Guerrilheiras: Memórias da Ditadura e militância feminina
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Sobre este e-book
A obra analisa duas biografias: Iara: reportagem biográfica, escrita em 1992 pela jornalista Judith Patarra, em torno da vida e militância política da jovem Iara Iavelberg, morta pela ditadura, e A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, escrito por Ricardo Batista Amaral, publicado em 2011, logo no início do primeiro mandato presidencial de Dilma.
A historiadora Juliana Marques analisa a fundo como as vidas de Dilma e Iara foram contadas, partindo de algumas questões: 1. Quem são os autores? 2. Quais condições cercaram os processos de escrita de cada um? 3. Em que contextos escreveram? 4. Por que escreveram? 5. E por que cada um escolheu a sua respectiva biografada? Estas são algumas perguntas que interessaram à autora. Mas, sobretudo, interessa também saber quem são as biografadas e como a visão dos autores moldou suas trajetórias, pois que estavam condicionadas pelas circunstâncias que deram origem a esses livros. Também não escapa a Juliana Marques do Nascimento como as visões de gênero de Patarra e Batista Amaral condicionaram a construção das biografias de Iara e Dilma.
Guerrilheiras enfrenta o desafio de lidar com personagens que foram sacralizadas pelo imaginário coletivo de esquerda – como é o caso de Iara, transformada em heroína e "musa" – ou, como Dilma, colocada no centro de uma grande crise política.
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Pré-visualização do livro
Guerrilheiras - Juliana Marques do Nascimento
CONSELHO EDITORIAL
Ana Paula Torres Megiani
Andréa Sirihal Werkema
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
GuerrilheirasCopyright © 2022 Juliana Marques do Nascimento
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Edição: Haroldo Ceravolo Sereza/ Joana Monteleone
Editora assistente: Danielly de Jesus Teles
Projeto gráfico, diagramação: Mari Ra Chacon Massler
Capa: Caio Collaro
Assistente acadêmica: Tamara Santos
Revisão: Alexandra Colontini
Produção de livro digital: Booknando
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
N195g
Nascimento, Juliana Marques do
Guerrilheiras [recurso eletrônico] : memórias da ditadura e militância feminina / Juliana Marques do Nascimento. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2023.
recurso digital
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5966-181-7 (recurso eletrônico)
1. Ditadura - História - Séc. XX - Brasil. 2. Democracia - Brasil. 3. Direita e esquerda (Ciência política). 4. Iavelberg, Iara, 1944-1971. 5. Rousseff, Dilma, 1947-. 6. Livros eletrônicos. I. Título.
23-84632CDD: 981.063
CDU: 94(81)1964/1985
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643
21/06/2023 28/06/2023
ALAMEDA CASA EDITORIAL
Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista
CEP 01327-000 – São Paulo, SP
Tel. (11) 3012-2403
www.alamedaeditorial.com.br
À Angela, sempre, por tornar possível tudo isso e muito mais
Sumário
Apresentação
Introdução
Uma feminista na revolução? A biografia de Iara Iavelberg segundo Judith Patarra (1980-1990)
A trajetória de Iara Iavelberg
Constituição e organização do livro: a autora e o processo de escrita
Sensual e de vanguarda: Iara Iavelberg sob a ótica de Patarra
O mito da sociedade vítima e resistente: décadas de 1980 e 1990 e a(s) memória(s) de rejeição à ditadura
Rebeldia e inocência: ditadura e esquerdas na biografia de Iara Iavelberg
De volta aos anos rebeldes
: recepção do livro
A guerrilheira que não guerrilhou: a biografia de Dilma Rousseff por Ricardo Batista Amaral
A trajetória de Dilma Rousseff
Constituição e organização do livro: o autor e o processo de escrita
Política e democrática: Dilma Rousseff sob a ótica de Ricardo Amaral
Reconciliação e pacificação nacional
: a memória como discurso e política de Estado (décadas de 2000 e 2010)
Teoria dos dois demônios à brasileira: ditadura e esquerdas na biografia de Dilma Rousseff
Guerra de memória: recepção do livro e o passado de Dilma em disputa
Considerações finais
Referências
Lista de abreviaturas, siglas e símbolos
Apresentação
Muito já se escreveu sobre a experiência política e histórica dos grupos de esquerda que, durante as décadas de 1960 e 1970 no Brasil, optaram pela luta armada como forma de fazer a revolução e derrotar a ditadura instaurada em 1964. De fato, desde pelo menos o início do lento processo de abertura política, em fins dos anos 1970, livros foram escritos, filmes foram feitos, memórias publicadas e denúncias formuladas. O país parecia dividir-se entre dois imperativos de memória aparentemente distintos, se não opostos, mas com os quais conviveria de modo complexo e simbiótico: por um lado, o desejo de virar a página e deixar os anos da ditadura no passado e, por outro, o fascínio pela saga dos jovens que ousaram desafiar o aparato repressivo do regime e, por isso, enfrentaram prisão, tortura, exílio e morte.
