Evas Ou Marias, As Mulheres Na Literatura de Cordel
Evas Ou Marias, As Mulheres Na Literatura de Cordel
Evas Ou Marias, As Mulheres Na Literatura de Cordel
AS MULHERES NA LITERATURA DE
CORDEL: PRECONCEITOS E ESTERETIPOS
Maria ngela de Faria Grillo
[email protected]
Departamento de Histria da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)
Resumo
Este artigo tem como objetivo estabelecer as diversas maneiras como as mulheres aparecem no imaginrio dos poetas de cordel nordestinos na primeira metade
do sculo XX, e qual o papel que elas representavam para a sociedade da poca.
Percebe-se, nos folhetos, a recriao de imagens anti-heronas, de mulheres
malcriadas e falsas, como tambm de mulheres puras de boa conduta, identificadas
como Eva ou Virgem Maria, respectivamente. Nesse sentido, fica evidenciada a
presena de uma cultura misgina que permeia as representaes femininas em
distintas linguagens nos diversos segmentos sociais.
Palavras-chave: preconceito, discriminao, imaginrio, representao.
Abstract
This article aims at establishing the many ways women appear in the imaginary
of Brazilian Northeast cordel poets at the first half of the 20th century, and
which role they played in that society. It is possible to recognize, through leaflets,
not only the re-creation of anti-heroic images of ill-bred and false women, but
women of pure and good conduct as well, who were compared, in terms of
identification, to Eve or Virgin Mary respectively. In this sense, one can clearly
notice the presence of a misogynistic culture, which underlies the female
representations through different languages in diversified social levels.
Key words: prejudice, discrimination, imaginary, representation.
Desde que surgiu no Nordeste do Brasil, no final do sculo XIX, independente do sistema literrio institucionalizado, a literatura de cordel vem testemu-
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tao. Procuramos, ento, estabelecer como fonte folhetos escritos por autores
reconhecidos como os grandes produtores de literatura popular no perodo, no
s em nossa viso, mas tambm na de vrios estudiosos do assunto, como Cmara Cascudo, Marlise Meyer, Ruth Terra, Mark J. Curran, entre outros.
Na cultura judaico-crist, a mulher , geralmente, apresentada como smbolo de carne, sexo e nudez. Tais elementos condenveis so remetidos ao pecado original, em que as mulheres so vistas como seres pecaminosos e demonacos. Alguns santos da Igreja Catlica condenam a mulher como se ela
representasse um poderoso instrumento do diabo. Como exemplo, podemos citar
que, segundo Santo Ambrsio, Ado foi levado ao pecado original por Eva e no
Eva por Ado. justo que a mulher aceite como senhor aquele a quem ela transviou. Para So Joo Crisstomo: Entre todas as feras selvagens nenhuma to
nociva como a mulher. E, de acordo com Santo Toms de Aquino: O homem
est acima da mulher, como Cristo est acima do homem. um estado de coisas
imutveis que a mulher esteja destinada a viver sob a influncia do homem1.
O teu pai imbecil
por que quer acertar-te a sina
te encobrindo a verdade
por si mesmo recrimina
no h vivente que corte
o que o bom Deus determina
Quer te criar como santa
te privando de outro ser
o prprio Deus formou Eva
para o homem ter prazer
fiques certa que existe
homem, carinho e poder [...]2
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posio inferior ao homem. Nesse sentido, elas estariam predestinadas ao resguardo do parto, aos incmodos da menstruao e esterilidade assexuada da
menopausa. O psiquiatra Miguel Bombarda, que teorizava a esse respeito, apontava que:
A mulher uma degenerada!... S o vulo a salva. Se alguma
vez pela energia do esprito a mulher consegue levantar-se,
s depois que a vida sexual tem cessado; s ento tambm a
sua organizao fsica tende a aproximar-se da do homem... E
por isso que, desde muito penso que depois da menopausa
a mulher um homem3.
