Tese Artigo Modernismo

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS (MESTRADO)

ANAMLIA RODRIGUES MARQUIS MASSUCATO

RICARDO REIS E O MUNDO: O POETA DAS ODES E A PERSONAGEM DE O ANO


DA MORTE DE RICARDO REIS

MARING - PR
2006

ANAMLIA RODRIGUES MARQUIS MASSUCATO

RICARDO REIS E O MUNDO: O POETA DAS ODES E A PERSONAGEM DE O ANO


DA MORTE DE RICARDO REIS

Dissertao apresentada Universidade Estadual de


Maring, como requisito parcial para a obteno do grau
de Mestre em Letras, rea de concentrao: Estudos
Literrios.
Orientador: Prof.Dr.Clarice Zamonaro Cortez.

MARING - PR
2006

A Deus, que conduz os meus caminhos, dedico


primeiramente este trabalho.
Ao meu esposo, Leandro, companheiro paciente e
incentivador.
minha filha, Ana Clara, sentido para minha vida.
Aos meus pais, exemplos de luta e coragem.

AGRADECIMENTOS
H muitas pessoas que colaboraram direta ou indiretamente para a realizao deste
trabalho. A todas elas, a nossa gratido e de forma particular:
minha orientadora, Profa.Dra.Clarice Zamonaro Cortez, por estar sempre ao meu lado nessa
caminhada rumo ao conhecimento com pacincia, competncia e amizade, alm de ser
modelo de dedicao e paixo pela profisso;
banca examinadora, Prof.Dr.Adalberto de Oliveira Souza e Prof.Dr.Odil Jos de Oliveira
Filho, pelas preciosas observaes e contribuies;
aos professores e funcionrios da Universidade Estadual de Maring (UEM), por terem
participado da minha formao;
UEM, instituio que desenvolveu em mim o amor pela pesquisa;
aos companheiros que passaram comigo por esse processo, em especial, s amigas Profa.Ms.
Ana Cristina Wolff e Profa.Ms. Iris Selene Conrado pela cumplicidade, amizade e fora.
No posso me esquecer de agradecer ainda aos meus familiares pelo incentivo
contnuo e o amor incondicional.

No censuro o Reis mais que a outro qualquer poeta.


Aprecio-o, realmente, e para falar a verdade, acima
de muitos de muitssimos. A sua inspirao estreita
e densa, o seu pensamento compactamente sbrio, a
sua emoo real se bem que demasiadamente virada
par o ponto cardeal chamado Ricardo Reis. Mas
um grande poeta aqui o admito-, se que h
grandes poetas neste mundo fora do silncio de seus
prprios coraes (lvaro de Campos, apontamento
sem data. In: PESSOA, 1982: 69-70).
(...)
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido
(Ricardo Reis. In: PESSOA, 1982: 74).

RESUMO
No sculo XX, foram muitas as transformaes sofridas pela sociedade portuguesa. Os
primeiros anos trouxeram consigo novas perspectivas culturais e estticas, as quais vinham
lentamente sendo geradas no sculo anterior e que, por fim, eclodiram. A poesia de Fernando
Pessoa reflete de alguma forma o impacto dessas transformaes iniciadas no sculo XIX, o
que resultou no jogo dramtico da heteronmia que se apresenta em sua poesia, exigindo do
leitor um trabalho de recomposio desse caminho percorrido. A presente dissertao objetiva
verificar, por meio da leitura das Odes, como o heternimo Ricardo Reis se relaciona com o
mundo, e comparar esse posicionamento ao adotado pela personagem protagonista do
romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, de Jos Saramago. De carter
bibliogrfico, a pesquisa est fundamentada na leitura e resenhas de textos tericos, crticos e
analticos e adota o mtodo recepcional postulado por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser,
alm de basear-se na anlise temtica e estilstica das Odes de Ricardo Reis e do romance O
Ano da Morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago. A pesquisa se justifica pela constatao de
uma possvel contradio entre a criao heteronmica e a recriao da personagem do
romance, possibilitando uma abertura para a comparao entre a mscara de homem
presente nas Odes e a recriao feita por Saramago, enfocando o modo como poeta e
personagem se posicionam e agem diante da realidade que os cercam. Em outras palavras, a
pesquisa pretende verificar se a imagem emanada dos versos das Odes corresponde
personagem romanesca erigida da leitura feita por Saramago do heternimo pessoano no que
diz respeito relao do homem com o mundo. Inicialmente, apresenta-se um levantamento
de dados e informaes a respeito do Modernismo em Portugal e do contexto em que o
referido movimento esteve inserido. Segue um estudo sobre Fernando Pessoa e a questo da
heteronmia, fato marcante de sua obra, que culmina com a anlise da figura de Ricardo Reisheternimo e do protagonista do romance, preenchendo os espaos vazios e tentando fazer
emergir as diferentes vises de mundo e sua relao com ele. Os aspectos observados, a partir
de uma leitura das intertextualidades, referem-se s dificuldades, alegrias, prazeres, amor,
mulheres, natureza, poltica e morte, enfim, tudo o que se refere no cotidiano da vida, tendo
em vista que entre o leitor e as idias veiculadas se interpe o texto e este se abre a diversas
possibilidades de realizaes na leitura, conforme as diferentes perspectivas daqueles que o
buscam.
PALAVRAS-CHAVE: Ricardo Reis Fernando Pessoa O Ano da Morte de Ricardo Reis
Jos Saramago Poesia e Romance Mtodo Recepcional

ABSTRACT
During the 20th century, the Portuguese society underwent many transformations. The first
years brought new cultural and aesthetic perspectives, which had slowly been generated
during the previous century, and that, at least, emerged. Fernando Pessoas poetry reflects any
way these transformations that was started in the 19th century, which resulted into the
dramatic play of heteronyms present in his poetry, requiring the reader to re-create the way
gone through. This dissertation aims to verify, by reading Fernando Pessoas Odes, how the
heteronymous Ricardo Reis relates to the world, and compares this position to that one
adopted by the main character from the novel O Ano da Morte de Ricardo Reis, published in
1984, written by Jos Saramago. The research is based on reading and reporting theoretical,
critical and analytical texts, and adopts the reader-response criticism postulated by Hans
Robert Jauss and Wolfgang Iser, as well as on the thematic and stylistic analyses of Ricardo
Reis Odes and of the novel O Ano da Morte de Ricardo Reis, by Jos Saramago. The
research is justified by the verification of a possible contradiction between the heteronymic
creation and the re-creation of the character in the novel, making possible an overture for the
comparison between the mask present in the Odes and the re-creation made by Saramago,
focusing the mode how the poet and character place themselves and act towards the reality
that surround them. In other words, the research intends to verify if the image emanated from
the verses in Odes correspond to the novel character erected from the reading done by
Saramago of Pessoas heteronym concerning to the relation of the man with the world. Firstly,
it is presented data and information about the Modernism in Portugal and the context in which
this movement was inserted. Secondly, follows a study on Fernando Pessoa and the question
of heteronym, remarkable fact for his work; finally, this work reaches its highest point with
the analysis of the Ricardo Reis-heteronym and the main character in the novel, filling the
gaps and trying to make emerge the different visions of the world and his relation with it. The
aspects verified, from the reading of the intertextualities, refer to the difficulties, joys,
pleasures, love, women, nature, politics, and death, at last, all that refers to the daily life,
taking into account that between the reader and the ideas propagated is interposed the text and
that it is open to diverse possibilities of reading realizations, in conformity to the different
perspectives from those who seek for it.
KEY-WORDS: Ricardo Reis Fernando Pessoa Jos Saramago O Ano da Morte de
Ricardo Reis poetry and novel reader-response criticism.

SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................10
1. A ESTTICA DA RECEPO PRESSUPOSTOS TERICOS
1.1 Da histria geral para uma histria recepcional da literatura............................14
1.2 Ler e experienciar: uma questo de efeito.............................................................18
1.2.1 Criar imagens e experimentar sentidos...................................................................20
1.2.2 A construo da obra e do sentido..........................................................................22
1.2.3 O leitor....................................................................................................................24
1.2.4 Do mundo real para o texto: o repertrio...............................................................26
1.2.5 As estratgias textuais............................................................................................27
1.2.6 Interao texto e leitor: uma relao assimtrica....................................................33
1.3 Caminhos para o trabalho com a Esttica da Recepo......................................36
2. FERNANDO PESSOA: POETA DA DISPERSO
2.1 Introduo................................................................................................................38
2.2 O Modernismo em Portugal...................................................................................39
2.2.1. Orpheu: en[cantar] com a nova poesia..................................................................40
2.3 Fernando Pessoa: a pessoa e o[s] poeta[s].............................................................43
2.3.1. Um drama em gente: unidade e diversidade..........................................................46
2.3.2. Alberto Caeiro.......................................................................................................48
2.3.3 Ricardo Reis...........................................................................................................49
2.3.4 lvaro de Campos..................................................................................................50
3. DE OLHO NO MUNDO: ESPECTADOR OU PERSONAGEM?
3.1 O desenrolar da anlise...........................................................................................52
3.2 O espectador do mundo..........................................................................................53
3.2.1 beira-rio, beira-estrada: filosofia de vida.........................................................53
3.2.2 Horcio por Ricardo Reis.......................................................................................64
3.2.3 Religio e liberdade................................................................................................69
3.2.4 A mulher e o amor em Ricardo Reis......................................................................74
3.2.5 Estrangeiro para o mundo.......................................................................................77
3.2.6 O barco escuro no soturno rio.................................................................................80

3.2.7 Como vidro luz do sol..........................................................................................83


3.3 A vida e a fico segundo Jos Saramago..............................................................85
3.4 O labirntico Ricardo Reis-personagem................................................................89
3.4.1 Filosofia de vida.....................................................................................................92
3.4.2 Carpe diem.............................................................................................................94
3.4.3 As mulheres e o amor.............................................................................................96
3.4.4 Religio e liberdade..............................................................................................100
3.4.5 Sua relao com a ptria.......................................................................................102
3.4.6 A morte para Ricardo Reis...................................................................................103
3.4.7 Ricardo Reis: mscara da mscara.......................................................................105
3.5 Quadro Comparativo............................................................................................108
CONSIDERAES FINAIS......................................................................................111
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................114
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................117
ANEXO.........................................................................................................................118

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INTRODUO
Em todos os tempos, a Literatura sempre foi uma forma de expressar a histria das
alegrias, das conquistas, dos sonhos, das tristezas, das inquietaes, das angstias e das
derrotas do ser humano. Por meio do literrio, o homem pode criar e criar-se a todo o
momento, por meio da experincia com o mundo ficcional, como uma possibilidade de
realidade oferecida pela arte.
Uma das maiores figuras literrias de Portugal e do mundo, no sculo XX, foi, sem
dvida, Fernando Pessoa, ao conseguir transformar em poesia a tradio lrica de seu povo,
alm de trazer em si todas as inquietaes humanas de uma sociedade em crise e em guerra,
como um gigantesco painel de registro sismogrfico (MOISS, 1999: 241), ou seja, Pessoa
conseguiu captar o que cada ser humano sentiu, sente ou sentir, em uma tentativa de entender
e organizar o Universo. Por meio dessa capacidade de ver a realidade sob vrios pontos de
vista que surgem os heternimos, o poeta se dispersa e se desdobra em outras
personalidades.
Fernando Pessoa nos apresenta um jogo dramtico. nele que pretendemos entrar e
tentar desvendar uma dessas mscaras por ele criada e revelada atravs dos textos poticos:
o heternimo Ricardo Reis. Moiss (1999: 244) afirma que o poeta se vale das referidas
mscaras para esconder-se atrs delas para melhor revelar-se, mas revelando-se s avessas,
ou antes, indiretamente exigindo do leitor um trabalho de recomposio do caminho
percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para
despistar.
De acordo com Galhoz (1985), Fernando Pessoa criou, para cada um de seus
heternimos mais importantes, uma biografia e uma personalidade prprias dentro do
contexto criativo/literrio. Assim, Ricardo Reis nasceu em 1887, na cidade do Porto. Estudou
em colgio de jesutas, um latinista por educao alheia, e um semi-helenista por educao
prpria (Pessoa, 1986: 98). Expatriou-se no Brasil em 1919, pois no concordava com o
novo regime instaurado, a repblica, visto ser monrquico.
Fernando Pessoa, contudo, no terminou a biografia de Ricardo Reis. nesse ponto
que Jos Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, valendo-se
dessas notas biogrficas, criou o referido romance considerado por Galhoz (1985: 24) ao
mesmo tempo claro e enigmtico.
O que pretendemos com a presente pesquisa verificar se a imagem emanada dos
versos das Odes corresponde personagem romanesca recriada por Jos Saramago, no que

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diz respeito relao do homem Ricardo Reis com o mundo. Segundo Bueno (1999), em seu
estudo sobre a construo da personagem em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a indiferena,
a ataraxia em relao ao mundo e s coisas so marcas tanto do heternimo quanto da
personagem. Essa conduta, porm, um ideal potico pautado no paganismo, no epicurismo e
no estoicismo, e que, no romance, torna-se o determinante de suas aes no cotidiano.
Como discpulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis herdou o paganismo e o
sensacionismo, aceitando as coisas como elas so: a busca da simplicidade do campo, do
desprezo pelo social e sofisticado e da busca pela felicidade, que, conforme postula o
epicurismo, se d medida que nos afastamos do mundo, das preocupaes, das paixes e
evitamos a dor. Assim, conforme ressalta Loureno (apud Bueno, 1999: 209), Fernando
Pessoa, ao tornar Reis discpulo de Caeiro, concebeu seu mundo como um universo corrodo
pela irrealidade, onde encontra a calma e desfruta da ausncia de si mesmo.
Segundo Bueno (1999), entretanto, no romance de Jos Saramago a personagem
Ricardo Reis acaba por envolver-se com os problemas da ditadura salazarista, o que provoca
uma contradio entre a postura enunciada nas Odes e a personagem recriada por Saramago.
Nas Odes h um homem que prega a indiferena, o afastamento do mundo para manter uma
ausncia de preocupao, j no romance, h algum que no consegue manter esse
distanciamento, a partir do momento que desembarca no Cais de Alcntara.
A pesquisa se justifica pela constatao da contradio existente entre o heternimo
das Odes e a personagem de O Ano da Morte de Ricardo Reis, a mscara de homem criada
para o heternimo pessoano nas Odes (enfocando sua postura em relao ao mundo) e a
recriao de Jos Saramago, na obra O Ano da Morte de Ricardo Reis.
O mtodo que nortear nossa pesquisa, quanto ao trabalho com os textos poticos e o
romance, ser o mtodo recepcional, conhecido como esttica da recepo, cujas bases se
encontram nos trabalhos de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser.
Os estudos literrios comearam a tematizar a relao entre literatura e leitura somente
a partir dos anos 60, dando maior nfase figura do leitor e ao ato da leitura. Segundo Jauss
(1994), o que faz uma obra literria ser consagrada no so as condies histricas de sua
produo nem o modo como se posiciona em relao a esse contexto histrico ou sua
importncia na evoluo de um gnero determinado, mas os critrios da recepo, do efeito
produzido pela obra e de sua fama junto posteridade (Jauss, 1994: 7-8).
Jauss (1994) prope o deslocamento do carter artstico do autor (estudos biogrficos)
ou do texto (Formalismo, New Criticism) para o efeito esttico nos leitores. Sua proposta
abarca ainda a questo da histria literria baseada na recepo atual de leitura e em suas

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recepes anteriores. De acordo com Aguiar e Silva (1993), a obra seria o cruzamento entre
todas as apreenses feitas e a serem feitas nos vrios contextos histricos em que foi lida e no
que est sendo estudada.
Quanto aos efeitos produzidos no leitor, segundo Iser (1999: 15), compreendemos que
a leitura de um texto vai alm dele prprio ou do leitor em si, pois um potencial de efeito
que se atualiza no processo de leitura. O texto, portanto, comunicao, pois se constitui na
sua interao com o contexto e o leitor, provocando um ciclo recepcional: o mundo
referncia para quem escreve; a obra a reao do autor frente ao mundo; a obra se torna um
importante veculo capaz de trazer novas perspectivas de mundo ao leitor.
Uma obra literria tem, segundo Iser (1999), dois plos: um artstico e um esttico. O
artstico se manifesta no texto como criao do autor; o esttico, na concretizao feita pelo
leitor. No entanto, a obra literria no pode ser reduzida apenas ao texto nem concretizao
do leitor, mas deve ser vista como um ponto de convergncia entre texto e leitor, mas que
mantm seu carter virtual.
O efeito esttico , por conseguinte, o resultado da relao interativa entre texto e
leitor. Iser (1999: 16) afirma que, apesar de o texto ser uma motivao, o efeito esttico se d
quando o leitor faz uso de sua imaginao, de sua percepo e quando reage diante do que
est lendo, pois o texto no um registro de algo existente, mas a reformulao de uma
realidade j formulada, que se atualiza a cada leitura.
No ato da leitura, o leitor formula imagens, as quais so erigidas das palavras
expressas no texto. Na imaginao do leitor, o que o texto explicita se concretiza juntamente
com o que est omitido, mas que pode ser inferido pelo leitor. Assim, o leitor materializa
aquilo que no existe, mas que verbo.
A compreenso da importncia da imagem fundamental para que compreendamos o
sentido. Este seria o objeto do leitor, que tenta defini-lo a partir das referncias que tem a seu
dispor. Diante disso, Iser (1999: 33) esclarece que se a princpio a imagem que estimula o
sentido que no se encontra formulado nas pginas impressas do texto, ento ela se mostra
como produto que resulta do complexo de signos do texto e dos atos de apreenso do leitor.
Desse modo, Iser (1999) explica que o leitor sempre relaciona o sentido a algo nele
despertado; o leitor deixa de precisar explicar o sentido, o qual passa a ser um efeito a ser
experimentado.
A escolha da esttica da recepo se justifica pelo fato de compreendermos que
Ricardo Reis foi leitor de Horcio e de outros autores clssicos, resultando em uma postura
enquanto leitor e poeta. Jos Saramago, tambm leitor de Fernando Pessoa-Ricardo Reis,

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apresenta expectativas de leitura em relao s Odes, o que influencia na construo de sua


personagem-poeta no romance. Assim, o contato com as Odes provocou uma reao, O Ano
da Morte de Ricardo Reis. Diante dessas duas obras, colocar-nos-emos como leitores e
tentaremos construir, a partir do preenchimento dos lugares vazios encontrados nos textos, a
imagem de homem e de mundo apresentadas nos poemas e no romance.
As teorias de base sero apresentadas no primeiro captulo do trabalho, consistindo em
um breve apanhado sobre o desenvolvimento de uma Histria da Literatura calcada na histria
recepcional das obras, proposta por Jauss (1994), e da leitura enquanto efeito experienciado e
possibilitado pela estrutura textual, pelo repertrio selecionado, pelas pistas deixadas no texto,
pelos lugares vazios e pela participao fundamental do leitor ao gerar imagens em sua mente
e dar sentido ao que l (ISER, 1999).
O segundo captulo dedicado ao um estudo mais aprofundado sobre Fernando Pessoa
e sua participao no Modernismo portugus, alm de seu drama em gente, ou seja, a
questo da heteronmia.
A anlise compreende o terceiro captulo, ponto central da dissertao, que se encontra
dividida em trs momentos: leitura e anlise das Odes de Ricardo Reis, na tentativa de fazer
emergir a viso que o heternimo Ricardo Reis tinha do mundo e sua relao com ele; leitura
e anlise do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago, objetivando
descobrir como a personagem-poeta reage dentro do contexto do romance, ou seja, como se
relaciona com as situaes em que se encontra inserida no romance.
A construo de um quadro comparativo entre a imagem de Ricardo Reis nas Odes e a
imagem da personagem do romance, verificando-se as semelhanas e diferenas de
posicionamento diante da realidade apresentadas entre o Ricardo Reis-poeta e o Ricardo Reispersonagem o nosso objetivo final neste captulo.
Conscientizamo-nos que o texto literrio se abre a mltiplas possibilidades de leitura.
O que apresentaremos ser uma dessas possibilidades de realizao, uma vez que somos
leitores situados em determinado tempo e espao, objetivando com essa leitura uma
contribuio fortuna crtica de Fernando Pessoa e de Jos Saramago, amparada nos
pressupostos tericos da esttica da recepo.

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1. A ESTTICA DA RECEPO PRESSUPOSTOS TERICOS


1.1 Da histria geral para uma histria recepcional da literatura
A teoria da esttica da recepo teve incio, de acordo com Aguiar e Silva (1994), nos
ltimos anos da dcada de sessenta do sculo XX, sob as influncias da esttica da
fenomenologia, da teoria da comunicao, da semitica e da teoria do texto. Hans Robert
Jauss, um dos precursores dessa teoria, props uma reestruturao da histria da literatura, a
partir da histria recepcional das obras, atravs dos tempos. Wolfgang Iser, por sua vez,
ocupou-se da teoria do efeito, ou seja, o que o texto causa quele que o l. Neste captulo,
temos por objetivo apresentar os aspectos principais da esttica da recepo, buscando
entender o modo como essa teoria concebe a literatura, a leitura e a funo do leitor.
Comecemos pelo conceito de obra literria na esttica da recepo. Segundo Jauss
(1994), uma obra alcana status de literria quando consegue permanecer entre os leitores
pelo efeito causado na sua recepo, ou seja, sua fama prosseguir se for bem recebida pelo
pblico leitor. Dessa forma, Jauss (1994) coloca em primeiro plano para o estudo da histria
da literatura no mais as qualidades, a categoria, as condies contextuais em que surgiu a
obra ou sua colocao na periodizao literria, mas o critrio a permanncia junto
posteridade. Situar uma obra dentro do sistema literrio determinar o tempo e o espao em
que se encontra e analisar de onde vem e para onde aponta.
Aguiar e Bordini (1993: 14) concordam com esse ponto de vista ao apresentarem a
obra literria como uma tomada de conscincia do mundo concreto que se caracteriza pelo
sentido humano dado a esse mundo pelo autor. Assim, no um mero reflexo na mente, que
se traduz em palavras, mas o resultado de uma interao ao mesmo tempo receptiva e
criadora.

Dessa forma, o texto uma forma de colocar a disposio de outros, de vrios

tempos e espaos, de diferentes grupos sociais, e em movimento, esse sentido humano do


mundo, por meio de processos comunicativos, intermediados pela linguagem verbal.
Jauss (1994: 23) prope, portanto, que a histria da literatura seja traada a partir da
relao leitor e obra, uma vez que esta relao que estabelece e condiciona a permanncia
ou no de uma obra no sistema literrio. Considerando, desta forma, a relao entre leitor e
obra literria em diferentes pocas, consegue-se estabelecer um nexo entre as obras
literrias.
Essa relao entre literatura e leitor possui algumas implicaes:
- implicaes estticas: o leitor avalia o valor esttico de uma obra, comparando-a com
outras j lidas.

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- implicaes histricas: numa cadeia de recepes, existe a continuidade da


compreenso por outros leitores e esta se enriquece de gerao em gerao, decidindo o
prprio significado histrico da obra e tornando visvel sua qualidade esttica.
Dentro dessa perspectiva, Jauss (1994: 24) determina que a reescrita da histria da
literatura seja fundamentada sobre a esttica da recepo e do efeito, ou seja, no experienciar
dinmico da obra literria por parte de seus leitores. O historiador, enquanto leitor, tambm
precisa se posicionar diante do que l, tendo em vista que est fazendo parte da srie
histrica dos leitores.
Em relao ao que leitura, tomamos como base o conceito apresentado por
Glawinski (1995: 1), o qual explica que, segundo uma viso crtica, a leitura uma atividade
cultural, sujeita as certas normas, e passvel de diferenas sujeitas cultura literria da qual
uma determinada leitura faa parte. Essa concepo de leitura como atividade cultural faz
com que a obra literria no tenha um fim em si mesma, no seja considerada um objeto
autnomo e limitado ao texto. Para que o texto acontea, imprescindvel a atuao do
sujeito-leitor, situado em determinado contexto scio-cultural, cuja influncia ser decisiva no
processo de leitura.
Por isso, a obra literria no apresenta sempre o mesmo aspecto a leitores diferentes e
de diferentes pocas, no diz a mesma coisa a cada leitura e no uma entidade atemporal,
mas, a cada tempo, a cada leitura feita, capaz de proporcionar novas experincias a leitores
diversos: como uma partitura voltada para a ressonncia sempre renovada da leitura,
libertando o texto da matria das palavras e conferindo-lhe existncia atual (JAUSS, 1994:
25).
Segundo Jauss (1994), a literatura se diferencia dos acontecimentos histricos no
sentido de que o literrio no impe conseqncias materiais para as pessoas e futuras
geraes; tem sua existncia garantida enquanto houver leitores que se apropriem das obras,
autores querendo imit-las, refut-las ou super-las e crticos que se ocupem delas na reflexo.
Do contrrio, no h histria da literatura porque no h recepo nem produo esttica, isto
, o literrio s existir se houver uma ressonncia de seus efeitos sobre as geraes futuras.
Para que uma obra continue a suscitar o interesse do pblico leitor, entretanto,
preciso que integre a novidade experincia literria do leitor. Uma obra literria nova,
desconhecida, pode ser apreciada, experienciada devido a uma forma de conhecimento prvio
que faz com que a obra seja lida. Podemos listar o conhecimento de estrutura formal, de
gnero, de linguagem, isso, enfim, o que faz com que seja experiencivel: Ela desperta a
lembrana do j lido, enseja logo de incio expectativas quanto a meio e fim, conduz o leitor

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a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da


compreenso vinculado, ao qual se pode, ento e no antes disso -, colocar a questo acerca
da subjetividade da interpretao e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores
(JAUSS, 1994: 28).
Dessa forma, consegue-se a objetivao do horizonte de expectativas, o que significa
comear a obra pelo horizonte de expectativa do leitor, apresentando aquilo que
convencional quanto ao gnero, estilo ou forma, e, passo a passo, quebrar esse horizonte,
produzindo assim efeitos crticos e poticos.
Segundo Jauss (1994), a reconstituio do horizonte de expectativa de uma obra pode
determinar sua qualidade artstica pelo modo e grau que age sobre um determinado pblico. A
distncia entre o horizonte de expectativa do leitor e a nova obra chamada de distncia
esttica. Essa distncia que est entre o horizonte preexistente do leitor e a acolhida da nova
obra, que pode provocar a negao de experincias anteriores ou a conscientizao a respeito
de outras, causando uma conseqente mudana de horizonte. Por isso, a recepo de uma obra
literria no momento de sua apario e a reao do pblico e da crtica a que submetida
que determinam o valor esttico de uma obra a distncia entre o horizonte de expectativa e
a obra, entre o j conhecido da experincia esttica anterior e a mudana de horizonte
exigida pela acolhida nova obra, determina, do ponto de vista da esttica da recepo, o
carter artstico de uma obra literria (JAUSS, 1994: 31).
Se h uma aproximao entre o horizonte de expectativa e a nova obra significa que
seu carter esttico fraco, ou seja, uma obra que se aproxima da arte passageira, dos
modismos literrios, no exigindo esforo de conscincia em direo uma experincia
desconhecida. Aguiar e Bordini (1993) chamam esse tipo de obra de conformadora. Tambm
a obra considerada clssica pode ter sua distncia esttica diminuda devido ao sentido eterno
e imutvel que lhe conferido, o que faz com que sua leitura seja bvia e perca seu carter
esttico. Jauss (1994) salienta que preciso ir obra clssica com a inteno de buscar uma
leitura contrria habitual e encontrar novamente seu carter artstico. Aguiar e Bordini
(1993) consideram aquela obra capaz de ampliar, alterar ou romper com as convenes
conhecidas e aceitas pelo leitor, modificando seu horizonte de expectativas, como uma obra
emancipatria, capaz de causar conflito entre o leitor e suas concepes de mundo.
Em relao a anlise da obra literria em seu contexto, a teoria esttico-recepcional
prope que a obra no seja estudada por si s, isolada, mas que seja inserida no processo
literrio, a fim de ser analisada em seu contexto e em relao s obras que antecedem-na.
Para Jauss (1994), a obra nova precisa ser vista como uma continuidade, como uma resposta a

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questes pendentes nas obras anteriores da srie literria e tanto o horizonte passado como o
novo esto presentes na obra recm apresentada.
O historiador de literatura tem um ponto de partida, mas no de chegada; a
temporalidade resgatada e o historiador d a conhecer a distncia varivel entre o
significado atual, aquele que o horizonte inicial consegue acessar, e o significado virtual de
uma obra, o almejado, que pode ficar desconhecido por muito tempo at que o pblico tenha
um horizonte capaz de compreend-lo. O carter artstico de uma obra no se esgota na
condio de inovao ou na oposio velho-novo, nem inteiramente percebido no momento
de publicao, pois as inovaes nem sempre so acessveis ao pblico inicial e um longo
processo de recepo necessrio para alcanar o esperado que modifique o horizonte inicial,
em que a obra se apresentava como inacessvel.
Jauss (1994: 50) ressalta ainda que a histria da literatura, considerada como parte da
histria geral, no cumpre o seu papel quando se deixa prender pelas anlises diacrnica ou
sincrnica dos perodos literrios, mas quando vista tambm como histria particular, em
sua relao prpria com a histria geral. (...) A funo social somente se manifesta na
plenitude de suas possibilidades quando a experincia literria do leitor adentra o horizonte de
expectativa de sua vida prtica, pr-formando seu entendimento do mundo e, assim,
retroagindo sobre seu comportamento social.
A literatura , portanto, uma fonte onde o leitor pode experimentar acontecimentos,
sentimentos, aes que ainda no conhecia e, dessa forma, romper e ampliar seu horizonte de
expectativas, trazendo esses conhecimentos adquiridos para suas relaes em sociedade. A
inteno de Jauss (1994) justamente determinar qual a contribuio especfica da literatura
no processo de formao do indivduo e verificar em que medida a experincia literria
influencia os comportamentos no contexto scio-cultural.
Na cincia ou na experincia pr-cientfica, de acordo com Poppe (apud JAUSS, 1994:
52) existem expectativas, hipteses a serem confirmadas; entretanto, mais importante que a
confirmao a frustrao das expectativas, momento em que se entra em contato efetivo
com a realidade. Em literatura, o leitor no precisa se chocar com a realidade para adquirir
uma nova experincia, pois seu contato com a literatura o prepara para diversas situaes.
A experincia da leitura logra libert-lo das opresses e dos dilemas de sua
prxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepo das
coisas. O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da
prxis histrica pelo fato de no apenas conservar as experincias vividas,
mas tambm antecipar possibilidades no concretizadas, expandir o espao
limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretenses e

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objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experincia futura


(JAUSS, 1994: 52).

A obra literria no apenas representa a realidade social, mas coloca seus leitores
diante de questes ainda no solucionadas pela moral, pela religio, pelo Estado e isenta o
leitor do automatismo, ao apresentar a realidade sob um novo olhar alm de novas solues
para problemas supostamente j solucionados.
A histria da literatura, conforme nos aponta Jauss (1994: 57), cumpre seu papel
quando deixa de descrever o processo da histria geral e como esta ocorre nas obras, passando
a revelar a literatura e seu desenvolvimento enquanto constitutiva da sociedade, como uma
das formas de levar o homem libertao de conceitos preexistentes e dar-lhe maior
conscincia de si e do mundo que o cerca. Iser (1999) complementa ao afirmar que o texto
literrio realiza a comunicao entre o mundo, as estruturas sociais dominantes e a literatura
j existente, provocando intervenes, por meio da reorganizao dos sistemas de referncia
que so selecionados e re-significados pelo texto. Alm de se comunicar, portanto, com o
leitor, o texto pode ainda fazer com que os efeitos produzidos no leitor sejam refletidos em
suas relaes na sociedade.
1.2 Ler e experienciar: uma questo de efeito
At o presente momento, refletimos a respeito da nova histria da literatura proposta
pela teoria da esttica da recepo. Passemos agora aos conceitos referentes prpria teoria e
sua metodologia. Para Iser (1999: 7), a esttica da recepo tem como conceitos centrais o
efeito e a recepo: o efeito e a recepo formam os princpios centrais da esttica da
recepo, que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com mtodos histricosociolgicos (recepo) ou teortico-textuais (efeito). A esttica da recepo alcana,
portanto, a sua mais plena dimenso quando essas duas metas diversas se interligam.
A esttica da recepo surgiu como necessidade de se responder s novas tentativas de
interpretao do texto literrio no mais como um produto acabado de seu autor ou
simplesmente como objeto esttico. A literatura moderna precisava de novas perguntas, novos
critrios, no mais aqueles usados antigamente, para ser revelada. Entretanto, os
questionamentos antigos continuam a ser importantes para a interpretao por seu valor
histrico e mostram os caminhos pelos quais a interpretao j caminhou, mas que no
presente perdem o sentido. Para que surjam as novas perguntas, preciso que sejam separadas
daquelas convencionais e se pense a nova obra a partir de novos questionamentos. Assim, da

19

inteno do texto, passou-se sua recepo, ao modo como o texto reflete e faz refletir sobre
o ser humano.
A modernidade a negao de tudo o que era considerado clssico (harmonia,
equilbrio, beleza, plenitude X grotesco, feio, desequilbrio, fragmentrio). A negatividade da
literatura moderna atua sobre nossas concepes orientadoras, sobre nossas atitudes e nossa
percepo cotidiana. A arte faz com que algo nos acontea e ao pesquisador cabe descobrir o
que acontece a quem entra em contato com o literrio, questionando sobre o efeito do texto.
Iser (1999) salienta que o primeiro efeito produzido sobre o autor e da em diante um
ciclo de efeitos se inicia, culminando com a concepo de texto como acontecimento: o
mundo que age sobre o autor; este escreve sobre o mundo; logo, o livro uma referncia do
mundo e, quando lido, torna-se um acontecimento; este acontecimento traz novas perspectivas
para o mundo que no estavam nele contidas. Logo, o mundo a realidade de referncia; o
texto literrio seleciona aspectos, elementos da realidade de referncia e incorpora-os, dando a
eles nova significao. A seleo j um acontecimento, porque tira um elemento de sua
relao de subordinao na realidade de referncia. A seguir, os elementos selecionados
passam por uma combinao, isto , so combinados entre si e novas relaes de
subordinao so compostas, o que faz com que extrapolem sua determinao semntica e
contextual, produzindo novos efeitos de sentido. Por isso, o texto literrio polissmico, pois
traz, alm dos sentidos do senso comum, vrias aberturas para a construo de novas vises.
O carter de acontecimento do texto consiste, portanto, em romper com a referncia da
realidade, e ao selecionar e combinar os elementos, extrapolar as fronteiras semnticas das
palavras.
Glawinski (1995) considera a leitura como uma atividade diria, controlada, quando o
leitor tem conscincia e faz um trabalho de reflexo/interpretao ao ler, ou ingnua, quando a
leitura se d no sentido comum. Ambas, porm, partem do mesmo ponto: as concepes
comuns de cada leitor, o que cada um traz em sua bagagem cultural. Glawinski (1995: 2)
afirma: Ns no podemos apreender uma obra fora do nosso contexto cultural e sem os
elementos que j temos interiorizados. A leitura nos leva ao nosso mundo, ao mundo de
nossas representaes e valores, diminuindo a distncia at o texto.
Isso refora a noo de movimento circular proporcionado pela leitura: o leitor vai ao
texto, encontra-se refletido a si e ao mundo em que est inserido; mas o texto faz com que
volte a esse mundo com um novo olhar, ou seja, leva o leitor reflexo, trazendo tona novos
elementos. Por isso, o leitor nunca o mesmo ao terminar uma leitura porque vivenciou novas
experincias.