De fato, a partir do lento processo de abertura política e redemocratização, a aventura
da luta armada foi recuperada e reabilitada pelos diversos meios de expressão da memória coletiva. Foi também profundamente ressignificada, adaptada aos novos tempos: se já não se podia mais aceitar os termos empregados pela ditadura para se referir àqueles jovens – terroristas
, subversivos
, perigosos
–, tampouco cabia recuperar o sentido revolucionário de seus projetos. Foram, então, transformados em heróis. Mas não heróis da revolução socialista que queriam realizar. Heróis da luta pela democracia. A democracia possível naquele momento, que começava a ser construída. Estes jovens foram, assim, transformados nos mais radicais defensores da luta democrática, dispostos a empunhar metralhadoras em defesa desta causa. O processo de transição resultou no apagamento do sentido revolucionário e ofensivo de seus projetos e propostas.¹
Talvez tenha sido este deslocamento de sentido quanto à atuação das esquerdas armadas no país um dos primeiros sinais da crise de memória
instaurada no Brasil em torno da ditadura militar. Para Susan Suleiman, uma crise de memória constitui um momento de escolha e algumas vezes de dilema ou conflito em relação às lembranças do passado pertencentes a indivíduos ou grupos
. Sob este aspecto, quando se configura uma crise de memória, o que está em jogo são as formas de autorrepresentação: a forma como nos vemos e nos representamos para os outros é indissociável das histórias que contamos sobre o nosso passado
.²
Em certo sentido, é o estudo destas crises de memória
e das autorrepresentações coletivas sobre a última ditadura brasileira que o livro de Juliana Marques do Nascimento, Guerrilheiras: memórias da ditadura e militância feminina, nos oferece. Em particular, Juliana desenvolve sua pesquisa com ênfase nas formas de autorrepresentação das esquerdas durante este período. Assim, propõe discutir os caminhos pelos quais as relações da sociedade com o passado ditatorial recente se transformaram ao longo do período democrático.
Seu livro, fruto de pesquisa original e inovadora que resultou na dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos conta uma história da memória da ditadura militar de 1964 ao longo do período democrático, sobretudo a partir da década de 1990: como a ditadura foi vista, lembrada e retratada pela democracia brasileira? Especificamente, como as esquerdas e a luta armada contra o regime foram recuperadas e redefinidas pela democracia? Como os jovens revolucionários do passado foram transformados em heróis da democracia no presente? O que foi dito sobre eles? Sobre a ditadura? Mas tão importante quanto, o que não foi dito? Quais zonas de sombra, silêncios, não-ditos
³ permaneceram e o que essas escolhas por não lembrar
podem nos dizer sobre as formas de autorrepresentação da sociedade brasileira?
O desafio de escrever um livro em torno de tal problemática já seria enorme, mas a autora vai além: para realizar seu objetivo, Juliana escolheu, como fonte e objeto, o estudo de dois livros, duas biografias: a primeira delas, a reportagem biográfica
Iara, escrita em 1992 pela jornalista Judith Patarra, em torno da vida e militância política de Iara Iavelberg, que se tornou, à época, um best-seller; e, em seguida, A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, livro escrito por Ricardo Batista Amaral e publicado em 2011, logo no início do primeiro mandato presidencial de Rousseff.
Além de operar com o conceito de memória, Juliana não foge aos desafios colocados por suas fontes: o trabalho com as categorias de gênero e biografia é realizado, com maturidade e sofisticação, através da mobilização de conceitos e autores, mas sobretudo do estudo e da interrogação detalhada dos livros escolhidos. Utilizando as biografias como expressão de determinados ciclos de memória
, categoria que a autora toma de empréstimo do historiador Marcos Napolitano, Juliana demonstra como a visão a respeito da ditadura e do projeto revolucionário das esquerdas transformou-se ao longo dos anos. Considera, assim, que a relação estabelecida por determinados grupos sociais, no presente, com o passado é expressão de demandas e interesses destes grupos em um determinado momento histórico e que, portanto, podem se transformar.