Essas idias, que refletiam a mentalidade da poca e que eram aceitas por
grande parte da populao, inclusive por mulheres, encontravam alguns contestadores. Pioneiras do feminismo no Brasil, a anarquista Maria Lacerda de Moura
e a mdica Alzira Reis, ambas mineiras, saram em campo contra a difundida
inferioridade do sexo feminino. Em artigos de jornais e revistas, elas passaram a
contestar, com argumentos cientficos, a falsa idia que pairava sobre a inferioridade do crebro feminino, que, por ser mais leve e com menos circunvolues,
gerava a suposta fragilidade feminina. Rebatendo as teses do psiquiatra, Maria
Lacerda publica, em 1932, o livro A mulher uma degenerada.
A valorizao do respeito honra e ao pudor das mulheres, sejam elas
donzelas ou casadas, apresentada em algumas poesias, to marcante que o ato
de desrespeit-las poderia ser visto como at mais grave do que o ato de se
cometer um homicdio.
Confesso que sou homicida,
Mas no sou desonrador;
De mulher casada ou donzella,
Nunca offendi ao pudor,
E at me glorio de ser
Da honra um defensor...
S perdo as mulheres,
Porque estas so parte fraca;
Mas meu perdo para os homens
bala e ponta de faca!...
Nas luctas sou como o lobo
Quando a sua presa ataca!
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At o incio do sculo XX, o espao da informao, do saber e, por extenso, do poder era de mbito exclusivamente masculino; as mulheres, tolhidas em
seus movimentos, controladas em suas iniciativas, pensamentos e leituras, deveriam dedicar-se somente esfera domstica.
No sculo XIX, a intelectual e literata potiguar Nsia Floresta, hoje considerada uma das primeiras feministas brasileiras, j revela grande preocupao
com a educao feminina. Acreditando que a educao seria a base para o progresso da sociedade, dedica-se a essa questo em duas de suas obras: Conselhos minha filha, de 1842, e Opsculo humanitrio (Ensaio sobre educao),
de 1853. Seu interesse por essa problemtica levou-a a fundar, em 1838, e dirigir
durante anos, um colgio para meninas no Rio de Janeiro o Colgio Augusto
, cujo nvel competia em qualidade com os melhores ali existentes, via de regra
dirigidos por estrangeiras. Ao lado dos elogios seriedade do trabalho desenvolvido no colgio, os jornais da poca tambm registravam inmeras crticas
diretora, por ousar privilegiar o ensino de lnguas, em prejuzo dos trabalhos manuais, o que confirma um dos aspectos subversivos da atuao de Nsia Floresta,
exemplo de insubmisso aos preconceitos de seu tempo e da luta das mulheres
pela aquisio de direitos e plena cidadania.4
Nas primeiras dcadas do sculo seguinte, perodo em que as mulheres
comeam a desfrutar de um pouco mais de liberdade e aparecer no cenrio que
at ento era restrito apenas ao sexo masculino, a paraibana Anayde Beiriz, formada professora em 1922, aos 17 anos, destaca-se como poetisa e lder feminista
e torna-se uma das pioneiras na luta pelo voto feminino, ao registrar as seguintes
palavras: Elevemos a mulher ao eleitorado [...]. Em vez de a conservarmos
nesta injusta menoridade, convidemo-la a colaborar com o homem5.
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E Batista continua sua narrativa sobre a histria de Guiomar, nos informando que:
Joo Velloso querendo
A sua filha educar,
Num dos melhores collegios
Botou-a para estudar
To cedo que aos quinze annos
Pode ella se diplomar.
Guiomar tinha aprendido
Perfeitamente o Francez,
O Latim, o Allemo,
O Hebraico e o Inglez,
Fallava correctamente
O Grego e o Portuguez.
Para o poeta, uma mulher que se compraz de sua condio, mesmo que
saiba ler e escrever no assume esse poder, fica annima. Muito pelo contrrio,
assumir uma autoria seria orgulho, ou mesmo vaidade desnecessria, imagem
que no corresponde da mulher humilde. As qualidades que se espera da mulher no o saber erudito. Nesse sentido, mesmo a que o possui, submete-se s
outras qualidades, negando o poder que possuem ao assumirem o anonimato.
