Modulo 3

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MINISTÉRIO DA SAÚDE

SAÚDE MENTAL NA

INFÂNCIA E
ADOLESCÊNCIA

Módulo 3
As Políticas Públicas para a Infância e Adolescência:
do menor ao sujeito de direitos

FLORIANÓPOLIS | 2014
GOVERNO FEDERAL
Presidente da República Dilma Vana Rousseff
Ministro da Saúde Alexandre Padilha
Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES)
Diretora do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (DEGES)
Coordenador Geral de Ações Estratégicas em Educação na Saúde
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitora Roselane Neckel
Vice-Reitora Lúcia Helena Pacheco
Pró-Reitora de Pós-Graduação Joana Maria Pedro
Pró-Reitor de Extensão Edison da Rosa
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
Diretor Sérgio Fernando Torres de Freitas
Vice-Diretora Isabela de Carlos Back Giuliano
DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM
Chefe do Departamento Maria Itayra Padilha
Subchefe do Departamento Mara Ambrosina de Oliveira Vargas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM
Coordenadora Vânia Marli Schubert Backes
Subcoordenadora Odaléa Maria Brüggemann
COMITÊ GESTOR
Coordenação Geral do Projeto Maria Itayra Padilha
Coordenação Executiva do Projeto Jonas Salomão Spricigo
Assessoria Pedagógica do Projeto Vânia Backes
Coordenadora Acadêmica Kenya Reibnitz
Supervisora de Tutoria Isabel Cristina Alves Maliska
Coordenador de AVEA Fábio S. Reibnitz
Secretária Acadêmica Viviane Xavier
Assessoria Administrativa Claudia C. Garcia
AUTORA
Carla Bertuol
EQUIPE DE PRODUÇÃO DE MATERIAL
Coordenação Geral da Equipe Eleonora Milano Falcão Vieira
Coordenação de Produção Giovana Schuelter
Design Instrucional Soraya Falqueiro
Revisão Textual Marisa Monticelli
Design Gráfico Fabrício Sawczen
Design de Capa Rafaella Volkmann Paschoal
Projeto Editorial Fabrício Sawczen
MINISTÉRIO DA SAÚDE

SAÚDE MENTAL NA

INFÂNCIA E
ADOLESCÊNCIA
Módulo 3
As Políticas Públicas para a
infância e adolescência:
or ao sujeito de direitos
do menor

FLORIANÓPOLIS - SC
2014
Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Ficha Catalográfica - MODELO


Brasil. Ministério da Saúde.
Escolas promotoras de saúde : experiências do Brasil / Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde - Brasília :
Ministério da Saúde, 2007.
304 p. - (Série B. Textos Básicos de Saúde) (Série Promoção da Saúde, n. 6)

ISBN 92-75-72550-0 Organização Pan-Americana de Saúde


ISBN 85-334-1042-5 Ministério da Saúde

1. Educação em saúde. 2. Política de saúde. 3. Estratégias nacionais. 4. Promoção da saúde. 5. Brasil. I. Organização Pan-Americana
da Saúde. II. Título. III. Série.
CDU 37.017.4:614
Catalogação na fonte - Coordenação-Geral de Documentação e Informação - Editora MS - OS 2007/0018
Carta do autor

Caro aluno, bem-vindo ao módulo sobre as políticas públicas para


crianças e adolescentes no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS)! Neste módulo, você conhecerá um pouco do arcabouço das
políticas públicas para crianças e adolescentes, bem como os princi-
pais dispositivos e arranjos para organização da RAPS para criança e
adolescente no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Iniciaremos com uma breve retrospectiva histórica da construção dos


direitos de crianças e adolescentes nas agendas de organismos in-
ternacionais, bem como as políticas nacionais de assistência social,
educação e justiça, buscando destacar as relações estabelecidas com a
política de saúde mental para a infância e adolescência.

Em seguida, abordaremos os principais dispositivos da atenção psi-


cossocial no âmbito da rede, que vêm sendo construídos ao longo da
história da Reforma Psiquiátrica, bem como com a consolidação do
SUS. Esperamos, desta forma, contribuir com a ampliação de seu cam-
po de conhecimento nesta área, e instrumentalizar tanto aqueles pro-
fissionais que já têm alguma experiência na área, quanto aqueles que
não são atuantes, mas que podem se deparar com situações que ne-
cessitem deste corpo de conhecimentos. Na segunda unidade, iremos
abordar os principais dispositivos ou formas organizadas nos serviços
que favorecem a tarefa da atenção psicossocial. Também aqui é útil
lembrar que os serviços da atenção psicossocial, no caso da infância
e da adolescência, são entendidos no contexto da reforma psiquiá-
trica como serviços substitutivos ao manicômio e que desenvolvem
ações que se contrapõem ao funcionamento de uma instituição como
o manicômio — ou instituições totais — e avançam para o modo de
funcionamento em rede.
Vale lembrar que o conteúdo aqui apresentado não pretende dar conta
da complexidade do tema, mas sim, incentivá-lo a ir além e aprofun-
dar-se neste campo de conhecimento.

Boa leitura!

Carla Bertuol
Objetivo Geral
Reconhecer as políticas públicas para crianças e adolescentes descri-
tas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no SUS, no Siste-
ma Único de Assistência Social (SUAS) e na Política Nacional de Edu-
cação, além dos principais dispositivos para a organização da Rede de
Atenção Psicossocial.

Carga Horária
15 horas.
Sumário

Unidade 1 - Introdução ............................................11


1.1 Políticas públicas para crianças e adolescentes................................. 11
1.2.1 A agenda pública atual: as crianças com direitos.......................................12
1.2.2 Assistência Social..................................................................................................18
1.2.3 Educação.................................................................................................................. 22
1.2.4 Justiça........................................................................................................................ 23
1.2.5 Saúde Mental......................................................................................................... 27
Fechamento da unidade.................................................................................34
Referências.........................................................................................................35
Referências consultadas.................................................................................39

Unidade 2 - Os principais dispositivos e


arranjos para a organização da Rede de
Atenção Psicossocial para crianças e
adolescentes no âmbito do Sistema Único
de Saúde............................................................................41
2.1 Saúde e saúde mental.................................................................................41
2.2 O trabalho em equipe...............................................................................44
2.3 O projeto terapêutico singular............................................................... 47
2.4 A atenção psicossocial é estratégica para a rede..............................51
2.4.1 O acesso.................................................................................................................... 52
2.4.2 O acolhimento....................................................................................................... 54
2.4.3 A convivência........................................................................................................ 55
2.4.4 O acompanhamento............................................................................................ 56
Fechamento da unidade.................................................................................59
Referências.........................................................................................................60

Autora.............................................................................. 62
Introdução

01
Autoria:
Carla Bertuol
Introdução

Unidade 1 - Introdução
Atualmente, a criança, o adolescente e a família estão em todos os dis-
cursos políticos e também nas políticas públicas, o que torna o nosso
tema amplo, desafiante e apaixonante. Nesta unidade abordaremos,
sem pretender esgotar o assunto, as principais orientações das políti-
cas públicas atuais que buscam garantir direitos para esta população.

Veremos, neste módulo, que as políticas públicas voltadas para a in-


fância e a adolescência, inclusive a política de saúde mental infantoju-
venil, foram incorporando os princípios democráticos da nossa Cons-
tituição Federal, em tempos diferentes. Tradicionalmente, a saúde
mental infantojuvenil não se constituía como uma política pública de
saúde, tal como temos atualmente, mas como uma ação pulverizada
de diferentes setores – saúde, assistência social, justiça e educação –
com diálogo bastante restrito entre si e com respostas que privilegia-
vam a institucionalização de crianças e adolescentes.

Como a garantia dos direitos das crianças, dos adolescentes e das fa-
mílias é recente no contexto das políticas públicas, e traz várias mu-
danças para o contexto da infância, nos deteremos brevemente no
histórico da carta brasileira de seus direitos, o Estatuto da Criança e
do Adolescente/ECA - Lei Federal nº 8.069-1990 (BRASIL, 1990a).

1.1 políticas Públicas para crianças e ado-


lescentes
É importante começarmos esta história trazendo algumas definições
do ECA sobre a criança e o adolescente. Inicialmente, a idade: são con-
sideradas crianças todas as pessoas até 12 anos incompletos, e adoles-
centes, todos de 12 a 18 anos. Crianças e adolescentes são entendidos
e definidos como pessoas em desenvolvimento, para quem é dever da
sociedade (incluindo o poder público) assegurar com prioridade abso-

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 11


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

luta a garantia de seus direitos. Estes princípios éticos, contidos nas


Disposições Preliminares (Art. 1 a 6) do ECA, orientam tanto a for-
mulação das políticas públicas, quanto o trabalho cotidiano com os
direitos das crianças.

Além das mudanças na definição de quem são as crianças e


os adolescentes, o nosso contexto democrático permite iden-
tificar que a fragmentação dos serviços não trabalha a favor
dos usuários e de suas diferentes necessidades e direitos,
nem contribui – como se imaginava em princípio – para a
organização e gestão dos serviços. Reconhecer a complexi-
dade do cotidiano de crianças e famílias nos leva a identificar
que o trabalho intersetorial traz possibilidades democráticas
de resolver situações, mobilizar afetos e formular projetos
mais efetivos para a garantia de seus direitos.

1.2.1 A agenda pública atual: as crianças com direitos


A concepção de uma legislação para todas as crianças pode nos con-
tar um pouco sobre a história dos direitos das crianças e sobre como
podemos lidar com uma conjugação especial: por um lado, crianças e
adolescentes entendidos como sujeitos de direitos e, por outro, como
veremos mais à frente, ações das políticas públicas desenvolvidas e
planejadas no âmbito dos municípios, que passaram a ter um papel
relevante tanto na Constituição Brasileira de 1988 quanto para a im-
plementação do ECA, de 1990.

Embora o tema fosse, então, novo, não foi a primeira vez que diferen-
tes nações reunidas em organizações internacionais tentaram com-
prometer os governos nacionais com a proteção e com os direitos das
crianças e adolescentes. Em 1924, a Liga das Nações chamava atenção
para os direitos das crianças, em sua Declaração de Genebra, sobre

12 Bertuol
Introdução

os direitos das crianças (SOCIÉTÉ DES NATIONS, 1924). Neste do-


cumento internacional era importante que as nações voltassem o seu
olhar para as crianças, como futuro das nações, e, por isso, elas deve-
riam ser protegidas. Ainda conseguimos ouvir o eco desta formulação
em nossos governos recentes, e este sentido de futuro atrelado aos di-
reitos, naquele contexto, mostrava que as crianças, em diferentes con-
dições, deveriam ser protegidas. Porém, no olhar de hoje, sem maiores
reflexões sobre aquela condição, isto é, aos olhos da organização pú-
blica, numa ótica higienista.

