Da Monarquia À República - Momentos Decisivos

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INTRODUO As elites brasileiras que tomaram o poder em 1822 compunham-se de fazendeiros, comerciantes e membros de sua clientela, ligados economia

a de importao e exportao e interessados na manuteno das estruturas tradicionais de produo cujas bases eram o sistema de trabalho escravo e a grande propriedade. Aps a Independncia, reafirmaram a tradio agrria da economia brasileira; opuseram-se s dbeis tentativas de alguns grupos interessados em promover o desenvolvimento da indstria nacional e resistiram s presses inglesas visando abolir o trfico de escravos. Formados na ideologia da Ilustrao, expurgaram o pensamento liberal das suas feies mais radicais, talhando para uso prprio uma ideologia essencialmente conservadora e antidemocrtica. A presena do herdeiro da Casa de Bragana no Brasil ofereceu-lhes a oportunidade de alcanar a Independncia sem recorrer mobilizao das massas. Organizaram um sistema poltico fortemente centralizado que colocava os municpios na dependncia dos governos provinciais e as provncias na dependncia do governo central. Continuando a tradio colonial, subordinaram a Igreja ao Estado e mantiveram o catolicismo como religio oficial, se bem que, numa concesso ao pensamento ilustrado, tenham autorizado o culto privado de outras religies. Adotaram um sistema de eleies indiretas baseado no voto qualificado (censitrio), excluindo a
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maior parte da populao do processo eleitoral. Disputaram avidamente ttulos de nobreza e monopolizaram posies na Cmara, no Senado, no Conselho de Estado e nos Ministrios (Captulos 1 e 2). A adoo do princpio da vitaliciedade para o Senado e o Conselho de Estado assegurou continuidade s elites polticas que se perpetuaram no poder graas ao sistema de clientela e patronagem vindo a constituir uma verdadeira oligarquia. Em 1822, as elites optaram por um regime monrquico, mas, uma vez conquistada a Independncia, competiram com o imperador pelo controle da nao, cuja liderana assumiu em 1831, quando levaram D. Pedro I a abdicar. Nos anos que se seguiram, os grupos no poder sofreram a oposio de liberais radicais que se insurgiram em vrios pontos do pas. Ressentiam-se uns da excessiva centralizao e pleiteavam um regime federativo; outros propunham a abolio gradual da escravido, demandavam a nacionalizao do comrcio, chegando a sugerir a expropriao dos latifndios improdutivos. Pertencentes a essa categoria eram os que se sublevaram no Rio de Janeiro em 1831. Podem eles ser considerados a verso brasileira dos sans-culottes. Eram artesos e pequenos comerciantes cuja sobrevivncia se tornara difcil por causa da crescente concorrncia estrangeira. Contavam com o apoio de mdicos, advogados, jornalistas e outros profissionais urbanos, bem como da massa de negros e mulatos livres que se acumulavam nos principais portos e que no se identificavam com o ponto de vista das elites. A oligarquia brasileira, no entanto, desde seus primeiros tempos, revelou pequena tolerncia para com a oposio. Os grupos no poder consideravam o Ato Adicional (1834), que garantiu maior autonomia aos governos provinciais, a ltima concesso aos anseios dos grupos radicais. A partir de ento, as elites se tornaram mais conservadoras e trataram, na expresso de um de seus representantes, de parar o carro revolucionrio. Com esse intuito, o governo da regncia criou a Guarda Nacional, colocando disposio das classes proprietrias uma fora policial que seria usada na manuteno do poder local. O Exrcito, por sua vez, foi incumbido de reprimir os movimentos dissidentes em escala nacional. Dessa forma, nos meados do sculo, a oligarquia consolidara seu poder
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Uma nova gerao de polticos assumira o controle da nao, governando sob a tutela protetora do jovem imperador cuja maioridade fora antecipada. Os dissidentes dos primeiros