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O que comentar sobre essa mulher? Que ela assume um discurso machista, que reproduz integralmente uma imagem da mulher como oportunista e leviana? Ou que ela atende ao desejo do seu pblico, que quer comprar folhetos que
reproduzam essas imagens? Muitas possibilidades poderiam ser aventadas, inclusive a de que se tratava de um desafio entre ela e seu pai. Mas o que significa
para uma mulher assumir o discurso masculino? Conformar-se a uma condio
de submisso, sem dvida, mas h muito mais a se pensar sobre a questo. Chartier interroga:
[...] que diferenciao fazer entre a dominao masculina e a
dominao simblica que supe a adeso dos prprios dominados s categorias e recortes que fundam sua sujeio? O
autor nos lembra que no processo de civilizao, segundo
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expresso de Norbert Elias, a construo da identidade feminina se enraza na interiorizao pelas mulheres, de normas
enunciadas pelos discursos masculinos. A nfase deve, assim, ser colocada sobre os dispositivos que asseguram a eficcia dessa violncia simblica, que como escreveu Pierre
Bourdieu, s triunfa se aquele (a) que a sofre contribui para
a sua eficcia; ela s o submete na medida em que ele (ela)
predisposto por um aprendizado anterior a reconhec-la10.
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Parece que as coisas pioram quando a mulher leva a me para morar junto
com o casal, tornando o casamento um verdadeiro calvrio. Na literatura de cordel
comum a sogra aparecer como um peso ou uma carga difcil de suportar.
Santo Deus! que peso horrendo
Nas costas de um desgraado
Uma mulher e a me
Oh! que madeiro pezado!
Que calix to amargoso
Eu julgava saboroso
Porm sahiu-me ao contrario
Pena alguem que a vida presta
Mas pra Christo s resta
O homem ir ao Calvario.
O individuo solteiro
No sabe a vida o que custa
No tem penso nem cuidado
A crise no o assusta
Logo quando quer cazar-se
nessessario apromptar-se
De tudo quanto precisa
Ahi elle vai sabendo
O que muitos esto soffrendo
Porque a mulher no alisa.
Ainda nesse folheto, o autor atenua a imagem de Eva, que, por no possuir
uma famlia nem ter um passado, no fora Ado ao matrimnio, colocando essa
responsabilidade na mo de Deus. Mas, em outro momento, o autor condena
Eva, visto que ela conseguiu ludibriar Ado, convencendo-o a provar do fruto
proibido:
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Alguem h de perguntar
Deus no casou a Ado?
Eu digo: Ado era louco
No calculava a razo
Inda foi muito feliz
Porque nasceu num paiz
De terra desabitada
Sogra e cunhado no tinha
Assim mesmo dona Evinha
Inda o botou na enchada.
Ora Eva era innocente
No tinha manha nem dengo
Mas pela historia della
Se ver que ella tinha quengo
Porque foi dar ao marido
Esse fructo prohibido
Do autor da creao
Quando o barulho estourou
Ella ento descarregou
O po nas costas de Ado.
Como se pode perceber, a sogra vista como uma figura que se apresenta
como um ser insuportvel. Assim, observa-se que Leandro autor de uma srie
de poemas que tm a figura da sogra como personagem de destaque e sendo
sempre criticada. Em Vacina para no ter sogra, pode-se conferir:
Porque que a medicina
estuda tanto e no logra
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Para esse autor, a sogra to perigosa que roga praga at para o diabo. O
poder de seu agouro visto como algo to aterrorizante que at diabo fica com
medo. No poema O governo e a lagarta contra o fumo verifica-se a mesma
tendncia:
Estava o diabo e a sogra
em uma tremenda briga
o diabo disse sogra
tu s peior que a formiga
disse-lhe a sogra damnado
um coletor te persiga [...]
O diabo amedrontado
ficou com cara de chouro
respondeu-lhe miseravel,
longe de mim teu agro
damna-te com tua praga
para a casa do besouro
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as ptalas de um bugari
e mais bonita de todas
as moas lindas dali.