Partindo de tal premissa, Juliana analisa a fundo as biografias escolhidas: quem são os autores? Quais condições cercaram os processos de escrita de cada um? Em que contextos escreveram? Por que escreveram? E por que cada um escolheu a sua respectiva biografada? Estas são algumas perguntas que interessam à autora. Mas, sobretudo, interessa também saber quem são as biografadas. Ou antes, quem são, na visão dos autores, as suas biografadas? O olhar de cada um deles sobre suas personagens corresponderia à visão de uma época sobre as mesmas? Como estas personagens são representadas no que concerne a uma determinada visão de gênero? Como, já na democracia, olhamos para as mulheres que aderiram à luta armada contra a ditadura?
Nenhuma destas questões escapa ao olhar atento e à análise cuidadosa da autora, cujo estudo enfrenta ainda um outro desafio: o de lidar com as particularidades do tempo presente. Por muito tempo, quiseram os pioneiros da História do Tempo Presente que esta fosse tratada como qualquer outra temporalidade histórica. Hoje, no entanto, os historiadores especialistas no tema defendem que se trata sim de uma noção, uma metodologia e uma temporalidade que possui sim suas singularidades. Uma das quais, justamente, a de lidar com a presença de testemunhas. O livro de Juliana Marques não apenas encara a presença das testemunhas como também enfrenta o desafio de lidar com personagens ora sacralizadas pelo imaginário coletivo de esquerda – como é o caso de Iara Iavelberg, transformada em heroína, em musa das esquerdas; ora polêmicas, alçadas ao centro de uma das maiores crises políticas da história recente do Brasil, como Dilma Rousseff.
Nem uma coisa nem outra impedem que a jovem historiadora, com coragem e método, analise os processos a partir dos quais tais personagens tornaram-se heroínas: o que foi dito, como foi dito e o que não foi dito para que isso acontecesse; quais demandas coletivas moldaram tais processos. Mas, ao invés de simplesmente constatar que ambas as narrativas biográficas estudadas transbordam certo fascínio por suas personagens, Juliana questiona as formas de construção desses olhares fascinados. Seu questionamento atravessa, simultaneamente, os processos de construção e reconstrução da memória sobre a ditadura e determinados estereótipos de gênero, dentro dos quais, muitas vezes as personagens foram enquadradas e os quais limitam, mais que explicam, os processos históricos.
O livro de Juliana Marques do Nascimento, ao enfrentar tais questões, nos coloca diante de uma reflexão que parece fundamental: como as demandas do presente conformam os olhares sobre o passado. E, já que o passado está em perpétuo processo de captura e ressignificação pelo presente, mais que nunca parece fundamental examinar cuidadosamente como nos relacionamos com nossos passados traumáticos.
Janaina Martins Cordeiro
Professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rio de Janeiro, fevereiro/2021
Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 e ROLLEMBERG, Denise. Esquecimento das memórias. In: João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed. UFSCar, 2006. ↩
SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 11. ↩
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 8. ↩
Introdução
Em 29 de maio de 1971, o periódico Jornal do Brasil publicou uma transcrição de documentos apreendidos na casa do ex-capitão do Exército e líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Carlos Lamarca, após a invasão de um apartamento, organizada pelos órgãos de segurança da repressão. Essa reportagem, que mencionava a amante
de Lamarca, Iara Iavelberg, contém um texto dedicado apenas a ela, sob o título Ficha de Iara
:
Segundo os dados liberados, Iara Yavelberg [sic] era casada em São Paulo com um médico, que desquitou-se dela ao surpreendê-la, seis meses após o casamento, em uma festinha com estudantes. (...)
Informam que ela conheceu Lamarca nos quadros do terrorismo, através de Breno, e após algum tempo passou a viver com êle. Tem participado de atividades terroristas e estêve em Registro, tendo abandonado a área por haver contraído doença grave em órgão genital, segundo declarações de terroristas presos
.¹
O vocabulário empregado no texto é depreciativo, com o objetivo de deslegitimar as atividades de Iavelberg, pessoais e políticas. Até mesmo uma suposta doença ginecológica foi citada, possivelmente com o intuito de difamá-la. Nota-se que a notícia foi publicada no contexto da ditadura civil-militar, reafirmando a posição determinada pelo regime a respeito de seus opositores.