Nesta ótica, as crianças a serem protegidas são as que identificaríamos


como tendo apenas necessidades (de abrigo, as órfãs, as abandonadas,
as “retardadas” e as trabalhadoras). Sem atentar para o contexto e suas
múltiplas determinações, com formulações que apenas prescrevem
ações para os adultos (abrigá-las, educá-las, alimentá-las), tais formu-
lações – só aparentemente simples – desconsideram o contexto que
produziu tal situação e colocam as crianças a serem protegidas numa
posição de passividade e inferioridade, “guardando-as” para o futuro.

Tendo a Liga das Nações se dissolvido com a 1ª Guerra Mundial, a in-


fância volta a ser assunto em organismos internacionais somente em
1948, depois de terminada a 2ª Guerra mundial, na Declaração Univer-
sal dos Direitos do Homem. Este documento se refere especificamente
às crianças, ao valorizar o contexto familiar em dois pontos: assegura
aos pais o direito de escolher a forma como se dará a educação de seus
filhos e, às crianças nascidas fora do casamento, os mesmos direitos
dos filhos legítimos, trazendo para o contexto dos direitos das crianças
o vínculo de filiação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).

Saiba Mais
Para que você possa aprofundar um pouco mais os
seus conhecimentos sobre o ECA, sugerimos a leitura
desta declaração no endereço: http://portal.mj.gov.br/
sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.Htm

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 13


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

Em 1959, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulgou a De-


claração Universal dos Direitos da Criança (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1959) e, passados 20 anos, a Polônia propôs que
esta organização proclamasse 1979 como o Ano Internacional da
Criança, levando as diferentes nações a discutir este tema, visando
construir ações voltadas para a proteção desta população, de manei-
ra que garantissem os direitos lá enunciados. A Declaração Universal
dos Direitos da Criança volta-se para a interioridade da criança e suas
fragilidades no processo de desenvolvimento, isto é, as crianças e ado-
lescentes são apresentados como seres imaturos e vulneráveis e, no
esteio do florescimento das ciências sobre a criança do século XX, o
desenvolvimento da criança e as suas condições mais favoráveis foi o
contexto a ser protegido. Nele, a família foi considerada como o am-
biente mais favorável às crianças e adolescentes (BERTUOL, 2003).

O ano internacional da criança procurou discutir o bem-estar e as formas


de proteção da criança – ou de seu desenvolvimento – na cena das ações
e conhecimentos das esferas da saúde, educação, assistência e justiça. Po-
rém, a formulação de uma Convenção demorou outros vinte anos.

Uma Convenção difere de uma Declaração exatamente pelo compro-


misso formal que a nação assume de aplicar seus princípios, no caso,
à Legislação Nacional e, assim, garantir a sua aplicação nas diferen-
tes esferas que se relacionam aos direitos das crianças e adolescentes
(SÊDA, 2000). O compromisso formal para com a Convenção Inter-
nacional dos Direitos da Criança da ONU, de 1989, foi rapidamente
aceito, e um grande número de países assinaram o documento. No
Brasil, este compromisso foi firmado pelo decreto presidencial 99.719,
ainda em 1990 (BRASIL, 1990b). Contudo, não é somente o compro-
misso legal que faz a diferença, mas também as concepções sobre as
crianças, que orientam os direitos e as ações das políticas públicas.
Por isso, vale irmos um pouco mais longe e continuar olhando para a
atualidade desta história.

14 Bertuol
Introdução

Na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, observamos que


a proteção se realiza num contexto um tanto diferente: vários são os
atores envolvidos com a proteção e todas as crianças devem ser prote-
gidas. Ou seja, a proteção passa a ser um dever social: é a Doutrina da
Proteção Integral que, nas palavras de COSTA (1992, p.19),

[...] afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade


de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o va-
lor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continui-
dade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade
o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral
por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar atra-
vés de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.

No Brasil, sabemos que esta forma de proteção às crianças, adolescen-


tes e famílias é fruto da adesão/assinatura do governo à Convenção
Internacional dos Direitos da Criança (da ONU), de 1989, e a primeira
legislação nacional orientada pelas diretrizes desta Convenção foi o
ECA, publicado em 1990.

Desde a promulgação do ECA (Lei 8.069/90), as políticas públicas, no


Brasil, voltadas para esta população, têm uma agenda que se orienta
para a garantia de seus direitos. O Estatuto é uma Lei Federal e contém
os princípios que devem orientar as políticas públicas locais. Mas, não
só isso, este documento orienta também sobre a formulação, organi-
zação e execução de ações voltadas a esta garantia; os Conselhos Na-
cional (CONANDA), Estaduais (CONDECAs) e Municipais (CMDCAs)
são responsáveis pela formulação e fiscalização das políticas públicas
voltadas para a criança, adolescentes e família (SÊDA, 2000).

Esta forma de organização das políticas públicas nasceu no contexto


político da redemocratização do país e tem seu fundamento na Cons-
tituição Federal, que define a criança como prioridade absoluta, pre-
vendo a municipalização das ações para as políticas de saúde, assis-
tência, educação e de garantia de direitos.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 15


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, define a responsa-


bilidade de todos em relação às crianças e adolescentes:

é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali-
mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig-
nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, p. 124-125).

A inscrição da criança portadora de direitos na Constituição Federal


rompe com modelos intervencionistas e assistencialistas, destinados
principalmente às crianças pobres, contidos em legislações anteriores
e, além disso, coloca todas as crianças e adolescentes no cenário das
políticas públicas.

1 “Essa Doutrina [a Dou- O ECA vem modificar a legislação nacional,


trina da Situação Irregular] antes descrita como a Doutrina da Situação
legitima uma potencial ação Irregular (Código de Menores, 1927 e 1979),
judicial indiscriminada so-
bre crianças e adolescentes que via a criança como objeto de intervenção
em situação de dificuldade. na atenção que receberia do Estado e das po-
Definido um menor em si- líticas públicas. Estes Códigos não definiam
tuação irregular (lembrar
que, ao incluir as categorias obrigações do Estado para com as crianças
de material ou moralmen- e adolescentes, mas sim, tratavam de forne-
te abandonado, não existe cer as classificações e operacionalizações das
nada que potencialmente
não possa ser declarado ações de controle com as crianças e adoles-
irregular), exorcizam-se as centes abandonados, delinquentes, desviados
deficiências das políticas e viciados, que eram consideradas “menores”.
sociais, optando-se por ‘so-
luções’ de natureza indivi- Já com a Doutrina da Proteção Integral1, no
dual que privilegiam a insti- ECA, os direitos das crianças, adolescentes e
tucionalização ou a adoção” famílias serão garantidos mediante a execu-
(MENDEZ, 1998, p.27).
ção de políticas públicas.

Para a implementação da proteção integral, o ECA propõe que a polí-


tica de atendimento aos direitos das crianças, adolescentes e famílias
se faça num esforço articulado entre as diferentes políticas.

16 Bertuol
Introdução

Art. 86º - “A política de atendimento dos direitos da criança e do ado-


lescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações gover-
namentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios” (BRASIL, Lei nº 8.069-90).

Neste sentido, encontramos sua maior riqueza e também o seu maior


desafio para o trabalho cotidiano com crianças, adolescentes e famí-
lias. O ECA constrói o atendimento aos direitos da criança incluindo o
direito à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar e comuni-
tária – áreas do conhecimento/atuação que tradicionalmente se ocu-
pam do atendimento às crianças e adolescentes – indicando, desde
então, a necessidade do trabalho interdisciplinar e intersetorial.

Outro artigo que ilustra o relacionamento entre as políticas e as crian-


ças, e que ainda nos deve fazer refletir sobre nosso papel profissional
é o Art. 6º.

Art. 6º - “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais


a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres
individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescen-
te como pessoas em desenvolvimento” (BRASIL, Lei nº 8.069-90).

E, por fim, mas não menos importante, a criação dos Conselhos Tute-
lares, órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado
pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente, com atribuições e competências descritas nos artigos 136
a 139 do ECA (SÊDA, 2000; CURY, 2013).

Este breve histórico deve nos alertar não somente para as dificuldades
históricas para que esta faixa etária tivesse alguma forma de reconhe-
cimento de sua importância pelos governantes, mas também para o
seu conteúdo, pois os diferentes documentos descrevem as crianças
de maneira diferente e priorizam ações diferentes das políticas públi-
cas, indicando que o campo de atuação com os direitos das crianças,
adolescentes e famílias é um campo que requer muito diálogo, e de

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 17


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

contínua disputa de sentidos e de construção da cidadania desta po-


pulação, nas práticas dos serviços.

Saiba Mais
Para saber mais sobre este tema, recomendamos a lei-
tura do texto – Rostos de crianças com direitos nos
espaços públicos, disponível em: http://ceapg.fgv.br/
sites/ceapg.fgv.br/files/file/Cadernos/caderno%20
51-%20final.pdf

Os direitos da criança não se implementam no vazio, e sim, nas práti-


cas de diferentes políticas voltadas para esta população que, em tem-
pos diferentes, viveram lógicas de governo também diferentes. Segui-
remos com a Assistência Social.

1.2.2 Assistência Social


Com a Constituição de 1988, encontramos também transformações em
outras políticas nacionais que reforçam a necessidade de um trabalho
cotidiano entre os diferentes setores. Vejamos. Diferente do SUS, que
é previsto na Constituição Federal, na área da Assistência Social foi
necessário construir a Assistência Social como um direito de todas as
pessoas: o SUAS, em 2003. Esta construção, no entanto, encontra di-
ferentes desafios:

a tarefa de consolidar a Assistência Social como política pública de di-


reitos tem aspectos muito peculiares que dificultam a empreitada. Ou
seja, é necessário romper com a ideia de direito como favor ou ajuda
emergencial prestada sem regularidade e através de um processo de
centralismo decisório; romper também com a lógica de que a assistên-
cia social sobrevive apenas com os recursos residuais do investimento
público (serviços pobre para pobres!) e ainda: romper com o uso dos
recursos sociais de maneira clientelista e patrimonialista (YAZBECK,
2008, p. 102).

18 Bertuol
Introdução

Além disso, é um avanço a mais, pois

[...] considera o cidadão e a família não como objeto de intervenção,


mas como sujeito protagonista da rede de ações e serviços; abre espaços
e oportunidades para o exercício da cidadania ativa no campo social
atuando sobre o princípio da reciprocidade baseado na identidade e re-
conhecimento concreto; sustenta a auto-organização do cidadão e da
família no desenvolvimento da função pública (BRASIL, 2005a, p. 21).

O SUAS, organizado para atender a todos os cidadãos em seus direitos


básicos de seguridade social, e com centralidade no contexto socio-
familiar para o desenvolvimento de suas ações, tem como principais
serviços o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e o Cen-
tro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que
lidam com a proteção básica e especial, respectivamente. A proteção
social básica busca

[...] prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de po-


tencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e
comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulne-
rabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda,
precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e ou fra-
gilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social
(discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre
outras) (BRASIL, 2005a, p. 20).

