9-Coloquio Historia Doencas Anais

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IX

Colóquio
de História das Doenças
Copyright © 2022, Sebastião Pimentel Franco [et. al.].
Copyright © 2022, Editora Milfontes.
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Sebastião Pimentel Franco
Dilene Raimundo do Nascimento
Anny Jackeline Torres Silveira
André Luís Nogueira
Patrícia M. S. Merlo
(organizadores)

IX
Colóquio de História das Doenças:
Anais

Editora Milfontes
Vitória, 2022
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia e gravação digital) sem a permissão prévia da editora.

Revisão
De responsabilidade exclusiva dos organizadores

Capa
Imagem da capa:
Autor: não citado, logo, tenho declarado que não existe intenção de violação de
propriedade intelectual
Semíramis Aguiar de Oliveira Louzada - aspectos

Projeto Gráfico e Editoração


Lucas Bispo Fiorezi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


C719c Colóquio de história das doenças: anais/ Sebastião Pimentel Franco, Dilene
Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira, André Luís Nogueira,
Patrícia M. S. Merlo (org)
Vitória: Editora Milfontes, 2022.
398 páginas p.: 23 cm.

ISBN: 978-65-5389-038-1

1. Doenças 2. História 3. Historiografia I. Franco, Sebastião Pimentel II.


Nascimento, Dilene Raimundo do III. Silveira, Anny Jackeline Torres IV.
Nogueira, Andre Luis V. Merlo, Patrícia M. S.
VI. Título.

CDD 901.0
Sumário
Apresentação: IX Colóquio de História das Doenças Anais
Completos...........................................................................................................9
“A camisinha é pequena?” Histórias da educação do corpo contra o
vírus do HIV no jornal Nós Por Exemplo (1991-1995).................... 11
Adolfo Veiller Souza Henriques & Azemar dos Santos Soares Júnior

Migrar e adoecer: Assistência aos italianos na Santa Casa de


Misericórdia de Porto Alegre - RS (Final do Século XIX)............... 27
Carolina Wendling Rodrigues

Discursos médicos sobre a loucura na cidade a Parahyba do Norte


entre 1989 e 1930.......................................................................................... 45
Edna Maria Nóbrega Araújo, Alda Venusia Alves de Oliveira & Maria Cecilia
Brito Marques

Para conservar a saúde dos sujeitos infantis: orientações terapêuticas,


alimentares e comportamentais na obra “Tratado de Educação
Física para os meninos para uso da nação Portuguesa” (1790) ������� 57
Eduarda Troian

Cadáveres perigosos: Teoria humoral, vapores pútridos e os riscos


da corrupção cadavérica para a saúde ���������������������������������������������������� 75
Eduardo Mangolim Brandani da Silva & Gessica de Brito Bueno

História da hanseníase na Amazônia: estigmatização e espaços de


memórias.......................................................................................................... 95
Elane Cristina Rodrigues Gomes & Rebeca Junior Cardoso Martins

A infância na Era Vargas: Contribuições da LBA para a imagem da


criança bem cuidada no Piauí..................................................................113
Francilene Teles da Silva Sousa & Joseanne Zingleara Soares Marinho
O Asylo Sant’ana: entre discursos e reinvindicações surge um novo
espaço para a loucura na Parahyba oitocentista (1858-1892) ������129
Gerlane Farias Alves

Doença, contágio e epidemia: a perspectiva higienista sobre o


suicídio nos arquivos brasileiros de higiene mental �������������������������147
Giulia Cristiano

Somos mais que doentes: a relação da literatura com os


tuberculosos...................................................................................................165
Gwan Silvestre Arruda Torres

Infecções Audiovisuais: microbiologia, microcinematografia e os


primórdios do filme de epidemia............................................................179
Klaus’Berg Nippes Bragança

Saúde, doença e mortalidade infantil na idade média no Tratado De


Los Niños (Século XIV)..............................................................................195
Larissa Lacé Sousa

O impaludismo na estrada de ferro Vitoria a Minas – 1920-1942, e


o que pode ser dito......................................................................................207
Luiza Maria de Castro Augusto Alvarenga

Reféns institucionais: leprosos na colônia Santa Marta e o


protagonismo marxista como teoria......................................................223
Maraisa Aparecida de Lima

O impacto da pandemia de covid-19 nos profissionais de saúde em


Barra de São Francisco-ES........................................................................247
Márcio Leandro Piske

Missão brasileira na Primeira Guerra e a influenza..........................259


Maria Cristina Alochio de Paiva

Doenças e mortes e a questão do branqueamento no município de


São Mateus na década de 1870................................................................269
Marília Silveira & Luana Guisso
Apontamentos sobre o cólera morbus na Paraíba (1856 e
1862).............................................................................................. 287
Milena de Farias Dôso

“Um monumento que revela a piedade de nossos maiores”: o hospital


São Christovão dos Lázaros (1850-1876) ��������������������������������������������297
Muller Sampaio

Reflexões sobre saúde em Belém (PA) a partir da ONG-Aids


Paravidda (1992-1996)...............................................................................317
Paulo Henrique Souza dos Santo

“Insuficiente, dispendioso e pouco Scientífico”: a profilaxia da sífilis


na Paraíba na década de 1930..................................................................333
Rafael Nóbrega Araújo

Dentes de defuntos para curar maus humores: o uso de itens mágicos


para tratamentos de enfermidades na capitania de Minas Gerais
(Séculos XVIII).............................................................................................351
Raiza Ap. da Silva Favaro & Christian Fausto

As febres em aldeamentos de Munduruku no Rio Tapajós (Província


do Pará, Século XIX)...................................................................................365
Sara da Silva Suliman

Doença, culpabilização e sujeito-vítima: os sentidos sobre saúde nos


discursos de usuários de droga, em blogs pessoais ����������������������������385
Wedencley Alves & Luana Luciana Ribeiro de Alencar
Apresentação
IX Colóquio de História das Doenças
Anais Completos

O IX Colóquio de História das Doenças, ocorreu entre os


dias 01 e 03 de setembro de 2021 em formato on-line em razão da
pandemia do novo coronavírus. O evento reuniu pesquisadores
que analisam a saúde e a doença no seu tempo histórico e espaços
específicos, buscando incentivar o debate acerca dos estudos sobre
as doenças, as artes de curar e as políticas públicas de Estado
implementadas para a sociedade.
O Colóquio se constituiu ao longo de sua trajetória em
um importante fórum para o intercâmbio científico entre os
pesquisadores locais e os de outras universidades brasileiras. O
evento é organizado pelos Programas de Pós-Graduação em História
da UFES, da UFOP, da UFMG e o Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz.
Apresentamos aqui parte do resultado produzido no bojo do
evento, o que atesta sua relevância no fomento a interlocução e a
produção científica na seara da História das Doenças e das práticas
de cura, área em franca expansão nos últimos dez anos na cena
historiográfica brasileira.
Boa leitura!
Os Organizadores

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“A camisinha é pequena?” Histórias da
educação do corpo contra o vírus do HIV
no jornal Nós Por Exemplo (1991-1995)
Adolfo Veiller Souza Henriques1
Azemar dos Santos Soares Júnior2

Introdução

Era segunda-feira de um “tempo sombrio e aidético”, como


publicou o jornal Nós Por Exemplo na sua edição do mês de maio de
1992. Ao sair perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro, talvez
tentando não “dar pinta”, talvez lembrando de mais um amigo que
perdera para a mais justas das saias3, ou, quem sabe, recordando o
rapaz que o paquerava na parada de ônibus e nunca mais apareceu,
acabou por encontrar algo inesperado na banca de revistas. Eis que
o jovem Paulo Corrêa, movido pela surpresa de encontrar naquele
jornaleiro, um periódico em dimensões físicas pequenas, e que em
sua fisionomia apresentava poucas cores e projeto gráfico simples,
mas extremamente sedutor devido ao conteúdo que trazia em suas
1 Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd/UFRN) na Linha de Pesquisa:
Educação, Estudos Sócio-Históricos e Filosóficos onde desenvolve a pesquisa: “Uma
Campanha Sanitária aos Grupos de Risco”: Os discursos médico-pedagógicos sobre a Aids
na Paraíba (1985-2000) com suporte financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]
2 Doutorado em Educação (UFPB). Professor do Departamento de Práticas
Educacionais e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Campus Natal. É professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd/UFRN) e de História da
Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG). E-mail: azemarsoares@
hotmail.com
3 Crônica do autor Caio Fernando Abreu publicada n’O Estado de S. Paulo, em 25 de
março de 1987, no qual o autor faz referência a Aids.

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

páginas. Paulo, provavelmente fez uma rápida leitura do enunciado,


e entendeu que aquele texto deveria ser compartilhado. Talvez, por
isso, tenha escrito: “espero que esse [corpo] não seja exemplo de
nada, mas sim vozes vivas de vida, enriquecendo assim o ‘dia’ do
homossexual para que ele seja inteiro e não ‘metade’” (NÓS POR
EXEMPLO, 1992, p. 3). Com poucos dias, o sucesso deste corpo
chamado jornal Nós Por Exemplo foi crescente. Metáfora de um
novelo de emoções alinhavado em frases e imagens.
O impresso foi definido por si como “‘mais um jornal’ [que]
fica e se encerra apenas na expressão gramatical, porque este é,
além de único (e por isso já merece o nosso respeito), uma aula
de fraternidade e liberdade” (NÓS POR EXEMPLO, 1992, p. 3).
Uma ordem discursiva responsável por apresentar aos leitores a
possibilidade de circular saberes responsáveis sobre a Aids e, por
gestar conceitos que poderiam servir a vida em sociedade e permitir
o respeito, o direito e a alteridade.
Desde o verão de 1991, este impresso passou a circular nas
ruas do Rio de Janeiro. Ele não foi o primeiro, mas suas páginas
traziam conforto e solidariedade a um público historicamente
estigmatizado. Sensibilidades eram representadas por palavras
como cumplicidade, esperança, desejo, cuidado, além de criar
possibilidades para uma hermenêutica do sujeito. Através das
poucas cores pinceladas em suas páginas, buscava o impresso “dar
cor à verdade” (NÓS POR EXEMPLO, 1992, p. 2).
Ao nos depararmos com os discursos produzidos sobre
a Aids nas páginas do impresso Nós Por Exemplo, começamos
a pensar sobre os discursos pedagógicos acerca da doença e
os interesses em desenvolver em seus leitores um cuidado de si.
Entendemos que tais discursos se configuravam como práticas
educativas a partir do momento que buscavam promover nos
leitores do jornal hábitos higiênicos pautados pelo saber médico
a respeito do sexo seguro. Deste modo, problematizamos esses
discursos a partir da análise do discurso proposta por Michel
Foucault (FOUCAULT, 2014).

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Nesta metodologia, a produção de enunciados foi chamada


de arquivo, ou seja, a lei daquilo que pode ser dito, o sistema
que rege o aparecimento de enunciados como acontecimentos
singulares. Ou nas palavras do próprio Michel Foucault
(FOUCAULT, 2010, p. 147), o arquivo não é o que protege,
apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e
conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido;
é o que na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo
que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade.
Aquilo que foi produzido num dado momento e que permite
ao historiador perceber em tais enunciados uma dada versão
discursiva, sobre ele lançar suas questões e produzir outros
enunciados. À vista disso, nos apropriamos da análise do discurso
como possibilidade de sobre os arquivos produzidos acerca de
um acontecimento, nesse caso a produção de enunciados, operar
uma técnica capaz de produzir outros discursos que chamamos
de história.
O impresso, como bem lembra Arlete Farge (FARGE, 2009,
p. 13), “é um texto dirigindo intencionalmente ao público. É
organizado para ser lido e compreendido por um grande número
de pessoas; busca divulgar e criar um pensamento, modificar um
estado de coisas a partir de uma história ou de uma reflexão”. E
que, “independentemente da aparência que assuma, ele existe para
convencer e transformar a ordem dos acontecimentos” (FARGE,
2009, p. 13). Destarte, este impresso ao informar o público
homossexual sobre saúde e prevenção, mas também cultura, arte
e entretenimento, com discursos sensíveis, era o conforto e a
força necessária para que seus leitores pudessem entender melhor,
variados aspectos ligados a doença. De forma paralela, seus textos
também preenchiam uma lacuna afetiva que muitos homossexuais
sofriam naquele momento. Com a ascensão do estigma no
surgimento da Aids, o processo de aceitação da sexualidade,
complicava-se à medida que um dos postulados colocados contra
a homossexualidade era de que estava sofrendo um castigo divino
por serem desviantes dos bons costumes.

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

Isto posto, este texto, trata-se de uma história que visa


perceber a proposta de educação sanitária pautados pelo saber
médico a respeito do sexo seguro em tempos forte infecção
de corpos pelo vírus do HIV num impresso que circulou
nacionalmente do jornal entre os anos de 1991 a 1995. Este
impresso não apenas registou e informou aos seus leitores
o que aconteceu, mas também produziu, de certo modo,
os acontecimentos que noticiava, ou melhor, os discursos
pedagógicos que divulgava, uma vez que, dessa forma atuava na
conformação de corpos e mentes, na formação do imaginário
individual e coletivo a respeito da relevância da educação sexual
para combater a propagação da Aids. É sobre esses discursos
produzidos no impresso que construímos essa narrativa.

Camisinha: o importante é saber usar


Quem não se lembra do grande alarde que foi feito no ano passado
com relação à qualidade dos preservativos? Muita gente, que
certamente já tinha uma resistência com relação ao ʻartefato de
borrachaʼ, passou a dizer: ʻPara que eu vou usar camisinha se não
adianta de nada?ʼ Ironicamente, a falta de resistência o preservativo
aumentou a resistência da população.

A narrativa acima está escrita pelo educador social e


articulista do Jornal Nós Por Exemplo, o Sr. Paulo Henrique
Longo, na primeira página da edição da seção Agaivê-Hoje do Jornal
no ano de 1993 e discorre sobre a importância de saber usar o a
camisinha e a resistência da população quanto ao seu uso. E o que
era uma questão cultural passava também a influir numa questão
psicológica. Para não usar camisinha, muitos homens se utilizavam
do “jargão é ‘como chupar bala com papel’, ou alegam que o tamanho
das camisinhas foi idealizado para crianças e que ‘no dele’ não vai
caber. Muitos inclusive, argumentam que não conseguem manter
a ereção depois de vestidos” (NÓS POR EXEMPLO, mai. 1993).
A ordem do discurso jornalístico em análise afirma que, nos anos
80, com o advento da Aids, houve um significativo aumento das
vendas de preservativos em todo o mundo, fato que não ocorreu nos
anos 90, mantendo as vendas estáveis. “No Brasil, eram vendidas

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

anualmente em torno de 62 milhões de unidades, sem contar as que


[eram] distribuídas gratuitamente pelo governo e organizações não-
governamentais” (NÓS POR EXEMPLO, mai. 1993).
O enunciado denunciava que uma das grandes reivindicações
dos educadores e ativistas envolvidos na prevenção à Aids era
com relação à falta de instruções nas embalagens de camisinhas.
O discurso sugeria algumas instruções para o uso correto do
preservativo, como por exemplo: “colocar a camisinha sobre a
cabeça o pênis quando ele estiver ereto, apertado a ponta para tirar
o ar, desenrolar a camisinha sempre apetando o bico, nunca usar
vaselina ou outros lubrificantes a base de óleo e depois de ejacular,
com o pênis ainda ereto, retirar a camisinha segurando ela pela
base” (NÓS POR EXEMPLO, mai. 1993). Um ato que passava pela
promoção de um assunto tão caro à época e bastante delicado, mas
que tinha por objetivo uma biopolítica, ou seja, uma forma de manter
a vida de forma saudável.
Em tempos de Aids, as “estatísticas revelavam que era preciso
vencer todos esses preconceitos” (NÓS POR EXEMPLO, mai. 1993).
A Aids não estava para castigar quem fazia sexo dessa ou daquela
forma. Não escolhia suas vítimas por sua posição social, orientação
sexual ou comportamento moral, no entanto “para vencermos esta
batalha, temos que mudar os costumes. “Afinal, quem é que quer
deixar de sentir prazer?” (NÓS POR EXEMPLO, mai. 1993).
O jornal investia assim numa propaganda pautada no modelo
de uma educação da saúde que consistia em incutir na população as
formas necessárias impedir a propagação do vírus. E uma delas, era
o uso correto da camisinha. No ano de 1993, naquele ano de 1993, a
pesquisa recente do IBOPE a nível nacional, revelava “que 61% dos
brasileiros passaram a tomar cuidados nas relações sexuais em função
da Aids e que, destes 52% passaram a usar camisinha” (NÓS POR
EXEMPLO, mai. 1993). De acordo com as informações contidas no
texto informativo, só seria possível alterar os costumes se houvesse
a exigência, incentivasse a obrigação do uso de preservativo, pois só
seria possível alterar os costumes por meio da imposição. Mesmo
sabendo da necessidade, “a teoria na prática é outra” (NÓS POR

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

EXEMPLO, mai. 1993). Dessa forma, por mais que a maioria das
pessoas, conforma os dados acima apresentados, alegassem uso
da camisinha, a prática era outra. Crescia vertiginosamente o
número de homossexuais infectados, despertando a preocupação do
movimento gay e dos médicos infectologistas.
Nos parece que a principal preocupação estava na
implementação de uma educação da saúde, uma espécie de
orientação correta para preservação do corpo são, assegurando as
pessoas prazer e proteção. A intenção do jornal era normalizar as
informações sobre as formas necessárias impedir a propagação do
vírus e, o uso correto da camisinha era uma delas. Desde os anos
iniciais da década de 1980, a epidemia de Aids, pelo caráter incurável
da síndrome, apresentou-se como um importante desafio para a
saúde pública. Nesse cenário, a redução de danos e a prevenção se
destacaram como estratégias fundamentais para o enfrentamento
a doença. No Brasil, desde o “início das políticas relativas à Aids,
a camisinha foi, e continua sendo, a principal aposta no campo da
prevenção” (PAIVA; VENTURI; FRANÇA; LOPES, 2003).
Essa promoção do uso da camisinha, fez parte de “uma
perspectiva não supressiva da prevenção, que caracterizou a
maioria das respostas nacionais bem-sucedidas à epidemia de HIV,
diferentemente de outros contextos, onde os trabalhos preventivos
persistiam na ideia de abstinência sexual” (KALICHMAN, 1993).
No sentido de adotar uma ordem discursiva educativa, de um sexo
seguro, o educador social e articulista do impresso, o Sr. Paulo
Henrique Longo, enunciava informações com o desejo que os seus
leitores praticassem o sexo seguro utilizando a camisinha. Nesse
sentido, entendemos que buscou-se adotar uma educação sanitária
que buscava tratar de um meio preventivo para evitar a doença,
sendo essa medida defendida como mais fácil e segura.
Entre os diferentes grupos sociais, existem diferenças
marcantes no sofrer ou no modo de reagir às doenças. Ao levarmos
em consideração que a Aids tornou-se uma doença que circulava
entre os corpos, num primeiro momento sob a alegação de que o
contágio era majoritariamente através do ato sexual e que passou

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a tomar grandes proporções em termos de infectados, é possível


passar a pensar esse fenômeno como uma epidemia. De acordo com
Nascimento e Carvalho (NASCIMENTO; CARVALHO, 2004,
p. 13) os quadros patológicos que dominavam uma dada época, a
exemplo da peste no décimo sexto século, a tuberculose e o cólera
no oitocentos; regridem em outra, enquanto prevalecem outras
patologias, como atualmente os tumores, as doenças cardiovasculares e,
mais recentemente, a Aids. Sendo assim, existe uma historicidade
nas doenças ligada a todos os acontecimentos humanos. As doenças
passam a surgir, a alterar o roteiro das vidas, bem como, exigir uma
reorganização das formas de curar e de prevenir. Com a Aids não
foi diferente.
O historiador francês Jacques Le Goff (LE GOFF, 1985,
p. 9) afirmou por exemplo que a “doença pertence à história, em
primeiro lugar, porque não é mais que uma ideia e porque as
doenças são mortais”. E continuando questionou: “Onde estão as
febres terçãs e quartãs dos nossos antepassados?”. Ele defende ainda
que a “doença pertence não só à história superficial dos progressos
científicos e tecnológicos como também à história profunda dos
saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às
representações, às mentalidades” (LE GOFF, 1985, p. 9).
Deste modo, assim como a história, a doença como fenômeno
social, também é uma construção. Ademais, “diferentes grupos
de cada época, dão significado e sentido específicos à entidade
fisiopatológica chamada doença” (NASCIMENTO; CARVALHO,
2004, p. 13). O que possibilita ao historiador, o conhecimento de
estruturas e mudanças sociais, reações societárias, constituição
do Estado e de identidades nacionais, emergência e distribuição
de doenças, processos de construção de identidade individuais,
constituição de campos de saber e disciplinas” (NASCIMENTO;
CARVALHO, 2004, p. 13).
No decorrer da história, o imaginário social sempre associou
as doenças de massa como castigos impostos. Da mesma forma que
aconteceu com a peste no romance de Albert Camus (CAMUS,
2020), a Aids foi associada a uma espécie de castigo. Mas, um

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

castigo diferente dos habitantes de Orã, já que no contexto do


flagelo da Aids nos anos iniciais da década de 1980, criou-se um
estigma que “contrair Aids equivale precisamente a descobrir que
se faz parte de um determinado grupo de risco” (SONTAG, 2007,
p. 353). E o que era chamado de “predisposição” no século XVIII,
com a Aids, foi discutido sob o rótulo de “grupo de risco”. Esses
esquemas explicativos para Nascimento e Silveira (NASCIMENTO;
SILVEIRA, 2018, p. 313) “constituíram - e constituem – um quadro
em que explicações morais e valores sociais podem ser, legitimados”.
Nesse caso, a ideia desenvolvida sobre os que faziam parte do “grupo
de risco” cria também um certo estigma: aqueles que contraíam
o vírus eram marcado por sua “devassidão”, são aqueles que
pertenciam ao grupo dos “desviados”, os considerados anormais, os
homossexuais. Ser “grupo de risco” para a Aids naquele momento,
era ser homossexual.
Para Nascimento (NASCIMENTO, 2005, p. 132), “a doença,
ao revelar uma condição estigmatizante, confirma ao mesmo
tempo uma identidade”. À vista disso, os primeiros casos de Aids
entre homossexuais masculinos nos anos iniciais da década de
1980, revelaram uma “condição socialmente estigmatizada, mas,
por outro lado, acabou por gerar movimentos associativos que,
ao irem de encontro ao estigma, teriam por objetivo afirmar uma
identidade pela proteção mútua contra o isolamento e a exposição
dos doentes a discriminações e perseguições” (NASCIMENTO,
2005, p. 132).
Conforme Michel Foucault (FOUCAULT, 1977) afirmou, é
a própria medicina, quem vai articular, desenvolver e reforçar estes
estigmas, que logo são utilizados como mecanismos de controle,
normatização e padronização da sociedade. A associação da Aids
a homossexualidade “pareceu uma tentativa de (re)patoligizar uma
condição sexual, já estigmatizada pela sociedade e, ao mesmo tempo,
buscar culpados para a doença que já se anunciava como epidemia”
(NASCIMENTO, 2017, p. 187).
Nos anos iniciais da década de 1980, o homossexual “passava a
ser uma figura associada à morte. Não a morte que vinha de fora, de

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

uma agressão homofóbica, mas a morte daqueles que encarnavam o


conceito” (MAIOR JÚNIOR, 2014, p. 407). Para Paulo Souto Maior
Jr. (MAIOR JÚNIOR, 2014, p. 407) em um breve intervalo de
tempo, a Aids tirou a vida de milhares homossexuais. Comumente
se perdia um amigo, um colega, um amigo de amigos e, com isso,
evidentemente, alastrava-se o medo de ser mais uma das vítimas
da doença. Todavia, até “que fosse possível desvincular a AIDS
dos homossexuais, eles foram acusados, por setores conservadores,
entre os quais algumas religiões, de serem portadores de um mal
intrínseco à sua prática sexual. E antes mesmo que a doença fosse
diagnosticada corretamente foi batizada de ‘câncer gay’” (MAIOR
JÚNIOR, 2014, p. 407).
Uma doença que estigmatizava, que colocava o doente na
condição de ser apontado, anotado pelas agruras da ignorância,
vítima de um discurso cristão extremamente cruel. Se o câncer era
uma doença da traição do corpo, o “câncer gay” funcionava como
uma traição do corpo que desejava o sexo e por isso permitia a
entrada de vírus e bactérias, portanto um câncer “provocado pelo
pecado” e que como castigo, colocava o infectado na condição
de fragilidade, de merecedor de desdém, de desafetos. Neste
cenário, a Aids obrigou as inúmeras esferas sociais a olhar para a
sexualidade e, de alguma forma, discuti-la. “Independentemente
dos paradigmas que orientaram estas discussões, a sexualidade, o
desejo e práticas sexual passaram a estar presentes nas agendas e
preocupações sociais, religiosas, estatais e familiares” (CAETANO;
NASCIMENTO; RODRIGUES, 2018, p. 291). O vírus HIV
mostrou facetas sobre a sexualidade, mas não todas. O temor do
contágio com o vírus, assim como as discursões sobre a doença e
sexualidade, orientou desejos, ensinou práticas, produziu outras
variadas formas de relacionamento e modelou corpos (PARKER;
PIMENTA, 2004).
Ao concordar com Galvão (GALVÃO, 2000, p. 51), podemos
afirmar que as primeiras respostas à existência da Aids no Brasil,
foram dadas pelos jornais e revistas, informando a sociedade sobre
a epidemia. Bessa (BESSA, 2002, p. 33) escreveu que:

19
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Ao mesmo tempo em que a imprensa carregou nas tintas nos


conceitos e nos preconceitos, ela também teve um caráter digamos,
visionários, pois conseguiu apontar para o problema sociedade e de
saúde pública que a Aids representava, bem antes que programas
antiAids fossem criados e que autoridades de saúde reconhecessem
o perigo iminente de uma epidemia.

A seguir, conforme Nascimento e Silveira (NASCIMENTO;


SILVEIRA, 2018, p. 318) foram as pessoas vivendo com a Aids ou
sob ameaça de contrair o vírus, a partir do pensamento vigente, em
resposta ao medo e atitudes preconceituosas e estigmatizantes em
relação a elas, “que tomaram a iniciativa de lutar por seus direitos
a informações sobre a doença, problematizando a Aids como
questão não só de saúde, mas também como questão política de
todo a sociedade brasileira” (NASCIMENTO; SILVEIRA, 2018, p.
318). Assim, organizaram-se grupos sociais comprometidos com o
combate a essa doença e as respectivas formas de sua percepção,
reivindicando o direito a saúde, que “implica informação sobre a
doença, educação para a prevenção do HIV/Aids, acesso aos serviços
de saúde e assistência médico-hospitalar – tudo isto como expressão
do exercício pleno da cidadania” (NASCIMENTO; SILVEIRA,
2018, p. 319).
Nesta direção, o Núcleo de Orientação em Saúde Social
(NOSS), através do jornal Nós Por Exemplo se dispôs, a instruir o
seu leitor com “informações dignas, reais e de seu interesse” (NÓS
POR EXEMPLO, dez. 1991) e a dar uma resposta do que era e
do que podia fazer um homossexual em tempos de AIDS como
uma forma se posicionar após a série de estigmas e preconceitos
sofridos especialmente nos anos 1980.Á vista disso, os discursos
do então educador social de projetos de prevenção à AIDS/
DSTs do NOOS no Rio de Janeiro e articulista do impresso, o
Sr. Paulo Henrique Longo, ganharam as páginas do jornal Nós
Por Exemplo, pontuando informações do risco a saúde em tempos
de Aids, do uso da camisinha, considerada um tabu e rodeada de
preconceitos.
As notícias e a desinformação sobre a Aids alastravam a
violência e garantia manchetes de jornais nas décadas de 1980

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

e 1990. Os estigmas produzidos em torno da Aids e alocados


aos corpos homossexuais são apenas um lado desse cenário. De
outro, eles também impulsionaram a necessária mobilização
para responder as demandas cridas em torno da doença e da
manutenção da vida. Dessa forma, por se tratar de um periódico
voltado para o público gay, existia um interesse de desenvolver
um cuidado de si nesse público por meio da promoção da vida,
aquilo que Michel Foucault (FOUCAULT, 2009) chamou de
biopolítica.
O jornal Nós Por Exemplo seguiu insistindo na defesa de um sexo
seguro: “seria simplesmente abolir ou evitar determinadas práticas?
Mais do que isso, seria incorporar novas práticas, reinventar rotas,
desejos e sobretudo, fantasias. Tudo isso?” (NÓS POR EXEMPLO,
jan. 1995). Adotar novas práticas passava pela “obrigatoriedade” do
uso da camisinha nas relações sexuais. O periódico defendia que
dava “para engolir (a história, e não outra coisa, meninos)? Será que
alguém tem tempo de ficar procurando nos manuais que prática
seria MUITO, MAIS OU MENOS, ou POUCO PERIGOSA na
hora de transar? ” Ou mesmo, não seria “muito mais fácil saber,
que o contato do esperma com mucosas muito absorventes facilita a
transmissão do HIV?” (NÓS POR EXEMPLO, jan. 1995). Divulgar
informações como ação da educação da saúde passou a ser a “missão”
de um impresso voltado ao público homossexual. Afinal de contas,
“proteja-se como dizia nosso folheto, ninguém tem seguro de sexo!”
(NÓS POR EXEMPLO, jan. 1995).

Considerações finais
Há um ditado sobre o universo dos acontecimentos humanos
e históricos, que foi ao longo do tempo tomado como uma “certeza”:
os homens nascem e morrem. Todavia, a lógica e o processo do
nascer e do morrer não podem ser julgados como imutáveis, uma vez
que, o progresso e as transformações processadas pelas sociedades,
demonstram que as percepções e as atitudes dos indivíduos diante
desses dois acontecimentos sofreram mudanças profundas e

21
IX Colóquio de História das Doenças: anais

drásticas.
Além desses acontecimentos, é reconhecível que se os
homens não morrem durante o parto, nas guerras, de acidentes ou
de causas naturais, fatalmente irão sucumbir as consequências e
ao desenvolvimento de doenças parasitárias, malignas ou crônicas,
mas, sobretudo aquelas de caráter infectocontagioso. E entre os
principais causadores dessas doenças que podem levar ao óbito,
se não tratadas apropriadamente, destacam-se as bactérias, os
protozoários, os fungos e, principalmente, os vírus.
Ao lado da identificação dos agentes parasitários, da
nomeação e da classificação das doenças que transitam ao redor
do homem, assim como a descoberta de antibióticos e vacinas
necessárias para combatê-las - o que as colocam no domínio das
Ciências da Saúde, existe uma história das doenças revelada através
das práticas médicas, dos discursos médicos e políticos, do registro
médico-hospitalar e das estatísticas oficiais. Sendo assim, as doenças
também pertencem à história e ao historiador.
Sabemos que a Aids “é uma doença como outra qualquer, de
que existem, mecanismo de prevenção contra ela e de que a luta
contra o HIV é também uma luta contra o pânico, a desinformação,
os preconceitos e a discriminação que devem ser combatidos com
solidariedade” (NASCIMENTO, 2015, p. 96). Acreditamos que
era de suma importância à vida dos leitores, desenvolver naquele
momento um cuidado de si por meio da promoção da vida, com
discursões sobre a doença e sexualidade, orientação de desejos,
o ensino de práticas do sexo seguro. Para tanto, o jornal Nós Por
Exemplo passou a investir nos primeiros anos da década de 1990,
em uma educação da saúde que visava incutir nas pessoas práticas
de cuidado na hora do sexo a exemplo da conversa sobre proteção e
uso de camisinha.
Não foi possível ainda perceber o alcance do jornal para a
população brasileira. Não podemos ainda afirmar em termos
quantitativos sobre os leitores que tinham acesso ao periódico
ou mesmo que se apropriaram das práticas educativas postas em

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

circulação em suas páginas. Mas podemos afirmar que o periódico,


por meio de sua militância, investiu em divulgar essas informações
tão caras a defesa da vida. Tornou-se de grande relevância para os
homossexuais possuir um impresso que revelava a amizade como
estética de vida, fazendo com que os iguais cuidassem de si e do
outro.
Outro fator que nos salta os olhos é a pouca presença de
discursos proferidos por médicos. Ou seja, as publicações timbradas
nas páginas do jornal já era uma leitura do discurso médico em voga
no combate a propagação do vírus do HIV e disseminação da Aids
enquanto doença. Destaca-se assim, o protagonismo de jornalistas
gays que se esforçavam em aprender com o discurso médico para
investir numa educação da saúde, do cuidado do corpo através de
uma linguagem própria aos homossexuais.
O jornal Nós Por Exemplo, foi mais um dos espaços de
propagação de um saber dito médico que visava incutir no
público gay os devidos cuidados para “manter o corpo limpo” de
enfermidades. O espaço informativo servia ainda como forma de
resistência ao estigma na qual os homossexuais eram acusados:
o da sexualidade desviante e o fato de portar um “câncer gay”.
Não se tratava de naturalizar a doença, mas de alterar as práticas
sexuais como parte de um projeto biopolítico de promoção a vida.
Muito ainda preciso ser dito sobre a atuação do jornal Nós
Por Exemplo no combate à epidemia de Aids. Acreditamos que
esse impresso pode servir para percebermos formas de combate
à doença através da educação sanitária. Uma fonte histórica que
nos permite escrever uma história dos homossexuais, bem como,
uma história do combate as doenças. Se muito ainda precisa
ser selecionado, analisado e dito, assumimos o compromisso de
continuar a fazê-lo.

Referências
BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografia & Aids. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2004.

23
IX Colóquio de História das Doenças: anais

CAETANO, Marcio; NASCIMENTO, Claudio; RODRIGUES, Alexsandro.


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FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
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FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
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PARKER, Richard.; PIMENTA, Cristina. (org.). Homossexualidade: produção


cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA, 2004.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

25
Migrar e adoecer:
Assistência aos italianos na Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre - RS (Final do
Século XIX)
Carolina Wendling Rodrigues1

Introdução
A história das migrações vem ganhando espaço em novos
estudos historiográficos abordando diversas temáticas, tais
como: gênero, criminalidade, loucura, doença, estratégias de
deslocamentos2, entre outras. Durante o século XIX o Brasil recebeu
um grande contingente de imigrantes europeus que chegavam no
país em busca de novas oportunidades. O contexto das migrações
está relacionado com as diversas transformações que ocorriam
no mundo ocidental, de acordo com Loraine Giron (1980), são
diversos os fatores responsáveis que levaram esse grande número de
pessoas a deixarem seu país de origem, como as questões de ordem
social, política e econômica podem ser levantas nos estudos sobre
as migrações.
Sobre o contexto europeu do século XIX, podemos mencionar
diversas transformações que estavam ocorrendo, como por exemplo:
as Revoluções Industrial e Científica-Tecnológica. O crescimento
das indústrias e da vida urbana geraram mudanças nas “sociedades

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale


do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil. E-mail: [email protected]
2 Destaco alguns trabalhos, como: questão de gênero, Yonissa Marmitt Wadi (2009);
criminalidade, Maíra Vendrame (2016), Caroline Von Mühlen (2017); sobre as doenças,
Lucy Maffei Hutter (1996): sobre loucura, Constantino Ianni (1963), Zelinda Scotti
(2013), Stella Borges e Rovílio Costa (1996).

27
IX Colóquio de História das Doenças: anais

de economia agrícola que sofreram frente ao rápido processo


de industrialização” (SILVA, 2014, p. 21). Por conseguinte, esse
crescimento industrial e urbano não deu conta de absorver a
grande quantidade de pessoas que migravam do campo para as
cidades. Esse processo se deu concomitante ao aumento da taxa de
natalidade na Europa devido a melhoria dos serviços de assistência,
e o desenvolvimento da medicina, bem como de uma imunidade
natural por parte da população às epidemias (ALVES, 2017, p. 39).
Além dos agricultores vivenciarem a substituição de seu trabalho
pelas novas tecnologias, os operários das cidades também eram
trocados por máquinas: “O que se viu, portanto, foi um aumento
de mão-de-obra excedente que levou inúmeros trabalhadores ao
desemprego e à miséria” (SILVA, 2014, p. 21). De acordo com
Luis De Boni e Rovílio Costa (DE BONI; COSTA, 1982), o campo
possuía um elevado número de pessoas em meio à uma situação de
fome e pobreza e as cidades não possuíam condições de absorver
tantas pessoas.3 No entanto, para além dessas questões, o avanço
industrial possibilitou os deslocamentos em massa nos navios à
vapor de forma mais rápida e barata.
Além dos fatores de repulsão, existiram fatores de atração,
ou seja, o Brasil procurou atrair os imigrantes, a fim de atender as
demandas de ocupação de terras devolutas. O fomento à imigração
tinha como objetivo criar, também, um mercado de mão obra livre
que substituísse a escravizada. O governo imperial e a elite intelectual
também possuíam a ideia de atrair os europeus a fim de civilizar a
população brasileira, considerada atrasada. Nesse sentido, o bom
colono deveria possuir responsabilidades com o trabalho e a família,
e para isso os europeus, principalmente os italianos e alemães,
atenderiam tal ensejo (GIRON, 1980, p. 47). Para a atração, o
Império criou diversas leis e decretos4 que facilitavam à imigração e a
colonização. Foi autorizado a participação de empresas particulares
que acordavam a vinda de imigrantes e através de propagandas que
divulgavam um Brasil onde tudo se multiplicava em terras férteis e
3 Sobre a situação europeia frente ao contexto migratório, especificamente o contexto
italiano ver: De Boni; Costa, (1982).
4 Para análise detalhada das leis ver: Iotti, (2001).

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a natureza que proporcionava alimentos à vontade. De acordo com


Costa Leite (COSTA LEITE apud SILVA, 2014, p. 23), entende-se
que tanto os motivos de repulsão tanto os de atração se relacionam,
ou seja, esses fatores estão ligados à uma conjuntura de situações
que estão relacionadas à necessidade e a oportunidade. Além
de conhecer os contextos em que estão inseridos os movimentos
migratórios, é necessário levar em conta o papel ativo dos sujeitos
que migram.
Vendrame (VENDRAME, 2015; 2016; 2018) analisa as redes
e contatos dos imigrantes que uniam os dois lados do atlântico.
Para pensar na perspectiva das redes, a autora utiliza-se do conceito
de “cadeias migratórias”,5 que consiste em perceber como tais
redes auxiliavam os italianos a organizar as partidas e a escolher
seus destinos. Ou seja, as cadeias migratórias eram a relação que
os imigrantes possuíam com aqueles já estabelecidos nos locais de
destino. No momento da chegada, os imigrantes em sua maioria eram
“carentes de bens materiais, por outro lado podiam contar com uma
riqueza imaterial: os laços parentais permitiam ampliar as chances
de sucesso no Novo Mundo”. As redes se faziam um dos recursos
mais ricos que o imigrante poderia possuir, independentemente se
detentor de algum bem material ou não (VANDRAME, 2015, p.
217). A partir do conceito de redes utilizado pela autora, entende-
se que é importante problematizar o destino que tiveram aqueles
imigrantes que não puderam contar com as redes de apoio familiar
no momento da chegada, bem como aqueles que viajavam sozinhos
e deixavam suas famílias em sua terra natal.
Os processos migratórios deixaram marcas na vida dos
imigrantes. Deixar o local de origem poderia desencadear inúmeras
incertezas e anseios, os projetos de vida dos imigrantes poderiam
ser interrompidos por diversos motivos, sendo que, um deles eram
as doenças. De acordo com Hutter (HUTTER, 1996, p. 36), os
problemas com relação à saúde surgiam antes mesmo da saída do
emigrante, ao embarcar já traziam consigo os germes de doenças
5 Vendrame menciona que o conceito de Cadeia migratória foi inicialmente utilizado
para entender o movimento de imigrantes para a América do Norte, trabalhado por John
S. MacDonald, Leatrice MacDonald (1964) e Fernando Devoto (1988) Vendrame (2018).

29
IX Colóquio de História das Doenças: anais

adquiridos na Europa. A doença poderia se manifestar também


em decorrência das condições precárias e insalubres dos navios.
A autora menciona que as doenças transmissíveis poderiam se
propagar mais rapidamente devido à fala de higiene, e ao elevado
número de passageiros colocados nos navios pelas companhias
de navegação. Nesse sentido, no momento de desembarque, os
imigrantes encontravam-se muito doentes ou desnutridos pela falta
de alimento e água potável, ou então não completavam seus projetos
pessoais devido à morte.
A presente comunicação trata-se de um recorte do meu
projeto de mestrado, intitulado: “Imigrantes e suas doenças:
os italianos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
(1875-1900)”. O objetivo principal da pesquisa é compreender
quais os usos que os imigrantes italianos faziam da Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre, em que condições e de que
maneira se dava o acesso na instituição. Para o desenvolvimento
da pesquisa, são utilizados como fonte os Livros de Matrícula
dos Enfermos da Santa Casa de Porto Alegre. O objetivo desta
comunicação é demonstrar os motivos das internações dos
imigrantes italianos recém chegados na província do Rio Grande
do Sul.
Os imigrantes doentes que desembarcavam no Brasil, eram
encaminhados aos Hospitais ou então se providenciava locais para o
devido isolamento nas hospedarias. (HUTTER, 1996). São escassos
os trabalhos que analisam as hospedarias erguidas na província do
Rio Grande do Sul, e existem registros na Santa Casa de Misericórdia
de diversos estrangeiros que davam entrada no hospital. A partir da
análise das fontes pode-se perceber que os imigrantes procuravam
a Santa Casa, como local de tratamento das moléstias adquiridas
na travessia, ou então como local de abrigo. A seguir, torna-se
importante contextualizar o papel das hospedarias de imigrantes no
Brasil e no Rio Grande do Sul, para a compreensão desses espaços
como locais de acolhimento e contenção de doenças. Bem como
compreender as funções médicas e assistencialistas da Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre no final do século XIX, a fim de

30
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

identificar o papel que essa Instituição possuiu no acolhimento dos


imigrantes italianos.

As hospedarias de imigrantes
A partir do século XIX começou-se a providenciar locais
de hospedagem aos recém chegados no Brasil. As hospedarias se
estabeleceram ao longo da costa do país, próximas aos pontos de
translado dos fluxos migratórios. Podem ser entendidas como locais
de “transmutação, limiares modernos através dos quais os emigrantes
transformam-se em imigrantes durante seu curto tempo de estada”
(CHRYSOSTOMO; VIDAL, 2014, p. 2). Na década de 1850,
devido às preocupações com a epidemia de febre amarela, e com o
grande número de imigrantes atraídos para o país, estes passam a
ser considerados focos de irradiação de doenças infecciosas. É neste
contexto que se discute a implementação de locais de acolhimento
dos recém-chegados. Em 1850, é fundada pelo Ministério do
Império, a Junta Central de Higiene Pública, e como resultado,
os projetos de locais de isolamento nas ilhas, como por exemplo o
lazareto de Jurujuba no Rio de Janeiro em 1851. Em 1853 o lazareto
se transformou no Hospital Marítimo de Santa Isabel, tendo a
principal função tratar marinheiros, viajantes e imigrantes que
chegavam com doenças contagiosas (CHRYSOSTOMO; VIDAL,
2014, p. 6-7).
A preocupação com o destino dos recém chegados é
percebida também a partir da criação da Associação Central
de Colonização em 1855. A Associação teve como finalidade
importar emigrantes agricultores ou industriais que quisessem
vir para o Brasil, ficando responsável por todo o processo de
recrutamento e transporte, bem como a instalação dos imigrantes
nas colônias. No que se refere às hospedarias, a Associação
deveria responsabilizar-se em fornecer alojamentos, e nos
portos em que não existissem os estabelecimentos, a Associação
deveria providenciar locais de “abrigo e subsistência, até que
os imigrantes tivessem construído ou recebido suas moradias

31
IX Colóquio de História das Doenças: anais

definitivas. Àqueles que migravam de forma espontânea sem


a mediação da Associação, deveriam arcar com as custas
em dinheiro ou na forma de trabalho durante o tempo que
permanecessem nas hospedarias (SILVA, 2014, p. 48-50). Além
da questão das custas e a carência na legislação que tratasse da
recepção dos imigrantes, a Associação não conseguiu recrutar
um significativo número de imigrantes ao Brasil, sendo extinta
em 1861. Ainda na segunda metade do século XIX foram
criados diversos decretos que regulamentavam e destinavam as
competências estatais no momento de chegada dos estrangeiros,
como por exemplo a instalação de hospedagens provisórias nas
colônias para abrigar os colonos até que recebessem os seus lotes.
Em 1876 é criada a Inspetoria Geral de Terras e
Colonização, e as suas competências também eram destinadas
aos serviços relativos ao desembarque, agasalho, entrega de
bagagens, bem como a remoção dos enfermos para os hospitais
nos casos mais graves (SILVA, 2014, p. 51). A partir da década
de 1880, são criadas as grandes Hospedarias do país, essa
rede de hospedarias inseria-se em um conjunto de “estratégias
geopolíticas que resultaram na constituição de uma malha
hierarquizada regionalmente, voltada para cumprir três
funções centrais: controlar, acolher e distribuir os imigrantes”
(CHRYSOSTOMO; VIDAL, 2014, p. 11). Dentre as principais
hospedarias erguidas nesse período estão: a Hospedaria da Ilha
das Flores na Baía de Guanabara no Rio de Janeiro (1883);6 e a
Hospedaria do Brás, localizada em São Paulo (1886).7
Não existem muitos trabalhos que se detém à análise
exclusiva das hospedarias no Rio Grande do Sul8, além disso, as
hospedarias não possuíam um local fixo para receber os imigrantes,
6 A Hospedaria da Ilha das Flores foi construída sob iniciativa do governo
imperial, sendo controlada pela Inspetoria Geral de Terras e Colonização. Os imigrantes
permaneciam na hospedaria durante o tempo que suas bagagens eram despachadas e
desinfetadas Segawa (1989, p. 27).
7 A construção da Hospedaria do Brás, se deu pela iniciativa privada da Sociedade
Promotora de Imigração de São Paulo, que geria os recursos públicos advindos do governo
para apoiar a imigração no estado Chrysostomo; Vidal (2014, p. 11).
8 Destaco a dissertação de mestrado de Gabriela Ucoski da Silva (2014).

32
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a ação tomada pela província era de locar casas ou prédios para


o alojamento dos recém-chegados. São diversas as solicitações do
presidente da província para a providência de locais adequados
para o recebimento dos imigrantes, tanto na capital como nas
colônias. Silva (SILVA, 2014, p. 60), analisa os Relatórios emitidos
pelo presidente da província em que o mesmo, no ano de 1868,
informa que
mandou construir, nas colônias de Nova Petrópolis e Santo Ângelo
empreendimento deveriam correr por conta dos cofres gerais. Mais
adiante, o presidente se referiu ao alojamento da capital; segundo
ele, era notável que não existisse, até aquele momento, um edifício
apropriado para receber os imigrantes chegados à província. Por
este motivo, mandou estabelecer, ʻno terreno beira-rio em frente
à praça da Harmoniaʼ, um grande ʻbarracãoʼ, onde os imigrantes
que chegassem à capital pudessem ser alojados (RIO GRANDE
DO SUL, 1868).

Esse pedido, estava relacionado com o decreto publicado em


1867 que ordenava que nas colônias deveriam existir locais onde os
imigrantes pudessem se alojar até o recebimento de seus lotes. A
preocupação de aprimorar os locais de alojamento era constante.
Em 1872, o presidente da província manda que fossem construídos
barracões no Porto Guimarães,9 também para abrigar os colonos
que se dirigiam às colônias Nova Petrópolis e Conde d’Eu (SILVA,
2014, p. 61). Uma das hospedarias que possuem documentação
disponível para pesquisa é a Hospedaria do Cristal em Porto
Alegre. São livros de boletins diários que controlavam o movimento
da instituição através do registro de entradas, saídas, presenças e
doentes na enfermaria bem como as correspondências trocadas
pelo administrador com a província.10 A Hospedaria é idealizada
em 8 dezembro de 1890, através da solicitação do Presidente da
Junta de Higiene Pública à Delegacia da Inspetoria Geral de Terras
9 Porto Guimarães é a atual cidade de São Sebastião do Caí/RS. A região do Caí
ganha destaque nos estudos da colonização, pois possuía uma variedade étnica abrangendo
a partir de sua comarca diversas colônias alemãs e italianas. Servia de ponte para o
crescimento econômico das regiões de colonização localizadas na parte nordeste do
território sul-rio-grandense. Um exemplo disso é a inserção da colônia Caxias ao mercado
regional, que se deu devido à proximidade com São Sebastião do Caí.
10 Documentação que se encontra no Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande
do Sul.

33
IX Colóquio de História das Doenças: anais

e Colonização. De acordo com Silva (SILVA, 2014, p. 120), a


Hospedaria do Cristal, está entre as grandes do Brasil (Brás e Ilha
das Flores), sabe-se que chegou a contar com mais de 2.000 pessoas
em um só dia.
Visto que, o Rio Grande do Sul possuía diversos locais para
o abrigo dos imigrantes, o caminho de análise das condições de
saúde que esses chegavam no estado seria longo, e não condiz com
o objetivo central da pesquisa. Nesse sentido, a documentação da
Santa Casa de Misericórdia se torna uma porta de acesso para a
análise das doenças e as condições que os imigrantes italianos
chegavam ao estado, como será explanado no próximo tópico.

Acolher e curar: Assistência aos italianos na Santa Casa


de Misericórdia de Porto Alegre - RS
No Rio Grande do Sul, a Santa Casa é fundada no século
XIX acompanhando o desenvolvimento urbano da capital da
província, a cidade de Porto Alegre. A Irmandade foi fundada em
Porto Alegre a pedido e idealização do Irmão Joaquim Francisco do
Livramento ao príncipe regente de Portugal, tendo sua fundação
após deferimento em 19 de outubro de 1803, e a sua construção
iniciada no ano seguinte em 1804 (BARROSO, 2015, p. 184).
A construção das enfermarias se deu de forma lenta, até que em
1826 o hospital é aberto e inaugurado solenemente junto às duas
primeiras enfermarias.
A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, assim
como as demais Misericórdias, estava vinculada ao catolicismo
português, além de manter relações estreitas com as classes sociais
mais abastadas e às mais pobres. Com relação às elites, fazer parte
de uma Irmandade proporcionaria um status social, a partir de
uma ostentação da religiosidade católica, bem como a obtenção
de privilégios espirituais (TOMASCHEWSKI, 2007). Sobre à
assistência aos pobres, as Misericórdias voltavam seus trabalhos a
realização da caridade e da assistência, principalmente por meio do
seu hospital (OLIVEIRA, 2012, p. 96). É importante reconhecer

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

o papel das elites junto às instituições de caridade pois a partir


delas, “capitalizaram o imperativo da caridade como importante
instrumento que lhe garantiu lastro moral e capital político”
(FRANCO, 2017, p. 11). Como uma forma de controle característica
dos Estados modernos, as elites classificavam a pobreza, ou seja
quem seria merecedor das obras de caridade e quem não seria.
Em 1827 a Santa Casa de Porto Alegre adotou o mesmo
Compromisso que a Misericórdia de Lisboa, elaborado em 1618.
De acordo com Weber (WEBER, 1999, p. 138), no Rio Grande do
Sul não houve grandes modificações nos artigos do Compromisso
de Lisboa que regeu a Santa Casa até 1857. Ainda de acordo com
a autora, o Compromisso de 1857, aprovado por lei11 em 1867,
mencionava o caráter assistencial da Santa Casa: o hospital de
caridade seria para o atendimento das enfermidades daqueles
que eram pobres e careciam de socorros e auxílios alheios. A
Misericórdia se sustentava com o recebimento de esmolas, legados
e outros tipos de rendimentos. A instituição esteve ligada ao Estado
do Rio Grande do Sul, embora não fosse um órgão deste, pois
“caberia ao governador da capitania animar, proteger e favorecer
o empreendimento, estabelecendo assim maiores vínculos entre
a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o governo da
Província” (OLIVEIRA, 2010, p. 96). Por conseguinte, a Santa
Casa recebia subvenções do governo provincial para a realização
de alguns feitos como por exemplo: a administração dos expostos,
ficando responsável em acolher, criar e alimentar os menores
desvalidos a partir do ano de 1837, bem como no atendimento
médico aos presos e militares.
A Santa Casa de Porto Alegre foi um dos principais locais
de cura do Rio Grande do Sul, porém ao longo do século XIX, o
cuidado com os doentes consistia principalmente em acolher os
necessitados, auxiliando-os nos cuidados das doenças, mas também
espiritualmente, por se tratar de uma instituição religiosa. Ao
pensar o papel médico e terapêutico do hospital da Santa Casa
neste período, Weber (1999) enfatiza que:
11 Lei provincial n. 602, de 10 de janeiro de 1867.

35
IX Colóquio de História das Doenças: anais

a noção de doença era marcada pela visão hipocrática, caracterizada


por um desequilíbrio entre os humores do corpo. O tratamento
reduzia-se a purgas, banhos, fumigações e controle alimentar.
A função primordial do hospital, nesse contexto, não era a
terapêutica, mas a assistência [...]. Marcada como uma instituição
de assistência, ainda em 1905, quinze por cento dos enfermos
recolhidos eram velhos, portadores de moléstias crônicas, pessoas
muito fracas, e alguns sem residência estável. (WEBER, 1999, p.
147).

Nesse sentido, o processo de medicalização da Santa


Casa, se transforma aos poucos, de uma forma não linear. Ainda
segundo Weber (WEBER, 1999), as pessoas iam até os hospitais
para morrer, pois havia uma grande resistência da população em
recorrer à ele, pois o internamento do paciente poderia resultar
no seu isolamento dos seus familiares. As transformações foram
ocorrendo gradativamente, e a crescente especialização médica
do hospital se dá juntamente com a fundação da Faculdade de
Medicina de Porto Alegre em 1898. A partir daí, um maior
número de médicos passam a interferir na organização interna
da instituição “procurando vincular uma perspectiva técnica
vinculada ao conhecimento” (WEBER, 1999, p. 163). Sanglard
(SANGLARD, 2007) afirma que a laicização do hospital foi
um processo longo e tenso em várias Misericórdias do Brasil. As
disputas colocavam “de um lado, o hospital como lócus da ação da
caridade e, de outro, o hospital como espaço da prática médica”
(SANGLARD, 2007, p. 26). No decorrer do século XX, a Santa
Casa procurava aos poucos deixar de atender os desamparados,
estes deveriam ser remetidos para os asilos, hospícios12 e orfanatos.
No entanto essas transformações foram ocorrendo de forma
gradual e ganharam força com a Proclamação da República e um
maior controle do estado positivista do Rio Grande do Sul sobre
a população.
Visto algumas das funções da Santa Casa para com a sociedade
rio-grandense, faz-se o questionamento: a Santa Casa em algum
momento foi incumbida de receber os imigrantes italianos recém-
12 A Santa Casa ficou responsável pelo recolhimento dos alienados até o ano de 1884,
com a Fundação do Hospício São Pedro. Porém, mesmo após a fundação do Hospital
psiquiátrico, ainda era possível verificar a entrada de alienados no hospital de caridade.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

chegados na província,13 haja vista que a instituição mantinha


relações estreitas com o estado provincial. No Livro de Matrícula
Geral dos Enfermos,14 é possível perceber um grande número de
italianos que dão entrada no hospital no mesmo dia, assim como
famílias que chegam no hospital juntas. Nessas famílias, alguns
membros não possuem doenças, provavelmente entram como
acompanhantes, ou então em busca de estadia. No dia 14 de julho de
1878, adentram ao hospital 22 italianos, todos se declarando pobres
e sem profissão. Destes 22 italianos, 17 são crianças. As moléstias
apresentadas pelas crianças eram: diarreia, anidrose, escrófulas, e
algumas não possuíam moléstia alguma. Dos 5 adultos, a partir do
sobrenome, pode-se perceber que 3 não são acompanhantes das
crianças, esses três possuíam ferimentos. Os outros 2 adultos não
possuíam moléstia, afirmando a hipótese de estarem acompanhando
as crianças, verificando-se também pelo sobrenome. Assim como no
dia 01 de fevereiro de 1880, adentraram no hospital 12 italianos – 7
crianças e 5 adultos –, pelo sobrenome constata-se que são 3 famílias:
Bianchini, Lourenzo, Baschiete (consta também como: Brechete).
A classe desses italianos está classificada como “emigrante” e
nenhum deles possuem profissão, o campo das doenças encontra-se
em branco com exceção de uma criança da família Baschiete que
possuía eczemas.15
Nos registros analisados acima, pode-se levantar a hipótese
de que todos são recém-chegados pelo número de familiares, bem
como as doenças que indicam uma travessia transoceânica insalubre
13 Até o momento, a presente pesquisa busca responder tal questionamento a
partir da análise dos relatórios da provedoria da instituição assim como os relatórios do
presidente da província, e que até o momento não foram encontrados indícios na presente
documentação.
14 Os livros de enfermos serviriam para registrar todas as pessoas que foram
regulamente internadas no hospital da Santa Casa, e fazem parte da documentação
produzida pela Santa Casa de Porto Alegre. Oliveira (2010, p. 42). Oferecem os seguintes
campos de informação: nº de ordem (ingresso), data da entrada (dia, mês e ano), nome
do paciente, idade, naturalidade, cor, filiação, profissão, estado (civil), classe, residência
(a partir do volume 19), hora de entrada, por quem remetido, diagnóstico, alta (dia,
mês e ano) e observações (se o paciente saiu curado, pediu para sair, insubordinação, foi
transferido ou faleceu) Barroso (2015, p. 194).
15 Dados coletados no Livro de Matrícula Geral dos Enfermos, n. 4 (11/1873-
08/1880) – Arquivo do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre (CHC).

37
IX Colóquio de História das Doenças: anais

com más condições de alimentação e hidratação com água potável,


como por exemplo a diarreia. O segundo grupo analisado, em que
as doenças não foram registradas, além da condição de emigrantes
registrada no livro, a ausência de uma moléstia pode indicar que a
Santa Casa poderia ser procurada como local de abrigo.
Outro indício que nos leva a pensar que a Santa Casa acolhia
os imigrantes, principalmente aqueles acometidos por alguma
moléstia, é percebido no relatório do provedor da Santa Casa do
ano de 1889, onde é relatado que um grupo de colonos chega até a
Santa Casa com febre amarela:
em princípios deste ano, tendo tido comunicado do administrador
do Estabelecimento de que o médico de dia reconhecera a febre
amarela nos colonos, que, tendo desembarcado, foram para aí
mandados, convoquei logo uma reunião do corpo médico do
Estabelecimento. Examinados os doentes, foi confirmado aquele
diagnóstico. Imediatamente tomei as providências que a urgência do
caso requeria, fazendo remover os colonos acometidos da moléstia
diagnosticada para uma enfermaria especial que mandei preparar
em um dos compartimentos do pavimento térreo, e ordenando
constantes desinfecções por todo o edifício. Em seguida oficiei à
presidência da província ponderando-lhe a urgente necessidade
da remoção dos aludidos colonos para fora do estabelecimento,
e declarando-lhe que dessa data em diante deixariam de ser nele
recebidos mais colonos, enquanto não cessasse o caráter epidêmico
que apresentavam as moléstias dos imigrantes. S. Ex. mandou criar
lazaretos, e os poucos colonos que estavam ainda em tratamento
foram logo para os mesmos removidos. Devido às precauções
tomadas, a moléstia não se desenvolveu no hospital, ficando
circunscrita a essa pobre gente.16

A partir da informação apresentada pelo provedor da Santa


Casa, verifica-se a preocupação com as doenças contagiosas de
caráter epidêmico no hospital bem como a criação de lazaretos
para o isolamento dos doentes. Demonstrando também a relação
de proximidade que a administração da Santa Casa mantinha com
a província do Rio Grande do Sul. Alguns dos italianos faleceram, e
no livro de Registro de óbitos do cemitério da Santa Casa17 consta
16 Relatório da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre do biênio
de 1888 e 1889 - Arquivo do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre (CHC). Optou-se em atualizar a ortografia na transcrição.
17 Registrados no livro de Óbito do cemitério da Santa Casa de Misericórdia do dia

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

o local de falecimento dos doentes. Enquanto alguns faleceram


no Hospital da caridade e no lazareto, há um registro de que um
dos imigrantes faleceu na “Hospedaria de imigrantes”, porém não
informando qual hospedaria se tratava. Nos registros da Santa
Casa, tanto nos livros de Matrícula dos enfermos, quanto nos livros
da provedoria, não foram encontrados registros por escrito de
imigrantes que tenham vindo das hospedarias. Com as informações
coletadas até o momento, pode-se dizer que a Santa Casa era o
destino de vários imigrantes que chegavam ao Rio Grande do Sul
trazendo consigo moléstias, ou então em busca de um pouso.

Considerações finais
No Rio Grande do Sul, as hospedarias não possuíam um local
fixo para receber os imigrantes, o governo provincial constantemente
alugava casas e prédios ou então solicitava a construção de barracões
nos locais próximos às colônias, ou então na capital Porto Alegre.
Esses locais improvisados, provavelmente não possuíam condições
necessárias ao atendimento dos imigrantes que chegavam doentes
ou então debilitados após uma longa viagem. Os registro existentes
da Hospedaria do Cristal em Porto Alegre são datados a partir de
1892, e consistem na escassa documentação sobre essas hospedarias.
Antes deste período não foram produzidos muitos trabalhos sobre
as hospedarias que relatassem as condições de saúde dos imigrantes
ou então sobre o cotidiano nesses locais. Nesse sentido, o estudo nos
registros de entrada dos enfermos da Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre nos fornecem informações de que os imigrantes recém
chegados também eram recebidos na instituição, estando doentes
ou não.
A partir dos relatórios da provedoria, bem como dos registros
de entrada, pode-se perceber que a Misericórdia também exercia
o papel de controle das doenças contagiosas, como por exemplo
a febre amarela, cuidando dos enfermos e ficando incumbida de
transferi-los para os lazaretos bem como sepultar no cemitério
27 de fevereiro de 1889 a 4 de março de 1889 - Arquivo do Centro Histórico-Cultural da
Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (CHC).

39
IX Colóquio de História das Doenças: anais

da irmandade os que faleciam no Hospital ou fora dele. Sobre os


imigrantes que chegavam sem doença alguma, pode-se inferir que
a Santa Casa também era um local de reabilitação após a longa
travessia atlântica, fornecendo local para o descanso e alimentação
adequada.
É necessário lembrar que no século XIX a relação entre as
pessoas e as doenças e as práticas de cura frente aos hospitais
deve ser compreendida dentro de um contexto. Nesse sentido,
considerar que os doentes viviam a doença de uma forma
relacional, ou seja, os eventos médicos eram “eventos sociais
complexos envolvendo a família e a comunidade” (PORTER,
1985, p. 175). Procurar um hospital poderia significar que
qualquer outra forma de cura possível tivesse sido esgotada,
pois as percepções de doença e cura da sociedade do século XIX
resultavam em diversas práticas de cura, tais como: curandeiros,
práticos, benzedeiras, médicos, etc. O hospital só foi se tornar
um local da prática médica moderna e científica de forma lenta e
gradual no final do século XIX, e mesmo assim continuava sendo
encarado com um espaço de cuidado dos necessitados, auxiliando-
os nos cuidados das doenças mas também espiritualmente. Por
conseguinte, tratar e dar abrigo aos recém chegados, poderia
fazer parte das incumbências da Santa Casa, visto que muitas
vezes os imigrantes chegavam com suas famílias e não possuíam
redes de sociabilidade nos locais de chegada. Por fim, entende-
se a importância de pensar a história da saúde, das doenças e da
assistência com olhar voltado para as experiências sociais dos
imigrantes, pois permite problematizar os usos que determinado
grupo étnico fazia das instituições de assistência.

Referências

Fontes
Livro de Matrícula Geral dos Enfermos, nº 4 (11/1873-08/1880) – Arquivo
do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
(CHC).

40
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Relatório da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre do biênio


de 1888 e 1889 - Arquivo do Centro Histórico – Cultural da Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre (CHC).
Livro de Óbito do cemitério da Santa Casa de Misericórdia do dia 27 de fevereiro
de 1889 a 4 de março de 1889 – Arquivo do Centro Histórico-Cultural da Santa
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IX Colóquio de História das Doenças: anais

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43
Discursos médicos sobre a loucura na
cidade a Parahyba do Norte entre
1989 e 1930
Edna Maria Nóbrega Araújo1
Alda Venusia Alves de Oliveira2
Maria Cecilia Brito Marques3

A primeira metade do século XX, foi marcada por crescente


intervenção da medicina nos corpos e espaços da Parahyba do
Norte4, sob a justificativa das reformas modernizantes ocorridas
no período. Esse cenário fez eclodir uma série de movimentos de
caráter higienista, eugênico e de educação sanitária, que passaram a
estabelecer diretrizes para excluir dos espaços públicos indivíduos
que não se “enquadravam” aos padrões almejados no período. Essa
condição ganhou fôlego com o aumento do número de médicos
na Parahyba, que terminaram por corroborar ainda mais para a
validação das ações governamentais.
A participação dos médicos em diversos setores da sociedade
parahybana tornou-se cada vez mais constante com o decorrer das
primeiras décadas do século XX. Isso se deu principalmente pelo
crescente investimento das autoridades públicas em áreas de saúde
e o interesse por uma “higienização” material e ideológica. Nesse

1 Professora da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected]


2 Mestranda da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]
3 Graduanda da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: mariaceciliam8767@
gmail.com
4 A cidade da Parahyba do Norte mudou sua denominação a partir de 1930 para João
Pessoa, no entanto, ao longo do texto o leitor encontrará as duas denominações, bem como
em relação ao Estado que aparecerá como Parahyba e Paraíba, segundo a fonte pesquisada.
Araùjo (2001).

45
IX Colóquio de História das Doenças: anais

sentido, a questão da assistência aos loucos passou a figurar como


objeto de preocupação entre a comunidade médica local.
Se outrora, os loucos, eram tutelados pela Santa Casa de
Misericórdia, embora que a contragosto de seus provedores, por
considerarem dispendiosa a manutenção dos desvalidos no local,
que já contava com elevado número de internos, inclusive as vítimas
das constantes epidemias que grassavam na Parahyba. Ainda assim,
reservava alguns cubículos para abrigá-los. Por não haver instituições
especificas para recolher os alienados, não raras às vezes estes eram
lançados em celas da Cadeia Pública, juntos aos demais apenados ou
viviam em condições de mendicância vagueando pelas ruas pouco
salubres da Parahyba. (ALVES, 2018).
Em 1891, durante o governo de Venâncio Augusto de
Magalhães Neiva (1889-1891), surgiu o primeiro hospital para
receber os loucos na Parahyba, o Asylo de Alienados Sant’Anna
localizado no Sítio Cruz do Peixe. Porém, apenas houve a mudança
física, da cadeia pública, onde estavam recolhidos, para outro
ambiente semelhante, uma vez que lá também continuavam
trancafiados, em condições precárias e sem receber tratamento
médico especializado.
O asilo de doidos como era conhecido, além de seu caráter de
isolamento, não dispunha de qualquer aparelhamento humanizado
e terapêuticas que pudessem minorar a situação enfrentada por
aqueles indivíduos. Diante desse cenário, frequentemente circulavam
notícias sobre o estado de abandono em que se encontrava o
pardieiro da Cruz do Peixe:
os enfermos, órfãos, crianças já possuem os institutos incumbidos
de sua protecção. Um contraste offerece os alienados morrendo
no hospício que nos humilha, nas cadeias quando não vivem soltos
apavorando as populações urbanas. (O JORNAL, 22 fev. 1917, p.
2).

Dr. Octávio Soares, realizou uma descrição acerca das


condições do asylo. Condições essas bem conhecidas pelo médico,
que chegou a prestar alguns atendimentos na instituição em 1910.

46
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Os infelizes que existem naquele velho edifício, a que tão


impropriamente se dá o nome de hospital ou hospício, vegetam,
sofrendo, além da privação da razão, a falta de ar, de luz, de hygiene
e dos mais necessários commodos. A natureza, diante daqueles
quadros horríveis, veste-se de luto, vendo e ouvindo as dores e os
gemidos humanos se exalçarem, onde homens e mulheres tolhidos
em sua razão e na sua liberdade, sem conforto algum, detidos
como criminosos em células pixadas, tendo como leito traves de
madeira, recebem pelo gradil a minguada ração da sua alimentação
defeituosa. (SOCIEDADE DE MEDICINA E CIRURGIA DA
PARAHYBA, 1927, p. 105).

Cerca de dois anos após sua passagem pelo Asilo Cruz do


Peixe, Octávio Soares publicou alguns artigos de opinião em jornais
locais colocando-se a favor da construção de um novo nosocômio,
chegando inclusive a revelar que no período em que prestou seus
serviços para o que chamou de “fabrica de alienados”5, lhe foi negada
a construção de um gabinete em que seriam feitas as observações
clínicas dos internos e reformas que aliviariam os loucos do suplicio
do cárcere. A recusa justificou-se em razão de uma crise financeira
que não permitia maiores gastos com aquele setor. Deste modo, os
tipos de diagnósticos que eram realizados no asylo de Sant’Anna
– quando realizados – ocorriam sem maiores aprofundamentos,
tendo o próprio esculápio admitido este fato:
resignei-me e continuei até esta dacta no papel de diagnosticador
das moléstias mentaes simplesmente pela inspecção ocular,
fugindo-me das pesquisas de reflexos e sensibilidades, tornando-
me impotente espectador do irremessivel e progressivo
desmoronamento das manifestações da actividade psychica, que
só no paradeiro da morte encontra limite e cessação. (SOARES, O
Jornal, 04 de novembro de 1912, p. 1).

Ainda sobre o diagnóstico e tratamento dispensado aos loucos


dr. Octávio Soares acrescenta:
aqui, na Parahyba, a assistência aos alienados começou [em
1889], com a construção de um prédio, entregando, logo após,
á administração da Santa Casa de Misericórdia. Era o Estado
que não queria ficar com essa obrigação de manter a assistencia
aos alienados, ou por outra, com os depósitos de loucos,
porquanto não se verificava, naqueles tempos, uma só restea de

5 “Asilo de Alienados”, O Jornal, 04 de nov. 1912, p. 1. Disponível em: http://


hemerotecadigital.bn.br/. Acesso em: 06 mai. 2020.

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

luz scientifica. Os infelizes que existem naquele velho edificio, a


que tão impropriamente se dá o nome de hospital ou hospicio,
vegetam, soffrendo, além da privação da razão, a falta de ar, de
luz, de hygiene e dos mais necessarios commodos. A natureza,
diante daquelles quadros horriveis, veste-se toda de luto, vendo e
ouvindo as dôres e os gemidos humanos se exalçarem onde homens
e mulheres tolhidos em sua razão e na sua liberdade, sem conforto
algum, detidos como criminosos em cellulas pixadas, tendo como
leito traves de madeira, recebem pelo gradil a minguada ração da
sua alimentação defeituosa.
Melhor fôra que não tivessemos nenhum hospício, a ter um que tão
mal attestado póde dar da nossa cultura, dos nossos sentimentos
de humanidade. (A UNIÃO, 1913, p. 1).

Voltando aos reclames do dr. Octávio Soares, podemos


reconhecer outro fator que justifique este considerar sua
especialidade como uma “ciência ingrata”. Além da ausência de
estabelecimentos dignos para receber doentes mentais, a psiquiatria
era vista como novidade no período em questão. Isso porque,
somente em 1912 a psiquiatria tornou-se ciência médica autônoma.
Jurandir Freire Costa (COSTA, 2006, p. 35) aponta que a partir
daí o número de instituições dessa natureza começou a crescer no
país, a exemplo da Colônia do Engenho de Dentro, a Colônia de
Jacarepaguá e o Manicômio Judiciário no Rio de Janeiro.
É possível compreender que o serviço de assistência a loucura
não figurava como assunto de primeira ordem entre os cabedais de
políticas públicas ao final do século XIX e primeiro decênio do XX.
Todavia, a questão dos doidos migrou do estado de mera necessidade
de livrar-se dessas figuras que pretensamente aterrorizariam as
ruas6, a uma preocupação atrelada a preceitos médico-científicos,
em que ter um nosocômio como o da Cruz do Peixe passou a vigorar
como sinônimo de atraso diante da modernidade almejada. Nota-se
aí que as mudanças nos discursos – a ótica reformadora, pautadas
em ideais higienistas e sanitaristas - refletiram-se em campanhas

6 Segundo Junqueira (2016, p. 351), os alienados não representavam em si um


problema a ordem pública. Isso porque, geralmente estavam trancafiados em quartos,
na Cadeia Pública ou no asilo de Sant’Anna, de modo que a presença de loucos furiosos
nas ruas certamente era pequena. Podemos associar essa premissa assumida pela opinião
pública como um aparato discursivo para justificar a necessidade de manter esses
indivíduos distantes da urbe “civilizada” que estava despontando.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

cada vez mais frequentes pela construção de um manicômio capaz


de dotar a urbe parahybana e os serviços de saúde com a luz da
ciência. Os pontos apresentados são relevantes para compreender
as agruras da trajetória de assistência aos alienados, porém, isso não
implica dizer que o alcance do discurso médico-psiquiátrico não
teve maior adesão na sociedade parahybana por de certa forma ter
entrado “tarde” na disputa de poderes. As análises realizadas nos
mostram justamente que esses doutores conseguiram estender seus
domínios sobre os loucos, formando alianças e angariando posições
prestigiosas – mesmo que nem sempre de forma linear.
Todas as psychoses são filhas das desordens physicas, intelectuais
ou moraes. Elas nascem do predomínio da subjectividade
desordenada, sobre a realidade objectiva, e, absolutamente, não
se curam pelo constrangimento dos doentes e sim pelos meios
therapeuticos, pelos remédios moraes, em summa, pela instituição
do trabalho, que educa e fixa a attenção do doente, diminuindo-
lhe o mundo de falsas visões que o rodeiam, até que, se possível se
possa reestabelecer o equilíbrio. (SEMANA MÉDICA, 1927, p.
101-102).

O médico-psiquiatra Otávio Soares qualificava a loucura e os


loucos em sua tese intitulada “Antigos conceitos sobre o alienado”
apresentada na Semana Médica da Paraíba em que discutia acerca
de como era realizada a assistência aos alienados na cidade da
Parahyba do Norte e ainda reforçava a importância da construção
de um Hospital psiquiátrico. Seu enunciado revelava, em primeiro
lugar, como bem assinalou Michel Foucault (FOUCAULT, 2014),
que as relações de poder “constituía a loucura como objeto de
conhecimento possível para uma ciência médica” (FOUCAULT,
2014, p. 211), isto é, a patologização da loucura, em outras palavras:
a loucura transformada em doença mental pelo saber médico.
Apenas através desse processo tornava-se possível ao médico acessar
a “doença” e medicalizá-la.
Segundo, é possível perceber o poder exercido e implicado na
loucura, que se transcreve como afirmou Foucault (FOUCAULT,
2014) em três pontos: da competência se exercendo sobre uma
ignorância, do pretenso bom senso no acesso a realidade para
corrigir os erros (ilusões, alucinações, fantasmas ou, para usar as

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

palavras do médico paraibano, “falsas visões”) que rodeiam o doente


mental e finalmente a imposição de uma normalidade, de uma
ordem à desordem, ao desvio. O doente mental seria curado pelos
meios terapêuticos apropriados, bem como a imposição de uma
ordem – a do trabalho – para discipliná-lo. Com a mente e o corpo
ocupados pela disciplina do trabalho, compreendia-se que o doente
mental não teria mais tempo e espaço para ser louco ou pensar na
loucura. Daí, o Juliano Moreira funcionar como Hospital-Colônia.
De acordo com Foucault (FOUCAULT, 2014), com a episteme
clássica, o corpo começa a ser trabalhado no detalhe, de modo que
se pudesse “exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao
mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez”
(FOUCAULT, 2014, p. 132-133). Dessa forma, o corpo do louco
entre numa “maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula
e o recompõe”, fabricando corpos submissos e dóceis.
O discurso de Otávio Soares ainda é revelador do sistema asilar
da loucura. O médico-psiquiatra criticava que os loucos não seriam
curados pelo “constrangimento”, isto porque os loucos poderiam
ser tratados como caso de polícia, entendidos como elementos da
desordem assim como mendigos e vagabundos, a intenção era de
regenerá-los. Para o esculápio parahybano, ia “muito longe o tempo
em que o alienado, era condenado e irremediavelmente perdido
[...] este desprezado e considerado producto da cólera dos deuses,
era internado em um cubículo, amarrado ao tronco” (SEMANA
MÉDICA, 1927, p. 102) à espera de seu ultimato.
Durante a Semana Médica realizada no ano de 1927 o doutor
Flávio Maroja, também denunciou a condição da assistência aos
alienados na Parahyba do Norte:
o hospicio de Sant’ Anna revela, diz o orador, que a Parahyba é um
dos Estados que mais se tem descurado no tocante à assistencia
aos alienados. [...] Extranho ter falado o collega em assistencia a
alienados na Parahyba nunca houve essa assistencia. O que há na
Santa Casa, o que há na Cadeia Pública não deve ter o nome de
assistencia, para não desvirtuar a palavra. (A UNIÃO, 10 mai.
1927, p. 2).

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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A partir das citações podemos observar várias críticas em


relação as condições as quais os loucos estavam submetidos na
Parahyba do Norte nas primeiras décadas do século XX. Quando
o tratamento aos alienados era caracterizado como desumano,
tratados como animais jogados em selas, sofrendo as mais variadas
privações e castigos.
As condições para os loucos, mesmo depois de criado um
lugar onde foi denominado de asilo de alienados, praticamente
não apresentou modificações em relação às acomodações e ao
tratamento, apenas, ocupavam um espaço exclusivo, semelhante a
uma “casa de supplicios”, onde eram reclusos até morrerem.
O que constatamos nesse período da experiência da loucura
na Parahyba do Norte, é o enclausuramento dos loucos, portanto,
o tratamento, a busca pela cura ou bem-estar do interno e sua
reinserção em sociedade não era algo pensável, ou pelo menos não
em primeira ordem, pois é isso que fica evidenciado na forma como
eram tratados, afinal, não eram vistos como indivíduos úteis, em
muitas das vezes eram vistos como perigosos e em certos casos
criminosos. Como considera Foucault “O internamento seria assim
a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’” (FOUCAULT, 2008, p.
79), assim, o internamento na capital da Parayba só serviria para a
eliminação dos loucos do espaço urbano.
A ideia de construir uma nova instituição para alienados
se tornou pauta cada vez mais frequente entre as alas políticas
e médicas do Estado, de modo que em 1917, o patrono dos
psiquiatras parahybanos, Dr. Octávio Soares, contando com apoio
governamental, realizou uma visita ao médico baiano Juliano
Moreira no Rio de Janeiro, com vistas a conversarem sobre os
serviços de assistência prestados na Parahyba. Do encontro entre os
dois psiquiatras surgiu a planta que serviria de base para a construção
do futuro Hospital-Colônia. A obra teve início em 1922, durante
o governo de Solon de Lucena (1920-1924) sendo finalizada por
volta de 1924, e em seu primeiro projeto seria aparelhado com
“estabelecimento hidroterápico, laboratório, gabinete de radiologia
etc.” (ALMEIDA, 1980, p. 470).

51
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Em 1927 o Dr. Sá e Benevedes, em seu discurso durante a


Semana Médica mencionou a importância da construção do
Hospital-Colônia Juliano Moreira:
Sá e Benevides, traçou longamente a história do hospital Colonia
Juliano Moreira conseguido para nossa terra no govêrno de
Epitacio Pessôa e a valiosa cooperação do ministro João Pessôa.
[...] o edificio foi iniciado pela administração do dr. Accacio
Pires. A planta é devida ao dr. Juliano Moreira, grande mestre da
psychiatria brasileira. (A UNIÃO, 10 mai. 1927).

O hospital foi entregue no governo de João Suassuna, que


atribuiu o gasto de mais de 200 contos com as instalações do hospital.
Ainda sobre a fundação do Hospital Colônia o então Presidente da
Parahyba, apresentou suas considerações acerca da inauguração do
mesmo, na Mensagem apresentada no ano de 1928:
a Parahyba recebeu com os maiores applausos a inauguração desse
estabelecimento, a cuja construção está ligado por carinhoso
interesse o nome do abnegado conterraneo a quem hoje entrega
os seus destinos. Para demonstrar, refiro-me à concorrencia
publica ao edifício, no dia da inauguração, e destaco do relatorio
do director da cadeia ao chefe de policia o seguinte trecho: ‘O dia
23 de Junho deve ser relembrado nesta casa com especial carinho.
Assinala a remoção dos loucos para a Colonia de Alienados, cuja
inauguração vale por um titulo de alta beneverencia para o atual
governo. Sabe V. exc. do quadro dantesco dos loucos depositados
nas prisões, sem tratamento apropriado, a se devorarem na furia
da moléstia; e bem pode calcular do allivio ora desfructado pela
administração desta casa, dantes sem tranqüilidade, pela falta de
recursos para proporcionar a tão infelizes criaturas um relativo
conforto’. (SUASSUNA, 1928, p. 59).

O nosocômio, entregue durante a gestão Solon de Lucena,


só recebeu seus primeiros pacientes em 1928, que segundo Silva
Filho (SILVA FILHO, 1998, p. 79) “eram um total de ‘11 doentes
mentais’, que se encontravam “depositados” no Asylo de Sant’Anna”.
O Hospital-Colônia foi recebido com entusiasmo pelas elites
letradas e políticas da capital, certamente porque além do caráter
filantrópico atribuído a obra, que traria benesses aos nomes à frente
da empreitada, o manicômio ainda cumpriria o papel de impedir
que os indesejados loucos ocupassem as ruas ou se mantivessem
em situação de insalubridade no pardieiro da Cruz do Peixe,

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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atrapalhando de alguma forma o projeto de modernidade em


curso. Concordamos com Junqueira (JUNQUEIRA, 2016, p. 363)
ao afirmar que apesar das críticas realizadas pela opinião pública
com relação a situação dos doidos no asylo de Sant’Anna, o novo
nosocômio continuou a desempenhar a função de tirar das vistas
da sociedade os alienados, excluindo-os através de práticas de
sequestração. Pese que se por um lado o Hospital-Colônia Juliano
Moreira rompeu com padrões pré-alienistas - já que a assistência
prestada aos loucos passaria a contar com acompanhamento
psiquiátrico - continuou a reproduzir práticas desses modelos de
outrora.
A experiência da loucura passa pela institucionalização de um
saber o qual se denominará de psiquiatria, ou seja, as relações de
poder foram postas em práticas através das técnicas de disciplina
e docilidade empregadas aos corpos dos loucos, produzindo um
saber científico sobre esses indivíduos, que devido ao internamento
e a terapêutica foi constituído enquanto doente e, portanto, o
internamento passou a ser “lugar de cura, não mais o lugar onde a
loucura espreitava e se conservava obscuramente até a morte, mas o
lugar onde, por uma espécie de mecanismo autóctone, se supõe que
ela acabe por suprimir a si mesma”. (FOUCAULT, 2008, p. 433).
Apesar da mudança do espaço que passou a acolher os loucos,
antes mesmo da inauguração do Juliano Moreira, já se fazia críticas
à forma de tratamento que seria desenvolvida naquela instituição
hospitalar.
Já temos prompto, com todas as suas installações funccionando
um predio para a futura assistencia aos alienados, muito embora, a
meu ver, não esteja como requer a sciencia moderna, em pavilhões.
Condemno as cellas existentes, se são para a reclusão de doentes.
Hoje, não se prende mais alliendo; o novo systema é o open-door,
portas abertas. Trancando um doente alienado em uma cella de
isolamento [...] ouvimol-o gritar, podemos espial-o pelo monoculo
da cella, mas é inconteste que isto não é therapeutica. (SEMANA
MÉDICA, 1927, p. 107).

Com a criação da Colônia Juliano Moreira, buscava-se não


apenas a cura daqueles considerados alienados, como também da

53
IX Colóquio de História das Doenças: anais

cidade. Dessa forma, com a construção do Hospital, buscou-se


diferentes formas de controle e reclusão desses indivíduos com vistas
de tornar a cidade, cada vez, mais o espaço da saúde, da sanidade,
da razão, da organização e dos respeitos aos códigos e regras que o
projeto disciplinador da modernidade estabelecia.
O espaço asilar deveria ser uma cidade perfeita, transparente,
racional e moral, em que a loucura pudesse ao mesmo tempo
aparecer e ser abolida. Aparecer como uma verdade não só do
louco, mas do homem, e ser superada pela força da racionalidade
reinante na organização e no funcionamento do asilo. (PELBART,
1994, p. 46).

Com a fundação dos asilos, a partir da psiquiatria, passou-se


a naturalizar o fato que era preciso trancafiar os loucos. Louco que
não correspondia ameaça a sociedade era aquele que se encontrasse
internado, controlado e observado constantemente. Não havia
naturalidade em ter que se deparar com os mesmos nas ruas. Sadio
era se poder promover a reclusão total deles. Reclusão em locais
apropriados, para que fosse possível, quem sabe, regenerá-los através
do internamento.
Os enunciados médicos constituem-se dessa forma lugares
privilegiados para pensar os sentidos e significados sobre o louco
e a loucura, bem como as práticas de enclausuramento, as práticas
educativas sobre o corpo e os saberes médicos para a terapêutica da
pretensa doença mental.