Pouco mais de vinte anos depois, em 26 de abril de 1992, o mesmo periódico publicou uma reportagem intitulada Iara à semelhança de Olga
, com texto-chamada na capa e duas páginas dedicadas à matéria. Noticiando o lançamento de um livro biográfico sobre Iavelberg, a jornalista Marília Martins descreveu a biografada:
Iara Iavelberg, militante de quatro organizações clandestinas nos anos 70, a mulher que virou a cabeça do legendário capitão Carlos Lamarca, acaba de chegar às livrarias como tema de uma impecável reportagem biográfica. Singelamente intitulado Iara, o volume (...) faz um retrato de sua protagonista à imagem de Olga Benário, tão trágica e tão indomável quanto a primeira mulher de Carlos Prestes.²
O discurso utilizado nesta reportagem tem caráter oposto ao da notícia anterior. Iara foi representada como heroína, assim como Olga Benário. Não é mais terrorista
, mas sim militante. Lamarca, por sua vez, foi descrito como legendário. Em 1992, o regime democrático já havia sido plenamente restaurado há quatro anos, com a promulgação da Constituição de 1988, permitindo a circulação de ideias antes censuradas e o debate sobre trajetórias de vida de opositores do regime instaurado com o golpe civil-militar de 1964, como Iara Iavelberg.
Assim, este trabalho propõe analisar obras biográficas sobre as vidas de mulheres que se engajaram na luta armada durante a ditadura civil-militar, com a intenção de contribuir para uma história da memória da ditadura, analisando os usos do passado. Ou seja, como discursos sobre seus engajamentos foram elaborados e influenciados pela conjuntura democrática.
Dois livros serão estudados, publicados em contextos sociais e históricos distintos – ambos após a redemocratização –, o que permitirá uma investigação do que se recordou sobre o regime ditatorial em cada momento da democracia. São eles: Iara: uma reportagem biográfica, de autoria de Judith Patarra, publicado em 1992 pela editora Rosa dos Tempos, cuja biografada foi Iara Iavelberg; e A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral, lançado em 2011 pela editora Sextante, abordando a história de Dilma Rousseff.
As obras foram escolhidas por terem sido escritas em diferentes períodos e, assim, por trazerem memórias diversas sobre o mesmo passado: a ditadura. Além disso, os livros examinam trajetórias de mulheres diferentes, com papéis distintos nas organizações de luta revolucionária, o que demonstra uma pluralidade de lugares da atuação feminina nas esquerdas nos anos 1960 e 1970.
Iara Iavelberg é, conforme evidenciado anteriormente, uma personagem recorrente e de destaque quando se trata de militância feminina de esquerda na ditadura. Durante seu engajamento, os órgãos de segurança, ecoados pela imprensa, condicionavam suas atividades às do guerrilheiro Carlos Lamarca, importante líder guerrilheiro. Sua biografia é uma obra importante de ser examinada por ter tido ampla circulação entre o público leitor e por ter pretendido se constituir como narrativa definitiva
sobre Iavelberg. Nota-se, assim, que o livro é utilizado como ponto de partida essencial e, de certa forma, incontestável para pesquisas sobre a guerrilheira, a luta armada em geral e assuntos diversos sobre as décadas de 1960 e 1970.
A outra biografia foi selecionada por sua importância a partir dos anos 2010: Dilma Rousseff foi a primeira presidenta³ do Brasil, eleita em 2010 e em 2014 – tendo sido esse último mandato interrompido por um impeachment, em 2016. Durante as duas campanhas, sobretudo a primeira, o passado de guerrilheira de Dilma foi recuperado pelos veículos de imprensa e eleitores em geral e muitas versões foram difundidas. O livro biográfico, publicado nos meses iniciais da primeira gestão presidencial, desejou estabelecer uma história oficial da vida da chefe de Estado, abordando inclusive sua atuação nas organizações de esquerda. A análise do discurso construído pelo biógrafo é essencial para compreender a memória construída e evocada por uma presidenta a respeito de seu passado polêmico. Memória esta que foi influenciada por demandas eleitorais e de governabilidade, e pela conciliação com opositores, em diálogo com processos anteriores de construção de uma memória oficial sobre a ditadura e a luta armada contra ela.
A diferença entre os períodos de publicação de cada uma das biografias permite compreender como a ditadura civil-militar foi assimilada e narrada em momentos políticos e sociais posteriores. Para isso, serão utilizadas as fases de memória
mapeadas e propostas pelo historiador Marcos Napolitano.⁴ O autor identifica uma memória hegemônica sobre a ditadura, o período em que foi forjada e como determinadas memórias subterrâneas foram se relacionando com a dominante em outros momentos da história democrática.
