Tese Artigo Modernismo
Tese Artigo Modernismo
Tese Artigo Modernismo
MARING - PR
2006
MARING - PR
2006
AGRADECIMENTOS
H muitas pessoas que colaboraram direta ou indiretamente para a realizao deste
trabalho. A todas elas, a nossa gratido e de forma particular:
minha orientadora, Profa.Dra.Clarice Zamonaro Cortez, por estar sempre ao meu lado nessa
caminhada rumo ao conhecimento com pacincia, competncia e amizade, alm de ser
modelo de dedicao e paixo pela profisso;
banca examinadora, Prof.Dr.Adalberto de Oliveira Souza e Prof.Dr.Odil Jos de Oliveira
Filho, pelas preciosas observaes e contribuies;
aos professores e funcionrios da Universidade Estadual de Maring (UEM), por terem
participado da minha formao;
UEM, instituio que desenvolveu em mim o amor pela pesquisa;
aos companheiros que passaram comigo por esse processo, em especial, s amigas Profa.Ms.
Ana Cristina Wolff e Profa.Ms. Iris Selene Conrado pela cumplicidade, amizade e fora.
No posso me esquecer de agradecer ainda aos meus familiares pelo incentivo
contnuo e o amor incondicional.
RESUMO
No sculo XX, foram muitas as transformaes sofridas pela sociedade portuguesa. Os
primeiros anos trouxeram consigo novas perspectivas culturais e estticas, as quais vinham
lentamente sendo geradas no sculo anterior e que, por fim, eclodiram. A poesia de Fernando
Pessoa reflete de alguma forma o impacto dessas transformaes iniciadas no sculo XIX, o
que resultou no jogo dramtico da heteronmia que se apresenta em sua poesia, exigindo do
leitor um trabalho de recomposio desse caminho percorrido. A presente dissertao objetiva
verificar, por meio da leitura das Odes, como o heternimo Ricardo Reis se relaciona com o
mundo, e comparar esse posicionamento ao adotado pela personagem protagonista do
romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, de Jos Saramago. De carter
bibliogrfico, a pesquisa est fundamentada na leitura e resenhas de textos tericos, crticos e
analticos e adota o mtodo recepcional postulado por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser,
alm de basear-se na anlise temtica e estilstica das Odes de Ricardo Reis e do romance O
Ano da Morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago. A pesquisa se justifica pela constatao de
uma possvel contradio entre a criao heteronmica e a recriao da personagem do
romance, possibilitando uma abertura para a comparao entre a mscara de homem
presente nas Odes e a recriao feita por Saramago, enfocando o modo como poeta e
personagem se posicionam e agem diante da realidade que os cercam. Em outras palavras, a
pesquisa pretende verificar se a imagem emanada dos versos das Odes corresponde
personagem romanesca erigida da leitura feita por Saramago do heternimo pessoano no que
diz respeito relao do homem com o mundo. Inicialmente, apresenta-se um levantamento
de dados e informaes a respeito do Modernismo em Portugal e do contexto em que o
referido movimento esteve inserido. Segue um estudo sobre Fernando Pessoa e a questo da
heteronmia, fato marcante de sua obra, que culmina com a anlise da figura de Ricardo Reisheternimo e do protagonista do romance, preenchendo os espaos vazios e tentando fazer
emergir as diferentes vises de mundo e sua relao com ele. Os aspectos observados, a partir
de uma leitura das intertextualidades, referem-se s dificuldades, alegrias, prazeres, amor,
mulheres, natureza, poltica e morte, enfim, tudo o que se refere no cotidiano da vida, tendo
em vista que entre o leitor e as idias veiculadas se interpe o texto e este se abre a diversas
possibilidades de realizaes na leitura, conforme as diferentes perspectivas daqueles que o
buscam.
PALAVRAS-CHAVE: Ricardo Reis Fernando Pessoa O Ano da Morte de Ricardo Reis
Jos Saramago Poesia e Romance Mtodo Recepcional
ABSTRACT
During the 20th century, the Portuguese society underwent many transformations. The first
years brought new cultural and aesthetic perspectives, which had slowly been generated
during the previous century, and that, at least, emerged. Fernando Pessoas poetry reflects any
way these transformations that was started in the 19th century, which resulted into the
dramatic play of heteronyms present in his poetry, requiring the reader to re-create the way
gone through. This dissertation aims to verify, by reading Fernando Pessoas Odes, how the
heteronymous Ricardo Reis relates to the world, and compares this position to that one
adopted by the main character from the novel O Ano da Morte de Ricardo Reis, published in
1984, written by Jos Saramago. The research is based on reading and reporting theoretical,
critical and analytical texts, and adopts the reader-response criticism postulated by Hans
Robert Jauss and Wolfgang Iser, as well as on the thematic and stylistic analyses of Ricardo
Reis Odes and of the novel O Ano da Morte de Ricardo Reis, by Jos Saramago. The
research is justified by the verification of a possible contradiction between the heteronymic
creation and the re-creation of the character in the novel, making possible an overture for the
comparison between the mask present in the Odes and the re-creation made by Saramago,
focusing the mode how the poet and character place themselves and act towards the reality
that surround them. In other words, the research intends to verify if the image emanated from
the verses in Odes correspond to the novel character erected from the reading done by
Saramago of Pessoas heteronym concerning to the relation of the man with the world. Firstly,
it is presented data and information about the Modernism in Portugal and the context in which
this movement was inserted. Secondly, follows a study on Fernando Pessoa and the question
of heteronym, remarkable fact for his work; finally, this work reaches its highest point with
the analysis of the Ricardo Reis-heteronym and the main character in the novel, filling the
gaps and trying to make emerge the different visions of the world and his relation with it. The
aspects verified, from the reading of the intertextualities, refer to the difficulties, joys,
pleasures, love, women, nature, politics, and death, at last, all that refers to the daily life,
taking into account that between the reader and the ideas propagated is interposed the text and
that it is open to diverse possibilities of reading realizations, in conformity to the different
perspectives from those who seek for it.
KEY-WORDS: Ricardo Reis Fernando Pessoa Jos Saramago O Ano da Morte de
Ricardo Reis poetry and novel reader-response criticism.
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................10
1. A ESTTICA DA RECEPO PRESSUPOSTOS TERICOS
1.1 Da histria geral para uma histria recepcional da literatura............................14
1.2 Ler e experienciar: uma questo de efeito.............................................................18
1.2.1 Criar imagens e experimentar sentidos...................................................................20
1.2.2 A construo da obra e do sentido..........................................................................22
1.2.3 O leitor....................................................................................................................24
1.2.4 Do mundo real para o texto: o repertrio...............................................................26
1.2.5 As estratgias textuais............................................................................................27
1.2.6 Interao texto e leitor: uma relao assimtrica....................................................33
1.3 Caminhos para o trabalho com a Esttica da Recepo......................................36
2. FERNANDO PESSOA: POETA DA DISPERSO
2.1 Introduo................................................................................................................38
2.2 O Modernismo em Portugal...................................................................................39
2.2.1. Orpheu: en[cantar] com a nova poesia..................................................................40
2.3 Fernando Pessoa: a pessoa e o[s] poeta[s].............................................................43
2.3.1. Um drama em gente: unidade e diversidade..........................................................46
2.3.2. Alberto Caeiro.......................................................................................................48
2.3.3 Ricardo Reis...........................................................................................................49
2.3.4 lvaro de Campos..................................................................................................50
3. DE OLHO NO MUNDO: ESPECTADOR OU PERSONAGEM?
3.1 O desenrolar da anlise...........................................................................................52
3.2 O espectador do mundo..........................................................................................53
3.2.1 beira-rio, beira-estrada: filosofia de vida.........................................................53
3.2.2 Horcio por Ricardo Reis.......................................................................................64
3.2.3 Religio e liberdade................................................................................................69
3.2.4 A mulher e o amor em Ricardo Reis......................................................................74
3.2.5 Estrangeiro para o mundo.......................................................................................77
3.2.6 O barco escuro no soturno rio.................................................................................80
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INTRODUO
Em todos os tempos, a Literatura sempre foi uma forma de expressar a histria das
alegrias, das conquistas, dos sonhos, das tristezas, das inquietaes, das angstias e das
derrotas do ser humano. Por meio do literrio, o homem pode criar e criar-se a todo o
momento, por meio da experincia com o mundo ficcional, como uma possibilidade de
realidade oferecida pela arte.
Uma das maiores figuras literrias de Portugal e do mundo, no sculo XX, foi, sem
dvida, Fernando Pessoa, ao conseguir transformar em poesia a tradio lrica de seu povo,
alm de trazer em si todas as inquietaes humanas de uma sociedade em crise e em guerra,
como um gigantesco painel de registro sismogrfico (MOISS, 1999: 241), ou seja, Pessoa
conseguiu captar o que cada ser humano sentiu, sente ou sentir, em uma tentativa de entender
e organizar o Universo. Por meio dessa capacidade de ver a realidade sob vrios pontos de
vista que surgem os heternimos, o poeta se dispersa e se desdobra em outras
personalidades.
Fernando Pessoa nos apresenta um jogo dramtico. nele que pretendemos entrar e
tentar desvendar uma dessas mscaras por ele criada e revelada atravs dos textos poticos:
o heternimo Ricardo Reis. Moiss (1999: 244) afirma que o poeta se vale das referidas
mscaras para esconder-se atrs delas para melhor revelar-se, mas revelando-se s avessas,
ou antes, indiretamente exigindo do leitor um trabalho de recomposio do caminho
percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para
despistar.
De acordo com Galhoz (1985), Fernando Pessoa criou, para cada um de seus
heternimos mais importantes, uma biografia e uma personalidade prprias dentro do
contexto criativo/literrio. Assim, Ricardo Reis nasceu em 1887, na cidade do Porto. Estudou
em colgio de jesutas, um latinista por educao alheia, e um semi-helenista por educao
prpria (Pessoa, 1986: 98). Expatriou-se no Brasil em 1919, pois no concordava com o
novo regime instaurado, a repblica, visto ser monrquico.
Fernando Pessoa, contudo, no terminou a biografia de Ricardo Reis. nesse ponto
que Jos Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, valendo-se
dessas notas biogrficas, criou o referido romance considerado por Galhoz (1985: 24) ao
mesmo tempo claro e enigmtico.
O que pretendemos com a presente pesquisa verificar se a imagem emanada dos
versos das Odes corresponde personagem romanesca recriada por Jos Saramago, no que
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diz respeito relao do homem Ricardo Reis com o mundo. Segundo Bueno (1999), em seu
estudo sobre a construo da personagem em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a indiferena,
a ataraxia em relao ao mundo e s coisas so marcas tanto do heternimo quanto da
personagem. Essa conduta, porm, um ideal potico pautado no paganismo, no epicurismo e
no estoicismo, e que, no romance, torna-se o determinante de suas aes no cotidiano.
Como discpulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis herdou o paganismo e o
sensacionismo, aceitando as coisas como elas so: a busca da simplicidade do campo, do
desprezo pelo social e sofisticado e da busca pela felicidade, que, conforme postula o
epicurismo, se d medida que nos afastamos do mundo, das preocupaes, das paixes e
evitamos a dor. Assim, conforme ressalta Loureno (apud Bueno, 1999: 209), Fernando
Pessoa, ao tornar Reis discpulo de Caeiro, concebeu seu mundo como um universo corrodo
pela irrealidade, onde encontra a calma e desfruta da ausncia de si mesmo.
Segundo Bueno (1999), entretanto, no romance de Jos Saramago a personagem
Ricardo Reis acaba por envolver-se com os problemas da ditadura salazarista, o que provoca
uma contradio entre a postura enunciada nas Odes e a personagem recriada por Saramago.
Nas Odes h um homem que prega a indiferena, o afastamento do mundo para manter uma
ausncia de preocupao, j no romance, h algum que no consegue manter esse
distanciamento, a partir do momento que desembarca no Cais de Alcntara.
A pesquisa se justifica pela constatao da contradio existente entre o heternimo
das Odes e a personagem de O Ano da Morte de Ricardo Reis, a mscara de homem criada
para o heternimo pessoano nas Odes (enfocando sua postura em relao ao mundo) e a
recriao de Jos Saramago, na obra O Ano da Morte de Ricardo Reis.
O mtodo que nortear nossa pesquisa, quanto ao trabalho com os textos poticos e o
romance, ser o mtodo recepcional, conhecido como esttica da recepo, cujas bases se
encontram nos trabalhos de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser.
Os estudos literrios comearam a tematizar a relao entre literatura e leitura somente
a partir dos anos 60, dando maior nfase figura do leitor e ao ato da leitura. Segundo Jauss
(1994), o que faz uma obra literria ser consagrada no so as condies histricas de sua
produo nem o modo como se posiciona em relao a esse contexto histrico ou sua
importncia na evoluo de um gnero determinado, mas os critrios da recepo, do efeito
produzido pela obra e de sua fama junto posteridade (Jauss, 1994: 7-8).
Jauss (1994) prope o deslocamento do carter artstico do autor (estudos biogrficos)
ou do texto (Formalismo, New Criticism) para o efeito esttico nos leitores. Sua proposta
abarca ainda a questo da histria literria baseada na recepo atual de leitura e em suas
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recepes anteriores. De acordo com Aguiar e Silva (1993), a obra seria o cruzamento entre
todas as apreenses feitas e a serem feitas nos vrios contextos histricos em que foi lida e no
que est sendo estudada.
Quanto aos efeitos produzidos no leitor, segundo Iser (1999: 15), compreendemos que
a leitura de um texto vai alm dele prprio ou do leitor em si, pois um potencial de efeito
que se atualiza no processo de leitura. O texto, portanto, comunicao, pois se constitui na
sua interao com o contexto e o leitor, provocando um ciclo recepcional: o mundo
referncia para quem escreve; a obra a reao do autor frente ao mundo; a obra se torna um
importante veculo capaz de trazer novas perspectivas de mundo ao leitor.
Uma obra literria tem, segundo Iser (1999), dois plos: um artstico e um esttico. O
artstico se manifesta no texto como criao do autor; o esttico, na concretizao feita pelo
leitor. No entanto, a obra literria no pode ser reduzida apenas ao texto nem concretizao
do leitor, mas deve ser vista como um ponto de convergncia entre texto e leitor, mas que
mantm seu carter virtual.
O efeito esttico , por conseguinte, o resultado da relao interativa entre texto e
leitor. Iser (1999: 16) afirma que, apesar de o texto ser uma motivao, o efeito esttico se d
quando o leitor faz uso de sua imaginao, de sua percepo e quando reage diante do que
est lendo, pois o texto no um registro de algo existente, mas a reformulao de uma
realidade j formulada, que se atualiza a cada leitura.
No ato da leitura, o leitor formula imagens, as quais so erigidas das palavras
expressas no texto. Na imaginao do leitor, o que o texto explicita se concretiza juntamente
com o que est omitido, mas que pode ser inferido pelo leitor. Assim, o leitor materializa
aquilo que no existe, mas que verbo.
A compreenso da importncia da imagem fundamental para que compreendamos o
sentido. Este seria o objeto do leitor, que tenta defini-lo a partir das referncias que tem a seu
dispor. Diante disso, Iser (1999: 33) esclarece que se a princpio a imagem que estimula o
sentido que no se encontra formulado nas pginas impressas do texto, ento ela se mostra
como produto que resulta do complexo de signos do texto e dos atos de apreenso do leitor.
Desse modo, Iser (1999) explica que o leitor sempre relaciona o sentido a algo nele
despertado; o leitor deixa de precisar explicar o sentido, o qual passa a ser um efeito a ser
experimentado.
A escolha da esttica da recepo se justifica pelo fato de compreendermos que
Ricardo Reis foi leitor de Horcio e de outros autores clssicos, resultando em uma postura
enquanto leitor e poeta. Jos Saramago, tambm leitor de Fernando Pessoa-Ricardo Reis,
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questes pendentes nas obras anteriores da srie literria e tanto o horizonte passado como o
novo esto presentes na obra recm apresentada.
O historiador de literatura tem um ponto de partida, mas no de chegada; a
temporalidade resgatada e o historiador d a conhecer a distncia varivel entre o
significado atual, aquele que o horizonte inicial consegue acessar, e o significado virtual de
uma obra, o almejado, que pode ficar desconhecido por muito tempo at que o pblico tenha
um horizonte capaz de compreend-lo. O carter artstico de uma obra no se esgota na
condio de inovao ou na oposio velho-novo, nem inteiramente percebido no momento
de publicao, pois as inovaes nem sempre so acessveis ao pblico inicial e um longo
processo de recepo necessrio para alcanar o esperado que modifique o horizonte inicial,
em que a obra se apresentava como inacessvel.
Jauss (1994: 50) ressalta ainda que a histria da literatura, considerada como parte da
histria geral, no cumpre o seu papel quando se deixa prender pelas anlises diacrnica ou
sincrnica dos perodos literrios, mas quando vista tambm como histria particular, em
sua relao prpria com a histria geral. (...) A funo social somente se manifesta na
plenitude de suas possibilidades quando a experincia literria do leitor adentra o horizonte de
expectativa de sua vida prtica, pr-formando seu entendimento do mundo e, assim,
retroagindo sobre seu comportamento social.
A literatura , portanto, uma fonte onde o leitor pode experimentar acontecimentos,
sentimentos, aes que ainda no conhecia e, dessa forma, romper e ampliar seu horizonte de
expectativas, trazendo esses conhecimentos adquiridos para suas relaes em sociedade. A
inteno de Jauss (1994) justamente determinar qual a contribuio especfica da literatura
no processo de formao do indivduo e verificar em que medida a experincia literria
influencia os comportamentos no contexto scio-cultural.
Na cincia ou na experincia pr-cientfica, de acordo com Poppe (apud JAUSS, 1994:
52) existem expectativas, hipteses a serem confirmadas; entretanto, mais importante que a
confirmao a frustrao das expectativas, momento em que se entra em contato efetivo
com a realidade. Em literatura, o leitor no precisa se chocar com a realidade para adquirir
uma nova experincia, pois seu contato com a literatura o prepara para diversas situaes.
A experincia da leitura logra libert-lo das opresses e dos dilemas de sua
prxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepo das
coisas. O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da
prxis histrica pelo fato de no apenas conservar as experincias vividas,
mas tambm antecipar possibilidades no concretizadas, expandir o espao
limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretenses e
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A obra literria no apenas representa a realidade social, mas coloca seus leitores
diante de questes ainda no solucionadas pela moral, pela religio, pelo Estado e isenta o
leitor do automatismo, ao apresentar a realidade sob um novo olhar alm de novas solues
para problemas supostamente j solucionados.
A histria da literatura, conforme nos aponta Jauss (1994: 57), cumpre seu papel
quando deixa de descrever o processo da histria geral e como esta ocorre nas obras, passando
a revelar a literatura e seu desenvolvimento enquanto constitutiva da sociedade, como uma
das formas de levar o homem libertao de conceitos preexistentes e dar-lhe maior
conscincia de si e do mundo que o cerca. Iser (1999) complementa ao afirmar que o texto
literrio realiza a comunicao entre o mundo, as estruturas sociais dominantes e a literatura
j existente, provocando intervenes, por meio da reorganizao dos sistemas de referncia
que so selecionados e re-significados pelo texto. Alm de se comunicar, portanto, com o
leitor, o texto pode ainda fazer com que os efeitos produzidos no leitor sejam refletidos em
suas relaes na sociedade.
1.2 Ler e experienciar: uma questo de efeito
At o presente momento, refletimos a respeito da nova histria da literatura proposta
pela teoria da esttica da recepo. Passemos agora aos conceitos referentes prpria teoria e
sua metodologia. Para Iser (1999: 7), a esttica da recepo tem como conceitos centrais o
efeito e a recepo: o efeito e a recepo formam os princpios centrais da esttica da
recepo, que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com mtodos histricosociolgicos (recepo) ou teortico-textuais (efeito). A esttica da recepo alcana,
portanto, a sua mais plena dimenso quando essas duas metas diversas se interligam.
A esttica da recepo surgiu como necessidade de se responder s novas tentativas de
interpretao do texto literrio no mais como um produto acabado de seu autor ou
simplesmente como objeto esttico. A literatura moderna precisava de novas perguntas, novos
critrios, no mais aqueles usados antigamente, para ser revelada. Entretanto, os
questionamentos antigos continuam a ser importantes para a interpretao por seu valor
histrico e mostram os caminhos pelos quais a interpretao j caminhou, mas que no
presente perdem o sentido. Para que surjam as novas perguntas, preciso que sejam separadas
daquelas convencionais e se pense a nova obra a partir de novos questionamentos. Assim, da
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inteno do texto, passou-se sua recepo, ao modo como o texto reflete e faz refletir sobre
o ser humano.
A modernidade a negao de tudo o que era considerado clssico (harmonia,
equilbrio, beleza, plenitude X grotesco, feio, desequilbrio, fragmentrio). A negatividade da
literatura moderna atua sobre nossas concepes orientadoras, sobre nossas atitudes e nossa
percepo cotidiana. A arte faz com que algo nos acontea e ao pesquisador cabe descobrir o
que acontece a quem entra em contato com o literrio, questionando sobre o efeito do texto.
