidir questões de moralidade política ao conteúdo
das decisões por ela proferidas, oferece uma perspectiva enriquecedora
para se compreender a legitimidade democrática da burocracia reguladora
para editar normas jurídicas e, como consequência inevitável, para
sopesar princípios constitucionais9. A teoria do diálogo institucional, na
versão desenvolvida por Conrado Hübner Mendes, adota um critério
contextual e comparativo de aferição da legitimidade das instituições
para deliberar sobre questões de moralidade política: o desempenho
deliberativo, regulado pela ideia de razão pública (MENDES, 2008, p.
211-212)10. Quanto maior a qualidade do processo de deliberação pública,
maior o grau de legitimidade da decisão. Nesses termos, pode-se dizer
a legitimidade democrática das agências reguladoras para deliberar
sobre direitos fundamentais varia conforme o desempenho deliberativo
alcançado por essas entidades.Na moldura das teorias do diálogo, não há
lugar para monólogos: as instituições têm responsabilidades deliberativas,
estão em constante interlocução, buscam a persuasão e podem desafiar-se

9
No contexto da ciência política, as teorias do diálogo, em geral, quase sempre se
localizam debaixo do amplo arco da democracia deliberativa. A construção teórica da
democracia deliberativa é feita por uma literatura vasta e diversificada, sendo muitas
as versões de seu conceito. Roberto Gargarella (2006, p. 239), por exemplo, propõe um
conceito de democracia deliberativa com base em duas variáveis: a tomada de decisões
após um amplo debate coletivo e a possibilidade de participação e intervenção neste
processo decisório de todos quantos possam ser afetados pela decisão. Já Joshua Cohen
(2005, p. 346) vincula a noção de uma democracia deliberativa ao ideal de justificação.
Para ele, o conceito de democracia deliberativa está enraizado na ideia de fundamentação
da decisão coletiva, somente levada a efeito no interior de um processo que privilegia a
argumentação pública e o intercâmbio de razões entre cidadãos iguais.
10
Cf., acerca da ideia de razão pública, RAWLS, 2000, p. 262-306.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 348
mutuamente11. Daí a relevância da deliberação, que, ao estimular a criação
de uma cultura de maior densidade argumentativa, pode levar, ao longo do
tempo, à formulação de melhores soluções para os dilemas constitucionais
(MENDES, 2008, p. 218-222). O diálogo institucional veicula, assim,
um efeito epistêmico positivo, relacionado à redução dos custos de erro
associados à tomada de decisão.
A atribuição de competência normativa às agências reguladoras
visa ao oferecimento das melhores respostas para os problemas relativos
à disciplina de setores econômicos e de serviços de relevante interesse
social. A transferência do ônus de decisão para agentes não eleitos, no
entanto, suscita o problema da legitimidade democrática (SUNSTEIN;
ULLMANN MARGALIT, 1998, p. 24). Neste trabalho, defende-se a ideia
de que as agências reguladoras possuem legitimidade para exercer uma
capacidade normativa de conjuntura desde que os atos por elas expedidos
atendam a determinado parâmetro de correção e eficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As agências reguladoras e os órgãos judiciais e legislativos,


em razão de suas características específicas, analisam os problemas que
lhes são submetidos por prismas diversos. Desempenham diferentes
funções e perseguem distintos objetivos e, por isso, dispõem de diferentes
recursos para lidar com certos problemas. Possuem, em suma, distintas
competências, indicativas de suas singulares capacidades institucionais.
Tanto as agências reguladoras como os órgãos controladores podem
recorrer a meios de capacitação para a obtenção das informações necessárias
para a tomada de decisão. Um dos meios de capacitação que levam em
consideração a expertise de uma instituição em determinado assunto é a
interação deliberativa entre os órgãos estatais, ou diálogo institucional. A
interlocução entre as instituições, no interior dos procedimentos decisórios
ou como reação a determinada decisão, proporciona ao decisor o acesso
a informações que não dizem respeito diretamente a sua competência
institucional. Além disso, permite que ele perceba as diferentes perspectivas
ou pontos de observação existentes acerca do problema a ser solucionado.
No contexto específico do controle dos atos normativos expedidos
pelas agências reguladoras, o diálogo pode propiciar o intercâmbio, entre
11
O reconhecimento da legitimidade para reagir à decisão tomada por uma instituição
não resulta em atribuição de poder para desobedecer esta decisão. Cf., no ponto,
MENDES, 2008, p. 213.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 349
tais autarquias e os órgãos controladores, tanto dos argumentos empíricos
e teóricos relativos aos aspectos factuais da medida regulatória controlada
como dos argumentos jurídicos e políticos concernentes às questões
valorativas solucionadas pela medida. Tendencialmente, assim, enseja que
as eventuais assimetrias de informações existentes entre essas instituições
sejam superadas ou diminuídas, mediante aprendizado recíproco.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Larry. “With me, it's all or nuthin''": formalism


in law and morality. University of Chicago Law Review, n.
66, p. 530-565, 1999.
ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando. O argumento das
“capacidades institucionais” entre a banalidade, a redundância e o
absurdo. Direito, Estado e Sociedade, n. 38, p. 6-50, jan./jun. 2011.
BRADY, Alan David Patrick. A structural, institutionally sensitive
model of proportionality and deference under the Human Rights
Act 1998. 325 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – The London School of
Economics and Political Science. Londres, 2009.
BREYER, Stephen. Judicial review of questions of law and policy.
Administrative Law Review, n. 38, p. 363-398, 1986.
COHEN, Joshua. Deliberation and democratic legitimacy. In:
MATREVERS, Derek; PIKE, Jon (Orgs.). Debates in contemporary
political philosophy: an anthology. New York: Routledge: Open
University, p. 342-360, 2003.
GARGARELLA, Roberto. Should deliberative democrats defend
the judicial the judicial enforcement of social rights? In: BESSON,
Samantha; MARTÍ, José Luis (orgs.). Deliberative democracy and its
discontents. Aldershot: Ashgate, p. 233-252, 2006.
JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública
complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do
controle. Malheiros e SBDP: São Paulo, 2016.
LIMA, Rafael Scavone Bellem de. Otimização de princípios,
separação dos poderes e segurança jurídica: o conflito entre regra
e princípio. 157 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de
Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 350
LOPES, Othon de Azevedo. Princípios jurídicos e regulação. 251 f.
Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo, 2011.
MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O novo Estado regulador no Brasil:
eficiência e legitimidade. São Paulo: Singular, 2006.
MENDES, Conrado Hübner. Deliberação, separação dos poderes e
direitos fundamentais. 267 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2008.
PRADO, Mariana Mota. Agências reguladoras, independência e
desenho institucional. Bovespa, Duke Energy, Ipiranga e Instituto
Tendências: São Paulo, 2005.
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo.
2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
SCHUARTZ, Luis Fernando. Interdisciplinaridade e adjudicação:
caminhos e descaminhos da ciência do direito. 2009. Disponível
em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2174.
Acesso em: 18 abr. 2016.
SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. In:
SUNDFELD, Carlos Ari. (coord). Direito administrativo econômico.
São Paulo: Malheiros, 2002.
SUNSTEIN, Cass R; ULLMANN-MARGALIT, Edna. Second
order decisions. John M. Olin Law & Economics Working Paper,
n. 57, p. 1-43, 1998.
SUNSTEIN, Cass R; ULLMANN-MARGALIT, Edna. Must formalism
be defended empirically? John M. Olin Law & Economics Working
Paper, n. 70, p. 1-42, 1999.
SUNSTEIN, Cass R; ULLMANN-MARGALIT, Edna.. O
constitucionalismo após o New Deal. In: MATTOS, Paulo Todescan
Lessa (coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-
americano. São Paulo: Ed. 34, 2004.
VEIGA DA ROCHA, Jean Paul Cabral. A capacidade normativa de
conjuntura no direito econômico: o déficit democrático da regulação
financeira. 204 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004.
VERÍSSIMO, Marcos Paulo. Aproximação sistemática ao controle
judicial das agências de regulação econômica no Brasil. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2002.
VERMEULE, Adrian. The parliament of the experts. Duke Law
Journal, n. 8, v. 58, p. 2231-2275, maio 2009.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 352
EIXO 3:

TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A TUTEA E


EFETIVIDADE DOS DIREITOS DA CIDADANIA
BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA
COMO DIREITO INDIVIDUAL HOMOGÊNEO DE
NATUREZA ASSISTENCIAL E SUA TUTELA POR MEIO
DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Ana Cristina Alves de Paula*


Henrique Lima de Almeida**

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa as possibilidades da Ação Civil Pública


(ACP) em matéria de benefícios assistenciais, restringindo-se aos aspectos
concernentes à Seguridade Social. Com efeito, a utilização da ACP no
âmbito do Poder Judiciário brasileiro vem mostrando alguns avanços,
isto é, abrindo-se para a inclusão de novas matérias de tutela jurisdicional
coletiva (MARCO; SANDRIN, 2011), vez que os direitos de terceira
geração têm sido largamente influenciados num contexto internacional
que traça um papel decisivo na concepção desses novos direitos. Neste
contexto, recentes decisões do STF e do STJ (que admitiram a revisão
de benefícios previdenciários e a implementação de políticas públicas de
saúde em sede de ACP) são vanguardistas, vez que consideraram a matéria
como de direito individual homogêneo por haver relevante interesse
social. Essa ampliação se revela fruto de uma interpretação evolutiva dos
direitos sociais e tendente à proteção jurisdicional mais efetiva destes que
são considerados direitos de cidadania. Todavia, ainda não há precedente
nas cortes superiores admitindo ACP no caso do benefício de prestação
continuada, o que causa estranheza, pois, é justamente nos casos de
benefícios assistenciais que a atuação por meio de substituição processual
se faz mais necessária (MARCO; SANDRIN, 2011).
No campo da assistência social, as Ações Civis Públicas não têm
prosperado nas cortes superiores até o presente momento, encontrando
séria resistência quanto à possibilidade de reconhecimento do direito
a um salário mínimo à pessoa com deficiência ou ao idoso carente
(MARCO; SANDRIN, 2011).
Inegável é que a proteção dos direitos individuais homogêneos
no caso acima citado configura defesa de interesse social relevante, pois o
*
Mestranda em Direito – PPGD Unesp Campus Franca
**
Mestrando em Direito – PPGD Unesp Campus Franca

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 355
benefício de prestação continuada consiste em uma garantia constitucional
que independe de contribuição à Seguridade Social. Neste passo, a usual
resistência do INSS em cumprir a obrigação que lhe impõe o art. 203, inc.
V, da CF/88, implica em flagrante violação aos direitos fundamentais dos
idosos e das pessoas com deficiência assegurados tanto pelo art. 20 da
Lei n.º 8.742/93 quanto pelo art. 4° do Dec. n° 6.214/07, o que enseja a
legitimidade ativa do Ministério Público para propor uma ACP na defesa
dos interesses indisponíveis das pessoas anteriormente mencionadas.
Por isso, confirmar se determinado direito social de caráter
assistencial pode ser reivindicado judicialmente e em que medida o Poder
Judiciário pode determinar que os demais poderes estatais promovam
esses direitos é questão crucial no funcionamento do constitucionalismo
contemporâneo (MARCO; SANDRIN, 2011).
Objetiva-se apresentar alguns aspectos do direito brasileiro que
dizem respeito à tutela dos direitos individuais homogêneos no âmbito da
Seguridade Social por meio da Ação Civil Pública, aprofundando-se no
entendimento do conceito daqueles direitos e das funções e finalidades daACP.
Defender-se-á que cumpre ao Poder Judiciário, por meio do tão conhecido
sistema de freios e contrapesos, corrigir a omissão do Poder Executivo e
atribuir, no caso concreto, o que foi garantido constitucionalmente no caso
específico do benefício de prestação continuada, permitindo que os idosos
e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade e risco social
possam manter um padrão mínimo de vida, resguardando a sua dignidade.
Adotar-se-á o método de levantamento por meio da técnica de
pesquisa bibliográfica, utilizando-se de livros, artigos de periódicos e
de demais publicações científicas nacionais pertinentes à temática como
principal fonte de embasamento para a presente investigação. Ademais,
serão também pesquisadas jurisprudências dos Tribunais Superiores (STF
e STJ) e da segunda instância da Justiça Federal.

1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A TUTELA DOS DIREITOS


INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

Cristhian Magnus de Marco e Katiane Sandrin lecionam que a


justicialização dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos
começou a ganhar destaque a partir do momento em que a tutela de tais
interesses, por meio de um processo individual, mostrou-se insuficiente
(MARCO; SANDRIN, 2011, p. 1). O Código de Processo Civil vigente,

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 356
em seu art. 18, expressa que ninguém poderá pleitear, em nome próprio,
direito alheio, salvo quando autorizado por lei. A exceção prevista no
dispositivo supracitado é a legitimação extraordinária (art. 18, in fine, do
CPC), que ocorre quando a lei especialmente concede a faculdade para que
alguém, em nome próprio, exerça ação em favor do direito de terceiro(s).
Contudo, a legitimação extraordinária não é suficiente para regular
direito ou interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo, porque
o Código de Processo Civil não dispõe de tais mecanismos processuais
(MARCO; SANDRIN, 2011, p. 4). Assim, se uma pessoa ou entidade
visasse propor uma demanda com o objetivo de tutelar um direito ou
interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo, com base unicamente
no Código de Processo Civil, o processo seria forte candidato a ser extinto
sem julgamento do mérito, diante da ausência de uma das condições da
ação (art. 485, VI, do CPC).
Por isso, a Lei n° 7.347/1985, também denominada Lei da Ação
Civil Pública (LACP), regulamentou, por óbvio, a Ação Civil Pública,
a qual simboliza um marco para a ampliação do acesso à justiça, vez
que abriu a possibilidade de se postular em juízo a tutela dos interesses
metaindividuais, entendidos estes como aqueles que transcendem a
esfera meramente individual: os direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos (MARCO; SANDRIN, 2011, p. 4). Ela densificou o princípio
da economia processual, haja vista sua tendência a evitar decisões
contraditórias dos órgãos jurisdicionais para fatos com mesmos pedidos e/
ou causa de pedir, viabilizando a proteção coletiva de Direitos (MARCO;
SANDRIN, 2011, p. 4). O Código de Defesa do Consumidor tratou de
estabelecer um conceito operacional de direitos difusos em seu art. 81,
parágrafo único, inc. I:
Art. 81. A defesa dos interesses e Direitos dos consumidores
e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente,
ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida
quando se tratar de:
I - interesses ou Direitos Difusos, assim entendidos, para
efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato [...].
As características dos direitos difusos consistem na indeterminação
do sujeito e na indivisibilidade do objeto (bem jurídico), porque quando
se instaura uma ação, para a sua defesa não é possível proteger somente

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 357
um indivíduo, sem que a tutela não atinja automaticamente os demais
membros de determinada comunidade que se encontram na mesma situação
(DINAMARCO, 2001, p. 51-52). De outra forma, os interesses coletivos
são os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base, conforme definição dada também pelo art. 81,
parágrafo único, II, in fine, do CDC. Em outras palavras, Luiz Guilherme
Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, (2009, p. 299) explicam que os direitos
coletivos possuem como titular determinado grupo, categoria ou classe de
pessoas que estão ligadas entre si ou com violador ou potencial violador
do direito, por uma relação jurídica base. Desse modo, os direitos coletivos
admitem que haja identificação de um conjunto de pessoas ou um núcleo
determinado de sujeitos identificados como titulares do interesse defendido.
Por sua vez, os direitos individuais homogêneos são definidos pelo CDC
como aqueles decorrentes de uma origem comum (art. 81, parágrafo único,
III, in fine, do CDC). O conceito dos mencionados direitos é dado por
Pedro da Silva Dinamarco da seguinte forma (2001, p.60):
Os interesses individuais homogêneos são divisíveis,
passíveis de ser atribuídos individual e proporcionalmente a
cada um dos indivíduos interessados (que são identificáveis),
sendo essa sua grande diferença com os interesses difusos
ou coletivos (esses sim indivisíveis). Como já dito, essa
indivisibilidade é do objeto do pedido e não da causa de pedir.
Os direitos individuais homogêneos “compreendem os
integrantes determinados ou determináveis de grupo, categoria ou classe
de pessoas que compartilhem prejuízos divisíveis, oriundos das mesmas
circunstâncias de fato” (SIQUEIRA JUNIOR, 2009, p. 453). Em outros
termos, os direitos individuais homogêneos são verdadeiros interesses
individuais, contudo, são circunstancialmente tratados de forma coletiva,
tendo em vista maior efetividade da tutela jurisdicional, o interesse público
e também o princípio da economia processual (MARCO; SANDRIN,
2011, p. 8). Aqui os sujeitos são sempre mais de um e determinados.
Mais de um, porque em sendo um só, o direito é individual simples, e
determinado porque neste caso, como o próprio nome diz, apesar de
homogêneos, os direitos protegidos são individuais. Mas, note-se: não se
trata de litisconsórcio e sim de direito coletivo. Não é o caso de ajuntamento
de várias pessoas, com direitos próprios e individuais no polo ativo da
demanda, o que se dá no litisconsórcio ativo; quando se trata de direitos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 358
individuais homogêneos, a hipótese é de direito coletivo - o que permitirá,
inclusive, o ingresso de ação judicial por parte dos legitimados no art. 82
da lei consumerista (NUNES, 2011, web).
São características dos direitos individuais homogêneos: (a) a
determinabilidade dos sujeitos; (b) a origem fática comum; (c) a dispensa
da existência de uma relação jurídica-base anterior à lesão, podendo
ser ocasionada no próprio ato lesivo; (d) atinja um número de pessoas
que justifique a tutela coletiva como mais benéfica do que em relação à
ação individual; e (e) a citação de todos os interessados por edital para
que intervenham no processo como litisconsortes (art. 94 do CDC)
(DINAMARCO, 2001, p. 61).
Pela redação original da LACP, a ação civil pública não poderia
ser utilizada na tutela dos interesses individuais homogêneos. Todavia, com
a publicação do Código de Defesa do Consumidor, ampliou-se o campo de
atuação para abarcar também os direitos individuais homogêneos, pois, ao
estabelecer a competência do Ministério Público, acabou por ampliar as
funções institucionais do parquet inicialmente previstas no exaustivo art.
129 da Constituição Federal, que havia permitido expressamente somente
a legitimidade para a tutela de interesses difusos e coletivos, excluindo de
suas funções institucionais, portanto, os direitos individuais homogêneos.

1.1 Legitimados ativos da Ação Civil Pública

A legitimidade ativa da Ação Civil Pública vem insculpida no art.


5º da Lei n°7.347/1985, alterado pela Lei n°11.448/07:
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação
principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou
sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos
termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao
meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico [...].

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 359
O Ministério Público tem como funções precípuas a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático, bem como dos interesses sociais
e individuais indisponíveis, tal como disposto no art. 127 da Constituição
Federal de 1988. O art. 129, inciso III, da Carta Magna de 1988, atribuiu a
ele legitimação ativa para propor a ação civil pública com vistas à proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos. Com a edição do CDC, em 1990, também os direitos
individuais homogêneos passaram a ser tutelados pelo Ministério Público
(arts. 91 a 100 do CDC). Acrescente-se, ainda, que ao Parquet cabe zelar
pelo efetivo respeito aos direitos previstos na Lei Orgânica da Assistência
Social, entre eles o direito ao Benefício de Prestação Continuada, tal como
determinado no art. 31 da Lei n.º 8.742/93:
Art. 31. Cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo
respeito aos direitos estabelecidos nesta lei.
Ainda, o art. 6° da Lei Complementar n.º 75/93 preceitua:
Art. 6°. Compete ao Ministério Público da União: [...] VII
- promover o inquérito civil e a ação civil pública para: [...]
a proteção dos interesses individuais indisponíveis,
difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas,
à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias
étnicas e ao consumidor;
[...]
XII - propor ação civil coletiva para defesa de interesses
individuais homogêneos; […]
A Lei nº 10.471/2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso,
estabelece em seu art. 74, inc. I:
Art. 74. Compete ao Ministério Público:
I - instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a
proteção dos direitos e
interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e
individuais homogêneos do idoso;
Por fim, o art. 3°, caput, da Lei nº 7.853/89, prevê que:
Art. 3° As medidas judiciais destinadas à proteção de
interesses coletivos, difusos, individuais homogêneos e
individuais indisponíveis da pessoa com deficiência poderão
ser propostas pelo Ministério Público, pela Defensoria
Pública, pela União, pelos Estados, pelos Municípios, pelo
Distrito Federal, por associação constituída há mais de 1

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 360
(um) ano, nos termos da lei civil, por autarquia, por empresa
pública e por fundação ou sociedade de economia mista que
inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção dos
interesses e a promoção de direitos da pessoa com deficiência.
Por meio da Ação Civil Pública, o Ministério Público pode em
nome próprio e no interesse das vítimas ajuizarem uma única demanda que
poderá beneficiar todos os lesados, resultando numa solução mais rápida
do conflito e em sensível economia de tempo e dinheiro (ALMEIDA,
2001, p. 97). Todavia, a intervenção ministerial é limitada, levando-se
em consideração o interesse a ser tutelado. Sobre isso, é fundamental
esclarecer que os interesses podem ser disponíveis, indisponíveis ou
de disponibilidade restrita, independentemente de quem seja seu titular
(MAZZILLI, 2007, p. 93).
Contudo, a legitimidade ativa de uma instituição não exclui as
demais, porque quando se trata de ação civil pública, a legitimidade é
concorrente e disjuntiva. Concorrente porque os legitimados ativos (art. 5º
da Lei n° 7.347/1985) podem agir em defesa de interesses transindividuais.
É disjuntiva porque os co-legitimados não precisam comparecer em
litisconsórcio (MAZZILLI, 2007, p. 314). A Constituição de 1988 deixou
cristalina essa possibilidade quando estabeleceu que a legitimação do
Ministério Público para a ação civil pública não impede a dos demais
legitimados, nas mesmas hipóteses (art. 129, § 1º, da CF/1988).
A ação civil pública deve ser utilizada como um instrumento de
tutela dos interesses individuais homogêneos socialmente relevantes, não
se prestando à tutela de direitos individuais subjetivos, cujos titulares,
quando dispuserem de amplas condições sociais e culturais de acesso ao
judiciário deverão socorrer- se das vias ordinárias para pleitear os seus
interesses (MARCO; SANDRIN, 2011, p. 15).
Cabe destacar o texto da Súmula n° 07 do Conselho Superior do
MPSP, que confere legitimidade à atuação de seus membros na defesa
dos direitos individuais homogêneos quando se tenha expressão na
coletividade, como nas seguintes hipóteses: “a) os que digam respeito à
saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes
à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c)
quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema
econômico, social ou jurídico”.
Enfim, conforme o entendimento de Marcelo da Silva Oliveira,
tendo em conta tudo o que já se afirmou, se é por intermédio da causa de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 361
pedir e do pedido que se define a categoria do direito metaindividual e
considerando, ainda, que a tutela prestada será sempre alcançada com uma
condenação genérica, remontando a fase posterior a apuração individual do
dano, o argumento isolado de que o MP não é legitimado para a tutela dos
direitos e interesses individuais homogêneos, em face da sua divisibilidade
e disponibilidade, não pode prosperar, pois, ainda assim, tais direitos, em
face da relevância que assumem na sociedade passam a constituir interesses
sociais, e por isso coletivos (lato sensu), cuja defesa está afeta às funções
institucionais do Parquet (OLIVEIRA, 2002, p. 27).