Referências
ARAÚJO, Edna Maria Nóbrega. Uma cidade, muitas tramas: a cidade da Parahyba
e seus encontros com a modernidade (1800–1920). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.
ALVES, Farias Gerlane. A Administração da Loucura: A santa Casa da Parahyba
do Norte no tratamento dos alienados (1858-1892). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018.
ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa: A
União, 1980.
COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro:

54
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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Garamond, 2006.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,
1978.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 42 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
JÚNIOR, Azemar dos Santos Soares; ARRUDA, Ramon Limeira Cavalcanti de.
“Sobre a necessidade de cuidar da perfeita educação” Flávio Maroja e sua política
médico-pedagógica. Saeculum - Revista De História, João Pessoa, jul./dez. 2014.
JUNQUEIRA, Helmara Giccelli Formiga Wanderley. Doidos[as] e Doutores: A
medicalização da loucura na Província/Estado da Parahyba do Norte 1830-1930.
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2016.
MACHADO, Roberto; LOREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia.
Danação da norma: a medicina social e construção da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1978.
PELBART, Peter, Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e desrazão.
São Paulo: 1994
SANTOS, Leonardo Querino Barboza Freire dos. ENTRE A CIÊNCIA E A SAÚDE
PÚBLICA A Construção do Médico Paraibano como Reformador Social (1911 – 1929).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Campina Grande,
Campina Grande, 2015.
SILVA FILHO, Edvaldo Brilhante. História da Psiquiatria na Paraíba. João Pessoa:
Santa Clara, 1998.

Fontes
Mensagem de Governo do Presidente João Suassuna, Parahyba do Norte: 1928
SOCIEDADE DE MEDICINA E CIRURGIA DA PARAHYBA. Semana Medica.
Parahyba do Norte: A UNIÃO, 1927.

Jornais
A UNIÃO 1913, 1927.
O Jornal 1912, 1917.

55
Para conservar a saúde dos sujeitos infantis:
Orientações terapêuticas, alimentares e
comportamentais na obra “Tratado de Educação
Física para os meninos para uso da nação
Portuguesa” (1790)
Eduarda Troian1

Introdução
Neste texto, compartilhamos os primeiros resultados da
pesquisa de Mestrado que desenvolvo junto ao Programa de Pós-
Graduação em História da Unisinos e que foram apresentados
no evento “IX Colóquio de História das Doenças”. O projeto
de dissertação prevê a análise da obra “Tratado de Educação
Física para os Meninos para uso da Nação Portuguesa” (1790),
escrita pelo médico luso-brasileiro Francisco de Mello Franco,
destacando as orientações terapêuticas presentes na obra e
identificando a concepção de infância em Portugal na segunda
metade do século XVIII. Nesse sentido, para nos aprofundarmos
nesse contexto de inserção dos sujeitos infantis na sociedade
portuguesa deste período, torna-se necessário verificar as
condições de saúde infantil em Portugal, bem como a influência
exercida pelas transformações no campo científico ocorridas
no Setecentos, sendo importante destacar quais foram essas
mudanças.
Dessa forma, vale destacar que, ao analisarmos essas questões
que encontram-se expressas na obra de Mello Franco, e na medida
1 Mestranda em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos – UNISINOS, bolsista na modalidade PROSUC/CAPES. E-mail:
[email protected]

57
IX Colóquio de História das Doenças: anais

em que é possível estabelecer relações com o seu contexto de


produção, escrita e publicação, é perceptível o quanto esse período
carecia dessas orientações, em virtude das altas taxas de mortalidade
infantil e dos altos índices de abandono em todo Império lusitano.
Essas características, estariam, ainda, atreladas às transformações
sociais, culturais e políticas resultantes das reformas pombalinas,
especialmente influenciadas pela Ilustração que deixava suas marcas
pela sociedade portuguesa. Essa influência se estenderia também à
trajetória do autor do “Tratado de Educação Física...”, Francisco de
Mello Franco, pois o período em que esteve matriculado no curso
de Medicina da Universidade de Coimbra foi profundamente
impactado pelas transformações oriundas da Reforma dos Estatutos
em 1772, promovida por Sebastião José de Carvalho, o futuro
Marquês de Pombal.
Portanto, interessa-nos analisar esse quadro social, político e
cultural que caracterizava a sociedade portuguesa na segunda metade
do Setecentos, afetada pela circulação de letrados e estrangeiros
em seus espaços acadêmicos,2 bem como as repercussões destas
transformações na América Portuguesa, especialmente no que
concerne à sua apropriação pela população colonial, com vistas à
garantia da saúde dos sujeitos infantis.

Instruir e questionar: os caminhos que consolidaram a


carreira de Francisco de Mello Franco
O médico Francisco de Mello Franco ingressou no curso de
Medicina da Universidade de Coimbra, em Portugal, no de 1775.
Oriundo de uma família da elite mineira, Mello Franco viveu sua
infância e juventude em um período no qual jovens brasileiros eram
enviados para estudar em Coimbra.3 Em razão disso, passou boa

2 Em relação a esta importante atuação, Carla Boto (2017) assegura que “em Portugal,
a característica dos iluministas era a de serem estrangeirados. Estrangeirados eram os
homens que viviam no exterior, mas que dedicavam suas vidas a refletir e a interpretar seu
próprio país, do qual – querendo ou não – haviam se tornado forasteiros. A condição de
estrangeirado possibilita um olhar exterior, capaz de desembaralhar aquilo que, entre os
portugueses, era reconhecido como habitual Boto (2017, p. 23).
3 Para a época, deveria se considerar que “o simples fato de ter sido mandado para

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parte de sua vida em Portugal, só retornando ao seu país de origem


no ano de 1817 e, “ao que parece, na ocasião de sua chegada, não se
sentiria mais parte da colônia” (FREITAS, 2017, p. 68), visto que os
costumes e as práticas com as quais ele se deparou na nova capital
do Império eram muito distintos do reino português.
Sob este aspecto, é importante mencionar que muitos
desses costumes com os quais Mello Franco havia se habituado na
capital do Império resultaram das grandes reformas realizadas a
partir da segunda metade do século XVIII, período marcado por
acontecimentos sociais e culturais vinculados à proposta Iluminista4
que já vinha definindo algumas diretrizes políticas em Portugal.
Vale lembrar que durante um longo período, a Universidade de
Coimbra manteve-se em atraso quando comparada às demais
nações europeias, pois
no período anterior à reforma dos Estatutos, em 1772, predominava
na Universidade de Coimbra o estudo da ciência subscrita pelas
autoridades e arquivada nos tratados. A intenção não era elaborar
novos saberes, mas preparar os profissionais competentes para
atuar segundo o conhecimento preestabelecido. As ciências exatas
e naturais eram consideradas menores e a discussão escolástica
substituía a experimentação. (ABREU, 2007, p. 81).

Estas transformações, como já mencionamos, decorreram da


atuação do Marquês de Pombal e de seu propósito de modernizar
o reino, o que implicou, sobretudo, na expulsão dos jesuítas dos
domínios ibéricos e na extinção da ordem religiosa. Sobre este
último acontecimento em particular, cabe destacar que ele foi
significativo na medida em que promoveu reformas educacionais em
Portugal e em suas colônias, uma vez que à expulsão da ordem jesuíta

Coimbra a fim de realizar seus estudos, é prova suficiente de que vinha de uma família
abastada, com recursos para mantê-lo do outro lado do Atlântico durante longos anos.
De fato, no caso dos brasileiros, apenas filhos das elites coloniais tinham recursos para
frequentar as aulas em Coimbra” Freitas, (2017, p. 11).
4 Cabe ressaltar que “o Iluminismo foi um fenômeno intelectual surgido na Europa,
especificamente em meados do século XVIII. Tinha por principal baliza a referência
da crítica, compreendendo o mesmo conceito de crítica como o reconhecimento das
possibilidades, mas também dos limites, da capacidade humana de conhecer. Mais do que
isso, os iluministas acreditavam que a instrução conduziria não apenas a um acréscimo de
conhecimento no sujeito, mas também a um aprimoramento moral do indivíduo que se
instrui Boto (2017, p. 34).

59
IX Colóquio de História das Doenças: anais

“ordenada em 1759, em sentença publicada a 12 de janeiro, seguiu-se


a proibição de ensinar em todos os domínios portugueses, decretada
por Alvará Régio de 28 de junho do mesmo ano” (FONSECA, 2014,
p. 21). Essas transformações foram também perceptíveis na área
da saúde, especialmente, em relação ao exercício da parte prática
dos estudos de anatomia e, ainda, na introdução de “princípios da
ciência moderna, ligados ao experimentalismo e ao mecanicismo,
em substituição aos princípios da medicina hipocrática, considerada
ultrapassada” (ABREU, 2007, p. 83).
Durante sua estadia em Portugal, Mello consolidou-se em
cargos e funções importantes, sendo interessante destacar que
ele recorria a uma vasta rede de contatos5 para se estabilizar em
suas posições, uma prática muito corriqueira durante o século
XVIII, profundamente marcado pelo acionamento de espaços
e de redes de sociabilidade. É interessante notar, nesse aspecto,
que Mello desfrutou de acontecimentos muito contraditórios
em sua trajetória, pois, apesar de conseguir se estabelecer em
sua profissão, ele também enfrentou alguns obstáculos durante o
período de sua formação acadêmica em Coimbra. Ao contrariar e
questionar algumas normativas que eram impostas a população em
geral, Francisco de Mello Franco teve seus estudos interrompidos
pelo Santo Ofício, permanecendo “preso entre 1777 e 1781,
sendo acusado de herege, naturalista, dogmático, além de negar o
matrimônio”, só retomando seus estudos em 1782, “quando se viu
livre da Inquisição, formando-se em 1785” (ABREU, 2006, p. 67).
E foi nesse cenário de intensas transformações que Francisco
de Mello Franco foi consolidando-se como um médico influente na
corte portuguesa por meio da publicação de obras que objetivavam
a difusão de diretrizes médicas e pedagógicas, devendo-se ressaltar
que o “Tratado de Educação Física…” foi a primeira obra que
assinou6 oficialmente.
5 Sobre este aspecto, o autor Ricardo Freitas aponta que “apesar de tantas incertezas,
não nos resta dúvidas de que Mello Franco foi um ativo participante de algumas das mais
influentes redes de sociabilidade intelectual do reformismo ilustrado mariano” Freitas
(2017, p. 62).
6 Ao mencionarmos que o “Tratado de Educação Física” foi a primeira obra a ser

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

O “Tratado de educação física para os meninos para uso


da nação Portuguesa”
A obra “Tratado de Educação Física para os Meninos para
uso da Nação Portuguesa”, publicada em 1790, em Portugal, conta
com 12 capítulos,7 nos quais o autor apresenta os cuidados que os
pais deveriam ter na criação de seus filhos, através de orientações
que envolviam desde comportamentos a serem assegurados durante
a gestação, até momentos como o vestir a criança e a disciplina
que deveria ser observada durante sua formação, bem como os
comportamentos8 que deveriam ser seguidos pelos pais, inclusive,
nas relações sexuais. Levando em conta a sua experiência enquanto
pai de família, o autor elaborou uma série de questões que deveriam
integrar a rotina de uma criança, além de utilizar um vasto referencial
teórico9 para elucidar essas orientações, que se inseriram em um

assinada e publicada pelo autor, deve-se ressaltar, conforme atestado por NUNES
(apud FREITAS, 2013, p. 02) que muitas das “suas ideias circularam em forma de obras
anônimas, boa parte delas objeto de debates acalorados em alguns círculos intelectuais e
de grandes apreensões nos órgãos da censura régia”. Entre as publicações anônimas que
estão associadas à sua autoria, pode-se mencionar o poema satírico “Reino da Estupidez”,
de 1785.
7 Os 12 capítulos que compõem a obra são: Cap.I – “Porque modo fe deve reger
huma mulher pejada”; Cap. II – “Logo que uma criança nafce deve fer feparada dos pés da
mãi, cortando-fe o cordaõ umbilical, e como deve ele fer ligado”; Cap. III – “Do quanto
he nocivo o frio no inftante do nafcimento”; Cap. IV – “Qual feja o verdadeiro modo de
lavar as crianças”; Cap. V – “A utilidade dos banhos frios provada pela razão, pela prática
dos Antigos, e pelo exemplo dos póvos do Norte”; Cap. VI – “A efpécie humana tem
degenerado, e fenfivelmente degenera na Europa, e porque motivos; Cap. VII – “Como
fe devem veftir as crianças e os abufos que ha a efte refpeito”; Cpa. VIII – “Do quanto diz
refpeito ao modo de nutrir as crianças”; Cap. IX – “Do fomno, e do berço”; Cap. X – “Do
exercício, naõ fó no que diz refpeito às crianças, mas ainda geralmente confiderado”; Cap.
XI – “Do modo de aperfeiçoar os fentidos das crianças” e Cap. XII – “Da grandiffima
utilidade, que refultaria ao Eftado, e a cada hum dos particulares, a geral introdução da
inoculação das Bexigas”.
8 Em relação aos comportamentos destinados aos pais das crianças, Mello Franco
apontava estes iriam influenciar na criação e no desenvolvimento de seus filhos,
especialmente nos cuidados que a mãe adquiria durante a gravidez, como a ingestão de
alimentos adequados, valorizando sempre o princípio da moderação no comer, no beber e
na prática de exercícios físicos, pois, uma das funções desses tratados era a de “aconselhar
como manter a economia entre o que era ingerido e o que era efetivamente consumido
pelo corpo, para que não houvesse excedente prejudicial à saúde” Ripe (2019, p. 126).
9 Para a composição dos capítulos da obra, “Mello Franco limita-se a mostrar sua
erudição por meio de citações de autores estrangeiros voltados para a questão da educação
infantil, mais como suporte de suas convicções sobre os melhores procedimentos a serem
seguidos pelos pais do que como subsídio para reflexões filosóficas mais alargadas a

61
IX Colóquio de História das Doenças: anais

contexto10 no qual “a disseminação de manuais sobre educação de


crianças em Portugal” (FREITAS, 2017, p. 74) estava ganhando
força, em virtude do número de obras dessa temática que foram
publicadas nesse período.11
Nesse sentido, um importante aspecto destas orientações
diz respeito a algumas práticas que eram realizadas pelas mulheres
durante o período da gestação, especialmente no que concerne à sua
alimentação, uma vez que o autor alertava para os deslizes cometidos
em relação à escolha dos alimentos tanto na gravidez quanto nos
primeiros meses de vida da criança. Os cuidados dietéticos eram
muito valorizados no período em que a obra foi publicada, e, de
acordo com Fernando Ripe (RIPE, 2019, p. 75), essa era uma das
preocupações que estavam ganhando relevância no século XVIII,
quando a alimentação passa a ser constantemente associada ao
estado de saúde das pessoas e os alimentos passam a integrar a dieta
de forma a corrigirem ou prevenirem determinadas enfermidades.
É importante ressaltar que estas orientações objetivavam
contornar os altos índices de mortalidade infantil na época, que
faziam “com que qualquer casal tivesse como expectativa normal
a morte de um ou vários filhos na mais tenra infância” (SÁ, 2011,
p. 73). Por isso, as obras que eram destinadas exclusivamente aos
sujeitos infantis visavam divulgar os alimentos e os cuidados mais
indicados para cada faixa etária, sendo possível destacar que esses
tratados recomendavam “que a amamentação fosse realizada pela
própria mãe da criança, sendo que no caso de algum impedimento
devia-se procurar atentamente uma ama de leite” (RIPE, 2019,

respeito da natureza e da fisiologia humana. Freitas (2017, p. 79).


10 Esse contexto foi muito específico para a circulação de tratados de medicina que
tinham o público infantil como alvo de suas orientações, pois a inserção da infância no
cotidiano da vida adulta passava a ter mais relevância. Portanto, “percebe-se que a escolha
do tema da primeira publicação de Mello Franco não foi fortuita. Tratava-se de assunto em
alta entre os círculos médicos portugueses, o que provavelmente aumentava as chances do
trabalho do jovem e ambicioso médico ter sua obra aceita para publicação pela Academia
de Ciências” Freitas (2017, p. 83).
11 Cabe destacar, que em relação a obra de Francisco de Mello Franco, no atual
estágio da pesquisa que vem sendo desenvolvida, ainda não se tem um levantamento em
relação ao número de edições que a obra alcançou, sendo esta, uma das próximas etapas
desta pesquisa.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

p. 75). Sobre este ponto, Mello Franco é bastante incisivo, ao


apontar as responsabilidades da figura materna e quando que se
fazia necessária a contratação de uma ama de leite para cuidar
e amamentar o bebê. Nesse caso, o autor afirmava que a criança
possuía uma ligação natural com o organismo de sua mãe e não se
deveria pensar que
he indiferente á criança o fer creada com o leite da mãi, ou com
o de outra mulher eftranha. Naõ he precifo reflectir muito para
conhecer a importância defte objeto. Depois de ter fido alimentada
por efpaço de tantos mezes pelo próprio fangue da mãi, he evidente
que entre ambas há huma perfeita analogia; e que o leite preparado
pelos órgãos do mefmo, de quem recebeo o primeiro alimento, lhe
he o unicoconveniente, dado pela natureza, e preferível a outro
qualquer. (MELLO, 1790, p. 41).

Dessa forma, ao valorizar o leite materno12 como principal


alimento nos primeiros meses de vida da criança, o autor ressaltava
que este era um dos principais deveres a serem desempenhados pelas
mães, sendo que elas somente poderiam abdicar de amamentar caso
não possuíssem leite ou em casos de enfermidades que as impedissem
de participar da criação de seus filhos. Além da alimentação, o autor
também se deteve nos cuidados relativos ao vestir, um detalhe que
os adultos pareciam ignorar, visto que eles insistiam em fortificar o
corpo das crianças com métodos equivocados, apertando-as com as
roupas, pois
geralmente clamaõ todos, que a criança he fraca, e he precifo
fortificalla. Affim he; mas defgraça damente os meios que fe
tomaõ, faõ pelo comum contrários ao fim pertendido. Se huma
criança recém-nafcida he fraca, naõ eftá por entaõ em noffa maõ o
vigoralla: a natureza com o andar do tempo he quem o há de fazer.
(MELLO, 1790, p. 31).

Aliás, essa valorização da natureza era um importante


mecanismo a ser observado na criação de um sujeito infantil, muito
valorizado ao longo de sua obra, porque percebido como “modelo de

12 Esta era uma das orientações mais frequentes nos impressos da época, pois era
comum apontar que “o primeiro regime alimentar dos infantis está associado ao ato
da amamentação”, sendo que, diversos foram os autores que “aconselharam” sobre “a
importância deste nutriente para a boa formação corpórea dos infantis” Ripe (2019, p.
125).

63
IX Colóquio de História das Doenças: anais

referência que o autor utiliza para definir a educação” (MASSIMI,


1991, p. 84). Sobre a educação, o autor reforçava a importância
desse processo ocorrer na fase correta, afirmando que “naõ fe
deve enfinar huma criança a ler antes de finco anos: nefta idade
aproveitaõ mais em hum mez, do que de três, ou quatro em feis.
Efte enfino porém deve fer fem violência, nem conftrangimento”
(MELLO, 1790, p. 92). Sobre o período de descanso indicado para
os sujeitos infantis, o autor reforçava a importância das faixas
etárias para orientar sobre esses momentos, afirmando que “a vida
de huma criança recemnafcida confifte em dormir, de maneira, que
fó acorda inftigada de alguma neceffidade” (FRANCO, 1790, p.
78), ao contrário do que se defendia em relação as crianças mais
velhas, no sentido de que “huma criança de quatro, ou finco anos
dorme menos, do que huma de mama, huma de nove, menos do que
a de finco; e afim até à idade de perfeito crefcimento” (FRANCO,
1790, p. 78).
Por isso, o autor defendia que a natureza da criança é que
deveria ser observada por seus pais, pois era ela que indicava o
tempo certo para que determinados acontecimentos e processos
formativos fossem integrados à sua rotina. Sendo assim, para
assegurar um bom desempenho nessas etapas, o autor se valia do
uso da razão e recomendava que os pais também a seguissem, pois
em algumas crianças, ela poderia apresentar-se mais precocemente
em algumas crianças do que em outras.

Para assegurar o bem-estar dos sujeitos infantis:


concepções sobre a infância em Portugal na segunda
metade do século XVIII
O sentimento que se tinha em relação à infância foi
modificando-se em determinados contextos, principalmente
quando avaliamos a conjuntura do século XVIII que proporcionou
uma maior valorização das crianças enquanto seres capazes de
desempenhar funções específicas para a sua faixa etária. Os sujeitos
infantis sempre estiveram presentes em diversos grupos sociais,

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

porém a sua presença poderia ser percebida como uma fase que
deveria ser rapidamente atravessada. Ainda assim, cabe destacar
que “a noção de infância surgiu no contexto histórico e social da
modernidade” (JÁCOME, 2018, p. 17), uma vez que é possível notar
uma crescente preocupação em torno da problemática da saúde
infantil, especialmente dos altos índices de mortalidade infantil que
assolavam a sociedade europeia.
Como já observado, Portugal vivenciava altos índices de
abandono infantil e de enfermidades que atingiam as crianças
na segunda metade do século XVIII, o que contribuiu para o
maior interesse em obras que orientassem a população quanto
a medidas que deveriam ser adotadas para uma maior qualidade
de vida dos sujeitos infantis. Estas publicações constituíam-se de
discursos13 normativos que contemplavam diferentes áreas do
processo educativo infantil. Vale lembrar que uma das grandes
preocupações girava em torno das crianças que ficavam sujeitas
a ações caritativas e a programas de assistências, sobretudo,
quanto aos custos envolvidos na criação desses pequenos que se
encontravam desamparados. Assim,
apesar da assistência a estas crianças ter sido uma atribuição
das Câmaras, em algumas localidades foram as Santas Casas que
através de ‘delegação desses serviços por parte dos Municípios’
desempenharam essa atribuição. (ARAÚJO, 2008, p. 135).

Percebe-se, portanto, a importância do acolhimento dado


por essas instituições, mesmo que em suas normativas não existisse
uma especificidade quanto ao tratamento destinado a essas
crianças. Ainda assim, muitas dessas instituições14 auxiliavam no
encaminhamento de crianças órfãs ou ilegítimas para que outras
famílias pudessem cria-los por um período. Importante ressaltar
que a assistência aos sujeitos infantis abrangia todo o Império
13 Nesse aspecto, pode-se mencionar que “a infância passou a ser guiada por
discursos institucionais, disparados por uma cultura impressa, que eficientemente
criava mecanismos de reprodução de novas ideias sociais e comportamentais”. Ripe
(2019, p. 72).
14 De acordo com Maria Marta Lobo De Araújo (2008), “algumas Santas Casas
distribuíam, no século XVIII, esmolas a famílias pobres para contratarem amas que
cuidassem dos seus filhos pequenos”. Araújo (2008, p. 137).

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

Português, apesar de as realidades de suas colônias serem muito


distintas daquelas que se apresentavam na Metrópole. Além disso,
os cuidados destinados a essas crianças em situação de abandono e
vulnerabilidade social costumavam ser precários, pois, de acordo
com Renato Franco, uma característica que era perceptível tanto
na Europa, quanto na América Portuguesa era do “abandono de
recém-nascidos, vulgarmente chamados de expostos ou enjeitados”
(FRANCO, 2014, p. 41).
Em relação à América Portuguesa, por exemplo, deve-
se ressaltar que, “apesar da Roda dos expostos, vinculada às
Misericórdias, ser a principal instituição de acolhimento dos
expostos, essas “Santas Casas” ficavam restritas a poucas localidades
em território colonial” (FACHINI, 2014, p. 60). Dessa forma, uma
das práticas mais corriqueiras nesse período era a de deixar os
recém-nascidos em lares de outras famílias para que elas os criassem
ou para que elas recebessem algum tipo de assistência caritativa.
Uma importante observação a ser feita é a de que a criança exposta
poderia receber um tratamento específico em conformidade com a
sua faixa etária,15 que estaria atrelado a uma legislação que vigorava
nessas instituições.
Portanto, ao nos depararmos com esses cenários em que
o processo de criação dos sujeitos infantis tornou-se uma pauta
marcante na sociedade luso-brasileira, visto que esses cuidados que
deveriam ser inseridos nos cotidianos das crianças estavam sendo
divulgados através da publicação de impressos16 que privilegiavam
15 Sobre esta questão, Renato Franco (2004, p. 42) atesta que [...] no caso das crianças
enjeitadas, o dever de auxílio institucional ditava pragmaticamente uma data para
término dos auxílios [...], em um contexto no qual essas delimitações poderiam oscilar em
conformidade com o que cada autor adotava, sendo que “as idades-limite que afetavam a
vida dos enjeitados eram: os três primeiros anos, conhecidos como período de lactação; os
7 anos indicavam o fim da inocência e do auxílio de criação, os 12 anos para as meninas e os
14 para os meninos marcavam a entrada na puberdade; os 25 anos imputava a maioridade,
o que para os expostos ocorria aos 20”. Franco (2014, p. 42).
16 Muitas dessas obras foram impressas e publicadas por autores influentes, dentre
os quais podemos destacar: Manoel Joaquim Henriques de Paiva, com o “Aviso ao povo
ou summario [...], de 1787; Francisco da Fonseca Henriquez, com o “Medicina Lusitana,
soccorro délfico, aos clamores da natureza humana [...] de 1750; e AFONSO, M. J; MELO, J.
F, com “Novo methodo de partejar, recopilado dos mais famigerados, e sábios autores”, de 1772,
entre outros exemplos que foram de extrema importância para a sociedade portuguesa

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

essas orientações. Nesses impressos, os médicos procuravam dialogar


sobre diversas etapas relacionadas ao crescimento da criança, sendo
importante reforçar que
a garantia à vida era amplamente debatida, incluindo discussões
que iam desde a fecundação e suas práticas contraceptivas, o
nascimento das crianças – nem sempre fáceis -, a indicação de
regimes alimentares, a inclusão de hábitos de higiene para o
corpo e para o espaço, à regulação de sentimentos. Ainda que os
conhecimentos práticos fossem limitados à época, a divulgação de
ideias médicas e moralistas não exerceram um domínio somente à
saúde da população, mas também gerenciaram atenções no âmbito
familiar e privado. (RIPE, 2019, p. 88).

Sob este viés, a obra de Mello explora diversas considerações


a respeito do momento da concepção da criança, bem como de seu
desenvolvimento enquanto feto e sobre as etapas posteriores ao seu
nascimento. Essas orientações passariam a circular entre a população
em um contexto no qual as práticas de leitura passaram por algumas
transformações, na medida em que a internalização desses costumes
poderia estar vinculada a diferentes protocolos de leitura realizados
pelos letrados, que, em muitas ocasiões, poderiam atuar como
mediadores desse saber. Em relação aos discursos propostos para o
público infantil, estes também estariam vinculados a propagação de
novas práticas e costumes, pois, a
infância passou a ser guiada por discursos institucionais, disparados
por uma cultura impressa, que eficientemente criava mecanismos
de reprodução de novas ideias sociais e comportamentais. A
expansão dos processos de alfabetização durante o século XVIII
europeu emergiu da difusão cultural acerca das práticas de leitura
(RIPE, 2019, p. 85).

Assim, essas orientações adentravam cada vez mais nos lares


das famílias portuguesas e, consequentemente, essas obras poderiam
ter tido suas edições circulando entre a América Portuguesa
também, visto que em território colonial, a situação das crianças nos
primeiros anos de vida passou a despertar o interesse de intuições e
das famílias que as acolhiam.

compreender as novas concepções de corpo humano que estavam sendo verificadas no


campo científico.

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

Considerações finais
Ao analisarmos as circunstâncias que possibilitaram essa
difusão de tratados de educação e de medicina destinados ao
público infantil, percebe-se o quanto as transformações que
permeavam a sociedade portuguesa na segunda metade do
século XVIII foram significativas para a produção desse saber,
na medida em que o indivíduo passa a ser mais valorizado social
e culturalmente, em virtude de um ambiente que promovia uma
nova concepção de corpo humano, enquanto um sujeito sadio,
intelectual e capaz.
Dessa forma, pode-se notar que existia uma preocupação
em relação à educação e à criação dos sujeitos infantis e, nesse
sentido, a obra escrita por Mello Franco poderia ter tido um alcance
significativo entre as famílias portuguesas que tinham como objetivo
a conservação do estado de saúde dos seus herdeiros. A difusão destas
recomendações quanto aos cuidados infantis através de tratados de
medicina doméstica estava associada aos altos índices de abandono
e mortalidade infantil observáveis na Europa e, principalmente, em
Portugal. O principal objetivo dos autores destes tratados era o de
oferecer orientações relativas à saúde de gestantes e dos sujeitos
infantis, tendo em vista a constituição de súditos saudáveis e úteis
ao estado português.
Considerando que as recomendações presentes na obra de
Mello Franco se dirigiram às crianças portuguesas, interessa-nos,
também, avaliar a circulação e apropriação dessas orientações
pela população das cidades da América portuguesa. Afinal,
se a obra “Tratado de Educação Física...” propunha cuidados
básicos para assegurar a saúde dos sujeitos infantis portugueses,
é plausível supor que as mesmas recomendações pudessem ser
indicadas e aplicadas também aos súditos que viviam no Brasil
nas últimas décadas do século XVIII e início do século XIX.
Vale lembrar que a América portuguesa vivenciava situação
muito similar em termos de abandono/exposição de crianças e
de mortalidade infantil decorrente de enfermidades, apontando

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

para a necessidade de medidas que assegurassem o cuidado de


gestantes e das crianças. Nesse caso, com o retorno de Mello para
a América Portuguesa, a partir do ano de 1817, considerando as
obras que ele publicou no Brasil nesse período, pode-se trabalhar
com a hipótese de que o “Tratado de Educação Física...” também
poderia ter tido uma boa receptividade na América, visto que
as crianças em situação de vulnerabilidade social também
demandavam cuidados específicos, o que promovia uma maior
circulação desses tratados de medicina doméstica entre a
população local.

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73
Cadáveres perigosos:
Teoria humoral, vapores pútridos e os riscos da
corrupção cadavérica para a saúde
Eduardo Mangolim Brandani da Silva1
Gessica de Brito Bueno2

Introdução
A morte é um processo natural que abarca o ciclo vital de
todos os seres vivos funcionando como um divisor de águas que
delimita a vida e o pós-morte. Como há apenas desconhecido após
a morte, as sociedades humanas sempre lidaram com amplo temor
em relação à tal evento universal (MOORE; WILLIAMSON,
2003, p. 3). Independente dos ritos fúnebres realizados, o cadáver
sempre gerou angústias entre aqueles que vivem. Muitas culturas
entendiam que a decomposição era sinal de dissolução da existência
do indivíduo (COLMAN, 1997, p. 42). Isso se alterou conforme
crenças que propunham vida no pós-morte ganharam configuração
(MOORE; WILLIAMSON, 2003, p. 3).
Apesar dessas noções fúnebres, o interesse aqui se centra
numa segunda categoria de interpretações sobre o cadáver. O horror
em relação ao podre e a putrefação esteve inserido no imaginário
dos grupos humanos por longo tempo. O cadáver humano passa
por processos de mudanças físicas e químicas antes de entrarem em
decomposição. O Livor Mortis é o momento em que o corpo perde
sua coloração, dando lugar a manchas roxas devido à estagnação do
sangue. O Rigor Mortis acontece porque mudanças bioquímicas se
1 Mestrando em História na UEM. Ver mais em: http://lattes.cnpq.
br/0826321713568749
2 Graduanda em História na UEM. Ver mais em: http://lattes.cnpq.
br/6348036602304108

75
IX Colóquio de História das Doenças: anais

dão sobre os músculos de maneira que esses estufam e ficam rígidos


(COLMAN, 1997, p. 42). Esses processos delimitam a cadaverização,
portanto posterior à tais etapas se inicia a decomposição que gera o
terror aos indivíduos (CURTIS, 2007, p. 11).
O que chamamos de terror ao cadáver se associa ao nojo.
No decorrer do tempo questões de higiene se deram sobre fluidos
corporais, sobre alimentos apodrecidos, dejetos animais e, inclusive,
sobre os cadáveres humanos. Muito se associa a higiene com a ideia
de agradável, no entanto medidas desse tipo foram realizadas no
decorrer do tempo em sentido de se evitar contrair enfermidades.
O desgosto enojado seria então um mecanismo de defesa contra as
contaminações. Estando o podre associado à morte e às doenças,
os grupos humanos desenvolveram procedimentos sanitários e
higiênicos em sentido de suprimir a presença do pútrido (CURTIS,
2007, p. 11-12).
A manifestação do putrefato foi notada no decorrer do tempo
por meio de muitas sinalizações. Os sentidos foram essenciais para
que os mecanismos de higiene pudessem ter manifestação. Sinais
como vermes e insetos em carcaças ao lado da manifestação do
cheiro pútrido davam garantia para determinar se o objeto orgânico
poderia estar num estado perigoso ou não (CURTIS, 2007, 12-13).
Trazendo um enfoque sobre cadáveres humanos, as
propriedades organolépticas manifestadas por esse objeto, quando
em decomposição, são apreendidos pelos sentidos da visão e do
olfato (EVERETT, 2012, p. 41-42). A visão tem capacidade de
cooptar os sinais do podre através da sua função fisiológica de
composição de imagens. Detalhes como alteração da coloração
do corpo e a presença de insetos e vermes sinalizam não apenas a
morte, mas a manifestação do podre (BIERNOFF, 2002, p. 4-7).
O olfato tem uma capacidade fisiológica associada à percepção
dos odores. Ele possui capacidade de definir o fétido antes da
visão, pois os odores ruins, dependendo do tamanho da fonte de
sua manifestação e da natureza deles, podem ser sentidos à longas
distâncias (ROBINSON, 2020, p. 124).

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O olfato serviu como censor dos perigos existentes nos


espaços desde a antiguidade greco-romana até meados do século
XIX. Os odores pútridos eram situados como sendo a causa das
enfermidades. As pestes seriam resultado de intervenções divinas ou
de mudanças naturais abruptas no ambiente, sendo essas possíveis
de serem percebidas pela presença do pútrido no espaço. O odor
fétido seria então o grande causador das enfermidades (STERNER,
2021, p. 1).
Apesar da ideia de intervenção divina ou de mudanças naturais
serem as mais citadas nas fontes greco-romanas e medievais como
geradoras das pestes, nota-se que tudo aquilo que pudesse manifestar
odores fétidos era considerado como algo perigoso. Como o cadáver
humano produz uma série de odores pútridos em seu processo de
decomposição, cabe propor que ele também era considerado como
uma potencial fonte de contaminação (KOSTER, 2018, p. 43).
A proposição desse trabalho é de expor que o cadáver humano
foi considerado como perigoso, devido sua manifestação de odores
pútridos, no período que vai da antiguidade greco-romana até a
contemporaneidade. O centro desse debate incide justamente sobre
o espaço europeu. Essa proposta parte do princípio de que esse é um
objeto complexo, pois devido aos dispositivos culturais, os defuntos
sempre receberam tratamentos fúnebres. No entanto sendo objeto
que invadia o imaginário dos indivíduos como fonte de perigos, cabe
propor que haviam cuidados para evitar os perigos cadavéricos.

O mundo Greco-Romano e os vapores pútridos


Os conhecimentos médicos da Europa Medieval (500 – 1500)
foram herdados da antiguidade greco-romana. Esses conhecimentos
antigos foram se alterando durante o período medieval. No entanto,
suas bases formativas se mantiveram preservadas. Cabe propor que
os dois campos de herança são o mundo greco-romano e questões do
cristianismo primitivo (PORTER, 1999, p. 83-84).
Dentro do mundo greco-romano, o primeiro indivíduo a
trazer questões sobre os vapores tóxicos é o físico grego Hipócrates

77
IX Colóquio de História das Doenças: anais

(460-377 a.C.). Como o profissional médico necessitava ter


conhecimentos sobre o mundo material, ele recebia a denominação
de físico. Foi Hipócrates quem deu luz, entre os séculos V e IV
a.C. à ideia de que as enfermidades surgiam justamente devido
ao contato com vapores perigosos (STERNER, 2021, p. 1).
Hipócrates entendia que os humores pútridos eram, de fato, as
pestilências. É interessante notar que o físico grego propunha que
esses gases poderiam ser identificados através do odor contido
neles, sendo eles manifestados em pântanos, através do solo, por
meio de mudanças naturais, fezes, lixo, vegetais e cadáveres podres
(ABERTH, 2013, p. 13). Apesar dessas condições do espaço
natural, o físico grego não determinou como se dava a origem de
tais gases. Para Hipócrates, os cadáveres deveriam ser queimados
ou enterrados para não manifestar tais gases perigosos (CURTIS,
2007, p. 13).
Hipócrates esteve em Atenas num momento onde havia
muitos enfermos. Acreditando que a doença vinha dos humores
pútridos, ele promoveu a queima de madeiras aromáticas em muitos
pontos da cidade. Sua ideia era expulsar tais humores pútridos por
meio da presença da fumaça aromática, além de que tal fumaça seria
salutar para os enfermos. Esta forma de tratamento ficou conhecida
como alopatia, em que uma enfermidade e suas origens, poderiam
ser combatidas com o uso de recursos, que eram entendidos, como
constituídos de natureza e propriedades opostas (HUGO, 1991, p.
10).
As ideias de Hipócrates circularam rapidamente e acabaram
ganhando muitos adeptos no período. É importante destacar isso
porque no século V (a.C.), era muito comum que os físicos gregos
descrevessem as doenças como originárias de aspectos mágicos,
sendo punições divinas. No entanto, Hipócrates determinava que
tanto os humores pútridos, quanto as doenças em si, eram de ordem
natural (KANNADAN, 2018, p. 41). Interessante destacar que o
físico grego já entendia os cadáveres humanos enquanto possíveis
causadores de enfermidades, caso estivessem em decomposição
(CURTIS, 2007, p. 13).

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A ideia de Hipócrates era de que o corpo humano era


constituído, predominantemente, pelos quatro elementos básicos:
Ar, Água, Terra e Fogo. A enfermidade provinha do desequilíbrio
em relação às interações e quantidade desses elementos no interior
do corpo. Os ares pestilentos geravam justamente o desequilíbrio
entre esses elementos, o que acarretava assim em quadros de
enfermidades. O desequilíbrio seria causado pela diminuição ou
aumento na quantidade de um ou mais desses elementos (GRMEK,
1998, p. 247).
Para se determinar a natureza e surgimento desses odores
pútridos é interessante perpassar algumas questões sobre o filósofo
Aristóteles (384-322 a.C.). Primeiramente cabe propor que é
impossível dizer se Aristóteles era adepto da medicina Hipocrática.
Muito provavelmente ele teve influências desse pensamento, mas
seguia pressupostos próprios. Isso fica aparente no fato de que
ele entendia que a doença vinha do desequilíbrio dos elementos
internos, devido ao movimento que surgia no interior do corpo,
enquanto que a saúde era pensada como repouso e equilíbrio de tais
elementos (GRMEK, 1998, p. 250-251).
Os perigos sobre os vapores pútridos são expostos por
Aristóteles em sua obra Da geração e da corrupção que data do
século IV a.C.. O filosofo grego entendia que todas as substâncias
no mundo eram constituídas dos quatro elementos básicos. Toda
substância muda no decorrer do tempo, no entanto a mudança
poderia se dar em sentido de quantidade desses elementos ou do
tipo de interação entre eles, de acordo com o movimento que eles
apresentam. A matéria orgânica de algo vivo, aumenta e diminui
no decorrer do tempo, mas também se altera em sentido de suas
qualidades, pois a interação entre os elementos muda (HAAS;
MANSFELD, 2006, p. 63-64).
Aristóteles tinha um entendimento teleológico sobre variados
temas. Isso significa que as substâncias tinham um sentido endereçado
desde o seu surgimento. Ele entendia que os elementos e substâncias
possuíam potências. Essa seria a ideia de que algo teria chance de vir
a ser, portanto poderia ser gerado, assim como essa substância teria

79
IX Colóquio de História das Doenças: anais

o potencial de deixar de existir, sendo esse o processo de corrupção


(GOTTHELF, 1976, p. 226-236). Essas potencialidades e sentido
das coisas dependiam da interação de uma matéria quente e seca
que estaria distribuída no mundo, a pneuma. Os elementos teriam
potencialidades para interagir e se movimentar, mas o que orienta
as potências desses elementos seria justamente a pneuma, que seria
uma espécie de consciência do mundo. A pneuma estaria entre as
substâncias e no interior delas, portanto ela agiria sobre substâncias
orgânicas, inorgânicas, animadas e inanimadas, dando destino à
todas elas (WITT, 1991, p. 131-132).
Este tipo de raciocínio incidia sobre a matéria orgânica.
Portanto, o corpo humano era pensado como passível de
transformação. Isso significa que o corpo era gerado, assim como
corrompido nessa lógica. A geração seria o processo que une os
elementos, permitindo a composição de uma substância, como o
caso do indivíduo humano formado na concepção. A corrupção
seria o processo de separação dos elementos, onde a substância
deixa de existir, sendo isso o que ocorre após a morte do indivíduo,
quando o cadáver se putrefaz durante a decomposição. Esses dois
processos compunham o ciclo infinito do universo, pois um dá
origem ao outro (ARISTÓTELES, 2001, p. 22-30).
O corpo humano passava então por processos de aumento,
diminuição e alteração no decorrer da vida. Aristóteles propunha
que o aumento se dava enquanto o indivíduo ia crescendo. Depois,
o corpo passaria por um processo de diminuição na velhice. Nesses dois
processos basicamente estaria ocorrendo o aumento e diminuição
da quantidade dos elementos no interior do corpo. A alteração
também incidia sobre o corpo, pois a infância, o período adulto e
a velhice constituiriam diferentes organizações elementais no interior
do corpo. Portanto, as idades definiriam diferentes substâncias
(ARISTÓTELES, 2001, p. 24-31). A alteração é justamente
uma mudança na organização e disposição das combinações dos
elementos (WITT, 1991, p. 64).
É na corrupção que se pode pensar que são gerados os
vapores pestilenciais que causavam as enfermidades nos indivíduos.

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Aristóteles propunha que a alteração era um processo que nunca


se interrompe. Quando os elementos se associavam para dar luz à
geração, a alteração ocorria continuamente. Portanto, na dissociação
entre elementos, como ocorria na corrupção, também se processava
a alteração. Como a corrupção era uma dissolução da substância,
nota-se que os elementos vão sendo liberados dessa substância, não
se dissociando necessariamente separados. Aristóteles situa que no
caso de corpos vivos, esses elementos saem combinados, no entanto
sob a forma de uma substância alterada em relação ao corpo original
(ARISTÓTELES, 2001, p. 53).
No caso dos cadáveres os produtos da corrupção eram
os humores da putrefação, onde a presença do elemento ar era
sobressalente em relação aos outros, daí a natureza vaporosa, que é
quente e úmida, desses humores. Mas da mesma maneira a grande
presença de água nesse ar, proveniente do cadáver, torna esse ar
mais úmido e frio, portanto danoso aos indivíduos. Esses humores,
provenientes da putrefação, poderiam ser percebidos pelo mau
cheiro que manifestavam. Humores pútridos, independente da
fonte, seriam de grande perigo. Portanto, os cadáveres humanos,
sendo fonte de tais humores, também se enquadram nessa lógica
de serem perigosos (ARISTÓTELES, 2001, p. 51-62). Esse seria
o perigo da causalidade final no caso dos humanos, ou seja, da
putrefação cadavérica (GOTTHELF, 1976, p. 254).
O arquiteto romano Vitruvius (81-15 a.C.), deixou claro em
suas obras que tinha noções sobre os humores pútridos. Ao propor
seus projetos arquitetônicos, deixava claro que estes tinham, também,
a funcionalidade de evitar os maus odores. Nota-se que ele trazia
inovações à teoria dos ares perigosos, pois propõe que diferentes
tipos de humores, poderiam gerar enfermidades específicas
(STERNER, 2021, p. 1). O físico romano Claudio Galeno (130-201
d.C.), que claramente teve uma formação bem embasada no Corpus
Hipocraticum, também foi adepto da teoria dos odores pútridos. No
entanto, como sua formação se deu muito depois de Hipócrates,
cabe determinar que seu pensamento também continha marcas do
Corpus Aristotelicum (GRMEK, 1998, p. 252).

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

Para Galeno, o ar pútrido era um desorganizador do equilíbrio


humoral contido no interior do corpo. Os humores seriam fluídos
que representavam os elementos: Fleuma (água); Sangue (ar); Bile
Amarela (fogo); Bile Negra (terra). O conceito de humor já era
pensado desde Hipócrates. No entanto, Galeno foi responsável por
um refinamento dessa teoria. Para este grego nascido em Pérgamo,
era necessária uma determinada quantidade de humores para gerar
a enfermidade no corpo (KANNADAN, 2018, p. 41). Os humores
pútridos para Galeno, por serem gerados de diferentes fontes,
manifestavam desequilíbrios diferentes no interior dos indivíduos.
Portanto, as enfermidades que ocorriam eram díspares. Os
cadáveres humanos também eram situados como fontes perigosas,
por gerarem um vapor pútrido, de natureza úmida e fria, inferia-se
que ocorreria um excesso de fleuma. Desta forma a bile amarela,
por ser quente e seca, acabaria em desproporção devido ao excesso
de fleuma (STERNER, 2021, p. 1). Tais pontos reforçam a ideia de
que o cadáver já era pensado como perigoso na antiguidade greco-
romana, daí o interesse que esses cadáveres fossem cremados ou
enterrados (CURTIS, 2007, p. 13).

Osmologia teológica: o mundo rabino e o cristianismo


primitivo
Se o mundo greco-romano gerou heranças de grande
importância para a medicina medieval, é preciso também pensar nos
saberes médicos que foram apropriados do cristianismo primitivo.
O mundo cristão, em seus primórdios, deve muito a questões do
mundo judaico, ou seja, de elementos do judaísmo. Os grupos
humanos que viviam em meio às religiões do oriente médio, como
grupos semíticos, babilônicos e depois cristãos, não separavam as
questões terrenas das espirituais. Isso significa que as demandas
no campo da saúde estavam intimamente relacionadas com um
sistema de crenças. A doença seria proveniente do não seguimento
da conduta do grupo, ou seja, do pecado, enquanto os cuidados
médicos seriam possíveis apenas por meio da fé. O cristianismo
herdou essa lógica do judaísmo, onde a transgressão da moral gerava

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a enfermidade, daí doenças famosas na bíblia como lepra, cegueira e


paralisia (GRACIA, 1992, p. 19-21).
Os Rabinos da Galileia, em meio às suas tradições, faziam
amplo uso de recursos odoríferos. Os espaços sagrados eram
geralmente aqueles em que figuravam tais recursos, como os
incensos, o olíbano e unguentos. Como esse grupo esteve sob
dominação egípcia e tendo depois a Galileia sido anexada por Roma
em 63 (a.C.), se tornando província romana em 6 (d.C.), nota-se que
parte dos cultos no grande templo foram suprimidos. No entanto,
tais tradições se mantiveram em meio aos lares dos fiéis desse grupo
(GREEN, 2015, p. 146-147).
No século II d.C. nota-se que os cultos e templos voltaram
a ter presença na Galileia. O interior dos templos se mantinha
carregado pelas fragrâncias dos unguentos e óleos aromáticos, além
de que os padres queimavam duas vezes ao dia o incenso sob o altar
dourado central. A intenção era dupla no uso desses recursos. A
primeira era uma espécie de sacrifício para acalmar o deus cristão
que, durante o culto era evocado, além de que a fumaça do incenso
permitia que ele não fosse visto pelos fiéis. A segunda era a garantia
de proteção dos fiéis contra os odores pútridos, que eram sinônimo
da manifestação do pecado (GREEN, 2015, p. 148).
O uso de arômatas era de grande valor nessa cultura, isso
confirmado pelos tesouros dos reis rabinos que eram cheios de
arômatas, assim como pela ideia de receber o título individual de ser
“O ungido”. Esse título significava que a pessoa exalava o cheiro dos
óleos sagrados e dos incensos, sendo algo comum aos reis e padres,
portanto, estes estariam sempre protegidos (GREEN, 2015, p. 149).
Se a manifestação do podre era sinônimo de algo ruim, então ele
deveria ser combatido. Nessa lógica os cadáveres eram fontes de
problemas, pois em algum momento a putrefação aparecia, o que
era justificado pela carnalidade do corpo (JOHNSON; JOHNSON;
JOHNSON, 2012, p. 998).
Os rabinos tinham o costume de inumar os cadáveres daqueles
que professavam o judaísmo. Porém, haviam cuidados prévios sobre

83
IX Colóquio de História das Doenças: anais

o defunto. O corpo recebia banhos e era depilado, para que assim


fosse enrolado em lençóis. Entre os lençóis eram dispostas especiarias
como a mirra e os aloés no corpo (JOHNSON; JOHNSON;
JOHNSON, 2012, p. 998). O cadáver poderia, em certos casos,
receber também óleos aromáticos. Incensos eram acesos durante a
marcha fúnebre e, por fim, esses cadáveres eram inumados junto das
Unguentaria. Esses eram vasos mantidos abertos, cheio de perfumes
para afastar o mal emanado da putrefação cadavérica (GREEN,
2015, p. 150-151).
O mundo cristão também teve interesses e usos com relação
ao sentido do olfato (GRACIA, 1992, p. 22). Nota-se que a lógica
por trás dos odores era bem similar ao mundo rabino, isso porque
foi esse local a principal influência do cristianismo. No entanto, a fé
em Cristo também teve influência de outras crenças manifestadas ao
redor do mediterrâneo (TONER, 2015, p. 158). Os conhecimentos
olfativos dos primeiros cristãos determinavam que os odores ruins e
podres estavam associados com atividade demoníaca, enquanto que
os bons odores seriam conotados do divino e do sagrado. Os odores
eram hierarquizados, portanto, havia uma lógica classificatória que
garantia categorias de acordo com os aromas (HARVEY, 2006, p.
30).
O sagrado, para os cristãos, estava contido nos aromas doces,
diferente do mundo judaico, que encontrava tais atributos em meio
aos cheiros terrosos e amadeirados. Sendo os cheiros leves, doces e
frescos das plantas a base do sagrado, enquanto o demoníaco seria
associado a odores sulfurosos. O pecado advindo de uma questão
moral era associado às tentações diabólicas, portanto, havia a
crença entre os séculos III e IV d.C., de que o pecador manifestaria
o cheiro do podre. Seria uma espécie de osmologia moral, onde os
odores dos locais e das pessoas poderiam trazer segurança ou riscos
para aqueles no entorno. O olfato seria, assim, uma ferramenta de
julgamento e de segurança (TONER, 2015, p. 159-163).
Sendo as doenças associadas ao pecado, nota-se que os
enfermos também manifestavam o podre. A praga de Justiniano
de 541 d.C. foi justificada como originária da ira do deus cristão

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sobre os pecadores. As pilhas de cadáveres que se formaram desse


processo eram consideradas perigosas, porque o odor pútrido,
proveniente da decomposição, era sinal de atividade demoníaca, o
que poderia adoecer aos fiéis ainda vivos (TONER, 2015, p. 168-
170). A carnalidade do corpo fazia com que o cadáver, após a morte,
fosse consumido devido ao fato que a carne era uma via de tentação
diabólica (BIERNOFF, 2002, p. 29).
O cadáver, se não fosse bem cuidado, poderia significar um
risco aos vivos durante o processo de decomposição. Era comum,
após a morte, que o defunto recebesse tratamentos com diversos
aromáticos (TONER, 2015, p. 171). O cadáver recebia lavagens
com balsamos, unguentos e óleos aromáticos, além de que, durante o
funeral, havia a presença de velas aromáticas e incensos (HARVEY,
2006, p. 98). Sem tais procedimentos e usos de recursos aromáticos,
esses cadáveres se tornariam perigosos. Os cadáveres de santos eram
ditos como incorruptos, portanto não tinham como apodrecer
(CRUZ, 1977, p. 34).
Tal qual os odores podres eram entendidos como danosos
no mundo greco-romano, o mesmo se dava em meio aos antigos
cristãos. A situação dos cadáveres não poderem ser cremados no
caso cristão, acabou levando os adeptos desta fé a se apropriassem
de valores judaicos. Com isso haveria a garantia de que os cadáveres
não fossem perigosos na dinâmica de inumação (ESSER, 2014, p.
117). Esse tipo de medida estava associada à questão de higiene,
sendo essa uma interpretação do podre, presente no cadáver, que
deveria ser cuidado (CURTIS, 2007, p. 11-12).
Esse cenário dá espaço à ideia de uma teologia olfativa. Nota-
se que os cadáveres, considerados perigosos, eram tratados por uma
série de recursos aromáticos. Seja no mundo judaico, ou entre os
cristãos primitivos, havia o uso dessa teologia olfativa (ESSER,
2014, p. 160). O uso de recursos aromáticos se relacionava à questões
interpretativas organolépticas. Portanto, propriedades bioquímicas
do podre eram interpretadas como ruins, sendo combatidas pelos
aromas bons relacionados aos terpenos, fenóis e alcaloides presentes
nos vegetais (EVERETT, 2012, p. 41).

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IX Colóquio de História das Doenças: anais

É interessante notar que o uso desses recursos aromáticos em


cadáveres, fez com que várias múmias surgissem. Cabe colocar que tais
corpos preservados provinham de um processo não intencional. No
entanto, não se pode pensar também em múmias naturais (ESSER,
2014, p. 168). Chama a atenção o fato de que, frente ao combate dos
odores ruins, os recursos de bons odores escolhidos para essa função
tinham propriedades químicas preservativas. A intenção não era
necessariamente preservar o cadáver, mas espantar seus maus odores.
No entanto, os recursos que neutralizavam os odores pútridos, na
realidade, combatiam a putrefação. Os taninos, alcaloides e terpenos
que são de fortes propriedades aromáticas, garantiam o combate do
odor e, da mesma maneira, preservavam os cadáveres devido suas
propriedades antissépticas (MARTINS, 2012, p. 20-29).
O corpo que era encontrado preservado, tendo recebido
apenas lavagem simples e não embalsamamento, na Idade Média,
era dito como possuinte da Aromatibus Conditum. Essa condição
era pertinente aos santos, que tinham corpos incorruptos e não
passiveis de putrefação, no qual uma das principais características
deste estado era o exalar de bons odores. Essa condição garantia
que tais corpos não fossem perigosos. Portanto, seria de grande
interesse que pessoas importantes fossem embalsamadas no
decorrer da Idade Média, com intenção de imitar a Aromatibus
Conditum, para garantir a preservação da imagem do defunto no
funeral, assim como garantir que ele não fosse um cadáver perigoso
(CORBINEAU; RUAS; PAIN; FORNACIARI; DUPONT;
COLLETER, 2017, p. 152). Os humores pútridos venenosos do
mundo greco-romano e os odores diabólicos do cristianismo,
seriam base dos conceitos sobre doenças na Idade Média, sendo os
cadáveres putrefatos considerados fontes desses humores nocivos
por ambas epistemologias (SILVERMAN, 2002, p. 10).

Os perigos cadavéricos no Medievo


A medicina Europeia, na Idade Média, herdou noções das
teorias hipocrático-galênicas, assim como paradigmas dos antigos

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

cristãos. Cabe aqui expor, de maneira breve, a medicina entre os


anos 500 e 1500 na Europa para, assim, situar o temor que havia em
relação à putrefação cadavérica.
A medicina na Europa, entre os anos 400 e 1100, manteve um
dualismo entre questões do humorismo médico ao lado de noções
de saúde espirituais advindas do cristianismo (MACKINNEY,
1952, p. 2). O centro das atividades médicas se dava nos espaços
monásticos. Os clérigos eram formados com noções humorais, mas o
foco da formação se dava com relação à ideia de que a doença vinha
do pecado, portanto a cura real vinha da fé. A medicina espiritual
era soberana em relação à medicina física. Porém, ela ainda era
utilizada (SILVERMAN, 2002, p. 10-11).
As noções físicas advindas do mundo greco-romano
permaneceram em uso por meio de uma série de fontes fragmentárias.
Após a queda do império romano do ocidente, diversos centros
monásticos mantinham fontes antigas ou fragmentos delas
(PORTER, 1999, p. 91). Isidório de Sevilha (560-636), com seu
tratado Etymologies trouxe traduções e conceitos vindos de Galeno
e Hipócrates. Alcuin de York (724-804), que fazia parte da corte
de Carlos Magno, produziu cartas onde propunha que os espaços
monásticos deveriam ser centros de medicina e deveriam utilizar
conceitos físicos (WALLIS; DUTON, 2010, p. 5-80). Cartas
do ano 1000, encontradas na catedral de Bamberg (Alemanha),
também trazem questões da fusão da medicina humoral ao lado de
pressupostos religiosos (MACKINNEY, 1952, p. 5).
A alteração desse quadro se deu no século XI por volta de
1050, quando Constantino, o africano (1020-1087), traduziu uma
série de documentos da antiguidade clássica, que estavam em árabe,
para o latim (FRENCH, 2003, p. 65). A somatória das traduções
de Constantino, a permanência dos conteúdos humorais dentro
da Europa, mais a questão dos centros de produção e disseminação
desses conteúdos (Ravenna, Montecasino e Salerno) fizeram com
que a medicina escolástica se desenvolvesse por volta do ano 1100
(MACKINNEY, 1952, p. 7).

87
IX Colóquio de História das Doenças: anais

O nascimento da escolástica está atrelado ao nascimento das


universidades nos séculos XII e XIII. Portanto, a educação médica se
pautaria na leitura de clássicos, ao lado da oratória dos professores
nas disciplinas (KELLY, 2009, p. 23). Um documento base para
o ensino e pensamento médico surgiu nesse período: A Articella.
Ela continha o Liber Ysagogarum, material que trazia uma série de
questões do modelo humoral, os aforismos de Hipócrates, o Tegni
de Galeno e uma série de outras obras antigas que seguiam essa
tendência (PORTER, 1999, p. 108).
A partir do ano 1100 a medicina passa por um processo de
desespiritualização, onde questões materiais passaram a ter maior
relevância. As questões espirituais e materiais teriam mesma
relevância nesse novo momento (MACKINNEY, 1952, p. 25).
O entendimento era de que as enfermidades ocorriam a partir
do desequilíbrio humoral, sendo a terapêutica realizada pelo uso
de fármacos, por procedimentos cirúrgicos ou seguindo regimes
de saúde (JACQUART, 1998, p. 210). As questões espirituais
continuaram importando para a cura, no entanto, questões materiais
se tornaram essenciais (MACKINNEY, 1952, p. 25).
Um dos motivos que gerava o desequilíbrio humoral era
justamente os humores pútridos. No decorrer de toda a Idade
Média eles foram motivos de preocupação, e pelos exemplos que
serão mostrados, os cadáveres eram um dos principais problemas,
por serem fontes desses gases (ROBINSON, 2020, p. 124).
O primeiro caso remete ao período carolíngio, quando o
cadáver do imperador Carlos o Calvo (823-877) necessitou de
reparos para ser transportado. Carlos falecera enfermo nos alpes
franceses. Antes de morrer especificou que queria ser levado até a
igreja de Saint-Dennis (ESSER, 2014, p. 194). Aparentemente, seu
cadáver foi tratado por um cozinheiro numa altitude de dois mil
metros. O problema é que seu cadáver não teria sido tratado logo
após sua morte, o que iniciou a decomposição. Portanto os odores
pútridos seriam tão fortes que as histórias da época diziam que o
cozinheiro teria falecido após o ato de embalsamar (KREJCI, 2005,
p. 159). O corpo, mesmo tendo sido tratado com plantas pensadas

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

com propriedades quentes e secas ao lado do vinho e depois tendo


sido inserido num barril de piche, continuou emitindo gases
pútridos. A intensidade do fedor era tamanha, que a viagem foi
interrompida para que o cadáver fosse inumado na abadia de
Nantua. Ao que tudo indica, essa viagem foi interrompida pelo
temor aos odores e não pelo incomodo em si (ESSER, 2014, p.
194). Tal cenário reforça que os odores advindos do cadáver eram
temidos desde o princípio da Idade Média (ABERTH, 2013, p.
13).
Um processo importante na composição da ideia dos odores
pútridos na Idade Média foi a tradução da obra Da geração e da
corrupção de Aristóteles, no século XIII, por Gerard de Cremona
(1114-1187) (CAROTI, 2011, p. 252). Por meio dessa fonte, os
físicos e cirurgiões medievais puderam compreender os perigos dos
humores pútridos de maneira aprofundada. O calor forte incidindo
sobre o cadáver frio e úmido traria corrupção, o que liberaria os
gases pútridos (ROBINSON, 2020, p. 162). Pensando no segundo
cenário nota-se que, no final do século XIII, com o interesse nas
dissecções cadavéricas humanas reaparecendo, os cirurgiões
precisavam de alguns cuidados. Primeiramente, as dissecções seriam
realizadas no inverno, permitindo que os cadáveres durassem três
dias. Além disso, o olfato seria poupado, o que evitaria o contato
com o pútrido, que seria a fonte de enfermidades (MCVAUGH,
2002, p. 114).
Durante a peste negra (1347-1351), uma série de tratados
foram compostos com a intenção de propor as causas da enfermidade.
O físico Jacme D’agramont, em 1348, produziu o tratado Regiment
de preservacio a epidimia o pestilencia e mortaldats com a intenção
citada. Interessante notar que ele delimita o cadáver como um
objeto perigoso. Tudo aquilo que era de origem orgânica e caía em
corrupção era passível de espalhar odores pútridos. Os cadáveres
humanos entravam nessa configuração. O úmido e frio, presente
neles, se corrompiam gerando vapores pútridos frios e úmidos. Tais
humores nocivos, quando inalados por outro indivíduo, geravam
enfermidades por causarem o desequilíbrio humoral. O desequilíbrio

89
IX Colóquio de História das Doenças: anais

vinha devido à corrupção de parte ou todos os humores (REYNALS;


WINSLOW, 1949, p. 57).
O terceiro e último cenário também se relaciona à peste
negra. Quando um papa ou alguém de alto posto da igreja falecia,
era muito comum que o embalsamamento fosse realizado para que
a Aromatibus conditum fosse alcançada (CORBINEAU; RUAS;
PAIN; FORNACIARI; DUPONT; COLLETER, 2017, p. 152).
Em 1352, durante a peste bubônica, faleceu o papa Clemente VI
que pertencia ao papado de Avignon. Observe-se que ele falecera
infectado pela peste, e o interessante é notar que o cirurgião
contratado para lhe embalsamar, Guy de Chaulliac (1300-1368),
relata o temor das pessoas ao transportar esse cadáver. O cirurgião
declarou que ele próprio temia o cadáver papal por já aparentar
certa decomposição. Chaulliac entendia que pelo papa ter falecido
de peste, os odores pútridos liberados por esse cadáver poderiam
acarretar no surgimento da peste nos outros indivíduos. Nota-
se, em tal relato, a presença da ideia primitiva de contágio, onde
o indivíduo morto por uma infecção poderia liberar odores que
geravam a mesma enfermidade (KOSTER, 2018, p. 28-40).
O tratamento com relação à tais enfermidades se dava
com a aplicação de substâncias com propriedades opostas à
enfermidade, ou seja, por meio da alopatia. A natureza do humor
pútrido cadavérico era úmida e fria, portanto substâncias, extratos,
unguentos ou óleos quentes e secos eram aplicados no enfermo,
assim como eram utilizados odoríferos dessa mesma natureza para
evitar as doenças (GRMEK, 1998, p. 256).

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93
História da hanseníase na Amazônia:
estigmatização e espaços de memórias
Elane Cristina Rodrigues Gomes1
Rebeca Junior Cardoso Martins2

Introdução
Esse texto é resultado parcial da trajetória do projeto
de pesquisa intitulado: “História da Hanseníase na Amazônia:
estigmatização e espaços de memórias”, com o fomento da
Universidade Federal do Pará e desenvolvido na Escola de Aplicação
da UFPA (Belém/ PA), tendo como público alvo, discentes do
8º ano do Ensino Fundamental. O projeto almeja dialogar sobre
a história da hanseníase no espaço escolar, apresentando os
resultados de pesquisas realizadas a partir da tese de doutorado
sob o título: A lepra a letra: relações de poder na cidade de Belém
(1897-1924) (GOMES, 2019) tendo em vista a aproximação entre a
pesquisa e o ensino. Para tanto o projeto tem a colaboração de uma
equipe multidisciplinar composta de historiadores, estudantes de
enfermagem e biologia, assim como um estudante do Ensino Médio
da Escola de Aplicação.3
Trata-se de uma proposta destinada a dialogar sobre a
estigmatização (GOFFMAN, 2008, p. 14) que as pessoas acometidas
por hanseníase vivenciaram no século XX, tendo em vista o processo

1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (2019). Docente da


Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará E-mail: [email protected]
2 Graduanda do Curso de História da Universidade Federal do Pará/ bolsista PIBIC.
E-mail: [email protected]
3 A equipe é constituída por: Cainan Melo (graduando de biologia/UFPA); Mateus
Cunha (graduando de enfermagem/UFPA); Rebeca Junior Cardoso Martins (bolsista/
Pibic-graduanda de História/UFPA) e Calebe Ferreira (bolsista/Pibic EM- aluno da Escola
de Aplicação).

95
IX Colóquio de História das Doenças: anais

histórico de isolamento que tais doentes tiveram no passado pelo


significado atrelado a doença. Nesse sentido o projeto almeja realizar
um levantamento em espaços tais como arquivos, unidades de saúde,
institutos e bibliotecas, com o intuito de obter conhecimento sobre
a doença e identificar as impressões construídas pela sociedade
diante do hanseniano. Por ser uma doença contagiosa, porém hoje
com possibilidade de cura, ainda existe uma acentuada falta de
informação sobre a hanseníase. A representação social da doença se
modifica de acordo com o tempo e com as tensões sociais que alteram
as relações de poder, pois quando são incuráveis e mortais tendem
a ganhar um valor simbólico no imaginário coletivo, “entrelaçada
psicossocialmente ao agir humano e, deste modo, muito além da
temporalidade de sua manifestação, vai constituindo ambiguidades
que se dilatam ao longo do tempo” (NASCIMENTO, 2018, p. 41).
Dessa maneira, propomos compreender de que maneira a
sociedade belenense, no século XX, criou representações e memórias
acerca do Asilo do Tucunduba (1815), o primeiro espaço destinado
a receber leprosos no século XIX e XX, o qual esteve localizado
no antigo bairro de Santa Isabel, hoje denominado Guamá e que
se encontra nas proximidades da Escola de Aplicação, bem como
é moradia de uma parcela dos discentes. A partir de tais dados
fizemos uma tentativa de inserir no espaço escolar a temática da
hanseníase a partir da história do bairro do Guamá e compartilhar
esclarecimentos sobre a doença seja sob o viés histórico e biológico,
devido ao alto índice de incidência de casos de hanseníase nesse
bairro e nos arredores do bairro da Terra Firme, onde está localizada
a Escola campo de atuação do projeto (MANCABÚ, 2013, p. 98).

Espaço de Memórias: o asilo do Tucunduba entre o


presente e o passado
De acordo com Arthur Vianna, o terreno que abrigou o
Asilo do Tucunduba pertenceu aos mercedários, os quais estavam
estabelecidos em terreno aforado pelos frades. Nesse lugar, Frei

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Caetano Brandão4 construiu uma olaria para fornecer tijolos e telhas


para as casas em construção na cidade. Após a decisão de que a
Santa casa passaria a administrar os bens do Hospital Bom Jesus dos
Pobres, a olaria entrou em decadência, permitindo que a Santa Casa
de Misericórdia do Pará abrigasse o hospício, entre os anos de 1814-
1816 transformando o telheiro em uma construção com separações
internas para abrigar doentes de lepra e alienados.5 O terreno não foi
murado nem planejado de acordo com as necessidades dos doentes,
na verdade foi um caminho imediato que o Estado utilizou para
afastar da área urbana o corpo leproso (VIANNA, 1992, p. 348).

Fonte: ARAUJO, Heraclides. Profilaxia da lepra e das doenças venéreas Vol. II. Belém:
Livraria Clássica 1922, p. 20.

A área do Tucunduba foi descrita como cercada de uma


natureza repleta de caminhos lúgubres e cortado por um igarapé
que dava o mesmo nome ao asilo. Ali ficavam fileiras de casas em
volta de uma área que não tinha energia elétrica, saneamento básico
e o deslocamento dos doentes para a cidade, se dava na maior parte
das vezes de canoa, andando, de carroça ou a cavalo. Entre o limite
do urbano e suas margens estava o Tucunduba, espaço distante para
muitos da civilização e da modernidade (GOMES, 2019, p. 40).

4 Religioso da Ordem Terceira nomeado bispo do Pará em 1782. Disponível em:


https://bit.ly/2IZ1ZCC. Acesso em: 06 set. 2017.
5 Os alienados foram transferidos para um novo hospital no Marco da Légua em
1892. Ver: Vianna, (1992, p. 348).

97
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Segundo José Messiano, o Asilo do Tucunduba foi desativado


em 1938. O leprosário esteve localizado no bairro do Guamá, na Rua
Barão de Igarapé Mirim próximo à passagem Alegre, onde ficava a
uns duzentos metros do Igarapé do Tucunduba,6 considerada área
de difícil acesso na época, principalmente durante períodos de
chuvas mais intensas, o que provocava alagamentos. A origem do
nome teria ascendência Tupi-Guarani que corresponderia a “lugar
que possui várias árvores de tucum” (MESSIANO, 1997, p. 15).
Ao analisar a construção dos primeiros asilos em São Paulo
a historiadora Yara Monteiro menciona que os asilos tiveram
tamanhos diversos e condições de funcionamento peculiares,
mas a sua existência quase sempre não significava atendimento
no tratamento e/ou uma alimentação de qualidade aos doentes.
Grande parte ficava localizado distantes das cidades e a penúria
era corriqueira no cotidiano desses espaços, boa parte dos leprosos
dependia da mendicância (MONTEIRO, 2019, p. 379). Tal
realidade não se distanciava do Asilo do Tucunduba, pois o local
no século XIX vivia de esmolas irregulares, dependia da venda de
loterias e uma reduzida contribuição da Assembleia Provincial do
Pará, o que não era condizente com o crescente números de doentes
que passou a receber. Esse contexto permite compreender porque
muitos leprosos comercializavam frutas e verduras no centro da
cidade gerando insatisfação entre as autoridades e sendo alvo de
denúncia nos jornais locais, que reclamavam sobre a circulação dos
doentes em áreas para além dos limites físicos do asilo (HENRIQUE,
2019, p. 99).
Nos primeiros anos do século XX o Tucunduba ocupou o
papel de protagonista em muitos artigos estampados nos jornais.
As autoridades reconheciam que o asilo estava distante de ser um
leprosário adequado aos ditames da ciência para atender leprosos.
Talvez na época representasse uma solução do Estado para evitar
que os doentes pobres circulassem pela cidade, objetivo nem
sempre alcançado. No entanto, ao longo de todo o século XIX e XX
6 Atualmente escreve-se Tucunduba, mas nas fontes pesquisadas referentes ao século
XIX e XX a grafia era Tocunduba. Adotamos no texto a grafia moderna, preservando a
antiga apenas nas citações originais.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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são constantes as denúncias de doentes que circulavam pela cidade,


que mantinham seus vínculos comerciais e familiares e depois
retornavam ao Tucunduba (GOMES, 2019, p. 43). O Estado não
conseguia atender à demanda do crescimento da doença e o asilo
passou a “regurgitar doentes”, como dizia o jornal Estado do Pará
em 1921:
em Belem, terão os distinctos prophylatas oportunidades de
verificar não existir uma unica rua, e talvez um só quarteirão que
não embioque varios e horrossos casos do temeroso mal. No bairro
comercial, no mercado, na porta das igrejas, nos logares mais
movimentados, ha lázaros que extendem as mãos em garra, ou
mutiladas, á caridade publica,-sinal evidente de que o Tocunduba
está regorgitando de leprosos, a menos que a Saúde Publica não se
faça attender pela policia.7

Ao que parece, o cenário era marcado por tensões, que sem


dúvida, explicam as constantes fugas dos asilados e a resistência de
muitos ao serem destinados a morar no Tucunduba, conhecido na
imprensa como “lugar de dor” ou apenas como local para onde os
lázaros esperavam o dia de se recolherem à sepultura.
A delimitação espacial de circulação e habitação dos doentes
de lepra permitiu, em certos momentos, o ocultamento da doença
por meios de um espaço físico, quando esses eram internados no
Asilo do Tucunduba. Paralelamente, ao confinar esses doentes no
asilo, tentava-se apagar a história de vida desses sujeitos, pois eram
retirados do seu convívio social e deveriam apagar da memória
seus vínculos além do espaço do asilo, ou seja, a família, o emprego,
os amigos e tudo que fazia referência a sua história de vida, uma
vez que o confinado deveria preservar a sociedade, respeitando os
limites físicos impostos pela lei.
Dessa maneira, os doentes são excluídos do tempo e da
história construída pela urbe civilizada e por esses motivos os
leprosos foram rejeitados, ignorados e maltratados - por não se
enquadrarem na perspectiva de cidade almejada pelas autoridades.
No entanto, entre as regras impostas e o cumprimento delas
existiam lacunas a serem pensadas, que colocavam o doente não
7 “Chegaram” Jornal Estado do Pará, Belém, 04 jun. 1921, p. 1.

99
IX Colóquio de História das Doenças: anais

apenas como vítima do processo, mas também como um sujeito que


criou ações desviantes em oposição às forças dos sujeitos detentores
de poder, evadindo-se de situações de exclusão através de práticas
do cotidiano, construindo espaços que permitissem questionar a
direção do controle almejado pelas leis (CERTEAU, 2013, p. 91).
As memórias do asilo do Tucunduba também estão presentes
no diário de um Frei capuchinho, chamado Daniel Rossini Samarate,
o qual foi interno do Asilo entre 1914 e 1924. Seu diário apresenta
o microcosmo do asilo, a partir das relações vigentes entre internos
e também da omissão das autoridades em relação ao asilo, assim
como também transcorre sobre os casamentos, batizados, festas,
assassinatos e rebeliões no interior do asilo.
A narrativa do diário de Frei Daniel Samarate em diálogo com
os jornais locais são lentes importantes para analisar as memórias
produzidas sobre o asilo na cidade de Belém. Revelando um percurso
necessário para retomar essa relação com o tempo presente tendo
em vista a existência atualmente de espaços no bairro do Guamá,
que são ícones da memória sobre Frei Daniel, tais como uma escola
pública com seu nome e uma imagem na entrada da Igreja dos
capuchinhos em homenagem ao frei, referendando vestígios de um
passado que se mostra visível em lugares do bairro que abrigou o
asilo do Tucunduba.
Convém salientar que grande parte da população paraense
construiu impressões sobre o asilo do Tucunduba, seja pela sua
assiduidade nas páginas dos jornais, por terem parentes que foram
internados ou por serem vozes correntes na sociedade opiniões
degradantes sobre esse lugar. Nesse sentido acho relevante,
investigar, por meio da coleta de dados, como o fechamento desse
lugar ocorreu e as tensões vigentes na época entre Santa Casa de
Misericórdia, quem administrava o asilo.8

8 Devido ao contexto da pandemia, os espaços de pesquisa tais como arquivo público


e a biblioteca Pública Arthur Vianna ficaram fechados por vários meses e retornaram
suas atividades com atendimento ao público a partir do segundo semestre de 2020 e
com agendamento, o que inviabilizou finalização dos dados que deveriam ser coletados.
Atividade que estamos realizando nesses primeiros meses do ano com o recorte temporal
de 1924-1938.

100
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A pesquisa mostra-se importante ao buscar perceber o asilo


do Tucunduba ancorado na sua relação com a experiência das
pessoas e o lugar, tendo em vista que os sujeitos podem pensar e
repensar seus lugares de vida a partir da maneira como o habitam,
já que o habitar não se encontra no espaço construído, mas
sim no que é guardado por aqueles que o vivenciam. Tal como
observa Paul Ricoeur “é nos confins do espaço vivido e do espaço
geométrico que se situa o ato de habitar” (RICOEUR, 2007, p.
157), implicando na releitura que os sujeitos constroem sobre as
suas histórias de vida.
Entende-se que a memória pode ser pensada como um teatro
pessoal que se fabrica a partir de reconstituições íntimas (FARGE,
2011, p. 80), capaz de expressar sentimentos diversos. O diário
de frei Daniel marca um lugar de fronteira entre a sociedade, que
em certo momento regulamentava e impunha comportamentos,
revelando ao leitor intervalos de tensões, concessões, imposições
e sofrimentos. Sua escrita expressava a configuração das relações
sociais no interior e fora do espaço do Tucunduba, a partir de
lembranças descontínuas e atitudes contraditórias, pois seus
posicionamentos demonstravam os diferentes lugares que ocupava
nessa sociedade, já que ele não era apenas um religioso, mas também
um morador do Asilo do Tucunduba.
De alguma forma, os lázaros construíram outras possibilidades
de lazer que ia para além do interior do asilo, evidenciando que a
circulação de leprosos no Guamá não parecia causar estranhamento.
Seguindo as reflexões do historiador José Dias Junior, ao que parece,
a presença de lázaros no que veio a constituir posteriormente o
bairro do Guamá era recorrente. Em entrevistas que realizou com
moradores do bairro alguns afirmaram que costumavam entrar na
área do leprosário para pegar frutas e que os lázaros às vezes vinham
até as “baiucas” para comprar cachaça, retornando só à noite para o
leprosário (DIAS JÚNIOR, 2009, p. 38).
Para tanto elaboramos infográficos que serão usados nas
oficinas com os discentes a fim de instigar sobre o que existe de
espaços no bairro do Guamá hoje e o que existiu nas primeiras décadas

101
IX Colóquio de História das Doenças: anais

do século XX associados à saúde e doença, almejando compreender


as memórias sobre o asilo e sujeitos que o frequentaram.

A História da saúde e doenças na educação básica


A percepção sobre o conceito de saúde e doença é construído a
partir da temporalidade, logo a doença precisa ser compreendida de
acordo com as rupturas e permanências culturais de uma sociedade.
Por isso é cada vez mais evidente como grupos sociais conceituam a
doença de diversas formas, assim como dependendo do referencial
entre o doente e o médico a experiência é diferente, o primeiro traz
consigo a narrativa pessoal e o segundo as pretensões científicas
com aspectos objetivos de alcançar o diagnóstico (PORTER, 2006,
p. 74).
Desse modo, abordar a história da saúde e doença na educação
básica mostra-se relevante no sentido de ampliar as relações entre
presente e passado, bem como um caminho para que o discente
perceba de que maneira a temática perpassa pelas dimensões
do seu cotidiano, pois diante do contexto atual, da pandemia do
coronavírus, é notável como a doença pode alterar as relações
humanas, a cidade, a cultura, as práticas políticas e sociais no
mundo.
A inserção da temática da Saúde e doença no espaço escolar
pode ser pensada como tema transversal, oriundo do diálogo com
os Parâmetros Curriculares Nacionais. Tendo em vista que tal

102
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

proposta surgiu na tentativa de tratar conteúdos que se aproximem


do cotidiano dos discentes, para que esses possam inferir sobre
a sua participação social, deveres e direitos que envolvem a
própria construção sobre a ideia de cidadania e a necessidade de
políticas públicas vigentes sobre a presença das doenças e o acesso
e prevenção no âmbito da saúde. Pensar a corresponsabilidade
humana no processo saúde/doença é indispensável para a construção
da percepção de que a saúde coletiva está associada às formas de
organização social em consonância com o biológico, mas acima de
tudo pela determinação social (SCHALL, 2010, p. 182).
De acordo com Virgínia Schall é importante inserir no
conteúdo escolar temas com relevância social para a comunidade.
No âmbito da saúde/doença podemos inferir sobre as condições
socioeconômicas e culturais, estabelecendo uma aproximação sobre
o significado da ciência e seu papel para a manutenção da saúde
e a superação de inúmeras doenças que vão surgindo ao longo do
tempo, além de uma forma de problematizar sobre as condições
que essa comunidade vive suas experiências nos seus respectivos
bairros de moradia, destacando o acesso ou falta de acesso a saúde
(SCHALL, 2010, p. 181).
Por sua vez, a presença da hanseníase hoje evidencia passados
não resolvidos, com elementos de dramas recentes e definições
inconclusas. Apesar de ser considerada uma doença curável na
sociedade contemporânea, ainda são alarmantes os recorrentes
casos da doença no Norte e Nordeste do Brasil, principalmente
em bairros onde as condições de saneamento são precárias e a
carência de informações sobre a doença ainda persistem, bem como
o preconceito com o paciente. Aqueles que são diagnosticados de
imediato por vezes abandonam o tratamento e voltam a transmitir
a enfermidade para aqueles que possuem um contato de convivência
diária.9

9 Dados fornecidos no evento “Hanseníase na Atenção Primária à Saúde” organizada


pela Federação Internacional de Associação de Estudantes de Medicina (IFMSA-BRAZIL-
UFPA), 2017.

103
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Por ser uma doença contagiosa10, porém hoje com


possibilidade de cura, ainda existe uma acentuada falta de
informação sobre a hanseníase, logo compreendemos que pesquisas
sobre a História da hanseníase podem gerar ações direcionadas
aos discentes da Escola de Aplicação da UFPA contribuindo
para fornecer narrativas a cerca do bairro, atualmente chamado
Guamá, a partir das memórias que perpassam sobre o Asilo
do Tucunduba e também instigá-los a repensar a ausência de
informações diante da hanseníase e o processo de estigmatização
que os portadores da doença carregam em seu cotidiano ao longo
do tempo.
A história sociocultural da doença vem incorporando na
narração do passado a memória e a voz daqueles que foram durante
longos anos, simplesmente hansenianos. Essa por sua vez está
interligada a ressentimentos em que temas sensíveis são postos a
debate trazendo a história de hostilidade sofrida pelos excluídos.
Pensar a história da lepra pelo viés dos sujeitos que adoeceram
inclui perceber estruturas de poder, atitudes de grupos distintos e
as relações do sujeito com o seu contexto social.
A partir do exposto buscamos por meio da produção de
materiais didáticos, entre esses, cartilha, infográfico e jogo inserir a
temática da hanseníase no espaço escolar, mas precisamente entre
os alunos do 8º ano do Ensino Fundamental. Para tanto pensamos
na realização de palestras, oficinas e visitações a espaços de pesquisa,
com os discentes, a fim de coletar dados sobre a hanseníase
nas primeiras décadas do século XX, na cidade de Belém, mas
precisamente a respeito do Asilo do Tucunduba, já mencionado
acima.11

10 A contaminação ocorre por meio da bactéria, Mycobacterium leprae, também


conhecida como bacilo de Hansen, devido tal descoberta ter sido realizada pelo norueguês
Gerhard Henrick Armanuer Hansen em 1874. Segundo o guia para controle da hanseníase
elaborado pelo Ministério da Saúde, trata-se de uma doença infecto-contagiosa com
evolução gradual e que apresenta sintomas dermato-neurológicos, com lesões na pele e nos
nervos periféricos, principalmente nos olhos, mãos e pés.
11 Devido ao quadro da pandemia as visitações, palestras e oficinas não ocorreram em
2020. Então o projeto destinou suas atividades para a produção de material didático para
serem aplicados posteriormente.

104
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Em todo caso, as atividades pensadas para os discentes teria a


participação de uma equipe multidisciplinar que abordasse a doença
sob o ponto de vista biológico e a lente da medicina em diálogo com
a História social. Inicialmente atentando para a compreensão entre
o corpo e a relação saúde/doença, pontuando os cuidados com a
higiene pessoal, abordando como em diferentes temporalidades os
hábitos e a mentalidade foram se modificando sobre a percepção
da higiene. Para tratar em uma oficina inicial elaboramos uma
cartilha, contendo indagações sobre a história da higiene e o que
é uma doença, além de orientações gerais sobre os cuidados com o
corpo e sua correlação com a saúde/doença. Segue abaixo algumas
imagens da cartilha “O cuidado de si”12

12 A cartilha foi elaborada por: Calebe Ferreira, Cainan Melo, Elane C. Rodrigues
Gomes, Mateus Cunha e Rebeca Junior Cardoso.

105
IX Colóquio de História das Doenças: anais

106
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Fonte: “Cartilha O Cuidade de Si”.

