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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ALEX SANDRO DE MEDEIROS

O PAPEL DA EPÍGRAFE NA CONFIGURAÇÃO DA FICÇÃO HISTÓRICA EM UM


DEFEITO DE COR, DE ANA MARIA GONÇALVES

CURITIBA
2019
ALEX SANDRO DE MEDEIROS

O PAPEL DA EPÍGRAFE NA CONFIGURAÇÃO DA FICÇÃO HISTÓRICA EM UM


DEFEITO DE COR, DE ANA MARIA GONÇALVES

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em


Letras, Setor de Humanas, da Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Marilene Weinhardt

CURITIBA
2019
Dedico esta tese ao Bento, meu filho.
Também dedico aos meus pais, Laide da Luz Medeiros e
Osmar Medeiros, este saudosíssima memória.
AGRADECIMENTOS

A Deus, em quem não acredito porque sei, como diria Jung.


À minha mãe Laide, sempre amorosa e presente, apesar das minhas
ausências nos últimos tempos.
Ao meu saudoso pai, Osmar, grande contador de histórias, o maior que
conheci.
Aos meus irmãos Osmar e Nalu, pelo apoio, amor e amizade verdadeira.
Ao Bento, meu filho, que nem sempre entendeu que o papai deveria trabalhar,
e, no entanto, tê-lo ao lado, foi fundamental para que esta tese viesse a cabo.
À minha orientadora, professora Marilene Weinhardt, pelo grande exemplo de
pesquisadora e orientadora sem igual: erudita e acessível, justa e solidária.
À Andreia Del Conte, melhor amiga que alguém poderia ter, pela companhia
em todos os momentos críticos, como também nos felizes.
Aos companheiros de doutoramento, Elenice Koziel, Frederico Diehl e Sandra
Aleixo, por tudo o que, unidos, passamos juntos.
À Aline e Alice, pela dedicação, amizade e por cuidarem tão bem do Bento.
A Hélio Borges de Oliveira Passos, que tem analisado as minhas narrativas e
também me auxiliado a fazê-lo. Graças a isso, já aconteceram muitas
serendipidades.
Aos queridos colegas do Departamento de Humanidades da UTFPR-CM, pela
compreensão e companheirismo, nesse tempo todo.
Ao professor Maurício Cesar Menon, pelo suporte e presteza generosa, a mim
e a todos os colegas da pós-graduação.
À CAPES, pela bolsa de estudos.
Dīnārzād pigarreou e disse: “Minha irmãzinha, se você não
estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas com
as quais constumávamos atravessar nossos serões, para que
eu possa despedir-me de você antes do amanhecer, pois não
sei o que vai lhe acontecer amanhã. Šahrāzād disse ao rei
Šahriār: “Com a sua permissão eu contarei”. Ele respondeu:
“Permissão concedida”. Šahrāzād ficou contente e disse:
“Ouça” (LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, v.1, p.56)
RESUMO

O romance Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, destaca-se


pela utilização abundante de epígrafes. Esta tese tem como escopo propor uma
leitura da obra em questão a partir de tais paratextos, mormente as citações das
dedicatórias e do prólogo. Os paratextos epigráficos do corpus possuem uma
dimensão liminar, no sentido de que não apenas se apresentam na condição de
exergo, espacial e semanticamente à margem do texto, como também se constituem
verdadeiros locus de passagem, diálogo e articulação entre textos e contextos,
ficção e história, escrita e tradição oral. Além disso, extrapolam a função
convencional de simples glosa das seções textuais a que se referem, de maneira a
assumir um papel metaficcional, concernente ao próprio ato de narrar. Nesse viés, o
trabalho inicialmente enceta uma abordagem de aspectos metaficcionais do
romance em estudo, relativos à oralidade e à tradição africana, por meio de um
arrazoado sobre as personagens anciãs como figurações do recontar histórias, bem
como o episódio do tapete inacabado tecido pela avó de Kehinde, estampado com a
imagem de Dan, vodun daomeano em forma de serpente urobórica, metáfora da
própria narrativa em estudo. Ademais, trata-se também das três travessias da
narradora pelo Atlântico que, além de resgatar a história da diáspora africana, da
qual Kehinde é testemunha, apresenta um caráter autorreferencial. Em seguida,
desenvolve-se uma abordagem teórica das epígrafes como paratextos e citações,
concomitante à análise das mesmas. As epígrafes presentes na dedicatória do
romance apontam para três frentes da narrativa: a valorização do ancião na cultura
africana, o estabelecimento de redes de solidariedade e a transmissão da tradição
pela oralidade. Por sua vez, a epígrafe que encabeça o prólogo de Um defeito de
cor, extraída do romance The Last Voyage of Somebody the Sailor (1991), de John
Barth, permite uma articulação intertextual e metaficcional de espelhamento entre
Sherazade, a mais conhecida contadora de histórias da literatura universal, e
Kehinde/Luíza, a narradora de Um defeito de cor.

Palavras-chave: Literatura Afro-Brasileira. Epígrafe. Um defeito de Cor. Ana Maria


Gonçalves.
ABSTRACT

The novel Um defeito de cor (2006), by Ana Maria Gonçalves, stands out for
the abundant use of epigraphs. This thesis aims to propose a reading of the work in
question from such paratexts, especially the citations of the dedications and the
prologue. The epigraphic paratexts of the corpus have an liminary dimension, in the
sense that not only are presented in the condition of exergo, spatially and
semantically on the margins of the text, but also constitute true locus of passage,
dialogue and articulation between texts and contexts, fiction and history, writing and
oral tradition. In addition, they extrapolate the conventional function of simple gloss of
the textual sections to which they refer, in order to assume a metafictional role,
concerning the act itself of narrating. In this perspective, the work initially initiates an
approach to metafictional aspects of the novel under study, related to orality and
African tradition, through an argument about on the elderly characters as figurations
of the story retelling, as well as the episode of the unfinished carpet woven by
Kehinde's grandmother, emblazoned with the image of Dan, Daomey vodun in the
form of ouroboros serpent, metaphor of the narrative itself under study. Moreover, it
is also the three crossings of the narrator across the Atlantic that, in addition to
rescuing the history of the African diaspora, of which Kehinde is a witness, presents
a self-referential character. Then, a theoretical approach of epigraphs is developed
as paratexts and citations, concomitant with their analysis. The epigraphs present in
the dedication of the novel point to three fronts of the narrative: the appreciation of
the elder in African culture, the establishment of networks of solidarity and the
transmission of tradition by orality. In turn, the epigraph that tops the prologue of Um
defeito de cor, extracted from John Barth's novel The Last Voyage of Somebody the
Sailor (1991), allows an intertextual and metafictional articulation of mirroring
between Sherazade, the best-known storyteller of universal literature, and
Kehinde/Luíza, the narrator of a cor defect.

Keywords: Afro-Brazilian Literature. Epigraph. Um defeito de cor. Ana Maria


Gonçalves.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 UM DEFEITO DE COR: MEMÓRIA, TRAVESSIA, RESISTÊNCIA ...................... 18
2.1 NO INÍCIO ERA O VERBO: ORALIDADE, ANCIANIDADE E TRADIÇÃO.......... 18
2.2 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRÓLOGO DO ROMANCE .......... 42
2.3 NARRADORA E NARRATÁRIO: CARTA, LIVRO DE MAMÓRIAS, ROMANCE 45
2.4 ENTRE IBÊJIS E ABIKUS SOB O SIGNO DE DAN: O NARRAR COMO UM
TAPETE INACABADO .............................................................................................. 52
2.5 A PRIMEIRA TRAVESSIA: SOLIDARIEDADE E RESISTÊNCIA ....................... 63
2.6 DE ESCRAVA A ALFORRIADA, REVOLUCIONÁRIA E MÃE EM BUSCA DO
FILHO ...................................................................................................................... 69
2.7 DE KEHINDE A SINHÁ LUÍSA: A SEGUNDA E A DERRADEIRA
TRAVESSIA NO ATLÂNTICO NEGRO ..................................................................... 76
3 AS EPÍGRAFES DE UM DEFEITO DE COR ......................................................... 84
3.1 A UM PASSO DO LIMIAR: PROBLEMATIZAÇÕES ........................................... 84
3.2 O LIMIAR PEDE PASSAGEM: LEITURA A PARTIR DA EPÍGRAFE COMO
PARATEXTO E CITAÇÃO ........................................................................................ 89
3.3 AS EPÍGRAFES DO PRÓLOGO COMO GLOSA: AS SERENDIPIDADES
DO ROMANCE E O ROMANCE DA SERENDIPIDADE ......................................... 111
3.4 KEHINDE/LUÍSA E SCHEHERAZADE: INTERTEXTUALIDADE E METAFICÇÃO
NA EPÍGRAFE DE JOHN BARTH .......................................................................... 126
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 140
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 145
11

1 INTRODUÇÃO

Esta tese tem como escopo propor uma leitura do romance Um defeito de
cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, tendo como foco as epígrafes da
obra, de modo a perceber nelas uma zona de transição e transação entre texto e
contexto, ficção e história. Tal premissa permitirá um arrazoado acerca da
possibilidade de tais paratextos epigráficos extrapolarem a sua função mais
convencional – geralmente a de glosa ou comentário do texto a que se referem –, a
ponto de assumirem uma dimensão metaficcional. Isso, no sentido de verificar se as
citações epigráficas remetem ou não a temas e questões relativas à própria narrativa
em si.
Publicado em 2006, um defeito de cor, obra que inaugura o chamado roman-
fleuve (saga) na literatura afro-brasileira, tendo, como narradora, uma ex-
escravizada (BERND, 2012, p. 29). Obra de fôlego (952 páginas), surpreende não
tanto pela recepção positiva da crítica – graças à forma primorosa como foi forjada,
embora a escritora fosse uma iniciante – como do público, de modo geral, mais
afeito a narrativas breves e com pouca densidade.
De cunho memorialista, a história é contada pela narradora-protagonista
Kehinde, ex-escravizada, numa narrativa que se constitui num misto de carta e livro
de memórias. O prólogo da obra, é assinado por outra narradora/autora (que
dramatiza o papel da autora Ana Maria Gonçalves), que narra a gênese da obra, a
misturar realidade (relato autobiográfico de Ana Maria Gonçalves) e ficção.
A narradora do prefácio, escritora a buscar uma matéria que servisse de
assunto para a escrita de uma obra, descobre, casualmente, um calhamaço de
papéis antigos sendo rabiscado por um menino, na ilha baiana de Itaparica.
Interessada no conteúdo dos manuscritos encontrados, obtém da criança tais
papéis, a troco de materiais para desenho. De posse do manuscrito, interessa-se
pela história nele contida e transforma-o em romance, num trabalho que mescla o
ato de escrever, reescrever e editar, de maneira a transformar o manuscrito (que era
do século XIX) em romance contemporâneo.
Esse artifício narrativo escolhido pela autora não é exclusivo nem recente.
No entanto, ao lançar mão do manuscrito antigo, encontrado fortuitamente, como
fonte para a escrita do romance, a autora “dá mais força à enunciação, camuflando
assim sua ‘autoridade’ inerente à condição de autora” (BERND, 2012:29), além de
12

reforçar o caráter histórico da narrativa, oferecendo-lhe maior verossimilhança, como


uma espécie de prova inconteste da veracidade histórica da obra.
O romance, narrado em primeira pessoa por Kehinde (Luísa), funciona como
uma extensa carta da protagonista ao filho Omotunde (Luís), escrita quando a
narradora, octogenária e já no fim da vida, viaja de navio da África, onde se
estabelecera, em regresso ao Brasil, terra onde morara de 1810 a 1847, numa
derradeira tentativa de reencontrá-lo, ele que, embora livre, havia sido vendido pelo
pai aos dez anos e por quem a mãe passara mais de quarenta anos em seu encalço
e tentando obter notícias de seu paradeiro. Nessa narrativa, Kehinde busca, através
do resgate da memória, transmitir a ele as informações que acredita relevantes
sobre a sua história pessoal, anterior e posterior ao trágico desaparecimento. Sobre
isso, Weinhardt (2009) afirma que

A eleição do discurso memorialista é decisiva na construção da personagem


narradora. Sua dicção tem a experiência do vivido e a precisão de quem
resgata o passado com um objetivo definido, coerente com as ações que
resultaram das iniciativas que tomou durante seu longo trajeto.
(WEINHARDT, 2009, p. 111).

À memória do passado da narradora se juntam referências a fatos da


história da escravidão no Brasil e da própria história nacional, além de relatos
privilegiados sobre a cultura, os costumes, religião e outros dados interessantes a
quem estuda o Brasil do século XIX e a afro-diáspora. Isso mostra a convivência dos
elementos afetivo e coletivo, da história pessoal e social, no romance. Tudo sob o
ponto de vista de uma africana, ex-escravizada, o que enriquece sobremaneira a
narrativa e ressalta o seu caráter inovador e crítico.
Característica peculiar do romance é sua abundância epigráfica. Na
dedicatória há três epígrafes, uma para cada dedicatário (avós, amigos e estudiosos,
cujas obras, presentes na bibliografia do romance, serviram de fonte bibliográfica
para a escrita da narrativa); duas no prólogo, como molduras de abertura e
encerramento dessa seção. Por fim, o começo de cada capítulo também encerra
uma epígrafe, abaixo da indicação capitular numerada por extenso, sem título.
Percebendo a incidência de provérbios africanos na epigrafação dos
capítulos, Weinhardt (2009, p. 110) nota “um indicativo da incorporação de certa
tradição oral”. Esta é uma chave importantíssima para ingressar na sondagem
proposta nesta tese, já que, uma das funções da tradição oral é manter a memória
13

cultural de um povo. Fruto de uma experiência coletiva, portanto, os provérbios


africanos terão destaque nesta pesquisa, pois evocam a ancestralidade de Kehinde,
com todos os valores coletivos que o termo abarca e que a personagem pretende
transmitir ao seu filho.
O objetivo inicial deste trabalho seria, exclusivamente, inserir no corpus os
provérbios africanos que epigrafam os capítulos do romance em estudo. Por se
situarem fora da diegese, seriam desconsideradas as epígrafes da dedicatória –
apesar de proverbiais e de origem africana – e os paratextos epigráficos do prólogo,
cujos sujeitos citados eram um romancista pós-moderno e um físico do século XIX.
Entretanto, após releituras de Um defeito de cor e reflexões que delas decorreram,
surgiram alguns questionamentos sobre o papel desempenhado pelas epígrafes que
seriam rejeitadas, em conjunto com as demais, na configuração do romance em si e
como ficção histórica, pelo fato de que parecia haver uma ligação semântica entre
eles, de modo que os paratextos epigráficos talvez exerceriam, na narrativa, papel
simplesmente decorativo ou de comentário do texto.
Nesse sentido, algumas hipóteses decorrentes de tais questionamentos
surgiram, a partir do conceito de epígrafe como limiar (GENETTE, 2009) que
permite, ao leitor, atravessar o próprio limite de borda do texto, atribuído ao
paratexto epigráfico e, partindo dele, empreender liames com o texto lido, outros
textos e diversos contextos, partindo da dimensão diegética à histórica.
De tais questionamentos decorreram as seguintes possibilidades: a) vistos
como um conjunto, as epígrafes de Um defeito de cor contribuem para uma
estratégia de leitura do romance, no sentido de que apontam para seus principais
motivos narrativos e possuem uma relação hierárquica entre si e certa
independência narrativa; b) a citação epigráfica que inicia o prólogo é chave
importante de leitura de Um defeito de cor, não apenas porque trata da
serendipidade, motivo principal do romance, como também pode também ser um
índice metaficcional de relevância, referente ao ato de narrar, a estabelecer um
limiar que permite uma articulação entre o romance em estudo e outros textos da
tradição literária e ancestral da narradora Kehinde; c) Além da consideração das
epígrafes como paratextos, a reflexão dessas instâncias como provérbios podem
favorecer a criação de um elo a mais entre o texto e seu caráter histórico, pois as
parêmias portam fragmentos da memória, a partir da qual é possível detectar rastros
14

da história, à luz da tradição ancestral da narradora protagonista de Um defeito de


cor.
Este trabalho é dividido em dois capítulos. O primeiro deles, cujo título é “Um
defeito de cor: memória, travessia e resistência”, consiste em uma reflexão sobre
temas essenciais para uma leitura do romance em estudo pela ótica de seus
paratextos epigráficos, demonstrando que, para tal, deve-se levar em consideração
aspectos tradicionais da cultura africana sob o viés da transmissão oral: a reverência
aos mais velhos – transmissores socialmente reconhecidos da tradição – aos
ancestrais e às divindades tradicionais. A relevância dessa abordagem, outrossim,
servirá de base para a percepção da leitura de mundo que faz a narradora-
personagem do romance, não apenas suas ações enredo afora, como em seu ato
de narrar. Em outras palavras, no enredo, a personagem Kehinde (que adota o
nome Luísa depois de retornar à África) tem em alta conta os valores ancestrais, de
modo que se vale deles como baliza para entender o seu passado, agir no presente
e preparar-se para os acontecimentos futuros, visto que é necessário cumprir o
destino traçado pelos voduns, divindades da religião praticada no Daomé, sua terra.
Por outro lado, A narradora Kehinde/Luísa relata a sua experiência de vida, por meio
da anamnesis. Em outras palavras, realiza um trabalho consciente de resgate da
memória, dando-lhe um sentido, todo ele pautado pela tradição que lhe fora
transmitida oralmente ao longo da vida por pessoas mais velhas e líderes espirituais
de matriz africana.
Por sua vez, o segundo capítulo, intitulado “As epígrafes de Um defeito de
cor”, centra-se na ánalise do corpus propriamente dito, mormente, os paratextos
epigráficos das dedicatórias e a citação que encabeça o prólogo, levando em conta
sua relevância metaficcional, relativa ao programa narrativo do romance como um
todo.
Neste capítulo da tese, são levantadas algumas problematizações relativas
ao corpus, no que concerne, primeiramente, em um arrazoado sobre a função
paratextual das três epígrafes da dedicatória e, em segundo lugar, na constatação, à
primeira vista, de uma aparente falta de unidade entre as epígrafes do prólogo e os
demais paratextos epigráficos em estudo.
Quanto à segunda problematização, levou-se em conta que o viés de análise
tem, como base, a transmissão da tradição via oralidade. Nesse sentido, foi
necessário refletir sobre o possível descompasso decorrente da origem das
15

citações: a) os paratextos epigráficos capitulares e os da dedicatória são


textualmente marcados como provérbios africanos; b) as epígrafes do prólogo, por
outro lado, são citações de personalidades do século XX, um escritor pós-moderno e
um físico do XIX, ambos norte-americanos.
Durante a pesquisa, pensou-se em descartá-los do corpus e considerar
apenas os provérbios africanos, que garantiriam a segurança resultante da
proveniência comum.
Entretanto, o descarte não foi feito, pois constatou-se, após levantamento e
abordagem reflexiva sobre esses dois percalços, a possibilidade de propor que, ao
contrário de as duas epígrafes em questão consistirem em problemas ou entraves
para a análise, as epígrafes do prólogo são fundamentais para uma leitura do
romance a partir dos paratextos epigráficos. O aventamento dessa proposição partiu
da hipótese de que a primeira epígrafe trata do tema da serendipidade, que guia o
enredo e sugere que o paratexto em questão é um índice de metatextualidade matriz
do romance em estudo. Em outros termos, a citação de Barth não apenas remeteria
às serendipidades que alimentam a diegese de Um defeito de cor, quanto ofereceria
uma chave para a descoberta da narrativa como um romance da serendipidade,
consistindo esta no próprio ato de contar/recontar histórias. O fundamento dessa
proposição lançará mão de buscar estabelecer uma relação de espelhamento entre
Scheherazade, personagem de Barth que remete à Sheherazade do Livro das mil e
uma noites, e Kehinde/Luísa, a narradora do romance em estudo.
Em seguida, efetuou-se uma abordagem teórica, concomitante à análise do
corpus, levando em conta a dimensão liminar da epígrafe, de modo a considerá-las
não apenas como exergo, localizada (a epígrafe) fora do corpo da obra e definidora
de limites espaciais (entre o que está dentro e o que se situa fora do texto), mas
como um umbral a permitir idas e vindas e que pode exercer um papel importante no
plano da leitura (GENETTE, 2009).
O suporte teórico utilizado pautou-se, em maior escala, em Genette (2009),
na tratativa da epígrafe como paratexto editorial. Tal termo, lato sensu, trata-se de
um texto de acompanhamento do livro, como título, nome do autor, epígrafe, capa,
dentre outros, que, conforme Genette, consiste em “aquilo por meio de que um texto
se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao
público” (GENETTE, 2009, p. 9). Outra base teórica importante apoia-se em
Compagnon (1996), que busca focar-se não na citação em si, mas no trabalho
16

realizado no processo de citar e suas implicação. Tal esforço abrange a retirada da


citação de seu texto de origem, descontextualizada, portanto, a fim de ser inserida
em outro, levando consigo a sua história e, concomitantemente, adquirindo outros
contextos.
Efetuada a teorização e análise epigráfica, a abranger todo o corpus, o
presente estudo parte para o subcapítulo 3.3, com uma abordagem focada na
compreensão das epígrafes do prólogo como glosa ou explicação, tanto das seções
textuais a que pertencem, quanto do romance, em sua totalidade. Tal análise parte
do tema da serendipidade, comum aos dois paratextos epigráficos em questão, e se
divide em dois momentos: no primeiro se efetua uma reflexão, à luz das epígrafes,
sobre a série de serendipidades que ocorrem na vida da narradora-personagem ao
longo do enredo (as serendipidades do romance); em seguida, discute-se sobre a
relação das ditas epígrafes com o ato de contar/recontar como a serendipidade
fundamental da narrativa (o romance da serendipidade). Dessa feita, procurou-se
mostrar que as epígrafes em estudo extrapolam a sua função de glosa ao texto a
que se liga e cumprem o papel de glosar todo o romance, a partir do tema da
serendipidade.
Por fim, o subcapítulo “Kehinde/Luísa e Sheherazade: intertextualidade e
metaficção” afunila um pouco mais o recorte iniciado no arrazoado anterior,
centrando o seu olhar para o paratexto epigráfico barthiano, como uma espécie de
epígrafe-matriz da narrativa estudada. Por meio desse portal (ou limiar), a sultana
Sherazade, a maior contadora de histórias de todos os tempos, dialoga com
Kehinde/Luíza, a narradora de um defeito de cor e recontadora de histórias.
Em outros termos não conotativos, o referido subcapítulo discorrerá sobre a
dimensão metaficcional da epígrafe do prólogo, retirado do romance The Last
Voyage of Somebody the Sailor, cuja personagem Scheherazade remete ao papel
da narradora Scherazade, do Livro das Mil e uma Noites. Com base em algumas
reflexões sobre a referida obra, consagrada no cânone literário universal, e sobre o
romance de Barth, será discutida a possibilidade de uma articulação especular entre
Sherazade (das Noites) e Kehinde/Luísa (de Um defeito de cor). Tal articulação
reforça a importância da epígrafe em questão em relação ao romance de Ana Maria
Gonçalves, do ponto de vista autorreferencial, pois estabelece uma relação
especular entre as duas narradoras e um diálogo intertextual entre tradição e
contemporaneidade, tanto no que toca à arte de narrar ou recontar histórias, quanto
17

no seu processo de feitura/tessitura e execução. Desse diálogo entre narradoras,


decorre um consórcio entre memória e história, entre o (re)contar e o processo ou
trabalho de (re)contação.
18

2 UM DEFEITO DE COR: MEMÓRIA, TRAVESSIA, RESISTÊNCIA

(...), porque os africanos não gostam de pôr as


histórias no papel, o branco é que gosta.
(Kehinde)

2.1 NO INÍCIO ERA O VERBO1: ORALIDADE, ANCIANIDADE E TRADIÇÃO

Um defeito de cor é narrado em primeira pessoa pela ex-escravizada2


Kehinde (que também é a protagonista), praticamente nonagenária, a bordo de um
navio vindo para o Brasil, no ano de 1899. O relato é extenso, quase mil páginas, no
qual a personagem conta a sua trajetória de vida, desde o nascimento em Savalu,
no Daomé, (1810) e sua posterior captura e escravização em Uidá, atravessando o
Atlântico rumo à Bahia em um tumbeiro, até o hic et nunc do ato de narrar, em sua
condição de retornada, uma agudá3.
Cabe informar, logo de início, que, durante a sua derradeira viagem
oceânica, a narradora do romance encontra-se completamente cega. Portanto, ela
não escreveu, mas ditou o relato para a personagem Geninha, moça por ela criada.
E que essa jovem escriba tinha a mão direita amputada (interessante simbiose: uma
deficiente visual a ditar texto a uma pessoa sem a destra):

1
Essa referência ao enunciado que abre o Evangelho de São João (BÍBLIA, 1994, p. 2014) não é
utilizada aqui em seu direcionamento teológico usual, mas ligada à transmissão oral de uma
tradição. Por isso, o termo “verbo” apresenta-se com inicial minúscula. Na verdade, a pretensão é
que remeta ao vocábulo latino verbum,-i, de multíplices significados. O sentido que interessa – e
que norteará este subcapítulo – é aquele ligado ao “fallar (sic), discursar”, conforme Saraiva (2000,
p. 1264). A propósito, o termo provérbio advém de verbum (SARAIVA, 2000, p. 973), de maneira,
que porta, em sua raiz semântica e etimológica, um caráter primordialmente oral, acústico.
2
Neste trabalho, para designar o negro cativo, escolheu-se o termo escravizado, mais em voga, no
lugar do vocábulo escravo, tradicionalmente utilizado para esse fim. Segundo Harkot-de-La-Taille e
Santos, a diferença terminológica consiste no fato de que o substantivo escravo evoca uma carga
semântica ligada a um status ontológico, portanto, permanente, da escravidão, reduzindo o negro à
condição reificante de propriedade mercantil. Por outro lado, o termo escravizado alude a outro
campo de sentido que permite entender, de modo mais dinâmico, o processo de escravização como
um estado transitório. Além disso, o termo substituinte em questão dá espaço à dimensão histórica
e social das relações de poder relativas à escravidão, em sua tônica violenta, arbitrária e abusiva
(HARKOT-DE-LA TAILLE; SANTOS, 2012).
3
Segundo Lopes (2004, p. 42), agudá é “No Benin, designação que se dá ao portador de sobrenome
de origem portuguesa, em geral descendente de retornados do Brasil. O vocábulo, presente no
fongbé e no iorubá, parece originar-se no substantivo “ajuda”, do nome do forte português de São
João Batista da Ajuda, pronunciado como oxítono. Os Agudás formam uma comunidade distinta do
restante da população beninense, assim como os Amarôs na Nigéria e os tabons de Gana.
19

Mas sempre estava em casa quando eu me levantava, dizendo que se ela


era meus olhos, eu era a sua mão direita, a que ela não tinha e que, na
verdade, nunca fez falta. Veja agora você, é com a mão esquerda, que deve
estar mais que cansada, que ela está escrevendo tudo isso. (GONÇALVES,
2012, p. 940).

O fato (ficcional) de o texto ter sido ditado pela narradora se trata de


informação pertinente, pois a oralidade é uma chave de capital relevância para a
leitura do romance em estudo, sob o viés dos paratextos epigráficos que constituem
o corpus desta tese. Mas não somente no que concerne aos provérbios africanos da
dedicatória e daqueles que encabeçam os capítulos, como também no que toca às
duas epígrafes de início e término do prólogo. Ambas remetem ao século XX (uma,
cuja autoria é de John Barth, escritor dito pós-moderno, outra atribuída a Joseph
Henry, físico – ambos norte-americanos) e, aparentemente, representam uma
contradição com o restante das epígrafes, o que, de fato, não procede.
A obra é dividida em dez capítulos numerados, cada qual com uma série de
títulos internos, ou intertítulos, que embora não obrigatórios em uma narrativa
(GENETTE, 2009, p. 261), são necessários no romance, pois dividem a extensão
considerável do texto em blocos relativamente breves, de forma a garantir ao leitor
uma leitura mais fluida do texto.
Entre a colocação de cada capítulo sem título e o primeiro intertítulo, consta
uma epígrafe que consiste em um provérbio africano. O apreço de Ana Maria
Gonçalves por epígrafes proverbiais – o que se comprova pelo emprego abundante
delas – já se revela nas dedicatórias da obra, onde cada dedicação (aos avós,
amigos e autores utilizados na bibliografia do romance) termina com a citação de um
provérbio africano:

“Quando você segue as pegadas dos mais velhos, aprende a caminhar


como eles.”
“Amigo é como um vizinho quando Deus está distraído.”
“Uma chama não perde nada ao acender outra chama.” (GONÇALVES,
2012, p. 5).

De certa maneira, a utilização de provérbios africanos nas dedicatórias é um


indicativo de valorização da memória, da ancestralidade (BERND, 2014, p. 20) e da
importância da transmissão de conhecimentos, atitude assumida também pela
protagonista narradora que, por meio do seu relato, não apenas conta a sua vida,
20

como também repassa ao filho informações e valores da cultura e religião de sua


avó, além de outras expressões africanas de religiosidade.
Percebendo a incidência de provérbios africanos na epigrafação dos
capítulos, Marilene Weinhardt nota “um indicativo da incorporação de certa tradição
oral” (WEINHARDT, 2009: p. 110). Esta é uma chave importantíssima para ingressar
na sondagem proposta por este trabalho, já que uma das funções da tradição oral é
manter a memória cultural de um povo.
Mas não apenas isso. O escritor e etnólogo malinês Amadou Hampaté Bâ
defende que a tradição oral de África, em suas diversas manifestações de cunho
religioso, mágico e social, visa a forjar uma “alma africana”. Tal processo identitário
se realiza por meio da transmissão de um conhecimento totalizante, iniciatório por
um lado, mas, acima de tudo, voltado à prática cotidiana individual e comunitária.
Esse conhecimento global, unificador, acumulado, advindo do passado, transmitido
por depositários fiéis da tradição – reconhecidos socialmente como tais – tem a sua
razão de ser, nem tanto pela sua natureza pretérita em si. Na verdade, fundamenta-
se, sobremaneira, pela revivescência da sabedoria e conhecimento acumulados e
transmitidos, como resposta às demandas do presente, a fim de que o homem e a
mulher africanos possam manter a vida e estabelecer uma boa relação com o
mundo à luz do corpus da tradição:

A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos


os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o
exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens,
falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com
as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento,
ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez
que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial.
Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à
sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar
um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. (BÂ, 2010, p.
169).

Em África, o idoso desempenhava um papel importantíssimo nessa


transmissão oral, devido à experiência vivida e acúmulo de conhecimentos
ancestrais, valiosíssimos para o bom andamento da vida comunitária e para a sua
21

autoafirmação em termos de identidade4. Dignos de respeito e culto por todos os


membros das comunidades, os mais velhos eram considerados transmissores fiéis e
reconhecidos da cultura espiritual e material do povo. E mais: segundo o
africanólogo Alberto da Costa e Silva, tal reverência justifica-se pelo culto à
ancestralidade, já que os velhos estão mais próximos da morte e, portanto, na
iminência de serem alçados ao status de ancestrais (COSTA E SILVA, 2013, p. 63).
Para ilustrar quão acentuada era essa devoção aos idosos, vale citar um trecho de A
África explicada aos meus filhos, do estudioso brasileiro:

A velhice é venerada. Os que têm cabelos brancos possuem a sabedoria e


a experiência e estão mais próximos dos deuses. Entre os iorubás, por
exemplo, um jovem não fala a um velho sem se ajoelhar, agachar ou curvar-
se, sempre com a cabeça mais baixa do que a dele. Em alguns povos, pode
até ter de deitar-se, de bruços, no chão. (COSTA E SILVA, 2013, p. 63).

As informações passadas com engenho e arte pelos mais velhos integram o


tesouro da memória ancestral, tesouro este regulador das sociedades locais,
inclusive do ponto de vista jurídico5, desde o grupo familiar até o nacional, de modo
a garantir-lhes a coesão no aspecto religioso, mágico e social (FONSECA, 2008,
p.138).
Ainda para Fonseca (2008), por intermédio da forma ritualística em narrar a
tradição, o velho africano é identificado com o ancestral que viveu a história contada
em cantigas, poemas, mitos, provérbios etc., o que reforça, mormente, o respeito
pelo contador. Dessa forma, nas chamadas sociedades acústicas africanas, o idoso
assume o papel de porta-voz da tradição, testemunha viva do passado e depositário
dos valores ligados ao mito fundante, sendo este matriz identitária que sustenta e
embasa a razão de ser e o funcionamento da célula familiar, das comunidades e da
nação6.

4
Sobre a importância da ancestralidade nas sociedades tradicionais africanas, Alberto da Costa e
Silva afirma que “da ação dos ancestrais depende a felicidade dos seus descendentes e, de certa
forma, a própria harmonia do mundo” (COSTA E SILVA, 2013, p. 63).
5
Sobre isso, vale mencionar o artigo A lenda e a lei: a ancestralidade afro-brasileira como fonte
epistemológica e como conceito ético-jurídico e normativo, de São Bernardo (2018), que,
considerando a realidade afro-diaspórica brasileira, trata justamente da dimensão totalizante dos
valores ancestrais vindos de África, agregadora do geral e do particular, do espiritual e do terreno,
sintetizados no termo africano ubuntu e “fundamento da norma jurídica” entre os africanos e afro-
brasileiros tradicionais (SÃO BERNARDO, 2018, p. 232).
6
Mircea Eliade, em Mito e realidade, ao demonstrar algumas homologias entre à filosofia platônica,
concernente à “teoria das Ideias” e ao conceito de anamnese com o que denomina “ontologia
arcaica” das sociedades antigas e tradicionais, destaca a importância da memória “primordial”: “O
homem dessas sociedades encontra nos mitos os modelos exemplares de todos os seus atos. Os
22

Nesse sentido, a inserção de provérbios africanos nas epígrafes do romance


em estudo, constitui-se na evocação de toda uma carga de tradição oral, sintetizada
em frases curtas, sonoras, conhecidas por todos e utilizadas em situações
adequadas, a fim de solucionar problemas concretos e sugerir saídas em relação às
adversidades do cotidiano, conforme os ditames da tradição. Por vezes enigmáticos,
geralmente iniciáticos, mas fáceis de memorizar, repetir, difundir.
Entretanto, as marcas da oralidade, em Um defeito de cor, não se situam
apenas nos provérbios que servem de epígrafes. Ora, identifica-se na narradora do
romance, uma mulher africana, idosa, cega e gravemente enferma, que, embora
ávida por transmitir ao filho perdido a verdade da tradição ancestral, sua história
íntima e as razões da separação entre os dois, pressente, pouco antes de sua
viagem de retorno ao Brasil, a iminência da morte. Diante disso, ciente da provável
impossibilidade de transmitir ao filho seus conhecimentos e vivências, resolve ditar
sua narrativa, uma forma híbrida de história oral, relato, carta, livro. Nela estão
contidas todas as informações e sabedorias antigas importantes que, provavelmente
não poderia partilhar oralmente, face a face, de boca a ouvido:

Digo “aconteceria” porque sei que não vai acontecer. Aliás, tenho menos de
7
um dia de viagem e rogo conseguir chegar até onde quero, mas, caso não
consiga, preciso ir pelo menos até o lugar de onde a Geninha possa
continuar. (GONÇALVES, 2012, p. 919).

Na conjuntura do romance, a cegueira da narradora pode constituir-se em


dado significativo de metaficcionalidade. Reza o ditado: “cego é quem não quer ver”.
No caso de Kehinde/Luísa Andrade da Silva, procede-se o inverso. De fato, todo o
ato de contar/relatar, no romance, transcorre em situação de completa cegueira, a
bordo de um navio, na escuridão do Atlântico. Entretanto, em plena lucidez e visão
de totalidade do que deve ser narrado.
______________
mitos lhe asseguram que tudo o que ele faz ou pretende fazer, já foi feito no princípio dos Tempos,
in illo tempore. Os mitos constituem, portanto, a súmula do conhecimento útil. Uma existência
individual se torna, e se conserva uma existência plenamente humana, responsável e significativa,
na medida em que ela se inspira nesse reservatório de atos já realizados e pensamentos já
formulados. Ignorar ou esquecer o conteúdo da “memória coletiva” constituída pela tradição
equivale a uma regressão ao estado “natural” (a condição acultural da criança), a um “pecado” ou a
um desastre” (ELIADE, 2013, p. 111-112).
7
Esse “onde” a que se refere a narradora, note-se, não se trata de espaço geográfico, mas do
objetivo de concluir o próprio relato, o que remete a um dado metaficcional. Dessa maneira, pode-
se concluir, não sem algum esforço mental, que a sua travessia oceânica tem como objetivo
primeiro a narração em si e não , propriamente, a viagem para o Brasil. O encontro com o filho dá-
se, portanto, primeiramente no ato de fala, em seu ditado; em segundo lugar, na escrita; por último,
no plano da leitura. Nas três situações, é possível dizer, que está presente a metáfora da viagem.
23

Partindo de uma abordagem simbólica ou arquetípica8, a cegueira da


personagem, conjuntamente à figuração do mar, espaço de passagem, assume um
caráter autorreferencial concernente ao próprio ato de narrar.
A narradora é quem dita – a oralidade, portanto, em plena epifania –, mas
Geninha é quem escreve, registra nas incontáveis folhas de papel, cumprindo sua
função de escriba. Geninha, os olhos de Kehinde/Luísa. Esta (a mão direita de
Geninha) em imersão profunda no oceano das águas do mito e do mûthos9, da
oralidade e da escrita (registro do falado), da história e da memória.
No campo da simbologia, Chevalier e Gheerbrant apontam o deficiente
visual como alegoria do “poeta itinerante, do rapsodo, do bardo e do trovador”,
imagem que se cristalizou no imaginário ocidental graças a Homero, a quem,
tradicionalmente, é representado como um velho cego. Por sua vez, a cegueira
unida à imagem arquetípica do idoso simboliza “a sabedoria do ancião”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 217-218), inclusive, sendo conferido ao
velho cego, muitas vezes, dons divinatórios, o que também é confirmado por
Manfred Lurker:

Em mitos e contos de fada, a falta física da visão pode ser uma premissa
para a visão interna, para a divinação. O cego Tirésias recebe de Zeus o
dom de prever o futuro. Para atingir a mais alta sabedoria, o deus
germânico Odin penhora um olho. Quem for cego para os deuses deste
mundo (terreno), verá Deus no céu. (LURKER, 2003, p. 124).

8
O termo em questão não se refere propriamente ao arquétipo, de complexa e multiplice definição,
mas às chamadas imagens arquetípicas. Para Carl G. Jung, o arquétipo consiste em um construto
universal do inconsciente coletivo, que se manifesta na capacidade de se criar tais imagens
simbólicas, a partir da milenar experiência de observação e interação do ser humano com os
fenômenos da natureza: “Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação
exterior deve corresponder – para ele – a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar
em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do
homem. Todos os acontecimentos mitologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as
fases da lua, as estações chuvosas etc., não são de modo algum alegorias destas experiências
objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a
consciência humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos
da natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de civilização para
desligá-la de algum modo de seu objeto exterior”. (JUNG, 2014, p. 14-15). Nessa perspectiva,
representações estudadas neste trabalho, como o idoso, o cego, o oceano e a serpente serão
denominadas imagens arquetípicas, presentes na literatura e nos mitos (RUTHVEN, 1997, p. 33),
resultado da capacidade inata do arquétipo em produzi-las.
9
Pretende-se com esse jogo de palavras aludir ao mito como tradição e a palavra grega mûthos,
como narrativa, que, segundo André Malta possui o sentido original ligado ao conceito de “fala, isto
é, ‘ato de vocalização’, ‘emissão sonora verbal’” (MALTA, 2015, p. 17), referindo-se às marcas da
oralidade na poesia homérica.
24

Não entrando no mérito de discussão sobre a existência do Homero


histórico, de maneira a se considerar aqui, exclusivamente, o Homero da tradição,
ou melhor, a tradição homérica, vale destacar as duas modalidades dessa produção
inigualável: a oralidade e a escrita.
Quanto à primeira modalidade, vale ressaltar que Homero é considerado,
tradicionalmente, um aedo grego (o mais importante de todos). Ressalte-se que os
aedos não eram propriamente compositores (os rapsodos), mas sim repetidores,
transmissores orais de fórmulas seculares acumuladas e aprimoradas pela tradição
(VERNANT, 1990, p. 139). Isso quer dizer que, antes do Homero rapsodo, seu
trabalho primordial consistiu em propagar, de cidade em cidade, as formas orais
que, posteriormente, se transformaram nas epopeias homéricas. Segundo Werner
Jaeger, a função dos aedos, em Homero, consistia em “manter vivos na memória do
mundo futuro os ‘feitos dos homens e dos deuses’” (JAEGER, 1994, p. 67). Mutatis
mutandis, função similar a de griots e idosos nas sociedades acústicas de África.
Inclusive, tal comparação já fora notada pelo historiador Pierre Vidal-Naquet, em seu
arrazoado sobre como a figura dos aedos é pensada na Odisseia:

Os aedos eram capazes, com um intervalo de poucos anos, de reproduzir,


quase sem variantes, as epopeias puramente orais. O mesmo fenômeno foi
observado na África, na Oceania e em outras sociedades como, por
exemplo, no Curdistão. Dito isso, é difícil, por outro lado, ignorar o vínculo
entre a fixação dos cantos épicos e o desenvolvimento da escrita alfabética
fenícia adotada pelos gregos por volta de 900 a.C. (VIDAL-NAQUET, 2002,
p. 18).

Não sem propósito, era Mnemosyne, deusa titã da memória e mãe das sete
musas, a entidade mítica que patrocinava a poesia para os gregos. Dessa feita, com
vistas na perpetuação da tradição, a poesia grega, em especial a epopeia, estava a
serviço da memória do passado glorioso dos helênicos e de seus mitos, elementos
formadores de identidade. Conforme Jaeger (1994), os aedos, no momento de sua
performance transmissional, ficavam como que possuídos pelas musas em êxtase
poético10, de modo a unir poesia e mito, na função educadora que lhes era atribuída,
a de manter vívidos os feitos dos heróis e das divindades:

10
Outra característica comum aos idosos africanos que, no processo de transmissão oral da tradição,
incorporavam a persona do ancestral evocado nas narrativas.
25

11
Tal é a concepção helênica original. Parte da união necessária e
inseparável de toda a poesia com o mito – o conhecimento das grandes
ações do passado – e daí deriva a função social e educadora do poeta.
Para Platão, esta função não consiste em nenhuma espécie de desígnio
consciente de influenciar os ouvintes. O simples fato de manter viva a glória
através do canto é, por si só, uma ação educadora. (JAEGER, 1994, p. 62).

Em segundo lugar, a escrita homérica, por meio da Ilíada (em catorze mil
versos) e da Odisseia (em doze mil) são resultado da transmissão oral. Nessas
obras foram registrados os mitos e eventos fundamentais para a concepção
identitária dos gregos. Tais eventos constituem-se no final da Guerra de Tróia, o
regresso de um de seus principais heróis, Odisseu, à ilha de Ítaca, o joguete dos
deuses com o destino humano (debalde ou a favor do fatum), tanto no que se refere
ao famoso conflito, que durou dez anos, quanto durante o retorno marítimo de
Ulisses, que levou dezessete.
É de consenso entre os estudiosos que essas obras foram fruto da reunião,
por escrito, de diversas narrativas poéticas orais da tradição grega, propagadas, de
geração em geração, pelos aedos e, por séculos, aprimorada. É, igualmente de
consenso que são, ambas, obras fundadoras da literatura ocidental, mais que
consagradas pelo cânone literário, mesmo perdendo o calor do contexto original,
com a performance do aedo, em seus ritos próprios, diante da comunidade reunida e
as especificidades locais de recepção da mensagem a ser transmitida.
Nesse contexto, vale lembrar o prefácio da monumental História geral da
África, escrito pelo então secretário geral da UNESCO, Amadou-Mahtar M'Bow , no
qual ressalta a atitute discrepante da academia em negar o legado da tradição oral
africana, como se o continente não tivesse história, enquanto que as epopeias
homéricas sempre foram consideradas fontes para os estudos históricos:

Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes


essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo
valor à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em
suas vidas, a trama de tantos acontecimentos marcantes. [...].

