O Erotismo Na Escrita de Expressao Femin
O Erotismo Na Escrita de Expressao Femin
O Erotismo Na Escrita de Expressao Femin
CAPANEMA – PA
2016
SILMARA DOS SANTOS DA SILVA
CAPANEMA – PA
2016
SILVA, Silmara dos Santos da. O Erotismo na Escrita de Expressão Feminina Pós-
moderna: Uma Análise do conto “Hell’s Angels” de Márcia Denser. Trabalho de Conclusão
de Curso de Graduação apresentado à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará,
Campus Universitário de Capanema, para obtenção do título de licenciada plena em Letras.
Banca Examinadora:
________________________________________________________
Msc. Rosa Helena Sousa de Oliveira (UFPA) – Orientadora
________________________________________________________
Msc. Larissa Fontinele de Alencar (UFPA) – Examinadora
CAPANEMA-PA
2016
AGRADECIMENTOS
Ao Deus todo Poderoso a quem devo minha vida e minhas conquistas, à ele que sempre
esteve guiando meus passos a minha eterna gratidão.
Aos meus pais, minha mãe Irailde e meu pai Aldemar pelo amor e cuidado incondicional,
por acreditarem em meu potencial e sonhar comigo os meus sonhos.
Aos meus irmãos, Ricardo com quem compartilho dos mesmos ideais e visão de mundo,
Moisés e Vanessa pela paciência e confiança, obrigada por estarem sempre prontos a ajudar-
me nos momentos difíceis.
Aos meus poucos porém valiosos amigos de faculdade e de vida em comum presentes
comigo nesta caminhada, sou grata a cada um pelo carinho e companheirismo.
RESUMO
Na era pós-moderna que surge nos anos 1950 e perdura até os dias atuais, podemos perceber
que o erotismo representado na literatura, principalmente, naquela de autoria feminina,
encontra-se intrinsecamente ligado aos discursos emancipatórios em relação ao gênero
feminino com o papel de contestar as restrições sociais e literárias impostas historicamente às
mulheres. Com base nestas reflexões, o foco deste trabalho é voltado para conto Hell’s Angels
da escritora Márcia Denser que traz à tona a temática do erotismo sob a perspectiva da mulher
(escritora/personagem). São expostas algumas concepções teóricas inerentes ao erotismo, bem
como a apresentação de textos em que é possível observar a presença do elemento erótico, além
de uma análise do conto e do erotismo nele impresso.
En la era posmoderna que surge en la década de 1950 y duró hasta el día de hoy, nos damos
cuenta de que el erotismo representado en la literatura, especialmente la de autores de sexo
femenino, está vinculada intrínsecamente a los discursos emancipatorios en relación a las
mujeres con el papel de concurso limitaciones sociales y literarias históricamente impuestas a
las mujeres. Sobre la base de estas consideraciones, el objetivo de este trabajo se centra en la
historia corta Hell´s Angels, el escritor Marcia Denser que pone de manifiesto el tema erótico
visto desde la perspectiva de la mujer (escritor / carácter), se exponen también algunos
conceptos teóricos erotismo inherente y la presentación de los textos en los que es posible ver
la presencia del elemento erótico, así como un análisis de la historia corta y el erotismo se
imprime.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 07
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 37
7
INTRODUÇÃO
O objetivo central deste trabalho é expor o erotismo e revelar o seu papel na literatura de
autoria feminina pós-moderna através da análise do conto Hell’s Angels de Márcia Denser. Isso
fez-se importante uma vez que o erotismo encontra-se abordado ao longo dos séculos pelos
escritos de autoria masculina, percebe-se no entanto, que quando apresentado no âmbito da
autoria feminina alguns paradigmas são desconstruídos e novos discursos surgem,
possibilitando uma série de referências para a construção da identidade feminina no cenário
atual de nossa sociedade.
Este trabalho está dividido em três partes. Por tratar-se de uma escritora pouco conhecida
porque não integrante de um grupo que podemos denominar como ‘cânone literário nacional’,
a primeira parte se dedica a apresentar algumas considerações a respeito da escritora Márcia
Denser como sua trajetória e estilo literário, além de um breve panorama da opinião crítica
acerca de sua atuação no âmbito da literatura.
A terceira e última parte traz a apresentação e análise do conto Hell’s Angels, a análise
teórica em torno dos elementos da narrativa está embasada nas concepções de Arnaldo Franco
Júnior (2003) em Operadores de leitura narrativa. Já a análise acerca do erotismo presente no
conto, além dos conceitos formulados por Bataille (2004) e Paz (1994), baseia-se também nas
ideias do sociólogo Anthony Giddens (1993) em sua obra intitulada A transformação da
intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas.
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Em entrevista cedida ao escritor Wladyr Nader no ano de 2011, Denser conta que
percebeu sua vocação literária ainda criança, aos nove anos, ao ganhar do pai três livros do
escritor Monteiro Lobato, ela lembra que na ocasião se trancou em seu quarto para ler: “A partir
daquele momento, fechei a porta de um mundo (da realidade infantil), porque a porta de um
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outro universo se abriu: o da Literatura, marcando o início dum projeto de vida que manterei
até a morte.” (DENSER, 2011).
O apelido de musa dark da literatura brasileira veio do amigo e também escritor Caio
Fernando Abreu, todavia não é um rótulo apenas que será capaz de definir Márcia Denser, uma
grande escritora da literatura nacional contemporânea apesar de pouco revisitada, ela está muito
além de seu tempo e possui um estilo único incluindo uma escrita tão sugestiva quanto
reveladora no que tange às emoções humanas. Nunca será tarde demais para se descobrir através
da leitura, grandes gênios como Márcia Denser, ao que a própria escritora afirma: “O tempo
lento da leitura jamais será superado: não há outra forma de adquirir o verdadeiro
conhecimento, nem fruir o verdadeiro prazer da grande arte literária.” (DENSER, 2011).
