Sandra Maria Pastro PDF
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Sandra Maria Pastro PDF
So Paulo
2008
So Paulo
2008
DEDICATRIA
AGRADECIMENTOS
Profa. Dra. Cludia de Arruda Campos, pela dedicao, apoio, incentivo, vigilncia e
imprescindvel orientao durante todo o processo de tessitura deste trabalho.
Aos professores Zenir Campos Reis e Maria Clia Rua de Almeida Paulilo, membros da
banda de Qualificao, pela leitura cuidadosa, crticas e sugestes que tentei aqui incorporar.
Aos eternos amigos Mrcio Moraes, pelo incentivo inicial, estmulo reflexo crtica e
carinho permanente, e Lus de Mattos Alves, pela amabilidade constante, ternura e preciosos
auxlios.
querida amiga Maria da Graa Salles Godoy Drigo, pelo carinho e competncia no
trabalho de reviso do texto e por tudo que aprendi, no pouco tempo em que trabalhamos
juntas.
generosa amiga Regina Clia Kalume Hidd Kondo, pelo apoio especial, gentilezas e
grandeza de alma.
As minhas amadas e insubstituveis irms, Sara e Sonale, pela compreenso, debates, apoios
bibliogrficos, pacincia e, principalmente, pelo sentido que sempre deram minha vida.
A meu querido Marcelo, que tanto fez pelo meu corao e esprito, agradeo as conversas
carinhosas, a doura dispensada quando me encontrava triste e cansada, as risadas preciosas,
o apoio tcnico e, principalmente, o amor.
E, finalmente, a meus pais, por seu amor eterno, generosidade, carinho, compreenso, doce
presena e incansvel estmulo.
RESUMO
PASTRO, S. M. Os folhetins de Nelson Rodrigues: um universo de obsesses em fatias
parcimoniosas. 2008. 226f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que se debruou sobre um vis
ainda pouco estudado da expresso de Nelson Rodrigues: seus textos folhetinescos. Buscouse localizar, identificar e caracterizar, nos folhetins escritos para os jornais nas dcadas de
1940 e 1950, a estrutura teatral de Nelson Rodrigues em germe. Adentrando o terreno da
experincia cotidiana e da circunstncia nacional, procuramos discutir a conexo desse tipo
de literatura com o momento histrico e o papel reproduzido por elas nas formas de pensar as
relaes sociais do momento de sua divulgao. A partir das dimenses cotidianas captadas
no Brasil de 1940, refletiu-se especialmente sobre as representaes sociais reproduzidas nos
enredos criados por Nelson Rodrigues na pele de Suzana Flag e Myrna, discutindo com mais
nfase o retrato da mulher e do casamento, dentro de uma sociedade conservadora. Buscouse, ainda, fixar as constantes temticas dos textos do dramaturgo e seus posteriores
desdobramentos. Paralelamente, ensejou-se vislumbrar as necessidades do homem moderno
de absorver mundos imaginrios por elas erigidos e discutir o fenmeno de leitura que tais
obras representaram. Para tanto, abrangeu-se desde suas experincias como reprter policial
no jornal do pai, Mario Rodrigues, at suas experincias femininas como folhetinista em
jornais da poca (O Jornal, Crtica, O cruzeiro) e posteriores prticas como dramaturgo e
cronista. Foram analisados os folhetins Meu destino pecar (1944); Escravas do amor
(1944); Minha vida (1946); Npcias de Fogo (1948) e O homem proibido ( 1951), escritos
sob o pseudnimo de Suzana Flag;
relacionando-os com alguns contos da coluna diria A vida como ela ... (1951-1961) e
algumas de suas peas teatrais. Por fim, buscou-se verificar o que os folhetins A mentira
(1953) e Asfalto Selvagem (1959-60) revelam da atmosfera obsedante das composies
rodriguianas.
Palavras-chave
Nelson Rodrigues, Suzana Flag, Myrna, folhetim, Literatura Comparada.
ABSTRACT
This work shows the results of a search whose focuses was a point of view of a little
bit explored Nelson Rodriguess expression: his feuilletons texts. First of all, we tended to
localize, to identify and to characterize in the feuilletons written for the newspapers during
the 40s and the 50s the Authors dramatic structure. Into the quotidian experience subject and
the national scenery, we tried to discuss the connexion between this kind of literature and the
historical situation, and their reproductions on the social thoughts and relationships in the
moment of publication. From the quotidian dimension founded in Brazil of the 40s we have
thought especially about the social representations brought in the intrigues created by
Rodrigues using his female pseudonyms Suzana Flag and Myrna, discussing with more
emphasis the womanhood and the states of the marriage into a conservatory society. May
further purpose to fix the constantly dramatists set of themes and his posterior evolution.
Drawing a parallel, tented to show the modern man needs in assimilate imaginary worlds
created by this impetus and to discuss the phenomenon of literature which this works meant.
For this, the studies embraced since Rodriguess experiences as a journalist in Mario
Rodriguess his father publications, until his female experiences as writer in journals
from that time (O Jornal, Crtica, O cruzeiro), and the posterior practices as a dramatist and
chronicler. It was analysed the feuilletons Meu destino pecar (1944); Escravas do amor
(1944); Minha vida (1946); Npcias de Fogo (1948) and O homem proibido ( 1951), written
under Suzana Flags pseudonym; A mulher que amou demais (1949), written under Myrnas
pseudonym, connecting them with the daily column A vida como ela ... (1951-1961) and
some plays for theatre. At the end, we tended to observe what the feuilletons A mentira
(1953) and Asfalto Selvagem (1959-60) disclose about Rodriguess universe.
Keywords
Nelson Rodrigues, Suzana Flag, Myrna, feuilletons.
SUMRIO
1. Introduo
21
27
40
59
68
83
110
179
185
9.Consideraes Finais
212
218
1. Introduo
Muito j se sondou a respeito de uma definio exata do gnero a que
modernamente se convencionou chamar romance-folhetim. Desde seu surgimento,
institutos acadmicos, escritores e crticos vieram tentando, sem muito xito, resolver essa
questo. Gnero escorregadio, porque voluntarioso; texto literrio desmedido, porque
composto de muitos assuntos e idias; o romance-folhetim nunca teve sua natureza
determinada de modo eficaz.
Jos de Alencar, que algumas vezes, ao correr da pena, arriscou delimitar sentido
exato do termo, chegou concluso pouco satisfatria:
uma felicidade que no me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem
foi o inventor deste monstro de Horcio, deste novo Proteu, que chamam folhetim;
seno aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias s avessas, e
escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as anotaes jeito ter um inferno no
purgatrio onde necessariamente deve estar o inventor de to desastrada idia. (...)
De um lado um crtico, alis de boa-f, de opinio que o folhetinista inventou em
vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crnica. Outro afirma
que plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se no disse a mesma coisa, teve
inteno de dizer, porque, enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa sria, a
amvel leitora amarrota o jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente
a que impossvel resistir. (...) Nada, isto no tem jeito! preciso acabar de uma
vez com semelhante confuso, e estabelecer a ordem nestas coisas. (...) O poeta
glosa o mote, que lhe do, o msico fantasia sobre um tema favorito, o escritor
adota um ttulo para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim que h de sair
fora da regra geral, e ser uma espcie de panacia, um tratado de omni scibili et
possibili, um dicionrio espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas
mais? Enquanto o Instituto de Frana e a Academia de Lisboa no concordarem
numa exata definio do folhetim, tenho para mim que a coisa
1
impossvel.(ALENCAR, Jos; apud MEYER, 1992, p.131)
ALENCAR, Jos de. Crnicas publicadas no "Correio Mercantil", de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de
1855, e no "Dirio do Rio", de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio
de Janeiro).
Ian Watt, no livro A ascenso do Romance, defende a idia de que o surgimento do romance, assim como o
do jornalismo, tem ligaes com as mudanas na natureza e na organizao do pblico leitor. Para ele, ...a
mudana do centro de gravidade do pblico leitor provocou um efeito geral interessante para o surgimento do
romance. O fato de a literatura do sculo XVIII se dirigir a um pblico mais amplo deve ter diminudo a
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que parecem. Tania Rebelo Costa Serra (1997, p.13), em introduo crtica Antologia do
Romance-folhetim, defende a opinio de que muitas estruturas narrativas e temticas
encontradas nesse tipo de romance so heranas deixadas pela Antigidade Clssica.
Fundamentando seus apontamentos em autores como Christian Zimmer, Tomas Hgg, Paul
Zumthor, entre outros, a autora nos oferece um panorama bastante peculiar a respeito da
genealogia folhetinesca. Para ela, o romance-folhetim apresentaria como ancestral mais
antigo a egpcia fico romanesca do sculo III a. C, bastante rudimentar e totalmente mtica.
Mas, na civilizao grega que a professora Tania Rebelo cr que os primeiros motivos
recorrentes do romance-folhetim se fizeram perceptveis3. Na epopia clssica de Homero,
por exemplo, ela identifica elementos que mais tarde fertilizariam a chamada epopia
burguesa e, conseqentemente, o romance-folhetim, tais como longas peripcias, penosas
aventuras, perigos aterradores, heris astuciosos e amores perenes.
H quem entenda ser o folhetim filho de uma poca de grandes mudanas sociais,
culturais e financeiras, provocadas pela consolidao do capitalismo (perodo de gnese e
desenvolvimento das chamadas classes laboriosas). Nesse caso, duas vertentes antagnicas se
configuram. De um lado, temos os intelectuais que vem o folhetim apenas como uma forma
de alienao e conteno dos anseios de liberdade da massa operria que emergia. Para esses,
o pior testemunho em favor de uma obra de arte seria o entusiasmo com que a massa a
recebe. De outro lado, temos estudiosos que defendem a idia de que o folhetim fora
relativa importncia daqueles leitores que dispunham de instruo e tempo ocioso suficientes para se interessar,
profissional ou semiprofissonalmente, pelas letras clssicas e modernas; e em contrapartida deve ter aumentado
a importncia relativa daqueles que desejavam uma forma mais fcil de entretenimento literrio, ainda que
gozasse de menor prestgio entre os intelectuais. (Watt, 1990: 45).
3
Vale reproduzir aqui parte da citao feita pela Professora Tania Rebelo Costa a respeito dos romances da
Idade Mdia feita por P.Zumthor em A letra e a voz pp. 265 e ss,: O romance surgiu, com efeito, por volta
de 1160-1170, na juno da oralidade e da escritura. Logo de sada colocado por escrito, transmissvel apenas
pela leitura, (...), o romance recusa a oralidade das tradies antigas, que terminaro, a partir do sculo XV,
marginalizando-se em cultura popular.(...) Os romances em prosa do sculo XII, tanto Lancelot francs
quanto o Tristano italiano ou a Demanda portuguesa, mostram-se como projeo de um conto, ao mesmo
tempo narrador impessoal e fonte do relato (...) o romance em prosa tende a acabar em tragdia(p.16).
11
12
pensamentos de sua poca. Isso nos conduziria, por conseguinte, idia de que toda
produo intelectual (inclusive o romance-folhetim) estaria merc do iderio dominante,
capaz de legitimar suas necessidades como sendo tambm as necessidades dos dominados,
forjando, portanto, a iluso histrica de que cada poca social resultaria no de determinados
interesses materiais de uma nica classe, mas das necessidades compartilhadas por todos.
J os intelectuais partidrios da outra linha terica tomam a essncia fabulativa do
folhetim como um fenmeno espontneo, proveniente da expresso popular, pois vem no
povo a origem da produo cultural.
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14
Martn-Barbero argumenta ainda que aqueles que tomam o folhetim como cilada
populista, ou mesmo desprezveis artimanhas comerciais, parecem desconhecer as
contradies do momento histrico em que tal gnero eclodiu, bem como a marca que tais
contradies sociais deixaram na sua prpria estrutura. Defende o crtico que, atravs dessa
categoria literria, possvel designar um certo funcionamento social das narrativas, ou
seja, um funcionamento capaz de ultrapassar as condies de produo e as de consumo. Os
romances-folhetins no seriam, segundo ele, meros mecanismos literrios; antes, estariam
situados no mbito da antropologia e da sociologia cultural.
Esse entendimento no nega, contudo, que os produtos voltados s massas (como o
foi o folhetim) se integrem noutra modalidade cultural, dotada de uma valorao
diferenciada. Seria ilegtimo negar, por exemplo, pelas caractersticas patentes do gnero, sua
ligao intrnseca com a reorganizao cultural fomentada pelas conseqncias advindas da
industrializao. Mesmo Martn-Barbero, concordando com os ensinamentos de Umberto
Eco (1991), no nega a existncia de mecanismos que articulam o folhetim como uma
cadeia de montagem de gratificaes contnuas, pois tambm ele cr que os contedos, por
adequarem-se ao gosto do leitor mdio, auxiliam na converso do romance popular em cone
de consolao e apaziguamento.
Releg-lo a segundo plano, porm, ignorando a importncia histrica que
desempenhou junto s classes operrias e nova realidade social configurada aps a
industrializao, seria, no mnimo, imprudente. Defende Barbero (posicionamento este, vale
deixar claro, que nos parece bastante fundamentado, tendo-se em conta a poca e
circunstncias de aparecimento do gnero e o modo como ele se manteve presente na
histria) que a mesma lgica mercantil responsvel pelo desprestgio do gnero o que
situa o folhetim no mbito da reconciliao das classes e a reabsoro das diferenas
sociais:
15
16
folhetim ter sido uma das formas assumidas pelo romance para atender s demandas da
massa e, como tal, estar intimamente atrelado ao povo. Da igualmente a opinio de que
somente o conturbado e laborioso cotidiano do operariado francs teria sido capaz de
propiciar as reais condies para o desenvolvimento e perpetuao do gnero em questo.
Da tambm o folhetim ter sido tomado como demonstrao incontida da massa e para a
massa, ainda que tenha acabado por assumir um vis de consolao, contrrio aos interesses
das classes proletrias. Da, por fim, sua importncia junto ao processo evolutivo da
sociedade.
****
Os folhetins de Nelson Rodrigues, autor que nos interessa particularmente, tanto
podem ser considerados meros artefatos voltados para a manipulao de idias e conceitos
preestabelecidos, quanto podem ser apreciados como produtos resultantes do perodo
histrico e da situao cultural em que estava inserido o autor. Verdade que caractersticas
para serem tomados como simples produtos mercantis no lhes faltam, como veremos
adiante. Julg-los somente por esse prisma, contudo, seria desconsiderar a importante atuao
que tais obras tiveram na caracterizao histrica do universo cotidiano que a elas imprimiu
seu estilo.
Por isso, mais do que imputar traos positivos e expressivos literatura de massa
escrita por Nelson Rodrigues, ou desmerec-las com crticas severas, quisemos estabelecer
aqui inter-relaes entre as diversas modalidades de expresso trabalhadas por ele (folhetim,
teatro, crnicas, memrias e confisses), destacando as convergncias nos procedimentos
utilizados para o desenvolvimento esttico-literrio de sua dramaturgia e de seus folhetins,
sem revogar, entretanto, as caractersticas prprias ou esquecer o valor intrnseco de cada
uma delas.
O intuito, entretanto, no foi somente o de se deter nas semelhanas puras e simples
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entre uma e outra expresso literria, mas o de verificar de que modo essas produes
ajudaram a construir a essncia literria de nosso dramaturgo e o universo polmico de sua
obra.
Para a realizao de tais incurses, tomamos como apoio a intertextualidade, uma
vez que as obras analisadas demonstram um trabalho de transformao e assimilao de
vrios contextos comuns capazes de oferecer um sentido unificador entre elas.
Fundamentando nossa pesquisa na busca de pontos convergentes entre as literaturas de
Nelson Rodrigues e de seus pseudnimos (Suzana Flag e Myrna), buscamos dar uma viso
concreta dos caminhos percorridos por Nelson dentro do espao histrico de que fez parte. A
partir de possveis cruzamentos entre obra e experincia de vida adquirida, procuramos
encontrar as nuances culturais registradas em seus folhetins e sua dramaturgia e verificar o
entrecruzamento possvel entre elas.
Certas aproximaes foram conseguidas pela falta de fronteiras bem definidas entre
os vrios estilos por ele trabalhados, pela interferncia de experincias pessoais dentro da
estruturao dos enredos e pelo contato entre os procedimentos bsicos e comuns de suas
composies, tais como o uso reiterado de elementos romanescos e efeitos melodramticos; a
repetio de temticas como o amor, o adultrio, o incesto e a morte; o estabelecimento do
exagero amplificador e dos aspectos obsessivos; o modo como organiza os enredos; o uso
de tcnicas comuns ao mundo das histrias fatiadas e melodramas e, por fim, a autoimitao.
Os materiais utilizados para essa investigao advieram de diversas fontes, tais
como livros, artigos publicados em jornais e outros peridicos, estudos divulgados em
revistas eletrnicas, trabalhos acadmicos (dissertaes de mestrado e doutorado),
depoimentos (incluindo um do prprio autor), filmes, minissries, isso sem falar das crnicas,
memrias e confisses selecionadas e reunidas em livros pelo bigrafo de Nelson Rodrigues,
18
Ruy Castro.
Antes de nos aprofundarmos nos folhetins de Nelson, trilhamos uma trajetria
diacrnica sobre o surgimento e consagrao do gnero folhetinesco, buscando suas origens
histricas e os seus desdobramentos. Com o captulo As origens do folhetim como gnero e
seus desdobramentos no Brasil apreendemos o momento histrico em que os folhetins se
edificaram e os caminhos de seu desenvolvimento e consolidao. Isso nos ajudou a encarar
com menos prejuzo o campo da estigmatizada cultura de massas.
Fez-se necessrio, ento, entender como o gnero atravessou o oceano e se edificou
Brasil adentro, para, s depois, abeirar-se de Nelson Rodrigues. Com o tpico O folhetim no
Brasil, procuramos entender a confuso a que se refere acepo definitiva da palavra
folhetim em solo brasileiro e, posteriormente, observar o florescimento do gnero em
mbito nacional e sua recepo nas dcadas de 40 e 50, ocasio em que eclodiram os
folhetins nelsonrodriguianos.
Em seguida, no captulo chamado A eterna simpatia pela fico e realidade
romanceada, voltamo-nos para uma aproximao entre a crnica, o folhetim, o fait divers e
o melodrama, todos gneros por Nelson perpassados. Essa foi tarefa de inestimvel
importncia para ns, pois nos permitiu entender com maior clareza o universo ficcional em
que estava nosso dramaturgo mergulhado. Conhecer o encadeamento, a mobilidade e a
fruio existente entre as diferentes formas literrias nos conduziu a um outro elemento: a
vida de Nelson Rodrigues, de que nos ocupamos no captulo denominado Nelson
Rodrigues: um autor polmico.
Com Um pirata de suas prprias criaes, buscamos identificar como as
experincias individuais do autor, e vivncias de conhecidos e amigos prximos, foram por
ele tomadas de emprstimo para a consumao de suas intrigas e ajustamentos de seus
enredos.
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pblico fiel e admirvel. Ela recebera, na poca em que escrevia Meu destino pecar,
inmeras cartas por ms e suas fs chegaram a invadir a redao de O Jornal para saber o
final de um episdio no publicado em virtude de um erro por parte da grfica. Por que tanto
sucesso? O que esse folhetim revela a respeito da poca e do prprio autor? Por que atraa
tanta gente? Essas questes fizeram-nos pensar sobre o fenmeno de leitura que ela
representou e nos deu nimo para dar continuidade ao projeto.
Fez-se premente, ento, sintetizar cada uma das narrativas. Para tanto, dividimos as
obras segundo autores e, dentro dessa categoria, seguimos a ordem cronolgica em que
foram publicadas. De Suzana Flag , Meu Destino Pecar (1944), Escravas Do Amor (1944),
Minha Vida (1946), Npcias De Fogo (1948) e, por fim, O Homem Proibido (1951). De
Myrna, um romance-folhetim chamado A mulher que amou demais (1949). De Nelson
Rodrigues ele-mesmo, por sua vez, estudamos os folhetins A mentira (1953) e Asfalto
Selvagem, (1959-60).
No captulo Um universo emaranhado: gneros, procedimentos..., buscamos
desvendar os vnculos existentes entre as diversas formas de composio com que o autor
trabalhou. Explicitando as caractersticas das personagens folhetinescas e sua semelhana
com as personagens dramticas; apontamos a recorrncia de cenas, situaes e recursos
semelhantes entre o teatro e as romanescas histrias de Nelson Rodrigues; vislumbramos
ainda os aspectos estruturais anlogos, os procedimentos internos parecidos e a formulao
da lgica que conduz todas as formas narrativas do autor. Chegando um pouco mais perto,
procuramos estabelecer como a desintegrao da famlia e dos padres sociais, baseada nas
temticas do casamento e do incesto, apareceu nos diversos gneros por ele trabalhados.
Por fim, buscamos demonstrar no captulo denominado A mentira e Asfalto
Selvagem: um inventrio das obsesses compartilhadas como os entrelaamentos
desenvolvidos no captulo anterior se concretizavam na prtica.
21
2. As origens do folhetim
desdobramentos no Brasil
como
gnero
seus
mile de Girardin, pelo que possvel captar na leitura do texto de Marlyse Meyer (2005), tinha plena
conscincia do papel consolador, ou mesmo regulador que o entretenimento podia desempenhar numa
sociedade. As publicaes dos folhetins em seus jornais, alm de lhe trazerem rendimentos vultosos, acabaram
apoiando diretamente os poderes pblicos, que tentavam conter as insatisfaes que se instalaram na alma de
frustrados agitadores da Revoluo Francesa. As histrias folhetinescas, ao projetarem anseios e aspiraes,
aliviavam, pelo menos em parte, as necessidades agressivas dos insatisfeitos revolucionrios franceses.
22
reiteraes (para quem eventualmente perdeu um captulo). uma regra para o folhetinista
engendrar acontecimentos inusitados, abluir suas heronas em infinitas lgrimas, perturb-las
com anseios, sobressaltos, amores impedidos, inundar os enredos com filhos abandonados
pelos pais, mes desesperadas por encontrar suas crianas, raptos, sedues e loucuras.
Segundo Meyer (2005, p.57), que haveremos de citar continuamente, a seo
Varits - como no incio do sculo XIX era chamado o espao especfico do jornal francs
que tinha por finalidade precisa entreter leitores menos afeitos acuidade das chamadas
notcias srias fomentou o que hoje conhecemos como feuilleton6 ou, folhetim para ns.
Naquela seo, conforme a autora, captulos inteiros de romances folhetinescos dividiam
espao com todo e qualquer tipo de frivolidade. Ali, contavam-se piadas, falava-se de crimes
e de monstros, propunham-se charadas, ofereciam-se receitas de cozinhas ou de beleza,
criticavam-se as ltimas peas teatrais, anunciavam-se livros recm-sados, comentavam-se
acontecimentos corriqueiros... enfim, produziam-se textos exclusivamente destinados aos
assuntos de ordem domstica.
na dcada de 1830 que a fico folhetinesca alcana notoriedade e passa a ser fator
relevante para a comercializao e estabilidade de muitos peridicos de sucesso da poca.
Algumas narrativas ganham significncia e espao semanal exclusivo e, em pouco tempo, a
frmula das histrias fatiadas recebe um lugar de destaque nos peridicos pequenoburgueses. Somente no decorrer da dcada de 1840, no entanto, pelas mos de autores como
Alexandre Dumas, Eugne Sue, Paul Feval, Ponson du Terrail, Honor Balzac, M. Frdric
Souli, Montepin, entre outros nomes especialmente convidados por milie de Girardin para
Feuilleton, na poca do Varits, tambm era um termo genrico que designava essencialmente o espao da
disposio das matrias do jornal. Com o tempo, sua abrangncia foi sendo reduzida e ele passou a indicar tipos
de textos com caractersticas prprias, at se transformar no que hoje conhecemos como romances-folhetins. O
sucesso da frmula foi tamanho junto aos jornais da poca, que quase todos os romances passaram a ser
publicados em fatias, prejudicando temporariamente a fruio esttica encontrada em romances de volume
nico: A inveno de Dumas e Sue vai se transformar numa receita de cozinha reproduzida por centenas de
autores. A frmula tem outra conseqncia: uma nova conceituao do termo folhetim, que passa ento a
designar tambm o que se torna o novo modo de publicao do romance(MEYER,2005, p.63).
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o desenvolvimento de romances folhetinescos, que esse novo gnero textual ganha cor e
encontra sua configurao definitiva:
O passo decisivo dado quando Girardin, utilizando o que j vinha sendo
feito para os peridicos, decide publicar fico em pedaos. Est criado o mgico
chamariz continua no prximo nmero e o feuilleton-roman O Lazarillo de
Tormes foi o primeiro a receber esse tratamento, em 1836, e, logo, no fim do
mesmo ano, Girardin encomenda especialmente a um autor, Balzac, uma novela
para sair em srie, La Vieille Fille (MEYER, 2005, p.31).
Em 1849, logo aps a publicao de Os mistrios de Paris, Sue foi eleito deputado e, pouco depois, foi expulso
da Frana, acusado de incitar o levante de 1848.
24
25
Napoleo Bonaparte, a tardia Revoluo Industrial francesa, novos ricos desfilando nos
grandes boulevards iluminados a gs, e pobres operrios sendo expulsos para o subrbio de
Paris. Houve perseguies contra associaes proletrias e censura aos militantes que haviam
resistido aos massacres de 1848. Surgiu uma baixa classe mdia que, embora tambm fizesse
parte do povo, se diferenava dos proletrios por se constituir, pelo menos em sua maior
parte, de profissionais alfabetizados e independentes (costureiras, lojistas, balconistas etc.).
Os jornais da poca refletiam com nfase ainda maior a vida cotidiana das cidades e
buscavam cada vez mais atender demanda desse novo pblico (menos ignorante, mais
exigente e igualmente contestador). Obras de Paul Fval e, principalmente, de Ponson du
Terrail invadem os peridicos. H uma volta convencional receita para se produzirem
histrias em pedaos, mas, desta vez, esvaziada de teor social. Diferentes dos romances do
perodo anterior, que eram populares e, de certa forma, at igualitrios, o folhetim
pertencente era Lus Napoleo conservador e pequeno-burgus. Em cena, no mais os
heris dos espezinhados, mas os egostas, compelidos em realizar seus desejos e vontades,
como o imortal Rocambole, um heri
aventureiro a servio das mais reles causas, to safado quanto proteiforme,
cujo mau-caratismo se conjuga a uma imperturbvel audcia, atirado em
incongruentes peripcias artimanhadas por um inventivo falso visconde, um
cascatear de resfolegantes aventuras ficcionais que movimentam o imaginrio e
prolongam as pfias, irresponsveis e nada imaginrias aventuras do cotidiano
imperial. (MEYER, 2005, p.104).
O terceiro perodo, por sua vez, comea nos derradeiros anos do novecentos e tem
como principais representantes Richebourg e Xavier de Montepin. Compreende as obras
posteriores aos horrores da Comuna de Paris e do ps-guerra franco-prussiana. A Frana
estava vivendo sua Terceira Repblica, estabelecida sob o patronato industrial e o temor. A
burguesia industrial triunfava, enquanto o operariado era oprimido e massacrado pela
necessidade burguesa da obteno do lucro desmedido. Com o patronato industrial, surgiu a
militarizao da fbrica e a submisso operria. tambm o perodo em que Paris
26
romances-folhetins
dessa
terceira
fase
folhetinesca
so
ainda
mais
menosprezados que seus antecessores pelos crticos literrios e pela burguesia em ascenso,
pois, alm de serem destinados s classes populares, eram tambm escritos por provincianos
e medocres escritores. Sua rubrica mais definitivamente infamante foi, segundo Meyer, a
de romance popular:
O romance popular burgus porque conservador, porque prope
modelos burgueses de aspirao de vida, porque o responsvel pela runa do
verdadeiro esprito popular, o do Povo, visto como abstrata e divinizada
categoria.(MEYER, 2005, p.219).
27
28
que se refere acepo definitiva da palavra folhetim em mbito nacional, uma vez que o
vocbulo, desde o incio, alm de ter sido utilizado para designar o espao ocupado na
primeira pgina do jornal -como ocorria na Frana-, era empregado para nomear a maneira de
se publicarem romances e tambm para designar a forma de estrutur-los. Para esclarecer
melhor, citamos as palavras da professora Tania Rebelo:
O romance [nacional] em folhetim tem preocupaes estruturais e temticas
que diferem das do romance-folhetim, mais voltado para o grande pblico em
busca de diverso, embora esta no seja negada no romance em folhetim. A
diferena bsica est nos objetivos literrios: o romance em folhetim est sempre
atento sua organizao interna, com vistas a uma unidade da estrutura narrativa
necessria para seu valor esttico, enquanto o romance-folhetim pode ir sendo
construdo no dia-a-dia at o total esgotamento da curiosidade do pblico, o que
causa, freqentemente, falhas nessa unidade. (SERRA, 1997, p.21).
29
30
31
cidades da Corte. Marlyse Meyer, no captulo em que explora o gnero em terras brasileiras,
nos lembra bem que algumas obras folhetinescas nacionais (como Minas de Prata, por
exemplo) foram mais que pura imitao de autores franceses, uma vez que acabaram
mimetizando a realidade de ento atravs da estrutura confusa e emaranhada que
apresentaram.
No h um consenso sobre quem o verdadeiro precursor do folhetim-folhetinesco
nacional. Serra (1997, p.50) destaca duas pequenas obras: O aniversrio de Dom Miguel em
1828, de Joo Manuel Pereira da Silva e Os assassinos misteriosos, ou a paixo dos
diamantes de Justiniano Jos da Rocha. O primeiro, publicado em 1839, foi rotulado pelo
prprio autor como romance histrico, mas no podemos dizer com preciso em que
gnero ele poderia ser inserido. Foi um livro escrito com total influncia europia, a comear
pelo local em que se passa a histria: Portugal.
PEREIRA DA SILVA, Joo Manuel (P. da S). O aniversrio de Dom Miguel em 1828 (romance Histrico). In
Jornal do Commercio. RJ: 16 a 22 de janeiro de 1839. RJ: Typ. Villeneuve, 1839.36p, (folheto em 8.). OR-38,
7, 21. In Os precursores do conto brasileiro. Org. Barbosa L. Sobrinho.
32
Fugindo dos exemplares trazidos por Tania Rebelo Costa Serra, resta-nos, como
possvel pioneiro do gnero, Teixeira e Sousa e sua obra O filho do pescador, de 1843, que,
alm de ter sido escrito por um fluminense de Cabo Frio, tem como cenrio o Rio de Janeiro
e possui um nmero razovel de elementos que a inserem na categorizao de folhetinesco.
Para Candido (1995, p.112) no s a obra O filho do pescador, mas quase todas as obras de
Teixeira e Sousa concebem traos de forma e contedo do folhetinesco, pois trazem em sua
10
ROCHA, Justiniano Jos da. Os assassinos misteriosos, ou a paixo dos diamantes. In Jornal do Commrcio.
RJ: de 27 e 28 maro de 1839. RJ: Typ.de Villeneuve, 1839.29p. OR-85, 1, 43. In Os precursores do conto
brasileiro. Org. BLS. Jos Maria Vaz Pinto Coelho classifica-o como traduo do francs.
33
34
Mas, o tempo - e o prprio anseio que surgia nos escritores em busca de uma
literatura nacional verdadeiramente clebre- encarregou-se de dar rumos bem diferentes s
35
36
37
Os mercados de consumo, por sua vez, atingiam no s o centro das cidades como as regies
sua volta, servidas pelas estradas de ferro que se expandiam velozmente. Expressivos
movimentos populares da classe operria passaram a ser freqentes no Rio de Janeiro e em
So Paulo. Revoltas, paralisaes, greves, reivindicaes, sindicalizaes, indenizaes e
lutas por uma nova legislao trabalhista so evidncias claras do amadurecimento social da
nao. No campo poltico, verificam-se desgastes entre as oligarquias nas sucesses
presidenciais, ataques aos imperialismos dos grandes estados, criao de uma justia eleitoral
e insatisfao militar. No setor cultural, as reformas no foram menores: h um aumento
significativo da vida artstica e literria. Instruo pblica, estudos histricos e sociais
encontram condies para seu florescimento. A tomada de conscincia ideolgica e artstica que timidamente nasce nos 1900 - intensifica-se com rapidez e pouco depois culmina na
Semana de Arte Moderna, em 1922.
Sculo XX adentro, modernidade configurada e o fluxo folhetinesco em solo ptrio
no cessa. Entre uma e outra informao sobre revoltas paulistas, levantes cariocas e
contestaes sulistas, l estavam os folhetins nacionais disputando espao com as
mirabolantes histrias de Rocambole. O gnero, apesar de todos os contratempos, continua
agradando a mocinhas abastadas e a jovens operrias. Resistindo s abrasadoras notcias
econmicas, sociais e culturais (que agitavam o Brasil e o mundo), as narrativas em folhetim
no s continuaram dividindo diariamente seu lugar no jornal com os fatos cotidianos, como
tambm seguiram sendo um dos principais chamarizes da audincia nos veculos de
comunicao que ento comeavam a se estabelecer.Velhos nomes como Montpin, Ponson
du Terrail e Dumas conseguem sobreviver s exigncias do novo sculo e garantir a
permanncia dos folhetins em solo nacional. Os mistrios do Rio, de Benjamim Costallat, Os
trs irmos siameses, de Veiga Miranda e O regimento 145, de Jules Mary, enchem de
frivolidades os rodaps de sisudos peridicos do incio do sculo - como O jornal do
38
39
E continua:
E sempre, no produto novo, os antigos temas: gmeos, trocas, usurpaes de
fortuna ou identidade, enfim, tudo que fomos encontrando nesta longa trajetria se
haver de reencontrar nas mais aturais, modernas e nacionalizadas telenovelas. [...]
Sempre de modo a satisfazer o patrocinador. (MEYER, 1996, p.387).