Iser (1999) salienta que o primeiro efeito produzido sobre o autor e da em diante um
ciclo de efeitos se inicia, culminando com a concepo de texto como acontecimento: o
mundo que age sobre o autor; este escreve sobre o mundo; logo, o livro uma referncia do
mundo e, quando lido, torna-se um acontecimento; este acontecimento traz novas perspectivas
para o mundo que no estavam nele contidas. Logo, o mundo a realidade de referncia; o
texto literrio seleciona aspectos, elementos da realidade de referncia e incorpora-os, dando a
eles nova significao. A seleo j um acontecimento, porque tira um elemento de sua
relao de subordinao na realidade de referncia. A seguir, os elementos selecionados
passam por uma combinao, isto , so combinados entre si e novas relaes de
subordinao so compostas, o que faz com que extrapolem sua determinao semntica e
contextual, produzindo novos efeitos de sentido. Por isso, o texto literrio polissmico, pois
traz, alm dos sentidos do senso comum, vrias aberturas para a construo de novas vises.
O carter de acontecimento do texto consiste, portanto, em romper com a referncia da
realidade, e ao selecionar e combinar os elementos, extrapolar as fronteiras semnticas das
palavras.
Glawinski (1995) considera a leitura como uma atividade diria, controlada, quando o
leitor tem conscincia e faz um trabalho de reflexo/interpretao ao ler, ou ingnua, quando a
leitura se d no sentido comum. Ambas, porm, partem do mesmo ponto: as concepes
comuns de cada leitor, o que cada um traz em sua bagagem cultural. Glawinski (1995: 2)
afirma: Ns no podemos apreender uma obra fora do nosso contexto cultural e sem os
elementos que j temos interiorizados. A leitura nos leva ao nosso mundo, ao mundo de
nossas representaes e valores, diminuindo a distncia at o texto.
Isso refora a noo de movimento circular proporcionado pela leitura: o leitor vai ao
texto, encontra-se refletido a si e ao mundo em que est inserido; mas o texto faz com que
volte a esse mundo com um novo olhar, ou seja, leva o leitor reflexo, trazendo tona novos
elementos. Por isso, o leitor nunca o mesmo ao terminar uma leitura porque vivenciou novas
experincias.
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Por isso, Glawinski (1995) explica que a leitura possui a propriedade de ser realizvel,
uma vez que trazemos o texto ao nosso mundo e o nosso mundo ao texto. Existe um universo
comum dividido entre o sujeito que l e o objeto lido, resultando no conhecimento que se
realiza na troca de saberes entre leitor e texto, propiciado pela cultura literria.
Diante disso, percebemos que no s os conceitos comuns so atualizados na leitura,
mas outros valores relativos prpria literatura, como sua natureza, as propriedades, as
funes, o literrio ou no, o que se considera boa ou m literatura. Isso significa que o gosto
esttico-literrio de um perodo fixado pela tradio e retransmitido pelas escolas, tambm
exerce influncia no momento da leitura e no momento de avaliar e classificar os fatos
literrios.
1.2.1 Criar imagens e experimentar sentidos
Iser (1999: 15) define o texto como um potencial de efeitos que se atualiza no
processo da leitura. Isso significa que o texto possui, nas palavras de Iser (1999: 13), uma
pregnncia de sentido, isto , est repleto de sentidos que podem ser atualizados no momento
da leitura, englobando os efeitos produzidos pela reao do autor perante o mundo at as
expectativas do leitor e as selees de sentido que se realizam na leitura. Para isso, o texto
deixa instrues a serem seguidas pelo leitor para que o seu sentido possa ser constitudo.
Nesse processo de comunicao, a ateno da esttica da recepo recai sobre o efeito
esttico produzido, resultado da interao entre texto e leitor. Segundo Iser (1999: 16), esse
efeito causado no leitor chamado de esttico porque apesar de ser motivado pelo texto
requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, a fim de obrig-lo a diferenciar suas
prprias atitudes. Essas reaes desencadeadas no leitor so resultados do contato com algo
ainda inexistente no mundo, de uma nova percepo de mundo, fazendo com que o leitor se
coloque no texto e imagine sua atuao dentro daquela reformulao de uma realidade j
formulada (ISER, 1999: 16).
A formulao da imagem muito importante para a esttica de recepo, pois o
sentido no uma idia expressa discursivamente, por meio de uma linguagem referencial,
mas tem carter de imagem. O texto traz lugares vazios (blank) a serem preenchidos pelo
leitor com sua imaginao, de forma que o seu sentido captado como imagem, algo no
expresso verbalmente, mas que concretiza aquilo que no existia. Iser (1999: 33) define: O
sentido o objeto, a que o sujeito se dirige e que tenta definir guiado por um quadro de
referncia. A imagem estimula o sentido e resultado dos processos de combinao e
apreenso do leitor, frente matria textual:
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Segundo Iser (1999), o sentido no consegue ser explicado, apenas percebido como
efeito, a partir da participao do leitor na leitura. Isso acontece porque, ao explicar o sentido
de um texto, estamos utilizando como referncia a realidade e colocando no mesmo nvel o
que surgiu por meio do texto ficcional e a realidade extra-textual.
As snteses tambm acontecem em forma de imagem. Iser (1999) afirma que criamos
representaes no decorrer da leitura do texto ficcional porque os signos do texto se limitam a
orientar-nos como o objeto deve ser construdo. Iser (1999: 58-59) esclarece ainda que a
imagem , portanto, a categoria bsica da representao. Ela se refere ao no-dado ou
ausente, dando-lhe presena. Mas a imagem possibilita tambm a representao de inovaes
que se constituem quando o saber previamente estabelecido desmentido, ou seja, quando
determinadas combinaes de signos no so familiares. Iser (1999) exemplifica com a
construo da personagem: no imaginamos uma personagem por inteiro; ela se constitui das
vrias facetas que vamos descobrindo ao longo da leitura, que fazem com que se modifique
constantemente, diferentemente do cinema, onde a personagem aparece pronta. Entretanto,
essa representao que constitumos no fisicamente visvel, mas ilumina a personagem
como uma portadora de significados, por isso a decepo ao assistirmos a um romance
filmado no estamos na presena do objeto, ele est em nossa presena.
A representao de um objeto ficcional diferente da representao de algo da vida
real, porque, alm de no estar presente, no tem pr-existncia no mundo real. Desse modo,
o processo de construo da imagem precisa ser regulado por meio de dados previamente
estabelecidos.
O texto traz esquemas de representaes. Esses esquemas, porm, so ativados pelo
leitor que conhecer as referncias apresentadas. Da, a formao das representaes acontece.
Contudo, nem todos os leitores tm acesso a todas as referncias e aos elementos que
compem o esquema, de tal forma que, para alguns, o texto no alcana seu significado pleno.
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necessidade tanto da parte textual, artstica, quanto da participao efetiva do leitor, que a
concretiza na leitura. Mas, como vimos, a obra no s estrutura nem s participao do
leitor; so os dois elementos combinados que constituem a obra literria.
Para se analisar, portanto, a relao entre obra e leitor no se pode concentrar a anlise
em apenas um desses plos. Iser (1999) explica que preciso observar como as estruturas de
um texto afetam o leitor. Essas estruturas apresentam carter duplo de estrutura verbal e
afetiva. Verbal porque de alguma forma faz um direcionamento da reao; afetiva porque
pressupe o seguimento e o cumprimento do que se encontra pr-estruturado verbalmente no
texto. Essa anlise balanceada entre os plos procura desvendar como o texto foi estruturado
para que produza seu efeito, bem como o leitor reage diante dessa estruturao.
Iser (1999: 53) define o efeito esttico como aquilo que vem ao mundo e que ainda
no existia, no-familiar. Quando tentamos relacionar esse no-idntico a algo j existente,
compreensvel, anulamos o efeito esttico, pois esse efeito s efeito, enquanto o que
significado por ele no se funda em nada seno nele mesmo. Por isso, no devemos
perguntar o que um texto significa, mas o que acontece ao leitor ao ler um texto ficcional.
a observao do modo como o leitor reage ao texto, lembrando que uma das funes da
literatura , segundo o formalismo, provocar o estranhamento, ou ainda, a comoo: a juno
da emoo daquele que criou a obra de arte emoo daquele que a recebe. Logo, a
significao apresenta-se como um evento, no podendo ser estruturada denotativamente, por
uma explicao referencial. antes o produto de efeitos experimentados, ou seja, de efeitos
atualizados do que como uma idia que antecede a obra e se manifesta nela. Aqui a
interpretao ganha uma nova funo: em vez de decifrar o sentido, ela evidencia o potencial
de sentido proporcionado pelo texto (ISER, 1999: 54). A cada leitura temos, portanto, a
atualizao da obra em um processo comunicativo essa comunicao entre texto e leitor
que deve ser descrita, apesar de no podermos precisar exatamente o potencial de sentido no
processo de leitura.
Existe ou no um padro ideal que est subjacente ao texto, ou seja, um modo objetivo
de ler um texto que por ele orientado? As crticas teoria do efeito esttico ressaltam que
esta deixa margem para qualquer compreenso subjetiva. Entretanto, Iser (1999) pondera que
qualquer ato de compreenso dirigido pelas estruturas do texto, mas no controlado por elas.
Significa que o texto traz um caminho a ser percorrido e o leitor pode percorr-lo de acordo
com sua escolha e possibilidade, no podendo o autor, o texto, a estrutura ou o crtico exercer
controle sobre os limites dessa leitura, uma vez que o significante no consegue abarcar todos
os significados.
24
Dessa forma, a objetividade trazida pelo texto ficcional no pode ser confundida com
a realidade, pois os textos apresentam pontos de indefinio; so esses pontos que
possibilitam a comunicao entre texto e leitor, bem como a participao deste na
concretizao da intencionalidade textual. Para que haja, portanto, a comunicao entre texto
e leitor, preciso, principalmente, compreenso.
A compreenso faz com que o leitor experimente de modo intenso e ntimo, o que l: a
experincia privada se realiza quando o leitor, ao interagir com o texto, incorpora as
experincias trazidas pelo texto s suas prprias experincias, ou seja, transforma o texto, nas
palavras de Iser (1999: 58) em realizao prtica.
Cada leitor, todavia, pode realizar o texto de uma forma diferente, de acordo com seus
critrios subjetivos. Por isso, ao emitirmos um juzo de valor sobre uma obra, baseamo-nos
em nossas impresses pessoais e justificamos nossa opinio buscando critrios objetivos.
Mesmo com critrios objetivos, porm, o juzo emitido subjetivo. Iser (1999) explica que
ainda que o texto literrio traga em si instrues, pistas a qualquer leitor que entre em contato
em ele, cada sujeito produzir sua avaliao, conforme sua vivncia pessoal. Em vista disso,
temos que um texto literrio no apresenta conceitos fechados, objetivos e definidos, mas,
necessariamente abertos. Logo, os conceitos estticos podem ser modificados ou corrigidos
conforme o caso a ser aplicado; ou ainda um novo conceito pode surgir para dar conta de um
novo caso, uma nova necessidade.
1.2.3 O leitor
Cada texto literrio, de acordo com Iser (1999), visa um determinado tipo de leitor, ou
ainda, os leitores so diferenciados conforme os objetivos a que se prestam. A esttica da
recepo visa apresentar as normas de avaliao dos leitores e, a partir disso, construir uma
histria social do gosto do leitor. Vejamos que, se analisarmos o leitor contemporneo,
devemos enfocar um determinado pblico, sob o ponto de vista e segundo normas e atitudes
desse pblico, revelando o cdigo cultural que orienta seu juzo de valor.
Para Iser (1999: 65) o leitor ideal seria uma fico, uma impossibilidade estrutural de
comunicao, uma vez que este utilizaria o mesmo cdigo do autor e conheceria todas as
suas intenes ao conceber um texto. Dessa forma, o leitor ideal seria aquele que conseguisse
realizar na leitura todo o potencial de sentido do texto ficcional, independentemente de sua
situao histrica. Contudo, o sentido do texto no imutvel, mas aberto, como j tratamos.
Por isso, a cada leitura, em diferentes pocas e locais, um texto se atualiza de uma nova
forma.
25
O leitor ideal, porm, tem sua utilidade para a argumentao, visto que preenche as
lacunas no momento da anlise do efeito e da recepo da literatura, permitindo que se infira
algo que fizesse parte da subjetividade do leitor. Alm disso, o leitor ideal til justamente
por seu carter ficcional, incorporando diversas competncias, conforme o problema a ser
resolvido.
Cada texto escrito visando um determinado tipo de leitor; este leitor o leitor
implcito ao texto, que se encontra materializado nas estruturas textuais, nas orientaes,
pistas deixadas no texto para os possveis leitores. Iser (1999: 73-74) explica que so
atribudos papis a esses possveis receptores: o papel de leitor se define como estrutura do
texto e como estrutura do ato. Quanto estrutura do texto, de supor que cada texto literrio
representa uma perspectiva do mundo, criada por seu autor. O texto, enquanto tal, no
apresenta uma mera cpia do mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe
dado. no modo de constituio que se manifesta a perspectiva do autor, alm das demais
perspectivas. Nenhuma dessas perspectivas, porm, concentra o sentido do texto:
(...) marcam em princpio diferentes centros de orientao no texto, que
devem ser relacionados, para que se concretize o quadro comum de
referncias. A tal ponto uma certa estrutura textual estabelecida para o
leitor que obrigado a assumir um ponto de vista que permita produzir a
integrao das perspectivas textuais. O leitor, porm, no pode escolher
livremente esse ponto de vista, pois ele resulta da perspectiva interna do
texto. S quando todas as perspectivas internas do texto convergem no
quadro comum de referncias o ponto de vista do leitor torna-se adequado
(ISER, 1999: 74).
Isso quer dizer que, quando o leitor consegue captar todas as perspectivas presentes
na estrutura do texto (autor, enredo, personagens, narrador etc.), alm da sua, que a leitura
ser adequada, ou ainda, o quadro de referncias ser o mesmo. Quando o leitor assume o
ponto de vista do texto, ele possibilita que o quadro de referncias das perspectivas textuais
seja captado e somado ao sistema de perspectividade e o sentido de cada perspectiva pode
ser inferido. A funo central do leitor implcito , portanto, possibilitar que se reconstruam as
estruturas gerais do quadro de referncias que contribuem para as diversas atualizaes
histricas e individuais do texto, com suas particularidades.
Iser (1999) esclarece que no se deve confundir fico do leitor e papel do leitor. A
fico do leitor o meio pelo qual o autor expe o mundo ao leitor imaginado, enquanto o
papel do leitor se refere construo do texto pelo receptor, ao seguir as estruturas textuais.
Logo, o papel do leitor tambm uma estrutura somente realizada no ato da leitura.
26
Entretanto, nem perspectivas nem pontos de vista so verbalizveis, de forma que o sentido de
um texto apenas imaginvel, pois no aparece explicitado, mas se atualizar na conscincia
imaginativa do leitor.
Iser (1999) afirma, porm, que a superposio de papel do leitor, leitor implcito e
leitor real no acontecem por completo, do contrrio ele no traria suas experincias ao texto
e no associaria o novo horizonte ao seu. Por isso, o seu papel se cumpre medida que na
leitura possa introduzir suas vivncias e concepes, o que indica que cada atualizao nica
e determinada. Essa atualizao est acessvel ao olhar do crtico, desde que este se debruce
sobre as estruturas de efeito presentes no texto, que constituem a base para a atualizao.
De acordo com Lotman (apud ISER, 1999: 124), o texto literrio como um
organismo vivo que se liga ao leitor por um feedback e que lhe d instrues. Isso quer
dizer que a todo instante o texto fornece informaes ao leitor, conforme a sua capacidade de
compreenso, enquanto uma outra gama de dados transmitida pela linguagem, no momento
de uma segunda leitura. Eis a uma das caractersticas do texto literrio: concentrar muitas
informaes em um texto curto, com palavras precisas. A comunicao entre texto e leitor,
portanto, constante, e o feedback, ou o controle de correo, que faz com que as
informaes inferidas ou captadas do texto pelo leitor sejam confirmadas ou refutadas. Por
isso, os significados so constantemente corrigidos para que sejam construdos e o texto
realizado. nesse constante movimento de confirmao e de refutao que o texto se atualiza
e se realiza, uma vez que, durante o processo de leitura, o leitor insere as informaes obtidas
atravs dos efeitos nele provocados, resultando em constantes realizaes durante o processo.
1.2.4 Do mundo real para o texto: o repertrio
Em relao seleo do repertrio, no texto literrio percebemos a presena de
elementos familiares ao leitor, pertencentes realidade extratextual. Essas informaes, no
entanto, no aparecem simplesmente como reproduo ou repetio, pois se movimentam em
ambientes diferentes do comum. Mesmo o familiar, nos textos literrios, no interessa por
trazer algo j conhecido, mas pelo resultado de seu uso em uma situao inusitada.
Para Iser (1999), o familiar o intencionado, presente no texto, mas que aponta o no
intencionado, no formulado no texto, uma vez que os significados vo alm dos
significantes. Nisso reside o valor esttico do texto: o no captvel. O texto no copia a
realidade, mas os seus modelos, os quais so baseados em sistemas pr-estabelecidos de
valores, condutas, perspectivas da realidade que se organizam por meio de sistemas
apresentados ao leitor como modelos de realidade ou realidades negadas. Tais modelos so
27
representados no discurso ficcional, como forma de reao no s aos sistemas, mas aos seus
limites e ao que excluem.
Segundo Iser (1999: 138), a fico o complemento da realidade, na tentativa de
apresentar o que os sistemas dominantes rejeitam; dessa forma, abarca a realidade como um
todo, mostrando todos os seus lados medida que o texto seleciona possibilidades e
tematiza sua escolha em seu repertrio, isto , aquelas que os respectivos sistemas de sentido
realizaram. Desse modo, o texto ficcional proporciona tanto os contornos relevantes do
sistema (ou dos sistemas), aos quais ele reage quanto os dficits que ele articula medida que
oferece uma soluo ficcional.
Diante disso, ao ler um texto ficcional o leitor tem diante de si novas possibilidades de
leitura da realidade extratextual, pois consegue v-la sob um novo ponto de vista e ainda
perceber acontecimentos, aes, gestos, sentimentos que no conseguiria captar de forma
consciente e efetiva no seu dia-a-dia.
1.2.5 As estratgias textuais
Como j foi dito, o texto ficcional apresenta pistas, instrues dirigidas ao leitor, a fim
de que este possa compreend-lo e atualiz-lo, proporcionando uma constante comunicao.
Essas pistas e instrues so as estratgias utilizadas pelo escritor para organizar a matria
textual, ou seja, pertencem ao momento de elaborao do texto. As estratgias organizam a
forma de apresentao do repertrio, dos sistemas, das equivalncias virtuais desses
contedos em texto literrio. Por isso, quando se resume um texto, por exemplo, este perde
seu efeito de estranhamento diante do leitor porque a histria apresentada de forma
denotativa, sem significao.
As estratgias combinam os elementos, de forma que a estrutura textual seja
compreensvel de modo que tenha coerncia e coeso. As estratgias, porm, enquanto
forma de arranjar o texto ficcional, no possuem representatividade em si, mas conduzem a
certa inteno de sentido, pois, conforme a combinao estrutural, as tcnicas escolhidas, o
que no familiar o inesperado aparece.
So elas que organizam o espao interno do texto, isto , so elas que combinam os
elementos selecionados, ou ainda, combinam as diversas perspectivas presentes no texto do
narrador, dos personagens, da ao ou enredo, da fico marcada do leitor:
Os comentrios do narrador, o discurso indireto livre de heri e personagens
secundrios, o desenvolvimento da ao e as posies marcadas do leitor se
28
Para Lotman (1975: 3), todo texto projetado sobre uma estrutura extratextual que,
no seu sentido mais abstrato, pode ser definida como um tipo de viso de mundo ou um
modelo cultural. Essa viso de mundo traz uma imagem desse mundo, que expressa pelo
ponto de vista. O texto literrio, portanto, seria uma combinao entre os pontos de vista
internos e uma determinada forma de viso de mundo. O conceito de ponto de vista
corresponde ao de perspectiva e se constitui em um sistema gerador de uma estrutura
ideolgica ou estilstica que pode ser reconstituda por meio da leitura.
A perspectividade interna do texto, portanto, apresenta uma determinada combinao
dos elementos selecionados e uma determinada estrutura. Essa perspectividade interna
chamada, conforme Alfred Schtz (apud ISER, 1999) postula, de estrutura do tema e do
horizonte, o que quer dizer que as perspectivas se relacionam entre si, entrelaando-se durante
a leitura, uma vez que o leitor no capaz de abarcar todas as perspectivas ao mesmo tempo.
essa alternncia de pontos de vista que confere ao texto, de acordo com Lotman (1975),
dinamicidade, visto que cada ponto de vista, ao seu tempo, apresentado como verdadeiro e
est em conflito com os demais. quando deixa de ser horizonte e passa a ser tema.
Gadamer (apud ISER, 1999: 181) explica que horizonte tudo que se v, o qual
abarca e encerra o que visvel a partir de certo ponto. Na leitura, o horizonte do leitor se
estabelece a partir do momento em que o leitor fixa um ponto e um horizonte se forma sobre o
que foi visto anteriormente e o que se observa no presente. A estrutura tema e horizonte traz
vrias conseqncias, que podem ser assim elencadas:
1. Organizar a relao texto-leitor, fundamental para a compreenso, de modo que
cada ponto de vista apresentado possa de tornar tema e, logo a seguir, horizonte.
2. Atravs dessa mudana de perspectivas, possvel chegar ao que estava oculto, por
meio dessa constante mudana de posies, da qual se constitui o objeto esttico.