1.2. Obras
Com exceção da novela de aventuras infanto-juvenil A Ponte das Estrelas publicada pela
autora em 1994 e de DesEstórias, seu primeiro livro de não-ficção publicado este ano pela
Kotter Editorial, as obras ficcionais de Márcia Denser, segundo os autores, tratam
recorrentemente de jogos de sedução e relacionamentos conturbados num cenário pós-moderno,
as personagens revelam tipos humanos construídos sob uma perspectiva realista, trazendo
reflexões existenciais através de uma construção textual densa e repleta de ironias. A
bibliografia da autora conta com as seguintes obras (das publicadas no Brasil):
A escritora retrata em grande parte de suas obras uma questão chave nos anos 70 e 80 que
é a sexualidade feminina, representando a mulher em um período de transformações e luta por
emancipação. Os movimentos feministas estavam no auge, todavia os ideais patriarcais ainda
reinavam nos costumes da sociedade que passava por muitas mudanças.
“a mulher como sujeito da ação”, retirando-a da condição de “objeto do homem”, além dum
sério exercício da “ars poética” (DENSER, 2011).
Uma das críticas que mais repercutiu fama e visibilidade à Marcia Denser no mundo das
letras veio do escritor Paulo Francis, em certa ocasião Francis ressalvou:
Há no Brasil uma escritora que sabe escrever. Seu nome é Márcia Denser.
Tem uma linguagem límpida, sem retoques, bem diversa desse pseudo-
romantismo retórico que caracteriza boa parte da nossa ficção. Denser situa-
se entre os raros criadores de linguagem, aqueles que têm algo de muito novo
a dizer. Quanto aos outros, resta-lhes a rabeira da História. (Folha de São
Paulo, 1983).
Nelly Novaes Coelho também está entre os críticos que aclamaram a obra da escritora,
ela faz a seguinte consideração:
Márcia Denser toca as ocultas relações entre Sexo e Poder, o que transformou
o Erotismo em um dos mitos do nosso tempo. Através da ironia, sua obra
evidencia a natureza ética que caracteriza a ruptura com a Tradição. Com um
talento ficcional único, Márcia leva o leitor a segui-la, fascinado na linha
sacrílega a qual se insere, uma linhagem que vem de Henry Miller e Jean
Genet. Está entre aqueles escritores especiais, cuja obra segue uma linha de
interrogação e busca, ao contrário da maioria que tende a fazer uma literatura
meramente catártica (COELHO, 2003, p. 304, apud CARVALHO 2008, p.
43).
Ao mencionar que a obra de Márcia Denser “segue uma linha de interrogação e busca”,
Coelho deixa claro a intenção da escritora em fazer com que seu leitor se questione diante do
que lhe é exposto, buscando não apenas identificar-se ou compreender um personagem, uma
história, mas a si próprio.
É justamente isto que torna única a obra de Marcia Denser, a identificação do leitor com
as estórias narradas, por isso, em um momento estamos através da leitura apenas a observar os
desdobramentos à margem das tramas, e em outro, nos sentindo como parte delas através de
um arriscado jogo de intimidade proposto no texto.
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A história nos mostra um vasto caminho percorrido pelas práticas sociais em torno de
questões sexuais, sabe-se que desde a antiguidade até os dias atuais o sexo, assim como as
diversas manifestações de cunho erótico, configuram-se como agentes causadores de muitos
tabus ocasionando investigações e debates calorosos entre aqueles que se propõem a defender
ou condenar tais práticas. O interesse conferido em alguns contextos a temas como esses é
justificável, principalmente pelo que compõe seu campo de abrangência. De acordo com
Octávio Paz (1994), sexo, erotismo e amor – esse último considerado como um aspecto
recorrente ao campo que compreende os dois primeiros – são inerentes à vida, ele afirma que:
“Não é estranha a confusão: sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno,
manifestações do que chamamos vida.” (PAZ, 1994, p. 14).
Referente à reprodução, Paz defende que o sexo é voltado à procriação, o prazer sexual
possui finalidade reprodutiva, mas no erotismo, o prazer destina-se a um fim em si mesmo, que
não incumbe a reprodução. O autor afirma ainda que o erotismo é responsável pelo controle do
instinto sexual na sociedade, pois acredita-se que o sexo é essencial pelo seu fator reprodutivo
mas, também é nocivo: “É instinto: tremor, pânico, explosão vital. (...) O sexo é subversivo:
ignora as classes e hierarquias, as artes e as ciências, o dia e a noite.” (PAZ, 1994, p. 17). Sendo
assim, o erotismo torna-se necessário, pois controla o sexo canalizando seu poder destrutivo.
Ambos, sexo e erotismo estão ligados, todavia, um é instinto e outro derivado deste instinto, é
fantasia, metáfora, produto da imaginação humana e está sempre em movimento variando “de
acordo com o clima e a geografia, com a sociedade e a história, com o indivíduo e o
temperamento. Também com a ocasião, a sorte e a inspiração do momento.” (idem, p. 16-17).
Há, porém, no erotismo um caráter ambíguo, assim como ele detém o escudo que desvia
da sociedade todo os excessos perniciosos da sexualidade – sobretudo por propiciar a elevação
desta ao seu estado de deleite – sua essência renega a procriação, ele “é repressão e permissão,
sublimação e perversão. [...] É o caprichoso servidor da vida e da morte.” (idem, p. 18).