A proteção especial, desenvolvida junto ao CREAS, é

[...] uma modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e


indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por
ocorrência de abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso se-
xual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioe-
ducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras
(BRASIL, 2005a, p. 20).

Estas especificidades da proteção especial estão relacionadas à saúde


mental de uma forma direta. O ECA prevê a criação de um serviço espe-
cífico para as vítimas de violência e abuso sexual no Art. 87. É uma entre

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 19


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

as linhas de ação da política de atendimento: no inciso terceiro do referido


artigo podemos ler que são previstos “serviços especiais de prevenção e
atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tra-
tos, exploração, abuso, crueldade e opressão” (BRASIL, 1990a, p. 13.567).

Atualmente, este serviço está então localizado no CREAS e se cons-


titui em importante parceiro dos serviços da saúde mental. Sabemos
que a violência, em suas diferentes formas, influencia a saúde mental,
e também, que as crianças em sofrimento psíquico estão sujeitas a di-
ferentes formas de abuso e violação de seus direitos.

Outra iniciativa da política pública de assistência social na proteção es-


pecial são os Centros de Referência Especializados de Pessoas em Situa-
ção de Rua (CREAS POP), instituídos pelo Decreto Presidencial nº 7.053
em 23 de dezembro de 2009. A este serviço são atribuídas responsabi-
lidades específicas pelo trabalho com as pessoas que utilizam as ruas
como moradia ou como forma de sobrevivência e trabalho. A finalidade
é assegurar o atendimento e atividades direcionadas ao desenvolvimen-
to de sociabilidades, para o fortalecimento das relações interpessoais e
familiares, visando a construção de projetos de vida. Alguns municí-
pios brasileiros têm o CREAS POP Criança e Adolescente, que também
trabalha nesta perspectiva, mas, de qualquer forma, a articulação entre
serviços de diferentes setores, como CREAS POP, Consultório na Rua,
Centros de Convivência e CAPS apontam para ações de garantia dos
direitos das crianças e adolescentes (BRASIL, 2009).

O ECA estabeleceu orientações claras quanto às práticas de institu-


cionalização: o abrigo/acolhimento institucional é entendido como
uma medida de proteção provisória e excepcional (Art. 101) e há muita
coerência nisso, uma vez que os direitos das crianças se efetivam me-
diante a execução de políticas públicas, a família é lugar preferencial
para o desenvolvimento da criança e a situação de pobreza não pode
justificar o afastamento da criança de sua família (Art. 23). Os locais
de acolhimento das crianças e adolescente devem ainda (Art. 93) zelar
quanto à:

20 Bertuol
Introdução

•• preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração


familiar;
•• integração em família substituta, quando esgotados os recursos de
manutenção na família natural ou extensa;
•• atendimento personalizado e em pequenos grupos;
•• desenvolvimento de atividades em regime de coeducação;
•• não desmembramento de grupos de irmãos;
•• evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades
de crianças e adolescentes abrigados;
•• participação na vida da comunidade local;
•• preparação gradativa para o desligamento; e
•• participação de pessoas da comunidade no processo educativo
(BRASIL, 1990a).
Na saúde mental trabalhamos bem próximos destas instituições de
acolhimento de crianças e adolescentes e há muita delicadeza a ser
considerada: trata-se de momento em que a criança é separada de sua
família e, por isso mesmo, um tempo de fragilidade para ambos. Além
da valorização dos vínculos familiares na família biológica, o ECA de-
fine também a figura do responsável pela criança, seja na forma de
guarda ou de tutela ou de adoção (ver também o Plano de Convivência
Familiar e Comunitária - BRASIL, 2006).

Saiba Mais
Para compreender mais detalhadamente sobre as po-
líticas de assistência social à criança e ao adolescente
sugerimos a consulta ao seguinte documento:
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/secretaria-
-nacional-de-assistencia-social-snas/livros

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 21


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

1.2.3 Educação
Outra política que vem passando por transformações nas duas últimas
décadas é a Educação, tanto em seus aspectos gerais quanto especiais.
A obrigatoriedade dos pais matricularem as suas crianças e adolescen-
tes na escola está prevista no Art. 55 do ECA e traz os desafios, sempre
presentes, de a escola ser atrativa para as crianças e de suas práticas
favorecerem o seu desenvolvimento.

Neste sentido, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, de


1990, foi um marco na formulação de políticas governamentais para
a educação. Nesta Conferência considerou-se que todas as dificulda-
des em relação à aprendizagem não são problemas de apenas algu-
mas crianças, mas de todas as crianças, e a Declaração de Salamanca
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A
CIÊNCIA E A CULTURA, 1994) propõe que “[...] as pessoas com ne-
cessidades especiais devem ter acesso às escolas comuns que deverão
integrá-las numa pedagogia centralizada na criança, capazes de aten-
der a essas necessidades” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 1994, p. 10).

No ECA, os artigos 53 e 54, definem que “crianças e adolescentes têm


direito à educação visando o pleno desenvolvimento de sua pessoa,
preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 1990a, p. 13.566 ) e o inciso II do artigo 54 complementa: “o
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino”(BRASIL, 1990a, p. 13.566).

O Plano Nacional de Educação apresenta, entre suas metas, universa-


lizar, para a população de 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos es-
tudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino (BRASIL,
2005b). Estabelece, entre as suas estratégias, fomentar a educação inclu-
siva, promovendo a articulação entre o ensino regular e o atendimento
educacional especializado complementar ofertado em salas de recursos
multifuncionais da própria escola ou em instituições especializadas.
22 Bertuol
Introdução

A escolarização é obrigatória a partir dos quatro anos de idade, e é


dever do poder público a oferta de vagas em escolas, dos 4 aos 17 anos,
sendo o ensino organizado em Educação Infantil, Ensino Fundamen-
tal e Ensino Médio. Além disso, está garantido na Constituição Fede-
ral e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação que as escolas devem
incluir todas as crianças, isto é, sem critérios de exclusão ou de sele-
ção, e considerando as suas necessidades educacionais. As condições
das crianças e adolescentes, sejam físicas, intelectuais, emocionais,
linguísticas, ou de deficiência e superdotação, não constituem impe-
dimento para a educação, assim como suas características de perten-
cimento social, como etnia, cultura ou marginalidade.

Sabemos que o contexto escolar tem sido motivo de muitos sofrimen-


tos para as crianças e o principal desafio é que este espaço importante
no processo de socialização seja, de fato, inclusivo. Este desafio é co-
nhecido de muito perto no trabalho em saúde mental e exige muita
conversa e colaboração mútua entre os profissionais no acompanha-
mento de crianças e adolescentes, e definições de estratégias conjun-
tas entre serviços.

1.2.4 Justiça
Dos aspectos relevantes para as relações cotidianas no trabalho da
saúde mental, destacamos que, no texto do ECA, é indicado ao Po-
der Judiciário o dever de prever recursos para manutenção de equipe
interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Ju-
ventude. Esta equipe atende crianças, adolescentes e famílias e de-
sempenha papel estratégico nas informações e laudos técnicos que
abordam a situação de crianças e adolescentes com demandas na área
da Justiça. Entendemos que tal equipe deve ser informada sobre os
projetos terapêuticos e sobre sua processualidade pela equipe do ser-
viço de saúde metal, e os casos comuns, discutidos de maneira a va-
lorizar e promover resoluções que favoreçam o interesse da criança.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 23


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

Art. 151º - “Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribui-


ções que lhe foram reservadas pela legislação local, fornecer subsídios
por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem
assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, enca-
minhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação
à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de
vista técnico” (Lei nº 8.609-90). A abertura para o conhecimento recí-
proco e a participação dos profissionais das equipes nos Fóruns Inter-
setoriais de Saúde Mental infantojuvenil é uma estratégia de aproxi-
mação destes dois campos de atuação profissional.

Em outro aspecto, ainda nas relações com a Justiça, o ECA nos mos-
tra que o Brasil “renovou seu sistema de atenção a crianças e adoles-
centes aos quais eventualmente se venha atribuir um ato que a lei do
país defina como delito. O que se corrige é o sistema antigo em que se
priva de liberdade dizendo que é para proteger” (SÊDA, 2000, p. 36). A
garantia de que os adolescentes em conflito com a lei possam ser aten-
didos de acordo com os princípios da Proteção Integral, isto é, como
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, está prevista no
Sistema Nacional de Acompanhamento de Medidas Socioeducati-
vas (SINASE). Este sistema regulamenta a forma como deve ser pres-
tado o atendimento nas políticas públicas a adolescentes autores de
ato infracional e suas famílias (BRASIL, 2012; BRASIL, 2013).

Inicialmente previsto na Resolução nº 119/2006, do Conselho Nacio-


nal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), foi insti-
tuído a partir da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Esta lei prevê
o atendimento de medidas socioeducativas em meio aberto, liberdade
assistida e prestação de serviços à comunidade (a serem executadas
nos municípios), e também privativas de liberdade, internação e se-
miliberdade (a serem executadas pelos estados) e traz para o contexto
dos serviços a necessidade de uma lógica que não seja punitiva, mas
sim, orientada pela proteção integral e pela construção, junto aos ado-
lescentes e às famílias, de planos de atendimento, com alternativas de
abordagem com os quais possam se engajar (BRASIL, 2006).

24 Bertuol
Introdução

Previstas no artigo 112 do ECA, as medidas socioeducativas são – Ad-


vertência: é uma admoestação verbal feita pelo juiz, transformada em
um documento e depois assinada pelo adolescente; Obrigação de re-
parar o dano: quando o ato infracional resultar em danos ao patrimô-
nio, o juiz poderá determinar, de acordo com as possibilidades do ado-
lescente a indenização, compensação ou reparação do dano causado;
Prestação de Serviço à Comunidade (PSC): prestação de atividades,
sem remuneração, de interesse comunitário, e atribuídas conforme as
aptidões do adolescente, em instituições assistenciais (hospitais, es-
colas e congêneres, programas comunitários e governamentais). Em
jornada de oito horas semanais, sem prejudicar sua frequência à esco-
la, por um período máximo de seis meses; Liberdade Assistida (LA):
visa acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente no processo de
responsabilização e protagonismo para as mudanças em seu projeto
de vida, em liberdade. O adolescente conta a assistência de pessoa
capacitada para acompanhar o caso; Semiliberdade: entendida como
transição ao meio aberto, traz benefícios àqueles que se encontram
privados de liberdade e passam a ter direito a uma medida mais favo-
rável, mantendo-se a escolarização e profissionalização; Internação:
constitui medida privativa de liberdade, cumprida em local exclusi-
vo para adolescentes. Orientada pela brevidade e excepcionalidade,
deve considerar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
O prazo máximo para internação é de 3 anos e o adolescente poderá
ser liberado ou colocado em regime de semiliberdade ou liberdade as-
sistida, quando o período se esgotar (CURY, 2013).