3. Atravs dessa mudana de posies entre tema e horizonte e dos vrios
entrelaamentos de perspectivas as mltiplas interpretaes so favorecidas e o objeto esttico
cumulado de significados.
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30
Logo, diante dos vrios pontos de vista em movimento temos vrias perspectivas. O
leitor articula nos vrios momentos de leitura todas as perspectivas textuais para poder
estabelecer qual o seu prprio ponto de vista. Segundo Iser (1999: 22), o fluxo da leitura no
acontece de modo unilateral e irreversvel, mas o que est sendo retido e presentificado
possui um efeito retroativo, o presente modificando o passado.
As estruturas do texto se desenvolvem no horizonte de memria e de expectativa do
leitor e geram uma mudana constante dessa memria e uma crescente complexidade de
expectativa. a dialtica dos horizontes que possibilita as vrias atividades sintticas que se
processam durante a leitura: Temos aqui uma das principais atividades da leitura: o ponto de
vista em movimento desenrola o texto em estruturas interativas; da resulta a atividade de
agrupamento em que se funda a apreenso do texto (ISER, 1999: 28).
Para que se tenha o agrupamento das idias e a apreenso de um texto fundamental a
presena da iluso como o paradigma que estrutura a memria e confere coerncia ao que
narrado, possibilitando a compreenso. Maurice Merleau-Ponty (apud ISER, 1999: 41)
caracteriza a iluso pelo fato de que ela finge ser ela mesma uma percepo real, cuja
significao resulta do sensvel e s dele. Ela imita aquele tipo de experincia que se
caracteriza pela concordncia do sentido e do sensvel, pela articulao do sentido que
visvel ou se manifesta no sensvel.
Aguiar e Bordini (1993) reiteram que a obra literria possui significao autnoma.
No apresenta e nem precisa apresentar o objeto real, pois entre autor e leitor se estabelece um
pacto, e o leitor entra no jogo do texto, deixando de lado sua realidade momentnea, para
viver, na iluso, o mundo da personagem ficcional. A coerncia interna dos elementos
estruturais do texto que conferem ao texto um carter de independncia em relao ao
contexto. As autoras ressaltam ainda o aspecto aberto do texto literrio que possibilita a
participao do leitor com sua experincia de mundo e que faz com que o texto no perca seu
carter de iluso da realidade. Da o carter plurissignificativo da obra literria.
Diante disso, podemos dizer que a iluso faz com que o leitor amplie suas experincias
e possa ter a impresso de ter vivido uma outra vida. nesse momento que o texto se torna
31
evento, porque reagimos diante dele e o sentido por ns produzido, em nossa conscincia,
converte-se em realidade para ns: The success f a work of art [...] may be measured by the
degree to which it produces a certain illusion; that illusion makes it appear to us for the time
that we have lived another life that we have had a miraculous enlargement of experience1
(Henry James, apud ISER, 1999: 43).
O texto se torna evento quando os conflitos de leitura so resolvidos pelo
aparecimento de uma terceira dimenso, ou seja, quando a oscilao entre envolvimento e
liberao se resolve pela fora das estratgias textuais, modificando a formao da coerncia,
e o leitor consegue enxergar o texto como um mundo prprio.
No so as expectativas, as surpresas, as decepes ou as frustraes que acontecem
no processo de formao da coerncia do texto na conscincia do leitor que produzem o
sentido de um texto. Essas so reaes do leitor diante de sua prpria produo o que faz com
que o texto se apresente como evento real para seu leitor.
No entanto, a coerncia, favorecida pela iluso, desfavorecida pela ambigidade do
texto literrio. Iser (1999: 47) ressalta que a ambigidade faz com que o texto formulado
signifique algo que no foi formulado e vrias discrepncias so articuladas e negadas na
tentativa de produzir um ajuste, uma integrao. Tudo se d na imaginao, o que provoca um
envolvimento com o texto e este se torna presena para ns. Por isso, muitas de nossas
experincias passadas ficam para trs e do lugar a uma nova experincia, que interage com o
conhecimento anterior e promove uma reestruturao.
Diante disso, Iser (1999: 51) afirma: O ato da recepo de um texto no se funda na
identificao de duas experincias diferentes, uma nova, outra sedimentada, mas na interao
destas duas, ou seja, em sua reorganizao (p.51). Isso significa que nossos valores, padres,
concepes do passado vm tona e se reorganizam em contato com a nova experincia.
Logo, o leitor se envolve com o texto e capaz de observar como se deu esse envolvimento,
ou seja, percebe como reagiu diante do texto. Nesse processo de constituio do sentido, o
leitor tambm se constitui, por meio daquilo que produz. Esse o efeito causado no leitor.
Iser (1999: 81) faz a distino entre sentido e significado ao dizer que podemos
descobrir um sentido e no compreender seu significado o significado de um sentido se
revela quando este estabelece uma relao com uma determinada referncia; o significado
traduz o sentido num sistema de referncias e o interpreta em vista de dados conhecidos. Por
O sucesso de uma obra de arte [...] pode ser medido pelo grau de iluso que ela produz; essa iluso faz parecer
como que tivssemos vivido uma outra vida que tivssemos tido um miraculoso aumento de experincia
(traduo nossa).
32
isso, um sentido pode ter vrios significados, conforme o cdigo sociocultural de quem entra
em contato com o texto.
Desvendar a constituio do sujeito-leitor um dos objetivos de Iser (1999), isto ,
descobrir o que h subjacente ao ponto de vista do leitor; quais as estruturas presentes no
texto que ajudam o leitor a constituir seu ponto de vista e a se tornar um sujeito, aquele que
faz com que o texto acontea e assuma os pensamentos de outro.
Mesmo seguindo as instrues, o leitor no consegue compreender todas as
informaes transmitidas pelo texto, uma vez que o v do lado de fora. Para que o leitor
assuma um ponto de vista, o texto precisa provocar algo no leitor, um efeito. O leitor precisa
distanciar-se de suas prprias experincias para poder instituir o ponto de vista do leitor
implcito no texto, isto , precisa pegar o fio de meada a partir do que o texto lhe apresenta,
num primeiro momento. Esse ponto de vista presente no texto pode trazer elementos que
demonstrem os valores, a realidade, as concepes de seus leitores possveis. No
compartilhamento dessas informaes, o leitor real pode delinear a que pblico o texto foi
dirigido e pode, mesmo muito tempo depois, atualizar o texto a partir de suas prprias
experincias.
Nesse processo de comunicao entre leitor e texto ou sujeito e objeto no h divises,
mas trocas simultneas e interao; o que se d no momento da leitura que permite ao
sujeito-leitor transitar em um mundo no-familiar; o encontro, em nvel de conscincia,
entre os pensamentos do autor e do leitor. Essa relao de comunicao s acontece quando
autor e leitor suspendem sua histria e disposies pessoais, para viver uma outra histria que
no a sua, pensar o que no so, por algum tempo. Contudo, as disposies individuais
continuam a interagir de vrias formas no momento da leitura, mesmo que relegadas a um
passado.
Pensar algo no ato da leitura que nos estranho porque no o
experimentamos ainda significa no s que temos de apreend-lo; alm do
mais, significa que esses atos de apreenso so bem-sucedidos na medida
em que formulam algo em ns. Pois os pensamentos de um outro s se
deixam formular em nossa conscincia se a espontaneidade mobilizada em
ns pelo texto ganhar uma forma. Com a espontaneidade despertada
formulada sob as condies de um outro, cujos pensamentos tematizamos
durante a leitura, no formulamos nossa espontaneidade em funo das
nossas orientaes, pois estas no teriam trazido luz a nossa
espontaneidade. A constituio de sentido que acontece na leitura, portanto,
no s significa que criamos o horizonte de sentido, tal como implicado
pelos aspectos do texto, ademais, a formulao do no-formulado abarca a
possibilidade de nos formularmos e de descobrir o que at esse momento
parecia subtrair-se nossa conscincia. Neste sentido, a literatura oferece a
33
S.f. 1. Qualidade do que contingente. 2. Incerteza sobre se uma coisa acontecer ou no. 3. Com. Reserva,
cota, contingente (FERREIRA, A.B.H. Dicionrio Aurlio Bsico de Lngua Portuguesa. So Paulo: Nova
Fronteira, 1995).
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Para que essa comunicao acontea de forma satisfatria, Iser (1999) afirma que a
ao do leitor precisa ser regulada de alguma forma pelo texto. Lima (1979: 24) complementa
dizendo que os complexos de controle do texto tm por funo tanto orientar a leitura,
quanto exigir de o leitor deixar sua casa e se prestar a uma vivncia no estrangeiro; testar
seu horizonte de expectativas, colocando prova sua capacidade de preencher o
indeterminado com um determinvel i.e., uma constituio de sentido no idntico ao que
seria determinado, de acordo com seus prvios esquemas de ao. Esses complexos de
controle no expulsam o leitor, mas o chamam para dentro do texto.
O no-dito, de acordo com Iser (1999), uma dessas formas de levar o leitor para
dentro do texto e imaginar o significado de algo que foi dito, mas que foi sucedido por um
lugar vazio, o qual d margem para a inferncia de uma leitura por detrs das palavras. Para
Iser (1999: 106), o jogo de mostrar e ocultar que d movimento e regula o processo
comunicacional: O no dito estimula [o leitor] a atos de constituio, mas ao mesmo tempo
essa produtividade controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar quando por fim
vem luz aquilo a que se referia.
Conseqentemente, o lugar do leitor para que realize o sistema de combinaes
necessrias so os lugares vazios, a serem preenchidos, com um sistema diferente do sistema
do texto. assim que o leitor comea a constituio do texto e a interao com ele os
lugares vazios regulam a formao de representaes do leitor, atividade agora empregada sob
as condies estabelecidas pelo texto (ISER, 1999: 107).
Iser (1999) salienta que uma das caractersticas do texto ficcional no apresentar o
mundo real tal como , mas simular aspectos dele. Essa no identificao com o mundo nem
com o leitor que constitui a capacidade comunicativa da fico, exprimida nos lugares
indeterminados (lugares vazios e negaes), brechas para regular e promover a interao entre
texto e leitor. Lima (1979) complementa afirmando que no texto ficcional a indeterminao
chega a seu grau mximo, abrindo-o a uma infinidade de comunicaes.
O lugar vazio uma possibilidade de conexo, portanto, entre o sujeito-leitor e o texto.
Para Iser (1999: 126) a possibilidade de a representao do leitor ocupar um vazio no
sistema do texto. Os lugares vazios indicam que no h a necessidade de complemento, mas
sim a necessidade de combinao. Essa combinao dos esquemas do texto feita pelo leitor
e ento que o objeto imaginrio formado. Os lugares vazios possibilitam que os segmentos
do texto, no explicitados por ele, sejam ligados.
Os lugares vazios so estratgias para manter a conexo entre as vrias perspectivas
textuais, tendo em conta que o texto formado por camadas de perspectivas e a leitura deve
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36
37
Cf.p. 05.
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Fernando Pessoa, o poeta da disperso. Um dos sentidos que nos interessa da palavra
disperso a separao de pessoas ou de coisas em diferentes sentidos; espalhar, debandar.
Mas em que foi que Pessoa dispersou-se? esse o ponto que mais causa fascnio em
Fernando Pessoa; isso que o faz uma fonte inesgotvel de leitura e investigao. Nesse
captulo, queremos apresentar a relao entre Fernando Pessoa e o Modernismo portugus e
alguns aspectos de sua produo potica, em especial, o caso da heteronmia, assunto de
interesse para esse trabalho de dissertao, enfocando o heternimo Ricardo Reis e sua
filosofia de vida.
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Pintor. De acordo com Vechi (1981), a posio adotada pela Renascena Portuguesa no
conseguiu se manter por estar baseada em ideologias e em uma viso de mundo vinculada ao
sculo XIX. Por isso, em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, fundada a revista
Orpheu, publicada em dois nmeros, marcando o incio do primeiro momento do
Modernismo em Portugal, tendo como fundadores Fernando Pessoa, Mrio de S Carneiro,
Raul Leal, Augusto de Santa Rita Pintor, Lus de Montalvor, Almada Negreiros, Rui Coelho,
Toms de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes Rodrigues e Ronald de Carvalho,
poeta e crtico brasileiro.
Com Orpheu, esses escritores tiveram a inteno de alinhar Portugal ao restante da
Europa, superando o saudosismo e assimilando as novas correntes estticas e filosficas que
agitavam a Europa Moiss (1999) cita Picasso, Cubismo, Futurismo, Max Jacob,
Apollinaire entre outros com o objetivo de chocar e escandalizar a sociedade da poca, por
meio de uma arte estetizante e com carter esotrico. Vechi (1981: 12) salienta: Cria-se uma
arte alucinada, chocante, irreverente e irritante, objetivando provocar o burgus, o smbolo
acabado da estagnao e marasmo em que se encontrava a cultura portuguesa. A esttica de
Orpheu se vale, portanto, da tentativa de representar o momento de tenso, angstia,
incerteza, pelo qual passava a humanidade. Segundo Moiss (1999: 239), a guerra de 14
manifestao ntida dessa crise, provocada pela necessidade de abandonar as velhas e
tradicionais formas de civilizao e cultura (de tipo burgus) e de buscar novas frmulas
substitutivas. Por isso, h uma tentativa de fundir diversas formas de arte a arte plstica e a
literatura e vice-versa. Com isso, Futurismo, Cubismo, Paulismo, Dadasmo, Simbolismo e
Decadentismo do sustentao aos ideais de Orpheu.
A segunda publicao de Orpheu, segundo Moiss (1999: 240), provocou escndalo
e reviravolta cultural. O terceiro nmero no chegou a ser publicado porque o sustentador
financeiro, Mrio de S-Carneiro, suicidou-se. No entanto, a revista j atingira seus objetivos.
2.2.1 Orpheu: en[cantar] com a nova poesia
O nome Orpheu uma meno ao mito grego do poeta que controlava a natureza por
meio de seu canto. Alm disso, de acordo com Tringali (1990), Orfeu tambm o fundador
de uma das grandes religies da humanidade, o orfismo, religio de Baco reformada com
elementos da religio de Apolo. O que se sobressai em Orfeu seu dom musical enquanto
cantor e tocador de lira, fazendo com que participasse da busca ao velocino de ouro com os
demais argonautas. Tringali (1990) explica que sua voz e o som de sua lira possuam a
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capacidade de fascinar quem o ouvia e amansar homens e feras. Dessa forma, Orfeu o heri
da paz.
Brando (1990) destaca o fato de a teogonia (origem dos deuses) rfica ser organizada
de forma a explicar no apenas a origem dos deuses, mas como os homens descendem dos
imortais (antropogonia) e carregam em si essa dupla natureza. Dessa forma, o orfismo via o
ser humano como cindido entre o corpo material e o esprito, que anseia pela libertao. No
havia distino de raa, classe ou gnero, mas o homem se distinguia pela sabedoria e virtude.
Com isso, o orfismo tenta resgatar o homem da marginalidade em que se encontrava, fazendo
uma nova leitura de elementos tradicionais herdados da teologia homrica, hesidica e
dionisaca.
Vejamos, segundo Tringali (1990: 19), os principais elementos da teogonia e
cosmogonia rfica:
No princpio s existia o Tempo (Chronos) e junto dele existia desde sempre
a Necessidade. Do Tempo procede ter, Caos (o abismo) e Erebos (as
trevas). Ento o Tempo formou, no ter, um Ovo de Prata e dele nasceu o
primeiro Deus, Fanes, que inaugura a teogonia. Fanes se identifica com
Zeus, Dioniso, Eros (o amor). De Fanes se gera a Noite, divindade
romntica de suma importncia no orfismo. Da unio de Fanes e da Noite
nascem a Terra e o Cu (Urano). Da Terra e do Cu procedem, entre
outros, os Tits e Titnides. Entre os Tits se destaca Kronos que destrona
seu pai Urano, o Cu, e reina em seu lugar. De Kronos e Ria nascem os
olmpicos. Entre os olmpicos se destaca Zeus (ou Jpiter) que depe o pai
e se torna senhor do universo. Zeus, diz-se, devora Fanes e com ele toda a
criao, e a seguir cria de novo o mundo e os homens.
Brando (1990) destaca ainda que a teogonia se baseia na idia de que um nico ser
deu origem a mltiplos e a multiplicidade retornou ao um. Por isso, ao devorar Fanes, Zeus
devora toda a criao e, a partir dele, d-se uma nova criao. Da unio de Zeus e Persfone,
nasce aquele que deveria ocupar e herdar o poder e encerrar o ciclo das geraes divinas
Dioniso ou Baco. Entretanto, este devorado pelos Tits, por ordem da ciumenta Hera,
esposa de Zeus, e de suas cinzas nasce a humanidade: Nascendo da separao do um
primordial, literalmente de uma dilacerao violenta do mais jovem dos deuses, o homem
deve aspirar reintegrao na unidade (BRANDO, 1990: 32). Dessa forma, podemos
entender a teogonia rfica como uma antropogonia ou como uma antropologia teolgica, com
a inteno de explicar a natureza humana e apontar o seu destino.
Em relao arte, o orfismo prega que esta deve seguir o esprito da msica e no da
pintura, isto , deve ser criao livre e no ficar presa a moldes pr-concebidos. Da mesma
42
43
que o equilbrio entre a intelectualizao das emoes e a emocionalizao das idias que
desencadeia a despersonalizao heteronmica em que h o distanciamento do autor em
relao voz que fala no texto e, em contrapartida, a revelao de novas emoes e
perspectivas por meio do fingimento. Com isso, o Poeta deixa de lado suas emoes e, como
resultado, sua prpria identidade, e apresenta-se sob novas formas: os heternimos, de que
trataremos mais adiante.
Essa disperso de si mesmo caracterstica de uma poca em que a idia de ser
humano naufragara, e, mergulhado em um mar de crise existencial, o Homem desdeificou o
mundo e deixou de ser sujeito humano palpvel e presente. Por meio da fragmentada
realidade e do tambm fragmentado eu-potico, tenta-se chegar ao irreal; por meio da
fantasia, chega-se, novamente, ao reflexo da crise da sociedade.
Para Fernando Pessoa, o movimento sensacionista a sada esttica para esse dilema
em que se encontra o ser humano e a arte europia. Vechi (1981) apresenta os seguintes
pontos basilares do sensacionismo:
1 A nica realidade da vida a sensao. A nica realidade em arte a
conscincia da sensao.
2 No h filosofia, nem tica, nem esttica, mesmo em arte, qualquer que
seja a quantidade delas que possa haver na vida. Em arte h apenas
sensaes e nossa conscincia delas. Qualquer que seja a parcela do amor,
alegria, dor, que possa haver na vida, em arte so apenas sensaes; em si
mesmas nada valem para a arte.
3 A arte, em sua plena definio, a expresso harmnica de nossa
conscincia das sensaes, isto , nossas sensaes devem ser expressas de
tal modo que criem um objeto que ser sensao para outros. A arte no ,
como disse Bacon, o Homem acrescentado natureza, a sensao
multiplicada pela conscincia multiplicada, note-se bem (VECHI, 1981:
15).
Segundo Moiss (1998), o mundo concreto sentido como sensao; essa sensao
(do contato com o mundo concreto) convertida em outro objeto, que a arte, ou seja, a arte
a sensao da sensao. Foi ao sensacionismo que Fernando Pessoa se dedicou at o fim de
sua vida em sua produo potica, tendo a sensao como o sustentculo de sua viso de
mundo.
2.3 Fernando Pessoa: a pessoa e o[s] poeta[s]
Nascido em Lisboa (1888), Fernando Antnio Nogueira Pessoa se encontrou rfo de
pai aos cinco anos de idade. Sua me se casa novamente e a famlia se muda para Durban, na
frica do Sul. l que Fernando Pessoa faz os cursos primrio e secundrio, sempre se
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destacando como excelente aluno. Em 1905, volta a Lisboa, a fim de cursar Letras e Filosofia.
O trabalho que desempenhou ento e at o fim de sua vida foi o de correspondente comercial
em lnguas estrangeiras (MOISS, 1999: 240).
Galhoz (1982) destaca que Fernando Pessoa foi um homem, apesar da classe social a
que pertencia, que escolheu uma histria sem arroubos de aventura, de brilho, ou de misrias,
mas viveu discretamente, cumprindo seu papel de filho, de correspondente comercial, mas
com o sonho de realizar algo grande, de ser poeta. O exlio que escolheu no se furta, porm,
da presena dos companheiros, do freqentar de cafs nos intervalos do trabalho ou nos
momentos de reunio intelectual: A distinguimos verossimilmente, vestido de escuro e
refugiado no gesto imvel de cruzar os ps sob a mesa e inclinar a cabea para a apoiar a uma
das mos. Reconhecemos o seu ar de secreta e vaga ausncia, a sua distrada contemplao, o
seu lento sorriso silencioso ou o seu casquinar rpido de uma pequena gargalhada nervosa
(GALHOZ, 1982: 47).
A prpria imagem de Fernando Pessoa nosso apoio ao nos depararmos com sua obra.
Segundo Galhoz (1982), no h como irmos a sua obra se no passarmos por Pessoa, uma vez
que este se transformou em sua obra e esta, nele. H, segundo a autora, uma relao quase que
umbilical entre Pessoa e obra.
Como j apresentamos anteriormente, Fernando Pessoa estava em comunho com
todas as mudanas, as tentativas de reforma, de quebra de paradigmas, de questionamento a
que o grupo de Orpheu se props. Podemos dizer que ele estava em consonncia com o
esprito da poca.