O autor ainda destaca três formas de erotismo existentes: o erotismo dos corpos, o
erotismo dos corações e o erotismo sagrado, este último menos familiar a nós, todos, segundo
o autor, levam o ser ao estado de continuidade profunda.
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O erotismo dos corpos está presente no auge da fusão dos corpos durante o ato sexual,
segundo o autor: “O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do ser dos parceiros?
Uma violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de matar?” (idem, p. 28), neste
tipo de erotismo há uma destruição da estrutura do ser fechado, a nudez se coloca como
oposição a esse estado fechado (existência descontínua), Bataille explica que o desnudamento
considerado nas civilizações é em seu sentido pleno “uma equivalência sem gravidade do ato
de matar” (BATAILLE, 2004, p. 30), sendo que durante a conjunção carnal a parceira feminina
é a vítima e o masculino, o sacrificador.
A paixão é o impulso que rege o erotismo dos corações, este que se configura como uma
forma de erotismo “mais livre” em relação ao erotismo dos corpos, é o erotismo dos amantes,
“a paixão dos amantes prolonga, no campo da simpatia moral, a fusão dos corpos entre eles
[...], mas essa mesma paixão pode ter um sentido mais violento que o desejo dos corpos”. A
própria paixão feliz conduz uma desordem tão violenta que a felicidade ligada a ela pode vir a
ser comparada ao sofrimento. (idem, p. 32, grifo meu). Neste sentido temos a continuidade
presente no outro, se o amante não conseguir estar com o ser amado, prefere morrer ou matá-
lo, e aí está a sua relação com a violência e a morte.
No erotismo sagrado, o sacrifício se coloca como ponto de análise principal para entendê-
lo, nele o sagrado – surgido através do sacrifício – é “a continuidade do ser revelado por meio
da morte de um ser descontínuo.” (idem, p. 36), o sagrado está diretamente ligado ao conceito
de divino que rege as religiões atuais, a continuidade do ser estaria justamente na afetividade
existente em Deus, a busca por ele é a busca pela continuidade.
Transgressão é tudo aquilo que promove a ruptura (ainda que temporária) das interdições
e que está diretamente ligada aos desvios e excessos do mundo da desordem. Ao se postular
transgressão e interdição podemos pensar que estamos diante de dois extremos, porém Bataille
afirma que a primeira existe para complementar a segunda, assim, a interdição dependerá da
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transgressão para que se estabeleça um certo equilíbrio, o erotismo encontra sua completude
nas duas: é a transgressão aos estatutos de interdição que fascinam, não obstante “a interdição
elimina a violência” (p. 58), presente em nossos impulsos sexuais, por exemplo.
Pode-se concluir em vista de tudo isso, que o erotismo se constitui como experiência
humana e habita o interior do ser, manifestando-se como a busca do indivíduo pela satisfação,
pelo prazer que está além da sexualidade em si, o erotismo é algo mais, ele rege as relações de
poder, nele vida e morte se tocam, se confundem, ele promove abstenção e permissão, ordem e
destruição, está presente nas representações da imaginação e fantasia humanas. A magnitude
do erotismo pode ser expressa nas diversas formas com que ele se apresenta, variando
incessantemente através dos tempos, “Se o homem é uma criatura ‘ondulante’, o mar onde se
move é regido pelas ondas caprichosas do erotismo.” (PAZ, 1994, p. 17).
Para que se depreenda melhor o conceito de erotismo é necessário antes de tudo, que
possamos dissociar seu sentido da concepção de pornografia, pois com muita frequência a
definição de erótico é usada para designar representações que se encontram dentro dos limites
do pornográfico, ambos diferem quanto ao significado apesar de considerarem um mesmo
elemento: o sexual. PAZ (1994), defende que não é possível a existência de erotismo sem o
sexo, não é desconhecido porém que na pornografia este último é o componente central, e o que
distingue um de outro afinal? A resposta está na maneira como cada um se apropria da
sexualidade e em como ela se apresenta quando inclusa em ambos os domínios.
O erotismo, por outro lado, liga-se ao desejo e nele coexiste, é o desejo que o caracteriza,
enquanto a pornografia necessita do ato sexual materializado para chegar ao seu objetivo, o
erotismo encontra sua completude na imaginação e fantasia, nele há algo de poético, sua
finalidade é promover sublimação do desejo.
Contudo, é importante manter certa cautela na busca por definir e diferenciar o significado
de erotismo e pornografia, haja vista que esta
Por vezes, não é uma definição fácil de ser feita, uma vez que os limites entre
o erótico e o pornográfico esbarram-se em interditos culturais, visão de
mundo, contexto sócio histórico, valores. Assim, um texto que foi visto como
pornográfico em um tempo pode ser visto como erótico em outro.
(MIRANDA, 2008, p.76)
Assim, obras como Madame Bovary de Gustave Flaubert, As flores do mal de Baudelaire
e Ulisses de James Joyce por exemplo, nos provam o que foi afirmado acima pois sofreram
grande censura na época em que foram publicadas, seus escritores foram processados
judicialmente, Flaubert e Baudelaire, condenados a pagarem multa inclusive, no ano de 1857
pelo conteúdo ‘obsceno’ e ‘imoral’ presente em suas obras, no entanto hoje, as mesmas são
consideradas clássicos da literatura e disponíveis a um diversificado público. (MORAES e
LAPEIZ, 1985).
