r - t - Alex Sandro de Medeiros
r - t - Alex Sandro de Medeiros
r - t - Alex Sandro de Medeiros
CURITIBA
2019
ALEX SANDRO DE MEDEIROS
CURITIBA
2019
Dedico esta tese ao Bento, meu filho.
Também dedico aos meus pais, Laide da Luz Medeiros e
Osmar Medeiros, este saudosíssima memória.
AGRADECIMENTOS
The novel Um defeito de cor (2006), by Ana Maria Gonçalves, stands out for
the abundant use of epigraphs. This thesis aims to propose a reading of the work in
question from such paratexts, especially the citations of the dedications and the
prologue. The epigraphic paratexts of the corpus have an liminary dimension, in the
sense that not only are presented in the condition of exergo, spatially and
semantically on the margins of the text, but also constitute true locus of passage,
dialogue and articulation between texts and contexts, fiction and history, writing and
oral tradition. In addition, they extrapolate the conventional function of simple gloss of
the textual sections to which they refer, in order to assume a metafictional role,
concerning the act itself of narrating. In this perspective, the work initially initiates an
approach to metafictional aspects of the novel under study, related to orality and
African tradition, through an argument about on the elderly characters as figurations
of the story retelling, as well as the episode of the unfinished carpet woven by
Kehinde's grandmother, emblazoned with the image of Dan, Daomey vodun in the
form of ouroboros serpent, metaphor of the narrative itself under study. Moreover, it
is also the three crossings of the narrator across the Atlantic that, in addition to
rescuing the history of the African diaspora, of which Kehinde is a witness, presents
a self-referential character. Then, a theoretical approach of epigraphs is developed
as paratexts and citations, concomitant with their analysis. The epigraphs present in
the dedication of the novel point to three fronts of the narrative: the appreciation of
the elder in African culture, the establishment of networks of solidarity and the
transmission of tradition by orality. In turn, the epigraph that tops the prologue of Um
defeito de cor, extracted from John Barth's novel The Last Voyage of Somebody the
Sailor (1991), allows an intertextual and metafictional articulation of mirroring
between Sherazade, the best-known storyteller of universal literature, and
Kehinde/Luíza, the narrator of a cor defect.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 UM DEFEITO DE COR: MEMÓRIA, TRAVESSIA, RESISTÊNCIA ...................... 18
2.1 NO INÍCIO ERA O VERBO: ORALIDADE, ANCIANIDADE E TRADIÇÃO.......... 18
2.2 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRÓLOGO DO ROMANCE .......... 42
2.3 NARRADORA E NARRATÁRIO: CARTA, LIVRO DE MAMÓRIAS, ROMANCE 45
2.4 ENTRE IBÊJIS E ABIKUS SOB O SIGNO DE DAN: O NARRAR COMO UM
TAPETE INACABADO .............................................................................................. 52
2.5 A PRIMEIRA TRAVESSIA: SOLIDARIEDADE E RESISTÊNCIA ....................... 63
2.6 DE ESCRAVA A ALFORRIADA, REVOLUCIONÁRIA E MÃE EM BUSCA DO
FILHO ...................................................................................................................... 69
2.7 DE KEHINDE A SINHÁ LUÍSA: A SEGUNDA E A DERRADEIRA
TRAVESSIA NO ATLÂNTICO NEGRO ..................................................................... 76
3 AS EPÍGRAFES DE UM DEFEITO DE COR ......................................................... 84
3.1 A UM PASSO DO LIMIAR: PROBLEMATIZAÇÕES ........................................... 84
3.2 O LIMIAR PEDE PASSAGEM: LEITURA A PARTIR DA EPÍGRAFE COMO
PARATEXTO E CITAÇÃO ........................................................................................ 89
3.3 AS EPÍGRAFES DO PRÓLOGO COMO GLOSA: AS SERENDIPIDADES
DO ROMANCE E O ROMANCE DA SERENDIPIDADE ......................................... 111
3.4 KEHINDE/LUÍSA E SCHEHERAZADE: INTERTEXTUALIDADE E METAFICÇÃO
NA EPÍGRAFE DE JOHN BARTH .......................................................................... 126
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 140
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 145
11
1 INTRODUÇÃO
Esta tese tem como escopo propor uma leitura do romance Um defeito de
cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, tendo como foco as epígrafes da
obra, de modo a perceber nelas uma zona de transição e transação entre texto e
contexto, ficção e história. Tal premissa permitirá um arrazoado acerca da
possibilidade de tais paratextos epigráficos extrapolarem a sua função mais
convencional – geralmente a de glosa ou comentário do texto a que se referem –, a
ponto de assumirem uma dimensão metaficcional. Isso, no sentido de verificar se as
citações epigráficas remetem ou não a temas e questões relativas à própria narrativa
em si.
Publicado em 2006, um defeito de cor, obra que inaugura o chamado roman-
fleuve (saga) na literatura afro-brasileira, tendo, como narradora, uma ex-
escravizada (BERND, 2012, p. 29). Obra de fôlego (952 páginas), surpreende não
tanto pela recepção positiva da crítica – graças à forma primorosa como foi forjada,
embora a escritora fosse uma iniciante – como do público, de modo geral, mais
afeito a narrativas breves e com pouca densidade.
De cunho memorialista, a história é contada pela narradora-protagonista
Kehinde, ex-escravizada, numa narrativa que se constitui num misto de carta e livro
de memórias. O prólogo da obra, é assinado por outra narradora/autora (que
dramatiza o papel da autora Ana Maria Gonçalves), que narra a gênese da obra, a
misturar realidade (relato autobiográfico de Ana Maria Gonçalves) e ficção.
A narradora do prefácio, escritora a buscar uma matéria que servisse de
assunto para a escrita de uma obra, descobre, casualmente, um calhamaço de
papéis antigos sendo rabiscado por um menino, na ilha baiana de Itaparica.
Interessada no conteúdo dos manuscritos encontrados, obtém da criança tais
papéis, a troco de materiais para desenho. De posse do manuscrito, interessa-se
pela história nele contida e transforma-o em romance, num trabalho que mescla o
ato de escrever, reescrever e editar, de maneira a transformar o manuscrito (que era
do século XIX) em romance contemporâneo.
Esse artifício narrativo escolhido pela autora não é exclusivo nem recente.
No entanto, ao lançar mão do manuscrito antigo, encontrado fortuitamente, como
fonte para a escrita do romance, a autora “dá mais força à enunciação, camuflando
assim sua ‘autoridade’ inerente à condição de autora” (BERND, 2012:29), além de
12
1
Essa referência ao enunciado que abre o Evangelho de São João (BÍBLIA, 1994, p. 2014) não é
utilizada aqui em seu direcionamento teológico usual, mas ligada à transmissão oral de uma
tradição. Por isso, o termo “verbo” apresenta-se com inicial minúscula. Na verdade, a pretensão é
que remeta ao vocábulo latino verbum,-i, de multíplices significados. O sentido que interessa – e
que norteará este subcapítulo – é aquele ligado ao “fallar (sic), discursar”, conforme Saraiva (2000,
p. 1264). A propósito, o termo provérbio advém de verbum (SARAIVA, 2000, p. 973), de maneira,
que porta, em sua raiz semântica e etimológica, um caráter primordialmente oral, acústico.
2
Neste trabalho, para designar o negro cativo, escolheu-se o termo escravizado, mais em voga, no
lugar do vocábulo escravo, tradicionalmente utilizado para esse fim. Segundo Harkot-de-La-Taille e
Santos, a diferença terminológica consiste no fato de que o substantivo escravo evoca uma carga
semântica ligada a um status ontológico, portanto, permanente, da escravidão, reduzindo o negro à
condição reificante de propriedade mercantil. Por outro lado, o termo escravizado alude a outro
campo de sentido que permite entender, de modo mais dinâmico, o processo de escravização como
um estado transitório. Além disso, o termo substituinte em questão dá espaço à dimensão histórica
e social das relações de poder relativas à escravidão, em sua tônica violenta, arbitrária e abusiva
(HARKOT-DE-LA TAILLE; SANTOS, 2012).
3
Segundo Lopes (2004, p. 42), agudá é “No Benin, designação que se dá ao portador de sobrenome
de origem portuguesa, em geral descendente de retornados do Brasil. O vocábulo, presente no
fongbé e no iorubá, parece originar-se no substantivo “ajuda”, do nome do forte português de São
João Batista da Ajuda, pronunciado como oxítono. Os Agudás formam uma comunidade distinta do
restante da população beninense, assim como os Amarôs na Nigéria e os tabons de Gana.
19
4
Sobre a importância da ancestralidade nas sociedades tradicionais africanas, Alberto da Costa e
Silva afirma que “da ação dos ancestrais depende a felicidade dos seus descendentes e, de certa
forma, a própria harmonia do mundo” (COSTA E SILVA, 2013, p. 63).
5
Sobre isso, vale mencionar o artigo A lenda e a lei: a ancestralidade afro-brasileira como fonte
epistemológica e como conceito ético-jurídico e normativo, de São Bernardo (2018), que,
considerando a realidade afro-diaspórica brasileira, trata justamente da dimensão totalizante dos
valores ancestrais vindos de África, agregadora do geral e do particular, do espiritual e do terreno,
sintetizados no termo africano ubuntu e “fundamento da norma jurídica” entre os africanos e afro-
brasileiros tradicionais (SÃO BERNARDO, 2018, p. 232).
6
Mircea Eliade, em Mito e realidade, ao demonstrar algumas homologias entre à filosofia platônica,
concernente à “teoria das Ideias” e ao conceito de anamnese com o que denomina “ontologia
arcaica” das sociedades antigas e tradicionais, destaca a importância da memória “primordial”: “O
homem dessas sociedades encontra nos mitos os modelos exemplares de todos os seus atos. Os
22
Digo “aconteceria” porque sei que não vai acontecer. Aliás, tenho menos de
7
um dia de viagem e rogo conseguir chegar até onde quero, mas, caso não
consiga, preciso ir pelo menos até o lugar de onde a Geninha possa
continuar. (GONÇALVES, 2012, p. 919).
Em mitos e contos de fada, a falta física da visão pode ser uma premissa
para a visão interna, para a divinação. O cego Tirésias recebe de Zeus o
dom de prever o futuro. Para atingir a mais alta sabedoria, o deus
germânico Odin penhora um olho. Quem for cego para os deuses deste
mundo (terreno), verá Deus no céu. (LURKER, 2003, p. 124).
8
O termo em questão não se refere propriamente ao arquétipo, de complexa e multiplice definição,
mas às chamadas imagens arquetípicas. Para Carl G. Jung, o arquétipo consiste em um construto
universal do inconsciente coletivo, que se manifesta na capacidade de se criar tais imagens
simbólicas, a partir da milenar experiência de observação e interação do ser humano com os
fenômenos da natureza: “Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação
exterior deve corresponder – para ele – a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar
em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do
homem. Todos os acontecimentos mitologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as
fases da lua, as estações chuvosas etc., não são de modo algum alegorias destas experiências
objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a
consciência humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos
da natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de civilização para
desligá-la de algum modo de seu objeto exterior”. (JUNG, 2014, p. 14-15). Nessa perspectiva,
representações estudadas neste trabalho, como o idoso, o cego, o oceano e a serpente serão
denominadas imagens arquetípicas, presentes na literatura e nos mitos (RUTHVEN, 1997, p. 33),
resultado da capacidade inata do arquétipo em produzi-las.
9
Pretende-se com esse jogo de palavras aludir ao mito como tradição e a palavra grega mûthos,
como narrativa, que, segundo André Malta possui o sentido original ligado ao conceito de “fala, isto
é, ‘ato de vocalização’, ‘emissão sonora verbal’” (MALTA, 2015, p. 17), referindo-se às marcas da
oralidade na poesia homérica.
24
Não sem propósito, era Mnemosyne, deusa titã da memória e mãe das sete
musas, a entidade mítica que patrocinava a poesia para os gregos. Dessa feita, com
vistas na perpetuação da tradição, a poesia grega, em especial a epopeia, estava a
serviço da memória do passado glorioso dos helênicos e de seus mitos, elementos
formadores de identidade. Conforme Jaeger (1994), os aedos, no momento de sua
performance transmissional, ficavam como que possuídos pelas musas em êxtase
poético10, de modo a unir poesia e mito, na função educadora que lhes era atribuída,
a de manter vívidos os feitos dos heróis e das divindades:
10
Outra característica comum aos idosos africanos que, no processo de transmissão oral da tradição,
incorporavam a persona do ancestral evocado nas narrativas.
25
11
Tal é a concepção helênica original. Parte da união necessária e
inseparável de toda a poesia com o mito – o conhecimento das grandes
ações do passado – e daí deriva a função social e educadora do poeta.
Para Platão, esta função não consiste em nenhuma espécie de desígnio
consciente de influenciar os ouvintes. O simples fato de manter viva a glória
através do canto é, por si só, uma ação educadora. (JAEGER, 1994, p. 62).
Em segundo lugar, a escrita homérica, por meio da Ilíada (em catorze mil
versos) e da Odisseia (em doze mil) são resultado da transmissão oral. Nessas
obras foram registrados os mitos e eventos fundamentais para a concepção
identitária dos gregos. Tais eventos constituem-se no final da Guerra de Tróia, o
regresso de um de seus principais heróis, Odisseu, à ilha de Ítaca, o joguete dos
deuses com o destino humano (debalde ou a favor do fatum), tanto no que se refere
ao famoso conflito, que durou dez anos, quanto durante o retorno marítimo de
Ulisses, que levou dezessete.
É de consenso entre os estudiosos que essas obras foram fruto da reunião,
por escrito, de diversas narrativas poéticas orais da tradição grega, propagadas, de
geração em geração, pelos aedos e, por séculos, aprimorada. É, igualmente de
consenso que são, ambas, obras fundadoras da literatura ocidental, mais que
consagradas pelo cânone literário, mesmo perdendo o calor do contexto original,
com a performance do aedo, em seus ritos próprios, diante da comunidade reunida e
as especificidades locais de recepção da mensagem a ser transmitida.
