Esta tese apresenta uma leitura estilística da obra do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Inicialmente, aborda questões teórico-metodológicas sobre imagem, texto, estilo e sentido. Em seguida, oferece uma visão panorâmica da produção do autor ao longo de quatro décadas, analisando poemas representativos de cada fase e registrando traços estilísticos. Na terceira parte, faz leituras estilísticas detalhadas de quatro poemas
Esta tese apresenta uma leitura estilística da obra do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Inicialmente, aborda questões teórico-metodológicas sobre imagem, texto, estilo e sentido. Em seguida, oferece uma visão panorâmica da produção do autor ao longo de quatro décadas, analisando poemas representativos de cada fase e registrando traços estilísticos. Na terceira parte, faz leituras estilísticas detalhadas de quatro poemas
Esta tese apresenta uma leitura estilística da obra do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Inicialmente, aborda questões teórico-metodológicas sobre imagem, texto, estilo e sentido. Em seguida, oferece uma visão panorâmica da produção do autor ao longo de quatro décadas, analisando poemas representativos de cada fase e registrando traços estilísticos. Na terceira parte, faz leituras estilísticas detalhadas de quatro poemas
Esta tese apresenta uma leitura estilística da obra do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo. Inicialmente, aborda questões teórico-metodológicas sobre imagem, texto, estilo e sentido. Em seguida, oferece uma visão panorâmica da produção do autor ao longo de quatro décadas, analisando poemas representativos de cada fase e registrando traços estilísticos. Na terceira parte, faz leituras estilísticas detalhadas de quatro poemas
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Isabel de Andrade Moliterno
Imagens, reverberaes na poesia
de Alberto da Cunha Melo:
uma leitura estilstica
Tese apresentada ao Programa de Ps- graduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de doutora em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Guaraciaba Micheletti
So Paulo 2007
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A minha me, meu pai, tia Ozria, tio Adolfo, ao Rodrigo, ao Amor e ao Tempo.
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Agradecimentos
A Guaraciaba Micheletti, Raquel de Sousa Ribeiro, Beth Brait, Mrio Ferreira, Dami Glades Maidana Baz, Cludia Gontijo de Castro, Larcio Sanchez Bandeira, Cludia do Prado Maia Ricardo, Andrea Lima e Bhagiratha Muni Das. A todos os meus professores e a todos os meus alunos. E, com profunda afeio, a Cludia Cordeiro Tavares da Cunha Melo e a Alberto da Cunha Melo.
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Resumo
Tendo a estilstica como suporte metodolgico, apresento uma leitura da obra do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, com o objetivo de contribuir para os estudos sobre seu estilo. Inicialmente, abordo algumas questes terico-metodolgicas que norteiam minha aproximao ao texto potico; teo algumas consideraes sobre conceitos como imagem, texto, estilo, forma e sentido. Em um segundo momento, procuro oferecer uma viso panormica da obra, analisando alguns poemas representativos de cada fase da produo do autor, que se estende por mais de quatro dcadas. Nessa seo, j registro alguns traos estilsticos que mais se destacaram ao longo das vrias leituras; e enfoco aspectos envolvidos na construo da expressividade, ou seja, verifico, por meio da observao de determinados recursos lingsticos, a maneira como o sentido produzido e afeta a percepo do leitor. Na terceira parte deste estudo, procedo leitura estilstica mais completa de quatro poemas, cada um pertencendo a uma fase distinta. A poesia de Alberto da Cunha Melo dividida em quatro perodos, de acordo com questes relativas forma. Na concluso, retomo, de modo mais sistemtico, os principais traos estilsticos. Embora observe diferentes aspectos do uso da lngua, sempre considerando o detalhe da forma, com a finalidade de compreender como se d a construo de sentido, focalizo, em particular, uma caracterstica central no estilo desse poeta: o efeito de conciso e nfase. Esse efeito obtido por meio da reverberao de imagem, que consiste na recorrncia de termos, idias, sons ou estruturas com o intuito de intensificar determinados efeitos expressivos da imagem potica.
Palavras-chave
Estilstica, Efeitos de Sentido, Lngua Portuguesa, Poesia Brasileira, Alberto da Cunha Melo.
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Abstract
This research of the style of the Brazilian poet Alberto da Cunha Melo is based on the stylistic methodology and aims at contributing with the studies of this author, as well as giving descriptive information about some expressive uses of the Portuguese language. Firstly, I discuss some theoretical and methodological questions related to my kind of reading, such as image, text, style, form and sense. Secondly, I offer a panoramical approach of the authors style, focusing some stylistic recourses in texts selected to represent the whole poetry, which was developed throughout more than four decades. Although, in this second moment, I intend to present an overview of Alberto da Cunha Melos work, the stylistic reading (on account of its interest in observing how form and content are associated) always tend to focus the details. Thirdly, I analyse more accurately four poems, each one from a different phase of production. His poetry can be divided in four different periods, concerning the techniques applied to the form. In a final chapter, I register the main stylistic characteristics of this writer. Even though I consider different aspects of the use of language, regarding how the meaning effects are obtained, I devote special attention to a technique taken as one of the most significant of his style: the reverberation of image, produced by the repetition of sounds, words, syntactic structures or ideas, creating the effect of concision and emphasis.
Key-words
Stylistics, Meaning, Portuguese Language, Brazilian Poetry, Alberto da Cunha Melo.
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Sumrio
Apresentao
07 1 Introduo 08 1.1 Consideraes sobre uma abordagem estilstica do texto 08 1.1.1 O conceito de imagem 10 1.1.2 O texto e o leitor 14 1.1.3 Estilstica como estudo do estilo e estilo como efeitos de sentido
16 1.2 A estilstica e as estilsticas: uma breve retomada 23
2 A poesia de Alberto da Cunha Melo aproximao a um estilo 40 2.1 A primeira fase: octosslabos em quartetos 43 2.2 A segunda fase: os versos polimtricos 60 2.3 A terceira fase: a retranca 78 2.4 A quarta fase: poemas em forma de renkas 95
3 O poema como imagem e conjunto de imagens leituras estilsticas 101 3.1 Reverberaes a partir da imagem de um rio 104 3.2 A imagem e o encadeamento de metforas 118 3.3 Reverberaes na concretizao de uma imagem 128 3.4 Imagens, reverberaes em O Lobo-guar 140
4 Concluso aspectos gerais do estilo de Alberto da Cunha Melo 180
Referncias bibliogrficas
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Anexo A: O estilo e o homem entrevista com Alberto da Cunha Melo Anexo B: Poemas analisados na Parte 3
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Apresentao
Este estudo tem a finalidade de apresentar uma leitura da obra potica de Alberto da Cunha Melo pelo vis da estilstica. Trata-se do resultado de uma pesquisa realizada entre 2003 e 2007, com a orientao de Guaraciaba Micheletti. Na primeira parte, procuro situar minha abordagem em um plano de discusso mais amplo, que contempla reflexes acerca de conceitos como imagem, texto, estilo, sentido e sobre a prpria natureza da investigao estilstica. Como o propsito contextualizar o tipo de leitura que realizo, no existe uma preocupao em aprofundar a discusso terica. Em um segundo momento, busco oferecer ao leitor uma viso panormica da poesia de Alberto da Cunha Melo publicada, pois h vrios livros inditos , chamando a ateno para algumas caractersticas recorrentes, que podem ser consideradas como traos estilsticos. Nessa parte, a obra dividida em fases diferentes, de acordo com as tcnicas de composio exploradas pelo autor. A leitura dos poemas desse trecho apenas parcial, privilegiando um ou outro aspecto relativo construo de sentido, embora se atenha a detalhes. Uma vez que se baseia nos pressupostos da estilstica, empenhada em observar a relao entre forma e efeitos de sentido, a leitura tende mincia. A terceira parte encerra a anlise estilstica completa de quatro poemas, um representativo de cada fase. Nessas leituras, procuro dar especial ateno a um recurso central no estilo de Alberto da Cunha Melo: a reverberao de imagens, responsvel pelo efeito de conciso e nfase, conferindo aos textos uma linguagem extremamente apelativa, de grande fora esttica. O enfoque dos poemas privilegia o arranjo lingstico, atentando para os efeitos de sentido, para o impacto do texto sobre o leitor. O objetivo contribuir para os estudos da obra de Alberto da Cunha Melo e colaborar com uma descrio dos usos da lngua portuguesa considerada pelo vis da expressividade, ou seja, do ponto de vista da veiculao de emoes e da atuao sobre o leitor. Na concluso, retomo os traos de estilo que mais sobressaram durante o decorrer desta pesquisa feita, basicamente, de leituras e releituras da poesia de Alberto da Cunha Melo.
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1 Introduo
1.1 Consideraes sobre uma abordagem estilstica do texto
Quem me ilumina a perigosa luz dos relmpagos, e a voz de meu poema tem um tempo s: a durao do meu susto.
(de Blindagem, Alberto da Cunha Melo)
A poesia de Alberto da Cunha Melo, afeita a indagaes metafsicas e atenta s questes sociais, oscila entre a inovao, por meio da constante procura por novas formas de expresso, e o vnculo com a tradio clssica. Assim como era para os gregos, a busca do belo, para o autor, equivale busca da verdade. A partir de uma linguagem a um s tempo racionalista e emotiva, o efeito esttico produzido por seus poemas alia, muitas vezes, o desconforto provocado por imagens do grotesco com a reflexo acerca do universo em que vivemos. Combinado a imagens inusitadas, ou a uma descrio realista das coisas, sem adornos, o ritmo chama a ateno em sua obra. O contato afetivo com o texto sempre mediado pela msica, que de maneira natural, muitas vezes apenas reproduzindo o compasso do falar cotidiano agua a percepo para o componente visual do significado. Paralelo ao ritmo, o carter pictrico das imagens se destaca. No seu estilo, evidencia-se uma constante procura pela unidade, pela conciso. Ritmo e imagem formam um complexo de significados com vistas a intensificar uma sensao, um efeito de sentido. Observamos, com certa recorrncia, a expanso de uma s imagem ao longo do poema, ou a combinao de imagens distintas compondo um todo significativo. Ora, talvez essa caracterstica esteja presente em qualquer poema com um mnimo de coeso. No entanto, em Alberto da Cunha Melo, esse procedimento mais intenso e revela uma preocupao individual. A partir desse trao, os demais elementos estilsticos podem ser percebidos.
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Essa caracterstica conscientemente trabalhada e se acentua ao longo das publicaes. Na apresentao de Meditao sob os lajedos, publicado em 2002, o autor revela sua preocupao ao elaborar os poemas.
Para os que se interessam em saber o que, no plano das intenes estticas, almejava o autor, eu diria que dar continuidade ao que o poeta Bruno Tolentino costuma chamar de poesia do pensamento. No meu caso, isso corresponderia ao ato de confeccionar peas nicas, como uma canoa indgena cavada no tronco de uma rvore, sem encaixes, sem colagens. Tentativa de arte enquanto expresso singular da essncia csmica, ou, menos enftico, de raciocnio lrico compacto.
Nesse relato, o poeta desvela seu estilo de arteso da palavra: que confecciona, manipula, prepara, cava seu objeto. Na esteira de Joo Cabral de Melo Neto, Alberto da Cunha Melo considera-se um poeta construtivista, que trabalha cuidadosa e exaustivamente o poema at que o considere pronto, at alcanar a exata fuso entre pensamento-palavra- emoo. A conciso de linguagem, a construo da pea nica, ser o ponto de partida da leitura estilstica que apresento neste estudo, intitulado Imagens, reverberaes na poesia de Alberto da Cunha Melo... Reverberao significa, literalmente, persistncia de um som num recinto limitado, depois de haver cessado a sua emisso por uma fonte (in Novo Aurlio Sculo XXI dicionrio eletrnico). O ritmo ecoa e a imagem repercute, adensando-se, pelos limites do poema recinto fechado, pelos silncios da pgina cuja forma acomoda com preciso o sentido. E esse sentido reverbera, provocando forte impacto. assim que vislumbro seu principal trao estilstico: as imagens, que nascem com um ritmo intenso, estabelecem uma rede de reverberaes que conduzem o leitor a um centro significativo; como se percorresse o movimento inverso das ondas concntricas se expandindo a partir de uma pedra que atingiu a superfcie lisa de um lago. A reverberao de imagens, como veremos, pode ocorrer na recorrncia de determinados sons, que realam idias, ou na associao de termos que compem um campo lexical ou, ainda, na repetio de versos e estruturas sintticas. O efeito sempre a intensificao da(s) imagem(ns). O leitor de Alberto da Cunha Melo tanto mais apreciar o valor esttico dos poemas quanto mais atentar para o papel preponderante do ritmo alicerando o sentido. De acordo com Charles Bally (1965, p. 202), o ritmo determinado pelo contraste entre elementos fortes e fracos ao longo do enunciado; no geral, as palavras nocionais so fortes e os conectivos so
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fracos, pois o ritmo tende a acompanhar os movimentos do significado, embora nem sempre isso ocorra. No caso da poesia estudada, veremos que, no geral, nfase meldica e nfase semntica se equivalem.
1.1.1 O conceito de imagem
O termo imagem, do latim imago -ginis, assumiu diferentes conotaes ao longo do tempo e se liga inicialmente percepo visual (cf. CUNHA, A. G., 2000, p. 245). Emprego-o com o valor de representao mental; mas no como reflexo da realidade e sim como criao subjetiva. Portanto, embora ainda se vincule viso, seu significado pode ser considerado mais amplo, envolvendo os demais sentidos pelos quais uma realidade apreendida ou construda. E o que realidade? O estudo da linguagem leva inevitavelmente a questes como essa, mas, para o intuito deste trabalho estilstico basta (se possvel uma simplificao) considerarmos que a imagem presentifica verbalmente algo que experienciamos pelos sentidos mais diversos, incluindo sensaes fsicas e mentais, intelectivas e afetivas sem esquecer que a prpria apreenso do real passa pela palavra. Conforme Marcuschi (2004, p. 275): Mesmo a designao de fenmenos com existncia real, como as vacas, os cachorros, as mesas, os sapatos e as lmpadas, no se d como designao de entidades absolutamente idnticas para todos ns e sim como entidades mediadas por uma complexa conceituao e pela mediao da lngua. O vocbulo imagem muitas vezes associado metfora, ou linguagem figurada no geral, mas neste estudo tambm se refere ao sentido literal. Isso porque, especialmente na poesia, no fcil distinguir o sentido denotativo do conotativo e essa distino no parece contribuir para um melhor entendimento do texto. O sentido figurado fundamenta-se, sempre, no literal e todo enunciado pode se prestar significao figurada. Quanto mais atentamos para a literalidade, maior o prazer ao interpretar o figurativo. Retomando Vico e uma vasta tradio que considera a metfora como uma figura de pensamento, Lakoff e Johnson (1980), ao analisarem diversas expresses idiomticas da lngua inglesa, procuraram estabelecer uma sistematizao de conceitos metafricos, tidos como estruturantes do pensamento, e, por conseguinte, presentes na base tanto de frases explicitamente figurativas quanto daquelas tidas como literais. Para esses autores, a linguagem cotidiana densamente metafrica e parcialmente literal. Tanto os conceitos
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metafricos, que consistem em experimentar uma coisa em termos de outra, quanto os metonmicos, por meio dos quais associamos parte e todo, determinam a maneira como agimos, pensamos e falamos. De acordo com Lakoff e Turner (1989), as metforas so to lugar-comum que geralmente no so percebidas. No pretendo dar uma nova significao ao termo imagem. Recorro, inicialmente, a Henri Bergson (1999, p. 02), para quem a imagem uma certa existncia que mais do que aquilo que o idealista chama uma representao, porm menos do que aquilo que o realista chama uma coisa uma existncia situada a meio caminho entre a coisa e a representao. Ou, de acordo com Alfredo Bosi (1993, p. 13), a imagem um modo da presena que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existncia em ns. Assim, a imagem cria uma nova realidade, penetrada de maneira diferente conforme cada um que a contempla. Maurice-Jean Lefebve utiliza a expresso imagem fascinante para caracterizar a singularidade do discurso literrio, que cria uma realidade ao mesmo tempo verdadeira na sua irrealidade e falsa na sua verdade. Essa ambigidade o que provocaria a fascinao, ou o efeito esttico.
A imagem fascinante consiste, pois, no fenmeno pelo qual o objeto da nossa conscincia, seja qual for, se v subitamente posto em dvida na sua realidade e na sua presena. Digo o objeto da nossa conscincia, porque dois casos so aqui possveis. Ou a realidade do objeto da nossa percepo que, em conseqncia de alguma circunstncia, nos aparece, de sbito, como duvidosa e desliza para o irreal; ou o objeto da nossa imaginao (uma representao a princpio puramente mental, uma recordao ou um sonho) que parece, de repente, adquirir uma conscincia real, que desliza, num movimento contrrio, para a materialidade. Nos dois casos, h, portanto, ambigidade, incerteza, dvida relativamente verdadeira realidade (ou irrealidade) do objeto. Da resulta que esta realidade posta em perigo e, de certa maneira, vacilante, fixa nossa ateno sobre ela e leva-nos a formular a pergunta a partir da qual, como vimos, se acentua a Realidade esttica. Na imagem fascinante, a realidade (perceptiva ou psquica) que passava despercebida, torna-se problema e surge assim presentificada. Esta presentificao que faz a nossa fascinao. (LEFEBVE, 1975, p. 137)
A imagem, portanto, relaciona-se com o contedo do texto e pode ser associada ao processo de referenciao do discurso, que cria seu prprio referente. Lembrando Ducrot e Todorov (2001, p. 229), as lnguas naturais tm o poder de construir o universo ao qual elas se referem. No caso do poema, a imagem , segundo Alfredo Bosi (1993, p. 25), palavra articulada, o que envolve ritmo, sonoridade, ordem sinttica, escolha lexical etc. Na medida
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em que cada detalhe lingstico responsvel pela criao de sentido, a imagem passa a abarcar a relao entre forma e contedo. Vale salientar que o contedo aqui considerado como parte constitutiva da forma, sendo impossvel uma dissociao. Desse modo, o ritmo fator importantssimo na construo do estilo de qualquer poeta, mas em particular do estilo de Alberto da Cunha Melo visto como parte integrante da imagem. De acordo com Dufrenne (1969), o ritmo estrutura toda a produo potica, assim como a percepo do sensvel. O. Brik (1973) fala em impulso rtmico como um movimento que antecede o verso, responsvel pela ordenao sinttica do texto. Para ele, a especificidade da sintaxe potica resulta da natureza ambgua de sua composio, subordinada s regras da linguagem cotidiana e a leis rtmicas que se opem ao usual. Em uma viso oposta, Tomacheviski (1973) concebe o ritmo no como impulso de criao do verso, mas como resultado. Apesar da discordncia pontual, ambos vinculam o ritmo ao sentido e concordam que no se relaciona contagem artificial do metro, mas pronncia real. De fato, observaremos que o uso de um metro regular o verso octosslabo compe grande parte da poesia de Alberto da Cunha Melo, mas sempre como suporte para ritmos diversos, aliados a idias e estados afetivos variados. Partindo desse pressuposto, ao longo das leituras dos poemas, o ritmo ser contemplado em funo do sentido e sempre como um aspecto da frase, ligado a fatores como ordem sinttica, rima, paralelismos, assonncias, aliteraes e repeties no geral, sem perder de vista a definio clssica do ritmo em poesia, apreendido na estrutura do verso (unidade rtmica do poema, para Manuel Bandeira 1 ). Tradicionalmente, o ritmo equivale sucesso alternada de sons tnicos e tonos, repetidos com intervalos mais ou menos regulares, decorrente da combinao de seguimentos meldicos, variando de acordo com seu nmero e sua extenso. Como percebido na escrita, apresenta um componente visual, em virtude da disposio dos versos nas pginas, mas , antes de tudo, melodia, uma vez que a prpria frase pode ser entendida como uma estrutura musical (cf. MARTINS, 2001, p. 177). Uma concepo de imagem ligada forma/sentido do poema tambm pode ser encontrada em Octvio Paz (1982, p. 98):
designamos con la palabra imagen toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema. Estas expresiones verbales han sido clasificadas por la retrica y se llaman comparaciones, smiles, metforas, juegos de palabras, paranomasias, smbolos, alegoras, mitos, fbulas, etc. Cualesquiera que sean las
1 (Apud TAVARES, 2002, p. 166)
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diferencias que las separen, todas ellas tienen en comn el preservar la pluralidad de significados de la palabra sin quebrantar la unidad sintctica de la frase o del conjunto de frases. Cada imagen o cada poema hecho de imgenes contiene muchos significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimirlos.
Uma imagem nunca poder ser traduzida em outras palavras, pois qualquer alterao na forma acarreta uma mudana no contedo. Segundo Paz, a imagem potica diz o indizvel, no explica a realidade mas convida a recri-la e, literalmente, a reviv-la; o sentido da imagem ela mesma (1982, p. 98-113). A leitura das imagens em um poema, ou de um poema como imagem, tambm uma recriao. Assim, as leituras que apresentarei da obra de Alberto da Cunha Melo tendem a revelar uma viso particular das coisas, ainda que encontrem respaldo no conhecimento coletivo. O comentrio de Jean Davallon (1999, p. 27), embora a propsito das imagens visuais, pode ser til: a imagem representa a realidade, certamente; mas ela tambm pode conservar a fora das relaes sociais (e far ento impresso sobre o espectador). A imagem do poema no concebida, aqui, como espelho da realidade, uma vez que ela mesma a realidade do poema; de todo modo, ela preserva as foras das relaes sociais devido ao carter semitico e, portanto, social da prpria linguagem. Sua significao exige uma participao ativa do leitor, pois ele, mesmo quando assumindo papel de mero observador, est inscrito nessas relaes sociais. Para Davallon, a imagem um operador de memria social. Ao proporcionar uma atividade de significao, que pode abarcar diferentes interpretaes, comporta nela mesma um programa de leitura, assinalando um certo lugar ao espectador, rentabilizando por si mesma a competncia semitica e social desse leitor (cf. Id. ibid., p. 28-29). Isso equivale a dizer que a imagem pode ser modificada de acordo com a memria discursiva do leitor, mas ela mesma que determina o modo como esse conhecimento prvio dever ser acessado 2 . Por fim, a imagem pode ser entendida como o sentido do poema, mas sentido como uma nova realidade que adentramos com a nossa percepo que, obviamente, condicionada pela linguagem, porque, em poesia, forma e contedo so a mesma coisa. A imagem, por assim dizer, a realidade do poema. Do mesmo modo que nossa percepo
2 Para Pcheux, como para os analistas do discurso, a materialidade discursiva estruturada a partir da memria: a memria discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os implcitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pr-construdos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel. (PCHEUX, 1999, p. 52)
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altera a realidade que vivemos, mas tambm alterada por ela, a imagem depende de nossa percepo, por isso sempre nova. Mas o intuito desse trabalho observar como o arranjo lingstico direciona e atua sobre essa percepo e provoca determinadas reaes, tambm tidas como efeitos expressivos 3 . A palavra imagem, na leitura que proponho, se refere a cada estrutura de sentido que se combina a outras para compor o poema e ao conjunto dessas estruturas, isto , ao prprio texto entendido conforme Halliday e Hasan (1976): uma unidade semntica, composta de unidades menores que se relacionam e se modificam mutuamente. Assim, o termo imagem representa a parte e o todo sempre fundindo forma e contedo. Seja como parte, seja como o poema em sua totalidade, a imagem potica est plena de teor esttico/afetivo foco da leitura estilstica. Com isso, torna-se inevitvel refletir sobre os mecanismos envolvidos na interpretao.
1.1.2 O texto e o leitor
Em Obra Aberta, de 1968, Umberto Eco argumenta sobre a incompletude do texto literrio, alegando que uma obra sempre poder ser lida de maneiras diferentes de acordo com cada leitor. Em 1990, publica Os limites da interpretao, em que defende os direitos do texto, a capacidade que a obra tem de guiar, ainda que no completamente, a interpretao. Todo discurso sobre a liberdade da interpretao deve comear por uma defesa do sentido literal (2000, p. 09). Nessa perspectiva, o autor fala da intentio operis, que se impe intentio lectoris e intentio auctoris. Segundo ele, a obra tem um cdigo que cria um leitor- modelo e desautoriza certas leituras. Isto , no se pode dizer com certeza qual a leitura correta de um texto, mas possvel apontar algumas leituras equivocadas 4 .
Um texto um artifcio que tende a produzir seu prprio leitor-modelo. O leitor emprico aquele que faz uma conjectura sobre o tipo de leitor-modelo postulado pelo texto. O que significa que o leitor emprico aquele que tenta conjecturas no sobre as intenes do autor emprico, mas sobre as do autor- modelo. O autor-modelo aquele que, como estratgia textual, tende a produzir um certo leitor-modelo. (ECO, 2000, p. 15)
3 Lembrando Riffaterre (1973, p. 131), a estilstica estuda a percepo da mensagem. 4 Entre a inacessvel inteno do autor e a discutvel inteno do leitor, est a inteno transparente do texto que contesta uma interpretao insustentvel. (ECO, 2000, p. 91) Certamente, essa suposta transparncia do texto pode ser questionada.
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Em outra ocasio, Eco (1992, p. 75) afirma: Um texto pode prever um leitor modelo com o direito de fazer infinitas conjeturas. Com isso, reconhece que os limites do texto no so definidos, j que existe a contraparte do leitor. Mas este pode se equivocar com relao ao texto. Isso no significa que, para estudarmos um texto, devamos lidar com leitor e autor como seres espectrais. Trata-se apenas de um esforo com o fim de no reduzirmos o texto a mero pretexto para exerccio de nossa criatividade 5 . A idia de leitor-modelo s pode ser apreendida de maneira mais ou menos idealizada. Afinal, somos ns, leitores-empricos, que o identificamos. De todo modo, esse leitor-modelo caracteriza-se por, supostamente, possuir o conhecimento necessrio para perceber as relaes de sentido estabelecidas no texto. Essa idia de leitor-modelo relaciona-se de leitor implcito, desenvolvida por Wolfgang Iser, apoiado na contribuio de Ingarden sobre os pontos de indeterminao do texto e os mecanismos de concretizao do sentido, embora assuma postura crtica com relao abordagem de Ingarden 6 . Na concepo de Iser, o texto um evento comunicativo que pressupe o movimento da leitura como elemento participante de sua estrutura significativa. No ato de leitura, criam-se expectativas que so recusadas ou confirmadas na seqncia textual. Sendo assim, o texto dividido em uma estrutura de protenso e reteno, em que a expectativa e a memria se projetam uma sobre a outra.
O texto em si, entretanto, no expectativa nem memria; por isso a dialtica de previso e retroviso estimula a formao de uma sntese, permitindo a identificao das relaes entre os signos; em conseqncia, a equivalncia destes se torna representvel. A natureza de tais snteses bem peculiar. Elas no se manifestam na verbalidade do texto, tampouco so o puro fantasma da imaginao do leitor. A projeo que aqui se realiza pode ser duplamente definida. Por certo ela uma projeo que advm do leitor; mas ela tambm dirigida pelos signos que projetam no leitor. difcil descobrir onde comea nessa projeo a contribuio do leitor e onde termina a dos signos. (ISER, 1999, p. 55)
5 Apesar de esta ser uma justificativa vlida para um trabalho de interpretao. 6 H duas desvantagens na teoria de Ingarden, de acordo com Iser. Primeiro, ele incapaz de aceitar a possibilidade de a obra ser concretizada de maneiras diferentes, igualmente vlidas. Segundo, por conta de seu preconceito, no leva em conta que a recepo de muitas obras de arte seria simplesmente paralisada se elas s pudessem ser concretizadas de acordo com as normas da esttica clssica. Mas reconhece: o grande mrito de Ingarden est no fato de que, com a idia de concretizao, rompeu com a viso tradicional da arte como mera representao (Darstellung). Com seu conceito de concretizao, chamou a ateno para a estrutura de recepo necessria para a obra, embora no tenha pensado este conceito como um conceito de comunicao. (ISER, 1979, p.102)
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Essas propostas so criticadas por aqueles interessados na leitura do ponto de vista do leitor emprico. Entretanto, gostaria de chamar a ateno para o fato de que o interesse desses autores no investigar o processo de leitura, mas a construo do texto, que pressupe a atuao de um leitor. Como estudar a recepo de cada leitor emprico? Considerando que isso seja possvel, teremos de deslocar o estudo do texto para os leitores. Assim como Eco e Iser, procuro observar como o texto construdo e, para isso, farei meno a um leitor abstrato, que se apia sobre um conhecimento enciclopdico, para usar as palavras de Eco. 7
As concepes de Eco e Iser aproximam-se, de certa forma, da noo de arquileitor, proposta por Michael Riffaterre. Em Estilstica estrutural, o autor discorre sobre a importncia de o estilisticista contar com a contribuio de informadores, a fim de perceber quais so as estruturas de realce do texto, responsveis pela criao do estilo. A mdia de leituras representa o ponto de vista de um arquileitor, ou seja, uma abstrao das leituras permitidas pelo texto. Alis, para este terico, a funo principal da Estilstica estudar os elementos que limitam a liberdade de percepo no processo de decodificao (1973, p. 38). Segundo ele:
independente de seu fundamento, os julgamentos de valor do leitor so provocados por um estmulo que est no texto. Na funo remetente-destinatrio, que atualiza o texto, o comportamento do leitor pode ser subjetivo e varivel, mas tem uma causa objetiva e invarivel.
(RIFFATERRE, 1973, p. 42)
1.1.3 Estilstica como estudo do estilo e estilo como efeitos de sentido
Segundo Riffaterre, o estilo o realce que impe ateno do leitor certos elementos da seqncia verbal, de maneira que este no pode omiti-los sem mutilar o texto e no pode decifr-los sem ach-los significativos e caractersticos (1973, p. 32). Esse modo de pensar o estudo do estilo associa-o observao dos efeitos que um texto produz. Ainda com Riffaterre: o objeto da anlise do estilo a iluso que o texto cria no esprito do leitor (1973, p. 48). O estilo considerado, portanto, como um fato de lngua e pode ser apreendido proporo que se conhece a composio da trama textual.
7 Reconheo que, em primeira instncia, esse leitor sou eu mesma, mas como no seria?
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Lembrando Possenti (1988, p. 172): estilo a maneira de relacionar forma e contedo. O primeiro a fazer essa relao o autor emprico e o segundo o leitor, tambm emprico. O estilo resulta e est na base da interao desses dois plos. Nesse sentido, o estilo o texto, uma vez que constitui a prpria maneira de relacionar. Assim, quando menciono o estilo de Alberto da Cunha Melo, refiro-me ao conjunto de sua obra e s caractersticas que percebi como recorrentes. Por esse ngulo, o estilo no deve ser considerado como algo esttico, pois cada leitor emprico poder perceber um elemento novo. No entanto, por uma questo metodolgica, parto do pressuposto de que o texto, como uma espcie de partitura, guia a percepo do leitor, por meio do que Riffaterre chama de elementos de realce. Desse modo, a leitura estilstica que realizo no contempla autor e leitor empricos, porque se interessa em perceber esses elementos que estruturam o texto potico. 8
Para apreender essas estruturas de realce tambm conhecidas como recursos expressivos, ou expressividade, na medida em que comunicam um estado emocional e provocam uma reao no leitor (cf. CMARA Jr., 1996, p. 114) convm retomar o mtodo proposto pelo fundador da estilstica da lngua, Charles Bally. Esta pesquisa, no entanto, no pode ser considerada estilstica tal como concebia Bally, pois sua abordagem diferente da investigao acerca dos fatos de estilo, j que, para ele, a estilstica estuda a natureza de um fato de expresso e no o emprego que um autor faz dele (cf. BALLY, 1951, p. 26). Muito j se discutiu sobre o fato de Bally rejeitar o estudo da linguagem literria e no pretendo retomar essa discusso 9 . natural que a literatura escape a suas preocupaes, visto que estas incidem sobre a descrio dos elementos afetivos na estrutura de um sistema de expresso coletivo. Todavia, a partir dele que estudiosos como Marouzeau, Cressot e Mattoso Cmara Jr. iro se voltar para a linguagem literria. Inicialmente, sua concepo de linguagem como comunicao de pensamentos e sentimentos o ponto de partida para nossa aproximao do estilo. Este, como marca que singulariza a obra de um autor, se revela, especialmente, pelas nuances afetivas da linguagem que esse autor utiliza. Para tratar dessas nuances que recorro a Bally, que chama a ateno para o fato de os aspectos afetivos/expressivos s poderem ser
8 por isso que, no ttulo deste trabalho, acrescento: uma leitura estilstica. Reconheo o carter parcial e subjetivo da leitura que apresento. No me preocupo com questes relacionadas recepo propriamente, nem gnese do texto. Interessa-me, apenas, a maneira como o texto potico se constri. As noes de autor-modelo e leitor-modelo parecem, pois, mais condizentes com este tipo de abordagem. 9 Dmaso Alonso chega a afirmar que Bally escolheu um nome inapropriado para seu tipo de estudo, por recusar-se a estudar o estilo como o que individualiza uma fala particular. (Cf. ALONSO, 1966, p. 584-595)
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percebidos em contraste com a linguagem intelectiva. Esta, teoricamente, desprovida de emotividade e encontra no discurso cientfico sua representao mxima 10 . Ainda que de maneira nem sempre explcita, comparando os usos lingsticos utilizados nos poemas com a linguagem corrente, ou com outras possibilidades expressivas no escolhidas para figurar no texto, que buscarei entender a construo de sentido. Distanciando-se um pouco de Bally, o estudo da expressividade nos poemas no ser feito isolando construes afetivas em oposio a intelectivas; mesmo porque toda forma lingstica pode conter algum grau de afetividade. Leo Spitzer, ao defender o papel do analista do estilo na literatura, em resposta a um artigo do poeta americano Karl Shapiro (o qual contestava o estudo do texto potico, por considerar a poesia um discurso sui generis, feito de no-palavras que adquiriam um sentido-alm-do-sentido por meio do ritmo e das figuras de linguagem, chamados por ele de prosdia), afirma:
Em vez de dizer que a poesia consiste em no-palavras que, tomando distncia do sentido, alcanam por meio da prosdia um sentido-alm-do- sentido, eu sugeriria que ela consiste em palavras, cujo sentido preservado e que, pela magia do trabalho prosdico do poeta, alcanam um sentido-alm-do- sentido; e diria igualmente que a tarefa do fillogo consiste em assinalar o modo como se deu a transfigurao. (SPITZER, 2004, p. 39)
Dessa forma, Spitzer enfatiza a ligao inevitvel da linguagem potica com a linguagem do cotidiano e a importncia do estudo da forma lingstica para a compreenso do estilo de um autor. 11
Para este estudo, qualquer elemento lingstico pode ser relevante, no apenas as expresses mais explicitamente afetivas, mas tudo o que produzir sentido. E o sentido no se faz apenas de traos afetivos, mas de intelectivos tambm. Alis, o sentido emerge mesmo dessa combinao. De um certo modo, podemos compreender o texto, em seu conjunto, como uma composio de elementos mais ou menos marcados pela afetividade. Dessa maneira, at as expresses mais prximas da linguagem intelectiva podero tornar-se expressivas na medida em que colaborarem para a criao do sentido global do texto, que ser sempre afetivo.
10 la valeur affective dune langue, veut, par exemple, que la valeur affective dum fait de language ne se rvle que par comparaison et contraste avec um terme didentification appartenant au mode purement intellectuel. (BALLY, 1951, p. 204) 11 Como vimos, ele se apresenta como fillogo.
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a escolha de termos e estruturas que se torna relevante para o estudo do estilo. Escolha tida no exatamente como o ato de selecionar, mas como o resultado disso e, portanto, referindo-se prpria configurao do texto. Por esse prisma, escolha e estilo se equivalem. De acordo com Cressot, em O estilo e as suas tcnicas, o objetivo central da estilstica determinar as leis que regem a escolha da expresso e, no mbito mais reduzido de um idioma, a relao entre a expresso, numa lngua, e o pensamento correspondente (1980, p. 15). Por exemplo, o efeito expressivo do uso do verbo relembrar, em um texto qualquer, pode ser mais bem percebido em contraste com lembrar ou recordar, que compem o mesmo paradigma; a escolha entre a voz passiva e a voz ativa, assim como a ordem dos elementos na frase, tambm acarretar diferena na produo de sentido. 12
Dmaso Alonso (1966) compreende o estudo estilstico como a anlise da relao entre significado e significante. Mas, ao tratar da complexidade da imagem potica, amplia a definio de Saussure e fala em significados parciais e significantes parciais, para se referir aos mltiplos sentidos (intelectuais, sensoriais, psquicos etc) presentes em uma forma lingstica e aos diversos aspectos da forma que participam do significado (sonoridade, ritmo etc). Portanto, qualquer detalhe que colaborar na construo de sentido deve ser considerado relevante. A estilstica, em suas diversas denominaes, embora no deva ser vista como uma disciplina de pressupostos e mtodos homogneos, pode ser considerada uma disciplina semntica, uma vez que enfoca os valores expressivos do texto. E esses so sempre valores de sentido, desde traos evocativos percebidos no lxico at uma sugesto provocada por uma recorrncia sonora. Ullmann (1970, p. 23) apresenta a estilstica da seguinte maneira:
A apario, desde os primeiros anos deste sculo, de uma nova cincia da estilstica, teve uma influncia profunda nos estudos semnticos. Falando em termos gerais, a estilstica diz respeito aos valores expressivos e evocativos da linguagem. A nova disciplina sofreu grande avano nos ltimos anos, relacionando-se especialmente com a semntica. Demonstrou-se que todos os grandes problemas da semntica tm implicaes estilsticas, e em alguns casos, como por exemplo no estudo das tonalidades emotivas, as duas orientaes esto inextricavelmente entrelaadas.
12 Neste ponto, vale lembrar a frase clssica de Roman Jakobson (1959, p. 130): A funo potica projeta o princpio de equivalncia do eixo de seleo sobre o eixo de combinao.
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Georges Molini, ao enfocar o texto literrio, menciona o dilogo inevitvel que a estilstica estabelece com vrias disciplinas lingsticas, como a pragmtica, a nova retrica, a anlise do discurso, e a crtica literria. Para ele, o trabalho estilstico deve voltar-se para a estrutura do texto. E divide o campo de interesse da estilstica em trs partes: a palavra, a apresentao da palavra e a organizao da frase; e chama a ateno para o fato de que, a fim de tratar da forma de expresso, inevitvel ater-se ao contedo. Conforme Molini, a estilstica pode ser vista como uma espcie de semitica literria, pois no apenas considera o significado intralingstico, mas se volta para a relao do texto com o universo extralingstico, como o pblico, a poca, os valores de grupos sociais etc. (Cf. MOLINI, 1986, p. 09-13;170-171) Cabe reforar que o sentido ao qual chegamos por meio da anlise da estrutura dos poemas no reflete necessariamente o pensamento do autor emprico, mas construdo atravs das reaes suscitadas no leitor. Lembrando Bally (1965), a significao , antes de tudo, lingstica e, no raro, pode estar em contradio com o pensamento daquele que emprega o signo, e no recobre, pois, a noo de realidade 13 . O estilo, neste estudo, no ser visto como a raiz psicolgica do autor. Mesmo porque, embora no possamos negar a existncia do autor emprico, temos acesso a um autor construdo pela prpria obra, a quem Eco chama de autor-modelo, e do estilo desse autor que trato. Uma vez que esse autor construdo pela palavra, ser atravessado pelas tenses que habitam o discurso. Segundo Volochnov (1995, p. 47), a palavra pode ser vista como um instrumento de refrao e de deformao do ser, j que sua natureza dialgica e coletiva. Assim, a noo de autor reflete a do sujeito enunciador constitudo pelo outro, que pode ser o leitor, co-produtor de sentido, e a tradio de significados e valores com a qual, direta ou indiretamente, esse sujeito dialoga. O poema se inscreve em uma tradio literria, que ora se insinua, ora se revela de maneira explcita na composio das imagens, mas que est sempre presente. A anlise do discurso, na esteira de Pcheux, trabalha com os conceitos de interdiscurso e intradiscurso para tratar dessa relao entre o que dito no acontecimento enunciativo, que aparece como o lugar de produo do sentido, e o conjunto das formaes discursivas, definido histrica e lingisticamente, que participar de sua construo. Assim,
13 ...le signe porte en lui-mme sa signification (son signifi), et cest celle-l seule qui compte pour la communication. elle peut tre en contradiction avec la pense de celui qui emploie le signe, et ne recouvre donc pas la notion de ralit. (BALLY, 1965, p. 37-8)
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o intradiscurso seria o texto propriamente e o interdiscurso o real exterior que perpassa sua realizao e interpretao. 14
claro que no podemos desconsiderar o autor emprico, de carne e osso. Embora o enfoque recaia sobre o objeto de arte, o artefato, considero importante dar voz ao arteso. Ento, em anexo, apresento uma entrevista realizada com Alberto da Cunha Melo em julho de 2003. Nela, possvel perceber a maneira como ele se relaciona com sua obra, demonstrando uma conscincia clara de que o texto um produto com existncia prpria. Nas vrias ocasies em que pude conversar com o poeta, percebi que, realmente, no possvel conceber uma interpretao capaz de deslindar as intenes originais do autor. Para isso, teramos de dispor do mesmo repertrio de leituras, dos mesmos encontros e desencontros do escritor. E talvez nem isso fosse suficiente. certo que, quanto mais erudito for o leitor, maior ser a compreenso e a fruio da obra de Alberto da Cunha Melo. Mesmo o poema aparentemente mais ingnuo trava dilogos com Pascal, Shopenhauer, Heidegger, Shakespeare, Goethe, Kafka, dentre tantos outros. 15 Em minhas leituras estilsticas, porm, no privilegio a intertextualidade, exceto quando aparecer de maneira mais explcita 16 , isso porque o foco das leituras a construo lingstica do poema. Ainda que a intertextualidade possa ser considerada como um recurso lingstico, sua apreenso depende, em grande parte, do conhecimento prvio do leitor e, no raro, a leitura intertextual distancia o olhar do objeto analisado. Alm disso, o nmero de textos com os quais podemos estabelecer relaes tende ao infinito. O foco das anlises estilsticas, portanto, o sentido. Assim, neste estudo, estilo equivale ao sentido do texto, o qual resulta de escolhas, tanto do autor quanto do leitor, pois este tambm efetua selees ao aceitar um sentido e descartar outro. Segundo Eduardo Guimares (2002, p. 11), o sentido deve ser considerado a partir do funcionamento da linguagem no acontecimento da enunciao. Para Ducrot, a enunciao o acontecimento histrico do aparecimento do enunciado, que seria o texto em sua materialidade lingstica. O acontecimento enunciativo seria marcado pela irrepetibilidade, o que apresenta o histrico apenas como temporal. Buscando pensar o sujeito e o sentido em uma perspectiva scio- histrica, ainda no mbito das discusses de uma semntica enunciativa, Guimares questiona essa viso de Ducrot recorrendo ao conceito de interdiscurso, da anlise do discurso. Para
14 Para observar uma boa aplicao dessa teoria, ler Grigoletto (2002). 15 Para chegar a essa concluso, obviamente, no necessrio conhecer o autor emprico. 16 Algo difcil de definir: o que parece explcito para um leitor pode no o ser para outro. No h como escapar ao fato de que a leitura do texto literrio envolve avaliaes subjetivas.
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Guimares, o interdiscurso, tido como a relao de um discurso com outros, que determina o sentido 17 . E o discurso o lugar de contato entre lngua e ideologia. Nessa perspectiva, o sentido, neste trabalho, compreendido como algo instvel, marcado pelo contexto scio-histrico em que ocorre a interao entre autor e leitor empricos. Lembrando Ullmann (1970, cap. 5), a significao de uma palavra sempre imprecisa, o que faz com que o sentido seja suscetvel a constantes mudanas ao longo do tempo. Os valores semnticos de um vocbulo, uma expresso ou uma frase fixam-se no ato da leitura e dependem do modo como o texto articula suas diferentes partes. Os significados parciais, retomando Dmaso Alonso, apenas so acessados na trama textual. Cada leitor emprico pode receber o texto de uma maneira diferente. Mas ele no escapa s restries de interpretao impostas pela sociedade em que vive e pela prpria maneira como o texto articulado em termos lingsticos. Diante disso, mais conveniente utilizar a expresso efeito de sentido. De acordo com Possenti (1988, p. 202):
o sentido do discurso seu efeito de sentido, isto , o que se produz, na ordem da significao, pelo fato de ter acontecido um determinado enunciado em determinadas condies de enunciao. (...) Se um discurso um acontecimento e no pertence ordem da estrutura, sua significao tem que ser apreendida nessa singularidade.
Neste estudo, como j mencionado, o centro de nossas atenes ser a configurao lingstica dos poemas apreendida no nvel do discurso, ou seja, no nvel em que ocorre a interao entre autor-texto-leitor. Os efeitos de sentido so, portanto, sinnimos de efeitos expressivos (termo-chave da anlise estilstica) justamente porque o expressivo se refere veiculao de emoes e ao impacto afetivo que o texto provoca sobre o leitor. Considerando a especificidade da linguagem potica, observar os efeitos de sentido inclui observar como o texto construdo de modo a levar o leitor a sentir prazer na leitura, seja por meio do reconhecimento de uma estrutura significativa, seja pelo estranhamento. Com isso, possvel afirmar que a leitura estilstica a ser apresentada tem como principal objeto de observao os efeitos de sentido dos poemas, que ao se tornarem recorrentes ao longo da obra de Alberto da Cunha Melo compem o que reconhecemos
17 Assim, um acontecimento enunciativo cruza enunciados de discursos diferentes em um texto. A enunciao, ento, se d como o lugar de posies de sujeito que so os liames do acontecimento com a interdiscursividade. Deste modo aquilo que se significa, os efeitos de sentido, so efeitos do interdiscurso no acontecimento. (GUIMARES, 2002, p. 68)
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como seu estilo. Diante do exposto, vale destacar a convergncia, ainda que parcial, dos conceitos de imagem, texto, efeitos de sentido e estilo. Antes de iniciar a leitura de poesia, apresento uma breve retomada das principais correntes da estilstica. A inteno contextualizar esta pesquisa em um campo terico- metodolgico que foi se transformando e se fragmentando ao longo do tempo. Como veremos, no me preocupo em enquadrar este estudo em uma nica tendncia, j que as diferentes abordagens estilsticas se influenciam mutuamente.
1.2 A estilstica e as estilsticas: uma breve retomada
Considero bvio que toda a literatura um argumento a favor da relevncia da forma. Principalmente a poesia.
Srio Possenti (1988, p. 127)
A estilstica como disciplina lingstica surgiu no incio do sculo XX, no contexto do estruturalismo. Seu fundador foi Charles Bally (1865-1947), que a descreveu da seguinte maneira: A estilstica estuda os fatos da expresso da linguagem organizada do ponto de vista de seu contedo afetivo, isto , a expresso dos fatos da sensibilidade pela linguagem e a ao dos fatos da linguagem sobre a sensibilidade. 18
Para Bally, a linguagem apresenta duas faces: uma intelectiva, ou lgica, e outra afetiva. Enquanto Saussure se volta para a descrio da face lgica da lngua, Bally se preocupa com a descrio de seu sistema afetivo. E distingue dois tipos de contedos afetivos que se combinam no uso da lngua: naturais, reveladores das sensaes do falante no momento em que se expressa, e evocativos, indicadores do meio scio-cultural a que pertence. Esses contedos afetivos, ou expressivos, constituem o objeto da estilstica. O estudo proposto por Bally ficou conhecido como estilstica da lngua, pois tinha o objetivo de mapear o sistema afetivo da lngua coletiva, a qual chamava de lngua viva. Recusou o estudo da literatura, pois a considerava um sistema artificial, no espontneo.
18 La stylistique tudie donc le faits dexpression du language organis au point de vue de leur contenu affectif, cest--dire lexpression des faits de la sensibilit par le language et laction des faits de language sur la sensibilit. (BALLY, 1951, p. 16)
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Depois de Bally, a estilstica se dividiu em diversas correntes. Mas at hoje se destacam duas grandes tendncias: estilstica como disciplina lingstica e estilstica como crtica literria. O ponto de contato entre ambas a nfase dada anlise do material lingstico no estudo do texto. Retamar (1963) nomeia essas divises como: estilstica da lngua vinculada a nomes como Bally, Jules Marouzeau, Marcel Cressot, Charles Bruneau e estilstica da fala ou do estilo de Karl Vossler, Leo Spitzer, Ernest Robert Curtius, Dmaso Alonso, Carlos Bousoo, Amado Alonso , uma vez que a primeira se volta para o uso afetivo do sistema lingstico, ou seja, da lngua coletiva, e a segunda enfoca os usos individuais. Essa diviso tambm aparece sob os rtulos: estilstica descritiva e estilstica gentica, respectivamente. A primeira, tida como cientfica e objetiva, a segunda, como subjetiva e, para alguns, acientfica. Naturalmente, ao longo dos anos sempre sugiram crticas de ambos os lados. A verdade que essas linhas de pesquisa sempre se influenciaram mutuamente e no possvel uma distino clara entre uma e outra, j que os estudiosos da estilstica da lngua logo passaram a contemplar o texto literrio. Leo Spitzer (1887-1960) o grande estudioso da estilstica literria. Como fillogo e crtico literrio, seu trabalho ofereceu uma importante contribuio no sentido de unir lingstica e crtica literria. Ele prprio se apropria das contribuies de Bally em seu trabalho. No entanto, ainda comum apresentar Bally e Spitzer em lados opostos. Muitos tericos associam o surgimento da estilstica a um contexto de crtica ao positivismo do sculo XIX, que buscava adotar o modelo das cincias exatas para o estudo da literatura e observava o texto como um documento que traria informaes sobre a vida do autor, ou sobre a histria de um povo. A posio de Bally recebe influncia das teorias que valorizaram a emoo e a imaginao e se preocuparam em enfocar o prprio texto, como a hermenutica de Dilthey, para quem o texto equivale a um monumento, e, especialmente, a esttica idealista de Croce, a qual sempre surge ligada estilstica literria. (Cf. GOMES ALONSO, 2002 e MONTEIRO, 2005) A investigao do estilo de um autor, para Spitzer, levaria ao prprio estado de esprito desse autor no momento da criao de sua obra. A lngua no nem mais nem menos do que a cristalizao externa da forma interna. (SPITZER, 1982, p. 35) Assim, sua estilstica tambm ficou conhecida como psicolgica. O crculo filolgico, mtodo utilizado para o estudo do estilo, inclui a intuio como instrumento de anlise, precedendo a deduo e a comprovao emprica. De acordo com esse mtodo, o estudioso do estilo deve ler e reler, vrias e vrias vezes, a obra do autor escolhido at encontrar um trao estilstico significativo. A partir desse trao, possvel estabelecer uma
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srie de relaes entre cada aspecto da obra at que seja ou no confirmado como um componente revelador do estado de esprito do autor no momento de criao. Segundo Spitzer, a sensibilidade do analista que poder dizer se esse trao de estilo ou no pertinente. O mtodo supe um ciclo de leituras que observam os detalhes at o trao de coeso considerado mais significativo, ponto a partir do qual os detalhes passam a ser reavaliados. 19
Tomar alguns traos externos da linguagem de Rabelais como ponto de partida para chegar alma ou ao centro espiritual de Rabelais e voltar, da, em sentido inverso, at os traos externos de sua obra o mesmo modus operandi daquele que, partindo de alguns detalhes das lnguas romnicas, chega ao prottipo de um latim vulgar, e depois, seguindo o caminho inverso, explica outros detalhes luz desse prottipo. (SPITZER, 1982, p. 42)
Spitzer tem sido, at hoje, muito criticado, no apenas por incluir a intuio em seu mtodo de anlise do estilo, mas principalmente pela preocupao em chegar psique do autor. Ao longo de seu trabalho, observa-se uma grande importncia atribuda aos recursos lingsticos, ao passo que, em vrios escritos, no h sequer meno ao estado de esprito do autor. No podemos esquecer que Karl Vossler era o grande mestre de Spitzer, o qual chegou a afirmar que seus estudos estilsticos eram a realizao prtica das idias de Vossler (1942, p. 92). A oposio entre significante e significado, para Vossler, equivalia oposio entre categorias gramaticais e categorias psicolgicas; a interpretao do sentido representava, ento, a interpretao da vida interior dos falantes.
El hablante est posedo de la mencin que expresa, y el oyente solo puede inferir las categoras psicolgicas que corresponden a esa mencin, vez que la ha captado, transcrito en su propia mente y entendido. Y cual es el punto de arranque de la inferencia? En primer lugar, la gramtica de la lengua en que la mencin ha sido expresada. (VOSSLER, 1942, p. 30)
Com isso, no se pode negar que o objeto de preocupao de Spitzer sempre foi a lngua. Mas no se pode esquecer que, para ele, a lngua compreende estruturas psicolgicas. Tanto para Vossler como para Spitzer, interessa observar como a lngua, coletiva, se transforma. Segundo eles, essa transformao parte do indivduo. Este, ao experimentar um
19 No caso da poesia de Alberto da Cunha Melo, esse trao estilstico central a conciso, ligada nfase, que associo reverberao de imagem.
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movimento psquico que se distancia do convencional, e que, portanto, no pode ser expresso pelas estruturas j disponibilizadas pela lngua, opera um desvio do uso comum. Esse desvio pode ser ou no incorporado na gramtica da lngua. Assim, na obra de Leo Spitzer, a concepo de estilo relaciona-se idia de desvio, o que tem sido criticado h algum tempo. Isso porque, entre vrios argumentos, so sempre falhos os critrios para estabelecer uma diferena entre desvio e norma. Alm disso, o estilo de um autor j no tem sido visto apenas como um conjunto de desobedincias s convenes da lngua. Mas a concepo de estilo como desvio ainda est presente, mesmo que de maneira camuflada, no trabalho de vrios estudiosos, sempre associada ao exerccio criativo da linguagem (cf. MONTEIRO, 2005). Est presente em definies como esta de Murry: o estilo aquilo que torna a linguagem de um autor nica (cf. 1968, p. 17 e 83). Ou nesta explicao de Retamar (1963, p. 18-9):
La estilstica, despus de realizadas bsquedas cuidadosas e imprescindibles en la lengua, se acerca precisamente a aquellas creaciones del habla en que la atencin expresiva es mayor; en que el hombre hace menos concesiones a la lengua, lucha por no ser sorbido por el anonimato, peso muerto, y frente a l levanta su realidad, su expresin, su estilo.