O erotismo sempre se fez presentes nas mais diversas áreas da sociedade ao longo dos
tempos, a psicanalise é um bom exemplo, no entanto, a principal área de representação do
erotismo é a arte, por meio de obras como pinturas, esculturas, monumentos e afins ou algumas
mais recentes como as cinematográficas, mas é na literatura que tais representações encontram
sua maior expressão, o texto literário sempre se caracterizou por ser lugar das mais diversas
representações humanas, de tudo o que se é sentido, imaginado ou vivenciado, ele é a voz
propriamente dita daqueles que recorrem à ele como forma de expressão e formação das suas
convenções, ideologias e subjetividades. É no texto literário que se manifestam as mais diversas
formas e facetas do erótico, ele está impresso nos:
Estes são os primeiros e mais gerais exemplos de textos literários que carregam
magníficas representações do erotismo, a começar pela obra de um escritor concebido por
muitos como um ícone da literatura de cunho erótico: Donatien Alphonse François de Sade, o
Marquês de Sade, suas obras que apresentam sobretudo o caráter transgressor do erotismo
escandalizaram a sociedade Francesa dos séculos XVIII- XIX, dentre elas, sua obra-prima e
mais conhecida Os 120 Dias de Sodoma, esta obra é o relato fictício de uma festa que durou
cento e vinte dias em um castelo onde quatro personalidades ricas e influentes juntamente com
outros convidados participam das mais diversas orgias e perversidades cometidas em nome da
realização dos mais íntimos ímpetos sexuais.
De teus seios tão mimosos/ Quem gozasse o talismã!/ Quem ali deitasse a
fronte/ Cheia de amoroso afã!/ E quem nele respirasse/ A tua malva-maçã!
Dá-me essa folha cheirosa/ Que treine no seio teu!/ Dá-me a folha... hei de
beijá-la/ Sedenta no lábio meu!/ Não vês que o calor do seio/ Tua malva
emurcheceu... (AZEVEDO, 2009, p. 215)
Boa noite, Maria! Eu vou-me embora./ A lua nas janelas bate em cheio.../ Boa
noite, Maria! É tarde... é tarde.../ Não me apertes assim contra teu seio.
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Boa noite!... E tu dizes — Boa noite./ Mas não digas assim por entre beijos.../
Mas não me digas descobrindo o peito,/ — Mar de amor onde vagam meus
desejos. (ALVES, 1997, p. 122)
Nessas obras a temática erótica vem retratada através do discurso amoroso que lembram
bem os romances populares famosos nas décadas de 70 e 80 publicados em diversos volumes
pela editora Abril como Júlia de Roberta Leigh e Bianca de Carol Hughs em que o casal de
personagens principais vivem uma paixão inesperada e avassaladora. Todavia, nos romances
atuais inclusive os acima citados, são característicos os jogos de sedução sadomasoquista que
figuram um universo fictício de leitura atrativa principalmente ao público feminino que
atualmente revela-se cada vez mais receptivo à esse tipo de literatura, o que faz com que essas
obras se tornem um sucesso de vendas em muitos países, alguns já possuem até adaptação
cinematográfica como é o caso de Cinquenta Tons de Cinza.
Um clássico que representa este tipo de texto literário intitula-se Kama Sutra, surgido na
Índia entre os anos 100 e 400 da era cristã o livro traz textos eróticos tradicionais da mitologia
Hindu compilados pelo sábio hinduísta Vatsyayana, constituída até hoje como um poderoso
manual de amor, sexo e erotismo, esta obra foi elaborada “na intenção de ensinar aos homens
como obter uma vida bem-aventurada a partir da articulação de três elementos básicos: o mérito
religioso ( Dharma ), a riqueza ( Artha ) e o amor, o prazer e a satisfação sexual ( Kama ).”
(MIRANDA, 2008, p. 44). O Kama Sutra também pode ser considerado um texto religioso,
pois seus ensinamentos fazem parte da concepção de mundo da religião Hindu.
As prescrições do livro são destinadas a ensinar homens e mulheres a arte de amar e obter
prazer, tratando também da vida doméstica e gestão das relações sociais, advogando aos
homens uma série de coisas vetada às mulheres, no entanto, instrui a concepção da mulher como
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objeto e sujeito de prazer sexual com direito a viver várias relações extraconjugais (idem, p.
45), há ainda nos escritos, a ideia de equidade entre homem e mulher em relação à vida sexual.
Abaixo temos um trecho do livro em que é ensinado ao homem recém casado a inspirar
confiança e agradar sua jovem esposa:
A arte de amar do poeta Ovídio surge em Roma na mesma época como um manual quase
idêntico ao Kama Sutra, ambos possuem uma enorme analogia discursiva, pois “utilizam-se de
estratégias semelhantes para o ensino, que são uso de máximas, citações de autoridades, uso de
oposições e um tipo de discurso que se assemelha à literatura sapiencial.” (MIRANDA, 2008, p.
47), todavia a obra de Ovídio trata-se de três livros escritos no gênero poético nos quais se
observa um discurso voltado a ensinar a arte do ‘fingimento amoroso’, assim como ocorre no
Kama Sutra, a ideia de fingimento surge a partir da percepção de que em ambas as obras há
subscrita a seguinte premissa: é preciso que o sujeito sempre se disfarce diante do objeto amado
para que possa permanecer senhor de si, e não haja o risco se ‘despossuir’ ou perder-se em
função da mulher ou de um escravo, haja vista que paixão naquela época (século 2 a.C até 2
d.C) ser vista como algo digno de temor (idem, p. 48).
