Artigo Contemporâneo Acerca Olhar de Alcir Pécora e Beatriz Rezende
Artigo Contemporâneo Acerca Olhar de Alcir Pécora e Beatriz Rezende
Artigo Contemporâneo Acerca Olhar de Alcir Pécora e Beatriz Rezende
Disponível no site da
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em:
http://www.memoria.bn.br. Acesso em: 29 abr. 2019.
127
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
A literatura contemporânea sob o olhar da crítica
literária: sedições e confrontos
128
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
em 06/09/2008, desencadeou uma polêmica crítica em torno do que seria a
literatura brasileira contemporânea. Tal polêmica ocorre por considerarmos seu
livro como uma refutação do pensamento de Alcir Pécora (UNICAMP), cujo
artigo, “O inconfessável: escrever não é preciso” de 2006, demonstra
discordância no objeto de apreciação de ambos, o que seria a literatura brasileira
de nosso tempo? São posições aparentemente antagônicas que nosso artigo
pretende deslindar.
Professora e Pesquisadora atuante na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Beatriz Resende tem várias obras com essa temática, entre elas
Apontamentos de crítica cultural (2002); A literatura latino-americana do
século XXI (2005); Cocaína: literatura e outros companheiros de ilusão (2006),
entretanto, para o interesse de nosso artigo, destacaremos seus posicionamentos
presentes no citado livro Contemporâneos (2008). Neste, observamos que a
autora elege o presente como motivo condutor para compreensão da literatura e
da arte do século XXI, apesar da insegurança que isto possa trazer perante uma
tendência da crítica literária voltada ao passado, tendo como pilar a história ou a
memória. Resende seleciona o presente por não concordar com a indiferença com
que ele é tratado e defende sua escolha por ver nisso uma democratização dos
atores da história; ainda, critica os intelectuais que se posicionam em modo de
espera para poder distinguir a literatura do nosso tempo. No século XXI, os
autores que merecem seu olhar crítico não são apenas os jovens e, sim, aqueles
que ela chama de inovadores ou menos temerosos de radicalização. Divide seu
livro em três momentos: primeiro com textos teóricos que mapeiam a reflexão
desenvolvida nos últimos anos acerca de literatura e arte, pautada no viés
político; segundo, elege um autor-sintoma de nosso tempo, Bernardo Carvalho e
outros autores considerados periféricos, além de focar na volta do trágico;
terceiro, estuda os ensaístas Leandro Konder e suas pesquisas de Brechet e
também a produção de Silviano Santigo.
Beatriz Resende, no propósito de traçar os contornos do que chama de
contemporâneos, sem pudores, elege o debate pós-moderno e a multiplicidade
para tratar o presente na literatura. Com isto, vimos que a pesquisadora se exime
enquanto crítica do que ela considera um purismo da crítica literária de só
estudar os consagrados. Para tanto, investe numa leitura atenta dos escritores
129
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Cecília Giannetti, Ana Paula Maia, Santiago
Nazarian, Joca Reiners Terron, Marçal Aquino, Maira Parula, Paloma Vidal,
Marcelino Freire e Luiz Schwarcz. Também detectamos, no seu pensamento, a
importância atribuída aos novos formatos na publicação e circulação da
literatura, assim como a voz de dentro do tema. Percebemos, ainda, atenção
voltada aos autores periféricos que a cada dia ganham mais espaço às suas
produções graças às possibilidades da Internet, aos prêmios e feiras literárias. Em
Contemporâneos (2008) encontramos uma maturidade crítica em
desenvolvimento para o que se discute a respeito da literatura na atualidade,
assim no livro há: “presentificação radical, preocupação obsessiva com o presente
que contrasta com um momento anterior, de valorização da história e do passado
(...) (RESENDE, 2008, p. 27)”. O que, sem dúvida, resvala num debruçar sobre o
agora. A “outra dicção” a ser encontrada ou já encontrada por esta literatura
preocupada, focada no tempo presente, exige postura livre das amarras, de
“modelos, conceitos e espaços que nos eram familiares até pouco tempo atrás.”
(RESENDE, 2008, p. 15).