2 BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA COMO DIREITO


INDIVIDUAL HOMOGÊNEO DE NATUREZA ASSISTENCIAL
E SUA TUTELA POR MEIO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Após afirmar que a Assistência Social será prestada a quem dela


necessitar, independente de contribuição, a Constituição Federal de 1988
instituiu, no art. 203, inciso V, como um de seus objetivos e como uma
garantia constitucional, a efetividade do direito maior de igualdade:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela
necessitar, independente de contribuição a seguridade social,
e tem por objetivos: (...)
V- a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à
pessoa portadora de deficiência ou ao idoso que comprovem
não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-
la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Ao estabelecer a garantia de um salário mínimo mensal às pessoas
com deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, a Constituição
Federal garantiu efetividade ao princípio da isonomia (art. 5º, caput).
Para dar eficácia à norma prevista no art. 203, inc. V, da Constituição
Federal de 1988, foi editada a Lei nº 8.742/93, também denominada Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS), dispondo sobre a organização da
assistência social. Tal norma, em seu art. 20, estabelece que o idoso ou
pessoa com deficiência que não tiverem comprovadamente condições de
suprir sua própria manutenção ou de tê-la provida por seus familiares tem
direito ao recebimento de um salário mínimo mensal.
O Decreto nº 6.214/07, regulamentando o art. 20 da LOAS,
previu a concessão de Benefício de Prestação Continuada (BPC) à pessoa
com deficiência e ao idoso (maior de 65 anos de idade), brasileiro, nato

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 362
ou naturalizado, ou de nacionalidade portuguesa (desde que comprovem,
em qualquer dos casos, residência no Brasil), cuja renda per capita do
grupo familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo vigente na data do
requerimento e que comprovem não ter condições de prover a própria
manutenção ou tê-la provida por sua família. Pessoa com deficiência é
aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual
ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.
Como estipula o art. 20, § 1°, da LOAS, para os fins do benefício
assistencial de prestação continuada, a família é composta pelo requerente,
o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta
ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os
menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Anote-se que o art. 35 da Lei nº 8.742/93 deixa estreme de dúvidas
a legitimidade passiva do INSS, estatuindo que:
Cabe ao órgão da Administração Pública Federal responsável
pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social
operar os benefícios de prestação continuada de que trata
esta Lei, podendo contar com o concurso de outros órgãos do
Governo Federal, na forma a ser estabelecida em regulamento.
Observe-se que ao INSS caberá a função de operacionalizar
a concessão do benefício, conforme depreende-se do parágrafo único
do art. 32 do Decreto n.º 1.744/95, tendo inclusive estabelecido
normas e procedimentos para a operacionalização do benefício de
prestação continuada aos idosos e pessoas com deficiência por meio da
Resolução INSS/PR nº 324/95.
Clara é a natureza jurídica dos direitos dos beneficiários da
assistência social. São direitos individuais homogêneos, na medida em
que, apesar da divisibilidade, há circunstâncias que os une na sua origem:
tais como a condição de serem idosos ou pessoas com deficiência e não
possuírem renda ou meios de prover a própria manutenção ou de tê-la
provida por suas famílias.
Consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
ao Ministério Público é dado promover, via ação coletiva, a defesa de
direitos individuais homogêneos, porque tidos como espécie dos direitos
coletivos, desde que o seu objeto se revista da necessária relevância social.
Nessa linha, possui o Ministério Público Federal legitimidade para a defesa

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 363
do mencionado direito socioassistencial, intensificada pela sua repercussão
social, conforme preceitua o art. 31 da Lei nº 8.742/93.
Tal repercussão social é manifesta, haja vista, em primeiro lugar,
a natureza do dano e o interesse que há no funcionamento do sistema de
Assistência Social. Em segundo lugar, pela dimensão ou abrangência
do dano, que atinge os idosos e pessoas com deficiência carentes. E, por
fim, pelo fato do benefício assistencial ser considerado verba de cunho
alimentar que consiste em uma garantia constitucional que independe de
contribuição à Seguridade Social.
No REsp 413.986/PR (Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,
DJ 11.11.2002), o INSS recorreu ao STJ alegando que os direitos
previdenciários não são suscetíveis de tutela mediante Ação Civil Pública,
por serem individuais homogêneos não caracterizados como relação de
consumo. A tese da autarquia foi refutada pelo STJ, constando da ementa:
RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.
O Ministério Público está legitimado a defender Direitos
Individuais Homogêneos, quando tais Direitos têm
repercussão no interesse público. O exercício das ações
coletivas pelo Ministério Público deve ser admitido com
largueza. Em verdade, a ação coletiva, ao tempo em que
propicia solução uniforme para todos os envolvidos no
problema, livra o Poder Judiciário da maior praga que
o aflige, a repetição de processos idênticos. Recurso
conhecido, mas desprovido.
No tocante à tutela do interesse dos segurados que recebiam
benefício de prestação continuada do INSS sem a devida atualização,
assentou-se que “sobre as atribuições dos integrantes do Ministério
Público, cumpre asseverar que a norma legal abrange toda a amplitude de
seus conceitos e interpretá-la com restrições seria contrariar os princípios
institucionais que regem esse órgão” (RESP n° 211.019, Rel. Min. Felix
Fischer, DJU de 08/05/ 2000, p. 112).
No entanto, há julgados nas cortes superiores que sustentam
que o Ministério Público não tem legitimidade para ajuizar ação civil
pública relativa a benefícios previdenciários, por se tratarem de direitos
individuais disponíveis que podem ser renunciados por seu titular e por
não se enquadrarem na hipótese de relação de consumo, uma vez que
consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 364
ou serviço como destinatário final, em que não se amolda a situação aqui
enfrentada (c.f. REsp 502.744 e RE 472.489).

2.1 Precedentes em matéria de Ação Civil Pública para a proteção


do direito ao BPC

No campo da assistência social, as ações civis públicas não têm


prosperado no STJ até o momento, encontrando séria resistência quanto à
possibilidade de reconhecimento do direito assistência social (art. 203 da
CF/1988), especialmente no que diz respeito ao direito a um salário mínimo
à pessoa com deficiência ou ao idoso carente. Cite-se como exemplo o
julgamento do REsp 661701 SC 2004/0069019-8, de 2009:
PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO
CONTINUADA. LEI 8.742 /93. MODIFICAÇÃO DOS
CRITÉRIOS LEGAIS TEXTUALMENTE PREVISTOS
PARA A CONCESSÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITOS PATRIMONIAIS
DISPONÍVEIS. RELAÇÃO DE CONSUMO
DESCARACTERIZADA. PRECEDENTES DO STJ.
RECURSO DO INSS PROVIDO. 1. O Ministério Público
não detém legitimidade ad causam para a propositura de ação
civil pública que verse sobre benefícios previdenciários,
uma vez que se trata de direitos patrimoniais disponíveis e
inexistente relação de consumo. Precedentes. 2. Prejudicado
o exame do recurso especial da União. 3. Recurso especial
da autarquia provido para declarar a ilegitimidade ativa do
Ministério Público [...].
Lamentavelmente, ainda não há precedente no STJ admitindo
ação civil pública nesses casos, o que causa estranheza, pois, é justamente
nos casos de benefícios assistenciais que a atuação por meio de substituição
processual seria mais necessária.
Os TRFs, por sua vez, vêm admitindo ação civil pública para
benefícios assistenciais, defendendo ser ela o meio processual legítimo
para a tutela de interesses individuais homogêneos em que haja relevante
interesse social. Neste sentido, a mais recente jurisprudência:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL.
AGRAVO RETIDO IMPROVIDO. AFASTADA A
ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. RETORNO DOS AUTOS AO

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 365
RELATOR PARA CONHECIMENTO DO MÉRITO DA
APELAÇÃO. - Agravo retido conhecido (art. 523, § 1º
do CPC). - O Ministério Público Federal é parte legítima
para a propositura de Ação Civil Pública para defesa de
direitos individuais indisponíveis. - Agravo retido do INSS
improvido. Afastada a arguição de ilegitimidade ativa do
MPF. Determinado o encaminhamento dos autos ao Relator
para a apreciação do mérito da apelação [...]. (TRF 3ª Região
- APELAÇÃO CÍVEL AC 00234977220154039999 SP
0023497-72.2015.4.03.9999).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL.
RENDA MENSAL FAMILIAR PER CAPITA. ARTIGO
34, § ÚNICO, DA LEI Nº 10.741 /2003. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO Nº 580.963. ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. 1. No
julgamento do RE 580.963/PR, submetido à repercussão
geral, o Pretório Excelso, por maioria de votos, reconheceu
e declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade, por
omissão parcial, do parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741
/03 (Estatuto do Idoso). 2. De acordo com os parâmetros
fixados pelo STF, no cálculo da renda familiar per capita a
que se refere a LOAS deve ser excluído o valor auferido por
idoso com 65 anos ou mais a título de benefício assistencial
ou benefício previdenciário de renda mínima, bem como
o valor auferido a título de benefício previdenciário por
incapacidade ou assistencial em razão de deficiência,
independentemente de idade. 3. Presentes a verossimilhança
do direito alegado e o fundado receio de dano irreparável ou
de difícil reparação, deve ser mantida a decisão que deferiu
parcialmente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela
para determinar ao INSS que desconsidere, na análise dos
requerimentos de benefício assistencial devido à pessoa
com deficiência e ao idoso, o valor decorrente de qualquer
benefício assistencial ou previdenciário de renda mínima
percebido por idoso e/ou pessoa com deficiência integrante
do grupo familiar, independentemente de sua fonte [...].
(TRF 4ª Região - AGRAVO DE INSTRUMENTO AG
50246522220154040000 5024652-22.2015.404.0000).

PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


MPF. LEGITIMIDADE ATIVA.
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.
ADEQUAÇÃO DA UTILIZAÇÃO

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 366
DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL. LEI Nº 8.742 /93.
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA.
POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO. 1.
Consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, ao Ministério Público é dado promover, via ação
coletiva, a defesa de direitos individuais homogêneos,
porque tidos como espécie dos direitos coletivos, desde
que o seu objeto se revista da necessária relevância social.
2. Conforme entendimento firmado pelo STJ (REsp nº
1.142.630/PR, Rel. Min. Laurita Vaz), a ação civil pública é
considerada instrumento idôneo para a tutela dos direitos de
natureza previdenciária. 3. O art. 20 da Lei nº 8.742 /93 não
exige, à concessão do benefício de prestação continuada, que
a doença ou lesão incapacitante tenha natureza irreversível.
Ilegalidade da expressão "irreversíveis" contida no inciso II
do artigo 624 da IN 20 INSS/PRES [...]. (TRF 4ª Região
- APELAÇÃO CIVEL AC 19536020094047105 RS
0001953-60.2009.404.7105).
PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL. LEGITIMIDADE. RENDA FAMILIAR PER
CAPITA. ART. 34 DO ESTATUTO DO IDOSO (LEI 10.741
/03). 1. Cancelada a Súmula nº 61, em 21.06.2004 (AC
2001.72.08.001834-7, Rel. Des. Nylson Paim de Abreu),
pela 3ª Seção desta Corte, a qual trazia o entendimento de
que a União Federal deveria figurar no pólo passivo das
ações relativas a benefício assistencial. Sendo, então, o
INSS o único ente legítimo para responder à demanda, deve
a União ser excluída da ação, sendo admitida, contudo, sua
intervenção na qualidade de assistente do INSS, recebendo
o feito no estado em que se encontra. 2. Consoante iterativa
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao Ministério
Público é dado promover, via ação coletiva, a defesa de
direitos individuais homogêneos, porque tidos como espécie
dos direitos coletivos, desde que o seu objeto se revista
da necessária relevância social. 3. A melhor interpretação
do disposto no artigo 34 da Lei n.º 10.741 /03 ( estatuto
do idoso ) conduz ao entendimento de que conquanto seu
parágrafo único se refira especificamente a outro benefício
assistencial ao idoso, não há como restringi-lo a tal hipótese,
sendo de se aplicá-lo extensiva ou analogicamente quando
verificada a existência de benefício assistencial concedido

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 367
a familiar deficiente, ou benefício previdenciário de valor
mínimo concedido a familiar idoso, seja o postulante idoso
ou deficiente. 4. A desconsideração, para fins de apuração da
renda familiar per capita, de benefício auferido por pessoa
que não é deficiente, ou que tem menos de 65 anos de idade,
todavia, extrapola o campo da interpretação pura e simples,
adentrando no espaço reservado à criação de norma positiva,
o que é vedado, como regra, ao Judiciário (como também
extrapolaria, por exemplo, a desconsideração de parcela
de benefício superior ao mínimo recebido por familiar, ou,
ainda, de renda não decorrente de benefício previdenciário ou
assistencial) [...]. (TRF 4ª Região - APELAÇÃO/REEXAME
NECESSÁRIO APELREEX 958 SC 2005.72.13.000958-5).
PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF.
ART. 20, §§ 2º E 3º, DA LEI Nº 8.742 /93. DEFICIENTES,
IDOSOS ACIMA DE 65 ANOS E PORTADORES DE
HIV. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL. ADEQUAÇÃO DA VIA. - Preliminar de
ilegitimidade do Ministério Público Federal para propor a
presente ação civil pública rejeitada. A jurisprudência do E.
Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido de que "o
Ministério Público, ao defender o interesse da coletividade
de idosos e portadores de deficiência física favorecidos
pelo art. 203, V, da Constituição, possui legitimidade para
a propositura de ação civil pública, considerado, sobretudo,
o interesse social relevante. Trata-se de direito ligado à
seguridade social, que, segundo o disposto no art. 194,
caput, da Constituição, compreende um conjunto integrado
de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social"(in RE 444.357/PR, Rel.
Ministro Ricardo Lewandowski, d. 28.10.2009, DJe-211,
divulg. 10.11.2009, public. 11.11.2009)- É de ser afastada
a alegada ausência de possibilidade jurídica do pedido uma
vez que não se pretende através da presente ação civil pública
a declaração de inconstitucionalidade da norma in abstrato,
pois o que se busca é, exatamente, a proteção do bem jurídico
tutelado constitucionalmente - a obtenção do benefício
mensal, no valor de um salário mínimo, aos portadores de
deficiência, idosos com mais de 65 anos e portadores do
vírus do HIV, que comprovem não possuir meios de prover
à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. -
O benefício de prestação continuada, de um salário mínimo

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 368
mensal, previsto no art. 203, V, da Constituição Federal e
regulamentado pelo art. 20 e parágrafos da Lei nº 8.742 /93, é
devido à pessoa portadora de deficiência (sem limite de idade)
e ao idoso, com mais de 65 anos, que comprovem não ter
condições [...]. (TRF 3ª Região - APELAÇÃO/REEXAME
NECESSÁRIO APELREE 4259 SP 2003.61.09.004259-3).
AGRAVO DE INSTRUMENTO E AGRAVOS
REGIMENTAIS. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO
CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. IDOSOS E
INCAPAZES. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 34, PARÁGRAFO
ÚNICO, LEI Nº 10.741/03.
1. Consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, ao Ministério Público é dado promover, via ação
coletiva, a defesa de direitos individuais homogêneos,
porque tidos como espécie dos direitos coletivos, desde
que o seu objeto se revista da necessária relevância social.
Ademais, dispõe o art. 74, inciso I, da Lei n° 10.741/03,
competir ao Ministério Público instaurar o inquérito civil e
a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses
difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais
homogêneos do idoso.
2. Despropositada se afigura a interpretação literal e restritiva
do art. 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/03, segundo a
qual somente o benefício concedido a qualquer membro da
família nos termos do caput do indigitado dispositivo "não
será computado para os fins do cálculo da renda familiar
per capita a que se refere a LOAS". Fere a razoabilidade e,
sobretudo, a isonomia, o fato de aquele que contribuiu a vida
inteira para a Previdência Social ter seu benefício no valor de
um salário mínimo computado no cálculo da renda familiar,
ao passo em que excluído do referido cálculo o benefício
assistencial percebido pelo idoso que nada verteu para o
sistema previdenciário.
3. Ainda que tratando especificamente do idoso, o art. 34,
parágrafo único, da Lei n.º 741/03 não pode deixar de ser
aplicado no caso do "incapaz para a vida independente e para
o trabalho", porquanto não se pode dizer que economicamente
haja qualquer distinção.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 369
4. Agravo de instrumento provido. (TRF 4ª Região - AG
200504010227190 - Sexta Turma Relator Ricardo Teixeira
do Valle Pereira - DJU 16/11/2005 - pág. 986).
Não merece prosperar a tese que sustenta o cabimento da ação
civil pública apenas para a defesa dos interesses difusos e coletivos no
sentido estrito. Alinha-se ao entendimento do Min. Dias Toffoli, para
quem o direito individual homogêneo (que abrange, entre outros o direito
ao BPC), apesar de não ser coletivo em sua essência, mas considerado
subespécie de direito coletivo, em face do seu núcleo de homogeneidade
dos direitos subjetivos individuais decorrentes de origem comum, deve
ter a sua proteção judicial realizada em bloco a fim de obter uma resposta
judicial unitária do mega-conflito, bem como evitar a proliferação de ações
similares com as consequentes decisões contraditórias, conferindo maior
credibilidade ao Poder Judiciário e atendendo ao interesse social relativo
à eficiência, celeridade, economia processual e a efetivação do objetivo
constitucional fundamental de construir uma sociedade livre, justa e
solidária (TOFFOLI, 2015, web).
Cumpre ao Poder Judiciário, por meio do tão conhecido sistema
de freios e contrapesos, corrigir a omissão do Poder Executivo e atribuir,
nos casos concretos, o que foi garantido constitucionalmente, sempre tendo
em mente que o Benefício de Prestação Continuada servirá para que idosos
e pessoas com deficiência possam se manter dignamente por conta própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É indiscutível que os idosos e as pessoas com deficiência


enfrentam os mais diversos tipos de discriminação. O benefício de prestação
continuada, portanto, mostra-se como uma ferramenta indispensável
para assegurar a dignidade dos idosos e pessoas com deficiência que
comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de
tê-la provida por sua família.
Neste estudo, propôs-se a discussão sobre a possibilidade da tutela
dos chamados direitos individuais homogêneos de natureza assistencial em
sede de Ação Civil Pública, instrumental conferido a certos co-legitimados
(Ministério Público, entes governamentais e políticos ou associações) para
a tutela dos interesses metaindividuais.
Assim, vislumbra-se razoável o argumento de que os meios
processuais cabíveis para a reivindicação cidadã dos direitos de natureza

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 370
assistencial seja ampla e acessível como forma de ajustar o instrumental
(dogmática processual) à finalidade (justiça efetiva), evitando ações
repetitivas, estimulando a função social do processo e beneficiando
segmentos sociais hipossuficientes (OLIVEIRA, 2002).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da ação civil


pública: doutrina e jurisprudência. Prefácio de J. P. Sepúlveda Pertence.
São Paulo: Ed. RT, 2001. BRASIL. Decreto nº 6.214, de 26 de setembro
de 2007. Regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência
social devido à pessoa com deficiência e ao idoso. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6214.htm.
Acesso em: 01 nov. 2016.
BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a
organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742compilado.htm.
Acesso em: 01 nov. 2016.
DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva,
2001. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor, comentado MARCO, Cristhian Magnus de. SANDRIN,
Katiane. A ação civil pública e a tutela dos direitos individuais
homogêneos em matéria de Seguridade Social. Revista de Direito
Brasileira, 2011. Disponível em: www.rdb.org.br/ojs/index.php/rdb/
article/download/55/54. Acesso em: 19 ago. 2016.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz.
Procedimentos especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo:
meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e
outros interesses. 20. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.
NUNES, Rizzatto. As ações coletivas e as definições de direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos no direito do
consumidor. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/
ABCdoCDC/92,MI128109,31047-As+acoes+coletivas+e+as+definicoes
+de+direitos+difusos+coletivos+e. Acesso em: 01 nov. 2016.
OLIVEIRA, Marcelo da Silva. A ação civil pública e a tutela dos direitos
individuais homogêneos pelo Ministério Público. Rev. Fund. Esc.
Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, ano 10, vol. 20, p.
113-141, jul./dez. 2002. Disponível em: http://www.escolamp.org.br/
arquivos/20_05.pdf. Acesso em: 19 ago. 2016. Paulo: Ed. RT, 2009.
pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2004.
SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton. Direito processual
constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
EIXO 2:

TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA


PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
O DIREITO INTERNACIONAL E O COMBATE AO
TRÁFICO DE PESSOAS NO MUNDO GLOBALIZADO: O
PROTOCOLO DE PALERMO

Ana Beatriz de Araújo Cerqueira*


Iatã de Almeida Barale**

INTRODUÇÃO

O presente trabalho refere-se a uma pesquisa bibliográfica, cuja


temática geral compreende a análise do Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (ocorrida
em Palermo, no ano 2000) e relativo à Prevenção, Repressão e Punição
do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças. A partir de
uma análise dos documentos jurídicos que antecederam o Protocolo de
Palermo e de dados e pesquisas acerca do tráfico de pessoas no mundo
contemporâneo, busca-se compreender como este acordo pode contribuir
para mitigar o tráfico de pessoas, contextualizado na sociedade globalizada,
que, configurada por meio de intensificados fluxos de informação, capital
e indivíduos, acredita-se contribuir para a formação de um ambiente mais
profícuo a esse tráfico.
Pretende-se também elucidar a questão da posição ocupada pelos
protocolos no Direito Internacional e as barreiras enfrentadas por tal
acordo, seu real alcance e sua real combatividade e efetividade jurídica
quando posto em questão a aplicação do Protocolo de Palermo no caso
brasileiro. No que tange a efetividade, entende-se que a preponderância de
questões econômicas no âmbito de acordos internacionais pode significar
uma menor possibilidade de efetividade do Protocolo de Palermo. Segundo
a Organização das Nações Unidas o tráfico de pessoas é uma “forma
de escravidão moderna”, que viola inúmeros Direitos Humanos. Tendo
em vista esse atentado à dignidade humana, a análise dos instrumentos
jurídicos que visam a ele se opor - como é o caso do Protocolo de Palermo
- é de suma relevância para a discussão dos Direitos Humanos, influindo
em reflexões acerca da efetividade dos modos pelos quais se busca,
contemporaneamente, resguardar esses direitos.