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Por isso, Glawinski (1995) explica que a leitura possui a propriedade de ser realizvel,
uma vez que trazemos o texto ao nosso mundo e o nosso mundo ao texto. Existe um universo
comum dividido entre o sujeito que l e o objeto lido, resultando no conhecimento que se
realiza na troca de saberes entre leitor e texto, propiciado pela cultura literria.
Diante disso, percebemos que no s os conceitos comuns so atualizados na leitura,
mas outros valores relativos prpria literatura, como sua natureza, as propriedades, as
funes, o literrio ou no, o que se considera boa ou m literatura. Isso significa que o gosto
esttico-literrio de um perodo fixado pela tradio e retransmitido pelas escolas, tambm
exerce influncia no momento da leitura e no momento de avaliar e classificar os fatos
literrios.
1.2.1 Criar imagens e experimentar sentidos
Iser (1999: 15) define o texto como um potencial de efeitos que se atualiza no
processo da leitura. Isso significa que o texto possui, nas palavras de Iser (1999: 13), uma
pregnncia de sentido, isto , est repleto de sentidos que podem ser atualizados no momento
da leitura, englobando os efeitos produzidos pela reao do autor perante o mundo at as
expectativas do leitor e as selees de sentido que se realizam na leitura. Para isso, o texto
deixa instrues a serem seguidas pelo leitor para que o seu sentido possa ser constitudo.
Nesse processo de comunicao, a ateno da esttica da recepo recai sobre o efeito
esttico produzido, resultado da interao entre texto e leitor. Segundo Iser (1999: 16), esse
efeito causado no leitor chamado de esttico porque apesar de ser motivado pelo texto
requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, a fim de obrig-lo a diferenciar suas
prprias atitudes. Essas reaes desencadeadas no leitor so resultados do contato com algo
ainda inexistente no mundo, de uma nova percepo de mundo, fazendo com que o leitor se
coloque no texto e imagine sua atuao dentro daquela reformulao de uma realidade j
formulada (ISER, 1999: 16).
A formulao da imagem muito importante para a esttica de recepo, pois o
sentido no uma idia expressa discursivamente, por meio de uma linguagem referencial,
mas tem carter de imagem. O texto traz lugares vazios (blank) a serem preenchidos pelo
leitor com sua imaginao, de forma que o seu sentido captado como imagem, algo no
expresso verbalmente, mas que concretiza aquilo que no existia. Iser (1999: 33) define: O
sentido o objeto, a que o sujeito se dirige e que tenta definir guiado por um quadro de
referncia. A imagem estimula o sentido e resultado dos processos de combinao e
apreenso do leitor, frente matria textual:

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Se a princpio a imagem que estimula o sentido que no se encontra


formulado nas pginas impressas do texto, ento ela se mostra como o
produto que resulta do complexo de signos do texto e dos atos de apreenso
do leitor. O leitor no consegue mais se distanciar dessa interao. Ao
contrrio, ele relaciona o texto a uma situao pela atividade nele
despertada; assim estabelece as condies necessrias para que o texto seja
eficaz. Se o leitor realiza os atos de apreenso exigidos, produz uma
situao para o texto e sua relao com ele no pode ser mais realizada por
meio da diviso discursiva entre Sujeito [leitor] e Objeto [sentido]. Por
conseguinte, o sentido no mais algo a ser explicado, mas sim um efeito a
ser experimentado (ISER, 1999: 33-34).

Segundo Iser (1999), o sentido no consegue ser explicado, apenas percebido como
efeito, a partir da participao do leitor na leitura. Isso acontece porque, ao explicar o sentido
de um texto, estamos utilizando como referncia a realidade e colocando no mesmo nvel o
que surgiu por meio do texto ficcional e a realidade extra-textual.
As snteses tambm acontecem em forma de imagem. Iser (1999) afirma que criamos
representaes no decorrer da leitura do texto ficcional porque os signos do texto se limitam a
orientar-nos como o objeto deve ser construdo. Iser (1999: 58-59) esclarece ainda que a
imagem , portanto, a categoria bsica da representao. Ela se refere ao no-dado ou
ausente, dando-lhe presena. Mas a imagem possibilita tambm a representao de inovaes
que se constituem quando o saber previamente estabelecido desmentido, ou seja, quando
determinadas combinaes de signos no so familiares. Iser (1999) exemplifica com a
construo da personagem: no imaginamos uma personagem por inteiro; ela se constitui das
vrias facetas que vamos descobrindo ao longo da leitura, que fazem com que se modifique
constantemente, diferentemente do cinema, onde a personagem aparece pronta. Entretanto,
essa representao que constitumos no fisicamente visvel, mas ilumina a personagem
como uma portadora de significados, por isso a decepo ao assistirmos a um romance
filmado no estamos na presena do objeto, ele est em nossa presena.
A representao de um objeto ficcional diferente da representao de algo da vida
real, porque, alm de no estar presente, no tem pr-existncia no mundo real. Desse modo,
o processo de construo da imagem precisa ser regulado por meio de dados previamente
estabelecidos.
O texto traz esquemas de representaes. Esses esquemas, porm, so ativados pelo
leitor que conhecer as referncias apresentadas. Da, a formao das representaes acontece.
Contudo, nem todos os leitores tm acesso a todas as referncias e aos elementos que
compem o esquema, de tal forma que, para alguns, o texto no alcana seu significado pleno.

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Os esquemas so empregados para estimular representaes elementares, confirmando


essas representaes ou fazendo com que o leitor subverta a viso do senso comum e olhe os
acontecimentos sob um outro ponto de vista (o excludo, por exemplo). Atravs do que est
posto, dito no texto que emerge o no-formulado e este pode ser representado.
A cada fase da leitura, h modificaes, acrscimos, reorganizao do sentido. O
momento temporal importante na leitura, em que passado, presente e futuro esto sempre
em contato. A cada leitura, um texto adquire novos significados; o sentido enquanto fruto
das realizaes jamais poder ser o mesmo, sendo nico e no-repetvel (ISER, 1999: 79).
1.2.2 A construo da obra e do sentido
Anteriormente, afirmamos que o texto e sua estrutura fornecem as pistas para que o
leitor constitua seu sentido. De acordo com Iser (1999), todo elemento utilizado para a
construo de uma obra literria tem uma funo, entretanto no esse elemento e sua funo
no texto que constituem a significao do mesmo; no a estruturao em si que determina a
interpretao, mas o efeito que tal arranjo provocar naquele que l a obra.
Ao contrrio do que se fazia antigamente, quando interpretar uma obra significava
desvendar a inteno do autor, o sentido secreto, a relao com o contemporneo, as bases
psicanalticas, histricas ou a estrutura formal, existe hoje a busca por descobrir a histria da
interpretao e os fatores que no se manifestavam sob as normas tradicionais de
interpretao, tendo em vista que um texto s tem sentido no ato de sua leitura, quando existe
interao entre a estrutura da obra e o receptor.
Ingarden (apud ISER, 1999: 50) apresenta a construo em camadas da obra literria e
os modos de concretizao da mesma:
(...) a obra literria tem dois plos que podem ser chamados plos artstico e
esttico. O plo artstico designa o texto criado pelo autor e o esttico a
concretizao produzida pelo leitor. Segue dessa polaridade que a obra
literria no se identifica nem com o texto, nem com sua concretizao.
Pois a obra mais do que o texto, s na concretizao que ela se realiza. A
concretizao por sua vez no livre das disposies do leitor, mesmo se
tais disposies s se atualizam com as condies do texto. A obra literria
se realiza ento na convergncia do texto com o leitor; a obra tem
forosamente um carter virtual, pois no pode ser reduzida nem realidade
do texto, nem s disposies caracterizadoras do leitor.

Dessa forma, na constituio de uma conscincia receptora que o texto se realiza;


no ato de leitura que a obra, enquanto processo, adquire seu carter prprio. Iser (1999: 51)
afirma que a obra o ser constitudo do texto na conscincia do leitor, explicitando a

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necessidade tanto da parte textual, artstica, quanto da participao efetiva do leitor, que a
concretiza na leitura. Mas, como vimos, a obra no s estrutura nem s participao do
leitor; so os dois elementos combinados que constituem a obra literria.
Para se analisar, portanto, a relao entre obra e leitor no se pode concentrar a anlise
em apenas um desses plos. Iser (1999) explica que preciso observar como as estruturas de
um texto afetam o leitor. Essas estruturas apresentam carter duplo de estrutura verbal e
afetiva. Verbal porque de alguma forma faz um direcionamento da reao; afetiva porque
pressupe o seguimento e o cumprimento do que se encontra pr-estruturado verbalmente no
texto. Essa anlise balanceada entre os plos procura desvendar como o texto foi estruturado
para que produza seu efeito, bem como o leitor reage diante dessa estruturao.
Iser (1999: 53) define o efeito esttico como aquilo que vem ao mundo e que ainda
no existia, no-familiar. Quando tentamos relacionar esse no-idntico a algo j existente,
compreensvel, anulamos o efeito esttico, pois esse efeito s efeito, enquanto o que
significado por ele no se funda em nada seno nele mesmo. Por isso, no devemos
perguntar o que um texto significa, mas o que acontece ao leitor ao ler um texto ficcional.
a observao do modo como o leitor reage ao texto, lembrando que uma das funes da
literatura , segundo o formalismo, provocar o estranhamento, ou ainda, a comoo: a juno
da emoo daquele que criou a obra de arte emoo daquele que a recebe. Logo, a
significao apresenta-se como um evento, no podendo ser estruturada denotativamente, por
uma explicao referencial. antes o produto de efeitos experimentados, ou seja, de efeitos
atualizados do que como uma idia que antecede a obra e se manifesta nela. Aqui a
interpretao ganha uma nova funo: em vez de decifrar o sentido, ela evidencia o potencial
de sentido proporcionado pelo texto (ISER, 1999: 54). A cada leitura temos, portanto, a
atualizao da obra em um processo comunicativo essa comunicao entre texto e leitor
que deve ser descrita, apesar de no podermos precisar exatamente o potencial de sentido no
processo de leitura.
Existe ou no um padro ideal que est subjacente ao texto, ou seja, um modo objetivo
de ler um texto que por ele orientado? As crticas teoria do efeito esttico ressaltam que
esta deixa margem para qualquer compreenso subjetiva. Entretanto, Iser (1999) pondera que
qualquer ato de compreenso dirigido pelas estruturas do texto, mas no controlado por elas.
Significa que o texto traz um caminho a ser percorrido e o leitor pode percorr-lo de acordo
com sua escolha e possibilidade, no podendo o autor, o texto, a estrutura ou o crtico exercer
controle sobre os limites dessa leitura, uma vez que o significante no consegue abarcar todos
os significados.

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Dessa forma, a objetividade trazida pelo texto ficcional no pode ser confundida com
a realidade, pois os textos apresentam pontos de indefinio; so esses pontos que
possibilitam a comunicao entre texto e leitor, bem como a participao deste na
concretizao da intencionalidade textual. Para que haja, portanto, a comunicao entre texto
e leitor, preciso, principalmente, compreenso.
A compreenso faz com que o leitor experimente de modo intenso e ntimo, o que l: a
experincia privada se realiza quando o leitor, ao interagir com o texto, incorpora as
experincias trazidas pelo texto s suas prprias experincias, ou seja, transforma o texto, nas
palavras de Iser (1999: 58) em realizao prtica.
Cada leitor, todavia, pode realizar o texto de uma forma diferente, de acordo com seus
critrios subjetivos. Por isso, ao emitirmos um juzo de valor sobre uma obra, baseamo-nos
em nossas impresses pessoais e justificamos nossa opinio buscando critrios objetivos.
Mesmo com critrios objetivos, porm, o juzo emitido subjetivo. Iser (1999) explica que
ainda que o texto literrio traga em si instrues, pistas a qualquer leitor que entre em contato
em ele, cada sujeito produzir sua avaliao, conforme sua vivncia pessoal. Em vista disso,
temos que um texto literrio no apresenta conceitos fechados, objetivos e definidos, mas,
necessariamente abertos. Logo, os conceitos estticos podem ser modificados ou corrigidos
conforme o caso a ser aplicado; ou ainda um novo conceito pode surgir para dar conta de um
novo caso, uma nova necessidade.
1.2.3 O leitor
Cada texto literrio, de acordo com Iser (1999), visa um determinado tipo de leitor, ou
ainda, os leitores so diferenciados conforme os objetivos a que se prestam. A esttica da
recepo visa apresentar as normas de avaliao dos leitores e, a partir disso, construir uma
histria social do gosto do leitor. Vejamos que, se analisarmos o leitor contemporneo,
devemos enfocar um determinado pblico, sob o ponto de vista e segundo normas e atitudes
desse pblico, revelando o cdigo cultural que orienta seu juzo de valor.
Para Iser (1999: 65) o leitor ideal seria uma fico, uma impossibilidade estrutural de
comunicao, uma vez que este utilizaria o mesmo cdigo do autor e conheceria todas as
suas intenes ao conceber um texto. Dessa forma, o leitor ideal seria aquele que conseguisse
realizar na leitura todo o potencial de sentido do texto ficcional, independentemente de sua
situao histrica. Contudo, o sentido do texto no imutvel, mas aberto, como j tratamos.
Por isso, a cada leitura, em diferentes pocas e locais, um texto se atualiza de uma nova
forma.

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O leitor ideal, porm, tem sua utilidade para a argumentao, visto que preenche as
lacunas no momento da anlise do efeito e da recepo da literatura, permitindo que se infira
algo que fizesse parte da subjetividade do leitor. Alm disso, o leitor ideal til justamente
por seu carter ficcional, incorporando diversas competncias, conforme o problema a ser
resolvido.
Cada texto escrito visando um determinado tipo de leitor; este leitor o leitor
implcito ao texto, que se encontra materializado nas estruturas textuais, nas orientaes,
pistas deixadas no texto para os possveis leitores. Iser (1999: 73-74) explica que so
atribudos papis a esses possveis receptores: o papel de leitor se define como estrutura do
texto e como estrutura do ato. Quanto estrutura do texto, de supor que cada texto literrio
representa uma perspectiva do mundo, criada por seu autor. O texto, enquanto tal, no
apresenta uma mera cpia do mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe
dado. no modo de constituio que se manifesta a perspectiva do autor, alm das demais
perspectivas. Nenhuma dessas perspectivas, porm, concentra o sentido do texto:
(...) marcam em princpio diferentes centros de orientao no texto, que
devem ser relacionados, para que se concretize o quadro comum de
referncias. A tal ponto uma certa estrutura textual estabelecida para o
leitor que obrigado a assumir um ponto de vista que permita produzir a
integrao das perspectivas textuais. O leitor, porm, no pode escolher
livremente esse ponto de vista, pois ele resulta da perspectiva interna do
texto. S quando todas as perspectivas internas do texto convergem no
quadro comum de referncias o ponto de vista do leitor torna-se adequado
(ISER, 1999: 74).

Isso quer dizer que, quando o leitor consegue captar todas as perspectivas presentes
na estrutura do texto (autor, enredo, personagens, narrador etc.), alm da sua, que a leitura
ser adequada, ou ainda, o quadro de referncias ser o mesmo. Quando o leitor assume o
ponto de vista do texto, ele possibilita que o quadro de referncias das perspectivas textuais
seja captado e somado ao sistema de perspectividade e o sentido de cada perspectiva pode
ser inferido. A funo central do leitor implcito , portanto, possibilitar que se reconstruam as
estruturas gerais do quadro de referncias que contribuem para as diversas atualizaes
histricas e individuais do texto, com suas particularidades.
Iser (1999) esclarece que no se deve confundir fico do leitor e papel do leitor. A
fico do leitor o meio pelo qual o autor expe o mundo ao leitor imaginado, enquanto o
papel do leitor se refere construo do texto pelo receptor, ao seguir as estruturas textuais.
Logo, o papel do leitor tambm uma estrutura somente realizada no ato da leitura.

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Entretanto, nem perspectivas nem pontos de vista so verbalizveis, de forma que o sentido de
um texto apenas imaginvel, pois no aparece explicitado, mas se atualizar na conscincia
imaginativa do leitor.
Iser (1999) afirma, porm, que a superposio de papel do leitor, leitor implcito e
leitor real no acontecem por completo, do contrrio ele no traria suas experincias ao texto
e no associaria o novo horizonte ao seu. Por isso, o seu papel se cumpre medida que na
leitura possa introduzir suas vivncias e concepes, o que indica que cada atualizao nica
e determinada. Essa atualizao est acessvel ao olhar do crtico, desde que este se debruce
sobre as estruturas de efeito presentes no texto, que constituem a base para a atualizao.
De acordo com Lotman (apud ISER, 1999: 124), o texto literrio como um
organismo vivo que se liga ao leitor por um feedback e que lhe d instrues. Isso quer
dizer que a todo instante o texto fornece informaes ao leitor, conforme a sua capacidade de
compreenso, enquanto uma outra gama de dados transmitida pela linguagem, no momento
de uma segunda leitura. Eis a uma das caractersticas do texto literrio: concentrar muitas
informaes em um texto curto, com palavras precisas. A comunicao entre texto e leitor,
portanto, constante, e o feedback, ou o controle de correo, que faz com que as
informaes inferidas ou captadas do texto pelo leitor sejam confirmadas ou refutadas. Por
isso, os significados so constantemente corrigidos para que sejam construdos e o texto
realizado. nesse constante movimento de confirmao e de refutao que o texto se atualiza
e se realiza, uma vez que, durante o processo de leitura, o leitor insere as informaes obtidas
atravs dos efeitos nele provocados, resultando em constantes realizaes durante o processo.
1.2.4 Do mundo real para o texto: o repertrio
Em relao seleo do repertrio, no texto literrio percebemos a presena de
elementos familiares ao leitor, pertencentes realidade extratextual. Essas informaes, no
entanto, no aparecem simplesmente como reproduo ou repetio, pois se movimentam em
ambientes diferentes do comum. Mesmo o familiar, nos textos literrios, no interessa por
trazer algo j conhecido, mas pelo resultado de seu uso em uma situao inusitada.
Para Iser (1999), o familiar o intencionado, presente no texto, mas que aponta o no
intencionado, no formulado no texto, uma vez que os significados vo alm dos
significantes. Nisso reside o valor esttico do texto: o no captvel. O texto no copia a
realidade, mas os seus modelos, os quais so baseados em sistemas pr-estabelecidos de
valores, condutas, perspectivas da realidade que se organizam por meio de sistemas
apresentados ao leitor como modelos de realidade ou realidades negadas. Tais modelos so

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representados no discurso ficcional, como forma de reao no s aos sistemas, mas aos seus
limites e ao que excluem.
Segundo Iser (1999: 138), a fico o complemento da realidade, na tentativa de
apresentar o que os sistemas dominantes rejeitam; dessa forma, abarca a realidade como um
todo, mostrando todos os seus lados medida que o texto seleciona possibilidades e
tematiza sua escolha em seu repertrio, isto , aquelas que os respectivos sistemas de sentido
realizaram. Desse modo, o texto ficcional proporciona tanto os contornos relevantes do
sistema (ou dos sistemas), aos quais ele reage quanto os dficits que ele articula medida que
oferece uma soluo ficcional.
Diante disso, ao ler um texto ficcional o leitor tem diante de si novas possibilidades de
leitura da realidade extratextual, pois consegue v-la sob um novo ponto de vista e ainda
perceber acontecimentos, aes, gestos, sentimentos que no conseguiria captar de forma
consciente e efetiva no seu dia-a-dia.
1.2.5 As estratgias textuais
Como j foi dito, o texto ficcional apresenta pistas, instrues dirigidas ao leitor, a fim
de que este possa compreend-lo e atualiz-lo, proporcionando uma constante comunicao.
Essas pistas e instrues so as estratgias utilizadas pelo escritor para organizar a matria
textual, ou seja, pertencem ao momento de elaborao do texto. As estratgias organizam a
forma de apresentao do repertrio, dos sistemas, das equivalncias virtuais desses
contedos em texto literrio. Por isso, quando se resume um texto, por exemplo, este perde
seu efeito de estranhamento diante do leitor porque a histria apresentada de forma
denotativa, sem significao.
As estratgias combinam os elementos, de forma que a estrutura textual seja
compreensvel de modo que tenha coerncia e coeso. As estratgias, porm, enquanto
forma de arranjar o texto ficcional, no possuem representatividade em si, mas conduzem a
certa inteno de sentido, pois, conforme a combinao estrutural, as tcnicas escolhidas, o
que no familiar o inesperado aparece.
So elas que organizam o espao interno do texto, isto , so elas que combinam os
elementos selecionados, ou ainda, combinam as diversas perspectivas presentes no texto do
narrador, dos personagens, da ao ou enredo, da fico marcada do leitor:
Os comentrios do narrador, o discurso indireto livre de heri e personagens
secundrios, o desenvolvimento da ao e as posies marcadas do leitor se

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entrelaam no texto e oferecem atravs dos pontos de vista nele contidos


uma constelao de vises diferenciadas. Da podemos concluir que o
objeto esttico do texto se constitui atravs dessas vises diferenciadas,
oferecidas pelas perspectivas do texto. O objeto esttico emerge da
interao dessas perspectivas internas do texto; ele um objeto esttico
medida que o leitor tem de produzi-lo por meio da orientao que a
constelao dos diversos pontos de vista oferece (ISER, 1999: 179-180).

Para Lotman (1975: 3), todo texto projetado sobre uma estrutura extratextual que,
no seu sentido mais abstrato, pode ser definida como um tipo de viso de mundo ou um
modelo cultural. Essa viso de mundo traz uma imagem desse mundo, que expressa pelo
ponto de vista. O texto literrio, portanto, seria uma combinao entre os pontos de vista
internos e uma determinada forma de viso de mundo. O conceito de ponto de vista
corresponde ao de perspectiva e se constitui em um sistema gerador de uma estrutura
ideolgica ou estilstica que pode ser reconstituda por meio da leitura.
A perspectividade interna do texto, portanto, apresenta uma determinada combinao
dos elementos selecionados e uma determinada estrutura. Essa perspectividade interna
chamada, conforme Alfred Schtz (apud ISER, 1999) postula, de estrutura do tema e do
horizonte, o que quer dizer que as perspectivas se relacionam entre si, entrelaando-se durante
a leitura, uma vez que o leitor no capaz de abarcar todas as perspectivas ao mesmo tempo.
essa alternncia de pontos de vista que confere ao texto, de acordo com Lotman (1975),
dinamicidade, visto que cada ponto de vista, ao seu tempo, apresentado como verdadeiro e
est em conflito com os demais. quando deixa de ser horizonte e passa a ser tema.
Gadamer (apud ISER, 1999: 181) explica que horizonte tudo que se v, o qual
abarca e encerra o que visvel a partir de certo ponto. Na leitura, o horizonte do leitor se
estabelece a partir do momento em que o leitor fixa um ponto e um horizonte se forma sobre o
que foi visto anteriormente e o que se observa no presente. A estrutura tema e horizonte traz
vrias conseqncias, que podem ser assim elencadas:
1. Organizar a relao texto-leitor, fundamental para a compreenso, de modo que
cada ponto de vista apresentado possa de tornar tema e, logo a seguir, horizonte.
2. Atravs dessa mudana de perspectivas, possvel chegar ao que estava oculto, por
meio dessa constante mudana de posies, da qual se constitui o objeto esttico.
3. Atravs dessa mudana de posies entre tema e horizonte e dos vrios
entrelaamentos de perspectivas as mltiplas interpretaes so favorecidas e o objeto esttico
cumulado de significados.

29

A estrutura tema e horizonte corresponde atividade de imaginao, devido s


mudanas de perspectivas que organiza e promove. Alm disso, faz com que o leitor esteja
consciente dos fatos narrados, por precisar estar atento ao movimento constante de
confirmao e refutao e pela alternncia de perspectivas, exigindo que realize operaes de
sntese e atos de apreenso do texto (ISER, 1999: 186).
Os atos de apreenso esto relacionados situao comunicativa. Esta se constitui por
dois plos: a estrutura do texto e a estrutura do ato, quando o texto desperta ou estimula atos
de compreenso Se o texto se completa quando o seu sentido constitudo pelo leitor, ele
indica o que deve ser produzido; em conseqncia, ele prprio no pode ser o resultado
(ISER, 1999: 9). Ou seja, o produto no o texto, mas, sim, a interao entre o que o texto
indica e o sentido completado pelo leitor, fazendo com que tenha carter de acontecimento.
Percebemos, ento, que o texto, por meio dos seus signos, estimula atos no leitor, e
esses atos, por mais que o texto apresente instrues, no so controlveis. essa abertura
que proporcionar as diversas recepes de um mesmo texto, pois nesse ponto que entra a
participao do leitor e este produz sentidos durante a leitura. Por isso, Iser (1999) afirma que
a leitura proporciona prazer medida que usamos nossas capacidades para a produo de
sentidos, medida que participamos. Conclumos sobre a importncia da comunicao entre
texto-leitor com a afirmao de Sartre (apud Iser, 1999: 11) a respeito da alteridade do texto
literrio: Na produo de uma obra, o ato criativo apenas um momento incompleto e
abstrato (...) a arte existe unicamente para o outro e atravs do outro.
Iser (1999) descreve o processo de leitura, dentro da estrutura subjetiva que o
movimenta, retomando a questo dos pontos de vista. O leitor se move dentro do texto que
deve apreender, com a complicao de que os textos ficcionais no se esgotam na denotao
dos objetos referidos a referncia retirada/selecionada de um contexto padro para ser
apresentada sob nova forma, que exige do leitor uma leitura oposta ao mundo familiar. Sob
essa perspectiva, envolvemo-nos no texto e somos transcendidos por ele, mas, num
primeiro momento, o leitor no consegue compreender todos os dados fornecidos pelo
material textual, pois, a cada fase da leitura, o leitor constri um novo ponto de vista sobre o
texto, sintetizando em sua conscincia os dados novos que vai recebendo. Essa sntese segue o
leitor em cada fase, acompanhando o seu ponto de vista.
O leitor se posiciona no texto em uma situao como ponto de convergncia da
protenso e reteno, quer dizer, o leitor capta uma determinada fase da leitura, antecipa a
seguinte, confirma ou refuta suas inferncias e capaz de produzir uma sntese das
informaes at ento recebidas:

30

(...) cada momento da leitura representa uma dialtica de protenso e


reteno, entre um futuro horizonte que ainda vazio, porm passvel de ser
preenchido, e um horizonte que foi anteriormente estabelecido e satisfeito,
mas que se esvazia continuamente; desse modo, o ponto de vista em
movimento do leitor no cessa de abrir os dois horizontes interiores do
texto, para fundi-los depois. Esse processo necessrio porque, como
vimos, somos incapazes de captar um texto num s momento (ISER, 1999:
17).

Logo, diante dos vrios pontos de vista em movimento temos vrias perspectivas. O
leitor articula nos vrios momentos de leitura todas as perspectivas textuais para poder
estabelecer qual o seu prprio ponto de vista. Segundo Iser (1999: 22), o fluxo da leitura no
acontece de modo unilateral e irreversvel, mas o que est sendo retido e presentificado
possui um efeito retroativo, o presente modificando o passado.
As estruturas do texto se desenvolvem no horizonte de memria e de expectativa do
leitor e geram uma mudana constante dessa memria e uma crescente complexidade de
expectativa. a dialtica dos horizontes que possibilita as vrias atividades sintticas que se
processam durante a leitura: Temos aqui uma das principais atividades da leitura: o ponto de
vista em movimento desenrola o texto em estruturas interativas; da resulta a atividade de
agrupamento em que se funda a apreenso do texto (ISER, 1999: 28).
Para que se tenha o agrupamento das idias e a apreenso de um texto fundamental a
presena da iluso como o paradigma que estrutura a memria e confere coerncia ao que
narrado, possibilitando a compreenso. Maurice Merleau-Ponty (apud ISER, 1999: 41)
caracteriza a iluso pelo fato de que ela finge ser ela mesma uma percepo real, cuja
significao resulta do sensvel e s dele. Ela imita aquele tipo de experincia que se
caracteriza pela concordncia do sentido e do sensvel, pela articulao do sentido que
visvel ou se manifesta no sensvel.
Aguiar e Bordini (1993) reiteram que a obra literria possui significao autnoma.
No apresenta e nem precisa apresentar o objeto real, pois entre autor e leitor se estabelece um
pacto, e o leitor entra no jogo do texto, deixando de lado sua realidade momentnea, para
viver, na iluso, o mundo da personagem ficcional. A coerncia interna dos elementos
estruturais do texto que conferem ao texto um carter de independncia em relao ao
contexto. As autoras ressaltam ainda o aspecto aberto do texto literrio que possibilita a
participao do leitor com sua experincia de mundo e que faz com que o texto no perca seu
carter de iluso da realidade. Da o carter plurissignificativo da obra literria.
Diante disso, podemos dizer que a iluso faz com que o leitor amplie suas experincias
e possa ter a impresso de ter vivido uma outra vida. nesse momento que o texto se torna

31

evento, porque reagimos diante dele e o sentido por ns produzido, em nossa conscincia,
converte-se em realidade para ns: The success f a work of art [...] may be measured by the
degree to which it produces a certain illusion; that illusion makes it appear to us for the time
that we have lived another life that we have had a miraculous enlargement of experience1
(Henry James, apud ISER, 1999: 43).
O texto se torna evento quando os conflitos de leitura so resolvidos pelo
aparecimento de uma terceira dimenso, ou seja, quando a oscilao entre envolvimento e
liberao se resolve pela fora das estratgias textuais, modificando a formao da coerncia,
e o leitor consegue enxergar o texto como um mundo prprio.
No so as expectativas, as surpresas, as decepes ou as frustraes que acontecem
no processo de formao da coerncia do texto na conscincia do leitor que produzem o
sentido de um texto. Essas so reaes do leitor diante de sua prpria produo o que faz com
que o texto se apresente como evento real para seu leitor.
No entanto, a coerncia, favorecida pela iluso, desfavorecida pela ambigidade do
texto literrio. Iser (1999: 47) ressalta que a ambigidade faz com que o texto formulado
signifique algo que no foi formulado e vrias discrepncias so articuladas e negadas na
tentativa de produzir um ajuste, uma integrao. Tudo se d na imaginao, o que provoca um
envolvimento com o texto e este se torna presena para ns. Por isso, muitas de nossas
experincias passadas ficam para trs e do lugar a uma nova experincia, que interage com o
conhecimento anterior e promove uma reestruturao.
Diante disso, Iser (1999: 51) afirma: O ato da recepo de um texto no se funda na
identificao de duas experincias diferentes, uma nova, outra sedimentada, mas na interao
destas duas, ou seja, em sua reorganizao (p.51). Isso significa que nossos valores, padres,
concepes do passado vm tona e se reorganizam em contato com a nova experincia.
Logo, o leitor se envolve com o texto e capaz de observar como se deu esse envolvimento,
ou seja, percebe como reagiu diante do texto. Nesse processo de constituio do sentido, o
leitor tambm se constitui, por meio daquilo que produz. Esse o efeito causado no leitor.
Iser (1999: 81) faz a distino entre sentido e significado ao dizer que podemos
descobrir um sentido e no compreender seu significado o significado de um sentido se
revela quando este estabelece uma relao com uma determinada referncia; o significado
traduz o sentido num sistema de referncias e o interpreta em vista de dados conhecidos. Por

O sucesso de uma obra de arte [...] pode ser medido pelo grau de iluso que ela produz; essa iluso faz parecer
como que tivssemos vivido uma outra vida que tivssemos tido um miraculoso aumento de experincia
(traduo nossa).

32

isso, um sentido pode ter vrios significados, conforme o cdigo sociocultural de quem entra
em contato com o texto.
Desvendar a constituio do sujeito-leitor um dos objetivos de Iser (1999), isto ,
descobrir o que h subjacente ao ponto de vista do leitor; quais as estruturas presentes no
texto que ajudam o leitor a constituir seu ponto de vista e a se tornar um sujeito, aquele que
faz com que o texto acontea e assuma os pensamentos de outro.
Mesmo seguindo as instrues, o leitor no consegue compreender todas as
informaes transmitidas pelo texto, uma vez que o v do lado de fora. Para que o leitor
assuma um ponto de vista, o texto precisa provocar algo no leitor, um efeito. O leitor precisa
distanciar-se de suas prprias experincias para poder instituir o ponto de vista do leitor
implcito no texto, isto , precisa pegar o fio de meada a partir do que o texto lhe apresenta,
num primeiro momento. Esse ponto de vista presente no texto pode trazer elementos que
demonstrem os valores, a realidade, as concepes de seus leitores possveis. No
compartilhamento dessas informaes, o leitor real pode delinear a que pblico o texto foi
dirigido e pode, mesmo muito tempo depois, atualizar o texto a partir de suas prprias
experincias.
Nesse processo de comunicao entre leitor e texto ou sujeito e objeto no h divises,
mas trocas simultneas e interao; o que se d no momento da leitura que permite ao
sujeito-leitor transitar em um mundo no-familiar; o encontro, em nvel de conscincia,
entre os pensamentos do autor e do leitor. Essa relao de comunicao s acontece quando
autor e leitor suspendem sua histria e disposies pessoais, para viver uma outra histria que
no a sua, pensar o que no so, por algum tempo. Contudo, as disposies individuais
continuam a interagir de vrias formas no momento da leitura, mesmo que relegadas a um
passado.
Pensar algo no ato da leitura que nos estranho porque no o
experimentamos ainda significa no s que temos de apreend-lo; alm do
mais, significa que esses atos de apreenso so bem-sucedidos na medida
em que formulam algo em ns. Pois os pensamentos de um outro s se
deixam formular em nossa conscincia se a espontaneidade mobilizada em
ns pelo texto ganhar uma forma. Com a espontaneidade despertada
formulada sob as condies de um outro, cujos pensamentos tematizamos
durante a leitura, no formulamos nossa espontaneidade em funo das
nossas orientaes, pois estas no teriam trazido luz a nossa
espontaneidade. A constituio de sentido que acontece na leitura, portanto,
no s significa que criamos o horizonte de sentido, tal como implicado
pelos aspectos do texto, ademais, a formulao do no-formulado abarca a
possibilidade de nos formularmos e de descobrir o que at esse momento
parecia subtrair-se nossa conscincia. Neste sentido, a literatura oferece a

33

oportunidade de formularmo-nos a ns mesmos, formulando o no-dito


(ISER, 1999: 92-93).

