AUTO AJUDA. CRÍTICA. Auto Ajuda Nas Relações de Trabalho
AUTO AJUDA. CRÍTICA. Auto Ajuda Nas Relações de Trabalho
AUTO AJUDA. CRÍTICA. Auto Ajuda Nas Relações de Trabalho
Florianpolis
2010
ii
iii
Adriana Cludia Turmina
Florianpolis
2010
iv
vi
vii
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Os ltimos quatro anos exigiram
muitas horas dedicadas ao tratamento
e diversas terapias para minimizar os
efeitos da leso no quadril. Foram
muitas privaes, muitos limites que
precisaram ser administrados com
serenidade, pacincia e tolerncia.
Nesse percurso, sua doura, sua
disponibilidade, bom humor foram
fundamentais. No entrei sozinha no
doutorado, carreguei voc comigo.
Longas horas ouvindo a leitura de
minhas produes, vrios momentos
lendo os meus livros, outros
momentos ajudando nos aspectos
finais da tese.... Enfim, foram diversas
as estratgias que voc encontrou para
manter-se junto a mim. Por tudo isso,
e milhes de outras razes, a
dedicatria especial desta tese para
voc Airton!
viii
ix
AGRADECIMENTOS
A concluso desta tese representa muito mais do que o findar de
um percurso acadmico que durou quatro anos e alguns meses.
Representa uma histria de superao. A superao de muita, muita
dor.... Foi justamente no ano de minha entrada no doutorado (2006) que
veio a leso no quadril. Dos perodos de repouso e muletas, que no
foram usadas como desculpa para no continuar, precisei administrar
muitos sentimentos. Exercitei a pacincia, a tolerncia comigo mesma,
que diante de muitos livros para ler, ato que parece to simples, tornouse de extrema complexidade. Foram anos de dedicao e tratamento. A
recuperao to rpida, eu explico, os mdicos no.
Nesse percurso, contei com a participao e presena de muitas
pessoas que se tornaram especiais, para as quais, registro meus
agradecimentos.
minha orientadora Eneida Oto Shiroma, agradeo a orientao
deste trabalho. Durante o perodo que precisei parar minha produo
terica, sua sensibilidade e pacincia, foram fundamentais. Foram
muitas as orientaes em casa pelos limites de acessibilidade s salas do
Centro de Educao. Voc tambm marcou presena nos muitos e-mails
carinhosos de incentivo, com brincadeiras para descontrair: Dri, voc
a seiva de sua tese fazendo aluso a autoajuda. Pequenos gestos foram
se somando e hoje, me permitem dizer o quanto aprendi com voc.
Alm disso, qual a orientanda que tem o prazer de comemorar seu
aniversrio no mesmo dia de sua orientadora? O dia 7 de novembro
lindo! Eneida, a voc, deixo um super obrigada pra l de especial!
Ao Professor Lucdio Bianchetti por continuar exercendo o que
considero uma de suas maiores caractersticas: Olhar para o outro de
forma emptica, pelas ricas contribuies na qualificao da tese e, por
deixar tanto de si, em cada uma de suas empreitadas.
A Professora Ivete Simionatto pelo acolhimento na disciplina,
Estado, Sociedade Civil e Polticas Sociais, no Programa de PsGraduao em Servio Social que propiciaram ricas reflexes e
discusses coletivas, alm de importante contribuio na qualificao da
tese.
A Professora Roselane Ftima Campos por toda sua contribuio
que foi incorporada, na medida do possvel, neste estudo.
x
A Professora Lcia Maria Wanderley Neves, agradeo sua
disponibilidade e gentileza ao encontrar espao em sua agenda dividindo
a riqueza de sua produo terica, valiosa ao estudo desenvolvido.
Aos colegas do GEPETO, grupo de estudos de Poltica
Educacional e Trabalho, pelo apoio e incentivo para que esta tese se
concretizasse. O que eu no poderia deixar de registrar o quanto os
GEPETISTAS sabem fazer uma boa festa. Vocs so fantsticos,
aliam estudo e diverso, imprimindo qualidade s duas atividades.
A Professora Valeska Nahas Guimares, sempre to perto,
torcendo, incentivando.
Ao meu pai, Fermino, e minha me, Nicette, por quem sou
apaixonada, pelo orgulho e torcida com que sempre viram os meus
estudos.
minha irm, Eliana, que outra paixo da minha vida, pelo
apoio e incentivo e, ao meu cunhado Ulisses, pessoa especial, pela
torcida para que esta tese, enfim, se concretizasse. Agora teremos mais
tempo para nos dedicarmos aos ensaios culinrios.
A Mara e a Ktia pela presena em muitos momentos importantes
nesse percurso, principalmente nos gostosos bate-papos.
Aos colegas da linha Trabalho e Educao pelas discusses
frutferas no decorrer das disciplinas cursadas, em especial, a Vnia e ao
Rafael que se tornaram presentes virtualmente.
A Snia, Patrcia e Bethania, secretrias do PPGE/UFSC/CED,
por respeitarem meus limites em subir escadas, facilitando o acesso aos
documentos.
Ao Senac/SC por abrir espao aos meus conhecimentos.
xi
xii
xiii
RESUMO
Na ltima dcada do sculo XX, a autoajuda foi colocada em evidncia.
A proliferao de discursos exaltando o poder do indivduo na resoluo
de seus problemas e a necessidade de aprender a ser um novo
trabalhador foi enfatizada. Assim, o objetivo desta pesquisa investigar
o carter ideolgico do discurso de autoajuda na formao de um
trabalhador de novo tipo, tendo em vista explicar seu papel na
construo da hegemonia. Para tanto, definiram-se como objetivos
especficos: estudar os princpios constitutivos do discurso da autoajuda
voltados ao trabalho em trs momentos distintos: gnese, no sculo
XIX, sob os impactos da revoluo industrial, primeira metade do
sculo XX, com o fordismo, e dcadas finais do sculo XX e alvorecer
do XXI; identificar quais os traos caractersticos do homem de novo
tipo demandado pelo capitalismo nestes perodos histricos e as
estratgias de divulgao destas caractersticas por meio de duas fontes:
os discursos de autoajuda e os relatrios da UNESCO. Analisaram-se os
elementos centrais das recomendaes dos gurus da autoajuda, os
princpios para aprender a ser um homem de novo tipo requerido pelo
capitalismo nos diferentes perodos histricos. Procurou-se evidenciar
que este processo ocorre por fora, mas tambm por dentro da escola,
analisando como estratgias e princpios da autoajuda so reproduzidos
nos Relatrios Faure e Delors, patrocinados pela UNESCO, e difundidos
mundialmente para reformar a educao. Duas foram as questes
norteadoras do presente estudo: que concepes de mundo, valores,
condutas os livros de autoajuda divulgam? De que forma a autoajuda
contribui para a consolidao de novos padres necessrios
sociabilidade burguesa exigida para o trabalhador no sculo XXI?
Adotou-se o referencial terico-metodolgico de Antonio Gramsci para
discutir a hegemonia e a difuso de novos modos de pensar, sentir e agir
condizentes sociabilidade do capital e de Norman Fairclough para
explicar a autoajuda como um discurso ideolgico. Trata-se de uma
pesquisa sobre a anlise do discurso de autoajuda, compreendendo o
discurso como texto, prtica discursiva e prtica social. As categorias
privilegiadas na anlise foram as concepes de mundo, homem,
trabalho e educao. Deste estudo concluiu-se que: a) o discurso de
autoajuda que difunde novos modos de ver e agir no trabalho, fazer
escolhas, vencer o medo e ensinar a ser tambm est presente nos
relatrios da UNESCO; b) a anlise da literatura de autoajuda permite
entender esse discurso como um elemento importante para a construo
xiv
da hegemonia, visto que tambm influencia sobre o modo como as
pessoas pensam, sentem e agem no trabalho; c) a autoajuda contribui
para a consolidao de novos padres necessrios sociabilidade
burguesa exigida para o trabalhador em tempos de neoliberalismo; e d) o
capital, ao longo de sculos, vale-se da autoajuda para realizar a
(con)formao de um trabalhador de novo tipo.
Palavras-chave:
Hegemonia.
Trabalho
educao.
Autoajuda.
Discurso.
xv
ABSTRACT
Self-help came to the fore in the last decade of the 20th. Century with the
proliferation of discourses exalting the power of the individual to
resolve his/her problems and the necessity to learn to be a new
employee being prominent. Thus, the objective of this work was to
investigate the ideological character of the discourse of self-help in the
development of a new employee, with a view to explaining its role in
the construction of hegemony. To this end, the following specific
objectives were defined: 1) to study the constitutive principles of the
discourse of self-help oriented towards work at three distinct times
genesis, in the 19th. Century, with the impact of the industrial revolution;
in the first half of the 20th. Century, with Fordism; and in the last
decades of the 20th. Century and the dawn of the 21st. Century; 2) to
identify the defining traits of the new human demanded by capitalism
in these historical periods and the strategies for the promotion of these
traits through two sources: the self-help discourses and UNESCO
reports. The central elements of the recommendations of the self-help
gurus were analysed, the principles for learning to be a human of the
new type required by capitalism in different historical periods. This
work sought to demonstrate that the process occurs not only out of
school but also within, analysing how strategies and principles of selfhelp are reproduced in the Faure and Delors Reports, sponsored by
UNESCO, and promoted worldwide to reform education. Two questions
were directed by the present study: what conceptions of the world,
values, and conduct do self-help books promote? In what way does selfhelp contribute to the consolidation of new standards required for the
bourgeois sociability demanded from the employee in the 21st. Century?
The theoretico-methodological reference of Antonio Gramsci was
adopted to discuss the hegemony and the spread of new ways of
thinking and acting that lead to the sociability of capital, and Norman
Fairclough was employed to explain self-help as an ideological
discourse. The work comprised analytical research on the discourse of
self-help, including discourse in the form of text, discursive practice and
social practice. The categories that were the focus of the analysis were
conceptions of the world, humankind, work and education. The
conclusions of this study are: a) the discourse of self-help that promotes
new ways of seeing and acting in the workplace, of making choices,
overcoming fear and teaching to be also is present in the UNESCO
reports; b) analysis of the self-help literature enables understanding of
xvi
this discourse as an important element in the construction of hegemony,
given that it also influences the way that people think and act in the
workplace; c) self-help contributes to the consolidation of new standards
required for the bourgeois sociability demanded of the employee in
times of neoliberalism; and d) capital has, over the centuries, made use
of self-help to achieve the conformity of a new employee.
Key words: Work and education. Self-help. Discourse. Hegemony.
xvii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 O manuscrito na parede
266
xviii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Categorias analticas propostas no modelo
tridimensional
Quadro 2 Seleo de livros de autoajuda e respectivos autores
Quadro 3 Seleo de livros de autoajuda de Samuel Smiles
Quadro 4 Seleo de livros de autoajuda de Dale Carnegie
Quadro 5 Seleo de livros de autoajuda atuais e respectivos
autores.
Quadro 6 Membros da Comisso Internacional para o
desenvolvimento da Educao
59
64
102
183
222
278
xix
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACM
ASME
CFESP
FNUAP
FINEP
IDORT
MIT
OCDE
OIT
TVI
UNESCO
UNICEF
URSS
xx
SUMRIO
1 INTRODUO
1.1 OBJETIVOS
1.2 AUTOAJUDA: UM FENMENO DE VENDA
1.3 DIVERSOS OLHARES SOBRE A AUTOAJUDA
1.4 AS PESQUISAS SOBRE AUTOAJUDA
1.5 AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
1.6 SITUANDO A PROBLEMTICA DE PESQUISA
1.7 HIPTESES
1.8 CONSIDERAES SOBRE O REFERENCIAL
TERICO-METODOLGICO
1.8.1 Pressupostos terico-metodolgicos para anlise do
discurso de autoajuda
1.8.2 Consideraes metodolgicas
1.9 ESTRUTURA DA TESE
2 AUTOAJUDA EM TEMPOS VITORIANOS: O DEVER E
A MORAL
2.1 TRABALHO EM TEMPOS VITORIANOS
2.2 VOLTANDO S ORIGENS: UM POUCO SOBRE
SAMUEL SMILES
2.3 REFORMA INDIVIDUAL PARA O PROGRESSO
SOCIAL: A DIFUSO DAS IDEIAS DE SMILES
2.4 CONHECENDO A OBRA AJUDA-TE: A GNESE DA
AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
2.5 O TRABALHO APERFEIOA O CARTER
2.5.1 O elogio ao carter
2.5.2 O exemplo o mais eficaz dos mestres: a educao
do carter
2.5.3 O carter didtico das aes exemplificadoras
2.5.3.1 As biografias como recurso pedaggico
25
29
30
33
35
41
44
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47
53
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65
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102
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109
112
xxi
2.6 AJUDA-TE E DEUS TE AJUDAR: AUTOAJUDA,
TICA PROTESTANTE E O ESPRITO DO
CAPITALISMO
2.6.1 O trabalho como caminho virtuoso
2.7 NO SOMOS SENO AQUILO QUE NS
FAZEMOS: A EDUCAO FORMAL EM SMILES
2.8 O TRABALHADOR DE CARTER EM TEMPOS
VITORIANOS
2.9 A AUTOAJUDA DE SMILES
3 AUTOAJUDA E A PRODUO DO TRABALHADORMASSA
3.1 EFEITOS DA RACIONALIZAO TAYLORISTA
3.1.1 A arte de ser produtivo
3.1.2 Do cronmetro esteira rolante
3.1.2.1 Fordismo: alm da produo
3.2 QUALIFICAO E CONTROLE DO TRABALHADOR
3.3 NO CRITIQUE, NO CONDENE, NO SE
QUEIXE: AUTOAJUDA NA FASE UREA DO
FORDISMO
3.3.1 Um modelo que se generaliza: um pouco sobre Dale
Carnegie
3.3.2 Mobilizar pessoas para um novo modo de pensar e
agir
3.3.3 Serenidade para aceitar as coisas que no posso
mudar: concepo de sociedade/mundo de Carnegie
3.3.4 Aprendemos fazendo: concepo de trabalho e
educao
3.3.5 Modelos de excelncia: a pedagogia de Carnegie
3.4 A AUTOAJUDA DE CARNEGIE
4 EM TEMPOS DE FLEXIBILIDADE ... SE NO MUDAR,
MORRERS!
4.1 CONTEXTUALIZANDO AS MUDANAS
114
122
124
137
142
145
146
152
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202
203
xxii
4.2 REQUISITOS TCNICOS E COMPORTAMENTAIS
ESPERADOS DO TRABALHADOR
4.2.1 Formao flexvel
4.3 NEOLIBERALISMO E A FLEXIBILIZAO DAS
RELAES DE TRABALHO
4.4 A PRODUO DO TRABALHADOR FLEXVEL
4.5 AS DECISES SOBRE AS ESCOLHAS SO
SOMENTES SUAS!
4.6 O DISCURSO NOS BEST SELLERS DE AUTOAJUDA:
DICAS DOS GURUS ATUAIS
4.6.1 Empregos em baixa? Adote uma atitude positiva
4.6.2 Empregabilidade em alta: seis pilares e um check-up
4.6.3 A autoajuda de Minarelli
4.6.4 Sucesso consequncia do trabalho. Quem se
mantm como est, ficar para trs!
4.6.5 A vida nos devolve o resultado da nossa
competncia
4.6.6 A resposta est a dentro de voc: a coleo de frases
de Shinyashiki
4.6.7 A autoajuda de Shinyashiki
4.6.8 Se voc no mudar, morrer
4.6.9 A coleo de frases de Spencer Johnson
4.6.10 A autoajuda de Johnson
4.7 MORAL DA HISTRIA
5 LIES DA UNESCO PARA EDUCAR O HOMEM DE
NOVO TIPO
5.1 RELATRIO APRENDER A SER
5.1.1 Edgar Faure e os membros da Comisso
5.1.2 Da estrutura textual do Relatrio Aprender a ser
5.1.3 Considerando outros elementos na construo do
discurso
5.1.4 A fora dos verbos
5.1.5 Metforas
205
207
209
215
220
222
223
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263
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269
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274
275
279
281
284
287
xxiii
5.1.6 Concepo de mundo
5.1.7 Educao para a formao de um homem de novo
tipo
5.1.8 Atitudes e valores: demandas do mundo do trabalho
ps anos 1970
5.1.9 Professor: motivador e controlador da aquisio do
saber
5.1.10 A fora do exemplo: aprendizagem pela experincia
5.2 ANLISE DO RELATRIO DELORS
5.2.1 Jacques Delors e os membros da Comisso
5.2.2 Da estrutura textual do Relatrio Delors
5.2.3 A fora dos verbos
5.2.4 Metforas e fbulas
5.2.5 Concepo de mundo
5.2.6 As demandas do mundo do trabalho para o sculo
XXI: atitudes e valores
5.2.7 Concepo de educao
5.2.8 Substituir a esperana de um emprego pela
criao de empregos:
a relao educao e trabalho
5.2.9 Professores, educao e mundo do trabalho
5.3 LIES DA UNESCO PARA APRENDER A SER
6 CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS
290
295
301
303
305
308
309
314
316
321
323
326
329
332
340
347
353
362
xxiv
25
1 INTRODUO
A proposta de estudar o discurso de autoajuda nas relaes de
trabalho constitui uma preocupao que remonta aos anos de 1990,
quando trabalhei com a organizao de eventos empresariais voltados
motivao de trabalhadores. Chamava a ateno o forte apelo que os
promotores dos eventos faziam em torno do nome de alguns conhecidos
autores da rea da gesto empresarial que a mdia denomina de gurus
da autoajuda. Era impressionante a mobilizao que tais autores
provocavam junto ao pblico ouvinte, como tambm, impactava o
grande nmero de livros que vendiam aps cada palestra. Entretanto, o
que mais despertava curiosidade era a comoo dos participantes ao
sarem daqueles eventos. Situaes dessa natureza tornaram-se
recorrentes, despertando o interesse por estudar o fenmeno da
autoajuda nas relaes de trabalho.
Ingressei no Curso de Mestrado no Programa de Ps-Graduao
em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina em 2003,
disposta a investigar a referida temtica. Este espao privilegiado de
estudos, discusso e reflexo propiciou a elaborao da dissertao
intitulada Mudar para manter: a autoajuda como a nova pedagogia do
capital, sob a orientao de Lucdio Bianchetti. (TURMINA, 2005).
Naquele estudo, buscou-se analisar os contextos de surgimento e
revalorizao da autoajuda nas relaes de trabalho e algumas
implicaes para a educao.
A partir de 1990, uma proliferao de discursos e publicaes de
diversos setores popularizou os novos requisitos educacionais dos
trabalhadores demandados pela produo flexvel. Com a reestruturao
produtiva, alteram-se no somente a base tcnica de produo como
tambm as exigncias de formao do trabalhador. Visando
acumulao, o capital tem procurado dar respostas s suas crises criando
formas mais eficazes de racionalizao, uso e controle da fora de
trabalho. Os desdobramentos desse reordenamento do processo
produtivo para as relaes de trabalho e educao podem ser
visualizados nos esforos empenhados pelos capitalistas para a
construo de um trabalhador de novo tipo. Reformas educacionais
procuram garantir que a formao escolar inclua os saberes e
competncias supostamente necessrios sobrevivncia em um mercado
de trabalho em constante mutao. Esse movimento remete observao
26
gramsciana de que, em cada estgio de seu desenvolvimento, a
sociedade forma os indivduos de que necessita para se reproduzir.
Em Americanismo e fordismo, Gramsci (1980) assinala que na
produo racionalizada ocorre um processo de valorizao do capital
que se efetiva pelos processos pedaggicos concebidos e veiculados
para garantir novas formas de organizao do trabalho com o objetivo
de manter as relaes capitalistas de produo. Isso d-se nos modos de
vida, atitudes, valores e comportamentos considerados necessrios para
a reproduo do modo de produo capitalista. A pedagogia da
hegemonia1, nos anos de fordismo e americanismo constituiu em
alargamento da cidadania poltico-social, de modo a impedir que o nvel
de conscincia e de organizao das classes dominadas ultrapassasse o
segundo momento econmico-corporativo [solidariedade] das relaes
de fora poltica. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 36). O capital
procura, em cada momento histrico, formar os indivduos necessrios
s suas demandas de valorizao.
Sob essa perspectiva, a autoajuda pode ser entendida como uma
prtica educativa que tem como horizonte a formao de uma complexa
e bem-articulada sociedade civil2, na qual o indivduo particular se
1
De acordo com Neves e SantAnna (2005, p. 27), na condio de educador, o Estado
capitalista desenvolveu e desenvolve uma pedagogia da hegemonia, com aes concretas na
aparelhagem estatal e na sociedade civil. Esse conceito, embora no tenha sido utilizado
explicitamente por Gramsci, por ele inspirado. Roberto Leher (2010), ao prefaciar Direita
para o social e esquerda para o capital: intelectuais na nova pedagogia da hegemonia no
Brasil, assinala que a sociedade civil concebida como locus do dilogo, das iniciativas
criadoras, do comunitarismo e da busca de uma vida melhor, autnoma (ou relativamente
autnoma) em relao ao Estado e ao mercado. Contudo, a participao dos chamados
excludos na sociedade civil no espontnea, dependendo das iniciativas dos aparelhos
privados de hegemonia, por meio de uma pedagogia especifica que vem sendo forjada pelo
capital: a pedagogia da hegemonia.