E foi assim, transmutando-se quando necessrio e fazendo-se gostar cada vez mais
pelo povo, que o romance-folhetim, com aleivoso comedimento e falsa despretenso,
conseguiu afianar sua presena Brasil afora e, de quebra, seduzir sagazes e intrigantes
escritores. Nelson Rodrigues que o diga!
40
41
entre jornalismo, dramaturgia e fico foi marca evidente de seus textos e reflexo instantneo
de sua vida. Da mesma forma que a sua objetividade jornalstica sempre esteve permeada
pelo imaginrio fabulativo que lhe era caracterstico, suas criaes literrias viviam grvidas
da cotidianidade que o cercava. Suas experincias pessoais no poucas vezes deram suporte
estruturao de vrios de seus folhetins e produo de quase toda sua dramaturgia. Em
contrapartida, os aspectos trgicos, satnicos, sublimes ou grotescos captados por sua
subjetividade literria interferiram constantemente em seus relatos jornalsticos. Em suas
notcias policiais, por exemplo, a riqueza de detalhes, as fofocas ouvidas durante a cobertura
dos fatos, as suposies dos vizinhos sobre os acontecimentos e o sensacionalismo com que
narrava os episdios, ao mesmo tempo que garantiam a fidelidade de leitor vido por
escndalos e bizarrices, extrapolavam os limites da realidade e punham seus escritos
jornalsticos em consonncia com seus folhetins. Para Joo Barreto da Fonseca,
A preferncia de Nelson Rodrigues pelas tramas policiais tambm
responsvel por transformar as vtimas do jornalismo em personagens. A travessia
da ponte entre realidade e imaginrio tem como motor o reino das afetividades. A
simpatia do autor com seu objeto revela uma escolha regida por uma afinidade ou
sentimentalidade . Da a relao ntima entre o modo de dizer (folhetim, pea de
teatro, crnicas etc) e aquilo que se diz (a vida nas ruas). (FONSECA, 2002, p.2):
42
mesma poderia supor. Exceto em seu embrionrio conceito - quando foi tomada como um
tipo de texto atrelado ao registro dos acontecimentos histricos da corte portuguesa, na poca
de Ferno Lopes, a crnica, assim como os fait divers, um gnero miscigenado, uma
mistura de jornalismo e lirismo, uma mescla de substncias histricas e elementos literrios.
Tal qual seus irmos de sangue, ela sempre esteve fortemente ligada ao consumo imediato,
vida cotidiana, aos fatos midos e corriqueiros, s publicaes transitrias e, sobretudo,
capacidade de proporcionar entretenimento humano.
Se tomarmos o jornal como amostra representativa das inovaes modernas do
sculo XIX, poderemos dizer, abusando dos ensinamentos de Candido (1992), que esse
gnero, da mesma forma que as histrias fatiadas, foi filho bastardo da imprensa e da era
mecnica. na rubrica Variedades que a crnica - ento frvola e de substncias variadas vai aparecer pela primeira vez:
Antes de ser crnica propriamente dita foi folhetim, ou seja, um artigo de
rodap sobre as questes do dia - polticas, sociais, artsticas, literrias [...] Aos
poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem
est escrevendo toa, sem dar muita importncia, depois, entrou francamente pelo
tom ligeiro e encolheu de tamanho. (CANDIDO, 1992, p.15).
43
11
Vale lembrar que, para Davi Arrigucci Jr., no artigo Fragmentos sobre a crnica. Folha de So Paulo. 1 de
maio de 1987. Folhetim. p.6B-9B, destaca que, para grande parte dos cronistas dos primeiros tempos, a crnica
tinha um ar de aprendizado de uma matria literria nova e complicada, pelo grau de heterogeneidade e
discrepncia de seus componentes, exigindo tambm novos meios lingsticos de penetrao e organizao
artstica
44
12
ALENCAR, Ana Maria de. O que o fait divers ? Consideraes a partir de Roland Barthes. Disponvel em:
<www.letras.ufrj.br/ciencialit/docente/trabalhos/ana_alencar_fait_divers.html>. .Acesso em: 30.08.2007,14h
14min.
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A Causalidade para ele est subdividida em duas partes: Causa Perturbada (em que h o desconhecimento
causal, ou uma pequena causa provocando um grande efeito) e Causa Esperada (em que a causa conhecida e a
nfase recai nos personagens dramticos como me, crianas e idosos); j a Coincidncia formada pela
Repetio (onde o igual se reproduz com diferena no mbito de uma matria jornalstica) e pela Anttese (onde
duas personagens antagnicas so fundidas em uma nica realidade).
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e instigar as paixes do leitor magnetizado pelo mundo srdido dos escandalosos casos do
cotidiano.
Os autores dessas notcias extraordinrias, longe das regras inibidoras da
imprensa, no s dramatizavam a vida concreta como tambm revelavam particularidades
capazes de expor a padronizao dos gostos e interesses de um pblico encantado pelo
excepcional da banalidade. Manchetes escandalosas, como "Mordido por um co", "Drama
de sangue, Tentativa de Suicdio", "Queda e ferimento", "Amor Funesto", "Desastre",
"Agresso num botequim", "Os Amigos do Alheio", "Polcia de Costumes", "Menor
Espancado", "dio e Sangue", "Loucura Fatal", "Os Desocupados", entre outras
encontradas por Valria Guimares (2006), publicadas nos primrdios dos 1900, na seo
Notcias Diversas de O Estado de S.Paulo, nos do uma idia de quo delatoras dos gostos
sociais foram aquelas amostras de cotidianidade suburbana.
Por meio da capacidade investigativa de que dispunham, mas, principalmente,
atravs de sua habilidade criadora, os primeiros jornalistas da Imprensa Marrom - se que
assim podemos rotul-los desvendavam os acontecimentos do universo prosaico com
alvoroo e exagero. Deixando entrever o carter espetaculoso das notcias e, de quebra,
entremostrando as peculiaridades da frmula sensacionalista (de que o fait divers desde
sempre se fez partidrio), os escritores popularizavam escndalos, confidenciavam
bisbilhotices e revelavam curiosidades mundanas das mais variadas espcies. Perdidos entre
absorventes coloquialismos da linguagem cotidiana, pontos exclamativos, vrgulas e
interrogaes alucinadas, esses artigos espalhafatosos se avizinhavam do leitor, seduziam-no
e despertavam sua indiscreta curiosidade. O tom exagerado com que alongavam os
acontecimentos supostamente verdadeiros e a desenvoltura com a qual abasteciam a narrao
de detalhes picantes traziam s notcias romanceadas uma tonalidade fictcia to grande,
que raro era quando no duelavam com os romances-folhetins a ateno dos leitores. Essa
48
concorrncia entre gneros, no entanto, longe estava de ser danosa a qualquer um que fosse.
Na realidade, um no s promovia a divulgao do outro (pela identificao imediata do
pblico com as figuras dramticas compartilhadas pelos dois) como tambm alimentava o
concorrente com temas e procedimentos narrativos. Alm da estrutura interativa (que
conservava no pblico o costume da intromisso na histria) e de sua capacidade de manter o
leitor atento aos prximos acontecimentos, artefatos tais como o acmulo de incidentes, a
repetio exaustiva do modelo, a abordagem atemporal e a forma apelativa de expor as
coincidncias tornavam os folhetins e os faits divers parentes bastante prximos. Alm
disso, ambos se valiam de um exagero dramtico to evidente, que freqentemente se
aproximavam de outro gnero comum poca: o melodrama.
O melodrama, no fugindo ao que tambm caracterstica notria das crnicas, dos
folhetins e dos faits divers, traz em sua essncia constitutiva certa mestiagem gentica14.
Diferente deles, porm, seu hibridismo caracteriza-se menos pela ligao entre histria e
fico que pela ambigidade apreendida no entrelaamento da melodia e do drama. Nascido
na Itlia, ainda no sculo XVII, o melodrama, segundo Thomasseau (2005, p.17), sempre
esteve emaranhado ao tecido social e conseguiu alcanar importncia inestimvel,
principalmente nas pocas de crise em que valores sociais eram redefinidos e em que a
necessidade de uma ao mtica e compensatria se fazia necessria.
A palavra melo-drama, desde o princpio, esteve intimamente associada pera e
era especificamente usada para designar um drama inteiramente cantado. Com o tempo, a
expresso passou a classificar peas cuja composio - distante dos critrios clssicos - tinha
a msica como apoio para a obteno de efeitos dramticos. Quando em 1775 apareceu na
14
Segundo Chevalier (CHEVALIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangereuses. Paris, Plon, 1958, apud
Meyer, 2005, p.233) os trs (melodrama, fait divers e folhetim) so gneros do excesso. O melodrama, para o
crtico, concretiza no palco os temas do folhetim e do fait divers, atravs de personagens de carne e osso,
dinamizando as violentas imagens que saltam das pginas dos ilustrados para o palco, dando vida s mesmas
situaes e exprimindo-as com a mesma intensidade e paixo.
49
Frana, ela ganhou novo formato e significao. Passou ento a designar cenas lricas
repletas de breves monlogos entrecortados por frases musicais que enfatizavam aes
dramticas chamadas pantomimas. Mas foi somente em ocasio da edificao e
desenvolvimento das chamadas classes populares, em Paris, que seus contornos conseguiram
atingir o feitio pelo qual ainda hoje o gnero conhecido. Tida como a tragdia adequada ao
clima que a civilizao industrial produziu, ela encontrou terreno fecundo para seu
alargamento e perpetuao junto a um pblico angariado principalmente nas camadas
populares sensveis a emoes violentas e tramas apaixonantes.
Sua notoriedade, entretanto, no adveio apenas porque o estilo satisfazia com
rapidez e eficincia s demandas da incipiente massa trabalhadora francesa; mas, sobretudo,
pela desenvoltura com que tambm supria as necessidades apresentadas por outras parcelas
da populao. Ao veicularem aspiraes e perspectivas das classes trabalhadoras, os
melodramaturgos no deixavam de impor ao imaginrio popular ideais consagrados pelas
instituies conservadoras e isso lhes assegurava unnimes simpatias. Assim, para as classes
mais populares, os espetculos melodramticos serviam como forma de protesto contra a
opresso e os valores sociais aniquilados; j pela burguesia, as peas eram vistas como
interessantes meios pelos quais poderiam difundir valores tradicionais, como o culto
famlia e o senso de propriedade; aristocracia, o melodrama convinha porque era tido como
um eficaz dispositivo para o fortalecimento das instituies sociais, uma vez que preservava
o senso de hierarquia e o reconhecimento do poder preestabelecido.
Estudos de Thomasseau (2005) revelam que, em virtude da demanda histrica, trs
foram as fases pelas quais o gnero melodramtico passou. A primeira, chamada Clssica,
distende-se de 1800 a 1823, e relevante por definir e estipular as convenes iniciais das
tcnicas melodramticas que mais tarde seriam usadas por todos os teatrlogos interessados
no gnero. A segunda, que vai de 1823 a 1848, ocorre concomitantemente ao florescimento
50
dos romances-folhetins e se faz notar pelas numerosas adaptaes que estabelece aos
esteretipos pincelados pela fase anterior. A terceira fase, por sua vez, ocorre no fim do
sculo XIX e, embora no evidencie profundas modificaes tcnicas, traz em seu repertrio
quatro grandes momentos.
Na primeira fase Pixrecourt - autor de Coelina ou lEnfant du mystre, tomada
pela crtica como a pea inaugural do gnero - quem de incio estabelece as regras tpicas do
estilo e delineia os elementos essenciais para a composio do que ficou conhecido como
melodrama. O sucesso de sua pea Coelina foi tamanho, que em pouco tempo o gnero
passou a desempenhar um importante papel na vida social e cultural do perodo e a ser visto
como a arte que melhor evidenciava os importantes assuntos da poca. Os melodramaturgos
clssicos logo tomaram para si a obrigao de desempenhar de forma satisfatria a dita
misso civilizadora da qual cronistas e folhetinistas tambm partilharam. Segundo o
inaugurador do gnero, era o melodrama mais do que qualquer outra forma de arte quem
dava classe da nao que mais deles necessita belos modelos de atos de herosmo, traos
de bravura e de fidelidade (PIXERCOURT, apud THOMASSEAU, 2005, p. 49)15.
Para Pixrecourt, era o estilo melodramtico que freqentemente instrua a massa
popular a tornar-se melhor porque era ele [o melodrama] o nico gnero que verdadeiramente
estava ao alcance de todos. Desapego, inclinao para o sofrimento, altrusmo, renncia,
grandeza d'alma e caridade no faltavam em seus enredos. Os heris de Pixrecourt eram
formulados tendo em vista os exemplos de eqidade e virtude propostos pela moral burguesa;
e seus viles sempre praticavam aes que transgrediam o cdigo convencional tomado
como norma de conduta por todos de sua poca.
Assim como no romance-fatiado, a tenacidade da frmula e a recepo positiva
junto ao pblico tambm estiveram relacionadas a sua viabilidade econmica e a sua
15
PIXERCOURT, Charles Guilbert. Livre des Cent-et-um. (Sem indicao de pgina, editora e ano).
51
52
Providncia, intervm para que o facnora, depois de muito perturbar a vida dos mocinhos,
acabe sendo desmascarado e punido. Sem ela, a vitria da virtude sobre o vcio nunca se
concretizaria. por causa da Providncia divina que, no fim, os inocentes se salvam e os
culpados so castigados.
Alm dessa batalha maniquesta invarivel, outros elementos estruturais garantiram
a dinmica inerente ao gnero melodramtico e o sbito sucesso por ele obtido. A busca por
figurinos exuberantes e a explorao de cenrios incrementados, por exemplo, eram
elementos permanentemente utilizados pelos dramaturgos para a obteno dos efeitos
desejados. Do mesmo modo, o emprego de monlogos recapitulativos (que serviam para
apresentar aos espectadores as peripcias ocorridas antes do incio da intriga) e de monlogos
patticos (usados para instigar e suster o pathos do vilo) eram tomados como componentes
essenciais no processo de estruturao da intriga. Tambm a utilizao dos chamados
partes (usados pelos viles para conservar o pblico informado sobre as complicaes da
trama) e a explorao sistemtica dos efeitos patticos eram praticados com freqncia para
garantir a aceitao e a simpatia do pblico.
Na segunda fase do melodrama, ocorrem notrias e significativas alteraes na
estrutura das tramas. Importantes questes estticas sobre a afinidade entre os gneros
melodramtico e romanesco se estabelecem ento e um novo esprito se instaura nos modelos
j consagrados. Em virtude dos gostos e preferncias surgidas em meio efervescncia dos
novos e conturbados tempos de Napoleo III, na frmula do melodrama civilizador da
primeira fase so introduzidos novos elementos temticos e tipolgicos. Em pouco tempo, o
melodrama Ps-Revoluo Francesa se irmana muito ao romance-folhetim e muitos
procedimentos deste so agregados s suas convenes iniciais.
No tarda para que os assuntos abordados nos teatros da poca se repitam nas
infinitas pginas romanescas e, em contrapartida, engenhosos procedimentos do romance se
53
Grimm, por sua vez, ao traar os lineamentos melodramticos, mais parece estar
repetindo o receiturio proposto por Reybaud do que propriamente informando sobre a
estruturao de outra forma literria:
Pegue dois personagens virtuosos e um malvado, que seja tirano traidor e
celerado; que este ltimo perturbe dos dois primeiros, que os faa infelizes durante
quatro atos, ao longo dos quais ele desembestar a dizer um repertrio de frases
horrorosas, enriquecido de venenos, punhais, orculos etc., enquanto os
personagens virtuosos recitaro seu catecismo de mximas morais. Que no quinto
ato o poder do tirano seja aniquilado por alguma rebelio, ou traio do celerado
descoberta por algum personagem episdico e salvador. Que os malvados peream
e que as pessoas honestas da pea sejam salvas. (GRIMM, apud THOMASSEAU,
18
2005, p.18)
Do estilo romanesco, tanto dos romances noirs ingleses -o chamado romance negro,
delineado por Ann Radcliffe- como dos romances franceses - ricos em episdios atribulados
e tramas perversas -, o melodrama passa a tirar grande parte de seu contingente de roteiros e
aventuras. Pouco a pouco os valores apresentados nos melodramas tradicionais comearam a
esmorecer. Mesmo contrariando alguns autores, um progressivo abandono da unidade
dramtica dos trs atos (que no incio era usada para aproximar o melodrama do prestgio da
17
18
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55
56
uso de frmulas valorizadas pelos amantes do gnero, nem renunciar ao emprego de recursos
estilsticos consagrados, o melodrama se adapta to bem aos novos e conturbados tempos,
que nos deixa de herana modelos at hoje cultivados com grande sucesso.
Para Huppes (2007, p. 145), a nfase na expressividade da forma foi o que garantiu a
sobrevivncia e os desdobramentos do gnero na era do capitalismo moderno. Expe a autora
que a superioridade do formato em detrimento da anterior primazia do contedo norteou o
eixo dos novos princpios de composio. Segundo ela, a ligao das tramas melodramticas
com processos estruturais correntes na modernidade e a sintonia que os melodramas
alcanaram junto s demandas populares tambm contriburam para que o gnero
encontrasse uma aceitao favorvel no sculo XX. O estilo - diz a autora - revela-se
poroso para a absoro de mudanas. Abrevia referncias complexas; dispensa o saber
prvio; limita o espao das palavras em funo de apelos visuais e sonoros.
Huppes (2007, p.155) acrescenta ainda que a facilidade com que o melodrama se
familiarizou aos novos tempos tambm tem a ver com satisfao que conseguiu instigar na
platia. Para ela, a flexibilidade demonstrada pelos melodramaturgos frente aos novos gostos
e anseios afianaram o desdobramento do gnero pelo sculo XX e garantiram a sua
ambientao junto s rdios e emissoras de televiso.
Nos anos 50, com energia ainda mais revigorada, a arte do melodrama passa ento a
assentar-se quase que completamente nas situaes inusitadas que a modernidade impunha
ao homem de massa. Com excessiva distoro da sociedade (conquanto nela
fundamentada), passa a privilegiar o grotesco do comportamento humano e incorpora s
tramas uma dimenso psicolgica at ento dispensada pelas fases anteriores.
Dominado inteiramente pela obrigatoriedade do lucro capitalista, o melodrama (tal
qual seus irmos de sangue) trata de acrescentar ao seu arcabouo temtico valores sociais
coletivamente reconhecidos pela sociedade de consumo, entre eles, a catarse otimista e o
57
19
Expresso utilizada por Edgar Morin em seu livro Cultura de Massa no sculo XX. Neurose. Vol.1. Edio
brasileira de O esprito do Tempo. Forense Universitria. 9 edio.
58
vida corriqueira e a inclinao para desconfiar dos heris sem defeito algum. Excessos,
redundncias, imoralidades, paixes obsessivas e vulgaridade imprimem o tom, que, diga-se
por alto, se aproxima ainda mais da tonalidade imposta pelos jornais sensacionalistas.
Da se ver que, no por acaso dizamos, h muitas e inquestionveis afinidades entre
os quatro gneros mencionados. Semelhantes no perfil e na colorao, esses textos de
retumbante sucesso popular nunca se importaram em deixar transparecer as contigidades
estilsticas por eles compartilhadas. Todos, emergentes dos efeitos acarretados pela sociedade
de consumo, operaram numa mesma esfera: a do lucro capitalista. Em cada um dos quatro, a
exposio crua da leviana rapinagem narrativa para usar um termo de Marlyse Meyer- e a
revelao voluntria de seu carter mercadolgico revelam a necessidade permanente que
sentiam de se ajustarem economia do mercado.
Imitao, pardia, apropriao, citao, montagem e plgio no so, aos olhos dos
compositores dos gneros, artifcios reprovveis ou vergonhosos. A reproduo contnua da
estrutura do faz-de-conta d-lhes a certeza de sucesso e isso o que basta. Qui por isso
tanta afinidade, talvez por isso o aglomerado de mtodos e frmulas e a proximidade entre os
procedimentos fabulativos e, finalmente, quem sabe por essa mesma razo, tanta notoriedade
e fora, tantos desdobramentos e permanncia.
59
60
Nelson cria seu prprio jornal, um tablide de quatro laudas apenas, denominado Alma
Infantil, o qual, segundo Castro (1992, p.60), ele escrevia-o quase todo, paginava-o e o
mandava compor e imprimir nas mquinas de A manh. Em 1928 promovido s
pginas do editorial do jornal de Mrio Rodrigues, onde comea a escrever suas primeiras
crnicas. A tragdia de pedra..., texto inaugurador de sua carreira como jornalista
profissional,
Segundo Caco Coelho (RODRIGUES, 2004a, p. 26), possvel encontrar nesses primeiros
trabalhos centenas de traos, frases, situaes, histrias, personagens que retornam e se
repetem em sua produo, trazendo a palavra viva, ainda mida de rua, suada de cotidiano,
suada de paixo e morte, sem nunca falsific-la.
Depois de, cheio de dvidas, Mrio Rodrigues perder A manh para o scio Antnio
Faustino Porto, ele lanou um jornal que angariou ainda mais a simpatia do pblico. Falamos
de Crtica. L, Nelson passou a trabalhar em companhia dos irmos Milton, Roberto e Mrio
Rodrigues Filho. Sua histria pessoal, a partir de ento, marcada por uma srie de tragdias.
Com 17 anos ele v Roberto Rodrigues ser assassinado (fato que, como veremos
posteriormente, marcou profundamente a sua trajetria literria e a vida de toda sua famlia).
Foi por causa desse episdio, vale antecipar, que seu pai, Mrio Rodrigues, inconformado
com o atentado contra o filho cartunista, passa a exagerar na bebida, emagrece
violentamente, e, pouco mais de dois meses depois, morre vtima de uma trombose cerebral.
No bastassem as mortes familiares, Nelson e seus dois irmos confrontaram-se com
o empastelamento de Crtica, que, tal qual A noite, A Notcia, O Jornal do Brasil, Vanguarda
e outros peridicos opositores do governo de Getlio Vargas, foi invadido e fechado to
logo Washington Luis aceitou sua demisso do cargo de Presidente.
Os anos posteriores, para os Rodrigues, foram de fome e misria. Cada um dos que
j tinham idade para trabalhar se arranjou como pde. Mrio Filho, a convite de Roberto
61
Marinho, foi trabalhar em O Globo por 550 mil ris por ms. Ele carregou consigo Nelson e
Jofre, que no incio trabalharam sem nada ganhar.
Em 1934, ento com 22 anos, Nelson se viu s voltas com a morte branca (como
era chamada a tuberculose naquele tempo). Foi para o Sanatorinho, em Campos de Jordo, e
l viu a decadncia de seu corpo de perto. Foi l tambm que, de acordo com Castro (1992,
p.130), ele teve sua primeira experincia na arte da dramaturgia:
J em 1935, um doente teve a idia de encenarem um teatrinho, uma
comdia. Por que no? Tinham o elenco (um ou outro homem se vestiria de
mulher), a platia (os enfermeiros e os doentes em pior estado) e at mesmo o
autor: Nelson. Afinal, ele no era jornalista e, ainda mais, de O Globo? Nelson
gostou da idia. Escreveu um sketch cmico sobre eles mesmos, criou situaes
em que todos poderiam se reconhecer. A platia, logo s primeiras cenas, comeou
a gargalhar e foi uma patuscada geral. Alguns, de tanto rir, tiveram acesso de
tosse, e s por isso a brincadeira no se repetiu. Texto e ttulo desse sketch se
perderam, mas foi ele, e no A mulher sem pecado, cinco anos depois, a
primeira experincia, digamos, dramtica de Nelson Rodrigues. (CASTRO, 1992,
p.130).
62
ocular, ficou parcialmente cego. Fato que, para ele, foi pior que ter morrido. Desde pequeno,
conta-nos o prprio escritor, que tinha verdadeiro horror da cegueira:
... Sa da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram
portugueses [...] Fiquei ali, na esquina, em adorao. E os cegos todos de chapu
tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: - um deles tinha, atravessando o
colete de um bolso a outro bolso, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o
pires. Cada um pingou seu nquel. E , ento, voltei correndo para casa. No falei
com ningum, meti-me na cama. Minha vontade era morrer. Fechei os olhos,
entrelacei as mos, juntei os ps. Morrer. Minha me entrou no quanto, pousou a
mo na minha testa: - o que que voc comeu?. Comecei a chorar [...]
E, de repente, uma certeza se cravou em mim:- eu ia ficar cego. Deus queria
que eu ficasse cego. Era a vontade de Deus. [...] Nunca mais me esqueci dos cegos
e posso repetir sem medo da nfase: - nunca mais. Mas por que, meu Deus,
pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser
que, j adulto, homem feito, a obsesso continuava intacta? Obsesses, sempre as
tive. Mas essa nunca me abandonou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava
com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva. (RODRIGUES, 1993a, p. 46).
Tempos depois, como que cumprindo uma profecia, sua filha Daniela, fruto do amor
entre ele e sua segunda esposa, Lcia, nasce cega. Isso lhe rendeu um dos mais comoventes
relatos de toda sua carreira como memorialista:
Se for menina, o nome Daniela- disse Lcia. Achei um nome doce e
triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Bront.Uma noite, Lcia
foi internada,s pressas, na Casa de Sade So Jos. Parto prematuro. [...] Foi uma
corrida de mdicos, enfermeiras, irms. [...] Tudo aconteceu em uma progresso
implacvel. Daniela nasceu e no queria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo
para salvar aquele sopro de vida. De manh, quase, quase a perdemos. [...] Dr.Cruz
Lima, dr.Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a morte. Mudaram o
sangue da garotinha. E ela sobreviveu. [...]
Dois meses depois, dr.Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha,
fez todos os exames. Meia hora depois, descemos juntos. Ele estava de carro e eu
ia para a TV Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito
delicado, teve muito tato. Sua compaixo era quase imperceptvel. Mas disse tudo.
Minha filha era cega. (RODRIGUES, 1993a, p.48).
63
Pecado. Ele gostava de contar que, no incio, a pea fora composta sem outra inteno que
no a de ganhar dinheiro. Por isso pensou em escrever uma chanchada, j que era esse o
gnero dramtico que mais dava retorno financeiro aos autores da poca. As marcas de sua
infncia e adolescncia, aliadas sua atitude inovadora, porm, fizeram com que a histria se
transformasse num terrvel drama. Em suas palavras:
Eu me lembro da minha primeira pea, A mulher sem pecado. Minha
inteno inicial, e estritamente mercenria, era fazer uma chanchada e, repito, uma
cnica e corajosa chanchada caa-nqueis. Todavia, no meio do primeiro ato,
comeou a minha ambio literria. E o curioso que, at ento, eu me sentia
romancista e no teatrlogo. (RODRIGUES, 1993a, p.153).
Somente em 1942 A mulher sem pecado foi levada aos palcos. Encenada pela
primeira vez pelos atores da Comdia Brasileira (sob direo de Rodolfo Mayer, no teatro
Carlos Gomes), a pea foi aplaudida por uns e criticada por outros, mas no fez grande
estardalhao, como esperava o autor. O reconhecimento desejado s veio mesmo em 1943,
com Vestido de Noiva, que, sob direo do consagrado diretor polons Ziembinski, deu a ele
o estimvel ttulo de Inovador do teatro nacional.
Depois do sucesso de Vestido de Noiva -que em pouco tempo ganhou fama mundialNelson foi convidado a trabalhar nos Dirios Associados, de Assis Chateuabriand, ganhando
sete vezes mais do que ganhava em o Globo Juvenil. L, em 1944, sob o pseudnimo de
Suzana Flag, publicou o primeiro romance-folhetim, Meu Destino Pecar. A ele, seguiramse mais quatro: Escravas do amor (1944), Minha vida (1946), Npcias de Fogo (1948) e O
homem proibido (1951). Alm desses, publicou no jornal Dirio da Noite, sob o pseudnimo
de Myrna, a obra A mulher que amou demais (1949); e, assinados com o prprio nome,
outros dois folhetins: A mentira (1953), Asfalto Selvagem I e II (1959- 1960). Escreveu
ainda, em 1966, o romance O casamento, que embora no tenha sado em formato
folhetinesco, possui todas as caractersticas do gnero.
Sua obra teatral conta com mais quinze peas. Ela dividida por Sbato Magaldi em
64
trs fases: peas psicolgicas, onde esto inseridas alm de A mulher sem pecado (1941) e
Vestido de Noiva (1943) - citadas anteriormente - mais trs: Valsa no. 6 (1951), Viva, porm
honesta (1957) e Anti-Nelson Rodrigues (1973); peas mitolgicas: Anjo Negro (1947),
Dorotia (1949) lbum de Famlia (1946); Senhora dos afogados (1947); e tragdias
cariocas, onde esto a maior parte delas: A Falecida (1953), O Beijo no Asfalto(1960),
Perdoa-me por me trares (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), Otto Lara
Resende ou Bonitinha, mas ordinria (1962); Toda nudez ser castigada (1965); A serpente
(1978).
Centenas de contos tambm foram publicadas ao longo de sua vida. A reunio de
alguns deles, sob o ttulo A vida como ela ..., foi publicada em 1961, em dois volumes.
Crnicas e memrias tambm no faltaram. Elas foram agrupadas em quatro volumes, a
saber: Memrias de Nelson Rodrigues (1967); O bvio Ululante (1968), A cabra Vadia
(1970) e O reacionrio (1977).
No decorrer de sua jornada, Nelson motivou muitas controvrsias. Tanto por estudiosos
como pelos amigos mais prximos, valores completamente antagnicos foram vinculados ao
seu estilo. Enquanto uns o chamaram de louco, tarado e obsessivo, outros o denominaram
gnio literrio. A crtica habituada s peculiaridades estilsticas dos palcos europeus, por
exemplo, refutou com desprezo as produes rodriguianas que se afastavam do tom literrio
por excelncia. Em contraposio, estudiosos, como Sbato Magaldi, Gilson Ribeiro, entre
outros, aclamaram Nelson Rodrigues justamente por causa dessa capacidade de trabalhar
com elementos, por assim dizer, inovadores na histria do teatro brasileiro.
Para Sbato Magaldi a teatralidade obtida com a explorao de um linguajar simples do
cotidiano, por exemplo, significava a concretizao efetiva do que faltava na arte teatral do
Brasil. Segundo o crtico, o despojamento lingstico constantemente usado pelo dramaturgo
foi a melhor forma que Nelson Rodrigues encontrou para atingir a dramaticidade desejada:
65
Gilson Ribeiro, por suas vez, em anlise publicada no volume 4 do Teatro quase
completo de Nelson Rodrigues, em 1966, articula:
Dentre todas [as inovaes feitas pelo dramaturgo], sua inovao mais
importante foi no campo da linguagem dramtica. O linguajar da vida diria, com
seu n e pra invadiu o palco como um reservatrio que tivesse rebentado o
povo entrava palco adentro. Os personagens em cena, pela primeira vez numa pea
brasileira, comearam a falar de acordo com a maneira de expressar popular,
familiar, com toda a espontaneidade das imperfeies gramaticais e de uma sintaxe
defeituosa. (RIBEIRO, 2004. p.277).
20
66
Ou ainda neste, feito por Tristo de Athayde, ao responder a uma enquete sobre a
interdio de lbum de Famlia, para o jornal O Globo:
A pea literariamente nula. Nela, nada se salva, nem o tema, nem a
expresso, nem o efeito dramtico. No passa da mais vulgar subliteratura. A
prpria monstruosidade sistemtica, a que no escapa qualquer personagem, lhe
tira toda humanidade. Quanto interdio, me parece, no caso, perfeitamente
legtima. [...] Os loucos do lbum de famlia, que se despem moralmente no palco,
tambm podem legitimamente ser convidados a faz-lo de modo mais discreto. A
exibio de uma patacoada obscena no menos nociva, ao grande pblico, que o
funcionamento de uma roleta. E todos aplaudimos o fechamento dos cassinos de
22
jogos... (ATHAYDE, 1946; apud FASCINA, 2004: 48) .
21
22
67
Causar polmica, no entanto, parece mesmo ter sido parte das estratgias de Nelson
Rodrigues para fazer sucesso. Diz Fascina (2004, p.32) que algumas imagens pblicas
criadas pelo dramaturgo em torno de si mesmo ao longo de sua trajetria artstica eram vistas
por seus opositores como artifcios promocionais. Segundo a autora, a elaborao de uma
iluso biogrfica a partir de diferentes imagens pblicas construdas por ele, e em torno
dele, serve para desvendar de que forma se deu a consagrao de Nelson Rodrigues como
uma das figuras mais importantes e conhecidas da cultura brasileira:
O mapeamento de suas crnicas, memrias, entrevistas e depoimentos,
assim como das crticas sua obra, em um perodo de quase quatro dcadas,
mostra um processo dinmico em que vrios desses personagens vo sendo criados
e se sobrepondo na imagem pblica de seu autor: o gnio revolucionrio e
vanguardista, o autor tarado e maldito, o escritor que descreve com realismo a vida
nos subrbios cariocas, o autor de folhetins (alguns deles com pseudnimos
femininos, Suzana Flag e Myrna), o cronista reacionrio e anticomunista, o
jornalista esportivo etc. (FASCINA, 2004. p.32).
Seja l como for, uma coisa no podemos negar: essa conjuntura metamorfoseante
por que passa o escritor, por si s, j seria razo suficientemente capaz de despertar o
interesse pela trajetria artstica de Nelson Rodrigues. E, talvez por isso, talvez porque,
embora distintas, as vrias facetas de Nelson Rodrigues sejam intrinsecamente
complementares, ele merea que voltemos nossos olhos sobre sua obra, no sem o senso
crtico, mas sem as pedras do preconceito que alguns - por uma questo de classificao e
tambm por julgamento de valor - vez por outra costumam lanar contra aqueles que fogem
aos modelos consagrados. Afinal, como o prprio Nelson gostava de dizer, toda coerncia ,
no mnimo, suspeita.