Resultados
A partir do cenário de Pandemia instaurado, as atividades e
oficinas pensadas para serem realizadas no espaço da sala de aula
precisaram ser remodeladas a fim de conseguir atender contexto
de suspensão das aulas presenciais. Anteriormente, as produções
de materiais didáticos seriam feitos pelos alunos acompanhados da
professora e colaboradores; porém, estas produções tiveram que ser
elaboradas pelos cooperantes a fim de levar adiante os estudos e a
efetivação do projeto estabelecido na Escola de Aplicação.
Os materiais didáticos idealizados tem a função de informar,
orientar e esclarecer as dúvidas e desconstruir preconceitos
existentes em torno da Hanseníase através do ensino com uma
linguagem acessível aos discentes. Até o presente momento, os
integrantes conseguimos realizar a produções de uma cartilha
(intitulada de “O cuidado de si”) e de infográficos que têm o objetivo

107
IX Colóquio de História das Doenças: anais

de orientar sobre os cuidados necessários com o corpo e a higiene,


como também, introduzir temáticas relacionadas com locais de
memórias da Hanseníase no passado/presente da cidade de Belém.
A cartilha foi produzida de forma multidisciplinar que
transita entre temáticas relacionadas à biologia, enfermagem e
história. Visa informar sobre os principais cuidados com o corpo,
higiene e proteção da pele, e também retratar sobre a história da
saúde e das doenças. O material será utilizado como uma forma
de iniciar o diálogo com os alunos a respeito da importância do
cuidado sobre o corpo e a higiene, bem como, demonstrar como os
costumes e cuidados com corpo mudaram ao longo do tempo.
Dessa maneira, o aluno participante não aprenderá não
apenas sobre a Hanseníase e o seu passado na história, mas também
como ocorre a transmissão do bacilo, tratamento, diagnóstico e
prevenção. Pretendemos fazer com que os estudantes possam ter o
maior esclarecimento a respeito da temática, pois acreditamos que
eles podem se tornar difusores de informação e conhecimento para
membros da família e pessoas do seu circulo social.
Os primeiro infográfico intitulado “Lá no bairro do Guamá
têm...” teve a finalidade de identificar o espaço que o Asilo do
Tuncuduba foi instaurado entre 1815-1938 e destacar os principais
pontos conhecidos do bairro do Guamá na atualidade (Cemitério
Santa Izabel, Hospital Barros Barreto e Escola Estadual Frei Daniel)
colocando em evidência que o Asilo do Tucunduba estava localizado
na mesma área dessas referências. Dessa forma, permite com que os
alunos tenham uma identificação da localização espacial e consigam
compreender as mudanças que ocorreram dentro dessa região já que
deixou de ser um bairro destinado para o isolamento de indivíduos
acometidos pela Hanseníase e outras doenças e, hoje, tornou-se um
dos bairros mais populosos da cidade de Belém.
Após a identificação do espaço que era instalado o Asilo
do Tucunduba, o segundo infográfico aborda sobre como era
organizada a sua infraestrutura a partir de um Croqui feito pelo o
jornal católico “A Palavra”, em 1918. Como também, sobre o modo

108
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

de vida desses internos no Asilo a fim de que os discentes possam


conhecer as precárias condições de sobrevivência do internos na
época.
Interessante pontuar que neste infográfico retomamos as
memórias de Frei Daniel Rossini Samarate, religioso que através da
escrita do seu diário permitiu adentrar no cotidiano dos internos
e nas experiências sociais trocadas entre si e para além do espaço
físico do asilo, relatando festas, batizados, rebeliões e assassinatos
no interior do leprosário.
Os infográficos permitem aos discentes uma introdução
sobre a temática da história da hanseníase e a necessidade de
conhecer um passado que deixou vestígios em seus espaços de
moradias, ampliando seus conhecimentos sobre uma doença
negligenciada e tão presente atualmente no bairro do Guamá.13
Assim como assegurar conhecimento e respaldo sobre a doença
para que preconceitos historicamente construídos sejam revisitados
e desconstruídos em relação à estigmatização sofrida pelas pessoas
acometidas por hanseníase.

Referências:
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
2013.
DIAS JÚNIOR, José do Espírito Santo. Cultura Popular no Guamá: Um estudo
sobre o boi bumbá e outras práticas culturais em um bairro de periferia de Belém.
Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós-Graduação em
História Social, Universidade Federal do Pará, Belém, 2009.
FARGE, Arlette. Lugares para a História. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2011.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade

13 De acordo com os dados do SINAM e do Relatório do Conselho de direitos


humanos das Nações unidas-Relatório da Relatora Especial (Alice Cruz ) para a eliminação
da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares em sua visita
ao Brasil em 2020 (Alice Cruz). Ver: FACTSHEET: Relatório da Relatora Especial Alice
Cruz para o Conselho de Direitos Humanos, Junho de 2018 (A/HRC/38/42). Disponível
em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Leprosy/fact_sheet_20-06-18_PT.pdf.
Acesso em: 15 fev. 2021.

109
IX Colóquio de História das Doenças: anais

deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.


GOMES, Elane Cristina Rodrigues. A Lepra e a Letra: escrita e poder sobre a doença
na cidade de Belém (1897-1924). Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2019.
LE GOFF, Jacques. As doenças têm História. Lisboa: Terramar-editores, 1997.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
HENRIQUE, Marcio Couto. Escravos no purgatório: o leprosário do Tucunduba
(Pará, século XIX). História, Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19,
dez., 2012.
HENRIQUE, Marcio Couto. Segregados, mas nem tanto: as experiências de
isolamento compulsório de leprosos no Pará. In: MONTEIRO, Yara Nogueira
(org.). História da hanseníase no Brasil: silêncios e segregação. São Paulo: LEER-
USP/ Fundação Paulista Contra hanseníase, Intermeios, 2019.
MANCABÚ, Milanca. Saúde e Saneamento: Doenças Causadas por Veiculação
Hídrica nas Áreas Riacho Doce Pantanal em Belém/PA e Desafios da
Intersetorialidade. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Pará, 2013.
MATTOS, Debora Michels; FORNAZARI, Sandro Kobol. A lepra no Brasil:
representação e práticas de poder. Cadernos de ética e filosofia política, n. 6, v. 1,
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MONTEIRO, Yara Nogueira (org.). História da hanseníase no Brasil: silêncios
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contexto, representação social e alguns debates na história das doenças. Khronos,
Revista de História da Ciência, n. 6, 2018. Disponível em: http://revistas.usp.br/
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PORTER, Roy. O que é a doença? In: PORTER, Roy. História da Medicina. Rio de

110
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Janeiro: editora Revinter, 2006.


RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007.
VIANNA, Arthur. A Santa Casa da Misericórdia Paraense: notícia histórica 1650-
1902. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1992.

111
A infância na Era Vargas:
Contribuições da LBA para a imagem da criança
bem cuidada no Piauí
Francilene Teles da Silva Sousa1
Joseanne Zingleara Soares Marinho2

Introdução
A parceria entre Estado e instituições filantrópicas,
sendo a Legião Brasilieira de Assistência (LBA) a maior delas,
consolidou o amparo social no Brasil. A mobilização de milhares
de mulheres que fizeram parte do voluntariado da LBA foi bem
vista aos olhos do governo, uma vez que era uma cooperação
abnegada e os resultados iriam promover o regime ditatorial
(LIRA, 2017). Assim, com Comissões distribuídas por todo o
território nacional a instituição conseguiu, em consonância
com os ideais do governo ditatorial varguista, desenvolver
ações assistencias direcionadas, especialmente, para a proteção
materno-infantil.
O governo de Vargas (1930-1945) possuía forte interesse
pelo desenvolvimento de políticas sociais, mais especificamente,
direcionadas a assistência à saúde da criança. Não
surpreendentemente as crianças e os jovens foram frequentemente
usados na propaganda do Estado Novo (LIRA, 2017). A ideia
de construir uma proximidade com o povo a partir da imagem

1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela UESPI. Especialista em


Atendimento Educacional Especializado (AEE) pela FAEME. E-mail: francileneetelless@
hotmail.com.
2 Doutora em História pela UFPR. Professora do Mestrado Profissional em Ensino de
História PROFHISTÓRIA e da Graduação em História da UESPI. E-mail: joseannezsm@
gmail.com.

113
IX Colóquio de História das Doenças: anais

da criança bem cuidada e representando o futuro de uma nação


saudável oportunizou o crescimento de ações filantrópicas e
assistenciais em torno da saúde da criança.
O principal objetivo de políticos, médicos e das instituições
filantrópicas, era a diminuição da mortalidade infantil e, nesse
sentido, a substituição de práticas curativas pela medicina científica
representava o caminho mais certo a ser seguido. A LBA em parceira
com outras instituições filantrópicas como a Casa da Criança,
sediada na capital do Piauí, desenvolveu ações realizadas através de
campanhas pedagógicas, cursos para as mães, atendimento médico,
acompanhamento constante da criança, distribuição de alimentos
seguindo as recomendações dos pediatras, vacinação (BARBOSA,
2017). Além disso, eram ofertados serviços no Lactário da
instituição.
Levando em conta esse contexto, o trabalho objetiva analisar
as ações da Legião Brasileira de Assistência (LBA) direcionada para
a exposição da imagem da criança piauiense bem cuidada de acordo
com os poderes públicos e os médicos. Para tanto, foi construída
uma pesquisa bibliográfica, na qual a abordagem analítica permitiu
a verificação dos fatos relatados nos estudos primários publicados
em livros, teses e revistas. Além disso, foram utilizadas as fontes do
jornal Diário Oficial do Piauí, especificamente do ano de 1942 ao
ano de 1945.
Constatou-se que o período ditatorial foi marcado por
uma política assistencial emergente direcionada aos pobres
e utilizando-se da imagem da criança para promover o Novo
Regime. A grande preocupação do governo varguista era
construir um país desenvolvido, no qual o patriotismo era
imperativo e a infância era a porta de entrada para a construção
de uma população saudável e amistosa. No Piauí, as ações
direcionadas à maternagem e à criança foram executadas graças
ao voluntariado feminino reunido pela Comissão Estadual
da LBA, a atuação substancial de médicos especialistas e do
empresariado.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Assistencialismo: contribuições da Legião Brasileira de


Assistência para a infância pobre e desvalida
Fundada em 28 de agosto de 1942, ao mesmo tempo em
que Getúlio Vargas anunciava a entrada do Brasil na Segunda
Guerra Mundial, a LBA configurou-se como principal instituição
filantrópica dedicada ao desenvolvimento das políticas de
assistência, propondo-se não demoradamente a atender a infância
pobre e desvalida (MARTINS, 2011). A instituição foi criada dentro
de um contexto de controle governamental, no qual as práticas
assistenciais deveriam está de acordo com os ideais defendidos
pelo governo ditatorial (SILVA, 2003). Além disso, era composta
majoritariamente por mulheres que, com exceção da diretoria, não
ocupavam cargos administrativos (SIMILI, 2008).
A instituição presidida por Darcy Vargas possuía sede no
Rio de Janeiro e começou a funcionar em 15 de outubro do mesmo
ano, após elaboração do seu Estatuto, sistematização de suas ações
e formas de parcerias (SOUSA, 2021). A LBA espalhou-se pelos
estados brasileiros sob a direção das esposas dos interventores
federais e tornou-se parceira do Governo Federal, atuando nos
programas de proteção à maternidade e à infância, de acordo com as
políticas criadas pelo Departamento Nacional da Criança (DNCr)
(MENESES, 2021).
Durante o governo Vargas ações assistenciais voltadas para a
maternidade e a infância tornaram-se assunto de interesse público,
inclusive no Piauí (SOUSA; MARINHO, 2021). Para manter a
mesma estrutura da Comissão Central da LBA nos demais Estados
Darcy convocou mulheres influentes na sociedade brasileira, bem
como solicitou que todas as primeiras-damas dos estados brasileiros
atuassem como voluntárias à frente das Comissões Estaduais
espalhadas pelo país (SILVA, 2018).
O ideário do governo girava em torno da construção de
um país, no qual a resolução dos problemas sociais seria foco de
suas ações. As políticas de saúde direcionadas para a infância
foram emergentes e bastante intervencionistas (FONSECA,

115
IX Colóquio de História das Doenças: anais

1993). Assim, as políticas direcionadas aos brasileirinhos tinham


cunho assistencialista e significavam uma oportunidade para o
desenvolvimento nacional (SILVA, 2003).
A preocupação com a infância passou a ter seu interesse
fortalecido, a partir da mensagem de Natal do Presidente Vargas,
divulgada nacionalmente em 1939. Na mensagem ele afirmava que o
desenvolvimento do país dependia imperiosamente da colaboração
de todos os brasileiros para que as crianças pudessem ser amparadas
nas áreas da saúde, educação e do desenvolvimento social (SEMANA
da Criança, 1943).
Nessa direção, o Estado passou a preocupar-se com ações
assistenciais voltadas para o socorro dos brasileiros em relação à
fome e a miséria. Além disso, passou-se a considerar a formação do
indivíduo como cidadão trabalhador desde a infância e, por essa
razão, investir para que a criança fosse saudável e disciplinada era
essencial (SOUSA; MARINHO, 2021).
A assistência à infância, então, passou a ser um dever de
todos os brasileiros, uma vez que, era considerada como uma
riqueza potencial do país. Nesse propósito instituições e associações
filantrópicas espalhadas por todo território nacional, durante as
primeiras décadas do século XX, passaram a voltar suas ações para
a infância, assim, criou-se “um proposito comum: ‘salvar a criança’
para transformar o Brasil.” (RIZZINI, 2008, p. 27).
Durante a era Vargas a LBA direcionava uma atenção especial
à infância procurando promover na sociedade a consciência da
importância da criança sadia e disciplinada como um elemento
importante para o desenvolvimento da pátria (SOUSA; MARINHO,
2021). A instituição possuía uma rede de colaboradores que unia a
participação dos brasileiros e a articulação dos poderes públicos e
privados (BARBOSA, 2017).
A divulgação da imagem do presidente associada às ações
assistenciais ligadas às crianças era corriqueira, como a Imagem 1
exposta abaixo:

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Imagem 1: O Presidente com uma criança no colo durante a Semana da Criança de 1944.
Fonte: Diário Oficial (1944 Apud MARINHO, 2008).

A criança exposta na fotografia era robusta e representava


a concretização da criança bem cuidada assistida pelas políticas
públicas voltadas para a infância. Essa imagem de Vargas como o
Salvador do Brasil era construída com o auxílio do Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP). Assim, o presidente deveria
demonstrar ao povo que era amigo dos brasileirinhos e preocupava-
se com a concretização das ações assistenciais desenvolvidas por
todo território nacional.
O período ditatorial foi caracterizado por uma política
assistencial emergente, direcionada aos pobres e desvalidos.
Nesse sentido, o desenvolvimento de um país composto por uma
população saudável, a começar pelas crianças, era uma das grandes
preocupações do governo ditatorial, que buscava promover-se
através das ações filantrópicas, como, as destinadas à maternagem e
à criança (SOUSA; MARINHO, 2021).

A infância desvalida: o assistencialismo promovido pela


LBA em parceria com o Governo e médicos piauienses
As preocupações em torno da mortalidade infantil, da
delinquência, da educação, da alimentação inadequada, ou falta
dela, e do abandono eram frequentes. Logo, “cuidar da infância

117
IX Colóquio de História das Doenças: anais

passou a significar uma intenção que transcendia o campo das


relações familiares e da caridade, para corresponder a uma forma
de garantir a paz social e o desenvolvimento” (MARINHO, 2017,
p. 109). Além disso, a colaboração dos brasileiros era exaltada
nacionalmente, pois dela dependiam as ações assistenciais (SOUSA;
MARINHO, 2021).
A filantropia, notadamente, a partir do século XX, passou a
ser um gesto de utilidade e ganhou força com a publicidade dada
as ações das diversas instituições e, através disso, promoviam-se,
sobretudo, os poderes público e privado (SANGLARD, 2003).
Além disso, era convocada toda a sociedade a fazer parte das ações
filantrópicas direcionadas aos desfavorecidos, especialmente, mães
e filhos pobres.
A filantropia como prática para o enfrentamento da pobreza
e da mortalidade infantil passou a ter a atuação dos poderes público
e privado, bem como dos médicos. A nova política assistencialista
incorporada pelos brasileiros era uma garantia para que as mães
pudessem gestar, dar à luz e cuidar dos seus filhos, fazendo perpetuar
uma infância, na qual as crianças fossem saudáveis e robustas
(LEGIÃO, 1944).
A mortalidade infantil alcançava índices elevados fazendo
com que a condição dos brasileirinhos implicasse em um problema
nacional. A fragilidade da infância e a preocupação dos médicos
a respeito da necessidade de um atendimento específico para essa
fase da vida trouxeram para a medicina o desafio de construir uma
abordagem destinada, especificamente, à criança (MORAES, 2014).
A proximidade entre mães e médicos foi construída através
dos discursos sobre a alimentação das crianças. Nos discursos,
médicos pediatras evidenciavam a preocupação com qualidade da
alimentação, uma vez que as doenças gastrointestinais eram uma das
causas das elevadas taxas de mortalidade infantil (MORAES, 2014).
Para os médicos especialistas as mudanças relativas à alimentação
deveriam ser orientadas pelo profissional especializado e a mãe
caberia o papel de seguir as recomendações.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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Desse modo, eram comuns anúcios publicados no Diário


Oficial com as seguintes mensagens “Não há saúde perfeita sem
alimentação escolhida e variada. Em qualquer regime é indispensável
o uso de frutas cruas e legumes frescos. Como laranja, banana,
mamão, abacate, manga, espinafre, couve bertalha, chicorea, tomate
e cenoura” (SALADA de saúde, 1943, p. 6); ou “O uso diário de
frutas legumes, leite e ovos, dá saúde e vigor, sobretudo combinado
ao banho frio, depois de exercicios ao ar livre e ao sol” (RESUMO
da saúde, 1943, p. 6).
As mensagens exaltavam a necessidade de uma alimentação
rica em frutas, legumes, leite e derivados exemplificando os
alimentos que deveriam ser obrigatoriamente consumidos, para
que todos da família pudesem gozar de boa saúde. Os alimentos
colocados teriam que aproximar-se da realidade local, portanto,
os gêneros alimentícios expostos eram facilmente encontrados
ou cultivados pela população local. Além disso, as propagandas
em torno da criança saudável e feliz eram parte das publicações,
conforme imagem a seguir:

Imagem 2: Propaganda do refrigerador Westing-House. Fonte: Diário Oficial (1942).

119
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Era disseminada ainda, por meio de propagandas, a


importância de manter os alimentos guardados corretamente para
que todos permanecessem saudáveis. Propagandas mostrando o
refrigerador com frutas, verdura, legumes, leite e derivados, por
exemplo, eram expostas para divulgar a imagem que deveria ser
retrata nos lares para que os membros da família tivessem conforto
garantido. Nota-se ainda a presença da criança robusta e feliz ao
lado do eletrodoméstico, pois essa era a imagem esperada pelo o
Governo, instituições filantrópicas e médicos especialistas.
Conforme o ideário da época, a causa das enfermidades que
assolavam a infância era a alimentação inadequada, pois causava
distúrbios intestinais. Logo, a higiene e a puericultura eram a ponte
que libertaria as crianças desses males, pois indicavam as regras
para uma alimentação saudável e adequada (OLIVEIRA, 2015).
Para isso as mães deveriam reproduzir o que aprendiam nos cursos e
instituições que realizavam esse trabalho, para que, em colaboração
com os médicos propagassem as noções de higiene infantil e, se bem
orientadas, seus filhos cresceriam fortes e belos.
Outro fator que se destacava nas propagandas era a robustez
da criança. Sendo considerada como um efeito dos benefícios
promovidos na infância da criança bem cuidada. As propagandas
salientavam a robustez como um efeito das melhorias promovidas
na saúde ao desenvolvimento físico dos pequeninos e no combate às
doenças que eram comuns na primeira infância (OLIVEIRA, 2015).
As publicações com maior destaque dizem respeito à Emulsão de
Scott, de acordo com a Imagem 3:

120
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Imagem 3: Propaganda da Emulsão Scott. Fonte: O Piauhy (1930). (EMULSÃO de Scott,


1930).

A intenção das propagandas era aumentar a procura pelos


produtos e promovê-los como medicamentos essenciais para a
manutenção da saúde das crianças, melhoria do apetite e aumentar
o desempenho das crianças durante as brincadeiras. Além disso,
o tônico era comumente recomendado pelos médicos da época
aumentando ainda mais a credibilidade e a confiança da população
a respeito do produto.
No Piauí, o Interventor Federal Leônidas Mello comprou
um terreno na capital Teresina, para que fosse construída a Casa
da Criança. A instituição era responsável por ajudar a Comissão
Estadual da LBA, liderada pela esposa do Interventor, Maria do
Carmo Mello, a desenvolver ações voltadas para o amparo e proteção
da saúde materno-infantil (MARINHO, 2017).
A instituição era composta por dois andares: o térreo era
constituído por um ambulatório de puericultura e pediatria, um
consultório para exames de pré-natal, uma sala para exame infantil,
uma sala para procedimentos simples, um setor de esterilização, um
lactário e um refeitório; já no primeiro andar funcionava a creche e
o jardim de infância, sendo destinado, portanto, a permanência das
crianças (CONSTRUÇÃO, 1943).

121
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Imagem 4: Distribuição de Mamadeiras Realizada na Casa da Criança. Fonte: Diário


Oficial (1943).

Na imagem 4, representada acima, está Maria do Carmo


Mello que, na ocasião distribuiu às crianças carentes da capital
cerca de 300 mamadeiras. Os itens seriam destinados às crianças
atendidas pelo lactário da Casa da Criança. Salienta-se que este foi
o primeiro a funcionar em Teresina (MARINHO, 2017).
As ações desenvolvidas no lactário eram direcionadas ao
combate a desnutrição, tida como uma das principais causas da
mortalidade infantil no Piauí. Era mantido pela LBA e pelos
governos estadual e municipal, bem como pela inciativa privada,
através de doações. Sob a direção da voluntária Zoraima Rodrigues,
o lactário atendia diarimanete mais de 250 crianças. Desse modo,
era prescrito o regime alimentar para as crianças e realizadas
aproximadamente 550 refeições diárias (LEGIÃO, 1944).
Outra maneira encontrada para promover a imagem da
criança bem cuidada era a Semana da Criança, evento anual desde
sua instituição em outubro de 1934. O evento ajudava a disseminar
a importância e o cuidado necessário para com as crianças. A
realização da Semana era fruto da ação conjunta entre a Divisão de
Amparo à Maternidade e à Infância e do Ministério da Educação
e Saúde, sob a direção do Prof. Olinto de Oliveira (OLIVEIRA,
2015).

122
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Questões a respeito das doenças e da mortalidade infantil


também eram discutidas. Durante a Semana realizada em 1943,
em Teresina, a publicação do Diário Oficial deixava claro que “em
Teresina, em 1942, falecem só de diarreia e enterite abaixo de 2
anos 266 crianças. Aí, não estão computados os óbitos infantis
decorrentes de outras causas, tendo sido 990 o obituário geral” (A
CRIANÇA, 1943, p. 4).
A mortalidade infantil era uma preocupação no âmbito
nacional, visto que manter as crianças saudáveis representava
um forte ideário de nação desenvolvida e feliz, além de ser uma
preocupação do governo Vargas. Exemplificando essa preocupação,
a palestra realizada pelo Dr. Anastácio Ribeiro Madeira Campos
destacava o cuidar da criança como um ato, sobretudo divino,
referindo-se a Jesus Cristo para conferir credibilidade a sua
argumentatividade (PALESTRA, 1945).
O médico deixava clara a intenção do Estado em continuar
a promover ações assistenciais para a infância, contudo, era
preciso que outras instituições também participassem. Era preciso
a intervenção de todos para que as crianças continuassem a ser
beneficiadas. Reafirmava-se a necessidade da implantação de uma
política de saúde no Brasil, que foi fundamentada no nacionalismo
e no paternalismo (FREIRE, 2012).
A proteção à infância deveria se embasar em exercício
adequado de práticas de maternagem, informadas metodicamente
por preceitos científicos. A imprensa piauiense destacava a ausência
de cuidados destinados às crianças e atribuía às mães o papel de
zelar e garantir aos filhos melhores condições de saúde. Destacava-
se que as mães deveriam ser instruídas de acordo com os preceitos
ditados pela higiene e pela puericultura (OLIVEIRA, 2015). Os
conhecimentos relativos a essas matérias iriam reduzir as doenças e,
consequentemente, a mortalidade infantil.
Conforme as políticas de assistência à saúde materno-infantil
expandiam-se, o Estado precisa alavancar os serviços médicos
ofertados de modo que, em 1944, o Interventor relatou por meio de

123
IX Colóquio de História das Doenças: anais

relatório ao chefe nacional que o Piauí contava com três Distritos


Sanitários, tendo como sedes as cidades de Teresina, Parnaíba
e Floriano. Os distritos foram distribuídos estrategicamente no
centro, norte e sul do Piauí. Além disso, o Estado possuía quatorze
Postos de Higiene, localizados nas cidades de Campo Maior, Barras,
União. José de Freitas, Berlangas, Amarante, Luzilândia, Piripiri,
Piracuruca, Pedro II, Oeiras, Picos, São João do Piauí e Bom Jesus
(RELATÓRIO, 1944).
A difusão de noções de higiene e de puericultura, de acordo
com a medicina especializada, era realizada por médicos que
conseguiam uma proximidade com as mães através do discurso
sobre a importância da alimentação de qualidade. Com isso as
práticas de maternagem ganharam um suporte cientifico. O controle
dos dados permitia o acompanhamento do número de crianças
atendidas. Para que as atividades desenvolvidas pelo Centro de
Saúde obtivessem êxito, a parceria com as mães era fundamental.
Assim, a consientização quanto à importância da imunização e do
acompanhamento dos filhos nos meses solicitados pelos médicos
deveria ocorrer.
Os postos de saúde distribuídos por todo o Estado enviavam,
por meio de relatórios, os dados referentes a quantidades de pessoas
atendidas, separados por sexo, idade e por tipo de atendimento
recebido. Garantir que o governo tivesse acesso direto aos dados
dos postos de higiene e dos três distritos de saúde era uma
obrigatoriedade. Ademais, evidencia-se que a localização de cada
unidade de saúde era definida diante da facilidade de acesso, bem
como pelas características especificadas através da classificação das
doenças (MARINHO, 2018).
O trabalho realizado era “padronizado por intermédio de
uma fórmula de relatório mensal, baseada em outra de registro
diário de atividades, de maneira a possibilitar a comparação da
produção de cada unidade e o cômpulo de todas, nos próximos anos”
(RELATÓRIO, 1944, p. 11). A sistematização obrigatória focava
no monitoramento da evolução da quantidade de pessoas assistidas.

124
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Considerações Finais
As iniciativas assistencialistas dos poderes público e privado,
junto aos médicos e a LBA, estavam direcionadas para a promoção
da infância saudável e seguiam uma orientação nacional, pois
se tratava de um regime ditatorial. No Piauí, especificamente,
as ações públicas voltadas para os serviços de saúde dedicados a
saúde materno-infantil contavam com o apoio também de outras
instituições filantrópicas, como, a Casa da Criança.
As altas taxas de mortalidade infantil impulsionaram a
elaboração de um sistema de saúde centralizado, no qual os serviços
eram padronizados por todo o Estado através dos Centros e Postos
de Saúde distribuídos estrategicamente. A infância passou a ser
vista pelo governo como um subsídio para que o regime ditatorial
pudesse ser legitimado, assim, passou a ser implantada na sociedade
a necessidade de que todos participassem das ações voltadas para a
promoção da saúde infantil.
A necessidade de um atendimento especializado para essa
fase da vida demandou a oferta de médicos pediatras e profissionais
especializados em áreas da saúde pública que pudessem contribuir
para a diminuição da proliferação das doenças que acarretavam
elevados índices de mortalidade infantil. Além disso, os médicos,
especialmente pediatras, passaram a ter uma relação mais próxima
com as mães das crianças para que pudessem ser realizados trabalhos
de acompanhamento e tratamentos em torno da alimentação e do
cuidado para que os índices de mortalidade caíssem.
A Casa da Criança, por sua vez, atuava junto a Comissão
Estadual da LBA, em Teresina, no enfrentamento da pobreza e
na promoção de ações voltadas para a saúde materno-infantil. A
parceria entre Estado e instituições filantrópicas constituiu-se numa
importante estratégia para que os planos do governo de construir
uma nação saúdavel, na qual a criança representava o futuro do país,
fosse colocado em prática.
Os serviços de saúde foram desenvolvidos, majoritariamente,
por instituições filantrópicas, através de parcerias entre o poder

125
IX Colóquio de História das Doenças: anais

público, a iniciativa privada e o voluntariado. Eram realizados


programas de aperfeiçoamento, cursos, divulgação de informações
ligadas ao tema por meio da imprenssa local e nacional. Essas
políticas ocorreram sob forte atuação da LBA que articulou ações
assistenciais e campanhas de caráter filantrópico tendo com alvo a
maternidade e a infância.
As campanhas realizadas com incentivo do Estado e de
médicos puericultores influenciaram o modo de maternar e o
cuidar da criança. A busca pela diminuição da mortalidade infantil
e pela melhoria da qualidade de vida fez surgir a emergência da
criação de instituições voltadas para a saúde materno-infantil. O
atendimento a mulheres e crianças era prestado em lactários, postos
de puericultura, centros de saúde, ambulatórios localizados em solo
piauiense. Ressalta-se que essa política tinha caráter nacional, na
qual o Estado autoritário persuadia a sociedade civil a atuar em prol
do desenvolvimento da nação através do voluntariado.

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127
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Acesso em: 01 set. 2021


PALESTRA do Dr. Anastácio Ribeiro Madeira Campos, a 15 deste, ao microfone
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SOUSA, Francilene Teles da Silva; MATOS, Francisco Alex da Silva; MARINHO,
Joseane Zingleara Soares. A Legião Brasileira de Assistência (Lba) e a Casa da
Criança no auxílio à saúde materno-infantil no Piauí (1942-1945). CONGRESSO
INTERNACIONAL DE GÊNERO, PRÁTICAS E EPISTEMOLOGIAS:
ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS. Anais... MARINHO, Joseane
Zingleara Soares; FONTINELES FILHO, Pedro Pio (org.). Teresina: FUESPI,
2021, p. 154-171. Disponível em: https://editora.uespi.br/index.php/editora/
catalog/download/45/34/231-1?inline=1. Acesso em: 1 set. 2021.

128
O Asylo Sant’ana:
entre discursos e reinvindicações surge um novo
espaço para a loucura na Parahyba oitocentista
(1858-1892)
Gerlane Farias Alves1

Introdução
Até a segunda metade do século XIX, a Província da Parahyba
do Norte2 ainda não dispunha de um lugar próprio para abrigar
alienados. Por conta disso, era comum que estas pessoas vagassem
pelas ruas sem direção, fossem encarcerados nas prisões quando
apresentavam comportamentos violentos que pudessem por em
risco a vida dos demais cidadãos ou fossem enviados para o Hospital
de Caridade mantido pela Santa Casa de Misericórdia da Parahyba
quando sua família não apresentava possibilidade financeira de
cuidar deles.
Por sua vez, os relatórios de provedoria narram as
dificuldades em se manter esse tipo de doente no Hospital de
Caridade, pois além de não possuírem espaço adequado para eles,
estes pacientes acabavam por destruir os cômodos do hospital
em seus acessos de loucura, além de tirar a tranquilidade da
instituição e das casas que ficavam em volta com seus gritos e
lamentos.

1 PPGH/UFPB. E-mail: [email protected]


2 Durante o texto, o leitor irá encontrar as nomenclaturas “Província da Parahyba
do Norte” e “Cidade da Parahyba”. Esclareço aqui que Província da Parahyba do Norte
(topônimo utilizado até o início do século XX) designa o atual Estado da Paraíba. Já o
termo Cidade da Parahyba se refere à sua atual capital, João Pessoa, que ganhou esse
nome em 1930 devido à homenagem póstuma prestada a seu presidente de Província,
assassinado em Recife.

129
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Em virtude desse problema que despertava, muitas vezes,


criticas aos dirigentes da província por parte da população e trazia
insatisfação aos dirigentes da Santa Casa por não poder negar o
acolhimento a esse tipo de doente no Hospital de Caridade, o
qual os mesmos alegavam não ter condição de fazê-lo (além de
outros problemas que faziam parte do contexto social em que a
Parahyba vivia), no final do século XIX acirraram-se os debates
em torno da construção de um local adequado para o atendimento
dos alienados longe do centro da capital e dos olhos da sociedade
paraibana.
O local escolhido passa a ser uma região afastada, um sitio
doado a Santa Casa de Misericórdia em um local conhecido como
Cruz do Peixe3, onde já existira um Colégio de Educando Artífices4,
e que ainda abrigava uma enfermaria/hospital5 para variolosos e um
cemitério para o enterramento de pessoas acometidas de doenças
contagiosas oriundas dessa enfermaria, evitando assim que se
cruzasse a cidade com os temidos corpos.
Portanto, o presente trabalho tem como objetivo analisar o
surgimento do Asilo Sant’Ana na região da Cruz do Peixe levando
em conta as condições sanitárias do local e o espaço reservado
para o acolhimento dos novos moradores, problematizando
3 O Sítio da Cruz do Peixe é uma área de João Pessoa onde atualmente fica localizado
o Hospital Santa Isabel, construído em 1914. Segundo a história popular do local, o
nome Cruz do Peixe teria surgido por ocasião de naquela localidade funcionar o ponto de
encontro dos “pombeiros” (atravessadores) que ficavam em Tambaú onde hoje é a feira do
peixe. Estes vendedores desciam as ruas com a mercadoria pendurados nos “calãos” (hastes
de madeira) onde prendiam dois balaios para oferece-la à burguesia e à aristocracia que
residia nas ruas Nova (atual General Osório), Direita (atual Duque de Caxias) e da Areia,
que à época se chamava Barão da Passagem. Cf. CULTURA POPULAR. Disponível em:
culturapopular2.blogspot.com/2010/03/origens-e-apelidos-de-alguns.html. Acesso em:
20 dez. 2017.
4 O colégio dos Educando Artífices foi uma instituição de caráter profissionalizante
criada em 1865 na cidade da Parahyba nos arrabaldes do Sítio da Cruz do Peixe, sendo
inaugurado em 1865, durante o Governo de Silvinio Elvídio Carneiro da Cunha, e extinto
em 1875, por conta do corte de despesas. Tinha como objetivo promover a instrução
da população pobre oferecendo, além do abrigo e do ensino das primeiras letras, uma
formação para o trabalho com a perspectiva de moralização dos “homens pobres e
desvalidos” Ferreira; Bezerra; Kulesza, (2008). Ver também: Santos (2015).
5 A enfermaria, também chamada de hospital Sant’Ana anos mais tarde, funcionava
de forma provisória para atender as epidemias que surgiam de forma transitória na
província, principalmente a varíola.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

os discursos dos dirigentes que defendiam sua criação e as


reinvindicações por um melhor tratamento dado aos pacientes
alienados.
Para isso, são utilizados trabalhos que abarcam o tratamento
dado aos alienados na Parahyba durante a segunda metade do século
XIX e os relatórios de provedoria da Santa Casa para entender o
contexto do surgimento do Asilo Sant’Ana em solo paraibano, os
discursos sobre o destino e tratamento que deveriam ser dados a
esses pacientes e as reivindicações pelo controle do novo espaço
dentro de um contexto social, político e médico-hospitalar nas
décadas finais do século XIX na Parahyba.

O acolhimento de alienados pelo hospital de caridade da


Santa Casa de Misericórdia
O Hospital de Caridade, cujo nome oficial é Hospital de Santa
Isabel, mantido pela Santa Casa de Misericórdia da Parahyba era o
responsável pelo atendimento aos desvalidos da província. Segundo
Wilson Seixas, antes da construção do Hospital o atendimento aos
doentes e pobres, operários e soldados era feito em casas particulares,
onde os irmãos da Misericórdia levavam o lenitivo à dor, o pouso,
o pão, roupa e os remédios nas pequenas choupanas que habitavam
(SEIXAS, 1987, p. 65).
Apesar de não ser possível precisar a data de construção do
Hospital de Caridade, a referência mais antiga que se encontra a
respeito está impressa no relatório apresentado pelo provedor da
Santa Casa, Antônio José dos Foyos, à Mesa Administrativa, no
qual expõe com fidelidade a lastimável ocorrência e a situação de
miséria em que se encontrava o referido Hospital, cujo prédio fora
totalmente destruído na invasão holandesa ocorrida no Nordeste
durante o século XVII (SEIXAS, 1987, p. 67).
Após a reconstrução em seu local de origem (por trás da
Igreja da Misericórdia, no centro da cidade) na segunda metade
do século XVIII, o Hospital de Caridade continuou a prestar o
atendimento médico aos habitantes da Província e com o passar

131
IX Colóquio de História das Doenças: anais

dos anos, passou por várias pequenas reformas com o objetivo


de tentar melhorar as acomodações do prédio e de torna-
lo mais higiênico e livre de doenças contagiosas. O relatório
de provedoria de 1858 assinado pelo Provedor Francisco de
Assis Pereira Rocha, por exemplo, relata que no ano anterior o
Hospital de Caridade da Parahyba havia sofrido uma pequena
reforma que possibilitou a ampliação da enfermaria feminina no
primeiro andar abrindo novas vagas para os alienados mantidos
no térreo do edifício.
Segundo Rocha, para realizar a reforma, havia sido firmado
um contrato entre a Santa Casa e o senhor Francisco Soares da
Silva, encarregado dos reparos, em 9 de fevereiro de 1857. Um dos
termos definia que, tanto a obra do Hospital como outras descritas
dentro do mesmo acordo deveriam durar no máximo oito meses,
com a previsão de ser paga a quantia de 100$000 como multa por
cada mês de atraso da obra. Mesmo assim, a reforma só veio a ter
fim cinco meses depois do prazo estabelecido.
A reforma possibilitou um melhor atendimento aos pacientes
e no final do ano de 1859 o Hospital de Caridade recebeu a visita
do Imperador D. Pedro II que estava de passagem pela Parahyba.
Com a chegada do imperador às terras paraibanas, uma multidão
se formou em frente à Igreja da Misericórdia e em seu entorno. O
imperador, após passar pela capela de São Salvador, dentro da igreja
para “render graças ao todo poderoso”, seguiu para o Hospital ao
lado. Subindo ao prédio, teve acesso às enfermarias e repartimentos,
que notou possuírem pequenas dimensões. O relatório mostra que
internados naquelas dependências existiam apenas duas pobres
enfermas, que “enlevadas durante a visitação imperial, não sentirão
seus sofrimentos (padecimentos) e também erão felises” (ROCHA,
1860, p. 1).
A visitação da majestade imperial acabou com a promessa de
um donativo que seria deixado para a instituição com instruções
precisas de ajudar na ampliação das enfermarias. O provedor ficaria
então incumbido de realizar “tão grande missão” que seria atender
à vontade do imperador. Dois dias depois, a Santa Casa receberia

132
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

também a visita da imperatriz pela manhã. Esta não chegou a visitar


as enfermarias do Hospital “por ser já tarde e andar a pé” (ROCHA,
1860, p. 2).
A visita do imperador no ano seguinte à reforma realizada
em 1858 e seu comentário sobre as “acanhadas dimensões do
edifício” demostram que este ainda não atendia satisfatoriamente
às necessidades da instituição para prestar os devidos serviços
hospitalares à população. O mesmo relatório ressalta ainda as
melhorias trazidas por essa reforma aos alienados. Segundo o
provedor:
fizerão-se no salão inferior correspondente a consinha dois
quartos seguros para loucos. Esta obra era urgente e seu adiamento
prejudicial e [anti-economico] porque os alienados soltos e mal
seguros, como estavão, causavão, frequentes destruições estando
por isso inutilizados os repartimentos do pavimento térreo.
Felizmente depois de promptos os quartos não entraram para
o hospital alienado furioso, tendo elles até hoje servido para
accomodação de doentes de outras moléstias (ROCHA, 1860, p.
2).

O relatório ainda mostra a dimensão dos atendimentos


realizados pelo Hospital de Caridade da Santa Casa entre os anos
de 1857 e 1859. Segundo seus dados, do dia 1º de julho de 1857
ao último dia de junho de 1858 foram tratados 94 doentes; de
1º de julho de 1858 ao último de junho de 1859 foram tratados
225 doentes; e de 1º de julho de 1859 ao último de julho de 1860
foram tratados 261 doentes, dando a ideia do progressivo aumento
ocorrido no Hospital com a reforma. O provedor ainda analisa
que a mortalidade no ano de 1859 foi de 13%, sendo então muito
inferior a mortalidade de julho de 1857 a junho de 1858, que foi de
23%, e muito pouco [inferior] à de julho de 1858 a junho de 1859,
que foi de 12% 80.
Infelizmente, estes documentos não trazem informações
sobre a identidade de tais pacientes, impossibilitando identificar
entre os mortos, a existência de alienados. O que sabemos é que
estes eram colocados dentro do Hospital de Caridade, separados
dos outros doentes, isolados num cômodo, o que causava grandes

133
IX Colóquio de História das Doenças: anais

problemas ao atendimento, por conta de seu “estado mental, que


nem sempre era pacífico” (NEVES, 1875, p. 2).
O problema do espaço reservado aos alienados dentro do
Hospital de Caridade ainda iria se estender por muitos anos. É
comum observar, na fala dos provedores que se sucederam na
administração da Santa Casa, durante toda a segunda metade do
século XIX, a preocupação com o tratamento dado a esse tipo de
doente nas dependências do Hospital. O provedor Pe. Lindolfo
José Corrêa das Neves, por exemplo, lembra de um triste episódio
ocorrido no Hospital em 1862. Segundo ele:
ainda não há muito, senres, com horror volo recordo, um medico
pedio, e obteve consentimento para ter um alienado de sua clinica
em um cubículo da Enfermaria, o que lhe foi concedido; esse
infeliz morreu com os braços atados, coberto por uma camisa de
força, que lhe occultavão as chagas, que nos pulsos lhe fizerão os
atilhos, penetraram nas carnes até os ossos! (NEVES, 1862, p. 21).

Corrêa das Neves ainda deixava impresso que isso ocorrera


por que aquele alienado estava sob a direção de seu assistente
particular, e por isso “não era, nem podia sello, visitado pelos
médicos do Estabelecimento”.
Um ano depois, o problema de se manter alienados dentro
do Hospital de Caridade, mesmo não tendo a estrutura necessária
para isso, foi novamente lembrado pelo provedor Corrêa das Neves.
Segundo ele:
a experiência me tem mostrado, principalmente agora, que vão
concorrendo de toda província doentes d’essa espécie, que não é
possível conservar alienados [...] os furiosos, no Hospital. Além
de encommodo, que elles causam aos outros doentes, perturbam
aos vizinhos, não só com gritos, como com as palavras indecentes,
que soem proferir, e, sendo o Hospital no centro da cidade, não
vejo meios de evitar esses inconvenientes (NEVES, 1863, p. 45-
46).

Os anos seguiam e o problema da acomodação de alienados


no interior do Hospital de Caridade continuava sem solução.
Desse modo, as criticas a esse serviço e a reinvindicação de um
local próprio, separado do prédio hospitalar, foram ganhando mais

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espaço tanto nos relatórios de provedoria da Santa Casa como no


discurso de alguns presidentes da Província.

Os discursos e reinvindicações por um novo espaço para


a loucura na Parahyba
A tese da historiadora Helmara Gicelli Formiga Wanderley
Junqueira intitulada Doidos(as) e doutores: a medicalização da loucura
na Província da Parahyba do Norte (1830-1930), de 2016, é atualmente
o trabalho que contém mais detalhes a respeito do acolhimento e
tratamento dada aos alienados que foram recolhidos pelo Hospital
de Caridade durante o século XIX.
Segundo Junqueira (JUNQUEIRA, 2016), a complicada
questão dos alienados percorreu um caminho nada linear.
Inicialmente os provedores da Santa Casa combatiam a permanência
de variolosos no Hospital de Caridade do centro da capital, fazendo
com que fosse reaberta por diversas vezes a enfermaria existente na
região da Cruz do Peixe. Os desentendimentos políticos entre os
dirigentes da Santa Casa e o Governo Provincial sobre a transferência
do próprio Hospital de Caridade para essa mesma região também
marcam a década de 1880, sendo esta ideia abertamente combatida
pelos provedores.
Já nos anos que se seguiram observa-se um movimento
inverso onde o domínio útil e a posse do referido “Sítio”,
outrora combatida pela Irmandade da Misericórdia, passou a
ser reclamado por esta instituição que pretendia construir ali,
com subsídios dos “philanthropicos” governos da Província da
Parahyba, não só um Hospício moderno e condizente com a
ciência médica da época, mas, principalmente um novo Hospital
para a Santa Casa de Misericórdia da Parahyba (JUNQUEIRA,
2016, p. 243).
Para Junqueira, a ideia de retirar do Centro da Capital
paraibana o Hospital de Caridade, surgiu, provavelmente, após
a Santa Casa de Misericórdia cobrar uma dívida que o Thesouro
Provincial tinha para com a Instituição, tendo como pivô o relato

135
IX Colóquio de História das Doenças: anais

do Pe. Lindolfo José Corrêa das Neves em 1879, onde este lembrava
que
o Thesouro Provincial, infelizmente, deve-nos não só a subvenção
de vários annos, como também os emmolumentos dos navios,
arrecadado pelo Consulado, que nos pertencem, os quais, bem
longe de fazer parte da receita provincial são um depósito com
destino ao curativo dos tripolantes, curativo que o Hospital
fielmente faz. (NEVES, 1979, p. 126).

A situação do Hospital se tornou mais complexa devido à


discussão na Assembleia Provincial, através da Lei nº 23, de janeiro
de 1879, sobre a doação da posse do Sítio da Cruz para a Santa
Casa. Os provedores dessa instituição recusavam em receber o local
como pagamento alegando que este ficava, na época, a uma distância
considerável da Cidade da Parahyba, ao norte da estrada de Tambaú,
considerada de difícil circulação. Além disso, existia a presença do
cemitério construído no início de 1878 para o enterramento de
pessoas acometidas de doenças contagiosas e que servia ao “Hospital
de Variolosos”. Segundo Junqueira (JUNQUEIRA, 2016) a
existência desses elementos foi um dos argumentos levantados pelos
médicos, provedores e irmãos da Santa Casa para justificar a recusa
inicial da oferta feita pelo Governo, pois, segundo eles, um local
com todas essas características era impróprio para o funcionamento
de um Hospital. Outro detalhe é que a grande demanda de
enterramentos naquele local, devido a um maior número de óbitos
no final da década de 1870, fazia com que este funcionasse de um
modo irregular para satisfazer às necessidades públicas.
Segundo o Pe. Lindolfo Corrêa das Neves, a dívida do
Governo da Parahyba com a Santa Casa, naquele momento, era de
13:606$508 réis. A cobrança, feita de forma agressiva pelo Padre,
que atacava não só o governo de então, na figura do Dr. José Paulino
de Figueiredo, mas também, as administrações anteriores, provocou
grande contenda entre aquela Irmandade e a administração
provincial, dando início à “questão da mudança do Hospital da
Santa Casa para o Sítio da Cruz do Peixe” (JUNQUEIRA, 2016, p.
252).

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Segundo Junqueira, para evitar que a Lei de janeiro de 1879


viesse a ser cumprida, foram nomeadas comissões constituídas
por provedores, membros da mesa administrativa e médicos da
instituição, a fim de avaliar a situação do prédio provincial e a [in]
conveniência do Sítio para o funcionamento do citado Hospital
(JUNQUEIRA, 2016, p. 258).
A autora afirma que o desejo por parte dos dirigentes da
Província da transferência do Hospital para aquela região revelava
o desinteresse que estes tinham em manter aquele nosocômio,
apesar de serem eles protetores daquela instituição. Isto pode
ser observado também na ação destes gestores em relação ao
Hospital de Caridade, que se limitava quase sempre apenas a
caiações e pequenos consertos. Diante disso, Junqueira acredita
que a aprovação daquele projeto resolveria de uma só vez as
pendências do Governo da Província em relação ao Hospital da
Santa Casa pois, primeiramente, extinguiria a dívida de muitos
anos de dívidas não pagas e em segundo lugar, “retiraria do centro
da cidade aquele Hospital, considerado um perigoso foco de
contágio, conforme sugerido pelo Inspetor de Saúde da Província,
Dr. Milanez” (JUNQUEIRA, 2016, p. 258).
Por sua vez, as reclamações dos provedores sobre a situação
do Hospital de Caridade, registradas constantemente em seus
relatórios, não tinham como objetivo a transferência do Hospital
do centro da capital para outra região, mas sim chamar a atenção dos
dirigentes para que fossem realizadas reformas maiores, dotando-o
da capacidade necessária para promover um atendimento mais
adequado às demandas da população (JUNQUEIRA, 2016, p.
259).
Na década de 1880, o prédio existente na Cruz do Peixe para
abrigar variolosos ainda era utilizado de acordo com o aparecimento
de epidemias na Província e, logo que estas eram consideradas
extintas, este era fechado por ordem dos dirigentes.
Se de um lado faltava um Hospital apropriado para o
atendimento de doenças contagiosas, do outro a Província da

137
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Parahyba sofria com a falta de um espaço adequado para abrigar


os alienados, tendo seu atendimento médico restrito ao andar
térreo do Hospital de Caridade, o que trazia grande incomodo aos
funcionários e aos outros pacientes do Hospital.
Nos relatório dos provedores da instituição, é comum ver as
reclamações em torno do cuidado dispensado a esse tipo de paciente
como afirma Corrêa das Neves em seu relatório de 1881:
Existem 4 alienados, 1 do sexo masculino e 3 do feminino. Nosso
Hospital não tem commodos para o tractamento e segurança dos
enfermos d’essa espécie, e é fácil de comprehender os prejuízos,
que causam ao mesmo Hospital, os encommodos que sofrem para
serem contidos, e dão aos demais enfermos. Isolados em quartos
mais ou menos seguros, irritão-se, e conservão-se em contínuo
furor, procurando destruir paredes, pavimento, e tudo o quanto
lhecae ao alcance. (NEVES, 1881, p. 37).

Em sua fala o Provedor deixava clara a incapacidade do


Hospital de Caridade em receber esses alienados, ao mesmo tempo
em que chamava os poderes públicos para a sua obrigação quanto ao
problema, exigindo que propiciassem os meios para que os alienados
fossem adequadamente tratados. O provedor também reclamava
da prática comum das autoridades policiais do interior, dizendo
que estas, apesar de suas reclamações, remetiam constantemente
alienados para a capital, procurando assim livrar a localidade
de sua residência “d’esses infelises, que entram no Hospital por
ordem superior, ou ficam vagando pelas ruas d’esta cidade”. Ainda
lembrava que se continuar tal expediente, “em breve nosso Hospital
ficará reduzido ao Hospicio de alienados, e nossas enfermarias não
poderão receber doentes de outras moléstias” (NEVES, 1881, p. 38).
Junqueira (JUNQUEIRA, 2016) vê nessa ação uma espécie
de banimento desses alienados de seus locais de origem pelas
autoridades policiais. Isso porque, “uma vez estando naquela
Capital, tais sujeitos ou eram internados no Hospital por ordem
superior, ou ficavam vagando pelas ruas e caminhos da cidade,
até serem acometidos por uma crise de fúria, quando finalmente
seriam conduzidos pela polícia para o referido nosocômio”
(JUNQUEIRA, 2016, p. 262).

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No ano seguinte, Corrêa das Neves fazia em seu novo relatório


um discurso em prol da fundação de um Asilo de Alienados na
capital ressaltando que “se podessemos dispor de meios mais amplos,
conviria fundar um Hospital para os alienados, visto que o nosso
não offerece os commodos, recommendados pela humanidade, para
doentes dessa espécie” (NEVES, 1882, p. 66-67).
Sendo assim, do mesmo modo que o Provedor desaprovava
o recebimento de loucos no Hospital de Caridade, seu discurso
também reforçava a necessidade de dotar a Capital paraibana de
um hospício de alienados. As províncias vizinhas davam o exemplo,
tal era o caso do Hospício da Visitação de Santa Izabel, em Olinda,
criado em 1864, e do Hospital da Tamarineira, recém-inaugurado
no Recife. Também havia a experiência do Ceará, que iniciou a
construção do Asilo de Alienados São Vicente de Paula durante a
seca de 1877-1879, fatos que por certo incidiram sobre os discursos
daquele Provedor (JUNQUEIRA, 2016, p. 264).
Entre as reinvindicações da construção de um Asilo de
Alienados na Província da Parahyba, impressas nos relatórios de
provedoria, estavam as seguintes questões:
1) não ser humano, nem cômodo a população, deixá-los(las) vagar
pelas ruas mendigando, e morrendo ao relento; 2) a insuficiência,
naquele hospital, de ʻprisões commodas e seguras para alienados
furiosos e idiotasʼ; 3) ser crescente a concorrência de alienados
vindos de todos os pontos da Parahyba para o Hospital da Santa
Casa; 4) não ser a Cadeia Pública o lugar para acolher alienados,
argumentava que ʻsegurá-los com outras prisões é, mortificando-
os cruelmente, concorrer para a sua morteʼ; 5) sua presença no
Hospital era perigosa e incômoda para os outros doentes e para
os habitantes das ruas próximas ao Hospital; 6) havia insuficiência
de pessoal para o tratamento daquele tipo de enfermo, que
ocupavam quase que exclusivamente um enfermeiro ou servente;
7) o tratamento de loucos e/ou loucas onerava substancialmente
os cofres da Instituição, que dizendo-se pobre, não poderia mantê-
los. (JUNQUEIRA, 2016, p. 265).

Talvez por um ser um dos cidadãos que mais tempo ocupou a


cadeira de provedoria da Santa Casa sendo eleito varias vezes para
o cargo, Pe. Lindolfo foi um dos provedores que mais insistiram na
construção de um local próprio para abrigar os alienados mantidos

139
IX Colóquio de História das Doenças: anais

pela Santa Casa. Seu discurso a respeito desse assunto era bastante
antigo chamando a atenção para que esta decisão não fosse demorada,
pois “não é possível conservarem-se em um hospital, onde existem
outros doentes, e no centro de uma cidade, oito alienados, que nos
períodos de fúrias não consentem um momento de tranquilidade
aos outros doentes” (NEVES, 1862, p. 20) ressaltando mais uma vez
os prejuízos e os incômodos que a permanecia desse tipo de paciente
trazia para a instituição.

Surge o asilo Sant’ana


Por conta das epidemias de febre amarela, de varíola e de
cólera morbus que a Província da Parahyba enfrentou durante as
décadas de 1850, 1860 e 1870, outros espaços hospitalares também
surgiram na Capital para auxiliar o da Santa Casa no atendimento
da demanda de doentes.
Foi nesse contexto que foi posto em funcionamento, na
segunda metade do século XIX, um hospital para internação de
doentes contagiosos (principalmente variolosos) nos arrabaldes da
cidade, num prédio que servira como Escola de Educandos Artífices,
na região da Cruz do Peixe.
Esse hospital, que teve início como uma enfermaria provisória,
era comumente chamado pelos moradores da Província pelo mesmo
nome da região onde fora instalado, embora sua denominação oficial
fosse Hospital de Sant’Anna, e para ele passaram a ser transferidos
os doentes contagiosos, no final do século XIX, que não deveriam ser
mais atendidos no Hospital de Caridade para que não colocassem em
risco a vida dos demais pacientes portadores de moléstias curáveis.
Mas além desses pacientes, o espaço passou a receber também
retirantes que viam para a capital em busca de melhores condições de
vida por conta das secas ocorridas no final da década de 1870.
Sobre a transferência de alienados para o Hospital da Cruz do
Peixe, antes mesmo da criação do Asilo, Helmara Junqueira (2016)
analisa que ela estaria ligada ao desejo dos administradores da Santa
Casa de Misericórdia de se verem livres da empresa onerosa e inútil

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que representava a assistência aos loucos e/ ou loucas, podendo-se


pensar também que o gesto de enviá-los para a “casa” da Cruz do
Peixe, junto a outros enfermos, pode ter sido uma manobra política
com a dupla finalidade de, por um lado, “retirar do Hospital situado
no Centro da capital parahybana aqueles incômodos hóspedes e,
de outro, garantir a posse do sítio quando não existissem mais
variolosos, o que se concretizaria com a criação, naquele lugar, de
um hospício de alienados” (JUNQUEIRA, 2016, p. 274).
Não demorou muito para que novas críticas sobre o espaço
surgissem. Durante o governo provincial do Dr. Francisco da Gama
Rosa, nomeado para o cargo no princípio de julho de 1889, o sítio
da Cruz do Peixe e a enfermaria que estava funcionando ali foram
confiados ao “mal afamado” Major Francisco de Sá Pereira, que foi
acusado de tê-la transformado em “Hospital Stygio”,6 lugar onde
“a presença da morte era constante” (JUNQUEIRA, 2016, p. 137).
Segundo Junqueira, após quinze dias em que o major Sá Pereira
assumira a administração do Sítio da Cruz do Peixe começaram a
ser publicadas em jornais, como no Gazeta da Parahyba, as primeiras
denúncias de maus-tratos aos retirantes, enfermos e alienados que
haviam sido encaminhados para aquele lugar pela polícia:
dentre outras coisas, o administrador do hospital era acusado
de negar alimento aos retirantes, mesmo quando o estoque
nos armazéns era grande; de usar da violência física contra os
suplicantes, enxotando-os a chutes e pontapés; e de usar os serviços
do pessoal empregado na enfermaria em benefício próprio. O
major também foi denunciado pelo crime de peculato, tanto por ter
desviado as verbas destinadas aos socorros dos retirantes, quanto
por ter se apropriado indevidamente do alimento comprado com
tais recursos. Pesou ainda sobre Sá Pereira a suspeita de ʻseduçãoʼ
de vulneráveis, diz-se de ter seduzido mulheres que se ʻachavam
em tratamento no hospitalʼ e, ainda, de ter consentido tal violência
por parte dos funcionários daquele estabelecimento. Nem mesmo
os alienados foram poupados das incúrias e descomedimentos
daquele ‘enormíssimo major!’. (JUNQUIERA, 2016, p. 278).

6 Segundo o dicionário português, Estigio diz respeito ao Estige, rio dos


Infernos na mitologia grega. Ver: DICIONÁRIO Português. Disponível em: http://
dicionarioportugues.org/pt/estigio. Acesso em: 20 abr. 2015. De acordo com Elaine
Heloisa Melin, Estígio é um Rio cujo curso das águas é consagrado à cidade de Lúcifer, um
verdadeiro inferno Melin, (2011).

141
IX Colóquio de História das Doenças: anais

A maior parte das denúncias contra os maus tratos sofridos


pelos alienados mandados para o Sítio da Cruz do Peixe no final da
década de 1880 era realizada pelos retirantes, que dividiam esse local
com eles e com outros enfermos. As matérias publicadas nos jornais
sobre aqueles que se encontravam naquele sítio “perpetuavam dores,
fome, frio, agressões físicas, psicológicas, doenças, tudo o que aquela
população teve que suportar” (JUNQUEIRA, 2016, p. 279).
Desse modo, é possível observar que muito antes da fundação
oficial do Asilo de alienados, que mais tarde ficaria conhecido com
Asilo Sant’Ana, os alienados da Santa Casa já eram mandados para
o prédio existente na região da Cruz do Peixe, onde tinham que
conviver com as piores condições possíveis e, na maioria das vezes,
devem ter encontrado a morte no silêncio do abandono ou no
barulho dos gritos disseminados nos espaços úmidos e insalubres do
lugar que lhes era reservado.
Mal podemos imaginar o sofrimento dessas pessoas
abrigadas em uma casa velha, com poucos cômodos (onde deviam
ficar amontoados), úmida e sem luz ou água, além da distância
considerável que ela ficava da cidade. Assim, se pode calcular que
“a administração e a higiene dos corpos, assim como do espaço
hospitalar, eram ainda mais precárias do que aquela a que estavam
obrigados tais indivíduos nos porões do Hospital da Caridade,
e tais condições tornava a assistência ainda mais deficiente”
(JUNQUEIRA, 2016, p. 274).
De qualquer forma, importa dizer que, por não ter sido
planejada para o tratamento ou cura de alienados, com a transferência
dos loucos e/ ou loucas, existentes nas instituições totalitárias de
Parahyba para a Cruz do Peixe, transferiu-se igualmente o regime de
prisão a que estiveram submetidos tais homens e mulheres naqueles
espaços. Como se vê, naquele momento, “os insanos passaram a
contar com um tecto e não um hospital, um verdadeiro depósito
humano, onde se recolhiam” (CASTRO, 1945, p. 366).
Segundo Junqueira, “Effetivamente”, a criação de um “Asylo”
de Alienados na Parahyba do Norte aconteceu em 31 de maio

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de 1891, quando foram transferidos para o edifício da Cruz do


Peixe “12 loucos furiosos”, inclusive criminosos. Por certo, quando
daquele acontecimento, os moradores das ruas próximas ao Hospital
da Santa Casa, e/ ou das ruas percorridas pelos carroceiros que
transportavam aquela “carga insana”, devem ter cessado, por alguns
instantes seus afazeres para assistir aquele espetáculo, considerado
pelas autoridades locais e pelas elites de Parahyba, necessário para
promover “o bem de todos” (JUNQUEIRA, 2016, p. 291).
Segundo Castro, no ano de 1892, através da Lei nº 5, de 12
de dezembro, o Presidente do Estado, Dr. Álvaro Lopes Machado,
doava a Santa Casa o domínio útil do Sítio da Cruz do Peixe,
inclusive os prédios nele existentes: “Por força dessa lei, a Santa
Casa passou a custear uma enfermaria de loucos ali construída pelo
Estado, e transformou o prédio, que fora colégio dos artífices em
o atual hospital de Sant’Ana [...]. Teve assim o começo do Asilo da
Cruz do Peixe” (CASTRO, 1945, p. 153). Ainda segundo Castro:
o Asilo Sant’Ana era constituído por um pavilhão colocado ao
nascente do atual hospital de Santa Isabel, baixo, com mais ou
menos uns trinta metros quadrados de área coberta. O Edifício,
além da alpendrada que o rodeava, dispunha de 12 celas escuras
e sem ventilação, cujas portas, únicas e pesadas singularizavam-
se pelo orifício de forma retangular, bem no centro, com grade
de ferro, em forma de cruz, atestando o perigo do excitado, cujos
gritos desordenados, ecoavam além do alto muro, que o separava
do mundo exterior. (CASTRO, 1945, p. 366).

Coêlho Filho afirma que, apesar de parecer que a situação


dos alienados paraibanos demostrasse uma melhora, já que estes
passariam a ocupar um prédio isolado, mesmo que deficiente
e com a capacidade limitada, novas dificuldades acabaram
surgindo na Província. Os problemas financeiros, por exemplo,
causaram a escassez dos recursos do Estado para a Santa Casa e,
consequentemente, para o novo nosocômio. Com isso, o Asilo
Sant’Ana “deixou de ser um asilo, para se converter num depósito
humano, onde se recolhiam os infelizes privados da razão”
(CASTRO, 1945, p. 367).

143
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Considerações Finais
Na data de 20 de junho de 1893, em reunião onde estavam
presentes o procurador fiscal Dr. Francisco Chateaubriand
Bandeira de Mello, o cidadão José Peregrino Gonçalves de Medeiros
e o mordomo dos prédios e terras da Santa Casa de Misericórdia
da Parahyba, encarregados, como representante d’esta, aceitavam
a transferência do Sítio da Cruz do Peixe, “seus terrenos, prédios
e mais bemfeitorias ali existentes, como consta do officio da vice-
presidencia do Estado de vinte e três de Maio próximo passado”
(MEIRA, 1893, p. 50).
Desse modo, o Sítio da Cruz do Peixe foi oficializado
como patrimônio pertencente à Santa Casa, tendo seus limites já
especificados “na escriptura passada a 03 de Março de 1874” (que
não foi modificada com a transferência) por Francisco Gomes
Marques da Fonseca, e sua mulher Dona Felicia Augusta Marques
da Fonseca “que consistem em dois terrenos aforados ao mosteiro
de São Bento desta cidade por três vidas, sendo um ao norte da
estrada que vae para a praia de Tambaú, e outros ao leste da
estrada que segue para o Mandacaru, os quaes se achão reunidos
no sítio denominado Cruz do Peixe” (MEIRA, 1993, p. 50).
A criação do Asilo e a passagem de sua posse para a Santa Casa
em nada melhorou a situação de seus internos. Na verdade, a vida
nesse local era considerada por alguns como um verdadeiro inferno
onde, segundo Castro (1945) através das grades processava-se toda
a comunicação do insano com o enfermeiro ou pessoas da família.
A passagem de medicamentos e refeições se fazia através daquelas
grades frias e impassíveis. No piso de cada cela, bem no centro,
existia o orifício da fossa, cujos gases nauseabundos enchiam o
recinto. Os excitados, tornavam esse ambiente mais abjeto, jogando,
pelos recantos, os restos de alimentos que lhe chegavam, através da
abertura, por onde também penetrava a luz. Não era sem receio que
o olhar curioso e indiscreto o visitante procurava penetrar ali. Era
preciso ir cauteloso, rosto bem rente à parede pelo receio da projeção
violenta de matérias fecais (CASTRO, 1945, p. 366-367).

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Sobre os médicos, Castro afirma que “aos da Santa Casa cabia


o receituário. As visitas não eram tão demoradas e certos doentes,
vistos a distância”. Do mesmo modo, a terapêutica “se resumia na
aplicação de calmantes, bromuretos e mais bromuretos, cujo efeito
medicamentoso era secundado pela reclusão” (CASTRO, 1945, p.
367).
O relatório de 1892 de Inojosa Varejão é o primeiro que traz o
Asilo Sant’Ana numa sessão separada do Hospital de Caridade para
relatar as condições em que se encontravam os alienados em seu
novo espaço no Sítio da Cruz do Peixe afirmando que este ainda não
“satisfazia as exigências da caridade, nem as prescrições da ciência
na acomodação dos infelizes enfermos”. Além disso denunciava
que as 12 celas destinadas aos alienados furiosos eram acanhadas e
insalubres e que pela natureza do pavimento cimentado, na estação
fria influenciava na saúde do enfermo “gerando-lhe molestia grave
que lhe compromette a vida. – Convém remediar essas faltas
aumentar o numero de cellas e faze-las espaçosas e hygienicas”
(VAREJÃO, 1892, p. 16).
Desse modo, as acomodações reservadas para o atendimento
dos alienados em seu novo espaço, no Sítio da Cruz do Peixe, ainda
não atendiam satisfatoriamente aos anseios dos provedores da Santa
Casa em proporcionar tratamento adequado a esses infelizes que
passaram tantos anos encarcerados dentro do Hospital de Caridade
e transferidos para outro local não titereavam remediados seus
males, antes disso, tiveram seu sofrimento e humilhação aumentados
e prolongados por vários anos.

Referências

Fontes documentais
O Publicador, Parahyba, 24 abr. 1877.
CARVALHO, Antônio de Souza. Ofício com pedido de internamento da Delegacia de
Polícia da Parahyba, 8 de novembro de 1867.
MEIRA, Antonio da Trindade Antunes. Relatório da Provedoria da Santa Casa de

145
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Misericórdia, Parahyba do Norte, em 2 de jul. 1893.


NEVES, Lindolfo José Correa das. Relatório da Provedoria da Santa Casa de
Misericórdia, Parahyba do Norte, jul. 1862; jul. 1875; jul. 1879; jul. 1881; jul. 1882.
ROCHA, Francisco D’Assis Pereira. Relatório da Provedoria da Santa Casa de
Misericórdia em 2 de julho de 1858. Parahyba do Norte: Typ. De J. R. Da Costa,
1858.
VAREJÃO. Maximiano José de Inojosa. Relatório da Provedoria da Santa Casa de
Misericórdia, Parahyba do Norte, 2 jul. 1891. Jul. 1892.

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Pessoa: A União, 1977.
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KULESZA, Wojciech Andrzej. Livro do aluno e do professor: manuais técnicos
no ensino profissional. SBHE. V Congresso Brasileiro de História da Educação: o
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JUNQUEIRA, Helmara Gicceli Formiga Wanderley. Doidos(as) e doutores: a
medicalização da loucura na Província/ Estado da Paraíba do Norte (1830-1930).
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
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MELIN, Elaine Heloisa. Dante e Lúcifer, condenados ao castigo eterno. Revista
Brasileira de História das Religiões, v. III, n. 9, jan. 2011. Disponível em: http://
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SEIXAS, Wilson Nóbrega. Santa Casa da Misericórdia da Paraíba: 385 anos. João
Pessoa: Gráfica Santa Marta, 1987.

146
Doença, contágio e epidemia:
a perspectiva higienista sobre o suicídio nos
arquivos brasileiros de higiene mental
Giulia Cristiano1

Introdução
O movimento de higiene mental no Brasil foi estabelecido
em um contexto de superlotação de manicômios e fracasso da
medicina em recuperar boa parte dos pacientes mentais (SOUZA;
BOARINI, 2008). A fala de psiquiatras do período, como Juliano
Moreira2 (1873-1933), demonstrava a necessidade dessa categoria
em estabelecer outras bases de ação que não se limitassem apenas
em terapêuticas de “tratamento moral” e “isolamento” (REIS,
1994, p. 30). Inicialmente, essa nova perspectiva psiquiátrica foi
instituída nos Estados Unidos a partir da fundação de instituições
como a Sociedade de Higiene Mental de Connecticut (fundada em
1908) e o Comitê Nacional de Higiene Mental em Nova Iorque
(1909). Cabe pontuar que a fundação dessas casas foi fortemente
influenciada pela publicação e circulação da obra A Mind that
Found Itself, autobiografia de Clifford Beers (1876-1943), na qual
o autor relata sua experiência de internação em vários hospitais e

1 Graduanda em História-Licenciatura em Universidade Federal de São Paulo.


E-mail: [email protected]
2 Médico psiquiatra nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1873, considerado por
muitos como o ‘pai da psiquiatria’ no Brasil. Auxiliou na fundação de diversas instituições
psiquiátricas e foi diretor de outras de mesmo caráter: dirigiu, entre 1903 e 1930, no Rio
de Janeiro, o Hospício Nacional de Alienados, sendo o principal expoente de uma nova
abordagem na administração da instituição, sob a reformulação psiquiátrica de Rodrigues
Alves. Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia ainda com 18 anos e visitou
diversos asilos na Europa, como na França, cujo modelo asilar e psiquiátrico inspirou
profundamente a atuação de Moreira. Em vida, defendeu a profilaxia psiquiatria, baseada
em preceitos organicistas, higienistas e eugenistas Costa (2006, p. 34), Oda (2000).

147
IX Colóquio de História das Doenças: anais

casas de saúde por um período de três anos, e que despertou debates


no campo da medicina no país (SOUZA; BOARINI, 2008, p. 275).
Para Milena Luckesi de Souza e Maria Lucia Boarini, é
possível identificar na higiene mental duas linhas de ação principais:
a positiva, que consistia primordialmente na prevenção de doenças
mentais e físicas, e a negativa, baseada em práticas de ordenação de
corpos e indivíduos e no combate ao que os higienistas consideravam
como a origem social do alienismo mental (SOUZA; BOARINI,
2008, p. 276). Ao longo da primeira metade do século XX, porém,
essa perspectiva foi metamorfoseada, buscando auxílio conceitual
na eugenia3, principalmente a partir das décadas de 20 e 30 (Apud
SOUZA; BOARINI, 2008, p. 275; REIS, 1994, p. 291).
O programa higiênico abarcava variados aspectos da vida privada
estendendo-se aos círculos da vida pública dos indivíduos e visava,
sobretudo, prevenir o aparecimento de qualquer distúrbio físico,
psíquico ou mental considerado inferiorizadores do povo de uma
nação que almejava estar entre as grandes do mundo recentemente
globalizado (Apud SOUZA; BOARINI, 2008, p. 276).

Para alguns pesquisadores, o higienismo mental foi


estabelecido institucionalmente no Brasil a partir da fundação da
Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), em 1923, na cidade
do Rio de Janeiro. A LBHM foi uma instituição de caráter civil
composta pela mais variada sorte de higienistas, entre eles médicos,
3 A eugenia foi inicialmente idealizada por Francis Galton (1822-1911) em
1885 para “...designar o ramo da ciência biológica que se relaciona à melhoria genética
da humanidade”. Galton a definiu como o estudo dos fatores que podem melhorar ou
aperfeiçoar as qualidades raciais de gerações futuras, fisicamente e mentalmente. Segundo
ele, a eugenia é a ciência que se baseia nos princípios genéticos e no conhecimento das
ciências sociais. (Apud Souza; Boarini, 2008, p. 277). O início do século XX foi marcado
pela ascensão do imperialismo e ideias nacionalistas, junto ao avanço do capitalismo e
de um temor de regeneração racial. Nesse cenário, a eugenia ascende também enquanto
movimento social e político, estimulando e promovendo debates sobre seleção racial e
social, formação das populações dos Estados-nações, controle matrimonial e reprodução
humana, por exemplo. De modo geral, a eugenia política introduziu ideias segregadoras
que incluíam a segregação racial, cirurgias esterilizadoras, eutanásia e racismo genético,
abrindo espaço para o discurso de superioridade racial. No Brasil, historiadores têm
mostrado que a eugenia foi extremamente heterogênea, possuindo profunda relação com
o neolamarckismo e inserção nos debates sobre saúde pública, higiene mental e assistência
social. De acordo com alguns pesquisadores, a eugenia poderia ser considerada um
advento da modernidade, do anseio moderno de progresso rumo à perfeição humana, e
consequentemente, da aniquilação daqueles que não se enquadraram nessa perspectiva
segregadora Teixeira; Pimenta; Hochman, (2018).

148
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

juristas e figuras públicas do cenário político à época (Apud


BOARINI; SOUZA, 2008, p. 275). Ao publicar seus escritos no
órgão oficial da Liga intitulado Arquivos Brasileiros de Higiene
Mental (ABHM), seus integrantes tinham como objetivo promover
um amplo debate, nacional e internacional, sobre a medicina mental
e fomentar um intercâmbio entre as grandes bibliotecas científicas
ao redor do globo (CALDAS, 1929, p. 2 apud BOARINI; SOUZA,
2008, p. 274).
A Liga nasceu da iniciativa do médico e professor Gustavo
Riedel (1887-1934) (CUPELLO, 2012, p. 24), após seu retorno
como representante brasileiro de um Congresso Médico Latino-
Americano realizado em Havana, em 1922. Ainda sobre a
fundação da LBHM, José Roberto Franco Reis pontua que “Logo
no mesmo ano, por força do decreto 4778 de Dezembro de 1923,
é reconhecida como de utilidade pública, passando a receber uma
subvenção federal para o desempenho de suas atividades” (REIS,
1994, p. 49). Fundamentalmente, a instituição possuiu um caráter
higienista, apoiando-se conceitualmente na eugenia. Entretanto,
a LBHM também utilizou de diversas linhas científicas em suas
formulações, o que não subtraiu sua defesa a políticas abertamente
eugenistas, como práticas esterilizadoras dos chamados degenerados
e controle matrimonial, defendidas por alguns de seus integrantes
nos Arquivos (REIS, 1994). Como afirma Reis, a multiplicidade
teórica da Liga não prejudicou sua funcionalidade à época, mas pelo
contrário, concedeu à ela uma melhor eficácia política:
se a verdade que a grande maioria dos integrantes da Liga adotava
um modelo conceitual fundamentalmente organicista, cujo
substrato biológico pressupunha uma perspectiva hereditária, ou
congênita, de transmissão das doenças, o que até certo ponto se
chocava tanto com os princípios psicanalíticos ou com qualquer
outra formulação que vislumbrava influências decisivas do
meio social do aparecimento das doenças, isto não significava a
impossibilidade de convivência entre esses discursos [...] Sabemos
com Foucault, Castel, Machado, Cunha, que o mandato da
psiquiatria nunca foi inteiramente médico científico: implicações
de ordem político-administrativa sempre fizeram parte dos
elementos formadores do seu campo discursivo (26). Sendo assim,
defendemos a ideia de que o mais importante não era tanto a

149
IX Colóquio de História das Doenças: anais

suposta unidade ou coerência teórica do seu discurso. Do nosso


ponto de vista, o mais significativo era a possibilidade de sua
utilização para certos fins, sua eficácia política visando alcançar
determinados objetivos (REIS, 2000, p. 228).

Além disso, contribuiu para o funcionamento da Liga e suas


práticas, subvenções federais e municipais, geralmente instáveis,
e o auxílio financeiro de filantropos. A partir de 1925, porém,
a instituição passou a ter como principal fonte de renda o lucro
obtido por meio dos anúncios contidos nos ABHM, que tinham
como principal objetivo divulgar as ações da LBHM e orientar
aqueles que quisessem colaborar com a campanha de higiene
mental no país. Os Arquivos não foram apenas um repositório dos
mais diversos trabalhos sobre o higienismo, mas também um foco
atrativo e núcleo para possíveis colaboradores, destinando-se não
apenas ao público científico, mas também à “massa popular” (Apud
BOARINI; SOUZA, 2008, p. 274-275; REIS, 1994).
Os Arquivos foram editados entre os anos de 1925 e 1947,
abordando temas diversos que foram objetos das discussões dos
higienistas, como alcoolismo, educação e infância, por exemplo
(Apud SOUZA, BOARINI, 2008, p. 274). Também esteve
presente entre estes temas o suicídio, que na fala de alguns de seus
integrantes, permanecia na “ordem do dia” (CALDAS, 1929, p.
113). Ao contrário de outras produções realizadas pela Liga, sua
tematização sobre a morte voluntária foi pouco explorada pela
academia e é sobre este assunto que nos desdobramos no presente
artigo. Ao propormos a análise dessa temática, convergimos com
Fábio Henrique Lopes, o qual defende uma historicidade frente ao
suicídio, aos discursos que o envolvem e como o ato é encarado e
moldado socialmente:
...não podemos mais falar do suicídio desconsiderando a vida. Os
reconhecidos, familiares e já esgarçados vereditos em torno do
ato de suicídio; as sentenças, as classificações, os modos de ver,
perceber e narrar o mesmo, bem como a necessidade premente
de racionalmente explicar - muitas vezes o inexplicável -, em
ordenar e atribuir sentido ao ato e ao sujeito que o pratica
foram historicamente forjados. Dessa maneira, não podem ser
considerados como universais ou naturais. São, portanto, produtos

150
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

de uma inegável relação espaço-temporal, possuem historicidades.


(LOPES, 2012, p. 186).

O debate historiográfico sobre a morte voluntária, entretanto,


não foi iniciado a partir da fundação da LBHM no Brasil. O termo
‘suicídio’ foi elaborado e utilizado pela primeira vez na Europa do
século XVIII, quanto o ato deixou de ser problematizado apenas
como um crime contra Deus e passou a ser problematizado por
outro viés, “...a liberdade de ser ou não ser” (Apud LOPES, 2003, p.
55).
Essa mudança de perspectiva foi possibilitada pelo avanço
do pensamento filosófico no continente (Apud LOPES, 2003, p.
55). No cenário brasileiro, a investigação sobre temas referentes a
medicina mental foi amplamente influenciada pela fundação das
Faculdades de Medicina Baiana e Carioca (1832), possibilitando
a institucionalização do saber e da pesquisa médica brasileira
e a formação de doutores no país (VIOTTI, 2012), de forma
que o suicídio, ao longo do século XIX no Brasil, foi tematizado
principalmente por um protagonismo médico e masculino (Apud
LOPES, 2003 p. 6).
Apesar da breve contextualização, nossa investigação
sobre suicídio não faz alusão ao século XIX, mas sim ao século
XX, mais precisamente a partir das décadas de 20 e 30, quando
o hisgienismo mental já se destacava como perspectiva dentro da
psiquiatria brasileira e havia encontrado na eugenia seu principal
suporte conceitual, conjugação que foi substancial na formação
de instituições psiquiátricas, construção das práticas médicas e
produção teórica sobre a medicina como um todo à época (BOARINI;
SOUZA, 2008, p. 275; apud REIS, 1994, p. 40; CUNHA, 1996).
A visão médica brasileira sobre a morte voluntária no
início do século XX foi influenciada por teorias como as de Émile
Durkheim e Sigmund Freud e suas obras intuladas respectivamente
O Suicídio e Além do Principio do Prazer (apud LOPES, 2003, p. 7).
Para Durkheim, o suicídio é fruto de um conflito relacionado ao
meio externo do indivíduo. O sociólogo ainda aponta que, cada

151
IX Colóquio de História das Doenças: anais

sociedade possuiria, em algum momento específico, uma inclinação


coletiva ao suicídio (DURKHEIM, 2000 [1897]). Já Freud anuncia
que em cada indivíduo há um instinto de morte, como ele assinala
em sua obra (FREUD, 2016 [1920]).
Reis afirma, como exposto anteriormente, que a pluralidade
teórica da LBHM não anulou a eficácia política da instituição e a
concretização de seus objetivos, mas na verdade foi fundamental
para isso, assim como Boarini e Souza destacam que os higienistas, tal
como a Liga, tomaram como tarefa a reforma e ordenação da saúde
e higiene pública brasileiras, e consequentemente dos indivíduos
e tudo que os tangenciava na época. A partir dessas afirmações,
tomamos como foco compreender como a multiplicidade teórica e
científica de nossas fontes funcionou enquanto justificativa para que
os integrantes da LBHM pudessem sugerir práticas de de ordenação
de corpos e indivíduos quando se tratava sobre o combate da morte
voluntária. Assim, focamos em algumas das influências teóricas que
foram possíveis de se identificar nos suportes.
Para tal, foram utilizadas três edições dos ABHM;
disponibilizados de forma cronológica na biblioteca digital pelo
grupo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Higienismo e o Eugenismo
(GEPHE)4; que foram descritas na tabela abaixo, sendo de autoria,
respectivamente, dos médicos Antônio Xavier de Oliveira (1892-
1953), assistente da Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina
do Rio e do Hospital Nacional de Alienados, e Membro efetivo
da Liga Brasileira de Higiene Mental (1925, p. 75), Mirandolino
Caldas e Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), diretor-fundador
do departamento da Criança no Brasil, vice-presidente da Seção
de Puericultura e Higiene Infantil da Liga Brasileira de Higiene
Mental (1930, p. 167); (ISAIA, 2010); (FREIRE, 2011).

4 O GEPHE é um grupo de pesquisa devidamente inscrito no CNPq, existente desde


o ano 1998 que tem como objetivo pesquisar o ideário da higiene mental, desdobramento
do movimento higienista sanitário, e da eugenia, presença significativa no início do
século XX, no Brasil, e seus desdobramentos nas instituições brasileiras, tais como Saúde,
Educação, dentre outras. É ligada à Universidade Estadual de Maringá ver em: http://
www.cch.uem.br/grupos-de-pesquisas/gephe/documentos/arquivos-brasileiros-de-
higiene-mental.

152
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Ainda que os Arquivos tenham sido editados até 1947, o


suicídio deixou de ser trabalhado nos Arquivos de forma central
em 1930, data de nosso último suporte. Para Reis, é no germinar
da década de 1930 que a LBHM iniciou sua guinada no sentido
de uma radicalização eugênica. A partir disso, a instituição teria
deixado de explorar temas com maior profundidade; com exceção
do alcoolismo, que se manteve presente nas publicações; para dar
espaço a novas temáticas, principalmente àquelas voltadas à eugenia
negativa (REIS, 1994, p. 261-262). Acreditamos que isso pode estar
ligado ao fato de que o suicídio deixou de ser explorado com tanta
profundidade nos ABHM.
TABELA: edições utilizadas dos ABHM
Ano de publicação Número da edição Data de publicação
Ano I N° 2 1925
Ano II N° 3 Dezembro, 1929
Ano III N° 5 Maio, 1930
Fonte: CALDAS, 1929, p. 113; FILHO, 1930, p. 155; OLIVEIRA, 19255

O suicídio nos arquivos brasileiros de higiene mental:


tendências teóricas e práticas de ordenação
A influência origanicista se fez presente na teorização do
suicídio pela LBHM. O biologismo, substrato desse campo, pode
ser observado a partir da perspectiva hereditária e patológica
adotada pelos autores no que diz respeito ao tema. Jurandir
Freire Costa aponta, inclusive, que o biologismo, já em voga
no campo psiquiátrico no início do século XX, foi levado ao
extremo pela Liga (COSTA, 2006 p. 37). Foi possível identificar
algumas expressões dessa tendência nas fontes, como a concepção
patológica sob a qual foi localizada a morte voluntária pelos
integrantes da instituição.
Sendo, portanto, o suicidio um fenômeno patológico e o suicida
um doente (CALDAS, 1929, p. 114).

5 Arquivos Brasileiros de Higiene Mental. Disponível em: http://www.cch.uem.br/


grupos-de-pesquisas/gephe/documentos/arquivos-brasileiros-de-higiene-mental

153
IX Colóquio de História das Doenças: anais

5°-Tudo leva a crer, diante das modernas aquisições da psicologia,


da fisiologia e da pediatria, que o suicídio da criança é o resultado
do desequilibrio mental, não raro oriundo de qualquer herança
patologica (sifilis, alcoolismo, etc.). (FILHO, 1930, p. 171).

Xavier de Oliveira apresenta em seu artigo, datado de


1925, um debate sobre a patologização do suicídio a partir da
argumentação de figuras como Emil Kraepelin e Jean-Étienne
Esquirol. Oliveira parece concordar com Esquirol: ele não nega a
manifestação patológica em alguns casos, mas não a coloca enquanto
uma condição para todos os suicidas, como pode ser visto a seguir:
sem entrar no emaranhado de toda uma verdadeira encyclopedia
de doutrinas controversas, em que opiniões de alienistas e de
psicólogos do mais elevado merecimento se contrapõem, afirmando
ou negando o carater pathological dos suicidas, podemos affirmar
que, em verdade, nem todo individuo que se mata é alienado.
(OLIVEIRA, 1925, p. 75).