*
Graduanda em Direito pela FADIR-UFU
**
Graduando em Direito pela FADIR-UFU

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 375
1 PROTOCOLO DE PALERMO E SEUS ANTECEDENTES

O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra


o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão
e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças,
também conhecido como Protocolo de Palermo, passou a vigorar
internacionalmente em setembro de 2003, sendo promulgado na legislação
nacional, por meio do decreto nº 5.017, em março de 2004. O Protocolo de
Palermo é o marco jurídico contemporâneo de maior importância no que
concerne a problemática da combatividade, da cooperação internacional
e da assistência à vítima do tráfico de pessoas internacional. Uma de suas
inovações foi apresentar uma definição una acerca do tráfico de pessoas
internacional, sendo, então, “o primeiro instrumento global juridicamente
vinculante com uma definição consensual sobre o tráfico de pessoas”1.
Inova também quando da questão da cooperação internacional e da
assistência às vítimas de tal crime (conforme já mencionado), e da sua
preocupação com a não violação dos direitos humanos.
O Protocolo vai além da compreensão tradicional do Tráfico
(a dimensão penal e de segurança pública), brindando
uma perspectiva multidimensional (proteção dos direitos
humanos das vítimas - conf. Art. 6.º), ademais de adotar
compromissos políticos ( ). O Protocolo de Palermo delineia
a extensão e a busca da defensa dos direitos humanos, ao
combinar a proteção e assistência integral às vítimas, bem
como a necessidade de realizar a prevenção do delito a toda
sociedade, como também a persecução, repressão ao crime
com vistas de salvaguardar os direitos humanos. (SILVA;
GOES, 2013, p. 189)
Antes de adentrarmos aos outros aspectos relativos ao Protocolo
de Palermo, faz-se mister tratar, ainda que brevemente, da evolução
histórica dos principais instrumentos internacionais que dizem respeito ao
tráfico de pessoas, principalmente no que concerne a caracterização do que
é tráfico e os sujeitos cuja proteção é compreendida por esses documentos.
De acordo com os estudos de Ela Castilho (2007) o marco inicial da
normatização internacional acerca do tráfico de pessoas foi o Tratado de
Paris de 1814, firmado entre o Estado Francês e a Inglaterra, que tratava do
tráfico de negros para a escravidão. Em setembro de 1926, foi assinada em
1
Segundo informações obtidas no website do Escritório de ligação e parceria no Brasil
da United Nations Office on Drugs and Crime. Disponível em: https://www.unodc.org/
lpo-brazil/pt/crime/marco-legal.html. Acesso em 22 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 376
Genebra a Convenção sobre a Escravatura, que foi emendada e reafirmada
em Dezembro de 1953, em Nova York, pela Organização das Nações
Unidas. Por meio destes documentos, o comércio de escravos foi proibido.
Castilho comenta que para:
os fins dessa Convenção o tráfico de escravos “compreende
todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo
para vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão por venda
ou câmbio de um escravo, adquirido para vendê-lo ou
trocá-lo e, em geral, todo ato de comércio ou de transporte
de escravos”. Por sua vez escravidão é conceituada como
“estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se
exercitam os atributos do direito de propriedade ou de alguns
deles”. (CASTILHO, 2007, p. 10)
Em 1956, a Convenção de Genebra ampliou o foco de sua
reprimenda para as práticas análogas à escravidão, obrigando os Estados
signatários a criar mecanismos para modificar e coibir tais práticas, fixando
“a obrigação de definir como crimes, entre outras, a conduta de transportar
ou de tentar transportar escravos de um país a outro, de mutilar ou aplicar
castigos, de escravizar alguém ou de incitar alguém a alienar sua liberdade
ou de quem esteja sob sua autoridade” (CASTILHO, 2007, p. 10).
Ainda de acordo com o aporte histórico feito por Ela Castilho
(2007), a partir de 1904, com o Acordo para a Repressão do Tráfico de
Mulheres Brancas, a preocupação dos organismos internacionais se distancia
da questão do tráfico de escravos negros e migra para a problemática do
tráfico de mulheres brancas, principalmente oriundas do leste europeu.
Pouco depois, no ano de 1910, em Paris é estabelecida à Convenção
Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, que
definia o tráfico e o favorecimento à prostituição como o
aliciamento, induzimento ou descaminho, ainda que com
o seu consentimento, de mulher casada ou solteira menor,
para a prostituição. Tratando-se de mulher casada ou solteira
maior, a conduta só deveria ser punida se aquelas condutas
tivesse sido praticadas “com fraude ou por meio de violências,
ameaças, abuso de autoridade, ou qualquer outro meio
de constrangimento”. Era permitido, porém, aos Estados
Partes dar a mesma proteção à mulher casada ou solteira
maior independentemente da fraude ou constrangimento.
(CASTILHO, 2007, p. 11)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 377
A Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de
Mulheres e Crianças ocorrida em Genebra, no ano de 1921, modificou a
expressão mulheres brancas para mulheres e menores incluindo agora em
sua proteção crianças de ambos os sexos. Em 1933, também em Genebra,
mais algumas alterações ocorreriam por meio da Convenção Internacional
para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores. Na ocasião, a
necessidade do não consentimento para a configuração do tráfico é retirada,
obrigando a punição pelo tráfico, independentemente do consentimento da
mulher adulta traficada.
Em 1949, uma nova Convenção modificou importantes aspectos
no trato da questão, principalmente, em relação à modalidade sexual do
tráfico de pessoas. Como principais mudanças pode-se citar: a vítima do
crime de tráfico passa a ser qualquer pessoa independente de idade e sexo;
são alocadas as bases para a cooperação internacional; e não se faz mais
necessária, para a tipificação do crime de tráfico de mulheres, a necessidade
de ocorrer entre países diferentes. Essa convenção
veio valorizar a dignidade e o valor da pessoa humana, como
bens afetados pelo tráfico, o qual põe em perigo o bem-estar
do indivíduo, da família e da comunidade. Vítima pode ser
qualquer pessoa, independentemente de sexo e idade. De
acordo com o seu artigo 1º, as Partes se comprometem em
punir toda pessoa que, para satisfazer às paixões de outrem
“aliciar, induzir ou descaminhar, para fins de prostituição,
outra pessoa, ainda que com seu consentimento” bem
como “explorar a prostituição de outra pessoa, ainda que
com seu consentimento”. O art. 2º detalha as condutas de
manter, dirigir, ou, conscientemente, financiar uma casa
de prostituição ou contribuir para esse financiamento;
de dar ou tomar de aluguel, total ou parcialmente, um
imóvel ou outro local, para fins de prostituição de outrem.
(CASTILHO, 2007, p. 11)
Apesar da Convenção de 1949 ter sido, até a confecção do
Protocolo de Palermo, o principal documento jurídico que diz respeito ao
tráfico de mulheres para a exploração sexual, a mesma foi alvo de inúmeras
críticas quanto a sua real eficácia. Entre essas, podemos mencionar que
( ) uma das fortes limitações do aludido Convênio foi vincular
o Tráfico de mulheres à prostituição, restringindo assim a
exploração somente à esfera sexual. ( ) O Convênio de 1949
primou pela repressão à exploração sexual e a condena
da prostituição gerando uma forte resistência por parte de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 378
alguns Estados a sua ratificação. Com efeito, se observa
que o mesmo não oferece um enfrentamento ao Tráfico de
pessoas que prime pela proteção dos direitos humanos das
vítimas, ou mesmo que vise a prevenção do delito que seguia
em espiral crescente. (SILVA; GOES, 2013, pp. 187-188)
Após a citada Convenção, alguns outros documentos jurídicos
foram produzidos no âmbito internacional, todos contribuindo de alguma
forma para chegar-se ao marco jurídico atual acerca da matéria, o
Protocolo de Palermo. Porém, as modificações propostas não se fizeram
suficientemente relevantes para que aqui sejam abordadas detidamente.
O Protocolo de Palermo (2003) em seu artigo 3º e suas alíneas
define o Tráfico de pessoas:
a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento,
o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento
de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a
outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao
abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou
à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para
obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade
sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá,
no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou
outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços
forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a
servidão ou a remoção de órgãos; b) O consentimento dado
pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer
tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo
será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer
um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento
de uma criança para fins de exploração serão considerados
“tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum
dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d)
O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade
inferior a dezoito anos. (BRASIL. Decreto/Lei nº 5.017, de
12 de março de 2004)
Nota-se na definição atual, conforme conferida pelo Protocolo,
um caráter de proteção universal, não restringindo-se a questões étnicas
ou de gênero, sendo abarcados por sua proteção qualquer ser humano que
se encontre nas situações positivados pelo documento. Fazse importante
frisar a irrelevância do consentimento concedido pela vítima para a

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 379
configuração do tráfico de pessoas e a maior proteção concedida as
crianças vítimas do crime.
O Protocolo inova também em conjugar em um só documento três
objetivos principais, prevenção, investigação e repressão, primando também
pela assistência e proteção das vítimas do tráfico transnacional de pessoas.
Preocupações estas de proteção e prevenção positivadas em seu artigo 9º,
no que diz respeito as obrigações dos Estados signatários acerca do assunto:
1. Os Estados Partes estabelecerão políticas abrangentes,
programas e outras medidas para: a) Prevenir e combater
o tráfico de pessoas; e b) Proteger as vítimas de tráfico de
pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, de nova
vitimação. 2. Os Estados Partes envidarão esforços para
tomarem medidas tais como pesquisas, campanhas de
informação e de difusão através dos órgãos de comunicação,
bem como iniciativas sociais e econômicas de forma a
prevenir e combater o tráfico de pessoas. 3. As políticas,
programas e outras medidas estabelecidas em conformidade
com o presente Artigo incluirão, se necessário, a cooperação
com organizações não governamentais, outras organizações
relevantes e outros elementos da sociedade civil.

4. Os Estados Partes tomarão ou reforçarão as medidas,


inclusive mediante a cooperação bilateral ou multilateral,
para reduzir os fatores como a pobreza, o subdesenvolvimento
e a desigualdade de oportunidades que tornam as pessoas,
especialmente as mulheres e as crianças, vulneráveis ao
tráfico. 5. Os Estados Partes adotarão ou reforçarão as medidas
legislativas ou outras, tais como medidas educacionais,
sociais ou culturais, inclusive mediante a cooperação
bilateral ou multilateral, a fim de desencorajar a procura que
fomenta todo o tipo de exploração de pessoas, especialmente
de mulheres e crianças, conducentes ao tráfico. (BRASIL.
Decreto/Lei nº 5.017, de 12 de março de 2004)
Nota-se que o Protocolo de Palermo pretendeu realizar um trato
holístico da problemática, não se restringindo a apenas uma área de atuação,
buscando atuar nas diversas facetas do problema, criando diretrizes para a
positivação de leis e criação de políticas públicas pelos Estados nacionais.
Acerca de tal fato disserta Cecilia Bijos (2009):
De acordo com as Nações Unidas, o Protocolo representa
uma nova forma de ver a problemática do tráfico de pessoa,
pois combina as tradicionais formas de controle para

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 380
investigar e punir os criminosos com medidas para proteger
as vítimas. Tentativas anteriores de lidar com o assunto, a
partir de uma única perspectiva não foram bem-sucedidas,
justamente por não terem esse caráter multidimensional que
as Nações Unidas atribuem ao novo instrumento. Como
exemplo, cita-se o Acordo para a Repressão do Tráfico de
Mulheres Brancas, de 1904 e as Convenções Internacionais
para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, de 1910,
para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, de
1921 e para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores,
de 1933. A preocupação com a prevenção e com a atenção às
vítimas, no entanto, ainda não era foco de atenção por parte
dos Estados. (BIJOS, 2009, pp. 56-57)
Conforme o exposto, é possível analisar o Protocolo de Palermo
como um importante marco jurídico para o combate do tráfico de pessoas,
atividade crescente no mundo contemporâneo, mitigando inúmeros direitos
humanos, e que se encontra agora delineada e por vezes facilitada pelo
mundo globalizado e pelas novas formas tecnológicas da pós-modernidade.

2 TRÁFICO DE PESSOAS NO MUNDO GLOBALIZADO

O Tráfico de pessoas é um crime altamente lucrativo


e que coloca em risco direitos humanos fundamentais de indivíduos de
todo o globo. Segundo dados do Global Report on Trafficking in Persons
2014, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime, contendo dados acerca da questão do tráfico de pessoas referentes
principalmente aos anos de 2010 à 2012, 49% das vítimas são mulheres,
21% são crianças do sexo feminino, 18% são homens e 12% são crianças
do sexo masculino. Ainda de acordo com dados do mesmo relatório,
53% das vítimas do tráfico de pessoas são exploradas sexualmente, 40%
estão em situação de trabalho forçado, 0,3% atendem ao tráfico de órgãos
e a porcentagem restante corresponde a outras destinações do tráfico de
seres humanos. Em um recorte por gênero, tem-se a grande maioria das
mulheres, 79% vítimas de exploração sexual e a maioria dos homens, 83%
vítimas de trabalho forçado.
Quanto ao fator das rotas geográficas do tráfico, apenas 34%
acontecem dentro das fronteiras de um mesmo país, correspondendo o
restante dessas rotas ao tráfico internacional. Acerca da origem das vítimas,
principalmente são oriundas da América do Sul, da África Subsaariana,
do Sul e Leste da Ásia e do Leste europeu. Os países receptores são

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 381
principalmente da América do Norte e Central, da Europa Ocidental e
Central, e do Oriente Médio.
Analisando os dados nota-se que a questão do tráfico de pessoas
é delineada ainda por uma forte questão social e de gênero, em que na sua
maioria mulheres de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento são
aliciadas e exploradas sexualmente em países considerados desenvolvidos.
Acerca da questão, explana Boaventura de Souza Santos (2009),
Quando pensamos no tráfico de pessoas e no modo como este
fenómeno vem ganhando relevância, encontramos, do mesmo modo, fluxos
transnacionais que, sem qualquer respeito pela auto-determinação dos
sujeitos, cumprem lógicas de acumulação económica. E se é verdade que
este fenómeno ilegal, informal e tutelado por organizações criminosas em
tudo difere da centralidade da escravatura na formação do sistema mundo,
ele não deixa de ter uma inextrincável relação com este. A questão é que, se
as práticas de tráfico não são centrais nos mercados globais transnacionais
nem no mundo global em que vivemos, como outrora a escravatura o foi,
elas alojam-se nas desigualdades e injustiças na distribuição de riqueza
promovidas e fomentadas por esse mesmo sistema mundo. É assim que,
finda a colonização e a mercadorização legítima de pessoas entre países,
são hoje as abissais desigualdades entre Norte e Sul que promovem lógicas
clandestinas que conduzem à sub-humanidade. (SANTOS; GOMES;
DUARTE, 2009, p. 71)
As análises acerca do Tráfico de pessoas no mundo contemporâneo
devem levar em conta fatores antes não presentes. Acredita-se que
a sociedade globalizada e seus intensificados fluxos de informação,
capital e indivíduos, contribuiu para a conformação de um ambiente
mais profícuo a essa prática. Esses fatores, também modificam o modus
operandi de toda a engrenagem que perpassa essa modalidade de tráfico.
Giovanni Quaglia menciona estimativas de que, em 2007, o lucro dessa
atividade atingia um patamar
em torno de US$ 7 bilhões por ano, graças também às
novas tecnologias eletrônicas, que facilitam a expansão
de redes do crime, tanto em países em desenvolvimento
como nos já desenvolvidos. No continente europeu, o
tráfico de mulheres e crianças da Europa Central e do
Leste aumentou drasticamente, principalmente a partir
da queda do comunismo, no começo da década de 90, no
período considerado como a intensificação da globalização.
Vale ressaltar que a globalização - o intensificado fluxo de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 382
informação, capital e pessoas - apresenta oportunidades
e riscos. Criouse também um ambiente onde as drogas, o
crime e também o tráfico de pessoas podem avançar com
mais facilidade (QUAGLIA, 2007, pp. 39-40).
Levando em conta também a “globalização do modelo
econômico neoliberal” e seus reflexos como propulsor e facilitador de tal
modalidade de tráfico, haveria
pelo menos três desígnios da globalização neoliberal que,
se não promovem o tráfico de seres humanos, pelo menos
tornam a sua restrição mais difícil: a criação de uma economia
global privatizada, com um controlo estatal residual, em que
os mercados locais surgem ligados entre si; a liberalização
da troca, com a diluição das fronteiras para a circulação de
pessoas, bens e serviços que sirvam a criação do tal mercado
global; e a disseminação da produção através de investimento
estrangeiro em multinacionais. No que especificamente
concerne ao tráfico de mulheres para fins de exploração
sexual, estas características levam a que, sob um menor
controlo estatal, se desenvolva globalmente uma indústria do
sexo, em que um conjunto de pessoas, mulheres, é explorado
consecutivamente; isto é facilitado por uma circulação
em que as pessoas dos países mais pobres migram para
trabalhar nessa indústria, voluntária ou involuntariamente,
e as dos países ricos se deslocam para turismo recreativo e
sexual fomentado, também, pelo investimento estrangeiro.
(SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009, p. 72).
Quanto ao papel das novas tecnologias, principalmente da
internet e das redes sociais, faz-se mister a referência à sociedade em rede
analisada por Manuel Castells (1999). Para ele, a internet tem o poder
de transmitir uma imensa gama de símbolos para uma também enorme
gama de usuários, sem que esses símbolos passem por centros de controle,
diferentemente de outras formas de mídia e comunicação, nas quais se
observa esse controle. Nas palavras do autor, “existem milhões de usuários
de redes no mundo inteiro, cobrindo todo espectro da comunicação
humana, da política e da religião ao sexo e à pesquisa” (CASTELLS,
1999, p. 440). Tais características transformam o ambiente online em um
importante meio de aliciamento e de comercialização de pessoas, pois
nele pode-se encontrar um imenso catálogo de possíveis vítimas sem a
necessidade de estabelecer contato inicial face a face, além da facilidade
de, nesse ambiente, criar-se e veicular-se simulacros de realidades que

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 383
possam ludibriar as vítimas. Também, serviços de mensagem instantânea
e as facilidades da troca online de informações, ressaltando o reduzido,
inexistente, ou dificultoso monitoramento desses ambientes, mostram-se
bastante profícuos ao desenvolvimento de redes de comunicação a serviço
do tráfico de pessoas.
Por fim, deve-se salientar que a problemática do tráfico de
pessoas tende a crescer e se modificar tendo em vista as crises financeiras
recorrentes e a forma como, a partir da lógica estatal neoliberal, elas
contribuem para o desmanche das políticas de bem-estar social, ampliando
a população empobrecida e migrante, suscetível ao aliciamento na tentativa
de sobreviver, e tendo também em vista a problemática das guerras
correlata à pauperização crescente de populações já pobres, como é o caso
dos migrantes do norte da África e do Oriente Médio, do Haiti, para citar
apenas alguns exemplos, que migram pelo globo em busca de melhores
condições de vida e encontram-se mais suscetíveis ao tráfico de pessoas.

3 O PROTOCOLO DE PALERMO E SUA EFETIVIDADE E


COMBATIVIDADE: O CASO BRASILEIRO

King (2008) aponta que o Protocolo da ONU acerca do tráfico


de pessoas foi um instrumento eficaz, em muito devido a sua natureza de
enforcement, isto é, a capacidade que um sistema possui de obrigar que
os acordos estabelecidos sejam de fato cumpridos (ZILBERSZTANJN;
SZTAJN, 2005, p. 105). Dentre as disposições colocadas no Protocolo de
Palermo, destaca-se que os Estados membros devem agir para penalizar o
tráfico, proteger as vítimas e garantir às vítimas residência temporária ou
permanente no país de destino destas. Ou seja, está inserido no instrumento
normativo que, se um Estado se torna membro da Convenção e de seus
Protocolos, ele é automaticamente obrigado a criar uma legislação que
suporte essas questões em âmbito doméstico.
De acordo com a última edição do Trafficking in Person Report
(2016), relatório com periodicidade anual publicado pelo Departamento
de Estado do governo norte-americano, que possui o objetivo de verificar
como diversos governos ao redor do mundo têm atuado de forma harmônica
com as normas globais estabelecidas, o Brasil é um grande país de destino,
trânsito e fonte de tráfico humano. Débora Rodrigues do Santos sintetiza a
situação brasileira em relação ao tráfico de pessoas:

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 384
O Brasil é um país de origem e destino do tráfico humano,
vítimas brasileiras foram encontradas na Suíça, Portugal e
Espanha submetidas à exploração sexual, e no Brasil, foram
encontradas pessoas do Paraguai, Peru e Haiti submetidas à
condição análoga a de escravo. De acordo com a Pesquisa
Nacional sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes
para fins de Exploração Sexual Comercial (PESTRAF) no
Brasil, publicada em 2002, existem cerca de 240 rotas de
tráfico de pessoas no país sendo que 131 rotas interligam
o Brasil ao exterior, com forte concentração na Região
Norte, 78 rotas interestaduais e 32 rotas intermunicipais. As
rotas são estrategicamente construídas a partir de cidades
que estão próximas as (sic.) rodovias, portos e aeroportos,
oficiais ou clandestinos, que são pontos de fácil mobilidade.
Pode utilizar-se de vias terrestres, aéreas, hidroviárias e
marítimas. (SANTOS, 2016, p.28)
O Brasil, apesar de ser uma rota conhecida do tráfico humano
para fins de exploração sexual, até o ano 2000 não possuía políticas
públicas direcionadas para o enfrentamento desse problema, de forma que
o tráfico de seres humanos se mostrava uma atividade lucrativa e de poucas
consequências negativas para aqueles que a praticavam. O Protocolo de
Palermo aparece como um instrumento que modificou esse cenário.
Em 2000, ano de assinatura do Protocolo, algumas organizações
internacionais, em especial a ONU e a OEA, começaram a exercer pressão
sobre o governo brasileiro, denunciando violência, abuso e exploração
sexual tendo em vista fins comerciais. A adesão do Brasil ao Protocolo de
Palermo mostrou-se efetiva em diversos momentos, especialmente um ano
após a adesão brasileira, em março de 2005, quando entra em cena a Lei
nº 11.10643 que modifica o Código Penal brasileiro, alterando seus artigos
148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescentando o artigo 23, de forma que
passa a estabelecer penas de três a doze anos em casos de tráfico de pessoas.
Ainda em 2000, a OEA demandou ao governo federal a Pesquisa
Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes Para Fins de
Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF), que foi coordenada
nacionalmente pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças
e Adolescentes - CECRIA. O estudo, até então inédito, centrou sua atuação
em dar visibilidade ao problema e situá-lo com relação à sua dimensão
jurídica, às rotas internas e externas, ao perfil da demanda e das redes de
favorecimento, e à caracterização das vítimas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 385
A partir da publicação da pesquisa o país passou a se posicionar
de maneira mais incisiva acerca do enfrentamento ao problema. A primeira
ação foi introduzir no Plano Plurianual (PPA) de 2004 a 2007 ações
específicas sobre o tráfico de pessoas.
Os planos plurianuais são instrumentos previstos pela constituição
federal que estabelecem planos de médio prazo que inserem diretrizes,
objetivos e metas a serem seguidos pelos governos federais, estaduais e
municipais ao longo de um período de quatro anos. Nesse documento são
citados direcionamentos quanto ao diagnóstico sobre o tráfico de seres
humanos no Brasil e a capacitação de profissionais da rede de atenção
às vítimas de tráfico de seres humanos. O relatório ainda aponta dentro
de sessão intitulada “promover a redução das desigualdades de gênero”,
quatro diretrizes, quais sejam: 1. Estímulo ao debate sobre as desigualdades
sociais nas questões de gênero; 2. Combate ao trabalho de meninas na
condição de empregada doméstica; 3. Combate à violência contra a mulher;
e 4. Combate ao tráfico de mulheres e meninas.
Em seguida, no ano de 2006, é aprovado em âmbito federal
o Decreto nº5948/2006, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas, que tinha por finalidade estabelecer princípios, diretrizes e
ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às
vítimas, de forma que instituía um Grupo de Trabalho Interministerial com
o objetivo de elaborar uma proposta do Plano Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas (PNETP). A Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas cita o Protocolo de Palermo e adota sua definição de
tráfico de pessoas, embora Bijos acrescente que:
[n]o entanto, a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas apresenta alguns problemas notáveis. A
Política define o tráfico de pessoas no seu Artigo 2º, fazendo
referência direta à definição no Protocolo de Palermo.
Entretanto, o parágrafo 7º do mesmo artigo introduz uma
diferença significante. Uma vez que a Política Nacional
não considera em nenhum momento o consentimento da
vítima como relevante, evita qualquer discussão sobre o
consentimento, de forma não convencional, não se referindo
ao Artigo 3(b) Protocolo de Palermo. A solução brasileira
em evitar qualquer discussão sobre o consentimento de facto
também ignora a questão do recrutamento através de formas
abusivas, que é uma parte essencial da definição de tráfico de
pessoas no Protocolo de Palermo. No entanto, esses meios
ainda estão todos mencionados na definição da Política

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 386
Nacional referente ao que consiste o tráfico de pessoas.
(BIJOS, 2009, p. 70, grifo nosso)
O PNEPT é aprovado em janeiro de 2008 e marca uma nova
etapa no combate ao tráfico humano no território brasileiro, de forma que
constitui um marco normativo em que se trouxe uma orientação em termos
de princípios, diretrizes e ações destinadas à atuação do poder público
nessa área. A previsão é de que o plano seria implementado até dois anos
após a data de sua publicação.
As mudanças na legislação brasileira posteriores ao Protocolo
e relativas à ordem cronológica ainda seguiram-se, de forma que em
dezembro de 2006 é instituída a Portaria nº 2.167, acerca da aplicação do
Plano de Ação para a Luta contra o Tráfico de Pessoas entre os membros
do Mercosul; nessa mesma data, tem-se o Decreto nº 5.948, que aprovava
a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Em janeiro
de 2008, tem-se o Decreto nº 6.347, que aprova Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; em agosto de 2009, vem a Portaria
SNJ nº 031 que definiu as atribuições dos Núcleos de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas e dos Postos Avançados. Por fim, teve-se o Decreto
nº 7.901, de fevereiro de 2013 - aprovando o II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Em 2015, o Ministério da Justiça,
por meio da Secretaria Nacional de Justiça, em parceria com o Escritório
das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), divulgou o primeiro
balanço do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, de
forma que as 115 metas previstas no II PNETP, foram avaliadas em quatro
categorias: ótimo, bom, ruim e péssimo, sendo 54 metas consideradas com
ótimo progresso, 28 com bom progresso, 12 com um progresso ruim e,
somente, duas com péssimo progresso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É ainda importante caracterizar que pelos aspectos de gravidade


e globalidade do crime de tráfico de pessoas, uma legislação internacional
sincronizada e somada a uma eficiente cooperação torna-se evidentemente
efetiva nos âmbitos de prevenção e repressão dessa prática. É dentro
desta lógica que insere-se o Protocolo de Palermo, que desponta como o
instrumento de maior importância para o combate ao tráfico de pessoas
contemporaneamente.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 387
O Protocolo contribui, em especial, por ter como panorama
o desenvolvimento de uma perspectiva internacional para a definição e
combate ao tráfico humano. Nesse ponto Bijos sintetiza a importância do
instrumento internacional, pois,
apesar da existência de uma variedade de instrumentos
internacionais que contêm normas e medidas práticas para
combater a exploração de pessoas, especialmente mulheres
e crianças, [antes] não existia um instrumento universal que
abordava todos os aspectos do tráfico de pessoas. Na falta deste,
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos daqueles
vulneráveis ao tráfico não estavam, até a assinatura do Protocolo,
suficientemente protegidos. (BIJOS, 2009, p. 84, grifo nosso)
O tráfico de pessoas é considerado pela Organização das Nações
Unidas uma “forma de escravidão moderna”. Reduzidos a bens de
consumo pecuniários e alienados de seus direitos humanos basilares os
indivíduos vítimas dessa forma de violência sofrem uma das penas mais
algozes conhecidas na modernidade.
A partir dessa consideração, torna-se evidente a relevância do
Protocolo de Palermo para o combate a esse atentado à dignidade humana.
Porém, entendemos também que marcos normativos não resolvem todo
o problema e que se deve investir no combate das desigualdades sociais
e da pobreza, e na garantia dos direitos sociais de todos os indivíduos,
para que esses não acabem, por inúmeros motivos (na grande maioria dos
casos buscando melhores perspectivas de sobrevivência no mundo regido
pelo capital), envolvidos na mercantilização de corpos, assim tornando-se
meros objetos de mercado no comércio internacional de pessoas.

REFERÊNCIAS

BIJOS, Cecília. A insuficiência das ações brasileiras no enfrentamento


ao Tráfico internacional de pessoas. Revista do Mestrado em Direito da
Universidade Católica de Brasília, Brasília, v. 3, n. 2, p. 55-100, 2009.
BRASIL. Decreto/lei nº. 5.017, de 12 de Março de 2014: Promulga o
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição
do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2004/Decreto/
D5015.htm. Acesso em: 22 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 388
BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Avaliação sobre o progresso
do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II
PNETP). Brasília: Ministério da Justiça, 2014
BRASIL. Secretaria Nacional da Justiça. Plano Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília:
Ministério da Justiça. 2008.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade Em Rede. São
Paulo: Paz e Terra, 1999.
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. Tráfico de pessoas: da Convenção
de Genebra ao Protocolo de Palermo. In: BRASIL. Marina Pereira Pires
Oliveira (Coord.). Política nacional de enfrentamento ao Tráfico de
pessoas. Brasília: Ministério da Justiça, 2007. p. 10-15.
LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa
sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de
exploração sexual comercial - PESTRAF. Relatório Nacional. Brasil.
Brasília: CECRIA, 2002.
KING, L. International Law and Human Trafficking. Human Rights
& Human Welfare, v. 1, p. 88-103, 2008.
QUAGLIA, Giovanni. Tráfico de Pessoas, um Panorama Histórico e
Mundial. In: BRASIL. Marina Pereira Pires Oliveira (Coord.). Política
nacional de enfrentamento ao Tráfico de pessoas. Brasília: Ministério
da Justiça, 2007. p. 10-15.
SANTOS, Boaventura de Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE;
Madalena. Tráfico de Mulheres em Portugal para fins de exploração
sexual. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2009.
SANTOS, Débora Rodrigues dos. Política nacional brasileira de
enfrentamento ao tráfico de pessoas à luz do Protocolo de Palermo.
2016. 54 f. TCC (Graduação) - Curso de Relações Internacionais,
Instituto de Educação Superior de Brasília, Brasília, 2016.
SILVA, Waldimeiry Corrêa da; GOES, Karine Goes e. A realidade
multifacetada do Tráfico de Pessoas. In: BORGES, Paulo César Corrêa
(Org.). Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e
trabalho sexual escravo. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2013.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 389
UNITED STATES OF AMERICA, United States Department
of State 2016. Trafficking in Persons Report. Disponível em:
https://www.state.gov/documents/organization/258876.pdf. Acesso
em: 22 de Outubro 2016.
UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2014. Viena: United
Nations publication, 2014.
ZILBERSZTAJN, D.; SZTAJN, R. Economia e Direito: análise
econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 390
EL DESARROLLO DE LA COMPETENCIA MULTILINGÜE
COMO FORMA DE GARANTIZAR LA CULTURA DE LA PAZ

André Luís Vedovato Amato*

INTRODUCCIÓN

La presente investigación ubicada en el eje temático de


Globalización, Ciudadanía y Políticas Públicas busca comprender la
importancia de las políticas públicas como forma de garantizar la paz y la
comprensión entre los pueblos, habiendo en el desarrollo de la capacidad
multilingüe como su principal instrumento, por un abordaje teórico a partir
del concepto de ciudadanía global.
Si la competencia multilingüe es una habilidad de comprensión
del ser humano, al aprender un nuevo idioma las personas, por una
necesidad natural de socialización y comunicación, son compelidas a
comprender el mundo de otra manera abandonando las ideas embazadas
en prejuicios, orgullos y egoísmos, sustituyéndolas por nuevas ideas
de respecto, comprensión y empatía, pues para aprender un idioma es
necesario comprender la cultura, y comprendiéndola tornase necesario
respéctala, tanto a ella como a los miembros de aquello grupo socio-
cultural. Así a partir del cambio valores, actitudes y habilidades es
objetivado el respeto mutuo y la coexistencia pacífica (UNESCO, 2015).
En suma, el desarrollo de esta competencia permite la educación para la
construcción de una sociedad más justas, pacíficas, tolerantes e inclusivas
(KI-MOON, UN, 2012).
Proyectos de Políticas Públicas que intentan incentivar el
desarrollo del intercambio de estudiantes, además de garantizar un cambio
académico, propicia en cambio cultural, es posible, entonces cuestionar
si: ¿Políticas Públicas y acciones individuales de intercambio son un
instrumento efectivo para el desarrollo de la paz y de la comprensión entre
los pueblos en un contexto de ciudadanía global?
Aprender una nueva lengua mientras vives en un país diferente del
propio, es una experiencia que permite la comprensión sobre el ser humano
de una forma más amplia y compleja. Para aprender una nueva lengua,
además de poseer el dominio lingüístico-gramatical, es necesario dominar
*
Bacharelando em Direito. Institución de Investigación: Laboratório de Prática Jurídica
Simulada em Direito Internacional Público e Direito Internacional dos Direitos Humanos
- Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 391
y comprender el contexto lingüístico-social. El lingüista estadounidense
Noam Chomsky (1965) explica que la competencia lingüística está
directamente ligada a la comprensión de las estructuras formales del idioma,
no obstante la comprensión meramente formal ignora el lado humano del
lenguaje, en virtud de que es necesario comprender al otro, comprender su
modo de vida y sus maneras de expresarse, ya que el saber interiorizado es
el que permite comunicarse eficazmente en situaciones sociales distintas
(RICHARDS, J., J. PLATT & H. WEBER; 1985). Es entonces que, más
allá del simple acto comunicativo, existe la necesidad de desarrollar la
alteridad, para comprender y en verdad aprender una nueva lengua. Así es
cuestionado: ¿Si el desarrollo de la capacidad multilingüe como forma de
mejora da la comprensión del ser humano en asumir la situación del otro
es un medio efectivo para el avance del concepto de ciudadanía global?
Por medio de una pesquisa exploración doctrinaria, enfocándose
en artículos de investigaciones y resultados de programas de resolución
de conflictos en el mundo, objetivase comprender el desarrollo de la
capacidad multilingüe como medio para garantizar la paz, a través de la
comprensión del otro.
A despecho de las consideraciones académicas en contrario, es
posible decir: hay una creciente interdependencia e interconectividad entre
países en las áreas económica, cultural y social ocurriendo, también, por
medio del comercio internacional, las migraciones y las comunicaciones
(LEE, W.O.; FOUTS, J.; 2005). El mundo está mucho más dinámico e
interdependiente y sus implicaciones conducen a un desarrollo socio-
económico más amplio (UNESCO; 2015), no apenas en la perspectiva de
las relaciones de países, como también de desarrollo socio-cultural, pues
la dinámica e interdependencia se expande para las relaciones personales e
interpersonales, en las relaciones familiares, laborales, entre otras.
No se trata de un ordenamiento o definición legal, es una situación
fática caracterizada por entender, hacer y relacionarse con otras personas y
con el medio ambiente en un periodo tiempo-espacio con base en valores
universalistas, a través del respecto a la diversidad y al pluralismo cultural
(UNESO;2013). A eso se designa ciudadanía global, que es un cambio
paradigmático en la cosmovisión contemporánea de la sociedad occidental.
La competencia multilingüe concibe la empatía o alteridad
como necesaria al acto comunicativo, siguiéndole el respeto mutuo, la
individualidad y la razón de cada persona, pues genera el sentimiento
de pertenecientica a una categoría social más amplia: la humanidad.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 392
Así, generando los medios de respecto cultural e individual de cada cual
reflejando una verdadera sociedad global.
Es decir, que tales proyectos y programas políticos son esenciales
al desarrollo de una cultura de paz, o sea, un agregado de valores,
acciones, tradiciones y comportamientos embazados en el respecto a la
vida, al reconocimiento del otro con dignidad y respecto; de la práctica de
la cooperación y de la cultura de paz (ONU; 2004).

1 DESARROLLO, CIUDADANIA E CIUDADANIA GLOBAL

La ciudadanía mantiene estrechas relaciones entre la sociedad


política y sus miembros, a partir de la Revolución Francesa y la Revolución
Americana llegó a ser insertado en el contexto global un nuevo tipo de
Estado, llevando consigo los ideales de libertad e igualdad, y aunque
tenían un origen burgués ayudó en la búsqueda de la inclusión social. En
conformidad con el eje temático considerase:
“El instituto de la ciudadanía, en su comprensión liberal, se
refiere al vínculo de naturaleza jurídica y política entre un
individuo y un Estado, que confiere aquel un conjunto de
derechos civiles y políticos, dentro cuales el de votar y recibir
votos. No obstante, las transformaciones por las cuales
pasaran Estado y Sociedad en el pasaje del siglo XIX para
el siglo XX inviabilizaran la permanencia de la comprensión
exclusivamente liberal de la ciudadanía. En la análisis de
Thomas Marshall, la ciudadanía, comprendida como un status
concedido a los sujetos, compuerta un principio de igualdad
entre todos sus detentores, de manera que su expansión tiene
por consecuencia la alteración del padrón de desigualdad
social. De acuerdo con este autor, la ciudadanía es composta
por tres partes que, por naturaleza, se iban desarrollar
sucesivamente: civil (derechos necesarios a la libertad
individual), política (derecho de participar en el ejercicio
del poder político) y social (derechos que contienen desde
el necesario para el mínimo bien estar, hasta el derecho de
participar integralmente de la herencia social). La aplicación
de este análisis, todavía, debe ser hecha con resalvos cuando se
considera la realidad de estados periféricos o semiperiféricos
de América Latina (Cf. Wanderley Guilherme dos Santos
y José Murilo de Carvalho). Además, la comprensión
de la ciudadanía, como nacional por su definición, en el
actual contexto de globalización y relativización de los
elementos constitutivos del Estado, incluso la soberanía, ya

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 393
no son suficientes ni como herramienta analítica, ni como
referencial axiológico. Es necesario, pues, el auxilio de un
concepto que permita conocer y actuar sobre la realidad de
la participación política y de la concretización de derechos
para allá de los límites del Estado y de la nacionalidad.
En ese sentido, tiene gran relevancia la idea de ciudadanía
cosmopolita, global o mundial.”
La UNESCO en su programa de educación para la ciudadanía
global considera que ese término refiere se “a un sentido de pertenencia
a una comunidad más amplia y a una humanidad común. Hace hincapié
en la interdependencia política, económica, social y cultural y en las
interconexiones entre los niveles local, nacional y mundial” (UNESCO;
2015). Aún más, es un abordaje si se considera la educación para la ciudadanía
global en tres dimensiones conceptuales básicas, a saber: la cognitiva, la
socioemocional y la conductal. La dimensión cognitiva es caracterizada
por “la adquisición de conocimientos, comprensión y pensamiento crítico
acerca de cuestiones mundiales, regionales, nacionales y locales, así como
de las interrelaciones y la interdependencia de diferentes países y grupos de
población” (UNESCO; 2015; p.15). La Socioemocional es representante
del “sentido de pertenencia a una humanidad común, compartiendo valores
y responsabilidades, empatía, solidaridad y respeto de las diferencias y la
diversidad” (UNESCO; 2015; p.15). Por su vez, la conductal representa
la “acción eficaz y responsable en el ámbito local, nacional y mundial con
miras a un mundo más pacífico y sostenible” (UNESCO; 2015; p.15).
Así para la presente investigación comprehendiese ciudadanía
global como un abordaje de comprensión sobre la ciudadanía clásica
desarrollando aspectos socioculturales, además de los requisitos
formales. ¿Cómo el desarrollo dese abordaje permite el desarrollo de la
comprensión del otro? ¿Cuáles influencias que se pueden comprehender
por medio del lenguaje?

2 LA COMPETENCIA MULTILINGÜE COMO UNA


COMPETENCIA CULTURAL

Cada persona interpreta y comprende el mundo por un medio


individual. Una lengua como un conjunto de signos, señales y significantes
en su simplicidad es solo uno instrumento de expresión de la manifestación
de la razón individual. La lengua expresa un hecho, un acto, lo describe, a
partir de una manifestación individual. Se describe algo, no se crea, en ese

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 394
sentido la función esencial es la comprensión de aquello que se describió,
y no como si lo fuera. Ejemplificase con la definición del sentimiento
afectivo, próximo a la melancolía, estimulado por la distancia representado
en portugués por la palabra “saudade”, adoptada sin cambios por los
hispanohablantes, mientras en inglés, por ejemplo, lo más similar seria
la expresión “I miss you”. A pesar de no haber palabra correspondiente la
idea es la misma, ella existe en todos lugares. Así afirmase toda forma e
instrumento comunicativo es incompleto en su esencia pues no logra repasar
la idea tal cual fuera presentada por su creador. Por más sencilla y clara que
sea la transmisión, siempre hay presencia de ruidos comunicativos, que
logran dificultar esa comprensión. Todavía, esta comprensión no solo se
deriva del lenguaje hablado tradicional. No se olvide; está la existencia de
los sordomudos, los autistas, que se comunican por otros medios que no es
del lenguaje usual. Además de las dificultades encontradas, muchas veces
logra su intento de manifestar su humanidad, su razón. Así se comprende
que la capacidad multilingüe es la competencia de cada persona expresarse
y comprender la expresión de la razón del otro. Más allá del simple
dominio de la estructura de los idiomas, que es función de gramáticos
y lingüistas. La competencia multilingüe es una habilidad de expresión,
de comprensión de cada cual como ser humano; es un instrumento de
desarrollo de humanidad.
En sentido general, por competencia lingüística se entiende el hecho
de "saber una lengua", conocimiento que comprende varios componentes:
fonológico, sintáctico, semántico, léxico y morfológico. Chomsky (1965)
define la competencia lingüística como el sistema de reglas que, interiorizadas
por el discente, conforman sus conocimientos verbales (expresión) y le permite
entender un número infinito de enunciados lingüísticos (comprensión). Lyons
(1969) incorpora otro matiz al hacer referencia a la competencia pragmática,
la que define como el conocimiento y la capacidad de utilizar procedimientos
no lingüísticos que incluyen las necesidades, las intenciones, los propósitos
y las finalidades en el uso de la lengua. A partir de la década de los sesenta,
se comienza a distinguir entre competencia lingüística y comunicativa,
pasando de una visión estructuralista de la lengua (vista como materia de
conocimiento, con énfasis en el aprendizaje de la gramática, de las reglas
y estructuras), a una visión comunicativa (como instrumento de uso, con
determinados propósitos, intenciones y finalidades).
La idea que mueve este cambio en la forma de comprender la
comunicación, es el supuesto de que en el momento de la comunicación no

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 395
solo transmitimos una información por medio del código (HENRIQUEZ;
NOGUES; MARTIN: 2012). La comunicación humana va más allá de esta
definición, ya que en muchas de nuestras interacciones no intercambiamos
información solamente, sino que se saluda, agradece, interroga, insulta,
lo que implica otros tipos de acciones y comportamientos implícitos.
En consecuencia, es posible establecer diferentes finalidades en la
comunicación humana, siendo una de ellas la de informar, pero no es la
única. Además, el hecho de compartir un mismo código no es un requisito
para que dos o más sujetos logren comunicarse con éxito, puedan convivir
y lleguen a entenderse (HENRIQUEZ; NOGUES; MARTIN: 2012).
A través del lenguaje, de sus signos (verbales y no verbales), los
sujetos deben intentar interpretar eficazmente los símbolos convencionales de
un código aprendido. En este contexto, la conclusión a la que se puede llegar es
que los hablantes no tienen como única fuente la descodificación para obtener
una información: también emplean la inferencia (de cierta información,
deducir otra nueva); además, existe una intención comunicativa que espera
ser compartida, objetivo que desempeña un papel decisivo en la comunicación
y en la relación entre personas de culturas diferentes (HENRIQUEZ;
NOGUES; MARTIN: 2012). La incorporación de estos nuevos matices a la
teoría comunicativa viene a validar la idea de que en el sistema educativo, los
centros educativos no deben centrarse exclusivamente en el aprendizaje de
la lengua vehicular de la enseñanza, sino en el aprendizaje de competencias
comunicativas globales, partiendo del contexto de la diversidad lingüística
que vive el propio alumno y considerándolo en su vertiente de aprendiz de
lenguas, como el resto de sus compañeros. Como nociones básicas de un
enfoque comunicativo intercultural, Henriquez; Nogués y Martin (2012) al
citar Janney y Horst (1992) proponen que el estudiante sea considerado el
centro del proceso de enseñanza y aprendizaje y el uso de la lengua tenga,
entre otras finalidades, establecer una buena convivencia entre los integrantes
de un grupo, lo que lleva a priorizar el proceso de significación sobre la
conceptualización; vale decir, que lleguen a entender el porqué de cualquier
situación, saber analizarla y valorarla. Esto sería un sujeto competente desde
este enfoque (HENRIQUEZ; NOGUES; MARTIN: 2012).
Dentro de las metodologías proponen el diálogo y la interacción,
empleando la dinámica de grupos y la motivación. Para estos autores,
la competencia comunicativa intercultural conseguiría integrar aspectos
cognitivos, axiológicos, afectivos, motivacionales y creativos, como
componentes básicos del desarrollo de la personalidad de los aprendices.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 396
Este enfoque pasa de aspectos puramente lingüísticos al desarrollo de
competencias más amplias, pues concibe que la lengua se aprende en
contextos reales y contextualizados, e intenta mantener una línea de acción
en esa dirección, por ejemplo, empleando textos auténticos, variados, reales
y verosímiles que sean objeto de comprensión, análisis y que favorezcan
una interacción lingüística permanente, a través de acciones de escucha,
habla, lectura y escritura.
Un último aspecto que es posible analizar, es el cambio que se ha
producido al considerar el desarrollo de la lengua como elemento clave en
el desarrollo de la identidad de los hablantes. (HENRIQUEZ; NOGUES;
MARTIN: 2012)No se puede entender otra cultura sin tomar conciencia
de la propia, esto implica un acto recíproco. Al citar Areizaga (2001), los
autores (HENRIQUEZ; NOGUES; MARTIN: 2012) comprehenden que la
visión de lengua y comunicación debe recoger la perspectiva histórica que
dé cuenta del carácter dinámico de toda la sociedad, así como presentar la
pluralidad y complejidad de las redes sociales entre grupos e individuos,
que es donde se desarrolla tal identidad. La cultura no se basa en el
conocimiento compartido, sino en reglas compartidas de interpretación;
por lo tanto, asumir una identidad prestada mediante el aprendizaje de la
lengua, a través de una serie de conductas determinadas, no facilitará la
consecución de los objetivos educativos que la enseñanza persigue, entre
ellos el desarrollo de una verdadera competencia comunicativa intercultural.
Así, identificada la influencia socio-lingüística-psicológica de las
estructuras de la lengua, es posible deducir que esa estructura es permeable
por relaciones interpersonales, cuestionándose cual sus consecuencias para
el desarrollo de la ciudadanía global. Para eso, es necesario recoger a la
teoría de abordaje interactiva para resoluciones de conflictos internacionales
de Herbert C. Kelman.