23
68
69
Encaminhado s pginas policiais por seu irmo Milton Rodrigues, Nelson, ento
com treze, acompanhando o padro sensacionalista da poca, fez de seus textos um
amlgama entre a arte literria e a expresso jornalstica. Noticiou pequenas ocorrncias
policiais, insignificantes conflitos domsticos e corriqueiras confuses de rua, mas jamais se
restringiu exposio fidedigna dos fatos. Na realidade, Nelson nunca conseguiu perceber
distino efetiva entre essas duas naturezas. Suas primeiras reportagens, como veremos
adiante, nem de longe se limitaram simples informao. A aptido literria, que desde
sempre o acompanhou, ofuscava qualquer intento de objetividade a que ele pudesse aspirar e,
talvez por isso, as notcias de que se ocupava no carregavam a sisudez exigida por uma
reportagem sria, pois toda a dramaticidade e emotividade pretendidas por um literato
estavam nelas incrustadas.
Todos os acontecimentos que se prontificou a registrar no recebiam ponto-final
sem que antes o aspirante a escritor os recheasse de elementos romanescos e efeitos
melodramticos. Ocorrncias banais e montonas, sob os cuidados do jovem Nelson, logo se
70
Sob influncia da morbidez encontrada nas ilustraes feitas pelo irmo Roberto
Rodrigues e inspirado pelo prestgio que obtinham os jornalistas do caderno policial de
Crtica (jornal fundado por Mrio Rodrigues, em 1928), Nelson erigiu a espinha dorsal de
suas obras. Dizia ele: Eu acho que o ficcionista que no foi reprter policial tem um
desfalque, porque, em trs meses de reportagem policial diria, ele adquire a experincia de
um Balzac.24 Logo em suas primeiras notas, ele conseguiu edificar os procedimentos
literrios que o acompanhariam por sua vida inteira. O arsenal temtico obsessivamente
utilizado pelo autor quando adulto teria sido resultado das srdidas histrias de adultrios,
delitos e suicdios que relatou em coluna semanal no peridico do pai. Todas as imagens e os
cenrios, os esteretipos e as obsesses, os dilogos e as vertentes que mais tarde lhe dariam
o ttulo de autor maldito j estavam ali incubados:
Todo o meu teatro tem a marca de minha passagem pela reportagem
policial. E tanto mais que foi a que eu conheci o cadver, porque os defuntos que
eu tinha conhecido, havia uma certa distncia entre mim e eles. Eu olhava, mas
no me tornava ntimo. Agora o reprter policial, este sim, torna-se ntimo do
25
cadver e da morte.
24
25
Ibidem.
71
72
informao:
Penso, penso e no me ocorre nada. Sim, pouco colhido e morto por
um automvel. Faltava algo. Desde que me destinaram reportagem policial, eu
andava lendo, relendo e meditando as notas de atropelamento. Puxo pela memria.
E, de repente, baixa uma luz e completo a frase: -Colhido e morto por um
automvel em disparada. (...) E, sbito, brota uma idia que a mim prprio
surpreendeu. No Brasil, quando algum morre na rua, aparece uma vela acesa, ao
lado do cadver (...) E eu me lembro de terminar com uma meno vela. (...) Em
seguida, comecei a enriquecer a idia. Podia dizer que uma senhora, vestida de
preto, acendera uma vela etc etc. (RODRIGUES, 1993a, p.189-190).
O pacto de morte, diga-se por alto, sempre foi assunto privilegiado em suas
histrias. Desde suas primeiras reportagens esse assunto esteve presente como verdadeira
obsesso:
Eu li, certa vez, no jornal, o pacto de morte de um rapaz e uma menina. E
pensei ento, por outras palavras: quem nunca morreu com o ser amado, no sabe
o que amor e um impotente da alma. (RODRIGUES, 1993a, p.144).
73
O filho de quatro anos, abandonado pela adltera, o motivo pelo qual a moa
tenta, num sinal de desespero, o suicdio. A histria se torna ainda mais picante quando o
amante, aflito pelo ato desvairado de sua amada, compromete-se a morrer com ela em nome
do amor existente entre os dois:
Ambos animados pelas idias absurdas concertaram o suicdio. Dias antes
da data marcada excederam-se nas orgias ( ...). Anteontem, deixaram tarde
Nilpolis e foram para Niteri. Andaram pelas praias, pelos lugares ermos, num
doce idlio, num pecaminoso tte--tte. Depois, foram para um hotel e celebraram
as bodas da morte. (RODRIGUES, 1993a, p.229).
74
75
Nelson, ainda menino, nunca escondeu o fascnio que a figura de Roberto exercia
sobre ele. Tinha-o quase como um dolo. Encantava-se tanto com sua sedutora beleza
hollywoodiana, que, quando ganhara do pai uma cmara filmadora, fizera do irmo o astro de
suas filmagens juvenis. Os desenhos de Roberto, carregados de morbidez e lascvia, repletos
de faunos, ninfas sensuais, bordis, corpos dilacerados de volpia, orgias, mulheres de mais
e prostitutas seminuas, no poucas vezes serviram de inspirao para o escritor. At mesmo a
tragdia vivenciada pelo irmo - conforme depoimento do prprio Nelson anos mais tarde serviu de motivao para muitas das intrigas inventadas por ele:
Um dia, Lcio Cardoso me disse: -O assassinato de seu irmo Roberto est
naquela cena assim, assim, de Vestido de Noiva. Era verdade. (...) segundo o
romancista eu estaria fazendo, ali, uma imitao da vida. Era Roberto que morria
outra vez, assassinado outra vez. E, confesso: -O meu teatro no seria como , nem
eu seria como sou, se eu no tivesse chorado at a ltima lgrima de paixo o
assassinato de Roberto. (RODRIGUES, 1993a, p.85).
Para Sbato Magaldi no existe dvida a esse respeito. Diz o crtico - em ocasio das
apreciaes feitas por ele de A mulher sem pecado- que Nelson nunca conseguiu se recuperar
das tragdias familiares por que passou:
Elas [as tragdias domsticas] esto no substrato das histrias mais
inocentes que [Nelson] comps. A obviedade leva a assimilar todos os desfechos
irnicos e trgicos das peas ao episdio biogrfico do assassnio do irmo
Roberto, desenhista de grande talento (...) Ironia do destino, no melhor sentido
moderno da Moira grega, que Nelson incorporou, com a verdade da experincia
pessoal, ao seu teatro. (MAGALDI, 2004, p.13).
76
Ecos dos pensamentos de Roberto frente aos desafetos da vida parecem ressonar
permanentes na formao intelectual do irmo. Se lssemos coisas como A minha arte
sincera. Sou eu mesmo. No tenho a preocupao de fazer blague, nem me interessam a
gramtica artstica ou a cartilha social, ou ainda: Muita gente acha horrvel o que fao.
Pode ser. No fosse a vida a minha inspiradora, ou ento: s vezes prefiro o necrotrio,
com as mes chorando, a Copacabana, com as meninas bonitas e alegres. No resto, sou
igual a qualquer mortal tolero a vida por covardia sem saber que foram escritas em
Crtica (1928) pelo Rodrigues-cartunista26, facilmente aceitaramos serem de autoria do
Rodrigues-dramaturgo.
Trs anos depois da morte de seu irmo, em 1933, Nelson Rodrigues, inspirado num
desenho de Roberto Rodrigues chamado A tortura da vida e a serenidade da morte, escreve
dois artigos em que nos d a dimenso de seu deslumbramento por Roberto. Intitulados O
estilista do amor e da morte I e II, esses textos constituem, como bem nos lembra Caco
Coelho (In. RODRIGUES, 2004, p.31), o primeiro pronunciamento esttico sobre a obra
dos Rodrigues. Neles, guardadas as devidas diferenas procedimentais, Nelson parece fazer
26
Roberto Rodrigues em defesa de sua arte, num artigo publicado em Crtica, em 1929. Disponvel em <http:
www.nelsonrodrigues.com.br/entrevistas.php>. Acesso em 27.12.2007 16h. 02 min.
77
um prognstico do que mais tarde viria a ser sua prpria maneira de captar a realidade:
Uma simples linha sua passava pela face imvel de um assunto e logo este
sofria como que uma sublimao. E animado; violento, quase demonaco, de almas
e formas. Inspirava-o, em todas as realizaes artsticas uma imaginao clida e
agitante. Profundo como era, no se escravizava nunca fisionomia consagrada
dos seres.[...] Os seus homens e mulheres so estranhamente animados como se
experimentassem a presso de um passado e um presente, de um futuro e um fim.
A objetividade que os colheu no visionou apenas um simples e eletrizante
momento de alma, mas as ligaes, tambm, que esse momento guarda com
anteriores fenmenos morais ou fsicos. Poderei dizer, sem incidir no erro de um
exagero, que seus personagens abrem-nos o espetculo de um organismo humano
completo, com ininterrupta vida nervosa e psquica. Como qualquer um de ns,
que est dentro do movimento social, eles sofrem as mesmas influncias remotas
ou diretas, as mesmas repercusses histricas, as mesmas inquietudes ancestrais. O
ilustrador via os humanos seres atormentados na agitao universal. Fixava as
influncias mltiplas que produzem a tortura da carne a da alma. A sua arte revelanos o homem numa luta sombria e titnica para se libertar das leis fsicas e morais
que o aniquilam. (RODRIGUES, 2004a, p.155).
78
adequada e com afortunados frutos um gnero literrio h muito suplantado. Ele entendeu
ser necessrio colocar em prtica o que professa o adgio popular Em time que est
ganhando, no se mexe. Isso fez com que mantivesse em suas histrias fatiadas os
mesmos e velhos procedimentos desenvolvidos por Dumas, Eugne Sue, Paul Feval, Ponson
du Terrail, Balzac, de quem, diga-se de passagem, foi ledor declarado:
Lia tudo, absolutamente tudo. Lia Elzira, a Morta virgem, fascculo
delirante. Os trs Mosqueteiros, o Conde de Monte Cristo, lia Emile Zola, Anatole
France, os Contos de Hoffmann, romancistas americanos, Victor Hugo Os
Miserveis, O Homem que Ri, O Corcunda de Notre-Dame. Eu lia pra burro e no
fazia discriminao de livro (WERNECK, H & RODRIGUES, T. C. apud SILVA,
27
2002).
27
WERNECK, H & RODRIGUES, T. C. Playboy entrevista Nelson Rodrigues. Revista Playboy, So Paulo,
Abril, no. 52, novembro, 1979.
79
de Chateaubriand) para ver se aumentava seus rendimentos. Sabia que sua iniciativa tinha de
dar certo e, arremedando os criadores do romance fatiado, reuniu condies indispensveis
para agradar ao pblico e garantir sucesso.
Plgios e suscetibilidades parte, vale reforar aqui que uma das maiores
influncias sofridas por Nelson Rodrigues fora ele mesmo. As experimentaes juvenis, os
traumas passados na infncia e adolescncia, a misria pela qual se viu atormentado em
alguns perodos de sua histria, as experincias como jornalista, enfim, sua trajetria de vida
inspirou-lhe boas personagens e excepcionais enredos. O prprio dramaturgo assim se
posiciona:
Se me perguntarem quando que comecei a ser Nelson Rodrigues, eu diria
que foi na Escola Prudente de Morais, na Tijuca. Eu estava, se no me engano, no
quarto ano primrio. A escola ficava perto do Hospital Evanglico. E, um dia,
houve, na aula, um concurso de composies.
Geralmente, escrevamos sobre vacas de estampa. Desta vez, porm, a
professora deu-nos liberdade de assunto. [...] minha composio era todo um gesto
de amor desesperado. Eu escrevia para a professora, isto , para o ser amado. E
me lembro de que comeava assim; - A madrugada raiava sangnea e fresca.
Confesso que fiz o plgio com um secreto terror. [...] E no sabia que tambm
Raimundo Correia furtara de um outro. E, na verdade, o que eu cometi, aos sete
anos, foi plgio de um plgio. Mas a sangnea e fresca madrugada havia de
doer, por muitos e muitos anos, na minha conscincia literria. [...] Mas a
professora no percebeu nada. Parou na primeira frase. Disse, pondo o dedo na
imagem: -A madrugada raiava sangnea e fresca. Estava deslumbrada (ainda a
vejo. Tinha papada e eu a amava). O menino do raj olhou para mim com um dio
adulto. E as meninas, que me chamavam de maluco, j sorriam. [...] Em seguida,
porm, veio o pnico. Eu passava do soneto para a mais deslavada A vida como ela
... e , por isso, escrevi que, ali, comecei a ser Nelson Rodrigues . A vida como ela
... muito anterior ltima Hora, a de Samuel Weiner. Data de 1922; nasceu de
um plgio, na sala do quarto ano primrio da escola pblica. Com oito anos
incompletos, eu contava um adultrio, com todos os matadouros. O marido saa e a
mulher, nas barbas indignadas dos vizinhos, chamava o amante.
Eu era um moralista feroz, e no fui, confesso, nada compassivo. Um dia, o
marido volta mais cedo. Ao entrar em casa, v aquele homem saltar da janela,
pular o muro e sumir. A mulher caiu-lhe aos ps, soluando; -No me mate! No
me mate! O marido agarrou-a pelos cabelos. E o que houve, em seguida, foi uma
carnificina. Lembro-me de que a composio terminava assim; - acabou de matla a pontaps (RODRIGUES, 1993a, p.143).
80
O ator Jece Valado28, casado por quatorze anos com Dulce Rodrigues - a irm
caula de Nelson - em entrevista a Eugnio Puppo, entre uma e outra confisso insigne,
escancara o lado pessoal da famlia e endossa o fato de o dramaturgo ter utilizado muito de
seu universo familiar em composies e enredos:
O Nelson buscou muita inspirao no seio da famlia, no comportamento de
cada um. Ele retratava a famlia inteira, um drama atrs do outro O universo
rodriguiano est na vida dele, lgico. Ento ele j era o prprio personagem, um
autopersonagem. Com catorze, quinze anos ele j estava escrevendo no jornal do
pai, e isso deu a ele uma viso jornalstica. E depois, os dramas na famlia, a priso
do Mrio, a falncia, o assassinato do irmo no lugar do pai, essas loucuras todas
da poltica; e ele vai morar no subrbio, comea a vivenciar a vida do subrbio.
Essa famlia um pouco neurtica, mas ao mesmo tempo carismtica: tudo isso
29
influenciou na formao dele, no h duvida.
28
Jece Valado, alm de pertencer famlia, participou ativamente da obra teatral, cinematogrfica e televisiva
de Nelson Rodrigues. Atuou como chofer na pea A mulher sem pecado, onde conheceu Dulce, e mais tarde
encarnou o Diabo da Fonseca, de Viva, porm, honesta. Em 1962, adaptou com os prprios recursos Boca de
Ouro, que posteriormente vendeu para Jarbas Barbosa, por falta de verbas. Participou, em 1963, do filme
Bonitinha, mas ordinria, junto com Odete Lara e sob direo de J. P. de Carvalho. Em 1964, participou junto
com Vera Viana, Maria Helena Dias, Ambrsio Fregolente, Milton Carneiro, Roberto Duval e Lcia Magno, de
Asfalto Selvagem, dirigido por J. B.Tanko. No mesmo ano, fez parte da novela O desconhecido, escrita por
Nelson Rodrigues para a TV Rio. Por fim, sob direo de seu prprio filho Alberto encenou o filme A serpente,
adaptado de uma pea homnima.
29
81
Seguindo o fio condutor de Otto Lara, Arnaldo Jabor, no mesmo artigo, acrescenta:
Nelson filho do Jornal. Do texto jornalstico. Do efmero do texto do
Jornal. Dos casos de polcia. Das noites nas delegacias. (...) Isto deu ao Nelson a
profunda captao do bvio da realidade. Isto deu a ele sensibilidade rara de
profeta, haurida (...) nos crimes passionais da Lapa, no quotidiano das vilas, na
verdade luminosa dos subrbios, nas empadas de botequim, na crua verdade dos
fatos. (RESENDE, 1992, apud SILVA, 2002, p.52).
30
RESENDE, Otto Lara. Um ttulo que . So Paulo. O estado de S. Paulo, Revista d. 17 de novembro de
1991.
82
Para ele, a fabulao no se separa da realidade, pois parte dela. No toa Nelson
ganhou de crticos e amigos o apelido de flor de obsesso. Do qual comenta:
Sou um obsessivo e houve algum, se no me engano, o Cludio Mello e
Sousa, que me chamou de flor de obsesso. Exato, exato, e graas a Deus. O que
d ao homem um mnimo de unidade interior a soma de suas obsesses.
(RODRIGUES, 1993a, p.25).
Isso poderia nos fazer crer, como atenta Ir Salomo (2000, p.17), que o dramaturgo
seria possuidor de uma capacidade inventiva reduzida, uma vez que apresenta repeties
indigestas. Mas, ao contrrio disso, o crtico nos alerta que temos de tomar as obsessividades
sobrepostas como marca registrada, sabida e intencional de Nelson Rodrigues. O que
pode ser comprovado pelas prprias palavras do dramaturgo:
Na verdade, no s estou me repetindo, como sempre me repeti e
continuarei me repetindo. Mas a est um aparente defeito, que , na verdade, uma
das minhas escassas virtudes. O que seria de ns e, repito, o que seria de nossa
unidade interior, se no fossem trs ou quatro idias fixas? Vocs entendem? Trs
ou quatro idias fixas que nos perseguem do bero ao tmulo? (RODRIGUES,
1996: 159).
31
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84
filmes
hollywoodianos
ditavam
regras
provocavam
mudanas
de
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86
comum ao perodo. Perpetuando a sabedoria transmitida por avs, mes, tias e at mesmo
sogras, algumas mooilas prosseguiam conferindo ao casamento importncia extremada e
achando que a felicidade matrimonial dependia unicamente do empenho feminino. A maior
parte das esposas ainda se conservava sob domnio e autoridade de seus maridos e, em casa,
evitava qualquer questionamento sobre a diviso do trabalho domstico: cozinhar, lavar,
passar, cuidar dos filhos eram deveres exclusivamente delas.
Ratificando toda essa conjuntura de sujeio e servilismo a que estava submetido o
sexo feminino, o cdigo civil continuou por longas dcadas amparando o marido em caso de
induzimento a erro essencial ou falta de conduta adequada por parte de sua recm-esposa.
A lei previa a possibilidade de anulao do casamento, caso o marido percebesse que a noiva
no era mais virgem ou desconfiasse que ela o tinha enganado.
Analisando revistas, tais como Jornal das Moas, Querida e Cludia, de 1945 a
1964, Bassanezi (2006, p. 632) nos evidencia como os conselhos oferecidos pela imprensa
feminina de ento corroboravam para a sustentao dessa conjuntura. Diz a autora que mais
do que refletir um aparente consenso social, elas (as revistas) promoviam os valores
reconhecidos pela classe mdia, tais como a raa branca, a famlia tradicional e o poder
masculino. Conselhos divulgados pelos magazines motivavam as pequenas a manter o
casamento a qualquer custo, mesmo que para isso a esposa tivesse que fingir no saber da
infidelidade do marido. Advertiam-nas tambm sobre a necessidade de redobrar os carinhos e
provas de afeto para que nada desse errado em seu matrimnio. Alm disso, aconselhavam as
mulheres sobre como o bom desempenho nas tarefas domsticas e a boa reputao da esposa
eram importantes na conquista e manuteno do casamento. Enfatizavam ainda como as
esposas deveriam comportar-se frente a galanteios e flertes de outros homens, e como o
cuidado com a aparncia era fundamental para garantir o interesse do marido. Isso sem falar
nas recomendaes que faziam sobre como administrar o oramento domstico, como se
87
A punio maior que a mulher infiel podia receber fora o de ser vtima do clssico
crime passional era, segundo Carla Bassanezi, transformar-se em uma separada. Caso
fosse submetida a tal condio, ficava - juntamente com seus filhos - estigmatizada pela
sociedade. No raro revistas femininas, apoiadas no adgio popular de que quem avisa,
amiga , preveniam sobre os problemas que mulheres separadas poderiam vir a enfrentar.
O desquite no abonava novos relacionamentos, ficando a desquitada sob o estigma
88
de concubina, caso viesse a estabelecer uma nova unio. As que ousavam transgredir os
padres e se desquitavam, eram rotuladas de mulheres fceis, libertinas e liberadas.
Ficavam sujeitas ao assdio pervertido dos mais ignaros e, sob constante vigilncia, tinham
de abdicar de sua vida amorosa para no correrem o risco de perder a guarda dos filhos.
Adaptados ao quadro moderno, produtos culturais fabricados em srie seguiam as
tendncias dos conflitos de sentimento e dos dramas vividos pelas mulheres divididas entre a
paixo avassaladora e o comportamento esperado pela sociedade, mas sempre terminavam
por garantir a regularidade da hipocrisia moral socialmente resguardada.
No foi toa que, nesse perodo, o samba-cano (assim como muitos outros tipos
de produes artsticas que falavam de amores impossveis, paixes proibidas, infidelidades,
cimes, saudades, ressentimentos e esperas infinitas) ganhou espao33. Ali, cantando dores e
amores, como diz a professora Maria Izilda Matos (2005, p.91), grandes nomes da msica
popular, tais como Dolores Duran, Antnio Maria, Lupicnio Rodrigues, Vicente Celestino,
entre outros, divulgaram valores, expectativas e frustraes.
Nos versos Ningum me ama/, Ningum me quer/ Ningum me chama/ De meu
amor/ A vida passa / E eu sem ningum/ E quem me abraa/ No me quer bem..., por
exemplo, Antnio Maria traz baila experincias tpicas de freqentadores assduos das
noites bomias de Copacabana, que, nesse tempo, diferente de outros lugares do Rio de
Janeiro, como a Lapa e o Estcio, era freqentada pelo high-society, polticos, intelectuais,
colunistas da imprensa e visitantes em frias (Matos, 2005, p.98).
Tematizar o cotidiano noturno de Copacabana daquele perodo, com suas salas
33
Segundo MATOS (2005) os sambas-cano, por terem grande potencial para a revelao da subjetivao de
sentimentos e trazerem tona vivncias experimentadas, funcionam como representaes culturais importantes,
pois possibilitam interpretaes de um tempo em que homens e mulheres se encontravam s voltas com
subjetividades reprimidas e sonhos impossibilitados pela rigidez moral que, mesmo com todas as mudanas em
processo, insistia em permanecer no pas. Em suas palavras: Se, por um lado, o compositor captava, reproduzia
e explorava representaes que circulavam elementos de uma experincia social vivida, por outro, o seu pblico
incorporava, rejeitava, resistia a certas idias, sentimentos e ressentimentos expressos pelo compositor
(MATOS, 2005, p.91).
89
pouco iluminadas e esfumaadas, onde pares enamorados se encontravam entre uma e outra
msica sussurrada, seria, conforme Maria Izilda, o mesmo que resgatar as ambigidades
instaladas a partir das novas maneiras de viver que estavam sendo configuradas ento. Das
sessenta e duas composies de Antonio Maria, grande parte fala de dor, saudade e
abandono. O amor, para ele, era um sentimento sofrido, sempre permeado de desencontros,
dores-de-cotovelo, tristezas e perdas irreparveis.
Da mesma forma, a msica de Dolores Duran - ou por outra, Adilia Silva da Rocha
(nome de batismo) - tematizava as mudanas e as permanncias do perodo que ficou
conhecido no Brasil como Anos Dourados. Suas canes estavam intimamente ligadas
atmosfera cultural que se constituiu logo aps a Segunda Grande Guerra. Cantando amores
desiludidos e fragmentos do cotidiano, Dolores Duran conseguiu deixar impresso o tom
imposto pela crise dos valores tradicionais -estabelecida pelas mudanas de costumes- e, de
quebra, denotar as transformaes que se edificavam em funo dessa mesma crise:
A msica de Dolores Duran ficou na memria desse territrio como
representao dos anos dourados de Copacabana, em que se vivenciava um clima
de ps-guerra com crescente esperana de se redescobrir o ser humano, libertar-se
de tabus ancestrais e dependncias existenciais, com um querer ultrapassar
barreiras, num pas assentado numa tenra democracia que duraria pouco. Com
rara sensibilidade, ela conseguiu flagrar o mistrio sem esclarec-lo, expressou de
forma meldica o que todos sentiam: a paixo, tudo envolto no negro das roupas,
dito ou cantado em sussurros, tendo em frente um copo de usque e celebrando a
culpa, o fracasso, os amores impossveis e a solido. (MATOS, 2005, p.113).
90
Extraindo dos infortnios reais o lirismo melanclico das letras de suas msicas,
Dolores flagra as contradies e sedimenta situaes morais preestabelecidas. No raro, em
suas canes, a cantora/compositora traduz o sofrimento e a insegurana que transtornam as
mulheres de outrora. Por isso, o amor, em suas canes, tal qual em Antnio Maria, est
sempre permeado de dores, perdas, saudades, remorsos, culpas e solido.
Em versos como:
Eu desconfio que nosso caso
Est na hora de acabar
H um adeus em cada gesto, em cada olhar
Mas ns no temos coragem de falar
(Fim de caso; Dolores Duram).
ou ainda,
Vivendo na esperana de encontrar
Um dia um amor sem sofrimento
Vivendo para o sonho de esperar
Algum que ponha fim ao meu tormento
(Solido; Dolores Duran).
ela revela a angstia existencial que nos anos de 1940 e 1950 ronda o universo
feminino e sintetiza as inquietaes e frustraes amorosas daqueles tempos.
Lupicnio Rodrigues, mais que Dolores Duran ou Antnio Maria, conseguiu captar e
materializar as transformaes sociais e sensibilidades populares que se operavam na
ocasio. Com uma temtica urbana fortemente carimbada pelas influncias do tango e
bolero, conta-nos vivncias pessoais, situaes e emoes experimentadas por ele ou por
amigos prximos.
Tambm ele, cantando os maus amores, captou a cotidianidade e as tenses
urbanas que emergiam em meio a ruas, bares e cabars da cidade do Rio de Janeiro e em So
91
Paulo. De forma melodiosa e subjetiva (a maioria de suas canes esto em primeira pessoa)
canta as mulheres da noite, as mulheres dos cafs, dos bares, dos teatros e, raras vezes, as
mulheres do lar.
A mulher, como ele mesmo nos fala, tema vital de suas composies: Quase
todas as minhas canes falam da mulher. Acho que se Deus fez alguma coisa melhor que a
mulher, fez para ele(RODRIGUES, apud MATOS, 2005, p.135). Nas representaes que
faz do feminino, diz ele estarem ali muitas de suas experincias pessoais mal-sucedidas:
Eu tenho sofrido muito nas mos das mulheres, porque sou sentimental.
Cada uma que me fez uma sujeira me deixou inspirao para compor algo. Tive
muitas namoradas. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me
fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem
esqueci. (RODRIGUES, apud DIAS, 1994, p.20).
Ou ainda, nestes outros, onde confessa que s de longe contempla a mulher por
92
quem apaixonado, j que no tem coragem de assumir um compromisso srio porque ela
nunca seria somente dele:
Aqui no meu abandono
Espero louco de sono
O cabar terminar
Rapaz! Leve essa mulher consigo
Disse uma vez um amigo? Quando nos viu conversar
Vocs se amam
E o amor deve ser sagrado
O resto deixa de lado
V construir o seu lar
Palavra! Quase aceitei o conselho
O mundo este grande espelho
Que me fez pensar assim
Ela nasceu com o destino da lua
Pra todos que andam na rua
No vai viver s pra mim.
(Quem h de dizer, 1948).
Como bem nos lembra a professora Maria Izilda, quando o assunto so as mulheres
do lar, o lado conservador de Lupicnio se mostra ainda mais patente. Para ela, Lupi, como
carinhosamente o chama, valida, em suas canes, comportamentos que na poca eram
esperados das mulheres de bem tais como honestidade, fidelidade, castidade, sinceridade,
companheirismo, compreenso e obedincia. No arqutipo da mulher domstica, no h lugar
para realizaes, seno a de rainha do lar. A esposa dedicada, ou ainda, a me zelosa era
sagrada e por isso no podia ser retratada com sensualidade ou erotismo:
Os versos de Lupicnio denunciam a duplicidade feminina: sob a aparncia
frgil e dcil, ocultam-se a falsidade e a inconstncia que levam traio. A
mulher est dominada por instintos primitivos: cimes, vaidade, infidelidade,
crueldade. Como tem alma infantil e recebeu da natureza o instinto maternal, sua
nica e verdadeira vocao a maternidade. Apesar de atribuir vrios significados
e predicativos s mulheres, na fronteira perceptvel entre o dito e o no dito,
apregoa a mulher voltada para o lar, o marido e a criao dos filhos... (MATOS,
2005, p.138).
93
Diz Maria Izilda, ainda, que a concepo negativa do feminino nas composies de
Lupicnio Rodrigues contrasta com o universo masculino que ele configura. Segundo ela, o
compositor legitima a superioridade masculina quando ope o universo dos homens ao das
mulheres. Em oposio a elas, eles, em suas composies, so fiis, sinceros, isentos de
emoes, provedores, viris, firmes e trabalhadores; zelam pela tranqilidade domstica e
sabem bem a diferena entre a rua e o lar. Se acaso h um deslize de conduta masculina, a
culpa s pode ser delas, como nos mostra uma de suas letras:
Todos falam que sou um perdido
Um perdido pro mundo
Quando eu passo, os falsos amigos,
De mim acham graa
E murmuram, ali vai um brio
Cheirando a cachaa
Essa vida que levo, bem sei, no vida normal
Vou contar a vocs, minha histria
Este drama que me destruiu
Tive algum que amei com loucura
Este algum de traiu.
(Minha histria, 1956).
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assinados com os pseudnimos de Suzana Flag e Myrna (e tambm nos dois escritos por
ele-mesmo, como adiante veremos), possvel montar um amplo quadro da mudanas que
estavam ocorrendo na sociedade de ento, e justamente a que parece estar a importncia do
curto trajeto do lado feminino de Nelson Rodrigues.
Trabalhando com temas ligados busca da liberdade, ao prazer e, principalmente,
famlia, essas histrias evidenciam opinies, captam e expem a retrgrada mentalidade de
um Brasil que, apesar das movimentaes progressistas e renovadoras que surgiam e
comeavam a agitar a cena nacional, insistia em continuar com a bandeira do atraso.
Assim como nos sambas-cano de que falvamos, a famlia, o casamento e o amor
formam a estrutura basilar dessas intrigas. Em todas elas, a mulher tem papel relevante,
mesmo quando aparecem subjugadas. No raro, as falas das personagens femininas
reproduzem os ensinamentos e conselhos divulgados pelos peridicos voltados s mulheres
de ento e muitos dos comportamentos assumidos pelas heronas so extrados desse tipo de
revista, conforme pistas deixadas no prprio enredo de Npcias de Fogo: Dris chorava
lgrimas de felicidade, como se diz nos livros da Coleo das Moas. (RODRIGUES,
1997, p.133).
Idias como Uma esposa que no ama o seu marido talvez no merea, do prprio,
a necessria confiana. Segundo me parece, a maior garantia da fidelidade mesmo o
amor(RODRIGUES, 2007, p.398), ou No dia em que eu amar ser para sempre,
sempre...(RODRIGUES, 1998, p.110), ou ento: O que ele devia era me pegar fora, se
impor, eu quero um marido que me domine e no um bobo (RODRIGUES, 1998, p.116),
no so raras de serem encontradas.
Sob a mscara da Myrna conselheira, por exemplo, o autor expe e d materialidade
a um conjunto de padres e elementos fundantes da sociedade patriarcal. A maneira como
comenta certos assuntos, situaes e comportamentos define pontos que regulam as
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intersees entre a vida pblica e a vida privada. Em cada carta que prontamente responde,
em cada recomendao que amigavelmente faz e em cada conselho aparentemente
despretensioso que d, muito do perodo histrico de que parte vem tona. Com sugestes
do gnero (...) Se eu fosse voc (...) aniquilaria cem mil vezes a minha personalidade aos
ps da criatura amada, bem como (...) Mas, no diga nada, Sumatra. Responda sua
sogra, fazendo do seu bem-amado o mais feliz entre todos os homens, ou ainda (...) Faa-o
daqui por diante ter pena de si. Como? Dizendo e repetindo que, sem ele, no viveria...
(RODRIGUES, 2002) Myrna, cumprindo bem o papel a que se prope, reflete a atmosfera de
um tempo que se empenhava na sustentao de valores e ideais de um de Brasil autoritrio,
hierarquizante e preconceituoso.
Para entendermos como Nelson Rodrigues em cada trama exibiu percursos e desvios
de uma sociedade dividida entre a censura e a liberdade e em cada cena revolveu as
aparncias resguardadas por um povo hierarquizado e preconceituoso e, por fim, para
percebermos como de cada protagonista ele retratou os desejos e ambies, os medos e as
desgraas, os infortnios e os sonhos reproduzidos mecanicamente por muitos leitores de
ento, faz-se necessrio observar os detalhes na prtica. Por isso, vamos a eles...
96
sabendo o motivo pelo qual ela se casou com Paulo, e tomamos conhecimento da repulsa que
sente por ele.
Ao chegar, Leninha (como era chamada) se lana para fora do carro, pula uma cerca e
corre desesperada. Levam-na para a casa-grande e l o destino pecaminoso parece incrustarse definitivamente na vida da personagem. Lena conhece Maurcio, irmo de Paulo. De
imediato, ela se fascina por Maurcio, seu cunhado (que tambm se sente sugestionado a
conquist-la). Maurcio um belo exemplar masculino, a prpria me tem por ele ntida
preferncia. Tanta beleza parece ferir o seu irmo Paulo que, alm de no possuir tamanha
capacidade encantatria em seus traos e gestos, traz uma imperfeio fsica na perna que o
torna menos atraente ainda.