Para o médico, os “doentes melancólicos” e os “perseguidos


alucinados”, internados ou não em manicômios, protagonizavam
majoritariamente os casos de suicídio patológicos (OLIVEIRA,
1925, p. 77-78). Foi possível perceber que, ainda que Oliveira
não considere a morte voluntária um fenômeno necessariamente
patológico, ele ainda a teoriza, por vezes, sob essa perspectiva, e não a
nega. Em contrapartida, Caldas considera essa concepção tão central
que afirma que o suicida não pratica o ato por vontade própria, mas
é na verdade vítima de uma constituição patológica, que pode ser
chamado de “hibridismo”, “suicidothymia”, que o transforma num
autômato, movido exclusivamente pelos sentimentos impulsivos
que conduzem os suicídios (CALDAS, 1929, p. 114). Para o autor,
fatores como “desventuras de amor, os desgostos de família, a
miseria, as infelicidades em negocios…” eram secundários e só
atuariam sobre o homem quando este possuía inclinação à morte
voluntária, à patologia. (CALDAS, 1929, p. 114).
Outros debates observados nas fontes partiram de um
referencial biologizante sobre a morte voluntária. Um exemplo é
como se deu a discussão sobre a propagação do suicídio na sociedade
sobre a qual aqueles autores teorizavam: alguns deles atribuíam

154
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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fenômenos sociais à contaminação de suicído, afirmando existir


verdadeiras epidemias do ato ao redor do mundo (OLIVEIRA,
1925, p. 78/81). Para Oliveira, tais epidemias eram vistas em países
como Rússia e Índia, e só poderiam ser efetivamente combatidas por
meio da educação cristã, a “religião dos civilizados” (OLIVEIRA,
1925, p. 78/81).
Esse debate já havia sido explorado por Durkheim em O
Suicídio, por exemplo. Ao teorizar sobre a morte voluntária, o autor
afirma que “talvez não haja nenhum fenômeno mais facilmente
contagioso” (DURKHEIM, 2000 [1897], p. 142 Apud DAPIEVE,
2006, p. 50), ao mesmo tempo em que distingue epidemias
morais e contágios morais, tornando sua afirmação ambígua: “A
epidemia é um fato social, produto de causas sociais; o contágio
sempre consiste de ricochetes, mais ou menos repetidos, de fatos
individuais” (DURKHEIM, 2000 [1897], p. 142 Apud DAPIEVE,
2006, p. 50). Para ele, portanto, “as epidemias seriam observadas
quando existisse, no meio social, uma “disposição coletiva” para a
morte voluntária” (Apud DAPIEVE, 2006, p. 50).
Dialogando com a argumentação de Durkheim, para os
integrantes da LBHM, alguns agentes como imprensa, literatura
e teatro tinham responsabilidade pela contaminação de suicídio
entre os brasileiros, como pode ser observado adiante nas falas dos
médicos Xavier de Oliveira e Moncorvo Filho, respectivamente:
Em que pese a gravidade da afirmativa não é possivel esconder que,
infelizmente, desgraçadamente, o grande propagador do suicidio
é hoje constituído pela imprensa. Sim, a imprensa a intoxicar
diariamente o espírito fraco dos que já vem premeditando o
atentado com os romances sentimentais bordados em torno de
fatos concretos, e que ela todos os dias está a elaborar a respeito
de qualquer caso banal de suicídio. (OLIVEIRA, 1925, p. 75).
Entre os fatores ocasionadores do suicídio de menores figuram: a
vida intensa, a miséria, o esfalfamento, as repreensões e os castigos
corporais, o deboche, o etilismo, as leituras impressionantes, o
mau teatro e o mau cinema. (FILHO, 1930, p. 171).

Em O Combate ao Suicídio (1929), Mirandolino Caldas também


condena a imprensa pela disseminação da morte voluntária no

155
IX Colóquio de História das Doenças: anais

país, dado que os jornais publicavam farto noticiário sobre o tema.


Para Caldas, os cronistas deveriam utilizar de sua visibilidade para
concitar médicos, imprensa e governos para o solucionamento desse
“problema de medicina social”, que seria a apidemia de suicídio que
se alastrava pelo país (FILHO, 1930, p. 133).
Para Durkheim, entretanto, se suicida aquele que já possui
uma propensão à morte voluntária, ou seja, a propensão ao suicídio
é desenvoldida pelo meio social e é sobre este indivíduo que a imprensa
atua, que influencia (Apud DAPIEVE, 2006, p. 52). Em convergência
com esse argumento, como exposto anteriormente, Caldas aponta
que fatores como a miséria, por exemplo, só influenciam ao suicídio
àqueles indivíduos que já possuem predisposição ao ato (CALDAS,
1929, p. 114).
Oliveira enumerou, portanto, ações as quais a imprensa
deveria tomar para que se iniciasse uma nova fase no periodismo
que prezasse pelo combate ao suicídio:
1°- Restringir o mais que for possível as reportagens sobre o
suicidio, não podendo cada notícia passar de um quarto de
columna, publicada nas páginas menos interessantes do jornal.
2°- Em hipótese alguma publicar os retratos dos suicidas, nem
de pessoas que com eles se relacionam, quer como coisa direta ou
indireta, quer mesmo como co-autoras, como seria nos casos de
suicidio a dois ou coletivo.
3°- Nunca publicar as cartas ou quaisquer outros documentos,
nem declarações escritas ou não pelos suicidas.
4°- Jamais publicar os seus nomes, que deverão ser substituídos
pelas iniciais apenas, nem tão pouco fazer referências ao sexo,
idade, estado civil ou mesmo a nacionalidade dos suicidas, ficando
arquivado tudo o que diga da sua identidade e das causas do seu ato,
e só podendo ser fornecido a sua família ou a Justiça. (OLIVEIRA,
1925, p. 81-82).

Julgando que a imprensa poderia influenciar os “mais fracos


de espírito” e levá-los ao suicidio, essas enumerações tinham
como foco repreeender os jornais brasileiros no que diz respeito
a notificação do suicídio. As críticas ao periodismo, entretanto,
não se concentraram somente na primeira edição, e entre os fatores
considerados catalisadores do suicídio pelos integrantes da Liga, é

156
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a imprensa a mais veemeentemente criticada. Filho também chama


atenção à importância da regulação dos periódicos:
por sua parte, preciosa será a ação da autoridade pública, de
um lado, tornando a mais rigorosa possível a censura teatral e
cinematográfica, e de outro, procurando obter que, de uma vez
por todas, a imprensa se abstenha das tão prejudiciais descrições,
assás impressionantes, dos delitos e suicídios, máximo de crianças.
(FILHO, 1930, p. 170).

Outras expressões provenientes do biologismo foram


assimiladas a esse debate e puderam ser identificadas. A perspectiva
hereditária enquanto propagadora do suicídio foi amplamente
utilizada pelos integrantes da Liga em nossas fontes. Porém,
identificamos que essa perspectiva foi metamorfoseada pela eugenia,
como desenvolvido adiante.
A eugenia, enquanto teoria e prática, tomou papel central
na medicina mental no século XX (CUNHA, 1988). Essa ciência6
foi fundamental nesse período já que prometia alterar o processo
de seleção natural, empregando-o racionalmente à uma nação para
assim estabelecer aqueles que seriam mais aptos a sobreviver e
identificar aqueles que seriam incapazes, e que consequentemente,
poderiam alterar negativamente a genética de toda uma população,
levando à degeneração genética (CUNHA, 1988, p. 166).
Para a Liga e seus integrantes, isso não foi diferente: a
eugenia oferecia possibilidades “...como um instrumento para
regenerar a saúde física, mental e moral da população, muitos
higienistas assumiram o ideário científico da eugenia como discurso
fundamental de seus projetos”, atuando como suporte conceitual
perfeito para os higienistas que tomaram para si como tarefa
interferir nas condições de ordem física e psíquica da população
brasileira para a constituição da melhoria genética (Apud SOUZA;
BOARINI, 2008, p. 277).

6 Utilizamos a perspectiva da eugenia enquanto ciência partindo da argumentação


de Marcela Peralva Aguiar (2012, p. 4): “Inclusive, é por este último motivo que muitos
historiadores da ciência atribuem aos projetos eugênicos o caráter de pseudocientíficos.
No entanto, acreditamos ser muito precipitado chamar tais projetos de pseudocientíficos,
pois tal postura nos faz deixar de lado a importância que estes adquiriram em seu momento
histórico justamente como projeto científico (STEPAN, 2005).”

157
IX Colóquio de História das Doenças: anais

No que diz respeito à perspectiva hereditária, a eugenia


contribuiu de forma a acrescentar a essa ideia uma busca pela matriz
social da doença, não só uma origem biológica (Apud CUNHA, 1988,
p. 179). De acordo com os pressupostos eugênicos, portanto, entre os
possíveis fatores que poderiam influenciar ou até mesmo predispor
os indivíduos ao suicidio estava a hereditariedade (LOPES, 1998,
p. 101). Apoiados nos conhecimentos da psicometria e da genética,
primordiais para a eugenia, os membros da Liga acreditavam que
fatores inerentes aos indivíduos, de ordem física e mental, eram
determinados e transmitidos pela herança genética, e vinham
contribuindo para a degeneração da população (Apud SOUZA,
BOARINI, 2008, p. 277). Em contrapartida à degeneração, estava o
programa higienista, que buscava ordenar a classe operária e moldá-
la de acordo com as necessidades da produção capitalista à época
(CARVALHO, 1999, p. 133).
A perspectiva hereditária e sua busca à uma origem social do
suicídio foram observadas nas fontes selecionadas, principalmente
nos dizeres de Filho:
por seu lado, dia a dia melhor se estudam os estigmas da
hereditariedade mórbida, mormente a sifilítica, a alcoólica, a
tuberculosa e com ela as perturbações, por vezes tão graves, dos
distúrbios das glândulas de secreção interna. (FILHO, 1930, p.
169).
...5°-Tudo leva a crer, diante das modernas aquisições da psicologia,
da fisiologia e da pediatria, que o suicídio da criança é o resultado
do desequilibrio mental, não raro oriundo de qualquer herança
patologica (sifilis, alcoolismo, etc.). (FILHO, 1930, p. 171).
Diante das rápidas considerações aqui aduzidas não se pode
desconhecer a utilizada de combater-se o suicídio, principalmente
das crianças, pondo em prática todos os recursos ao nosso alcance,
principalmente a educação moral e higienica, cuidando-se com o
máximo carinho da assistência aos pequenos neuropatas, aos filhos
de sifilíticos, alcoolistas, etc., procurando-se subtrair sempre
as crianças ao mau cinema e ao mau teatro, evitando-se que se
entreguem a leituras impróprias a sua idade. (FILHO, 1930, p.
170).

O médico associa em seu escrito a morte voluntária


ao vício em álcool. Porém, nesse artigo, o alcoolismo não foi

158
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

necessariamente localizado enquanto um subproduto da loucura,


mas como um transmissor social do suicídio, disseminado através
de gerações. Nessa argumentação, o álcool foi inserido como causa
da degeneração, do distúrbio suicida, assim como a sífilis. Essa
percepção dialoga diretamente com a perspectiva hereditária e sua
assimilação eugênica que buscava uma origem social nas chamadas
degenerações mentais. Cunha destaca que fatores como o álcool e
sífilis eram vistos pelos higienistas como perigos sociais que seriam
capazes de “...deflagrar as manifestações das patologias mentais”
(CUNHA, 1988, p. 179).
A associação entre o higienismo mental e eugenia no Brasil
tornou-se tão intrínseca que em certo momento, os movimentos
passaram a ser considerados como um só, ainda que tenham sido
estabelecidos em contextos históricos e condições distintas. Isso
pode ser observado no discurso de figuras do campo na época, que
afirmavam que a eugenia era um capítulo da higiene (Apud SOUZA;
BOARINI, 2008). Mirandolino Caldas faz coro a essa relação em
seu artigo datado de 1929: “Na Eugenia e na Puericultura, encontra-
se, sem duvida, a chave de muitos desses problemas considerados
hoje como insoluveis” (CALDAS, 1929, p. 115). Para ele, portanto,
a eugenia seria parte central da solução para os distúrbios mentais.
Ao afirmarem que o suicídio se mantinha “na ordem do dia”
(CALDAS, 1929, p. 113) e que se propagava exponencialmente
no mundo e em especial no Brasil, localizando-o no campo das
enfermidades, os autores de nossas fontes formularam práticas
de combate à morte voluntária. Dessa forma, convergiam com a
empreitada republicana que, marcada pela ação de dispositivos
médicos, buscavam higienizar os corpos que formavam aquela
sociedade, com o objetivo de superar as enfermidades, físicas e
mentais, e levar à nação ao progresso (DE OLIVEIRA, 2003, p. 15).
Moncorvo Filho, por exemplo, apresenta a educação higienista
e moral como solução para o avanço do ato entre crianças. Vera
Regina Marques chama atenção para o fato de que a eugenia e
higienismo não somente produziram e teorizaram sobre a educação,
mas atuaram junto à ela para ordenar, desde a infância, a população

159
IX Colóquio de História das Doenças: anais

brasileira. Nesse sentido, foi feita uma articulação direta entre esses
campos, sendo que os higienistas realizaram campanhas e ações
junto às escolas nesse período de forma assídua (1992). Os próprios
integrantes da Liga ofereceram testes mentais aos discentes de
escolas públicas, que foram amplamente aplicados (Apud REIS,
1994, p. 70).
Em seu artigo, Oliveira centraliza a educação religiosa,
principalmente a católica, para amparar “os espíritos menos
fortes” e combater o suicídio, além de enumerar outras práticas de
prevenção. Para ele, também era necessário intensificar a vigilância
daquele que era considerado louco nos manicômios como forma de
combate ao suicídio (OLIVEIRA, 1925, p. 78), ou seja, intensificar
a ordenação de indivíduos nesse ambiente. É importante ressaltar
aqui a estrutura manicomial como um espaço totalitário, dotada de
uma arquitetura de poder específica:
podemos identificar opressores e oprimidos, caracterizados
pela equipe dirigente e pelo grupo dos internados, os primeiros
modelam e os segundos são objetos de procedimentos modeladores.
Apesar de o binômio dominadores-dominados dar a impressão de
que o poder seja uma instituição, estrutura ou certa potência que
um grupo detém, em prejuízo de outro, Goffman já revela de certa
forma que poder é substancialmente relação e que são lugares que
compõem a sua dinâmica. (BENELLI, 2002, p. 51-52).

No combate dos casos patológicos, o autor chama atenção


à intervenção médica também nos hospitais gerais, assegurando
ser necessária a presença de enfermarias para “neuropathas”, com
ambulatórios anexos, administrados por funcionários competentes.
Como Cunha aponta, entretanto, os serviços abertos os quais
Oliveira se refere, foram pensados e instaurados a partir dos anos 20,
como forma de intensificar a vigilância nessa nova era da psiquiatria
(Apud CUNHA, 1988, p. 170). No mesmo artigo, a assistência social
também é colocada como prática para prevenir os casos. Por fim,
Oliveira defende a censura à imprensa como prática de combate ao
ato (OLIVEIRA, 1925, p. 80-81).
Caldas, por sua vez, afirma que é dever médico amparar o
suicida, já que esse seria um doente. Para ele, um vasto programa

160
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

de higiene mental seria capaz de solucionar o problema em questão


(CALDAS, 1929, p. 115), dialogando diretamente com a perspectiva
desenvolvida a partir dos anos 20 pela psiquiatria de que a higiene
mental era um campo totalizante, capaz de prover respostas e
teorizar sobre os mais diversos assuntos. Isso foi feito a partir de
uma classificação de todos os campos em que via como fundamental
a presença do setor público, visando “estabelecer relações entre a
patologia e a higiene social com a política social e econômica”” (apud
CUNHA, 1988, p. 178). Assim como Oliveira, Caldas também via
como fundamental o estabelecimento de serviços abertos, como
ambulatórios, para o combate do suicídio (CALDAS, 1929. p. 115).
A análise dos artigos selecionados permitiu identificar que
o teorização e localização do suicídio enquanto uma patologia, e
consequentemente do suicida enquanto doente e alieanado mental
e a assimilação da perspectiva hereditaria, que transmitiria os
chamados de ‘perigos sociais’ entre a população brasileira, foram
fundamentais para que os autores, aqui membros da LBHM,
justificassem medidas profiláticas de ordenação de corpos,
indivíduos e suas vidas.
Se médicos, e especificamente psiquiatras, possuíam o poder
de ordenar populações no Brasil deste período, é porque a partir
da década de 1920, o discurso desse campo composto por aqueles
que poderiam ser chamados de ‘reformadores sociais’, ganha cada
vez mais importância (Apud REIS, 1994, p. 75). Essa categoria era
dotada de um saber científico primordial para guiar a nação ao
progresso almejado pela empreitada republicana, e com isso, foram
protagonistas das mudanças e reformas à época (Apud REIS, 1994;
Apud OLIVEIRA, 2003).
Foi possível perceber por meio dos discursos analisados
que seus autores propunham, ao elaborar sobre a prevenção ao
suicídio, práticas de ordenação da população sob justificativas
cientifícas. A argumentação dos autores estudados girou em torno
de uma biologização do fenômeno suicida, localizando-o como uma
patologia que se propagava entre os brasileiros. Ainda foi possível
perceber que, ao se utilizarem da perspectiva hereditária, os

161
IX Colóquio de História das Doenças: anais

médicos usufruíram da eugenia enquanto ciência para fundamentar


sua teoria. Dessa forma, o suicídio tornou-se uma área passível
de controle destes médicos, que então, poderiam apresentar e
desenvolver práticas de controle e ordenação à população brasileira,
combatendo os chamados ‘perigos sociais’ em sua raiz.

Referências

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Mental. Rio de Janeiro, a. II, n. 3, p. 113-115, dez. 1929. Disponível em: http://
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163
IX Colóquio de História das Doenças: anais

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colonial (1677 - 1808). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual
Paulista, São Paulo, 2012.

164
Somos mais que doentes:
a relação da literatura com os tuberculosos
Gwan Silvestre Arruda Torres1

Introdução
O trabalho com literatura surgiu a partir da leitura dos
poemas de Manuel Bandeira e a inquietação para saber mais sobre
a perspectiva dos doentes e de como isto se insere em determinado
contexto histórico. A escolha de um recorte temporal tão amplo
se dá por compreender que a discussão acerca do bacilo de Koch é
muito extensa no século XIX e se perpetua no século XX.
Os personagens tuberculosos que aparecem neste estudo são
o “poeta tísico” Manuel Bandeira, o jornalista e dramaturgo Nelson
Rodrigues e a poetisa Auta de Souza, o que todos tem em comum é
acometimento pela tuberculose. Auta vem a falecer super jovem pela
doença e sua família também contrai o ‘mal do peito’. Isto também
ocorre com Joffre, o irmão de Nelson Rodrigues, observe a passagem
de Rodrigues (RODRIGUES, 1993, p. 16) “esse irmão, que se uniria
a mim como um gêmeo, ia morrer, aos 21 anos, tuberculoso”.
Com Manuel Bandeira a sua tuberculose geraria um
desconforto ao poeta, primeiramente por largar seu sonho
profissional de ser arquiteto e ter de se afastar do seio familiar com
o tratamento sanatorial na Suíça, em Clavadel. Neste momento em
que ele percebe “a vida que poderia ter sido e não foi” descrito em
Pôrto (PÔRTO, 2000).
Situando o leitor em relação a tuberculose, a peste branca
ou bacilo de Koch no século XIX era uma doença remetida aos
1 Bolsista Capes, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz. E-mail: [email protected].

165
IX Colóquio de História das Doenças: anais

poetas e artistas, a enfermidade carregava uma aura de romantismo


e luxuria, ao qual as pessoas com vidas desregradas se entregavam
ao prazer, isto é um pensamento referente ao séc. XIX. Além disso,
o ‘mal do peito’ era representado por rubor rosado nas bochechas e
a pele branca, com um tom angelical.
A partir do séc. XX a tuberculose sofre uma ruptura neste
entendimento e se uma doença social, assim como a sífilis. A
classe social que estava ligada a doença neste momento eram
os trabalhadores e pessoas pobres, pelas péssimas condições de
moradia, alimentação e higiene, cuja forma de proliferação da
doença só crescia e em algumas regiões se tornava endêmica, no
caso brasileiro.
Dito isto, é bom ter em mente que os poetas em seus textos
sempre traziam à tona a concepção da tuberculose antes e no
instante em que eles se encontram enfermos, exceto Auta de Souza.
A poetiza viveu entre 1876 e falece em 1901, seu período de vida
quase todo se insere no século XIX e pela leitura de seus textos,
parece-me que ela não teve acesso a nenhum tratamento da doença,
diferentemente de Nelson e Manuel Bandeira.
Dado o panorama e contextualização sobre o artigo, nos
inserimos agora na parte da fundamentação teórica, a pesquisa
parte da linha de estudos acerca da História das Doenças,
com base nos seguintes autores: Sontag (SONTAG, 1964),
Pôrto (PÔRTO, 2000), Bertolli Filho (BERTOLLI FILHO,
2001), Nascimento (2005). Compreendemos que a discussão
sobre o enfermo ainda é tímida por parte dos historiadores,
principalmente de forma que o enfermo não seja visto como
submisso, segundo Bertolli Filho (BERTOLLI FILHO, 2001).
No entanto autora Pôrto (PÔRTO, 2000) mesmo abre caminho
para a discussão sobre o tema.
A escolha da literatura se dá pela possibilidade de identificar
o doente e transmitir seu retrato em primeira pessoa, afinal um
dos trabalhos do historiador é interpretar as fontes e o modo de
questionar seu objeto, conforme o fragmento abaixo:

166
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada,


porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe
enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam. Fonte
especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada,
as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de
modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca
fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes,
a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte
necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras
tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não se viu.
(PESAVENTO, 2006, p. 11).

A fala da autora nos respalda para o uso da literatura como


fonte para a História das doenças e de como isto serve para que
enxerguemos outras metodologias e métodos de perguntar ao objeto
e encontrar respostas. Outro autor que traz a discussão a respeito
de fontes literárias para o estudo da história das doenças é Robert
Wegner (WEGNER, 2005), sua escrita é teórica e nos mostra
diversas fontes da literatura que podem ser estudadas na História
das Doenças. Ele analisa como a escrita literária pode representar
um local, como é o caso da obra de Mario de Andrade falando sobre
a malária no Brasil.
Os tópicos do artigo a seguir serão divididos em três partes,
para contextualiza a vida de cada literato e suas impressões sobre
a tuberculose. Uma das perguntas que surgiu a partir do estudo foi
se todos eles tiveram acesso ao tratamento e se tiveram como foi?
Podemos observar pelo menos em Rodrigues através de uma de suas
obras o seu sentimento de insignificância quando ele teve de se instalar
no sanatorinho em Campos do Jordão, na condição de indigente para
iniciar seu tratamento contra a tuberculose, em 1934.

Auta de Souza uma jovem tísica e poetisa mística


Auta de Souza, nasceu em 1876 no Rio Grande do Norte e
falece em 1901. Vem adoecer de tuberculose aos quatorze anos,
sua infância se passa no estado de Pernambuco, com a sua vó.
Ela se tornou autodidata em relação a poesia e estudou em um
colégio católico. Sua escrita além de trazer traços da dor, também

167
IX Colóquio de História das Doenças: anais

é marcada pela religiosidade e pelo medo da morte. Além dela, seu


pai e sua mãe vêm a falecer de tuberculose e seu irmão morre de um
acidente. Deste modo, sua vida é marcada por um grande período
de luto e tragédias.
Por ser autodidata, ela não traz uma diversidade na
forma de sua escrita, todavia é reconhecida por escritores e
pelo público leitor. É vista como a maior poetisa mística no
Brasil, de acordo com Câmara Cascudo (1961). Em sua obra
Horto vimos alguns poemas que fazem referência a tuberculose
e ao medo da morte, são eles: Súplica, Doente, À alma da
minha mãe, Quando eu morrer, Meu pai, Flor do Campo e
Melancolia, foram alguns dos poemas que observa-se a presença
do adoecimento.
O poema Luz e Sombra de Auta de Souza foi feito três dias
antes de sua morte, exposto abaixo:
Vamos seguindo pela mesma estrada;
Em busca das paragens de ilusão;
A alma tranquila para o Céu voltada,
Suspensa a lira sobre o coração.

Ris e eu soluço... (Loucas peregrinas!)


E em toda parte, enfim, onde passamos,
Deixo chorando os olhos das meninas,
Deixas cantando os pássaros nos ramos.
[...] (CASCUDO, 1961, p. 87).
A partir do trecho e de outros poemas podemos perceber
a escrita com um tom de religiosidade, alguns de seus poemas se
referem a Cristo, já neste há a percepção da “alma tranquila para o
Céu voltada” como a ideia de salvação. Em outros poemas aparece
sentimentos como medo, conformismo com a morte e o modo de
acabar com a dor ou mesmo a beleza da natureza.

168
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Claro que como intérprete, termo cunhado por Starobinski


(STAROBINSKI, 1995), cabe a mim a transição literária de um
texto em um contexto passado para o leitor aqui presente, no
entanto essa atividade exige zelo.
Para observar, no interior de uma obra correlações de formas, de
imagens, de fatos estilísticos etc. É preciso, de maneira necessária,
colocar-se fora de obra e submetê-la a uma interpretação
cuidadosa; além disso, para enunciar os fatos observados, é preciso
recorrer à linguagem descritiva de uma outra época (a nossa) e de
uma outra categoria intelectual (a de nosso saber contemporâneo).
(LE GOFF, 1995, p. 138).

Como historiadores devemos compreender que a obra


se insere em determinada época, da qual a análise partirá para
perguntas estas ao passado, embora feitas a partir de nosso tempo
e “de uma categoria intelectual (a de nosso saber contemporâneo)”,
nesse sentido os fatos da obra devem ser lidos com cuidado. Nosso
papel desde que feito com cautela também serve para esclarecer, ou
melhor, ampliar o cenário que a obra se referia.
A vida de Auta é marcada pela literatura, com relação ao
tratamento para a tuberculose não aparece nos relatos escritos, sua
vida finda nas transcrições apresentadas por Câmara Cascudo.
Os grandes olhos de Auta não refletiam pavor, mas uma serenidade
triste, de quem olha do alto da amurada os que ficam. Agora que a
sufocação a tomava, sacudindo-a, agitou, repetidas vezes, as duas
mãos no ar, num gesto de adeus, suprindo pelo aceno a voz que
se apagara para sempre. E fechou, lentamente, os olhos límpidos.
(CASCUDO, 1916, p. 88).

O autor nos relata uma morte com dor, ao mesmo tempo que
Auta o transmite ternura. Pelos sintomas descritos e sabendo que
Auta era tuberculosa, possivelmente ela pode ter tido um episódio
de hemoptise2 que a levou ao óbito, todavia não fica claro, por não
haver a presença do sangue, muito menos da tosse sem parar. A vida
da escritora acaba como um sopro ainda na juventude, com os seus
“24 anos, 4 meses e 26 dias”, segundo Cascudo (CASCUDO, 1916,
p. 88).
2 Uma tosse forte que apresenta pouca ou muita quantidade de sangue e sua evolução
pode levar a óbito.

169
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Manuel Bandeira o “poeta tísico” e “a vida que poderia


ter sido e não foi”
Manuel Bandeira (1886-1986) nasceu na cidade do Recife,
mas logo vai viver no Rio de Janeiro. O poeta adoece de tuberculose
em 1904 e com isto tem que deixar alguns sonhos de lado para iniciar
seu tratamento contra a doença. Seu poema mais conhecido quando
se trata da temática tuberculose é Pneumotórax, com a seguinte frase
“a vida que poderia ter sido e não foi”, por se tratar de deixar para
trás um de seus sonhos, o de ser arquiteto igual ao seu pai.
Já o poema Desencanto traz passagens do poeta de como é
vivenciar a tuberculose, sem cita a enfermidade.
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...


Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gôta a gôta, do coração.

E nestes versos de angústia rouca


Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


(BANDEIRA, 1955, p. 9).
Diante desses versos, as impressões que ficam se relacionam
ao sentimento de tristeza, ao mesmo tempo em que há uma
expectativa de que a morte esteja próxima. Na parte “meu verso é
sangue. Volúpia ardente...” pode ser relativo à hemoptise, respectivo

170
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a volúpia, este desejo ardente era o imaginário da tuberculose no


século XIX, ainda a ideia romantizada da doença e de que as pessoas
seguiam suas vidas desregradas, se entregando aos prazeres carnais.
Algo não descrito até então, mas que tem sua importância,
é que a tuberculose no séc. XIX e início do XX não tinha cura,
logo, a expectativa de tratamento e de cura para algumas pessoas,
como foi o caso de Auta de Souza, não era viável. De acordo com
Pôrto (PÔRTO, 2000) Bandeira adoece no momento de transição
na concepção da tuberculose e seu entendimento era permeado
pelo imaginário coletivo da doença, era comum matizar formas e
sentimentos contraditórios.
Nas primeiras décadas do séc. XX, no Brasil, o tratamento de
tuberculose era realizado em dispensários, sanatórios e preventórios,
nos quais se tinha a climatoterapia e o repouso do enfermo como
procedimentos para recuperação e cura.
Neste sentido, Bandeira se instala no sanatório Clavadel,
na Suíça para iniciar seu tratamento contra o ‘mal do peito’ e lá
ele escreve algumas vivências de sua condição de doente. Na obra
Poesias, são encontrados alguns poemas com a data de 1912 a 1914,
onde ele escreveu em sua estádia no sanatório Clavadel.
Ainda no livro Poesias, uma compilação de algumas obras
publicadas pelo autor, na parte de Libertinagem pude encontrar
o poema Dama Branca que faz referência direta a tuberculose,
colocarei a escrita na integra por achar pertinente esta narrativa.
A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?


Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,

171
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também


A cada júbilo interior.
Sorria como querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! De tísicos?


Por histeria... quem sabe lá?...
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.

Ela era o gênio da corrupção.


Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,


Se furtava sarcástica.
Com uns perjurava, com outros fria,
Com outros má,

[...] Essa constância de anos a fio,


Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.
(BANDEIRA, 1955, p. 113-114).
A descrição da Dama Branca se refere a tísica, também
chamada de “peste branca”, galopante, consunção e tantos outros
nomes ao decorrer dos tempos. No poema a doença parece ter

172
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

aspectos humanos com a adjetivação do poeta. No fragmento que se


refere a “tivera amantes: uma porção”, podemos subentender a alta
transmissão da bactéria entre as pessoas, consoante a Nascimento
(NASCIMENTO, 2005), a doença era incurável, transmissível e
endêmica. Por fim, Manuel Bandeira finaliza sua poesia com a perda
de seu pai, segundo Pôrto (PÔRTO, 2000) ele faleceu segurando a
mão de Bandeira e para o poeta foi um momento inesquecível, e isto
fica perceptível nas letras do poeta.
O “poeta tísico” como ele se intitulava, não veio a falecer
de tuberculose, na verdade ele viveu por muito tempo e morre
de hemorragia gástrica aos 82 anos. Sua vida e escrita foram
marcados pela dama branca desde os dezoito anos, sua trajetória
conta com a ajuda de sua família etroca de correspondência
entre seus amigos, sendo um deles o poeta e tuberculoso Ribeiro
Couto.

Nelson Rodrigues “o que não se diz apodrece em nós”


Nelson Rodrigues (1912-1980) nasceu na cidade do Recife,
assim como Bandeira vai morar na cidade do Rio de Janeiro e é
tuberculoso. O jornalista adoce de tuberculose no ano de 1934
e vem conseguir se curar logo após três anos de tratamento no
sanatorinho3 de Campos do Jordão.
O autor relata sua passagem no sanatório no livro A menina
sem estrela - memórias, ele não só fala sobre sua enfermidade, como
também descreve sobre outros doentes de tuberculose. Ele começa
com a descrição de seu irmão Joffre que falece pelo bacilo de Koch.
Sua narrativa é marcada pela ruptura no entendimento da
concepção da tuberculose, no século XX.
E ia aprender, em Campos do Jordão, que não há doença mais
erótica do que a tuberculose.

3 O sanatorinho diz respeito ao sanatório público, local onde o doente recebia


tratamento para obter a cura, conforme Rodrigues (1993), mesmo sendo um sanatório
público os doentes em bom estado tinham que fazer alguma atividade, como varrer ou
forrar as camas. Nos sanatórios brasileiros o doente só ia para este estabelecimento se
houvesse a possibilidade de cura.

173
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Bem. Agora não é assim. Falo do tempo em que a tuberculose


tinha o nome parnasiano de ʻpeste brancaʼ. Em 1934, ainda não
se esgotara a boa época do pneumotórax. (RODRIGUES, 1993,
p. 128).

Nelson apresenta ao leitor o seu tempo e mostra conhecer


a tuberculose no século anterior. É na escrita de Rodrigues que
encontramos um tom de tragédia e há a percepção de mais detalhes
acerca do tuberculoso, correspondente aos sentimentos de medo e
da dor.
A tuberculose como ele apresenta não é mais a mesma passada
pelos jornais com o nome de “peste branca”. No ano em que Nelson
adoece o retrato da doença para as pessoas era este:
em 1934, porém, havia ainda o terror. Lembro-me de um vizinho
que apanhou, como então se dizia, uma ʻfraquezaʼ. Ao saber que
estava tuberculoso, chorou três dias e três noites. Nem começou
o tratamento. Ao amanhecer do quarto dia, meteu, como
Getúlio, uma bala no peito. E seu feio medo descansou na morte.
(RODRIGUES, 1993, p. 125).

Aqui percebemos o medo de adoecer e por trás disto também


podemos levar em conta o estigma da doença e do doente. No tocante
ao receio de se falar sobre isto e de como havia o pavor de falar sobre
a doença para que ela não tornasse pior ainda, em concordância
com Sontag (SONTAG, 1964). Ainda assim, o tuberculoso quando
doente não tinha a prática de falar para as pessoas que estava doente,
já que era uma doença infectocontagiosa, muitos chegavam até a
esconder a enfermidade de parentes ou amigos e simplesmente se
afastavam.
Por isto, a frase “o que não se diz apodrece em nós” de
Rodrigues (RODRIGUES, 1992, p. 171) é tão emblemática. É
partindo desse não dito que a doença se apodera de nós, assim como
o sentimento de medo que pode ser visto nas citações abaixo do
jornalista Nelson Rodrigues.
Para Rodrigues (RODRIGUES, 1993, p. 138) “no sanatorinho,
aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade.
Ninguém é forte. Essa vontade de ser chorado geme em nós”.

174
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Em 1934, o tuberculoso só era fiel, estritamente fiel à própria


doença. Uma tosse mais intensa soltava todos os nossos pavores.
Estávamos, ali, numa construção de madeira e tão frágil, quase
de palito, Muitas vezes, na mesa, na cama, na varanda, me sentia
indigente. Era pagante, mas aí é que está: — me senti indigente.
A maioria não esperava nada da vida, nem de ninguém. Eu me
lembro de como se morria no Sanatorinho. O sujeito mandava
chamar a mãe, a mulher, o filho. E não vinha ninguém. O próprio
Sanatorinho desaconselhava à família: — ʻÉ melhor não vir. Não
adiantaʼ. (RODRIGUES, 1993, p. 138-139).

A escrita dele apresenta o sentimento de solidão, de como


o enfermo estava ligado estritamente a enfermidade, ainda assim
nos auxilia a visualizar o ambiente sanatorial em que ele estava, por
meio da construção de madeira frágil. Como já dito anteriormente,
Nelson consegue sobreviver a tuberculose e vem a falecer de outro
motivo que não foi a “peste branca”, mesmo assim muitas de suas
páginas são marcadas pela dama branca.

Considerações Finais
O intuito desta pesquisa foi identificar o sujeito tuberculoso
na literatura, entre o fim do séc. XIX e início do séc. XX, por
isto escolhemos três literatos brasileiros em diferentes períodos,
com diversos relatos sobre a mesma enfermidade. Sendo os
escritores selecionados: Auta de Souza, Manuel Bandeira e
Nelson Rodrigues.
A única que não recebeu tratamento, tomando por base seus
poemas e o livro de Cascudo (CASCUDO, 1961) foi a poetisa
Auta de Souza. Ela adoece do “mal do peito” aos quatorze e só
se desvincula da mesma com a sua morte aos vinte e quatro anos
de idade. A poetisa nunca foi internada em sua época, segundo
Cascudo (CASCUDO, 1961, p. 174) “era do tempo da carne, ovos,
leite, creosoto, arsênico, cacodilatos, fosfatos, óleo de fígado de
bacalhau. Fiel ao dogma dos 3C: cama, comida e calma”.
Já os outros dois autores conseguem se curar, Nelson Rodrigues
logo alcança a cura após três anos de tratamento e Bandeira
permanece doente em média por dez anos. Outra similaridade entre

175
IX Colóquio de História das Doenças: anais

os dois é o nascimento na cidade do Recife e depois viverem no Rio


de Janeiro.
A seleção dos literatos acima não deixa de fora o hall de
enfermos tuberculosos que em sua escrita ou suas vidas falam por si
a respeito da tuberculose, sendo eles: Kafka, Ribeiro Couto, Jamil
Haddad, Paulo Setúbal, Teresa de La Parra. Estes literatos podem
servir de pontapé inicial para outros estudos acerca de enfermos
tuberculosos.
O tísico, o ʻdoente sentimentalʼ até a primeira década do século
XX, não está diferenciado dos demais doentes pela presença do
bacilo de Koch. A psicologia continua humana e reagindo ante as
excitações interiores e exteriores com maior ou menor intensidade,
talqualmente ocorre numa criatura sadia e comum. Existe, numa
resistência teimosa, é a figura típica do tuberculoso, recriação
literária, forma imóvel na imaginária popular, magro, pálido,
tossindo, inapetente, irritante e irritado, desajustado, egoísta,
indignado com a ideia de alguém ter saúde junto a seu sofrimento,
nervos vibrantes e captando sons que passam despercebidos a
qualquer outro sistema nervoso. É o predestinado a uma acuidade
excepcional. O que inegavelmente existe é o tuberculoso vivendo nos
sanatórios, com dezenas de companheiros, homens e mulheres, isolado,
distanciado da normalidade existencial, exilado do contato social,
estabelecendo, pela intercomunicação diária, um clima peculiar
às comunidades semiclaustrais, valorizando as minúcias do caso
pessoal, dramatizando sua doença porque é maneira única de
projetar-se no grupo homogêneo pela apreciação ampliadora
do elemento individual. (CASCUDO, 1961, p. 174-175. [Grifo
nosso]).

Por fim, finalizo com esta citação de Cascudo (CASCUDO,


1961), onde ele apresentou uma imagem cristalizada da tuberculose
no séc. XIX e discorda disto. Ele não só trouxe uma excelente
bibliografia da vida de Auta de Souza, com também tenta trazer a
humanidade para o enfermo, em sua escrita.

Referências:
BANDEIRA, Manuel. Poesias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955.
BERTOLLI FILHO, Claudio. História Social da Tuberculose e do Tuberculoso: 1900
– 1950. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.

176
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

CASCUDO, Luis da Câmara. Vida Breve de Auta de Souza 1876–1901. Ed. Impr.
Oficial, 1961.
LE GOFF, Jacques (org.); Pierre Nora. História: novas abordagens in Starobinski,
Jean. A literatura: O texto e seu intérprete. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora, 1995.
NASCIMENTO, Dilene R. do. Imagens do Mal: A representação da tuberculose
no início do século XX. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 13, v. 2,
2005, p. 493-510.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história.
Nuevo Mundo Mundos Nuevos, n. 6, 28 jan. 2006. Disponible sur: http://
nuevomundo.revues.org/document1560.html.
PÔRTO, Ângela. A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um
poeta tísico. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, fev. 2000, p.
523-550. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702000000400003.
PÔRTO, Ângela. A representação da tuberculose na literatura brasileira na
passagem do século XIX para o século XX. In: PÔRTO, Ângela. Arte e saúde:
desafios do olhar. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008, p. 47-57.
RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrelas: memórias. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
RODRIGUES, Nelson. O Casamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SONTAG, Susan. Doença como Metáfora. Trad. Márcio Ramos. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.
WEGNER, Robert. Em busca da Muiraquitã: uma reflexão sobre a literatura
como fonte para estudos históricos de doenças. In: WEGNER, Robert. Uma
história brasileira das doenças. v. 5. Ed: Fino Traço. Belo Horizonte, 2015.

177
Infecções Audiovisuais:
microbiologia, microcinematografia e os
primórdios do filme de epidemia
Klaus’Berg Nippes Bragança1

Introdução: a cinematografia dos micróbios


Film is a disease. When it infects your bloodstream,
it takes over as the number one hormone; it bosses the
enzymes; directs the pineal gland; plays Iago to your
psyche. As with heroin, the antidote to film is more film.
Frank Capra

Por muitos séculos perdurou na história do conhecimento a


teoria dos miasmas, “os gases venenosos expelidos pela terra”, como
causa para as doenças infecciosas que acometiam a humanidade. Os
miasmas eram uma explicação comum aderida em períodos de peste,
tanto que como medida de proteção foi adotado um vestuário médico
típico que possuía uma máscara em formato de bico-de-pássaro para
depositar essências aromáticas capazes de neutralizar o contágio por
miasmas. Esta teoria foi rechaçada apenas após a década de 1870, com
o desenvolvimento da microbiologia clínica e da infectologia a partir
dos trabalhos precursores de Louis Pasteur na França e de Robert
Koch na Alemanha. Como nos lembra Stefan Ujvari, “estavam
abertas as portas para a aceitação definitiva dos agentes infecciosos
como causadores das doenças. Os miasmas, com o tempo, seriam
esquecidos pelo meio científico” (UJVARI, 2020, p. 152).
1 Professor Adjunto no curso de Cinema e Audiovisual – DepCom/CAr (UFES).
E-mail: [email protected]

179
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Alguns dos métodos de diagnóstico empregados requeriam


técnicas e aparelhos de visualização dos microrganismos, por
exemplo Koch “introduziu a técnica de coloração das bactérias
por anilina, conseguindo assim diferenciá-las melhor; criou um
método de fotografia microscópica e também o exame com lente de
imersão” (UJVARI, 2020, p. 152). As descobertas microbiológicas
do final do século XIX ressoaram não apenas sobre a academia
e o meio científico, mas também sobre a cultura popular que,
gradativamente, passaria a disseminar tais conhecimentos em suas
diversas manifestações – desde a literatura de folhetim até as artes
cênicas e visuais.
O cinematógrafo criado no final do século XIX, além de
servir como um meio de divulgação dos avanços científicos, era
considerado como parte destes mesmos avanços e foi empregado em
várias áreas do conhecimento e da ciência, como um instrumento
assessório capaz de substituir a imobilidade e rigidez da câmera
fotográfica. Assim, o cinematógrafo foi usado em experimentos de
zoologia e locomoção animal; foi acoplado a lentes telescópicas para
registrar os movimentos do universo pela astronomia, e também a
lentes subaquáticas para explorar a biologia marinha; tornou-se um
importante aliado na sintomatologia da histeria clínica, bem como
um recurso imprescindível para o estudo do corpo humano pela
anatomia e fisiologia – e do ser humano pela antropologia.
Não tardou muito para que o aparelho fosse articulado a
instrumentos óticos capazes de enxergar fatias de um mundo
invisível, como o microscópio. De acordo com Oliver Gaycken
(GAYCKEN, 2015, p. 16), ainda em 1903, cerca de oito anos
após o surgimento do cinematógrafo nos espetáculos da cultura
urbana, o produtor norte-americano Charles Urban associou-se
ao zoologista e fotógrafo britânico Francis Martin Duncan para
produzir a coleção de filmes científicos populares The Unseen World,
que apresentava “as maravilhas invisíveis da realidade” através do
aparelho de microcinematografia. No catálogo do Microbioscópio
de Urban-Duncan exibidos para o público, constavam vários
títulos entre filmagens subaquáticas da fauna marinha, registros da

180
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

circulação sanguínea de cobaias vivas, e ainda os movimentos de


microrganismos como a bactéria tifoide.
No curta-metragem The cheese mites, composto por apenas
duas sequências, vemos Duncan expressar um olhar de estranheza
perante um pedaço de queijo e, quando decide observá-lo com uma
lupa, surge então a sequência microcinematográfica da infestação
do queijo por parasitas magnificados pela lente do aparato. Seja
através de lupas, microscópios, lunetas ou telescópios, todos estes
“filmes de observação” compõem um subgênero, conforme analisa
Thierry Lefebvre (LEFEBVRE, 2007, p. 170), que recorre ao plano
subjetivo ou plano ponto de vista: uma imagem que articula o ponto
de vista da câmera ao ponto de vista de algum personagem que
observa determinado motivo na cena.

Imagem 1: A microcinematografia em The Cheese Mites (1903) de Francis Martin Duncan


e Charles Urban.

De maneira similar, em 1909 o médico francês Jean


Comandon trabalhou nos estúdios Pathé para desenvolver vários
filmes científicos com sua cinematografia ultramicroscópica.
Comandon tinha como objetivo registrar a Spirochoeta Pallida,
agente infeccioso da sífilis, para melhorar o diagnóstico de
pacientes – algo que não seria possível apenas com a fotografia,
pois segundo Isabelle do O’Gomes, a espiroqueta da sífilis “ao se
locomover, realiza movimentos bem característicos que permitem
que ela seja reconhecida com facilidade”2 (O’GOMES, 1994, p. 80).
Ou seja, a movimentação do agente infeccioso determinava seu
reconhecimento e, por isso, as imagens animadas pelo cinematógrafo
eram essenciais para seu diagnóstico clínico.

2 Esta e as demais citações de obras estrangeiras listadas nas referências bibliográficas


foram traduzidas pelo autor deste trabalho.

181
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Os irmãos Pathé ofereceram um estúdio, técnicos e


equipamentos para Comandon desenvolver seu experimento
que, em contrapartida, iria produzir vários filmes científicos
para diversificar o catálogo de títulos nos cinemas Pathé. Com a
parceria estabelecida, Comandon pôde registrar a bactéria da sífilis
e o parasita Trypanosoma, causador da doença do sono, além de
outros microrganismos, que foram projetados nos cinemas para o
público leigo a partir de janeiro de 1910 na programação intitulada
“A cinematografia dos micróbios” (LEFEBVRE, 2003, p. 1504). Vale
notar que os irmãos Pathé perceberam um potencial de mercado
nesses filmes e começaram a distribui-los para outros públicos e
circuitos mais especializados, como escolas de ciências e estudantes
de medicina.

Imagem 2: A microcinematografia da Spirochoeta Pallida da sífilis (1909) de Jean


Comandon.

O trabalho microcinematográfico de Comandon foi


interrompido com a deflagração da Primeira Guerra Mundial
em 1914, ao ser alistado como motorista de ambulância no
front, até 1917, quando foi designado como produtor de
filmes de propaganda destinados à prevenção da epidemia
de tuberculose que acometia as tropas francesas no campo de
batalha (O’GOMES, 1994, p. 84) – exatamente no momento em
que outra epidemia, ainda mais letal, começava a se disseminar
entre os soldados, como um dos espólios obtidos na primeira
grande guerra do século XX.

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A comédia das doenças infecciosas


Conhecido como “cinema científico popular” ou “filme de
vulgarização científica”, as obras de Urban-Duncan e de Comandon
contribuíram para a popularização da ciência e ultrapassaram suas
fronteiras educativas para infectar gêneros ficcionais da nascente
arte cinematográfica – justamente durante a domesticação das
convenções de linguagem e dos códigos narrativos do cinema. Como
afirma Flávia Cesarino Costa, a fase de domesticação do cinema é
“esta transformação que começa a se operar no final do período do
primeiro cinema”, um percurso gradual entre a passagem “[...] da
dominância do espetáculo popular até a dominância de um modelo
narrativo e consagrado pela tradição” (COSTA, 2005, p. 68).
O repertório adquirido com os experimentos científicos
cinematográficos foi representado, narrativa e esteticamente,
de formas distintas nas ficções fílmicas. O humor é um recurso
empregado em filmes como La peur des microbes, uma produção dos
irmãos Pathé de 1907. Na narrativa, um senhor lê no jornal sobre
uma temível epidemia de Influenza que assola a comunidade, o
que o deixa temeroso, mas, logo adiante, ele vê um anúncio de um
poderoso antisséptico e decide adquirir o produto para se prevenir.
O personagem borrifa o antisséptico em todos que cruzam seu
caminho, numa aversão ao contato social ou fobia de contágio, o
que gera desentendimentos e tumulto. Ao final ele é detido, e como
punição o personagem é higienizado pelas autoridades policiais.
As piadas narrativas deste curta surgem da paranoia sanitária
sofrida pelo protagonista, gerada a partir de notícias e propagandas
midiáticas.

Imagem 3: As mensagens midiáticas em La peur des microbes (1907) dos irmãos Pathé.

183
IX Colóquio de História das Doenças: anais

É importante frisar que este curta do começo do século


XX, já atribui à mídia uma responsabilidade pelos conteúdos
disseminados durante uma crise sanitária. O filme reverbera que
as mensagens midiáticas são tão transmissíveis e contagiantes
quanto a própria doença. Para Claudio Bertolli Filho (BERTOLLI
FILHO, 2012) a mídia de massa possui um papel fundamental na
produção e disseminação de um “conhecimento comum” adotado
pelo público. Um discurso midiático insistente que tende, mesmo
sub-repticiamente, a preservar uma visão fatalista sobre o futuro
da humanidade ao se defrontar com o Ceifeiro Implacável. Trata-
se de uma pauta pública rotineira que esmiúça dramas e tragédias
pessoais através de mensagens que exploram as consequências da
doença, “tornando-se prolíficas fontes dos medos coletivos em escala
planetária, favorecendo o cruzamento dos discursos científicos com
as falas de leigos e impondo dimensões metafóricas às enfermidades”
(BERTOLLI FILHO, 2012, p. 31).
That fatal sneeze, que também é uma comédia produzida pelo
braço britânico da Pathé em 1907, narra a crise de espirros sofrida
por um senhor – causada propositalmente por uma jovem. Ele sai
pelas ruas espirrando sobre pessoas, lojas e produtos, o que gera
confusão e conflito por onde passa. Em determinado momento
seu espirro é capaz de inclinar o eixo da câmera e da cena, como
se o mundo sacolejasse. Por fim, após espirrar em todos e causar
desordem, o protagonista explode em um espirro fatal.

Imagem 4: O espirro final em That fatal sneeze (1907) de Levin Fitzhamon.

Este filme adota alguns elementos de gêneros cinematográficos


populares do início do século XX: tanto o filme de perseguição,
quanto o trick film (filme de ilusão ou truque) sustentam a
estrutura narrativa para a composição das piadas. E aqui a piada é
a própria doença, bem como seus impactos sobre o doente em uma

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comunidade sadia. O doente é tratado como um culpado e sofre


a perseguição da turba enfurecida; a doença torna-se um estigma
que provoca violência e segregação social. Segundo Flávia Cesarino
Costa “em cada um dos planos, a ameaça de mais um espirro gera
expectativa e depois destruições. Cada plano atua como suspensão
do fluxo da perseguição, como um espetáculo de microatrações,
confusões multiplicadas” (COSTA, 2005, p. 192).
Les joyeux microbes dirigido pelo desenhista Émile Cohl para
os estúdios Gaumont em 1909, apesar de empregar o humor, adota
estratégias estéticas distintas para representar os microrganismos,
como a caricatura animada. Na trama, um médico mostra a
um jovem através das lentes de um microscópio os agentes
infecciosos que causam doenças como “o micróbio da peste (ou da
política)”. As influências tanto do “filme de observação” quanto
da microcinematografia ficam evidentes no curta ao observarmos
por meio do plano ponto de vista do jovem a animação dos
microrganismos que se tornam informações visuais.

Imagem 5: O “micróbio da preguiça” em Les joyeux microbes (1909) de Émile Cohl.

As animações de Cohl começam como uma imitação da


microbiologia celular, que se transformam em críticas políticas e
sociais. Por exemplo, o “micróbio da preguiça (ou do funcionalismo)”
é apresentado inicialmente como “cerca de vinte varetas pequenas,
que evocam muito claramente os bacilos da tuberculose de
Koch. Cada um se divide lateralmente, muito parecido com um
cromossomo” (LEFEBVRE, 2007, p. 177). A partir daí as formas
se fundem e se rearranjam como a imagem de um servidor público
sonolento. Trata-se de uma obra de animação que incorpora em

185
IX Colóquio de História das Doenças: anais

sua narrativa o subgênero do “filme de observação” e a estética da


microcinematografia para representar as mensagens das doenças.

A dramaturgia da peste
Com o avanço das técnicas de montagem e narração na
segunda década do século passado, a linguagem cinematográfica
consolidou novas formas ficcionais e assim outros gêneros fílmicos
contornaram a representação das epidemias. Surgiam obras
dramáticas mais elaboradas que requeriam estratégias narrativas
capazes de atrair o público – afinal o cinema estava domesticado,
havia se transformado de atração barata de feiras livres para uma
instituição reconhecida na cultura moderna e, portanto, as populares
gags dos filmes de perseguição e trick films não surpreendiam mais a
audiência. Era preciso haver uma organização dos elementos dentro
de uma estrutura narrativa dividida em atos.
Esses mesmos procedimentos são adotados por Charles
Rosenberg para discutir uma “qualidade episódica” na história das
epidemias. Para Rosenberg as epidemias, enquanto fenômeno social,
possuem uma forma dramatúrgica, pois “começam em um momento
no tempo, progridem em um palco limitado por espaço e duração,
seguem um enredo linear com tensão crescente e surpreendente,
passam para uma crise de caráter individual e coletivo, em seguida,
derivam em direção ao encerramento” (ROSENBERG, 1989, p. 2).
Rosenberg sugere que, assim como o roteiro de uma peça teatral,
os eventos de uma epidemia progridem em sequências narrativas
estruturadas em três atos sucessivos: a revelação progressiva; a
gestão da aleatoriedade; e a negociação de resposta pública. Cada ato
possui seus elementos e características basilares, e juntos somam-se
em uma narrativa completa, com início, meio e fim.
De acordo com Rosenberg, no ato I “os corpos devem se
acumular e os doentes devem sofrer em número crescente antes
que as autoridades reconheçam o que não pode mais ser ignorado”
(ROSENBERG, 1989, p. 4). No segundo Ato “a gestão da resposta
às epidemias poderia servir como um veículo de crítica social, bem

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

como uma lógica para o controle social” (ROSENBERG, 1989, p. 6).


E ao final as “epidemias normalmente terminam com um gemido,
não com um estrondo. Indivíduos suscetíveis fogem, morrem ou
se recuperam, e a incidência da doença diminui gradualmente. É
uma sequência plana e ambígua, mas inevitável para um último ato”
(ROSENBERG, 1989, p. 8-9). O autor ainda afirma que o final do
último ato também pode fornecer uma estrutura moral que funciona
como um epílogo sobre como a comunidade lidou com os desafios de
uma crise sanitária, isto é, “epidemias sempre proporcionaram uma
boa ocasião para julgamento moral retrospectivo” (ROSENBERG,
1989, p. 9).
A correlação dramatúrgica entre epidemias e peças
cinematográficas se estabelece em atos estruturados dentro de
gêneros proeminentes da época. O melodrama confere o tom
narrativo no curta-metragem The temple of Moloch produzido por
Thomas Edison em 1914 junto à Associação Nacional para o Estudo
e Prevenção da Tuberculose. No filme de Edison – cuja primeira
esposa fora vitimada por febre tifoide – temos uma divisão em
três atos sequenciais: no primeiro ato um rico industrial é acusado
por um jovem médico de submeter seus empregados a condições
insalubres de trabalho em sua fábrica, de onde a epidemia de
tuberculose estaria se disseminando.
No segundo ato o médico é confrontado pela filha do
industrial, seu par romântico no filme, e narra para ela o sofrimento
de uma família operária cuja filha fora vitimada pela tuberculose.
Ele afirma que na fábrica “as crianças são enviadas para a doença
como elas eram dadas de alimento para o Deus Ancestral”, Moloch.
E no terceiro ato, após seus filhos serem contaminados, o industrial
revê suas condutas patronais e passa a combater a epidemia em sua
fábrica com a ajuda do médico – o que culmina no epílogo moral
da narrativa.

187
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Imagem 6: O médico que acusa o industrial de condições trabalhistas insalubres


acompanha o tratamento de seus filhos no último ato de The temple of Moloch (1914) de
Thomas Edison.

Outra doença contagiosa de magnitude pandêmica surgida


na esteira da Primeira Guerra Mundial infectaria o cinema e
consolidaria a narrativa do moderno filme de epidemia. A pandemia
de Gripe Espanhola que eclodiu em 1918 foi sentida pela sociedade
e também pelo cinema, econômica e tematicamente, como por
exemplo no filme Dr. Wise on Influenza. O curta-metragem financiado
pelo Ministério da Saúde Britânico foi exibido nos cinemas antes
das atrações principais (os filmes de longa-metragem) ainda no
começo de 1919.
A dramatização da narrativa opera uma pedagogia do choque
como estratégia de prevenção: enquanto o Dr. Wise faz advertências
sobre o perigo da epidemia, ele narra a história de um de seus
pacientes e todos os problemas ocasionados por ele não seguir
suas recomendações e precauções. Embora ficcional, a narrativa é
incrementada com momentos educativos para ajudar a população a
se prevenir contra a epidemia, como isolamento e restrição social,
e até mesmo ensina como confeccionar sua própria máscara caseira
de proteção individual.

188
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Imagem 7: A pedagogia preventiva em Dr. Wise on Influenza (1919) de Joseph Best.

A crise sanitária de Influenza também inspiraria a produção


alemã Die pest in Florenz, lançada durante a segunda onda da pandemia
em 1919. Como comenta Georgios Pappas, “a grande epidemia de
Influenza de 1918 e as memórias sobre as epidemias da Peste desde
os tempos medievais são frequentemente representadas em filme”
(PAPPAS, 2003, p. 940). O padrão comercial de longa-metragem
já está estabelecido neste filme baseado no conto gótico A máscara
da Morte Rubra de Edgard Allan Poe, roteirizado por Fritz Lang –
um dos célebres cineastas da geração expressionista da república
de Weimar. O conto de Poe narra os horrores causados pela Peste
Negra em uma população que já estava enclausurada dentro de um
reino renascentista. No conto original os sintomas e estigmas da
peste são apresentados logo no primeiro parágrafo:
a Morte Rubra já devastava o campo há muito tempo. Nenhuma
pestilência havia sido tão fatal, ou tão hedionda. O sangue era seu
avatar e a sua marca – a vermelhidão e o horror do sangue. No
começo sentiam-se dores agudas, então uma tontura repentina
e um sangramento copioso pelos poros até a morte. As manchas
escarlates sobre o corpo e especialmente sobre o rosto da vítima
significavam o banimento do doente, isolando-o do socorro e da
simpatia de seus próximos. E todo o processo de contaminação,
progresso e fim da doença eram incidentes de meia hora. (POE,
2007, p. 13).

Entretanto, a narrativa fílmica sofreu muitas alterações,


principalmente no primeiro e segundo atos. O filme começa
ainda antes da quarentena, com as disputas de poder e romances
secretos entre soberanos, nobres e súditos dentro do reino. Há
também o aparecimento da peste, que surge fantasmagoricamente
de um pântano e começa um percurso de morte. Além disso, se na
versão original de Poe a Morte Rubra usa uma máscara, a peste da

189
IX Colóquio de História das Doenças: anais

adaptação fílmica é representada de maneira curiosa: aqui a peste


possui de fato uma forma definida, a forma feminina – uma mulher
que abate as vítimas com sua simples presença.
O efeito de sobreposição usado para materializar a imagem
da mulher confere contornos espectrais à peste, como se fosse de
causa sobrenatural, um castigo decorrente dos pecados individuais
ou coletivos. Segundo Susan Sontag “a ideia da doença como um
castigo é a mais antiga explicação da causa das doenças” (SONTAG,
1989, p. 54). O efeito de sobreposição remonta às tradições
figurativas herdadas da fotografia espírita e das fantasmagorias de
palco que o primeiro cinema incorporou para representar fantasmas
e almas-penadas, e que se tornariam uma convenção de linguagem
para os monstros sobrenaturais do cinema de horror. Sua imagem
translúcida é capaz de invadir o reino trancafiado e contaminar
cada uma das pessoas quarentenadas.
A mise-en-scène do filme é composta por uma atmosfera
fúnebre, mas permeada por sequências festivas na qual a população
se entrega aos prazeres da luxúria. Tal atitude evoca a alegoria
pictórica da “dança macabra”, como modo de personificar o contato
e a proximidade com a morte. De acordo com Jean Delumeau,
“parece mais ou menos certo que o tema da dança macabra
nasceu com a grande pandemia de 1348, e é significativo que sua
eflorescência se tenha situado entre os séculos XV e XVIII, isto é,
durante o tempo em que a peste constituiu um perigo agudo para as
populações” (DELUMEAU, 2011, p. 191). Esta referência culmina
ao final do filme, quando a peste dança enquanto toca um violino
entre mortos e cadáveres que se julgavam protegidos dentro da
fortaleza renascentista.

190
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Imagem 8: A peste, antes um espectro, dança entre cadáveres em Die pest in Florenz (1919)
de Otto Rippert.

As danças macabras vistas em pinturas, gravuras e esculturas


são compostas com esqueletos e ossadas que se relacionam junto
aos cadáveres e aos sobreviventes, ora de maneira mais ameaçadora
e repugnante, ora de maneira mais descontraída e animada. O
festejo da mortalidade evocado pela dança macabra era quase um
ritual de purificação artística, a depuração da morte através de
uma reconstituição estilizada dos horrores reais vislumbrados no
acúmulo de cadáveres das cidades. Oferecendo apelo sequencial,
muitas imagens narram a iminência da morte perante a fragilidade
e a promiscuidade da vida, isto é, “com um realismo mórbido, os
artistas se esforçavam em traduzir o caráter horrível da peste e o
pesadelo acordado vivido pelos contemporâneos. Insistiram [...]
nos trespasses fulminantes e naquilo que o contágio tinha de mais
odioso, de mais inumano e de mais repugnante” (DELUMEAU,
2011, p. 191).
Surgido no momento em que a Alemanha agonizava sua
derrota no front e sucumbia perante uma nova peste, a dramatização
fílmica do conto gótico de Poe é uma resposta aos traumas e
anseios culturais derivados da crise de Influenza do Pós-Primeira
Guerra. Muita já foi dito sobre a atmosfera de pesadelo, a mise-
en-scène estilizada e carregada de sombras que caracteriza a escola
expressionista de cinema: uma vanguarda cinematográfica nascida
dos escombros da Primeira Guerra, moldada durante a depressão
econômica e social da sociedade alemã.3 Porém, Die pest in Florenz,
lançado logo no início do ciclo expressionista – inaugurando junto
a seus congêneres um movimento cinematográfico definido por

3 Para uma historiografia cultural do cinema expressionista alemão Cf. Eisner (2002).

191
IX Colóquio de História das Doenças: anais

sua tendência à morbidez –, mostra como uma pandemia pode


fomentar a criação artística.

Conclusão: o diagnóstico do cinema


Essa é a história de uma filmografia intercedida pela história
das doenças. O filme de epidemia teve um período de incubação
lento e gradativo, mas seus sintomas foram sentidos de modos
variados nas ficções fílmicas ao longo do século XX. Ainda em sua
fase embrionária, a narrativa cinematográfica de epidemia que hoje
nos acostumamos a ver em ficções científicas, horror e melodrama,
por exemplo, foi contaminada pelos avanços da infectologia e
ajudou a transmitir um conhecimento popular sobre as doenças e
epidemias enfrentadas pela sociedade moderna.
São filmes herdeiros da microcinematografia, mas também
criaram formas de representar os dramas e os problemas causados
pela sociedade enquanto lida com seus episódios epidêmicos.
Filmes de epidemia são portadores de emoções expressadas durante
crises sanitárias e buscam exercer efeitos anímicos distintos, seja o
riso, a comoção ou o medo. Essa cinematografia nos ensina sobre
prevenção e cuidados sanitários, debatem comportamentos sociais
e julgamentos morais, elegem justificativas científicas e acusam
culpados, traduzem artisticamente os significados impregnados
na consciência de uma sociedade adoecida. Cinema talvez não seja
uma doença, mas seus diagnósticos traçados sobre o passado podem
orientar uma cura para o futuro.

Referências

Filmografia
Die pest in Florenz. Dir. Otto Rippert. GER, 1919.
Dr. Wise on Influenza. Dir. Joseph Best. UK, 1919.
La peur des microbes. Dir. Pathé Frères. FRA, 1907.
Les joyeux microbes. Dir. Émile Cohl. FRA, 1909.

192
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Spirochoeta Pallida (de la Syphilis). Dir. Jean Comandon. FRA, 1910.


The Cheese Mites. Dir. Francis Martin Duncan; Charles Urban. UK, 1903.
The temple of Moloch. Dir. Thomas Edison. USA, 1914.
That fatal sneeze. Dir. Levin Fitzhamon. UK, 1907.

Bibliografia
BERTOLLI FILHO, Cláudio. Novas doenças, velhos medos: a mídia e as projeções
de um futuro apocalíptico. In: MONTEIRO, Y. N.; CARNEIRO, M. L. T. (org.).
As doenças e os medos sociais. São Paulo: Ed. FAP-UNIFESP, 2012, p. 13-36.
COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação.
Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada.
Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 154-220.
GAYCKEN, Oliver. “Revealing Nature’s Closest Secrets”: F. Martin Duncan’s
Popular-Science Films at the Charles Urban Trading Company. In: GAYCKEN,
Oliver. Devices of curiosity: Early cinema & popular Science. New York: Oxford
UP, 2015, p. 15-53.
LEFEBVRE, Thierry. Jean Comandon et le débuts de la microcinématographie.
La revue du pratician, v. 53, n. 13, p. 1502-1505, sep. 2003.
LEFEBVRE, Thierry. Les joyeux microbes: un film sus influence? 1895 – Mille huit
cent quatre-vingt-quinze, n. 53, dec. 2007, p. 168-179.
O’GOMES, Isabelle Do. L’ouvre de Jean Comandon. In: MARTINET, Alexis
(Ed.). Le cinéma et la Science. Paris: CNRS Editions, 1994, p. 78-85.
PAPPAS, Georgios et al. Infectious diseases in cinema: vírus hunters and killer
microbes. Clinical Infectious Diseases, v. 37, n. 7, oct. 2003, p. 939-42.
POE, Edgar Allan. A máscara da Morte Rubra. Trad. Jorge Ritter. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 2007.
ROSENBERG, Charles E. What is an epidemic? Aids in historical perspective.
Daedalus, v. 118, n. 2, , p. 1-17, 1989.
SONTAG, Susan. Aids e suas metáforas. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
UJVARI, Stefan Cunha. História das epidemias. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2020.

193
Saúde, doença e mortalidade infantil
na idade média no Tratado De Los Niños
(Século XIV)
Larissa Lacé Sousa1

A proposta desta pesquisa é analisar a questão da saúde,


as principais enfermidades que afetavam as crianças e também a
mortalidade infantil na Idade Média. A principal fonte de nossa
análise é o Tratado de Los Niños, composto no início do século
XIV, pelo físico e mestre Bernardo de Gordônio (1258-1318).
Nosso objetivo ao analisar uma obra médica, fruto da medicina
universitária medieval, é compreender as concepções de saúde,
ligadas as enfermidades e aos cuidados com as crianças, tentando
evitar as causas de mortalidade.
O Tratado de Los Niños integra a obra denominada Livro sobre
a Conservação da vida humana desde o nascimento até a hora da morte,
conhecido também como Regimento de Saúde. Esse escrito contém
quatro partes práticas da medicina: a primeira trata-se do pulso,
a segunda sobre a sangria, a terceira é dedicada à dietética e a
última sobre a urina. É na terceira parte que está nosso direcionado
aos cuidados com a saúde infantil. Ao contrário dos regimentos
compostos para um paciente específico, sua obra com embasamento
teórico das autoridades Galeno e Avicena, apresenta recomendações
médicas para um público maior (PEÑA; GIRÓN, 2006, p. 89).
Nossa fonte está estruturada em 28 pequenos capítulos. Na
primeira parte o autor discute sobre o nascimento das crianças e
os primeiros cuidados com os bebês. O segundo é direcionado à
escolha da ama de leite. O terceiro, Gordônio dedica ao período de
1 Mestranda pelo PPGH-UFG. E-mail: [email protected]

195
IX Colóquio de História das Doenças: anais

nascimento dos dentes e as mudanças na alimentação. No quarto


capítulo é feito um resumo sobre as enfermidades mais comuns
que afetavam as crianças e o quinto trata-se exclusivamente
sobre a insônia infantil. A partir do capítulo VI o autor descreve
várias doenças (dor nas orelhas, inflamação nos olhos, dor no
ventre) explicando cada uma e o que fazer para tratá-las. No
último, mesmo sendo intitulado como “A febre dos infantes”, o
autor aborda um pouco sobre a questão da educação das crianças
e adolescentes, e o comportamento que deviam ter frente aos
seus pais e mestres.
Dentre os gêneros da literatura médica medieval, podemos
compreender a fonte como uma mescla de receituários e regimento
de saúde. O Tratado é uma obra de prática médica, pois ao mesmo
tempo em que lista as enfermidades, também receita os respectivos
tratamentos para evita-las e conservar a saúde. Nota-se que o autor
retrata a vida das crianças desde quando estão no ventre, os cuidados
que as mães deviam ter na gestação para não gerar aborto, até os
aspectos da juventude.
A partir do século XIII os regimentos de saúde foram compostos,
consistiam em um conjunto de normas dadas pelos médicos a serem
seguidas pelos pacientes. Eram ricos em preceitos que orientavam
cuidados em relação à alimentação, aos hábitos higiênicos, à prática
de esportes para que as pessoas ficassem saudáveis. Já os receituários
indicavam medicamentos que os pacientes deviam fazer geralmente
com plantas e elementos naturais, mas também com partes animais
e minerais (SOTRES, 1995, p. 264-265).
O físico Bernardo de Gordônio nasceu em uma aldeia próxima
à Montpellier, local onde exerceu sua profissão de físico por quase
toda sua vida. No seu percurso intelectual, identificamos também
sua atuação no ensino, graças ao trabalho como mestre exercido
a partir de 1283 na Faculdade de Medicina da Universidade de
Montpellier. Escreveu várias obras médicas e foi um dos físicos
precursores em trabalhar com o assunto criança e a saúde delas na
Idade Média (GUARDO, 2003, p. 19).

196
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A existência das enfermidades em algum tempo no medievo


foi figura presente e constante e levou a morte muitas pessoas,
inclusive crianças. A proliferação delas ocorria mais rápido devido
alguns fatores: falta de higiene e saneamento básico ou mesmo
falta de conhecimento que influenciava, porque as vezes algumas
práticas ao invés de melhorar, faziam o efeito contrário. Diante das
enfermidades, um corpo se tornava indefeso e doente e a presença
das enfermidades tanto nas sociedades medievais quanto modernas
chegavam com teor destrutivo, de maneira opressora. Quando
uma doença surgia, mais do que causar um transtorno pessoal ela
se tornava um elemento de desorganização social, principalmente
a partir do momento que ela se espalhava virando uma epidemia
(REVEL; PETER, 1976, p. 142-144).
A medicina medieval, influenciada pelas teorias das
autoridades antigas e árabes, baseava-se na observação e
raciocínio dos componentes da natureza, onde tudo estava
constituído por quatro elementos básicos: água, ar, terra e fogo.
A teoria humoral por Hipócrates e Galeno combinava os quatro
elementos naturais juntamente com as propriedades quente,
frio, seco e úmido, responsáveis pelos humores no corpo: sangue
(ar), biles amarela (fogo), biles negra (terra) e o fleuma (água),
que dependendo do equilíbrio ou desequilíbrio poderiam gerar
enfermidades. Assim, os alimentos, as bebidas e os medicamentos
eram indicados de acordo com suas qualidades, frio, seco, quente
e úmido, antes de ser recomendado ao paciente o sexo, a idade e
sua compleição deveriam ser observados (PERÉZ, 2009, p. 468-
470).
Gordônio, assim como outros médicos, seguia essa teoria
como o passo primordial para que tudo ocorresse bem. Então, em
suas indicações primeiramente vinham os elementos naturais e
a prática da dietética como os comportamentos que a mãe devia
praticar com as crianças, a maneira de cuidar em casa, os banhos,
a higiene, os remédios feitos à base de ervas e a alimentação. O
Tratado de Los Niños procura indicar em grande parte medidas para
evitar o surgimento de doenças.

197
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Considerando a compleição infantil que era quente e úmida.


Gordônio indica: “A água morna deve de ser moderada para dar
banho na criança e depois retificado a cabeça se for conveniente”
(TNBG, p. 76). Percebemos a teoria aqui, como a compleição das
crianças era quente e úmida ele sugeria banhos com água morna,
a fria não era indicada porque era fácil das crianças adoecerem e
a quente também não devido à constituição física dos bebês ser a
mesma.
O próximo passo seria cuidar do cordão umbilical. Na fonte
em análise, Bernardo de Gordônio apresenta os procedimentos
para cortar o umbigo e depois curá-lo: “Ser cortado o umbigo como
quatro dedos, mas antes deve ser amarrado com lã torcida e untada
com azeite de sésamo.2 Após o corte, espalhe acima pó feito com
mirra e sangue de dragão” (TNBG, p. 76).3
Esses são medicamentos que auxiliavam no processo de
cicatrização. Por isso recomendava utilizar sangue de dragão
que por ser antioxidante e um potente cicatrizante servia para
tratar feridas, impedir infecções e ajudar a cicatrizar. Indicava
ainda pó de mirra que exercia função de antimicrobiano e anti-
inflamatório e árvore-do-mástique4 que tinha propriedade de
auxiliar na desinfecção.
Na análise da fonte é possível identificar algumas enfermidades,
dentre elas, destacam-se: dor e coceira nas gengivas quando os
dentes das crianças começavam a nascer, bolhas na garganta, no
corpo, a insônia ou medo infantil, tumores na cabeça, ruptura da
apendicite, doenças no estômago, dor nos ouvidos, inflamação nos
olhos, dor e constipação no ventre, vermes, febres e outras.

2 É um óleo comestível chamado de sésamo ou gergelim, extraído a partir de sementes


de sésamo. Está em uso por milhares de anos para diversos fins no Oriente. Ele tem
propriedades curativas para uma série de doenças. É usado por via oral ou passado no local
da dor ou enfermidade.
3 É uma árvore da família Euphorbiaceae, que pode medir entre 10 e 25 metros de
altura, com folhas em forma de coração, brilhantes e flores verde-brancos. Quando corta,
sua seiva é vermelha como sangue por isso este nome, e têm propriedades medicinais
comprovadas, como a cicatrização.
4 É uma resina obtida do lentisco, é vendida no mercado na forma de gotas ou
lágrimas arredondadas.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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Para o tratamento das doenças que atingiam a cabeça


(tumores, lesões) era indicado que tomasse clara de ovo. Contra
os problemas nos olhos Gordônio receitava que o rosto e os olhos
fossem untados com suco de solatri, pepino e azeite morno. A clara
de ovo com propriedades frias, levava a sensação de redução do
calor corporal e aliviava alguns tipos de dores, do mesmo modo, o
pepino também frio agia refrescando. Ambos seriam contrários à
constituição física das crianças e assim, exerceriam função positiva
na cura destas enfermidades.
Tratando da inflamação dos olhos das crianças “Falo que seja
molhada uma esponja em água que tenha camomila e meliloto5,
endro6 e frequentemente seja pingado nos olhos, se for por causa da
inchação nas pálpebras, seja untado com suco de solatri” (TNBG,
p. 80).
Se tratando da insônia infantil, Gordônio também faz
indicações, apesar deste problema não ser considerado propriamente
uma doença. É descrita como um incômodo no qual ele fazia
algumas recomendações:
as crianças costumam ficar sem sono e para isto seja posto na testa
e nas têmporas panos molhados no leite de mulher, azeite rosa e
farinha de papoula7 e se for grande a necessidade, seja acrescentado
com estas coisas, suco de alface, de beldroega8 com um pouco de
ópio (TNBG, p. 79).

Quando ele indica suco de alface e beldroega para cuidar da


insônia infantil. De acordo com a compleição dos pequenos que
é quente, esses dois alimentos seriam medicamentos ideais com

5 É uma planta medicinal que ajuda a estimular a circulação linfática, diminuindo o


inchaço, seu nome científico é Melilotus officinalis, seu uso ajuda no tratamento de insônia,
má digestão, febre, conjuntivite, inchaços, tosse. Tem propriedade anti-inflamatória.
6 Planta da família Apiaceae, também conhecida como aneto, anega, funcho-bastardo,
o endro tem propriedades anti-inflamatória, digestiva, laxante.
7 Planta muito utilizada na Grécia Antiga pelos médicos, serve para tratar diarreia,
queimaduras, sangramentos no nariz, dores de dente e desempenha função sedativa
podendo dar sonolência principalmente se consumida em excesso.
8 É uma planta de origem europeia, muito utilizada na preparação de saladas,
pois possui o sabor semelhante ao espinafre, não é tóxica, tem propriedades benéficas
no tratamento de acidentes domésticos e cura de órgãos comprometidos, alivia dores,
combate vermes.

199
IX Colóquio de História das Doenças: anais

suas propriedades frias, refrescando e principalmente acalmando a


criança para que conseguisse dormir.
Na fonte aparece totalmente relevante e de forma majoritária
o uso de substâncias vegetais nos medicamentos que Gordônio
indicava para preparar para as crianças, como por exemplo, usar
cominhos e camomila para curar dor de ouvido, camomila e meliloto
para melhorar inflamação nos olhos, e outros medicamentos
originários de árvores, plantas e raízes (TNBG, p. 80).
A primeira alimentação infantil consistia em um manjar feito
com açúcar, mel e gergelim, que deveria ser dado durante dois dias.
Gordônio recomendava que as mães ao perceberem o nascimento
dos dentes em seus filhos, massageassem as gengivas com miolos
de lebre porque fazia os dentes crescerem, após esse período,
consequentemente a comida já poderia mudar para a mais firme
(TNBG, p. 78-79).
Quando os dentes começavam a nascer, geralmente surgia
uma coceira e irritação imensa nas gengivas, com isso a criança
sentia mal-estar, febre, moléstia, vômito e de acordo com Gordônio
algumas até morreram em decorrência deste problema, sendo assim
ele indicava alguns medicamentos:
sejam untados a gengiva, o pescoço e a garganta e faremos desta
forma: untem os lugares com azeite, no qual contenha um pouco
de cera branca9. Depois seja embebida e emplastada a cabeça com a
água do cozimento da camomila, meliloto, das violetas e rosas, que
o ventre seja emplastado com rosas postas em vinagre, use coalho
de cabrito, menta e rosas para colocar sobre o estômago. (TNBG,
p. 81).

Para combater as dores nas orelhas era indicado:


Se houvesse muita dor com calor que seja untada com azeite rosa,
leite de mulher e um pouco de ópio e se for por causa da ventania,
seja cozida mirra10, erva doce e cominhos em azeite de camomila e
uma gota seja destilada e pingada na orelha. (TNBG, p. 80).

9 Cera branca ou de abelha, são glândulas cerígenas localizadas no abdômen das


abelhas operárias tem propriedades para curar irritações e alergias.
10 Também conhecida como mirra-arábica ou incenso, oriunda da África e Arábia,
trata-se de um arbusto espinhoso da família Chenopodiaceae, tem vários benefícios a
saúde, com propriedades depurativas e antissépticas.

200
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

O azeite rosa (desempenhando função de antibacteriana, anti-


inflamatória, laxante), erva doce (servia para tratar inflamações),
ópio (neste caso que se desempenha como um sonífero analgésico
que interrompe as dores), e cominhos (que tem propriedades
antissépticas, antimicrobianas e ajudam a impulsionar a imunidade
do corpo).
Para a criança que estivesse vomitando eram indicados
que fizessem uma mistura feita com cravo da índia (que alivia
problemas digestivos e melhora dores de dente devido às suas
propriedades antissépticas, também tem propriedades vermífugas
e antibacterianas), musgo11 e alguns cominhos. Se o estômago
estivesse doendo muito que se colocasse uma compressa sob ele feita
com cravo da índia e menta para aliviar (TNBG, p. 82).
A alimentação para as crianças em fase de amamentação
aparece muito mais com o objetivo de curar do que alimentar,
por isso se a criança sofresse de uma enfermidade chamada
fluxo no ventre, mais conhecida como uma dor de barriga, com
cólicas, Gordônio medica algumas coisas, mas cabe ressaltar que
só teriam eficácia se as amas também aderissem o mesmo regime.
Com relação à alimentação as amas deveriam comer arroz,
lentilhas, queijo sem sal, ovos duros e tomassem vinho grosso,
já para os pequenos era indicado que fossem amamentados com
leite de cabras fervido. Depois a criança devia ser banhada em
água morna na qual tivesse tanchagem12, espinheiro-de-casca-
branca13, sumagre14 e outras plantas semelhantes (TNBG, p.
82–83).
11 O musgo-da-Islândia (Cetraria islandica) é uma planta medicinal, (líquen),
pertence à família Parmeliaceae.. Devido ao alto teor de muco, a planta alivia irritações,
uma vez que é o muco pode envolvendo mucosa orofaringe acalmar dores e inflamações
no estômago e intestinos.
12 É uma planta que cresce sem demasiadas exigências nos lugares podendo ser
encontrada nas terras de cultivo, ou perto de estradas, é rústica e fácil de cultivar, não
precisando de cuidados especiais. Usada para inúmeras coisas, acelera cicatrização,
diminui hemorragias, reforça os anticorpos e a imunidade, reduz as dores.
13 É uma erva medicinal que costuma ser utilizada para regular o ritmo cardíaco, tem
propriedades de adstringente, antiespasmódico, diurético, relaxante.
14 É uma fruta de uma planta que é usada em jardins, é um tipo de arbusto, seus
ramos são avermelhados, desempenha propriedades diurética e tônica.

201
IX Colóquio de História das Doenças: anais

As enfermidades e a morte marcaram a vida infantil na


Idade Média. Junto com as festas por batizados e nascimentos,
havia também o sofrimento de famílias que perdiam suas crianças
durante o parto ou nos primeiros meses de vida. A anemia atingia
com frequência crianças e adolescentes e as doenças vindas da
subnutrição, causadas pela fome, infecções ou mudanças inadequadas
na alimentação eram suficientes para provocar graves enfermidades
e leva-las à morte. A mortalidade infantil trazida pelas doenças
afetava também a realeza. Nas crônicas em sua maioria constam
expressões como “tenra idade” para se referir às mortes precoces das
crianças (OLIVEIRA, 2011; CABRERA SANCHÉZ, 2008).
As principais causas de mortalidade infantil no medievo, além
das enfermidades eram no parto que era um final incerto, quando
haviam muitos obstáculos a serem enfrentados pelas mulheres
naquele momento, é possível imaginar as inúmeras preocupações
das mulheres: para algumas existia a vontade de ter um filho, mas
por outro o temor, em pensar que a hora do parto se aproximava e
se não adotasse os cuidados certos poderia morrer ou perder aquela
criança tão esperada, como já havia acontecido com várias outras
mulheres da família.
O parto era um acontecimento privado, doméstico e exclusivamente
feminino. Um véu de intimidade e pudor isolava-o do mundo
masculino, entregando-se a futura mãe os cuidados da mulher
da casa, das vizinhas e da comadre. Última etapa de um percurso
incerto, o seu fim revelava-se particularmente ansiado e temido.
As incertezas relativas à sobrevivência da mãe e dos filhos, bem
como à sua posterior saúde e normalidade eram responsáveis pela
particular atenção concedida nos tratados médicos, nomeadamente
hispano-árabes, aos cuidados a ter durante o parto. Alertavam
ainda para a prudência e grande experiência que as parteiras
deveriam ter, sugerindo diversas indicações sobre a maneira de
lidar com as várias posições tomadas pelo bebê ao nascer, dado ser
frequente terminarem os partos difíceis ou com fetos decepados
e arrancados à força, ou com crianças mortas no ventre das mães.
Nascer era apenas ultrapassar um primeiro obstáculo; o espectro
da morte continuava a rondar o pequeno. (OLIVEIRA, 2011, p.
260).

As enfermidades que atingiam as crianças tão indefesas eram


as maiores responsáveis, as mudanças na alimentação quando com

202
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a retirada do leite também causaram problemas de saúde como a


anemia. Por fim o infanticídio, segundo Opitz (OPITZ, 1990,
p. 383-384) ter filhos na Idade Média para as mulheres era uma
obrigação, várias contra sua própria vontade foram mães porque
a Igreja condenava, mas nem todas tinham esse desejo, então
abandonavam, tentavam abortar e até mesmo matar.
Oliveira (OLIVEIRA, 2011, p. 286) destaca um período
perigoso para o infante, que poderia comprometer sua saúde: o fim
da amamentação. Este fato ameaçava o bem estar infantil pois quando o
leite era retirado, devia organizar um novo regime alimentar, pois se
este não fosse bem preparado poderia desencadear problemas como
infecções gastrointestinais e respiratórias, má nutrição, febres. A
alimentação era e continua sendo um fator muito importante para
a saúde.
Outro fator que levava as crianças à morte eram as
brincadeiras: quando elas começavam a ter uma certa autonomia,
iam brincar fora de casa, perto de rios, florestas ou usando objetos.
Esses divertimentos algumas vezes apresentavam grande perigo, os
afogamentos aconteciam muito e quase sempre eram fatais. Outros
acidentes aconteciam dentro da própria casa, eram as quedas,
queimaduras e asfixia, provocada por engasgamentos com anéis,
osso ou algo do tipo (OLIVEIRA, 2011, p. 271-274).
A mortalidade infantil também afetava a realeza que
não podia fazer nada além de seguir os preceitos indicados nos
tratados. Em maioria os cronistas não possuíam fontes seguras para
afirmarem a idade correta que as mortes ocorriam, então na maioria
das vezes usavam expressões como “tenra idade” para se referir ao
fato, e marcavam a fase, dos recém-nascidos até aos treze anos no
qual se inicia o período da adolescência. O rei João I de Aragão
que teve onze filhos, apenas uma sobreviveu até a idade adulta e os
outros morreram nos primeiros meses. Este é um exemplo da perda
prematura dos filhos (CABRERA SANCHÉZ, 2008, p. 221-223).
Seja em qual conceito for, nos tempos remotos ou atuais, a
doença é ameaçadora para as crianças, adolescentes, idosos e todas as

203
IX Colóquio de História das Doenças: anais

idades, ela ultrapassa a dor e o sofrimento pessoal, atingindo mesmo


toda a sociedade como no caso de um surto. Apesar de todos os
desenvolvimentos tecnológicos, a diversidade de medicamentos e as
pessoas ainda usarem praticas antigas como a das ervas medicinais,
é sempre importante prevenir adotando medidas para evitar as
enfermidades.
O que se pode ver é que as crianças estavam cercadas de
enfermidades por todos os lados e apesar de várias mortes terem
ocorrido, muitas também foram salvas através das indicações
terapêuticas nos tratados que eram de grande importância. No
medievo, não existia o desenvolvimento da medicina atual, mas
existiam esses tratados que eram uma saída, uma resolução para
vários problemas, a questão da prevenção era essencial, se manter
saudável contava muito e isso através dos banhos e de toda concepção
de higiene, alimentação. As crianças tiveram uma participação
muito importante na história.