1.2.6 Interao texto e leitor: uma relao assimtrica


Passaremos a tratar, agora, da interao entre texto e leitor e como a comunicao
acontece entre ambos. Segundo Iser (1999: 99), um dos fundamentos da interao a
contingncia2, que nasce da prpria interao entre diferentes sujeitos que esto em planos
diferenciados e marcar a aceitao, a negao ou a complementao entre esses planos:
Quanto mais ela reduzida, tanto mais a interao entre os parceiros se ritualiza; quanto
mais ela aumenta, tanto menos consistente se torna a seqncia das reaes, culminando no
caso extremo na destruio de toda a estrutura interativa. Isso quer dizer que quanto menor a
diferena de planos entre texto e leitor, isto , quanto mais eles tiverem em comum, maior
ser a identificao e o processo interativo ter maiores chances de acontecer; quanto maior a
distncia entre texto e leitor, quanto menos o leitor compreender do texto, mais comprometida
estar a interao.
Diante disso, percebemos que existe uma assimetria entre texto e leitor, pela falta de
referncias comuns, assim como entre dois indivduos existe um espao a ser preenchido, uma
lacuna, pois ambos trazem planos de conduta e experincias diferenciados. Esse espao aberto
gera um grau de indeterminao que estimular a interao, a possibilidade de o leitor agir
com e no texto, preenchendo esses vazios com suas projees, a partir do que o texto
apresenta. O leitor no pode ficar preso a suas prprias projees, mas deve, na interao com
texto, modific-las conforme se d a leitura. Dessa forma, muitas representaes so
estimuladas e a assimetria entre texto e leitor vai sendo aos poucos superada para dar lugar a
uma situao comum entre ambos.
Lima (1979: 23) salienta que a interao entre leitor e texto no medida ou regulada.
Em cada ato de interao situa-se um hiato, isto , um vazio a ser preenchido pela
interpretao A interpretao, portanto, cobre os vazios contidos no espao que se forma
entre a afirmao de um e a rplica do outro, entre pergunta e resposta. Na relao entre
texto e leitor, os vazios so preenchidos com as projees do leitor. O xito da comunicao
se dar quando o leitor conseguir modificar, por meio do contato com o texto, suas
representaes habituais.

S.f. 1. Qualidade do que contingente. 2. Incerteza sobre se uma coisa acontecer ou no. 3. Com. Reserva,
cota, contingente (FERREIRA, A.B.H. Dicionrio Aurlio Bsico de Lngua Portuguesa. So Paulo: Nova
Fronteira, 1995).

34

Para que essa comunicao acontea de forma satisfatria, Iser (1999) afirma que a
ao do leitor precisa ser regulada de alguma forma pelo texto. Lima (1979: 24) complementa
dizendo que os complexos de controle do texto tm por funo tanto orientar a leitura,
quanto exigir de o leitor deixar sua casa e se prestar a uma vivncia no estrangeiro; testar
seu horizonte de expectativas, colocando prova sua capacidade de preencher o
indeterminado com um determinvel i.e., uma constituio de sentido no idntico ao que
seria determinado, de acordo com seus prvios esquemas de ao. Esses complexos de
controle no expulsam o leitor, mas o chamam para dentro do texto.
O no-dito, de acordo com Iser (1999), uma dessas formas de levar o leitor para
dentro do texto e imaginar o significado de algo que foi dito, mas que foi sucedido por um
lugar vazio, o qual d margem para a inferncia de uma leitura por detrs das palavras. Para
Iser (1999: 106), o jogo de mostrar e ocultar que d movimento e regula o processo
comunicacional: O no dito estimula [o leitor] a atos de constituio, mas ao mesmo tempo
essa produtividade controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar quando por fim
vem luz aquilo a que se referia.
Conseqentemente, o lugar do leitor para que realize o sistema de combinaes
necessrias so os lugares vazios, a serem preenchidos, com um sistema diferente do sistema
do texto. assim que o leitor comea a constituio do texto e a interao com ele os
lugares vazios regulam a formao de representaes do leitor, atividade agora empregada sob
as condies estabelecidas pelo texto (ISER, 1999: 107).
Iser (1999) salienta que uma das caractersticas do texto ficcional no apresentar o
mundo real tal como , mas simular aspectos dele. Essa no identificao com o mundo nem
com o leitor que constitui a capacidade comunicativa da fico, exprimida nos lugares
indeterminados (lugares vazios e negaes), brechas para regular e promover a interao entre
texto e leitor. Lima (1979) complementa afirmando que no texto ficcional a indeterminao
chega a seu grau mximo, abrindo-o a uma infinidade de comunicaes.
O lugar vazio uma possibilidade de conexo, portanto, entre o sujeito-leitor e o texto.
Para Iser (1999: 126) a possibilidade de a representao do leitor ocupar um vazio no
sistema do texto. Os lugares vazios indicam que no h a necessidade de complemento, mas
sim a necessidade de combinao. Essa combinao dos esquemas do texto feita pelo leitor
e ento que o objeto imaginrio formado. Os lugares vazios possibilitam que os segmentos
do texto, no explicitados por ele, sejam ligados.
Os lugares vazios so estratgias para manter a conexo entre as vrias perspectivas
textuais, tendo em conta que o texto formado por camadas de perspectivas e a leitura deve

35

promover a relao entre os segmentos de uma mesma perspectiva e entre as diversas


perspectivas.
Os lugares vazios estimulam a formao de representaes de primeiro grau e de
segundo grau. As de segundo grau emergem quando as de primeiro grau so abandonadas por
no terem se cumprido suas expectativas.
Segundo Iser (1999), a arte se apresenta com graus de complexidade, o que dificulta a
representao do leitor tal como ele a tem em sua mente. Com isso, o leitor se distancia de
suas prprias representaes e experimenta outras que no seriam produzidas se no se
afastasse de suas concepes familiares.
Iser (1999: 144) conclui que os lugares vazios funcionam como estrutura autoreguladora; o que por eles suspenso impulsiona a imaginao do leitor: trata-se de ocupar
atravs de representaes o que encoberto. Dessa forma, o leitor instigado, por meio do
que foi determinado pelo texto e pelo que foi deixado suspenso, a formular representaes
para preencher o que o texto deixa em aberto: O lugar vazio permite ento que o leitor
participe da realizao dos acontecimentos do texto. Participar no significa, em vista dessa
estrutura, que o leitor incorpore as posies manifestas do texto, mas sim que aja sobre elas.
Tais operaes so controladas na medida em que restringem a atividade do leitor
coordenao, perspectivizao e interpretao dos pontos de vista (ISER, 1999: 157).
Os lugares vazios no tm contedo, apenas indicam os segmentos de textos que
precisam ser integrados, mas no o realizam; no dizem nada ou no podem ser descritos, pois
so pausas no texto. Para Iser (1999), os lugares vazios nada so e isso que impulsiona a
atividade constitutiva do leitor. Os lugares vazios so, portanto, essa estrutura comunicativa
que possibilita as diversas relaes, constituindo o objeto esttico, pois o lugar vazio ajuda a
organizar variao de pontos de vista que o leitor realiza durante a leitura de uma maneira
determinada. Ao apontar a necessidade de juno de duas perspectivas ou de dois segmentos,
forma-se para o ponto de vista do leitor um campo, isto , uma unidade mnima de
organizao do processo de compreenso. O leitor no consegue focalizar ao mesmo tempo
dois segmentos ou duas perspectivas. Quando uma focalizada, esta passa a tema, enquanto a
outra passa a um lugar vazio, com carter de horizonte, pois o segmento elevado a tema no
percebido isoladamente, mas condicionado pelos outros que esto margem:
O leitor cumpre atravs de suas representaes, cujo contedo material
produzido pelas posies textuais dadas, a necessidade de determinao
exigida pela estrutura de compreenso e prefigurada pelo lugar vazio; da
que cada representao formada, em decorrncia das constantes

36

necessidades de determinao, h de ser mais uma vez abandonada. [...] As


mudanas de posio do lugar vazio no campo so responsveis pelas
seqncias de representaes. Estas advm de operaes previamente
esboadas de estruturao e neste processo se traduz a transformao de

posies textuais dadas para a conscincia de representao do leitor


(ISER, 1999: 158).
Outro lugar do leitor so as potncias de negao: enquanto os lugares vazios fazem
com que o leitor coordene as perspectivas textuais, entre e aja no texto, as potncias de
negao trazem tona elementos familiares ou valores e conceitos pr-estabelecidos para
poder recus-los. O leitor consciente do que foi negado, pode, assim, alterar sua viso em
relao ao familiar ou determinado apresentado.
Alm disso, os procedimentos negativos ajudam a aumentar os lugares vazios no texto.
O repertrio textual traz elementos familiares, valores e conceitos pr-determinados e
solues pr-estabelecidas do mundo real, que so conhecidos pelo leitor. No entanto, o
familiar sofre mudanas por estabelecer novas relaes com os elementos dentro do contexto
textual. A inteno que o leitor se conscientize das normas que regem a sociedade na qual
ele est enredado. Essa conscincia ser maior se as normas apresentadas no texto forem
negadas.
Ao negar uma prescrio antiga, um lugar vazio aparece, um sentido novo precisa ser
construdo. Para que isso acontea, o sentido antigo, negado, invalidado, re-transformado
pela negao, contribuir para a interpretao texto e para a constituio e determinao do
sentido novo.
A negao produz lugares vazios tambm na posio do leitor, fixando no texto o
lugar do leitor, que necessita pensar de que modo reagiria diante da situao pela qual passa a
personagem, quais atitudes adotaria. Dessa forma, o texto passa a ser experincia: Neste
ponto, o papel do leitor comea a tornar-se mais concreto. Pois agora ele ter de ocupar
pontos de vista, de modo que o lugar do leitor, lugar ainda vazio e aqum do texto, deve ser
at certo grau preenchido (ISER. 1999: 180).
1.3 Caminhos para o trabalho com a esttica da recepo
Diante do exposto at o presente momento, retomemos os caminhos a serem
percorridos de acordo com a metodologia da esttica de recepo. Citamos Aguiar e Bordini
(1993: 31):

37

A teoria da esttica da recepo desenvolve seus estudos em torno da


reflexo sobre as relaes entre narrador-texto-leitor. V a obra como um
objeto verbal esquemtico a ser preenchido pela atividade de leitura, que se
realiza sempre a partir de um horizonte de expectativas. (...) A obra literria
avaliada, a partir da teoria recepcional, atravs da descrio de
componentes internos e dos espaos vazios a serem preenchidos pelo
leitor. Faz-se, ento, o confronto entre o texto e suas diversas realizaes na
leitura e explicam-se estas recorrendo-se s expectativas dos diferentes
leitores ou grupos de leitores em sociedades histricas definidas. A obra
tanto mais valiosa quanto mais emancipatria, ou seja, quanto mais propor
ao leitor desafios que as expectativas deste no previam.

Segundo as autoras, a esttica da recepo concebe a concretizao do texto literrio a


partir de sua estruturao tanto ao ser produzida quanto ao ser lida, de modo que pode ser
estudada esteticamente. A concretizao do texto seria o resultado do processo de interao
entre leitor e texto, tendo o leitor como sujeito atuante sobre o material textual, a partir dos
ditos e no-ditos, com os quais interage criando e inferindo, confirmando, refutando
informaes, enfim, dialogando com o texto.
completado o processo de recepo quando o leitor, comparando a obra
emancipatria e a conformadora3 com os valores, as concepes e os elementos de seu
contexto scio-cultural, decide incluir ou no a viso emergida do processo de leitura ao seu
novo horizonte de expectativas, permanecendo este como era ou modificando-o para as
futuras leituras.
Por fim, apresentamos alguns conceitos bsicos para a leitura a partir da esttica da
recepo e da transformao do horizonte de expectativas que Aguiar e Bordini (1993: 88)
trazem:
(...) receptividade, disponibilidade de aceitao do novo, do diferente, do
inusitado; concretizao, atualizao das potencialidades do texto em
termos de vivncia imaginativa; ruptura, ao ocasionada pelo
distanciamento crtico de seu prprio horizonte cultural, diante das
propostas novas que a obra suscita; questionamento, reviso de usos,
necessidades, interesses, idias, comportamentos; assimilao, percepo e
adoo de novos sentidos integrados ao universo vivencial do indivduo.

Cf.p. 05.

38

2. FERNANDO PESSOA: POETA DA DISPERSO


2.1 Introduo
No fcil iniciar um captulo com o objetivo de apresentar aspectos de um dos
nomes mais importantes da literatura portuguesa e mundial tanto por sua produo potica
quanto pelo fascnio que exerce sobre aqueles que se debruam sobre sua obra. Falar de
Fernando Pessoa tanto uma descoberta constante quanto um desafio, porque, a cada leitura,
deparamo-nos com novos aspectos, algo ainda no percebido, formas diferentes de olhar. O
Poeta nos desafia, sua obra nos desafia. So enigmas que se impem ao leitor, que,
apaixonado, quer ir cada vez mais fundo em busca da verdade, se que ela existe em Pessoa.
E o que a verdade? Muitas so as verdades, depende do ngulo pelo qual se olha. Ler
Fernando Pessoa provoca desassossego, muitas de nossas verdades so abaladas e percebemos
que no somos mais que uma das faces de um prisma:
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam
zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se
haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
razes. Ambos tinham razo. Ambos tinham toda a razo. No era que um
via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um
lado diferente. No: cada um viu as coisas exatamente como se haviam
passado, cada um as via com um critrio idntico ao do outro, mas cada um
via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razo.
Fiquei confuso desta dupla existncia da verdade (Galhoz, apud PESSOA,
1982: 58).

Fernando Pessoa, o poeta da disperso. Um dos sentidos que nos interessa da palavra
disperso a separao de pessoas ou de coisas em diferentes sentidos; espalhar, debandar.
Mas em que foi que Pessoa dispersou-se? esse o ponto que mais causa fascnio em
Fernando Pessoa; isso que o faz uma fonte inesgotvel de leitura e investigao. Nesse
captulo, queremos apresentar a relao entre Fernando Pessoa e o Modernismo portugus e
alguns aspectos de sua produo potica, em especial, o caso da heteronmia, assunto de
interesse para esse trabalho de dissertao, enfocando o heternimo Ricardo Reis e sua
filosofia de vida.

39

2.2 O Modernismo em Portugal


No sculo XX, muitas foram as transformaes sofridas pela sociedade portuguesa.
Moiss (1999) salienta que os primeiros anos do referido sculo trouxeram consigo novas
perspectivas culturais e estticas, as quais vinham lentamente sendo geradas no sculo
anterior e que, por fim, acabaram por eclodir.
A insatisfao em relao ao regime monrquico culminou, depois do assassinato do
rei D.Carlos, em 1908, e do prncipe herdeiro, D. Lus Felipe. Com isso, o imediato a ocupar
o cargo D.Manuel II, que sustenta a situao at 1910, quando se instaura a Repblica,
assumindo o poder Tefilo Braga. Surgiram, ento, duas faces polticas: de um lado os
satisfeitos ou conformados com a Repblica, de maior relevncia, que buscavam embasar-se
em filosofias tipicamente portuguesas; de outro os inconformados com o novo regime, que
formam o grupo do Integralismo Portugus (1914), e, posteriormente, daro origem ao Estado
Novo (1926).
A proposta dos conformados era de revigorar a cultura portuguesa e adequ-la aos
moldes modernos e acertar o seu ritmo ao ritmo europeu. Para isso surgiu, em 1910, a revista
A guia, que tratava tanto de literatura, como de cincia, de arte, de filosofia e de crtica
social. De acordo com Moiss (1999), por meio da revista A guia, tentaram restabelecer o
que seria prprio da cultura lusitana, como o reavivamento do saudosismo, do nacionalismo,
do simbolismo, a fim de tirar Portugal da mediocridade em que se encontrava. Portugal
entrava no sculo XX com os olhos voltados para o passado. Para Vechi (1981), essa atitude
se deu devido tradio j iniciada por Cames com o tema do Sebastianismo, o qual passa
de gerao em gerao at o referido sculo XX, em uma tentativa de resgatar os valores
nacionais como a cultura, a imagem de nao, de povo, depois da morte do monarca
D.Sebastio e da perda da independncia poltica para a Espanha (1580). Com a retomada da
independncia, acontecida em 1640, h a necessidade desse resgate, continuado depois pelos
sculos seguintes. Por isso, A guia se torna rgo da Renascena Portuguesa, ttulo que
passou a ser usado pelos conformados. As figuras de destaque desse momento so Teixeira de
Pascoaes, Jaime Corteso e Leonardo Coimbra. Em 1913, porm, houve um rompimento
entre as figuras que comandavam o movimento: Antnio Srgio, Jaime Corteso e Raul
Proena formaram um grupo, cujo objetivo seria uma reforma cultural com bases racionalistas
e no saudosistas como queria Teixeira Pascoaes.
O carter visionrio de Pascoaes, contudo, conseguiu agitar alguns jovens escritores
que, entre 1912 e 1915, chegaram a colaborar com A guia, (que desaparece em 1930). Entre
eles podemos citar Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro, Almada Negreiros e Santa Rita

40

Pintor. De acordo com Vechi (1981), a posio adotada pela Renascena Portuguesa no
conseguiu se manter por estar baseada em ideologias e em uma viso de mundo vinculada ao
sculo XIX. Por isso, em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, fundada a revista
Orpheu, publicada em dois nmeros, marcando o incio do primeiro momento do
Modernismo em Portugal, tendo como fundadores Fernando Pessoa, Mrio de S Carneiro,
Raul Leal, Augusto de Santa Rita Pintor, Lus de Montalvor, Almada Negreiros, Rui Coelho,
Toms de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes Rodrigues e Ronald de Carvalho,
poeta e crtico brasileiro.
Com Orpheu, esses escritores tiveram a inteno de alinhar Portugal ao restante da
Europa, superando o saudosismo e assimilando as novas correntes estticas e filosficas que
agitavam a Europa Moiss (1999) cita Picasso, Cubismo, Futurismo, Max Jacob,
Apollinaire entre outros com o objetivo de chocar e escandalizar a sociedade da poca, por
meio de uma arte estetizante e com carter esotrico. Vechi (1981: 12) salienta: Cria-se uma
arte alucinada, chocante, irreverente e irritante, objetivando provocar o burgus, o smbolo
acabado da estagnao e marasmo em que se encontrava a cultura portuguesa. A esttica de
Orpheu se vale, portanto, da tentativa de representar o momento de tenso, angstia,
incerteza, pelo qual passava a humanidade. Segundo Moiss (1999: 239), a guerra de 14
manifestao ntida dessa crise, provocada pela necessidade de abandonar as velhas e
tradicionais formas de civilizao e cultura (de tipo burgus) e de buscar novas frmulas
substitutivas. Por isso, h uma tentativa de fundir diversas formas de arte a arte plstica e a
literatura e vice-versa. Com isso, Futurismo, Cubismo, Paulismo, Dadasmo, Simbolismo e
Decadentismo do sustentao aos ideais de Orpheu.
A segunda publicao de Orpheu, segundo Moiss (1999: 240), provocou escndalo
e reviravolta cultural. O terceiro nmero no chegou a ser publicado porque o sustentador
financeiro, Mrio de S-Carneiro, suicidou-se. No entanto, a revista j atingira seus objetivos.
2.2.1 Orpheu: en[cantar] com a nova poesia
O nome Orpheu uma meno ao mito grego do poeta que controlava a natureza por
meio de seu canto. Alm disso, de acordo com Tringali (1990), Orfeu tambm o fundador
de uma das grandes religies da humanidade, o orfismo, religio de Baco reformada com
elementos da religio de Apolo. O que se sobressai em Orfeu seu dom musical enquanto
cantor e tocador de lira, fazendo com que participasse da busca ao velocino de ouro com os
demais argonautas. Tringali (1990) explica que sua voz e o som de sua lira possuam a

41

capacidade de fascinar quem o ouvia e amansar homens e feras. Dessa forma, Orfeu o heri
da paz.
Brando (1990) destaca o fato de a teogonia (origem dos deuses) rfica ser organizada
de forma a explicar no apenas a origem dos deuses, mas como os homens descendem dos
imortais (antropogonia) e carregam em si essa dupla natureza. Dessa forma, o orfismo via o
ser humano como cindido entre o corpo material e o esprito, que anseia pela libertao. No
havia distino de raa, classe ou gnero, mas o homem se distinguia pela sabedoria e virtude.
Com isso, o orfismo tenta resgatar o homem da marginalidade em que se encontrava, fazendo
uma nova leitura de elementos tradicionais herdados da teologia homrica, hesidica e
dionisaca.
Vejamos, segundo Tringali (1990: 19), os principais elementos da teogonia e
cosmogonia rfica:
No princpio s existia o Tempo (Chronos) e junto dele existia desde sempre
a Necessidade. Do Tempo procede ter, Caos (o abismo) e Erebos (as
trevas). Ento o Tempo formou, no ter, um Ovo de Prata e dele nasceu o
primeiro Deus, Fanes, que inaugura a teogonia. Fanes se identifica com
Zeus, Dioniso, Eros (o amor). De Fanes se gera a Noite, divindade
romntica de suma importncia no orfismo. Da unio de Fanes e da Noite
nascem a Terra e o Cu (Urano). Da Terra e do Cu procedem, entre
outros, os Tits e Titnides. Entre os Tits se destaca Kronos que destrona
seu pai Urano, o Cu, e reina em seu lugar. De Kronos e Ria nascem os
olmpicos. Entre os olmpicos se destaca Zeus (ou Jpiter) que depe o pai
e se torna senhor do universo. Zeus, diz-se, devora Fanes e com ele toda a
criao, e a seguir cria de novo o mundo e os homens.

Brando (1990) destaca ainda que a teogonia se baseia na idia de que um nico ser
deu origem a mltiplos e a multiplicidade retornou ao um. Por isso, ao devorar Fanes, Zeus
devora toda a criao e, a partir dele, d-se uma nova criao. Da unio de Zeus e Persfone,
nasce aquele que deveria ocupar e herdar o poder e encerrar o ciclo das geraes divinas
Dioniso ou Baco. Entretanto, este devorado pelos Tits, por ordem da ciumenta Hera,
esposa de Zeus, e de suas cinzas nasce a humanidade: Nascendo da separao do um
primordial, literalmente de uma dilacerao violenta do mais jovem dos deuses, o homem
deve aspirar reintegrao na unidade (BRANDO, 1990: 32). Dessa forma, podemos
entender a teogonia rfica como uma antropogonia ou como uma antropologia teolgica, com
a inteno de explicar a natureza humana e apontar o seu destino.
Em relao arte, o orfismo prega que esta deve seguir o esprito da msica e no da
pintura, isto , deve ser criao livre e no ficar presa a moldes pr-concebidos. Da mesma

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forma, o grupo de Orpheu intencionava ser um novo canto e influenciar a mentalidade da


poca. Segundo Moiss (1998), o grupo de Orpheu conseguiu isso, embora no fosse muito
bem visualizado em sua poca, por meio da derrubada de mitos e tradies herdados do
passado e sua conseqente dessacralizao. O novo mito que ocupou o lugar dos antigos foi a
Poesia como conceito, como filosofia, como divindade, ou seja, o lirismo como essncia
mtica das coisas (MOISS, 1998: 13).
Para Moiss (1998), a evoluo sofrida pela poesia portuguesa do ltimo sculo tem
como fundamento as mudanas ocasionadas pelo grupo de Orpheu o que os orientou na
poca o que continua a orientar os poetas dos dias atuais.
Duas direes tomou a produo potica: a poesia de emoo e a poesia do
pensamento. A poesia da emoo vem com a tradio portuguesa, est na alma do povo.
Todavia, na gerao de Orpheu no se trata da emoo afastada da lgica, da filosofia, do
abstrato, mas de uma emoo que se ultrapassa, que passa a ser reflexiva, no separando
emoo e pensamento como acontecia at ento, salvo algumas excees como Cames,
Bocage e Antero. Os poetas da emoo, segundo Moiss (1998), seriam Armando Cortes
Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado, ngelo de Lima, Raul Leal, Lus de Montalvor e Mrio
de S-Carneiro.
Ao segundo grupo restaram Almada Negreiros e Fernando Pessoa. Estes cultivam a
poesia do pensamento. No que a emoo no encontrasse lugar em seus poemas, mas ela
cede lugar ao pensamento. Almada Negreiros ainda carrega consigo o peso da emoo,
mesmo tentando ascender ao pensamento; Pessoa passa tambm por um momento vazado
pela emoo (contagiado pelo Saudosismo de Pascoaes, quando se encontra pulico,
sensacionista, interseccionista), emoo, porm, no destituda de pensamento, isto , segundo
Moiss (1998: 19), o pensamento da emoo, como se a emoo fosse a primeira forma de
manifestao do pensamento, com a inteno de pensar a emoo, ou desdobrar o que nela
pensamento (MOISS, 1998: 20).
Contudo, a substncia de Fernando Pessoa reside no pensar O que em mim sente st
pensando (PESSOA, 1981: 78), a emoo a sede do pensamento; na e pela emoo ele
pensa. Resulta disso a concluso de Moiss (1998) de que, em Fernando Pessoa, h uma
indissolubilidade entre emoo e pensamento. A nfase recai, porm, no segundo elemento,
sendo a emoo dependente do pensamento. Segundo Moiss (1998), por meio do contnuo
exerccio do pensamento e de pensar a emoo, Fernando Pessoa atinge o grau mais elevado
de pensar-se e, conseqentemente, divide-se, multiplica-se para pensar o que v refletido em
seu interior e, tambm, pensar o que outros poderiam sentir. Guimares (1992: 74) salienta

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que o equilbrio entre a intelectualizao das emoes e a emocionalizao das idias que
desencadeia a despersonalizao heteronmica em que h o distanciamento do autor em
relao voz que fala no texto e, em contrapartida, a revelao de novas emoes e
perspectivas por meio do fingimento. Com isso, o Poeta deixa de lado suas emoes e, como
resultado, sua prpria identidade, e apresenta-se sob novas formas: os heternimos, de que
trataremos mais adiante.
Essa disperso de si mesmo caracterstica de uma poca em que a idia de ser
humano naufragara, e, mergulhado em um mar de crise existencial, o Homem desdeificou o
mundo e deixou de ser sujeito humano palpvel e presente. Por meio da fragmentada
realidade e do tambm fragmentado eu-potico, tenta-se chegar ao irreal; por meio da
fantasia, chega-se, novamente, ao reflexo da crise da sociedade.
Para Fernando Pessoa, o movimento sensacionista a sada esttica para esse dilema
em que se encontra o ser humano e a arte europia. Vechi (1981) apresenta os seguintes
pontos basilares do sensacionismo:
1 A nica realidade da vida a sensao. A nica realidade em arte a
conscincia da sensao.
2 No h filosofia, nem tica, nem esttica, mesmo em arte, qualquer que
seja a quantidade delas que possa haver na vida. Em arte h apenas
sensaes e nossa conscincia delas. Qualquer que seja a parcela do amor,
alegria, dor, que possa haver na vida, em arte so apenas sensaes; em si
mesmas nada valem para a arte.
3 A arte, em sua plena definio, a expresso harmnica de nossa
conscincia das sensaes, isto , nossas sensaes devem ser expressas de
tal modo que criem um objeto que ser sensao para outros. A arte no ,
como disse Bacon, o Homem acrescentado natureza, a sensao
multiplicada pela conscincia multiplicada, note-se bem (VECHI, 1981:
15).

Segundo Moiss (1998), o mundo concreto sentido como sensao; essa sensao
(do contato com o mundo concreto) convertida em outro objeto, que a arte, ou seja, a arte
a sensao da sensao. Foi ao sensacionismo que Fernando Pessoa se dedicou at o fim de
sua vida em sua produo potica, tendo a sensao como o sustentculo de sua viso de
mundo.
2.3 Fernando Pessoa: a pessoa e o[s] poeta[s]
Nascido em Lisboa (1888), Fernando Antnio Nogueira Pessoa se encontrou rfo de
pai aos cinco anos de idade. Sua me se casa novamente e a famlia se muda para Durban, na
frica do Sul. l que Fernando Pessoa faz os cursos primrio e secundrio, sempre se

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destacando como excelente aluno. Em 1905, volta a Lisboa, a fim de cursar Letras e Filosofia.
O trabalho que desempenhou ento e at o fim de sua vida foi o de correspondente comercial
em lnguas estrangeiras (MOISS, 1999: 240).
Galhoz (1982) destaca que Fernando Pessoa foi um homem, apesar da classe social a
que pertencia, que escolheu uma histria sem arroubos de aventura, de brilho, ou de misrias,
mas viveu discretamente, cumprindo seu papel de filho, de correspondente comercial, mas
com o sonho de realizar algo grande, de ser poeta. O exlio que escolheu no se furta, porm,
da presena dos companheiros, do freqentar de cafs nos intervalos do trabalho ou nos
momentos de reunio intelectual: A distinguimos verossimilmente, vestido de escuro e
refugiado no gesto imvel de cruzar os ps sob a mesa e inclinar a cabea para a apoiar a uma
das mos. Reconhecemos o seu ar de secreta e vaga ausncia, a sua distrada contemplao, o
seu lento sorriso silencioso ou o seu casquinar rpido de uma pequena gargalhada nervosa
(GALHOZ, 1982: 47).
A prpria imagem de Fernando Pessoa nosso apoio ao nos depararmos com sua obra.
Segundo Galhoz (1982), no h como irmos a sua obra se no passarmos por Pessoa, uma vez
que este se transformou em sua obra e esta, nele. H, segundo a autora, uma relao quase que
umbilical entre Pessoa e obra.
Como j apresentamos anteriormente, Fernando Pessoa estava em comunho com
todas as mudanas, as tentativas de reforma, de quebra de paradigmas, de questionamento a
que o grupo de Orpheu se props. Podemos dizer que ele estava em consonncia com o
esprito da poca.
Galhoz (1982) destaca, porm, que Pessoa morreu quase completamente ignorado pelo
grande pblico, devido s suas obras exigirem do leitor comum uma leitura mais aprimorada a
que este no estava acostumado. Mesmo assim, Moiss (1999: 241) afirma que tal a
importncia de Fernando Pessoa que o ciclo camoniano termina quando se inicia o
pessoano.
Como j foi referido, Fernando Pessoa iniciou sua vida pblica de poeta a partir de sua
participao na revista A guia, em um primeiro momento, encantado pelos elementos
saudosistas, nacionalistas, simbolistas que regiam a Renascena Portuguesa. Contudo,
segundo Galhoz (1982), o que esperavam de Pessoa e o que este tinha a oferecer eram coisas
diferentes: esperavam e aceitavam um discurso apologtico e doutrinrio a que o Poeta no se
encaixava; seu tom atrevido, insolente e messinico causou escndalo e suas afirmaes
foram consideradas absurdas e antipatriotas:

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E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitvel aparecimento
do poeta ou poetas supremos desta corrente e da nossa terra, porque
fatalmente o Grande Poeta que este movimento gerar, deslocar para
segundo plano a figura at agora primacial de Cames (Pessoa apud
GALHOZ, 1982: 15).

O que desconcertou a crtica, o movimento de Pascoaes, o leitor de antes e o que ainda


desconcerta e abala o leitor atual essa sua atitude intelectual sustentada em um jogo
previsional e simblico, o seu jogo dialtico e o seu hermetismo messinico e atemporal, que
provocam a dvida entre a iluso, o logro e a admirao pelo que Pessoa afirma.
Comprometido com o tipo de arte que prega e que se delineia dentro de si, Fernando
Pessoa comea a perceber a distncia entre os ideais da Renascena Portuguesa e os seus
prprios. Ele revela:
Sei bem a pouca simpatia que o meu trabalho propriamente literrio obtm
da maioria daqueles meus amigos e conhecidos, cuja orientao de esprito
lusitanista ou saudosista; e, mesmo que no o soubesse por eles mo
dizerem ou sem querer-mo deixarem perceber, eu a priori saberia isso,
porque a mera anlise comparada dos estados psquicos que produzem, uns
o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literria no gnero da minha, e da
(por exemplo) do Mrio de S-Carneiro, me d como radical e inevitvel a
incompatibilidade de aqueles para com estes (Pessoa apud GALHOZ, 1982:
17).

De acordo com Galhoz (1982), esse perodo de mais ou menos dois anos em que
Fernando Pessoa, na sua juventude potica, colaborou com A guia, com seu profetismo,
simbolismo e hermetismo potico, contribuiu para a gestao do nascimento de uma nova
arte, a partir da necessidade de se tomar novos rumos. Surge, ento, Orpheu.
A proposta no foi bem recebida pela crtica nem pelos escritores da poca. Galhoz
(1982) salienta que o grupo de Orpheu era alvo de piadas, diagnstico de parania coletiva e
eram tidos como irresponsveis, adolescentes esnobes. Tudo isso, porque a novidade sempre
traz conflitos e incomoda em especial os grandes nomes de ento.
Orpheu, como j foi dito, no chegou ao terceiro nmero antes que o grupo se
dispersasse; entretanto, cada um saa da experincia mais amadurecido e tambm distanciado
do sonho comum de transformao.
Fernando Pessoa, s, amadurecido, realiza o melhor de seu fazer potico. Publica
Athena, veiculando um ideal de antiaristotelismo e um mundo no cristo, intelectualizado e
helenizado. Foram ao todo cinco nmeros em que se consolidam o melhor de Caeiro e Reis.

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Colaborou ainda com um grupo de escritores na Contempornea, quando pde


experimentar mais uma vez os ares de um tempo que no voltaria mais, o tempo de Orpheu, e
se envolveu em polmicas e debates acerca de questes polticas e literrias. Por fim, ao ser
convidado para contribuir com a revista Presena, sente reconhecido o seu valor e o de sua
obra.
2.3.1 Um drama em gente: unidade e diversidade
Galhoz (1982: 37) inicia a apreciao da obra de Fernando Pessoa afirmando: a obra
de Fernando Pessoa de uma complexidade e de uma fixidez que dificultam qualquer
interpretao comodamente garantida e certa. Uma complexidade que cobre de variao, mais
que de mudana, uma fixidez fundamental, monotonia temtica sob multiforme
representao. Isso quer dizer que temos motivos que mudam conforme o tempo, o espao e
a voz que fala, motivos que se revestem de cores diferentes, mas trazem em si a mesma
essncia. o fascnio da unidade na diversidade de Fernando Pessoa.
O Poeta traz em si uma fora protica, que exige de si uma capacidade de organizar-se
sob diferentes pontos de vista, que se tornam formas de organizar seu caos interior e ainda de
encontrar, por meio da racionalizao, um ponto de equilbrio em seu multiplicar a si mesmo.
Galhoz (1982: 40) acrescenta:
A heteronmia uma sistematizao e uma quase superstio, frustradas,
uma como que sobreposio a um Deus negado, mas criador na hiptese de
o haver, uma nostalgia do verbo construtor, magicamente interrogadas na
transmutao dos smbolos ocultos nos seus versos e desoladoramente
inatingidas na concluso com que comenta inoperante o desejo inscrito na
sua poesia. Mas a heteronmia que o ajuda, talvez, a tornar possveis as
coincidncias e os afastamentos simultneos da sua vivncia potica e o
sossega intelectualmente com as particulares justificaes exteriores em que
se ocupa. Por um lado uma rotao prpria que a cada heternimo ele
imprimiu, independente; e por outro as rbitas de gravitao que todas se
referem em si, nico seu centro uma vez que os quis e realizou.