Nesse contexto, vale lembrar o prefácio da monumental História geral da
África, escrito pelo então secretário geral da UNESCO, Amadou-Mahtar M'Bow , no
qual ressalta a atitute discrepante da academia em negar o legado da tradição oral
africana, como se o continente não tivesse história, enquanto que as epopeias
homéricas sempre foram consideradas fontes para os estudos históricos:
11
O dêitico “tal”, que inicia a citação, refere-se ao comentário de Jaeger sobre o elogio de Platão ao
“êxtase poético” ou “delírio divino” como aportes importantes na educação do povo grego, a Paideia:
“A possessão e o delírio das musas apoderam-se de uma alma sensível e consagrada, despertam-na
e extasiam-na em cantos e em toda a sorte de criações poéticas; e ela, enquanto glorifica os
inúmeros feitos do passado, educa a posteridade” (JAEGER, 1994, p. 67).
26
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos
séculos, por vias que lhes são próprias e que o historiador só pode
apreender renunciando a certos preconceitos e renovando seu método.
(M’BOW, 2010, p. XXI).
Eu ainda não tinha chorado por eles, e só fui parar quando, tarde da noite, a
Esméria voltou do povoado e sentiu minha falta, indo procurar em todos os
lugares onde sabia que eu gostava de ficar. Ela sentou ao meu lado e me
chamou de sua menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do
peito dela e me embalou com cantigas da África. Então cantou até que eu
dormisse, como naquele dia em que a minha mãe dormiu para sempre no
quente do colo da minha avó, em Savalu. Ou como no dia em que eu e a
Taiwo dormimos no barracão, embaladas nos braços de Nana e Iemanjá.
(GONÇALVES, 2012, p. 107).
Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado
nada fora de propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a
transcrição, e principalmente durante a escrita do que não consegui
entender, eu a senti soprando palavras ao meu ouvido. (GONÇALVES,
2012, p. 17).
12
O pai de Kuanza era analfabeto e as correspondências eram lidas por um seminarista, que também
as respondia para o Maneta (GONÇALVES, 2012, p. 620)
32
13
Trata-se da sinhazinha Maria Clara, amiga de Kehinde/Luísa e esposa do doutor José Manuel.
14
Segundo Lopes (2004), inkisi ou inquice é um termo banto correspondente ao “receptáculo ou
objeto em que se fixa a energia de um espírito ou de um morto. No Brasil, passou a significar o
próprio espírito a ser usado, nos cultos bantos, como sinônimo de orixá” (LOPES, 2004, p. 342).
33
força que todas as coisas e todos os seres devem possuir, a vontade que
eles precisam para cumprir o destino que era próprio deles, e somente dele.
O maneta disse também que o padre compreenderia isso depois do dia em
que se juntassem sete sóis e sete luas, e que uma criança fosse batizada
por sete bispos15, reunindo sete vontades. (GONÇALVES, 2012, p. 620).
15
No Memorial do Convento, essa criança trata-se de D. Maria, filha de D. João V: “Sete bispos a
batizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor, e ficou a chamar-se
Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de dona adiante, (...)”. (SARAMAGO,
1991, p. 64).
34
viva voz, num ditado, por parte da narradora. A entonação é de uma linguagem que
se aproxima da conversa (ou parte dela, a da narradora) entre os dois personagens
originalmente envolvidos no processo comunicativo (a narradora e seu destinatário
imediato):
No caso de Nega Florinda, o estilo oral fica evidente, não apenas pelo teor
das narrativas orais proferidas, muitas delas já conhecidas por Kehinde, que as
escutara da avó. Durante o seu mister, a idosa, utilizava uma técnica peculiar,
“batendo palmas ritmadas antes de começar e durante a narração, com força e
velocidade diferentes, para ajudar a fazer suspense” (GONÇALVES, 2012, p. 82).
Tal dado demonstra que a anciã resgata ou reproduz um costume dos contadores
de histórias da África tradicional, impondo ritmo e musicalidade em suas narrativas,
de modo a tanto ajudá-la a reproduzir as histórias, como eficaz recurso mnemônico,
quanto a tornar a recontação mais envolvente para a plateia.
A narradora, desde que trava contato com Nega Florinda, reconhece nela a
presença da tradição. Logo à primeira vista, assustada, a constituição física da idosa
e sua indumentária peculiar leva a protagonista identificá-la como um dos egunguns,
isto é, entidades da cultura daomeana que representam os espíritos dos ancestrais
(GONÇALVES, 2012, p. 81).
Para Kehinde, a ancianidade da personagem possui um liame estreito com a
missão de recontar a memória ancestral. Mais que isso, o fato de ser idosa confere à
sabedoria de Nega Florinda um nível universalizante, como se ela conhecesse todas
as narrativas do mundo. Nesse sentido, percebe-se como, desde menina, a
36
A Nega Florinda era das pessoas mais antigas da ilha, morava lá desde que
tinha chegado da África, ainda mocinha, e já era forra havia tanto tempo que
ninguém vivo se lembrava dela como escrava. Era muito velha e parecia
saber todas as histórias do mundo, desde que o mundo era mundo, como
ela mesma dizia. Como recontadeira, andava de casa em casa e recebia
algum dinheiro ou mesmo sobras de comida, que aceitava de bom grado
antes de se agachar em qualquer canto e contar histórias. (GONÇALVES,
2012, p. 81).
Se é verdade que desde o início de seu contato com Nega Florinda, Kehinde
revela grande fascínio pela personagem e interesse por suas narrativas, também o é
que seu relacionamento com a anciã extrapola a condição de ouvinte. Isso, graças
ao fato de que Nega Florinda era da nação mina ou jeje, a mesma de Kehinde, e,
além disso, uma vodunsi ou vodu-no, sacerdotisa “no culto de Dãn-Gbi, a Grande
Serpente” (GONÇALVES, 2012, p. 83). Ora, a avó da narradora também era uma
vodunsi, assim como Agontimé, a rainha mãe, fundadora do primeiro assentamento
brasileiro do culto aos voduns em São Luís do Maranhão, tanto no enredo do
romance como de fato.
Dessa feita, a sacerdotisa recontadeira de alôs passa a ser, na diáspora, a
primeira guia espiritual a atender as necessidades da menina Kehinde, cujos
conhecimentos da religião tradicional foram interrompidos com a morte da avó. Além
de transmitir-lhe algumas instruções gerais, não iniciáticas, sobre os voduns, regala
a narradora com um pingente que representava a irmã gêmea Taiwo e uma estátua
de Ibêjis, cumprindo o último desejo da avó de Kehinde, transmitido à neta, a fim de
que a alma da protagonista ficasse completa malgrado a morte da irmã gêmea
(GONÇALVES, 2012, p. 82).
Além disso, a narradora descobre, por meio de Nega Florinda, que ainda
não havia assentamentos de terreiros da nação jeje em terras brasileiras e que já se
planejava fundá-los no tempo oportuno, a fim de que a presença dos voduns se
estabelecesse no país e o povo mina pudesse manter viva a religião em locais
consagrados para tal finalidade, conforme a tradição. Enquanto isso não
acontecesse, a velha aconselha Kehinde a cultuar os orixás nagôs correspendentes
aos voduns do Daomé. Note-se aqui a menção ao fenômeno sociológico da
37
No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o grande poder que
os voduns possuíam. Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás
para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba,
Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum,
Xangô, Tlegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xapoã e Olokum. Na Bahia, os orixás já
tinham tomado conta das cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito
tempo, praticado por quase todos os africanos que, por muitos e muitos
anos, iam parar naquelas terras. Nossos voduns nunca teriam força para
ganhar um pouco de espaço ou atenção, e para eles estava destinado um
lugar não muito longe dali, do qual, por enquanto, ela nada podia falar.
(GONÇALVES, 2012, p. 83-84).
encontro intenso com a ancestralidade e com o passado, com a Bahia, com a Mãe
África:
Somente quando pisei aquele terreno foi que compreendi o que significava
estar ali, um lugar tão perto, mas, ao mesmo tempo, tão longe de casa. Até
por serem lugares parecidos, eu estava com a sensação de ter andado por
uma rua da Bahia e, de repente, ter encontrado um atalho para a África. O
lugar não tinha nada de Savalu ou mesmo de Uidá, mas ali estava uma
pessoa que tinha convivido com minha avó, com seus voduns e suas
crenças, e que possivelmente também tinha conhecido a minha mãe.
Percebi como tinha me afastado disso tudo como parecia distante o dia em
que eu tivera uma família ou mesmo um lugar que pudesse dizer que era
meu, a minha gente na minha terra. Quando tive, era muito pequena para
saber como era importante e seguro. (GONÇALVES, 2012, p. 595).
personifica todos os seus mestres anciãos, como agente da transmissão oral. Uma
recontadeira que, pela memória, permite a transposição da transmissão oral à
narrativa escrita. No entanto, ela o faz – vale sempre frisar – por meio da oralidade,
já que suas histórias são ditadas e não diretamente escritas. Para tanto, a narradora
se serve de um intermediário, Geninha, atitude significativa, pois remete novamente
à dimensão acústica do seu recontar. Dessa forma, a personagem Kehinde/Luísa
pode ser considerada uma figuração que mescla oralidade e escrita, os
transmissores orais da tradição (idosos, griots, griotes, aedos) e os narradores do
gênero romance, o passado e a contemporaneidade, ou melhor, a
contemporaneidade com os dois pés no passado, se for permitida uma prosopopeia
tão paradoxal ao caso.
A narradora do romance, bem como as personagens Esméria, Nega Florinda
e Agontimé podem constituir-se figurações do segundo provérbio africano das
dedicatórias, “Amigo é como um vizinho quando Deus está distraído” (GONÇALVES,
2012, p. 5), epígrafe endereçada aos amigos pela autora. Mais uma vez, as
epígrafes da dedicatória extrapolam a sua função e dialogam com a narrativa do
romance. Isso, porque as idosas citadas, que passaram pela vida de Kehinde/Luísa,
estabeleceram com ela, uma verdadeira rede de solidariedade, numa relação que,
muitas vezes, vai além da amizade, assumindo uma dimensão praticamente familiar,
o que se traduz em gestos concretos de ajuda, amparo, além da dedicação em
repassar os valores ancestrais.
A terceira citação proverbial das dedicatórias, “Uma chama não perde nada
ao acender outra chama” (GONÇALVES, 2012, p. 5), também se inclui nessa
extrapolação paratextual e dialógica. Na verdade, apresenta-se como uma extensão
lógica da primeira epígrafe do conjunto em análise. Se os dois provérbios fossem
anexados como apenas um, poder-se-ia detectar a seguinte sucessão de ações,
resumidas em três verbos: Ouvir (“Se você segue as pegadas dos mais velhos”),
imitar (“aprende a caminhar como eles”) e transmitir (“Uma chama não perde nada
ao acender outra chama”).
O segundo provérbio das dedicatórias metaforiza uma condição essencial
para que os estágios de ouvir (reter) e imitar cheguem ao do transmitir. Consiste na
generosidade e solidariedade necessárias, por parte daquele que recebeu a
tradição, em partilhar sua sabedoria com os outros para que ela não morra (“Uma
chama não perde nada ao acender outra chama”). É curioso destacar, inclusive, que
42
esta segunda epígrafe se encontra, graficamente, no meio das outras duas, como se
representasse um cimento, uma cola a uni-las no plano do sentido.
A narrativa de Um defeito de Cor, dessa feita, tem na oralidade uma marca
fundamental, que já se manifesta nos provérbios africanos da dedicatória, paratextos
estes que fazem parte da tessitura romanesca, constatação que, possivelmente,
pode ser obtida após a leitura completa do texto. Também se faz presente nas
personagens anciãs, analisadas neste tópico, bem como tem, na própria narradora,
uma figuração do processo oral de transmissão. Assim, tanto Kehinde/Luísa quanto
as personagens anciãs constituem-se em índices de metaficcionalidade, pois
representam o próprio ato de narrar, ato esse resultante de uma transmissão oral da
memória tradicional, que deve ser preservada e passada adiante, resgatando um
passado recontado no presente.
A mescla entre o histórico e ficcional gera uma forte tensão no gênero que
parece requerer certos comentários ou justificações. O autor se vale, pois,
dos prólogos e dos epílogos para defender a autonomia e os direitos da
ficção, a intencionalidade estético-literária de seu discurso, e, ao mesmo
tempo, para declarar suas fontes historiográficas, indicar o uso que fez dos
dados históricos, expor seu conceito de gênero, manifestar seus propósitos
16
didáticos, etc. (PRIETO, 2005, p. 171) (tradução nossa) .
16
“La mezcla entre lo histórico y lo ficcional genera uma fuerte tensión en el género que parece
requerir ciertos comentários o justificaciones. El autor se vale entonces de los prólogos y de los
epílogos para defender la autonomia y los derechos de la ficción, la intencionalidade estético-
literaria de su discurso, y a la vez para declarar sus fuentes historiográficas, indicar el uso que há
43
______________
hecho de los datos históricos, exponer su concepto del género, manifestar sus propósitos
didácticos, etc.” (PRIETO, 2005, p. 171).
44
Embora eu use aqui o título de editor, eu mesmo trabalhei neste livro, e não
escondo isso. Fiz tudo, e a correspondência inteira é uma ficção? Gente do
mundo, que vos importa? Certamente, é uma ficção para vós?
17
(ROUSSEAU, 1856, p. 4) (tradução nossa) .
Julgamos o nosso dever prevenir ao público que, apesar do título desta obra
e do que diz o redator em seu prefácio, não garantimos a autenticidade da
compilação e, mesmo, temos fortes razões para pensar que se trate apenas
de um romance (LACLOS, 1971, p. 11).
17
“Quoique je ne porte ici que le titre d´editeur, j´ai travaillé moi-même à ce livre, et je ne m´en cache
pas. Ai-je fait le tout, et la correspondance entière est-elle une fiction? Gens du monde, que vous
importe ? C'est sûrement une fiction pour vous”. (ROUSSEAU, 1856, p. 4).
46
Passei horas agradáveis com o Senhor Mongie, que também era curioso
para saber da minha vida, das minhas lembranças da África, da Bahia e do
Maranhão, e disse que dariam um livro. Vai ver ele tinha razão, porque acho
que é exatamente isso que estou fazendo agora, um livro só para você.
(GONÇALVES, 2012, p. 662).