Outra ideia presente nestes textos refere-se ao sexo e seu poder para se chegar ao amor,
era afirmado que se o sexo fosse bem praticado pelo(a) amante isso acarretaria no surgimento
de sentimento amoroso do(a) parceiro(a) por ele. Utilizar técnicas de sedução e encontrar
melhores posições para o alcance do orgasmo é aconselhado como uma boa estratégia às
mulheres em A arte de amar:
Que a mulher sinta o prazer de Vênus abatê-la até o mais profundo do seu ser,
e que o gozo seja igual para ela e para o seu amante. Que não se calem nunca
as palavras de carinho e os doces murmúrios, entremeados de palavras
lascivas. Desventurada a mulher cujo órgão – que deveria proporcionar prazer
para ela e para o homem – permanece insensível! (OVÍDIO, 2007, p. 108 apud
MIRANDA, 2008, p. 50)
21
Esses dois clássicos da literatura erótica prescritiva são marcados pelo contexto sócio
histórico em que foram criados e nos fornecem informações valiosas acerca das práticas eróticas
vigentes naquela época, servem também para possamos traçar uma análise comparativa a
respeito do que mudou e o que permanece no âmbito das práticas atuais, a questão cultural
também é um ponto importante de análise. Enfim, o fato é que tais obras são precursoras de
uma variedade de textos que apresentam uma ‘didática erótica’ hoje produzidos em diversos
gêneros, não apenas literários, como é o caso dos manuais de ‘amor e sexo’ veiculados nas
mídias impressas como revistas e livretos que prometem técnicas infalíveis de sedução e prazer
sexual aos que executarem à risca suas dicas, infelizmente, muitos desses manuais focalizam o
erotismo apenas por objetivos comerciais, não atentando, portanto, ao verdadeiro significado
dos jogos de sedução e realização sexual propostos aos leitores.
O vigésimo segundo livro bíblico do velho testamento intitulado Cânticos dos Cânticos
ou Cantares de Salomão composto por oito capítulos é conceituado por muitos escritores e
estudiosos literários como sendo uma das mais magníficas obras poéticas já criadas, inspirando
ao longo de mais de dois mil anos a imaginação do mais variado público leitor. Com metáforas
e alegorias que retratam para o cristianismo a relação entre Cristo e a sua igreja (Israel – o ‘povo
escolhido’), os poemas presentes no livro, em sua maioria supostamente escritos pelo rei
Salomão à Sulamita sua amada e manifestam-se como os mais belos poemas eróticos que falam
do amor de um homem e uma mulher (esposo e esposa), onde, o eu lírico, ora se expressa pela
voz masculina, ora pela voz feminina, no trecho abaixo podemos acompanhar um diálogo em
que o esposo enche de elogios amorosos a esposa e ela o responde convidando-o para estar com
ela:
Esposo
Os teus lábios, noiva minha, destilam mel.
22
Mel e leite se acham debaixo de tua língua, e a fragrância dos teus vestidos é
como o Líbano. (Cântico dos cânticos 4:11)
Esposa
Levanta-te, vento do norte, e vem tu, vento do Sul; assopra no meu jardim,
para que se derramem os seus aromas.
Ah! Venha meu amado para o seu jardim e coma os seus frutos excelentes!
(Cântico dos Cânticos 4:16)
Através de uma representação erótica muito mais explícita que em Cântico dos Cânticos,
o poema sânscrito do século XII d.C, composto por Jayadeva Goswami o Gita Govinda, fala
sobre os amores adúlteros do deus Krishna (O Senhor Obscuro) com a camponesa Radha, uma
de suas Gopis (vaqueiras). Com doze capítulos divididos posteriormente em vinte e quatro
canções, ele reúne versos que apresentam ideias ‘profanas’ para retratar aprofundamento e
elevação espiritual, mostrando similaridade entre a realização de deus e o erotismo. É
considerado uma obra muito importante no desenvolvimento das tradições de Bhakti (devoção)
do hinduísmo.
Gita significa canção e Govinda é um dos vários nomes de Krishna e quer dizer ‘senhor
amável das vacas’1 ou ‘vaqueiro’. Krishna, quando denominado Shiri Govinda no poema
representa a personificação do amor apaixonado. O amor de Krisna e Radha cantado no poema
erótico está repleto de imagens que retratam o amor, a fraternidade e a sensualidade existente
entre os amantes, o amor apresentado é um amor puro e profundo livre do desejo sexual
perverso e sôfrego humano. O Gita Govinda é também musicado e apresentado nos templos em
sinal de adoração, está expresso ainda nas artes da dança e da pintura de muitos renomados
pintores da Índia.
Ao final desta seção percebe-se que, a maioria das obras aqui citadas, por apresentar
elementos inerentes ao erotismo, são de autoria masculina, o que comprova a tese de que este,
foi ao longo dos tempos um assunto restrito ao universo literário masculino. No entanto, é
importante ressaltar, que esses são apenas alguns exemplos de textos literários que trazem o
erotismo em suas diversas facetas, há uma produção imensurável destes textos em todas as
partes do mundo, e já é um fato que atualmente o erotismo encontra-se cada vez mais
representado no âmbito literário feminino, formulando novos discursos imprescindíveis para a
quebra de antigos paradigmas.
1
A vaca é um animal considerado sagrado na religião Hindu.
23
Contudo, tais discursos vem sendo questionados ao longo dos séculos, sobretudo em
razão do fortalecimento de uma tradição literária de autoria feminina combinada à luta pela
emancipação da mulher ao longo do século XX, neste cenário, multiplicaram-se as produções
literárias de ficção em que as autoras revelam oposição aos conceitos estereotipados acerca da
mulher “desenvolvendo ações simbólicas que subvertem a opressão patriarcal e denunciam a
exclusão feminina enraizada na cultura e, consequentemente, na literatura”. (BONNICI, 2007,
p. 22-23 apud GABIALTI, 2013 p. 11).