No lugar da idia de desvio, muitos autores, desde Marouzeau, um dos primeiros a produzir estudos no vis da estilstica da lngua, adotam a idia de escolha. Para Marcel Cressot (1963), ao se expressar, o falante tem sua disposio uma srie de possibilidades de escolha de vocabulrio, ordenao sinttica etc e realiza uma seleo, no apenas levando em conta seu prprio conhecimento das possibilidades, mas considerando, tambm, a recepo do enunciado pelo interlocutor. Diante disso, aponta o papel da estilstica como sendo o de interpretar as escolhas que o falante efetua em todas as camadas lingsticas com a finalidade de garantir comunicao o mximo de eficcia. Contudo, diferente de Spitzer, Cressot no se volta para o estudo do estilo individual. Interessa-se em observar as diferentes selees realizadas pelos falantes, com o intuito de investigar as possibilidades oferecidas pela lngua, j que, embora estude o texto literrio, compartilha das mesmas preocupaes de Bally.
O estudo dos estilos literrios apenas uma parte da investigao estilstica, e um dos meios de que dispe em vistas de uma sntese futura. Reconhecemos que a noo de estilo envolve elementos estranhos ao objeto da estilstica, como a sensibilidade do autor que lhe fornece uma certa viso de mundo e o incita a adotar uma certa composio, etc. Mas ningum nos
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contradir quando afirmarmos que um escritor s pode traduzir sua sensibilidade e sua viso de mundo na medida em que dispuser de um material apropriado. 20
Nas anlises estilsticas mais recentes, o estilo equivale prpria escolha. O foco desvia-se do autor para o texto. E sua definio subordina-se, portanto, concepo de texto adotada pelo analista. 21 comum identificar o estilo, como resultado de escolhas lingsticas, noo de efeitos expressivos, ou efeitos de sentido. Com isso, passa a ser visto como resultado da interao entre autor, texto e leitor; ou seja, o estilo de um autor passa a ser visto como resultado de uma determinada leitura de seus textos, variando de leitor para leitor. H quem defenda, ainda, que o estilo o que permanece constante ao se compararem as diferentes leituras.
El estilo se concibe como resultado de la seleccin del autor entre las posibilidades concurrentes del sistema lingstico y de la reelaboracin por el lector que recibe el texto. Los efectos estilsticos resultan del intercambio dialctico entre las consecuencias codificadas en el texto de la eleccin realizada por el autor y la reaccin del lector. El estilo es una manifestacin en textos que se constituye en el proceso de la comunicacin literaria. Por ello, el estilo no es una propiedad esttica de un texto, sino una cualidad virtual que debe reelaborarse en el proceso de la recepcin. (SPILLNER, 1979, p. 109)
A estilstica literria, tambm conhecida como idealista, devido sua filiao aos trabalhos de Humboldt, Croce, Vossler e Spitzer, conta com contribuies importantes de tericos como Erich Auerbach, Dmaso Alonso, Amado Alonso e Helmut Hatzfeld. A estilstica funcional ou estilstica estrutural, liderada por Roman Jakobson (1896- 1983), constitui-se como uma disciplina lingstica e nem sempre se apresenta sob o rtulo de estilstica. Jakobson aborda o estilo como uma das funes da linguagem, a funo potica, e relaciona-o s escolhas que o falante opera no momento da comunicao. O estilo pode ser estudado em qualquer tipo de texto, tanto falado como escrito, literrio ou no. A funo potica projeta o princpio da equivalncia do eixo da seleo sobre o eixo da combinao (JAKOBSON, 1959, p. 130). Isto significa que o falante escolhe no apenas as palavras mais
20 Texto original: Ltude des styles littraires nest quun compartiment de lenqute stylistique, et quun de moyens dont elle dispose en vue dune synthse future. Nous reconnaissons volontiers encore que la notion de style implique des lments tout fait trangers lobjet de la stylistique, notamment la sensibilit de lauteur qui lui furnit une certaine vision du monde, lincite (...) adopter une certaine composition, etc. Mais nul ne nous contredira lorsque nous affirmerons quun crivain ne peut traduire sa sensibilit et sa vision du monde que dans la mesure o il dispose dum matriel appropri. (CRESSOT, 1963, p. 229) 21 Opo adotada nesta pesquisa.
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adequadas para expressar-se, mas tambm a maneira de combin-las na frase. Essa idia de estilo como seleo e combinao possibilita estudar tanto as potencialidades expressivas do sistema lingstico quanto os efeitos alcanados pela estrutura do texto, uma vez que este considerado sempre em comparao com as possibilidades expressivas descartadas no ato da comunicao. Dentro da estilstica estrutural, convm destacar os trabalhos de Michael Riffaterre e Samuel Levin. O primeiro descarta o estudo do sistema lingstico, voltando-se exclusivamente para o texto. Considera que a afetividade da linguagem s pode ser apreendida no contexto, pois acredita que no contraste entre os vocbulos na frase que eles adquirem valor expressivo. Segundo Riffaterre (1973), a anlise estilstica deve limitar-se quilo que perceptvel ao leitor, porque os efeitos atingidos pelo texto que lhe do estrutura.
A estilstica estuda os elementos que, no enunciado lingstico, so utilizados para impor ao decodificador a maneira de pensar do codificador, quer dizer, estuda o ato de comunicao no como mera produo de uma cadeia verbal, mas como algo que traz a marca da personalidade do locutor e chama a ateno do destinatrio. (RIFFATERRE, 1973, p. 137)
Com Riffaterre, a noo de desvio adquire uma nova feio, na medida em que o desvio deixa de ser considerado com relao a uma norma externa, j que o contraste se d entre elementos marcados e no marcados dentro da prpria estrutura do texto. Para ele, como para qualquer estudioso da estilstica, interessa observar o que provoca impacto sobre o leitor, e esse impacto equivale a uma quebra de expectativa; a prpria estrutura textual gera no leitor uma expectativa que se quebra no interior do texto, feito de um nmero indeterminado de contrastes. A tarefa da estilstica, portanto, a de estudar como se estabelece a combinao entre os fatos estilisticamente marcados e os no marcados. Com o objetivo de descrever o que considera a gramtica da poesia, Samuel Levin (1975) explora o conceito de acoplamento: estrutura resultante da equivalncia, no plano sinttico, de formas sonora ou semanticamente equivalentes. Para ele, os acoplamentos so responsveis pela coeso no texto potico e por sua permanncia na mente do leitor.
Assim como Levin, vrios tericos da estilstica estrutural, seguindo a tendncia dos movimentos surgidos no incio do sculo XX, encaminham seus estudos para a postulao de uma cincia da literatura.
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A estilstica funcional russa, de acordo com Ludmila Kaida (1986), tem como fundador o fillogo M. V. Lomonsov, que publicou sua Retrica em 1748, baseada em contribuies de Aristteles, Horcio, Quintiliano etc. Durante muito tempo, ficou associada retrica clssica, mas, na dcada de 1920, com o formalismo russo, tomou um novo rumo. Em um artigo de 1919, Zhirmunski apresenta-a como uma lingstica potica.
El ulterior desarrollo de la estilstica se aprecia en los trabajos de A. M. Peshkovski, L. V. Scherba, B. A. Larin, V. V. Vinogrdov, A. M. Gvzdev y G. O. Vinokur. Resulta evidente que la estilstica no tiene ya cabida dentro del marco de los manuales de retrica y potica. El comienzo de la verdadera estilstica funcional lo constituye la obra de G. O. Vinokur, Cultura del idioma, en la que demuestra que el contenido y la esfera de aplicacin de la estilstica deben ser ms amplios y no pueden limitarse al mbito de la ciencia de la elocuencia. (KAIDA, 1986, p. 27)
Kaida destaca a importncia da obra de Volochnov, Marxismo e filosofia da linguagem, para a estilstica funcional russa, influenciando a maneira como esta tem concebido a linguagem, conferindo um papel importante ao contexto extralingstico. E aponta os estudos do Crculo Lingstico de Praga, ao lado do formalismo russo, como grandes influncias para os trabalhos mais recentes. Para os funcionalistas russos, o estilo est presente em todas a situaes que envolvem o uso da lngua; seus estudos contemplam gneros textuais variados. A questo dos gneros central e encontra respaldo terico na obra de M. Bakhtin. Abordam o estilo no escopo do gnero textual, com invariantes e variantes individuais de acordo com cada realizao concreta. Partem do pressuposto de que cada gnero discursivo desempenha uma determinada funo na comunicao humana. Considerando que essa funo estabelece uma relao entre emissor e receptor por meio do texto, voltam-se para os valores expressivos, ou seja, para os recursos lingsticos que garantem a eficcia dessa relao. Dentre vrios estudos citados em seu livro, La estilstica funcional rusa: problemas actuales, escrito especialmente para os tericos espanhis, Kaida destaca os trabalhos de V. V. Odinstov, autor de A estilstica do texto (1980). Segundo ele:
La estilstica del texto estudia las posibilidades estilstico-estructurales de las obras del lenguaje (incluidas las literarias). Los tipos e formas de composicin estilstica, los principios de construccin y el funcionamiento de los medios idiomticos en el discurso. La estilstica del texto, como parte integrante de la estilstica del habla, se apoya en los datos que le brinda la estilstica de la lengua, con la que est relacionada y guarda una correlacin variada. La relacin recproca entre los conceptos texto y lengua se mantiene a travs del estilo
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funcional... La estilstica del texto, que tiene en cuenta el valor estilstico de las unidades idiomticas, trata de determinar e describir los efectos estilsticos que surgen en el lenguaje gracias a la organizacin estructural del texto y al funcionamiento de los medios idiomticos en el proceso de la comunicacin. (Apud. KAIDA, 1986, p. 37)
Nesta breve retomada de algumas vertentes da estilstica, vale destacar, ainda, a scio-estilstica, praticada por David Crystal e Derek Davy (1970), que focaliza as variantes lingsticas de diferentes classes scio-culturais e dos registros adequados a variadas situaes. Para esses autores, a estilstica sociolingstica e seu estudo pode ser til a qualquer indivduo interessado nos diversos usos da linguagem na sociedade. Assim como Spitzer, reconhecem que o primeiro passo na apreenso de traos estilsticos intuitivo. Mas no estudam o texto literrio, em virtude de sua complexidade e pelo fato de este poder incluir caractersticas dos mais variados tipos de texto, devendo ser analisado apenas quando os outros tipos textuais tiverem sido devidamente estudados. No poderia deixar de mencionar a importncia de Mattoso Cmara para a estilstica da lngua portuguesa. Seguindo a linha de Bally e combinando-a ao estudo de Karl Bhler sobre as trs funes da linguagem: representao mental, manifestao anmica e apelo, Cmara relaciona a estilstica s duas ltimas funes e a aplica, inclusive, ao estudo da literatura. Em Contribuio estilstica portuguesa, alm de refletir sobre a natureza da linguagem e do estilo, analisa a expressividade das diversas camadas da linguagem: fnica, lxica e sinttica por meio de obras de autores brasileiros e portugueses. Mattoso Cmara utiliza o termo expressividade para se referir face da lngua que possibilita a expresso dos contedos afetivos, sem fazer distino entre contedos naturais e evocativos, uma vez que ambos so indissociveis. O conceito de expressividade fundamental, pois define, ainda que de modo genrico, o objeto comum aos estudos de estilstica. Para Nilce SantAnna Martins (cuja obra constitui importante referncia para o estudo da estilstica da lngua portuguesa no Brasil), a expressividade, ou os valores expressivos, de uma lngua so os meios que ela oferece aos que falam ou escrevem para manifestarem estados emotivos e julgamentos de valor, de modo a despertarem em quem ouve ou l uma reao tambm de ordem afetiva (MARTINS, 2001, p. 23). De acordo com Mattoso Cmara (1978, p. 24), a Estilstica
consiste em assinalar, ao lado de um sistema de fundo intelectivo, um sistema de expressividade que nele se insinua e com ele funciona inelutavelmente. Assim compreendida, o complemento da exposio gramatical, desdobrando-se, como esta, no exame dos sons, das significaes e das ordenaes formais.
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Assim como Bally, acredita que o estudo completo de uma lngua pressupe a combinao da estilstica (estudo da face afetiva) com a gramtica (estudo da face intelectiva), sendo que uma complementa a outra. Existem, ainda, outras tendncias nos estudos estilsticos. Jos Lemos Monteiro (2005) faz um apanhado das principais, mas reconhece a dificuldade em enquadrar os estudos em uma ou outra linha de pesquisa. O autor associa estilstica gerativa, que busca compreender o texto potico atravs do modelo terico estabelecido por Chomsky, nomes como Ohmann (1964), Levin (1965) e Van Dijk (1972, 1976). De acordo com Gmes Alonso (2002, p. 55), a estilstica gerativa se baseia na utilizao de regras transformacionais para diferenciar as frases poticas das no poticas e estabelecer uma classificao com respeito s regras gramaticais transgredidas. Para esse autor, os trabalhos de Jean Cohen (1958, 1970), embora no se apresentem como estilsticos, tambm podem ser vinculados estilstica gerativa. Yllera (1974, p. 48) inclui seus estudos na estilstica estrutural. A estilstica estatstica recorre a mtodos quantitativos no estudo do vocabulrio de um autor ou de uma escola literria, a fim de chegar s palavras-chave, ou seja, aquelas de maior relevncia estilstica. Segundo Monteiro (2005), associam-se a ela os estudos de Mller (1965, 1969, 1975), Dubois (1964), Guiraud (1954, 1959), Monteiro (1991) e Roche (1970). No chega a ser propriamente uma corrente da estilstica, porque geralmente se subordina a outras tendncias. O prprio Guiraud, que publicou estudos de estilstica estatstica, chegou a afirmar: A maior parte dos numerosos estudos, realizados em diversos lugares, acerca de palavras-chave ou de desvios no uso de formas e de construes, so em geral simples inventrios passivos e desguam em concluses vs ou tautolgicas. (Apud DELAS e FILLIOLET, 1975, p. 40)
Nesta breve apresentao, foram citados apenas alguns autores e algumas linhas de pesquisa dentro da estilstica. Com tantas vertentes e contribuies, no se pode apontar um nico objeto ou uma nica metodologia. Assim como no se pode falar simplesmente em a estilstica sem causar uma certa confuso, pois a estilstica no uma disciplina com delimitaes precisas. Existem diversos estudos que, embora sob rtulos diferentes, podem ser vistos como estilsticos, tanto na rea da lingstica como na rea da crtica literria. Segundo Retamar (1963, p. 133):
Discutir si la crtica debe identificarse con la estilstica (segn cree Spitzer) o no, es asunto menos importante. Como el nombre crtica encubre las ms variadas aventuras, sera vano intentar apresuradamente esa identificacin
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que a veces, en efecto, ocurre. Pero ir al extremo contrario es tambin vano: la crtica, hoy, no puede prescindir de la estilstica. Incluso crticos que estn, o creen estar, alejados de ella, incurren en sus mtodos.
Conforme Yllera (1974, p. 39): Estilstica, potica e semitica literria no so mais do que formas diferentes de uma nica inteno que, procurando um mtodo adequado, se viu sucessivamente ligada filologia, lingstica e actualmente semitica. No mbito dos estudos literrios, est aparentada a movimentos como o formalismo russo, o estruturalismo checo e o new criticism, sem contar seu parentesco longnquo com a antiga retrica, da qual empresta, em maior ou menor grau, dependendo da formao do estudioso, grande parte de sua terminologia e anlise gramatical, especialmente no que se refere linguagem figurada. Tambm pode se associar explicacin du texte, j que ambas se dedicam anlise minuciosa da construo gramatical do texto, diferenciando-se apenas pelas concepes de estilo, uma vez que a explicacin du texte se prende s tcnicas de expresso e a normas que antecedem o texto. A estilstica volta-se descrio, sem um juzo prvio do que seria um bom estilo. De modo geral, a estilstica liga-se s disciplinas voltadas ao estudo da forma, do arranjo lingstico do texto. Seu recorte to pouco preciso que Jos Luis Martn (1973), ao apresentar a evoluo histrica da estilstica, remonta aos antigos egpcios, China e ndia de cerca de 3.000 a.C. Com a supervalorizao do discurso cientfico, a estilstica literria acabou perdendo terreno, embora resista. Crtica estilstica, de Martn, certamente uma resposta s crticas que atingiam a estilstica literria nas dcadas de 60 e 70. Sua obra, como ele mesmo diz, objetiva harmonizar as velhas escolas estilsticas de Bally e Spitzer. Mas esclarece: a estilstica, ou melhor, a crtica estilstica uma disciplina separada e diferente da lingstica (MARTN, 1973, p. 184). Martn ope-se estilstica estrutural e aos tericos de linha descritiva franco-sua (como Nardin, Schrer, Chass, Cohen, entre outros); considera seus mtodos mecnicos e improdutivos. E afirma: no hay ciencia literaria, ni puede haberla. Hay ciencia lingstica, y hay mtodo cientfico en la estilstica. Tampoco debemos afirmar que la estilstica es una ciencia. Es una disciplina cientfico-esttica (Id. ibid., p. 57). Com isso, defende que o estillogo no seja apenas um estudioso, mas un scholar, un erudito que amalgame armoniosamente, en forma perfectamente integrada, a un cientfico y a un artista en s mismo. Su labor ha de consistir en conocer, revivir, descubrir, interpretar, valorar y hacer gozar la obra de arte en todas sus potencialidades. (Id. ibid., p. 32) E sistematiza os
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procedimentos de aproximao da obra literria, buscando combinar a intuio ao rigor supostamente cientfico. Desse modo, procura dar ao mtodo proposto por Spitzer o crculo filolgico ou hermenutico uma roupagem mais cientfica. Apresenta trs etapas presentes no mtodo estilstico, seguindo a diviso clssica: tese-anlise-sntese. A tese equivale ao momento de formulao de uma hiptese sobre a obra; na anlise, a tese comprovada, rechaada ou modificada, sem perder de vista que a palavra analisada equivale chave de todo o segredo conceitual-afetivo da obra; a sntese consiste no estabelecimento de uma teoria valorativa e definitiva formulada a partir da anlise prvia. Para Martn, a tese talvez represente o nico momento verdadeiramente subjetivo do processo, a anlise corresponde ao verdadeiro aspecto cientfico e a sntese, o momento esttico-artstico, quando o crtico pode vislumbrar o segredo ltimo, a alma da obra . Martn tambm insiste no fato de que o objetivo da investigao estilstica, mais especificamente da crtica estilstica, de tradio espanhola, no chegar psique do autor, mas ao cerne significativo da obra. El estilo es la obra, no el hombre (Id. ibid., p. 187). Com relao s crticas que apresentam a estilstica como uma disciplina formalista e alienada, afirma que a crtica estilstica no rechaa o valor ideolgico de uma obra literria, mas o enfoca atravs das palavras que o expressam. Tambm marca sua posio contra a crtica tradicional, que adotou a dicotomia platnica entre fundo e forma, e, obviamente, aos estudiosos da estilstica descritiva, que se baseia na oposio entre significado e significante de Saussure. Para Martn, no h fundo e forma, h obra, cosmos, totalidade.
Aps tantos debates, tantas polmicas, fundamentais para o desenvolvimento da estilstica, hoje as diversas vertentes parecem travar um dilogo mais amistoso. Talvez porque j no exista uma preocupao em defender um lugar no universo acadmico. Nos departamentos de lingstica brasileiros, hoje, h poucos trabalhos explicitamente estilsticos. Geralmente acontecem dentro da anlise do discurso, da pragmtica, da nova retrica, da semntica, dos estudos enunciativos ou simplesmente se apresentam como lingstica aplicada. Mas a estilstica tem resistido ao tempo exatamente devido a sua versatilidade. Como no busca construir ou comprovar uma teoria abstrata, mas antes se preocupa em observar os usos da lngua e a construo de sentido, adapta-se s novas teorias e se beneficia delas. A estilstica pode ser esquecida, porm dificilmente ser refutada por uma nova tendncia, pois no se estrutura em um conjunto preciso de pressupostos para ser contestado.
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Assim como os continuadores de Bally incluram na investigao estilstica o texto literrio e tericos como Amado Alonso substituram a concepo psicologista de linguagem, utilizada por Spitzer, por outra estritamente esttica, novas posturas e novas concepes surgiro, mas todas, certamente, podero se acomodar ao mtodo estilstico. Pois este se baseia em um nico pressuposto: a lngua pode representar idias e afetos e atuar sobre o outro. A prpria oposio de Bally entre traos afetivos e traos intelectivos j tem sido rejeitada, mas isso s contribuiu para o desenvolvimento da estilstica, em suas vrias tendncias. E hoje o foco tem se deslocado da lngua para o discurso. Mas sempre possvel traar paralelos entre os estudos. No caso da anlise do discurso, por exemplo, um texto estudado em funo do dito, de seu arranjo formal, mas tambm do que deixa de dizer, dos silncios que trazem para o campo de significao outros textos, outros discursos, os quais dialogam com a formao discursiva e ideolgica do autor e/ou do leitor. Para se referir a essa caracterstica do processo significativo, so utilizados termos como heterogeneidade discursiva, polifonia, dialogismo. Talvez, de modo um pouco grosseiro, seja possvel estabelecer um paralelo com a obra de Bally, quando este afirma que o dado expressivo s pode ser interpretado em contraste com o no expressivo. Ou, ainda, dialoga com a noo de escolha, to presente na tradio dos estudos estilsticos. Afinal, ao selecionar uma palavra ou uma estrutura, o autor faz com que as demais possibilidades descartadas permaneam contribuindo para determinar a concretizao do sentido. As concepes de estilo, lngua, texto, palavra, autor, leitor etc se modificam, mas o interesse, desde Bally, permanece sobre a investigao da maneira como se estabelece a interao entre locutor e interlocutor por meio da anlise da forma.
Tradicionalmente, o objeto da estilstica tem sido a forma. Por razes que so bem conhecidas (ou privilgio de uma funo da linguagem ou o privilgio de uma definio de significao ou da tarefa da semntica, ou ainda, pelas concepes de qual seja o papel da sintaxe em sua relao com a semntica), a forma tem sido tomada independentemente do sentido, como se esse fosse prvio, ou, de certa maneira, independente da forma. Ora, numa abordagem do estilo, para ter algum sentido e no somente da tica da anlise do discurso, deve considerar o papel da forma na constituio do sentido e a presso do sentido, seu papel, como um dos condicionadores da seleo, da escolha de uma forma. (POSSENTI, 1988, p. 170)
Os termos afetividade, expressividade, traos expressivos e traos estilsticos j convivem com outros como efeitos de sentido e provavelmente sero substitudos por uma terminologia mais moderna e condizente com os novos estudos lingsticos. Os trabalhos
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estilsticos subsidiam-se das pesquisas lingsticas. Isso no significa que a prpria estilstica no venha a oferecer contribuies para o estudo da lngua e do discurso. Afinal, investiga o comportamento da lngua em uso e pode oferecer um rico material descritivo. Para Jos Maria Paz Gago (1993), concordando com Martn, a estilstica no uma cincia: deve ser vista como um conjunto de mtodos. Mas defende a idia de que esses mtodos possuem princpios comuns e que no so to distintos como se tem pensado. E afirma que essa unidade pode ser percebida em trs caractersticas que acompanham todo estudo estilstico, independente das orientaes tericas do autor.
1. Todos os mtodos abordam o texto literrio, sempre de um ponto de partida lingstico-formal, para obter algum tipo de concluso sobre sua qualidade formal e seu valor esttico. 2. Consideram-se de relevncia estilstica as construes que saem do normal. Essa anormalidade ou desvio, conseqncia de uma escolha, chama a ateno do crtico, que pode interpretar ou atribuir valor a tal originalidade. 3. Com diferena de nfase, os estudos sempre consideram como fatores protagonistas do processo comunicativo: emissor, receptor, texto. (GAGO, 1993, p. 18-9)
A partir dessa sistematizao proposta por Gago, torna-se evidente a dificuldade em estabelecer uma unidade para os estudos estilsticos. Como se pode perceber, o autor contempla apenas a estilstica aplicada a textos literrios, desconsiderando outras abordagens. A noo de desvio pode ser vlida, j que o autor se refere ao que chama a ateno do crtico. E, embora para alguns a idia de desvio no combine com a de escolha, possvel relacion- lo ao elemento expressivo, que apela aos sentidos do crtico-leitor. Com relao trade emissor-receptor-texto, no possvel que este seja um fator que diferencie a anlise estilstica de qualquer outra disciplina que se volte para o estudo do texto literrio. A descrio da estilstica como um conjunto de mtodos pertinente e contribui para a superao do problema que fazer com que possa ser descrita como uma cincia ou at mesmo uma disciplina. O problema que os prprios mtodos so muito genricos e tambm podem ser emprestados de teorias vizinhas. Neste trabalho sobre a obra de Alberto da Cunha Melo, por exemplo, no que se refere ao mtodo, h uma contribuio importante de estudos de teoria literria, da lingstica textual, da esttica da recepo, e de outras disciplinas voltadas para a interpretao de texto. O que esta abordagem apresenta em comum com outros estudos de base estilstica , provavelmente, a preocupao com o detalhe da estrutura do texto e sua relao com a construo do todo significativo do poema. Assim como ocorre em vrios estudos sobre literatura, parte-se de uma caracterstica considerada relevante no todo da obra potica, para
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se verificar como os sons, as palavras, a ordenao sinttica, os smbolos, as relaes intertextuais sempre concebidos como parte estruturadora do discurso potico se combinam para criar este ou aquele efeito de sentido. As anlises, obviamente, no fornecem uma radiografia da gramtica empregada no texto, j que a ateno recai apenas sobre alguns recursos, considerados relevantes. E esses recursos so sempre observados em funo do conjunto. Os estudos estilsticos envolvem sempre um esforo para compreender o texto. Nesse processo de busca de compreenso, o material lingstico recebe ateno especial. Isso no significa, como bem afirma Martn, desconsiderar questes ideolgicas; estas esto mesmo inscritas no discurso analisado. No processo de anlise estilstica, o texto constantemente relacionado a outros textos, ao mundo, s experincias conhecidas e que se fazem conhecer pela pesquisa. Talvez por isso Martn vislumbre o analista como um scholar, conhecedor das artes, da cincia, enfim, de tudo. Entretanto, para que o trabalho estilstico seja factvel, talvez seja necessrio, apenas, ter em mente que, quando se estuda a palavra, no se estuda uma estrutura compacta e fechada, mas um signo sempre mvel, malevel, em constante interao com todo tipo de conhecimento. E o texto nos leva a buscar conhecimento. Conforme Umberto Eco (2005, p. 79-80),
quando um texto produzido no para um nico destinatrio, mas para uma comunidade de leitores, o/a autor/a sabe que ser interpretado/a no segundo suas intenes, mas de acordo com uma complexa estratgia de interaes que tambm envolve os leitores, ao lado de sua competncia na linguagem enquanto tesouro social. Por tesouro social entendo no apenas uma determinada lngua enquanto conjunto de regras gramaticais, mas tambm toda a enciclopdia que as realizaes daquela lngua implementaram, ou seja, as convenes culturais que uma lngua produziu e a prpria histria das interpretaes anteriores de muitos textos, compreendendo o texto que o leitor est lendo.
Diferente do leitor comum, o analista no conta apenas com o conhecimento prvio; ter de procurar por contedos que no seria capaz de acessar sozinho. Com isso, ao contrrio do que muitos afirmam, a anlise estilstica no simplesmente imanente, j que no existe, ao menos nos dias de hoje, contedo lingstico que seja imanente. Terry Eagleton (1997), ao fazer uma anlise das vrias tendncias dos estudos literrios, passando pela fenomenologia, hermenutica, teoria da recepo, estruturalismo, ps-estruturalismo, psicanlise, crtica marxista, conclui que nenhuma delas pde libertar-se
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das coeres ideolgicas de seu momento histrico 22 . De maneira mais ou menos consciente, cada uma dessas escolas acabaram contribuindo para a manuteno e reproduo do poder social, mesmo quando preconizavam o contrrio.
A lngua um campo de foras sociais que nos modelam at as razes, sendo uma iluso dos acadmicos considerar a obra literria como uma arena de possibilidades infinitas, que fogem a isto. (...) Um dos temas deste livro o de que inexiste uma reao puramente literria: todas as reaes, sem excluso das reaes forma literria, aos aspectos de uma obra que so por vezes ciosamente reservados ao esttico, esto profundamente arraigadas no indivduo social e histrico que somos. (EAGLETON, 1997, p. 120, 123)
Ironicamente, o autor atribui ao ltimo captulo de seu livro (segundo ele, fortemente influenciado pelo pensamento de Foucault), o ttulo: Concluso: crtica poltica. Entretanto, afirma que supor que a crtica poltica seja uma alternativa mais isenta para os estudos literrios um grande equvoco, pois este o tipo de anlise mais tendencioso. Em seguida, chega a cogitar a possibilidade de uma postura ecumnica, ou seja, de combinar livremente diferentes mtodos crticos. Mas admite que essa postura pode ser problemtica, uma vez que nem todos os mtodos so mutuamente compatveis; alm de correr o risco de deixar o terico em uma posio de superioridade, de balizador de conflitos, ignorando que alguns deles s podem ser resolvidos unilateralmente. Por fim, o autor defende que a melhor metodologia seria aquela cuja preocupao fosse analisar os tipos de efeitos produzidos pelos discursos, e como eles so produzidos, uma teoria do discurso. E reconhece: Talvez se trate, na verdade, da forma mais antiga de crtica literria, conhecida como retrica.
Embora minha posio seja reacionria sob esse ponto de vista, no pretendo que todos os antigos termos da retrica e sua utilizao renasam e ocupem o lugar da moderna linguagem crtica. No preciso que isto ocorra j que existem, nas teorias literrias examinadas neste livro, conceitos suficientes para pelo menos nos permitir comear. A retrica, ou a teoria do discurso, divide com o formalismo, o estruturalismo e a semitica, o interesse pelos recursos formais da linguagem; como a teoria da recepo, porm, ela tambm se ocupa da maneira pela qual tais recursos so realmente efetivos no ponto de vista do consumo. (EAGLETON, 1997, p. 282-3)
22 Para esse autor, ideologia equivale maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura de poder e com as relaes de poder da sociedade em que vivemos. (EAGLETON, 1997, p. 20)
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Uma realizao concreta dessa postura metodolgica defendida por Eagleton j existe e se chama estilstica. Ao longo de seu estudo, o autor cita autores que se enquadram na investigao estilstica, mas no a menciona como uma disciplina ou um conjunto de mtodos compartilhados. O nome de Spitzer, por exemplo, surge apenas em um comentrio, ao lado de Croce, Curtius, Auerbach e Welleck, para ilustrar o mundo dos grandes estetas e dos eruditos humanistas literrios da Europa do sculo XX que perdia espao ante ao advento do estruturalismo. (Id. ibid., p. 146-7) Isso serve para ilustrar como a estilstica tem sido negligenciada como uma alternativa vlida entre as vrias possibilidades de abordagem do texto literrio ou de qualquer outro gnero textual. A fim de concluir esta exposio sobre a estilstica, e as estilsticas, vale lembrar o trabalho de Richard Bradford (1997), Stylistics. Para esse autor, o propsito da estilstica levar a um julgamento da obra literria (evaluative judment), se de boa ou m qualidade. Compara um poema ao trecho de um romance popular e chega concluso, aps avaliar o emprego de alguns recursos lingsticos em ambos os textos, de que o poeta superior. Essa parece ser uma deturpao e um exagero do valor usado nas anlises de crtica estilstica. Aps um estudo exaustivo da obra de Pablo Neruda, por exemplo, Amado Alonso (1979) conclui que h uma espcie de converso em sua poesia, na medida em que percebe um deslocamento do foco nas preocupaes do indivduo para uma comunho com o prximo. O autor associa essa transformao com o fato de Neruda tornar-se comunista, mas alerta que esse dado apenas se torna relevante aps a anlise atenta da forma. Os juzos, no geral, so dessa ordem, embora tambm considerem a eficcia dos usos expressivos. O crtico poder determinar se uma obra mais bem acabada que outra; no entanto, no possvel conceber que esse seja o objetivo da estilstica. Esta breve retomada de alguns tericos da estilstica tem o intuito de inserir esta pesquisa em um contexto de discusses mais amplo. No h como enquadr-la em uma nica linha de investigao, pois hoje elas j se combinam livremente. Assim, no existe o interesse em apresentar esta abordagem estilstica como um trabalho de lingstica 23 ou de crtica literria, a inteno apenas verificar alguns usos expressivos, considerando, principalmente, a maneira como se obtm o efeito de nfase e conciso por meio da tcnica da reverberao de imagem, que enfocarei com mais detalhe na terceira parte desta exposio.
23 Nas palavras de Pechux (1999, p. 50): resta saber em que medida a prpria lingstica ou no uma disciplina de interpretao.
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De uma maneira ou de outra, contribuem para esta investigao do estilo tanto os estudos de Bally, Cressot, Riffaterre, Jakobson, Levin quanto os de Spitzer, Dmaso Alonso, Amado Alonso, dentre outros. Na segunda seo deste trabalho, registro alguns traos estilsticos de Alberto da Cunha Melo e ofereo uma amostra do que entendo por leitura estilstica, ao analisar alguns recursos expressivos dos poemas selecionados para ilustrar a obra desse autor. Embora os comentrios dos textos ainda no se estruturem em anlises completas, j possvel notar a preocupao com a maneira como se d a construo da imagem potica, sempre enfocando detalhes da forma. Esta segunda parte foi concebida no apenas para fornecer uma viso panormica do estilo do autor, mas com o intuito de apresentar alguns ttulos de difcil acesso, pois a maioria das publicaes contou com uma tiragem pequena e teve circulao restrita. 24
24 Mas existe a possibilidade de republicao. Recentemente, Noticirio, um dos livros mais importantes na trajetria potica de Alberto da Cunha Melo, de difcil acesso, foi disponibilizado para download no site oficial do autor <http://www.albertocmelo.com> (acesso em 01/12/2007).
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2 A poesia de Alberto da Cunha Melo aproximao a um estilo
Jos Alberto Tavares da Cunha Melo, alm de poeta, foi jornalista e socilogo. Faleceu no dia 13 de outubro de 2007, aos 65 anos, deixando vrios livros para serem publicados. Filho e neto de poetas, nasceu em Jaboato, Pernambuco, no dia 08 de abril de 1942. Leitor de Kafka e Joo Cabral de Melo Neto, teve no pai, Benedito Cunha Melo, sua primeira influncia. Na poca em que estudava sociologia na UFPE, reunia-se com alguns amigos, tambm poetas, para discutir, entre outras coisas, poesia. Desses encontros, formou-se o Grupo de Jaboato, que se desdobrou em um grupo maior, conhecido como Gerao 65 de Poetas Pernambucanos (nome atribudo pelo historiador Tadeu Rocha). No incio, o grupo era formado por Alberto da Cunha Melo, Domingos Alexandre, Jos L. A. de Melo e Jaci Bezerra. H muitos poetas, com as mais diferentes tendncias estticas, associados Gerao 65, dentre eles Marcus Accioly, Tereza Tenrio, ngelo Monteiro, Jos Carlos Targino e vrios outros. O poeta e crtico Csar Leal, grande incentivador do grupo, por cuja iniciativa Alberto da Cunha Melo publicou seus dois primeiros livros de poemas, alerta para o carter vago e, por vezes, arbitrrio dos rtulos de gerao, mas reconhece a pertinncia da data, que chama a ateno para um evento determinante para a identidade da Gerao de 65: o Golpe Militar. De fato, a opresso causada pelos militares serviu de alimento para vrios poemas de Alberto da Cunha Melo, os quais, pelo trabalho esttico, transcenderam o circunstancial, lanando-se a reflexes mais universais, sobre o medo, a (falta de) liberdade, o individualismo, enfim, sobre o humano. Muito h para se dizer sobre a Gerao 65 e sua relao com Alberto da Cunha Melo, mas isso seria tema para um outro estudo. Gerao 65 o livro dos trintas anos, edio organizada por Jaci Bezerra, compila artigos e depoimentos de poetas e crticos dessa gerao por ocasio do seminrio comemorativo de seus trinta anos, realizado em novembro de 1995 na Fundao Joaquim Nabuco. Em Faces da resistncia na poesia de Alberto da Cunha Melo, de 2003, primeiro e nico livro sobre o poeta publicado at o momento, Cludia Cordeiro trata especificamente da relao de Alberto da Cunha Melo com sua gerao, alm de apresentar uma viso panormica de sua produo potica.
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Junto com alguns colegas da Gerao 65 e outros preocupados com a promoo da cultura em nosso pas, Alberto da Cunha Melo foi co-fundador das Edies Pirata, editora alternativa por meio da qual lanou trs de seus livros (Dez poemas polticos, Noticirio e Poemas mo livre) e que chegou a editar obras de Gilberto Freyre, Ledo Ivo, Mauro Mota e Rubem Braga uma maneira de resistir ao silncio em que eram confinados intelectuais e artistas durante o regime militar. Como socilogo, dedicou onze anos pesquisa, atuando na Fundao Joaquim Nabuco, e publicou alguns trabalhos cientficos. Foi gerente de bem-estar social do SESC pela Delegacia do Estado do Acre e exerceu a funo de pesquisador da Comisso Estadual de Planejamento Agrcola desse mesmo Estado. Tambm foi diretor de assuntos culturais da FUNDARPE (Fundao do Patrimnio Histrico e Artstico de Pernambuco) e diretor do arquivo pblico estadual de Pernambuco. No jornalismo, destacou-se como editor do Commercio Cultural, do Jornal do Commercio. Tambm foi colaborador da coluna Arte pela Arte, do Jornal da Tarde (SP), e da revista Continente Multicultural (CEPE/PE), em que assinou a coluna Marco Zero. 25
Alberto da Cunha Melo tem at hoje quatorze ttulos de poesia publicados e figura em vrias antologias. A maioria de seus livros contou com distribuio restrita. Alguns deles com 200 ou 300 exemplares. Durante muito tempo, sua obra era conhecida e apreciada apenas por um crculo fechado de crticos e poetas, na maioria nordestinos como ele. Comeou a publicar na dcada de 60, mas apenas Soma dos sumos, de 1983, uma seleo de poemas, teve distribuio nacional, editada pela Jos Olympio em parceria com a Fundarpe. Em 2003, trs de seus livros (Orao pelo poema, Yacala e Meditao sob os lajedos) foram reunidos em um volume: Dois caminhos e uma orao, pelas Edies Girafa, com circulao nacional. Pela mesma editora, foi lanado O co de olhos amarelos & outros poemas inditos, premiado em 2007 pela Academia Brasileira de Letras como melhor livro de poesia. Meditao sob os Lajedos, publicado inicialmente pela editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tambm j havia sido bem recebido pela crtica, figurando na lista do Prmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira entre os dez melhores livros publicados no Brasil em 2002. E tem sido cada vez mais citado entre os principais poetas brasileiros. Ao longo de toda sua obra potica, podemos perceber uma preocupao com a forma, que se manifesta no vocbulo preciso, nas combinaes sonoras, no ritmo que se
25 Informaes colhidas no site <http://www.albertocmelo.com> (acesso em 11/11/2007) e em 100 Anos de Poesia: um panorama da poesia brasileira no sculo XX, p. 70.
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molda idia. No falte nem sobre nada. A frase de Quintiliano, que serve de epgrafe para um de seus livros (Carne de terceira), alm de explicitar o vnculo com a tradio clssica, revela essa preocupao do autor com a harmonia entre forma e contedo, com a linguagem compacta, sem excessos. Tudo geralmente expresso com um vocabulrio acessvel, embora culto, e frases simples, na maioria em ordem direta. A temtica social marcante, assim como uma tendncia s reflexes de cunho metafsico, a indagaes sobre a existncia humana vida e morte e seu papel em uma ordem maior. O homem est sempre no centro das atenes. Mas existe uma busca constante de integrao com a natureza, sempre presente em imagens de gua (mar, rio, chuva), terra (lama, pedra, areia, vegetao), cu, fogo, animais. Destes, parecem predominar os alados (pssaros, borboletas), revelando, talvez, um desejo de transcendncia. O Cosmos tido como a grande casa do homem, que ora acolhe e ora parece repelir; no geral, representa o principal objeto de desejo de sua poesia, que se lana procura de harmonia e equilbrio. interessante notar que, embora haja variaes, o sol geralmente representado como uma fora opositora, que castiga, enquanto as chuvas surgem com uma conotao positiva, de graa e renovao. Provavelmente isso ocorre porque o nordeste brasileiro serve de cenrio para muitos de seus poemas. No entanto, embora haja textos em que o homem e a natureza nordestina estejam presentes de modo explcito, em sua maioria, no h determinao do espao. Mesmo quando o homem um personagem especfico, com nome e tudo, pode habitar qualquer lugar o contexto urbano prevalece , o que contribui para a identificao do leitor com o texto. Tambm rarssima a meno a datas precisas, enquanto mais comum a referncia a pocas do ano como os meses, o que ressalta a idia do tempo cclico. Mas se destaca o contexto de pobreza, desigualdade, luta pela sobrevivncia, universo to tipicamente brasileiro. Uma crtica recorrente se refere falta de sintonia entre o homem e seu meio, e entre homem e homem, seja na relao com os outros ou consigo prprio. O trabalho alienante, o dinheiro, o consumo, o poder, a obrigao, a religio so tidos como obstculos para que o homem seja pleno e feliz. Podemos, numa generalizao grosseira, reduzir a dois os principais alvos de crtica: os valores capitalistas que regem a sociedade e o moralismo, pregado especialmente pelas igrejas crists, que fora um senso de dever e responsabilidade extremado, gerando um comportamento de caridade artificial, culpa, frustrao, infelicidade. A reflexo recai, portanto, sobre a avaliao de temas relacionados moral e tica. A moral incide sobre a dimenso das leis e do dever de cada um de obedecer a elas, e a tica incide sobre as razes que legitimam a referida obedincia (HARKOT-DE-LA-
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TAILLE e TAILLE, 2004, p. 69). De acordo com Romano (2004, p. 41), a tica de um povo pode ser entendida como um conjunto de hbitos, atitudes, pensamentos, formas culturais adquiridas durante longo tempo. Uma tica no surge de repente, mas, aos poucos, vai moldando a memria e a inteligncia das pessoas, repercutindo em atos, sem muitos esforos de reflexo. A tica o que se tornou quase uma segunda natureza das pessoas, de modo que seus valores so assumidos automaticamente ou sem crtica (id. ibid.). Diante disso, possvel afirmar que a postura crtica da poesia de Alberto da Cunha Melo se d, via de regra, frente ao questionamento da tica ou das ticas que regem as aes humanas. s vezes sarcstica, outras vezes melanclica, outras marcada pela indignao, a abordagem dos temas sempre carregada de acentuado racionalismo, o que induz reflexo e um profundo envolvimento afetivo, levando ao desejo de transformao. Nesse sentido, a potica de Alberto da Cunha Melo liga-se tradio horaciana do delectare et prodesse (deleitar e ser til). Seu leitor constantemente interpelado, reiteradamente tocado pela palavra. Nenhum recurso lingstico desperdiado, ou seja, nenhuma figura usada como simples adorno, ou mera brincadeira lingstica, mas sempre articulada com um pensamento, uma emoo intensa. A linguagem alegrica e o uso de metforas inusitadas combinam-se a descries mais realistas do cotidiano e o resultado uma linguagem densa que, de incio, pode causar certa dificuldade. Sua poesia apresenta fases bem delimitadas, no que respeita forma. Cludia Cordeiro (2003) agrupa suas publicaes em trs fases distintas. Mantenho a mesma diviso para apresentar a obra do autor. Apenas acrescento uma quarta fase para tratar de O co de olhos amarelos, pois os poemas deste livro tm uma nova estrutura. Alberto da Cunha Melo tinha esse hbito de cultivar uma forma fixa durante um perodo razoavelmente longo at criar uma nova forma, que passava a receber sua ateno.
2.1 A primeira fase: octosslabos em quartetos
Os livros Crculo csmico (1966), Orao pelo poema (1969), Publicao do corpo (1974) e Poemas anteriores (1989) integram a primeira fase da poesia de Alberto da Cunha Melo. Os poemas desse perodo so todos escritos em metro octossilbico, compostos, na maioria, de cinco quartetos, sem rima. Cada estrofe abarca um perodo ou dois, separados, no
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geral, por ponto-final, constituindo blocos acabados. raro o poema em que o perodo ultrapassa uma estrofe. De maneira geral, essa a fase mais subjetivista do autor os poemas em primeira pessoa predominam. Notamos, em toda a obra, uma tendncia ao apagamento, ainda que aparente, da subjetividade. Nesse primeiro momento de sua obra potica, produzida durante o regime militar, a crtica social est presente, mas de maneira mais indireta, embora nem sempre sutil. Mesmo assim, teve de responder pelos seguintes versos de Publicao do corpo: Uma tera parte dos anjos/ j veste tnicas vermelhas:/ mude de roupa se no pode/ mais, nunca mais, mudar de vida. A imagem das tnicas vermelhas foi logo (e acertadamente) associada ao crescimento do comunismo na Amrica do Sul. O poeta apoiou-se na polissemia da metfora e escapou do cerco militar. Crculo csmico e Orao pelo poema foram publicados em separata da Revista Estudos Universitrios, editada pela UFPE, com o intermdio de Csar Leal, que dcadas depois afirma:
Alberto da Cunha Melo um poeta competente, de uma fora incomum, possuindo ainda o que poucos poetas possuem, uma clara conscincia do conceito de poesia. Alberto da Cunha Melo domina como poucos o octosslabo. Cabral ainda no o utilizava, a no ser ocasionalmente, e Alberto da Cunha Melo j o cultivava como se fora um hbito, sua maneira de fazer poesia. Alberto da Cunha Melo tinha cem poemas quando me mostrou seu primeiro livro. Era tanto poema que eu resolvi apenas escolher vinte. Todos em octosslabos. Creio que em 1966. Ele guardou l numa mala o resto. Depois de vinte ou trinta anos resolveu public-los com o nome de Poemas anteriores. (BEZERRA, 1995, p. 25)
A temtica de Crculo csmico , como na maioria de seus livros, variada. Mas predomina o estranhamento, o desconforto diante do cotidiano opressivo. A linguagem alegrica permeia todo o livro, criando, por vezes, uma atmosfera simbolista. A metalinguagem tambm est presente. O corpo serve de metfora para a palavra, revelando a ligao intensa entre o poeta e sua obra. Exp-la equivale a despir-se, entregar-se completamente. O sentimento do poeta marca-se na carne, o que lhe imprime grande fora. Essa fuso entre corpo e palavra retomada em publicaes posteriores.
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Quando distanciar-me das altas nuvens, onde sempre habitei, devo levar algumas delas para que saibam minha ptria.
Aps soltar de espao a espao as cascas vivas da memria, devo levar para a cidade o corpo, esta palavra forte.
(...)
Vou conduzi-lo com o cuidado de livro muito alvo na tarde: minha nica esperana de estar bem vivo entre vocs.
(...)
Nessas estrofes de Publicao do corpo, poema que abre o Crculo csmico, observamos um eu lrico em primeira pessoa empenhado em compartilhar suas experincias e unir dois planos distintos, as altas nuvens e a cidade, com relao qual se sente alheio. O eu assume, ento, papel de observador que no se reconhece como parte da cidade, ou melhor, que s se faz presente pela palavra. O pronome vocs explicita o interlocutor do eu potico e pode ser associado aos prprios leitores. Essa referncia direta ao leitor ocorre esporadicamente ao longo da obra. Mas o tom apelativo, ainda quando no h meno explcita a um interlocutor, faz com que o leitor se sinta sempre como participante ativo dos textos, que inspiram uma vontade de transformao. interessante notar que o fato de haver um vocabulrio acessvel no torna a linguagem menos complexa. A sintaxe com as metforas estabelecem relaes de sentido inusitadas. No ltimo verso da segunda estrofe, por exemplo, a recorrncia de sons oclusivos surdos [k], [p], [t] combinados vibrante [r] reproduz a idia de fora, atribuda ao vocbulo corpo. Assim, o corpo, alm de aludir literalmente presena fsica do eu lrico, uma palavra de sonoridade forte, e, ao mesmo tempo, metaforizado para se referir ao prprio poema. Nestas primeiras estrofes de Asteriscos, observamos uma descrio precisa do sentimento que abarca toda a produo potica de Alberto da Cunha Melo:
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Como um suicida que deixa uma carta em cima da mesa, para descansar a polcia, deixo o meu poema no mundo.
Minha dor lgica jamais necessitou de testemunho outro, que no fosse o meu corpo, sob os atades do Cu.
O poeta experimenta uma dor lgica. Nessa imagem, que aparenta um paradoxo, o eu lrico expressa a lgica como modificador de dor, o que intensifica o sofrimento e subordina a razo emoo, embora esta seja limitada por aquela. O termo corpo, que tambm serve de metfora para o prprio poema, pode equivaler a cadver. Conceber um poema algo to extremo como morrer. O predomnio de sons fechados (meu, poema, mundo, necessitou, testemunho, outro, fosse, corpo, atades) ao longo dessas estrofes intensifica a sensao de morte. O vocbulo atades o nico mais erudito e imprime ao poema um tom solene, alm do estranhamento causado pela imagem. Essa combinao entre palavras simples, prximas do cotidiano, com termos mais raros acontece ao longo de toda a obra, mas no geral predomina o lxico mais comum. O estranhamento que pode ser compreendido como a sensao da descoberta daquilo que nunca vimos ou experimentamos antes acompanha o leitor por toda a potica de Alberto da Cunha Melo. De acordo com os formalistas russos, o estranhamento o choque produzido no leitor por meio da estrutura formal da obra de arte. Para eles, trata-se de uma caracterstica intrnseca obra de qualidade, responsvel por promover a constante renovao da expresso literria assim como dos processos de percepo do leitor. 26
No poema Crculo csmico, ltimo do livro (frisando seu carter circular), o estranhamento decorre da imagem de um deus que oscila entre o monstro e o humano.
Crculo Csmico
Livro-me tarde. Um deus facnora rasga a cabeleira da treva e emerge todo satisfeito como uma rocha entre as ondas.
26 Para o aprofundamento desse assunto, ler: Carlo Ginzburg. Estranhamento: pr-histria de um procedimento literrio. In Olhos de madeira: nove reflexes sobre a distncia.
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Estou no patamar do mar e suplico gesticulando com duas bandeiras na mo: uma rosada e outra vermelha.
Tudo realizado e pronto e pblico e definitivo, tal um dirio oficial grifado para a Eternidade.
Agora o deus mencionado particularmente dirige a mo de lmina, o perdo ridente como todo escrnio.
E levantado num rochedo (no mais alto, naturalmente) d grande salto pirotcnico, antes de afastar-se dali.
A narrativa no presente apresenta-se como um discurso mitolgico, que pode remeter criao do mundo ou ao ciclo de um dia: Um deus facnora/ rasga a cabeleira da treva. O adjetivo facnora e o verbo rasga (segundo verso) reproduzem um ato violento, visto com asco e estupefao pelo eu lrico, nico espectador da cena. Ele suplica a esse deus perverso. O fato de no haver meno ao objeto da splica enfatiza o sentimento envolvido no ato de suplicar e contribui para a polissemia da imagem. As bandeiras rosa e vermelha podem aludir ao comunismo e ao que ele traz de luta e desejo de igualdade, alm de a cor vermelha assumir toda a simbologia de dor, vida, morte e guerra ligada ao sangue, o que expressa a emoo do eu que suplica desesperadamente. As bandeiras tambm podem ser brancas, representando um pedido de paz. Nesse caso, as cores rosa e vermelha seriam reflexo do cu colorido pelos raios do sol nascente. O deus, no entanto, mostra-se indiferente, contemplando sua prpria obra. O predicativo todo satisfeito descreve o deus personificado, orgulhoso de si mesmo. O uso do modificador todo marca a postura reprovadora do eu lrico. A terceira estrofe expressa o sentimento de frustrao do eu, que no parece ter sido notado: Tudo realizado, e pronto/ e pblico e definitivo. Essa estrofe, de ritmo mais gil, bem no centro do poema, o que estabelece equilbrio, destoa das demais pelo tom mais reflexivo que narrativo. O polissndeto enfatiza o sentimento de revolta do eu potico, que se sente impotente, preso em uma ordem burocrtica e autoritria em que no tem escolha. A aluso ao dirio oficial explicita uma crtica ao governo.
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Na quarta estrofe, o termo mencionado sugere desprezo e, ao mesmo tempo, marca um discurso prximo da prosa. Alis, embora o metro seja regular, o predomnio da ordem direta, o vocabulrio simples, o uso do enjambement contribuem para criar um ritmo de prosa trao que observaremos na maioria dos poemas de Alberto da Cunha Melo, em todas as fases. A forma simples contrasta com a imagem da mo de lmina, que cria um deus grotesco. A comparao entre perdo e escrnio, em posio equivalente no verso, revela duas caractersticas recorrentes na poesia de Alberto da Cunha Melo, que tende a juntar termos de naturezas semnticas contrastantes e utiliza com freqncia a ironia. O deus altivo e indiferente, que gosta de se mostrar, d um grande salto pirotcnico e abandona sua criao. O que permanece o sentimento de perplexidade e abandono. O ttulo Crculo csmico alude ao movimento do deus que aparece e desaparece de maneira grandiosa. A prpria construo do poema, que se inicia com sua chegada e termina com sua sada, parece reproduzir esse crculo. O eu lrico apenas um observador que se sente impotente e abandonado. Esse deus pode ser lido como metfora do prprio sol que nasce (na primeira estrofe, quando o deus rasga a cabeleira da treva, ou seja, da noite, e emerge entre as ondas, no horizonte) e se pe depois de grande espetculo (o salto pirotcnico evoca o movimento de descida do sol e a beleza do crepsculo no fim da tarde). Esse ciclo se repete a cada dia, como um crculo csmico. A linguagem metafrica d margem a vrias interpretaes; por isso no interessante eleger uma nica leitura.
Orao pelo poema, como o ttulo anuncia, um longo meta-poema, composto de trinta partes, que podem ser lidas como textos mais ou menos independentes e que, no conjunto, descrevem o rduo processo da elaborao de um nico poema. O livro destoa um pouco das demais publicaes de Alberto da Cunha Melo pelo tom extremamente intimista em que escrito. Nele, o poeta se expe completamente e se apresenta com humildade a Deus, a quem pede ajuda para compor, a quem pede a palavra certa. Ao longo do texto, o poema apresentado como um ser de vida prpria, cuja existncia no depende do poeta. A cesta de papis espera/ do poema que no nasceu. (parte VII). O poema ataca de noite/ os seres desarmados (parte XIV). Nas duas primeiras estrofes do livro, observamos a atitude humilde do poeta. Essa postura de humildade intensifica-se posteriormente, no reconhecimento de sua arrogncia ao acreditar ser o grande criador do poema, esquecendo-se da ajuda divina, e na atitude resignada ao admitir no ter alcanado a transcendncia (Cheio de fogo e petulncia/ assinei o poema. Nem/ de leve toquei o teu nome parte VII).
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Escrevo de cabea baixa, por que levant-la depois? No o faa para ser visto pelos que passarem na estrada.
Viver na mesma posio mas deixando a alma sair pelos olhos e pela boca, como gua a jorrar de uma esttua.