Segundo a autora, a heteronmia seria ainda uma fundamentao existencial e um


jogo dialtico (GALHOZ, 1982: 41), em que, ao desdobrar-se em outros, comenta a mesma
vida sob nomes, estilos, vises, ateno diferentes. como se cada heternimo desse uma cor
diferente, uma nova tonalidade a um mesmo objeto.
Galhoz (1982: 41) esclarece, porm, que devemos considerar a questo da heteronmia
no como um drama de gentes, mas um drama em gente, ou seja, o interior de Pessoa

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que se revela a ns sob diferentes perspectivas. Em carta ao amigo Casais Monteiro


(PESSOA, 1986: 95), Fernando Pessoa diz o seguinte:
Seja como for, a origem mental dos meus heternimos est na minha
tendncia orgnica e constante para a despersonalizao e para a simulao.
Estes fenmenos felizmente para mim e para os outros mentalizaram-se
em mim; quero dizer, no se manifestam na minha vida prtica, exterior e
de contato com os outros; fazem exploso para dentro e vivo-os eu a ss
comigo.

Galhoz (1982: 41-42) complementa isso da seguinte forma: Um e no mltiplos. De


perspectivas e hipteses de alma e no de almas. Os nomes prprios de que se acomoda so,
repetimos, smbolos, s, com uma tnue e insubsistente iluso de figuras e um mnimo enredo
de tempo.
Para Moiss (1999: 241), Pessoa conseguiu captar a tradio lrica de seu povo, alm
de refletir todas as inquietaes humanas de uma sociedade em crise, como se sua poesia
fosse uma espcie de gigantesco painel de registro sismogrfico das comoes histricas
havidas em torno e em razo da guerra de 1914. Dessa forma, tentou ordenar o caos em que
se encontrava, partindo do nada, recebendo a cada instante as vibraes, inquietaes,
impactos sofridos pelo homem ao longo das geraes, como se fossem novas sensaes,
novas descobertas.
Toda essa agitao interior provocou uma multiplicao do poeta: sentindo o que
sentiu e sente cada criatura seria possvel chegar a uma possvel imagem do Universo e tentar
orden-lo junto ao caos das relatividades. Destaca-se tambm que esse multifacetado
interior provocou uma despersonalizao do eu e desse desdobramento de personalidades
nasceram os heternimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis, lvaro de Campos entre outras
sessenta e nove personalidades literrias, totalizando setenta e duas personagens, a quem
Lopes

(1990)

chama

de

dramatis

personae,

que

possibilitaram

que Fernando Pessoa visse o mundo com os olhos daqueles que j o viram, dos que o vem e
dos que o vero. Nessa perspectiva, desmontava as coisas, a fim de conhecer-lhes seu interior,
seu funcionamento, para, depois, agrup-las, orden-las em busca do nada (que tudo)
(Moiss, 1999: 245).
Perrone-Moiss (1988: 345) complementa ao afirmar que Fernando Pessoa multiplica
o seu olhar em vrios outros para poder dar conta de todos os problemas filosficos que
afligem a sociedade moderna, herdeira da conflituosa cultura greco-judaica. Segundo a autora,
o Poeta, assim como os demais escritores, transforma em literatura no o mundo como o v,

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mas o que considera que poderia ser melhor nesse mundo, porque o olhar do poeta deforma
o mundo para o desvendar, perde-o para recuper-lo mais ntido. Este tambm o jogo
dramtico de Fernando Pessoa. Moiss (1999: 244) afirma que o poeta se vale de mscaras
para esconder-se atrs delas para melhor revelar-se, mas revelando-se s avessas, ou antes,
indiretamente exigindo do leitor um trabalho de recomposio do caminho percorrido pelo
poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Isso
quer dizer que uma mscara/heternimo nos remete a compreender mais de Pessoa, mas, ao
mesmo tempo, leva-nos a outro enigma, outra mscara. De acordo com Galhoz (1985),
Fernando Pessoa criou, para cada um de seus heternimos mais importantes, uma biografia e
uma personalidade prprias dentro do contexto criativo/literrio. Assim, conheamos um
pouco dos trs heternimos de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e lvaro de
Campos.
2.3.2 Alberto Caeiro
Em carta ao amigo Adolfo Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935, alguns meses
antes de sua morte (30 de novembro do mesmo ano), Fernando Pessoa fala sobre o
nascimento de seus heternimos.
O primeiro deles Alberto Caeiro o mestre de todos os demais, inclusive de Pessoa
que veio ao mundo em 08 de maro de 1914, como nos conta Pessoa: acerquei-me de uma
cmoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de p, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espcie de xtase cuja natureza no
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim
(MOISS, 1998: p.59).
Depois desse arrebatamento da parte de Caeiro, Fernando Pessoa construiu sua
biografia: Alberto Caeiro nasceu em 1889, em Lisboa, mas o espao em que viveu e que
marca sua poesia o campo. Teve apenas instruo primria e viveu com os pequenos
rendimentos deixados pelo pai e a me, juntamente com uma tia-av. Tem estatura mdia,
aparentemente frgil. Morreu de tuberculose em 1915.
Perrone-Moiss (1988) apresenta Caeiro como uma possibilidade para Pessoa ser
menos infeliz, por isso considerado mestre, alm de ser o fundador do neopanismo,
movimento poltico e esttico, inspirado na Antigidade Clssica. Isso quer dizer que, ao
contrrio da viso subjetiva, crist, ocultista, triste de Fernando Pessoa-ortnimo, tem-se um
olhar cheio da claridade, da objetividade e da serenidade dos gregos com Alberto Caeiro.

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Sua poesia reflete a Natureza, a qual sua fonte de inspirao. Deseja ser to natural
quanto os animais e as plantas. Por isso, o poeta do Olhar e no do pensar. Segundo ele,
Pensar estar doente dos olhos, isso quer dizer que para entender o mundo e as coisas no
podemos pens-los, mas olh-los, v-los como so.
Todavia, Caeiro paradoxal, visto que ao mesmo tempo em que deseja no pensar,
afirma que como um pastor, mas seu rebanho so suas idias: Olhando para o meu rebanho
e vendo as minhas idias, / Ou olhando para as minhas idias e vendo o meu rebanho. ,
portanto, pastor de idias e as olha como se fossem parte da Natureza.
2.3.3 Ricardo Reis
Pela cronologia do surgimento dos heternimos, em segundo lugar vem Ricardo Reis:
nasceu em 1887, na cidade do Porto; estudou em colgio de jesutas, um latinista por
educao alheia, e um semi-helenista por educao prpria (Pessoa, 1986: 98); expatriou-se
no Brasil desde 1919, pois no concordava com o novo regime, visto ser favorvel
monarquia.
Seu estilo clssico, alicerado na prpria cultura clssica, de inspirao horaciana.
Em suas Odes utiliza, conforme aponta Galhoz (1985: 23):
Linguagem arcaizante, por etimolgica, ou latinizante em vrios casos.
Temas de amor/melancolia, dialogando embora com as amadas, uma
filosofia entre epicurista e estica, evocando a beleza-efemeridade de cada
dia, falando da errncia-sombra da morte, dos deuses mortos tornados
smbolos.

De acordo com Silva (1983), Ricardo Reis traz a conscincia potica do


neoclassicismo moderno, isto , prima pela unidade tanto no efeito produzido como na
construo, pela universalidade e pela objetividade. Sua contradio, segundo Silva (1983),
consiste no fato de que Reis faz um retorno s tradies clssicas, ao passado, com os ideais
de um perodo marcado pelo progresso tecnolgico e cientfico. Essa contradio resolvida
com o uso do mito, que proporciona harmonia entre o subjetivo e o objetivo e a arte e a
cincia.
Como discpulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis herdou o paganismo e o
sensacionismo, o aceitar as coisas como elas so, a busca da simplicidade, do desprezo pelo
social e sofisticado e a busca pela felicidade, que, conforme postula o epicurismo, se d
medida que nos afastamos do mundo, das preocupaes, das paixes e evitamos a dor. Assim,
conforme ressalta Loureno (apud BUENO, 1999: 209), Fernando Pessoa, ao tornar Reis

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discpulo de Caeiro, concebeu seu mundo como um universo corrodo pela irrealidade, onde
encontra a calma e desfruta da ausncia de si mesmo.
Por outro lado, Moiss (1998) afirma que o universo de Reis o de suas odes e no a
Natureza, que no se pensa. Seus poemas trazem pensamentos, sentenas primorosas e
ensinamentos perenes, porm, de acordo com Perrone-Moiss (1988: 339), marcadas por um
pessimismo mortal.
Refletem-se ainda em seus poemas as filosofias de que era adepto: o epicurismo e o
estoicismo, na busca do domnio sobre as paixes. Isso faz com que seja o poeta beira-rio,
como apresenta Moiss (1998: 63), que procura viver a vida sem pens-la e sem pensar-se,
sem sobressaltos, com tranqilidade e indiferena diante do espetculo do mundo.
2.3.4 lvaro de Campos
Nascido em Tavira, em 15 de outubro de 1890, engenheiro naval, alto, magro,
cabelo liso, monculo. Foi educado em um liceu e estudou engenharia mecnica e naval na
Esccia. Estudou latim com um tio padre.
Segundo Moiss (1998), o heternimo cientista, moderno, que vive cercado pela
multido, pela velocidade, pelas novidades tecnolgicas; interessa-se pelo tema lusitano do
mar, por isso o poeta beira-mar, que fala do rio que passa por sua aldeia; seu tom
pico, futurista e sensacionista, isto , tem seu olhar voltado, de acordo com Perrone-Moiss
(1988: 340), para as sensaes intensas, enrgicas, vibrantes da vida moderna, na tentativa
de decompor no as formas das coisas, mas as sensaes em relao s coisas.
Seu interior vive em constante conflito com o mundo moderno, suas mquinas, luzes e
engrenagens. Tem conscincia da loucura que o persegue, uma loucura lcida, resultado de
seu muito pensar, de perscrutar a alma humana.
O tdio, a nusea, o existencialismo, o transbordamento emocional so marcas de
lvaro de Campos, o que o aproxima dos poetas romnticos: o contraste entre o mundo
moderno e a nostalgia por um mundo que j no existe mais, de feies romnticas.
Moiss (1998) conclui a questo da heteronmia afirmando que, assim como Pessoa
carregou em si a capacidade de reproduzir-se em outros, os seus heternimos tambm
carregam em si essa capacidade dialtica: Fernando Pessoa se multiplica em heternimos,
estes, por serem fontes criadoras, podem originar sub-heternimos, os quais possuem a
mesma capacidade e assim por diante. Moiss (1998: 107) agrupa, ento, uma possvel
organizao dos heternimos a semelhana dos deuses da mitologia greco-latina:

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O deus da Natureza/Cosmos, que preside os fenmenos celestes e


atmosfricos, Zeus/Jpiter, o deus supremo, corresponde a Alberto Caeiro,
mestre dos heternimos. A deusa da sabedoria, Palas Atena/Minerva,
representada por Ricardo Reis, cultor da serenidade estico/epicurista.
lvaro de Campos, dotado de fria sonorosa, encarna Orfeu, que desceu aos
Infernos em busca de Eurdice, privilgio que lhe foi concedido em razo da
suavidade encantatria da sua lira. O deus do tempo, Cronos, assume-o
Bernardo Soares, auxiliar de guarda-livros. E Fernando Pessoa ele
mesmo, considerando-se discpulo de Alberto Caeiro/Zeus, seria uma
espcie de Prometeu, preso ao Cucaso de sua memria e de sua
sensibilidade beira-mgoa.

Dessa forma, percebemos que a heteronmia possvel graas capacidade de


Fernando Pessoa de mirar-se a si prprio, de simular e de sua potente argumentao e
imagstica que o fez como que um dramaturgo em uma pea em que as personagens so ele
prprio desdobrado e os dilogos so monlogos de si para si, ou ainda, segundo Moiss
(1998: 32), so verso e reverso da mesma moeda, vises complementares.
Fernando Pessoa tenta ver-se de fora, como coloca Moiss (1998), para pensar-se, ser
ele prprio o seu objeto, analisando-se como outro. Nesse olhar-se ao espelho, o Poeta v
outras imagens de si, e torna-se crtico de si prprio por meio dos heternimos. Alm disso,
cada heternimo traz em si algo dos demais, como se, na totalidade que cada um deles,
houvesse um ponto em que se tocassem e convergissem para a unidade, com a diversidade de
perspectivas que trazem.

52

3. DE OLHO NO MUNDO: ESPECTADOR OU PERSONAGEM?


3.1 O desenrolar da anlise
A proposta da esttica da recepo, a partir de Jauss, foi de no desvincular Literatura
e Histria, mas ajudar a construir uma Histria da Literatura baseada na recepo dos textos
atravs dos tempos. Alm disso, Iser ressalta a participao do leitor no processo de
construo do texto literrio. Dessa forma, podemos concluir que literatura e histria andam
juntas, porque tanto o artista que molda sua obra, quanto o momento em que ela concebida,
quanto os diferentes tempos em que ela visitada ou revisitada so importantes para a
construo de seu sentido.
Por isso, temos o propsito de, nesse trabalho, desenvolver uma leitura das Odes e
Ricardo Reis e do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago, com a
inteno de verificarmos como o heternimo pessoano se relaciona com a sociedade em que
est inserido, ou ainda, qual o seu posicionamento diante da realidade que o cerca, tanto nas
odes como no romance, e compararmos as duas figuras que emergem desses textos.
A presente anlise se dar da seguinte forma:
1. Leitura e anlise das Odes de Ricardo Reis, preenchendo os espaos vazios de que fala
Iser (1999), na tentativa de fazer emergir a viso que o heternimo tinha do mundo e
como seria sua relao com ele. Para essa leitura, far-se- necessrio o conhecimento
das bases filosficas e das influncias latinas presentes em Ricardo Reis: estoicismo,
epicurismo, Horcio. As odes sero lidas sob a perspectiva do leitor atual. Entretanto,
devemos levar em considerao que Ricardo Reis tambm foi um leitor de Horcio e
veremos como isso se d nos poemas.
2. Leitura e anlise do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Jos Saramago,
com a inteno de desvelar como a personagem-poeta se relaciona com os problemas e
situaes que se lhe impem no romance. Dessa forma, poderemos saber como se
posiciona diante do mundo. importante lembrar que Saramago tambm leitor de
Ricardo Reis e possui expectativas de leitura em relao s odes. Essas expectativas de
leitura influenciam a forma como Saramago constri a personagem-poeta Ricardo
Reis.
3. Comparar a imagem de Ricardo Reis descoberta nas odes com a imagem da
personagem do romance e verificar as semelhanas e diferenas de posicionamento
diante da realidade das duas entidades, desvendando a leitura feita por Saramago.
Passemos, portanto, leitura e anlise das odes do heternimo Ricardo Reis.

53

3.2 O espectador do mundo


No captulo 2, fizemos a apresentao do heternimo Ricardo Reis: seus dados
biogrficos, um pouco de sua filosofia, suas influncias e sua forma de escrever. Essa
apresentao, contudo, baseou-se no que Fernando Pessoa nos deixou, no que outros autores
j estudaram e descobriram. A partir de agora, tentaremos apresentar Ricardo Reis a partir
dele mesmo, ou melhor, de suas odes, mais precisamente 46, de uma produo potica de
aproximadamente 250, segundo Brchon (1999), com o objetivo de desvendar a sua forma de
se relacionar com o mundo que o cerca.
3.2.1 beira-rio, beira-estrada: filosofia de vida
Consideramos importante comear o estudo sobre o posicionamento de Ricardo Reis
diante do mundo a partir de indcios de que o heternimo siga as filosofias epicurista e
estoicista.
Segundo Blackburn (1997) e Abbagnano (2000), Epicuro de Samos (341-270 a.C) era
um filsofo grego, fundador de uma escola filosfica em 306 a.C na cidade de Atenas. Sua
filosofia objetivava levar o ser humano a viver bem, de forma que a filosofia se encontrava
subordinada necessidade de possibilitar o alcance da paz de esprito, de uma vida agradvel
e tranqila. Isso se daria por meio da valorizao dos prazeres catastemticos sobre os
prazeres cinemticos, ou seja, dos prazeres mais duradouros aos prazeres sensoriais; prazeres
que podem ser controlados, medidos e moderados aos que instigam a paixo, o descontrole,
os sobressaltos do inesperado. O Epicurismo tem na ataraxia um dos pilares para o cultivo dos
prazeres catastemticos. A ataraxia como a apatia, isto , consiste na recusa ao medo da
morte, na erradicao dos desejos e dos prazeres e no cultivo da amizade. Essa ltima
considerada um prazer controlado, juntamente com a paz e a contemplao esttica.
Blackburn (1997) destaca ainda trs principais caractersticas do Epicurismo:

Sensacionismo apreende-se o mundo, chega-se verdade e ao bem (ao prazer), por


meio das sensaes, dos contatos sensoriais que temos com o mundo;

Atomismo as sensaes seriam fruto da ao de camadas de tomos originais de


objetos diversos sobre a alma. Alm disso, a unio ou separao de tomos que daria
origem ou transformaria as coisas.

Semiatesmo Epicuro no acredita na possibilidade de que a vontade dos deuses


pudesse influenciar no destino e no governo da realidade do mundo. Acreditava em
deuses, mas estes no desempenhariam papel algum.

54

Quanto ao Estoicismo, foi uma das grandes escolas filosficas do perodo helenista,
fundada em torno de 300 a.C. De acordo com Blackburn (1997), um dos ideais de vida dessa
escola era a contemplao: colocar-se acima das preocupaes e emoes do cotidiano.
Novamente, a ataraxia est presente, assim como a indiferena em relao ao mundo. No
vale a pena fazer um esforo se o mundo obedece a uma determinada ordem, imutvel,
imparcial e inevitvel.
Caberia ao ser humano se manter sereno, para alcanar a paz do homem sbio:
indiferente pobreza, dor e morte, assemelhando-se assim paz espiritual de Deus
(ABBAGNANO, 2000: 128), ou seja, os esticos se tornam menos humanos e, assim como os
deuses, apticos em relao situao humana e aos problemas do mundo.
Ricardo Reis no epicurista ou estoicista de forma pura, no segue seus preceitos
fielmente, mas transmite pontos dessas filosofias em seus poemas. A primeira ode Mestre,
so plcidas- apresenta-nos quase que Ricardo Reis inteiramente:
Mestre, so plcidas
Todas as horas
Que ns perdemos,
Se no perd-las,
Qual numa jarra,
Ns pomos flores.
No h tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sbios incautos,
No a viver,
Mas decorr-la,
Tranqilos, plcidos,
Tendo as crianas
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...
beira-rio,
beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
No nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase

55

Maliciosos,
Sentir-nos ir.
No vale a pena
Fazer um gesto.
No se resiste
Ao deus atroz
Que os prprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma tambm.
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.4

Essa ode se inicia com o eu-lrico se dirigindo a um interlocutor: Mestre,


identificado como Alberto Caeiro, de quem Ricardo Reis se diz discpulo por meio do
paganismo, do sensacionismo, do apego Natureza. a seu mestre que vai apresentar sua
filosofia de vida, o que consiste o seu saber viver. A estrutura formal dessa ode reflete a forma
leve de se viver: so quintetos de quatro slabas mtricas, ou seja, so versos curtos, que
parecem nos transmitir a placidez almejada pelo eu-lrico. No campo semntico, podemos
perceber que a placidez o que se deseja alcanar, por isso, o uso das palavras placidez,
tranqilos, plcidos, descanso, calmos e calma, o que reflete a busca da serenidade;
aproveitar a vida de forma agradvel e tranqila.
Alm disso, o tempo aparece como um dos grandes problemas para o eu-lrico. No se
pode nada contra o tempo No se resiste/ Ao deus atroz/ Que os prprios filhos/ Devora
sempre. Por isso, fala-se sempre em perda: perdemos, decorr-la, Sentir-nos ir. Mas
preciso ter conscincia do tempo, porque assim podemos fazer algo para que a vida seja mais
leve e possamos Saber, quase/ Maliciosos,/ Sentir-nos ir, ou seja, possamos fazer algo para
amenizar os sofrimentos que a passagem do tempo nos causa.
Diante das diversas situaes que nos so colocadas diariamente, o eu-lrico prope
que apenas observemos o fluxo dos acontecimentos, porque, para ele, no existem tristezas ou
4

Vide anexo p. 119.

56

alegrias na vida. Assim, no devemos nos envolver com os fatos, mas ficar beira-rio,/
beira-estrada. Isso reflete o ideal de contemplao e de indiferena, sem entrar nem no rio
nem no curso da estrada, mas observar, estar perto, a uma distncia que no comprometa, no
envolva aquele que observa. Dessa forma, a vida passa sem desassossegos, mas com leveza.
Por isso, as mestras so as crianas, que ensinam a brincar com a vida, sem ir a fundo nela,
preocupando-se apenas com o momento que esto vivenciando Tranqilos, plcidos, /
Tendo as crianas/ Por nossas mestras.
O sensacionismo aparece quando o eu-lrico convida seu interlocutor a ter os olhos
cheios/ De Natureza. O mundo aquilo que podemos depreender de nossos sentidos, que
podemos ver, tocar, cheirar. o olhar para a natureza que far com que se aprenda a deixar-se
levar pela vida. Por isso: Colhamos flores/ Molhemos leves/ As nossas mos/ Nos rios
calmos para aprender calma e entregar-se ao tempo sem medos, sentir-se parte do cosmos. E
ainda: Girassis sempre/ Fitando o sol, para se deixar levar pelo curso da vida, sem grandes
preocupaes para onde se vai.
De acordo com Garcez (1990), os poemas de Ricardo Reis apresentam gestos e aes
que no valem a pena serem feitos, mas tambm gestos a serem realizados. Como se a vida
fosse um grande jogo, em que ora nos so tiradas vrias coisas, ora nos so deixadas, mas
sempre sairemos perdedores. O que muda, contudo, o modo como jogamos, o modo como
encaramos a vida. O uso do presente do indicativo pode demonstrar uma realidade que precisa
ser enfrentada: so, perdemos, pomos, h, passa. A realidade est a, presente: o
tempo passa, a vida no nos d nada, envelhecemos. Apesar de dizer No vale a pena/ Fazer
um gesto, a soluo preencher o tempo, fazendo gestos inteis, como por flores numa jarra,
colher flores, molhar as mos nos rios; gestos estes que no traro grandes conseqncias,
mas apenas mais leveza para a vida, uma vez que no se pode mudar a ordem das coisas, nem
o mundo.
Outra ode que reflete a filosofia seguida por Ricardo Reis Vem sentar-se comigo,
Ldia, beira do rio5. Esse poema est estruturado em oito estrofes, de quatro versos cada.
No h, porm, uma regularidade mtrica, com versos que variam de cinco a dezoito slabas
mtricas. Mais uma vez, o eu-lrico se coloca margem dos acontecimentos para contemplar
o curso da vida. Dessa vez, sua interlocutora Ldia, uma de suas musas. A ela dirige seu
convite e expe suas idias, por meio de negaes (no, nada, nem, nunca, totalizando
dezesseis ao longo do poema) e gestos que no valem a pena serem feitos: enlaar as mos,
5

p.121.

57

cansar, gozar, amar, odiar, ter paixes, invejas, cuidados ou crer em algo. Tudo isso passa
com a vida e, para ele, mais vale saber passar silenciosamente/ e sem desassossegos
grandes.
Aqui recordamos a busca por uma vida tranqila, sem grandes paixes ou prazeres que
possam transtornar a alma. Por isso, aconselha que se amem tranqilamente, sentados ao p
um do outro, ouvindo correr o rio, colhendo flores: gestos que no trazem grandes mudanas
ao curso dos acontecimentos e nem comprometem aqueles que os realizam.
Essa temtica reaparece em outros poemas. S o ter flores pela vista fora 6 uma ode
de sete estrofes de quatro versos, sendo os dois primeiros decasslabos e os dois ltimos
hexasslabos, mais leves e com contedo que refletem essa leveza, arrematando o que foi dito
nos versos anteriores, por exemplo:
S o ter flores pela vista fora
Nas leas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.

(...)
Encontramos no poema indicaes para que vivamos de forma serena: ter flores pela
vista, seguremos quedas as mos, buscando o mnimo de dor ou gozo, lembrando a
irresponsabilidade infantil que encara a vida como um jogo sem maiores conseqncias,
brincando, Bebendo a goles os instantes frescos, Translcidos como a gua. A vida,
segundo o eu-lrico, deve ser plida, sem lembranas que comovam ou apego aos bens,
porque quando chegar a morte Quando, acabados pelas Parcas, formos, no teremos nada
que levar que nos pese, apenas rosas breves, sorrisos vagos e rpidas carcias isso
ser o melhor do que fomos.
J a ode A palidez do dia levemente dourada7 quatro estrofes de quatro versos
apresenta o que Ricardo Reis considerava pertinente no epicurismo, adaptando-o sua forma
de v-lo, a comear pela tranqilidade transmitida pela natureza, que v e de quem aprende
calma: o dia plido e levemente dourado, o sol de inverno e o frio leve. Eis uma
paisagem serena, amena e agradvel. A maioria dos verbos est no presente do indicativo,
, faz, treme, aqueo-me, fala, est, o que pode mostrar aquilo em que Ricardo
Reis tenta vivenciar a filosofia antiga de Epicuro.

6
7

p.122.
p.123.

58

Ao dizer desterrado da ptria antiqssima da minha/ Crena o eu-lrico pode indicar


que Ricardo Reis se faz pago, entretanto, est em outro tempo diferente da Antigidade
greco-latina. Por isso, declara-se pago da decadncia, uma vez que pensa nos deuses e se
aquece da filosofia antiga, moldada a seu gosto. Esse o sol que o ilumina, o mesmo sol
que iluminava a Grcia antiga e Aristteles e Epicuro. Entretanto, o que lhe fala melhor
Epicuro Mas Epicuro melhor/ Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre , para quem os
deuses no exercem nenhuma influncia sobre o mundo, logo, nem sobre o ser humano. Ter
uma atitude tambm de deus pode significar que o ser humano pode decidir o seu prprio
destino, mantendo-se, porm, a distncia de situaes que abalam a serenidade da existncia.
O desapego aos bens materiais aparece na ode No tenhas nada nas mos 8, em que o
eu-lrico aconselha a no ter nada material ou mesmo lembranas na alma, para que, com a
chegada da morte, no tenhamos dificuldades em deixar-nos ir:
No tenhas nada nas mos
Nem uma memria na alma,
Que quando te puserem
Nas mos o bolo ltimo,
Ao abrirem-te as mos
Nada te cair.
Que trono te querem dar
Que tropos to no tire?
Que louros que no fanem
Nos arbtrios de Minos?
Que horas que te no tornem
Da estatura da sombra
Que sers quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E s rei de ti prprio.

A estrutura do poema, nove estrofes de dsticos, pode explicitar o despojamento


pedido pelo eu-lrico. As slabas mtricas variam de seis a sete, com maioria de seis. O tom do
poema de conselho, por isso o uso do imperativo nos momentos em que diz o que se deve
8

p.123.

59

fazer: no tenhas, colhe, larga-as, senta-te, Abdica, s. A situao que nos


apresenta a de que no h tronos ou louros que no nos sejam tirados, no se resiste ao
tempo que tudo transforma em sombras. A soluo seria aproveitar o que h de bom na vida
Colhe as flores , o que h de belo e proporciona prazer, sem se apegar a eles larga-as.
O eu-lrico aconselha: Senta-te ao sol. Abdica/ E s rei de ti prprio, ou seja, deixe de lado
as coisas passageiras e se coloque acima das preocupaes do mundo, dedique-se
contemplar o que h de perene, aprenda do sol a sabedoria.
O mesmo tema abordado em Cuidas, nvio, que cumpres, apertando9 seis estrofes
de quatro versos, sendo os dois primeiros decasslabos e os ltimos hexasslabos. Essa ode
fala sobre a inutilidade do trabalho, do esforo, se da vida nada se leva: A tua lenha s peso
que levas/ Para onde no tens fogo que te aquea. O conselho de que no se lute por
riquezas que podem ser tiradas de ns a qualquer momento (A obra cansa, o ouro no
nosso), nem se trabalhe tanto para um dia vir a compensao de tanto esforo; o importante
deixar como herana o exemplo e, se legas,/ Antes legues o exemplo, que riquezas e o
ensinamento de que a vida, mesmo sendo curta, o bastante. preciso aproveit-la em tudo
que ela nos oferece, mesmo sendo pouco: Pouco usamos do pouco que mal temos.
A vida basta. Na ode No consentem os deuses mais que a vida10 trs estrofes de
quatro versos, com pares decasslabos e pares hexasslabos, sendo essa diviso verificvel
pela alternncia de metrificao , Ricardo Reis retorna ao tema da aceitao do que a vida
nos apresenta e da recusa aos prazeres passageiros. Vejamos:
No consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespirveis pncaros,
Perenes sem ter flores.
S de aceitar tenhamos a cincia,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, s luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
S mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.

A metfora irrespirveis pncaros pode indicar a fama, a riqueza, os prazeres que


devem ser evitados, que nos levam a situaes irrespirveis e sem beleza, sem alegria
Perenes sem ter flores , ou seja, um caminho em que eternamente no haver a satisfao,
9

p.125.
p.125.

10

60

representada pela flor. Diante desse problema, Ricardo Reis prope que a maior sabedoria
aceitar e passar a vida com a inteno nica de durar. Faz, ento, uma comparao do ser
humano ao vidro. Enquanto estamos vivos, que saibamos ser transparentes como o vidro, que
nada retm, nada esconde, mas tudo mostra e concede viso de outros ((...) duremos,/
Como vidros, s luzes transparentes). Alm disso, no absorve a chuva triste, ou seja, os
momentos ruins, que tudo escorra. Como o vidro fica morno e reflete um pouco ao sol quente,
que experimentemos a vida de forma branda, sem desesperos ou apegos.
As odes O mar jaz; gemem em segredo os ventos11 e Antes de ns nos mesmos
arvoredos12 sugerem um questionamento sobre a pequenez e a fragilidade humana diante da
grandeza da natureza e da passagem do tempo. Na primeira, o espao a praia, com o mar, os
ventos, as ondas, a areia alva e brilhante sob o sol claro.
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
S com as pontas do tridente as vastas
guas franze Netuno;
E a praia alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro. (...)

Diante dessa grandiosa paisagem, o que seria o ser humano? Parecemos grandes para
ns mesmos, por nossa prpria tica, mas em relao imensido da natureza, no ficam
indcios de nossa existncia, como so apagadas pelas ondas as pegadas de quem caminha
sobre a areia da praia:
(...)
Se aqui de um manso mar meu fundo indcio
Trs ondas o apagam,
Que me far o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

Na segunda ode, a mesma reflexo feita, porm, o espao de comparao outro: os


arvoredos, por onde passa o vento e move as folhas hoje como antes de nossa existncia:
Antes de ns nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas no falavam
De outro modo do que hoje.
(...)
11
12

p.127.
p.127.

61

No queiramos ser mais do que somos, do que a vida nos concede. O exemplo a ser
seguido o da natureza, pois enquanto pensamos que somos grandes, ela mostra que existe
algo maior ainda: ela prpria e o Tempo, pois aquela sempre existiu, com suas rvores, folhas
e vento (Passou o vento, quando havia vento,/ E as folhas no falavam/ De outro modo do
que hoje) e este maior que qualquer um, a alta praia que apaga todas as marcas que
deixamos na areia de nossa existncia: Se aqui, beira-mar, o meu indcio/ Na areia o mar
com ondas trs apaga,/ Que far na alta praia/ Em que o mar o Tempo?.
Mais uma vez, na ode Tirem-me os deuses13, Ricardo Reis afirma no se importar
com Amor, glria e riqueza. Essa ode est organizada em oito estrofes de quatro versos,
com metros variados. Entretanto, os dois primeiros so os mais curtos, o terceiro mais longo e
o ltimo um pouco menor que o anterior. O eu-lrico fala do que lhe pode ser tirado e o que
lhe basta. Isso apresentado sempre nos dois primeiros versos das estrofes, por isso, a
conciso, o que basta:
Tirem-me os deuses
Em seu arbtrio
(...)
Pouco me importa
Amor ou glria
(...)
O resto passa,
E teme a morte.
(...)
Essa a si basta,
Nada deseja
(...)

A indiferena aos prazeres transitrios e a conscincia de que no acrescentam nada


vida humana que fazem com que declare que A riqueza um metal, a glria um eco/ E o
amor uma sombra. Para ele, basta a conscincia lcida e solene/ Das coisas e dos seres,
isto , tendo em conta o sensacionismo ensinado por Epicuro e retomado pelo mestre Caeiro,
de quem Ricardo Reis se dizia discpulo, perceber o mundo, as coisas, os seres por meio de
suas prprias sensaes, por si mesmo. Podemos dizer que a concisa/ Ateno dada/ s
formas e s maneiras dos objetos ver o mundo para Ricardo Reis, ter a viso clara do
Universo: contemplar. Isso para ele perene, no passa nem teme a morte e se basta. Ver,
para Ricardo Reis, sinnimo de existir, de viver, por isso, o nada desejar a no ser a

13

p.128.

