Estética e Teoria Da Arte - O Conceito Clássico de Arte

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ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne

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corroborado pelo Professor Paul S. Wingert, uma das maiores autoridades em arte primitiva, que mostra como, no desenvolvimento dos ofcios utilitrios como os txteis, a cermica, a cestaria, a metalurgia, o entalho na pedra ou o entalho na madeira, funcionava o impulso esttico, induzindo os homens primitivos, por vaidade ou para granjear estima, ou mesmo, de fato, por simples prazer, a trabalharem os seus artefatos com maior habilidade, a embelezarem-nos decorativamente e a darem-lhes uma redundante beleza de formas em relao s suas necessidades puramente prticas e que as transcendia (*). Mas a funo esttica raro ou nunca se apre sentava s e autnoma. A distino hoje familiar entre as "belas-artes" e as artes teis ou industriais s se tornou preeminente no decurso do sculo XVIII na Europa, e foi, de certo ponto de vista, um dos primeiros sintomas da expulso gradativa da "arte" da estrutura integrada da sociedade. Em pocas passadas no existia o conceito das "belas-artes"; todas as artes eram artes de uso. E quando, no passado, os homens julgavam as suas obras de arte apreciavam-nas pela excelncia do seu lavor e pela sua eficcia na consecuo dos propsitos para os quais tinham sido criadas. Essa atitude exposta com admirvel conciso no dilogo de Plato Hippias Major, em que ocorre a definio proposta da beleza como "eficcia para algum bom propsito". O antigo conceito grego e romano da arte elucidativo porque torna inteligvel essa atitude, que predominou durante grande parte da histria humana. Em contraste com a nossa, a atitude dos gregos e romanos em relao arte era eminentemente prtica e houve pouco esteticismo consciente na Antigidade, pelo menos at o surgimento dos conhecedo res, no sculo de Augusto (44 A.D.-17 D.C.). Como disse E. E. Sikes, que escreveu sobre literatura grega: "Para os gregos do quinto sculo, a frmula de L'art pour l'art (a arte pela arte) teria sido monstruosa ou simplesmente ininteligvel." As artes eram apreciadas exatamente como quaisquer outros produtos da indstria humana pela sua eficcia na promoo dos objetivos para os quais tinham sido feitas. Alm disso, as belas-artes, como hoje lhes chamamos, estavam mais Intimamente integradas na vida da antiga cidade soberana do que o esto na comunidade moderna, em que uma abordagem esttica ainda restrita e a elevao das artes a um pedestal cultural lhes enfraqueceu a influncia direta na vida da maioria, dilatando o abismo entre o gosto inculto e o que denominamos gosto "requintado". Na Grcia antiga, a vida se vivia muito mais no plano social do que acontece conosco. As ocupaes e preocupaes privadas desempenhavam uma parte relativamente pequena na existncia total do grego comum da era clssica. A arte deles tinha tambm uma funo eminentemente social. No se escrevia poesia para ser lida em casa pelos poucos que porventura a apreciassem. Os poemas picos

1 - O CONCEITO CLSSICO DA ARTE


A
ARTE COMO OFCIO

A feitura de objetos estticos tem sido quase universal no discorrer da histria humana. Desde o aparecimento do homem moderno, durante o perodo paleoltico superior, e a bela eflorescncia da arte das cavernas nos perodos aurignacianos e magdalenianos, foram relativamente poucos os povos que, em todas as pocas, no produziram artefatos que hoje podemos apreciar esteticamente como coisas de beleza, muito embora j no conheamos nem aceitemos os valores que eles promoviam. Durante toda a Histria, as obras de arte eram artefatos fabricados para promover algum valor ulterior e no, como agora, feitos predpuamente para serem obras de arte, para serem apreciados esteticamente, como aqueles que sobreviveram do passado podem ser apreciados depois de retirados do seu contexto e expostos em museus. Se fssemos adotar o conceito de obra de arte. sugerida pelo Professor Urmson, "um artefato destinado, em primeiro lugar, considerao esttica" ( 1 ) , teramos de excluir a maioria dos produtos de arte que herdamos do passado. proporo que examinamos a obra de arte do passado, a partir da caverna mais antiga, verificamos que, por variados que fossem os seus usos, de um modo geral, todas as obras de arte eram feitas com uma finalidade. Um fetiche mgico, um templo para honrar os deuses e glorificar a comunidade, uma esttua para perpetuar a memria de um homem (Grcia) ou para assegurar-lhe a imortalidade (Egito), um poema pico para preservar as tradies da raa ou um mastro totmico para realar a dignidade de um cl eram todos artefatos, manufaturados para um fim diferente do que hoje denominaramos esttico. O seu motivo, no raro, era servirem de veculos a valores que ao depois se perderam no esquecimento. Eram essencialmente "utenslios", no mesmo sentido em que o so. uma armadura, os arreios de um cavalo ou objetos de servio domstico, ainda que o propsito a que servissem no fosse, necessariamente, material. Isso no quer dizer que o impulso esttico fosse inoperante na maior parte da histria do homem. Em seu livro The Biology of Arts (1962), em que estuda o comportamento imagineiro dos grandes smios e suas relaes com a arte humana, o Dr. Desmond Morris sustenta que, desde os primeiros estdios evolutivos, moviam o homem motivos estticos ao lado dos propsitos mgico religiosos ou utilitrios. Isto