O smile da segunda estrofe expe com pertinncia uma caracterstica da obra de Alberto da Cunha Melo: a forma fixa e o rigor da linguagem servem ao fluxo da emoo. O vocabulrio simples articula-se com a simplicidade almejada pelo poeta, mas j observamos, neste livro, alguns jogos com o vocabulrio que se intensificaro ao longo de sua obra. Nada em troca recebers a no ser um outro pedido de palavras, de outras palavras: matria, prima do poema.
Nesta ltima estrofe da parte IV, o eu potico brinca com o termo matria-prima, dissolvendo a composio e chamando a ateno para o vnculo entre matria (realidade) e poema (linguagem).
Apesar do alto grau de envolvimento afetivo do eu lrico, os poemas, em sua maioria, tm um encadeamento lgico, explicitado pelo uso de conectivos outra caracterstica da obra de Alberto da Cunha Melo que pode ser percebida nesta XXVI parte do texto.
A cem quilmetros por hora, solto a direo do automvel, para escrever alguma coisa mais urgente que minha vida.
Devo portanto utilizar o vocbulo econmico do Sculo: proibido amar, fumar, pisar na grama.
Mas gostaria que restasse algum tempo para dizer no poema as palavras sbitas de recompensa e remisso.
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meu Deus, eu quero escrever a minha vida, no teu Cu. Eu estou s e enlouquecido como as ovelhas mais longnquas.
D pelo menos a esperana de terminar o doloroso poema. D isso a teu filho, cado, e coberto de sal.
A segunda estrofe aparenta uma deduo lgica da primeira: j que o caso urgente, o vocbulo deve ser econmico. Com isso, se estabelece uma crtica irnica represso e a todo um modo de vida, explicitada pela posio do predicado proibido isolado no final do terceiro verso da segunda estrofe. Os elementos de proibio so apresentados na ordem do mais abstrato (amar) ao mais concreto (pisar na grama), trazendo a ateno para o cotidiano e seguindo o movimento de concretizao da imagem. O ( proibido) pisar na grama, uma frase feita comum, ressalta no apenas a proibio que ronda o homem moderno, mas o distanciamento deste com a natureza essa, alis, parece ser uma caracterstica comum na poesia contempornea, que se vale das frases desgastadas da linguagem corrente para renovar seu sentido no texto. A adversativa Mas instaura uma nova cadncia no poema, que adquire um tom mais emotivo e explicita o desejo. Nessa estrofe, notamos que palavra e realidade se equivalem: dizer palavras de recompensa e remisso o mesmo que viv-las. A realidade est no poema e o poeta no sabe mentir; da a concluso lgica da segunda estrofe. As duas ltimas estrofes compem a prece propriamente e apresentam uma exacerbao dos sentimentos. Observamos uma nova crtica, agora religio, s pessoas que esperam uma vida melhor aps a morte, enquanto o poeta deseja essa vida melhor agora. A comparao com as ovelhas mais longnquas ressalta o sentimento de desespero e solido e causa certa estranheza, devido, especialmente, ao segundo elemento do predicativo: s e enlouquecido (enlouquecida no um adjetivo naturalmente associado a ovelha). Na ltima estrofe, o particpio cado sublinha a fraqueza do eu lrico, que parece empregar toda sua fora neste pedido: D pelo menos a esperana. O sintagma adverbial pelo menos marca o desespero do sujeito que pede e torna sua splica mais apelativa. O ltimo verso contm a imagem mais forte. O eu v-se cado e coberto de sal. A vrgula antecedendo a conjuno coloca em evidncia e aumenta a expressividade da ltima imagem, que alude ao solo infrtil, tornado estril pelo sal, representando o momento de falta de criatividade, inspirao ou esperana para escrever. Paralelamente, o sal pode sugerir o suor
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sobre a pele, intensificando a figura do eu potico exaurido na luta por terminar o doloroso poema. O texto organiza-se de tal maneira que, aos poucos, essa imagem de cansao e frustrao diante da (no) realizao do poema vai expandindo at reproduzir o auge da dor. Esse procedimento, central na poesia de Alberto da Cunha Melo, relaciona-se com o efeito de conciso. Parece paradoxal: a expanso da imagem produz um efeito de conciso. Entretanto, essa expanso, que concebo como uma reverberao, estabelece uma rede de imagens que estruturam a imagem-poema. Essas unidades menores, semantica e/ou formalmente relacionadas, convergem em um centro afetivo, responsvel pelo impacto esttico do texto. muito comum observarmos as imagens se ligarem num crescendo emotivo at que a da ltima estrofe ou mesmo do ltimo verso, como no poema que acabamos de ver, explode sobre os sentidos do leitor mais forte, e intensificada pela reverberao.
Publicao do corpo o terceiro livro de Alberto da Cunha Melo, lanado em 1974, na coletnea intitulada Quntuplo, em que o autor aparece como Alberto Cunha Melo, ao lado de mais quatro poetas pernambucanos: Jaci Bezerra, Jos Carlos Targino, Joo Ladelino Cmara e Severino Filgueira. A temtica aborda as relaes entre os homens tanto no mbito pblico quanto no privado. Nesse livro, comea a se acentuar a ironia, responsvel pela crtica e por uma espcie de humor custico, tpicos na poesia de Alberto da Cunha Melo. O comensal parodia o discurso das regras de etiqueta e o faz, obviamente, para criticar a elite, tida como hipcrita, ftil e sustentada pela misria.
O comensal
Fale dos brancos guardanapos tal se fossem altos negcios a discutir, mas no descambe numa complexidade ridcula.
Discretamente, voc pode anunciar-nos que os garos passam velozes, conduzindo trs mendigos dentro do prato.
Repita sempre que puder, sem nenhuma pose, que os donos devem aumentar esta sala ou, ento, juntar todas as mesas.
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Antes de tudo, dever manter a naturalidade do estmago, e s aceitar a flor multvoca do couve.
Aguarde que todos terminem de devorar os tristes pombos, espere que rezem, e diga novo absurdo sem gaguejar.
O poema se faz por um discurso de voz dupla, cindido entre o enunciatrio (explcito pelo pronome ns da segunda estrofe), que representa o ponto de vista da elite 27 , e o enunciador, presente atravs da crtica implcita a ela 28 . na tenso entre essas duas vozes que surge o sarcasmo e todo o efeito de sentido do texto. O narratrio d conselhos a um destinatrio que claramente no faz parte do universo social das pessoas que participaro do banquete; alis, um dos significados de comensal : indivduo que tem o hbito de comer em casa alheia 29 . Por isso deve ser alertado sobre como proceder, atendo-se apenas ao suprfluo, como os guardanapos ou a disposio das mesas. Qualquer tentativa de iniciar uma conversa mais complexa, que sugira a existncia de uma sociedade para alm das fronteiras do banquete, ser logo tida como ridcula. A imagem da segunda estrofe causa estranheza: o que significa conduzir trs mendigos dentro do prato? Seja qual for a resposta, o que fica presente para o leitor a imagem contundente da riqueza que se alimenta da misria. E um comentrio grave como esse s deve ser feito discretamente, o que, de maneira sarcstica, preservando o tom do discurso das regras de etiqueta, acentua o absurdo da situao. Na ltima estrofe, o sintagma novo absurdo retoma a imagem destoante da segunda estrofe, o que sugere que esse comentrio sobre a misria no tem qualquer sentido para os anfitries, preocupados com sua restrita existncia. E o poema termina: sem gaguejar, ressaltando a preocupao exclusiva com a aparncia; independente do contedo, s vo notar se, ao fazer seu comentrio, o convidado gaguejou ou no. A cada estrofe, que organiza um conselho, o asco por essa elite cresce. A sintaxe e a escolha lexical so simples, o ritmo lembra o da prosa. Mas o resultado complexo, devido aos silncios que perpassam as conexes estabelecidas entre as diferentes unidades semnticas silncios que acentuam a ironia e o estranhamento. Convm destacar
27 Convm explicitar que essa no a nica leitura possvel para o pronome. 28 A respeito das categorias da enunciao, ler Fiorin (1996). 29 O dicionrio utilizado ao longo deste estudo Novo Aurlio Sculo XXI dicionrio eletrnico (2000). Daqui em diante, explicitarei a fonte bibliogrfica apenas quando outros dicionrios forem citados. Quando o Aurlio eletrnico servir de referncia, a definio aparecer entre aspas e sem indicao da fonte.
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o jogo entre o som final de multvoca e couve, em que as consoantes se repetem invertidas, criando um efeito sonoro interessante. Alm do inusitado da combinao de palavras com campos de significao distintos, esse jogo sonoro parece reproduzir uma certa dificuldade em digerir o alimento, reforada pelos sons fechados do verso. Isso intensifica o contedo sugerido nos versos anteriores. O termo estmago pode significar, ironicamente, agentar situaes desagradveis (como na expresso: ter estmago para suportar algo). Assim, a voz do enunciador crtico se coloca para descrever um banquete asqueroso. Na ltima estrofe, o verbo devorar insinua um comportamento selvagem dos comensais da elite e acentua a crtica. O termo tristes, modificando pombos, contribui para a descrio do evento como algo grotesco, pois confere s aves caractersticas de seres vivos, quase humanas. Nesse contexto, o fato de rezarem s faz aumentar o sentimento de repulsa pela elite, que no se sente responsvel pela injustia e pela desigualdade que sustenta. Como ltima construo no imperativo, dando seqncia a fale e repita (explicitando a fala sem dilogo, que se repete sem reflexo), a forma verbal diga deixa evidente que o poema no est, de fato, dando orientaes, mas descrevendo a sociedade elitizada tal como concebida pelo narrador. Na expresso adverbial que conclui o poema: sem gagejar, vinculada ao de dizer novo absurdo, convergem as crticas que reverberam ao longo do poema, pois evoca o automatismo, a superficialidade e a alienao que serviram para caracterizar o homem da elite. A ironia identifica-se com a maneira de Alberto da Cunha Melo utilizar a linguagem, constituindo um trao importante de seu estilo. Neste estudo, no corresponde figura de retrica presente no uso de uma frase significando o contrrio do que afirma literalmente. Trata-se de um procedimento estruturador de todo o discurso potico. De acordo com Beth Brait (1996, p. 15), a ironia concebida como um
procedimento intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um processo de meta-referencializao, de estruturao do fragmentrio e que, como organizao de recursos significantes, pode provocar a dessacralizao do discurso oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros.
Por meio do discurso irnico, o enunciador estabelece uma relao de cumplicidade com o leitor, pois supe que ele conhea os intertextos com os quais dialoga. Assim, a ironia no representa um recurso do enunciado, mas da enunciao, ou seja, emerge no processo interativo da comunicao. H sempre um terceiro que se mostra como alvo da crtica. o discurso dele que desponta no texto para ser ridicularizado ou criticado. Nesse jogo, autor e
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leitor esto do mesmo lado contra um outro. Esse recurso serve para aumentar o envolvimento afetivo do leitor com o texto e se mostra como uma importante fonte de prazer, obtido pelo estranhamento inicial que impulsiona a percepo da ambigidade (que est na base de todo discurso irnico) e pela prpria relao de conivncia estabelecida entre leitor e enunciador. De modo geral, os alvos da crtica so os discursos cristalizados pelo senso comum e que refletem os pontos de vista do Estado, da classe dominante, da Igreja, dos donos do poder. Ao longo da obra de Alberto da Cunha Melo, a ironia percebida por meio de recursos expressivos diversos. s vezes se mostra em toda a estrutura do poema, o que o caso do texto que acabamos de ver; ou surge pela citao pontual de alguma frase, implcita ou explcita; tambm se evidencia no contraste entre termos de naturezas semnticas dspares a prpria rima, ao estabelecer um vnculo semntico entre termos aparentemente sem muita conexo utilizada para produzir ironia. Em Comensal, a ironia responsvel por estabelecer um efeito cmico, embora trgico, ao ridicularizar o discurso da etiqueta caracterstico da elite. Porm, na maioria dos poemas, o discurso irnico serve expresso de uma postura crtica, induzindo reflexo, e nem sempre leva ao riso.
No existe apenas a crtica a grupos sociais na obra de Alberto da Cunha Melo. Em Depsito de munio, o tema central o relacionamento de um casal.
Depsito de munio
S tua mo sabe encontrar no escuro a caixa de analgsicos. Inventa logo uma cantiga de futura consolao.
L um dia compreenders porque s vezes se torna longa e cheia de acontecimentos a viagem de um quarto a outro.
Coisas simples, ditas outrora, e sem nenhuma ressonncia, vo crescendo como um rudo de multido que se aproxima.
Quando teus olhos se renderem ao imutvel, que ser? Que ser de toda a alegria se foi pura imaginao?
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Tudo j devia estar pronto antes deste desesperar com que arrumas as estantes ou atravessas o vero.
A relao entre o ttulo e os primeiros versos no se d de maneira automtica, o leitor se prepara, ento, para uma interpretao metafrica. Na primeira estrofe, os vocbulos analgsicos e consolao introduzem a idia de dor, sofrimento. A expresso caixa de analgsicos pode representar a munio usada para o conflito, sugerindo a opo pela fuga, o adiamento do confronto. Na segunda estrofe, a viagem de um quarto a outro traz para o mbito do lar os perigos e as surpresas de qualquer viagem, evidenciando as dificuldades da vida familiar. A terceira estrofe se liga mais diretamente ao ttulo e nos oferece uma pista de interpretao. A imagem do rudo de multido que se aproxima traduz com fora o ressentimento, a mgoa acumulada ao longo do tempo e que, a qualquer momento, pode levar ao descontrole, agresso, a brigas aparentemente sem motivo, tornando o convvio insuportvel. Vale notar o uso ambguo do vocbulo ressonncia, que se refere importncia atribuda s coisas simples e ao som que se propaga, o que intensifica o valor expressivo da imagem. O interior da casa passa a ser, assim, no um lugar de conforto e proteo, mas um depsito de munio, sempre exposto ao perigo de exploso. Na quarta estrofe, as interrogaes revelam grande envolvimento emocional do eu lrico, que explicita seus medos. E o leitor se pergunta sobre o que pode significar o imutvel: a morte, talvez, ou a separao definitiva do casal. A ltima estrofe explicita o sentimento sugerido ao longo do texto por meio de desesperar. A escolha pelo verbo substantivado, em vez de desespero, d nfase ao crescimento do sentimento, pois chama a ateno para a ao. O ambiente perigoso da vida conjugal evidenciado por meio da descrio do cnjuge possivelmente a esposa, embora no haja referncia explcita de que o eu lrico seja o marido que empenha seu dio acumulado na preocupao excessiva com a organizao da casa, o que enfatiza a desordem no plano dos sentimentos. A imagem de atravessar o vero amplia ao mximo a sensao do desespero, uma vez que atravessar supe dificuldade e exclui qualquer possibilidade de permanncia, de prazer. O vero algo que deve ser superado, adquirindo conotao de algo sufocante, que oprime. A imagem do calor insuportvel, contida em vero, fecha o poema com a sensao desconcertante do depsito de munio prestes a explodir. O leitor guiado por conexes implcitas entre as estrofes, como se o sentido global do texto se fizesse pelo que silenciado. Obviamente, o silncio, como elemento de
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significao, s pode ser percebido pelo que dito. Mas importante salientar essa caracterstica do poema, que se repete em outros textos de Alberto da Cunha Melo: o vocabulrio simples e a sintaxe comum no garantem uma leitura fcil, pois criam imagens complexas, cuja significao apreendida em algum lugar entre o texto e o leitor.
Poemas anteriores publicado em 1989 e inclui os trs primeiros livros, alm de apresentar mais 78 poemas inditos escritos entre 1960 e 1975. Em nota introdutria, o autor nos conta:
Esses poemas, de sabor simbolista e universo vocabular paradoxalmente coloquial/quotidiano, foram os que sobreviveram a uma seleo feita do que sobrou de todos os meus textos octossilbicos, em versos brancos, praticados por mais de uma dcada e suspensos por volta de 1974.
Mrio Hlio, em ensaio que acompanha a edio, ressalta o efeito inovador resultante da combinao entre alegoria e coloquialismo. Sobre a escolha do verso octosslabo sem rima, comenta:
os gregos e os latinos no rimavam os seus trabalhos poticos. O metro, porm, era-lhes importantssimo. Alberto Cunha Melo realiza, portanto, opo classicista, e no fosse a utilizao recorrente do enjambement (com seu rejet dando ao verso o sabor de prosa) poderia ser dito que essa estaria radicalizada.
Em sua maioria, os escritos desse livro apresentam o cotidiano urbano, revelando um poeta sempre disposto a transformar em poema qualquer instante captado, seja no nibus, na rua, no escritrio, estabelecimentos pblicos ou no jornal caracterstica que percorre toda a sua obra. Desta vez, o universo infantil mais explorado, e o tom memorialista acompanha vrias composies. Porm, o que se enfatiza mesmo no a lembrana em si, mas a busca pela compreenso. Em A mscara, observamos claramente a reverberao de imagem, que se intensifica plenamente na ltima estrofe, causando forte impacto sobre o leitor.
A mscara
Eu tinha doze ou treze anos quando meu pai comprou a mscara apertada. Fez grande esforo para ajust-la no meu rosto.
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No entanto, fui crescendo, e ela, j opressiva em minha infncia, foi cumprindo a misso de torno voraz, de prensa irreversvel.
Nas noites de vero, que eram to temidas na minha aldeia, as secas paredes da mscara, com seus estalos, me assombravam.
Saa ento a procurar um amigo, um poeta, um proco, ansiando que me explicassem o que diziam tais sinais.
pocas turvas se passaram at que ela, toda rachada, pusesse, mostra, pelas frestas, algo do monstro que nascia.
O tom narrativo, que acompanha muitos poemas de Alberto da Cunha Melo, apresenta como elemento central a mscara, que vai se tornando mais assustadora medida que avanamos na leitura. O texto inicia-se como uma tpica narrativa de memria. Mas o fato de mscara aparecer determinada pelo artigo definido j atribui a ela uma importncia especial, alm de sugerir que o leitor possa saber a que mscara o eu lrico se refere, como se fosse um confidente, um amigo. A expresso adversativa No entanto, abrindo a segunda estrofe, explicita o inusitado da narrativa, pois expe um fato natural (fui crescendo) como algo no previsto. a partir da que visualizamos uma mscara constantemente colada face do eu potico, que vai crescendo dentro dela; e a mscara j havia sido descrita como apertada, o que cria uma imagem absurda, que causa desconforto. O poema completamente alegrico, deixando para o leitor as dedues sobre as possveis conotaes para a mscara que tanto constrange, a ponto de criar um monstro: talvez dogmas, leis, valores morais, obrigaes etc. Assim, o poema no apenas conta uma histria, mas expe um fato sinistro e induz reflexo sobre as foras cerceadoras que a famlia e a sociedade impem ao indivduo, deformando-o at que no se reconhea mais como um ser humano. A sonoridade desempenha papel importante na significao do texto. Na segunda estrofe, por exemplo, a incidncia da vogal estridente [i], especialmente no segundo e no terceiro verso, aliada s vogais fechadas [o] e [u], reitera a idia do desconforto causado pela mscara a comprimir o rosto do eu lrico. Na terceira estrofe, as consoantes oclusivas, em
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particular as surdas [k], [p] e [t], causam a impresso de ouvirmos a madeira a estalar com o calor. Na ltima estrofe, a recorrncia de [p] e [t] continua a sugerir a mscara rachando, e a aliterao da sibilante [s] evoca a lenta revelao do rosto sob a mscara. O termo mostra reverbera no corpo sonoro de monstro, como se reproduzisse essa lenta revelao da face monstruosa. O desconforto da mscara intensificado pela descrio de um ambiente sufocante, por meio da idia das temidas noites de vero ampliada em pocas turvas. Ao longo de toda a obra potica de Alberto da Cunha Melo, comum o vero ser descrito como algo que assusta. impossvel, neste ponto, deixar de relacionar a obra com o contexto emprico do autor pernambucano, que vive o vero mais prximo Linha do Equador.
Ao lado do discurso da memria, surgem poemas com eu lrico em terceira pessoa, que tece reflexes sobre uma cena narrada com verbos no presente.
Velhos soldados da reserva
Os pacientes nada esperam. E seu tempo, andino, tempo de acender os velhos cachimbos, remexer nos negros armrios.
Nos alpendres, novas abelhas formaro o mel demorado e dos pesados uniformes cairo, de fteis, as insgnias.
Esto sentados, quase dormem no grande alpendre. Quando h vento, eles seguram coisas vagas, mas no o vento, sua infncia.
O mais alto ento se levanta e preside a saudade, forte. E a morte que j coexistia brinca de nvoa em seus cabelos.
Nada esperam, e s procuram passar em revista essa tropa de sombras. Quase no se sentem soldados, nos tempos de paz.
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O primeiro verso encerra uma afirmao genrica, com ares de aforismo. Essa afirmao, posteriormente, contribui para a descrio do vazio que envolve os velhos soldados da reserva. O vocbulo pacientes pode ser interpretado como doentes e como pessoas de pacincia. Essa ltima leitura atribui um tom sarcstico ao primeiro verso, pois contrasta com a viso comum de pacientes como aqueles que sabem esperar, que de fato esperam. O termo andino, mais raro, destoa do resto do vocabulrio e ressalta a sensao de inutilidade e desesperana dos personagens descritos. A imagem da natureza surge como ndice de renovao e contrasta com a decadncia dos ex-soldados, descritos, metonimicamente, pela imagem dos pesados uniformes, dos quais cairo, de fteis, as insgnias. A narrao se inicia na terceira estrofe, em que a aliterao do som sibilante [s] e da fricativa [v] reproduz o movimento do vento e marca a monotonia da cena. Apesar do lxico simples, combinaes inusitadas chamam a ateno, como mel demorado e, especialmente, a imagem do homem que preside a saudade, o que chama a ateno para o sem sentido das vidas desses ex-soldados, to presos aos antigos costumes, que j no significam nada. A descrio dos cabelos brancos se d atravs de uma imagem forte, E a morte que j coexistia/ brinca de nvoa em seus cabelos. Essa descrio do envelhecer colabora para intensificar a caracterizao dos personagens como simples humanos que, aps dedicarem toda a vida guerra ou possibilidade da guerra, no sabem como lidar com sua existncia e a morte que domina aos poucos. A rima entre forte e morte confirma a idia da morte que j coexistia, como se ela se concretizasse aos poucos, inclusive sonoramente. A ltima estrofe retoma a primeira pela repetio de nada esperam, frisando o vazio e a falta de rumo dos ex-soldados. A idia da tropa de sombras, combinada imagem dos negros armrios, descreve a memria assustadora desses homens. O enjambement, separando sentem de soldados, na ltima estrofe, ressalta esse sentimento de desolao: quase no se sentem ganha uma significao independente, intensificando o sentimento de perda da identidade, ou melhor, de perda da sensao de estarem vivos. O ltimo verso completa o perodo e leva a leitura para outra direo. Quase no se sentem soldados, nos tempos de paz. A vrgula fora uma suspenso, um silncio que refora a tristeza da situao, o que contrasta com a idia de tempos de paz. Compadecemo-nos desses velhos soldados, que no sabem o que fazer com suas vidas na paz, travando agora uma guerra interior, com sua memria. Ao concluir a leitura, somos levados a refletir sobre o sem sentido da guerra, do poder, diante da profundidade de nossa existncia.
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Convm observar que, embora os versos sejam todos octossilbicos, o ritmo diferente em cada poema. Em O comensal, o ritmo ao mesmo tempo leve e pomposo contribui para estabelecer a ironia. Em Depsito de munio, o ritmo se inicia lento, sugerindo tristeza, o que prprio de uma reflexo infiltrada de dor e afeto, depois se transforma e, devido s interrogativas, reproduz dvida, conflito, angstia. Em A mscara, o ritmo acompanha o movimento da narrativa: inicia lento, propcio para o discurso de memria, depois (na penltima estrofe) se torna mais gil, reproduzindo o desespero do garoto oprimido pela mscara; por fim (na ltima estrofe), torna-se solene e, com o suspense das pausas, amplia o impacto do horror da imagem. Em Velhos soldados da reserva, o ritmo leve, cheio de sons sibilantes, como se reproduzisse uma imagem vaga, quase se apagando, plena de melancolia e nostalgia.
2.2 A segunda fase: os versos polimtricos
Observa-se nesta segunda fase da poesia de Alberto da Cunha Melo maior variao rtmica, ao passo que a conciso se intensifica. Predominam os poemas de uma nica estrofe. E os textos dessa fase so compostos de versos livres, ou, melhor dizendo, polimtricos, visto que h uma variao controlada entre versos mais longos e curtos, sem que haja um contraste muito acentuado. A famosa frase de T. S. Eliot (1997, p. 91) ilustra perfeitamente a concepo de Alberto da Cunha Melo sobre esse assunto: no h verso livre, para aquele que quer realizar um bom trabalho. Na medida em que o ritmo se afrouxa, os demais recursos sonoros sobressaem, como as paronomsias, aliteraes e assonncias, repetio de estruturas etc. Nessa fase, os poemas em primeira pessoa passam a ser menos freqentes e a crtica social mais contundente. Em registro no livro indito, A noite da longa aprendizagem, citado no estudo de Cludia Cordeiro (2003, p. 66), o poeta fala desse novo momento de sua produo.
Antes de praticar o verso livre, procurei ter uma longa experincia com a mtrica. Foram cerca de 10 anos de convivncia com um nico metro, o octosslabo, e s o larguei quando no mais significava nenhum interesse rtmico para mim, quando j no representava nenhuma dificuldade. Minha atual luta com o verso livre no outra seno a de descobrir dentro dele uma regularidade pessoal, algo que possa ser sistematizado sem prejudicar a qualidade de expresso. Meu verso no pode ser to livre a ponto de fugir completamente ao meu controle. Se isso acontece no estamos mais diante daquilo que considero arte.
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Integram essa fase Dez poemas polticos (1979), inclusos em Noticirio (1979), Poemas mo livre (1979) e Clau (1992). Os trs primeiros ttulos foram publicados pelas Edies Pirata. Em resenha sobre Dez poemas polticos, para o Jornal do Commercio (07.09.79), Audlio Alves chama a ateno para o que considero trao central no estilo de Alberto da Cunha Melo: no seu novo livro em comentrio, s vezes consegue coincidir a extenso do poema com a extenso da imagem: quando isso ocorre o campo poemtico e o campo cultural se unificam, conservando o poema, do incio ao fim, a mesma altura. Sobre essa fase, na apresentao de Soma dos sumos, Eugnia Menezes comenta:
Quando publicou o Noticirio, Alberto denunciou o que todos ns vamos, e o fez por todos ns. A definio poltica de seu trabalho se reafirma no Poemas mo livre, onde o poema, jato de verdade, um grito de um s flego. Escrito entre o Recife e o Acre, onde o poeta viveu dois anos, empolgado com a magnitude da floresta e inquieto com as mesmas mazelas que j apontara antes, este livro resulta de suas experincias em busca de um ritmo mais gil, que expresse a um tempo o incmodo e a urgncia de sua soluo.
A linguagem dessa fase, especialmente nos trs primeiros ttulos, aparenta ser mais espontnea, mais prxima da linguagem falada no cotidiano, o que combina com o carter de denncia, quase jornalstico, de alguns textos. Em Poemas mo livre, em particular, chama a ateno o uso de termos chulos, o que traz para o poema um tom de revolta e indignao. Uma das epgrafes de Noticirio, colhida na obra de Engels, alm de marcar claramente o lugar ideolgico do poeta, explicita a nsia de revelar o que constantemente silenciado pela hipocrisia, pela indiferena, pelo conformismo ou pelo autoritarismo: Oculta sob vegetaes ideolgicas, a simples realidade. Os poemas de Noticirio so divididos em duas partes: Notcias locais e Notcias da aldeia (perdida), que pode ser lida em intertextualidade com a obra de Kafka. Na segunda, as imagens da natureza so mais freqentes, revelando a busca nostlgica por um passado em que o progresso e o trabalho no separavam homem e cosmos ou por um futuro em que essa conexo possa ser resgatada. A poesia surge, ento, como um modo de despertar o ser humano para essa busca de reintegrao e encontro. 30
Nesse livro, observamos uma resistncia explcita ao regime militar, ainda que a maioria dos poemas contemple uma temtica mais abrangente sobre a condio humana. A crueza de algumas imagens desconcertante; como neste poema, que denuncia a condio
30 No comento a obra Dez poemas polticos, uma vez que os dez textos passaram a fazer compor o Noticirio, com 142 poemas, e porque no tive acesso quela publicao.
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degradante em que vivem os presidirios, como bichos alucinados, esperando a morte pelas mos do outro que vem exercitar, pela violncia, sua nica forma de poder:
Aconteceu na ala norte
Que novo tipo de droga escondida na lata o prisioneiro aspira noite e dia? Cheira apaixonado as fezes j velhas do companheiro trucidado pelo carcereiro que agora lhe vem trucidar.
No ttulo, o verbo aconteceu e a localizao espacial do acontecido, na ala norte, evidenciam o fato de que essa cena hedionda, de um grotesco desconcertante, pode ser real. Aconteceu e ainda acontece no momento em que o leitor corre os olhos pela pgina, o que sugerido pelo uso dos verbos no presente do indicativo. E Tudo isso aconteceu/ enquanto o amor, o trabalho/ e outras desculpas verdadeiras/ se tornavam a ponte/ para que isso acontecesse (de Condies nem tanto objetivas). E o leitor se questiona sobre sua participao em uma sociedade onde h homens que trucidam e so trucidados. O uso do verbo trucidar, inicialmente na voz passiva e reverberando, em seguida, na ativa, evidencia a perpetuao do ciclo da violncia e expressa a brutalidade da cena; junto com a imagem das fezes, revela que o feio, o asqueroso, o a-potico, deve fazer parte de uma poesia que se caracteriza por buscar a verdade. O ritmo intenso, to musical que lembra cantigas de criana, o que amplia o terror da imagem.
Ao lado de poemas narrativos, em que os verbos no presente apelam para o envolvimento do leitor, h composies de carter mais reflexivo. Mas estas tendem sempre ao discurso persuasivo, revelando a nsia do poeta por uma transformao na sociedade em que vive. Por vezes, a funo apelativa da linguagem explicitada pelo uso da segunda pessoa do discurso, que aponta o leitor como interlocutor direto do texto (fundindo as figuras de destinador e destinatrio). A ironia continua a acompanhar grande parte dos poemas de Noticirio. Em As concesses ou os degraus do palcio, ela aparece logo no ttulo.
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As concesses ou os degraus do palcio
Hoje, por teu filho, amanh, pelo filho de quem usa teu filho: quanto mais concedes mais com sede irs.
O jogo de palavra que associa com sede irs a conceders, por meio da paronomsia, ou quase homofonia entre as construes, ressaltada pela posio equivalente no verso, alerta para o perigo das concesses e para o modo como o homem capaz de abrir mo de sua dignidade em troca de um pouco de poder. Poder este que sempre restrito a uma minoria, e serve apenas de iluso que seduz os explorados, os quais alimentam o sistema da explorao. No poema, a reverberao de estruturas sintticas e a posio equivalente do termo filho ao final de trs versos consecutivos chamam a ateno para o ciclo vicioso da explorao e do poder centralizado nas geraes de uma nica famlia, sempre servida pelas geraes de outras famlias, que nunca alcanaro o poder. Isso apresenta os dias atuais, apesar do discurso liberal de que a ascenso poltico-econmica depende exclusivamente do indivduo, como mera continuao dos mais arcaicos sistemas de dominao, o que j est implicado no ttulo do poema, por meio do termo palcio. A contestao, presente em todo o livro, no se insinua apenas. s vezes, a ousadia do autor impressiona, especialmente se lembrarmos do contexto de represso em que se expunha.
Em quatro tempos: a ordem
No temos desejos. Cumprimos ordens. Fernando Bethlem Ministro do Exrcito (Isto 05.04.78)
A ordem obedecer sem discusso a ordem.
A ordem manter sem discusso a ordem.
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A ordem lutar sem discusso pela ordem.
A ordem morrer sem discusso pela ordem.
O poema brinca com a palavra ordem e suas diversas conotaes. A epgrafe do poema no admite apelo pluralidade de sentidos a fim de se esquivar das possveis acusaes militares, o que explicita o carter audacioso do Noticirio. O ttulo, Em quatro tempos: a ordem, atrelado ao encadeamento das estrofes cuja estrutura idntica ressalta o elemento variante, que so os verbos, na seqncia: obedecer, manter, lutar e morrer, remete imposio violenta da ordem, associada diretamente morte, referindo-se ao regime militar, o que j se evidenciava na epgrafe. A repetio de estruturas idnticas, na ordem direta, o que intensifica a falta de variao, e o uso do sintagma a ordem limitando o incio e o final de cada estrofe sugerem a opresso, a imposio de limites associada ditadura. O verso sem discusso, reiterado ao longo do poema, presentifica o contexto de censura vivido durante a ditadura. A ltima estrofe oferece dupla leitura e apresenta, de um lado, a submisso dos responsveis por manter um sistema autoritrio e, por outro, o fato de que muitos so mortos, sem o direito de se manifestar, pelas mos dos militares. Na primeira leitura, pela ordem tem idia de finalidade, equivalendo a para manter a ordem; na segunda, pela ordem apresenta o agente causador da morte, representando metonimicamente o regime autoritrio. O uso de a ordem como sujeito das oraes, alm dos verbos no infinitivo impessoal, reproduz uma espcie de apagamento do humano, como se uma sociedade dominada pela ordem no fosse mais feita de pessoas, com desejos e questionamentos individuais, tal como sugere a frase do militar usada como epgrafe.
Em A paz relativa ou a catstrofe, temos mais um exemplo tpico da crtica mordaz de Alberto da Cunha Melo. O poema trata da relao entre o universo familiar e o coletivo.
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A paz relativa ou a catstrofe
Um dia de paz no mundo: houve apenas os duzentos mil mortos habituais. Ainda no foi hoje teu passo em falso no trfego e chegaste em casa com teus pes, tua pasta escura, tua raiva muda do ministrio. Chegaste to suado, to triste, to bem, que at notaste a blusa nova de Bernadete e o arranho no joelho de Mrcio. Um dia maravilhoso, com uma taxa justa de mortos.
O poema em terceira pessoa pode ser lido de duas maneiras distintas: ou imaginamos um narrador onisciente, que se caracteriza pela ironia, ou temos a voz de um eu lrico feminino, a esposa que fala do alvio em ver o marido chegar em casa. Na segunda leitura, a ironia persiste, mas no contraste entre enunciador e enunciatrio. Nesse caso, a espera constante pela morte faz com que a mulher se conforme com a triste rotina, desde que o horror que habita o mundo l fora no altere a ordem do microcosmo do lar. No entanto, a espera constante pela morte Ainda no foi hoje e a frustrao do marido com uma raiva muda do ministrio mostram que impossvel separar os dois universos. O sexto verso, iniciado pela conjuno e, que adquire valor conclusivo, chama a ateno para o carter extraordinrio de simplesmente chegar em casa. Nesse poema, o estranhamento no se d por uma imagem absurda, como em A mscara, de Poemas anteriores, mas pela apresentao irnica do cotidiano, que vai se tornando mais horrvel medida que avanamos na leitura, o que nos leva a refletir sobre nosso prprio dia a dia. A repetio do verbo chegaste, no terceiro perodo, refora o carter surpreendente de retornar casa. A enumerao em to suado, to triste, / to bem, separados apenas pela vrgula, ressalta o vnculo entre cada sintagma e sugere que no h contradio entre estar triste, suado e bem, o que contribui para a descrio irnica do cotidiano e para a situao degradante em que o trabalhador se encontra. No caso de imaginarmos a esposa como enunciatria do texto, a enumerao sugere seu conformismo diante da situao. O sintagma to bem, no entanto, est isolado no verso, o que chama a ateno para seu significado e faz
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com que imaginemos no ser comum estar bem. De todo modo, o que permanece a sensao de cansao e desnimo. Bernadete pode ser tanto a esposa, no caso de um narratrio em terceira pessoa, ou, junto com Mrcio, filha do casal, se considerarmos a mulher como eu lrico. O uso da orao consecutiva explicita a relao entre estar bem e notar os familiares, o que revela um acontecimento incomum, colaborando para a caracterizao de um homem alheio famlia, reificado pelo trabalho e pela sociedade no geral. O texto trata de um tema bem atual, apresentando o chefe de famlia que, para garantir o sustento dos seus, deve submeter-se a uma ordem opressora, em que o trabalho acaba assumindo o centro de sua existncia enquanto a prpria famlia vai ruindo. Essa idia surge com clareza nos versos que o descrevem chegando com teus pes, tua pasta escura,/ tua raiva muda do ministrio. O homem chega com os pes, o alimento, mas junto com eles traz todo o peso de um trabalho massacrante, denunciado pela pasta escura, que compe um perfil soturno. A caracterizao do homem que chega com teus pes, tua pasta escura,/ tua raiva muda do ministrio, atravs da recorrncia do possessivo, ressalta a repetio exaustiva da rotina. Os sons do pronome teu/tua ecoam nos versos seguintes na repetio em paralelo do intensificador to. A grande incidncia da oclusiva dental surda [t] causa a sensao de batida, estouro; ao mesmo tempo, os sons nasais [e], [o], [m] e [n] provocam a sensao de abafamento. Essa combinao de sons explicita a violncia contida, expressa em raiva muda, o que amplia o desconforto diante da imagem do homem que chega em silncio, depois de um dia de trabalho quase forado. O termo ministrio tanto pode sugerir que um funcionrio pblico, que trabalha no ministrio, quanto pode aludir ao governo, responsabilizado pela situao em que se encontra. A expresso raiva muda pode sugerir a condio de opresso mantida pelo regime militar, evocando a ameaa de tortura sobre qualquer pronunciamento contra o governo. A imagem do quarto e do quinto verso oferece dupla leitura. Literalmente, pode referir-se morte no trnsito, a um acidente. Metaforicamente, o passo em falso no trfego pode remeter a um deslize no emprego, a alguma atitude que faa com que o homem no se encaixe no ritmo alucinante de exigncias no trabalho e na sociedade. De qualquer maneira, o passo em falso deixa a idia de um sujeito acuado por uma sociedade que no admite qualquer gesto inesperado, que no esteja de acordo com as regras. O uso do possessivo sugere a certeza de que um dia esse passo em falso vai ocorrer, o que aumenta o desconforto. A segunda leitura chama a ateno para o vnculo entre o sexto verso e a descrio nos dois
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versos seguintes. A surpresa recai, ento, no sobre o fato de chegar em casa, mas de chegar com os pes. Ou seja, ao alvio de garantir o sustento da famlia, de no ter sido demitido. Esse medo da demisso, to forte como o medo da morte, acompanha o trabalhador por todos os dias, o que cria uma situao insuportvel. O tom irnico se intensifica ao longo do poema, explicitando-se nos dois ltimos versos. O penltimo retoma o primeiro evidenciando a conciso: o contedo afetivo converge nesses dois ltimos versos, que concluem o texto com grande impacto. O termo maravilhoso apresenta um sarcasmo amargo, uma vez que surge aps a descrio de uma rotina triste, em que a demonstrao de afeto algo raro de ocorrer, pois predomina a frustrao, o cansao, o dio e o medo. A expresso taxa justa reproduz o discurso oficial, indiferente vida de cada indivduo, representado apenas por nmeros. O termo justa pode significar exata e, ao mesmo tempo, pode ligar-se a justia, o que acentua o tom crtico e irnico do texto, que se explicita logo no ttulo.
O discurso feminino aparece com mais freqncia nesse livro, revelando uma preocupao de noticiar o cotidiano de vrios ngulos diferentes. Em Inscries ao vivo, embora o eu lrico no seja feminino, a mulher est no centro das atenes. O poema retrata uma rotina menos opressiva, que exalta o valor dos pequenos gestos, como cozer o arroz habitual.
Inscries ao vivo
Escreveu sua alegria assim: outubro, e ningum entendeu. Ela era simples: ao arroz quente deu a forma de suas mos e o amado achou-o doce, e o amado nunca o esqueceu. De pequenos e constantes gestos que se faz a grande saudao. Foi assim que as palmeiras e as crianas conseguiram crescer e suportar-nos.
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O ttulo provoca um efeito inusitado ao apresentar a expresso ao vivo, que remete ao instante em que se desenrola a ao, ao lado de Inscries, que evoca algo j feito, acabado. Desse modo, o poema chama a ateno para o registro do instante vivido. Com isso, o vocbulo outubro no apenas alude a uma poca do ano, mas comporta toda a experincia, todo o sentimento vividos durante esse tempo. Assim, no primeiro verso, Escreveu sua alegria, o verbo escreveu pode representar cada gesto que compe essa experincia. No segundo perodo, podemos associar o sujeito dos verbos figura da mulher, que prepara o alimento para o amado. O stimo verso e o amado nunca o esqueceu articula- se com a idia do momento registrado, escrito e inscrito na memria. A imagem contida em deu a forma de suas mos associa o gesto de cozinhar com o gesto da escrita. Um gesto aparentemente corriqueiro como preparar o arroz, feito com extrema entrega, torna-se uma inscrio viva, como marca que eterniza o homem. O discurso aforstico do terceiro perodo sintetiza o significado da cena descrita anteriormente e explicita um elemento importante na construo da potica de Alberto da Cunha Melo, sempre voltada verdade filosfica. A ambigidade do verbo suportar, no ltimo verso, exclui a possibilidade de um poema laudatrio e explicita a crtica, uma vez que podemos interpret-lo como dar sustentao e como tolerar. No sentido de sustentar, a imagem das palmeiras retoma o mito de criao, recorrente no imaginrio de vrias etnias indgenas, do casal que se salva do dilvio abrigando-se no alto de uma Palmeira 31 . Com isso, o poema associa os pequenos gestos de cuidado que garantem o crescimento do homem e da planta com a grandiosidade da ao que garante a permanncia do homem sobre a Terra. A recorrncia da conjuno e iniciando seis versos contribui para o estabelecimento de um ritmo gil, expressivo, e, alm de frisar o vnculo entre as imagens, refora o tom de narrativa mitolgica. 32
Enquanto em Noticirio encontramos poemas com diferentes arranjos estrficos, em Poemas mo livre e Clau os textos so todos constitudos de uma nica estrofe, evidenciando a conciso da linguagem. Poemas mo livre parece dar continuidade proposta de Noticirio, no plano temtico e no que se refere ao uso de uma linguagem coloquial, direta, contundente. A denncia recai, agora, sobre as formas de coero humana, enfocando especialmente as maneiras de coao impostas pelo capitalismo, pela religio ou pela tica.
31 Vale lembrar que esse mito foi aproveitado por Jos de Alencar em O Guarani. 32 O incio do Gnesis bblico, por exemplo, repleto desse conectivo.
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Manhs & Mnguas o ttulo da primeira parte do livro, da qual destaco Nem tanto a Tnatos. Esse poema (que apresenta no jogo entre os sons do ttulo uma caracterstica que se torna recorrente na obra de Alberto da Cunha Melo) aborda, de maneira explcita, uma temtica central: a oposio entre Eros e Tnatos, entre o princpio de prazer e o princpio de realidade, na terminologia de Freud. Tnatos, como princpio de renncia ao prazer, estaria inicialmente ligado preservao da sociedade e construo da civilizao organizada, regulando os excessos de Eros, instinto relacionado busca de satisfao. No entanto, Tnatos assume, em nossa sociedade, dimenses gigantescas. Transforma-se na exacerbao do controle repressivo sobre os instintos para atender a interesses especficos de instituies de dominao. Essas instituies introduzem controles adicionais acima e alm dos indispensveis associao civilizada humana (MARCUSE, 1999, p. 53). E o resultado disso a anulao de Eros, princpio ligado vida e criatividade. Tnatos apresenta-se, portanto, como um princpio de destruio do humano e mecanismo eficiente de explorao. Ao longo da poesia de Alberto da Cunha Melo, Tnatos est associado aos discursos de apologia ao trabalho, ao progresso, ao moralismo exagerado, ao senso de dever que se sobrepe ao viver.
Nem tanto a Tnatos
Essa vontade, to aplaudida pelos mortos, no propriamente de remisso; mas de varrer a alegria da terra; pois ainda se fazem muitos santos amargos, que jantam e dormem com suas virtudes enfiadas no rabo.
A partir desse poema, que Eugnia Menezes v como um jato de verdade, pelo seu carter compacto e pelo tom de denncia, observamos uma crtica mordaz, que se faz com agressividade marcante. O alvo o discurso da Igreja Catlica, discurso de controle e represso da sociedade por meio da exaltao do medo, da culpa e da mortificao. O pronome Essa alude a um discurso anterior e explicita, de incio, a crtica. A combinao entre santos e amargos revela a oposio ao discurso da Igreja, presa a uma rigidez que sufoca o humano. Essa crtica, que se revela logo no ttulo, vai se tornando mais intensa ao
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longo do texto, desde o adjunto do segundo verso to aplaudida pelos mortos , atravs do tom irnico do termo mortos, at chegar ao mximo da indignao na expresso do ltimo verso. Vale notar como um texto extremamente emotivo como este contm um arranjo lgico, em que os perodos se articulam pelos conectivos mas e pois, o que confere ao poema um aspecto de texto argumentativo/persuasivo. O ritmo se aproxima da prosa e os metros variam entre quatro e oito slabas, o que no exclui o carter expressivo de algumas combinaes sonoras, como o jogo entre varrer e terra, em posio equivalente, reproduzindo a idia de violncia presente em varrer a alegria da terra. Nesse caso, o verbo varrer, lido literalmente, ganha nfase, reproduzindo o prprio ato de arrastar algo com fora. A referncia mitologia clssica, por meio de Tnatos, gnio que personifica a Morte, surge em outros poemas, por meio das figuras de Narciso, Penlope, Media. Porm no se observam, ao longo de toda a obra, muitas referncias intertextuais explcitas. Isso significa que, apesar da formao erudita do autor e das vrias relaes intertextuais estabelecidas com a tradio literria, a obra no se restringe a um escasso pblico de intelectuais eruditos.
Os poemas da segunda parte do livro voltam-se exclusivamente para a temtica da infncia. Neles predomina um eu lrico observador, em terceira pessoa, conservando uma tendncia geral na linguagem potica de Alberto da Cunha Melo. O ttulo dessa parte revela a viso que esse eu potico tem da infncia: Mimos & Limbos. O termo mimos sugere o delicado enquanto limbos remete ao soturno.
Ao lado da garota chorando
Leve e aflita beleza, e seda sob a garra e gorro sob a chuva, quem na hora do doce, te empurrou? quem rasgou tua blusa na hora do recreio? quem sorriu, quem zombou de tua ignorncia universal?
O ttulo sugere uma cena comum, em que um adulto se aproxima da criana que chora para consol-la. A aliterao da consoante lquida [l], aliada s vogais [e] e [a], no primeiro verso, refora a delicada fragilidade da garota. Essa fragilidade se intensifica nos dois prximos versos por meio do contraste entre seda e garra e entre gorro e chuva. A
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semelhana sonora entre garra e gorro confere agilidade ao ritmo e refora o vnculo semntico entre os dois versos. Nas perguntas que se repetem, a idia de dor e sofrimento se torna intensa: quem empurrou? quem rasgou? essas imagens sugerem uma criana toda machucada, o que expe a violncia da qual vtima. A infncia no de modo algum idealizada. Existe a possibilidade de uma outra criana ter agredido a garota, o que sugerido pela expresso adverbial na hora do recreio, momento em que as crianas interagem. Assim, ressalta-se o desentendimento na hora da brincadeira, mostrando que os desencontros entre os homens comeam logo na infncia, desmistificada. O fato de a criana permanecer em silncio reala a distncia entre o universo adulto e o infantil. Ela no tem voz, o que alimenta a angstia do adulto, como se voltasse prpria infncia buscando, em vo, compreender como os machucados do passado aconteceram e ficaram to marcados em si mesmo. A dor do outro equivale, ento, a sua prpria dor. A repetio das perguntas, alm de intensificar a cadncia dos versos, explicita o sentimento de revolta do adulto, que busca encontrar o culpado, e o sentimento de impotncia, pois no obtm resposta. Esse uso de frases interrogativas comum na obra de Alberto da Cunha Melo, revelando uma intensa inquietao diante dos fatos que envolvem os mais diversos planos da vida.
Crnio & Espinho a ltima parte do livro e se volta para o universo do trabalho burocrtico e alienante. Seguindo a tendncia desta fase, a linguagem explcita, direta, mas no exclui as metforas fortes que caracterizam o discurso do autor.
O esprito da segunda-feira
Esses relgios atrasados, cmplices da claridade, no deixam anoitecer; enquanto os amigos, calados, preenchem os formulrios do banco, a semana se arrasta feito pano de cho encharcado de sangue ou de luz (que tambm vai apodrecer).
A aliterao do [s] e a repetio dos sons nasais, nos trs primeiros versos, insinuam o arrastar difcil do tempo, a angstia de quem se v obrigado a cumprir um horrio de trabalho. Essa mesma imagem expandida e intensificada nos versos que seguem, culminando no
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smile dos quatro ltimos versos. A pouca variao no metro, entre cinco e oito slabas, contribui para reforar a atmosfera de lentido. A imagem do pano de cho encharcado de sangue choca por descrever o trabalho como algo que, literalmente, violenta. O pano no sujo de sangue, encharcado, ampliando a violncia. A cena das pessoas trabalhando no banco equivale, ento, a uma carnificina. E o pano de cho no suficiente para limpar o sangue derramado. A imagem da luz, geralmente associada a sensaes positivas, surge como algo aterrorizante e expressa o que vai no esprito do trabalhador que se v apenas no incio da semana contando os minutos para que ela acabe e recomece em seguida. O verbo apodrecer, no futuro, aumenta o sentimento de angstia, pois exclui a possibilidade de uma alterao na ordem das coisas. O advrbio tambm sugere que no s a luz que apodrecer, como o alimento que se degrada sem ser provado, mas que h mais algo podre, como se toda a existncia estivesse estragada. E esse horror o mais comum cotidiano de tantos brasileiros... Seguindo uma tendncia na obra de Alberto da Cunha Melo, o termo de maior intensidade, que condensa toda a imagem do poema, surge no ltimo verso, o que garante o impacto da leitura sobre o leitor. Vale notar que a seqncia das imagens em torno das palavras calados, arrasta, encharcado estabelece a reverberao da dor e do horror, que vo se intensificando at explodir em apodrecer, fechando o poema.
Clau, de 1992, embora d continuidade busca pela conciso, ao poema de uma nica pea, destoa de toda a produo de Alberto da Cunha Melo, pois tem como tema central o amor. Dedicado a sua esposa, Cludia, este um livro que celebra a vida, mas no exclui a crtica e o racionalismo. Ao apresentar o livro no jornal O norte (02.04.2000), Hildeberto Barbosa Filho comenta: Apesar do lirismo confessional e amoroso, nunca lhe falta a seminal atitude irnica e crtica, vezes amarga e corrosiva, que o faz um dos poetas mais densos da poesia brasileira contempornea. O lirismo confessional, apontado pelo crtico, tem a ver com a realizao de um dos pressupostos principais da poesia de Alberto da Cunha Melo, a busca pela expresso da verdade, explicitado na apresentao do livro:
Quanto ao ttulo deste livro, ao ser divulgado entre minhas obras inditas, alguns bons amigos, acostumados com a inconstncia amorosa dos artistas, aconselharam-me a mud-lo, por consider-lo muito personificador. Eu o mantive por acreditar que a poesia, alm de ser uma nsia pela verdade absoluta, a
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singularizao ou a personificao mxima dos seres e das coisas (deste e de outros mundos). Se a filosofia nos diz que o ser repete a espcie, possvel que falar na grandeza de uma nica mulher referir-se grandeza de muitas outras mulheres que vivem, trabalham e amam neste planeta assustador.
No livro, desenvolve-se uma idia cara ao poeta: S o amor refgio/ contra este imenso/ mal-estar no mundo (de Refgios). interessante notar que, em Clau, a natureza se faz presente com maior intensidade, seja por meio de metforas ou como ambientao, o que sugere a realizao plena do homem, re-integrado ao cosmos, pleno em sua essncia. Tambm convm mencionar que as imagens sinestsicas so mais abundantes nesse livro, ressaltando a celebrao das sensaes. Os poemas, no geral, so mais subjetivos, com eu lrico em primeira pessoa. Mas, como j mencionado, o lirismo apaixonado no exclui a reflexo. Embora cada poema tenha uma significao completa, os textos so arranjados de maneira que componham uma seqncia coesa. Assim, os primeiros poemas abordam o encontro do amado com a amada. A partir da, flashes do cotidiano passam a compor um quadro da transformao do amor com a convivncia, com momentos de encontro e desencontro. E o sentimento, estetizado, no aparece idealizado. Em Colheitas, o eu lrico em primeira pessoa se dirige amada e descreve, por meio da linguagem metafrica, a sensao que teve ao velar seu sono.
Colheitas
Alguma fruta caiu no teu sonho, enquanto dormias, pois eu senti, ao abraar-te no escuro, cheiro de carambola amadurecida no p, de carambola madura, lavada pelas chuvas que caam em teu sonho, enquanto dormias.
O eu lrico, em primeira pessoa, dirige-se amada, e o leitor sente-se como algum que espreita a intimidade do casal. A situao insinuada pela fala do eu potico uma situao de paz, aconchego e plenitude. A imagem da carambola amadurecida no p recria a idia da natureza primitiva, intocada pelo progresso ou pela maldade. A percepo da fruta se d pelo olfato, que dos nossos sentidos mais bsicos, mais irracionais, o que sugere uma atmosfera de desejo, seduo. A fruta, pronta para ser colhida, refora esse desejo. A imagem
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das chuvas liga-se fertilidade da terra, renovao. O contato mido desperta um outro sentido, o tato, que intensifica o desejo. A cena do homem que abraa a amada no meio da noite ganha uma aura de encanto. No apenas a seduo que est em jogo, mas todo um sentimento de ligao com a natureza que faz com que o homem se sinta mais vivo. A repetio do verso enquanto dormias, alm de contribuir para a manuteno do ritmo, frisa o contentamento do eu potico em ver sua amada repousando, o que chama a ateno para o cuidado, para o querer-bem. O eu lrico sente o cheiro de carambola ao abra-la no escuro. Desse modo, o escuro cria a cena propcia para a suspenso do racional, marcado pelo estar desperto, pela possibilidade de enxergar, e isso amplia as sensaes do tato e do cheiro. Tem-se, ainda, a impresso de que a amada responde ao toque do amado e, confortada, parece renovar-se com as chuvas. A sensao da chuva caindo reforada pela aliterao do [s], em pelas, chuvas, sonho, dormias, combinada aos sons nasais, transmitindo suavidade e delicadeza. O vocbulo chuvas, no plural, remete passagem do tempo. Mas um tempo csmico, o tempo das estaes, o que junto com a imagem das frutas recria uma natureza frtil, plena de vida.