Ainda nesse folheto, Joaquim de Sena fala que, se essa candura de filha
profanar a virgindade, ser injuriada e abandonada pelo prprio pai, devendo arcar com o peso de seu erro:
Que me diz filha maldita
Gritou o velho Semi
Se perdeste a virgindade
Desaparea daqui
Da minha casa e mais nunca
Desejo saber de ti.
Namorados, quando descobrem que esto sendo enganados, pois sua amada no mais donzela, imediatamente escorraam, humilham e a abandonam.
o que demonstra Martins de Athayde em seu poema Namoro de um cego com
uma melindrosa da atualidade:
Parecia ser um anjo
Era uma cobra danada
Alem de no ser donzela
Eu ca nessa esparrela
s por no saber de nada
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Imunda, cachorra, bicha, quenga, relaxada so os adjetivos dados s mulheres que perderam a virgindade antes do casamento ou s que enganam seus maridos.14 Para o poeta de cordel, como para sociedade mais ampla,
tanto a perda da virgindade como a infidelidade no casamento so comparadas
prostituio.
No folheto de Gomes de Barros A discusso do autor com uma velha de
Sergipe, destaca-se o seguinte dilogo sobre o casamento. A se estabelece uma
verdadeira peleja:
Eu disse a ella collega
Voce pode calcular
Uma mulher fica em casa
O homem vae trabalhar
Com o suor de seu rosto
Ganha para ella estragar.
A velha disse no h
Marido sem mo costume
Quando no cachaceiro
vadio e tem ciume
Nestas condies assim
No h mulher que se arrume
Eu disse minha senhora
O homem um innocente
Trabalha para a familia
At morrer ou ficar doente
Ella que fica em casa
Estraga damnadamente
Sahe logo de madrugada
Vai ao campo trabalhar
A mulher fica deitada
Sem nada a emcommodar
De nove para as dez horas
que vem se levantar
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Nesse sentido, fica claro que era exigida da mulher uma nica postura,
uma nica conduta: que cumprisse com seus deveres de dona de casa e que no
se enfeitasse, pois qualquer transformao em seu vesturio era condenvel. O
que hoje comum no modo de se vestir e de se comportar das mulheres constitua, para a moral feminina, uma revoluo perigosa e arrojada.
Como resposta a essa poca de transio, levantam-se vozes na imprensa,
advertindo para o perigo da liberao feminina, como o caso do articulista Cludio Souza, que publica, em 1918, o seguinte artigo na Revista feminina:
Embriagada pelo luxo, offuscada pelas joias, estonteada pela
febre dos novos rythimos, foi nesta vertigem que Eva antiga
perdeu a percepo primeira e o melhor de sua feminilidade
[...] Deixou, com prazer que a tesoura da moda lhe fosse despoticamente aparando, um a um, os gommos de suas saias
amplas que, escondendo-lhe as formas, a cercavam do encanto, do pudor e do mysterio. Deformou-se; despojou-se... Encurtou as saias, desnudou os braos... Adoptou a agua mineral para sua dyspepsia e o estuque plastico para sua anemia,
fatigada de insomnia. Com as cres varias da anilina reduziu
sua belleza antiga a uma paisagem de tons artificiaes, sobre a
qual levou a architectura de multiplos andares de seus postios. Tornou-se uma deliciosa boneca, um bibelot extravagante, uma linda flr de estufa... mas deixou de ser mulher!
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Na literatura de cordel, podemos perceber folhetos que trazem vises semelhantes quelas apresentadas pela Igreja, culpando a mulher por sua beleza
fsica, sempre relacionada ao poder da seduo. Alm disso, encontramos vrias
crticas ao uso de recursos e/ou artifcios para seu embelezamento, como a utilizao de maquilagem, perfume, corte de cabelo, vestimentas etc. No folheto O
rapaz que apanhou das moas por no saber namorar, de autoria de Caetano
Cosme da Silva, podemos conferir que a mulher ganha o estigma de desonrada
apenas por sua forma de vestir:
O velho disse meu filho
voc sahia pela rua
aonde ver uma moa
mal vestida, quase nua
no queira porque ella
est no mundo da lua.