Referências
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2011.
CABRERA SANCHÉZ, Margarida. La muerte de los niños de sangre real durante
el medievo. Aproximación al tema a traves de las crônicas. En la Espanã medieval,
v. 31, p. 217–248, 2008.
GUARDO, Alberto Alonso. El autor y su entorno cultural. In: GUARDO, Alberto
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Crisi et de Diebus Creticis” de Bernardo de Gordônio. Linguística y Filología.
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OLIVEIRA, Rodrigues Ana. A criança – O espaço infantil. In: MATTOSO, José
(org.). História da Vida Privada em Portugal – A Idade Média. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2011, p. 260-299.
OPITZ, Claudia. As mulheres nas estratégias familiares e sociais. In: DUBY,
Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. A Idade Média. v.
2. Gius. Roma-Bari: Laterza/ Figli Spa, 1990, p. 377-391.
PEÑA, Carmen; GIRÓN, Fernando. La prevención de La Enfermidad em La España
Bajo Medieval. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2006.

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PERÉZ, Magdalena Santo Tomás. El uso terapêutico de la alimentacion en la Baja


Edad Media. In: ARIZAGA BOLUMBURU, B.; SOLÓRZANO TELECHEA, J.
A. (org.). Alimentar la ciudad en la Edad Média. Logroño: Instituto de Estudios
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SOTRES, Pedro Gil. Les regimes santê. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Histoire
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REVEL, J.; PETER, J. P. O corpo. In: LE GOFF, J.; NORA, P. (org.). História:
Novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 141-159.

205
O impaludismo na estrada de ferro
Vitoria a Minas – 1920-1942, e o que
pode ser dito
Luiza Maria de Castro Augusto Alvarenga1

No estudo da historiografia da malária na Estrada de Ferro


Vitória a Minas, a necessidade de revelar o que não estava claro nos
documentos pesquisados no Centro de Memória da Companhia Vale
do Rio Doce, onde estão guardados os documentos da Companhia
Estrada de Ferro Vitória a Minas (CEFVM), requereu uma escolha
metodológica, além das fontes de pesquisas documentais, que
podiam trazer confirmação da existência da malária na ferrovia, no
período de 1920 a 1942.
Chamou atenção, os poucos registros sobre os operários,
que trabalhavam na via permanente da Estrada de Ferro Vitória a
Minas (EFVM), que abriam a mata, fincavam dormente, colocavam
os trilhos e faziam a manutenção da linha. Entre tantas informações
que mostravam em detalhes, mercadorias, fretes, planilhas de lucros
e taxas, haviam poucos relatos sobre ataques de malária e mortes por
malária, apesar dos registros de constantes de baixas do contingente
de trabalhadores que necessitavam de substituição permanente,
tendo como causa relatada, o impaludismo.
A morte, foi objeto de denuncia em 1922, publicada
no relatório de viagem do médico sanitarista do Instituto de
Manguinhos (Rio de Janeiro), Dr. Belisário Penna. Ao percorrer o
território da ferrovia para observação das condições de saúde da
população e dos ferroviários no vale do Rio Doce, constatou miséria,
1 Médica Sanitarista, Doutora em História.

207
IX Colóquio de História das Doenças: anais

desnutrição, pobreza e morte. Entre as causas de morte, o médico


sanitarista descreveu a gravidade da malária em homens e mulheres
que trabalharam na ferrovia ou viviam dela, caracterizados como
“velhos e fracos apesar de pouca idade” (PENNA, 1922a, p. 2), que
se desenhava como possuindo um semblante de pouca gordura, com
os ossos aparecendo sob a pele e a fraqueza, sinais características
de corpos envelhecidos, desidratados e desnutridos, sinais clínicos
achados em corpos submetidos a repetidos surtos de malária e com
desnutrição.
Este fato se tornou conhecido pelas autoridades políticas e
sanitárias dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, através
conferência realizada no dia 04 (quatro) de março de 1922, onde
o médico alertava sobre as causas do que chamou de tragédia, mas
somente em 19 abril de 1922 se torna conhecido pela sociedade
na publicação do artigo intitulado Saneamento do Valle do Rio
Doce, no jornal O Estado da cidade de Vitória (PENNA, 1922a,
p. 2). Na publicação, Belisário Pena afirma o importante papel das
ferrovias no desgaste físico, na exposição ao contágio de doenças
e na morte de grandes contingentes humanos, principalmente por
levarem trabalhadores para regiões onde as condições de sobrevida
não estavam garantidas.
O médico sanitarista falou especificamente sobre o Vale do
Rio Doce, de Barbados (Colatina /ES) até Cachoeira Escura (Minas
Gerais) e descreveu este território como cenário de sertão2 na
ferrovia. Logo, como sertão, não foi apenas a malária que levou os
operários àquele grau de espoliação, também a fome, que mesmo
seletiva, de forma endêmica e silenciosa. No seu discurso, Pena,
afirmou a necessidade de homens saudáveis para a término do grande
empreendimento, provavelmente porque via na EFVM as mesmas
condições de morte da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Com
2 Para os médicos sanitaristas, o sertão a que Belisário Penna se referiu no seu discurso
em Vitória representa a periferia das cidades, um povo abandonado pelo Estado e doente,
que poderia tornar-se uma ameaça para a Saúde Pública por manter a comunicabilidade
das doenças entre os indivíduos e entre as cidades e sua periferia. Além desse referencial de
perigo, como doença que pega, vamos encontrar autores que destacam o caráter de construção
de uma ideologia nacionalista que precisaria resgatar esse contingente populacional para
formar a nação Hochman, (2013).

208
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

clareza do desfecho fatal e recomendações higiênicas e nutricionais


gerais, ele não denunciou diretamente a EFVM, pelas condições de
trabalho e de vida dos trabalhadores.
Muitos já conheciam a situação dramática de sobrevivência
no Vale do Rio Doce, pois numa cantiga popular, os operários eram
coitadinhos que vieram morrer na EFVM. Tinha-se a impressão,
de que todos aqueles que conheciam a cantiga sabiam dos fatos
relatados no jornal.
“Coitadinho dos baianos,
nem sabiam sua sina,
Foram morrer de febre,
Na Estrada Vitória a Minas”
(TARSO, 2003)

Em 1929, a imposição de corte nas despesas da ferrovia em


momento de grande crise econômica mundial refletiu-se na redução
de recursos humanos, principalmente de operários e, entre estes,
aqueles de menor produção. Nesse processo de demissão, foram
dispensados os menos sadios, principalmente os doentes crônicos de
malária que, debilitados por ataques repetidos e mal alimentados,
eram considerados improdutivos. De fato, a doença existiu,
comprovada nos relatórios dos médicos da ferrovia que percorriam
a linha tratando os doentes, fazendo quimioprofilaxia com o quinino
ou usando fórmulas mais complexas em caso de doença resistente.
Mas a morte não estava nos relatórios apresentados anualmente aos
acionistas da Companhia.
Somente no ano de 1931, o relatório médico, assinado pelo
chefe da construção (Linha) e dirigido ao Diretor-Presidente da
CEFVM, traz a descrição de um acontecimento trágico, ocorrido nas
proximidades de Antonio Dias, na região entre a Ponte do Brocotó
até 10km à frente, que relata a ocorrência de um surto grave, no
qual o “paludismo atacou os operários e suas famílias dizimando-
os” (REFVM, 1931). Pelo traçado da época, o trecho atravessava
o Rio Piracicaba, afluente do Rio Doce, provocando grandes
alagados na época das chuvas, e seguia até Callado, hoje Coronel

209
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Fabriciano. Sendo assim a presença de indivíduos infectados e


aumento de mosquitos, criaram a ambiência para um surto grave
de impaludismo. O tratamento medicamentoso conhecido não
resolveu os casos e as mortes foram inevitáveis.
Desde o início do século XX, o tratamento médico da malária
e as formas de prevenção eram conhecidos e foram empregados nas
ferrovias com o objetivo de fazer cumprir o projeto, que dependia
de força e habilidade humanas. Uma das primeiras publicações
científicas com recomendações de medidas profiláticas está na
revista O Brazil-Médico, de 1907, na qual Dr. Carlos Chagas
descreve maneiras individuais e coletivas direcionadas a evitar as
picadas dos insetos.

Matéria publicada na Revista Semanal da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de


Janeiro em 22 de abril de 1907. Fonte: O Brazil-Médico (1907, p. 15).

210
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A publicação recomendava o uso de roupas grossas, fumo e


óleos de cheiro forte, como petróleo, eucalipto ou mentol, que deviam
ser passados no corpo. Essas substâncias, consideradas inseticidas,
podiam proporcionar alguma proteção, mas na dependência da
compreensão e cultura dos indivíduos. Para proteção mecânica,
eram recomendados mosquiteiros e cortinados, mas o calor forte
e o excesso de umidade que caracterizavam o clima do Vale do Rio
Doce não permitiam que fossem usados constantemente. Aliada às
recomendações gerais de proteção, estava a quimioprofilaxia com
quinina, que o médico sanitarista adotou como único meio capaz de
proteger grandes contingentes de trabalhadores expostos ao risco
da infecção, com uma efetividade maior que a do tratamento dos
focos de larvas de mosquitos através da drenagem das águas ou da
proteção mecânica.
Para o médico, o remédio agia no controle da morte e do
sofrimento dos trabalhadores, garantindo, assim, a conclusão do
empreendimento (BENCHIMOL, 2000; BENCHIMOL; SILVA,
2008). Para que os resultados fossem assegurados, os trabalhadores
eram obrigados a ingerir a dose de quinino disponibilizada por uma
autoridade. Caso não a ingerissem, eram demitidos. Outra medida
imposta a um grupo maior de trabalhadores recomendava que
todos fossem recolhidos aos barracões ao entardecer e ali ficassem
isolados. A possibilidade de se construírem varandas teladas que
dessem oportunidade de descanso e lazer, sugerida na mesma
publicação, foi aventada para aliviar a coação que representava o
uso da quimioprofilaxia com quinino e o desconforto decorrente de
estarem tolhidos da liberdade de locomoção.
Os relatórios dos médicos da ferrovia falam da distribuição
de quinino aos doentes para tratamento e, também, como
medida profilática, mas sem grande controle sobre a ingestão do
medicamento ou sobre outras medidas. O memorialista Ceciliano
Abel de Almeida conta que, em 1925, quando iniciou o levantamento
topográfico da região entre o Rio Mucuri e Itaúnas, os engenheiros
eram orientados a entregar aos chefes de turma as pílulas de sulfato
de quinina de 25cg (quinino), além de obrigar o uso de mosquiteiros

211
IX Colóquio de História das Doenças: anais

e a mudança do abarracamento todo sábado, como medida


profilática. Nesse período, mudou sua barraca de lugar muitas vezes
e não pegou a febre, mas os colegas que não o fizeram, como ele
próprio justifica, contraíram a doença (ALMEIDA, 1959, p. 234).
No entanto, essa recomendação não podia ser feita para
as turmas de operários que seguiam com a derrubada da mata e
o assentamento dos trilhos. Os operários só desmontavam o
acampamento quando o trecho de linha se completava, logo não
lhes seria possível seguir essa recomendação. Apesar de não aludir
à presença de autoridade sanitária que orientasse medidas de
prevenção contra a malária, Almeida (ALMEIDA, 1959) apresenta-
nos fatos que demonstram, por vezes, cuidados com os trabalhadores
e, outras vezes, omissão da administração da Companhia.
Diferentemente dos trabalhadores “fichados” na CEFVM,
os operários não tinham direito a licença para tratamento. Sua
sobrevivência podia esgotar-se a qualquer momento devido à doença
na ocorrência de desgaste físico. Na obra do engenheiro Ceciliano
Abel de Almeida (1959), em vários momentos da sua narrativa,
destaca-se a descrição da permanência de operários doentes, com
as crises intermitentes, durante a laboração. Em um dos trechos
que exemplifica essa situação, é dramática a análise que o autor
apresenta, anos depois dos fatos ocorridos. Naquele momento
dentro da Companhia, o engenheiro se coloca celebrando o término
da tarefa, mesmo que executada por infelizes, inconscientes da
situação de exploração grave de um corpo doente.
A alegria da turma se esmarriu, obdurou-lhe, a decisão de triunfar
dos obstáculos, que se lhe apresentassem. E com o propósito de
alcançar a vitória, chantando o marco final da locação, aquela
gente, embotada na hora do acesso palustre em seus tresvarios, se
referia amiúde ao término do serviço e à volta imediata ao trecho
em construção. E esses delírios, na picada, convertiam-se em anelo
consciente e justo e, por isso, todos procuram, como náufragos,
sopitando canseiras, salvar-se, chegando á praia simbolizada na
última estaca, que iam cravar. O têrmo de nossa tarefa sorri em
um sábado esplendoroso, que contrasta com as faces embaciadas
daqueles infelizes, sempre pacientes em esperar os terríveis acessos
intermitentes, sempre em demasia agradecidos à pouca terapêutica
que lhes oferecemos. (ALMEIDA, 1959, p. 239-240).

212
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Triunfar ou chegar ao término de uma tarefa que vai além de


suas forças, “como náufragos, sopitando canseira”! O engenheiro,
participante de tudo o que se passava com aqueles homens, termina
sua tarefa em um sábado esplendoroso, com a sombra de operários
moribundos e sem tratamento.
Para os trabalhadores e operários da EFVM, era obrigatório
o uso diário de pílulas de sulfato de quinina na concentração de
25cg. Para os engenheiros que estivessem trabalhando em áreas de
alta incidência de malária, essa dose poderia ser aumentada, isto
é, ser superior a 25cg de sulfato de quinina, não havendo controle
sobre a dose total ingerida. A medicação era deixada pelos médicos
da ferrovia nos acampamentos, ficando o controle da distribuição
sob a responsabilidade dos engenheiros, feitores e chefes de turma.
O sulfato de quinina era dado aos trabalhadores depois da refeição
principal, geralmente o almoço, e a pílula era colocada sobre a
língua de cada operário.
Os médicos da CEFVM orientavam para que as doses fossem
duplicadas ou triplicadas, quando a situação se tornasse grave, e
para que se retirassem os trabalhadores que desejassem sair daquele
local. Muitos não acreditavam que as pílulas fossem capazes de
evitar a malária porque, mesmo tomando a droga, ainda adoeciam
(ALMEIDA, 1959, p. 236). Este fato estava relacionado a concentração
da quinina de 25cg, que não acompanhou as recomendações dos
médicos sanitaristas, caracterizando a ingestão de subdoses incapazes
de proteger os trabalhadores, que continuaram adoecendo. Quando
as doses eram duplicadas ou triplicadas sem acompanhamento
médico, o aparecimento dos efeitos adversos relatados, como surdez,
zumbidos, desmaios, caracterizavam a superdosagem.
Outro, negro de dentes alvos ornados de gengivas ebâneas, revela-
nos em soluços, e em lágrimas, que rolavam pelas faces azevichadas
e ressequidas: vosmecê punha alila de sulfato na minha boca, mas
eu não engolia, escondia debaixo da língua e atirava depois longe,
por mode eu não queria ficar surdo. (ALMEIDA,1959, p. 237).

Foi a partir do silêncio dos documentos que as pesquisas se


direcionaram aos memorialistas e aos relatos orais. As narrativas

213
IX Colóquio de História das Doenças: anais

dos memorialistas tiveram grande importância por trazerem


os acontecimentos ocorridos no tempo e no espaço que eles
presenciaram. Diferem da narrativa dos entrevistados, que são
recordadores de fatos que presenciaram em tempos de infância ou
que lhes foram relatados. Como afirma Le Goff:
tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também
a memória não é a história, mas um dos seus objetos e,
simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica. (LE
GOFF, 1990, p. 49).

Como escritores, os memorialistas pesquisados utilizaram


formas diferentes de narrativas, muita das vezes aproximando-se
do estilo autobiográfico, outras relatando acontecimentos de que
ouviram falar. Mesmo não seguindo a metodologia acadêmica dos
historiadores e nem se aproximando da produção literária, foram
considerados fontes de pesquisa porque tiveram uma consciência
histórica, sistematizaram e registraram uma comunidade em um
tempo (DOMINGUES, 2011). Para o historiador, a literatura
continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela
é a representação que ela comporta (PESAVENTO, 2000, p. 11).
Cinco autores dedicaram-se a contar as histórias da EFVM, são eles
Lucílio da Rocha Ribeiro, Ceciliano Abel de Almeida, Decarliense
Alencar Araripe, João Affonso e Abel de Carvalho, todos com
conhecimento porque trabalharam na ferrovia. Nas narrativas, nos
contos e nas memórias desses homens, a estrada de ferro e o Vale do
Rio Doce, foram o território dos acontecimentos inclusive de morte
por malária.
Os autores contam as histórias, analisam os fatos e são, em
outros momentos, personagens dos acontecimentos. Nos livros de
memórias, o autor tem, particularmente, a intenção de fazer uma
narrativa de sua vida. Pesavento (PESAVENTO, 2000) afirma que
não há necessidade de separar tão rigidamente os memorialistas dos
historiadores, uma vez que ambos apresentam muitos pontos de
interseção. Do mesmo modo que a literatura precisa de um narrador
para apresentar os fatos, a narrativa histórica necessita também de
um narrador para expor o que se ouviu, viu ou pesquisou.

214
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Para os relatos orais, os entrevistados foram identificados no


contato com Sindicato dos Ferroviários, trabalhadores atuais da
CVRD e por familiares de ferroviários que trabalharam ou viveram
na beira da EFVM, durante várias gerações. Foram entrevistados três
ex-ferroviários, uma descendente de ferroviário e duas residentes
do município de Acioli, do povoado de São Lourenço de Baunilha,
onde existiu uma parada de trem no primeiro traçado da ferrovia.
Todos conviveram com ferroviários da EFVM, conheciam como
viviam tanto os trabalhadores como a população das localidades
situadas à beira da linha até o ano 1942 e aceitaram narrar suas
lembranças. Todos tinham mais de 79 anos, mas a idade não foi um
critério de exclusão.
As entrevistas foram desenvolvidas em clima de muita
cordialidade e apenas em uma ocasião houve preocupação da família
em estar prejudicando a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).
Não encontramos nenhum ex-operário da Via Permanente, nem
família de operários ou de trabalhadores qualificados da CVRD
que conhecessem a história dos operários da Via Permanente/
Construção e do adoecimento pela malária especificamente nesses
homens.
Os casos de malária relatados nas entrevistas foram
lembrados porque ocorreram na família, na proximidade de quem
contava, fazendo parte do grupo familiar – memória familiar, e não
memória coletiva no contexto da ferrovia (HALBWACHS, 1990).
Os entrevistados falaram mais de suas próprias histórias, a exemplo
de Dolores, que trouxe o Virgílio, seu avô, agente de estação, e deu-
lhe lugar de destaque aparentemente esquecido. As senhoritas de
Acioli também narraram muitas lembranças de quando meninas,
os remédios que tomavam, a tremedeira... O orgulho de ser
telegrafista foi percebido na emoção e nas falas entrecortadas de
dois entrevistados, mas somente o carpinteiro José do Patricínio foi
quem viu e guardou na memória o sofrimento dos trabalhadores da
linha.
Na época que trabalhei... a gente, na beira da linha, andava
demais...Eu não trabalhava na beira da linha, era carpinteiro,

215
IX Colóquio de História das Doenças: anais

mas trabalhava no trecho. Eu não cheguei a pegá paludismo; o


paludismo curava com chá... trem margoso!.. Meu colega pegou,
tremia demais. Ia pra trás da moita e ficava lá vomitando muito...
revirava o bucho... ninguém acudia não. Era no trecho, longe... e
tinha horário certo de largar o serviço (José do Patrocínio).

O auxiliar de estação Antônio Silvestre do Nascimento


corrobora esse depoimento:
A gente vivia meio amarelo de tanto tomar injeção. Acho que se
chamava Atebline, outros falavam Ateblina, de forma que não me
recordo mais do resultado. O certo é que amarela. E a gente vivia
amarelo. Trabalhei no telégrafo com um colchão no chão, porque
não aguentava a febre. Você treme, treme, treme. Faz frio. Aí
dispara a suar e vem uma fraqueza tremenda. O fígado endurecia
e ficava igual um pau. Então você dizia que aquilo era tábua de
passar roupa. (MAYRINK, 2002, p. 60).

Com base nos depoimentos de Patrocínio e Antônio e


sustentada pela assertiva de Le Goff, podemos entender o que
acontecia no corpo de homens humildes, negros, famintos, descalços
e dóceis3, que foram cenário de um acontecimento recortado
entre 1920 e 1942, sob a disciplina da EFVM. Neste referencial,
a historiografia das doenças encontra um sentido mais verdadeiro.
As respostas sobre o sofrimento e morte ocorridos entre
os trabalhadores, sobre quantos e onde foram enterrados, não se
completou nas entrevistas. O que parecia fácil de falar pela população
das localidades à beira da linha tornou-se motivo de preocupação
entre os antigos trabalhadores da EFVM, principalmente aqueles que
permaneceram na CVRD. Algumas entrevistas foram desmarcadas
e remarcadas, porém não se realizaram. As alegações giravam em
torno do “não sabiam dizer, ou não conheciam”, mas nunca de que
não havia acontecido. A imagem da CVRD apagou a da CEFVM
e sua memória mesmo para aqueles que tinham ingressado na
ferrovia antes de 1942. A imagem da nova Companhia, que superou
os problemas financeiros, substituiu a linha de baixa qualidade,

3 “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” Foucault (2014, p. 134). a existência de uma disciplina nas
ferrovias brasileiras do século XX, que nos remeteu aos escritos de Michel Foucault e toda
sua força, mostrando que a disciplina e a dominação bem como o funcionamento corporal
do poder disciplinar e seus efeitos de invisibilização estavam presentes na EFVM.

216
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

ordenou os cargos e formou o pessoal, fez desaparecer as memórias


marcadas pelo trabalho rude dos primeiros tempos.
O que não estava registrado nos documentos da EFVM e
não fez parte das lembranças dos entrevistados foi trazido pelos
indícios deixados nas entrelinhas dos escritos dos memorialistas. O
não dito não parece relacionado ao silenciamento traumático dos
acontecimentos, pois aqueles que aceitaram contar suas histórias
não pertenceram à categoria dos operários e, provavelmente, não
experimentaram a violência. Eram crianças e adolescentes no
período estudado, por isso não perceberam a realidade, ou, então,
suas memórias foram construídas no grupo social, seu grupo afetivo,
que mantinha distanciamento dos operários.
Os operários que morreram de malária, enterrados na própria
ferrovia, formaram um grupo de pessoas desprovidas de identidade
para a organização da EFVM, que as fez ausentes nos documentos
e na memória coletiva da CEFVM. Os “baianos”, cujos nomes não
sabemos, estão na historiografia da malária como as maiores vítimas
de uma doença infecciosa vetorial, de uma organização social, de um
Estado que não reconhecia os sertanejos como cidadãos, o Estado
Liberal que, com práticas de exploração e acúmulo capitalista, os
explorou sem trégua.
A presença do impaludismo, aliada à falta de recursos
financeiros, foi fato marcante nas duas décadas da construção da
ferrovia, entre 1920 e 1940. Nos relatórios de gestão dos anos
1920 a 1939 e nos setoriais da EFVM/CEFVM, a doença foi
considerada culpada pelo atraso da construção da linha. Apesar
de os trabalhadores poderem contar com intervenção médica no
período, não havia êxito no arrefecimento dos casos de doença,
principalmente do impaludismo.
A malária foi-se apresentando de forma mais ou menos grave
nos corpos que política e biologicamente foram colocados em risco.
A escassez de anotações na Divisão de Pessoal da EFVM relativas ao
período de 1920 a 1942 sobre essa “mão de obra” não nos permitiu
caracterizar o regime de trabalho adotado, mas os registros de

217
IX Colóquio de História das Doenças: anais

agradecimentos da CEFVM aos grandes empreiteiros pelo trabalho


realizado em 1936 atestam que o sistema de trabalho praticado na
construção da ferrovia foi organizado na forma de empreitadas e
subempreitadas. Esse modelo de organização do trabalho mantinha
a exploração extrema do trabalhador com o objetivo de reduzir os
custos e o tempo de construção das obras, como ocorreu em todas
as ferrovias brasileiras.
Em relatório datado de 1924, consta que os trabalhadores
tinham medo do impaludismo e, mesmo com salários diferenciados
e com gratificação de insalubridade, recusavam-se a trabalhar4.
Essa situação de despesa elevada com recursos humanos repetiu-se
em 1925, conforme descrito no Relatório da Diretoria desse ano,
que aponta os altos salários de funcionários especializados entre
os principais itens que contribuíram para o aumento das despesas,
juntamente com o custo de materiais, tais como combustível,
carvão de pedra, lubrificantes e matérias de reposição. Assinado
pelo Presidente João Teixeira Soares e direcionado aos acionistas, o
relatório revelava uma situação grave e sem perspectivas de melhora,
definida como “cada vez mais angustiosa” (CEFVM, 1926, p. 55).
Os operários que não deixaram registro foram invisíveis.
Estão na cantiga como imagem não pertencente a uma realidade
que merece ser lembrada. Ausentes dos arquivos, das memórias,
sem interlocutores a quem pudessem contar as histórias,
foram vencidos pela fúria das empreiteiras, pela negligência da
Companhia, pela doença, pelo corpo exausto, e não estão na
história. Os ausentes da história foram vencidos por uma rede que
os invisibilizou em vida, e na morte sob os trilhos. A invisibilidade
tirou-os do discurso público mesmo com o alerta de Belisario
Penna, em 1922, e, passados vinte anos, tiveram sua voz limitada
ao espaço do mato e da linha, num grupo de iguais que não foram
encontrados nem foram ouvidos.

4 Relatório apresentado à Assembleia Geral Ordinária dos acionistas em 1924. Na


sessão Relatório da Construção, estão os trabalhos realizados nos anos de 1922 e 1923,
assinados pelo engenheiro-chefe Joaquim A. B. Ottoni e apresentados ao Dr. Pedro
Augusto Nolasco Pereira da Cunha, diretor-gerente.

218
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A invisibilidade caminha no mundo do trabalho com a


indigência, mas a indigência refere-se aos excluídos do modelo de
ganho capitalista. Alienados da ordem ou pela loucura, não foi essa
a causa aparente da invisibilidade dos operários. A invisibilidade
que silenciou esses homens foi dada pela exclusão em uma sociedade
onde o poder, instrumento fundamental do capitalismo industrial,
determinou quem valia. A malária adoeceu e matou muitos, mas
os poucos registros existentes são de mortes de engenheiros e
trabalhadores especializados por acidente ou outras causas. Mas,
a falta constante de registros de morte por malária e mesmo da
dispensa de operários acometidos da doença, as baixas constantes
em horas de trabalho e as citações dos memorialistas sobre os
cemitérios na beira da linha revelam a existência de uma morte
anônima, não registrada nos documentos pesquisados.
Logo a malária estava presente entre os operários empregados
das empreiteiras, sujeitos a grave situação de exploração, pobreza
e insalubridade. Coitadinhos, sujeitos a zombaria, os baianos que
vieram morrer na ferrovia, como na cantiga popular, nunca foram
identificados. Ficavam nos matos, ninguém via. Invisíveis! Morreram
de malária no percurso da ferrovia homens, mulheres e suas crianças.
De pele escura, magros, analfabetos, ninguém falou neles, ninguém
se lembrou deles. Estão na fala de João Affonso: “Estatisticamente
falando, até 1943, aquele estado de calamidade deixou um saldo de
milhares de óbitos, sem levar em conta as vidas ceifadas em flor e os
malfadados efeitos daquela endemia”. (AFFONSO, 1967, p. 167).

Referências

Fontes primárias
Correspondências, relatórios, mensagens...
CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. II Divisão de Tráfego.
Gestão Setorial. Serviço Sanitário. Vila Velha-ES, 1920.
CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. Relatório apresentado à
Assembléia Ordinária dos acionistas no ano de 1923. Vila Velha-ES, 1923.

219
IX Colóquio de História das Doenças: anais

CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. Relatório apresentado à


Assembléia Ordinária dos acionistas no ano de 1925. Vila Velha-ES, 1925.
CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. Relatório apresentado à
Assembléia Ordinária dos acionistas no ano de 1926. Vila Velha-ES, 1926.
CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. Relatório apresentado à
Assembléia Ordinária dos acionistas no ano de 1927. Vila Velha-ES, 1927.
CEFVM – Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas. Relatórios da Divisão de
Trafego e da Divisão de Locomoção - 1936 e 1937. Vila Velha- ES, [193-].

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PENNA, B. O saneamento do vale do Rio Doce. O Estado, Vitória, 20 abr.
1922b, p. 2. [Discurso proferido na cidade de Vitória no dia 4 de março
de 1922]. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.
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Acesso em: 2 mar. 2018.
OBRAS RARAS (FIOCRUZ). Acervo digital de obras raras especiais. Disponível
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221
IX Colóquio de História das Doenças: anais

TARSO, V. O trem da Vale - a história centenária da EFVM –USIMINAS-


UNICULTURA. YouTube, 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/
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222
Reféns institucionais:
leprosos na colônia Santa Marta e o protagonismo
marxista como teoria
Maraisa Aparecida de Lima1

Introdução
Propor-se-ia neste trabalho o desenvolvimento de uma
análise crítica histórica acerca dos leprosos da Colônia Santa Marta
(Goiânia - GO) durante o Governo Vargas, com o embasamento
teórico proposto pelo Materialismo Histórico Dialético. Nos
períodos que se compreendem de 1937 até 1945.
Com a seguinte problemática inicialmente, seria a referida
teoria um bom aporte teórico-metodológico para essa discussão?
Quais os indícios de que o Materialismo histórico Dialético se
adequada as exigências que a história das doenças e das políticas
públicas necessitam no campo científico?
Com o objetivo de dar voz aos subalternos e reescrever uma
história que é repleta de estigmas, o trabalho anseia demonstrar
como o marxismo pode ser desenvolvido em estudos em saúde ou em
contextos de doença, porque a vida em uma colônia se caracteriza
como comunitária, mas sendo direcionada por um viés ditatorial,
tanto político como social.
A relação dos leprosos dentro da Colônia com o Governo,
se configurava como oprimidos X opressor, em que o segundo
grupo detinha todos os direitos institucionais sobre o primeiro, por
isso, pareceu contundente a escolha por essa teoria, dando assim
protagonismo aos doentes (oprimidos).
1 Mestranda PPGH - UFG.

223
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Suas condições eram dadas, não poderiam realizar diversas


atividades sem forte repreensão/penalidades, o ambiente era rígido
e regrado, o que levava os indivíduos a intentar fuga. Fortalecendo
a sua relação como classe, pois deveriam ajudar-se, caso quisessem
mudar a sua realidade.
Partindo deste pressuposto, Fernandes (FERNANDES,
1979, p. 12) salienta que existem muitas indagações que permeiam
o conceito de autoritarismo e autoridade. Comumente o cientista
político atribui ao Estado como o “locus” principal da relação
autoritária, no entanto, o mesmo não existe fora da sociedade, sendo
um produto dela. Reflete, portanto, suas agruras e inconsistências.
O mesmo incinde que, para a não destruição mútua dos opostos é
necessário um poder acima dos mesmos para controlar suas ações.
A Colônia era um espaço que refletia a máxima da política
varguista, todos aqueles que estivessem fora de um determinado
padrão deveriam ser sumariamente isolados, sendo que, iriam
dividir sem qualquer questionamento o mesmo espaço que outros
que estivessem em sua mesma condição, não havendo margem para
escolhas.
Como o marxismo não idealiza a ciência, mas sim a concebe
como ‘práxis’ social, pois está inserida em seu processo de produção,
partindo assim do desenvolvimento sócio-econômico. Deste modo, as
condições em que os indivíduos vão se desenvolver são consideradas
históricas. Por isso, sob a égide supracitada, a dualidade saúde/
doença é uma determinação historicamente produzida, tanto pela
anexação do sujeito na produção social e a forma como se relaciona
com os demais e a natureza.

Desenvolvimento: políticas públicas em saúde, política


varguista e o Marxismo na estrutura
Silva (SILVA, 2014) salienta que no século XX, houve um
desenvolvimento da prática e de saberes sanitários, atrelados ao
capitalismo e um maior interesse pela corporeidade; inicialmente
a saúde pública nacional se ancorou em dois fatores basilares:

224
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

preocupação com a higiene propriamente dita, por conseguinte,


voltou-se para práticas com ideias eugênicos.
em torno do termo eugenia, estabeleceram-se referenciais teóricos
e práticas sociais a partir da concepção de que a eugenia era
compreendida como legítima ciência da hereditariedade, no
sentido de fazer estender para os seres humanos o que seria válido
para ervilhas, milhos, porcos e cavalos, com o firme propósito
do melhoramento das especificidades genéticas humanas. (DEL
CONT, 2007, p. 14-15).

É preciso compreender que os ideais propostos pelo governo


naquele período eram pautados na ciência, que ansiava por melhorar
a raça e tornar os indivíduos aptos ao mundo do trabalho. Como
os leprosos divergiam nessa premissa, não poderiam permanecer
na sociedade capitalista, sendo apenas um entrave para o seu
desenvolvimento.
Vargas e sua relação com os hansenianos pode ser resumido
em uma frase “Do micro ao macro, a sociedade capitalista contém
toda uma rede de relações autoritárias, normalmente incorporadas
às instituições, estruturas, ideologias e processos sociais”
(FLORESTAN, 1979, p. 13), que ir-se-ão culminar em uma rede
de submissão e perda da identidade social e de classe de inúmeros
cidadãos.
Por isso, presume-se que os pressupostos em História das
doenças, essencialmente a respeito dos cuidados com os hansenianos,
ao lançar mão do Materialismo Histórico Dialético como referencial
teórico-metodológico, permitem a compreensão e a percepção
do objeto supracitado para a pesquisa de modo a conhecê-lo e
apresentar o mesmo em sua historicidade e movimento.
A longevidade da doença de lepra, hoje, chamada de hanseníase
é milenar. Seu prolongamento temporal/espacial é mencionada
desde a Antiguidade em variados relatos, inclusive bíblicos, fatos
que levaram a uma compreensão da mesma como reflexo da falta de
higiene e até pouco desenvolvimento. O que culminou no estigma
que a permeia até os dias atuais. Este é um problema histórico e social
no Brasil, atrelado ao período da modernização, da concentração em

225
IX Colóquio de História das Doenças: anais

centros urbanos, podendo ser sentidos os seus reflexos nas medidas


de combate as endemias.
Utilizando a seguinte conjectura de que a lepra/hanseníase
é uma doença socialmente determinada, tomando por base o
Materialismo Histórico Dialético, discutir-se-ão as políticas
públicas em saúde e as medidas tomadas pelo Governo Vargas em
termos de marginalização e abandono social.
Considerada como doença dos pobres, por si só pode ser
definida como um problema de classe, porque os portadores em
sua maioria são marginalizados sociais e não têm o mesmo acesso à
saúde e higiene. Sendo assim, enquadram-se nos aspectos de políticas
públicas, o que não diferiu no Governo Vargas, que logrou êxito em
retirar os corpos doentes dos centros urbanos e lhes conferir um
ambiente mais “adequado” a sua condição.
O que é suficiente para considerar os hansenianos uma classe?
Partilhar das mesmas indefinições, dividir moradia, ser assolados
por uma mesma doença ou ser marginalizados socialmente? A
única saída para eles era se unir. Visto que, o ambiente em que
moravam era vigiado constantemente, presume-se que os mesmos
se rebelavam e até fugiam... Porque afinal, para que vigiar pobres
coitados?
Sem dúvidas existem muitas controvérsias com relação à
interpretação dos escritos de Marx, principalmente em virtude
de sua influência economicista. No entanto, estudos podem
demonstrar que o mesmo se atentou para outras questões em suas
obras, as quais consideram o individuo e o trabalho como o centro
de suas relações sociais, culturais, econômicas, sexuais, etc. Sendo
estes fatores também alvo de sua preocupação.
Na Era Vargas, o trabalhador era uma figura importante, sendo
um status social mais elevado, se comparados aos hansenianos, por
exemplo. Os mesmos não poderiam sofrer com doenças, deveriam
se manter saudáveis, por isso era importante segregar os adoecidos,
para que os demais não se infectassem.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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Em O Capital, Marx expõe que as relações sociais, os meios


de produção, a economia, sempre existiram, mas de maneiras
diferentes em cada período determinado. E nestas variadas ocasiões,
a combinação de vários elementos levaram ao surgimento de suas
peculiaridades/padrões.
As opções metodológicas escolhidas pelo autor, fizeram com
que pudesse aprofundar problemáticas diversificadas, fato que
propicia aos estudiosos de sua teoria instrumentos para uma maior
compreensão de sua realidade. Neste ínterim se insere a narrativa
deste trabalho que alia indivíduo, capital e doença-exclusão.
Intenta-se demonstrar por meio do aspecto social, cultural
(principalmente, mas não só) o modo como a ideologia varguista
e consequentemente, a sua política visava a exclusão e a conversão
de corpos doentes a marginalidade da sociedade, de modo que, não
poderiam conviver com os demais, mas mesmo assim continuavam
suas atividades em um espaço de Colônia, onde poderiam partilhar
e viver em comunidade, com padrões de classe, visando sua
sobrevivência.
Importante deixar claro que, o Marxismo considera o conflito
entre as classes, como o produto das contradições entre as mesmas,
fatores que promovem a chamada transformação social. Como
sendo uma crítica da ciência à época, se propôs uma forma de
compreender a própria realidade da seguinte forma, demostrando
os elos entre as partes e o todo de uma sociedade.
Essa análise marxista considera a apropriação econômica
e a dominação política como os antagonismos inerentes ao
sistema capitalista, idealizado por Vargas durante o seu governo.
Demonstrando como o sistema levou a mercantilização das
relações, dos indivíduos (sadios e doentes), além das coisas e
ambientes ao promover o distanciamento, por conseguinte, as
suas discrepâncias. Sendo assim, as relações de divergência são a
base de sustentação da dialética. Considerando que “o princípio da
contradição governa o modo de pensar e o modo de ser” (MARX,
1984, p. 8).

227
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Quando da efetivação de Getúlio Vargas no poder (1930-


1945), o isolamento compulsório foi o mecanismo de profilaxia
implementado durante a primeira fase de seu governo, a qual
ainda foi mantida por seus sucessores e que perdurou até 1980.
Posteriormente, a orientação de todos os organismos internacionais
da saúde era a opção pela (des) hospitalização e concomitantemente
o retorno do doente para o espaço de convívio social.
As denominadas massas são formadas em um referido quadro,
sendo que, um indivíduo detentor de poder edifica mecanismos de
hegemonia, conseguindo persuadir os demais, utilizando-se variados
métodos de manipulação, os quais se ancoram em uma ideologia
dominante. De modo que, uma camada/grupo torna-se subalterno,
estabelecendo a segregação de determinadas classes e a edificação
do poder ancorado no capital.
O Estado não necessariamente precisa expressar a vontade
da maioria, em suma, reflete o poder de uma classe social. Mesmo
que precise dizer que existe igualdade entre os cidadãos, luta pela
manutenção das estruturas desiguais e se compromete a mantê-la.
Marx (1984) indica que, mesmo em situações de crise hegemônica,
a burguesia pode não ter as condições necessárias para a sustentação
do poder, mesmo assim manterá a conformidade com todas as
implicações que o regime capitalista exige.
Em se tratando de saúde coletiva, as classes sociais se constituem
como aporte essencial, porque dada inserção de forma desigual dos
sujeitos no mundo social e do trabalho e dadas as suas condições de
vida produzem diversificadas manifestações corporais. Sendo assim,
o desgaste dos trabalhadores e a sua propensão a se contaminar com
determinadas doenças dependem de sua incorporação de classe.
Marx, não analisa as escolhas de um indivíduo como ações
puramente individuais, mas sim por meio da totalidade social em que
o mesmo está inserido. Melhor dizendo, por meio de uma realidade
concreta ou uma totalidade, existe a possibilidade de escolhas
específicas individuais, de modo que, não existe oportunidade real
de escolha autodeterminada pelo indivíduo.

228
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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O pontapé inicial da discussão: a colônia e o coletivo


De acordo com o livro “Fundamentos em Infectologia”, o
agente causador da hanseníase é “um bacilo álcool-ácido resistente,
parasita intracelular...” (ROCHA, 2009, p. 739). O mesmo tem
um poder de reprodução acelerado quando a enfermidade não
é descoberta em estágio inicial ou ainda quando não é tratada de
modo adequado, o que pode acarretar o ataque de algumas células,
incluindo-se a pele. A principal forma de contágio são pelas vias
respiratórias superiores. As secreções/não orgânicas (caracterizadas
como: suor, esperma, leite materno, etc.) de diversas formas não
ocasionam riscos de contaminação, sendo assim, não é prejudicial
aos sadios relacionar-se intimamente com enfermos já medicados.
A prática do isolamento compulsório ganhou notoriedade
entre as décadas de 1930-1941, ano que demarca a criação do Serviço
Nacional de Lepra. Ressaltasse que houve empenho na elaboração
do plano de construção de leprosários com subsídio financeiro do
governo federal; sendo um empreendimento atrelado aos estados,
por meio de acordos (CUNHA, 2005).
Um fato interessante e que interessa a pesquisa em questão
é a de que a enfermidade acomete principalmente indivíduos
considerados de baixa renda, melhor dizendo, os pobres. Visto que,
possuem pouca consciência dos princípios de higiene básica (devido
ao desnível das ações estatais em algumas regiões), a somar-se que
os mesmos possuem uma alimentação restrita e suas condições
sanitárias são inadequadas.
Como poderia ocorrer a manifestação da doença na pele
por meio de manchas e eventuais deformidades, o que incluía
o rosto, ser o portador deste mal parecia ser a condenação social
do indivíduo, gerando assim uma sensação de não pertencimento.
Por desinformação, a sociedade, incluindo ainda os familiares
sentiam repulsa pelo corpo do hanseniano, rebaixando seu estágio
sociocultural e político.
Erving Goffman (GOFFMAN, 2008) expressa que “Definindo
papel social como a promulgação de direitos e deveres ligados

229
IX Colóquio de História das Doenças: anais

a uma determinada situação social, podemos dizer que um papel


social envolverá um ou mais movimentos...” (GOFFMAN, 2008,
p. 24). Quando os indivíduos adentravam aquela nova realidade
apresentada a eles como o seu novo lar, deveriam morar e desenvolver
suas atividades cotidianas, inclusive de trabalho e lazer, passam a
desenvolver um novo papel social, o qual será subjugado a diversos
órgãos (externos) e administradores (internos). Separados dos seus
familiares apenas por um abismo, que era a cura.
Em 1904 o renomado sanitarista Oswaldo Cruz, que era o
diretor-geral da saúde pública, optou por estabelecer o sistema
de colônias, uma vez que o mesmo facilitaria o controle sobre os
doentes, este local deveria ser autossuficiente, onde os internos
pudessem praticar as atividades essenciais para a sobrevivência
(CUNHA, 2010 apud SILVA, 2016, p. 71).
A salientar que, quando se opta por colocar as pessoas
em grupos denota um fator de dominação, em que poderão ser
facilmente supervisionadas, não apenas em termos de saúde e
acompanhamento da doença, mas com o objetivo de vigiar, porque
os mesmos passarão a fomentar uma classe, porque tem interesses
em comum, ou seja, poderiam se unir contra um inimigo em comum
(GOFFMAN, 2010, p.18).
Michel de Foucault explana a seguinte concepção de que o
poder concentrado em um determinado órgão ou indivíduo, somado
a ignorância e a pobreza das classes, as quais são subjugadas, levam a
negligenciação dos direitos seus direitos enquanto classe e parte da
sociedade experimenta a opressão, enquanto outras são tomadas
por privilégios. As atitudes estatais serão a partir daí arbitrárias, ou
seja, que apenas prejudiquem àqueles que deveriam ser assistidos e
devidamente cuidados (FOUCAULT, 1987, p. 100). Por isso pode-
se afirmar ser justamente isto que ocorria aos hansenianos.
Neste momento, surge uma indagação quando se pensa na
retirada forçada de indivíduos da comunidade e sua anexação a uma
(sub) sociedade. Onde fica sua situação de cidadão? Sua condição de
classe? Como é um ser social para o Estado? Goffman faz a seguinte

230
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

observação: “Estou sugerindo que o pré-paciente começa com, pelo


menos, parte dos direitos, liberdade e satisfações do civil, e termina
numa enfermaria... despojado de quase tudo” (GOFFMAN, 2010, p.
121). Mesmo que o autor mencione que o doente antes de adentrar
no isolamento (ou instituição total, como é descrito em seu livro)
possuía teoricamente alguns direitos e deveres, como todos os
outros cidadãos sadios que vivem no espaço da cidade, a partir do
momento em que passa para a custódia de terceiros (dirigentes,
vigilantes, ou de forma geral, do Estado) subentende-se que os perde
parcialmente ou por completo, esvaindo a sua cidadania. Era como
se estes deixassem de existir, principalmente porque naquele espaço
existia pouca ou nenhuma autonomia a respeito de suas ações.
Os hansenianos em isolamento dentro das Colônias, podem
ser considerados classe para si ou por si? De fato ela existe, mas
poderia ser capaz de participar politicamente? Ou era apenas
considerada como o “rabo” de uma sempre possível revolução e não
a encabeçaria? A que se considerar que poderia agir por interesses
de outra classe, tal como aquela composta por agentes sanitaristas
ou ainda do próprio governo. Vindo a inculcar seus valores, crenças
e estigmas.
O cotidiano nos hospitais colônia poderia ser considerado
como um sofrimento a mais para esses pacientes. O convívio forçado
com pessoas desconhecidas dava sempre a sensação de proximidade da
morte, a presença das mutilações e marcas nos outros, que poderiam
indicar sua condição no futuro em decorrência do agravamento de
sua doença. As autoras Vera Regina Beltrão Marques e Lilliana
Müller Larocca (MARQUES; LAROCCA, 2008) salientam em sua
pesquisa feita com os antigos doentes do Lazareto São Roque, no
estado do Paraná, a postura dos internos frente a essas situações. A
partir dos relatos de uma paciente é possível compreender que os
mesmos sentiam nojo um do outro.
Sendo assim, aqueles que eram acometidos pela doença de
uma maneira mais grave sofriam com o preconceito/estigma. Esse é
um valor que era advindo da sociedade da época, porque se estavam
na mesma condição, sofriam os mesmos males, porque sentir repulsa

231
IX Colóquio de História das Doenças: anais

de seus semelhantes? Os valores de outras classes eram absorvidos


pelos internos e perpetuados ali.
Significam que o senso comum é um conceito equívoco,
contraditório, multiforme, e que referir-se ao senso comum como
prova de verdade é um contra-senso. É possível dizer corretamente
que uma verdade determinada tornou-se senso comum visando a
indicar que se difundiu para além do círculo dos grupos intelectuais,
mas, neste caso, nada mais se faz do que uma constatação de
caráter histórico e uma afirmação de racionalidade histórica;
neste sentido, contanto que seja empregado com sobriedade, o
argumento tem o seu valor, precisamente porque o senso comum é
grosseiramente misoneísta e conservador, e ter conseguido inserir
nele uma nova verdade é prova de que tal verdade tem uma grande
força de expansividade e de evidência. (GRAMSCI, 1999, p. 118).

Neste ínterim, aquilo que fazia parte da ideologia higienista


da época, passou a ser senso comum, visto que, os parentes e
conhecidos anteriormente viam os enfermos leprosos como pessoas
em dificuldade e que precisavam de cuidados, passaram a tê-los
como ameaça em potencial a sua saúde e bem-estar. Além de que os
próprios doentes sentiam-se feios e repugnantes, porque as pessoas
ditas normais, viam-nos desta forma e assim eram internalizados os
estigmas.
Recorrendo aos fragmentos que trazem o posicionamento
dos enfermos frente às deformidades, temos o caso de um mineiro
por nome de Olinto Leandro da Costa, que com seus 56 anos, dá
razão para as pessoas por sentirem medo e nojo dos leprosos, pois
são deformados e são muitos feios. (REVISTA VEJA, 1976, p.
70), em uma clara demonstração de que eles não se identificavam
com aquele corpo deformado, e sentiam-se realmente à margem da
sociedade.
O doente dava razão aos sadios por sentirem medo deles,
querer que eles ficassem distantes, apesar de saber que nos ambientes
de isolamento não havia a certeza da cura, lhe dava uma sensação
de função social a não disseminação da doença, podendo ser
considerado como um posicionamento político. E não puramente
uma resignação frente a sua realidade, o mesmo sabia que fora da
sociedade faria mais pelos outros do que estando entre eles. O fato de

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

se considerarem feios demonstra que mantinham a mesma opinião


que a maioria da sociedade, que aqueles que não de adequassem aos
padrões deveriam manter-se em um ambiente diferente.
Nestes locais de isolamento é descrito um modo de vida
mais assemelhado ao campesinato, no qual os moradores “Podem-
se fazer plantações amplas no intuito de proporcionar serviços
aos internados que conhecem a agricultura e, ainda, abastecer de
gêneros a população doente” (Revista Oeste, 1944, p. 555). Ao
mesmo tempo, em que não teriam o velho hábito de sair para
trabalhar, deveriam se habituar a cultivar o seu próprio alimento
e a cuidar de seu local de moradia de forma comunitária. Sendo
assim, aprenderiam a dividir funções, dando utilidade ao próximo e
reforçando o ideal de sociedade comunitária.
Interessante observar que aos poucos as medidas sanitárias
saem do campo de restrição apenas do enfermo e afetam sua relação
com seus familiares e filhos, ou seja, ter um hanseniano no convívio
familiar era a condenação de várias vidas.
Leicy Francisca da Silva (SILVA, 2016) afirma que ao fim
do século XIX ocorre uma mudança a respeito das políticas de
tratamento a hanseníase no estado de Goiás, pois a Inspetoria de
Higiene do estado, no ano de 1890, publica um relatório em que é
descrito que todas as atitudes tomadas com relação à contenção da
enfermidade não estão dando resultados satisfatórios, então seria
necessário “afastar a estes indivíduos, segregá-los da sociedade,
dando-lhes, porém as acomodações necessárias às suas míseras
condições” (SILVA, 2016, p. 67).
Neste mesmo período, o Brasil passava por um momento de
graves problemas com doenças que acometiam principalmente as
classes mais baixas da população. Então agora as medidas sanitárias
destinavam-se a educar, ensinar e cuidar do povo, denominado
de Movimento Higienista, os quais passaram a controlar diversos
setores sociais, ditando regras nos modos de trabalhar, de morar,
de estudar, sua consciência corporal, moral, etc. Aumentando
o estigma sobre os mais pobres da sociedade, porque estes eram

233
IX Colóquio de História das Doenças: anais

denominados os responsáveis por contaminar todos os outros. Sendo


assim é possível dizer que a escolha pela segregação dos enfermos se
deu não devido ao “conhecimento científico do período..., mas foi
resultado de escolhas e forma de intervir na sociedade, feitas no
entrecruzamento de concepções ideológicas, científicas e políticas.”
(RIBEIRO, 2013, p. 33).
No Governo Vargas em 1930 foram uniformizadas as
medidas da saúde com relação às doenças infectocontagiosas que
se espalhavam por entre a massa. Foi então, instituído um processo
de centralização deste setor, com a criação de ministérios e suas
reformulações que passaram a ser departamentos de saúde, por
exemplo. Principalmente no tocante a lepra, o governo visou
estabelecer uma política de isolamento para todos os doentes,
esta que deveria escoar para todo o território nacional. “Assim,
foi introduzido o modelo de tratamento baseado no sistema de
tripé (leprosários, preventório e ambulatório), recomendado por
Hansen...” (MACIEL, 2014, p. 98). Sendo assim, tem-se que a política
que irá se estender até o fim do século, os doentes eram levados para
um determinado local, onde seriam cuidados e tratados; seus filhos,
mesmo que sãos para outro, onde seriam devidamente cuidados e
assistidos pelo Estado.
A partir de 1935 foi criado pelo governo o Departamento
de Profilaxia da Lepra (DPL) que possuía uma polícia sanitária,
que prendia os hansenianos e os levava para o isolamento. Ou seja,
partir desta prática percebe-se que não existia outra alternativa aos
doentes, a não ser enquadrar-se nesta nova condição, porque caso
não aceitassem ir por livre e espontânea vontade para os leprosários,
deveriam o fazê-lo por intermédio de coerção.
O Serviço Nacional da Lepra incorporou as organizações que
eram essencialmente particulares, de modo a oficializar tais ações.
Vários médicos foram espalhados por todo o país dando mais corpo
a esta empreita em todo o território nacional. Segundo a Revista de
educação e saúde “O Estado de Goiaz foi dos primeiros beneficiados,
graças ao empenho do seu Interventor, pois que, em 1936, portanto
no ano imediato, já se dava início à tarefa de construção de um

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hospital-colônia môdelo...” (REVISTA DE EDUCAÇÃO E


SAÚDE, 1946, p. 53).
Tão importante era aquela construção tida como um modelo,
que o próprio diretor do já mencionado Serviço Nacional da Lepra,
e o renomado leprólogo por nome de Heraclides Cesar de Souza
Araújo foi pessoalmente até o terreno aonde seria empreendida a
construção do leprosário, o qual julgou como sendo o mais propício
para aquele fim. Já no ano de 1943 foi inaugurada no recinto a
energia elétrica, e assim fez-se sua inauguração, a partir deste
momento começaram a recolher os enfermos. No ano mencionado
aqui “se acham internados, e em tratamento, cêrca de quatrocentos
doentes de ambos os sexos...” (REVISTA DE EDUCAÇÃO E
SAÚDE, 1946, p. 53).
Um fato muito interessante é que “quanto à enfermagem e
à assistência religiosa, estão sob os cuidados contínuos das Irmãs
Vicentinas e do valioso capelão P. Rodolfo Telmann.” (REVISTA
DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1946, p. 53). A priori se faz necessário
observar que havia uma associação de igreja e estado em prol do
desenvolvimento destas ações, visto que, desde as primeiras atitudes
com relação aos cuidados dos doentes era atrelada aos religiosos.
Leicy Francisca da Silva descreve a respeito das discussões
acerca da construção de um leprosário no ano de 1937, fruto da
política da época, que era voltada para o sanitarismo, que cobrava
que fossem edificadas moradias para os acometidos pela lepra.
Interessante representar a frase que exemplifica as edificações
que vieram reforçar a primeira (leprosário) “... o hospital se
justificava pela própria doença; os dispensários, pela necessidade
de observação dos contatos; e os preventórios pela assistência aos
filhos dos internos...” (SILVA, 2016, p. 158). Sendo assim, pode-se
observar que os órgãos políticos e estatais estavam dedicados em
controlar todos os doentes e próximos a estes, para que mais que
barrar a propagação da enfermidade, como também no intuito de
enquadrar os “culpados” em uma nova realidade da medicina, que
parecia querer testar novos métodos e medicamentos.

235
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Agora a construção do leprosário ganha razão e circunstância


“inseria-se num projeto nacional de expansão da perspectiva
nacionalista e sanitarista, fundada no eugenismo e higiene” (SILVA,
2016, p. 160). Essa é a ideologia da renovação e reestruturação dos
planos internacionais do Brasil, que agora se incluía como sendo
um local em grande expansão e evolução a passos largos, e seria
bem visto aos olhos externos, abertos a comercialização. O ideal
de sanitarismo sairia do plano político e adentrara o próprio
imaginário popular, agora aqueles que viviam plenamente com os
doentes em suas residências, cuidando e zelando por eles, não mais
os queriam por perto.
Sendo assim, podemos perceber que a dinâmica sanitária
se alinhava aos ideais políticos, criando uma atmosfera política
condicionada ao autoritarismo, impossibilitando o desenvolvimento
social dos acometidos pela doença, criava-se uma redoma, tornando-
os reféns.
Importante reproduzir aqui a fala proferida no ano de 1939
pelo então diretor do Posto de Higiene do Estado de Goiás, o médico
Hélio de Loyola. O médico salienta que “está sendo caprichosamente
construído pelo governador de nosso Estado, médico também
e conhecedor do problema da lepra” (LOYOLA, 1939 Apud
SILVA, 2016, p. 164-165) mencionando aqui o leprosário Santa
Marta, o qual descreve como sendo construído caprichosamente e
especialmente dedicado ao cuidado da doença, colocando a demora
em solucionar o problema como um sinal de minúcia na escolha
das atribuições e estrutura do local, expondo ainda que como sendo
médico, o interventor Pedro Ludovico sabia como poucos o modo
correto de lidar com a enfermidade e os acometidos direta ou
indiretamente por esta.
Aproveitando-se da proliferação rápida da infecção e da
mentalidade dos indivíduos com a negação e exclusão dos doentes
e o delineamento afinco do preconceito contra os enfermos, a política
médica se colocava como “heróis” do momento, conseguindo
solucionar todos os problemas da população em relação à saúde,
principalmente a lepra que era a enfermidade que mais possuía

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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conotação pejorativa na sociedade, utilizava-a para a promoção de


suas funções e superestimando de sua profissão, não mencionando a
situação de subjugamento que os doentes enfrentavam.
Em todo o tempo nas revistas, jornais e ofícios era mencionado
que a construção do estabelecimento que abrigaria os acometidos pela
doença como sendo um monumento de referência/modernização,
além de mobilizar a integração nacional, visto que, todas as cidades
e estados deveriam aderir a esta atitude, e aqueles que não o fizessem
seriam taxados como atrasados, contra o progresso, esse fato (de
pomposidade da edificação) que iria ser responsável por imortalizar
todos os envolvidos neste processo. Subentende-se que o doente é
silenciado, age contra suas vontades e anseios e perde o direito de
atuar ativamente em sociedade. As propagandas expunham que ali
seria uma verdadeira cidade, não se referenciando ao local como
um depósito ou apenas a materialização (práxis) do processo de
exclusão dos “anormais” da raça nacional.
A reafirmação do poder médico-sanitário junto ao poder político,
com o estabelecimento de normas e instituições, é o marco
desse momento de constituição da hegemonia médica. Refletia-
se localmente, o consenso estabelecido internacionalmente para
a profilaxia da lepra e o tratamento dos atingidos. Reforçado
pela especificidade regional da construção de uma nova capital,
regida pelo discurso higiênico e de modernidade, e também pela
pretensão de acomodar a futura capital (SILVA, 2014, p. 209).

Denotando a relação do governador do Estado com o


Presidente tem-se um fragmento de uma reportagem da revista
Oeste que exemplifica ainda que a obra “Foi construída pelo
Gôverno Federal e instalada pelo Gôverno Estadual. E’ também,
ao Estado que cabe a sua manutenção, prevista em um milhão de
cruzeiros anuais, contando-se especialmente as despesas de pessoal
e de material de consumo” (REVISTA OESTE, 1944, p. 557). No
texto é descrito que a construção foi competência do Governo
Federal, e demonstra ser de fato uma ação que estava sendo imposta
a todos os estados em relação à doença, mas a manutenção da mesma
seria feita pelo estado, então não era dado um auxílio externo para
o desenvolvimento do projeto, o governo estadual quem deveria

237
IX Colóquio de História das Doenças: anais

arcar e custear o local. Principalmente com relação aos funcionários


e administradores da instituição e também bens que não eram
produzidos naquele espaço.
Na própria instituição havia a segregação que estabelecia áreas
doentes e áreas sadias. Como pode ser observado na reportagem da
Revista Oeste (1944), onde são exemplificadas até as entradas pelas
quais os enfermos poderiam adentrar como deveriam portar-se e
até aonde ir. A zona sadia era constituída pelo corpo médico, o local
onde ficavam as injeções, curativos e remédios, objetos destinados
ao cuidado de corpos enfermos (REVISTA OESTE, 1944, p. 555).
Já a zona doente era constituída como o próprio nome indica, por
aqueles que eram impossibilitados de cuidar de si, e que, ao mesmo
tempo eram tão perigosos para a sociedade na totalidade. Mas
naquele local é indicado que havia uma organização própria, com
delegado, prefeito e muita diversão (segundo o texto). Indicando
que havia ruas, onde havia moços, velhos e crianças a conversar
entre si, outros a observar os visitantes inesperados (REVISTA
OESTE, 1944, p. 555).
Interessante salientar que na reportagem da Revista Oeste de
1944, são apresentados alguns dados interessantes que podem ser
percebidos nas entrelinhas do texto. Quando a equipe de reportagem
passa pelo cemitério do local vem a seguinte indagação: E os mortos?
Visando saber se naqueles locais muitas pessoas vinham a óbito
(possivelmente, devido a doença), porém os administradores logo
respondem que não, que apenas os moradores mais velhos vinham
a falecer, e claro, demonstrando que por morte natural/devido
ao peso da idade (REVISTA OESTE, 1944, p. 555). É possível
perceber aqui a manipulação implícita nesta resposta, já que a
colônia era uma obra que visava demonstrar o poder do governo e
o ideal de desenvolvimento da nova capital e do território nacional,
dever-se-ia mostrar que ali era tudo muito bem encaminhado e
que as políticas públicas na área da saúde iam correndo de modo
satisfatório.
Havia casos em que os doentes compravam casas (claro, se
possuíssem condições financeiras para tal) onde iam morar, essas

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moradias se localizavam nas proximidades/arredores da Colônia.


Como pode ser observado na reportagem da Revista Oeste, que
é descrito que “existem casas de aluguel. Ao invés de viver em
pavilhões, mais ou menos em comum, os internados que têm
independência econômica alugam casas separadas...” (REVISTA
OESTE, 1944, p. 555).
Esta é uma clara demonstração de status social, pois os leprosos
que possuíam bens suficientes comprariam casas e poderiam se
sentir menos presos à instituição, no entanto, não poderiam sair
dali, ou seja, ao mesmo em que lhe era oferecida certa liberdade,
esta deveria ter limitações muito claras.
“Como médico da Secretária da Saúde [...], lotado na Colônia
Santa Marta [...], eu fazia cirurgia e os partos das mulheres: e, como
a gente fazia laqueadura em todas elas [...] foi diminuindo a clientela
do antigo preventório” (REVISTA ESTUDOS VIDA E SAÚDE,
1973, p. 1466). Esta atitude é justificada em prol de uma não lotação
do ambiente em que eram alojados os filhos dos enfermos da Colônia
goiana, mas também soava como medida sanitarista, para conter a
proliferação da doença, mas de impedimento a perpetuação de uma
geração de pessoas doentes, além de ser uma agressão ao corpo de
uma mulher, pois quando esta saísse do hospital, não mais poderia
ter filhos. Esta passagem comprova como os leprosos eram reféns
institucionais e não possuíam condições de escolha, condicionados
a enveredar por determinados caminhos.
A respeito do Preventório Afrânio de Azevedo, o recinto
é descrito da seguinte forma “Alí estava a presença de espírito
da caridade humana, da solidariedade, do consôlo maternal, de
tudo enfim que possa parecer com os ensinamentos prègados por
Cristo...” (REVISTA OESTE, 1944, p. 463), trecho no qual é
claramente perceptível a concepção docilizada do local que o texto
queria transpor ao seu público.
Mais uma vez, as medidas em saúde são recheadas de
problemáticas em caridade e religiosidade, sendo uma forma de
dominar os indivíduos, pois ao invés de se sentirem presos e sem

239
IX Colóquio de História das Doenças: anais

perspectiva, iriam sentir-se acolhidos e devidamente cuidados,


valores que a classe dos dirigentes lhes transpôs.
Na revista Estudos Vida e Saúde, do ano de 1973 é descrito
da seguinte forma: A necessidade de encontrar soluções capazes
de equacionar a problemática dos familiares de hansenianos,
especialmente dos filhos de hansenianos internos na Colônia Santa
Marta, fez com que o governo convidasse Eunice Weaver a visitar os
serviços locais. A medida indicada... foi a construção de um abrigo.
(REVISTA ESTUDOS VIDA E SAÚDE, 1973, p. 1455).
Ainda seguindo essa linha de pensamento desenvolvida na
revista, um entrevistado salienta que era mesmo uma espécie de
segregação, mesmo que todos soubessem que aquelas crianças eram
sadias, ainda assim temiam o contágio. Ainda afirma que “a cultura
daquela época era de que o contato com essas pessoas era perigoso...”
(REVISTA ESTUDOS VIDA E SAÚDE, 1973, p. 1462). Mesmo
aqueles que eram predestinados a cuidar desses pequenos “órfãos”
que possuíam seus pais, não mantinham uma relação de respeito e
amparo e muito mais de temor, e até mesmo de ignorância.
Era Bertília, uma conhecida de infância do repórter. Foi-nos declarado
que, em virtude de seu estado, lhe é permitido retornar ao lar.
Mas ela não quer... prefere estar ali como enfermeira, ajudando
aquela legião de doentes a amenizar seus sofrimentos. (REVISTA
OESTE, 1944, p. 555. [Grifos meus]).

A referida moça é uma boa representação de como as


condições de vida, estabelecem as escolhas aos indivíduos, pois
sendo conhecida do repórter, sendo de um mesmo ciclo social,
poderia ter optado por esta mesma profissão, inclusive estudado,
no entanto, prefere permanecer no hospital e servir aos demais
doentes, sendo assim, sua situação de ex-leprosa e moradora de
colônia, impera sobre suas decisões, porque mesmo curada prefere
permanecer e fazer aquilo que aprendeu durante sua vida, servir e
viver em prol da lepra.
Ainda discutindo o comportamento e as escolhas dos leprosos,
tem-se a seguinte descrição: “levou-nos a ver a cozinha, o refeitório,
onde um garçon nos fez uma saudação quasi à militar (os lázaros,

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habituados a não estenderem a mão a ninguém, cumprimentam


sempre, alí, levando a mão direita em forma de continência)”
(REVISTA OESTE, 1944, p. 556 [Grifos meus]).
Uma das questões que mais chama a atenção é a presença
de funções na colônia, as quais não eram remuneradas, o rapaz
evidenciado como um garçom, a outra como uma enfermeira…
como em qualquer sociedade capitalista, a colônia vivia permeada
por relações de trabalho, que não só mantinham sua subsistência,
mas mantinham o sistema (opressor X oprimido).
Inclusive a manipulação de alimentos poderia ser feita
pelos doentes, sua preparação, bem como servir, no entanto, não
poderiam cumprimentar com toques, por isso lhes foi ensinado uma
saudação militar, como se prestassem continência aos superiores, o
que demarca o autoritarismo no ambiente da colônia.
A instituição era muito importante como construção
de civilidade, sua arquitetura demonstrava as referências
comportamentais, espirituais, morais, físicas e incentivava
o trabalho; inserindo-se assim no quadro médico-sanitário,
fortalecendo a higiene e a separação do adoecido da sociedade
(SILVA, 2014) sendo que
era o espaço coletivo que dava incentivo à promiscuidade e a
revolta, em contradição ao sentido do isolamento, que, insulando,
incentivava a liberdade e a abnegação. A lepra mais que problema
patológico, era da alçada da assistência social. (SILVA, 2014, p.
175 [Grifos meus]).

Essa colocação da autora auxilia muito no processo de


interpretação dos fatos sobre a ótica marxista, como sendo uma
idealização capitalista, a colônia controlava as relações sexuais,
culturais, políticas, etc., de seus moradores. Fato que poderia
colaborar para que se revoltassem, pois, não conseguiam ter qualquer
escolha sobre seu corpo. Havia muitas contradições nos espaços de
isolamento, essencialmente no que se refere as questões sociais.
Para encerrar tal argumentação, pode-se questionar e afirmar
certas problemáticas, da seguinte forma

241
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Por que e como se difundem, tornando-se populares, as


novas concepções do mundo? Neste processo de difusão
(que é, simultaneamente, de substituição do velho e, muito
freqüentemente, de combinação entre o novo e o velho), influem
(e como e em que medida) a forma racional em que a nova
concepção é exposta e apresentada, a autoridade (na medida em
que é reconhecida e apreciada, pelo menos genericamente) do
expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se
apóia, a participação na mesma organização daquele que sustenta
a nova concepção. (GRAMSCI, 1999, p. 108).

A forma como os ideais sanitaristas adentraram a sociedade


sadia e também a adoecida parece impressionante, no entanto,
seu basilar era a própria política varguista, que era excludente e
autoritária, influenciando nas atitudes dentro da colônia. Não é
incomum encontrar relatos de que os leprosos sentiram-se gratos
por serem cuidados naquele ambiente, apesar da separação com a
sociedade.
A concepção de que a escolha em políticas públicas em saúde
soava como assertiva, pois retirava um antigo problema que estava
em voga e reforçava o autoritarismo do governo e o seu viés de
amparo social, que era muito evidente em suas ações.
Ao passo que, desenvolver um estudo a respeito de
marginalizados sociais parece uma escolha complicada, pode
representar um marco em termos de associação da teoria marxista
como processo teórico-metodológico, considerando que é uma
análise pós factum
a história dos grupos sociais subalternos é necessariamente
desagregada e episódica. É indubitável que, na atividade histórica
destes grupos, existe tendência a unificação, ainda que em termos
provisórios, mas essa tendência é continuamente rompida
pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só pode ser
demonstrada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra
com sucesso. Os grupos subalternos sofrem sempre á iniciativa dos
grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e insurgem: só a
vitória ‘permanente’ rompe, e não imediatamente, a subordinação.
(GRAMSCI, 2002, p. 135).

É fato que o grupo dos leprosos foi subalternizado e


marginalizado, no entanto, sua história ainda possui muitos

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desdobramentos, devendo ser constantemente revista e reescrita,


de modo a valorizar o seu protagonismo.
Apenas mediante uma rebelião constante os mesmos
poderiam mudar a sua realidade e é o que ocorre nos dias atuais,
quando as políticas públicas em saúde incentivam a segregação e
não o rompimento com as ideologias dominantes.

Conclusão
As condições de vida dos leprosos que moravam forçosamente
em instituições asilares levavam-nos as perder sua autonomia,
criando assim uma situação de marginalidade social. As políticas
públicas em saúde daquele período tornavam os doentes reféns
institucionais, ou seja, condicionando suas atitudes futuras a sua
situação de doença.
As atitudes tomadas pelo sujeito histórico para o Materialismo
Histórico Dialético são condicionadas a determinadas limitações e
empecilhos, visto que, os indivíduos não são totalmente livres para
tomar decisões. Ao contrário disso, todas as atividades previamente
dadas, tais como: contexto social, econômico, crenças, etc.,
representam uma vasta limitação para o seu presente.
Por exemplo, os leprosos eram mandados para colônias em
que deveriam viver e se tratar, no entanto, a cura não era uma
realidade, todas as suas decisões a partir dali eram condicionadas
por esse fator, ao mesmo tempo, em que, a morte estava sempre
a espreita, além de que não tinha acesso ao conhecimento formal,
ao trabalho remunerado ou aos direitos de que os demais cidadãos
dispunham. Deste modo, seria o leproso condicionado socialmente
a não ser mais que um projeto de política pública em saúde?
No trabalho, foi apresentado um caso em que uma moça se
cura da doença e
passa a viver dentro da colônia, desenvolvendo um serviço em
saúde, em enfermagem mais especificamente, fica claro para o leitor
que não lhes restavam muitas alternativas de futuro, mesmo após

243
IX Colóquio de História das Doenças: anais

curar-se. Deste modo, podemos afirmar que o morador da colônia


se consolida como um institucionalizado pelo Estado, que não mais
consegue tomar decisões fora de sua tutela.
O cerceamento dos direitos fica evidente em cada uma das
decisões estatais. Sendo um assunto muito importante para o
desenvolvimento de discussões veementes na militância política,
a qual é contrária aos micro fascismos e discurso de ódio. As
implicações sociais de um ambiente de segregação para o indivíduo
são inegáveis. Como salienta Foucault, estes locais têm em comum
a normalidade, na prática da coerção, deste modo, vão fazendo com
que o corpo torne-se disciplinado e adequado a esta realidade, este
fato irá acompanhar os antigos moradores até quando saírem do
entremuros (FOUCAULT, 1987, p. 195-196).
Sendo assim, a sua realidade difere daquela vivenciada no
extramuros, assim terá dificuldades de interação com o mundo
após a sua saída. Quando da criação dos leprosários, tem-se uma
institucionalização do corpo doente, do mesmo modo que, assim que
aberto o preventório, o mesmo serviria para manter o “problema”
como uma responsabilidade estatal, mas atendo-se apenas para o
aspecto econômico-político. Esquecendo-se das relações humanas.

Referência

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EDUCANDÁRIO Afrânio de Azevedo. Revista Oeste, a. III, n. 12, p. 463-464,
jan./ 1944.
O REFÚGIO dos rejeitados. Revista Veja, n. 427, p. 67-70, nov. 1976.

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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

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245
O impacto da pandemia de covid-19
nos profissionais de saúde em Barra de
São Francisco-ES
Márcio Leandro Piske1

Objetivos
O objetivo deste trabalho é relatar um conjunto de problemas
e sentimentos apresentados pelos profissionais de saúde no
Hospital Estadual Dr. Alceu Melgaço Filho localizado na cidade de
Barra de São Francisco-ES, onde foram coletados dados através de
questionário enviado a todos os funcionários efetivos e terceirizados
desta instituição. As perguntas foram direcionadas e baseadas
nas principais queixas que afetaram os profissionais de saúde
envolvidos direta ou indiretamente no enfrentamento da pandemia
de COVID-19. A partir destes dados propõe-se a descrever as
dificuldades vividas e ações para a proteção e a assistência à saúde
de tais profissionais. O principal problema relatado foi o medo do
risco de contaminação gerando afastamento do trabalho e a possível
contaminação da família, abalo emocional, doença e morte. Alguns
transtornos de ansiedade generalizada, distúrbios do sono, medo
de adoecer e de contaminar colegas e familiares fizeram parte
das respostas ao questionário. Um paralelo com outras doenças
endêmicas e epidêmicas que afetam os trabalhadores de saúde
puderam ser também analisadas. Algumas causas apontadas como as
decorrentes do baixo custeio do SUS, diminuição dos recursos para
o setor, deterioração dos serviços e da escassez da força de trabalho,
geraram desafios vindouros tanto nesta pandemia quanto em

1 Mestrando em Ciência, Tecnologia e Educação – Universidade Vale do Cricaré.


E-mail: [email protected].

247
IX Colóquio de História das Doenças: anais

outras prováveis doenças contagiosas que se apresentam à gestão do


trabalho e capacitação de pessoal. Isso deverá produzir expansão da
infraestrutura de leitos hospitalares e da reorganização do processo
de trabalho na atenção básica para o enfrentamento da pandemia,
priorizando medidas necessárias para a proteção e a promoção da
saúde física e mental dos profissionais e trabalhadores da saúde. Ao
fim do trabalho completo serão 492 questionários respondidos.

Introdução
Barra de São Francisco é um município brasileiro situado na
região noroeste do estado do Espírito Santo com superfície de 933,75
km² e 162 metros de altitude. Sua população, segundo contagem
feita pelo IBGE, em 2010, era de cerca de 40.649 habitantes com
densidade demográfica de 43,16 hab/km² e a população estimada
pelo IBGE no ano de 2019 era de 44.650 habitantes. A taxa de
escolarização era de 96,2% entre 6 a 14 anos de idade. A mortalidade
Infantil em 2019 era de 15,6 óbitos por mil nascidos vivos. Em
31 de outubro de 1943, pela Lei 15.177 é criado o município de
Barra de São Francisco, desmembrado de São Mateus. A cidade é
a 13ª mais populosa do Espírito Santo e a mais populosa de sua
microrregião, que é composta ainda pelos municípios de Água Doce
do Norte, Ecoporanga e Mantenópolis. As principais fontes de renda
do município são a exploração mineral de rochas ornamentais, a
agropecuária e o comércio.
A pandemia de SARS-CoV-2, causador da Covid-19
provocou a contaminação e a morte de um grandioso número de
pessoas logo no seu primeiro ano de 2020. Até 28 de janeiro de 2022,
houve 364.191.494 casos confirmados de COVID-19 no mundo,
incluindo 5.631.457 mortes, segundo a OMS em seu painel sobre a
covid19 atualizado diariamente. No Brasil, esse número até o dia 29
de janeiro de 2022 era de 25.214.622 casos e de 626.524 mortos. No
Espírito Santo, nessa mesma data tínhamos 836.960 casos e 13.496
mortes. Em Barra de São Francisco, locus de nossa pesquisa, em 23
de janeiro o número era de 6.098 infectados e 238 mortes (painel

248
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

pmbsf 2022). Esse painel seguiu em ondas/picos durante esses dois


anos, sempre com o temor de mutações a cada mês.
Desde o início existiu grande preocupação diante desta
doença que se espalhou rapidamente em todos as regiões, a exceção
da Antartida, levando a diferentes impactos. De acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS), em 18 de março de 2020, os
casos confirmados da Covid-19 haviam ultrapassado o número 214
mil no mundo inteiro. E nessa época nem sequer existiam planos
estratégicos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus –
tudo era muito novo, portanto, tanto usuários quanto profissionais
tiveram dificuldade no seu atendimento nos primeiros meses.

Desenvolvimento
As recomendações da OMS, do Ministério da Saúde do
Brasil, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC,
Estados Unidos) e também de outras organizações nacionais e
internacionais apontavam para a aplicação de planos de contingência
baseados no já conhecido influenza, devido às semelhanças clínicas
e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios. Tais planos
de restrição previam ações um pouco diferentes de acordo com
a gravidade das pandemias. O Plano de Influenza Pandêmica
(Pandemic Influenza Plan – PIP), elaborado pelo Departamento
de Saúde e Serviços Humanos (Department of Health and Human
Services) dos Estados Unidos, era referente à quarta atualização,
do ano de 2017, com medidas para diferentes áreas civis e
governamentais.
A OMS tem avaliado esse surto 24 horas por dia e estamos
profundamente preocupados tanto com os níveis alarmantes de
disseminação e gravidade quanto com os níveis alarmantes de
inação.
Portanto, avaliamos que o COVID-19 pode ser caracterizado
como uma pandemia.
Pandemia não é uma palavra para usar de forma leve ou descuidada.
É uma palavra que, se mal usada, pode causar medo irracional ou
aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento
e morte desnecessários. (WHO, 2020).

249
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Este foi parte do discurso de abertura do diretor geral da


OMS no início da pandemia:
“Temos um inimigo invisível.” “A nossa segurança está
ameaçada.” “Não mediremos forças para vencer mais esta batalha.”
Estas foram frases comuns que anunciaram situações de “guerra”
e foram usadas nos noticiários sobre “o avanço do perigo” da
Covid-19, inclusive mesmo a OMS, na conferência de 11 de
fevereiro de 2020 quando anunciou o nome oficial da doença, usou
esse termo. Para o diretor-geral da organização mundial da saúde
(OMS), o cenário era compatível a uma ameaça de terrorismo: “É
uma questão de convulsões políticas, sociais e econômicas. [Uma
epidemia] pode afetar todas as áreas da sociedade e é por isso que
temos que levá-la a sério. O mundo, quando fala sobre terrorismo
- imaginem -, o nível de preparação, e assim por diante, é imenso.
Para ser honesto, um vírus é mais poderoso na criação de convulsões
políticas, econômicas e sociais do que qualquer ataque terrorista,
acredite ou não. Eu era ministro das Relações Exteriores e discutia o
terrorismo e assim por diante, mas um vírus pode ter consequências
mais poderosas do que qualquer ação terrorista, e isso é verdade. Se
o mundo não quiser acordar e considerar esse vírus inimigo como
inimigo público número um, acho que não aprenderemos nossas
lições. É o inimigo número um do mundo e de toda a humanidade
e é por isso que temos que fazer tudo para investir em sistemas de
saúde, investir em preparação, e é por isso que eu sempre digo: é isso
que me acorda à noite e deve acordar todos nós. [O vírus] é o pior
inimigo que você pode imaginar. Pode causar estragos políticos,
econômicos e sociais” (Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral
da OMS, 11 de fevereiro de 2020).
Temos ouvido duas expressões com certa frequência durante
esse tempo de pandemia: “aquilo que nos havia de acontecer!” e
“nada será como dantes!”. “Se a primeira revela alguma incerteza
relativamente ao presente, a segunda expressão parece já evidenciar
alguma certeza em relação ao futuro.” Esses são comentários
de Pedro Bandeira, arquiteto, em “ a Universidade do Minho
em tempos de pandemia”. Neste contexto parecia inevitável o

250
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

que aconteceu à humanidade diante da vida despreocupada,


despreparada e inconstante nos tempos atuais. Por outro lado, a
segunda afirmação prevê que assim como esta pandemia ensinou-
nos bons hábitos, higiene e educação acima de tudo, talvez numa
próxima “tragédia” possamos apenas aproveitar as lições valiosas
aprendidas na atualidade.
Num contexto de saúde mental talvez ainda maior seriam
os impactos, pois requereu maior atenção ao trabalhador de saúde
principalmente da sua saúde psicológica. Tem aumentado muito
o número de relatos de aumento dos sintomas de ansiedade,
perda da qualidade do sono, depressão , uso de drogas, sintomas
psicossomáticos e medo de se infectarem ou transmitirem a
infecção aos familiares (KANG, L, 2020). Em Wuhan revela os
médicos enfrentaram enorme pressão, com alto risco de infecção e
proteção inadequada porque a contaminação era iminente e ainda
desconhecida, excesso de trabalho, discriminação por parte do resto
do mundo, isolamento frustração, deram assistência a pacientes
com emoções bastante negativas, falta de contato com a família e
exaustão generalizada. Isso tudo levou a problemas de saúde mental,
como estresse, raiva e medo, ansiedade, sintomas depressivos,
insônia, negação, problemas que afetam não apenas a atenção, o
entendimento e a tomada de decisões dos médicos, mas também
podem perpetuar em seu bem-estar geral. O medo de ser infectado,
bem como o pânico dos familiares associado à falta de suprimentos
médicos, a proximidade com o sofrimento dos pacientes ou a
morte destes, informações obscuras sobre recursos, solidão e
preocupações com perdas recentes foram temas abordados diante
do sofrimento psíquico e o adoecimento mental dos profissionais
de saúde, causando também o desânimo em trabalhar (HUANG,
2020). Estudos chineses mostraram que o grupo que mais sofria era
constituído pelas enfermeiras mulheres, pessoas que moravam em
Wuhan e técnicos da saúde nas ares de diagnóstico, tratamento e
prestação de cuidados de enfermagem a pacientes com suspeita ou já
positivos para COVID-19. Tudo isso era piorado quando a mão de
obra tornou-se escassa e quando houve o sentimento de impotência

251
IX Colóquio de História das Doenças: anais

diante da gravidade e a complexidade dos casos por causa da falta


de leitos ou equipamentos de suporte.
Numa síntese feita por Avanian no JAMA maio 2020, foram
observados os fatores principais que contribuíram para o sofrimento
psicológico de enfermeiros, médicos, terapeutas respiratórios,
auxiliares e outros profissionais de saúde no atendimento direto aos
pacientes com COVID-19: Esforço emocional e exaustão física ao
cuidar de um número cada vez maior de pacientes com doenças
agudas em idades variadas, que pioram rapidamente. Cuidar de
colegas de trabalho gravemente doentes e, às vezes, que morrem
de COVID-19; escassez de equipamentos de proteção individual
que pioram o medo e aumentam a exposição ao coronavírus no
trabalho; preocupações em infectar a família, especialmente os
parentes idosos, os imunocomprometidos e aqueles com doenças
crônicas; escassez de ventiladores e outros equipamentos médicos
fundamentais ao atendimento dos pacientes graves; ansiedade
em assumir condutas médicas novas ou desconhecidas e cargas de
trabalho extensas no atendimento a pacientes com COVID-19;
acesso limitado aos serviços de saúde mental para tratarem suas
próprias depressões, ansiedade e sofrimento psicológico.
Num primeiro momento, feita amostragem com seis
funcionários (3 médicos e 3 enfermeiros) e aplicadado o questionário
com as seguintes perguntas e respostas como segue:
1 - Você já conhecia outros vírus da família coronavírus?
Respostas: SIM: 2 NÃO: 4
2 - Você recebeu treinamento específico sobre o tratamento
da covid-19?
Respostas: SIM: 6 NÃO: 0
3 - Qual sua preocupação em relação ao seu trabalho na linha
de frente no combate à Covid-19?
Respostas:
Medo de morrer: 4

252
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Não ser útil caso adoecesse: 2


Adoecer e levar a doença para casa: 3
- Não saber tratar uma doença até então desconhecida: 1
4 - Quais cuidados você tinha em relação ao seu trabalho na
linha de frente da Covid-19?
Respostas:
- Uso constante de máscara: 6
- Treinamento repetido sobre paramentação: 3
- Não colocar as mãos no rosto: 3
- Não usar o celular durante o turno de trabalho: 1
- Álcool gel em tudo e em todos: 5
5 - O Hospital fornecia equipamentos de proteção individual
em suficiência?
Respostas: SIM: 5 NÃO: 1 (faltava em alguns dias)
6 - O Hospital em algum momento teve sua capacidade esgotada
no que se refere aos leitos para Covid 19? Você teve esse medo?
Respostas:
SIM: 6 (em vários momentos a capacidade esgotou-se e muitas
vezes usava-se espaço sob aglomeração de doentes)
SIM: 6 (todos os funcionários tinham medo de não haverem
vagas para eles próprios)
7 - Todos os funcionários do Hospital foram vacinados?
Respostas:
SIM: 4
NÃO: 2 (no início alguns tinham medo do efeito e da política
sobre essa vacina)
8 - Algum colega de profissão tinha ou tem comportamento
de menosprezo à doença?