Em Cuidados, o efeito expressivo se d no atravs de metfora, mas do sentido literal das palavras.
Cuidados
Ela ainda no chegou, mas, quando chegar estarei no aeroporto, de camisa nova e verde, esperando-a; estarei mais feio, mais velho mais cansado de esper-la, mas estarei de camisa nova e verde, esperando-a.
O primeiro verso j revela a expectativa do eu lrico diante da possibilidade de encontrar a amada Ela ainda no chegou. A ansiedade da espera ganha relevo pelo uso do futuro (estarei esperando). Tem-se, assim, a espera pela espera da amada, o que enfatiza o sentimento de saudade e de euforia pelo reencontro. No primeiro momento, o eu lrico explicita que a esperar no aeroporto, o que sugere o cuidado com a mulher e a pressa em
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rev-la. O paralelismo entre os predicativos dos versos oito e nove (mais velho e mais cansado de esper-la) evidencia a longa espera, expressa, inclusive, pelo fato de o nono verso ser mais longo, como se reproduzisse o lento arrastar do tempo. Nesse momento, tem-se a impresso de que a espera no se d apenas em virtude de um afastamento temporrio entre o casal, mas longa espera antes do primeiro encontro, espera pelo amor e pelo completar-se no outro. No segundo momento em que a orao se repete, o locativo no retorna, o que favorece uma leitura mais ampla do verbo esperar, enfatizando no mais a atitude concreta de aguard-la em um local determinado, mas o preparar do esprito, o guardar-se para a amada, a entrega total. a atitude do eu lrico, sua disposio de esprito reforada pelo uso reverberante do verbo estar, que deixa em contraste o estado de cansao e a entrega do eu diante da espera , que confirma essa leitura, seu cuidado em usar uma camisa nova, a preocupao em escolher a cor, como se preparasse uma grande celebrao, um grande ritual de reencontro, como se o mundo renascesse. O poema atualiza o simbolismo j desgastado da cor verde, que remete renovao, ao fruto recm-nascido, possibilidade de uma nova vida. O amado veste essa cor, ou seja, ele todo se enche da possibilidade de recomeo. E essa imagem que conclui o poema, sobrepondo-se ao estar mais velho e mais cansado, como se ele prprio se tornasse mais jovem e cheio de vida com a expectativa de rever a mulher amada. A referncia figura da amada apenas pelos pronomes d a impresso de que o leitor tem acesso direto ao interior do eu lrico; e a repetio da estrutura indica que ele no pra de pensar no reencontro, o que refora a sensao da espera. interessante notar que o poema se inicia e se fecha com o pronome referente amada, como se mostrasse o quanto o eu lrico est tomado pela expectativa do reencontro.
Clau finaliza a segunda fase da obra. Antes dele publicado Soma dos sumos, em 1983, uma antologia que rene textos publicados e inditos produzidos entre 1960 e 1981. Os poemas selecionados de Clau aparecem a com ttulos diferentes e h um deles que no chegou a constar do livro original. Isso porque Clau resulta de uma seleo feita pelo autor de poemas escritos, em grande parte, entre 1980 e 1982, enquanto morava no Acre. Dos ttulos que aparecem em Soma dos sumos ainda permanecem inditos: Poemas 1981, Dirio de
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campo e Capoeira das Juremas (conto-em-verso) 33 . Os textos citados desses livros seguem o estilo da segunda fase, com uma nica estrofe, de versos brancos, no geral, e polimtricos.
A uma enfermeira
Toda ordem foi feita pra ser desobedecida quando grita mais alto a vida.
Nesse texto de Poemas 1981 composto de 135 poemas, em sua maioria escritos e reunidos em 1981, dos quais apenas doze constam da coletnea verifica-se o carter compacto da imagem, como se o prprio poema fosse um grito. A rima entre os versos terminados em obedecida, grita e vida, com a passagem do som estreito [i] ao aberto [a], recria o ecoar desse grito, que explode em vida. Nota-se, ainda, outro trao significativo do estilo de Alberto da Cunha Melo: a propenso ao discurso aforstico. De Dirio de Campo, que contm 45 poemas, escritos entre 1976 e 1981, apenas oito participam da antologia. A temtica contempla as experincias do poeta como socilogo no norte e no nordeste do Brasil.
O Cear nos acompanha
Nesta poca, os igaraps esto secos, o pasto est seco, e Deus, que morava no Cear, tambm est seco, to seco que seu poo virou depsito de ferramentas, to seco que debulhado com raiva, feito dura espiga, do milho mais seco.
Neste poema, as idias de secura e de dureza reverberam pela repetio do adjetivo seco e pela recorrncia de consoantes oclusivas surdas [p, t, k] e sibilante [s]. A paisagem
33 Livros que sero comentados apenas superficialmente, pois, excetuando os poemas publicados em Soma dos Sumos, continuam inditos. As informaes sobre essas obras foram colhidas na prpria antologia.
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reflete a condio do homem do serto cearense. No geral, o que se percebe a fuso entre homem e paisagem evidente nos poemas citados de Dirio de campo, mas presente em toda a obra. A imagem do Deus debulhado, feito dura espiga, oferece um retrato do homem nordestino, sugerindo a reza que se faz manual com a recitao do rosrio. O ato de debulhar serve de metfora para os dedos sobre as contas do tero. A referncia espiga reitera a idia da prece como o alimento espiritual que substitui o material, escasso com a seca. Mesmo tratando de questes materiais, como o perodo de seca, o poema tende a conduzir a reflexes de ordem metafsica. O ttulo O Cear nos acompanha, alm de aproximar o leitor ao texto, convida a uma leitura que ultrapasse as fronteiras do espao geogrfico e considere a secura no apenas como um problema da natureza do que est fora mas do homem no geral, sujeito s intempries do espao que habita, o que se torna explcito com as referncias a Deus e raiva. Capoeira das Juremas (conto-em-verso) um livro composto de um nico poema, com 39 partes, escrito em 1979. Como o prprio ttulo denuncia, trata-se de uma narrativa. Em Soma dos sumos, apenas seis trechos so citados, como poemas independentes e com ttulos prprios. No possvel saber se a obra original possui essa mesma organizao. Com isso, a caracterstica de conto em verso se perde. Convm, observar, no entanto, o primeiro poema desse livro reproduzido na antologia.
Na solidria solido
medida que as ameaas foram adquirindo as feies reconhecveis, de demnios precisos, o moo Lus foi invadindo cada objeto, cada hora e mover-se de Marta, com as roupas frouxas, cor de terra, os cabelos na testa e o cabisbaixo caminhar de quem est sempre sobre o rastro delicado de uma ave rasteira; foi cercando com sua lembrana os perigos reais da amada, escoltando com suas armas de falco invisvel o regresso dos sonhos.
interessante notar o jogo sonoro entre solidria e solido, no ttulo; palavras com sentidos praticamente opostos aproximadas pela semelhana sonora, o que desperta para a
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reflexo sobre a profundidade do estado de Marta. Logo no primeiro verso, a repetio da slaba me, de medida, em ameaas e o ritmo obtido com o metro octossilbico, dividindo o verso em duas seqncias de extenso equivalente, reproduzem a passagem do tempo e a idia de concomitncia, presente na expresso adverbial medida que. Esse recurso colabora para deixar em destaque o crescimento do medo que aflige a personagem. A sensao de medo se amplia com a imagem do cabisbaixo caminhar (que contrasta, no poema, com a liberdade do vo). Os encontros [pr], [br] e [tr], combinados incidncia de sons nasais, no trecho: de quem est sempre/ sobre o rastro delicado/ de uma ave rasteira, reitera a opresso vivida pela personagem feminina. Os verbos invadindo, cercando e escoltando, no gerndio, compem uma rede de reverberaes para delinear a imagem da atuao de Lus, ainda que pela lembrana, no sentido de proteger a amada, Marta. Por fim a imagem do falco, ave de vos altos, para se referir a Lus, contrasta com a ave rasteira, que remete aos perigos que rodeiam a amada. Com isso, permanece a sensao de lenta libertao, pelo regresso dos sonhos; sensao intensificada pela aliterao dos sons sibilantes. O sons fechados desse ltimo verso sugerem introspeco, o que se coaduna com a descrio de um estado interior.
2.3 A terceira fase: a retranca
Carne de terceira (1996), Yacala (1999) e Meditao sob os lajedos (2002) compem a terceira fase da poesia de Alberto da Cunha Melo, em que se acentua a reflexo filosfica, presente desde o primeiro livro. O eu lrico em terceira pessoa predomina, o que ressalta o carter reflexivo dos poemas, na medida em que o envolvimento emocional se torna menos explcito. O vocabulrio, culto, continua simples, acessvel, mas o uso de termos eruditos mais recorrente, o que no chega a causar estranheza, uma vez que, embora cotidiano, o lxico no geral no marcado como especfico da linguagem familiar ou popular. Todos os poemas dessa fase so compostos em uma forma fixa criada pelo poeta e chamada de retranca, por lembrar um esquema ttico defensivo do futebol e a grade de chumbo que delimitava uma pgina 34 . Essa forma contempla quatro estrofes: um quarteto com rima no segundo e quarto versos, um dstico com rimas emparelhadas, um terceto com rima no primeiro e terceiro versos e um dstico final rimas consonantais ou toantes. Em Carne
34 Palavras de Alberto da Cunha Melo citadas em Cordeiro (2003, p. 76).
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de terceira no existe um metro fixo, mas em Yacala e Meditao sob os lajedos os versos voltam a ser octossilbicos. Nessa fase, a busca pela conciso se intensifica e ora os poemas so feitos de um nico perodo em que, por vezes, s h subordinao ora por mais de um perodo, mas nunca separados por ponto-final e sim por ponto-e-vrgula, o que ressalta o carter compacto do texto. O padro das rimas e a distribuio do contedo pelas estrofes tambm so responsveis pela conciso. As rimas, alm de marcarem a recorrncia sonora, reforam a relao semntica entre os termos rimados. E, freqentemente, o dstico final apresenta uma espcie de concluso em que convergem as imagens anteriores, com seu contedo afetivo ampliado, causando impacto sobre o leitor. Carne de terceira dividido em trs partes. Os poemas no tm ttulo, o que refora a coeso estabelecida entre os textos em torno do ttulo de cada parte. Na primeira, os poemas ligam-se para compor um nico poema, sob o ttulo de Um dia. Eles versam sobre o contraste entre as diferentes fases da vida: infncia, adolescncia, maturidade e velhice, apresentando como so vividos por cada fase os diferentes momentos do dia: manh, tarde e noite, que tambm so usados como metfora do ciclo da vida humana. O paralelismo sinttico estabelecido entre os poemas chama a ateno para o contraste. Desse trecho, transcrevo os quatro primeiros poemas, relativos manh.
Um dia
Manhzinha, banhar-se na gua de flor, que ptala a ptala o sereno juntou;
mida alma, fino fio que acende a galxia;
manhzinha, na lauda pr-escolar: a casa de sol, a rvore, e
a infncia a entrar no jardim da distncia.
Nesse primeiro poema, o substantivo no diminutivo, manhzinha, traz a idia de delicadeza e associa o incio do dia ao comeo da vida. As imagens da flor e suas ptalas, do sereno e da galxia apresentam a vida humana em um contexto existencial mais amplo, no mistrio de fragilidade e magnitude que sustenta a vida. O uso da forma nominal do verbo,
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banhar, no infinitivo, e a recorrncia de substantivos na terceira estrofe transmitem a sensao de estaticidade, colaborando para apresentar essa fase da vida como o perodo em que o perceber, o reconhecer e o nomear das coisas so mais intensos do que o fazer. Na ltima estrofe, a infncia surge personificada, como se representasse uma criana, e a construo com o verbo no infinitivo (mais esttico e sem a noo de tempo), a entrar, ressalta seu andar lento e acanhado, como se acontecesse no exato momento da leitura. A semelhana sonora entre infncia e distncia, e sua colocao, respectivamente, iniciando e concluindo a ltima estrofe coloca em evidncia o contraste entre a vida se iniciando e o longo caminho a percorrer; ao mesmo tempo, insinua o discurso de um adulto que relembra sua prpria infncia, em um tempo distante, o que fecha o poema com certa nostalgia. Os termos entrar, jardim e distncia marcam a caracterizao da vida como um espao a ser percorrido, enfatizando seu aspecto transitrio. A recorrncia da vogal aberta [a] Manhazinha, banhar, gua, ptala, alma, galxia... reproduz no plano sonoro a idia de claridade, luminosidade, to acentuada no poema.
Amanhece, o corpo a sentir sobrar-se: planta a consentir uma rama dobrar-se, e
a colher de si sua prpria flor;
amanhece, a camisa violeta-avel: o tnis tamarindo, e
na calada, a gara ainda no alcanada.
Nesse segundo poema, a forma verbal amanhece reproduz o movimento, a atividade que marca a juventude. A natureza associa-se descrio do aflorar da sexualidade, da descoberta do prprio corpo, na imagem da planta a colher de si sua prpria flor convm notar a nfase no eu, reproduzindo o ensimesmar-se caracterstico da adolescncia, por meio dos pronomes si e sua, este intensificado por prpria. Associa-se, ainda, ao desejo de futuro que desperta na adolescncia, sugerido na imagem da gara ainda no alcanada, extrada da descrio da calada, que provavelmente contm o desenho insinuando a forma de um pssaro, padro comum em vrios calamentos. A assonncia da vogal aberta [a] nos dois ltimos versos refora essa idia da vida se abrindo a infinitas possibilidades. Os verbos
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enfatizam a ao, mas a recorrncia do infinitivo (sentir, sobrar, consentir, dobrar, colher), assim como no poema anterior, reproduz uma certa estaticidade, que se associa ao carter visual do poema e reproduz a sensao da delicadeza de um lento despertar, para o dia e para a vida.
De manh, sob o cu varrido, vrias vezes, pelas vassouras verdes dos coqueirais,
ardem cios em sonhos sob os aventais;
de manh: a alegria de meia-idade o sol do meio-dia,
a explodir na vagem madura, que se abre.
O sintagma de manh, nesse terceiro poema, representa a maturidade, a manh j feita, intensificada pelo particpio do segundo verso, reforado por vrias vezes. A aliterao do [v] e do [s] na primeira estrofe no apenas reproduz o vento nos coqueirais, mas simboliza a agitao da vida. Nesse poema, predominam os verbos no presente do indicativo, o que salienta essa agitao, marcada especialmente no contedo do verbo arder, na segunda estrofe. Nessa estrofe, a imagem sugere fertilidade, o auge da sexualidade, que se intensifica nos ltimos versos, por meio do verbo explodir. A figura do fruto, da vagem madura, refora a comparao da vida humana com o ciclo da vegetao, que tem no fruto sua fase mais alta.
Amanhecido, a mesa sem gordura e sem sal, depois as palavras cruzadas, no jornal;
se chove ao amanhecer, volta a adormecer;
amanhecido, do terrao v os carros fugindo: do Fisco, da devassa?
vida ex-caa, rara pea, j sem preo e sem pressa.
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No ltimo poema desse primeiro momento do dia, a velhice representada pelo particpio, que contm a idia de algo acabado, j vivido. A mesa sem sal, expresso que alude a uma dieta rigorosa, sade frgil, e vida sem graa. Essa etapa da vida caracterizada pela monotonia, pela estagnao intensificada pela ausncia de verbos na primeira e na ltima estrofe, alm de que os nicos verbos na forma finita so volta a adormecer e v, o que indica falta de atividade e por um olhar amargo, que no v os carros passando, mas fugindo. O Fisco, a devassa referem-se burocracia, opresso. A natureza j no usada como metfora dessa fase da vida, substituda por imagens vinculadas ao universo urbano e burocrtico. Agora tem-se a figura da ex-caa, do ex-animal, morto, de uma pea, sem preo, com valor inestimvel apenas para o prprio dono, que se apega memria e aos objetos que o religam ao tempo em que era mais ativo. O advrbio j, precedendo sem preo, confere ambigidade ao sintagma e chama a ateno para a passagem do tempo e para a degradao das coisas, que, embora se tornem mais preciosas para uns, vo perdendo o valor, para outros, medida que ficam velhas. A idia da passagem do tempo se torna mais intensa e ganha uma nova conotao atravs do paralelismo entre sem preo e sem pressa, que sugere a vida chegando ao fim. A homofonia entre ex-caa e escassa, permitida pela estrutura sinttica, que atribui ao substantivo valor de adjetivo, intensifica o aproximar da morte. interessante observar que manhzinha, amanhece, de manh e amanhecido esto em posies equivalentes nos poemas, o que chama a ateno para o contraste entre as diferentes etapas da vida. Na ltima estrofe de cada poema, observamos as snteses da infncia, na imagem da infncia a entrar no jardim, da adolescncia, cheia de sonhos e promessas, na figura da gara ainda no alcanada, da maturidade, na imagem do sol a explodir na vagem que se abre, e da velhice, atravs da imagem da vida ex-caa.
A segunda parte do livro apresenta poemas independentes um do outro, embora organizados sob o ttulo de Adgios. Nela o discurso proverbial trabalhado de maneira explcita, confirmando a tendncia reflexo filosfica. O ttulo ainda remete ao universo da msica e faz referncia ao andamento lento, vagaroso, pausado, entre o largo e o andante, chamando a ateno para o ritmo dos poemas. A reflexo sobre a morte mais presente, antecipando a temtica central do livro publicado na seqncia: Meditao sob os lajedos.
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Sem qualquer informante e aparelho de escuta, ela o encontrar: na cripta ou na gruta;
muitos so os seguidos e todos abatidos;
se, bando de meninas, as horas vo correndo, que ela se aproxima;
com seus braos abertos, a reger os desertos.
A figura da morte vai se concretizando aos poucos, at revelar-se personificada no ltimo dstico. Esse recurso, alm de criar expectativa, reproduz no plano sinttico a aproximao inevitvel da morte. Em terceira pessoa, com o uso do futuro e, posteriormente, do presente do indicativo, o poema assume um tom grave, o que aumenta o impacto do poema sobre o leitor. A ausncia de adjetivos, alm de colaborar para o efeito de conciso do texto, ressalta seu carter aforstico. Alis, o uso dos adjetivos, que no era muito comum, torna-se mais raro nesta terceira fase da produo de Alberto da Cunha Melo, evidenciando a busca pela linguagem compacta. interessante reparar na maneira como a figura da morte vai se tornando mais viva e grandiosa. Apenas o pronome ela usado como referente, o que amplia o carter misterioso e assustador que envolve a morte. A quebra do tom narrativo, com a linguagem proverbial da segunda estrofe, atribui um tom solene ao poema, alm de realar a inevitabilidade da morte. A imagem vai deslizando pela referncia ao universo das histrias de detetive por meio do aparelho de escuta depois pelo contexto das meninas correndo, simbolizando a passagem do tempo, como se reproduzindo o movimento da morte por todas as esferas, do mais distante ao mais corriqueiro, prximo. At culminar na imagem de forte impacto, em que ela surge majesttica regendo os desertos, como um maestro comandando uma grande orquestra, em que a msica equivale ao movimento das areias ampliando os desertos, smbolo de aridez e infertilidade, ou seja, de ausncia de vida. O ritmo gil at o fim da penltima estrofe, representando a rpida passagem do tempo e o conseqente deslocamento da morte. No dstico final, o ritmo se torna mais lento e, com a aliterao do [s], sugere o movimento fluido das areias, reproduzindo um tempo que ultrapassa o do relgio, um tempo sem pressa, csmico.
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Na ltima parte do livro, a maioria dos poemas apresenta uma espcie de flash do cotidiano, a partir do qual se estabelece uma reflexo mais abrangente sobre a realidade humana. O ttulo Pressgios retoma, pela semelhana sonora, Adgios, o que refora o elemento de coeso entre as partes do livro, chamando a ateno para a condio humana, cerceada por foras que se projetam para alm de seu controle e compreenso. A reflexo considera a brevidade da vida e a sujeio dos indivduos s leis humanas e, principalmente, s leis csmicas.
Perto da linha frrea, entre o regato e o aterro, tarde da noite, passa o mais secreto enterro;
faris baixos, no escuro, chega um carro ao monturo;
s fica o tempo fixo de um passageiro frio ser jogado no lixo;
quando chega a alvorada, ningum sabe de nada.
Esse poema descreve o momento exato em que um corpo criminosamente despejado entre o regato e o aterro, um lugar intermedirio, escondido no escuro da noite. Quase todos os versos apresentam seis slabas poticas, o que imprime musicalidade ao texto, como se reproduzisse a msica de um rito fnebre. A imagem do mais secreto enterro confere cena uma aura de mistrio, reforada pela indeterminao do lugar. A incidncia de vogais mais fechadas refora a escurido que envolve algo feito s escondidas. Mas o mistrio logo se desfaz, cedendo lugar crueza da descrio na terceira estrofe. O termo monturo, mais raro, logo substitudo pelo sinnimo mais corriqueiro: lixo. medida que avanamos na leitura, a cena descrita com maior crueza. A ltima estrofe mostra a continuao do ciclo da vida, mas o que permanece a idia de impunidade; e o carter misterioso da imagem construda anteriormente se acentua. Nesse texto, predomina a ordem inversa, o que preserva o ritmo, mas no chega a causar estranheza.
Depois de Carne de terceira, publica-se Yacala, que d seqncia proposta formal introduzida nesse livro, mas destoa por ser uma narrativa. Meditao sob os lajedos parece retomar a temtica mais geral de Carne de terceira e a tonalidade com que essa temtica
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trabalhada, especialmente nas partes Adgios e Pressgios. No entanto, o ltimo livro apresenta maior unidade, devido organizao dos poemas em trono de um nico eixo, expresso j no ttulo. Yacala, palavra africana de origem quicongolesa, segundo o autor, pode significar homem, marido, namorado e o nome do personagem central do livro, um longo poema narrativo ao longo do qual se entretecem 140 poemas realizados na retranca com versos octosslabos. Apaixonei-me pela palavra yacala, que me surgiu bela, eufnica, luminosa. A partir da, ela ganhou maiscula inicial e com ela batizei meu personagem, tendo no esprito o Homem, em seu sentido universal. palavras de Alberto da Cunha Melo na apresentao do livro. A luminosidade do vocbulo contrasta com o destino soturno do personagem, que traz o Cosmo no nome. Ele foi criado por monges e tornou-se um matemtico. Aps achar umas anotaes numricas em um lixo hospitalar, Yacala fica obcecado por encontrar uma estrela que acredita crescer no espao. Imerso nos nmeros sem dormir , fixa-se sobre o espao sideral enquanto, dentro dele, tal como a estrela que procura, cresce um tumor maligno. Paralelamente, o contexto social que habita vai se revelando cada vez mais monstruoso. Atravs da narrativa, o livro lana-se a indagaes acerca do homem e sua relao com o cosmos, com as outras pessoas e consigo mesmo. O desejo da transcendncia, as limitaes do corpo, do esprito e do meio em que se vive, a aflio da decadncia fsica, a solidariedade, a violncia estpida so alguns dos temas explorados. A expresso utilizada corriqueiramente para descrever a dor intensa, que faz ver estrelas, ganha uma nova dimenso no poema. Pois a dor que move a busca de Yacala. Sua transcendncia ocorre no plano literal e figurado. E homem e cosmos tornam-se reflexo um do outro. Alfredo Bosi, em texto que acompanha a ltima edio do livro, elucida:
No por acaso que a epgrafe de Yacala o verso de Cruz e Sousa: V como a dor te transcendentaliza. A frase pungente do Poeta negro abraa de uma s vez as duas dimenses da obra de Alberto da Cunha Melo: a experincia funda do sofrimento, cuja origem inequivocamente social, e a capacidade prpria da linguagem potica de tudo passar pelo crivo da conscincia pessoal, essa cmara de ressonncia que acolhe, compe e tonaliza os mltiplos estmulos que nos assediam e se fundem com nossa identidade.
O crtico ainda chama a ateno para a estranha beleza, para o efeito esttico original que emerge do trabalho com a forma.
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o paradoxo da sua composio ao mesmo tempo rebelde ao cnon e inventora de sua prpria e inflexvel ordem estrfica e mtrica. (...) Trata-se de uma singular orquestrao (o poeta chamou-a de retranca), que lembra remotamente o soneto ingls, mas que tem o seu peculiar movimento musical de uma onda que, primeiro espraiada, depois recolhida, se embate por duas vezes nas barreiras slidas dos dsticos do meio e do fecho.
Em Yacala, o narrador em terceira pessoa situa-se em uma posio de observador privilegiado, com acesso ao interior dos personagens. Ora se apresenta mais distanciado, ora mais prximo. O contraste entre verbos no presente e no pretrito, ao longo da narrativa, combina-se voz do narrador para estabelecer um movimento contnuo de aproximao e afastamento do leitor, o que garante o envolvimento afetivo e tambm o distanciamento que permite a reflexo. A narrao inicia-se propriamente no segundo poema, em que o protagonista negro apresentado como uma criana malnascida, abandonada s portas de um mosteiro. O ritmo marcadamente meldico, o que lembra as narrativas populares, embora delas se diferencie pelo metro octossilbico, em vez da redondilha. As inverses so freqentes, colaborando para a manuteno do ritmo e das rimas, mas no chegam a causar estranhamento, por estarem prximas da linguagem cotidiana. O vocabulrio, simples.
Yacala Cosmo, diz a crnica, quando criana malnascida, acharam-no na porta uns monges e o criaram s escondidas;
foi um certo abade erudito quem lhe deu o nome esquisito;
cresceu, portanto, no mosteiro mirando o mar e altas distncias numa luneta de escoteiro,
mas a seus ps, dia aps dia, um cho de garras florescia.
Yacala marcado por esse contraste entre o ambiente fechado do mosteiro e a busca pelo infinito, representado pela imagem do mar e altas distncias. Esse contraste entre o limite, presente na imagem da ltima estrofe, que traz o suspense para a histria, e a transcendncia percorrer todo o livro. Nessa obra, assim como nas demais, evidencia-se a combinao do spero com o delicado, observada no ltimo verso entre garras e florescia. A organizao lgica da linguagem permanece e se explicita no uso dos conectivos (portanto e
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mas). Ao mesmo tempo, a ambientao, o foco narrativo, o ritmo aproximam o texto das narrativas mticas, como podemos observar no dcimo-oitavo poema.
Foi em agosto, quando o vento, todo em galas de temporal, vaiava no mar as barcaas em formao de funeral,
que Yacala, com sua mochila, mudou-se para a palafita;
a casa anfbia j estava mergulhada nas ventanias, e nas guas tanto ventava
que as anchovas, largando as presas, fugiam para as profundezas.
A aliterao dos sons sibilantes e fricativos reproduz, no plano sonoro, a agitao do mar provocada pelo vento. A imagem do temporal, a aluso a funeral, as anchovas que fogem para as profundezas criam um ambiente assustador, como se fosse um mau pressgio para a vida de Yacala em sua nova habitao. A palafita, mergulhada nas ventanias e nas guas, remete ao incerto, ao transitrio, instabilidade que rondam o personagem e o ser humano em sua busca pela transcendncia. A assonncia da vogal aberta [a], na terceira estrofe do poema, enfatiza a idia de amplitude associada imagem da palafita em meio ventania. A palafita expressa a opo de Yacala pelo transcendente, pela proximidade do mar e o que ele tem de ilimitado. Mas tambm representa a limitao material, as restries impostas pela condio social do personagem. A imagem da casa anfbia traduz a ambigidade da situao do personagem, na medida em que o anfbio pertence a dois universos distintos, o terrestre e o aqutico, simultaneamente, o que significa tambm no pertencer a nenhum destes totalmente. Cada poema de Yacala compe um quadro do cotidiano e contribui para o avanar da narrativa, que se desenrola por meio da linguagem objetiva e ao mesmo tempo repleta de metforas e associaes inusitadas. A descrio do ambiente externo atua, no geral, como uma representao do estado psquico de Yacala, a cada dia mais alheio a tudo a sua volta, centrado apenas na busca alucinante pela estrela que parece ameaar a ordem csmica. A tenso em torno do destino do protagonista e daqueles com quem interage vai crescendo ao longo da narrativa e o envolvimento do leitor aumenta a cada poema, embalado pelo ritmo, que acompanha os movimentos da histria.
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Yacala foi escrito, principalmente, durante uma temporada do autor em Maria Farinha, praia ao norte de Olinda. interessante notar como toda a paisagem da regio aparece estetizada no livro, o mar, o lodo, as palhoas e, inclusive, as pessoas.
Meditao sob os lajedos, ltimo livro publicado, continua a busca do raciocnio lrico compacto, da perfeita fuso entre forma e contedo. Como o ttulo sugere, trata-se de uma reflexo, ou melhor dizendo, um conjunto de reflexes sobre a morte. O locativo sob os lajedos, alm de causar estranheza pelo uso inesperado da preposio sob em vez de sobre, apresenta o sujeito inscrito no termo meditao, j que pressupe algum que medita, em um espao definido. Mais do que remeter laje tumular, os lajedos, como rochas sobre o sujeito, restringem seu plano de viso. Assim, a reflexo que se mostra a de algum que busca ver alm. Esse ver alm seria a compreenso de toda a existncia, no s humana. Essa imagem pode assumir diversas conotaes; pode, por exemplo, dialogar com o mito da caverna, de Plato. Alberto da Cunha Melo contou-me que o ttulo faz referncia pea de Shakespeare, Rei Lear. Confesso que apenas percebi a intertextualidade aps o comentrio do poeta. Acredito que esse caso evidencia a impossibilidade de decifrarmos o que se passa na mente do autor emprico ao elaborar seus textos. Independentemente das relaes intertextuais evocadas, o sujeito, observador do espao que habita, v-se perplexo diante da realidade que o cerca e compartilha com o leitor suas impresses. No geral, os poemas so escritos em terceira pessoa, o que cria uma iluso de objetividade, ou na primeira pessoa do plural, interpelando mais diretamente pela adeso do leitor. A epgrafe reveladora. Que aldeia esta em que me perdi? Esta frase, colhida no romance de Franz Kafka, O castelo, instaura o clima de perplexidade que permeia a obra. Assim como o agrimensor do romance, o eu lrico dos poemas algum que se sente perdido. O castelo, estranhamente nunca atingido pelo personagem, equivaleria, segundo Alberto da Cunha Melo em nota introdutria, perfeio artstica, e a aldeia, a seu prprio universo, que se torna estranho medida que tenta penetr-lo com mais profundidade. Os poemas, cada um com seu ttulo, so divididos em quatro partes, que compem uma viagem: Embarque, Na aldeia, Gentes e bichos e Retorno. A viagem representa no apenas o fazer potico mas a prpria vida, marcada pela transitoriedade e pelo constante caminhar rumo ao desconhecido.
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Os textos de Embarque contm todos um tom metalingstico; enfocam a palavra no geral ou a funo da poesia.
Falar, falar
Se conviver conversar, este falatrio sem pausa, onde o silncio mais temido que palavro dentro de casa,
faz da vida inteira um entulho de vozes de bar, de barulho;
neste metralhado lugar, to atulhado de palavras, que no se pode caminhar,
onde do corpo s a paz do amor calado satisfaz.
Esse poema apresenta uma s orao principal o que salienta a conciso. O vocabulrio simples preserva a tendncia da poesia de Alberto da Cunha Melo. Logo no primeiro verso, a colocao de conviver ao lado de conversar chama a ateno para a semelhana sonora entre os termos e ressalta sua relao semntica. O eu lrico em terceira pessoa e o uso do presente do indicativo, aliados orao condicional que abre o poema, acentuam o carter racionalista e aforstico do texto, que trata do silncio como uma ameaa ordem aparente e o falatrio como uma maneira de camuflar a infelicidade e o desencontro. A aliterao do som [lh], em entulho, barulho (que retoma, em sua estrutura, o termo bar, produzindo uma espcie de eco e se referindo a um tipo de rudo prprio desse ambiente), metralhado, atulhado, refora a sensao de desconforto sugerida pelos vocbulos. Esse efeito contribui para a descrio do falatrio como empecilho verdade, ao entendimento e paz, enfim, convivncia. O uso do locativo neste no incio do terceto explicita no apenas o lugar onde se encontra o eu mas tambm sugere que o leitor compartilha com ele essa localizao. Esse recurso aproxima o leitor da reflexo, que incide sobre toda a condio humana. O metralhado lugar se refere, portanto, ao aqui e ao hoje, retratando um universo violento e decadente. possvel associar o adjetivo metralhado s vrias formas de violncia, mas a prpria palavra pode ser associada arma, ao disparar insistente, montono e mecnico da metralhadora. A referncia palavra tambm evidencia a crtica sociedade atual, em que a suposta liberdade de expresso e o fcil acesso informao, em vez de proporcionarem mais
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crescimento e liberdade, servem para manter o homem em uma condio de passividade e impotncia. A palavra no deixa caminhar, servindo como elemento para o exerccio do controle e da opresso. Ou seja, instaurando uma espcie de ditadura, promovida, hoje, pelos grandes veculos de comunicao, a maioria em favor da mesma ideologia, repetindo as mesmas palavras, em unssono, como o som da metralhadora. Os versos finais retomam com nfase as imagens anteriores. As palavras paz, calado e satisfaz contrastam com a idia de caos e desentendimento. Os sons fechados de onde, corpo, amor e calado reproduzem o silncio, a profundidade e o refgio almejados pelo eu lrico; os sibilantes em s, paz e satisfaz ressaltam a sensao de alvio e prazer longe do falatrio, enquanto as vogais abertas, que permanecem reverberando com a rima final, reforam a idia de liberdade.
Na aldeia, ttulo da segunda parte do livro, como um sintagma preposicional, em vez de A aldeia, supe um sujeito que contempla o espao em que se encontra. Esse espao marcado, por vezes, pela ambigidade da natureza, que afaga e castiga, pelo desencontro, pela morte que se denuncia aos poucos, pelo dinheiro, contemplado como deus, pala explorao etc. Em Odes ao cinza, uma seqncia de sete poemas, o homem aparece subordinado s foras da natureza, que castiga atravs do sol e da seca. A cor cinza, atrelada chuva e fertilidade, adquire conotao extremamente positiva, relacionada renovao da vida, como podemos observar logo no primeiro poema da seqncia.
Tempo bom tempo nublado e de chuva, dias inteiros; sangrando aqui muitas barragens, enchendo ali muitos barreiros,
e dos raios de sol, ausentes, depois de inchadas as sementes,
gigantescas sombras das asas de anjos guiando as frentes frias, sobre lavouras, sobre as casas,
onde camlias cor de vinho se abrem nas coroas de espinho.
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O texto inicia-se com uma afirmao genrica: Tempo bom tempo nublado e se desdobra na descrio entusiasmada da natureza. A aliterao do [s] ao longo do poema reproduz a sonoridade da chuva e das guas correndo. A imagem do terceiro verso, alm de descrever com beleza os veios de gua barrenta, serve para representar a terra como um ser vivo, com sangue correndo. As sementes inchadas simbolizam a certeza de renovao. O tom avermelhado da terra molhada e das camlias confere vivacidade cena, reproduzindo a cor vibrante atrelada ao pulsar da vida. Essas cores destacam-se mesmo em funo do tempo cinza, nublado, como se a exploso dos tons quentes do sol, oculto pelas nuvens, ocorresse na terra. A figura dos anjos guiando as frentes frias associa as chuvas a uma paisagem sobrenatural. Como mensageiros da divindade, antecipam um grande acontecimento. E a meno s coroas de espinho e a simbologia do vinho evocam a paixo de Cristo e a Eucaristia, descrevendo as chuvas como um ritual sagrado. Com isso, a renovao da terra desenhada como um milagre, em que o prprio Deus se doa em sacrifcio. Convm atentar para a posio em paralelo das expresses cor de vinho e coroas de espinho, nos versos finais. Pela rima, vinho reverbera em espinho, assim como o termo cor repercute em coroas, o que reala o contraste entre essas duas imagens, j que a primeira remete ao prazer e celebrao, enquanto a segunda alude dor e penitncia. Esse recurso enfatiza a idia de renovao, ecoada ao longo do poema, e provoca a sensao de xtase e reverncia diante da grandiosidade da natureza a se refazer. Nesse poema, mais uma vez, a imagem de impacto se mostra nos dsticos finais. O grande acontecimento se mostra no abrir das camlias, que representa a exploso da vida. O fato de se abrirem sobre as coroas de espinho ressalta a vitria da vida sobre a aridez e a prpria morte, ou seja, a ressurreio, presente na intertextualidade com o Novo Testamento.
Os poemas de Gentes e bichos falam de pessoas, reais e fictcias, e animais. s vezes, eles se fundem e os animais surgem humanizados, enquanto nos comove a imagem do homem que vive como bicho. No geral, os poemas tm como tema determinadas pessoas, conhecidas, como o jogador de futebol Romrio, ou desconhecidas, e chamam a ateno para um ou outro personagem tpico de nossa sociedade, como a top-model, que simboliza o culto aparncia e a futilidade. Em Melissa, a temtica social sobressai na figura da mulher que vive sob uma marquise, o que ressalta a falta de proteo e o abandono.
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Melissa
A vida toda era ficar sob uma marquise, sentada, a mexer nos longos cabelos, sua beleza mais intacta;
fazendo e desfazendo as tranas de suas madeixas j brancas,
se passavam gentes e carros, seus olhos baixos, no vazio, s viam pontas de cigarros:
era uma sombra muito calma, uma sombra virando uma alma.
O poema chama a ateno para a beleza desperdiada, que passa despercebida. Os cabelos brancos da personagem aludem s flores delicadas da melissa e denunciam a velhice. O constante fazer e desfazer das tranas marca a passagem do tempo e sugere a monotonia e o vazio da personagem, que lembra uma flor perdida no ambiente urbano. A terceira estrofe destaca a indiferena das pessoas que passam pela mulher, qual resta o lixo, expresso pelas pontas de cigarros. A descrio da pobreza e do abandono vai se intensificando ao longo do poema. A primeira estrofe ressalta a beleza dos cabelos, a segunda indica a velhice e o vazio da personagem, a terceira evidencia o abandono, a misria. Na ltima estrofe, Melissa j descrita como uma sombra, mas uma sombra virando uma alma, o que frisa a humanidade da personagem que se aproxima da morte. A reverberao de uma sombra, nos ltimos versos, recria a imagem da mulher desaparecendo gradativamente, desapercebida. A rima entre calma e alma colabora para sugerir a lenta transformao da personagem, como se a alma fosse se desprendendo do corpo, representado pela consoante iniciando c-alma. A imagem de Melissa fazendo e desfazendo as tranas estabelece um dilogo com o conto de fada Rapunzel. Essa intertextualidade contribui para enfatizar a situao da mulher que, diferente da outra protagonista, no ser salva por um prncipe encantado. Sua esperana de libertao somente a morte. O ritmo triste e melanclico do poema termina com um qu de esperana, que se insinua com a gradativa passagem de sons fechados a abertos. A lenta transformao de Melissa, como se fosse sumindo aos poucos, uma mulher virando anjo, tambm se intensifica com a recorrncia dos sons nasais dos ltimos versos. O que permanece para o leitor um profundo sentimento de comunho com o personagem.
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Retorno o ttulo da ltima parte do livro j adianta um certo sentimento de conforto, presente em alguns poemas, que nasce do reconhecimento de um refgio. Apesar da pobreza, da desigualdade, da corrupo, do sofrimento, do horror denunciados por um enunciador preocupado com o destino do homem, mesmo com toda a dor advinda de uma conscincia aguda de nossa degradao, os ltimos poemas contm um germe de esperana. O amor surge, mais uma vez, como refgio, e a morte apenas parte do movimento da vida.
Fiat
O amor, o amor nunca demais: se sobra, no tempo perdido que ele brotar no deserto qual semente do Paraso;
plen no ar, mora no vento e entre as dobras do pensamento,
feito a maldade, ele no dorme, quando a neblina esfria a noite e o temor de Deus nos encobre;
ele tem a fora da luz: fecha a ferida e seca o pus.
O amor o princpio de tudo, o que sustenta a vida e concilia elementos opostos. Na ltima estrofe, o termo luz remete ao princpio da criao explcito no ttulo do poema e pus se liga imagem do corpo ferido, unindo as idias de morte e regenerao. A rima entre esses dois vocbulos ressalta a fora recriadora do amor e confirma a tendncia da poesia de Alberto da Cunha Melo em combinar termos de naturezas semnticas contrastantes. Observamos, nesse poema, a combinao de vrias imagens para descrever o amor. Conforme a leitura progride, elementos se somam na descrio e o amor parece ir se irradiando, se espalhando. Inicialmente, surge atrelado a semente e a brotar, que se associam a deserto, o que chama a ateno para o impulso de vida do amor, j que o deserto representa a infertilidade. Em seguida, vincula-se imagem do plen no ar, o que sugere a passagem do tempo, o amadurecimento, pois o plen surge da planta madura, como se espalhasse fecundando tudo. Depois, liga-se ao pensamento, acomodando-se no universo humano. Assim, o poema reproduz, na ordenao das imagens, o movimento de uma segunda criao do Universo, em que o elemento iniciador de tudo o amor. O uso do verbo brotar no futuro do indicativo
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refora a idia de recomeo e confere ao poema a fora do discurso mtico, com ares de profecia. Apenas no dstico final que se relaciona luz, primeiro elemento da criao, de acordo com a tradio bblica, fechando o poema como um crculo, retomando o ttulo. Com isso, a idia de renascimento que permanece reverberando. No incio do poema, a combinao do deserto com a semente que brota j sugeria renascimento, o qual se explicita na combinao de luz e pus. A referncia ao Fiat lux genesaco, ao Paraso e ao temor de Deus obriga a associao do poema com o mito criador e a expulso do Paraso. O termo pus sugere a cura, como se, dessa vez, o homem se libertasse da culpa atribuda ao pecado original. Isso porque a idia de redeno que se sobrepe ao temor de Deus. interessante observar, ainda, a maneira como o amor comparado maldade. Ambos os termos so abstratos, mas o elemento de comparao o fato de no dormirem, o que os apresenta como seres vivos. A estranheza ocorre na medida em que nenhum dado da comparao conhecido. O mais comum que o smile associe uma informao conhecida com uma nova. No entanto, a comparao une dois elementos pela novidade, o que causa um efeito inusitado. No se afirma apenas que o amor no dorme, mas que a maldade no dorme. As duas informaes so fornecidas ao mesmo tempo, o que chama a ateno para o vnculo entre amor e maldade, como se um complementasse o outro. Esse recurso recorrente na poesia de Alberto da Cunha Melo e contribui tanto para ampliar o impacto afetivo da imagem quanto para induzir reflexo. O foco se desloca temporariamente do amor e recai sobre a maldade. Assim, o poema, de modo indireto, induz a uma reflexo sobre a prpria existncia, regida por duas foras opostas e complementares. A maldade o elemento de destruio e o amor o elemento de reconciliao. Neste ponto, vlido repensar o tom de crtica e indignao que perpassa a obra do autor, o que se combina a um sofrimento profundo em face de tudo o que impede a realizao do homem. Esse comportamento, verificado na composio do eu lrico de grande parte dos poemas, de todas as fases, pode ser confundido com uma espcie de pessimismo. No entanto, como pudemos observar de maneira explcita nesse poema, no possvel considerar pessimista uma obra comprometida com a transformao do indivduo e voltada para a transcendncia, atravs da contemplao do belo, da comunho com o outro e com o Cosmos. A poesia de Alberto da Cunha Melo, embora enfoque o feio, o doloroso, sugere alternativas. O amor, a volta natureza e o belo so os caminhos apontados para se atingir a libertao.
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2.4 A quarta fase: poemas em forma de renkas
O co de olhos amarelos foi lanado em 2006 junto com uma srie de poemas inditos das trs fases anteriores, sob o ttulo de O co de olhos amarelos & outros poemas inditos. O tipo de composio agora apresentado inspira-se nos poemas paralelsticos orientais, waka e renka, e confirma o esprito experimentalista do poeta, que busca nas formas antigas sua fonte de inspirao. O resultado foi um tipo de poema extremamente musical, que combina a regularidade rtmica da repetio dos dois ltimos versos de uma estrofe no incio da seguinte, aliada ao metro octossilbico, com uma linguagem prxima da prosa. Os poemas so sempre iniciados e concludos por dsticos que limitam um nmero variado de quintetos. O efeito completamente novo e o poema ganha ares de orculo. Na Nota do autor, o poeta explica o que o levou a produzir esse tipo de composio.
A idia de escrever um conjunto de poemas paralelsticos surgiu de uma observao de Bruno Tolentino sobre a ausncia de repeties em minha obra, sempre tangenciando a fala, e em que s esporadicamente apareciam raros poemas anafricos.
No possvel generalizar a respeito da escassez de paralelismo em sua poesia. Publicao do corpo, por exemplo, j apresenta vrios poemas paralelsticos. E h muitos deles distribudos por toda a obra. De modo geral, esse recurso ocorre com maior freqncia no emparelhamento de estruturas e nas repeties de palavras. Entretanto, a repetio sistemtica de versos, como estratgia central de composio, se d apenas em O co de olhos amarelos certamente o livro mais paralelstico de Alberto da Cunha Melo. Em ensaio que acompanha a nova publicao, Hildeberto Barbosa Filho comenta alguns traos marcantes da poesia de Alberto da Cunha Melo, como a ironia, o olhar voltado a situaes cotidianas, a linguagem por vezes aforstica, a combinao entre sentimento e reflexo filosfica, alm do rigor formal que resulta em uma fuso harmnica entre forma e contedo.
Como toda arte autntica, a poesia de Alberto da Cunha Melo a um s tempo coisa mentale e libido sentiendi, ou seja, razo e emoo fundidas no tecido da linguagem. (...) Aqui se apresenta de maneira calculada o Alberto gemetra a investir na tradio das formas fixas, buscando retemper-las dentro de sua concepo pessoal acerca das tcnicas do verso. As tenses entre ritmo e mtrica, entre pausa e cadncia e, sobretudo, a lgica anafrica dos paralelismos imprimem s peas poticas um singular equilbrio.
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Em prefcio de Yacala, Alfredo Bosi tambm usou o termo singular para se referir retranca (uma singular orquestrao). Realmente, o trabalho com a forma torna singular a obra de Alberto da Cunha Melo, que choca pela naturalidade e espontaneidade como forma e contedo se amoldam. Em entrevista a Ivana Moura, publicada no Dirio de Pernambuco, em maio de 2006 35 , o poeta revela ter demorado cerca de dois anos para compor o livro, e acrescenta:
O trabalho de arte levou os poemas a vrias verses, muitos poemas acabaram sem nada da verso original. Sou meio construtivista em poesia e quando escrevo s penso num nico leitor: eu mesmo. Fao uma poesia antipalco e pr-catacumba.
O co de olhos amarelos segue a tendncia de Meditao sob os lajedos, com narrativas e descries em torno de determinados personagens. Esse trao de estilo pode ser percebido desde os primeiros escritos, mas parece se acentuar ao longo das publicaes. Em resposta pergunta de Ivana Moura Quais so as figuras que povoam esta obra? , o escritor afirma: homens e mulheres civilizados, primitivos animais, quase todos em situao de ameaa. No poema que d nome ao livro, podemos perceber como ocorre a combinao inusitada entre a linguagem paralelstica com a linguagem prosaica.
O co de olhos amarelos
Numa cova de sombra, um co, na calada de um bar, gemia.
Numa cova de sombra, um co, na calada de um bar, gemia. Era um co de olhos amarelos com uns tons de urina boiando pelo ferro podre das rbitas.
com uns tons de urina boiando pelo ferro podre das rbitas. Jupy j no ia catar o que os outros ces procuravam nas lixeiras cheias de vmito;
35 Tambm disponvel em <://www.albertocmelo.com/fc10_ivana_moura.htm> (acesso em 09/12/2007).
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o que os outros ces procuravam nas lixeiras cheias de vmito; mas, sua presena de sombra era to densa na calada, que as outras sombras tropeavam.
era to densa na calada, que as outras sombras tropeavam. Esse co de olhos amarelos sequer foi ligeira lembrana ou herdeiro de um ossurio.
sequer foi ligeira lembrana ou herdeiro de um ossurio. Jupy, com seus olhos de pus novo, ou de abstratssimo ouro, vivia a ver o chato cho.
novo, ou de abstratssimo ouro, vivia a ver o chato cho. Um cho de pedras portuguesas manchadas de catarro grosso. Agora, vm suj-lo as botas
manchadas de catarro grosso. Agora, vm suj-lo as botas de algum fiscal da prefeitura, que o leva no lao, enforcando-o, sem um latido de protesto.
que o leva no lao, enforcando-o, sem um latido de protesto.
Na figura do co, o eu lrico apresenta o oprimido, sobre o qual fixa sua ateno. Os olhos do bicho, de um amarelo de urina e de pus, simbolizam sua condio degradante e o humanizam, como se, por seus olhos, reconhecssemos um semelhante. possvel imaginar um co com olhos expressivos, transparentes (pela urina) e opacos (pelo pus). Essa imagem paradoxal frisa a ambigidade do personagem: meio co, meio gente, meio vivo e meio morto, belo e repugnante, que resiste e se conforma. A cor amarela dos olhos indica doena mas tambm pode caracterizar o belo; so uns olhos quase irreais, como se compusessem a figura de um co de conto de fadas. Em uma cova de sombra, na calada de um bar, fixa o chato cho (imagem que expressa a monotonia, realada pela repetio dos sons iniciais dos vocbulos, e o horizonte to limitado). O co
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representa o mendigo, o miservel sem casa. Porm, tem um nome: Jupy, grafado com y, evoca algo arcaico, fora de lugar, e confere certa nobreza ao personagem, que oscila entre o indigente e um respeitado conhecido dos freqentadores do bar. Ele pertence e no pertence sociedade. A presena desse co, na calada, incomoda, mesmo que seja percebido apenas como uma sombra 36 . As outras sombras que tropeavam so as pessoas passando (j que um co no tropea sobre outro). De incio, h uma associao clara entre o co e o homem. Somente o eu lrico, provavelmente um fregus do bar, parece perceber esse animal como um ser vivo, que ser arrastado como um monte de lixo retirado da calada ou um condenado levado forca. A descrio causa impacto, pois o co mais e mais humanizado. At a quarta estrofe, Jupy descrito por meio de termos no especficos do universo humano. No verso final da quinta estrofe, que repercute no incio da seguinte, recebendo nfase, surge uma imagem exclusiva da condio humana: herdeiro de um ossurio. Entretanto, essa aproximao ao humano se d pela negao. Esse quem Jupy no foi. De maneira semelhante, a imagem dos olhos amarelos retorna e, dessa vez, se alternam na descrio as locues: de pus novo e de abstratssimo ouro; o segundo qualificativo aproxima o co de um elemento tido como nobre; contudo, o ouro, modificado pelo adjetivo abstratssimo, tambm se faz presente pela negao. Com isso, medida que o co surge vinculado a atributos humanos, o homem representado cada vez mais como um bicho. A referncia ao ossurio e ao ouro insere o personagem em um contexto de injustia e desigualdade, j que so itens prprios de classes privilegiadas. O substantivo herdeiro tambm contm a idia de desigualdade, denunciando, ainda, uma crtica ou um sentimento de impotncia frente a uma sociedade projetada para garantir a excluso. Concomitantemente, ossurio e ouro contrastam a prpria sonoridade semelhante e a posio equivalente ao final dos versos reiteram o vnculo entre esses termos , induzindo a refletir sobre vrias questes envolvendo as relaes entre morte e corrupo (ligadas a ossurio) e riqueza e aparncia (presentes em ouro). O advrbio em sequer foi ligeira lembrana/ ou herdeiro de um ossurio encerra um teor irnico, j que pressupe a possibilidade do encontro entre duas realidades aparentemente incomunicveis: a do co e a de uma classe mais privilegiada. Levando em conta seu atual estado, no h como cogitar a possibilidade de o co ser herdeiro
36 Tanto a imagem da sombra quanto a do co so recorrentes na poesia de Alberto da Cunha Melo.
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de quem quer que seja. Todavia, essas aluses herana, ossurio e ao ouro, somadas imagem do cho de pedras portuguesas e forca (inscrita no verbo enforcar) induzem a um recuo no tempo, ao perodo da colonizao. Assim, o eu lrico parece observar longamente esse co, procurando compreender suas origens, divagando sobre um momento em que tivesse gozado de algum privilgio. Alm disso, a descrio fundindo o cenrio atual com um mais antigo desnuda um olhar crtico sobre a perpetuao de um sistema injusto e violento sobre o qual se estrutura a sociedade brasileira. Ao final do poema, a imagem do fiscal da prefeitura e o uso de protesto, vocbulo com forte conotao poltica, e raramente usado para se referir a animais, recriam a situao do homem massacrado pelo poder oficial. O ltimo verso, sem um latido de protesto, amplia a violncia das expresses do anterior (levar no lao e enforcar), evidenciando a sujeio do animal. O verso ganha fora: nele convergem as imagens do co e do homem. Literalmente, reproduz a ao concreta de um co sendo arrastado pela coleira e, no plano figurado, uma expresso comum para remeter s situaes bem humanas de coero, em que no possvel reagir contra o mais forte. Esse um recurso tpico na poesia de Alberto da Cunha Melo, que atualiza expresses desgastadas, com o intuito de chamar a ateno para seu valor semntico e de estabelecer imagens de forte apelo visual. Freqentemente, a ironia se mostra como um componente desse tipo de imagem. Neste poema, a ironia, que percorre todo o texto, desvela- se no carter ambguo da descrio do co.
que o leva no lao, enforcando-o, sem um latido de protesto.
Esses dois versos, nos quais a brutalidade e a sujeio se impem com fora, permanecem vibrando no dstico final, deixando uma sensao de perplexidade diante do acontecimento narrado, que assume propores enormes, como se fosse um grande episdio de nossa histria. Na produo desse efeito de sentido, esto as repeties, prprias da renka. Nos dsticos reduplicados, as expresses gemia, urina, podre, lixeira, vmito, sombra, tropeavam, sequer, catarro, suj-lo, enforcando, sem protesto compem uma rede semntica em que reverbera e se adensa a imagem de misria e opresso. A repetio dos versos, aliada ao metro octossilbico, produz uma cano ao mesmo tempo solene, montona e triste, para denunciar a situao inaceitvel do oprimido. Alm disso, confere ao texto uma aura de narrativa mtica, ou trgica, como se estabelecesse um tempo prprio. Cria-se, desse modo,
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um distanciamento, como se o leitor fosse projetado para fora de sua prpria realidade a fim de experiment-la, transformada, atravs da imagem potica. A histria de Jupy, to atual, reveste-se de um ritmo de sabor arcaico, que parece ecoar ao longo do tempo.