Galhoz (1982) destaca, porm, que Pessoa morreu quase completamente ignorado pelo
grande pblico, devido s suas obras exigirem do leitor comum uma leitura mais aprimorada a
que este no estava acostumado. Mesmo assim, Moiss (1999: 241) afirma que tal a
importncia de Fernando Pessoa que o ciclo camoniano termina quando se inicia o
pessoano.
Como j foi referido, Fernando Pessoa iniciou sua vida pblica de poeta a partir de sua
participao na revista A guia, em um primeiro momento, encantado pelos elementos
saudosistas, nacionalistas, simbolistas que regiam a Renascena Portuguesa. Contudo,
segundo Galhoz (1982), o que esperavam de Pessoa e o que este tinha a oferecer eram coisas
diferentes: esperavam e aceitavam um discurso apologtico e doutrinrio a que o Poeta no se
encaixava; seu tom atrevido, insolente e messinico causou escndalo e suas afirmaes
foram consideradas absurdas e antipatriotas:
45
E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitvel aparecimento
do poeta ou poetas supremos desta corrente e da nossa terra, porque
fatalmente o Grande Poeta que este movimento gerar, deslocar para
segundo plano a figura at agora primacial de Cames (Pessoa apud
GALHOZ, 1982: 15).
De acordo com Galhoz (1982), esse perodo de mais ou menos dois anos em que
Fernando Pessoa, na sua juventude potica, colaborou com A guia, com seu profetismo,
simbolismo e hermetismo potico, contribuiu para a gestao do nascimento de uma nova
arte, a partir da necessidade de se tomar novos rumos. Surge, ento, Orpheu.
A proposta no foi bem recebida pela crtica nem pelos escritores da poca. Galhoz
(1982) salienta que o grupo de Orpheu era alvo de piadas, diagnstico de parania coletiva e
eram tidos como irresponsveis, adolescentes esnobes. Tudo isso, porque a novidade sempre
traz conflitos e incomoda em especial os grandes nomes de ento.
Orpheu, como j foi dito, no chegou ao terceiro nmero antes que o grupo se
dispersasse; entretanto, cada um saa da experincia mais amadurecido e tambm distanciado
do sonho comum de transformao.
Fernando Pessoa, s, amadurecido, realiza o melhor de seu fazer potico. Publica
Athena, veiculando um ideal de antiaristotelismo e um mundo no cristo, intelectualizado e
helenizado. Foram ao todo cinco nmeros em que se consolidam o melhor de Caeiro e Reis.
46
47
(1990)
chama
de
dramatis
personae,
que
possibilitaram
que Fernando Pessoa visse o mundo com os olhos daqueles que j o viram, dos que o vem e
dos que o vero. Nessa perspectiva, desmontava as coisas, a fim de conhecer-lhes seu interior,
seu funcionamento, para, depois, agrup-las, orden-las em busca do nada (que tudo)
(Moiss, 1999: 245).
Perrone-Moiss (1988: 345) complementa ao afirmar que Fernando Pessoa multiplica
o seu olhar em vrios outros para poder dar conta de todos os problemas filosficos que
afligem a sociedade moderna, herdeira da conflituosa cultura greco-judaica. Segundo a autora,
o Poeta, assim como os demais escritores, transforma em literatura no o mundo como o v,
48
mas o que considera que poderia ser melhor nesse mundo, porque o olhar do poeta deforma
o mundo para o desvendar, perde-o para recuper-lo mais ntido. Este tambm o jogo
dramtico de Fernando Pessoa. Moiss (1999: 244) afirma que o poeta se vale de mscaras
para esconder-se atrs delas para melhor revelar-se, mas revelando-se s avessas, ou antes,
indiretamente exigindo do leitor um trabalho de recomposio do caminho percorrido pelo
poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Isso
quer dizer que uma mscara/heternimo nos remete a compreender mais de Pessoa, mas, ao
mesmo tempo, leva-nos a outro enigma, outra mscara. De acordo com Galhoz (1985),
Fernando Pessoa criou, para cada um de seus heternimos mais importantes, uma biografia e
uma personalidade prprias dentro do contexto criativo/literrio. Assim, conheamos um
pouco dos trs heternimos de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e lvaro de
Campos.
2.3.2 Alberto Caeiro
Em carta ao amigo Adolfo Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935, alguns meses
antes de sua morte (30 de novembro do mesmo ano), Fernando Pessoa fala sobre o
nascimento de seus heternimos.
O primeiro deles Alberto Caeiro o mestre de todos os demais, inclusive de Pessoa
que veio ao mundo em 08 de maro de 1914, como nos conta Pessoa: acerquei-me de uma
cmoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de p, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espcie de xtase cuja natureza no
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim
(MOISS, 1998: p.59).
Depois desse arrebatamento da parte de Caeiro, Fernando Pessoa construiu sua
biografia: Alberto Caeiro nasceu em 1889, em Lisboa, mas o espao em que viveu e que
marca sua poesia o campo. Teve apenas instruo primria e viveu com os pequenos
rendimentos deixados pelo pai e a me, juntamente com uma tia-av. Tem estatura mdia,
aparentemente frgil. Morreu de tuberculose em 1915.
Perrone-Moiss (1988) apresenta Caeiro como uma possibilidade para Pessoa ser
menos infeliz, por isso considerado mestre, alm de ser o fundador do neopanismo,
movimento poltico e esttico, inspirado na Antigidade Clssica. Isso quer dizer que, ao
contrrio da viso subjetiva, crist, ocultista, triste de Fernando Pessoa-ortnimo, tem-se um
olhar cheio da claridade, da objetividade e da serenidade dos gregos com Alberto Caeiro.
49
Sua poesia reflete a Natureza, a qual sua fonte de inspirao. Deseja ser to natural
quanto os animais e as plantas. Por isso, o poeta do Olhar e no do pensar. Segundo ele,
Pensar estar doente dos olhos, isso quer dizer que para entender o mundo e as coisas no
podemos pens-los, mas olh-los, v-los como so.
Todavia, Caeiro paradoxal, visto que ao mesmo tempo em que deseja no pensar,
afirma que como um pastor, mas seu rebanho so suas idias: Olhando para o meu rebanho
e vendo as minhas idias, / Ou olhando para as minhas idias e vendo o meu rebanho. ,
portanto, pastor de idias e as olha como se fossem parte da Natureza.
2.3.3 Ricardo Reis
Pela cronologia do surgimento dos heternimos, em segundo lugar vem Ricardo Reis:
nasceu em 1887, na cidade do Porto; estudou em colgio de jesutas, um latinista por
educao alheia, e um semi-helenista por educao prpria (Pessoa, 1986: 98); expatriou-se
no Brasil desde 1919, pois no concordava com o novo regime, visto ser favorvel
monarquia.
Seu estilo clssico, alicerado na prpria cultura clssica, de inspirao horaciana.
Em suas Odes utiliza, conforme aponta Galhoz (1985: 23):
Linguagem arcaizante, por etimolgica, ou latinizante em vrios casos.
Temas de amor/melancolia, dialogando embora com as amadas, uma
filosofia entre epicurista e estica, evocando a beleza-efemeridade de cada
dia, falando da errncia-sombra da morte, dos deuses mortos tornados
smbolos.
50
discpulo de Caeiro, concebeu seu mundo como um universo corrodo pela irrealidade, onde
encontra a calma e desfruta da ausncia de si mesmo.
Por outro lado, Moiss (1998) afirma que o universo de Reis o de suas odes e no a
Natureza, que no se pensa. Seus poemas trazem pensamentos, sentenas primorosas e
ensinamentos perenes, porm, de acordo com Perrone-Moiss (1988: 339), marcadas por um
pessimismo mortal.
Refletem-se ainda em seus poemas as filosofias de que era adepto: o epicurismo e o
estoicismo, na busca do domnio sobre as paixes. Isso faz com que seja o poeta beira-rio,
como apresenta Moiss (1998: 63), que procura viver a vida sem pens-la e sem pensar-se,
sem sobressaltos, com tranqilidade e indiferena diante do espetculo do mundo.
2.3.4 lvaro de Campos
Nascido em Tavira, em 15 de outubro de 1890, engenheiro naval, alto, magro,
cabelo liso, monculo. Foi educado em um liceu e estudou engenharia mecnica e naval na
Esccia. Estudou latim com um tio padre.
Segundo Moiss (1998), o heternimo cientista, moderno, que vive cercado pela
multido, pela velocidade, pelas novidades tecnolgicas; interessa-se pelo tema lusitano do
mar, por isso o poeta beira-mar, que fala do rio que passa por sua aldeia; seu tom
pico, futurista e sensacionista, isto , tem seu olhar voltado, de acordo com Perrone-Moiss
(1988: 340), para as sensaes intensas, enrgicas, vibrantes da vida moderna, na tentativa
de decompor no as formas das coisas, mas as sensaes em relao s coisas.
Seu interior vive em constante conflito com o mundo moderno, suas mquinas, luzes e
engrenagens. Tem conscincia da loucura que o persegue, uma loucura lcida, resultado de
seu muito pensar, de perscrutar a alma humana.
O tdio, a nusea, o existencialismo, o transbordamento emocional so marcas de
lvaro de Campos, o que o aproxima dos poetas romnticos: o contraste entre o mundo
moderno e a nostalgia por um mundo que j no existe mais, de feies romnticas.
Moiss (1998) conclui a questo da heteronmia afirmando que, assim como Pessoa
carregou em si a capacidade de reproduzir-se em outros, os seus heternimos tambm
carregam em si essa capacidade dialtica: Fernando Pessoa se multiplica em heternimos,
estes, por serem fontes criadoras, podem originar sub-heternimos, os quais possuem a
mesma capacidade e assim por diante. Moiss (1998: 107) agrupa, ento, uma possvel
organizao dos heternimos a semelhana dos deuses da mitologia greco-latina:
51
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Quanto ao Estoicismo, foi uma das grandes escolas filosficas do perodo helenista,
fundada em torno de 300 a.C. De acordo com Blackburn (1997), um dos ideais de vida dessa
escola era a contemplao: colocar-se acima das preocupaes e emoes do cotidiano.
Novamente, a ataraxia est presente, assim como a indiferena em relao ao mundo. No
vale a pena fazer um esforo se o mundo obedece a uma determinada ordem, imutvel,
imparcial e inevitvel.
Caberia ao ser humano se manter sereno, para alcanar a paz do homem sbio:
indiferente pobreza, dor e morte, assemelhando-se assim paz espiritual de Deus
(ABBAGNANO, 2000: 128), ou seja, os esticos se tornam menos humanos e, assim como os
deuses, apticos em relao situao humana e aos problemas do mundo.
Ricardo Reis no epicurista ou estoicista de forma pura, no segue seus preceitos
fielmente, mas transmite pontos dessas filosofias em seus poemas. A primeira ode Mestre,
so plcidas- apresenta-nos quase que Ricardo Reis inteiramente:
Mestre, so plcidas
Todas as horas
Que ns perdemos,
Se no perd-las,
Qual numa jarra,
Ns pomos flores.
No h tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sbios incautos,
No a viver,
Mas decorr-la,
Tranqilos, plcidos,
Tendo as crianas
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...
beira-rio,
beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
No nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
55
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
No vale a pena
Fazer um gesto.
No se resiste
Ao deus atroz
Que os prprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma tambm.
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.4
56
alegrias na vida. Assim, no devemos nos envolver com os fatos, mas ficar beira-rio,/
beira-estrada. Isso reflete o ideal de contemplao e de indiferena, sem entrar nem no rio
nem no curso da estrada, mas observar, estar perto, a uma distncia que no comprometa, no
envolva aquele que observa. Dessa forma, a vida passa sem desassossegos, mas com leveza.
Por isso, as mestras so as crianas, que ensinam a brincar com a vida, sem ir a fundo nela,
preocupando-se apenas com o momento que esto vivenciando Tranqilos, plcidos, /
Tendo as crianas/ Por nossas mestras.
O sensacionismo aparece quando o eu-lrico convida seu interlocutor a ter os olhos
cheios/ De Natureza. O mundo aquilo que podemos depreender de nossos sentidos, que
podemos ver, tocar, cheirar. o olhar para a natureza que far com que se aprenda a deixar-se
levar pela vida. Por isso: Colhamos flores/ Molhemos leves/ As nossas mos/ Nos rios
calmos para aprender calma e entregar-se ao tempo sem medos, sentir-se parte do cosmos. E
ainda: Girassis sempre/ Fitando o sol, para se deixar levar pelo curso da vida, sem grandes
preocupaes para onde se vai.
De acordo com Garcez (1990), os poemas de Ricardo Reis apresentam gestos e aes
que no valem a pena serem feitos, mas tambm gestos a serem realizados. Como se a vida
fosse um grande jogo, em que ora nos so tiradas vrias coisas, ora nos so deixadas, mas
sempre sairemos perdedores. O que muda, contudo, o modo como jogamos, o modo como
encaramos a vida. O uso do presente do indicativo pode demonstrar uma realidade que precisa
ser enfrentada: so, perdemos, pomos, h, passa. A realidade est a, presente: o
tempo passa, a vida no nos d nada, envelhecemos. Apesar de dizer No vale a pena/ Fazer
um gesto, a soluo preencher o tempo, fazendo gestos inteis, como por flores numa jarra,
colher flores, molhar as mos nos rios; gestos estes que no traro grandes conseqncias,
mas apenas mais leveza para a vida, uma vez que no se pode mudar a ordem das coisas, nem
o mundo.
Outra ode que reflete a filosofia seguida por Ricardo Reis Vem sentar-se comigo,
Ldia, beira do rio5. Esse poema est estruturado em oito estrofes, de quatro versos cada.
No h, porm, uma regularidade mtrica, com versos que variam de cinco a dezoito slabas
mtricas. Mais uma vez, o eu-lrico se coloca margem dos acontecimentos para contemplar
o curso da vida. Dessa vez, sua interlocutora Ldia, uma de suas musas. A ela dirige seu
convite e expe suas idias, por meio de negaes (no, nada, nem, nunca, totalizando
dezesseis ao longo do poema) e gestos que no valem a pena serem feitos: enlaar as mos,
5
p.121.
57
cansar, gozar, amar, odiar, ter paixes, invejas, cuidados ou crer em algo. Tudo isso passa
com a vida e, para ele, mais vale saber passar silenciosamente/ e sem desassossegos
grandes.
Aqui recordamos a busca por uma vida tranqila, sem grandes paixes ou prazeres que
possam transtornar a alma. Por isso, aconselha que se amem tranqilamente, sentados ao p
um do outro, ouvindo correr o rio, colhendo flores: gestos que no trazem grandes mudanas
ao curso dos acontecimentos e nem comprometem aqueles que os realizam.
Essa temtica reaparece em outros poemas. S o ter flores pela vista fora 6 uma ode
de sete estrofes de quatro versos, sendo os dois primeiros decasslabos e os dois ltimos
hexasslabos, mais leves e com contedo que refletem essa leveza, arrematando o que foi dito
nos versos anteriores, por exemplo:
S o ter flores pela vista fora
Nas leas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.
(...)
Encontramos no poema indicaes para que vivamos de forma serena: ter flores pela
vista, seguremos quedas as mos, buscando o mnimo de dor ou gozo, lembrando a
irresponsabilidade infantil que encara a vida como um jogo sem maiores conseqncias,
brincando, Bebendo a goles os instantes frescos, Translcidos como a gua. A vida,
segundo o eu-lrico, deve ser plida, sem lembranas que comovam ou apego aos bens,
porque quando chegar a morte Quando, acabados pelas Parcas, formos, no teremos nada
que levar que nos pese, apenas rosas breves, sorrisos vagos e rpidas carcias isso
ser o melhor do que fomos.
J a ode A palidez do dia levemente dourada7 quatro estrofes de quatro versos
apresenta o que Ricardo Reis considerava pertinente no epicurismo, adaptando-o sua forma
de v-lo, a comear pela tranqilidade transmitida pela natureza, que v e de quem aprende
calma: o dia plido e levemente dourado, o sol de inverno e o frio leve. Eis uma
paisagem serena, amena e agradvel. A maioria dos verbos est no presente do indicativo,
, faz, treme, aqueo-me, fala, est, o que pode mostrar aquilo em que Ricardo
Reis tenta vivenciar a filosofia antiga de Epicuro.
6
7
p.122.
p.123.
58
p.123.
59
p.125.
p.125.
10
60
representada pela flor. Diante desse problema, Ricardo Reis prope que a maior sabedoria
aceitar e passar a vida com a inteno nica de durar. Faz, ento, uma comparao do ser
humano ao vidro. Enquanto estamos vivos, que saibamos ser transparentes como o vidro, que
nada retm, nada esconde, mas tudo mostra e concede viso de outros ((...) duremos,/
Como vidros, s luzes transparentes). Alm disso, no absorve a chuva triste, ou seja, os
momentos ruins, que tudo escorra. Como o vidro fica morno e reflete um pouco ao sol quente,
que experimentemos a vida de forma branda, sem desesperos ou apegos.
As odes O mar jaz; gemem em segredo os ventos11 e Antes de ns nos mesmos
arvoredos12 sugerem um questionamento sobre a pequenez e a fragilidade humana diante da
grandeza da natureza e da passagem do tempo. Na primeira, o espao a praia, com o mar, os
ventos, as ondas, a areia alva e brilhante sob o sol claro.
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
S com as pontas do tridente as vastas
guas franze Netuno;
E a praia alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro. (...)
Diante dessa grandiosa paisagem, o que seria o ser humano? Parecemos grandes para
ns mesmos, por nossa prpria tica, mas em relao imensido da natureza, no ficam
indcios de nossa existncia, como so apagadas pelas ondas as pegadas de quem caminha
sobre a areia da praia:
(...)
Se aqui de um manso mar meu fundo indcio
Trs ondas o apagam,
Que me far o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?
p.127.
p.127.
61
No queiramos ser mais do que somos, do que a vida nos concede. O exemplo a ser
seguido o da natureza, pois enquanto pensamos que somos grandes, ela mostra que existe
algo maior ainda: ela prpria e o Tempo, pois aquela sempre existiu, com suas rvores, folhas
e vento (Passou o vento, quando havia vento,/ E as folhas no falavam/ De outro modo do
que hoje) e este maior que qualquer um, a alta praia que apaga todas as marcas que
deixamos na areia de nossa existncia: Se aqui, beira-mar, o meu indcio/ Na areia o mar
com ondas trs apaga,/ Que far na alta praia/ Em que o mar o Tempo?.
Mais uma vez, na ode Tirem-me os deuses13, Ricardo Reis afirma no se importar
com Amor, glria e riqueza. Essa ode est organizada em oito estrofes de quatro versos,
com metros variados. Entretanto, os dois primeiros so os mais curtos, o terceiro mais longo e
o ltimo um pouco menor que o anterior. O eu-lrico fala do que lhe pode ser tirado e o que
lhe basta. Isso apresentado sempre nos dois primeiros versos das estrofes, por isso, a
conciso, o que basta:
Tirem-me os deuses
Em seu arbtrio
(...)
Pouco me importa
Amor ou glria
(...)
O resto passa,
E teme a morte.
(...)
Essa a si basta,
Nada deseja
(...)
13
p.128.
62
conscincia de existir o bastante. Seu nico desejo, portanto, ver sempre claro/ At deixar
de ver.
O desejo de conhecer, saber, ver tambm abordado em Melhor destino que o de
conhecer-se14. Aqui, Ricardo Reis cria um jogo entre o saber e o ignorar. Quer saber se
nada, se possui poder para vencer a morte, representada pelas trs Parcas; no quer ignorar
ser nada Nada dentro de nada e nem a incapacidade de superar a morte. Essa
sabedoria para ele um poder conferido pelos deuses, graa de conhecer-se e saber que no se
pode nada contra a morte (J me dem os deuses/ O poder de sab-lo). Quer, portanto,
gozar daquilo que pode, da beleza que existe e que pode ver, de forma passiva, contemplativa,
por seus olhos: E a beleza, incrivel por meu sestro/ Eu goze externa e dada, repetida/ Em
meus passivos olhos,/ Lagos que a morte seca.
Ver e gozar a vida enquanto no chega a hora do barqueiro o que Ricardo Reis
prope no poema Tuas, no minhas, teo estas grinaldas15. As grinaldas, por serem feitas
com flores, sugerem a transitoriedade, a efemeridade da vida, mas tambm sua beleza e
alegria; por ser uma coroa, um crculo, pode ser smbolo da eternidade. Se o melhor gozo for
ver, que, coroados mutuamente, vejam o que deixar de existir e esperem o que h de vir:
Coroemos pois uns para os outros,/ E brindemos unssonos sorte.
A ode Dia aps dia a mesma vida a mesma16 retoma a idia de que no vale a pena
fazer esforo, porque a vida passa e passamos com ela, quer faamos um gesto ou no, ou
seja, o que deve acontecer, acontecer independente de nossa ao: os fatos se sucedero, os
frutos apodrecero colhidos ou no, o fado nos encontrar de qualquer forma, quer o
procuremos/ Quer o speremos. Essa forma estica de ver o mundo impele ataraxia, vida
contemplativa, indiferente realidade cotidiana, que no ser mudada por nossa ao, uma
vez que o Destino alheio e invencvel a qualquer atitude que tomemos ou no.
A aceitao tambm tema de No mundo, s comigo, me deixaram17, ode de seis
versos, seguindo o esquema de decasslabos alternados com hexasslabos:
No mundo, s comigo, me deixaram
Os deuses que dispem.