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne nacionais eram bblia e manual no sistema educativo. Cantavam-se poesias em todas as reunies sociais e em todas as cerimnias religiosas, e a poesia era uni complemento essencial dos grandes certames atlticos. Representava--se o drama sob os auspcios do Estado nas festividades reli giosas nacionais, a que assistiam todos os cidados. Acompa nhante essencial da poesia, a msica tinha presena assegurada em todos os acontecimentos sociais e religiosos, na paz e na guerra, como entretenimento e nas mais srias atividades da vida do homem. Fazia parte do currculo educativo aceito. As cidades, mais do que os indivduos, encomendavam e compravam as grandes esttuas e quadros. A poesia e as artes foram, muito simplesmente, a mais importante influncia na antiga Grcia para modelar a vida do indivduo e a estrutura da sociedade. Por conseguinte, os gregos avaliavam as obras de arte pela natureza da influncia que se lhes atribua. O nico outro critrio comumente aplicado era o do lavor. Numa poca sem mquinas, as pessoas tinham profunda conscincia dos padres de execuo. As obras de arte, como os outros produtos da indstria humana, eram apreciadas pelo nvel de trabalho que revelavam. Os filsofos se interessavam principalmente por discutir as artes em relao sua funo educativa e ao seu impacto social. Julgavam pelos resultados. Mostrava-se uma obra de arte eficaz para a sua finalidade e era boa essa finalidade? Onde os critrios tcnicos e morais entravam em conflito, os ltimos tinham precedncia como aconteceu, por exemplo, quando Plato props que se expurgasse Homero, no por que certos trechos no fossem poticos, seno porque, no seu entender, os trechos mais poticos eram os mais vigorosos e, portanto, mais perigosa era a sua influncia (Repblica, L. iii, 387b). A distino entre as qualidades estticas e o efeito total de uma obra de arte no acudia de pronto mente grega, se que chegava a acudir.
SUMRIO. As obras de arte so consideradas artefatos fabricados com um propsito. Reputam-se bem sucedidas de acordo com a sua eficcia para o propsito que levam e com a estimao desse propsito. Essa atitude tende a obscurecer os critrios estticos e substitu-los pela eficincia tcnica de um lado e, de outro, pela apreciao moral ou social dos efeitos. Ope-se crena moderna nos padres estticos independentes ou "autnomos", pelos quais se devem avaliar as obras de arte. UMA TEORIA SCIO - ECONMICA DA ARTE

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Sustentou-se, por esses motivos, que os gregos no tinham uma palavra para significar "arte" ou "artista" em nosso sentido e que lhes faltava o conceito dela. Antes da era da produo pela mquina, manufatura era sinnimo de indstria de oficina. Considerava-se o artista um manufator entre os demais, num tempo em que se conferia alto prmio habilidade do trabalhador. Este era comumente designado pelo nome de oficial (technites) ou artfice (demiourgos). Assim, Plato se refere ao escultor Fdias como a um "artfice" no pinculo da sua profisso e, portanto, autoridade no que correto e apropriado na feitura de uma escultura dos deuses (Hippias Major, 290b). No se reconhecia diferena alguma de categoria, como a que hoje em dia se supe, entre o artista criador e o artfice habilidoso nas tcnicas do seu ofcio. A idia da criatividade (no sentido moderno, romntico) em conexo com as artes inexistia na filosofia grega. Igualmente estranha mentalidade grega era a idia da arte como "expresso" da personalidade do artista. Por essa razo, a teoria geral da arte na filosofia grega subordinava-se sua teoria da manufatura, que foi denominada "uma das maiores e mais slidas consecues do esprito grego". Baseava-se a teoria nas idias gmeas da funo e da tcnica. O artfice competente precisa necessariamente co nhecer o "bem" que a finalidade ou objetivo do seu ofcio (ou se ja, sap atos no caso do sa pateiro , sade no ca so do mdico, esttuas no caso do escultor). Na Repblica (L. x, 601 d) Plato apresenta como trusmo a proposio genrica de que "a virtude, a beleza e a correo de cada artigo manufaturado, cada criatura viva e cada ao s se avaliam em relao ao propsito para o qual foram feitos ou naturalmente produzidos". Em todos os seus escritos sociais, Plato destacou a idia da especializao. Cada artfice um especialista no "bem" do seu ofcio particular. Incumbia ao estadista-filsofo o "artista" supremo avaliar os diversos "bens" dos ofcios particulares de acordo com a sua utilidade numa sociedade planificada. A noo da arte "regia" do estadista foi desenvolvida em sua Repblica e em seu Politicus: o adestramento de um corpo de bons cidados, cada qual desempenhando cabal e peritamente uma funo til numa sociedade planificada, Plato encontrou dificuldade para encaixar nesse plano os artfices que hoje chamaramos "artistas", no s porque eles no se coadunavam facilmente com a sua idia da especializao, mas tambm porque o va lor social das "finalidades" dos seus ofcios particulares no estava muito claro para ele. Um sapateiro perito no fabrico de sapatos de verdade, o carpinteiro na produo de mesas e cadeiras. O pintor, contudo, produz imitaes ou cpias irreais de sapatos, cadeiras, mesas e de todas as coisas visveis,