253
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Respostas:
SIM: 3
NÃO: 3 (amigos que não queriam usar máscara; outros
que diziam não haver necessidade pois todos iriam morrer
mesmo; outros diziam ser somente uma virose então não
havia necessidade de cuidados)
9 - Qual era sua jornada de trabalho durante o tempo de
atuação na linha de frente da Covid 19?
Respostas:
24 horas por semana: 4
12 horas: 1 (vendia o plantão para diminuir a exposição ao
vírus)
48 a 60 horas: 1 (faltavam funcionários e havia necessidade de
cobertura extra)
10 - Pensou em algum momento que a doença veio como um
castigo de Deus ou algo parecido?
Respostas:
SIM: 2 (no início todo mundo dizia que era uma doença
diferente e que deus estaria castigando os seres humanos)
NÃO: 4
11 - Pensou em algum momento em desistir do cargo e
procurar outro para ficar menos exposto? Ou até mesmo
trocar de profissão?
Respostas:
SIM: 3 (várias vezes durante o cansaço) NÃO: 3 (sentimento
de dever e sacerdócio)
12 - O que achou de quando os profissionais de saúde foram
elevados a heróis e depois voltaram à condição de meros
cumpridores de suas funções?

254
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Respostas:
- Já era esperado isso: 3
- Uma falta de consideração: 3
- Subvalorização do trabalho mais importante naquele
momento: 1
- Fez rever conceitos sobre a profissão: 2
- Vontade de ir para a mídia e tentar reverter: 1
- Chateado apenas: 2

Conclusão
Este estudo, ainda em andamento no campo de pesquisa,
será concluído principalmente sobre a importância em reconhecer
o esforço de cada profissional no âmbito do seu atendimento
individualizado aos infectados pela covid-19. Dar o apoio necessário
aos profissionais e trabalhadores da saúde que estão na linha de
frente do combate à pandemia, sempre será um estímulo a fim de
serem notados pelo seu esforço, até mesmo como sacrifício que
muitos estão fazendo para continuar trabalhando nas condições
impostas pelos gestores da saúde. Importante a todos os profissionais
é saber que a família está segura, os amigos e a sociedade dão valor
ao seu trabalho e isso torna-se fundamental ao enfrentamento com
coragem e esperança na sua função a que foram um dia designados.
Esta pequena amostragem até o momento será a base para os demais
486 funcionários que se encontram com o questionário em mãos
para envio posterior e confecção do trabalho.

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257
Missão brasileira na Primeira Guerra e a
influenza
Maria Cristina Alochio de Paiva1

Introdução
A Primeira Guerra Mundial ou a Guerra Europeia, como era
chamada na época, conhecida por ser a primeira total, afligindo
homens e mulheres, militares e civis, espaços privados e públicos,
enfim, todos os setores da sociedade, apesar de ter como palco,
principalmente o solo europeu, com grandes perdas humanas,
(BRUM, 2018), com relatos de mortes entre 8 milhões de pessoas
(BERTUCCI, 2004) a até 20 milhões de pessoas (CORREA, 2020),
ocorreu de julho de 1914 a 11 de novembro de 1918.
A guerra era um eco distante das terras brasileiras, que optou
por uma neutralidade nos dois primeiros anos, aparentemente por
interesses econômicos apesar de ter sido o único dos países neutros
que protestou da invasão da Bélgica pela Alemanha (BRUM,
2018). Dois fatos arrastaram o país para o conflito: a proibição
pela Inglaterra, o mais importante consumidor do café brasileiro,
principal fonte da economia brasileira na época, de sua importação,
para dar espaço nos navios mercantes para mercadorias mais vitais
e essenciais, levando a graves efeitos na frágil economia do Brasil
e a zona de bloqueio para navegação decretada pela Alemanha,
tornando vulnerável qualquer navio mercante brasileiro levando
mercadorias para seus principais mercados na Europa, a França
e a Inglaterra, com o consequente afundamento do navio Paraná,
um dos maiores navios da marinha mercante brasileira, em 05 de

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS - da


Universidade Federal do Espírito Santo -UFES. E-mail: [email protected].

259
IX Colóquio de História das Doenças: anais

abril de 1917, por um submarino alemão a poucas milhas da França,


com a morte de três marinheiros brasileiros. Fortes manifestações
populares ocorreram após esse fato, sucedendo daí na queda do
Ministro das Relações Exteriores Lauro Muller, que, por ser de
origem germânica, era favorável à neutralidade do Brasil, assim
como de ataques a propriedades de alemães e seus descendentes,
culminando com o rompimento das relações diplomáticas entre os
dois países em 11 de abril de 1917 (SILVA, 2014), mas manteve-se
neutro na contenda (BRUM, 2018). O torpedeamento de mais dois
navios em maio (Tijuca e Lapa), dois em outubro (Acari e Guaíba)
levaram a grande comoção da população (BRUM, 2018) e quando
o submarino alemão U-3 interceptou o navio Macau, arrastando
para o seu interior o comandante e dois tripulantes, com posterior
afundamento do Macau (WESTIN, 2014) houve indignação dos
brasileiros com invasão e saques em lojas, fábricas e escritórios
comandados por alemães ou descendentes, levando o presidente
Wenceslau Braz a romper a neutralidade e declarar o estado de
guerra em 26 de outubro de 1917 (SILVA, 2014; BRUM, 2018).
O Brasil teve uma participação pequena na contenda, tendo
enviado 13 aviadores para a força aérea britânica, 24 oficiais para
o exército francês, uma divisão com 8 navios que se juntaram à
esquadra britânica em Gibraltar, chamada de Divisão Naval em
Operações de Guerra (DNOG) e uma Missão Médica Militar (SILVA,
2014; WESTIN, 2020; BRUM, 2018), compromisso assumido na
Conferência Interaliada, que aconteceu de 20 de novembro a 3 de
dezembro de 1917 em Paris, consoante as necessidades apresentadas
pelos países contendores e as parcas possibilidades brasileiras
(SILVA, 2014).
Já a pandemia de gripe espanhola ocorreu em três ondas, a
primeira entre março e abril de 1918, melhor descrita nos Estados
Unidos com uma quadro clínico leve, como uma gripe comum; a
segunda onda, mais mortal, espalhou-se pelo mundo quase todo
a partir de agosto de 1918, com melhora por volta de dezembro
e a terceira onda ocorreu entre janeiro de 1919 e abril de 1919,
durante a Conferência de Paz (TAUBENBERGER; MORENS,

260
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

2006; SILVEIRA, 2007; CROSBY, 2016), deixando um rastro de


terror e morte atrás de si (KOLATA, 2002). Estimou-se que foram
vitimados pela epidemia cerca de 30 a 90% dos cidadãos do mundo,
com uma taxa de letalidade em torno de 2,5%, ao contrário das
outras epidemias de gripe anteriores, que ficavam em menos de 0,1%,
ceifando a vida de 20 milhões (BERTUCCI, 2004) a 100 milhões de
pessoas (TAUBENBERGER; MORENS, 2006), sendo na história
da humanidade, aquela que maior ressonância promoveu, dentre
todas as manifestação de gripe.
O objetivo deste artigo é descrever a atuação da Missão
Médica Brasileira na Primeira Guerra Mundial e seu encontro com
a pandemia de gripe espanhola, um fato quase completamente
esquecido na memória do Brasil, incluindo historiadores.

Desenvolvimento
A DNOG comandada pelo Contra-Almirante Pedro
Max Fernando Frontin tinha como missão, além da vigilância
do Atlântico Sul sobre os submarinos alemães, o que já fazia,
patrulhar a costa noroeste da África e os mares europeus, sendo
a única representante da força naval latino-americana no combate
(ALONSO, 2013; SILVA, 2014; BRUM, 2018). Partiu do Rio de
Janeiro em maio de 1918 para Freetown em Serra Leoa, parando
em Natal, RN, em julho, sendo recebida com missa campal e outras
solenidades, permanecendo o dia na cidade (MEDEIROS, 2011),
alcançando Freetown a 09 de agosto, onde permaneceu até 23 de
agosto, quando seguiu viagem para Dakar (Senegal), aportando em
26 de agosto. Em Dakar, onde ficariam por alguns dias para reparos
e abastecimento, a esquadra foi atingida pela gripe espanhola,
primeiro contato dos brasileiros com a epidemia, não escapando
um só navio, com casos de 95% do efetivo do navio caindo com
a gripe e a primeira morte ocorrendo a 10 de setembro e a maior
mortalidade acontecendo no meio do mês com um ápice em 16 de
setembro, diminuindo a partir de 18 de setembro, com o último
falecimento ocorrendo em novembro, com um total de 125 óbitos

261
IX Colóquio de História das Doenças: anais

pela influenza, Os foguistas foram o grupo mais afetado pela doença,


entre os marinheiros (ALONSO, 2013; BRUM, 2018), com a mais
alta taxa de mortalidade vista em navios de guerra dos outros países
(ALONSO, 2013). Relatórios senegaleses mostram que, enquanto a
maioria dos marinheiros e foguistas morreram a bordo dos navios,
80% dos oficiais faleceram no hospital em Dakar, o que indica que
diferenças no tratamento entre a tripulação e condições de trabalho
podem ter influído na mortalidade dos marinheiros brasileiros
(ALONSO, 2013).
A DNOG só chegou ao Mediterrâneo, por diversas dificuldades
enfrentadas, em 10 de novembro, na véspera do armistício em 11
de novembro de 1918.
Quanto à Missão Médica, apesar do caráter militar, foi
constituída de médicos civis, quase que tão somente constituída de
filhos das famílias mais ricas e influentes do país, com sua formação
privilegiando as indicações oficiais de estados com maior peso
político, como Rio de Janeiro (49), São Paulo (9), Minas Gerais (7)
e Rio Grande do Sul (18) e com raras exceções para outros estados,
mas estes deveriam apresentar garantias do seu saber científico para
serem aprovados. Participar da missão, além da ação humanitária,
representava prestígio e consolidação da guerreira médica na volta,
sendo candidatos 200 voluntários para 86 vagas, finalizando com
98 oficiais médicos (SILVA, 2014, BRUM, 2018). Os médicos
paulistas partiram “abençoados e convictos da nobre missão que
os aguardava, enquanto portadores do ‘sagrado’ saber da medicina”
(BERTUCCI, 2004, p. 95). Tendo como chefe o médico e deputado
José Thomaz Nabuco Gouvêa, subordinado ao General Napoleão
Felippe Aché, e, como missão, atuar em um hospital para feridos de
guerra em Paris, França, em que, à época, os intelectuais brasileiros
tinham elos afetivos e era o local em que médicos e a intelectualidade
brasileira buscavam conhecimentos (SILVA, 2014; BRUM, 2018).
A Missão Médica partiu no navio francês La Plata para Dacar em 18
de agosto de 1918 do Rio de Janeiro, sendo assistida por numerosa
plateia emocionada (BRUM, 2018) rumo a Dacar (Senegal), mas, ao
se aproximar de Dacar, recebeu um comunicado para desviar para

262
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Freetown, pois haveria um submarino alemão os esperando para


torpedeá-los, aportando em 29 de agosto, permanecendo por lá por 5
dias para seu reabastecimento, que demorou a acontecer em virtude
de uma epidemia desconhecida que assolava a cidade e a tripulação
da esquadra inglesa no porto. Na chegada a Dacar, os brasileiros
da Missão Médica foram recebidos com honras, participando de
solenidades e banquetes que comemoravam a entrada do Brasil no
conflito, com os brasileiros participando de visitas a hospitais. Logo
na saída de Dacar, o navio foi atacado por enfermidade desconhecida,
que acometeu todos a bordo, incluindo 1.500 soldados senegaleses
embarcados, que lotavam o porão do navio. Quatro membros da
Missão Médica e vários soldados senegaleses faleceram a bordo.
(SILVA, 2014; BRUM, 2018). Conforme relato em carta enviada ao
Brasil por um missionário e publicada no jornal Correio da Manhã,
as condições físicas do navio, a precária alimentação e a pouca água
para beber seriam responsáveis pelo agravamento do quadro:
foi com effeito horas depois de nossa partida do Senegal, que a
epidemia de grippe se declarou a bordo, no peor momento, quando
á absoluta falta de hygiene e de commodidade veiu se associar uma
alimentação deficiente e pessima. [...] O meio era o mais propicio
para que o mal se alastrasse rápido e intenso. E após os primeiros
casos fataes entre senegalezes quase todos nós estávamos prostrados
não no leito mas... nos bancos, mesas e assoalhos, apertados no
uniforme sujo, mal nutridos, expostos ao vento, sem água que se
pudesse beber, sem creados que pudessem servir, sem remédios,
perambulando em delirio pelo navio [...]. Começa ahi uma historia
triste e infernal, momentos cuja lembrança estremece ainda nossas
almas.
Das salas repletas de doentes partiam confusos gemidos, indecisas
lamentações na escuridão da noite. A razão toldava-se com a
atrocidade dos soffrimentos e medicos enchiam o tapete de escarros!
Não se podia ali soccorrer ninguem. Naquella promiscuidade não
se podia despir pessoa alguma para applicar ventosas, fazer uma
lavagem intestinal ás vezes imprescindível, dar-se um purgativo
que obrigasse o trôpego doente descer e subir as escadas, cercado
de trevas. Era uma scena dantesca. Não tínhamos remédios de
especie alguma e os alimentos eram infames, capazes de tornar
doente o organismo mais são. Não tinhamos agua susceptível de
ser bebida, nem gelo, nem o estimulante de um vinho do porto
ou de um cognac, nem uma gota de leite, nem uma única fruta!
(MISSÃO, 1919, p. 3)

263
IX Colóquio de História das Doenças: anais

O La Plata foi desviado para Oran, Argélia, onde 16 membros


da Missão foram internados, e um médico, Scylla Teixeira, falecido
no hospital com o navio passando por desinfecção, para seguir
viagem para Marselha, onde chegou em 24 de setembro de 1918,
tendo a viagem durado 36 dias para uns e 64 para os que ficaram
internados. A notícia da morte dos brasileiros em viagem para a
guerra foi o primeiro contato dos brasileiros com a epidemia e
causou comoção na população (ALONSO, 2013; BRUM, 2018).
Embora alguns autores, como Bertolli Filho (FILHO, 2003),
Bertucci (BERTUCCI, 2004) e Martino (MARTINO, 2017) deem
como a contaminação tenha ocorrido em Dacar, tanto para a
Missão Médica quanto para o DNOG, é provável que este evento
tenha acontecido em Freetown no final de agosto, onde ambas
permaneceram por alguns dias, pois documentação oficial do
Senegal se refere à doença como “influenza brasileira”, o que pode
indicar que a doença no Senegal apareceu primeiro nos brasileiros e
depois na população local (ALONSO, 2013; BRUM, 2018).
Após a chegada a Paris, o primeiro passo foi selecionar um
local para o hospital brasileiro, sendo escolhido o prédio do extinto
colégio jesuíta da Imaculada Conceição, situado na Rue de Vaugirard,
que era usado pelo governo francês para sediar organizações militares
com pouca importância e também para internação, pela Assistência
Pública de Paris, de pacientes com gripe espanhola. Como a Missão
chegou à França junto com o início da segunda onda da gripe e a
escolha do prédio em que pacientes da gripe eram tratados, criou-
se um impasse, solucionado pelo compromisso assumido pelos
brasileiros em responsabilizar-se por essa assistência além dos
feridos de guerra, sendo que após as reformas do prédio, bancadas
pelo Governo do Brasil, cerca de 200 pacientes fortemente atacados
pela influenza foram encaminhados aos cuidados dos missionários
brasileiros. A maior parte da equipe médica, enquanto ocorriam
as obras para a instalação do hospital brasileiro, foi utilizada pelas
autoridades francesas no enfrentamento à gripe espanhola no
interior do país, sendo, então, distribuídos pelas províncias e os
que permaneceram em Paris trabalharam de forma acelerada nos

264
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

preparativos para a instalação do “Hospital Franco Brasileiro para


as Vítimas da Guerra”, o que demorou várias semanas, e fizeram
treinamento em hospitais militares franceses sobre medicina de
guerra. A missão era cuidar de feridos de guerra, mas a prática no
começo, por necessidade, foi cuidar de civis com gripe espanhola.
Outros médicos brasileiros que já estavam em Paris foram
incorporados à Missão, trabalhando no Hospital Brasileiro (SILVA,
2014; BRUM, 2018).
Com o fim do conflito, o novo governo brasileiro de Delfin
Moreira determinou em janeiro, através do Ministro da Guerra,
General Alberto Cardoso do Aguiar, o regresso imediato de todos
os membros da Missão, o que foi contestado pelo chefe da missão,
pois no final da Primeira Guerra ocorreram muitos ataques com
feridos em grande quantidade com lesões extensas, que não iriam
ficar curados só porque o armistício tinha sido assinado. Então
houve um recuo do governo brasileiro, que admitiu que o hospital
era importante na recuperação dos feridos. O Hospital Brasileiro no
seu período de maior atendimento tornou-se referência de qualidade
no atendimento, sendo considerado um hospital de ponta e muitos
médicos da Missão receberam a Comenda da Legião de Honra da
França pelos serviços prestados. Em outubro de 1919 o governo
brasileiro começa o processo de doação das instalações hospitalares
para a Faculdade de Medicina de Paris, onde foi montada a melhor
clinica cirúrgica da escola, com várias enfermarias levando nome
de médicos brasileiros. Em 1968, a Universidade de Paris se retira
do hospital, que passa a ser administrado pela Assistência Pública-
Hospitais de Paris AP-HP (SILVA, 2014; BRUM, 2018).
Em 21 de junho de 1919 aconteceu na Quinta da Boa Vista, no
Rio de Janeiro, uma festa muito animada em honra aos marinheiros
brasileiros, uma homenagem aos marinheiros nacionais, onde o
Sr. Coelho Neto fez um discurso solene em saudação aos distintos
marujos (DIÁRIO da Manhã, 24 jun. 1919).
A gratidão do povo francês à Missão Médica foi eternizada
por uma placa nos jardins do hospital em homenagem aos 80 anos
da Missão Médica Brasileira (SILVA, 2014).

265
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Considerações Finais
O Brasil teve uma pequena participação na Primeira Guerra
Mundial, mas importante para a população francesa durante
a pandemia da gripe espanhola e para os feridos de guerra na
Europa, montando um serviço hospitalar de qualidade em solo
europeu, plenamente reconhecida pelos franceses, mas esse fato é
completamente desconhecido da população brasileira, incluindo aí
muitos historiadores.

Referências
BERTUCCI, L. M. Influenza, a medicina enferma: ciências e práticas de cura na
época da gripe espanhola em São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
CROSBY, A. B. A pandemia esquecida da América: a gripe de 1918. 2 ed. Texas:
Cambridge University Press, 2016.
A MISSÃO medica que o Brasil enviou à Europa. O que nos diz um dos seus
membros, em cartas que de Paris nos remetteu. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
19 abr. 1919, p. 3.
ALONSO, W. J. [et. al.]. A alta mortalidade da pandemia espanhola na divisão
naval em operações de guerra em 1918. Revista Navigator, n. 17, p. 11-21, 2013.
DIÁRIO DA MANHÃ de 24 de junho de 1919.
BRUM, C. E. A (des)mobilização de médicos na grande guerra: o caso da missão médica
brasileira na França (1918-1919). Tese (Doutorado em História). Programa de
Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2018.
MARTINO, J. P. 1918 A gripe espanhola: os dias malditos. Atibaia, São Paulo:
Excalibur Editora, 2017.
MEDEIROS, R. 1918 – Quando a gripe espanhola atacou Natal. 19 mar.
2011. Disponível em: https://tokdehistoria.com.br/tag/1918-quando-a-gripe-
espanhola-atacou-natal/. Acesso em: 09 nov. 2019
SILVA, Carlos Edson Martins da. A Missão Médica Especial brasileira de caráter
militar na Primeira Guerra Mundial. Revista Navigator, n. 20, p. 94-108, 2014.
SILVEIRA, A. J. T. A influenza espanhola e a cidade planejada. Belo Horizonte,
1918. Belo Horizonte: Fino Traço, 2007.
TAUBENBERGER, J. K.; MORENS, D. M. 1918 Influenza: the mother of all

266
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

pandemics. Emerging Infectious Diseases, v. 12, n. 1, p. 215-22, 2006.


KOLATA, G. Gripe: a história da pandemia de 1918. Trad. Carlos Humberto
Pimentel Duarte da Fonseca. Rio de Janeiro: Record, 2002.
WESTIN, R. Brasil enviou navios, soldados e médicos para a Primeira Guerra
Mundial. 30 dez. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/
especiais/arquivo-s/o-senado-e-a-participacao-do-brasil-na-1a-guerra-mundial/
pais-enviou-navios-soldados-e-medicos-para-o-conflito#:~:text=Brasil%20
enviou%20navios%2C%20soldados%20e%20m%C3%A9dicos%20para%20
a%20Primeira%20Guerra%20Mundial,-Ricardo%20Westin%20%7C%20
01&text=Em%20outubro%20de%201917%2C%20o,imposto%20pelo%20
kaiser%20Guilherme%20II. Acesso em: 30 jun. 2020.

267
Doenças e mortes e a questão do
branqueamento no município de São
Mateus na década de 1870
Marília Silveira1
Luana Guisso2

Introdução

Abordando a composição étnica de São Mateus em 1876,


havia no município além de indígenas Aimorés, também chamados
de botocudos, colonos portugueses, negros, pardos e a presença de
imigrantes italianos. A cidade apresentava um crescente processo
agrícola, sobretudo da farinha de mandioca, que contribuiu para
sua economia e para a formação de uma forte oligarquia local.
O artigo considera o campo da historiografia das doenças e
as temáticas ligadas a ela como a morte. O detalhamento das causas
das mortes e sua análise são o mote da pesquisa que busca vestígios
das relações entre as causas das mortes, sua descrição, as impressões
de viajantes sobre a localidade. Abordamos também a teoria do
branqueamento e a ideia dos miasmas para melhor compreensão
da realidade da época. Inferimos que na causa de uma morte
podem existir pistas que contribuam para compreender os sentidos
associados ao panorama histórico, essas pistas podem indicar
características da assistência à saúde de um grupo populacional ou
a ausência dessa assistência. É nesse viés que o artigo aborda como
a teoria do branqueamento e a chegada de imigrantes no município
1 Doutoranda em História Social das Relações Políticas – Universidade Federal do
Espírito Santo UFES.
2 Pós-Doutoranda em História Social das Relações Políticas e Doutora em História –
Universidade Federal do Espírito Santo UFES.

269
IX Colóquio de História das Doenças: anais

podem estar relacionadas à descrição das causas das mortes de


negros, pardos e italianos.
Descreveremos um breve panorama histórico do município,
sua condição econômica na época e relataremos as causas das
mortes da população, além de citarmos algumas percepções
do príncipe Maximiliano e de August de Sant-Hilaire sobre a
província do Espírito Santo e de São Mateus quanto às doenças
que afetavam a população na época. E ainda apresentaremos
um panorama da teoria do branqueamento presente no diálogo
cientifico no recorte temporal da pesquisa, a partir da seguinte
problemática: quais as causas das mortes da população de São
Mateus/ES em 1876?
Partiremos da abordagem da micro-história para a macro
história no tratamento das fontes, assim a pesquisa se sustentará em
Ginzburg (GINZBURG, 2007) que faz uma crítica ao desafio cético
na construção do texto histórico, definindo que contar e narrar,
com base nas pistas e rastros do passado na construção da escritura
da história ainda são um dos princípios do ofício do historiador
podendo revelar fatos ainda não revelados.
No campo da micro-história partiremos da abordagem
micro para além de descrição de mortes locais, investigaremos
algumas questões sociopolíticas e raciais que possam estar atreladas
a esse cenário, nos trazendo algumas inquietações: a teoria do
branqueamento pode ter influenciado no tratamento destinado aos
negro e pardos após suas mortes?
Nos embasaremos também em Revel (REVEL, 1998) que
procura mapear a recepção da micro-história pela historiografia
francesa a partir da tradução em 1989 do livro de Giovanni
Levi – “Le pouvoir au village”, cujo prefácio que ficara a cargo
do próprio Revel, sugere a escolha da escala como elemento na
busca do conhecimento que se pretende investigar, constituindo-
se em um dos vários pontos de vista do conhecimento histórico
que podem ser declarados. Assim aproximaremos as reflexões
da realidade da província do Espírito Santo quanto à teoria do

270
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

branqueamento, o contexto de imigrações, as doenças e mortes


ocorridas na época com a realidade existente na cidade de São
Mateus.
As fontes utilizadas para a realização do artigo foram livros
e relatórios que abordam o cenário das doenças na província do
Espírito Santo e em São Mateus e o livro de óbito de 1876.

São Mateus/ES em 1876: breve histórico e impressões


de viajantes
A região de São Mateus abarcava até o final do século XIX
uma delimitação ao sul pelo rio Barra Seca e ao norte pelo rio
Mucuri, alcançando geograficamente todo o extremo norte da
província do Espírito Santo. Durante esse século foi marcante a
presença às margens do rio Cricaré de índios botocudos ou aimorés,
denominados de não civilizados e que viviam em constantes guerras
com os colonos, havia ainda na localidade os “brancos e gentes de
cor”, conforme descrição do relatório Provincial do Espírito Santo
de 1871.
Os Tapuias ou Aimorés, também chamados de Botocudos,
são citados desde os primeiros anos da colonização do Brasil o
nome Botocudo prevaleceu a partir do século XVIII referenciando
sua característica, o uso dos botoques no lábio inferior e nas orelhas
feitos pelos índios e pelas índias, esses indígenas resistiram à
ocupação dos portugueses.
No campo econômico, segundo Almada (ALMADA, 1984,
p. 43), mesmo com o fim do tráfico negreiro na província, na
década de 70 do século XIX, 40,8% da força de trabalho agrícola
consistia em 12.917 escravos, desse quantitativo no norte da
província do ES, 14,7% viviam em São Mateus engajados no
plantio de mandioca.
Destacamos que o porto de São Mateus era considerado um
importante espaço de escoamento da produção do referido produto
e também de chegada de mercadorias, para a mão de obra, sendo

271
IX Colóquio de História das Doenças: anais

que denominavam os africanos como escravos, e italianos como


imigrantes.
As regiões do norte foram as menos influenciadas pelo café
nessa época e São Mateus permaneceu com sua tradicional produção
de farinha de mandioca. A vila foi elevada à categoria de cidade
a partir de 1848 se firmando como região portuária com intenso
desenvolvimento comercial. Conforme os relatórios descritos por
Teixeira (TEIXEIRA, 2008), São Mateus durante o século XIX
possuía uma população ativa e engajada, resistente à rotina dos
tempos coloniais e que buscava novos empreendimentos para o
desenvolvimento da região, fazendo inclusive manifestações em
prol dos interesses da população.
A elevação da vila de São Mateus à categoria de cidade
ocorreu pela Resolução Provincial n.º 1, de 03-04-1848, na
época destacam-se a formação de uma oligarquia agrária
mercantil, proprietária de terras e de escravos, mantendo ainda
um monopólio no comércio local (RUSSO, 2011, p. 14 ). “Esta
oligarquia mateense foi polarizada pela família do coronel e major
Antônio Rodrigues da Cunha, pai e filho respectivamente, sendo
este último também mais conhecido como Barão de Aimorés”
(RUSSO, 2011, p. 14).
O relatório provincial de1871 menciona que São Mateus
na segunda década do século XIX possuía 2.651 livres e 1.951
escravos, também possuía presença significativa de italianos, no
final do século XIX. Às margens do rio Cricaré, (ou Braço Sul
do rio São Mateus) formaram: um núcleo denominado de Santa
Leocádia e o outro de Nova Venécia, nas proximidades das antigas
fazendas escravocratas do município de São Mateus, para onde
foram destinados imigrantes italianos (FRANCESCHETTO,
2014 p. 67).
Dois viajantes europeus motivados pelo ideal cientificista e
instigados pelas impressões míticas que foram difundidas na Europa
no século XIX sobre as terras do Brasil, descreveram elementos
sobre São Mateus.

272
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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A província do Espírito Santo tornou-se rota de exploração


a partir de 1816 sendo cenário de observações do Príncipe
Maximiliano de Wied – Newied. Um dos maiores naturalistas da
época que estiveram no Brasil foi francês August de Saint – Hilaire
em 1817, que com base na história natural, botânica, etnografia,
zoologia e artes, compôs relatos sobre a província e sobre São
Mateus.
Chegaram às margens do rio São Mateus na tarde de 2 de janeiro
de 1816, o que totalizou quatro dias de viagem desde sua partida
de Regência. (NASCIMENTO, 2018, p. 82).

O príncipe Maximiliano percorreu a capitania do Espírito


Santo descrevendo caraterísticas dos botocudos, questionando
inclusive a prática da antropofagia que fora relatada sobre esse
povo. Descreveu elementos da fauna, da flora e fomentou futuras
visitas à capitania. Sobre São Mateus, relatou Maximiliano
que a população indígena era muito afetada por varíola, e
que provavelmente antes de sua visita estavam muito doentes
pois estavam muito magros e cobertos de cicatrizes e crostas
(NASCIMENTO, 2018, p. 87).
Nascimento (NASCIMENTO, 2018) relata ainda, “em uma
viagem que durou cerca de 18 meses - entre julho de 1815 e janeiro
de 1817 - Maximiliano coletou diversos elementos da fauna e flora
brasileira, descreveu e desenhou os aspectos do elemento indígena
nativo do Brasil” (NASCIMENTO, 2018, p. 27). O viajante
descrevia a solidão e a melancolia como características de toda a
região de São Mateus que provavelmente não era salubre devido
os pântanos vizinhos e as guerras constantes entre indígenas e
brancos os colonos cultivam mandioca. Sobre a produção de
farinha, a cidade exportava anualmente uma média de 60.000
alqueires além de muitas toras de madeira.
Descrevendo elementos das doenças no século XIX,
Nascimento (NASCIMENTO, 2018) citamos as observações
de August de Saint-Hilaire que provavelmente foi o que mais
permaneceu no Brasil, viajou de 1817 até 1818 e visitou o Espírito
Santo. Saint –Hilaire relatou elementos da vida cotidiana dos

273
IX Colóquio de História das Doenças: anais

indígenas e registrou a presença de brancos na província, além do


pavor das doenças e do pavor aos índios botocudos.
A realidade do século XIX foi marcada pela falta de assistência
no campo da saúde, ou seja, aqui descrevemos assistência como
saneamento básico e estrutura médica. Nesse período os viajantes
percorreram o Brasil investigando e analisando essa realidade,
acreditavam que o responsável pelas doenças que afetavam a
população era a insalubridade.
Os infeccionistas entendiam, diferentemente dos contagionistas,
que as doenças ocorriam pelo contato direto entre pessoas sãs
com as pessoas contaminadas. A ação de substâncias animais ou
vegetais em estado de putrefação no meio ambiente provocava o
surgimento de miasmas morbíficos que davam origem à infecção[,
que] se transmitia de um indivíduo doente a outro são, mas não
por contágio e, sim, pela alteração atmosférica produzida pelo
doente, atuando sobre o ser são. (FRANCO, 2015, p. 43).

Os miasmas traziam as doenças que contaminavam as


pessoas, ainda segundo Franco (2015), as condições locais,
seu clima, os pântanos, os dejetos e os ares fétidos da falta de
saneamento seriam responsáveis pelo surgimento e proliferação
dos surtos epidêmicos.

Doenças e morte em São Mateus/ES em 1876


As doenças podem revelar elementos não percebidos na
História, sujeitos e suas atuações, condições de acesso à assistência
à saúde, bem como podem permitir uma melhor compreensão de
uma realidade no campo teórico e metodológico. No século XVI
por exemplo, os viajantes europeus descreviam elementos da saúde
no Brasil.
Já no cenário de imigrações, no município, percebemos
as principais foram as doenças e causas das mortes que afetavam
brancos, pardos e negros em 1876. Face a historiografia das doenças,
Franco e Marlow afirmam que
neste sentido, e dentro das possibilidades de estudos
historiográficos nas áreas da saúde e das doenças, os registros

274
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

dos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil desde o


período colonial oferecem uma possibilidade ímpar de tentar
compreender a situação que tanto brasileiros nativos, como
também estrangeiros estabelecidos no país, enfrentavam em
relação à saúde e às doenças da época. (FRANCO; MARLOW,
2018, p. 1).

Ao abordarmos a morte, considerando Reis (REIS, 1991)


que analisou o fato de uma multidão que destruiu o cemitério
do Campo Santo em Salvador, elemento que motivou o início de
sua pesquisa investigando a história das atitudes diante da morte
e dos mortos no Brasil durante o século XIX. A revolta de 1836,
é marcada quando uma multidão destruiu o cemitério do Campo
Santo, em Salvador, o fato ocorreu pois os valores higienistas,
se contrapunham aos valores religiosos e tradicionais de que os
mortos estariam próximos sendo enterrados nas igrejas para eles
era necessário destinar um local distante para enterrar os mortos. Já
os higienistas pregavam que os “miasmas mefíticos” produzidos pela
decomposição cadavérica, prejudicavam e contaminavam os vivos.
Para o autor Reis (REIS, 1991), a morte pode revelar
sentimentos, rejeições e sensibilidades da perda do ente querido,
o que vai ao encontro do diálogo proposto nesse artigo, pois entre
outros sentimentos como a perda de bens ou mercadorias, existem
indícios das relações sociais, igualdades e desigualdades no campo
moral e econômico que influenciavam como os homens e mulheres
eram tratados após a sua morte.
Face as doenças e mortes que afetavam a população de São
Mateus/ES, citamos Franco (FRANCO, 2015, p. 219), ao afirmar
que na segunda metade do século XIX o município foi afetado
por surtos epidêmicos. No período de surtos epidêmicos, era
comum o medo dos hospitais, as pessoas tinham receio de como
seria o processo no hospital e o distanciamento das famílias,
e outras pessoas dispunham de poucas condições financeiras
para se cuidar das doenças a maioria da população recorria à
uma assistência local de cura, mesmo as pessoas que possuíam
melhores condições financeiras preferiram buscar a cura ou a
morte em casa, acompanhados por parentes ou algum cuidador.

275
IX Colóquio de História das Doenças: anais

E mais:
a população tinha nessa época medo do hospital e, dessa forma,
preferia buscar a cura em casa, onde escravos, familiares ou amigos
cuidavam dos doentes. Pesquisadores da história da escravidão
são unânimes em mostrar senhores concedendo alforrias aos seus
escravos pelos relevantes cuidados que eles tiverem com algum
familiar. (FRANCO, 2015 p. 78).

Com o objetivo de compreender a realidade histórica


de São Mateus quanto às causas das mortes da população e
consequentemente tentar descrever um pouco da conjuntura
da assistência à saúde que era destinada aos doentes na época,
apresentamos as causas mortis no ano de 1876, tendo como fonte o
livro de óbito do Cartório de Registro Civil e Tabelionato de São
Mateus do livro aberto em 1875 onde constam os dados de 1876.
Conforme Censo Provincial em sua totalidade, a cidade possuía
em média 8.500 pessoas, na década de 70 do século XIX. (RUSSO,
2011) De modo geral as febres se faziam presentes tanto oriunda
de cólera quanto de febre amarela.
As chamadas febres intermitentes que preocupavam a cidade
já eram presentes em São Mateus desde 1840 conforme define
Franco (FRANCO, 2015), essas foram causadas pela cólera. As duas
três últimas décadas do século XIX foram também marcadas pela
presença da febre amarela, o município estava infestado. A doenças
comuns na época também eram malária, catarros respiratórios e
bronquites.
O Quadro1 apresenta as causas das mortes de 1876, em
razão da datação do livro de Causas Mortis, e da consequente
qualidade da fonte, algumas causas de mortes não foram possíveis
de serem descritas. Já em alguns falecidos, foi possível a leitura,
mas a causa da morte não foi declarada. Os nomes dos falecidos
não foram revelados, apenas numerados mantendo a ética da
pesquisa.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Quadro 1: Causa Mortis

Livro aberto em 1875, dados das mortes de 1876 – Lourenço Vieira – Oficial da
Província do ES, termo do Cartório Cabeça da comarca.

Observações do Observações
Nome Causa mortis Nome Causa mortis
livro do livro
Homem
Mulher indigna Ataque de
1 Não declarada 22 preto
de nome sangue
escravo
Mulher indigna Mulher
2 Não declarada 23 Não descrita
de nome pobre
Não Ataque de
3 - 24 Criança
identificada sangue
Morte atestada
pelo Parocho Mulher,
4 - 25 Febres
Francisco Adão branca
Rodrigues
Não foi
Não Menino,
5 Criança 26 possível
identificada branco
descrever
Não foi
Moléstia de
6 possível - 27 Mulher
lázaro
descrever
Ataque de Mulher,
7 - 28 Febres
asma branca
Não foi Menino,
Moléstia não
8 possível 29 branco, mãe
detalhada
descrever falecida
Mulher,
preta,
escrava,
9 Causa natural 30 Acidente casada,
acidente na
propriedade
de seu pai.
Homem,
Não foi
pobre
10 Febres 31 possível
indigno de
descrever
nome.
Não foi
Criança,
11 Febres 32 possível
branca.
descrever

12 Febres 33 Natimorto Mulher

277
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Ataque de Homem,
13 34 Beribéri
sangue branco.
Não foi Não foi
Mulher,
14 possível 35 possível
parda.
descrever descrever
Não foi Homem,
15 possível 36 Sem descrição já foi
descrever enterrado
Indigna de Homem,
16 Sem causa 37 Inchação
nome, pobre pobre.
Não foi
Homem,
17 possível Mulher 38 Pneumonia
branco
descrever
De cor preta, Não foi
Mulher,
18 Sem causa indigna de 39 possível
parda
nome descrever
Não foi Homem,
19 Não descrita Criança, parda 40
descrita. pobre
Não foi
Homem, Mulher,
20 Falecido 41 possível
escravo branca
descrever
Não foi
21 Mulher pobre
descrita
Fonte: da autora, dados do livro de óbitos do cartório de Lourenço Vieira – Oficial da
Província do ES, termo do Cartório Cabeça da comarca.

No ano de 1876 a causa da morte era registrada pelo padre


local, ou atestada pelo delegado da justiça, ou seja, pelo chefe da
polícia da cidade. A família, ou proprietário do morto, relatava o
ocorrido que era descrito no atestado. Em 1876 registraram-se 41
mortes sendo 12 de causa não declarada onde se inserem as mortes
dos indignos de nome, três de ataque de sangue, cinco de febres, um
de pneumonia, um de inchação, dois enterrados sem declaração da
causa da morte, um natimorto, um de acidente, um de beribéri, um
de moléstia (doença) não detalhada e uma morte foi declarada pelo
padre sem o mesmo identificar a causa, um de moléstia de Lázaro,
uma criança sem descrição, um de causa natural e as causas das
mortes dos demais em decorrência da qualidade do livro, dada sua
datação não foi possível descrever. Não foi possível em decorrência
da qualidade atual das páginas, advinda de sua datação.

278
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Inferimos com base na fonte que algumas doenças chamadas


de moléstias ignoradas eram desconhecidas da população local, e
ainda é possível perceber que o detalhamento das causas das mortes
no recorte da pesquisa revela além das doenças que afetavam a
população, insinuam diferenças raciais e econômicas no tratamento
do morto, pois negros ou pardos nem sempre tinham a causa de sua
morte declarada.
A situação sanitária da cidade de São Mateus era acompanhada
pela capital da província, na década de 1870.
Na Capital existem além dos dois médicos do Corpo da guarnição
mais dois, um que exerce o cargo de Secretário do Governo e
outro o de médico da Província. É este subvencionado pelos cofres
provinciais com 1:200$ rs. por ano e tem por obrigação as mesmas
do médico de São Mateus. (OLIVEIRA, 2008, p. 447).

Ainda segundo Oliveira (OLIVEIRA, 2008, p. 445) um


ofício do presidente da província, de vinte e cinco de março de
1854, ao ministro do Império, in Pres ES, VIII, 248-8v descreve
que o estado sanitário durante o ano que se termina, foi em geral
satisfatório, observando apenas em diversas localidades onde febres
intermitentes ainda eram presentes, em decorrência dos pântanos
que nelas existem. Alguns casos de varíola afetaram a Cidade de São
Mateus, que parece endêmica.
De modo geral a realidade é que faltavam médicos e boticas
na região, o senhor Eugênio de Assis quando menciona no final do
século XIX e sua condição econômica e sanitária da cidade descreve:
“Um dos grandes incentivadores do plantio do café foi o Barão de
Aimorés, com instalações completamente modelares”. Ainda em
seu relato, faz menção à um hospital que o barão em 1850 conseguiu
manter, o hospital foi auxiliado pelo Dr. Júlio César Berenger
Bitencourt e Francisco Caetano Simões. O quadro sanitário de uma
região insalubre, febres intermitentes, malária, e outras doenças,
apesar do grande surto de cólera, manteve-se sem grandes alterações
até 1876, sendo marcado apenas pela chegada de uma quantidade
maior de imigrantes e pela consequentemente chegada de novas
doenças (OLIVEIRA, 2008).

279
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Fazendo um paralelo da presença de negros, pardos e


brancos no município, discutiremos a seguir a questão da teoria do
branqueamento. Essa abordagem pode ter relação com o tratamento
que era destinado ao registro de causa da morte de negros e pardos
ao mencionarem, indignos de nome, moléstia ignorada ou até
mesmo não descrever a causa das suas mortes.

A teoria do braqueamento no contexto das imigrações: algumas


reflexões sobre São Mateus
No campo dos estudos migratórios é relevante a concepção
interdisciplinar, pois é um campo de múltiplas áreas do
conhecimento, dinâmico e que requer análises qualitativas, mas
também quantitativas. É indispensável a percepção atenta para
estudar imigrações, pois segundo Lussi,
o olho clínico do médico, a suspeita do detetive, o olhar do
artilheiro, a olhada experimentada do garimpeiro, a conjetura
do filósofo, são maneiras de pensar que requerem experiência
em áreas específicas do conhecimento; são parte da profissão que
permitem abordar a realidade a partir de uma ótica que já está
treinada para ver, descobrir, revelar, fazer conexões, imaginar,
conjeturar. (DURAND; LUSSI, 2015, p. 35).

No campo das mobilidades humanas, esse detalhamento


sensível permite compreender as realidades de cada sujeito e suas
culturas nos recortes das pesquisas desenvolvidas. Considerando esse
viés teórico e metodológico, entende-se que a mobilidade humana
ao longo da história esteve relacionada às questões econômicas
e sociais e ao trabalho que podem estar carregadas de sentidos e
valores. Os estudos sobre as imigrações sugerem que esse movimento
muito contribuiu para a diversidade étnica, mas considera algumas
inquietações que permitem levantar outros temas como a saúde e as
mortes no contexto de imigrações.
As principais teorias utilizadas nas últimas décadas foram
funcionais para a busca de respostas às três grandes interrogações
que as migrações internacionais apresentam ainda hoje: o que
motiva um povo a migrar para o exterior, apesar dos custos
psicológicos e financeiros da migração? Como se transformam
ao chegar em terra estrangeira? Qual o impacto que a imigração

280
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

produz na sociedade de chegada (no caso, na American life e


em suas instituições econômicas, socioculturais e políticas)?
(DURAND; LUSSI, 2015, p. 73).

Essas indagações nos permitem pensar sobre todo o panorama


da imigração no Brasil, e dão subsídios para a reflexão no campo
das causas das mortes e condições de saúde no Brasil na segunda
metade do século XIX, levantando ainda outros questionamentos,
que estrutura de saúde pública foi delegada aos imigrantes em 1876
no município de São Mateus, do que essas pessoas mais morriam?
Quais teorias imperavam nessa época? Assim, apresentamos um
pouco dessas relações e inquietações sociais e políticas com o viés
da teoria do branqueamento.
Considerando que o presente artigo parte de uma análise
das doenças que levaram a morte de negros, pardos e italianos
em 1876 no município de São Mateus localizado na província
do Espírito Santo, procuraremos traçar um breve panorama da
teoria do branqueamento existente na época. Discutir a questão do
branqueamento na segunda metade do século XIX pode possibilitar
uma melhor compreensão das relações sociais entre os povos que
compuseram a província e o município ora estudado.
A teoria do branqueamento no Brasil foi uma tentativa de
ajustar um modelo ideal para um grupo de intelectuais que acreditava
e difundia a ideia de que a civilização brasileira precisava, deveria
e poderia evoluir. Admitiam que a faculdade do homem poderia
melhorar seu genoma e tornar-se branco, assim difundiam a ideia
do branqueamento para o mundo como uma sociedade que tenderia
a se desenvolver.
Conforme Schwarcz:
Falar da adoção das teorias raciais no Brasil implica pensar sobre
um modelo que incorporou o que serviu e esqueceu o que não
se ajustava. No Brasil, evolucionismo combina com darwinismo
social, como se fosse possível falar em ʻevolução humanaʼ, porém
diferenciando as raças; negar a civilização aos negros e mestiços,
sem citar os efeitos da miscigenação já avançada. Expulsar “a
parte gangrenada’ e garantir que o futuro da nação era ʻbranco e
ocidentalʼ. (SCHWARCZ, 1993, p. 178).

281
IX Colóquio de História das Doenças: anais

O discurso defendido era de que os imigrantes brancos


contribuiriam com a tese em decorrência do fluxo migratório
intenso nas últimas décadas do século XIX. O que nos permite
indagar: qual o papel do imigrante na província do Espírito
Santo e no município de São Mateus? Concorrer para a formação
do típico brasileiro, clarear a pele. Quem seria o brasileiro do
futuro? Responderemos essas inquietações em Silvio Romero,
um defensor da ideologia do branqueamento. Romero sempre
inferiorizava o brasileiro e pregava que o brasileiro ideal seria
um latino e branco:
povo que descendemos de um estragado e corrupto ramo da velha
raça latina, a que juntaram-se o concurso de duas das raças mais
degradadas do globo, os negros da costa e os peles vermelhas
da América [...] [de que] resultaram o servilismo do negro, a
preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português
[que] produziram uma nação informe e sem qualidades fecundas e
originais. (SEYFERT Apud SKIDMORE, 1976, p. 52).

O que se afirmava era que o atraso brasileiro em relação


à outras nações mais desenvolvidas economicamente devia-se
à inferioridade dos negros tratados com desprezo. Essa é uma
afirmação que sugere um dos possíveis entendimentos para o motivo
pelo qual quando um negro ou pardo morriam em São Mateus, seu
atestado era resumido e dizia “indigno de nome”, ou nem mesmo se
descrevia a causa de sua morte, mas destacamos que essa descrição
pode estar relacionada às questões ou conflitos familiares e ao
decreto 5604 que regulamentou o registro civil de nascimentos,
casamentos e óbitos.
Para os debates da época existiriam três grandes raças: a branca,
a negra e a amarela, diferentes quanto à origem e desenvolvimento.
Schwarcz (SCHWARCZ Apud RENAN, 1872/1961) detalha
que “os grupos negros, amarelos e miscigenados [....] seriam povos
inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis,
não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso”.

O pensamento que se manteve sobre os negros era da


impossibilidade de adaptação e que de fato a compreensão das

282
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

raças no Brasil se dava pela classificação. Para essa vertente do


branqueamento foram os negros os primeiros a chegarem na terra,
logo seriam os primeiros a desaparecerem, isso seria possível graças
ao imigrante europeu, assim a imigração além de contribuir para
o desenvolvimento agrícola, seria um instrumento de civilização e
branqueamento da população brasileira.

Destacamos que existiam correntes contrárias desde essa


época, inclusive teorias que defendiam a impossibilidade de um
pseudo branqueamento, já que sempre iria prevalecer o gene ruim do
negro sobre o do branco. Mas na discussão refletimos como a ideia
de superioridade dos brancos pode estar enraizada na mentalidade
dos sujeitos da época e interferir no tratamento destinado as pessoas
após sua morte.
Mediante essa reflexão citamos o site (Arquivo Público do
Estado do Espírito Santo, [s. d.]) que detalha que chegaram ao Espírito
Santo em 1876, 2.665 italianos, e refletindo nesse quantitativo
citamos Saletto (SALETTO, 2000, p. 2) que descreve que quanto a
composição étnica do Espírito Santo não ocorre o branqueamento,
mas sim uma miscigenação de índios, negros e brancos. Todos os
povos muito contribuíram para a composição étnica.
Ainda segundo a autora, na região de São Mateus,
geralmente citada pela concentração de negros, os não brancos
referiam-se a 66,7% da população, mas como essa população era
pequena eles representavam apenas 6% dos pretos e pardos de
todo o estado o que possibilita inferir um quantitativo ainda
menor no final do século XIX, ao mesmo tempo constatamos que
a cidade alcançou prosperidade e desenvolvimento econômico
graças à atuação de todos os sujeitos históricos, negros, brancos
e pardos, mas a concepção racial da época não cooperava para
essa valorização das diversidades, a sociedade era racista e
oligarquizada, uma temática que na atualidade ainda demanda
atenção.

283
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Considerações finais
Em 1876 a cidade de São Mateus/ES tinha sua população
composta por negros, os imigrantes italianos e pardos. De modo
geral a economia estava em desenvolvimento advindo da cultura
agrícola da farinha de mandioca, atividade que delegou à cidade
baixa, o porto de São Mateus, e que apesar da cidade receber
uma leva maior de imigrantes italianos a partir de 1888, 1876 já
registrava a presença destes na cidade.
Os viajantes europeus Maximiliano e August de Saint-Hilaire,
dentre outras contribuições, proferiram suas impressões sobre São
Mateus no século XIX e alertaram para as doenças que afetavam
a população local afetada por febres, varíola e pelo ambiente não
salubre.
Quanto às doenças e morte no município, identificamos
que 41 pessoas morreram no referido ano de febres intermitentes,
ataques de sangue, asma, pneumonia. Infelizmente algumas causas
das mortes não foram identificadas, devido à qualidade do do
documento e seu estado de conservação, já que sua datação é de
1876, como também o fato de que a maioria de negros e pardos não
tiveram suas causas das mortes reveladas, tendo sido tratados no
livro como indignos de nome.
Nesse recorte temporal da pesquisa era difundida no Brasil a
teoria do branqueamento, que pregava a superioridade do homem
branco em relação aos negros e pardos. Esse também foi um período
da chegada de imigrantes italianos na província do Espírito Santo.
Infere-se, inclusive, que essa vertente racial e de superioridade do
homem branco possa ter influenciado em como os negros eram
tratados mesmo após sua morte, tema que merece destaque no
campo da pesquisa pois suscitou algumas outras inquietudes: como
em 1876, os negros eram enterrados no cemitério do centro da
cidade de São Mateus?
Nas comunidades quilombolas da cidade, existiam cemitérios
locais? A saúde e a morte possibilitam refletir que muitas questões
históricas do município ainda precisam ser investigadas e analisadas

284
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

para que algumas lacunas e os vestígios de sua história sejam


compreendidos.

Referências
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1850/1888. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
DURAND, Jorge; LUSSI, Carmem. Metodologia e teorias no estudo das migrações.
Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
EHRENREICH, PAUL. Índios Botocudos do Espírito Santo no século XIX. Vitória:
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2014.
FRANCESCHETTO, Cilmar; LAZZARO, Agostino. (org.). Italianos: base de
dados da imigração estrangeira no Espírito Santo nos séculos XIX e XX. Vitória:
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2014.
FRANCO, S. P. O terribilíssimo mal do Oriente: o cólera na província do Espírito
Santo (1855-1856). Vitória: EDUFES, 2015.
FRANCO, Sebastião P.; MARLOW, Sergio L. “Males nos trópicos”: relatos
do viajante Johann Jakob Von Tschudi sobre as doenças entre os primeiros
imigrantes alemães na província do Espírito Santo. Revista del Cesla International
Latin American Studies Review, v. 22, 2018.
GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das
Letras, 2007.
NASCIMENTO. Bruno César. Viagens à Capitania do Espírito Santo: 200 anos
das expedições científicas de Maximiliano de Wied-Neuwied e Auguste Saint-
Hilaire. Serra: Editora Milfontes, 2018.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
RUSSO, Maria do Carmo de Oliveira. A escravidão em São Mateus: Economia e
demografia (1848-1888). 2011. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-
Graduação em História. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
SALETTO, Nara. Sobre a composição étnica da população capixaba. Revista
Dimensões, v. 11, 2000.
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquia racial e o papel do racismo

285
IX Colóquio de História das Doenças: anais

na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos C. (org.). Raça, ciência


e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SKIDMORE, T. E. Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3 ed. Vitória:
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo/ Secretaria de Estado da Cultura,
2008.

286
Apontamentos sobre o cólera morbus
na Paraíba (1856 e 1862)
Milena de Farias Dôso1

Introdução
O presente artigo objetiva tratar dos processos que cercam o
cotidiano da morte na Província da Paraíba do Norte, em meados
do século XIX, relacionadas à epidemia do cólera, que assolou a
região nos anos de 1856 e 1862. Assim, adentraremos na discussão
acerca das práticas de sepultamento e suas mudanças ocasionadas
pelo decorrer da moléstia.
Em linhas gerais, essa pesquisa se insere nos estudos de
História da Saúde e das Doença e da Morte, campo em constante
expansão dentro da historiografia. As novas abordagens de pesquisa
na História andam de mãos dadas com a renovação historiográfica
que começa a ganhar espaço dentro das universidades e se torna
objeto de escrita acadêmica a partir da década de 1960, com a
influência da terceira geração da escola dos Annales.(REIS, 2006)
Na historiografia, a abordagem da doença como fator social
problematizada, está relacionada a renovação temática advinda da
História Cultural, que passa a considerar não somente os fatores
econômicos, mas incluem em suas pesquisas ʻo inconsciente, o
mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os
filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano,
enfim uma miríade de questões antes ausentes do território da
Históriaʼ. (LUCCA, 2005, p. 113 Apud MARIANO; TARGINO,
2016, p. 861).

A Nova História Cultural, expressão que entra em uso no final


dos anos de 1980, traz, portanto, essa abordagem multidisciplinar,

1 Universidade Federal da Paraíba (PPGH). E-mail: [email protected]

287
IX Colóquio de História das Doenças: anais

dialogando com a sociologia, a antropologia, a geografia e, no


caso dessa pesquisa, com a medicina. Assim, os modos de viver,
as atitudes, as formas de convivência, os jornais, os produtos de
cultura, viram objeto de pesquisa.
Estudar o cotidiano da morte, é, em última instância, uma
questão que concerne dentro também do social, visto que permeia a
vida e a realidade de qualquer pessoa, em detrimento de classe, raça,
gênero, idade etc; torna-se, portanto, um fator de ligação em qualquer
parte do globo, como acontecimento instransponível que é.

Preparando a “Boa Morte”


As práticas de preparo para os ritos fúnebres são grandes
influenciadores nas práticas da mentalidade local, sobretudo
em meio a uma sucessão de mortes por doença, como aconteceu
na Paraíba durante a epidemia do cólera. Prepara-se para uma
“boa morte”, ou seja, aquela preparada, esperada e tida de forma
tranquila, era um dos norteadores dos costumes fúnebres. E essa
preocupação com a alma era deixada muito bem recomendada aos
vivos, em formato de testamentos.
Ao analisar alguns desses documentos datados da segunda
metade do século XVIII na Paraíba, Monteiro (MONTEIRO, 2017,
p. 274) destaca que “os testamentos dos paraibanos setecentistas
revelam que a preocupação maior desses homens e mulheres, mais
do que os aspectos práticos da vida civil, era com a salvação de suas
almas”.
A salvação da alma era o objetivo maior para aqueles que
passavam a vida dentro dos ritos majoritariamente católicos, dada
a localidade que estudamos, onde a liturgia conduz ao objetivo
maior: partilhar da eternidade nos céus, já que a morte seria apenas
uma passagem. Assim, os rituais e a simbologia garantiam uma boa
passagem para o outro plano. Monteiro (MONTEIRO, 2017) ainda
afirma que:
na Paraíba setecentista encontramos, nos inventários e
testamentos, variados exemplos de instruções nesse sentido, tais

288
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

como confecção de mortalha que cobriria o cadáver, os padres


e irmandades que deveriam acompanhar os funerais, o local do
sepultamento, o número de missas e ofícios a serem rezados. A
súplica e a intercessão dos santos, a distribuição dos bens de forma
caritativa e a doação para os religiosos [...] emergem na leitura
de inventários reafirmam a existência do rito fúnebre como
providência para morrer em paz. (MONTEIRO, 2017, p. 272).

Era comum nos costumes fúnebres antigos os sepultamentos


dentro das igrejas, principalmente para os grupos mais abastados.
Era intrínseco ao momento da morte, manter o local santo como
prioridade no descanso eterno do corpo. Acreditava-se que quanto
mais perto do altar fosse enterrado o morto, mais próximo do céu
estaria. Em quase todas as vezes, somente as elites conseguiam tal
feito, restando aos pobres e escravizados, a calçada dos templos ou
os matos ao redor. (REIS, 1997, p. 95-141).
Ser enterrado em solo sagrado era uma das coisas que traziam
ao morto a paz necessária ao descanso eterno. Compreender as
mudanças nos sepultamentos é inerente ao estudo das epidemias
que assolaram a Paraíba em meados do século XIX. A chegada
dos cursos de medicina no Brasil e a formação de profissionais da
área, acarretaram em uma mudança dos costumes, mesmo que de
forma gradual. A esse respeito, de acordo como Mariano e Mariano
(MARIANO; MARIANO, 2012), durante a década de 1850, a
Paraíba só contava com quatro médicos, sendo três na Capital e um
na Vila do brejo de Areia.
Nesse período, circulavam pelo Brasil algumas teorias médicas
sobre as doenças epidêmicas. A teoria contagionista e a teoria
miasmática eram as mais aceitas e disseminadas nesse momento.
A primeira versava sobre o contágio através do contato direto com
o doente ou com o ar, que permitia a passagem da doença de um
sujeito para o outro, sendo proposto quarentenas para impedir esse
avanço.
Na segunda teoria, a da transmissão das epidemias pelos
miasmas, se falava sobre os resíduos presentes em água parada
ou matéria orgânica em decomposição, que, através dos fatores
atmosféricos, se dissipavam no ar, causando novos doentes. A

289
IX Colóquio de História das Doenças: anais

concentração de pessoas em um local também era responsável pela


produção dos miasmas, fosse no contato direto ou indireto com os
doentes. Principalmente a concentração de pessoas moribundas
entre os vivos.
Essas circulantes teorias de higienização dos espaços públicos
e privados começaram a ganhar força e a disseminar suas ideias
no âmbito médico. Um dos alvos recorrentes para a medicina
nesse período eram os sepultamentos que ocorriam nas igrejas,
considerados locais santos de descanso eterno que garantiam a
aproximação com o céu. Reis (REIS, 1991, p. 214) aponta que “as
igrejas eram a Casa de Deus, sob cujo teto, entre imagens de santos
e anjos, deviam também se abrigar os mortos até a ressureição
prometida para o fim dos tempos”.
Foi com a teoria dos miasmas que se fortaleceu o pensamento
contra esses enterros, pois o contato dos mortos com os vivos
possibilitava inúmeras doenças. Ainda de acordo com Reis (REIS,
1991), os médicos analisavam de forma bastante crítica esses
sepultamentos:
para eles a decomposição de cadáveres produzia gases que
poluíam o ar, contaminam os vivos, causavam doenças e
epidemias [...] uma organização civilizada do espaço urbano
requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos
fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios
extramuros. (REIS, 1991, p. 307).

A epidemia do cólera, tema central desse trabalho, foi um


grande catalisador para a criação dos cemitérios na Paraíba. Os
primeiros cemitérios da Província, começaram a ser construídos
entre 1855 e 1856, em decorrência do avançado número de mortos
pela doença. Em 1855, foi edificado o cemitério da vila de Piancó,
sendo que desde 1850 já havia aprovação na Assembleia para sua
construção. O cemitério da vila de Cabaceiras, por exemplo, foi
erguido somente em 1856, afastado da Igreja Matriz, antes mesmo
de algumas outras vilas da Província no mesmo ano. (DÔSO, 2020,
p. 22).

290
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A epidemia do cólera na Paraíba


Em meados do século XIX, a Paraíba, assim como várias outras
Províncias do Brasil, vivenciou dois grandes males endêmicos: a
febre amarela e o cólera. O cólera, em termos gerais, se caracteriza
por uma grave infecção bacteriana no intestino, causando fortes
diarreias e vômitos, levando a um intenso quadro de desidratação,
que desencadeia outros sintomas, como baixa pressão arterial,
ausência de urina, pele ressacada, entre outros. Todos esses
fenômenos, na maior parte das vezes, levavam à morte.
Ambas as doenças causaram um assombro geral na população
e deixaram impactantes números de mortos. Mas enquanto a febre
amarela tornou-se mais presente na capital da Província paraibana
do que no interior, o cólera espalhou-se para muitas das vilas locais
e seus registros de óbitos se tornaram mais latentes. Várias vilas
da Província foram afetadas, sendo, de acordo Mariano e Mariano
(2012), as principais: Sousa, Patos, Pombal, Catolé do Rocha,
Alagoa Nova, Pilar, Bananeiras, Cabaceiras e Santa Rita.
Sobretudo no Norte e Nordeste, o cólera foi um grande
problema sanitário. Seu percurso inicia-se a partir do Pará, seguindo
para o Amazonas e Maranhão, desce para a Bahia e para o Rio de
Janeiro, chega ao Rio Grande do Sul. Nos últimos meses do ano de
1855 acomete Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, chegando
no Rio Grande do Norte já em 1856. (DÔSO, 2020, p. 13-14)
Assim que a doença foi confirmada no Pará, muitas Províncias
começaram a tomar medidas profiláticas. Na Paraíba, por exemplo,
a capital recebeu atenção dobrada. O matadouro público foi
transferido para um prédio mais salubre, medidas de quarentena
foram estabelecidas para embarcações vindas de lugares que
poderiam oferecer riscos, criou-se um estabelecimento na Ilha da
Restinga para tratamento de pessoas vindas em tais embarcações.
(DÔSO, 2020, p. 14)
Muitos acreditavam que o cólera teria o mesmo efeito que a
febre amarela demostrou: uma taxa de morte não era tão devastadora.
Mas, segundo Mariano e Mariano (MARIANO; MARIANO, 2012),

291
IX Colóquio de História das Doenças: anais

a doença chegou como um furacão, ceifando a vida de quase vinte


e seis mil pessoas, numa população que não chegava aos trezentos
mil habitantes. Os dois principais surtos do cólera aconteceram nos
anos de 1856 e 1862, esse último em menor intensidade.
Quando a doença se anunciou na Paraíba, o governo tomou
novas medidas de quarentena, sobretudo para a capital. Muito
embora os paraibanos já estivessem bastante familiarizados com a
febre amarela que assolou a região no mesmo período da década de
1850, o cólera dizimou muitas vidas em um curto espaço de tempo,
causando alarme generalizado.
Ambientes com baixas condições de salubridade e higiene são
perfeitos para a proliferação da doença, visto que seu contágio é feito
através do contato com água ou alimentos contaminados. Mariano
e Mariano (MARIANO; MARIANO, 2012, p. 12) apontam outra
questão importante para a construção do medo ao redor da doença,
como a aparência dos doentes: “olhos fundos, unhas roxas, pele
ressecada e em tom azulado, lábios pálidos em um corpo contraído,
criando imagens e gerando padrões de julgamento que orientavam
as práticas sociais.”
Porque a doença foi tão avassaladora na Paraíba, ela acabou
por estampar muitas das matérias dos jornais circulantes da época.
Fosse para alertar, prevenir ou tratar, o cólera se fazia presente nas
páginas dos semanários:
deve a pessoa assim acommetida de qualquer desses incommodos:
abster-se de comer - agasalhara-se bem - tomar um escaldapés até
os joelhos, com cinza, sal ou mustarda, pondo depois sinapismos
nas pernas - tomar de quarto em quarto, da meia em meia hora, ou
de hora em hora, conforme a intensidade do mal, uma chicara de
infusao de macella, hortelã-pimenta, grelos de larangeira ou outra
qualquer, bem quente, e branda juntando a essa infusão alguns
pingos ou gottas de elixir paragorico americano, de seis a vinte
gotas para cada infusão, conforme a susceptibilidade da pessoa
que as tomar, conforme for a diarrhéa mais ou menos pertinaz
ou renitente; porque, se esta ceder logo, e pararem os vômitos,
havendo-os, é preciso parar com o elixir, continuando apenas com
as infusões e agasalho, afim de entreter a transpiração livre. (A
REGENERAÇÃO, 22/02/1862, n. 77).

292
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Os estudos das doenças e seus contextos de morte por muito


tempo foram observados majoritariamente com o olhar patológico
e com fontes puramente médicas. Passar a problematizar as
enfermidades enquanto produtos socioculturais abre um amplo
panorama de pesquisas e de referências, olhando as moléstias através
de jornais, crônicas, imagens, reportagens etc
Assim, estudar o cólera, a saúde e as formas como a morte eram
tratadas, relacionadas com as transformações de uma sociedade, nos
permite entender como a história de um local é construída, quais
as suas devoções, suas origens de crenças e mitos. Nos permite
remontar quais os costumes que uniam – ou não – o povo e, ainda,
quais usos permitiam a disseminação de moléstias e afins.
Portanto, esse trabalho visou contribuir para o entendimento
e compreensão da epidemia do cólera e seus impactos na Província
da Paraíba durante a segunda metade do século XIX. Em dias
corridos ou mesmo em poucas semanas, amigos e familiares eram
enterrados em sequências e, por esse motivo, buscamos, assim,
enxergar como a morte causava impacto nas vidas das pessoas, física
e espiritualmente.

Referências

Fontes
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296
“Um monumento que revela a piedade
de nossos maiores”:
o hospital São Christovão dos Lázaros (1850-1876)
Muller Sampaio1

A estrutura institucional do Hospital São Christovão dos


Lázaros, na Bahia, passou por um longo processo de reformas e obras
durante a segunda metade do século XIX. Entretanto, a morosidade
na conclusão desses empreendimentos – uma vez que parte das
obras só foi concluída, aproximadamente, 20 anos depois – pode ser
vinculada às dificuldades financeiras e aos diferentes interesses por
parte do governo provincial, entre as décadas de 1850 e 1870. Neste
texto, buscamos abordar alguns indícios relacionados a esse processo
e dar visibilidade a uma parte da trajetória dessa instituição baiana,
responsável pela reclusão de leprosos desde 1787.

O hospital dos Lázaros na Bahia


Criado em 1787 para isolar os doentes considerados
leprosos, o local, cede do Hospital São Christovão dos Lázaros,2
seguiu como o único espaço de isolamento e assistência dos
doentes de lepra na Bahia, até meados de 1949 (SAMPAIO,
2018). Neste estudo, o recorte cronológico está estabelecido na
segunda metade do século XIX, período em que se intensificaram
as justificativas sobre a incapacidade do governo provincial em
manter a administração do referido Hospital, ao mesmo tempo

1 Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: [email protected]


2 Além da denominação Hospital São Christovão dos Lázaros algumas fontes se
referem à instituição como Hospital dos Lázaros. As duas nomenclaturas serão aqui
utilizadas para se referir à mesma instituição.

297
IX Colóquio de História das Doenças: anais

em que se tentou empreender obras que visavam melhorar as suas


condições de infraestrutura.
Nesse mesmo contexto, o espaço urbano da cidade de
Salvador passava por reformas na sua estrutura física, muitas delas
sob influência de médicos higienistas que se diziam preocupados
em melhorar as “péssimas” condições sanitárias e eliminar os
espaços considerados como foco de doenças. Os surtos epidêmicos
e o aparecimento de diferentes enfermidades, nesse período, eram
recorrentes na capital baiana (SANTOS, 2005, p. 54-56).
Sobre os espaços de saúde como os hospitais, durante o século
XIX, é importante ressaltar que estes passaram por significativas
mudanças ao longo do tempo. Ao tratar sobre o assunto, Gisele
Sanglard (SANGLARD, 2008, p. 26) afirma que: “aos poucos, o
hospital foi se transformando do espaço de encarceramento das
misérias humanas em um espaço de cura, onde o desenvolvimento
da prática médica teve papel importante”. Em relação a isto,
também é preciso considerar o surgimento da Higiene, que, segundo
Venétia Rios (RIOS, 2001, p. 28), surgiu como uma disciplina da
modernidade e passou a empregar concepções que redefiniriam
os conceitos de limpo, saudável, puro, moderno, civilizado e
urbanizado.
Em 1857, o Hospital São Christovão dos Lázaros, na Bahia,
foi considerado pelo seu administrador, Thomaz Gomes de
Azevedo, como uma instituição que exercia fins “muito diversos”
dos outros “hospitais de caridade”. Segundo ele, isto era em função
dos interesses que moviam os leprosos a buscarem, por vontade
própria, o Hospital. Em suas palavras:
recolhem-se os enfermos que os procuram, seem que a caridade ou
medidas policiaes os vão buscar, na esperança de obterem inteiro
restabelecimento, para de novo entrarem nas suas profissões, ou
misteres, senão uma sepultura com a administração dos socorros
espitituaes. (AZEVEDO, 1857, p. 2. [Grifo meu]).

Além das manifestações dermatológicas e a perda da


sensibilidade, a lepra, hoje conhecida como hanseníase, também
causava/causa perda da força muscular, principalmente em mãos,

298
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

braços, pés e pernas, podendo gerar incapacidades permanentes. Nos


períodos em que não havia possibilidade de cura, como no século
XIX, a evolução para quadros mais graves da doença acabava por
ser mais recorrente e, consequentemente, os enfermos se tornavam
inúteis ao trabalho ou impossibilitados de exercer algum meio de
subsistência, tendo que recorrer à mendicância ou ao Hospital.
Entretanto, o recolhimento em Hospitais era uma questão
complexa, principalmente em relação ao tempo de permanência dos
enfermos na instituição. De acordo com o então administrador do
Hospital São Christovão dos Lázaros, em 1857, a instituição acabava
por se tornar residência “quasi sempre perpetua” e forçada para os
doentes acometidos pela lepra, moléstia, segundo ele: “superior
às conquistas da sciencia medica”. Como forma de exemplificar a
longa estadia desses doentes, o administrador apresentou o caso de
Francisco Borges, com 62 anos de Hospital, tendo sido recolhido em
18 de Setembro de 1792, e que calculava-se ter entrado já doente
com 34 anos de idade, tendo aproximadamente, naquele ano de
1857, entre 99 a 100 anos de idade (AZEVEDO, 1857, p. 2).
Em fevereiro de 1859 o mesmo administrador, desta vez
em relatório do Hospital correspondente as ações do ano de
1858, retomou o assunto relacionado à longa estadia dos doentes
e, novamente, citou o caso de Francisco Borges, com 101 anos de
idade e ainda recolhido na instituição. De acordo com o registro,
o quadro da doença estacionou e manteve o enfermo em “perfeito
conhecimento de tudo”. Além dos passeios, ele frequentava os
banhos e nada sofreu “à excepção da surdez” (AZEVEDO, 1859, p.
1).
O então administrador, Thomaz Gomes de Azevedo, era
contrário à noção de possibilidade de cura para a lepra. Sobre
os “morpheticos” que “supostamente” alcançavam a cura no
Hospital São Christovão dos Lázaros e retomavam as suas vidas,
ele afirmou que estes não eram “verdadeiramente” acometidos pela
enfermidade. Conforme seus argumentos, a lepra era uma doença
incurável e os tratamentos existentes não produziam “efeito real”,
haja vista as experiências de tratamento mal sucedidas, realizadas

299
IX Colóquio de História das Doenças: anais

no próprio Hospital: com “tudo” que era “annunciado e publicado


como infalível à cura d’esta molestia” (AZEVEDO, 1859, p. 1-2).
Nesse sentido, a hipótese de incurabilidade também
reforçava seus argumentos sobre a longa estadia dos enfermos
na instituição. Relacionado a isto, outra questão que preocupou
Thomaz Gomes de Azevedo, enquanto administrador, dizia
respeito aos internamentos prolongados e o possível aumento
de enfermos dependentes do Hospital, uma vez que a cura não
era possível e novos casos iam surgindo ao longo do tempo.
Desse modo, as exigências e a necessidade de atenção às questões
econômicas, em virtude do aumento nos gastos básicos com
a alimentação, roupas, materiais diversos e a necessidade de
investimento em reformas e ampliação dos cômodos, reforçavam
o caráter específico da instituição.
No contexto geral, a assistência médico-sanitária da época era
quase sempre de responsabilidade exclusiva das Câmaras Municipais
e, raramente, era desempenhada com eficácia. O cuidado e a
assistência aos enfermos ficavam a cargo, principalmente, das Santas
Casas de Misericórdia, hospícios e alojamentos de irmandades
(SANTOS FILHO, 1977, p. 63 Apud CASTRO SANTOS; FARIA,
2003, p. 21). O que não foi diferente na cidade de Salvador, de acordo
com Venétia Rios (RIOS, 2001, p. 61-62): “embora, contando com
o Instituto Vacínico, o Hospital do Mont-Serrat [...], era o Hospital
da Caridade da Santa Casa da Misericórdia o lugar para onde se
dirigia o maior número dos enfermos da cidade”.
Acerca das ações de assistência e de saúde pública, tanto
no Império quanto na Primeira República, Christiane Souza e
Gisele Sanglard (SANGLARD, 2011) afirmam que o papel do
estado correspondia ao “modelo liberal”. Deste modo, sua atuação
era apenas em determinados momentos, como os de calamidade
resultantes de cataclismos naturais, epidemias, entre outros.
Segundo as autoras, no que se referia às necessidades cotidianas, era
a própria sociedade responsável por se organizar e buscar atender as
suas necessidades: “Nesse arranjo de direitos e deveres, a sociedade
organizava-se por meio das ações das irmandades, notadamente

300
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a Irmandade da Misericórdia, e das sociedades de auxílio mútuo”


(SOUZA; SANGLARD, 2011, p. 27-28).
Na Bahia do século XIX, a criação e a administração de
hospitais voltados à assistência aos doentes, conforme análise de
Renilda Barreto (BARRETO, 2011), foram ações concomitantes
à fundação das Santas Casas. Segundo ela, “durante todo o século
XIX, a sociedade e o Poder Público continuaram pautando
as ações de assistência aos doentes, em conformidade com o
paradigma assistencialista das Misericórdias” (BARRETO, 2011,
p. 8). Ao problematizar as práticas de “caridade” como intrínseca
ao movimento de criação dos Hospitais das Santas Casas de
Misericórdia no século XIX, a autora também enfatiza que seus
diversos campos de atuação foram atravessados pelas representações,
noções e práticas de benemerência católica cristã, forjadas no seio
dos interesses de grupos sociais a ela articuladas (BARRETO, 2011,
p. 15).
Em texto sobre a assistência aos doentes no século XIX,
Laurinda R. Maciel (MACIEL, 2007) considera que as ações
assistenciais foram promovidas, principalmente, pelas Santas
Casas de Misericórdia e instituições ligadas à Igreja, responsáveis
pelo atendimento aos doentes de toda a natureza no Brasil,
incluído os de lepra. A autora também afirma que até o início
do século XX, todos os hospitais de lázaros e asilos existentes
no país eram de manutenção particular, inexistindo instituição
para leprosos que fosse de responsabilidade do Estado. Situação
que se modificou, segundo sua observação, apenas a partir da
reorganização da assistência, no período republicano (MACIEL,
2007, p. 35).
Porém, diferente dessa afirmação, nesta pesquisa que apresento
sobre o Hospital São Christovão dos Lázaros, na Bahia, as fontes
evidenciam que a sua administração era gerenciada pelo governo
provincial e não por uma instituição caritativa, ainda que capelães
católicos lá residissem. Além disto, sua fundação foi resultado da
iniciativa governamental e que respondia pelo abastecimento de
suprimentos de primeira necessidade, através do Celeiro Público,

301
IX Colóquio de História das Doenças: anais

inaugurado em 1785, pelo Governador Provincial, Dom Rodrigo


José de Menezes (SIMÕES FILHO, 2011).
Responsável por regular e controlar a venda da farinha
na cidade, a fim de garantir o acesso da população urbana mais
pobre, principalmente em contextos de crise e desabastecimento,
o Celeiro Público também manteve outra importante atribuição,
a cobrança de uma taxa aos condutores das embarcações que
comercializavam a farinha. Essa taxa era destinada às despesas
e a conservação das instalações do próprio Celeiro e para a
manutenção do Hospital dos Lázaros (SIMÕES FILHO, 2011, p.
71-85).
Em consequência, os rendimentos do Celeiro Público
formavam a principal receita do Hospital São Christovão dos
Lázaros. Contudo, isso era motivo de diversas críticas por parte
dos administradores, uma vez que as verbas eram insuficientes para
arcar com todas as despesas. Em protesto, o presidente da província,
Francisco Gonçalves Martins, em fala apresentada à Assembleia
Legislativa da Bahia, no ano de 1850, informou que o Governo
Provincial, em meio aos trabalhos que estaria efetuando, não teria
condições de manter a direção do Hospital dos Lázaros (BAHIA,
1850, p. 9).
Segundo ele, seria conveniente apelar à devoção e à
“caridade cristã”, que, como aconteceu com a Casa Pia das Órfãs
do Coração de Jesus, deveria receber a autorização para nomear
uma Mesa Administrativa e, assim, desobrigar o governo de tal
responsabilidade (BAHIA, 1850). Em suas palavras:
sendo conveniente invocar em beneficio do Estabelecimento dos
Lazaros a devoção e a caridade christã, insisto em pedir-vos uma
autorização semelhante á que foi decretada para a Casa Pia das
Orfãas do Coração de Jesus, isto he, para nomear uma Mesa que
tome á si dirigir e melhorar aquella Pia Instituição, que não pôde
com o mesmo proveito ser administrada pelo Governo no meio
dos trabalhos que cercão, e tendo neste caso os cofres Publicos de
carregar com todas as despesas. (BAHIA, 1850, p. 9).

Não sendo o único episódio sobre esse tema, outros presidentes


da província também trataram sobre a situação financeira da

302
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

instituição, naquele período de 1850. O então presidente de


província, João Mauricio Wanderley (1852-55), em fala proferida no
ano de 1854, criticou as últimas administrações e explicou que estas
teriam deixado o Hospital dos Lázaros em tamanha decadência, que
“o zelo da actual não tem sido bastante para pol-o no pé, em que
deve estar uma instituição desta ordem”. Ademais, acrescentou que
caberia habilitar o referido Hospital com mais meios de subvenção
e que, desde a sua criação, a instituição não teria recebido auxílio
por parte da caridade (BAHIA, 1854, p. 10).
As condições dos leprosários nas províncias do Rio de
Janeiro, Maranhão, Pará, Mato Grosso e São Paulo não eram
muito diferentes nesse mesmo período. Segundo Leicy Silva
(SILVA, 2016, p. 53-54), eram constantes as reclamações sobre
a estrutura, a administração, a capacidade de atendimento
e do quadro médico existente. Na Bahia, outras instituições
hospitalares também enfrentaram dificuldades administrativas e
financeiras. De acordo com Onildo David (DAVID, 1993, p. 68-
69), as condições de higiene dos hospitais de Salvador foi alvo de
muitas críticas por dos médicos da época e elas correspondiam
tanto à alimentação quanto a falta de leitos, lençóis e roupas dos
enfermos que não eram trocados com regularidade. Não bastasse
essa situação, um surto epidêmico de cólera nos anos de 1855-56,
na Bahia, contribuiu para a piora dos serviços de cura e assistência
ofertados nos hospitais.
Retomando sobre a questão financeira do Hospital São
Christovão dos Lázaros, ao longo da segunda metade do século
XIX, é possível afirmar que o auxílio por parte da caridade
filantrópica, destinada aos “morpheticos” que viviam no Hospital,
praticamente inexistiu. A criação de uma Mesa Administradora,
como solicitou o presidente da província, Francisco Gonçalves
Martins, nos anos de 1849 e 1850, só aconteceu em 1861,
nomeada pelo próprio Governo da Província. Porém, o quadro de
financiamento não foi alterado e o governo provincial continuou
responsável pela maior parte da receita do Hospital (BAHIA,
1861, p. 9).

303
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Conforme as informações no recorte das fontes acessadas


para esta pesquisa, é provável que a caridade e a filantropia3 só
tenham tido maior destaque no auxílio ao Hospital dos Lázaros
no final do século XIX, mais precisamente, em 1895, quando a
Santa Casa de Misericórdia da Bahia assumiu a sua administração.
Contudo, segundo Márcia Elizabeth Santos (SANTOS, 2005, p.
85), a instituição foi devolvida para o estado em 1912.
As leituras dos relatórios dos presidentes provinciais indicam
que o Hospital São Christovão dos Lázaros sofreu em diferentes
momentos com a falta de verbas. Reclamações e solicitações de novos
meios para prover a instituição eram recorrentes durante a segunda
metade do século XIX. Em resultado das dificuldades financeiras,
o administrador, em 1857, expôs que a diferença entre a receita
e a despesa nos sete meses decorridos da sua administração não
satisfez às exigências. O que provocou uma situação de “embaraço”
para “cumprir as necessidades mais indispensáveis da instituição”
(AZEVEDO, 1857, p. 1).
Além dos gastos com a alimentação, era de responsabilidade
da administração pública, oferecer vestuário e calçados para
os enfermos, roupas de cama, medicamentos, utensílios e
outros objetos que anualmente ou em determinados períodos
precisavam ser substituídos. Segundo as descrições no relatório
do administrador, tal dispêndio gerou problemas em relação às
despesas nos primeiros sete meses do ano de 1857 (AZEVEDO,
1857, p. 1).
As dívidas subsequentes acumularam-se àquelas já existentes
em 1857. A exemplo, em relatório enviado ao presidente da
província em de fevereiro de 1859, pelo administrador Thomaz
Gomes de Azevedo, sobre o saldo devedor referente ao ano de 1857,
no valor de 3:214$476, ele afirmou que o valor ainda não havia sido
pago. Somado ao déficit do ano de 1858, cerca de 4:932$998, o
3 Tanto a caridade quanto a filantropia estão relacionadas à questão das doações e
assistência aos pobres, porém, a caridade está ligada a cultura cristã, ao temor a Deus e
uma atitude de resignação ante a pobreza. Já a filantropia, enquanto uma virtude laicizada,
busca reforçar princípios humanistas de proposições sociais voltadas à suavização da
pobreza ou da doença. Sanglard; Ferreira, (2018, p. 149).

304
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

valor total do saldo negativo ficou em 8:167$479, no início de 1859


(AZEVEDO, 1859, p. 1).
Retornando ao relatório de 1857, o administrador afirmou
que a receita no período foi de 7:708$807, enquanto a despesa ficou
em torno de 9:001$851 – valor que ultrapassou em 1:293$044 a
quantia disponível para os gastos. Em relação ao valor total da receita,
Thomaz Gomes de Azevedo acrescentou que a quantia de 2:422$960
era fruto de trabalhos desenvolvidos pela própria instituição, como
pode ser observado abaixo, no Quadro 1 (AZEVEDO, 1857, p. 1).
Quadro 1: Demonstrativo da receita do hospital dos Lázaros, de janeiro a julho de 1857
Consignação
recebida da Lavagem
Ortaliça, Jornaes Esmolla
tesouraria Foros de de roupa Pedra
1857 fonte, de que Total
provincial terras da Santa vendida
Etc. Escravos derão
para occorrer Casa
as despezas

Janeiro 755$121 ............ 55$980 25$240 115$500 33$080 ........ 984$921

Fevereiro 755$121 113$000 61$240 31$000 165$000 29$340 ........ 1:154$701

Março 755$121 91$000 55$000 51$300 88$000 28$240 50$000 1:118$661

Abril 755$121 313$000 57$130 37$580 126$000 24$240 .......... 1:313$071

Maio 755$121 209$000 63$740 29$020 180$000 36$400 ............ 1:273$281

Junho 755$121 17$000 42$370 15$120 79$500 24$800 ............ 933$911

Julho 755$121 59$000 75$340 16$120 ............. 24$680 ........... 930$261

Somma 5:285$847 802$000 410$8000 205$380 754$000 200$780 50$000 7:708$807

Fonte: AZEVEDO, 1857.

A partir do quadro 1 é possível observar que a arrecadação


de verbas para a manutenção e gestão do Hospital aconteceu de
diferentes formas. Entretanto, a renda mensal mais alta foi o valor
fixo de 755$121, resultado da consignação recebida pela tesouraria
provincial. O restante provinha da lavagem de roupas da Santa
Casa, da venda de jornais ou recebimento das jornadas de ganho de
escravos e da venda de pedra e hortaliças, serviços gerados a partir
da força de trabalho dos escravizados pertencentes à instituição e
dos africanos livres.4
4 Com a proibição do tráfico transatlântico de escravizados, a partir da lei de 7 de
novembro de 1831, todos aqueles que estivessem em embarcações apreendidas pelas
autoridades brasileiras eram considerados libertos. Porém, já em território brasileiro e com
destino incerto, estes sujeitos eram submetidos a diferentes situações de trabalho forçado.