3 ABORDAJES INTERACTIVAS PARA RESOLUCIONES DE


CONFLICTOS

En los días actuales es posible notar que la intolerancia, o mejor,


la falta de comprensión del diferente es el generador de los conflictos,
adicionados claro a los interés económicos, militares, entre otros. Todavía
al hablar con referidos agentes todos se refieren a sus acciones como
medios para atingir la paz social y el desarrollo. Ignorando la presencia
de agentes portadores de malas intenciones, hay en general el objetivo de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 397
desarrollo más amplio, el biencomún, así es posible concluir que se trata
de un problema de comunicación, la cual las partes hablan y desean la
misma cosa, todavía no logran éxito de atingir el objetivo común, pues
no comprenden la idea presentada por otra perspectiva sino la suya. Un
ejemplo palpable ocurre en Brasil, en el microcosmo universitario, en la
cual hay sociedades deportivas académica y sociedad de representación
política académica que concurren atención y fondos de los estudiantes.
Ambos desean la misma cosa, mayor participación discente, sola que para
lograr éxito atacan al otro como enemigos, en lugar de trabajar juntos
para el objetivo común.
Si tal situación ocurre en un microcosmo pequeño, es posible que
también ocurra afuera en otros tantos micros e macrocosmos existentes.
Hay presencia de ruidos comunicativos que impiden la total comprensión
de las ideas presentadas, muchos son prejuicios o simple ignorancia del
respecto a las diferencias para objetivar un objetivo más grande. De forma
resumida hay conflictos pues no hay comunicación, se no ha comunicación,
no ha alteridad, sin alteridad no ha respecto, sin respecto la humanidad
caminará para su propia destruición.
La competencia multilingüe concibe la empatía o alteridad
como necesaria al acto comunicativo, siguiéndole el respeto mutuo, la
individualidad y la razón de cada persona, pues genera el sentimiento
de pertenecientica a una categoría social más amplia: la humanidad.
Así, generando los medios de respecto cultural e individual de cada cual
reflejando una verdadera sociedad global.
Herbert C. Kelman (1998) adopta un enfoque para el análisis y
resolución de conflictos internacionales y étnicos, anclado en principios
psicológicos y sociológicos bajo un modelo práctico-empíricos sobre la
influencia social y la interacción grupal. Para el, la identidad nacional y la
existente entre dos pueblos que son destinados a vivir juntos en la misma
pequeña área debe apuntar hacia el establecimiento de una nueva realidad
cooperativa y mutuamente comprehensiva hasta involucrar un proceso
continuo de desarrollo hacia esa relación (KELMAN; 1998).
La práctica de solución de problemas interactivos es informadas
por un conjunto de suposiciones sobre la naturaleza de internacionales
o intercomunales a partir de un análisis socio-psicológico embazados
en cincos supuestos generales que abordan la estructura, el proceso, y el
contenido de la resolución de problemas (KELMAN; 1998).

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 398
Dentro los supuestos abordador por el actor están las relaciones
internacionales en su conjunto pro-societales e intersocietales, que no
pueden excluir el nivel de comportamiento individual, pues el individuo
representa la mayor parte de las unidades de análisis apropiada. (KELMAN;
1998). Así para la efectiva resolución de los conflictos está presente la
necesidad de satisfacción de las necesidades de los individuos articulados
a través de sus principales grupos de identidad.
No obstante al desarrollar soluciones mutuamente satisfactorias,
en conflictos sobre identidad, seguridad y otras necesidades psicológicas
necesitase de- puntos de entrada pertinentes a el análisis psicológico
(KELMAN; 1998). En el modelo teórico interacciones entre personas
pueden influenciar la determinación de resultados positivos, así el
autor puede identificar ciertos procesos centrales para la resolución de
conflictos, como la empatía, la penetración, el problema creativo, es decir,
la solución y el aprendizaje se producen a nivel de la interacción entre los
individuos (KELMAN; 1998).
El conflicto internacional debe ser comprehendido no sólo como
un fenómeno intergubernamental o interestatal, pero también como un
fenómeno intersocietal en la medida en que el conflicto entre dos sociedades,
se vuelve importante para examinar lo que sucede dentro cada sociedad,
Kelman (1998) alértanos sobre el papel de las divisiones dentro de cada
sociedad - es decir, las relaciones intergrupal y intragrupal (KELMAN;
1998). Divisiones internas son limitaciones serias para la búsqueda de la
paz pero también proporcionan palancas para el cambio, pues desafían la
imagen monolítica del enemigo existente en las partes en conflicto. Así
requiere un análisis de la dinámica de la opinión pública en ambos lados
como requisito para el consenso.
Si las interacciones intersociales son necesarias para la resolución
de conflictos étnicos, pues tratase de una corrección de las relaciones
individuales, así, en conformidad con lo presentado en la sección dos es
posible teorizar cuanto la aplicación sobre la enseñanza de lenguas, pues
necesita de los mismos elementos: empatía, diálogo, conocimiento de las
diferencias entre los grupos.
Para Kelman (1998) el conflicto es un proceso interactivo, las
necesidades y los temores de las partes involucradas imponen percepción
y restricciones cognitivas. La interacción entre las partes en conflicto
alienten a cada parte a adoptar una postura, intransigente, amenazador, lo
que refuerza la imagen hostil del enemigo y crea profecías auto cumplidas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 399
La dinámica del conflicto tienden a consolidar sus propias perspectivas
sobre justicia; deshumanización del enemigo.
Así como el desarrollo de la capacidad multilingüe, la perspectiva
adoptada pelo autor para la solución interactiva de conflictos busca en si
el reconocimiento y la ascensión a la perspectiva del otro. Los esfuerzos
de resolución de conflictos requieren la promoción de un tipo diferente
de capacidad, capaz de invertir conflictos mediante la perspectiva de
diferenciación de la imagen del enemigo que contribuye a la resolución del
problema. La interacción entre la teoría lingüística, adoptada en la sección
dos, puede contribuir al desarrollo de un sistema sin conflictos, pues el
lenguaje expresa en ideas, gestos y acciones generan un compromiso de
reciprocidad caracterizase así un cambio del énfasis de la política del
poder (KELMAN; 1998).
En la metodología presentada por Kelman exige la participación
de un tercero en la comunicación entre partes, destacándose que el tercero
no esta involucrado en la relación conflictuosa. La finalidad buscada es la
creación de una atmósfera, donde el establecimiento de normas propicie a
la libre manifestación y un debate abierto, en el que las partes se dirigen
entre sí con el fin de comprender su diferentes perspectivas (KELMAN;
1998). General y resumidamente es decir tratase de desarrollar el concepto
de alteridad en las partes involucradas en un conflicto.
Para la metodología adoptada la resolución de conflictos requiere
una gama más amplia de procesos de influencia, es necesario ampliar
y refinar estrategias basadas en las promesas y los incentivos positivos
que satisfagan las necesidades de ambas partes. Una llave Elemento en
este proceso es mutuo seguridades. En los conflictos existenciales las
partes pueden negociar entre si reduciendo los temores de ambas partes
(KELMAN; 1998). Así como en el desarrollo de la capacidad multilingüe
que busca el conocimiento de las necesidades culturales del otro y su
reconocimiento, llevando a un desarrollo de la ciudadanía global.
De la misma forma que el proceso de aprendizaje de una
nueva cultura, la discusión analítica ayuda a las partes a penetrar la
perspectiva del otro y comprender sus necesidades, miedos, prioridades
y restricciones (KELMAN; 1998). Una vez que ambas las partes se han
entendidos y reconocidos, son alentados a participar de ese proceso
conjunto de desarrollo de la alteridad, es decir, del reconocimiento del otro
como sujeto de derechos.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 400
Para Kelman (1998) esta concepción ampliada sobre los procesos
de influencia en una relación se basa en un fenómeno dinámico, marcado
por la ocurrencia y posibilidad de cambio de mentalidad y concepciones.
Tales esfuerzos de resolución de conflictos se orientan, por lo tanto, a
descubrir posibilidades de cambio, identificando condiciones para el
cambio y resistencia al cambio favoreciendo una actitud optimista de
identificación y reconocimiento del otro. El mismo ocurre en el desarrollo
del concepto de ciudadanía global, traspasado por los principios de la
teoría lingüística en relación a la capacidad multilingüe.

CONCLUSIÓN

Por todo el expuesto es posible comprender que el desarrollo


de la capacidad multilingüe conduce a un sentimiento de percibirse
parte integrante de una comunidad: la humanidad. Con el progreso
tecnológico y de las comunicaciones hubo una interconexión platanaria
única en la historia de la humanidad. Se vive en una sociedad totalmente
interconectada en la cual toda acción produce una consecuencia,
independiente donde se encuentre. El globo está más interconectado, las
distancias otrora lejos; hoy, cerca.
A despecho de las consideraciones académicas en contrario, es
posible decir: hay una creciente interdependencia e interconectividad
entre países en las áreas económica, cultural y social ocurriendo,
también, por medio del comercio internacional, las migraciones y las
comunicaciones (UNESCO; 2014). El mundo está mucho más dinámico
e interdependiente y sus implicaciones conducen a un desarrollo socio-
económico más amplio (UNESCO; 2015), no apenas en la perspectiva de
las relaciones de países, como también de desarrollo sociocultural, pues la
dinámica e interdependencia se expande para las relaciones personales e
interpersonales, en las relaciones familiares, laborales, entre otras.
La enseñaza de un nuevo idioma pasa por los procesos de
aprendizaje y por la construcción de una identidad sociocultural de
significación. Comprender una nueva cultura es esencial para el aprendizaje
de lenguas, asi como para el desarrollo del concepto de ciudadanía global.
Así programas que permiten el cambio cultural son instrumentos eficaces
in abstrato como formas de garantizar la comprensión cultural y evitar
conflictos o resolver los ya existentes. Así al adoptar la metodología de
solución interactiva de conflictos y aplicarla dentro de sus posibilidades

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 401
y limitaciones al abordaje de la ciudadanía global, tenemos un proceso
de formación cultural, o intercultural efectiva con resultados esperados
positivos cuanto a concientización de una nueva sociedad global que se
presenta en eso siglo.

REFERÊNCIAS

CHOMSKY, N. (1965). Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge,


Massachusetts: M.I.T. Press. (Trad. Port. de E. Raposo J. Meireles, 1975.
Aspectos da Teoria da Sintaxe. Coimbra: Arménio Amado).
RICHARDS, J., J. PLATT & H. WEBER (1985). Longman Dictionary
of Applied Linguistics. Harlow: Longman.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª
edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. São Paulo.
Martins Fontes. 2007.
KI-MOON, Ban. Secretário General. GEFI - UN. 26
de Setiembre de 2012.
LEE, W.O.; FOUTS, J. Education for social citizenship. Hong Kong:
Hong Kong University Press, 2005.
UNESCO. Educação para a cidadania global. Brasilia/Brasil. 2015.
UNESCO. Global Citizenship education: an emerging perspective:
outcome document of the Technical Consultation on Global Citizenship
Education. Paris, 2013.
SANHUEZA HENRÍQUEZ, Susan; PAUKNER NOGUÉS, Fraño;
SAN MARTÍN, Víctor; FRIZ CARRILLO, Miguel Dimensiones de la
competencia comunicativa intercultural (CCI) y sus implicaciones
para la práctica educativa Revista Folios, núm. 36, juliodiciembre,
2012, pp. 131-151 Universidad Pedagógica Nacional Bogotá, Colombia.
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=345932039008.
Acesso em: 18 out. 2016.
BAR-TAL, Daniel. From Intractable Conflict through Conflict
Resolution to Reconciliation: Psychological Analysis. In Political
Psychology, Vol. 21, No. 2 (Jun., 2000), pp. 351. International
Society of Political Psychology. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/3791795. Acesso em: 15 out. 2016.
KELMAN, Helbert C. Interactive Problem Solving: An Approach
to Conflict Resolution and Its Application in the Middle East. In
Political Science and Politics, Vol. 31, No. 2 (Jun., 1998), pp. 190-198.
American Political Science Association. Disponível em: http://www.jstor.
org/stable/420249. Acesso em: 15 out. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 403
CONTROLE SOCIAL E EXERCÍCIO DA
ACCOUNTABILITY VERTICAL NA INFRAESTRUTURA:
AMPLIAÇÃO, CRIAÇÃO E FORTALECIMENTO DE
ARRANJOS PARTICIPATIVOS*

José Augusto Marques de Souza*

INTRODUÇÃO

Na teoria política contemporânea talvez seja consenso o fato de


que o regime democrático representou um dos ideais mais importantes
alcançados no século XX. Grandes acontecimentos como as duas guerras
mundiais, bem como a emergência dos dois regimes totalitários e outros
autoritários, demonstraram a necessidade de se investir em um modelo
que privilegiasse as liberdades dos cidadãos. Nesse sentido, a constituição
da democracia se dá a partir da lógica liberal, segundo o qual “o processo
democrático cumpre a tarefa de programar o Estado no interesse da
sociedade, entendendo-se o Estado como o aparato de administração
pública e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma
economia de mercado”. (HABERMAS, 1995, p. 39). Além disso, para
este projeto democrático o êxito do processo de formação da opinião e
da vontade política na esfera pública estaria ligado ao assentimento dos
cidadãos a pessoas e programas (HABERMAS, 1995).
A democracia liberal, ou modelo hegemônico acabou sendo
construído ao longo do século XX, principalmente no pós-segunda guerra
quando se passou a analisar e propor quais seriam as condições estruturais
da democracia (AVRITZER; SANTOS, 2003, p. 01). Entretanto, embora
tal modelo vigorasse em grande parte dos países do Norte, no Sul, devido
à “terceira onda de democratização” ocorrida na segunda metade do século
passado, modelos contra-hegemônicos foram surgindo, inovando em
relação à democracia liberal e elitista.
Nestes países, no Brasil inclusive, notou-se a necessidade de
se pensar em uma nova constituição da gramática social (AVRITZER;
SANTOS, 2003), com o intuito de permitir que públicos plurais
participassem diretamente da política, ampliando a participação destes
atores do campo eleitoral para o campo deliberativo. Nesse momento de
reinvenção das práticas democráticas, o Brasil foi um dos exemplos em
*
Discente do 8º período do Curso de Direito da Universidade José do
Rosário Velano - UNIFENAS.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 405
que esta ação logrou maiores êxitos. Leonardo Avritzer (2016) mostra
que a nova Constituição da República, promulgada em 1988, permitiu
que grupos plurais participassem da elaboração e proposição de emendas
populares (2016, p. 51), no sentido de permitir que a voz destes grupos
fosse ouvida por toda a sociedade.
Mas, mesmo havendo esta abertura à pluralidade, ficou claro que
áreas como saúde e assistência social foram privilegiadas em detrimento
de outras, como a infraestrutura. Esta última, sofreu uma defasagem no
tocante à existência formal de arranjos participativos que exercessem um
controle social sobre as obras públicas (AVRITZER, 2016).
Assim, diante da evidente constatação de que ainda existem
poucos trabalhos que mobilizam esta área da participação, é preciso ir
mais a fundo, lembrando do que escreveu Adrian Lavalle (2011, p. 38): “a
participação não apenas fortaleceria a formação de identidades políticas
amplas, mas contribuiria para a legitimação de instituições políticas.”
Por fim, advoga-se que a institucionalização de arranjos participativos
no setor da infraestrutura, bem como o fortalecimento dos já existentes,
que ainda são muito escassos, é elemento fundamental para aumentar a
chamada intensidade democrática brasileira, caso contrário a promessa
não hegemônica adotada por esta democracia estaria longe de ser
plenamente alcançada.
É relevante observar que a importância do presente trabalho
reside no fato de que hoje talvez seja consenso o fato de que as práticas
participativas são extremamente positivas à democracia. Entretanto, mesmo
os arranjos existentes podem conter problemas de diversas ordens. Torna-
se importante fazer um balanço dos arranjos existentes confrontando-os
com a área da infraestrutura, que ainda é carente de modelos, a fim de se
observar em que grau se encontra a intensidade democrática do Brasil,
e, além disso, se a inexistência de arranjos na área citada representa um
déficit democrático.
Ressalta-se, ainda, que o principal recurso metodológico
utilizado foi a análise bibliográfica dos autores que trabalharam o tema
‘participação’, ‘accountability’ e ‘qualidade democrática’, a fim de
buscar na literatura disponível razões para a inexistência de arranjos em
matéria de infraestrutura. Cumpre destacar que os relatórios de pesquisa
disponibilizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 406
forneceram uma base de dados já sistematizada, dispensando em um
primeiro momento um levantamento mais detalhado.

1 A DEMOCRACIA LIBERAL-HEGEMÔNICA NO SÉCULO XX

Para a teoria política contemporânea, o acontecimento mais


importante do ponto de vista social e político no século XX foi a
emergência da democracia. De fato, este século atravessou caminhos
tortuosos para que se chegasse a um consenso democrático nos países
ocidentais. Avritzer e Santos (2003) deixam claro que neste período
turbulento a questão democrática esteve em intensa disputa. Em razão
disso, dois debates surgiram. O primeiro dizia respeito à desejabilidade do
regime democrático, enquanto o segundo girava em torno das condições
estruturais deste regime.
A partir do final da segunda guerra mundial, o modelo hegemônico
com base nos dois debates surgidos no entre-guerras vigorou nas democracias
contemporâneas. Nos países do Norte observou-se a institucionalização
do modelo hegemônico de democracia, melhor representado pela ideia
de uma democracia liberal, nas palavras de Luis Felipe Miguel (2014),
privilegiando um procedimento que visava exclusivamente a tomada de
decisões por uma minoria escolhida por meio das eleições.
Autores como Joseph Schumpeter, Anthony Downs, Samuel
Huntington, Norberto Bobbio, Robert Dahl, dentre outros, apontariam,
a partir da segunda metade do século XX, elementos que poderiam ser
entendidos como estruturantes da concepção hegemônica. Os principais
elementos dessa concepção seriam a tão apontada contradição entre
mobilização e institucionalização (Huntington, 1969; Germani, 1971); a
valorização positiva da apatia política (Downs, 1956), uma idéia muito
salientada por Schumpeter para quem o cidadão comum não tinha capacidade
ou interesse político senão para escolher os líderes a quem incumbiria
tomar as decisões (1942: 269); a concentração do debate democrático
na questão dos desenhos eleitorais das democracias (Lijphart, 1984); o
tratamento do pluralismo como forma de incorporação partidária e disputa
entre as elites (Dahl, 1956; 1971) e a solução minimalista ao problema da
participação pela via da discussão das escalas e da complexidade (Bobbio,
1986; Dahl, 1991). (AVRITZER; SANTOS, 2003, p. 02).
O que fica nítido a partir da proposição destes autores, é o fato de
que na democracia liberal, essencialmente representativa e muito pouco

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 407
participativa, vigoraria a ideia de um conceito minimalista, tal como
proposto por Schumpeter. Nas palavras do autor, “o método democrático
é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os
indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva
pelos votos da população”. (SCHUMPETER, 1984, p. 336).
Esta redução ao procedimentalismo minimalista representa bem a
concepção hegemônica da democracia, justamente por supor que “a solução
elitista para o debate democrático, com a consequente sobrevalorização do
papel dos mecanismos de representação, poderia tornar-se hegemônica sem
que estes últimos precisassem se combinar com mecanismos societários de
participação” (MANIN apud AVRITZER et.al., 2003, p. 03).
Obviamente, transparece a noção de que o procedimentalismo
hegemônico privilegia os processos pré-constitutivos de poder, i.e., a
democracia é pensada sob um ideal anti-normativo e realista sobre o qual
se erige o fortalecimento do seu viés representativo e eleitoral, fazendo com
que a participação da sociedade seja apenas dirigida a escolher qual elite
política será a vencedora naquele momento, para que sejam implementadas
agendas decididas exclusivamente no interior da burocracia do Estado.