2
Segundo Acanda (2006, p. 160), Gramsci foi o primeiro pensador poltico a resgatar o tema
da sociedade civil do esquecimento relegado pela ideologia liberal a partir de meados do sculo
XIX. O pensador italiano no apenas utilizou o conceito de sociedade civil, mas, que, alm
disso, converteu-o elemento central de sua teoria. Interpretou-o, porm, de uma forma diferente
da tradicionalmente usada no pensamento liberal, reconstruindo seu contedo e o significado
de sua utilizao nos limites de uma reflexo crtica da sociedade. Ainda de acordo com
Acanda (2006, p. 166), a idia de sociedade civil surgiu na ideologia burguesa como
expresso do interesse dessa classe de limitar o poder de um Estado ainda no burgus e de
delimitar uma esfera de ao legtima e resguardada de sua autoconstituio como classe
enquanto sujeito social. A partir de 1848, a posio da burguesia na trama social mudou
radicalmente. Desse modo, se o conceito de sociedade civil fora uma palavra de ordem da
luta da burguesia no perodo em que defendia seu direito de se associar para resguardar seu
espao e ao e de troca econmicas [...], agora quando se tentava impedir o acesso a esses
espaos de associao dos grupos sociais opositores, sociedade civil tornou-se um tema
27
governe por si sem que, por isso, esse autogoverno entre em conflito
com a sociedade poltica, tornando-se, ao contrrio, sua continuao, seu
complemento orgnico. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 26). O
Estado capitalista, sob a hegemonia burguesa, vem disseminando a
necessidade de uma formao adaptada a uma civilizao que precisa
construir e fortalecer novos valores e saberes diante das mudanas
qualitativas na forma de organizao do trabalho, o que implica
desenvolvimento de uma nova pedagogia da hegemonia3. (NEVES;
SANTANNA, 2005). A educao pblica desempenha funo
estratgica na formao de um homem adequado acumulao flexvel
do capital. Em tempos de neoliberalismo, a nova pedagogia da
hegemonia visa redefinio do padro de politizao fordista.
Nesse sentido, poder-se-ia pensar que a divulgao em massa dos
princpios da autoajuda constitui uma das formas de disciplinamento,
uma estratgia do capital para educar os indivduos para o consenso,
para aceitao e adaptao s mudanas. Difunde-se a ideia de que os
excludos socialmente deveriam ser empoderados para auto-prover
sua empregabilidade e insero. A incluso dependeria de aes
especficas, de uma mobilizao pela fora de vontade, desenvolvendo
comportamentos almejados pelo mercado.
O discurso de autoajuda nas relaes de trabalho tem como
propsito moldar o indivduo, torn-lo competente visando o mximo de
eficincia, eficcia e produtividade. Os livros de autoajuda que enchem
as prateleiras de bancas e livrarias potencializam a reproduo e a
manuteno do capital, procurando incutir a responsabilizao no
trabalhador. Assim, os autores desse gnero espalham receitas, induzem
incmodo para essa mesma burguesia. (ACANDA, 2006, p. 167). Para Carlos Nelson
Coutinho (1999, p. 121), o conceito de sociedade civil se configura como portadora material
da figura social da hegemonia, como esfera de mediao entre a infra-estrutura econmica e o
Estado em sentido restrito. Assim, para Gramsci (1979, p. 11), sociedade civil o conjunto
de organismos chamados comumente de privados [...] que correspondem funo de
hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e quela de domnio direto
ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurdico. Trata-se ento, de um
conjunto de instituies nas quais elaboram as concepes de mundo pelas quais a sociedade
se representa a si mesma (suas lutas e aspiraes), onde se organizam os grupos sociais e se
realiza a direo poltica e cultural da sociedade. (SCHLESENER, 2001, p. 18).
3
Na formulao de Neves e SantAnna (2005, p. 35), a nova pedagogia da hegemonia atua no
sentido de restringir o nvel de conscincia poltica coletiva dos organismos da classe
trabalhadora que ainda atuam no nvel tico-poltico para o nvel econmico-corporativo. Mais
precisamente, a nova pedagogia da hegemonia estimula a pequena poltica em detrimento da
grande poltica, propiciando, contraditoriamente, classe trabalhadora a realizao da grande
poltica da conservao.
28
padres de pensamento, inculcam modelos, visam construir novas regras
de sociabilidade, de trabalho, induzem o indivduo a incorporar novos
valores. Na anlise de Chagas (2001, p. 34), a literatura de autoajuda
prope novos modos de estar no mundo, de pensar, de sentir e agir,
promovendo uma idealizao que vem intensificar a desintegrao da
vida comunitria medida que refora o individualismo. Alguns
autores insistem na linha do empoderamento, do esfora-te e
conseguirs.
Nessa perspectiva, disseminam-se exemplos de pessoas e
experincias exitosas, edificantes, exaltando ideais de competncia,
sucesso, empregabilidade, empreendedorismo que so construdos e
apresentados como modelos prticos de ao individual. A autoajuda
vale-se de exemplos e situaes transpostos de contextos muito
diversos. Solues de problemas do mundo dos esportes, por exemplo,
so mecanicamente transferidas para a ambincia organizacional.
Recomendaes padronizadas so traadas para trabalhadores,
desempregados, executivos, empresrios, professores, pais, empresas,
escolas e pessoas em crise, ou seja, servem para as mais variadas
situaes. Mas o que o pblico-alvo dos livros de autoajuda tem em
comum? Insatisfao com a situao atual, a necessidade de superar
obstculos, a busca de uma receita aplicvel para sanar diferentes males
com os quais preciso lidar.
Tambm recorrente nessa literatura a insistncia na necessidade
de adaptabilidade mudana. Esta tratada como ao individual. A
mudana de que se fala uma mudana de comportamento frente nova
realidade das relaes de trabalho reduo de postos de trabalho,
competio, obsolescncia, descartabilidade. Adaptar-se permitir ao
trabalhador manejar com maior habilidade as instveis condies sociais
e profissionais que desafiam a formao profissional em tempos de
reestruturao produtiva.
Desse modo, em um perodo de intensas e aceleradas mudanas
sociais, polticas, econmicas, culturais e profissionais, a formao de
um trabalhador de novo tipo ganha popularidade. No lugar de modelos
de trabalhadores massificados da Administrao Cientfica ou do
indivduo reativo e modelvel, como prega a Escola de Relaes
Humanas, o discurso na atualidade fala de um trabalhador que incorpore
ideais propalados pela autoajuda: flexibilidade, autonomia, talento,
adaptabilidade, criatividade, capacidade de trabalhar em equipe, aceitar
mudanas, empreender, entre outros. O trabalhador de novo tipo
29
almejado em tempos de neoliberalismo resiliente e ajustvel, o que
justifica o desenvolvimento de uma concepo de mundo to
consensual quanto seja possvel, tendo em vista as necessidades de
valorizao do capital. (KUENZER, 2002b, p. 82). A despeito de tais
nfases, saber agir e reagir com pertinncia; saber combinar os recursos
e mobiliz-los num contexto; saber transferir, saber aprender a aprender;
saber se engajar (RAMOS, 2001, p. 250) so atributos veiculados para
a formao de um trabalhador minimamente competente necessrio
reproduo do capitalismo contemporneo.
Novos valores, atitudes e habilidades so colocados em
circulao por intermdio das publicaes de autoajuda, cujo discurso
ajuda na adeso popular ao projeto em curso de formao de um
trabalhador de novo tipo, contribuindo para o processo de difuso de
novas concepes de mundo. (GRAMSCI, 1984).
Diante disso, o discurso de autoajuda torna-se objeto de ateno e
anlise, a partir do qual levantaram-se alguns questionamentos: que
concepes de mundo, valores, condutas, os escritores de autoajuda
divulgam? De que forma a autoajuda contribui para a consolidao de
novos padres necessrios sociabilidade burguesa exigida para o
trabalhador no sculo XXI?
1.1 OBJETIVOS
Como objetivo geral, pretende-se investigar o carter ideolgico
da autoajuda na formao de um trabalhador de novo tipo, tendo em
vista explicar o papel do discurso da autoajuda para a construo da
hegemonia. Para tanto, definiram-se os objetivos especficos: estudar os
princpios constitutivos do discurso da autoajuda voltados ao trabalho
em trs momentos distintos: gnese, no sculo XIX, sob os impactos da
revoluo industrial; primeira metade do sculo XX, com o fordismo, e
dcadas finais do sculo XX e alvorecer do XXI; identificar quais os
traos caractersticos do homem de novo tipo demandado pelo
capitalismo nesses perodos histricos e as estratgias de divulgao de
tais caractersticas por meio de duas fontes: os discursos de autoajuda e
os relatrios da UNESCO. Procurou-se analisar os elementos centrais
das recomendaes dos gurus da autoajuda e os princpios para
aprender a ser um homem de novo tipo requerido pelo capitalismo nos
diferentes perodos histricos. Buscando evidenciar que este processo
ocorre por fora, mas tambm por dentro da escola, procurou-se discutir a
30
incorporao dos princpios de autoajuda nos Relatrios de educao
Faure e Delors patrocinados pela UNESCO e difundidos mundialmente
para reformar a educao.
1.2 AUTOAJUDA: UM FENMENO DE VENDA
Na ltima dcada do sculo XX, a autoajuda foi colocada em
evidncia. A proliferao de discursos exaltando o poder do indivduo
na resoluo de seus problemas foi enfatizada em vrias reas como
educao, sade, relaes de trabalho, relaes pessoais, entre outras.
No contexto da acumulao flexvel, as teorias gerenciais
invadiram no s o mundo dos negcios, mas tambm as vrias esferas
da vida social. Assiste-se ao nascimento do que ficou conhecido como
circuito dos gurus da administrao (MICKLETHWAIT;
WOOLDRIDGE, 1998, p. xi), responsvel pela difuso da indstria da
autoajuda. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 1998, p. xii). Os
administradores passaram a produzir receiturios, disseminar
aconselhamentos que vo desde a organizao da mesa de trabalho
reavaliao da vida amorosa. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE,
1998, XII). Profissionais com formaes em outras reas tambm se
tornaram autoridades na rea das relaes de trabalho, determinando
como o indivduo deve conduzir sua vida profissional, a exemplo de
Shinyashiki e Lair Ribeiro, ambos mdicos de formao.
A retrica presente nesses manuais sempre a mesma: afirma-se
que o mundo do trabalho mudou, que as empresas tambm precisam
mudar, e para que isso se viabilize, o trabalhador precisa mudar. Tais
mudanas so impulsionadas por dois sentimentos muito evidenciados
nos livros de autoajuda: medo e ambio. Medo de perder o emprego e
ambio para se tornar um profissional de sucesso. Nessa literatura
constri-se um modelo de profissional ideal, sem medos para ousar,
criar, ser ativo, pr-ativo. Mostram-se caminhos que o indivduo deve
trilhar para adquirir ou reforar essas caractersticas.
Diante disso, pode-se entender por que a partir dos anos de
1990 que a autoajuda se tornou um fenmeno de vendas. Maestri, em
entrevista ao vice-presidente da Cmara Brasileira do Livro, assinala
que
as vendas de livros de auto-ajuda saltaram de 1,1
para 2,1 milhes de exemplares, em 97-98. A
31
impressionante expanso ocorreu apesar da queda
de 551 para 527 ttulos lanados. No Brasil, a
venda da auto-ajuda iniciou-se em 87, deu um
salto nos anos 90 - com o confisco de Collor de
Melo - e estabilizou-se com o Plano Real. Em
94, 107 ttulos venderam 410 mil livros. Em 96,
foram lanados 268 ttulos e vendidos 1,4 milho
de exemplares. O pico de vendas ocorreu em 98.
Para o Sr. Grossi, a exploso da auto-ajuda d-se
em detrimento da "literatura tradicional" e a
explicao de seu sucesso simples: [...] em
momentos de crise, o leitor pra um pouco de
sonhar, pe os ps no cho e procura as obras
que vo ensinar-lhe a melhorar sua vida. Se
discutvel que tais obras resolvam as dificuldades
dos leitores, indiscutvel que solucionam as do
senhor Grossi, diretor de marketing da Best Seller.
Atualmente, 50% dos lanamentos da editora so
de auto-ajuda, 30% administrativos e 20%
romances femininos. (MAESTRI, 2003, p. 3).
32
para as relaes de trabalho vende mais do que autoajuda voltada a vida
amorosa, por exemplo. A falta de dados mais precisos no tira o mrito
do crescimento de venda desse gnero de literatura. Tanto assim, que a
profissionalizao da autoajuda ganhou reforo em 2004 com a criao
do Clube do Palestrante4, no qual os profissionais de diversas reas
recebiam formao apontando a importncia desse gnero no mercado
editorial. Naquele ano, no site do Clube5, definia-se como misso da
organizao:
Ser o centro de informaes, produtos, servios e
integrao entre palestrantes, treinadores,
consultores e as pessoas que fazem qualquer tipo
de apresentao em seu ambiente profissional.
Realizar cursos, treinamentos, workshops,
seminrios, congressos e demais eventos para a
capacitao desse pblico e para a divulgao de
novos produtos, servios e profissionais que
possam complementar seus conhecimentos e
atuao no mercado de trabalho. (CLUBE DO
PALESTRANTE, 2004 TURMINA, 2005, p. 37).
33
pragmticos, que se pode supor, fazem com que o discurso de autoajuda
nas relaes de trabalho seja to atraente e palatvel aos consumidores7.
Outro aspecto que atrai o leitor para este tipo de literatura sua
situao de instabilidade e insegurana, circunstncia que ajuda a
explicar os recordes de vendas de conselhos aos trabalhadores sobre
como proceder diante da complexidade das relaes de trabalho.
Propaga-se um conjunto de receitas que visam ativar o potencial interior
de cada um.
As publicaes de autoajuda disseminam uma viso de mundo,
uma interpretao para a crise, para diversos tipos de problemas e
receitas para super-los. Esse movimento mgico capaz de levar do
fracasso ao sucesso centrado no indivduo, em sua perseverana, fora
de vontade e capacidade de desenvolver valores, atitudes, saberes e
habilidades necessrias na atualidade. Tal discurso veicula, tambm,
experincias bem sucedidas, histrias de sucesso, trajetrias exitosas
que ressaltam as caractersticas e os comportamentos almejados do
trabalhador de novo tipo, flexvel, eficiente, inovador, empreendedor,
autnomo e adaptvel.
1.3 DIVERSOS OLHARES SOBRE A AUTOAJUDA
A expresso autoajuda usada para categorizar as proposies
que ensinam o indivduo a desenvolver capacidades objetivas e
subjetivas relacionadas ao sucesso nos negcios, relacionamentos,
educao, sade, entre outros. Contudo, difcil precisar uma definio
para este conceito que, na atualidade, abarca uma diversidade de
significados, mas uma caracterstica que a autoajuda composta de
aconselhamentos, um guia de receitas, tipologias, orientaes, normas
de conduta para auxiliar o indivduo a resolver problemas em uma
determinada rea.
Na rede mundial de computadores, a autoajuda um dos temas
com maior nmero de sites8.
qualquer clculo), as possibilidades objetivas... (BOURDIEU, 1999, p. 284-285). No que se
refere ao discurso de autoajuda, a noo de senso prtico permite entender que, ao utilizar
exemplos relacionados aos casos de sucesso, o leitor consegue trazer para si, para a sua vida,
uma situao que foi vivida por outros.
7
Tendo cincia da ampla variedade de manuais destinados as mais diversas reas, neste estudo,
a ateno para livros de autoajuda voltados s relaes de trabalho com orientaes para o
desemprego, insero e reinsero do trabalhador no mundo do trabalho.
34
A noo de ajudar a si prprio refora a ideia de que por
caminhos individuais possvel encontrar a soluo dos problemas.
Assim, dependeria da fora de vontade e do empenho pessoal a
promoo do auxlio prprio. De acordo com Corso (1994 apud Chagas,
2001, p. 21), essa literatura prega a sada pelo sucesso individual e usa
como parmetro a performance e a insero efetiva do sujeito na
circulao pelos valores sociais estabelecidos.
A literatura de autoajuda pode ser caracterizada como um
fenmeno recente resultante da convergncia de processos histricos
complexos, dos quais no pode ser separado sua formao e seu sentido
em nossa sociedade, conforme ressalta Rdiger (1996, p. 11).
Dessa maneira, a autoajuda constitui um arcabouo de
aconselhamentos que, com o passar dos sculos, renovou seu repertrio
diante das necessidades de os indivduos mobilizarem-se s mudanas
nos processos de trabalho e na organizao da vida em sociedade.
Parece claro o esforo desmesurado por parte da indstria da autoajuda
de pr-fabricar caminhos certos, passos retos, subidas garantidas,
procedimentos infalveis, esquemas irrecusveis ao peso de muita
retrica, mas, sobretudo sob o apelo astuto de fundamentos cientficos.
(DEMO, 2001c, p. 69).
Nesse sentido, a literatura de autoajuda reconhecida como um
conjunto de pregaes normativas que fornece aconselhamentos e
formulaes uniformes para situaes heterogneas. A proposta presente
no discurso de autoajuda a promoo de um homem que coopera e se
ajuda, desde que consuma os manuais e execute as orientaes
prescritas.
Porm, preciso lembrar que as mudanas sociais decorrentes da
modernidade na passagem do teocentrismo para o antropocentrismo -,
evidenciaram o poder de ao e transformao dos homens por meio de
suas aes, atitudes e comportamentos. Tal condio vem sendo
acentuada com a nfase nas solues individuais propostas,
principalmente, com o neoliberalismo o que tem despertado a ateno
de alguns autores que comeam a olhar para a autoajuda no apenas
como uma prtica individual isolada, mas como uma prtica de
interveno nas relaes sociais. Este um fenmeno global que tem
mobilizado as pessoas de tal forma que recebeu ateno de
8
35
pesquisadores de vrias reas do conhecimento. Ao configurar-se em um
sistema de aes, o fenmeno da autoajuda constitui campo de anlise
para a Psicologia/Psicanlise com as preocupaes voltadas
subjetividade e o eu; na Filosofia com o movimento do individualismo;
na Economia e Administrao com a nova gesto do trabalho e
demandas de trabalhadores que atendam s necessidades do capitalismo
em tempos de reestruturao produtiva. Ainda, na Lingustica com
estudos que enfatizam questes relativas ao uso das escolhas lingusticas
para estabelecer conexes entre escritor-leitor, nas Cincias Sociais com
a investida em pesquisas sobre a intimidade ou subjetividade das
pessoas .(DEMO, 2001a). Enfim, assiste-se a uma exploso desse tipo
de literatura sobre a vida psquica e social das pessoas cujo objetivo
ltimo interferir, de alguma forma, na conduta humana.
1.4 AS PESQUISAS SOBRE AUTOAJUDA
Dos estudos que visam cercar e compreender a autoajuda,
destaca-se o trabalho de Rdiger (1996), autor de Literatura de autoajuda e individualismo. A proposta central do livro reconstituir de
maneira tpico-ideal as condies histrico-universais que presidiram
formao dessas prticas e as programaes de conduta que elas tm
difundido socialmente. (RDIGER, 1996, p. 9). Analisando um
conjunto dessas obras, Rdiger busca compreender o significado dessa
espcie de textos na montagem de nossa civilizao. A tarefa
empreendida em sua pesquisa incidiu na anlise de apenas uma das
dimenses constitutivas da modernidade: o movimento combinado de
abstrao social do sujeito e desenvolvimento do individualismo.
(RDIGER, 1996, p. 9).
A literatura de autoajuda caracterizada como um conjunto de
relatos, de manuais, de textos, s vezes multimdia que nos ensina como
conduzir a vida, sobrepujar a depresso, manejar com pessoas, exercitar
a sexualidade, parar de fumar, prosperar financeiramente, etc.
(RDIGER, 1996, p. 9). O autor resume os propsitos dessa literatura,
afirmando tratar-se de um
conjunto textualmente mediado de prticas atravs
das quais as pessoas procuram descobrir, cultivar
e empregar seus supostos recursos interiores e
transformar sua subjetividade, visando a conseguir
36
uma determinada posio individual supra ou
intramundana. (RDIGER, 1996, p. 11).
37
Dialtica da Felicidade: insolvel busca de soluo (2001b) e Dialtica
da Felicidade: felicidade possvel (2001c), a autoajuda tratada como
parte de um movimento da indstria cultural que transforma emoo em
mercadoria. A literatura de autoajuda analisada como uma entre tantas
outras estratgias para alcanar a felicidade. Para ele, esse um discurso
sem fundamentao que impressiona pela extrema proliferao. O
autor alerta que o
uso do termo 'auto-ajuda' enganoso, porque, em
vez de apontar para a possibilidade de cada pessoa
reconstruir seu caminho, reproduz atrelamentos a
frmulas feitas, geralmente baratas. A auto-ajuda
sinaliza, assim, mais um estilo de ajuda
'automtica' do que ajuda a si mesmo. O trao
mais forte desse tipo de literatura parece ser a
sagacidade com que autores se aproveitam da
fragilidade de seres humanos destroados pelo
sofrimento e desespero, usando para tanto
instrumentao cientfica disponvel, seja na linha
de possveis ajudas, seja na linha da produo de
armadilhas que se utilizam da instrumentao
cientfica. (DEMO, 2001a, p. 13).
10
Roberto Shinyashiki repete frequentemente, em suas palestras, que dentro de cada homem
existe uma linda obra de arte.