11
O dêitico “tal”, que inicia a citação, refere-se ao comentário de Jaeger sobre o elogio de Platão ao
“êxtase poético” ou “delírio divino” como aportes importantes na educação do povo grego, a Paideia:
“A possessão e o delírio das musas apoderam-se de uma alma sensível e consagrada, despertam-na
e extasiam-na em cantos e em toda a sorte de criações poéticas; e ela, enquanto glorifica os
inúmeros feitos do passado, educa a posteridade” (JAEGER, 1994, p. 67).
26

Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos
séculos, por vias que lhes são próprias e que o historiador só pode
apreender renunciando a certos preconceitos e renovando seu método.
(M’BOW, 2010, p. XXI).

É óbvio que seria ingênuo traçar paralelos entre Um defeito de cor e as


epopeias homéricas como se fossem obras homólogas, pois cada qual tem as suas
especificidades formais, estéticas, semânticas, históricas, dentre outras. No entanto,
a presença da tradição oral na formação da produção escrita de Homero e o papel
dos aedos, lançam luzes no entendimento de Um defeito de cor, no que toca à sua
importância na tessitura da narrativa e do caráter metaficcional da obra de Ana
Maria Gonçalves. Tal como, também, a figura do griot e do idoso em África.
Não parece ser fortuito o fato de a primeira epígrafe a ser inserida no
romance seja um provérbio de origem africana que, justamente, alude à importância
de atentar-se à tradição transmitida pelos mais idosos a fim de que a sabedoria
ancestral se perpetue. Esta epígrafe é a primeira do conjunto de três paratextos da
página com dedicatórias da autora. É um tributo aos seus avós:

Para meus avós,


Nola e Paulo,
Ana e João
“Quando você segue as pegadas dos mais velhos,
Aprende a ser como eles” (GONÇALVES, 2012, p. 4).

Nesse contexto, a terceira epígrafe das dedicatórias, também africana,


articula-se harmonicamente com a primeira, pois seu foco é o caráter transmissional
de conhecimentos. Numa primeira leitura, apreende-se que o paratexto consiste em
uma homenagem da autora aos estudiosos, cujas obras ofereceram ao romance
embasamento histórico, estético, sociológico, antropológico. Entretanto, após
leituras posteriores, percebe-se, com clareza, que o paratexto epigráfico em questão
alude, também à importância da transmissão da memória tradicional: “Uma chama
não perde nada ao acender outra chama” (GONÇALVES, 2012, p. 4).
Desde pequena, como toda africana ou africano de sua época e nação,
Kehinde aprende a respeitar os idosos e a gostar de ouvir seus ensinamentos e
histórias. Desde o início do romance, em sua terra natal, até a longa permanência da
narradora no Brasil, marca-se a presença de mulheres idosas, ligadas à cultura e
religião ancestrais, verdadeiros guias de quem a narradora nunca se esquece e de
27

quem sempre faz memória. Enquadram-se nesse perfil algumas personagens


femininas e anciãs mais representativas na formação de Kehinde, a saber, sua avó,
Esméria, Nega Florinda e Agontimé.
A figura de maior importância, nesse contexto, está representada na avó, o
único suporte de Kehinde, depois do trágico homicídio da mãe e do irmão no início
da narrativa. Fonte primeira dos conhecimentos rudimentares iniciais da religião dos
voduns e da cosmovisão jeje, guardados na memória por Kehinde pela vida inteira.
Mesmo tendo morrido no navio negreiro, a avó ainda aparece em sonhos à
protagonista, sempre em momentos cruciais de sua vida, de maneira a continuar
guiando e zelando pela neta, no plano espiritual e onírico. Além disso, ao longo de
todo o romance, a anciã é citada centenas de vezes pela narradora, em inúmeras
situações, muitas delas triviais, que incitam a lembrança do ente querido. Tal fato
demonstra que, em sua narrativa, Kehinde/Luísa estabelece um sólido vínculo entre
a memória ancestral e a memória dos acontecimentos de sua vida.
Depois da avó, Esméria representou o vulto de maior relevância na
formação inicial da narradora. Escravizada doméstica da família Gama há mais de
quarenta anos, a anciã acolhe carinhosamente a menina Kehinde, esta totalmente
só neste mundo. Protege-a, ensina-lhe os primeiros rudimentos da língua
portuguesa e os segredos para sobreviver naquele mundo novo e hostil. Mais que
isso, assume o papel de mãe, avó e amiga da protagonista. Nesse sentido, Esméria
encarna uma figuração das três epígrafes da dedicatória: a de anciã (que guia nos
caminhos da vida e remete à ancestralidade), de amiga (que estabelece com a
protagonista uma relação de solidariedade mútua) e de transmissora (ensinando
Kehinde a sobreviver no sistema escravista brasileiro sem perder as raízes
africanas).
Por longos anos, Esméria acompanha, ampara, protege, cuida de Kehinde,
sempre com carinho maternal ou de avó. Durante a infância e puberdade da
narradora, passada na fazenda da Ilha de Itaparica, essa avó postiça é o único
esteio de Kehinde, sob os abusos do sinhô José Carlos e a tirania de sua esposa;
igualmente nos anos de adolescência e inicio de juventude da protagonista, quando
ambas as escravizadas transferem-se para um solar em São Salvador, a serviço da
viúva do sinhô, sua atenção e desvelo pela neta de coração traduz-se em diversas
atitudes protetivas concretas. Exemplo disso, pode-se mencionar todo o suporte
dispensado quando Kehinde era castigada e presa no porão pela sinhá Ana Felipa.
28

Outro, a cumplicidade que favorecia a narradora, então escrava de ganho, poder


dormir com o seu filho. Como também a cumplicidade no golpe que favoreceu a
alforria de ambas. Por fim, já liberta, o suporte dado à narradora, tanto no cuidado
da casa e dos filhos de Kehinde, inclusive quando a protagonista foge de Salvador e,
posteriormente, resolve iniciar-se na religião ancestral, primeiro em São Luís do
Maranhão e, posteriormente, em Cachoeira, no recôncavo baiano. Essa
maternidade assumida por Esméria fica bem evidente já no primeiro capítulo, no
qual a idosa encontra Kehinde na praia, chorando a morte de seus entes queridos
pela primeira vez:

Eu ainda não tinha chorado por eles, e só fui parar quando, tarde da noite, a
Esméria voltou do povoado e sentiu minha falta, indo procurar em todos os
lugares onde sabia que eu gostava de ficar. Ela sentou ao meu lado e me
chamou de sua menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do
peito dela e me embalou com cantigas da África. Então cantou até que eu
dormisse, como naquele dia em que a minha mãe dormiu para sempre no
quente do colo da minha avó, em Savalu. Ou como no dia em que eu e a
Taiwo dormimos no barracão, embaladas nos braços de Nana e Iemanjá.
(GONÇALVES, 2012, p. 107).

O intertítulo “Órfã” (GONÇALVES, 2012, p. 623), que encabeça a seção do


romance na qual a morte de Esméria é mencionada, também traduz essa relação
familiar, afetiva e amorosa entre a anciã e Kehinde. Além do sentimento de
orfandade, a narradora também expressa, em desabafo, o que Esméria representou
para ela:

Passei dias sentindo grande tristeza e o peito apertado, como se as


lembranças de Esméria fossem tomando todo o espaço do meu de dentro,
como diria a Blimunda. A pior sensação era a de não ter dito quanto gostava
dela, quanto ela tinha sido importante para mim, como mãe, avó e grande
amiga. A Esméria representava tudo isso, tudo o que tinha perdido antes de
chegar ao Brasil, e que encontrei nela no primeiro dia da minha estada na
casa-grande da ilha. Eu tinha viva, e ainda tenho, a imagem da Esméria
sentada ao meu lado enquanto eu comia na porta da cozinha, olhando para
mim como se dissesse que a partir daquele momento eu estaria sob a
responsabilidade dela, que tudo faria para que eu sofresse o mínimo
possível. Uma das primeiras coisas que ela me disse foi para não conversar
nunca em línguas de África se houvesse algum branco por perto, mas foi
cantando em eve que a saudade e a dor da perda foram diminuindo.
Quando ficava muito triste, eu começava a cantar coisas que nem sabia que
me lembrava, as canções que a minha avó tinha cantado para o Kokumo e
para a minha mãe, antes de sairmos de Savalu. (GONÇALVES, 2012, p.
624).
29

Seguindo em frente na análise das mulheres idosas que tiveram um papel


significativo na formação de Kehinde, é possível ser Nega Florinda a que tenha se
aproximado mais do modelo de ancião africano, no que toca à função itinerante de
transmitir narrativas, a fim de se preservar a memória tradicional. Nesse sentido, a
personagem reporta aos griots da África ocidental (por ser mulher, seria mais
conveniente denominá-la griote).
Mesmo com residência fixa na ilha de Itaparica, a idosa peregrinava de
fazenda em fazenda, de casa em casa, e, a troco de modestos adjutórios, contava
histórias que eram muito apreciadas, não somente por seus ouvintes escravizados
como, inclusive, por sinhás como Ana Felipa.
Chama a atenção o fato de a narradora apresentar Nega Florinda como uma
“recontadeira” (GONÇALVES, 2012, p. 81), designação relevante que alça a
personagem a um status diverso daquele relativo ao de simples repetidora de
histórias. Supõe que Nega Florinda, ao mesmo tempo, conservava o thesaurus
legado pelos ancestrais e os transmitia com um colorido particular. Essa função de
presentificar o passado ancestral por intermédio de recursos peculiares do contador
sem trair a mensagem do corpus tradicional, pode, também, ser identificado na
narradora do prólogo e na narradora do enredo romanesco. A fim de desenvolver
esse raciocínio, detectando marcas da transmissão oral no ato de escrita das duas
narradoras citadas, será aberto um parêntese necessário.
Partindo do pressuposto de um pacto ficcional estabelecido, o leitor se deixa
levar pela narradora do prólogo, que afirma ter efetuado uma edição do manuscrito
antigo ditado por Kehinde/Luísa e preenchido as lacunas do texto, resultantes de
partes ilegíveis e páginas perdidas, com invenções suas, chegando a afirmar que
poderia assinar o livro como seu (GONÇALVES, 2012, p. 16). Entretanto, em
nenhum momento, nega a autoria da história original como sendo de Kehinde.
Mesmo no suposto trabalho de editar o manuscrito, transpondo-o à
linguagem do romance contemporâneo e, até quando preenche com textos próprios
as lacunas narrativas e materiais dos papéis antigos, a narradora do prólogo sente a
presença espiritual de Kehinde. Essa presença espiritual se manifesta em
experiência sensorial quando, durante o processo de transcrição e escrita, afirma ter
ouvido sussurros da protagonista do romance ditando-lhe palavras ao pé do ouvido:
30

Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado
nada fora de propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a
transcrição, e principalmente durante a escrita do que não consegui
entender, eu a senti soprando palavras ao meu ouvido. (GONÇALVES,
2012, p. 17).

Tal manifestação de natureza espiritual e físico-acústica suscita algumas


inferências relativas à oralidade e ao processo transmissional da tradição. A primeira
consiste na constatação de que esse fenômeno revela certa tranquilidade pessoal
por parte da narradora do prólogo, no sentido de que, em suas intervenções, não
estava traindo a mensagem do manuscrito e, por consequência, mantém intacta a
tradição nele contida. Em segundo lugar, pode-se identificar uma marca de oralidade
nesse fato narrado, pois assim como Kehinde/Luísa, em vida, ditou (de boca a
ouvido) a Geninha as suas histórias, igualmente o fez, na condição de ancestral,
para a narradora do prólogo. De qualquer forma, prevalece a dimensão acústica
dessa manifestação.
Segundo Maurice Hois, a “percepção auditiva da mensagem” é o
componente imprescindível da oralidade (HOUIS, 1980, p. 12). Ora, nos dois casos
analisados, tal experiência acústico-auditiva precede o ato de escrita. Na verdade,
seria mais específico afirmar que o trabalho de Geninha representaria, talvez, a
reprodução de um ditado, a transposição do oral para o escrito. No caso da
narradora do prólogo, por sua vez, ocorre uma recontação, uma mudança de
linguagem narrativa. O manuscrito é transformado em romance. A voz soprada de
Kehinde revela, também, uma coautoria nessa mudança de gênero textual e sua
atualização, além de conferir um certo hibridismo entre oralidade e escrita, ou indicar
ao leitor que, antes de ser escrito, o texto foi dito.
Portanto, mesmo transposto para a linguagem escrita e romanesca do
século XXI, pela narradora do prólogo, o pacto ficcional estabelecido induz à
natureza oral primordial na narrativa em questão. Antes de ser manuscrito, foi ditado
a uma escriba em 1899, de modo que a oralidade precede a escrita. Antes de ser
romance foi manuscrito, adaptado ao gênero romance por uma personagem
contemporânea que executou esse trabalho sob inspiração da voz soprada por
quem ditou o texto original, a própria Kehinde.
Além disso, no prólogo, a ideia de recontação do manuscrito é reforçada,
inclusive, lançando-se mão da possível autenticidade histórica daquilo que é narrado
e da passível existência real da protagonista Kehinde/Luísa, “levando-se em conta o
31

grande número de coincidências, como nomes, datas e situações” (GONÇALVES,


2012, p. 17).
No caso da narradora do romance, ela própria também se mostra uma
exímia recontadora de histórias, graças à memória primorosa da qual é dotada.
Além de relatar sobre a própria vida, dificilmente deixa de tecer uma narrativa sobre
a história das personagens que marcaram a sua existência. Não se contentando
com isso, reconta informações e narrativas que lhe foram transmitidas por outrem e
os ensinamentos tradicionais que recebera oralmente de personagens como
Esméria, Nega Florinda, Agontimé, Mãezinha, Baba Ogumfiditimi e tantos outros.
Dentre esses casos, vale citar a recontação que Kehinde faz dos escritos
antigos que recebe, em 1838, de um ex-escravizado quase centenário, chamado
Kuanza, quando a narradora se encontrava no Recôncavo, a fim de continuar a sua
formação iniciática.
O pai de Kuanza, Zimbo, mais conhecido como Maneta, era escravizado da
família do famoso inventor brasileiro, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, e
assistente do sacerdote na criação de um projeto mirabolante, que mescla a ciência
ao maravilhoso, a “Passarola”, mesmo nome dado ao aeróstato que o Gusmão
histórico apôs no século XVIII.
Por conta do desenvolvimento dessa engenhoca voadora sob o patrocínio
do rei, o padre vai a Portugal, de onde troca correspondência com o pai de
Kuanza12, “a quem o padre consultava sempre que surgiam dificuldades em seu
trabalho” (GONÇALVES, 2012, p. 620). Os papéis consistiam em “cartas, anotações,
bilhetes, recortes de revistas e jornais e pedaços de livros” (GONÇALVES, 2012, p.
616), os mesmos que Kuanza conservara desde a morte do pai em 1750, na
esperança de que, um dia, alguém pudesse lê-los e expor-lhe o conteúdo, do qual já
não se lembrava de muita coisa, visto que era analfabeto. Depois de lida, na
presença de Kuanza, Kehinde decide escrever uma narrativa com base nesses
manuscritos, ação que empreenderá somente tempos depois, na cidade de Santos,
onde procurava o filho perdido. Retém seu escrito consigo e decide publicá-lo
quando já se encontrava em África, como retornada. Para tanto, conta com a ajuda
do amigo e benfeitor, o doutor José Manuel, que lhe aconselha o envio do texto a
seus parentes em Portugal, para que fosse impresso o livro. Entretanto, os originais

12
O pai de Kuanza era analfabeto e as correspondências eram lidas por um seminarista, que também
as respondia para o Maneta (GONÇALVES, 2012, p. 620)
32

se extraviam no caminho e a protagonista desiste de tal empreitada, aceitando o


malogro como vontade de natureza superior:

Já era tempo suficiente para darmos a correspondência por perdida. Ela13


pedia muitas desculpas por isso, e nem sei por que, como se tivesse
alguma responsabilidade pelo navio. Mas confesso que fiquei triste, pois
tinha empregado muito tempo e esforço para recordar e escrever toda a
história, em cumprimento à promessa feita ao Kuanza. Pensei até em
escrever de novo, mas depois desisti, achando que era aquilo mesmo que o
destino queria. Se aquela história tivesse que ser contada novamente,
algum dia um nkisi14 trataria de soprá-la no ouvido de alguém.
(GONÇALVES, 2012, p. 777).

A história que a leitura dos manuscritos do padre inventou encerra um


diálogo intertextual explícito com o romance Memorial do convento, publicado em
1982 pelo escritor português José Saramago. Essa evidência fica patente em nota
explicativa sobre uma relação numérico-cronológica escrita por Gusmão, de anos,
talvez, significativos para ele, dentre os quais havia o de seu nascimento. No
entanto, havia alguns outros que causaram espanto na narradora, como o ano em
que Kehinde recebe os manuscritos de Kuanza e o enigmático 1982, elucidado em
nota de rodapé: “Esta história do padre Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador,
está contada no livro Memorial do convento, de José Saramago, publicado em
1982.” (GONÇALVES, 2012, p. 622).
A narrativa que Kehinde/Luísa relata como sendo a dos manuscritos do
sacerdote é, praticamente, uma síntese de boa parte do romance saramaguiano,
pelo menos, no que concerne à construção da Passarola pelo padre e seus
desdobramentos, com a ajuda das personagens Baltasar e Blimunda. Entretanto, há
alguns acréscimos dados à história de Saramago que devem ser apontados.
A primeira adição consiste no insight de Gusmão ao observar Kuango, irmão
de Kuanza, brincar com bolhas de sabão, sopradas com um cabo de mamona. As
bolhas o inspiraram a inserir na sua “máquina voadora” em forma de pássaro o
componente que faltava, a saber, “várias bolas de vidro, que pareciam pegar fogo”
(GONÇALVES, 2012, p. 619).
Tirante esse primeiro acréscimo, os demais demonstram que as
contribuições dadas por Zimbo ao padre Bartolomeu de Gusmão apresentam

13
Trata-se da sinhazinha Maria Clara, amiga de Kehinde/Luísa e esposa do doutor José Manuel.
14
Segundo Lopes (2004), inkisi ou inquice é um termo banto correspondente ao “receptáculo ou
objeto em que se fixa a energia de um espírito ou de um morto. No Brasil, passou a significar o
próprio espírito a ser usado, nos cultos bantos, como sinônimo de orixá” (LOPES, 2004, p. 342).
33

inspiração na cosmovisão tradicional do pai de Kuanza, numa interessante mescla


entre ciência e o mito. Um primeiro exemplo ocorre durante os insucessos iniciais de
Gusmão, que temia o fracasso do projeto. Em contrapartida, Zimbo aconselha o
inventor a dar um nome à engenhoca, pois “em sua terra tudo devia ter um nome.
Quando as coisas ganham um nome, elas também ganham uma força vital, e por
isso a máquina de voar precisava ser chamada de alguma coisa.” (GONÇALVES,
2012, p. 620).
Em outra ocorrência, o sacerdote teme a perseguição do Marquês de
Pombal, devido à proximidade dele (Gusmão) com os reis portugueses. Em
resposta, Zimbo o tranquiliza, dizendo que os espíritos protegiam o padre.
Acrescenta, também, uma previsão de que surgiriam duas pessoas especiais em
sua vida. Trata-se de uma referência clara aos personagens Baltazar Sete-Sóis e
Blimunda Sete-Luas, como será exposto pela própria narradora do romance.
Enigmaticamente, o pai de Kuanza profetiza que, por meio dessa dupla de
personagens, o padre Bartolomeu teria a compreensão do significado da

força que todas as coisas e todos os seres devem possuir, a vontade que
eles precisam para cumprir o destino que era próprio deles, e somente dele.
O maneta disse também que o padre compreenderia isso depois do dia em
que se juntassem sete sóis e sete luas, e que uma criança fosse batizada
por sete bispos15, reunindo sete vontades. (GONÇALVES, 2012, p. 620).

De fato, essa compreensão de que fala Zimbo, será o combustível que


possibilitará à Passarola flutuar pelos ares. E será obtida por Blimunda, que possuía
o dom da visão interior e o poder de recolher as vontades das pessoas e depositá-
las em um receptáculo contido na máquina de voar do padre.
A questão do recontar e da oralidade é evidente nesse episódio do ex-
escravizado Kuanza. Primeiramente, manifesta-se no desejo da personagem em
ouvir novamente a narrativa fantástica do Padre Voador e a participação de seu pai
na história. Em segundo lugar, o fato de Kehinde, ao organizar os manuscritos, relê-
los para Kuanza e decidir reescrevê-los (recontá-los) em forma de narrativa escrita.
Em terceiro lugar, a recontação que faz para o filho, o destinatário de seu texto.
Essa recontação, embora escrita, vale recordar que, de primeira mão, efetiva-se à

15
No Memorial do Convento, essa criança trata-se de D. Maria, filha de D. João V: “Sete bispos a
batizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor, e ficou a chamar-se
Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de dona adiante, (...)”. (SARAMAGO,
1991, p. 64).
34

viva voz, num ditado, por parte da narradora. A entonação é de uma linguagem que
se aproxima da conversa (ou parte dela, a da narradora) entre os dois personagens
originalmente envolvidos no processo comunicativo (a narradora e seu destinatário
imediato):

Vou te contar a história inteira, como entendi lendo os papéis do Kuanza,


conversando com ele e também com outras pessoas, e ainda hoje tenho
pena de não ter tentado confirmá-la, o que acredito que não teria sido difícil,
por intermédio de alguns amigos de Portugal. (GONÇALVES, 2012, p. 618).

Nesse sentido, há uma tênue linha de contato entre Um defeito de cor e a


narrativa saramaguiana: em ambas, as marcas da oralidade são fundamentais para
a leitura e compreensão dos referidos textos. Embora, com a ressalva de que
Saramago utiliza estratégias mais radicais que lhe são bem próprias, como a
ausência de marcação para o tipo de discurso das personagens, por exemplo. Por
outro lado, utilizando uma linguagem sem inovações estilísticas de vanguarda, o
romance de Ana Maria Gonçalves estabelece uma relação tal entre a narradora e
seu destinatário, Omotunde/Luís, que sugere a ilusão de uma comunicação falada,
sendo que é escrita. Em Saramago, ocorre um efeito análogo, que aliás, faz parte da
intencionalidade do autor, como ele próprio anota em seu diário no dia 15 de
fevereiro de 1994, posteriormente publicado nos Cadernos de Lanzarote:

Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica


narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio
básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto
significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as
palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem
ouvidas. (SARAMAGO, 1994, p. 264).

Fechando agora o necessário parêntese, continua-se, entretanto a reflexão


sobre a ideia de recontação em Nega Florinda e seu modo típico de narração oral,
que tanto fascinou Kehinde. O mecanismo do recontar, nesse sentido, implica na
interdependência de dois fatores, abordados pelo sociolinguista Louis-Jean Calvet
no opúsculo Tradição oral & tradição escrita: a “forma da tradição oral” e a
“fidelidade de sua transmissão”. Conforme Calvet (2011), o pano de fundo dessa
articulação reside em um problema prático de natureza mnemotécnica, isto é, da
preocupação dos transmissores em não se esquecerem das narrativas ancestrais
durante a sua performance.
35

A solução para esse dilema, nesse aspecto, consiste no que o sociolinguista


aponta como o “estilo oral” dos contadores. A fim de resolver dificuldades relativas à
memorização, o transmissor oral lança mão de jogos semânticos, recursos rítmicos,
fônicos e reiteração de enunciados formulares, como os provérbios, por exemplo. O
estudioso também ressalta que o estilo oral, além de solucionar tais reveses,
imprimem nas narrativas aquilo que Jakobson denomina função poética da
linguagem. Além, disso, para Calvet, essa forma peculiar de transmissão, o estilo
oral, permite uma articulação entre o conteúdo da tradição, que deve ser
conservado, e a forma peculiar de expressão oral do contador, que recria, reconta,
utilizando ferramentas retóricas e poéticas específicas:

pois cada proferição é, ao mesmo tempo uma recriação e uma


retransmissão em um texto oral, assim como em uma canção em suas
várias reproduções: há o estilo da peça e o estilo do intérprete, há a história
e a maneira de dizê-la. Essa variante individual, que pode ser estilística,
pode ser também contextual, adaptada a tal evento ou a tal auditório.”
(CALVET, 2011, p. 54-55).

No caso de Nega Florinda, o estilo oral fica evidente, não apenas pelo teor
das narrativas orais proferidas, muitas delas já conhecidas por Kehinde, que as
escutara da avó. Durante o seu mister, a idosa, utilizava uma técnica peculiar,
“batendo palmas ritmadas antes de começar e durante a narração, com força e
velocidade diferentes, para ajudar a fazer suspense” (GONÇALVES, 2012, p. 82).
Tal dado demonstra que a anciã resgata ou reproduz um costume dos contadores
de histórias da África tradicional, impondo ritmo e musicalidade em suas narrativas,
de modo a tanto ajudá-la a reproduzir as histórias, como eficaz recurso mnemônico,
quanto a tornar a recontação mais envolvente para a plateia.
A narradora, desde que trava contato com Nega Florinda, reconhece nela a
presença da tradição. Logo à primeira vista, assustada, a constituição física da idosa
e sua indumentária peculiar leva a protagonista identificá-la como um dos egunguns,
isto é, entidades da cultura daomeana que representam os espíritos dos ancestrais
(GONÇALVES, 2012, p. 81).
Para Kehinde, a ancianidade da personagem possui um liame estreito com a
missão de recontar a memória ancestral. Mais que isso, o fato de ser idosa confere à
sabedoria de Nega Florinda um nível universalizante, como se ela conhecesse todas
as narrativas do mundo. Nesse sentido, percebe-se como, desde menina, a
36

narradora apreende, respeita e, eleva a um nível transcendente, o poder do mito e


da tradição oral, transmitidos habilmente por uma idosa, depositária dessa mesma
tradição e portadora de autoridade para transmiti-la:

A Nega Florinda era das pessoas mais antigas da ilha, morava lá desde que
tinha chegado da África, ainda mocinha, e já era forra havia tanto tempo que
ninguém vivo se lembrava dela como escrava. Era muito velha e parecia
saber todas as histórias do mundo, desde que o mundo era mundo, como
ela mesma dizia. Como recontadeira, andava de casa em casa e recebia
algum dinheiro ou mesmo sobras de comida, que aceitava de bom grado
antes de se agachar em qualquer canto e contar histórias. (GONÇALVES,
2012, p. 81).

Se é verdade que desde o início de seu contato com Nega Florinda, Kehinde
revela grande fascínio pela personagem e interesse por suas narrativas, também o é
que seu relacionamento com a anciã extrapola a condição de ouvinte. Isso, graças
ao fato de que Nega Florinda era da nação mina ou jeje, a mesma de Kehinde, e,
além disso, uma vodunsi ou vodu-no, sacerdotisa “no culto de Dãn-Gbi, a Grande
Serpente” (GONÇALVES, 2012, p. 83). Ora, a avó da narradora também era uma
vodunsi, assim como Agontimé, a rainha mãe, fundadora do primeiro assentamento
brasileiro do culto aos voduns em São Luís do Maranhão, tanto no enredo do
romance como de fato.
Dessa feita, a sacerdotisa recontadeira de alôs passa a ser, na diáspora, a
primeira guia espiritual a atender as necessidades da menina Kehinde, cujos
conhecimentos da religião tradicional foram interrompidos com a morte da avó. Além
de transmitir-lhe algumas instruções gerais, não iniciáticas, sobre os voduns, regala
a narradora com um pingente que representava a irmã gêmea Taiwo e uma estátua
de Ibêjis, cumprindo o último desejo da avó de Kehinde, transmitido à neta, a fim de
que a alma da protagonista ficasse completa malgrado a morte da irmã gêmea
(GONÇALVES, 2012, p. 82).
Além disso, a narradora descobre, por meio de Nega Florinda, que ainda
não havia assentamentos de terreiros da nação jeje em terras brasileiras e que já se
planejava fundá-los no tempo oportuno, a fim de que a presença dos voduns se
estabelecesse no país e o povo mina pudesse manter viva a religião em locais
consagrados para tal finalidade, conforme a tradição. Enquanto isso não
acontecesse, a velha aconselha Kehinde a cultuar os orixás nagôs correspendentes
aos voduns do Daomé. Note-se aqui a menção ao fenômeno sociológico da
37

universalização da religião iorubá, especialmente na Bahia, em detrimento das


outras manifestações religiosas de matriz africana, como a do culto aos voduns, que
praticamente desapareceram naquela região a partir do século XIX. Em discurso
indireto, Kehinde reproduz o ponto de vista de Nega Florinda a respeito dessa
propagação generalizada que resultará numa homogeneização cultural e religiosa
iorubá:

No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o grande poder que
os voduns possuíam. Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás
para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba,
Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum,
Xangô, Tlegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xapoã e Olokum. Na Bahia, os orixás já
tinham tomado conta das cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito
tempo, praticado por quase todos os africanos que, por muitos e muitos
anos, iam parar naquelas terras. Nossos voduns nunca teriam força para
ganhar um pouco de espaço ou atenção, e para eles estava destinado um
lugar não muito longe dali, do qual, por enquanto, ela nada podia falar.
(GONÇALVES, 2012, p. 83-84).

Também é por meio de Nega Florinda que Kehinde conhece a personagem


Agontimé. A primeira aproximação se dá em certo domingo, no qual a contadora de
alôs leva a protagonista consigo a um passeio por São Salvador. Esse encontro foi
marcante para a narradora, do ponto de vista identitário. Nele, pois, a protagonista
descobre que Agontimé conhecera a sua avó, a quem chamou de “grande mulher” e
“alguém por quem ela teve muita consideração e que tinha sido muito importante
para ela” (GONÇALVES, 2012, p. 134). Também toma conhecimento de que a
sacerdotisa-rainha assentaria um terreiro em São Luís do Maranhão. Esse local de
culto será chamado Casa das Minas e logo Nega Florinda abandona Itaparica para
fixar-se lá. Anos mais tarde, depois de sua participação no Levante dos Malês de
1853, Kehinde também se dirige a São Luís, com o objetivo de iniciar-se na religião
ancestral.
Assim como no caso do primeiro encontro com Nega Florinda, Kehinde fica
fascinada com a rainha anciã. Em ambas as primeiras impressões, a narradora
destaca o valor da oralidade tradicional, personificada nessas duas mulheres que
despertaram sua admiração, respeito e reverência. No caso de Nega Florinda, a
protagonista sente que a contadora de alôs parecia conhecer todas as narrativas do
mundo, como se fosse portadora ou depositária de um saber universal. Em relação a
Agontimé, o sentimento expresso por Kehinde revela uma identificação entre a anciã
e a mensagem que ela transmite.
38

Desse primeiro encontro, Kehinde confessa que não conseguira guardar a


lembrança visual das feições da grande sacerdotisa, o que, ao contrário, não
ocorreu com a memória auditiva, vivíssima e detalhista, das palavras proferidas por
Maria Mineira Naê e de sua performance transmissional naquela ocasião. Dessa
feita, para a narradora de Um defeito de cor, Agontimé personifica a tradição que
legitimamente representa como rainha e líder religiosa. Ademais, ela personifica a
transmissão da tradição. Um pouco além, pode-se afirmar, inclusive, que Agontimé
personifica o próprio ato de transmitir a tradição por meio da oralidade:

Durante todos os anos que se passaram até que eu a encontrasse


novamente, tentei me lembrar do rosto daquela mulher ou de um detalhe
que fosse, mas nunca consegui. Quanto ela começou a falar, assim que
também se sentou em uma esteira diante de nós, foi como se sumisse,
como se fosse feita só de palavras, como se conseguisse se esconder por
trás do sentido das palavras, fazendo com que elas tivessem uma força e
uma presença muito maiores do que qualquer pessoa que eu tinha
conhecido até então pudesse dar a elas. A mulher se apresentou a nós
como Maria Mineira Naê e disse que em África tinha outro nome, Agontimé.
Foi então que eu percebi que estava frente a frente com a rainha de Abomé,
sobre quem muitas vezes tinha ouvido a minha avó falar, realçando a sua
bondade com o povo e a dedicação aos voduns. Da história que ouvi em
seguida, sou capaz de me lembrar de cada entonação da voz dela, de cada
detalhe. (GONÇALVES, 2012, p. 131-132).

Na vida da protagonista, a presença do nome Agontimé precede esse


primeiro encontro de Kehinde com a anciã, no Brasil. Sua ocorrência já se efetua no
primeiro capítulo do romance, quando guerreiros invadem o espaço familiar da
narradora em Savalu e ficam extremamente irritados ao depararem com a gravura
que estampava o tapete que a avó tecia, estopim do assassínio cruento da mãe e do
irmão de Kehinde. Capítulos adiante, o leitor descobrirá que tal figura se tratava de
Dan, a Serpente Árco-Íris, entidade ligada ao mito fundador da religião dos voduns.
Tão logo identificada a estampa urobórica em questão, os invasores são tomados
pela ira e começam a falar “de feitiços, de pragas e de Agontimé” (GONÇALVES,
2012, p. 22).
Percebe-se, a partir disso, que Agontimé era pessoa non grata no reino, o
que se confirma no breve perfil biográfico da mesma, narrado no capítulo três de Um
defeito de cor. Segundo a narradora, a “rainha Agontimé era conhecida em Abomé
pelas histórias que contava sobre o seu povo e sobre a fé, a força e a importância
dos ancestrais” (GONÇALVES, 2012, p. 131). Frise-se, nesse ponto, o destaque que
a narradora dá à personagem como, também, uma recontadeira de histórias, assim
39

como o era Nega Florinda. No entanto, o contexto do trecho citado anteriormente


foca-se no fato de que as crenças tradicionais transmitidas pela rainha mãe foram
proibidas pelo rei Adandozan, seu enteado, de modo que ela constituía um perigo e
tornava-se inimiga do reinado. Dessa feita, assim como a avó de Kehinde, Agontimé
fora banida da capital Abomé. Além disso, o rei decide vender a personagem ao
mercado de escravizados, a fim de ser mandada ao Brasil, onde trabalhou em
fazendas da Bahia e de Minas Gerais, na lavoura de cacau, algodão e café. Na
província das Gerais é posteriormente transferida para a labuta nas jazidas de ouro
em Tijuco e Vila Rica. Com o ouro que conseguira habilmente esconder, obtém a
carta de alforria e realiza a missão para o qual se sentia vocacionada: assentar um
terreiro no Maranhão (GONÇALVES, 2012, p. 133) que não fosse apenas local de
culto, mas também centro de formação de novas vodunsis.
Anos depois do primeiro contato com Agontimé, Kehinde desloca-se para
São Luís, a fim de ser iniciada pela sacerdotisa anciã na religião dos voduns,
período que dura seis meses. No terreiro, a narradora torna-se, além de noviça, uma
espécie de secretária da noche Naê, como era conhecida na Casa das Minas, de
modo que pôde assimilar, mais aprofundadamente, os ritos, ensinamentos e a
movimentação humana do local.
Há um gesto significativo de Agontimé ao receber Kehinde na Casa que
merece ser destacado: “Fiquei olhando para ela, achando que não ia me
reconhecer, mas antes de falar qualquer coisa, ela se ajoelhou e saudou o vodum da
minha avó” (GONÇALVES, 2012, p. 596). Nota-se, nessa atitude, a profunda e
tradicional reverência pelos ancestrais que, do ponto de vista hierárquico, merecem
respeito tal a ponto da principal autoridade religiosa do terreiro, como a noche Naê,
prostrar-se diante do ancestral representado por uma pessoa mais jovem, no caso,
Kehinde.
Sobre o título noche, conferido a Agontimé, vale destacar que, conforme
esclarece um rodapé do romance, o termo significa “sacerdotisa do vodum” e,
também, “mãe ancestral” (GONÇALVES, 2012, p. 597). Nei Lopes assinala que
provém da junção de duas palavras do fongbé: “non, ‘mãe’ + tche, ‘minha’” (LOPES,
2004, p. 480). Esta segunda designação pode, muito adequadamente, expressar a
figura que Agontimé significou para Kehinde. Isso porque a sua permanência na
Casa das Minas e a companhia de Agontimé desperta na protagonista um
sentimento de pertença identitária, de retorno a si mesma, às suas origens, de
40

encontro intenso com a ancestralidade e com o passado, com a Bahia, com a Mãe
África:

Somente quando pisei aquele terreno foi que compreendi o que significava
estar ali, um lugar tão perto, mas, ao mesmo tempo, tão longe de casa. Até
por serem lugares parecidos, eu estava com a sensação de ter andado por
uma rua da Bahia e, de repente, ter encontrado um atalho para a África. O
lugar não tinha nada de Savalu ou mesmo de Uidá, mas ali estava uma
pessoa que tinha convivido com minha avó, com seus voduns e suas
crenças, e que possivelmente também tinha conhecido a minha mãe.
Percebi como tinha me afastado disso tudo como parecia distante o dia em
que eu tivera uma família ou mesmo um lugar que pudesse dizer que era
meu, a minha gente na minha terra. Quando tive, era muito pequena para
saber como era importante e seguro. (GONÇALVES, 2012, p. 595).

Ao terminar esse arrazoado sobre as quatro anciãs que tanto marcaram a


formação da protagonista, torna-se necessário o acréscimo de mais algumas
reflexões que permitam evidenciar uma articulação entre a presença dessas
personagens no enredo, as epígrafes da dedicatória e o papel da narradora.
O provérbio africano escolhido pela autora, na intenção de homenagear os
avós, traduz, de forma inequívoca, a reverência da África tradicional aos anciãos,
retentores de uma sabedoria sagrada, transmissores dessa sapiência e modelos a
serem imitados pelos mais novos, seus sucessores na missão de preservar esse
thesaurus. Nesse sentido, o provérbio em questão trava diálogo com a postura da
narradora do romance em relação às personagens idosas que ajudaram a plasmar a
sua formação humana, identitária. Tal processo formativo se efetua, gradualmente,
sob a ótica da tradição oral trazida da África ao Brasil, por meio de narrativas e
ensinamentos, contados e recontados por esses agentes transmissionais.
Em contrapartida, por meio do seu relato, Kehinde/Luísa mostra que “segue
as pegadas dos mais velhos” (GONÇALVES, 2012, p. 5), retransmitindo a
Omotunde/Luís narrativas e mitos que aprendera, ouvindo as falas dos idosos desde
criança, guardando a mensagem deles e, gradualmente, plasmando-se neles como
recontadora. Portanto, a narradora do romance, em seu contar e recontar histórias,
demonstra que, conforme dita a segunda parte da epígrafe dedicada aos avós, o
seguimento dos mais velhos faz com que se aprenda “a caminhar como eles”
(GONÇALVES, 2012, p. 5).
Nessa perspectiva, observa-se o processo formativo de Kehinde/Luísa como
decorrência de uma atitude emulativa, que se plenifica no ato de contar/narrar.
Narrando, na condição de idosa e depositária da tradição ancestral, a protagonista
41

personifica todos os seus mestres anciãos, como agente da transmissão oral. Uma
recontadeira que, pela memória, permite a transposição da transmissão oral à
narrativa escrita. No entanto, ela o faz – vale sempre frisar – por meio da oralidade,
já que suas histórias são ditadas e não diretamente escritas. Para tanto, a narradora
se serve de um intermediário, Geninha, atitude significativa, pois remete novamente
à dimensão acústica do seu recontar. Dessa forma, a personagem Kehinde/Luísa
pode ser considerada uma figuração que mescla oralidade e escrita, os
transmissores orais da tradição (idosos, griots, griotes, aedos) e os narradores do
gênero romance, o passado e a contemporaneidade, ou melhor, a
contemporaneidade com os dois pés no passado, se for permitida uma prosopopeia
tão paradoxal ao caso.
A narradora do romance, bem como as personagens Esméria, Nega Florinda
e Agontimé podem constituir-se figurações do segundo provérbio africano das
dedicatórias, “Amigo é como um vizinho quando Deus está distraído” (GONÇALVES,
2012, p. 5), epígrafe endereçada aos amigos pela autora. Mais uma vez, as
epígrafes da dedicatória extrapolam a sua função e dialogam com a narrativa do
romance. Isso, porque as idosas citadas, que passaram pela vida de Kehinde/Luísa,
estabeleceram com ela, uma verdadeira rede de solidariedade, numa relação que,
muitas vezes, vai além da amizade, assumindo uma dimensão praticamente familiar,
o que se traduz em gestos concretos de ajuda, amparo, além da dedicação em
repassar os valores ancestrais.
A terceira citação proverbial das dedicatórias, “Uma chama não perde nada
ao acender outra chama” (GONÇALVES, 2012, p. 5), também se inclui nessa
extrapolação paratextual e dialógica. Na verdade, apresenta-se como uma extensão
lógica da primeira epígrafe do conjunto em análise. Se os dois provérbios fossem
anexados como apenas um, poder-se-ia detectar a seguinte sucessão de ações,
resumidas em três verbos: Ouvir (“Se você segue as pegadas dos mais velhos”),
imitar (“aprende a caminhar como eles”) e transmitir (“Uma chama não perde nada
ao acender outra chama”).
O segundo provérbio das dedicatórias metaforiza uma condição essencial
para que os estágios de ouvir (reter) e imitar cheguem ao do transmitir. Consiste na
generosidade e solidariedade necessárias, por parte daquele que recebeu a
tradição, em partilhar sua sabedoria com os outros para que ela não morra (“Uma
chama não perde nada ao acender outra chama”). É curioso destacar, inclusive, que
42

esta segunda epígrafe se encontra, graficamente, no meio das outras duas, como se
representasse um cimento, uma cola a uni-las no plano do sentido.
A narrativa de Um defeito de Cor, dessa feita, tem na oralidade uma marca
fundamental, que já se manifesta nos provérbios africanos da dedicatória, paratextos
estes que fazem parte da tessitura romanesca, constatação que, possivelmente,
pode ser obtida após a leitura completa do texto. Também se faz presente nas
personagens anciãs, analisadas neste tópico, bem como tem, na própria narradora,
uma figuração do processo oral de transmissão. Assim, tanto Kehinde/Luísa quanto
as personagens anciãs constituem-se em índices de metaficcionalidade, pois
representam o próprio ato de narrar, ato esse resultante de uma transmissão oral da
memória tradicional, que deve ser preservada e passada adiante, resgatando um
passado recontado no presente.

2.2 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRÓLOGO DO ROMANCE

Narrativa autodiegética, o prólogo de “Um defeito de cor”, intitulado


“Serendipidades!” (GONÇALVES, 2012, p. 9), pretende explicar ao leitor a gênese
da obra, num misto de realidade e ficção.
Prieto (2005) assinala que, ante a necessidade de algumas justificativas, por
conta da ocorrência dessa forma de amálgama na narrativa histórica, se faz
necessário, por parte do autor da obra, lançar mão de alguns paratextos específicos,
a fim de assegurar a ficcionalidade do texto por meio da exposição de seu
embasamento discursivo, historiográfico, como também de outros aportes utilizados,
referentes à intencionalidade autoral:

A mescla entre o histórico e ficcional gera uma forte tensão no gênero que
parece requerer certos comentários ou justificações. O autor se vale, pois,
dos prólogos e dos epílogos para defender a autonomia e os direitos da
ficção, a intencionalidade estético-literária de seu discurso, e, ao mesmo
tempo, para declarar suas fontes historiográficas, indicar o uso que fez dos
dados históricos, expor seu conceito de gênero, manifestar seus propósitos
16
didáticos, etc. (PRIETO, 2005, p. 171) (tradução nossa) .