18
O baiano Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) – poeta, advogado, republicano, abolicionista
e maçom de São Paulo – foi, no Brasil, o único intelectual negro do século XIX que passou pela
condição de escravizado e, depois de liberto, lutou pela abolição da escravatura durante toda a sua
vida profissional. Segundo Lígia Fonseca Ferreira também foi o “primeiro poeta afro-brasileiro”, no
sentido de assumir orgulhosamente a sua negritude e militar contra a escravidão e o racismo de
sua época (FERREIRA, 2011, p. 37). Poeta satírico, publica em 1861, as Primeiras Trovas
Burlescas de Getulino, no qual critica as mazelas no campo da política, dos costumes e do
preconceito racial. Jornalista combativo da causa republicana e abolicionista, publicou diversos
artigos tratando desses temas em jornais, como o Radical Paulistano, Correio Paulistano, Gazeta
47
(...) esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma
anônima, mas sim de uma escrava muito especial, alguém de cuja
existência não se tem confirmação, pelo menos até o momento em que
escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda,
inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis,
ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição
desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que
tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e
mães são grandes heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados
por mentes espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou
falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais
tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos
primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da
abolição da escravatura. Um homem inteligente e batalhador que, tendo
nascido de uma negra e de um fidalgo português que nunca o reconheceu
como filho, conseguiu se tornar advogado e passou a vida defendendo
aqueles que não tiveram a sorte ou as oportunidades que ele tão bem
soube aproveitar. O que você vai ler agora talvez seja a história da mãe
deste homem respeitado e admirado pelas maiores inteligências de sua
época, como Rui Barbosa, Raul Pompéia e Silvio Romero. Mas também
pode não ser. E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do
manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas,
levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes,
datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a
pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro. Não
pela história, que não desejo a ninguém, e logo você vai saber por quê.
(GONÇALVES, 2012, p. 17).
21
Trata-se da Carta a Lúcio de Mendonça (25/7/1880), que pode ser encontrada integralmente na
obra Com a Palavra, Luiz Gama, coletânea de textos poéticos, jornalísticos, epistolares e aforísticos
do autor, organizada por Lígia Fonseca Ferreira (2011, p. 199-203).
22
Reis (2012) aponta que nessa época havia grande resistência dos senhores de escravizados em
comprar os provenientes da Bahia, por terem fama de rebeldes e insubmissos. Não somente por
causa do Levante dos Malês, como também pelas diversas revoltas de menor vulto, anteriores a
1835. Sobre a repressão do governo a uma rebelião baiana, anterior à dos Malês, o historiador
baiano afirma: “Aqueles que fossem absolvidos em julgamento só poderiam deixar a cadeia para
serem imediatamente vendidos para fora da província – o que não era fácil, porque as autoridades
em muitas regiões do Brasil dificultavam a importação de escravos baianos pela reputação de
rebeldia que tinham.” (REIS, 2012, p. 117).
49
Tudo isso, tendo o romance, como pano de fundo, o discurso histórico que
permite ao leitor entrar em contato com a África iorubá da Costa da Mina
oitocentista, em seus conflitos internos de poder e a consequente escravização de
populações rivais; a narrativa também conta os horrores da diáspora africana pelo
Atlântico, contemplando a crueldade com que os cativos eram conduzidos nos
navios negreiros que aportavam no Brasil e a inserção dos negros escravizados na
nova terra. Postos à margem, devido à sua condição de propriedade, sujeitos às
crueldades dos senhores, mas também capazes de resistir das mais variadas formas
para manter a vida e a identidade: da sabotagem ao levante violento, da
preservação secreta da religião à necessidade de manter a memória familiar e
cultural.
Além disso, o leitor é levado a conhecer a história dos retornados à África e
seus conflitos com os africanos nativos, e que, ao contrário do tempo vivido no
Brasil, quando era necessário se afirmarem como africanos, assumem a identidade
de brasileiros em seu continente de origem, adotam o catolicismo, zombam dos
nativos e cultivam uma visão preconceituosa em relação a estes.
Enfim, não passa despercebida a história do Brasil entre 1810 a 1899,
abarcando portanto o Período Colonial, a Independência, o Primeiro Reinado, o
Período Regencial, o Segundo Império, a instauração da República e toda a
mudança de legislação no que toca à política escravista, descambando na Abolição
de 1888 e o decorrente descaso do Estado para com a população afro-brasileira de
então. Todas essas “histórias” são expostas sem didatismos, da boca de Kehinde ou
de outros personagens por meio dela, narrativas entranhadas no dia-a-dia das
relações interpessoais da protagonista e de pessoas que passam pela sua vida,
contadas a partir do ponto de vista de uma mulher negra, inserida na realidade
escravista brasileira e, posteriormente, na costa central africana do século XIX como
retornada. Trata-se, portanto de um olhar a história de um ponto de vista periférico,
diverso da visada histórica oficial das elites.
Nesse sentido, Bernd (2014, p. 24) ressalta que Um defeito de cor é o
primeiro roman-fleuve da literatura afro-brasileira em que a narradora (e também
protagonista) é uma mulher. Acrescente-se outros adjetivos: escravizada, ex-
escravizada, revolucionária, mãe, empresária, retornada, leitora voraz e escritora
memorialista.
51
Essa unidade dos ibêjis Taiwo e Kehinde é percebida pelo leitor ao longo de
todo o romance, principalmente por meio dos sonhos em que a narradora
protagonista sente a presença da irmã falecida.
Quanto ao significado dos nomes, Lopes (2004, p. 333) esclarece que ao
gêmeo que nasce primeiro se apõe o nome de Taiwo (“aquele que sentiu primeiro o
gosto da vida”) e ao que nasce depois, “Kainde ou Kehinde (‘Aquele que demorou a
sair’)”.
Nos primeiros dois intertítulos de Um defeito de cor, a ambientação mítica
não se resume apenas à nomeação de ibêjis e abikus. No título interno “O destino”,
onde a ação da narrativa começa efetivamente, há um entrelaçamento entre o
elemento mítico e o histórico, resultando na primeira tragédia ocorrida na vida da
protagonista.
A ação romanesca inicia com a avó de Kehinde sentada à sombra do Iroco,
árvore sagrada dos Iorubás ou “a Grande Árvore”, tecendo um tapete com motivos
religiosos relacionados a Dan, divindade nativa, de cujas entranhas irrompe “o
grande império do povo iorubá” (GONÇALVES, 2012, p. 20). Num certo momento, o
trabalho da idosa é interrompido com a presença de alguns guerreiros de
Adandozan, do Daomé, que queriam tomar algumas galinhas da família para si. No
intertítulo anterior, a narradora já havia citado o nome do soberano, no final de sua
narrativa do mito do surgimento do Daomé, chamando-o de o “rei monstro”
(GONÇALVES, 2012, p. 20) que expulsara a sua avó da capital, Abomé. Rei que,
logo quando ascende ao trono em 1797, escraviza e manda Nã Agontimé ao Brasil
em um tumbeiro por considerá-la uma ameaça ao seu poderio (SILVA, 2005, p.
133). A mesma Agontimé, personagem do romance com quem a avó da
protagonista tinha relações no passado e que exercerá um papel importante no
resgate da identidade ancestral de Kehinde na Bahia e em São Luís do Maranhão.
A intervenção dos guerreiros seria apenas uma apreensão de víveres e não
teria resultado no estupro e assassinato da mãe e do irmão de Kehinde, se um deles
não tivesse identificado “símbolos de Dan” (GONÇALVES, 2012, p. 21) no tapete da
avó da narradora, figuras que o leitor fica sem saber quais são até o capítulo oito. O
símbolo que se mostra no texto, entretanto, deixa os guerreiros mais agitados e
raivosos, a saber, “o desenho de uma cobra que engole o próprio rabo que havia,
mais sugerida que desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa”
56
Oxumaré não é homem nem mulher, mas as duas coisas juntas. Durante
seis meses ele vive como homem e mora perto das árvores, e durante os
outros seis é uma mulher muito bonita que vive nas matas e nas lagoas. No
corpo de mulher, Oxumaré é Dani, que é o nome feminino da cobra Dan, e
a minha avó desenhava Dani como a cobra enrodilhada que come o próprio
rabo. Ela dizia que essa cobra, sem começo ou fim, é a mesma coisa que o
trabalho de Oxumaré, que não pode parar de levar as águas até o céu, de
onde elas tornam a cair, e para onde ele torna a levá-las, sem descanso.
Era uma Dani que a minha avó estava tecendo no dia em que os guerreiros
apareceram na nossa casa, em Savalu (GONÇALVES, 2012, 593).
Pouco tempo depois dessa manifestação onírica, certa noite, uma cobra pica
o membro sexual do sinhô José Carlos, enquanto dormia, e durante vários dias ele
agoniza lenta e dolorosamente, falecendo com o corpo praticamente putrefato.
Interessante mencionar que, embora o intertítulo desse episódio seja “A vingança”,
não há nenhuma evidência explícita de que alguém tenha cometido o crime de
assassinato, colocando a serpente na cama do senhor de engenho. No entanto, há
sugestões ambíguas de que isso tenha acontecido, seja no plano espiritual como no
físico. No plano espiritual, as gargalhadas “reais e escancaradas” da avó
(GONÇALVES, 2012, p. 173), no ato de tecer um tapete com uma cobra incompleta,
pode sugerir uma intervenção da divindade Dã e do espírito ancestral da avó.
No plano material, há uma tentativa ambígua de inocentar os escravizados
da casa, ao se afirmar que na Ilha de Itaparica havia uma abundância de cobras e
que a “Antônia jurou que não havia nada na cama quando foi verificar se o quarto
estava de acordo para que o sinhô se deitasse, que ela tinha até alisado as cobertas
sem sentir volume algum” (GONÇALVES, 2012, p. 174). Por outro lado, o sorriso de
Esméria ao dar notícias da desgraça do senhor, sugere um espelhamento com a
risada desbragada da avó de Kehinde no sonho. De qualquer forma, a morte do
sinhô José Carlos, atingido no órgão sexual por um animal de forma fálica, que
simboliza a cultura ancestral da narradora, representa uma forma de resistência
escrava à violenta opressão sofrida. De acordo com Mattoso (2016), quando a
situação de dominação e truculência se tornava insustentável, o escravizado podia
tanto reagir de forma violenta, assassinando o seu dono, quanto de maneiras mais
sutis, “no limite da honestidade” (MATTOSO, 2016, p. 181). Também nesse sentido,
Reis e Silva (1989) apontam as diversas maneiras como o escravizado exercia a
resistência ao jugo:
Por toda a parte, e não sem polêmicas, abre-se um leque de questões que
vão das formas explícitas de resistência física (fugas, quilombos e revoltas),
passando pela chamada resistência do dia-a-dia, roubos, sarcasmos,
sabotagens, assassinatos, suicídios, abortos, até aspectos menos visíveis,
porém profundos, de uma ampla resistência sociocultural. (REIS; SILVA,
1989, p. 62).
58
24
Em nota de rodapé de Um defeito de cor esclarece-se: “Muçurumim: muçulmano”. (GONÇALVES,
2012, p. 32). Essa será a designação para o termo no romance. Nei Lopes, em sua Enciclopédia
brasileira da diáspora africana reza que muçurumim é o “mesmo que malê. Do hauçá musulmi,
‘muçulmano. Também muçulmi”. (LOPES, 2004, p. 456).
59
Foi a cobra, que nem eu nem ninguém mais viu de novo pela casa. Depois
que eu já tinha dito à Oxum tudo o que queria e ia descer para entregá-la à
Claudina, a cobra apareceu de repente, pulando em cima de mim. A
primeira reação foi me proteger, jogando a Oxum contra ela, e quando olhei
para o chão tingido de dourado, a idéia surgiu inteirinha, como um raio de
sol iluminando minha cabeça. Naquele segundo fiquei sabendo exatamente
o que fazer e tudo que ia acontecer depois. Procurei a cobra e não
encontrei nem rastro dela, e ela não poderia ter saído do quarto, que estava
com a porta fechada. Quando fui pegar a Oxum, olhei o chão ao meu redor
e ele estava coberto com um pó dourado que tinha caído de dentro da
estátua de madeira. Reparei melhor nela e percebi que sua racha tinha
aumentado de tamanho e mostrava um grande talho, e era de lá que
escorria o pó. Cheguei com ela perto da janela, onde estava mais claro, e
percebi que ainda havia muito mais lá dentro. Forcei um pouco a abertura e
a estátua se partiu ao meio, deixando ver que guardava uma verdadeira
fortuna. Ouro em pó e pepitas, e também muitas outras pedras de cores
variadas, brilhantes, pequenas, parecendo vidro transparente, tomando
conta de todo o oco da estátua, que não era tão pequena. Na hora eu soube
que aquilo valia muito dinheiro e que era dele que eu deveria partir para
realizar meus sonhos. O de liberdade e o sonho no qual era dito o nome do
Francisco, que tinha acabado de se revelar. (GONÇALVES, 2012, p. 343-
344)
Com dinheiro suficiente para pagar a sua alforria, mas ante as negativas da
sinhá em concedê-la, Kehinde serve-se de Francisco, escravizado por quem Ana
Felipa tinha certa atração sexual reprimida, para montar um esquema de chantagem
e obter a carta para si para o seu filho Omotunde e foi o que de fato aconteceu.