A condio do homem em sociedade persiste como eixo temtico no restante do livro, combinando-se a reflexes metafsicas. Alguns poemas tratam de povos primitivos, revelando uma preferncia por temas antropolgicos, que j havia aparecido em Noticirio. Mas o que permanece a reflexo sobre o humano, independentemente de diferenas tnicas. importante frisar que, embora os poemas sejam mais longos do que os j publicados anteriormente, a conciso se intensifica e se radicaliza. Pois, como vimos, a repetio dos versos contribui para dar nfase a determinadas idias, que ficam a reverberar ao longo do poema, compondo um todo significativo extremamente conciso e intenso. Nesse livro, o poeta atinge, mais do que nos anteriores, a fuso completa entre ritmo e idia. nos poemas de O co de olhos amarelos que a reverberao de imagem pode ser percebida mais claramente. E ele parece confirmar a transformao da linguagem de Alberto da Cunha Melo ao longo das diferentes fases no sentido de se tornar cada vez mais compacta e mais densa.
Nesta segunda parte, a aproximao ao estilo de Alberto da Cunha Melo se deu por meio da anlise de alguns aspectos relacionados construo de sentido em poemas selecionados com a finalidade de fornecer uma viso panormica da obra desse autor sempre de acordo com a leitura estilstica, que deve se ater ao detalhe da forma. Na prxima seo, as leituras iro enfocar os poemas com mais detalhe. Uma leitura estilstica completa deve considerar, tanto quanto possvel, todas as camadas envolvidas na produo dos efeitos expressivos: sonora, lexical, sinttica, enunciativa etc.
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3 O poema como imagem e conjunto de imagens leituras estilsticas
Em poesia, h sempre um vnculo motivado entre significante e significado. 37 As anlises estilsticas buscam observar essa relao. Nesta parte do estudo, com o objetivo de verificar com mais detalhe a construo dos efeitos de sentido, enfocando, em especial, o recurso da reverberao de imagem ligado conciso e intensificao dos efeitos expressivos do texto analiso um poema de cada fase da poesia de Alberto da Cunha Melo. Os poemas selecionados para leitura so:
Mesopotmia, de Poemas anteriores; Nobrezas, de Clau; Suicdio de Andr, de Meditaes sob os lajedos; O lobo-guar, de O co de olhos amarelos.
Cada poema abordado como uma pea nica. No geral, procedo s analises da seguinte maneira. Inicialmente leio o poema vrias vezes e procuro perceber qual o primeiro impacto que o texto provoca. Nessa etapa, ainda no estou com o leitor-modelo em mente. Leitora emprica, posso ser uma informadora, como sugere Riffaterre, e deixo-me levar pela seduo do poema. Aps esse primeiro momento, retomo o texto e observo sua construo na busca de compreender de que maneira a lngua foi utilizada para causar a sensao inicial. O trabalho de anlise, fundamentalmente interpretativo, tem a finalidade de compreender os mecanismos desencadeadores do efeito esttico. Cada poema chama a ateno por um recurso diferente: s vezes uma rede de palavras que formam um campo semntico importante, outras a repetio de algumas estruturas sintticas. E um recurso leva percepo de outro. A anlise vai se expandindo e cada detalhe anotado. Observo constantemente a relevncia de cada elemento para a construo de sentido. A cada recorrncia sonora, por exemplo, verifico como os sons podem intensificar uma sensao sugerida pela combinao do lxico. Esse o momento de anlise propriamente, e o mais demorado.
37 Estas so palavras de Dmaso Alonso: en poesa, hay siempre una vinculacin motivada entre significante y significado. (1966, p. 31-32)
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Depois organizo as anotaes em texto. No h um padro, mas, no geral, procuro encadear os comentrios seguindo a estrutura linear do poema, pois assim possvel perceber como o texto vai guiando as reaes do leitor e j me preocupo com o leitor abstrato, o que significa que, ento, vrias impresses muito particulares sero descartadas. Uma das muitas diferenas entre a estilstica de Bally e a de Dmaso Alonso que Bally se voltava para o estudo da afetividade, utilizando as construes lgicas, intelectivas, para o contraste que possibilitaria o mapeamento das expresses afetivas. Para Dmaso Alonso, interessado em compreender a construo do texto potico com o fim de apontar traos do estilo individual, o elemento lgico deve ser observado, j que faz parte da composio do estilo.
Todos esses elementos, o imaginativo, que nos abre janelas interiores, o afetivo, que como um vento trmulo as transpassa, e o lgico, que tudo constri, informa, vincula e dirige em sentido, formam um complexo que o que penetra na mente do leitor e suscita essa intuio individual: que exatamente a compreenso da obra. No h como separar o que est indestrutivelmente unido. 38
Seguindo a orientao de Dmaso Alonso, tambm considero o aspecto lgico como elemento de anlise, uma vez que responsvel pela construo do sentido no texto. Naturalmente, s vezes os elementos afetivos, imaginativos e lgicos so analisados separadamente. Isso porque o intuito entender a construo do texto, mas de maneira nenhuma se deve conceber a significao global do poema separando-os. Antes de partirmos para as leituras dos poemas, convm lembrar que utilizo o termo imagem com dois sentidos complementares. A imagem pode surgir como sinnimo de texto, referindo-se ao poema como um todo. E tambm usada para designar os recursos lingsticos que produzem sentido e que se combinam para compor a significao geral do poema. Freqentemente, utilizo essa palavra para fazer meno ao sentido de uma construo vale reiterar que o sentido considerado como parte da forma e vice-versa. A imagem tambm inclui uma referncia ao aspecto visual do efeito de sentido. Na poesia de Alberto da Cunha Melo, a representao do que se v sobressai, especialmente pelo inusitado das conexes estabelecidas em suas metforas. O acentuado apelo pictrico das imagens se associa, ainda, ao tom narrativo recorrente em vrios poemas.
38 Todos estos elementos, el imaginativo, que nos abre cmaras interiores, el afectivo, que como un viento trmulo las traspasa, y el lgico, que todo lo construye, informa, vincula y dirige en sentido, forman un complejo que es lo que penetra en la mente del lector y suscita all esa intuicin individual: que es exactamente la comprensin de la obra. Ni hay manera de separar lo que est indestructiblemente unido. (1966, p. 489)
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Para facilitar a leitura das anlises
Em anexo, h um envelope com cpia dos prximos poemas. Nessas cpias, os versos esto enumerados. Utilize-as para acompanhar as anlises, j que a todo instante h referncia a partes dos poemas.
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3.1 Reverberaes a partir da imagem de um rio
A palavra potica no uma bela palavra nem essncia nem Idia. uma palavra como qualquer outra, sempre duplamente ligada: ao contexto prximo por uma cadeia horizontal, aos longnquos, por uma cadeia vertical sua memria. Meschonnic (2002, p. 51)
O poema que vamos ler explicita o discurso da memria. Memria afetiva, de um eu que olha para seu passado. Esse tipo de discurso no muito recorrente na obra de Alberto da Cunha Melo, que tende a construir as imagens como se fizessem mais parte da memria do leitor do que do eu lrico. Mesmo assim, vale ser analisado, pois por meio dele possvel verificar uma maneira de se estabelecer a reverberao de imagem, responsvel no apenas pelo estabelecimento da conciso mas pelo carter sedutor da poesia. O vocabulrio e a sintaxe cotidianos so elementos chave para a construo de um discurso que comunica e atua sobre a sensibilidade do leitor. O poema a ser analisado toca pela descrio precisa do olhar da criana sobre a realidade. Olhar que retomado pelo adulto e, por isso, imbudo da emoo do recordar. Mesopotmia um dos Poemas Anteriores e, portanto, apresenta forma tpica da primeira fase: cinco quartetos octosslabos sem rima. O poema se constri em torno da lembrana de um rio. A partir dele, o eu lrico reconstri uma parte de seu passado e, medida que a imagem do rio vai se tornando mais concreta, o tom reflexivo se intensifica, at que o rio inicial se desdobra em outros rios e, por fim, surge de modo mais afetivo, atravs do diminutivo, riozinho, e assume uma significao mais abrangente para simbolizar a maneira como o eu lrico interpreta sua realidade e o mundo a sua volta.
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Mesopotmia
Perto de minha casa um rio seguia rumoroso e pobre, mas sempre havia quem buscasse um seixo, um peixe, uma lembrana.
Eram meninos e eram homens muito mais pobres do que ele, curvados sobre a gua escura mesmo sob o sol de dezembro.
Pequenos caracis, viscosos abrigos de um destino s na infncia, a percorrer as lguas de schistosoma e solido.
noite, eu pensava que o mundo era composto s de rios e de crianas que tentavam a todo custo atravess-los.
E ningum me explicava nunca que na verdade, em minha vida, apenas um riozinho de guas, sempre escassas, corria perto.
De acordo com Henri Bergson, o presente a atitude em face do futuro imediato, ou seja, uma ao iminente e, portanto, sensrio-motor. Do passado, apenas se torna imagem o que for capaz de colaborar com essa ao. E to logo se transforma em imagem, o passado deixa o estado de lembrana pura e se confunde com uma parte de meu presente. Para ele, a lembrana atualizada em imagem diferente da lembrana pura, uma vez que esta ltima no se vincula ao presente. A imagem um estado presente, e s pode participar do passado atravs da lembrana da qual ela saiu (1999, p. 164). Em Mesopotmia, o passado se transforma em imagem e culmina em uma reflexo sobre o presente, no apenas no plano do indivduo mas tambm no contexto de uma realidade social. A prpria reconstruo do passado serve para criar um estado presente do eu lrico, que repensa seu lugar no mundo. Essa reflexo tomada de emoo intensa, pois acorda, no homem, o menino que ele foi. Os verbos no pretrito perfeito do indicativo so responsveis por conferir ao texto o tom da lembrana e apresentar as imagens como se fossem revividas no momento exato da leitura. Alis, essa forma verbal habitualmente caracterizada como a forma do passado revivido, como um presente do passado (BECHARA, 2000, p. 277).
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O poema contm dois momentos distintos. As trs primeiras estrofes apresentam a imagem do passado com pouca interferncia do eu lrico, reproduzindo as cenas recordadas como se elas se repetissem diante dos olhos do leitor. Essa primeira parte mais descritiva. As duas ltimas estrofes assumem um tom mais reflexivo, e expem os sentimentos do eu lrico sobre o passado revivido, embora permanea o discurso da memria. importante observar como a diviso dos contedos pelas estrofes segue um encadeamento preciso. Cada estrofe compe uma imagem fechada, que se desdobra e reverbera na seguinte. E o tom emotivo da recordao se estrutura por uma organizao lgica, que se expressa na composio estrfica e no uso da pontuao e dos conectivos uma das caractersticas centrais do estilo de Alberto da Cunha Melo. Apesar dos versos octosslabos, no h uma rigidez no que respeita ao ritmo; s vezes o acento recai sobre a segunda slaba, outras na terceira, na quarta ou na sexta, o que preserva o ritmo da fala a ordem fixa, mas o ritmo fluido. A ordem direta predomina. Existem algumas inverses de sintagmas adverbiais, mas sabemos que esse tipo de inverso natural na linguagem cotidiana. A simplicidade no uso da sintaxe, o vocabulrio comum e o ritmo prximo da prosa colaboram para sugerir o discurso menos rebuscado da criana. Esse recurso acentua a expressividade das imagens, que se mostram de modo transparente aos olhos do leitor, que visualiza a realidade passada do eu lrico e compartilha o sentimento de descoberta, saudade, compaixo, amor, enfim, essa mistura de sensaes suscitadas pelas lembranas. Mas de modo algum essa simplicidade de forma produz um poema simples, pois a carga de significados grande e h muitas conexes por fazer. A temtica social surge na figura do rio e das crianas pobres, mas o tom nostlgico do texto e a reflexo filtrada pelas imagens guardadas desde a infncia impedem que o poema se restrinja denncia social e chamam a ateno para a experincia vivida, o que faz com que o envolvimento afetivo do leitor seja mais intenso. O metro octossilbico, embora contendo o ritmo da fala, instaura uma cadncia que, com a repetio dos sons fricativos, nasais e laterais, reproduz o movimento fluido do rio, que se confunde com o fluxo da lembrana, estabelecendo uma melodia leve e melanclica, prpria da reflexo que se mistura ao sentimento. Ao lado da simplicidade da sintaxe e do vocabulrio, o poema vai tranando recursos lingsticos sutis que criam a sensao de que uma imagem vai brotando de outra, como se reproduzisse o prprio movimento do recordar.
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Perto de minha casa um rio seguia rumoroso e pobre, mas sempre havia quem buscasse um seixo, um peixe, uma lembrana.
Na primeira estrofe, o rio apresentado como figura central. O sintagma adverbial Perto de minha casa j denuncia o envolvimento afetivo do eu potico com o rio, que no um rio qualquer, mas situado prximo de sua casa. Assim, o rio compe o pequeno cenrio de sua infncia. O fato de o termo finalizar o primeiro verso deixa-o em evidncia, como se o poema desenhasse um quadro a partir da representao do rio. O segundo verso continua a descrev-lo: seguia rumoroso e pobre. O uso do verbo confere dinamismo imagem, e rumoroso e pobre, como predicativo e no adjunto, no descreve o rio em si, mas o modo como seguia, o que d mais vida ao rio, que parece ter vontade prpria. Desse modo, com o adjetivo rumoroso, que desperta a lembrana auditiva, a memria vai se detalhando e se tornando mais forte. O adjetivo pobre, relativo s guas escassas (vocbulo que surgir apenas no ltimo verso) estabelece um contraste com o ttulo, que evoca a grandiosidade das civilizaes mesopotmicas, estruturadas em torno de grandes rios. Esse contraste se intensifica ao longo do poema. A combinao entre rumoroso e pobre une dois planos de significao distintos. Um apela mais descrio fsica, com poucas guas, o outro, embora colabore para compor o aspecto visual do rio, tem uma significao mais abstrata e se relaciona a sua utilidade: provavelmente no tinha muitos peixes. Essa combinao enriquece a descrio e, ao juntar planos distintos da memria, associa a eles a avaliao do eu adulto: no possvel saber se para o menino era relevante o fato de o rio ser pobre. Talvez essa seja uma considerao do adulto. De todo modo, o termo pobre salienta seu envolvimento afetivo, pois explicita um juzo. O termo rumoroso que assume um importante papel expressivo, pois contribui para reproduzir, por meio da combinao dos fonemas [r], [m] e [z], o barulho do deslizar do rio no um termo comum fala da criana, mas do adulto, o que ressalta a interferncia do presente na reconstruo do passado. A imagem do rio rumoroso sugere um rio pequeno, com muitas pedras e galhos contra os quais se chocam suas guas, fazendo rudo. Assim, a idia da pobreza torna-se mais evidente. Atravs da metonmia, o rumor do rio tambm pode se referir ao barulho feito pelas pessoas que o freqentam, o que reverbera na descrio posterior. A conjuno adversativa mas explicita o raciocnio organizador do discurso afetivo e introduz o outro elemento importante na composio das imagens: o humano, que ainda no
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aparece nomeado, porm j surge como algum que busca superar as limitaes do rio: mas sempre havia quem buscasse/ um seixo, um peixe, uma lembrana. O verbo buscar reala a disposio de esprito dessas pessoas, sua crena em encontrar algo, mas no diz se conseguiam o que procuravam. No o que encontravam no rio que importava, mas a busca, mesmo com as dificuldades. Apesar de representarem os objetos de busca, os itens enumerados caracterizam o prprio rio a prpria sonoridade dos versos trs e quatro, com predomnio de sons sibilantes, presentifica o fluir das guas. A enumerao inicia-se com seixo, o elemento mais duro, mais frio, mais seco, salientando sua pobreza: devia ser muito raso. A slaba final de buscasse, no verso anterior, se repete no incio da palavra seixo, instaurando uma reverberao que sugere o desdobramento da lembrana e acentua a relao entre a busca e o objeto desejado. O som final de peixe expande a reverberao, ecoando o som final de seixo, como se o prprio som despertasse a memria mas peixe representa a vida, embora escassa, presente no rio. O termo lembrana pode abarcar os dois anteriores, no sentido de souvenir, o que ressalta a pobreza do rio, que no tem muito mais a oferecer. Mas tambm pode ser tomado em seu sentido abstrato de recordao. Nesse caso, o rio cresce, uma vez que se liga afetivamente vida das pessoas, e adquire sentido metafrico, como o prprio fluir do tempo e da vida. Sabemos que rio comporta uma srie de valores simblicos associados ao fato de ser sempre o mesmo e sempre diferente, devido ao fluxo contnuo das guas. De todo modo, o eu lrico repete a ao daquelas pessoas, uma vez que nesse rio, refeito pela imagem, que vai colher suas prprias lembranas. Posicionada logo aps a referncia a um peixe, a expresso uma lembrana passa a evocar, ainda, um momento anterior do rio, quando suas guas eram mais abundantes cheias de peixes, o que projeta o olhar para um passado mais remoto, anterior mesmo ao da recordao. Dessa maneira, o poema estabelece um recuo maior no tempo, a um passado idealizado, mtico at, das grandes narrativas, o que se articula com o imaginrio que recria a Mesopotmia como um lugar de grandes personagens e conquistas. Os sons abertos de lembrana estabelecem um contraste com as vogais predominantemente fechadas da estrofe, que se articulam com a imagem do rio pequeno e pobre. O uso dos determinantes em um seixo, um peixe, uma lembrana, que podem ser lidos como numerais, intensifica a idia de pobreza; lidos como artigos indefinidos, destacam a incerteza das pessoas que procuram por esses elementos. Assim, ao finalizar a estrofe, o vocbulo lembrana deixa reverberando uma sensao de busca por amplitude e contribui para dar nfase descrio do homem, com seu desejo de transcender as dificuldades de seu presente.
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A segunda estrofe d seqncia elaborao da imagem focalizando o humano, delineando o movimento da memria do eu potico, que busca por detalhes.
Eram meninos e eram homens muito mais pobres do que ele, curvados sobre a gua escura mesmo sob o sol de dezembro.
Nessa estrofe no h verbos de ao em sua forma finita, sobressai o carter esttico da descrio, como se um quadro fosse pintado. A conjuno aditiva no primeiro verso assume valor ambguo, pois pode simplesmente adicionar, meninos com homens freqentavam juntos o rio, mas tambm pode indicar o correr do tempo, insinuando que esses meninos passavam a vida no rio, at se tornarem homens, adultos. Essa segunda leitura sugerida no apenas pela ordem, que chama a ateno para os meninos, que o que mais fica marcado na memria do eu lrico, mas pela repetio do verbo; essa interpretao no seria possvel se tivssemos: eram meninos e homens. A conjuno ainda permite interpretarmos que esses eram meninos e homens ao mesmo tempo, ou seja, eram crianas que, devido condio de misria em que se encontravam, viviam como adultas, gastando sua infncia com a luta pela sobrevivncia imagem que se intensificar nas duas estrofes seguintes, com a idia de abandono. Os versos seguintes servem de predicativos desses novos sujeitos. Inicialmente, so descritos como muito mais pobres do que o rio que continua a compor o centro da imagem a partir do qual novos detalhes so acrescentados. A comparao destaca a pobreza das pessoas, que, como ser sugerido, dependem do rio pobre para sua subsistncia. O terceiro verso curvados sobre a gua escura evidencia a memria visual do eu lrico. A descrio das pessoas curvadas sobre as guas pode insinuar que elas ficassem margem do rio ou mesmo dentro dele, o que refora a idia de que era um rio raso. Independentemente da imagem que o leitor crie em sua mente, sobressai o fato de estarem curvados sobre o rio, o que demonstra o gesto de reverncia e submisso, como se estivessem diante de um deus ou de um rei. Essa idia frisa a importncia do rio na vida dessas pessoas e, como veremos adiante, se articula com o ttulo do poema. A ausncia de um verbo de ligao combinado a curvados exclui a noo de tempo, contribuindo para a estaticidade e o carter singular da imagem; ao mesmo tempo, sugere uma cena habitual, que se repetiu por toda a infncia do eu lrico. A reiterao das vogais fechadas, acentuadas pela consoante palatal [k], reproduz a idia de escurido, presente na descrio da gua.
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A gua escura reproduz a imagem do rio lamacento, que, portanto, no pode conter muitos peixes. Pela aluso s guas escassas e escuras, desenha-se uma paisagem de mangue, onde as pessoas vo em busca de caranguejos ou outros crustceos. O poema no faz meno a isso, o que refora o carter visual da memria, tornando-a mais afetiva, e refora a idia de pobreza, pois o rio parece ter apenas pedras e lama. A escurido da gua tambm sugere, metaforicamente, a falta de perspectiva, a incerteza que ronda a vida dessas pessoas. Essa idia soma-se de sujeira, misria, imagem que reverbera na estrofe seguinte. Tambm pode remeter obscuridade da memria, embaada pelo tempo. Pode remeter, ainda, s guas primordiais, infncia da humanidade, j que seu incio envolto em mistrio, sentido marcante no adjetivo escura essa idia se liga ao ttulo, que evoca o nascimento da civilizao. O ltimo verso apresenta um adjunto adverbial que pode caracterizar tanto a gua, escura mesmo com toda a claridade de dezembro, quanto meninos e homens, que se curvam sobre o rio apesar de todo o calor, de todo o desconforto do sol de dezembro queimando suas peles. O sintagma preposicional modificando sol no apenas apresenta uma referncia temporal, mas leva ao extremo sua luz e calor. Neste ponto, importante lembrar que a paisagem se torna mais expressiva se inserida no contexto do vero nordestino, onde o sol parece mais forte, criando um ambiente hostil, que fere, castiga. importante salientar que a aluso ao ms de dezembro est mais atrelada ao tempo cclico, das estaes, do que sucesso dos dias no ano, o que contribui para reproduzir a memria viva e ao mesmo tempo imprecisa do eu lrico, reforando o carter visual, sensorial, e afetivo da imagem. Nessa estrofe, a idia de dificuldade, obstculo, intensificada pela recorrncia do som [br], em pobres, sobre e dezembro. O uso do conector concessivo mesmo, denunciando a organizao lgica do texto, refora a atitude do eu lrico com relao a essas pessoas, que marcaram por sua tenacidade e pela condio de misria em que viviam. interessante notar que os sintagmas preposicionais sobre a gua escura e sob o sol de dezembro esto em posio equivalente no verso. O contraste entre as preposies sobre e sob evidencia o vnculo do homem com seu meio, salientando sua submisso e dependncia. Alm disso, apresenta uma escala em que o rio tambm se submete fora do sol, que atua para deix-lo mais pobre.
Pequenos caracis, viscosos abrigos de um destino s na infncia, a percorrer as lguas de schistosoma e solido.
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A terceira estrofe d continuidade descrio da imagem das pessoas no rio. O carter descritivo permanece e a falta de verbos na forma finita privilegia o visual, conservando a estaticidade da cena. Os caracis retomam metaforicamente o gesto dos meninos e homens curvados, compondo uma reverberao da primeira imagem. Ao mesmo tempo, os pequenos caracis, literalmente, podem ser o objeto da busca dessas pessoas. A expresso viscosos abrigos expressa o contraste entre o elemento acolhedor do rio e seu aspecto de rio sujo, que causa repulsa e desconforto. Em viscosos, tem-se, ainda, a idia de instabilidade e perigo, que caracteriza a vida das pessoas, uma vez que o visco atrapalha o equilbrio, criando uma superfcie escorregadia. A inverso entre adjunto e substantivo deixa em evidncia o termo viscosos, que pode se referir, por meio da metfora, s prprias pessoas, como se o visgo recobrisse seus membros, transformando-os em parte do rio, como se fossem uma coisa s 39 . Afinal, unindo a imagem do rio e das pessoas que o eu lrico retoma o passado. O verso seguinte direciona a leitura para a imagem dos caracis como casas, abrigos. A referncia casa do eu potico inicia o poema, depois, o rio descrito como um lugar que abarca formas de vida, incluindo, especialmente, o homem. Agora surge a referncia ao caracol como um abrigo. Por ser mais genrico, este ltimo termo retoma as imagens anteriores, e expressa o ponto de vista do eu lrico, que organiza as lembranas por meio da relao entre o espao e o que ele abarca. Ao mesmo tempo, os caracis so a menor casa nesse sentido, o verso abrigos de um destino s pode ser interpretado como abrigo de uma nica vida. Cria-se, ento, um contraste semntico entre o carter genrico do termo abrigo e o carter restrito do caracol, que no pode abarcar muitas formas de vida. Esse contraste reproduz a viso da criana, que interpreta o mundo a partir do seu contexto mais restrito e aos poucos percebe que formas maiores abarcam formas menores. Assim, a reflexo que vai se formando enfoca nossa relao com o espao onde vivemos, e o universo visto como uma casa, que abarca outras casas, que abarca outras casas... Essa leitura se confirma posteriormente, quando o eu lrico relaciona a imagem do rio sua compreenso do mundo. A imagem explicita, de maneira sutil, a interferncia da conscincia adulta, o que se revela especialmente pelo uso do vocbulo infncia, no usual no discurso da criana. O termo s, concluindo o verso, fica em evidncia e, lido como um adjunto de destino, j adianta a idia de solido que se expressa logo adiante. A ligao com o verso seguinte permite que interpretemos o termo como um advrbio equivalente a apenas, ligando-se ao
39 Como dito anteriormente, essa representao do homem fundido com a natureza recorrente na obra de Alberto da Cunha Melo.
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sintagma na infncia. Essa ambigidade sinttica e lexical causa um estranhamento. Por um lado, temos a impresso de uma infncia solitria, sem amparo, o que refora a idia de misria e abandono. Por outro lado, associado ltima orao da estrofe a percorrer as lguas/ de schistosoma e solido, o trecho pode sugerir que o destino do indivduo se reduz infncia, encurtado pela doena e pela morte. A combinao entre os termos schistosoma e solido enriquece a imagem dos caracis. Sabemos que o caracol serve de abrigo para o verme que transmite a esquistossomose, doena provocada pela falta de saneamento, portanto, tpica em regies mais pobres. A doena, tambm conhecida por xistose, mal do caramujo, barriga dgua, provocada pelo verme que entra pela pele atravs da gua contaminada e pode causar uma srie de reaes: diarria, pruridos sobre a pele, tontura etc; se no tratada, pode levar morte. O ciclo desse verme garantido pelo depsito de fezes contaminadas perto dos rios. Com isso, a idia de solido, alm de caracterizar as pessoas trabalhando isoladas no rio, remete ao abandono das autoridades pblicas. A juno de schistosoma e solido causa impacto, pois schistosoma no faz parte do lxico da poesia, ao passo que solido facilmente associado ao discurso potico. Esse contraste marca a reflexo do adulto, que no apenas relembra, mas interpreta a realidade difcil daquelas pessoas que se caracterizam pela pobreza. Desse modo, o passado, embora imbudo de afetividade, no transformado em um paraso sem defeitos, o que comum acontecer em textos desse tipo. A imagem dos Pequenos caracis sugere beleza e delicadeza, e amplia o impacto da descrio posterior, que introduz a idia da doena degradante, que causa asco. O prprio homem pode ser visto como abrigo do verme que o consome, e se torna viscoso medida que expele as secrees associadas doena. O que parecia uma imagem delicada e singela, de pequenos caracis cheios de musgo, torna-se grotesca. A palavra schistosoma, em latim, equivale ao nome cientfico do verme, o que revela o discurso do adulto. Ao mesmo tempo, a opo por essa forma lexical, associada recorrncia da sibilante [s], nessa terceira estrofe, colabora para reproduzir, no plano sonoro, a sensao de viscosidade provocada pelos viscosos abrigos, reforando a sensao de um rio espesso, sujo, de difcil travessia. Os caracis que abrigam um destino criam uma figura expressiva, como se todo o futuro daquelas pessoas coubesse nos frgeis limites da concha, o que intensifica o sentimento de compaixo por elas. interessante observar a recorrncia da vogal arredondada [o], o que no apenas contribui para intensificar a sensao de escurido, das guas e dos destinos, mas reproduz a forma redonda do caracol e dos seres curvados sobre a gua.
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Na estrofe seguinte, o sintagma adverbial noite instaura um outro momento. Evidencia-se, agora, o tempo do recolhimento, expresso pelo verbo pensar. Nesse instante, o eu lrico conta como apreendia as imagens que marcavam o seu dia. O pronome eu, junto com o verbo pensar, exprime a realidade interior do eu potico. A partir da, a linguagem mais subjetiva e a imagem do eu-criana se mostra mais ntida. O termo s se repete, como se ecoasse desde a estrofe anterior, reverberando, ainda, por meio de schistosoma e solido, intensificando a idia de pobreza e abandono. Na ltima estrofe, o som j no reverbera, mas a idia de privao repercute em apenas e escassas. A realidade presenciada durante o dia era o nico contato do garoto com toda a sua existncia. A partir da, acentua-se o contraste entre o menino e o adulto, que j v o mundo de outra maneira. O termo composto, prprio do vocabulrio adulto, frisa a interferncia do presente sobre a lembrana e amplia a reflexo. O substantivo no plural, rios, retoma a imagem descrita anteriormente e salienta a importncia do rio, a partir do qual o eu-criana formava sua viso do mundo todo. O vocbulo no plural faz com que voltemos ao rio da infncia e o reinterpretemos. O primeiro rio se desdobra em vrios e, preservando seu aspecto visual, passa a representar toda uma estrutura de vida. O olhar do adulto contrasta com o da criana, pois, para ela, o rio, com sua misria e abandono, abarca uma nica maneira de se viver. J o adulto sabe que esse modo de vida se ope a outros. Tambm sabe de outros rios e outras histrias. E compreende que o luxo de uns que permite a misria de outros. A criana percebe a desigualdade, mas essa percepo no a mesma do adulto. A imagem das crianas que tentavam/ a todo custo atravess-los adquire vrias conotaes, pois reproduz literalmente a cena dos meninos no rio e, ao mesmo tempo, sugere a busca pela sobrevivncia, como se o rio contaminado fosse um grande obstculo a ser ultrapassado. A idia de tentar chegar outra margem chama a ateno para a luta por atingir outra realidade. O atravessar o rio simboliza, ainda, chegar vida adulta, o que, devido ao abandono, no era alcanado por vrios dos meninos que retornam mente do eu lrico. O termo todo intensifica a expresso a custo, que j indica dificuldade e reproduz a realidade difcil daquelas crianas. A aliterao dos sons oclusivos, especialmente da dental surda [t], contribui para sugerir a idia de dificuldade e obstculo. A ltima estrofe iniciada pela conjuno E, que assume valor adversativo e expressa forte envolvimento emocional, indicando surpresa, indignao, saudade parece que toda a carga afetiva envolvida na atividade de reconstruir o passado emerge nesse conectivo. O mesmo efeito de sentido se perderia com uma conjuno mais intelectiva, como mas, por
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exemplo. O uso de ningum e nunca reforam a sensao de solido do prprio eu, que teve de descobrir sozinho o seu lugar no mundo. O olhar do adulto se intensifica e o rio j referido como riozinho, como se diminusse de proporo diante dos olhos do adulto, alm de assumir valor afetivo. O termo apenas pode equivaler a simplesmente e somente. No primeiro caso, sugere a descoberta de que o mundo no composto s de rios..., sugere a descoberta de que o eu lrico criana via o mundo daquela forma simplesmente porque havia um riozinho correndo perto de sua casa. Na segunda leitura, supe a pobreza do prprio eu lrico, que somente tinha um riozinho de guas escassas correndo por perto, como se sua vida se reduzisse s escassas possibilidades oferecidas pelo rio. O termo perto, sem complemento, indica que o rio, com toda sua significao, acompanha o eu lrico ao longo de sua vida. O poema inicia-se e conclui-se com essa palavra, o que refora a idia do rio, ou dos rios, que limita(m) a vida. Essa leitura se associa ao ttulo do poema: Mesopotmia, que literalmente significa entre rios, como se o rio da infncia e o mesmo rio lembrado pelo adulto fossem rios diferentes. Mesopotmia o nome da regio entre os rios Tigre e Eufrates, considerada o bero da civilizao. Aos povos mesopotmicos se atribuem a descoberta da escrita, a elaborao do primeiro cdigo de leis, Hamurabi, a construo do primeiro veculo sobre rodas etc. Hoje equivale ao territrio do Iraque, cenrio de infindveis conflitos. Tem-se o contraste dos olhares da criana e do adulto. Para a criana, que desconhecia a existncia da Mesopotmia histrica, a civilizao toda eram as crianas que via no rio. Para o adulto, que conhece a histria da humanidade, Mesopotmia serve de parmetro para reavaliar seu lugar no mundo, e incluir-se dentro de uma tradio milenar, em que o progresso est vinculado desigualdade, explorao e guerra, em diferentes planos. Os registros arqueolgicos que permitem uma reconstruo da Mesopotmia so o que possibilitam o vnculo do homem com o seu passado e favorecem material para refletir sobre sua condio. Mas esse passado apenas acessvel por meio de resduos, do que sobrou da atuao destrutiva da natureza e dos homens. O poema aborda, ento, a memria como um aspecto do humano. J no se trata apenas do recordar de um indivduo, mas de uma reflexo sobre a maneira como o homem se relaciona com seu passado e sua necessidade de estabelecer vnculos idia sugerida na imagem da primeira estrofe: mas sempre havia quem buscasse/ um seixo, um peixe, uma lembrana. O rio da infncia, que marca o incio da vida do eu lrico, re-significa a imagem da Mesopotmia. E a Mesopotmia do adulto, bero da civilizao, d novo significado ao rio da
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infncia. Este prprio entre dois rios simblicos: o da realidade vivida no passado e o da realidade revivida no presente. O plano existencial se amplia, pois, com a passagem para a vida adulta, o homem se reconhece como parte de algo maior, no que se refere ao tempo e ao espao. O mesmo ato de se procurar por um souvenir que remeta a um momento especial do passado de uma pessoa se reproduz no comportamento do arquelogo que vasculha por fragmentos que nos liguem a um passado remoto. Nesse sentido, memria e histria se reconhecem. No poema, tem-se a expresso de um homem, no sentido mais amplo, uma vez que no h marca de gnero, o que facilita a identificao do leitor, homem ou mulher, com o poema. Ao contar sua histria, esse indivduo conta inevitavelmente a histria da humanidade, pois um parte do outro. O homem procura reconhecer-se. Mas a busca pelo passado, ao mesmo tempo em que reflete a busca por si mesmo, leva inevitavelmente a um outro, pois o homem de hoje j no o mesmo do passado, mesmo quando se esfora para reconstruir o menino que foi. Entretanto, o prprio ato de lembrar nos prende a ns, pois reconstrudo em funo do momento presente. A imagem dos homens curvados sobre as guas representa a repetio da histria, que coloca o rio como elemento central na subsistncia humana sabemos que, para vrios povos mesopotmicos, o rio era visto como algo sagrado, representado por vrias divindades. Ao mesmo tempo, as guas desse riozinho so sujas. A descrio da precariedade, da pobreza, evidencia a degradao dos homens que, aps sculos de histria, cultura, conhecimento, continuam vivendo como animais judiados, pela natureza e, o que choca mais, pelo prprio homem, por meio da idia do abandono, da misria. Vale notar o advrbio sempre, que ocorre na primeira estrofe e reverbera na ltima. Seu uso evidencia a construo da memria, em que o tempo surge de certo modo esttico e prolongado. Denuncia, ainda, o tempo como um tema central do poema. Porque o tempo condio da memria. Essa idia est na base da imagem do rio, sempre o mesmo e sempre outro, contradio evocada ao longo do poema, na busca de identidade expressa pelo eu que recorda. Assim, a reflexo se volta para o que passa e o que permanece. A Mesopotmia teve seu momento de glria e hoje evocada por meio de fragmentos. Ao mesmo tempo, os homens continuam e do seqncia civilizao. O eu lrico marca sua subjetividade por meio do pronome possessivo minha casa, minha vida e pelos pronomes pessoais eu pensava, me explicava. O possessivo reflete a noo de pertencer, importante para o estabelecimento da identidade. Os pronomes pessoais
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apontam para a participao do sujeito na sociedade. As duas ocorrncias dos pronomes pessoais se do com verbos relativos busca de compreenso. Em eu pensava, o sujeito ativo e o verbo intransitivo marca a individualidade, o atuar sozinho. Em ningum me explicava, o pronome indefinido ningum ressalta o sentimento de abandono do eu lrico, o qual se intensifica com o advrbio nunca, que tambm contribui para evidenciar uma certa noo esttica do tempo. Em contrapartida, o pronome objeto ressalta a relao do eu com o outro. Assim o eu vai se colocando na sociedade. O interessante que essa busca de si mesmo, prpria do ato de recordar, apresenta um sujeito voltado para fora. O garoto surge, nas quatro primeiras estrofes do poema, como um observador, que constri uma imagem de seu entorno. Apenas na ltima estrofe, quando o discurso adulto se torna mais evidente que o olhar se volta para o eu, que avalia sua prpria vida. Mas nesse momento a noo de eu j est completamente fundida com o que est fora, com o social. Na ltima estrofe, a expresso minha casa, do primeiro verso, reverbera na estrutura equivalente: minha vida, o que reitera o tom reflexivo do poema e marca a passagem do concreto para o abstrato, reproduzindo o amadurecimento do raciocnio. A voz da criana substituda pela voz do adulto. E o ritmo fica mais pesado, como se o cansao do homem envelhecido se impusesse. vlido notar a importncia das vrgulas para produzir esse efeito. As pausas quebram a fluidez do ritmo, indicando o despertar, o sair do embalo da memria. As pausas so propcias para aprofundar a reflexo, conduzindo a um silncio pleno de significados; especialmente a vrgula depois de verdade salienta a busca por compreenso, fazendo com que a ateno se fixe sobre os sentidos desse vocbulo, e est plena de sentimentos, os quais so apenas parcialmente penetrados pelo leitor. A suspenso, ainda que instantnea, da voz reproduz um estado de total entrega emoo. A expresso adverbial minha vida, entre vrgulas, tambm recebe destaque, como se abarcasse todo o peso da noo de si mesmo e de seu estar no mundo. Desse modo, o poema termina com uma indagao sobre a prpria existncia e a fragilidade da vida. Pois o rio que corre perto um rio de guas escassas, lembrando que gua o smbolo da vida por excelncia. A vrgula fechando o verso 19 a que causa mais estranheza, pois isola a expresso apenas um riozinho de guas, o que faz com que o adjunto de guas seja interpretado sem a expresso seguinte (explicativa e no restritiva, o que seria mais comum). Assim, as guas adquirem uma profundidade de smbolo. No plural, as guas, sugerem a passagem do tempo, aludindo s diversas experincias de vida do eu lrico. E se associam emoo, lgrima. Essas idias, aliadas s imagens relacionadas pobreza e ao abandono, evocam uma vida de
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sofrimentos, o que se articula com a melodia triste do poema. E a dor do eu lrico se mescla do outro. O termo perto ressalta esse sentimento de vnculo com o outro, pois aproxima o eu da realidade que descreve. Ao finalizar o poema, adquire uma multiplicidade de sentidos, os quais foram se somando ao longo do texto. Agora surge sem o complemento, o que confere um peso maior ao significado de estar perto. A referncia ao espao enfraquecida. O aspecto visual to marcante na descrio do rio se atenua e a ele se sobrepe uma intensa carga afetiva. Com isso, o carter simblico do rio ganha fora. O uso repetido de perto ilustra a reflexo estabelecida sobre a passagem do tempo e seus desdobramentos: sendo o mesmo vocbulo que se repete, j outro, considerando que assumiu sentidos no ativos na primeira ocorrncia. Essa palavra abarca a noo de espao e de tempo. Perto evoca o que est a uma curta distncia. O eu se coloca como centro, ele o ponto de referncia, o que refora sua identidade. E a partir desse centro que sua noo de espao vai se ampliando: primeiro era s o rio da infncia, depois esse rio se somou a outros e mais outros, levando a uma compreenso mais profunda de sua existncia. O contexto que acompanha o eu lrico um contexto de luta pela sobrevivncia, em uma sociedade desigual, cujo padro se repete em diferentes tempos e espaos. O rio que corria perto tambm alude aos vrios momentos de travessia, de transcendncia, que permitiram o crescimento do eu lrico e explicam seu sofrimento. Mas tambm pode indicar a morte, sempre prxima. Desse modo, perto, iniciando e finalizando o poema, compe a imagem dos dois rios que limitam a existncia humana, o rio do nascimento e o rio da morte (cf. CHEVALIER & GHEERBRANT, 1995, p. 780). Por fim, vale observar a forma verbal ligada ao riozinho na concluso do poema. A imagem do rio reverbera, ainda que enfraquecida, na sonoridade de corria, como se a prpria memria, to viva, fosse se apagando para restar, apenas, o sentimento forte de dor, compaixo e o que mais o poema tiver suscitado no leitor.
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3.2 A imagem e o encadeamento de metforas
Paul Ricoeur caracteriza a metfora como o processo retrico pelo qual o discurso libera o poder que algumas fices tm de redescrever a realidade. A partir disso, afirma que o lugar da metfora no est no nome, como propunha Aristteles, nem na frase e nem no discurso, mas na predicao realizada pelo verbo ser. O metafrico significa a um s tempo no e como. Se assim , somos levados a falar de verdade metafrica, mas em um sentido igualmente tensional da palavra verdade. (2000, p. 14) A metfora oferece, para Ricoeur, um novo insight da realidade e sua mensagem intraduzvel. Para estud-la, o filsofo prope a combinao da semntica com uma teoria psicolgica da imaginao e do sentimento. Segundo ele, a linguagem potica no diz menos a respeito da realidade do que qualquer outro uso de linguagem, mas refere-se a ela por meio de uma estratgia complexa que implica, como componente essencial, uma suspenso e, analogamente, uma anulao da referncia comum ligada linguagem descritiva (1992, p. 154). Desse modo, o sentido metafrico resulta da tenso do sentido e da referncia literal com o novo sentido e a nova referncia. Analogamente, a metfora induz a uma suspenso e reorganizao dos sentimentos, que acompanham e completam a imaginao na sua funo de esquematizao da nova congruncia predicativa (1992, p. 157). Os sentimentos suspensos so corpreos, de primeira ordem, ligados significao literal. O sentimento novo transcende o fsico, e afina-se com a prpria estrutura verbal. Ao desenvolver essa idia, Ricoeur retoma Northrop Frye, para quem a unidade de um poema a unidade de um mood, ou seja, de um sentimento. possvel associar esse novo sentir ao prazer esttico que, com Hans Robert Jauss (1979), pode ser entendido como a participao e apropriao de uma experincia alheia. Donald Davidson (1992, p. 49) assume uma postura radical ao afirmar que: Devemos desistir da idia de que a metfora transporta uma mensagem, isto , de que tenha um contedo ou significado (exceto, lgico, seu significado literal). Para ele, a metfora sugesto, e sugesto no significado. Em resposta a Davidson, Max Black (1992), que, com Ricouer, relaciona o sentido metafrico a um novo insight da realidade, defende a idia de que as metforas podem ser usadas para fazer asseres, podem ser aceitas ou rejeitadas pelos ouvintes, o que significa que, de fato, elas carregam alguma informao alm do sentido literal.
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Embora a linguagem metafrica atue por uma relao de semelhana, nenhum desses tericos aceita a interpretao generalizada de que a metfora um smile comprimido, pois os mecanismos envolvidos na produo da metfora so diferentes daqueles utilizados na comparao. E os efeitos de sentido tambm so diversos, j que a metfora produz, por assim dizer, uma nova realidade tanto visual quanto emocional. A concepo de metfora, neste trabalho, aproxima-se daquela usada por Ricoeur e Max Black. Com Donald Davidson, devo concordar a respeito do carter sugestivo da metfora, que se aproxima da linguagem do sonho, como ele prprio afirma. Para a estilstica, no entanto, no h contradio entre sugesto e significado, pois a sugesto tambm faz parte da estrutura comunicativa da lngua e, portanto, pode ser compreendida como uma espcie de procedimento de significao. De todo modo, os tericos todos parecem concordar com relao importncia do sentido literal na interpretao da metfora. Em Nobrezas, que leremos a seguir, a linguagem metafrica predomina. A temtica privilegia o amor entre homem e mulher, j que o poema faz parte de Clau. Sua significao se constri no conjunto do livro, cujos textos, em sua maioria, se formam na voz de um eu lrico masculino que se reporta diretamente amada ou a ela faz referncia. O poema compe-se de um nico perodo dividido em 12 versos, com extenso variando entre quatro e sete slabas poticas. Sua significao construda em torno da imagem da cor de jambo, que reverbera em algumas descries metafricas articuladas atravs da idia de vida e morte.
Nobrezas
Vista-se de jambo, a cor irm do sangue velho, e das frutas caindo abandonadas no lamaal da delcia degradada, porque esse traje de machucada mortalha tem a cor da vida que vamos, juntos, ressuscitar.
O verbo no imperativo abre o poema e anuncia um dilogo. Algum faz um pedido a outra pessoa. Atravs do contexto do livro e do prprio teor da imagem, podemos perceber que o eu lrico o homem que se dirige mulher amada. O poema todo constitui sua fala,
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atravs da qual o leitor constri a imagem da situao em que produzida. O fato de o discurso reduzir-se primeira e segunda pessoas, por meio do imperativo e da primeira pessoa do plural (vamos, juntos), sugere um momento de intimidade do casal, que passa a ser perscrutado pelo leitor, como uma espcie de voyeur. Vista-se de jambo. A partir desse primeiro verso vo surgindo outros que se combinam para explicitar o pedido que, no fosse pelo tom amoroso, poderia soar como uma ordem. O verbo remete ao contexto ntimo do casal, em que o amado expressa o modo como quer ver sua mulher vestida, o que alude ao jogo da seduo.
Mas jambo no simplesmente o nome de uma cor, antes de tudo o prprio fruto do jambeiro, fruto avermelhado e saboroso, bem comum no nordeste do Brasil. 40 Assim, a cor se apresenta pela metonmia e o poema vai explorar as relaes sinestsicas suscitadas pela referncia ao fruto. As sensaes da viso, pela cor rubra, do gosto, do olfato e do tato, pela fruta, sugerem acentuado desejo. De fato, os tons de vermelho so comumente associados seduo feminina e ao amor. A escolha do jambo confere imagem um sabor local, bem brasileiro, o que singulariza a amada e refora o aspecto visual do poema, j que no se liga rapidamente a um sentido metafrico. Essa imagem se soma a outras, inicialmente do sangue e das frutas, sem especificao; assim, o poema se projeta ao universal. O encadeamento de diferentes imagens faz com que, aos poucos, determinados sentidos sejam descartados, enquanto outros se intensificam, uma vez que a combinao orienta a percepo para os elementos em comum. Com isso, fcil compreender como a reverberao de imagem contribui para dar unidade e conciso ao texto, ampliando o impacto da imagem-poema. Do segundo ao stimo verso, o aposto de jambo encadeia as duas primeiras metforas para caracterizar a cor. Em seguida, s imagens combinadas de jambo, sangue velho e frutas caindo abandonadas nas quais j se percebe a referncia regenerao, morte e vida se adicionam: lamaal, delcia degradada e machucada mortalha, que reiteram essas idias, sendo que a morte enfatizada pela reverberao dos sentidos presentes nos vocbulos degradada e mortalha, destacados pela posio em paralelo no final dos versos. A essas imagens sobrepe-se a da vida, no antepenltimo verso, que retoma o incio do poema com a repetio do termo cor, at que as idias reverberantes de morte, regenerao e vida
40 Imagem disponvel em <www.boipeba.tur.br> (acesso em 21/11/2007).
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convergem em ressuscitar, finalizando o poema. medida que reverberam imagens relativas descrio da cor, que se torna mais densa e escurece, os sentidos de morte e renascimento tambm se ampliam. A primeira descrio se divide entre o segundo e o terceiro versos: a cor irm/ do sangue velho, o vocbulo irm explicita no apenas a relao entre a cor de jambo e a cor do sangue, mas chama a ateno para o fato dessa relao ser sangnea, o que torna a imagem mais expressiva. O sangue remete ao pulsar da vida. Mas sangue velho traz a idia da ferida, do sangue derramado, ou seja, evoca a morte. Por outro lado, apesar de remeter fragilidade do corpo, e da vida, o sangue velho que recobre a ferida tambm representa a regenerao, a cura, sempre misteriosa. Universalmente considerado como o smbolo fundamental do princpio de vida, com sua fora, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor de fogo e de sangue, possui, entretanto, a mesma ambivalncia simblica destes ltimos, sem dvida, em termos visuais, conforme seja claro ou escuro (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1995, p. 944). O sangue velho vermelho escuro, o que remete ao feminino, ao noturno, ao secreto, enfim, ao prprio mistrio da vida (Id. ibid.). Alm disso, o adjetivo velho se refere, sem eufemismo, passagem do tempo, degradao do corpo, cada vez mais prximo da morte. Assim, o sangue velho serve de metfora para a fuso entre morte e vida que marca inescapavelmente qualquer ser humano. A imagem do sangue velho tambm serve para presentificar a idia do sangue nobre, que passa de pai para filho conservando sempre viva uma linhagem, apesar das sucessivas mortes ao longo das geraes. Essa idia pode servir como um dos significados parciais do ttulo: Nobrezas, que, por estar no plural, se refere a vrios tipos de nobrezas. Mas, como veremos, o poema no trata da figura do nobre aristocrtico, a nfase recai sobre a idia do sangue que corre de gerao a gerao, desde o primeiro humano, desde o princpio de tudo, como veremos. A expresso sangue velho evoca, ainda, a ferida antiga. J no est aberta, mas tambm no foi curada. Com isso, a idia de mgoa, de dor mal resolvida se faz presente. Essa idia contribui para delinear o perfil da mulher madura, que traz consigo a marca de relacionamentos anteriores, embora a idia de machucado tambm se refira relao atual. A leitura da ferida literal, com o sangue seco, importante, pois d fora metfora da dor sentida e da regenerao, alm de reforar o carter visual do poema. Essa imagem reverbera e se intensifica nas metforas seguintes.
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Entre os versos quatro e sete, uma nova metfora construda, expandindo a simbologia da cor de jambo. No quarto verso, a construo e das frutas pode retomar, pela elipse, o termo cor ou o vocbulo irm, ou, ainda, toda a expresso a cor irm. A elipse d agilidade ao ritmo e refora a relao semntica entre as metforas, que se complementam para descrever a cor de jambo. De todo modo, o termo irm posto em relevo, sugerindo um vnculo no apenas aparente entre o sangue e as frutas, mas apresentando-os como se ambos partilhassem da mesma natureza. Essa viso de tudo como parte de um todo unificado vai se intensificando aos poucos para compor a imagem de um mundo novo sendo criado. Alm disso, reproduz o estado de contentamento do eu lrico, que no percebe apenas uma semelhana mas um vnculo fraterno entre as coisas. Ele chama a ateno para o parentesco entre o sangue, que representa o animal, e a fruta, o vegetal. E o que permanece a idia forte da vida que corre em ambos, vida partilhada pelo eu lrico, que experimenta um sentimento de comunho com o universo. O termo frutas recebe destaque por ser o nico termo nocional do quarto verso. Uma vez que constitui hipernimo de jambo, faz com que a imagem se concretize com a figura dessa fruta em particular. Imaginamos, ento, seu aroma, sua forma, sua cor. Mas a descrio seguinte ressalta a caracterstica das frutas que caem abandonas, o que normalmente acontece com frutos bem maduros. Independentemente de serem jambos, as frutas muito maduras adquirem uma colorao amarronzada, que lembra o machucado. Assim, a imagem anterior se refora, simblica e visualmente.
e das frutas caindo abandonadas no lamaal da delcia degradada,
Esses versos reproduzem uma imagem visual e apela para as demais sensaes. A aliterao do [s] e do [l], junto com os sons nasais [in], [an], [n], [m], sugere a delicadeza das frutas caindo. Temos a impresso de uma cena em cmera lenta, da qual percebemos cada detalhe. O verbo no gerndio contribui para essa sensao de prolongamento da ao, pois reflete o ato se desenrolando no tempo. Embora seja possvel visualizar uma cena nica, o termo frutas, no plural, implica ao repetida ao longo do tempo, ou seja, uma fruta caindo aps outra. Essa idia corroborada pelo uso do verbo no gerndio, que marca ao contnua e no se ancora em um
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momento especfico, como se descrevesse um presente eterno. Desse modo, a noo de tempo remete aos ciclos da natureza a se renovar constantemente. E as frutas caindo retratam uma natureza generosa, que se doa gratuitamente. Delineia-se, ento, um contexto paradisaco, primitivo mesmo, em que as frutas no so colhidas, mas esto caindo abandonadas, sem nenhuma interferncia do homem ou de qualquer animal. Parece inevitvel lembrar-se da mitologia judaico-crist, referente ao Jardim das delcias, primeira casa do homem. A imagem evoca o paraso ainda inabitado, pronto a receber seus primeiros habitantes, como se o mundo estivesse prestes a comear. Paralelamente a essa idia, no se deve perder de vista que as frutas esto associadas s imagens do sangue velho e da delcia degradada, ou seja, remetem a um tempo anterior, a uma histria que deixou marcas. O que permanece a noo de um re-comeo. Essa idia de renascimento, que ir se confirmar adiante, se relaciona a um outro significado parcial do ttulo: nobreza tambm se refere pureza, elevao, transcendncia. A imagem das frutas a carem abandonadas, no lamaal da delcia degradada, refora a fuso entre vida e morte, pois reproduz o ciclo da natureza em que a morte destino certo da fruta, ainda que esta no sirva de alimento. De qualquer maneira, as frutas caem no lamaal / da delcia degradada e vo servir de alimento para que a rvore continue a produzir os mesmos frutos. Alis, as frutas formam esse lamaal, que no um lamaal qualquer, mas da delcia degradada. Os frutos passam a ser referidos metonimicamente pelo seu sabor, e pelo prazer que poderiam causar. A fruta toda delcia. Convm lembrar que o jambo to mais cheiroso e mais saboroso quanto mais maduro. A imagem dos frutos caindo abandonados destaca o fato de estarem maduros e plenamente deliciosos, o que contribui para a descrio da amada. Uma vez que essa imagem se associa veste que o eu lrico deseja ver em sua amada, as frutas maduras, caindo abandonadas, passam a simbolizar a entrega total da mulher. Assim como as frutas, ela objeto de desejo. E essa mulher caracteriza-se por estar no auge de sua existncia, plena, como os frutos. O lamaal, como terra que se faz frtil com o apodrecimento dos frutos, apresenta a convergncia das conotaes de vida e morte, alm de abarcar os sentidos de repulsa e prazer. Mais marrom que vermelha, a cor acentua a idia de morte e mistrio, e refora a passagem do tempo que se relaciona transformao das coisas. Os tons avermelhados, reverberantes nas metforas que se encadeiam, vo se alterando ao longo do poema, escurecendo, representando a prpria decomposio, que permitir o renascimento.