No posso contra eles, o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quanto
O vento cessa, ergue-se.
14
p.133.
p.134.
16
p.133.
17
p.136.
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Ao afirmar que o que me deram/ Aceito sem mais nada, o eu-lrico cumpre o
destino que os deuses lhe impuseram sem fazer nada contra isso. A metfora do trigo, que se
baixa com o vento e quando este cessa, ergue-se, pode sugerir que o eu-lrico enfrenta os
momentos de dificuldades e alegrias de forma tranqila, resignando-se vontade dos deuses.
Para Ricardo Reis, como vimos, no vale a pena fazer nada contra a ordem vigente,
nem se envolver com as situaes que a vida nos apresenta no dia-a-dia. Por isso, a apatia
sua companheira e, com isso, considera sua existncia como frias, na sempre ociosidade,
como podemos ler em Azuis os montes que esto longe param 18. Os montes que aparecem
no poema so azuis, talvez porque quem os observa esteja longe ou porque refletem sua nsia
em estar longe tambm; a cor azul pode indicar amplido, profundidade, divindade ou aquilo
que Ricardo Reis deseja atingir: a placidez. Entre os montes e quem os observa est o campo,
com toda a sua multiplicidade de cores (Ou verde ou amarelo ou variegado) como a vida.
Alm disso, o campo ondula incertamente ao vento ou brisa, o que pode fazer referncia
aos momentos de dificuldades e bonana pelos quais passamos. Esse momento para ele de
extremo conflito, pois se considera dbil como uma haste de papoila, ou seja, se encontra
desarmado, vulnervel, fragilizado. Nada quer: nem pensar nem agir, assim como os campos
que se entregam ao ciclo natural da vida, e, sem esforo, deixa-se levar pelas frias em que
existe.
A leitura que apresentamos at aqui foi uma forma de se ler Ricardo Reis, baseada nos
conhecimentos do leitor atual, tendo como respaldo um conjunto de outras recepes j feitas
da obra de Ricardo Reis, bem como as nossas impresses pessoais e a participao enquanto
sujeito-leitor. Percebemos que Ricardo Reis, em relao sua filosofia de vida, demonstra ter
um conhecimento amplo do epicurismo e do estoicismo e que o efeito que tais idias
causaram em si foi to importante que as incorporou sua vida, tendo em vista, de acordo
com Iser (1999), que o efeito algo a ser experimentado. Dissemos, anteriormente, que
transmite pontos dessas filosofias, como a ataraxia, a indiferena, a impassibilidade diante do
tempo, da morte, a inutilidade de se fazer um gesto, a indiferena dos deuses, a manuteno
da ordem das coisas. Da, podemos imaginar um homem sbio, que busca o conhecimento,
uma conscincia lcida de si e das coisas, mas guarda tudo para si, no coloca a servio de
ningum. O que partilha em seus poemas so os gestos inteis que afirma valerem a pena
serem feitos; gestos mais estticos que plenos de sentido.
18
p.136.
64
A rosa flor perecvel e pode indicar a brevidade da vida, tambm sugerida pela forma
curta do poema. Mas a figura da rosa pode ter sido usada para mostrar que, apesar de efmera,
perfeita e bela e essa beleza deve ser aproveitada enquanto existe. Ele diz Rosas que se
19
p.120.
65
apagam/ Em fronte a apagar-se/ To cedo!, como se as rosas fossem uma metonmia de todo
ser vivo e como as rosas se vo logo, assim tambm passa aquele que a coloca na fronte. A
coroa smbolo da perfeio e da participao na eternidade, mas para Ricardo Reis apenas o
gesto de ser coroado de rosas e folhas breves basta, suficiente e tem fim em si mesmo.
Em To cedo passa tudo quanto passa!20, outro poema curto de seis versos, h um
questionamento sobre o que fazer diante da passagem do tempo, uma vez que tudo passa
muito rpido e conhecemos to pouco da vida e nada da morte Tudo to pouco! Nada se
sabe, tudo se imagina. A sada circundar-se de rosas, amar, beber e calar, ou seja,
aproveitar do pouco que a vida oferece. Termina, contudo, o poema afirmando que O mais
nada, como se no houvesse esperana.
A natureza tambm reflete essa passagem do tempo, como vemos em Quando, Ldia,
vier nosso outono21, e aconselha sua interlocutora, Ldia, a no pensar na primavera que h
de vir, que no ser mais deles, ou seja, o futuro, nem se ater ao estio, de quem somos
mortos, o passado que viveram, que este no existe mais. Seu conselho que vivam o que
fica do que passa, o presente. Que aproveitem o tempo em que vivem, mesmo que sejam
momentos em que a juventude tenha passado e sintam a morte se aproximar, pois isso que
os torna sempre diferentes a cada tempo (O amarelo atual que as folhas vivem/ E as torna
diferentes).
Ao pensar no passado, vemos o que no vemos mais; ao olhar para o futuro, tentamos
ver o que no se pode ver. Em Uns, com os olhos postos no passado 22, o eu-lrico afirma
que Este o dia,/ Esta a hora, este o momento, isto/ quem somos, e tudo, de forma que
nossa segurana seja posta no presente, porque diante do tempo somos nulos e nossa vida
dura muito pouco. Por isso, Colhe/ O dia, porque s ele.
Entretanto, ao mesmo tempo em que aconselha que se colha o dia porque nada somos
mais que o presente, diz que no vale a pena fazer um gesto; gozar ou no gozar faz o mesmo
efeito, porque passamos como o rio23 e mais vale passar sem desassossegos grandes. Alm
disso, no h esperanas, uma vez que Igual o fado, quer o procuremos, / Quer o
speremos24. Tambm fala do desapego ao presente e s situaes da vida, para que no se d
ateno a nada para que no entre nada na memria Colhe as flores mas larga-as/ Das mos
20
p.133.
p.135.
22
p.137.
23
p.121.
24
p.133.
21
66
mal as olhaste25. Para Ricardo Reis, conforme afirma Tringali (1995), nada vale a pena e
refuta, pois, Horcio nesse sentido, de que tudo passa, pouco importa o que se faa.
O ideal da aurea mediocritas ou o meio-termo dourado, porm, aparece em vrias
odes de Ricardo Reis. Nada esperar da vida e aceitar o que dela vier tematizado em Quero
ignorado, e calmo26. O projeto de vida de Ricardo Reis se resume a viver como
desconhecido, ignorado, e, por isso, calmo, nico dono de si prprio e de seus dias:
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e prprio
Por calmo, encher meus dias
De no querer mais deles.
(...)
Essa seria sua soluo para evitar o que diz na segunda estrofe: a riqueza que irrita a
pele, no traz benefcios ao ser humano, ou a fama que ilude a pessoa. Quem se fia apenas
nesses elementos no percebe que o sol passa e vem a noite, como coloca na terceira estrofe:
Aos que a felicidade/ sol, vir a noite, aos que no percebem que riqueza e fama so
passageiras, viro tempos difceis e de tristezas. Mas, queles que se do por satisfeitos com o
que a vida lhes oferece, Tudo o que vem grato.
Por isso, no vale a pena ajuntar riquezas, gastar tempo com muito trabalho ou ansiar a
fama, porque A obra cansa, o ouro no nosso e a fama ri-se de ns, como diz a ode
Cuidas, nvio, que cumpres, apertando27, que acrescenta que a vida basta, mesmo sendo
curta e nos dando pouco.
Mais um exemplo do ideal do meio-termo dourado a ode Segue o teu destino28,
estruturada em cinco estrofes, de cinco versos, em redondilha menor, o que confere ao poema
um certo ritmo:
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto a sombra
De rvores alheias.
A realidade
Sempre mais ou menos
Do que ns queremos.
25
p.124.
p.137.
27
p.125.
28
p.132.
26
67
S ns somos sempre
Iguais a ns-prprios.
Suave viver s.
Grande e nobre sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
V de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Est alm dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu corao.
Os deuses so deuses
Porque no se pensam.
Nessa ode, encontramos novamente os conselhos do eu-lrico, expressos por meio dos
verbos no presente do indicativo, em tom de imperativo: segue, rega, ama, deixa,
v, imita. Isso porque o eu-lrico recomenda o cuidado com o que cada um tem, com o
que a vida lhe deu: o destino, as plantas, as rosas. Cada um cuide do que seu, porque o
resto sombra/ De rvores alheias. No poderemos ter tudo o que almejamos, porque a
realidade Sempre mais ou menos/ Do que ns queremos e a nobreza, segundo ele, viver
simplesmente, de forma simples, sem grandes iluses, sonhos, ambies, desejos, bem como
viver, simplesmente viver, sem interrogar a vida e imitando os deuses que no pensam quem
so: apenas so.
Tringali (1995) faz um estudo sobre o cdigo do vinho em Horcio e o cdigo do
vinho em Ricardo Reis e conclui que, ao contrrio de Horcio que bebe o vinho seguindo um
ritual quase eucarstico, com regras, amigos, conversa, msica, dana, flores, em dias e
horrios certos, Ricardo Reis no v sentido maior em beber. Pouco importa beber ou no,
uma vez que isso no mudar o curso da vida.
Isso pode ser percebido na ode Sbio o que se contenta com o espetculo do
mundo29, em que o eu-lrico
acontecimentos e observa sem tomar parte. Beber no traz qualquer sentido religioso, porque
ao beber nem recorda/ Que j bebeu na vida, uma vez que o eu-lrico no acredita em nada,
nem no passado, nem no presente, nem no futuro. Diante disso, o vinho no resolve nada e
29
p.124.
68
pouco importa beber ou no porque a vida/ Passa por ele e tanto/ Corta flor como a ele.
Segundo o eu-lrico, o vinho serve para esquecer a passagem das horas e, portanto, no
importa se dia ou noite, se depois do pr-do-sol ou antes de seu nascer. O que importa
beber tranqilo, sozinho, desejando que a morte no lhe chegue logo.
A conversa, segundo Tringali (1995), no festim de Horcio, era incentivada pela
ingesto do vinho de forma moderada, fazendo com que os amigos falassem sem medo do que
sentiam,
recordassem
momentos
vivenciados,
discutissem
temas
diversos.
Beber
demasiadamente era prejudicial conversao, porque sob o efeito do vinho viriam as brigas,
a maledicncia e as revelaes de segredos. Ricardo Reis, porm, inicia seu poema Bocas
roxas de vinho30, descrevendo um quadro em que o eu-lrico e Ldia estariam deixados
sobre a mesa, com as bocas roxas, coroados de rosas, nus. Nessa cena de embriaguez, no h
espao para a conversa, mas quer que fiquem mudos,/ Eternamente inscritos/ Na conscincia
dos deuses. Podemos perceber nesse poema a falta de perspectiva de Ricardo Reis diante da
vida: incomoda-lhe aqueles que tentam construir algo em suas vidas; o que deseja deixar-se
ir no rio das coisas, embriagado e mudo, impassvel diante da existncia.
Terminamos a leitura de Horcio em Ricardo Reis com a intertextualidade existente
entre a Ode 3, 30 (Exegi monumentum are perennius), de Horcio, e a ode Seguro assento na
coluna firme31, de Ricardo Reis. Ambas discorrem sobre a perenidade da obra literria em
relao passagem do tempo. Horcio diz que sua obra um monumento mais perene que o
bronze e mais alto, mais imponente e importante que a construo das pirmides, de tal forma
que nada pode destru-la:
Exegi monumentum are perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod nom imber edax, non Aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum. 32
(...)
Salienta que ao morrer, uma parte dele continuar viva em seus versos, mesmo sendo
um homem de origem humilde, filho de escravo liberto e nascido no interior, na cidade de
30
p.129.
p.132.
32
Acabei um monumento mais perene que o bronze/ E mais alto que a construo real das pirmides,/ De tal
sorte que no possam destru-lo, nem a chuva voraz nem/ O Aquilo desenfreado, nem a srie/ Inumervel dos
anos e a fuga das estaes (TRINGALI, D. Horcio, poeta da festa: navegar no preciso. So Paulo: Musa
Editora, 1995, p.174).
31
69
Vensia. Alcana fama e glria e pede que seja coroado de louros em honra a Apolo pelo que
lhe aconteceu e acontecer.
Ricardo Reis tambm apresenta seus versos como algo perene, durvel, coluna
firme:
Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e arte o mundo
Cria, que no a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.
Todavia, ele no diz que seus versos ficaro para a posteridade, mas ele prprio que,
absorvido por seus versos, fixo, contemplando os reflexos do mundo, molda-o por meio da
arte e no teme o tempo nem o esquecimento, o influxo inmero futuro/ Dos tempos e do
olvido. Como uma placa, em que uma imagem exterior gravada e ali permanece, a arte, a
poesia tambm so capazes de captar um instante, um reflexo da realidade exterior deix-la
preservada, durando nela.
Se o texto, de acordo com Iser (1999) deixa pausas para promover e regular a
interao entre texto e leitor, chamadas de lugares vazios, o que fizemos foi preencher essas
lacunas com um sistema diferenciado daquele que o texto apresenta, isto , os poemas de
Ricardo Reis no falam explicitamente de Horcio, mas sugerem essa ligao tanto pelos
temas abordados quanto pelo fato de ter escolhido trabalhar com odes. O dito, o que est
explcito no texto que nos leva a essa concluso e nos estimula a ir em busca do no-dito, ou
seja, de que forma se d a relao Ricardo Reis-Horcio nas odes do heternimo. Podemos
afirmar, por fim, que Ricardo Reis foi um leitor de Horcio, de quem conheceu a obra, aceitou
o que lhe era transmitido por ela, atualizou conforme suas potencialidades e vivncia
imaginativa, foi influenciado pelas idias veiculadas e assimilou muitas delas a seu universo
vivencial.
3.2.3 Religio e liberdade
Quando falamos sobre a religio em Ricardo Reis pensamos em paganismo. Embora
os deuses pagos apaream em seus poemas, no podemos afirmar que Reis seja um pago
autntico, quando ele mesmo afirma ser um pago da decadncia, longe daquele tempo em
70
que essa era a religio seguida oficialmente por gregos e romanos. Alm disso, o heternimo
se declara epicurista, mas Epicuro era materialista e ateu; logo, podemos concluir que Ricardo
Reis se vale das figuras da religio greco-romana como ornamento, como recurso retrico em
seus poemas, e no como um princpio religioso de fato.
De acordo com Tringali (1995), Ricardo Reis seria filiado, a seu modo, religio
olmpica, que se difere da saturniana por no crer na transcendncia, nem no misticismo, mas
os deuses esto presentes na natureza, nas coisas e nos seres, e todos vivem sob o
determinismo e o fado. O saturnismo, religio de Horcio, era cheio de mistrios e mais
espiritualista e crente em uma Providncia Divina e na prestao de contas aps a morte. A
religio olmpica era um culto mais exterior, oficial, sem muitas exigncias para aqueles que
lhe eram adeptos.
Segundo Ricardo Reis, os deuses saturnianos so desterrados, matria vencida,
inteis foras, despeitadas runas, como podemos ler na ode Os deuses desterrados33.
Aqui, o eu-lrico diz que esses deuses vm espreitar a vida no crepsculo, como que s
escondidas, e trazer sentimentos falsos, suscitar dores e cansaos que tiram a alegria, e tentar
convencer de que existe algo alm da matria, por serem espirituais:
(...)
Vm ento ter conosoco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
(...)
Vm, inteis foras,
Solicitar em ns
As dores e os cansaos,
Que nos tiram da mo,
Como a um bbado mole,
A taa da alegria.
(...)
Para o eu-lrico, o mundo o que se v e apalpa e nisso consiste a crena nos deuses
olmpicos, foras e elementos da natureza. Por isso, nada resta aos deuses saturnianos alm de
chorar o lugar que lhe foi roubado pelos olmpicos. Assim diz o eu-lrico nesse poema:
(...)
Hiperion no crepsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
33
71
Diante disso, mesmo no tendo certeza do que certo Seja qual for o certo , no
considera prudente confiar inteiramente numa f sem causa, reforando sua teoria de que
cr naquilo que pode ver, sentir: nos deuses que esto nos campos, no cu, nas coisas e nos
seres e no pe sua f em algo obscuro e vago.
34
35
p.128.
p.137.
72
A materialidade dos deuses retratada na ode O deus P no morreu 36, tanto pelo
contedo quanto pela estrutura formal. Temos trs estrofes que apresentam um crescente
nmero de versos, sendo, todos eles, hexasslabos: a primeira, que fala do deus P, tem sete
versos; a segunda, sobre Cristo e o sobrevivente P, com oito versos; a terceira, sobre os
deuses antigos e sua presena na natureza, dez versos .
Para o eu-lrico, os deuses no pereceram ante a religio crist, com seu deus triste;
Cristo seria um deus a mais,/ Talvez um que faltava. Temos, ento, a descrio de onde os
deuses so encontrados: Apolo, no sol, com seus sorrisos que mostram os campos, ou os
peitos nus de Ceres; e o deus P, que aparece onde quer com o som de sua flauta. A presena
dos deuses reforada na terceira estrofe, em que o eu-lrico afirma que Os deuses so os
mesmos,/ Sempre claros e calmos,/ Cheios de eternidade/ E desprezo por ns, ou seja, os
deuses continuam presentes na natureza e sempre estaro l, Trazendo o dia e a noite/ E as
colheitas douradas, no por providncia divina, mas por si mesmos, porque os deuses no se
importam com os seres humanos.
Para o heternimo, somos donos de ns-mesmos, como podemos ler em Da nossa
semelhana com os deuses37, e, exilados nessa existncia, possuindo a vida, como presente
de Jove ou Jpiter, que saibamos viver altivamente, enquanto o fatal rio escuro no nos
alcana. Se at sobre os deuses pesa o Destino (Como acima dos deuses o Destino/ calmo
e inexorvel), que possamos construir para ns o nosso prprio destino Acima de nsmesmos construamos/ Um fado voluntrio de forma que nada nos oprima nem nos
manipule, para que sejamos donos de nosso futuro e senhores de nossas decises:
(...)
Que quando nos oprima ns sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso p entremos.
Dessa forma, teremos a iluso de que somos livres, como os deuses do Olimpo se
pensam livres; o que se apresenta em S esta liberdade nos concedem38. Aqui, o eu-lrico
aponta que existem os deuses por cremos neles, afinal, submetemo-nos ao seu domnio por
vontade nossa e pensamos ser livres como os deuses o so. Sobre eles pesa tambm o eterno
fado, assim como sobre os homens, mas eles no pensam nisso e ns, seguindo seu exemplo,
36
p.121.
p.125.
38
p.126.
37
73
tambm no devemos nos preocupar com o que nos espera, mas devemos seguir nossas vidas
e construir o nosso futuro, Porque s na iluso da liberdade/ A liberdade existe. O eu-lrico
usa uma comparao para falar dessa liberdade que temos de construir nossas vidas: Como
quem pela areia/ Ergue castelos para encher os olhos, o que pode indicar a busca desse fazerse como os deuses, apesar de que erguer castelos de areia um gesto intil, frgil, mas que
enche os olhos, traz a iluso de que estamos imitando os deuses, de que podemos ser criadores
e isso nos satisfaz e, quem sabe, agradar aos deuses E os deuses sabero agradecer-nos/ O
sermos to como eles.
Apesar de materialista, Ricardo Reis reconhece a existncia de algo imperecvel: a
alma; compreende que a matria passa enquanto a alma livre. isso que vemos em Aqui,
Neera, longe39, em que a musa Neera e o eu-lrico se encontram longe dos homens e das
cidades, no campo, portanto, onde no h paredes, casas, muita gente, podem se sentir livres:
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ningum nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres. (...)
Essa liberdade, contudo, no plena porque Nos tolhe a vida o corpo/ E no temos a
mo/ Onde temos a alma, pois o esprito est ligado matria, ao corpo, que se gasta com
o passar do tempo. Apesar disso, no campo, no h outra forma de priso alm da vida, e
pensar nisso a nica coisa que pode nos prender. O eu-lrico orienta: deixemo-nos crer/ Na
inteira liberdade/ Que a iluso que agora/ Nos torna iguais aos deuses, de forma que
aproveitemos essa liberdade, sem pensar, pois isso nos faz semelhantes aos deuses, que
tambm no so inteiramente livres.
No entanto, para Ricardo Reis, nada faz sentido, nem mesmo a alma, e tenta entender
o que rege o mundo a partir do que v e ouve na natureza. Vejamos a ode Nos altos ramos de
rvores frondosas40:
Nos altos ramos das rvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
39
40
p.126.
p.135.
74
Nesse poema, o eu-lrico medita sobre a vida olhando para a floresta e ouvindo o
barulho do vento nos ramos altos das rvores, como se l em cima a vida estivesse
acontecendo, independentemente do que sente ou pensa Assim no mundo, acima do que
sinto/ Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma , e est impregnada de natureza formando
um ciclo da existncia. Todavia, esse ciclo est acima do que pode entender, sentir; por isso,
no v um sentido maior para tudo isso (E nada tem sentido), como se a existncia no
significasse nada e o nascer e o morrer fossem apenas conseqncias do soprar do vento.
O fato de Ricardo Reis remeter seus poemas a um outro tempo, o da civilizao grecolatina, leva o leitor a ter uma experincia com a literatura clssica, com seus motivos
temticos, deuses, filosofias. Ao aceitar essa possibilidade, o leitor precisa trabalhar com a
iluso, para que possa mergulhar no texto e este fazer sentido para ele, converter-se em uma
realidade experiencivel. No caso, para sentir esse efeito, primeiramente, Ricardo Reis
precisou se transportar para uma vida diferente e transmitir isso, por meio dos poemas, aos
leitores, que, por sua, vez, enriquecem seu conhecimento de mundo ao entrar em contato com
as odes clssicas de Reis.