No oitavo capítulo do romance, agora no Rio de Janeiro à procura de
notícias do filho, ela tem sonhos recorrentes de uma cobra a morder um papel que
ela tentava arrancar da serpente. A personagem associa o sonho à certidão de
batismo. Pórem, ao comprar uma Bíblia do senhor Mongie, Kehinde logo a identifica
à serpente sedutora do mito adâmico do pecado original: “E por essas coincidências
inexplicáveis, lá estava uma cobra nas primeiras páginas, mordendo não um papel,
mas uma maçã” (GONÇALVES, 2012, p. 684). Não é, entretanto, a primeira
identificação da figura da serpente com a religão cristã. Quando fora capturada
ainda menina em Uidá, antes do embarque no navio negreiro, a personagem
testemunha o batismo católico imposto a uma multidão de escravizados:
Foi tudo muito rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma
grande fila diante do padre, parecendo uma cobra que ia da beira da água
até quase a saída do barracão onde estivemos presos. Uma grande cobra
de fogo, pois era ladeada por guardas que formavam um corredor iluminado
por tochas. (GONÇALVES, 2012, p. 50)
60
Naquela mesma época eu ainda estava lendo a Bíblia, e qual não foi a
minha surpresa quando abri uma página e nela estava escrito: Dã. O vodum
do Daomé, o vodum cultuado pela minha avó ou o nome de um chefe que
fundou a tribo de Dã, onde morava um povo que fugiu do Egito guiado por
um deus chamado Javé. Essas duas coisas fizeram com que os sonhos
voltassem, e comecei a aplicar alguns conhecimentos que tinha aprendido
com a sinhá Romana, mesmo incompletos, pois dos seis anos de estudo
necessários para me tornar uma vodúnsi completa, eu tinha feito menos de
três. (GONÇALVES, 2012, p 700)
seja saudável. A árvore a que se refere Verger, pode remeter ao iroco do romance,
embaixo do qual a avó de Kehinde tecia um tapete estampado com a gêmea de Dan
e que causou furor nos guerreiros intrusos. É o início do mûthos da narrativa, ao pé
da árvore sagrada onde, possivelmente, foram depositados os cordões umbilicais da
narradora e de seus irmãos, o iroco, cena que se pode, também, associar à
dimensão dialética do uroboro, pois constitui contraste entre a avó da narradora (fim
do ciclo da vida) e os cordões e a placenta enterrados (a gênese). Também é
possível associar a uma autorreferência à Kehinde narradora que conta a história da
Kehinde criança. Dan/Oxumaré pode ser considerado, dessa forma, uma metáfora
do próprio ato de narrar de Kehinde, que, aos poucos, vai tecendo as suas
memórias, continuando o tapete-texto interrompido pela avó com sua narrativa, ao
mesmo tempo de forte consciência histórica, mas com bases firmes na mitologia
ancestral. A própria vida da narradora é um misto de realidades de morte em
contraste com acontecimentos felizes e dificuldades corajosamente superadas, a
resultar em crescimento espiritual, intelectual, existencial, afetivo e de sucessos
financeiros.
Se, como já se afirmou, não há um discurso ideologicamente polarizado da
narradora, tendo como ponto de vista sua situação de escravizada e duplamente
desterritorializada (Brasil e África); o mesmo não se pode constatar na dimensão
mítica do romance. O uroboro, segundo Chevalier e Gheerbrandt (1992, p. 716) é
um símbolo que gesta em si contradições, mas que garante a unidade de princípios
opostos fundamentais por meio da circularidade. A serpente circular engolindo a
própria cauda, igualmente, desafia a pulsão da vida, da auto preservação, mas
também domina a pulsão de morte, em vista de uma superação espiritual. Nesse
sentido, o uroboro é sinal de transcendência, representado pelo círculo. Ao contrário,
o ato da serpente morder a si mesma, segundo os estudiosos, representa o
fechamento do uroboro em seu próprio ciclo de existências, o samsara indiano,
evocando a ideia de eterno retorno: “simboliza o retorno perpétuo, o círculo
indefinido de renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de uma
pulsão fundamental de morte.”25 (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1992, p. 716,
tradução nossa).
25
“Il symbolise alors le perpétuel rétour, le cercle indefini des reaissances, la continuelle répétition, qui
trahit la prédominance d’une fondamentale pulsion de mort”. (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1990,
p. 716).
63
Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer,
as histórias, a importância de cultuar e respeitar nossos antepassados. Mas
disse que eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e
colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo
que não fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da
nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do
poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais
velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas
depois de terminar de dizer o que podia ser dito, virando comida de peixe
junto com a Taiwo (GONÇALVES, 2012, p. 61).
26
“Amid the brutal imprisonment, terror, and premature death, they managed a creative, life-affirming
response: they fashioned new languages, new cultural practices, new bonds, and a nascent
community among themselves aboard the ship. They called each other “shipmate,” the equivalent of
brother and sister, and thereby inaugurated a “fictive” but very real kinship to replace what had been
destroyed by their abduction and enslavement in Africa. Their creativity and resistance made them
66
______________
collectively indestructible, and herein lay the greatest magnificence of the drama”. (REDIKER, 2007,
p. 9).
67
Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se
medo. Mas a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que
significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro
de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família,
estava indo para um lugar que não conhecia, sem saber se ainda era para
presente ou, já que não tinha mais a Taiwo, para virar carneiro de branco. A
Tanisha disse que eu sempre poderia contar com ela, que poderia ver nela
a mãe, a avó e a irmã perdidas (GONÇALVES, 2012, p. 61).
Só mais tarde percebi que nada poderia deixar alguém mais selvagem do
que a travessia da África para o Brasil, e eu também já tinha sido uma
selvagem, só que não estava sozinha, pois tinha a Taiwo, a minha avó, a
Tanisha, a Jamila e a Aja, só para falar das pessoas que me eram mais
queridas. Senti muita falta delas e de todos que não cheguei a conhecer
melhor, porque eram cúmplices mesmo assim, sabendo parte da minha
história que eles também tinham vivido. Talvez a parte mais importante,
porque mudava todo o resto de uma vida (GONÇALVES, 2012, p. 112).
68
das Minas no Maranhão, que presenteou Kehinde com a Oxum recheada de ouro
em pó e colaborou com a iniciação da protagonista no conhecimento dos voduns.
pela sua crueldade com a escravaria27, Sinhá Ana Felipa se afeiçoa a Banjokô e
procura afastá-lo da mãe, a fim de criar o menino como se fosse seu e não da
protagonista. Para tanto, persegue Kehinde e lhe impõe castigos injustos. Mesmo
oprimida, a narradora sempre consegue uma forma de superar as adversidades e
encontrar-se com o filho. Um desses castigos resultou numa das serendipidades do
romance, na ocasião em que Kehinde leva secretamente Banjokô no terreiro de
Baba Ogumfiditimi, para a cerimônia do nome. A festividade se prolonga além do
esperado, a narradora atrasa a sua volta e a ausência do menino é descoberta pela
sinhá, que confere uma surra em Kehinde e o castigo de encerrá-la no porão do
solar, onde a personagem ficou por pouco mais de dez dias.
Terminado o castigo, Kehinde é destinada a trabalhar como escrava de
aluguel da família de Mister Clegg, representante do governo inglês na cidade de
São Salvador. Na casa dos Clegg aprende não somente a língua inglesa como
também puddings e cookies, sendo que, mais tarde, a venda deste último será a
responsável pelo início da independência financeira da narradora.
Desfeito o acordo com Mr. Clegg, sinhá Ana Felipa encontra outra forma de
deixar Kehinde sempre longe e Banjokô: resolve tornar a narradora uma escrava de
ganho. Dessa forma, Kehinde não poderia mais morar nos porões do solar e deveria
encontrar urgentemente um espaço para instalar-se, um trabalho para manter-se e
conseguir pagar uma boa parte de seu lucro à sinhá. Conforme Reis (2012, p. 351-
352), no sistema de ganho, o escravizado deveria desenvolver alguma atividade
lucrativa, repassar diária, semanal ou mensalmente ao senhor uma cota
previamente estabelecida, havendo também a possibilidade de se juntar pecúlio,
27
Por ciúmes do marido, sinhá Ana Felipa manda arrancar os olhos de Verenciana, uma belíssima
escrava com quem o sinhô José Carlos mantinha relações, e manda servi-los à mesa do marido,
num pote de conserva. Kehinde, ao escutar uma conversa entre Liberata, mãe de Verenciana, e
outras escravas na senzala grande, descobre que o último aborto da sinhá foi causado por
determinadas ervas secretamente colocadas na comida por vingança ao malfeito de Ana Felipa:
“Eu nada disse, e deu para perceber que falavam sobre umas ervas que a Liberata tinha feito
chegar até a Antônia, na casa-grande, que seriam colocadas na comida e fariam o ventre da sinhá
secar de vez, não deixando brotar nem suspeita de nova criança” (GONÇALVES, 2012, p. 114.
Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, comenta caso similar como comum, dentre outras
crueldades das senhoras, geralmente motivadas por “rancor sexual” em relação às escravas: “Não
são dois, nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos
inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à
presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue
ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de
quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas;
ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma
série de judiarias” (FREYRE, 2006, 421). É possível que haja uma relação intertextual entre o
episódio de Verenciana e o texto de Gilberto Freyre, que consta na bibliografia do romance.
72
caso o cativo conseguisse ganhar além do que tinha que dar ao dono, o que nem
sempre lhe era permitido. Além disso, esse sistema de trabalho escravo, que enchia
as ruas de São Salvador de africanos exercendo os mais diversos ofícios, permitia
ao cativo uma ampliação de possibilidades pessoais e coletivas, reforçando
“solidariedades étnicas e religiosas” (REIS; SILVA, 1989, p. 12) propícias à rebelião
de 1835, composta majoritariamente de escravizados urbanos e de ganho:
Eles faziam de tudo. Isso certamente deu aos escravos urbanos uma visão
de mundo mais ampla, inclusive fazendo-os explorar as possibilidades de
alforria individual e mobilidades ocupacional. Além disso, deu-lhes
consciência de sua força e de sua capacidade para criar uma sociedade
livre do comando dos brancos (REIS, 2012, p. 351).
29
Lilia M. Scwharcz e Heloisa M. Starling ilustram o que ocorreu na noite do levante: “Dessa vez, o
ataque partiu de dentro da cidade, e a população não teve uma noite fácil. Na madrugada de 25 de
janeiro, grupos de africanos escravos e libertos, armados com porretes, instrumentos de trabalho e
armas brancas, lutaram nas ruas de Salvador, durante mais de três horas, enfrentando soldados e
civis. A religião esteve entrelaçada com a revolta: boa parte dos rebeldes saiu para lutar nas ruas
com as compridas túnicas rituais brancas – os abadás – usadas pelos adeptos do islamismo. Ainda,
carregavam junto ao corpo amuletos com mensagens do Alcorão e com orações fortes para
proteção”. (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 256).
74
Em 1837, dois anos após a malograda rebelião da qual fez parte e durante a
vigência da Rebública Baiana de Francisco Sabino, Kehinde é presa por engano
durante uma manifestação popular conhecida como Cemiterada. A protagonista não
militava no protesto, sendo apenas curiosa espectadora do evento. Entretanto, já
conhecia, pela boca do doutor Jorge, todo o contexto de revolta da população, que
não aceitava a imposição sanitarista de não enterrar seus mortos nas igrejas.
O fato de Kehinde ser uma africana liberta, por si, tornava melindrosa a sua
situação de detenta, levando em conta o contexto da forte repressão subsecutiva à
Revolta dos Malês. Além desse agravante, naquela circunstância específica, a
atitude dos revoltosos presos era considerada um ato de traição ao regime
federalista baiano, que adotara a medida obrigatória dos sepultamentos em
cemitérios. Esse duplo estado (negra liberta e rebelde) implicaria o risco da
consequente deportação da protagonista.
Malgrado o cenário desfavorável, a narradora consegue sair da cadeia por
meios escusos, graças à intercessão do doutores Jorge e José Manoel, marido da
sinhazinha Ana Clara. Kehinde, nesse contexto complicado, não tem outra
alternativa senão fugir de Salvador, deixando Omotunde aos cuidados de Esméria,
que falece tempos depois, de Claudina e Alberto, o pai do menino. O primeiro
destino da protagonista foi a Ilha de Itaparica, hospedando-se no terreiro de
Mãezinha, Ialorixá que lhe transmitiu conhecimentos sobre os orixás, a visão da
morte para os iorubás, os eguns, os egungus e sobre o culto geledé. A partir dessa
convivência espiritual com a mãe de santo, o sentimento de tristeza e raiva do
sistema repressor, de Alberto (que se casara com uma branca) e até dos
muçurumins da Revolta dos Malês (cujos principais líderes, provavelmente, haviam
fugido das punições), vai se transmutando em um desejo de se aprofundar na
religião ancestral.
Começa um período de introspecção para Kehinde, que parte para São Luiz
do Maranhão, onde há o primeiro assentamento brasileiro da religião dos voduns,
fundado por Agontimé, ou Maria Mineira Naê, como era mais conhecida. Cumprido o
seu período de aprendizado na Casa das Minas no Maranhão, a narradora vai para
Cachoeira, no recôncavo baiano, para receber mais instruções e fazer a iniciação
como vodunsi.
Recém-iniciada na religião da avó e ainda residindo em Cachoeira, recebe a
trágica notícia de que, aproveitando-se da doença grave de Claudina, Alberto
75
(...) Iniciar é, de certo modo, fazer morrer, provocar a morte. Mas a morte é
considerada uma saída, a passagem de uma porta que dá acesso a outro
lugar. À saída, então, corresponde uma entrada. Iniciar é também introduzir.
O Iniciado transpõe a cortina de fogo que separa o profano do sagrado,
passa de um mundo para outro, e sofre, com esse fato, uma transformação,
muda de nível, torna-se diferente.
A transmutação dos metais (no sentido simbólico da alquimia*) é também
uma iniciação que exige uma morte, uma passagem. A iniciação opera uma
metamorfose. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 506).
vende suas posses e viaja com mercadorias para comercializá-las e iniciar uma nova
vida na terra natal. Além disso, a importação dos bens culturais tupiniquins para a
África recorda ao leitor que a narradora transporta mais que produtos brasileiros.
Junto ao fumo, charutos e cachaça, a narradora leva consigo o que Gilroy (2012)
denomina a cultura do Atlântico Negro, uma forma híbrida de identidade e visão de
mundo, nascida a partir da diáspora africana, no navio negreiro durante a Middle
Passage e, por consequência, do contato dos escravizados com a cultura da nova
terra, onde o cativo se situava em um entrelugar, na luta cotidiana para sobreviver
como indivíduo e como grupo, em uma sociedade da qual ele não fazia parte. O
resultado desse intercâmbio cria novas formas de manifestações coletivas na arte,
na dança, na religião, dentre tantas, e um novo jeito de conceber a própria
identidade. Kehinde, portanto, não era a mesma, embora preservando a memória
ancestral. Á Uidá de sua infância também, como já anuncia o paratexto epigráfico do
nono capítulo do romance: “Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome”.