A moa que tem vergonha
no mostra as carnes dela
e no faz vestido curto
mesmo no meio da canela
nem usa manga quimone
que isto deshonra ella.
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Fica patente nos versos acima o impacto causado pela parceria no desempenho de papis ao invs da dicotomia tradicionalmente existente, at mesmo
porque tal parceria seria representativa de uma maior igualdade entre os gneros, ameaadora da tradicional diviso dos referidos papis, garantidora da dominao masculina. V-se que as mulheres so sempre questionadas pelos seus
atos. Afinal, o que desejavam os homens: uma mulher que ficasse responsvel
somente pelos afazeres domsticos ou uma mulher que tambm trabalhasse fora
de casa e contribusse no oramento familiar? Uma ambigidade que os homens
tm dificuldade em lidar. Nesse sentido, observa-se que as mulheres, independentemente do que fizessem, so sempre culpabilizadas.
E, ao que parece, no s na cidade que esse autor percebe essas transformaes, pois tais mudanas tambm ocorrem no serto, o que aumenta sua
indignao:
Isso que eu descrevo aqui
o costume da praa,
Agora v ao serto
E veja l que desgraa!
L s tem Deus nos acuda
E eu no sei o que faa.
Chega-se nesses sertes
numa choupana daquella;
ver-se o barbado de ccora
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alcovitando as panellas;
um feixe de lenha junto
atiando fogo nellas.
Pergunte pela mulher
que h de ouvir elle dizer:
foi pra roa apanhar fava,
s vem quando escurecer,
eu fiquei ssinho em casa,
pra fazer o comer.
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ao mesmo tempo, com uma pombinha, com uma formiguinha e com uma galinha. Pombinha porque ela deve se mostrar sempre terna e asseada; formiguinha
porque deve ser trabalhadeira, laboriosa, dar conta de todo o trabalho domstico e,
se possvel, auxiliar o marido no sustento do lar; e galinha ao se revelar como uma
me amorosa, solcita, sempre disponvel para cuidar dos filhos.21
Aes reivindicatrias e reaes dominao masculina, com relao a determinados direitos e hbitos considerados estritamente masculinos, so vistos como
atitudes de rebeldia feminina. Podemos verificar, neste texto de Jos Pacheco, A
mulher no lugar do homem, que o autor parece indignar-se ao tomar as mudanas comportamentais femininas como se fossem uma ofensa ao homem:
De certo tempo pra c
a mulher passou na frente
tomando o lugar do homem
fazendo coisa indecente
a tempo que desprezou
a saia que lhe tocou
e tomou as calas da gente.
O trabalho da mulher
para que no fale o povo
amarrar uma cabra
dar leite ao gato novo
botar milho pr galinha
e reparar se tem vo.
Sem os trabalhos caseiros
cada qual mais conhecido
varrer casa e fiar
catar pulga no vestido
e tratar dos seus filhinhos
e tambm catar bichinhos
nas barbas do marido
Pois nas casas de negcio
cada balco hoje em dia
precisa ter gente fmea
para ter mais garantia
pois se ali no tiver saia
talvez o negcio caia
porque no tem freguesia.
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Travestir-se de moa nova, utilizando-se de recursos cosmticos e artificiais, apenas contribui para encobrir a realidade das mulheres maduras, que a de
no terem o mesmo valor que as moas novinhas. Afinal, nas feiras do Nordeste,
as frutas mais maduras so as mais baratas, pois esto a ponto de se estragar.
Para o poeta, antinatural que as mulheres mais velhas no assumam sua condio, quebrando com os ideais de respeitabilidade que toda mulher de certa idade
deveria ter.
Histrias de amor so recorrentes na literatura de cordel e a mulher aparece a como portadora de uma natureza angelical, sublime, divinizada.
No folheto Julita e Galdino, de autoria de Manuel Apolinrio Pereira,
percebe-se que a mulher impressiona:
Galdino avistou Julita
ficou impressionado
Julita do mesmo jeito
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Mas, ao mesmo tempo que o autor enaltece sua beleza, coloca a mulher
como uma figura forte, segura de seus atos, capaz de tomar decises drsticas
contra a vontade de seu pai, que queria v-la casada com o primo:
Lhe respondeu a donzela:
Galdino estou obrigada
a casar com o meu primo
porque no importa nada
porque somente contigo
que posso ser casada.