Em se tratando da literatura escrita por mulheres nas épocas anteriores aos movimentos
feministas, pode-se dizer que - apesar de possuírem algum diferencial em comparação aos
escritos masculinos sobretudo por revelarem um outro olhar ao mundo das representações - o
que se produzia ainda “imitava” bastante os padrões culturais dominantes da época, os
24
romances da escritora inglesa Charlotte Brontë são um grande exemplo desse tipo de escrita.
Segundo Galbiati (2013):
Vale ressaltar ainda que durante o século XIX e mesmo anteriormente eram comuns os
casos em que mulheres escritoras ocultavam a autoria de seus trabalhos, muitas vezes utilizando
pseudônimos masculinos afim de não sofrerem represálias ou seus escritos serem deixados em
segundo plano, pois a escrita feminina era sempre vista com maus olhos pela sociedade da
época além de ser taxada como sem profundidade ou desprovida de valor estético.
O momento era marcado pela conquista de mais espaço e igualdade para as mulheres nas
esferas social, trabalhista, intelectual e política, e a literatura de expressão feminina por sua vez,
começa a enfocar a partir de outros ângulos muitos temas relacionados à representação da
mulher na ficção, temas esses que vão desde as relações no ambiente familiar, casamento e
realização profissional ao domínio do seu próprio corpo, surge aí uma importante reflexão, haja
vista, segundo BRANDÃO (2006) o corpo feminino ser alvo, em certos textos, dos fantasmas
masculinos de dominação, sendo ainda
Como mecanismo de reflexão e maneira de fazer com que a voz literária feminina se
imponha contra tabus e preconceitos arraigados na sociedade, o discurso erótico na literatura
de expressão feminina se manifesta como um recurso necessário na busca da mulher pela real
percepção de sua sexualidade e pela sua concepção como sujeito que exerce domínio sobre o
seu próprio corpo e, consequentemente, sobre suas escolhas e desejos.
26
3.1. Apresentação
O conto escolhido para compor este trabalho faz parte da coletânea de contos Diana
Caçadora (1986) de Márcia Denser. Desta obra, dois contos foram escolhidos para integrar a
coletânea Os cem melhores contos Brasileiros do século organizada por Italo Morconi,
publicada pela Editora Objetiva no ano de 2000, são eles: O vampiro da alameda casabranca
e Hell’s Angels, este último também está incluso na coletânea 100 Melhores Histórias Eróticas
da Literatura Universal, organização de Flávio Moreira da Costa publicada pela Ediouro em
2003.
O título da obra: Diana caçadora faz alusão à deusa da caça conhecida pela mitologia
romana como Diana e na mitologia grega como Artêmis, divindade lunar ligada aos ideais de
liberdade e coragem, conhecida também por sua indiferença ao amor e aparece, na maioria das
vezes, representada entre animais selvagens.
Os animais ferozes que estão sempre junto a ela representam, por outro lado,
os impulsos que precisam ser dominados. Sem dúvida ela é o símbolo maior
do feminino, de sua liberdade e autonomia. (SANTANA, Disponível em:
http://www.infoescola.com)
Em uma visita inesperada ao seu local de trabalho o rapaz lhe convida para sair, durante
o encontro Diana, sempre muito observadora, conhece um pouco mais acerca de Robi. Era
natal, ela ajuda-o a comprar um presente para a irmãzinha dele e leva-o a uma cantina italiana
para jantar. O encontro termina em um quarto de motel onde os dois acabam tendo um
envolvimento sexual sem qualquer sentimento amoroso, com Robi ainda adormecido Diana vai
embora, mas antes, pede ao porteiro do local que entregue, com votos de feliz natal, o presente
que haviam comprado para a irmãzinha dele.
2
Referência ao primeiro clube de motociclismo da história surgido em 1948 e que teve seu auge em 1969. [...] o
clube representa a sensação de liberdade e transgressão. (CARVALHO, 2008, p. 48)
28
O conto possui o foco narrativo em primeira pessoa, Diana protagoniza e narra os fatos
ocorridos, neste caso classifica-se o narrador de autodiegético, nessa classificação Franco Jr.
(2003) baseia-se nas concepções de Genette (1979), Aguiar e Silva (1988), para eles, o narrador
autodiegético é aquele que não só participa dos fatos narrados como conta sua própria história.
No início do conto temos a exposição, que é onde a narradora apresenta os primeiros fatos da
história a ser contada:
[...] perdidos no trânsito pesado daquela cidade cheia de luzes, vozes, vozes
arranhando alto-falantes, sinos transistorizados de Belém, reflexos dourados,
homens-sanduíche, lixo, gritos de crianças ensandecidas pela Noite Feliz. (p.
101)
O espaço mais importante para a narrativa é o quarto de motel onde se passa a ação central
do conto, além disso há outros espaços como o estacionamento, o escritório em que Diana
trabalha, um bar e uma cantina italiana.
Certa tarde, final de expediente no escritório, eis Robi que surge ao lado da
minha escrivaninha: vamos sair? [...] (p. 96).
Estávamos num bar. Eu bebia vodca com suco de laranja, ele coca-cola. [...]
(p. 98).
Fomos a uma cantina italiana. Ou melhor, eu o levei a uma cantina italiana.
(p. 101).
29
O ambiente é construído nas narrativas a partir das ações das personagens, diante disso,
conclui-se que o ambiente presente no conto é caracterizado por um clima criado em torno da
não-entrega e do distanciamento emocional, o que faz com que a relação entre as personagens
seja regida por certa desfaçatez e dissimulação.