A primeira fase proposta por Napolitano localiza-se entre 1964 e 1974⁵, e é caracterizada pela formação de um discurso favorável ao regime vigente, com o Estado ditatorial como principal produtor de memória. Tal discurso contempla fatos como o golpe, referido pelos então governantes como Revolução
; a repressão à luta armada e outras formas de oposição ao regime, a guerra ao terror
; e o milagre econômico
.
A segunda fase, mais explorada neste livro, intitulada pelo autor de A construção da memória crítica
, situa-se entre os anos de 1974 e 1994. O marco de 1974 é definido pois, segundo Napolitano, a derrota eleitoral do partido Aliança Renovadora Nacional (ARENA) nas eleições deste ano é representativa de uma insatisfação crescente com o modo de governo. Neste momento, então, a classe média escolarizada e os movimentos sociais se tornaram protagonistas na construção de uma memória crítica ao regime, ajudando a desgastá-lo e a deslegitimá-lo perante a opinião pública
.⁶ Segundo Napolitano, essa memória crítica se tornou a memória hegemônica sobre o regime, e perpetuou-se durante todas as outras fases memoriais mapeadas por ele. É caracterizada por se opor à ditadura e por identificá-la enquanto uma lacuna histórica
, usurpação
: os anos de chumbo
, alcunha que desqualifica o Estado militar e oculta o apoio civil a ele, colocando a sociedade como ‘vítima’, mas resistente e digna
.⁷
O terceiro ciclo, por sua vez localizado pelo autor entre 1995 e 2004, é denominado As ‘leis de memória’ e a política de Estado
. A década de 1990 é vista pelo historiador como uma ruptura pois, a partir de 1995,
o Estado se pautou por uma política de reparações e de recuperação das histórias de vida (e morte) das vítimas da violência do regime militar, ao mesmo tempo em que tem promovido ações institucionais e simbólicas situadas no campo da memória hegemônica crítica à ditadura.⁸
Napolitano, então, aponta a entrada do Estado, em suas diferentes instâncias, como produtor de memória, em diversas tentativas de criar um discurso oficial sobre a ditadura – discurso este convergente com a memória hegemônica preestabelecida: conciliador, sem revanchismos, que valoriza a resistência democrática da sociedade e, no entanto, oculta a liderança civil tanto no golpe quanto no regime em si. Apesar de estabelecer 2004 como marco final da fase, o autor cita a Comissão Nacional da Verdade como simbólica do discurso forjado neste momento – isto pois os discursos memoriais não se restringem às suas fases e podem se manifestar em outros momentos.
A quarta e última fase, Revisionismos ideológicos e historiográficos
, de 2004 a 2014, é descrita pelo autor como o primeiro momento em que a memória hegemônica apresenta uma fissura e que discursos antes subterrâneos de apoio à ditadura, vindos de diversos atores sociais, ganham espaço significativo. Napolitano apresenta como hipótese para este cenário a rivalidade entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB):
A cisão PT – PSDB que tem marcado a política brasileira do início do século XXI fez com que este último, naturalmente, flertasse com lideranças conservadoras e disputasse eleitores mais à direita, avessos ao sapo barbudo
do petismo. O resultado é o surgimento de um liberalismo abertamente de direita e conservador, ainda que conserve traços republicanos, mas que trouxe de volta ao espaço público, uma extrema direita abertamente fascistoide e golpista.⁹
Ainda que haja mais iniciativas do Estado em prol da memória, como as resultantes dos 50 anos do golpe, em 2014, o revisionismo ganha espaço
.¹⁰ O autor menciona também, dentro do debate historiográfico, o aumento de estudos que questionam o conceito de resistência à ditadura e das reflexões sobre as direitas golpistas por pesquisadores que não se deixaram virar reféns da memória hegemônica e suas armadilhas e restrições
.¹¹
Assim, essas fases propostas pelo historiador serão mobilizadas para a análise das biografias e seus contextos de produção nesse livro, mas de maneira crítica e sendo problematizadas ao longo do trabalho, com acréscimos e decréscimos, além do cruzamento com outras referências historiográficas.