Galdino preste ateno
vejas o que te digo
se me casarem apulso
com aquele papa figo
no dia do casamento
eu juro fugir contigo.
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Nos folhetos h, freqentemente, a representao de caractersticas contraditrias convivendo com as protagonistas. Por exemplo, nos textos apresentados a seguir, Maria Bonita convive com a contradio: teria ela entrado para o
bando de Lampio porque tinha uma natureza criminosa ou porque amava o cangaceiro?
Martins de Athayde, em seu folheto Maria Bonita: a mulher no cangao, no a poupou. Ali a companheira do cangaceiro foi apresentada como uma
mulher criminosa, sanguinria e cruel:
Esta mulher assassina
Que at rifle maneja
No era por amizade
Que ela o bando ocupava
Seu instinto era malvado
Seu amor degenerado
S luto e dor espalhava.
Percebe-se nos versos de Sobrinho que a beleza e a doura de Maria Bonita podiam ser vistas como to irresistveis que Lampio se apaixonou por ela
imediatamente. Pode-se notar tambm que o poeta entendia ser possvel valorizar a personalidade de Lampio, encobrindo suas qualidades ruins. Os ouvintes e
leitores desses versos talvez pudessem ter alguma simpatia com o heri amoro-
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so. A afirmao de que Lampio poderia ser capaz de amar tornava-o uma
pessoa digna de ser amada.
interessante notar que Gomes de Barros, que faz inmeras crticas
mulher, ao mesmo tempo capaz de enaltec-la, como se nota nos versos do seu
folheto intitulado A mulher em tempo de crise:
Leitor leia este livrinho
Se por acaso quizer
Preste um pouco de ateno
A tudo que nelle houver
Porque nele est escripto
O todo de uma mulher
Mulher um objeto
Que nasce por excelncia
E do corao do homem
a flor da existencia
Tambem quem a possuir
Tenha santa paciencia
Ella nascida um anjo
Como moa um sol nascente
Como noiva uma esperana
Como esposa uma semente
Como me uma fruteira
Como sogra uma serpente...
Apesar de ter ressaltado alguns defeitos, ainda nesse mesmo folheto ele
mostra como a mulher um ser indispensvel vida do homem, ao escrever
estes versos:
Se no houvesse a mulher
Era preciso fazel-a
Uma casa sem mulher
No h quem deseja vel-a
como um dia sem sol
Uma noite sem estrella...
Mulher to necessrio
Quanto o sal a comida
Quanto um banho ao calor
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NOTAS
1
BORGES, Maria Nbia da C.; MORAIS, Vera Lcia A. de. A mulher na literatura de cordel. Recife:
Edies Pirata, 1981. p. 8.
2
Folheto intitulado Elias e Aucena, cujo editor responsvel Joo Jos da Silva.
3
NOSSO SCULO. A memria fotogrfica do Brasil no sculo XX. So Paulo: Abril Cultural, 1990. p.
104.
4
DUARTE, Constncia L.; MACEDO, Diva Maria C. de. Literatura feminina do Rio Grande do Norte
de Nsia Floresta a Zila Mamede. Antologia. Natal: Sebo Vermelho/UnP, 2001. p. 14.
155
5
NOSSO SCULO. A memria fotogrfica do Brasil no sculo XX. So Paulo: Abril Cultural, 1990. p.
264-265. Outras mulheres surgem nesse cenrio masculino, como o caso da paulistana Ansia
Machado, nascida em 1900, que se destaca em uma atividade que era privilgio dos homens, a
aviao. Ao tirar seu brev em 1922, torna-se a primeira mulher brasileira a transportar passageiros e
a realizar vos acrobticos. Em setembro desse mesmo ano, pilotando um aeroplano de fabricao
francesa, muito utilizado na Primeira Guerra Mundial, realiza um vo considerado difcil e temerrio
para essa poca: o eixo So Paulo-Rio.