38
Um cardpio de ttulos de autoajuda est disposio nas
prateleiras de livrarias11 oferecendo prescries para atender vrios
aspectos da conduta humana. Essa disponibilidade despertou a ateno
de Tomaz Tadeu da Silva (2001), que percebe nesse excesso de
frmulas uma tentativa de colonizao da subjetividade. A conduta
humana minuciosamente governada, controlada, dirigida. (SILVA,
2001, p. 43). O autor conta que passou a pensar a relao entre educao
e pedagogia com a autoajuda. Em seu artigo Pedagogia e auto-ajuda: o
que sua auto-estima tem a ver com poder?, publicado em A educao
em tempos de globalizao, o autor persegue a regularidade nesses
discursos. A concluso de que tanto o discurso da educao e da
pedagogia quanto o da autoajuda possuem a mesma meta: Os dois tipos
de interveno tm como objetivo nos transformar em um determinado
tipo de pessoa. (SILVA, 2001, p. 44). A autoajuda, nesse sentido,
vista pelo autor, como uma forma de interveno na subjetividade.
(SILVA, 2001, p. 43).
A retrica presente no discurso de autoajuda tambm chamou a
ateno de Anna Flora Brunelli que, em fevereiro de 2004, defendeu sua
tese de doutorado intitulada O sucesso est em suas mos: anlise do
discurso de auto-ajuda. Segundo a autora, este discurso ganhou seus
contornos afirmando que o segredo para que qualquer um consiga
melhorar de vida, alcanar o sucesso, ganhar muito dinheiro, etc. est na
crena incondicional na realizao dos sonhos, do projeto de vida, dos
desejos etc. Assim, quem acredita que vai conseguir consegue, e quem
duvida no consegue. (BRUNELLI, 2004, p. 45). Esta particular
pedagogia sustenta que o indivduo capaz de desencadear, de
promover as mudanas necessrias em sua vida, j que se trata apenas
de uma questo de f, de crena absoluta e, essencialmente, de jamais
duvidar do poder que se tem de mudar a realidade. (BRUNELLI, 2004,
p. 45). Se a aposta na/da autoajuda centra-se na elevao da autoestima
das pessoas, parece proposital que haja certa omisso de aspectos
negativos ou de situaes reais que possam inviabilizar o poder
mobilizador de aes desse tipo de discurso. Ainda de acordo com
Brunelli (2004, p. 19), o ethos do discurso de auto-ajuda, alm de ser o
ethos do homem focado, tambm o do homem persistente que no
desanima diante dos problemas da vida. Ao contrrio, ele os considera,
11
39
numa atitude que revela todo o seu otimismo, como oportunidades de
crescimento.
Heidi Marie Rimke (2000), em um artigo publicado na Cultural
Studies intitulado Governing citizens through self-help literature,
desenvolve sua anlise a partir da Teoria Social, pautando-se numa
perspectiva foucaultiana em que explora o movimento da literatura de
autoajuda contempornea destacando-a como uma estratgia poltica de
governo dos cidados. Essa literatura se converteria em uma forma do
recrutamento da subjetividade do indivduo para que este se desenvolva,
se autoaperfeioe e exera uma autonomia individual. Apropriando-se
do liberalismo democrtico e do neoliberalismo, como uma maneira de
ver o mundo individual e social, a auto-ajuda promove a idia que um
bom cidado cuida de si prprio ou de si prpria para evitar ou negar as
relaes sociais. (RIMKE, 2000, p. 68, traduo nossa). Na prtica, a
autoajuda resulta no gerenciamento da populao, facilitando o seu
controle, reduzindo a autonomia individual, ao invs de aument-la,
conforme exalta tal discurso. A autora diz ainda que a autoajuda uma
atividade que se caracteriza pelo voluntarismo e pela atitude
individualista.
Em 2005, Pedro Demo, ainda s voltas com a discusso sobre o
fenmeno da autoajuda, publicou Autoajuda: uma sociologia da
ingenuidade como condio humana. Nesse livro, o autor se prope
discutir esta relao dialtica, para elucidar se vivel precisar do
outro sem dele se tornar subserviente. O irnico que o conceito de
autoajuda, de si, aponta para a perspectiva correta ajudar-se, em vez de
ser ajudado. (DEMO, 2005, p. 11). Analisa, desse modo, o lado
problemtico da autoajuda, em especial na perspectiva da sociologia,
no s para afastar a solidariedade como efeito de poder, mas
principalmente para oferecer o que poderia ser uma teoria crtica da
autoajuda. (DEMO, 2005, p. 11).
Carla Martelli (2006), em Autoajuda e gesto de negcios: uma
parceria de sucesso, discute como se combina a dura realidade da gesto
empresarial com o mundo aparentemente adocicado da literatura de
autoajuda. Em sua anlise, mostra que a exploso do fenmeno da
autoajuda no mundo dos negcios pode ser explicada a partir de quatro
eixos principais:
1) a reflexividade radicalizada na sociedade
contempornea abre espao para a proliferao de
40
receitas e modelos de auto-ajuda; 2) os sistemas
de auto-ajuda tm uma funo teraputica
fundamental numa poca que vive os dilemas do
sofrimento organizacional; 3) os discursos de
auto-ajuda se constroem na confluncia de vrias
formas de racionalidade, respondendo a uma
tendncia especfica de nosso tempo; 4) os
discursos de auto-ajuda padronizam uma forma de
pensar ao construrem ideais de competncia,
eficincia, sucesso, felicidade e ao consolidarem
modelos de natureza, homem e sociedade que
invadem e penetram todas as esferas da vida
organizada (MARTELLI, 2006, p. 18).
41
em reflexes sobre a sociedade de consumo, sobre as matrizes da
educao brasileira, sobre a histria do livro e as novas maneiras de
apresentao do livro como mercadoria, revestidas de uma aura de valor
absoluto. (ROMO, 2009, p. vi). Para esse estudo o autor investigou
um total de 20 obras de cinco autores que se "especializaram" em
escrever livros endereados ao universo docente. Romo conclui que as
frmulas prontas de oferta da felicidade, os manuais de sucesso, as
cartilhas de como dar aula e administrar conflitos indicam o quanto
preciso refletir sobre o que julgamos ser uma viso estreita do mundo
baseada na conscincia ingnua e no senso comum que v a educao
como autnoma. (ROMO, 2009, p. vi).
Da reviso da literatura crtica a respeito da literatura de
autoajuda, pode-se afirmar que esse discurso visa legitimar uma
hierarquia de valores disseminando-os amplamente, de tal forma, que as
receitas, manuais, palestras tornaram-se os meios de difuso de
determinada concepo de mundo.
1.5 AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
A autoajuda aplicada s relaes de trabalho, com tais
caractersticas, extensivamente disseminada nos anos 90 do sculo
XX, considerado perodo do boom de publicaes de materiais do
gnero com origem no sculo XIX, mais precisamente nos meados dos
anos de 1840, perodo no qual que Samuel Smiles12 (1812 1904) lana
as bases do que ficou conhecido como autoajuda para trabalhadores. No
sculo XIX, a autoajuda visava construir um tipo de trabalhador com
valores fundamentados na formao do carter perante uma nova
ordenao produtiva. Diante da afirmao dos preceitos liberais, Smiles
disseminava os valores necessrios quela poca em seu livro Self-help.
Apenas nos dois primeiros anos, foi registrada a venda de 35.000 cpias
e, em menos de 40 anos, mais de 280.000 exemplares haviam sido
vendidos somente na Inglaterra. Nos Estados Unidos, o livro tornou-se
referncia em bibliotecas de muitas escolas, inclusive no Brasil, segundo
pesquisa de Bastos (2000). Self-Help foi publicado e traduzido para o
holands, alemo, sueco, francs, portugus, croata, russo, italiano,
espanhol, turco, dinamarqus, chins, siams, rabe, japons e alguns
12
Em 1859, Samuel Smiles publica Self-Help (Ajuda-te). Vale registrar nosso agradecimento
ao Prof. Dr. Francisco Rdiger, que viabilizou o acesso referida publicao. Esta passar a
ser citada no presente trabalho pelo ano de publicao ao qual se tem acesso, 1893.
42
dialetos indianos, o que evidencia a disseminao dos preceitos da
autoajuda de Smiles pelo mundo.
Em artigo Leituras da ilustrao brasileira: Samuel Smiles
(1812-1904), Maria Helena Cmara Bastos (2000) mostra como a
autoajuda de Smiles influenciou a intelectualidade brasileira no sculo
XIX. Em sua pesquisa, a autora descobriu que Smiles um dos
pensadores que a elite ilustrada brasileira leu nesse sculo. O tipo
dominante da ilustrao brasileira era o tipo liberal.
A histria da ilustrao brasileira chega a
confundir-se com a histria do liberalismo
nacional, em que pesem as mltiplas e diversas
orientaes, com seu esforo civilizador, com o
seu trabalho para fazer do Brasil um pas, no s
cronolgica, mas realmente uma nao do sculo
XIX. (BARROS, 1959 apud BASTOS, 2000, p.
118).
43
elite ilustrada brasileira, para a ideologia do sucesso individual, como
fruto da persistncia, do esforo e do trabalho. (BASTOS, 2000, p.
133).
As ideias de Smiles tambm tiveram forte influncia no oriente,
conforme afirma Jeffrey Liker, professor da Universidade de Michigan,
autor de O modelo Toyota: 14 princpios de gesto do maior fabricante
do mundo (2005). No livro, o autor traa a histria da famlia Toyoda e
do sistema de produo. Com a leitura do livro, o que surpreendeu? As
ideias de Smiles tambm exerceram influncia na trajetria de Sakichi
Toyoda. Toyada constituiu uma trajetria como funileiro e inventor que,
ao final, resultaram em teares automticos altamente sofisticados,
conhecidos como as prolas Mikimoto e os violinos Suzuki. (LIKER,
2005, p. 37). Dentre as invenes de Toyada, havia um mecanismo
especial para interromper o funcionamento de um tear toda vez que o fio
se partisse, uma inveno que partiu para um sistema mais amplo que
se tornou um dos pilares do Sistema Toyota de Produo, chamado
automao13 (automao com um toque humano). (LIKER, 2005, p.
37). Toyada era engenheiro e, por seus feitos, ficou conhecido como o
Rei dos Inventores no Japo. De acordo com Liker (2005, p. 37), a
maior contribuio de Toyoda, foi sua filosofia e abordagem de
trabalho, baseadas no zelo pela melhoria contnua que foram basilares
para o desenvolvimento da Toyota.
Eis aqui um aspecto importante: interessante que essa
filosofia, basicamente o Modelo Toyota, tenha sido significativamente
influenciada pela leitura de um livro de Samuel Smiles publicado pela
primeira vez na Inglaterra em 1859, intitulado Self-Help14. Por que
Smiles exerceu em Toyoda tal influncia? O livro prega as virtudes do
trabalho sistemtico, do autodesenvolvimento, da economia. Em SelfHelp, provavelmente encontrou semelhanas com a construo de sua
trajetria de invenes, j que o livro composto com ilustraes de
fragmentos de histrias de grandes inventores da indstria, com
destaque a James Watt, com o seu motor a vapor. Com o excerto
biogrfico de Watt entre outros inventores, Smiles destaca que no
13
Essencialmente, de acordo com Liker (2005, p. 37), automao significa acrscimo de
qualidade enquanto se produz o material ou constatao de erro. Refere-se tambm criao
de operaes de equipamentos para que os funcionrios no fiquem amarrados s mquinas, e
sim livres para desempenhar tarefas que agregam valor ao produto.
14
O livro inspirou tanto Toyoda que uma cpia da obra est exposta em um museu instalado
em sua terra natal [Kosai, Japo] (LIKER, 2005, p. 37).
44
provinham de um dom natural, mas de muito esforo, trabalho duro, da
perseverana e da disciplina. Essas eram exatamente as caractersticas
demonstradas por Sakichi Toyoda ao fazer seus teares funcionar com
motores a vapor. (LIKER, 2005, p. 38).
No incio do sculo XX, com as transformaes da base tcnica,
propagao dos princpios tayloristas de administrao e,
posteriormente, do fordismo, os processos de industrializao,
urbanizao, expanso da escola pblica e emprego coadunavam-se para
o controle e disciplinamento dos trabalhadores, como mostrou Gramsci.
Naquele contexto, a literatura de autoajuda voltou-se aos homens de
negcios. A crise de 1929, fechamento de fbricas, desemprego no
contexto entre guerras e avano do comunismo colocaram em cheque o
projeto societrio capitalista. Seguindo o entendimento de Hobsbawm
(1995), a Primeira Guerra Mundial assinalou o colapso da civilizao
ocidental do sculo XIX. As crises polticas e econmicas que o
capitalismo enfrentava no final do sculo XX e o impacto da
Revoluo de Outubro exigiam do capital uma resposta no s a nvel
do modo de acumulao e de gesto da fora de trabalho, mas tambm a
nvel da hegemonia sobre a sociedade. (VARGAS, 1985, p. 157). No
discurso de autoajuda da primeira metade do sculo XX, enfatiza-se o
conhecimento til, disciplina, aceitao e conformao. Aps a crise de
1970, a reestruturao das indstrias, do Estado, no contexto de
mundializao do capital, e a implantao das polticas neoliberais
impactam os mercados e as relaes de trabalho, formando as bases de
um novo bloco histrico.
A partir da dcada de 1990, a autoajuda refloresce e o discurso
dos autores atuais visa configurar um trabalhador de novo tipo solicitado
pela nova gesto do trabalho, administrao flexvel, tambm calcado
nos casos exemplares, nas biografias de empresrios de sucesso, homens
que reorganizaram empresas consideradas em crise.
1.6 SITUANDO A PROBLEMTICA DA PESQUISA
Conforme lembra Sennett (2006, p. 168), sob a gide da
mudana, as pessoas [...] precisam de uma ncora mental e
emocional; precisam de valores que as ajudem a entender se as
mudanas no trabalho [...] valem a pena. nesse sentido que se pode
apreender a autoajuda como um discurso que contribui na promoo
desses valores, que institui modos de viver e comportar-se no trabalho,
45
reforando as teses da adaptao, adequao, aceitao ideia de
mudana.
A autoajuda, assim compreendida, configura-se num discurso que
pretende formar um homem com caractersticas que atendam s
demandas do capital, propagando receitas de sucesso, induzindo a uma
iluso que promete promover a perfeio humana, mas que s se
concretiza se o indivduo construir uma hierarquia de valores os quais
tendem a fornecer os meios por excelncia de atualizao e formao.
Visa modificaes nos modos de pensar, nas crenas, nas opinies,
difundindo e ativando novos comportamentos a partir de uma
elaborao de indivduos singulares e no fruto de vontade e
pensamentos coletivos. (GRAMSCI, 2004).
Sob esse ponto de vista, a autoajuda ensina jeitos de ser no
trabalho para que o indivduo aprenda a ser um trabalhador de novo
tipo, exigncia da nova reordenao do capitalismo em tempos de
reestruturao produtiva. Esse ensinar a ser se d fora do ambiente
escolar, no caso do discurso de autoajuda, como tambm veiculado
dentro da escola. Assim, partindo do pressuposto gramsciano de que
toda relao de hegemonia necessariamente uma relao
pedaggica, prope-se discutir nesta pesquisa a nfase atribuda ao
aprender a ser presente no apenas na literatura de autoajuda, mas
tambm em dois importantes relatrios da UNESCO: o Relatrio da
Comisso Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao,
coordenado por Edgar Faure, em 1972, e o Relatrio da Comisso
Internacional sobre Educao para o sculo XXI, coordenado por
Jacques Delors, em 1996. Com isso, pretende-se evidenciar como as
diretrizes para a educao se alimentam, se nutrem dos princpios de
autoajuda para o trabalho percebendo aquilo que se conserva nos
discursos da UNESCO.
importante apontar que os autores de autoajuda disseminam
orientaes de como ser e o que fazer para alcanar sucesso profissional,
auferir riquezas, reconhecimento, status, mobilidade social, entre outras.
A sistematizao dessas recomendaes permite delinear um trabalhador
que possui as competncias atitudinais e um sistema de valores
esperados pelas empresas no capitalismo contemporneo.
Cumpre observar como as recomendaes encontradas nos
documentos para empresrios e trabalhadores do setor produtivo
tambm so reproduzidas nos documentos para professores e estudantes
46
no campo educacional. Estes modos de ser, caractersticas e atributos,
carteira de competncias, so discutidos no campo educacional, em
todos os nveis de ensino.
1.7 HIPTESES
A reviso de literatura empreendida, somada anlise dos livros
de autoajuda, tende a indicar que, dentre as estratgias do capital para
educar procurando construir o consenso das classes em torno de um
projeto social neste incio do sculo XXI, est difuso do iderio da
autoajuda na medida em que contribui para a (con)formao de um
indivduo que busca sadas solitrias para ter sucesso, gerindo
eficazmente seu desenvolvimento profissional, responsabilizando-se
individualmente pelos xitos e fracassos.
Em suma, as seguintes hipteses orientam este trabalho:
a) O discurso o veculo da ideologia (FAIRCLOUGH, 2001), difunde
concepes de mundo, de homem, de sociedade. O discurso de
autoajuda em suas diferentes formulaes e momentos histricos
dissemina uma forma de interpretao da realidade.
b) A ampla difuso do discurso de autoajuda uma das estratgias para
a construo da nova Pedagogia da hegemonia com vistas a formar um
homem de novo tipo na medida em que contribui para a rpida
disseminao de novas atitudes, comportamentos e condutas necessrios
sociabilidade capitalista obtidos no apenas pela coero, mas tambm
pelo consentimento.
c) No contexto do capitalismo contemporneo, preceitos da literatura de
autoajuda deram o tom dos discursos educacionais da virada do sculo,
remetendo noo de trabalhador eficiente, cidado pr-ativo e
empreendedor necessrio sociedade tida como harmnica, solidria,
que constri um desenvolvimento sustentvel a partir da coeso social.
d) O discurso de autoajuda voltado s relaes de trabalho contribui para
a formao de um ethos ou a moral/tica necessria sociabilidade
capitalista em cada momento histrico, sendo, assim, um elemento
importante para a construo da hegemonia.
47
1.8 CONSIDERAES SOBRE O REFERENCIAL TERICOMETODOLGICO
A autoajuda representa, sem dvida, muito mais do que um
fenmeno editorial de vendas. Esse discurso est contribuindo para a
organizao da cultura de uma poca. Os aconselhamentos, as
orientaes, as regras de conduta, os fragmentos biogrficos que visam
ensinar o indivduo a ser um trabalhador de novo tipo utilizam a
linguagem da administrao pelos fatos (LIKER, 2005), uma
linguagem pragmtica que doutrina muito mais do que uma teoria. Tal
linguagem no neutra, nela est contida uma determinada concepo
de mundo (GRAMSCI, 1984, p. 11) de forma a criar uma nova
identidade social entre os indivduos.
A autoajuda constitui-se em uma ideologia que difunde e desperta
o imaginrio de construo de um homem realizado, de sucesso, riqueza
e poder. Refora a noo de progresso da nao baseado no progresso
do individual, ao mesmo tempo em que recupera para o capital uma
imagem sadia, popularizando e naturalizando a ideia de competio,
mudana, adaptao e mobilidade social como responsabilidade
individual.
Tais concepes, ideologia dominante, esto sendo disseminadas
no terreno do senso comum e incorporadas pelos indivduos como
verdades. Por isso, ao pensar no discurso de autoajuda, a noo
gramsciana de ideologia importante ao se entender que sua finalidade
modificar a opinio mdia de uma determinada sociedade [...]
introduzindo novos lugares-comuns. (GRAMSCI, 2004, p. 208).
Remete-se aqui afirmao de Marx sobre a solidez das crenas
populares que se expressam no senso comum, [sendo] aprofundada e
atualizada a partir de novas condies histricas, na medida em que tais
crenas podem ser transformadas em um novo senso comum, ou seja, no
bom senso. (SIMIONATTO, 2004, p. 81). A afirmativa marxiana a
respeito da solidez das crenas populares possibilita a Gramsci (1984,
p. 63) concordar com outra anlise de Marx de que uma persuaso
popular tem, na maioria dos casos, a mesma energia de uma fora
material. Analisar ambas as afirmaes permite Gramsci (1984, p. 63)
relacion-las ao
fortalecimento da concepo de bloco histrico,
no qual, justamente, as foras materiais so o
contedo e as ideologias so a forma sendo que
48
esta distino entre forma e contedo puramente
didtica, j que as foras materiais no seriam
historicamente concebveis sem forma e as
ideologias seriam fantasias individuais sem as
foras materiais.
49
no algo rgido e imvel, mas se transforma
continuamente, enriquecendo-se com noes
cientficas e com opinies filosficas que
penetraram no costume. O senso comum o
folclore da filosofia e ocupa sempre um lugar
intermedirio entre o folclore propriamente dito
[...] e a filosofia, a cincia, a economia dos
cientistas. O senso comum cria o futuro folclore,
isto , uma fase relativamente enrijecida dos
conhecimentos populares de uma certa poca e
lugar. (GRAMSCI, 2004, p. 209).
50
uma maneira mais ou menos intensa, que pode,
inclusive, atingir um ponto no qual a
contraditoriedade da conscincia no permita
nenhuma ao, nenhuma escolha e produza um
estado de passividade moral e poltica.
(GRAMSCI, 1984, p. 20).
51
longa e coerentemente, de maneira que ele se
convenceu de sua justeza, as razes da sua f.
(GRAMSCI, 1984, p. 26-27).
52
a prtica se conformam numa unidade fazendo
emergir uma possibilidade de um novo
humanismo, de um novo tipo de relao entre
teoria e prtica, entre conhecimento e trabalho,
mesmo que essas condies no tenham sido
ainda exploradas. (SOUZA, 2002, p. 63).