2 MODELOS CONTRA-HEGEMÔNICOS NA SEGUNDA


METADE DO SÉC. XX

Ainda no século XX, após o sucesso institucional experimentado


pelo modelo liberal, surgem concepções não-hegemônicas no cenário
da democracia. Isso talvez deixe bem claro a disputa sobre o sentido da
democracia, ocorrido no século XX e apontado por Miguel (2014). Ao passo
que o modelo hegemônico favoreceu fortemente o elitismo democrático, a
concepção não-hegemônica se preocupou muito mais com a participação
da sociedade nas decisões da agenda política.
A leitura que o modelo não-hegemônico passou a fazer da
democracia na segunda metade do século XX priorizou a noção de que
a democracia seria uma gramática de organização e da interação entre
Estado e sociedade. Como mostram Avritzer e Santos (2003):
O reconhecimento da pluralidade humana dá−se não apenas
a partir da suspensão da ideia de bem comum, tal como
propõem Schumpeter, Downs e Bobbio, mas a partir de
dois critérios distintos: a ênfase na criação de uma nova
gramática social e cultural e o entendimento da inovação
social articulada com a inovação institucional, isto é, com

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 408
a procura de uma nova institucionalidade da democracia.
(AVRITZER; SANTOS, 2003, p. 08)
A ideia é a de inserir a pluralidade na agenda democrática,
possibilitando o exercício de uma política mais plural visando uma
nova configuração da gramática social preexistente. Para tanto, ou
melhor, para que se atinja uma política plural, é fundamental que se
tenha o assentimento dos atores em processos racionais de discussão e
deliberação. Esta descrição representa o chamado princípio D, proposto
por Habermas, e para o qual “apenas são válidas aquelas normas-ações
com as quais todas as pessoas possam concordar como participantes de
um discurso racional.” (HABERMAS apud AVRITZER, 2000, p. 39). A
inferência que se faz disso é a de que o procedimentalismo democrático
sofreu uma reviravolta, deixando de ser uma forma de autorização de
governos e passando a ser uma forma de exercício coletivo do poder
político, calcado em um processo que seja livre e que haja a apresentação
de razões entre iguais.
A nova leitura da sociedade proposta pelo modelo contra
hegemônico, indiretamente propôs uma nova articulação entre a
democracia representativa e a democracia participativa, no sentido de
que, “os grupos mais vulneráveis socialmente, os sectores sociais menos
favorecidos e as etnias minoritárias não conseguem que os seus interesses
sejam representados no sistema político com a mesma facilidade dos
sectores maioritários ou economicamente mais prósperos.” (AVRITZER;
SANTOS, 2003, p. 11). Nesse sentido, os países do Sul, durante a chamada
“terceira onda de democratização”, desempenharam um importante papel
na interação entre as democracias representativa e participativa, lançando
uma nova hipótese de construção democrática, mais voltada ao social,
resgatando, em certa medida, os fundamentos do welfare state.

3 CONTRA HEGEMONIA E O CASO BRASILEIRO

Avritzer e Santos (2003) argumentam que a reinvenção da


democracia participativa nos países do Sul esteve diretamente ligada ao
recente processo de democratização pelo qual estes passaram. Tal processo
fez com que a nova configuração do Estado, que no caso brasileiro transitou
do autoritário ao democrático, implicou no questionamento de uma
gramática social pautada na exclusão, optando por instaurar uma alternativa
mais inclusiva aos públicos minoritários que antes não tinham voz.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 409
O Brasil, seguindo a “terceira onda de democratização” foi um
dos países que lidou diretamente com a questão da participação. Após
o fim do regime autoritário, com o início dos trabalhos da Assembleia
Constituinte, começou a ser inaugurado uma nova forma procedimental
da democracia representativa. O professor Leonardo Avritzer (2016) em
lançamento recente cita que “a Constituição de 1988 - com os artigos sobre
soberania (artigo 1º), participação direta (artigo 14) e os capítulos sobre
as políticas sociais participativas - foi o ponto de partida na direção da
participação social no Brasil.” (AVRITZER, 2016, p. 52).
Isto somente foi possível tendo-se em vista que a Constituinte
se preocupou em permitir a elaboração de emendas populares, contando
com a participação direta de movimentos sociais ligados à saúde e reforma
urbana, bem como outros atores como a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Como segundo momento de aprofundamento democrático e
proposição de práticas participativas (AVRITZER, 2016), pode-se citar o
importante papel desempenhado pelo Partido dos Trabalhadores no anos
noventa, instituindo a nível local formas de participação, tanto na área de
saúde quanto na área orçamentária, que é o caso do orçamento participativo
(OP), talvez um dos maiores êxitos em termos de participação política
institucionalizada. Além disso, com a conquista do governo federal pelo
PT, as práticas participativas que ocorriam somente a nível local passaram
a ser ampliadas a nível nacional, fortalecendo a sinergia entre o partido e
os processos de participação social.
De um lado, é possível notar o uso intensivo da participação
nas políticas sociais, que começa no nível local em cidades
como São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte e alcança o
nível nacional no começo do governo Lula. De outro, nota-
se uma ausência quase integral da participação na área da
infraestrutura. Esta não foi uma arena privilegiada pelos
movimentos sociais dos anos 1990, devido ao apagão de
investimentos no setor provocado pela crise da dívida externa
no período que precedeu a democratização brasileira.”
(AVRITZER, 2016, p.51).

A falta de atenção ao setor da infraestrutura durante a


democratização fez com que poucas regras fossem direcionadas a este.
Talvez a normatização mais expressiva seja a da lei nº 8.666 de 1993,
a chamada Lei de Licitações, que impõe certas regras e certos controles
internos à Administração Pública no sentido de estabelecer um modus

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 410
operandi de obras públicas e aquisições de bens.
Junto à falta de atenção a este setor, pode-se aliar a ideia de que
embora a democratização brasileira tenha representado uma inserção
de elementos participativos (não-hegemônicos) no interior da nova
democracia, subsistiram resquícios hegemônicos e minimalistas que
contaminaram a recuperação democrática no caso brasileiro. Talvez isto
fique mais evidente quando se analisa a própria Administração Pública,
que desde a época do Império é gerida sob a concepção burocratizada, que
por sua vez acaba privilegiando um certo patrimonialismo excessivo.
Em termos de arranjos participativos, a infraestrutura, enquanto
setor responsável pela implementação de obras públicas, não dispôs de
quase nenhuma empiria. As audiências públicas talvez sejam uma das
formas de participação mais utilizadas para esta área, mas que ainda assim
não atingem de fato o seu objetivo.
Face a isso, no que se refere ao controle social das obras públicas,
é preciso que alguns misticismos sejam deixados de lado:
O acompanhamento de obras públicas é, geralmente, visto
como uma atividade técnica e complexa, mais apropriada
para ser executada pelos gestores públicos, e na qual
ainda há certas resistências burocráticas a uma maior
participação do cidadão. Apesar da complexidade técnica,
é fundamental discutir e propor alternativas para que haja
uma maior diminuição de processos de corrupção, devido
à vigilância mais próxima da sociedade, e pode também
aumentar a eficiência na gestão dessas obras, haja vista
que o acompanhamento mais próximo da sociedade
pressiona o gestor público a atuar com mais zelo e cuidado.
(PAIVA, 2015, p. 89).

De fato não existem no Brasil participativo hoje grandes


intervenções da sociedade civil no tocante ao controle e fiscalização de
obras públicas, talvez o principal motivo seja o apontado acima, isto é, a
sociedade civil impõe uma barreira estrutural a si mesma, considerando o
conhecimento técnico como pressuposto para a participação.
Preliminarmente, pode-se dizer que isto não é verdade. Como
maior exemplo disso, Paiva (2015) cita em seu artigo o Movimento João
Pessoa Que Queremos (JPQQ), as mobilizações populares decorrentes das
obras da Copa do Mundo de futebol, a Comissão de Acompanhamento
de Obra (CAO) do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) dentre

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 411
outros que a nível local, propuseram grandes avanços no que tange ao
controle da infraestrutura diretamente pela sociedade civil desprovida de
conhecimentos técnicos.

4 IMBRÓGLIO PARTICIPATIVO: ALCANCE DO CONTROLE


SOCIAL E DA ACCOUNTABILITY VERTICAL

É evidente que elementos do modelo hegemônico ainda estão


presentes na democracia participativa brasileira, fazendo com que o
controle social da infraestrutura e, consequentemente, das obras públicas
seja deficiente. Face à isso, a tese defendida pelo presente projeto de
pesquisa é a de que o fortalecimento da participação como um todo,
principalmente nas áreas mais deficientes como a infraestrutura, é elemento
sine qua non, de ampliação da concepção não hegemônica, fazendo com
que seja possível defender a ideia de que sem a proposição de arranjos
participativos que favoreçam esta área, a democracia brasileira ainda se
encontrará em baixa intensidade, tendo-se em vista que a infraestrutura é
uma das mais importantes áreas em desenvolvimento no país.
Para tanto, é preciso que surjam arranjos preocupados em exercer o
controle social nesta área, mesmo que a nível local, para que posteriormente
isto seja ampliado ao nível nacional. Além disso, constitui um caractere
muito importante o fortalecimento de arranjos já existentes, como os
que serão apresentados em sequência, desmistificando a ideia de que o
controle de obras públicas cabe somente aos detentores de conhecimento
técnico, e por sua vez reafirmando a tese de que a ampliação de arranjos
participativos para esta área em particular é condição chave para que haja
um improvement na intensidade democrática no caso brasileiro.

5 LEVANTAMENTO EMPÍRICO

Recentemente o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


(IPEA), em parceria com a Secretaria da Presidência, lançou um relatório
de pesquisa1 em que foram feitos balanços empíricos dos Conselhos
Nacionais, bem como do perfil dos conselheiros que atuam dentro deles.
In verbis, o relatório traz a metodologia da seguinte forma:
1
O relatório de pesquisa lançado em 2013 trabalhou em conjunto com a Secretaria da
Presidência e Ministérios correlatos a fim de fazer um levantamento empírico detalhado
sobre a participação no Brasil. Para tanto, foram analisados dezessete conselhos nacionais
preocupados com políticas públicas. Dentre os analisados, destacamos neste trabalho os
que representam maior relação com a área da infraestrutura.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 412
Foi realizado amplo survey com conselheiros de 21 conselhos
e três comissões nacionais ligados a diversos ministérios
e secretarias do governo federal. Para buscar entender
os conselhos nacionais, a pesquisa foi orientada por três
questões-chave: i) Quem participa dos conselhos nacionais?
ii) Quem estes participantes dizem representar e como
são estabelecidas as relações de representação? iii) Qual
a percepção dos participantes quanto à efetividade destes
espaços no que concerne a sua capacidade de se organizar e
influenciar diferentes esferas? Este relatório busca responder
a estas perguntas a partir da apresentação e análise dos dados
recolhidos. (IPEA, 2013, p.10)
Para tanto, o survey considerou três conselhos em particular como
eminentemente de infraestrutura. São eles o Concidades (Conselho das
Cidades), CNRH (Conselho Nacional de Recursos Hídricos) e o Conama
(Conselho Nacional do Meio Ambiente).
Cabe lembrar que, conforme apontado durante este artigo, não
existe no Brasil de hoje um arranjo que trabalhe exclusivamente com a
matéria da infraestrutura. Por isso, ao trazer estes conselhos supracitados
como tal, revela-se mais forte ainda a dificuldade prática enfrentada pela
infraestrutura. Observa-se (Tabela 1) que em termos de quantidade, os três
conselhos acima citados estão dentro de uma média razoável.
Tabela 1: Proporção de conselheiros participantes da pesquisa por
área de política do conselho em que atuam:

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013

Entretanto, a participação de homens e mulheres nos conselhos


tidos como de infraestrutura fica em segundo lugar no critério
desigualdade (Tabela 2):

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 413
Tabela 2: Distribuição dos conselheiros por sexo segundo a área
temática do conselho (Em %):

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013.

Se for considerada a participação segundo o critério raça/


cor, novamente os conselhos analisados incorrem na falta de
pluralidade (Tabela 3):
Tabela 3: Distribuição dos conselheiros por raça/cor segundo o
tipo do conselho (Em %):

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013.

Quanto ao nível de escolaridade dos participantes (Tabela 4), a


hegemonia de graduados e pós-graduados é bem clara.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 414
Tabela 4: Distribuição dos conselheiros por nível de escolaridade
segundo o tipo de conselho (Em %):

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013.
Segundo o critério renda (Tabela 5), prevalece a participação
daqueles que percebem vencimentos superiores à R$4.000,00, o que está
acima da média da população brasileira em geral.
Tabela 5: Distribuição dos conselheiros por renda familiar mensal
segundo o tipo de conselho:

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013

Por fim, e não menos importante, traz-se à evidência a percepção


dos conselheiros no tocante à influência do conselho sobre a agenda do
Congresso Nacional (Tabela 6):
Tabela 6: Avaliação da influência do conselho sobra a agenda do
Congresso Nacional segundo área temática dos conselhos (Em %):

Fonte: Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros. Relatório de


pesquisa. IPEA, 2013.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 415
CONCLUSÃO

Não restam dúvidas, portanto, de que a superação do modelo


liberal-hegemônico de democracia represente uma das causas de maior
sucesso institucional para uma democracia, principalmente em se tratando
da variável “intensidade democrática” (AVRITZER; SANTOS, 2003). A
razão desta afirmação, sinteticamente, reside no argumento de que tanto o
Direito como a Política, e neste último entenda-se a questão democrática
como central, precisam acompanhar as novas complexidades da sociedade
civil. Portanto, não seria de menor importância dizer que a transição de
um procedimentalismo minimalista à um modelo mais inclusivo e plural
representa um avanço inigualável.
Mais importante ainda é trazer esta análise para a situação
brasileira, dada a expressividade deste país em matéria de interação
entre representação e participação. Assim, por mais razoável que seja
apontar o sucesso institucional, é preciso evidenciar as deficiências e os
problemas deste modelo.
Nesse sentido, o trabalhou buscou um recorte em que se identificou
uma deficiência – a infraestrutura – tentando compreender em quais
cenários e de que forma esta deficiência se mostrou determinante na
qualidade democrática. O resultado observado foi que, fazendo um breve
balanço dos arranjos existentes, constatou-se que as áreas legisladas (saúde
e assistência social, por exemplo) estavam em posição privilegiada no
tocante à institucionalização de arranjos participativos. Talvez esta variável
(diplomas legais específicos) seja determinante para a sedimentação.
Outra questão observada, foi que nos exíguos arranjos participativos
na área da infraestrutura parece haver uma predominância de conselheiros
diplomados (Tabela 4), i.e., majoritariamente participam pessoas que
possuem ensino superior completo e pós-graduação. Além disso, vê-se
na Tabela 5 que a maioria possui renda mensal per capita maior do que
a média da população brasileira. O maior problema em relação a estes
dois elementos é o fato, já apontado por Rodrigo Paiva (2015), de haver
uma percepção de que seja necessário conhecimentos técnicos para poder
participar das deliberações sobre a infraestrutura, o que não é verdade.
Se assim o fosse, a participação/deliberação nestes conselhos estaria
acontecendo aos moldes liberais-elitistas-hegemônicos.
Pode-se, ainda, apontar os problemas de representatividade. Vê-
se nas Tabelas 2 e 3 que a predominância de homens é muito maior do

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 416
que de mulheres, bem como a participação de brancos é excessivamente
superior à de pretos, amarelos, pardos e indígenas. Isso em termos de
inclusão de uma nova gramática social (AVRITZER; SANTOS, 2003)
é um erro participativo, já que a pluralidade é fundamento da própria
dinâmica participativa.
Aponta-se, ainda, a percepção, conforme a Tabela 6, de que para
os a maioria dos participantes dos dados conselhos de infraestrutura, a
influências das diretrizes no Congresso Nacional é pouco significativa.
O problema aqui está na dificuldade existente no tocante à interação
entre representação e participação. Se não há influência das diretrizes
deliberadas dentro dos conselhos no Parlamento, a própria existência do
Conselho fica comprometida.
Buscou-se trazer com este trabalho uma breve síntese da construção
democrática ao longo do século XX, mostrando que a democracia ainda
não tinha atingido todas as condições de desejabilidade. Diante disso,
foi apresentada a alternativa ao modelo liberal-hegemônico, como forma
de superar o procedimentalismo minimalista, valorizando verdadeiros
enxertos participativos no método democrático.
Mas, mesmo no momento da valorização e inserção de uma nova
gramática social no seio democrático, imbróglios surgiram. E por imbróglio
entenda-se a falta de arranjos na área da infraestrutura. Diz-se desta forma
porque se há a opção por um modelo contra-hegemônico, importante é
que ele seja atingido em sua totalidade. Por fim, é de suma importância
a valorização dos arranjos na área da infraestrutura, tanto em relação ao
fortalecimento dos já existentes, quanto em relação à criação dos que ainda
são distantes. Talvez a melhor solução para o aumento do controle social
e da accountability vertical, como o nome deste trabalho sugere, seja a
valorização da educação política, pois somente assim a sociedade civil
organizada e preocupada em levar as suas demandas ao conhecimento do
Parlamento por meio de um canal mais direto verá sentido em participar2.

REFERÊNCIAS

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
2
Vale lembrar que não era objetivo deste trabalho analisar a efetividade ou não das
instituições participativas expostas. A variável aqui observada foi somente a “intensidade
democrática”, revelando-se um trabalho mais normativo do que propriamente empírico.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 417
AVRITZER, Leonardo. Teoria democrática e deliberação pública. Lua
Nova, São Paulo, n.50, p. 25-47, 2000.
AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para ampliar
o cânone democrático. 2003. Disponível em: http://www.eurozine.com/
pdf/2003-11-03-santos-pt.pdf. Acesso em: 22 jun. 2016.
HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Revista
Lua Nova, n º 36, 1995, p. 39-53.
IPEA. Conselhos Nacionais: Perfil e atuação dos conselheiros. Relatório
de Pesquisa. Brasília: 2013.
LAVALLE, Adrian Gurza. Participação: valor, utilidade, efeitos e
causa. In: PIRES, Roberto Rocha C. (org.). Efetividade das Instituições
participativas no Brasil: Estratégias de avaliação. Diálogos para o
desenvolvimento. Brasília: IPEA, 2011.
MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e Representação: territórios em
disputa. São Paulo: Editora UNESP, 2014.
O’DONNEL, Guilhermo. Delegative democracy. Journal of
Democracy, v.5, n.1, p. 55-69, jan. 1994. National Endowement for
Democracy and The Johns Hopkins University Press. Disponível
em: http://www.plataformademocratica.org/Publicaçoes/11566.pdf.
Acesso em: 22 jun. 2016.
PAIVA, Rodrigo. O controle social de obras públicas: estratégias para
estimular e viabilizar o seu exercício. In: SOARES, Leonardo Barros;
MARTINS, Priscila Zanandrez (orgs.), Por uma sociedade mais
transparente: participação e controle social no Brasil. Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH/UFMG, 2015.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1984.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 418
POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO
POLÍTICA: FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS
ELEITORAIS NO BRASIL, NO MÉXICO E NA ESPANHA

Sofia Bertolini Martinelli*


INTRODUÇÃO

Tanto o conceito de políticas públicas quanto de corrupção é


multifacetado, mas guardam em comum sua remissão ao Poder Público,
ao governo. No tocante ao primeiro, as políticas públicas são consideradas
produto da atuação do Estado2, na medida em que vislumbradas como
atividades por ele desenvolvidas, diretamente ou indiretamente, com
intuitos específicos3. Igualmente, embora subsista um conceito popular de
corrupção, geralmente baseado no desvio de funções públicas para fins
privados4, em verdade, não há um conceito único e unânime de corrupção,
existindo categorizações conforme as perspectivas adotadas em específico5.
*
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade
de São Paulo, FDRP-USP
1 “
No entanto definições de políticas públicas, mesmo as minimalistas, guiam o
nosso olhar para o locus onde os embates em torno de interesses, preferências e
idéias se desenvolvem, isto é, os governos”. SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma
revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul.-dez. 2006, p .25.
2
“No entanto definições de políticas públicas, mesmo as minimalistas, guiam o nosso
olhar para o locus onde os embates em torno de interesses, preferências e idéias se
desenvolvem, isto é, os governos”. SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da
literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul.-dez. 2006, p .25.
3
Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política pública. Mead
(1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à
luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do governo
que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública
é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e
que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de política pública
como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”. A definição mais conhecida continua
sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder
às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz. SOUZA, Celina.
Políticas públicas... op. cit., p. 24.
4 “
The decisive role of the state is also reflected in most definitions of corruption.
Corruption is conventionally understood, and referred to, as the private wealthseeking
behaviour of someone who represents the state and the public authority, or as the misuse
of public goods by public officials for private ends. AMUNDSEN, Inge. Political
corruption: an introduction to the issues. Chr. Michelsen Institute. 1999, p. 2.
5
Nesse sentido: “Corruption is understood as everything from the paying of bribes
to civil servants in return for some favour and the theft of public purses, to a wide range
of dubious economic and political practices in which politicians and bureaucrats enrich
themselves and any abusive use of public power to a personal end. Besides, corruption
is in itself a many-faceted phenomenon and the concept of corruption contains too many
connotations to be analytically functional without a closer definition. The forms of

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 419
Buscando especificar o conceito de corrupção política, Inge
Amundsen a vincula ao envolvimento de um tomador de decisões
políticas6, que se utiliza de poder político para manter seu poder, status
ou riqueza7. A corrupção política ocorre nos níveis superiores do Estado
e provoca repercussões políticas, causando não somente a má alocação
de recursos, mas também alterações no modo de tomada de decisões8.
Em suma, a corrupção política consiste na manipulação das instituições
políticas e das regras procedimentais, de maneira a influenciar as
instituições de governo e o sistema político, o que, frequentemente,
conduz ao enfraquecimento institucional9. Sob essa perspectiva, vários
são os estudos que buscam dimensionar os efeitos da corrupção sobre os
regimes democráticos, especialmente no âmbito dos partidos políticos,
em que a corrupção política e institucional manifesta-se por meio do
financiamento de campanhas eleitorais. Philip Nichols, por exemplo, em
abordagem sobre a corrupção relacionada ao financiamento de campanhas
eleitorais no contexto norte-americano, destaca como principais efeitos da
corrupção: a. dano à relação entre eleitor e seus representantes; b. distorção
da economia e c. desconfiança em relação ao governo por aqueles a que ele
deveria servir10. Ainda segundo o autor, ao agir sob influência de suborno,
corruption are diverse in terms of who are the actors, initiators and profiteers, how it is
done, and to what extent it is practiced”. AMUNDSEN, Inge. Political corruption... op.
cit., p. 1-3. Por essa razão, será considerado, para os fins do presente artigo, o conceito
de corrupção política, haja vista serem os partidos políticos considerados instituições
essenciais à democracia. Vide art. 14, da Constituição Federal.
6 “
In the definition shared by most political scientists, political corruption is any
transaction between private and public sector actors through which collective goods are
illegitimately converted into private-regarding payoffs (Heidenheimer et. al. 1993:6).
This definition does not, however, distinguish clearly between political and bureaucratic
corruption. It establishes the necessary involvement of the state and state agents in
corruption, without any notion as to the level of authority where corruption takes place.
In a more strict definition, political corruption involves political decision-makers”.
AMUNDSEN, Inge. Political corruption... op. cit., p. 3
7
AMUNDSEN, Inge. Political corruption... op. cit., p. 3.
8
AMUNDSEN, Inge. Political corruption... op. cit., p. 3.
9 “
Political corruption not only leads to the misallocation of resources, but it also affects
the manner in which decisions are made. Political corruption is the manipulation of the
political institutions and the rules of procedure, and therefore it influences the institutions
of government and the political system, and it frequently leads to institutional decay.
Political corruption is therefore something more than a deviation from formal and written
legal norms, from professional codes of ethics and court rulings. Political corruption is
when laws and regulations are more or less systematically abused by the rulers, side-
stepped, ignored, or even tailored to fit their interests”. AMUNDSEN, Inge. Political
corruption... op. cit., p. 3.
10
Corruption in the United States legislature risks at least three types of injury to the polity:
damage to the connection between electors and representatives, distortion of the economy,
and distrust of government by those whom government should serve”. NICHOLS, Philip

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 420
os legisladores desfiguram as características da democracia e ferem os
princípios da representação popular11
Essa conexão entre o financiamento eleitoral e a corrupção política
evidencia-se em escândalos de corrupção envolvendo o financiamento de
partidos políticos dos três países objetos da presente análise: o Petrolão
(2014), no Brasil, o caso Gürtel (2013), na Espanha e o Pemexgate
(2001), no México. Tais circunstâncias inspiram ações governamentais no
sentido de reformar as legislações referentes ao financiamento político,
para aperfeiçoá-las no intuito de coibir práticas de financiamento ilegal.
No presente artigo, serão apresentadas as legislações brasileira, mexicana
e espanhola, no tocante aos partidos políticos e seu financiamento,
ressaltando-se as semelhanças e diferenças entre os três países, a fim
de analisar como as opções legislativas de cada um deles impactam as
políticas públicas de prevenção à corrupção.