tempos desapareceram da cena poltica, engolfados pelo processo de modernizao ou cooptados pelo sistema. A carreira de Torres Homem, na juventude ativo elemento da oposio, autor do Libelo do Povo, mais tarde baro, senador, conselheiro e vrias vezes ministro, reproduz na escala pessoal um movimento mais amplo, caracterstico das elites da poca. Anlogas foram as carreiras de Antnio Carlos de Andrada e Silva, Bernardo de Vasconcelos, Feij e muitos outros que passaram de uma posio nitidamente liberal para uma posio relativamente conservadora. Esse movimento encontra paralelismo na evoluo do pensamento liberal desse perodo. Os liberais, que durante o Primeiro Imprio tinham feito do liberalismo uma arma de oposio ao imperador e um instrumento de demolio das instituies coloniais obsoletas, tornaram-se conservadores quando tomaram o poder e tiveram de enfrentar as exigncias dos setores mais radicais (Captulo 3). A constituio de um ministrio de conciliao nos meados do sculo, expressando uma unio temporria entre liberais e conservadores, representou a superao das desinteligncias iniciais e consolidou a hegemonia de uma elite basicamente conservadora. Nos anos que se seguiram, liberais e conservadores se revezariam no poder, mas, a despeito das diferenas programticas que os separavam e no obstante o jogo poltico que os dividia em grupos antagnicos, mantiveram concordncia de pontos de vista a respeito de questes fundamentais tais como a manuteno da economia agrria e da escravido. O bourgeois gentilhomme, tpico da elite brasileira, empresrio e aristocrata, vido de lucros e de ttulos de nobreza, assumiu uma posio ambgua em relao tica burguesa e ao capitalismo. A tica capitalista, com seu culto da liberdade individual, sua valorizao da poupana e do trabalho, seu apreo pelo self-made man, no fazia muito sentido numa sociedade em que o trabalho era feito por escravos, as relaes humanas se definiam em termos de troca de favores e a mobilidade social dependia da patronagem da elite (Captulo 8).
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O sistema de clientela e patronagem, cujas origens remontam ao perodo colonial, impediu a racionalizao da administrao. A burocracia do Imprio foi cabide de empregos, os burocratas sujeitos aos caprichos da poltica e ao revezamento dos partidos no poder. As lutas polticas se definiram em termos de lutas de famlia e suas clientelas. A tica de favores prevalecia sobre a tica competitiva e o bem pblico confundia-se com os bens pessoais. Dentro desse quadro de relaes, o sistema capitalista encontrava obstculos para seu desenvolvimento. De outro modo, seu dinamismo limitado, caracterstico do capitalismo perifrico, no era suficiente para desarticular as bases de sustentao da patronagem (Captulo 6). O sistema de clientela que sobreviveria ao Imprio mascarava as tenses de classe e os antagonismos raciais. As novas classes mdias urbanas que se constituram no decorrer do Segundo Reinado nos principais ncleos urbanos seriam atreladas s oligarquias de cuja patronagem dependiam o que imps limites sua crtica. Exemplo do processo de cooptao dos indivduos mais talentosos, pertencentes pequena burguesia e s classes populares, a ascenso do bacharel. Ligado s elites por laos de famlia, amizade ou clientela, tornou-se frequentemente porta-voz dos grupos dominantes. A expanso do mercado interno, no entanto, permitiu-lhe almejar uma relativa independncia em relao s lealdades tradicionais que o aprisionavam. Arvorou-se ento em patrono do povo. Aceitou com entusiasmo ideias novas, apoiou movimentos polticos dissidentes e se fez emissrio do progresso mas de um progresso que pretendia fosse filtrado pela tradio. De maneira geral, no entanto, o bacharel, ao contrrio do que se tem afirmado, no se ops ao patriarca, apenas conciliou. Quando ousou se opor, sua atuao foi freada por falta de bases sociais que pudessem tornar efetivas suas reivindicaes mais radicais, at que estas se perderam numa retrica vazia. Quando muito, colocou-se a servio dos setores mais progressistas das oligarquias, participando dos movimentos reformistas caractersticos do perodo 1870-1889,