16
“La mezcla entre lo histórico y lo ficcional genera uma fuerte tensión en el género que parece
requerir ciertos comentários o justificaciones. El autor se vale entonces de los prólogos y de los
epílogos para defender la autonomia y los derechos de la ficción, la intencionalidade estético-
literaria de su discurso, y a la vez para declarar sus fuentes historiográficas, indicar el uso que há
43

Devido a essa intersecção entre o verídico e o ficcional, convém chamar de


narradora do prólogo a personagem protagonista dessa seção da obra que, ao
mesmo tempo, é a voz que conta a história preliminar à saga de Kehinde/Luísa,
esta, por sua vez, a narradora do romance. Isso, malgrado a tendência de se
identificar, de pronto, o eu narrante do prólogo, entidade fabular, na romancista Ana
Maria Gonçalves, pessoa física, autora empírica de Um defeito de cor.
Dessa feita, no prólogo é explicitado, primeiramente, o significado do termo
serendipidade, vocábulo criado por Horace Walpole, tendo como referência a obra
Os três príncipes de Serendip, atribuído a Cristóforo Armeno, e utilizado para ilustrar
como o escritor inglês encontrou, quase por acaso, uma pintura bela e preciosa.
Antes de afirmar que o romance é resultado de uma serendipidade, o termo é
apontado no sentido de se obter um resultado quando, na verdade, se procurava
algo diverso, ressaltando a necessária sagacidade para perceber o valor daquela
situação não almejada e imprevista:

Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação


em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos
procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos,
preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de
conhecimento sobre o que "descobrimos" para que o feliz momento de
serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.
(GONÇALVES, 2012, p. 9)

A primeira serendipidade ocorre quando a narradora do prólogo está em


uma livraria à cata de um guia de viagem para Cuba e, acidentalmente, lhe cai nas
mãos a obra Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado. Ela fica fascinada com o
convite do escritor baiano no prólogo do livro para que seu leitor visitasse a cidade
de Salvador, como se fosse pessoalmente para ela: “vem e serei teu cicerone”
(AMADO apud GONÇALVES, 2012, p. 10). Avançando na leitura do livro, defronta-
se com a história da Revolta dos Malês e do seu líder, o Alufá Licutan. Nesse
momento, sente a segunda interpelação de Jorge Amado, ao escrever sobre esta
importante rebelião escrava:

______________
hecho de los datos históricos, exponer su concepto del género, manifestar sus propósitos
didácticos, etc.” (PRIETO, 2005, p. 171).
44

Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo


derrotados pelo número de soldados e pela força das armas, a ordem dos
senhores furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar
nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas
com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim aconteceu.
(...) Da revolta e de seu chefe pouco se sabe. No mais, o silêncio. É o caso
de se perguntar onde estão os jovens historiadores baianos, alguns de tanta
qualidade e coragem intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês,
não levantam a figura magnífica do chefe? (...) Tema para estudos
históricos que venham repor a verdade, redimir a nação condenada,
ressuscitar o alufá, retirá-lo da cova funda do esquecimento na qual o
enterrou a reação escravagista. Tema para um grande romance... (AMADO
apud GONÇALVES, 2012, p. 11).

Depois de quase um ano de pesquisas sobre o assunto, a narradora muda-


se para a ilha de Itaparica, onde ocorrerá a serendipidade mais importante, pois o
romance Um defeito de cor será escrito em decorrência disso.
Em Itaparica, a narradora do prólogo abandona a ideia de escrever sobre os
malês por já haver um vasto material sobre o assunto. Nessa época escreve o
romance intimista Ao lado e à margem do que sentes por mim.
Certo dia, ao visitar uma igreja, faz amizade com dona Clara, a zeladora do
lugar, e com sua filha, de quem tira várias fotografias. Tempos depois, em visita à
casa de Clara, a fim de entregar as fotos reveladas da garota, eis que a narradora
depara com um calhamaço de papéis antigos, doados pelo padre da igreja, que
Gérson, filho da zeladora, utilizava para fazer seus desenhos. E acontece a
serendipidade: descobre que aqueles papéis se tratavam de manuscritos em
português arcaico numa “escrita contínua, quase sem fôlego ou pontuação”
(GONÇALVES, 2012, p. 15). Em troca de papéis novos e materiais de desenho,
recebe o manuscrito que tratava da história ditada por Kehinde.
Lançar mão de um manuscrito como fonte da obra literária, de modo que o
autor se passa como editor, não é um recurso recente. Rousseau, no seu romance
epistolar Julie ou la Nouvelle Héloïse também se utiliza de discurso similar, inclusive
estabelecendo também o jogo dúbio entre ficção e realidade, como em Ana Maria
Gonçalves. No primeiro prefácio da obra, assim se expressa o filósofo iluminista:
45

Embora eu use aqui o título de editor, eu mesmo trabalhei neste livro, e não
escondo isso. Fiz tudo, e a correspondência inteira é uma ficção? Gente do
mundo, que vos importa? Certamente, é uma ficção para vós?
17
(ROUSSEAU, 1856, p. 4) (tradução nossa) .

Outro romance epistolar, Relações Perigosas, de Chloderlos de Laclos,


possui uma “Advertência do editor” e um “Prefácio do redator” – na verdade, ambos
de autoria do próprio Laclos – que, além de exporem o processo de compilação e
edição dos pretensos textos originais também criam esse mesmo jogo. Afirma o
editor-autor:

Julgamos o nosso dever prevenir ao público que, apesar do título desta obra
e do que diz o redator em seu prefácio, não garantimos a autenticidade da
compilação e, mesmo, temos fortes razões para pensar que se trate apenas
de um romance (LACLOS, 1971, p. 11).

Para Zilá Bernd, em Um defeito de cor, a estratégia discursiva do manuscrito


reforça a verossimilhança e a perspectiva histórica do romance e camufla o papel da
autora. Por outro lado, fortalece a ficcionalidade da obra, dando “mais força à
enunciação da protagonista” (BERND, 2012, p. 31).
Outro fator que corrobora com o embasamento histórico do romance é a
bibliografia utilizada pela autora, elencada nas últimas páginas do livro. Tais
referências revelam o trabalho sério de pesquisa feito por Gonçalves em obras
fundamentais dos estudos brasileiros, em algumas obras literárias e em fontes
primárias de arquivos históricos de entidades públicas.

2.3 NARRADORA E NARRATÁRIO: CARTA, LIVRO DE MAMÓRIAS, ROMANCE

Cega e gravemente enferma, Kehinde dita a história à Geninha, sua


acompanhante, durante a viagem derradeira de retorno ao Brasil, na intenção de
reencontrar o filho há décadas perdido ou pelo menos oferecer-lhe o legado da sua
narrativa. O texto, que a princípio seria uma simples carta, vai se transformando, no
dizer metaficcional da narradora, em um livro de memórias:

17
“Quoique je ne porte ici que le titre d´editeur, j´ai travaillé moi-même à ce livre, et je ne m´en cache
pas. Ai-je fait le tout, et la correspondance entière est-elle une fiction? Gens du monde, que vous
importe ? C'est sûrement une fiction pour vous”. (ROUSSEAU, 1856, p. 4).
46

Passei horas agradáveis com o Senhor Mongie, que também era curioso
para saber da minha vida, das minhas lembranças da África, da Bahia e do
Maranhão, e disse que dariam um livro. Vai ver ele tinha razão, porque acho
que é exatamente isso que estou fazendo agora, um livro só para você.
(GONÇALVES, 2012, p. 662).

Esse “você” a que Kehinde se refere é o narratário do relato. Seu nome é


Omotunde, batizado Luiz, o segundo filho da narradora, que, aos dez anos, fora
vendido pelo pai para quitar dívidas de jogo, e por quem a narradora personagem
procura por anos a fio, inicialmente peregrinando em diversas cidades brasileiras
(Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas) e, posteriormente – de volta à
África – sempre a persistir na busca, à cata de informações sobre o seu paradeiro,
por meio de correspondências e investigações realizadas no Brasil.
Vale ressaltar a recorrência abundante do pronome de segunda pessoa
“você” no texto. Das quinhentas e trinta e quatro aparições do pronome, quinhentas
e vinte e oito são direcionadas ao filho de Kehinde, de modo a reforçar que ele é o
destinatário do relato. O primeiro caso se dá justamente na narração da cerimônia
do nome, algo similar ao batismo cristão, quando a personagem consegue levar o
filho em segredo ao Baba Ogumfiditimi, seu babalaô, para que efetuasse o ritual,
aproveitando a ausência do companheiro Alberto, que certamente não aprovaria
iniciativa dessa ordem. Tal procedimento narrativo insere a presença do interlocutor
da carta transformada em livro de memórias. Antes disso, havia apenas o relato
direcionado ao leitor e não explicitamente a um narratário inserido na diegese, de
maneira que, ao ganhar um nome por meio de uma cerimônia tradicional africana,
esse “tu” da narrativa passa a existir efetivamente no texto ficcional: “Então, como já
deve ter percebido de quem estamos falando, a você foi dado o nome de Omotunde
Adeleke Danbiran” (GONÇALVES, 2012, p. 403-404).
Essa citação, assim como muitas outras, demonstram que, ao longo da
narrativa, cria-se uma associação ambígua entre Omotunde/Luiz e Kehinde/Luísa à
figura histórica do poeta abolicionista Luiz Gama18 e sua mãe Luíza Mahin19,

18
O baiano Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) – poeta, advogado, republicano, abolicionista
e maçom de São Paulo – foi, no Brasil, o único intelectual negro do século XIX que passou pela
condição de escravizado e, depois de liberto, lutou pela abolição da escravatura durante toda a sua
vida profissional. Segundo Lígia Fonseca Ferreira também foi o “primeiro poeta afro-brasileiro”, no
sentido de assumir orgulhosamente a sua negritude e militar contra a escravidão e o racismo de
sua época (FERREIRA, 2011, p. 37). Poeta satírico, publica em 1861, as Primeiras Trovas
Burlescas de Getulino, no qual critica as mazelas no campo da política, dos costumes e do
preconceito racial. Jornalista combativo da causa republicana e abolicionista, publicou diversos
artigos tratando desses temas em jornais, como o Radical Paulistano, Correio Paulistano, Gazeta
47

personagem mais mítica que histórica20, mas considerada um ícone de luta e


resistência negra no Brasil. No prólogo, intitulado Serendipidades!, Ana Maria
Gonçalves, depois de tecer o perfil biográfico de Gama e de sua mãe, brinca com tal
possibilidade:

(...) esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma
anônima, mas sim de uma escrava muito especial, alguém de cuja
existência não se tem confirmação, pelo menos até o momento em que
escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda,
inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis,
ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição
desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que
tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e
mães são grandes heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados
por mentes espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou
falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais
tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos
primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da
abolição da escravatura. Um homem inteligente e batalhador que, tendo
nascido de uma negra e de um fidalgo português que nunca o reconheceu
como filho, conseguiu se tornar advogado e passou a vida defendendo
aqueles que não tiveram a sorte ou as oportunidades que ele tão bem
soube aproveitar. O que você vai ler agora talvez seja a história da mãe
deste homem respeitado e admirado pelas maiores inteligências de sua
época, como Rui Barbosa, Raul Pompéia e Silvio Romero. Mas também
pode não ser. E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do
manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas,
levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes,
datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a
pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro. Não
pela história, que não desejo a ninguém, e logo você vai saber por quê.
(GONÇALVES, 2012, p. 17).

O recurso utilizado reforça-se por intermédio de dicas semeadas texto afora


pela narradora e que o leitor pode reconhecer prontamente, desde que tenha, em
______________
do Povo, A Província de São Paulo, O Abolicionista, Tiradentes (FERREIRA, 2011, p. 103-179),
Diabo Coxo, Cabrião (que ajudou a fundar) e O Polichinelo, do qual era proprietário (FERREIRA,
2011, p. 273), dentre outros. Também participou ativamente das atividades do Partido Paulista,
sendo sempre um crítico dentro dessa facção política, pois, “a luta pela República significava, para
ele, a busca da liberdade e da igualdade – muito mais do que da fraternidade” (AZEVEDO, 1999, p.
188). Nesse sentido, o republicanismo, para Gama, era indissociado da causa abolicionista,
convicção que resultou em diversos atritos com correligionários . Membro da Loja América, o
maçom Luiz Gama consegue, por meio de ações jurídicas patrocinadas pela ordem maçônica, a
libertação de aproximadamente quinhentos escravos. Além disso, com a chancela de sua loja,
promove cursos noturnos, funda uma biblioteca popular e angaria fundos para comprar cartas de
alforria. Em 2015, reconhecendo a sua atuação exemplar e heroica, a Ordem dos Advogados do
Brasil lhe confere o título de advogado, já que Luiz Gama não tinha diploma, embora fosse dotado
de vasta cultura jurídica e humanística.
19
Mãe de Luiz Gama, a quem o poeta nunca mais viu depois de ser vendido pelo pai aos dez anos,
não obstante ter procurado notícias do paradeiro. Não há nenhuma fonte historiográfica sobre ela
senão a carta que Gama escreve a Lúcio de Mendonça, em 25 de julho de 1880, na qual faz alguns
apontamentos sobre a sua biografia (GAMA, 2011, p. 199).
20
Ver Reis (2012, p. 303).
48

seu repertório, um conhecimento sumário da figura de Luiz Gama. Entretanto, a


leitura de duas obras que a autora insere na bibliografia do romance, mais outra que
é referida pelos mesmos textos, favorecem insights que permitem identificar mais
profundamente o intertexto de eventos da vida de Luiz Gama com partes do enredo
de Um defeito de cor, como também permitem que o leitor consiga perceber
algumas lacunas da biografia de Gama sendo preenchidas no texto ficcional. As
obras são, a saber, O precursor do Abolicionismo no Brasil, de Sud Menucci (1938)
e Orfeu de Carapinha, de Elciene Azevedo (1999). Não obstante a relevância de
ambos os estudos, o texto primordial de referência é a carta de Luiz Gama a Lúcio
de Mendonça21 de 25 de Julho de 1880, na qual o poeta responde à
correspondência do amigo, por meio da narração breve de sua trajetória de vida,
envolvendo o seu nascimento em Salvador, a descrição da mãe perdida e do pai
bon vivant, que perde a fortuna por conta da vida dissoluta e o vende aos dez anos
de idade para saldar dívidas. No texto autobiográfico, o poeta abolicionista afirma ter
sido enviado ao Rio de Janeiro em 1840, a viver como escravizado de um português
comerciante de velas. No mesmo ano, o Alferes Antônio Pereira Cardoso,
“negociante e contrabandista” de escravizados (GAMA, 2011, p. 201), notório pela
crueldade para com os cativos, compra-o. Levado a Santos, Jundiaí e Campinas,
com a finalidade de ser vendido, o menino acaba sendo classificado como refugo,
pelo fato de ser baiano22:

O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de


Sousa Aranha, pai do Exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:
– Hás de ser um bom pajem para os meus meninos dize-me: onde
nasceste?
– Na Bahia, respondi eu.
– Baiano? – exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o
quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno. (GAMA, 2011, p.
201).

21
Trata-se da Carta a Lúcio de Mendonça (25/7/1880), que pode ser encontrada integralmente na
obra Com a Palavra, Luiz Gama, coletânea de textos poéticos, jornalísticos, epistolares e aforísticos
do autor, organizada por Lígia Fonseca Ferreira (2011, p. 199-203).
22
Reis (2012) aponta que nessa época havia grande resistência dos senhores de escravizados em
comprar os provenientes da Bahia, por terem fama de rebeldes e insubmissos. Não somente por
causa do Levante dos Malês, como também pelas diversas revoltas de menor vulto, anteriores a
1835. Sobre a repressão do governo a uma rebelião baiana, anterior à dos Malês, o historiador
baiano afirma: “Aqueles que fossem absolvidos em julgamento só poderiam deixar a cadeia para
serem imediatamente vendidos para fora da província – o que não era fácil, porque as autoridades
em muitas regiões do Brasil dificultavam a importação de escravos baianos pela reputação de
rebeldia que tinham.” (REIS, 2012, p. 117).
49

Recusado pelos compradores, não houve outra alternativa senão permanecer


escravizado de Cardoso em São Paulo. Lá, aos dezessete anos, recebe o
letramento de Antonio Rodrigues do Prado Junior, hóspede do Alferes e acadêmico
de direito, de quem Gama se torna amigo.
Com dezoito anos, “tendo obtido ardilosa e secretamente inconcussos de
minha liberdade” (GAMA, 2011, p. 202), utilizando suas próprias palavras, obtém
alforria, foge e ingressa na vida militar, alcançando a patente de cabo. Preso por ter
retrucado ao insulto de um oficial, ganha baixa e trabalha como escrivão de polícia
e, posteriormente, de 1850 a 1868, assume o cargo de amanuense policial, sendo
demitido por perseguição dos conservadores.
No final da carta, afirma-se como jornalista e advogado militante da causa
abolicionista:

Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no


Ipiranga, à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista
principiante; eu como simples aprendiz-compositor de onde saí para o foro e
para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus que são todos
os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número
superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.” (GAMA, 2011, p. 203).

A sobriedade da Carta em extensão e detalhes constitui-se num terreno fértil


para que Um defeito de cor trabalhe com o preenchimento das ambiguidades e
lacunas oferecidas pelo texto de Gama. O romance desenvolve um enredo que
ficcionaliza questões tratadas sumariamente no texto do “Amigo de todos”, como as
origens africanas, a atividade profissional e o espírito revolucionário da mãe 23. Além
disso, a narrativa de Kehinde pode oferecer uma contrapartida à Carta de Luiz
Gama por meio de reminiscências da ancestralidade, das origens africanas, da
diáspora, do nascimento de Omotunde/Luiz, sua infância, sua separação forçada da
mãe e das agruras e superações até a viagem de retorno ao Brasil, momento que
podemos denominar como o hic et nunc da narração.
23
Sobre a mãe, afirma Luiz Gama: “Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina,
(Nagô de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo. [...] Dava-se ao
comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de
envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade.
Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais
voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862,
soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-me sinais certos que ela, acompanhada
com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna’, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto
ela como os seus companheiros desapareceram. Em opinião dos meus informantes que esses
‘amotinados’ fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os
africanos livros, tidos como provocadores.” (GAMA 2011, p. 199-200)
50

Tudo isso, tendo o romance, como pano de fundo, o discurso histórico que
permite ao leitor entrar em contato com a África iorubá da Costa da Mina
oitocentista, em seus conflitos internos de poder e a consequente escravização de
populações rivais; a narrativa também conta os horrores da diáspora africana pelo
Atlântico, contemplando a crueldade com que os cativos eram conduzidos nos
navios negreiros que aportavam no Brasil e a inserção dos negros escravizados na
nova terra. Postos à margem, devido à sua condição de propriedade, sujeitos às
crueldades dos senhores, mas também capazes de resistir das mais variadas formas
para manter a vida e a identidade: da sabotagem ao levante violento, da
preservação secreta da religião à necessidade de manter a memória familiar e
cultural.
Além disso, o leitor é levado a conhecer a história dos retornados à África e
seus conflitos com os africanos nativos, e que, ao contrário do tempo vivido no
Brasil, quando era necessário se afirmarem como africanos, assumem a identidade
de brasileiros em seu continente de origem, adotam o catolicismo, zombam dos
nativos e cultivam uma visão preconceituosa em relação a estes.
Enfim, não passa despercebida a história do Brasil entre 1810 a 1899,
abarcando portanto o Período Colonial, a Independência, o Primeiro Reinado, o
Período Regencial, o Segundo Império, a instauração da República e toda a
mudança de legislação no que toca à política escravista, descambando na Abolição
de 1888 e o decorrente descaso do Estado para com a população afro-brasileira de
então. Todas essas “histórias” são expostas sem didatismos, da boca de Kehinde ou
de outros personagens por meio dela, narrativas entranhadas no dia-a-dia das
relações interpessoais da protagonista e de pessoas que passam pela sua vida,
contadas a partir do ponto de vista de uma mulher negra, inserida na realidade
escravista brasileira e, posteriormente, na costa central africana do século XIX como
retornada. Trata-se, portanto de um olhar a história de um ponto de vista periférico,
diverso da visada histórica oficial das elites.
Nesse sentido, Bernd (2014, p. 24) ressalta que Um defeito de cor é o
primeiro roman-fleuve da literatura afro-brasileira em que a narradora (e também
protagonista) é uma mulher. Acrescente-se outros adjetivos: escravizada, ex-
escravizada, revolucionária, mãe, empresária, retornada, leitora voraz e escritora
memorialista.
51

O discurso de Kehinde não reproduz o discurso vitimizante da negra escrava


injustiçada, recorrente na literatura brasileira e na historiografia da escravidão. O
protagonismo dela não se enquadra nos estereótipos descritos por Brookshaw
(1983) em seu estudo sobre as estereotipias do negro na literatura brasileira (vítima,
“escravo demônio”, objeto sexual, exilado da cultura, dentre outros), comuns em
nossas letras até a década de 1960, quando despontam as primeiras manifestações
literárias do que Proença Filho (2004, p. 166) designa literatura do negro e não
literatura sobre o negro. Esse discurso também não coaduna com o da “escravidão
branda” descrita por Gilberto Freyre em A vida social no Brasil nos meados do
século XIX, ressaltando a benignidade da sociedade patriarcal agrária e católica em
relação aos países predominantemente protestantes, inclusive sugerindo que o
discurso de alguns abolicionistas brasileiros foi influenciado pelos “sóbrios
comentários” do antiescravismo britânico:

A linguagem empregada por tais oradores foi tão enfaticamente persuasiva


que o brasileiro médio de hoje ainda acredita ter sido a escravidão cruel. Na
verdade, a escravidão no Brasil agrário-patriarcal pouco teve de cruel. O
escravo brasileiro levava, nos meados do século XIX, quase vida de anjo,
se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses, ou mesmo com a
dos operários do continente europeu, dos mesmos meados do século
passado. (FREYRE, 2013, p.78)

Há de se concordar com Weinhardt (2009, p. 114) que Um defeito de cor


não se sustenta em “binarismos simples” de caráter social e racial e que o
protagonismo de Kehinde não tem consistência apenas pela razão de ter sido
escrava, mas pelo fato de que é ela quem empreende o relato de suas memórias. A
escravidão de Kehinde acaba na página trezentos e quarenta e oito, isto é, antes da
metade do romance. Com a alforria, a personagem vai progressivamente
prosperando economicamente. De vendedora de cookies na rua, consegue comprar
uma padaria. Por conta de sua separação do companheiro Alberto, é obrigada a
vendê-la e inicia o lucrativo negócio de produção de charutos. No Rio de Janeiro,
quando procurava o filho por lá, monta uma “banca de musselinas para blusas à
baiana, xales e panos-da-costa, de que as pretas tanto gostavam e que não eram
encontrados tão facilmente em São Sebastião” (GONÇALVES, 2012, p. 681-682).
Quando retorna ao Daomé, leva consigo, no vapor Sunset, uma carga de
mercadorias para comercializar em África, onde se casa e se torna uma empresária
rica, construtora de casas à brasileira, respeitadíssima nas comunidades de
52

retornados de Uidá e de Lagos, amiga de poderosos, como o Chachá Francisco


Félix de Souza, o rei Adandozan e seu sucessor. O progressivo sucesso econômico
de Kehinde, entretanto, contrasta com a crueldade com que foi tratada quando era
escrava, estuprada pelo senhor, alvo do ciúme e ódio da senhora, que perpetrou as
mais diversas maldades contra a narradora. A personagem responde sempre
bravamente aos traumas advindos das contradições da vida e da sociedade, sendo
exemplo de resiliência e resistência, como defende Eurídice Figueiredo (2011) em
seu ensaio, de maneira que o que prende o leitor até o fim é o ato de Kehinde relatar
as memórias e a percepção do crescimento ou amadurecimento pessoal da
narradora personagem durante a viagem da vida e do relato, composto de tantas
outras viagens.

2.4 ENTRE IBÊJIS E ABIKUS SOB O SIGNO DE DAN: O NARRAR COMO UM


TAPETE INACABADO

A narração de Um defeito de cor é primordialmente linear, com algumas


antecipações e interrupções esparsas da narradora personagem, que suspende o
tempo da memória e remete, metaficcionalmente, o leitor ao hic et nunc do contar,
realizado durante uma viagem marítima da África ao Brasil. Portanto, é previsível
que as primeiras páginas do romance tratem da infância de Kehinde, não de toda
ela, mas a partir dos seis anos de seu nascimento, em 1810, pois, conforme afirma a
narradora, o “que aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria
paralela ao destino” (GONÇALVES, 2012, p. 19).
A narrativa começa numa aclimatação mítica, com a apresentação de
Kehinde, de sua família e sua terra natal, Savalu, no reino do Daomé. É patente a
importância identitária desse início de história para a narradora, já que faz emergir
suas memórias mais remotas, ligadas ao seu local de nascimento, à sua família, aos
valores ancestrais. Marca significativa dessa afirmação da identidade já consta na
nomeação do primeiro intertítulo, “Kehinde”, e também na intenção da protagonista
em explicar os significados dos nomes de si e de seus parentes. A atribuição desses
nomes segue a tradição iorubana de escolhê-los conforme determinadas situações
de nascimento dos bebês. Sobre isso, Lopes (2004) esclarece:
53

Um grande número de fatores influencia a escolha do nome de um recém-


nascido, como o momento do dia em que ocorreu o nascimento; o dia da
semana ou dia de feira; os acontecimentos e circunstâncias ligadas à
criança, aos seus pais, à sua família extensa ou mesmo à sua comunidade
nacional, no momento do nascimento; se é primogênito ou o primeiro de seu
sexo, se é gêmeo e, assim sendo, se nasceu primeiro ou por último; e,
ainda, em caso de gêmeos, se são ambos do mesmo sexo ou não etc.
(LOPES, 2004, p. 481).

Kehinde e seus familiares se enquadram bem nessa tradição. O irmão, a mãe


e a avó são abikus, cujo significado é “criança nascida para morrer” ou espíritos
brincalhões unidos por laços de amizade que desejam morrer para se reencontrar no
plano espiritual (GONÇALVES, 2012, p. 19). “Abicus nascem para morrer e nascer
de novo e morrer – esse é o jogo deles”, prega uma narrativa tradicional africana
(PRANDI, 2001, p. 371).
Ao detectar que o bebê é um abiku, algumas medidas são tomadas pelos pais
para que a criança não seja tirada do mundo dos vivos pelos outros abikus do além.
Uma delas é a atribuição de um nome que favoreça a permanência da criança entre
os viventes. A narradora faz questão de, além de dizer o nome de seus familiares,
explicar o sentido de cada um. O irmão de Kehinde se chamava Kokumo, cujo
significado é “Não morrerás mais, os deuses te segurarão” (GONÇALVES, p. 19); o
nome da mãe era Dúróorîike, significando “fica, tu serás mimada” (GONÇALVES, p.
19); por sua vez, a avó era Dúrójaiyé, o mesmo que “fica para gozar a vida, nós
imploramos” (GONÇALVES, p. 19). Outra medida é a realização de uma cerimônia
religiosa após o nascimento do bebê, a fim de fortalecer o seu elo com este mundo,
ritual que, já adulta e mãe, Kehinde pede ao Baba Ogumfiditimi que execute com os
dois filhos.
No desenrolar do relato, a narradora personagem também dará nome e
significado quando do nascimento dos dois filhos: Banjokô Ajamu Danbiran que
ganha o primeiro apelido por ser um abiku omi, isto é, da água, significando “Sente-
se e fique comigo” (GONÇALVES, p.187), o segundo, “Aquele que brotou depois de
uma luta”, evocando as agruras de Kehinde, estuprada pelo senhor, e o terceiro
nome, o mesmo que aporá ao segundo filho, o narratário do romance, chamado
Omotunde Adeleke Danbiran, “sendo que Omotunde significa ‘a criança voltou’,
Adeleke quer dizer que a criança será ‘mais poderosa que os inimigos’, e Danbiran,
assim como o apelido do Banjokô, é uma homenagem à minha avó e aos seus
voduns, principalmente Dan” (GONÇALVES, 2012, p. 404).
54

Atentando ao nome de Omotunde, nota-se por parte da narradora uma ação


metaficcional e uma ambígua remissão ao personagem histórico Luiz Gama. O
termo “a criança voltou” parece remeter ao anseio da narradora em reencontrar o
filho perdido que, ao mesmo tempo, se faz presente no nível do discurso como
enunciação e como narratário do relato. Na diegese, a criança nunca voltará aos
braços da mãe pelos mais diversos motivos: o primeiro e mais óbvio é que
Omotunde, no momento da enunciação, não é mais criança, é passado, memória; o
segundo consiste no fato de que, ao resgatá-lo através dessa mesma memória e,
mais do que isso, ao dialogar com ele como um “você”, um interlocutor sempre
presente, Kehinde abole essa ausência através da linguagem criadora. A
significação de Adeleke, por sua vez, evoca a personalidade combativa de Luiz
Gama na causa dos escravizados, referências que Kehinde fará em diversos
momentos do romance, projetando seu desejo de que o filho lutasse pelo direito dos
escravizados e contra as injustiças. O terceiro nome, comum aos dois filhos são
claras alusões à ancestralidade, referindo-se à avó e a Dan, a serpente sagrada,
representada no uroboro e no arco-íris, senhor das águas e do movimento, entidade
de caráter fundador do reino do Daomé, cuja importância na narrativa será abordada
adiante.
O procedimento discursivo de nomear os parentes e designar-lhes o
significado onomástico não ocorre quando Kehinde se apresenta e fala de sua irmã
Taiwo: “O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji e nasci por último. Minha irmã
nasceu primeiro e por isso se chama Taiwo” (GONÇALVES, 2012, p. 19). Conforme
a própria nota explicativa de rodapé inserida no romance, ibêji é o termo iorubá
atribuído aos irmãos gêmeos. Segundo Lopes (2004, p. 333), os ibêjis são tratados
como deuses e considerados uma bênção, o que se constata na narrativa, quando
Kehinde e Taiwo saem pelo comércio de Uidá afora a pedir presentes e recebem
donativos de todos os lojistas, menos de um muçulmano que, logicamente, não
partilhava da crença comum de que irmãos gêmeos devem ser reverenciados.
Além disso, segundo a cultura iorubá, os ibêjis “constituem uma unidade de
corpo e alma e que a morte de um deles significa o fim do outro, a menos que o
sobrevivente incorpore sua outra metade” (LOPES, 2004, p. 333). Para que isso
aconteça, o povo iorubá lança mão da mesma estratégia ritualística efetuada com os
abikus: apor nomes específicos aos gêmeos.
55

Essa unidade dos ibêjis Taiwo e Kehinde é percebida pelo leitor ao longo de
todo o romance, principalmente por meio dos sonhos em que a narradora
protagonista sente a presença da irmã falecida.
Quanto ao significado dos nomes, Lopes (2004, p. 333) esclarece que ao
gêmeo que nasce primeiro se apõe o nome de Taiwo (“aquele que sentiu primeiro o
gosto da vida”) e ao que nasce depois, “Kainde ou Kehinde (‘Aquele que demorou a
sair’)”.
Nos primeiros dois intertítulos de Um defeito de cor, a ambientação mítica
não se resume apenas à nomeação de ibêjis e abikus. No título interno “O destino”,
onde a ação da narrativa começa efetivamente, há um entrelaçamento entre o
elemento mítico e o histórico, resultando na primeira tragédia ocorrida na vida da
protagonista.
A ação romanesca inicia com a avó de Kehinde sentada à sombra do Iroco,
árvore sagrada dos Iorubás ou “a Grande Árvore”, tecendo um tapete com motivos
religiosos relacionados a Dan, divindade nativa, de cujas entranhas irrompe “o
grande império do povo iorubá” (GONÇALVES, 2012, p. 20). Num certo momento, o
trabalho da idosa é interrompido com a presença de alguns guerreiros de
Adandozan, do Daomé, que queriam tomar algumas galinhas da família para si. No
intertítulo anterior, a narradora já havia citado o nome do soberano, no final de sua
narrativa do mito do surgimento do Daomé, chamando-o de o “rei monstro”
(GONÇALVES, 2012, p. 20) que expulsara a sua avó da capital, Abomé. Rei que,
logo quando ascende ao trono em 1797, escraviza e manda Nã Agontimé ao Brasil
em um tumbeiro por considerá-la uma ameaça ao seu poderio (SILVA, 2005, p.
133). A mesma Agontimé, personagem do romance com quem a avó da
protagonista tinha relações no passado e que exercerá um papel importante no
resgate da identidade ancestral de Kehinde na Bahia e em São Luís do Maranhão.
A intervenção dos guerreiros seria apenas uma apreensão de víveres e não
teria resultado no estupro e assassinato da mãe e do irmão de Kehinde, se um deles
não tivesse identificado “símbolos de Dan” (GONÇALVES, 2012, p. 21) no tapete da
avó da narradora, figuras que o leitor fica sem saber quais são até o capítulo oito. O
símbolo que se mostra no texto, entretanto, deixa os guerreiros mais agitados e
raivosos, a saber, “o desenho de uma cobra que engole o próprio rabo que havia,
mais sugerida que desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa”
56

(GONÇALVES, 2012, p. 22). Este símbolo representa Dan, a figura ancestral


originária do reino do Daomé e o vodum cultuado pela avó de Kehinde.
Dan ou Oxumaré, o vodum em forma de serpente sagrada, é citado muitas
vezes no decorrer da narrativa, quase sempre junto a sonhos de Kehinde ou meras
lembranças da avó, que o tinha como principal divindade de culto. Na primeira delas,
a narradora já prenuncia a possibilidade de explicitar mais sobre o assunto, o que de
fato ocorre diversas vezes.
Como já dito anteriormente, apenas no oitavo capítulo Kehinde revela o que
estava desenhado no tapete da avó. A memória desse fato ocorre na travessia de
barco rumo a São Luís, onde a narradora personagem receberia instruções de
Agontimé sobre a religião dos voduns. Kehinde, ansiosa, por conta do encontro que
teria com a Rainha Mãe, num barco a singrar sobre o mar, em companhia de Mestre
Tibúrcio, o barqueiro amante das águas e filho de Iemanjá, que agradece à sua orixá
e a Oxumaré pelo bom tempo durante a travessia. Além disso, Kehinde relembra a
arte da avó, tecelã de tapetes com motivos religiosos e faz memória do que a anciã
estava tecendo no dia trágico em que a narradora personagem perde a mãe e o
irmão. Era a mesma figura urobórica de Dan/Oxumaré:

Oxumaré não é homem nem mulher, mas as duas coisas juntas. Durante
seis meses ele vive como homem e mora perto das árvores, e durante os
outros seis é uma mulher muito bonita que vive nas matas e nas lagoas. No
corpo de mulher, Oxumaré é Dani, que é o nome feminino da cobra Dan, e
a minha avó desenhava Dani como a cobra enrodilhada que come o próprio
rabo. Ela dizia que essa cobra, sem começo ou fim, é a mesma coisa que o
trabalho de Oxumaré, que não pode parar de levar as águas até o céu, de
onde elas tornam a cair, e para onde ele torna a levá-las, sem descanso.
Era uma Dani que a minha avó estava tecendo no dia em que os guerreiros
apareceram na nossa casa, em Savalu (GONÇALVES, 2012, 593).

No terceiro capítulo, a narradora sonha com a avó e a serpente. Kehinde


encontra-se em um estado de profunda tristeza e humilhação, quando grávida do
primeiro filho, resultado de um estupro por parte do Sinhô José Carlos, seu dono,
que, além disso, violentou sexualmente Lourenço, o primeiro namorado, e o castrou
na presença da narradora. Nesse sonho, cujo espaço múltiplice sempre remete a
locais do Daomé (Savalu, Uidá e na capital Abomé, terra conhecida somente pelos
ancestrais da personagem), a narradora sempre via a avó “parada, gargalhando,
enquanto tecia um enorme tapete com o desenho de uma cobra que já estava,
quase completa, só faltando um pedaço do rabo” (GONÇALVES, 2012, p. 173).
57

Pouco tempo depois dessa manifestação onírica, certa noite, uma cobra pica
o membro sexual do sinhô José Carlos, enquanto dormia, e durante vários dias ele
agoniza lenta e dolorosamente, falecendo com o corpo praticamente putrefato.
Interessante mencionar que, embora o intertítulo desse episódio seja “A vingança”,
não há nenhuma evidência explícita de que alguém tenha cometido o crime de
assassinato, colocando a serpente na cama do senhor de engenho. No entanto, há
sugestões ambíguas de que isso tenha acontecido, seja no plano espiritual como no
físico. No plano espiritual, as gargalhadas “reais e escancaradas” da avó
(GONÇALVES, 2012, p. 173), no ato de tecer um tapete com uma cobra incompleta,
pode sugerir uma intervenção da divindade Dã e do espírito ancestral da avó.
No plano material, há uma tentativa ambígua de inocentar os escravizados
da casa, ao se afirmar que na Ilha de Itaparica havia uma abundância de cobras e
que a “Antônia jurou que não havia nada na cama quando foi verificar se o quarto
estava de acordo para que o sinhô se deitasse, que ela tinha até alisado as cobertas
sem sentir volume algum” (GONÇALVES, 2012, p. 174). Por outro lado, o sorriso de
Esméria ao dar notícias da desgraça do senhor, sugere um espelhamento com a
risada desbragada da avó de Kehinde no sonho. De qualquer forma, a morte do
sinhô José Carlos, atingido no órgão sexual por um animal de forma fálica, que
simboliza a cultura ancestral da narradora, representa uma forma de resistência
escrava à violenta opressão sofrida. De acordo com Mattoso (2016), quando a
situação de dominação e truculência se tornava insustentável, o escravizado podia
tanto reagir de forma violenta, assassinando o seu dono, quanto de maneiras mais
sutis, “no limite da honestidade” (MATTOSO, 2016, p. 181). Também nesse sentido,
Reis e Silva (1989) apontam as diversas maneiras como o escravizado exercia a
resistência ao jugo:

Por toda a parte, e não sem polêmicas, abre-se um leque de questões que
vão das formas explícitas de resistência física (fugas, quilombos e revoltas),
passando pela chamada resistência do dia-a-dia, roubos, sarcasmos,
sabotagens, assassinatos, suicídios, abortos, até aspectos menos visíveis,
porém profundos, de uma ampla resistência sociocultural. (REIS; SILVA,
1989, p. 62).
58

Numa outra ocorrência onírica, a narradora reside em São Salvador, em um


quarto alugado de uma loja de propriedade de um muçurumim 24. É escrava de
ganho, empenhada no lucrativo negócio de venda de cookies ingleses e membro de
uma confraria católica de negros escravizados e libertos que, através de
contribuições mensais, juntavam dinheiro para conseguir alforria. Para obter mais
capital, a narradora decide rifar uma bela estátua de Oxum que outrora fora
presenteada por Nã Agontimé.
A compra da carta de alforria seria dificultada pela Sinhá Ana Felipa ao
máximo. Mesmo com o dinheiro exato para quitá-la, Kehinde poderia não obter a
liberdade, pois a sua senhora poderia mudar de ideia e pedir um valor superior. Foi
quando a avó aparece em sonho, dessa vez sem a presença da serpente. A anciã
sussurra o nome de Francisco, o namorado da narradora naquele momento, e
Kehinde fica sem saber interpretar o significado daquele sonho.
Mesmo com todos os bilhetes vendidos, Kehinde se arrepende de ter rifado
a sua Oxum. Não podendo faltar com a palavra, entretanto, decide entregar a
imagem e vai despedir-se dela em seu quarto. É nesse momento que o milagre
acontece, graças à intervenção de uma cobra misteriosa, cuja aparição não se dá no
sonho mas no tempo e espaço da personagem, possibilitando, mais uma vez a
mudança, o movimento e a transformação da vida de Kehinde:

24
Em nota de rodapé de Um defeito de cor esclarece-se: “Muçurumim: muçulmano”. (GONÇALVES,
2012, p. 32). Essa será a designação para o termo no romance. Nei Lopes, em sua Enciclopédia
brasileira da diáspora africana reza que muçurumim é o “mesmo que malê. Do hauçá musulmi,
‘muçulmano. Também muçulmi”. (LOPES, 2004, p. 456).
59

Foi a cobra, que nem eu nem ninguém mais viu de novo pela casa. Depois
que eu já tinha dito à Oxum tudo o que queria e ia descer para entregá-la à
Claudina, a cobra apareceu de repente, pulando em cima de mim. A
primeira reação foi me proteger, jogando a Oxum contra ela, e quando olhei
para o chão tingido de dourado, a idéia surgiu inteirinha, como um raio de
sol iluminando minha cabeça. Naquele segundo fiquei sabendo exatamente
o que fazer e tudo que ia acontecer depois. Procurei a cobra e não
encontrei nem rastro dela, e ela não poderia ter saído do quarto, que estava
com a porta fechada. Quando fui pegar a Oxum, olhei o chão ao meu redor
e ele estava coberto com um pó dourado que tinha caído de dentro da
estátua de madeira. Reparei melhor nela e percebi que sua racha tinha
aumentado de tamanho e mostrava um grande talho, e era de lá que
escorria o pó. Cheguei com ela perto da janela, onde estava mais claro, e
percebi que ainda havia muito mais lá dentro. Forcei um pouco a abertura e
a estátua se partiu ao meio, deixando ver que guardava uma verdadeira
fortuna. Ouro em pó e pepitas, e também muitas outras pedras de cores
variadas, brilhantes, pequenas, parecendo vidro transparente, tomando
conta de todo o oco da estátua, que não era tão pequena. Na hora eu soube
que aquilo valia muito dinheiro e que era dele que eu deveria partir para
realizar meus sonhos. O de liberdade e o sonho no qual era dito o nome do
Francisco, que tinha acabado de se revelar. (GONÇALVES, 2012, p. 343-
344)

Com dinheiro suficiente para pagar a sua alforria, mas ante as negativas da
sinhá em concedê-la, Kehinde serve-se de Francisco, escravizado por quem Ana
Felipa tinha certa atração sexual reprimida, para montar um esquema de chantagem
e obter a carta para si para o seu filho Omotunde e foi o que de fato aconteceu.
No oitavo capítulo do romance, agora no Rio de Janeiro à procura de
notícias do filho, ela tem sonhos recorrentes de uma cobra a morder um papel que
ela tentava arrancar da serpente. A personagem associa o sonho à certidão de
batismo. Pórem, ao comprar uma Bíblia do senhor Mongie, Kehinde logo a identifica
à serpente sedutora do mito adâmico do pecado original: “E por essas coincidências
inexplicáveis, lá estava uma cobra nas primeiras páginas, mordendo não um papel,
mas uma maçã” (GONÇALVES, 2012, p. 684). Não é, entretanto, a primeira
identificação da figura da serpente com a religão cristã. Quando fora capturada
ainda menina em Uidá, antes do embarque no navio negreiro, a personagem
testemunha o batismo católico imposto a uma multidão de escravizados:

Foi tudo muito rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma
grande fila diante do padre, parecendo uma cobra que ia da beira da água
até quase a saída do barracão onde estivemos presos. Uma grande cobra
de fogo, pois era ladeada por guardas que formavam um corredor iluminado
por tochas. (GONÇALVES, 2012, p. 50)
60

Kehinde, não sabendo como entender e interpretar tais sonhos, decide,


então escrever à sacerdotisa responsável pela sua iniciação na religião dos voduns,
a sinhá Romana, sobre essas manifestações oníricas recorrentes. Em resposta, a
vodunsi lhe aconselha a recordar-se dos demais sonhos que tivera com cobras e a
se lembrar dos acontecimentos que lhe sucederam. Mais uma vez, a narradora
oferece sutilmente uma dica metaficcional de leitura do seu relato e do seu próprio
fazer narrativo. O relato é o tapete com o uroboro incompleto que tem o poder de
conferir a unidade perdida da memória e da identidade e é preciso estar atento tanto
para tecê-lo quanto para fruí-lo e empreender uma leitura dele. Por meio do mito
ancestral, Kehinde conseguirá compreender o seu passado, a sua rede de relações
interpessoais, a sua passagem pela vida, pela história, a sua identidade ancestral e
transmitir ao filho esses valores primordiais.
Ainda em relação a este último sonho mencionado, vale destacar que, além
de Kehinde identificá-lo com a serpente bíblica, por meio de uma leitura voraz da
Escritura, ela descobre ligações do seu vodum ancestral com o Dãn, filho de Jacó,
chefe de uma das doze tribos de Israel, do livro do Gênesis:

Naquela mesma época eu ainda estava lendo a Bíblia, e qual não foi a
minha surpresa quando abri uma página e nela estava escrito: Dã. O vodum
do Daomé, o vodum cultuado pela minha avó ou o nome de um chefe que
fundou a tribo de Dã, onde morava um povo que fugiu do Egito guiado por
um deus chamado Javé. Essas duas coisas fizeram com que os sonhos
voltassem, e comecei a aplicar alguns conhecimentos que tinha aprendido
com a sinhá Romana, mesmo incompletos, pois dos seis anos de estudo
necessários para me tornar uma vodúnsi completa, eu tinha feito menos de
três. (GONÇALVES, 2012, p 700)

Ressalta-se que, assim como o Dan/Oxumaré daomeano, o símbolo da tribo


de Dan também é representado por uma serpente e o motivo disso tem, como
fundamento, a bênção que esse personagem bíblico recebeu do patriarca Jacó, que,
antes de morrer, abençoou todos os doze filhos, chefes das tribos de Israel:

Dan julgará seu povo


como uma das tribos de Israel.
Dan será uma serpente no caminho,
uma áspide na vereda,
que morte os jarretes do cavalo,
e seu cavaleiro cai de pernas para o ar. (BÍBLIA, Gênesis 49, p16-18)
61

Ainda no Rio de Janeiro e prestes a desistir de sua busca do filho por


aquelas paragens, Kehinde tem o último sonho dessa natureza. Nele não aparece a
avó, mas a sua irmã gêmea Taiwo, “sendo seguida por uma cobra que levava um
papel entre as presas” (GONÇALVES, 2012, p. 704). Logo depois, a narradora
descobre, por meio de “um caixeiro de má vontade”, que, sob pagamento, lhe
entrega um papel com a informação de que o filho havia permanecido pouquíssimos
dias no Rio de Janeiro e que fora comprado por um comerciante santista. O malogro
de sua estadia em terras cariocas e as decepções que desencadearão de sua busca
frustrada por Omotunde, resultará na volta de Kehinde à África, onde fará parte da
comunidade de retornados do Brasil.
Embora tenha sempre preservado a sua fé nos voduns e nunca tivesse sido
batizada, Kehinde, como “brasileira” em Uidá e depois em Lagos, participará dos
ritos católicos e inclusive adotará o nome cristão de Luísa Andrade da Silva,
formando, do ponto de vista identitário, como que um uroboro mítico, no qual a
serpente de matriz africana se enrola com a serpente judaico-cristã. Essa mudança
na vida da protagonista não deve ser entendida como uma contradição, mas sim
como resultado do crescimento e da formação de Kehinde/Luísa Andrade da Silva e
sua resistência e superação das injustiças e desgraças ante os reveses pessoais e
históricos.
A cultura iorubá concebe a imagem da serpente como movimento, de
divindade promotora da unidade dialética de elementos opostos. No Daomé de
Kehinde, Dã é a serpente arco-íris, entidade andrógena e gêmea de si própria,
dominadora das águas pluviais, que Chevalier e Gheerbrandt (1989) apontam como
o “Velho Deus”, “Antepassado mítico” e herói civilizador” na forma de um uroboro:

No Daomé, ainda hoje, Dan é o velho deus natural, Uróboro do disco de


Benin que descrevemos acima, ele próprio andrógino e gêmeo (MERF). [...].
Para os iorubas, dan é Oxumaré, o arco-íris, que liga a parte de cima do
mundo à de baixo e só aparece depois das chuvas. [...]. Todas essas
acepções não passam de diferentes aplicações, em determinadas áreas, do
mito da Grande Serpente Original. Está no alfa, mas também no ômega de
toda manifestação; (CHEVALIER; GHEERBRANDT,1989, p. 817-818).