3.2.4 A mulher e o amor em Ricardo Reis
As musas de Ricardo Reis, assim como as de Horcio, so Ldia, Cloe e Neera.
Horcio, porm, canta e ressalta as belezas e as virtudes das mulheres de segunda classe: a
criada, a escrava, a liberta ou a libertina. Tringali (1995) explica que as mulheres de primeira
classe, isto , as mulheres nascidas livres, casadas, senhoras da casa e filhas de boas famlias,
tinham uma vida muito restrita ao lar, sem estudos, pois a elas cabia zelar pela santidade e
perpetuao familiar. s mulheres de segunda classe era permitido se instruir, cantar, danar,
tocar instrumentos, o que lhes fazia malvistas pela sociedade. Alm disso, a escrava era um
objeto, a libertina dispunha como bem queria de sua vida e costumava trabalhar como criada
ou prostituta. A prostituio, ao contrrio dos dias atuais, era vista como uma proteo
instituio familiar, porque da esposa se exigia decoro e recato, enquanto os prazeres eram
satisfeitos com as prostitutas, de forma que o lar ficasse preservado. Os versos de Horcio so
dedicados s mulheres de segunda classe porque a nobreza reside na forma de se viver o amor
e no na nobreza de nascimento da mulher. Entre suas amadas temos:
75
como se o amor exigisse dele mais do que pode dar; como se tivesse o dever de
estar aprisionado a algum. Dessa forma, no quer amar e nem quer que algum o ame,
porque isso tambm exigiria algo de si. Talvez, para ele, o amor tire a esperana e reduza o
sentimento, enquanto a liberdade uma forma de cultiv-la.
41
p.121.
p.129.
43
p.126.
44
p.133.
45
p.135.
42
76
Por isso, Ricardo Reis se vale de figuras femininas, mas, diante delas, sua postura de
indiferena. Para ele, o amor uma sombra, incerteza, exige que aquele que ama saia da
superfcie, mergulhe no mar que o outro e deixe que a recproca acontea. Ricardo Reis quer
apenas a superfcie, uma vez que o prazer vem de contemplar, ver, conhecer a realidade
externa das coisas, a beleza externa dada, repetida em seus olhos, lagos que a morte seca.
Junto de Ldia, como salientamos, emudece. Em Prazer, mas devagar 46, podemos
perceber o ideal epicurista da busca pela felicidade e o prazer, mas o prazer moderado,
cuidadoso, que no perturbe a alma, de forma que a sorte no lhes seja tirada. Que o prazer
seja escondido, embora seja considerado um depredando pomo, algo que j est em
depreciao, desvalorizado.
A frieza de afetos o ideal de Ricardo Reis para alcanar a liberdade dos deuses. No
s quem nos odeia ou nos inveja47 apresenta as restries que as paixes causam: o dio, a
inveja e o amor so opressores, de forma que aquele que no possui esses sentimentos e vive
o desapego, tem tudo tem a liberdade: Que os deuses me concedam que, despido/ De
afetos, tenha a fria liberdade/ Dos pncaros sem nada. Alm disso, nesse poema o eu-lrico
retoma o ideal do meio-termo dourado, a simplicidade e despojamento, estendidos at o
sentimento e o desejo. Esse desapego o que nos faz semelhantes aos deuses: Quem quer
pouco, tem tudo; quem quer nada/ livre: quem no tem, e no deseja,/ Homem, igual aos
deuses.
Para Ricardo Reis no h amor:
Ningum a outro ama, seno que ama
O que de si h nele, ou suposto.
Nada te pese que no te amem. Sentem-se
Quem s, e s estrangeiro.
Cura de ser quem s, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrers avaro
De penas.48
46
p.133.
p.135.
48
p.136.
47
77
Mesmo ao som dos gritos da mulheres, do rudo das casas em fogo, dos saques, das
mortes de crianas, continuaram a jogar:
(...)
Quando o rei de marfim est em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irms e das mes e das crianas?
Quando a torre no cobre
49
p.129.
78
Segundo Garcez (1990: 36), o jogo de xadrez uma sada para a guerra catica,
sangrenta e dolorosa que se d na realidade. Por meio do xadrez, jogo organizado, com regras,
embora no previsvel, a paz fruto da ordem e o jogo pode indicar uma prefigurao do
paradisaco, lembrando que Ricardo Reis prope que tenhamos as crianas por nossas
mestras, como j apresentamos anteriormente.
Mesmo diante do perigo, quando sobre o muro/ Surja a sanhuda face/ Dum guerreiro
invasor, ainda nesse momento haja tempo para o jogo dos grandes indifrentes. Segundo o
eu-lrico, essa histria para aprendermos como passar a vida com calma, a exemplo de
Epicuro, lido a seu modo (De acordo com ns-prprios que com ele), e dos jogadores de
xadrez, que deixam de lado o que srio e grave porque da vida nada se leva, nem a glria, a
fama, o amor, a cincia, a vida, apenas a memria de um jogo bem jogado. O jogo nada
pesa por ser apenas brincadeira, no nada, mas capaz de prender a alma toda. E quando
a guerra, a ptria ou a vida chamar, deixe que em vo nos chamem, para que a se possa
aproveitar da leveza e da indiferena do jogo:
(...)
Ou perto ou longe, a guerra e a ptria e a vida
Chamam por ns, deixemos
Que em vo nos chamem, cada um de ns
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferena.
Ao contrrio de Horcio, que utiliza seus poemas para a instruo e para agradar, a
servio do Imprio Romano, e que pe em sua poesia esse amor sua terra de forma crtica,
sem defender a luta por poder e interesses particulares (TRINGALI, 1995: 53), Ricardo Reis
prefere a indiferena, as rosas ptria. que o podemos perceber em Prefiro rosas, meu
amor, ptria50, em que salienta sua escolha pela beleza exterior, a esttica, que enche os
olhos, deixando de lado assuntos que lhe possam perturbar o esprito, prender a alma toda. E
no s isso, prefere magnlias glria e virtude. Para ele no existe virtude, pois nada
50
p.131.
79
vale a pena, nem o gesto bom nem o ruim. Espera que a vida passe por ele, sem a inteno de
deixar-se transformar pelos acontecimentos, mas permanecer o mesmo que eu fique o
mesmo , uma vez que para ele j nada importa/ Que um perca e outro vena porque o
ciclo da vida, das estaes, dos dias e das noites continuar a existir, independentemente das
batalhas dirias que os homens travam. O eu-lrico, como a natureza, no quer ser atingido
pelas coisas que os humanos/ Acrescentam vida; o que lhe podem acrescentar na alma?
Nada, novamente a idia de que nada vale a pena, nem fazer nem deixar de fazer; apenas a
indiferena instigada (o desejo da indifrena) e, certo, de fato, o passar do tempo (E a
confiana mole/ Na hora fugitiva), em que deposita uma confiana mole, o que sugere
falta de perspectiva, de ao ou ainda uma entrega de si mesmo.
Diante disso, o heternimo no se sente parte de uma nao, de um povo e se sente
desterrado, estrangeiro onde quer que esteja. Na ode Ldia, ignoramos. Somos
estrangeiros51, essa idia que refora: a de que ignora o mundo que est a sua volta e se
sente estrangeiro em qualquer parte onde esteja ou more, onde tudo alheio, no lhe diz
nada:
Ldia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.
Ldia ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo alheio
Nem fala lngua nossa.
(...)
p.136.
80
mas exaltando o Imprio Romano, Ricardo Reis faz um didatismo s avessas diz no se
sentir parte de nada e, por isso, no h lugar em que se sinta acolhido, sempre estrangeiro
para o mundo e para si mesmo, e ensina, por meio de suas odes, a cultivar essa indiferena
diante dos problemas e do tumulto do mundo. O heternimo pessoano traz para seus
poemas valores e conceitos pr-estabelecidos como importantes para o ser humano, por
exemplo, o amor, a ptria, a religio, a famlia, para poder neg-los. Iser (1999) destaca que
as potncias de negao se constituem lugar de participao do leitor, assim como os lugares
vazios. No entanto, as potncias de negao fazem com que o leitor reveja seus conceitos e
possa olhar para elementos familiares sob um novo ponto de vista e construir novos sentidos
para aquilo que foi negado, pois, com a negao de um valor pr-determinado, aparece um
lugar vazio, que precisa ser re-significado pelo leitor.
3.2.6 O barco escuro no soturno rio
A morte certa e inevitvel. Com esse pensamento, Ricardo Reis faz da morte um dos
eixos centrais de seus poemas, reforando a idia de que o tempo no perdoa e a vida curta
demais. Mesmo assim, a morte no apresentada como uma forma de ensinar a viver, porque
mesmo a morte no tem sentido para Reis. Convicto de que ela chegar dia ou outro, declara
que o melhor no fazer nada, permanecer indiferente porque a morte o buscar de qualquer
forma. No vincula, portanto, o motivo da morte ao carpe diem horaciano, uma vez que
viver durar.
Vrias imagens aparecem nas odes para evocar a idia da morte: o barqueiro
sombrio, barco escuro no soturno rio, ptria de Pluto, a abominvel onda, o bolo
que se d a Caronte, o barqueiro sombrio, hora do barqueiro, metforas mitolgicas do
momento em que finda uma viagem a vida e se inicia outra at o reino dos mortos.
Ricardo Reis considera o ser humano como insignificante, um nada, por isso, em
Ao longe os montes tm neve ao sol52, o eu-lrico fala a Neera que nada lhes falta porque
nada so e nada esperam. A figura dos montes com neve ao sol pode remeter ao ser humano
que tambm tem frio ao sol, que mesmo vivendo sabe e espera o fim. Mesmo sabendo
disso, o eu-lrico convida sua musa a gozar o momento com solenidade e alegria leve,
aguardando a morte/ Como quem a conhece, ou quem j conhecia o seu destino.
52
p.122.
81
J na ode As rosas amo dos jardins de Adnis53, declara seu amor s rosas por sua
beleza exterior e sua efemeridade em o dia em que nascem,/ em esse dia morrem , tendo
sua vida a durao de um dia e a experincia da luz, no das trevas:
(...)
A luz para elas eterna, porque
Nascem nascido j o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visvel.
(...)
Do exemplo das rosas, Ricardo Reis formula a idia de que faamos nossa vida um
dia, sem pensar no que pode nos acontecer no amanh, inscientes, ignorando o futuro
volutariamente, aproveitando o dia, a luz que temos, sem preocupaes maiores porque
existe apenas a certeza de que h noite antes e aps/ O pouco que duramos.
Nessa perspectiva, que, em Olho os campos, Neera54, o eu-lrico afirma j sentir o
frio da sombra/ Em que no terei olhos. Para ele, a morte deixar de ver, de sentir A
caveira ante-sinto/ Que serei no sentindo e mergulhar, para continuar com as metforas
que Reis utiliza, em um mar desconhecido para ele, pois ainda no o viu nem sentiu; onde o
que incgnito ministrar o seu futuro. Nesse momento, chora por sentir-se Sbdito
ausente e nulo/ Do universal destino, isto , impotente, submetido, sem qualquer chance de
reagir a um destino que universal: a morte.
Segundo Reis, no h nada depois da morte, s a escurido, a noite, em que no se
sabe o que nos espera; dela no despertaremos. Enquanto dormimos, estamos quase como
mortos, mas, como vemos em O sono bom pois despertamos dele55, podemos acordar. A
morte, porm, no sono. Essa realidade de morrer que o eu-lrico prope que
enfrentemos, refusemos, enquanto ainda em corpos condenados durar a licena
indecisa do carcereiro, ou seja, entre a escurido e o crcere de viver, melhor o crcere,
mesmo que no se saiba quanto tempo durar: a vida mais vil antes que a morte,/ Que
desconheo. Por fim, o eu-lrico oferece flores Ldia, nesse caso, smbolos da efemeridade,
da morte, votivas/ De um pequeno destino, prenunciando o destino de todos.
Alm disso, aquele que morre no deixa nada aos que ficam. Um exemplo disso o
poema O rastro breve que das ervas moles56, poema de oito versos, de dez e seis slabas
53
p.124.
p.134.
55
p.134.
56
p.135.
54
82
poticas, em que Ricardo Reis faz uso de algumas figuras de efeito sonoro para transmitir
suas idias:
O RastRo bREvE quE da ERva molE
ErguE o p findo, o ECO que OCO CA,
A soMBRA que se aduMBRA,
O bRanco que a Nau laRga
NeM Maior NeM Melhor deixa a ALMA s ALMAS,
O IDO aos INDOS. A leMbraNa esquece.
Mortos, iNda MorreMos.
Ldia, SOMOS S NOSSOS.57
Destaques nossos.
83
leitor. Se o texto literrio, conforme nos apresenta Lotman (apud ISER, 1999), tem por
caracterstica concentrar informaes, o texto potico as concentra mais ainda, de forma que o
leitor precisa deixar-se enredar pelas palavras do texto para poder, em dilogo com ele e sua
estrutura, construir seus sentidos.
Para terminar, vejamos um ltimo exemplo do pessimismo de Reis, que vai ao
extremo ao afirmar, por meio do eu-lrico, em Nada fica de nada. Nada somos 58, que os
seres humanos so Cadveres adiados que procriam, metfora forte que remete
insignificncia humana; que, mesmo vivos, j anunciamos nossa morte, pois morremos um
pouco a cada dia. O sol e o ar, o sopro de vida que h em ns e nos aquece que ainda nos
sustenta um pouco mais nessa vida e nos atrasamos/ Da irrespirvel treva que nos pese/ Da
humilde terra imposta. Se somos nada, nada deixamos, por isso, nem leis feitas, esttuas
vistas, odes findas/ Tudo tem cova sua, tudo tem um fim, tem um poente, assim como ns,
temos nascente e poente em nossas vidas. Conclui, reafirmando de forma incisiva e
pessimista, que no passamos de mentira, de contos, e o que realizamos no decorrer de nossa
existncia so aes to mentirosas quanto ns: Somos contos contando contos, nada.
3.2.7 Como vidro luz do sol
Nossa proposta, com a leitura das odes de Ricardo Reis, foi descobrir como esse
homem se posiciona diante do mundo, como se relaciona com a vida, com os seres, com a
realidade, a partir do dilogo com suas prprias palavras, da estrutura textual e dos espaos
vazios que deixa para que o leitor preencha com suas experincias e conhecimentos.
Entre o leitor e as idias veiculadas se interpe o texto e este se abre a diversas
possibilidades de realizaes na leitura, conforme as diferentes expectativas daqueles que o
buscam. Diante disso, tentamos fazer uma leitura que enfocasse os aspectos concernentes ao
relacionamento de Ricardo Reis com a realidade que o cerca, como lida com as dificuldades,
alegrias, prazeres, amor, mulheres, natureza, morte, enfim, tudo o que nos envolve no
cotidiano da vida.
No podemos nos esquecer do fato de que Ricardo Reis um leitor de Horcio;
Tringali (1995) afirma que Ricardo Reis sem dvida horaciano na forma e no estilo, mas
anti-horaciano do ponto de vista filosfico e ideolgico. Ricardo Reis, como leitor de
Horcio, recria o poeta latino a partir de sua prpria expectativa, apresentando novas
perspectivas para temas j abordados anteriormente: o carpe diem, o meio-termo dourado, a
58
p.136.
84
85
que esto perto da humanidade e sobre quem tambm pesa a mo do destino tanto quanto
sobre os homens. Isso quer dizer que poder algum tm os deuses sobre a humanidade, a no
ser o poder que os prprios seres humanos lhes atribuem, pois eles no podem mudar o curso
das coisas; apenas so maiores que ns.
Ricardo Reis deseja ser livre de qualquer forma de priso: da riqueza, da glria, da
fama, do poder, do dio, da inveja, do prazer, do amor. Tudo, segundo ele, passageiro e
aprisiona. Sbio quem no pede nada, no deseja nada, no ama nem amado, porque,
assim, livre. Ricardo Reis chama suas musas Ldia, Neera, Cloe no para am-las, dar
algo de si, mas para se sentarem ao p um do outro, ficarem mudos, bbados a esperar a
morte, indiferentes um ao outro, ou ainda para trocarem furtivas e rpidas carcias, beijos e
abraos que no deixam grandes lembranas capazes de comover a alma. A mulher aparece
como aquela que est a disposio para aprender seus ensinamentos, uma ouvinte passiva, a
quem no dado amar nem ser amada por Ricardo Reis. O amor sombra, no deixa ver
claro e ainda aprisiona.
Em suma, podemos dizer que Ricardo Reis, em seus poemas, sempre apresenta uma
realidade a ser enfrentada a morte, a inutilidade da vida, a passagem do tempo, a
necessidade de ver mais e melhor e gestos que, mesmo inteis, proporcionam o prazer de
contemplar a beleza exterior das coisas: colher flores e deix-las cair, contemplar a natureza,
molhar as mos no rio, coroar-se de rosas e folhas breves, jogar xadrez... Nisso consistem
seus ensinamentos: encarar a realidade como o vidro, transparente, deixando-se perpassar pela
luz, pelos olhos dos outros; permitindo-se molhar pela chuva, mas no reter nada dela e nem
dar-se a conhecer pelos demais; enxerga-se atravs do vidro, mas nem se percebe que ele
existe; que seja morno e reflita um pouco a luz do sol.
3.3 A vida e a fico segundo Jos Saramago
Um estilo autntico, marcante; uma linguagem seca e precisa; combinao e mistura
entre fantasia e retrato da realidade, em discurso cinematogrfico; a fico e a postura
comprometida com o social. Eis alguns indicadores capazes de nos ajudar a percorrer os
caminhos em direo a um dos mais clebres autores em lngua portuguesa da
contemporaneidade: Jos Saramago.
Jos de Sousa Saramago (Saramago era alcunha da famlia que remete a uma planta
daninha, acrescida ao seu nome por engano ou no do escrivo) nasceu no dia 16 de
novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, na provncia do Ribatejo, ao norte de Portugal,
filho de camponeses pobres, Jos de Sousa e Maria da Piedade.
86
MELO, F. A vida segundo Jos Saramago. Disponvel em: <http://www.institutocamoes.pt/escritores/saramago.htm>. Acesso em: 21 jul.2004, s 15h47min. Publicado em Viso, Lisboa em 10
de dezembro de 1998.
87
confessional. A preocupao que eu tenho esta: Em que mundo estou vivendo? Que mundo
este? O que so as relaes humanas? O que essa histria de sermos o que chamamos a
humanidade? O que isso de ser Humanidade? (COSTA, 1998: 24).
Em 1976, quando desempregado, Jos Saramago decidiu comear a escrever um
romance sobre aquilo que conhecia, a vida de sua gente, dos camponeses do norte de Lisboa.
Passou trs anos vivendo, comendo, dormindo com eles. Dessa experincia surgiu Levantado
do cho (1980). Nesse meio tempo, publicou um livro de relatos curtos, Objeto quase, e o
Manual de pintura e caligrafia.
Passou tambm por um momento de busca de sua prpria identidade para o seu modo
de escrever. No texto de Levantado do cho, pgina 24 ou 25, sem gostar do que escrevia,
como conta a Costa (1998), comeou a escrever sem regras, sem pontuao, como se estivesse
devolvendo sua gente tudo o que viveu com eles, o que ouviu, da forma como recebeu: na
oralidade: Da mesma forma que, quando nos comunicamos oralmente, no necessitamos
nem de travesses, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessrio usar quando
escrevemos, pois, ento, voc, como leitor, colocar a, no o que falta, porque no falta
nada....A palavra escrita num livro morta; quando fazemos a leitura silenciosa, no est
morta, acorda um pouquinho, mas a palavra s fica acordada quando a dizemos (COSTA,
1998: 23-24). Isso porque a palavra como a msica, que no precisa de sinais para
comunicar, mas apenas de sons e pausas.
Seus livros no se repetem, mesmo que a forma de narrar ou as preocupaes
presentes no texto sejam as mesmas, cada livro apresenta um assunto que nele se encerra. Seu
estilo se refaz e se reflete em cada histria, apesar das adaptaes necessrias; marcado por
um barroquismo, encaminhando-se para um modo mais seco de narrar. Segundo ele, como
se, at o Evangelho segundo Jesus Cristo, estivesse descrevendo as partes de uma esttua de
pedra. A partir de Ensaio sobre a cegueira, tratar do material, da pedra, ou seja, seu estilo
ser ainda mais seco.
Para Saramago (1998: 26), a figura do narrador no existe, (...) s o autor exerce
funo narrativa real na obra de fico, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. Para
explicar sua teoria, faz uma correspondncia entre literatura e pintura. Segundo ele, entre uma
pintura e aquele que a contempla no h outra mediao que a do autor, da mesma forma, o
nico mediador entre o fato narrado e o leitor seria a figura do autor, no havendo
diferenciao entre a mo que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mo que
desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecr [tela] do computador
(SARAMAGO, 1998: 26).
88
O narrador, portanto, seria uma personagem a mais de uma histria que no a sua,
mas a histria da memria verdadeira e mentirosa de quem a escreveu, o autor.
89
90
(SANTILLI, 1999: 260), de forma que se tornam tambm multiplicadores de novos pontos de
vista sobre Pessoa ou Saramago e passam a participar da produo de sentidos, desafiando o
que foi escrito, assim como Saramago desafiou a produo sacralizada de Fernando Pessoa e
se prope a dar continuidade obra daquele, aproximando-se do que Pessoa comeara e
sendo, ele prprio, um criador de mscaras.