As situações eram distintas, mas o medo era quase igual, medo do que ia
acontecer comigo dali em diante. É claro que os motivos também eram
diferentes, porque naquela volta eu seria a única responsável pelo meu
destino, e na partida tudo dependia daqueles que tinham me capturado.”
(GONÇALVES, 2012, p. 731).
30
Kehinde explicita o termo sarô da seguinte forma: “Nunca tinha sido escravo e não era um dos
retornados, o que não fazia dele um saro (Sarô ou salô: corruptela de "Serra Leoa", como eram
chamados os africanos que tinham sido libertados pelos ingleses no tráfico clandestino para o Brasil
ou para Cuba. Como libertos, eles viviam algum tempo em Serra Leoa. Sendo de maioria iorubá,
normalmente voltavam depois para Lagos, mais perto das cidades do interior onde tinham sido
capturados), embora soubesse falar aquela língua deles, misturada com o inglês, e também se dizia
quase protestante. Isso da religião o John não contou para ninguém além de mim, e sempre
frequentou comigo as festividades católicas. Era melhor para ele, que poderia ser chamado de
77
no patacho Sunset, e têm com ele um casal de filhos gêmeos, Maria Clara e João,
ao mesmo tempo ibêjis (ou hoho, como se dizia então) e abikus. Com o dinheiro das
mercadorias importadas do Brasil, a narradora estava pronta para começar a vida
em África. Em sociedade com John31, trabalha no comércio de charutos, panos da
costa e óleo de palma, além de entrar no negócio lucrativo de armamentos e
pólvora, que seriam utilizados, principalmente, na captura e manutenção do tráfico
negreiro para o Brasil. Para que tal projeto se concretizasse, entretanto, foi
necessário que Kehinde mantivesse boas relações com o rei Ghezo e,
principalmente, com o Chachá, vice-rei do Daomé, pois somente com a proteção de
Francisco Félix de Souza era possível negociar em Uidá.
A própria Kehinde reconhece a atitude contraditória de comerciar armas para
o tráfico negreiro, do qual ela mesma foi vítima. No entanto, em nome da
sobrevivência e afirmação naquele ambiente, arruma as suas justificativas, o que
demonstra certa mudança em sua visão de mundo e de posicionamento mais
individualista ante a realidade histórica, diversa da Kehinde revolucionária de 1835.
Prevalece, antitética ou paradoxalmente, a Kehinde disposta a prosperar, vencer na
vida e continuar senhora do seu destino:
Como bem dizia o Fatumbi, infelizmente a vida era assim mesmo e cada um
que cuidasse de si, já que diretamente eu não estava fazendo mal a
ninguém. Se eu não vendesse as armas, outras pessoas venderiam e as
guerras iam continuar existindo, como sempre tinham existido. Eu só não
tinha coragem de comprar e vender gente, porque já tinha sentido na pele
como era passar por tal situação, embora muitos retornados fizessem isso
sem remorso algum. Mas o comércio com armas, que só era menos
lucrativo que o de escravos, eu e o John fizemos por um bom tempo,
enquanto buscávamos outros tipos de negócio. O bom era que tínhamos
pagamento garantido, pois o rei não podia correr o risco de perder seus
fornecedores. (GONÇALVES, 2012, p.771).
______________
espião caso não se mostrasse totalmente convertido, como na história que vou te contar depois”
(GONÇALVES, 2012, p. 776).
31
A união matrimonial e empresarial de Kehinde e John representa a aliança entre agudás e sarôs,
católicos e protestantes respectivamente, ambos marginalizados pela população nativa da Costa da
África Central por seus costumes estrangeiros, mas desejosos de aceitação e respeito na
sociedade. Sobre isso, Alberto da Costa e Silva destaca que as duas comunidades “viviam em
bairros separados e frequentavam, quando cristãos, igrejas diferentes. Desde o início, porém,
alguns poucos começaram a casar-se entre si. Moravam de maneira semelhante, quando tinham o
mesmo nível de renda. Vestiam-se, agudás e sarôs, de igual maneira, à europeia. E tinham a
mesma aspiração de formar uma espécie de burguesia negra, que fosse aceita como igual no
pequeno e fechado mundo dos brancos. Não por acaso aliaram-se, uns e outros, aos poderes
coloniais” (SILVA, 2003, p. 133-134).
78
32
Conforme J. Michael Turner, o fenômeno do retorno de ex-escravizados à África, a partir do porto
de Salvador acentua-se na década de 1830 e “Antes do fim do século XIX, o número de emigrantes
afro-brasileiros para a África Ocidental havia ultrapassado o número de três mil” (TURNER, 1978, p.
19). Guran (2002, p. 66) aponta um número superior, entre sete e oito mil retornados.
79
33
“Esse processo, que denominei bricolagem da memória, opera pela composição de um conjunto de
referências históricas que foram passadas pela tradição oral e se inscrevem no presente por meio
de rituais simbólicos e comportamentos sociais – maneiras de se vestir, se alimentar e falar – que
identificam os agudás entre si e os diferenciam dos demais grupos. Dessa forma, esses ex-
escravos se reinseriram como cidadãos com plenos direitos na própria sociedade que os tinha
excluído, o que é bastante raro” (GURAN, 2012, p. 126).
81
quais ficou conhecida em África: Luísa Andrade da Silva, como também a adição de
dona ou sinhá. Se, ao chegar ao Brasil como escrava, Kehinde, que nunca fora
batizada, adota o nome de Luísa, não pelas raízes brancas e cristãs do substantivo
próprio, mas por lembrar-se que Tanisha, sua amiga e companheira de navio
negreiro, o havia recebido do padre no rito de iniciação católico, o mesmo não
ocorre com os acréscimos que adota. Todos se referem a memórias do Brasil:
Não obstante ser conhecida por outro nome, que não o africano, a narradora
nunca negou ser Kehinde, o que significa, em outras palavras, nunca haver
abandonado o seu liame com a identidade ancestral. Retomando e parafraseando a
epígrafe do primeiro capítulo, a narradora, que personifica toda a comunidade de
retornados, passou por um processo identitário de mestiçagem, ou de crioulização,
como defende Èdouard Glissant, numa espécie de metamorfose ou reinvenção,
resultante não apenas dos intercâmbios culturais, como, principalmente, da
necessidade em resistir às adversidades da diáspora em culturas diversas e hostis,
como a borboleta que se fere “quando esbarra em espinhos” (GONÇALVES, 2012,
p. 19).
Ademais, valendo-se, igualmente, do provérbio africano citado na epígrafe
do nono capítulo – “mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome”
(GONÇALVES, 2012, p. 731) – afirmando que, mesmo seco (leia-se diferente), ele
preserva o seu nome (identidade), os africanos que retornaram da África, vieram
culturalmente diferentes, mestiços, sincréticos, afro-brasileiros. Por outro lado, como
já foi abordado, a África, que Kehinde e os demais agudás encontraram ao retornar
do Brasil, também não era aquela construída por eles em recortes ou retalhos da
memória, durante a escravidão no estrangeiro. Além disso, com o regresso dos ex-
escravizados, dentre eles a narradora, a África transformou-se não somente pelo
82
O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais
gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito
algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se
fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a
vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito. Eu me
sinto muito mais orgulhosa de ter nascido Kehinde do que sentiria se tivesse
nascido padre Clement, um bom homem, com certeza, mas que se
submetia à necessidade de agradar aos brasileiros ricos de Lagos, Porto
Novo e Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas cidades
(GONÇALVES, 2012, p. 893).
34
À guisa de ilustração, Alberto da Costa e Silva destaca o protagonismo comercial dos agudás em
todo o golfo do Benin e elenca os produtos que os retornados de Lagos (onde a protagonista viveu
por mais de seis décadas) exportavam e importavam do Brasil, o que demonstra o impacto
econômico das atividades comerciais dos chamados brasileiros em África: “Os brasileiros de Lagos
exportavam para o Brasil escravos, azeite-de-dendê, noz-de-cola, pano e sabão-da-costa, resinas e
objetos religiosos, e importavam cachaça, farinha de mandioca, tabaco, açúcar, charque, armas e
pólvora, além de vários outros artigos: formicida, limas, sapatos de couro, cigarros, penas de
escrever, grades de ferro fundido, figuras de louça e gesso, azulejos, telhas, móveis, livros e
jornais” (SILVA, 2003, p. 108).
83
tem quase certeza de que não pisará em terras brasileiras; ou a própria narrativa, no
esforço de Kehinde em transmitir ao filho, por meio de suas memórias, ditadas
durante a viagem marítima pelo Atlântico, os valores ancestrais e a sua história
pessoal no contexto da diáspora africana, no esforço de terminar o tapete da
narrativa, sob o signo de Dã, a serpente-uroboro.
O nome do navio que conduziu Kehinde em sua travessia derradeira é
sugestivo: Aliança35. Como já se apontou, Dã, em sua forma urobórica, é o vodun
das águas, da transformação, do movimento, da unidade na diversidade. Também
se afirmou que nessa dialética entre a pulsão da vida e a pulsão da morte, na
simbologia do uroboro, a cobra representa os valores tanáticos e o círculo, por sua
vez, representa a força unificadora, a superação do ciclo de vida e morte pela
transcendência. Nesse sentido, o vapor Aliança, evocando circularidade e ligação,
pode ser uma metáfora de fechamento, conclusão, tanto da narrativa quanto do ciclo
vital de Kehinde. Por outro lado, considerando que foi ao longo da viagem a bordo
do Aliança que a narradora, cega e doente, ditou o seu relato por inteiro, pode-se
afirmar, igualmente, que figura a própria narrativa, cuja finalidade particular, como
texto, é gerar um todo significativo, a partir dos fragmentos da história, resgatados
pela memória. Por meio do poder da linguagem e pelo ato de narrar, mesmo certa
de que não chegará viva no Brasil, Kehinde tem a possibilidade reencontrar
Omotunde, resgatar a sua identidade histórica e continuar viva, de modo que, ao
realizar um trabalho consciente de lembrança (memória) do filho ausente, ele se
presentifica, ao contar a sua vida, ela nunca morre, ao resgatar fatos históricos em
sua narração, eles não são relegados ao esquecimento.
Essa abordagem sobre a formação identitária de Kehinde, baseada no
universo mítico da cultura ancestral e em sua experiência no processo da diáspora
africana, que contempla as travessias de ida e vinda, de resistência, solidariedade,
superação e resiliência ante às hostilidades no contexto de escravidão e,
posteriormente, de retorno, constitui-se pano de fundo na leitura do romance a partir
de suas epígrafes. Neste trabalho, a análise priorizará os paratextos epigráficos das
dedicatórias e a citação que encabeça o prólogo, conforme será demonstrado no
próximo capítulo.
35
O patacho Sunset (do inglês pôr do sol), no qual a narradora retornou à África também poderia ser
citado como figuração metaficcional, no sentido de que, a partir do oitavo capítulo, o romance perde
um pouco de intensidade no plano da ação e, como a sua ocorrência se dá no oitavo capítulo da
narrativa, portanto próximo do final, aponta para o ocaso do relato.
84
36
Conforme Gérard Genette, tanto a dedicatória da obra quanto a de exemplar “consistem em prestar
uma homenagem numa obra a uma pessoa, a um grupo real ou ideal, ou a alguma entidade de
outro tipo. (GENETTE, 2009, p. 109).
87
“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good
37
faith for elsewhere and lose your bearings serendipitously”. John Barth, em
The Last Voyage of Somebody, the Sailor (Nova York, 1991).
(GONÇALVES, 2012, p. 9).
37
“Você não chega a Serendip planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro lugar
e perder seus azimutes serendipitosamente.” (GONÇALVES, 2012, p. 9, tradução nossa).
Preservou-se a versão original da epígrafe em inglês no corpo do texto, justamente para enfatizar a
singularidade dessa citação em relação aos provérbios africanos dos capítulos, todos apresentados
em língua portuguesa.
88
38
Genette (2009) refere-se aos paratextos em geral, o que, consequentemente, pode se aplicar às
epígrafes.
89
paratexto e citação. Esse será o propósito do próximo subcapítulo que, sob tal
enfoque, também efetuará uma análise das epígrafes do corpus.
39
Introdução ao arquitexto (GENETTE, 1979).
90
prefácio, ilustrações, notas de rodapé, dentre outros, que não deixam o texto em seu
“estado nu” (GENETTE, 2009, p.9). Seja qual for o intuito, entretanto, perde-se em
não se preservar o sentido literal do título, o que não ocorre em certas traduções,
como a espanhola, Umbrales (2001) e a italiana, Soglie: I dintorni del testo (1989),
por exemplo. Dessa forma, o título brasileiro priva-se da metáfora seuils,
fundamental para a compreensão do fenômeno paratextual, segundo Genette. Em
português, a tradução comum dos vocábulos estrangeiros seuils, umbrales e soglie
é, respectivamente, o plural de soleira, umbral ou limiar, cujo significado comum
consiste em “peça de madeira ou de outro material sobre a o qual se põe a parte da
porta que fica ao nível do solo” (HOUAISS, 2010 p. 479).
Em reforço à ideia de limiar como locus de travessia, vale citar um fichamento
de Walter Benjamin sobre esse tema, publicado em seu livro póstumo, intitulado
Passagens, tão volumoso quanto fragmentário, pois reúne milhares de reflexões
anotadas pelo filósofo sobre a Paris do século XIX. No fragmento, Benjamin associa
os limiares parisienses a ritos de passagem e transição de diversas naturezas, como
o morrer, o adormecimento, o sonho, a conversação à porta – prelúdio do ato sexual
promíscuo40 – , a imaginação:
40
Gagnebin (2010, p. 12) afirma que o fragmento de Walter Benjamin foi encontrado em um de seus
cadernos de anotação, intitulado “Prostituição, jogo”. Com base nessa informação, presume-se que
o uso do termo limiar sugira, nesse contexto, a situação em que o cliente, no umbral da porta,
graceja com a prostituta e negocia a consumação do ato sexual, como um espaço e tempo
transitivos e transacionais entre o desejo e sua realização. Outrossim, pode instilar o leitor, se
assim lhe permitir o devaneio, à imaginação do gesto de se encostar o ombro nesse espaço
intermediário, durante a conversação lasciva. Tal jogo de imaginação é endossada no verbete
“umbral” do Dicionário de Etimologia da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, segundo o qual,
essa palavra origina-se de um vocábulo homônimo do espanhol, que designa ombro, sendo que um
de seus significados é “peça que sustenta os gonzos da porta, é a peça onde podemos encostar o
ombro” (NASCENTES, 1951, p. 515).