Ainda ressaltando Oxumaré na forma de uroboro, Verger (1990, p. 231)


acentua que ele é o orixá do movimento, “símbolo da continuidade e da
permanência”. É também o senhor do cordão umbilical que, tradicionalmente, é
enterrado com a placenta sob uma árvore, que deve ser cuidada para que a criança
62

seja saudável. A árvore a que se refere Verger, pode remeter ao iroco do romance,
embaixo do qual a avó de Kehinde tecia um tapete estampado com a gêmea de Dan
e que causou furor nos guerreiros intrusos. É o início do mûthos da narrativa, ao pé
da árvore sagrada onde, possivelmente, foram depositados os cordões umbilicais da
narradora e de seus irmãos, o iroco, cena que se pode, também, associar à
dimensão dialética do uroboro, pois constitui contraste entre a avó da narradora (fim
do ciclo da vida) e os cordões e a placenta enterrados (a gênese). Também é
possível associar a uma autorreferência à Kehinde narradora que conta a história da
Kehinde criança. Dan/Oxumaré pode ser considerado, dessa forma, uma metáfora
do próprio ato de narrar de Kehinde, que, aos poucos, vai tecendo as suas
memórias, continuando o tapete-texto interrompido pela avó com sua narrativa, ao
mesmo tempo de forte consciência histórica, mas com bases firmes na mitologia
ancestral. A própria vida da narradora é um misto de realidades de morte em
contraste com acontecimentos felizes e dificuldades corajosamente superadas, a
resultar em crescimento espiritual, intelectual, existencial, afetivo e de sucessos
financeiros.
Se, como já se afirmou, não há um discurso ideologicamente polarizado da
narradora, tendo como ponto de vista sua situação de escravizada e duplamente
desterritorializada (Brasil e África); o mesmo não se pode constatar na dimensão
mítica do romance. O uroboro, segundo Chevalier e Gheerbrandt (1992, p. 716) é
um símbolo que gesta em si contradições, mas que garante a unidade de princípios
opostos fundamentais por meio da circularidade. A serpente circular engolindo a
própria cauda, igualmente, desafia a pulsão da vida, da auto preservação, mas
também domina a pulsão de morte, em vista de uma superação espiritual. Nesse
sentido, o uroboro é sinal de transcendência, representado pelo círculo. Ao contrário,
o ato da serpente morder a si mesma, segundo os estudiosos, representa o
fechamento do uroboro em seu próprio ciclo de existências, o samsara indiano,
evocando a ideia de eterno retorno: “simboliza o retorno perpétuo, o círculo
indefinido de renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de uma
pulsão fundamental de morte.”25 (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1992, p. 716,
tradução nossa).

25
“Il symbolise alors le perpétuel rétour, le cercle indefini des reaissances, la continuelle répétition, qui
trahit la prédominance d’une fondamentale pulsion de mort”. (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1990,
p. 716).
63

A oposição entre a ameaça de thânatos (representada nos abikus) e a


bênção de eros (tendo os ibêjis como representações) marca o início da narrativa,
mas não como uma unidade, pois há vantagens da morte sobre a vida. A narradora
testemunha a violência, o estupro e o assassínio de entes queridos. Valendo-se de
uma metáfora, a tessitura do tapete ainda não está completa. A ação narrativa
precisa de desequilíbrio e conflito para fluir. Cabe a Kehinde continuar o trabalho
ancestral e construir, através do seu relato, a unidade da narrativa, em sintonia com
o pedido da avó, moribunda no navio negreiro:

Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer,
as histórias, a importância de cultuar e respeitar nossos antepassados. Mas
disse que eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e
colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo
que não fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da
nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do
poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais
velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas
depois de terminar de dizer o que podia ser dito, virando comida de peixe
junto com a Taiwo (GONÇALVES, 2012, p. 61).

O equilíbrio dialético do uroboro, a unidade do tapete inacabado da


memória, cuja síntese é a narrativa, começa, pois, a ser retecido (ou recontado) e
transmitido para o interlocutor intra e extra-textual que, quiçá, continue a retecer,
recontar, transmitir.

2.5 A PRIMEIRA TRAVESSIA: SOLIDARIEDADE E RESISTÊNCIA

A identificação da figura de Dan estampado no tapete da avó de Kehinde,


que também estava desenhado sobre a porta de sua casa, e sua associação a
Agontimé são o estopim da violência e assassinatos dos parentes da narradora.
Depois de enterrar os familiares mortos, a avó foge com Kehinde e Taiwo para Uidá,
onde se estabelecem e cultivam relações de amizade. O porto de Uidá ou Ajudá
destacava-se como um centro comercial e ponto estratégico do tráfico de
escravizados, onde os navios negreiros encontravam maior facilidade para ancorar,
suprirem suas necessidades logísticas e comercializar os cativos (SILVA, 2004, p.
45). Aliás, já no século XVIII, a cidade era o entreposto escravagista mais importante
do Golfo do Benin (SILVA, 2004, p. 42).
64

Foi nessa localidade que, paradoxalmente, a vantagem de ser uma ibêji


causou a segunda desgraça na vida de Kehinde, que foi a sua captura durante um
cortejo do Chachá Francisco Félix de Souza, o vice-rei de Uidá, que percebeu as
gêmeas na multidão e ordenou que fossem pegas, para presente. A avó,
desesperada, se oferece como escrava, para acompanhá-las. Durante alguns dias,
elas ficam em um barracão, onde, segundo Mattoso (2016, p. 63) se juntavam
cativos até que houvesse uma quantidade suficiente de mercadoria humana para
embarcar nos navios negreiros e seguirem viagem.
Dessa feita, Kehinde, Taiwo e a avó são confinadas em um tumbeiro com
destino à Bahia. Segundo Mattoso (2016, p. 69) a travessia durava por volta de
cinquenta dias com tempo normal. Quando os ventos rareavam a soprar, a viagem
podia transcorrer de três a cinco meses.
Durante o trânsito pelo Atlântico, o discurso desprovido de vitimismo e
dotado de certa objetividade, descreve de forma lúcida a degradante travessia da
família de Kehinde, ao passar por sofrimento idêntico ao que milhões de
escravizados sofreram nessa mesma rota desumana: fome e sede, devido ao
racionamento de comida e água, horas a fio numa mesma posição, a ausência
prolongada de luz solar, o confinamento claustrofóbico e insalubre, em que as
pessoas faziam as necessidades fisiológicas umas sobre as outras, o mau cheiro e a
dificuldade de respirar num ambiente fechado e amontoado de pessoas, a
resistência de alguns por meio do suicídio, as mortes por doença e inanição, o
turbilhão de clamores de socorro ao sobrenatural. Uma das descobertas da
narradora nesse ambiente desumano foi a mistura de várias etnias africanas
naquele espaço claustrofóbico e infecto, cada qual invocando as suas divindades em
sua língua nativa, de maneira que Kehinde percebe, pela primeira vez, a diversidade
religiosa entre o povo escravizado e que havia um mesmo Deus com nomes
diferentes:

Um dos muçurumins gritou algo e os outros repetiram, saudando Alá. A


minha avó saudou primeiro a mãe e o Kokumo, depois os Ibêjis e Nanã, e
então pegou a minha mão e a da Taiwo e as levou ao runjebe pendurado no
pescoço, pedindo a proteção e ajuda de Ayzan, Sogbô, Aguê e Loko e por
último deu um “kaô kabiecile oba Sango”, ao qual eu e a Taiwo
respondemos “kaô”. Depois que todos acabaram, o silêncio foi ainda maior
com a presença de Iemanjá, Oxum, Exu, Odum, Ogum, Sangô e muitos
eguns. A minha avó comentou que, pelas saudações, ali deviam estar jejes,
fons, hauçás, igbos, fuilanis, maís, popos, tapas, achantis e egás, além de
outros povos que não conhecia. (GONÇALVES, 2012, p. 48).
65

Glissant (2005, p. 19) ressalta a intencional mistura de variedades étnicas


em um mesmo tumbeiro, por parte dos traficantes de escravizados, a fim de evitar
rebeliões. Segundo o estudioso, ao contrário dos imigrantes europeus que
atravessavam o Atlântico, trazendo consigo língua, valores e artefatos culturais
próprios, sem precisar se desfazer deles, os africanos cativos vinham praticamente
nus e a dispersão de seus conterrâneos e familiares para os mais diferentes
destinos despojava-os de tudo o que os ligava à vida pregressa, inclusive a própria
língua. O navio negreiro, nesse sentido, fez com que, a partir do momento em que
pisaram em terra firme, os escravizados juntassem os diversos rastros ou resíduos
da memória para, a partir dessa reunião coletiva, formar uma cultura e uma língua
comum, num processo que Glissant denomina crioulização.
No caminho para o Brasil, Kehinde experimenta esse despojamento de
maneira radical, primeiramente com a perda de Taiwo e, logo depois, com o
falecimento da avó, que, conforme já mencionado, pede que a neta nunca se
esqueça da cultura e da religião ancestral africana.
Entretanto, o rompimento total com a terra mãe e a série de sofrimentos e
humilhações fomentavam o companheirismo e a irmandade entre os escravizados
durante a viagem e prolongava-se no Novo Mundo. Surgia, a partir da experiência
terrificante de nudez e perda de raízes no navio negreiro, uma nova e criativa
relação de familiaridade “fictícia”, mas efetiva, um nascente elo de fraternidade que
se estenderá em terra firme em atos individuais e coletivos de resistência. Sobre
essa malungagem nascente entre os “companheiros de barca”, Marcus Rediker
afirma:

Em meio ao brutal aprisionamento, terror e morte prematura, eles


administraram uma resposta criativa, afirmativa à vida: moldaram novas
linguagens, novas práticas culturais, novos laços e uma comunidade
nascente entre eles, a bordo do navio. Eles chamavam-se uns aos outros
de "companheiro de barca", o equivalente a irmão e irmã, criando, assim,
um parentesco "fictício", mas muito real, para substituir o que havia sido
destruído pelo sequestro e escravidão em África. Sua criatividade e
resistência são indestrutíveis coletivamente, e aqui reside a maior grandeza
26
do drama. (REDIKER, 2007, 9, tradução nossa).

26
“Amid the brutal imprisonment, terror, and premature death, they managed a creative, life-affirming
response: they fashioned new languages, new cultural practices, new bonds, and a nascent
community among themselves aboard the ship. They called each other “shipmate,” the equivalent of
brother and sister, and thereby inaugurated a “fictive” but very real kinship to replace what had been
destroyed by their abduction and enslavement in Africa. Their creativity and resistance made them
66

Irrompe, nesse contexto, o sentimento de malungagem, promotor de


solidariedade e de resistência à escravidão. A palavra vem do termo malungo, que
em banto significa “canoa grande”, como também pode denotar “companheiro de
viagem” ou “companheiro de infortúnio” (SLEENES, 1992, p. 53). Tais laços de
solidariedade e camaradagem Kehinde experimenta em sua primeira travessia,
graças à personagem Tanisha, com quem trava intimidade ainda no confinamento
do barracão em Uidá.
Tanisha é a voz do bom senso, da malungagem e do discurso da história
afrodiaspórica durante todo o percurso até o desembarque em Salvador. É por meio
dela que Kehinde toma consciência, pela primeira vez, de que fora capturada para
se tornar escrava e, para tanto, Tanisha usa a metáfora de que eles todos se
tornariam “carneiros de brancos, pois eles gostavam da nossa carne e iam nos
sacrificar” (GONÇALVES, 2012, p. 39), causando repulsa e espanto na protagonista.
Pode-se afirmar que a metáfora dos carneiros, recordada diversas vezes no
romance, foi o germe da disposição de Kehinde em resistir e nunca aceitar a sua
condição de escravizada e lutar, de diversas formas, contra tal situação e buscar
superá-la. Por meio de Tanisha, a narradora recebe informações sobre como os
lançados enganavam os nativos e os capturavam em África e eram enviados ao
Chachá de Uidá, homem poderoso que comercializava os cativos em troca de
“armas, fumo, pólvora e bebidas” (GONÇALVES, 2012, p. 40). A personagem
também ajuda Kehinde em procedimentos práticos de sobrevivência no navio
negreiro, oferecendo conselhos, como o de ficar de bruços e encostar o nariz na
madeira do casco da embarcação, a fim de amenizar o cheiro nauseabundo do
ambiente. Por meio dela, a narradora também testemunha as feridas resultantes da
impressão a ferro em brasa na pele dos escravizados com as marcas dos donos.
Além de porta-voz do discurso histórico e aquela que auxiliou a personagem
narradora a tomar consciência de sua situação de escravizada, Tanisha, portanto, foi
a primeira malunga da personagem narradora. Esse sentimento de afeto e
solidariedade entre as duas se manifesta nas conversas com Kehinde e família, nas
informações úteis e reveladoras da real situação que transmite à narradora e em

______________
collectively indestructible, and herein lay the greatest magnificence of the drama”. (REDIKER, 2007,
p. 9).
67

alguns gestos de fraternidade. Destes, destacam-se três: o primeiro ocorre quando a


avó de Kehinde se compadece do ferimento de Tanisha causado pela marcação a
ferro. Na ausência das ervas necessárias para curá-la, a avó benze a água, único
recurso de que dispunha, e a põe sobre o machucado. Esse gesto desencadeia um
ato geral de solidariedade, pois muitos outros doentes pediram que a idosa também
benzesse a água para eles. O segundo ato de afeto passa-se na rara oportunidade
em que os escravizados, naquela situação de confino, podiam subir ao convés para
um banho com água salgada do mar. Tanisha, nessa ocasião, leva Taiwo ao colo e
lava a menina extremamente debilitada. O último e mais significativo gesto de
malungagem tem sua ocorrência pouco antes do desembarque na Ilha dos Frades,
onde os escravizados eram deixados por alguns dias, no intuito de que recobrassem
as forças e melhorassem a aparência para serem vendidos, já que poderiam se
alimentar melhor e ficar livremente expostos ao sol. Esse foi o momento de maior
fragilidade de Kehinde durante a travessia, pois há pouco havia perdido Taiwo e
pouco depois a avó, de modo que a narradora experimenta um sentimento de total
solidão, desenraizamento e desterritorialização, mas, ao mesmo tempo, sente
irromper um novo laço solidário e familiar:

Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se
medo. Mas a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que
significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro
de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família,
estava indo para um lugar que não conhecia, sem saber se ainda era para
presente ou, já que não tinha mais a Taiwo, para virar carneiro de branco. A
Tanisha disse que eu sempre poderia contar com ela, que poderia ver nela
a mãe, a avó e a irmã perdidas (GONÇALVES, 2012, p. 61).

Esse sentimento de forte ligação com os companheiros de infortúnio,


nascido no navio negreiro, como num rito iniciático de transformação interna, é
manifestado por uma Kehinde revoltada, quando, aos dez anos, recebe um castigo
injusto da dona, que a expulsa da senzala doméstica, mais amena que a chamada
“senzala grande”:

Só mais tarde percebi que nada poderia deixar alguém mais selvagem do
que a travessia da África para o Brasil, e eu também já tinha sido uma
selvagem, só que não estava sozinha, pois tinha a Taiwo, a minha avó, a
Tanisha, a Jamila e a Aja, só para falar das pessoas que me eram mais
queridas. Senti muita falta delas e de todos que não cheguei a conhecer
melhor, porque eram cúmplices mesmo assim, sabendo parte da minha
história que eles também tinham vivido. Talvez a parte mais importante,
porque mudava todo o resto de uma vida (GONÇALVES, 2012, p. 112).
68

Em suma, a convivência com Tanisha foi o primeiro exemplo de verdadeira


malungagem que Kehinde testemunhou em sua experiência de travessia. Tanto que,
como não tinha nome cristão, por ter se atirado ao mar para fugir do batismo
próximo à ilha dos Frades, na ocasião de sua compra pelo sinhô José Carlos,
adotou de pronto como seu o mesmo nome que Tanisha recebeu no rito de iniciação
cristã que lhe fora imposto: Luísa.
Mais tarde, a protagonista estabelecerá verdadeiras relações de
solidariedade, destacando-se diversas personagens. Vale citar algumas, à guisa de
exemplo, como Esméria que, desde a chegada da narradora nas terras do senhor,
exerceu o papel de mãe ou de avó, ensinando-lhe rudimentos da língua portuguesa,
protegendo, nutrindo, cuidando posteriormente de seus filhos, desde a sua
permanência na fazenda de Itaparica, como no solar de Salvador e coabitando com
ela, mesmo depois da alforria, no sítio de Alberto e na casa nova, até a hora da
morte; outro personagem importante foi Fatumbi, que, de boa vontade, alfabetizou
Kehinde e, quando ela já era adulta, tornou-se seu sócio, guarda-livros e conselheiro
fiel nos negócios e, por conta do genuíno valor solidário, motivou-a para colaborar
com o Levante dos Malês, desde o seu planejamento, participando de reuniões com
ele e ajudando na logística e passagem de informações secretas, até o malogrado
conflito de 1835, quando a narradora pega em armas e testemunha a morte corajosa
do amigo; Tico e Hilário, possíveis filhos ilegítimos do sinhô José Carlos, também
fizeram parte dos laços familiares não co-sanguíneos de Kehinde, desde a infância,
em mútua colaboração, afetiva e de negócios, auxiliando como transmissores de
notícias, representantes comerciais em Salvador e no Recôncavo, primeiramente na
venda de cookies, de charutos e, depois que a narradora vai para a África, eles
continuam essa relação, vendendo os produtos de Kehinde e mandando ex-
escravizados que tinham experiência na construção civil para a empresa da
protagonista; Vale citar também, Adeola, liberta que, com o patrocínio do padre
Heinz, seu amásio, além de conseguir um lugar para a Kehinde escrava de ganho
preparar os seus cookies e um ponto para que pudesse vendê-los, abrigava
escravizados fugitivos e auxiliava nos trabalhos de promoção humana do sacerdote
protetor dos cativos; vale citar também a Nega Florinda, que ia de fazenda em
fazenda manter viva as narrativas ancestrais e, por quem Kehinde cultivava
particular afeição, além de Agontimé, a mãe do rei Agongolo e fundadora da Casa
69

das Minas no Maranhão, que presenteou Kehinde com a Oxum recheada de ouro
em pó e colaborou com a iniciação da protagonista no conhecimento dos voduns.

2.6 DE ESCRAVA A ALFORRIADA, REVOLUCIONÁRIA E MÃE EM BUSCA DO


FILHO

Depois da quarentena na Ilha dos Frades, período em que os escravizados


recobravam, ainda que insatisfatoriamente, um pouco de viço e saúde, Kehinde e os
demais cativos são conduzidos a São Salvador para serem vendidos no mercado. A
narradora rememora os dias em que permaneceu como peça à venda, rodeada por
aqueles seres humanos tristes, débeis, totalmente desanimados e com olhares de
ódio. O temor geral dos escravizados era o de não interessar de imediato aos
compradores e, assim, prorrogar a estadia no armazém, de modo a perecer com a
humilhação e os maus tratos, principalmente o racionamento alimentar, insuficiente
até para as crianças, “que tinham certas prioridades, seguindo uma norma
estabelecida por eles mesmos” (GONÇALVES, 2012, p. 69). Aliás, o fato de ser
criança, agravava em Kehinde o medo de ficar mais tempo no armazém, já que os
compradores preferiam mão-de-obra adulta para o eito, o engenho, os afazeres
domésticos e urbanos. A vontade da narradora em resistir e sobreviver contrasta
com o desânimo dos demais capturados. Percebe-se isso, quando Kehinde inventa
uma tática criativa para chamar a atenção do possível comprador, valendo-se de
micagens de todo o tipo, de maneira a tornar o ambiente “menos triste” e a provocar
o riso de muitos, inclusive do seu futuro dono, que se interessou por ela graças a
isso:

Como percebi que estava agradando, resolvi continuar. Dava um salto,


levantava os braços, mostrava a planta dos pés, punha a língua para fora,
berrava, corria ao redor de um círculo imaginário, me agachava e ficava de
pé, dava pulos no ar e repetia tudo em seguida. (GONÇALVES, 2012, p.
72).

A traquinagem de Kehinde, que tinha apenas seis para sete anos na


ocasião, consistiu em um gesto paródico do meticuloso exame que os compradores
de escravizados submetiam aos cativos, como se fossem animais, apalpando-lhes,
verificando sua dentição, a compleição física, a aptidão ao trabalho. Mesmo que a
narradora, ainda menina, não tivesse dado conta, sua atitude figura uma clara
70

manifestação de protesto e negação à desumanidade do mercado escravagista,


reduzindo o negro a peça, objeto, mercadoria. Annie Gibson em seu artigo
Vencendo confins: a Voz Resistente na Narrativa de Kehinde em Um defeito de cor,
demonstra justamente a relevância desse episódio como um ato de resistência e
autonomia da narradora, em meio à multidão de cativos totalmente sem esperança:
“Kehinde, pulando e querendo ser vendida, é quem totalmente está resistindo ao
sistema ao mesmo tempo que o está usando a seu favor, porque o futuro dela será
melhor fora do mercado (GIBSON, 2009, p. 12). Essa atitude de querer sempre ter o
direito de poder decidir sobre o seu futuro, como mulher e escravizada, mesmo nos
lindes do sistema, como defende Gibson (2009, p. 11), marcará toda a trajetória de
Kehinde no relato.
Comprada pelo senhor José Carlos de Almeida Carvalho Gama, a narradora
é conduzida à Ilha de Itaparica, na Bahia, onde trabalhará como escrava de
companhia da sinhazinha Ana Clara, menina ignorada pelo pai – que a culpava pelo
falecimento da esposa durante o parto – e odiada pela madrasta , sinhá Ana Felipa.
O desdém dos primeiros contatos entre as duas crianças vai gradualmente se
transformando em uma forte amizade e cumplicidade, que durará toda uma vida e
ultrapassará os limites geográficos entre Brasil e África. É também no convívio com
Ana Clara que Kehinde aprende a ler e a escrever, acompanhando as aulas que
Fatumbi dava à sinhazinha.
Na fazenda de Itaparica, Kehinde também estabelece uma teia de relações
muito importantes para a sua sobrevivência, sob o domínio de um casal de senhores
sadicamente cruéis, e para seu desenvolvimento pessoal e espiritual. O liame desse
afeto baseava-se não na consanguinidade, mas no companheirismo nascido dos
infortúnios vivenciados conjunta e cotidianamente no ambiente de escravidão.
Tais relações afetivas e efetivas de camaradagem familiar fomentaram
alento nos momentos difíceis, nos quais faziam-se valer as maldades do sinhô José
Carlos e da sinhá Ana Felipa contra a protagonista. Maus tratos que se estendem
quando, viúva, a senhora de Kehinde decide vender a fazenda e se estabelecer em
um solar na capital São Salvador. Para tanto, leva alguns escravizados consigo,
entre eles, Esméria, Tico, Hilário e a personagem narradora. Sem filhos, devido aos
sucessivos abortos que sofreu, dos quais pelo menos o último foi fruto de vingança
71

pela sua crueldade com a escravaria27, Sinhá Ana Felipa se afeiçoa a Banjokô e
procura afastá-lo da mãe, a fim de criar o menino como se fosse seu e não da
protagonista. Para tanto, persegue Kehinde e lhe impõe castigos injustos. Mesmo
oprimida, a narradora sempre consegue uma forma de superar as adversidades e
encontrar-se com o filho. Um desses castigos resultou numa das serendipidades do
romance, na ocasião em que Kehinde leva secretamente Banjokô no terreiro de
Baba Ogumfiditimi, para a cerimônia do nome. A festividade se prolonga além do
esperado, a narradora atrasa a sua volta e a ausência do menino é descoberta pela
sinhá, que confere uma surra em Kehinde e o castigo de encerrá-la no porão do
solar, onde a personagem ficou por pouco mais de dez dias.
Terminado o castigo, Kehinde é destinada a trabalhar como escrava de
aluguel da família de Mister Clegg, representante do governo inglês na cidade de
São Salvador. Na casa dos Clegg aprende não somente a língua inglesa como
também puddings e cookies, sendo que, mais tarde, a venda deste último será a
responsável pelo início da independência financeira da narradora.
Desfeito o acordo com Mr. Clegg, sinhá Ana Felipa encontra outra forma de
deixar Kehinde sempre longe e Banjokô: resolve tornar a narradora uma escrava de
ganho. Dessa forma, Kehinde não poderia mais morar nos porões do solar e deveria
encontrar urgentemente um espaço para instalar-se, um trabalho para manter-se e
conseguir pagar uma boa parte de seu lucro à sinhá. Conforme Reis (2012, p. 351-
352), no sistema de ganho, o escravizado deveria desenvolver alguma atividade
lucrativa, repassar diária, semanal ou mensalmente ao senhor uma cota
previamente estabelecida, havendo também a possibilidade de se juntar pecúlio,

27
Por ciúmes do marido, sinhá Ana Felipa manda arrancar os olhos de Verenciana, uma belíssima
escrava com quem o sinhô José Carlos mantinha relações, e manda servi-los à mesa do marido,
num pote de conserva. Kehinde, ao escutar uma conversa entre Liberata, mãe de Verenciana, e
outras escravas na senzala grande, descobre que o último aborto da sinhá foi causado por
determinadas ervas secretamente colocadas na comida por vingança ao malfeito de Ana Felipa:
“Eu nada disse, e deu para perceber que falavam sobre umas ervas que a Liberata tinha feito
chegar até a Antônia, na casa-grande, que seriam colocadas na comida e fariam o ventre da sinhá
secar de vez, não deixando brotar nem suspeita de nova criança” (GONÇALVES, 2012, p. 114.
Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala, comenta caso similar como comum, dentre outras
crueldades das senhoras, geralmente motivadas por “rancor sexual” em relação às escravas: “Não
são dois, nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos
inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à
presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue
ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de
quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas;
ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma
série de judiarias” (FREYRE, 2006, 421). É possível que haja uma relação intertextual entre o
episódio de Verenciana e o texto de Gilberto Freyre, que consta na bibliografia do romance.
72

caso o cativo conseguisse ganhar além do que tinha que dar ao dono, o que nem
sempre lhe era permitido. Além disso, esse sistema de trabalho escravo, que enchia
as ruas de São Salvador de africanos exercendo os mais diversos ofícios, permitia
ao cativo uma ampliação de possibilidades pessoais e coletivas, reforçando
“solidariedades étnicas e religiosas” (REIS; SILVA, 1989, p. 12) propícias à rebelião
de 1835, composta majoritariamente de escravizados urbanos e de ganho:

Eles faziam de tudo. Isso certamente deu aos escravos urbanos uma visão
de mundo mais ampla, inclusive fazendo-os explorar as possibilidades de
alforria individual e mobilidades ocupacional. Além disso, deu-lhes
consciência de sua força e de sua capacidade para criar uma sociedade
livre do comando dos brancos (REIS, 2012, p. 351).

Kehinde responde bem a essa adversidade. Enfrenta com coragem os novos


desafios e conta com a solidariedade de vários amigos. Com a ajuda de Fatumbi,
consegue alugar um espaço para morar na loja28 de Alufá Ali, muçurumim como o
amigo da narradora e um dos conspiradores do levante dos Malês. Decidida a
cozinhar cookies ingleses e vendê-los, conta com a influência e amizade de Adeola,
que lhe proporciona local para preparar os biscoitos e um ponto para comercializá-
los no Terreiro de Jesus. De padre Heinz, testemunha o exemplo de um sacerdote
dedicado à luta contra escravidão, abrigando escravizados fujões e promovendo o
letramento das crianças cativas. Além disso, o padre permite que a sua rica
biblioteca esteja à disposição de Kehinde, incentivando o amor da narradora pelos
livros e pela leitura dos clássicos. Na loja do Alufá Ali, trava amizade com os
muçurumins, participando de algumas festividades deles, principalmente com
Khadidja, que lhe explica sobre a vida e costumes dos negros islamizados da Bahia,
e estabelece relações com outras duas escravas de ganho, em especial Vicência e
Claudina.
No Terreiro de Jesus, o negócio de cookies prospera, de maneira que a
narradora monta a padaria “Saudades de Lisboa”, em sociedade com o companheiro
28
Segundo Reis (2012, p. 129), o termo loja consiste em “espécie de subsolo que pode ser visto
ainda hoje em vários sorados antigos de Salvador, com janelinhas ou ‘óculos’, geralmente ovais ou
redondos, gradeados, que dão para o nível da calçada, (...)”. O historiador, ao abordar sobre os
arranjos residenciais dos insurgentes de 1835, também afirma que um “censo de 1855 concluiu que
apenas 8% dos habitantes das lojas eram brancos, e em 1835 não devia ser diferente. As lojas
eram típicas senzalas urbanas. Enquanto a família do senhor morava no primeiro e/ou segundo
andar dos velhos sobrados coloniais, os escravos viviam embaixo, nesses porões, num espaço
muitas vezes apinhado de gente desfrutando de pouca ventilação, pouca luz, sem nenhuma
separação em quartos e, de sala amiúde referida, apropriadamente como ‘armazém’:
armazenavam-se pessoas ali” (REIS, 2012, p. 402)
73

Alberto e, posteriormente, toma a iniciativa de começar a fabricação e comércio de


charutos em todo o Recôncavo, em parceria com os muçurumins que alugavam o
espaço vazio da padaria de Kehinde.
Os contatos de Kehinde com os muçurumins, desde a travessia no navio
negreiro, revelam a admiração que a protagonista nutria por eles. Apreço, que vai se
transformando em deslumbre pelos filhos de Alá, modelos de retidão e religiosidade
para a narradora, sinalizado em diversos pontos da narrativa, como na convivência
com o honestíssimo e solícito Fatumbi, com Bilal Sali e Ajahi, escravizados dos
Clegg, na observação da vida comunitária admirável dos africanos islamizados na
loja de Alufá Ali e na antiga padaria da narradora. Tal admiração fez com que
Kehinde se envolvesse no planejamento e na batalha do Levante dos Malês de
1835, rebelião que contou com cerca de setecentos escravizados e libertos de
maioria islâmica, que pretendiam efetuar ataques rápidos e imprevistos a pontos
estratégicos da cidade de São Salvador29. Com o malogro da revolta, a narradora
foge com alguns companheiros de luta, abrigando-se nos subterrâneos da faculdade
de medicina, localizada no Terreiro de Jesus, onde são salvos pelo doutor Jorge,
que os auxilia na fuga.
Por conta de uma revolta tão alarmante para as autoridades da Bahia,
promove-se uma verdadeira devassa para encontrar e punir os rebeldes, iniciativa
que resulta em prisões, castigos, deportações e execuções, gerando um verdadeiro
clima de medo entre escravizados e negros libertos. Aconselhada a se afastar da
cidade, Kehinde refugia-se em Cairu e retorna a São Salvador quatro meses depois,
quando há certa aquietação dos ânimos, embora ainda fosse forte a perseguição e
ódio aos africanos, escravizados ou libertos, podendo ser deportados sob qualquer
denúncia (GONÇALVES, 2012, p. 543), e contra os quais a lei enrijecera,
impossibilitando-os de possuir bens na Bahia, obrigando-os a se cadastrarem no
juizado das freguesias, a pagarem taxas de permanência e proibindo o batuque,
dentre outras medidas repressivas (GONÇALVES, 2012, p. 549).

29
Lilia M. Scwharcz e Heloisa M. Starling ilustram o que ocorreu na noite do levante: “Dessa vez, o
ataque partiu de dentro da cidade, e a população não teve uma noite fácil. Na madrugada de 25 de
janeiro, grupos de africanos escravos e libertos, armados com porretes, instrumentos de trabalho e
armas brancas, lutaram nas ruas de Salvador, durante mais de três horas, enfrentando soldados e
civis. A religião esteve entrelaçada com a revolta: boa parte dos rebeldes saiu para lutar nas ruas
com as compridas túnicas rituais brancas – os abadás – usadas pelos adeptos do islamismo. Ainda,
carregavam junto ao corpo amuletos com mensagens do Alcorão e com orações fortes para
proteção”. (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 256).
74

Em 1837, dois anos após a malograda rebelião da qual fez parte e durante a
vigência da Rebública Baiana de Francisco Sabino, Kehinde é presa por engano
durante uma manifestação popular conhecida como Cemiterada. A protagonista não
militava no protesto, sendo apenas curiosa espectadora do evento. Entretanto, já
conhecia, pela boca do doutor Jorge, todo o contexto de revolta da população, que
não aceitava a imposição sanitarista de não enterrar seus mortos nas igrejas.
O fato de Kehinde ser uma africana liberta, por si, tornava melindrosa a sua
situação de detenta, levando em conta o contexto da forte repressão subsecutiva à
Revolta dos Malês. Além desse agravante, naquela circunstância específica, a
atitude dos revoltosos presos era considerada um ato de traição ao regime
federalista baiano, que adotara a medida obrigatória dos sepultamentos em
cemitérios. Esse duplo estado (negra liberta e rebelde) implicaria o risco da
consequente deportação da protagonista.
Malgrado o cenário desfavorável, a narradora consegue sair da cadeia por
meios escusos, graças à intercessão do doutores Jorge e José Manoel, marido da
sinhazinha Ana Clara. Kehinde, nesse contexto complicado, não tem outra
alternativa senão fugir de Salvador, deixando Omotunde aos cuidados de Esméria,
que falece tempos depois, de Claudina e Alberto, o pai do menino. O primeiro
destino da protagonista foi a Ilha de Itaparica, hospedando-se no terreiro de
Mãezinha, Ialorixá que lhe transmitiu conhecimentos sobre os orixás, a visão da
morte para os iorubás, os eguns, os egungus e sobre o culto geledé. A partir dessa
convivência espiritual com a mãe de santo, o sentimento de tristeza e raiva do
sistema repressor, de Alberto (que se casara com uma branca) e até dos
muçurumins da Revolta dos Malês (cujos principais líderes, provavelmente, haviam
fugido das punições), vai se transmutando em um desejo de se aprofundar na
religião ancestral.
Começa um período de introspecção para Kehinde, que parte para São Luiz
do Maranhão, onde há o primeiro assentamento brasileiro da religião dos voduns,
fundado por Agontimé, ou Maria Mineira Naê, como era mais conhecida. Cumprido o
seu período de aprendizado na Casa das Minas no Maranhão, a narradora vai para
Cachoeira, no recôncavo baiano, para receber mais instruções e fazer a iniciação
como vodunsi.
Recém-iniciada na religião da avó e ainda residindo em Cachoeira, recebe a
trágica notícia de que, aproveitando-se da doença grave de Claudina, Alberto
75

desaparece com Omotunde. Pouco tempo depois, Kehinde descobre que, na


verdade, o filho havia sido vendido pelo próprio pai, afundado em crise financeira.
Desesperada, vai a procura de informações sobre o filho, o que a fez permanecer
alguns meses no Rio de Janeiro e depois viajar para São Paulo e Campinas.
Frustrada no intento de encontrar Omotunde e resgatá-lo, decide voltar à sua África.
É possível, nessa altura da narrativa, se perceber um fechamento de ciclos:
primeiramente com o período introspectivo de Kehinde, no esfoço de resgatar a
religião ancestral, cujo rompimento com a morte da avó necessitava ser
redescoberta ou reavivada, por meio da instrução e iniciação como vodunsi; em
segundo lugar, com o seu retorno à África da infância. A epígrafe do oitavo capítulo
do romance, “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos
de onde vens” (GONÇALVES, 2012, p. 569), reforça ainda mais essa ideia de
introspecção e leitura da história pessoal e coletiva pelo viés cíclico do mito, que se
confirma com o retiro espiritual da protagonista e seu rito iniciático, que traz em seu
bojo morte, renascimento e transformação e, portanto, travessia:

(...) Iniciar é, de certo modo, fazer morrer, provocar a morte. Mas a morte é
considerada uma saída, a passagem de uma porta que dá acesso a outro
lugar. À saída, então, corresponde uma entrada. Iniciar é também introduzir.
O Iniciado transpõe a cortina de fogo que separa o profano do sagrado,
passa de um mundo para outro, e sofre, com esse fato, uma transformação,
muda de nível, torna-se diferente.
A transmutação dos metais (no sentido simbólico da alquimia*) é também
uma iniciação que exige uma morte, uma passagem. A iniciação opera uma
metamorfose. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 506).

A ideia de ciclo, metamorfose e passagem que permeia o romance já é


prenunciada no primeiro capítulo da narrativa, na figura da borboleta, metáfora
clássica da transformação: “A borboleta que esbarra em espinhos rasga as próprias
asas” (GONÇALVES, 2012, p.19). Ao ditar suas memórias, Kehinde narra a sua
metamorfose pessoal e as transformações identitárias e culturais experimentadas
por aqueles que, como ela, atravessaram o Atlântico nos tumbeiros e também os
que retornaram à África, com todo o repertório de vivências no Brasil escravagista. A
menina que chega nua e sem família em São Salvador, de posse apenas dos
valores ancestrais da avó, volta à África de sua infância não apenas com esses
valores, mas também leva “uma carga de fumo, charutos e cachaça”, produtos
tipicamente nacionais, destacando o fumo, cujo ramo está presente na bandeira do
Brasil Imperial. Isso pode significar algo mais, além do óbvio, o fato de que Kehinde
76

vende suas posses e viaja com mercadorias para comercializá-las e iniciar uma nova
vida na terra natal. Além disso, a importação dos bens culturais tupiniquins para a
África recorda ao leitor que a narradora transporta mais que produtos brasileiros.
Junto ao fumo, charutos e cachaça, a narradora leva consigo o que Gilroy (2012)
denomina a cultura do Atlântico Negro, uma forma híbrida de identidade e visão de
mundo, nascida a partir da diáspora africana, no navio negreiro durante a Middle
Passage e, por consequência, do contato dos escravizados com a cultura da nova
terra, onde o cativo se situava em um entrelugar, na luta cotidiana para sobreviver
como indivíduo e como grupo, em uma sociedade da qual ele não fazia parte. O
resultado desse intercâmbio cria novas formas de manifestações coletivas na arte,
na dança, na religião, dentre tantas, e um novo jeito de conceber a própria
identidade. Kehinde, portanto, não era a mesma, embora preservando a memória
ancestral. Á Uidá de sua infância também, como já anuncia o paratexto epigráfico do
nono capítulo do romance: “Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome”.

2.7 DE KEHINDE A SINHÁ LUÍSA: A SEGUNDA E A DERRADEIRA TRAVESSIA


NO ATLÂNTICO NEGRO

Em vinte e sete de novembro de 1842, Kehinde desembarca no mesmo


porto de Uidá, de onde ela havia partido em um navio negreiro rumo ao Brasil,
quando menina. A memória desse fato foi inevitável por parte da narradora:

As situações eram distintas, mas o medo era quase igual, medo do que ia
acontecer comigo dali em diante. É claro que os motivos também eram
diferentes, porque naquela volta eu seria a única responsável pelo meu
destino, e na partida tudo dependia daqueles que tinham me capturado.”
(GONÇALVES, 2012, p. 731).

Retornada, Kehinde se estabelece em Uidá, reencontra alguns amigos de


infância e se casa com John, um comerciante sarô30, que conhece durante a viagem

30
Kehinde explicita o termo sarô da seguinte forma: “Nunca tinha sido escravo e não era um dos
retornados, o que não fazia dele um saro (Sarô ou salô: corruptela de "Serra Leoa", como eram
chamados os africanos que tinham sido libertados pelos ingleses no tráfico clandestino para o Brasil
ou para Cuba. Como libertos, eles viviam algum tempo em Serra Leoa. Sendo de maioria iorubá,
normalmente voltavam depois para Lagos, mais perto das cidades do interior onde tinham sido
capturados), embora soubesse falar aquela língua deles, misturada com o inglês, e também se dizia
quase protestante. Isso da religião o John não contou para ninguém além de mim, e sempre
frequentou comigo as festividades católicas. Era melhor para ele, que poderia ser chamado de
77

no patacho Sunset, e têm com ele um casal de filhos gêmeos, Maria Clara e João,
ao mesmo tempo ibêjis (ou hoho, como se dizia então) e abikus. Com o dinheiro das
mercadorias importadas do Brasil, a narradora estava pronta para começar a vida
em África. Em sociedade com John31, trabalha no comércio de charutos, panos da
costa e óleo de palma, além de entrar no negócio lucrativo de armamentos e
pólvora, que seriam utilizados, principalmente, na captura e manutenção do tráfico
negreiro para o Brasil. Para que tal projeto se concretizasse, entretanto, foi
necessário que Kehinde mantivesse boas relações com o rei Ghezo e,
principalmente, com o Chachá, vice-rei do Daomé, pois somente com a proteção de
Francisco Félix de Souza era possível negociar em Uidá.
A própria Kehinde reconhece a atitude contraditória de comerciar armas para
o tráfico negreiro, do qual ela mesma foi vítima. No entanto, em nome da
sobrevivência e afirmação naquele ambiente, arruma as suas justificativas, o que
demonstra certa mudança em sua visão de mundo e de posicionamento mais
individualista ante a realidade histórica, diversa da Kehinde revolucionária de 1835.
Prevalece, antitética ou paradoxalmente, a Kehinde disposta a prosperar, vencer na
vida e continuar senhora do seu destino:

Como bem dizia o Fatumbi, infelizmente a vida era assim mesmo e cada um
que cuidasse de si, já que diretamente eu não estava fazendo mal a
ninguém. Se eu não vendesse as armas, outras pessoas venderiam e as
guerras iam continuar existindo, como sempre tinham existido. Eu só não
tinha coragem de comprar e vender gente, porque já tinha sentido na pele
como era passar por tal situação, embora muitos retornados fizessem isso
sem remorso algum. Mas o comércio com armas, que só era menos
lucrativo que o de escravos, eu e o John fizemos por um bom tempo,
enquanto buscávamos outros tipos de negócio. O bom era que tínhamos
pagamento garantido, pois o rei não podia correr o risco de perder seus
fornecedores. (GONÇALVES, 2012, p.771).