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A idia da lama como sujeira, pecado, recorrente em nossa sociedade e est presente em vrias expresses como: Estar num mar de lama ou Jogar o nome de algum na lama. Contudo, a posio equivalente nos versos, assim como a sonoridade semelhante entre lamaal e delcia, refora a relao do lamaal com o prazer e o contato carnal dentro de um contexto de entrega e renovao. Em lamaal reverberam os sentidos de sangue, pois ambos se ligam ao mistrio da vida, da constante renovao da terra. E, mantendo a intertextualidade com a Bblia, o lamaal remete criao do homem, moldado do barro 41 . Com tudo isso, a imagem do renascimento a partir do morto, do machucado e do erro vai se tornando mais intensa.
porque esse traje de machucada mortalha tem a cor da vida que vamos, juntos, ressuscitar.
O porque parece iniciar uma orao coordenada explicativa, pois nesse trecho o eu lrico explicita a razo de seu pedido. O poema assume, ento, aliada afetividade marcante das imagens, uma organizao lgica, que se articula com o carter persuasivo do texto. Esses cinco ltimos versos servem de concluso e sintetizam as imagens anteriores. No oitavo verso o sintagma nominal esse traje retoma o primeiro verso, lembrando que as metforas anteriores servem para descrev-lo. O eu lrico no se refere apenas a uma cor, mas a uma vestimenta especfica, o que torna a imagem mais concreta e chama a ateno para uma espcie de ritual a ser preparado. Esse ritual o prprio encontro entre amado e amada. O verso seguinte atua como um adjunto adnominal de traje e apresenta mais uma metfora para caracteriz-lo. A idia de morte se intensifica por meio do termo mortalha, que remete a um ritual fnebre. O termo machucada modifica mortalha e apresenta-a como algo vivo, j que comumente associamos esse termo a coisas vivas. Nesse trecho, a sensao de dor se faz intensa, acompanhando a fora semntica do termo mortalha, que escancara a idia de morte, apenas sugerida anteriormente. Essa sensao de dor, desconforto, obtida atravs da sonoridade spera dos termos traje, machucada e mortalha, em que os sons vibrantes,
41 No segundo captulo do Gnesis, versculos 6 e 7, temos: um manancial subia da terra e regava toda a superfcie do solo. Ento Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hlito de vida e o homem se tornou um ser vivente.
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fricativos e nasais, indicando a frico, grito contido, contrastam com os sons oclusivos, que reproduzem pancada e, num plano mais abstrato, simbolizam dor aguda. Nesse verso, emerge o sentido mais comum de jambo. Pele cor de jambo, moreno jambo. Por esse prisma, o eu lrico est o tempo todo se referindo cor da pele da mulher amada. Vista-se de jambo compe, assim, uma metfora para o despir-se. Mas no significa apenas isso, pois o verbo vestir, diferente de despir, remete preparao de um ritual e implica assumir uma nova postura, investir-se de uma outra realidade. Vestir-se de jambo alude imagem do vestir-se de pele, ou seja, de voltar ao que h de mais primitivo e verdadeiro no homem. A descrio da pele como machucada evidencia as marcas do tempo sobre o corpo. Mas a pele caracterizada metaforicamente como um traje, uma mortalha, o que chama a ateno para o que ela reveste. Por meio da metonmia, o poema revela a alma da mulher, machucada por algum amor antigo, pelo prprio amado, ferida pela vida, enfim, magoada com algo que aconteceu no passado e que a deixou marcada. O dcimo verso retoma o termo cor, mantendo a coeso do texto. Agora, a vida aparece explicitamente, sem metforas, sem ambigidade. interessante observar que o uso do adjetivo aps o substantivo, em: sangue velho e delcia degradada, contribui para deixar em posio equivalente no fim dos versos os termos velho, abandonadas, degradada. A inverso entre adjetivo e substantivo em machucada mortalha permite que o termo mortalha mantenha o paralelo com os adjetivos anteriores, dando realce reverberao da idia de morte. Essa inverso, a nica do poema, tambm deixa mortalha e vida no final dos versos e frisa a relao entre ambas. E o que se mostrava como a preparao de um rito de morte acaba se revelando como um ritual de vida. E o poema conclui-se, de fato, com os termos vida e ressuscitar. O convite do amado mostra-se, ento, como um convite para extrarem da morte a vida. Esse ritual de criao equivale ao prprio rito do casamento, ou do re-casamento, da unio e da reconciliao entre homem e mulher. Mas a noiva deve vestir-se de jambo. Essa figura alude a um traje avermelhado e o vermelho com toda a sua simbologia de maturidade, vida, morte, fertilidade e sensualidade, alm de ser uma cor vinculada nobreza, o que se articula com o ttulo. E o jambo vincula-se prpria pele, beleza original. Nesse caso, a noiva deve despir-se para entregar-se completamente ao amado. E ao despir-se das roupas, a mulher assume a forma primitiva, do comeo de tudo. Se as roupas marcam a
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expulso de Ado e Eva do Paraso, aps comerem do fruto da rvore do bem e do mal, tir- las equivale a voltar ao estado de pureza, readentrar o Paraso (cf. Gnesis, Cap. 3). Para que isso se realize, algo deve morrer e essa leitura aberta a vrias interpretaes. A mortalha reveste o corpo para ser sepultado. A imagem da morte deve ser forte, pois dela que brotar a fora impactante do ltimo verso. No penltimo verso, o verbo no imperativo cede lugar ao vamos, na primeira pessoa do plural, expressando o encontro entre homem e mulher. Convm notar que o ritmo fluido ao longo de todo o poema, com o predomnio dos sons sibilantes e de vogais abertas, o que sugere claridade e combina com a idia da vida que se sobrepe morte. A nica pausa significativa no poema a que coloca o adjetivo juntos em destaque, chamando a ateno para o encontro. As vrgulas contornando o termo, que recebe a nfase meldica do verso, reproduzem a prpria unio, fsica e espiritual, que se d em um momento nico, em que nada parece existir alm do silncio de homem e mulher que se recebem mutuamente. Esse encontro pleno, carnal e espiritual. Dois planos inscritos na descrio da cor de jambo. E esse encontro , tambm, um reencontro. A idia do perdo est ligada da cicatrizao e, pelo imaginrio cristo, imagem da ressurreio. Com isso, o poema apresenta com profundidade a relao do casal, que se faz de reconstrues e reconciliaes. Mas o poema no se limita reconstruo do relacionamento a dois. A imagem da regenerao se amplia e abarca toda a dimenso do humano, que se refaz a partir da experincia do sofrimento. Perdoar, recomear estas so nobrezas. O ressuscitar conclui o poema com grande impacto expressivo, pois nele reverberam todas as imagens anteriores, prevalecendo a imagem da vida que se refaz. Nesse verbo convergem as idias do mistrio, do milagre da renovao, revestindo o encontro com uma aura sagrada. E no so homem e mulher que renascem, apenas. O eu lrico no diz: ns vamos ressuscitar, mas a vida que vamos ressuscitar. Ento, a vida o objeto que ser ressuscitado; vida que abarca o sangue e as frutas, com tudo o que representam. E homem e mulher assumem o papel de criadores. O convite do amado revela-se, portanto, como um convite para recriarem todo o universo. A figura do Deus criador substituda por homem e mulher, que assumem papel divino atravs desse ritual do (re)encontro. O emprego do verbo ressuscitar como transitivo importante para enfatizar o dinamismo da ao, realando o papel atuante do casal em interao com a vida que os percorre e ultrapassa. Vale notar que, ao longo dos sete primeiros versos, predomina a descrio esttica, com apenas dois verbos, sendo que um deles est em sua forma nominal (caindo), o que, embora preserve movimento, refora a estaticidade da imagem. Nesses versos
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finais, o dinamismo intensificado pelas formas verbais, especialmente porque o auxiliar em vamos ressuscitar ainda carregado da noo de movimento, que se soma ao desejo. No plano sonoro, o som [v] de vida reverbera em vamos, como se a prpria vida fosse se espalhando pela ao conjunta dos amantes. O uso da perfrase verbal vamos ressuscitar, intercalada por juntos, ressalta a importncia do casal que atua junto, alm de que o auxiliar vamos contm a idia do convite e da certeza do cumprimento da ao expressa pelo verbo principal. Esse efeito se perderia caso fosse utilizado que, juntos, ressuscitaremos. Alm disso, o verbo ressuscitar, na forma infinitiva, d nfase ao realizada, como se estivesse fora do tempo, o que instaura o tempo mtico, o tempo da criao do universo. O poema inicia-se com um verbo no imperativo, assim como o Fiat bblico, que d origem a tudo. esse imperativo, Vista-se, que d incio ao ritual da mudana e do encontro. E o poema termina com ressuscitar. A recorrncia da sibilante [s] contrasta com a oclusiva [t], a qual sugere exploso, prolongada pela vogal aberta [a] e a vibrante [r], e reproduz o som original da nova vida. O fato de concluir o poema impactante no apenas pela fora semntica e sonora da palavra, mas tambm porque a ltima, como se precedesse, de fato, o novo, que comea assim que a palavra acaba de ser pronunciada: res-sus-ci-tar.
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3.3 Reverberaes na concretizao de uma imagem
Para Charles Bally, o termo imagem se refere linguagem figurada e, mais especificamente, metfora. Ele aponta trs tipos de imagens: sensvel (ou concreta, ou imaginativa ou evocativa), sentida pela imaginao, afetiva, apreendida pelo sentimento, ou morta, interpretada por uma operao intelectual, pois j se tornou abstrata. De acordo com Bally, as metforas nascem sensveis, depois se tornam afetivas (contendo apenas um vago sentimento de imagem) e morrem, quando se tornam desgastadas pelo uso. Essas imagens mortas podem ser ressuscitadas pela etimologia, descartada, porm, do estudo estilstico por no considerar a lngua em uso. Segundo esse terico, quanto mais detalhes contiver uma imagem, mais ela se tornar concreta, imaginativa e, portanto, prpria da criao individual, tocando-nos pelo vigor da evocao, que atua diretamente sobre nossa sensibilidade. O estilo, para Bally, no faz outra coisa seno apropriar-se dos procedimentos da linguagem corrente, estetizando e reavivando algumas imagens (1951, p. 198-200). No poema que ser analisado, a linguagem figurada obtida por meio de uma srie de associaes que, inclusive, chamam a ateno para o sentido corrente e literal dos termos envolvidos na construo de sentido. Os detalhes vo se somando aos poucos e a imagem s se concretiza no ltimo verso, causando forte impacto sobre a sensibilidade do leitor. O texto integra a terceira parte de Meditao sob os lajedos, Gentes e bichos e compe, junto com os demais poemas do livro, uma reflexo sobre a morte, tratando especificamente da morte precoce de um adolescente que se suicida. Neste poema, sobressai, entre vrios recursos expressivos, o uso da linguagem figurada. O efeito esttico produzido pela leitura do poema se d na percepo do suicdio como um espetculo. O uso dos verbos no presente do indicativo e o eu lrico em terceira pessoa contribuem para dar nfase ao aspecto visual da imagem. A experincia do belo equivale ao assombro, que vai sendo construdo desde o primeiro verso e culmina na imagem assustadora do ltimo, como um som que reverbera.
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Suicdio de Andr
L dos fundos desta fazenda, ela s sai para a faxina, para segar os ramos secos; mas, certas vezes, se ilumina
no xtase sbito da aurora antecipada, como agora,
quando sua lmina rebrilha sobre o esplendor da adolescncia, cadela solta na matilha,
sobre o ex-menino, por castigo, a desenhar o prprio abismo.
Logo no ttulo, o nome do personagem revela que a narrativa no apresentar o suicdio de uma pessoa qualquer, mas de algum conhecido, o que torna o texto mais expressivo. Andr significa viril, aludindo ao homem do sexo masculino, e pode ter seu sentido expandido para humano. Assim, Andr remete, ao mesmo tempo, a uma personagem especfica e representa toda a humanidade. Isso faz com que o poema se lance a uma reflexo mais universal sobre o humano e sua relao com a vida e a morte. O poema composto por dois perodos que se ligam pelo ponto-e-vrgula e por uma conjuno (mas), o que refora a unidade semntica do texto. O primeiro perodo, que abarca os trs primeiros versos, serve de introduo narrativa e apresenta uma condio rotineira, que quebra a expectativa criada pelo ttulo por no narrar diretamente o acontecido. No entanto, o primeiro verso L dos fundos desta fazenda instaura um certo tom de mistrio, uma vez que os fundos da fazenda, intensificado pelo advrbio L, remete ao escondido, ao lugar pouco acessvel, onde habita o desconhecido idia que se liga descrio da morte como algo inexplicvel, que intriga e assusta. Ao contrrio do esperado, no Andr o centro das atenes, mas algum ou algo que inicialmente s referido pelo ditico ela, o que contribui para a criao do suspense.
L dos fundos desta fazenda, ela s sai para a faxina, para segar os ramos secos;
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O poema continua com a construo metonmica desse ser ou objeto, que conhecemos apenas por sua funo. Primeiro sabemos que atua para segar os ramos secos; posteriormente ressalta-se o fato de ter uma lmina. Como objeto, pode ser uma faca, uma tesoura ou uma foice. O fato de no ser nomeado evidencia sua caracterstica de instrumento cortante, podendo sugerir a arma utilizada no suicdio. Aps a apresentao do primeiro perodo, o quarto verso duplamente marcado pelo suspense, por meio da adversativa mas, que introduz a quebra da ordem rotineira. O ritmo que seguia fluido nos trs primeiros versos subitamente interrompido pelas vrgulas, que isolam no verso o adjunto adverbial certas vezes, colaborando para criar expectativa. As duas estrofes que seguem localizam no tempo a ao, sempre tendo como centro das atenes o objeto cortante. O desfecho se d na ltima estrofe, que descreve o suicdio propriamente, em que o personagem descrito como ex-menino. O termo morte no usado em nenhum momento do poema, mas ela vai se concretizando aos poucos, como se o pronome usado na terceira estrofe a tomasse por referente. Nesse caso, no teramos a descrio metonmica do objeto do crime, mas a personificao da prpria morte, como responsvel por segar os ramos e como detentora de uma lmina. A representao da morte como um ser humano portando uma foice recorrente em nossa cultura e integra o imaginrio coletivo. A aluso ao ato de segar os ramos serve para construir a imagem da morte como um ceifeiro, mas um ceifeiro mulher. Assim, o poema descreve os movimentos dessa morte personificada, que se ilumina, como uma grande atriz que entra em cena e sobre a qual convergem os holofotes. Os vocbulos ilumina, aurora, rebrilha, esplendor compem um campo lexical relativo luz, com toda a sua significao relativa ao espetculo, ao belo e criao de uma nova realidade. Os trs primeiros ocorrem no final dos versos, o que reala o vnculo entre eles, estabelecendo a reverberao das imagens luminosas. E essa luz vai se tornando mais intensa medida que o poema avana. Rebrilhar muito mais forte que iluminar. Iluminar indica o incio de algo, a luz clareando o escuro, o aparecimento inesperado da morte. Rebrilhar, atravs do prefixo re-, que multiplica a ao de brilhar, sugere o aumento da intensidade da luz e confere maior dramaticidade ao.
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Conforme T. S. Eliot, a msica da poesia no coisa que exista separadamente de seu significado (1997, p. 78) 42 . Desse modo, importante verificar como o ritmo 43 , assim como o metro 44 , est associado construo da imagem do poema. Os versos so todos octosslabos, o que cria uma musicalidade marcante e regular. A regularidade enfatizada pelos versos isorrtmicos que, com exceo do primeiro, em que acentuada a terceira slaba, tm acento tnico na quarta slaba, alm da oitava, seguindo a tradio dos versos octossilbicos 45 (o segundo verso pode ser lido com o acento na terceira ou na quarta). No entanto, no ltimo verso, que contm a imagem mais chocante, o acento tnico distribui-se sobre a quarta, a sexta e a oitava. Ou seja, esse verso pronunciado com mais fora e mais lentamente, o que d a impresso de ampliar a imagem visual. Obviamente, essa leitura no a nica possvel, a intensidade e a durao de algumas slabas podem variar dependendo da nfase que o leitor atribuir a um ou outro vocbulo. 46
Como vimos, o quarto verso contm duas pausas marcantes, o que aumenta o suspense da narrativa. Alm dele, o sexto verso tambm tem uma pausa inesperada, intercalando a expresso como agora, o que chama a ateno para o acontecimento extraordinrio que ser descrito. Com efeito um pouco diferente, o penltimo verso apresenta pausas evidenciando o sintagma por castigo, forando uma reflexo mais demorada acerca de seu significado. Cada verso encerra uma clula significativa, acentuada pela pausa no final no fim de sete versos observamos o uso do sinal grfico, que no s contribui para a organizao da sintaxe textual, mas instaura uma cadncia marcante. E a imagem vai se concretizando visual e melodicamente aos poucos.
42 Para Eliot, um poema musical um poema que possui um desenho musical de som e um desenho musical formado pelos significados secundrios das palavras que o compem, que estes desenhos so indissolveis e constituem um s. (1997, p. 85) 43 Neste momento, utilizo a definio mais usual de ritmo: uma alternncia de sonoridades mais fracas e mais fortes, formando uma unidade configurada. O ritmo est ligado intimamente idia de alternncia: alternncia de som e silncio; de graves e agudos; de tnicas e tonas; de longas e breves, em combinaes variadas. (Melo e Souza, A. C., 1991, p. 44 e 46) 44 Vale destacar, tambm, que uso o termo metro na sua acepo mais tradicional: nmero de slabas poticas de um verso (Melo e Souza, A. C., 1991, p. 51) e, assim como nos demais poemas, fao a contagem at a ltima slaba tnica, seguindo a tradio dos portugueses e franceses, apesar das crticas de Said Ali, em Versificao portuguesa. 45 Hoje o verso de oito slabas no muito cultivado. Porm, de acordo com Segismundo Spina, o verso octossilbico manteve em toda a Idade Mdia uma vitalidade extraordinria, assimilado por todos os gneros e formas poticas. Tido como originrio do trmetro jmbico latino, faz ele a sua apario na segunda metade do sculo X na Frana (Passion e Saint Lger), no sculo XII na Provena (nos poemas espirituais Chanson de Sainte Foi dAgen, Voyage de Saint Brendan). Desde a sua apario, no octosslabo tendeu a predominar a acentuao na quarta slaba. (2003, p. 41 e 42) 46 De acordo com Maurice Grammont (1947, p. 14): no recitamos versos por um metrnomo.
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A organizao do poema na forma da retranca tambm um fator que colabora para a concretizao e intensificao da imagem. A primeira estrofe, mais longa, prepara a ambientao e estabelece o suspense. A segunda, com apenas dois versos, reproduz o instante, o sbito (quinto verso). A terceira, um pouco mais longa, intensifica a expectativa, pois introduz, no stimo verso, o movimento decisivo, a apario concreta da lmina que rebrilha. O nono verso, todo descritivo, introduz um campo de significao diferente cadela solta na matilha e insinua um tom mais reflexivo por parte do eu lrico, que parece interpretar a cena. Com isso, o desfecho dos acontecimentos adiado. A ltima estrofe, novamente com dois versos, apresenta o desfecho, a morte que se torna concreta na imagem do ex-menino, a desenhar o prprio abismo. No primeiro verso L dos fundos desta fazenda, tem-se a ambientao da cena. O substantivo fazenda localiza o acontecimento em um contexto rural. O determinante desta situa o eu lrico no prprio espao da ao e traz o leitor para perto da cena, o que aumenta o envolvimento afetivo com a imagem. A idia dos fundos desta fazenda pode sugerir o espao afastado onde se guarda a arma do suicdio. Por enquanto, o objeto descrito como um utenslio usado no cotidiano da fazenda. O termo fundos sugere no apenas afastamento, mas pode supor um contraste social, pois os fundos da fazenda o lugar dos empregados, dos trabalhadores mais pobres, ou seja, de quem no costuma receber a ateno na sociedade. Seja como for, se estabelece um contexto social, do qual eu lrico e leitor participam. O episdio do suicdio, ento, passa a representar um evento social. Vale lembrar Durkheim (2000, p. 19), que afirma que cada sociedade tem, em cada momento de sua histria, uma disposio definida para o suicdio. Desse modo, o suicdio considerado pelo vis da anlise da sociedade, responsvel pelos atos individuais, o que se explicita mais adiante, na relao entre cadela solta e matilha, sendo que cadela solta se refere ao indivduo e matilha representa a sociedade. 47
E a fazenda usada para representar essa sociedade, em que os ces desempenham uma funo definida e participam de uma hierarquia. Os ces podem ser de caa ou vigias. De todo modo, so responsveis por salvaguardar a ordem da fazenda. Esto em um nvel hierrquico inferior. Tanto cadela quanto matilha apresentam os animais destitudos de afetividade, distantes do homem. Com isso, Andr pode ser visto como parte de um grupo de explorados.
47 Convm lembrar que a imagem dos ces recorrente ao longo da obra de Alberto da Cunha Melo, sempre vinculada a uma dimenso social.
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interessante observar que o advrbio l, combinado ao sintagma preposicional dos fundos, enfatiza a distncia da lmina ou da morte em pessoa, o que salienta o carter extraordinrio do que ir acontecer. Essa idia ser intensificada no segundo verso ela s sai para a faxina, , em que o advrbio s ressalta a idia de uma rotina certa, segura, que ser quebrada em seguida. O mistrio envolto no pronome sem referente explcito vai, aos poucos, se desfazendo, medida que esse referente vai se concretizando na mente do leitor. O termo faxina pode ser compreendido como lenha ou, o mais comum, como limpeza. Posteriormente, o termo faxina assumir uma outra conotao, de estrago e destruio, uma vez que equivaler morte incompreensvel de um menino. O terceiro verso um desdobramento do segundo, em que a estrutura adverbial de finalidade se repete e especifica a idia introduzida anteriormente para segar os ramos secos; , contribuindo para a delimitao do sujeito sinttico (ela). O verbo segar prprio para designar a atividade rural de ceifar, cortar a vegetao, mas j traz em si a dualidade: a violncia, presente na idia de cortar, pr fim a algo, e a segurana, por se voltar exclusivamente vegetao. A imagem dos ramos secos contribui para particularizar a ao de cortar. Segar os ramos secos uma atividade corriqueira, e vital para a sade das plantaes. Os ramos secos j trazem em si a idia da morte. Assim, o objeto, embora corte, no tira a vida. Tambm podemos, sem abandonar a leitura literal, atribuir uma conotao metafrica ao verso: segar os ramos secos pode representar a morte que chega para aqueles que j esto velhos. Lembrando Bally, sobre o fato de o estilo reavivar imagens desgastadas, importante salientar que o poema retoma, por um prisma totalmente novo, a figura da morte como um ceifeiro. Como j mencionado, o quarto verso instaura o elemento de suspense que preconiza o suicdio mas, certas vezes, se ilumina. O verbo iluminar causa o primeiro estranhamento, pois introduz um universo de significao totalmente novo, contribuindo para a descrio do suicdio como um espetculo. As estrofes seguintes do continuidade descrio do espetculo estabelecendo com o quarto verso um campo semntico relativo luz. A luminosidade reproduz o momento do dia, oferecendo o cenrio para o fato narrado. A segunda estrofe toda dedicada a essa descrio do momento, definido pelo carter instantneo e transitrio da aurora, perodo de claridade que antecede o nascer do sol. A aurora tambm serve de metfora para a infncia, o que j adianta a informao que se concretiza na quarta estrofe sobre o fato de Andr ser um adolescente. A imagem contida no quinto verso no xtase sbito da aurora cria um ambiente fantstico, belo e
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assombroso ao mesmo tempo. O momento do dia remete ao menino e morte que se move s escondidas, quando as pessoas esto acordando. O espetculo do amanhecer equivale ao espetculo da morte. Indica, ainda, o momento de transformao, a crise vivida pelo jovem, que culmina no suicdio. A natureza, portanto, espelha o homem. Com o tom rseo do cu, contrasta a cor do sangue derramado. O termo sbito refora o carter instantneo da cena e apresenta uma avaliao do eu lrico sobre a morte inesperada. As trs palavras do verso (xtase, sbito e aurora) contm o sentido de instantaneidade, que reverbera, reproduzindo a cena em que o homem perde o controle racional dos acontecimentos. Assim como no possvel prolongar a aurora, o suicdio tem um tempo certo de durao, o tempo fulgurante do susto. O termo xtase pode significar encanto e assombro, marcando a ambigidade presente na descrio do suicdio: descrito como algo luminoso e assustador. E essa a sensao do leitor, admirado com a imagem que vai se delineando. O segundo verso dessa segunda estrofe compe com o anterior uma unidade. o nico verso em que o enjambement separa termos extremamente conexos como substantivo e adjunto adnominal, como se essa quebra na sintaxe reproduzisse a mesma ruptura inesperada da morte que se antecipa. A imagem da aurora antecipada remete no simplesmente morte precoce, mas a um fenmeno que altera a ordem natural das coisas. A fora da metfora est, pois, no sentido literal da construo. Imaginamos um dia amanhecendo antes da hora. Vale notar a inverso dos sentidos de aurora, que, comumente, se refere ao incio da vida e, no poema, simboliza o oposto. Ao morrer equivale o amanhecer. Com isso, possvel fazer uma leitura da morte concretizada no plano simblico, representando a experincia do jovem de deixa de ser menino para ingressar na vida adulta, o que fica sugerido no neologismo ex-menino. A rima entre aurora e agora d nfase ao que se desenrola no tempo presente, que o da leitura do poema, como se o leitor acompanhasse tudo de perto. No plano sonoro, a aliterao das consoantes oclusivas, especialmente da surda [t], nessa segunda estrofe, sugere violncia, refora a idia de surpresa, de ao instantnea, e aumenta o suspense. Suspense que se evidencia especialmente pelo contraste com os sons fricativos que, na primeira estrofe, ressaltavam a monotonia. Acompanhando o desenvolvimento da imagem, na terceira estrofe sobressaem os sons lquidos [l] e [lh], que sugerem o deslizar da lmina e a fluidez da luz, que se torna mais intensa por meio dos termos rebrilha e esplendor. O termo quando, abrindo a estrofe, refere-se ao momento exato e amplia o suspense, uma vez que nos situa mais prximos do pice da narrativa. Ele contrasta com a expresso da
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primeira estrofe, certas vezes, que sugere ao repetida, rotineira. Esse contraste marca o tom do poema, que oscila entre a narrao de um evento singular e a reflexo sobre seu significado em um contexto mais amplo da existncia humana. A imagem da lmina que rebrilha chama a ateno para o carter teatral, grandioso, da morte, que se constri pela metonmia. O brilho da lmina cria uma cena quase sobrenatural, j que o brilho no pode ser apenas o reflexo da pouca luz da aurora. E a luz se multiplica com a imagem do esplendor da adolescncia. A partir desse verso, reinterpretamos o anterior, porque o verbo rebrilhar, agora, pode significar o reflexo da luz da adolescncia sobre a lmina. Ou seja, a intensidade da morte proporcional intensidade da adolescncia, que est associada vida e s emoes flor da pele. A combinao do substantivo concreto lmina com o abstrato adolescncia cria uma imagem inusitada e ressalta o horror da imagem. Esse recurso nos leva a refletir sobre a dimenso do suicdio do garoto. No apenas seu suicdio que descrito, mas a opo pela morte em uma fase que representa o comeo da vida. A idia de fragilidade e delicadeza dessa fase da vida realada pela aliterao do som sibilante neste oitavo verso. A metfora do verso seguinte cadela solta na matilha, causa estranhamento, em virtude do campo de significao aparentemente desconexo, embora, como vimos, se articule com o contexto da fazenda-sociedade com seus ces-homens. O verso pode servir de aposto para adolescncia, leitura mais provvel pela proximidade do termo, e pode sugerir a sensao de estar perdido, do adolescente que se sente deslocado num meio em que todos parecem ter uma funo definida. A prpria natureza desconexa dessa imagem refora a sensao do estar deslocado. O particpio solta refora essa idia de deslocamento, uma vez que contrasta com o sentido de matilha, como grupo fechado e organizado. Como particpio, tambm evoca um agente. A cadela foi solta por algum, o que evidencia uma relao de causa e efeito. O contexto social e, ento, h outros fatores responsveis por essa cadela, o que sugere o abandono do jovem na sociedade. Como adjetivo, solta equivale a sozinha e refora a dimenso psicolgica do adolescente, seu estado de angstia que conduz ao suicdio. Mas o verso tambm pode ser aposto de lmina. Nesse caso, a lmina, que representa metonimicamente a morte, est fora de lugar, retratando o suicdio como um acontecimento extraordinrio. A ambigidade sinttica associa-se estranheza da imagem, colaborando para estabelecer o sinistro. A ltima estrofe apresenta o desfecho da narrativa. A repetio da mesma estrutura iniciada pela preposio sobre, alm de contribuir para a coeso do texto, ressalta o
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movimento de concretizao da imagem e ressalta uma relao de causa e efeito. Agora a leitura literal, e imagina-se a lmina sobre a carne do garoto. O neologismo ex-menino representa, por sua prpria estrutura morfolgica, o surgimento do novo que se faz pela negao do velho e introduz uma reflexo profunda sobre a morte. O menino morto caracterizado pelo no ser, pelo que foi, como se deixasse de existir, ou como se assumisse uma existncia desconhecida. Permanece, assim, a morte como um mistrio insondvel. O sintagma por castigo, em relevo pelas pausas, expressa a possvel causa do suicdio e amplia a sensao de desconcerto diante do acontecimento. O leitor se pergunta: mas o que um adolescente pode ter feito de to grave? Que sentimento de culpa to forte esse ao ponto de culminar em suicdio? Nenhuma explicao satisfaz e o que permanece o assombro. O vnculo com a imagem da estrofe anterior, demarcado pela repetio da estrutura iniciada pela preposio sobre, refora a relao do suicdio com a adolescncia. De fato, o suicdio est mais relacionado e essa fase do desenvolvimento humano do que outras. Simbolicamente, o momento em que todo homem morre para renascer. O jovem tem de experimentar, sozinho, os sofrimentos tpicos dessa etapa limtrofe para, enfim, transcender e tornar-se adulto. Literalmente, a principal causa de morte entre os jovens, em comparao com os casos de morte por doena. Ento, o suicdio entre os jovens constitui um caso de sade pblica. E o poema abarca a reflexo pelo vis social e pelo vis metafsico. O termo castigo contribui para associarmos a morte de Andr ao sentimento de culpa, pois o jovem voluntariamente se pune por algo que fez. E voltamos imagem da cadela solta na matilha, que carrega uma forte conotao sexual, j que cadela, representa a fmea no auge da fertilidade e da sexualidade. Dentre as conotaes desse termo tem-se mulher de procedimento censurvel, desavergonhada, meretriz. Assim, o suicdio vincula-se punio do desejo, e representa o ato extremado de controlar e negar os impulsos. O ltimo verso condensa todas as imagens produzidas anteriormente a desenhar o prprio abismo. O desenho pode representar o corte sobre a prpria carne, a realizao exata do suicdio que, por meio do termo desenho, associado arte. O ato deliberado presente em desenhar, assim como a idia de criao artstica, faz com que o menino seja apresentado como personagem e criador do prprio destino, criador de uma nova realidade. Neste ponto, vale lembrar a definio de suicdio para Durkheim (2000, p. 14): Chama-se suicdio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela prpria vtima e que ela sabia que produziria esse resultado. O verbo desenhar tambm remete a uma atividade ldica, prpria da criana que busca reproduzir em traos sua viso do mundo, o que torna a imagem mais assustadora.
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Mas essa nova realidade surge na figura de um abismo, ao precipcio sem fundo, ao vazio, para onde o menino se lana. No possvel saber como a morte se realiza, se pelo corte ou pela queda. Essa descrio vaga do acontecimento importante para produzir o impacto sobre o leitor, pois o que fica o assombro da morte voluntria e precoce. Esse recurso tambm predispe reflexo, pois o detalhe do evento no est em jogo, mas o ato em si. O intensificador prprio, antecedendo abismo, refora o espanto diante do acontecimento. A imagem de maior impacto esta do ltimo verso. Isso porque nela reverberam todas as imagens anteriores, relacionando o ato suicida concretizao de um evento artstico, o que vincula o horror ao belo. Esse vnculo se explicita na combinao entre os termos desenhar e abismo, que instauram uma realidade paradoxal, j que o abismo remete ao grandioso, ao infinito que abarca o homem e desenhar reproduz o ato controlado. A imagem da queda, simbolizando o prprio suicdio, conclui o poema, deixando reverberar as idias contraditrias de libertao, controle, descontrole, incio e fim. Embora Andr seja o agente de sua morte, nunca aparece como sujeito explcito de nenhum verbo, mesmo de desenhar. Isso indica a dualidade inscrita em seu suicdio. Com o desenrolar da narrativa do poema, a morte, com sua lmina, assume o papel de agente e o rapaz passivo. A palavra que explicita o envolvimento ativo de Andr no o verbo, mas o termo prprio, adjetivando abismo. Desenhar o prprio abismo, como metfora para o ingresso na vida adulta, representa a afirmao da individualidade e a definio da identidade, j que o termo representa o eu. Mas o vocbulo tambm expressa o carter consciente envolvido na ao de se suicidar, reforando a interpretao literal do suicdio. A conseqncia do ato no se desvela, a nica referncia ao futuro se d pela palavra abismo, sobre a qual convergem vrios sentidos contraditrios. Ainda que a reflexo suscitada pelo texto passe pelas causas do suicdio, no esforo de compreenso dos significados de fazenda, cadela, matilha, adolescncia e aurora, o poema enfoca o ato suicida em si mesmo, como um espetculo visual, o que amplia o envolvimento afetivo do leitor. E a nfase recai sobre a concretizao da morte, que assume o papel de protagonista. Para criar esse efeito, se estabelece uma intensa rede de reverberaes. H vrios desdobramentos de sons e idias. As palavras relacionadas luminosidade reverberam para compor um cenrio surreal, de sada do ordinrio, que reforado pelos recursos meldicos. Na primeira estrofe, tm-se fundos, fazenda, faxina e segar e secos. Os sons fricativos [f] e [s] permanecem vibrando de uma palavra a outra, recriando o movimento lento e
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sorrateiro da morte. A rima entre faxina e ilumina tambm reproduz certa leveza, como se representasse a entrada em cena da morte, majestosa e, a um s tempo, sedutora e aterrorizante. Nos dsticos centrais, que iniciam o suspense e preparam para a descrio de um acontecimento extraordinrio, repercutem os sons oclusivos em xtase, sbito, antecipada, como tambores anunciando o trgico. Alm de aproximar o leitor da cena, chamando a ateno para o momento presente, a rima entre aurora e agora amplia a tenso: os sons abertos [], to prprios das manifestaes de assombro (por isso to presentes em interjeies de espanto, como oh!), reforam a criao do clima de expectativa e horror. Na estrofe seguinte, os sons lquidos de lmina, rebrilha e matilha, combinados aos nasais e vogal estridente [i], sugerem dificuldade, desconforto (o que se articula com a situao do adolescente), e recriam o movimento lento e calculado da morte. Ao mesmo tempo, a rima entre rebrilha e matilha deixa a lmina em primeiro plano, como se a prpria luminosidade de rebrilha se expandisse at matilha, tomando conta de toda a imagem, reproduzindo a dramaticidade do movimento que antecede a morte. Trata-se de um momento luminoso, em que a figura da morte empunhando uma espcie de foice (para manter a relao com a figura tradicional do ceifeiro) se torna mais concreta. No entanto, o instrumento que recebe destaque, no apenas pelo carter visual da imagem, mas pela insistncia da rima. Iniciando e finalizando a estrofe, intercalando com adolescncia, a sonoridade final de rebrilha reverbera, como se cercasse o jovem, de modo violento reproduzindo a prpria cena de uma cadela rodeada por ces sedentos, prontos para violent-la. Mas tambm possvel imaginar essa insistncia sonora, que representa a condio do estar cercado, como a imagem da lmina que seduz, que se impe como uma alternativa para a angstia do adolescente. E bela, tentadora. Embora o grande impacto esteja na concretizao do ato, no ltimo verso, o poema aborda a idia da morte pelo suicdio como uma tentao qual Andr, por fim, se entrega. Essa nfase no instrumento colabora para a criao de uma imagem visualmente distorcida, em que no possvel discernir o rosto de quem empunha a arma. Esse recurso importante para caracterizar o suicdio, como a execuo da prpria morte, e reforar o jogo entre vtima e agente e o poema mantm essa figura da morte personificada. Ela um outro, ser mitolgico, mas tambm pode ter o rosto de Andr. A imagem da lmina que rebrilha compe-se, portanto, do contraste entre a luz e a sombra. A luz sobre a lmina destaca o escuro do restante da cena escuro em termos visuais e metafricos. E a intensidade do escuro proporcional da luz. Assim, a rede de
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reverberaes produzida por meio do encadeamento de termos do campo semntico da luminosidade projeta uma sombra espessa sobre os dsticos finais, em que a escurido se impe para representar a morte. A reverberao da preposio sobre na ltima estrofe apresenta o suicdio como um desdobramento natural, quase automtico, da descrio da estrofe anterior. E o poema conclui-se com a passagem da vogal aberta aos sons fechados, que ficam a ecoar pela rima entre castigo e abismo (a > i > o), representando o sombrio, o sinistro. A palavra abismo, alm de representar a queda e o sulco sobre a carne, presentifica a morte e pode significar caos, infernos.
Assim, o assombro do suicdio chega ao pice. O que permanece a escurido.
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3.4 Imagens, reverberaes em O lobo-guar
O ritmo a concordncia da forma com o contedo. Alberto da Cunha Melo 48
Ao longo da produo de Alberto da Cunha Melo, possvel perceber que, mesmo quando os poemas encerram um encadeamento narrativo, o que os aproxima da linearidade da prosa (do seguir em frente), h sempre uma fora de repetio e condensao que se impe. Em O co de olhos amarelos, a reverberao se explicita na forma fixa, que o prprio autor explica em introduo ao livro.
Denominei, logo na capa, de renkas os poemas deste livro. A renka uma forma extinta de poesia japonesa, descendente de outra mais antiga, a waka. De acordo com Lus Antonio Pimentel, a waka tem na parte superior versos de cinco, sete e cinco slabas e, na parte inferior, dois de sete. (...) No sculo XIII, com o evoluir da waka, surgiu um novo tipo de poesia que se chama renka (poema em seqncia). Tornou-se hbito dois poetas ou mais comporem, alternativamente, em 17 (5-7-5) e 14 (7-7) slabas mtricas um poema tipo waka, dentro de um tema sugerido pelo predecessor. O nmero preferido para o grupo potico era de trs pessoas e dez o nmero ideal de alternaes. Em seu desenvolvimento, a renka um poema paralelstico. (...) Ao chamar de renkas os poemas que compus, poderia ser acusado de publicidade enganosa, se a poesia merecesse a ateno, mesmo para ser acusada de alguma coisa, no mundo atual. Meus poemas s repetem o dstico final de uma estrofe no incio da estrofe seguinte, como a renka repete tercetos ou dsticos. Meus poemas so monomtricos (octossilbicos) e compostos do princpio ao fim por uma s pessoa. Alm disso, o nmero de alternaes ou estrofes indeterminado. Na verdade todo o livro , apenas, uma delvel homenagem a uma forma potica extinta.
A repetio dos dois ltimos versos de cada estrofe no incio da estrofe seguinte instaura um ritmo intenso, que contribui para ampliar os efeitos expressivos obtidos pela composio da imagem. Os poemas so sempre iniciados por um dstico e concludos por um dstico. Esse recurso no apenas serve de moldura ao poema, como se fosse um quadro, mas tambm confere um carter circular ao texto e, por isso mesmo, aumenta a sensao de
48 Informao pessoal. Fala ao telefone em 28/10/2004.
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impacto, intensificando as sensaes produzidas verso a verso, assegurando uma reverberao que permanece mesmo aps o trmino da leitura. Ao apresentar as renkas de Alberto da Cunha Melo 49 , Alfredo Bosi comenta:
Trata-se de um modo de compor que tem a ver com o desgnio intelectual de chamar a ateno para o cerne semntico do poema. (...) Convida o leitor a deter-se no sentido de cada frase, um plus de energia significante que d a pensar, para diz-lo com a frmula incisiva de Paul Ricoeur.
A experincia de leitura de cada poema de O co de olhos amarelos marcada por um forte impacto. Nos poemas, os dois ltimos versos encerram todo o contedo afetivo do texto. Talvez seja possvel visualizar o poema inteiro como uma mola aos poucos comprimida (embora mantenha um certo movimento de contrao e distenso, proporcionado pela alternncia das repeties), que se solta no dstico final. Neste ltimo poema que vamos ler, evidencia-se de modo contundente uma caracterstica marcante de toda a obra do poeta: a combinao entre a repetio o propagar e a conciso o recolher , a reverberao de imagem, responsvel pelo modo contundente com que a imagem afeta a percepo do leitor. O poema O lobo-guar, logo no dstico inicial, estabelece o inslito. O leitor prepara-se, assim, para o mergulho no universo do smbolo, ou seja, prepara-se para vivenciar uma realidade impossvel de ser provada e que remete a algo que no est presente, a um sentido abstrato (Cf. DURAND, 1993). Esse tipo de experincia interpretativa pode conduzir por caminhos dspares, pois o controle exercido pela imagem ameaado pelo salto que o leitor ter de efetuar a fim de conectar os valores simblicos a algo que faa sentido em sua experincia emprica. E esse salto, ele ter de realizar sozinho, embora carregando o peso de sua compreenso de mundo, sempre herdada de muitas fontes (conhecidas e desconhecidas). Mas em que essa interpretao difere das demais interpretaes do texto literrio? Talvez o prprio poema responda a essa pergunta.
49 Em texto publicado na orelha do livro.
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O LOBO-GUAR
Para Ivo Barroso
Acossado, um lobo-guar escondeu-se dentro de Joo,
Acossado, um lobo-guar escondeu-se dentro de Joo, que, invisvel em sua misria, fez-se perfeito esconderijo do Mal, seu ingnuo hospedeiro.
fez-se perfeito esconderijo do Mal, seu ingnuo hospedeiro. No muito longe, os ces da Usina latiam em coro e varriam o ar, com estridentes limalhas.
latiam em coro e varriam o ar, com estridentes limalhas. Essa Usina ficava prxima dos festivos lenis de cana, a mais verde e voraz das slfides.
dos festivos lenis de cana, a mais verde e voraz das slfides. Uma noite, Joo despertou com o rumor de altos latidos e papoulas despedaando,
com o rumor de altos latidos e papoulas despedaando pela numerosa alcatia. Mas, quando Joo abriu a porta e, desarmado, os encarou,
Mas, quando Joo abriu a porta e, desarmado, os encarou, todos os ces retrocederam, e o silncio cobriu de p cinza essa noite de glria.
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e o silncio cobriu de p cinza essa noite de glria. Ao co que rosnava mais alto, o co lder, Joo o chamou e, orelhas baixas, ele veio
o co lder, Joo o chamou e, orelhas baixas, ele veio ser estrangulado primeiro, privilgio que estava escrito onde, at hoje, ningum sabe.
privilgio que estava escrito onde, at hoje, ningum sabe. Um aps outro os foi matando, at que o sol, enlouquecido, resolveu cremar todos eles.
at que o sol, enlouquecido, resolveu cremar todos eles. Quando j ia alta a manh, o ltimo co, quase um beb, foi morto no colo de Joo.
o ltimo co, quase um beb, foi morto no colo de Joo. A partir dessa longa noite, no permetro do mocambo, veio o medo plantar seus cactos.
no permetro do mocambo, veio o medo plantar seus cactos. E entre uivos, rezas e rosnados, l dentro Joo pedia a Deus para seu lobo adormecer.
l dentro Joo pedia a Deus para seu lobo adormecer.
A combinao de termos comumente associados a contextos muito diferentes constitui um dos artifcios utilizados para a construo do carter inslito da imagem potica. Convergem no texto as figuras da Usina, das canas, remetendo geografia brasileira, combinadas s slfides e papoulas, flores estranhas flora local. Mas certamente o desenrolar dos fatos, a violncia praticada por Joo, ou melhor, pelo seu lobo-guar, o
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principal responsvel pelo estranhamento. Nesse sentido, o efeito se aproxima da catarse da tragdia grega. De incio, o leitor procura acessar seus conhecimentos prvios com o intuito de atribuir sentido ao que l. Dificilmente sair da leitura seguro de que compreendeu completamente o poema. Mas o impacto expressivo certo. Com o trmino da leitura, permanece o desconforto prprio que se experimenta ao vislumbrar o horror e um certo alvio por no vivenci-lo na realidade. O poema aborda o tema da violncia, e com violncia que toca os sentidos de quem o l. Como em qualquer poema, h vrias portas de entrada. possvel iniciarmos a leitura indagando sobre o significado simblico do lobo-guar. Sabe-se que um animal selvagem, prprio da fauna brasileira, que se encontra ameaado de extino. O poema se inicia com o termo acossado para descrever esse lobo, apresentando-o na condio de vtima, o que faz com que suas aes sejam vistas como condicionadas a uma ao anterior. A violncia cometida pelo lobo seria, ento, resposta a uma violncia que ele prprio teria sofrido anteriormente. Pergunta-se, ento, quem seriam seus agressores? Essa pergunta pode se somar a outra, por que os ces da Usina que receberam toda a fria do lobo? E qual o papel de Joo nessa histria? Ele aparece como um ingnuo hospedeiro, um perfeito esconderijo do Mal. O que isso representa? Como se conectam Joo e o lobo? Se o lobo a fera, Joo que abre a porta de sua casa e encara os ces; ele que chama o co lder e o estrangula; ele quem estrangula um por um dos ces da usina; em seu colo que morre o ltimo dos ces. E qual o papel dos ces? Em que medida podem ser considerados vtimas inocentes? O que significa dizer que latiam em coro e varriam o ar com estridentes limalhas? No so eles que chegam at o mocambo de Joo e despedaam as papoulas? Essa rede de personagens, que se alternam entre agressor e agredido, entre vilo e vtima, conduz a uma reflexo sobre a sociedade e suas estruturas de injustia e violncia. Como impossvel conceber que um lobo v habitar dentro de um ser humano, a interpretao simblica quase automtica. Ento logo se imagina que o lobo um aspecto da psique, do comportamento, enfim, do ser de Joo. Seu lado fera, indomvel, irracional e irascvel. A referncia ao mocambo, onde Joo deve morar, denuncia sua condio de pobreza. Esse mocambo fica prximo Usina, pois de l possvel ouvir as limalhas, remetendo ao trabalho constante de metais e mquinas. Assim, possvel associar a pobreza de Joo e essa usina, que parece ser a nica da regio, o que fica sugerido pela grafia com
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letra maiscula e a determinao pelo artigo definido. Ele pode ser um de seus funcionrios j que no algo incomum uma usina captar a mo de obra dos moradores da regio ou algum que perdeu seu sustento por causa da usina j que seu lobo foi acossado, o que sugere que foi expulso de algum lugar, tratado com injustia e desprezo; sendo um lobo, seu lugar original a natureza, que inevitavelmente cede espao ao progresso, na forma da usina. Joo pode ser mesmo um ex-empregado da usina, um ex-co, pois o lobo ainda guarda semelhanas com o co, mas est sozinho, escondido em casa, enquanto os outros trabalham. Seja qual for a possibilidade de leitura escolhida, permanece a tenso e a falta de negociao. Com o desenrolar do poema, percebe-se o aumento gradativo da ira de Joo, de seu lobo, os latidos dos ces parecem aumentar, incomodando mais e mais. At que se d a exploso, a matana. A imagem do lobo-guar, espcie tpica da Amrica do Sul, representa a condio do mais fraco, do mais pobre, j que a Amrica do Sul, a despeito de alguns avanos, continua sendo vista como economicamente inferior, dominada pelos pases mais ricos, em especial pelos Estados Unidos. Essa relao bvia tambm se evidencia pela figura da Usina que logo associada sucroalcooleira, ou seja, de lcool, acar e demais derivados da cana, devido imagem dos lenis de cana (embora o poema d abertura a outras interpretaes, especialmente por no explicitar a relao dessa usina com as canas). Sabe-se que o Brasil lder mundial em exportao de lcool combustvel. Os Estados Unidos, hoje, o maior importador do lcool brasileiro. Com isso, o poema conduz a uma reflexo sobre a explorao em vrios nveis, do mais coletivo ao mais individual e ntimo. A Usina, de maneira geral, representa o poder poltico-econmico, fundado em relaes complexas de dominao e sujeio. Sabe-se que a produo massiva de lcool, alm de comprometer as atividades do pequeno produtor rural, devorando as terras para a monocultura, idia presente na imagem dos lenis de cana como a mais verde e voraz das slfides, reduzindo as alternativas de trabalho, provoca forte impacto ao meio ambiente, destruindo espcies nativas e comprometendo a sustentabilidade do ecossistema. Alm disso, as grandes extenses de terras dedicadas ao cultivo da cana tendem a gerar ou exacerbar conflitos agrrios, multiplicando a fome e a violncia. Isso agravado pelo fato de que, sendo mais rentvel, a produo do lcool combustvel passa a ser priorizada, o que faz com que o acar se torne um produto
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mais caro, causando mais dano a uma populao que j sofre com a fome e a pobreza 50 . Mais lucrativa, a produo de combustvel para exportao passa a aglutinar terras que poderiam ser usadas para a produo de alimentos ou outros fins mais voltados para a melhoria de vida da populao local. Assim, um tema que percorre o poema o do lucro que se sobrepe vida.
Esse lobo-guar no pode deixar de ser interpretado literalmente, pois isso reduziria a fora do simbolismo. Com suas pernas longas e finas, mais magro que os demais lobos, o que pode facilmente se associar com a condio de pobreza do trabalhador rural. 51
Com a converso de mais e mais terras para a monocultura, assim como vrios outros animais selvagens, no encontra espao para se alimentar, se abrigar e se v obrigado a procurar outras alternativas a fim de manter-se vivo. Muitas vezes, os lobos morrem atropelados pelas estradas, outras, fogem para as cidades, onde precisam se adaptar a um outro modo de ser. Sabe-se de algumas cidades que enfrentam problemas com o aumento da populao de lobos, que se misturam aos ces, domesticando-se ou tentando se domesticar. Esses lobos, muitas vezes, atacam os moradores e, com isso, acabam sendo sacrificados. As doenas contradas dos ces domsticos, ao lado da caa predatria e da destruio de seu habitat, se apresentam como um fator importante na extino desse animal. O poema explora essa relao do lobo com a usina e com os ces. Vale lembrar que, embora o lobo-guar seja um animal carnvoro, tambm se alimenta de vegetais, dentre eles, a cana-de-acar, o que explicita sua competio direta com a Usina. O lobo o outro, o deslocado, o que sobra. A relao com os ces parece mais complicada, pois so adversrios, competem pelo mesmo alimento, portanto, opostos e iguais. O lobo-guar, diferente das demais espcies de lobo, um animal de hbitos solitrios, o que, de incio, reala o contraste. Os ces encontram-se no grupo o uso do termo alcatia para designar esse grupo marca a semelhana, pois geralmente usado para se referir a lobos. Esse uso invertido do termo pode sugerir que os ces assumiram um papel que antes era do lobo.
50 De acordo com a Unio da Agroindstria Canavieira de So Paulo, hoje, maior produtor nacional, em mdia, 55% da cana brasileira vira lcool e 45%, acar. Vale lembrar que, at a dcada de 70, Pernambuco era o maior produtor. Informaes disponveis em: <http://www.unica.com.br/pages/agroindustria_alta.asp> (acesso em 07/10/2007). 51 Fonte da imagem: < http://www.guara.sp.gov.br/lobo_preservacao.html> (acesso em 14/10/2007).
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O co o domesticado, o submisso ao homem. E exatamente por isso que encontra um lugar na sociedade, enquanto o lobo-guar excludo. O co se sujeita explorao. Essa explorao pode ser a exercida pelo pas mais rico sobre os mais pobres, ou pelo empregador sobre os empregados. O lobo-guar tem a fama de ser um animal pouco agressivo. Essa idia importante, pois refora a interpretao do animal que se torna violento em razo das circunstncias. Convm lembrar que, embora pertena mesma famlia dos lobos e dos ces (candeos), o lobo-guar pertence a gnero e espcie diferentes. De acordo com os bilogos, o co surgiu da domesticao do lobo e uma sub-espcie deste (o nome cientfico do lobo Canis lupus e do co, Canis lupus familiaris). Ou seja, ces e lobos so mais aparentados entre si do que o lobo-guar. Esse dado pode ser relevante para demarcar o carter de deslocado do lobo-guar, associado ora a ces, ora a lobos, sem, no entanto, ter relao direta nem com um nem com outro. De todo modo, no se pode descartar a leitura do lobo-guar como um lobo, j que essa a interpretao mais comum entre os leigos e, no poema, se estabelece um contraste importante entre lobo e co. A imagem da Usina prxima aos festivos lenis de cana remete aos tempos do incio da explorao do Brasil ao perodo colonial. A cana-de-acar foi a primeira cultura introduzida no Brasil e pode ser vista como marco de um sistema de desigualdade. 52
A cana simboliza a condio de colonizado do Brasil, que, de certa forma, se estende aos dias de hoje. Com a submisso ao domnio estrangeiro, criam-se novas redes de poder e sujeio no interior do pas, como num efeito domin. Na poca colonial, a figura do senhor de engenho era o que havia de mais elevado na hierarquia social. As figuras de prestgio eram traficantes de escravo, os grandes proprietrios rurais e os comerciantes voltados ao comrcio externo. No extremo oposto, estava a figura do escravo. Esse, como se pode observar por meio de vrios relatos, era tratado como animal, o que se articula com as imagens dos ces e do lobo. Alis, convm lembrar que, no poema, os ces so vistos de maneira coletiva, sempre no plural, o que d relevo no individualidade e os afasta do humano ou, no mnimo, lhes
52 Conforme Boris Fausto
(2006, p. 39), foi nas dcadas de 1530 e 1540 que a produo aucareira se estabeleceu no Brasil em bases slidas. Em sua expedio de 1532, Martim Afonso trouxe um perito na manufatura do acar, bem como portugueses, italianos e flamengos com experincia na atividade aucareira da ilha da Madeira. As capitanias de Pernambuco e Bahia foram os principais produtores da Colnia, no s pelo clima favorvel ao plantio, mas pela facilidade de escoamento da produo para a Europa, j que Recife e Salvador se tornavam portos importantes. Nessa poca, ainda conforme Boris Fausto, os grandes centros importadores eram: Amsterd, Londres, Hamburgo e Gnova, os quais tinham grande poder na fixao dos preos, por maiores que fossem os esforos de Portugal no sentido de monopolizar o produto mais rentvel de sua colnia americana (2006, p. 40-41).