91
Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda
inventada – embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis
ou nas folhas perdidas, pois dona Clara me contou que Gérson amassava e
jogava fora os desenhos dos quais não gostava. Se eu me apropriasse da
história, provavelmente a autoria nunca seria contestada, pois ninguém até
então sabia da existência dos manuscritos, nem em Itaparica nem alguns
historiadores de Salvador para quem os mostrei.
[...].
41
"Il y a plus affaire à interpréter les interprétations qu'à interpréter les choses, et plus de livres sur les
livres que sur autre sujet: nous ne faisons que nous entregloser. Tout fourmille de commentaires;
d'auteurs, il·en est grand cherté. Le principal et plus fameux savoir de nos siècles, est-ce pas savoir
entendre les savants? Est-ce pas la fin commune et dernière de toutes études? Nos opinions
s'entent les unes sur les autres. La première sert de tige à la seconde, la seconde à la tierce. Nous
échelons ainsi de degré en degré. Et advient de là que le plus haut monté a souvent plus d'honneur
que de mérite, car il n'est monté que d'un grain sur les épaules du pénultième. (MONTAIGNE, 1965,
p. 358, tradução nossa).
94
produção romanesca de Scott, apenas duas obras não possuem epígrafes nos
capítulos, a saber, Waverley (1814), a primeira obra dessa série, e Redgaunlet
(1824), romance de cunho epistolar.
Enquanto citação, a presença da epígrafe pode ser suprimida, deslocada ou
substituída pelo autor ou editor da obra, com o passar do tempo. Nesse sentido
temporal de inserção das epígrafes em Um defeito de cor, pode-se afirmar,
seguramente, que elas são originais, pois constam no romance desde seu
lançamento em 2006 e, permaneceram inalteradas até a última edição conhecida, a
décima oitava, de 2018.
Para identificar o sujeito citado (epigrafado), o sujeito citante (epigrafador) e o
destinatário da epígrafe (epigrafário), Genette (2009, p. 136) parte da premissa de
que a epígrafe é uma citação e, portanto, um texto. Discutir os sujeitos envolvidos na
demanda a necessidade de refletir sobre o próprio fenômeno da citação. Segundo
Compagnon , ela (a citação), em si mesma, revela o processo por meio do qual foi
produzida (eis o trabalho da citação), desde a leitura de um texto que incita o leitor a
deslocá-lo, mutilá-lo e enxertá-lo em um outro, por meio da escritura. de modo que
se ressalta, nem tanto o papel funcional, mas a dimensão do trabalho de extração,
mutilação, desenraizamento e colagem que envolve o ato de citar. Nesse sentido,
Compagnon (2016) propõe o seu estudo da citação, dentre outras categorias,
constitui-se primeiramente como uma fenomenologia, pois “descreve o
comportamento da citação em uma experiência imediata da leitura e da escritura”
(COMPAGNON, 2012, p. 10), valorizando o aspecto pragmático da experiência
imediata de produção enunciativa. Dito isso, vale retornar à pergunta de Genette
sobre os sujeitos envolvidos na produção do paratexto epigráfico e identificá-los no
romance em estudo.
Utilizando a taxonomia genettiana, as epígrafes de Um defeito de cor são
alógrafas, isto é, o autor da citação não corresponde ao escritor que a escolheu e a
inseriu na obra em exergo. Há duas categorias de epigrafados no romance em
estudo: primeiramente, o autor coletivo atribuído às epígrafes da dedicatória e dos
capítulos, referidas, na obra, como provérbios africanos; em segundo lugar, os
autores citados nos paratextos epigráficos do prólogo, a saber, o romancista John
Barth e o físico Joseph Henry, ambos norte-americanos.
Abaixo do título “Serendipidades!”, segue-se a epígrafe inicial do prólogo, em
inglês, extraída do romance The Last Voyage of Somebody the Sailor, de John
97
Barth, numa disposição gráfica de linhas centralizadas, com fontes em itálico e texto
entre aspas, forma que difere da original, em escrita corrida 42. Trata-se, conforme a
tipologia proposta por Genette (1990, p. 137), de uma epígrafe alógrafa autêntica,
tanto no que concerne ao enunciado, que coincide literalmente àquele do texto-fonte
de onde foi extraído, embora com disposição espacial diversa, quanto ao autor a
quem o paratexto é atribuído, o escritor John Barth: “Você não chega a Serendip
planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro lugar e perder seus
azimutes serendipitosamente.”43 (BARTH, 2016, p. 13).
Quanto à epígrafe final do prólogo, “As sementes da descoberta flutuam
constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas mentes bem preparadas
para recebê-las” (GONÇALVES, 2012, p. 17), máxima creditada ao físico norte-
americano do século XIX, Joseph Henry, não se encontrou registro subscrito pelo
cientista que comprove que a frase, de fato, é de sua autoria. No entanto, há
abundantes referências bibliográficas que mencionam o referido aforismo como
sendo de Henry, na maioria das vezes, remetendo à questão da serendipidade no
ramo das ciências, com ênfase no fato de que o pesquisador deve estar atento e
preparado para novas descobertas quando, durante a execução do método
científico, surgem situações adversas. Nesse contexto, o livro The way of an
Investigator: a Scientist’s Experiences in Research, do fisiologista Walter Bredford
Cannon, de 1945, é, em se tratando da citação à frase de Joseph Henry, das mais
significativas, pois é consideravelmente citada por outros autores 44. Além dessa
relevância, é reveladora a associação de Cannon à máxima de Henry como uma
paráfrase do aforismo “Nos campos da observação, o acaso favorece apenas os
espíritos preparados”45 (CANNON, 1945, p. 74-75, tradução nossa), atribuído a
Louis Pasteur. Além de constatar a proximidade de sentido, Cannon também oferece
pistas da dificuldade em se encontrar um registro escrito, assinado por Joseph
42
“You don’t reach Serendib by plotting a course for it. / You have to set out in good faith for
elsewhere and lose /your bearings serendipitously”. / John Barth, em The Last Voyage of
Somebody, (sic) / The Sailor (Nova York, 1991). (GONÇALVES, 2012, p. 9).
43
“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and
lose your bearings serendipitously”. (BARTH, 2016, p. 13).
44
Destaque seja dado aos livros A study sociological semantics an the sociology of
Science.(MERTON; BARBER, 2004, p. 172) e Minds Behind the : a history pioneers and their
discoveries. (FINGER, 2000, p. 309) que mencionam a frase de Joseph Henry citada por Cannon
(1945, 75-76), associada à de Louis Pasteur. Essas três referências bibliográficas são apenas uma
amostragem de uma gama enorme de outras que atribuem a Henry a máxima em questão.
45
“Dans les champs de l’observation, le hasard ne favorise que les espririts préparés”. (CANNON,
1945, p. 74-75).
98
Henry, contendo a famosa sentença. Isso, porque quando cita a frase de Pasteur,
Cannon especifica que ela foi proferida durante uma aula magna ministrada pelo
cientista francês no dia sete de dezembro de 1854, na Universidade de Lille
(CANNON, 1945, p. 75), enquanto que, no que se refere ao aforismo de Henry, não
oferece nenhuma informação contextual ou referência de fonte bibliográfica.
Na sentença henryana presente no romance em estudo – “As sementes da
descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas
mentes bem preparadas para recebê-las” (GONÇALVES, 2012, p. 17) – ocorre uma
alteração morfológico-sintática na primeira oração da máxima citada: o complemento
adnominal do núcleo do primeiro sujeito oracional comum “As sementes” é alterado
pela epigrafadora, que utiliza a expressão “da descoberta”, em vez de “das grandes
descobertas”, de uso atribuído a Henry. O aforismo original, atribuído a Joseph
Henry reza: “As sementes das grandes descobertas estão constantemente flutuando
ao nosso redor, mas elas só criam raízes em mentes bem preparadas para merecê-
las”46 (CANNON, 1945, p. 76, tradução nossa). Ora, embora o núcleo dos dois
sujeitos seja o mesmo (sementes) a subtração do adjetivo grandes, por parte da
epigrafadora, oferece um sentido mais especificador ao termo. Na epígrafe final do
prólogo, portanto, muda-se a semântica original da máxima, de maneira que a
referida descoberta transcende o universo científico e vincula-se à narrativa do
prólogo e, também, à diegese do romance, como será demonstrado oportunamente.
As alterações, no entanto, não maculam a atribuição da epígrafe ao cientista norte-
americano. Adotando a taxonomia genettiana, essa ocorrência epigráfica, mesmo
alterada, pode ser classificada como autêntica:
Quem enuncia um provérbio produz uma aforização pela qual ele não se
coloca como responsável – esse papel é devolvido à “sabedoria popular” ou
à “sabedoria das nações” –, mas de cujo ponto de vista ele partilha,
enquanto membro da comunidade. (MAINGUENEAU, 2014, p. 72).
48
“The seeds of great discoveries are constantly floating around us, but they only take root in minds
well prepared to receive them”. (CANNON, 1945, p. 76).
49
“The butterfly that flies among the thorns will tear its wings” pode ser traduzido literalmente da
mesma forma como Um defeito de cor o apresenta na epígrafe do primeiro capítulo.
50
“Society where seniority is taken seriously”. (FINNEGAN, 2012, p. 406).
51
“Today is the elder brother of tomorrow, / And a heavy dew is the elder brother of rain”.
(FINNEGAN, 2012, p. 391).
101
A África tem algo a dizer sobre a árvore; pobre África; África escondida na
noite, terra de trevas, escuridão e barbárie. Deus curvou-se e escreveu algo
na areia da África? A África diz: “Quem tenta sacudir o tronco de uma
53
árvore, sacode somente a si mesmo” . (PARKER, 1887, p. 437-438,
tradução nossa).
Quanto à máxima epigráfica do quarto capítulo – “Só quando uma árvore cai
alcançamos todos os seus galhos” (GONÇALVES, 2012, p. 187) –, não se encontrou
52
“He who tries to shake a trunk of a tree shakes only himself”. (BURTON, 1865, p. 229)
53
“Has Africa anything to say about the tree ; poor Africa, night-ridden Africa, land of darkness and
slavery and barbarism,—has God stooped down and written anything in the dust of Africa ? Africa
says, " He who tries to shake the trunk of a tree shakes only himself”. (PARKER, 1887, p.437-438)
102
54
“Fall, Falling”.
55
“When the big tree falls, even goats will eat its leaves”. (STONE, 2006, p. 138).
56
“Trees”
57
“A man does not run among thorns for nothing. Either he is pursuing a snake or a snake is pursuing
him. (ELLIS, 1894, p. 225)
103
58
“The sole of the foot is exposed to all the dirt of the road”. (ELLIS, 1894, p. 222)
59
“The badness of the yam is (laid to) the badness of the knife: (but it is soon found out that the yam is
in fault ; so) he who injures another injures himself.” (BURTON, 1865, p. 271).
60
“The tortoise‟s knife is used in killing him, one who draws sword will fall by the sword”. (OSOBA,
2014, p. 54).
61
“Proverbs from Tales and Folklores”. (OSOBA, 2014, p. 54).
62
“If you want to know the end, look at the beginning”.
104
Exu caminhou pela fazenda de amendoim. Era visível apenas o tufo do seu
cabelo. Se não fosse pela sua alta estatura, ele não seria visível de todo.
Tendo jogado uma pedra ontem – ele mata um pássaro amanhã. Deitado,
64
sua cabeça bate no telhado. (FINNEGAN, 2012, p. 175).
63
“The stream may dry up, but the watercourse retains its name”. (JOHNSON & MCCALLA, 2009,
p.8).
64
“Eshu walked through the groundnut farm. The tuft of his hair was just visible. If it had not been for
his huge size, He would not have been visible at all. Having thrown a stone yesterday—he kills a
bird today. Lying down, his head hits the roof.” (FINNEGAN, 2012, p. 175).
105
obra: “Esta é uma obra que mistura ficção e realidade” (GONÇALVES, 2012, p. 949).
Ela que, na dedicatória, homenageia avós, amigos (dentre os quais, Millôr
Fernandes, cujo texto elogioso à obra consta na orelha do livro) e autores
consultados, presenteando-os com epígrafes. Ela, a pessoa física – e não jurídica ou
ficcional –, que no prólogo, contextualiza a sua obra e incita o leitor a assinar um
contrato ou pacto de ficcionalidade. Ela, de cuja imaginação foram criadas Kehinde e
seu universo, tendo como alicerce a história do Brasil oitocentista, da afro-diáspora,
da escravidão, dos retornados. Enfim, utilizando-se de uma expressão genettiana, a
autora é a epigrafadora de fato, mas não de direito (GENETTE, 1990, p. 139),
conforme será abordado em seguida.
Portanto, ao iniciar a leitura do romance e deparar com as homenagens
prestadas pela autora na dedicatória, torna-se difícil afirmar que Ana Maria
Gonçalves não seja a epigrafária, devido ao seu papel óbvio de escrevente, à
menção dada a pessoas do seu convívio e a estudiosos, cujas obras consultou e
enumerou na bibliografia. Entretanto, se o leitor folhear mais algumas páginas e
chegar ao término do prólogo, intitulado “Serendipidades!”, é provável que associe a
personagem narradora, ali instituída, à epigrafária autoral, o que é um equívoco. Na
verdade, tratam-se de duas instâncias distintas. No prólogo, ao narrar o processo de
invenção do romance, a autora ficcionaliza a sua própria experiência, quando conta
a história da descoberta do manuscrito de Kehinde e o que se seguiu depois disso.
Dessa forma, o prólogo é dotado de uma instância narrativa que se pode denominar
narradora do prólogo, distinta da autora. É possível constatar essa ficcionalização
prefacial, ao examinar os depoimentos dados por Ana Maria Gonçalves sobre a
produção do romance. Em entrevistas concedidas, tanto à mídia impressa quanto à
audiovisual, a autora nunca mencionou o fato de ter encontrado um manuscrito
antigo ou algo parecido, mas afirmou frequentemente que o romance possui base
histórica marcante, fruto de exaustiva pesquisa bibliográfica e de fontes históricas.