A raiva mordaz que Paulo sente por Maurcio, entretanto, no motivada por razo
to frvola e superficial assim, o que perturba o rapaz no inveja do amor materno
dispensado ao irmo ou sua beleza exuberante, o que impele Paulo a odiar o irmo , acima
de tudo, a traio - tema recorrente, diga-se de passagem, em toda a obra de Nelson
Rodrigues. Ele tem certeza de que seu irmo e Guida (sua primeira esposa) mantinham um
relacionamento.
em virtude do carter negativo pelo qual Paulo aparece caracterizado e tambm da
incerteza sobre como e por que Guida fora morta que o autor consegue nos sugestionar que a
morte dela no fora um acidente, e que seu marido o principal suspeito pela tragdia.
A vida da herona fica bastante complicada quando a meia-irm, por quem Lena se
sacrificou (casando com Paulo), aparece na fazenda. Ela chega no dia seguinte vinda dos
nubentes e atrs dela vem D.Clara, a madrasta m de nossa indignada herona. Netinha, como
chamada a meia-irm de Lena, perdera uma perna num acidente de bonde. Ela no sabe
sobre a chantagem feita por Paulo a Lena em funo da perna mecnica que lhe deu pouco
depois do acidente, e nutre pelo cunhado um carinho to terno, que chega a parecer paixo
97
98
Lena e se empenha em mudar a situao. Acusa a nora de ser o atual pomo da discrdia em
sua famlia.
Nos episdios que se sucedem D. Consuelo tenta de todas as formas se vingar da
jovem e para isso conta com sua capacidade de manipular as pessoas e com a animosidade
que D.Clara (madrasta de Leninha) cultiva pela enteada. Para isso, vale-se dos sentimentos
da ingnua Netinha, que parece ser a nica personagem verdadeiramente boa da histria; mas
frgil demais para suportar todo o preconceito social que lhe lanam os olhares alheios por
causa de seu defeito fsico. No toa seu final similar as de outras tantas personagens de
Nelson, que no conseguem se adaptar ao mundo. Ela se suicida depois de impedir que a me
coloque em prtica o plano de matar a irm.
Regina, ao se ver desprezada por Maurcio depois da chegada de Lena fazenda,
tenta se matar, cortando os pulsos, mas salva pelo Pe. Clemente - amigo e conselheiro da
famlia. Seus atos passam, ento, a ser conduzidos pela necessidade que sente de reconquistar
o rapaz e acabar com a vida da rival, o que rende histria diversos episdios.
A tudo isso, soma-se a incorprea e obsedante presena da falecida Guida nos
pensamentos daqueles que estavam fora da fazenda Santa Maria. A famlia dela no
acreditava em desastre puro e simples e a vingana passou a ser a obsesso nica de todos
naquela casa. O pai promete vingar-se do genro a qualquer custo e para isso conta com os
filhos Marcelo, Carlos e Rubens; com as meninas Lurdes, Lcia e Ana Lusa e com a prpria
esposa D.Senhorinha.
Duas so as tentativas da famlia Figueiredo para liquidar aquele que julgam ser o
responsvel pelo falecimento da adorada irm. A primeira diligncia frustrada. Eles
confundem Paulo com Maurcio que, naquele momento, tal qual o irmo, puxava uma perna
por causa de um pequeno incidente ocorrido minutos antes. A segunda tentativa parece ser o
momento de maior tenso da histria. Dessa vez, Marcelo e seus irmos no s capturam
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Paulo, como tambm Lena e o padre Clemente (que, por azar, presencia quando apanham o
rapaz e por isso acaba sendo levado junto). Os trs so levados casa dos Figueiredo, onde,
ansiosa, a famlia de Guida espera vingana.
Quando tudo parece no ter mais sada, Lena v um quadro de Guida pendurado na
parede e reconhece nele Regina. Tudo, a partir da, comea a ser esclarecido. Maurcio
reconduzido sala onde esto todos e acaba confessando que Regina , na verdade, Guida e
que eles mantm um relacionamento amoroso desde o dia em que houve o suposto crime.
Assim, a grande arquitetura de um formidvel projeto de vingana diluda.
Uma impresso de final feliz parece enfim se configurar, mas, como desgraa pouca
bobagem nesse gnero, o verdadeiro desenlace ainda aguarda o desvendamento de
incontveis segredos. Vemos, ento, a decepo dominar o pai de Guida, que at o momento
considerava sua filha uma mulher digna e de moral inabalvel. Paulo incitado pelo prprio
sogro a se vingar da mulher. Ele apanha a arma que o pai de Guida lhe d e se dirige
casinha da floresta, a fim de lavar sua honra. Quando encontra Guida (Regina), eles
conversam e se entendem, mas Paulo volta dizendo que matara a traidora.
Maurcio e o padre Clemente dirigem-se para o local, esperando encontrar uma
terrvel cena.Quando percebem que tudo est tranqilo, no entendem nada em princpio;
mas logo Regina trata de dar os esclarecimentos necessrios. Confessa a Maurcio que ela ,
na verdade, Evangelina, a irm de Guida que misteriosamente desaparecera e de quem os
Figueiredos evitavam falar, porque acreditavam que ela era uma pecadora que havia deixado
sua casa para viver de maneira imoral. Diz que quis se passar por Guida porque sabia que
Maurcio s gostava de mulheres comprometidas e, como ela estava apaixonada por ele, no
teve alternativa seno se passar pela irm, j que a semelhana entre as duas era espantosa.
Assume ter advogado em causa prpria, quando fica sabendo que Maurcio havia beijado
Guida e que Ldia a estava ameaando porque presenciara o beijo. Ento, fingindo querer
100
ajud-la, concebe um plano para poder se aproximar do rapaz. Porm, Guida pressente suas
verdadeiras intenes e, como tambm j estava envolvida pelo rapaz, resolve assumir seu
caso com o cunhado e fugir. Para garantir sua vitria nessa disputa, Evangelina conta que
conseguiu boicotar o plano de fuga da irm, trocando o bilhete que Guida havia escrito para
Maurcio. Admite ter se aproveitado da morte da irm para tomar de uma vez por todas o
lugar dela no corao do rapaz.
O motivo exato da morte de Guida no nos revelado. Ficamos com a impresso de
que tudo realmente no passou de um acidente e, dessa forma, Paulo livra-se de uma culpa
que o tornaria desmerecedor de um destino ditoso. Por causa da ateno e cuidados que Paulo
dispensa a Lena durante o episdio em que ficam sob o domnio dos Figueiredo, ela
consegue perceber as verdadeiras qualidades do marido e se rende a seus encantos interiores,
deixando de lado o desejo carnal que a prendia ao cunhado. Paulo confessa a ela que, depois
da morte da primeira mulher, ele no queria mais viver e que por isso resolveu fazer uma boa
ao, casando com uma menina necessitada, para que ela herdasse sua fortuna (o que o torna
ainda mais bondoso e digno da felicidade). Nessas alturas, para consolo geral de todos, o
defeito fsico de Paulo comea a ser abrandado com a ajuda de fisioterapias, uma vez que
uma mocinha to boa sempre tem, no gnero folhetinesco, a recompensa de terminar com
algum muito prximo perfeio. Maurcio, por sua vez, acabou feliz ao lado de
Evangelina, na cabana de troncos no meio da floresta. J D. Clara, foi expulsa da fazenda
pela prpria enteada e D. Consuelo, depois de fazer as pazes com a nora, teve a grande
felicidade de realizar o seu sonho de ser av.
O pleno sucesso da magia desse romance, no entanto, no est na frmula
folhetinesca, como em princpio possa parecer, mas na maneira como essa composio, ao
mesmo tempo em que corrobora para a manuteno do status quo, atua sobre a
coletividade, refletindo o imaginrio social e as caractersticas histricas que a criaram
101
Escravas do Amor
Escravas do amor tambm no foge regra. Ela sem dvida uma das narrativas
mais desvairadas de Suzana Flag. Comeou a ser publicada em setembro de 1944, ainda sob
o impactante sucesso de Meu destino pecar. Divulgada em O jornal, inundou as bancas
com tanta notoriedade que, mal terminou sua edio folhetinesca, foi editada em livro e
vendeu um grande nmero de exemplares.
Suas aes parecem nunca ter um fim, no h um clmax nico e, devido
fragmentao e fugacidade da intriga, detalhar todas as aventuras sobre as quais a autora se
deita, , como acontece com Meu destino pecar, deixar-se enredar pela prpria trama.
Retentora de uma velocidade prxima a dos filmes, encontramos nessa obra um puro
desvario imaginativo. So cerca de quarenta captulos com romances proibidos,
perseguies, raptos, suspense, traies, animais ferozes, horrveis viles, troca de bebs,
homicdios e um nmero inacreditvel de personagens tipificadas e de fatalidades que
acabam por delatar o ridculo de algumas situaes, o sentimentalismo piegas das
personagens e o gosto duvidoso pelo excesso melodramtico.
Sem destruir a noo de continuidade e totalidade do enredo, Nelson, ou melhor,
Suzana, num nico captulo, entrelaa dois, trs episdios paralelos, garantindo, dessa forma,
os tentculos ficcionais que ajudam a esticar a narrativa e a constituir um painel interessante
do gnero folhetinesco. Esse ritmo frentico disfara a falta de verossimilhana e encobre a
insuficincia de qualquer sensatez lgica.
Embora parea apresentar uma s trama, h duas histrias acontecendo
concomitantemente nesse livro. A primeira e mais longa est vinculada a misteriosos e
sobrenaturais acontecimentos, iniciados com a morte de Ricardo, noivo de Malu. A outra interligada primeira por coincidncias espantosas - refere-se a um desconhecido fato do
passado da famlia Maia.
102
Minha Vida
Escrito depois de Meu destino pecar e Escravas do amor, o romance
autobiogrfico Minha Vida a terceira obra de Suzana Flag e poderia se chamar, segundo a
melodramtica autora, Romance triste de Suzana Flag. Foi. Chegou ao pblico de forma
picada, atravs da revista mensal A Cigarra, de julho de 1946 a fevereiro de 1947. Nos meses
em que a obra estava sendo publicada, A Cigarra conseguiu aumentar sua tiragem de 80 mil
exemplares para 107 mil no final, tornando-se o mensrio de maior circulao do Brasil.
103
Saam trs ou quatro captulos por edio, num total de vinte e seis, todos interrompidos em
momentos decisivos e, por isso mesmo, ansiosamente esperados. Em setembro de 1946, antes
mesmo do trmino da publicao seriada, Minha Vida foi transformado em livro, com igual
nmero de captulos (26 ao todo) e vendido no com menor sucesso.
A biografia de Suzana to aleivosa quanto as histrias de suas personagens. J no
primeiro captulo, quase ficamos sem flego. A felicidade irrefragvel de seus quinze anos
conspurcada pelo suicdio de seus pais. Primeiro a me, que se envenena depois de rogar-lhe
uma praga e confessar-se adltera ao marido. Logo em seguida o pai, que no suportando a
idia de ter sido trado pela mulher, d um tiro na prpria cabea minutos depois de chamar
de cnica a esposa morta dentro no caixo.
Da para frente so mais de duzentas pginas de arrebatamentos sentimentais e
seqncias melodramticas temperadas com uma dose nada modesta de sensualismo,
dilogos mais que comprometedores e profusas pores do que Nelson Rodrigues tem de
sobra: obsesso.
Tudo passa a girar em torno de disputas amorosas bastante mrbidas. No centro,
dois homens disputam o amor de Suzana: Jorge (suposto amante da me de Suzana Flag) e
Tio Aristeu (irmo de criao do pai da jovem). Concomitantemente, as outras mulheres da
histria (tanto as tias de Suzana como as irms de Jorge) aspiram aos pretendentes da
herona.
A tudo isso, soma-se uma atmosfera de rivalidade consangnea configurada pelas
insinuantes situaes vividas entre D. Marta (av da herona) e Jorge; e, posteriormente,
pelas circunstncias sobrecarregadas de dio, cime e paixo protagonizadas pelo tringulo
amoroso composto por Nomia (irm de Jorge), Suzana e tio Aristeu.
Do comeo ao fim da trama encontramos um desvario de aventuras e peripcias.
Ilhas inabitadas, mares revoltos e lutas desmedidas (travadas em lugares bastante inspitos)
104
invadem as cenas. Paralelamente, enquanto o impasse amoroso entre Suzana, Tio Aristeu e
Jorge no se resolve, numerosos casos de traies e desapontamentos amorosos so
configurados. O jogo de seduo entre Jorge e Suzana fica cada vez mais repleto de
leviandades, arrebatamentos e blefes; mas tio Aristeu quem, depois de muita luta, vrios
desvarios e aes mais que reprovveis, consegue arrebatar o corao da jovem e com ela
viver o to famoso final feliz.
Npcias de Fogo
Npcias de fogo a quarta obra de Nelson Rodrigues sob o pseudnimo de Suzana
Flag. Publicada em 1948 em uma coluna diria de O jornal, segurou o flego de seus leitores
por 61 captulos, de 4 de agosto a 12 de setembro daquele ano. Simultaneamente saiu em O
Cruzeiro e seu sucesso como folhetim s no foi maior porque Nelson, nessa altura dos
acontecimentos, j tinha em seus planos o desejo de enterrar definitivamente sua verso
feminina para dedicar-se inteiramente a suas peas teatrais.
Do romntico folhetim inicial, encontramos em Npcias de fogo a estrutura
maniquesta, o tema da vingana, a disputa travada entre irms rivais, a indefesa herona abandonada prpria sorte-, o belo e irresistvel mocinho hbil em despertar paixes e
discrdias-, a vil malvada e sem escrpulos. As aes folhetinescas desse livro, tal como
aquelas encontradas nos primeiros folhetins romnticos, movimentam a trama de tal forma,
que fica difcil embarcar na leitura sem se deixar envolver pelas tcnicas de seduo e
devaneios sentimentais espalhados por toda a intriga.
A trama, como era de se esperar, no menos fantasiosa que a das obras anteriores.
Temos a impresso, no entanto, de que h uma maior semelhana do enredo com a poca em
que a histria fora publicada. A absorvente acumulao de peripcias parece ceder lugar,
atravs da ambientao dos costumes e das atitudes das personagens, a uma prodigiosa
105
retratao da poca.
O enredo apresenta a histria das irms Lcia e Dris. Em um s flego, Suzana
Flag configura o ambiente pesado e sinistro em que as duas passaram a viver depois do
nascimento de Dris (filha de d. Margarida e dr. Amarlio) e da chegada de Tia Clara (a irm
solteirona e infeliz que, a pedido de Amarlio, vem de Aimors para auxiliar nos afazeres
domsticos por ocasio do parto da filha legtima).
Tal qual Cinderela, nossa herona sofre durante a infncia os mais duros e solenes
desprezos. To bonita quanto a doce princesa dos contos de fada e no menos injustiada que
ela, Lcia submetida aos caprichos e acidez da irm mais nova, e no raras vezes
preterida pelo pai e pela tia em funo dela: Habituou-se assim a obedecer irm mais
moa, a transigir diante dos seus caprichos [...]. Fazia para a irm servios de criada:
penteava, calava as meias, cozia, cerzia, pregava botes (RODRIGUES, 1997, p.19).
No entanto, em tia Clara que, segundo Castro (1997, p.6), est centralizada toda a
maldade da histria. Para ele, a solteirona parece uma mistura da bruxa de Branca de Neve
com a governanta de Rebecca, s que multiplicada por cem. Ela , sem dvida, o
arqutipo ficcional do mal que se instala na narrativa. Quase todas as desventuras por que
passa Lcia ocorrem por causa de sua presena malfica e destruidora. Como vil digna de
nota que , est sempre espreita, articulando circunstncias, arquitetando planos
perniciosos, escamoteando fatos reveladores e interferindo negativamente no destino de
nossa herona.
Quando, porm, achamos que a histria no vai passar de uma moderna e malfeita
releitura das antigas narrativas infantis, Nelson se sobrepe a Suzana, invade as cenas,
esculpe as personagens e d novo rumo histria com suas eternas obsesses. O tempo
106
narrativo d um salto e vamos encontrar as duas irms, muitos anos depois34, j inundadas
por cimes, desejos de vingana e dio mtuo.
Rememorando o motivo dramtico de duas irms envolvidas com o mesmo homem encontrado em nove das dezessete peas de Nelson Rodrigues - Dris e Lcia passam a
disputar o amor de Carlos, um jovem que conhecem em um baile. Com a ajuda da malvada
tia Clara, Dris concebe os mais fabulosos planos para eliminar Lcia de seu caminho e
conquistar o encantador rapaz. Mas, como em folhetim o verdadeiro amor sempre vence e os
mocinhos sempre acabam bem e os viles arcam com as conseqncias de seus atos, Lcia
casa-se com Carlos, Dris fica mergulhada em suas amarguras e tia Clara, a pior vil da
histria, morre de desgosto ao ver que seu plano no deu certo.
O homem proibido
O homem proibido o quinto e ltimo romance de Nelson Rodrigues como Suzana
Flag. Ele foi publicado originalmente entre 31 de julho e 3 de novembro de 1951 no jornal
ltima Hora, com 79 captulos, permanecendo indito como livro at 1981, quando foi
editado com o nmero original de episdios. Concomitantemente, Nelson escrevia a coluna
diria Atirem a primeira pedra, dramatizando os crimes do cotidiano, que precederam A vida
como ela
Sua histria, como bem nos lembra Castro (1992, p.240), comea igualzinha a de
Minha Vida: a me que se mata, o pai que desaparece, a menina que deixada aos cuidados
de algum. A rf Joyce, sua me, D. Senhorinha, supostamente se suicida em nome de
um sentimento secreto e impuro. O pai, por sua vez, traduzindo em ato o peso profundo da
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Ruy Castro no prefcio Um caldeiro de Paixes feito em ocasio do lanamento de Npcias de Fogo em
livro (1997) pela Companhia das Letras, atenta que o tempo em que se passa a histria no definido: ...pode
ser a prpria poca em que o folhetim foi escrito -1948. Mas tempo e lugar - diz o crtico so irrelevantes em
Npcias de fogo, porque como se a histria se passasse fora da vida real... Nenhum dos jovens personagens
parece estudar, trabalhar ou ter qualquer ligao com a vida prtica... no fazem nada exceto amar, odiar,
sofrer, invejar ou remoer desejos de vingana... (CASTRO, Rui. In.RODRIGUES, 1997, p. 6).
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nica frase que pronuncia no velrio da esposa - Ningum se mata sem motivo desaparece definitivamente, deixando a menina aos cuidados dos tios, D. Flvia e Dr. Drio,
pais de Snia. Snia quem, apesar da pouca idade -ento com dez anos, apenas sete anos
mais velha que Joyce - toma para si a responsabilidade da criao da menina. Tanto Joyce
quanto Snia so recriaes bastante gastas de outras tantas personagens femininas de Nelson
na composio das mulheres com traos frgeis e delicados.
Tudo vai muito bem entre as duas at que Joyce adoece e surge na histria o belo e
sedutor Dr.Paulo. Comea a se configurar, ento, uma intriga digna dos mais excitantes
folhetins. A duas passam a disputar o amor de Paulo, mas Snia quem conquista seu
corao. Joyce, por sua vez, no desiste do mancebo e luta com todas as suas foras para
conquist-lo. Snia, boa e generosa, at tenta se livrar da paixo que a consome; mas em
pouco tempo percebe que intil resistir quele sentimento e acaba se envolvendo com o
mdico.
Os episdios que seguem - sempre devidamente interrompidos em momentos
decisivos - servem para apimentar a trama. Joyce aposta na sua beleza e poder de seduo
para fazer com que Paulo se apaixone por ela, porm suas atitudes s tornam o amor entre
ele e Snia ainda mais slido.
Mas, como todos os amores folhetinescos, esse tambm no chega a um final feliz
sem antes passar por penosas provaes. Por causa da imprudncia de Paulo no volante, um
desastre acontece. Ele bate o carro e Joyce fica cega35. (Vale lembrar que esse episdio
sutilmente arquitetado desde os primeiros momentos da narrativa. Em numerosos momentos
a autora enfatiza a beleza dos olhos da menina Joyce, o orgulho que ela sente deles e o
poder de conquista que eles tm. Isso torna a situao ainda mais comovente e deixa quem l
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A cegueira uma das obsesses mais contundentes na vida do escritor. A simples possibilidade de uma
cegueira utpica, dizia ele, era capaz de torn-lo uma pessoa melhor, pois lhe dava uma vontade obsessiva de
ser bom.
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O livro atinge seu pice dramtico nos captulos terminais, quando a morte de Paulo
esclarecida e todo o mistrio que envolve a volta da misteriosa Virgnia desvendado. Ao
contrrio do que tudo indica, o responsvel pela morte de Paulo no seu irmo adotivo, mas
a prpria Virgnia. Quando Carlos chega para se vingar do irmo (e, de quebra, assegurar seu
lugar ao lado de outras personagens de Nelson Rodrigues que prejudicam de modo
irreversvel os prprios irmos), ele o encontra morto.
Virgnia como que respondendo a um instinto brusco e irresistvel (visto no ter agido
por vingana, uma vez que at ento no se lembrava de que Paulo era o verdadeiro
responsvel pela sua situao) j havia cravado nas costas de Paulo um punhal. Ficamos
sabendo, ento, que foi Paulo o responsvel pelo desaparecimento temporrio de Virgnia.
Para vingar-se de Carlos (por quem a bela mulher o trocou) ele tenta assassin-la. Mas, como
a pancada que desfere na cabea da moa apenas a deixa provisoriamente com amnsia,
resolve mant-la numa casa no meio da floresta, longe de tudo e de todos.
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Sem saber de nada, Lcia, para proteger Carlos, deixa, como prova no local do delito,
suas digitais e um brinco, a fim de que pensassem ter sido ela a assassina. Os dois fogem,
jurando cumplicidade absoluta. Trs dias depois da fuga, porm, ficam sabendo que Virgnia
confessara o homicdio e que, depois de recuperar a memria, se suicidara. Os amantes
(Carlos e Lcia), libertos do receio que os consumia, vivem, ento, felizes para sempre.
Como foi possvel perceber, em todas as tramas, o gosto pelo excesso impera e a
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abundncia de cenas contribui para que se instalem dificuldades de explorar o fio narrativo
principal. Inicialmente, acontece a localizao da ao. Os ambientes so escolhidos segundo
um arqutipo j conhecido pelos entusiastas do gnero. So lugares que sempre se acham
estreitamente ligados intriga e em funo dela, mas, como nos lembra Rui Castro (In
RODRIGUES, 1997, p.6), so bastante indefinidos. E, justamente por causa dessa falta de
definio clara no tempo e no espao, que acabam convivendo bem com repertrios
contemporneos da poca em que foram escritas.
Geralmente, o espao em que se principiam as aes interno. Nesse ambiente
fechado - via de regra a casa da herona - j nos so oferecidos indcios da classe social a que
pertencem os protagonistas da narrativa. No decorrer da histria, a trama se expande pelos
arredores, onde so encontrados precipcios, florestas, fazendas, bosques, cavernas,
mausolus, choupanas, castelos, manses, subterrneos, ilhas desertas, praias desabitadas e
outros tipos de constantes obsessionais que representam a aventura, o perigo, a ousadia, a
relutncia e, j no final da aventura, a to sonhada felicidade.
tambm no incio da histria que so aos leitores apresentadas as personagens, as
quais, diga-se de passagem, esto sempre arrebatadas pelo desconhecido, pelo perigoso ou
pelo proibido. Como acontece em seu teatro, aqui tambm no h lugar para
individualidades, apenas representao e mscaras sociais. So maridos inconformados com
a traio - como o pai da prpria Suzana Flag, em Minha vida, que se mata aps descobrir a
infidelidade da esposa; so mulheres infelizes - como as que perturbam a vida da doce e
meiga Leninha, de Meu destino pecar; so amantes determinadas e ambiciosas - como
Glorinha, a menina perdidamente apaixonada de Escravas do Amor; so irms invejosas como Dris de Npcias de Fogo; ou ainda tias solteironas e sorumbticas - como tia Clara e
tia Hermnia; sogras possessivas - como D. Consuelo; cunhadas invejosas - como Nomia;
mulheres frgeis e dependentes - como Netinha; homens rsticos e irresistveis - como Tio
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Aristeu; esposas resignadas frente aos problemas da casa e da famlia -como D. Lgia...
Tanto quanto os heris tpicos das produes da mass media, as personagens
folhetinescas de Suzana Flag e Myrna se associam ao que Morin chamou de tirania do
happy end, isto , a necessidade de terminar a ao feliz. As provaes por que passam suas
personagens - ao contrrio daquelas da tradio milenar em que o heri apazigua com seu
sacrifcio a maldio ou clera do destino - so de breve permanncia. As mocinhas at
chegam a padecer com intensidade suficiente para purificar o mal e o pecado, mas seu
sofrimento passageiro, j que o final feliz arremate imperativo.
Concomitantemente exibio das heronas e personagens secundrias, instaurado
o elemento chave do enredo: geralmente um acontecimento sbito e surpreendente na pacata
e desinteressante vida da protagonista. A partir da, infinitas intrigas se imbricam e do corpo
narrativa. Atravs de um interminvel processo de gavetas, Suzana lana mo do
exagero amplificador36 e, de embuste a embuste, consegue amplificar os tentculos
enredacionais.
A fabulao parece perder-se em meio a tantas peripcias e interrupes. O desfecho
das aes suspenso em momentos decisivos e a expectativa dos leitores protelada com a
insero de coincidncias e repeties. Com isso, nosso autor mantm o suspense e impede
uma viso totalizante da histria por parte do leitor, que a essa altura j est to envolvido
com a trama, que pouco preocupado se mostra com a coerncia narrativa.
Na verdade, no h, por parte do autor, uma preocupao em fornecer explicao
lgica para os fenmenos pouco verossmeis. Os fatos so narrados com tal agilidade, que a
falta de identificao mimtica encoberta pela rapidez da narrao. O liame das histrias s
alcanado em virtude do carter predominantemente sentimental que apresentam os
36
A respeito do processo de gavetas e do exagero amplificador consultar Marlyse Meyer. Folhetim. Uma
Histria.So Paulo: Companhia das Letras, 2. Edio, 2005. p. 160.
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bom ressaltar -para que no reste dvidas sobre o pblico a que se destinavam as obras de Suzana Flag- que
na busca da adequao ao gosto do leitor mdio brasileiro, Nelson Rodrigues criou uma vasta galeria de
voluptuosas personagens e situaes capazes de seduzir tanto mulheres quanto homens. Conta-nos Rui Castro
(1992, p.187) que muitas foram as manifestaes de adeso aos textos da escritora. Nas histrias que narra,
possvel perceber que Suzana faz sucesso com ambos os gneros. Duas singulares circunstncias destacadas por
Castro confirmam isso. A primeira refere-se ao dia em que dezenas de velhinhas no conformadas com um erro
da grfica invadem a redao de O Jornal, na Avenida Venezuela, porque queriam saber como a histria da
vspera havia continuado. A segunda e mais interessante, refere-se a cartas enviadas por um presidirio para
Suzana Flag. Segundo o biogrfico, o homem se declarava a Suzana Flag sem saber que, na verdade, ela era
Nelson Rodrigues. Nelson respondeu-lhe com cautela - acrescenta Castro - insinuando que Suzana Flag era
casada ou estava por casar. O presidirio conformou-se e, tempos depois, voltou a escrever, comunicando o seu
prprio casamento na priso e convidando-a para madrinha. (CASTRO, 1992, p.187).
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acompanha o gnero.
Escravas do Amor, por exemplo, sugere uma ao concentrada em torno da mulher
entregue aos caprichos da paixo e dos desejos incontidos. O Homem Proibido, Npcias de
Fogo e Meu Destino Pecar, por sua vez, alm de sugerirem a existncia de amores
delirantes (que atraam as mulheres romnticas de ento), recriam imagens prprias
esttica do espetculo, com vistas a utilizar o elemento sexual como apelo e reiterao do
iderio masculino.
Mas o ttulo A mulher que amou demais o mais significativo de todos.
Encontramos nele dois dos elementos mais explorados por Nelson Rodrigues como Suzana
Flag e Myrna: a figura do amor sem limites e a da mulher apaixonada. Tal como fazia em sua
coluna de conselhos Myrna Escreve, a autora, nessa obra, traz tona ponderaes sobre
como a mulher refm de seus prprios sentimentos, em especial da paixo.
a prpria Myrna quem anuncia ser o livro uma dedicatria s mulheres que esto,
s que j estiveram e s que se vo apaixonar. Em um artigo publicado no mesmo dia em
que lana o primeiro captulo de seu romance, Myrna antecipa as desventuras por que passar
Lcia, a protagonista e, de quebra, torna evidente sua teoria sobre os limites do amor, ou
melhor, a falta deles:
Na vida sentimental da criatura, existem umas poucas verdades eternas.
Uma dessas verdades a seguinte: Pouco amor no amor. Sim, no h
possibilidade de meio-termo. Ou muito ou nada.[...] qualquer um de ns pode
saber se ama ou no. Basta que se concentre um pouco, e veja at onde ama o
ser amado. Se descobrir o limite, se considerar que ama at certo ponto, pode
despedir o pretendente. Porque, na verdade, sente, por ele, tudo: amizade,
inclinao, simpatia, menos amor. [...] O que h de trgico no amor, de
positivamente trgico, que faramos tudo, que no h uma medida para o
nosso altrusmo, a nossa abnegao, o nosso sacrifcio. Direi mais: no amor que
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o sacrifcio deixa de o ser. (RODRIGUES, 2003a, p. 17).
38
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os enredos. A dimenso romntica que ela d ao amor nos fornece a chave para a
compreenso das engrenagens que edificam as estruturas e as personagens de suas histrias
fatiadas. principalmente em torno dos sentimentos amorosos (e das relaes familiares,
como mais adiante veremos) que os mecanismos ficcionais em operao podem ser
visualizados.
O amor tido como uma manifestao de fora39. Os que amam amenizam quaisquer
adversidades em nome da valorao que do ao sentimento e, para o defenderem, so capazes
das mais audaciosas atitudes, inclusive matar e morrer. o que acontece, por exemplo, em
Escravas do amor. Dr.Carlos, desesperado por achar que sua esposa j no o ama e quer
troc-lo por Cludio (de quem ainda no sabe ser o pai), pensa em matar e morrer, como
pode ser observado no trecho:
Seu plano [o de dr.Carlos] estava formado: ia matar-se. E por mais que
procurasse achar uma possibilidade de salvar a si mesmo, no encontrava. Chegou
janela; a mo j apertava a coronha do resolver. Teve uma expresso abalada:
-Ele!
Era Cludio, realmente, que passava a distncia, pela frente da casa. [...]
Vendo a figura de Cludio -naquele momento supremo-, dr. Carlos teve uma
inspirao sbita que mudou totalmente o curso dos seus pensamentos. Disse,
olhando o rapaz, que se afastava lentamente:
- Eu me mato, sim. Mas antes liquido esse camarada. (RODRIGUES, 2001,
p. 525).
Tambm em Meu destino pecar a falta de limites no amor leva Paulo a pensar em
matar a esposa; e ela a querer morrer:
Lena entrou no quarto pensando:Devo ter febre. No quis acender a luz;
encaminhou-se para o oratrio. Ajoelhou-se diante da imagem [...] Ouviu a voz de
Paulo- Tem coragem de rezar depois do que fez? [...].
Viu o revlver na mo do marido. O cano estava voltado para ela.
-Eu no disse que matava voc, se voc se metesse com Maurcio?[...]
Ela podia correr, gritar ou se ajoelhar aos seus ps pedindo perdo. Mas no
se mexeu. Estava incrivelmente serena e seus olhos no refletiam nem medo, nem
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Cabe antecipar que tal iderio muito semelhante queles de suas peas teatrais, crnicas, memrias ou
conselhos sentimentais. S para termos uma noo de como as idias de Myrna sobre o amor so parecidas com
a concepo que o prprio autor tem sobre o tema, basta retomarmos uma das declaraes de Nelson Rodrigues,
publicadas anos mais tarde em suas memrias e confisses: Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance
com Lcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que so tudo para mim:- Todo amor eterno e, se acaba, no
era amor. E dizia: -Quem nunca desejou morrer com o ser amado no amou, nem sabe o que amar. As
nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com alegria e nada tem a ver com felicidade.
Quando nos casamos, eu lhe disse: Nem a morte a separao. Ela concordou que nada a separao.
(RODRIGUES, 1993a, p. 47).
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Em Minha vida, alm dos pais de Suzana Flag e Tia Hermnia, temos como modelo
desse ideal de amor Jorge, que no hesita em assassinar Cludio e tio Aristeu pelo amor que
diz sentir por Suzana:
- Matei por sua causa, para salv-la no se esquea disso. E s lamento
uma coisa que no tivesse sido o outro.
- Quem?
Aristeu. Eu o mataria com um prazer muito maior. Foi pena: Deus no quis!
Protestei:
- No fale em Deus, no use o nome de Deus! [...] Ele soprava no meu
ouvido, seus lbios encostavam na minha orelha:
- Eu sabia que voc vinha falar com Cludio. Sua av e Maria Luiza me
haviam dito. Subornei aquele empregado mudo e vim seguindo voc, sem que
ningum soubesse. Trazia o punhal que sua av me arranjou. Alguma coisa me
dizia que isto ia acabar em desgraa. [...] Esperei mais um pouco. E quando ele
quis levar voc, eu, que j estava com o punhal nas mos, avancei para ele e
enterrei tudo, at o cabo. (RODRIGUES, 2003, p. 217).
Vale lembrar que a exaltao do amor como valor supremo da existncia um dos
artifcios mais relevantes na elaborao de obras voltadas s massas. atravs do tema do
amor que, na maioria das vezes, segundo Morin (2005), o processo de identificao das
massas com a fico se realiza:
A natureza semi-imaginria do amor vivido permite a irrigao constante do
imaginrio pelo real, do real pelo imaginrio. A tal ponto que foi possvel dizer
que, sem a literatura, o amor no existiria. Mas, reciprocamente, sem a necessidade
de amor, toda uma literatura no existiria, O amor , portanto, por sua prpria
natureza, grande faixa oscilatria entre o imaginrio e o real. As osmoses entre o
amor imaginrio e o amor real so tanto mais mltiplas e interfecundantes quanto
o amor da cultura de massa , de fato, profundamente realista. Em outras palavras,
o amor da cultura de massa busca seus contedos na vida e nas necessidades reais
(individualismo privado moderno) e lhes fornece seus modelos. (MORIN, 2005,
p.136).