Sem embargo, algumas dessas críticas devem ser feitas já na introdução. A principal delas se refere ao uso do termo revisionismo
pelo autor para caracterizar tanto determinadas correntes historiográficas, quanto discursos ideológicos que questionam a memória crítica à ditadura. Vale ressaltar, dessa forma, que há uma separação contundente entre os revisionismos ideológicos e aquilo que o autor chama de revisionismos historiográficos
. Estes consistem no aumento de pesquisas que se desprendam da memória dominante, promovendo o desenvolvimento de estudos com enfoque não só na atuação das esquerdas, mas também das direitas. Para isso, são utilizados critérios e métodos acadêmicos. Creio que o termo usado por Napolitano para classificar esses debates não seja de maneira alguma adequado, principalmente por seu caráter depreciativo e por colocá-los no mesmo patamar de discursos conservadores, retirando sua complexidade; uma distinção mais incisiva entre os dois tipos de revisionismo
não é feita de maneira explícita pelo historiador. Dessa forma, irei me referir aos discursos que ressurgem a favor da ditadura como conservadores ou negacionistas, evitando o uso da palavra revisionismo
, que pode ser mal interpretada.
A outra crítica a Napolitano se refere à divisão dos ciclos feita pelo historiador. O terceiro ciclo, que trata da entrada do Estado como produtor de memória, não traz uma ruptura forte que justifique o início de uma nova fase. O Estado vincula como memória oficial
o discurso que já era dominante, sem alterações significativas em seu teor. Esse ponto será mais bem discutido no capítulo 4.
****
Depois de tempos de priorização da análise do coletivo e das grandes estruturas nas ciências sociais, observou-se, principalmente durante o século XX, uma revalorização do sujeito na história. Em vez de organizações, camadas sociais e partidos, a experiência individual reapareceu como fonte pertinente.¹² A chamada guinada subjetiva, analisada por Beatriz Sarlo, recolocou em pauta os relatos de experiências individuais¹³, expressados no campo historiográfico através, principalmente, da história oral e do testemunho, que "restituíram a confiança nessa primeira pessoa que narra sua vida para conservar uma lembrança ou reparar uma identidade machucada".¹⁴
Essas observações são importantes, visto que o século XX foi também um século com múltiplas experiências traumáticas e muitas identidades machucadas
.¹⁵ Exemplos dos horrores vividos neste século foram os causados durante as duas grandes guerras. O extermínio em massa, perpetrado pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial, chocou o mundo, recolocando em evidência uma categoria do sujeito marcada pela subjetividade: a figura da testemunha.¹⁶ A reinclusão dos relatos em primeira pessoa foi crucial, pois proporcionou a possibilidade de falar sobre as mazelas vividas, o que, no caso da escrita da história, permitiu uma mudança no ponto de vista sobre quem são os sujeitos históricos: aqueles indivíduos e grupos antes marginalizados e silenciados passam agora a protagonistas e porta-vozes de determinados processos. Portanto, as testemunhas, que são também sobreviventes, produzem seus relatos a fim de assegurar que os traumas aos quais foram submetidas não sejam esquecidos.¹⁷
Primo Levi, judeu e químico italiano, foi um dos sobreviventes de Auschwitz. Após ser libertado em 1945, escreveu seu primeiro livro de memórias sobre o que vivenciou no campo de concentração: a obra É isto um homem?, que chegou a ser rejeitada por uma editora, foi publicada pela primeira vez em 1947, porém não teve destaque entre o público leitor. O próprio Levi afirmou que: depois do retorno de Auschwitz, eu tinha uma necessidade enorme de falar, encontrava aqui os meus velhos amigos e os enchia de histórias
.¹⁸ Michael Pollak aponta que, "para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta".¹⁹ A publicação de A Trégua, outro romance autobiográfico de Levi – este tratando especificamente da libertação e da volta para casa após a vida no campo –, em 1963, trouxe reconhecimento para o autor. É pertinente observar que a data de publicação é posterior ao julgamento de Adolf Eichmann²⁰, em 1961, que foi transmitido por rádios e televisões de todo o mundo e contou com depoimentos de sobreviventes dos campos. De acordo com Annette Wieviorka, o julgamento de Eichmann conferiu às testemunhas a identidade social de sobreviventes e as transformou em portadoras de história
.²¹ Encontrou-se, finalmente naquele momento, um espaço de escuta.
Os testemunhos publicados no pós-guerra e em outros períodos de trauma consistiram em uma literatura de teor testemunhal. Esse termo foi cunhado pelo crítico e teórico literário Márcio Seligmann-Silva.²² De acordo com François Hartog, esses testemunhos possuem um caráter crucial, uma vez que o plano de extermínio previa também a supressão de todas as testemunhas, assim como dos vestígios do crime.²³ Relatar, nesse contexto, seria uma
‘cura’ da alienação e da coisificação".²⁴
A importância da inclusão dessas narrativas enquanto fonte para a produção historiográfica é inquestionável. Contudo, é preciso