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tira a importncia como seres individuais e livres. Tambm so apresentados por meio da hierarquia: o co lder e os outros, at o ltimo, evidenciando a estrutura de trabalho. A associao do lobo-guar ao caboclo, ao homem de pele acobreada, por meio da cor de sua pelagem, chama a ateno para o fato de que esse homem-lobo pertence terra que est sendo tomada pela Usina, com seus ces, suas mquinas e suas lminas. O homem de cor avermelhada o trabalhador rural, o homem pobre; injustiado, inicialmente, pelo europeu de pele clara e, depois, por outros que no trazem na pele a marca do trabalho pesado. A cor da pele, nesse caso, revela menos sobre a etnia e mais sobre a identidade desse homem, ligada ao cultivo do solo e ao trabalho extenuante. Ele pode ser ndio, negro, branco ou mestio, mas traz a cor amarronzada da terra, da pele bronzeada pelo trabalho sob o sol. Outra referncia da cor vermelha o comunismo, que se ope, obviamente, ao regime econmico que assegura o crescimento das Usinas e o que representam. O vermelho tambm simboliza a vida, o prazer, o frtil, o que se ope facilmente expanso da cultura da cana, verde e voraz, pois ela se estruturou em funo do lucro, o que implicou fazer uns trabalharem mais, como se fossem mquinas, e outros perderem qualquer condio de trabalho e sustento. O vermelho simboliza, ainda, a violncia, a guerra, o irracional, o que se articula com a reao do lobo-guar. Em contraste com os sentidos da cor vermelha, vale considerar o simbolismo do verde, que riqussimo, mas por enquanto basta lembrar, apenas, que a cor verde comumente associada ao dinheiro. A expanso da indstria canavieira sempre esteve vinculada desigualdade. Lucro e pobreza so conceitos indissociveis na estrutura de nossa sociedade. O uso do termo mocambo, para designar a habitao de Joo, auxilia na construo da polissemia da imagem. Vejamos os significados de acordo com o dicionrio Aurlio:
[Do quimbundo mu'kambu, 'cumeeira', ou mu'kamu, 'esconderijo'.]
1. Bras. Couto de escravos fugidos, na floresta. 2. Bras. N. N.E. Cerrado de mato, ou moita, onde o gado costuma s vezes esconder-se. 3. Bras. N.E. Habitao miservel. 4. Bras. cabana.
As duas ltimas definies explicitam a pobreza de Joo e confirmam a leitura que associa a violncia que comete sua posio social. O prprio nome Joo ao mesmo tempo em que individualiza o personagem, pois o nico com nome prprio no poema,
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salienta sua indeterminao, j que esse um nome muito comum e serve para designar qualquer sujeito haja vista a expresso popular joo-ningum para se referir ao indivduo insignificante, sem importncia. Assim, Joo representa o homem do povo. A primeira definio serve para enfatizar o perfil de Joo como o oprimido e marca a referncia Colnia, insinuando que a condio do trabalhador rural nos dias de hoje ainda traz caractersticas do tempo de escravido. No possvel afirmar com certeza que Joo seja um cortador de cana, j que se ope aos ces da Usina. De todo modo, o fato de morar em um mocambo prximo Usina faz com que seja reconhecido como esse trabalhador, j que o plantio da cana no deixa muitas opes ao homem do campo: ou trabalha com a cana ou no trabalha. A idia de esconderijo est presente nas duas primeiras acepes do vocbulo mocambo, o que se articula com a imagem do lobo escondido. Essa idia fundamental, pois explicita a marginalizao do protagonista, alm de intensificar o carter visual da imagem: o lobo, acossado, esconde-se. O mocambo a sua toca. Obviamente, quando a v sendo invadida, como qualquer animal selvagem, age por instinto e ataca. O esconderijo tambm est associado ao medo, falta de liberdade, idias que se combinam para explicar a violncia cometida contra os ces. A segunda definio cerrado de mato, ou moita, onde o gado costuma s vezes esconder-se tambm est ativa na palavra, especialmente porque no se pode esquecer que Alberto da Cunha Melo um escritor nordestino e, embora sua linguagem no seja marcada pelo regionalismo, autoriza o leitor a acessar o contedo regional. A aluso ao gado descartada, mas a idia da moita que serve de esconderijo se soma aos demais sentidos do termo. E essa idia conduz a uma referncia intertextual capaz de auxiliar na interpretao do poema. Em A Repblica, conforme explica Roberto Romano (2004, p. 40):
Scrates compara a pesquisa da justia a uma caa. Devemos pensar que a justia um animal astucioso escondido em uma touceira de mato. Ela pode fugir das nossas mos, escapar sob nossas pernas. E mesmo quando agarrada, podemos perd-la. Sua essncia fugidia. Assim, para chegar justia preciso muito cuidado. Quando a imaginamos em nossos braos, ela est longe de ns. tolo imaginar que temos o monoplio da justia, bem como da moral e da tica. A imagem da caa relevante na obra de Plato. Em outro livro estratgico para a nossa cultura, As Leis, ele diz que o ensino dos jovens deve prevenir e proibir sobretudo a caa. Existe a caa aos animais, mas existe a caa aos homens. Assim como a primeira deve ser regulamentada, a segunda deve ser vista como indesejvel. Caar homens dar-lhes o estatuto de feras. (...) A caa ao homem pode definir a guerra e a escravido.
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Com isso em mente, pode-se imaginar Joo e seu lobo como uma caa, ou um escravo fugido. De modo inesperado e assustador, a cena se inverte e eles se voltam contra seus agressores, que passam a ser as vtimas. Se pensarmos na idia do lobo escondido no homem, e do homem escondido em seu mocambo, como smbolo da justia, e mais precisamente da sede de justia alimentada em silncio, possvel considerar que a violncia seja uma maneira monstruosa de buscar o exerccio da justia. Em face da falta de abertura para o dilogo e o entendimento, no h alternativa que no seja a revolta. At aqui, temos buscado pistas para a compreenso do poema. Uma outra porta de entrada a dedicatria, j que faz parte do texto e contribui para a construo do sentido. Ivo Barroso o primeiro interlocutor do poema e o leitor, de incio, sabe que ingressou em um dilogo do qual est parcialmente excludo, pois lhe falta o conhecimento partilhado entre o autor e a pessoa a quem o texto foi dedicado. De todo modo, podem-se acessar algumas informaes sobre Ivo Barroso, o que no parece muito difcil, j que um importante escritor brasileiro, tradutor de vrias obras de peso. No caso do poema em anlise, a informao mais relevante a de que traduziu O lobo da estepe, de Hermann Hesse. A intertextualidade (ao contrrio da estabelecida anteriormente com a obra de Plato) marcada, ainda que de maneira implcita, no texto. 53
O romance foi escrito por Hesse em 1927 e tem como protagonista Harry Haller, um homem de 50 anos que se v como meio homem e meio lobo, dividido ente as aspiraes elevadas e os instintos mais ferozes. Ao longo da narrativa, Haller vive uma experincia de libertao, aps conhecer Hermnia, uma espcie de alter ego que o conduz entrega aos prazeres tidos por ele como mundanos. No livro, de acentuado teor psicolgico, essa experincia se relaciona aceitao dos diversos seres que habitam o humano, no dois, mas uma multiplicidade de seres. E a arte surge como um importante caminho para essa libertao do homem, no sentido de lev-lo a aceitar seu modo de ser, de estar no mundo e ter prazer. Seria redutor ler o Lobo-guar em termos de semelhanas e diferenas com o livro de Hermann Hesse, mas alguma comparao se faz necessria, com o intuito de contribuir para a compreenso do poema. As papoulas, por exemplo, associadas ao pio, remetem situao de sonho, viagem psquica induzida pelo narctico. Assim, a dimenso simblica da violncia contra os ces
53 O lobo da estepe, em sentido literal, apresenta vrias semelhanas com o lobo-guar. Tambm tem pelagem vermelha e patas longas e finas. Tem hbitos noturnos e solitrios.
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ganha fora. E deixa de conter somente um teor negativo, mas pode ser tida como uma experincia de libertao, assim como as experincias de Harry Haller, protagonista do romance, que se v como meio homem e meio lobo. Alm disso, a confuso entre os papis desempenhados pelo lobo e pelos ces pode ser traduzida na imagem dos ces como aspectos da personalidade desse lobo, que j vinha sendo interpretado como um aspecto da personalidade de Joo. A carnificina passa a ser considerada como um ato simblico de libertao do ser, a realizao no plano do sonho do que no pode ser efetivado na realidade. Do mesmo modo que Hermnia, em O lobo da estepe, buscava a morte, os ces tambm podem desej-la. E Joo deixa de ser simplesmente um carrasco. Com isso, vale lembrar uma outra referncia intertextual, desta vez com a cultura popular brasileira. H uma lenda segundo a qual basta olhar a coisa desejada atravs do olho do lobo para obt-la (cf. BOAS, 1994). 54
As diferentes interpretaes no so excludentes, mas contribuem para a compreenso da imagem polissmica do poema. Quando o texto passa a ser lido sob a tica do smbolo, as referncias e associaes podem se tornar infinitas. Diante disso, consciente de que no esgotamos as possibilidades interpretativas do texto, passamos a focalizar nossa ateno forma, lembrando que forma e contedo so indissociveis. Para facilitar a anlise, e destacando a repetio dos versos, o poema foi dividido em quatro partes, levando-se em conta a organizao temtica da narrativa. A primeira parte introduo, tratando da apresentao dos protagonistas e o motivo principal da narrativa abarca os nove primeiros versos; a segunda contemplando a descrio do cenrio, inserindo os personagens em um contexto social estende-se do verso 10 ao 19; a terceira voltada ao confronto do verso 20 ao 44; a quarta desfecho apresentando as conseqncias do confronto do verso 55 at o final do poema (as partes 3 e 4 foram divididas em sub-partes).
54 Mais adiante, comento a importncia do olhar do lobo.
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Primeira parte
1 Acossado, um lobo-guar 2 escondeu-se dentro de Joo,
3 Acossado, um lobo-guar 4 escondeu-se dentro de Joo, 5 que, invisvel em sua misria, 6 fez-se perfeito esconderijo 7 do Mal, seu ingnuo hospedeiro.
8 fez-se perfeito esconderijo 9 do Mal, seu ingnuo hospedeiro.
Esses primeiros versos apresentam o motivo central da narrativa, que o fato de um lobo-guar esconder-se dentro de Joo. a partir desse fato que ocorrem os desdobramentos da histria. Nesse trecho, a ateno recai sobre o indivduo: o lobo e Joo. Desde ento o conflito entre ambos se estabelece e os dois passam a se confundir. difcil saber o que atitude de Joo e o que atitude do lobo. Esse conflito marcado pela repetio do dstico inicial no incio da segunda estrofe, deixando os personagens alternarem-se em paralelo e em destaque no fim dos versos:
... lobo-guar ... Joo ... lobo-guar ... Joo
A descrio de Joo como um receptculo tambm recebe destaque pela repetio dos versos, com a posio, tambm em paralelo, dos termos:
A posio do sintagma do Mal no incio do verso nove, combinada com a posio de esconderijo e hospedeiro nos versos, tambm contribui para enfatizar a imagem do lobo escondido, j que permanece em posio central, representando, visualmente, o Mal no interior do homem.
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No poema, predomina a ordem direta da frase, mas algumas inverses ocorrem, o que serve para dar nfase a idias e produzir determinados efeitos expressivos. Dentre as inverses, a colocao do adjetivo antes do substantivo chama a ateno. No caso de perfeito esconderijo e ingnuo hospedeiro, a anteposio do adjetivo deixa os substantivos no final dos versos, o que possibilita os efeitos mencionados. A topicalizao da forma no particpio passado, Acossado, abrindo o poema, deixa em relevo a condio do lobo e j o apresenta como um animal ferido, induzindo a uma leitura do lobo como vtima e situando os acontecimentos do poema em uma histria anterior. O paralelismo entre Acossado e escondeu-se, tambm enfatizado pela repetio dos versos, evidencia a semelhana sonora entre essas construes: [Akosadu] / [eskdeuse]. A ordem dos sons [k-s-d] (em Acossado) e [k-d-s] (em escondeu-se) provoca a sensao de alternncia, o som oclusivo [d], finalizando o primeiro termo com uma exploso, sugere a violncia que afugenta o lobo, ao passo que, no segundo vocbulo, os sons oclusivos [k-d] surgem entre os sons sibilantes do /s/, o que insinua o recolhimento desse lobo, seu gemido baixinho de animal ferido. Esse recurso ressalta a relao de causa e efeito. Na construo invisvel em sua misria, a combinao dos sons nasais aos fricativos, sons contnuos, que no explodem chamando ateno, intensifica a idia do plano semntico do passar despercebido. A recorrncia da vogal [i], que sugere estreitamento, tambm contribui para reproduzir na camada sonora a idia de lugar fechado presente no termo esconderijo. As slabas tnicas de invisvel e misria intensificam a relao semntica entre essas duas palavras, evidenciando a maneira como a pobreza tratada em nossa sociedade: ou como se no existisse ou, quando lembrada, como se fosse algo distante, abstrato e no uma situao real, de pessoas reais, com sofrimentos reais. A estrutura demonstra uma organizao lgica em que a relao entre a situao de abandono e misria tida como propcia para o Mal. Essa idia dada como certa, compartilhada pelo senso-comum, como uma espcie de aforismo disfarado. A obviedade do enunciado parece to exagerada que o leitor levado a refletir se no h uma ironia subjacente a essa afirmao. Com isso, obrigado a rever o senso-comum e a pensar a relao complexa estabelecida entre a pobreza e o Mal, o feio, o no humano.
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Segunda parte
10 No muito longe, os ces da Usina 11 latiam em coro e varriam 12 o ar, com estridentes limalhas.
13 latiam em coro e varriam 14 o ar, com estridentes limalhas. 15 Essa Usina ficava prxima 16 dos festivos lenis de cana, 17 a mais verde e voraz das slfides.
18 dos festivos lenis de cana, 19 a mais verde e voraz das slfides.
Nessa segunda parte, samos do plano dos indivduos, do interior da habitao. O foco se amplia e podemos enxergar o contexto em que se situam Joo e o lobo. O movimento lembra o da cmera no cinema, saindo do interior da casa e se distanciando at oferecer uma viso panormica do cenrio. 55 Nessa parte, so introduzidos os antagonistas: inicialmente os ces embora saibamos que no so simplesmente opositores, podendo ser interpretados como companheiros e at como desdobramentos da psique de Joo e em seguida a Usina. Mas esses ces apresentam apenas o qualificativo de serem da Usina, o que a deixa em primeiro plano. A analogia com o movimento da cmera continua sendo til. Primeiro temos o foco no interior dessa usina. Seus ces podem ser seus ces de guarda, seus trabalhadores e suas prprias mquinas em pleno funcionamento. Em seguida, o foco se abre para o contexto dessa Usina, para os lenis de cana. Esse movimento da narrativa destaca a relao dos personagens com a paisagem, com seu contexto geogrfico, evidenciando a temtica social do poema, centrada na relao do homem com a terra. A repetio dos versos:
11 latiam em coro e varriam 12 o ar, com estridentes limalhas.
13 latiam em coro e varriam 14 o ar, com estridentes limalhas.
55 Seria interessante um estudo que relacionasse a obra de Alberto da Cunha Melo ao cinema. Parece haver um dilogo constante, talvez porque seus poemas tenham um carter visual muito acentuado. Mas h muitas referncias, explcitas inclusive.
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reproduz o coro repetitivo e montono, lembrando o latido insistente e agressivo de ces aprisionados e o som infernal de mquinas trabalhando constantemente. O termo coro indica que os ces latiam em unssono, intensificando a sensao de som mecnico, ordenado e vazio. Tambm tem a idia de eco, repetio automtica de um som anterior, enfatizando a submisso dos ces. O coro tambm pode ser interpretado como o conjunto de atores que, no teatro clssico, atuam como representantes do povo junto s personagens principais. Essa acepo do termo se articula com duas leituras importantes. A primeira a dos ces como o povo explorado, trabalhadores operando mquinas no interior da usina ou seus cortadores de cana, atuando externamente seja como for, a relao com os ces que latem descreve-os como se estivessem presos, o que, num plano simblico, representa o condicionamento dos pobres aos donos das terras e dos bens de produo. A segunda leitura a que traz para o poema o contexto da encenao teatral, demarcando o carter simblico do poema, o que se conecta imagem das slfides, figuras recorrentes no teatro e na literatura clssica no geral. A imagem desses versos reverbera com a repetio. A associao inevitvel do coro com a msica reproduz uma espcie de festa, mas uma festa grotesca, infernal que estabelecer um paralelo irnico com os festivos lenis de cana. A anteposio do adjetivo estridentes deixa o substantivo limalhas no fim dos versos, dando destaque idia de mquinas trabalhando. Tambm deixa em paralelo:
... varriam ... limalhas ... varriam ... limalhas
Com a alternncia de varriam e limalhas, alternam-se as vogais [a] e [i], o que sugere o som estridente e repetitivo. Os sons consonantais [v], [rr], [l], [lh], associados aos sons nasais, sugerem o som arrastado, pesado, que se pronuncia com dificuldade, causando um certo desconforto aos ouvidos, o que contribui para intensificar a imagem. O conjunto sonoro de estridentes limalhas, pela sensao de atrito sugerida pelo som [tr] e pelo contraste entre sons explosivos [d] e [t] e os sons abafados das nasais, colabora para recriar o ambiente de trabalho massacrante, como se fosse uma atividade forada, no contexto da Usina. O verbo varrer, no s pela sua sonoridade, mas principalmente pelos seus significados relacionados a arrastar e destruir serve para conferir violncia aos ces. Alm
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disso, sabemos que o ato de varrer em nossa sociedade tido como um ato menos nobre, deixado a cargo dos mais pobres, o que refora a caracterizao dos ces. A imagem sinestsica de varrer o ar com estridentes limalhas no apenas amplia a sensao desagradvel dos latidos, mas combina varrer a limalhas (p ou partculas cadas de um metal quando limado), ou seja, sujeira, reproduzindo a cena do p sendo levantado com o corte da cana. Nesse caso, o p metlico se confunde com o p da terra, recriando uma atmosfera pesada, abafada, estagnada. A repetio dos versos reproduz o movimento repetitivo dos empregados da usina. A descrio parece mesmo presentificar o gesto brusco e insistente dos braos sobre a cana, o barulho das foices partindo as hastes duras e finas, ou seja, o movimento de varrer a plantao com a colheita. A imagem do ar pesado reverbera em slfides gnios femininos do ar, associados beleza e delicadeza, criando um contraste expressivo. A repetio em:
16 dos festivos lenis de cana, 17 a mais verde e voraz das slfides.
18 dos festivos lenis de cana, 20 a mais verde e voraz das slfides.
alm de fazer oposio imagem dos versos 11-14, frisando a relao entre os ces e a cana, recria o alastrar da plantao, dando fora imagem da cana voraz, que engole toda a terra. Nesses versos, predominam os sons fricativos, sibilantes. A sonoridade representa a leveza do movimento das canas agitadas pelo vento e indica a lenta e constante expanso da cana. Esse contraste brutal com os versos anteriores marca a indiferena da cana para com os ces. Suas realidades, aparentemente, no se tocam. As canas danam, o que poderia levar-nos a imagin-las danando ao som dos ces. Elas so agitadas pelo vento; os ces varrem o ar, agitam-no, o que pode ser interpretado como: os ces produzem o vento. No entanto, a dana das canas leve e graciosa, a msica dos ces estridente e pesada. Esse contraste corrobora a idia de que os ces, os trabalhadores, possibilitam a expanso da monocultura da cana (apenas nesse sentido que danam ao som de sua msica); seu esforo, porm, no reconhecido, as canas devoram suas terras, indiferente e soberana. A metfora das slfides relaciona a cana a seres etreos, puros e delicados, ao feminino, mais precisamente figura de uma mulher frgil. Trata-se, de fato, de uma
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paisagem bela e festiva. Mas exatamente o aspecto sedutor da cana que est em jogo, pois o termo voraz chama a ateno para o perigo de sua seduo, mostrando-a ambiciosa e violenta. Reforando a imagem ambgua da cana est a figura dos lenis representando a grande extenso de terra coberta pela plantao. S possvel ter a impresso dos lenis se observarmos as canas de longe, agrupadas. Essa imagem refora sua delicadeza, seu aspecto fino e frgil, sua leveza de movimento. Contudo, vista de perto, a cana um vegetal duro, resistente, cujo manejo requer muita fora, e esforo. O poema induz o leitor a reparar no contraste entre a paisagem apreendida pelo olhar distanciado, que idealiza e distorce de acordo com determinados interesses, e a paisagem olhada de perto, pela tica dura e feia dos trabalhadores. Obviamente, possvel ampliar a leitura para um contexto que ultrapassa o da indstria canavieira. Por meio dessa imagem, o texto aborda a questo da dominao, poder e sujeio, presente em vrios planos da sociedade. O contraste tambm surge em verde e voraz. A semelhana sonora entre esses dois termos (reverberam os sons [v] e [r]) explicita o contraste no plano semntico. A posio de voraz aps o termo verde representa a ordem do jogo astucioso da cana: verde, que seduz, mas voraz, que violenta. O som sibilante, prolongado e deslizante, finalizando a seqncia tambm serve para sugerir o movimento de expanso da cana, o que no poderia ser obtido se verde surgisse depois de voraz. importante atentar para a simbologia da cor verde. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1995, p. 939-940), o verde uma cor tranqilizadora, refrescante, humana (o que se coaduna com a personificao da cana na imagem de uma mulher sensual); a cor da esperana, do reino vegetal se afirmando, graas s guas regeneradoras, a cor da vida; em oposio ao vermelho, a cor do feminino. Benfico, o verde reveste-se, portanto, de um valor mtico, o das green pastures, dos parasos verdes dos amores infantis. Com isso, e a imagem das slfides, revela-se uma paisagem paradisaca, de fantasia, que contrasta com a descrio dos ces latindo em coro, varrendo o ar com estridentes limalhas, que estabelece um cenrio infernal. E o poema mostra esse paraso se alimentando do sofrimento alheio, do prprio inferno, denunciando seu aspecto diablico.
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Terceira parte
O verso 20 inicia-se com o ditico temporal Uma noite. Anteriormente, no incio do dcimo verso, ocorre a referncia espacial No muito longe. Essas indicaes imprecisas de tempo e espao, combinadas s raras especificaes dos personagens, que surgem com pouqussimos qualificativos, aproximam a narrativa da linguagem do conto de fadas, sugerindo para o leitor que a realidade do poema uma realidade mtica, o que refora seu teor simblico, de fbula. Estranhamente, esse recurso tambm confere maior profundidade crtica social, pois atribui ao problema um carter universal. A disputa pela terra antiga, assim como no se restringe a uma determinada regio. Do mesmo modo, convida o leitor a considerar a questo da luta pelo poder e da luta pela sobrevivncia em um contexto maior que o da cana-de-acar. Uma vez que a linguagem simblica, pode servir para tratar de diversas realidades. Isso j estava sugerido na expresso: a mais verde e voraz das slfides, que serve no apenas para ampliar as qualidades de slfides das canas, mas para sugerir que esto inseridas em um grupo maior, representando apenas uma face do poder. Enquanto na primeira parte o foco estava no indivduo e, na segunda, no social, na terceira tem-se o contato entre o individual (Joo abrindo a porta de seu mocambo) e o social (os ces que vm da Usina), produzindo uma nova realidade, como veremos mais adiante. Essa terceira seo do poema ser dividida em segmentos menores, tambm para facilitar a leitura. O primeiro, dos versos 20 a 25, trata da aproximao dos ces e do preparo para o encontro; o segundo, dos versos 26 a 34, apresenta o confronto propriamente entre os ces e o lobo; no terceiro, dos versos 35 a 44, tem-se o incio da matana; e no quarto, dos versos 45 a 54, o fim da matana.
20 Uma noite, Joo despertou 21 com o rumor de altos latidos 22 e papoulas despedaando,
23 com o rumor de altos latidos 24 e papoulas despedaando 25 pela numerosa alcatia.
A referncia a um episdio ocorrido noite se articula com a idia de o lobo-guar ter hbitos noturnos e destaca o inesperado do acontecimento, o sobressalto. Isso apresenta, no princpio, Joo como algum passivo, explicitando sua condio inicial de vtima. Um dos
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sentidos de despertar revelar-se, ou seja, sair da toca, o que se conecta descrio anterior do lobo como um animal escondido e acuado. Outro sentido pertinente : sair do estado de torpor ou de inrcia, readquirir fora ou atividade. Com isso, marca-se a transformao no estado de Joo e do lobo, que saem da situao de oprimidos. Isso possvel pela ao dos ces, que pode ser vista tanto de maneira negativa como positiva. Negativa, pois usam de violncia, latem alto, despedaam as papoulas. Positiva, pois vo ao encontro do lobo acossado e isso que o desperta, ou seja, lhe d foras para reagir. O ato de acordar no meio da noite est repleto de valor simblico. O verbo despertar significa nascer, abraar uma nova realidade. Sabemos que a noite est simbolicamente relacionada ao inconsciente, aos desejos reprimidos, ao universo onde o fantstico acontece. Trata-se do estgio que conecta um dia a outro, ou seja, um espao de transio, que liga uma realidade outra. De fato, aps esta longa noite, o cenrio no ser mais o mesmo. Assim, o ambiente noturno se configura como o cenrio simblico do massacre dos ces, como se Joo despertasse em sonho. E tudo se realiza dentro dele. A imagem das papoulas traz presente essa realidade interior, j que, por ser a matria-prima do pio, est relacionada s viagens psquicas. Por no serem flores tipicamente brasileiras, causam um estranhamento, que serve como indcio de estarmos diante de uma realidade onrica. Alm disso, as papoulas representam o belo, simbolizam o amor. E so despedaadas; portanto, a imagem dos ces, mais uma vez, parece incompatvel com a beleza, o cuidado e o prazer mais delicado. O verbo despedaar, mais impactante do que o sinnimo quebrar, ressalta a violncia dos ces, o que se vincula aos altos latidos, indicando no apenas a proximidade dos ces, mas a agressividade de seus ladridos. Essa agressividade reforada, ainda, pela recorrncia dos sons oclusivos. Vale considerar a semelhana sonora entre despertou e despedaando, em evidncia pela posio em paralelo dos termos, o que salienta o condicionamento do acordar de Joo destruio das papoulas. Isso pode representar a ameaa de destruio de sua propriedade, de destruio de sua integridade uma vez que as papoulas metonimicamente, por meio da cor, representam o prprio lobo ou simplesmente o ingresso no mundo do devaneio, pela ligao com o pio. Essa semelhana sonora entre os verbos ressalta a significao do despertar sbito, marcado pelo pretrito perfeito e pelo som oclusivo surdo (despertou). A destruio longa e anterior ao despertar, presente no valor semntico do gerndio, intensifica- se com a combinao da sibilante com a nasal e a oclusiva sonora, mais amena que a surda (despedaando).
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Des-pedaar: cortar em pedaos. Presentifica-se a idia do corte, que se associa tambm ao movimento de partir a cana. Esses ces, como os cortadores de cana com suas foices, parecem enlouquecidos, como se no conseguissem frear sua atividade, o que indica desespero e pode apresentar sua aproximao como um pedido alucinado por socorro, um pedido de descanso. Tambm sugere a expanso voraz da plantao de cana, que vai destruindo seu entorno, reforando a idia de que os ces, subordinados, no agem pela vontade, mas porque seguem ordem. A imagem absurda e as papoulas frisam a posio de Joo como diferente, e que resiste, pois destoa da paisagem que vai se tornando cada vez mais apenas verde. O termo rumor cria um efeito de sentido interessante. Seria mais econmico dizer: Joo despertou com altos latidos. Obviamente, a mtrica octossilbica seria comprometida. Entretanto, o efeito no simplesmente meldico. Essa palavra chama a ateno para o deslocamento agressivo dos ces, o que enfatiza, mais uma vez, a perversidade da cana, que destri ao passo que avana. Contribui, ainda, para reproduzir, no plano sonoro, o aproximar gradativo dos ces, uma vez que os sons nasais e vibrantes junto com as vogais fechadas atrasam a exploso das oclusivas e das vogais abertas, representando os fortes latidos: com o rumor de altos latidos. Esses sons significam o rosnado dos ces, que se alterna com os latidos. De todo modo, o efeito principal dessa passagem gradual de sons mais fracos a sons mais fortes o de aumentar da tenso da narrativa. Usado para se referir a sons desagradveis e desconexos, rumor tambm designa a notcia que se espalha com rapidez, o que multiplica as possibilidades de leitura da imagem. A repetio dos versos 21 e 22 na estrofe seguinte amplia o suspense. interessante notar que a vrgula que conclui o verso 22 no repetida no 24: em um primeiro momento, o ritmo se contrai, gerando expectativa, depois se solta para revelar a identidade dos malfeitores (um outro sentido para alcatia). O agente s se explicita ao final da seqncia, no verso 25, e o fato de ocorrer logo aps a repetio faz com que esse verso receba destaque. O efeito sonoro semelhante ao do verso 23: o termo numerosa, com sons mais abafados, culmina em alcatia, com sons abertos e explosivos, representando o impacto da chegada dos ces. Como j mencionado, alcatia um vocbulo mais utilizado para se referir a um grupo de lobos, o que explicita no simplesmente a inverso de papis, destacando a ferocidade dos ces em contraste com a condio do lobo quieto em seu canto, mas tambm a identidade estabelecida com Joo e seu
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lobo, j que uma das interpretaes possveis, devido intertextualidade com O lobo da estepe, que os ces sejam representaes do prprio Joo. A anteposio do adjetivo, deixando o termo alcatia por ltimo, expressa o movimento de aproximao dos ces e aumenta o suspense da narrativa. Tambm sugere o processo de formao da alcatia, como se esta fosse aumentando aos poucos, na medida em que se aproxima, at assumir grandes propores, como se fosse um grande exrcito. Alm disso, colabora para que Joo receba destaque, j que a narrativa acompanha o movimento de sua percepo: primeiro ele percebe os latidos, as papoulas despedaarem e somente depois que reconhece os causadores. As papoulas despedaando surgem, sintaticamente, depois. claro que uma das caractersticas da lngua a de ser linear, como j apontara Saussure; no entanto, a ordem se torna relevante para a estilstica, j que representa uma escolha. Embora Joo possa ter despertado com o som concomitante dos latidos e do despedaar das papoulas (o que parece mais verossmil), a ordem sinttica, posicionando papoulas despedaando aps e em paralelo a altos latidos, estabelece uma relao de causa e conseqncia, ou seja, so os latidos, e por metonmia os ces, que destroem as papoulas. Essa ordem: latidos papoulas alcatia importante, pois o primeiro contato entre Joo e os ces se d apenas pelo som. Quando os olhares se cruzam, o impacto enorme, como se entrssemos, de repente, em uma narrativa no simplesmente simblica, mas com a grandiosidade dos mitos e das grandes epopias.
26 Mas, quando Joo abriu a porta 27 e, desarmado, os encarou,
28 Mas, quando Joo abriu a porta 29 e, desarmado, os encarou, 30 todos os ces retrocederam, 31 e o silncio cobriu de p 32 cinza essa noite de glria.
33 e o silncio cobriu de p 34 cinza essa noite de glria.
Dos versos 20 a 25, o ritmo gil constri-se em um crescendo at explodir no termo alcatia. A cena est formada: Joo tem em sua casa um exrcito de ces, ou lobos, ferozes que parecem prontos para trucid-lo. Nos versos 28 a 30, o ritmo se modifica, torna-se mais grave, condizente com a solenidade do encontro. Toda a euforia anterior, toda a msica forte
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que acompanhava o aproximar dos ces suspensa, os animais param seu movimento, calam seus latidos. um momento de impasse. A conjuno Mas, abrindo o verso 28, impe o primeiro freio ao ritmo, estabelecendo um novo suspense, pois antecipa um contraste algo no ocorrer como se espera. A vrgula aps a conjuno importante para estabelecer o silncio que garante o suspense e prepara o leitor para o que vir a seguir, algo magnfico e assustador.
26 Mas, quando Joo abriu a porta 27 e, desarmado, os encarou,
Todo o verso 26 estabelece a mudana de ritmo e do tom da narrativa. Os sons encadeiam-se deslizando lentamente, as consoantes oclusivas so abafadas pelo som sibilante e pelas vogais nasais e fechadas, at abrir e explodir em porta, no apenas pelas oclusivas surdas, mas tambm pelas vogais abertas e pelo fato de que onde ocorre a slaba tnica de todo o verso, j que a tnica anterior incide sobre Joo, tendo seu impacto amortecido pelo som nasal. O verso seguinte d seqncia ao suspense. Agora os sons voltam a se fechar e as vrgulas, isolando o qualificativo desarmado, adiam o desenrolar dos fatos. A pontuao tambm contribui para deixar em evidncia a condio de Joo frente aos ces. Estes, pelo simples fato de estarem organizados em uma alcatia, e numerosa, mostram-se mais fortes. Alm disso, se forem interpretados como os cortadores de cana, esto armados com suas foices. De todo modo, representam o mais forte, pois esto associados Usina. O verbo encarou aparece no final do verso, recebendo destaque. nele que se apresenta a contradio, pois o ato de encarar indica fora e coragem, j antecipada, ainda que de maneira indireta, pelo emprego do verbo despertar. Em encarou se d o confronto propriamente. Joo, na condio de um animal feroz, depara-se com a alcatia, e a olha sem medo. Esse incio da seqncia com a orao adverbial (quando...encarou) fundamental para a criao do suspense e o desenhar da cena. O leitor fica espera do que acontecer. A vrgula depois de encarou, mais uma vez, importante, no porque atende a uma exigncia das regras de pontuao, mas porque a pausa intensifica a tenso. E a repetio dos versos, mais uma vez, favorece o estabelecimento do clima de expectativa.
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Todos os ces retrocederam. O desenrolar da histria inesperado. Pela sua fora, a cena adquire caractersticas da narrativa mitolgica. 56
O movimento dos ces no um simples recuar, o que sugerido pela construo meldica do verso. O pronome Todos, em posio inicial, no s anuncia a fora do olhar de Joo, que afeta toda a numerosa alcatia, mas estabelece uma combinao sonora que sugere o movimento de arrastar dos ces Todozos cesretrocederam. Os sons sibilantes no final de todos e ces que possibilitam esse efeito, pois se unem aos sons iniciais dos vocbulos seguintes, formando uma seqncia sem quebras, que no poderia ser obtida com outra ordenao sinttica: Os ces todos retrocederam. O vocbulo retrocederam, por sua extenso, tambm sugere um movimento longo. A impresso que se tem a de que os ces no recuaram um pouco, mas re-tro-ce-de-ram muito, reforando o carter assombroso da cena. O encontro consonantal [tr] tambm serve para reproduzir o tumulto dos ces se atropelando. A posio dos verbos encarou e retrocederam no final dos versos e em paralelo no apenas os deixa em evidncia, mas refora a relao entre o olhar de Joo e o recuo da alcatia. O olhar rico em simbologia, especialmente o olhar do lobo. Por meio da intertextualidade com a cultura popular, olhar no olho do lobo pode significar obter a realizao dos desejos. Por isso to poderoso, e to perigoso. O ato de retroceder explicita no apenas o poder de Joo sobre os ces, e a conseqente inverso de papis, mas representa a reao dos ces frente a seus prprios desejos. E o olhar tambm serve como uma espcie de espelho. Assim, co e lobo se reconhecem, um se v no outro. Afinal, a descrio do grupo de ces como uma alcatia (bando de lobos) sugere a prpria percepo de Joo e Joo e o lobo-guar, como j se pde perceber, se confundem. O ato de abrir a porta, indicando o contato entre as esferas individual e coletiva, tambm est relacionado com a passagem para o plano do sonho. 57 O ato de abrir a porta que permite a matana dos ces e, conseqentemente, a libertao, pela morte, de sua condio de oprimidos (dos ces e de Joo). Ou, se no desejarmos enxergar os ces como semelhantes ou equivalentes a Joo, a experincia no perde seu teor simblico, pois sobre os ces que ele despeja todo o dio alimentado contra a Usina e tudo o que representa.
56 No momento, basta lembrar de uma passagem da Bblia, do Evangelho de Joo (18:6), especificamente aquela em que Cristo vai ser capturado por seus inimigos no Horto das Oliveiras: Quando Jesus lhes disse: Sou eu, recuaram e caram por terra. Diante disso, Joo aparece como um ser quase onipotente. E sua fora reside, diferente da de Cristo, em seu olhar. 57 Voltando ao romance de Hermann Hesse: no Teatro Mgico, uma metfora para a experincia psquica induzida pela droga, cada porta que Haller abre o leva a uma realidade diferente, que pode representar seus medos e desejos, assim como diferentes personalidades que abarca.
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O contato com o mundo exterior, que at ento parecia se estabelecer apenas pela audio acuradssima no lobo, o que agrava seu sentimento de angstia, sofrimento e revolta ao ouvir constantemente os latidos-limalhas da Usina trava-se, agora, pelo olhar. E sabemos que o lobo-guar, por ser um caador noturno, enxerga muito bem noite (diferente de alguns ces). A noite potencializa suas foras, seu territrio de ao. Com seus sentidos aguados, vai experimentar um mergulho profundo em seus instintos, desejos, j que a noite o momento do encontro com o desconhecido, com o fantstico e com os monstros. E o interessante que o encontro do lobo , ao mesmo tempo, com seu prprio universo psquico e com uma realidade externa, social o que fica bem marcado pelo ato de abrir a porta. O confronto determina uma alterao na paisagem, que escurece mais, se torna nebulosa, por meio da imagem do p cinza sobre a noite de glria. Neste ponto, vale lembrar a expresso entre o lobo e o co, usada para se referir boca da noite, ao escurecer, ao lusco-fusco. Pois possvel visualizar o encontro como recriando o mundo e estabelecendo uma nova noite, oposta quela em que Joo dormia, acuado, inerte. Em funo de estar no fim da seqncia, o termo glria recebe destaque. Essa nova noite uma noite de glria. O p cinza parece recobrir uma realidade para dar incio a outra, que, ironicamente, pode ser vista como luminosa a prpria sonoridade dos vocbulos p e glria, com sons abertos, combinando-se aos sons fechados de silncio, cobriu e noite, ressalta a cena repleta de contrastes. Parece inevitvel relacionar o termo glria guerra, pois muitas so as ocorrncias desse vocbulo em falas relativas batalha. Dentre as acepes listadas no dicionrio, a primeira : fama adquirida por aes extraordinrias, feitos hericos, grandes servios prestados humanidade. De modo irnico, o poema chama a ateno para o uso comumente deslocado do termo. Primeiro porque, no texto, usado para descrever a paisagem, com o sentido de magnificncia, brilho, esplendor, o que contrasta com o escuro presente em p cinza, criando um cenrio surreal, que se articula com o campo do devaneio; glria tambm significa alegria, satisfao, associando a carnificina satisfao de desejos e conferindo um carter libertador ao massacre. Com isso, o leitor induzido a refletir sobre o absurdo de se associar glria guerra, justamente porque, no poema, a descrio da guerra combina horror e prazer, provocando intenso estranhamento.
31 e o silncio cobriu de p 32 cinza essa noite de glria.
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33 e o silncio cobriu de p 35 cinza essa noite de glria.
A reverberao enfatiza o carter absurdo da paisagem e apresenta em paralelo os termos:
... p ... glria ... p ... glria
Esse recurso salienta o carter ambguo do massacre. O termo p alude destruio, ecoando no vocbulo cinza, que, lido como substantivo, remete a restos mortais. A palavra glria liga-se ao prazer, ao belo e elevao espiritual. A posio em paralelo refora o contraste semntico. O vocbulo p 58 , no final do verso, produz forte impacto sonoro, criando uma exploso; a qual abafada no verso seguinte por sons mais fechados, sibilantes e nasais; at explodir novamente no som aberto de glria, como se reproduzindo uma seqncia de estampidos, o que aumenta a fora da cena como algo grandioso e violento. Com isso, tem-se o incio de uma imagem que se expandir nos versos seguintes, em que o horror se torna belo aos sentidos do leitor. O silncio recebe destaque, pois surge como agente, alterando o campo visual. Essa imagem sinestsica confere dramaticidade cena e pode ser relacionada linguagem cinematogrfica. comum, no cinema, a suspenso do som em cenas de forte impacto, especialmente cenas de guerra. Esse recurso afasta o leitor do acontecimento, marcando sua posio de espectador, e permite a reflexo, j que evidencia a gravidade do que observado. No poema, tambm marca a inverso dos papis: apenas o olhar de Joo faz cessarem os latidos infernais. Esse contraste entre o ritmo intenso dos versos e a aluso ao silncio chama a ateno para o acontecimento. O dilogo d lugar ao, que explode com violncia. E o silncio descrito visualmente como algo escuro, denso. O uso do vocbulo cinza descrevendo p confere fora ao carter visual da imagem. A combinao entre o sonoro e o visual chama a ateno para a maneira como as atitudes se fundem com a prpria paisagem: o calar dos latidos e a transformao da noite.
58 A expresso p cinza assume grande fora no poema, porque contribui para a criao do ritmo e tambm porque chama a ateno para os sentidos de p e de cinza separadamente, ao mesmo tempo em que um refora a significao do outro. Em uma acepo, p cinza sinnimo de cinza.
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O p cinza cobrindo a paisagem pode assumir diversas conotaes. O fato de criar um cenrio nebuloso, onde as coisas no se vem facilmente, insinuam o adormecer da ordem e da razo e a entrada no mundo do caos e da imaginao. interessante avaliar a simbologia da cor cinza, j que as cores desempenham um papel importante na significao geral do poema. At ento, havia o contraste entre o verde da plantao de cana e o vermelho do lobo (o lobo-guar tambm conhecido como lobo vermelho) e das papoulas (que aparecem na descrio da cor vermelha no dicionrio Aurlio). O cinza obtido da mistura entre o branco e o preto, o que por si s favorece uma associao com o encontro dos opostos, do interno com o externo, do velho com o novo, do real com o irreal, do dia com a noite, do lobo com o co. Alm disso, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (1995, p. 248-9), a cor cinzenta est intimamente relacionada, na simbologia crist, ressurreio dos mortos, tambm alude dor, por representar uma espcie de luto aliviado. Essas idias esto intimamente associadas, no poema, com a libertao de Joo e dos ces pela morte simblica. Por vincular-se bruma, nvoa, o cinza representa as camadas mais recuadas do Inconsciente, que precisam ser elucidadas e clarificadas pela tomada de conscincia (Id. ibid.). Com isso, temos a concretizao de uma imagem de confronto em vrios planos, do homem consigo mesmo e com sua realidade exterior. Essa imagem instaura, portanto, o momento da grande transformao. O p cinza tambm est relacionado ao fogo, pois no deixa de ser um resduo da queima fogo que no pode deixar de ser associado ao lobo, a comear pelas suas cores. O simbolismo mais comum do fogo o da destruio e, conseqentemente, da purificao, o que se relaciona com um dos sentidos do massacre. O p cinza tambm pode fazer aluso ao fumo, o que se coaduna com a idia de que tudo pode ser entendido como uma experincia induzida pela droga, pela entrega ao prazer sensorial. As cinzas tambm esto relacionadas ao contexto da plantao da cana-de-acar. Embora esta seja uma tcnica condenada por prejudicar a sade dos trabalhadores, as queimadas ainda so comuns e servem para facilitar a colheita. A relao com as queimadas extremamente importante para revelar a condio de explorado do cortador de cana. No geral, produzem um contexto de trabalho praticamente infernal, mas, de acordo com os prprios trabalhadores, so necessrias, pois sem elas seu
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trabalho no seria to produtivo e, por isso, no alcanariam o pagamento desejado. Tambm comum serem feitas noite. 59
O paralelismo de p e glria, com a alternncia provocada pela repetio, assim como o ritmo que explode ao final dos versos, recriam o fogo, com seus estalos e com a alternncia entre a luz da chama e o escuro da fumaa. Esses versos sugerem um grande incndio. Esse incndio pode se referir tradicional queima da cana ou, em um plano mais metafrico, o olhar do lobo ateando fogo plantao de cana que o ameaa afinal, a relao entre o olhar irado e o fogo to antiga que a expresso olhar fulminante est desgastada e j no se percebe mais seu sentido metafrico de olhar que solta raios e chamas. De todo modo, a destruio da paisagem, ou melhor, da plantao explicitada, posteriormente, na imagem do medo que vem plantar seus cactos e o conseqente aniquilamento dos ces esto relacionados ao fogo. Com isso, a simbologia da noite ganha fora, pois pode se referir noite criada pelo prprio fogo, que encobre o sol com fumaa e p 60 . E com isso a fria do lobo se apresenta com maior intensidade, pois a partir dele prprio que se estabelece a relao com o fogo.
35 Ao co que rosnava mais alto, 36 o co lder, Joo o chamou 37 e, orelhas baixas, ele veio
38 o co lder, Joo o chamou 39 e, orelhas baixas, ele veio 40 ser estrangulado primeiro, 41 privilgio que estava escrito 42 onde, at hoje, ningum sabe.
43 privilgio que estava escrito 44 onde, at hoje, ningum sabe.
Nesses versos tem-se o incio da matana. A inverso sinttica, topicalizando o co que rosnava mais alto, d destaque ao primeiro co a ser morto e mantm Joo na posio de sujeito agente 61 . Esse co inicialmente designado como o que rosnava mais alto. Ainda, a
59 "Esse calor insuportvel mas, enquanto a gente est trabalhando, vai mantendo esperana de voltar e dar uma vida melhor para os filhos", diz Raimundo. O trabalhador contou que colhe cerca de 8 toneladas por dia de cana queimada, mas no colhe mais de 2 toneladas da cana com a palha. (...) "Cortar cana com a palha reduz muito a produtividade e no podemos receber aquilo que planejamos", diz Raimundo. (Trecho de reportagem publicada em 28/07/2006 no site <http://www.sindicatomercosul.com.br>) 60 De fato, ao se observar uma grande queimada, mesmo em pleno dia, tem-se a impresso de que se faz noite. 61 Uma opo seria utilizar a voz passiva: O co que rosnava mais alto, o co lider, foi chamado por Joo, mas isso tiraria a fora da atitude de Joo.
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nica descrio ocorre pela voz. Mas, em vez de latir, emprega-se o verbo rosnar, expressando a hostilidade do co, ao mesmo tempo em que revela sua posio de acuado, pois j no late mais. Essa descrio, ao mesmo tempo em que d destaque a esse co, que somente depois descrito como o co lder, evidencia sua condio de igual aos outros do bando, pois a nica diferena o volume de seu rosnado. Os versos que se repetem so justamente os que provocam maior estranhamento, especialmente pela posio em paralelo dos verbos chamou e veio (em fim de verso e, portanto, em posio de destaque, tanto em termos meldicos quanto pelo aspecto visual do poema). Esse recurso enfatiza a imagem visual de submisso, pela descrio do co que se aproxima com orelhas baixas note-se que essa descrio recebe destaque, assim como o aposto co lder, devido intercalao das vrgulas; o uso do mesmo recurso de destaque em ambas as descries chama a ateno para o contraste, enfatizando o inusitado da cena. A conjuno e tambm contribui para dar nfase fora de Joo e submisso do co, pois, semantica e sonoramente marca a rapidez na reao do cachorro, quase instantnea, e portanto tomada sem qualquer reflexo ou resistncia. O ato de chamar o co e ele vir reproduz a cena tpica entre homem e co. Ao mesmo tempo, Joo chama, primeiro, o co lder. Essa imagem reflete o grupo organizado, com hierarquia, presente no contexto animal, mas reproduz, tambm, uma cena entre homens; e num contexto de guerra ou de rebelio. Joo assume o papel do torturador. O verso 40, isolado entre os dsticos repetidos, recebe destaque. E surge logo aps a forma verbal veio, que j indicava final de unidade semntica: chamou e veio. Essa seqncia inesperada contribuiu para ampliar o impacto da mensagem. Tambm se liga informao anterior sem qualquer conectivo, como se o fato de ser estrangulado fosse uma conseqncia natural. Assim, o estranhamento da cena fica a cargo do leitor, pois os ces parecem j conhecer o seu destino. Iniciado com slaba idntica a primeiro, o termo privilgio representa um desdobramento natural. Obviamente, possvel interpretar os versos por meio da ironia, mas, pela naturalidade como os eventos se desenrolam, a interpretao de que os ces querem ser trucidados torna-se mais forte. Apenas nessa passagem do poema que o narrador se mostra. Trata-se do nico momento em que a narrao suspensa para um comentrio com teor explcito de reflexo. Isso faz com que a ateno seja redobrada. A expresso estava escrito, entre aspas, apresenta-se marcadamente como um discurso estranho e anterior. Uma expresso comum, usada para se referir fatalidade das
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coisas, empregada quando se quer ressaltar a fora do destino sobre a vida dos homens, que nada podem fazer para alter-lo. usada quando, por qualquer que seja a razo, no se questiona a ordem das coisas. O verbo escrever remete ao documento; o particpio, escrito, situa seu surgimento em algum lugar no passado longnquo, pelo uso da expresso adverbial at hoje e, como a maioria dos verbos, remete a um sujeito. Algum que escreveu. Esse algum no se explicita no texto, mas se faz presente pela ausncia. Essa passagem alude, de maneira crtica, ao conformismo diante da ordem estabelecida, e, pela referncia ao documento, s leis inquestionveis. O uso do termo privilgio nesse contexto refora a crtica, pois mostra, ainda que indiretamente, as leis relacionadas vantagem, e com certeza de quem as escreve. nesse trecho que a temtica poltica, social, se confirma e recebe nfase com a repetio entre os versos 41-44, o que favorece a reflexo. Especialmente devido ao significado de privilgio: vantagem que se concede a algum com excluso de outrem e contra o direito comum. Assim, os acontecimentos incorporam, de maneira mais acentuada, a idia de justia/injustia, o que faz lembrar a descrio de Plato: que v a justia como uma caa, um animal astucioso escondido em uma touceira de mato. A atitude de Joo lembra os contextos de represso, do fuzilamento dos presos de guerra. Da caa aos homens. Nesse sentido, as figuras do lobo e do co so importantes, pois encerra as imagens do homem-bicho, do animal que trucida e trucidado. Embora a matana possa, e deva, ser lida tambm como uma libertao pela experincia psquica, no h como fugir ao carter assustador da imagem de Joo estrangulando os ces. O comentrio em off do narrador exige do leitor uma postura de reflexo, forando-o a relacionar os acontecimentos a situaes de coero sofridas pelo homem em vrios nveis, pois a cena desse trecho remete claramente ao contexto de guerra ou represso militar, em que a agresso mais literal; mas a Usina, a cana, tambm direciona a crtica s coibies sofridas pelo homem no contexto do trabalho e da relao com a terra. A guerra assume uma conotao bem ampla, assim como o conceito de fora e poder. A seqncia veio/ ser estrangulado frisa a passagem do co para a condio de submisso. A forma verbal veio, concluindo o verso 39, apresenta o co como ativo, mas no verso seguinte se combina voz passiva, apresentando-o na condio de sujeito que sofre a ao. A voz passiva tambm apaga o agente, o que faz com que a ao receba destaque. O uso da forma veio causa um outro efeito interessante: ao mesmo tempo em que demonstra o movimento de aproximao do co com relao ao lobo, mostra a posio do narrador prxima a esse lobo, revelando o lugar de onde emerge sua voz. Com isso, no s o leitor
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acaba se aproximando mais da cena, como tambm possvel perceber uma forte empatia do narrador com relao ao protagonista. Convm atentar para os sentidos de estrangular:
1. Apertar o pescoo de, dificultando-lhe ou impedindo-lhe a respirao; matar por sufocao; sufocar, enforcar, esganar, afogar. 2. Apertar muito; comprimir. 3. Conter, reprimir. 4. Asfixiar, sufocar.
Alm da fora do verbo, pois est sempre relacionado violncia deliberada e brutal, o que acentua o dio de Joo, o verbo apresenta duas idias importantes para a interpretao do poema: a morte pela garganta, que se relaciona fala, aos latidos dos ces, e a morte pela falta de ar, pela asfixia, que se liga, tambm, idia do fogo que sufoca. Alm disso, o ato de estrangular um ato que exige esforo, fora, chamando a ateno para a dificuldade das mortes, para o sofrimento no apenas dos ces mas, e principalmente, do estrangulador. Joo passa a noite estrangulando ces de uma numerosa alcatia, o que reproduz a cena de um grande pesadelo. Esse pesadelo espelha o estado de Joo: seu dio contido, a agressividade que, acordado, no pode exercer. O efeito sonoro produzido pela incidncia dos sons [tr], [pr] e [kr] o de dificuldade e ossos quebrando, o que aumenta o impacto da cena. Essa dificuldade tambm se mostra no verso 45, tanto no plano semntico, pelo uso do gerndio, quanto no sonoro. O ritmo fica pesado, efeito obtido pela recorrncia dos sons nasais e sibilantes, encadeando os termos de modo a reproduzir a sensao de uma ao muito longa, que se arrasta pela noite. Os sons oclusivos sugerem violncia e obstculo, o que se articula com a natureza da ao. A forma verbal matando fica no final do verso, recebe destaque. Sua slaba tnica, a mais forte do verso, combina-se oclusiva surda e produz estalo, pancada; a vogal nasal [] articula-se com o grito abafado e prolongado. Desse modo, obtm-se a sugesto do esforo, da dor, do desespero e do descontrole.
45 Um aps outro os foi matando, 46 at que o sol, enlouquecido, 47 resolveu cremar todos eles.
48 at que o sol, enlouquecido, 49 resolveu cremar todos eles. 50 Quando j ia alta a manh,
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51 o ltimo co, quase um beb, 52 foi morto no colo de Joo.
53 o ltimo co, quase um beb, 54 foi morto no colo de Joo.