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne sem ser perito em coisa alguma. Se presumirmos que o valor de qualquer manufatura a sua utilidade, nesse caso a uti lidade de um sapato pintado inferior de um sapato real. Assim tambm o poeta descreve qualquer coisa, tudo, sem ter, todavia, conhecimento tcnico de nada. Foi principalmente por esse motivo que Plat|o no conseguiu conformar-se com a utilizao dos poetas na instruo e educao dos jovens e lhes considerava as obras inferiores aos manuais tcnicos e cientifcos, Numa ocasio em que as suas artes mecnicas haviam atingido um nvel elevadssimo de beleza formal e gosto, evidente que os gregos mal tinham chegado ao mais remoto indcio da apreciao esttica como valor ou "bem" distinto, que merecesse ser cultivado por si mesmo. No caso das be-las-artes, como diz o Professor W. D. Ross em seu livro Aristotle (1923, p. 217): "Pode-se presumir que o seu uso seja a contemplao esttica, mas no existe nenhuma prova manifesta de que Aristteles julgasse ser esse um fim em si mesmo C 1 ) , " Essa curteza de vistas estranhamente ilustrada era vrias discusses da "beleza" dos artefatos. No Hippias Major, o pomposo polmato Hpias levado, cora dificuldade, a admitir que se a "adequao ao propsito" o ciitrio da excelncia, uma concha de sopa, feita de madeira, mais bela do que outra, feita de ouro, porque se adequa melhor sua tarefa. Nos Memorabilia, Xenofonte representa Scrates sustentando que um cesto durvel de estrume pode ser uma coisa bonita e um escudo mal feito de ouro, uma coisa feia; que as casas mais "belas" so as que se mostram quentes no in verno, frias no vero e prova de ladres. (Na antiga Atenas os donos das casas eram ameaados por ladres que ope ravam abrindo um buraco na parede da casa.) Xenofonte acrescenta um reparo, curioso e no explicado: "As pinturas e decoraes coloridas das paredes nos privam, cuidava ele, de um prazer maior do que o que nos proporcionam." Mas no prprio argumento a eficincia o nico critrio: uma coisa pode chamar-se bela (kalon) com referncia a um propsito e o contrrio com referncia a outro. Ningum cogita de saber se a colher de pau ou a colher de ouro mais bem feita (o propsito de uma colher servir para comer e no para ser contemplada com prazer) ou se o cesto de estru me ou a casa de campo de Scrates foram construdos de modo que agradem ao olhar. Essa teorizao se tornar inexplicvel se traduzirmos a palavra em tela to kalon por "belo". E uma perplexidade semelhante surgir se considerarmos o techne grego como equivalente a "arte". O que fica dito mostra que os conceitos gregos de "arte" e "beleza" diferiam dos nossos. A palavra grega techne (da qual derivamos "tcnica") denotava uma habilidade ou ofcio. Mas os gregos no a consideravam apenas como

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habilidade manual cultivada segundo regras no especificveis de tradio oficinal, seno como um ramo do conhecimento, uma forma de cincia prtica. Pois eram sensveis convenincia de converter tcnicas herdadas em sistemas de regras e mtodos que pudessem ser comunicados e ensinados, mais ou menos como o crescimento da indstria fabril nos tempos modernos acarretou a reduo, at onde foi possvel, das velhas habilidades de artesanato a sistemas especificveis de percia industrial. No pronunciamento clssico, portanto, Aristteles define techne (traduzido para "arte") como "a capacidade de fabricar ou fazer alguma coisa com urna correta compreenso dos princpios envolvidos". Na ordem do conhecimento techne vinha depois da "cincia", o conhecimento terico de princpios e causas, como os que dizem respeito Matemtica e Filosofia, e da "sabedoria prtica", por intermdio da qual colocamos em ordem de valor os diversos "bens" dos vrios ofcios e profisses. A memria, pela qual o homem difere dos animais, possibilita o acmulo e a transferncia da experincia de gerao para gerao; e da experincia herdada, esclarecida pela compreenso, provm techne. Techne est sempre dirigida para algum fim ulterior (o fim da Medicina a sade, etc.) e no buscada por si mesma. A "cincia", por outro lado, representa o puro amor do conhecimento por si mesmo. O que no encontramos alguma sugesto de que possa existir valor no cultivo da experincia, incluindo a experincia esttica, por ela mesma ( l). Esta foi uma das idias mais destacadas da idade romntica. Na tica (Z, 4) Aristteles distinguiu duas classes de techne, os ofcios pelos quais fazemos alguma coisa (prakton), e os ofcios pelos quais construmos alguma coisa (poieton). Exemplos dos primeiros seriam a Agricultura e a Medicina, e dos ltimos, a Escultura e o fabrico de sapatos. Na Metafsica (981b 17) ele distinguia os ofcios dirigidos s necessidades da vida dos ofcios dirigidos ocupao do lazer. Os ltimos eram havidos por mais "sbios" do que os primeiros porque os seus ramos de conhecimento no visam a qualquer utilidade. As ocupaes de lazer tanto podiam ser uma forma de jogo (paidia) quanto de recreao (anapausis) (Et. 1127b 34); mas nenhuma constitui um firn em si mesma os seus valores so derivativos (Et. 1176b 30), restauram as energias do homem para o trabalho. Na Poltica (viu, 5) Aristteles enumera os usos que a msica pode ter na educao, como passa tempo legtimo e como recreao do trabalho. Ele extrema destes o prazer mais elevado da msica como emprego ideal do lazer para ser cultivado por si mesmo e, como tal, o considera um constituinte da meta suprema da felicidade. Como j tivemos azo de notar, esta a maior aproximao com que topamos nos escritos clssicos gregos da moderna noo de uma experincia esttica que a si prpria se justifica.

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne A tendncia para pensar nas belas-artes em funo de uma teoria geral da produo esboa-se com suma clareza em Plato quando, no Banquete (205c), ele discute a palavra poiesis (da qual deriva "poeta"), palavra que, originalmente, significa "construir" ou "fazer" no sentido mais lato. "Toda causa", diz ele, "de uma coisa que passa do no ser para o ser poiesis, de sorte que as atividades manufatureiras em todos os ramos da indstria so formas de poiesis e todos os artfices e oficiais so poietai (poetas). Entretanto, no se chamam poetas, mas recebem outros nomes, e de toda a poiesis s a parte que se refere msica e aos versos se distingue por ser chamada pelo nome que realmente pertence a todas. Pois s esta comumente se denomina poesia e s os que se ocupam dessa parte da poiesis so denominados poetas." O argumento se destina a provar que, a despeito da distino de nomes, artistas e poetas esto em igualdade de condies com os demais manufatores no que se refere sua atividade produtiva. A classificao formal das belas-artes, feita por Plato, se encontra no Sofista (265). Ele distingue a construo divina (poiesis) como a construo de alguma coisa partindo do nada (isto , criao) e a construo humana de alguma coisa tirada de outra coisa qualquer. Tanto a poiesis divina quanto a humana podem consistir na construo de coisas reais ou na construo de imagens e aparncias. Os deuses criaram coisas reais (homens, animais, plantas, etc.) do nada, e criam imagens dessas coisas, como nos sonhos e nas miragens. Nos produtos dos ofcios indus triais os seres humanos criam coisas reais; mas na poesia, na pintura e nas outras artes "que proporcionam prazer" criam simulacros ou imagens de coisas reais. Essas imagens tm as aparncias de coisas sem a realidade e so, portanto, em essncia, uma iluso e um engano. Nessas condies, a atividade do aicista uma "espcie de jogo a que falta seriedade" (Repblica, L. x, 602b). Talvez seja, inevitvel que os filsofos que fazem dissertaes sobre as belas-artes subordinadas a uma teoria social ou econmica da indstria em geral cheguem ao ponto em que se vem em tremendas dificuldades para descobrir justificaes razoveis para a estima em que to freqentemente so tidas as artes ou para apresentar razes por que elas no devam ser dispensadas como triviais redundncias das srias preocupaes da vida (*) Desde o tempo dos gregos, esse gnero de ponto de vista, se bem que raras vezes expresso abertamente, exerceu influncia muito mais profunda sobre o carter do pensamento europeu acerca das artes do que sobre qualquer outra dentre as principais culturas.
SUMRIO. Um enfoque sociolgico, que subordine a teoria da arte a uma teoria da manufatura ou da indstria tende a apequenar a importncia das