117
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A idia de que a fora bruta era necessria para controlar os instintos naturais da mulher
e a de que a mulher deveria ser submissa e at se humilhar frente ao homem (caso fosse
preciso), tambm esto presentes nas entrelinhas de Meu destino pecar, de que o trecho
abaixo amostra:
E no teve tempo mais de nada. A mo dele se erguia, sem que ela, de
momento, pudesse imaginar o que ia suceder. Foi atingida no rosto, de lado, e com
tanta fora, que tonteou, cambaleou, sentiu uma nvoa passar na frente dos olhos, e
sacudiu a prpria cabea, para se libertar da tonteira. Ele me esbofeteou, ele me
bateu, foi o seu sentimento profundo. (RODRIGUES, 1998, p. 440).
119
117).
Suas heronas, seguindo o prottipo do heri simptico de que nos fala Morin
(2005, p.91-97), so resultados dos tempos modernos, tempos esses em que se criaram
condies capazes de permitir a um personagem mediano desempenhar a funo de superhomem. Como dizamos antes, elas buscam parecer um ssia natural do leitor e, para isso,
procuram viver dentro de registros semelhantes queles a que eles (os leitores) esto
habituados. Para Morin:
O imaginrio comea na imagem-reflexo, que ele [o escritor] dota de um
poder fantasma a magia do ssia e se dilata at aos sonhos mais loucos,
desdobrando ao infinito as galxias mentais. D uma fisionomia no apenas a
nossos desejos, nossas aspiraes, nossas necessidades, mas tambm s nossas
angstias e temores. Liberta no apenas nossos sonhos de realizao e felicidade,
mas tambm nossos monstros interiores, que violam os tabus e a lei, trazem a
destruio, a loucura ou o horror. No s delineia o possvel e o realizvel, mas
cria mundos impossveis e fantsticos (MORIN, 2005, p.81).
Talvez por isso as prescries de comportamento que encontramos nos enredos das
autoras apostem na dicotomia entre os conceitos de mulheres srias e moas levianas,
to freqentemente discutidos nas revistas voltadas ao pblico feminino da poca. Talvez
por isso tambm o beijo na boca aparece como elemento vital em suas histrias fatiadas.
Nos seis folhetins de autoria feminina, o beijo (ou mesmo o seu impedimento) a
principal metfora do amor. As dimenses erticas que nele se esgotam geram a empatia
com os representantes das classes populares e despertam a identificao projetiva de que
Morin (2005, p.134) se ocupa. Para o crtico, o beijo, neste tipo de literatura, representa o
encontro de Eros e Psych: O beijo na boca um ato de duplo consumo antropofgico, de
absoro da substancia carnal e de troca de almas, a comunho e comunicao da psique
no eros....
Cenas como esta, extrada de Meu destino pecar:
Ele pedia agora, chegando aos ouvidos da menina:
-Posso beij-la?
Netinha no teve uma hesitao, uma dvida. Os dois rostos se juntaram, as
bocas se fundiram, aquelas duas vidas pareciam unidas para a eternidade. [...]
120
121
Essa histria nos remete a outra intitulada A dama do lotao, que anos mais tarde
seria publicada em A vida como ela ... Nela, Carlinhos, unido h pouco com Solange pelo
matrimnio, se v perturbado com a suspeita de que a esposa o traa com Assuno, seu
amigo de infncia. As suspeitas comeam em um jantar, quando Carlinhos, ao se abaixar
para pegar o guardanapo derrubado no cho, v os ps de Solange roando os do amigo. Qual
no foi sua surpresa quando ela confessa que Assuno no fora o nico com quem manteve
122
intimidades. Diz a ele que um ms aps a cerimnia de casamento, todas as tardes, ela saa de
casa, apanhava o primeiro lotao que passava e se envolvia com qualquer desconhecido com
que se deparava. Carlinhos, diferente do marido daquela reportagem coberta por Nelson em
sua juventude, no matou a esposa com trs tiros queima roupa. Foi para seu quarto,
deitou-se na cama vestido apenas de palet, colarinho, gravata e sapatos e condenou-se
morto para o mundo. A esposa, aceitando sua viuvez, rezava, e s interrompia a orao
tarde, quando saa para sua escapada delirante, de lotao.
As infiis de A vida como ela ... esto por toda parte. Constantemente o adultrio
feminino aparece como a engrenagem dessas histrias. sempre a traio de uma mulher o
que apimenta enredos banais, o que d o tom irnico s narrativas e o que evidencia a
concepo de Nelson Rodrigues sobre certos assuntos. Em A vida como ela ..., diz o escritor
ser imprescindvel a presena das adlteras, pois seus leitores, ao comprarem o ltima Hora,
j esperavam por elas:
Se as novas geraes me perguntassem o que era A vida como ela ..., diria:
- Era sempre a histria de uma infiel. Apenas isso. E o leitor era um fascinado.
Comprava a ltima Hora para conhecer a adltera do dia. Claro que, na minha
coluna, tambm os homens traam. Mas o que o pblico exigia era mesmo a
infidelidade feminina. Quando sa da ltima Hora, e acabei A vida como ela ..., o
telefone no parava. Homens e mulheres queriam saber se no ia sair mais e por
qu. Dir-se-ia que o problema do brasileiro um s: - ser ou no ser trado.
(RODRIGUES, 1993a, p.69).
planejam
vinganas,
esposas
aflitas
pensam
em
suicdios,
relaes
aparentemente estveis beiram o fracasso, filhos bastardos envolvem-se com suas mes,
mulheres descontentes projetam fugas mirabolantes, consortes se dilaceram...
123
interessante notar que em Meu destino pecar, a traio feminina caracterizada por
alguns beijos mais comprometedores - no acontece revelia. Paulo persegue Lena (sua
segunda mulher) por causa do cime doentio que sente quando a v com Maurcio, seu irmo
e principal rival. Por causa do desgosto de ter sido trado pela primeira esposa, Paulo torna a
vida de Lena um verdadeiro inferno e isso a conduz deslealdade.
Como vimos antes, a origem humilde de Lena coloca-a em uma situao de
inferioridade que a oprime e sufoca. Ela fica sob as ordens do marido e da sogra em troca de
uma perna mecnica para a meia irm Netinha. Para Fonseca (2001) esse ato de Lena , sem
disfarces, o que Engles considera a transformao da convenincia na prostituio. A
mulher, nesse caso, s se diferencia da cortes habitual pelo fato de que no aluga seu corpo
por hora, como uma assalariada, e sim o vende de uma vez, para sempre, como uma
escrava. Berta Waldman (1997, p.170) nos lembra, porm, que a questo econmica no
tem grande importncia dentro da dinmica desse romance e que a mulher oprimida porque
mulher e no por ser pobre. Para ela, a felicidade no casamento entre Lena e Paulo est
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alm das diferenas de classe, pois a interdio do dinheiro configura-se na obra como um
problema irrelevante:
As diferentes classes sociais postas lado a lado com o casamento no criam
uma dinmica, no produzem atrito. Assim, o autor perde a oportunidade de incluir
um problema de peso em seu romance e, desse modo, iluminar as relaes
mercantilizadas que esto na base de nossa sociedade. Ele ameaa faz-lo, mas no
conduz adiante seu intento, o que simplifica de sobremaneira a equao inicial do
romance e refora o carter concessivo que est na base do folhetim, porque
dispe suas peas de tal maneira que devolve ao leitor um objeto perdido, mas que
certo tipo de ideologia tema em salvaguardar: a felicidade no casamento est alm
ou aqum da diferena de classes... (WALDMAN, 1997, p.170).
Seja como for, o adultrio de Lena justificado principalmente pela falta de amor.
Essa personagem, semelhante a outras figuras dramticas de Nelson Rodrigues, trai pela
ausncia de afeto. A comercializao de sua vida contamina qualquer possibilidade de
satisfao pessoal e, por isso, a mais tnue perspectiva de amor reduz-se em dio, violncia e
desejo de libertao, de que a traio acaba sendo o resultado imediato. Em vrios
momentos, tal qual faz Ldia em A Mulher Sem Pecado, Lena chega a desejar a morte do
marido e at mesmo a cogitar a idia de mat-lo, como possvel perceber pelo ttulo do
captulo inicial: Eu seria capaz de mat-lo? Seria capaz de matar meu marido?.
Essa falta de amor s no rejeita inteiramente a ordem social instituda porque
proposital. No fim, como vimos, em virtude das concesses prprias do gnero, Suzana
Flag obedece aos ideais folhetinescos e reserva um destino romntico e feliz ao casal.
As seqelas folhetinescas, seguindo o carter moralista das clssicas histrias
fatiadas, tornam-se, dessa forma, exemplos morais importantes para alertar o pblico como
uma atitude fora dos padres legitimados pela sociedade pode acabar com a harmonia de uma
famlia. Todos os aspectos que o ato adltero acarreta na vida das personagens, em ltima
instncia, se analisados em conjunto, nada mais so que elementos reveladores da viso de
mundo de homens e mulheres que viveram naquela poca.
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Chegou certa ocasio a dizer, com alto grau de ironia e impacincia, que era uma
grande besteira tomar as novelas - herdeiras, como sabemos dos folhetins - como produtoras
irracionais de uma gerao de perigosssimos gangsters juvenis (Rodrigues, 1996, p.48).
verdade tambm que, com certa incoerncia, o autor, em algumas de suas
declaraes, censurava determinadas peculiaridades do gnero. Algumas vezes chegou a dar
mostras singulares de que pouco valorizava sua produo folhetinesca. Arrazoou em
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Suzana Flag, juntamente com Afonso Schimidt (Sete luas Loucas- 1950), Alosio Castelar (As noivas do
Pecado-1952), Jos Lins do Rego (Cangaceiros- 1953), David Nasser ou Giselle de Monfort ( Giselle, a
espi nua que abalou Paris -1948) e outros de menor reconhecimento, deu os ltimos grandes suspiros do
gnero folhetinesco no Brasil. Vale destacar que, depois de Nelson Rodrigues, os folhetins, tal qual viemos
trabalhando, deram lugar s telenovelas e que muitos outros autores apareceram ento, mas j como
teledramaturgos, no como folhetinistas. Cabe lembrar tambm que o prprio Nelson Rodrigues quem recebe
o ttulo de pai da telenovela brasileira. Sua obra A morta sem espelho, escrita em 1963, para a TV Rio, dirigida por Srgio Brito e estrelada por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo - considerada a primeira
novela brasileira a ser reproduzida em rede nacional.
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126
42
bom notar que as telenovelas no Brasil dos anos 50 se expressavam pelo padro do folhetim melodramtico
e que as histrias produzidas por escritores brasileiros muitas vezes eram adaptaes literrias de obras
nacionais e estrangeiras.
127
O que mais parecia surpreend-lo no gnero, entretanto, era a funo evasiva que
nele Nelson encontrava. Considerava que essas vias imaginrias consistiam em importantes
canais de escape s presses interiores ocultas na particularidade de cada um. Em diversos
momentos, d a entender que o compromisso desse tipo de texto no era o de desnudar os
problemas sociais do Brasil, nem de conscientizar as massas de seus direitos polticos e
sociais; mas o de alvio e conforto: A novela sobretudo uma fuga- dizia o autor - Como
a realidade muito insatisfatria, a novela representa o sonho cotidiano para muita gente.
um repouso. (RODRIGUES, 1973, apud FREIRE FILHO, p.7) 43
Defendia a idia de que o universo imaginrio desempenhava um papel de consolo e
desobstruo. Para salvar o homem real, dizia o autor que era preciso encher os enredos de
assassinos, de adlteros, de insanos... Segundo ele, para que a fico fosse efetivamente
purgativa, ela deveria ser cruel, deveria ter personagens sdicas e expor as barbries do
mundo de forma vil e escancarada, pois s assim ela seria eficaz na sua tarefa de exorcizar o
mal, o pecado e a morte:
A fico, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem vil para
que no o sejamos. Ele realiza a misria inconfessa de cada um de ns. A partir do
momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real
deixaro de faz-lo. No Crime e Castigo, Raskolnikov mata uma velha e, no
mesmo instante, o dio social que fermenta em ns est diminudo, aplacado. Ele
44.
matou por todos. (RODRIGUES, 1996, p.15)
43
RODRIGUES, Nelson.De rainhas loucas, bem-amados, irmos coragem, etc, etc, Opinio, 27/08 a 03/09
de 1973.
44
No custa ressalvar que o romance citado por Nelson Rodrigues, Crime e Castigo, no seu todo, no tem
carter folhetinesco. Mas, sem dvida, essa uma passagem particularmente interessante para confirmar o que
vimos dizendo.
128
de nosso autor vem corroborar com a idia de que Nelson Rodrigues, apesar de, em parte,
enjeit-lo, no s reconhecia o valor do gnero, como tambm fazia bom uso dele, tal qual
ele mesmo nos confessa:
Inclusive as minhas peas tm muito de folhetins. O que no quer dizer
nada, porque Dostoievski tem coisas, cenas de novelas da Rdio Nacional.
Quando, por exemplo, Raskolnikov se ajoelha aos ps de Snia e declara: No foi
diante de ti que me ajoelhei, mas diante de todo o sofrimento humano. Isso
novela da Rdio Nacional, sem prejuzo nenhum para Dostoievski, sem prejuzo
nenhum para Crime e Castigo. de uma beleza absoluta, porque o folhetim no
deve nada a ningum. Ele pode ser bonito, pode ser potico como a obra mais
hiertica, ouviu?, o folhetim pode ser, porque volta e meia entra o folhetim, como
nas minhas peas, onde eu uso, gosto de usar. Fico delirante quando acho uma
coisa, tpica, rigorosamente folhetim. (RODRIGUES, 1981, p. 116).
Sua pea O beijo no Asfalto bom exemplo disso, porque, de certa forma, ratifica a
idia de que a frmula das histrias fatiadas sempre foi bastante cara ao nosso autor. Nela,
a prtica de procedimentos folhetinescos e aqueles retirados dos fait divers vo muito alm
da proximidade entre os fatos reais e os fictcios, pois esto incrustadas no prprio enredo e,
por isso, encerram eficcia parte. Segundo Leo Gilson Ribeiro, a questo simples:
O jornal dramatizado e tratado como se fosse um personagem na pea.
Cria-se ento mtua dependncia: os leitores tornam-se vtimas dos que lem nos
jornais e estes, por sua vez, tornam-se vtimas dos caprichos, das atitudes e reaes
de seus leitores, que exigem um certo tipo de reportagem, um certo ngulo de ver
45
os fatos. (RIBEIRO, 1966, In RODRIGUES, 2004, p.279) .
Teatro completo de Nelson Rodrigues. Volume 4. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1966.
129
130
Tambm o uso consciente que o autor faz dos elementos da tradio melodramtica
- apesar de todos os clichs e superficialidades, inverossimilhanas e vulgarismos - guarda
precioso valor, pois (da mesma forma que os expedientes folhetinescos por ele utilizados)
fornece sua dramaturgia temas, juzos e expedientes teatrais.
A esse respeito, diz Luiz Arthur Nunes46 que Nelson Rodrigues, mandando s
favas o preconceito, foi capaz de intuir que os artifcios disponibilizados pelo gnero
melodramtico poderiam fornecer um imenso repertrio de recursos de extraordinria
teatralidade s suas peas. Segundo o autor, o teatrlogo gostava de posar de antiintelectual e de exibir, em vez de erudio, intimidade com a cultura popular, adquirida por
46
Disponvel
em:
131
sua vivncia de jornalista e isso era o que lhe permitia mergulhar na crueza da vida real. De
acordo com suas idias, a nosso ver um tanto exageradas, Nelson Rodrigues adotava o
melodrama porque sabia que assim estaria comungando dos mesmos valores culturais do
povo brasileiro, capturando-lhe a carne e o esprito. Em apresentao que faz do Teatro
Completo de Nelson Rodrigues, Luiz Arthur acrescenta:
A mistura de elementos naturalistas e melodramticos, que haveria de se
tornar trao tpico do drama rodiguiano, j aparece com nitidez nesta sua primeira
criao [A mulher sem pecado]. A substncia da intriga cime-adultrio-suicdio
emprestada dos fait divers com que ele lidava em sua atividade jornalstica.(...)
Nelson utiliza uma variedade de procedimentos furtados do repertrio do
melodrama tais como a exacerbao emocional, o exagero de gestos e tons de fala,
a tcnica da pista falsa (...) os coups de thtre, as sbitas reviravoltas e assim por
diante. (NUNES, In RODRIGUES, 2004b, p.15).
Para Huppes (2000, p.23), o teatro que Nelson Rodrigues comea a mostrar no
Brasil em 1942, ano da estria de A mulher sem pecado, evidencia uma dvida profunda do
dramaturgo para com o melodrama. Embora, para ela, primeira vista, tal aproximao
parea um disparate, a autora, depois de enfatizar o estilo incontestavelmente inovador da
dramaturgia de Nelson, justifica:
Isto [ou seja, o tributo que, conforme a escritora, o dramaturgo rende ao
gnero consagrado pelo romantismo, ou por outra, ao melodrama] acontece atravs
da forte motivao passional da trama, que trabalha lances inesperados, golpes e
revelaes sucessivas; que lana mo de pressentimentos, de promessas
inescapveis, de amores secretos, de obsesses; que utiliza cenrios de impacto,
como caixes e defuntos, crios na escurido, movimentao em escadarias; que
alterna cenas alegres e patticas; que cultiva o exagero e o paradoxo com toda a
naturalidade.(HUPPES, 2000, p.24).
132
47
Ibidem.
133
Ainda que de forma um pouco mais reticente, Sussekind (1977), analisando o teatro
rodriguiano, tambm salienta a vizinhana latente entre as diferentes formas de composio
desenvolvidas pelo teatrlogo, em especial entre os faits divers e os textos voltados
dramaturgia. Levando em conta que
o fait divers resulta de uma classificao do inclassificvel, no tendo por
objeto seno aquela parte do at ento no nomeado, ou ainda aquela poro da
realidade que se sustenta fora de todo catlogo conhecido, (SUSSEKIND, 1977:
48.
28; apud FRAGA, 1998, p.52)
48
SUSSEKIND, Maria Flora. Nelson Rodrigues e o Fundo Falso.I Concurso Nacional de Monografias, 1976,
MEC? Funarte/SNT, 1977, p. 28.
134
a transformar aquela matria em texto teatral. Amigo pessoal de Nelson Rodrigues e, acima
de tudo admirador confesso, o crtico recorda que no poucas foram as vezes em que colegas
da repartio pblica onde trabalhava contavam a ele casos pessoais na esperana de que
os transmitisse a Nelson, para que o dramaturgo os encaminhasse s pginas dirias de A
Vida Como Ela ...
Nelson no escondia que gostava de ensaiar um tema nesse folhetim dirio,
para aprofund-lo depois no teatro. (...) Creio que Nelson experimentava, em A
Vida Como Ela ..., a validade de uma esttica popular, estendida depois para o
palco. (MAGALDI, 1992, p.57).
E completa:
A observao da vizinhana, o conhecimento dos dramas cotidianos, o
imperativo da luta pela sobrevivncia tudo isso constituiria a matria-prima do
ficcionista. Jornal e criao dramatrgica passaram a no ter fronteiras, sendo um
o prolongamento do outro. (MAGALDI, 1992, p.58).
Ismail Xavier, ao abordar o assunto, evidencia ser difcil versar sobre o trgico nas
peas de Nelson Rodrigues sem levar em conta as inflexes, os ajustes e os deslocamentos
sofridos pelo gnero no decorrer dos tempos. Acredita o autor que nas obras do dramaturgo
repe-se o problema da permanncia do gnero trgico na modernidade, j que, ao mesmo
tempo em que h a incidncia de aspectos relativos ao trgico, h tambm a incorporao de
arqutipos no propriamente trgicos, projetos e idias dramticas retirados de padres
codificados em outros momentos da histria do teatro e do romance. Para o crtico, tem
especial relevncia nas obras de Nelson Rodrigues
o legado do melodrama do sculo XIX e, de forma decisiva, as oscilaes
de tom e os paradoxos da tragicomdia, pois o contexto de crise de valores em que
tal teatro se insere torna instveis os apelos a uma ordem universal subjacente,
fazendo incerto o movimento que liga as aes e as determinaes, o acaso e a
necessidade, o gesto e a inteno, o corpo e a palavra. (XAVIER, 2003, p.161).
Segundo ele, por fora da interao entre forma dramtica e experincia social, e
tambm pelo descompasso criado entre a soluo encontrada pelo protocolo da tradio
clssica e a nova configurao da vida moderna, no havia como Nelson Rodrigues fazer
teatro sem encontrar um ponto de ligao entre as formas:
135
Para ns, a mescla entre os gneros trabalhados por Nelson Rodrigues evidente.
Suas obras teatrais, ainda que se aproximem a um tipo de tragicidade moderna -como nos
ensina ngela Leite Lopes (2007, p.65)-, carregam seqelas de seus romances e reportagens
sensacionalistas. Cheios de reviravoltas repentinas e incrveis revelaes, as tramas
especialmente desenvolvidas por ele para os palcos deflagram, no raro, recursos prprios
das histrias fatiadas e do melodramtico; e esses, por sua vez, reproduzem situaes e
estruturas de suas composies dramticas.
A primeira questo que nos salta aos olhos quando chegamos ainda mais perto dos
diversos gneros trabalhados por Nelson Rodrigues diz respeito s performances exigidas dos
atores que encenam suas histrias. A atuao esperada dos que representam as peas teatrais
de Nelson Rodrigues, tal qual aquela esperada pelos atores que interpretaram suas
personagens folhetinescas em adaptaes feitas para o cinema e a televiso49, est muito
prxima s performances postuladas ao elenco do melodrama. Os intrpretes vivem situaes
49
Muitas foram as adaptaes das obras jornalsticas e folhetinescas de Nelson Rodrigues feitas para a telas.
Isso sem falar nas diversas obras teatrais que foram transformadas em filmes e minissries. Meu destino pecar,
dirigido por Manuel Pelufo, em 1952, foi a primeira adaptao de um texto folhetinesco de Nelson Rodrigues
para o cinema. Em 1964, sob direo de J. B. Tanko e com fotografia de Tony Rabatoni, foi a vez de Asfalto
Selvagem, trama que rendeu muitas outras filmagens no decorrer dos tempos. Baseado em romance homnimo
de Nelson Rodrigues, o filme fiel ao enredo do folhetim e seu sucesso foi tanto, que em 1966, novamente sob
direo de J. B Tanko, o mesmo enredo volta s telas, agora sob o ttulo Engraadinha depois dos trinta. Em
1975 foi a vez de O casamento. Adaptado por Arnaldo Jabor, com durao de 96 minutos. Em 1978, com
direo de Neville DAlmeida, temos o conto A dama de lotao adaptado para a tela. Com 105 min, e tendo
como atriz principal Sonia Braga, o filme se tornou um sucesso de pblico desde a estria. Mais recentemente,
em 1995, a TV Globo foi responsvel por uma das mais fidedignas adaptaes da obra folhetinesca de Nelson
para a TV. Trata-se mais uma vez de Asfalto Selvagem, agora sob o ttulo Engraadinha, seus amores e seus
pecados. O romance foi transformando em uma minissrie composta por vinte captulos.A diretora Denise
Saraceni, sem modernizar o enredo, usou com propriedade a mirabolante trama da obra original. Em 1996,
tambm na TV Globo, Daniel Filho idealizou e co-dirigiu com Denise Saraceni, captulos de A vida como ela
...
136
extremadas (desesperos, angstias, dios, paixes...) e, para que tenham xito, devem exibir
com energia sua personalidade dramtica, seus dons de mmica e a fora das grandes
encenaes. Segundo Marco Antonio Braz50, o ator que quer interpretar Nelson Rodrigues
deve ser trs coisas: emocional, histrinico (ou seja, farsista, bufo) e visceral.
Para Nelson (1993a, p. 63) A verdadeira vocao dramtica no o grande ator
ou a grande atriz. , ao contrrio, o canastro, e quanto mais lmpido, lquido e ululante,
melhor, qui por isso, no filme Meu destino pecar, por exemplo, embora a atuao de
Zilah Maria (a louca) no tenha agradado de todo a crtica pelo que continha de exagero ou
de grotesco foi, segundo Hernani Heffner, a interpretao que mais agradou o autor do
folhetim, talvez mais por contraste com a opo naturalista do restante do elenco e
provavelmente da direo, do que por mritos da intrprete51.
Joo Carlos Rodrigues, seguindo o mesmo julgamento, julga a transformao de O
casamento em filme um evento bem resolvido. Para ele, a violncia dos dilogos e a rapidez
da ao - to comuns, diga-se da passagem, ao melodrama clssico - combinam bastante com
a mise en scne frentica que cercava a obra. Em suas palavras:
Como em toda obra de Nelson, o texto o paraso dos atores inteligentes:
aparentemente coloquial, mas na verdade muito estudado, o dilogo se faz aos
solavancos de interrupes, suspiros, frases inacabadas, a um milmetro da
52
comdia e do dramalho. difcil acertar.
51
Ibdem.
137
Mas, as contigidades de que falamos vo muito alm dos aspectos cnicos. nas
53
Ibdem.
138
estruturas internas das obras, nos temas abordados ou, mais incisivamente, na essncia das
personagens e nas interaes pessoais que encontramos os maiores parentescos entre as
diversas formas textuais trabalhadas por Nelson Rodrigues.
Uma leitura atenta demonstra que no mesmo universo, ou por outra, nas mesmas
situaes em que Nelson mergulha vrias de suas personagens folhetinescas e tambm
muitas daquelas criadas para os faits divers da juventude ele insere algumas de suas
maiores figuras dramticas. No raro o dramaturgo imerge suas personagens em situaes
afins s que personagens que povoam suas tramas fatiadas esto inseridas, ou vice-versa.
As intrigas dramticas por ele inventadas, apesar da articulao e do ritmo veloz que lhes permitem um movimento mais preciso que aquele das alongadas narrativas em fatias
-, ocorrem prximas s do padro folhetinesco. Tanto em sua clebre dramaturgia como em
seus desprestigiados captulos dirios, por exemplo, encontramos famlias dilaceradas pelo
moralismo mesquinho da sociedade, indivduos oscilantes entre a salvao e os abismos da
desgraa, verdades interiores se debatendo com a mscara social exigida pela sociedade...
Deparamo-nos com a impossibilidade de satisfao plena dos desejos, com a autodestruio
de sujeitos; com aspiraes inconfessveis e com mulheres carregadas de culpas e pecados.
Observamos antagonismos entre pai - ou me - e filhos, climas alucinatrios, cenas com forte
apelo ao grotesco e a constante coligao entre objetos da esfera pblica e da privada.
Aspectos estruturais tpicos da trama melodramtica e habituais efeitos
folhetinescos, em muitos casos, asseguram as semelhanas. Pistas falsas (como a suposta
castrao de Umberto em A mulher sem pecado, ou os lapsos sofridos pela mente
traumatizada de Alade em Vestido de Noiva), tal qual os extraordinrios embustes
folhetinescos, sustentam os atos subseqentes, retardam o desenvolvimento dramtico, criam
suspense e garantem a ateno dos espectadores. Isso sem falar nas contigidades estruturais
como a ousadia da inovao, a repetio de idias e situaes, a livre associao de
139
140
especial de flash-back: uma gravao deixada por Geni a Herculano, antes de ela se matar. A
reconstituio do passado atravs da voz da ex-prostituta restitui os fatos e explica para o
pblico o motivo que a levou ao suicdio. A tcnica, apesar de aparentemente simples, dentro
do contexto torna-se excepcionalmente interessante, uma vez que a restaurao do passado
confunde-se com o presente porque, vez por outra, a voz de Geni realiza interrupes nas
cenas em andamento.
No menos original a maneira como o autor explora o flash-back em A falecida,
Boca de Ouro, Toda Nudez, A serpente, Bonitinha e O beijo no Asfalto. Em todas, o recurso
serve para tornar o desfecho conhecido de antemo - como nas tragdias -, mas usado
tambm para elucidar mistrios que tornam o desenlace admirvel. Entretanto, em Vestido
de noiva que essa tcnica cede inventividade do autor.
No estamos aqui, vale deixar claro, refutando a idia defendida por ngela Leite
Lopes54 e tantos outros de que o mtodo utilizado por Nelson em Vestido de Noiva ultrapassa
a simplicidade do recurso. O que queremos dizer que, nessa pea, o artifcio dos trs planos
(da memria, da alucinao e da realidade) d uma dimenso especial ao procedimento. To
especial, que ele parece, tal qual a memria de Alade, se decompor e transmutar-se no que o
prprio autor chamou de tcnica de superposies. como se as marcas deixadas pela
experincia da mente fragmentada da protagonista extravasasse os limites temticos e
interferisse diretamente na formalizao esttica; ou, como atenta Joo Roberto Faria (1998,
p.115): forma e contedo articulam-se dialeticamente, num todo indivisvel, numa estrutura
nica.
Para o professor Joo Roberto, diga-se de passagem, Vestido de Noiva um grande
flash-back. Segundo ele, Nelson teria encontrado no cinema o caminho possvel para
54
Para ngela Leite Lopes (2007, p.64) No se trata, como tudo levaria a acreditar, de uma simples utilizao
da tcnica do flashback. Segundo ela, Nelson Rodrigues explora realmente o subconsciente. Mais do que
isso, estabelece uma espcie de paralelo entre os mecanismos da psique e do teatro
141
desenvolver a tcnica:
... o mais provvel que Nelson Rodrigues tenha colhido a sugesto no
cinema dos anos 30 e 40, que usou e abusou do flashback, e no qual encontramos
uma caracterstica semelhante que vemos em sua pea: a personagem colocada
prxima da morte ou de uma situao problemtica no incio do filme comea a
narrar o seu passado, que ento se materializa em imagens. Muitas vezes, o diretor
apresenta o flashback numa seqncia temporal cronolgica, mas h casos em que
essa tcnica ganha complexidade com desdobramentos da ao no tempo e no
espao. (FARIA, 1998, p.22).
142
diferente da que aparece em seus romances fatiados, amostras desse recurso estilstico no
deixam dvidas dos vnculos entre os gneros com que Nelson trabalha.
Ao orquestrar o sinistro nas peas teatrais, tal como ocorre nos folhetins, Nelson o
pratica de modo a tornar a ateno dispensada pelo espectador algo absorvente. Em Vestido
de noiva, por exemplo, so os lapsos da mente desagregada de Alade e a apario da Mulher
De Vu (Lcia) os pilares que sustentam o suspense. Na confuso da mente degradada de
Alade, Lcia no tem rosto, mas seus sentimentos de vingana carregam o mundo interior de
Alade com um tom funesto e aziago. A possibilidade de um crime estimula o espectador do
comeo ao final da pea, quando ficamos sabendo que a morte de Alade, embora desejada
pela irm, no foi precipitada por ela.
Em Valsa no. 6, s para darmos mais uma amostra do procedimento em sua
dramaturgia, o mistrio parece envolver todos os momentos do monlogo. O cenrio sem
mveis, a cortina vermelha, o piano branco, o hermetismo do monlogo e as constantes
inseres da valsa de Chopin ajudam a criar uma atmosfera desatada do mundo habitual. Isso
sem falar da situao fantasmagrica em que a romantizada Snia (jovem de quinze anos) se
encontra. Ela est morta e tenta recuperar as lembranas do que aconteceu em vida. Nelson
afirma ter colocado uma morta em cena por no ver obrigao de uma personagem ser viva:
Para efeito dramtico, -diz o dramaturgo - essa premissa no quer dizer nada. O caso
que o fato de termos uma morta, querendo ou no o autor, muda a perspectiva de quem
observa o espetculo, pois impinge certo peso potico ao ambiente. Vestida como que
para um primeiro baile, ela permanece atnita durante toda a ao, perdida entre nomes sem
rosto, e fatos confusos. O clima tenso e frentico do primeiro ato mostra que a morte ronda a
menina em todas as ocasies, e sugere a realizao de um destino sinistro inevitvel. O
punhal de prata macio e quase indolor, o mdico com seus calmantes e injees
intramusculares, os gritos e o corpo perfurado de Snia ajudam a compor o suspense e
143
144
145
146
Vale ressaltar que o prprio Nelson Rodrigues, em muitas de suas memrias, refere-se s suas vizinhas da
Rua Alegre como senhoras machadianas.
56
147
Muitas vezes, conforme nos lembra Magaldi (1992, p.29), os nomes escolhidos pelo
dramaturgo manifestam um propsito especial, como, por exemplo, aflorar o tom satrico.
o caso, por exemplo, dos nomes utilizados para batizar os mdicos que circulam pelas suas
peas. Segundo Magaldi (1992, p.29), o nome dos especialistas em sexo (Dr.Lambreta; Dr.
Lupicnio e Dr.Sanatrio - todos de Viva, porm, Honesta) trazem tona a ironia e o
sarcasmo.
Voltando questo do entrelaamento dos gneros, notamos que a recorrncia de
cenas e circunstncias impressionante. Em determinadas ocasies, a rapinagem to
evidente, que chegamos a ter a impresso de estarmos vivendo um dj vu literrio. o
caso, por exemplo, da presena aparentemente despretensiosa de uma gata prenhe no
contexto de duas histrias: Os sete gatinhos (1958) e Asfalto Selvagem (1959-1960).
Em ambas as tramas, a gata surge para revelar aspectos obscuros da personalidade
de mocinhas aparentemente ingnuas. Escrito um ano antes do folhetim, o episdio do
assassinato da gata dando luz, em Os sete gatinhos, manifesta o lado srdido da
personalidade de Silene:
Dr. Portela (num crescente: at que ontem, no recreio e na presena de todas
as alunas mataram a gata, a pauladas! [...] Seu Noronha, o senhor j viu uma
gata parir? [...]Alis, a pergunta no bem essa. O senhor j viu uma morta dar
luz?[...] (exultante) -Pois eu vi, eu! E foi o que aconteceu com a gata. Sim senhor!