O Ministério Público cumpre papel importante e estratégico na ga-


rantia dos direitos da criança e do adolescente uma vez que cuida dos
interesses da sociedade, especialmente em face de violações perpe-
tradas pelo Poder Público, mas não somente. O Ministério Público
deve, ainda, manter um canal aberto com a população e com a so-
ciedade, para que os direitos de crianças, adolescentes e famílias te-
nham realidade material no cotidiano das ações. Neste campo, é ne-
cessária uma sintonia fina entre promotores, defensores e agentes da

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 25


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

saúde mental infantojuvenil, no sentido de que as peculiaridades e


especificidades de criança ou adolescente em sofrimento psíquico na
sociedade contemporânea possam ser adequadamente problematiza-
das, distanciando-se muitas vezes dos clamores da mídia, e propician-
do o entendimento contextualizado de problemáticas que tendemos,
muitas vezes, a naturalizar no cotidiano, como, por exemplo, a medi-
calização de crianças e adolescentes e sua estigmatização em rótulos
diagnósticos, afetando, para além de sua sociabilidade, seu modo de
perceber o mundo. Para melhor conhecer as áreas de interface entre a
saúde mental e o Ministério Público recomendamos a leitura do tex-
to - “Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo
redes para garantir direitos”, resultado da aproximação entre diversas
áreas do Ministério da Saúde, relacionadas à criança e adolescente, e o
Conselho Nacional do Ministério Público, no link: http://portal.saude.
gov.br/portal/arquivos/pdf/versao_cp_lena.pdf

Neste sentido, também há recomendações do SINASE (BRASIL, 2006;


BRASIL, 2012), que são específicas para os casos envolvendo a gravi-
dade do sofrimento psíquico:

• “inclusão em atendimento à saúde mental aos adolescentes que dele


necessitem;
• garantir o acesso e tratamento de qualidade a pessoa com transtornos
mentais, preferencialmente, na rede publica extra-hospitalar de aten-
ção à saúde mental, isto é, nos ambulatórios de saúde mental, nos Cen-
tros de Atenção Psicossocial, nos Centros de Convivência ou em outros
equipamentos abertos da rede de atenção a saúde, conforme a Lei nº
10.216 de 06/04/2001;
• buscar articulação dos programas socioeducativos com a rede local
de atenção a saúde mental, e a rede de saúde, de forma geral, visando
construir, interinstitucionalmente, programas permanentes de reinser-
ção social para os adolescentes com transtornos mentais;
• assegurar que os adolescentes com transtornos mentais não sejam
confinados em alas ou espaços especiais, sendo o objetivo permanente
do atendimento socioeducativo e das equipes de saúde a reinserção so-
cial destes adolescentes;

26 Bertuol
Introdução

• garantir que a decisão de isolar, se necessário, o adolescente com


transtornos mentais que esteja em tratamento seja pautada por crité-
rios clínicos (nunca punitivo ou administrativo) sendo decidida com
a participação do paciente, seus familiares e equipe multiprofissional
que deverá encaminhar o paciente para a rede hospitalar, Centros de
Atenção Psicossocial, Centros de Convivência ou em outros equipa-
mentos abertos da rede de atenção a saúde, conforme a Lei nº 10.216 de
06/04/2001” (BRASIL, 2006, p. 74).

Saiba Mais
Nesta seção indicamos para aprofundamento o texto
- “Que desafios os adolescentes autores de ato infra-
cional colocam ao SUS? Algumas notas para pensar
as relações entre saúde mental, justiça e juventude”,
de Maria Cristina G. Vicentin e Gabriela Gramkow,
disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/ar-
quivos/pdf/desafiosadolescentes.pdf

1.2.5 Saúde Mental


No campo da saúde mental infantojuvenil, a agenda para os direitos da
criança tem dois marcos institucionais importantes: (1) a implantação
do SUS (Lei nº 8.080-90) e a busca por atender crianças e adolescen-
tes e famílias de maneira a garantir a universalidade, a integralidade,
a equidade e o acesso à saúde; e (2) a Reforma Psiquiátrica Brasileira
(Lei nº 10.216-2001). Vale lembrar que, na Constituição Federal de 1988,
a saúde é entendida como um direito de todos e um dever do Estado,
e que a Reforma Psiquiátrica brasileira trabalha para transformar as
inúmeras condições de institucionalização das pessoas com sofrimen-
to psíquico, buscando atendê-las em liberdade e em seus territórios
(BRASIL, 2001a).

O SUS considera que a saúde tem diferentes determinantes e condi-


cionantes que são diretamente ligados à inserção social das pessoas,
tais como moradia, saneamento básico, renda, trabalho e lazer. Apre-
senta uma concepção de organização hierarquizada e as formas de

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 27


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

atenção à saúde vão desde atenção básica, com ações de promoção à


saúde e prevenção de doenças, até a atenção hospitalar, incluindo a
atenção especializada, as urgências e emergências, os exames clínicos,
as cirurgias e o fornecimento de órteses e próteses (Lei nº 8.080-1990).

Neste sentido, dois aspectos podem ser destacados nas práticas junto
ao SUS: (1) a aproximação aos espaços comunitários e aos modos das
pessoas viverem a vida; e (2) a importância da participação popular
como voz a ser ouvida e força na fiscalização e reinvindicação de seus
direitos. Em vários lugares da organização do SUS, tais como a gestão
dos serviços, as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde, em
âmbitos municipais, estaduais e nacional, é prevista a participação da
comunidade. As Conferências de Saúde constituem um fórum espe-
cial de organização das demandas de saúde da população e suas deli-
berações são um instrumento legítimo para nortear a formulação das
políticas públicas (Lei nº 8.080-1990).

Foi como exigência da III Conferência Nacional de Saúde Mental,


“Cuidar sim, excluir não”, realizada em dezembro de 2001, em Brasília,
que a infância entrou na cena da Política Pública de Saúde Mental.
Naquela conferência foi deliberado que

a elaboração e execução de ações no campo da saúde mental infanto-


-juvenil devem compor, obrigatoriamente, as políticas públicas de saúde
mental, respeitando as diretrizes do processo da Reforma Psiquiátrica
Brasileira e os princípios do ECA. Estas políticas devem ser intersetoriais
e inclusivas, com base territorial e de acordo com a realidade sociocultu-
ral de cada município. Nesta perspectiva, é fundamental a criação e/ou
fortalecimento de uma rede de atenção integral à criança e ao adolescen-
te e a reavaliação dos serviços existentes (BRASIL, 2001b, p. 57).

Além das Conferências, a participação da sociedade está prevista na


política nacional de saúde mental infantojuvenil, através do Fórum
Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil, instituído pela Portaria
1.608, de 3 de agosto de 2004. Este Fórum tem, entre as suas atribui-
ções, “estabelecer diretrizes políticas nacionais para o ordenamento

28 Bertuol
Introdução

do conjunto de práticas que envolvam o campo da atenção à saúde


mental infantojuvenil” (BRASIL, 2004, p.20).

Saiba Mais
O livreto do Ministério da Saúde - “Caminhos para
uma Política de Saúde Mental Infantojuvenil”, mos-
tra claramente que em 2004 se inaugura uma política
pública para esta faixa etária, que foi historicamente
desassistida ou assistida de maneira marginal, sob a
“rubrica de deficientes” ou com orientações assisten-
cialistas, apontando princípios e diretrizes para a po-
lítica nesta área. Recomendamos a leitura em:
http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ca-
minhos_infantojuv.pdf

O Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) foi regula-


mentado em 2002, pela Portaria nº 336 do Ministério da Saúde (BRA-
SIL, 2002). Portanto, começa a existir quase treze anos depois de pro-
mulgado o ECA, e encontra diferentes desafios para o atendimento.
Inicialmente, pelos aspectos históricos que constituem o campo da
assistência e da psiquiatria, delimitado pelo predomínio dos rótulos
de deficiência mental e de sua segregação em instituições totais, de
caráter escolar ou mesmo psiquiátrico, assim como a organização do
atendimento em entidades da filantropia, sem interferência do poder
público, a não ser em seu financiamento (BRASIL, 2005b).

O Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil e o CAPSi, serviço


territorializado, com estratégias de funcionamento comunitárias de
aproximação ao modo das pessoas viverem a vida, são as principais
estratégias da política de saúde mental. Destacamos aqui as suas dire-
trizes operacionais:

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 29


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

[...] reconhecer aquele que necessita e/ou procura o serviço – seja a


criança, o adolescente ou o adulto que o acompanha –, como o por-
tador de um pedido legítimo a ser levado em conta, implicando uma
necessária ação de acolhimento; tomar em sua responsabilidade o
agenciamento do cuidado, seja por meio dos procedimentos próprios
ao serviço procurado, seja em outro dispositivo do mesmo campo ou de
outro, caso em que o encaminhamento deverá necessariamente incluir
o ato responsável daquele que encaminha; conduzir a ação do cuida-
do de modo a sustentar, em todo o processo, a condição da criança ou
do adolescente como sujeito de direitos e de responsabilidades, o que
deve ser tomado tanto em sua dimensão subjetiva quanto social; com-
prometer os responsáveis pela criança ou adolescente a ser cuidado –
sejam familiares ou agentes institucionais – no processo de atenção,
situando-os, igualmente, como sujeito da demanda; garantir que a ação
do cuidado seja o mais possível fundamentada nos recursos teórico-
-técnicos e de saber disponíveis aos profissionais, técnicos ou equipe
atuantes no serviço, envolvendo a discussão com os demais membros
da equipe e sempre referida aos princípios e às diretrizes coletivamente
estabelecidos pela política pública de saúde mental para constituição
do campo de cuidados; manter abertos os canais de articulação da ação
com outros equipamentos do território, de modo a operar com a lógi-
ca da rede ampliada de atenção. As ações devem orientar-se de modo
a tomar os casos em sua dimensão territorial, ou seja, nas múltiplas,
singulares e mutáveis configurações, determinadas pelas marcas e ba-
lizas que cada sujeito vai delineando em seus trajetos de vida (BRASIL,
2005b, p.15-16).

Estas diretrizes operacionais contrastam, e muito, com as práticas de


institucionalização, buscando promover a cidadania das crianças e
adolescentes. Embora o ECA, em seu Art. 11, parágrafo 1, se refira ape-
nas que “a criança e o adolescente portadores de deficiência recebe-
rão atendimento especializado” (BRASIL, 1990, p. 13.564), entendemos
que é necessário refletir e interferir nas práticas do atendimento es-
pecializado, visando à cidadania de todas as crianças e adolescentes.