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belas-artes e a trat-las como frivo-lidade social. Algumas teorias sociolgicas da arte visam apenas a generalizaes factuais a respeito dos caprichos do gosto, a espcie de coisas que as pessoas em vrias ocasies e lugares consideraram, de fato, como belas e os critrios de julgamento artstico que, de fato, aplicaram. Na medida em que era sociolgico o seu enfoque, a teoria grega partilhava com as teorias marxistas modernas do desejo de avaliar as atividades artsticas em funo da contribuio que se presume que prestem sociedade e realizao de um ideal mais amplo de valor social. Apndice 1 A
POSIO SOCIAL DO ARTISTA

A teoria da arte que domina raras vezes se encontrar cabalmente expressa nesse perodo. Isso est implcito nas atitudes prtcas em relao s obras de arte e na situao social do artista. Quando, por exemplo, a arte considerada um ofcio ou ramo da indstria de oficina, a posio do artista na sociedade e a estima que lhe concedida correspondero atitude social para com os trabalhadores e artfices. Em conexo, portanto, com a atitude scio-econmica exemplificada em grande parte da teoria da arte grega, faremos breve apanhado da posio social do artista na medida em que esta variou com as mudanas sofridas pelo conceito de arte desde a Antigidade clssica at William Morris. A sociedade grega baseava-se numa aristocracia de cidados sobreposta a um corpo de artesos e mercadores, de origem estrangeira, com uma populao escrava que executava os tipos mais grosseiros de trabalho manual e os servios domsticos. A concepo da dignidade do trabalho no fazia parte da filosofia grega. O cidado nascido livre que realizasse algum trabalho manual descia da sua dignidade, mais ou menos como descia da sua o gentleman que, nos tempos vitorianos, se dedicasse ao "comrcio". Assim sendo, os artistas, considerados uma classe de trabalhadores artfices, no ocupavam lugar elevado na escala social. Em Histria Social da Arte (1951), Arnold Hauser cita Plutarco (1. sculo A.C.) como tendo dito: "Ao contemplar o Zeus de Olmpia ou a Hera de Argos, nenhum jovem de nobre estirpe desejar tornar-se um Fdias nem um Policleto", e Sneca (1. sculo A.C.): "Oferecemos oraes e sacrifcios diante das esttuas dos deuses, mas ns exercitamos os escultores que as fazem." Os estudiosos dos clssicos assinalam que o quadro est um pouco exagerado. Fdias era amigo do grande estadista Pricles. O pintor Apeles e o escultor Lisipo foram artistas da corte de Alexandre o Grande. As anedotas que chegaram at ns representam alguns dos mais famosos artistas gregos como excntricos, homens de enormes riquezas e notveis pela arrogncia. De um modo geral, todavia, o artista na

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne Antigidade era tratado corno um trabalhador e foi essa a sua posio durante toda a Idade-Mdia. A poesia e a teoria (mas no a prtica) da msica se incluam entre as "Artes Liberais", atividades apropriadas a um homem culto e a um cavalheiro; a escultura e a pintura pertenciam s "artes srdidas" e aqueles que as praticavam, classificados entre os trabalhadores manuais ou artfices, eram membros, freqentemente, das guildas de artesos. Em Bruxelas se associavam aos ourives, em Bruges aos aougueiros, em Florena aos boticrios e comerciantes de especiarias (speziali). Com o passar do tempo, os artistas organizaram confraternidades prprias. A Compagnia dei Pittori, dedicada a So Lucas, florentina e autnoma, data de 1339. A base terica dessa graduao recebeu a sua formulao terica num comentrio de So Toms de Aquino De Anima de Aristteles, em que ele diz: "Toda arte (isto , ramo do conhecimento) boa e no somente boa mas tambm respeitvel. Nesse sentido, entretanto, uma arte se avantaja a outra. [... ] Entre as boas coisas algumas so louvveis, a saber, as que so teis por si mesmas... as artes tericas so boas e respeitveis; as artes prticas so apenas louvveis." Numa generalizao muito ampla, consideravam-se "artes prticas" as que supem uma habilidade manual, e "artes tericas" as que se julgavam pertencentes ao esprito, dependentes do exerccio da razo ou da aquisio do conhecimento. Na Renascena modificou-se a posio social do artista, quando se ps em evidncia o seu conceito como erudito ou cientista. Uma das principais intenes do livro influente de Leonardo, Paragone, com as complicadas comparaes entre pintores e poetas, resumia-se em provar que a pintura e a escultura eram "artes tericas", mais assuntos do intelecto do que ofcios manuais. Isto explica a nfase dada a coisas como a perspectiva, as teorias matemticas da proporo e o acompanhamento de saber histrico e clssico que se cuidavam necessrios a um pintor histrico. A partir desse tempo se conferiu preeminncia ao contedo "filosfico" das artes visuais e natureza predominantemente intelectual da apreciao, comunicando uma tendncia racionalista e intelectual teoria da arte que vigoraria nos sculos seguintes. O surgimento da concepo das belas-artes no sculo XVIII incentivou o divrcio do artista com os artfices e oficiais nos campos utilitrios. Mais ou menos cm fins do sculo XIX, o Movimento das Artes e Ofcios na Inglaterra tentou provocar uma restaurao artificial da situao medieval e, ao mesmo tempo, imprimiu um significado prtico a vrias teorias sociolgicas da arte, cujas ramificaes se estenderam de maneira importante pelo sculo XX. A principal inspirao do movimento partiu de William Morris, que deu efeito prtico s idias por ele largamente