Se Jauss (1984) prope que a nova obra seja uma resposta, uma continuidade a
questes pendentes de outros momentos literrios e que funda tanto o horizonte passado como
o novo, ento, podemos afirmar que O Ano da Morte de Ricardo Reis se insere nesse processo
literrio por se apresentar como uma resposta obra de Fernando Pessoa e continu-la, de
alguma forma, mesmo que em romance, retomando-a e questionando-a.
De acordo com Santilli (1999), o recurso utilizado por Saramago para reconstruir Reis
a pardia, a arte que se refere arte; uma produo literria que se constri sobre outra
anteriormente construda, com a finalidade de questionar, de mexer com o que j estava
consagrado. A pardia ajudar a envolver mais ainda o leitor naquilo que est lendo, por
incentivar o leitor a estabelecer relaes entre o novo objeto literrio produzido e aquele a que
faz referncia. Alm disso, a pardia permeada por aproximaes e inverses, crticas e
ironias, s quais o leitor precisa estar atento para entender e fazer as inferncias necessrias.
A partir disso, podemos compreender o Ricardo Reis-personagem como algum de
alguma forma diferente do Ricardo Reis-poeta. E isso fica mais evidente quando olhamos
para as aes que a personagem protagoniza no decorrer do romance.
Ricardo Reis retorna a Portugal, segundo conta a Fernando Pessoa, assim que fica
sabendo da morte de Pessoa e por causa da revoluo que estoura no Rio de Janeiro em 27 de
novembro de 1935 (o levante comunista, conhecido por Intentona Comunista, comandado por
Luis Carlos Prestes e sua esposa, Olga Benrio, e que acontece em outros pontos do territrio
nacional). Por outro lado, podemos notar, pelos questionamentos propostos no incio do
romance, que vem em busca de sua identidade, de saber quem de fato. o que reflete
consigo, depois de ler um trecho de uma de suas odes:
Vivem em ns inmeros, se penso ou sinto, ignoro quem que pensa ou
sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente (...) Se somente isto sou,
pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estar pensado agora o que eu
penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem
estar sentido o que sinto, ou sinto que estou sentido no lugar que sou de
sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inmeros
que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e
sensaes sero os que no partilho por s me pertencerem, quem sou eu
91
Nesse trecho, Reis faz referncia ao nome de Herbert Quain, suposto autor do livro
The god of the labirinth, que pegou emprestado na biblioteca do navio e se esqueceu de
devolver por ocasio do desembarque. importante ressaltar que Quain uma criao do
escritor argentino Jorge Lus Borges, uma fico dentro da fico, to ficcional quanto o
prprio Ricardo Reis-personagem, fico da fico de Fernando Pessoa. Notemos que no s
a cidade de Lisboa um labirinto, no qual entra o heternimo ao regressar a Portugal, mas
tudo que o cerca como um grande jogo em que precisa encontrar uma sada, uma resposta.
Ele prprio seu maior labirinto.
Constantemente, passeia pelas ruas de Lisboa; vai e volta, sem rumo, para perceber a
cidade, os rumores, tentar ambientar-se novamente. Com esse fim, tambm busca a ajuda dos
jornais, que lhe trazem notcias de Portugal e do mundo, compra uma telefonia (rdio).
Portugal estava sob a forte mo do governo liderado por Oliveira Salazar, presidente do
Conselho e ministro das Finanas, que, futuramente, implanta a ditadura no pas. O restante
da Europa estava sob presso: a ascenso do fascismo, na Itlia, com Mussolini, que declara
guerra Etipia; a crescente popularidade e adeso ao nazismo alemo e s idias de Hitler; a
tenso das eleies espanholas, que culminam com a guerra civil. O governo portugus era
simpatizante do nazismo e do fascismo e exercia um forte controle sobre as foras armadas, a
imprensa e os cidados em geral, por meio da Polcia de Vigilncia e Defesa do Estado.
Nessas leituras dirias das manchetes dos jornais, prefere as matrias curtas, porque as
pginas grandes e as prosas derramadas60 fatigavam-no. Seu objetivo ao ir aos jornais era,
segundo o narrador, encontrar guias, fios, traos de um desenho, feies de rosto portugus,
no para delinear um retrato do pas, mas para revestir o seu prprio rosto e retrato de uma
nova substncia, poder levar as mos cara e reconhecer-se, pr uma mo sobre a outra e
apert-las, Sou eu e estou aqui61 . como se, com a perda de Pessoa, seu criador, sua
identidade tambm se perdesse ou o que dela existisse; ou, pensando Reis, independentemente
de Pessoa, fosse um homem inseguro de si.
Volta ptria como estrangeiro: no sabe para onde vai, tem sotaque brasileiro, no
sabe quanto tempo fica, hospeda-se em um hotel, que mais impessoal, no sabe se deve
clinicar, no se sente vontade na casa em que aluga. Estrangeiro onde quer que esteja, para
si e para os outros, como uma sombra.
60
61
SARAMAGO, J. O Ano da Morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.51-52.
p.87-88.
92
p.50.
p.102.
64
p.104.
65
p.214.
66
p.221-222.
63
93
visita na nova casa e Ricardo Reis no sabe como receb-la, se acende ou no a luz, se
romntico ou comedido. O nico gesto a ser feito foi beij-la, sinceramente. Quando Ldia lhe
diz que est grvida, sente algo, pela primeira vez, uma emoo, talvez clera. Suas palavras,
porm, no podem expressar esses sentimentos e no sabe o que dizer. Sua atitude sincera foi
abra-la e beij-la, mesmo que por gratido por no precisar reconhecer o filho.
O espelho incomoda Ricardo Reis. Sua reflexo de que a imagem no , mas est, de
forma que, quele que olha, o espelho pode agradar ou no, suportar ou rejeitar. Reis no se
sente autntico e, com o retorno a Portugal, procura afirmar-se. O encontro com o espelho da
sala de estar do Hotel Bragana no o agrada, porque se sente tambm imagem, estado,
reflexo, espelho e no ser Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador
ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho tambm 67. Essa
imagem pode ser entendida como algo que ele prprio criou para si nas odes que escreve, de
indiferente, pago, desapegado, alheio ao mundo e aos sentimentos, ou ainda uma referncia
sua origem heteronmica, de ser um dos reflexos do mltiplo Pessoa.
A questo da imagem que Ricardo Reis criou para si por meio de seus poemas
reforada quando ele mesmo assume no se reconhecer no que escreveu: Vai sentar-se
secretria, mexe nos seus papis com versos, odes lhes chamou e assim ficaram, porque tudo
tem de levar seu nome, l aqui e alm, e a si mesmo pergunta se ele, este, o que os escreveu,
porque lendo no se reconhece no que est escrito, foi outro esse desprendido, calmo e
resignado homem68, ou seja, o seu epicurismo e estoicismo, sua vida buclica e indiferente,
tudo parece ter ficado para trs, se algum dia chegaram a existir de fato. Seguro assento na
coluna firme dos versos em que fico o incio de uma de suas odes, sua marca e segurana
no mundo. Entretanto, essa coluna firme j no lhe pode sustentar.
Uma outra crtica s odes feita na p.256, quando Ricardo Reis reflete, ao escrever
uma carta destinada a Marcenda, sobre a superficialidade das palavras, em especial aquelas
empregadas na rede do casulo que um poema:
(...) usemos palavras que no prometam, nem peam, nem sequer sugiram,
que desprendidas apenas insinuem, deixando protegida a retaguarda para
recuo das nossas ltimas cobardias, tal como estes pedaos de frases, gerais,
sem compromisso, gozemos o momento, solenes na alegria levemente,
verdesce a cor antiga das folhas redivivas, (...) breves so os anos, poucos a
vida dura, mais vale, se s memria temos, lembrar muito que pouco (...).
67
68
p.53.
p.224.
94
Ricardo Reis no foge aos acontecimentos que o rodeiam: como j foi salientado, ele
procura conhecer o que se passa em Portugal e no mundo; pensa em poltica, na questo da
perda de colnias portuguesas para a Inglaterra, na crise espanhola; preocupa-se com o que
pensariam sobre o seu caso com Ldia; sente-se s, contrariado, irritado, inquieto,
decepcionado, colrico, emocionado; mostra-se apegado a seus bens, sua aparncia, s
convenes; pensa sobre a velhice; preocupa-se com as misrias humanas; faz projetos para o
futuro, mesmo que curto; apaixona-se e sofre; enfim, comea a perceber o mundo a sua volta.
Ao perceber esse mundo, sente que no tem espao para si nele, no consegue se
encaixar na sociedade. Marcenda jovem demais; Ldia uma criada de hotel e o filho que
ela espera ser de pai incgnito; ambicionara ocupar o lugar de Fernando Pessoa, mesmo que
ningum o percebesse, mas isso no aconteceu; sente-se vazio; est desempregado; pensa em
voltar ao Brasil.
Por isso, abandona todas as suas filosofias de vida, as que vivenciou num tempo
distante, o que experimentou em seu retorno a Portugal, as que criou como mscara para si e
vai, aos poucos, desligando-se do mundo, at, ao final do romance, escolher a morte e
desaparecer com Fernando Pessoa.
3.4.2 Carpe diem
A mxima horaciana carpe diem no uma regra para o Ricardo Reis-personagem,
nem mesmo o meio-termo dourado, da vida no campo, com simplicidade e modstia. Ricardo
Reis se mostra preocupado, como foi exposto, com o que podem pensar de suas atitudes e no
aproveita a vida sem pensar no amanh. Alm disso, muito apegado s regras sociais, s
divises e preconceitos de classes, posio que ocupa.
Quem vive os preceitos horacianos a criada de hotel, Ldia, mesmo sem o saber. Por
ironia do destino ou do autor, Ricardo Reis conhece a criada, que tem o mesmo nome da musa
incorprea, sem expresso ou opinio dos poemas de Reis. As semelhanas, porm, terminam
a. A Ldia-criada se torna amante do mdico; mesmo sem instruo, ela quem demonstra
maior sabedoria em aproveitar a vida. Ldia se conforma com o que tem, mesmo sabendo que
no tem nada. Para si, basta o momento, o que vive no presente, sem pensar no futuro, como
podemos perceber neste dilogo entre ela e Ricardo Reis: Que um bom marido, para ti,
No sei, s difcil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada,
sem nenhum futuro, Hei-de ser sempre teu amigo, Nunca sabemos o dia de amanh69.
69
p.201.
95
Por tudo o que faz para Reis no espera ser recompensada, pois est ciente de que
casamento no poder acontecer, uma vez que no est altura dele. Nem lembranas ou
recompensas quer receber, porque quer apenas se dar por inteira, sem receber nada em troca
O meu salrio o seu bom trato70 .
Alm disso, Ldia acredita na certeza do destino, enquanto Ricardo Reis, nos acasos da
vida. Para ela, tudo obra do destino, inclusive A morte tambm faz parte do destino71, e o
seu passar as camisas do senhor doutor e o servir enquanto no arruma outra do seu nvel
social. Chora por sentir que no significa nada na vida de Ricardo Reis, apenas a mulher-adias do senhor doutor. No pode dizer nem que amante porque ser amante significa uma
igualdade de posies, o que no acontece no relacionamento entre os dois. Seu destino ser
a criada, no h nada a esperar, nem o reconhecimento da paternidade de seu filho.
Nessa relao com Ldia, Ricardo Reis se aproxima de Horcio, uma vez que este
cantava e valorizava as mulheres de segunda classe, ou seja, a criada, a liberta, a prostituta
como aquelas que merecem o amor e cuidado. Como Horcio, Reis tambm viveu momentos
intensos com Ldia, porm, sempre atado aos preconceitos sociais. Nunca assumiria seu
relacionamento devido diferena de classe existente entre os dois. Com isso, distancia-se de
Horcio que tratava as mulheres de segunda classe como melhores que a de primeira e no
tinha vergonha de assumir o que sentia. Ricardo Reis tem medo que descubram o que h entre
si e Ldia e no pensa em assumir compromisso.
Isso se reflete bem na questo do beijo. Na primeira noite, no sabe se deve beij-la na
boca ou no; beijou, mas por fora das circunstncias, pelo fogo dos sentidos 72. Ricardo
Reis reflete que, assim como no existem doenas, mas doentes, tambm no existem beijos,
mas pessoas. Beija Marcenda sem pensar, diz que o far e faz. Esse beijo fica em sua
memria, mas a pessoa, Marcenda, vai se apagando com a ausncia. Com Ldia se d o
contrrio: ela tambm pessoa, tambm beijada, mas no a pessoa adequada, apesar de
sacrificar seus dias de folga para estar com o senhor doutor, ento, o seu beijo no conta. O
segundo beijo com Marcenda acontece no consultrio e tambm intenso, capaz de fazer com
que pea a moa em casamento. Depois de muitos encontros com Ldia, vem a notcia de que
est grvida. Ricardo Reis no quer assumir a criana, sente raiva, clera, vergonha, piedade
e, enfim, beija a mulher, num impulso, sinceramente agradecido por ela o ter liberado de suas
70
p.237.
p.304.
72
p.103.
71
96
Nesse trecho, percebemos que Ricardo Reis, em seus poemas, fala da solido, mas
reflete, no romance, sobre a real condio de estar s mais que dizer, experimentar e
suportar o peso do silncio e da ausncia.
Isso pode explicar o fato de Ricardo Reis ter se envolvido, logo de chegada, com duas
mulheres. Marcenda, menina de vinte e trs anos, magra, pescoo alto e frgil, queixo fino,
contorno do corpo inseguro, inacabado, educada, filha do Doutor Sampaio, comendador;
Ldia, mais ou menos trinta anos, bem feita de corpo, morena portuguesa, baixa, criada do
73
p.361.
p.388.
75
p.199.
74
97
hotel. As duas chamam a ateno de Ricardo Reis, a primeira por ter o brao esquerdo
paralisado, a segunda por ser bonita e atraente.
Entretanto, Ricardo Reis no as trata com igualdade e isso j pode ser indicado na
questo do beijo, mencionada anteriormente. Marcenda algum do seu nvel social, com
educao e fineza. Por isso, chegar a Marcenda exige tato e o cumprimento de certas
convenes. Em um primeiro momento, descobre, junto ao gerente do hotel, Salvador, quem
so o pai e a filha; depois, planeja um modo de encontr-los no teatro e conversarem; jantam
juntos; conversam, os dois, na sala de estar do hotel; marcam encontros; trocam cartas;
beijam-se; ele a pede em casamento; vai a Ftima para tentar encontr-la; escreve um poema
em sua homenagem. Com Ldia, porm, Ricardo Reis no sutil, pois toca em seu brao,
mesmo sem conhec-la bem, o que indica o interesse na mulher, mas se recrimina por ter
cedido a uma fraqueza estpida76. Depois de alguns dias, diz a ela Acho-a bonita77 e se
sente um sedutor ridculo por tal atitude. noite, Ldia vem a seu quarto pela primeira vez.
Suas visitas noturnas so freqentes enquanto o senhor doutor est hospedado no Hotel
Bragana; ao alugar casa, Ldia se oferece para fazer o trabalho de mulher-a-dias, faxineira,
semanalmente, em seus dias de folga. E ela vai toda semana casa de Ricardo Reis, mesmo
sabendo que o que h entre os dois no durar muito. Enfim, engravida e decide criar sozinha
o filho.
Fernando Pessoa ironiza Ricardo Reis por seu relacionamento com Ldia, uma criada,
e Ricardo Reis lhe responde: Veio o nome de Ldia, no veio a mulher 78, ou seja, essa Ldia
no aquela passiva, muda, espiritual, incorprea, delicada, mas uma mulher de carne e
osso, decidida, que se arrisca pelo que quer, de mos speras, quase brutas, e uma sabedoria
que lhe vem da experincia de viver. Para ele, apesar de querer a companhia de Ldia, ela o
havia procurado por vontade prpria e, portanto, no teria obrigao alguma com ela: no
tem quaisquer direitos, se aqui vem a casa porque a vontade lhe puxa, no porque eu lho
pea79. No pensa em se casar com Ldia, por ser mulher desigual80, portanto, no assumir
a criana que ela espera. Ela chora por saber que no significa nada para ele, que e ser
sempre a criada, e isso como a morte para si.
76
p.90.
p.97.
78
p.118.
79
p.269.
80
p.361.
77
98
Marcenda, gerndio do verbo latino marceo, que quer dizer estar murcho,
enfraquecer81, um nome que faz referncia situao da personagem: o brao paralisado,
murcho, assim como todo o resto do corpo inseguro e inacabado e, mesmo sua vida, que
no tem mais razo de ser, est murcha, sem esperanas. Contudo, a forma de Ricardo Reis
olhar para ela se modifica ao passo que se interessa por seu problema e no se conforma com
o fato de uma mulher jovem, at bonita, ter uma deficincia. Todavia, essa personagem que
incorpora as musas inspiradoras de Ricardo Reis Ldia, Neera, Cloe. Marcenda quem tem
uma boa instruo (sem dvida concluiu o curso liceal e s por ter to dramaticamente
adoecido ter abandonado uma faculdade qualquer, direito ou letras82,) quem capaz de
manter uma boa conversao (uma rapariga deste pas e tempo foi capaz de manter to
seguida e elevada conversa, dizemos elevada por comparao com os padres correntes, no
foi estpida nem uma s vez, no se mostrou pretensiosa, no esteve a presumir de sbia nem
a competir com o macho83), tem as mos delicadas como as musas dos afuselados dedos,
das cuidadas unhas, das macias palmas de Marcenda84. Por essa razo, a menina Marcenda
est altura de Ricardo Reis: ele a beija e faz o pedido de casamento. Ela no aceita, diz
devagar, mas, prontamente: No, (...) No seramos felizes85. Alm disso, lembra Ricardo
Reis, em carta, das regras sociais a que est submetida: a vida este meu brao esquerdo que
est morto e morto ficar, a vida tambm aquele tempo que separa as nossas idades, um veio
demasiado tarde, outro cedo de mais86; se as coisas fossem diferentes, se eu fosse mais
velha, se este brao sem remdio87. Apaixonado e, ao mesmo tempo, decepcionado, Ricardo
Reis compe uma ode em homenagem a Marcenda, sua musa inspiradora:
Saudoso j deste vero que vejo, lgrimas para as flores dele emprego na
lembrana invertida de quando hei-de perd-las (...)Transpostos os portais
irreparveis de cada ano, me antecipo a sombra em que hei-de errar, sem
flores, no abismo rumoroso (...) E colho a rosa porque a sorte manda
Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que com a curva diurna da
ampla terra88.
81
99
Esse poema existe no livro das Odes de Ricardo Reis-poeta, a diferena que, no
romance, o gerndio Marcenda assume dimenso de substantivo, enquanto no poema do
heternimo funciona como verbo relacionado ao fato de a rosa murchar, tornar-se marcenda.
Apesar de se relacionar com duas mulheres, Ricardo Reis no tem nenhuma Ldia
de uma classe social inferior e Marcenda no o aceita. Em vista disso, Reis, em conversa com
Pessoa, assume ter medo das mulheres. Este diz que a experincia que teve com mulheres foi
a de apenas assistir e ver passar, enquanto Ricardo Reis afirma: grande engano o seu se
continua a julgar que isso basta, preciso dormir com elas, fazer-lhes filhos, mesmo que
sejam para desmanchar, preciso v-las tristes e alegres, a rir e a chorar, caladas e falando,
preciso olh-las quando no sabem que esto a ser olhadas89. Todavia, mesmo mais
experiente nesse assunto, Reis diz que seu papel na vida das mulheres insignificante, tanto
que poderia morrer como o zango ou o louva-a-deus, depois do papel de macho estar
cumprido.
Podemos dizer que Ricardo Reis nunca amou ou foi amado de fato. As palavras
amorosas no fazem parte da sua vida, assim como nunca trocou cartas de amor. Vem a se dar
conta disso ao receber uma carta de Marcenda, em que esta lhe diz que no h futuro para o
relacionamento dos dois. Ele, porm, gostaria que fosse uma carta, cujo contedo estivesse
derramado de paixo, de juras de amor. Depois de t-la lido, arrepende-se de o ter feito,
porque assim poderia imaginar coisas boas a seu respeito, imaginar aquilo que gostaria que
nela estivesse escrito. Se so ridculas ou no as cartas de amor, Reis reflete que ridculo
nunca ter recebido ou escrito uma: Tens razo, nunca recebi uma carta de amor, uma carta
que s de amor fosse, e tambm nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou
minha metade, esses inmeros que em mim vivem, escrevendo eu, assistem, ento a mo me
cai, inerte, enfim no escrevo90.
Esse sentimento de derrota no amor, de solido, de abandono, acompanha, a partir de
ento, a personagem at o fim do romance. Em sua viagem Ftima, procura de Marcenda,
Ricardo Reis, ao ver uma senhora abraando o neto, percebe que no h ningum a sua espera
e sente que sua vida foi vazia, sem grandes emoes, que no aproveitou os bons momentos,
que no foi feliz:
(...) este pensar num rapazito visto de relance numa sossegada estao de
caminho-de-ferro, este desejo sbito de ser como ele, de limpar o nariz ao
brao direito, de chapinhar nas poas de gua, de colher as flores e gostar
89
90
p.362.
p.269.
100
p.315.
p.244.
93
p.326.
94
p.60.