Neste sentido, para Saraceno (1999), a conquista dos espaços sociais e


públicos é necessária quando falamos de cidadania. Na Perspectiva teó-
rico-prática da Reabilitação Psicossocial introduzida pelo autor, e que

30 Bertuol
Introdução

muito contribuiu para a reforma do atendimento em saúde mental no


Brasil, para trabalharmos na construção da cidadania precisamos olhar
para os espaços onde a vida acontece. Para o autor, o habitar inserir-se
numa rede social de trocas e sentidos e do trabalho, do produzir e poder
usufruir, implica entrar verdadeiramente, inclusive materialmente, na
construção da cidadania. A transposição de suas reflexões para a infân-
cia é bem oportuna, pois muito do sofrimento psíquico é relacionado ao
viver com poucas possibilidades de vida social.

A IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, realizada


em 2010, discutiu e aprofundou a necessidade de trabalho em rede
para a infância e adolescência, envolvendo os serviços da atenção
básica, os CAPSs (Centros de Atenção Psicossocial), assistência, edu-
cação e justiça, indicando claramente a necessidade desta forma de
organização para integrar diferentes práticas e responder aos desafios
do atendimento em saúde mental:

[...] ratifica a necessidade de assegurar, em todo o território nacional, o


acesso e o tratamento para crianças, adolescentes e jovens com sofri-
mento psíquico, através da montagem de uma rede pública ampliada de
atenção em saúde mental de base comunitária e fundamento interse-
torial, em consonância com as necessidades, os recursos e as particula-
ridades de cada localidade, e sob a égide das determinações do Estatu-
to da Criança e do Adolescente (ECA), da Lei 10.216, dos princípios da
reforma psiquiátrica e dos fundamentos da Política Pública de Saúde
Mental no SUS (BRASIL, 2010, p.92).

Ainda ao final de 2011, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº


3088/2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para
pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de-
correntes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, e
tem como princípios:

•• respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liber-


dade das pessoas;

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 31


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

•• promoção da equidade, isto é, da atenção aos que mais necessitam,


reconhecendo os determinantes sociais da saúde;
•• combate a estigmas e preconceitos;
•• garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado
integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;
•• atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas;
•• diversificação das estratégias de cuidado;
•• desenvolvimento de atividades no território que favoreçam a in-
clusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício
da cidadania;
•• ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com partici-
pação e controle social dos usuários e de seus familiares;
•• organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionali-
zada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a
integralidade do cuidado; e
•• promoção de estratégias de educação permanente (BRASIL, 2011).
A IX reunião do Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil teve
como tema - “Desafios para o campo da infância e juventude no âm-
bito da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS”, em 12 e 13 de novem-
bro 2012. Na ocasião, tiveram destaque as “questões relacionadas ao
uso indiscriminado de psicofármacos, o autismo e a preocupação com
processos de institucionalização do público infantojuvenil com de-
mandas relacionadas ao uso de drogas” (BRASIL, 2013, p. 55).

O trabalho com crianças e adolescentes na saúde mental, que desde a


promulgação do ECA e do SUS, vinha sendo constantemente desafia-
do pela necessidade de comunicação e troca com outros setores como
educação, assistência e justiça para integrar ações e garantir direitos,
como vimos acima, ganhou, com a implementação dos CAPSi, o de-
safio e o mandato de ser o ordenador das ações de saúde mental em

32 Bertuol
Introdução

seu território. A recente Portaria traz o desafio de olhar para as ações


enquanto estratégias na construção do trabalho em rede.

A abordagem de crianças, adolescentes e famílias nas redes de atenção


pode nos provocar reflexões, trocas de conhecimento, mas, principal-
mente, permite uma aposta democrática cada vez mais aperfeiçoada
nas práticas cotidianas com seus direitos. Está explícito que dividi-
remos mais as responsabilidades e teremos mais coparticipação. No
entanto, uma questão se coloca de maneira cada vez mais clara: tere-
mos sempre que negociar o nosso papel e não assumirmos o lugar do
saber; teremos sim, que nos prepararmos para escutar os outros e abrir
o nosso saber para o diálogo e relacionamento com os demais serviços,
ou pontos da rede de atenção psicossocial. Este é um grande desafio.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 33


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 1

Fechamento da Unidade
a proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes teve
adesão mundial. A abordagem da infância numa ótica de desenvolvi-
mento encontrou ressonância nos saberes e nas práticas com crianças
e também na saúde mental, surgindo então a necessidade de políticas
voltadas para esta população. Porém, estas afirmações não são sufi-
cientes para que os direitos das crianças sejam efetivados no cotidia-
no, ao contrário, é preciso tensioná-las no sentido amplo da participa-
ção das crianças e adolescentes durante todo o processo da atenção. A
proteção integral não se faz “por decreto”, mas é uma prática que cons-
truímos cotidianamente. Vimos que a proteção das crianças sempre
esteve presente na construção dos documentos sobre os seus direitos
e que as situações e as crianças a serem protegidas variaram histori-
camente. Atualmente, encontramos muitas situações paradoxais em
relação a isso no campo da saúde mental, como por exemplo, as pro-
postas de internação compulsória para crianças usuárias de drogas,
que nos reforçam a necessidade dos trabalhos intersetoriais e do en-
volvimento de outros atores, como o Ministério Público e a Defensoria
Pública, na saúde mental infantojuvenil.

Ressaltamos que a tarefa não é simples e nem pode ser simplificada:


muitas vezes, ver crianças e adolescentes como seres em desenvol-
vimento pode implicar numa postura que valoriza somente o futuro,
o que ele ou ela virá a ser, e entender o seu sofrimento como alguma
coisa que, com o tempo, vai passar...

34 Bertuol
Referências
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do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto


da Criança e Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, Ed. 135, 16 jul. 1990, p.
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______. Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a


Convenção dos Internacionais Direitos da Criança. Diário Oficial da
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22.261. 1990b.

______. Lei nº 10.216 de 3 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e


os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecio-
na o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União,
Poder Legislativo. Brasília, DF, Seção 1, Ed. 69, 9 abr. 2001, p. 2, 2001a.

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selho Nacional de Saúde. III Conferência Nacional de Saúde Mental,
2001. Brasília: MS, 2001b. (Série D. Reuniões e Conferências, 15).

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 336 de 19 de fevereiro de


2002. Diário Oficial da União, Poder Legislativo. Brasília, DF, Seção 1,
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______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.608 de 03 de agosto de


2004 – constitui o Fórum Nacional sobre saúde mental de crianças e
adolescentes. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF,
Seção 1, 4 ago. 2004, p.28, 2004.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 35


do menor ao sujeito de direitos
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Sistema Único de Assistência Social. Norma Operacional Básica. Bra-
sília, DF, 2005a.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Depar-


tamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma
política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da
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cente. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Sistema Nacional
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2006. Disponível em: http://www.condeca.sp.gov.br/legislacao/sina-
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de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monito-
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2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofri-
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de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, Seção 1, Ed.
246, 26 dez. 2011, p. 230-236.

36
______. Lei nº 1594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacio-
nal de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução
das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique
ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986,
7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315,
de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os De-
cretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro
de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Seção 1, 19 Jan. 2012, p.
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_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa-


mento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde
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As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 39


do menor ao sujeito de direitos
Os principais dispositivos e
arranjos para a organização da
Rede de Atenção Psicossocial
para crianças e adolescentes
no âmbito do Sistema
Único de Saúde

02
Autoria:
Carla Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

Unidade 2 - Os principais dispo-


sitivos e arranjos para a or-
ganização da Rede de Atenção
Psicossocial para crianças e
adolescentes no âmbito do Sis-
tema Único de Saúde
2.1 Saúde e saúde mental
Iniciaremos, brevemente, definindo o conceito de saúde, lembrando
que desde 1948 a Organização Mundial de Saúde enfatizou ser ne-
cessária a interação entre o indivíduo, a sociedade e o ambiente para
alcançar o estado de bem-estar. Atualmente, o conceito de saúde, tal
como definido no artigo 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988),
é um direito de todos e um dever do Estado. Já o Sistema Único de
Saúde (Lei nº 8.080-1990) coloca ênfase em fatores também não sa-
nitários, como os fatores sociais, culturais, relacionais e econômicos,
chamados, não por acaso, de “determinantes e condicionantes da saú-
de” (BRASIL, 1990, p. 18.055).

A principal consequência é que cada vez mais os modelos de cura e


tratamento tiveram que se ocupar em ampliar o âmbito de suas ações
para além daquelas estritamente sanitárias, seja em termos da orga-
nização, seja em termos dos profissionais envolvidos e dos métodos
de trabalho. Caminha-se, assim, para uma forma em que a promoção
da saúde se torna uma abordagem indispensável, e os limites entre o
que é da ordem social e o que é da ordem sanitária se tornam cada vez
mais difíceis de identificar separadamente.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 41


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

Isto é particularmente sensível no campo da saúde mental infantoju-


venil. O peso dos fatores determinantes e condicionantes da saúde
é ainda maior nas primeiras fases do desenvolvimento do ser huma-
no. Se considerarmos a situação de dependência que as crianças e
adolescentes encontram para viver — da família e do ambiente — so-
madas a uma condição de doença ou deficiência, podemos perceber
que o percurso da família no enfrentamento das graves problemáticas
de natureza social, ambiental e econômica, pode torná-los frágeis e
vulneráveis. Assim, sem acesso aos serviços de saúde ou sem escuta
e ações que possam promover seus direitos, as condições para o seu
desenvolvimento se tornam críticas, chegando mesmo a exclui-los da
vida social, violando seus direitos de cidadania.

A atividade profissional voltada para a infância e adolescência na saú-


de mental tem suas origens mais remotas nas práticas pedagógicas
voltadas para a educação especial e, mais recentemente, nas práticas
ambulatoriais, com a constituição de equipes multidisciplinares nos
ambulatórios de saúde mental, com objetivos de avaliação e tratamen-
to. Em relação às práticas ambulatoriais das equipes multidisciplina-
res, iniciadas ainda nos anos 80, podemos encontrar o início de refle-
xão e crítica, em diferentes âmbitos profissionais, sobre as práticas do
atendimento massificado (BEZERRA JR, 2007) e institucionalização
em escolas especializadas, classes especiais para crianças deficientes,
autistas e com problemas no desenvolvimento.

A história das políticas públicas anteriores ao Estatuto da Criança e do


Adolescente é uma história de institucionalização :

[...] o recolhimento de crianças às instituições de reclusão foi o principal


instrumento de assistência à infância no país. Após a segunda metade
do Século XX, o modelo de internato cai em desuso para os filhos dos
ricos, a ponto de ser praticamente inexistente no Brasil há vários anos.
Essa modalidade de educação na qual o indivíduo é gerido no tempo e
no espaço pelas normas institucionais, sob relações de poder totalmen-
te desiguais, é mantida para os pobres até a atualidade. A reclusão, na

42 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

sua modalidade mais perversa e autoritária, continua vigente até hoje


para as categorias consideradas ameaçadoras para a sociedade, como
os autores de atos infracionais (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p. 22).