______________
espião caso não se mostrasse totalmente convertido, como na história que vou te contar depois”
(GONÇALVES, 2012, p. 776).
31
A união matrimonial e empresarial de Kehinde e John representa a aliança entre agudás e sarôs,
católicos e protestantes respectivamente, ambos marginalizados pela população nativa da Costa da
África Central por seus costumes estrangeiros, mas desejosos de aceitação e respeito na
sociedade. Sobre isso, Alberto da Costa e Silva destaca que as duas comunidades “viviam em
bairros separados e frequentavam, quando cristãos, igrejas diferentes. Desde o início, porém,
alguns poucos começaram a casar-se entre si. Moravam de maneira semelhante, quando tinham o
mesmo nível de renda. Vestiam-se, agudás e sarôs, de igual maneira, à europeia. E tinham a
mesma aspiração de formar uma espécie de burguesia negra, que fosse aceita como igual no
pequeno e fechado mundo dos brancos. Não por acaso aliaram-se, uns e outros, aos poderes
coloniais” (SILVA, 2003, p. 133-134).
78

Ainda nessa linha argumentativa de justificar o seu procedimento comercial,


a narradora manifesta que talvez estivesse fazendo um bem, ao afirmar que
diversos escravizados, vítimas de conflitos internos do Daomé, partiam felizes para o
cativeiro, saudados pelos que voltaram sumariamente à África e “morriam de
saudade e dariam a vida para voltar, e não eram poucos os que trocavam uma vida
de liberdade em África por outra de escravidão no Brasil” (GONÇALVES, 2012, p.
772).
A aliança de Kehinde com a elite poderosa e escravista do Daomé, como o
Chachá Francisco Félix de Souza e o próprio rei Ghezo, filho de Agontimé, não
consiste apenas em um recurso de sobrevivência econômica e chance de
enriquecimento da protagonista, dentro da narrativa. É um dos indicativos
sociológicos e históricos, outrossim, da formação de uma identidade agudá ou
brasileira, não apenas em Kehinde, como em todo o grupo de retornados,
majoritariamente da Bahia, cuja travessia de volta se acentua depois da Revolta dos
Malês, por meio da deportação de muitos africanos acusados de participar da
rebelião e o regresso voluntário de alguns ex-escravizados32. Alberto da Costa e
Silva, em Um Rio Chamado Atlântico, destaca essa atitude aparentemente
paradoxal dos agudás, apontando também a adoção dos retornados, em terra
nativa, de costumes, culinária, vestuário e outras manifestações culturais
tipicamente brasileiras do século XIX, como a prática da religião católica, de modo a
provocar hostilidades da comunidade local por conta de atitudes e costumes tão
distintos.
Para tanto, o africanista destaca, com base em depoimentos de retornados,
a decepção dos regressantes em não encontrarem a África do passado que restava
na lembrança, gerando, a partir desse sentimento de engodo ou traição, a
“construção da saudade do Brasil. Uma saudade quase incompreensível, quando se
tem em vista a violência da escravidão em terras brasileiras” (SILVA, 2003, p. 121).
Os retornados não se reconhecem em sua terra de origem e não são reconhecidos
pelos nativos, por suas famílias, não apenas pela diferença de costumes, como
também pelo fato de (os agudás) serem ex-escravizados.

32
Conforme J. Michael Turner, o fenômeno do retorno de ex-escravizados à África, a partir do porto
de Salvador acentua-se na década de 1830 e “Antes do fim do século XIX, o número de emigrantes
afro-brasileiros para a África Ocidental havia ultrapassado o número de três mil” (TURNER, 1978, p.
19). Guran (2002, p. 66) aponta um número superior, entre sete e oito mil retornados.
79

Há diversas ocorrências nas quais Kehinde comenta o estranhamento


recíproco entre “brasileiros” e “selvagens”, termos mútua e ofensivamente utilizados
pelos retornados e nativos. A alcunha de brasileiro evidencia o que Pierre Verger
afirma em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de
Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, ao ressaltar o esforço dos retornados em
preservar os valores culturais assimilados no período de escravidão no Brasil:
“Muitos dos pretos ao voltarem para a África com costumes brasileiros, fizeram lá
uma espécie de Brasil, assim como se formou aqui uma espécie de África”
(VERGER, 2002, p. 367). Por sua vez, a própria narradora lança mão do termo
selvagem, diversas vezes, em suas descrições e comentários sobre a vida dos não
retornados. A protagonista, nesses comentários, encarna a mentalidade agudá,
criticando o modus vivendi rude dos nativos, o costume anti-higiênico de comer com
as mãos, a arquitetura primitiva de suas casas, seu primitivismo, em suma.
A negação do outro funciona, nesse caso, como a afirmação do semelhante,
fortalecendo o laço entre os companheiros de retorno (duplamente hostilizados, no
Brasil e em África), a formação identitária dos chamados brasileiros em África criva-
se do confronto com uma alteridade hostil, que obrigam-nos à reinvenção. Para
tanto, os agudás afirmam-se por meio de um sentimento de superioridade, formando
uma comunidade que assume, como postura coletiva, costumes da cultura
brasileira, tais como a utilização de talheres nas refeições e o vestuário do branco,
adotando a religião católica e celebrando, com alarde e pompa, suas festas
religiosas, como a do Senhor do Bonfim, bem como efemérides civis (o dia da
Independência, por exemplo), comunicando-se em português perto dos nativos.
Como típica agudá, Kehinde também partilha desse sentimento de superioridade
dos brasileiros e descreve a rivalidade entre estes e os africanos nativos:

Alguns já tinham construído casas que se pareciam o mais possível com as


casas da Bahia, fazendo com que se destacassem muito das casas pobres,
feias e velhas dos africanos. Eu também queria uma daquelas, que eram o
sonho de todo retornado e até de alguns africanos, embora eles não
admitissem, por causa das rivalidades. Todos os retornados se achavam
melhores e mais inteligentes que os africanos. Quando os africanos
chamavam os brasileiros de escravos ou traidores, dizendo que tinham se
vendido para os brancos e se tornado um deles, os brasileiros chamavam
os africanos de selvagens, de brutos, de atrasados e pagãos. Eu também
pensava assim, estava do lado dos brasileiros, mas, além de não ter
coragem de falar por causa da minha amizade com a família da Titilayo,
achava que o certo não era a inimizade, não era desprezarmos os africanos
por eles serem mais atrasados, mas sim ajudá-los a ficar como nós.
(GONÇALVES, 2012, p. 757).
80

É no seio da comunidade agudá que Kehinde prospera financeiramente,


pelo comércio de armas, importação e exportação de mercadorias com a Bahia,
produção e venda de óleo de palma. Posteriormente, em Lagos, para onde se muda
com a família em 1863, com a morte de John, a narradora enriquece ainda mais. Lá,
funda a empresa de construção civil “Casas da Bahia”, especializada em edificações
no estilo brasileiro, envia os filhos à França, a fim de completarem os estudos. Além
disso, tanto em Uidá como em Lagos, a narradora marca presença atuante nas
festas e celebrações católicas dos agudás, pratica alguns atos de piedade, como a
recitação do rosário, e cria laços de amizade com padres, sendo muito respeitada
por todos.
Aliás, o termo agudá, em África, é sinônimo de católico (FIGUEIREDO,
2009, p. 53) e a narradora, embora nunca tenha abandonado a religião ancestral, vai
gradualmente assumindo o catolicismo, como forma de afirmação identitária,
resistência e sempre numa postura crítica. Em diversas oportunidades, a narradora
questiona certas incongruências da religião, como, por exemplo, o porquê de não
haver, até então, visto nenhum sacerdote ou imagem de santo negros nas igrejas. A
postura crítica também se revela, nos comentários sobre certa proximidade
interesseira de sacerdotes católicos, para obter ajuda financeira para o trabalho
missionário e sobre a singularidade do catolicismo dos agudás, motivado mais pela
saudade do Brasil do que pela fé:

(...) fomos visitados constantemente pelos missionários de Porto Novo, que


tentavam manter acesa a nossa fé. Era o que eles pensavam, mas, na
verdade, o que nos fazia católicos era a lembrança do Brasil e a
superioridade sobre os selvagens, e não a fé” (GONÇALVES, 2012 p. 895).

Nesse contexto, percebe-se a invenção e a afirmação de uma nova


identidade como forma de resistência para os agudás, a partir dos valores
assimilados no Brasil durante a escravidão, processo que Guran (2012) define como
bricolagem da memória33. Kehinde se reinventa com a cumplicidade do coletivo, a
saber, a comunidade dos retornados. Isso se reflete nos acréscimos ao nome, pelos

33
“Esse processo, que denominei bricolagem da memória, opera pela composição de um conjunto de
referências históricas que foram passadas pela tradição oral e se inscrevem no presente por meio
de rituais simbólicos e comportamentos sociais – maneiras de se vestir, se alimentar e falar – que
identificam os agudás entre si e os diferenciam dos demais grupos. Dessa forma, esses ex-
escravos se reinseriram como cidadãos com plenos direitos na própria sociedade que os tinha
excluído, o que é bastante raro” (GURAN, 2012, p. 126).
81

quais ficou conhecida em África: Luísa Andrade da Silva, como também a adição de
dona ou sinhá. Se, ao chegar ao Brasil como escrava, Kehinde, que nunca fora
batizada, adota o nome de Luísa, não pelas raízes brancas e cristãs do substantivo
próprio, mas por lembrar-se que Tanisha, sua amiga e companheira de navio
negreiro, o havia recebido do padre no rito de iniciação católico, o mesmo não
ocorre com os acréscimos que adota. Todos se referem a memórias do Brasil:

Mantive o Luísa, com o qual já estava acostumada, e acrescentei dois


apelidos: Andrade, que a sinhazinha tinha herdado da mãe dela, e Silva,
muito usado no Brasil. Então fiquei sendo Luísa Andrade da Silva, a dona
Luísa, como todos passaram a me chamar em África, os que já me
conheciam e não estranharam a mudança, e os que me conheceram a partir
daquele momento. Alguns também me chamavam de sinhá Luísa, a maioria
dos retornados, e eu achava muita graça nisso, principalmente quando, ao
tomar conhecimento, a sinhazinha passou a me chamar assim nas cartas,
de brincadeira. Ela era a sinhazinha e eu era a sinhá, e acredito que nós
duas pensamos em uma coisa que nem precisou ser dita, pois não era de
bom tom, mas eu, a sinhá, tinha sido mãe de um filho do pai dela, o próprio
sinhô. (GONÇALVES, 2012, p. 789).

Não obstante ser conhecida por outro nome, que não o africano, a narradora
nunca negou ser Kehinde, o que significa, em outras palavras, nunca haver
abandonado o seu liame com a identidade ancestral. Retomando e parafraseando a
epígrafe do primeiro capítulo, a narradora, que personifica toda a comunidade de
retornados, passou por um processo identitário de mestiçagem, ou de crioulização,
como defende Èdouard Glissant, numa espécie de metamorfose ou reinvenção,
resultante não apenas dos intercâmbios culturais, como, principalmente, da
necessidade em resistir às adversidades da diáspora em culturas diversas e hostis,
como a borboleta que se fere “quando esbarra em espinhos” (GONÇALVES, 2012,
p. 19).
Ademais, valendo-se, igualmente, do provérbio africano citado na epígrafe
do nono capítulo – “mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome”
(GONÇALVES, 2012, p. 731) – afirmando que, mesmo seco (leia-se diferente), ele
preserva o seu nome (identidade), os africanos que retornaram da África, vieram
culturalmente diferentes, mestiços, sincréticos, afro-brasileiros. Por outro lado, como
já foi abordado, a África, que Kehinde e os demais agudás encontraram ao retornar
do Brasil, também não era aquela construída por eles em recortes ou retalhos da
memória, durante a escravidão no estrangeiro. Além disso, com o regresso dos ex-
escravizados, dentre eles a narradora, a África transformou-se não somente pelo
82

impacto com os costumes brasilizados ou baianizados dos agudás, como também


pela contribuição material e econômica dos retornados. Tal contributo deve-se à
vinda de profissionais dos mais variados ofícios, aprendidos e exercidos nos tempos
de cativeiro, como o da construção civil, por exemplo, e o notório destaque dos
agudás – ávidos em refazer a sua vida na terra de origem e a prosperar
financeiramente – no comércio externo, principalmente com o Brasil34.
Nesse sentido, é possível entender a metamorfose identitária de Kehinde,
que durante a tessitura da narrativa e a sua trajetória como escravizada, liberta e,
posteriormente, retornada, foi se chamando Luísa, Luísa Andrade da Silva, dona
Luísa e Sinhá Luísa, porém, nunca negando as suas origens ancestrais, apenas
somando características novas à sua própria identidade, frente aos desafios
históricos e pessoais. Obediente ao pedido da avó agonizante, a narradora tem
orgulho de seu nome original e de sua identidade, nascida na África, forjada nas
adversidades do cativeiro e da marginalização social, enfrentadas com resiliência e
bravura, virtudes que a transformaram numa mulher empoderada, senhora de si,
madura, realizada:

O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais
gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito
algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se
fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a
vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito. Eu me
sinto muito mais orgulhosa de ter nascido Kehinde do que sentiria se tivesse
nascido padre Clement, um bom homem, com certeza, mas que se
submetia à necessidade de agradar aos brasileiros ricos de Lagos, Porto
Novo e Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas cidades
(GONÇALVES, 2012, p. 893).

A narradora do romance, portanto, é essa mulher, que, como a borboleta


ferida da epígrafe inicial do capítulo um, passou por todos os estágios
metamorfósicos/identitários e está pronta para a terceira e última travessia, cujo
destino pode ser tríplice: o Brasil, a fim de reencontrar o filho perdido; a morte, pois

34
À guisa de ilustração, Alberto da Costa e Silva destaca o protagonismo comercial dos agudás em
todo o golfo do Benin e elenca os produtos que os retornados de Lagos (onde a protagonista viveu
por mais de seis décadas) exportavam e importavam do Brasil, o que demonstra o impacto
econômico das atividades comerciais dos chamados brasileiros em África: “Os brasileiros de Lagos
exportavam para o Brasil escravos, azeite-de-dendê, noz-de-cola, pano e sabão-da-costa, resinas e
objetos religiosos, e importavam cachaça, farinha de mandioca, tabaco, açúcar, charque, armas e
pólvora, além de vários outros artigos: formicida, limas, sapatos de couro, cigarros, penas de
escrever, grades de ferro fundido, figuras de louça e gesso, azulejos, telhas, móveis, livros e
jornais” (SILVA, 2003, p. 108).
83

tem quase certeza de que não pisará em terras brasileiras; ou a própria narrativa, no
esforço de Kehinde em transmitir ao filho, por meio de suas memórias, ditadas
durante a viagem marítima pelo Atlântico, os valores ancestrais e a sua história
pessoal no contexto da diáspora africana, no esforço de terminar o tapete da
narrativa, sob o signo de Dã, a serpente-uroboro.
O nome do navio que conduziu Kehinde em sua travessia derradeira é
sugestivo: Aliança35. Como já se apontou, Dã, em sua forma urobórica, é o vodun
das águas, da transformação, do movimento, da unidade na diversidade. Também
se afirmou que nessa dialética entre a pulsão da vida e a pulsão da morte, na
simbologia do uroboro, a cobra representa os valores tanáticos e o círculo, por sua
vez, representa a força unificadora, a superação do ciclo de vida e morte pela
transcendência. Nesse sentido, o vapor Aliança, evocando circularidade e ligação,
pode ser uma metáfora de fechamento, conclusão, tanto da narrativa quanto do ciclo
vital de Kehinde. Por outro lado, considerando que foi ao longo da viagem a bordo
do Aliança que a narradora, cega e doente, ditou o seu relato por inteiro, pode-se
afirmar, igualmente, que figura a própria narrativa, cuja finalidade particular, como
texto, é gerar um todo significativo, a partir dos fragmentos da história, resgatados
pela memória. Por meio do poder da linguagem e pelo ato de narrar, mesmo certa
de que não chegará viva no Brasil, Kehinde tem a possibilidade reencontrar
Omotunde, resgatar a sua identidade histórica e continuar viva, de modo que, ao
realizar um trabalho consciente de lembrança (memória) do filho ausente, ele se
presentifica, ao contar a sua vida, ela nunca morre, ao resgatar fatos históricos em
sua narração, eles não são relegados ao esquecimento.
Essa abordagem sobre a formação identitária de Kehinde, baseada no
universo mítico da cultura ancestral e em sua experiência no processo da diáspora
africana, que contempla as travessias de ida e vinda, de resistência, solidariedade,
superação e resiliência ante às hostilidades no contexto de escravidão e,
posteriormente, de retorno, constitui-se pano de fundo na leitura do romance a partir
de suas epígrafes. Neste trabalho, a análise priorizará os paratextos epigráficos das
dedicatórias e a citação que encabeça o prólogo, conforme será demonstrado no
próximo capítulo.

35
O patacho Sunset (do inglês pôr do sol), no qual a narradora retornou à África também poderia ser
citado como figuração metaficcional, no sentido de que, a partir do oitavo capítulo, o romance perde
um pouco de intensidade no plano da ação e, como a sua ocorrência se dá no oitavo capítulo da
narrativa, portanto próximo do final, aponta para o ocaso do relato.
84

3 AS EPÍGRAFES DE UM DEFEITO DE COR

Ficar contente com a aceitação total deste desfecho


é certamente possuir um tesouro, cuja chave é a
compreensão de que Chave e Tesouro são a
mesma coisa. Aí (com um beijo, pequena irmã) está
o sentido de nossa história. Dunyazade: a chave do
tesouro é o tesouro. Gênio
(DUNYAZADÍADA, de John Barth)

3.1 A UM PASSO DO LIMIAR: PROBLEMATIZAÇÕES

O primeiro capítulo desta tese buscou abordar uma leitura preliminar do


romance em estudo, traçando um cotejo sumário e introdutório com as epígrafes e a
pertinência delas em três questões fundamentais que guiam a narrativa, tendo como
liame as serendipidades que provocaram diversas reviravoltas na vida da narradora,
a saber: memória ancestral, as redes de solidariedade e o ato de narrar/transmitir.
Primeiramente, o cultivo da memória ancestral, seu valor afetivo e identitário,
sempre preservado, mas, simultânea e gradualmente, a receber adições de outras
memórias e assimilações culturais. Um processo formativo, mestiço e sincrético,
revelador, por meio da ficção, de um fenômeno histórico, aparentemente paradoxal,
resultado do processo afro-diaspórico da dispersão das diversas matrizes étnicas,
que, para manter viva a chama de suas raízes, foram juntando fragmentos de
memória diversos, no esforço de construir uma identidade comum que solidificasse a
unidade dos cativos e libertos, na resistência cotidiana à escravidão e à
marginalidade.
No caso dos retornados, como Kehinde, soma-se a esse construto de
memória comum, o acréscimo de retalhos memoriais da experiência brasileira, de
modo a formar a identidade agudá, pelo qual os chamados brasileiros conseguiram
resistir e afirmar-se ante à hostilidade do povo nativo. Em segundo lugar, o
sentimento solidário e agregador das redes de solidariedade, favorecendo gestos
fraternos de resistência ante os reveses da escravidão e da marginalidade
sociocultural. Por último, a derradeira travessia da personagem, o fechamento cíclico
do uroboro-Dã, figuração do ato de narrar/transmitir o repertório histórico pessoal e
85

coletivo, forjado no cadinho da diáspora, contado a partir de um ponto de vista


marginal. A narradora alcança a plenitude identitária depois de ter passado pelas
duas travessias, de ida e de retorno, pronta para uma outra, a derradeira, figuração
da própria narrativa.
Até este ponto da análise, há de se concordar que o uso da epígrafe no
romance cumpre razoavelmente o papel que Gérard Genette afirma ser a mais
canônica dessa instância, a de “comentário do texto” (GENETTE, 2009, p. 142).
Segundo o teórico francês, em alguns casos, alusão óbvia, não demandando maior
esforço interpretativo; em outros, porém, como nas epígrafes do romance sartreano
A Náusea e em Sob o sol de Satã, de Bernanos, as citações são como enigmas que
não permitem uma decifração rápida, de modo a permitir a apreensão interpretativa
e as correlações pertinentes com o texto somente na efetivação plena da leitura, de
modo que é dado ao leitor a primazia desse encargo hermenêutico (GENETTE,
2009, p. 142).
A fim de dar sequência a essa reflexão, vale ressaltar novamente que a
intenção inicial desta pesquisa consistia em reunir no corpus as epígrafes-provérbios
dos capítulos de Um defeito de cor e sondar o seu papel na tessitura romanesca sob
o viés da ficção histórica. Entretanto, durante sucessivas releituras e reflexões,
descobriu-se de modo patente que seria necessário dar ênfase, no presente estudo,
às epígrafes constantes na dedicatória (em número de três, igualmente proverbiais)
e às do prólogo, (referência literária extraída de um romance contemporâneo de
John Barth, a epígrafe inicial, além da final, atribuída ao físico norte-americano
Joseph Henry). Tal procedimento de escolha, porém, requereu a elucidação de dois
problemas, o segundo mais complexo: a) se as epígrafes dedicatoriais têm algo a
dizer sobre a diegese e seu fundo histórico, é necessário pensar a refuncionalização
do paratexto dedicatória na obra e elucidar o seu papel narrativo, frisando que o
mero fato de as citações serem provérbios africanos, já se tem per se um indicativo
favorável; basta analisar a viabilidade de sua inclusão no corpus; b) A discrepância
da citação de John Barth com as outras epígrafes, se levarmos em conta que se
trata de um excerto literário contemporâneo, além da pretensa citação de Joseph
Henry, talvez dita em uma conferência, mas jamais registrada em um texto próprio
do cientista. Numa primeira visada, embora remeta ao termo serendipidade, motivo
constante no romance, o texto barthiano provoca um efeito dissonante e de ruptura
com o conjunto de provérbios que compõem o corpus, além de dissonar,
86

aparentemente, com a carga mítico-ancestral africana comum das epígrafes


proverbiais.
Quanto ao primeiro problema, a utilização e presença não costumeira de
epígrafes na dedicatória do romance, tende a lhe subverter a função de mera
homenagem36. No entanto, a descoberta dessa refuncionalização da dedicatória é
impraticável (e impossível) ao primeiro contato com a obra. O insight do leitor poderá
se efetivar tão somente no estágio final de leitura – ou em uma ou mais releituras do
texto – quando, aí sim, torna-se viável a conjectura e decorrente identificação de um
provável cruzamento semântico dos três motivos que permeiam a narrativa
(memória, redes de solidariedade e transmissão) com os provérbios epigráficos,
empregados de forma não usual, logo após cada homenagem: aos avós
(ancestralidade, com a ideia implícita de memória), amigos (redes de solidariedade)
e estudiosos (transmissão/memória):

Para meus avós,


Nola e Paulo,
Ana e João
“Quando você segue as pegadas dos mais velhos,
Aprende a caminhar com eles”

Para meus amigos


Luiz Antônio Gravatá, o Gravatá
Maria Elisa Guimarães, a Meg
Millôr Fernandes, o Millôr
“Amigo é como um vizinho quando Deus está distraído”

Para os historiadores, escritores, professores, sociólogos,


antropólogos etc.,
Fontes de inspiração e consulta, citados no final deste livro.
“Uma chama não perde nada ao acender outra chama”
(GONÇALVES, 2012)

Em nota de rodapé, a autora faz questão de frisar que todas as citações da


dedicatória são provérbios de origem africana. Tal observação não apresentaria
relevância analítica de maior grau se, em sua totalidade, os capítulos da obra não
fossem introduzidos por provérbios indicados textualmente como africanos,
diferenciando-se, apenas, em termos de posicionamento editorial, pois a elucidação
se dá entre parênteses, uma linha após a transcrição de cada epígrafe capitular.
Ademais, vale o destaque de que os ditados, em sua maioria, são

36
Conforme Gérard Genette, tanto a dedicatória da obra quanto a de exemplar “consistem em prestar
uma homenagem numa obra a uma pessoa, a um grupo real ou ideal, ou a alguma entidade de
outro tipo. (GENETTE, 2009, p. 109).
87

comprovadamente de origem iorubá (matriz da narradora), como será demonstrado,


por meio de indicações gráficas explicativas.
Exceção intrigante e objeto de análise em tópico futuro, a epígrafe do
prólogo parece destoar das demais. Primeiramente, como já se expôs, porque não
se trata de um provérbio, nem de nada relativo à África, e, sim, de uma citação
literária, reproduzida em sua língua original, do romance The Last Voyage of
Somebody, the Sailor (ainda não traduzido no Brasil), do escritor pós-modernista
norte-americano John Barth:

“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good
37
faith for elsewhere and lose your bearings serendipitously”. John Barth, em
The Last Voyage of Somebody, the Sailor (Nova York, 1991).
(GONÇALVES, 2012, p. 9).

A alusão ao tema da serendipidade, principal assunto do prólogo e um dos


fios condutores semânticos da obra, permite estabelecer relações de sentido com a
narrativa, mas os questionamentos sobre sua presença no corpus, formando um
conjunto com as demais epígrafes ainda persistem. No entanto, como se verá em
tópicos seguintes, por meio de uma sondagem intertextual, a epígrafe do prólogo
franqueia uma passagem entre Um defeito de cor e o próprio romance de Barth,
mais precisamente concentrando o foco de sua atenção na personagem barthiana
Scheherazade, que remete a Sherazade, a contadora de histórias das Mil e uma
Noites, que já havia sido resgatada pelo escritor americano dezenove anos antes,
em uma das três novelas de Quimera (Chimera, 1972), intitulada Dunyazadíada.
Por meio dessa análise intertextual do paratexto em questão, pode ser
constatado que a epígrafe extraída da obra de John Barth parte da tradição das
narrativas sherazadianas, contadas e recontadas de geração em geração por
intermédio de manuscritos que circulavam no mundo árabe medieval, dos quais
restaram exemplares produzidos entre os séculos XIV e XVIII, embora já houvesse
notícias desse corpo de histórias desde nono século (JAROUCHE, 2015a, p. 11).
Dessa forma, o paratexto epigráfico em questão, embora de fonte contemporânea e

37
“Você não chega a Serendip planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro lugar
e perder seus azimutes serendipitosamente.” (GONÇALVES, 2012, p. 9, tradução nossa).
Preservou-se a versão original da epígrafe em inglês no corpo do texto, justamente para enfatizar a
singularidade dessa citação em relação aos provérbios africanos dos capítulos, todos apresentados
em língua portuguesa.
88

vanguardista, parte do cultivo de valores tradicionais da memória ancestral, a partir


da oralidade e que posteriormente é registrado como texto escrito, tal qual os
provérbios africanos, embora estes sintetizem tais valores em sentenças curtas e a
citação de Barth remeta a uma síntese da tradição em narrativas milenares. Além
dessa questão, será constatado que a epígrafe barthiana pode oferecer mais: ela se
constitui em um índice de metaficcionalidade, frisando que tal constatação só será
pertinente, neste trabalho, por intermédio da análise intertextual.
Em suma, considerando tais epígrafes há de se lançar a hipótese de que
esses paratextos tendem a uma certa coesão semântico-narrativa que vai além da
função convencional de comentário ou ornamento que lhes são atribuídos. A partir
de uma dimensão mítica e ancestral, tais pontos de contato permitem – esta é a
hipótese – um fenômeno reorganizador e refuncionalizante, dotado de fluxos e
refluxos de sentido, transições e transações entre o intra e o extra-texto, de maneira
tal que as epígrafes constituam-se portadoras de relativa independência narrativa e,
concomitantemente, de profunda conexão entre diegese e história. Nesse sentido,
Scwhartz (1981) afirma que a existência da epígrafe decorre da tensão entre a sua
desfuncionalização, ao ser extraída do texto-fonte, e sua refuncionalização, fruto do
diálogo entre o contexto original e o novo texto onde foi incorporada, sintetizando,
desse modo, um jogo semântico, temporal e formal, este último, materializado no
isolamento editorial desse tipo de citação no corpo do texto:

Ela sintetiza um jogo de tempos: recupera o passado (seu texto original) e


se afirma no presente do novo texto, o qual adquire dimensão de futuridade
na medida em que a epígrafe ocupa sempre um momento anterior a ele.
Privilegiada por catalisar tempos narrativos em diversos níveis, aponta
continuamente para o seu próprio passado, ao mesmo tempo que anuncia o
tempo que lhe segue, fazendo-se presente no ato de sua leitura. A tensão
dos tempos projeta-se também no campo formal: isolada no branco da
página, ela assume uma autonomia aparente, mas, na verdade, depende
tanto do texto que lhe é anterior quanto do que lhe segue. É neste jogo de
convergências semânticas e formais que as epígrafes têm existência.
(SCHWARTZ, 1981, p. 3)

Nota-se, dessa forma, que as epígrafes consistem num locus de transição e


transação38 (GENETTE, 2009, p. 10), que permite travessias, diálogo entre textos,
contextos, tempos diversos e favorecem uma ação estratégica sobre o leitor. Nesse
sentido, faz-se necessário refletir sobre essa dimensão liminar da epígrafe, enquanto

38
Genette (2009) refere-se aos paratextos em geral, o que, consequentemente, pode se aplicar às
epígrafes.
89

paratexto e citação. Esse será o propósito do próximo subcapítulo que, sob tal
enfoque, também efetuará uma análise das epígrafes do corpus.

3.2 O LIMIAR PEDE PASSAGEM: LEITURA A PARTIR DA EPÍGRAFE COMO


PARATEXTO E CITAÇÃO

No início de Palimpsestos: a literatura de segunda mão, publicado em 1982,


Genette começa seu estudo traçando algumas retificações teóricas, relativas ao livro
anterior39, substituindo, como o objeto da poética, o arquitexto (elemento
categorizador de textos individuais) pela transtextualidade, cuja “transcendência do
texto pelo texto” (GENETTE, 2010, p. 11) ocorre por meio do consórcio de uma obra
com outros textos, de modo tal que a sondagem da produção literária deve procurar
rastros evidentes de outros textos na superfície do mesmo, bem como
manifestações mais secretas, que exigirão maior esforço de detecção. Dessa forma,
o arquitexto passa a ser classificado como um dos cinco tipos de transtextualidade
descritos por Genette, a saber: primeiramente, a intertextualidade, noção já
desenvolvida por Júlia Kristeva, que consiste na co-presença de textos, como no
caso da citação, o plágio e alusão; a paratextualidade, compreendida como a
relação entre o texto nu e o seu paratexto (título, prefácios, epígrafes, notas, etc),
provendo “um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso”
(GENETTE, 2010, p. 13) ao leitor; a metatextualidade, uma relação crítica, advinda
de comentário que um texto faz de outro sem aludi-lo; por fim, a arquitextualidade,
que determina taxonomicamente a qualidade genérica do texto.
Em estudo posterior, datado de 1987, Genette dedica um livro inteiro
discutindo somente as relações paratextuais, na obra Seuils, publicada em
português como Paratextos editoriais, em 2009. Talvez a escolha desse título revele
uma intencionalidade mais pragmática, até mesmo de ordem mercadológica, por
parte do tradutor e/ou editor. Isso, porque, desse modo, oferece uma facilidade ao
leitor-consumidor interessado no tema da paratextualidade, pois lhe é possível
descobrir, de súbito, logo pela capa do livro, parte do assunto genérico do texto-
produto, os paratextos, como aparatos verbais ou não, que acompanham, revestem
e reforçam uma obra, tais como nome do autor, título, dedicatórias, epígrafe,

39
Introdução ao arquitexto (GENETTE, 1979).
90

prefácio, ilustrações, notas de rodapé, dentre outros, que não deixam o texto em seu
“estado nu” (GENETTE, 2009, p.9). Seja qual for o intuito, entretanto, perde-se em
não se preservar o sentido literal do título, o que não ocorre em certas traduções,
como a espanhola, Umbrales (2001) e a italiana, Soglie: I dintorni del testo (1989),
por exemplo. Dessa forma, o título brasileiro priva-se da metáfora seuils,
fundamental para a compreensão do fenômeno paratextual, segundo Genette. Em
português, a tradução comum dos vocábulos estrangeiros seuils, umbrales e soglie
é, respectivamente, o plural de soleira, umbral ou limiar, cujo significado comum
consiste em “peça de madeira ou de outro material sobre a o qual se põe a parte da
porta que fica ao nível do solo” (HOUAISS, 2010 p. 479).
Em reforço à ideia de limiar como locus de travessia, vale citar um fichamento
de Walter Benjamin sobre esse tema, publicado em seu livro póstumo, intitulado
Passagens, tão volumoso quanto fragmentário, pois reúne milhares de reflexões
anotadas pelo filósofo sobre a Paris do século XIX. No fragmento, Benjamin associa
os limiares parisienses a ritos de passagem e transição de diversas naturezas, como
o morrer, o adormecimento, o sonho, a conversação à porta – prelúdio do ato sexual
promíscuo40 – , a imaginação:

40
Gagnebin (2010, p. 12) afirma que o fragmento de Walter Benjamin foi encontrado em um de seus
cadernos de anotação, intitulado “Prostituição, jogo”. Com base nessa informação, presume-se que
o uso do termo limiar sugira, nesse contexto, a situação em que o cliente, no umbral da porta,
graceja com a prostituta e negocia a consumação do ato sexual, como um espaço e tempo
transitivos e transacionais entre o desejo e sua realização. Outrossim, pode instilar o leitor, se
assim lhe permitir o devaneio, à imaginação do gesto de se encostar o ombro nesse espaço
intermediário, durante a conversação lasciva. Tal jogo de imaginação é endossada no verbete
“umbral” do Dicionário de Etimologia da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, segundo o qual,
essa palavra origina-se de um vocábulo homônimo do espanhol, que designa ombro, sendo que um
de seus significados é “peça que sustenta os gonzos da porta, é a peça onde podemos encostar o
ombro” (NASCENTES, 1951, p. 515).
91

Ritos de passagem: assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas


à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade etc. na vida moderna,
estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de
vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O
adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o
despertar.) E finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam
também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as
mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon,
“manter-se na soleira da imaginação” (Paysan de Paris, Paris, 1926, p. 74).
Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em
geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas,
porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Scwelle] deve ser
rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona.
Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schellen (inchar,
entumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por
outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial
imediato que deu à palavra o seu significado. ▪ Morada de sonho ▪ [O2a,1].
(BENJAMIN, 2009, p. 535).

Jeane-Marie Gagnebin, ao refletir sobre esse texto, ressalta o rigor de


Benjamin ao distinguir limiar (do alemão schwelle) de fronteira (do latim finis,
confinitum, limes). Explica a filósofa que o espaço fronteiriço impõe limites entre
duas partes, de maneira que ultrapassá-lo constitui-se em um ato de transgressão,
que pode ser entendido como “agressão potencial”. O limiar, por sua vez é um
espaço de liberdade e movimento, que permite a passagem, a ultrapassagem, a
transição (GAGNEBIN, 2010, p. 13). A estudiosa explica melhor essa dimensão
transitiva e dinâmica da metáfora em questão, valendo-se da função arquitetônica do
limiar:

Na arquitetura, o limiar deve preencher justamente a função de transição


isto é, permitir ao andarilho ou também ao morador que possa transitar, sem
maior dificuldade, de um lugar determinado a outro, diferente, às vezes
oposto. Seja ele simples rampa, soleira de porta, vestíbulo, corredor,
escadaria, sala de espera num consultório, de recepção num palácio,
pórtico, portão ou nártex numa catedral gótica, o limiar não faz só separar
dois territórios (como a fronteira), mas permite a transição, de duração
variável, entre dois territórios. (GAGNEBIN, 2010, p. 13-14).

É nesse sentido dinâmico, transitivo e transacional, que o termo limiar para


designar paratexto é caro a Genette, pois amplia o significado e dissolve as
ambiguidades que pode sugerir o prefixo grego para-, que não apenas designa a
noção de algo subalterno ou que se situa ao lado de, como também, – valendo-se
da oposição benjaminiana fronteira versus limiar – incita à ideia de uma zona
intermediária, oposta aos lindes proibitórios da linha divisória, propiciadora de
movimentos de fluxos intra, extra e transtextuais:
92

Mais do que um limite ou uma fronteira estanque, trata-se aqui de um limiar,


ou – expressão de Borges ao falar de um prefácio – de um “vestíbulo”, que
oferece a cada um a possibilidade de entrar, ou de retroceder, “Zona
indecisa” entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior (o
texto) nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla, ou
como dizia Philippe Lejeune, “franja do texto impresso que, na realidade,
comanda toda a leitura”. (GENETTE, 2009, p. 9-10).

Por esse motivo, Genette questiona a insuficiência da expressão exergo (do


Grego ex ergon – para fora da obra) para definir a epígrafe, no sentido de que tal
nomenclatura considera apenas a localização (borda, destaque) do paratexto
epigráfico, ignorando o papel liminar que desempenha, de modo a,
metonimicamente, confundir “uma coisa e seu lugar” (GENETTE, 2009, p. 131).
O teórico francês propõe um método para analisar os paratextos em geral,
levando em conta a dimensão liminar dessas instâncias, por meio de algumas
perguntas simples, mas basilares para detectar os traços espaciais, temporais,
substanciais, pragmáticos e funcionais do paratexto. A resposta a essas perguntas
revela uma dimensão pragmática, do ponto de vista da situação comunicativa,
através de algumas características, a saber: a natureza do destinador, do
destinatário, o grau de autoridade e responsabilidade de cada um (destinador e
destinatário) e a força ilocutória de sua mensagem (GENETTE, 2009, p. 15):

De maneira mais concreta: definir um elemento de paratexto consiste em


determinar seu lugar (pergunta onde?), sua data de aparecimento e às
vezes de desaparecimento (quando?), seu modo de existência, verbal ou
outro (como?), as características de sua instância de comunicação,
destinador e destinatário de quem? a quem? e as funções que animam a
sua mensagem: para fazer o que? Impõem-se, sem dúvida, duas palavras
de justificativa desse questionário um pouco simplório, mas cujo bom uso
define quase inteiramente o método do que segue.” (GENETTE, 2009, p.
12).

Antoine Compagnon, no capítulo “Posto avançado” do livro O trabalho da


citação, dedica-se ao arrazoado da epígrafe como citação, considerando-a como a
mais emblemática instância dessa categoria (COMPAGNON, 1996, p. 120). O autor
de La seconde main parte de uma perspectiva ampla de citação, defendendo que
toda escritura consiste, de alguma forma, em retomar o já-dito e, portanto, constitui-
se em repetição peculiarmente tautológica de outros textos (COMPAGNON, 2016, p.
9). Tal afirmação, adotada por Compagnon como premissa, inspira-se em uma
máxima de Montaigne, extraída de um trecho do ensaio De L’Experiénce, no qual o
autor afirma que os escritores nada mais fazem do que entreglosarem entre si. O
93

termo entregloser é amiúde utilizado por Compagnon para designar o fenômeno da


citação como bricolagem de um texto em outro, ou como o processo cirúrgico de
extirpar um membro e enxertá-lo em outro corpo, de maneira que a dinâmica do citar
implica amputação, extração de um texto para ser inserido, retomado, costurado em
outro. O germe dessa ideia aparece, mutatis mutandis, em Montaigne, quando o
ensaísta afirma:

Há mais trabalho em interpretar as interpretações do que em interpretar as


coisas, e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto: nós não
fazemos mais do que nos entreglosar.
Tudo fervilha de comentários; de autores, há uma grande carência.
O principal e mais famoso saber de nossos séculos não é conseguir
entender os sábios? Esse não é o fim comum e último dos nossos estudos?
Nossas opiniões enxertam-se umas sobre as outras. A primeira serve de
caule à segunda, a segunda à terceira. Subimos, assim, de degrau em
degrau. E advém disso que aquele que escala mais alto tem mais honra do
que mérito, porque, apenas, elevou-se um pouquinho sobre os ombros do
41
penúltimo. (MONTAIGNE, 1965, p. 358).

A assertiva de Montaigne, com as ressalvas de Compagnon, vale para o


romance em estudo. No prefácio de Um defeito de cor, sua narradora faz questão de
assumir a autoria do livro, embora o pacto firmado com o leitor sustente-se na
descoberta do manuscrito autobiográfico de Kehinde, dando ao texto um clima de
veracidade. Como no jogo infantil de colagem ou no ato cirúrgico de amputação e
transplante, descritos por Compagnon, em analogia ao trabalho da citação, a
justificativa dada consiste no trabalho de escritura, re-escritura e edição sobre o
manuscrito antigo, por parte da narradora:

Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda
inventada – embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis
ou nas folhas perdidas, pois dona Clara me contou que Gérson amassava e
jogava fora os desenhos dos quais não gostava. Se eu me apropriasse da
história, provavelmente a autoria nunca seria contestada, pois ninguém até
então sabia da existência dos manuscritos, nem em Itaparica nem alguns
historiadores de Salvador para quem os mostrei.
[...].