Questão premente para o livro Contemporâneos, a presentificação torna o
imediato não apenas uma dominante, mas a configuração sem a qual a ficção não
prescinde. É o que abstraímos da seguinte passagem do livro: “O que interessa,
sobretudo, são o tempo e o espaço presentes, apresentados com a urgência que
acompanha a convivência com o intolerável.” (RESENDE, 2008, p. 28). Razão
porque muitas vezes o personagem que protagoniza as tramas é alguém sujeito a
preconceitos, um pária da sociedade. Igualmente é de se ressaltar a tríade
defendida por todo o livro, qual seja, fertilidade, qualidade e multiplicidade. A
pesquisadora, ao expor predileção pelo tempo em transcurso, admite-o em seu
caráter impositivo, ciente das seduções e ameaças que podem surgir no caminho
crítico. Tal escolha vem novamente à tona no livro Poéticas do contemporâneo
(2017), no qual Beatriz Resende já de imediato deixa clara sua definição de
contemporâneo: “O aqui e agora de onde falamos, tratando da produção literária
do Brasil, apontam para a circunstância em que a literatura brasileira se insere
nesta segunda metade do século XXI: o espaço das trocas globais, de circulação
mundial da arte, marca do que identificamos como contemporâneo.” (RESENDE,
2017, p. 01). A predominância de seu olhar crítico sobre o presente direciona suas
130
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
pesquisas, uma vez que Resende labora com textos capazes de causar impacto e
ao mesmo tempo, construídos sobre a base da imaginação. Então, podemos
salientar a respeito do ponto de vista crítico da pesquisadora carioca, o quanto
suas abordagens estão pautadas na concepção do presente, na produção
variegada e nos vários modos de circulação da literatura, não apenas no antigo
registro físico do livro de papel.
Na outra vertente daquela polêmica apontada no início deste artigo,
tivemos as ideias de Alcir Pécora (UNICAMP), estampadas na publicação
mencionada, assim como, “A hipótese da crise (impasses da literatura
contemporânea)” in: O Globo, Rio de Janeiro em 2011, dão o tom da diatribe
entre os dois pesquisadores.
Professor e Pesquisador na Universidade de Campinas (UNICAMP), Alcir
Pécora segue em direção oposta à de Resende e desqualifica quase de forma
generalizada a produção literária da atualidade. Suas pesquisas giram em torno
de produções literárias do passado, especialmente obras barrocas e de dimensões
teológica-política-retórica, como os sermões de Padre Vieira. Neste sentido, uma
de suas principais publicações é o livro Máquina de gêneros (2018); no tocante à
obra contemporânea, de suas pesquisas excetua a compreensão da obra de Hilda
Hilst, inclusive com premiação pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, o
Grande Prêmio da Crítica por reedição das obras completas de Hilda Hilst em
2002. Outra produção dentro deste foco de interesse está no artigo “A Literatura
Brasileira atual no olhar de Alcir Pécora”. Tema, em 2010.
Na leitura dessas publicações, é possível notar um apreço pela obra do
passado porque, nas palavras do Professor, “não há nada de relevante sendo
escrito”. Pécora reconhece o grande número de obras publicadas na atualidade,
mas são contadas em número não em qualidade, no seu entender, por causa de
uma estratégia usual de mercado. O pesquisador se posiciona indicando o que,
para ele, vem a ser um escritor cuja relevância é de se pontuar, “alguém que busca
resistir à vulgarização do escrito”. Assim, nas malhas de sua crítica, Pécora
defende de forma veemente o que convenciona literatura: a escrita com trabalho
estético, sem espaço para o razoável, a técnica ou saber o que é literatura vêm em
primeiro plano.
131
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Máquina de gêneros (2018) preceitua a concepção de literatura de seu
autor, atrelada às determinações convencionais e históricas. Na Máquina,
seguindo a engrenagem de cada gênero, Pécora se vincula ao cânone. É o que
podemos deduzir de expressões tão caras na sua escrita em busca da “tradição
letrada”; “convenções letradas”; “tradição clássica”; “tradição de composição”;
“matrizes letradas”, “criação letrada” no que chama de “leitura historiográfica da
literatura” (2018, p. 15), esta sedimentada a procura por conhecer o literário,
entender o específico de cada gênero. Rastreamos nas pegadas do livro a
influência interpretativa de Ernst Robert Curtius (1886-1956), que na obra
Literatura europeia e idade média latina (1948), visa conhecer este período
histórico da literatura traçando os contornos de uma tópica exclusiva e
determinante nos rumos da arte literária no Ocidente. Assim como Curtius está
preocupado com o especificamente literário daquele período, encontramos na
Máquina interesse semelhante até na escolha de determinadas expressões:
“tópicas tradicionais da invenção” (p. 13); “situação presente da história” (p. 16);
“tópica de Aristóteles” (p. 140); “tópica fundamental das práticas letradas” (p.
143); “A respeito desta tópica” (143); “tópica da epopeia camoniana” (p. 153);
tópica do labor (p. 155); “tópica do princípio da emulação renascentista” (p. 156);
“tópica clássica” (p. 157).
Por compreender a literatura na sua interioridade, Alcir Pécora desenvolve
uma possibilidade analítica dentro de uma conjuntura fenomenológica nos
termos de Edmund Husserl (1859-1938). Especificamente no que tange a discutir
os objetos fenomenológicos sem desvinculação entre sujeito e objeto, tais quais
surgem à consciência, portanto, possível de questionamento. A ambição maior
deste teor filosófico é a descrição dos objetos. Enquanto na Máquina o autor deixa
claro que sua proposta almeja “descrever os sentidos básicos de alguns escritos
importantes” (p. 12); “descrevê-las com propriedade” (p. 12 ); “descrição de
qualquer objeto” (p. 12 ); “descrever nos objetos distintos dos quais se ocupam”
(p. 13). O alvo é o literário, como se constrói, apontar os recursos estéticos dos
autores sob seu escrutínio.