53
de positividade para tornar-se
(RUMMERT, 2000, p. 44).
expresso
do
individualismo.
54
Fairclough deixa mais claro isso ao referenciar o uso de uma linguagem
prescritiva associada ao uso do pronome Ns. Nesse aspecto, o uso da
linguagem carrega consigo posies ideolgicas prprias de quem faz
uso do discurso. Todavia, por razes que so em si mesmas
ideolgicas, a maioria dos usurios da lngua no foi educada para
identificar uma ideologia no texto, mas para ler textos como
representaes naturais e inevitveis da realidade. (EGGINS, 1994
apud SILVA, 2000, p. 7).
Poder-se-ia dizer que o discurso de autoajuda se caracteriza como
um construto ideolgico de harmonizao e amoldamento s relaes
sociais e providencial no que se refere manipulao das aes dos
indivduos no capitalismo. Tal discurso ajuda a ditar padres de
comportamento e, da forma como apresentado, camufla relaes de
poder quando atribui ao indivduo o poder/liberdade de escolha,
circunscrito no poder da vontade envolta numa linguagem sedutora que
no neutra nem transparente.
Ao ter-se presente que as palavras e expresses mudam de
sentido segundo posies de quem as emprega, pode-se lembrar Pags et
al. (1987, p. 37) ao afirmar que o educador do homem da organizao
no so tanto as pessoas com as quais ele se relaciona, seus chefes, os
formadores da empresa, so a prpria organizao, suas regras, seus
princpios, suas oportunidades, suas ameaas.
Para Fairclough (2001), as representaes sociais podem ser
pensadas a partir da teoria social do discurso que se detm sobre como
os indivduos constroem e reconstroem as significaes do uso da
linguagem. Nessa direo, empresrios e gurus produzem um discurso
propondo estabelecer uma relao entre o que se deseja e as esferas da
subjetividade. Mas que interesses estariam norteando essa vontade de
empresrios e gurus de adentrar nessa esfera? Lembra-se o
questionamento feito por Foucault (1996, p. 8) quando pergunta o que
h de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? E continua: Onde, afinal, est o
perigo? Para responder a tal questionamento, pode-se pensar na
autoajuda como um discurso carregado de uma ideologia, como uma
pedagogia cujo efeito mais visvel transparece no interesse voltado ao
bem-estar do trabalhador. Foucault lembra que a produo do discurso
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda
por certo nmero de procedimentos [ressaltam-se livros e palestras] que
55
tm por funo conjurar seus poderes e perigos, [...] esquivar sua pesada
e temvel materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8).
A lgica de dominao das organizaes justifica-se em um
discurso que busca fortalecer e dar credibilidade s palavras que so
proferidas, carregadas de significaes e que visam mobilizar ou
desestimular aes dos indivduos em caso de conflito. A adeso
ideolgica e psicolgica do trabalhador assegura o controle da
organizao sobre os indivduos, que se valem do discurso para moldar
e direcionar o comportamento de seus trabalhadores. isso que Huxley
(1965 apud Meurer, 1998, p. 10, traduo nossa) destaca quando afirma
que
a antiga idia de que as palavras possuem fora
mgica falsa; mas isso falseia a distoro de
uma verdade importante. Palavras possuem um
efeito mgico - mas no da forma que os magos
[gurus] imaginam e nem no propsito que eles
esto tentando influenciar. Palavras so mgicas
na maneira que elas afetam a mente daqueles que
as usam. [...] esquecemos que as palavras tm o
poder de moldar homens e mulheres, que
canalizam seus sentimentos, direcionam suas
vontades e atuaes. Conduta e carter so
altamente determinados pela natureza das palavras
que usamos freqentemente para discutir sobre
ns mesmos e o mundo que nos cerca.
56
Em A ideologia da sociedade industrial, Marcuse (1973, p. 54)
comenta que os controles tcnicos so a prpria expresso da razo,
colocada a servio de todos os grupos, de todos os interesses sociais, de
modo que toda contradio parece irracional e toda oposio
impossvel. O que o autor no previa que o discurso se tornaria to ou
mais eficaz como mecanismo de controle do trabalhador do que os
controles tcnicos.
A autoajuda para o trabalhador acaba se constituindo em uma
tentativa de mobilizao para uma ao, para a resoluo de situaesproblema nas relaes profissionais. Atribu-se ao indivduo o
compromisso com o sucesso da organizao e, tambm, seu sucesso
pessoal. Assim, a qualificao profissional fica sob a responsabilidade
do trabalhador, que em muitos casos no tem condies financeiras e
nem tempo disponvel para obt-la. Em geral, as empresas oferecem
cursos operacionais, mas nos seminrios, congressos e palestras
enfatizada a necessidade de um constante aperfeioamento que envolve
cursos superiores, treinamentos em management, lnguas, informtica,
entre outras exigncias. Para se desenvolver profissionalmente, o
trabalhador precisa investir em sua carreira, o que significa dizer que a
incumbncia em termos financeiros e de tempo disponvel fica a cargo
de cada trabalhador.
interessante observar, contudo, que o exerccio do poder na
relao entre capital e trabalho assegurado pelas mudanas na forma
de nominar as situaes e elaborar discursos. Recursos de linguagem,
nesse aspecto, so bem-vindos, de modo que por meio deles possvel
suavizar, minimizar ou at mesmo transpor uma situao para outra
menos hostil, at que a mensagem ganhe a significao e seja apropriada
pelo pblico de acordo com o desejo de seus anunciadores. Nessa linha
de pensamento, lembra-se Foucault (1996, p. 39), ao recordar narrativas
da cultura europeia, destacando que a comunicao, um dos elementos
da narrativa, funciona como uma figura positiva, constituindo um ritual,
em que os indivduos devem ocupar determinada posio, posio
esta que pressupe gestos, comportamentos, aes que conduzem a
determinadas prticas sociais. Foucault (1996, p. 43) ressalta que se
pode falar em sociedades de discurso cuja funo conservar ou
produzir discursos, mas para faz-los circular em um espao fechado,
distribu-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores
sejam despossudos por essa distribuio.
57
Uma das caractersticas marcantes da produo e distribuio dos
discursos de autoajuda, se assim se pode dizer, a luta pela assimilao
de seus contedos, uma verdadeira conquista ideolgica dos gurus
desse segmento que tende a ser mais eficaz quanto mais os leitores
forem capazes de elaborar e transpor as ideias disseminadas. Na viso
de Gramsci (2004, p. 205), um princpio metodolgico fundamental para
a elaborao nacional unitria de uma conscincia coletiva homognea
requer mltiplas condies e iniciativas. A difuso de um modo de
pensar homogneo, padro visado pelo discurso de autoajuda, consiste
em grande parte pela repetio das palavras. Esse discurso busca o
engajamento dos trabalhadores numa perspectiva tridimensional: como
texto, como uma prtica social e como prtica discursiva.
(FAIRCLOUGH, 2001). Nesse sentido, todo discurso engaja o
indivduo em algum tipo de ao, da Fairclough recorrer ao conceito de
ideologia gramsciano.
O uso que se faz da linguagem determina como um conceito ou
uma expresso pode ser transformado ou assimilado, produzindo um
sentido compatvel com aquilo que se deseja exprimir, ainda que o seu
significado no seja necessariamente o transmitido. Tanto significado
quanto sentido se efetivam, se transformam e se conservam pela
linguagem. Sob este aspecto, lembra-se Gramsci (1984, p. 13), quando
destaca que: Se verdade que toda linguagem contm elementos de
uma concepo de mundo e de uma cultura, ser igualmente verdade
que, a partir da linguagem de cada um, possvel julgar da maior ou
menor complexidade da sua concepo de mundo. Concordando com a
perspectiva gramsciana, v-se que a autoajuda constitui-se em uma
linguagem que contm e dissemina elementos de uma concepo de
mundo. Seu interesse est em construir um novo senso comum,
instituindo um novo modo de pensar, sentir e agir que se d pela
introduo de outras e novas palavras que entram no vocabulrio da
autoajuda de forma ressignificada.
Um exemplo ilustrativo dessa situao refere-se ao termo
empregabilidade. Max Gehringer (2002) aponta como o conceito de
empregabilidade pode transitar de uma significao negativa a outra
positiva com a mesma facilidade. O conceito de empregabilidade
basicamente otimista (O que eu preciso
continuar a fazer para continuar empregado),
enquanto a descartabilidade sai pela tangente do
pessimismo responsvel (Como me preparo para
58
ficar desempregado). E as duas evitam passar
perto do pessimismo crnico (A vida assim
mesmo. A gente ganha pouco, mas se diverte).
(GEHRINGER, 2002, p. 116).
59
TEXTO
Vocabulrio
Gramtica
Coeso
Estrutura textual
PRTICA
DISCURSIVA
Produo
Distribuio
Consumo
Contexto
Fora
Coerncia
PRTICA SOCIAL
Ideologia
Sentidos
Pressuposies
Metforas
Hegemonia,
Orientaes
econmicas,
polticas, culturais,
ideolgicas
Intertextualidade
Quadro 1 Categorias analticas propostas no modelo tridimensional.
Fonte: Resende e Ramalho (2006, p.29).
60
ser analisada como uma combinao da voz de quem pronuncia um
enunciado com outras vozes que lhe so articuladas. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 65).
A intertextualidade basicamente a propriedade que tm os
textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser
delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar,
contradizer, ecoar ironicamente. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). A
intertextualidade conecta um texto a outro texto, o que faz dessa
categoria de anlise complexa e potencialmente frtil. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 65). Ademais, o conceito de intertextualidade
aponta para a produtividade dos textos, para como os textos podem
transformar textos anteriores e reestruturar as convenes existentes.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).
Nos textos de autoajuda, a intertextualidade est abundantemente
presente sob a forma de provrbios e citaes. O interesse estratgico no
uso das citaes reside no fato de que ela permite ao criador do discurso
confirmar o dito pelo reforo do outro. Maingueneau (1997, p. 100101), ao analisar os fenmenos enunciativos, caracteriza a citao como
citao de autoridade, que do seu ponto de vista pode chegar ao
estatuto de slogan. A citao de autoridade seria aquela em que o
locutor se apaga diante de um locutor superlativo que garante a validade
da enunciao. Dessa maneira, a citao adquire novas propriedades
sobretudo por estar ligada ao: o slogan, a um s tempo,
impulsiona e engana [...], ele est ligado a prticas. Os provrbios,
alm das citaes, representam outra atividade lingustica que validam o
discurso construdo.
Para tratar do aspecto de intertextualidade, sero considerados
outros elementos marcantes do discurso de autoajuda, o uso de
fragmentos de histrias de vida e a criao de frases de efeito presentes
nos livros selecionados. Os excertos biogrficos realam o modo de vida
cotidiano e fornecem um carter concreto a esse discurso.
(MAINGUENEAU, 1997).
A dimenso textual do discurso permite compreender processos
de luta hegemnica na esfera do discurso, que tm efeitos sobre a luta
hegemnica, assim como so afetados por ela no sentido mais amplo.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 128). Esse o terreno da mudana social que
61
deixa traos nos textos na forma de co-ocorrncia
de elementos contraditrios ou inconscientes
mesclas de estilos formais e informais,
vocabulrios tcnicos e no tcnicos, marcadores
de autoridade e familiaridade [...]. medida que
uma tendncia particular de mudana discursiva
se estabelece e se torna solidificada em uma nova
conveno emergente, o que percebido pelos
intrpretes, num primeiro momento, como textos
estilisticamente contraditrios perde o efeito de
colcha de retalhos, passando a ser considerado
inteiro. Tal processo de naturalizao essencial
para estabelecer novas hegemonias na esfera do
discurso. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 128).
62
no possvel ler as ideologias nos textos [...]
isso porque os sentidos so produzidos por meio
de interpretaes dos textos e os textos esto
abertos a diversas interpretaes que podem
diferir em sua importncia ideolgica e porque os
processos ideolgicos pertencem aos discursos
como eventos sociais completos so processos
entre as pessoas no apenas aos textos que so
momentos de tais eventos. (FAIRCLOUGH,
2001, p. 119).
63
relevantes, necessrios para gerar leituras coerentes. (FAIRCLOUGH,
2001, p. 113).
As metforas, os provrbios, a repetio de palavras, frases de
efeito, verbos na forma imperativa, excertos biogrficos de homens
notveis, edificantes e um farto uso de experincias evocando prticas
de sucesso, exitosas, constituem o arcabouo de elementos lingusticos
analisados tanto no discurso de autoajuda quanto nos Relatrios da
UNESCO.
Tem-se presente as palavras de Fairclough (2001, p. 75), de que
no h procedimento fixo para se fazer anlise de discurso, sendo que
as pessoas abordam-na de diferentes maneiras, de acordo com a
natureza especfica do projeto e conforme suas respectivas vises de
discurso. Assim, as indicaes metodolgicas de Fairclough (2001)
orientam a anlise de discurso das obras de autoajuda selecionadas pela
enorme repercusso que tiveram em diferentes momentos histricos,
segundo quadro abaixo, bem como compem a corpora dos materiais
analisados nos dois Relatrios da UNESCO: Relatrio da Comisso
Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao, coordenado por
Edgar Faure, em 1972, e o Relatrio da Comisso Internacional sobre
Educao para o sculo XXI, coordenado por Jacques Delors, em 1996.
64
Ttulo
Self-Help
O carter
O dever: coragem,
pacincia e
resignao
Vida e trabalho
Como fazer amigos
e influenciar pessoas
Como falar em
pblico e influenciar
pessoas no mundo
dos negcios
Como venceram os
grandes homens
Como evitar
preocupaes e
comear a viver
Como desfrutar sua
vida e seu trabalho
Empregabilidade:
como ter trabalho e
remunerao sempre
Quem mexeu no
meu Queijo?
Voc: a alma do
negcio
Autor
Samuel Smiles
Samuel Smiles
Samuel Smiles
1. Edio
1859
1871
1880
Pas
Inglaterra
Inglaterra
Inglaterra
Samuel Smiles
Dale Carnegie
1887
1936
Inglaterra
EUA
Dale Carnegie
1981
EUA
Dale Carnegie
s.d
EUA
Dale Carnegie
1948
EUA
Dale Carnegie
1975
EUA
Jos Augusto
Minarelli
1995
Brasil
Spencer Johnson
1998
EUA
Roberto
Shinyashiki
2001
Brasil
65
seguintes categorias para anlise: concepes de educao, trabalho,
homem, sociedade/mundo.
A partir disso, identificaram-se que os princpios, valores,
comportamentos, condutas e vises de mundo disseminados pela
literatura de autoajuda, estavam presentes tambm nas diretrizes e
reformas educacionais contemporneas. Tais evidncias possibilitaram
pressupor que os discursos da UNESCO que difundiram a prioridade do
aprender a ser funcionavam de forma semelhante e complementar aos
de autoajuda, valendo-se das estratgias de persuaso para a produo
de uma nova sociabilidade demandada pelo capital. Com esta
perspectiva, analisaram-se os Relatrios Faure (1972) e Delors (1996)
procurando demonstrar que esta estratgia da nova pedagogia da
hegemonia se desenvolvia por fora, mas tambm, por dentro do sistema
educacional.
1.9 ESTRUTURA DA TESE
Esta tese est organizada em cinco captulos. Neste primeiro
captulo introdutrio, apresentam-se a problemtica, os objetivos, as
hipteses, as pesquisas sobre a autojauda e as consideraes tericometodolgicas da pesquisa.
No segundo captulo, destacam-se brevemente aspectos
relevantes da vida e obra do idealizador da autoajuda para trabalhadores
em que se discute a gnese e nfases do discurso da autoajuda
apreendido nas formulaes de Samuel Smiles (1812-1904). Em tempos
vitorianos, o publicista adota um estilo intensivo de divulgao de
biografias edificantes visando disseminar valores liberais celebrando o
sucesso de homens considerados exemplos na conquista da ascenso
social. Smiles exacerba o individualismo na ideia de alcance de sucesso
por meios pessoais, apesar de parcos recursos. Ver-se- que sua
literatura moralmente construda considerando a utilidade do
conhecimento, o que evidencia a importncia do trabalho visto como
princpio educativo para trabalhadores. No sculo XIX, segundo
preceitos e valores disseminados por Smiles, buscava-se formar o
trabalhador de carter, exigindo autodisciplina, determinao e uma
inquebrantvel perseverana. A tica do trabalho protestante constituiu a
fora motriz nos escritos de Smiles e servia de antdoto contra o cio.
(LYONS, 1999).
66
No terceiro captulo, mostrar-se que a literatura de autoajuda
constituda nas primeiras dcadas do sculo XX est organicamente
articulada s demandas do fordismo. A vasta bibliografia sobre a
organizao do trabalho em moldes tayloristas e fordistas deixa evidente
as preocupaes capitalistas em encontrar o homem certo para o lugar
certo, definindo um tipo de trabalhador fordista, bem diferente do
almejado em tempos vitorianos. O discurso propalado nas primeiras
dcadas desse sculo tinha como propsito uma aplicao sistemtica de
valores e modos de pensar prprios esfera econmica industrial.
Destaca-se Dale Carnegie, autor norte-americano, que se tornou
expoente ao diagnosticar que a tica da personalidade, a carismtica
individual teria maior utilidade que os conhecimentos livrescos na
formao dos homens de negcios. Suas obras propagaram a ideia de
que a conquista do sucesso no dependia apenas do pensamento
positivo, mas da construo de uma personalidade agradvel capaz de
influenciar pessoas. Para o trabalho simples, fragmentado, caracterstico
da produo em massa, os requisitos de qualificao esperados do
trabalhador no eram tanto tcnicos, mas comportamentais e atitudinais.
No quarto captulo, explicitam-se os sentidos do discurso
contidos na literatura de autoajuda nas relaes de trabalho no sculo
XXI. Procura-se relacionar o discurso de autoajuda com o contexto
econmico, poltico, apontando a preocupao em formar um homem de
novo tipo. O que se poderia pensar ser apenas um modismo, gerou
consultorias especializadas e fez com que muitos autores, considerados
gurus da autoajuda, adentrassem aos mbitos do trabalho e da educao
pregando as virtudes daqueles que seguem as recomendaes contidas
nesses textos. Tais recomendaes invadiram a ambincia
organizacional, de forma que um conjunto de crenas, valores, sentidos,
difundido visando construir um modo de pensar calcado na mudana
individual.
No quinto captulo, desenvolve-se a anlise dos relatrios da
UNESCO sobre educao, o Relatrio Faure (1972) e o Relatrio Delors
(1996), demonstrando as continuidades entre o aprender a ser do
campo educacional com as recomendaes dos manuais de autoajuda e o
perfil de trabalhador demandado pelo capital em diferentes momentos
histricos. Por fim, apresentam-se as consideraes finais.
67
2 AUTOAJUDA EM TEMPOS VITORIANOS: O DEVER E A
MORAL
[...] as modificaes nos modos de
pensar, nas crenas, nas opinies,
no ocorrem mediante exploses
rpidas,
simultneas
e
generalizadas, mas sim, quase
sempre, atravs de combinaes
sucessivas, de acordo com
frmulas
de
autoridade
variadssimas e incontrolveis. A
iluso explosiva nasce da
ausncia de esprito crtico.
(GRAMSCI, 2004)
68
publicaes de maior repercusso e que guardam continuidade com os
valores apregoados em Self-Help: Ajuda-te (1893), O carter (1871), O
dever: coragem, pacincia e resignao (1880) e Vida e trabalho
(1887)18.
2.1 TRABALHO EM TEMPOS VITORIANOS
No sculo XIX, a consolidao do poder da burguesia
favorecida pela constituio de uma ideologia [liberal] que justifica e
racionaliza os interesses do capital, servindo, dessa maneira, de
sustentao e organizao das sociedades capitalistas. (SANTANA,
2007, p. 89). O liberalismo tambm chamado clssico correspondeu
expresso ideolgica do capitalismo em sua etapa concorrencial. Dias
(2007b) assinala que os liberais idealizaram o capitalismo como a
expresso acabada da natureza humana, como a forma legtima de fazer
a produo material, tendo o homo oeconomicus como o modelo das
virtualidades do homem burgus pretendendo eternizar e naturalizar o
capitalismo, a burguesia transformou seus princpios em leis da vida
social e suas regras em leis do mercado.
Ao longo do sculo XIX, o processo de industrializao
consolidou-se de tal maneira que o desenvolvimento das foras
produtivas foi viabilizado por novas formas e mtodos de administrar o
trabalho com a passagem dos trabalhadores das oficinas para o espao
da manufatura. O trabalhador-arteso, que conhecia e controlava todas
as etapas do processo, desde a sua concepo elaborao, cede lugar
ao trabalhador fragmentado e parcializado. De acordo com Marx (1968,
p. 400), "a estreiteza e as deficincias do trabalhador parcial tornam-se
perfeies quando ele parte integrante do trabalhador coletivo."
Do sculo XVII ao incio do sculo XIX soma-se um perodo de
intensa luta entre capitalistas e trabalhadores, que se acirra com a
diviso manufatureira do trabalho e a introduo da maquinaria,
configurando uma longa histria de luta de classes. Como destaca Marx
(1968, p. 427): Cinqenta mil trabalhadores que at ento viviam de
cardar l dirigiram uma petio ao Parlamento contra as mquinas de
carduar e de cardar de Arkwright. O descontentamento dos
trabalhadores com o maquinrio causou enorme destruio de
mquinas nos distritos manufatureiros ingleses durante os primeiros 15
18
As obras esto assim referenciadas pelo ano originalmente de publicao, mas para fins deste
trabalho sero citadas pelo ano de publicao no Brasil.