Deste modo, o autor destaca três recursos de subjetivação ligados ao tempo psicológico,
são eles: monólogo interior, análise mental e fluxo de consciência, todos esses recursos estão
presentes em Hell´s Angels e são extremamente importantes para a narrativa, eles se inscrevem-
se no texto como uma forma de aproximar personagem e leitor através de uma intimidade criada
no ato da revelação da subjetividade desta personagem, que no conto em questão é a
protagonista Diana.
No conto, um exemplo de análise mental ocorre quando Diana está em um bar com Robi,
o rapaz está expondo alguns detalhes de sua vida a ela, Diana então julga e avalia mentalmente
suas concepções e atitudes, compara-o inclusive a ela própria quando tinha sua idade:
O clímax acontece no auge do conflito dramático, dessa forma é possível dizer que este
elemento se instaura na narrativa quando a união sexual entre Robi e Diana finalmente ocorre,
é neste momento que há a tensão máxima entre os elementos do conflito dramático, é quando
os aspectos individuais ligados à juventude de Robi e à maturidade de Diana são postos em jogo
e se defrontam na cena do encontro sexual.
[...] só pensava em duas coisas: garotas e moto. E isso quer dizer que não
pensava. Devaneava. Flutuava. Flanava. Fluía. Ele simplesmente existia! A
frase de Nelson Rodrigues "toda mulher devia amar um menino de 17 anos"
furou-me o ventre e atingiu em cheio o, digamos, coração (DENSER, 2003,
p. 98).
A postura de Diana rompe com vários tabus e preconceitos pois vai contra o que se espera
de uma mulher segundo a visão tradicional. Ela é uma mulher solteira vivendo sua sexualidade
no auge dos seus trinta anos, a personagem é uma heroína em busca de identidade em meio ao
seu caos particular, vivenciando novas experiências a cada breve conquista amorosa. É inegável
a relação da personagem com o contexto histórico do país durante a década de 1980 (época em
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que a obra foi publicada), marcado por muitas transformações sobretudo em relação à
sexualidade feminina.
Este aspecto da personalidade de Robi não é um grande problema para Diana, ela tem
consciência disso e tenta a todo momento não se envolver pelos galanteios do rapaz, na
concepção de Giddens ela representa as mulheres que conhecem muito bem os artifícios de
conquista do ‘garanhão’ e por isso não se deslumbram facilmente com suas investidas, assim
Algumas mulheres – às quais essas coisas são hoje em dia muito familiares –
poderiam muito bem optar por uma ligação sexual de curta duração na busca
de uma excitação ou de um prazer transitórios. Para tais mulheres, o atrativo
do galã rapidamente desaparece ou é deliberadamente mantido sob controle
(idem, p. 99).
Ao notar que por uma displicência o vestido havia levantado exibindo suas coxas, Diana
descreve a primeira manifestação do erotismo no conto: “Havia esquecido que o vestido
levantara, exibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninos
pingando sangue” (p. 94).
Ainda com relação à este personagem, percebe-se que sua descrição é permeada por
alusões simbólicas que reforçam o caráter erótico da narrativa, a expressão “caninos pingando
sangue” utilizada duas vezes por Diana quando ela é surpreendida por Robi pode ser
interpretada como uma maneira da protagonista assemelhá-lo à figura do vampiro, um
personagem fictício que representa a imortalidade e é reconhecido por emanar sensualidade e
mistério. Também o uso do termo ‘tacape’ que é um instrumento de origem indígena feito de
madeira e utilizado como arma, remete força e virilidade que caracterizam a juventude de Robi.
[...] assim como um deus, assim como um anjo, assim como você, Robi (p.
93).
Aquele garoto de jeans, blusão de couro e botas de montaria, sentado
displicentemente numa das poltronas da sala de espera, transformara-se no
meu inquisidor, meu juiz de alçada, meu anjo vermelho. Lúcifer, o decaído
[...] (p. 97).
A eterna dicotomia corpo e alma. [...] fazia observações, aliás muito
interessantes, sobre a sua conceituação de bem e mal. Para ele não existia (p.
99).
observou PAZ (1994, p. 18), para ele o erotismo “é repressão e permissão, sublimação e
perversão. [...] É o caprichoso servidor da vida e da morte”.
Diana não deixa que Robi tire sua roupa, ela mesma o faz rapidamente, o rapaz ao despir-
se apaga a luz, ficando apenas o “foco avermelhado do abajur” a iluminar o quarto.
Nota-se aqui um certo receio de ambos em expor sua nudez, fato que pode indicar
segundo BATAILLE (2004), a relutância do sujeito em sair de seu estado fechado que é a
existência descontínua, a possessão de si, a nudez anuncia o estado de despossessão alcançado
no ato sexual:
As diferenças que aparentemente não eram visíveis vão ficando cada vez mais delineadas,
é possível observar isso pelo modo como Diana relata os momentos que iniciam a relação
sexual, em alguns, fica expressa a frustração da protagonista mediante algumas atitudes de
Robi: “Abraçava-me com palmas e dedos gelados, comprimindo minhas costelas, machucando-
as, em vez de acariciá-las” (DENSER, 2003, p. 104).
A relação acontece: “A coisa funciona só da cintura pra baixo como um vibrador, mas é
bom, pensei, deixando-me penetrar rijamente pelas costas [...]” (p. 104). É exatamente neste
momento que o erotismo dos corpos proposto por BATAILLE (2004), atinge o ponto alto, aqui
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é onde ocorre a da fusão dos corpos em que os seres envolvidos veem dissolvidos os limites
corporais que os definiriam, o que leva estes seres a um igual estado de continuidade com a
destruição do ser fechado. Ao considerar esta forma de erotismo como “violação do ser dos
parceiros” e “limite ao ato de matar”, Bataille evidencia o poder que o erotismo tem de adentrar
até mesmo o lugar mais íntimo do ser humano promovendo a dissolução deste ser constituído
na ordem descontínua para então apresentá-lo à continuidade.