1 BRASIL

Em retrospectiva histórica sobre o financiamento dos partidos


políticos no Brasil, Bruno Speck relata que a expressa proibição ao
financiamento dos partidos políticos por empresas ocorreu no período de
ditadura militar12. Antes de 1995, o financiamento de campanhas eleitorais
no Brasil era exclusivamente público, com regramento dado pela Lei
Orgânica dos Partidos Políticos editada em 1971 (Lei 5.682/71, art. 91,
IV). Os mecanismos de publicidade e de fiscalização então vigentes eram
marcados pela ausência de transparência e parca prestação de contas13.
M. The perverse effect of campaign contribution limits: reducing the allowable amounts
increases the likelihood of corruption in the federal legislature. 2011. p. 5.
11
When a legislator has been bribed, that legislator no longer acts in response to
the legislator’s constituency; instead the legislator acts in response to a bribe. Bribery
therefore destroys the connection between the representative and the constituency”.
NICHOLS, Philip M. The perverse effect of campaign contribution limits… op. cit., p. 5.
12
Mesmo com essa função limitada das eleições, o governo militar aplicou regras
mais densas para o financiamento de partidos. Em 1971, proibia doações de empresas
aos partidos políticos e, em 1974, vetou que partidos e candidatos comprassem espaço
publicitário no rádio ou na TV”. SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político e a
corrupção no Brasil. In: BIASON, Rita de Cássia (org.): Temas de corrupção política no
Brasil, São Paulo: Balão Editorial, 2012, p. 52. Nesse mesmo texto, a partir da página 50,
o autor traça um panorama sobre a evolução do sistema eleitoral no Brasil desde o período
imperial. Para os fins da presente pesquisa, interessa somente o período histórico mais
recente (pós-ditadura militar) e as modificações mais relevantes ocorridas até os dias atuais
13 “
Antes do período de reformas nos anos 1990, os partidos prestavam contas de forma
sumária sobre suas finanças. Ademais, a informação ficava limitada à justiça eleitoral. O
acesso público não estava previsto em lei”. SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento
político... op. cit., p. 55.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 421
Após os escândalos de corrupção do governo Collor, o tema recebeu nova
disciplina legal, a fim de contemplar a possibilidade de doações a partidos
políticos por pessoas jurídicas14. Com esse intuito foram editadas a Lei
nº 9.096/95, conhecida por Lei dos Partidos Políticos, relacionada às
atividades partidárias ditas regulares, isto é, excluindo-se as eleições, e a
Lei nº 9.504/97, relativa às campanhas eleitorais15. Na primeira, ao tratar
do Fundo Partidário, o art. 38 (e incisos) estabelecia, entre outras formas de
composição, a possibilidade de doações realizadas por pessoas físicas ou
jurídicas, bem como as dotações orçamentárias da União. O art. 39, caput
reafirmava tal possibilidade, determinando, em seu parágrafo primeiro, a
necessidade de demonstração dos valores recebidos. A Lei 9.504/96, por
sua vez, previa em seu art. 81 os limites legais às contribuições privadas. No
tocante às pessoas jurídicas, os parágrafos primeiro a terceiro do referido
artigo fixavam o limite de dois por cento do seu faturamento bruto anual,
sob pena de multa e proibição de contratar com a administração pública
14
A referida proibição permaneceu inquestionada o Governo Collor, vide manifestação
do Ministro Gilmar Mendes durante o julgamento da ADI 6450: “[...] até há pouco, no
país, até 1993, ministro Celso, dominava entre nós a proibição de financiamento pelas
empresas e veio, então, o malfadado episódio do impeachment presidencial e a CPI PC
Farias. E, a partir daí, houve consenso no sentido de regular a doação para que nós não
façamos uma interpretação ablativa da história. É preciso colocar isso no contexto geral.
Veja: até 93, era proibido a Procurador-Geral. E estamos falando como se tivéssemos
esquecido essa história. E ontem, e anteontem? Era proibida a doação de pessoas jurídicas
e se entendeu que era importante regular, por conta da necessidade de transparência; era o
que se dizia”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade
nº 4.650. Autor: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Ministro
Luiz Fux. Brasília, DF de 2016. Portal STF. Brasília, 24 fev. 2016.
15 “
A despeito da proibição formal do financiamento empresarial, os recursos para
cobrir os gastos crescentes nas campanhas eram provenientes do setor privado - de fato o
único ator capaz de suprir a demanda dos candidatos e partidos políticos por recursos para
custear as campanhas. Em função do escândalo Collor-PC, citado anteriormente e outros
subsequentes como o caso Paubrasil (2003), envolvendo o financiamento da campanha
para governador de Paulo Maluf “, o debate no país voltou-se para a busca de um novo
modelo de financiamento. A partir de 1993, o Congresso aprovou várias mudanças
substanciais na formatação do financiamento de partidos e eleições que finalmente
foram consolidadas na nova lei dos partidos políticos (1995) e na lei eleitoral (1997).
[...] Reagindo aos escândalos citados, o legislador brasileiro modificou radicalmente as
regras de financiamento para doações do setor privado, liberando doações políticas por
empresas privadas. Algumas limitações preexistentes, pontuais a pessoas jurídicas, foram
mantidas. Assim, o legislador manteve os vetos a sindicatos e organizações representando
o setor privado, bem como a entidades estrangeiras e empresas que dependem de licenças
ou permissões do Estado ou recebem recursos do Poder Público. Posteriormente, seriam
proibidas doações por entidades beneficentes e religiosas, de utilidade pública, esportivas
que recebam recursos públicos, entre outros. A marca importante, no entanto, é o
abandono da proibição de doações empresariais. A liberação das doações de empresas
pelo legislador foi ampla, por não introduzir nenhum teto absoluto para as contribuições
do setor privado para o processo eleitoral em geral, nem para as doações para candidatos
específicos”. SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político... op. cit., p. 52-53.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 422
pelo prazo de cinco anos. Como salienta Speck, a despeito da legalização
das doações privadas, o sistema permaneceu eminentemente o mesmo,
no sentido de manter uma ampla autonomia para os partidos quanto sua
própria regulação16.
Quanto à fiscalização, tornaram-se obrigatórias as prestações de
contas anuais e eleitorais, sendo essas últimas registradas pelo Tribunal
Superior Eleitoral em meio eletrônico, de maneira que seu acesso tornou-
se público e integral17. O mesmo, entretanto, não foi estabelecido com
relação às demais contas dos partidos18. Em 2015, em meio a diversos
escândalos de corrupção envolvendo instituições partidárias e seus
representantes, a legislação até então vigente passou a ser discutida, no
sentido de dar início uma reforma política, cujos objetivos, entre outros,
seriam a redução dos custos das campanhas eleitorais e a modificação de
seu sistema de financiamento, em especial no tocante às contribuições
privadas, realizadas por pessoas jurídicas.
Nesse contexto, a inconstitucionalidade das doações realizadas
por pessoas jurídicas foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, que
deu provimento à Ação Direito de Inconstitucionalidade 4.650 por oito
votos a três. A proposta de alteração do sistema fundamentou-se, entre
outros argumentos (princípio da isonomia, por exemplo), em questões
relativas à corrupção19. Segundo o Ministro Relator Luiz Fux, a corrupção
política e institucional provocou certo distanciamento entre a sociedade e os
16“
Quanto ao limite de gastos para os candidatos, não houve modificações significativas.
O legislador não estabeleceu um teto para os gastos em campanha, medida que tornaria a
competição eleitoral mais equitativa. Os parlamentares deram continuidade a um sistema
de autorregulação herdado do passado, em que os próprios partidos definiriam tetos para
as campanhas de seus candidatos. Em relação aos recursos privados, não há nenhum
mecanismo tornando as campanhas equilibradas em função dos recursos disponíveis”.
SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político... op. cit., p. 54.
17 “
As mudanças introduzidas pelo legislador durante os anos 1990 e sua regulamentação
pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mudariam radicalmente o quadro. Com as
novas regras, tanto os partidos como os candidatos deveriam prestar contas sobre sua
contabilidade anual e eleitoral. A nova legislação recebeu um aperfeiçoamento significativo
com as sucessivas regulações pelo TSE, que padronizou e informatizou as prestações de
contas, permitindo maior agilidade na fiscalização e maior acesso público às informações.
Desde 2002, há registros eletrônicos completos e publicamente acessíveis sobre doações
e gastos nas eleições”. SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político... op. cit., p. 54
18
SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político... op. cit., p. 56
19 “
Segundo a justificativa do projeto, [...] a proposta do financiamento público
exclusivo das campanhas eleitorais inspira-se na necessidade de redução dos gastos nessas
campanhas, que vêm crescendo exponencialmente no país, bem como na necessidade de
pôr fim à utilização de recursos não contabilizados, oriundos do chamado ‘caixa 2’”.
ORZARI, Octavio. O financiamento público exclusivo de campanhas e listas partidárias
preordenadas: o projeto de lei do senado nº 268/2011 e a PEC Nº 43/2011. Revista
Eletrônica EJE, Ano II, nº 5, ago./set. 2012. p. 24.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 423
representantes por ela eleitos20, vez que o modelo de financiamento eleitoral
seria marcado pela influência do poder econômico21, como decorrência do
fato que as doações por pessoas jurídicas conduziriam à plutocratização
da política nacional, causando desequilíbrio das competições eleitorais22.
O tema também foi discutido no Poder Legislativo, no qual tramitou
o Projeto de Lei do Senado nº 268/2011, vetado pela presidente Dilma, cujo
intuito seria o de (r)estabelecer o financiamento exclusivamente público
das campanhas eleitorais23. Após as diversas discussões, foi editada a Lei
nº 13.165, de 2015, que alterou as Leis nº 9.504/97, 9.096/95, e o Código
Eleitoral24. Atualmente, portanto, o regramento dos partidos políticos
no Brasil é dado pelas Leis nº 9.096/95 e nº 9.504/97, ambas alteradas pela
Lei nº 13.165/15, a qual que entre outras alterações, vedou a possibilidade
de doações eleitorais por pessoas jurídicas. A opção legislativa manteve
o sistema misto de financiamento de campanhas eleitorais, visto que
mantidas as doações por pessoas físicas, no limite de dez por cento dos
20 “
Existe verdadeiramente uma crise de representatividade no país, colocando em
lados opostos os cidadãos, que a cada dia se tornam mais céticos em relação aos agentes
eleitos, e os membros da classe política, que, não raro, privilegiam interesses particulares
em detrimento do interesse público. E tal distanciamento compromete, com o passar do
tempo, o adequado funcionamento das instituições”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4.650. Autor: Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF de 2016. Portal STF.
Brasília, 24 fev. 2016. p. 24.
21 “
Ciente desse desafio, um dos pontos centrais da Reforma Política é precisamente o
do financiamento de campanhas eleitorais. Nos últimos anos, verificou-se uma crescente
influência do poder econômico sobre o processo político, como decorrência do aumento
nos gastos de candidatos e de partidos políticos durante a competição eleitoral”. BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4.650... op. cit., p. 25.
22 “
Ocorre que a excessiva penetração do poder econômico no processo político
compromete esse estado ideal de coisas na medida em que privilegia alguns poucos
candidatos - que possuem ligações com os grandes doadores - em detrimento dos
demais. Trata-se de um arranjo que desequilibra, no momento da competição eleitoral,
a igualdade política entre os candidatos, repercutindo, consequentemente, na formação
dos quadros representativos”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de
Inconstitucionalidade nº 4.650... op. cit., p. 53.
23
Houve também proposta de Reforma Política, com alteração do financiamento de
campanhas eleitorais no PL 2679/2003 [“Dispõe sobre as pesquisas eleitorais, o voto
de legenda em listas partidárias preordenadas, a instituição de federações partidárias,
o funcionamento parlamentar, a propaganda eleitoral, o financiamento de campanha
e as coligações partidárias, alterando a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código
Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e
a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições)”], ainda em trâmite na
Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=147024 . Acesso em: 04 jun. 2016.
24
Para uma análise das mudanças trazidas pela Lei nº 13,165/15, ler: WALDSCHMIDT,
Hardy. Breves notas sobre a minirreforma eleitoral de 2015. 30 p. Disponível em:
http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-ms-breves-notas-sobre-a-minirreforma-
eleitoral-de-20151449677024470. Acesso em: 01 ago. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 424
rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior à eleição (art.
23, §1º, da Lei nº 9.504/97).
A nova Lei também estabeleceu tetos de gastos para as campanhas
eleitorais. Nas eleições para os cargos do Poder Executivo (Presidente
da República, Governador e Prefeito), os limites serão definidos com
base nos gastos declarados para os respectivos cargos, na eleição
imediatamente anterior à promulgação da Lei, sendo que, para o primeiro
turno das eleições, o limite será de: i) setenta por cento do maior gasto
declarado para o cargo, na circunscrição eleitoral em que houve apenas
um turno; ii) cinquenta por cento do maior gasto declarado para o cargo,
na circunscrição eleitoral em que houve dois turnos; enquanto que, para o
segundo turno, o limite de gastos corresponderá a trinta por cento desses
valores. Com relação às campanhas para o Poder Legislativo (Senador,
Deputado Federal, Deputado Estadual, Deputado Distrital e Vereador) o
teto de gastos equivale a setenta por cento do maior gasto contratado na
mesma circunscrição para o respectivo cargo na eleição imediatamente
anterior à publicação da Lei. Por fim, no tocante às eleições municipais,
para os Municípios de até dez mil eleitores, fixou-se como limite de gastos
o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para Prefeito, e R$ 10.000,00
(dez mil reais) para Vereador, ou aqueles já mencionados, se for maior.
Os deveres referentes à gestão de recursos e à prestação de contas
também sofreram modificações. Com relação os valores recebidos, a
Lei exige sejam depositados em conta exclusiva para os fins eleitorais,
sendo obrigatória a identificação de seu doador, sob pena de devolução ou
transferência para conta do Tesouro Nacional25. Quanto à transparência,
a divulgação eletrônica dos valores recebidos, com identificação de seu
doador, deverá ocorrer em até 72 horas, assim como, em 15 de setembro,
quando deve ser apresentado relatório discriminativo de receitas e despesas.
Saliente-se, entretanto, que o não cumprimento das previsões
relativas à transparência não implica qualquer tipo de sanção ao
candidato26, inexistindo, igualmente, alterações quanto a eventuais
25 “
Salvo nos casos de candidatura para prefeito e vereador em municípios onde não
haja agência bancária ou posto de atendimento bancário, toda a movimentação financeira
da campanha deve transitar por conta bancária específica, a ser encerrada no final do ano
da eleição, transferindo o saldo existente para a conta do partido e informando o fato à
Justiça Eleitoral. O partido ou candidato que receber recursos provenientes de fontes
vedadas ou de origem não identificada deverá proceder à devolução dos valores recebidos
ou, não sendo possível a identificação da fonte, transferi-los para a conta única do Tesouro
Nacional”. WALDSCHMIDT, Hardy. Breves notas sobre... op. cit., p. 7.
26 “
Segundo a nova lei, os partidos políticos, as coligações e os candidatos estão obrigados,
durante as campanhas eleitorais, a divulgar no site da Justiça Eleitoral os recursos em
dinheiro recebidos para financiamento de sua campanha eleitoral, em até 72 horas de seu

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 425
punições ao financiamento ilegal, que não é tipificado como crime no
Brasil, onde a responsabilidade penal de pessoas jurídicas somente é
adotada para crimes ambientais.

2 ESPANHA

Na Espanha, a primeira normativa aplicável ao financiamento


partidário é anterior à própria regulamentação dos partidos políticos, trata-
se da Ley 47/1977, que concedeu recursos financeiros de origem estatal
às agremiações políticas27. Com a realização das eleições, e formação
do Congresso Constituinte, os partidos políticos foram regulamentados
pela Lei de Partidos Políticos de 1978 (Ley 54/1978), que precedeu a
Constituição promulgada nesse mesmo ano, cujo art. 6º estabeleceu a
função dos partidos políticos, consagrando-os como elementos essenciais
da democracia e da representação popular. Posteriormente, a Ley 54/1978
foi revogada pela Ley Orgánica 6/2002, a qual sofreu alterações em 2015
(artigos 3º, 8º, 9º bis, 10º, 12 bis e na disposição adicional quarta).
O financiamento dos partidos políticos também foi tratado pela
Ley 54/1978, a qual fixou a destinação de recursos estatais aos partidos
políticos28, cuja insuficiência provocou alterações no sentido de permitir
recebimento e, no dia 15 de setembro, relatório discriminando as transferências do Fundo
Partidário, os recursos em dinheiro e os estimáveis em dinheiro recebidos, bem como
os gastos realizados, devendo indicar, nos dois prazos supra, os nomes, o CPF ou CNPJ
dos doadores e os respectivos valores doados [...] Com a minirreforma eleitoral de 2015
o legislador mais uma vez regulamenta esse tema, agora sim exigindo a divulgação na
internet em até 72 horas do nome dos doadores e 9 valores. Porém, ainda não foi desta
vez que atentou para a importância de se estabelecer uma sanção para a hipótese de não
cumprimento da norma.”. WALDSCHMIDT, Hardy. Breves notas sobre... op. cit., p. 8-9.
27 “
La primera Ley que otorgó financiamiento público en España a los partidos políticos
tuvo su origen en el año de 1976 con el resurgimiento del sistema democrático. Al ser
una sociedad carente de cultura de partidos políticos, gestada en el Estado autocrático, se
presentaron varios problemas. Aunque, conviene precisar que existía una gran inequidad
en el apoyo de grupos empresariales hacia los partidos generando contiendas electorales
inequitativas. Por tal motivo, se instituyeron mediante el Real Decreto-Ley 20/1977, de
marzo de 1977, los subsidios públicos para gastos electorales, que posteriormente se
transformaron en financiamiento público permanente para los partidos políticos” MYERS
GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral
en España y México: evolución, vigencia y mecanismos de erradicación del fenómeno
de la corrupción política. Sufragio: Revista especializada en Derecho Electoral. Tribunal
Electoral del Poder Judicial del Estado de Jalisco, Instituto Prisciliano Sánchez, nº 10,
dez.-mai., 2013. p. 146.
28 “
En 1977 tuvo lugar el primer proceso electoral de la naciente democracia, de la cual
surgió el Congreso Constituyente que fijó como objetivo principal la elaboración de la
Constitución. Se elaboró la Ley de Partidos Políticos, reafirmando que en los Presupuestos
Generales del Estado, se consignarían cantidades necesarias para subvencionar
anualmente gastos ordinarios”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 426
as doações de natureza privada, sem que houvesse qualquer normativa que
as regulasse29. Somente em 1985, após denúncias de corrupção política
decorrente do financiamento privado, foi elaborada a Ley Orgánica del
Régimen Electoral General30, a qual estabeleceu um sistema de financiamento
predominantemente público, por meio do aumento das subvenções estatais,
e da limitação das contribuições de pessoas físicas e jurídicas31. Atrelada
à busca de preponderância do financiamento público perante o privado,
tem-se a criação da Ley Orgánica 3/1987, que foi revogada em 2007, pela
Ley Orgánica 8/2007, a qual, por sua vez, sofreu modificações em 2012
(Ley Orgánica 5/2012) e em 2015 (Ley Orgánica 3/2015).
Atualmente, portanto, os partidos políticos são regulamentados
pela Ley 6/2002 (com última alteração pela Ley Orgánica 3/2015) e
seu financiamento, pela Ley Orgánica 8/2007 (também alterada pela
Ley Orgánica 3/2015).
Sobre o financiamento partidário, a princípio, a Ley Orgánica
8/2007 estabeleceu o sistema misto de financiamento, com possibilidade
de realização de contribuições privadas por pessoas jurídicas, desde que
estas não realizassem contratos com administração pública, não fossem
empresas públicas e não excedessem limites razoáveis e realistas32 (tal
E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit. p. 146.
29
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit. p. 146.
30 “
Este sistema se utilizó en todos los procesos electorales celebrados desde 1977 a 1985,
años durante los cuales, no se registraron incidentes que pudiesen ocasionar desconfianza
en el sistema de financiamiento, no obstante, a partir de 1982, como consecuencia de la
aparición ante la opinión pública de diversos casos en los que algunos partidos políticos
recibieron dinero de particulares, con la contraprestación de asignaciones en las regiones
donde gobernaban, de concesiones o contratos, se generó una reforma a la normativa
del financiamiento de partidos, que se consolidó en el año de 1985, con la Ley Orgánica
del Régimen Electoral General (en adelante LOREG)”. MYERS GALLARDO, Alfonso
FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit. p. 146.
31 “
la mejor forma de erradicar estos problemas, sería estableciendo un sistema de
financiamiento predominantemente público, lo que se materializó, como medida inicial,
con el incremento de la subvención que el Estado otorgaba a los partidos por actividad
electoral y con la imposición dentro de la LOREG, de límites a las contribuciones de
personas físicas y jurídicas”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E..
El sistema de financiamiento electoral op. cit., p. 146-147.
32 “
La financiación de los partidos políticos tiene que corresponder a un sistema mixto que
recoja, por una parte, las aportaciones de la ciudadanía y, de otra, los recursos procedentes
de los poderes públicos en proporción a su representatividad como medio de garantía de
la independencia del sistema, pero también de su suficiencia. Las aportaciones privadas
han de proceder de persones físicas o jurídicas que no contraten con las administraciones
públicas, ser públicas y no exceder de límites razonables y realistas. [ ] Lo que se trata es,
por tanto, abordar de forma realista la financiación de los partidos políticos a fin de que
tanto el Estado, a través de subvenciones públicas, como los particulares, sean militantes,
adheridos o simpatizantes, contribuyan a su mantenimiento como instrumento básico de

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 427
regra, entretanto, como se verá a seguir, foi alterada em 2015). O art. 2º
da mesma lei especifica os tipos de recursos a serem destinados ao partido
político, segundo sua fonte (pública ou privada) e sua destinação (gastos
eleitorais, de funcionamento, para realização de propagadas, etc.). Com
relação aos aportes públicos, o art. 3º prevê a obrigação de publicidade,
tanto do valor transferido como de seu destinatário. Relativamente às
doações privadas, previstas no art. 4º, exige-se que sejam depositas
em contas bancárias exclusivas para tal fim, com obrigatoriedade de
comunicação, pela instituição de crédito, ao Tribunal de Contas, os valores
que nelas ingressarem. Além disso, tais doações devem especificar a data
de sua realização, o montante doado, bem como o nome e documento de
identidade do doador, sob pena de sua transferência ao Tesouro Nacional,
em caso de impossibilidade de identificação do doador. A impossibilidade
de realização de doações anônimas é reforçada pelo art. 5º (com redação
alterada pela Ley Orgánica 3/2015), que também veda o recebimento de
doações finalísticas ou revogáveis, bem como procedentes de pessoas
jurídicas ou sem personalidade jurídica. O mesmo artigo também fixa os
limites das doações privadas a cinquenta mil euros por ano.
Quanto ao tema de fiscalização e controle, tratado no Título V
da lei, são previstas três formas de controle: interno (art. 15), externo (art.
16) e parlamentar (art. 16 bis). O controle parlamentar é realizado por uma
comissão específica, voltada às relações com o Tribunal de Contas, o qual
é responsável pelo controle externo. O dispositivo prevê a obrigatoriedade
de que implantação de um sistema de controle interno, que garanta a
adequada intervenção e contabilidade de todos os atos e documentos dos
quais derivem direitos e obrigações de conteúdo econômico, conforme seus
estatutos, sendo que o relatório resultante dessa auditoria acompanhará a
documentação remetida ao Tribunal de Contas33. A ausência de um sistema
de controle interno é considerada infração de natureza grave, nos termos
do art. 17, da lei, sujeita a multa de dez mil a cinquenta mil euros, conforme
o art. 17 bis, dos, c.

formación de la voluntad popular y de representación política, posibilitando los máximos


niveles de transparencia y publicidad y regulando mecanismos de control que impiden la
desviación de sus funciones”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara
E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit. p. 147.
33
Com redação dada pela Ley Orgánica 5/2012: “Artículo 15. Control interno. Los
partidos políticos deberán prever un sistema de control interno que garantice la adecuada
intervención y contabilización de todos los actos y documentos de los que se deriven
derechos y obligaciones de contenido económico, conforme a sus estatutos. El informe
resultante de esta auditoría acompañará a la documentación a rendir al Tribunal de Cuentas.”