41
"Il y a plus affaire à interpréter les interprétations qu'à interpréter les choses, et plus de livres sur les
livres que sur autre sujet: nous ne faisons que nous entregloser. Tout fourmille de commentaires;
d'auteurs, il·en est grand cherté. Le principal et plus fameux savoir de nos siècles, est-ce pas savoir
entendre les savants? Est-ce pas la fin commune et dernière de toutes études? Nos opinions
s'entent les unes sur les autres. La première sert de tige à la seconde, la seconde à la tierce. Nous
échelons ainsi de degré en degré. Et advient de là que le plus haut monté a souvent plus d'honneur
que de mérite, car il n'est monté que d'un grain sur les épaules du pénultième. (MONTAIGNE, 1965,
p. 358, tradução nossa).
94

[...]. Nunca é demais lembrar que tinham desaparecido ou estavam ilegíveis


várias folhas do original, e que nem sempre me foi possível entender tudo o
que estava escrito. Optei por deixar algumas palavras em iorubá, língua que
acabou sendo falada por muitos escravos, mesmo não sendo a língua
nativa deles. Nestes casos, coloquei a tradução ou a explicação no rodapé.
O texto original também é bastante corrido, escrito por quem desejava
acompanhar a velocidade do pensamento sem pontuação e quebra de
linhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a liberdade de pontuá-lo,
dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos. Espero que
Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado nada fora de
propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a transcrição, e
principalmente durante a escrita do que não consegui entender, eu a senti
soprando palavras ao meu ouvido. Coisas da Bahia, nas quais acredita
quem quiser... (GONÇALVES, 2006, p. 16)

Embora a narradora do prefácio não tenha mencionado as epígrafes da


narrativa como presentes nos papéis antigos, há que se presumir que ficou a seu
cargo a escolha epigráfica, bem como a edição do texto manuscrito (“bastante
corrido”, “sem pontuação e quebra de linhas ou parágrafos”), dividindo a narrativa
em capítulos, compostos de intertítulos, bem como outras medidas, a fim de tornar o
texto palatável ao leitor contemporâneo.
Quanto à dimensão espacial das epígrafes de Um defeito de cor, uma das
primeiras impressões que podem saltar aos olhos é a constatação de sua
abundância na obra: três delas na dedicatória, localizadas na linha seguinte a cada
homenagem da autora aos avós, aos amigos e aos estudiosos, cujas obras serviram
de fonte e suporte literário, histórico, sociológico e antropológico para a escrita do
romance, cujas referências constam na bibliografia presente no final do livro; duas
no prólogo, sendo que a primeira situa-se uma linha abaixo do título e outra na
última página dessa seção; por fim, outras dez, espalhadas, uma a uma, no início de
cada capítulo, entre a indicação capitular numerada por extenso e o corpo do texto.
Vale lembrar, que o emprego copioso de epígrafes em obras literárias, com
exceções, não é de uso corrente na produção contemporânea.
Em seu levantamento histórico, Genette (2009) identifica a origem dessa
profusão mais acentuada de epígrafes nas narrativas literárias, a partir do romance
gótico inglês do século XVIII e do romance histórico de Walter Scott, estendendo-se
no romantismo oitocentista francês – durante o qual, muitas vezes, eram
instrumentalizadas como chancela intelectual para o autor – e amainando suas
manifestações no decorrer do realismo, crítico severo dessa utilização abusiva, a
que Genette (2009, p.144) dá o nome de “efeito-epígrafe”.
95

A título de cotejo com o romance em estudo, vale mencionar o levantamento


de obras e autores, que o teórico francês efetuou, no que tange à utilização da
epígrafe em todos os capítulos da narrativa. Na prosa gótica, citando os de língua
inglesa, Genette inclui The Misteries of Udolfo (1794), de Ann Radcliffe, The Monk
(1795), de Mathew Gregori Lewis e Melmoth the Wanderer (1820), do irlandês
Charles Maturin (GENETTE, 2009, p. 133); No gótico Francês, Han d’Islande (1823),
de Victor Hugo, romance de cinquenta capítulos, cada qual com uma epígrafe
extraída de autores consagrados (GENETTE, 2009, p. 133-134); no romance de
matiz histórica, o grande influenciador dessa prática, segundo Genette, foi Walter
Scott, retomado pelos franceses Stendall, utilizando epígrafes em, praticamente
todos os capítulos de Le Rouge et Noir (1830) e Balzac, nos romances Les Chouans
(1829) e Le Martyr calviniste (1841), cujas epígrafes foram suprimidas pelo autor em
edições posteriores, quando inseridas na grande Comedie Humaine. Genette, em
relação a Balzac, aponta que o escritor também usou profusamente epígrafes em
seus romances de Juventude, citando Jean Louis (1822) e L’Héritière de Birague
(1822), como também nas obras fantástico-filosóficas Sarrasine (1830), L’Histoire
des Treize (1833-1835), Louis Lambert (1832), L’envers de l’histoire contemporaine
(1848), porém, com a incorporação na sua Comedie, muitas delas também foram
retiradas, de modo que Balzac, à medida em que assume a sondagem realista de
costumes, converte-se em duro crítico da utilização epigráfica (GENETTE, 1990,
134-135).
A retomada desse levantamento bibliográfico-literário remete Um defeito de
cor à tradição do romance histórico scottiano, no que concerne à ocupação espacial
e o uso acentuado na obra. Tal afirmativa partiu da verificação das ocorrências
epigráficas e sua relação com o espaço da escrita, nos romances históricos de
Walter Scott, conhecidos como Waverley novels. Concluiu-se que, dos quinze
romances levantados, onze deles consistem em narrativas com sessões sem título,
apenas iniciadas com o vocábulo capítulo, por extenso, e numeração em arábico ou
itálico, seguidos de epígrafes, na linha posterior. As obras scottianas enquadradas
nesse perfil são Guy Mannering (1815), The Antiquary (1816), Rob Roy (1817),
Ivanhoe (1819), Kenilworth (1821), The Pirate (1821), The Fortunes of Nigel (1822),
Peveril of the Peak (1823), Woodstock (1826), The Fair Maid of the Perth (1828) e
Anne of Geierstein (1829). Por sua vez, Quentin Durward e St. Ronan’s Well, ambos
de 1823, são dotados de títulos capitulares, seguidos de epígrafes. De toda essa
96

produção romanesca de Scott, apenas duas obras não possuem epígrafes nos
capítulos, a saber, Waverley (1814), a primeira obra dessa série, e Redgaunlet
(1824), romance de cunho epistolar.
Enquanto citação, a presença da epígrafe pode ser suprimida, deslocada ou
substituída pelo autor ou editor da obra, com o passar do tempo. Nesse sentido
temporal de inserção das epígrafes em Um defeito de cor, pode-se afirmar,
seguramente, que elas são originais, pois constam no romance desde seu
lançamento em 2006 e, permaneceram inalteradas até a última edição conhecida, a
décima oitava, de 2018.
Para identificar o sujeito citado (epigrafado), o sujeito citante (epigrafador) e o
destinatário da epígrafe (epigrafário), Genette (2009, p. 136) parte da premissa de
que a epígrafe é uma citação e, portanto, um texto. Discutir os sujeitos envolvidos na
demanda a necessidade de refletir sobre o próprio fenômeno da citação. Segundo
Compagnon , ela (a citação), em si mesma, revela o processo por meio do qual foi
produzida (eis o trabalho da citação), desde a leitura de um texto que incita o leitor a
deslocá-lo, mutilá-lo e enxertá-lo em um outro, por meio da escritura. de modo que
se ressalta, nem tanto o papel funcional, mas a dimensão do trabalho de extração,
mutilação, desenraizamento e colagem que envolve o ato de citar. Nesse sentido,
Compagnon (2016) propõe o seu estudo da citação, dentre outras categorias,
constitui-se primeiramente como uma fenomenologia, pois “descreve o
comportamento da citação em uma experiência imediata da leitura e da escritura”
(COMPAGNON, 2012, p. 10), valorizando o aspecto pragmático da experiência
imediata de produção enunciativa. Dito isso, vale retornar à pergunta de Genette
sobre os sujeitos envolvidos na produção do paratexto epigráfico e identificá-los no
romance em estudo.
Utilizando a taxonomia genettiana, as epígrafes de Um defeito de cor são
alógrafas, isto é, o autor da citação não corresponde ao escritor que a escolheu e a
inseriu na obra em exergo. Há duas categorias de epigrafados no romance em
estudo: primeiramente, o autor coletivo atribuído às epígrafes da dedicatória e dos
capítulos, referidas, na obra, como provérbios africanos; em segundo lugar, os
autores citados nos paratextos epigráficos do prólogo, a saber, o romancista John
Barth e o físico Joseph Henry, ambos norte-americanos.
Abaixo do título “Serendipidades!”, segue-se a epígrafe inicial do prólogo, em
inglês, extraída do romance The Last Voyage of Somebody the Sailor, de John
97

Barth, numa disposição gráfica de linhas centralizadas, com fontes em itálico e texto
entre aspas, forma que difere da original, em escrita corrida 42. Trata-se, conforme a
tipologia proposta por Genette (1990, p. 137), de uma epígrafe alógrafa autêntica,
tanto no que concerne ao enunciado, que coincide literalmente àquele do texto-fonte
de onde foi extraído, embora com disposição espacial diversa, quanto ao autor a
quem o paratexto é atribuído, o escritor John Barth: “Você não chega a Serendip
planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro lugar e perder seus
azimutes serendipitosamente.”43 (BARTH, 2016, p. 13).
Quanto à epígrafe final do prólogo, “As sementes da descoberta flutuam
constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas mentes bem preparadas
para recebê-las” (GONÇALVES, 2012, p. 17), máxima creditada ao físico norte-
americano do século XIX, Joseph Henry, não se encontrou registro subscrito pelo
cientista que comprove que a frase, de fato, é de sua autoria. No entanto, há
abundantes referências bibliográficas que mencionam o referido aforismo como
sendo de Henry, na maioria das vezes, remetendo à questão da serendipidade no
ramo das ciências, com ênfase no fato de que o pesquisador deve estar atento e
preparado para novas descobertas quando, durante a execução do método
científico, surgem situações adversas. Nesse contexto, o livro The way of an
Investigator: a Scientist’s Experiences in Research, do fisiologista Walter Bredford
Cannon, de 1945, é, em se tratando da citação à frase de Joseph Henry, das mais
significativas, pois é consideravelmente citada por outros autores 44. Além dessa
relevância, é reveladora a associação de Cannon à máxima de Henry como uma
paráfrase do aforismo “Nos campos da observação, o acaso favorece apenas os
espíritos preparados”45 (CANNON, 1945, p. 74-75, tradução nossa), atribuído a
Louis Pasteur. Além de constatar a proximidade de sentido, Cannon também oferece
pistas da dificuldade em se encontrar um registro escrito, assinado por Joseph

42
“You don’t reach Serendib by plotting a course for it. / You have to set out in good faith for
elsewhere and lose /your bearings serendipitously”. / John Barth, em The Last Voyage of
Somebody, (sic) / The Sailor (Nova York, 1991). (GONÇALVES, 2012, p. 9).
43
“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and
lose your bearings serendipitously”. (BARTH, 2016, p. 13).
44
Destaque seja dado aos livros A study sociological semantics an the sociology of
Science.(MERTON; BARBER, 2004, p. 172) e Minds Behind the : a history pioneers and their
discoveries. (FINGER, 2000, p. 309) que mencionam a frase de Joseph Henry citada por Cannon
(1945, 75-76), associada à de Louis Pasteur. Essas três referências bibliográficas são apenas uma
amostragem de uma gama enorme de outras que atribuem a Henry a máxima em questão.
45
“Dans les champs de l’observation, le hasard ne favorise que les espririts préparés”. (CANNON,
1945, p. 74-75).
98

Henry, contendo a famosa sentença. Isso, porque quando cita a frase de Pasteur,
Cannon especifica que ela foi proferida durante uma aula magna ministrada pelo
cientista francês no dia sete de dezembro de 1854, na Universidade de Lille
(CANNON, 1945, p. 75), enquanto que, no que se refere ao aforismo de Henry, não
oferece nenhuma informação contextual ou referência de fonte bibliográfica.
Na sentença henryana presente no romance em estudo – “As sementes da
descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas
mentes bem preparadas para recebê-las” (GONÇALVES, 2012, p. 17) – ocorre uma
alteração morfológico-sintática na primeira oração da máxima citada: o complemento
adnominal do núcleo do primeiro sujeito oracional comum “As sementes” é alterado
pela epigrafadora, que utiliza a expressão “da descoberta”, em vez de “das grandes
descobertas”, de uso atribuído a Henry. O aforismo original, atribuído a Joseph
Henry reza: “As sementes das grandes descobertas estão constantemente flutuando
ao nosso redor, mas elas só criam raízes em mentes bem preparadas para merecê-
las”46 (CANNON, 1945, p. 76, tradução nossa). Ora, embora o núcleo dos dois
sujeitos seja o mesmo (sementes) a subtração do adjetivo grandes, por parte da
epigrafadora, oferece um sentido mais especificador ao termo. Na epígrafe final do
prólogo, portanto, muda-se a semântica original da máxima, de maneira que a
referida descoberta transcende o universo científico e vincula-se à narrativa do
prólogo e, também, à diegese do romance, como será demonstrado oportunamente.
As alterações, no entanto, não maculam a atribuição da epígrafe ao cientista norte-
americano. Adotando a taxonomia genettiana, essa ocorrência epigráfica, mesmo
alterada, pode ser classificada como autêntica:

Pode ser autêntica mas inexata (caso muito frequente), se o epigrafador, ou


porque cita erroneamente de memória, ou porque deseja adaptar melhor a
citação a seu contexto, ou por outra razão qualquer, como um intermediário
infiel, atribui corretamente uma epígrafe inexata. (GENETTE, 2009, p.136).

Ao contrário das epígrafes do prólogo, cujos autores são nominados e


verídicos, o que dizer das epígrafes proverbiais, designadas como africanas? Quem
as criou? Há registros bibliográficos de sua existência e status? Como classificá-las?
A resposta preliminar é que, embora não tenham sido compostas por um indivíduo
identificado, os provérbios em questão não devem ser classificados como anônimos,
46
“The seeds of great discoveries are constantly floating around us, but they only take root in minds
well prepared to receive them”. (CANNON, 1945, p. 76).
99

mas como resultado de uma produção coletiva, identificadora de uma comunidade e


depositária de valores comuns desse grupo. Segundo a perspectiva analítico-
discursiva de Dominique Maingueneau, o provérbio é um discurso coletivo portador
de um thesaurus (conjunto enunciativo de uma comunidade), de forma que a
aforização proverbial, mesmo quando não se aponta a sua origem, estabelece, no
processo de enunciação, uma relação participativa e agregadora entre aqueles que
pertencem a uma mesma comunidade discursiva e compartilha dos mesmos valores:

Quem enuncia um provérbio produz uma aforização pela qual ele não se
coloca como responsável – esse papel é devolvido à “sabedoria popular” ou
à “sabedoria das nações” –, mas de cujo ponto de vista ele partilha,
enquanto membro da comunidade. (MAINGUENEAU, 2014, p. 72).

É possível, nesse contexto, que a ocorrência da designação explicativa da


origem das epígrafes como africanas, em Um defeito de cor, seja um indicativo de
que o destinatário do paratexto epigráfico (epígrafário), não tenha familiaridade com
o repertório proverbial do epigrafador. Tal constatação, evoca dois questionamentos:
quem é o destinatário das epígrafes proverbiais africanas da dedicatória e dos
capítulos do romance em estudo? Qual a distância cultural e/ou cronológica que
impede, a este alocutário, o reconhecimento imediato do enunciado proverbial, de
modo a necessitar a designação gráfica de sua origem ancestral no livro? A fim de
elucidar essas questões assimétricas entre epigrafador(es) e epigrafário(s), no
entanto, faz-se mister verificar a questão da autenticidade desses paratextos e a
identificação do sujeito citante (epigrafador) dos provérbios mencionados, indicando
as referências bibliográficas onde foram detectados Dessa feita, serão citadas as
epígrafes com suas devidas fontes, a seguir:
No prólogo, a epígrafe inicial - “You don’t Serendip by plotting a course for it.
You have to set out in good faith for elsewhere and lose your bearings
serendipitously”47. (GONÇALVES, 2012, p. 9) – é um excerto do romance The Last
Voyage of the Somebody the Sailor, de Barth (2016, p. 13) conforme já mencionado.
Como, igualmente, já foi apontado, a epígrafe que encerra o paratexto
prefacial – “As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas
só lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las” (GONÇALVES,
2012, p. 17) – é atribuída ao físico norte-americano Joseph Henry e se trata, no
47
“Você não chega a Serendip planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro lugar
e perder seus azimutes serendipitosamente”. (BARTH, 2016, p. 13)
100

romance em estudo de uma epígrafe autêntica, mas imperfeita do original conhecido


“As sementes das grandes descobertas estão constantemente flutuando ao nosso
redor, mas elas só criam raízes em mentes bem preparadas para merecê-las”48
(CANNON, 1945, p. 76, tradução nossa). Essa referência pode ser encontrada, ipsis
litteris, em diversos livros, artigos científicos e sítios da internet. Escolheu-se,
entretanto, como comprovação de autenticidade, a obra The way of an Investigator:
a Scientist’s Experiences in Research, de Walter B. Cannon (1945), pelo fato de ser
referência a outros autores, no que toca à menção à máxima de Henry, além de
compará-lo a um aforismo de Pasteur, que é contextualizado, sendo que o
pensamento de Joseph Henry é apenas citado, o que pode remeter ao fato de que
não haja um texto escrito, assinado por Henry, que comprove a sua autoria. De
qualquer modo, a autenticidade da epígrafe, baseia-se, mormente, ao consenso
geral de se atribuir, ao físico norte-americano, a frase em questão e os registros
escritos de outrem endossando tal atribuição.
No primeiro capítulo, a epígrafe “A borboleta que esbarra em espinhos rasga
as próprias asas” (GONÇALVES, 2012, p. 19) tem autenticidade confirmada como
provérbio africano, em Oral Literature in África, obra da linguista e antropóloga Ruth
Finnegan, na qual o referido ditado49, possui a função de acomodação do coletivo,
no sentido de atenuar atritos, referentes à posição social ocupada pelo indivíduo,
independentemente qual seja essa posição (FINNEGAN, 2012, p. 406). A
antropóloga também ressalta que os provérbios africanos são transmitidos
oralmente, em geral, por um ancião da comunidade local, o que colabora com a
eficácia da mensagem em seu propósito, pois, nesse contexto, se trata de “uma
sociedade onde a ancianidade é levada a sério”50 (FINNEGAN, 2012, p. 406,
tradução nossa).
Finnegan também menciona o provérbio citado no segundo capítulo do
romance em estudo – “O hoje é o irmão mais velho do amanhã / e o orvalho denso é
o irmão mais velho da chuva”51 (FINNEGAN, 2012, p. 391, tradução nossa) –,
identificando como marca iorubá, o uso de dísticos compostos de antíteses, uma em

48
“The seeds of great discoveries are constantly floating around us, but they only take root in minds
well prepared to receive them”. (CANNON, 1945, p. 76).
49
“The butterfly that flies among the thorns will tear its wings” pode ser traduzido literalmente da
mesma forma como Um defeito de cor o apresenta na epígrafe do primeiro capítulo.
50
“Society where seniority is taken seriously”. (FINNEGAN, 2012, p. 406).
51
“Today is the elder brother of tomorrow, / And a heavy dew is the elder brother of rain”.
(FINNEGAN, 2012, p. 391).
101

cada linha, “substantivo respondendo ao substantivo e verbo ao verbo” (FINNEGAN,


2012, p.391). Além disso, a estudiosa afirma que, assim como nos provérbios
bantos, também os iorubás servem-se de padrões peculiares de ritmo e concisão,
conferindo um “sabor poético” ao dito proverbial (FINNEGAN, 2012, p. 391). Vale
ressaltar, porém, que, na epígrafe de Um defeito de cor, a epigrafadora enfatiza as
oposições do enunciado, utilizando iniciais maiúsculas para os substantivos
antitéticos Hoje, Amanhã, Garoa e Chuva: “O Hoje é o irmão mais velho do Amanhã,
e a Garoa é a irmã mais velha da Chuva” (GONÇALVES, 2012, p. 65). Além disso,
acentuando o ritmo da frase, subtraiu-se o adjunto adnominal que confere o atributo
de densidade, peso (heavy, no original) ao sujeito Garoa. De qualquer forma, a
epígrafe é autêntica.
Por sua vez, a epígrafe do terceiro capítulo do romance – “Aquele que tenta
sacudir o tronco de uma árvore sacode somente a si mesmo” (GONÇALVES, 2012,
p. 111) –, pode ser encontrada na coletânea de provérbios africanos realizada pelo
erudito e explorador britânico Richard Francis Burton, no livro Wit and Wisdom from
West Africa or a Book of Proverbial Philosophy, Idioms, Enigmas, and Laconisms,
publicado em 1865. Na seção de provérbios de língua iorubá dessa obra, o ditado
em questão pode ser traduzido literalmente como é apresentado na epígrafe do
capítulo três de Um defeito de Cor (BURTON, 1865, p. 229)52. O mesmo provérbio
também é citado pelo teólogo inglês Joseph Parker no oitavo volume do seu The
People’s Bible: Discourses upon Holy Scripture (1887). No capítulo sobre os
provérbios pagãos, o religioso afirma que o ditado em questão (ipsis litteris ao citado
por Francis Burton), foi como que escrito por Deus nas areias africanas, como um
traço da sabedoria divina plantada numa terra gentia:

A África tem algo a dizer sobre a árvore; pobre África; África escondida na
noite, terra de trevas, escuridão e barbárie. Deus curvou-se e escreveu algo
na areia da África? A África diz: “Quem tenta sacudir o tronco de uma
53
árvore, sacode somente a si mesmo” . (PARKER, 1887, p. 437-438,
tradução nossa).

Quanto à máxima epigráfica do quarto capítulo – “Só quando uma árvore cai
alcançamos todos os seus galhos” (GONÇALVES, 2012, p. 187) –, não se encontrou

52
“He who tries to shake a trunk of a tree shakes only himself”. (BURTON, 1865, p. 229)
53
“Has Africa anything to say about the tree ; poor Africa, night-ridden Africa, land of darkness and
slavery and barbarism,—has God stooped down and written anything in the dust of Africa ? Africa
says, " He who tries to shake the trunk of a tree shakes only himself”. (PARKER, 1887, p.437-438)
102

nenhuma referência em obras de caráter científico, mas são numerosas as alusões,


em sítios da internet e coletâneas impressas a um provérbio homólogo, atribuído
como africano, com algumas diferenças em relação ao epigrafado, mas com a
mesma carga de sentido. Dessas obras, escolheram-se duas, a título de exemplo,
divididas internamente em verbetes, nos quais os provérbios são distribuídos. Em
Routledge Book of World Proverbs, de Jon R. Stone, o referido ditado aparece no
verbete “Queda, Cair”54: “Quando a grande árvore cai, as cabras comem suas
folhas”55 (STONE, 2006, p. 138, tradução nossa). Note-se que, na epígrafe do
romance, o termo árvore não é acompanhado de adjetivação e é utilizado o pronome
na primeira pessoa do plural, ao invés das cabras do provérbio citado por Stone. Na
coletânea de Jonh Lloyd e John Mitchinson, Ignorance is Bliss, Why Aren’t There
More Happy People?: Smart Quotes for Dumb Times, o mesmo dito é citado, agora
no verbete “Árvores”56 (LLOYD; MITCHINSON, 2008, p. 321). Em Stone, a indicação
da origem africana do provérbio ocorre numa linha abaixo do mesmo, entre
parênteses; em ambos a referência à origem africana aparece em parênteses; em
Lloyd e Mithcinson a indicação dispõe-se na mesma localização, mas em negrito e
caixa alta.
No quinto capítulo, a epígrafe “Se alguém corre através de um espinheiro, ou
persegue uma cobra ou foge dela” tem sua comprovação de autenticidade na obra
Yoruba-speaking peoples of the slave coast of West Africa, their religion, manners,
customs, laws language, etc., publicado em 1894, pelo oficial britânico Alfred Burton
Ellis, que serviu ao seu país em vários locais da costa ocidental africana na segunda
metade do século XIX, inclusive em Uidá, e Lagos, duas cidades onde viveu a
narradora personagem de Um defeito de cor, no plano da ficção, evidentemente. No
décimo terceiro capítulo do livro, dedicados aos provérbios iorubás, após breve
introdução, Ellis elenca uma série de ditos, coletados por ele, durante a sua estada
em África. Dentre essas máximas, a de número cento e dois, consta um provérbio
similar ao citado na epígrafe capitular em questão: “Um homem não corre entre os
espinheiros por nada. Ou ele está perseguindo uma cobra ou é a cobra que o está
perseguindo”57 (ELLIS, 1894, p. 225). Note-se, mesmo sendo mais abreviada que a

54
“Fall, Falling”.
55
“When the big tree falls, even goats will eat its leaves”. (STONE, 2006, p. 138).
56
“Trees”
57
“A man does not run among thorns for nothing. Either he is pursuing a snake or a snake is pursuing
him. (ELLIS, 1894, p. 225)
103

citação de Ellis, a epígrafe do romance é uma variação daquela, e preserva, no


mais, o sentido básico do provérbio.
Igualmente na mesma obra de Alfred Burton Ellis, verifica-se a comprovação
da autenticidade da epígrafe do sexto capítulo: “A sola do pé conhece toda a sujeira
da estrada” (GONÇALVES, 2012, p. 351). Na coletânea de Ellis, o provérbio iorubá
diz “A sola do pé está exposta a toda a sujeira da estrada”58 (ELLIS, 1894, p. 222,
tradução nossa). O uso do verbo “conhece” no lugar da expressão “está exposta a”
confere, à epígrafe de Um defeito de cor uma conotatividade mais evidente que do
provérbio coletado, por meio da personificação da “sola do pé”.
Não se encontrou nenhuma referência literal ou levemente alterada da
epígrafe do capítulo sete do romance – “A espada não poupa o próprio ferreiro”
(GONÇALVES, 2012, p. 455). Contudo, há registro de dois provérbios
semanticamente homólogos, envolvendo um instrumento contundente que se volta
contra o sujeito da ação: o primeiro foi referido por Richard Francis Burton: “A
maldade do inhame é (depositada na) maldade da faca: (mas logo se descobre que
o inhame está em falta) aquele que fere o outro fere a si mesmo”59 (BURTON, 1865,
p. 271, tradução nossa); o outro aforismo é “A faca de tartaruga é usada para matá-
la, aquele que saca a espada, cairá pela espada”60 (OSOBA, 2014, p. 54), presente
no artigo The Nature, Form and Funcitions of Yoruba Proverbs: A SocioPragmatic
Perspective, do linguista nigeriano Joseph B. Osoba, trabalho, cuja pesquisa foi
realizada entre 2010 e 2014, consistindo na coleta e análise de provérbios iorubás
ainda utilizados no seu país natal. O aforismo em questão situa-se no primeiro
apêndice do trabalho, sob o verbete “Provérbios extraídos de Contos e Folclores” 61
(OSOBA, 2014, p. 54, tradução nossa).
Quanto ao provérbio “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e
saiba pelo menos de onde vens” (GONÇALVES, 2012, p. 569), epígrafe do oitavo
capítulo de Um defeito de cor, encontraram-se alguns ditados africanos similares. O
de maior proximidade semântica e formal é “Se você quer saber o fim, olhe para o
começo”62 (VANZANT, 2018, p. 264, tradução nossa), copiosamente citado como

58
“The sole of the foot is exposed to all the dirt of the road”. (ELLIS, 1894, p. 222)
59
“The badness of the yam is (laid to) the badness of the knife: (but it is soon found out that the yam is
in fault ; so) he who injures another injures himself.” (BURTON, 1865, p. 271).
60
“The tortoise‟s knife is used in killing him, one who draws sword will fall by the sword”. (OSOBA,
2014, p. 54).
61
“Proverbs from Tales and Folklores”. (OSOBA, 2014, p. 54).
62
“If you want to know the end, look at the beginning”.
104

africano na internet e em obras de auto-ajuda ou coletânea de pensamentos. Um


exemplo é Acts of Faith: daily meditation for people of color, da norte-americana
Liania Vanzant, que apresenta um provérbio, seguido por breve reflexão, para cada
dia do ano. O provérbio em questão situa-se no dia vinte e sete de setembro. Outro
provérbio homólogo, também de origem africana, é “Se tu conheces o começo, o
final não te aborrecerá” (BURTON, 1865, p.7).
“Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome” (GONÇALVES,
2012, p. 731) – epígrafe do nono capítulo, pode ser encontrado em sua literalidade 63
na coletânea Lifelines – The Black Book of Proverbs, escrito por Askari Johnson e
Yvonne McCalla, cujo prefácio é do ilustre bispo sul-africano Desmond Tuttu. Cada
capítulo do livro contém uma série de provérbios que tematizam uma fase da vida. O
aforismo em questão está contido no subtítulo “Nomeação”, do capítulo sobre o
nascimento e é apontado como iorubá, corrente no Benin, Nigéria e Togo (HODARI;
SOBERS, 2009, p.8)
A epígrafe do último capítulo do romance – “Exu matou um pássaro ontem
com a pedra que jogou hoje” (GONÇALVES, 2015, p. 887) consiste em um provérbio
extraído de um hino iorubá em louvor a Exu-Elegba, marcado por uma série de
paradoxos (FINNEGAN, 2012, p. 174):

Exu caminhou pela fazenda de amendoim. Era visível apenas o tufo do seu
cabelo. Se não fosse pela sua alta estatura, ele não seria visível de todo.
Tendo jogado uma pedra ontem – ele mata um pássaro amanhã. Deitado,
64
sua cabeça bate no telhado. (FINNEGAN, 2012, p. 175).

A identificação do epigrafador, no romance em estudo, não consiste em tarefa


simples, pois não existe apenas um, mas, a princípio, três sujeitos implicados: a
autora Ana Maria Gonçalves (dedicatória), a narradora autodiegética do prólogo e a
narradora autodiegética do relato. Levando em conta aquelas obras, cujo narrador é
homodiegético, Genette constata que, nem sempre, o autor da narrativa literária é,
de direito, o seu epigrafador. Aliás, citando Julie, de Rousseau, complementa que há
romances poli-homodiegéticos, compostos, portanto, de vários narradores em
primeira pessoa (GENETTE, 1990, p. 139). Tal assertiva pode gerar certa confusão

63
“The stream may dry up, but the watercourse retains its name”. (JOHNSON & MCCALLA, 2009,
p.8).
64
“Eshu walked through the groundnut farm. The tuft of his hair was just visible. If it had not been for
his huge size, He would not have been visible at all. Having thrown a stone yesterday—he kills a
bird today. Lying down, his head hits the roof.” (FINNEGAN, 2012, p. 175).
105

no leitor, em virtude dessa situação ambígua (afinal, quem é o epigrafador?).


Compagnon (1996) também ressalta essa dificuldade do leitor quanto à amplitude e
vaguidão da ideia de sujeito da enunciação. Em tentativa pouco direta de dirimir
esse imbroglio, o estudioso parte do verbete Redizer, extraído do dicionário de
Condrillac, para mostrar que há duas forças diversas no processo enunciativo
evocado pelo verbo em questão (redizer): o sujeito do rédito e o sujeito da repetição.
Infere-se, nesse sentido, o questionamento sobre quem seja o produtor do
enunciado já dito e o operador do trabalho de redizer. Para tornar a questão menos
nebulosa, Compagnon propõe três posicionamentos dos sujeitos da enunciação na
obra literária, de modo a articular aspectos intra e extra-textuais:

Seria necessário, pelo menos, distinguir o sujeito do prefácio (o que rediz:


“Eis o que eu quis dizer”, o sujeito da publicação (aquele que assina o texto
e que se expõe na vitrine) e o sujeito da citação, irredutível, inqualificável;
ele se anuncia em voz alta: “Cito” e “Fim da citação”.
[...].
De fato, o sujeito da citação é o je de Montaigne. Nem fenomenológico, nem
autobiográfico, nem metalinguístico, ele designa o repetidor ou o relator, o
porta-voz sem fé nem lei. (COMPAGNON, 1996, p. 50)

Nessa discussão, a explanação de Compagnon – que parte da premissa de


que todo texto é, de certa forma, um rédito e uma citação – é útil para demonstrar
que, no processo enunciativo de redizer, o seu sujeito não é apenas o autor empírico
da obra. Com base em uma diferenciação de posicionamentos, o sujeito do prefácio
consiste, pois, na persona que esclarece a proposta do texto; o autor identifica-se ao
indivíduo extra-textual, empírico, a quem se atribui a obra publicada; por fim, o
sujeito da citação equivale a um eu que, por meio da citação mesma, como que
performativamente, dita o início e o fim do ato de citar. No entanto, vale o destaque
de que, a partir de uma perspectiva narratológica, Genette encontra uma solução
mais inequívoca e certeira para esse problema da detecção do sujeito da citação, no
caso, o epigrafador, partindo do seguinte princípio narratológico: “atribuir (em ficção,
é claro) ao autor apenas o que é materialmente impossível atribuir ao narrador –
admitindo-se que, na verdade, tudo retorna ao autor, uma vez que ele é também o
autor do narrador” (GENETTE, 1990, p. 139).
Em um plano mais amplo, extra-textual, Ana Maria Gonçalves, a signatária de
Um defeito de cor, constitui-se a epigrafadora de todas as citações do romance. É
ela quem afirma, antes de enumerar a bibliografia que pesquisou para escrever a
106

obra: “Esta é uma obra que mistura ficção e realidade” (GONÇALVES, 2012, p. 949).
Ela que, na dedicatória, homenageia avós, amigos (dentre os quais, Millôr
Fernandes, cujo texto elogioso à obra consta na orelha do livro) e autores
consultados, presenteando-os com epígrafes. Ela, a pessoa física – e não jurídica ou
ficcional –, que no prólogo, contextualiza a sua obra e incita o leitor a assinar um
contrato ou pacto de ficcionalidade. Ela, de cuja imaginação foram criadas Kehinde e
seu universo, tendo como alicerce a história do Brasil oitocentista, da afro-diáspora,
da escravidão, dos retornados. Enfim, utilizando-se de uma expressão genettiana, a
autora é a epigrafadora de fato, mas não de direito (GENETTE, 1990, p. 139),
conforme será abordado em seguida.
Portanto, ao iniciar a leitura do romance e deparar com as homenagens
prestadas pela autora na dedicatória, torna-se difícil afirmar que Ana Maria
Gonçalves não seja a epigrafária, devido ao seu papel óbvio de escrevente, à
menção dada a pessoas do seu convívio e a estudiosos, cujas obras consultou e
enumerou na bibliografia. Entretanto, se o leitor folhear mais algumas páginas e
chegar ao término do prólogo, intitulado “Serendipidades!”, é provável que associe a
personagem narradora, ali instituída, à epigrafária autoral, o que é um equívoco. Na
verdade, tratam-se de duas instâncias distintas. No prólogo, ao narrar o processo de
invenção do romance, a autora ficcionaliza a sua própria experiência, quando conta
a história da descoberta do manuscrito de Kehinde e o que se seguiu depois disso.
Dessa forma, o prólogo é dotado de uma instância narrativa que se pode denominar
narradora do prólogo, distinta da autora. É possível constatar essa ficcionalização
prefacial, ao examinar os depoimentos dados por Ana Maria Gonçalves sobre a
produção do romance. Em entrevistas concedidas, tanto à mídia impressa quanto à
audiovisual, a autora nunca mencionou o fato de ter encontrado um manuscrito
antigo ou algo parecido, mas afirmou frequentemente que o romance possui base
histórica marcante, fruto de exaustiva pesquisa bibliográfica e de fontes históricas.
Em uma dessas entrevistas (dada à sua editora, a Record), Gonçalves é
questionada acerca do que é verídico e do que é ficcional em Um defeito de cor. A
resposta foi a seguinte:
107

Eu ficaria imensamente feliz se isso do que é verdade ou ficção pudesse ser


respondido pelo leitor, que ele se interessasse em pesquisar o período
histórico a que me ative. Tenho certeza de que deixei muitos fatos
interessantes de fora, pois o livro tinha um propósito a ser seguido. Aliás, de
todo o material de pesquisa que reuni, não cheguei a usar nem a metade, e
muitos outros livros poderiam ser escritos com o que "sobrou". Diante de
tanto material, confesso que até eu me confundo, tomando por realidade o
que posso ter inventado a partir de alguns fatos, de algumas circunstâncias
e mesmo de algumas pistas e leituras de entrelinhas. Grande parte dos
personagens realmente existiu e os fatos históricos podem ser facilmente
comprovados, mas a maneira como tais personagens atuaram ou deixaram
de atuar sobre eles, pode ter sido apenas imaginado. Foi isso que tentei
fazer, tendo em mente que sou romancista, e é como um romance deve ser
lido, deixando o rigor histórico para quem de direito. (GONÇALVES, s.d.)

Retomando a pergunta inicial: se o epígrafário do prólogo corresponde à


personagem narradora do mesmo, quem é o sujeito citante das dedicatórias? Difícil
responder com apenas uma escolha. Na verdade, não é pertinente deixar de atribuir
à autora esse papel, pela razão de que as pessoas mencionadas na dedicatória são
ligadas, de alguma maneira, à sua biografia pessoal. Isso é inegável. Por outro lado,
é igualmente legítimo afirmar que a narradora do prólogo é a epígrafária da
dedicatória, desde que o leitor associe aquela personagem autodiegética à mesma
que, no plano ficcional, escolheu inserir os paratextos epigráficos em questão, além
de ter editado e recontado o relato manuscrito de Kehinde. Há, nesse caso, uma
questão de leitura. No entanto, considerando o pressuposto narratológico apontado
por Genette, no qual se deve “atribuir (em ficção, é claro) ao autor apenas o que é
materialmente impossível atribuir ao narrador” (GENETTE, 1990, p.139), dever-se-ia
escolher a opção da narradora personagem do prólogo como a epigrafária da
dedicatória. Contudo, nem o próprio Genette, ao ilustrar esse caso, ousou admitir
categoricamente que o epigrafário do Doutor Fausto, de Goethe, não fosse Thomas
Mann, mas Serenus Zeitblom, narrador homodiegético em terceira pessoa. Preferiu,
ao invés disso, modalizar a assertiva, afirmando que parecia “mais interessante” que
o fosse (GENETTE, 1990, p. 139). Em Paratextos editoriais, Genette trata do
reconhecimento do dedicatário em narrativas homodiegéticas, ressaltando que nada
impede que ele seja o herói do romance e que muitos escritores evitaram qualquer
hesitação quanto a isso, subscrevendo-a com seus nomes ou iniciais (GENETTE,
1990, p 120). Em Um defeito de cor, a autora não assina graficamente a dedicatória
e desaparece no prólogo, onde dá lugar a uma narradora ficcional não identificada
108

nominalmente. Portanto, no caso do romance em estudo, a detecção da


epigrafadora da dedicatória trata-se de uma questão aporética65.
Seguindo esse raciocínio, pode-se inferir que essa mesma dificuldade de se
identificar o epigrafador prossegue na narrativa do prólogo e no relato de
Kehinde/Luísa. De fato, tal problemática persiste, mas não com a mesma
intensidade a ponto de consistir em uma aporia, como no caso das epígrafes da
dedicatória. Isso, porque temos três níveis narrativos em jogo, que ficam mais nítidos
ao leitor depois do pacto ficcional estabelecido no prólogo: o primeiro, relativo à
autora Ana Maria Gonçalves, que se anula, dando lugar à narradora dessa seção
ficcional, responsável pelo estabelecimento do pacto narrativo com o leitor, e se
autodenomina a autora do romance; o terceiro nível é o da narradora do relato,
identificada em Kehinde. Nesse sentido, o pacto narrativo, entre leitor e narradora do
prólogo, é crucial para desfazer ambiguidades, pois marca fronteira rígida entre duas
narrativas diversas: a contada pela narradora do prólogo – sobre a gênese da escrita
do romance e preliminares de seu conteúdo – e a narrativa do relato em si, ditado
por Kehinde/Luísa à personagem Geninha, sem nenhuma interferência direta de
quaisquer outros narradores. Dessa feita, firmado o pacto, fica nítido que a
epigrafadora do prólogo é a sua própria narradora. No relato em si, a epigrafadora
dos capítulos é Kehinde/Luísa. Antes do já mencionado acordo narrativo – aqui se
trata da dedicatória –, a identificação, portanto, é ambígua (Ana Maria Gonçalves e
narradora do prólogo).
Identificados os epigrafadores, pode-se detectar os seus respectivos
epigrafários, isto é, os destinatários das epígrafes. Tal afirmativa parte do
pressuposto genettiano de que o leitor virtual (na prática, o real) será o epigrafário,
no caso da proposição da epígrafe ser atribuída ao autor. O mesmo processo
ocorre, na relação entre narratário e narrador,

65
Afirmar que o problema da identificação do epigrafário da dedicatória é uma questão aporética
significa que a designação da autora ou da narradora, para tal papel de sujeito citante, não consiste
em uma relação antinômica, pois ambas fazem parte de planos de leitura diferentes. Trata-se,
nesse sentido, de expor um problema, que pode ser deslindado de duas formas racionalmente
aceitáveis, de maneira que se torna, no mínimo, controverso, sustentar, como pertinente e
verdadeira, apenas uma delas. Portanto, nesse caso, não se trata de incerteza subjetiva, pela qual
não se consegue chegar a nenhuma resposta plausível. Ao contrário, a questão aporética, em
apreço, consiste em uma “dúvida objetiva” (ABBAGNANO, 2007, p. 74-75), no sentido de se expor
os problemas inerentes a uma questão que não possui uma única resposta e argumentar seus
possíveis direcionamentos.
109

porque o ato tipicamente literário de assumir a escolha e a proposição de


uma epígrafe (como uma dedicatória, e de modo mais geral todo o elemento
do paratexto) constituiria automaticamente o narrador em autor (o que não
significa identificá-lo ao autor real, mas antes torna-lo como Clara Gazul, um
autor suposto), um autor que estaria sempre em busca e à espera de um
leitor [...]. (GENETTE, 1990, p. 140).

Ora, se na dedicatória a epigrafadora pode ser tanto a autora Ana Maria


Gonçalves quanto a narradora ficcional do prólogo, seu narratário comum é o leitor
da obra em estudo. No caso do Prólogo, idem. No relato de Kehinde/Luísa, o leitor
virtual não é o principal destinatário das epígrafes capitulares. No plano ficcional, o
epígrafário exclusivo do relato é Omotunde/Luiz, a segunda pessoa do discurso, o
você mencionado centenas de vezes, para quem a personagem narradora dita a
longa carta ou livro de memórias, durante a viagem de regresso ao Brasil, na
esperança de, pelo menos, conseguir terminar a narrativa, a fim de que, quiçá, o
filho a leia.
Em Paratextos editoriais, Genette detecta quatro funções da epígrafe, embora
reconhecendo, de antemão, que pode haver mais outras, que sua pesquisa não
abordou (GENETTE, 1990, 141).
A primeira função apontada pelo estudioso é a de comentário ou justificativa
do título da obra, dando como exemplo a epígrafe de Sodoma e Gomorra, de Marcel
Proust, indicadora de que o romance não se trata de uma abordagem bíblico-
histórica, mas, figurativamente, evoca previamente o tema da homossexualidade
(GENETTE, 1990, p. 141). No caso de Um defeito de cor, esse efeito não procede,
haja vista que a obra não tem uma única epígrafe, a inicial, como no referido
romance proustiano, mas diversas outras, na dedicatória, no prólogo e no início dos
capítulos. Ainda nessa primeira função, Genette descreve o efeito epigráfico, pelo
qual o título modifica a epígrafe. No romance de Ana Maria Gonçalves, não se pode
defender que há modificação do sentido das epígrafes, por conta da influência do
título. Entretanto, é possível afirmar que se estabelece uma relação antitética entre o
título do romance, mormente com as epígrafes africanas, mas, também, com os
paratextos epigráficos de Barth e Henry. A razão dessa afirmação funda-se no termo
jurídico “dispensa do defeito de cor”, vigente no Brasil do século XIX, explicado pela
própria Ana Maria Gonçalves, em entrevista promocional à página da Editora Record
na internet:
110

No período colonial havia uma lei, entre as muitas outras leis


segregacionistas, que impedia que negros e mulatos ocupassem cargos
civis, militares e eclesiásticos, reservados aos brancos. Quando o talento, a
competência ou a vontade eram muito grandes, o negro ou mulato podia
pedir a "dispensa do defeito de cor", que foi concedida, por exemplo, ao
padre mulato José Maurício, um dos mais importantes musicistas e
compositores coloniais brasileiros. Ele apenas pode se tornar Mestre da
Capela Real e responsável pela música sacra que lá tocava depois de
dispensado do defeito de que padecia. (GONÇALVES, s.d.)