Não foi à toa que o primeiro encontro do Fórum de Saúde Mental In-
fantojuvenil tratou do tema da institucionalização e recomendou: “a
implementação imediata de ações que visem a reversão da tendência
institucionalizante de crianças e adolescentes, sejam, no campo da
saúde mental, da assistência social, da educação e da justiça” (BRA-
SIL, 2013, p.10).

É bom então que tenhamos sempre em mente que em nosso traba-


lho cotidiano estamos lidando, entre tantas coisas, com forças sociais
de longa duração, com diferentes apoios em saberes e práticas legiti-
madas, tais como a pedagogia, a psicologia e a psiquiatria. Assim, o
processo de mudança acontece sempre pelas partes mais disponíveis
que estruturam as práticas ou pelas que se dispõem à mudança (BER-
TUOL, 2003).

Neste processo os profissionais têm um papel estratégico. Trabalhan-


do em hospitais psiquiátricos na Itália, Basaglia (1985) fala em recu-
sarmos o papel de manter e reproduzir a instituição e faz um convite
e uma exortação para que recusemos entender que as terríveis condi-
ções em que se apresentavam os internos fossem condições naturais,
do curso da própria doença.

Partiu-se do encontro com a realidade do manicômio, que, sendo


opressiva, é trágica. Não era possível que centenas de homens vivessem
em condições desumanas somente por serem doentes. Não era possível
que nós, na qualidade de psiquiatras, fôssemos os artífices e os cúm-
plices de uma tal situação. O doente mental é, sobretudo por ser um
excluído, um abandonado por todos; porque é uma pessoa sem direitos
e em relação a quem pode-se tudo. Por isso negamos dialeticamente
nosso mandato social, que exigia que considerássemos o doente como
um não-homem, e, ao negá-lo, negamos a visão do doente como um
não-homem. Do ponto de vista prático, negamos a desumanização do
doente como resultado último da doença, atribuindo o grau de destrui-

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 43


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

ção à violência do asilo, da instituição, de suas mortificações, desman-


dos e imposições, que derivam da violência, dos abusos e das mortifi-
cações que são o esteio de nosso sistema social. Tudo isso foi possível
porque a ciência, sempre a serviço da classe dominante, decidira que o
doente mental era um indivíduo incompreensível e, como tal, perigoso
e imprevisível, impondo-lhe, como única alternativa, a morte civil (BA-
SAGLIA, 1985 apud ALMEIDA, 2005, p. 29).

Rotelli (1988) nos diz que o processo de desinstitucionalização come-


ça no interior de uma própria instituição e segue para a construção
e invenção da instituição no corpo social, o que quer dizer, fora dos
muros, na vida social. Neste sentido, abordaremos, a seguir, alguns
dispositivos que foram construídos na prática e na experiência da Re-
forma Psiquiátrica Brasileira para a atenção psicossocial que favore-
cem a aproximação das práticas com a inserção social, a autonomia,
a criatividade nas diferentes formas de viver a vida e com os direitos.

Tais dispositivos se desdobram como veremos, para o trabalho em


Rede de Atenção Psicossocial, Portaria nº 3.088/2011, que institui a
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do SUS, e com es-
pecial ênfase nos trabalhos territoriais. Iniciaremos pelo trabalho em
equipe e seguiremos com o projeto terapêutico e as ferramentas para
o trabalho em rede, entendendo que eles envolvem aspectos organiza-
cionais, relacionais e manejos clínicos.

2.2 O trabalho em equipe


Embora possa parecer banal e que todos saibam, trabalhar em equi-
pe implica em muito diálogo, troca de experiências, disponibilidade e
abertura para relacionar-se com os outros. Sem esta abertura a equipe
do serviço não estará atuando como grupo, mas como uma somatória,
ou uma série de pessoas e de saberes. “Qual é o problema disso?”, Al-
guém pode perguntar. O problema com isso é que não trabalhamos no
vazio e, historicamente, os saberes e as práticas sobre a saúde mental
infantil se construíram sobre os conceitos de defeito, dano, doença,
déficit ─ construindo o olhar profissional de modo a tirar de cena as-

44 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

pectos sociais importantes do sofrimento psíquico – e é justamente


esta abertura e a crítica sobre as produções cotidianas que permitem a
construção de um projeto/processo de mudança, e sem o quê, pouco
estaríamos fazendo para transformar práticas.

Um primeiro contraste com as práticas manicomiais partiria então da


reflexão sobre a nossa ação, sobre o que estamos fazendo e como po-
demos discutir os diferentes saberes que nos orientam nas práticas.

Palavra do Autor
O trabalho em equipe permite que tensões e, muitas
vezes, conflitos possam surgir no processo da equipe
que devem ser trabalhados e superados, de preferên-
cia contando com supervisão. Mas não só; também
favorece a aproximação entre as pessoas e expressão
de aspectos e habilidades pessoais que, ao serem inte-
gradas ao trabalho, enriquecem o trabalho da equipe,
tornando o processo de cuidado mais leve e solidário.

Assim, num serviço substitutivo, os papéis profissionais não são es-


tanques, no sentido de que se observa uma profissionalidade orien-
tada para as necessidades do usuário e para a criatividade do fazer
cotidiano. Todos têm importância, pois todos se relacionam com os
usuários. Estas relações que ali emergem (numa oficina, num grupo,
num passeio, numa atividade festiva) devem ser valorizadas, numa
proposta de promover a vida e a inserção social, os fundamentos para
a construção do dispositivo da Referência. Os profissionais podem ser
técnicos de referência, e acompanhar de perto, num vínculo seguro,
famílias e crianças, contrapondo-se às lógicas orientadas pelo pressu-
posto que apenas o médico psiquiatra teria o saber e a possibilidade
de tratar o sofrimento. Da perspectiva da equipe ocorre uma divisão
das responsabilidades pelo cuidado. É um dispositivo do trabalho que
exige ao mesmo tempo em que provoca a equipe para o diálogo.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 45


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

Basaglia (2005) afirma que precisamos colocar a doença entre parênte-


ses e isso implica em construir e inventar uma nova centralidade para
a atenção em saúde mental, diferente daquela calcada sobre um único
saber. Nos serviços substitutivos esta centralidade é deslocada para a
vida do usuário, sua biografia, “sua existência- sofrimento no corpo
social” (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001, p. 30).

O tratamento não visaria mais a reparação de um dano, déficit, defeito


ou doença, o que comumente orientava as práticas para abordagens
sintomáticas, mas tem a qualidade de processualidade, projetualidade
(ROTELLI, 1988), a ser construída junto com as crianças, adolescentes
e seus familiares.

Além disso, ao lidarmos com as crianças “como existência de sofri-


mento no corpo social” (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001, p. 30 ),
facilmente encontraremos múltiplas determinações para o sofrimen-
to, bem como, as diferentes formas de violência com que crianças vêm
sendo tratadas em relações desiguais e que tratam apenas de colocá-
-las em lugar visível, fora do mundo adulto, para serem controladas.

Aliás, para Basaglia (2005), os profissionais também estão envolvidos


numa projetualidade quanto ao seu fazer, na medida em que colocar
a doença “entre parênteses” não significa negar o sofrimento de uma
pessoa, mas redescobrir a pessoa que ficou ali reduzida ou simplifica-
da. Assim, entendemos que no encontro com a pessoa e a família que
sofre, o sintoma não é o que devemos curar, mas o que precisamos
compreender. A expressão incompreensível de um delírio, de uma
alucinação ou de uma depressão não é apenas expressão de doença,
mas expressão de sentido.

Busca-se, em diferentes relações, restituir o sentido à doença de uma


pessoa, que parece incompreensível por não a entendermos, e não, por
não ser humana. No entanto, convivemos com novas formas de simpli-
ficação para o sofrimento, cada vez mais presentes na psiquiatria e em
modelos biológicos e organicistas: as pílulas para eliminar o sofrimento,
evidentemente com grande interesse da indústria farmacêutica.
46 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

2.3 O projeto terapêutico singular


As crianças e adolescentes com sofrimento psíquico têm as mesmas
aspirações e desejos que qualquer criança em geral, pois estão inseri-
das na mesma sociedade e na mesma cultura. O projeto terapêutico,
no entanto, é sempre singular, pois as ações são pensadas e discuti-
das partindo das necessidades específicas de cada criança. Envolvem
atividades, propostas orientadas para o jogo e a expressão lúdica que
sustentam a comunicação, a expressão de emoções e a configuração
de suas relações, favorecendo o conhecimento, a vontade de aprender
e a sua vida social.

Trabalhar com um projeto terapêutico contrasta, e muito, com outras


formas de trabalho, por projetar-se no tempo e envolver processua-
lidade. O objetivo que o orienta é a expressão das potencialidades e
positividades da criança, do adolescente e de sua família, por meio do
trabalho conjunto com a rede de atenção. A abordagem é integrada,
isto é, busca o envolvimento, o movimento e contribuições de todas as
relações nos lugares significativos da vida da criança.

A Portaria nº 3.088/2011 destaca o Projeto Terapêutico no âmbito do


CAPS:

§ 3º O cuidado, no âmbito do Centro de Atenção Psicossocial, é desen-


volvido por intermédio de Projeto Terapêutico Individual, envolvendo
em sua construção a equipe, o usuário e sua família, e a ordenação do
cuidado estará sob a responsabilidade do Centro de Atenção Psicosso-
cial ou da Atenção Básica, garantindo permanente processo de coges-
tão e acompanhamento longitudinal do caso (BRASIL, 2011, p. 60 ).

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 47


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

Destacaremos dois aspectos neste parágrafo: (1) o envol-


vimento da família; e (2) a cogestão do ordenamento do
cuidado pela atenção básica e o CAPSi.
Em relação à participação da família no projeto terapêuti-
co, destacamos um aspecto relacional que aparece como
central para o atendimento, pois dificilmente teremos
mudanças em situações sem que as pessoas se sintam
participando do processo. O engajamento em um projeto
requer sempre participação. De outra forma, um aspecto
muitas vezes não apreciado suficientemente na constru-
ção de projetos terapêuticos é sabermos que ele está ba-
seado em expectativas e projeções que fazemos para um
determinado caso ou situação que envolve não apenas a
pessoa e a família com a qual estamos lidando, mas tam-
bém a nós mesmos, que vamos acompanhar o caso e pro-
mover o atendimento.

Assim, um projeto terapêutico nunca deve ser uma lista de prescrições


a ser seguida pelas crianças, adolescentes e famílias, mas deve incor-
porar a perspectiva de que não estamos trabalhando na criança ou
na família, e sim, com a criança e com a família. Entende-se que esta
dissociação é produto de objetificações que outorgam poder ao saber
construído sob formas autoritárias, tal como os modelos naturalistas
de doença (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001). Nesta perspecti-
va, ao trabalharmos com as crianças e as famílias, faz sentido que o
nosso trabalho se oriente também para os diálogos a serem abertos
com os serviços da rede de atenção e nas comunidades.