Outro ponto de vista singular do Professor da Universidade de Campinas
é sua posição muito incisiva no que diz respeito à associação entre literatura e
real. Sua pretensão é alcançar os “sentidos verossímeis de cada texto” (2018, p.
132
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
11) e não enxergar cada um como um reflexo do tempo em que foi escrito. Pécora
considera que tanto o texto quanto o contexto passam pelo crivo da criação,
portanto, uma opção de quem escreveu e tem o domínio dos recursos de
linguagem para a confecção dos efeitos de real. Assim, ele se coloca na contramão
da tendência de explicar a literatura pelos condicionamentos do presente ou
crítica teleológica. Sua postura é de admitir “que não se pode ler literatura
convenientemente como documentação conteudística da realidade, quanto que
apenas convém tomá-la como histórica.” (2018, p. 16).
Um exemplo bastante salutar dos posicionamentos de Alcir Pécora
podemos encontrar na leitura crítica que faz das obras de Luís Vaz de Camões e
Padre Antonio Vieira. Neles o pesquisador observa pleno domínio do gênero no
qual escrevem: a epopeia e a retórica, um poeta outro orador, ambos portugueses
em tempos históricos distintos. Falando da própria arte, os dois escritores
denotam ampla consciência do apuro de suas escritas e ressentimento pelo não
reconhecimento do tempo presente em que escreveram. Exaltam o passado de
feitos gloriosos dos portugueses, Camões ligado à memória dos fatos, Vieira
colocando suas esperanças de recompensa (imortalidade) no futuro. A
determinação histórica, a força do presente na literatura de ambos os escritores,
aparece no mesmo patamar de preocupação com o exercício da escrita. Para
ambos, os fatos só são grandiosos, só alcançaram a posteridade porque houve
alguém para contar/cantar/celebrar. Pécora ilustra como Camões executa sua
crítica do tempo presente de portugueses hábeis na navegação, mas apáticos
quanto às letras: “Porque quem não sabe arte, não na estima” (CAMÕES apud
Pécora, 2018, p. 147). O não reconhecimento do engenho na arte de pregar em
Vieira, vem exemplificado por Pécora ao situar o leitor em sermões muito
incisivos com este teor, tais como neste trecho: “As palavras de Deus pregadas no
sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que
nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio.”
(VIEIRA apud PÉCORA, 2018, p. 160). Então, no que Pécora atrela a
condicionante histórica à condensação estética em contemplar o “destino
português imperial” (p. 164), é exatamente o domínio da arte, o arranjo das letras
em fazer ver a bravura das armas.
133
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Pécora, na sua visão crítica em geral, associa a situação de crise do nosso
tempo presente com o fato de se escrever literatura. Esta, tomada pelo que ele
denomina de “vírus da irrelevância”, segundo a crise de expressão observada na
sua crítica para a atual literatura brasileira, está mergulhada numa inflação
simbólica. O professor não abre mão da qualidade literária sem meios termos, ou
é boa ou ruim. Há de se ter o domínio sobretudo da técnica. Ainda vê como
problemático o enfoque no presente sem considerar o legado cultural do passado.
Se a base do literário é o presente, pondera ele, perde-se em potencial crítico
porque não se vê problemas no objeto e, assim, na criação. Uma literatura que
não se problematiza não tem vida longa.
Portanto, chegamos a uma noção clara dos posicionamentos críticos de
Beatriz Resende e Alcir Pécora. Destes, nossa abordagem se distanciará porque
acreditamos que ambos são norteados por extremismos não condizentes com o
tempo histórico comum a todos. Em compensação, pensamos que a literatura
atual, objeto de controvérsia dos dois pesquisadores, não coaduna com tal
condição (extremismos). Por causa disso o nosso artigo se concentra numa outra
vertente a qual observa o caráter problemático, bem como o qualificativo estético
da literatura.
134
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
pesquisadores explicita que os teóricos levantados neste artigo são a referência
para seus posicionamentos. Algo assumido por nosso viés interpretativo.
Por conseguinte, extraímos de Bourdieu, no qual observamos a
preocupação com o discurso literário, especificamente pela “capacidade de
desvelar velando” (2010, p. 18), algo que vemos encarecido na literatura
contemporânea, aspecto tal que contribui sobremaneira ao entendimento do
homem e do mundo na atualidade. Igualmente o escritor francês delimita as
posições entre a arte pura e o fator comercial, o pêndulo diretor no livro As regras
da arte. Neste, os modos de ser da literatura enquanto fator estético prepondera
como em:
135
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
artista que o trato comercial não tolera. É neste sentido que entendemos o ponto
de vista crítico de Pécora.