O título do romance, portanto, denota uma visão depreciativa do africano e


afro-descendente, mesmo mestiço, como um defeito, que o marca,
instituicionalmente, como incapaz, inferior, subalterno. Ora, o resgate abundante de
provérbios africanos na dedicatória e nos capítulos chama a atenção para um
movimento contrário, o de valorização da sabedoria ancestral e de afirmação
identitária. As citações de John Barth e do cientista Joseph Henry, em contrapartida,
reforçam a ideia de resiliência e superação criativa das adversidades. Nesse jogo
antitético, as epígrafes do romance não modificam o sentido do título, ao contrário,
revelam a dimensão crítica e irônica da expressão Um defeito de Cor, no âmbito
ficcional da obra, remetendo ao contexto histórico, extra-ficcional.
A função epigráfica que Genette considera a mais convencional, “consiste
num comentário do texto, cujo significado ela precisa ou ressalta indiretamente”
(GENETTE, 1990, 142). De forma clara ou mais enigmática, a epígrafe pode ser
dotada desse papel de glosa textual.
As epígrafes do romance em estudo desempenham esse papel ora de forma
mais nítida ora mais veladamente. Na análise das epígrafes da dedicatória,
percebeu-se que elas não funcionam apenas como mera homenagem às pessoas
ligadas afetiva ou intelectualmente à autora. Mais que isso, o próprio processo de
leitura e releitura podem conduzir o leitor a perceber que cada epígrafe remete a um
motivo relevante para a compreensão de toda a narrativa: a memória, a
solidariedade e a transmissão. Por sua vez, a epígrafe inicial do prólogo remete ao
tema da serendipidade, motivo principal que dá movimento à ação narrativa e, pelo
viés do romance The Last Voyage of Somebody the Sailor, remete à personagem
Sheherazade, de tal modo que o paratexto, em questão, torna-se uma referência
metaficcional do ato de narrar, conforme será discutido no próximo tópico. Por fim,
as epígrafes capitulares, além de servirem de glosa metafórica dos capítulos,
formam, juntamente com os demais paratextos epigráficos, um conjunto que revela
111

um programa narrativo, cuja epígrafe matriz é a citação de John Barth, sobre a


serendipidade, assunto do subcapítulo 3.4.

3.3 AS EPÍGRAFES DO PRÓLOGO COMO GLOSA: AS SERENDIPIDADES DO


ROMANCE E O ROMANCE DA SERENDIPIDADE

Como já sabido, e indicada o prólogo de Um defeito de cor é dotado de duas


epígrafes: uma primeira, que encabeça o texto, extraída do romance The Last
Voyage of Somebody the Sailor, de John Barth (1991), e outra no fim dessa seção
textual, atribuída ao físico Joseph Henry. Quanto a esta última citação, pode-se
afirmar que cumpre um papel mais voltado ao empenho de realce à ideia de
serendipidade, mencionada de forma não explícita na citação barthiana, que, aliás, é
apresentada em sua língua original, a inglesa. Nesse sentido, pode-se afirmar que a
epígrafe de Henry é uma glosa do paratexto epigráfico de Barth, função
possivelmente sem precedentes, até que se prove o contrário 66. Em outras palavras,
se a relevância do conceito de serendipidade passou despercebida ao leitor na
primeira epígrafe, há uma segunda oportunidade, oferecida na citação final do
prólogo, que retoma, explica e endossa o sentido do primeiro paratexto epigráfico.
A princípio, o conjunto dessas duas epígrafes, considerando sua posição
espacial no texto (abertura e finalização), sugere uma moldura paratextual do
prólogo, determinando limites, como se as citações epigráficas se configurassem em
uma espécie de cerca semântica do prólogo. Nessa ótica, sem uma análise mais
atenta, afirmar-se-ia que as citações em questão referem-se, exclusivamente, à
seção textual em que foram inseridas, o que é um engano. Isso porque esse par de
epígrafes não definem limites. Ao contrário, como verdadeiros umbrais epigráficos,
transigem um movimento generoso de passagens, sentidos, intertextos.
O emprego da epígrafe inicial do prólogo permeia-se em uma rede intertextual
que envolve não apenas a semântica de Um defeito de cor como sua própria
tessitura romanesca, por meio da referência à oralidade, ao contar/transmitir
66
O emprego incomum da epígrafe henryana baseia-se no fato de que a citação pode ser
considerada como glosa da epígrafe de Barth, que, por sua vez, também funciona como comentário
do prólogo e do romance em estudo. Para Genette (2009), a epígrafe pode servir como glosa do
título (o inverso também é possível) ou do texto. Vale lembrar, que o próprio Genette admite a
possibilidade de outras funções não levantadas em seu estudo, quando afirma: “Sem dúvida, por
não ter ampliado minha pesquisa, vejo quatro funções da epígrafe, nenhuma das quais é explícita,
já que epigrafar é sempre um gesto mudo cuja interpretação fica a cargo do leitor” (GENETTE,
2009, p. 141).
112

narrativas, ato que precede a escritura das mesmas. Além disso, a percepção dessa
tessitura liminar pede que se trabalhe na identificação das marcas palimpsêsticas do
paratexto epigráfico em pauta. Em outros termos, que se debruce no esforço de
encontrar as relações intertextuais já contidas nos textos dos quais as citações
foram retiradas: o intertexto contido no intertexto. Tais leituras permitirão o acesso
aos umbrais estabelecidos pelas citações epigráficas e a percepção de que, além do
papel de glosa, as epígrafes apontam, também, a certa autorreferencialidade
romanesca.
Todavia, para se chegar à visada metaficcional de tais epígrafes, cumpre
iniciar, antes disso, uma abordagem que reflita como os paratextos em questão
assumem o seu papel de glosa. Essa função de comentário do texto, vale ressaltar,
vai além do prólogo. Na verdade, o par de epígrafes dessa seção glosam o romance
em estudo em sua totalidade, pelo viés do conceito de serendipidade, presente nas
epígrafes e no título dado ao prólogo.
A fim de iniciar a série de análises das epígrafes como glosa dos textos a que
remetem, julga-se importante inserir uma figura com o conjunto de todos os
paratextos epigráficos, constantes no romance em estudo, permitindo uma visão
panorâmica da distribuição paratextual de Um defeito de cor:

QUADRO 1 – Epígrafes do romance Um defeito de cor


PARTES EPÍGRAFES FONTE
“Quando você segue as pegadas dos
mais velhos, aprende a caminhar como
eles”
Dedicatórias
“Amigo é como um vizinho quando Deus Provérbios africanos
(p. 5)
está distraído”

“Uma chama não perde nada ao acender


outra chama”
“You don’t Serendip by plotting a course
John Barth, em The Last Voyage
for it. You have to set out in good faith for
of Somebody, the Sailor (Nova
elsewhere and lose your bearings
York, 1991)
Serendipidades! serendipitously”.
(p. 9-17) “As sementes da descoberta flutuam
constantemente à nossa volta, mas só
Joseph Henry
lançam raízes nas mentes bem
preparadas para recebê-las.”
Capítulo um “A borboleta que esbarra em espinhos
Provérbio africano
(p. 19-64) rasga as próprias asas.”
Capítulo dois “O Hoje é o irmão mais velho do Amanhã,
Provérbio africano
(p. 65-110) e a Garoa é a irmã mais velha da Chuva.”
113

Capítulo três “Aquele que tenta sacudir o tronco de uma


Provérbio africano
(p. 111-186) árvore sacode somente a si mesmo.”
Capítulo quatro “Só quando uma árvore cai alcançamos
Provérbio africano
(p. 187-260) todos os seus galhos.”
“Se alguém corre através de um
Capítulo cinco
espinheiro, ou persegue uma cobra ou Provérbio africano
(p. 261-349)
foge dela.”
Capítulo seis “A sola do pé conhece toda a sujeira da
Provérbio africano
(p. 351-454) estrada.”
Capítulo sete
“A espada não poupa o próprio ferreiro.” Provérbio africano
(p. 455-568)
“Quando não souberes para onde ir, olha
Capítulo oito
para trás e saiba pelo menos de onde Provérbio africano
(p. 569-730)
vens.”
Capítulo nove “Mesmo o leito seco de um rio ainda
Provérbio africano
(p. 731-887) guarda o seu nome.”
Capítulo dez “Exu matou um pássaro ontem com a
Provérbio africano
(p. 887-948) pedra que jogou hoje.”
FONTE: O Autor (2019). Epígrafes do romance Um defeito de cor.

No tópico 2.2 apontou-se a série de serendipidades relatadas pela narradora


do prólogo, o que já demonstra serem as epígrafes uma glosa daquela seção
textual. No entanto, como já se afirmou, as epígrafes em questão vão além de seus
lindes, permitindo uma relação de diálogo desses paratextos com a totalidade da
narrativa. Nesse sentido, Um defeito de cor será classificado como um romance de
serendipidades e um romance da serendipidade.
Como romance de serendipidades, a narrativa apresenta uma gama de
situações, geralmente adversas, em que a narradora busca formas criativas de
enfrentá-las e superá-las, contrariando as expectativas lógicas de causa e efeito. Em
outros casos, mesmo não tendo condições físicas e situacionais de reação, por meio
da memória, relata eventos extremamente dolorosos e atribui-lhes um sentido maior,
à luz da tradição ancestral.
Uma primeira situação de destaque a ser citada, como caso de
serendipidade, sucede-se quando Kehinde tinha seis ou sete anos e se encontrava
no depósito onde eram deixados os escravizados, recém-chegados na Bahia,
enquanto não eram vendidos no mercado da cidade. A primeira impressão que teve
a narradora daquele ambiente foi a diferença de compleição física entre o grupo ao
qual fazia parte e os escravizados que lá estavam, isto é, que ainda não tinham sido
comprados. O grupo de Kehinde havia ficado uma temporada na Ilha dos Frades,
onde puderam se recompor da traumática passagem pelo Atlântico, alimentando-se
bem, em contato direto com a luz solar, ganhando cor e viço, a fim de que tivessem
114

uma boa apresentação na hora da venda67. A narradora supõe que os escravizados


que se encontravam no armazém, antes de sua chegada, não tiveram a mesma
sorte que ela:

O comum a todos eram os ossos, que de tão aparentes quase rasgavam a


pele sem viço e sem cor definida, coberta por imensa quantidade de
escaras. Tenho certeza de que nós também estávamos bem parecidos com
eles quando desembarcamos, magros, tristes e com aparência de bichos, e
nos fizeram muito bem os dias na Ilha dos Frades, ao ar livre, podendo
tomar sol, tomar banho, e com comida suficiente para, além de não
passarmos fome, ainda nos fartarmos com frutas, muitas que eu não
conhecia e eram bem gostosas.” (GONÇALVES, 2012, p. 69).

Kehinde também observou o clima de profunda desolação entre todos os


companheiros de infortúnio, além do “ódio nos olhos de alguns deles”
(GONÇALVES, 2012, p. 68), o que se justifica pela situação traumática a que foram
submetidos e pelas trágicas narrativas que a protagonista pôde ouvir de alguns.
Além disso, a narradora também sentiu o temor geral de permanecer muito tempo
ali, naquela situação de penúria, passando fome, de modo que o desejo de todos
era ser comprado o mais rápido possível, o que nem sempre acontecia68.
É nesse panorama de tristeza, abatimento e medo que Kehinde, por meio da
observação dos demais escravos, começa a perceber que deveria fazer alguma
coisa para conseguir superar a situação adversa e sair logo daquele ambiente
deplorável. Para tanto, começa a perceber que se o seu comportamento fosse o
mesmo das outras crianças escravizadas, sem beleza, indiferentes, às vezes
caladas, como que invisíveis (GONÇALVES, 2012, p. 69-70), ficaria muito tempo por

67
Sobre isso, o historiador Alexandre Vieira Ribeiro afirma que era necessário “expor o cativo
aparentando bom estado físico e até mesmo moral para a fixação de um bom preço de venda. Em
Salvador, desde meados do século XVII, após terem sido pagas na alfândega as referidas taxas de
importação, as novas levas de escravos ficavam abrigados em depósitos fixos que por vezes
ocupavam quarteirões inteiros. Nestes locais, o escravo recebia alimentação e passava por um
processo de “maquiagem”. Muitas vezes seu proprietário aplicava óleo de palma em todo o seu
corpo, para esconder doenças de pele e, principalmente, para dá-lhe [sic] aspecto de bom estado
físico, no momento em que era exposto para possíveis compradores.” (RIBEIRO, 2005, p. 95). Pelo
visto, os pretos encontrados por Kehinde no galpão não se enquadraram nessa prática. Além disso, a
experiência de Kehinde também foi diversa daquela mencionada por Ribeiro (2005). Em Um defeito
de cor, a boa alimentação e recuperação do escrava se dá na Ilha dos Frades. No depósito, as
condições de vida eram precárias e a alimentação escassa.
68
A narradora, atenta às conversas entre os escravizados, relembra a experiência relatada por uma
mulher, que estava há muito tempo no galpão: “Uma das mulheres do nosso grupo puxou conversa
com outra das que já estavam no armazém, e ela disse que tinha chegado havia muito tempo e que
infelizmente ninguém tinha se interessado por ela, um problema bastante comum para os que não
eram vendidos logo nos primeiros dias. Quem acabava de chegar tinha a preferência por estar bem
mais alimentado, e quanto mais tempo ficava ali, menores eram as chances de ser escolhidos,
porque a comida era pouca e irregular.” (GONÇALVES, 2012, p. 69).
115

ali, refugada, ou mesmo morreria sem ser comprada, “visto que a grande maioria
dos compradores não se interessava por crianças” (GONÇALVES, 2012, p. 71).
Munida de esperança, assim, a narradora sente a iminência da serendipidade que a
livraria daquela situação:

Eu não sabia o motivo, mas tinha absoluta certeza de que não teria o
mesmo destino que aquelas crianças, que alguém me escolheria logo e
nada seria tão ruim assim, mas fiquei me perguntando se algumas delas já
tinham tido o mesmo pensamento e a mesma certeza em vão.
(GONÇALVES, 2012, p. 69).

No segundo dia de sua exposição no mercado, consegue ser comprada,


graças ao insight obtido por essa observação atenta da postura deprimida dos
demais escravizados. Essa descoberta mobiliza Kehinde a algumas atitudes e uma
disposição interior fixa na intenção de livrar-se daquela condição degradante. A
primeira delas consistiu no esforço de se “manter limpa e demonstrar alegria”
(GONÇALVES, 2012, p. 71). A segunda atitude valeu a sua compra. Já faminta e,
com o temor de ser repetidamente rejeitada e acabar morrendo naquele lugar,
descobre que provocar o riso do seu futuro comprador seria uma estratégia viável de
solução (GONÇALVES, 2012, p. 72).
Em tal circunstância, a menina Kehinde, com sua sagacidade, provará ser
uma mente bem preparada para receber a semente da grande descoberta pairando
“constantemente à nossa volta” (GONÇALVES, 2012, p. 17), como diria a epígrafe
atribuída a Joseph Henry, no prólogo, e superar a situação crítica.
Outra ocorrência de serendipidade, embora sutil, se sucede no terceiro
capítulo, aos dez anos da narradora, quando a mesma é expulsa da casa-grande
por sinhá Ana Felipa ao flagrar Kehinde costurando uma boneca (brinquedo) e
julgou que a menina estivesse confeccionando um artefato para a prática de
feitiçaria. Por sua vez, a menina fugiu para o mato da fazenda, onde ficou escondida
durante dias a fio, por conta da forte sensação de revolta e indignação com os
castigos injustos aos quais ela e outros eram submetidos pela esposa do sinhô José
Carlos, enquanto ele estava ausente. O mais cruel foi a punição à Verenciana por
sinhá Ana Felipa, que manda arrancar-lhe os dois olhos, pelo fato de estar grávida
do marido, o sinhô José Carlos.
Por conta de mais essa indisciplina cometida, Kehinde, serva doméstica, é
tirada da senzala pequena e transferida para a senzala grande (onde se acomodava
116

o resto da escravaria). A narradora reconhece esse episódio como decisivo e


transformador em sua vida, pois foi a oportunidade de ter contato com uma faceta da
escravidão que ela ainda não conhecia e despertado nela uma atitude reativa e
crítica, no tocante a essa condição:

Talvez, se eu tivesse ficado trabalhando apenas na casa-grande e morando


na senzala pequena, não teria sabido realmente nada sobre a escravidão e
a minha vida não teria tomado o rumo que tomou. Mesmo para uma criança
de dez anos, ou, talvez, principalmente para uma criança de dez anos, era
enorme a diferença entre os dois mundos, como se um não soubesse da
existência do outro. Um outro mundo dentro do mesmo, sendo que o de
fora, a senzala grande era muito mais feio e mais real que o de dentro, a
senzala pequena. (GONÇALVES, 2012, p. 111).

Vivendo na senzala grande, a protagonista é inserida em uma realidade muito


mais injusta e perversa que a que vivia como escravizada doméstica. Kehinde
descobre, pois, a vida dura dos cativos sujeitados ao labor diário em diversas frentes
de trabalho: lavoura de cana, pesca baleeira, engenho, fundição. Torna-se, ademais,
observadora e ouvinte atenta das experiências partilhadas pelas mulheres da
senzala grande, narrativas essas reveladoras do lado mais obscuro e cruel da vida
servil, algumas das quais (experiências) reconta em seu relato.
Dentre essas narrativas, as histórias testemunhadas, ouvidas e retransmitidas
por Kehinde remetem a gestos de solidariedade entre os companheiros de
sofrimento. A primeira dessas atitudes parte de Rosa Mina, que acolhe Kehinde
como se fosse filha, oferece-lhe um canto ao lado do seu, na senzala, para que a
protagonista possa se instalar. Faz companhia à narradora, conta-lhe histórias,
favorece com que ela (Kehinde) possa se socializar, visto que os escravos da
senzala pequena não eram bem vistos pelos demais. A narradora também
testemunha o socorro que a personagem Rosa Mina presta ao pescador mestre
Anselmo, depois de ser impiedosa e injustamente chicoteado “nas costas, na bunda
e nas pernas” (GONÇALVES, 2012, 125) pelo capataz Eufrásio. Nessa ocasião,
Rosa passa uma mistura de ervas nas chagas de Anselmo e as lava com a água
salgada do mar. Por sua vez, Kehinde sente um forte impulso de solidarizar-se com
o flagelado e consolá-lo, lendo histórias para ele, mas não o faz por medo de que
descobrissem que ela possuía os livros presenteados por Fatumbi:
117

Eu me lembrei do livro com o sermão do padre para os peixes, em que ele


dizia que os homens eram o sal da terra, o sal da vida, aquele que a Rosa
Mina tinha explicado tão bem. Senti vontade de ler para o mestre Anselmo,
mas achei melhor não arriscar, pois alguém podia me ver lendo e tomar os
meus livros, as únicas coisas que eu tinha de realmente minhas, além dos
Orixás. (GONÇALVES, 2012, p. 125).

A protagonista também testemunha a preocupação e ajuda à Verenciana


depois de arrancados os olhos; Além disso, testemunha histórias sobre as agruras
sofridas pelos escravizados da fazenda, submetidos a trabalhos forçados, péssima
alimentação, sob o chicote e impropérios de Eufrásio. Igualmente, ouve histórias
tradicionais de pretos velhos e outros religiosos, como Rosa Mina, Policarpa e Pai
Osório, testemunhando a prática de cultos secretos aos orixás, de modo a constatar
que a tradição ancestral, malgrado reprimida, continuava viva entre os seus.
Também é nesse período que, levada por Nega Florinda a Salvador, Kehinde
conhece Agontimé.
Além disso, toma conhecimento de diversos atos de resistência à
escravização, dos quais três serão mencionados. O primeiro é o suicídio do
pescador Afrânio, que resultou nos açoites humilhantes de mestre Anselmo, punido
por não ter evitado a morte do subordinado no barco onde trabalhavam. O segundo,
na secreta vingança pelo ato violento que cegou Verenciana, com o fornecimento de
uma erva abortiva à cozinheira da casa-grande, a fim de que sinhá Ana Felipa
perdesse o filho que esperava, como, de fato, sucedeu. Por fim, Kehinde fica
sabendo do plano conjunto de rebelião e fuga, entre alguns companheiros da
senzala grande e os escravizados da fazenda vizinha, sendo, posteriormente,
testemunha ocular da perseguição aos fujões, em direção à mata da fazenda do
Sinhô José Carlos, “gritando palavras como liberdade, morte aos brancos e justiça”
(GONÇALVES, 2012, p. 144). Testemunha, além disso, a captura e o fuzilamento
sumário de alguns insurgentes. Na senzala, depois do ocorrido, diversos
escravizados partilharam narrativas sobre suas experiências pessoais de fugas bem
sucedidas ou não.
Este episódio, em suma, despertou, em Kehinde, uma profunda admiração
pela coragem dos revoltosos:

Eu sabia que aquilo realmente poderia acabar muito mal para eles, mas
achei bonito que todos se unissem para buscar o que queriam, mesmo que
isso implicasse grande risco, mesmo que pudesse custar a vida.
(GONÇALVES, 2012, p. 145).
118

Nesse contexto, a protagonista começa a discernir que a raiva suscitada pela


castração da liberdade e pelos métodos cruéis utilizados para conservar o sistema
escravista, deveria ser canalizada em um esforço de resistência e luta pela
libertação. Assim, à luz da tradição ancestral, a menina descobre que a sua missão
na terra poderia estar associada a isso:

Eu era muito nova mas já pensava nisto tudo, e pensava no que tinham
falado a minha avó, a Nega Florinda e depois a Agontimé sobre cada um de
nós ter uma missão. Elas também tinham dito que a minha seria importante,
e pedi a Oxum, a Xangô, a Nanã e aos Ibêjis que me ajudassem a saber
qual era, pois, fosse o que fosse, não seria mais difícil de cumprir do que
viver como escrava pelo resto da vida. (GONÇALVES, 2012, p. 148).

A serendipidade, nessas ocorrências, consiste no fato de que a inserção de


Kehinde na senzala-grande, despertou-lhe uma descoberta oposta à que se poderia
esperar de quem testemunhou aquela condição humilhante, opressora, violenta e
traumática, relativa à submissão, conformismo, resignação da condição de vítima, à
repressão do ódio. A partir dessa experiência, portanto, começa a germinar, na
protagonista, a ideia de que possuía uma missão, a ela conferida pelas entidades
ancestrais. Tal desígnio deveria ser discernido, no entanto Kehinde começa a sentir
que estava relacionado à ideia de superação e libertação do estado servil e suas
perversidades.
Dessa feita, a epígrafe de John Barth poderia oferecer luzes para o
entendimento do posicionamento de Kehinde frente à vida, na descoberta e prática
de sua missão, como um mote que glosa a postura da protagonista: “Você não
chega a Serendip planejando um roteiro. Você tem que partir em boa-fé para outro
lugar e perder seus azimutes serendipitosamente.”69 (GONÇALVES, 2012, p. 9,
tradução nossa).
As serendipidades na vida de Kehinde, nesse sentido, consiste numa postura
de atenta observação e análise dos acontecimentos e uma reação sagaz, resiliente
e empoderada a eles, sob a luz da tradição de seu povo. São as entidades
sobrenaturais que estabelecem o roteiro, a missão a ser cumprida durante a
existência da narradora, e insights redirecionadores de caminhos e atitudes.
Portanto, com fé nesse plano divino, Kehinde se lança numa atitude de abertura,

69
“You don’t Serendip by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and
lose your bearings serendipitously”. (GONÇALVES, 2012, p. 9).
119

confiante no itinerário da vida, entretanto, sem deixar de buscar as pistas ou rastros


deixados nos acontecimentos pela transcendência, a fim de que a protagonista
cumpra a sua missão. Para descobrir esses desígnios provocadores de
serendipidades, a narradora pede, diversas vezes, para sacerdotes consultarem o
jogo do Ifá70 e, também, permanece atenta aos sonhos para poder interpretá-los
sozinha ou com o auxílio de um pai ou mãe espiritual, à luz da fé.
O romance, dessa forma, articula a reviravolta positiva aos reveses da vida
(novidade) com a interpretação de uma missão estabelecida pelas divindades
ancestrais (tradição). Um dos exemplos mais significativos a respeito, gira em torno
da estátua de Oxum, presenteada por Agontimé a Kehinde, quando a narradora
tinha dez anos e morava na senzala grande. Objeto de culto, a imagem acompanhou
a protagonista durante muitos anos e cumpriu a sua finalidade religiosa
convencional. A serendipidade acontece, pois, no dia em que a Oxum cai do seu
altar acidentalmente e a protagonista descobre que havia escondida, no interior da
peça, uma fortuna em pó de ouro. O dinheiro obtido com a venda desse tesouro, em
conjunto com um plano bem-sucedido de chantagem à dona de Kehinde, garantem
à narradora a conquista de alforria.
Vale ressaltar que Oxum – uma espécie de Vênus iorubá, por conta de sua
beleza e influência nas questões amorosas – é a orixá das riquezas (LOPES, 2004,
p. 505). Desse modo, é significativo o fato de a sua imagem estar recheada de ouro.
Isso, porque o acontecido com Kehinde pode figurar uma bênção da divindade para
que a narradora consiga dar uma reviravolta positiva em sua vida e cumprir a missão
pré-estabelecida pela transcendência.
Outra observação de relevo é que, conforme narrativa oral da tradição iorubá
recolhida por Reginaldo Prandi, em Mitologia dos Orixás, Oxum é filha de Iemanjá,
orixá das águas, e Orumilá ou Orunmilá (PRANDI, 2001, p. 320-321). Perceba-se,
mais uma vez, a presença de Orumilá, a entidade criadora dos oráculos (como o
Ifá), pelos quais desempenha a sua tarefa de manifestar os desejos e desígnios dos
demais orixás em relação aos homens. Dito isso, é possível perceber que a
serendipidade decorrente da descoberta do ouro no espaço oco da estátua de Oxum
pode figurar, sutilmente, a vontade do divino na vida de Kehinde.

70
O Ifá, segundo Lopes (2004) é um oráculo de complexa execução ligado a Orumilá, deus da
escrita,“orixá iorubano da adinhação, representante de Ifá na Terra” (LOPES, 2004, p. 501). Por
meio do Ifá, Orumilá transmite aos homens a vontade dos deuses a seu respeito e os sacrifícios
que devem ser feitos a eles (LOPES 2004, p. 501).
120

Ademais, há que se levar em conta que, antes de morrer no navio negreiro, a


avó de Kehinde dá várias recomendações à menina, no sentido de que nunca se
esqueça dos valores ancestrais. Dentre esses conselhos, pede que a narradora
adquira e sempre tenha consigo um pingente representando a irmã gêmea e,
também, consiga, para si, imagens dos ibêjis, de Xangô e de Oxum. O presente de
Agontimé, dessa feita, realiza parte do último desejo de sua amiga e co-irmã no
sacerdócio. Note-se que, levando em consideração esses dados, é possível articular
uma relação lógica entre a imagem de Oxum, a figura da avó e Agontimé. A estátua
constitui-se em figuração da serendipidade como fruto da vontade dos orixás em
vista da efetivação de um plano sobrenatural em relação à narradora. Em
conformidade com esse plano transcendente, a avó figura a ancestralidade como
fator relevante, que deve ser ouvida e obedecida para que a missão da protagonista
se cumpra. Por fim, Agontimé representa a ancianidade tradicional que repassa, por
meio da estátua, o thesaurus da tradição (metaforizado no ouro em pó), tesouro
esse com uma potencialidade libertadora escondida no interior da divindade, que
será, no momento certo e determinado pelo mundo espiritual, desentranhado,
descoberto e possibilitará que Kehinde cumpra o seu destino.
À luz desse recorte da serendipidade como a apreensão do novo iluminada
pela sabedoria antiga (tradição), vale apontar outras manifestações dessa natureza,
nas quais situações difíceis semeiam lampejos de grandes descobertas e atitudes
resilientes.
O serviço de Kehinde à família inglesa dos Clegg é uma delas. Ao alugar a
protagonista para essa família, sinhá Ana Felipa intentava castigar Kehinde e afastá-
la do filho, Banjokô. A narradora trabalha para os ingleses durante uma temporada,
mas é expulsa de lá, porque fora pega pela polícia numa das madrugadas em que
fugia para dormir no solar da dona, junto ao filho, sob a proteção de Esméria e dos
demais escravizados. Quando retorna para o solar, a sinhá arruma outra maneira de
deixar Kehinde longe de sua casa.
Para tanto, decide que ela seja escrava de ganho, de maneira que a
protagonista deveria, o quanto antes, descobrir uma ocupação para pagar as suas
despesas pessoais com alimentação, moradia etc. e repassar, periodicamente, um
percentual dos seus ganhos para a sinhá, de acordo com o combinado, como era
costume. Em situação difícil, desamparada, conta com a solidariedade da liberta
Adeola e do padre Heinz que lhe dão abrigo até que Kehinde descubra uma
121

ocupação para ganhar o seu dinheiro. Reencontra, posteriormente, Fatumbi, que


encaminha a narradora à loja do Alufá Ali, de quem aluga um quarto. É nessa
situação que ocorre a serendipidade: a protagonista se lembra dos cookies que
aprendera a preparar na casa dos Clegg e percebeu que vendê-los na cidade seria
uma iniciativa diferenciada que poderia ser bem sucedida. Isso porque não havia
ninguém que comerciava tais produtos em São Salvador. Esméria, Tico, Hilário e
outros companheiros não só gostaram da ideia como deram sugestões para o bom
sucesso de Kehinde. Iniciada a empreitada com resultados favoráveis, a narradora
começa a ampliar os seus objetivos de não apenas conseguir a liberdade, mas de
prosperar economicamente:

Fui dormir feliz com as várias ideias e com a empolgação dos meus amigos,
com a vontade que eles tinham de me ajudar e incentivar, dizendo que logo
eu estaria mais rica que a sinhá e poderia comprá-los dela. Eu não tinha
certeza quanto a ficar tão rica, mas não tinha dúvida de que minha liberdade
não tardaria a chegar. Minha e do meu filho. E fiquei mais certa ainda
quando, no dia seguinte, consegui me lembrar do sonho que tive com a
minha avó e a Taiwo, as duas muito alegres e brincando de rodopiar de
braços abertos, gritando que estavam livres. (GONÇALVES, 2012, p. 251).

Note-se, mais uma vez, a manifestação onírica com os ancestrais e sua


interpretação como parte do processo de serendipidade, dessa vez confirmando a
iniciativa de Kehinde como auspiciosa, em conformidade com seu destino e missão.
Nas últimas páginas do romance, o intertítulo “Guardando as esperanças”
apresenta as duas serendipidades derradeiras, na vida de sua narradora. Tais
ocorrências entabulam uma relação estreita com a grande serendipidade que é a
própria narrativa. Todas desencadeiam-se a partir da descoberta de quatro cartas
encontradas por Geninha em um antigo baú, no qual Kehinde/Luísa conservava
alguns objetos que trouxera do Brasil71. Na verdade, a intenção primeira era de se

71
A narradora explica o motivo de aquelas cartas estarem contidas no baú: “Quando os ingleses
desocuparam o escritório de Lagos, deixaram uma caixa cheia de papéis que o João nem abriu,
achando serem coisas minhas, pessoais, pois nela estava escrito o meu nome, e não o nome da
Casas da Bahia. Ele levou essa caixa para Lagos e me entregou, mas como todas as pessoas com
que eu me correspondia já sabiam da minha nova morada, tantos anos depois da mudança, eu
também não quis abrir, achando que ia encontrar papéis do escritório, anotações antigas sobre
casas já construídas. Quase mandei que jogassem a caixa fora, mas pedi que guardassem junto do
baú, esperando que algum dia alguém pudesse ver pra mim do que se tratava, mas acabei me
esquecendo dela.” (GONÇALVES, 2012, p. 945). Vale lembrar, também, que a protagonista, em
sua velhice, torna-se, gradualmente uma deficiente visual, em decorrência do diabetes, limitação
que dificultou ainda mais o acesso a correspondências tão importantes.
122

encontrar algo especial que servisse de presente à Luisinha, a primeira neta da


protagonista a se casar.
O conjunto das três primeiras correspondências foram enviadas da cidade de
São Paulo. Seu remetente, que fazia parte da rede de contatos do doutor José
Manuel, as expedira no ano de 187772, com informações sobre o filho perdido de
Kehinde e seu paradeiro. Informações essas valiosíssimas para a narradora, que
labutou inutilmente por eles durante décadas, malgrado o esforço, mesmo quando
retornou à África. Eis o resumo das três cartas, apresentado pela própria narradora
em seu relato:

A primeira era mais um aviso, em que o filho do advogado amigo do doutor


José Manoel dizia que tinha te encontrado e que em breve mandaria mais
notícias. Na segunda carta, ele dava muitos detalhes sobre você, contando
tudo sobre a sua vida, que você era amanuense e que também advogava
em favor dos escravos, conseguindo libertar muitos deles. Que você estava
casado, tinha filhos e era maçom, que escrevia poesias e era muito
respeitado por publicar artigos belíssimos e cheios de inteligência nos
jornais mais importantes da cidade, e dava inclusive a sua morada. A
terceira carta pedia para confirmar se eu tinha recebido as duas anteriores e
avisava que não escreveria mais se isso não fosse feito. (GONÇALVES,
73
2012, p. 947) .

Foram, pois, essas esperanças guardadas – parafraseando o intertítulo – que


motivaram a última viagem de Kehinde/Luísa pelo Atlântico e a feitura de sua
narrativa, a princípio como medida de prevenção, caso não chegasse viva ao Brasil.
Todavia, a narradora deixa pistas de que, na verdade, a relevância de contar a sua
história é maior do que a viagem em si. Melhor seria afirmar que as duas viagens
(espacial e narrativa) como que se interpenetram. Isso, porque o encontro marcado
com a morte, o encerramento de sua missão, designada pela transcendência, era
prevista para, apenas, depois da conclusão do relato, mesmo que o encontro físico
com Omotunde/Luís não ocorresse de fato:

72
Note-se que as cartas ficaram na obscuridade por volta de vinte e dois anos, visto que o hic et nunc
da narradora é 1899.
73
Vale ressaltar que as informações contidas nas cartas demonstram patente semelhança com o
perfil biográfico de Luiz Gama, explanado no tópico 2.3 desta tese, p. 44-47.
123

Andei muito doente aos últimos três anos, e só não morri porque o encontro
já estava marcado para daqui a pouco, assim que eu terminar esse meu
pedido de desculpas. Muito maior do que o pedido ao João, à Maria Clara,
ao genro, às noras e a todos os netos que foram se despedir de mim no
porto de Lagos, onde eu e a Geninha tomamos este navio. Tentaram me
convencer a ficar, argumentando que eu não aguentaria a viagem, que não
teria como te encontrar e nem sabia se você ainda estava vivo ou morando
no mesmo lugar, em São Paulo. Mas nada disso teve importância, pois eu
tinha certeza de que precisava vir, precisava contar tudo que estou
contando agora. (GONÇALVES, 2012, p. 945).

Sem a pretensão de, no momento, estabelecer hierarquias, pode-se


apreender do texto que há uma confluência entre a viagem geográfica e a grande
viagem narrativa, esta revelando-se, na protagonista, como um imperativo, uma
necessidade inevitável do encontro, não físico, mas ficcional com o filho, o narratário
do texto.
Tal dado demonstra, inclusive, que a narrativa in se faz parte da missão
imposta a Kehinde, o que induziria a um devaneio pertinente, acerca da
ambiguidade do termo destino. Nesse contexto, a semântica do vocábulo em
questão navegaria em duas vertentes, sendo que a primeira remeteria à destinação
geográfica de sua travessia marítima, para encontrar o filho; a segunda, ao fatum ou
à sina pré-designada pelos deuses ancestrais, identificada no ato de contar o relato
e a conclusão do mesmo.
O extenso pedido de escusas a Omotunde/Luís não apoia-se apenas no
infortúnio da separação, no lamentar-se pelo que poderia ter sido e que não foi74. A
quarta carta encontrada no baú da protagonista portará uma revelação que
justificará, do ponto de vista mítico, a desgraça sofrida por mãe e filho, descoberta
que consistirá na última das serendipidades do romance.
Essa missiva fora remetida por Esteban, filho de Buremo e Rosário, casal de
amigos da narradora que também alugavam um cubículo na mesma casa que ela,
durante a sua estada no Rio de Janeiro. Na carta, o remetente mandava uma
mensagem de Maboke75, um tata kisaba76, outro vizinho de Kehinde. O sacerdote

74
Referência evidente ao famoso verso de Pneumotórax, poema que Manuel Bandeira publicou em
1930, no seu livro Libertinagem: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi” (BANDEIRA,
1970, p. 104).
75
Provavelmente porque Maboke era analfabeto. Note-se o recurso metaficcional recorrente que
lança mão de intermediários a colaborar na transformação da tradição oral, da memória ditada, em
narrativa escrita. Esteban é o escriba de Maboke como Geninha o é para a narradora e esta o é
para Kuanza. Por fim, a narradora do prólogo autobiográfico e ficcional narra a gênese do romance,
colocando-se como aquela que reescreve o antigo manuscrito de Kehinde/Luísa, atualizando-o para
a linguagem romanesca do século XXI.
124

teve uma visão, na qual discerniu que o extravio de Omotunde/Luís e as buscas


frustradas de Kehinde/Luísa pelo filho eram resultado da perseguição do espírito de
um ladrão que Kehinde matara com uma facada, em legítima defesa, na estrada do
sítio onde residia, nos tempos em que morava nas imediações de São Salvador.
O tata kisaba, que até então nada sabia do ocorrido, recebeu essa revelação
depois de haver visto a pequena bolsa que a protagonista deixara, como presente
de despedida, ao namorado Piripiri, quando ela partiu do Rio de Janeiro rumo à
capital baiana. Era, justamente, este objeto que o salteador anônimo queria tomar da
narradora, na noite do incidente. Em sua narração, Kehinde/Luísa lembra ao filho de
que, no Rio de Janeiro, por ocasião do assassinato do filho de uma inquilina vizinha
da narradora, o religioso dissera que tais espíritos costumavam seguir os seus
assassinos e prejudicar a vida deles, a não ser que fosse feito “um trabalho de
limpeza” (GONÇALVES, 2012, p. 947), providência nunca tomada por ela, pois não
se sentia assassina” (GONÇALVES, 2012, p. 947).
Essa última serendipidade, pois, mobiliza a protagonista à interpretação
mítico-religiosa dos entraves que ela e o filho sofreram em suas vidas, por conta
desse espírito vingativo. Dessa vez, o viés hermenêutico de Kehinde/Luísa mostra-
se um tanto disfórico, revelando um sentimento de culpa e a necessidade de pedir
perdão ao narratário pelo trágico desencontro entre eles e por tudo o que sucedeu
por conta disso.
Ao mesmo tempo, as serendipidades derradeiras, suscitadas pelas cartas,
apresentam uma peculiaridade que merece ser destacada, pois elas se diferenciam
das demais no plano teleológico e temporal: enquanto as outras manifestam-se
como molas a fomentar a resiliência da narradora, tendo em vista o futuro, as
últimas duas serendipidades voltam-se, acima de tudo, ao passado.
Poder-se-ia levantar uma ressalva, afirmando-se que a descoberta das
cartas provindas de São Paulo motivaram a viagem de Kehinde/Luísa ao Brasil, isto
é, que delas brotaram a iniciativa e execução de uma ação futura. Por um lado, sim,
é correto. Entretanto, a referida travessia atlântica, no plano poético, consiste
mormente em uma figuração da viagem mais importante da narradora, premissa
essa já mencionada. Trata-se da viagem narrativa, tecida a partir de um trabalho de

______________
76
Palavra de origem banto, do kumbundo tata (pai) e kisaba (folha), designa um encargo do
candomblé da nação angola-congo. O tata kisaba é um coletor de plantas usadas em rituais
religiosos (BOTÃO, 2007, p. 38).
125

anamnese77, atribuindo ao passado sentido e finalidade, com vistas a torná-lo vivo


no presente, por meio do relato. Isso tudo, à luz de uma tradição oral recebida e
transmitida.
Na situação de sobrevivente, enfim, contra todo um sistema desumano no
qual estava inserida e do qual se libertara, a narradora conta e dá um sentido crítico
(apesar da objetividade com que relata) à história pessoal e à história oficial do
coletivo. O simples fato de Kehinde/Luísa ter essa possibilidade de narrar a sua
história de superação, libertação e empoderamento, contando, ou melhor,
recontando a história da diáspora africana sob o seu ponto de vista de ex-
escravizada e retornada, já constitui uma serendipidade, a maior delas
possivelmente. Tal afirmação remete ao conceito, aqui inventado, de Um defeito de
cor como o romance da serendipidade central da narrativa, da qual as outras são
manifestações subsidiárias.
A serendipidade fundamental do romance consiste, resumindo, na própria
narrativa, feita por uma testemunha do processo afro-diaspórico, que teve todos os
parentes mortos e chega nua e só em terras brasileiras. Como escravizada,
sobrevive, resiste, luta contra o sistema escravista excludente. Aprendiz atenta
durante a vida toda, escuta a sabedoria ancestral transmitida pelos mais velhos e
interessa-se pela história pessoal das personagens significativas em sua vida.
Alfabetiza-se e torna-se uma leitora voraz. Não se conforma com a escravização,
sua e dos outros, de modo que se engaja em movimento de resistência e participa
da rebelião de 1835, em Salvador78. Preocupada com a preservação da tradição de
seu povo, inicia-se na religião dos minas. Consegue a liberdade, prospera. Retorna
à África. Flerta com o poder estabelecido de lá para garantir o sucesso de seus
empreendimentos econômicos. Empodera-se, embora todo o seu percurso
existencial, desde menina, já tenha sido um processo corajoso e gradativo de
empoderamento. Por fim, bastante idosa, faz memória de todos esses
acontecimentos, à luz da tradição ancestral e do processo multicultural que permeou
a sua existência pessoal na história da afro-diáspora.

77
Paul Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, baseia-se na tradição filosófica para
distinguir duas categorias da memória: mneme, que consiste em mera lembrança passiva do
passado, independente de um esforço da vontade e anamnesis, esta, de caráter ativo, pois se
efetua por meio de um verdadeiro trabalho de resgate, uma busca voluntária de elementos do
passado (RICOEUR, 2007, p. 25-60).
78
A Revolta dos Malês.
126

Dessa feita, a grande serendipidade do romance, consiste na junção de todos


esses cacos de memória, por parte da narradora, que os transforma em um conjunto
único de sentido por meio da transmissão de seu relato. Nessa linha de raciocínio,
as citações de John Barth e de Joseph Henry desempenham um papel de liminares,
índices das serendipidades do romance e do próprio romance da serendipidade.
Essa função das referidas epígrafes serão discutidas no tópico que segue.