Em uma dessas entrevistas (dada à sua editora, a Record), Gonçalves é
questionada acerca do que é verídico e do que é ficcional em Um defeito de cor. A
resposta foi a seguinte:
107
65
Afirmar que o problema da identificação do epigrafário da dedicatória é uma questão aporética
significa que a designação da autora ou da narradora, para tal papel de sujeito citante, não consiste
em uma relação antinômica, pois ambas fazem parte de planos de leitura diferentes. Trata-se,
nesse sentido, de expor um problema, que pode ser deslindado de duas formas racionalmente
aceitáveis, de maneira que se torna, no mínimo, controverso, sustentar, como pertinente e
verdadeira, apenas uma delas. Portanto, nesse caso, não se trata de incerteza subjetiva, pela qual
não se consegue chegar a nenhuma resposta plausível. Ao contrário, a questão aporética, em
apreço, consiste em uma “dúvida objetiva” (ABBAGNANO, 2007, p. 74-75), no sentido de se expor
os problemas inerentes a uma questão que não possui uma única resposta e argumentar seus
possíveis direcionamentos.
109
narrativas, ato que precede a escritura das mesmas. Além disso, a percepção dessa
tessitura liminar pede que se trabalhe na identificação das marcas palimpsêsticas do
paratexto epigráfico em pauta. Em outros termos, que se debruce no esforço de
encontrar as relações intertextuais já contidas nos textos dos quais as citações
foram retiradas: o intertexto contido no intertexto. Tais leituras permitirão o acesso
aos umbrais estabelecidos pelas citações epigráficas e a percepção de que, além do
papel de glosa, as epígrafes apontam, também, a certa autorreferencialidade
romanesca.
Todavia, para se chegar à visada metaficcional de tais epígrafes, cumpre
iniciar, antes disso, uma abordagem que reflita como os paratextos em questão
assumem o seu papel de glosa. Essa função de comentário do texto, vale ressaltar,
vai além do prólogo. Na verdade, o par de epígrafes dessa seção glosam o romance
em estudo em sua totalidade, pelo viés do conceito de serendipidade, presente nas
epígrafes e no título dado ao prólogo.
A fim de iniciar a série de análises das epígrafes como glosa dos textos a que
remetem, julga-se importante inserir uma figura com o conjunto de todos os
paratextos epigráficos, constantes no romance em estudo, permitindo uma visão
panorâmica da distribuição paratextual de Um defeito de cor:
67
Sobre isso, o historiador Alexandre Vieira Ribeiro afirma que era necessário “expor o cativo
aparentando bom estado físico e até mesmo moral para a fixação de um bom preço de venda. Em
Salvador, desde meados do século XVII, após terem sido pagas na alfândega as referidas taxas de
importação, as novas levas de escravos ficavam abrigados em depósitos fixos que por vezes
ocupavam quarteirões inteiros. Nestes locais, o escravo recebia alimentação e passava por um
processo de “maquiagem”. Muitas vezes seu proprietário aplicava óleo de palma em todo o seu
corpo, para esconder doenças de pele e, principalmente, para dá-lhe [sic] aspecto de bom estado
físico, no momento em que era exposto para possíveis compradores.” (RIBEIRO, 2005, p. 95). Pelo
visto, os pretos encontrados por Kehinde no galpão não se enquadraram nessa prática. Além disso, a
experiência de Kehinde também foi diversa daquela mencionada por Ribeiro (2005). Em Um defeito
de cor, a boa alimentação e recuperação do escrava se dá na Ilha dos Frades. No depósito, as
condições de vida eram precárias e a alimentação escassa.
68
A narradora, atenta às conversas entre os escravizados, relembra a experiência relatada por uma
mulher, que estava há muito tempo no galpão: “Uma das mulheres do nosso grupo puxou conversa
com outra das que já estavam no armazém, e ela disse que tinha chegado havia muito tempo e que
infelizmente ninguém tinha se interessado por ela, um problema bastante comum para os que não
eram vendidos logo nos primeiros dias. Quem acabava de chegar tinha a preferência por estar bem
mais alimentado, e quanto mais tempo ficava ali, menores eram as chances de ser escolhidos,
porque a comida era pouca e irregular.” (GONÇALVES, 2012, p. 69).
115
ali, refugada, ou mesmo morreria sem ser comprada, “visto que a grande maioria
dos compradores não se interessava por crianças” (GONÇALVES, 2012, p. 71).
Munida de esperança, assim, a narradora sente a iminência da serendipidade que a
livraria daquela situação:
Eu não sabia o motivo, mas tinha absoluta certeza de que não teria o
mesmo destino que aquelas crianças, que alguém me escolheria logo e
nada seria tão ruim assim, mas fiquei me perguntando se algumas delas já
tinham tido o mesmo pensamento e a mesma certeza em vão.
(GONÇALVES, 2012, p. 69).
Eu sabia que aquilo realmente poderia acabar muito mal para eles, mas
achei bonito que todos se unissem para buscar o que queriam, mesmo que
isso implicasse grande risco, mesmo que pudesse custar a vida.
(GONÇALVES, 2012, p. 145).
118
Eu era muito nova mas já pensava nisto tudo, e pensava no que tinham
falado a minha avó, a Nega Florinda e depois a Agontimé sobre cada um de
nós ter uma missão. Elas também tinham dito que a minha seria importante,
e pedi a Oxum, a Xangô, a Nanã e aos Ibêjis que me ajudassem a saber
qual era, pois, fosse o que fosse, não seria mais difícil de cumprir do que
viver como escrava pelo resto da vida. (GONÇALVES, 2012, p. 148).
69
“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and
lose your bearings serendipitously”. (GONÇALVES, 2012, p. 9).
119
70
O Ifá, segundo Lopes (2004) é um oráculo de complexa execução ligado a Orumilá, deus da
escrita,“orixá iorubano da adinhação, representante de Ifá na Terra” (LOPES, 2004, p. 501). Por
meio do Ifá, Orumilá transmite aos homens a vontade dos deuses a seu respeito e os sacrifícios
que devem ser feitos a eles (LOPES 2004, p. 501).
120
Fui dormir feliz com as várias ideias e com a empolgação dos meus amigos,
com a vontade que eles tinham de me ajudar e incentivar, dizendo que logo
eu estaria mais rica que a sinhá e poderia comprá-los dela. Eu não tinha
certeza quanto a ficar tão rica, mas não tinha dúvida de que minha liberdade
não tardaria a chegar. Minha e do meu filho. E fiquei mais certa ainda
quando, no dia seguinte, consegui me lembrar do sonho que tive com a
minha avó e a Taiwo, as duas muito alegres e brincando de rodopiar de
braços abertos, gritando que estavam livres. (GONÇALVES, 2012, p. 251).
71
A narradora explica o motivo de aquelas cartas estarem contidas no baú: “Quando os ingleses
desocuparam o escritório de Lagos, deixaram uma caixa cheia de papéis que o João nem abriu,
achando serem coisas minhas, pessoais, pois nela estava escrito o meu nome, e não o nome da
Casas da Bahia. Ele levou essa caixa para Lagos e me entregou, mas como todas as pessoas com
que eu me correspondia já sabiam da minha nova morada, tantos anos depois da mudança, eu
também não quis abrir, achando que ia encontrar papéis do escritório, anotações antigas sobre
casas já construídas. Quase mandei que jogassem a caixa fora, mas pedi que guardassem junto do
baú, esperando que algum dia alguém pudesse ver pra mim do que se tratava, mas acabei me
esquecendo dela.” (GONÇALVES, 2012, p. 945). Vale lembrar, também, que a protagonista, em
sua velhice, torna-se, gradualmente uma deficiente visual, em decorrência do diabetes, limitação
que dificultou ainda mais o acesso a correspondências tão importantes.
122
72
Note-se que as cartas ficaram na obscuridade por volta de vinte e dois anos, visto que o hic et nunc
da narradora é 1899.
73
Vale ressaltar que as informações contidas nas cartas demonstram patente semelhança com o
perfil biográfico de Luiz Gama, explanado no tópico 2.3 desta tese, p. 44-47.
123
Andei muito doente aos últimos três anos, e só não morri porque o encontro
já estava marcado para daqui a pouco, assim que eu terminar esse meu
pedido de desculpas. Muito maior do que o pedido ao João, à Maria Clara,
ao genro, às noras e a todos os netos que foram se despedir de mim no
porto de Lagos, onde eu e a Geninha tomamos este navio. Tentaram me
convencer a ficar, argumentando que eu não aguentaria a viagem, que não
teria como te encontrar e nem sabia se você ainda estava vivo ou morando
no mesmo lugar, em São Paulo. Mas nada disso teve importância, pois eu
tinha certeza de que precisava vir, precisava contar tudo que estou
contando agora. (GONÇALVES, 2012, p. 945).
74
Referência evidente ao famoso verso de Pneumotórax, poema que Manuel Bandeira publicou em
1930, no seu livro Libertinagem: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi” (BANDEIRA,
1970, p. 104).
75
Provavelmente porque Maboke era analfabeto. Note-se o recurso metaficcional recorrente que
lança mão de intermediários a colaborar na transformação da tradição oral, da memória ditada, em
narrativa escrita. Esteban é o escriba de Maboke como Geninha o é para a narradora e esta o é
para Kuanza. Por fim, a narradora do prólogo autobiográfico e ficcional narra a gênese do romance,
colocando-se como aquela que reescreve o antigo manuscrito de Kehinde/Luísa, atualizando-o para
a linguagem romanesca do século XXI.
124
______________
76
Palavra de origem banto, do kumbundo tata (pai) e kisaba (folha), designa um encargo do
candomblé da nação angola-congo. O tata kisaba é um coletor de plantas usadas em rituais
religiosos (BOTÃO, 2007, p. 38).
125
77
Paul Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, baseia-se na tradição filosófica para
distinguir duas categorias da memória: mneme, que consiste em mera lembrança passiva do
passado, independente de um esforço da vontade e anamnesis, esta, de caráter ativo, pois se
efetua por meio de um verdadeiro trabalho de resgate, uma busca voluntária de elementos do
passado (RICOEUR, 2007, p. 25-60).
78
A Revolta dos Malês.
126
79
Mil e Uma Noites, contos árabes traduzidos em francês (tradução nossa).
80
Segundo Claude Hagége, as infidelidades da tradução de Galland justificam pela competência do
tradutor, mas no fato de que ele "ele traduziu as Mil e Uma Noites para um público cujos gostos e
usos excluíam qualquer técnica que não fosse a adaptação. Sua obra é, portanto, parte de um
período específico na história das concepções de tradução, e deve, portanto, ser julgada tendo
esse quadro como referência. (HAGÉGE, 1980, p. 132, tradução nossa). “Il a traduit les Mille et une
Nuits pour un public dont les goûts et les usages excluaient toute technique que l’adaptation. Son
oevre s’inscrit donc dans une période specífique de l’histoire des conceptions qu’on s’est faites de la
traduction, et doit, dès lors, être jugée par référence à ce cadre”. (HAGÉGE, 1980, p. 132)
128
81
“Palabra por palabra, la versión de Galland es la peor escrita de todas, la más embustera y más
débil, pero fue la mejor leída. Quienes intimaron con ella, conocieron la felicidad y el asombro. Su
orientalismo, que ahora nos parece frugal, encandiló a cuantos aspiraban rapé y complotaban una
tragedia en cinco actos. Doce primorosos volúmenes aparecieron de 1707 a 1717, doce volúme-
nes innumerablemente leídos y que pasaron a diversos idiomas, incluso el hindustani y el árabe.
Nosotros, meros lectores anacrónicos del sigle veinte, percibimos en ellos el sabor dulzarrón del
siglo dieciocho y no el desvanecido aroma oriental, que hace dos- cientos años determinó su
innovación y su gloria. (BORGES, 1984, p. 398).
82
O título da tradução de Jarouche é Livro das Mil e uma Noites, o que não é tão previsível, pois a de
Galland, no Brasil, intitula-se As mil e uma noites.
129
de, pelo menos, uma tradução direta do Livro das Mil e uma Noites, o português
contentava-se com algumas traduções indiretas. Dentre elas, Jarouche (2007)
destaca uma, publicada em Portugal, a partir do trabalho de Mardrus, realizado “por
um seleto grupo de literatos portugueses”, que, entretanto, “não passava disso: uma
excelente e caprichada tradução de obra literária francesa” (JAROUCHE, 2007, p.
362). Felizmente, a primeira tradução direta para a língua de Camões veio à luz no
ano 2005, em quatro volumes, por obra do próprio Jarouche, depois de um trabalho
que durou dez anos, entre pesquisa e tradução propriamente dita de fontes
manuscritas antigas. A peculiaridade da tradução brasileira em questão é dividir a
obra conforme a proveniência dos manuscritos, sendo que os dois primeiros
volumes contemplam os textos do ramo sírio e os dois últimos, as narrativas do ramo
egípcio.
Percebeu-se, nessa breve abordagem, que, no próprio processo de
formação do corpus narrativo do Livro das Mil e uma Noites, a recontação tem um
papel preponderante, não apenas no período em que os copistas realizavam o
trabalho de recolha de manuscritos e histórias, como também no período das
traduções e versões para as línguas modernas, iniciadas com Antoine Galland. De
certa forma, não é errôneo afirmar que, ao longo dos séculos, acompanharam
Sherazade uma miríade de co-particícipes em sua arte de narrar. Em reforço a tal
assertiva, vale o que afirmou, a respeito disso, Borges (2011) em conferência à
Universidade de Belgrano e posteriormente publicada em Siete noches (1980):
quando em suas narrativas, não é a própria sultana que os reconta, num jogo
barroquizante, autoconsciente, metaficional, paródico. Esse escritor, que também é
professor e literato, é o norte-americano John Barth.
Segundo o próprio Barth, sua relação com Sherazade constitui-se em um
verdadeiro “caso de amor de longa data e continua até hoje” (BARTH, 2013, p. 31).