Emprestamos mais uma vez as palavras do sociólogo francês para ilustrar
a dicotomia encontrada na percepção crítica acerca do que considerar como
literatura contemporânea, textualmente temos:
136
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Assim, o poeta sente a fratura de viver num tempo ainda em andamento; a
Professora parece seguir muito de perto as palavras do italiano ao tratar os
autores brasileiros do nosso tempo: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o
olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.” (AGAMBEM,
2009, p. 62). Outra visada vem da seguinte afirmação teórica: “ser
contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem” (AGAMBEM, 2009,
p. 65). Ao que compreendemos suas razões em eleger aqueles autores cuja
ousadia formal e conteudística atrai sua atenção crítica no livro Contemporâneos.
Alcir Pécora por sua vez, nas ponderações a respeito da literatura atual, se
alinha à meditação de Agamben justamente naqueles pontos em que Resende não
ressalta. Por exemplo, já salientamos o quanto Pécora valoriza a herança cultural
como manifestação qualitativa para o literário. Algo que encontramos defendido
por Agamben (2009, p. 58) é a afirmação de que contemporâneo é “aquele que
não coincide perfeitamente com seu tempo” . Saber discernir nas muitas luzes do
presente (a multiplicidade valorizada por Resende) o escuro que é preciso
perseguir, na visão de Pécora, é algo ignorado pela Professora. Logo, vemos que
o não problematizar o objeto literário – o impasse conforme Pécora – pode se
tornar uma grave omissão ao se valorizar a produção literária da atualidade.
Associação direta ao livro de Giorgio Agamben: “o contemporâneo é aquele que
percebe o escuro no seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de
interpelá-lo” (2009, p. 64). Dentro do mesmo critério temos: “Perceber no escuro
do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa
ser contemporâneo.” (AGAMBEM, 2009, p. 65). Portanto, o que não é relevante
no trato crítico de Beatriz Resende, Alcir Pécora parece se balizar em Giorgio
Agamben para mostrar como, apenas olhar ao quantitativo de produção literária,
não dimensiona a contemporaneidade, quando esta não é vinculada à origem.
Ora, por nossa conta e risco pensamos que se o presente é a parte do não vivido
em todo vivido, ser contemporâneo é dar atenção a este não vivido. Aquela
assertiva teórica que encerra uma gama de definições para o termo
“contemporâneo”, parece estar diluída na posição crítica, categórica de Pécora,
partidário da linha histórico literária nos moldes de Afrânio Coutinho, Alfredo
Bosi e Antonio Candido.
137
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Assim, ao examinarmos a gênese teórica nas vozes críticas de Beatriz
Resende e Alcir Pécora, valoramos a seriedade de suas pesquisas, entretanto, não
compactuamos com os radicalismos expostos, ambos envoltos numa pretensão
categórica, muito ao gosto do polimento acadêmico. Sim, não se pode
compreender com desenvoltura o presente, o ainda não vivido se não lançarmos
um olhar criterioso ao passado. Contudo, neste tempo não se encontra toda a
relevância do literário. Nem tudo está pronto, datado e catalogado, por outro
tanto, a produção literária de nosso tempo deve, sim, ser objeto de pesquisa, com
apuro técnico e profissionalismo. Embora tenhamos esta ressalva, observamos a
discussão de ambos os pesquisadores favorecer a que a crítica acadêmica
extrapole os muros da universidade e suscitar participação pública. Isto é possível
ser comprovado uma vez que, além das publicações em livros, artigos em revistas
especializadas e jornais de grande circulação nacional, os dois pesquisadores
também se destacaram na participação da série de debates denominada
“Desentendimentos”, promovida pelo Instituto Moreira Salles (2011). No que
mensuramos o fator positivo neste artigo, isto é, o nível da discussão crítica
literária em se tratando da literatura brasileira contemporânea.
Ao retomarmos a opinião crítica de Beatriz Resende e Alcir Pécora,
discernimos a origem teórica de cada definição para o entendimento da atual
literatura feita no Brasil. Constatamos, ainda, nas pesquisas dos dois professores
uma perspectiva muito acirrada com a qual discordamos, algo que nos conduziu
a um posicionamento particularizado acerca do tema que pretendemos esmiuçar.
138
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
publicado poesias, crônicas, infantil, ensaios e também ser agraciado por vários
prêmios literários, sendo os mais relevantes: Casa de las Américas (2013), APCA
(2001), Jabuti (2015), Prêmio Internacional Hermann Hesse (2016).