6
A arte da beleza Artigo para ser somente lido por senhoras. Jornal das Famlias. Rio de Janeiro,
maro 1863. Apud: SOIHET, Rachel. Violncia simblica. Saberes masculinos e representaes femininas. In: Revista Estudos Feministas. Florianpolis: UFSC; Rio de Janeiro: UFRJ, v. 5 n. 1, 1997. p. 22.
7
GRILLO, Maria ngela de Faria. Imagens e representaes das mulheres na literatura de cordel. In:
SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima S. (orgs.). Culturas polticas:
ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p. 340.
8
Alguns desses jornais eram: O sonho e A esperana, ambos de Cear-Mirim; A Repblica, de Natal;
O Nordeste, A Imprensa e A Unio, todos trs da Paraba; A Repblica, de Recife. As revistas literrias
eram, entre outras: A estrela, de Fortaleza; A Via-Lctea (primeira revista feita por mulheres e dirigida
ao pblico feminino) e O malho , ambas de Natal; Almanach literrio e histrico de Assu , da cidade de
Au, no Rio Grande do Norte; O lyrio, revista mensal de Recife. Cf. DUARTE e MACEDO, op. cit. p.
83, 93, 129 e 163.
9
CHARTIER, Roger. Diferenas entre os sexos e dominao simblica (nota crtica). In: Cadernos
Pagu: fazendo histria das mulheres. Campinas, Ncleo de Estudos de Gnero Pagu/Unicamp, n. 4,
1995. p. 38-39.
10
Idem. p. 40.
11
GRILLO, Maria ngela de Faria. A arte do povo: histrias na literatura de cordel. (1900-1940).
Niteri. Tese (Doutorado em Histria) Curso de Ps-Graduao em Histria, Universidade Federal
Fluminense. p. 194.
12
Sobre esse recurso do sistema capitalista, que serve para diminuir o custo da reproduo do trabalho,
ver SOIHET, Rachel. Condio feminina e formas de violncia. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
1989. p. 8 e STOLCKE, Verena. Mulher e trabalho. Estudos Cebrap, n. 26, p. 105, mar./1990.
13
ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz. Nordestino: a inveno do falo Uma histria do gnero
masculino (Nordeste 1920/1940). Macei: Catavento, 2003. p. 196.
14
NAVARRO, Fred. Assim falava Lampio. 2. ed. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p. 210.
15
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e polticas: 1850-1937. So Paulo: Brasiliense, 1981. p. 93 e SAFFIOTI, Heleieth. Mulher brasileira: opresso e explorao. Rio de Janeiro:
Achiam, 1984. p. 22.
16
CHARTIER, Roger. Op. cit., p. 42.
17
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. V. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p.
74.
18
NAVARRO, Fred. Op. cit., p. 64, 169 e 248.
19
SOIHET, Rachel. A pedagogia da conquista do espao pblico pelas mulheres: a militncia feminista
de Bertha Lutz. In: Revista Brasileira de Educao, n. 15, set./out./nov./dez. 2000.
20
A Igreja Catlica, h muito, j vinha se pronunciando a esse respeito. Por meio da Encclica Rerum
Novarum, de 1891, o papa Leo XIII deixava claro, em seu item Proteo do trabalho dos operrios,
das mulheres e das crianas, que no se deve exigir de uma mulher (ou mesmo de uma criana) um
trabalho eqitativo ao do homem, pois, para ele, existem tarefas que no so adequadas mulher,
qual a natureza destina, de preferncia, os arranjos domsticos, que, por outro lado, salvaguardam a
honestidade do sexo e correspondem melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educao dos
filhos e a prosperidade da famlia.
21
AZEVEDO, Ceclia da Silva. Rompendo fronteiras: a poesia de migrantes nordestinos no Rio de
Janeiro (1950-1990). Niteri, 1990. Dissertao (Mestrado em Histria) Curso de Ps-Graduao
em Histria, Universidade Federal Fluminense. p. 155 e BORGES e MORAIS, op. cit., p. 14.