Quando falamos de sofrimento psíquico na infância, falamos também


de uma perspectiva histórica que enfatizou a normatividade. Esta
consideração é chave para o trabalho em rede e para a cogestão do
ordenamento do cuidado entre a atenção básica e o CAPS.

48 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

Quanto a cogestão do ordenamento do cuida- 2 A Saúde da família carac-


do pela Atenção Básica e o CAPSi, na RAPS teriza-se como a porta de
entrada prioritária de um
são previstos dois lugares para o apoio matri- sistema hierarquizado, re-
cial: na atenção básica, o Núcleo de Apoio à gionalizado de saúde e vem
Saúde da Família2 (NASF) faria o apoio ma- provocando um importante
movimento de reorienta-
tricial às equipes da Estratégia de Saúde da ção do modelo de atenção
Família e também os profissionais do CAPs à saúde no SUS. Visando
fariam apoio matricial, sempre que necessá- apoiar a inserção da Estra-
tégia Saúde da Família na
rio, em toda a RAPSs. rede de serviços e ampliar a
abrangência e o escopo das
O apoio matricial constitui um arranjo ações da Atenção Primária
organizacional que visa outorgar suporte bem como sua resolutivi-
dade, além dos processos
técnico em áreas específicas às equipes
de territorialização e regio-
responsáveis pelo desenvolvimento de nalização, o Ministério da
ações básicas de saúde para a população. Saúde criou o Núcleo de
Neste arranjo, profissionais de uma área Apoio à Saúde da Família -
de saúde compartilham alguns casos com NASF, com a Portaria GM
a equipe de saúde local. Este comparti- nº 154, de 24 de Janeiro de
lhamento se produz em forma de corres- 2008, republicada em 04 de
ponsabilização pelos casos, podendo ser Março de 2008 (BRASIL,
efetivada por intermédio de discussões e 2008). (www.dab.saude.
gov.br/nasf.php)
intervenções conjuntas junto às famílias e
às comunidades, ou em atendimentos conjuntos. A responsabilização
compartilhada dos casos exclui a lógica do encaminhamento, pois visa
aumentar a capacidade resolutiva dos problemas de saúde da equipe
local, estimulando a interdisciplinaridade e a aquisição de novas com-
petências para a atuação em saúde (BRASIL, 2004, p. 80).

A aproximação de duas práticas diferentes — como as da saúde men-


tal e as da atenção básica — no trabalho das redes pode produzir for-
mas de atenção para as quais nenhuma delas poderia anteriormente
dar resposta. A RAPS faz uma aposta nesta possibilidade de troca e de
ação conjunta. Para Campos e Nascimento (2007, p. 92),

[...] mesmo que o olhar e a tecnologia do especialista em saúde mental


no cuidado em saúde sejam reconhecidamente importantes, percebe-
mos que em determinadas necessidades expressas por parte signifi-

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 49


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

cativa da população encaminhada não podem ser satisfeitas com base


em tecnologias desta ou daquela especialidade. Tais necessidades serão
mais bem acompanhadas por esforços criativos e conjuntos dos profis-
sionais envolvidos na mobilização dos recursos institucionais, comu-
nitários ou individuais, materiais ou subjetivos, a serem articulados no
interior dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), pactuados com o
usuário ou a rede em questão.

Ainda, de acordo com as autoras, numa orientação prática, os traba-


lhos dos profissionais da saúde mental junto à atenção básica podem
distinguir três formas estratégicas: a primeira, no apoio matricial pro-
priamente dito, “[...] quando os saberes e as ações dos profissionais da
área de atenção psicossocial devem ser incorporados pelas equipes”,
a segunda, quando “identificamos o louco, que é da região e de tal
equipe com o objetivo de pensarmos um projeto conjunto [...] em bus-
ca dos mais variados atores em um projeto terapêutico, de trabalho
no território” (CAMPOS; NASCIMENTO, 2007, p. 96) — neste caso
a responsabilização pelo caso é referida ao CAPSi, e a terceira, que
implica que ambos, atenção básica e saúde mental possam contribuir
para a releitura de situações de vulnerabilidade e violência localizadas
no território, estando o caso sob responsabilidade de parceiros inter-
setoriais (CAMPOS; NASCIMENTO, 2007).

Nas três situações apresentadas, temos uma aproximação que provoca


efeitos importantes no agir dos profissionais. Não é somente o pro-
fissional da atenção básica que se enriquece no diálogo e na troca,
os profissionais da saúde mental também ganham no sentido de que
podem incorporar às suas práticas visões mais aproximadas da vida
social e dos desafios que são colocados para a inserção social, que, de
outra forma, se tornam visíveis no território.

Saiba Mais
Para aproximar à experiência infantil com o território
ou lugar recomendamos assistir o filme “MUTUM”
(KOGUT, S. Mutum. BRASIL, 2007, 95 minutos).

50 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

2.4 A atenção psicossocial é estratégica


para a rede
Embora o número de CAPSi no Brasil ainda seja insuficiente para o
atendimento da população infantojuvenil, atualmente em torno de 185
unidades, existem muitos municípios que poderiam ter mais serviços
em seus territórios: os municípios com mais de 70.000 habitantes são
potenciais para terem ao menos um CAPSi, assim como em muitos
municípios maiores é possível ter mais que um CAPSi.

O modo de operar a atenção psicossocial, como vimos nas diretrizes


operacionais da atenção psicossocial, no módulo anterior, é estratégico
para o desenvolvimento do trabalho em rede de atenção na saúde men-
tal infantojuvenil que não se constitui exatamente como uma novidade,
especialmente para os profissionais ligados ao CAPSi. Ao ser definido
como o ordenador das ações de saúde mental em seu território (BRA-
SIL, 2005), as equipes de saúde mental já tinham, ainda que de forma
heterogênea, buscado construir ações em rede ao formar parcerias junto
às escolas, às praticas esportivas, aos agentes da assistência social, entre
outros. Com a RAPS, reforça-se o seu papel estratégico junto aos dife-
rentes serviços e setores, visando a atenção integral.

Trabalhar em rede significa trabalhar integrado a uma proposta ou a


um projeto terapêutico. O lugar estratégico que o CAPS infantil ocupa
na RAPS é que traz as maiores novidades e desafios, pois deveremos
estar mais atentos às relações, diálogos e trocas que estabelecemos en-
tre os serviços. Se a invenção de novas instituições nunca é um pro-
cesso acabado, o trabalho em rede chama a nossa atenção para cons-
truções de relações com os diferentes serviços, que são em si mesmas
redes, uma vez que sustentam práticas.

Neste sentido, salientamos a importância do envolvimento dos pro-


fissionais nos diferentes fóruns que envolvem discussões e decisões
sobre a saúde mental de crianças e adolescentes na cidade: Conselho

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 51


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente; da aproximação


com as universidades locais em diferentes projetos como PET-Saúde,
PET-Saúde Mental, pesquisas, programas de estágios, formação de
profissionais para atuação na RAPS; e do desenvolvimento de traba-
lhos conjuntos com as iniciativas da economia solidária, não excluin-
do a possibilidade de invenção de espaços de participação para crian-
ças, adolescentes e familiares.

2.4.1 O acesso
O acesso diz respeito às possibilidades existentes nos territórios de
os usuários chegarem, estarem e poderem usufruir do atendimento.
Isto implica sempre em pensar nas diferentes condições que podem
levar o usuário ao serviço e ainda pensar nas diferentes condições que
o serviço pode oferecer de receber estas pessoas, ou seja, é um tipo
de relação no corpo da sociedade que mistura aspectos materiais e
sociais que configuram o serviço como uma prática existente (reco-
nhecida) e portadora de sentido para uma comunidade. O serviço tem
portas abertas? Encontra-se em lugar acessível no espaço da cidade?
Só atende com agendamento? Considera horário de trabalho dos pais
e da escola dos filhos?

Com a RAPS temos definidos pontos de acesso ao sistema de saúde.


Isto não quer dizer que o trabalho da atenção psicossocial esteja res-
trito a estes pontos, mas sim que ele se desdobra nestes acessos, faci-
litando para o usuário a sua inserção no sistema.

São pontos de acesso na rede de atenção psicossocial:

1. Atenção Básica em Saúde: Unidade Básica de Saúde, Consultório


na Rua, Centros de Convivência e Cultura.
2. Atenção Psicossocial Estratégica: Centros de Atenção Psicossocial,
em suas diferentes modalidades.

52 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

3. Atenção de Urgência e Emergência: SAMU 192, Sala de estabilização,


UPA 24hs e portas hospitalares de atenção à urgência/pronto
socorro, Unidades Básicas de Saúde.
4. Atenção Hospitalar: Enfermaria especializada em hospital geral,
Leitos de saúde mental no hospital geral.
5. Estratégias de Desinstitucionalização: Censos realizados
em Hospitais Psiquiátricos, Trabalhos com Equipes de
Desinstitucionalização.
6. Estratégias da Reabilitação Psicossocial: Iniciativas de Geração
de trabalho e renda, Empreendimentos solidários e cooperativas
sociais (BRASIL, 2011).
Além dos pontos de acesso citados acima, outros serviços compõem e
ajudam a articular a rede: na atenção básica, o Núcleo de Apoio à Saú-
de da Família; a Atenção Residencial de Caráter Transitório e a Uni-
dade de Acolhimento e o Serviço de Atenção em Regime Residencial;
como estratégias de desinstitucionalização, os serviços residenciais
terapêuticos, e o Programa de volta para casa.

Cabe salientar que estes são pontos de acesso à RAPS e


que os entendemos como lugares do relacionamento en-
tre as equipes, que devem estar orientadas pelos projetos
terapêuticos. Com a centralidade deslocada para a singu-
laridade da experiência-sofrimento, a oferta da atenção
psicossocial na RAPS também deve ser singularizada. Isto
quer dizer que nem sempre “cada coisa estará em seu lu-
gar” e que as ofertas de cada serviço ou ponto de atenção
da rede podem e devem ser pensadas no contexto singular
das demandas de crianças, adolescentes e famílias.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 53


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

2.4.2 O acolhimento
Acolher significa reconhecer que crianças, adolescentes e famílias têm
demandas e expressões legítimas. Os serviços de saúde, em geral, tra-
balham com esta perspectiva, mas é necessário que haja mais apro-
fundamento quanto a isso. Inicialmente, a consideração óbvia que se
trata do primeiro contato com o serviço é, portanto, o início de um
relacionamento que abarca as demandas trazidas pelo usuário e os re-
cursos que o serviço dispõe, incluindo aí a equipe, seus saberes e seus
projetos coletivos.