Estava morta e preste ateno: os gatinhos, amontoados no ventre materno, iam
nascendo, diante das meninas e das professoras. Quis-se tirar de perto as
menorzinhas, mas foi impossvel. Eram tantas! Imagine: a me j morta e aquela
golfada de vida! Sete gatinhos, ao todo . (RODRIGUES, 2004d, p.157).
148
149
dramaturgo, como todos sabemos- o pretexto usado por Nelson Rodrigues para descortinar
certas fraquezas humanas. Tanto Zulmira (protagonista de A falecida) quanto Zuleica
(personagem principal de Um miservel) so donas-de-casa do subrbio do RJ e sofrem do
mal da tuberculose. Como idia fixa carregam o sonho de ter um enterro de dar inveja em
seus desafetos. Para o infortnio de Tuninho, marido de Zulmira, e tambm de Belmiro,
esposo da outra, ambas falecem. Como tinham a certeza de que mais cedo ou mais tarde
morreriam, trataram de deixar os respectivos maridos de sobreaviso. Caso Zulmira viesse a
falecer, Tuninho deveria procurar um certo Joo Guimares Pimentel, dono de uma frota de
lotaes. Belmiro por sua vez, deveria recorrer a um tal de Humberto, um sujeito que o
marido mal conhecia. Eles garantiriam o enterro luxuoso com que as relativas esposas tanto
sonhavam.
Consumada a morte, tanto Tuninho quanto Belmiro buscaram satisfazer o desejo das
esposas. Sem saber que motivo levaria outros homens a pagar o enterro das esposas, os
maridos, desconfiados, vo atrs deles. Em A falecida, Pimentel pensa que Tuninho primo
de Zulmira e acaba lhe confidenciando o caso que teve com ela. Para se vingar, Tuninho pede
uma quantia fabulosa ao amante, mas compra o caixo mais barato para enterrar Zulmira.
Logo depois, no Maracan, aposta com duzentas mil pessoas o dinheiro extorquido de
Pimentel. No conto de A vida como ela ..., Zuleica no tem destino diferente. Humberto no
confessa abertamente a Belmiro o caso com sua esposa, mas a atitude que apresenta quando
sabe da morte de Zuleica confirma as suspeitas do marido trado. Belmiro, ento, pede ao
amante apenas cinqenta contos e proporciona esposa o enterro mais ordinrio possvel.
Depois, volta ao escritrio de Humberto com a desculpa da missa de stimo-dia. O outro,
ento, sente-se obrigado a dar-lhe mais dinheiro e, assim, termina o conto: Trouxe dinheiro
para uma missa com trs padres, dez coroinhas, canto, violino, etc., etc.
Outro interessante caso em que o dj vu literrio parece fazer-se presente o do
150
57
Cabe ressaltar, ainda, que em 1957, na pea Perdoa-me por me trares, Nelson Rodrigues tambm havia
utilizado o mesmo expediente narrativo. Quando Nair - a amiga de Glorinha - v a possibilidade de morrer no
aborto que pretende realizar, diz desesperada a Glorinha: ... Tenho medo da dor e posso morrer, no posso?
(sfrega) Dizem que o perigo a perfurao, o perigo. Oh! Meu Deus! (selvagem) Te chamei para morrer
comigo e no quiseste! (de novo suplicante) Pelo menos isso, no custa. Quero ter algum comigo, algum
segurando a minha mo! E se eu morrer, quero que tu me beijes, apenas isso: quero ser beijada, um beijo sem
maldade, mas que seja beijo!(RODRIGUES, 2004d, p.96).
151
moribundo recm-atropelado e lhe d um beijo na boca. O gesto humanitrio que tem para
com o rapaz prestes a morrer, porm, diferente do que ocorre no folhetim, transformado em
um verdadeiro espetculo pela imprensa marrom.
Enquanto em Npcias de Fogo tal situao tomada como expediente de
prolongamento da infindvel trama romanesca, em O beijo no Asfalto ela ganha a
consistncia e a densidade que a cena real, anos antes, trouxera consigo. Enquanto em
Npcias de Fogo o episdio do beijo fica relegado ao esquecimento (esquece-se inclusive de
investigar o noivo, responsvel pelo acidente), na pea, o beijo dado por Arandir ao rapaz
atropelado o que desencadeia o conflito. A inaptido que os indivduos urbanos tm de crer
no altrusmo desprovido de maldades se instala no contexto da trama dramtica e todos inclusive a esposa dele e a cunhada Dlia (por ele apaixonada) - passam a duvidar do bom
carter do rapaz. Arandir, que no chegou a se constituir como ser autnomo porque foi
incapaz de ajustar a sondagem introspectiva ao moralismo social, massacrado pelo pudor
indigesto e falso de homens que, impostando uma honestidade intangvel, querem manter as
aparncias da tpica clula familiar brasileira que, alm de marido, mulher, sogras, filhos,
cunhadas, cachorros e papagaios, tem como componente fundamental a amante.
Ao construir seu mundo fictcio, tal qual fazem os que escrevem melodramas,
Nelson Rodrigues no hesita em sobrecarregar a aparncia de suas personagens. Muitas
vezes, baseado nos aspectos fisionmicos, produz uma estilizao metonmica que traduz a
moral em termos de traos fsicos sobrecarreando a parte visvel do personagem de valores e
contravalores ticos (Martn-Barbero, 2006, p.166). o caso, por exemplo, do Professor
Jacob e de Bob (ambos personagens de Escravas do Amor). A aparncia fsica do primeiro,
como ele o vilo da histria, bastante estereotipada. Tem, como o prprio narrador diz,
um aspecto lendrio:
... a primeira coisa que Glorinha e d. Lgia viram na pessoa que estava do
lado de fora, foi a cicatriz, um talho vivo, um corte na face que parecia sangrar,
152
uma deformao inesquecvel. D. Lgia quase que gritou: teve que tapar a boca
com a mo [...] O homem, que se apoiava numa bengala, olhava-as s, um sorriso
sardnico arregaava-lhe os lbios. [...]
[D.Lgia ] Lembrava-se agora de tudo. Era ele, sim. Ele: o professor Jacob.
Reconhecia os seus traos e, sobretudo, os olhos, aqueles olhos que pareciam
cheios de uma luz sobrenatural. E s no o identificara antes por causa da cicatriz.
O talho no rosto, aquele trao sanguinolento, impressionara-a tanto que no vira o
rosto, como se a fisionomia do homem fosse somente aquilo.(RODRIGUES, 2001,
p.181).
Bob, por sua vez, sofre transformaes no decorrer da trama. belo, perde sua
beleza no episdio em que enfrenta uma ona para salvar a mocinha e, no final, como ele o
heri da intriga, volta a ser bonito. Assim narrado o desfecho:
Bob desapareceu de repente. Sem dizer, sem avisar nem a prpria Malu. A
moa que estava mais linda, mais doce do que nunca ficou assustadssima. No
compreendia aquilo. Passaram-se vrios dias, e nada de Bob. Malu, que no fundo
sentia orgulho de amar um homem feio, desfigurado, que poucas mulheres
queriam, comeou a emagrecer. [...] Correu at a verso de que o rapaz teria se
suicidado. Certa vez, Malu estava na varanda. [...] De repente, viu, a distncia, um
automvel encostar no porto. [...] custou a reconhec-lo.
[Bob] deixara a casa em dizer nada a ningum para fazer uma operao
plstica, para voltar ao que fora antes fisicamente. E era, de fato, a mesma
fisionomia de outros tempos, como se o episdio de Mag no tivesse passado de
um sonho. (RODRIGUES, 2001, p.538).
153
Ocorre, todavia, que, no teatro, elas (as deformidades) deixam de ser algo
estereotipado para ganhar um toque de perversidade e depravao. o que podemos ver mais
nitidamente em A mulher sem pecado. A paralisia de que Olegrio finge ser portador traz
intriga qualquer coisa de nefando, de imoral. Ela traduz em termos fsicos a intensidade de
seu conflito psicolgico. O cime que emana dessa personagem to desmedido, que ele se
diz entrevado s para poder manipular os desejos da mulher:
OLEGRIO (com amargura) logo que eu fiquei doente, voc no saa de
junto de mim o dia todo. Andava triste, no usava batom. Agora...(amargo) Pintase. Vai Colombo. Todos os dias sai. Voc me visita apenas. S vem quando
chamo [...] (com irritao crescente) Eu sei! Voc est sempre arranjando
pretextos para no fica aqui! Vou mudar de roupa!, Preciso ver a comida,
Tenho que ir l dentro. Passa comigo cinco minutos -assim mesmo por
obrigao. [...] (com angstia) Voc diz ; Isso horrvel! E pensa que eu no
sofro, talvez? Tenho um informo aqui dentro. .(RODRIGUES, 2004b, p.49).
154
dramaturgo que certa vez conheceu um sujeito que padecia por ser casado com uma linda
menina. Em suas palavras:
-Mas escuta c. Qual o teu drama?. No respondeu logo. Primeiro, tirou
um cigarro e no tinha fogo. Pediu-me fsforo. Acendeu o cigarro, atirou fora o
palito e, terminando o suspense disse: Queres um conselho? De pai pra filho?.
[...] Fuja da mulher bonita! e repetia, de olho rtilo e lbio trmulo: -Fuja,
fuja!
Deixei passar um momento e arrisquei: - Voc no bem casado?.
Respondeu, com uma certeza feroz: -Ningum bem casado com a mulher
bonita!. Imaginei que sua belssima esposa havia de ser um vbora. Como se
adivinhasse o meu pensamento, disse: - Minha mulher uma santa! Uma santa!.
Entendi cada vez menos. Insisti: -Voc malcasado com uma santa?. E, ento,
ele ps-se a fazer a apologia mais frentica da mulher: -Nunca me disse um no,
s me diz sim. Me adora, entende? Deus no cu e eu na terra!.
Essa esposa quase intocvel tinha um defeito, que invalidava todas as
virtudes: -era bonita. Segundo o meu amigo, so incompatveis a beleza e a
felicidade. E se a mulher bonita feliz, estejamos certos de um equvoco visual: no bonita. Por fim, o meu amigo ajuntou: -Pior do que a mulher bonita, s
marido da mulher bonita.
Desde que, por desgraa, amava e era amado por uma moa linda, todas as
portas se fecharam para ele. Bateu no peito: -Meus conhecidos, meus amigos, e
at meus parentes, me acham um canalha!. No fizera nada, jamais, jamais. No
se lembrava de um ato de que se envergonhasse. Ou por outra: - cometera, sim, um
ato indesculpvel, que a sociedade jamais aceitou: - o seu casamento com a mulher
bonita. (RODRIGUES, 1996, p.67-68).
155
156
Servindo de sustentao aos valores por Nelson julgados eternos, elas experimentam
a culpa com toda a truculncia de suas almas. Culpam-se por se deixarem levar pelos
instintos, culpam-se por transgredirem conceitos morais, culpam-se por no se submeterem a
determinada tica, culpam-se, enfim, por cederem s paixes e no lutarem contra as
irresistveis atraes despertadas pelas veleidades mundanas.
Para Nelson (apud CASTRO, 1997b, p.48) S no estamos de quatro, urrando no
bosque, porque o sentimento de culpa nos salva. No toa, suas personagens sentem
constante necessidade de penitncias e castigos. A autodestruio tem como suporte principal
o suicdio, mas no exclusivamente em aes extremadas que ela se faz presente, como
atenta Magaldi (1992, p.30). Ela est tambm em corriqueiros gestos. Configura-se por meio
de xingamentos ou bofetes, implorados por aqueles que tm conscincia de suas falhas
morais, tal como D. Eduarda, em Senhora dos Afogados, que ordena sua filha Moema que a
ofenda de prostituta; ou ainda, conforme nos lembra Magaldi (1992, p.30), como acontece
com vrias personagens de Os Sete Gatinhos, como exemplo Aurora, que quer ser
destratada e esbofeteada ao se entregar para Bibel Me xinga! Me d na cara!; e tambm
Dr. Bordalo, que antes de possuir Silene, pede a Aurora que lhe cuspa na cara: _...eu quero
que um de vocs ... Voc Aurora, pelo amor de Deus, Aurora! Eu quero, antes de ir, que
voc, Aurora, me cuspa na cara!.
Em todas as composies de Nelson, sempre h uma ou outra personagem que traz a
autodestruio como meio de retratao de suas culpas e pecados; mas, em se tratando de sua
dramaturgia, em Dorotia que o maior exemplo de autopenalidade se concretiza. Na pea,
para que a protagonista (homnima do ttulo) se livre do estigma da profisso de prostituta e
possa, enfim, iniciar uma tentativa de redeno de seus pecados, ela deve admitir a situao
de misria moral em que se encontra e tomar a nusea e as chagas impostas pelas tias como
ocorrncias imprescindveis sua purgao. Dorotia procura, atravs da degradao fsica,
157
retornar para a vida em famlia e achar o caminho para a salvao de sua alma, j que,
segundo suas parentas, o corpo, tomado pelos prazeres do sexo, no tem mais escapatria,
seno o apodrecimento. Aceitar a nusea seria exemplo elevado da renncia de sua vida
pregressa, da mesma forma que contrair propositalmente as chagas deformadoras (insgnias
mximas da purificao e limpeza) seria aceitar-se como merecedora dos castigos impingidos
por um sistema de foras superiores que subordina toda a experincia humana. Ocorre,
porm, que Dorotia, de maneira idntica a outras personagens de sua dramaturgia,
desintegra-se num labirinto de dios e desejos que no lhe oferecem a oportunidade de
redeno absoluta. Isso porque as autopunies a que se obriga so como que paliativas, uma
vez que o mundo regenerado de que quer participar desumano, incapaz de proporcionar
alvio ou desobstruo. As chagas so obtidas, mas no mudam a sua condio pecaminosa,
no isentam Dorotia das culpas, no lhe oferecem a possibilidade de um final ditoso, como
pode ser percebido nas ltimas falas das prprias personagens:
DOROTIA - Elas [as chagas] chegaram to de repente que nem as senti...
Acho que nem o nascimento de uma espinha passa to despercebido... Foi preciso
que avisasses... [...] E j comearam a me devorar... Vrias no rosto, como
desejavas... eu que pensei que s fossem cinco... agora o jarro no quer me
acompanhar... deve estar interessado em alguma mulher de pele boa... Eu no
poderei mais ser leviana... (violenta para d. Flvia) Qual ser o nosso destino?
[...] qual ser o nosso fim?
D.FLVIA (lenta): Vamos apodrecer juntas. (RODRIGUES, 2004c,
p.203)
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159
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representam a tenso entre os valores portados pelo modelo patriarcal como referncia
simblica importante e os anseios de individuao. Para ela, tudo o que acontece dentro de
casa, lugar por excelncia reservado famlia, decorre do intenso choque entre valores
constitudos: o velho e o novo, a natureza e a civilizao, o homem e a mquina, as
solicitaes do sexo e as do esprito. A falncia do patriarcalismo como alicerce para as
relaes da famlia se manifestam, sobretudo, no esvaziamento dos papis tradicionais do pai
e do marido:
Nas peas de Nelson Rodrigues esses papis so associados capacidade
englobante da famlia, que permanentemente colocada em xeque pelos
personagens femininos, sejam eles esposas ou filhas. Tais personagens, atravs de
diversos tipos de transgresso, mas particularmente os de natureza sexual, trazem
tona um outro padro de relao entre os gneros. (FASCINA, 2004, p.117).
161
conflitos familiares esto sempre calcados em situaes limites tal como o incesto, a
violncia, a traio e a morte; e as personagens esto sempre beirando o mal, o vcio e o
pecado. A averso evidente entre pais e filhos; os afetos suspeitos entre os membros da
famlia; o incesto consumado entre cunhados, tios e sobrinhas, pais e filhas, irms e irmos;
as humilhaes recprocas; os desprezos ntimos; as repugnncias particulares (confessadas
sem maiores pudores); a deteriorao da autoridade do pai e o fim da sacralidade materna
criam um universo vulnervel, onde os valores morais at ento tidos como sustentculos
do arqutipo da famlia exemplar - so abalados.
Em praticamente todos os gneros trabalhados pelo dramaturgo, encontramos
famlias inteiramente degradadas ou em processo de deteriorao. No raro os seres que
compem o ambiente domstico rodriguiano apresentam padres de comportamento
visceralmente afetados. Segredos familiares guardados com obstinao, mentiras sustentadas
com veemncia e intimidades jamais confessadas so em suas obras colocados em evidncia,
a fim de que as superficialidades das convenes sociais e o fracasso das trajetrias
particulares sejam desnudados. Nas relaes de parentesco arquitetadas por ele, no h
limites, no h medidas, no h perdo.
O incesto e o adultrio so os maiores culpados pela degradao dessas famlias.
Resultantes da euforia dos baixos instintos, eles funcionam como monstruosidades
transgressoras da moral cotidiana e tica social. Tanto um quanto o outro evidenciam a
fraqueza dos vnculos afetivos e pem prova a capacidade que a famlia tem de sustentar-se
como alicerce estrutural da vida em sociedade. (FASCINA, 2004, p.118). Responsveis pela
extrapolao dos limites sociais e liberao dos sentimentos malditos, incesto e adultrio
reforam o perigo que a todo momento o homem dominado pelo carter coercitivo das leis e
instituies corre de ser subjugado pela natureza instintiva dos seus prprios impulsos. Para
a professora Adriana Fascina o incesto:
162
Rara a obra de Nelson Rodrigues, seja ela escrita por ele mesmo ou pelas mos
femininas de Suzana Flag ou Myrna, em que no estejam problematizadas as intimidades
clandestinas entre parentes prximos. Os tipos mais corriqueiros, nesse caso, so as
incidncias amorosas entre cunhados, entre tios e sobrinhas, ou sogras e genros. Tambm as
tias, algumas vezes, mostram-se inclinadas pelos sobrinhos, e as noras nutrem pelos sogros
sentimentos indecorosos. As madrastas, do mesmo modo, no escapam e, por vezes, se vem
s voltas com afetos exagerados pelos enteados.
Lgia, por exemplo, personagem da pea A Serpente, cuja trama est toda
configurada sobre uma relao incestuosa que ela mantm com o cunhado Paulo, sintetiza o
que dizemos: Fazer isso com o cunhado. Pior que o irmo o cunhado. Vasculhando de
leve a dramaturgia de Nelson, extramos, ainda de Vestido de Noiva, a inclinao de Lcia
pelo cunhado Pedro; de Perdoa-me por me trares, a paixo de Raul por Judite (mulher de
seu irmo) e, posteriormente, a transferncia desse amor para a sobrinha chamada Glorinha.
Em Toda Nudez ser castigada, encontramos Geni - a segunda mulher de Herculano -
58
RADCLIFFE-BROWN, A. R, Forde, D. (ed.) African Systems o Kinship and Marriage. Oxford: Oxford
Press, 1950.
163
encantada pelos atributos fsicos de Serginho, o enteado adolescente que, da mesma forma,
pelas tias tratado de modo um tanto suspeito. Em O Beijo no Asfalto temos Dlia - a cunhada
apaixonada por Arandir. Em Anjo Negro, Virgnia, esposa de Ismael, chega a ter uma filha
com Elias, o irmo de criao de seu marido. Senhora dos Afogados, da mesma forma, est
toda estruturada sob liames incestuosos: ora Misael com a filha Moema, ora D. Eduarda
(esposa de Misael) com o noivo de Moema, que, por sua vez, meio irmo da prpria noiva.
Tambm ao longo de seus romances folhetinescos as insinuaes de incestos e
traies parecem ter se constitudo em um repetitivo tema. De suas histrias fatiadas, no
h uma que fuja ao assunto. Em todas, o incesto e/ou o adultrio espreitam os desejos
incontidos das personagens e pem em risco as relaes familiares estabelecidas.
Em Escravas do Amor, por exemplo, o dilaceramento do ambiente domstico
resultante de incestos se configura em duas situaes distintas.
incestuosa que se instala entre D. Lgia e seu futuro genro Ricardo, e, posteriormente, pelo
vnculo estabelecido entre ela e Cludio, que, sem saber que so me e filho, deixam-se levar
pelos instintos e desejos que os arrebatam. Entretanto, diferente do que vimos ocorrer na sua
dramaturgia, nas tramas em que Nelson Rodrigues assina como Suzana ou Myrna, o ato
incestuoso propriamente dito ainda que deixe marcas em todas as personagens - nunca
chega a se concretizar de fato. Embora a tentao de produzir uma tragdia moderna seja
manifesta, Nelson Rodrigues, cedendo s concesses mercadolgicas do folhetinesco, faz
d.Lgia resistir s investidas de Cludio e garante, assim, a moralidade promulgada pelo
gnero. A histria, como todo clssico folhetim, tem um happy end; entretanto, ele no
legitima a famlia como o sustentculo da vida em sociedade, apenas atenua o absorvente
impacto que a trgica essncia rodriguiana muitas vezes confere s tramas folhetinescas.
Seguindo o mesmo modelo, as personagens de Meu Destino Pecar tambm
padecem por causa das relaes incestuosas ocorridas entre parentes prximos. Hernani
164
Heffner, ao falar da adaptao feita desse folhetim para o cinema, diz: No conheo nenhum
filme anterior, dos dramalhes do mudo, passando por Ganga bruta e O brio, que invista de
modo to direto e intenso nas taras e desvios de uma famlia.59
Apesar do ditoso final, no h como negar que as marcas deixadas pelas situaes
provenientes dos incestos vividos no decorrer do enredo so fatais para a famlia de D.
Consuelo. A paz familiar restabelecida, mas no sem conseqncias. No existe, por
exemplo, indcio algum de que Maurcio, piv de todos os conflitos familiares, foi por Paulo
(o irmo trado) perdoado. Evangelina que, depois da morte de sua irm Guida toma o lugar
dela ao lado de Maurcio, tambm no retorna ao seio de sua famlia. Sente-se culpada
demais para voltar ao aconchego familiar e vai viver numa cabana com Maurcio, longe de
todos.
A ameaa desorientadora do incesto tambm pode ser vista em Minha Vida. Aqui,
tal qual acontece em Perdoa-me por me trares, temos o tio transferindo o amor sentido pela
cunhada sobrinha. Mas, diferente de l, parece mesmo que, nessa histria, o autor, sob a
mscara da escritora, abre excees escancaradas e subordina por completo o contedo s
frmulas de efeito. Para evitar o impacto de uma relao consangnea concretizada, arranja
uma maneira de impedir que Suzana se entregue a um parente de sangue.
Ficamos sabendo que Tio Aristeu, na verdade, no tio legtimo de Suzana, apenas
irmo adotivo de seu pai, o que, de certa forma, justifica tanto o seu desejo pela pseudocunhada como a aproximao entre ele e a pseudo-sobrinha. Apesar de feliz no final, a
relao entre ele e Suzana no deixa de assinalar com ndoas da desgraa a histria dos
indivduos de que trata a narrativa. Muitas das personagens que ali se encontram terminam
por enlouquecer ou por se abandonar solido.
59
165
166
quais nos aventuramos (assim como todos os outros dos quais, no fosse a preciso da
brevidade, certamente nos ocuparamos) parecem convergir, e, contraditoriamente, dela
parecem decorrer.
Das dezessete peas e dos sete folhetins por que viemos perfazendo nossas anlises,
no h um que escape s obsesses impostas por Eros e Thanatos. De modo geral, a temtica
amorosa em Nelson Rodrigues inseparvel da temtica da morte. Segundo ele, morrer de
amor, morrer por amor a utopia que est cravada em qualquer corao (RODRIGUES,
1993b, p. 83).
Nem mesmo na pea Anti-Nelson Rodrigues, em que parece inexistir o encontro entre
esses dois temas, e que, segundo o prprio autor, uma concesso ao romantismo de
pierr (RODRIGUES, 2004b, p.298) estamos libertos da nostalgia que a promessa de amor
eterno despertam nos homens. Nas palavras de Magaldi:
Aparentemente uma brincadeira rsea, uma histria de amor que d certo,
com final feliz. Da o anti-Nelson Rodrigues. Examinem-se os ingredientes, para
verificar que o escritor no se traiu. Em primeiro lugar, l est o casal de velhos,
incomunicvel. Tereza Leva o marido a dizer: a pior forma de solido a
companhia de minha mulher. O milionrio Gasto tem conscincia da prpria
misria, no desejo de comprar ao menos a misericrdia de uma lgrima em seu
velrio. [...]
O filho Oswaldinho define-se como play-boy sem conserto, pra quem as
mulheres representam somente o objeto de prazer. Se o dinheiro lhe falta, rouba
sem escrpulos as jias da me. dipo dita-lhe um comportamento menos
convencional com o pai: envia a ele cartas annimas, chamando-o de ramalhal
chifrudo. Semelhantes inclinaes desenham o carter irrecupervel, se outro
componente no intervier. O nome verdadeiro para explicar o milagre: o amor.
Oswaldinho descobre que ama Joice e o amor o redime. Ela est fincada apenas na
prpria pureza e na fora da determinao. Os homens salvam-se pela promessa do
amor eterno. O dramaturgo admitiu que, por essa nostalgia do amor eterno, o
Anti-Nelson Rodrigues mais Nelson Rodrigues do que todas as minhas peas
anteriores. (MAGALDI, 1998, p.38).
Apesar dos finais afortunados de seus folhetins, o amor, para o dramaturgo (tanto nas
histrias fatiadas quanto nas suas tragdias), nada tem a ver com a alegria, nada tem a ver
com a felicidade (RODRIGUES, 1993a, p. 47). Basta lembrar, por exemplo, quantas
personagens de seus folhetins e peas teatrais matam e morrem por ele, e quantas sofrem e
fazem outros sofrerem pela impossibilidade de realiz-lo.
167
Para Nelson, imprescindvel que, olhando o ser amado, cada qual pense: -Um de
ns morrer primeiro, pois, na sua maneira de entender o mundo e os homens, somente
seremos capazes de amar melhor se pensarmos na morte: No h amor se, ao mesmo tempo,
falta o sentimento da morte - diz ele. E continua:
Os que no se lembram da morte tm a alma mais rida do que trs desertos.
Choramos em Love story porque um deles morre. Choramos mais ainda por ns.
Sentimos, de repente, que todos, mais jovens, menos jovens, no sabem mais amar
ou se esquecem de amar. Quando morre a menina e o rapaz chora a que morreu,
sentimos de maneira mais funda e mais cruel a nossa impotncia e a nossa
frustrao. Quantos, na platia, teriam um morto amado, ou uma morta para
eternamente chorar? (RODRIGUES, 1996, p. 230).
Morrendo-se ou no, no entanto, para Nelson, quando o assunto amor, no h meiotermo: O amor comea depois dos instintos e contra os instintos diz ele (RODRIGUES,
1993a, p. 186). Por isso, no obstante a exacerbao dos impulsos e o erotismo patente - que
anteriormente investigamos - o sexo, de acordo com as concepes do dramaturgo, jamais se
confunde com amor. A sexualidade, diferente do amor eterno, est sempre associada ao
desregramento dos instintos, violncia e destruio. Aqueles que praticam o sexo sem
168
amor sempre aparecem condenados a desgraas e infortnios. Afinal, Sexo como tal,
estritamente sexo, vale para os gatos de telhado e os vira-latas de porto. Ao passo que no
homem o sexo amor (RODRIGUES, 1996, p.169). Da lembrarmos o que George Bataille,
no seu ensaio sobre o erotismo, afirma:
O erotismo, no seu conjunto, a infrao regra das proibies: uma
atividade humana. Mas, embora comece onde o animal acaba, a animalidade
sempre o seu fundamento. Desse fundamento, a humanidade desvia-se com horror,
embora, ao mesmo tempo, o mantenha. A animalidade to bem mantida no
erotismo que os termos animalidade e bestialidade lhe so geralmente associados.
E, se s abusivamente a transgresso da proibio tomou o sentido dum regresso
natureza de que o animal expresso no deixa de ser verdade que as atividades
sobre as quais a proibio pesa so semelhantes s dos animais. (G. Bataille, 1980;
apud FRAGA, 1998, p. 151)60.
Em Os sete gatinhos, como nos lembra Fraga (1998, p. 151), todos so incapazes de
deixar a animalidade para ascender esfera do amor e, por isso, retornam, fracassados,
angstia da realidade estril. Em Senhora dos afogados, por sua vez, todos esto fadados
infelicidade porque dissociam o sexo do amor ao se entregarem ao mais delirante
extravasamento dos instintos. Em A falecida, Zulmira se entrega a um homem que mal
conhece no banheiro feminino de uma sorveteria para se vingar da falta de amor do marido.
Em Perdoa-me por me trares, da mesma forma, todos os infortnios se processam na avidez
com que o vazio existencial e a solido se apoderam dos que descobrem o desejo e o sexo
sem o sentimento amoroso. Em Dorotia, todas as mulheres da famlia esto condenadas a
sentirem nusea na noite de npcias porque a bisav delas se casou sem amar. Isso sem falar
das personagens folhetinescas, que, como Maurcio (de Meu destino pecar) e Jorge (de
Minha vida), por exemplo, no tm um final afortunado por confundirem o sentimento
amoroso com a necessidade de satisfazer a euforia dos baixos instintos.
Talvez por isso, para Magaldi, no h dvida de que Nelson resulte do enraizado
romantismo que entra em conflito com as incontornveis falhas do cotidiano moderno:
Admirvel observador da realidade, o dramaturgo registra os numerosos
60
169
Tambm para Ir Salomo (2000) o sentimento amoroso tem importncia capital nas
obras do dramaturgo. o amor que, segundo o ensasta, propcia ao homem rodriguiano a
opo de escolha, libertando-o para sua prpria conscincia:
ele [o amor] que liberta a mulher da dualidade canhestra, ao mesmo
tempo que retira do homem dos males tirnicos que o escraviza. Colocando de
outra forma, o amor que tira homens e mulheres da condio de coisa, elevandoos a uma condio de pessoa. [...] Nelson era um romntico, um sonhador do amor
eterno. Talvez, exatamente por sua vida no ser um exemplo deste sentimento, ele
tenha criado um teatro que reproduziu a realizao amorosa to rarefeita quanto a
nossa mais crua realidade. Impossvel falar de vulgarizao deste sentimento no
teatro de Nelson Rodrigues, ao contrrio o nosso dramaturgo alerta para os tristes
desencontros que cada vez mais esta sociedade promove. Seu teatro um aviso e
um apelo. Ele nos chama a ateno para a falncia de nossos desencontros, grita
para uma trgica modernidade que conduz o ser humano para o mais profundo
individualismo, no qual os sentimentos so sufocados, onde o prximo cada vez
mais torna-se um estranho e onde o amor aos poucos transforma-se em uma
miragem distante e inatingvel, perda no deserto que cada vez melhor traduz nossa
humanidade. (SALOMO, 2000, p. 164, grifo nosso).
Qui por isso, para ns, essa nostalgia romntica que, em ltima instncia, conecta
todos os gneros, todas temticas, exageros e recorrncias aqui trabalhados. ela o que, mais
do que entender o funcionamento das obsesses reais em suas obras, nos faz compreender o
170
resultado do embate constantemente vivido no s pelas suas personagens, mas por toda uma
gerao.
A fim de mostrar com maior preciso como todos os entrelaamentos aqui
trabalhados se perfazem, no entanto, terminamos nosso estudo com a anlise dos dois nicos
folhetins, cuja autoria Nelson Rodrigues assume. Isso porque cremos serem esses os modelos
mais significativos de tais interseces.
171
imunizado contra as amofinaes crticas a que fora submetido por tanto tempo,
resolveu assumir de uma vez por todas a proximidade de suas criaes com o vulgar e o
ordinrio. Outros apostam que, por causa dos insultos acerca de suas peas dramticas principalmente contra A Falecida, que no momento em que escreveu A mentira se encontrava
em cartaz -, o autor j tivesse acostumado ao custico olhar alheio e que, por isso, ser
apontado como escritor de uma subliteratura, correndo o risco de ter sua dramaturgia
desprestigiada em funo de sua ligao com um gnero menor, no teria mais o peso que
anos antes o levou a se camuflar sob os soutians de Suzana FLag e Myrna.
Ns, entretanto, ficamos com suas prprias palavras, resultantes das auto-anlises
permitidas pelo tempo:
Eis a amarga verdade: - Durante algum tempo, eu s escrevia para o
Bandeira, o Drummond, o Pompeu, o Santa Rosa, o Prudente, o Tristo, o Gilberto
Freyre, o Schmidt. No fazia uma linha sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu
sofrimento, a minha viso do amor e da morte. Tudo, tudo passou para um plano
secundrio ou nulo. S os admiradores existiam. S me interessava o elogio; e o
elogio era o txico, o vcio muito doce e vil. Pouco a pouco, os que me admiravam
se tornaram meus irresistveis co-autores. E quando percebi o perigo, o
aviltamento, comecei a destruir, com feroz humildade, todas as admiraes do meu
caminho. (RODRIGUES, 1993a, p.151).
172
Seja como for, no d para negar que nessas duas composies h mais do elaborado
substrato rodriguiano do que se poderia supor. Josefina de Ftima Tranquilin Silva (1999,
p.105) assim se posiciona sobre a questo:
Parece que Nelson no necessita mais de uma personalidade feminina para
seus folhetins [...] porque vai transpor, agora nesses textos, a mazela humana que
j perpassou seu teatro, porm em uma representao que est ali no cotidiano das
grandes cidades, e seu olhar carregado de literalidade, sua observao
pormenorizada construir uma realidade onde o que se expe praticamente a
viso do homem Nelson Rodrigues. Parece que neste momento Suzana
Flag/Myrna tirada de cena dos folhetins para que Nelson Rodrigues se mostre
uno e linear em suas diferentes formas literrias.