92
101
Nem mais nem menos s, mas outro deus, No a ti, Cristo, odeio ou menosprezo, Mas cuida
no procures usurpar o que aos outros devido, Ns homens nos faamos unidos pelos
deuses. Para ele, porm, esses versos so como fsseis ou restos de antigas civilizaes95,
ou seja, como se os tivesse escrito em um tempo que j no existe mais, o tempo em que os
escreveu ou a poca clssica. Pergunta a si prprio se tero mais sentido no corpo das odes em
que se inserem ou sero j esvaziados de sentido.
A presena do imaginrio cristo muito forte no romance. Mais freqentes que as
referncias mitolgicas Aquiles, Hefestos e Paris, por exemplo, (p. 88) so as referncias
bblicas tanto da parte do narrador como do prprio Ricardo Reis. Isso pode ser lido como
uma herana de sua formao jesutica, mas tambm como uma forma de contradizer aquilo
que est escrito nas odes, indicando o que realmente compe o homem Ricardo Reis. A
oniscincia divina comparada possibilidade de Fernando Pessoa ficar invisvel e
presenciar as intimidades de Reis e Ldia, mas presena de Deus j nos habitumos96.
Ricardo Reis, ao conversar com Dr.Sampaio sobre o livro Conspirao, indicado pelo notrio,
compara a eficcia nacionalista do livro a um novo batismo para aqueles que o lerem. As
figuras de Ado e Eva e o paraso so contrapostas situao de Ricardo Reis na nova casa: o
paraso era o Hotel Bragana, para onde no gostaria de voltar, pois l se tem tudo de bom,
mas no se tem liberdade; Ado e Eva so a personagem Reis , que, expulsa do paraso,
precisa se arranjar com aquilo que encontra, algumas frutas e bolos secos, por sua prpria
conta. Ironicamente, compara a Virgem Maria s mulheres portuguesas anjos de pureza e
abnegao97 , nas mos de quem estaria a salvao da nao e a converso dos homens,
almas masculinas transviadas98, ao nacionalismo e abnegao dos ideais revolucionrios
Santas mulheres, agentes de salvao, religiosas portuguesas, sorores marianas e piedosas99.
Alm disso, mesmo se dizendo pago, vai a Ftima, lugar da apario de Nossa
Senhora, a procura de Marcenda. Para isso, pega um trem abarrotado de peregrinos, enfrenta
fila para almoar comida simples, anda de camioneta (nibus), chega suado, empoeirado, sem
lugar para dormir ou lavar o rosto. No caminho, encontra um homem cado beira do
caminho. Pede que a camioneta pare para que possa ajudar. Assume, aqui, a figura de bom
samaritano, pois enquanto os outros queriam que a viagem continuasse, ele, um pago,
queria parar e fazer alguma coisa. O homem, porm, j estava morto. ento que Ricardo
95
p.66.
p.118.
97
p.243.
98
Idem.
99
Idem.
96
102
Reis se lembra da passagem da ressurreio de Lzaro e imagina que, se Jesus Cristo estivesse
passando por ali e aquele homem fosse Lzaro, a ressurreio poderia se dar ali mesmo. Ser
que Ricardo Reis se compara a Jesus Cristo? Seria algo espetacular, uma vez que, nem na
Cova da Iria, aconteceu algo semelhante.
Mesmo sem f, Ricardo Reis, em conversa consigo mesmo ou com os muitos que
esto dentro de si, admite ter ido Ftima por esperana. Esperava encontrar Marcenda e que
esta fosse curada. Entretanto, no a v, no ouve sua voz a pedir pelo milagre e termina como
um vagabundo de barba crescida, roupa amarrotada, camisa como um trapo, chapu
manchado de suor, sapatos s poeira100
. Essa loucura foi movida a esperana. Mas o que diria se a encontrasse? O que ela pensaria
ao v-lo naquela situao? Agradece, por fim, a Nossa Senhora de Ftima, por no ter
encontrado Marcenda. A esperana o que move todos os peregrinos, ainda que a f seja
pouca ou nenhuma, e, ao final, encontram pelo menos um motivo de agradecimento. o que
acontece a Ricardo Reis.
Por fim, importante destacar uma referncia feita no incio do romance, quando
Ricardo Reis, ao retornar ao hotel, depois de um dia de andanas por Lisboa, pensa nas
pessoas que esto hotel e que ver hora do jantar: pensando neles sentiu um bom calor no
corao, um ntimo conforto, amai-vos uns aos outros, assim fora dito um dia, e era tempo de
recomear101. Esse mandamento est no evangelho de Joo, captulo 15, versculo 12102,
com o qual Jesus vem estabelecer uma nova lei, baseada no amor fraterno. Ao se recordar
disso, Ricardo Reis prova que o imaginrio cristo est muito presente em sua vida e, ao
admitir que tempo de recomear, estabelece uma nova relao com esse imaginrio, como
se, de alguma forma, fosse retomar, resgatar esses valores, talvez esquecidos por algum
tempo, em sua vida.
3.4.5 Sua relao com a ptria
Ao desembarcar no Cais de Alcntara, depois de dezesseis anos, Ricardo Reis se sente
como estrangeiro em sua ptria. Busca jornais, anda pela cidade, olha as ruas, as pessoas, quer
informaes sobre tudo o que acontece em Portugal para se pr a par da realidade.
Participa de vrios momentos significativos da vida da cidade: acompanha a passagem
do ano; o Carnaval festas com particularidades portuguesas, como a tradio de jogar lixo
pela janela, depois da meia-noite, as brincadeiras e fantasias de Carnaval; presencia a
100
p. 320.
p. 45.
102
Bblia Sagrada. 112 ed. So Paulo: Ave-Maria, 1997.
101
103
distribuio do bodo do sculo, ajuda dada pelo governo multido de pobres e famintos; vai
ao enterro do Mouraria, homem morto com cinco tiros, aps ter enganado outro; participa de
um comcio. Este fato importante porque admite que nunca teve interesse em presenciar tal
evento, talvez por pudor, educao, temperamento, gosto, mas que, diante da atual situao,
ficou curioso:
Mas este alarido nacional, a guerra civil aqui ao lado, quem sabe se o
desconcerto do lugar onde vo reunir-se os manifestantes, a Praa de
Touros do Campo Pequeno, acordam-lhe no esprito uma pequenina chama
de curiosidade, como ser juntarem-se milhares de pessoas para ouvirem
discursos, que frases e palavras aplaudiro, quando, porqu, e a convico
de uns e dos outros, os que falam e os que escutam, as expresses dos rostos
e os gestos, para homem de natural to pouco indagador, h interessantes
mudanas em Ricardo Reis103.
Como podemos notar, Ricardo Reis comea a manifestar interesse pela vida poltica e
social de seu pas e do mundo e esse interesse faz com que tome atitudes que at ento no
faziam parte de seu plano de vida.
3.4.6 A morte para Ricardo Reis
Ao desembarcar no Cais de Alcntara, como se Ricardo Reis tivesse desembarcado
no incio do que seria sua caminhada rumo morte, como se esse retorno a Portugal fosse o
comeo de sua despedida do mundo e de tudo o que foi e poderia ter sido.
Ricardo Reis acredita que, ao ficarmos velhos,
(...) somos como as criancinhas, inermes, mas a me est morta, no
podemos voltar a ela, ao princpio, quele nada que esteve antes do
princpio, o nada verdade que existe, o antes, no depois de mortos que
entramos no nada, do nada, sim, viemos, foi pelo no ser que comemos, e
mortos, quando o estivermos, seremos dispersos, sem conscincia, mas
existindo104.
Dessa forma, a morte no nos pode reduzir a nada, pois tivemos uma existncia e esta
tem continuidade dispersa no existir dos outros ou das coisas.
A volta de Ricardo Reis a Portugal foi motivada pela morte de Fernando Pessoa. Este,
porm, aparece no romance de forma inusitada: morto, fantasma. Entretanto, este fantasma
no anda por a com um lenol cabea, assustando as pessoas. Segundo ele, os mortos
103
104
SARAMAGO, J. O Ano da Morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.394.
p.79.
104
servem-se dos caminhos dos vivos105 e, querendo, podem ser vistos ou no. Para SimasAlmeida (1998), Saramago se utiliza do realismo mgico para poder introduzir esse elemento
em sua narrativa, sem se preocupar com a verossimilhana com a realidade externa obra,
contando com o pacto com o leitor, que aceita o jogo proposto e mergulha no mundo
ficcional.
Fernando Pessoa-morto est passando por um processo de desligamento do mundo, ou
melhor, tempo em que o mundo se desliga de quem morreu:
Contas certas, no geral e em mdia, so nove meses, tantos quantos os que
andmos na barriga de nossas mes, acho que por uma questo de
equilbrio, antes de nascermos ainda no nos podem ver mas todos os dias
pensam em ns, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os
dias nos vo esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses
quanto basta para o total olvido106.
p.82.
p.80.
107
p.227.
106
105
em vida continuam a existir e no podem ser mudados mais. No entanto, h algo pior:
porque irremedivel definitivamente, o gesto que no fiz, a palavra que no disse, aquilo
que teria dado sentido ao feito e ao dito108, ou seja, preciso fazer o que se pode enquanto
temos tempo, porque o que deixamos de fazer que nos mata. Isso vem de encontro crtica
feita tanto a Pessoa quanto a Ricardo Reis, que tambm se diz um espectador do mundo, para
quem no vale a pena fazer um gesto.
Ricardo Reis faz o caminho inverso de Fernando Pessoa: enquanto este aguarda os
nove meses para que o mundo se esquea de si, aquele tem nove meses para tentar viver o que
ainda no viveu, para, depois, sair do mundo. Ele tenta, sente que algo est diferente em seu
modo de agir, mas, com o passar do tempo, percebe que no h lugar para ele neste mundo e
comea a se desligar: no sai de casa (s para fazer as refeies), dorme o tempo todo, no se
arruma, no se reconhece, precisa apalpar o seu rosto para saber que ainda est l, as coisas ao
seu redor perdem o contorno, assim como ele prprio. Nem ler consegue; reinicia a leitura de
The god of the labirinth vrias vezes e no consegue passar da primeira pgina. Enfim, no
tem coragem para assumir sua vida, para dar fim sua solido, para sentir-se mais til.
Por isso, ao fim do romance, quando Fernando Pessoa vem se despedir, pois seu
tempo acabara, Ricardo Reis ouve o relgio do andar de cima no se lembrava mais dele,
percebeu-o apenas na primeira vez que o ouviu , agora era como se indicasse que o tempo
havia terminado. isso que entende, pois se arruma, pega o livro The god of the labirynth e
decide ir com Fernando Pessoa, que o questiona Devia ficar aqui a espera de Ldia (...) E
esse livro, para que 109. Ele responde: No lhe posso valer; e sobre o livro, Deixo o
mundo aliviado de um enigma110, que poderia ser lido como o prprio Ricardo Reis. E assim
reencontram-se criador e criatura.
3.4.7 Ricardo Reis: mscara da mscara
A proposta de Jauss (1984) que a Histria da Literatura seja estabelecida,
considerando-se a permanncia ou no da obra no sistema literrio, a partir da relao leitorobra atravs dos tempos, ou seja, como se deu a relao entre os diversos leitores e a obra em
momentos histricos diferenciados, e como essa obra pode se relacionar com as demais que
antecede ou a precederam, apresentando em si, dentro da srie literria, os horizontes de
expectativa j superados pelas obras anteriores bem como novos horizontes. Essa ressonncia
108
p.148.
p.415.
110
Idem.
109
106
de efeitos nas futuras geraes que faz com que uma obra continue a ocupar um lugar dentro
da Histria da Literatura. Diante disso, percebemos que Jos Saramago experienciou a obra de
Fernando Pessoa, posicionou-se e apropriou-se dela, resultando dessa relao dinmica uma
nova obra, O Ano da Morte de Ricardo Reis, com ressonncias da tradio literria pessoana,
mas renovada pela nova leitura conferida por Saramago, uma vez que a interao, de acordo
com Aguiar e Bordini (1993), um ato receptivo e criativo.
Iser (1999) chama esse ato de interao entre texto e leitor de esttico, pois exige do
leitor que use sua imaginao e percepo para se colocar no texto e rever suas prprias
atitudes. Essa a funo dos lugares vazios, instigar o leitor a usar a imaginao e a inferir,
por meio do que foi determinado no texto, o que foi deixado suspenso, em aberto, agindo
sobre a estrutura do texto. Saramago entra nesse jogo recepcional da obra de Pessoa, uma vez
que preenche os vazios deixados por este (a biografia de Ricardo Reis, a imagem de homem
apreendida por meio dos poemas) e reconstri a imagem de Ricardo Reis a partir do efeito
experimentado enquanto leitor.
Nessa perspectiva, Aguiar e Silva (1984) sublinha que todo texto uma tessitura
organizada por meio do entrelaar de outros textos, isto , outras vozes se fazem presentes
porque fazem parte da bagagem cultural de quem o escreveu. Saramago organiza O Ano da
Morte de Ricardo Reis por meio da constante intertextualidade com o texto pessoano, mais
especificamente, com as odes de Ricardo Reis, sem falar nas outras referncias literrias e
histricas presentes. A intertextualidade confere ao texto saramagueano mais verossimilhana,
de forma que, ao encontrarmos no corpo do romance referncia s odes, s musas, filosofia
de vida de Reis, aceitamos que estamos diante de uma continuao do Reis pessoano. Santilli
(1999) afirma que essa intertextualidade entre Saramago e Pessoa se d no campo da pardia,
para mexer com algo que j est sacralizado em nossa cultura literria e acreditamos que
Saramago tenha intencionado fazer, sim, uma crtica a todos os que se colocam como
espectadores do mundo na figura de Ricardo Reis e de um Fernando Pessoa-fantasma que
nada pode fazer a no ser olhar e angustia-se diante da realidade. Pensando nessa inverso
realizada por Saramago, vejamos qual a mscara que construiu para Ricardo Reis; que homem
emerge de seu texto.
Quanto sua filosofia de vida, epicurismo e estoicismo (desapego do mundo, das
paixes, dos prazeres transitrios, dos problemas e preocupaes), Ricardo Reis se mostra
indiferente a essa postura de vida, pois apresenta apego a hbitos rgidos, obedece convenes
sociais e diz sempre ter sido srio. Esses elementos no remetem a algum que vive a leveza
de estar longe dos acontecimentos e problemas cotidianos, mas a realidade de quem est sob o
107
108
Filosofia
de vida
Reis-poeta
Tenta viver a ataraxia; busca a
tranqilidade, a moderao dos prazeres,
a indiferena em relao ao espetculo
do mundo; no vale a pena fazer um
gesto, apenas contemplar a vida. Diz.
Reis-personagem
No vive os ideais do epicurismo e
do estoicismo, pois se mostra
apegado
a
hbitos
rgidos,
convenes e preconceitos sociais;
sente-se vazio, ftil; suas palavras
so
sem
profundidade,
sem
sinceridade; no se reconhece nos
poemas que escreveu e os v como
produto de um outro homem; no
consegue permanecer impassvel
diante das notcias sobre Portugal e o
109
A ptria
110
A morte
111
CONSIDERAES FINAIS
Ler um trabalho de construo conjunta entre o autor, o texto e o leitor. No h autor
sem texto ou texto sem leitor, pois na interao entre esses trs elementos que o texto ganha
carter de acontecimento e passa a existir de fato. Nesse processo interativo, cada leitura se
apresenta como nica, pois cada sujeito-leitor age de uma forma diferente em contato com o
material literrio devido aos conhecimentos prvios que possui e, mesmo que v obra duas
ou mais vezes, h sempre uma perspectiva nova pela qual pode ser lida.
O trabalho desenvolvido com a presente pesquisa fruto de uma reflexo acerca da
esttica da recepo, que considera as diversas recepes da obra literria tanto no momento
presente (aspecto sincrnico) quanto sua recepo atravs dos diversos momentos histricos
(aspecto diacrnico) e concebe a leitura como um efeito a ser experimentado, propiciando ao
leitor viver aquilo que no viveu e influenciar o seu modo de ver o mundo e se ver nele. A
esttica da recepo orientou a leitura das Odes do heternimo pessoano, Ricardo Reis, tendo
em conta que somos leitores atuais a experimentar a obra de Reis hoje. Tambm
consideramos o fato de que Ricardo Reis foi leitor de Horcio, e isso fica evidente em seus
poemas, enquanto Jos Saramago foi leitor de Ricardo Reis, interao da qual nasceu o
romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Dessa forma, podemos afirmar que Fernando
Pessoa produziu um reflexo, uma imagem, seu heternimo Ricardo Reis, que reflete a obra de
Horcio; Saramago, em contato com essa imagem, cria uma nova, o Reis-personagem; o
leitor, ao se deparar com esses diferentes reflexos, por meio da imaginao, espelha novas
imagens, em um contnuo processo de mise en abme, ou seja, de gerar fico na fico, como
destaca Simas-Almeida (1998).
Tivemos por objetivo, nessa pesquisa, entrar nesse jogo de composio de imagens
para compreender como o homem Ricardo Reis interage com as diversas situaes do
cotidiano (filosofia de vida, amor, mulheres, ptria, religio, liberdade, vida, morte, passagem
do tempo etc.), por meio de seus poemas, e comparar essa imagem de homem no mundo com
aquela recriada por Saramago em seu romance, momento em que o heternimo pessoano sai
da serenidade da Antigidade e se v inserido em uma realidade diferente daquela imvel e
tranqila que retrata em suas odes: revolues, guerras, polcia, paixes, desejos, solido,
decepo, filhos, decises. Devido a essa insero em um momento histrico e em meio a
acontecimentos que exigem de si mais que observar, o Reis-saramagueano no consegue se
manter impassvel, espectador.
112
113
ler, de calas curtas, sem culos, a refletir sobre sua vida e a julgar as aes de Reis, dizendo
que mesmo para os mortos no possvel ficar indiferente ao que acontece todos os dias. Isso
vem contradizer a figura de um Pessoa alheio ao momento histrico em que viveu. Junte-se a
isso o fato de Fernando Pessoa-fantasma ter oito meses, quando chega Reis a Portugal, para
perambular por Lisboa e ir se desligando aos poucos do mundo dos vivos, ou melhor, para os
vivos irem se esquecendo daquele que morreu, o grande poeta do sculo XX.
Conclui-se, ao fim dessa pesquisa, que o poeta Reis se difere da personagem
romanesca recriada por Saramago quanto ao modo de se relacionar com o mundo. PerroneMoiss (1998) salienta que a literatura, ao contrrio da Histria, no se ocupa somente do
passado, mas composta de passado e presente, porque os acontecimentos voltam a ocorrer a
cada leitura e, dessa forma, h uma releitura do passado com os olhos do presente. o que faz
Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis: deixa-se afetar pelo passado, pela tradio
literria que Fernando Pessoa representa, ao que acrescenta elementos do seu prprio
horizonte de expectativa (SOARES, 2004), preenche os espaos vazios no momento da
recepo da obra do heternimo, complementando, continuando ou modificando o que j era
consagrado, do que resulta uma nova forma de se ler Ricardo Reis: narrativizado.
114
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
115
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116
117
BIBLIOGRAFIA
118
ANEXO
119
MESTRE, so plcidas
Todas as horas
Que ns perdemos,
Se no perde-las,
Qual numa jarra,
Ns pomos flores.
No h tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sbios incautos,
No a viver,
Mas decorr-la,
Tranqilos, plcidos,
Tendo as crianas
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...
beira-rio,
beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
No nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
No vale a pena
Fazer um gesto.
No se resiste
Ao deus atroz
Que os prprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma tambm.
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
120
OS DEUSES desterrados.
Os irmos de Saturno,
s vezes, no crepsculo
Vm espreitar a vida.
Vm ento ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
a presena deles,
Deuses que o destron-los
Tornou espirituais,
De matria vencida,
Longnqua e inativa.
V, inteis foras,
Solicitar em ns
As dores e os cansaos,
Que nos tiram da mos,
Como a um bbedo mole,
A taa da alegria.
Vm fazer-nos crer,
Despeitadas runas
De primitivas foras,
Que o mundo mais extenso
Que o que se v e palpa,
Para que ofendamos
A Jpiter e a Apolo.
Assim at beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
E o poente tem cores
Da dor dum deus longnquo,
E ouve-se o soluar
Para alm das esferas...
Assim choram os deuses.
COROAI-ME de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
To cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
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O DEUS P no morreu,
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres
Cedo ou tarde vereis
Por l aparecer
O deus P, imortal.
No matou outros deuses
O triste deus cristo.
Cristo um deus a mais,
Talvez um que faltava.
P continua a dar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.
Os deuses so os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por ns,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propsito casual.
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Da estatura da sombra
Que sers quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E s rei de ti prprio.
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TIREM-ME os deuses
Em seu arbtrio
Superior e urdido s escondidas
O Amor, glria e riqueza
Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A conscincia lcida e solene
Das coisas e dos seres.
Pouco me importa
Amor ou glria,
A riqueza um metal, a glria um eco
E o amor uma sombra.
Mas a concisa
Ateno dada
s formas e s maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.
Seus fundamentos
So todo o mundo,
Seu amor o plcido Universo,
Sua riqueza a vida.
A sua glria
a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos
O resto passa,
E teme a morte.
S nada teme ou sofre a viso clara
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E intil do Universo.
Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
At deixar de ver.
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As floras aparecem
E com o outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo da indifrena
E a confiana mole
Na hora fugitiva.
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