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hauridas em Ruskin. A filosofia de Morris baseava-se, em parte, numa idealizao da Idade-Mdia, de que ele com-partiu com Ruskin, Pugin, a Fraternidade Pr-Rafaelista e muitos outros artistas e pensadores do seu tempo, e foi, em parte, uma tentativa de fugir sordcia dos primrdios da era industrial, restabelecendo o relgio e descobrindo uma alternativa para a produo fabril. Morris no acompanhou Ruskin at o fim em sua crena de que, resultando a boa arte necessariamente do propsito moral elevado e carecendo a mquina de conscincia, a indstria da mquina incapaz de produzir obras de arte. Adotou, porm, como essncia de suas doutrinas socialistas, a convico de que a raiz do mal social no seu tempo se encontraria na separao entre o trabalho e a alegria, entre a arte e o ofcio. No seu entender, o sistema social e as condies de trabalho que resultavam da produo em massa, mais do que a mquina propriamente dita, "faziam com que a vida se tornasse cada dia mais feia". Repudiava, por conseguinte, a idia das "belas-artes" como coisa parte na cate goria dos artigos de luxo e definia a arte como "a expresso da alegria do homem no trabalho". Insistindo em que a atividade esttica deve abranger todo o conjunto da vida do homem, fez da reinstiuio do ideal do artesanato universal o seu empenho. O seu medievalismo se enquadrava nesse plano de reforma social porque ele acreditava que a Idade-Mdia, mais do que qualquer outro perodo da histria europia, ilustrou a fuso da arte com a vida e a universalidade do artesanato, em que ele via a salvao da sociedade contempornea. As suas doutrinas, com efeito, eram muito mais que um retrocesso. H enorme diferena entre uma sociedade em que o artista o artfice que acerta de ser perito na confeco de quadros ou esculturas em lugar de sapatos ou mveis, e uma sociedade, como a que Morris ambicionava, em que todos os artfices tero as atitudes do artista. Por via de regra, o artista um homem com uma vocao. Realiza-se na sua arte e ainda que no logre alegria e felicidade ao pratic-la, pelo me nos no consegue ser feliz sem ela. Em geral, o artista continuar a praticar a sua arte mesmo que as condies econmicas lhe preceituem o contrrio. Ora, nem tudo isso se aplica ao oficial ou ao artfice em geral. Alm disso, como vimos, na Antigidade clssica e na Idade-Mdia o artista-arteso no aplicava padres estticos conscientes sua obra, mas se tinha na conta de um honesto artfice que punha toda a sua percia numa tarefa realizada com um propsito. Quando se enunciam, os padres estticos implcitos no conceito das belas-artes no podem ser universalmente impostos a todos os artesos. S uma presuno em favor do funcionalismo seria capaz, mais uma vez, de transpor o abismo.

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne De um ponto de vista prtico, o movimento de Morris estava fadado ao malogro, visto que nunca existiu qualquer possibilidade econmica real de reintroduzir a indstria da oficina, em larga escala, em substituio produo fabril ou deter, de alguma forma, a produo em massa pelas mquinas. No obstante, o movimento exerceu considervel influncia, mormente no estrangeiro. Na ustria acarretou o estabelecimento das Werksttte e, na Alemanha, foi o precursor da tendncia esttica que se cristalizou na Bauhaus. Em lugar da idia de Morris do artesanato universal, a nova conscincia esttica encontrou expresso nas tentativas de melhorar o padro esttico dos artigos fabricados pela mquina, encomendando-se a artistas o desenho de prottipos para a produo em massa. Na Alemanha, o arquiteto Behrens foi empregado em 1907 pela General Electric Company alem para desenhar objetos de uso dirio que fossem, ao mesmo tempo, funcionalmente eficientes e bela e harmoniosamente afeioados. O arquiteto finlands Alvar Aalto, em colaborao com sua esposa Aino Marsio, desenhou a outrora popular moblia Artek. Uma das metas cen trais da Bauhaus era reunir a arte e o ofcio e adestrar artistas--artfices que introduzissem os princpios do bom desenho esttico nos produtos da indstria, adaptando o desenho aos novos materiais da idade moderna e aos novos mtodos de manufatura. Metas algo semelhantes inspiraram as Omega Workshops, fundadas na Inglaterra por Roger Fry em 1913. A idia de desenhar para os processos industriais, sempre concebida numa relao assaz ntima, ainda que no claramente definida, com a doutrina artstica do funcionalismo, coloca-se no plo oposto ao da teoria da "arte aplicada", que prevaleceu aproximadamente no meado do sculo XIX. Esta ltima procurava escolher o "melhor" em matria de ornamento ou decorao, em todos os tempos e estilos e, em seguida, super- p-lo aos produtos da mquina sem modificar-lhes fundamentalmente o desenho. A idia de acrescentar ou aplicar a decorao aos artigos manufaturados a fim de torn-los mais artsticos e mais atraentes se opunha idia "funcionalista", que repudiava tudo o que pudesse distrair a vista do desenho funcionalmente eficiente. Apndice 2
TEORIAS FUNCIONAIS DA BELEZA