3.4 KEHINDE/LUÍSA E SCHEHERAZADE: INTERTEXTUALIDADE E METAFICÇÃO


NA EPÍGRAFE DE JOHN BARTH

A partir do arrazoado anterior, a respeito da função das epígrafes do prólogo


como glosa ou explicação da seção textual a que se referem, pôde-se descobrir que
as citações extrapolam essa incumbência específica e abarcam semanticamente o
romance. Tal abrangência evidencia-se nas diversas serendipidades que nutrem a
narrativa em seu processo de progressão diegética. Mencionou-se, outrossim, que
os paratextos epigráficos em questão, mormente o primeiro deles, sinalizam para
uma faceta autorreflexiva do texto. É a hora oportuna, pois, de aprofundar esta
última questão.
O presente tópico, por sua vez, pretende deter-se na epígrafe de John Barth,
a fim de refletir sobre Um defeito de cor como um romance da serendipidade, numa
perspectiva intertextual, pelo viés da metaficcionalidade. Para tanto, será necessário
um debruçamento sobre o contexto da citação em estudo e um trabalho de detecção
de outras narrativas que dialogam com os paratextos epigráficos e com o próprio
romance de Barth, na intenção de verificar se esse panorama palimpsêstico
colabora com a dimensão autorreferencial da narrativa em Ana Maria Gonçalves. A
epígrafe em estudo revelará tal dimensão por intermédio da figura de Sherazade,
narradora das histórias no livro das Mil e Uma Noites como o protótipo de contadora
de histórias. Ou Scheherazade, uso anglófono adotado por Barth para designar a
personagem em The Last Voyage of Somebody the Sailor (1991), de cuja obra
partirão os fundamentos da presente reflexão.
No contexto editorial do ocidente, as histórias narradas pela sultana
Sherazade, como tais, eram um universo desconhecido e inexplorado pelo leitor
ocidental até o início do século XVIII. Antecipa, pois, a primeira edição árabe
impressa, a chamada Primeira edição de Calcutá, em dois volumes, publicada nos
127

anos de 1814 e 1818, sob a supervisão de Ahmad Bin Mahmud (JAROUCHE,


2015a, p. 29).
O que havia, até então, eram manuscritos que circulavam no mundo
islâmico, artefatos estes produzidos por copistas ao longo dos séculos. As
coletâneas de textos que não se perderam no tempo são divididas em duas
vertentes: ramo sírio e ramo egípcio. O primeiro ramo consiste em manuscritos cuja
região abrange o Líbano, a Síria e a Palestina atuais, contempla manuscritos
copiados entre os séculos XIV e XVIII (JAHROUCHE, 2015b, p. 7). Característica
curiosa, nenhum dos manuscritos desse ramo completam as mil e uma noites, na
verdade, encerrando-se na 282ª noite. Por sua vez, o segundo ramo provém do
Egito e abrange os séculos XVII e XVIII. São os únicos que contemplam todas mil e
uma noites. Em compensação, a busca desmedida para conseguir histórias e
manuscritos para atingir essa soma, propiciou a inserção indiscriminada de
narrativas espúrias, repetições de histórias, dentre outros problemas (JAHROUCHE,
2015b, p. 8).
Tal panorama se reverte em 1704, com a publicação do primeiro volume de
Les Mille et une Nuits, contes árabes traduits em français79 pelo orientalista Jean
Antoine Galland, iniciativa editorial essa considerada por Jorge Luís Borges “um
acontecimento fundamental para todas as literaturas da Europa” (BORGES, 2011, p.
1512). Malgrado o que anuncia o subtítulo, o livro de Galland, em verdade, constitui-
se mais em uma adaptação do que propriamente em tradução, haja vista o interesse
editorial em agradar os “gostos e usos” do público leitor da época (HAGÉGE, 1980,
p. 132).80
Em uma conferência sobre os tradutores das Mil e uma Noites, Jorge Luís
Borges também considera a tradução do orientalista francês deficitária, em relação
às que se seguiram. Entretanto, o escritor reconhece-lhe o valor como aquele que
introduziu o imaginário “mileumanoitesco” no ocidente e estabeleceu um canon para
os tradutores subsequentes, oferecendo, em primeira mão, o mundo precioso e

79
Mil e Uma Noites, contos árabes traduzidos em francês (tradução nossa).
80
Segundo Claude Hagége, as infidelidades da tradução de Galland justificam pela competência do
tradutor, mas no fato de que ele "ele traduziu as Mil e Uma Noites para um público cujos gostos e
usos excluíam qualquer técnica que não fosse a adaptação. Sua obra é, portanto, parte de um
período específico na história das concepções de tradução, e deve, portanto, ser julgada tendo
esse quadro como referência. (HAGÉGE, 1980, p. 132, tradução nossa). “Il a traduit les Mille et une
Nuits pour un public dont les goûts et les usages excluaient toute technique que l’adaptation. Son
oevre s’inscrit donc dans une période specífique de l’histoire des conceptions qu’on s’est faites de la
traduction, et doit, dès lors, être jugée par référence à ce cadre”. (HAGÉGE, 1980, p. 132)
128

mágico das narrativas de Sherazade. Mesmo depois de tantas traduções


subsequentes e melhores, defende Borges, a de Galland continua como referência
na Europa e nas Américas, como a primeira que se vem no pensamento, quando se
pensa nas Mil e Uma Noites (BORGES, 1984, p. 397). É nesse sentido, que o
escritor argentino, afirma:

Palavra por palavra, a versão de Galland é a pior escrita de todas, a mais


embusteira e a mais débil,mas foi a melhor lida. Aqueles que se tornaram
íntimos dela, conheceram a felicidade e o assombro. Seu orientalismo, que
agora nos parece frugal, acorrentou a quantos aspiravam rapé e tramavam
uma tragédia em cinco atos. Doze primeiros volumes apareceram de 1707 a
1717, doze volumes inúmeravelmente lidos e que foram vertidos para
diversos idiomas, incluindo o hindustani e o árabe. Nós, meros leitores
anacrônicos do século vinte, percebemos neles o sabor meloso do século
XVIII e não o desvanecido aroma oriental, que há duzentos anos
determinou sua inovação e glória81. (BORGES, 1984, p. 398, tradução
nossa).

À parte as severas e numerosas críticas ao trabalho de Galland, o fato é que


seu livro obteve um extraordinário sucesso, difundindo-se, em pouco tempo, por
toda a Europa e pelo mundo ocidental afora, consequentemente, de modo a
influenciar fortemente as artes e a cultura ocidentais, voltando-lhes a atenção para o
oriente.
Tamanho êxito despertou o interesse de vários estudiosos europeus, que, a
partir das fontes originais, verteram as Mil e Uma Noites para as suas línguas
nativas. Dentre essas empreitadas, destacam-se as traduções de Joseph Charles
Mardrus para o francês (de 1899 a 1904), Edward Lane (em 1859) e Richard Francis
Burton (entre 1885 e 1888), ambos para o inglês, e Enno Littman (de 1921 a 1928)
para o alemão (PELLAT, 2011, p.229).
Aliás, a respeito disso, o arabista e tradutor brasileiro Mamede Mustafa
82
Jarouche , no estudo O Livro das Mil e uma Noites: Dilemas e opções de uma
tradução, lamenta que, na contramão de todas as línguas modernas que dispunham

81
“Palabra por palabra, la versión de Galland es la peor escrita de todas, la más embustera y más
débil, pero fue la mejor leída. Quienes intimaron con ella, conocieron la felicidad y el asombro. Su
orientalismo, que ahora nos parece frugal, encandiló a cuantos aspiraban rapé y complotaban una
tragedia en cinco actos. Doce primorosos volúmenes aparecieron de 1707 a 1717, doce volúme-
nes innumerablemente leídos y que pasaron a diversos idiomas, incluso el hindustani y el árabe.
Nosotros, meros lectores anacrónicos del sigle veinte, percibimos en ellos el sabor dulzarrón del
siglo dieciocho y no el desvanecido aroma oriental, que hace dos- cientos años determinó su
innovación y su gloria. (BORGES, 1984, p. 398).
82
O título da tradução de Jarouche é Livro das Mil e uma Noites, o que não é tão previsível, pois a de
Galland, no Brasil, intitula-se As mil e uma noites.
129

de, pelo menos, uma tradução direta do Livro das Mil e uma Noites, o português
contentava-se com algumas traduções indiretas. Dentre elas, Jarouche (2007)
destaca uma, publicada em Portugal, a partir do trabalho de Mardrus, realizado “por
um seleto grupo de literatos portugueses”, que, entretanto, “não passava disso: uma
excelente e caprichada tradução de obra literária francesa” (JAROUCHE, 2007, p.
362). Felizmente, a primeira tradução direta para a língua de Camões veio à luz no
ano 2005, em quatro volumes, por obra do próprio Jarouche, depois de um trabalho
que durou dez anos, entre pesquisa e tradução propriamente dita de fontes
manuscritas antigas. A peculiaridade da tradução brasileira em questão é dividir a
obra conforme a proveniência dos manuscritos, sendo que os dois primeiros
volumes contemplam os textos do ramo sírio e os dois últimos, as narrativas do ramo
egípcio.
Percebeu-se, nessa breve abordagem, que, no próprio processo de
formação do corpus narrativo do Livro das Mil e uma Noites, a recontação tem um
papel preponderante, não apenas no período em que os copistas realizavam o
trabalho de recolha de manuscritos e histórias, como também no período das
traduções e versões para as línguas modernas, iniciadas com Antoine Galland. De
certa forma, não é errôneo afirmar que, ao longo dos séculos, acompanharam
Sherazade uma miríade de co-particícipes em sua arte de narrar. Em reforço a tal
assertiva, vale o que afirmou, a respeito disso, Borges (2011) em conferência à
Universidade de Belgrano e posteriormente publicada em Siete noches (1980):

Vejamos a história desse livro; em seguida, a de suas traduções. A origem


do livro é obscura. Poderíamos pensar nas catedrais erroneamente
denominadas góticas, que são obras de gerações de homens. Mas há uma
diferença essencial, ou seja, que os artesãos, os artífices das catedrais,
sabiam muito bem o que estavam fazendo. Em compensação, As mil e uma
noites surgem de modo misterioso. São obra de milhares de autores e
nenhum deles pensou que estava construindo um livro ilustre, um dos livros
mais ilustres de todas as literaturas, mais apreciado no Ocidente que no
Oriente, ao que me dizem.” (BORGES, 2011, p. 1546-1547).

Se a atribuição borgiana de ignorância pode ser pertinente em relação a


todos os que se envolveram no mister de difundir O Livro das Mil e uma Noites, no
que se refere aos copistas dos manuscritos e primeiros tradutores do ocidente, , não
se pode dizer o mesmo de um escritor da contemporaneidade que, mais do que
ciente da importância das Noites, confessa-se pessoalmente apaixonado por
Sherazade e suas histórias, tomando, para si, o encargo de recontá-las, isso,
130

quando em suas narrativas, não é a própria sultana que os reconta, num jogo
barroquizante, autoconsciente, metaficional, paródico. Esse escritor, que também é
professor e literato, é o norte-americano John Barth.
Segundo o próprio Barth, sua relação com Sherazade constitui-se em um
verdadeiro “caso de amor de longa data e continua até hoje” (BARTH, 2013, p. 31).
A paixão surge em sua juventude de estudante pobre, assistente da biblioteca de
orientalística, na Universidade John Hopkins. Lá, sob a discreta permissão dos
chefes, passou horas a descobrir e ler avidamente grandes clássicos da literatura
oriental, dentre eles as Mil e uma noites, na tradução de Richard Burton (BARTH,
2013, p. 31), obras essas que o impressionaram sobremaneira.
Para Barth, Sherazade é o modelo de contadora de histórias e inspiradora
do seu próprio fazer literário, principalmente no que diz respeito ao modo que a
sultana narra, lançando mão da narrativa enquadrada, iniciada por meio de uma
história-moldura:

Esqueci-me da maioria desses fascinantes mentirosos83, mas de


Sherazade, nunca. Embora as histórias que ela conta não estejam entre as
minhas favoritas, ela continua a ser a narradora predileta, e o inebriante
paradoxo que é tal persistência, sendo equivalente à sua intenção literal,
gera-se a si mesma, e vem a tornar-se, também, o emblema da minha
ambição metafórica. Quando penso na minha condição e na minha
esperança, no que diz respeito à musa, no tempo que transcorrerá entre
este momento e quando rerminarei a tinta ou expirarei de outra maneira, é
Sheherazade que me vem à mente, por muitas razões – não menos
importante entre eles, um interesse metodológico na antiga ferramenta da
narrativa-moldura, utilizada com maior beleza nas Noites do que em
84
qualquer outra obra que eu tenha conhecimento. (BARTH, 2013, p. 32,
tradução nossa).

A frame-tale à qual Barth se refere constitui-se no equivalente ao que


Mamede Mustafa Jarouche denomina “prólogo-moldura”85, isto é, a primeira
narrativa de toda a coleção de histórias e que serve de fundamento para uma leitura

83
Borges se refere aos narradores das obras que leu na biblioteca universitária onde trabalhou.
84
La maggior parte di quegli affascinanti mentitori li ho dimenticati, ma Sheherazade mai. Per quanto
le storie che racconta non siano tra le mie preferite, lei rimane la narratrice prediletta, e il paradosso
inebriante è che questa persistenza, essendo un corrispettivo del suo intento letterale, genera se
stessa, e giunge a divenire anche l’emblema della mia metaforica ambizione. Quando penso alla
mia condizione e alla mia speranza, per quanto concerne la musa, nel tempo che trascorrerà fra
questo momento e quando finirò l’inchiostro o andrò a spirare in altro modo, è Sheherazade che mi
viene in mente, per molti motivi – non ultimo tra questi un interesse metodologico per l’antico
strumento della storia-cornice, usato con maggior leggiadria nelle Notti che in qualsiasi altra opera di
mia conoscenza. (BARTH, 2013, p. 32).
85
O termo prólogo moldura será adotado neste trabalho por conta do papel paratextual que a primeira
seção textual exerce sobre o resto do texto.
131

coerente e articulada das demais (JAROUCHE, 2004). Esta primeira história não é
contada por Sherazade, mas por outrem, um narrador não identificado, de modo que
ela situa-se como personagem.
Valendo-se da tradução integral de Jarouche a partir de um manuscrito do
ramo egípcio na revista Tiraz, cumpre descrever, em poucas linhas, o enredo dessa
epígrafe das Noites, visto que percebeu-se o mesmo procedimento de epígrafe-
moldura nas obras de Barth a serem abordadas e, também, no romance de Ana
Maria Gonçalves.
A história introduz-se narrando que o rei dos sassânidas86 tinha dois filhos,
Šhāhriar, o mais velho e Šāh Zamān. Depois de vencer uma grande batalha contra
os chineses, nomeou Šhāhriar seu sucessor e o filho caçula, governador de
Samarcanda, na Índia, de modo que ficaram os irmão dez anos distantes um do
outro.
Com saudades do irmão mais novo, o sultão sassânida deseja reencontrá-lo.
Para tanto, ordena ao seu vizir que fosse ao reino do irmão, a fim de trazê-lo consigo
para uma temporada de convivência. Importante destacar que, logo na primeira
menção ao vizir, o narrador insere um aposto, pelo qual explica que o primeiro
ministro “tinha duas filhas, a maior chamada Šahrazād e a menor, Dinazād”
(JAROUCHE, 2004, p. 80).
Šāh Zamān, pouco antes de empreender a sua viagem com o vizir, no meio
da noite, surpreende a esposa, na cama nupcial, dormindo abraçada com “um dos
garotos que trabalhavam na cozinha” (JAROUCHE, 2004, p. 80). Matou a ambos e
seguiu viagem com o vizir.
No reino do irmão, o caçula definhava a olhos vistos, remoendo o adultério
da esposa, sem revelar a causa de sua tristeza a Šāhriyār, que tentava agradá-lo
das mais diversas maneiras.
Suspeitando que Šāh Zamān estivesse com saudades da esposa e de sua
terra, o irmão mais velho decide convidá-lo para uma caçada, que duraria dez dias,
finda a qual poderia o mais novo retornar para Samarcanda. Zamān recusa a oferta
do irmão, de modo que este último parte com seu séquito e o mais novo fica no
palácio remoendo obcessivamente a sua desgraça.

86
Em nota de rodapé de outra tradução da mesma narrativa, mas proveniente do ramo sírio,
Jarouche explica que a “dinastia sassânida, que em seus tempos áureos desfrutou de muito poder
e glória, governou a Pérsia de 226 a 641 d.C., quando foi destronada pela conquista muçulmana”.
(JAROUCHE, 2015a, p. 39).
132

Nessa situação, recluso em seus aposentos, observa de sua janela, a


existência de uma porta secreta, de onde “saiu a senhora esposa de seu irmão entre
vinte criadas – dez brancas e dez negras –, requebrando no meio delas como se
fora uma gazela sedenta”. (JAROUCHE, 2004, p. 81).
Sem ser percebido, Šāh Zamān descobre que as dez criadas brancas eram,
na verdade, “dez escravos machos, que se lançaram sobre as dez criadas brancas”
(JAROUCHE, 2004, p. 81). Além disso, testemunha a relação sexual da esposa de
Šāhriyār com outro escravo negro, chamado Mascūd, em meio àquela orgia que
durou toda uma manhã.
Retornado da caçada, Šāhriyār percebe Zamān bastante animado e
questiona o motivo daquele restabelecimento. Depois de muita insistência, o irmão
caçula conta a história do seu infortúno e, depois, a causa de sua recuperação, que
pode ser sintetizada no pensamento que teve, ao descobrir a traição da cunhada:

se isso ocorreu ao meu irmão, que é o maior rei da terra, se até a ele
sucedeu tamanha desgraça dentro de sua casa sem que ele saiba, como
será então o caso de outros homens? O que me sucedeu por parte de
minha mulher é mais fácil de suportar. (JAROUCHE, 2004, p. 81).

Šāhriyār a princípio não pode acreditar no relato do irmão. Entretanto,


constatado o adultério, por meio de um flagrante planejado, o irmão mais velho mata
a sultana, assim como todos do palácio. Desgostoso, resolve viajar errante pelo
mundo, na companhia do irmão, e somente retornar quando for encontrado, nesse
percurso, uma vítima de uma desgraça maior do que a sofrida por ambos.
Durante essa empreitada, escondidos, descobrem um gênio que retirou, do
fundo do mar, uma caixa, dentro da qual saiu uma mulher que, por conta de sua
extraordinária formosura, fora sequestrada por aquele espírito do mal e tornada sua
escrava. Essa é a história que a mulher conta aos irmãos, após ter embalado o
gênio, que adormece, na praia. Além disso, disse que toda a vez que o seu algoz
dormia, ela, por vingança, mantinha relações carnais com qualquer homem que
aparecesse, de cada qual pedindo um anel para reter consigo. Tinha noventa e oito.
Sob chantagem, obriga os dois irmãos ao sexo, de modo que completa cem anéis à
sua coleção.
Dessa feita, Šāhriyār chega à conclusão de que o gênio é mais desgraçado
que ele e decide que ambos os irmãos devem regressar aos respectivos reinos.
133

Além disso, faz o propósito de “não se manter casado com mulher nenhuma mais do
que uma única noite, matando-a assim que amanhecesse”, pois “não creio que em
toda a face da terra exista uma única mulher que possa ser esposa” (JAROUCHE,
2004, p. 86).
Durante três anos, o sultão manteve sua palavra, de modo que, em
decorrência de tamanha matança, o reino esvaziou-se de moças, muitas das quais
fugiam para terras vizinhas, a fim de manter-se vivas.
Nesse contexto, aparece a figura de Šahrazād na narrativa. Ela é
apresentada como uma mulher culta, que “tinha lido livros, compilações e
provérbios, decorado poesias e analisado as crônicas históricas; estava a par dos
vestígios e das palavras dos reis e dos sábios; lera e compreendera”. (JAROUCHE,
2004, p. 86).
A moça revela que deseja ser oferecida ao rei, mas não para continuar o
infindável morticínio de virgens. Do contrário, ela pretende, com o seu ato, a
cessação da injustiça. Note-se, portanto, que Šahrazād possui uma intencionalidade
libertadora, mesmo que seu propósito não tenha eficácia e ela também se torne
vítima: “Minha intenção é salvar você [o vizir] e os filhos dos muçulmanos e livrá-los
do assassinato. Se eu me revelar incapaz, que ele me mate, meu pai, e assim eu
pararei de me preocupar com você”. (JAROUCHE, 2004, p. 86).
Exaustivamente, o pai refuta e recrimina a estapafúrdia ideia fixa de
Šahrazād, inclusive lançando mão de uma história parabólica, para reforçar o
discurso referente à sua desaprovação quanto a isso. Esta, em contrapartida, insiste
reiteradamente que o pai deveria oferecê-la ao rei, por ser “absolutamente
imperioso” que o fizesse (JAROUCHE, 2004, p. 89). Sem mais argumentos, mas
contrariao, o vizir entrega a filha ao sultão.
Prestes a ser oferecida, Šahrazād revela à Dināzād o seu plano libertador e
pede a cumplicidade da irmã em sua realização:

“entenda a minha recomendação: quando o rei me possuir, eu vou mandar


chamar mandar você; venha até mim e diga: ‘minha irmã, por Deus, conte-
nos uma de suas histórias maravilhosas’, e então eu contarei ao rei histórias
que serão o motivo da minha salvação e das outras jovens que o rei ainda
poderá matar”. E a irmã disse: “ouço e obedeço”. (JAROUCHE, 2004, p.
91).
134

O planejamento inicial de Šahrazād ocorre exatamente como pensara e o


prólogo-moldura termina com dois períodos que pedem o início das narrativas orais
da engenhosa filha mais velha do vizir: “Disse a irmã mais velha: ‘se o rei me
autorizar, eu contarei’. E o rei disse: ‘conte’.” (JAROUCHE, 2004, p. 91).
A leitura dessa narrativa permite que se constate que a metaficcionalidade é
um recurso literário antigo. Em primeiro lugar, no sentido de que ela consiste em em
uma história que contextualiza e explica a razão de ser das narrativas não como
uma sequência ou enumeração sem lógica. Ao contrário, o prólogo-moldura do Livro
das Mil e uma Noites demonstra que as centenas de histórias subsequentes
contadas pela narradora, noite após noite, têm o propósito libertador de, por
intermédio da ferramenta encantatória da contação, salvar o reino e a si própria da
morte.
Em segundo lugar, na tradução integral de Jarouche (2004), fica evidente,
por diversas vezes, a marcação textual que indica a presença do narrador, por
intermédio da frase introdutória “disse o narrador” (p. 79; 81-90). Ao mesmo tempo,
a presença do verbo de dizer estabelece, com essas reiterações, uma dramatização
da oralidade, o que também ocorre com as personagens, cujas falas são
antecedidas com a colocação do mesmo tipo de verbo.
Por fim, vale observar que o prólogo-moldura prenuncia a estrutura da
construção das histórias das Noites, dentro da perspectiva da narrativa enquadrada.
O prólogo é uma história, que contém outra história, que, por sua vez, pode conter
outras. O texto inicia com um narrador não marcado. No segundo parágrafo, por sua
vez consta o já citado “Disse o narrador” (JAROUCHE, 2014, p. 79), que, talvez, não
seja o mesmo que iniciou a narrativa. Sob a batuta desse narrador marcado no
texto, há, por exemplo, a “História do fazendeiro, do boi e do burro”, contada pelo
vizir para dissuadir Šahrazād, dentro da qual, as personagens também dizem algo.
Ora, o prólogo de Um defeito de cor também põe a termo um procedimento
similar. Como já se demonstrou, a narradora desta seção textual mistura ficção e
autobiografia para explicar como encontrou os manuscritos de Kehinde, simulando a
veracidade histórica do documento, além de informar ao leitor quais critérios utilizou
para transformar o conteúdo daqueles papéis antigos em romance.
Além disso, ocorre um enquadramento narrativo, no sentido de que a autora-
personagem do prólogo que, inclusive considera a história como sua, tece uma
135

narrativa, que reporta a Kehinde e esta, em seu relato, dá voz, pelo discurso indireto,
a centenas de histórias de outros personagens.
De certa forma, há, igualmente, um outro tipo peculiar de enquadramento
que se efetua no ato de leitura do texto. Isso, no sentido de que a narradora do
prólogo, pertencente a um contexto narrativo mais amplo, deixa traços de sua
presença ao longo do romance. Tais marcas consistem nos paratextos editoriais
constantes na obra, como notas de rodapé, referências bibliográficas, a divisão em
capítulos, a nomeação dos intertítulos, as epígrafes escolhidas, dentre outros
expedientes. Todos esses componentes apontando para a narradora do prólogo,
que editou e recontou o relato contido nos manuscritos87, como também à autora do
romance. Tais recursos metaficcionais revelam uma atividade autoconsciente que
questiona os limites entre ficção e história, a figura do narrador e a figura do autor.
Nesse sentido, do ponto de vista intertextual, a epígrafe de John Barth
constante no prólogo de Um defeito de cor, funciona como um portal ou limiar a
remeter, primeiramente ao romance The Last Voyage of Somebody the Sailor, de
onde a citação foi extraída. Last Voyage, por sua vez, remete à personagem
Scheherazade, contida no texto barthiano. Scheherazade, por sua vez, aponta para
a contação de histórias e a maneira com que tais narrativas são contadas ou
recontadas pela sultana nas Mil e uma Noites. De todo esse labirinto de molduras,
vale voltar a atenção à Scheherazade como personagem de Barth e como ela se
constitui metáfora do ato de narrar no romance de Ana Maria Gonçalves,
personificada em Kehinde/Luísa.
Em linhas gerais, The Last Voyage of Somebody the Sailor trata de um
intrincado, autocentrado, mas fascinante jogo narrativo, que estabelece um forte
liame entre a tradição da oralidade dramatizada no Livro das Mil e uma Noites e o
romance metaficcional típico de Barth. Esse imbricamento entre o passado literário e
a contemporaneidade é construído por uma contação alternada de histórias entre
dois narradores, como num duelo de narrativas, em plena Bagdá medieval: um deles
é a personagem Sindbad the Sailor (Simbad, o Marujo), o anfitrião desse encontro,
que reconta seis das sete viagens já narradas nas Noites, plenas de aventuras,
naufrágios, riquezas, criaturas maravilhosas, paixões. O outro é Somebody the
Sailor – tomar-se-á a liberdade de doravante chamá-lo de Alguém o Marujo - que

87
Note-se que essa reflexão poderia dar margem à lembrança dos copistas do Livro das Mil e uma
Noites e mesmo a Galland em sua versão da obra.
136

contará a trajetória de vida e as intenções literárias de um jornalista e escritor do


século XX, natural de Maryland, Estados Unidos, chamado Simon Behler, uma
espécie de máscara autorreferencial do próprio Barth (recurso peculiar das
narrativas barthianas).
Note-se que a dualidade Sindbad X Somebody não implica apenas numa
brincadeira com a sonoridade das palavras, como também na pluralidade do jogo
narrativo proposto e dos agentes envolvidos. Além disso, parodia a história contada
por Sherazade na sexagésima nona e septuagésima noites da versão de Galland.
Nelas, a sultana conta a história do carregador Hindbá que, sentindo os deliciosos
odores do festim promovido por Simbá, sente inveja e impreca a Deus contra
tamanha injustiça. Simbá manda chamá-lo ao seu banquete como conviva e, tendo
Hindbad como principal alvo, conta a todos os participantes da festa a história das
suas sete viagens, como a mostrar que a sua riqueza foi obtida a custo de muitos
sacrifícios (As mil e uma noites, 2015, p. 202-207).
Os dois primeiros capítulos do romance de Barth, intitulados “The Familiar
stranger” 88 e The Destroyer of Delights or, The Last Story of Scheherazade, as Told
by the Narrator of the Foregoing89 funcionam como molduras narrativas e jogam com
a alternância de dois pontos de vista: Simon Behler, o narrador, e Scheherazade;
ambos estão idosos, à beira da morte e prestes a contar a sua última história.
Percebe-se a lógica do enquadramento narrativo: Behler vai contar a história de
Scheherazade, que, por sua vez, contará a história de Alguém o Marujo e assim por
diante. Embora a narrativa seja enquadrada, percebe-se um espelhamento entre as
duas personagens, que se encontram hospitalizadas e recebem visitas para quem
contarão uma história.
Behler recebe uma jovem não identificada, a quem faz, de chofre, uma
proposta:

“Eu poderia te contar a história de Scheherazade...”


“Eu já ouvi”.
“Não essa versão”. (BARTH, 2016, p. 3, tradução nossa).

Behler, narra a história de uma Scheherazade idosa, avó, que testemunha,


por diversas vezes, a visita da morte, o “Destruidor de Delícias”, a membros de sua
88
“O estranho familiar”(BARTH, 2016, p. 7, tradução nossa).
89
"O Destruidor de Delícias ou, A Última História de Scheherazade, como contado pelo Narrador do
Precedente” (BARTH, 2016, p. 11, tradução nossa).
137

família, como ao marido, ao filho, ao pai, à irmã Duniazade, a um dos netos, de


modo que chega a pedir que o destino final também viesse para ela.
Quando chega a sua hora, o encontro inevitável com o fim da existência se
dá durante uma noite e a morte vem personificada em um homem, que, “ouvinte
gentil” (BARTH, 2016, p. 8, tradução nossa)90 pede a Scheherazade conte uma
história. Após longo diálogo, em resposta ao pedido feito, a personagem se propõe a
contar uma cujo título é homônimo ao do romance (BARTH, 2016, p. 10). No fim do
capítulo, Baylor, o narrador faz uma interpelação ao narratário e, também ao leitor,
que o ajude a imaginar a continuação da história:

Podemos imaginar então, você e eu – não podemos? – Que ela passa a


dizer a seu estranho familiar (com uma pequena ajuda sua, de verdade,
senhora: "Baylor" o contador de Behler o Falhador) o tempo todo-
escarranchando história de91 (BARTH, 2016, p. 10)

Vale mencionar que a preposição de, que encerra a citação, é bastante


instigante, pois sugere uma lacuna a ser preenchida pela co-narração do leitor, bem
como uma continuidade do enunciado no título do capítulo subsequente: “A Última
viagem de Alguém o Marujo” (BARTH, 2016, p. 11). Tal procedimento é uma
remissão metaficcional da tática narrativa da Sherazade das Noites, para salvar as
suas conterrâneas das mãos assassinas do sultão e, ao mesmo tempo, manter a
própria vida: sempre terminar a contação de uma história com o desfecho em aberto,
a fim de poder continuá-la numa próxima vez. Também remete ao que Hutcheon
(1980) denomina um paradoxo metaficcional pós-moderno, como ficção que rompe
com a postura, a partir do realismo do século XIX, de negação das marcas do autor
como narrador no texto. Ao contrário, o autor pós-moderno, como John Barth,
afirma-se na narrativa, deixando nela marcas das suas prestidigitações
autoconscientes. O leitor, ao invés de conformar-se com essas manipulações do
autor/narrador, no nível da linguagem, é convidado a ser um co-criador, participar
dos “bastidores da produção” por meio do processo de leitura:

90
“gentle listener” (BARTH, 2016, p. 8).
91
“We may imagine then, you and I — may we not? — that she goes on to tell her familiar stranger
(with a little help from yours truly, ma’am: “Baylor” the Taler of Behler the Failer) the whole time-
straddling story of” (BARTH, 2016, p. 10).
138

A obra narcisista, no entanto, se apropria da consciência do leitor de uma


forma mais deliberada e paradoxal, pois aqui deve viver dentro de um
universo reconhecidamente ficcional como ele lê. Permite à obra exigir
constantemente respostas comparáveis no âmbito e talvez a participação
92
ativa na própria formação dessa ficção. (HUTCHEON, 1980, p. 140).

Quanto à epígrafe do prólogo, antes da citação ser amputada de seu texto


de origem e implantada em Um defeito de cor, convém que se volte o olhar ao
romance de Barth e se lhe resgate (da citação) o contexto literal, de modo a
descobrir se pode oferecer algo mais sobre sua conexão de sentido com a presente
discussão e colher umas últimas observações a respeito do assunto tratado.
O extrato em questão situa-se no terceiro capítulo de Barth, no qual expõe,
sinteticamente “a versão oficial” da sétima viagem de Sinbad, rumo a Serendib (atual
Ceilão), para cumprir a ordem de Haroun al-Rashid, de retribuir os ricos presentes
que recebera do rei da ilha, via Sinbad, que havia passado por lá em sua sexta
viagem. Em seguida, o narrador contrapõe-se a essa versão consagrada da história,
afirmando que, no romance, não será Sindbad a empreender esta última viagem,
mas Somebody (Alguém) um “náufrago de rua do Aqui Agora”93 (BARTH, 2016, p.
13, tradução nossa):

Até aqui, tudo bem: mas (aí vem a nossa história) não foi Sindbad o
marinheiro que fez essa viagem final. Sindbad, o Marinheiro, não teve
nenhuma birra com o projeto do califa, embora ele nunca antes zarpe com
qualquer motivo mais nobre do que a irrequieta ganância. Como ele sabia
da difícil experiência, no entanto – e declarará aos seus convidados do
jantar, no final de seu jejum de um mês – você não chega a Serendib
traçando um roteiro. Você tem que sair de boa fé para outro lugar e perder o
94
rumo ... serendipitosamente. (BARTH, 2016, p. 13, tradução nossa).

Perceba-se que o narrador fala de uma “nossa história” versus uma história
oficial. Tal expressão em primeira pessoa do plural talvez seja mais uma chave para
estabelecer as transações de textos, sentidos, histórias e personagens, que

92
“The narcissistic work, however, appropriates the reader’s consciousness in a more deliberate and
paradoxical manner, for here he must live within an ackowledgedly fictional universe as he reads. Iet
the work constantly demands reponses comparable in scope and perhaps active participation in the
very formation of that fiction.” (HUTCHEON, 1980, p. 140).
93
“streetwise castaway from the Here and Now”. (BARTH, 2016, p. 13).
94
“So far, so good: but (here comes our story) it wasn’t Sindbad the Sailor who made that final
voyage. Sindbad the Sailor had no quarrel with the caliph’s project, though he’d never before set sail
with any motive nobler than restless greed. As he knew from hard experience, however — and will
presently declare to his dinner guests, at the end of their monthlong fast — you don’t reach Serendib
by plotting a course for it. You have to set out in good faith for elsewhere and lose your bearings …
serendipitously”. (BARTH, 2016, p. 13).
139

permitam aproximar Sheherazade e Kehinde/Luísa. Ambas exímias contadoras de


histórias e contadoras de contadores de histórias, idosas, próximas do fim da
existência. As duas resgatadas pelos autores/narradores dos textos
contemporâneos, um norte-americano, outro brasileiro, oferecendo sobejas marcas,
rastros, indícios que unem a memória da tradição à história presente.
Entretanto, nesse processo, a autorreferencialidade do romance não basta.
É estritamente necessário o papel do leitor na detecção dessas marcas, bem como a
descoberta pertinente, por parte dele, das conexões entre os rastros deixados no
texto. Dessa forma, o leitor participará da “nossa história” e contribuirá como co-
autor do processo fabulatório.
Nesse sentido, a epígrafe de John Barth desempenha um papel fundamental
na leitura do romance de Ana Maria Gonçalves, atribuindo-lhe uma dimensão
metaficcional que, inclusive, tece uma rede de relações com as outras epígrafes,
tanto das dedicatórias como dos capítulos. Dessa maneira, por meio das marcas
metaficcionais das epígrafes, é possível ler Um defeito de cor, como um romance
sobre o ato do narrar e do recontar.
140

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atribui-se ao escritor e etnólogo malinês Ahmadou Hampaté Bâ a seguinte


máxima, relativa ao importante papel do idoso africano na transmissão da tradição
oral: “Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. Em Um
defeito de cor, a narradora idosa Kehinde/Luísa estava próxima do momento final,
de modo que não se enquadra totalmente na citação de Bâ. Entretanto, pode-se
afirmar, com segurança, que ela continha em si uma biblioteca de livros e histórias
(antigas e novas).
Nesses termos, a personagem pode constituir-se, igualmente, na figuração
de um único livro, uma narrativa singular e única, composta de uma gama de
documentos, bem como de obras literárias, históricas, sociológicas, algumas delas
implícitas em meio ao romance e não descobertas pelo leitor, por não estarem
arroladas nas referências bibliográficas situadas nas últimas três páginas da obra.
Por outro lado, Kehinde/Luísa também é metáfora de uma só narrativa,
enquadrada, na qual está contida uma variedade surpreendente de histórias orais,
tanto dela própria (com a dramatização da oralidade na escrita), quanto aquelas
contadas por outras personagens e guardadas na lembrança. Narrativa essa, fruto
de um trabalho pessoal da protagonista em resgatar o passado, por meio da
memória, dando-lhe um significado à luz da tradição que recebera dos ancestrais.
Dessa feita, esses são alguns dos motivos pelos quais a oralidade tradicional é o
pano de fundo que orientou a análise de Um defeito de cor por intermédio de seus
paratextos epigráficos.
Entretanto, ao reverter a ordem desse argumento sobre a importância da
oralidade para o estudo do corpus, é possível dar às epígrafes do romance um papel
de agente metaficcional. Nesse sentido, os paratextos epigráficos em questão
constituem-se em rastros deixados na obra, que remetem à transmissão da tradição
via oralidade. Dessa feita, à função costumeira de glosar o texto a que se refere –
como o esperado -, acrescentam-se às epígrafes o encargo autorrefencial de índices
que apontam para o próprio fazer literário e ao ato de narrar, à luz da tradição oral.
As três epígrafes contidas na dedicatória confirmam este argumento, pois
remetem a três frentes narrativas que guiam o romance: primeiramente o respeito
aos mais velhos, exemplos a serem seguidos e depositários dos valores ancestrais;
em segundo lugar, as redes de solidariedade, reveladoras de generosidade mútua,
141

companheirismo e resistência no contexto da afro-diáspora; por fim, a transmissão


da tradição, referência às inúmeras personagens que repassaram oralmente à
narradora os valores tradicionais de África, bem como à própria narração de
Kehinde, o que consiste, também, em uma ocorrência de metaficção.
Per se, a simples presença das epígrafes capitulares no romance, todas elas
constituídas de provérbios africanos, remete à tradição oral, como indicadora de
marcas autorais a sugerir uma resposta reflexiva de quem as lê. O rastro mais óbvio
que permite uma associação quase imediata, no ato de leitura, é a indicação ,
inserida abaixo das sentenças epigráficas que esclarecem a modalidade textual
primeva de cada epígrafe (provérbio) e sua origem (africana).
Mesmo não ciente disto, quando o leitor se defronta com cada uma delas, no
decorrer do romance, tem a oportunidade do encontro com todo um saber
tradicional, sintetizado em um enunciado curto, simples, de memorização fácil,
transmitido de boca a ouvido desde eras ancestrais. A transferência desse saber
antigo e fundamental para o funcionamento de todas as instituições africanas
tradicionais deve ser feita por alguém credenciado para tal, em situação adequada e
num clima mágico-religioso e performático. Além disso, os provérbios sintetizam a
narrativa e o discurso do contador que, geralmente, visa à resolução de algum
problema da comunidade e utiliza esse recurso para facilitar a memorização dos
ouvintes.
Transpostos ao romance, os provérbios sofrem uma transformação. Sua
comunicação perde a presença física do contador de histórias e o caráter acústico,
característica principal da transmissão oral da tradição. Esses dois fatores dão lugar
à materialidade do livro, que exige, preponderantemente, o sentido visual 95.
Dessa feita, a presença física dos griots, idosos e outros contadores de
histórias cede lugar à materialidade do livro impresso. Transferidas para a linguagem
verbal escrita, isoladas de seu contexto primitivo e bricoladas no romance, tais
epígrafes não podem oferecer ao leitor o seu significado primevo. Isso não consiste,
basicamente, em problema. Ao contrário, corrobora com a liminaridade da epígrafe,

95
Pode-se aventar uma ressalva quanto a isso, no tocante ao público leitor com alguma deficiência
visual, que lança mão dos chamados audiolivros, que lhe permitem o acesso à literatura escrita e
outros gêneros textuais. Embora a comunicação, nesse caso, tenha como prerrogativa o fenômeno
acústico, mesmo assim, os provérbios africanos apresentam-se a esses leitores como citações
inseridas fora de seu contexto tradicional. Ademais o desafio de leitura proposto pelas parêmias
epigráficas é o mesmo para todos.
142

pois abre e amplia as possibilidades de leitura e conexões de sentido pertinentes


que podem ser descobertas, às vezes brindando o leitor com felizes serendipidades.
A propósito, a narradora do prólogo aponta que “Um defeito de cor é fruto da
serendipidade” (GONÇALVES, 2012, p. 9) ao discorrer sobre as diversas situações
pessoais que a levaram a escrever a obra, numa mistura de autobiografia e ficção.
Ademais, as duas epígrafes dessa parte do livro, reforçam a afirmação de sua
narradora de que sua pesquisa preparatória para escrever uma obra sobre a Revolta
dos Malês, de 1835, descambou no romance em estudo, graças à descobertas dos
manuscritos de Kehinde/Luísa e à sua argúcia e preparação para descobrir uma
coisa, enquanto se estava procurando outra (GONÇALVES, 2012).
Quanto aos paratextos epigráficos de Barth e Henry, pode-se chegar a a três
conclusões, no que concerne à sua funcionalidade: a primeira se refere ao seu papel
de glosa do prólogo, reforçando a importância do referido tema nessa seção textual;
em segundo lugar, funcionam como glosa do enredo, pois remetem aos insights que
motivaram as diversas atitudes resilientes e criativas da narradora do romance,
frente às adversidades do sistema escravista, bem como acontecimentos inusitados
e felizes a inspirar a superação de situações desoladoras, muitas vezes sob o
desígnio das divindades ancestrais; a última função consiste no fato de que as
epígrafes em questão apontam para o próprio ato de narrar.
Quanto à esta última função, destaca-se a epígrafe retirada do romance de
Barth, pois o umbral desse paratexto permite um diálogo com The Last Voyage e
sua narrativa metaficcional, enquadrada, que, por sua vez, suscita a possibilidade de
ingresso no mundo maravilhoso do Livro das mil e uma noites e, por fim, encontra
Sherazade, a maior contadora de histórias de todos os tempos.
No romance de Barth, os enquadramentos da narrativa propiciam uma
relação especular entre as personagens, tendo como pano de fundo, o ato de narrar.
Note-se que, em The Last Voyage of Somebody the Sailor, a personagem Simon
Behler, velho e hospitalizado, desejoso de contar a uma jovem visitante uma história
diferente de Scheherazade. A Scheherazade, também idosa e próxima da morte, lhe
é pedido que conte a sua última história. Ela aceita a proposta e narra a última
viagem de Alguém o Marujo que, por sua vez, conta a vida de Behler para Sindbad.
Este, que se prepara para a sétima e última viagem a Serendib, conta as suas
próprias histórias, assim como constam no livro originário e na tradição literária.
143

Talvez por isso, ele não poderá empreender esta viagem. Ela será realizada por
Alguém, que além disso, apaixona-se pela filha de Sindbad e a leva consigo.
A brincadeira com os nomes Sindbad e Somebody não é gratuita. O Alguém
com maiúsculas pode constituir-se em uma marca autoral que sugere uma relação
de espelhamento mais vasta que a interna, entre as personagens do romance
barthiano (Barth e Behler, Scheherazade e Behler, Alguém e Behler, Alguém e
Scheherazade etc). Vale perceber que o elemento comum desse espelhamento
consiste no fato de que todos são contadores de histórias, aos quais a oralidade é
de fundamental relevância.
Destaque-se, ademais, que, por intermédio da epígrafe de John Barth,
Sherazade (ou Scheherazade) é refletida em Kehinde/Luísa, que, durante uma
viagem oceânica, narrará para uma copista todas as histórias pessoais e, também,
aquelas que lhe foram contadas. A sobrevivência pessoal da narradora de Um
defeito de cor, tal qual a de Scheherazade, depende do ato narrativo, a derradeira
viagem. Ora, tão importante quanto o que se conta é a própria contação.
Além disso, deve-se mencionar o aspecto salvífico (poder-se-ia dizer
libertador e histórico) do ato de contar nas duas personagens femininas em pauta. A
narradora oriental assume o encargo de contadora para salvar milhares de virgens
de seu reino, mesmo que seja, ela também, uma vítima de sua própria decisão. Por
sua vez, Kehinde/Luísa faz, de sua memória pessoal, um veículo de resgate da
tradição ancestral e da história da diáspora africana. A atitude da personagem
Kehinde é libertadora, no sentido de que, no plano intradiegético, cumpre o seu
papel transmissional de mãe, repassando ao narratário de seu relato, informações e
sabedorias imprescindíveis do ponto de vista identitário. No plano extradiegético,
apresenta ao destinatário do romance, o leitor, a história da afro-diáspora a partir da
perspectiva individual de uma ex-escravizada.
Há, outrossim, um terceiro elemento que é convidado a participar dessa
relação especular. Ele se encontra fora da diegese e tem um livro em mãos e se
chama leitor. Cabe a ele recolher os rastros significativos deixados no romance e,
por uma manifestação de serendipidade, descobrirá um universo de textos,
contextos, histórias e nexos que transitam e transigem por essas marcas. No caso
de Um defeito de cor, tais pegadas metaficcionais são as citações epigráficas.
Nesse sentido, as epígrafes do romance auxiliam o leitor a detectar que a
narrativa em estudo é um tapete inacabado, como aquele tecido pela avó da menina
144

Kehinde, no início do romance. A última viagem marítima, de Kehinde, não


terminada no enredo, é outra imagem que pode ser inferida a esse respeito. Em
ambos os casos, nota-se a característica comum da incompletude, pois nenhum
deles foi concluído pelas personagens. Quem lhes dará compleição e unidade senão
o leitor, de forma a tornar-se co-participante no processo fabulatório? E, por que não
fazê-lo por intermédio dos paratextos epigráficos contidos no romance em estudo,
verdadeiras marcas metaficcionais deixadas na obra, a fim de que alguém as
recolha e aconteça uma serendipidade?
Enfim, esta tese assume-se, de alguma forma, como uma possibilidade de
resposta às duas perguntas anteriores.
145

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