tais como a reforma eleitoral, a Abolio e a Repblica. Tal adeso se d exatamente no momento em que setores novos das elites agrrio-mercantil-exportadoras se lanam num projeto de modernizao relativa do pas e disputam o poder s elites tradicionais (Captulo 6).
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A exemplo dos bacharis, os novos grupos urbanos at mesmo os setores industriais em formao que aparecem no fim do Imprio no chegaram a desenvolver uma poltica independente. Dessa forma, os grupos que se poderiam ter definido como oposio foram, de uma maneira ou de outra, integrados no sistema, assimilando o estilo de vida e as aspiraes das classes dominantes. Anlogo fenmeno de cooptao ocorreu em relao aos poucos mulatos e pretos que, graas a seus talentos, conseguiram tornar-se famosos advogados, escritores, jornalistas, engenheiros ou polticos de renome mediante o sistema de patronagem. Segura de suas posies, controlando a mobilidade social e imbuda de uma concepo hierrquica do mundo, que ratificava as desigualdades sociais e postulava obrigaes recprocas, a elite brasileira no precisou recorrer a formas explcitas de discriminao racial (Captulo 9). Mulatos e negros foram, na sua maioria, naturalmente segregados por um sistema socioeconmico de dinamismo moderado e de limitadas possibilidades. Os que foram incorporados elite, pela via do sistema de clientela, adquiriram automaticamente o status de branco, identificando-se no obstante a ambiguidade de sua situao com a comunidade dos brancos. Tal foi a sorte de homens como o novelista Machado de Assis, o poeta Cruz e Souza e o engenheiro Andr Rebouas. Atravs do sistema de clientela e patronagem as elites brasileiras consolidaram sua hegemonia sobre os demais grupos sociais o que contribuiu em parte para a estabilidade relativa do sistema poltico. Ainda mais importante para a manuteno dessa estabilidade foi a contnua expanso da economia de exportao, favorecida pelo crescimento do mercado internacional no decorrer do sculo XIX, e a crescente demanda de produtos tropicais. O desenvolvimento econmico, no entanto, teve efeitos contraditrios. Ao mesmo tempo que conferiu relativa estabilidade ao regime, assegurando a sobrevivncia da economia agrria e exportadora, estimulou a urbanizao e o desenvolvimento do mercado interno, gerando cises entre setores da elite. Os debates na Cmara e no Senado a propsito da Lei de Terras (Captulo 4) e da poltica de mo-de-obra (Captulos 4 e 5) revelam, j nos meados do sculo, os primeiros sintomas dessa ciso que se agravaria a partir de 1870.
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A expanso do mercado internacional e a revoluo no sistema de transportes abriram novas possibilidades para a agricultura brasileira no sculo XIX. O desenvolvimento da cultura cafeeira em Minas, Rio e So Paulo tornou urgente a soluo de dois problemas interdependentes: o da mo-de-obra e o da propriedade da terra. Os fazendeiros das reas novas, preocupados com a iminncia da abolio do trfico de escravos e esperando encontrar na imigrao a soluo para o problema da fora de trabalho, propuseram uma legislao com o objetivo de impedir o acesso fcil terra e de forar os imigrantes ao trabalho nas fazendas. Os setores mais tradicionais, apoiados por alguns intelectuais europeizados que se identificavam com o pensamento ilustrado, defendiam uma poltica colonizadora baseada na distribuio de pequenos lotes aos imigrantes, aos quais encaravam no como substitutos dos escravos, mas como agentes civilizados. A Lei de Terras de 1850 reforaria, no entanto, o poder dos latifundirios em detrimento do pequeno proprietrio. As tentativas iniciais de substituir os escravos pelos imigrantes falharam. Os fazendeiros de caf continuaram a abastecer-se de escravos, comprando-os em reas do pas em que a economia estava decadente. A partir de 1850, porm, a criao de novos tipos de investimentos (estradas de