Alcir Pécora, ao discutir acerca da Literatura a partir do ano 2000, dentre
o mar de irrelevância que aponta, salvaguarda os autores Hilda Hilst e Bernardo
Carvalho. Na sua opinião, o campo literário afirma-se de um modo
transcendental. O que acontece deve repercutir no conjunto da obra. Ora, se o
campo está em crise, a produção literária também. O discurso encontrado nas
linhas do romance, avalia o Professor, deveria contar com outra origem. Para não
recair numa presunção de parecer engajado, como Pécora identifica na literatura
de Paul Auster. Na sua opinião, se assim for, resulta sem valor. Afora o
esgotamento do discurso literário, o que é novo na literatura enquanto campo do
conhecimento é almejar aquela autonomia ficcional do século XIX. No que pese
a formação, exigência cultural, a busca e vontade da verdade na escrita literária
do presente, é preferível à publicação desenfreada sem maior meditação. Se o
espaço de uma crítica literária séria é mínimo, podendo causar certos incômodos,
é porque há de se ter exigência técnica sob pena de recair no universo da
coisalidade. Assim como Pécora valoriza na narração a experiência que cause
impacto, o manuseio com a linguagem até o limite, o Professor vê como uma
maldição no seu tempo o menosprezo de tais atitudes por parte daqueles
“pretensos” escritores.
Apesar das diatribes levantadas com justeza crítica por um lado e um rigor
reducionista por outro, vislumbramos na literatura atual um denominador
comum entre as vozes críticas de Beatriz Resende e Alcir Pécora. Pelos motivos e
opções teóricas elencadas anteriormente nestes pesquisadores, passamos a
investigar com mais vagar obras de dois escritores os quais, de nosso ponto de
vista, se destacam sobretudo por trabalharem uma literatura de caráter estético
enigmático. Escritores que demonstram domínio no manejo das ferramentas
formais e conteudísticas, ao associarem o olhar para o real, causador de um
estremecimento crítico, sem perderem de vista os poderes da imaginação.
Identificamos, ainda, comum aos dois romances que estarão sob nossas lentes
críticas, o papel da metaficção. Logo, tomamos por parâmetro o mérito estético e
elegemos para a discussão do que se convenciona literatura brasileira
139
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
contemporânea no presente artigo, as obras Nove noites (2006), de Bernardo
Carvalho e Eles eram muitos cavalos (2013), de Luiz Ruffato. A princípio, numa
visão panorâmica, o que se pode sublinhar nestas produções é uma forma distinta
de lidar com um conteúdo, que diz muito de nosso presente, e a tentativa de
deslindar o complexo universo das relações pessoais. Em se tratando da
desigualdade na publicação, referimo-nos ao formato um tanto convencional do
primeiro romance em narrar uma história linear, embora somente perceptível
pelo arranjo em camadas do enredo e o outro de contar histórias despedaçadas,
mas com um fio que as une pela miséria existencial. Temos, por esta via
interpretativa, o fim das literaturas nacionais. Expliquemos. Não há um elogio da
natureza, sublevação entre classes sociais nesses romances. Por outro tanto, abre-
se espaço para a criação seja de perspectivas narrativas, seja de experiências
humanas inusitadas ou mesmo, ainda não contempladas na literatura e
desenhadas num realismo mais direto da linguagem. Do que sublinhamos seu
êxito enquanto obra de arte, aspecto que nenhum dos dois Professores ponderam
no material levantado em nossa pesquisa.
Em Nove noites, misturam-se os tempos. O romance apresenta a vida do
protagonista no entorno de 1939, mas o narrador é tocado por esta história em
12/05/2001 indo até 19/02/2002. Registramos a pós-modernidade da narrativa
uma vez que, se o passado muitas vezes é mote do enredo, não há um registro de
embevecimento e, sim, o olhar crítico do presente. O tempo pretérito interfere na
atualidade irresoluta do narrador. Por sua vez, a narrativa é um amálgama entre
fatos da vida do antropólogo e a do próprio escritor com a imaginação criativa. O
romance é baseado na história real de um americano que se matou no Brasil entre
os índios no atual Estado do Tocantins em 1939, aos 27 anos. A busca pela razão
da morte, a origem do antropólogo, sua orientação sexual passam a ser a causa
aparente na investigação do narrador, por extensão, é a busca por um motivo
existencial. Paralelo a isso entendemos que tal busca se associa à literatura, mais
especificamente seu processo de manufatura. Perfazendo assim um dos aspectos
trabalhados nas obras literárias de nosso tempo. Beatriz Resende referenda que
neste romance como em toda a obra do autor, “há enigmas e não há explicações
senão o próprio reconhecimento da tragicidade da condição humana, ambígua,
inexplicável, incontrolável.” (RESENDE, 2008, p. 31-32). O que faz do texto
140
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
literário um mote de discussão ainda mais acirrado do tempo presente de associar
literatura e vida.
Ao tocarmos numa perspectiva bastante pós-moderna das narrativas
elencadas, podemos distinguir, ainda, a contaminação com outras artes.