Em diferentes experiências de supervisão com as equipe de CAPS


infantil identifica-se que sempre funciona mais quando o trabalho do
acolhimento é claro para todos. Isto é, quando é dada atenção aos di-
ferentes saberes ali presentes e suas relações construídas no trabalho.
A pergunta é o que queremos com este primeiro atendimento, o que é
importante para “nós”? Assim, um dos trabalhos das equipes dos ser-
viços é discutir este acolhimento e seus objetivos, pois, na prática co-
tidiana este acolhimento pode ser realizado de diferentes maneiras e
por diferentes profissionais.

No entanto, o sofrimento psíquico não pode ser reduzido a uma des-


crição nosográfica ou de classificação de doenças, embora os profis-
sionais dos serviços lidem cotidianamente com este paradoxo, e esta
seja a tarefa para a qual muitos serviços ainda se organizam em seus
primeiros contatos com usuários, as chamadas “triagens”. Tais deman-
das por classificações, sempre presentes e muitas vezes formuladas
também por outros serviços, tais como a escola, mostram uma pers-
pectiva histórica que enfatizou a normalização das crianças.

O sofrimento psíquico se mostra, então, não como uma entidade mór-


bida ou como enfermidade, porém de um modo mais sutil, e envolve
relações que se estruturam em torno da identidade e do sentimento
de si mesmo ou pessoalidade nas diferentes relações que uma pessoa
estabelece. Uma parte importante do sofrimento psíquico entendido

54 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

desta forma relaciona-se a impossibilidades de viver junto com os ou-


tros; aspecto estruturante do que entendemos por humanidade e da
forma pela qual nos constituímos como seres humanos: em sociedade.

Esta consideração sobre o sofrimento psíquico é chave para o trabalho


em rede e para a cogestão e o ordenamento do cuidado entre a atenção
básica e o CAPS.

Saiba Mais
Para aprofundar os seus conhecimentos recomenda-
mos a leitura dos Cadernos de Atenção Básica 34 so-
bre Saúde Mental do Ministério da Saúde, disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ca-
dernos_atencao_basica_34_saude_mental.pdf

Ao propiciar o acolhimento, seremos acolhedores, interessados, olha-


remos nos olhos das pessoas e realizaremos uma entrevista adequa-
damente, isto é, demonstrando o nosso interesse genuíno pelas de-
mandas e questões trazidas. Este contato inicial com as crianças e
familiares em sofrimento psíquico deve buscar um diálogo com as
pessoas que ali estão e não enfatizar queixas, sintomas e diagnósticos,
mas permitir a expressão e reflexão da situação. Em termos práticos,
trata-se de considerar que a pessoa que procura o serviço não é ape-
nas portadora de problemas, buscando passivamente uma relação de
ajuda, mas capaz de envolver-se com a transformação da situação.

2.4.3 A convivência
A convivência e a formação de redes de sociabilidade para crianças e
adolescentes são construídas com o mesmo cuidado que o projeto tera-
pêutico, individualmente e em diálogo com a família e articulado com
outros serviços da rede. No entanto, ao atendermos crianças e adoles-
centes com sofrimento psíquico, uma convivência deve ser pensada no
interior do serviço, como forma de atenção aos casos mais graves, à cri-
se e como uma aproximação inicial para o engajamento e de ativação de
possibilidades para as diferentes abordagens terapêuticas.
As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 55
do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

O espaço do CAPS infantil deve materializar possibilidades de aco-


lhimento de forma que seja viável estar nele: brincar, descansar, estar
em grupo, estar sozinho, comer, ficar sem fazer nada, ter privacidade,
ouvir música, conversar, planejar uma atividade, descobrir novos in-
teresses. Observa-se que em muitos serviços prevalece a organização
do espaço centrada apenas na sala de espera, na sala de recepção, e
nas salas de atendimento, sem valorizar este importante espaço para
os usuários e para as estratégias de trabalho da equipe.

O espaço deve permitir trocas e escolhas e assim favorecer a autono-


mia dos usuários. Deve ser flexível o suficiente para suportar a pre-
sença das crianças e adolescentes, bem como, para ser usado por eles.

2.4.4 O acompanhamento
O acompanhamento tem sido considerado como o principal trabalho
para as equipes de saúde mental. O que se coloca como questão de
fundo é como o CAPS acompanha a trajetória de vida dos usuários,
através de quais práticas assistenciais o acompanhamento do trata-
mento é realizado, e como se efetiva algum vínculo entre a clientela
e a equipe e também no processo da invenção de novas instituições
(SCHMIDT; FIGUEIREDO, 2009). É necessário acompanhar nossos
usuários em seus percursos, seus territórios, nos caminhos que esco-
lhem e nos projetos que fazemos juntos.

O acompanhamento, na perspectiva dos projetos terapêuticos, busca ati-


var possibilidades, afetos e relações. São diversos os tipos de atividades
terapêuticas possíveis para o acompanhamento, como psicoterapia indi-
vidual ou de grupo, orientação e acompanhamento do uso de medicação,
oficinas terapêuticas, atividades comunitárias, visitas domiciliares.

O acompanhamento tem como finalidade aumentar a contratualidade


(KINOSHITA, 1996) de crianças adolescentes e famílias:

56 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

[...] a contratualidade do usuário, primeiramente vai estar determinada


pela relação estabelecida pelos próprios profissionais que o atendem.
Se estes podem usar o seu poder para aumentar o poder do usuário
ou não. Depois pela capacidade de se elaborar projetos, isto é, ações
práticas que modifiquem condições concretas de vida, de modo que a
subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim como, para que
abordagens terapêuticas específicas possam contextualizar-se (KINO-
SHITA, 1996, p. 56).

Crianças e adolescentes chegam a um mundo pronto, que os espera.


Em seu complexo processo de desenvolvimento eles vão encontrando
e conhecendo as formas que a cultura e a sociedade tratam de seus
pequenos, isto é, eles vivem o processo de socialização e, costuma ser
comum que formas de sociabilidade se cumpram: que se inicie a en-
trada no código adulto da leitura e escrita em determinada idade, que
possam andar sozinhos na rua, que comecem a falar com estranhos,
frequentar escolas, entre outras coisas, o que varia muito conforme
o lugar ou a classe social. As crianças e adolescentes com sofrimento
psíquico são profundamente envolvidos e muitas vezes aprisionados
por tais normatividades que produzem estigmas, lhes impedindo a ex-
pressão pessoal ou lhes dificultando acessos.

Trabalhar sobre a contratualidade de crianças, adolescentes e famílias


implica muitas vezes em articular-se para além da produção das inva-
lidações de suas expressões pessoais por prescrições e estigmas, com
uma discussão sobre a posição social de crianças e adolescentes, pois
este é exatamente o aspecto mais naturalizado da infância.

Assim, a construção de espaços coletivos de participação, diálogo, e ex-


pressão pessoal tais como as Assembleias, desenvolvidas nos CAPSi,
para a discussão e decisões sobre o cotidiano e a convivência no serviço,
certamente é um bom começo, e poderia ser colocada como um desafio
para outros pontos da rede. Um espaço democrático que pode reunir
vários atores: crianças, adolescentes, familiares e funcionários dos ser-
viços, entre outros e permite o encontro, a troca e o estabelecimento de
compromissos e responsabilidades, de maneira coletiva.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 57


do menor ao sujeito de direitos
Unidade 2

Saiba Mais
Sugerimos o filme “Ensinando a viver” (MEYJES, M.
EUA, 2007, 108 minutos) como aproximação ao diálo-
go com a experiência infantil sobre as normalizações
e expectativas adultas para as crianças.

58 Bertuol
Os principais dispositivos e arranjos para a organização da Rede de Atenção Psi-
cossocial para crianças e adolescentes no âmbito do Sistema Único de Saúde

Fechamento da Unidade
Nesta unidade, abordamos os principais dispositivos da atenção psi-
cossocial que vêm sendo construídos ao longo da Reforma Psiquiátri-
ca e entendemos que eles são dispositivos úteis para a organização do
trabalho na rede de serviços, que têm o desafio de acolher, promover
a convivência e acompanhar usuários com demandas relacionadas à
saúde mental. Salientamos a importância do CAPS infantojuvenil e da
experiência dos serviços de saúde mental como estratégico na disse-
minação desta forma de atenção.

Os dispositivos construídos na reforma psiquiátrica brasileira para a


atenção psicossocial mostram-se estratégicos para a atenção em rede,
porém, da mesma forma que relatamos no módulo anterior, considera-
mos ainda dois desafios: (1) a necessidade de tensionar as nossas práticas
no sentido da valorização, em nosso trabalho cotidiano, a experiência
(vida) das crianças, adolescentes e famílias na sociedade, trabalhando
no sentido de apoiar e promover ofertas de serviços e atenção em toda
a rede e nos territórios; e (2) corrermos os riscos de trabalhar juntos e de
construirmos as ofertas de atenção de maneira coletiva.

As Políticas Públicas para a infância e adolescência: 59


do menor ao sujeito de direitos
Referências
ALMEIDA, N. M. C de. De volta para a cidadania: proposta para uma
nova política de inclusão social dos portadores de deficiência em si-
tuação de abrigo. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil/Mi-
nistério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas. Brasília, DF: Ministério da Saúde,
2005. p. 35-40. (Série B. Textos Básicos em Saúde).

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

.______. Governo Federal. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990.


Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspon-
dentes e dá outras providências. Diário Oficial de União, Poder Legis-
lativo, Brasília, DF, 19 ago. 1990, p. 18.055-18.071.

______. Ministério da Saúde. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001.


Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de trans-
tornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, Ed. 69, 9 abr.
2001, p. 2.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. Depar-


tamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS:
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2004 (Série F. Comunicação e educação em Saúde).

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Depar-


tamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma
política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da
Saúde, 2005. (Série B. Textos Básicos em Saúde).

60
______. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de
2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Diário Ofi-
cial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, Seção 1, 25 jan. 2008, p. 47.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de


2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofri-
mento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso
de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, Seção 1, 30 dez.
2011, p.59-60.

_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departa-


mento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde
Mental, Álcool e outras Drogas. Fórum Nacional Infantojuvenil –
Recomendações. Versão Preliminar. Brasília, DF: Ministério da Saú-
de, 2013.

BASAGLIA, F. A instituição negada. São Paulo: Graal, 1985.

61
Autora
Carla Bertuol

Psicóloga. Docente de Saúde Mental e Infância e Coordenadora do


Laboratório de Produção do Conhecimento Compartilhado em Saú-
de Mental da UNIFESP. Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP.
Atuou na coordenação da implantação dos Serviços de Saúde Mental
Infantojuvenil (1990-1996) e na atenção básica da Secretaria de Saúde
de Santos (1997-2007) como Psicóloga da equipe técnica da Vara da
Infância e Juventude de Santos (2007-2011) e como Supervisora das
equipes dos Capsis de Santo André-SP e Freguesia do Ó/Brasilândia,
em São Paulo-SP. http://lattes.cnpq.br/3892883364774794

62
Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde
www.saude.gov.br/bvs

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