No que aqui, vale elucidar, Nelson Rodrigues tenha recusado os elementos basilares
das intrigas folhetinescas usadas por ele como Suzana Flag e Myrna. Mesmo porque, como a
todo instante buscamos estabelecer, o carter popularesco do folhetim (ou ainda, do
melodrama), presente do comeo ao fim em suas composies teatrais, no deve ser tomado
como motivo de aviltamento ou descrdito.
Da boa tradio melodramtica, conservam-se nessas duas obras os tiques do
palavreado popular, as funes emocionais da linguagem, a personificao do mal e do vcio,
a retrica do excesso, as coincidncias espantosas, o acmulo de incidentes, a repetio
exaustiva de situaes, a abordagem efusiva de temas interditos e o forte sabor emocional.
Da frmula folhetinesca, sobrevivem os arrebatamentos ordinrios, o gosto pela redundncia,
o corte providencial, os crimes prosaicos, a fartura de peripcias, a tcnica do flash-back, a
forma fragmentada, o suspense perturbador, os anseios, os amores impedidos, e a insanidade
desmedida. Suas personagens, tal qual as de Suzana Flag e Myrna, tambm se encontram
estereotipadas e quase nunca tm seus atos analisados profundamente.
Nisso, todavia, no no que se resumem as tramas e a estruturao dos folhetins
assinados com seu prprio nome. Parece que, quando Nelson assume a autoria das histrias
fatiadas, tem uma preocupao maior de encerrar na estrutura dessas composies as
173
caractersticas mais aquilatadas de suas obras teatrais. Qui por isso que, ao lermos A
mentira e Asfalto Selvagem, temos a constante sensao de que Nelson, apesar de colorir seus
heris com a tinta das paixes inconfessveis, busca maqui-los com um pouco das
obsesses que o perseguem. Talvez por essa mesma razo, muitos acontecimentos ali
narrados recendam a atmosfera obsedante de outros escritos do autor.
De modo geral, os episdios que enchem os captulos desses dois folhetins parecem no
ser criados com o propsito nico de prolongar a histria, mas tambm com a finalidade de
elucidar o processo de (des)construo das personagens. O romanesco, to caro aos folhetins
de Suzana Flag e Myrna, algumas vezes suplantado pela realidade carregada que permeia a
trajetria de vida dos que participam do asfixiante mundo criado pelo dramaturgo. O happy
end - elemento fundamental das histrias voltadas ao deleite das massas populares - nessas
duas obras no se perfaz por completo. As personagens dobram-se perante o fatalismo (ainda
que caricato) das circunstncias geradas pelas insatisfaes humanas, e, por isso, tm um
final que quase sempre beira uma trgica condio.
Tanto em A mentira como em Asfalto Selvagem a apreciao dos caminhos e
descaminhos dos desejos instintivos do homem, assim como as anlises das relaes
cotidianas vividas no ambiente familiar brasileiro encontram um prato cheio. Embutindo o
repertrio do Kitsch na intriga e travestindo a catarse com uma fisionomia domesticada e
reconfortadora, Nelson enche com o que h de mais mundano o universo de suas histrias.
Os elementos polmicos que valeram a ele o rtulo de autor maldito recheiam as cenas: h
incestos entre irmos, excessos afetivos entre pai e filha, invejas desmedidas, tias recalcadas,
lesbianismo, gravidezes indesejadas, pusilanimidades abjetas, famlias corrompidas, abortos
morais, mulheres frustradas...
No por acaso Caco Coelho, ao analisar A mentira, faz a seguinte reflexo:
Compndio da obra teatral, ele [o romance A mentira] traz de A mulher sem
pecado o fio condutor da mentira; de Vestido de Noiva, a nuance dos planos da
174
61
Nesse perodo de afastamento, o editor do ltima Hora publicou episdios antigos para evitar que a coluna
fosse interrompida.
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62
RODRIGUES, Nelson. Elas gostam de apanhar. Rio de Janeiro, Bloch, 1964, p.3.
176
Inspirado por reportagens policiais, Nelson deu aos arrabaldes da cidade espao
privilegiado. Os episdios domsticos da rua onde Nelson vivia com mulher e filhos, no
Andara, passaram a ser constantemente tomados como motivos ficcionais. Cime, luxria,
dio, inveja e todos os outros pecados capitais que brotavam da suburbanidade tornaram-se, a
partir de ento, reservatrios imaginrios imprescindveis.
At mesmo suas prprias experincias pessoais (mais uma vez!) serviram como
repertrio para as escandalosas histrias. o caso, por exemplo, do episdio em que Roberto
Marinho, dono do jornal O Globo, onde Nelson Rodrigues trabalhou durante vrios anos,
pede ao irmo de Nelson, Mrio Filho, para que ele intervenha no comportamento
descuidado que o dramaturgo apresentava na poca. Nas palavras do prprio Nelson:
Um dia Roberto Marinho chama meu irmo, Mrio Filho, e os dois
conversam naquela varanda que dava para o Largo da Carioca. Roberto comea a
falar de mim. Disse que eu precisava cuidar mais de mim mesmo. Falou de meu
desleixo, do meu cabelo, da minha roupa. Eu andava de barba por fazer. E, por
fim, disse tudo: -Ontem, o seu irmo estava cheirando mal.
Mais tarde, numa mesa no Caf Nice, junto do espelho, Mrio teve uma
conversa comigo. Com muito tato, muita doura, foi falando: Roberto disse
assim, assim [...] Atravs dos anos, e j trabalhado pelo sofrimento, transpus o
episdio para o conto, o romance e ainda hei de remont-lo no teatro. No meu livro
O casamento, h um Xavier que um amigo chama de lado e comea: - Olha. Vou
te dizer uma coisa. Mas promete que no fica zangado?. O Xavier prometeu. E o
outro continua: - o seguinte: -Talvez porque voc s use um terno (eu vejo voc
sempre com este terno), o fato que.... Suspense de uma pausa e a palavra
definitiva: - Voc, s vezes, at cheira mal.
O Xavier pe no outro um olho de puro terror. Eis o que eu queria dizer: esse pobre-diabo de um terno s sou eu. Numa histria de A vida como ela ..., um
sujeito diz ao outro: - No sei se porque voc usa sempre o mesmo terno. O fato
que voc, s vezes, cheira mal. Queria te avisar, porque sou teu amigo. A vtima
suspira: - Obrigado, fulano. (Rodrigues, 1993a, p.119-120).
O folclore pornogrfico em torno de seu nome (como ele mesmo diz - RODRIGUES,
1993a, p.150), a partir dessas histrias, perpetua-se de uma vez por todas63. A fama de
tarado, obsceno e abjeto, por causa da popularidade que A vida como ela ... lhe deu, tomou
propores tais, que o prprio Nelson Rodrigues acabou se transformando em personagem de
63
Dcio de Almeida Prado (1988) assim se posiciona a respeito: Ele, atravs de crnicas e entrevistas,
terminou por plasmar uma personalidade semifictcia para si mesmo, quase j de personagem artstica
autnoma, da qual faziam parte o emprego humorstico do exagero e as frases de efeito para uso externo,
resqucio da velha atrao nacional pela boutade e pelo paradoxo. (PRADO, 1998, p.136; apud FRAGA
p.87).
177
suas prprias fices. Conta-nos Castro (1992, p.241) que, devido a algumas frases usadas
pelo dramaturgo em contos de A vida como ela ... (entre elas: A mulher gosta de apanhar;
e Certas esposas precisam trair para no apodrecer), sua famlia ouviu vrios gracejos,
pois os leitores j no conseguiam diferenciar o que era sua literatura e o que era sua vida
pessoal:
A ciranda de mortes em suas histrias fazia com que se dissesse, por
exemplo, que ele dormia num caixo de defunto, que tirava sonecas entre quatro
crios. Essas pessoas ficariam desapontadas se o vissem na intimidade: em casa, de
pijama, s nove da noite, ouvindo discos de frevos pela banda do Corpo de
Bombeiros e indo dormir numa vulgar cama Drago com colcho de molas. [...] o
permanente furor sexual de seus personagens levava a que outros o vissem como
um stiro, algum a no ser convidado para festas de formatura ou bailes de
debutantes. (CASTRO, 1992, p.241).
Se para sua vida domstica essa coluna trouxe situaes um tanto quanto desagradveis,
para sua trajetria literria, entretanto, ela no poderia ter sido mais significativa. No
bastassem as contribuies dadas aos folhetins A mentira (1953) e Asfalto Selvagem (1959),
de que falvamos ainda agora, ela foi decisiva e valiosa para as mudanas que comearam a
ocorrer em sua dramaturgia a partir de A falecida (1953), pea que d origem ao que se
convencionou chamar Tragdias Cariocas. Nas palavras de Magaldi:
Merece estudo especial o que devem as tragdias cariocas a A Vida Como
Ela ..., contos crnicas publicados pelo dramaturgo anos a fio, na ltima Hora, a
partir de 1951. [...]
A influncia de A Vida Como Ela ... determinou a passagem dos temas
mticos para as sugestes da Zona Norte do Rio, a grande fonte popular. A maior
parte de seu perodo produtivo o dramaturgo viveu no Andara, bairro tpico da
classe mdia, e dentro dela a menos favorecida. A observao da vizinhana, o
conhecimento dos dramas cotidianos, o imperativo da luta pela sobrevivncia
tudo isso constituiria a matria-prima do ficcionista. (MAGALDI, 1992, p.57-58).
178
64
179
Do mesmo modo, os folhetins que Nelson Rodrigues assina com o seu prprio nome
buscam no apenas reproduzir situaes sociais, mas tambm prescrever os comportamentos
que as inspiram. Reforam (pela caricatura e exagero) a ordem social preconizada e nos
remetem aos problemas que a sociedade da poca enfrentava.
180
Segundo
Teresa
Gonalves,
no
Dicionrio
de
termos
literrios,
disponvel
em:
<http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/F/farsa.htm>, acessado em 01.05.2008, a farsa um gnero dramtico
menor que, em nvel estrutural, se caracteriza pela ausncia de diviso em atos e de marcao de cenas; pela
despreocupao total com as unidades de tempo e de espao; pela utilizao de parcos recursos cnicos; pela
colocao em palco de um reduzido nmero de personagens; pela abundncia de tipos sociais caractersticos da
poca; eventualmente pela presena de uma personagem redonda que sofre ao longo da pea evoluo
psicolgica e moral; pelo delineamento de uma intriga com um n, desenvolvimento e desenlace; pela presena
de stira, fonte de cmico; e pela recorrncia freqente a uma linguagem de conotaes erticas.
Tematicamente, a farsa privilegia a problematizao da luta entre foras opostas, do relacionamento humano,
familiar e amoroso, da oposio dos valores tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais e o
recurso freqentemente relacionado ao equacionamento de um tringulo amoroso.
181
182
processo, o diabo! Deus me livre!. Mas, mediante a mdica quantia de cinco contos!,
sugerida por Dr. Maciel, resolve-se: Est bem, est bem! Mas olha: ningum pode saber,
nunca, em hiptese alguma, ouviste!.
Em sua clera, Dr. Maciel comea a desconfiar que um de seus genros fora o culpado
pela gravidez de Lcia. (Na verdade, desde que Isabel se casou e, na noite de npcias, deixou
acesa a luz do quarto em que passava sua primeira noite, ele odeia todos os homens que se
tornam seus genros.) Trs so os suspeitos, mas apenas Aparcio66, marido de Isabel, quem
efetivamente aparece na histria.
A princpio, as trs irms casadas acharam insensata a desconfiana levantada pelo pai,
mas, aos poucos, elas se deixam contagiar com a idia, o que instala na casa um clima de
agonia e suspeita. Lcia, ento, percebendo a atmosfera de rancor que se estabelece, resolve
fugir e s retorna quando o pai, por telefone, promete que nada acontecer a seu filho.
Por causa de fuga da menina, Dr. Maciel investe violentamente contra D. Ana, que
acaba lhe revelando a mentira sustentada por ela durante anos: Lcia , na realidade, filha de
outro homem. A traio da mulher, se seguisse os tramites dos folhetins assinados por
Suzana Flag, o exasperaria de tal forma que a nica maneira de resolver essa questo seria a
morte: dele ou dela. Mas Dr. Maciel, ao contrrio disso, transfigura-se de felicidade ao saber
que a menina como se fosse uma vizinha, uma conhecida mais moa, uma amiga, uma
conhecida, no uma filha. No seu alvio de no estar incorrendo num incesto legtimo, e
pela possibilidade que v para a concretizao de seus desejos incontidos por tantos anos, ri
por entre lgrimas e desabafa: -Oh! Graas, graas.
Consumido pela obsesso que tem por Lcia, Dr. Maciel, com a desculpa de que longe
dali a menina poderia ter o filho sem maiores comentrios alheios, prope-se a lev-la para
66
Vale reproduzir aqui a observao de Caco Coelho a esse respeito: Isabel aparece casada com Mauro,
depois com Ubaldo e definitivamente com Aparcio.Essas trocas de nomes e outros detalhes, para o crtico,
do a sensao de que os captulos eram criados um a cada semana. COELHO, Caco. Posfcio. In.:
RODRIGUES, Nelson. A mentira. 1. Reimpresso. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.133.
183
uma fazendola de um amigo seu. Como D.Ana capta as verdadeiras intenes do marido e
promete impedir seus planos a qualquer custo. Dr. Maciel - que de doutor nada tem de fato,
pois s cursou at o segundo ano do colegial - insinua famlia que D. Ana estava
enlouquecendo: ... minha mulher j no a mesma. Mudou muito e de repente. De noite,
no dorme: fica at o amanhecer, sentada na cama de braos cruzados. E no s isso
baixa a voz eu descobri, ontem, debaixo do seu travesseiro, um punhal, imaginem!.
(RODRIGUES, 2002, p.85)
Diante da famlia, Dr. Maciel trata-a com carinho e afeto, dissimulando preocupao;
por trs, provoca a ira da mulher, conseguindo com que filhas e genros, aos poucos,
sugestionados pelas infmias por ele lanadas, comecem a ver mudanas no comportamento
de D. Ana. Ele passa, ento, a falar somente na possibilidade de D.Ana ter uma srie crise
nervosa. Chega at a procurar um psicanalista e forjar provas de uma iminente loucura.
Convida o mdico para um jantar em sua casa a fim de convenc-lo de suas suspeitas. Para
a esposa, diz que se trata de um amigo. Quando j esto todos mesa, Dr. Maciel, afetando
naturalidade, anuncia que as providncias da viagem com Lcia esto todas tomadas, fato
que ele sabia desencadear atitudes incontidas na esposa. Como o previsto, ela no se contm
e o ataca com fria. Era tudo o que ele precisava para convencer a todos da necessidade de
internar a d.Ana.
noite, num desespero que a absorve por completo, ela atira quatro vezes em Dr.
Maciel queima-roupa, mas s acerta um, e ainda por cima no brao. Essa atitude como que
confirma aos olhos alheios sua insanidade. Posando de bom marido, diz a todos que a arma
disparou sem querer, mas distante de todos, mostra sua verdadeira e hedionda face: - Fiz a
coisa to bem-feita que amanh te internarei, por bem ou mal. Se resistires, eu te
arrastarei.
Resignada e com a sanidade realmente abalada a essa altura, d.Ana, na manh seguinte,
184
deixa-se internar pelo marido sem resistncia alguma; mas sugestiona a idia de que o pai do
beb de Lcia ser o responsvel pela morte de Dr.Maciel: O filho de Lcia tem um pai,
no tem? O pai de teu neto ser teu assassino!.
Na verdade, d.Ana sente-se culpada pelo adultrio cometido contra o marido, no
porque efetivamente tem por ele amor, ou est verdadeiramente arrependida do que fez, mas
porque no quer ser vista pelos filhos como algum indigna de afeto. Pusilnime, esconde
por muitos anos a traio praticada e, quando se v obrigada a dizer a verdade, prefere a
punio reservada aos fracos. Deixa-se acusar de louca e acaba consentindo que ele a leve
para um sanatrio.
Com a obsesso rondando suas idias, Dr.Maciel volta para casa e interroga a filha a
fim de saber quem era o pai da criana. Lcia, por sua vez, confessa que, numa festa em que
esteve, bebera muito e adormecera num canto da casa, onde um homem, cuja identidade ela
desconhece, se aproveitou da situao e consumou o fato.
Ao saber que nem a prpria Lcia conhece o verdadeiro culpado, Aparcio, cunhado da
menina, que por ela sempre ostentou um desejo camuflado, diz ser o responsvel pelo
acontecimento e pede a ela que fuja com ele. A garota, no entanto, no aceita.
Depois de discutir com a mulher, Aparcio sente uma necessidade imensa de sair,
caminhar para longe daquela casa. Nisso, encontra Telmaco - velho amigo dos tempos de
solteiro - que lhe conta as ltimas do dia: Dr.Godofredo (o mdico que havia diagnosticado
a gravidez de Lcia) havia enlouquecido h algum tempo e, na sua insanidade, diz a todas as
mulheres que vo ao seu consultrio que elas esto grvidas.
Apesar disso, Aparcio no desiste de seu plano. Assumidamente rival de seu sogro, ele
o procura para uma conversa definitiva. Nessa hora (momento que deveria estar carregado de
tenso, uma vez que Aparcio, depois de levar uma bela bofetada do sogro, saca o revlver e
lhe d seis tiros), os mecanismos que configuravam uma histria cheia de conflitos e de
185
possibilidades trgicas caem por terra. Um humor cido instala-se, ento, revelia das
circunstncias.
Com o reforo do excesso e do deboche, Nelson traz atmosfera angustiante da cena
um contorno de anedota, de pilhria. Assim que Telmaco conta aos outros familiares a
histria da loucura de Dr. Godofredo, a dor que o bito de Dr. Maciel deveria causar aos seus
fica relegada a segundo plano. J no importam as conseqncias desastrosas; a morte passa
a ser um mero detalhe. Ridicularizando a possibilidade de restaurao da imagem familiar,
Nelson torna cmicos os conceitos morais valorizados pela esfera social. Um outro mdico, a
pedido das irms de Lcia, ainda na tarde do velrio do pai, verifica que a virgindade da
menina continua intocada. A marca do burlesco, do exagero e da ironia, desse modo,
apresenta-se como veculo do riso, mas, como no poderia deixar de ser, em se tratando de
um texto nelsonrodriguiano, um riso irnico, cheio de fel, cuja presena no se faz apenas
para fazer rir, porque traz consigo a funo de reflexo.
A narrativa termina com um assunto bastante presente nas composies de Nelson
Rodrigues, um suicdio. Aparcio, diante da confirmao de virgindade de Lcia, perde todo
o interesse por ela, uma vez que a menina com volpia de mulher, para seu desespero, no
existe de fato. Dias depois, arranja um revlver e, com um tiro na boca, pe fim a sua vida.
A frase final do livro, com tom irreverente e, ao mesmo tempo, mrbido - Sua chapa
dentria deslocou- no nos deixa esquecer que a histria tem no um dedo, mas o corpo
inteiro e a alma de Nelson Rodrigues.
186
esse romance conta a trajetria dos amores e pecados de Engraadinha, uma das personagens
mais pervertidas de sua faceta folhetinesca. Diferente de A mentira, ele tem uma feio um
pouco mais cida, pois seu humor vem ainda mais contaminado pela morbidez acintosa de
suas obsesses. Diz Castro (2006, p.300) que mesmo para quem j estava habituado s
ousadias do autor, ler Asfalto Selvagem foi uma experincia chocante.
A histria comea cerca de dezenove anos depois do que ser efetivamente contado na
primeira parte. Deparamo-nos, de chofre, com Engraadinha j casada com Zsimo e me de
cinco filhos. A famlia toda est de mudana para uma casa de aluguel em Vaz Lobo,
subrbio do Rio de Janeiro. A atmosfera febril, que futuramente (no livro II) envolver os
membros desse grupo familiar, j est toda configurada nos pequenos fragmentos que fazem
referncia ao casal nesse primeiro captulo do livro I.
A casa para a qual acabaram de se mudar - futuro ambiente de desamores, excessos e
incompreenses - carrega o estigma da desgraa. O ltimo inquilino que por ali viveu, Seu
Felipe, depois de trado e abandonado pela esposa, toma um corrosivo violento e acaba
morrendo nas dependncias da humilde habitao.O estado degradante em que se encontra o
local reflete bem o relacionamento estabelecido entre Engraadinha e seu marido. A solido a
dois prevalece. No tm intimidades, nem quando dormem juntos. Jamais, nos vinte anos que
permaneceram casados, Zsimo vira Engraadinha nua e esse amor nas trevas, como se
fossem dois cegos, era o seu dio. O assoalho gasto, os azulejos descolando das paredes do
banheiro e da cozinha, o sof esburacado e o quintal com o cho de cimento rachado vo
contrastar com a vida abastada que Engraadinha levava vinte anos antes na casa de seu pai,
no Esprito Santo.
A insatisfao de Engraadinha com o seu presente e o desejo urgente de mudanas
leva-a a rememorar os tempos de sua mocidade. a que, atravs de um longo flash-back,
somos transportados para os conturbados anos de sua juventude e ao momento exato em que
187
seu pai, Dr. Arnaldo Pereira de Almeida advogado renomado resolve se suicidar. Todos
os captulos posteriores, sem ressalvas, sero para explicar o motivo que levou um homem
aparentemente to honrado ao suicdio.
A tessitura psicolgica de Dr. Arnaldo, assim como a das demais personagens dessa
trama, vai sendo descortinada aos poucos. A princpio, o pai de Engraadinha aparece como
um homem de valores morais ilibados, uma reserva moral da nao. O imperativo de ser
reconhecido como algum moralmente perfeito tanto, que certa vez, na Cmara Estadual
onde trabalhava, chega a afirmar: - Eu me casei virgem. Pai superficialmente zeloso, vive
entre amigos e familiares com a propriedade dos que nunca cometem deslizes.
Tio Non, indivduo de depravados e repugnantes gestos; tia Zez, a esposa frustrada
de Nono, e tia Ceci, a virgem do bero ao tmulo, ajudam a formar o quadro familiar em
que Engraadinha cresceu. Tal como o expressivo ncleo de parentes execrveis que
compem a dramaturgia rodriguiana, essas personagens, claramente irrealizadas, so
elementos importantes para a tessitura de um mundo srdido e hipcrita.
A cena do enterro de dr.Arnaldo e aquelas que a ela se seguem de imediato so
particularmente interessantes para o desenrolar do enredo. Nela o discurso repugnante de
Dr.Odorico Quintela - o promotor que se v enleado pelos desejos que a herona lhe incita-,
sintetiza o caos domstico e social em que Engraadinha e seus familiares esto
mergulhados.
Ao sair do cemitrio, Dr. Odorico, levado pelo anseio de possuir Engraadinha, cria um
folclore ertico em torno do suicdio do Dr. Arnaldo. A beleza da jovem menina perturba o
promotor a tal ponto, que sua imaginao improvisa pretextos para justificar o desmedido ato
de to ilibada criatura. A amante a filha (p. 16) - diz Odorico a certa altura, insinuando a
existncia de uma relao incestuosa entre pai e filha. No tarda para que as calnias
inventadas por ele, aliadas s declaraes igualmente maldosas do mdico da famlia (que diz
188
ter encontrado debaixo da cama de Dr. Arnaldo o livro Nossa Vida Sexual) ganhem as ruas e
bares da cidade e acirrem os abismos da opinio pblica. O nome de Engraadinha cai, ento,
na desgraa da concupiscncia popular. At mesmo nas paredes dos banheiros pblicos da
cidade, especulaes irresponsveis sobre o possvel motivo que levara Dr. Arnaldo ao
suicdio so estampadas.
tio Non quem, na sua devassido abjeta, traz para dentro de casa as quadrinhas
maldosas que, aps a morte de Dr. Arnaldo, espalham-se pelas ruas de Esprito Santo. O
velho devasso levanta a suspeita de que o que falam sobre Engraadinha e seu pai pode
mesmo ser verdade. Isso leva tia Zez a pedir auxlio para irmo Fidelis (um cnego amigo
da famlia).
Quando questionada pelo padre sobre os comentrios que andavam por toda parte,
Engraadinha, com uma voluptuosidade ensaiada, confirma as maledicncias que correm
pela cidade e acusa o prprio pai. Em seguida, porm, culpa Zsimo (na poca, seu noivo)
pela gravidez indesejada; e, por fim, admite ser Slvio (o primo com quem fora criada desde
pequena) o pai do filho que est esperando.
Entre uma e outra declarao de Fidelis nas quais, diga-se de passagem, ecoam
reflexes de outras personagens de Nelson Rodrigues67-, Engraadinha pe-nos diante dos
acontecimentos ocorridos na festa de noivado de Slvio e Letcia, dois meses antes da morte
de Dr. Arnaldo. a exatamente o momento em que a causa pela qual Dr. Arnaldo se suicida
comea a ser elucidada e os leitores mergulham ainda mais profundamente nos aspectos
nelsonrodriguianos da narrativa.
Ocorre, ento, uma acentuao gradativa do que apontado como exagero folhetinesco.
Com generosas doses das mais rocambolescas peripcias, surpreendentes segredos do
67
Frases como A um morto se perdoa! (RODRIGUES, 1980a, p. 32); ou O pior devasso ainda mais puro!
(RODRIGUES, 1980a, p. 35); ou ainda At as prostitutas so incorruptveis (RODRIGUES, 1980a, p. 36)
nos remetem a conceitos que seus personagens dramticos tambm sustentam.
189
passado comeam a ser desvendados. Conta Engraadinha que ficou grvida durante o
noivado de Letcia e Slvio (ambos apresentados no incio da histria como primos da sensual
herona). Revela que se deixou desvirginar por Slvio na biblioteca da casa porque era dele
que gostava efetivamente e no de Zsimo.
interessante como Nelson Rodrigues, a partir da, vai descortinando a verdadeira
faceta daqueles que participam do enredo, e, de quebra, vai reafirmando sua prpria viso
sobre o sexo, os vnculos afetivos e as relaes familiares. Recorrendo ao voyeurismo do
leitor mdio, entreabre as cortinas da alcova e capricha no pormenor ertico. Num contexto
sadomasoquista, manipula um arsenal tcnico de seduo e deixa visvel a dialtica do desejo
e do obstculo, que tantas vezes encontramos em sua dramaturgia. Descreve com detalhes
grotescos a satisfao dos instintos, d closes indiscretos nos gestos e corpos dos amantes e
pe o leitor diante da voluptuosidade ordinria que exala das cenas, as quais, vale lembrar,
nos conectam a um outro tipo de composio artstica de grande sucesso popular na poca: os
catecismos. 68
Ficamos sabendo, ento, que o incesto realmente se concretiza na narrativa, mas no
entre pai e filha, como sugerem as calnias levantadas por Dr. Odorico Quintela. O que
parecia ser s um simples defloramento entre primos, ganha feies rodriguianas: Slvio , na
realidade, irmo de Engraadinha por parte de pai. Eles mantm relaes sexuais sem ter
conhecimento da condio incestuosa que os envolve.
Essa revelao transforma o texto numa espcie de pastiche de tramas e modelos j
68
Nas dcadas de 1950 e 1960 circularam os chamados catecismos, livretos tipo histrias em quadrinhos,
com enredos pornogrficos. Segundo especialistas, essas composies receberam tal denominao por serem
comumente vendidas sob o disfarce de publicaes religiosas. Os desenhos eram feitos diretamente sobre papel
vegetal, eliminando assim a necessidade do fotolito; e impressos em grficas de diferentes Estados, gerando,
inclusive, diversos imitadores. As histrias chegavam a ser bobas, mas retratavam os sonhos - para a maioria s
isso - erticos dos adolescentes do perodo. Os "zfiros", como tambm eram chamadas, eram disputados a
tapa, tanto que vrias falsificaes foram feitas. Depois de muitos anos, quando aquela molecada cresceu e
passou a se preocupar com isso, tentou-se descobrir quem era seu autor. Mas ele, com medo, vergonha ou sei l
o que, se escondeu. Somente na segunda metade dos anos oitenta que se descobriu que seu autor, Carlos
Zfiro, era na verdade um pacato funcionrio pblico de nome Alcides Aguiar Caminha.
190
muito repetidos por Nelson Rodrigues. Conceitos e temas recorrentes em outras obras do
autor passam, ento, a pulular entre uma e outra cena. A famlia, a partir desse episdio,
comea a ser tomada como a principal responsvel pelas violentas exploses instintivas dos
seres.
A mscara de perfeio e honradez que cobria Dr.Arnaldo, por exemplo, cai por terra,
logo que ficamos sabendo que, por trs da aparente seriedade que o nobre poltico insiste em
externar, h um homem pusilnime, dominado pelos implacveis olhares alheios:
Eu no diria nunca. Ou querias, sua miservel, que eu fosse contar para todo
mundo que fora amante de minha cunhada? Isso ia morrer comigo, ia enterrar-se
comigo e apodrecer com a minha carne e com minha alma! S eu sabia e
Ele.(RODRIGUES,1980a, p.88).
Todo o seu esforo para preservar-se do custico olhar alheio e evitar o dilaceramento
familiar de nada adianta, contudo. A fatalidade advinda das faltas de Dr.Arnaldo no passado,
tal como ocorre nas tragdias desenvolvidas pelo dramaturgo, acaba recaindo sobre toda a
famlia: Slvio, desesperado por saber que manteve relaes sexuais com a irm, numa cena
191
to espetaculosa quanto os crimes relatados por Nelson na adolescncia, decepa o seu prprio
pnis com uma navalha e, dias depois, morre no hospital. J Dr. Arnaldo, ao se dar conta do
peso de seus deslizes e do escndalo moral em que est envolvido, d um tiro na prpria
cabea. Engraadinha, por sua vez, grvida do prprio irmo, casa-se com Zsimo e vai
viver no subrbio do Rio de Janeiro, na casa em que a encontramos no incio da narrativa.
A fora atrativa do enredo, no entanto, no obtida apenas pela explorao de cenas
ttricas (que tanto encantam o leitor do gnero), mas tambm pela explorao de frases de
efeito e pelas situaes inquietantes em que algumas figuras dramticas so colocadas.
Afirmaes como Cada famlia tem suas trevas interiores, que preciso no provocar
(RODRIGUES,1980a, p.17); ou tambm Vocs esto radiantes com o incesto.
Satisfeitssimos. Assim o povo: tem fome de sangue e excremento (RODRIGUES,1980a,
p.17), proferidas por Dr. Odorico Quintela entre uma e outra frivolidade; e declaraes como
O verdadeiro grito parece falso (RODRIGUES,1980a, p.70); ou ainda: Se Deus existe, o
sexo um detalhe (RODRIGUES,1980a, p.70); mais que escandalizar, parecem carregar
consigo a tarefa de revalidar as idias tantas vezes repetidas nas crnicas, memrias e
dramaturgia de Nelson Rodrigues.
Personagens secundrias submersas em circunstncias absorventes no faltam nessa
obra. o caso, por exemplo, de tia Ceci. Em sua aparente insignificncia, ela escancara o
asfixiante ambiente familiar e nos desperta realidade atroz que envolve toda a famlia de
que faz parte. ela quem, na cena da mutilao de Slvio, traz tona a tragicidade que os
gritos de pavor soltos em detrimento do horror da situao e a atmosfera nauseante sugerida
pelo sangue oriundo do ferimento so capazes de gerar.
Tal qual d.Aninha (a doida pacfica de A mulher sem pecado), ou ainda como a av de
Senhoras dos afogados (que viu o filho Misael assassinar a prostituta e acabou por refugiarse na loucura), Tia Ceci faz parte do catlogo de insanos que circulam nas narrativas de
192
Nelson Rodrigues. No obstante o tom geral de ironia e deboche que encontramos quando tal
assunto abordado, ela quem, fixando na fragilidade de sua loucura a selvageria do
espetculo das relaes humanas, instala nesse enredo algumas linhas de fora da obra
rodriguiana.
De seu mundo comprometido pela falta de lucidez, a virgem senhora revela os desvos
no confessados de todos os indivduos que ali se encontram. Semelhante a alguns dos outros
loucos de seu rol de personagens excntricas, tia Ceci fornece a chave para a compreenso
dos sentimentos de culpa que arrebatar os indivduos e os levar desventura (pelo menos
nessa primeira parte da obra). A atmosfera de sonho e projeo onrica em que ela se
encontra no momento da mutilao escancara a misria dos que romperam os limites ticos e
morais em virtude de seus demnios interiores.
A falta de fronteiras entre a loucura e a razo no raro vem acompanhada por uma
atmosfera que, embora ridicularizada, encontra-se repleta de obsesses doentias. As
investigaes sobre o lado obscuro da psique, tambm nas histrias fatiadas do
dramaturgo, esto ligadas aos aspectos mrbidos e grotescos que algumas situaes
canhestras lhes impingem.
A presena do grotesco nessas narrativas podem ser captadas por meio da distoro
exagerada que o autor faz da sociedade e do mau-gosto que freqentemente Nelson consagra
sustentao do prazer nefando. Mau-gosto esse, diga-se por alto, que o prprio dramaturgo
j se sabia pertencente h muito:
A partir de lbum de famlia, enveredei por um caminho que me pode levar
a qualquer destino, menos ao xito. Que caminho ser este? Respondo: de um
teatro que se poderia chamar assim: desagradvel, peas desagradveis. No
gnero destas, inclu, desde logo, lbum de famlia, Anjo Negro (sobre
miscigenao) e a recente Senhora dos afogados. E por que peas desagradveis?
Segundo j se disse, so obras pestilentas, ftidas, capazes, por si s, de produzir o
tifo e a malria na platia. (RODRIGUES, [1949] 2004b, p.275).