69
anos do sculo XIX, provocada principalmente pelo emprego do tear a
vapor. (MARX, 1968, p. 427. O movimento luddita19 como ficou
conhecido, levou Marx a afirmar, conforme j apontado, que precisaria
de tempo e experincia para que o trabalhador percebesse que o que
deveria ser atacado era a forma social de explorao qual estavam
submetidos, e no a introduo do maquinrio que poderia potencializar
o trabalho humano.
Enquanto Marx denunciava a situao de explorao dos
trabalhadores pelos capitalistas, Smiles exaltava o carter industrial de
expoentes ingleses, enfatizando o labor, a engenhosidade e
desconsiderando as relaes de trabalho e de explorao decorrentes do
aperfeioamento da maquinaria. Smiles (1893, p. 41) escreve:
Arkwright chegou a ser denunciado como inimigo
da classe operria, e um tear que construiu perto
de Chorley foi destrudo pela populao em
presena mesmo de um forte destacamento de
polcia e de tropa. Os negociantes do Lancashire
recusaram-se a comprar os seus produtos, apesar
de serem por todos reconhecidos como os
melhores. Negaram-se a pagar o direito de patente
pelo uso dos seus engenhos e combinaram-se para
esmag-lo perante os tribunais. Com grande
desgosto das pessoas sensatas, a patente de
Arkwright foi anulada. [...] estabeleceu novos
19
70
teares no Lancashire, no Derbyshire e em New
Lamark, na Esccia. O tear de Cromford passou
tambm para as suas mos quando findou a sua
sociedade com Strutt e eram tais o nmero e a
superioridade dos seus artefatos que em pouco
tempo conseguiu ser o regulador desta indstria, a
ponto que era ele quem fixava os preos e servia
de norma nas principais operaes dos outros
fabricantes. [...] todos os mais ramos principais da
indstria inglesa oferecem exemplos semelhantes
de homens enrgicos para os negcios, que tem
isso a causa de muitos benefcios para as
localidades em que trabalhavam e de aumento de
poder e riqueza para a nao em geral.
71
histria no oferece nenhum espetculo mais horrendo que a extino
progressiva dos teceles manuais ingleses, arrastando-se durante
decnios e consumando-se finalmente em 1838.
Do artesanato chamada indstria moderna, Marx (1968, p. 435)
sintetiza:
Com a afluncia das invenes e a procura
crescente de novas mquinas inventadas, cada vez
mais se diferenciava em ramos autnomos
diversos a produo de mquinas e se desenvolvia
a diviso do trabalho nas manufaturas que
construiam mquinas. A manufatura constitui
assim em base tcnica imediata da indstria
moderna. A primeira produzia a maquinaria com
que a segunda eliminava o artesanato e a
manufatura nos ramos de produo de que se
apoderava.
Marx tambm trabalhou nas estradas de ferro inglesas em meados da dcada de 50 do sculo
XIX. Escreve Gonzlez (2002, p. 81) que as dificuldades econmicas levaram Marx a
72
economia se diversifica e surge a necessidade de aperfeioar as ferrovias
para que sejam usadas para o transporte de mercadorias e pessoas. Os
polos de desenvolvimento econmico surgiram e a ferrovia significava
valorizao das terras e imveis. Por volta da dcada de 30 do sculo
XIX, as profundas transformaes econmicas deflagradas pela
Revoluo Industrial e a reorientao intelectual propiciada pelo
desenvolvimento da economia poltica burguesa - especialmente os
trabalhos de Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) foram as chaves tanto para a emergncia de um novo mundo quanto para
a disseminao de uma nova concepo de mundo. (RODRIGUES,
2002).
Esse o perodo em que vive Samuel Smiles, autor que centraliza
a discusso na formao do carter do indivduo, no cumprimento de
deveres morais para o progresso de uma sociedade.
2.2 VOLTANDO S ORIGENS21: UM POUCO SOBRE
SAMUEL SMILES
Samuel Smiles nasceu em Haddington (Esccia), em 23 de
dezembro de 1812, perodo em que uma srie de inovaes tcnicas
permitiu acelerar o processo de industrializao22. Smiles morava com
sua famlia, composta de 11 irmos, dos quais era o mais velho. Sobre
seus pais, o que se sabe que dirigiam um pequeno comrcio, no qual
Smiles muitas vezes ajudava. Aos 14 anos, enquanto frequentava a
escola, comeou a atuar como aprendiz de um mdico e, em 1829,
ingressou no curso de medicina da Universidade de Edimburgo, na
Esccia.
pretender um cargo de funcionrio na Companhia de Estradas de Ferro de Londres. Mas h um
empecilho insupervel para Marx tornar-se escriturrio de uma das mais desenvolvidas
empresas capitalistas: Karl tem letra ruim. No mesmo perodo, Smiles tambm trabalhou na
administrao de uma linha frrea, na Inglaterra.
21
Mais informaes a respeito de Samuel Smiles podem ser encontradas em Mudar para
Manter: a auto-ajuda como a nova pedagogia do capital (dissertao de mestrado), 2005.
22
Embora o termo industrializao esteja ausente nos escritos do sculo XIX, o conceito est
presente em Marx quando ele distingue a indstria moderna ou sistema fabril ou sistema
da maquinaria das formas anteriores de produo capitalista, a COOPERAO e a
MANUFATURA. A indstria moderna distingue-se pelo papel central que nela desempenha a
maquinaria: To logo as ferramentas se transformaram de implementos manuais do homem
em implementos de um aparelho mecnico, de uma mquina, o mecanismo motor tambm
adquiriu uma forma independente, totalmente emancipada das limitaes da fora humana.
Com isso, a mquina individual reduz-se a simples fator de produo pela maquinaria.
(MARX, 1981 apud BOTTOMORE, 2001, p. 192).
73
Durante o curso universitrio, Smiles participou da campanha
para a Reforma do Parlamento Ingls. Escreveu vrios artigos
publicados num jornal semanal de Edimburgo Edinburgh Weekly
Chronicle. Formou-se em 1832, voltando para Haddington para atuar
profissionalmente. No se sabe ao certo por quantos anos Smiles atuou
como mdico, mas ainda nesse perodo tornou-se simpatizante e
colaborador de Joseph Hume23, um poltico escocs radical que
conhecera durante o curso de medicina em Edimburgo.
Hume e outros parlamentares ingleses presenciaram um perodo
as primeiras dcadas do sculo XIX - de crescimento da indstria24. As
mudanas sociais e polticas decorrentes do processo de industrializao
podiam ser visualizadas pelo crescimento urbano e construo da classe
operria inglesa. A Revoluo Industrial possibilita enorme aumento da
produtividade em funo da utilizao dos equipamentos mecnicos, da
energia a vapor e, posteriormente, da eletricidade, substituindo
gradativamente as foras animal e humana. Apesar de um crescente
nmero de empregos, este no absorvia a demanda, gerando um excesso
de trabalhadores desempregados que se incorporaram grande massa de
mendigos.
Nas cidades, a populao aumentou consideravelmente com a
chegada dos camponeses que buscavam um emprego como operrios
nas fbricas, conforme dados e anlise que Marx (1984) faz ao
desvendar os segredos da chamada acumulao primitiva. A
populao de Leeds cidade em que Smiles passou a residir a partir dos
anos 30 do sculo XIX -, por exemplo, no tinha 53.000 habitantes em
23
74
1801, chegando a 152.000 em 184125. Inversamente ao crescimento
industrial e populacional, as mudanas nas relaes de trabalho
reduziam as condies e as possibilidades de uma vida digna aos
trabalhadores. A explorao do trabalho humano com o
desenvolvimento do capitalismo degradou, alm da vida de
trabalhadores, milhares de mulheres e crianas, que eram submetidas
exaustiva e desgastante jornada de trabalho.
Naquele contexto, Smiles, que j havia desistido da carreira de
mdico, dedicando-se a escrever discursos, no para denunciar as
condies sociais vividas pelos trabalhadores, pelo contrrio, seus livros
e palestras passaram ao largo dos problemas sociais de sua poca. Essa
uma caracterstica marcante nas obras de Smiles: a de no mencionar
conflitos, tenses ou os antagonismos de classe entre burguesia e
proletariado, aspectos centrais na obra de Marx26. Em Smiles no h
referncia nem burguesia nem ao proletariado como classes sociais.
Por acreditar tanto na bondade humana no bom carter Smiles
dedicou sua vida literatura como uma misso de vida.
Smiles participou ativamente dos movimentos em prol da
Reforma Parlamentar da Inglaterra. Em 1837, ele comeou a contribuir
com alguns artigos sobre a reforma parlamentar para o Leeds Times jornal fundado em 1833, e em 1838, assume a chefia da edio do
jornal, abandonando definitivamente a carreira de mdico em favor de
sua militncia pela mudana poltica, pela via parlamentar. frente da
edio do jornal, Smiles criticou duramente o cartismo27, no pelos seus
objetivos, uma vez que se identificava com suas posies, mas porque
discordava da fora fsica empregada pelo movimento. Com o passar
25
Alm de Leeds, no perodo compreendido entre 1801 e 1841, cidades como Manchester
passam de 35.000 para 353.000 habitantes e Birmingham, de 23.000 para 181.000 habitantes.
(HUBERMAN, 1986).
26
Vale ressaltar que Smiles (1812-1904) e Marx (1818-1883) viveram na mesma poca, mas
como se um no tivesse tomado conhecimento da existncia e da atuao do outro, ainda que
ambos tenham tido participaes significativas no que se refere ao envolvimento, militncia e
aos escritos em relao ordem poltica, econmica e social estabelecida naquele momento.
Acredita-se que esse deixar passar em branco represente o posicionamento de Smiles no que
tange ao papel do Estado e luta de classes.
27
Segundo Castelo Branco (2005), o cartismo demonstra o aprendizado da classe trabalhadora
na defesa de seus interesses. Novas tticas de lutas foram incorporadas e o proletariado partiu
para um novo movimento reivindicatrio. Em 1838, trabalhadores britnicos, amparados pela
Associao dos Trabalhadores Londrinos, iniciaram um movimento de carter reformista que
ficou denominado de cartismo. Teve esse nome derivado do fato dessas reivindicaes serem
feitas atravs do envio de cartas, peties ou abaixo-assinados aos parlamentares ingleses
exigindo reformas urgentes.
75
dos anos, o Leeds Times foi recuperando seus ndices de venda e Smiles
permaneceu no cargo de editor-chefe at meados de 184528.
Em 1840, Smiles recebe o convite para secretariar a Associao
para a Reforma Parlamentar de Leeds, uma organizao que se guiava
pelos objetivos defendidos pelo cartismo. O movimento cartista
constituiu-se na campanha de agitao pela reforma da lei eleitoral e
suas reivindicaes, de acordo com Huberman (1986, p. 189), estavam
relacionadas ao:
1. Sufrgio universal para todos os homens; 2.
Pagamento aos membros da Cmara dos Comuns
(o que tornaria possvel aos pobres se
candidatarem ao posto); 3. Parlamentos anuais; 4.
Nenhuma restrio de propriedade para os
candidatos; 5. Sufrgio secreto para evitar
intimidaes; 6. Igualdade dos distritos eleitorais.
28
76
convencer o Parlamento em favor da Peoples
Chart [Carta do Povo]. O principal orador foi
Feargus OConnor, que fez bom alarde, e
Richardson, seu discpulo, tambm falou. Os
procedimentos foram prejudicados pelas atitudes
de intimidao fsica de alguns. No apreciei
muito a multido de Londres. Pareciam
vagabundos e preguiosos, e no trabalhadores.
[...] Em 1839 os trabalhadores sofreram muito.
Pelo final do ano, pelo menos 10.000 pessoas
estavam desempregadas em Leeds. Embora se
queixassem, no se rebelaram. Era diferente em
outras partes. Houve tumultos em Birmingham,
Manchester, Newcastle e outros lugares. Em
Newport, no Pas de Gales, uma rebelio cartista
ocorreu, terminando na captura de John Frost e
de alguns insurrectos. Em Bradford os homens
utilizaram armas de fogo abertamente. Dezesseis
deles foram pegos pela polcia e condenados a
muitos anos de priso. Feargus OConnor foi
condenado a dezoito meses de priso por incitar a
rebelio e por saquear Northern Star.
77
capitalismo britnico sobre os outros pases e tambm s prprias
condies polticas da Gr-Bretanha.
Em um perodo no qual o socialismo reformador d sinais de
decadncia, Samuel Smiles convidado a trabalhar com Robert Owen.
Esse encontro rendeu a Smiles uma sociedade30 com Owen no jornal
The Union31, de propriedade deste. Provavelmente as publicaes deste
jornal visavam impulsionar a Reforma Parlamentar de Leeds na qual
Smiles estava engajado. Segundo ele,
por que no estender o direito de voto aos
trabalhadores? Por exemplo, foi mostrado que
vinte e cinco pequenos municpios, de nenhuma
importncia, enviaram cinqenta membros ao
Parlamento, enquanto Leeds, com uma populao
muito maior que todos estes municpios juntos,
enviou apenas dois membros32.
78
voltava-se mais s condies de trabalho nas fbricas, as quais
causavam inquietaes tanto pelo trabalho que emprega crianas e
mulheres, como pela exausto da jornada de trabalho empreendida. A
aproximao de ambos tambm se d pela viso de que a cooperao
individual constri uma sociedade cooperativa e coletiva. Smiles conta,
em sua autobiografia, que Leeds abrigava um Salo Socialista onde
eram realizadas reunies e tambm leituras socialistas. Ao assistir a
algumas dessas reunies, menciona que Robert Owen era um dos
novatos no movimento socialista. H nfase de Smiles quanto
conduo dessas reunies. Do seu ponto de vista, infelizmente [os
socialistas] misturaram um grande acordo de atesmo com suas vises
na cooperao33.
Apesar de acreditar na reforma social a partir da reforma
individual, Smiles tinha na religio a base de construo de seus valores.
O carter moral tinha relao com a moral religiosa. Protestante, Smiles
referencia em seus escritos vrias passagens bblicas, salmos, parbolas
de Salomo, trechos das cartas de So Paulo. Na principal obra do autor,
inicia com a seguinte frase: Ajuda-te e Deus te ajudar. (SMILES,
1893, p. 1). Owen, em contraposio a Smiles, propagava sua descrena
na religio, vendo nela uma instituio que deveria ser abandonada ou
modificada.
esse aspecto que marcar o distanciamento de Robert Owen e
Smiles. Owen (2002) no acreditava que a religio desempenhasse um
papel de unio entre os homens. Pelo contrrio, ele a via como fonte de
disperso, de diviso entre as naes justamente porque concebia o
desenvolvimento do ser humano independente de sua vontade. Em sua
opinio, evidente que a unidade e a harmonia no puderam jamais
existir nas religies e cdigos baseados na falsa idia de que o homem
tem o poder de crer e de sentir como quiser, pois os fatos provam que a
prpria vontade o resultado da ao de seus instintos. (OWEN, 2002,
p. 110). A verdadeira religio seria encontrada na busca da verdade, pois
aquilo que se chama religio era passvel de mltiplas interpretaes e
suscetvel a mudanas. por isso que Owen interpretava a verdadeira
religio como aquela que se sustenta na verdade, uma vez que a
verdade o que no muda com o tempo; o que esteve e sempre estar de
acordo com todos os fatos conhecidos, o que nunca est em oposio a
si, mas sempre, em todas as suas partes, em unidade e harmonia perfeita,
33
Texto disponvel em: <http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/PRsmiles.htm>.Acesso em: 25
jan. 2010. Traduo nossa.
79
sem sombra de contradio. (OWEN, 2002, p. 127). Essa verdade
esttica e absoluta que Owen imaginava existir possibilitaria uma
organizao coesa, harmnica, igualitria e perfeita de sociedade.
Aqui se apresenta, provavelmente, o ponto nodal das diferenas
entre Smiles e Owen e quem sabe, uma explicao de o porqu no se
encontra nenhuma publicao conjunta desses autores em anos
posteriores.
Em 1845, Smiles deixa o Leeds Times e assume a secretaria da
Companhia Ferroviria Leeds e Thirsk. Ficou neste cargo durante nove
anos, quando aceitou um cargo similar na Companhia Ferroviria SouthEastern. Nesse perodo conheceu George Stephenson, acabando por
biograf-lo em 1871. Stephenson era o que Smiles chamava de homem
da inveno. Foi o responsvel pelo aperfeioamento da mquina a
vapor modificada por Trevithinik. Das sucessivas modificaes,
Stephenson desenvolveu a locomotiva, propiciando mudanas
significativas no transporte ingls. O valor que Smiles atribui s
invenes deve-se crena de que o homem capaz de promover a sua
autoajuda, e as invenes representariam o expoente dessa capacidade.
O resultado de tais invenes, da mquina a vapor de Watt, lembrada
por Smiles em vrios de seus livros, significa para ele um monumento
do poder do auxlio prprio no homem. (SMILES, 1893, p. 34).
Em 1850, Smiles abandonou completamente os esforos para a
Reforma pela via Parlamentar, concentrando-se na divulgao da
instruo popular, escrevendo vrios livros e inmeras biografias de
carter moralizante, fortalecendo seu ideal de autoajuda como um
caminho para a reforma da sociedade. As evidncias de uma tica
protestante esto expressas em suas publicaes, em sua concepo de
homem e mundo cujos valores morais e deveres se voltam para uma
tica do trabalho. Tambm abundante a referncia a Calvino e a Lutero
como homens representativos, homens de bons exemplos, alm de
outros pastores luteranos.
A exemplo de um grande nmero de pastores protestantes, a
crena de que o conhecimento das histrias de vida de lderes da
indstria, enfatizando o trabalho e o esforo como resultantes de
sucesso, poderia proporcionar um estmulo para que outros alcanassem
tambm patamares de sucesso, levou Smiles a buscar nas biografias e
fragmentos destas, uma estratgia para mobilizar os jovens
trabalhadores ingleses. O autor defendia a reforma individual como
80
condio para a reforma social. Ao que consta, Smiles proferia palestras
divulgando suas ideias sobre o desenvolvimento do carter pelo cultivo
do hbito, da autoajuda, do valor da educao pelo e no trabalho, alm
do valor das biografias como modelos a serem seguidos. Em sua
concepo, competia ao homem a conduo de sua vida, uma vez que se
espera
que o indivduo seja capaz de usar sua vontade
para autocontrolar-se. O homem auto-suficiente
(). Um exemplo da divulgao destas idias,
repetidas por muitos doutores da poca, so as
conferncias pronunciadas no Leeds Mechanics
Institute, entre os quais o Dr. Samuel Smiles,
sobre Self-Help in Man34.
34
la
81
outros tinham feito a fim de mostrar o que cada
um deles podia, em maior ou menor escala, fazer
para si prprio, e indicando que sua felicidade e
bem-estar individuais, no decurso da vida
dependiam principal e necessariamente deles, da
cultura diligente de si mesmos, assim como de
poder sobre si prprios e, sobretudo, do
cumprimento exato do dever individual, em que
consiste a glria de um carter varonil (SMILES,
1893, p. 5).
PROGRESSO
82
governo de uma nao quase sempre o reflexo
dos indivduos que a compem.
83
do carter humano. o exerccio de suas atividades, no trabalho, que
confere ao homem essa capacidade de aperfeioamento de seu carter.
Muitos dos valores que Smiles procura construir esto
relacionados ao pensamento que se firmava no sculo XIX, mas que j
vinha sendo delineado no sculo XVIII. Dentre essas influncias, podese destacar o papel da Escola Liberal Clssica35 no pensamento de
Smiles. A meno a Adam Smith revela a existncia de uma
concordncia de Smiles com o pensamento smithiano, que pode ser
associado seguinte passagem: Ao buscar a satisfao de seu interesse
particular, o indivduo atende frequentemente ao interesse da sociedade
de modo muito mais eficaz do que se pretendesse realmente defendlo. (SMITH, s.d apud HUGON, 1967, p. 121).
Alm da defesa de um ideal liberal em que o Estado no poderia
fazer mais pelos seus membros do que eles mesmos fariam por si,
Smiles aproxima-se do pensamento liberal clssico pelas caractersticas
pacifistas e individuais com que este pensamento estaria organizado.
Como diz Hugon (1967, p. 121), Smith, tal como os fisiocratas,
confiava no interesse privado como meio de assegurar ao homem o
progresso geral da riqueza e tambm otimista quanto aos resultados
desta ao individual. Desta forma, as bases do liberalismo econmico
estariam assentadas na busca do interesse individual, o que coincidiria
com o interesse geral de uma nao.
Contemporneo de Smiles, John Stuart Mill (1806-1873) deu
continuidade tradio clssica liberal36. De acordo com Hugon (1967,
p. 154), Mill prope, igualmente, o desenvolvimento de cooperativas
de produo, inspirando-se em Owen. A medida satisfaz ao seu penhor
individualista: a propriedade privada respeitada e mesmo fomentada,
pois a cooperao transforma a classe obreira em capitalista. Ainda, as
35
Smiles faz referncia, em suas publicaes, a escritores como Adam Smith, David Ricardo,
John Stuart Mill, que formaram a Escola Clssica Inglesa.
36
Hunt e Sherman (1977, p. 56) enfatizam que a viso de mundo subjacente ao liberalismo
clssico tornou-se a ideologia dominante do capitalismo. O intelecto humano valorizado, e
a razo que dita a necessidade de avaliar todas as alternativas que determinada situao
coloca para que a escolha recaia sobre a que oferece o mximo de prazer e o mnimo de dor.