305
IX Colóquio de História das Doenças: anais

No que se refere ao quadro de despesas, além do que já foi


citado anteriormente, este também era composto por empregados.
Sobre eles, em fala à Assembleia Legislativa, em 1860, o presidente
da província, Herculano Ferreira Penna, apresentou os valores
despendidos em 1859, período em que o déficit das despesas anual
resultou na soma de 10:486$707.5 Conforme o presidente, eram
sete os cargos que formavam o quadro de empregados no Hospital
e a estes foram pagos os respectivos valores: 200$000 referente
ao ordenado anual do cirurgião; 300$000 ao boticário; 120$000
ao capelão, além de uma ração e o “ônus” de residir no hospital;
200$000 ao escriturário, ração e o mesmo “ônus” de residir;
120$000 ao feitor, além de ração e residência; 24$000 a cada um dos
enfermeiros, selecionados dentre os próprios enfermos; e morada e
sustento ao administrador. Em relação ao médico, seus vencimentos
ficavam a cargo da Tesouraria Provincial (BAHIA, 1860, 37).
Somados a esses empregados, em fevereiro de 1860, o pessoal
que vivia e trabalhava no hospital eram cerca de 140 indivíduos,
números que também explicam os elevados valores das despesas.
Segundo a descrição do referido presidente da província naquele
ano, o grupo de indivíduos era formado por: 35 escravos de ambos
os sexos, incluindo 13 “crias menores”; 19 africanos livres, mais 5
menores filhos destes; 5 do serviço privativo de enterramentos no
Cemitério da Quinta dos Lázaros; 13 de diferentes serviços; e 56
enfermos de ambos os sexos (BAHIA, 1860, p. 37).
Abrigar essa quantidade de pessoas exigiu investimento
no edifício e nas casas que serviam de moradia para alguns dos
empregados. Em fala à Assembleia Legislativa, o presidente de
província em 1853, João Mauricio Wanderley, apresentou dados
sobre o início de uma obra que visava oferecer “todas as vantagens”
e “bens” que se esperavam do Hospital dos Lázaros. Entre os
objetivos: a remoção das “casas de banho” para o lado esquerdo do
edifício, que ficaria debaixo de abóbadas de alvenaria e em cima
dessa construção se instalaria a sala destinada às conferências do
5 A receita do Hospital dos Lázaros no ano de 1859 foi de 9:771$503, mas os gastos
relacionados as despesas excederam esse valor e a quantia ficou em 20:258$10 Bahia (1860,
p. 37).

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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médico e cirurgião, e a botica. Além dessas obras, na continuação


desse mesmo lado, onde havia um tanque e casas para lavagem de
roupa, seria construído um muro na frente do hospital com grade
de ferro sobre colunas (BAHIA, 1853, p. 26).
Consideradas como indispensáveis, as obras aconteciam após
a demolição dos armazéns e parte das casas que o estabelecimento
possuía – como a residência do capelão e demais pessoas, além das
acomodações para o gado e outros animais. Na continuidade da sua
fala, o presidente da província considerou que essas obras e reparos
garantiriam a possibilidade do estabelecimento receber mais de
150 enfermos, enquanto que naquele período, 1853, a capacidade
máxima era de 70 (BAHIA, 1853, p. 25).

O governo provincial e a administração do hospital


As obras e modificações, mencionadas anteriormente,
também eram fruto de outro empreendimento: a construção de um
cemitério público aprovado no governo de Francisco Gonçalves
Martins, em meados de 1850, quando do primeiro surto da epidemia
de Cólera. Considerado como “vantajoso”, o local escolhido para
a construção do cemitério foi no mesmo terreno do Hospital dos
Lázaros e o empreendimento substituiria a Capela da Quinta
dos Lázaros (Imagem 1), cujo projeto aprovado pelo Conselho de
Salubridade do período seria executado pelo Governo Provincial
(BAHIA, 1850, p. 19). Em consequência dessa decisão, foi dado
início às obras nas estradas que ligavam a cidade e o subúrbio à
Quinta dos Lázaros. Além de facilitar a conexão com outras regiões,
o propósito era abrir e consertar as estradas a fim de possibilitar o
fluxo de carros (BAHIA, 1853, p. 25-26).
Na Imagem 1, um recorte do mapa topográfico da cidade de
Salvador e seus subúrbios no ano de, aproximadamente, 1851, é
possível identificar tanto a Capela da Quinta dos Lázaros quanto
o próprio Hospital dos Lázaros, ambos localizados dentro de
uma marcação em círculo na cor vermelha. Já o que está marcado
dentro do círculo azul representa o centro urbano de Salvador,

307
IX Colóquio de História das Doenças: anais

dividido entre a cidade baixa – onde se concentrava a maior


parte do comércio – e a cidade alta – local destinado aos setores
administrativos.
Os quadrinhos na cor preta indicam áreas de ocupação
residencial/povoamento dispersas na região, evidenciando que o
Hospital dos Lázaros se situava distante do centro. Entretanto, Ana
Amélia Nascimento (NASCIMENTO, 2007, p. 61-62) confirmou
mudanças na delimitação urbana em 1857, na qual houve o
alargamento e a consequente incorporação da região da Quinta dos
Lázaros. Isto significa, provavelmente, um resultado da expansão da
cidade e das reformas e melhorias nas estradas que davam acesso a
região.

Imagem 1: LOCALIZAÇÃO DA QUINTA DOS LÁZAROS / CAPELA E HOSPITAL.


Fonte: Adaptado pelo autor a partir do ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL, ca. 1851.

A administração das duas instituições, hospital e cemitério,


ficaram a cargo do mesmo administrador, mas, embora houvesse
a expectativa de que a construção do cemitério pudesse oferecer
benesses ao hospital, como, por exemplo, a cobrança de uma taxa

308
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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para cada enterro e serviços de exumação, isto não aconteceu


de imediato. Conforme foi apresentado, posteriormente, em
relatório de Antonio Coelho de Sá e Albuquerque, ao passar
a administração da província para o vice-presidente, Manuel
Maria do Amaral, em dezembro de 1863, o cemitério teria
sepultado cerca de 15.275 cadáveres desde o ano de 1850 até
27 de novembro de 1863, mas não recebeu “um só real”.6 Ao
contrário, a administração ficou sobrecarregada com as despesas
relativas ao coveiro e outros “tão pesados serviços” (BAHIA,
1863, p. 35).
As dificuldades financeiras, acirradas com o início das obras
voltadas ao cemitério, fizeram com que o Hospital São Christovão
dos Lázaros passasse por um longo período de “decadência”, como
está descrito nos documentos do período. Resultado do impacto
negativo no orçamento financeiro, as obras iniciadas no Hospital e
nas casas dos empregados e capelão, em 1853, só foram concluídas
quase 20 anos depois, sendo suspensas em alguns períodos pela falta
de verbas.
Entre idas e vindas, as obras no Hospital, aparentemente, só
passaram a ocorrer com maior regularidade após a nomeação de
uma Mesa Administrativa, em 1861. Com a justificativa de que
a situação “retrógrada” em que estava o Hospital dos Lázaros, até
então, era o resultado do “desleixo” das administrações anteriores, o
então presidente da província, no ano de 1861, nomeou uma Mesa
como responsável pelo estabelecimento e suas dependências. Esta
se organizaria de forma semelhante às que dirigiam outras Casas
e Hospitais de Caridade, tendo entre suas funções: apresentar um
plano de reforma conveniente para o Hospital, acompanhar as ações
do administrador, se responsabilizar pela demissão e nomeação de
empregados e informar tudo à presidência da província (BAHIA,
1861, p. 9).

6 Conforme Onildo David (1993, p. 138), em um levantamento sobre todos os mortos


por cólera entre os anos de 1855-56, nas três freguesias centrais de Salvador, os locais de
maior ocorrência de enterros foram o Cemitério do Campo Santo, com 321, e a Quinta
dos Lázaros, com 267.

309
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Para compor a Mesa, foram nomeados os seguintes “Cidadãos”:


provedor, dr. Quirino José Gomes; escrivão, dr. Manuel Pedro
Moreira de Vasconcellos; tesoureiro, João Gabriel de Gouveia,
Tenente-Coronel Theodoro Teixeira Gomes, Tenente-Coronel
José Lopes Pereira de Carvalho, Coronel Justino Nunes de Sento-
Sé, Antonio Alves Ribeiro, dr. José de Góes Siqueira, dr. Demetrio
Cyriaco Tourinho, dr. Francisco Rodrigues da Silva, dr. Pedro da
Silva Rego, Gonçalo Alves Guimarães e Comendador Francisco
Rodrigues Ezequiel Meira (BAHIA, 1861, p. 9). Destaca-se o
número de médicos na sua composição – 06 dentre 13 “cidadãos” –
apontando a uma profissionalização da assistência médica, que teve
continuidade nos anos seguintes.
Fora a mudança de provedor em 1863, com a nomeação do
dr. José de Góes Siqueira à função, a administração seguiu sob a
responsabilidade destes indicados até o final de 1868, quando houve
a eleição e nomeação de uma nova Mesa Administrativa.
Ao escrever sobre a época em que a administração do Hospital
São Christovão dos Lázaros foi entregue a primeira Mesa nomeada
em 1861, o dr. José de Góes Siqueira, em relatório de 20 de dezembro
de 1868, definiu que o estabelecimento estava “redusido às mais
deploraveis condições: sem ordem, sem os meios necessários para
minorar e suavisar os soffrimentos dos infelizes” e com o edifício
ameaçando desmoronar (SIQUEIRA, 1868, p. 3). Tais condições,
segundo o próprio provedor, resultaram em irregularidades
conforme o regime interno do Hospital. Além dos doentes mal
acomodados, as mulheres ocupavam a casa do administrador, que
por sua vez residia na do capelão.
Nas palavras do provedor, dr. José de Góes Siqueira, em
1868, a conclusão das obras era urgente para que pudesse: “ser o
hospital organisado e montado, áfim de que o serviço medico, a
disciplina, o aceio e as demais condições indispensaveis e essenciaes
a regularidade de estabelecimentos de tal natureza” se traduzissem
em fatos e se tornassem a realidade do Hospital dos Lázaros da
Bahia (SIQUEIRA, 1868, p. 4). Tal consideração em que, ao mesmo
tempo, era realizada pelo provedor e, também, médico de profissão,

310
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

sugere o possível interesse tanto na medicalização do espaço


quanto na impossibilidade da oferta de serviços considerados como
essenciais para o cuidado com os enfermos naquele contexto.
Por sua vez, a leitura dos relatórios dos presidentes de
província durante os vinte anos de obras permitiu destacar que isto
impossibilitou o objetivo de efetuar a internação de pessoas dos
segmentos médios da população. Em fala à Assembleia Legislativa
apresentada em 1860, pelo presidente da província, Herculano
Ferreira Penna, a respeito das obras que ocorreram no Hospital
dos Lázaros em 1859, ele explicou que uma parte do edifício em
construção seria destinada para a enfermaria dos doentes: “que
por sua pozição social mereção uma residência separada” (BAHIA,
1860, p. 38). Esse discurso, por sua vez, indica um projeto em que
o isolamento deveria ocorrer como uma prática que não isentaria
nenhum sujeito, nem mesmo para alguém com destaque ou distinção
social.
No entanto, esse projeto, provavelmente, não se concretizou,
uma vez que as próprias descrições sobre as dificuldades de
manutenção da instituição, durante a maior parte da segunda
metade do século XIX, possibilitam suposições sobre as precárias
e descontinuas ofertas de assistência, de cura e de cuidado. O
que limitou, possivelmente, os possíveis perfis de enfermos que
se sujeitavam a um recolhimento em situações tão insatisfatórias,
ainda que o Hospital fosse considerado como “um monumento que
revela a piedade de nossos maiores” (BAHIA, 1863, p. 34).
O aparente interesse em isolar todos os doentes, sob uma
perspectiva de indiferença às hierarquias sociais quanto à incidência
de casos de lepra, não modificou as representações e relações
entre os sujeitos de diferentes grupos sociais diagnosticados com
a enfermidade. Nesse sentido, a necessidade de construção de um
pavilhão específico que diferenciava e separava socialmente os
indivíduos reproduzia as relações de poder que caracterizavam
a sociedade do período imperial, presentes mesmo em um local
marcado pelo estigma, identificado como um Hospital dos Lázaros.

311
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Como afirmado anteriormente, as obras que visavam melhorar


as instalações do Hospital dos Lázaros atravessaram quase duas
décadas sem conclusão. Isto, provavelmente, foi um entre outros
fatores que influenciou na redução do número de “morpheticos”
reclusos na instituição. Com base na análise dos relatórios e fallas
dos presidentes de província foi possível perceber que o número de
internos foi reduzindo gradualmente. No início de 1853 eram
50 enfermos, enquanto em janeiro de 1873, existiam apenas 12
(AZEVEDO, 1857; LIMA, 1873, p. 5).
Nesse mesmo período em que se manteve reduzido o número
de doentes internos no Hospital, foi dado como concluída a maior
parte das obras que vinham sendo empreendidas desde a década
de 1850 (LIMA, 1873, p. 5-13). Posteriormente, em 1876, parte
da obra entregue serviu para abrigar um Asilo de Mendicidade,
transformando, assim, o caráter da instituição que até então era
destinada para leprosos.

Conclusão
Os acontecimentos, como a construção de um Cemitério
Público e, muito depois, a inauguração do Asilo de Mendicidade,
acrescentaram novas demandas para a administração do Hospital
que já enfrentava dificuldades no desenvolvimento das práticas
assistenciais. Segundo Márcia Elizabeth Santos (SANTOS, 2005,
p. 83-84), a junção das duas práticas de assistência – votadas aos
lázaros e aos mendigos – culminou em um acontecimento bastante
relevante para a trajetória do Hospital São Christovão dos Lázaros,
haja vista o reforço da sua função social como um espaço de
segregação e de isolamento dos sujeitos socialmente indesejados.
Desse modo, a administração da instituição destinada aos leprosos,
desde 1787, passou, em 1876, a ser também responsável pelos
mendigos, os quais lá permaneceram até 1887.
Conforme foi apresentado neste texto, a trajetória do Hospital
São Christovão dos Lázaros foi bastante complexa. Nesse sentido,
buscou-se identificar como os diferentes interesses por parte do

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

governo provincial resultaram em ações de progressos, mas também


de descontinuidade no processo que buscou melhorar as instalações
da instituição responsável pela assistência aos lázaros na Bahia.
Apesar do Hospital ser administrado pelo governo provincial, a
análise das fontes possibilitou identificar as insistentes justificativas,
por parte dos governantes, em abrir mão desse encargo.
Nesse mesmo contexto, a administração do Hospital passava
por dificuldades com a falta de investimento, piorada com a
incorporação de outras instituições com fins distintos – o Cemitério
Público e o Asilo de Mendicidade. Isto acentuou o processo de
“decadência” da instituição. Assim, o Hospital, apresentado como
uma instituição que materializava a preocupação caritativa do
período, na verdade, enfrentou momentos difíceis tanto pelo
acumulo de funções quanto pela falta de verbas e o aumento das
dívidas.

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315
IX Colóquio de História das Doenças: anais

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instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958). Rio de Janeiro/ Barueri:
Editora Fiocruz/Manole, 2011.

316
Reflexões sobre saúde em Belém (PA) a
partir da ONG-Aids Paravidda
(1992-1996)
Paulo Henrique Souza dos Santo

O Objetivo desse ensaio é discutir os objetivos das ações


da Organização Não Governamental1 chamada Grupo para
a Valorização, Integração e Dignificação do Doente de Aids2
(PARAVIDDA). A documentação utilizada será o jornal Diário do
Pará entre 1992 a 1996 e o primeiro Estatuto da entidade de 1992.
Esse objeto de pesquisa será articulado com uma historiografia das
doenças que centralizam a Aids em suas discussões e outras doenças
como o câncer e aborviroses, para apontar as potencialidades de
partir das enfermidades como objeto da História. Também serão
mobilizados textos sobre implementação do Sistema único de
Saúde (SUS) no Brasil, assim como a Política Nacional de Aids para
buscar compreender alguns princípios de saúde do Paravidda e suas
reivindicações em um contexto de uma capital ao norte do Brasil.
Diante disso, por ser um dos primeiros grupos idealizados
no estado do Pará em 1986 para lidar com questões sobre a Aids,
o Paravidda foi selecionado para esse ensaio. O Marco temporal
foi delimitado a partir da oficialização em 27 de janeiro de 1992
indo ate 1996 quando foi promulgada a Lei de n° 9.3134 em 13
de novembro com o objetivo de promover o acesso de pessoas com
HIV aos remédios responsáveis pelo controle da reprodução do

1 “Uma entidade fundada para se dedicar exclusivamente à Aids” Galvão (2000, p. 43)
apud Landau, (2011, p.12).
2 A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) ou Acquired Immunological
Deficiency Syndrome (AIDS) é uma doença causada pela ação de um vírus chamado HIV.
Perlongher (1986).

317
IX Colóquio de História das Doenças: anais

vírus no organismo, medida importante para redirecionar a forma


de conter o vírus e a doença.
O texto terá o seguinte percurso: primeiro será apresentado
discussões sobre saúde e doença e delineado um problema a
partir da mobilização de uma literatura que apresenta lacunas
sobre as ações de Ongs-Aids no Norte do Brasil. A partir disso, a
documentação será relacionada, discutida e comparada com uma
bibliografia sobre história das doenças; junto com textos sobre
implementação do SUS e política Nacional de Aids para delinear
alguns aspectos sobre saúde a partir de uma ONG em Belém,
capital do Estado do Pará.
A mobilização social por meio de grupos que tinham a Aids
como principal pauta, ocorreu no Brasil a partir da segunda metade
dos anos 80 na busca de romper com algumas imagens da doença,
principalmente a associação da Aids somente a determinados grupos
minorizados como homossexuais, prostitutas, bissexuais; queriam
também reivindicar políticas públicas e participar da construção
delas (TEODORESCU; TEIXEIRA, 2015). Nesse sentido, em
torno de doenças podem ser mobilizados aspectos da sociedade,
sendo aqui a constituição de grupos pelo Brasil que se envolveram
em ações para promover saúde à população acometida com o vírus
HIV.
Já existe uma ampla historiografia que demonstra a
potencialidade de temáticas que envolvem as doenças e saúde no
Brasil. Gilberto Hochman e Diego Armus (HOCHMAN; ARMUS,
2004), na Introdução do livro Curar, controlar e cuidar: uma perspectiva
histórica, realizam um balanço historiográfico sobre as principais
abordagens que compõem a História da Saúde na América Latina
desde a década de 1980. A primeira abordagem centraliza nas
reflexões sobre o conhecimento produzido pela medicina a partir
de uma perspectiva que leve em consideração que esse saber é social,
contextualizando sua produção. Essa abordagem foi influenciada
por autores da História da Ciência que enxergam a produção
científica como uma rede complexa que não se resume a “desvendar
a natureza”. A segunda abordagem discute uma História da Saúde

318
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Pública, tendo seu foco nas instituições, Estado, as políticas, os


profissionais de saúde, as respostas públicas e sociais ao que eles
denominam de transição epidemiológica. A terceira denominada de
uma História Sociocultural, onde tem ocupado destaque as análises
sobre o mundo cultural em torno das doenças: Representações,
metáforas, formação de estigmas, o discurso médico.
A historiadora Dilene Raimundo Nascimento e Anne Jackeline
Torres Silveira (NASCIMENTO; SILVEIRA, 2004) mostram a
potencialidade da doença como objeto na História. Para elas, as
enfermidades possibilitam a discussão de “estruturas e mudanças
sociais, dinâmica demográfica e de deslocamento populacional,
reações societárias, constituição do Estado e de identidades
nacionais, emergência e distribuição de doenças” (NASCIMENTO,
SILVEIRA, 2004, p. 14). Sobre reações societárias, as autoras
apontam o trabalho de Diego Armus sobre como a tuberculose fez
parte das pautas da classe operária da Argentina no início do século
XX para forçar o Estado a constituir uma infraestrutura sanitária
básica (NASCIMENTO, SILVEIRA, 2004, p. 19).
Para exemplificar com outros trabalhos que suscitam reflexões
sobre doenças e saúde no Brasil, aponto Gabriel Lopes e Luísa Reis-
Castro (LOPES; REIS-CASTRO, 2019) que desenvolvem uma
História das doenças e da saúde a partir do mosquito Aedes aegypti
como vetor de transmissão de enfermidades. Os autores mostram
que o mosquito e as diferentes doenças que carregava - Febre
Amarela, Dengue e Zika - estimularam debates de aspectos sociais e
políticos diferenciados ao longo do tempo, assim como as diferentes
doenças alteraram a identidade do mosquito para a sociedade.
Luiz Alvez Araujo Neto e Luiz Antônio Teixeira (2017)
desenvolvem um trabalho sobre história do câncer no Brasil a
partir dos discursos Médicos no século XX. Os autores discutem
como as representações do câncer no Brasil foram alteradas de uma
doença relacionada à ideia de civilização (europeia, urbanizada e
industrializada) para a do subdesenvolvimento, argumentando
que as mudanças nas formas de perceber o câncer se associam
com a constituição do saber médico em relação à doença junto de

319
IX Colóquio de História das Doenças: anais

interpretações sobre o desenvolvimento do país ao longo do período


estudado pelos autores.
É evidente, portanto, a existência da historiografia que
promove discussões referente à saúde e doença no Brasil. Esse
ensaio pretende articular com esse campo, especificamente o que
Nascimento e Silveira Torres (NASCIMENTO; SILVEIRA, 2004)
chamam de “ reações societárias” e Armus e Hochman (ARMUS,
HOCHMAN, 2004) denominam de uma História sociocultural
das doenças, por entender que os objetivos das ações do Paravidda
se constituem em um cenário nacional de reações da sociedade
para reivindicar políticas públicas de saúde e romper com as
representações da Aids.
As discussões envolvendo a Aids foram centralizadas em
três eixos. O primeiro expresso por trabalhos que analisaram
os discursos, as imagens e os estigmas reforçados/ constituídos
ao longo da década de 80 e 90; essas pesquisas foram realizadas
baseadas em dados coletados em jornais, revistas, documentos
orais e audiovisuais (AGUIAR JUNIOR, 2016; BARATA, 2006;
SOUZA, 2014; SILVEIRA NETO, 2014; RAMOS, 2016). Outros
trabalhos centralizaram nas ações de grupos constituídos a fim
de se posicionar contra as imagens e discursos associados à Aids
a partir de documentos produzidos por esses grupos, recortes de
jornais e entrevistas (VITIELO, 2009; DIAS, 2012; GREEN, 2018).
O terceiro grupo teve as construções de políticas Nacionais de
Assistência à Aids como objeto, focando nos atores envolvidos
nesse processo (BARROS, 2009).
As discussões sobre as Representações sociais da Aids no
Brasil partiram de documentos relacionados à imprensa, jornais,
revistas, mídia televisiva. A historiadora Germana Fernandes Barata
(BARATA, 2006) apreendeu a mídia televisiva como veículo de
influência na forma como a sociedade lidou com a doença, analisando
programas do Fantástico na Rede Globo que abordou a Aids. Ela
pontuou uma série de questões a respeito, uma delas foi sobre as
contradições entre o texto da reportagem e as imagens televisivas as
quais “embora seja dito que todos podem potencialmente contrair

320
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

a AIDS, as imagens enfatizam os homossexuais como principais


contaminados” (BARATA, 2006, p. 143).
Os historiadores Ítalo Cristiano Silva e Souza (SOUZA,
2014) e Fernando Domingos de Aguiar Júnior (AGUIAR JÚNIOR,
2016) analisaram a Aids na década de 80, o primeiro a partir da
imprensa de Teresina e o segundo com jornais da Paraíba, para
explicar o processo de construção do estigma, destacando o “terror”,
associações da doença à grupos e os discursos das autoridades públicas
locais por meio dos secretários de saúde. Adílio Luiz Silveira Neto
(SILVEIRA NETO, 2014) também partiu dos jornais entre 1986
a 1996, analisando o discurso religioso e médico na conformação
de imagens e subjetividades para a pessoa com HIV. Diferente de
Silva (SILVA, 2014) e Aguiar Junior (AGUIAR JUNIOR, 2016);
Silveira Neto (SILVEIRA NETO, 2014) trouxe relatos orais de
pessoas que viveram nesse período com o vírus para verificar como
aquelas imagens da Aids formaram suas subjetividades.
O trabalho da historiadora Lissandra Quiroga Ramos
(RAMOS, 2016) contribuiu para pensar as mudanças das
representações sociais da Aids entre 1988 a 2014 por meio das
campanhas do Ministério Público no Dia Mundial na Luta Contra
a Aids. Em meio aos trabalhos citados acima, os quais abordaram
prioritariamente as imagens e os estigmas associados á Aids na
década de 80 e início dos anos 90, Ramos (RAMOS, 2016) discutiu
como a Aids foi da “cara da morte” para a “cara da vida’. Assim, ela
explorou o debate sobre como o tratamento com antirretrovirais
a partir de 1996 foi um marco importante para mudanças nas
representações da doença.
Outro grupo de trabalhos discutiram a resposta social ante a
Aids e suas representações, a reivindicação de políticas públicas e
demarca o protagonismo nas ações de pessoas por meio de Ong’s-
Aids. Gabriel Natal Botelho Vitiello (VITIELLO, 2009) analisou
a atuação de homens homossexuais entre 1978 a 1992 por meio
da ABIA e Grupo Pela Vidda diante dos estigmas reforçados pelos
jornais e outros canais midiáticos, percebendo como o jornal lampião
da noite auxiliou na construção de uma identidade homossexual

321
IX Colóquio de História das Doenças: anais

que mais tarde se organizou para reivindicar políticas de saúde


para pessoas com HIV. Claúdio José Piotrovski Dias (DIAS, 2012)
discorreu sobre a trajetória soropositiva de Herbert Daniel entre
1989 a 1992 e sua atuação através de seus artigos divulgados nos
relatórios da ABIA e outros meios midiáticos no combate à narrativa
do “grupo de risco” e à imagem de “morte”, também desenvolvido
por James Green (GREEN, 2018) em um trabalho biográfico sobre
Herbert Daniel.
Teoderescu e Teixeira (TEODERESCU; TEIXEIRA, 2015)
partiu de uma documentação heterogênea para construir o quadro
dos grupos formados em função da Aids no Brasil entre 1983-2003.
A seção destinada ao Paravidda se referiu a sua criação, as primeiras
ações e objetivos a partir de entrevistas com Laura Maria Laurindo,
uma voluntária que havia perdido seu filho para Aids, destinando
cinco laudas para um panorama de 1992 a 2003.
Identificamos, a partir desse balanço, uma lacuna
historiográfica sobre ações de Ongs ao norte do Brasil. Este ensaio
será o primeiro passo para fazer reflexões sobre saúde em Belém
por meio dos objetivos das ações do Paravidda, presentes em seu
estatuto e reportagens em jornais.
A idealização do Grupo Paravidda foi realizada por técnicos
de saúde e voluntários em 1986 na Unidade de Referência
Especializada em Doenças Infecciosas e Parasitárias (Uridip)
de Belém, o qual tinha o objetivo de promover a discussão sobre
Aids e disseminar a informações e apoio ao paciente e sua família
(TEODORESCU; TEIXEIRA, 2015, p. 267). Em 1989, o grupo
passou a se chamar Paravidda sob liderança de um presidente
chamado Augusto Marques e auxílio de seu secretário Luiz Antônio
da Silva (TEODORESCU; TEIXEIRA, 2015, p. 267).
Com a expansão da epidemia de Aids, a Unidade de Saúde
ficou pequena para a demanda, resultando na busca por um espaço
próprio. Antes de ser estabilizado, o grupo foi retirado de duas casas
alugadas em função do preconceito por parte dos proprietários e da
vizinhança, ao conhecerem a natureza de quem ocupava o imóvel

322
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

(TEODORESCU; TEIXEIRA, 2015, p. 268-269). O Paravidda se


estabilizou em um lugar ocioso do governo do Estado do Pará em
1994, localizada em um bairro periférico de Belém chamado jurunas,
que até hoje (2022) abriga o grupo (TEODORESCU; TEIXEIRA,
2015, p. 267).
Assim, o grupo foi se constituindo como Casa de Apoio que a
princípio tinha a coordenação formada, em sua maioria, por pessoas
que viviam com o HIV e o objetivo de acolher não só crianças, mas
“temporariamente pacientes adultos que vinham do interior para
exames médicos ou que estavam em recuperação após alta hospitalar”
(TEODORESCU; TEXEIRA, 2015, p. 270), mas em decorrência
da discriminação , alguns homossexuais e crianças de pais com HIV
que morriam, passavam um bom tempo residindo no espaço.
No Capítulo I do primeiro Estatuto- de 1992- é apresentado
o nome, sede e os objetivos da entidade. Em resumo, as finalidades
das ações do Paravidda em Belém estavam em torno da Assistência
ao indivíduo com HIV e Integração. Sobre o primeiro aspecto
destaca-se que o grupo desejava complementar as ações de saúde
pública, atuar com ações sobre prevenção, controle da doença e
disseminação de informações, promover atividades que visasse o
equilíbrio emocional e saúde mental. (Estatuto, Capítulo I. Do Ano,
Sede, Objetivo e Duração, 1992, p. 1). As ações de integração tinham
o objetivo de romper com o isolamento que as pessoas com Aids
viviam naquele contexto, fruto dos estigmas constituídos em torno
da doença; tinham o objetivo de mostrar que ainda faziam parte da
sociedade como um cidadão vivo, distanciando-se da imagem de
uma pessoa que aguarda apenas pela morte (Estatuto, Capítulo I. Do
Ano, Sede, Objetivo e Duração, 1992, p. 1-2).
O estatuto de 1992 foi aprovado em uma Assembleia
realizada no dia 27 de Janeiro de 1992 cuja composição foi de 33
pessoas (Livro de Atas, Assinaturas de presença na Assembleia Geral
de Constituição do Grupo Paravidda, 27 jan. 1992, p. 1-2). O livro
de atas sobre as reuniões entre 1992-1996 fornece um indicativo
da quantidade de pessoas que frequentavam as Assembleias, sendo
formadas por homens e mulheres, em media entre 20 a 30 pessoas.

323
IX Colóquio de História das Doenças: anais

O perfil delas ainda precisa ser detalhado a fim de discutir questões


relativas à composição para não criar uma imagem homogênea do
grupo.
O Paravidda desde sua idealização em 1986 e sua oficialização
em 1992 estava inserido em um contexto de luta em todo o Brasil
por grupos organizados formados majoritariamente por setores
sociais mais atingidos pela doença na década de 80, quando a Aids
foi associada apenas ao denominado “grupo de risco” formado
por homossexuais, bissexuais, mulheres prostitutas, hemofílicos
e pessoas que utilizavam drogas injetáveis. (DANIEL; PARKER,
2018; NASCIMENTO; VIANNA, 2013; PERLONGHER, 1986).
A Aids, portanto, foi naturalizada e propagada nos discursos
presentes nas mídias como uma doença que era produto da suposta
“ promiscuidade” do homossexual, ou seja, só era um risco para
aqueles que estivesse inserido nesse grupo (DANIEL; PARKER,
2018; NASCIMENTO; VIANNA, 2013). Termos como “Câncer
gay” foram apontados para os primeiros casos no Brasil, assim como
uma narrativa de associação da doença com a “morte” de uma forma
sensacionalista e aterrorizante (DANIEL; PARKER, 2018). Com
a ampliação dos casos no Brasil na década de 80, outros grupos
sociais também passaram a ser alvo de formulações discursivas
que fomentavam a narrativa de serem eles- os grupos de risco- os
culpados pela disseminação, sendo a Aids uma consequência “
natural” de suas “condutas imorais” (DANIEL; PARKER, 2018).
A exemplo disso foram as mulheres prostitutas, que os jornais
apontavam que a Aids se relacionava com sua “vida sexual ativa”
(DANIEL, PARKER, 2018; SILVEIRA NETO, 2014). A Aids,
portanto, não foi apenas um fenômeno biológico, mas também alvo
de leituras da sociedade.
O artigo de Lopes e Reis Castro (LOPES; REIS CASTRO,
2019) nos faz ampliar a discussão sobre as doenças não
constituírem apenas sua natureza biológica. A relação vírus-
mosquito e sociedade referente à febre amarela na primeira
metade do século XX se alinhavam com a percepção de que ela era
um entrave à modernidade, sendo o mosquito uma barreira para

324
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

políticas como o “branqueamento”, já que a febre amarela afastava


o estabelecimento do branco europeu no Brasil. Com o advento
do vírus da dengue, foram levantadas discussões referentes à
negligência dos governos para a saúde da população menos
abastada, aspectos em relação a saneamento básico e formação de
associação de moradores que acionavam a imagem do mosquito e
da doença para reivindicar melhoras na saúde. Já o vírus da Zika,
levantou discussões sobre aborto e direitos das mulheres sobre o
próprio corpo.
Diante disso, mesmo que Lopes e Reis Castro (LOPES; REIS
CASTRO, 2019) trabalhem os diferentes aspectos sociais que o
vírus e o mosquito se relacionam para apontar as transformações
de identidade do mosquito a partir dos diferentes vírus, essas
discussões são importantes para compreender que os vírus e
as doenças causadas por eles se entrelaçam com a sociedade e
suscitam diferentes medidas. Nesse sentido, o vírus HIV e a Aids
também se relacionou com aspectos sociais e provocou respostas
de vários setores, como as Ongs formadas para lutar contra
as representações que acionavam preconceitos já existentes e
também reivindicar políticas de saúde em relação à doença. Lutar
por questões de saúde em relação a Aids, portanto, era também
combater preconceitos direcionado à sexualidades e às séries de
representações que já foram indicadas no balanço historiográfico
no início do texto.
Dentro disso, as finalidades do Paravidda demonstravam
a preocupação de combater as imagens que foram cristalizadas
sobre a Aids ao longo dos anos 80, sobretudo a relação entre Aids e
morte, que resumia o indivíduo a um ser passivo que estaria apenas
aguardando seu óbito. No capítulo I do estatuto são elencados
alguns objetivos que centralizam a importância do estabelecimento
de vínculos entre a pessoa portadora do HIV e atividades que
denotam a continuidade da vida, a partir da ideia de integração.
Essas características são apontadas em seu estatuto de 1992:
a) Promover a Integração dos portadores do HIV/ Aids entre si e
com seus familiares amigos em âmbito Nacional e internacional;

325
IX Colóquio de História das Doenças: anais

f) Mostrar ao indivíduo portador do vírus HIV a importância de


continuar ligado à vida, ativamente, desfrutando de sua família,
amigos e de seus direitos como cidadão;
m) Buscar integração com diversos grupos de apoio, a portadores
do vírus HIV; (Estatuto, Capítulo I. Do Ano, Sede, Objetivo e Duração,
1992, p. 1-2)

As finalidades que estão presentes nos objetivos das ações


do Paravidda fornecem elementos para pensar que promover
saúde às pessoas com HIV ou Aids era também romper com seu
isolamento social, fruto de um processo de estigmatização. Uma
reportagem do dia 22 de junho de 1992 concedida ao jornal
Diário do Pará, os representantes do Paravidda reafirmam o que
está em seu estatuto:
o preconceito social faz com que as vítimas do HIV alimentem
cada vez mais a preocupação com a morte, em detrimento dos
prazeres da vida [...]. O GPV defende exatamente o contrário: [...]
Portanto, queremos que os portadores do vírus da Aids continuem
trabalhando e amando normalmente, independente da morte.
(Paravidda faz integração dos portadores do HIV. Diário do Pará.
Folha Local. 22 jun. 1992).

Esses aspectos se articulavam com propostas de outras ONGs


espalhadas pelo Brasil, como a Associação Brasileira Interdisciplinar
de Aids criada em 1987 pelo sociólogo Herbert de Souza; e o grupo
Pela Vidda, constituído por Herbert Daniel em 1989 a partir de
seu diagnóstico positivo ao HIV (GREEN, 2018, p. 304; 314-315).
Nessas duas ONGs, Herbert Daniel foi importantíssimo para a
propagação de alguns artigos nos boletins da ABIA, onde também
criticava a forma como a mídia apresentava a doença e o vírus. Com
o diagnóstico de Herbert Daniel, seu ativismo se materializava
em sua própria postura para defender as estratégias principais no
combate a doenças: mostrar para a sociedade que mesmo estando
com Aids, era ativo e continuava tendo direitos como qualquer
cidadão, rejeitando “as imagens negativas identificadas com a
expressão ‘aidético” (GREEN, 2018, p. 331). O Pela Vidda possuía
propostas semelhantes ao Paravidda criado em 1992, mas até o
momento não foi rastreado comunicações entre os grupos desde sua
criação até 1996.

326
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

O Grupo Paravidda, ao apontar que uma das dimensões de


suas ações era o combate aos estigmas em torno da Aids, insere-se em
um movimento que ocorria nacionalmente pelo rompimento dessas
representações sobre a doença. O aspecto social aqui apontado como
participante desse processo de mudança são as ONGs constituídas
por pessoas que foram alvos dessas imagens do HIV, tendo ou não
o vírus ou a doença.
Historicamente outras doenças passaram por mudanças
de representações. Araujo Neto e Teixeira (ARAUJO NETO;
TEIXEIRA, 2017) mostram como o conhecimento médico sobre
o câncer no Brasil se articulou com elementos sociais do contexto
e alteravam o enquadramento da doença. Os discursos dos médicos
brasileiros, nas primeiras décadas do século XX relacionavam o
câncer com civilizações europeias, sendo um “problema estrangeiro”
e “branco”, mas que devia ter atenção das autoridades brasileiras. Esse
enquadramento social do câncer mudou a partir do desenvolvimento
de estudos médicos na área e criação de grupos direcionados ao
câncer no Brasil, que se articularam em um contexto onde combater
doenças e investir em saúde indicava desenvolvimento industrial
e progresso, assim as ações contra o câncer indicavam o grau de
desenvolvimento do país. Essas relações com grau de civilização e
desenvolvimento industrial e socioeconômico estavam vinculadas à
ideia de formação de um Estado Nacional brasileiro sempre pautado
de noções europeias. Na ditadura militar, os médicos passaram a
associar a doença ao subdesenvolvimento, sendo as desigualdades
ao acesso a serviços médicos e condições de determinadas regiões
brasileiras suscetíveis ao desenvolvimento de certos tipos de câncer
para, assim, aponta-lo como problema de saúde pública. Portanto,
a doença foi enquadrada a partir da atuação dos médicos junto à
uma série de conexões com elementos de interpretações sobre a
sociedade brasileira.
Essa reflexão fornece elementos para entender o Paravidda
como parte do enquadramento da Aids em Belém, assim como
a discussão que Araujo Neto e Teixeira (ARAUJO NETO;
TEIXEIRA, 2017) aplicaram na percepção sobre o câncer. Assim,

327
IX Colóquio de História das Doenças: anais

o Paravidda se constituiu como canal importante para levar essas


ideias para um público marcado pela dificuldade ao acesso à
informação, visto que a maior parte das pessoas que procuravam a
ONG tinham dificuldades econômicas ou era do interior do Estado.
Não esquecendo que estava junto de um contexto de mobilização de
outras ONGs na cidade como O Gapa-PA, Gempac, MHB e dentro
de um contexto nacional de movimentações (TEODORESCU,
TEIXEIRA, 2015, p. 171-203, 267-274).
Outro aspecto que estava nas finalidades das ações do Paravidda
era a Assistência às pessoas com o vírus na cidade de Belém. Isso é
resumido no seguinte trecho: “p) desenvolver trabalhos assistenciais
em favor dos participantes portadores do HIV, sejam eles crianças,
jovens, adultos ou idosos, sem distinções de sexo, nacionalidade,
cor, credo ou ideologia.” (Estatuto, Capítulo I. Do Ano, Sede, Objetivo
e Duração, 1992, p. 2). Esses trabalhos assistenciais, partindo do
estatuto, configurava-se em complementar ações de saúde pública,
disseminando informações atualizadas sobre a doença, formas de
controle, prevenção e apoio psicológico.
A fim de disseminar informações atualizadas sobre a doença,
entre 1992 a 1996 o grupo participou de encontros promovidos por
instâncias governamentais, sendo estadual ou municipal; participava
também, em conjunto a outras ONGs, de ações no Dia Mundial Da
Luta Contra A Aids na cidade de Belém. Uma reportagem do dia
02 de dezembro de 1992 expõe um evento realizado pela Secretaria
de Saúde do Estado do Pará (SESPA) com apoio do Ministério da
Saúde e da Organização Mundial da Saúde, no qual se uniu com
ONGs:
fortalecer as atividades de prevenção de Aids em todos os níveis; inspirar
um novo[...] empenho das comunidades em dar atenção aos portadores
de HIV-Aids, suas famílias e seus amigos; ajudar a combater a negação, a
discriminação e isolamento; facilitar a internação de todas as instituições
comprometidas com a problemática da Aids. (Desmistificação do
preconceito é luta contra a Aids. Diário do Pará. Folha Cidades,
Caderno A, p. 11, 2 dez. 1992).

Em Dezembro de 1993, um seminário promovido pela


secretaria municipal de saúde de Belém também foi composto

328
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

pelas ONGs para expor a importância de seus trabalhos na cidade


(Desmistificação da Doença é tema discutido em seminário. Diário do
Pará. Folha Cidades, Caderno A, 8 dez. 1993). Além de eventos em
dezembro, o grupo também se unia à Secretaria de Saúde do Estado
para levar informações no Carnaval de 1994. (Sespa faz campanhas
de prevenção à Aids. Diário do Pará. Folha Cidades, Caderno A,
11 fev. 1994). A fim de entender as articulações entre o Paravidda
e as secretarias de saúde em Belém, assim como a importância de
seus objetivos dentro da estrutura de saúde direcionada à Aids , é
necessário discorrer sobre algumas questões referente ao sistema de
saúde em Belém.
Essa noção de ações conjuntas que estavam se constituindo
em Belém foi uma faceta da implementação do SUS na cidade.
A constituição de 1988 formalizou a saúde enquanto um direito
do cidadão brasileiro, assim como a participação da sociedade na
construção de políticas de saúde; aspectos que estavam na agenda
do conjunto de reivindicações do Movimento Sanitário antes de
1988 (PAIM, 2009, p. 42). Dentro disso, as primeiras respostas
à Aids no Brasil que ocorreram na década de 80 também iam na
perspectiva a do direito à saúde, marcadas pela cobrança da posição
do Estado brasileiro; a segunda fase de respostas à Aids foi de 1986
com a criação do Programa Nacional de DST/ Aids a 1990 com a
mudança dos dirigentes do programa, sendo 1990 a 1992 uma fase
marcada por falta de diálogo entre o governo federal e sociedade
civil. De 1993 até 2003 as políticas públicas foram marcadas pelos
empréstimos ao Banco Mundial a fim de efetivar as políticas de
saúde voltadas para a doença. (VILLARINHO, 2013, p. 272).
Dentro de toda essa articulação de sociedade civil e governos
Federais, Estaduais e Municipais; o Paravidda assumiu um lugar
importante não só participando de eventos em conjunto com a
esfera pública no Pará e outras ONGs; mas também como um espaço
participante da melhoria da saúde das pessoas com HIV, escrito
em seu estatuto como a “Assistência na melhoria emocional”. Para
entender isso, é importante mencionar que foi criado um programa
Estadual para a Aids em 1987 no Pará, concentrando os atendimentos

329
IX Colóquio de História das Doenças: anais

na Unidade Especializada de Aids e os internamentos no Hospital


Universitário José de Barros Barreto para todos os municípios do
Estado do Pará (TEODORESCU, TEIXEIRA, 2015, p. 331). Os
direcionamentos nacionais a partir de 1990 para a criação de um
programa de capacitação para médicos, enfermeiros e assistentes
sociais que trabalhavam com Aids passava por dificuldades para
ser implementado no Pará; pois no hospital havia carência dessas
três categorias (TEODORESCU, TEIXEIRA, 2015, p. 333). A
descentralização dos atendimentos para Aids no Estado foi se
constituindo a partir de 1998, com a implantação de 21 Centros
de Testagens em outros municípios, a construção da Casa Dia em
1999 para acompanhar os casos da cidade de Belém e a Unidade
Especializada em Aids ficaria responsáveis por atender casos de
outros municípios do Estado (TEODORESCU, TEIXEIRA, 2015).
Dentro disso, nos anos analisados aqui (entre 1992 a
1996) o Paravidda pretendia pensar assistência que suprissem
a centralização dos atendimentos no Hospital Barros Barreto e
à Unidade especializada, sendo as ações do Paravidda ponto de
partida para outros trabalhos.
Partimos, portanto, dos objetivos da Ong-Paravidda entre
1992 a 1996 em diálogo com a historiografia da saúde e das doenças
para demonstrar que as finalidades escritas em seu estatuto estão
articuladas com respostas sociais à Aids no Brasil, assim como a
implementação do SUS e serviços públicos direcionados à Aids.
Essas articulações são primeiros passos para argumentar que o
Paravidda foi um agente importante na concretização das noções
do SUS e da integração e assistência ás pessoas que viviam com
HIV em Belém, onde até 1998 apresentava apenas uma Unidade de
Referência em Aids para todo o Estado.

Referências
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cenários e representações da AIDS na imprensa paraibana (1980). Dissertação
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331
IX Colóquio de História das Doenças: anais

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332
“Insuficiente, dispendioso e
pouco Scientífico”:
a profilaxia da sífilis na Paraíba na década de 19301
Rafael Nóbrega Araújo2

Considerações inicias
Na Paraíba, em 1930, o médico Antônio D’Ávila Lins3 ficou
encarregado pelo governo estadual de redigir um relatório a respeito
das necessidades da saúde pública do estado. Para tanto, o facultativo
consultou a opinião de seus colegas da Sociedade de Medicina e
Cirurgia da Paraíba (SMCPB), que se reuniu em assembleia para dar
um parecer nesse sentido. No entanto, uma das figuras de destaque
da medicina Paraíba no período, o dr. Newton Lacerda4, tido como
1 O presente trabalho é um resultado adaptado da dissertação O “terrível flagello
da humanidade”: os discursos médico-higienistas e o combate à sífilis na Paraíba (1921-1940)
defendida no Mestrado em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
concluído em 2020, na condição de bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2 Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco - (UFPE),
bolsista CNPq. E-mail: [email protected]
3 Médico natural da cidade de Areia, no brejo paraibano, formou-se na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ), em 1924. Foi comissionado Aspirante a Oficial
Médico, servindo nos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Em 1928, transferiu-
se permanentemente para a capital da Paraíba, sendo nomeado médico da Assistência
Pública, da Empresa Tração, Luz e Força e do Colégio Pio X, passando a figurar também
no corpo técnico do Instituto de Proteção e Assistência à Infância. Atuou ainda como
médico no Hospital Colônia Juliano Moreira, Indústrias Reunidas F. Matarazzo e nos
Institutos de Aposentadoria e Pensões Nóbrega (1979, p. 192-193).
4 Natural de Pernambuco formou-se em medicina pela FMRJ, em 1922. Aos formado,
passou a exercer a profissão na Paraíba, onde foi nomeado por Acácio Pires, então chefe da
Comissão de Saneamento e Profilaxia Rural, como assistente no laboratório de pesquisas
desta comissão, chefiado pelo médico Manoel Froes de Abreu. Após instalado na capital
paraibana, abriu um consultório de clínica geral e um laboratório de análises clínicas,
destacando-se nos campos da psiquatria e tisiologia. Foi membro do Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano (IHGP), da Associação Paraibana de Imprensa, da SMCPB, da qual
foi presidente e da Academia Nacional de Medicina. Foi um dos fundadores da Faculdade

333
IX Colóquio de História das Doenças: anais

“incontestavelmente um dos clínicos de maiores conhecimentos


sobre o assunto em nosso meio” (PROPHYLAXIA, 1930, p. 2), não
pode participar da reunião por questões de saúde. Diante disso,
D’Ávila Lins, então, encaminhou uma carta para Newton Lacerda,
pedindo as sugestões desse facultativo, ao passo que sua resposta
epistolar teve seu conteúdo integralmente publicado na imprensa
paraibana.
No entendimento de Newton Lacerda o tratamento para
sífilis, que era então executado pelo Serviço de Profilaxia da Lepra
e Doenças Venéreas, “relativamente á prophylaxia das doenças
venéreas e syphiliticas o que temos executado é insuficiente,
dispendioso e pouco scientífico” (PROPHYLAXIA, 1930, p. 2. [Grifos
meus]). A crítica do médico no tocante à profilaxia da sífilis era no
sentido de que:
de facto, pouco vale no combate às doenças venéreas a prophylaxia
medicamentosa, feita isoladamente, sem a extincção dos fócos
de infecção e sem medidas para evitar o contágio da doença. Até
agora tem só se tem cuidado de determinadas pessoas deixando-se,
inteiramente, indefesa a collectividade. (PROPHYLAXIA, 1930,
p. 2).

Interpretando o discurso do médico à luz da historiografia


especializada na história da sífilis no Brasil, entendo que a carta do
médico Newton Lacerda pode ser compreendida no bojo das críticas
tecidas já no final da década de 1920 à Inspetoria de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas (IPLDV). Segundo Sérgio Carrara a
década de 1930 foi caracterizada por uma dupla radicalização da
luta antivenérea, marcando uma:
demanda crescente por intervenções educativas mais amplas e
por leis sanitárias e penais mais severas, incluindo-se entre elas,
além do delito de contágio, o exame pré-nupcial, a notificação e
o tratamento obrigatórios da doença e o isolamento dos doentes.
Ao que parece, diante do ‘fracasso’ de uma intervenção profilática
que se baseava sobretudo na generalização do tratamento médico,
voltava à baila a adoção de medidas propriamente preventivas.
(CARRARA, 1996, p. 246).

de Medicina da Paraíba em 1950, dirigindo-a posteriormente Nóbrega (1979, p. 178-179);


Moura (1932, p. 6-7).

334
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Somando-se às críticas feitas ao modelo adotado na luta


antivenérea, tido como demasiado “brando” e “liberal”, o autor
argumenta que com as reformas empreendidas durante o governo
Vargas, o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP)
foi substituído pela Diretoria Nacional de Saúde e Assistência
Médico-Social (DNSAMS), subordinada ao Ministério da
Educação e Saúde Pública (MESP), culminando na extinção da
IPLDV afirmando que “a partir de então, do ponto de vista do
governo federal, parece terem sido poucas as realizações notáveis”.5
(CARRARA, 1996, p. 270). Segundo o autor, a única grande
iniciativa do governo federal nesse período pareceu ter sido a
enorme conferência ocorrida em 1940: a 1ª Conferência Nacional
de Defesa Contra a Sífilis (CARRARA, 1996, p. 273). No Distrito
Federal e em alguns estados foram organizadas iniciativas esparsas
e mais ou menos isoladas, como no Rio Grande do Sul e em São
Paulo.
A historiografia recente aponta para a possibilidade
de analisar mais detidamente as experiências locais no
enfrentamento à sífilis. São trabalhos como os de Ricardo Batista
(BATISTA, 2017), Silvia de Ross (ROSS, 2017), Luiza Helena
Amador (AMADOR, 2015) dentre outros6 que contribuem para
ampliar a compreensão da luta antivenérea no Brasil a partir das
experiências estaduais ou locais. Nesse sentido, pensando a partir
das considerações do médico Newton Lacerda sobre o modelo
de profilaxia da sífilis, tido como “insuficiente, dispendioso e
pouco scientífico”, busco no espaço do presente trabalho analisar
a constituição de políticas públicas no enfrentamento da sífilis
no estado da Paraíba ao longo da década de 1930 no âmbito da
reforma sanitária empreendida no governo Vargas, argumentando
que, mesmo com o fim da IPLDV, as ações de combate à sífilis
tiveram continuidade no estado.

5 Dentre as poucas e esparsas realizações mencionadas pelo autor, cita-se a instalação do


Serviço Antivenéreo das Fronteiras entre 1936 e 1938 Carrara, (1996, p. 270-271).
6 Ver também: Cavalcante (2003); Marques (2004); Chaves (2019); Odia (2019) e
Mariano (2020).

335
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Reforma sanitária no governo Vargas e a profilaxia da


sífilis na Paraíba
O acordo entre o Governo da Paraíba e o Governo Federal
para a execução dos serviços de Profilaxia e Saneamento Rural foi
assinado em 13 de dezembro de 1920 para a realização, dentre
outros, do Serviço de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas. O
contrato com a União foi renovado por duas ocasiões; a primeira em
16 de julho de 1925, que estendeu os serviços até 31 de dezembro
de 1928 (SUASSUNA, 1926, p. 137), enquanto a segunda renovou,
em outubro de 1928, o contrato com o DNSP por mais três anos,
com a verba de 571:080$000 em cotas iguais distribuída em
504:000$000 para o Serviço de Saneamento Rural e o 67:080$000
para a Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas (SUASSUNA, 1928,
p. 50). Estes serviços tiveram funcionamento mais ou menos regular
(em virtude da supressão de alguns postos, como o de Cabedelo7)
até 1927.
Conforme Silvera Vieira de Araújo (ARAÚJO, 2016,
p. 289), no final da década de 1920 “os problemas financeiros
se tornaram mais frequentes e influíram decisivamente nas
limitações da instituição, com o fechamento de postos e a
demissão de funcionários”. Ainda de acordo com a autora, durante
o governo Washington Luís (1926-1930) ocorreu um retrocesso
nas políticas de saúde e saneamento do DNSP, ocasionando um
corte de verbas destinado ao departamento que na Paraíba foi
agravado por questões político-partidárias, uma vez que João
Pessoa, então presidente do estado, negou apoio à candidatura de
Júlio Prestes na sucessão presidencial de 1930, sendo candidato
a vice-presidente na chapa de oposição juntamente com Getúlio
Vargas da Aliança Liberal. Esta configuração política implicou “na
rescisão do contrato de cooperação entre o estado e a União para a
execução dos trabalhos da Comissão de Saneamento e Profilaxia”
(ARAÚJO, 2016, p. 290).

7 Cf. Suassuna, (1928, p. 50-51). Sobre os serviços mantidos pela Diretoria de Saúde
Pública e Saneamento Rural da Paraíba, a nova denominação da Comissão de Saneamento
e Profilaxia Rural, até o ano de 1927, Araújo, (2016, p. 284-285).

336
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Para a historiadora Cláudia Maria Ribeiro Viscardi, 1930


não marcou uma ruptura com o pacto oligárquico, ao contrário, a
Revolução se deu no sentido de retomar os princípios do chamado
“velho” arranjo político, que de acordo com a retórica golpista teria
sido desbaratado pelas oligarquias paulistas ao romper o equilíbrio
de poder “que a República se constituía com base na formulação do
consenso entre parceiros desiguais, cujo potencial de intervenção
era proporcional a sua força política e ao potencial econômico de
cada um” (VISCARDI, 2019, p. 316).
É importante ressaltar que o período iniciado em 1930, no
mais das vezes interpretado no sentido de uma ruptura com o
passado, na criação e institucionalização de políticas sociais e de
centralização estatal, foi herdeiro do processo iniciado na Primeira
República de construção do Estado a partir da ampliação da
presença do governo federal no interior do país, especialmente no
âmbito da saúde pública, incorporando a bandeira do saneamento
e reelaborando-a no projeto político-ideológico do governo, visto
como um dos legados da era do saneamento (FONSECA, 2007;
HOCHMAN, 2013).
No que se refere à saúde pública, a tendência institucional
de centralizar as ações e a gestão na esfera do governo federal se
deu a partir de uma concepção desvinculada da ideia de direito,
que imprimiu à saúde pública a atribuição unilateral do Estado,
excluindo o processo de decisão da população beneficiária. Sobre
o processo de constituição de políticas públicas durante a Era
Vargas, Fonseca (FONSECA, 2007, p. 29) afirmou que não houve
um deslocamento nas políticas públicas de saneamento que vinham
sendo implementadas desde a década de 1920, enfatizando que
todo processo de institucionalização depende de estruturas legadas
por estruturas anteriores. Segundo a autora, não houve rompimento
com o que vinha sendo empreendido na área de saúde pública,
mas sim uma incorporação das instituições e dos agentes desse
processo a construção do Estado nacional que fora definido para o
Brasil, norteado a partir da normatização e centralização das ações
sanitárias ao governo federal. Segundo a autora, a política de saúde

337
IX Colóquio de História das Doenças: anais

pública em 1920 antecipou algumas orientações políticas que seriam


enfatizadas após 1930 como, por exemplo, a ênfase nas endemias
rurais e a preocupação com a presença do Estado no interior do
território nacional. Algumas dessas endemias foram enfocadas em
detrimento de outras, o que culminou, com a Reforma de 1941, na
criação dos serviços nacionais para as respectivas endemias, quais
sejam: tuberculose, lepra, febre amarela, malária, peste, câncer e
doenças mentais (FONSECA, 2007, p. 51).
Conforme observou Ricardo dos Santos Batista (BATISTA,
2017, p. 172-174), a sífilis figurou fora do rol das doenças prioritárias
em nível nacional como alvo do controle e combate das ações do
MESP na década de 1930. Essa constatação levou à percepção
anteriormente referida de Sérgio Carrara (CARRARA, 1996, p.
270) de que, com a extinção da IPLDV em 1934, foram poucas
as iniciativas do governo federal no que tange à luta antivenérea
no Brasil. Contudo, conforme verificado na documentação
consultada, a experiência paraibana do enfrentamento à sífilis
é reveladora da continuidade das ações sanitárias por parte do
governo estadual.
A reforma sanitária ocorrida em diferentes momentos
no governo de Getúlio Vargas, estava intrinsecamente ligada à
instabilidade política que caracterizou o cenário político no Brasil
entre 1930 e 1945, oscilando conforme a indefinição política que
marcava o panorama nacional. Durante os anos de instabilidade
durante o Governo Provisório, quando ocorreram diversas
substituições à frente do MESP, na tentativa de reconstituir as
finanças do país, estremecida pela crise econômica no cenário
internacional e um déficit orçamentário crescente, os primeiros
anos que se seguiram ao movimento revolucionário foram marcados
por corte de verbas imposto à área da saúde (FONSECA, 2007,
p. 116-118). Assim, na busca por construir um aparato técnico-
burocrático de administração, a União recorreu ao apoio financeiro
dos Estados, para que os governadores assumissem as despesas com
a saúde pública, suspendendo verbas designadas para os serviços de
profilaxia rural (FONSECA, 2007, p. 119).

338
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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A Paraíba, no entanto, parece não ter sido afetada por


estes cortes orçamentários. O jornal A União, publicou uma
comunicação do ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco
Campos, dirigida aos interventores na qual informava que “à
vista das agudas dificuldades financeiras do momento, o Governo
Provisório deliberou suspender os serviços de prophylaxia rural, da
lepra e doenças venéreas que vinha mantendo nesse Estado, até a
reorganização geral da Saúde Pública” (O MINISTÉRIO, 17 dez.
1930, p. 8). Mas segundo informou o jornal:
a Parahyba não foi atingida pelo acto a que nos referimos, pois
quando o ex-ministro Vianna Castello pretendeu fazer a política
do Catette na repartição de saneamento da Parahyba, o presidente
João Pessoa rescindiu o contrato de cooperação. Os serviços de
prophylaxia rural passaram, então, a serem custeados pelo Estado.
E até hoje o tem sido. (O MINISTÉRIO, 1930, p. 8).

A política do Catete a que se refere o jornal, órgão oficial do


estado, alude às interferências federais no âmbito da saúde pública
por ocasião da negativa de João Pessoa em apoiar o candidato da
situação na sucessão presidencial de 1930. Conforme afirma o jornal,
os serviços que antes estavam sob o encargo da União passaram a
ser assumidos pelo executivo estadual. Como amostra dos serviços
executados, observe-se a tabela abaixo:
Tabela 1: Movimento de pessoas matriculadas por na Diretoria Geral de Saúde
Pública (1933)
Doenças Pessoas matriculadas
Verminoses 12.243
Impaludismo 10.028
Sífilis 3.477
Outras doenças venéreas 508
Bouba 3.208
Leishmaniose 19
Tracoma 120
Tuberculose 1.418
Lepra 4
Outras doenças 6.047
Total 37.072

Observando a tabela, percebe-se que mesmo com as


dificuldades financeiras houve um incremento no número de
doentes matriculados nos serviços da Diretoria Geral de Saúde

339
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Pública em relação aos últimos dados da estatística sanitária anual


da década anterior: foram 37.072 pessoas matriculadas em 1933
contra 24.706 matriculadas pela Diretoria de Saúde Pública e
Saneamento Rural da Paraíba em 1928, em um momento de cortes
de verbas e supressão de postos profiláticos (SUASSUNA, 1928, p.
51).8 Do total de matriculado, 3.477 pessoas foram diagnosticadas
com sífilis, o que representou uma pequena baixa em relação à média
de doentes matriculados para o triênio de 1925, 1926 e 1927, que
foi de 3.763 (ARAÚJO, 2021, p. 136).
O problema da sífilis e das doenças venéreas continuava
a despertar as preocupações das autoridades sanitárias, como em
finais na década anterior. Em relação à sífilis e as doenças venéreas
o dr. Walfredo Guedes Pereira, diretor geral da Saúde Pública, em
Relatório apresentado Secretário do Interior e Segurança Pública,
correspondente ao ano de 1933, afirmou o seguinte:
Sífilis e moléstias venéreas: – Continuam ao lado da tuberculose
sendo as principais responsáveis pelo definhamento da população
e a maior mortalidade. Os postos e centros de saúde vivem sempre
com excessiva matrícula em relação ao que podemos despender.
(PEREIRA, 1934, p. 14. [Grifos do autor]).

O diretor geral da Saúde Pública se queixa de não conseguir


realizar o serviço necessário nos postos e centros de saúde em vista
da quantidade excessiva de doentes matriculados, que excediam o
que os serviços poderiam despender. Contudo, conforme se verifica
na tabela abaixo que compara os dados relativos à medicação
antissifilítica, se pode notar um aumento sensível nas suas aplicações
ao longo dos anos:
Tabela 2: Medicações aplicadas contra a sífilis e outras doenças venéreas na Paraíba
(1926, 1927, 1928 e 1933)
Doença/ano 1926 1927 1928 1933
Sífilis 18.301 29.731 34.422 34.105
Outras doenças venéreas 9.721 12.499 17.414 -

8 Apesar desse dado para o ano de 1928, no ano anterior, momento em que a Diretoria
de Saúde Pública e Saneamento Rural da Paraíba atingiu sua maior amplitude, registrou-
se um movimento de 54.921 pessoas matriculadas e 38.415 em 1926. Cf. Suassuna (1926,
p. 138); Suassuna (1927, p. 115).

340
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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Outras doenças venéreas, inclusive


- - - 18.075
a sífilis
Total 28.022 42.230 51.836 52.180

Comparando os dados disponíveis para os anos supracitados,


pode-se perceber o aumento substancial que ocorre ao longo dos
anos em relação à medicação antissifilítica aplicada. É importante
salientar que no ano de 1933 foi mantida a média de medicações
utilizadas, mesmo não contando com a subvenção federal que,
embora precária, ainda existia em 1928.
O orçamento previsto para subvenção estadual da Diretoria
Geral de Saúde Pública para 1933 foi de 842:430$000, dos quais uma
cota 379:560$000 estava destinada a gastos com os funcionários e
outra cota de igual valor destinado para aquisição de material, asseio
e manutenção dos serviços sanitários (DECRETO, 1933, p. 8-9).
A respeito da verba destinada à Saúde Pública, o diretor geral se
expressava com pesar “pelo modo como ainda são encarados, em
plano secundário, os serviços para manter perfeito o mais importante
patrimônio que nos foi legado: – a saúde.” (PEREIRA, 1934, p. 8).
No final do Governo Provisório, o MESP estava no início
de um processo de reestruturação administrativa que não teve o
tempo de vigência necessário para sua consolidação, cujo quadro de
instabilidade e substituições no cargo ministerial “que caracterizou
os quatro primeiros anos de existência do ministério mudaria
substancialmente a partir de julho de 1934, quando Gustavo
Capanema tomou posse como o novo e principal gestor da área de
educação e saúde” (FONSECA, 2007, p. 127).
Durante sua gestão à frente do MESP, Gustavo Capanema
(1934-1945) propôs a reformulação da estrutura institucional do
ministério, cujas diretrizes buscavam ampliar a ação federal nos
estados, até então concentradas no Distrito Federal, demonstrando
“as intenções, por parte do governo federal de construir uma política
pública de saúde de âmbito nacional por meio da reformulação e
ampliação dos serviços existentes” (FONSECA, 2007, p. 145). No
entanto, conforme Cristina Fonseca, alguns movimentos tendentes
a “uma maior uniformização e coordenação dos serviços de saúde

341
IX Colóquio de História das Doenças: anais

já vinham sendo feitos antes da aprovação da reforma de Gustavo


Capanema, em janeiro de 1937”, pois que alguns estados já estavam
realizando reformas, ainda que de modo parcial, nos seus serviços
sanitários desde 1931 (FONSECA, 2007, p. 189).
A Paraíba reformou seus serviços sanitários mediante a
aprovação na Assembleia Legislativa e a sanção do governador
Argemiro de Figueiredo (1935-1940), eleito de maneira indireta
pelo legislativo, e mantido no cargo mesmo após o golpe do Estado
Novo, da Lei n. 54 de 31 de dezembro de 1935, que reformava os
serviços sanitários do Estado (LEI n. 54, 09 jan. 1936, p. 4). Os
serviços sanitários seriam executados com regulamento próprio pela
Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), distribuídos conforme o
organograma a seguir, dividido em vinte e sete seções, os serviços
sanitários da Paraíba passariam a atuar distribuídas em: Serviços
Gerais do Estado; Serviços da Capital e Serviços do Interior.

Imagem 1: Organograma dos serviços de saúde na Paraíba, a partir da Reforma de 1935.


Fonte: Organograma confeccionado pelo autor com base nas determinações contidas na
Lei n. 54 de 31 de dezembro de 1935

A reorganização dos serviços sanitários ficou a cargo do


médico sanitarista Otávio de Oliveira9, que em entrevista ao jornal
9 Paraibano de Itabaiana formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) em
1919. Especializou-se em Higiene e Malariologia no Instituto Oswaldo Cruz. Em 1935,
durante o governo de Argemiro de Figueiredo, assumiu a direção do Diretoria Geral de
Saúde Pública da Paraíba Nóbrega (1979, p. 233-234).

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A União afirmou ser a sua preocupação “de fazer na Parahyba sobre


o ponto de vista de saúde pública, o mesmo que se tem procurado
fazer em alguns estados da União, isto é, uma reforma dentro dos
nossos moldes e adequada às possibilidades de nosso estado” (A
REFORMA, 1935, p. 1). Para realizar o plano de ação organizado,
o dr. Otávio de Oliveira explicou a reorganização do serviço nos
seguintes termos:
a primeira referente a serviços sanitários no Estado. A outra
a serviços propriamente da capital. A terceira, finalmente, a
serviços no interior do Estado. Quanto aos primeiros, muito
embora esses serviços sanitários no interior do estado tenham o
seu quartel general ou sua instalação nesta capital, a irradiação
de suas atividades far-se-á sentir em todo o Estado. Os serviços
de interesse próprios da capital irão integrar o ‘Centro de Saúde
de João Pessoa’, que será uma organização sanitária complexa, de
acordo com os problemas sanitários, igualmente complexos da
capital. (A REFORMA, 12 dez. 1935, p. 1).

Baseada no plano de ação sanitária traçado por Otávio de


Oliveira, segundo o Art. 3, § 3º da Lei n. 54, os serviços no interior
seriam atendidos por Postos de Higiene permanentes ou itinerantes,
“cujas actividades, composição e localização serão orientadas pela
tarefa a realizar e pelas significações econômica e nosographica
regionais”. A Lei previa ainda em seu Art. 8º que as atribuições
desses Postos de Higiene deveriam ser, tanto quanto possível, as
mesmas do Centro de Saúde, “reduzidas, entretanto, ao seu plano
geral, às proporções dictadas pelas conveniências locais” (LEI N. 54,
9 jan. 1936, p. 4). Nesse sentido, a legislação fixava que nos Postos de
Higiene espalhados pelo estado também deveria ocorrer a profilaxia
da sífilis. Ou seja, estes serviços iriam realizar, basicamente, os
mesmos serviços realizados no Centro de Saúde da Capital, porém,
limitados às circunstâncias locais onde fossem instalados.
Se na década de 1920 funcionou o Serviço de Profilaxia da
Lepra e Doenças Venéreas, com o novo serviço, a sífilis aparecia
em relevo já na denominação do serviço. A reforma sanitária na
Paraíba conferiu à sífilis um caráter específico, retirando-lhe da
generalização das doenças venéreas e, portanto, estabelecendo
uma diretriz distintiva no tratamento da sífilis em detrimento

343
IX Colóquio de História das Doenças: anais

daquelas doenças, com o serviço passando a se chamar Serviço


de Profilaxia da Sífilis, Doenças Venéreas e Lepra, o que por si
só já atesta a especificidade da profilaxia realizada contra essa
doença.
Com base na Lei nº 54 de 13 de dezembro de 1935, o Art.
12 previa que cada Posto de Higiene teria sua “zona de jurisdição
perfeitamente estabelecida”, levando em conta a facilidade de
comunicação dentro da qual teria que agir quando se fizessem
presentes problemas sanitários relevantes. Além da centralização dos
serviços em um único espaço, a partir do modelo de Centros de Saúde,
a reforma estabelecia a direção única do diretor de saúde pública,
na ocasião assumido pelo dr. Otávio Oliveira. A reforma sanitária
na Paraíba seguiu, portanto, as diretivas nacionais que norteavam
as políticas no âmbito da saúde pública, conforme destacado por
Fonseca (FONSECA, 2007), em relação à centralização das ações
sanitárias, a burocratização e sistematização da administração da
saúde pública e a especialização dos profissionais que atuavam no
serviço.
O jornal oficial do estado urgia, mais uma vez, em enfatizar as
realizações do governo executivo estadual. Na edição comemorativa
aos dois anos da administração de Argemiro de Figueiredo, os
redatores do jornal enalteceram o que até então vinha sendo
desempenhado em relação à saúde pública. O jornal A União afirmou
que da Lei nº 54 de 13 de dezembro de 1935:
derivam a manutenção prudente de serviços indispensáveis; a
ampliação e reforma de outros, cujo desdobramento era um
imperativo categórico; a agitação de actividades novas, reclamadas
pela moderna technica sanitária; todas ellas orientadas no sentido
superior humanitário do bem estar collectivo, conduzidas pelas
tendências nacionaes cada vez mais pronunciadas e relevantes
de um aprimoramento das organizações de saúde pública.
(DIRECTORIA, 25 jan. 1937, p. 7).

Por um lado, ficou evidente a relação entre o movimento


reformista no campo da saúde que passou a se processar na Paraíba
em consonância com as mudanças que estavam sendo gestadas
em nível nacional. De outro, que a reforma aproveitou muito da

344
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

estrutura da década anterior, fazendo a manutenção dos serviços


então existentes, ampliando-os e reformando-os.
Na Mensagem do Interventor Argemiro de Figueiredo
apresentada à Assembleia Legislativa em 01 setembro de 1937,
publicada integralmente no jornal A União, foram expostos dados
estatísticos referentes aos trabalhos executados pela Diretoria Geral
de Saúde Pública da Paraíba, que nos permitem observar as ações da
reforma sanitária, vejamos:
Tabela 2: Relação dos trabalhos executados no serviço de profilaxia da Sífilis, das
Doenças Venéreas e da Lepra do Centro de Saúde da Capital e nos Postos de Higiene
do Interior (1º Semestre de 1937)
Pessoas Injeções Injeções Injeções Injeções
Cidade
matriculadas10 arsenicais mercuriais ioduradas bismutadas
João Pessoa 923 1.201 332 634 7.079
Cabedelo 810 984 788 - 1.900
Mamanguape 1.473 581 465 272 921
Guarabira 2.460 - - - 916
Bananeiras 439 350 174 231 341
Alagoa Grande 3.278 162 65 49 1.128
Areia 1.896 388 441 33 452
Itabaiana 2.554 892 368 152 446
Campina
2.896 1.751 2.627 - 3.237
Grande
Patos 1.912 199 357 - 476
Cajazeiras 331 290 239 267 183
Total 18.972 6.762 5.856 1.638 17.079

Com a reforma sanitária, ao todo, foram instalados dez


Postos de Higiene sediados em: Cabedelo, Mamanguape,
Guarabira, Bananeiras, Alagoa Grande, Areia, Itabaiana,
Campina Grande, Patos e Cajazeiras. Vale salientar, que se trata
de localidades nas quais na década anterior já se tinha instalado
Postos de Higiene ou Sub-postos, mas que, todavia, decorrente
das dificuldades orçamentárias foram suprimidos. Ao todo,
18.972 pessoas estavam inscritas nos Postos de Higiene das
respectivas cidades. É preciso dizer, contudo, que a quantidade
de matrículas nos postos não corresponde ao total de pacientes
sifilíticos. Nos dados presentes na documentação consultada,
doentes com verminoses, impaludismo, bouba, tuberculose,

10 Com exceção da cidade de João Pessoa, os dados para as demais cidades não
especificam a doença da pessoa matriculada nos Postos de Higiene.

345
IX Colóquio de História das Doenças: anais

varíola, sífilis e outras doenças venéreas foram registrados sob a


mesma rubrica: “pessoas inscritas”. Mas a julgar pela quantidade
despendida de medicação específica para a sífilis, é possível
supor que o número de doentes sifilíticos fosse elevado. Além
disso, com base nos dados expostos, é possível notar a mudança
significativa ocorrida na terapêutica da sífilis. As injeções
mercuriais e arsenicais que predominavam no tratamento da
doença na década de 1920, cederam lugar ao bismuto.
Na década de 1930, portanto, a sífilis continuou como alvo
de combate por parte dos discursos médicos. As políticas de saúde
pública gestadas com a reforma sanitária realizada na administração
de Argemiro de Figueiredo vieram intensificar e sedimentar o
enfrentamento da doença. Além da mudança terapêutica, a década
de 1930 marcou não somente o aumento no número de doentes
atendidos, como também a expansão do serviço de profilaxia a partir
da instalação dos Postos de Higiene, expandindo a quantidade de
cidades que realizavam a profilaxia da sífilis.
A década de 1930 ainda foi marcada por uma especificidade
em relação à década anterior: a instalação de um Dispensário
Noturno Antivenéreo. Em um contexto pautado pelo discurso
da política varguista para a formação de um novo homem e de
uma nova nação a partir do trabalhismo (GOMES, 1999, p.
55), foi organizado em 1938 o primeiro serviço dessa natureza
no estado. Cujo objetivo era promover a profilaxia da sífilis
para os trabalhadores que possuíam uma jornada de trabalho
diurna, conforme exposto pelo jornal A União ao afirmar que o
“o governo acaba de installar um serviço de grande alcance social,
o dispensário anti-venéreo nocturno onde se tratam os operários
que de dia ganham o pão, talvez o único do país.” (OS SERVIÇOS,
25 jan. 1938, p. 1).
Exageros à parte do jornal oficial, pois já havia serviços dessa
natureza em outros estados da Federação, para outro periódico da
cidade, a importância social de um serviço como esse residia no
benefício que prestava às classes proletárias da cidade, visto que:

346
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

estes homens do trabalho quotidiano, quando adoentados, não


podem ir ao Centro de Saúde três vezes por semana ao menos
para fazer tratamentos. Si fossem abastados, descansariam, fariam
estações d’água, etc. Sendo homens pobres, ganham o pão ao sol e
se medicam as primeiras horas da noite. (POSTO NOTURNO,
10 maio 1938).

Tais discursos são reveladores da política do Estado


varguista que via na promoção do homem brasileiro, na defesa do
desenvolvimento econômico e na ordem social do país “os objetivos
que se unificavam em uma mesma e grande meta: transformar o
homem em cidadão/trabalhador, responsável por sua riqueza
individual e também pela riqueza do conjunto da nação” (GOMES,
1999, p. 55).
Para tanto, o Dispensário Noturno Antivenéreo tinha uma
dupla finalidade: uma preventiva e outra curativa. Segundo o jornal
A União este serviço:
como preventivo, facilita aos indivíduos de qualquer classe, a
desinfecção que o previne contra doenças venéreas, desinfecção
esta que dever ser feita, para a sua própria eficiência, dentro
de um período de seis horas. Na parte curativa, o serviço é
extensivo aos funcionários, comerciários, soldados e operários,
reconhecidamente desprovidos de recursos. É preciso ficar claro
que para o tratamento preventivo, o Dispensário é aberto a
todos, sem distinção, gratuitamente, porém, para o tratamento
de cura, somente terão direitos os que forem necessitados. (O
DISPENSÁRIO, 22 dez. 1938, p. 3).

Com efeito, para a sala de prevenção do dispensário poderiam


confluir todos os cidadãos que, dentro de um prazo de seis horas
tivessem estabelecido relações sexuais, pois esta parte do tratamento
seria universal e gratuita. No que tange a parte curativa, ou seja, o
tratamento dos doentes infeccionados, o dispensário restringia o
acesso àquelas pessoas mais necessitadas, sobretudo, trabalhadores
pobres.
Segundo o relatório apresentado pelo dr. Giacomo
Zaccara,11 chefe do serviço, 591 trabalhadores de diversas
11 Médico formado pela FMRJ. Nos anúncios publicados no jornal A União, o dr.
Zaccara afirmava ter sido “ex-interno dos serviços do prof. [Alcindo de Figueiredo] Baena
na S. Casa, do prof. Belmiro Valverde na Polycinica Geral do Rio de Janeiro, na Fundação

347
IX Colóquio de História das Doenças: anais

profissões compareceram ao Dispensário Noturno Antivenéreo


entre janeiro de 1939 e agosto de 1940, dos quais 329, ou 55,73%
tiveram diagnóstico positivo para a sífilis e outros 262, ou 44,18%
apresentaram diagnóstico negativo para a presença de alterações
sanguíneas provocadas pelo Treponema pallidum. Vale salientar
que do quantitativo total de diagnósticos positivos, pacientes
identificados como pertencente a classes de “operários” no relatório
do médico, representaram 84 testes positivos, um total de 14,2%
(ZACCARA, 22 set. 1940, p. 3). Ao menos dessa perspectiva, o
serviço parece ter desempenhado o papel ao qual foi designado a
cumprir, embora o médico chefe do serviço se lamentasse afirmar
que grande parte dos doentes abandonava o tratamento antes de
alcançar a propalada “cura”.

Considerações finais
Fundamentalmente, as fontes consultadas permitem trazer à
tona as políticas públicas de saúde gestadas pela reforma sanitária
durante a Era Vargas na Paraíba, apontando que as ações de combate
à sífilis continuaram a ser executadas, mesmo sem um comando
nacional na luta antivenérea. Desse modo, compreendo que estudar
as experiências locais no enfrentamento desta moléstia possibilita
ampliar o leque analítico sobre a sua história no Brasil e as nuances
do processo de reforma sanitária.

Referências

Fontes
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n. 277, p. 1, [s. d.].
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DIRECTORIA. Directoria de Saúde Pública: aspectos geraes de sua actuação em

Gaffré Guinle” (DR. GIACOMO, 01 jan. 1938). Seu consultório particular funcionava na
rua Barão do Triunfo, n. 455.

348
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André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

1936. A União, a. XLIV, n. 310, s. 3, p. 7, 25 jan. 1936.


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22 dez. 1938.
O MINISTÉRIO da Saúde Pública e os Serviços de Saneamento Rural. A União,
João Pessoa, a. XXXIX, n. 291, p. 8, [s. d.].
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União, João Pessoa, a. XLV, n. 19, s. 7, p. 1, 25 jan. 1938.
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SUASSUNA, João. Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Estado da
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349
IX Colóquio de História das Doenças: anais

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350
Dentes de defuntos para curar
maus humores:
o uso de itens mágicos para tratamentos de
enfermidades na capitania de Minas Gerais
(Séculos XVIII)
Raiza Ap. da Silva Favaro1
Christian Fausto2

Introdução
O tratamento das doenças sempre foi visto como algo crucial,
desta forma o ser humano utiliza tudo na busca de alívio e cura, mesmo
nas condições mais precárias a guerra contra as doenças nunca foi uma
batalha rendida. De acordo com Ronaldo Simões Coelho (2002) o
indivíduo na sua luta contra o sofrimento e a dor, a doença e a morte,
busca todos os recursos, seja na magia, na religião ou na ciência, recorre
às palavras, sonhos, sacrifícios, oráculos, deuses, xamãs e médicos.
Como aponta Jaques Le Goff (LE GOFF, 1985) a doença
pertence à história. Sendo assim, a doença também pertence ao seu
tempo histórico, e tem ligação direta com suas particularidades,
para podermos pensar a medicina em qualquer momento da história
precisamos considerar as instituições e mentalidades presentes
nesse tempo e espaço.
Mas “a doença não pertence só a história superficial dos
progressos científicos e tecnológicos como também pertence a
1 Graduanda da Universidade Estadual de Maringá- UEM e membro do Laboratório
de História Ciências e Ambiente- LCH. E-mail: [email protected]
2 Professor Orientador, docente do departamento de História da Universidade
Estadual de Maringá - UEM e coordenador do Laboratório de História Ciências e
Ambiente – LHC. E-mail: [email protected]

351
IX Colóquio de História das Doenças: anais

história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas


sociais as instituições as representações as mentalidades” (LE
GOFF, 1985, p. 8). Portanto, podemos considerar a doença como
uma experiência social, onde o meio causa influência e modifica as
formas de interpretar as doenças e as práticas de cura.
Desta forma, a presente pesquisa tem por objetivo analisar a
arte de curar nas Minas Gerais setecentistas, dando destaque para
o uso de “itens mágicos” e “magia” como prática de cura. Volta-
se o estudo para a arte médica na Capitania de Minas Gerais, em
um momento específico, o das descobertas das primeiras jazidas
de ouro no começo do século XVIII, momento este extremamente
significativo por conta do processo de urbanização e povoamento
da capitania.
A capitania nos proporciona uma rica possibilidade de
estudo, diante da sua população que cresceu com um grande fluxo
de pessoas vindas de todas as partes do Brasil e da Europa, o que
fez da região um centro urbano de destaque (VIANA, 2008).
Sendo assim, percebemos um encontro de diferentes culturas, que
consequentemente levou a um saber médico multifacetado.
Tal análise será possível através do estudo da trajetória do
cirurgião português Luís Gomes Ferreira, que percorreu Minas
Gerais no século XVIII, reunindo imensa experiência prática
e publicando sua obra em 1735 sob o título “Erário Mineral”.
De acordo com Coelho no Erário Mineral tudo vale para curar
(COELHO, 2002).
Percorrendo a historiografia, pode-se encontrar alguns
trabalhados que trazem estudos focados na investigação das
práticas curativas no Brasil Colonial, dentre eles destaco autores
como, Wissenbach (2009), Viana (2008) e Dias (2002). Tais estudos
colaboram de forma preciosa para a historiografia brasileira,
principalmente por proporcionar reflexões sob uma perspectiva por
vezes pouco explorada, que cada vez mais vem sendo desvendada.
Mas longe de já terem sido percorridos todos os caminhos
de investigação sobre o tema em questão, o desafio deste trabalho

352
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

é analisar parte das práticas médicas em Minas Gerais do século


XVIII, ligadas ao “universo magico”, a relação entre o saber médico
erudito e o popular, assim como a aproximação da medicina
com a magia. Onde percebe-se o encontro de muitas culturas,
que consequentemente levou a um saber médico diversificado,
proporcionado pelos sincretismos dos povos presentes na região.