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uma teoria funcionalista da beleza. Talvez seja este, portanto, o lugar conveniente para passarmos em revista as vrias formas assumidas pelo funcionalismo. A teoria funcionalista da Esttica uma teoria segundo a qual, se uma coisa for feita para funcionar bem, se a sua construo se apropriar exatamente tarefa que lhe cabe executar, essa coisa ser bela. Trata-se de uma teoria que tem uma histria muito comprida e que j foi popularssima, sobretudo em conexo com a arquitetura e as artes teis, nos primeiros decnios do presente sculo. Infelizmente, a teoria ambgua. Pode ser interpretada em vrios sentidos diferentes, que nem sempre se conservaram distintos uns dos outros. Os principais significados a que a teoria deu origem so os seguintes: 1. Por definio, a adaptao ao propsito faz parte do significado da palavra "belo". Por conseguinte, quando dizemos que uma coisa bela queremos dizer que ela foi bem feita para um determinado fim, mas no implicamos, necessariamente, que ela boa de se olhar ou que possui beleza de aparncia no sentido esttico. Os exemplos de adaptao intencional dos meios aos fins, como a teleologia manifesta na natureza ou a adaptao funcional, so chamados "belos" porque a apreenso desse tipo de intencionalidade nos proporciona prazer intelectual semelhante ao que nos d um problema preciso de xadrez ou uma elegante demonstrao matemtica. Essa beleza do propsito intelectualmente apreendido no envolve necessariamente, na teoria, a beleza perceptvel da aparncia. Por outro lado, pode-se sustentar que o funcionalis mo no sentido da adequao a um propsito pretendido uma garantia de beleza visual. Ou pode sustentar-se que a adequao a um prop sito s ser garantia de beleza se a adequao for visvel e apa rente (por exemplo, a forma "aerodinmica").

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3.

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O hbito do esprito que encara as obras de arte como artefatos feitos para servirem a um propsito, que culminou na teoria grega da arte como parte de uma teoria mais ampla da indstria ou da manufatura, supe uma teoria funcionalista da arte, que no reconhece qualquer distino fundamental entre as belas-artes e as artes teis. Se isto for combinado com uma conexo consciente entre a arte e a beleza, conduzir natural mente a

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne 5. A adequao ao propsito condio de que alguma coisa seja bela, mas no , em si mesma, garantia de beleza. objetivos, isto , se formos teleolgicas."

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capazes de discernir-lhes as causas

Disso se colhe, portanto, que h, nas vrias formas da teoria funcionalista, uma anttese implcita entre a beleza visual e a beleza intelectualmente apreensvel. O primeiro sentido do funcionalismo retrocede Antigidade clssica. No Hippias Major, como vimos, Plato discutiu as definies de beleza como "adequabilidade" e "utilidade" (isto , adaptao eficiente a um propsito aprovado). Tais definies voltam a ser discutidas por Aristteles nos Tpica (102a 6 e 135a 13). Nos Memorabilia de Xenofonte Scrates sustenta que os corpos humanos e todas as coisas que os homens usam "so considerados belos e bons com referncia aos objetivos que eles se destinam a servir". Nessas discusses, no se cogita da beleza visual, da atratividade da forma exterior., As discusses elucidam as ilaes da palavra grega kalos ("belo"). No se afirma que, por ser bem projetada para servir ao propsito a que se destina, uma coisa bela na aparncia. Na verdade, est expressamente declarado nos Memorabilia que a mesma coisa pode ser kalos no que concerne a um propsito e no kalos no que se refere a outro. Encontramos um paralelo dessa atitude na definio do belo como o que quer que se possa considerar um bom exemplo do seu gnero, definio explicitamente proposta pelo esteta francs Charles Lalo (1877-1953). Esse conceito de beleza foi satirizado por Thomas De Quincey no ensaio intitulado "Do assassnio como uma das belas-artes" (1827), onde ele diz, por exemplo, que um mdico pode falar numa "bela lcera", no estar querendo dizer que a lcera seja bela para os olhos, seno que um exemplo excelente de lcera tpica e que no reconhecimento disso podemos sentir prazer intelectual. Uma variante desse conceito (N. 4 acima) seria sustentar que uma coisa bela quando manifestamente um bom exemplo da sua espcie. Embora fosse muito sensvel ao prazer intelectual derivvel do reconhecimento da adaptao teleolgica, Aristteles o distinguia claramente da beleza visual da forma. Em seu livro sobre histria natural, o De Partibus Animalium (645a), confessa que se prope escrever sobre todas as espcies de animais, at os mais ignbeis. Pois se bem estes sejam repugnantes aos sentidos, ao revelarem a percia da natureza contemplao intelectual, proporcionam indizvel prazer aos que so filosficamente propensos a reconhecer os elos causais e tm capacidade para faz-lo. "Seria, com efeito, estranho e paradoxal", duz ele, "encontrarmos prazer na viso das suas formas atravs da nossa apario da habilidade tcnica do artista e no havermos satisfao ainda maior da vista dos