O homem racional movido pela ambio, o que propicia as bases polticas e intelectuais para
o desenvolvimento fabril, afirmam os autores. Segundo eles, as ideias do liberalismo
econmico desenvolveram-se buscando os postulados dos grandes economistas do final do
sculo XVIII, principalmente Adam Smith, David Ricardo, Jean Batista Say e John Stuart Mill.
De outro lado, surgiram as reaes de cunho socialista, que atingem o ponto mximo com a
publicao do Manifesto Comunista de Marx e Engels em 1848.
84
distines de classe sero suprimidas, restando apenas as distines
devidas aos mritos pessoais. (HUGON, 1967, p. 154). A referncia a
Stuart Mill nos escritos de Smiles frequente, visto que este partilha das
idias liberais reafirmadas por aquele. Tanto que vrias so as passagens
de Mill reproduzidas por Smiles (1893, p. 1) em Ajuda-te: O valor de
um Estado , em suma, o valor dos indivduos que o compem. a
manifestao do empenho interior que fortalece uma nao. A posio
de Smiles em relao ao papel do Estado no desenvolvimento da vida de
um trabalhador aproxima-se mais das ideias de Owen do que das de
Stuart Mill. Assim como Smiles, Mill tinha grande simpatia pelas ideias
socialistas, mas o seu objetivo era promover a reforma do capitalismo.
Para Smiles (1893, p. 1), sempre que os homens esto sujeitos a
um excesso de proteo ou de governo, tal sistema tende
inevitavelmente a reduzi-los a um estado de impotncia relativa.
Assim, as melhores instituies no podem mesmo prestar ao homem
um auxlio eficaz. O mais que alcana deix-lo livre para se
desenvolver e para melhorar a sua condio individual (SMILES, 1893,
p. 2). E continua: A carreira industrial adotada pela nao tem sido
tambm o seu meio mais poderoso de educao constante ao trabalho,
sendo o melhor exerccio para cada indivduo em particular, tambm a
melhor disciplina para o Estado. (SMILES, 1893, p. 32).
A doutrina liberal preconiza indivduos autnomos,
independentes e autodeterminados, que desenvolvem a capacidade de
ajudar-se. Do mesmo modo que Adam Smith, Smiles argumentou em
favor da ao individual como aquela que seria traduzida em interesses
de um coletivo: naquele caso, a nao. Em Smith, a liberdade de
mercado considerada poderosa para impulsionar e melhorar a condio
humana, tanto assim que destaca:
O esforo natural de cada indivduo para melhorar
sua prpria condio, quando se permite exerc-la
com liberdade e segurana, , a princpio, to
poderoso que ele, sozinho, e sem nenhum auxlio,
no somente capaz de conduzir a sociedade
riqueza e prosperidade, mas de superar uma
centena de obstculos inoportunos, colocados
muito freqentemente pela loucura das leis
humanas para dificultar suas aes; embora a
conseqncia desses obstculos seja sempre mais
ou menos a usurpao de sua liberdade ou a
85
diminuio de sua segurana. (SMITH, 1937, p.
508).
86
americano que salientava: O auxlio que temos dos outros mecnico,
em comparao com as descobertas da natureza em ns. (EMERSON,
1996, p. 14).
Cabe lembrar que, no sculo XIX, as aes sociais, em sua
maioria, eram vistas como prticas invasoras do espao da
individualidade (CUNHA, 2001, p. 35), significando dizer, na
perspectiva das ideias de Adam Smith, que a atividade dos indivduos,
libertos tanto quanto possvel de restries polticas, a principal fonte
do bem-estar social e a fonte ltima do progresso social. (DEWEY,
1970, p. 20).
A adeso a esse pensamento embasou a construo do discurso de
autoajuda de Smiles no perodo vitoriano, disseminando modos de ao,
prticas individuais condizentes ao estilo de vida favorvel ordem
capitalista. Na medida em que se refora o esprito de autoajuda como
motivo de aes, reforam tambm o valor dos modelos de conduta e os
meios de transmisso de valores e educao, incitando prticas calcadas
na moral, dever e fora do carter como argumentos centrais de
constituio de um novo tipo de trabalhador em tempos de
desenvolvimento industrial. Dessa forma, se pode interpretar a pregao
da autoajuda como um processo que visa disseminar concepes de
mundo, de Estado, de educao e de trabalhador fundamentais para a
construo e manuteno da hegemonia capitalista.
2.4 CONHECENDO A OBRA AJUDA-TE: A GNESE DA
AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
Ajuda-te no a primeira obra de Smiles37, mas a principal no
que diz respeito construo de aconselhamentos e ensinamentos, isto
, de um recurso pedaggico com uma inteno declarada de mobilizar
jovens trabalhadores acreditando que o mercado livre proporcionaria o
mesmo grau de liberdade e igualdade aos indivduos que desejassem
ascender socialmente. As aptides, o talento e a fora de vontade
individual estabeleceriam laos sociais entre as escolhas individuais e o
Estado. Esta instituio existiria, do ponto de vista de Smiles, para
promover os meios necessrios para que o trabalhador conseguisse levar
adiante seus desejos pessoais de forma independente e autnoma.
37
87
A autonomia pode ser considerada um conceito-chave em Ajudate, ainda que este termo no seja utilizado explicitamente, ficando
subsumida expresso auxlio prprio38. Smiles, em 1880, preocupa-se
em explicar no prefcio do livro O dever, que intitulou o seu livro
Ajuda-te a ti prprio, no tendo encontrado outra expresso melhor,
posto que auxlio mtuo parecesse talvez merecer a preferncia.
(SMILES, 1910, p. II). Terminada a obra, Smiles enfatiza que no
exerccio dirio da competio individual - elo para atingir o progresso
profissional -, que se percorrem os caminhos necessrios para se
alcanar a mobilidade social.
A autoajuda de Smiles parte da crena no potencial realizador do
indivduo relacionado ao desenvolvimento de um carter pautado na
moralidade, funcionando como condicionante do progresso individual.
Por tudo isto, Smiles negligencia a luta de classes, o antagonismo entre
proletariado e burguesia, acreditando que a superao das diferenas se
daria na dedicao ao trabalho, na disciplina da profisso, consolidando
a importncia da moral como determinante na organizao social dos
indivduos. A diferena entre os homens, segundo Smiles, se faz pela
inteligncia das suas observaes, condio essencial para o sucesso
na vida. Nessa obra, sua viso exalta uma espcie de darwinismo social
em que os mais fortes refere-se fora de vontade superariam os
mais fracos.
Fortalecer o carter significava estabelecer uma continuidade na
ordenao desses valores. Smiles fundamenta a prtica da autoajuda, de
modo que sob a gide do mandamento moral, este controlaria o
individualismo que vinha se firmando desde o sculo XVII. O autor
menciona algumas palavras de Herbert Spencer acerca da educao
moral:
A supremacia do domnio sobre si mesmo uma
das maiores perfeies do homem ideal. No
seguir todos os seus impulsos, no se deixar
arrastar por cada um dos desejos que nos
dominam alternativamente, mas, pelo contrrio,
saber manter-se num justo equilbrio, no se
deixar governar seno pelos sentimentos reunidos
numa espcie de conselho diante do qual cada
uma de nossas aes ser debatida e decidida com
38
No decorrer da obra, esta a expresso que aparece por conta, talvez, de seus tradutores.
88
calma: isso o que a educao moral, pelo menos,
se esfora por produzir. (SMILES, s.d, p. 75).
89
biogrficos como argumento para instituir modelos de conduta e
exemplos a serem perseguidos. A biografia pode ser considerada uma
forma particular de abordar a histria, de trazer tona elementos de
anlise de um contexto que transcende tanto quanto as suas influncias.
A biografia ultrapassa o tempo e repercute ao longo de uma poca.
Biografar - como se pode perceber no decorrer de sua obra o recurso
pedaggico usado pelo vitoriano para influenciar o indivduo a praticar a
autoajuda.
A tese central da qual parte Smiles para a construo de seus
argumentos em Ajuda-te explicitada pelo autor ao final do primeiro
captulo:
Os homens devem necessariamente ser os agentes
ativos de seu prprio bem-estar e do seu sucesso
no mundo e, que por muito de que os homens
sbios e bons sejam devedores aos outros, eles
mesmos que devem [...] ser os melhores
auxiliadores de si prprios. (SMILES, 1893, p.
30).
90
apenas fragmentos biogrficos, ou seja, utiliza recortes das histrias de
vida, fazendo meno especialmente s profisses exercidas pelos pais
dos homens retratados. Sapateiros, alfaiates, vidraceiros, corticeiros,
aougueiros, padeiros, entre outras profisses, so destaque nesse
captulo.
No segundo captulo, Smiles chama a ateno para o carter
industrial do povo ingls. Enfatiza o trabalho como princpio educativo,
colocando-o como um dever e uma bno. A atividade a que se refere
Smiles o trabalho manual. deste que surgem os inventores, homens
que, do ponto de vista do autor, so os responsveis pelo crescimento
das indstrias na Inglaterra. A mquina a vapor um dos exemplos a
que Smiles se reporta em vrias passagens de seu livro. Ela representaria
o monumento do poder do auxlio prprio no homem. (SMILES,
1893, p. 34). Em Vida e Trabalho, Smiles (1901, p. 2) reafirma que o
trabalho o melhor dos educadores, porque obriga o homem ao contato
de outros homens e das coisas como elas realmente so. Dentre os
exemplos de homens da indstria e da inveno, destaca James Watt,
George Stephenson e Arkwright.
O terceiro captulo versa sobre os trs grandes inventores da arte
cermica Bernard Palissy (vasos de barro), Friedrich Bttger (inventor
da porcelana dura) e Josiah Wedgwood (fabricante de louas)
biografados como empreendedores e como heris industriais do mundo
civilizado (SMILES, 1893, p. 104), uma vez que representam, para
Smiles, exemplos de dedicao ao trabalho, coragem e perseverana.
A perseverana e a aplicao ao trabalho o tema discutido por
Smiles no quarto captulo. E como lembra, o caminho da prosperidade
humana paralelamente velha e larga estrada da vontade perseverante;
e aqueles que so mais persistentes e tm amor sincero ao trabalho so,
em geral, os que obtm os maiores sucessos (SMILES, 1893, p. 105).
As biografias servem, nesse sentido, para ilustrar o que os inventores,
artistas, pensadores, como trabalhadores, fizeram e fornecem modelos
da mesma espcie e perseverana. (SMILES, 1893, p. 114). Alm
iniciou sua carreira como escritor e conferencista. Criou um grupo que se reunia no
Transcendental Club, o que deu origem ao nome do movimento, o transcendentalismo. As
fontes do seu pensamento podiam ser identificadas em muitos movimentos intelectuais como o
latonismo, neoplatonismo, puritanismo, poesia do Renascimento, misticismo, idealismo,
ceticismo e romantismo. Disponvel:
<http://www.sobiografias.hpg.ig.com.br/RalphWal.html>. Acesso em: 10 jul. 2010.
91
disso, nomes como George Stephenson, Shakespeare, Newton e
Beethoven voltam a ser mencionados.
Smiles aborda, no quinto captulo, que nenhum resultado se
conquista ao acaso, ou seja, a construo de uma trajetria profissional
bem-sucedida adquire-se somente pelo trabalho paciente, diligente, que
deve ser perseguido ao longo de uma vida. As grandes descobertas,
muitas atribudas a Newton, Darwin, Laplace, Galileu, so frutos no do
acaso, mas do empenho, da dedicao paciente ao trabalho de
investigao na qual culminou a produo cientfica dessas personagens
da histria. A referncia a tais personagens constri a histria da
formao de um carter verdadeiramente nobre nas condies mais
humildes da vida. (SMILES, 1893, p. 169). H uma nfase no valor do
trabalho como aquele que educa e protege do que amoral e ajuda a
escrever uma histria de vida.
No sexto captulo, Smiles insiste na importncia da autoaprendizagem, desconsiderando o papel da escola, um aprendizado que
se d pelo esforo prprio, pela prtica, captando ensinamentos de
homens de exemplos. Ele relembra um trecho dos escritos de
Beethoven: homem! Ajuda-te a ti mesmo!. Esta era a divisa da
sua vida artstica. (SMILES, 1893, p. 223). Tanto no quinto quanto no
sexto captulos so exibidos excertos biogrficos de homens humildes,
das camadas populares, pelos quais Smiles fez questo de enfatizar a
possibilidade de ascenso social.
Nas observaes do stimo captulo, h um retrato de homens aos
quais Smiles ressalta o esprito empreendedor e a nobreza de carter,
muito mais do que a nobreza de sangue:
O sangue de todos os homens decorre de origens
igualmente remotas; e ainda que alguns haja que
possam traar a sua descendncia alm dos seus
avs, todos, entretanto, tm igual direito de
colocar no alto da sua rvore de gerao os
grandes progenitores da espcie humana.
(SMILES, 1893, p. 229).
92
Em Energia e coragem, chamada do oitavo captulo, Smiles
discute a importncia da fora de vontade como determinante do
progresso individual. Homens de negcios, nono captulo, Smiles elenca
alguns exemplos: David Ricardo, John Stuart Mill, Herbert Spencer41,
Shakespeare, entre outros nomes. O autor percebe que o caminho para o
sucesso passa necessariamente pela dedicao ao trabalho. Para
alcan-lo, o trabalho paciente e a assiduidade so to necessrios como
adquirir conhecimentos, ou fazer progressos na cincia. (SMILES,
1893, p. 304). Valendo-se de histrias pessoais, afirma que trs coisas
so necessrias para ser hbil em qualquer profisso: propenso natural,
estudo e prtica. (SMILES, 1893, p. 305). Nos negcios, o autor
considera que o grande segredo do sucesso ocorre pela prtica sbia e
diligentemente dirigida. Relembra a fbula dos trabalhos de Hrcules42
como exemplo de sucesso: Deveria fazer-se sentir a todos os jovens
que a felicidade e bem-estar na vida dependem deles mesmos, e do
exerccio das suas prprias energias, mais do que do auxlio e proteo
dos outros. (SMILES, 1893, p. 305). Nestas circunstncias, caberia ao
homem estruturar sua vida no em funo ou dependncia de outros,
mas por si s, pelo trabalho e empenho prprios.
Smiles v no trabalho, assim como Marx via embora por
diferentes perspectivas - a fonte de toda a construo da histria humana
e a base que garante a produo da existncia do homem. A
necessidade do trabalho pode, na verdade, ser considerada como a raiz
principal e a fonte de tudo o que chamamos progresso individual e
civilizao das naes; e caso para perguntar se haveria maldio
41
Foi um dos primeiros investigadores a defender a teoria evolucionista. Tentou aplicar o
conceito de evoluo no s biologia, mas tambm psicologia, sociologia, tica e
poltica. Defendeu que o processo de seleo natural se aplicava sociedade - o chamado
darwinismo social -, levando eliminao dos socialmente mais fracos. A sua obra mais
conceituada The Synthetic Philosophy (1896). A obra do filsofo ingls Herbert Spencer
inseparvel da ideologia do progresso - da idia de um desenvolvimento progressivo da
Humanidade e do evolucionismo cultural e social - que marcou o sculo XIX. Spencer introduz
as hipteses evolucionistas em 1854, em Social statics, que sero igualmente defendidas por
Darwin, em 1859, na sua obra A origem das espcies. Com uma importncia decisiva nos
Estados Unidos, Spencer no marcar de igual modo a Sociologia francesa, graas aos ataques
que lhe foram dirigidos por Durkheim. Disponvel em: <http://www.infopedia.pt/$herbertspencer>. Acesso em: 14 de ago. 2010.
42
O esforo e a superao de obstculos so contados na fbula em que Hrcules recebe 12
trabalhos do Rei de Argos, seu primo Euristeu. Os trabalhos so: vencer o Leo de Nemeia,
Hidra de Lerna, Javali de Erimanto, Cora de Cerinia, Aves do lago de Estinfalo, Estbulos de
Augias, Touro de Creta, guas de Diomedes, Bois de Gerio, Cinturo da Rainha Hiplita,
Busca do co Crebro, Pomos de ouro do jardim das Hesprides. Para conhecer mais sobre os
trabalhos de Hrcules, consultar Brando (1997).
93
maior para o homem do que a satisfao completa de seus desejos sem
esforo de sua parte, sem ter nada a esperar, a desejar, ou a conquistar.
(SMILES, 1893, p. 307). A motivao humana concretiza-se no
trabalho. Apesar de Smiles no apontar como eram as relaes de
trabalho, o autor evidencia em seus relatos que compete a cada homem
individualmente, pelos seus desejos, empenhar-se para conquistar o que
almeja. Em geral, as descries que aparecem em seu livro enfocam o
indivduo mais como um trabalhador independente e solitrio em suas
aes do que um trabalhador que divide um espao de trabalho com
outros trabalhadores. Ele no menciona o trabalho coletivo.
Smiles transcreve uma carta escrita por Lord Melbourne a Lord
John Russell em resposta a um pedido de emprego para um dos filhos do
poeta Moore:
Meu caro Joo, dizia ele; devolvo-lhe a carta de
Moore. Farei prontamente o que me pedes
quando isso me for possvel. Sou de opinio que
o que se fizer ser feito por Moore ele mesmo.
Isso mais claro, direto e inteligvel. difcil
justificar uma pequena proviso para um rapaz e,
alm disso, no h nada que lhe seja prejudicial.
Julga ter muito mais do que realmente tem, e no
faz esforo algum. Os rapazes no deveriam
ouvir outra linguagem seno esta: Tendes de
fazer a vossa carreira, e depende dos vossos
esforos morrerdes de fome ou no. Creia-me
etc. (MELBOURNE, s.d apud SMILES, 1893, p.
305).
94
Levam o homem para adiante, formam o carter e
estimulam os outros. Nem todos se levantam a
igual altura, mas, no entanto, cada um chega
quase sempre a uma posio correspondente aos
seus merecimentos. (SMILES, 1893, p. 306).
95
mencionados anteriormente, a educao vista como um fator de
estmulo ao desenvolvimento humano. A educao a que Smiles se
refere no tem relao com a educao formal dos bancos escolares.
Esta ocupa uma posio secundria e pode ser relativizada em seus
escritos. Como j foi comentado, o trabalho educa, organiza, aproxima
os homens, estabelece relaes sociais. a isso que Smiles se refere
quando prioriza o trabalho como educativo em detrimento dos
conhecimentos adquiridos na escola. Tanto assim, que faz uma
verdadeira apologia ao trabalho ou quase uma evangelizao em torno
deste. O fato que a escola, para Smiles, no ensina os valores morais.
A escola da dificuldade a melhor escola da disciplina moral para as
naes e os indivduos. (SMILES, 1893, p. 391). Alm da experincia
prtica adquirida pelo trabalho -, dos bons exemplos, as dificuldades
so consideradas instrutivas e participam em grande parte na formao
do carter, uma vez que os trabalhos bem suportados exercitam o
carter e ensinam a auxiliar-nos a ns mesmos; e so utilssimos, ainda
que no queiramos reconhecer. (SMILES, 1893, p. 390). A
perseverana o outro elemento instrutivo do carter do indivduo ao se
considerar que esta aperfeioa suas qualidades, no se entregando
preguia e ociosidade. A perseverana tambm explica, segundo
Smiles (1893, p. 409), como
a posio dos rapazes na escola invertida depois
na vida real; e curioso observar como que
alguns, que foram to hbeis, se tornaram depois
to vulgares, enquanto que rapazes estpidos, dos
quais no se esperava coisa alguma, vagarosos no
desenvolvimento das suas faculdades, mas firmes
no caminhar, conquistaram a posio de chefes e
condutores de homens. O autor deste livro
[Samuel Smiles], sendo criana, tinha na sua
classe um companheiro dos mais estpidos. Todos
os professores tinham experimentado com ele
todos os meios sem nada conseguirem. Castigos
corporais, carcias, splicas: tudo era intil. Por
vrias vezes, se experimentou p-lo no primeiro
lugar da classe, e era curioso ver a rapidez com
que ele cai inevitavelmente no ltimo grau. Seus
mestres o abandonaram como estpido
incorrigvel, e um deles chegou a dizer que era
dotado de uma estupidez fenomenal. Entretanto,
apesar de lento, o estpido tinha em si uma
96
espcie de energia ntima e de tenacidade que se
desenvolveram ao mesmo tempo que os seus
msculos; e, coisa muito para estranhar, quando
afinal ele chegou a ter parte nas coisas prticas da
vida, viram-no tomar dianteira ao maior nmero
dos seus condiscpulos e deixar quase todos para
trs. A ltima vez que o autor teve notcias desse
condiscpulo, era ele o chefe da magistratura da
sua terra natal.
97
apresentados sob a forma do incentivo prtica da autoajuda. A fora,
a indstria, a civilizao das naes, tudo depende do carter individual
[...] as leis e as instituies no so mais do que as manifestaes do
carter. (SMILES, 1893, p. 438). Homens de bom carter no possuem
uma hierarquia social. Tanto o operrio quanto um senador podem, na
opinio de Smiles, apresentar-se como exemplos a serem imitados. Ele
faz uso de parbolas bblicas para enaltecer os seus argumentos,
recorrendo principalmente s palavras de Salomo e So Paulo.
Aquele que relaxa no seu trabalho irmo do que desperdia o que
possui. Vai, preguioso, vai ver a formiga; olha para os meios que ela
emprega; e volta sbio. (SALOMO, s.d apud SMILES, 1893, p.
346); O caminho do homem ocioso uma cerca de espinhos.
(SALOMO, s.d apud SMILES, 1901, p. 24).