62

conscincia de existir o bastante. Seu nico desejo, portanto, ver sempre claro/ At deixar
de ver.
O desejo de conhecer, saber, ver tambm abordado em Melhor destino que o de
conhecer-se14. Aqui, Ricardo Reis cria um jogo entre o saber e o ignorar. Quer saber se
nada, se possui poder para vencer a morte, representada pelas trs Parcas; no quer ignorar
ser nada Nada dentro de nada e nem a incapacidade de superar a morte. Essa
sabedoria para ele um poder conferido pelos deuses, graa de conhecer-se e saber que no se
pode nada contra a morte (J me dem os deuses/ O poder de sab-lo). Quer, portanto,
gozar daquilo que pode, da beleza que existe e que pode ver, de forma passiva, contemplativa,
por seus olhos: E a beleza, incrivel por meu sestro/ Eu goze externa e dada, repetida/ Em
meus passivos olhos,/ Lagos que a morte seca.
Ver e gozar a vida enquanto no chega a hora do barqueiro o que Ricardo Reis
prope no poema Tuas, no minhas, teo estas grinaldas15. As grinaldas, por serem feitas
com flores, sugerem a transitoriedade, a efemeridade da vida, mas tambm sua beleza e
alegria; por ser uma coroa, um crculo, pode ser smbolo da eternidade. Se o melhor gozo for
ver, que, coroados mutuamente, vejam o que deixar de existir e esperem o que h de vir:
Coroemos pois uns para os outros,/ E brindemos unssonos sorte.
A ode Dia aps dia a mesma vida a mesma16 retoma a idia de que no vale a pena
fazer esforo, porque a vida passa e passamos com ela, quer faamos um gesto ou no, ou
seja, o que deve acontecer, acontecer independente de nossa ao: os fatos se sucedero, os
frutos apodrecero colhidos ou no, o fado nos encontrar de qualquer forma, quer o
procuremos/ Quer o speremos. Essa forma estica de ver o mundo impele ataraxia, vida
contemplativa, indiferente realidade cotidiana, que no ser mudada por nossa ao, uma
vez que o Destino alheio e invencvel a qualquer atitude que tomemos ou no.
A aceitao tambm tema de No mundo, s comigo, me deixaram17, ode de seis
versos, seguindo o esquema de decasslabos alternados com hexasslabos:
No mundo, s comigo, me deixaram
Os deuses que dispem.
No posso contra eles, o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quanto
O vento cessa, ergue-se.
14

p.133.
p.134.
16
p.133.
17
p.136.
15

63

Ao afirmar que o que me deram/ Aceito sem mais nada, o eu-lrico cumpre o
destino que os deuses lhe impuseram sem fazer nada contra isso. A metfora do trigo, que se
baixa com o vento e quando este cessa, ergue-se, pode sugerir que o eu-lrico enfrenta os
momentos de dificuldades e alegrias de forma tranqila, resignando-se vontade dos deuses.
Para Ricardo Reis, como vimos, no vale a pena fazer nada contra a ordem vigente,
nem se envolver com as situaes que a vida nos apresenta no dia-a-dia. Por isso, a apatia
sua companheira e, com isso, considera sua existncia como frias, na sempre ociosidade,
como podemos ler em Azuis os montes que esto longe param 18. Os montes que aparecem
no poema so azuis, talvez porque quem os observa esteja longe ou porque refletem sua nsia
em estar longe tambm; a cor azul pode indicar amplido, profundidade, divindade ou aquilo
que Ricardo Reis deseja atingir: a placidez. Entre os montes e quem os observa est o campo,
com toda a sua multiplicidade de cores (Ou verde ou amarelo ou variegado) como a vida.
Alm disso, o campo ondula incertamente ao vento ou brisa, o que pode fazer referncia
aos momentos de dificuldades e bonana pelos quais passamos. Esse momento para ele de
extremo conflito, pois se considera dbil como uma haste de papoila, ou seja, se encontra
desarmado, vulnervel, fragilizado. Nada quer: nem pensar nem agir, assim como os campos
que se entregam ao ciclo natural da vida, e, sem esforo, deixa-se levar pelas frias em que
existe.
A leitura que apresentamos at aqui foi uma forma de se ler Ricardo Reis, baseada nos
conhecimentos do leitor atual, tendo como respaldo um conjunto de outras recepes j feitas
da obra de Ricardo Reis, bem como as nossas impresses pessoais e a participao enquanto
sujeito-leitor. Percebemos que Ricardo Reis, em relao sua filosofia de vida, demonstra ter
um conhecimento amplo do epicurismo e do estoicismo e que o efeito que tais idias
causaram em si foi to importante que as incorporou sua vida, tendo em vista, de acordo
com Iser (1999), que o efeito algo a ser experimentado. Dissemos, anteriormente, que
transmite pontos dessas filosofias, como a ataraxia, a indiferena, a impassibilidade diante do
tempo, da morte, a inutilidade de se fazer um gesto, a indiferena dos deuses, a manuteno
da ordem das coisas. Da, podemos imaginar um homem sbio, que busca o conhecimento,
uma conscincia lcida de si e das coisas, mas guarda tudo para si, no coloca a servio de
ningum. O que partilha em seus poemas so os gestos inteis que afirma valerem a pena
serem feitos; gestos mais estticos que plenos de sentido.

18

p.136.

64

3.2.2 Horcio por Ricardo Reis


Uma das grandes influncias de Ricardo Reis o grande poeta latino, Horcio, nascido
em 65 a.C. Horcio se consagrou por seus poemas curtos, com temas do cotidiano, cantando o
amor, a amizade, o vinho e a festa. Era contra a guerra por sua brutalidade, apesar de ser
protegido por Mecenas e ser poeta do Imperador Romano Csar Augusto.
Muitas de suas idias e temticas passaram como herana literria atravs dos sculos,
especialmente o ideal do carpe diem e da aurea mediocritas. O carpe diem significa colha o
dia, aproveite a vida, porque o tempo passa bem depressa e com ele a juventude e os bons
momentos; aproveite o dia como se fosse o ltimo. A humildade, a doutrina aristotlica do
meio-termo dourado o que se reflete na aurea mediocritas, viver com que moderao e
modstia, sem luxos ou ganncia.
Como explica Tringali (1995), a morte para Horcio no tem um sentido negativo e
nem faz com que se perca a vontade de viver. Ao contrrio, a morte enfrentada como uma
realidade presente em todas as situaes, como o ciclo das estaes, o intercalar entre dia e
noite. Pensar na morte uma oportunidade de se aprender a viver melhor.
Horcio uma das bases da poesia de Ricardo Reis, a comear pelo nome da obra:
Odes, nome igual ao livro Odes de Horcio. Segundo Tringali (1995), a presena de Horcio
nas odes de Ricardo Reis certa, tanto pela retomada dos modelos quanto pela temtica
abordada. Entretanto, Ricardo Reis horaciano no plano esttico formal e quase que antihoraciano no plano ideolgico em alguns pontos.
Ricardo Reis se vale da idia do carpe diem em vrios poemas, como em Coroai-me
de rosas19:
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
To cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

A rosa flor perecvel e pode indicar a brevidade da vida, tambm sugerida pela forma
curta do poema. Mas a figura da rosa pode ter sido usada para mostrar que, apesar de efmera,
perfeita e bela e essa beleza deve ser aproveitada enquanto existe. Ele diz Rosas que se
19

p.120.

65

apagam/ Em fronte a apagar-se/ To cedo!, como se as rosas fossem uma metonmia de todo
ser vivo e como as rosas se vo logo, assim tambm passa aquele que a coloca na fronte. A
coroa smbolo da perfeio e da participao na eternidade, mas para Ricardo Reis apenas o
gesto de ser coroado de rosas e folhas breves basta, suficiente e tem fim em si mesmo.
Em To cedo passa tudo quanto passa!20, outro poema curto de seis versos, h um
questionamento sobre o que fazer diante da passagem do tempo, uma vez que tudo passa
muito rpido e conhecemos to pouco da vida e nada da morte Tudo to pouco! Nada se
sabe, tudo se imagina. A sada circundar-se de rosas, amar, beber e calar, ou seja,
aproveitar do pouco que a vida oferece. Termina, contudo, o poema afirmando que O mais
nada, como se no houvesse esperana.
A natureza tambm reflete essa passagem do tempo, como vemos em Quando, Ldia,
vier nosso outono21, e aconselha sua interlocutora, Ldia, a no pensar na primavera que h
de vir, que no ser mais deles, ou seja, o futuro, nem se ater ao estio, de quem somos
mortos, o passado que viveram, que este no existe mais. Seu conselho que vivam o que
fica do que passa, o presente. Que aproveitem o tempo em que vivem, mesmo que sejam
momentos em que a juventude tenha passado e sintam a morte se aproximar, pois isso que
os torna sempre diferentes a cada tempo (O amarelo atual que as folhas vivem/ E as torna
diferentes).
Ao pensar no passado, vemos o que no vemos mais; ao olhar para o futuro, tentamos
ver o que no se pode ver. Em Uns, com os olhos postos no passado 22, o eu-lrico afirma
que Este o dia,/ Esta a hora, este o momento, isto/ quem somos, e tudo, de forma que
nossa segurana seja posta no presente, porque diante do tempo somos nulos e nossa vida
dura muito pouco. Por isso, Colhe/ O dia, porque s ele.
Entretanto, ao mesmo tempo em que aconselha que se colha o dia porque nada somos
mais que o presente, diz que no vale a pena fazer um gesto; gozar ou no gozar faz o mesmo
efeito, porque passamos como o rio23 e mais vale passar sem desassossegos grandes. Alm
disso, no h esperanas, uma vez que Igual o fado, quer o procuremos, / Quer o
speremos24. Tambm fala do desapego ao presente e s situaes da vida, para que no se d
ateno a nada para que no entre nada na memria Colhe as flores mas larga-as/ Das mos

20

p.133.
p.135.
22
p.137.
23
p.121.
24
p.133.
21

66

mal as olhaste25. Para Ricardo Reis, conforme afirma Tringali (1995), nada vale a pena e
refuta, pois, Horcio nesse sentido, de que tudo passa, pouco importa o que se faa.
O ideal da aurea mediocritas ou o meio-termo dourado, porm, aparece em vrias
odes de Ricardo Reis. Nada esperar da vida e aceitar o que dela vier tematizado em Quero
ignorado, e calmo26. O projeto de vida de Ricardo Reis se resume a viver como
desconhecido, ignorado, e, por isso, calmo, nico dono de si prprio e de seus dias:
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e prprio
Por calmo, encher meus dias
De no querer mais deles.
(...)

Essa seria sua soluo para evitar o que diz na segunda estrofe: a riqueza que irrita a
pele, no traz benefcios ao ser humano, ou a fama que ilude a pessoa. Quem se fia apenas
nesses elementos no percebe que o sol passa e vem a noite, como coloca na terceira estrofe:
Aos que a felicidade/ sol, vir a noite, aos que no percebem que riqueza e fama so
passageiras, viro tempos difceis e de tristezas. Mas, queles que se do por satisfeitos com o
que a vida lhes oferece, Tudo o que vem grato.
Por isso, no vale a pena ajuntar riquezas, gastar tempo com muito trabalho ou ansiar a
fama, porque A obra cansa, o ouro no nosso e a fama ri-se de ns, como diz a ode
Cuidas, nvio, que cumpres, apertando27, que acrescenta que a vida basta, mesmo sendo
curta e nos dando pouco.
Mais um exemplo do ideal do meio-termo dourado a ode Segue o teu destino28,
estruturada em cinco estrofes, de cinco versos, em redondilha menor, o que confere ao poema
um certo ritmo:
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto a sombra
De rvores alheias.
A realidade
Sempre mais ou menos
Do que ns queremos.
25

p.124.
p.137.
27
p.125.
28
p.132.
26

67

S ns somos sempre
Iguais a ns-prprios.
Suave viver s.
Grande e nobre sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
V de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Est alm dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu corao.
Os deuses so deuses
Porque no se pensam.

Nessa ode, encontramos novamente os conselhos do eu-lrico, expressos por meio dos
verbos no presente do indicativo, em tom de imperativo: segue, rega, ama, deixa,
v, imita. Isso porque o eu-lrico recomenda o cuidado com o que cada um tem, com o
que a vida lhe deu: o destino, as plantas, as rosas. Cada um cuide do que seu, porque o
resto sombra/ De rvores alheias. No poderemos ter tudo o que almejamos, porque a
realidade Sempre mais ou menos/ Do que ns queremos e a nobreza, segundo ele, viver
simplesmente, de forma simples, sem grandes iluses, sonhos, ambies, desejos, bem como
viver, simplesmente viver, sem interrogar a vida e imitando os deuses que no pensam quem
so: apenas so.
Tringali (1995) faz um estudo sobre o cdigo do vinho em Horcio e o cdigo do
vinho em Ricardo Reis e conclui que, ao contrrio de Horcio que bebe o vinho seguindo um
ritual quase eucarstico, com regras, amigos, conversa, msica, dana, flores, em dias e
horrios certos, Ricardo Reis no v sentido maior em beber. Pouco importa beber ou no,
uma vez que isso no mudar o curso da vida.
Isso pode ser percebido na ode Sbio o que se contenta com o espetculo do
mundo29, em que o eu-lrico

considera sbio aquele que se coloca margem dos

acontecimentos e observa sem tomar parte. Beber no traz qualquer sentido religioso, porque
ao beber nem recorda/ Que j bebeu na vida, uma vez que o eu-lrico no acredita em nada,
nem no passado, nem no presente, nem no futuro. Diante disso, o vinho no resolve nada e
29

p.124.

68

pouco importa beber ou no porque a vida/ Passa por ele e tanto/ Corta flor como a ele.
Segundo o eu-lrico, o vinho serve para esquecer a passagem das horas e, portanto, no
importa se dia ou noite, se depois do pr-do-sol ou antes de seu nascer. O que importa
beber tranqilo, sozinho, desejando que a morte no lhe chegue logo.
A conversa, segundo Tringali (1995), no festim de Horcio, era incentivada pela
ingesto do vinho de forma moderada, fazendo com que os amigos falassem sem medo do que
sentiam,

recordassem

momentos

vivenciados,

discutissem

temas

diversos.

Beber

demasiadamente era prejudicial conversao, porque sob o efeito do vinho viriam as brigas,
a maledicncia e as revelaes de segredos. Ricardo Reis, porm, inicia seu poema Bocas
roxas de vinho30, descrevendo um quadro em que o eu-lrico e Ldia estariam deixados
sobre a mesa, com as bocas roxas, coroados de rosas, nus. Nessa cena de embriaguez, no h
espao para a conversa, mas quer que fiquem mudos,/ Eternamente inscritos/ Na conscincia
dos deuses. Podemos perceber nesse poema a falta de perspectiva de Ricardo Reis diante da
vida: incomoda-lhe aqueles que tentam construir algo em suas vidas; o que deseja deixar-se
ir no rio das coisas, embriagado e mudo, impassvel diante da existncia.
Terminamos a leitura de Horcio em Ricardo Reis com a intertextualidade existente
entre a Ode 3, 30 (Exegi monumentum are perennius), de Horcio, e a ode Seguro assento na
coluna firme31, de Ricardo Reis. Ambas discorrem sobre a perenidade da obra literria em
relao passagem do tempo. Horcio diz que sua obra um monumento mais perene que o
bronze e mais alto, mais imponente e importante que a construo das pirmides, de tal forma
que nada pode destru-la:
Exegi monumentum are perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod nom imber edax, non Aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum. 32
(...)

Salienta que ao morrer, uma parte dele continuar viva em seus versos, mesmo sendo
um homem de origem humilde, filho de escravo liberto e nascido no interior, na cidade de

30

p.129.
p.132.
32
Acabei um monumento mais perene que o bronze/ E mais alto que a construo real das pirmides,/ De tal
sorte que no possam destru-lo, nem a chuva voraz nem/ O Aquilo desenfreado, nem a srie/ Inumervel dos
anos e a fuga das estaes (TRINGALI, D. Horcio, poeta da festa: navegar no preciso. So Paulo: Musa
Editora, 1995, p.174).
31

69

Vensia. Alcana fama e glria e pede que seja coroado de louros em honra a Apolo pelo que
lhe aconteceu e acontecer.
Ricardo Reis tambm apresenta seus versos como algo perene, durvel, coluna
firme:
Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e arte o mundo
Cria, que no a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.

Todavia, ele no diz que seus versos ficaro para a posteridade, mas ele prprio que,
absorvido por seus versos, fixo, contemplando os reflexos do mundo, molda-o por meio da
arte e no teme o tempo nem o esquecimento, o influxo inmero futuro/ Dos tempos e do
olvido. Como uma placa, em que uma imagem exterior gravada e ali permanece, a arte, a
poesia tambm so capazes de captar um instante, um reflexo da realidade exterior deix-la
preservada, durando nela.
Se o texto, de acordo com Iser (1999) deixa pausas para promover e regular a
interao entre texto e leitor, chamadas de lugares vazios, o que fizemos foi preencher essas
lacunas com um sistema diferenciado daquele que o texto apresenta, isto , os poemas de
Ricardo Reis no falam explicitamente de Horcio, mas sugerem essa ligao tanto pelos
temas abordados quanto pelo fato de ter escolhido trabalhar com odes. O dito, o que est
explcito no texto que nos leva a essa concluso e nos estimula a ir em busca do no-dito, ou
seja, de que forma se d a relao Ricardo Reis-Horcio nas odes do heternimo. Podemos
afirmar, por fim, que Ricardo Reis foi um leitor de Horcio, de quem conheceu a obra, aceitou
o que lhe era transmitido por ela, atualizou conforme suas potencialidades e vivncia
imaginativa, foi influenciado pelas idias veiculadas e assimilou muitas delas a seu universo
vivencial.
3.2.3 Religio e liberdade
Quando falamos sobre a religio em Ricardo Reis pensamos em paganismo. Embora
os deuses pagos apaream em seus poemas, no podemos afirmar que Reis seja um pago
autntico, quando ele mesmo afirma ser um pago da decadncia, longe daquele tempo em

70

que essa era a religio seguida oficialmente por gregos e romanos. Alm disso, o heternimo
se declara epicurista, mas Epicuro era materialista e ateu; logo, podemos concluir que Ricardo
Reis se vale das figuras da religio greco-romana como ornamento, como recurso retrico em
seus poemas, e no como um princpio religioso de fato.
De acordo com Tringali (1995), Ricardo Reis seria filiado, a seu modo, religio
olmpica, que se difere da saturniana por no crer na transcendncia, nem no misticismo, mas
os deuses esto presentes na natureza, nas coisas e nos seres, e todos vivem sob o
determinismo e o fado. O saturnismo, religio de Horcio, era cheio de mistrios e mais
espiritualista e crente em uma Providncia Divina e na prestao de contas aps a morte. A
religio olmpica era um culto mais exterior, oficial, sem muitas exigncias para aqueles que
lhe eram adeptos.
Segundo Ricardo Reis, os deuses saturnianos so desterrados, matria vencida,
inteis foras, despeitadas runas, como podemos ler na ode Os deuses desterrados33.
Aqui, o eu-lrico diz que esses deuses vm espreitar a vida no crepsculo, como que s
escondidas, e trazer sentimentos falsos, suscitar dores e cansaos que tiram a alegria, e tentar
convencer de que existe algo alm da matria, por serem espirituais:
(...)
Vm ento ter conosoco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
(...)
Vm, inteis foras,
Solicitar em ns
As dores e os cansaos,
Que nos tiram da mo,
Como a um bbado mole,
A taa da alegria.
(...)

Para o eu-lrico, o mundo o que se v e apalpa e nisso consiste a crena nos deuses
olmpicos, foras e elementos da natureza. Por isso, nada resta aos deuses saturnianos alm de
chorar o lugar que lhe foi roubado pelos olmpicos. Assim diz o eu-lrico nesse poema:
(...)
Hiperion no crepsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.

33

Vide anexo, p.120.

71

E o poente tem cores


Da dor dum deus longnquo,
E ouve-se soluar
Para alm das esferas...
Assim choram os deuses.

Tambm a ode Anjos ou deuses, sempre ns tivemos34 trs estrofes de quatro


versos: dois decasslabos e dois hexassslabos uma crtica ao saturnismo, que, segundo o
eu-lrico, apresenta uma viso perturbada de que acima/ De ns e compelindo-nos/ Agem
outras presenas. Isso quer dizer que assim como para os gados, o homem como um deus,
que os coage e obriga e eles no percebem, haveria, acima de ns, uma suprema fora e
sabedoria a conduzir nossos pensamentos e aes conforme sua vontade, sem que dssemos
conta disso, a Providncia divina Nossa vontade e o nosso pensamento/ So as mos pelas
quais outros nos guiam. O eu-lrico, porm, no cr nesse espiritualismo; para ele, o homem
dono de si prprio e acreditar nisso faz o ser humano semelhante aos deuses e no
subjugado a eles.
Essa mesma reflexo desenvolvida em Meu gesto destri35, tambm com trs
estrofes de quatro versos, sendo os dois primeiros hexasslabos e os dois ltimos decasslabos.
Nos dois primeiros, o eu-lrico apresenta o assunto da estrofe enquanto nos dois seguintes
arremata a idia.
Pela ao do eu-lrico de esmagar com um toque as formigas Meu gesto que
destri/ A mole das formigas , pode ser considerado um ser divino por elas, mesmo que
no se considere como tal. Da mesma forma, os deuses talvez no se sintam divinos, mas o
fato de serem maiores que os seres humanos que os fazem se sentirem deuses:
(...)
Assim talvez os deuses
Para si o no sejam.
E s de serem do que ns maiores
Tirem o serem deuses para ns.
(...)

Diante disso, mesmo no tendo certeza do que certo Seja qual for o certo , no
considera prudente confiar inteiramente numa f sem causa, reforando sua teoria de que
cr naquilo que pode ver, sentir: nos deuses que esto nos campos, no cu, nas coisas e nos
seres e no pe sua f em algo obscuro e vago.
34
35

p.128.
p.137.

72

A materialidade dos deuses retratada na ode O deus P no morreu 36, tanto pelo
contedo quanto pela estrutura formal. Temos trs estrofes que apresentam um crescente
nmero de versos, sendo, todos eles, hexasslabos: a primeira, que fala do deus P, tem sete
versos; a segunda, sobre Cristo e o sobrevivente P, com oito versos; a terceira, sobre os
deuses antigos e sua presena na natureza, dez versos .
Para o eu-lrico, os deuses no pereceram ante a religio crist, com seu deus triste;
Cristo seria um deus a mais,/ Talvez um que faltava. Temos, ento, a descrio de onde os
deuses so encontrados: Apolo, no sol, com seus sorrisos que mostram os campos, ou os
peitos nus de Ceres; e o deus P, que aparece onde quer com o som de sua flauta. A presena
dos deuses reforada na terceira estrofe, em que o eu-lrico afirma que Os deuses so os
mesmos,/ Sempre claros e calmos,/ Cheios de eternidade/ E desprezo por ns, ou seja, os
deuses continuam presentes na natureza e sempre estaro l, Trazendo o dia e a noite/ E as
colheitas douradas, no por providncia divina, mas por si mesmos, porque os deuses no se
importam com os seres humanos.
Para o heternimo, somos donos de ns-mesmos, como podemos ler em Da nossa
semelhana com os deuses37, e, exilados nessa existncia, possuindo a vida, como presente
de Jove ou Jpiter, que saibamos viver altivamente, enquanto o fatal rio escuro no nos
alcana. Se at sobre os deuses pesa o Destino (Como acima dos deuses o Destino/ calmo
e inexorvel), que possamos construir para ns o nosso prprio destino Acima de nsmesmos construamos/ Um fado voluntrio de forma que nada nos oprima nem nos
manipule, para que sejamos donos de nosso futuro e senhores de nossas decises:
(...)
Que quando nos oprima ns sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso p entremos.

Dessa forma, teremos a iluso de que somos livres, como os deuses do Olimpo se
pensam livres; o que se apresenta em S esta liberdade nos concedem38. Aqui, o eu-lrico
aponta que existem os deuses por cremos neles, afinal, submetemo-nos ao seu domnio por
vontade nossa e pensamos ser livres como os deuses o so. Sobre eles pesa tambm o eterno
fado, assim como sobre os homens, mas eles no pensam nisso e ns, seguindo seu exemplo,
36

p.121.
p.125.
38
p.126.
37

73

tambm no devemos nos preocupar com o que nos espera, mas devemos seguir nossas vidas
e construir o nosso futuro, Porque s na iluso da liberdade/ A liberdade existe. O eu-lrico
usa uma comparao para falar dessa liberdade que temos de construir nossas vidas: Como
quem pela areia/ Ergue castelos para encher os olhos, o que pode indicar a busca desse fazerse como os deuses, apesar de que erguer castelos de areia um gesto intil, frgil, mas que
enche os olhos, traz a iluso de que estamos imitando os deuses, de que podemos ser criadores
e isso nos satisfaz e, quem sabe, agradar aos deuses E os deuses sabero agradecer-nos/ O
sermos to como eles.
Apesar de materialista, Ricardo Reis reconhece a existncia de algo imperecvel: a
alma; compreende que a matria passa enquanto a alma livre. isso que vemos em Aqui,
Neera, longe39, em que a musa Neera e o eu-lrico se encontram longe dos homens e das
cidades, no campo, portanto, onde no h paredes, casas, muita gente, podem se sentir livres:
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ningum nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres. (...)

Essa liberdade, contudo, no plena porque Nos tolhe a vida o corpo/ E no temos a
mo/ Onde temos a alma, pois o esprito est ligado matria, ao corpo, que se gasta com
o passar do tempo. Apesar disso, no campo, no h outra forma de priso alm da vida, e
pensar nisso a nica coisa que pode nos prender. O eu-lrico orienta: deixemo-nos crer/ Na
inteira liberdade/ Que a iluso que agora/ Nos torna iguais aos deuses, de forma que
aproveitemos essa liberdade, sem pensar, pois isso nos faz semelhantes aos deuses, que
tambm no so inteiramente livres.
No entanto, para Ricardo Reis, nada faz sentido, nem mesmo a alma, e tenta entender
o que rege o mundo a partir do que v e ouve na natureza. Vejamos a ode Nos altos ramos de
rvores frondosas40:
Nos altos ramos das rvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
39
40

p.126.
p.135.

74

Assim no mundo, acima do que sinto,


Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido nem a alma
Com que penso sozinho.

Nesse poema, o eu-lrico medita sobre a vida olhando para a floresta e ouvindo o
barulho do vento nos ramos altos das rvores, como se l em cima a vida estivesse
acontecendo, independentemente do que sente ou pensa Assim no mundo, acima do que
sinto/ Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma , e est impregnada de natureza formando
um ciclo da existncia. Todavia, esse ciclo est acima do que pode entender, sentir; por isso,
no v um sentido maior para tudo isso (E nada tem sentido), como se a existncia no
significasse nada e o nascer e o morrer fossem apenas conseqncias do soprar do vento.
O fato de Ricardo Reis remeter seus poemas a um outro tempo, o da civilizao grecolatina, leva o leitor a ter uma experincia com a literatura clssica, com seus motivos
temticos, deuses, filosofias. Ao aceitar essa possibilidade, o leitor precisa trabalhar com a
iluso, para que possa mergulhar no texto e este fazer sentido para ele, converter-se em uma
realidade experiencivel. No caso, para sentir esse efeito, primeiramente, Ricardo Reis
precisou se transportar para uma vida diferente e transmitir isso, por meio dos poemas, aos
leitores, que, por sua, vez, enriquecem seu conhecimento de mundo ao entrar em contato com
as odes clssicas de Reis.
3.2.4 A mulher e o amor em Ricardo Reis
As musas de Ricardo Reis, assim como as de Horcio, so Ldia, Cloe e Neera.
Horcio, porm, canta e ressalta as belezas e as virtudes das mulheres de segunda classe: a
criada, a escrava, a liberta ou a libertina. Tringali (1995) explica que as mulheres de primeira
classe, isto , as mulheres nascidas livres, casadas, senhoras da casa e filhas de boas famlias,
tinham uma vida muito restrita ao lar, sem estudos, pois a elas cabia zelar pela santidade e
perpetuao familiar. s mulheres de segunda classe era permitido se instruir, cantar, danar,
tocar instrumentos, o que lhes fazia malvistas pela sociedade. Alm disso, a escrava era um
objeto, a libertina dispunha como bem queria de sua vida e costumava trabalhar como criada
ou prostituta. A prostituio, ao contrrio dos dias atuais, era vista como uma proteo
instituio familiar, porque da esposa se exigia decoro e recato, enquanto os prazeres eram
satisfeitos com as prostitutas, de forma que o lar ficasse preservado. Os versos de Horcio so
dedicados s mulheres de segunda classe porque a nobreza reside na forma de se viver o amor
e no na nobreza de nascimento da mulher. Entre suas amadas temos:

75

(...) Horcio amou a inconstante Floe, a rstica Fdile, a cantora


Neera, a violenta Mrtale, a doce Llage, a arrogante Cloe, a impudente
Cnara, a perjura Barine, a soberba Lice, a bela Glcera, a musicista Lide...
A Ldia, sua cortes predileta, ele confessa: mil vezes feliz aqueles
cuja unio nunca se rompe por deplorveis queixas, cujo amor dura at o
ltimo dia (TRINGALI, 1995: 83).
Entretanto, a intertextualidade que Ricardo Reis faz com Horcio se resume aos nomes
de suas musas, e a figura da mulher, portanto, duas vezes ficcional: uma cpia de Horcio e
um motivo potico.
Com Ldia, na ode Vem sentar-te comigo, Ldia, beira do rio41, no a convida para
que troquem beijos, abraos ou carcias, mas que se amem tranquilamente, pois mais vale
estarmos sentados ao p um do outro. Dessa forma, nenhuma lembrana que arda, fira
ou mova poder abal-los no futuro, quando o barqueiro sombrio chegar. Convida Ldia
tambm a beber vinho em Bocas roxas de vinho42 at que fiquem mudos, impassveis diante
da realidade que os cerca.
Neera aparece no campo com Ricardo Reis em Aqui, Neera, longe43, incorprea, um
interlocutor a quem ele dirige as suas reflexes acerca da liberdade, da alma e da matria, de
no pensar.
Mais concreta Cloe, a quem prope que se beijem e se amem em Como se cada
beijo44. Esses beijos, porm, tm a inteno de aproveitar o momento enquanto No ombro a
mo, que chama/ barca que no vem seno vazia, de forma que no haja compromisso ou
sentimento maior que os una a no ser o presente momento.
Isso porque Ricardo Reis considera o amor uma priso, como podemos ver na ode:
No quero, Cloe, teu amor, que oprime
Porque me exige amor. Quero ser livre.
A sperana um dever do sentimento.45

como se o amor exigisse dele mais do que pode dar; como se tivesse o dever de
estar aprisionado a algum. Dessa forma, no quer amar e nem quer que algum o ame,
porque isso tambm exigiria algo de si. Talvez, para ele, o amor tire a esperana e reduza o
sentimento, enquanto a liberdade uma forma de cultiv-la.
41

p.121.
p.129.
43
p.126.
44
p.133.
45
p.135.
42

76

Por isso, Ricardo Reis se vale de figuras femininas, mas, diante delas, sua postura de
indiferena. Para ele, o amor uma sombra, incerteza, exige que aquele que ama saia da
superfcie, mergulhe no mar que o outro e deixe que a recproca acontea. Ricardo Reis quer
apenas a superfcie, uma vez que o prazer vem de contemplar, ver, conhecer a realidade
externa das coisas, a beleza externa dada, repetida em seus olhos, lagos que a morte seca.
Junto de Ldia, como salientamos, emudece. Em Prazer, mas devagar 46, podemos
perceber o ideal epicurista da busca pela felicidade e o prazer, mas o prazer moderado,
cuidadoso, que no perturbe a alma, de forma que a sorte no lhes seja tirada. Que o prazer
seja escondido, embora seja considerado um depredando pomo, algo que j est em
depreciao, desvalorizado.
A frieza de afetos o ideal de Ricardo Reis para alcanar a liberdade dos deuses. No
s quem nos odeia ou nos inveja47 apresenta as restries que as paixes causam: o dio, a
inveja e o amor so opressores, de forma que aquele que no possui esses sentimentos e vive
o desapego, tem tudo tem a liberdade: Que os deuses me concedam que, despido/ De
afetos, tenha a fria liberdade/ Dos pncaros sem nada. Alm disso, nesse poema o eu-lrico
retoma o ideal do meio-termo dourado, a simplicidade e despojamento, estendidos at o
sentimento e o desejo. Esse desapego o que nos faz semelhantes aos deuses: Quem quer
pouco, tem tudo; quem quer nada/ livre: quem no tem, e no deseja,/ Homem, igual aos
deuses.
Para Ricardo Reis no h amor:
Ningum a outro ama, seno que ama
O que de si h nele, ou suposto.
Nada te pese que no te amem. Sentem-se
Quem s, e s estrangeiro.
Cura de ser quem s, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrers avaro
De penas.48

Amamos nos outros o que h de ns neles. E se ningum o ama? No h problema


porque significa que ningum se identifica com ele, como se fosse estrangeiro. Nesse
poema, o eu-lrico recomenda que cada um cuide ser quem , sendo amado ou no (Cura de
ser quem s, amam-te ou nunca), de forma que firme contigo, sofrers avaro/ de penas, ou
seja, no sofrer ou sofrer pouco.

46

p.133.
p.135.
48
p.136.
47

77

O leitor, acostumado a poemas que cantam e celebram o amor, assustar-se- com o


pessimismo de Ricardo Reis, a quem nada vale a pena, nem mesmo amar e ser amado, o que
promove uma ruptura, ou seja, de acordo com Aguiar e Bordini (1993: 88), uma ao
ocasionada pelo distanciamento crtico de seu prprio horizonte cultural, diante das propostas
novas que a obra suscita. Ricardo Reis rompe com o olhar horaciano e o romntico sobre a
mulher e o homem, e o leitor, que aceita o jogo duas vezes ficcional do heternimo (porque
ele prprio fico e sua obra seria fico da fico), pode experimentar essa viso
pessimista.
3.2.5 Estrangeiro para o mundo
Ricardo Reis avesso guerra; no vale a pena lutar; busca a placidez, a tranqilidade
da vida, a exemplo de Horcio. Diante da guerra, Ricardo Reis no aconselha nada, nenhum
gesto, apenas a indiferena.
Isso pode ser comprovado com a ode Ouvi contar que outrora, quando a Prsia49,
uma das maiores de Ricardo Reis: so doze estrofes, com diferentes nmeros de versos,
alternando versos de dez ou onze slabas com versos de seis ou sete slabas poticas. um
poema bem denso e essa estrutura sugere uma tenso constante que o perpassa, uma vez que o
tema tratado a guerra.
Temos, ento, a narrao da histria de dois jogadores de xadrez, os quais, durante a
guerra na Prsia, mantiveram-se impassveis, atentos apenas ao jogo e tendo ao lado um
pcaro com vinho:
Ouvi contar que outrora, quando a Prsia
Tinha no sei qual guerra,
Quando a invaso ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contnuo.
(...)

Mesmo ao som dos gritos da mulheres, do rudo das casas em fogo, dos saques, das
mortes de crianas, continuaram a jogar:
(...)
Quando o rei de marfim est em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irms e das mes e das crianas?
Quando a torre no cobre
49

p.129.

78

A retirada da rainha branca.


O saque pouco importa.
E quando a mo confiada leva o xeque
Ao rei do adversrio,
Pouco pesa na alma que l longe
Estejam morrendo filhos.
(...)

Segundo Garcez (1990: 36), o jogo de xadrez uma sada para a guerra catica,
sangrenta e dolorosa que se d na realidade. Por meio do xadrez, jogo organizado, com regras,
embora no previsvel, a paz fruto da ordem e o jogo pode indicar uma prefigurao do
paradisaco, lembrando que Ricardo Reis prope que tenhamos as crianas por nossas
mestras, como j apresentamos anteriormente.
Mesmo diante do perigo, quando sobre o muro/ Surja a sanhuda face/ Dum guerreiro
invasor, ainda nesse momento haja tempo para o jogo dos grandes indifrentes. Segundo o
eu-lrico, essa histria para aprendermos como passar a vida com calma, a exemplo de
Epicuro, lido a seu modo (De acordo com ns-prprios que com ele), e dos jogadores de
xadrez, que deixam de lado o que srio e grave porque da vida nada se leva, nem a glria, a
fama, o amor, a cincia, a vida, apenas a memria de um jogo bem jogado. O jogo nada
pesa por ser apenas brincadeira, no nada, mas capaz de prender a alma toda. E quando
a guerra, a ptria ou a vida chamar, deixe que em vo nos chamem, para que a se possa
aproveitar da leveza e da indiferena do jogo:
(...)
Ou perto ou longe, a guerra e a ptria e a vida
Chamam por ns, deixemos
Que em vo nos chamem, cada um de ns
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferena.