Apesar de tudo isso estar em questão, é perceptível a forma mecânica e fragmentada com
que o ato sexual flui na narrativa, Diana comenta o fato dela permanecer de costas para Robi,
o que para ela é como se ambos não pudessem suportar um contato frontal/visual, como se ver
o outro com todas as suas individualidades frente a frente durante o ato fosse algo muito mais
íntimo e invasivo do que apenas a relação em si:
[...] usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo, como se o resto
estivesse paralisado ou morto, como se ninguém suportasse um dramático
relacionamento frontal, com beijos, orifícios, acidentes e cicatrizes, com um
rosto, um nome, uma biografia (p 104).
Diana relata cada sensação e cada impressão sentida durante a relação: “O prazer é bom,
pensei, costuma ser forte, mesmo assim...” (p. 104). É notória a insatisfação dela com o fato de
Robi demonstrar antes de tudo, mais preocupação com o seu desempenho e puro prazer
egocêntrico, mantendo-se frio e distante todo o tempo:
Agora, passado todo o fervor do breve momento de sensações conflituosas, Robi não
despertava mais que um sentimento de comoção em Diana que olhava-o dormir muito
tranquilamente, ela já não o via mais como a duas semanas atrás quando o conheceu, o mesmo
Robi “caçador nato”, aquela figura sedutora e imponente que detinha em si a juventude eterna
e que a intimidara apenas com o olhar, esse Robi era aquele mesmo que neste momento dormia
inofensivo diante de seus olhos, o rosto ainda era inumano como o dos deuses que detém a
imortalidade, mas agora ele, Robi, era para ela mais mortal do que qualquer outro ser.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher representada pela personagem Diana, no conto Hell’s Angels, de Márcia Denser
está longe de ser um modelo de mulher idealizada, Diana é real e vive em meio ao caos das
relações efêmeras e dos sentimentos escassos, consequências de uma pós-modernidade que,
apesar de proporcionar mudanças significativas, principalmente, no que diz respeito à novas
conquistas para a mulher, promove essas mudanças de forma tão imediata que por vezes se
torna visível a insegurança dessa mulher em usufruir as conquistas, pois ela, mesmo de maneira
inconsciente ainda se mantém presa aos valores patriarcais que a fazem perder autonomia em
suas escolhas.
Em Hell’s Angels o erotismo se destaca, principalmente, como uma forma de fazer com
que a personagem Diana se oponha à imagem da mulher insegura em relação à vivência de
novas experiências, por se tratar de uma mulher solteira, sexualmente ativa no auge de seus
trinta anos, interessada por um homem mais jovem, ela assume um comportamento subversivo,
contrariando os padrões e as convenções socialmente impostas.
É verdade que esse posicionamento é a todo instante sujeito à sua autocrítica, pois ela,
como representação da mulher pós-moderna se mostra por vezes insegura e sujeita a
contradições, contudo, não se pode negar o fato de que Diana, assim como a deusa de mesmo
nome, é símbolo maior da liberdade e da coragem. Ela é uma heroína contemporânea não,
necessariamente, indiferente ao amor, mas, sendo este lhe negado, ela se arrisca para poder
vivenciar suas próprias escolhas.
Em suma, pode-se afirmar que, tratar do erotismo é uma tarefa desafiadora haja vista este
ser um assunto permeado por diversos tabus dentro de nossa sociedade mas, analisá-lo dentro
de uma narrativa de autoria feminina é gratificante, pois isso permite-nos compreender a
dimensão de sua importância para a construção de novos discursos que se enveredam por
representações femininas mais verossímeis possíveis, desfazendo a imagem idealizada por
muito tempo propagada na literatura sobre o erotismo feminino e ajudam na percepção da
mulher não apenas como objeto de desejo, mas como sujeito de sua própria história podendo
planejar suas ações de acordo com a sua maneira de sentir e ver o mundo.
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REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Ferreira de. (Tradutor) Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. 2ª ed.
São Paulo: SBB, 1988-1993.
BATAILLE, Georges. Tradutor: FARES, Claudia. O Erotismo. São Paulo: Arx: 2004.
FRANCIS, Paulo (1983). Citação do jornalista extraída do jornal Folha de São Paulo
(14/07/1983).
FRANCO Jr., Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN,
Lúcia Ozana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
Maringá: Editora da UEM, 2003. ( p.33-56).
MONTONE, Silvia. Gita Govinda, a canção amorosa do Senhor Krishna. 2011. Disponível
em: <http://indiadivindadesemantras.blogspot.com.br/2011/06/gita-govinda-cancao-amorosa-
do-senhor.html?m=1>. Acesso em 28 Jan. 2016.
MORAES, Eliane Robert. O que é pornografia / Sandra Maria Lapeiz. São Paulo: Abril
Cultural. Brasilense, 1985.
PAZ, Octavio: A dupla Chama. Tradutor: Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
SANCHEZ, Giovana. A orgia de Marquês de Sade: Obra do homem que originou o termo.
2007. Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-histórias/orgia-marques-
sade-4435297.shtml>. Acesso em 15 out. 2015.
SANTANA, Ana Lúcia. Deusa Ártemis. Disponível em:
<http://www.infoescola.com/mitologia-grega/deusa-artemis/>. Acesso em 16 Fev. 2016.
SILVA, Jacicarla Souza da. Vozes femininas da poesia latino-americana: Cecília e as
poetisas uruguaias. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.