Principalmente ao referirmo-nos ao romance de Luiz Ruffato, Eles eram muitos
cavalos. Neste, temos desde a hagiologia até anúncio de emprego, recados,
horóscopo, cardápio, orações, etc, cortes abruptos na narração, mistura das
fontes, compõem o aspecto inacabado do enredo. Isso que serve como uma
espécie de experimentação do escritor dá mostras de que ele reconhece que não
está pronto. Ressaltando um projeto que se concretiza em 2016 com a revisão,
reescritura e reestruturação da pentalogia cujo propósito é traçar um painel da
vida do operário brasileiro, a obra Inferno provisório. É nesse ano também que
Bernardo Carvalho publica o romance Simpatia pelo demônio no qual se
encontra também o mesmo nível de preocupação na escrita criativa, bem como a
ruptura com modelos anteriores, o que os aproxima igualmente se unirmos as
duas palavras do mesmo campo semântico em seus títulos (Inferno e Demônio).
Na percepção do próprio Bernardo Carvalho no artigo “Em defesa da obra”
(2011), vê-se uma sintonia no que tange à valorização do trabalho artístico na
escrita literária. Avesso à sanha predadora da lógica de mercado, o escritor se
coloca a favor da hierarquia cultural construída com base na afinação do gosto,
na sensibilidade enfim. Na sua opinião, a obra de arte não deve ser reduzida a um
serviço à comunidade, sendo “produção de subjetividade, exercício da
imaginação e transgressão”, não pode ser reduzida ao número de acessos e links,
cruzamento de sites e páginas individuais mais acessadas para se mensurar a
qualidade da obra que se queira literária. Nisto apontamos ainda uma vez o
aspecto estético qualificativo da obra de arte literária.
Do exposto, destacamos que na eleição dos escritores Bernardo Carvalho e
Luiz Ruffato, pelos críticos Pécora e Resende, no que diz respeito a considerar a
produção literária da atualidade, há sem dúvida um enobrecimento pelo trabalho
do escritor. O manuseio técnico com a linguagem e, sobretudo, pensamos, por
nossa conta e risco, que tais obras são modelares no sentido de testemunhar o
nosso tempo, composto de fratura e causador de desnorteio ao homem deslocado
da contemporaneidade. Nossas reflexões empreendidas neste artigo,
141
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
encaminham a pensar no aspecto não definitivo aderente à literatura atual. É a
explicação para identificarmos certo rancor contra a arte contemporânea, na
nossa opinião, sinal de preconceito. Também ignorado por ambos os críticos e
vemos como bastante salutar na leitura crítica desses romances é o trato com a
experiência humana incompleta, paradigma da literatura e monumentalizada na
estética literária delineada.
142
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
bem como observador dos sentidos conflitantes presentes nas obras literárias
atuais que se oferecem como oportunidade de reflexão e questionamento.
A forma assumida pela literatura, ensina Perrone-Moisés, é mais rica uma
vez que mais ambígua porque diz mais de nós mesmos. O que nos dá margem
para perguntar, o que esta literatura diz? Como o faz? O individualismo aí
incrustado pode ser uma das respostas ou mesmo sua característica inextricável.
O que não significa desistência em buscar algo materializado em cada experiência
encontrada na literatura. Portanto, como assegura Perrone-Moisés (PERRONE-
MOISÉS, 2016, p. 218), “Em nossa época de incertezas filosóficas e existenciais,
os leitores buscam o registro de experiências particulares, as únicas que restam
aos indivíduos num mundo caótico que ultrapassa seu conhecimento e sua
compreensão.”
Logo, a literatura, que é linguagem em forma de arte, não sendo resposta,
mas pergunta ao mundo, acentua o estímulo à reflexão, percebe a fragilidade
sentimental e ética da nossa época. Compartilhamos do ponto de vista da
pesquisadora, ao afirmar que “Não há bom escritor sem abertura ao mundo que
o cerca” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 212). Ao que poderíamos acrescentar:
Não há bom crítico sem abertura ao mundo que o cerca. A literatura em vista
abrindo-se ao mundo, contemplando não apenas os êxitos ou só os fracassos,
mostra-se um amálgama, é porque aspira compreender muito mais que fornecer
respostas. Disso extraímos a junção entre universal e particular sem a qual a
literatura é apenas registro numa forma diferenciada. E, se esse mundo feito de
homens muitas vezes inseguros, desnorteados, mas ávidos por saber é o
ingrediente da literatura contemporânea, resta-nos perceber as minudências, os
resíduos, o escanteamento a que se vê reduzido o homem narrativa, sobretudo,
como o escritor traduziu isso na linguagem literária.
143
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
na própria literatura a fim de clarearmos nossa particular visão acerca do tema.
Pensamos junto à riqueza do texto literário que ele não pode ser reduzido a uma
exclusividade do olhar. Por isso se a poética contemporânea ensina a desconfiar
dos discursos enquanto dedicamos atenção à linguagem literária, o que diz as
obras cede terreno ao como se diz. Consequentemente se tomamos como
parâmetro Nove noites de Bernardo Carvalho e Eles eram muitos cavalos de Luiz
Ruffato é porque há um universo em tensão a descobrir.