Durante o sculo XVIII, os indcios de adaptao teleolgica, de ordem e regularidade na natureza, interpretados como sinais, da inteno divina, estavam estreitamente ligados noo de beleza. O filsofo Thomas Red (1710-96) distinguia entre um sentido "instintivo" e um sentido "racional" da beleza e associava este ltimo nossa apreenso do desgnio ou da adaptao ao propsito: As obras da natureza possuem uma beleza que impressiona at o ignorante e o desatento. Mas quanto mais sabemos da sua estru tura, das suas relaes mtuas e das leis pelas quais so gover nadas, tanto maior beleza e tanto mais deleitosos sinais de arte, sabedoria e bondade discernimos. Assim, o anatomista perito enxerga inmeros e formosos planos na estrutura do corpo humano, que so desconhecidos do ignorante. Posto que os olhos vulgares vejam muita beleza na face dos cus e nos vrios movimentos e mudanas dos corpos celestes, o hbil astrnomo, que lhes conhece a ordem e as distncias, os perodos, as rbitas que descrevem nas vastas regies do espao, e as simples e belas leis pelas quais se governam os seus movimentos, e pelas quais se produzem todas as aparncias das suas estaes, progresses e retrogradaes, seus eclipses, ocultaes e passagens, v reinarem em todo o sistema planetrio uma beleza, uma ordem e uma harmonia que deleitam o esprito. A idia intelectual de beleza que teve preemnncia na Renascena persistiu durante o sculo XVIII, muito embora j pairassem no ar as primeiras sugestes da conexo romntica entre a beleza e o sentimento e a emoo. Manifestou-se na primazia conferida beleza natural sobre a beleza da arte e, especificamente, na importncia atribuda apreciao intelectual do sistema ordenado das leis da natureza ou das adaptaes teleolgicas no mundo orgnico. Conquanto o interesse do sculo XVIII pela ordem intencional como prova da teleo logia divina estivesse muito distante da idia medieval de uma ordem e "harmonia" matemticas, que simbolizavam a natureza divina, ambas favoreciam, em suas aplicaes estticas, um conceito ntelectualista da beleza. O conceito de Kant da "intencionalidade sem intuio" imprimiu novo feitio teoria. A distino entre essa beleza intelectual e a beleza visual da aparncia exterior nem sempre foi mantida. Em seu Philosophical Inquiry (1757), Burke pronunciou uma palavra de cautela ao escrever: "Diz-se que a idia de

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne uma parte estar bem adaptada para responder sua finalidade uma causa de beleza ou, na realidade, a prpria beleza. [... ] Na elabo rao dessa teoria receio que a experincia no tenha sido suficientemente consultada." Menos cauteloso, o enciclopedista francs Diderot disse, em seu Essai sur Ia peinture (1775): "O belo ser humano aquele que a natureza afeioou para o propsito de realizar, o mais facilmente possvel, as duas grandes funes: a autopreservao individual e a propagao da espcie..." interessante notar que essa teoria funcional da beleza humana foi refutada h muito tempo num dilogo socrtico, O Banquete, atribudo a Xenofonte, em que Scrates afirma que seria ridculo sup-lo mais belo do que o formoso mancebo Critbulo porque os seus olhos protuberantes possuam um ngulo maior de viso, porque as suas narinas simiescas estavam melhor adaptadas para cheirar o ar, e assim por diante. Os gregos possuam uma sensibilidade altamente desenvolvida beleza visvel da forma humana e somente sob esse aspecto colocavam a beleza visvel frente do funcionalismo. No sculo XVIII, o pintor Hogarth, que escreveu uma outrora famosa Anlise da beleza (1772), concordava em que, nos objetos teis, a adequao ao propsito uma qualidade esttica: "Quando um navio navega bem, os marinheiros chamam-lhe uma beleza; as duas idias tm esse tipo de conexo." Mas extremava a beleza intelectual da beleza visual que agrada aos olhos e aos sentidos, propondo como frmula geral para a ltima a sua serpentina "linha de beleza", que, ao seu parecer, combinava o mximo de variedade com a unida de. No terceiro de trs Dilogos filosficos, o Bispo Berkeley (1685-1753), idealista, verberou a idia da beleza sensual e buscou reduzir o "encanto fugaz", o je ne sais quoi dos antigos estetas franceses, apreciao intelectual da ordem ou adaptao teleolgica. A ordem, a simetria e a proporo, assevera ele, s existem em relao ao propsito e significam uma coisa num cavalo e outra coisa numa cadeira ou num vestido. O encanto da simetria e da proporo agrada, portanto, finalmente ao esprito que aprecia a perfeio de um objeto em funo do seu propsito. "Visto que sem o pensamento no pode haver finalidade nem desgnio; e sem a finalidade no pode haver uso; e sem o uso no existe propriedade nem justeza de proporo, da qual se origina a beleza." Discutia-se, s vezes, se um homem que topasse com um mecanismo como o de um relgio reconheceria nele um belo exemplo de adaptao, ainda que ignorasse o propsito a que servia o mecanismo, e esse tipo de considerao inspirou, sem dvida, a teoria metafsica da beleza, de Kant, que seria uma "intencionalidade sem inteno". Em nosso tempo nos aodem mente alguns mecanismos "de confeco" de Mareei Duchamp, complicados mecanismos que no aspiram beleza visual mas parecem exemplos de intricada adaptao mecnica, se bem no sirvam a

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propsito nenhum. Ser talvez significativo que tais objetos fossem construdos no contexto de uma teoria "antiarte", que estigmatizava os tradicionais valores estticos das belas-artes. A moderna filosofia do funcionalismo retrocede, pelo menos, at a dcada de 1840, quando o escultor norte-americano Horatio Greenough aludiu, numa carta a Emerson, relao entre a forma e a funo. A idia foi retomada mais tarde pelo arquiteto Louis Sullivan, que, em Kindergarten Chats (1901), criou a famosa frase: "A forma acompanha a funo." Isto foi ampliado por Frank Lloyd Wright nos seguintes termos: "A forma acompanha a funo" apenas o enunciado de um fato. Somente quando dizemos "a forma e a funo so uma s" estamos levando o fato puro e simples esfera do pensamento" ("On Architecture", Selected Writings, 1894-1940). O funcionalismo foi pregado como novo credo esttico, aps a Primeira Guerra Mundial, por Le Corbusier (por exemplo, Rumo a uma nova arquitetura, 1927), que definiu a casa como uma mquina feita para nela se viver, e durante um decnio gozou de grande popularidade. Sustentava-se, com fervor quase moral, que na arquitetura e nas artes industriais o ornamento estranho deve ser evitado, a forma h de refletir o propsito e, para ser belo, o objeto necessita apenas ser projetado, o mais bvia e economicamente possvel, para adequar-se ao propsito a que se destina. A arquitetura que expunha os seus materiais sem disfarce e era funcional nesse sentido denominava-se arquitetura "honesta". Por outro lado, o culto do "aerodinamismo" redundou num estilo amaneirado, que dava a impresso de ser funcional, fosse ou no apropria do ao uso. Durante a dcada de 1930, o termo "funcional" foi empregado para descrever os desenhos severamente utilitrios de mveis e equipamento domstico que se popularizaram sob a influncia da Bauhaus. Em 1938, Moholy-Nagy ainda poderia dizer: "Em todos os campos da criao, os trabalhadores esto lidando hoje para encontrar puras solues funcionais de um tipo tcnico-biolgico: isto , construir cada artefato exclusivamente com os elementos necessrios sua funo" (A Nova Viso). Mas o movimento "moderno" na arquitetura e no desenho industrial se estribava numa falsa presuno, a presuno de que, ao fazer uma coisa funcional nesse sentido, de modo que ela se adapte visivelmente ao seu propsito, podemos assegurar que ela ter qualidade esttica, que a sua aparncia exterior ser bela para os olhos e para os sentidos. J em 1934 Herbert Read fazia soar uma advertncia ao declarar em seu livro Art and Industry: "Pode-se admitir que a eficincia funcional e a beleza freqentemente coincidem. [... ] O erro est e m sup o r qu e a ef ici n cia f un cio na l se ja