2.5 O TRABALHO APERFEIOA O CARTER
Herbert Spencer (1820-1903) um dos filsofos admirados por
Samuel Smiles. Em O carter, Smiles (s.d, p. 75) argumenta,
referenciando Spencer, que a supremacia do domnio sobre si mesmo
uma das maiores perfeies do homem ideal. De acordo com Orso
(2007, p. 167):
Herbert Spencer defende que o princpio do
laissez-faire seja levado ao seu extremo e que a
teoria da seleo natural de Darwin seja aplicada
ao campo social. Diz que o processo evolutivo
est marcado por uma adaptao cada vez mais
completa do indivduo ao meio, sobrevivendo
apenas os mais aptos, garantindo, assim, o
aperfeioamento da sociedade. A seleo natural
defendida por Spencer desemboca no darwinismo
social, no laissez-faire, no predomnio da
competio e do livre-mercado.
98
coragem nos momentos difceis45. (SMILES, s.d, p. 62). Spencer que
trabalhou, assim como Smiles, na construo das estradas de ferro
inglesas, tinha uma viso evolucionista da sociedade humana, segunda a
qual a fonte do progresso estaria, necessariamente, associada ao
desenvolvimento do individualismo.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a filosofia do laissez-faire
defendida pelos fisiocratas e pelos clssicos mostrava sinais de que a
regulao do mercado pelas leis naturais desmoronava diante dos
problemas sociais e das crises nas economias nacionais. Na defesa do
individualismo e do liberalismo econmico, o sistema capitalista se
instaura, [e] o controle sobre o indivduo mediado diretamente pelas
relaes sociais de produo e indiretamente pelo Estado.
(PALANGANA, 1998, p. 26).
Este o perodo em que Marx analisa a dissoluo das relaes
cooperativas entre os trabalhadores colocados sob o jugo de um
processo de trabalho que faz do homem o apndice da mquina, cuja
jornada de trabalho exaustiva e degradante. medida que avana o
processo de industrializao, o espao do indivduo se reduz fbrica.
Em Smiles, o processo de industrializao representa a expresso da
potencialidade criativa do homem, enquanto que em Marx, ao longo
das transformaes da sociedade burguesa [...] s restam duas
45
99
categorias: ou se trabalhador ou se capitalista. (PALANGANA,
1998, p. 44). Das relaes de produo naquele perodo, observa
Palangana, decorre uma autoridade absoluta do capital sobre os
homens, da qual ningum consegue furtar-se, independentemente da
hierarquia social. (PALANGANA, 1998, p. 45).
Buscando referncia no texto Dos nomes e das proposies de
Stuart Mill, Palangana (1998, p. 41) destaca que este autor se pronuncia
sobre o momento no qual a sociedade se volta para o indivduo, a fim
de educ-lo. [...] preciso conhecer o indivduo, como ele pensa, sente,
aprende e se comporta. Com o desenvolvimento das foras produtivas,
o indivduo se forma, no corpo e no esprito, segundo as prescries e
necessidades da sociedade que toma a tcnica como fim e no como
meio. (PALANGANA, 1998, p. 46).
Para atender as necessidades da sociedade industrializada, o
trabalhador tem de comear sua aprendizagem muito cedo, a fim de
adaptar seu prprio movimento ao movimento uniforme e contnuo de
um autmato. (MARX, 1968, p. 481). o ritmo da mquina que
determina o perfil do trabalhador que, adaptado, produz ainda mais para
o capital. O trabalho com uma invarivel regularidade desafia o
indivduo a renunciar aos hbitos irregulares de trabalho (MARX,
1968, p. 485), forando-o a identificar-se com a disciplina necessria
produtividade imposta na jornada de trabalho.
Como afirma Marx (1968, p. 485), por meio do cdigo da
fbrica, [que] o capital formula, legislando particular e arbitrariamente,
sua autocracia sobre os trabalhadores, pondo de lado a diviso de
poderes to proclamada pela burguesia. Na fbrica, o capital exerce
toda sua capacidade reguladora, conformando o indivduo com tanta
eficincia, de maneira que eleva ainda mais o grau de submisso deste
ao capital.
O trabalho organizado nos moldes capitalistas veio demandando,
ao longo do processo produtivo, a transformao da natureza fsica e
espiritual do indivduo na sua relao com a atividade produtiva,
forando-a a esta estrutura se ajustar.
Assim, como o Estado foi modificado, para assegurar a produo
capitalista, tambm o indivduo precisou mudar para responder s
necessidades desse novo modo de produo, que, sabiamente, converteu
fora de trabalho em mercadoria, viabilizando a acumulao de capital.
A despeito das mudanas que o indivduo precisou incorporar em sua
100
natureza, se, por um lado, h por parte do capital um movimento que
explora construindo um homem de novo tipo, h tambm por parte da
autoajuda na voz de Smiles - um movimento que refora os preceitos
do individualismo sob o Estado liberal burgus, fazendo com que os
mesmos percebam que, sempre que os homens esto sujeitos a um
excesso de proteo ou de governo, tal sistema tende inevitavelmente a
reduzi-los a um estado de impotncia relativa. (SMILES, 1893, p. 1).
Nos textos de Smiles no h referncia a problemas sociais, no
h explorao, no h degradao humana motivadas pela brutalizante
jornada de trabalho, no h conflitos entre o capitalista e o trabalhador.
O pregador da autoajuda para trabalhadores dissemina valores liberais
bem sedimentados, divulga seu pensamento no intuito de fortalecer
aes de carter individual desconsiderando tais problemas, pois
necessrio firmar os preceitos liberais, substanciados pelo
individualismo como forma e estratgia para manter o povo ingls
trabalhando sob o argumento do crescimento da nao.
No discurso de autoajuda em tempos de Smiles, o trabalho
utilizado como um dos principais argumentos para manter e elevar a
produtividade, o que explicaria tamanha nfase educao do carter,
de uma educao pelo trabalho artesanal, e tambm aos homens pobres
mais virtuosos que pelas aes demonstravam elevao de carter. Mas
o trabalho visto como um dos principais educadores do carter
prtico produz a disciplina, a obedincia, a conscincia, a ateno, a
aplicao e a perseverana, dando ao homem destreza e habilidade em
sua profisso, a aptido e a inteligncia indispensveis para dirigir os
negcios de sua vida. (SMILES, s.d, p. 49, sem grifos no original).
A dinmica imposta pelo capital ao trabalhador forou-o a
adaptar-se, a mudar sua natureza para dar conta do processo de trabalho
que se colocava. Em Smiles, no perodo em que o trabalhador precisa se
ajustar estrutura de produo, as condies sob as quais isso acontece
no so discutidas.
Tambm a indolncia vista por Smiles como igualmente
degradante para os indivduos e para as naes. (SMILES, s.d, p. 49).
Talvez no haja em toda a natureza humana uma tendncia que mais se
deva combater do que a preguia. (SMILES, s.d, p. 49). Ainda para o
autor: A obrigao do trabalho aplica-se a todas as classes e a todas
condies da sociedade. Cada um em sua esfera tem sua obra a cumprir.
101
Ser ocioso e intil no nenhuma honra nem privilgio. (SMILES, s.d,
p. 50).
Smiles preocupou-se em constituir e fundamentar suas ideias
objetivando imprimir no trabalhador ingls um jeito de ser. Ao
difundir o individualismo, era preciso tornar as pessoas predispostas a
assumir mecanismos disciplinares de tal forma que, de to naturalizados,
o princpio do governo de si mesmo sedimentasse um agir individual
em que o homem assumisse que o seu destino nada mais era do que
resultado de suas obras. No auge da concepo de uma individualidade,
subjetividade privatizada, no mais presa s foras divinas ou naturais, a
formao de um homem de novo tipo embasa o ideal de que o
desenvolvimento do potencial de cada um se d por meio de um
rigoroso disciplinamento interior.
A autoajuda constituda por Smiles representa uma tentativa de
conciliar concepo moral do mundo fomentando o individualismo,
dada a necessidade de se camuflar a desigualdade de classes e a
explorao do trabalho, apelando para perspectivas e exemplos de
trajetrias individuais de homens de sucesso.
Os livros de Smiles revelam grande homogeneidade. O uso
abundante de exemplos extrados tanto de biografias, de falas de
personalidades do mundo poltico e acadmico, de frases bblicas,
provrbios, metforas, parbolas busca dar legitimidade e fora s
assertivas morais do autor, que esto presentes em seus livros, sendo
fontes de julgamentos sobre os homens e os fatos, direcionadas ao
abandono de maus hbitos, ligados, na maioria das vezes, prtica de
sociabilidade de setores tidos por menos civilizados. (BASTOS, 2000).
Para os objetivos desta pesquisa, selecionaram-se quatro obras
listadas abaixo por sintetizarem os fundamentos do discurso de
autoajuda no sculo XIX.
102
Ttulo
Self-Help
O carter
O dever: coragem,
pacincia e resignao
Vida e trabalho
Ano da
1. edio
1859
1871
1880
Inglaterra
Inglaterra
Inglaterra
Ano da ltima
edio
2006
2006
2009
1887
Inglaterra
2009
Pas
103
precisa cultivar a responsabilidade, quer na esfera familiar, na profisso
ou no exerccio de funes polticas. (CERCATO, 2006). O autor
assinala a importncia da nobreza do carter, destacando que o que
eleva um pas e lhe d a fora e dignidade, e
difunde o seu poderio, cria a sua influncia moral,
fazendo-a respeitada e obedecida, cativa a
simpatia de milhes de homens, e abate o orgulho
das outras naes, tornando-a instrumento da
obedincia, a fonte da supremacia, o verdadeiro
trono, a coroa, e o scepiro [sic] da prpria nao,
a aristocracia, no de sangue, da moda, ou do
talento somente, mas a aristocracia do carter. O
carter o verdadeiro braso do homem
(SMILES, 1893, p. 438).
104
frase cheia de verdade: Os partidos na Inglaterra
recorrem ao auxlio dos homens e gnio, mas s
se deixam guiar por homens de carter. (SMILES,
1893, p. 439).
105
no possamos chegar ao fim que nos
propnhamos, no podemos deixar de nos
melhorar com cada esforo leal que fazemos para
subir. (SMILES, s.d, p. 19).
106
homens que se deve contar para apreciar as qualidades de uma nao,
mas tambm com o carter que domina na grande massa do povo
(SMILES, 1893, p. 24). O autor preocupa-se em ressaltar que
as naes, como os indivduos, tm de sustentar
seu carter; e sob um governo constitucional em
que todas as classes participam mais ou menos do
exerccio do poder poltico o carter nacional
depende necessariamente mais das qualidades do
maior nmero do que do menor. (SMILES, s.d, p.
24).
107
inevitvel. (SMILES, s.d, p. 27, sem grifos no
original).
108
simplesmente em fora para o mal. (SMILES,
1910, p. 30)
109
mesmo uma fora de vontade e de livre ao que,
corajosamente empregada, lhe permitir escolher
seus amigos e sua sociedade. S por falta de
resoluo que os jovens, da mesma maneira que
os velhos, se convertem em escravos de suas
inclinaes ou se entregam a uma imitao servil.
(SMILES, s.d, p. 41).
110
47). No perodo em que permaneceu em Leeds, Inglaterra, dedicou-se a
estudar o carter dos homens que julgava dignos de servirem de
exemplo, considerados edificantes pela sua industrialidade, convertendo
suas anlises em biografias.
Sendo assim, os excertos biogrficos selecionados por Smiles
servem de guia e de incentivo, uma vez que ensinam
as normas de bem viver, de bem pensar, de
trabalhar cada um energicamente em seu prprio
proveito e no de seus semelhantes. Tm quase
tanto valor como os Evangelhos, pelos preciosos
exemplos que elas fornecem de caracteres nobres
e viris lentamente formados pela eficcia do
esforo pessoal, da firmeza de propsitos, da
assiduidade no trabalho, da constncia na
integridade. (SMILES, 1901, p. 98).
111
nunca o mandaram escola. No teve outra
educao seno a que ele deu a si prprio e
sempre teve dificuldade de escrever. Na sua
mocidade, foi aprendiz de barbeiro e, depois de ter
aprendido o ofcio, foi estabelecer-se em Boulton
numa loja abaixo do nvel da rua, com uma
taboleta em que se lia: Venham ao barbeiro
subterrneo Faz a barba por um penny. [...]
Arkwright, que tinha gosto pela mecnica, teve
ento o desejo de se fazer inventor de mquina ou
o bruxo, como ento se dizia vulgarmente.
Fizeram-se nessa poca vrias tentativas para
inventar um tear e o nosso barbeiro resolveu-se a
tentar com os mais a resoluo do problema. [...]
Dedicou-se com tanta assiduidade s suas
experincias que desprezou o seu negcio, perdeu
o pouco dinheiro que tinha economizado, e ficou
reduzido misria. [...] Arkwright largou ento o
comrcio de cabelos e dedicou-se ao
aperfeioamento de sua mquina. [...] a patente de
inveno foi concedida em nome de Richard
Arkwright, de Nottingham, relojoeiro e
circunstncia digna de notar-se, foi expedida em
1679, no mesmo ano em que Watt obtinha o
privilgio para a sua mquina a vapor. [...]
Estabeleceu novos teares no Lancashire, no
Derbyshire e em New Lanark, na Esccia. O tear
de Cromford passou tambm por suas mos
quando findou a sua sociedade com Strutt e eram
tais o nmero e a superioridade dos seus artefatos,
que em pouco tempo conseguiu ser o regular
exclusivo desta indstria, a ponto de que era ele
quem fixava os preos e servia de norma nas
principais operaes dos outros fabricantes.
(SMILES, 1893, p. 41-42).
112
o filho mais novo de um respeitvel rendeiro,
pouco importante, em Duffield, no Derbyshire, e
nasceu nessa localidade em 1783. Fez rpidos e
constantes progressos na escola, de onde o tiraram
muito cedo para o meterem como aprendiz na
oficina de um fabricante de caixilhos de ferro,
perto de Loughborough. O rapaz aprendeu
depressa a servir-se da ferramenta com destreza e
adquiriu perfeito conhecimento das partes
componentes do tear de fazer meia, assim, como
da mais complicada mquina de fiar (warp). [...] o
primeiro
aperfeioamento
que
conseguiu
introduzir foi no tear no qual, por meio de um
aparelho engenhoso, produzia malhas que tinham
a aparncia da renda. E foi este fato que o
resolveu a continuar os seus estudos para inventar
uma mquina de fazer rendas. (SMILES, 1893, p.
54).
113
na formao do carter. Smiles (s.d, p. 47) fez das biografias um de seus
recursos pedaggicos.
A utilidade das biografias, na viso do autor (1893, p. 425), se
deve abundncia de nobres modelos que apresentam. Ao fazer uso
desse recurso pedaggico, o vitoriano objetivava fornecer exemplos para
que seu pblico pudesse estudar, admirar e imitar os homens de
sucesso em suas trajetrias de vida. As biografias aumentam a
confiana do homem em si prprio, demonstrando o que ele pode ser,
[...] elevando suas aspiraes. (SMILES, 1893, p. 426). Smiles
construiu, durante as dcadas em que se dedicou a biografar, uma
corrente do exemplo. O carter didtico das aes exemplificadoras
utilizadas por Smiles tinha o propsito de mobilizar jovens
trabalhadores da Inglaterra, de maneira que estes assumissem para si
responsabilidade pela conduo e construo de suas trajetrias.
Encarregar-se de si prprio supe que a pessoa seja responsvel pelos
seus sucessos e, principalmente, assuma como seu o nus dos fracassos.
Tratava-se da defesa dos preceitos liberais, da meritocracia, dos
privilgios do sangue.
Ao longo de vrias dcadas, o discurso de Smiles vigorou no
sentido de fortalecer a construo de um trabalhador virtuoso, da moral
e observador do dever para com o trabalho e com Deus. No progresso
histrico-religioso da eliminao da magia do mundo, a literatura de
Smiles est em consonncia com a literatura puritana inglesa que
adverte contra qualquer confiana na ajuda da amizade dos homens.
(WEBER, 1996, p. 73).
Mostrando princpios de um projeto de formao, Smiles (s.d, p.
25) frisa sua concepo de histria:
[...] a histria universal no outra coisa mais do
que a histria dos grandes homens. Certamente,
so eles que marcam e designam as pocas da
vida de uma nao. Ainda que, at certo ponto,
seu esprito seja o produto do tempo em que eles
vivem, o esprito pblico tambm em grande
parte criado por eles. Sua ao individual
identifica a causa e o resultado. Tm grandes
pensamentos que vo se espalhando por toda a
parte e produzem os acontecimentos. Homens
como esses so a verdadeira seiva do pas a que
pertecem. Elevam-no e sustentam-no, fortificam-
114
no e enobrecem-no e derramam glria sobre o
exemplo que deixaram.
115
pobre, que foi obrigado, para ganhar a vida, a
trabalhar como torneiro, jardineiro e fabricante de
relgio. E mesmo durante o tempo em que
trabalhava com as mos, estava formando o
carter de seu pas, e era moralmente mais forte,
mais honrado e mais ouvido do que todos os
prncipes da Alemanha.
116
se de orientar a conduta individual mediante ideias religiosas, puritanas.
Nesse aspecto, o trabalho de Smiles aproxima-se de um trabalho
pastoral divulgando uma moralidade asctica, do trabalho como uma
vocao46. De acordo com a teoria weberiana, a religio motivou
diferentes formas de o indivduo se comportar. Tal comportamento, em
Smiles, pressupunha um agir moral articulado formao do carter.
interessante observar que o trabalho alienado, executado em
condies, degradantes nas ltimas dcadas do sculo XIX, apontado
como forma de ascenso do indivduo. Os princpios da doutrina liberal
que preconizam o desenvolvimento individual por meio do trabalho e do
talento so os instrumentos legtimos para a aquisio de bens materiais
e da prpria ascenso social. Tanto assim, que Smiles faz uma
verdadeira apologia aos homens que trabalham na indstria, vista como
um polo de desenvolvimento e amadurecimento de talentos. Smiles
(1893, p. 31) destaca que uma das feies mais notveis do povo ingls
o seu gnio industrioso. Em sua opinio, o desenvolvimento da
Inglaterra resultado do empenho da energia individual, e do nmero
de cabeas e braos que, em todas as pocas, se empregaram ativamente
na cultura do solo, na produo de artigos de utilidade, na fabricao de
ferramentas e mquinas, na publicao de livros e jornais. (SMILES,
1893, p. 31).
Apesar do registro acima, vale ressaltar que as situaes
escolhidas e que figuram nas publicaes de Smiles caracterizam o
universo de pessoas em condies financeiras estveis. As carreiras
exitosas e os exemplos de vida de pessoas bem-sucedidas forneceram as
bases para a elaborao da autoajuda smilesiana. O trabalhador, o
operrio da fbrica, partcipe do processo de industrializao, no
contemplado, uma vez que a rotina brutalizante, desgastante, no
aparece em seus escritos. Contemplados so os trabalhadores manuais
que em atividades autnomas ascendem por esforo prprio, a exemplo:
aougueiros, sapateiros. (SMILES, 1893).
Enquanto Smiles supervalorizava o desenvolvimento econmico
e industrial da Inglaterra em meados do sculo XIX, as transformaes
decorrentes do progresso industrial como o excedente de riquezas ou as
46
Weber (1996, p. 53) destaca que, nesse conceito de vocao que se manifestou o dogma
central de todos os ramos do Protestantismo, descartado pela diviso catlica dos preceitos
ticos [...] e segundo a qual a nica maneira de viver aceitvel para Deus no estava na
superao da moralidade secular pela ascece monstica, mas sim no cumprimento das tarefas
do sculo, imposta ao indivduo pela sua posio no mundo. Nisso que est a sua vocao.
117
benesses da industrializao no chegavam aos operrios, que viviam
em condies sociais degradantes. Com a grande indstria, os
trabalhadores eram submetidos a jornadas de trabalho exaustivas,
condies de higiene precrias, remunerao incompatvel com as
longas horas trabalhadas. Ademais, tambm cresciam os ndices de
violncia e a prostituio aumentava medida que as cidades cresciam.
Esse era o panorama do trabalho fabril na Inglaterra no perodo de
Smiles47.
Na leitura das obras de Smiles, evidencia-se a meno de vrios
exemplos de pastores luteranos, com destaque s aes destes para com
os jovens. Smiles no professa abertamente sua religiosidade, como j
mencionado, mas, a partir de seus escritos nos quais valoriza Lutero e
Calvino como exemplos de todas as virtudes, tm-se elementos para
consider-lo protestante, compreendendo, assim, o porqu da construo
de um homem de novo tipo em meados do sculo XIX calcado na
construo de uma moral e de um carter individuais.
Na acepo de Palangana (1998, p. 31),
o indivduo, criado pela organizao do trabalho
nos moldes do capitalismo, exaltado e
dignificado na concepo protestante-burguesa
enquanto pessoa autnoma, dona de seus atos;
enquanto pessoa que deve ser reconhecida e
valorizada por aquilo que ela , na sua bondade,
na sua capacidade de resignao, no seu esprito
cristo e no por aquilo que faz, pelo seu
trabalho.
118
Smiles, estariam por detrs daquilo que conduziu essa nao ao
desenvolvimento. preciso ressaltar que, do ponto de vista desse autor,
as invenes no seriam a essncia que determinaria tal crescimento,
mas antes um agir comportamental, dotado de moralidade e
fortalecimento do carter. O carter manifesto serviria de modelo,
justificando os sucessivos exemplos de homens de carter exemplar
enfatizados em seus escritos.