No enredo narrativo do primeiro romance, encontramos Buell Quain, o
antropólogo por quem o narrador de Nove noites procura. Colega de Claude Lévi-
Strauss e aluno predileto de Ruth Benedict, Quain faz uma pesquisa entre os
índios Krahô, no que era na época o Estado de Goiás. Embora na contracapa da
edição de 2004 haja a foto de Bernardo Carvalho aos seis anos segurando na mão
de um índio no Xingu, os relatos de suas viagens a Mato Grosso acompanhando
o pai e toda a relação conturbada com ele entremeada à busca por Quain, o
escritor desmente no artigo “Em defesa da obra” (2011), dizendo que a fotografia
e a referência a fatos biográficos não passaram de uma estratégia de venda. Se
verdade ou não, a questão é que isto é uma característica muito forte da literatura
pós-moderna. A forma como conta esta história (entremeando camada real com
a ficcional) é o elemento do texto literário mais atrativo.
O livro começa com uma carta escrita em itálico (ao longo do texto, todas as
cartas do emitente misterioso estão no livro com este destaque) numerada com o
número 01, depois vão se sucedendo mas sempre com a enigmática frase, “Isto é
para quando você vier”. Até então não se sabe quem escreveu. Depois de muitas
investigações, o narrador chega à conclusão de que é de uma pessoa muito
próxima do suicida e passa a seu encalço. Na página 23 (2006), aparecem duas
fotos, uma de perfil outra de frente do rosto de Buell Quain, expressão forte,
parece decidido, firme, algo contrastante com sua atitude extrema. Nos números
que se seguem à carta, há uma espécie de reflexão do narrador que também
sempre inicia com a frase, “Ninguém nunca me perguntou”, como é o caso do
número 04: “Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei
responder. Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas. No início, deixei-me
levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma morte passional e
concentrei a minha busca nesses vestígios.” (2006, p. 23). Embora o narrador não
144
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
consiga provar nada neste sentido durante toda a narrativa, os indícios, as
suposições alimentam-no. Isto também viceja o elemento fulcral da literatura, da
trama, o encadeamento dos fatos, o narrar como respirar.
As informações encontradas em cada carta funcionam como uma estratégia
narrativa nos moldes de um romance policial, pistas são deixadas e o narrador sai
à procura. Uma delas é possível localizar em: “Via-se como um estrangeiro e, ao
viajar, procurava apenas voltar para dentro de si, de onde não estaria mais
condenado a se ver. Sua fuga foi resultado do seu fracasso. De certo modo, ele se
matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver.” (PERRONE-
MOISÉS, 2006, p. 100). A imagem criada de Quain como um fugitivo de si mesmo
completa o quadro do que perfaz as nove noites do trajeto até sua morte. A
composição do que se assemelha a um mosaico, bem ao gosto pós-moderno,
acoplada ao entendimento interior do próprio narrador é o resultante das nove
noites que intitulam o romance. Assim, compreendemos que a literatura
contemporânea, em seus vários recursos para contar a história, lança mão de
elementos que suscitam curiosidade, entretanto, não é simplesmente saciar a
vontade exacerbada do leitor em saber o que vem depois, o fator preponderante.
O texto literário de cunho estético vai além, requer reflexão. Percebemos, por
outro tanto, algo que eclode na superfície do texto, isto é, a angústia sentida pelo
narrador buscando no outro as respostas ao seu interior espedaçado. É o que
permite afirmar que, mesmo sem encontrar as respostas prometidas no início, a
narrativa cresce em equilíbrio feito de tensão do princípio ao fim. Em outras
palavras, há o motivo explícito da busca por Buell Quain, porém o mais urgente,
mais interiormente não adiado é a busca por si mesmo empreendida pelo
narrador com tanta energia, ao ponto de contaminar o leitor a rever a própria
identidade. Tema caro a Bernardo Carvalho, que o explora à exaustão no romance
Reprodução (2013).
O romance Nove noites, ao questionar as identidades pessoais, seja de Buell
Quain, seja do narrador que reúne as cartas, os vestígios, se esmera na construção
da narrativa ficcional de histórias reais. Inclusive para reforçar este fato,
Bernardo Carvalho ilustra a trama com a foto de pessoas reais que conheceram e
conviveram com o seu “protagonista” (2006, p. 27)). Na fotografia tirada num
banco nos jardins do Museu Nacional, aparecem Heloísa Alberto Torres, Charles
145
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
Wagley, Raimundo Lopes e Edson Carneiro, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e
Luiz de Castro Faria. A morte de Quain como mote de escrita acaba afinal se
transformando na razão de vida do narrador, conforme em: “Meu pai morreu três
meses depois. Fiquei três anos fora. Já faz nove anos que voltei para São Paulo.