ESTTICA E TEORIA DA ARTE Harold Osborne a ca u sa d a beleza; belo porque funcional. Esta no a verdadeira lgica do caso." A insuficincia do funcionalismo como teoria esttica completa ficou provada pela avalancha de montonas e srdidas estruturas que desfiguraram o ambiente moderno, demonstrando por uma triste experincia que o desenho pode ser adaptado funo de ser economicamente planejado sem lograr beleza nem dignidade. A experincia conduziu, nas dcadas de 1940 e 1950, a uma nova filosofia do desenho e sua relao com os requisitos estticos. Na nova filosofia, "desenho" indica a planificao de qualquer artefato, destine-se ele ao uso ou exposio. At esse ponto, o abismo existente entre as artes teis e as belas-artes foi transposto. O desenho envolve a manipulao ou adaptao de qualquer material de modo que se obtenha o resultado colimado e se evitem resultados indesejveis. Em The Naure of Design (1964) David Pye analisou as seis condies aceitas que precisam ser satisfeitas por qualquer desenho fadado ao uso. Quatro "requisitos do uso" so expressos da seguinte maneira: ( 1 ) o desenho precisa encerrar corretamente o princpio essencial do arranjo; (2) os componentes do artefato precisam estar geomtricamente relacionados das maneiras que melhor se apropriem ao resultado que se pretende; ( 3 ) os componentes precisam ser suficientemente fortes para transmitir as foras impostas pelo resultado que se pretende e resistir a elas; (4) preciso proporcionar acesso. Alm desses, existe o requisito da acessibilidade e da economia e o requisito esttico da aceitabilidade da aparncia. A teoria do funcionalismo pressupunha que os requisitos ditados pelo uso e pela economia determinavam automaticamente o melhor desenho do ponto de vista esttico tambm. Hoje se compreende que esses requisitos no estticos atuam apenas como condies restritivas. Restringem as possibilidades tocantes aparncia e podem servir como guia para o planejamento, mas no podem determinar a melhor apa rncia. Essa opinio foi exposta da seguinte maneira por P. H. Scholfield, em seu livro Theory of Proportion in Architecture (1958): Filsofos e crticos fizeram reiteradas tentativas para reduzir totalmente a teoria da proporo a uma teoria da adequao. Na realidade, porm, como o indica a experincia comum dos dese nhistas na prtica, depois de satisfeitos os requisitos da adequao, geralmente ainda fica muita coisa para se escolher entre propores que parecem agradveis e as que parecem desagradveis. Em vista dessa nova filosofia, popularizaram-se os cursos de Desenho Bsico nas escolas de arte, mais ou menos nos meados do sculo, para os

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que praticavam as belas-artes e os que estudavam as artes comerciais. Neles se concebeu a nova arte do "desenhista" e ministrou-se instruo no sentido de produzir desenhistas que se pudessem empregar na indstria e na manufatura. O "desenhista" moderno pouco ou nada tem em comum com o artista-artfice antigo e medieval, visto que ele se ocupa, primordialmente, de planejar a aparncia de objetos que sero feitos mquina por outros, ao passo que o velho artista-artfice no se ocupava primordialmente da qualidade esttica, mas da execuo e da utilidade dos objetos feitos por ele ou por seus assistentes. Por outro lado, o desenhista comercial moderno pouco tem em comum com o praticante tradicional das belas-artes, visto que lhe falece o elemento do artesanato, quase sempre importante para este ltimo. O arquiteto moderno talvez esteja mais prximo dessa nova concepo do "desenhista" que do conceito mais antigo do "mestre de obras" ou "administrador de obras".
SUMRIO. A adaptao intricada, econmica ou elegante ao propsito pode ser intelectualmente apreciada e considerada como um ramo da beleza intelectual. Mas j no se acredita que isso garanta que uma coisa assim projetada ter uma bela aparncia. Nas artes teis (mas no presumivelmente nas belas-artes) a adeqabilidade ao propsito uma condio restritiva, que no assegura a beleza da aparncia.

Afianam alguns filsofos que, se uma coisa parecer bem projetada para um propsito aprovado, ser bela em virtude desse fato, tenha ou no sido realmente assim projetada. Diz, por exemplo, J. O. Urmson: "Se uma coisa parece ter uma caracterstica desejvel de outro ponto de vista, o fato de parec-lo motivo apropriado de apreciao esttica ." Por exemplo, se um avio, um automvel esporte ou um cavalo de corridas, um objeto, enfim, votado velocidade, parecer veloz, ser, portanto, belo e dever ser apreciado esteticamente. Eis a uma doutrina que no. seria seguida por muitos.

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