As doenças pertencem a História


Como aponta Jean-Charles Sournia, “as doenças têm apenas
a história que lhe é atribuída pelos homens, sendo assim a doença
não existe em si, porque é uma entidade abstrata em que o homem
atribui um nome” (SOURNIA, 2002, p. 359). Desta forma “por
natureza a medicina é histórica” (SOURNIA, 2002, p. 360).
Portanto, cabe investigar as práticas médicas, sejam elas oficiais ou
não, com o intuito de dar forma as singularidades culturais e sociais
que influenciam na luta contratais mazelas.
Mesmo que “a medicina cientifica esforça-se por uma certa
racionalidade, os médicos são irracionais, dado que são humanos”
(SOURNIA, 2002, p. 360). Já que os médicos, como quaisquer
outros sábios, fazem parte da sociedade que os envolve. E, contudo,
“as inovações da medicina cientificam não acabarão nunca, porque
ela terá de lutar contra as doenças milenares e contra as que
surgirão amanhã, talvez favorecidas por outras inovações humanas”
(SOURNIA, 2002, p. 361).
Sendo assim, da mesma forma que as inovações cientificas não
acabaram nunca em busca da sobrevivência humana, a medicina
paralela também segue perpetuando seu espaço, pois é comum que
práticas de cura usadas em tempos mais remotos continuem sendo
usadas até os dias atuais. Como afirma Coelho as comunidades,
apesar do progresso, continuam a se comunicar oralmente, e os
conhecimentos científicos, em qualquer área, demoram a chegar até
o povo (COELHO, 2002).
Com o propósito de entender os contrastes da medicina
popular e a oficial, escolhemos para analise a região de Minas Gerais,

353
IX Colóquio de História das Doenças: anais

no século XVIII, por ser de fértil laboratório para observações


médicas (VIANA, 2008). Onde havia uma “circularidade” de ideias
entre o saber popular e o erudito. Carlo Ginzburg, em sua obra
nos traz o conceito de circularidade como; “influxo recíproco entre
culturas subalternas e culturas hegemônicas” (GINZBURG, 1996,
p. 21). Partindo deste autor, podemos pensar que camadas eruditas
e populares tendem a se homogeneizar, porque ambas as camadas
“circulam entre si’, com isso Ginzburg (1996) nos faz não olhar
apenas para a especificidade do erudito ou do popular, e nem as
pensar como fenômenos distantes, já que muitas vezes dialogam
entre si.
Portanto, temos por finalidade mostrar que o Erário Mineral
(1735) se constitui como fonte importante de estudo das concepções
médicas que envolveram a América portuguesa no século XVIII,
dando ênfase às práticas de cura, especificamente com o uso de
“magia” e “itens mágicos” para sanar moléstias. Temos por objetivo
então, não apenas contribuir com a investigação no campo da
história da medicina, como também no campo do conhecimento
das tradições populares ligadas a magia.
Para o Filosofo Frances Michel Foucault (2000) é essencial
estudar as formas como os saberes se confrontavam, de modo
que alguns saberes se consagram historicamente e outros não.
Segundo o autor os saberes estão disputando hegemonia e
projeção, alguns conseguem, mas outros são “soterrados”, por
isso ao analisar um período da história precisamos “escavar”,
para poder reconstruir o cenário do passado, que acabou sendo
obscurecido pela história.
A partir do estudo do Erário Mineral (1735), percebemos que
Gomes Ferreira deu-se ao trabalho de incorporar os conhecimentos
aprendidos dos paulistas, dos índios, e todos que viviam na região
(DIAS, 2002). Nota-se, também, que o cirurgião escrevia para os
homens de qualidade ou casta inferior, para os escravos, para os
proprietários pobres de escravos, para os brancos. Porque Ferreira
preferia ser atendido por homens simples a escrever bonito.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Tal obra conseguiu passar, para a cultura escrita, as receitas


e a memória das tradições populares orais, que muitas vezes são
obscurecidas pela historiografia. Com grande perspicácia seu
tratado inspirado em práticas ocultas reunia os conhecimentos
disponíveis para viver nas Minas do século XVIII (DIAS, 2002).
Por isso, pode-se destacar que o uso dessa fonte nos faz
compreender não só o contexto de sua época, como também o
significado das expressões do autor, principalmente quando notamos
que nenhum documento se faz neutro, sempre carregam consigo
a opinião de quem o escreveu (BACELLAR, 2005). Portanto,
buscamos contextualizar o documento de acordo com sua época,
visto que o historiador reconstrói os acontecimentos das histórias
vividas e garante aos leitores um esquema interpretativo do passado
vivido ao abordar.
Gomes Ferreira construiu e registrou suas experiências sobre
o mundo que o cercava. A análise das relações existentes entre seus
escritos, seu meio sociocultural e suas experiências nos permite
conhecer a arte médica de uma maneira peculiar. A metodologia
aqui se faz presente para dar à luz a relações históricas e sociais, de
uma medicina multifacetada.

O cirurgião mago das minas


Ao longo dos séculos XVIII e XIX, de acordo com Wissenbach
(2009) em meio aos diversos personagens históricos que se
movimentam pelo mundo atlântico, destaca-se a figura social dos
cirurgiões e dos práticos da medicina. Em Minas Gerais, ao longo do
século XVIII, os tratados médicos foram redigidos por cirurgiões.
Como aponta Júnia Ferreira Furtado “estão recheados de descrições
das diversas mazelas que acometiam a população e do arsenal de
medicamentos de que dispunham para a cura” (FURTADO, 2005,
p. 90). Contrariando as definições práticas da medicina de Portugal,
tais cirurgiões faziam, o que seria exclusivo para os médicos, como
prognósticos e curas, escreviam teorias sobre as enfermidades e
prescreviam medicamentos (FURTADO, 2005).

355
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Em relação à medicina popular e prática, destacamos Luís


Gomes Ferreira, cirurgião português que redigiu o tratado médico
Erário Mineral (1735). formado no Hospital Real de Todos os
Santos, chegou ao Brasil em 1707 e até este momento trabalhava
como oficial da arte cirúrgica e da medicina prática nos navios
portugueses (WISSENBACH, 2009).
Gomes Ferreira teve um amplo quadro de referências,
para montar seu receituário, passando por tratados médicos da
Antiguidade Clássica e aos expoentes da medicina árabe, como
Hipócrates, Galeno, Avicena, Egineta, passando também pelos
mestres portugueses, sendo eles Amato Lusitano, Zacuto Lusitano,
Antonio da Cruz, Antonio Ferreira (WISSENBACH, 2009).
Uma de suas principais referências foram “os livros de João
Curvo Semedo (1635-1719), médico da família real portuguesa e
importante divulgador da flora americana como panaceia médica”
(FURTADO, 2005, p. 91). Gomes Ferreira fez menções ao Dr. João
Curvo de Semedo em seu tratado, como pode-se a seguir:
diz o doutor Curvo que os feitiços se podem dar em diferentes
iguarias e bebidas, já disfarçados em vários manjares, já em notáveis,
dos quais se seguiu ficarem uns tontos e mentecaptos enquanto
viveram, outros ligados e incapazes dos atos matrimoniais, outros
inchados como pipas, outros secos como paus, outros fugindo da
gente, outros com tão grande aborrecimento às suas mulheres que
nem as podiam ver, nem ouvir falar nelas; o que tudo viu e notou,
e que seria impossível referir o que neste particular experimentou
e observou, porque alguns viu enfeitiçados ou endemoninhados,
que se queixavam viam vários fantasmas em figuras de cavalos,
elefantes, perus, serpentes e dragões; a alguns destes curou,
fazendo-lhe trazer ao pescoço e nos pulsos dos braços alambres
brancos, e a outros mandando-os defumar com a semente da erva
antérico, trazendo-a também ao pescoço; assim o dizem Escrodero,
Crolio e outros autores. (FERREIRA, 1735 p. 423).

De acordo com Furtado, neste período, o cirurgião-barbeiro


Luís Gomes Ferreira, como muitos outros portugueses, veio para as
Minas Gerais pelas descobertas auríferas (FURTADO, 2005). Mas
como os ganhos não foram significativos isso o levou a continuar
exercendo sua profissão de curador.

356
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Assim que chegou às Minas Gerais, o cirurgião se deu conta


de que os anos de aprendizado no Reino não eram suficientes para o
desempenho da profissão, uma vez que as doenças nem sempre eram
as mesmas e nem eram os mesmo os medicamentos de que também
dispunha (FURTADO, 2005). Ao compreender a especificidade
das doenças e da região Gomes Ferreira buscou incorporar a
farmacopeia do Reino as ervas e produtos locais.
Como colocado por Sérgio Buarque de Holanda (1995),
o conhecimento de quase todos esses produtos foi transmitido
pelos índios aos bandeirantes de São Paulo, responsáveis pelo
desdobramento do interior do Brasil. Ousado, Gomes Ferreira
chamou a atenção para a importância de não se ater apenas à
tradição e às regras dos antigos e, sim, guiar-se pela experiência
(FURTADO, 2005). A obra de Gomes Ferreira expressa o saber
médico da época, ainda envolto nas ideias de Hipócrates e Galeno,
concepções estas que são vistas como a base da medicina ocidental
(EUGENIO, 2005).
Hipócrates elaborou uma organização metódica desse
campo de conhecimento que, após sua releitura por parte de
Galeno, foi disseminada pela Europa e, posteriormente, para
suas colônias (EUGENIO, 2005). De forma simples, a medicina
hipocrático-galena pode ser resumida da seguinte forma: o
corpo humano é uma versão microscópica integrado ao universo.
Equilibrado por quatro elementos primordiais, sendo eles terra,
fogo, ar e água, os quais produzem quatro qualidades essenciais,
sendo elas, quente, frio, seco e úmido, que se traduzem em quatro
humores do organismo humano, fleuma, sangue, bilis amarela ou
vermelha. (EUGENIO, 2005). As doenças ocorrem, por conta
do desequilíbrio, sendo por excesso ou carência de um desses
humores, que pode ser provocado por diversos fatores, sendo
eles naturais ou não. Pode-se destacar fatores como a higiene,
o clima, a alimentação como agentes que desequilibram dos
humores (EUGENIO, 2005).
Para Gomes Ferreira e seus contemporâneos o corpo não era
ainda um mecanismo, uma unidade de órgãos interdependentes

357
IX Colóquio de História das Doenças: anais

(DIAS, 2002). Isso porque “a circulação do sangue e dos humores


corruptos apontava para a necessidade de interpretar cadeias de
correspondências e de analogias com o vento, as águas, a umidade,
as plantas e os animais” (DIAS, 2002, p. 326).
Tendo em vista tal concepção o corpo e saúde passavam pelos
movimentos da grande cadeia dos seres, que articulava o micro ao
macrocosmo. Médicos e cirurgiões concebiam o corpo dentro do
seu meio ambiente e em estrita relação com os elementos do clima e
da natureza. Luís Gomes Ferreira também se referia à influência dos
astros. Sendo assim as doenças não viriam apenas do desequilíbrio
de humores, mas de conjunções especificas de forças cósmicas,
diante de tais concepções Gomes Ferreira haveria de se preocupar
com a censura e com os riscos de ser denunciado à Inquisição”
(DIAS, 2002).
Mas sua obra, que Luís Gomes protege inserindo frases
destinadas a evitar as autoridades da Igreja, busca usar poucas
referencias explicitas às influências astrológicas nas Minas (DIAS,
2002). Escreve com medo e prudência, entretanto “acreditava nas
forças ocultas, na necessidade de o médico explorar a química, de
desvendar os recursos e as forças da natureza dentro do quadro
maior das forças cósmicas” (DIAS, 2002, p. 338-339).
Em seu extenso tratado de medicina prática, Gomes Ferreira
tem um receituário onde juntam-se simpatias ensinadas pela
medicina popular e receitas de ervas da tradição indígena, recolhidas
pelos sertanejos paulistas. Tratado este que é destinado ao uso
doméstico por parte de populações mal assistidas por profissionais
da cura (WISSENBACH, 2009).
No tratado estaria então presente “concepções de doenças e
de cura das tradições ibéricas (acadêmicas e da medicina popular)
reelaboradas e transformadas pelas experiencias vividas no mundo
colonial” (WISSENBACH, 2009, p.285). Junta-se também a crença
na prática mágicas como elemento e importante condutor da cura
que aproximava o mundo português do africado (FURTADO,
2005).

358
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Como já mencionado, o clima nos trópicos era desconhecido


dos médicos europeus. Este exigia remédios novos, assim as curas
variavam. Eram inúmeros os males que tomavam proporções
catastróficas no clima da América portuguesa, sobretudo as febres,
as maleitas ou sezões, o mal-do-bicho, o escorbuto, as bexigas, a
sífilis ou mal gálico, os venenos de cobras, contra os quais os
antídotos agiam apenas eventualmente (DIAS, 2002).
Se faz importante destacar que Gomes Ferreira ajudou a dar
procedência no que poderia de acordo com Furtado ser chamado de
“medicina tropical”, pois se voltava em conhecer a particularidade
das doenças e dos tratamentos locais (FURTADO, 2005). A
vulnerabilidade da condição humana aproximava os homens da
natureza, recorria-se até mesmo a medicina dos excrementos, que
teve um espaço essencial no receituário de Luís Gomes Ferreira.
Mordidos por cascavel ou jararaca, havia casos em que os homens
se salvavam comendo do próprio esterco, misturado com um
pouco da água do rio, para a beira do qual se arrastavam (DIAS,
2002).
Deste modo “os remédios eram tomados da natureza, dos
animais ou dos próprios corpos dos vizinhos, pois muitas vezes era
preciso urina fresca de um menino sadio, ou as mãos de uma menina
virgem, para curar de um ataque de gota coral” (DIAS, 2002, p.
350). Luís Gomes Ferreira faz uso de partes do corpo humano e de
animais em suas receitas terapêuticas, para tratamento do vício em
álcool, como podemos observar a seguir:
tomem a cabeça de um cordeiro com lã, ossos e dentes, e um
quartilho de sangue do mesmo cordeiro, e uma mão cheia de
cabelos da cabeça de qualquer homem, e o fígado de uma enguia
com seu fel; tudo junto se meta em uma panela barrada com seu
testo tudo novo, e se meta no forno até que fique tudo bem torrado
para se fazerem pós do que tiver dentro a panela, dos quais se
darão ao bêbedo todos os dias uma oitava deles, em vinho, que mui
poucas vezes o beberá, e daí por diante o não beberá em toda a vida
(FERREIRA, 1735, p. 446).

Cabelos, ossos de bicho e de gente, sapos, morcegos, lagartos,


galo e bode preto, eram usados como ingredientes de cura. Por

359
IX Colóquio de História das Doenças: anais

exemplo, os sapos, eram considerados animais ruins e ingredientes


essenciais para feitiços de magia negra. Em seu tratado, Luís Gomes
ensinava-a como utilizados:
o osso da coxa de sapo metido no nariz, no mesmo instante, faz
parar o fluxo de sangue dele. Nota que o osso da coxa do sapo
se tira rá deste modo: matem o sapo e, espetado em um pau, o
ponham no ar a secar, até que toda carne se consuma e se lhe tirem
o osso, e, tirado, se guarde para a ocasião. Também é certo tirar
este osso a dor do dente que doer, tocando-o ou esfregando-o com
ele. (FERREIRA, 1735, p. 323).

Luís Gomes Ferreira nos mostra uma prescrição para cuidar


de enfeitiçados:
aqueles que, sendo moços robustos e mui potentes para com
suas mancebas, casando-se se acharão incapazes de consumir o
matrimônio, estes, diz o doutor Curvo na observação 101, que se
defumem as suas partes vergonhosas com os dentes de uma caveira
postos em brasas, e, sem mais diligência, ficarão desligados e
capazes dos atos conjugais sem dúvida alguma. (FERREIRA, 1735,
p. 421).

No trecho, pode-se observar a forma que força ocultas eram


vistas como recursos de última hora:
o dente de uma toupeira, arrancado dela estando viva, e deixala
ir embora, tocando ele o dente que doer, não doerá mais, o dente
de um cão arrancado dele, estando vivo, trazido ao pescoço, livra
de dores de dente e os preserva delas por toda a vida, o que se
afirma com experiências certas. Uma galinha, por mais dura que
seja, estando morta, pendurada em uma figueira, se fará tenríssima
dentro de uma hora. Um osso de defunto atado ao pescoço de
quem tiver maleitas, terçãs, ou quartãs, pela maior parte as tiras;
as sardinhas bem salgadas e sarrentas, escaladas e postas nas solas
dos pés de quem tiver as ditas maleitas, as tiras, o que se afirma
com experiências, como se fosse obra de milagre. Os alambres
trazidos ao pescoço que toquem a carne por muito tempo, livram
dos estilícidios e fluxões que caem nos dentes, garganta e peito, o
que se afirma por certo com várias experiências, tudo por virtudes
ocultas que Deus lhe deu. (FERREIRA, 1735, p. 445).

O cirurgião por vezes fazia o sacrifício de animais, como:


galinhas, pombos e carneiros para o agonizante aproveitar o calor
da gordura. No Arraial do Antunes, Antônio Dias, Luís Gomes foi
solicitado a socorrer um homem mirrado por disenteria:

360
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Mandei que, assim que se matasse algum boi ou vaca do curral, pois
o tinha vizinho, se tirasse, com toda presteza e sem demora, aquele
redenho ou gordura que cobre as tripas, se embrulhasse em uma
toalha e viesse o portador correndo, para que, com o calor natural
do animal, o pusesse em cima do estômago e ventre e com a mesma
toalha o cobrisse, e com outra roupa, deixando-se estar de costas
o mais tempo que pudesse; matando-se na mesma ocasião mais
algum boi ou vaca, fizesse a mesma diligência com outro redenho.
(FERREIRA, 1735, p. 401).

Muito da sensibilidade camponesa e da bruxaria do século


XVII e XVIII estiveram presentes na obra de Luís Gomes. O Erário
Mineral (1735) é um emaranhado da memória popular no que
diz respeito às necessidades do cotidiano; é um tratado de dicas
práticos de higiene, de cura, de conhecimentos de todos os dias, por
exemplo, de como tirar manchas da pele de crianças:
pôr em cima do sinal a mão de qualquer defunto e deixa-la estar
até que a parte se esfrie bem faz desaparecer os sinais ou manchas
dentro de poucos dias; alimpar ou esfregar as manchas com as
páreas ainda quentes de uma mulher parida faz o mesmo efeito;
untar os sinais com o primeiro esterco das crianças quando nascem,
a que chamam ferrado, deixando-o secar na parte, também é bom
remédio; mesmo faz o sangue menstrual das mulheres posto na
nódoa. (FERREIRA, 1735, p. 414).

O sangue menstrual quase sempre aparece com conotações


negativas, no tratado do cirurgião português. Tanto que faz a
advertência: (VIANA, 2008, p. 126).
o sangue menstrual das mulheres, estando no atual fluxo dele, é tão
perverso e maligno que faz os efeitos seguintes: os panos de suas
camisas, aonde ele chagou, ainda que se lavem quinhentas vezes,
se usarem deles nas feridas ou chagas, as fará infeccionar e alterar,
de sorte que serão muito trabalhosas de curar por causa do mesmo
veneno. (FERREIRA, 1735, p. 688).

E importante destacar a forma que religiosidade da época


se inseria nas práticas curativas, os remédios por exemplo, como
aponta Furtado deviam ser aplicados com fé, porque muitas
das doenças eram apenas originadas de feitiços e da descrença,
como também o tempo da cura pertencia a Deus e dependia da
sua boa vontade (FURTADO, 2005). De acordo com Furtado
(2005) também se acreditava na capacidade mágica de objetos,

361
IX Colóquio de História das Doenças: anais

que poderiam transmitir suas virtudes. Na América portuguesa, a


prática de portar amuletos mágicos descende tanto de uma matriz
católica quanto de uma africana. As joias e peças de ouro prata não
eram apenas símbolos exteriores de riqueza, ostentados nos colos,
cinturas e cabelos das mulheres, mas também indícios das crenças
da época.
Diante do exposto podemos entender que Gomes Ferreira
e seus contemporâneos tinham a visão da doença como força
sobrenatural e um entendimento mágico do corpo, precisando
assim utilizar “magia” e “itens mágicos” no tratamento das doenças,
práticas estas que se tornaram corriqueiras, não só para os populares,
mas também para os profissionais da cura. E tais práticas ficaram
eternizadas em tratados de medicina, como no Erário Mineral (1735).

Considerações finais
Este trabalho buscou compreender parte das práticas médicas
nas Minas Gerais, durante o século XVIII. Para esta análise foi usado
o tratado médico Erário Mineral (1735), de autoria de Luís Gomes
Ferreira. Além de outras obras que forneceram elementos para se
concluir que na região de Minas Gerais, no período analisado, não se
tinham fronteiras demarcadas entre a medicina oficial e a popular.
Na obra de Luís Gomes Ferreira, os sistemas mágicos religiosos
convivem, lado a lado, com a medicina oficial.” No século XVIII,
o conhecimento médico estava impregnado de práticas e crenças
religiosas e mágicas” (FURTADO, 2009, p. 97). A convivência do
racionalismo com o pensamento mágico deu-se em vários níveis,
não estando restrita a apenas a nenhum grupo social específico.
Os habitantes das Minhas de ouro fizeram uso do conhecimento
médico oficial e de feitiçarias, buscando assim, a saída que mais
estivesse ao seu alcance. Não ficando de fora os profissionais de
cura que também por conta da ineficácia de indicações da medicina
oficial, recorriam a feitiços, no afã de conseguir a cura (VIANA,
2008).

362
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Houve então uma população em que, brancos, negros, livres


e mestiços, senhores e escravos compartilhavam crenças sobrenaturais
(VIANA, 2008). Desta forma, Luís Gomes Ferreira incorporou
saberes locais à suas práticas curativas, e a experiência adquirida
levou-o à percepção de que não somente as teorias obtidas em
Portugal seriam suficientes para o tratamento das enfermidades nas
Minas Gerais.
Por conta disto, Gomes Ferreira, adquiriu conhecimento das
forças ocultas e passou a saber lidar com os segredos da natureza.
Deste modo, passou para a palavra escrita à visão do mundo de seu
tempo, que pensava o cosmo como uma grande cadeia de seres,
unindo ao universo das estrelas os segredos das pedras, das plantas,
das arvores, de animais. (DIAS, 2002).
A atuação do cirurgião-barbeiro em Minas Gerais no século
XVIII, foi mais um capítulo na configuração de uma medicina
tropical. Grande parte do uso desses elementos como panaceia
curativa veio do contato com índios e escravos, conhecimento
em muitos casos intermediado pelos paulistas e em grande parte
divulgado pelos manuais de medicina popular escritos na capitania
ao longo do século XVIII (FURTADO, 2005).
O fato é que Luís Gomes Ferreira conseguiu abordar um
leque de temas que abarcaram desde o dia a dia dos escravos, o
tráfico negreiro, o sistema de mineração aurífera e diamantífera até
as crenças, a alimentação, a vida familiar da época, entre inúmeros
outros (FURTADO, 2005). Fazendo, de seu tratado, um importante
caminho para a análise de um território de múltiplas manifestações
culturais, múltiplos conceitos a respeito do corpo, da saúde e da
doença.

Referências:

Fonte
FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Org. Júnia Ferreira Furtado. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro/ Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz.

363
IX Colóquio de História das Doenças: anais

2002. É fundamental ressaltar que todas as informações a respeito do cirurgião


e de seu período de estada nas Minas nos são fornecidas pelo próprio autor, nas
páginas de seu tratado médico.

Bibliografia
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi.
Fontes históricas. [s. l.]: [s. n.], 2005.
COELHO, Ronaldo Simões. O Erário Mineral divertido e curioso. In: FERREIRA,
Luís Gomes. Erário Mineral Luís Gomes Ferreira; (org.) Júnia Ferreira Furtado.
Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro/ Fundação Oswaldo
Cruz, 2002, p. 151-172.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Corpo, natureza e sociedade nas minas (1680-
1730). Projeto História, v. 25, p. 325-359, 2002. Disponível em: https://revistas.
pucsp.br/revph/article/view/10595/0. Acesso em: out. 2021.
EUGENIO, Alisson. Relatos de Luís Gomes Ferreira sobre a saúde dos escravos.
Hist, Ciências e Saúde-Manguinhos, n. 22, v. 3, jul./sep. 2015.
FURTADO, Júnia Ferreira. Barbeiros, cirurgiões e médicos na medicina colonial.
Revista do Arquivo Público Mineiro. v. 41, p. 88-105, 2005. Disponível em: http://
www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/rapm/brtacervo.php?cid=951&1.
Acesso em: out. 2021.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
GUINZBUG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. A botica da natureza. In: HOLANDA, Sérgio
Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LE GOFF, Jacques (org.). As Doenças tem história. Lisboa: Terramar, 1985.
SOURNIA, Jean-Charles. O homem e a doença. In: LE GOFF, Jacques (org.). As
Doenças tem história. Lisboa: Terramar, 1985.
VIANA, Kelly Cristina Benjamin. Mágicos Doutores; a arte médica entre a magia
e a ciência nas Minas Gerais setecentistas (1735-1770). Fortaleza: [s. n.], 2008.
WISSENBAH, Maria Cristina Cortez. Cirurgiões e mercadores nas dinâmicas
do comércio atlântico de escravos (séculos XVIII e XIX). In: MELLO, Laura;
FURTADO, Júnia; BICALHO, Maria (org.). O governo dos povos. Alameda: [s. n.],
2009, p. 282-300.

364
As febres em aldeamentos de
Munduruku no Rio Tapajós
(Província do Pará, Século XIX)
Sara da Silva Suliman1

Os estudos sobre doenças e epidemias em missões religiosas


no Brasil oitocentista tem apresentado o potencial das fontes
históricas, especialmente no que diz respeito as práticas de cura,
as leituras e as representações epidemiológicas indígenas. Ainda
tem sido possível compreender medidas governamentais para
conter as doenças, sobretudo as epidêmicas, em aldeamentos
controlados por missionários (AMOROSO, 2014; HENRIQUE,
2018). Entretanto, boa parte dessas pesquisas dedicaram-se a
explorar doenças como varíola, febre amarela, cólera, lepra, entre
outras.
Algumas enfermidades do cotidiano ou endêmicas aparecem
em segundo plano ou pontualmente como fragmentos da realidade
dos aldeamentos religiosos oitocentistas. Uma dessas enfermidades
são as chamadas febres, observo que num universo de doenças elas
aparecem com frequência em relatórios de presidentes da província
do Pará, relatos de naturalistas que passaram pela Amazônia, jornais
e em ofícios trocados entre autoridades religiosas e provinciais.
Ricardo Cabral de Freitas (FREITAS, 2020, p. 725) afirma
que este tema das febres tem plasticidade, e isso garantiu sua
longa permanência na agenda médica no século XIX. Segundo o
autor, os estudos sobre as febres no Brasil ainda são incipientes ou
secundários quando comparados ao universo de outras doenças no
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do
Pará. E-mail: [email protected]

365
IX Colóquio de História das Doenças: anais

século XIX que foram pesquisadas, como a febre amarela pós 1849
(FREITAS, 2020, p. 725).
Freitas (FREITAS, 2020, p. 725) indica que embora o
protagonismo das febres não possa ser negado, especialmente
por conta do cenário crítico gerado pelas epidemias nos portos e
cidades luso-brasileiras a partir das primeiras décadas do século
XIX, é valido “observar que a febre amarela consistia em mais uma
das manifestações febris que ceifavam vidas por aqui há longo
tempo”. Neste sentido, conforme mostra a historiografia recente,
“os discursos oitocentistas sobre a febre amarela não podem ser
propriamente analisados sem que se faça observância às diversas
concepções de febre em disputa na época” (FREITAS, 2020, p.
725).
Hoje, sabe-se que a febre é um sintoma de um processo
patológico ou reação imunológica à presença de algum agente
patogênico, não é uma doença em si. No século XIX, as febres eram
lidas e representadas na documentação como “um conjunto amplo e
difuso de manifestações patológicas e podiam ser entendidas tanto
como sintoma de alguma enfermidade quanto como enfermidade
em si” (FREITAS, 2020, p. 725).
Se o estudo sobre as febres se faz importante sob o ponto
de vista da História Social da medicina e das doenças, também
é necessário que se discuta o tema pela perspectiva da História
Indígena e do Indigenismo, partindo do que propões John Monteiro
(2001, p. 5), construindo uma nova História Indígena, para
compreender trajetórias, narrativas e experiências de populações
indígenas frente aos projetos civilizatórios no período colonial e
imperial, tendo como foco as próprias ações indígenas.
Entre tantas histórias sobre o ataque de febres em território
Munduruku no rio Tapajós que ficaram registradas destaca-se
a da moça Sebastiana. Sua história foi contada pelo engenheiro
Antônio Manoel Gonçalves Tocantins quando esteve na região das
Campinas, reduto de aldeias Munduruku, em comissão do governo
provincial, por volta de 1875.

366
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Segundo relatou Tocantins, Sebastiana estava na casa de um


sertanejo quando a encontrou e observou que a moça tinha “o corpo
todo pintado” conforme as tradições Munduruku, aparentava ter
vinte anos, falava um pouco do português e “era muito expansiva”.
O engenheiro soube que Sebastiana e seus pais moravam na aldeia
Curucupi que havia sido atacada por “febres de mau caráter”,
algumas pessoas adoeceram e a mãe de Sebastiana passou a cuidar
deles (TOCANTINS, 1877, p. 110).
Certa manhã quando a mãe de Sebastiana retornava do
trabalho na roça uma pessoa próxima veio lhe dizer que um dos
doentes que havia tratado morrera e os demais da aldeia estavam a
sua procura, acusando-a de feiticeira. A mãe, sem demora, apanhou
a filha, combinou com o esposo e todos fugiram de Curucupi, em
direção ao Baixo Tapajós, com medo de serem mortos pelos demais
integrantes do grupo, que buscavam vingança (TOCANTINS,
1877, p. 110).
Este episódio revelou pelo menos dois aspectos importantes
para compreender o universo de saúde e doenças para os Munduruku.
Em primeiro lugar, notou-se que as chamadas febres atacavam o
sistema imunológico levando o sujeito acometido pela doença
rapidamente a morte. E as mortes, em ocasiões como narradas por
Tocantins, causavam instabilidade na ordem social da aldeia. A
partir daqui se refletiu que os surtos de doenças faziam com que os
Munduruku agissem rapidamente e pensassem em estratégias para
dissipar o mal que acometia a aldeia.
Em segundo lugar, pôde-se identificar algumas das
representações epidemiológicas para os Munduruku, que entendiam
as doenças como símbolos de mal presságio, mais que isso, como
sinais de feitiçarias e encantamentos. Acreditavam que as doenças
eram introduzidas no corpo por um pajé ou feiticeiro através de
um objeto, chamado caushí, o qual, se descoberto, acabava morto
(TOCANTINS, 1877, p. 85; 107; MURPHY, 1956, p. 7). Esse é
um aspecto importante quando se pensa nas representações que
os Munduruku produziam sobre os efeitos das doenças e seus
causadores, e quais estratégias se valiam para buscar cura.

367
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Este “espectro da morte”, como se referiu Marta Amoroso


(AMOROSO, 2006a, p. 126) às epidemias que devastavam as
aldeias religiosas durante o século XIX, contribuía não apenas
para o desmantelamento de missões e fracasso da catequese,
como ocasionava depopulação e medo nas aldeias, potencializava
mobilidades indígenas pelo território, possibilitava nova
configuração de relações de poderes e afetava os setores
produtivos relativos à alimentação e recrutamento de mão de
obra.
A catequese foi um mecanismo político do Império
importante de assimilação das populações indígenas à sociedade
nacional, regido pelo decreto nº 426, de 24 de julho de 1845, que
estabeleceu o “Regulamento das Missões”.2 Este documento previa
diretrizes para a reorganização dos grupos indígenas descritos
ainda como selvagens, em aldeamentos dirigidos por agentes leigos
e religiosos (MOREIRA NETO, 1988; SAMPAIO, ERTHAL,
2006; CARNEIRO DA CUNHA, 1998 [1992]; PARAÍSO, 1998;
MONTEIRO, 2001; SAMPAIO, 2009; 2011; ALMEIDA, 2010;
HENRIQUE, 2018).
Os missionários convocados para colocar em prática este
projeto foram os capuchinhos italianos, além dos frades, padres
formados no Brasil também assumiram o posto de missionário nas
diversas missões que foram criadas ao longo da vigência do Império
(TAUBATÉ; PRIMERIO, 1929; CARNEIRO DA CUNHA, 1998).
Conforme o Regulamento de 1845, art. 6, os religiosos seriam
utilizados para atrair os indígenas até os aldeamentos, mas não se
envolveriam em assuntos administrativos (REGULAMENTO DAS
MISSÕES Apud MOREIRA NETO, 1988, p. 332).
A administração geral das missões cabia a um diretor geral
dos índios, e da aldeia a um diretor parcial (REGULAMENTO DAS
MISSÕES Apud MOREIRA NETO, 1988, p. 323; 328). Contudo

2 Os demais decretos eram de nº 285, de 21 de junho de 1843, que autorizou a vinda


do segundo grupo de missionários capuchinhos italianos ao Brasil e o outro era de nº 373,
de 30 de julho de 1844, que fixou as regras orientadoras da distribuição dos missionários.
Para saber mais ver: Carneiro Da Cunha, (1998); Paraíso (1998).

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por escassez de candidatos para administrar as aldeias, os religiosos


assumiram a dupla função de diretor parcial e missionário.
Essa dupla jornada acarretava conflitos e tensões para os
missionários e indígenas, fazendo do espaço da missão um campo
de batalha. Num primeiro momento, o missionário deveria ser
diplomático, porém nem sempre a diplomacia ajudava nas situações
vivenciadas nos aldeamentos. Na província do Pará, além dos
conflitos com indígenas, diretores parciais, regatões,3 capitães dos
Corpos de Trabalhadores4 e demais autoridades, os missionários
enfrentavam inimigos invisíveis: as doenças.
O Regulamento das Missões apontava no art. 1, § 21, sobre
a prevenção com os surtos de doenças, esta função cabia ao diretor
geral dos índios que deveria atentar para “introdução da vacina
nas aldeias, e facilitar-lhes todos os socorros nas epidemias”
(REGULAMENTO DAS MISSÕES... Apud MOREIRA NETO,
1988, p. 326).5 Conforme Amoroso (AMOROSO, 1998, p.
102), na maioria das vezes essa recomendação não se cumpria,
“Vacinações não ocorreram, muito menos o controle das epidemias,
e elas grassaram nos aldeamentos indígenas, fazendo deste um dos
períodos de maior descenso da população indígena em contato com
a sociedade nacional”.
No território habitado pelos Munduruku, no rio Tapajós, as
aldeias controladas pelo governo sofreram com doenças severas ao
longo da vigência do Império, sobretudo com as chamadas febres,
que mesmo recebendo algum auxílio do governo, eram difíceis de
combater. É importante dizer que as referências sobre as febres
mencionadas aqui correspondem as designações encontradas na
documentação consultada, porém sabe-se que essa doença poderia

3 Segundo José Alípio Goulart (1968, p. 22-23), regatão significa vendedor ambulante
fluvial que negocia e comercializa todo tipo de mercadoria e produto. Contudo, está
denominação tornou-se exclusiva da Amazônia, já que em outras áreas estes comerciantes
são conhecidos como mascate.
4 Os Corpos dos Trabalhadores existiram legalmente até 1859, e funcionavam
divididos em Companhias de Trabalhadores ligadas às diversas localidades no interior da
província, recrutando índios, mestiços e pretos. Ver: Fuller (2008).
5 Os trechos dos documentos citados tiveram a ortografia atualizada.

369
IX Colóquio de História das Doenças: anais

ser muitas outras que acabavam categorizadas como “febres


intermitentes”, ou “febres de mau caráter” ou somente “febres” pelos
sintomas que apresentavam.
Este debate não será feito aqui devido os limites da pesquisa,
mas se pretende neste ensaio levantar alguns pontos para refletir
sobre as febres, suas incidências, medidas tomadas pelo governo e,
principalmente, pelos Munduruku.

O ataque de febres nas aldeias e práticas xamânicas


Munduruku
As aldeias e os povoados às margens do rio Tapajós sofreram
com esses surtos epidêmicos que destruíram povoações e plantações,
atingiram as aldeias religiosas, impactaram a produção de alimentos
e o comércio. Entre os surtos epidêmicos frequentes, as chamadas
“febres intermitentes” ou “febres de mau caráter” atacavam
constantemente a população, em especial, os indígenas. Quando se
vê notificações sobre febres no rio Tapajós na documentação quase
sempre há explicações que apontam que a doença era causada pelo
clima e a insalubridade dos rios, considerada endêmica ocorria
com frequência no período do inverno amazônico (de dezembro a
junho), quando caíam chuvas fortes causando o aumento no nível
das águas dos rios, lagos e igarapés.
A população era afetada sem distinção, brancos, índios,
negros, mestiços, e até estrangeiros não escapavam das febres.
Conforme Antônio Baena (BAENA, 2004, p. 29-31), as doenças
“que invadem o aparelho respiratório” eram as mais comuns e
perigosas e “devoravam os selvagens”, referindo-se aos indígenas.
Essa doença debilitava os nativos deixando-os “reduzidos a pele e
osso”, segundo o casal Agassiz (AGASSIZ, 2000, p. 223-226) que
encontraram índios acometidos pelas febres quando estiveram na
província do Pará, entre os anos de 1865-1866.
Segundo o Dicionário de Medicina Popular de Chernoviz
(CHERNOVIZ, 1890, p. 1092-1093), as febres intermitentes,
também conhecidas por sezões ou maleitas, ocorriam

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inesperadamente e com intervalos seguindo três etapas: frio, calor


e suor. A causa desta enfermidade era associada as “exalações
pantanosas”, “águas estagnadas”, “frio prolongado e habitações
nos lugares baixos e sombrios”. Porém, no relatório do professor
de Homeopatia Marius Porte, encaminhado ao presidente da
província do Amazonas Herculano Ferreira Penna, foi constatado
que as febres não atingiam somente os “lugares baixos e sombrios”,
os grandes rios como Negro, Solimões, Madeira, Tapajós e Xingu,
também eram afetados, pois a população utilizava os rios para
executar as atividades cotidianas e domésticas (AMAZONAS,
ANEXO, 1854, p. V-IX).
Em discurso do presidente do Pará na Assembleia Legislativa,
Manoel Paranhos da Silva Vellozo, de 1844, além “uso de águas de
pântanos, lagos e rios”, o uso “imoderado de bebidas fermentadas
feitas de mandiocas, frutas agrestes, peixe pescados em águas lodosas,
morto com timbó” contribuíam para o aparecimento das febres e
outras enfermidades (PARÁ, 1844, p. 20-21). Vale destacar que o
timbó é uma raiz com efeitos narcóticos em peixes, mas não prejudica
carne, pois age somente no aparelho respiratório. A utilização desta
raiz era um dos métodos empregados pelos indígenas e mestiços da
Amazônia para pescar de longa data. Quando preparado, o timbó
era colocado na água junto com os peixes que em instantes boiavam
(BAENA, 2004, p. 94-95).
Para o viajante inglês Henry Bates (BATES, 1979, p. 162),
que esteve pelo Norte do Brasil entre os anos de 1848 a 1859, o uso
do timbó causou espanto quando esteve em Alter-do-Chão, foz do
rio Tapajós, e observou que os índios possuíam um método de pesca
que “ainda não tinha visto em nenhum outro lugar”, mas que era
comum neste rio.6
No Tapajós, para algumas pessoas, o timbó era um “ramo de
negócio”, por se tratar de um método eficaz de pesca empregado
6 Sergio Buarque de Holanda (1994, p. 72) mostra que a técnica da pesca com a raiz
era utilizada pelos índios do atual território de São Paulo no século XVII. Porém, não
era novidade aos colonizadores portugueses que faziam uso de ervas, como o barbasco
(também chamado de verbasco), arbustos, como o trovisco, folhas da coca e da cal para a
pesca.

371
IX Colóquio de História das Doenças: anais

frequentemente no interior da província. Para outras, o timbó


poderia ser a causa de morte, como publicou o jornal santareno
“Tapajoense”, em 18 de outubro de 1856. Conforme a matéria do
jornal, muitas pessoas perdiam suas vidas no rio Tapajós fazendo
uso da raiz, era pedido que o Delegado de Polícia da região tomasse
providências para cessar o uso (TAPAJOENSE, 1856, p. 1-2).
A preocupação com os hábitos alimentares, o uso dos rios e o
clima aparece também nos escritos de Antônio Baena, José Veríssimo
e Rufino Tavares. Conforme Baena (BAENA, 2004, p. 31) e Tavares
(TAVARES, 1876, p. 17), a província possuía duas estações inverno
e verão, sendo que a primeira iniciava em novembro ou dezembro e
seguia até junho; já a segunda começava em julho e seguia até o mês
de dezembro. Entretanto, era no período chuvoso que as doenças
de caráter passageiro, como as febres intermitentes e disenteria,
reinavam às margens dos rios da província atingindo a população
indígena. Aliado a isso, Veríssimo (VERÍSSIMO, 1970, p. 83) e
Tavares atribuíam também a “má alimentação” dos indígenas, a
“falta de modos civilizados para se alimentar”, a “falta de um regime
higiênico”, o uso “imoderado de bebidas alcóolicas”, “as habitações
húmidas” e a falta de acompanhamento médico as razões para a
proliferação de moléstias.
As enfermidades apresentadas acima em consideradas
“moléstias de primeira classe”, como as febres intermitentes
citadas, as diarreias rebeldes, a disenteria, as hidropisias,7 as
bexigas, os tubérculos pulmonares tísicas8 e o catarro pulmonar.
Existiam ainda as doenças consideradas “moléstias de segunda
7 Conforme Chernoviz (1890, p. 168), dava-se o nome de hidropisia para “todo o
derramamento de serosidade em uma cavidade qualquer do corpo ou no tecido celular
subcutâneo”. A moléstia era causada por diversos fatores sobressaindo-se “o frio húmido e
o temperamento débil”, “a alimentação insalubre ou insuficiente”, a “ingestão de bebidas
frias com o corpo suado”, “uma vida sedentária” e “as paixões vivas da alma”. A hidropisia
ocorria no ventre, conhecido como “barriga d’água”, nas articulações, no coração, no peito,
na cabeça, no olho, nos ovários.
8 Esta doença também era conhecida simplesmente por tísica ou moléstia do peito.
Consistia no “desenvolvimento de tubérculos no pulmão” que eram “corpos de cor branco-
amarelada, opacos, de grossura que pode variar desde o volume de um grão de arroz até ao
de um ovo ou de uma laranja”. Entre as causas da doença, o clima frio era apontado como
um dos fatores que propiciavam o desenvolvimento da doença Chernoviz (1890, p. 1092;
1095).

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classe” que eram hidroceles,9 sarna, úlcera de diferentes gêneros,


sífilis e obstruções (PARÁ, 1840, p. 27). Em geral, eram as
doenças de “primeira classe” que atacavam os indígenas aldeados
e aqueles recém-saídos da floresta. Conforme professor Marius
Porte, estas moléstias antigas na Amazônia chegavam a matar 80
por cento dos indígenas que “saem do mato”, corroborando com
a ideia de ausência de anticorpos e “vulnerabilidade” indígena
(AMAZONAS, ANEXO, 1854, p. IX).
Os Munduruku aldeados no Baixo Tapajós foram atacados
com frequência por febres. Em 1850, o presidente Jerônimo
Francisco Coelho informou que havia recebido notícias do
comandante militar de Santarém e do missionário de que os índios
da missão do Tapajós, por volta do mês de junho do mesmo ano,
foram acometidos por uma epidemia de febres que causou grande
mortandade nos índios das aldeias de Curi, Santa Cruz, Ixituba e no
posto militar de Itaituba. Para tanto, não se teve explicações sobre
os sintomas da doença. Na ocasião, o presidente encaminhou às
margens do Tapajós “a remessa de medicamentos e de dinheiro para
dietas e até para mantimentos, pois no estado desgraçado daquelas
povoações, a epidemia trouxe como consequência a fome”, já que
os indígenas adoentados não podiam obter seu próprio sustento
(PARÁ, 1850, p. 16-17).
Em ofício de 28 de fevereiro de 1853, enviado por frei Garésio
ao presidente José Joaquim da Cunha, se têm informações mais
claras sobre essa epidemia de febres. Segundo o frei, a epidemia
durou cerca de um ano, de 1849 a 1850, e não afligiu somente as
aldeias dos Munduruku, mas todo o distrito onde se localizava
a missão também foi atingindo. Mais uma vez os sintomas não
aparecem descritos no ofício enviado pelo missionário, mas sabe-se
que o vice-presidente da província, Ângelo Custódio, encaminhou
os medicamentos necessários e o valor de 200$000 em dinheiro
para socorrer os indígenas (OFÍCIOS, 28 fev. 1853).

9 Chamava-se de hidrocele “um tumor do escroto formado pela aglomeração da


serosidade na túnica vaginal, membrana que envolve o testículo”. Não era uma moléstia
considerada grave, mas causava incômodos ao homem Chernoviz (1890, p. 159).

373
IX Colóquio de História das Doenças: anais

As febres que ocorriam associadas ao clima da região eram


consideradas passageiras, por ocorrer somente num período do
ano, porém não deixavam de preocupar o governo provincial. Entre
1856 e 1857, chegaram informações ao presidente Henrique de
Beaurepaire Rohan que no Tapajós reinava uma enfermidade que
“assolava as populações marginais”, aqueles grupos que viviam às
margens dos rios, incluindo, os índios. O médico José Veríssimo
de Mattos, que integrava a Comissão de Higiene, foi encaminhado
para visitar algumas povoações do rio Tapajós e as aldeias de
Munduruku. De acordo com o relatório do presidente Henrique
de Beaurepaire Rohan, Veríssimo subiu o Tapajós sessenta léguas
acima de Santarém e alcançou os povoados de Alter-do-Chão, Boim,
Pinhel, Santa Cruz, Aveiro, Curi, Ixituba, Brasília Legal e Itaituba,
território habitado pelos Munduruku. Em 81 dos casos observados
notou que “45 [pertenciam] a classe das febres intermitentes, e
era essa, com efeito, a enfermidade, que, segundo ele (Veríssimo
de Mattos), mais grassava então na região que percorrera” (PARÁ,
1857, p. 6-7).
Com essas notícias percebe-se como as febres poderiam
perturbar a ordem social na missão do Baixo Tapajós, porém
elas não permitem analisar os sintomas e tão pouco como os
Munduruku acionaram suas estratégias e empregaram métodos
próprios de cura. As narrativas feitas pelo missionário Garésio eram
protocolares, e pouco revelaram sobre as práticas dos Munduruku
nestas circunstâncias, sobretudo por se tratar de indígenas aldeados,
batizados e que viviam no espaço de missão gerido pelo governo.
Ainda assim, é possível acessar algumas das estratégias empregadas
pelo missionário para socorrer os indígenas aldeados.
Por outro lado, na missão do Alto Tapajós chamada de
Bacabal, sob a gerência do frei capuchinho italiano Pelino de
Castrovalva, entre as décadas de 1870 e 1880, as notícias sobre o
ataque de febres não só foram registradas como apresentam, ainda
que breve, alguns dos sintomas das febres e algumas das ações
engendradas pelos Munduruku aldeados ali para se verem livres
dos males, além de permitir perceber conflitos que aconteciam na

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missão por conta de doenças, incluindo febres, e da coexistência do


pajé com o missionário na aldeia.
Em 1877, a missão do Bacabal contava com uma população
de 547 – Castrovalva prometia aumento para 2 mil –, e a relação
entre o missionário e os indígenas aparece em fala do presidente
João Capistrano Bandeira de Mello Filho, de 15 de fevereiro de
1877, como amistosa e próspera. Os Munduruku são descritos
como afeitos ao trabalho agrícola e produtores de mandioca, arroz,
milho, café, algodão, batatas, carás, banana e feijão (PARÁ, 1877,
p. 164-165).
Contudo, a partir das pesquisas de Laura Trindade de Morais
(MORAIS, 2016, p. 31), sobre as relações entre os Munduruku,
os regatões e o missionário capuchinho no alto Tapajós, se vê que
a missão do Bacabal estava longe de ser tranquila, ao contrário,
“a busca pelo domínio da mão de obra indígena fez do Tapajós
palco de muitos conflitos envolvendo, sobretudo, missionários
e comerciantes de regatão”. As desavenças entre frei Pelino de
Castrovalva e os comerciantes dos rios são exemplos de como se
estabeleceram as relações entre esses sujeitos na região, além de
servir de indicativo de como se davam as relações entre missionários
e regatões em outras missões da província.
Além destes conflitos, o frei Castrovalva teve embates
com os pajés por conta da relação com os regatões (MORAIS,
2016) e também devido ao uso da magia na missão e ao papel que
desempenhavam os pajés. Esses conflitos são possíveis de acessar
pois o frei Castrovalva escreveu um diário da sua experiência como
missionário no Tapajós entre os Munduruku, intitulado “O Rio
Tapajós, os Capuchinhos e os Índios Mundurucus (1871-1883)”,
publicado em 1884, onde relatou estes conflitos e seu ponto de vista
sobre os pajés. Conforme o frei, nos dez anos que passou entre os
Munduruku não conseguiu afastá-los do uso da magia e nem dos
pajés, “para frustação de todo o meu esforço para expulsar do coração
deles a terrível superstição do feitiço por sentença do pajé, oito
pessoas foram trucidadas cultamente” (CASTROVALVA, 2000
[1884], p. 209). Este trecho revela que Castrovalva não conseguia

375
IX Colóquio de História das Doenças: anais

compreender o significado da magia e do pajé para os Munduruku,


sua leitura era marcada por concepções que entendiam tais práticas
como supersticiosas e violentas.
Amoroso (AMOROSO, 2006b, p. 228), estudando o
xamanismo nesta missão mostrou como os índios aldeados que
foram acometidos por epidemias de febres apresentavam sintomas
“catarral de pneumonia e pleurisia”, além de sentirem “terror e medo”.
As causas das enfermidades foram atribuídas à magia, conforme a
autora, “os índios começaram a gritar que estavam enfeitiçados” e
que o aldeamento “estava cheio de malefícios e encantamentos”.
As causas de males ocasionadas por doenças para os
Munduruku estavam associadas à introdução de um objeto estranho
no corpo por um feiticeiro, que, quando descoberto precisava ser
morto para que a ordem social na aldeia fosse reestabelecida. O
engenheiro Tocantins (TOCANTINS, 1877, p. 107), que narrou
a história de Sebastiana e sua família, apresentou outras histórias
sobre mortes de feiticeiros entre os Munduruku do Alto Tapajós
baseado em conversas que teve ao longo da viagem e em relatório
apresentado pelo frei Castrovalva ao governo. Assim como o
missionário capuchinho, Tocantins entendia que essa situação era
“um erro fatal”. Entre as histórias registradas, destaca-se aqui o
assassinato de um Munduruku chamado Ismael.
Na ausência do frei Castrovalva o cacique Mari-Baxi,
conhecido também como capitão José da Gama, ficava responsável
pelas aldeias da missão e a morte de Ismael aconteceu nesta
circunstância. Junto com o rapaz acusado de feitiçaria, outros 3
foram arrolados para serem mortos, porém foram avisados e fugiram
da aldeia retornando na presença de Castrovalva. Ismael foi morto
a mando de Mari-Baxi por dois tiros de espingardas e pancadas na
cabeça. A morte do rapaz foi ocasionada pelo adoecimento e morte
de pessoas na aldeia.
O que é interessante observar é que Mari-Baxi possui certa
fama em matar companheiros de aldeia acusados de feitiçaria.
Segundo narrou Tocantins (TOCANTINS, 1877, p. 108-109),

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este cacique havia tirado a vida do próprio irmão por acusação


de feitiçaria. Porém, a morte não fora por espingarda, mas por
afogamento. Mari- Baxi amarrou uma pedra ao pescoço do irmão e
o lançou nas cachoeiras do alto Tapajós.
Os Munduruku buscavam na magia e na figura do xamã ou
pajé a cura dos feitiços. O xamã exerce um papel social importante
dentro das sociedades indígenas, pois é ele quem prediz o futuro e
promove a cura das doenças (MURPHY, 1956, p. 7; AMOROSO,
2006a; 2006b, p. 227). Como já mencionado, os rituais de cura
Munduruku gravitam em torno da extração do caushí, o objeto
maligno, do corpo de uma pessoa enferma pela aplicação de fumaça
de tabaco e sucção (MURPHY, 1956, p. 7).
O viajante inglês Henry Bates (BATES, 1979, p. 182) pode
observar que cada grupo Munduruku tinha seu pajé que, num só
tempo, era “sacerdote e médico”. Ele determinava o momento
propício para o ataque ao inimigo, exorcizava os maus espíritos e
curava os doentes. Esta visão sobre os pajés também foi compartilhada
por José Veríssimo (VERÍSSIMO, 1887, p. 351), que acreditava que
o “famigerado pajé” era, num só tempo, o feiticeiro e o médico para
as populações indígenas da Amazônia, e que estes eram ajudados
pela natureza rica em substâncias medicinais, cujas as virtudes eles
aprendiam a conhecer e manipular, e pela profunda crença de seus
doentes que buscavam seus conhecimentos em momentos críticos.
Sobre as doenças, Bates (BATES, 1979, p. 182) relatou que
eram supostamente causadas por um verme localizado na parte
afetada, que poderia ser extraído através do sopro de fumaça de um
vasto charuto que o pajé preparava “com ar de mistério enrolando o
fumo em folhas de tauari”. Em seguida, continua Bates, “ele [o pajé]
suga o local afetado, tirando da boca ao terminar, algo que finge
tratar-se de verme. É um passe de mágica muito canhestro.”
Para Bates (BATES, 1979, p. 182), o pajé era um “impostor”,
encenava o ritual de cura diante dos expectadores. Na cena
observada pelo viajante não se tratava de um objeto em si, mas
de verme que teria sido introduzido no corpo da vítima por

377
IX Colóquio de História das Doenças: anais

feiticeiro inimigo. Veríssimo (VERÍSSIMO, 1887, p. 349) não


via o pajé como impostor, mas entendia que este era um sujeito
que “adulterava as regras e disciplinas da igreja”, considerando
que está fosse a causa de seu sucesso junto aos que buscavam seus
serviços.
Amoroso (AMOROSO, 2006b, p. 229) atenta que a magia
era um elemento que fazia parte do sistema etiológico (sistema
que explica a origem das coisas) e do complexo xamânico
Munduruku. Num só tempo, a magia era a causa e a cura para o
mal que se abatia sobre a vítima. Porém, estes aspectos fugiam
completamente da compreensão dos missionários capuchinhos
e dos viajantes que desqualificavam a sabedoria, a cultura, as
leituras e estratégias indígenas das doenças desconhecidas em
seus registros.

As febres para além das missões


Antes do mencionado caso da missão do Bacabal, epidemias
de febres atacaram os Munduruku do Alto Tapajós, em 1856,
porém, as notícias chegaram até as autoridades dois anos depois.
Em 1858, João Wilkens de Mattos, diretor geral dos índios da
província do Amazonas, teve notícias do surto epidêmico que
atacou os Munduruku de Tiacoron, aldeia localizada nas Campinas,
quando visitava a aldeia de Mucajatuba, no Amazonas. Lá tomou
conhecimento que 200 índios “Munduruku boçais”, recém-saídos
da floresta, encontravam-se assentados acima do rio Namby, do
igarapé Sucurijúassú e em algumas das oito cachoeiras. Estes índios
desejavam vir à aldeia, porém lhes faltava roupas e provisões.
Sem demorar, o diretor mandou ao encontro destes índios uma
pequena canoa equipada com provisões para trazer o principal
destes índios, o tuxaua Belizário, “o mais influente entre os de sua
tribo”, juntamente com sua família, para conversar (AMAZONAS,
ANEXO, 1858, p. 3).
Entretanto, antes da chegada do tuxaua Belizário, chegou
à aldeia de Mucajatuba um Munduruku de nome Puxutaka

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contando sobre o grande número de indígenas que ainda estavam


nas cachoeiras. Por este índio, João Wilkens de Mattos soube
que no final do ano de 1856 as malocas das Campinas foram
acometidas por uma peste que assolou quase todas as outras.
Os sintomas da moléstia causavam “grandes tremores, dores de
cabeça e vômitos, o que matava em poucas horas”. Encurralados
os tuxauas decidiram migrar para o rio Mawéassú, porém ao
longo do caminho perderam mais duas pessoas (AMAZONAS,
ANEXO, 1858, p. 3). Depois do regresso da expedição que
mandou até o Namby, Wilkens de Mattos partiu para outras
aldeias chegando ao rio Abacaxis, onde foi recebido pelo índio
Francisco Antônio em seu sítio, localizado no paraná-miri (rio
pequeno) do rio Urariá. Lá encontrou mais índios descidos
das Campinas pelo rio Canumã, que tinham ido visitar seus
parentes. O diretor os brindou e ratificou a notícia da epidemia
nas Campinas de Tiacoron, onde muitos índios morreram
(AMAZONAS, ANEXO, 1858, p. 4).
Márcio Couto Henrique (HENRIQUE, 2013, p. 7-8) ressalta
que em algumas ocasiões os missionários fizeram longas viagens
para fixar aldeamentos, por outro lado, os índios também buscaram
as autoridades manifestando a vontade de se aldear sob a autoridade
de um missionário. Quando essa situação ocorria, “a motivação para
isso tinha mais a ver com a dinâmica interna dos grupos indígenas,
do que com o desejo de tornarem-se cristãos e trabalhadores
produtivos para a província”. De certo, as doenças eram motivações
suficientes para que os índios buscassem os aldeamentos controlados
pelos missionários ou agentes de governo para obter ajuda, quando
não conseguiam lidar com seus efeitos.
As febres também chegaram com os Munduruku do rio
Cupari, segundo narrou Bates (BATES, 1979, p. 186) quando fez
escala em Aveiros, às margens do Tapajós, em 1852, para apanhar
algumas canastras que havia deixado ali. O viajante inglês relatou
que quando chegou a Aveiros estavam quase todos doentes, atacados
de febre e vômitos, e observou que para estes males “as pílulas
homeopáticas do vigário de pouco valiam”, porém não revelou quais

379
IX Colóquio de História das Doenças: anais

métodos de cura eram empregados. Bates confirmou ainda que o


Tapajós se manteve livre de epidemias por alguns anos, porém em
1853 foi um dos anos “mais trágicos para os habitantes daquela
região”. Uma epidemia se espalhou atacando a população, incluindo
os “amigos do Cupari”, referindo-se as pessoas que lhe deram abrigo
quando esteve pela região, e “grande número de habitantes da aldeia
dos Munduruku”.
Em 1858, o presidente João da Silva Carrão informava
“uma epidemia, porém sem caráter assustador em Gurupá, Porto
de Moz, Portel e Itaituba” (PARÁ, 1858, p. 26). Dois anos depois,
Santarém ainda sofria com uma epidemia de “febres de mau
caráter”, possivelmente a mesma que atacou a população em Cupari,
que flagelava os habitantes da região, principalmente, de Maicá,
Urumanduba e Alenquer, localizadas próximas de Óbidos, no
Baixo Amazonas. Os cuidados e auxílios necessários foram tomados
pelo governo para que a epidemia cessasse o mais rápido possível
(PARÁ, 1860, p. 4).
Ainda são necessárias pesquisas para conseguir ter
dimensão do ataque das febres no Tapajós e sobre as populações
Munduruku, mas já é possível perceber que essa doença, ainda
que endêmica e sazonal na maioria dos casos acessados, causava
distúrbios na região do Tapajós, e como não poderia ser diferente
nos espaços de missão. É possível averiguar também que os
Munduruku acionavam seus métodos próprios para lidar com os
surtos, fazendo leituras particulares sobre as febres e seus efeitos
sobre as aldeias.
Por outro lado, mesmo trabalhando com os rastros e indícios
da documentação, verificou-se a dificuldade de definir quais outras
doenças poderiam ser designadas de febres. Contudo nota-se que
quando as febres associadas ao clima da região eram identificadas e
classificadas pelas juntas médicas, além de contribuir para reforçar
as representações distorcidas sobre as populações indígenas e
natureza que habitavam.

380
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

Referências

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Pará, no dia 15 de agosto de 1857, por ocasião da abertura da segunda sessão da
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Pará, em 7 de abril de 1858, pelo presidente Dr. João da Silva Carrão. Pará: Tip.
Diário do Comércio, 1858.
PARÁ, Governo. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Ângelo Thomaz do Amaral
pelo primeiro vice-presidente da Província do Grão-Pará, o Exmo. Sr. Dr. Fabio

381
IX Colóquio de História das Doenças: anais

Alexandrino de Carvalho Reis de 8 de agosto de 1860. Pará: Tip. Comercial de


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PARÁ, Governo. Fala com que o Exm. Sr. Dr. João Capistrano Bandeira de
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384
Doença, culpabilização e sujeito-vítima:
os sentidos sobre saúde nos discursos de usuários
de droga, em blogs pessoais
Wedencley Alves1
Luana Luciana Ribeiro de Alencar2

“A adicção é uma doença que, sem recuperação, termina


em prisão, instituições ou morte”
Nem sempre o uso problemático de drogas foi associado a
transtornos mentais ou a uma doença, muito menos o seu uso era
criminalizado. As drogas eram usadas como símbolo sagrado em
rituais religiosos e eram receitadas pela medicina para tratamento
de algumas doenças, como o cigarro à base de cannabis para tosses
e catarros.
Após o início das guerras às drogas, legitimada pelo
biopoder, que já havia sido instituída como instância de controle
dos corpos já no século XIX (FOUCAULT, 1999), o olhar
medicinal sobre o uso de drogas passa mais a não ser usado para
tratar, mas para punir quem as usava, visto que as pessoas que
faziam uso problemático de drogas passarem a ser vistas como
doentes. Esse processo não se deu do dia para a noite. Ainda nos
anos 60, eram símbolo de liberdade e prazer, nos movimentos de
contracultura.
Com a criação do primeiro DSM (Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais), em 1952, o uso problemático
de drogas era descrito no manual como um transtorno mental
1 Docente da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Informação, Comunicação e
Saúde/FioCruz. E-mail: [email protected]

385
IX Colóquio de História das Doenças: anais

intitulado no tópico “Adicção por Drogas”, que abre margem para


acreditar que o uso de drogas poderia ser um sintoma de transtorno
de personalidade. A partir disso, percebemos que medicina e justiça
caminhavam juntas para patologizar e punir usuários de drogas,
principalmente pessoas de classe social mais baixa. Alguns desses
instrumentos usados para detectar quem era passível de ser um
doente ou um criminoso foram utilizados nos Estados Unidos, à
base de formulários, conhecidos como instrumentos atuariais
(DIETER, 2013, p. 6).
Não cabe a nós, em um trabalho discursivo-comunicacional,
discutir se o uso problemático de drogas é ou não é uma doença, mas
cabe ao nosso escopo o interesse de compreender como essas pessoas
que se auto intitulam doentes constituem e são constituídas por
esse discurso, e de que maneira elas se reconhecem e se identificam
como adictas.
Para esse fim fomos aos blogs pessoais de pessoas que
se identificavam dessa maneira, totalizando três blogs que
agrupavam as características de serem não institucionais,
pessoais, com depoimentos próprios e verídicos. O parâmetro de
recorte temporal que usamos até chegar à saturação nas análises
foi a seguinte: a partir das três primeiras postagens do mês em
que o blog foi inaugurado, analisamos os três textos do ano e do
mês subsequente ao que foi escrito pela primeira vez. Exemplo: se
as três primeiras postagens do blog foram em setembro de 2011,
analisamos as três primeiras postagens de outubro de 2012 e assim
sucessivamente, até chegarmos a uma saturação de sentido.

Dados e material analisados


Vejamos uns discursos encontrados nessa ambiência:
E1. Minha doença resiste em permitir que eu tenha a mente aberta
para aceitar que eu preciso mudar e que eu não posso mais manter os
comportamentos anteriores e minha auto-ilusão racionalizada de que sou
humilde.
E2. Trata-se de fazer a vontade de Deus prevalecer e não a minha, mas
na minha doença isso é extremamente difícil.

386
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

E3. A minha doença age de forma traiçoeira, comendo pelas beiradas,


aproveitando qualquer falha na minha armadura e esta semana não foi
diferente.
E4. O que quero falar hoje não é sobre meus momentos de fundo do poço
ou de alucinações que tive, e sim, de um fator muito importante para me
manter em abstinência; o remédio para minha doença.
E5. Foi difícil me perdoar e entender que não apenas tinha uma doença
mas que a cura estava aqui dentro.
E6. A adicção é uma doença do comportamento, da obsessão e
compulsão por algo ou alguém. Vivo em conflito comigo mesmo quando
o desejo por algo é maior que a minha força de vontade para controlar
minhas ações.
E7. Um adicto é simplesmente uma pessoa cuja vida é controlada pelas
drogas
E8. A adicção é uma doença traiçoeira que afeta todas as áreas de nossas
vidas, mesmo aquelas que a princípio não parecem ter muito a ver com
as drogas
E9. A adicção é uma doença que, sem recuperação, termina em prisão,
instituições ou morte.
E10. (...) devido ao uso de drogas eu já não tinha mais forças para
escolher quem eu verdadeiramente queria ser
E11. A doença da adicção manifesta-se silenciosamente e, de uma hora
para outra, não se consegue mais tomar apenas uma cerveja, cheirar
apenas uma grama ou fumar apenas duas “pedras”.
E12. Hoje eu não posso mais escolher em ser ou não um adicto, mas posso
escolher entre estar ou não em recuperação.

Algumas vezes a identificação com o discurso da doença é tão


intensa que nos enunciados como E1, E2 e E3 os sujeitos lançam
mão do pronome possessivo “minha” doença para falar de seu uso
problemático de drogas.
Em E1 ao mesmo tempo em que o autor faz uso do pronome
possessivo minha para se apropriar da adicção como doença, minha
doença, o verbo seguido permitir abre caminho para um sentido de
que por mais que a doença seja dele, ela o domina: Minha doença
resiste em permitir. Tais significantes reiteram o que vamos intitular
de sujeito-vítima, um sintoma do sujeito-neoliberal e que abarca
duas possíveis questões: a) se há uma vítima, há um réu b) a ideia
de vítima, nesse caso, vai na contramão do sujeito responsável de

387
IX Colóquio de História das Doenças: anais

si, visto que essa culpa é transferida para o outro, nesse caso para
as drogas. Podemos ver isso de maneira mais clara nas seguintes
conjecturas:
“Minha doença resiste em permitir que eu tenha a mente aberta para
aceitar que eu preciso mudar”

Aceitaria que preciso mudar se minha doença não resistisse em permiti-lo.


Em E2 encontramos indícios de uma formação discursiva
religiosa que atravessa a fala do sujeito, que traz em sua afirmação
uma relação de poder entre ele e Deus. Para a Análise de Discurso,
a formação discursiva (doravante FD) pode ser vista como uma
matriz de sentido, que determina o que pode e deve ser dito pelos
sujeitos (ORLANDI, 2002).
Novamente o sentido de doença aparece como um impeditivo
para que a vontade desse sujeito seja cumprida, o que aponta a
relação vítima-réu mais uma vez. O uso do “mas” na sequência do
primeiro fragmento vem para tentar justificar a impossibilidade
de a primeira afirmação acontecer. Mas outras locuções também
podem aparecer nessa função:
Trata-se de fazer a vontade de Deus prevalecer e não a minha, mas
na minha doença isso é extremamente difícil.
A vontade de Deus é impedida de prevalecer sobre minha vida por
causa da minha doença.
Se não fosse a minha doença, a vontade de Deus prevaleceria sobre
a minha.

Por outro lado o significante “extremamente” não exclui a


possibilidade de que esse sujeito faça a vontade de Deus prevalecer
sobre a sua.
“mas na minha doença isso é extremamente difícil”

Difícil por si só já seria suficiente para entendermos que a


“doença” do sujeito dificulta a vontade de Deus sobre ele, mas o
significante “extremamente” pode ser uma tentativa de reafirmar o
quão difícil tal ato é, difícil ao extremo. Outro ponto que percebemos
é que esse sujeito está duplamente em uma relação de poder, pois

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se não fossem as drogas que tomassem conta de sua vida, essa seria
entregue à vontade de Deus.
Em E3 o significante “armadura” nos remete a uma metáfora
de guerra. O campo semântico que se ocupa da prevenção de
drogas e sua extinção nos remete a uma memória discursiva de
que as drogas devem ser combatidas. Nesse enunciado o sujeito
ocupa uma posição-sujeito de vítima das drogas inimigas. A frase
“aproveitando qualquer falha na minha armadura” personifica,
de certa forma, as drogas, como se elas esperassem qualquer
oportunidade para “aproveitar-se” desse sujeito. O significante
“armadura” é parte do campo semântico do qual falamos acima.
Se algo ou alguém se aproveita de outra pessoa, podemos inferir
que essa pessoa ocupa, também, uma posição-sujeito de vítima e
toda vítima tem um culpado, que nesse caso é a doença dele e as
drogas.
Em E4a última frase do cotexto nos chama a atenção: o remédio
para minha doença. Outra vez nos deparamos com a aparição do
pronome possessivo “minha”, que é um efeito de evidência de que
esse sujeito está em identificação com o discurso biomédico sobre as
drogas. O autor faz uso do significante remédio que indica para um
sentido de cura. Embora percebamos o uso de significantes da área
da saúde, a base da cura sempre está pautada em preceitos morais,
como aponta os 12 passos do Narcóticos Anônimos. Em todos os
blogs analisados, os sujeitos passaram pelos Narcóticos Anônimos,
cujo discurso religioso é a sua base.
O significante “cura” aparece mais uma vez no enunciado
seguinte, E5, também atrelada a um sentido biomédico, atestado
pela frase “a cura estava aqui dentro”. Ora, se a cura estava
“dentro” desse sujeito, voltamos a outro sintoma da forma-
sujeito neoliberal: o autocuidado e responsabilidade de si. Toda
essa responsabilidade de si traz, sem dúvida, uma pressão social
para a vida de indivíduo e a culpabilização da vítima (CASTIAL;
GUILAM, FERREIRA, 2015). Essa autoculpabilização aparece no
trecho “Foi difícil me perdoar”. O perdão está entrelaçado com o
sentido de transgressão, só se pede perdão por um erro. Apesar

389
IX Colóquio de História das Doenças: anais

do lexema “doença” aparecer com um sentido biomédico, por sua


aproximação com o discurso da culpa e do autoestigma, podemos
dizer que essa doença que os sujeitos reafirmam e com as quais se
identificam está muito mais ligada a princípios morais do que à
área da saúde. Vejamos:
foi difícil me perdoar e entender que não apenas tinha uma doença
mas que a cura estava aqui dentro.

Além de ser doente, o sujeito aponta uma dificuldade de se


perdoar e de ser o responsável por sua própria cura. Ora esse sujeito
se martiriza duplamente: primeiro por ser doente, segundo por
ser o responsável por sua cura. Essas relações de sentidos podemos
perceber na relação entre os significantes “me perdoar”, “doença”,
“cura” e a expressão “estava aqui dentro”, que está interligada a
“foi difícil me perdoar”. Leia-se: foi difícil me perdoar, pois a cura
estava aqui dentro. Se estava aqui dentro, a responsabilidade por
estar são??? é minha. Toda essa culpabilização parece ser reforçada
pelo uso do significante “apenas”, pois bem não era apenas ter uma
doença o que o angustiava, mas sim saber que dependia dele a cura
para ela.
O significante “forças” aparece algumas vezes também na
relação de sentido vítima-réu como é o caso de E6, E7, e E10, na
maior parte reforçado pelo significante “forças”. Vejamos caso a
caso:
Em E6 encontramos uma tríade que está em relação de
sentido, doença-culpa-vítima. No primeiro momento, o sujeito
define o que é adicção em uma frase, o que aponta para um
silenciamento de outras variáveis que uma definição tão parca
não abarca. Para Análise de Discurso (AD) o silêncio também é
materialidade discursiva, e nesse caso nos perguntamos: por que
adicção é isso e não outra coisa? Isso por que no discurso há o que
chamamos de silêncio constitutivo, ao falarmos A silenciamos B.
O silêncio é anterior à linguagem, e mais: o silêncio é linguagem,
muito embora lidemos com a incompletude dessa linguagem. “... há
uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude

390
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
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da linguagem: todo dizer é uma relação fundamental com o não


dizer” (ORLANDI, 2007, p. 12).
Um jogo de forças que aponta para a incapacidade desse
sujeito de ser responsável e controlar suas ações aparece na segunda
parte do enunciado: “algo que é maior que a minha força de vontade”.
Embora o sujeito em seu discurso abra para uma possibilidade
de interpretação de que é controlado pelas drogas, ele parece
trazer a responsabilidade para si quando lança mão da expressão
“força de vontade”, que remete a toda uma memória discursiva da
responsabilidade de si. Mesmo que as drogas exerçam sobre esse
sujeito um controle, é a sua falta de força de vontade que o vence.
O uso da expressão “força de vontade” combinado com “vivo em
conflito comigo mesmo” parece apontar para o atravessamento
de uma FD religiosa da culpa no discurso do autor. Parece ser um
discurso equívoco, e temos por equivocidade do discurso o “lugar
dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível” (ORLANDI,
2007, p. 12).
Em E7 o lexema “simplesmente” parece resumir o que é um
adicto: “Um adicto é simplesmente uma pessoa cuja vida é controlada
pelas drogas”. Ao mesmo tempo que “simplesmente” parece apontar
para uma relação de sentido “é só isso”, por outro lado a descrição do
que é ser adicto aponta para um “é tudo isso”, visto que ao descrever
a doença o autor afirma “uma pessoa cuja vida é controlada
pelas drogas”. É aqui também que pelo significante “controlada”
percebemos a aproximação de sentido vítima-réu. Pois bem, se
esse sujeito é controlado ele não tem domínio sobre sua vida, não
é senhor de si e não consegue se autorresponsabilizar (ao contrário
do que já vimos nos outros enunciados). A responsabilidade, nesse
caso, recai sobre exercer poder e controle sobre esse sujeito, a saber,
as drogas.
Outra vez o significante “forças” reitera a posição sujeito
de vítima das drogas em que o autor se encontra no enunciado
E10. Por usar drogas ele não poderia escolher quem queria ser.
Ora, o significante “escolher” nesse cotexto parece apontar
novamente para a relação de forças entre droga e usuário, em

391
IX Colóquio de História das Doenças: anais

que pelo uso de drogas esse sujeito é incapacitado de exercer seu


direito de escolha. O lexema “verdadeiramente” pode indicar que
o autor é quem não é, ou seja, quem ele é não é verdadeiro e sim
um personagem.
Em E9 há uma equivocidade no discurso do autor, onde
ele afirma que a adicção é uma doença, mas pode terminar em
prisão. Os destinos de um adito, que estão na fala do autor, é
determinista – é X, Y e W – , não equivalem ao destino de quem
está doente. Pois bem, se a adição é uma doença ela deveria ser
tratada como tal, todavia há um atravessamento de discursos
outros na fala desse sujeito, como o discurso proibicionista e
criminal.
“termina em prisão, instituições ou morte”.
O uso desses três significantes, a saber, “prisão”, “instituições”
e “morte” combinados com o “ou”, faz com que haja uma relação
de sentido onde nos leva a crença de que somente exista esses três
destino para os adictos.
A apropriação do discurso biomédico atravessa várias vezes as
falas desses usuários, materializadas em “A adicção é uma doença...”.
Nesses atos enunciativos, o efeito-verdade se torna mais forte por
quem estar falando se autodenominar adicto.
O lexema “traiçoeira” parece indicar certo grau de
periculosidade da ação silenciosa dessa doença e um efeito de
medo, que requer certa vigilância do usuário de drogas. Outra
vez encontramos um determinismo na afirmação do autor ao
dizer que a doença afeta “todas” as áreas da vida, ora abre-
se a entender que se você for uma adicto terá toda sua vida
comprometida.
Em quase todos os enunciados acima, ao falar da doença
da adicção, como textualizam, a fala dos autores é determinista e
generalista, de maneira que nos leva a entender que a adicção da
qual falam ocorre em todos os indivíduos da mesma maneira, a
exemplo “A adicção é...”, que é carregada de muita certeza.

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Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

A expressão “de uma hora outra” aponta uma relação de


sentido em que a adicção é uma doença fora de controle, que não
se pode prever, excluindo em sequência a possibilidade do uso
recreativo de droga, leia-se: se você é um adicto não pode sequer
tomar uma cerveja. Ainda em E11, na primeira parte do cotexto o
autor fala da adicção de uma maneira que parece um especialista
escrevendo e ao mesmo tempo parece difundir um certo medo,
isso atestado pelas expressões: “manifesta-se silenciosamente” e
“de uma hora para outra”. Ao mesmo tempo em que a fala parece
especializada, nos deparamos no final do cotexto com o significante
“pedra” utilizado entre parênteses, que é sinônimo de crack, mas
textualizado de uma maneira informal.
Em grande parte dos enunciados a relação de poder entre
usuário apareceu em um cabo de guerra em que as drogas foram
antropomorfizadas. Estar ou não sob controle, poder escolher ou
não ser dono de si foram questões que os enunciados trouxeram
durante os relatos. No último enunciado dessa sessão atestemos isso
mais uma vez
“Hoje eu não posso mais escolher”
Antes eu poderia escolher?
Os dois significantes “hoje” e “mais” pode indicar que antes
o usuário poderia escolher em ser adicto ou não. Temos aí um
empasse. Ora, se adição é uma doença, como escolher ou não tê-
la? A conjunção “mas” vem de certa maneira para amenizar a
impossibilidade atual de escolha do sujeito de ser ou não adicto,
que agora é capaz de escolher a recuperação.

Formação Ideológica
Assim como não há discurso sem sujeito, não há sujeito sem
ideologia. Pois bem, a “ideologia é a condição para a constituição do
sujeito e dos sentidos” (ORLANDI, 2015, p. 44).
É na relação da linguagem com a história que o sujeito se
mostra como interpelado pela ideologia, interpelação essa que

393
IX Colóquio de História das Doenças: anais

varia de acordo com a nossa relação com a história. O modo


como o sujeito ocidental é interpelado pela ideologia é diferente
do sujeito oriental, por exemplo. Essa relação do sujeito com a
história chamamos de forma-sujeito. Há um assujeitamento do
sujeito pela ideologia, ou seja, já nascemos em uma sociedade que
está interpelada por condições socio-históricas produzidas e não
há como apagar isso, a não ser por uma falsa ideia de apagamento,
que em AD denominamos de esquecimentos 1 e esquecimento 2.
O primeiro é a naturalização de uma autoria do discurso, o sujeito
acredita que é dono e origem de seu dizer, já o esquecimento 2
há um apagamento de sentido, em que esse mesmo sujeito tem
no conteúdo do seu discurso a impressão de que o é exclusivo,
esquecendo que os sentidos já estão pré-estabelecidos (ORLANDI,
2012). Chamamos assim esses esquecimentos de esquecimento
ideológico e esquecimento enunciativo (ORLANDI, 2015).
O que pontuamos com isso é que muitas vezes esse sujeito
nem percebe, dado a esses esquecimentos, que está assujeitado e
muito menos que está interpelado por uma ideologia, mas embora
o sujeito não tenha consciência desse processo, ele acontece quer
queira, quer não e, procuramos, na textualidade dos enunciados
analisados, encontrar algumas formações ideológicas depois
de mapearmos as FDs. Ora, é a materialidade do discurso e o
reconhecimento das FDs que nos permite chegar às Formações
Ideológicas, visto que procuramos na língua e nas relações de
sentido ocorrências de FDs, que estão sob FI, “A ideologia não é
a ocultação, ela é produção de evidências” (ORLANDI, 2012, p.
105). Esses efeitos de evidência são produzidos por mecanismos
ideológicos (ORLANDI, 2007) e “A ideologia se produz
justamente no ponto de encontro da materialidade da língua
com a materialidade da história” (ORLANDI, 2007, p. 20).

Discussão: entre o saber médico, jurídico e religioso


A medicina, com o nascimento na psiquiatria, na metade do
século XIX, ganhou novos rumos e uma maneira distinta de lidar

394
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

com os tidos como anormais. Aliás, o século XIX trouxe várias


mudanças na relação do sujeito com o mundo, onde este começava
a ser marcado por uma perspectiva mais científica, reiterada pelo
pensamento positivista de Comte. O modo como as doenças
passaram a ser significadas e ressignificadas também marcaram esse
século, com o surgimento da psiquiatria ampliada e o isolamento do
anormal da sociedade, que embora já ocorresse antes o mecanismo
de poder e de saber que regia tal ato era religioso e moral. Mais
tarde, em 1999 Foucault esquematiza o ato do uso de mecanismos de
poder e saber para disciplina, normatização e exclusão dos corpos,
denominando-o Biopoder. (FOUCAULT, 1999; 1987)
Percebemos, durante as análises das FDs, uma forte
identificação dos usuários de droga com o discurso e o saber
biomédico, primeiramente por se auto intitularem “doentes” e
depois pelo uso de significantes que nos traziam essa relação de
sentidos sujeito-saber biomédico. Os Narcóticos Anônimos, em seu
site, traz no tópico “O que é adicção?” a visão da instituição sobre
o uso problemático de drogas, que foi readaptado em 1944-1945
da seguinte forma: “Tratamos adicção como uma doença, porque
isso faz sentido para nós e funciona. Não temos necessidade de
aprofundar este assunto mais do que isso”.3
Embora saibamos que o discurso do saber médico tomou
conta dos comportamentos desviantes, como assim eram chamadas
as adicções, o atravessamento e um discurso biomédico na fala dos
usuários muito provavelmente foi reiterado pela visão do N.A sobre
isso, pois todos os usuários dos blogs analisados fizeram menção
a instituição e aos doze passos de recuperação oferecidos por eles,
grande parte das vezes sendo seguidos de maneira religiosa por esses
sujeito, que recomendavam a instituição a pessoas que tinham os
mesmos problemas com o uso de drogas.
Com a expansão da psiquiatria, passou-se a utilizar o
que Caponi (CAPONI, 2012) chama de medicalização da
normalidade, ora a medicina não se ocupava somente de

3 Disponível em: https://na-pt.org/boletins/bol17.php.

395
IX Colóquio de História das Doenças: anais

curar, mas de “prevenir” que algumas doenças viessem à tona e


atualmente o respaldo dessa grande medicalização é cientificista
e não científica de fato, como atesta Whitaker (WHITAKER,
2014). O autor usa como exemplo o crescimento de receitas de
antidepressivos justificada pela teoria do desiquilíbrio químico,
para afirmar que acredita que se pode curar e prevenir a maioria
das enfermidades mentais com fármacos. E é essa tentativa de
normalizar os sujeitos, patologizar o cotidiano a fim de se obter
indivíduos saudáveis, uma das características mais sobressalentes
do biopoder. “É em nome da saúde de todos, da vitalidade da
espécie, do controle das doenças e da antecipação dos perigos que
a biopolítica pode multiplicar os espaços médicos de intervenção
social” (CAPONI, 2012, p. 24).
Antes, a figura que legitimava o discurso biomédico eram os
psiquiatras, médicos e alienistas, aliás o médico foi o primeiro objeto
de normatização da saúde (FOUCAULT, 1981). A comunidade
científica está em uma relação assimétrica de poder em relação à
população e podemos perceber isso na creditação das produções
de verdades produzidas por essas autoridades, creditação tal que
é capaz de fazer os sujeitos se reconhecerem nos rótulos que a
comunidade cria. Vejamos:
“Boa noite, sou Maurício, um adicto em busca de recuperação e
estou a 46 dias sem uso de drogas”.
“Meu nome é Carlos e sou um Adicto! Um dependente químico em
recuperação!!!

Geralmente nos apresentamos como nos reconhecemos


enquanto sujeitos no mundo e acima a posição-sujeito que essas
pessoas ocupam e se reconhecem é a de adicto, a dizer, doentes. Esse
discurso biomédico passou a atravessar vários discursos e a conferir
a outras autoridades o papel de perito biomédico, digamos assim.
Por exemplo, é o NA nos casos analisados que vai dizer ao usuário
que ele adicto. E mais, é essa instituição que incentiva os sujeitos
a admitirem-se como doentes como parte do processo de cura.
Pois bem, se há uma instituição dizendo o que é um adicto, as suas
características e que é preciso admitir que é um doente, percebemos

396
Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira,
André Luís Lima Nogueira, Patrícia M. S. Merlo (org.)

que ao tomar esse discurso como verdadeiro esses sujeitos conferem


um status de legitimidade e de efeito verdade ao discurso do
N.A. Logo, não só os médicos são autoridades que detém o saber
biomédico e o difunde, mas outras instituições passaram a fazer o
mesmo. Embora haja um regime de verdade funcionando dentro
do N.A, este só é efetivo se as pessoas que chegam até a instituição
se identifiquem com esse discurso, ao contrário esse sucumbiria,
então não trata-se de imposição, mas de processos de identificação
de ambas as partes.
“A adicção é uma doença que...”.
“Minha doença”
“mas na minha doença isso é extremamente difícil”.
“A minha doença age de forma traiçoeira”
“o remédio para minha doença”.
“Sei que minha doença não tem cura”
“A adicção é uma doença”
“A doença da adicção”

Reconhecer-se como doente também é uma estratégia do


biopoder para o controle dos corpos, como percebido nas análises.
Nos enunciados que analisados vimos uma relação assimétrica de
poder entre os usuários e o N.A e muitas vezes uma relação de
dependência e condição de cura, em que o sujeito acredita não
estar avançando na recuperação por ter parado de frequentar
a instituição ou não seguir os passos. Outras vezes vimos uma
identificação mais forte em que o sujeito acredita que só no
N.A há cura para a doença da adicção. Não seria reconhecer-se
como anormal a estratégia mais bem elaborada do biopoder para
a segregação e autosegregação e autoestima desse sujeito que de
alguma forma tenderia a se isolar do meio social por se enxergar
nessa condição?
Concluímos, por meio dessa análise, que o discurso sobre ser
doente também apresentou sentidos distintos, que são eles: o sujeito
como doente-vítima e como sujeito responsável por sua saúde, se

397
IX Colóquio de História das Doenças: anais

culpabilizando por escolher fazer uso de drogas. Vale ressaltar que


estamos falando do século XXI, de um tempo histórico dos excessos,
da busca desenfreada por prazer, mas ainda que atual traz consigo
rasgos do discurso cristão-puntivista.

Referências
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual de Diagnóstico e Estatística
de Distúrbios. Mentais DSM I. Disponível em: http://www.turkpsikiyatri.org/
arsiv/dsm1952.pdf. Acesso: 15 jan. 2018.
DIETER, Mauricio. Lógica atuarial e incapacitação seletiva: a farsa da
eficiente gestão diferencial das novas classes perigosas. Revista Epos,
v. 4, n. 1, 2013. Disponível em: 126 http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?pid=S2178700X2013000100003&script=sci_abstract. Acesso em: 21 mar.
2018.
CAPONI, Sandra. Loucos e Degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.
CASTIAL, Luis Devid; GUILHAM, Maria Cristina Rodrigues; FERREIRA,
Marcos Santos. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v. I: a vontade de saber. 13 Ed. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1999.
ORLANDI, Eni. Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes
Editores, 2015.
ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4 ed.
Campinas: Pontes Editores, 2012.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6.ed. Campinas,
Editora Unicamp, 2007.
WHITAKER, Robert. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas
psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Trad. Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.

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