A reverberao dos versos 46 e 47 na estrofe seguinte deixa, agora, o sol em primeiro plano. E o horror da destruio se impe e se amplia com a repetio. A imagem do sol surge combinada predominncia de sons mais fechados [e], [o], [u], o que geralmente serve para transmitir a sensao de escuro. Esse contraste expressivo, pois aumenta o carter extraordinrio da cena e se articula com a sensao de luto, pesar, que permanece com o fim da matana. A carnificina tem a durao da noite, a durao do sono. A imagem do sol que crema os ces sugere o despertar, o fim da experincia onrica, com o total extermnio dos ces. Completando o ciclo de poder e submisso, o sol aparece no apenas como um elemento do cenrio, mas como personagem humanizado e atuante, a cujo domnio est sujeita toda a humanidade o sol representa, em vrias culturas, a autoridade mxima, a divindade suprema, que abarca opostos; , ao mesmo tempo, princpio de vida e o grande destruidor, causador de seca e aridez. O verbo resolver significativo, pois, alm de se ligar a raciocnio, deciso, retratando o sol como um ser impiedoso, que age deliberadamente, tambm tem o sentido de: extinguir gradualmente. Esta uma imagem de forte impacto visual, na qual repercute e se intensifica a imagem de fogo e de morte em cremar. O horror ocorrido durante a noite se amplia. A combinao entre o verbo resolver e o adjetivo/particpio enlouquecido vinculados a sol no apenas contribui para a estranheza da imagem, como produz um efeito muito interessante: o sol, que simboliza em diversas culturas a inteligncia csmica, a sabedoria, o conhecimento, ao vir modificado por enlouquecido, parece ser destitudo desses valores simblicos, e o que permanece a imagem de um sol que queima, um sol indiferente, caracterizado, apenas, pela intensidade de seu calor. De todo modo, ele resolve cremar todos eles no possvel saber se essa expresso se refere apenas aos ces ou se inclui Joo. O que permanece a certeza de que uma nova fora se impe, mais uma forma de poder to avassaladora, contra a qual no se pode lutar. Mas tambm pode representar a justia divina, que no privilegia nem um nem outro, pois a todos oferece a morte. Por esse prisma, at possvel imaginar o assassnio dos ces como um grande ritual, ao qual a divindade, na figura do sol personificado, premia com a
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cremao de todos. Desde Plato, a imagem do sol usada para representar o Bem. O interessante que esse Bem surge vinculado morte, e morte violenta. O sol enlouquecido pode ser interpretado como esse exerccio da justia s avessas. Mesmo assim, a imagem do sol enlouquecido remete a uma paisagem surreal, de fim dos tempos, onde tudo destrudo para se refazer em uma nova realidade. O uso das vrgulas intercalando enlouquecido contribui para a dramaticidade da cena com a suspenso da seqncia rtmica, os silncios antecipando um grande ato de loucura. E indica tambm que enlouquecido, como adjetivo explicativo, no um atributo natural do sol, mas vinculado s circunstncias, como se o prprio ritual da matana o tivesse enlouquecido. Assim, o sol atua em resposta ao ato praticado durante a noite, como se a violncia toda tivesse abalado as bases da natureza, convertendo o cosmos em caos. Com isso, a loucura menos uma caracterstica do sol que da violncia praticada. Os termos beb e colo sugerem delicadeza, o que contribui para chocar o leitor. Remetem ao campo semntico da maternidade e, com isso, marcam o contraste entre vida e morte. O dia nasce, o ltimo co morre. o momento de deixar o mundo do sonho. O fim da matana se d com os versos 51-52, que ficam a reverberar na estrofe seguinte, como se reproduzindo o coro do teatro, horrorizado com a carnificina, sugerindo, ainda, um cntico de lamento. A expresso quase um beb possui vrios significados: serve para apresentar o co como extremamente manso e submisso diante do seu algoz, mas tambm pode representar a libertao obtida por meio do massacre. A sanguinolncia, a purificao pelo fogo e pela morte, serviram para conduzir o co sua condio primeira, de ingenuidade, de fragilidade, de retorno ao ventre materno. O vocbulo beb, mais utilizado para se referir a humanos, em contraste com filhote, referindo-se a animais, tambm sugere uma humanizao dos ces, como se deixassem sua caracterstica de fera, abrindo-se a uma elevao espiritual. O vocbulo quase, que traz em si a idia de transformao, colabora para indicar esse movimento de retorno s origens. Os ces so cremados, ou seja, tornam-se p, reintegram-se natureza e encontram repouso possivelmente a satisfao de seus desejos. Um aps outro os foi matando. Mais uma vez, a inverso sinttica amplia a violncia. Um aps outro chama a ateno para o prolongamento da matana, tambm evidente no uso da forma verbal no gerndio, enfatizando a condio de vtima dos ces, como se fosse um ato organizado, em que cada um aguardasse sua vez de ser estrangulado. O impacto grande, pois chama a ateno para o carter visual da cena. Tal efeito no seria obtido, por exemplo, com a construo: foi matando todos os ces. A expresso escolhida d nfase dificuldade do ato de matar. A prpria sonoridade arrastada, como se a cena se desenrolasse em cmera
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lenta. O uso do pronome oblquo, explicitando a relao entre sujeito e objeto, no apenas colabora para o efeito sonoro, como tambm contribui para apresentar os ces como passivos diante do agente Joo. O carter visual da narrativa potica inscreve-se no ritmo e na sonoridade. No verso Quando j ia alta a manh, predominam os sons abertos, reproduzindo a claridade do dia. Logo nos versos seguintes o ltimo co, quase um beb, / foi morto no colo de Joo. o sons ficam mais fechados, dando relevo ao carter fnebre da cena. O uso da voz passiva evidencia, definitivamente, a submisso dos ces. O interessante que em nenhum momento Joo surge explicitamente como sujeito dos verbos estrangular ou matar. Apenas os ces recebem destaque. Esse recurso importante, porque colabora para que Joo no abandone sua condio de vtima. Afinal, suas atitudes no podem ser vistas como de sua total responsabilidade, j que existe o lobo-guar, que insiste em no adormecer, mesmo depois de tudo consumado.
Quarta parte
Na parte final do poema, descortina-se o resultado da matana, a paisagem est totalmente transformada, enquanto a luta persiste entre Joo e o lobo.
55 A partir dessa longa noite, 56 no permetro do mocambo, 57 veio o medo plantar seus cactos.
58 no permetro do mocambo, 59 veio o medo plantar seus cactos.
Os sons so fechados, condizentes com a descrio, que mescla o visual com o abstrato, compondo um quadro de opresso e desconforto. A repetio dos versos, agora, faz eco melodia de lamento que se impe com a morte dos ces. E representa a expanso dos cactos, configurando o alastrar do medo, que aparece personificado. O cacto geralmente associado regio desrtica, rida, pouco frtil. Geralmente apresenta espinhos, o que se coaduna com a paisagem hostil. Mas no nasce espontaneamente. Plantado pelo medo, surge como concretizao externa do estado interior de Joo. No se restringe a ele, pois o termo permetro abarca uma regio maior. Mas o centro o mocambo.
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Os cactos, ento, circundam esse mocambo, como se formassem um novo tipo de priso, ou de fortaleza. A ameaa das canas desaparece, mas com ela as papoulas tambm. O que sobrou do ato de violncia uma paisagem totalmente devastada. O pronome possessivo determinando cactos reveste-os dos atributos do medo. No so cactos simplesmente, so cactos do medo, com todas a implicaes semnticas dessa designao. Como o medo surge personificado, ganha fora, surge mais ativo que as prprias pessoas, as quais se encolhem diante dele. J que perdeu sua caracterstica de substantivo abstrato, no possvel saber quem so as pessoas que sentem medo, nem o objeto do medo. A inverso sinttica em veio o medo deixa-o em posio de destaque, pois sobre ele recai o acento prosdico. Alm disso, sugere o prprio movimento de chegada do medo, como uma conseqncia natural.
60 E entre uivos, rezas e rosnados, 61 l dentro Joo pedia a Deus 62 para seu lobo adormecer.
63 l dentro Joo pedia a Deus 64 para seu lobo adormecer.
Joo aparece, agora, encolhido em seu mocambo, circundado por uma vegetao hostil, entre uivos, rezas e rosnados. Sua priso parece ter se fortificado, o que se explicita com os termos entre e dentro, intensificado pelo advrbio l, indicando um profundo recolhimento. A sonoridade sugere, ainda, o ranger de dentes, refletindo o conflito interno de Joo. A expresso adverbial l dentro pode se referir tanto ao mocambo quanto prpria psique de Joo (em seu ntimo). De todo modo, enfatiza o isolamento do personagem. A posio do termo rezas entre uivos e rosnados apresenta o espiritual circundado pelos atributos do animal, instintivo. Assim, o humano aparece dentro do lobo uma inverso de papis, j que o poema se inicia com o lobo indo habitar o interior de Joo. interessante observar que, enquanto os substantivos uivo e rosnado podem se referir tanto a lobos quanto a ces (e nesse sentido o uivar mais prprio do lobo, opondo-se aos latidos dos ces), o verbo rosnar, anteriormente, aparecia vinculado a ces. Com isso, co e lobo aparecem mesclados e o que permanece o carter violento que acaba sufocando o espiritual, a busca pela aquietao dos instintos. O lobo esconde-se dentro de Joo e, aos poucos, parece ir usurpando sua identidade. Entretanto, o uso do pronome possessivo determinando lobo nos ltimos versos demonstra a relao complexa existente entre o homem e a fera, pois o animal pertence a Joo, como se j
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fizesse parte de sua personalidade ou, para lembrar Harry Haller, como se fosse uma de suas vrias personalidades. Agora surge apenas o substantivo lobo e no lobo-guar, o que exclui os atributos de fragilidade e refora os simbolismos relativos ao lobo, representante do Mal. O humano e o bestial alternam-se, um contendo o outro. Vale destacar a importncia do termo dentro, marcando essa alternncia. No incio do poema, o lobo esconde-se dentro de Joo. No trmino do poema, reverbera em l dentro, como se a conexo entre Joo e o lobo- guar fosse ampliada. Desta vez, a figura de Deus aparece junto da fera, explicitando a natureza conflituosa de Joo. Sua luta parece ser entre o Bem e o Mal, que aparecem fundidos. Do mesmo modo que a culpa um tema central em O lobo da estepe, se no o tema central, em O lobo-guar ela tambm recebe destaque, especialmente porque emerge nos dois ltimos versos que se repetem e continuam a reverberar na mente do leitor. Assim como o protagonista do romance de Hesse, Joo se consome de um dio pela sociedade em que vive, mas tem conscincia de que no pode exercer esse dio contra o outro, e o direciona a si mesmo, para sua luta interior contra seu lobo. A natureza boa ou malfica atribuda ao homem liga-se, via de regra, s propostas polticas para seu controle. Desse modo, as supostas inclinaes para a perversidade devem ser reprimidas. E a figura de Deus tem, ao longo de sculos, contribudo enormemente para isso, assim como o sentimento de culpa ou a prpria razo. O lobo-guar passa de oprimido a opressor, direcionando sua violncia aos ces. Essa transformao, central no poema, pode assumir vrios significados. Um deles que a justia, conforme alerta Plato, de fato um animal muito difcil de ser capturado. Pois o que aparentemente seria uma maneira de alcan-la se mostra como a reproduo do mesmo modelo que gerou a condio do injustiado. Joo, confundido com o lobo-guar, assim como Harry Haller, no pode escapar ideologia da prpria sociedade que rejeita, pois tambm um produto dessa sociedade. Com isso, o poema chama a ateno no apenas para um problema de ordem social, levando a refletir sobre valores culturais, mas leva a questionar a prpria natureza humana, suas motivaes internas e inclinao para o Bem (na forma da no- violncia) ou o Mal (na forma do exerccio da violncia), tema to caro na tradio filosfica 62 . A tica de um povo pode ser excelente, mas ela tambm pode ser horrenda (ROMANO, 2004, p. 41).
62 Lembro-me de Hobbes, que usa a metfora do lobo para tratar desta questo, e atribui ao Estado a tarefa de mediar os conflitos.
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A idia de loucura, que surge na descrio do sol enlouquecido aps a longa noite de matana, denuncia a crtica subjacente a toda a narrativa. A demncia parece assumir, portanto, duas faces. A face horrenda, ligada supresso da razo, quebra de uma das principais leis da humanidade: no matar o semelhante 63 . E a face positiva, de libertao, da realizao dos desejos, de exerccio do poder sufocado pelas circunstncias e a emancipao da condio de oprimido por meio da morte. De todo modo, ainda que o ato de violncia seja visto como libertador, o poema termina com o desespero de Joo, que busca reprimir novamente seu lobo. A insatisfao permanece, mostrando claramente que a libertao no foi alcanada de fato. E o medo, que at ento apenas se insinuava na condio do lobo acossado, ganha contornos assustadores. Isso leva a refletir que pelo medo que o homem, mesmo o mais racional, pode cometer atrocidades, como se a morte aliviasse seu fardo de oprimido. Especialmente em um pas como o Brasil, presente no poema pela paisagem dos campos de cana, em que quase no existe proteo governamental aos direitos individuais e coletivos, Joo representa qualquer indivduo, sujeito a assumir a condio fera, de monstro. E o poema termina com a reverberao dos versos:
61 l dentro Joo pedia a Deus 62 para seu lobo adormecer.
63 l dentro Joo pedia a Deus 64 para seu lobo adormecer.
reproduzindo a prpria repetio da reza, como se fosse uma ladainha. Essa repetio dos versos sugere o estado de desespero de Joo, como se ele prprio tivesse enlouquecido. Apartado de tudo, o homem se volta para seu conflito interno, que parece sem soluo. A prpria paisagem externa reflete sua condio psquica, como se o mundo exterior tivesse desaparecido e no essa uma das caractersticas da loucura? Joo direciona a Deus o pedido para que seu lobo adormea, o que denuncia seu sentimento de impotncia, falta de controle de si mesmo. Mas o prprio pedido revela a razo atuando no sentido de conter os impulsos. O adormecer do lobo representa o acordar do homem. No entanto, no meio da noite, Joo que desperta para a matana, o sujeito explcito no o lobo, o que indica que a conexo entre ambos mais complexa e difcil de ser
63 propcio lembrar que, dentre os tantos provrbios envolvendo a figura do lobo, destaca-se: Lobo no mata lobo.
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resolvida. O que permanece o conflito. Talvez insolvel. E o controle ou a libertao de ambos esto atrelados ao sono (por meio dos verbos despertar e adormecer), o que situa o confronto no plano do desejo e do imaginrio. Convm retomar as representaes simblicas dos trs personagens que interagem na narrativa. A figura do lobo aparece, inicialmente, vinculada a dois qualificativos: acossado e Mal. Joo apresentado como: invisvel em sua misria, ingnuo hospedeiro e desarmado. Assim, tanto Joo como o lobo compartilham a condio de rejeitados. Mas Joo, em funo do lobo, aparece como vtima. ingnuo e se torna um hospedeiro esse termo importante no apenas para caracterizar Joo como um receptculo do lobo, mas por ser comumente associado a doenas. Joo hospedeiro do Mal, como se esse Mal fosse uma enfermidade que contraiu em meio misria. Com isso introduz-se a relao clssica entre violncia e pobreza. Relao que surge como conseqncia de um outro tipo de violncia, expressa na descrio da plantao de cana, devoradora atroz, mascarada por seus movimentos leves e sua aparncia ligada a seres puros e pacficos. A idia do devorar (explcita no adjetivo voraz), atrelada imagem dos lenis de cana, relaciona-se, ainda, ao simbolismo do lobo. Esteretipo de selvageria, representado, em vrias culturas, como o grande devorador. Essa imagem est simbolicamente ligada ao fenmeno de alternncia entre dia e noite, morte e vida: a goela devora e vomita, ela iniciadora (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1995, p. 556). No h como ignorar que o lobo tem sido, ao longo da tradio folclrica ocidental, relacionado ao mal a imagem do lobo- mau j se cristalizou em nosso imaginrio. Obviamente, o poema no trata simplesmente do lobo, mas do lobo-guar, um representante brasileiro desse arqutipo universal, assumindo cores locais, ligadas s idias de excluso e injustia social. Na imagem do lobo, convergem as idias de violncia, medo e transformao, to presentes ao longo do poema. Os ces, que inicialmente s latem, como se anunciando alguma catstrofe, aparecem com o nico qualificativo de pertencerem Usina. Seus latidos so associados s limalhas das fbricas e do corte da cana, ao ar pesado, compondo uma atmosfera infernal. De fato, este o principal simbolismo do co, o guardio dos portes do inferno, guia do homem na noite da morte (Id. Ibid., p. 176). Tambm smbolo do mal; inclusive, uma das vrias representaes do demnio na tradio crist. Dessa maneira, lobo e co vo conduzir o homem aos seus infernos e transformao. Como j vimos ao longo desta leitura, no possvel atribuir uma significao apenas negativa a essas imagens. Afinal, a morte pode significar libertao e o inferno tambm pode
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apenas representar as camadas mais profundas do psiquismo humano, os desejos reprimidos, o que faz com que toda a narrativa do poema seja interpretada em termos desse simbolismo. A figura do co est intimamente ligada imagem do fogo, ao heri pirogentico, tendo seu simbolismo vinculado centelha de fogo que precede a centelha de vida, assim como destruio, ao conhecimento e potncia sexual. Com isso em mente, podemos interpretar os ces como os que trazem o fogo para a plantao de cana. Fogo que dar incio a uma nova realidade. Lobo e co compartilham de simbologias muito semelhantes, mas sempre relacionadas ao encontro dos opostos. A idia de transformao est sempre ligada a ambas as figuras. Tanto um como o outro so relacionados instaurao do ciclo agrrio (id. ibid., p. 179), o que se articula com a narrativa do poema, que pode, simplesmente, ser associada com o ciclo da plantao de cana. A passagem da terra frtil colheita, que se realiza com as queimadas, e, depois, infertilidade. Com essa leitura, a condio de Joo ao trmino do poema seria a condio do trabalhador exaurido aps a colheita e o medo poderia ser atribudo incerteza que decorre da concluso do trabalho e do conseqente perodo sem qualquer alternativa de emprego e, portanto, sem a garantia de seu sustento. Assim como em O lobo da estepe, em que o protagonista se depara com mltiplas personalidades que abarca, os ces podem representar vrias personalidades de Joo que so sacrificadas com o intuito de atingir uma libertao. O problema que, diferente do romance, o poema termina com um retorno culpa, como se houvesse o medo aps a experincia de prazer por meio da violncia. Embora apenas implcita, a imagem do devorar importante, j que a partir dela possvel perceber como se d a reverberao de imagem. O poema todo se estrutura com o desenrolar dessa idia, que sugere desdobramentos de causa e efeito: a cana devora a terra, o lobo devora os ces (que representam o outro e o igual), homem e lobo se devoram e o sol, enlouquecido, devora a todos. Prevalecem o ciclo da violncia e sujeio, aparentemente infindvel em nossa sociedade, e o ciclo da destruio e reconstruo, morte e nascimento, tanto no plano material, da terra cultivada, quanto no psicolgico, do homem que se refaz para se manter vivo. Por meio do encadeamento das idias e do intenso ritmo provocado pelas repeties da estrutura da renka, o poema, como imagem, permanece vibrando, reverberando. O ritmo acompanha os significados produzidos ao longo do texto, ampliando seus efeitos expressivos. Como pudemos observar, as repeties dos versos serviram a intuitos diferentes, de acordo
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com o teor semntico das imagens que reverberavam. Como ocorre em quase toda a obra de Alberto da Cunha Melo, o efeito final estranho, desconcertante e libertador.
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4 Concluso aspectos gerais do estilo de Alberto da Cunha Melo
Para terminar este estudo de interpretao da obra de Alberto da Cunha Melo, vale ressaltar que as leituras focalizam uma face de sua poesia, sob o prisma de uma abordagem estilstica. As reflexes tecidas em torno dos poemas tiveram o intuito de contribuir para o estudo desse escritor; e, tendo como escopo os efeitos de sentido do texto, as observaes acerca dos usos lingsticos buscaram destacar potencialidades expressivas da lngua portuguesa. Convm lembrar que a lngua no compreendida simplesmente como um conjunto de regras gramaticais. Sendo, pois, o texto o objeto desta pesquisa, as anlises tm um enfoque discursivo. E a lngua passa a ser considerada como um emaranhado de elementos que envolvem desde a menor estrutura dos vocbulos, fnica ou mrfica, at a significao mais voltil do texto, produzida no dilogo constante da realidade do poema com outras realidades. Talvez seja possvel afirmar que a imagem potica mesmo o resultado, ou os resultados, desse confronto. Por isso limitada e aberta, para lembrarmos Umberto Eco.
A linguagem compacta constitui o principal aspecto do estilo de Alberto da Cunha Melo. E essa caracterstica se acentua ao longo das diferentes fases de sua produo. Associei esse trao de seu estilo ao recurso coesivo da reverberao de imagem. A reverberao obtida de maneiras diferentes. De modo geral, repete-se uma idia ou uma estrutura at que, no final do poema, a imagem, saturada de significao, explode sobre os sentidos do leitor, provocando forte impacto. Em Mesopotmia, esse recurso est vinculado aos desdobramentos do ato de recordar. Uma imagem remete a outra e reverbera ao compor o quadro da lembrana. Inicialmente, tem-se a imagem do rio que repercute na figura dos meninos e homens que se curvavam sobre a gua, imagem que antecipa o formato dos caracis, que descrevem com maior detalhe a condio dessas pessoas. Os ltimos versos fecham a rede de conexes com uma tentativa de atribuir sentido s imagens anteriores. A imagem do rio repete-se mais viva e mais carregada de afetividade e conclui o poema de modo circular, como se representasse a mesopotmia do eu lrico, seu estar entre rios. Em Nobrezas, so os sentidos da cor de
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jambo que reverberam, associando-se a vrias metforas relacionadas morte e regenerao at convergir em ressuscitar, sintetizando toda a busca afetiva do eu potico, que deseja tudo refazer com a amada. Em Suicdio de Andr, a reverberao est ligada concretizao da imagem da morte e apreendida na construo de uma rede de sentidos vinculados idia de luminosidade para representar o suicdio como um espetculo assustador e belo. Em O lobo- guar, a repetio dos dois ltimos versos de cada estrofe no incio das subseqentes serve ao intuito de estabelecer uma reverberao de sentidos, conferindo grande dramaticidade narrativa. A cada bloco de repeties, determinadas idias recebem destaque e permanecem vibrando para compor um quadro de extrema violncia. Nesse processo de construo do poema, o ritmo, no sentido mais abrangente empregado neste estudo, um fator importantssimo, pois todo o impacto da imagem potica sobre o leitor resulta da fuso entre forma e contedo, da repetio de sons, silncios e sentidos, at a exploso final. A fora da imagem que conclui o poema decorre da convergncia de sentidos e formas sobre uma expresso que, geralmente, a sntese de tudo. E as sensaes podem variar: susto, terror, compaixo. Toda sensao intensa induz, via de regra, a uma reflexo. Os poemas, por mais emotivos que sejam, trazem um tom indagativo, de busca por compreenso e mudana. A linguagem de Alberto da Cunha Melo tem sempre um teor argumentativo, que nasce da combinao precisa entre paixo e raciocnio. E os poemas denunciam um extremo rigor formal, em que cada nfase meldica acompanha uma nfase semntica; e cada estrutura ou sentido que se repete ou desdobra intensifica uma idia ou uma sensao vinculada ao cerne temtico e afetivo do texto.
Paralelamente a esse trao de estilo, sobressaem caractersticas que, agrupadas, contribuem para singularizar a linguagem de Alberto da Cunha Melo, das quais destaco algumas nesta concluso. A crtica tica e moral, responsvel por delinear um enunciador comprometido com questes sociais, caminha paralela a questionamentos de ordem metafsica. A temtica da morte e suas implicaes sobre a condio humana perpassa a obra de Alberto da Cunha Melo e constitui um dos eixos de sua poesia. A ambientao , no geral, urbana. E, ao longo dos diferentes livros, nota-se uma preferncia por personagens representativos das camadas menos privilegiadas: prostitutas, funcionrios pblicos, trabalhadores no geral. Esses personagens no so estereotipados, povoam os poemas como seres com uma histria e uma complexidade. s vezes, tem-se a
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impresso de que no foram criados no poema, mas inspiraram sua criao, como seres reais, que existem fora das pginas dos livros. Com isso, o homem comum recebe destaque e descrito em uma dimenso mais profunda, propcia reflexo filosfica. Ao lado da ambientao urbana, recorrente a presena de elementos da natureza. Animais alados, plantas, terra, chuva, enfim, a natureza aparece como uma possibilidade de cura libertadora para o homem moderno, embora, por vezes, se mostre como uma fora devoradora, nas imagens recorrentes do sol e do vero. A natureza, como um enigma ainda no desvendado pelo homem, se oferece constantemente como uma alternativa para a alienao, os desencontros e o descontentamento. Pois representa o primordial, o no construdo pelas mos humanas e, por isso, livre das contradies geradas pela civilizao. Nesse sentido, a poesia procura constantemente por um lugar de descanso, de silncio pacfico, de retorno a uma inocncia h muito esquecida. Essa busca pode ser compreendida como uma busca do Tempo Csmico, cclico, da ordem harmnica que subjaz a tudo. E essa procura da ordem se reflete na prpria estrutura dos poemas, na concatenao controlada das imagens, no ritmo que, mesmo quando reflete a fala cotidiana, instaura uma regularidade, a qual se radicaliza com a recorrncia dos versos octossilbicos e a repetio das formas fixas.
De acordo com Norma Maria Godoy Faria (2005, p. 49):
Em Cunha Melo, no temos como operar uma ciso entre os sentidos do social, do existencial e do esttico. (...) Mesmo em relao aos poemas que trazem um tom aparentemente despretensioso e coloquial, percebemos laivos de um amargor crtico ou de uma stira provocativa do leitor, sentimentos e questionamentos existenciais associados vida-no-mundo, que se desvelam no poema determinando seu prprio ritmo.
O homem, em suas vrias dimenses, o centro das atenes na poesia de Alberto da Cunha Melo. Sua crtica sociedade muitas vezes descrita como agnica. Isso porque h muita dor no poema, devido a uma profunda comunho com o outro. Mas essa dor est sempre associada a uma linguagem extremamente apelativa, que acorda os sentidos do leitor para a mudana, para o desejo da mudana. E a fora est na prpria poesia, em sua forma ordenada, no prazer que oferece; prazer to sufocado pelo esprito da eficincia e do trabalho. Eros, como princpio de vida e construo, surge com vigor nos poemas. O impacto sobre o leitor, apesar de muitas vezes mediado pelo espanto, permite o despertar para uma outra
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realidade; a do homem inteiro, vivo, religado consigo mesmo e com o Cosmos imagem recorrente ao longo de toda a sua poesia.
Quando algo foi desligado
O rudo de minha mquina a bater um poema despertou-te l dentro: s assim a poesia ainda consegue despertar.
A poesia tem uma funo clara: despertar, o que se articula com a linguagem apelativa da maioria dos textos. Esse poema de Noticirio denuncia, de maneira irnica, a dificuldade com que esse despertar atingido. Aparentemente desiludido, o poeta bate seus poemas. Mas confia no rudo insistente e desconfortvel da mquina de escrever. E assim a poesia resiste alienao, ao barulho vazio e catico da vida moderna. No por acaso que Alfredo Bosi afirma que o nome secreto de Alberto da Cunha Melo resistncia 64 . A experincia de libertao promovida pela poesia no se mostra como um caminho fcil a percorrer. O leitor conduzido por paragens perigosas, exposto a imagens desconcertantes. E muitas vezes esbarra na prpria dificuldade da linguagem potica, que seduz com sua aparente simplicidade, enredado no apenas pelo que dito, mas pelo que calado. No caso desse poema, ficam os questionamentos: o que foi desligado? o que despertar? l dentro de onde? de quem a voz que fala no poema? quem seu interlocutor? Concomitantemente, a relao entre causa e efeito explicitada de maneira precisa e a combinao dos sons, inicialmente duros e fechados e posteriormente mais fluidos e abertos, sugere o prprio ato do acordar dos sentidos, do abrir os olhos para a claridade. 65
Nada permanece simples na compacta poesia de Alberto da Cunha Melo.
* * *
Quanto aos aspectos mais vinculados estrutura, destaca-se, em primeiro lugar, a emoo controlada pelo rigor formal controlada, no reduzida, pois muitas vezes o controle da forma que fortalece a emoo. Assim, predomina a forma fixa, com metro octossilbico, cultivado ao longo de trs diferentes fases. Curiosamente, na fase dos versos
64 Cf. Prefcio de Yacala. 65 Uma anlise detalhada desse poema pode ser lida em MICHELETTI (2004b).
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polimtricos que se confirma o rigor formal, pois eles ilustram que, de fato, nenhum verso livre para um poeta como Alberto da Cunha Melo. O aspecto meldico, sonoro, desempenha um papel especial na trama dos poemas. A produo de sentido conta sempre com a explorao das potencialidades expressivas da sonoridade, por meio de aliteraes, assonncias, repeties, paronomsias. O uso do metro regular contribui para destacar relaes sonoras e semnticas cruciais na composio da imagem, deixando determinadas expresses em paralelo ou direcionando a ateno para o termo que finaliza o verso; termo que, de outro modo, passaria despercebido para o leitor. Concomitante ao controle da forma, que parece se intensificar ao longo das produes, revelando, talvez, um maior domnio das tcnicas de composio do verso, nota- se, no decorrer das diferentes fases, uma tendncia ao apagamento das marcas de subjetividade. O eu lrico em primeira pessoa mais freqente nas primeiras publicaes. Obviamente, a subjetividade permanece, mas de maneira embaada, presente apenas nos interstcios do poema. Esse recurso contribui para ampliar o impacto da imagem potica, na medida em que permite um maior envolvimento afetivo por parte do leitor. A subjetividade velada pode ser apreendida no uso recorrente do discurso irnico, o qual se manifesta por meio de estratgias diversas, levando a efeitos tambm distintos. A ironia, no geral, envolve o contraste entre os sentidos mais desgastados de algumas construes com uma abordagem nova, em que, geralmente, o sentido literal se sobrepe ao figurado, como o que se observa no uso do termo glria, no poema O lobo-guar, ou do termo despertar, no poema de Noticirio que acabamos de ver. Esta, alis, constitui outra caracterstica recorrente na obra: a renovao de frases e imagens desgastadas pelo uso. Esse recurso mesmo o que estrutura o poema Suicdio de Andr, em que a imagem da morte como um ceifeiro surge totalmente renovada. A insinuao de um sujeito que controla e organiza o discurso tambm se evidencia no encadeamento lgico das sentenas, por vezes expresso por conectivos e sempre acompanhado dos sinais grficos de pontuao. Mesmo quando sobressai o envolvimento afetivo do eu lrico, como nos poemas de Clau, destacam-se conexes delatando a ordenao pensada da frase. Esse recurso fundamental para delinear o carter reflexivo e argumentativo dos textos, sempre inclinados ao exame filosfico. O tom narrativo de grande parte dos poemas responsvel pela marcante composio visual das imagens tambm estabelece uma pseudo-proximidade do leitor e conseqente camuflagem do sujeito. A narrao, geralmente, se estabelece em torno de um personagem, como se o que importasse, de fato, no fosse o acontecimento narrado, mas a
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reao do homem s diferentes situaes. Assim, a poesia no desvia seu olhar do humano, revelando um enunciador que busca constantemente compreender a si mesmo e ao outro, como se todos fossem aspectos de um nico ser. Por isso o sentimento de comunho to intenso na obra de Alberto da Cunha Melo. Essa concepo de que o indivduo reflete a espcie se torna central para a compreenso do carter filosfico de sua obra, o qual se faz presente mesmo em poemas em que a expresso do sentimento assume o primeiro plano.
Confluncias
No te amo contra Maria, contra Tereza, contra Luzia; eu te amo amando todas as Marias, todas as Terezas, todas as Luzias que moram em ti; eu te amo a favor de todas que no amei como a ti; eu te amo amando as duzentas Marias, as trezentas Terezas, as quatrocentas Luzias que moram em ti.
Nesse poema, as estruturas contendo os nomes de diferentes mulheres reverberam para sempre esbarrar no pronome ti, evidenciando a confluncia de diferentes mulheres multiplicadas na amada e a total entrega do eu a seu amor, como se essa entrega o religasse a todo o Universo. Clau um livro importantssimo no contexto da potica de Alberto da Cunha Melo. Exatamente por destoar dos demais, na temtica e na forma, permite que se observem as caractersticas mais recorrentes. Alguns poemas chegam a parecer crus, como se no tivessem qualquer esforo de elaborao e apenas jorrassem do momento vivido. No entanto, essa aparente displicncia reflete a preocupao do poeta com a expresso da verdade e com o poema de pea nica trao estilstico que se ope a uma tendncia da literatura moderna que a da fragmentao. A poesia de Alberto da Cunha Melo exibe uma unidade marcante. A opo por preservar, neste estudo, a separao por fases ocorreu na medida em que, a cada livro, essas
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caractersticas relativas ao trato dos temas e, especialmente, das formas so acentuadas como se a obra refletisse mesmo uma busca individual pela linguagem compacta. Na primeira fase, dos quartetos octosslbicos, a conciso e a nfase j so obtidas por meio da tcnica de reverberao; no geral, cada estrofe abarca um perodo e compe um quadro mais ou menos fechado que reverbera na subseqente. Na segunda fase, a reverberao ocorre ao longo dos versos polimtricos, cuja estrutura evidencia determinadas relaes semnticas, possibilitando a intensificao de uma imagem. No perodo da retranca, a prpria forma fixa criada pelo autor reflete a busca pela conciso; no geral, uma imagem reverbera por meio de imagens menores, sendo que os dsticos servem ao intuito da convergncia dos efeitos de sentido; o dstico final abarca as idias reverberadas ao longo do poema, como se fosse uma caixa de ressonncia, um amplificador de sentidos; e o texto se conclui com grande impacto expressivo; nessa fase, so comuns os poemas compostos de um nico perodo e, mesmo quando h mais de um, o sinal grfico escolhido para separ-los o ponto-e-vrgula, realando o vnculo semntico entre as partes do texto. No ltimo livro publicado, O co de olhos amarelos, todas essas caractersticas relativas conciso e intensificao das imagens aparecem radicalizadas na renka; a cada dstico que se repete, as imagens reverberam e os efeitos de sentido so fortalecidos. Embora cada repetio se subordine a um efeito diferente, o resultado sempre a intensificao das imagens, vinculadas a um centro semntico. Em resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 26 de novembro de 2006, Ivan Junqueira apresenta o livro com a seguinte frase: De expresso verbal contundente, poemas de Alberto da Cunha Melo aliam conciso expressiva mais funda emoo. possvel vislumbrar uma poesia que foi sendo construda ao longo de anos de experimentalismo sempre retomando a tradio literria. A passagem de uma fase a outra, de uma forma a outra, representa um passo alm para se atingir a definio cada vez mais clara de um estilo que se define, especialmente, pela conciso. A poesia procura sua forma e o estilo do poeta, como as escolhas que compem o texto, vai se tornando mais ntido. A linguagem aforstica outro recurso que se mostra cada vez mais presente nos poemas, refletindo o teor filosfico da poesia. 66 Mas o aforismo torna-se to parte do discurso, que muitas vezes j no se explicita como aforismo. Por exemplo, em Carne de Terceira, o ttulo de uma das partes, Adgios, antecede poemas com versos como este: muitos so os
66 interessante notar que essa caracterstica da obra de Alberto da Cunha Melo tambm marcante na obra potica de seu pai, Benedito Cunha Melo.
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seguidos/ e todos abatidos, explicitamente aforstico. J em O co de olhos amarelos, esse tipo de discurso ocorre fundido na estrutura narrativa do poema, como no trecho:
Acossado, um lobo-guar escondeu-se dentro de Joo, que, invisvel em sua misria, fez-se perfeito esconderijo do Mal, seu ingnuo hospedeiro.
Nessa passagem, o discurso aforstico corresponde organizao lgica do texto. Na descrio de Joo, que representa toda uma classe de pessoas, subjaz a seguinte afirmativa: A misria faz do homem perfeito esconderijo do Mal. Acompanhando essa estruturao racional do discurso, destaca-se o uso de termos de natureza semntica oposta ou contrastante, geralmente associados pela sonoridade, por exemplo: luz/pus; limbo/mimo; schistosoma/solido; slfide/voraz. Essas combinaes apontam para o paradoxo e desvelam uma poesia empenhada em devassar contradies. O resultado no uma harmonizao de opostos, mas a instaurao do inslito, comprometido com uma anlise crtica da realidade e com a finalidade de despertar o leitor para novas experincias do real. Todos esses recursos, alm das constantes referncias, no geral implcitas, tradio literria, incrustam-se em uma sintaxe prxima da prosa, composta de um vocabulrio acessvel. O resultado um estilo denso, casado com o estranho, e o estranhamento. As combinaes entre os vocbulos resultam sempre em algo desconhecido para o leitor, constantemente exposto ao novo. A simplicidade se d em funo de construir e evocar o complexo, ou seja, de dizer o mximo com o mnimo de palavras. Nesse sentido, a busca pela simplicidade equivale busca pela conciso. Por vezes, o poema requer grande esforo de interpretao. O leitor de Alberto da Cunha Melo deve apreciar a palavra, deter-se sobre seus desdobramentos; observar com detalhe as combinaes sintticas, simples em termos de estrutura, mas complexas ao evidenciar uma multiplicidade de nexos semnticos. Em seu estilo, o silncio obtido pelas pausas na seqncia rtmica e pela combinao inusitada de imagens opera como importante fator de significao, sempre conferindo profundidade reflexo e produzindo estranhamento. Isso porque a poesia resiste ao imediatismo das linguagens caractersticas da cultura de massa. Nas palavras do autor: A poesia a anti-mercadoria.
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Em entrevista a Mrio Hlio 67 , por ocasio do lanamento de Yacala, com tiragem de apenas 200 exemplares e impresso por um processo h muito abandonado, a linotipia 68 , Alberto da Cunha Melo expe o carter resistente de sua poesia.
Pedro Botelho diz que sensibilidade inteligncia dos sentidos e que a arte uma oferta dos deuses e s pode ser realmente contemplada por poucos. Se ele estiver certo, somos forados a acreditar que o mundo moderno marcha para a mais bruta insensibilidade, ou a burrice dos sentidos. O mundo inteiro est mergulhando no oceano do kitsch, que produzido em escala planetria pela indstria cultural. O simulacro da arte, como o chamava Jos Guilherme Melquior, vai engolindo todos os espaos. Como poeta, cada vez mais procuro adaptar-me ao meu gueto, ao meu Tibet, e a forma de editar meu novo livro um sinal dessa adaptao. 69
A cada poema, repercute uma inquietao, que sempre acompanha uma descoberta, uma percepo alterada, que convida a uma mudana de postura. Por meio de uma subjetividade sagaz e delicada, que se desnuda no controle da forma, no discurso lgico e compacto, nas combinaes inusitadas, nas imagens contundentes, a poesia cumpre seu papel de seduzir e despertar. E o leitor experimenta, de maneiras diferentes em cada poema, um pouco desse desejo de Cosmos que reverbera por toda a poesia de Alberto da Cunha Melo.
67 In Jornal do Commercio, 27 de junho de 1999. Nessa entrevista, Mrio Hlio retoma a afirmao do poeta citada anteriormente de que a poesia a antimercadoria. Disponvel em <http://www2.uol.com.br/JC/_1999/2706/cc2706a.htm> (acesso em 19/11/2007). 68 Edio viabilizada por um sistema de subscrio em que cada pessoa compra seu exemplar antecipadamente. 69 Esse comentrio do autor pode ser aproveitado na interpretao de O lobo-guar como um meta-poema. Com isso, a imagem das canas vorazes e dos ces latindo em unssono passam a representar a proliferao das vozes dessa arte massificada, propagada pela indstria cultural. A usina prxima aos festivos lenis de cana retrataria, portanto, a industria do entretenimento alienante de nosso pas.
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ANEXO A
O estilo e o homem entrevista com Alberto da Cunha Melo
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O estilo e o homem entrevista com Alberto da Cunha Melo
Em julho de 2003, Alberto da Cunha Melo concedeu-me uma entrevista por escrito, que agora transcrevo, para conhecermos um pouco do escritor. Ainda que as leituras de poemas que acabo de apresentar, por razes metodolgicas, no se preocupem em desvendar a inteno do autor emprico, considero importante escut-lo, a fim de termos uma viso mais abrangente sobre sua concepo de poesia, o que se reflete na maneira como desenvolve o trabalho com a linguagem. As perguntas expressam, ao mesmo tempo, minhas curiosidades como leitora e meu interesse em saber como o poeta constri seus textos. 70 Em suas respostas, o autor revela, como j apontara Csar Leal, uma conscincia profunda sobre a arte que realiza e sobre seu posicionamento na sociedade, alm de uma auto-crtica marcante. E demonstra grande erudio, embora conserve a simplicidade no uso da linguagem ao mesmo tempo didtica e potica e no modo como apresenta sua obra. 71
Em carta a Csar Leal, apresentando sua poesia, voc e os poetas Jaci Bezerra, Domingos Alexandre e, suponho, Jos Luiz de Almeida Melo expem a inteno de criarem uma arte autntica. Considerando sua poesia, em particular, e a poesia da Gerao 65, em que consiste essa autenticidade? No caso de sua linguagem, seria a mescla entre o clssico e o popular?
No me lembro do que considervamos arte autntica, h quarenta anos atrs. Minha viso, hoje, do que seja autenticidade, em arte, aproxima-se muito de Franz Kafka, que achava que a Arte sempre assunto da personalidade inteira; por isso , no fundo, trgica. Autenticidade em arte, ento, seria para mim o comprometimento do meu ser com o fazer artstico. possvel que esse comprometimento, essa autenticidade j se tivesse instalado em ns, componentes do que se convencionou chamar grupo de Jaboato,
70 Alberto da Cunha Melo e sua esposa, Cludia Cordeiro, receberam-me em sua casa, em Olinda, no dia 08 de julho, quando entreguei ao poeta as questes escritas em um caderninho. No dia seguinte, ele j tinha respondido a todas, mquina de escrever. 71 interessante notar como o poeta elabora as respostas, no apenas no que se refere ao contedo, mas linguagem mesmo, e comparar com os poemas. Talvez um estudo profundo sobre o estilo, como a definio da personalidade de um autor, deva considerar a maneira como ele se expressa em diferentes gneros textuais. Mas esta apenas uma conjectura que, por diversas razes, no se relaciona com o estudo que realizo.
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naquela angustiante dcada de 60, no sei. O que sei que apenas um de ns largou a poesia 72 .
Gostaria de saber mais sobre o processo de criao de seus poemas. Voc diz meu verso no pode ser to livre a ponto de fugir completamente ao meu controle. Como se d esse controle da palavra? Voc costuma reescrever seus poemas? H uma expressividade muito intensa em seus versos. At que ponto essa expressividade fruto do trabalho com a linguagem?
Eu j vivi o suficiente para que meu processo de criao mudasse com o tempo. Ele teve duas fases que, para meu uso, resolvi chamar de tcnica do desperdcio e, em homenagem a Joo Cabral, tcnica do ferro forjado. Esta ltima consistindo no esforo de, uma vez comeado o poema, no larg-lo, no deixar de trabalh-lo, mesmo que isso leve semanas ou mais ou, ento, saturado o esforo e no resolvido o poema, jog-lo na lata de lixo. A primeira, a do desperdcio, tem analogia com o comportamento da natureza e dois exemplos posso citar: o das milhares de tartaruguinhas que, recm nascidas, correm da praia para o mar, onde os predadores as reduziro a um percentual mnimo: e o das sementes que se multiplicam, quando as vagens das rvores, secas, explodem e jogam para longe uma quantidade enorme de sementes que, igualmente, sero na maior parte devoradas por predadores como, por exemplo, os pssaros. A esse processo natural corresponde a tcnica de anotar esboos de poemas, para no deixar fugir da memria o que a antena do esprito captou e, depois de juntar centenas de esboos, trabalhar aqueles que, realmente, merecem o esforo de serem trabalhados, e destruir os demais. Minhas duas fases de octosslabos passaram pela tcnica do ferro forjado, e meus trs livros em versolibrismo, pela tcnica do desperdcio. No entanto, noventa por cento de toda a minha obra potica foi realizada nos bares, que considero minhas oficinas, e minhas janelas para o mundo. Quanto ao meu verso livre, o controle que exero sobre eles o de, meio racional e meio intuitivamente, estabelecer uma espcie de banda mtrica, assim como existe a banda cambial, quando a moeda estrangeira monitorada para um mnimo e para um mximo de cotao. Eu o chamo de poema polimtrico, em contraposio ao poema-crnica,
72 O poeta se refere a Jos Luiz de Almeida Melo.
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to utilizado por Bandeira e Drummond, por exemplo, quando um verso tem dois ps e outro tem mais ps do que uma centopia, como disse uma vez Agripino Grieco. Essa classificao, no entanto, no implica em julgamento de valor esttico. preciso que algum desenvolva uma taxionomia do verso livre. Talvez o que voc considera expressividade em meus poemas venha do fato de que eles no so uma poesia de segunda mo, extrada diretamente dos livros. Mas folhas verdes tiradas da vida. Lembre-se de Goethe: Toda teoria cinzenta, mas verde a rvore dourada da vida.
Acabo de reler Noticirio e fico com a seguinte indagao: em que medida sua poesia reflete uma sensao diante dos fatos ou uma crtica, denncia? Penso que no possvel dissoci-las em sua obra. Diante disso, gostaria de saber se voc pensa em um leitor quando escreve ou apenas expressa sua viso/impresso das coisas.
Sensao diante dos fatos, crtica, denncia, tudo isso acredito que faa parte do arcabouo conteudstico de minha obra embora, como o mestre Joo Cabral, acredito que discusso sobre arte deve ser, prioritariamente, discusso formal. No entanto, programaticamente, nunca fiz poema engajado politicamente, do ponto de vista partidrio. Poema poltico, todo poeta faz, queira ou no, porque poltica escolha entre valores alternativos, em qualquer rea das relaes humanas. Noticirio foi escrito nos anos mais tenebrosos da ditadura militar, a dcada de 70. Eu estava formalmente saturado do verso branco octosslabo e resolvi mudar. Quando terminei Noticirio, em versos livres, l pelo ano de 1974, se no me engano, disse a um ex-amigo: este livro vai ficar por aqui, mas todo mundo est cansado de tanto racionalismo formal, e vai aparecer com um livro forte, em verso livre, depois de mim, algum poeta l do centro-sul. Algum tempo depois, surgiu o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, que tanto influenciou, sem que eles o confessassem, os poetas marginais do Rio-So Paulo. Quando eu escrevo, no penso em nenhum leitor. J disse uma vez e repito: tento escrever o poema que gostaria de ler. Talvez morra sem consegui-lo.
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Voc apresenta alguns personagens em seus poemas. Para cri-los, voc se inspira em pessoas reais, que voc conheceu? Por exemplo, fiquei curiosa para saber se Jorge, o garoto que tem a mo decepada pela me, existiu mesmo ou uma personagem fictcia/metafrica.
O garoto da mo decepada, assim como Yacala, e muitas mulheres, uma parte delas prostitutas, na verdade no existiram da forma como so apresentados e tm nomes inventados. No caso do garoto, ele existiu (ou existe) com outro nome, mas sofreu, diante de mim apenas uma ameaa, quando avanou com a mo para um prato de arroz. H uma vocao narrativa e, s vezes, dramtica, em minha poesia, talvez decorrente de um tempo que eu preferia ler fico a ler poesia, para no repetir esquemas rtmicos e at imagens que, s vezes, ficam agarradas em nosso inconsciente. Kafka foi fundamental na minha vida, ao mostrar-me que a linguagem comum, a linguagem burocrtica, pode veicular todos os horrores. H uma frase que considero anedtica atribuda a Beethoven: No ouo a msica dos outros para no perder a originalidade das minhas. Claro que isso um exagero, mas saudvel que os romancistas leiam os poetas e estes leiam os romancistas.
A respeito da Gerao 65, ngelo Monteiro afirma: fomos condenados ao Nordeste. Como o fato de ser nordestino influencia sua produo artstica no que se refere ao contato com a literatura oral e com as tradies clssicas e a (no) divulgao de sua obra?
No o Brasil que um arquiplago cultural. O prprio Nordeste tambm o : Pernambuco no sabe o que Alagoas e Paraba, estados vizinhos, esto escrevendo. As obras publicadas em cada estado nordestino no circulam sequer na Regio, e seria esperar demais que circulassem no centro-sul. Como podem as distribuidoras interessarem-se por edies de mil, oitocentos e quatrocentos exemplares? S dispomos das edies paroquianas e, mesmo, um ou outro poeta, como Lucila Nogueira, Marcus Accioly, Tereza Tenrio, que publicam no Sudeste, para ficar em apenas trs nomes da Gerao 65; no tm suas obras merecidamente bem distribudas nas livrarias do pas. Quanto influncia oral na poesia de minha gerao, creio que ela limitou-se s primeiras obras de Accioly, Jaci e, mais extensivamente, a Janice Japiassu. Embora eu seja um dos poetas eru-
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ditos mais ligados ao mundo dos violeiros-repentistas, nossas estticas no se tocam: eu sou um construtivista, tenho todo o tempo do mundo para escrever meu poema (por isso minhas falhas so imperdoveis) e os repentistas criam encurralados pela urgncia (que Exupry considerava tambm criadora). Eu sou daqueles que admiram o que no sabem fazer.
Mostrei seus poemas aos meus alunos do curso de Letras e alguns colegas de trabalho. Todo mundo se encantou. Voc acha que o desprezo ou a indiferena que voc recebe da grande mdia decorre de sua atuao crtica?
No acredito que o teor crtico de minha poesia ou dos meus artigos tenha alguma coisa a ver com a indiferena da mdia. Mesmo porque a poesia nunca foi objeto da publicidade. A poesia s, no, toda a literatura. E a publicidade brasileira, uma das melhores do mundo (fui dois anos publicitrio) vende o que quiser, desde que tenha um mnimo de qualidade. Literatura de qualidade no faz sucesso no Ocidente (dizem que, no Japo, um poeta bom chega a ter edies de 100 mil exemplares...). O romntico ingls Byron uma das poucas excees, pois teria vendido, num s dia, no sculo XIX, 30 mil exemplares de seu The Corsair. Nenhuma grande obra literria popular, seja ela a Divina Comdia, o Paraso Perdido ou The Cantos, e Dante, Milton ou Pound s so conhecidos por uma minscula elite. Minha formao de socilogo me blindou contra a iluso de algum dia ser celebridade. Cheguei at a comear, num livro de dirio intelectual, intitulado A Noite da Longa Aprendizagem (quatro volumes manuscritos) uma teoria do que chamei de estigma platnico, sobre a representao social do poeta ao longo das pocas. No estou mais interessado em retom-la. Quanto fama, mesmo se por um acaso viesse a acontecer a um escritor como eu (61 anos), lembro-me de que meu pai citava um autor que dizia: as glrias que vm tarde j vm frias.
O que aconteceu com as Edies Pirata?
Cumpriu seu ciclo histrico, deu o seu recado e morreu.
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Como sua formao de socilogo influencia a construo de seus poemas?
J toquei levemente no assunto. Acredito que a Sociologia, que vive numa eterna crise de identidade, como a prpria poesia, por ser, como diz o meu amigo renascentista Sebastio Vila Nova, o estudo cientfico das formas culturalmente padronizadas de interao humana, do homem submetido coero, ao controle social, do homem urbano, tradicionalmente, aguou meu olhar de espio para a alegria e o desespero do homem da metrpole, da que a maioria dos meus poemas tratem do cotidiano urbano e contemporneo, do lar, do bar, do escritrio, da rua. No entanto, como minha pesquisa profissional no ento Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (hoje Fundao Joaquim Nabuco) durou uns dez anos pela rea rural do Nordeste, algo dessa forte experincia tambm se encontra em minha poesia, principalmente nos livros inditos.
Por que h to poucos leitores de poesia?
A poesia, no Brasil, s tem um grande pblico, e um pblico cativo, a poesia dos violeiros-repentistas. Em todos os Estados do Nordeste, s fazem crescer os festivais de repentistas. A poesia de livro, principalmente a poesia de qualidade, acredito que vai ser difcil ter um grande pblico nesse pas. A mdia no se interessa por ela, que cultuada apenas em alguns guetos universitrios, e, assim mesmo, sem nenhuma grande militncia. Colmbia, Mxico, Chile, Ir so pases que amam os poetas, mas, mesmo nesses pases, a poesia continua a ser o que sempre repito: uma antimercadoria.
* * *
Em maro de 2004, Alberto da Cunha Melo foi entrevistado por vrios crticos e poetas, dentre eles Ivo Barroso, Alcir Pcora, Ivan Junqueira e Alfredo Bosi. A entrevista foi primeiro publicada no site Trilhas Literrias 73 , sob organizao de Cludia Cordeiro, e depois na revista Cronos, do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da UFRN (Jan/Dez
73 Nesse site possvel ler a entrevista na ntegra: <http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/tri2004menuensaios.htm> (acesso em 25/10/2007).
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2004/2005). Na ocasio, tive a oportunidade de fazer mais duas perguntas ao poeta, as quais gostaria de transcrever na ntegra, pois as considero um complemento entrevista anterior.
Para o Alberto leitor de poesia: quando que um poema bom? e para o escritor Alberto: quando que o poema est pronto?
O gosto do fruidor , para mim, o nico juzo sincero da obra de arte. Em arte eu considero bom aquilo que eu gostaria de fazer. Julgo bom, portanto, o poema que gostaria de ter escrito. Toda a minha luta literria reduz-se tentativa de escrever a poesia que eu gostaria de ler. Da... Quanto outra pergunta, o poema, na verdade, nunca est pronto para mim. Talvez por isso s tenho um poema de cinco versos da minha autoria decorado. E tenho horror de reler meus livros publicados, com medo de encontrar falhas. Trabalho cada poema at a exausto. Quando j perdi a pacincia de mexer nele, coloco-o de lado, para ser retomado no dia em que for convocado para um livro. A ele vai com os outros para um retiro, alguma pousada de pobre, e ser submetido, com os outros coitados, s cirurgias sem anestsico e s execues sumrias.
Como leitora, percebo que, do primeiro ao ltimo, seus poemas vo ficando mais sintticos, as imagens mais compactas. Ser esta apenas uma impresso ou de fato houve uma mudana do seu modo de criao? Fale um pouco sobre como a obra e o poeta Alberto da Cunha Melo foram se transformando ao longo dos anos, desde sua primeira publicao, em 1966.
Eu nunca planejei minha obra dentro da lgica cartesiana de Joo Cabral. Por isso, a sintetizao e a simplificao de meus textos, como tudo que escrevi at agora, tenham a ver com necessidades psicolgicas que meu consciente ainda no conseguiu apreender totalmente, porque acredito que "a Arte sempre assunto da personalidade inteira" (como disse Franz Kafka). Sinto-me num mundo onde a pressa e a mudana substituram a prudncia e a estabilidade. Estamos no mundo do consumo imediato, do valor imediato e transitrio. A falta de tempo dos possveis leitores de poesia talvez tenha me influenciado a criar uma espcie de forma fixa, que a retranca, prxima do hai-kai, do telegrama de antigamente, antes da enxndia verbal dos e-mails. Minha primeira fase, a dos cinco quartetos octosslabos brancos, tinha vinte
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versos, o que correspondia a seis versos mais que o soneto. Depois de minha fase de versos livres, onde predominam curtssimos poemas de versos curtos, talvez a fase atual seja uma continuidade da sintetizao, da simplificao, mas sem descurar o esforo de buscar a "intensificao da realidade", conforme Ernst Cassirer, que v as outras linguagens no artsticas e as linguagens cientficas como "abreviaes". Embora nunca tenha aderido aos modismos literrios, depois de mais de uma dcada trabalhando um formato, tento pular para outro, porque estou saturado.
Um Estudo Das Principais Características Da Escrita de Dalton Trevisan Por Meio Da Análise Literária de O Vampiro de Curitiba (Francine de Oliveira Palma)