Mas foi só ao ler o artigo da antropóloga há oito meses, e ao repetir em voz alta
aquele nome que eu não conhecia e ainda assim me parecia familiar: ‘Buell Quain,
Buell Quain (...) (CARVALHO, 2006, p. 131)”. No romance, várias daquelas
pessoas trocam correspondência com o narrador em busca das respostas que o
atormentam. Mas o que perdura são as suposições. Como podemos conferir neste
trecho:
(...) você já lanchou meu filho mãe balbuciou eu e ela já sei vamos
sair e comer uma pizza que tal e a madrugada se dissipa os
amigos do colégio do prédio amontoam-se entorpecidos o fumo
146
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
a parafina colegas conhecidos parentes vozes velórias a cadeira à
cabeceira coroa de flores saudades é um jesuscristinho assim
deitado estampa comprada num domingo de sol na feira da praça
da república dezessete anos em agosto
tão feliz tão lindo tão companheiro tão querido tão inteligente tão
amoroso
meu deus por quê que ele foi fazer isso meu deus por quê
(RUFFATO, 2013, p. 21)
É curioso neste excerto a forma como a história do suicídio é narrada, o jorrar dos
acontecimentos, o desespero marcado pela falta de pontuação, a ausência de
nomeação dos personagens, a interrupção da frase pela forma intensa do
sofrimento textualizado pela repetição (tão), também demarcada pelo
preenchimento de duas linhas aparentemente extraídas do narrado, formatam na
leitura, um desconhecimento entre mãe e filho, o sentimento de impotência
visualizado pela repetição das mesmas palavras do início no final da narrativa
desde “é um jesuscristinho assim deitado...” Isso que incomoda, provoca reflexão
quanto a dor do outro. Vemos como um recurso formal utilizado pelo escritor a
fim de marcar a estética literária, seu qualitativo em fazer do ato da leitura, um
ato de sentimento, talvez de solidariedade.
O estilo bem peculiar de Luiz Ruffato contar uma história surpreende pela
concisão e profundidade das emoções. Dentre as várias histórias é muito
chamativo a de nº 66 intitulada “Rua”. Nesta, há uma subversão da linearidade,
uma quebra na lei da prosa no que tange à sequencialidade; o inaudito em contar
esta história se apresenta porque o narrador opta por começar a narrar pelo fim
e no desenrolar da leitura, ficamos sabendo da vida do zelador, Wilson. A imagem
atual deste personagem é desoladora, vejamos:
147
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
nome, porque só sabemos disso na última linha do texto. Ao que apontamos
também como outro subterfúgio formal no intuito de levar o leitor à identificação
com o ser narrativo, conforme lemos em:
148
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033
sem rumo. A errância exemplar nesta narrativa de nº 66 de Eles eram muitos
cavalos, permite ao leitor observar a literatura colocando em prática seu ato de
conhecer, do que não se dissocia da vida. No que identificamos como outro
elemento técnico utilizado na literatura do nosso tempo.
Desse modo, em nossa leitura crítica de Nove noites e Eles eram muitos
cavalos como baliza do que, neste artigo, denominamos literatura
contemporânea, fomos conduzidos inicialmente pelos requisitos dos Professores
Beatriz Resende e Alcir Pécora. Ela valorizando os índices de publicação assim
como a ousadia no inovar dos autores atuantes a partir dos anos 2000. Ele
frisando o labor literário moldado pela técnica. Enquanto procurávamos uma
intersecção entre as duas perspectivas críticas, escrutinamos uma matriz teórica
no pensamento de Pierre Bourdieu e Giorgio Agamben para entender primeiro,
como os pesquisadores reconhecem um texto enquanto literário, segundo,
porquê ser considerado contemporâneo. Os romances nos quais nos detemos
para dirimir as dúvidas soerguidas em cada posicionamento crítico, propiciaram
o contato com obras que dão a ver gestos, atitudes, discursos provocadores de
opiniões ao mesmo tempo em que fazem sentir emoções desencontradas,
desalojadas por um tempo em construção. Pela forma escolhida para contar suas
histórias, os escritores criam visão distinta do mundo, adotam a noção de
temporalidade multiplicada, contam suas tramas sob diferentes perspectivas,
muitas vezes entrecortadas, sem preocupação de fornecer respostas, preservam
por isso o mistério no que indicamos seu diferencial na escrita artística do tempo
corrente. Algo que nos proporciona pensarmos na literatura, sobretudo a
contemporânea, ao exercer seu ato fundacional de conhecer, primeiro o mundo,
depois o outro e a si mesmo. Ao fazer isto a literatura areja o ar do desconhecido,
amealha a angústia a princípio individual para dar a conhecer o que é do campo
do universal.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de
Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
149
interFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, jan.-jul. 2021 | ISSN 1516-0033