A paixão surge em sua juventude de estudante pobre, assistente da biblioteca de
orientalística, na Universidade John Hopkins. Lá, sob a discreta permissão dos
chefes, passou horas a descobrir e ler avidamente grandes clássicos da literatura
oriental, dentre eles as Mil e uma noites, na tradução de Richard Burton (BARTH,
2013, p. 31), obras essas que o impressionaram sobremaneira.
Para Barth, Sherazade é o modelo de contadora de histórias e inspiradora
do seu próprio fazer literário, principalmente no que diz respeito ao modo que a
sultana narra, lançando mão da narrativa enquadrada, iniciada por meio de uma
história-moldura:
83
Borges se refere aos narradores das obras que leu na biblioteca universitária onde trabalhou.
84
La maggior parte di quegli affascinanti mentitori li ho dimenticati, ma Sheherazade mai. Per quanto
le storie che racconta non siano tra le mie preferite, lei rimane la narratrice prediletta, e il paradosso
inebriante è che questa persistenza, essendo un corrispettivo del suo intento letterale, genera se
stessa, e giunge a divenire anche l’emblema della mia metaforica ambizione. Quando penso alla
mia condizione e alla mia speranza, per quanto concerne la musa, nel tempo che trascorrerà fra
questo momento e quando finirò l’inchiostro o andrò a spirare in altro modo, è Sheherazade che mi
viene in mente, per molti motivi – non ultimo tra questi un interesse metodologico per l’antico
strumento della storia-cornice, usato con maggior leggiadria nelle Notti che in qualsiasi altra opera di
mia conoscenza. (BARTH, 2013, p. 32).
85
O termo prólogo moldura será adotado neste trabalho por conta do papel paratextual que a primeira
seção textual exerce sobre o resto do texto.
131
coerente e articulada das demais (JAROUCHE, 2004). Esta primeira história não é
contada por Sherazade, mas por outrem, um narrador não identificado, de modo que
ela situa-se como personagem.
Valendo-se da tradução integral de Jarouche a partir de um manuscrito do
ramo egípcio na revista Tiraz, cumpre descrever, em poucas linhas, o enredo dessa
epígrafe das Noites, visto que percebeu-se o mesmo procedimento de epígrafe-
moldura nas obras de Barth a serem abordadas e, também, no romance de Ana
Maria Gonçalves.
A história introduz-se narrando que o rei dos sassânidas86 tinha dois filhos,
Šhāhriar, o mais velho e Šāh Zamān. Depois de vencer uma grande batalha contra
os chineses, nomeou Šhāhriar seu sucessor e o filho caçula, governador de
Samarcanda, na Índia, de modo que ficaram os irmão dez anos distantes um do
outro.
Com saudades do irmão mais novo, o sultão sassânida deseja reencontrá-lo.
Para tanto, ordena ao seu vizir que fosse ao reino do irmão, a fim de trazê-lo consigo
para uma temporada de convivência. Importante destacar que, logo na primeira
menção ao vizir, o narrador insere um aposto, pelo qual explica que o primeiro
ministro “tinha duas filhas, a maior chamada Šahrazād e a menor, Dinazād”
(JAROUCHE, 2004, p. 80).
Šāh Zamān, pouco antes de empreender a sua viagem com o vizir, no meio
da noite, surpreende a esposa, na cama nupcial, dormindo abraçada com “um dos
garotos que trabalhavam na cozinha” (JAROUCHE, 2004, p. 80). Matou a ambos e
seguiu viagem com o vizir.
No reino do irmão, o caçula definhava a olhos vistos, remoendo o adultério
da esposa, sem revelar a causa de sua tristeza a Šāhriyār, que tentava agradá-lo
das mais diversas maneiras.
Suspeitando que Šāh Zamān estivesse com saudades da esposa e de sua
terra, o irmão mais velho decide convidá-lo para uma caçada, que duraria dez dias,
finda a qual poderia o mais novo retornar para Samarcanda. Zamān recusa a oferta
do irmão, de modo que este último parte com seu séquito e o mais novo fica no
palácio remoendo obcessivamente a sua desgraça.
86
Em nota de rodapé de outra tradução da mesma narrativa, mas proveniente do ramo sírio,
Jarouche explica que a “dinastia sassânida, que em seus tempos áureos desfrutou de muito poder
e glória, governou a Pérsia de 226 a 641 d.C., quando foi destronada pela conquista muçulmana”.
(JAROUCHE, 2015a, p. 39).
132
se isso ocorreu ao meu irmão, que é o maior rei da terra, se até a ele
sucedeu tamanha desgraça dentro de sua casa sem que ele saiba, como
será então o caso de outros homens? O que me sucedeu por parte de
minha mulher é mais fácil de suportar. (JAROUCHE, 2004, p. 81).
Além disso, faz o propósito de “não se manter casado com mulher nenhuma mais do
que uma única noite, matando-a assim que amanhecesse”, pois “não creio que em
toda a face da terra exista uma única mulher que possa ser esposa” (JAROUCHE,
2004, p. 86).
Durante três anos, o sultão manteve sua palavra, de modo que, em
decorrência de tamanha matança, o reino esvaziou-se de moças, muitas das quais
fugiam para terras vizinhas, a fim de manter-se vivas.
Nesse contexto, aparece a figura de Šahrazād na narrativa. Ela é
apresentada como uma mulher culta, que “tinha lido livros, compilações e
provérbios, decorado poesias e analisado as crônicas históricas; estava a par dos
vestígios e das palavras dos reis e dos sábios; lera e compreendera”. (JAROUCHE,
2004, p. 86).
A moça revela que deseja ser oferecida ao rei, mas não para continuar o
infindável morticínio de virgens. Do contrário, ela pretende, com o seu ato, a
cessação da injustiça. Note-se, portanto, que Šahrazād possui uma intencionalidade
libertadora, mesmo que seu propósito não tenha eficácia e ela também se torne
vítima: “Minha intenção é salvar você [o vizir] e os filhos dos muçulmanos e livrá-los
do assassinato. Se eu me revelar incapaz, que ele me mate, meu pai, e assim eu
pararei de me preocupar com você”. (JAROUCHE, 2004, p. 86).
Exaustivamente, o pai refuta e recrimina a estapafúrdia ideia fixa de
Šahrazād, inclusive lançando mão de uma história parabólica, para reforçar o
discurso referente à sua desaprovação quanto a isso. Esta, em contrapartida, insiste
reiteradamente que o pai deveria oferecê-la ao rei, por ser “absolutamente
imperioso” que o fizesse (JAROUCHE, 2004, p. 89). Sem mais argumentos, mas
contrariao, o vizir entrega a filha ao sultão.
Prestes a ser oferecida, Šahrazād revela à Dināzād o seu plano libertador e
pede a cumplicidade da irmã em sua realização:
narrativa, que reporta a Kehinde e esta, em seu relato, dá voz, pelo discurso indireto,
a centenas de histórias de outros personagens.
De certa forma, há, igualmente, um outro tipo peculiar de enquadramento
que se efetua no ato de leitura do texto. Isso, no sentido de que a narradora do
prólogo, pertencente a um contexto narrativo mais amplo, deixa traços de sua
presença ao longo do romance. Tais marcas consistem nos paratextos editoriais
constantes na obra, como notas de rodapé, referências bibliográficas, a divisão em
capítulos, a nomeação dos intertítulos, as epígrafes escolhidas, dentre outros
expedientes. Todos esses componentes apontando para a narradora do prólogo,
que editou e recontou o relato contido nos manuscritos87, como também à autora do
romance. Tais recursos metaficcionais revelam uma atividade autoconsciente que
questiona os limites entre ficção e história, a figura do narrador e a figura do autor.
Nesse sentido, do ponto de vista intertextual, a epígrafe de John Barth
constante no prólogo de Um defeito de cor, funciona como um portal ou limiar a
remeter, primeiramente ao romance The Last Voyage of Somebody the Sailor, de
onde a citação foi extraída. Last Voyage, por sua vez, remete à personagem
Scheherazade, contida no texto barthiano. Scheherazade, por sua vez, aponta para
a contação de histórias e a maneira com que tais narrativas são contadas ou
recontadas pela sultana nas Mil e uma Noites. De todo esse labirinto de molduras,
vale voltar a atenção à Scheherazade como personagem de Barth e como ela se
constitui metáfora do ato de narrar no romance de Ana Maria Gonçalves,
personificada em Kehinde/Luísa.
Em linhas gerais, The Last Voyage of Somebody the Sailor trata de um
intrincado, autocentrado, mas fascinante jogo narrativo, que estabelece um forte
liame entre a tradição da oralidade dramatizada no Livro das Mil e uma Noites e o
romance metaficcional típico de Barth. Esse imbricamento entre o passado literário e
a contemporaneidade é construído por uma contação alternada de histórias entre
dois narradores, como num duelo de narrativas, em plena Bagdá medieval: um deles
é a personagem Sindbad the Sailor (Simbad, o Marujo), o anfitrião desse encontro,
que reconta seis das sete viagens já narradas nas Noites, plenas de aventuras,
naufrágios, riquezas, criaturas maravilhosas, paixões. O outro é Somebody the
Sailor – tomar-se-á a liberdade de doravante chamá-lo de Alguém o Marujo - que
87
Note-se que essa reflexão poderia dar margem à lembrança dos copistas do Livro das Mil e uma
Noites e mesmo a Galland em sua versão da obra.
136
90
“gentle listener” (BARTH, 2016, p. 8).
91
“We may imagine then, you and I — may we not? — that she goes on to tell her familiar stranger
(with a little help from yours truly, ma’am: “Baylor” the Taler of Behler the Failer) the whole time-
straddling story of” (BARTH, 2016, p. 10).
138
Até aqui, tudo bem: mas (aí vem a nossa história) não foi Sindbad o
marinheiro que fez essa viagem final. Sindbad, o Marinheiro, não teve
nenhuma birra com o projeto do califa, embora ele nunca antes zarpe com
qualquer motivo mais nobre do que a irrequieta ganância. Como ele sabia
da difícil experiência, no entanto – e declarará aos seus convidados do
jantar, no final de seu jejum de um mês – você não chega a Serendib
traçando um roteiro. Você tem que sair de boa fé para outro lugar e perder o
94
rumo ... serendipitosamente. (BARTH, 2016, p. 13, tradução nossa).
Perceba-se que o narrador fala de uma “nossa história” versus uma história
oficial. Tal expressão em primeira pessoa do plural talvez seja mais uma chave para
estabelecer as transações de textos, sentidos, histórias e personagens, que
92
“The narcissistic work, however, appropriates the reader’s consciousness in a more deliberate and
paradoxical manner, for here he must live within an ackowledgedly fictional universe as he reads. Iet
the work constantly demands reponses comparable in scope and perhaps active participation in the
very formation of that fiction.” (HUTCHEON, 1980, p. 140).
93
“streetwise castaway from the Here and Now”. (BARTH, 2016, p. 13).
94
“So far, so good: but (here comes our story) it wasn’t Sindbad the Sailor who made that final
voyage. Sindbad the Sailor had no quarrel with the caliph’s project, though he’d never before set sail
with any motive nobler than restless greed. As he knew from hard experience, however — and will
presently declare to his dinner guests, at the end of their monthlong fast — you don’t reach Serendib
by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and lose your bearings …
serendipitously”. (BARTH, 2016, p. 13).
139
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
95
Pode-se aventar uma ressalva quanto a isso, no tocante ao público leitor com alguma deficiência
visual, que lança mão dos chamados audiolivros, que lhe permitem o acesso à literatura escrita e
outros gêneros textuais. Embora a comunicação, nesse caso, tenha como prerrogativa o fenômeno
acústico, mesmo assim, os provérbios africanos apresentam-se a esses leitores como citações
inseridas fora de seu contexto tradicional. Ademais o desafio de leitura proposto pelas parêmias
epigráficas é o mesmo para todos.
142
Talvez por isso, ele não poderá empreender esta viagem. Ela será realizada por
Alguém, que além disso, apaixona-se pela filha de Sindbad e a leva consigo.
A brincadeira com os nomes Sindbad e Somebody não é gratuita. O Alguém
com maiúsculas pode constituir-se em uma marca autoral que sugere uma relação
de espelhamento mais vasta que a interna, entre as personagens do romance
barthiano (Barth e Behler, Scheherazade e Behler, Alguém e Behler, Alguém e
Scheherazade etc). Vale perceber que o elemento comum desse espelhamento
consiste no fato de que todos são contadores de histórias, aos quais a oralidade é
de fundamental relevância.
Destaque-se, ademais, que, por intermédio da epígrafe de John Barth,
Sherazade (ou Scheherazade) é refletida em Kehinde/Luísa, que, durante uma
viagem oceânica, narrará para uma copista todas as histórias pessoais e, também,
aquelas que lhe foram contadas. A sobrevivência pessoal da narradora de Um
defeito de cor, tal qual a de Scheherazade, depende do ato narrativo, a derradeira
viagem. Ora, tão importante quanto o que se conta é a própria contação.
Além disso, deve-se mencionar o aspecto salvífico (poder-se-ia dizer
libertador e histórico) do ato de contar nas duas personagens femininas em pauta. A
narradora oriental assume o encargo de contadora para salvar milhares de virgens
de seu reino, mesmo que seja, ela também, uma vítima de sua própria decisão. Por
sua vez, Kehinde/Luísa faz, de sua memória pessoal, um veículo de resgate da
tradição ancestral e da história da diáspora africana. A atitude da personagem
Kehinde é libertadora, no sentido de que, no plano intradiegético, cumpre o seu
papel transmissional de mãe, repassando ao narratário de seu relato, informações e
sabedorias imprescindíveis do ponto de vista identitário. No plano extradiegético,
apresenta ao destinatário do romance, o leitor, a história da afro-diáspora a partir da
perspectiva individual de uma ex-escravizada.
Há, outrossim, um terceiro elemento que é convidado a participar dessa
relação especular. Ele se encontra fora da diegese e tem um livro em mãos e se
chama leitor. Cabe a ele recolher os rastros significativos deixados no romance e,
por uma manifestação de serendipidade, descobrirá um universo de textos,
contextos, histórias e nexos que transitam e transigem por essas marcas. No caso
de Um defeito de cor, tais pegadas metaficcionais são as citações epigráficas.
Nesse sentido, as epígrafes do romance auxiliam o leitor a detectar que a
narrativa em estudo é um tapete inacabado, como aquele tecido pela avó da menina
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