ferro, bancos, manufaturas, melhoramentos urbanos) tornou cada vez menos produtiva a imobilizao do capital em escravos. As transformaes no processo de beneficiamento de caf, fabrico de acar, produo do charque e a melhoria dos meios de transporte permitiram uma relativa racionalizao do processo de produo, tornando o trabalho livre mais vivel e aparentemente mais lucrativo em certas reas. O aumento da presso abolicionista nos centros urbanos, a promulgao de leis emancipacionistas no Parlamento e, finalmente, a agitao dos escravos, que passaram a contar com o apoio de parte da populao, acabaram por desarticular a economia escravista. Diante do que lhes parecia um processo inevitvel, os fazendeiros das reas mais progressistas voltaram-se para os imigrantes (Captulo 8). Promovida por brancos e por mulatos e pretos que tinham sido assimilados pelas elites, a abolio liberou os brancos do peso da escravido e abandonou os exescravos sua prpria sorte. Os maiores beneficirios foram, uma vez mais, as elites e a sua clientela.
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O progresso econmico da segunda metade do sculo XIX acarretou profundo desequilbrio entre poder econmico e poder poltico. Concebido em 1822, o sistema poltico parecia pouco satisfatrio aos setores novos, na dcada de 1880. As novas elites urbanas no se sentiam suficientemente representadas e os fazendeiros das reas cafeeiras mais novas, que produziam boa parte da riqueza do pas, sentiam-se peados pelas estruturas polticas do Imprio. O Partido Republicano recrutou adeptos nesses grupos sociais insatisfeitos. Republicanos e abolicionistas adotaram um estilo poltico novo. Pela primeira vez, a poltica saa dos limites estreitos dos conchavos familiares para a praa pblica. Os polticos falavam s populaes urbanas. Os poetas e escritores voltaram a falar do povo, redescobrindo-o, como fonte de inspirao. Apesar dessas tentativas de mobilizao popular, a Repblica se faria como a Independncia se fizera sem a colaborao das massas. O novo regime resultaria de um golpe militar. Nos meios republicanos, a estratgia conspiratria prevaleceu sobre a estratgia revolucionria. O Exrcito apareceu aos olhos das novas elites como o instrumento ideal para derrubar a Monarquia e instituir um novo regime que as colocasse no poder. Desde a Guerra do Paraguai, setores do Exrcito se indispuseram com o sistema monrquico. Convencidos de que os polticos civis eram corruptos, entenderam que cabia aos militares uma misso regeneradora, de salvao nacional. Nada mais natural, pois, do que a aliana entre esses setores militares e os republicanos, aliana que culminou na derrubada da Monarquia (Captulos 10 e 11). Este breve sumrio dos captulos que se seguem permite concluir que, a despeito das transformaes ocorridas entre 1822 e 1889, as estruturas socioeconmicas da sociedade brasileira no se alteraram profundamente, nesse perodo, de modo a provocar conflitos sociais mais amplos. O sistema de clientela e patronagem que permeava toda a sociedade minimizou as tenses de raa e de classe. O resultado desse processo de desenvolvimento foi a perpetuao de valores tradicionais elitistas, antidemocrticos e
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autoritrios, bem como a sobrevivncia de estruturas de mando que implicam a marginalizao de amplos setores da populao. Em 1893, quando a Repblica brasileira dava os seus primeiros passos, Silvio Romero denunciava o novo regime como incapaz de fundar no Brasil uma repblica democrtica livre. Comentando o comportamento das elites polticas brasileiras de seu tempo, dizia:
E depois este sistemtico desdm pelo povo, declarado incompetente para fazer a escolha de seus representantes polticos e acoimado de vcios no manejo desse direito ... nada menos do que a pretenso desairosa e extravagante de dividir ainda e sempre a maioria

vlida de uma nao em dois grupos de um lado os privilegiados, os possuidores sem monoplio das luzes e da dignidade moral, e de outro lado, os ineptos e viciados, os incapazes de qualquer ao poltica acertada! queles, o governo, a direo, o mando, aos outros a eterna tutela, a minoridade, a incompetncia perptua. o regime do privilgio na sua mais recente edio, porm sempre o privilgio, queremos dizer o abuso e a compresso.

e mais adiante prosseguia:


Este banqueirismo governativo no passa de uma aristocracia do dinheiro, de um patricialismo do capital, a mais viciada e bastarda de todas as aristocracias.

Alguns anos mais tarde, em 1910, na mesma linguagem candente, Silvio Romero comentava:
Ignorncia, pauperismo, misria, opresso reinam por toda parte... Temos sido apenas o joguete do capital estrangeiro, sfrego por emprego a bons juros e de certas corporaes ou indivduos postos por eles a seu servio.

Criticando o processo de ilusionismo posto em prtica pelas elites de ento, ele continuava implacvel em sua denncia:
Este sistema de iludir e consolar so consciente ou inconscientemente mantidos pelos poderosos desfrutadores da poltica e do trabalho do povo brasileiro. No lhes convm que a nao abra os olhos porque no dia em que ela tiver a vista clara de sua deplorvel situao... Ruir por terra a infamante politicagem bloquista que nos avilta.

O fato de que essas palavras e outras hoje impublicveis , enunciadas nos primrdios da Repblica, possam ser endossadas por um radical de nossos dias revela que, apesar das profundas transformaes que a sociedade brasileira atravessou no sculo XX, alguns problemas fundamentais no foram resolvidos. E a luta de Silvio Romero em prol de uma viso mais objetiva da realidade brasileira permanece atual e oportuna. Reunimos neste volume ensaios escritos em diferentes momentos, sobre temas vrios relativos histria do Brasil. Nasceram eles de uma preocupao que lhes d unidade: a de entender a fraqueza das instituies democrticas e da ideologia liberal, assim como a marginalizao poltica, econmica e cultural de amplos setores da populao brasileira, problemas bsicos do Brasil contemporneo. Na abordagem dos temas procuramos evitar as explicaes mecanicistas, que, por apresentarem os homens como meras vtimas de foras histricas incontrolveis, acabam por isent-los de qualquer responsabilidade. Assumindo que dentro das determinaes gerais do processo histrico h sempre uma relativa margem de liberdade, examinamos o comportamento das elites brasileiras em alguns momentos decisivos da nossa histria.

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