Ao contrrio de Horcio, que utiliza seus poemas para a instruo e para agradar, a
servio do Imprio Romano, e que pe em sua poesia esse amor sua terra de forma crtica,
sem defender a luta por poder e interesses particulares (TRINGALI, 1995: 53), Ricardo Reis
prefere a indiferena, as rosas ptria. que o podemos perceber em Prefiro rosas, meu
amor, ptria50, em que salienta sua escolha pela beleza exterior, a esttica, que enche os
olhos, deixando de lado assuntos que lhe possam perturbar o esprito, prender a alma toda. E
no s isso, prefere magnlias glria e virtude. Para ele no existe virtude, pois nada
50

p.131.

79

vale a pena, nem o gesto bom nem o ruim. Espera que a vida passe por ele, sem a inteno de
deixar-se transformar pelos acontecimentos, mas permanecer o mesmo que eu fique o
mesmo , uma vez que para ele j nada importa/ Que um perca e outro vena porque o
ciclo da vida, das estaes, dos dias e das noites continuar a existir, independentemente das
batalhas dirias que os homens travam. O eu-lrico, como a natureza, no quer ser atingido
pelas coisas que os humanos/ Acrescentam vida; o que lhe podem acrescentar na alma?
Nada, novamente a idia de que nada vale a pena, nem fazer nem deixar de fazer; apenas a
indiferena instigada (o desejo da indifrena) e, certo, de fato, o passar do tempo (E a
confiana mole/ Na hora fugitiva), em que deposita uma confiana mole, o que sugere
falta de perspectiva, de ao ou ainda uma entrega de si mesmo.
Diante disso, o heternimo no se sente parte de uma nao, de um povo e se sente
desterrado, estrangeiro onde quer que esteja. Na ode Ldia, ignoramos. Somos
estrangeiros51, essa idia que refora: a de que ignora o mundo que est a sua volta e se
sente estrangeiro em qualquer parte onde esteja ou more, onde tudo alheio, no lhe diz
nada:
Ldia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.
Ldia ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo alheio
Nem fala lngua nossa.
(...)

O eu-lrico do poema considera que a humanidade provoca um tumulto no mundo e


isso um insulto, do qual se deve esconder. Por isso, convida Ldia a que faam de si um
retiro onde possam estar livres do insulto do tumulto do mundo. Termina retomando a
idia de que o amor um sentimento egosta, que no quer ser dos outros, logo que o amor
dos dois seja um segredo dito nos mistrios, sagrado por no ser compartilhado com
ningum, sendo s deles (Como um segredo dito nos mistrios,/ Seja sacro por nosso), ou
seja, no h que se revelar nada do que somos ou sentimos ao mundo, porque ele no nos
entende, somos ignorados e o ignoramos, somos como estrangeiros para os outros porque no
podemos e nem devemos nos revelar.
O didatismo de Ricardo Reis, como j foi salientado, contrrio ao de Horcio:
enquanto este se empenhava em demonstrar em seus poemas o amor ptria de forma crtica,
51

p.136.

80

mas exaltando o Imprio Romano, Ricardo Reis faz um didatismo s avessas diz no se
sentir parte de nada e, por isso, no h lugar em que se sinta acolhido, sempre estrangeiro
para o mundo e para si mesmo, e ensina, por meio de suas odes, a cultivar essa indiferena
diante dos problemas e do tumulto do mundo. O heternimo pessoano traz para seus
poemas valores e conceitos pr-estabelecidos como importantes para o ser humano, por
exemplo, o amor, a ptria, a religio, a famlia, para poder neg-los. Iser (1999) destaca que
as potncias de negao se constituem lugar de participao do leitor, assim como os lugares
vazios. No entanto, as potncias de negao fazem com que o leitor reveja seus conceitos e
possa olhar para elementos familiares sob um novo ponto de vista e construir novos sentidos
para aquilo que foi negado, pois, com a negao de um valor pr-determinado, aparece um
lugar vazio, que precisa ser re-significado pelo leitor.
3.2.6 O barco escuro no soturno rio
A morte certa e inevitvel. Com esse pensamento, Ricardo Reis faz da morte um dos
eixos centrais de seus poemas, reforando a idia de que o tempo no perdoa e a vida curta
demais. Mesmo assim, a morte no apresentada como uma forma de ensinar a viver, porque
mesmo a morte no tem sentido para Reis. Convicto de que ela chegar dia ou outro, declara
que o melhor no fazer nada, permanecer indiferente porque a morte o buscar de qualquer
forma. No vincula, portanto, o motivo da morte ao carpe diem horaciano, uma vez que
viver durar.
Vrias imagens aparecem nas odes para evocar a idia da morte: o barqueiro
sombrio, barco escuro no soturno rio, ptria de Pluto, a abominvel onda, o bolo
que se d a Caronte, o barqueiro sombrio, hora do barqueiro, metforas mitolgicas do
momento em que finda uma viagem a vida e se inicia outra at o reino dos mortos.
Ricardo Reis considera o ser humano como insignificante, um nada, por isso, em
Ao longe os montes tm neve ao sol52, o eu-lrico fala a Neera que nada lhes falta porque
nada so e nada esperam. A figura dos montes com neve ao sol pode remeter ao ser humano
que tambm tem frio ao sol, que mesmo vivendo sabe e espera o fim. Mesmo sabendo
disso, o eu-lrico convida sua musa a gozar o momento com solenidade e alegria leve,
aguardando a morte/ Como quem a conhece, ou quem j conhecia o seu destino.

52

p.122.

81

J na ode As rosas amo dos jardins de Adnis53, declara seu amor s rosas por sua
beleza exterior e sua efemeridade em o dia em que nascem,/ em esse dia morrem , tendo
sua vida a durao de um dia e a experincia da luz, no das trevas:
(...)
A luz para elas eterna, porque
Nascem nascido j o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visvel.
(...)

Do exemplo das rosas, Ricardo Reis formula a idia de que faamos nossa vida um
dia, sem pensar no que pode nos acontecer no amanh, inscientes, ignorando o futuro
volutariamente, aproveitando o dia, a luz que temos, sem preocupaes maiores porque
existe apenas a certeza de que h noite antes e aps/ O pouco que duramos.
Nessa perspectiva, que, em Olho os campos, Neera54, o eu-lrico afirma j sentir o
frio da sombra/ Em que no terei olhos. Para ele, a morte deixar de ver, de sentir A
caveira ante-sinto/ Que serei no sentindo e mergulhar, para continuar com as metforas
que Reis utiliza, em um mar desconhecido para ele, pois ainda no o viu nem sentiu; onde o
que incgnito ministrar o seu futuro. Nesse momento, chora por sentir-se Sbdito
ausente e nulo/ Do universal destino, isto , impotente, submetido, sem qualquer chance de
reagir a um destino que universal: a morte.
Segundo Reis, no h nada depois da morte, s a escurido, a noite, em que no se
sabe o que nos espera; dela no despertaremos. Enquanto dormimos, estamos quase como
mortos, mas, como vemos em O sono bom pois despertamos dele55, podemos acordar. A
morte, porm, no sono. Essa realidade de morrer que o eu-lrico prope que
enfrentemos, refusemos, enquanto ainda em corpos condenados durar a licena
indecisa do carcereiro, ou seja, entre a escurido e o crcere de viver, melhor o crcere,
mesmo que no se saiba quanto tempo durar: a vida mais vil antes que a morte,/ Que
desconheo. Por fim, o eu-lrico oferece flores Ldia, nesse caso, smbolos da efemeridade,
da morte, votivas/ De um pequeno destino, prenunciando o destino de todos.
Alm disso, aquele que morre no deixa nada aos que ficam. Um exemplo disso o
poema O rastro breve que das ervas moles56, poema de oito versos, de dez e seis slabas
53

p.124.
p.134.
55
p.134.
56
p.135.
54

82

poticas, em que Ricardo Reis faz uso de algumas figuras de efeito sonoro para transmitir
suas idias:
O RastRo bREvE quE da ERva molE
ErguE o p findo, o ECO que OCO CA,
A soMBRA que se aduMBRA,
O bRanco que a Nau laRga
NeM Maior NeM Melhor deixa a ALMA s ALMAS,
O IDO aos INDOS. A leMbraNa esquece.
Mortos, iNda MorreMos.
Ldia, SOMOS S NOSSOS.57

As assonncias, repetio de sons voclico, podem sugerir: a repetio da vogal /E/, a


idia de brevidade; o uso da vogal /O/, no ltimo verso, fechamento, unidade, ensimesmar-se.
As aliteraes, repetio de sons consonantais, podem indicar: a repetio do som /R/, no
incio do poema, o arrastar-se pela vida; a presena marcante de sons nasalizados como o /M/
e o /N/, reforando a idia de tristeza, sofrimento, angstia; o /S/, que sugere solido. No
segundo verso, ainda, apreciamos um jogo de palavras que provoca uma rima interna, e indica
o efeito do eco: o eco que oco ca. No verso seguinte, temos: A sombra que se adumbra,
como se a sombra, por meio da repetio dos sons /OMBRA/ e /UMBRA/ se encorpasse,
tornasse mais espessa. Alm disso, duas anforas so muito interessantes: a alma s almas e
ido aos indos. Na primeira, temos a repetio de alma, primeiro no singular, depois no
plural, o que indica que todos somos almas, ou alma que j se foi ou que est para ir; na
segunda, o uso de dois verbos muito prximos na sonorizao, porm, distintos nos tempos
verbais e no sentido ido, particpio passado, e indo, gerndio que sugerem aquele que
j morreu e aqueles que ainda morrero.
Nesse poema, o eu-lrico defende a crena de que o rastro que deixamos em nossa
vida passageira breve; ecos que logo desaparecero; sombras que desaparecem em meio a
outras sombras; o branco que a nau larga e que logo desaparece no oceano. isso que a alma
deixa s demais, o ido aos indos, o que j se foi aos que esto a caminho, pois a lembrana
curta, esquece e, mesmo mortos, inda morremos na memria dos outros com o passar do
tempo. Termina afirmando: Ldia, somos s nossos, ao morrer, deixamos de existir para
todos e nada de nosso fica a ningum.
O uso de figuras de linguagem, de figuras de estilo e outros recursos poticos ajuda a
aumentar os espaos vazios do texto, que precisam ser preenchidos com a interpretao do
57

Destaques nossos.

83

leitor. Se o texto literrio, conforme nos apresenta Lotman (apud ISER, 1999), tem por
caracterstica concentrar informaes, o texto potico as concentra mais ainda, de forma que o
leitor precisa deixar-se enredar pelas palavras do texto para poder, em dilogo com ele e sua
estrutura, construir seus sentidos.
Para terminar, vejamos um ltimo exemplo do pessimismo de Reis, que vai ao
extremo ao afirmar, por meio do eu-lrico, em Nada fica de nada. Nada somos 58, que os
seres humanos so Cadveres adiados que procriam, metfora forte que remete
insignificncia humana; que, mesmo vivos, j anunciamos nossa morte, pois morremos um
pouco a cada dia. O sol e o ar, o sopro de vida que h em ns e nos aquece que ainda nos
sustenta um pouco mais nessa vida e nos atrasamos/ Da irrespirvel treva que nos pese/ Da
humilde terra imposta. Se somos nada, nada deixamos, por isso, nem leis feitas, esttuas
vistas, odes findas/ Tudo tem cova sua, tudo tem um fim, tem um poente, assim como ns,
temos nascente e poente em nossas vidas. Conclui, reafirmando de forma incisiva e
pessimista, que no passamos de mentira, de contos, e o que realizamos no decorrer de nossa
existncia so aes to mentirosas quanto ns: Somos contos contando contos, nada.
3.2.7 Como vidro luz do sol
Nossa proposta, com a leitura das odes de Ricardo Reis, foi descobrir como esse
homem se posiciona diante do mundo, como se relaciona com a vida, com os seres, com a
realidade, a partir do dilogo com suas prprias palavras, da estrutura textual e dos espaos
vazios que deixa para que o leitor preencha com suas experincias e conhecimentos.
Entre o leitor e as idias veiculadas se interpe o texto e este se abre a diversas
possibilidades de realizaes na leitura, conforme as diferentes expectativas daqueles que o
buscam. Diante disso, tentamos fazer uma leitura que enfocasse os aspectos concernentes ao
relacionamento de Ricardo Reis com a realidade que o cerca, como lida com as dificuldades,
alegrias, prazeres, amor, mulheres, natureza, morte, enfim, tudo o que nos envolve no
cotidiano da vida.
No podemos nos esquecer do fato de que Ricardo Reis um leitor de Horcio;
Tringali (1995) afirma que Ricardo Reis sem dvida horaciano na forma e no estilo, mas
anti-horaciano do ponto de vista filosfico e ideolgico. Ricardo Reis, como leitor de
Horcio, recria o poeta latino a partir de sua prpria expectativa, apresentando novas
perspectivas para temas j abordados anteriormente: o carpe diem, o meio-termo dourado, a
58

p.136.

84

vida, a morte, o amor, as mulheres, a guerra, a ptria, a religio, o vinho. A forte


intertextualidade entre os poemas de Reis e de Horcio vai a ponto de o heternimo adotar
para suas amadas os mesmos nomes das musas inspiradoras horacianas: Ldia, Neera e Cloe,
como sombras, no to carnais e reais como as de Horcio.
Em relao sua filosofia de vida, podemos dizer que epicurista e estoicista, s
vezes contradizendo o materialismo pregado por Epicuro por sua preocupao com a alma,
com a conscincia da dualidade matria/esprito. Entretanto, procura manter-se longe da vida,
distncia que ela est, pois para ele a vida tem pouco que se pode aproveitar e no vale a
pena fazer um gesto nem para o bem nem para o mal. preciso saber deixar-se ir no rio das
coisas e contemplar a vida beira-rio ou beira-estrada. Dessa forma, pode-se aproveitar o
mximo da vida com o olhar, o sentir, sem envolver-se demais, sem ir a fundo nas paixes,
nos problemas e nos conflitos humanos. A moderao nos prazeres que traz a tranqilidade e
a indiferena so as bases para sua filosofia de vida.
No se pode falar em vida sem se falar em morte, tratando-se de Ricardo Reis, uma
vez que a vida est estreitamente relacionada condio passageira do ser humano. Se a vida
no tem sentido para Reis, a morte tambm no o tem. Mesmo assim, ela lhe causa medo
porque considera que seja como a noite, a escurido que existe antes e aps nossa existncia.
Logo, se h vida enquanto se pode ver, sentir, na escurido no se enxerga nem se sente nada;
ento, Ricardo Reis no compreende a morte e nem a deseja. Mas est em constante espera.
Por isso, aconselha a suas musas, ao leitor e a si prprio que aproveitem o presente, porque
a nica coisa que se , no h nada alm dele. A morte no aparece como uma preocupao
para se ensinar a viver melhor; no vale a pena viver; mas para mostrar o quanto somos
insignificantes e o quanto tudo o que fizermos intil diante da certeza de que morreremos.
intil tambm o nutrir sentimentos de patriotismo ou ainda preocupar-se com
guerras, com os problemas que afligem a nao. Ricardo Reis prega que sejamos como
jogadores de xadrez que se deixam absorver pelo jogo, uma batalha sem sangue, sem
violncia, que, quando terminada, reste apenas a satisfao de ter ganho de um jogador
melhor, nada mais. O heternimo se coloca margem de todo e qualquer problema que lhe
seja exterior, mantendo-se impassvel diante de qualquer situao. Isso se explica pelo fato de
se sentir estrangeiro em qualquer lugar que esteja ou more, que no consiga compreender nem
ser compreendido pelo mundo, de forma que a nada ou a ningum se apega.
A religio pag que defende em seus poemas no de fato algo que influencie na sua
vida; mais um recurso retrico. Sendo epicurista, seria materialista e semiateu, ou seja, cr
em deuses, mas naqueles que esto na natureza, que podem ser vistos, tocados, sentidos; esses

85

que esto perto da humanidade e sobre quem tambm pesa a mo do destino tanto quanto
sobre os homens. Isso quer dizer que poder algum tm os deuses sobre a humanidade, a no
ser o poder que os prprios seres humanos lhes atribuem, pois eles no podem mudar o curso
das coisas; apenas so maiores que ns.
Ricardo Reis deseja ser livre de qualquer forma de priso: da riqueza, da glria, da
fama, do poder, do dio, da inveja, do prazer, do amor. Tudo, segundo ele, passageiro e
aprisiona. Sbio quem no pede nada, no deseja nada, no ama nem amado, porque,
assim, livre. Ricardo Reis chama suas musas Ldia, Neera, Cloe no para am-las, dar
algo de si, mas para se sentarem ao p um do outro, ficarem mudos, bbados a esperar a
morte, indiferentes um ao outro, ou ainda para trocarem furtivas e rpidas carcias, beijos e
abraos que no deixam grandes lembranas capazes de comover a alma. A mulher aparece
como aquela que est a disposio para aprender seus ensinamentos, uma ouvinte passiva, a
quem no dado amar nem ser amada por Ricardo Reis. O amor sombra, no deixa ver
claro e ainda aprisiona.
Em suma, podemos dizer que Ricardo Reis, em seus poemas, sempre apresenta uma
realidade a ser enfrentada a morte, a inutilidade da vida, a passagem do tempo, a
necessidade de ver mais e melhor e gestos que, mesmo inteis, proporcionam o prazer de
contemplar a beleza exterior das coisas: colher flores e deix-las cair, contemplar a natureza,
molhar as mos no rio, coroar-se de rosas e folhas breves, jogar xadrez... Nisso consistem
seus ensinamentos: encarar a realidade como o vidro, transparente, deixando-se perpassar pela
luz, pelos olhos dos outros; permitindo-se molhar pela chuva, mas no reter nada dela e nem
dar-se a conhecer pelos demais; enxerga-se atravs do vidro, mas nem se percebe que ele
existe; que seja morno e reflita um pouco a luz do sol.
3.3 A vida e a fico segundo Jos Saramago
Um estilo autntico, marcante; uma linguagem seca e precisa; combinao e mistura
entre fantasia e retrato da realidade, em discurso cinematogrfico; a fico e a postura
comprometida com o social. Eis alguns indicadores capazes de nos ajudar a percorrer os
caminhos em direo a um dos mais clebres autores em lngua portuguesa da
contemporaneidade: Jos Saramago.
Jos de Sousa Saramago (Saramago era alcunha da famlia que remete a uma planta
daninha, acrescida ao seu nome por engano ou no do escrivo) nasceu no dia 16 de
novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, na provncia do Ribatejo, ao norte de Portugal,
filho de camponeses pobres, Jos de Sousa e Maria da Piedade.

86

Inicialmente no pensava em ser escritor. Em entrevista concedida a Costa (1998:


18), afirma: Eu no me preparei para ser escritor. Sou escritor por acaso. Seus primeiros
trabalhos foram de mecnico, desenhista, funcionrio da sade pblica, editor e tradutor. A
escrita vinha em segundo plano. Aos vinte e cinco anos escreveu seu primeiro romance
Terra do pecado (1947). At 1966, aos quarenta e quatro anos, no havia escrito mais nada, a
no ser o romance Clarabia, e dois livros de poemas, por ocasio de dois apaixonamentos;
ambos no publicados.
Entre 1966 e 1977, comeou a escrever crnicas para jornais. Nesse meio tempo,
publicou trs livros de poesias (Os Poemas Possveis, 1966; Provavelmente Alegria, 1970; e
O Ano de 1993, 1975), suas crnicas (Deste mundo e do outro, 1971; e A bagagem do
viajante, 1973) e os ensaios polticos, que eram editorias do extinto jornal Dirio de Lisboa.
Em 1969, entra para o Partido Comunista e fiel ao marxismo e ao comunismo, no deixando
de tecer suas crticas. Em novembro de 1975, o ano da revoluo (Revoluo dos Cravos),
contra o regime da ditadura militar, era diretor-adjunto do jornal Dirio de Notcias. O jornal
estava ao lado da revoluo e, por isso, foi fechado pelo movimento de contra-revoluo.
Nesse momento, Saramago no encontrou apoio dos colegas de partido, por ter sido um
radical extremista. Ele conta: O pior de tudo (... ) foi aquele dia em que me defrontei com
uma fria, gratuita e desapiedada indiferena, vinda precisamente de quem tinha o dever
absoluto de oferecer-me a mo estendida. Sendo, porm, os casos e acasos da vida frteis em
contradies, sabe-se l se a minha vida de escritor no ter comeado justamente nessa
hora? 59. Foi nesse momento, que Jos Saramago decidiu enfrentar a idia de viver a partir
daquilo que escrevesse, de ser escritor, em vista do que j havia publicado.
Para Saramago (COSTA, 1998: 19), suas crnicas so a porta de entrada para quem
quer entender-lhe os romances, pois nelas esto expostos certos pontos de vista, vises de
mundo, obsesses e preocupaes de ordem no apenas literria, preocupaes de ordem
poltica, de ordem civil. uma caracterstica desse escritor o engajamento social, a
preocupao poltica, a crtica sociedade e ao seu sistema capitalista, porque, segundo ele, a
obra mostra aquilo em que o autor acredita, uma vez que, para o autor, a fico que uma
forma de se expressar: o recurso que eu tenho para expressar minhas dvidas, minhas
perplexidades, minhas iluses, minhas decepes. No no sentido de uma literatura
59

MELO, F. A vida segundo Jos Saramago. Disponvel em: <http://www.institutocamoes.pt/escritores/saramago.htm>. Acesso em: 21 jul.2004, s 15h47min. Publicado em Viso, Lisboa em 10
de dezembro de 1998.

87

confessional. A preocupao que eu tenho esta: Em que mundo estou vivendo? Que mundo
este? O que so as relaes humanas? O que essa histria de sermos o que chamamos a
humanidade? O que isso de ser Humanidade? (COSTA, 1998: 24).
Em 1976, quando desempregado, Jos Saramago decidiu comear a escrever um
romance sobre aquilo que conhecia, a vida de sua gente, dos camponeses do norte de Lisboa.
Passou trs anos vivendo, comendo, dormindo com eles. Dessa experincia surgiu Levantado
do cho (1980). Nesse meio tempo, publicou um livro de relatos curtos, Objeto quase, e o
Manual de pintura e caligrafia.
Passou tambm por um momento de busca de sua prpria identidade para o seu modo
de escrever. No texto de Levantado do cho, pgina 24 ou 25, sem gostar do que escrevia,
como conta a Costa (1998), comeou a escrever sem regras, sem pontuao, como se estivesse
devolvendo sua gente tudo o que viveu com eles, o que ouviu, da forma como recebeu: na
oralidade: Da mesma forma que, quando nos comunicamos oralmente, no necessitamos
nem de travesses, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessrio usar quando
escrevemos, pois, ento, voc, como leitor, colocar a, no o que falta, porque no falta
nada....A palavra escrita num livro morta; quando fazemos a leitura silenciosa, no est
morta, acorda um pouquinho, mas a palavra s fica acordada quando a dizemos (COSTA,
1998: 23-24). Isso porque a palavra como a msica, que no precisa de sinais para
comunicar, mas apenas de sons e pausas.
Seus livros no se repetem, mesmo que a forma de narrar ou as preocupaes
presentes no texto sejam as mesmas, cada livro apresenta um assunto que nele se encerra. Seu
estilo se refaz e se reflete em cada histria, apesar das adaptaes necessrias; marcado por
um barroquismo, encaminhando-se para um modo mais seco de narrar. Segundo ele, como
se, at o Evangelho segundo Jesus Cristo, estivesse descrevendo as partes de uma esttua de
pedra. A partir de Ensaio sobre a cegueira, tratar do material, da pedra, ou seja, seu estilo
ser ainda mais seco.
Para Saramago (1998: 26), a figura do narrador no existe, (...) s o autor exerce
funo narrativa real na obra de fico, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. Para
explicar sua teoria, faz uma correspondncia entre literatura e pintura. Segundo ele, entre uma
pintura e aquele que a contempla no h outra mediao que a do autor, da mesma forma, o
nico mediador entre o fato narrado e o leitor seria a figura do autor, no havendo
diferenciao entre a mo que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mo que
desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecr [tela] do computador
(SARAMAGO, 1998: 26).

88

Entretanto, no nega a existncia do narrador no texto, com suas diferentes formas de


focalizao. O problema, segundo ele, a nfase dada anlise dessa entidade textual de
forma que o autor e sua forma de pensar so relegados a um segundo plano na compreenso
da obra. Dessa forma, o autor abdica de suas responsabilidades sobre o que escreveu, de seus
pensamentos, filosofias, estilo de escrever em favor do narrador:
O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a
primeira linha, escrito em obedincia a uma inteno, s vezes clara, s
vezes escondida porm, de certo modo, visvel e bvia, no sentido de que
ele est sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados
cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que,
querendo parecer novo, diferente, original, j era afinal conhecido, porque,
sucessivamente, ia sendo reconhecvel (SARAMAGO, 1998: 26).

O escritor, o contador de histrias, seria um mistificador porque conta histrias e sabe


que elas no so mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instvel
equilbrio do fingimento, palavras frgeis, assustadas pela atrao de um no-sentido que
constantemente as empurra para o caos de cdigos cuja chave a cada momento ameaa
perder-se (SARAMAGO, 1998: 27).
Para Saramago (1998: 27), no existem verdades ou falsidades puras, mas toda
verdade carrega em si algo de falsidade (nem que seja naquele sentido que nega), assim como
a falsidade traz uma parcela de verdade. Dessa forma, um livro composto por fingimentos
de verdade e de verdade de fingimentos. Ao texto, no se deve prender a ateno apenas na
mensagem linear que traz ou na organizao formal, ou no desenvolvimento do enredo,
porque um livro , acima de tudo, a expresso de uma parcela identificada da humanidade: o
seu autor, que finge contar uma histria, mas nela coloca muito da sua verdade, daquilo que
acredita, como se o romance fosse, segundo Saramago (1998: 27), uma mscara que revelasse
marcas do romancista, porque:
(...) o autor todo o livro, mesmo quando o livro no consiga ser todo o
autor, porque tudo, para se tornar histria, precisa passar pelo ser humanoautor. (...) O que o autor vai narrando nos seus livros , to-somente, a sua
histria pessoal. No o relato da sua vida, no a sua biografia, quantas vezes
andina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a
profunda, a labirntica, aquela que com o seu prprio nome dificilmente
ousaria ou saberia contar.

O narrador, portanto, seria uma personagem a mais de uma histria que no a sua,
mas a histria da memria verdadeira e mentirosa de quem a escreveu, o autor.

89

3.4 O labirntico Ricardo Reis-personagem


O romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Saramago, assenta-se sobre duas
perspectivas que se complementam no universo romanesco: a Histrica e a fico. A realidade
histrica compreende tanto os fatos acontecidos em Portugal e no mundo no ano de 1936, ano
do falecimento de Ricardo Reis, quanto a criao da parte de Fernando Pessoa do
heternimo Ricardo Reis, seus dados biogrficos e seus poemas. O fato histrico, porm,
alterado no campo do romance pelo fato literrio, que, segundo Seixo (1999), consiste em um
acontecimento ficcional, que, fora do contexto literrio, no seria admissvel. No caso do
romance em questo, o fato literrio seria, depois da morte de Fernando Pessoa, em 30 de
novembro de 1935, Ricardo Reis retornar de sua estada de dezesseis anos no Rio de Janeiro, e
viver seus ltimos oito meses em Lisboa, em meio a passeios, reflexes, reveillon e carnaval,
revolues, amores e conversas com o fantasma de Pessoa. Podemos depreender, por meio
dessa caracterstica no s de O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas tambm de outros
romances de Saramago, que a fico ajuda a recriar ou a recontar a Histria, de forma que os
fatos ocorridos so relidos e rearranjados a partir de um novo ponto de vista e inseres que
fazem com que sejam lidos por uma nova perspectiva. Iser (1999) chama isso de seleo, uma
vez que alguns elementos so retirados de sua relao habitual de subordinao na realidade
de referncia e so inseridos em um novo contexto, em que estabelecero novas relaes, e,
conseqentemente, novos efeitos de sentido.
dentro dos fatos histricos e literrios que se sucedem no romance aqui analisado
que faremos uma leitura da personagem Ricardo Reis, essa recriao de Saramago, para
compreendermos como se relaciona com o mundo, com a realidade que o cerca, para,
posteriormente, compararmos a postura apresentada no romance quela enunciada em suas
Odes.
Santilli (1999: 259) salienta que Saramago no pretendeu transpor para as pginas de
seu romance uma cpia fiel do que seria o poeta Ricardo Reis, mesmo porque o heternimo
uma das mscaras de Pessoa e como mscara que deve ser lido. O resultado so novas
mscaras que produzem inmeros significados e possibilitam uma infinidade de leituras.
Assim, o Ricardo Reis-personagem uma mscara da mscara, uma possibilidade de
realizao oferecida por Saramago e uma possibilidade de realizao que emergir de nossa
leitura.
Os leitores que conhecem tanto o Ricardo Reis pessoano como o saramagueano
entram na cadeia das sobreleituras complexificadas, constituindo-se multiplicadores de
perspectivas geradas j da viso problematizante dos dois excepcionais escritores

90

(SANTILLI, 1999: 260), de forma que se tornam tambm multiplicadores de novos pontos de
vista sobre Pessoa ou Saramago e passam a participar da produo de sentidos, desafiando o
que foi escrito, assim como Saramago desafiou a produo sacralizada de Fernando Pessoa e
se prope a dar continuidade obra daquele, aproximando-se do que Pessoa comeara e
sendo, ele prprio, um criador de mscaras.
Se Jauss (1984) prope que a nova obra seja uma resposta, uma continuidade a
questes pendentes de outros momentos literrios e que funda tanto o horizonte passado como
o novo, ento, podemos afirmar que O Ano da Morte de Ricardo Reis se insere nesse processo
literrio por se apresentar como uma resposta obra de Fernando Pessoa e continu-la, de
alguma forma, mesmo que em romance, retomando-a e questionando-a.
De acordo com Santilli (1999), o recurso utilizado por Saramago para reconstruir Reis
a pardia, a arte que se refere arte; uma produo literria que se constri sobre outra
anteriormente construda, com a finalidade de questionar, de mexer com o que j estava
consagrado. A pardia ajudar a envolver mais ainda o leitor naquilo que est lendo, por
incentivar o leitor a estabelecer relaes entre o novo objeto literrio produzido e aquele a que
faz referncia. Alm disso, a pardia permeada por aproximaes e inverses, crticas e
ironias, s quais o leitor precisa estar atento para entender e fazer as inferncias necessrias.
A partir disso, podemos compreender o Ricardo Reis-personagem como algum de
alguma forma diferente do Ricardo Reis-poeta. E isso fica mais evidente quando olhamos
para as aes que a personagem protagoniza no decorrer do romance.
Ricardo Reis retorna a Portugal, segundo conta a Fernando Pessoa, assim que fica
sabendo da morte de Pessoa e por causa da revoluo que estoura no Rio de Janeiro em 27 de
novembro de 1935 (o levante comunista, conhecido por Intentona Comunista, comandado por
Luis Carlos Prestes e sua esposa, Olga Benrio, e que acontece em outros pontos do territrio
nacional). Por outro lado, podemos notar, pelos questionamentos propostos no incio do
romance, que vem em busca de sua identidade, de saber quem de fato. o que reflete
consigo, depois de ler um trecho de uma de suas odes:
Vivem em ns inmeros, se penso ou sinto, ignoro quem que pensa ou
sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente (...) Se somente isto sou,
pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estar pensado agora o que eu
penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem
estar sentido o que sinto, ou sinto que estou sentido no lugar que sou de
sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inmeros
que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e
sensaes sero os que no partilho por s me pertencerem, quem sou eu

91

que outros no sejam ou tenham sido ou venham a ser (SARAMAGO,


1988: 24).

Nesse trecho, Reis faz referncia ao nome de Herbert Quain, suposto autor do livro
The god of the labirinth, que pegou emprestado na biblioteca do navio e se esqueceu de
devolver por ocasio do desembarque. importante ressaltar que Quain uma criao do
escritor argentino Jorge Lus Borges, uma fico dentro da fico, to ficcional quanto o
prprio Ricardo Reis-personagem, fico da fico de Fernando Pessoa. Notemos que no s
a cidade de Lisboa um labirinto, no qual entra o heternimo ao regressar a Portugal, mas
tudo que o cerca como um grande jogo em que precisa encontrar uma sada, uma resposta.
Ele prprio seu maior labirinto.
Constantemente, passeia pelas ruas de Lisboa; vai e volta, sem rumo, para perceber a
cidade, os rumores, tentar ambientar-se novamente. Com esse fim, tambm busca a ajuda dos
jornais, que lhe trazem notcias de Portugal e do mundo, compra uma telefonia (rdio).
Portugal estava sob a forte mo do governo liderado por Oliveira Salazar, presidente do
Conselho e ministro das Finanas, que, futuramente, implanta a ditadura no pas. O restante
da Europa estava sob presso: a ascenso do fascismo, na Itlia, com Mussolini, que declara
guerra Etipia; a crescente popularidade e adeso ao nazismo alemo e s idias de Hitler; a
tenso das eleies espanholas, que culminam com a guerra civil. O governo portugus era
simpatizante do nazismo e do fascismo e exercia um forte controle sobre as foras armadas, a
imprensa e os cidados em geral, por meio da Polcia de Vigilncia e Defesa do Estado.
Nessas leituras dirias das manchetes dos jornais, prefere as matrias curtas, porque as
pginas grandes e as prosas derramadas60 fatigavam-no. Seu objetivo ao ir aos jornais era,
segundo o narrador, encontrar guias, fios, traos de um desenho, feies de rosto portugus,
no para delinear um retrato do pas, mas para revestir o seu prprio rosto e retrato de uma
nova substncia, poder levar as mos cara e reconhecer-se, pr uma mo sobre a outra e
apert-las, Sou eu e estou aqui61 . como se, com a perda de Pessoa, seu criador, sua
identidade tambm se perdesse ou o que dela existisse; ou, pensando Reis, independentemente
de Pessoa, fosse um homem inseguro de si.
Volta ptria como estrangeiro: no sabe para onde vai, tem sotaque brasileiro, no
sabe quanto tempo fica, hospeda-se em um hotel, que mais impessoal, no sabe se deve
clinicar, no se sente vontade na casa em que aluga. Estrangeiro onde quer que esteja, para
si e para os outros, como uma sombra.
60
61

SARAMAGO, J. O Ano da Morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.51-52.
p.87-88.