193
O inusitado que permeia o episdio (com todo o excesso que lhe peculiar) conduz ao
grotesco da situao, e do grotesco ao riso, como bem nos lembra Eudinyr Fraga, um passo:
O riso, mesmo amargo, permite ao pblico conscientizar-se do que se esconde atrs do
ridculo, do que teria provocado o surgimento de seres to risveis e situaes to tolas e
194
Para Tranquilin Silva (1999), o riso nos folhetins de Nelson Rodrigues remete-se tanto a matrizes culturais
quanto a natureza dos indivduos: Parece que Nelson Rodrigues carnavaliza situaes onde os valores morais
esto colocados e que acabam provocando riso geral, como se o mais sensato fosse rir daquilo que se criou.
[...] O ato de rir e as sensaes por ele transmitidas trazem em si tanto a marca da natureza como da cultura.
O riso exprime estados diferentes e todos os homens riem, mas podem faz-lo de maneira diferente, por motivos
diferentes (Bataille, 1968: 66). A cultura, com seus padres, pode convencionar as situaes, os momentos e
por que os indivduos devem rir mas, nem sempre, consegue impor seus limites, e a ao do riso flui de maneira
instintiva. Assim, pode-se dizer que Nelson Rodrigues, mais uma vez, consegue mostrar o conflituoso campo de
foras entre natureza e cultura, veiculado predominantemente pelo melodrama, mas, tambm, por meio de
outros gneros que esto presentes, com maior ou menor fora, em seus folhetins. (TRANQUILIN
SILVA,1999, p.229-233).
195
pecados da voluptuosa Engraadinha, pois, como a personagem da pea, Zsimo sente que,
se h um culpado pelos desvios morais da amada, esse culpado ele mesmo, como pode ser
observado no episdio que segue (cena esta, diga-se por alto, que reproduz algumas das falas
mais marcantes do prprio Gilberto):
No meio da sala, Zsimo desvencilhava-se de algum que queria agarr-lo.
Aponta Slvio, que se aproxima:
-Ele conhece! vira-se para Slvio, com lbio encharcado: - Voc no
conhece?
A nova gargalhada ofende e humilha Silvio como uma agresso
indefensvel. Quer segurar o rapaz: Vamos, Zsimo! O outro puxa o brao, num
repelo:
- Tu no conhece a minha futura?
Quer pux-lo novamente:
Geni vem de l: Esse Zsimo um nmero! Uma bola! Zsimo d murros
no prprio peito:
-Eu! Eu, sim, eu! entorta a boca e comea a desafiar todo mundo: _ minha
noiva est grvida de outro, sim senhor! E aqui o Slvio conhece minha noiva. No
conhece? Ri, pesadamente: - No um biju?, um biju!
Tenta arrast-lo: Vamos embora. Mas o outro continua, na sua idia fixa:
-Minha noiva est grvida e nem sei quem o cara. [...]
- ...estou dizendo, tenho razo ou no tenho? Estou dizendo que no se
chama uma adltera de adltera! No , Slvio? Voc acha que eu vou chamar de
adltera uma moa que traiu antes do casamento? [...]
- Vou reconhecer o filho. Faz de conta que meu. Sou muito homem pra
mudar a fraldinha do meu filho!
Desata a chorar. Um gaiato faz voz de falsete: Chuta tua noiva pra mim!
Zsimo gira sobre si mesmo, procurando o gaiato: Vocs no entendem!
Ningum entende! E repete: uma indignidade insultar uma adltera. Outro
bate-lhe nas costas: J de chifre, rapaz! O bbado ri: Chifre! E sbito baixa a
cabea e, no passo pesado e incerto, sai dando marradas no ar.[...]
O bbado agarrado a ele, chorando sordidamente, repetia na sua fixao de
brio: Voc conhece a minha futura. No conhece? A minha futura, Slvio?
Conhece. Grvida no sei de quem, nem interessa. Aquele bbado, obcecado pelo
perdo da adltera, era terrvel. (RODRIGUES, 1980a, p. 125-132).
As abordagens cmicas que encontramos nas tramas escritas por Nelson geralmente
soam bastante agressivas. Com ironia e sarcasmo, ele enfatiza uma srie de circunstncias
capazes de despertar regozijo e comiseraes ao mesmo tempo. Seu humor pode ser tomado
como o resultado de seu desespero. Faz-nos rir, verdade, mas um riso desconcertante o
que propagamos.
A figura de Dr. Odorico Quintela, da mesma forma que Zsimo, reafirma o gosto de
Nelson Rodrigues pelo escrnio, hediondez e deboche, principalmente na parte II da obra.
ele quem faz o link entre a juventude e a idade adulta de Engraadinha, ou por outra, entre a
196
1. e a 2. parte de Asfalto Selvagem (esta ltima escrita no final de 1959 e incio de 1960).
A passagem do tempo entre os dois volumes em que se divide a histria explcita.
Aquele jovem promotor, que, vinte anos antes discursara no enterro de Dr. Arnaldo pensando
nos lindos seios de Engraadinha, torna-se um respeitado juiz de direito. ele (Dr.
Odorico) quem, depois de esbarrar acidentalmente em Silene (filha de Engraadinha), d
abertura continuao da trama. A similitude que o estimado juiz v entre a menina e a me
leva-o a relembrar a fascinao que em sua juventude Engraadinha lhe despertara e o incita
a tentar realizar os desejos incontidos que outrora no conseguira satisfazer.
Encontramos, nesse segundo segmento, Engraadinha casada com Zsimo e me de
cinco filhos: Durval, o filho mais velho (fruto do amor entre ela e Slvio), trs meninas que
pouco aparecem na histria, e Silene, a que mais se assemelha Engraadinha dos velhos
tempos. Reduzida mediocridade da vida comum, Engraadinha vive humildemente coma
famlia em Vaz Lobo, subrbio do Rio de Janeiro. A casa pequena, os mveis velhos e a
ausncia de aparatos domsticos bsicos, como uma geladeira, exaspera e enche de vergonha
a casta e dignssima senhora que Engraadinha se tornara.
A nica preocupao de Engraadinha, visto a filha caula ser cpia rediviva dela em
sua juventude, era que Silene incorresse nos mesmos erros que ela cometera no passado; por
isso, ficava atenta ao relacionamento que a menina mantinha com o irmo, pois sentia que
entre eles havia um clima incestuoso, tal qual houvera entre ela e Slvio anos antes. Isso pode
ser confirmado no trecho:
Finalmente, Silene aparece com as compras. Durval, que estava sentado,
ergue-se transfigurado por uma alegria to ansiosa que Engraadinha, que o
observava,
pensou,
desesperada:
Recebe
a
irmo
como
uma
namorada!.(RODRIGUES, 1980b, p. 21).
197
Durante toda a narrativa, Dr. Odorico tenta, em vo, conquistar Engraadinha. Vale-se
de sua situao financeira e posio social para angariar a simpatia e confiana de todos na
casa. Pensa que um dos bons achados da sociedade capitalista a mulher bonita, pobre e
voraz (p.20). No perdia a oportunidade de dar a entender que o judicirio era uma
potncia sombria e esmagadora (p. 30).
A superficialidade de seus gestos e aes aflora o vazio existencial e reporta-nos aos
valores distorcidos que circundam os indivduos. Por detrs da aparente polidez, dr.Odorico
faz generalizaes mordazes sobre a famlia e outras instituies sociais. No raro, nos seus
desabafos interiores, gemia: O lar o mais cretino dos tmulos! (p. 115). A viso que
passa de Zsimo e das condies precrias em que a famlia de Engraadinha se encontra,
por exemplo, alm de reforar a deteriorao da conjuntura domstica, encorpa o humor
abrasivo de que vimos falando:
Marido assim! Camisa rubro-negra, sem mangas, axilas abundantes e
obscenas, de chinelos e sem meias! de resto, conclua, preciso muito cinismo
para que um casal, qualquer casal, chegue s bodas de prata![...] nenhum marido,
com aquela camisa rubro-negra, podia ser amado ou sequer desejado pela esposa.
E, alm disso, exposio de axilas fora do local dos momentos prprios parecia-lhe
uma degradao (RODRIGUES, 1980b, p.12 -13).
Suas reaes frente ao prprio casamento so as mais srdidas possveis. Para a esposa,
porm, trata de conservar as aparncias. Como no episdio em que depois de ter sido
convocado por ela, diz, num sarcasmo secreto e inapelvel:
-Meu anjo, o sexo , no casamento, um detalhe. [...] Ns vamos
comemorar daqui a pouco as bodas de prata. E olha: depois de certo tempo, o amor
conjugal vira amizade e o desejo entre marido e mulher passa a ser quase
incestuoso. [...] Eu no queria dizer, porque, enfim, tive escrpulo, vergonha. Mas
fui ao mdico e ele me disse que eu estava incapaz. (RODRIGUES, 1980b, p.145).
198
dela, se delicia ao assistir ao suposto felattio praticado pelos atores da pelcula, a simulao
de Dr. Odorico frente a valores morais prestigiados da poca parece reverberar com ainda
maior acidez o ridculo de algumas situaes aparentemente comuns ao perodo.
Perante os conhecidos, diz: - uma vergonha, uma indignidade! (RODRIGUES,
1980b, p.25). Mas, longe dos repreensivos olhares de quem convive, a reao de Dr. Odorico
frente ao filme muito diversa. Como pode ser observado na cena em que ele, na porta do
Pathezinho, na Cinelndia, reage aos vituprios que uma gorda e hipcrita lana ao longametragem com que acabara de se aprazer: Por que indignidade? Indignidade, vrgula! E o
que faz seu marido? A senhora deve andar muito escassa de marido!. Na sua fria contida,
ele pensava: Babou-se l dentro e vem c pra fora fazer comcio! (RODRIGUES, 1980b,
p.50).
E mais adiante:
Que cena, minha senhora? Aquilo comum, minha senhora, na intimidade
dos lares mais respeitveis! o que se leva da vida, minha senhora, pode crer: o
que se leva da vida! Perfeitamente! [...] De mais a mais, os culpados somos ns!
Esse filme, quando estreou, era to inocente, to puro! [...] Ns que
corrompemos o filme, ns! E, agora, o filme no o mesmo: est degradado pela
platia! Qualquer dia a senhora h de ver os artistas improvisarem cacos, piadas
70
obscenas! (RODRIGUES, 1980b, p.53-54).
Dizeres que, para Castro, so quase uma receita de Nelson sobre como deveriam enxergar a sua obra
(CASTRO, 1992, p. 302).
199
200
Tal qual o amigo de Valdemar, Leleco no sente desejo por Silene porque a ama
verdadeiramente e, da mesma forma que o outro, chega a procurar um mdico na inteno de
ser ajudado (embora no se suicide como fez o rapaz da vida real):
Ao lado, mudo, ele [Leleco] comea a sofrer. Pensa: Silene no sabe...
Sim, no sabe que ele tem angstias, suores, pnicos e que... No esquece as
palavras do psiquiatra: Voc no tem vida sexual. E o conselho: diga e faa
dizer palavres. O palavro um estmulo. [...] O psiquiatra parece estar
soprando, no seu ouvido: a represso educacional que impede a mulher de ser
pornogrfica, ela gostaria de falar nomes feios. [...]
Pensa: Ele no sabe. A melhor menina do Rio de Janeiro me espera e eu
no sinto desejo, no sinto prazer, nada, nada. Volta, lentamente, para o quarto. A
voz do mdico no o larga: As mulheres seriam menos desequilibradas se
dissessem palavres. Por que o cretino do psiquiatra no lhe receitara um
excitante pesado?. (RODRIGUES, 1980b, p. 60-63).
Quando Leleco e Silene se encontram num dos quartos do fundo do Bar do Pepino,
na Avenida Niemeyer, por exemplo, a tnue fronteira entre fico e realidade se afrouxa
ainda mais. Enquanto, nos aposentos, Leleco implora que Silene diga um palavro, o
ambiente jornalstico em que Nelson Rodrigues passou boa parte de sua vida trazido
narrativa atravs da presena dos jornalistas Ib Teixeira, Raimundo Pessoa e Tinhoro, que,
prximos janela do quarto em que esto os namorados, altercam sobre os acontecimentos
polticos e comportamentais da poca:
Perguntava [Ib] ao companheiro: O povo elege um sujeito, d-lhe dinheiro
para o cara legislar contra o beijo! O Raimundo Pessoa, no seu jeito meio
soturno, arrisca:
-Feio se o garoto, em vez de escolher uma garota, preferisse outro garoto!
Com um lampejo no olhar, o Ib espia para o porto numa ltima esperana
das chilenas: Ergue-se, com vontade de chorar; esbraveja ainda: O dio que h no
Brasil contra o amor! A polcia persegue os namorados, os amantes, fecha os
hotis. Temos uma polcia ginecolgica! [...]
201
Parece que os figurantes que Nelson Rodrigues coloca na histria so pretextos para o
dramaturgo destilar sua perversidade. Para Castro (1992), o fato de o dramaturgo usar
personagens para trazer tona o cotidiano da poca foi a maneira que Nelson encontrou
fazer colunismo poltico, crtica literria e crnica social sem paralisar a ao e, ao
mesmo tempo, escrever o que pensava sobre cada um. (CASTRO, 1992, p.303).
Tal idia se confirma quando percebemos que atos e palavras de dr.Odorico so usados
pelo dramaturgo para discutir assuntos em pauta nos jornais e ruas de ento, como exemplo
o trecho abaixo:
Mas como eu ia dizendo: malham o Juscelino, mas escuta. O Juscelino,
Engraadinha, o maior presidente que o Brasil j teve, o maior! [...]
- Eu gostava do Getlio.
-Exato, exato. Eu tambm, mas escuta: o Getlio diferente. Matou-se e eu
sou dos que acham que o suicida sempre tem razo. Mas o Juscelino! O caso da
carne um primor. O Juscelino to genial que no sabia o preo da carne. Um
belo dia, v uma fila, uma fila imensa, que dava duas voltas no quarteiro. Ele
pensou que fosse fila do Metr. o gnio, compreendeu? O preo da carne um
detalhe e o gnio passa por cima do detalhe. (RODRIGUES, 1980b, p.232).
202
fotgrafo Paulo Reis, o crtico musical Eurico Nogueira Frana, inmeros outros.
[...]
Muitas peripcias [...] soam como ecos do passado profundo de Nelson. A
lenta agonia de Slvio no hospital lembra a de seu irmo Roberto. O pai morre por
causa do filho, assim como Mrio Rodrigues morrera por causa de Roberto. S que
doutor Arnaldo no morre de desgosto, mas se mata com um tiro na cabea. E,
aps a morte do pai de Engraadinha, a famlia perde a espinha dorsal, como
acontecera com a famlia de Nelson depois da morte de Mrio Rodrigues. Com as
modificaes exigidas pela fico, era a mesma histria em linhas gerais. E era
cruel, mas irnico: Nelson, que vira os Rodrigues protagonizando as situaes de
folhetim que ele tanto gostava de ler em criana, traduzia agora a sua prpria
experincia de vida nesse gnero de literatura. (CASTRO, 1992, p.301- 303).
Seja isso verdade ou no, muitos episdios do livro parecem ter sido tirados dos fait
divers que Nelson escrevia nos jornais do pai. o caso, por exemplo, do crime que Leleco
comete por causa de Silene. Crime esse que, como aqueles da juventude do autor, eletriza a
opinio pblica e faz a alegria da imprensa marrom.
Leleco se v obrigado a matar Cadelo por ter descumprido o combinado com o rapaz.
Ou seja, Leleco deixa de levar Silene ao apartamento de Cadelo para que todos os outros
rapazes da turma se aproveitassem da moa. Para se vingar, Cadelo tenta abusar
sexualmente de Leleco e, a fim de evitar que isso acontea, Leleco acaba por mat-lo.
Do crime, ocupa-se o reprter Amado Ribeiro, o mesmo que j aparecera como
correspondente de um jornal em O beijo no Asfalto:
Amado Ribeiro era o reprter de polcia nato e hereditrio. Quando no
havia crime sorria como um pobre-diabo irremedivel, sem destino, nem funo.
Naquele dia, justamente, fora visto na redao, errante de mesa em mesa, exalando
melancolia e impotncia: No morre ningum! E insistia, numa alegre
indignao: Ningum mata ningum! Sbito, o cachorrinho presidencial avisa:
Mataram o Cadelo! (RODRIGUES, 1989b, p.133).
A figura desse jornalista, tambm nessa narrativa permite sintetizar a fuso dos
domnios do pblico e do privado, do bem e do mal, do sagrado e do profano, do real e do
imaginrio. As relaes estabelecidas entre ele e as outras personagens (da mesma forma que
na pea teatral) parecem sintetizar em cenas precisas amplas problemticas culturais, e, ao
mesmo tempo, sugerir significados vastos para dramas particulares.
Assim como os reprteres policiais da caravana de Crtica (o jornal de Mrio
Rodrigues), Amado Ribeiro, ao descobrir que Leleco o culpado pela morte de Cadelo,
203
intimida o rapaz, idealiza cenas do crime, inventa provas e gratifica testemunhas falsas para
deixar sua histria ainda mais interessante. Diz ele, a certa altura: "Ser ou no ser, no
importa. Importa o que o jornal quer, o que o jornal diz. Com um p nas costas, um reprter
de setor transforma um Judas num Cristo e vice-versa"(Rodrigues, 1989b, p.181).
Para Tranquilin Silva (1999), Nelson, ao fazer uso de tais recursos, no somente
demonstra a experincia que acumulou em uma prtica obtida pela profisso e pela vivncia
de observador da realidade, como tambm forma uma imagem aproximada da trajetria
histrica do prprio Rio de Janeiro:
Nelson Rodrigues tem como base os instantes da realidade carioca, porm
possui a capacidade de olhar essa realidade com a sensibilidade de romancista que,
a partir dela, acaba por criar um mundo imaginrio o qual retorna realidade
vivida. [...]
Ao tratar dessas questes, Nelson Rodrigues parece ir revelando os
meandros da cultura. Suas personagens podem ser, em parte, encontradas no
cenrio da vida real. Ao mesmo tempo que escreve essas tramas, o autor tomado
por suas lembranas, aciona as de quem viveu naquela poca e as de quem um dia
ouviu muitas histrias. Assim, acaba por restaurar partes de uma tradio, fazendoo de maneira nostlgica, e ao mesmo tempo recorre a valores que esto sendo
questionados. Parece haver um movimento da tradio que se articula ao moderno.
(SILVA, 1999, p.129).
204
Dr. Alceu vira-se para Silene. Pensa: Onde que o meritssimo foi
descobrir esse material? Com uma ternura risonha, pergunta:
- essa a nossa amiguinha?
-Exatamente.[...]
De costas para a cena, dr. Odorico repetia: Qualquer homem de bem que
estivesse aqui havia de querer dar uma olhada;. Eu sou humano e nada mais! [...]
-...dr. Odorico, quer vir aqui, por obsquio?
E para Engraadinha:
-Minha senhora, quer ter a bondade?
O juiz, perplexo, d dois passos e estaca. As palpitaes da lcera so
incontveis. Engraadinha segue o ginecologista. Silene acompanha os trs com o
olhar. [...]
-Infelizmente, a menina, desculpe, minha senhora, e creia que lamento, mas
a sua filha no mais virgem. [...]
-Doutor examina outra vez, sim doutor?
-Pois no. Eu vou lhe mostrar. Tenha a bondade.
Engraadinha passa. Dr, Alceu pisca o olho para o juiz:
- O senhor tambm, Meritssimo!
Engraadinha estaca. Pergunta, vivamente:
-Minha filha vai ficar exposta?
Dr. Alceu, embora firme, incisivo, teve tato:
-Minha senhora, o pudor no cabe neste momento. Eu tenho alguma prtica.
O dr. Odorico me conhece e sabe. [...]
Dr. Alceu vira-se, desconcertado:
-No quer assistir?
E ele, [dr. Odorico] abandonando-se ao impulso nobre:
-Absolutamente! Basta voc, basta esta senhora, que a me.[...] Eu no
devia nem estar aqui, Devia estar l fora, na sala de espera. E pra l que eu vou,
neste momento. Com licena, Engraadinha. (RODRIGUES, 1980b, p. 156-160).
205
de Otto Lara Resende (amigo pessoal de Nelson Rodrigues) tenta impressionar a moa.
Chega at mesmo a converter-se religio de Engraadinha para ver se consegue lev-la para
cama. Visando a to sonhada noite de amor, o velho juiz lhe d de presente uma geladeira e
espera ansioso seu prmio de reconhecimento, o qual, para sua infelicidade, no vem.
Desse episdio em diante, o texto parece se aproximar mais do estilo que Nelson
Rodrigues desenvolve como Suzana Flag e Myrna. Vrios episdios vo, naquele antigo
esquema de gavetas e exageros amplificadores, esticando a narrativa. Para apimentar
ainda mais o enredo e garantir a fidelidade dos leitores habituados ao sensacionalismo
ertico, Nelson Rodrigues introduz na narrativa a figura de Luis Cludio, um fascinante
rapaz. Um arsenal tcnico de seduo nos , ento, apresentado.
A mesma paixo que faz com que Suzana Flag, em sua autobiografia, aceite tio Aristeu,
e faz com que Lcia (de A mulher que amou demais) abandone o noivo para ficar com
Carlos, e que colaborou para que Malu (de Escravas do Amor) se rendesse aos encantos de
Bob, faz com que, aqui, Engraadinha no consiga dominar os sentimentos que Lus Cludio,
logo no primeiro olhar, lhe despertou. Numa cena repleta de insgnias do folhetinesco
romntico, ela, debaixo de uma tempestade fenomenal, se entrega por inteiro quele homem
que mal conhece. Toda a voluptuosidade que vinte anos antes era caracterstica inseparvel
da jovem Engraadinha ressurge, ento, de forma avassaladora. As castas atitudes da virtuosa
senhora que ela se tornara esmorecem de sbito e um turbilho de desejos reabastece do mais
ordinrio erotismo os pensamentos daquela que por um tempo conseguiu manter-se afastada
dos pecados da carne.
Tal conjuntura, porm, ao contrrio do que se possa pensar, no narcotiza o
espelhamento de costumes e valores fossilizados pelas relaes sociais estabelecidas pelos
tempos, pois mostra Engraadinha dividida entre a famlia e seu amante, ou por outra, entre
206
Ainda que inserida num ritual cnico prximo queles consagrados nos folhetins
embrionrios, a figura de Engraadinha agrega s convenes morais o exagero e a
desmedida. Seu comportamento estereotipado define a fronteira entre o bem e o mal,
estabelece os limites entre o certo e o errado, e, em ltima instncia, assegura a manuteno
dos estigmatizados modelos morais. Ao mesmo tempo em que comete a infidelidade na rua,
luta para estar de acordo com o mundo idneo do lar. Na continuao da cena transcrita
anteriormente, fica evidente a antinomia entre o instinto sexual e a represso:
- Estou rezando
E ele [Lus Cludio] com uma ironia terna:
-Desculpe.
Engraadinha, porm, pra a orao no meio. Sente que intil continuar.
(gostaria de rezar com toda a paixo. Mas o que sente em si um vazio de dio, de
amor, de tudo. [...]
O que o senhor fez, ouviu? O que o senhor fez foi uma indignidade! Um
papel indigno de um homem! Eu sou uma senhora casada e o senhor se igualou a
esses bandidos![...]
O senhor merecia um tiro!
[Lus Cludio] Acende o cigarro:
-De acordo.[...]
- O senhor h de pagar! No pense que...
Estaca. Dir-se-ia que algum, uma voz secreta, mas ntida, est soprando:
mentira! Engraadinha tem uma sbita conscincia de que , sim, mentira,
tudo mentira. Sente que falsa a sua clera. (RODRIGUES, 1980b, p.270).
71
Ir Salomo (2000, p.78 -93) observa no estudo que faz do teatro de Nelson Rodrigues a existncia de um
universo que se estrutura em dois ambientes antagnicos: na casa e na rua. Para ele, a casa seria o local do
respeito entre pais e filhos, do autoritarismo, do controle, dos afetos e das relaes pessoais. Nela, a esposa teria
a imagem da santa, intocvel e assexuada. J a rua seria o lugar das escolhas, da disputa, da massificao das
relaes e onde nem a hierarquia nem os papis de cada membro conseguem ser claros. Na rua,
vislumbraramos o outro lado feminino, o lado da puta: Santa e puta so os arqutipos de nossas personagens
femininas. Para a santa tem-se a boa medida, o recolhimento, a castidade, o silncio e zelo do lar. Para a puta,
o desregramento, o erotismo, a fantasia o sonho e a sexualidade (SALOMO, 2000, p.80).
207
Para Ir Salomo (2000, p.84-85) essa polarizao entre santa e puta pode ser
cogitada como uma imitao muito prxima do real: Viver a casa ou a rua, conforme suas
respectivas ticas, o resultado da imposio de uma sociedade patriarcal, que coloca a
mulher em uma condio dificlima diz o crtico. E adiante prossegue:
So as mulheres sem escolhas maiores que fizeram suas identificaes ainda
na infncia, seja com a me, com a tia, ou como de fato , com toda a realidade
machista de nossa cultura. So mulheres domsticas e domesticadas que embotam
seus sentimentos e afetos, repetindo o discurso retrgrado de geraes passadas.
(SALOMO, 2000, p.86).
Tal qual Zulmira (de A falecida), personagem de que Ir Salomo se ocupa mais
especificamente, Engraadinha, em casa, uma casta moralista; do porto para fora, porm,
uma mulher que, no sem culpa, viola o ambiente da santa, profana os ritos domsticos, e
macula a honra da moral crist. O universo da santa , para ela, um disfarce de seus reais
anseios. Assim, o medo, o nojo de si mesma, a violncia, o desejo de morrer, o sadismo e a
culpa so estratagemas inconscientes que ela usa para extravasar seus verdadeiros
sentimentos. atravs do universo reprimido das santas que o autor convalida os alicerces de
nossa cultura patriarcal e legitima os valores que considera imperativos.
Como registro da mesma dualidade radical, encontramos Letcia (a prima que, na
primeira parte da obra, apesar de ser a noiva de Slvio, apaixonada por Engraadinha).
Diferente da herona, porm, Letcia simboliza apenas o de fora, ou seja, o mbito da rua, o
erotismo, a iluso, o devaneio, o desregramento, enfim, a sexualidade exacerbada. Junto com
Arlete, de Os sete gatinhos forma a nica dupla de lesbianismo declarado das narrativas de
Nelson Rodrigues.
Sua apresentao, no por acaso, ocorre em meio a rumores de uma conscinciacoletiva que adverte e condena. A exposio de seus desejos, dessa forma, apesar de a
personagem encontrar-se inserida no mundo masculino, no a liberta da noo de pecado.
Antes, o mbito de reflexo sobre a sociedade da poca alargado pela reverberao de
208
209
quarto em que est hospedada e tenta convenc-la a fazer o que a me sempre se recusou.
Depois, ao descobrir que Engraadinha tem um amante, passa a intimid-la. Valendo-se do
amor incestuoso que Durval tem pela me, Letcia ameaa contar a ele sobre os encontros
entre Engraadinha e Lus Cludio, caso ela se recuse a atender seus desejos.
Sem outra sada, Engraadinha chega a ceder parcialmente s chantagens da prima.
Com grande relutncia, mostra-lhe um dos seios, mas no passa disso. Letcia, ento, no
satisfeita, d seguimento s promessas e vai atrs de Durval. Mais uma vez, no entanto, ela
no consegue reagir frente paixo a que se v submetida, tampouco escancarar seus
verdadeiros sentimentos frente ao repdio de todos. Como tantas outras personagens
folhetinescas, Letcia, ao perceber a impossibilidade de satisfazer suas inclinaes naturais,
se suicida.
Apesar de pertencer a uma instncia que teoricamente seria incapaz de sublimar o
discurso amoroso, sua postura diante do sentimento de amor de total doao. Porque ama
demais excede todos os limites, extrapola todas as medidas, revoga todas as convenes.
No digladiar existencial que trava com o mundo, ela engendra e delimita o que o
prprio Nelson Rodrigues entende por sentimento amoroso. Mostra-nos como difcil amar
e ser feliz ao mesmo tempo; sugere ainda como frgil e insustentvel o sexo separado do
amor, e, como ltimo recurso, de que forma o amor - se de fato amor verdadeiro - consegue
sustentar-se pela eternidade adentro. Em suas palavras:
Engraadinha: Quem te fala uma morta. Eu j morri. Quando leres esta
carta, estarei entre os mortos. Vai parecer desastre e tu dirs que foi desastre.
Ningum desconfiar de um atropelamento. Darling: s te peo uma coisa:
acredita no meu amor. amor, e no tara. Na hora de morrer, eu no mentiria.
amor, darling, s amor. Para sempre. J morri e amor. I love you. I love you, I
love you. Letcia. (RODRIGUES, 1980b, p.375).
O percurso percorrido por essa personagem, no entanto, ainda que possua elementos
capazes de proporcionar debates significantes a respeito dos processos que cindem o homem
moderno, serve apenas para satisfazer os apelos da matriz romanesca que permeia o gnero.
210
211
expedientes da subliteratura:
- O Brasil vive uma fase ginecolgica! [diz Abdias a Lus Cludio e, depois,
continua] O desenvolvimento traz um medonho estmulo ertico. Nunca o
brasileiro foi to obsceno.[...] uma obscenidade histrica! [...]. As mulheres,
dos doze aos quarenta e cinco, emanam uma ativa voluptuosidade. um problema
de constatao visual: os quadris femininos vibram mais e j um desejo surdo e
geral fazendo crispar as ndegas at de meninas. Padecia-lhe ntida e taxativa a
relao entre o sexo e a epopia industrial [...] -Voc no acha que meu raciocnio
batata?
Luis Cludio exulta:
-Batata! E o que faz o romance brasileiro que no v isso? A nossa fico
cega para o cio nacional! (RODRIGUES, 1980b, p.380).
Afinal, como diz o prprio dramaturgo: A grande fico nada tem a ver com o bom
gosto (RODRIGUES, 1993a, p.178).
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9.Consideraes Finais
De todas as polmicas afirmaes que Nelson Rodrigues costumava fazer sobre si
mesmo, a frase Eu no existiria sem as minhas repeties talvez resuma e elucide o
caminho que trilhamos at aqui. Porque se repetia, Nelson amalgamava os gneros,
misturava experincias pessoais com acontecimentos fictcios, construa personagens
baseadas nos episdios que presenciava na vida real. Porque se repetia, reiterava apreciaes
e preconceitos de sua infncia em seus textos da maturidade, trazia de seus romances
procedimentos que utilizava em seus dramas e de suas crnicas jornalsticas, temas que
habilmente explorava em todas suas composies. Flor de obsesso, chamavam-lhe
carinhosamente os amigos; tarado obsessivo, insultavam-no seus detratores; e ele, mais
uma vez, ao se repetir, defendia-se:
Ser um autor de tema nico no me parece nem defeito, nem qualidade, mas
uma pura e simples questo de gosto, de arbtrio pessoal. Por outro lado, um autor
que volta a um assunto s se repete de modo muito relativo. Creio mesmo que no
se repete nada. Cada assunto tem em si mesmo uma variedade que o torna
infinitamente mutvel. (RODRIGUES [1949], 2004b, p. 279).
Elucidativas reiteraes, dizemos ns, porque so elas, ao fim e ao cabo, que nos
ajudam a compreender o universo rodriguiano. So as clonagens que faz de si mesmo que
nos permitiram perceber que o Nelson-cronista, o Nelson-dramaturgo, o Nelson-folhetinista,
ou mesmo o menino-Nelson (de calas curtas brincando de jornalista no peridico do pai)
so, na verdade, apenas um e o mesmo, sempre.
A impresso que nos restou ao final da pesquisa foi que essa unidade em Nelson
no ocorre toa. O que ele escreve pareceu-nos ser, antes de tudo, resultado de conexes
subjetivas que sua obra faz com o mundo real do qual emana. Em outras palavras: a
construo dos textos rodriguianos pareceu-nos decorrer da experincia sensvel do autor em
face da poca em que viveu, de tal sorte que a vida de Nelson Rodrigues e toda sua produo
artstica no podem ser vistas como instncias separadas entre si, uma vez que uma
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Vale lembrar que no final da dcada de 40 que as bases do que vir a ser o pensamento radical dos anos 60
comeam a se formar. Perodo este (o dos anos 60) durante o qual, diga-se de passagem, Nelson Rodrigues
continua com a mesma bandeira do atraso. Nas palavras da professora Adriana Fascina: Na viso de Nelson, o
mundo do poder jovem, [fala dos anos 60] dos protestos estudantis, da revoluo sexual um mundo de pontacabea, com valores invertidos. A sua crtica no somente poltica,, mas tambm moral. Seu pensamento
marcado pela nostalgia de uma poca que ele considerava menos relativista em termos morais, na qual as
mulheres usavam mais roupas, os religiosas dedicavam-se apenas s questes espirituais e os jovens
respeitavam os mais velhos. (FASCINA, 2004, p. 240-241).
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2. Memrias e confisses
A cabra vadia. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado, s/d.
A menina sem estrela Memrias. So Paulo: Companhia das Letras, 1993a.
O bvio ululante As primeiras confisses (crnicas). So Paulo: Companhia das Letras,
1993b.
O reacionrio: memrias e confisses. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
O remador de Ben-Hur confisses culturais. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
3. Teatro
Teatro desagradvel. SNT. Revista Dionysos, 1949.In.: ______.Teatro completo. Peas
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4. Crnicas e contos
A vida como ela ... . Rio de Janeiro: Agir, 2006.
A dama do lotao e outros contos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
5. Entrevistas e Depoimentos
Depoimentos V. Depoimento prestado ao SNT em 04/12/1974. Coordenadores: Ruth
Mezeck e Aldomar Conrado. Entrevistadores: Aldomar Conrado; Gilberto Braga; Fernanda
Montenegro; Sbato Magaldi. Rio de Janeiro, MEC/SNT, 1981.
Entre Nelson Rodrigues x Otto Lara Resende. Entrevista concedida por Nelson Rodrigues a
Otto Lara Resende em 22 de agosto de 1977. In. A vida como ela de Nelson Rodrigues
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