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 428
Com relação a esta última previsão, subsistem críticas à aplicação
da penalidade de multa, considerando sua baixa eficácia preventiva,
ante a predominância dos aportes públicos em termos de financiamento.
Igualmente, muito embora o Código Penal espanhol tenha sido recentemente
alterado para incorporar a responsabilidade penal de pessoas jurídica, em
seu art. 31 bis, não há tipificação do crime de financiamento ilegal.

3 MÉXICO

O tratamento constitucional dos partidos políticos no México


remonta ao ano de 1977, quando a Constituição os reconheceu como
entidades de interesse público, sendo necessária legislação que determinasse
seus direitos e deveres34. A previsão de seu financiamento foi primeiramente
tratada em 1987, quando se estabeleceu o repasse público, baseado no
número de votos obtidos pelo partido35. Em 1990, houve uma ampliação
do financiamento público, que passou a contemplar a atividade eleitoral,
as atividades gerais como entidades de interesse público, a sub-rogação
do Estado em contribuições que os legisladores deveriam realizar para
sustentação de seus partidos, e atividades específicas como entidades de
interesse público, mantendo a abordagem dupla, proporcional ao número
de votos e assentos36. Com relação ao financiamento privado, as primeiras
regras foram criadas em 1993 (quando também foram reformadas as normas
sobre financiamento público)37 e previam: a obrigatoriedade de realização
34
Em 1977, a Constituição Mexicana foi alterada por meio de um decreto, que
reformou e adicionou os artículos 6º., 41, 51, 52, 53, 54, 55, 60, 61, 65, 70, 73, 74,
76, 93, 97 e 115. Tal decreto teve por objeto a reforma político-eleitoral e, entre outras
disposições, reconheceu os partidos políticos como entidades de interesse público. Vide:
Sumario de reformas a la Constituición Política de los Estados Unidos Mexicanos, en
orden cronológico, p. 21. Disponível em: http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/
sumario/CPEUM_sumario_crono.pdf Acesso em: 07 jul. 2016. Nesse mesmo sentido:
“En el año de 1977 se estableció en la CPEUM, la existencia e importancia de los partidos
políticos, reconociéndoles como entidades de interés público. Esto tuvo un gran impacto
en la legislación, y por tanto, se estableció un catálogo de derechos y obligaciones para
los partidos políticos”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El
sistema de financiamiento electoral op. cit. p. 147.
35
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit. p. 147.
36 “
Con la reforma constitucional y legal de 1990 se ampliaron los conceptos de
financiamiento público: a) Por actividad electoral; b) Por actividades generales como
entidades de interés público; c) Por subrogación del Estado de las contribuciones que los
legisladores habrían de aportar para el sostenimiento de sus partidos, y d) Por actividades
específicas como entidades de interés público, manteniendo el criterio dual, proporcional
al número de votos y escaños”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara
E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit. p. 147.
37
Em termos constitucionais, houve um decreto de reforma, que alterou os artigos

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 429
de relatórios, pelos partidos, sobre receitas e gastos; o limite de doações
anônimas em até 10% do montante recebido a título de financiamento
público; os limites de até 1%, para doações realizadas por pessoas físicas,
e de até 5%, para as provenientes de pessoas jurídicas, relativamente ao
valor total de financiamento público concedido a todos os partidos; limites
para gastos a título de campanha eleitoral38.
Em 1996, houve outra reforma eleitoral que modificou aspectos
quanto ao financiamento dos partidos políticos, tornando o financiamento
público predominante sobre o privado e especificou fontes legítimas e
ilegítimas de doações, limites de gastos, mecanismos de fiscalização39.
Uma nova reforma constitucional, em 2007, fixou uma divisão plena entre
as duas fontes de financiamento e deu enfoque a uma melhor regulação dos
recursos por meio de fiscalização40. Mais recentemente, no ano de 2014, o
México passou por uma nova reforma político eleitoral, da qual resultaram
três novas normativas, a Ley General de Instituciones y Procedimientos

41, 54, 56, 60, 63, 74 e 100, da Constituição Mexicana, que estabeleceu de forma
expressa que a lei infraconstitucional regularia o financiamento dos partidos políticos e
suas campanhas eleitorais. Nesse mesmo sentido: “Hasta 1993, no se establecían reglas
respecto del financiamiento privado ni topes de gastos de campaña, y mucho menos
sanciones. Con la reforma de 1993, se establecieron disposiciones que regulaban el
financiamiento público y privado, prohibiéndose el financiamiento proveniente de los
Poderes Federales, Estados o Ayuntamientos. Además, se prohibieron las aportaciones de
entidades públicas, extranjeros, Ministros de culto y de empresas mercantiles”. MYERS
GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral
op. cit., p. 147-148.
38 “
En esta reforma se determinó que las aportaciones privadas no serían deducibles
de impuestos, obligando a los partidos a presentar informes respecto de sus ingresos
y egresos. Las aportaciones anónimas se permitían hasta un monto total equivalente
al 10% de lo recibido por financiamiento público; se fijaron límites a las aportaciones
individuales y de personas morales, en 1% y 5%, respectivamente, del monto total del
financiamiento público otorgado a todos los partidos. Finalmente se establecieron reglas
para fijar topes a los gastos de campaña, siendo atribución del Instituto Federal Electoral
el determinarlos; la imposición de sanciones estaba a cargo del entonces Tribunal Federal
Electoral”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral op. cit., p. 148.
39 “
Con la reforma electoral de 1996, se pactó un marco normativo en la Constitución
y en la Ley sobre las condiciones de la competencia, que incluyó, un financiamiento
público predominante frente al privado, especificación de fuentes legitimas y limites de
donaciones, exclusión de dinero de determinados orígenes, topes de gastos de campaña,
régimen de fiscalización, mecanismos de equidad de competencia, independencia y
autonomía de los partidos, transparencia financiera en contiendas políticas, entre otros”.
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento
electoral op. cit. p. 148.
40
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit., p. 148.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 430
Electorales, a Ley General de Partidos Políticos e a Ley General en
Materia de Delitos Electorales41.
Atualmente, o art. 41, II, da CPEUM, trata do financiamento
político mexicano, fixando-se o sistema misto, com disposição expressa
a respeito da predominância das contribuições públicas sobre as privadas.
O artigo discrimina expressamente a destinação dos recursos de origem
estatal às atividades ordinárias permanentes42, aos gastos de campanhas
eleitorais43 e às atividades específicas44, sendo distribuídas proporcional
ou igualitariamente, conforme as determinações do art. 51, da Ley
General de Partidos Políticos - LGPP45. Quanto ao financiamento privado,
encontra previsão no art. 53 da mesma lei46, prevê seja: por militância; de
simpatizantes; autofinanciamento; e por rendimentos financeiros, fundos
e fideicomissos. O financiamento por militância decorre do pagamento
das taxas de filiação partidária pagas pelos membros do partido e seu
limite anual corresponde a dois por cento do financiamento público total
concedido para atividades ordinárias e de pré-campanha no mesmo ano
(art. 56, 2 “a”, da LGPP).
O financiamento por simpatizantes corresponde às doações livre e
voluntárias realizadas por pessoas físicas, cujo limite individual anual é de
meio por cento do gasto máximo para eleição presidencial imediatamente
anterior (art. 56, 2, “d”) e, durante os processos eleitorais, de dez por
cento do gasto máximo na eleição presidencial anterior (art. 56, 2, “c”).
41
Para maiores informações, ler: MÉXICO. INSTITUTO NACIONAL ELECTORAL.
Reforma político electoral 2014: Información que debes conocer. 2014. Disponível em:
http://www.ine.mx/archivos2/CDD/Reforma_Electoral2014/normatividad_legislacion.
html. Acesso em: 09 set. 2016.
42 “[ ]
no sólo durante la época de elecciones realizan actividades, sino también durante
los períodos de dos años que transcurren entre procesos electorales federales, pues
desarrollan una serie de eventos de difusión, capacitación, educación, investigación del
fenómeno político-electoral, entre otros. Esto, con la intención de contribuir al desarrollo
de la cultura democrática [ ]”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara
E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit., p. 157.
43 “[ ]
son todos aquellos egresos que se utilizan para la promoción y difusión de los
candidatos, aspirantes a cargos de elección popular, así como a las actividades relativas
a la obtención del voto”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El
sistema de financiamiento electoral op. cit., p. 157.
44 “{ ]
actividades de educación y capacitación política, investigación sociopolítica, así
como las tareas editoriales de los partidos políticos”. MYERS GALLARDO, Alfonso
FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit., p. 157.
45
Anteriormente, a normativa que regulava a distribuição dos recursos públicos era o
Código Federal de de Instituciones y Procedimientos Electorales “ COFIPE, cf. MYERS
GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral
op. cit., p. 157-158, que foi revogado em 2014, pelo decreto que criou a Ley General de
Instituciones y Procedimientos Electorales.
46
O tema era previsto no art. 77, §11, incisos “b” a “e”, do COFIPE.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 431
O autofinanciamento consiste nos valores obtidos pelo próprio partido em
decorrência de suas atividades promocionais. Por fim, o financiamento
por rendimento financeiro refere-se ao retorno financeiro obtido pela
exploração do próprio patrimônio47. O art. 54 estabelece as vedações
legais ao financiamento partidário, entre as quais se elencam as doações
realizadas por pessoas jurídicas (art. 54, 1, “f”)48, sendo igualmente vedadas
as doações anônimas, nos termos do art. 55, 1, da mesma lei.
A fiscalização quanto à origem dos recursos destinados
aos partidos políticos foi constitucionalmente prevista em 1996. As
agremiações partidárias prestavam contas à Comisión de Fiscalización
do Consejo General del IFE por suas atividades ordinárias e por
seus gastos em campanhas eleitorais, sob pena de multa, redução do
financiamento público ou a perda de registro. Esse sistema foi bastante
criticado quanto à incapacidade investigativa da Comissão e da margem
de discricionariedade cabível na aplicação das sanções49. Atualmente, as
prestações de contas englobam todos os tipos de financiamento (público
e privado) e devem ocorrer trimestral e anualmente, além daquelas
referentes à pré-campanha50. Além disso, os partidos políticos também são
destinatários da Ley General de Transparencia y Acceso a la Información
Pública51, a qual prevê a publicidade de seu financiamento, inclusive de
origem privada, nos termos do art. 76, IX.
Com relação à responsabilidade penal52, o art. 11, do Código
Penal Federal - CPF mexicano determina que, a critério do juiz, as pessoas
jurídicas podem sofrer as sanções de suspensão ou dissolução por crimes
cometidos em seu interior, caso sua estrutura houver sido utilizada para
cometimento do crime. O art. 11 bis, do mesmo Código apresenta um rol
de delitos passíveis de serem cometidos por pessoas jurídicas, entre os
quais não se menciona o financiamento ilegal de partidos políticos, bem
como as sanções que lhes são imponíveis: suspensão de atividades de seis
meses a seis anos; fechamento de estabelecimentos pelo prazo de seis
meses a seis anos; proibição de realizar atividades em cujo exercício foi
47
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit., p. 159.
48
A vedação já era prevista pelo art. 77, 2, “g”, do COFIPE.
49
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit., p. 160.
50
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral… op. cit., p. 161.
51
Disponível em: http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/LGTAIP.pdf.
Acesso em: 21 set. 2016.
52
As pessoas jurídicas também estão sujeitas a penalidades administrativas, nos termos
da Ley Federal Anticorrupción en Contrataciones Públicas.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 432
cometido o delito; inabilitação para participar de contratações públicas;
intervenção judicial. Também recentemente, houve a publicação do
Código Nacional de Procedimientos Penales - CNPP53, legislação na
qual se passou a prever procedimentos no tocante aos crimes cometidos
por pessoas jurídicas, ao especificar, por exemplo, sua responsabilidade
autônoma em relação à de seus representantes e administradores (art. 421),
as consequências jurídicas que lhes são aplicáveis (art. 422). Relativamente
às sanções, dispõe o art. 11 bis do CPF a possibilidade de redução de
pena em até um quarto caso a pessoa jurídica contasse com um órgão de
controle permanente, responsável pela verificação de sua conformidade
com as normativas aplicáveis, de modo a promover políticas internas de
prevenção ao cometimento de delitos, e promovesse a reparação do dano
provocado pelo crime.

4 ANÁLISE COMPARATIVA

Com relação às semelhanças, os três países analisados sofreram


escândalos de corrupção envolvendo relacionados ao financiamento de
campanhas eleitorais, por meio de doações irregulares realizadas por
empresas privadas aos partidos políticos. Igualmente, nos três países, o
sistema de financiamento dos partidos políticos é misto, isto é, as entidades
partidárias recebem tanto aportes governamentais quanto doações privadas.
Os sistemas, entretanto, diferenciam-se quanto aos deveres de
transparência em relação aos valores provenientes de doações privadas,
bem como ao limite destas. Quanto às prestações de contas relativamente
a tais valores, deverá ocorrer em dois momentos distintos: em até 72 horas
de sua realização e em 15 de setembro. Entretanto, subsiste qualquer tipo
de sanção ao candidato pelo incumprimento de tais deveres. No México,
há previsão expressa no art. 41, da Constituição quanto à prevalência
do financiamento público sobre o privado54 e a transparência, isto é, a
necessidade de publicidade dos valores recebidos, abrange qualquer tipo
de financiamento eleitoral, seja ele público ou privado55.
53
Alteração publicada em 5 de março de 2014, no Diario Oficial de la Federación
54 “
Tal y como se desprende del artículo 41 Constitucional, se colige que existen en
el sistema político electoral mexicano, únicamente dos tipos de financiamiento: público
y privado. La fracción II, del citado artículo de la CPEUM, contundentemente declara
que el financiamiento público debe imperar sobre el privado”. MYERS GALLARDO,
Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de financiamiento electoral op. cit. p.
156.
55 “
Dentro del sistema de fiscalización actual los partidos políticos tienen la obligación
de presentar ante esta unidad los informes del origen y monto de los ingresos que

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 433
Na Espanha, o financiamento dos partidos políticos é regulado
pela Ley Orgánica 8/2007, a qual prevê o sistema misto de financiamento,
com vedação às doações realizadas por pessoas jurídicas. Particularidade
da legislação espanhola é a previsão de implementação de programas de
controle interno, a fim de prevenir infrações às obrigações impostas às
entidades partidárias. Por outro lado, os deveres de prestação de contas dos
partidos são regulados pela Ley 19/2013, a qual determina a obrigatoriedade
de transparência no tocante às subvenções públicas somente, excluindo,
portanto, as doações de natureza privada, as quais são justamente as que
podem gerar risco de corrupção56.

CONCLUSÕES

Se por um lado as recentes modificações legislativas em cada


um dos países analisados quanto ao financiamento de partidos políticos
pode sinalizar a existência de uma política pública de prevenção à
corrupção política, por outro, tais alterações mostram-se insuficientes,
ante a constatação de elementos que sinalizam a inefetividade de suas
prescrições. Nesse sentido, destaca-se o fato de que o financiamento ilegal,
principal crime a ser imputado aos partidos políticos, não é um tipo penal
autônomo, sendo que, no Brasil, a responsabilidade penal das pessoas
jurídicas se restringe ao direito ambiental. Na Espanha, país que prevê a
implementação obrigatória de programas de compliance partidário, a pena
por descumprimento de tal prescrição é a multa, sanção cuja eficácia é
contestável, ante a predominância do financiamento público partidário.
Por outro lado, no México, as sanções previstas para pessoas jurídicas
mostram-se de duvidosa aplicação aos partidos políticos. Isso porque,
em um contexto democrático, no qual os partidos políticos apresentam
reciban por cualquier modalidad de financiamiento: Informes trimestrales, anuales y de
precampaña”. MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema de
financiamiento electoral op. cit., p. 160-161.
56 “
Por lo que se refiere a la financiación privada, los grandes problemas de transparencia
se han planteado en relación con las donaciones de particulares o empresas a los partidos
y de las condonaciones de crédito por parte de las entidades financieras, por el riesgo
cierto de que a través de estas aportaciones se produzca la captación de la voluntad de
los partidos políticos y se genere corrupción ligada a la financiación irregular. El caso
Bárcenas apunta claramente en esa dirección. El problema está en que son precisamente
estas aportaciones tan “sospechosas” las que no resulta obligatorio hacer transparentes
según la Ley 19/2013 que como vemos se centra solo en las aportaciones de carácter
público, vía subvenciones”. NUEZ, Elisa de la. Partidos políticos y transparencia. In:
NIETO MARTÍN, Adán; MAROTO CALATAYUD, Manuel (Org.). Public Compliance:
Prevención de la corrupción en administraciones públicas y partidos políticos. Cuenca:
Ediciones de La Universidad de Castilla-la Mancha, 2014, p. 172-173.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 434
funções públicas e essenciais à democracia, a imposição de sanções de
suspensão ou proibição de atividades, por exemplo, não parece a mais
adequada. No Brasil, a mini-reforma eleitoral de 2015, embora tenha fixado
limites de gastos para campanhas eleitorais, pouco afetou os partidos nesse
sentido, tendo em vista o parâmetro adotado para estabelecimento do teto.
Igualmente, a ausência de sanções pelo incumprimento pelos candidatos
de suas obrigações de transparência também é um indicativo da baixa
efetividade da norma. Em síntese, embora os escândalos de corrupção
provoquem mobilizações legislativas no sentido de aprimorar o sistema de
financiamento eleitoral, as reformas legais não correspondem a genuínas
políticas públicas de prevenção a corrupção política, ante a ausência
de coerência entre as prescrições legais e a necessária transparência
para sua efetividade.

REFERÊNCIAS

AMUNDSEN, Inge. Political corruption: an introduction to the issues.


Chr. Michelsen Institute. 1999,
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de
Inconstitucionalidade nº 4.650. Autor: Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF de 2016.
Portal STF. Brasília, 24 fev. 2016. p. 24.
MYERS GALLARDO, Alfonso FAJURI VALDEZ, Sara E.. El sistema
de financiamiento electoral en España y México: evolución, vigencia
y mecanismos de erradicación del fenómeno de la corrupción política.
Sufragio: Revista especializada en Derecho Electoral. Tribunal Electoral
del Poder Judicial del Estado de Jalisco, Instituto Prisciliano Sánchez, nº
10, dez.-mai., 2013.
NICHOLS, Philip M. The perverse effect of campaign contribution
limits: reducing the allowable amounts increases the likelihood of
corruption in the federal legislature. 2011.
NUEZ, Elisa de la. Partidos políticos y transparencia. In: NIETO
MARTÍN, Adán; MAROTO CALATAYUD, Manuel (Org.). Public
Compliance: Prevención de la corrupción en administraciones
públicas y partidos políticos. Cuenca: Ediciones de La Universidad de
Castilla-la Mancha, 2014.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 435
ORZARI, Octavio. O financiamento público exclusivo de campanhas e
listas partidárias preordenadas: o projeto de lei do senado nº 268/2011 e
a PEC Nº 43/2011. Revista Eletrônica EJE, Ano II, nº 5, ago./set. 2012.
p. 24-27. Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-
revista-eletronica-da-eje-ano-2-numero5. Acesso em: 07 set. 2015.
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura.
Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul.-dez. 2006.
SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político e a corrupção no
Brasil. In: BIASON, Rita de Cássia (org.): Temas de corrupção política
no Brasil, São Paulo: Balão Editorial, 2012, p. 49-97.
WALDSCHMIDT, Hardy. Breves notas sobre a minirreforma
eleitoral de 2015. 30 p. Disponível em: http://www.justicaeleitoral.
jus.br/arquivos/tre-ms-breves-notas-sobrea-minirreforma-eleitoral-
de-2015-1449677024470. Acesso em: 01 ago. 2016.

IV Seminário de Direito do Estado


“Globalização e os fundamentos da cidadania” 436

Você também pode gostar