92

3.4.1 Filosofia de vida


Ricardo Reis se apresenta no romance como um homem pontual, cuidadoso com sua
aparncia, zeloso por seus pertences, conhecedor das regras e convenes sociais. Sua vida
pautada na observncia desses pormenores e se torna como que escravo das convenes:
sempre seguiu as suas regras de comportamento, a sua disciplina, nem o trpico de
Capricrnio, to emoliente, lhe embotou, em dezasseis anos, o gume rigoroso dos modos e
das odes, ao ponto de se poder afirmar que sempre procura estar como se sempre o estivessem
observando os deuses62; para ser um bom portugus deveria freqentar as artes
portuguesas63; no teatro, como os demais homens, no intervalo, levanta-se, vai ver e ser visto
pelos demais, no caso Marcenda e Dr.Sampaio; hora do jantar, no hotel, cumpre a etiqueta
sente-se, descobre o guardanapo em cima dos joelhos, se olhar para quem o rodeia faa-o
discretamente, cumprimente no caso de conhecer algum64; sobre o inconveniente de ir no
txi junto com Marcenda e o pai, a situao constrangedora para todos de no se saber o lugar
mais adequado para sentarem-se os trs, sobre o pagamento no final da corrida, de forma que
Ricardo Reis rejeita a oferta; ao fechar sua conta no Hotel Bragana, com muito tato, Reis faz
um discurso de despedida, cheio de frases feitas diante das quais ele prprio se sente ridculo:
Quero dizer-lhe, senhor Salvador, que levo as melhores recordaes do seu hotel, onde
sempre fui muito bem tratado, onde sempre me senti como em minha prpria casa, rodeado de
cuidados e atenes inexcedveis, e agradeo a todo o pessoal, sem excepo, o carinhoso
ambiente de que me rodearam neste meu regresso ptria, donde j no penso sair65.
Estes so alguns exemplos de situaes que podem nos mostrar um Ricardo Reis
extremamente rigoroso consigo e com seus hbitos; um homem srio, que nunca foi de
brincadeiras. Com o mesmo rigor que emprega na composio de uma ode, arruma seus
pertences na casa que aluga: arrumou os fatos, as camisas, os lenos, as pegas, pea por
pea, como se estivesse ordenando uma ode sfica, laboriosamente lutando com a mtrica
relutante, esta cor de gravata que, pendurada, requer uma cor de fato por comprar66.
Podemos dizer que Ricardo Reis um homem preso s convenes e que, por isso,
no se sente uma pessoa verdadeira, sente que suas palavras e gestos so fteis, lugarescomuns, sem profundidade, como quando ele e Marcenda conversam na sala de estar do hotel.
Incomoda-se com a vulgaridade de suas frases e critica seus prprios gestos, tentando
encontrar o que melhor se adeque situao. Outro exemplo o episdio em que Marcenda o
62

p.50.
p.102.
64
p.104.
65
p.214.
66
p.221-222.
63

93

visita na nova casa e Ricardo Reis no sabe como receb-la, se acende ou no a luz, se
romntico ou comedido. O nico gesto a ser feito foi beij-la, sinceramente. Quando Ldia lhe
diz que est grvida, sente algo, pela primeira vez, uma emoo, talvez clera. Suas palavras,
porm, no podem expressar esses sentimentos e no sabe o que dizer. Sua atitude sincera foi
abra-la e beij-la, mesmo que por gratido por no precisar reconhecer o filho.
O espelho incomoda Ricardo Reis. Sua reflexo de que a imagem no , mas est, de
forma que, quele que olha, o espelho pode agradar ou no, suportar ou rejeitar. Reis no se
sente autntico e, com o retorno a Portugal, procura afirmar-se. O encontro com o espelho da
sala de estar do Hotel Bragana no o agrada, porque se sente tambm imagem, estado,
reflexo, espelho e no ser Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador
ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho tambm 67. Essa
imagem pode ser entendida como algo que ele prprio criou para si nas odes que escreve, de
indiferente, pago, desapegado, alheio ao mundo e aos sentimentos, ou ainda uma referncia
sua origem heteronmica, de ser um dos reflexos do mltiplo Pessoa.
A questo da imagem que Ricardo Reis criou para si por meio de seus poemas
reforada quando ele mesmo assume no se reconhecer no que escreveu: Vai sentar-se
secretria, mexe nos seus papis com versos, odes lhes chamou e assim ficaram, porque tudo
tem de levar seu nome, l aqui e alm, e a si mesmo pergunta se ele, este, o que os escreveu,
porque lendo no se reconhece no que est escrito, foi outro esse desprendido, calmo e
resignado homem68, ou seja, o seu epicurismo e estoicismo, sua vida buclica e indiferente,
tudo parece ter ficado para trs, se algum dia chegaram a existir de fato. Seguro assento na
coluna firme dos versos em que fico o incio de uma de suas odes, sua marca e segurana
no mundo. Entretanto, essa coluna firme j no lhe pode sustentar.
Uma outra crtica s odes feita na p.256, quando Ricardo Reis reflete, ao escrever
uma carta destinada a Marcenda, sobre a superficialidade das palavras, em especial aquelas
empregadas na rede do casulo que um poema:
(...) usemos palavras que no prometam, nem peam, nem sequer sugiram,
que desprendidas apenas insinuem, deixando protegida a retaguarda para
recuo das nossas ltimas cobardias, tal como estes pedaos de frases, gerais,
sem compromisso, gozemos o momento, solenes na alegria levemente,
verdesce a cor antiga das folhas redivivas, (...) breves so os anos, poucos a
vida dura, mais vale, se s memria temos, lembrar muito que pouco (...).

67
68

p.53.
p.224.

94

Ricardo Reis no foge aos acontecimentos que o rodeiam: como j foi salientado, ele
procura conhecer o que se passa em Portugal e no mundo; pensa em poltica, na questo da
perda de colnias portuguesas para a Inglaterra, na crise espanhola; preocupa-se com o que
pensariam sobre o seu caso com Ldia; sente-se s, contrariado, irritado, inquieto,
decepcionado, colrico, emocionado; mostra-se apegado a seus bens, sua aparncia, s
convenes; pensa sobre a velhice; preocupa-se com as misrias humanas; faz projetos para o
futuro, mesmo que curto; apaixona-se e sofre; enfim, comea a perceber o mundo a sua volta.
Ao perceber esse mundo, sente que no tem espao para si nele, no consegue se
encaixar na sociedade. Marcenda jovem demais; Ldia uma criada de hotel e o filho que
ela espera ser de pai incgnito; ambicionara ocupar o lugar de Fernando Pessoa, mesmo que
ningum o percebesse, mas isso no aconteceu; sente-se vazio; est desempregado; pensa em
voltar ao Brasil.
Por isso, abandona todas as suas filosofias de vida, as que vivenciou num tempo
distante, o que experimentou em seu retorno a Portugal, as que criou como mscara para si e
vai, aos poucos, desligando-se do mundo, at, ao final do romance, escolher a morte e
desaparecer com Fernando Pessoa.
3.4.2 Carpe diem
A mxima horaciana carpe diem no uma regra para o Ricardo Reis-personagem,
nem mesmo o meio-termo dourado, da vida no campo, com simplicidade e modstia. Ricardo
Reis se mostra preocupado, como foi exposto, com o que podem pensar de suas atitudes e no
aproveita a vida sem pensar no amanh. Alm disso, muito apegado s regras sociais, s
divises e preconceitos de classes, posio que ocupa.
Quem vive os preceitos horacianos a criada de hotel, Ldia, mesmo sem o saber. Por
ironia do destino ou do autor, Ricardo Reis conhece a criada, que tem o mesmo nome da musa
incorprea, sem expresso ou opinio dos poemas de Reis. As semelhanas, porm, terminam
a. A Ldia-criada se torna amante do mdico; mesmo sem instruo, ela quem demonstra
maior sabedoria em aproveitar a vida. Ldia se conforma com o que tem, mesmo sabendo que
no tem nada. Para si, basta o momento, o que vive no presente, sem pensar no futuro, como
podemos perceber neste dilogo entre ela e Ricardo Reis: Que um bom marido, para ti,
No sei, s difcil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada,
sem nenhum futuro, Hei-de ser sempre teu amigo, Nunca sabemos o dia de amanh69.

69

p.201.

95

Por tudo o que faz para Reis no espera ser recompensada, pois est ciente de que
casamento no poder acontecer, uma vez que no est altura dele. Nem lembranas ou
recompensas quer receber, porque quer apenas se dar por inteira, sem receber nada em troca
O meu salrio o seu bom trato70 .
Alm disso, Ldia acredita na certeza do destino, enquanto Ricardo Reis, nos acasos da
vida. Para ela, tudo obra do destino, inclusive A morte tambm faz parte do destino71, e o
seu passar as camisas do senhor doutor e o servir enquanto no arruma outra do seu nvel
social. Chora por sentir que no significa nada na vida de Ricardo Reis, apenas a mulher-adias do senhor doutor. No pode dizer nem que amante porque ser amante significa uma
igualdade de posies, o que no acontece no relacionamento entre os dois. Seu destino ser
a criada, no h nada a esperar, nem o reconhecimento da paternidade de seu filho.
Nessa relao com Ldia, Ricardo Reis se aproxima de Horcio, uma vez que este
cantava e valorizava as mulheres de segunda classe, ou seja, a criada, a liberta, a prostituta
como aquelas que merecem o amor e cuidado. Como Horcio, Reis tambm viveu momentos
intensos com Ldia, porm, sempre atado aos preconceitos sociais. Nunca assumiria seu
relacionamento devido diferena de classe existente entre os dois. Com isso, distancia-se de
Horcio que tratava as mulheres de segunda classe como melhores que a de primeira e no
tinha vergonha de assumir o que sentia. Ricardo Reis tem medo que descubram o que h entre
si e Ldia e no pensa em assumir compromisso.
Isso se reflete bem na questo do beijo. Na primeira noite, no sabe se deve beij-la na
boca ou no; beijou, mas por fora das circunstncias, pelo fogo dos sentidos 72. Ricardo
Reis reflete que, assim como no existem doenas, mas doentes, tambm no existem beijos,
mas pessoas. Beija Marcenda sem pensar, diz que o far e faz. Esse beijo fica em sua
memria, mas a pessoa, Marcenda, vai se apagando com a ausncia. Com Ldia se d o
contrrio: ela tambm pessoa, tambm beijada, mas no a pessoa adequada, apesar de
sacrificar seus dias de folga para estar com o senhor doutor, ento, o seu beijo no conta. O
segundo beijo com Marcenda acontece no consultrio e tambm intenso, capaz de fazer com
que pea a moa em casamento. Depois de muitos encontros com Ldia, vem a notcia de que
est grvida. Ricardo Reis no quer assumir a criana, sente raiva, clera, vergonha, piedade
e, enfim, beija a mulher, num impulso, sinceramente agradecido por ela o ter liberado de suas

70

p.237.
p.304.
72
p.103.
71

96

responsabilidades. Chega a confessar a Fernando Pessoa que no pensa em casar-se com


Ldia, mulher desigual, nem em perfilhar o menino, filho indesejado73.
Entretanto, apesar de ser semi-analfabeta, de ser humilde e pobre, Ldia no se faz
indiferente em relao aos acontecimentos. Por meio de seu irmo, Daniel Martins,
marinheiro, fica sabendo de todas as manobras polticas e militares do governo e dos
revoltosos e consciente de que existem muitas verdades, enquanto Ricardo Reis acredita
fielmente nas notcias que l nos jornais e ouve no rdio. Ldia critica Reis por isso, dizendo
as verdades so muitas e esto umas contra as outras, enquanto no lutarem no se saber
onde est a mentira74.
3.4.3 As mulheres e o amor
O Ricardo Reis-personagem demonstra ser um homem em busca de companhia: mal
chega do Brasil e Marcenda lhe chama a ateno; interessa-se por Ldia; sai sempre e observa
as pessoas; gosta das visitas de Fernando Pessoa, ou seja, no consegue ficar s, apesar de
sempre ter vivido sozinho. Fernando Pessoa, na p.227, diz-lhe, porm, que a pior solido
aquela que se sente quando nem ns prprios somos capazes de nos fazer companhia, de nos
sentirmos teis para ns e para os outros. Pessoa revela que nunca se sentiu verdadeiramente
til, o que faz dele, tambm, um homem solitrio. Em outro momento, Ricardo Reis, depois
de ter escrito uma carta a Marcenda, sente-se s:
Ests s, ningum o sabe, cala e finge, murmurou estas palavras em outro
tempo escritas, e desprezou-as por no exprimirem a solido, s o diz-la,
tambm ao silncio e ao fingimento, por no serem capazes de mais que
dizer, porque elas no so, as palavras, aquilo que declaram, estar s, caro
senhor, muito mais que conseguir diz-lo e t-lo dito75.

Nesse trecho, percebemos que Ricardo Reis, em seus poemas, fala da solido, mas
reflete, no romance, sobre a real condio de estar s mais que dizer, experimentar e
suportar o peso do silncio e da ausncia.
Isso pode explicar o fato de Ricardo Reis ter se envolvido, logo de chegada, com duas
mulheres. Marcenda, menina de vinte e trs anos, magra, pescoo alto e frgil, queixo fino,
contorno do corpo inseguro, inacabado, educada, filha do Doutor Sampaio, comendador;
Ldia, mais ou menos trinta anos, bem feita de corpo, morena portuguesa, baixa, criada do

73

p.361.
p.388.
75
p.199.
74

97

hotel. As duas chamam a ateno de Ricardo Reis, a primeira por ter o brao esquerdo
paralisado, a segunda por ser bonita e atraente.
Entretanto, Ricardo Reis no as trata com igualdade e isso j pode ser indicado na
questo do beijo, mencionada anteriormente. Marcenda algum do seu nvel social, com
educao e fineza. Por isso, chegar a Marcenda exige tato e o cumprimento de certas
convenes. Em um primeiro momento, descobre, junto ao gerente do hotel, Salvador, quem
so o pai e a filha; depois, planeja um modo de encontr-los no teatro e conversarem; jantam
juntos; conversam, os dois, na sala de estar do hotel; marcam encontros; trocam cartas;
beijam-se; ele a pede em casamento; vai a Ftima para tentar encontr-la; escreve um poema
em sua homenagem. Com Ldia, porm, Ricardo Reis no sutil, pois toca em seu brao,
mesmo sem conhec-la bem, o que indica o interesse na mulher, mas se recrimina por ter
cedido a uma fraqueza estpida76. Depois de alguns dias, diz a ela Acho-a bonita77 e se
sente um sedutor ridculo por tal atitude. noite, Ldia vem a seu quarto pela primeira vez.
Suas visitas noturnas so freqentes enquanto o senhor doutor est hospedado no Hotel
Bragana; ao alugar casa, Ldia se oferece para fazer o trabalho de mulher-a-dias, faxineira,
semanalmente, em seus dias de folga. E ela vai toda semana casa de Ricardo Reis, mesmo
sabendo que o que h entre os dois no durar muito. Enfim, engravida e decide criar sozinha
o filho.
Fernando Pessoa ironiza Ricardo Reis por seu relacionamento com Ldia, uma criada,
e Ricardo Reis lhe responde: Veio o nome de Ldia, no veio a mulher 78, ou seja, essa Ldia
no aquela passiva, muda, espiritual, incorprea, delicada, mas uma mulher de carne e
osso, decidida, que se arrisca pelo que quer, de mos speras, quase brutas, e uma sabedoria
que lhe vem da experincia de viver. Para ele, apesar de querer a companhia de Ldia, ela o
havia procurado por vontade prpria e, portanto, no teria obrigao alguma com ela: no
tem quaisquer direitos, se aqui vem a casa porque a vontade lhe puxa, no porque eu lho
pea79. No pensa em se casar com Ldia, por ser mulher desigual80, portanto, no assumir
a criana que ela espera. Ela chora por saber que no significa nada para ele, que e ser
sempre a criada, e isso como a morte para si.
76

p.90.
p.97.
78
p.118.
79
p.269.
80
p.361.
77

98

Marcenda, gerndio do verbo latino marceo, que quer dizer estar murcho,
enfraquecer81, um nome que faz referncia situao da personagem: o brao paralisado,
murcho, assim como todo o resto do corpo inseguro e inacabado e, mesmo sua vida, que
no tem mais razo de ser, est murcha, sem esperanas. Contudo, a forma de Ricardo Reis
olhar para ela se modifica ao passo que se interessa por seu problema e no se conforma com
o fato de uma mulher jovem, at bonita, ter uma deficincia. Todavia, essa personagem que
incorpora as musas inspiradoras de Ricardo Reis Ldia, Neera, Cloe. Marcenda quem tem
uma boa instruo (sem dvida concluiu o curso liceal e s por ter to dramaticamente
adoecido ter abandonado uma faculdade qualquer, direito ou letras82,) quem capaz de
manter uma boa conversao (uma rapariga deste pas e tempo foi capaz de manter to
seguida e elevada conversa, dizemos elevada por comparao com os padres correntes, no
foi estpida nem uma s vez, no se mostrou pretensiosa, no esteve a presumir de sbia nem
a competir com o macho83), tem as mos delicadas como as musas dos afuselados dedos,
das cuidadas unhas, das macias palmas de Marcenda84. Por essa razo, a menina Marcenda
est altura de Ricardo Reis: ele a beija e faz o pedido de casamento. Ela no aceita, diz
devagar, mas, prontamente: No, (...) No seramos felizes85. Alm disso, lembra Ricardo
Reis, em carta, das regras sociais a que est submetida: a vida este meu brao esquerdo que
est morto e morto ficar, a vida tambm aquele tempo que separa as nossas idades, um veio
demasiado tarde, outro cedo de mais86; se as coisas fossem diferentes, se eu fosse mais
velha, se este brao sem remdio87. Apaixonado e, ao mesmo tempo, decepcionado, Ricardo
Reis compe uma ode em homenagem a Marcenda, sua musa inspiradora:
Saudoso j deste vero que vejo, lgrimas para as flores dele emprego na
lembrana invertida de quando hei-de perd-las (...)Transpostos os portais
irreparveis de cada ano, me antecipo a sombra em que hei-de errar, sem
flores, no abismo rumoroso (...) E colho a rosa porque a sorte manda
Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que com a curva diurna da
ampla terra88.

81

BUSSARELLO, R. Dicionrio Bsico Latino-Portugus. 4 ed. Florianpolis: Editora da UFSC, 1998,


p.141.
82
SARAMAGO, J. O Ano da Morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.133.
83
Idem.
84
p.168.
85
p.292.
86
p.268.
87
p.295.
88
p.352.

99

Esse poema existe no livro das Odes de Ricardo Reis-poeta, a diferena que, no
romance, o gerndio Marcenda assume dimenso de substantivo, enquanto no poema do
heternimo funciona como verbo relacionado ao fato de a rosa murchar, tornar-se marcenda.
Apesar de se relacionar com duas mulheres, Ricardo Reis no tem nenhuma Ldia
de uma classe social inferior e Marcenda no o aceita. Em vista disso, Reis, em conversa com
Pessoa, assume ter medo das mulheres. Este diz que a experincia que teve com mulheres foi
a de apenas assistir e ver passar, enquanto Ricardo Reis afirma: grande engano o seu se
continua a julgar que isso basta, preciso dormir com elas, fazer-lhes filhos, mesmo que
sejam para desmanchar, preciso v-las tristes e alegres, a rir e a chorar, caladas e falando,
preciso olh-las quando no sabem que esto a ser olhadas89. Todavia, mesmo mais
experiente nesse assunto, Reis diz que seu papel na vida das mulheres insignificante, tanto
que poderia morrer como o zango ou o louva-a-deus, depois do papel de macho estar
cumprido.
Podemos dizer que Ricardo Reis nunca amou ou foi amado de fato. As palavras
amorosas no fazem parte da sua vida, assim como nunca trocou cartas de amor. Vem a se dar
conta disso ao receber uma carta de Marcenda, em que esta lhe diz que no h futuro para o
relacionamento dos dois. Ele, porm, gostaria que fosse uma carta, cujo contedo estivesse
derramado de paixo, de juras de amor. Depois de t-la lido, arrepende-se de o ter feito,
porque assim poderia imaginar coisas boas a seu respeito, imaginar aquilo que gostaria que
nela estivesse escrito. Se so ridculas ou no as cartas de amor, Reis reflete que ridculo
nunca ter recebido ou escrito uma: Tens razo, nunca recebi uma carta de amor, uma carta
que s de amor fosse, e tambm nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou
minha metade, esses inmeros que em mim vivem, escrevendo eu, assistem, ento a mo me
cai, inerte, enfim no escrevo90.
Esse sentimento de derrota no amor, de solido, de abandono, acompanha, a partir de
ento, a personagem at o fim do romance. Em sua viagem Ftima, procura de Marcenda,
Ricardo Reis, ao ver uma senhora abraando o neto, percebe que no h ningum a sua espera
e sente que sua vida foi vazia, sem grandes emoes, que no aproveitou os bons momentos,
que no foi feliz:
(...) este pensar num rapazito visto de relance numa sossegada estao de
caminho-de-ferro, este desejo sbito de ser como ele, de limpar o nariz ao
brao direito, de chapinhar nas poas de gua, de colher as flores e gostar
89
90

p.362.
p.269.

100

delas e esquec-las, de roubar a fruta dos pomares, de fugir a chorar e a


gritar dos ces, de correr atrs das raparigas e levantar-lhes as saias, porque
elas no gostam, ou gostam, mas fingem o contrrio, e ele descobre que o
faz por gosto seu inconfessado, Quando foi que vivi, murmura Ricardo
Reis91.

Uma figura recorrente no romance o gigante Adamastor. Da janela de sua casa,


Ricardo Reis pode contempl-lo, o gigante transformado em pedra por causa do amor da ninfa
Ttis. No possui uma forma bem definida, pedra toscamente debastada, mas seus contornos
exprimem o sofrimento pelo amor no correspondido. Ricardo Reis est constantemente a
olhar o Adamastor e compara o seu sofrimento ao do gigante, diz ser possvel, agora,
compreender o sofrimento de Adamastor92, agora que tambm espera pelo seu amor
Marcenda.
Toda essa reflexo de Ricardo Reis feita a cerca de seus relacionamentos amorosos, de
sua insignificncia em relao s mulheres e vida, de seu medo, de sua sensao de no ter
vivido, indica um homem que est a avaliar sua existncia e percebe que os pequenos gestos
que deixou de realizar fazem a diferena. Escrever ou receber uma carta de amor, amar
incondicionalmente, aproveitar a infncia, o amor familiar, tudo isso poderia ter preenchido o
vazio que Ricardo Reis sente em seu ser to grande que nem o universo bastaria93 para
ench-lo e esse vazio, que vai aumentando gradativamente, que toma conta de si e faz
com que desista de existir.
3.4.4 Religio e liberdade
O narrador, por ocasio da passagem do ano de 1935 para 1936, fala ao leitor das
promessas e intenes de fim de ano, que ao cabo de alguns meses so esquecidas. Cita
passagens dos evangelhos, em que Jesus morre na cruz e ironiza dizendo que, com certeza,
Cristo se despediu do mundo da seguinte forma: Adeus, mundo, cada vez a pior94. Isso para
chegar aos deuses de Ricardo Reis, que no seria cristo, mas adepto dos deuses greco-latinos,
que observam o mundo, sem preocupar-se com o que os homens fazem ou no, se bem ou
mal, deuses porque existe quem os considere como tais.
Contudo, ao longo romance, podemos perceber que o paganismo de Ricardo Reis no
vai muito alm do mero uso da mitologia como recurso estilstico. Na p. 65, Ricardo Reis se
recorda de alguns de seus versos: Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia como tu,
91

p.315.
p.244.
93
p.326.
94
p.60.
92

101

Nem mais nem menos s, mas outro deus, No a ti, Cristo, odeio ou menosprezo, Mas cuida
no procures usurpar o que aos outros devido, Ns homens nos faamos unidos pelos
deuses. Para ele, porm, esses versos so como fsseis ou restos de antigas civilizaes95,
ou seja, como se os tivesse escrito em um tempo que j no existe mais, o tempo em que os
escreveu ou a poca clssica. Pergunta a si prprio se tero mais sentido no corpo das odes em
que se inserem ou sero j esvaziados de sentido.
A presena do imaginrio cristo muito forte no romance. Mais freqentes que as
referncias mitolgicas Aquiles, Hefestos e Paris, por exemplo, (p. 88) so as referncias
bblicas tanto da parte do narrador como do prprio Ricardo Reis. Isso pode ser lido como
uma herana de sua formao jesutica, mas tambm como uma forma de contradizer aquilo
que est escrito nas odes, indicando o que realmente compe o homem Ricardo Reis. A
oniscincia divina comparada possibilidade de Fernando Pessoa ficar invisvel e
presenciar as intimidades de Reis e Ldia, mas presena de Deus j nos habitumos96.
Ricardo Reis, ao conversar com Dr.Sampaio sobre o livro Conspirao, indicado pelo notrio,
compara a eficcia nacionalista do livro a um novo batismo para aqueles que o lerem. As
figuras de Ado e Eva e o paraso so contrapostas situao de Ricardo Reis na nova casa: o
paraso era o Hotel Bragana, para onde no gostaria de voltar, pois l se tem tudo de bom,
mas no se tem liberdade; Ado e Eva so a personagem Reis , que, expulsa do paraso,
precisa se arranjar com aquilo que encontra, algumas frutas e bolos secos, por sua prpria
conta. Ironicamente, compara a Virgem Maria s mulheres portuguesas anjos de pureza e
abnegao97 , nas mos de quem estaria a salvao da nao e a converso dos homens,
almas masculinas transviadas98, ao nacionalismo e abnegao dos ideais revolucionrios
Santas mulheres, agentes de salvao, religiosas portuguesas, sorores marianas e piedosas99.
Alm disso, mesmo se dizendo pago, vai a Ftima, lugar da apario de Nossa
Senhora, a procura de Marcenda. Para isso, pega um trem abarrotado de peregrinos, enfrenta
fila para almoar comida simples, anda de camioneta (nibus), chega suado, empoeirado, sem
lugar para dormir ou lavar o rosto. No caminho, encontra um homem cado beira do
caminho. Pede que a camioneta pare para que possa ajudar. Assume, aqui, a figura de bom
samaritano, pois enquanto os outros queriam que a viagem continuasse, ele, um pago,
queria parar e fazer alguma coisa. O homem, porm, j estava morto. ento que Ricardo
95

p.66.
p.118.
97
p.243.
98
Idem.
99
Idem.
96

102

Reis se lembra da passagem da ressurreio de Lzaro e imagina que, se Jesus Cristo estivesse
passando por ali e aquele homem fosse Lzaro, a ressurreio poderia se dar ali mesmo. Ser
que Ricardo Reis se compara a Jesus Cristo? Seria algo espetacular, uma vez que, nem na
Cova da Iria, aconteceu algo semelhante.
Mesmo sem f, Ricardo Reis, em conversa consigo mesmo ou com os muitos que
esto dentro de si, admite ter ido Ftima por esperana. Esperava encontrar Marcenda e que
esta fosse curada. Entretanto, no a v, no ouve sua voz a pedir pelo milagre e termina como
um vagabundo de barba crescida, roupa amarrotada, camisa como um trapo, chapu
manchado de suor, sapatos s poeira100
. Essa loucura foi movida a esperana. Mas o que diria se a encontrasse? O que ela pensaria
ao v-lo naquela situao? Agradece, por fim, a Nossa Senhora de Ftima, por no ter
encontrado Marcenda. A esperana o que move todos os peregrinos, ainda que a f seja
pouca ou nenhuma, e, ao final, encontram pelo menos um motivo de agradecimento. o que
acontece a Ricardo Reis.
Por fim, importante destacar uma referncia feita no incio do romance, quando
Ricardo Reis, ao retornar ao hotel, depois de um dia de andanas por Lisboa, pensa nas
pessoas que esto hotel e que ver hora do jantar: pensando neles sentiu um bom calor no
corao, um ntimo conforto, amai-vos uns aos outros, assim fora dito um dia, e era tempo de
recomear101. Esse mandamento est no evangelho de Joo, captulo 15, versculo 12102,
com o qual Jesus vem estabelecer uma nova lei, baseada no amor fraterno. Ao se recordar
disso, Ricardo Reis prova que o imaginrio cristo est muito presente em sua vida e, ao
admitir que tempo de recomear, estabelece uma nova relao com esse imaginrio, como
se, de alguma forma, fosse retomar, resgatar esses valores, talvez esquecidos por algum
tempo, em sua vida.
3.4.5 Sua relao com a ptria
Ao desembarcar no Cais de Alcntara, depois de dezesseis anos, Ricardo Reis se sente
como estrangeiro em sua ptria. Busca jornais, anda pela cidade, olha as ruas, as pessoas, quer
informaes sobre tudo o que acontece em Portugal para se pr a par da realidade.
Participa de vrios momentos significativos da vida da cidade: acompanha a passagem
do ano; o Carnaval festas com particularidades portuguesas, como a tradio de jogar lixo
pela janela, depois da meia-noite, as brincadeiras e fantasias de Carnaval; presencia a
100

p. 320.
p. 45.
102
Bblia Sagrada. 112 ed. So Paulo: Ave-Maria, 1997.
101

103

distribuio do bodo do sculo, ajuda dada pelo governo multido de pobres e famintos; vai
ao enterro do Mouraria, homem morto com cinco tiros, aps ter enganado outro; participa de
um comcio. Este fato importante porque admite que nunca teve interesse em presenciar tal
evento, talvez por pudor, educao, temperamento, gosto, mas que, diante da atual situao,
ficou curioso:
Mas este alarido nacional, a guerra civil aqui ao lado, quem sabe se o
desconcerto do lugar onde vo reunir-se os manifestantes, a Praa de
Touros do Campo Pequeno, acordam-lhe no esprito uma pequenina chama
de curiosidade, como ser juntarem-se milhares de pessoas para ouvirem
discursos, que frases e palavras aplaudiro, quando, porqu, e a convico
de uns e dos outros, os que falam e os que escutam, as expresses dos rostos
e os gestos, para homem de natural to pouco indagador, h interessantes
mudanas em Ricardo Reis103.

Como podemos notar, Ricardo Reis comea a manifestar interesse pela vida poltica e
social de seu pas e do mundo e esse interesse faz com que tome atitudes que at ento no
faziam parte de seu plano de vida.
3.4.6 A morte para Ricardo Reis
Ao desembarcar no Cais de Alcntara, como se Ricardo Reis tivesse desembarcado
no incio do que seria sua caminhada rumo morte, como se esse retorno a Portugal fosse o
comeo de sua despedida do mundo e de tudo o que foi e poderia ter sido.
Ricardo Reis acredita que, ao ficarmos velhos,
(...) somos como as criancinhas, inermes, mas a me est morta, no
podemos voltar a ela, ao princpio, quele nada que esteve antes do
princpio, o nada verdade que existe, o antes, no depois de mortos que
entramos no nada, do nada, sim, viemos, foi pelo no ser que comemos, e
mortos, quando o estivermos, seremos dispersos, sem conscincia, mas
existindo104.

Dessa forma, a morte no nos pode reduzir a nada, pois tivemos uma existncia e esta
tem continuidade dispersa no existir dos outros ou das coisas.
A volta de Ricardo Reis a Portugal foi motivada pela morte de Fernando Pessoa. Este,
porm, aparece no romance de forma inusitada: morto, fantasma. Entretanto, este fantasma
no anda por a com um lenol cabea, assustando as pessoas. Segundo ele, os mortos

103
104

SARAMAGO, J. O Ano da Morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.394.
p.79.

104

servem-se dos caminhos dos vivos105 e, querendo, podem ser vistos ou no. Para SimasAlmeida (1998), Saramago se utiliza do realismo mgico para poder introduzir esse elemento
em sua narrativa, sem se preocupar com a verossimilhana com a realidade externa obra,
contando com o pacto com o leitor, que aceita o jogo proposto e mergulha no mundo
ficcional.
Fernando Pessoa-morto est passando por um processo de desligamento do mundo, ou
melhor, tempo em que o mundo se desliga de quem morreu:
Contas certas, no geral e em mdia, so nove meses, tantos quantos os que
andmos na barriga de nossas mes, acho que por uma questo de
equilbrio, antes de nascermos ainda no nos podem ver mas todos os dias
pensam em ns, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os
dias nos vo esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses
quanto basta para o total olvido106.

De acordo com Perrone-Moiss (1998: 344), as ltimas palavras de Fernando Pessoa


em vida foram D-me os culos. Por ironia, no romance, a primeira capacidade que um
morto perde a de ler, por isso no precisa de culos, e este Fernando Pessoa anda por a com
o terno (fato) preto que foi enterrado, sem gabardina, sem chapu, sem culos, sem poder ler
ou ver-se no espelho. Essa caracterizao de Pessoa pode ser lida como uma crtica a algum
que, em vida, no demonstrou muito interesse em questes polticas e no aproveitou a vida
como deveria. Depois de morto, segundo Simas-Almeida (1998), Pessoa possui a capacidade
de fazer um auto-julgamento e julgar as aes de Ricardo Reis, devido ao distanciamento em
que est e experincia adquirida com a vida e com a morte. Por isso, diz que nunca se sentiu
verdadeiramente til107, o que refora a postura defendida por Saramago de que o artista
deve ser engajado e seu trabalho deve trazer algo para a sociedade. Acrescentemos a isso o
fato de que, s depois de morto, Pessoa se d conta da inveja que sentia de Cames, fazendo
com que no inclusse o pico no seu livro Mensagem.
Juntos, Ricardo Reis e Fernando Pessoa tm longas conversas sobre heteronmia,
interesses polticos, mulheres, amores, arte, inspirao, identidade e morte. O narrador insere
no texto muitas conversas que poderiam ter acontecido. Em uma delas, Fernando Pessoa, por
usa capacidade judicativa, fala sobre o fato de no se poder, simplesmente, assistir aos fatos,
mesmo estando morto. Nem mesmo os mortos tm a certeza de que assistem ao mundo, pois
falam, vem, andam, encontram pessoas e os seus gestos praticados e suas palavras proferidas
105

p.82.
p.80.
107
p.227.
106

105

em vida continuam a existir e no podem ser mudados mais. No entanto, h algo pior:
porque irremedivel definitivamente, o gesto que no fiz, a palavra que no disse, aquilo
que teria dado sentido ao feito e ao dito108, ou seja, preciso fazer o que se pode enquanto
temos tempo, porque o que deixamos de fazer que nos mata. Isso vem de encontro crtica
feita tanto a Pessoa quanto a Ricardo Reis, que tambm se diz um espectador do mundo, para
quem no vale a pena fazer um gesto.
Ricardo Reis faz o caminho inverso de Fernando Pessoa: enquanto este aguarda os
nove meses para que o mundo se esquea de si, aquele tem nove meses para tentar viver o que
ainda no viveu, para, depois, sair do mundo. Ele tenta, sente que algo est diferente em seu
modo de agir, mas, com o passar do tempo, percebe que no h lugar para ele neste mundo e
comea a se desligar: no sai de casa (s para fazer as refeies), dorme o tempo todo, no se
arruma, no se reconhece, precisa apalpar o seu rosto para saber que ainda est l, as coisas ao
seu redor perdem o contorno, assim como ele prprio. Nem ler consegue; reinicia a leitura de
The god of the labirinth vrias vezes e no consegue passar da primeira pgina. Enfim, no
tem coragem para assumir sua vida, para dar fim sua solido, para sentir-se mais til.
Por isso, ao fim do romance, quando Fernando Pessoa vem se despedir, pois seu
tempo acabara, Ricardo Reis ouve o relgio do andar de cima no se lembrava mais dele,
percebeu-o apenas na primeira vez que o ouviu , agora era como se indicasse que o tempo
havia terminado. isso que entende, pois se arruma, pega o livro The god of the labirynth e
decide ir com Fernando Pessoa, que o questiona Devia ficar aqui a espera de Ldia (...) E
esse livro, para que 109. Ele responde: No lhe posso valer; e sobre o livro, Deixo o
mundo aliviado de um enigma110, que poderia ser lido como o prprio Ricardo Reis. E assim
reencontram-se criador e criatura.
3.4.7 Ricardo Reis: mscara da mscara
A proposta de Jauss (1984) que a Histria da Literatura seja estabelecida,
considerando-se a permanncia ou no da obra no sistema literrio, a partir da relao leitorobra atravs dos tempos, ou seja, como se deu a relao entre os diversos leitores e a obra em
momentos histricos diferenciados, e como essa obra pode se relacionar com as demais que
antecede ou a precederam, apresentando em si, dentro da srie literria, os horizontes de
expectativa j superados pelas obras anteriores bem como novos horizontes. Essa ressonncia
108

p.148.
p.415.
110
Idem.
109

106

de efeitos nas futuras geraes que faz com que uma obra continue a ocupar um lugar dentro
da Histria da Literatura. Diante disso, percebemos que Jos Saramago experienciou a obra de
Fernando Pessoa, posicionou-se e apropriou-se dela, resultando dessa relao dinmica uma
nova obra, O Ano da Morte de Ricardo Reis, com ressonncias da tradio literria pessoana,
mas renovada pela nova leitura conferida por Saramago, uma vez que a interao, de acordo
com Aguiar e Bordini (1993), um ato receptivo e criativo.
Iser (1999) chama esse ato de interao entre texto e leitor de esttico, pois exige do
leitor que use sua imaginao e percepo para se colocar no texto e rever suas prprias
atitudes. Essa a funo dos lugares vazios, instigar o leitor a usar a imaginao e a inferir,
por meio do que foi determinado no texto, o que foi deixado suspenso, em aberto, agindo
sobre a estrutura do texto. Saramago entra nesse jogo recepcional da obra de Pessoa, uma vez
que preenche os vazios deixados por este (a biografia de Ricardo Reis, a imagem de homem
apreendida por meio dos poemas) e reconstri a imagem de Ricardo Reis a partir do efeito
experimentado enquanto leitor.
Nessa perspectiva, Aguiar e Silva (1984) sublinha que todo texto uma tessitura
organizada por meio do entrelaar de outros textos, isto , outras vozes se fazem presentes
porque fazem parte da bagagem cultural de quem o escreveu. Saramago organiza O Ano da
Morte de Ricardo Reis por meio da constante intertextualidade com o texto pessoano, mais
especificamente, com as odes de Ricardo Reis, sem falar nas outras referncias literrias e
histricas presentes. A intertextualidade confere ao texto saramagueano mais verossimilhana,
de forma que, ao encontrarmos no corpo do romance referncia s odes, s musas, filosofia
de vida de Reis, aceitamos que estamos diante de uma continuao do Reis pessoano. Santilli
(1999) afirma que essa intertextualidade entre Saramago e Pessoa se d no campo da pardia,
para mexer com algo que j est sacralizado em nossa cultura literria e acreditamos que
Saramago tenha intencionado fazer, sim, uma crtica a todos os que se colocam como
espectadores do mundo na figura de Ricardo Reis e de um Fernando Pessoa-fantasma que
nada pode fazer a no ser olhar e angustia-se diante da realidade. Pensando nessa inverso
realizada por Saramago, vejamos qual a mscara que construiu para Ricardo Reis; que homem
emerge de seu texto.
Quanto sua filosofia de vida, epicurismo e estoicismo (desapego do mundo, das
paixes, dos prazeres transitrios, dos problemas e preocupaes), Ricardo Reis se mostra
indiferente a essa postura de vida, pois apresenta apego a hbitos rgidos, obedece convenes
sociais e diz sempre ter sido srio. Esses elementos no remetem a algum que vive a leveza
de estar longe dos acontecimentos e problemas cotidianos, mas a realidade de quem est sob o

107

jugo de uma sociedade cheia de regras e comportamentos pr-determinados. Alm disso,


sente-se algum dispensvel, cujos gestos e palavras no so verdadeiros, mas vazios. Ao
reler suas odes, no consegue se ver nelas, como se fossem de um outro tempo, de uma pessoa
que j no existe mais. O romance perpassado por muitos fatos histricos, personalidades,
lugares reais, e o Ricardo Reis-personagem colocado justamente nesse meio, do qual no
consegue se manter distante e acaba por se envolver.
Prova disso so seus relacionamentos amorosos com Ldia e Marcenda. Nesse ponto,
mais uma vez Ricardo Reis se distancia do heternimo clssico e se revela um homem
preconceituoso, ao contrrio de Horcio, e apegado sua condio social: o romance com
Ldia no passa de satisfao de um instinto biolgico, por ser criada de hotel e no desejar
assumir, por isso, compromisso com ela; a paixo que sente por Marcenda, porm, j
possvel de ser realizada porque a moa est no mesmo nvel social que ele. Para algum que
pregava a renncia s paixes, Ricardo Reis se envolve rapidamente com essas mulheres, na
tentativa de fugir da solido. Diz a Fernando Pessoa que no basta olhar para as mulheres para
as conhecer, preciso se envolver com elas e isso o que faz no romance. Entretanto, sente
que, at ento, no vivera porque no amara, no fora amado, no realizara gestos que fazem
a diferena na vida das pessoas. Assim, os sentimentos de derrota, solido, abandono,
esquecimento comeam a tomar conta de seus dias at o fim do romance.
Em relao religiosidade de Reis, percebemos que, apesar de declarar-se nas odes
pago, descendente da religio greco-latina, apresenta, no romance, falas, pensamentos,
atitudes relativas ao cristianismo, como citaes bblicas, referncias a rituais e costumes
cristos como o batismo, a peregrinao a lugares sagrados (Ftima). Quando rel trechos de
odes que criticam a f em Cristo, sente que tudo aquilo ficou muito distante, esquecido em
outro tempo, tempo este que pode ser o da Antigidade clssica ou o tempo em quem
escreveu os poemas.
Sempre declarou ser estrangeiro onde quer que estivesse. assim que se sente quando
desembarca no Cais de Alcntara, ao retornar a Portugal. Todavia, sua relao com a ptria se
modifica ao passo que busca, a cada dia, rever a cidade de Lisboa, ler os jornais, ouvir as
notcias da rdio, conversar com as pessoas, interessar-se pela poltica nacional e
internacional, realizar aes que nunca imaginara, como participar de um comcio. Por isso,
precisa prestar depoimento polcia, chora quando a revoluo dos marinheiros fracassa e,
mesmo que no queira, sempre est ligado a momentos de turbulncia poltica onde quer
esteja (proclamao da repblica em Portugal, revoluo no Rio de Janeiro, revoluo dos
marinheiros, guerra civil espanhola).

108

Por fim, a morte para o Ricardo Reis-personagem no o nada, existir no nada. O


nada o que h antes de nascermos, mas, depois que passamos pelo mundo, deixamos um
pouco de ns nele, ou seja, viver imprimir a nossa marca onde estivermos e morrer
continuar a existir por meio daquilo que fizemos. Ao descobrirmos que Ricardo Reis vai
embora com Fernando Pessoa ao final do romance, percebemos que, desde o incio, sua
trajetria de despedida: tenta viver, ser, realizar tudo aquilo que ainda no havia
experimentado fazer (amar, ficar a vontade, sujo, barba crescida, casar-se, pensar em poltica,
sentir emoes...), como se, at aquele momento, no tivesse vivido realmente, no tivesse
deixado, de fato, a sua marca no mundo, visto que sua carreira de poeta e seus poemas no
eram conhecidos, no poderia ocupar o lugar de Fernando Pessoa, no tinha algum para amar
e ser amado por ela, algum que o esperasse, um lugar para morar, pacientes que
dependessem dele, filhos. Ele tenta fazer tudo isso, mas entende que j no h tempo para
tanto e entende tambm que seu lugar no no mundo, mas junto daquele que deu sentido
sua vida, por isso, deixa o mundo livre de um enigma e se junta a Fernando Pessoa.
Assim como Jos Saramago, a partir de sua experincia com a obra do heternimo,
recriou uma mscara para a mscara deixada por Pessoa, a nossa leitura dessa recriao
tambm pode ser vista como uma mscara, ou seja, uma possibilidade de realizao, baseada
em nossa experincia enquanto leitores, de forma que novos pontos de vista podem emergir a
cada leitura. importante salientar que o Ricardo Reis saramagueano uma dessas
possibilidades de realizao e, como tal, apresenta-se como o outro lado do Reis pessoano, um
homem com sentimentos, frustraes e necessidades palpveis, ligado ao tempo e ao espao
em que se encontra inserido.
3.5 Quadro comparativo

Filosofia
de vida

Reis-poeta
Tenta viver a ataraxia; busca a
tranqilidade, a moderao dos prazeres,
a indiferena em relao ao espetculo
do mundo; no vale a pena fazer um
gesto, apenas contemplar a vida. Diz.

Reis-personagem
No vive os ideais do epicurismo e
do estoicismo, pois se mostra
apegado
a
hbitos
rgidos,
convenes e preconceitos sociais;
sente-se vazio, ftil; suas palavras
so
sem
profundidade,
sem
sinceridade; no se reconhece nos
poemas que escreveu e os v como
produto de um outro homem; no
consegue permanecer impassvel
diante das notcias sobre Portugal e o

109

Influncia Horaciano na forma e no estilo; antide


horaciano na filosofia e na ideologia,
Horcio pois faz uma releitura dos temas
horacianos como a passagem do tempo e
o aproveitar o presente (carpe diem),
mas, ao mesmo tempo, no fazer nada,
porque no vale a pena; o aceitar o que a
vida
oferecer
(aurea
mediocritas),desconhecido,
ignorado,
calmo, dono de si; a certeza da morte; o
amor, as mulheres, a guerra, a ptria, a
religio (religio saturniana), o vinho, a
perenidade da poesia.
Religio e Pago da decadncia, em um tempo
liberdade distante da Antigidade clssica,
fazendo uso da mitologia apenas como
recurso retrico e motivo potico. Seria
adepto da religio olmpica, sem crena
na transcendncia, no misticismo; os
deuses estariam presentes na natureza,
nas coisas e nos seres. A liberdade
consiste em crer-se livre; crer que as
escolhas feitas so vontade prpria,
quando, na verdade, deuses e homens
vivem sob o determinismo do Destino,
sem poder sobre si e sobre os
acontecimentos. Alm disso, a alma est
presa ao corpo e o ser humano est preso
vida. Deseja ser livre de qualquer
forma de priso: sentimentos, glria,
riqueza, fama, poder.
Mulher e
amor

A ptria

Suas musas inspiradoras so homnimas


s de Horcio, mas so motivo potico.
A mulher em Reis incorprea, passiva,
interlocutora a quem o heternimo dirige
seus ensinamentos e indiferente. O
amor uma priso e as paixes
perturbam a alma; no quer amar nem
ser amado.

mundo, apaixona-se, faz projetos


para o futuro, enfim, envolve-se com
a realidade em que inserido. Sente.
No vive o carpe diem, pois est
sempre preocupado com o amanh;
no vive o aurea mediocritas,
apegado a seus bens materiais, sua
posio social; no aceita se
relacionar com pessoas de uma classe
social mais baixa preconceituoso.

marcado pela cultura judaico-crist,


conhecedor da doutrina, dos ritos e
dos costumes. Viaja a Ftima por
esperana e por amor a Marcenda,
sente seu corao ansioso por viver o
mandamento do amor. As crticas que
fez ao cristianismo em suas odes
ficaram relegadas a um passado
distante.

Procura se relacionar com mulheres


Ldia, a criada, por satisfao do
desejo; Marcenda, por paixo. No
basta olhar para as mulheres,
preciso se envolver com elas. O amor
no visto como uma priso, mas
uma forma de dar sentido
existncia. Sente que deveria ter
amado, realizado gestos que fazem
diferena e marcam as outras
pessoas. Por isso, a frustrao, a
solido, o abandono tomam conta de
si.
Sente-se como estrangeiro onde quer que Ao retornar a Portugal, sente-se como
esteja; ignora o mundo ao seu redor. estrangeiro, mas tenta ficar a par de

110

indiferente guerra, no vale a pena


lutar; no importa quem ganha ou quem
perca; diante da guerra e de seus
sofrimentos
recomenda
a
impassibilidade.

A morte

Certa e inevitvel. Por isso, no vale a


pena fazer um gesto; viver durar,
aproveitando o presente para passar sem
grandes preocupaes. Morrer deixar
de ver, de sentir e enfrentar o
desconhecido, diante do qual Reis se
sente impotente. Quem morre no deixa
nada aos vivos.

tudo o que acontece em sua ptria e


no mundo. Participa de momentos
significativos na vida da cidade e das
tradies
portuguesas.
Presta
depoimento polcia, interessa-se
pela poltica, pelas guerras e
revolues que acontecem na Europa.
Chora pelo fracasso do levante dos
marinheiros contra a Ditadura,
mesmo no tendo participado do
movimento, apenas assistido. Percebe
que no possvel permanecer
indiferente em relao ao mundo.
A morte certa, logo, preciso fazer
o que se pode, enquanto h tempo.
Mesmo mortos, algo de ns continua
a existir nas pessoas e coisas que
ficam, a marca que deixamos no
mundo. A morte chega para Ricardo
Reis quando compreende que no h
sentido para sua existncia de solido
e frustraes, que no conseguiu
deixar sua marca no mundo.

111

CONSIDERAES FINAIS
Ler um trabalho de construo conjunta entre o autor, o texto e o leitor. No h autor
sem texto ou texto sem leitor, pois na interao entre esses trs elementos que o texto ganha
carter de acontecimento e passa a existir de fato. Nesse processo interativo, cada leitura se
apresenta como nica, pois cada sujeito-leitor age de uma forma diferente em contato com o
material literrio devido aos conhecimentos prvios que possui e, mesmo que v obra duas
ou mais vezes, h sempre uma perspectiva nova pela qual pode ser lida.
O trabalho desenvolvido com a presente pesquisa fruto de uma reflexo acerca da
esttica da recepo, que considera as diversas recepes da obra literria tanto no momento
presente (aspecto sincrnico) quanto sua recepo atravs dos diversos momentos histricos
(aspecto diacrnico) e concebe a leitura como um efeito a ser experimentado, propiciando ao
leitor viver aquilo que no viveu e influenciar o seu modo de ver o mundo e se ver nele. A
esttica da recepo orientou a leitura das Odes do heternimo pessoano, Ricardo Reis, tendo
em conta que somos leitores atuais a experimentar a obra de Reis hoje. Tambm
consideramos o fato de que Ricardo Reis foi leitor de Horcio, e isso fica evidente em seus
poemas, enquanto Jos Saramago foi leitor de Ricardo Reis, interao da qual nasceu o
romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Dessa forma, podemos afirmar que Fernando
Pessoa produziu um reflexo, uma imagem, seu heternimo Ricardo Reis, que reflete a obra de
Horcio; Saramago, em contato com essa imagem, cria uma nova, o Reis-personagem; o
leitor, ao se deparar com esses diferentes reflexos, por meio da imaginao, espelha novas
imagens, em um contnuo processo de mise en abme, ou seja, de gerar fico na fico, como
destaca Simas-Almeida (1998).
Tivemos por objetivo, nessa pesquisa, entrar nesse jogo de composio de imagens
para compreender como o homem Ricardo Reis interage com as diversas situaes do
cotidiano (filosofia de vida, amor, mulheres, ptria, religio, liberdade, vida, morte, passagem
do tempo etc.), por meio de seus poemas, e comparar essa imagem de homem no mundo com
aquela recriada por Saramago em seu romance, momento em que o heternimo pessoano sai
da serenidade da Antigidade e se v inserido em uma realidade diferente daquela imvel e
tranqila que retrata em suas odes: revolues, guerras, polcia, paixes, desejos, solido,
decepo, filhos, decises. Devido a essa insero em um momento histrico e em meio a
acontecimentos que exigem de si mais que observar, o Reis-saramagueano no consegue se
manter impassvel, espectador.

112

Enquanto o Reis-pessoano, de acordo com Perrone-Moiss (1988), contempla


distncia o que est sua volta como um quadro imvel, sempre repetvel as estaes, o
mar, as flores, o vento, a vida, os deuses so sempre os mesmos e procura ver claramente
at deixar de ver as formas, os objetos, enfim, aquilo que lhe exterior, o Reissaramagueano se encontra envolvido por um turbilho de informaes que lhe chegam por
meio dos jornais, por uma multido em busca da ajuda do governo, que acompanha um
enterro, que assiste ao comcio ou que vai em romaria a Ftima, por espanhis que enchem ao
hotel Bragana, fugindo da guerra civil, por um governo ditadorial que investiga sua vida e
por mulheres que requerem seus pensamentos e seus sentimentos. Diante disso, a personagem
passa a olhar para seu interior, demonstra interesse, curiosidade, desejo, esperana, simpatia,
medo, insegurana, amor, desiluso, solido. O homem que procurava se manter alheio ao
espetculo do mundo acaba se tornando personagem dele.
H uma diferena, portanto, crucial entre o poeta e o protagonista do romance: o dizer
e o sentir. O poeta fala de mulheres, de solido, de no amar nem ser amado, de ser dono de
si, de conhecer as coisas, os seres. O Reis do romance diz ser necessrio conversar, deitar-se
com as mulheres, fazer-lhes filhos para conhec-las realmente; a solido algo que pesa e no
cabe em palavras, preciso agentar estar s; percebe que sua vida no teve sentido ao
entender que no amou nem foi amado, no deixou algo de seu no mundo; no consegue se
reconhecer fisicamente (fitar-se no espelho e ver seu rosto) ou psicologicamente, pois no
capaz de se enxergar no que escreveu em tempos anteriores.
Podemos afirmar, portanto, que Saramago trata os assuntos das odes do Reis-poeta
narrativamente em seu romance e coloca a sua personagem a refletir sobre o que foi dito
poeticamente por meio da vivncia de eventos narrativos que contradigam o verbo potico.
Ao passo que o Reis pessoano prope gestos estticos, que considera inteis, como por flores
na jarra, coroar-se com rosas, jogar xadrez, para solucionar os problemas, o Reis
saramagueano torna prosaico o heternimo, confrontando a vivncia esttica refletida nos
poemas com o enfrentar a realidade cotidiana, com guerras, amores, pessoas, questes reais
que precisam de sua interferncia. Diante disso, vemos, nos poemas, um homem que acredita
no valer a pena fazer um gesto; no romance, temos um homem que se pergunta Quando foi
que vivi, que reflete, avalia sua vida e entende que o vazio que est dentro de si justamente
pela falta de realizar os pequenos gestos cotidianos, os quais fazem a real diferena e do
sentido existncia.
Alm de Ricardo Reis, outro elemento narrativizado, de modo irnico e parodstico,
Fernando Pessoa, ao aparecer no romance como um fantasma desmemoriado, que j no pode

113

ler, de calas curtas, sem culos, a refletir sobre sua vida e a julgar as aes de Reis, dizendo
que mesmo para os mortos no possvel ficar indiferente ao que acontece todos os dias. Isso
vem contradizer a figura de um Pessoa alheio ao momento histrico em que viveu. Junte-se a
isso o fato de Fernando Pessoa-fantasma ter oito meses, quando chega Reis a Portugal, para
perambular por Lisboa e ir se desligando aos poucos do mundo dos vivos, ou melhor, para os
vivos irem se esquecendo daquele que morreu, o grande poeta do sculo XX.
Conclui-se, ao fim dessa pesquisa, que o poeta Reis se difere da personagem
romanesca recriada por Saramago quanto ao modo de se relacionar com o mundo. PerroneMoiss (1998) salienta que a literatura, ao contrrio da Histria, no se ocupa somente do
passado, mas composta de passado e presente, porque os acontecimentos voltam a ocorrer a
cada leitura e, dessa forma, h uma releitura do passado com os olhos do presente. o que faz
Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis: deixa-se afetar pelo passado, pela tradio
literria que Fernando Pessoa representa, ao que acrescenta elementos do seu prprio
horizonte de expectativa (SOARES, 2004), preenche os espaos vazios no momento da
recepo da obra do heternimo, complementando, continuando ou modificando o que j era
consagrado, do que resulta uma nova forma de se ler Ricardo Reis: narrativizado.

114

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118

ANEXO

119

MESTRE, so plcidas
Todas as horas
Que ns perdemos,
Se no perde-las,
Qual numa jarra,
Ns pomos flores.
No h tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sbios incautos,
No a viver,
Mas decorr-la,
Tranqilos, plcidos,
Tendo as crianas
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...
beira-rio,
beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
No nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
No vale a pena
Fazer um gesto.
No se resiste
Ao deus atroz
Que os prprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma tambm.
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

120

OS DEUSES desterrados.
Os irmos de Saturno,
s vezes, no crepsculo
Vm espreitar a vida.
Vm ento ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
a presena deles,
Deuses que o destron-los
Tornou espirituais,
De matria vencida,
Longnqua e inativa.
V, inteis foras,
Solicitar em ns
As dores e os cansaos,
Que nos tiram da mos,
Como a um bbedo mole,
A taa da alegria.
Vm fazer-nos crer,
Despeitadas runas
De primitivas foras,
Que o mundo mais extenso
Que o que se v e palpa,
Para que ofendamos
A Jpiter e a Apolo.
Assim at beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
E o poente tem cores
Da dor dum deus longnquo,
E ouve-se o soluar
Para alm das esferas...
Assim choram os deuses.

COROAI-ME de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
To cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

121

O DEUS P no morreu,
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres
Cedo ou tarde vereis
Por l aparecer
O deus P, imortal.
No matou outros deuses
O triste deus cristo.
Cristo um deus a mais,
Talvez um que faltava.
P continua a dar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.
Os deuses so os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por ns,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propsito casual.

VEM SENTAR-TE comigo, Ldia, beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e no estamos de mos enlaadas.
(Enlacemos as mos).
Depois pensemos, crianas adultas, que a vida
Passa e no fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o p do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mos, porque no vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, que no gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem dio, nem paixes que levantam a voz,
Nem invejas que do movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranqilamente, pensando que podamos,
Se quisssemos, trocar beijos e abraos e carcias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao p um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

122

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as


No colo, e que o seu perfume suavize o momento
Este momento em que sossegadamente no cremos em nada,
Pagos inocentes da decadncia.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-s de mim depois
Sem que a minha lembrana te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaamos as mos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianas.
E se antes do que eu levares o bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-s suave memria lembrando-te assim beira-rio.
Pag triste e com flores no regao.

AO LONGE os montes tm neve a sol,


Mas suave j o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
Hoje, Neera, no nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
No esperamos nada
E temos frio ao sol.
Mas tal como , gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.

S O TER flores pela vista fora


Nas leas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.
De todo o esforo seguremos quedas
As mos, brincando, pra que nos no tome
Do pulso, e nos arraste.
E vivamos assim,
Buscando o mnimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translcidos como gua
Em taas detalhadas,
Da vida plida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rpidas carcias
Dos instantes volveis.

123

Pouco to pouco pesar nos braos


Com que, exilados das supernas luzes,
Scolhermos do que fomos
O melhor pra lembrar
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraos do horror estgio,
E o regao insacivel
Da ptria de Pluto.

A PALIDEZ do dia levemente dourada.


O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos dos ramos secos.
O frio leve treme.
Desterrado da ptria antiqssima da minha
Crena, consolado s por pensar nos deuses,
Aqueo-me trmulo
A outro sol do que este.
O sol que havia sobre o Partnon e a Acrpole
O que alumiava os passos lentos e graves
De Aristteles falando.
Mas Epicuro melhor
Me fala, com a sua cariciosa voz tereestre
Tendo para os deuses uma atitude tambm de deus,
Sereno e vendo a vida
distncia a que est.

NO TENHAS nada nas mos


Nem uma memria na alma,
Que quando te puserem
Nas mos o bolo ltimo,
Ao abrirem-te as mos
Nada te cair.
Que trono te querem dar
Que tropos to no tire?
Que louros que no fanem
Nos arbtrios de Minos?
Que horas que te no tornem

124

Da estatura da sombra
Que sers quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E s rei de ti prprio.

SBIO o que se contenta com o espetculo do mundo,


E ao beber nem recorda
Que j bebeu na vida,
Para quem tudo novo
E marcescvel sempre.
Coroem-no pmpanos, ou heras, ou roas volteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta flor como a ele
De tropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgaco
Apague o gosto s horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase a bebedor tranqilo,
E apenas desejando
Nem desejo mal tido
Que a abominvel onda
O no molhe to cedo.

AS ROSAS amo dos jardins de Adnis,


Essas volucres amo, Ldia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas eterna, porque
Nascem nascido j o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visvel.
Assim faamos nossa vida um dia,
Inscientes, Ldia, voluntariamente
Que h noite antes e aps
O pouco que duramos.

125

CUIDAS, NVIO, que cumpres, apertando


Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem iluso a vida.
A tua lenha s peso que levas
Para onde no tens fogo que te aquea,
Nem sofrem peso aos ombros
As sombras que seremos.
Para folgar no folgas; e, se legas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem tambm dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cansa, o outro no nosso.
De ns a mesma fama
Ri-se, que a no veremos
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
O barco escuro no soturno rio,
E os novos abraos da frieza stgia
E o regao insacivel
Da ptria de Pluto.

NO CONSENTEM os deuses mais que a vida.


Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespirveis pncaros,
Perenes sem ter flores.
S de aceitar tenhamos a cincia,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, s luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
S mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.

DA NOSSA semelhana cm os deuses


Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.
Altivamente donos de ns-mesmos,
Usemos a existncia
Como a vila que os deuses nos concedem
Para esquecer o estio.
No de outra forma mais apoquentada

126

Nos vale o esforo usarmos


A existncia indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
Como acima dos deuses o Destino
calmo e inexorvel,
Acima de ns-mesmos cosntruamos
Um fado voluntrio
Que quando nos oprima ns sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso p entremos.

S ESTA liberdade nos concedem


Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domnio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque s na iluso da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possudo
Convencimento antigo
De que divina e livre a sua vida.
Ns, imitando os deuses,
To pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses sabero agradecer-nos
O sermos to como eles.

AQUI, NEERA, longe


De homens e de cidades,
Por ningum nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.
Bem sei, flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E no temos a mo
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes do Averno.
Mas aqui no nos prendem

127

Mais coisas do que a vida,


Mos alheias no tomam
Do nosso brao, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.
No nos sentimos presos
Seno com pensarmos nisso,
Por isso no pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que a iluso que agora
Nos torna iguais dos deuses.

O MAR JAZ; gemem em segredo os ventos


Em Eolo cativos;
S com as pontas do tridente as vastas
guas franze Netuno;
E a praia alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razo nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indcio
Trs ondas o apagam,
Que me far o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

ANTES DE NS nos mesmos arvoredos


Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas no falavam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
No fazemos mais rudo no que existe
Do que as folhas das rvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assduo
Entregar nosso esforo Natureza
E no querer mais vida
Que a das rvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo ns nada pelo mundo fora
Nos sada a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, beira-mar, o meu indcio
Na areia o mar com ondas trs o apaga,

128

Que far na alta praia


Em que o mar o Tempo?

ANJOS OU DEUSES, sempre ns tivemos,


A viso perturbada de que acima
De ns e compelindo-nos
Agem outras presenas.
Como acima dos gados que h nos campos
O nosso esforo, que eles no compreendem,
Os coage e obriga
E eles no nos percebem,
Nossa vontade e o nosso pensamento
So as mos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem
E ns no desejamos.

TIREM-ME os deuses
Em seu arbtrio
Superior e urdido s escondidas
O Amor, glria e riqueza
Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A conscincia lcida e solene
Das coisas e dos seres.
Pouco me importa
Amor ou glria,
A riqueza um metal, a glria um eco
E o amor uma sombra.
Mas a concisa
Ateno dada
s formas e s maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.
Seus fundamentos
So todo o mundo,
Seu amor o plcido Universo,
Sua riqueza a vida.
A sua glria
a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos
O resto passa,
E teme a morte.
S nada teme ou sofre a viso clara

129

E intil do Universo.
Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
At deixar de ver.

BOCAS ROXAS de vinho,


Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraos,
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Ldia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na conscincia dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia de negra poeira
Que erguem das estradas.
S os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

OUVI CONTAR que outrora, quando a Prsia


Tinha no sei qual guerra,
Quando a invaso ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contnuo.
sombra de ampla rvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversrio.
Um pcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros cados,
Traspassadas de lanas, as crianas
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longo do seu rudo,

130

Os jogadores de xadrez jogavam


O jogo do xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distncia prxima,
Inda que, no momento em que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiana
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim est em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irms e das mes e das crianas?
Quando a torre no cobre
A retirada da rainha branca.
O saque pouco importa.
E quando a mo confiada leva o xeque
Ao rei do adversrio,
Pouco pesa na alma que l longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogado solene de xadrez,
O momento antes desse
( ainda dado ao clculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indifrentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida
Os haveres tranqilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peo mais avanado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com ns-prprios que com ele,
Aprendamos na histria
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que srio pouco nos importe,

131

O grave pouco pese,


O natural impulso dos instintos
Que ceda ao intil gozo
(sob a sombra tranqila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida intil
Tanto vale se
A glria, a fama, o amor, a cincia, a vida,
Como se fosse apenas
A memria de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glria pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque a srio e busca,
A cincia nunca encontra,
E a vida passa e di porque o conhece...
O jogo de xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois no nada.
Ah! sob as sombras que sem qurer nos amam,
Com um pcaro de vinho
Ao lado, e atentos ao intil faina
Do jogo de xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E no haja parceiro,
Imitemos os persos desta histria,
E, enquanto l fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a ptria e a vida
Chamam por ns, deixemos
Que em vo nos chamem, cada um de ns
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferena.

PREFIRO ROSAS, meu amor, ptria,


E antes magnlias amo
Que a glria e a virtude.
Logo que a vida me no canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa quele a quem j nada importa
Que um perca e outro vena,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a primavera

132

As floras aparecem
E com o outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo da indifrena
E a confiana mole
Na hora fugitiva.

SEGUE o teu destino,


Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto a sombra
De rvores alheias.
A realidade
Sempre mais ou menos
Do que ns queremos.
S ns somos sempre
Iguais a ns-prprios.
Suave viver s.
Grande e nobre sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
V de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Est alm dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu corao.
Os deuses so deuses
Porque no se pensam.

SEGURO ASSENTO na coluna firme


Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e arte o mundo
Cria, que no a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.

133

DIA APS DIA a mesma vida a mesma.


O que decorre, Ldia,
No que ns somos como em que no somos
Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
Nunca sendo colhido.
Igual o fado, quer o procuremos,
Que o speremos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencvel.

MELHOR DESTINO que o de conhecer-se


No frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Se no houver em mim poder que vena
As Parcas trs e as moles do futuro,
J me dem os deuses
O poder de sab-lo;
E a beleza, incrivel por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.

TO CEDO PASSA tudo quanto passa!


Morre to jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo to pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais nada.

PRAZER, mas devagar,


Ldia, que a sorte queles no grata
Que lhe das mos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
No despertemos, onde dorme, a Ernis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Ldia. Emudeamos.

COMO SE cada beijo


Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que j nos toque
No ombro a mo, que chama

134

barca que no vem seno vazia;


E que no mesmo feixe
Ata o que mtuos fomos
E a alheia soma universal da vida.

TUAS, NO MINHAS, teo estas grinaldas,


Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu no vejo.
Se no pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos unssonos sorte
Que houver, at que chegue
A hora do barqueiro.

OLHO os campos, Neera,


Campos, campos, e sofro
J o frio da sombra
Em que no terei olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei no sentindo,
Ou s quanto o que ignoro
Me incgnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro,
Sbdito ausente e nulo
Do universal destino.

O SONO BOM pois despertamos dele


Para saber que bom. Se a morte sono
Despertaremos dela;
Se no, e no sono.
Conquanto em ns nosso a refusemos
Enquanto em nossos corpos condenados
Dura, do carcereiro,
A licena indecisa.
Ldia, a vida mais vil antes que a morte,
Que desconheo, quero; e as flores colho
Que te entrego, votivas
De um pequeno destino.

135

O RASTRO breve que da erva mole


Ergue o p findo, o eco que oco ca,
A sombra que se adumbra,
O branco que a nau larga
Nem maior nem melhor deixa a alma s almas,
O ido aos indos. A lembrana esquece.
Mortos, inda morremos.
Ldia, somos s nossos.

NOS ALTOS RAMOS das rvores frondosas


O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido nem a alma
Com que penso sozinho.

QUANDO, LDIA, vier o nosso outono


Com o inverno que h nele, reservemos
Um pensamento, no para a futura
Primavera, que de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Seno para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

NO S quem nos odeia ou nos inveja


Nos limita e oprime; quem nos ama
No menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos pncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
livre; quem no tem, e no deseja,
Homem, igual aos deuses.

NO QUERO, Cloe, teu amor, que oprime


Porque me exige amor. Quero ser livre.
A sperana um dever do sentimento.

NO MUNDO, s comigo, me deixaram


Os deuses que dispem.

136

No posso contra eles, o que deram


Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quanto
O vento cessa, ergue-se.

AZUIS OS MONTES que esto longe param.


De eles a mim o vrio campo ao vento, brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Dbil como uma haste da papoila
Meu suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrpulo do pensamento
Na balana da vida?
Como os campos, e vrio, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado o Caos e da Noite
s frias em que existo.

LDIA, IGNORAMOS. Somos estrangeiros


Onde que quer que estejamos.
Ldia ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo alheio
Nem fala lngua nossa.
Faamos de ns mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tmidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que no ser dos outros?

NINGUM a outro ama, seno que ama


O que de si h nele, ou suposto.
Nada te pese que no te amem. Sentem-se
Quem s, e s estrangeiro.
Cura de ser quem s, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrers avaro
De penas.

NADA FICA de nada. Nada somos.


Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirvel treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadveres adiados que procriam.
Leis feitas, esttuas vistas, odes findas
Tudo tem cova sua. Se ns, carnes
A que um ntimo sol d sangue, temos

137

Poente, por que no elas?


Somos contos contando contos, nada.

QUERO ignorado, e calmo


Por ignorado, e prprio
Por calmo, encher meus dias
De no querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
Aos que a felicidade
sol, vir a noite.
Mas ao que nada spera
Tudo que vem grato.

UNS, COM OS OLHOS postos no passado,


Vem o que no vem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vem
O que no pode ver-se.
Por que to longe ir pr o que est perto
A segurana nossa? Este o dia,
Esta a hora, este o momento, isto
quem somos, e tudo.
Perene flui a interminvel hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque s ele.

MEU GESTO que destri


A mole das formigas,
Tom-lo-o elas por de um ser divino;
Mas eu no sou divino para mim.
Assim talvez os deuses
Para si o no sejam.
E s de serem do que ns maiores
Tirem o serem deuses para ns.
Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, no sejamos
Inteiros numa f talvez sem causa.

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