Alm de a preocupao de Smiles incidir sobre a formao moral
articulada aos exemplos de homens de elevado carter, h outra questo
igualmente importante, ainda que esta esteja um pouco subsumida em
seus textos: a religio48.
Para Smiles, o homem poderia ajudar-se de duas maneiras: a
primeira, praticando a autoajuda; posteriormente, depois de ajudar-se, a
sim deveria contar com a ajuda de Deus. deste modo que a reforma
individual, condio essencial para a reforma social, estaria atrelada
devoo a um Deus. Em Ajuda-te, so poucas as passagens nas quais o
autor deixa aflorar a sua religiosidade. Seu credo religioso aparece de
forma discreta ao pronunciar passagens de referncia a Lutero e
Calvino. Mas isso compreensvel, uma vez que quem professa uma
crena no a manifesta em palavras, mas em atitudes, em uma tica de
vida, em uma concepo de mundo e de homem. Em Smiles, o que
perceptvel que trabalhar significa mais do que garantir a produo
da existncia numa perspectiva marxiana -, mas antes uma forma de
redeno. O trabalho , de fato, a melhor proteo da inocncia e da
virtude. uma barreira contra toda a sorte de pecados e vcios,
guardando as entradas do corao, e afastando todos os ensejos e
tentaes de pecar. (SMILES, 1901, p. 24). Professando em seu
discurso o credo calvinista, Smiles permite entender a sua posio em
relao ao trabalho visto como virtude, um chamamento divino.
48
Em Gramsci (2007, p. 209-210), tem-se que a palavra religio, em seu significado mais
amplo, denota um vnculo de dependncia que religa o homem a uma ou mais potncias
superiores, das quais ele se sente dependente e s quais tributa atos de culto, ora individuais,
ora coletivos. No conceito de religio, portanto, esto pressupostos os seguintes elementos: 1)
crena de que existam uma ou mais divindades pessoais que transcendem as condies
terrestres temporais; 2) o sentimento dos homens de que dependem destes seres superiores que
governam totalmente a vida do cosmo; 3) a existncia de um sistema de relaes (culto) entre
os homens e os deuses. Salomo Reinach, no Orpheus, define a religio sem pressupor a crena
em poderes superiores [...]. Caberia tambm examinar se possvel chamar de religio uma
f que no tenha por objeto um deus pessoal, mas s foras impessoais e indeterminadas. No
mundo moderno, abusa-se das palavras religio e religioso, atribuindo-as a sentimentos que
nada tm a ver com as religies positivas.
119
Em A tica protestante e o esprito do capitalismo, publicado um
ano aps a morte de Smiles, Weber mostra como o protestantismo
asctico favoreceu a racionalizao da vida, a qual estaria materializada
na vida das pessoas pelo sistema econmico. Enquanto os catlicos
acreditavam na possibilidade de salvao pelas intenes, o Deus do
calvinista requeria de seus fiis, no apenas boas obras isoladas, mas
uma santificao pelas obras. (WEBER, 1996, p. 81-82). De acordo
com o autor,
os catlicos no levaram to longe quanto os
puritanos (e antes deles os judeus) a
racionalizao do mundo, a eliminao da mgica
como meio de salvao. Para eles, a absolvio de
sua Igreja era uma compensao para a sua
prpria imperfeio [...]. A vida do santo era
dirigida unicamente para um fim transcendental: a
salvao. Precisamente por esta razo, entretanto,
ela era completamente racionalizada do ponto de
vista deste mundo e dominada inteiramente pela
finalidade de aumentar a glria de Deus sobre a
terra. (WEBER, 1996, p. 81-82).
[Para os calvinistas], manteve-se como um dever
absoluto, de cada um considerar-se escolhido e de
combater todas as dvidas e tentaes do
demnio, j que a falta de autoconfiana era
resultado da falta de f, portanto, de graa
imperfeita. A exortao ao apstolo de
fortalecimento da prpria vocao aqui
interpretada como um dever de obter certeza da
prpria dedicao e justificao na luta diria pela
vida [...]. A fim de alcanar aquela autoconfiana,
uma
intensa
atividade
profissional
era
recomendada, como meio mais adequado.
(WEBER, 1996, p. 77).
120
humanidade salvao, mas para o calvinismo isso permaneceu um
mistrio, de tal sorte que os sinais materiais foram eleitos como aqueles
que fariam o homem ser reconhecido em suas aes. O carter
especfico do protestantismo consiste em levar o indivduo a uma atitude
de engajamento diante do mundo. Dessa maneira, o que Smiles fez foi
impulsionar um determinado modo de agir e compreender o mundo,
estimulando atitudes materializadas no trabalho de cunho individuais.
Na prtica, o trabalho comeou a ser encarado como vocao
divina e o conseqente sucesso significava sinal de que o indivduo
estava predestinado salvao. No por acaso que Weber relacionou a
tica protestante ao desenvolvimento do capitalismo. A partir dessa
viso, os protestantes calvinistas passaram a dedicar-se poupana de
uma forma mais contundente. Os homens, por meio da acumulao de
bens materiais, aproximavam-se de Deus e essa era a recompensa,
cumprindo assim duas finalidades, na perspectiva weberiana: favoreceu
o avano do capitalismo e ajudou a manter o credo religioso de maneira
mais vigorosa entre os protestantes. Na perspectiva de Smiles, as
iniciativas puritanas visam garantir o ascetismo49 e a moralidade do
trabalhador. Essas consistem em elementos para um novo modo de
vida difundido na possibilidade de ascenso pelo trabalho. Em Smiles,
trata-se da construo de uma tica do trabalho. Weber (1996, p. 50)
lembra que o trabalho a servio de uma organizao racional para o
abastecimento de bens materiais humanidade, sem dvida, tem-se
apresentado sempre aos representantes do esprito do capitalismo com
uma das mais importantes finalidades da vida profissional.
certo que o pensamento de Smiles coaduna com os preceitos
liberais em tempos de desenvolvimento do capitalismo, sendo, nesse
sentido, um de seus propagadores. A nfase ao trabalho como um dever
de cada um, como uma vocao est bem demarcada no referido
provrbio bblico. Em O dever, Smiles (1910) assinala que preciso
aceitar o cumprimento do dever como essncia da mais desenvolvida
civilizao. A idia do dever est diretamente associada
responsabilidade de cada um.
49
De acordo com Weber (1996, p. 131), desde que o ascetismo comeou a remodelar o
mundo e a nele se desenvolver, os bens materiais foram assumindo uma crescente, e,
finalmente, uma inexorvel fora entre os homens, como nunca antes na Histria.
121
A mxima Deus ajuda quem se ajuda, orientadora de aes em
Smiles, discutida em Weber (1996, p. 80), lembrando que esta se
reflete em aes prticas na vida dos adeptos do calvinismo.
[O calvinista] criava sua prpria salvao ou,
como seria mais correto, a convico disto. Esta
criao, todavia, no podia, como no Catolicismo,
constituir-se do acmulo gradual de boas obras
isoladas a crdito de algum, mas, muito mais, em
sistemtico autocontrole que a qualquer momento
se via ante a inexorvel alternativa: escolhido ou
condenado? (WEBER, 1996, p. 80).
122
Ao aliar a sua orientao religiosa sua incessante pregao,
Smiles trabalhou numa constante luta pela divulgao de um ideal de
homem, de um ideal de sociedade na qual a moral e o carter,
impregnados no desenvolvimento individual de auxlio prprio,
representariam a possibilidade para a reforma social. Weber (1996, p.
87) considera o calvinismo uma doutrina de predestinao como
fundamento dogmtico da moralidade puritana no sentido de uma
conduta tica metodicamente racionalizada. Essa racionalizao da
vida respaldada na religio permite que o homem trabalhe e acumule
sem que isso seja considerado pecado como no catolicismo.
H de se considerar, entretanto, que acumular no considerado
um ato pecaminoso j que o homem que no garante o seu sustento no
pode ser considerado senhor de si mesmo. (SMILES, 1893, p. 337).
Se acumular no pecado, o que dir economizar. A economia uma
das virtudes do calvinista. A economia representa, em grande parte, a
manifestao extremada do auxlio individual, da ao conservadora do
carter e da felicidade. O esprito da economia, nas palavras de Smiles
(1893, p. 338), foi formulado pelo Divino Mestre nestes termos:
Apanhai os bocados que ficaram, para que no se desperdice coisa
alguma. A economia tambm significa o poder de resistir a uma
satisfao presente a fim de assegurar um maior bem futuro [...],
representa o ascendente da razo sobre os instintos animais. (SMILES,
1893, p. 338). A autoajuda de Smiles aconselha o bom comportamento,
a regularidade, a prudncia e o cuidado em no desperdiar. A economia
representa, para os protestantes, o poder de resistir s tentaes, a
ascendncia da razo sobre os instintos animais, mas, principalmente,
cumpre o preceito da acumulao.
2.6.1 O trabalho como caminho virtuoso
A construo de um discurso estruturado em torno de provrbios
e citaes de homens representativos constitui um forte apelo ao
individualismo, estratgia caracterstica no discurso de Smiles. Sob esse
ponto de vista, em O carter que Smiles oferece ao leitor um captulo
inteiramente dedicado ao trabalho. Essa perspectiva de integrao de sua
concepo de trabalho est estritamente relacionada difuso de um
novo padro de sociabilidade, de uma nova concepo de mundo em que
se redefinem e ressignificam as representaes que os indivduos tm a
respeito do trabalho e, mais precisamente, sobre como agir num
contexto de mudanas.
123
Recordam-se alguns dos provrbios bblicos e citaes com que
Smiles (s.d, p. 48) inicia a discusso acerca do valor do trabalho:
Levanta-se e trabalha que o Senhor esteja contigo. Liv. I das Crnicas,
XXII, 16 [...] Trabalha como se te fosse preciso viver para isso; reza,
como se devesse morrer hoje mesmo. Provrbio toscano [...] pelo
trabalho que se reina. Lus XIV. Explicitam-se, assim, elementos que
torna possvel compreender o valor atribudo ao trabalho numa
sociedade em franco desenvolvimento. A posio dos trabalhadores
precisava se desvincular de uma tica catlica associada ideia de
intenes (WEBER, 1996) para uma conduta moral puritana movida por
aes. Por isso, o trabalho [...] produz a disciplina, a obedincia, a
concorrncia, a ateno, a aplicao e a perseverana, dando ao homem
destreza e habilidade em sua profisso, a aptido e a inteligncia
indispensveis para dirigir os negcios de sua vida (SMILES, s.d, p.
49). Evita com isso, a ociosidade considerada malfica, o que torna o
homem intil [...] este no vive, vegeta. (SMILES s.d, p. 51).
Tal afirmao sinaliza o fato de que a dedicao ao trabalho
constri a disciplina, alm de educar tambm o carter. (SMILES, s.d,
p. 52). a partir dele que se desenvolvem ainda as qualidades
necessrias para a boa conduta dos negcios [que] compreendem a
aptido, a competncia indispensvel para fazer frente, com sucesso, ao
trabalho prtica da vida, quer estmulo se ache na direo domstica,
quer no exerccio de uma profisso, na indstria. (SMILES, s.d, p. 52).
No que tange ao trabalho, ainda que no produza resultado algum, s
porque trabalho, vale mais do que o torpor; desenvolve as faculdades e
prepara para um trabalho til. O costume de trabalhar ensina o mtodo.
Obriga-nos a economizar tempo e a no dispor dele seno com uma
premeditao discreta. (SMILES, s.d, p. 52).
Os elementos constitutivos de uma tica do trabalho, assim
apresentados por Smiles, permitem um olhar acerca do esprito do
capitalismo, que, na perspectiva weberiana, estaria relacionado a uma
tica de vida. isso que Smiles visa fortalecer, um modo de ver e
encarar a existncia que passa basicamente por virtudes morais
prudncia, justia, temperana, fortaleza (SMILES, 1901) - coloridas
pelo utilitarismo. (WEBER, 1996). Quando Smiles se refere noo de
trabalho til e economia de tempo, importante recordar as sentenas
ou mximas de Benjamin Franklin (1706-1790) utilizadas por Weber no
esclarecimento do que constitui o esprito do capitalismo: Lembra-te
de que tempo dinheiro; Lembra-te de que o crdito dinheiro;
124
Lembra-te de que o dinheiro de natureza prolfica, procriativa. O
dinheiro pode gerar mais dinheiro; Lembra-te deste refro: O bom
pagador dono da bolsa alheia. (WEBER, 1996, p. 29-30). De fato, tal
noo de trabalho assim difundida por Smiles, como um princpio
educativo, educador de preceitos morais, contribui para o
desenvolvimento do capitalismo no decorrer do sculo XIX. Acreditavase que a vida disciplinada, asctica, orientada pelas mximas de
Franklin, conduziriam ao lucro. Essa ascese, ao se pensar na perspectiva
de Smiles, deveria ser praticada no trabalho com rigor, disciplina,
pacincia, coragem e resignao. (SMILES, 1910).
Em referncia ascese protestante, Smiles (s.d, p. 84) destaca que
o homem que trabalha deve ser econmico com os seus meios [...] no
tenta fazer-se passar por mais rico do que : no faz dvidas para no
abrir uma porta runa. Esta afirmao remete outra mxima de
Franklin que diz: Aquele que gasta inutilmente um groat [velha moeda
inglesa de prata] por dia, desperdia mais de seis libras por ano, que o
preo do uso de cem libras (WEBER, 1996, p. 31). A inclinao ao
gasto, ao desperdcio, deveria ser controlada pelo dever ao trabalho
asctico, por atitudes morais desenvolvidas no seu exerccio. Por isso,
valores como a honestidade so teis porque asseguram o crdito; do
mesmo modo a pontualidade, a laboriosidade, a frugalidade, e esta a
razo pela qual so virtudes (WEBER, 1996, p. 32).
Na construo de uma nova sociabilidade, a concepo de
trabalho difundida por Smiles contribuiu para a formao de um
trabalhador de modo que esse se envolvesse no sistema de relaes de
mercado, conformando-se com as regras de ao capitalistas
(WEBER, 1996, p. 34). A introduo de princpios morais importante
nesse processo, a exemplo do dever, visto que este no um
sentimento: um princpio que penetra na vida e se manifesta na
conduta e nos atos (SMILES, s.d, p. 87) determinando um modo de ser
e agir no mundo.
2.7 NO SOMOS SENO AQUILO QUE NS FAZEMOS:
A EDUCAO FORMAL EM SMILES
A progressiva consolidao de uma sociedade de mercado funda
a noo de um indivduo que deve tomar para si a direo de sua
trajetria de vida. uma tentativa de manter os laos sociais tradicionais
desagregados pelo modo de produo que se fortalecia no sculo XIX.
125
Foi com pesar que Smiles assistiu ao crescente avano das foras
produtivas, uma nova ordenao do processo de produo em que se
romperam os laos da relao mestre-aprendiz. Rdiger (1996, p. 46), a
esse respeito, destaca que Smiles viu com horror [...] destruio do
sistema de produo mercantil simples, baseado na manufatura
mecnica e no trabalho artesanal, que, na prtica, fundamentava
socialmente a antiga moralidade. Naquele perodo, os pregadores do
sucesso
sempre justificaram a acumulao de riqueza
como uma coisa econmica, social e moralmente
correta de se fazer [...]. Isso era bom, no somente
porque construa o carter do indivduo, mas
tambm porque permitia ao homem de sucesso
contribuir de alguma maneira para o bem-estar da
comunidade e da nao. (HUBER, 1987 apud
RDIGER, 1996, p. 47).
126
muito diferentes, subordinando a atividade
poltica economia: as leis naturais que sustentam
a idia de liberdade individual passaram a ser
entendidas como sujeitas s leis da produo e
troca [...]. Desse modo, Adam Smith tornou-se o
sustentculo da doutrina do laissez-faire, segundo
a qual a atividade dos indivduos, libertos tanto
quanto possvel de restries polticas, a
principal fonte do bem-estar social e fonte ltima
do progresso social. (CUNHA, 2001, p. 35).
51
Historiador, autor de Declnio e queda do Imprio Romano escrito em 1776 (ROSE, 1998, p.
35).
127
interessante observar que Smiles, em seu propsito de educar
trabalhadores, constri seus argumentos a partir de situaes vividas
por homens que considerava dignos de exemplos da cincia, da
literatura e da indstria. Fortalecendo tal concepo, salienta que foi
com estes que o Dr. Arnald trabalhou: ensinava os discpulos a
contarem consigo mesmos e a desenvolverem as faculdades pelos
prprios esforos, limitando-se ele a gui-los, dirigi-los, estimul-los e
anim-los. (SMILES, 1893, p. 360). Valendo-se do pensamento do
historiador, Smiles reafirma o trabalho como princpio educativo,
fortalecendo o compromisso e uma moral familiar.
Smiles um convicto de que o trabalho educa. Para tanto, utilizase de numerosos exemplos de homens de condio humilde, mostrando
como estes alcanaram posies distintas, uma vez que provam que o
trabalho no incompatvel com a mais alta cultura intelectual.
(SMILES, 1893, p. 361). E refora: O trabalho educa o corpo e o
estudo educa o esprito (SMILES, 1893, p. 36). Alinha-se a isso, que a
educao de cada um desenvolve tambm as faculdades e cultiva a
fora. A soluo de um problema auxilia a de outro e, por esta forma, o
conhecimento converte-se em faculdade. (SMILES, 1893, p. 360).
O trabalho do qual Smiles faz uma verdadeira apologia o
trabalho manual, tido como aquele capaz de prevenir e conservar o
esprito maligno afastado. Convm notar que, para que se possa evitar
a preguia, preciso preencher o tempo com ocupaes fortes e teis;
porque a luxria introduz-se facilmente nos vcuos que h em ns, a
inao da alma e a comodidade do corpo, porque ningum pode
conservar-se casto no meio de tentaes, quando goza de sade e est
ocioso. (SMILES, 1893, p. 360). Nesse sentido, de todas as ocupaes,
o trabalho manual o mais til e o mais eficaz para garantir que as
perturbaes causadas pelas influncias que desvirtuariam o trabalhador
pudessem preservar a ordem social. O trabalho assume carter
medicamentoso para atenuar ou evitar o desencadear de tal situao.
O trabalho manual visto como a primeira educao. Para
ilustrar essa compreenso, aponta o exemplo de Elihu Burritt52, a quem
o trabalho pesado foi necessrio para faz-lo estudar eficazmente,
deixando por mais de uma vez os estudos e aula que tinha que reger.
Sobre isso, dizia Smiles (1893, p. 364): Tornou a pegar no seu avental
52
128
de couro e voltou para a forja e a bigorna por causa da sade, quanto de
seu corpo como do seu esprito. Assim,
ensinar os rapazes a manejar a ferramenta numa
oficina tem, alm da vantagem de os educar no
conhecimento das coisas prticas, a de lhes
ensinar o uso de braos e das mos, de
familiariz-los com um trabalho salutar, de
exercitar a sua atividade em coisas visveis e
tangveis, de inculcar-lhes noes de mecnica
prtica, de os tornar capazes de executar trabalhos
teis e de fazer-lhes contrair o hbito de um
aturado esforo fsico. (SMILES, 1893, p. 364).
129
Segundo Smiles, a excelncia nunca concedida ao homem
seno como recompensa do trabalho. Se tendes grande talento53, o
trabalho o aperfeioar; se tendes recursos medocres, o trabalho suprir
o que vos faltar. Nada recusado ao trabalho bem dirigido e nada se
pode obter sem ele. (SMILES, 1893, p. 367).
Smiles acredita que no a quantidade de estudo, nem de
leitura, que se faz, que d a instruo real: a convenincia do assunto
do estudo para o objeto que se tem em vista, a concentrao do esprito
que se emprega no estudo e a disciplina habitual que presidem a
aplicao sistemtica de todas as foras intelectuais. (SMILES, 1893,
p. 369). O estudo mais proveitoso aquele que tem um fim e objeto
definidos (SMILES, 1893, p. 369). A leitura muito variada, disse
Robertson de Brighton, enfraquece o esprito como o fumo do tabaco e
serve de desculpa ao seu entorpecimento. (SMILES, 1893, p. 372).
Em seus escritos, Smiles busca em Pestalozzi respaldo para
afirmar que a instruo perniciosa, sendo que o que se aprende na
escola pode proteger o homem contra as vicissitudes da vida, mas no
pode, no mais pequeno gro, proteg-lo contra os seus vcios, se no for
fortalecida por costumes e princpios sos. (SMILES, 1893, p. 373). O
saber por si s, no sendo bem dirigido, s pode tornar mais perigosos
homens maus e converter a sociedade em que considerado como o
supremo bem, pouco melhor que pandemonium. (SMILES, 1893, p.
53
Aqui vale lembrar a Parbola dos talentos (Evangelho de Mateus cap. 25 vers. 14-29):
Como um homem que, ausentando-se do pas, chamou os seus servos e lhes confiou os seus
bens. A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um a cada um segundo a sua prpria
capacidade; e, ento, partiu. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com
eles e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas o
que recebera um , saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de
muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles, ento, aproximandose o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco
talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom
e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor. E,
aproximando-se tambm o que recebera dois talentos; disse: Senhor, dois talentos me
confiaste; aqui tens outros dois que ganhei. Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom e fiel;
foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei ; entra no gozo do teu Senhor. Chegando, por
fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que s homem severo, que ceifas onde
no semeaste e ajuntas onde no espalhaste, receoso, escondi na terra o teu talento; aqui o que
teu. Respondeu-lhe, porm, o Senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde no
semeei e ajunto onde espalhei? Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos
banqueiros; e eu, ao voltar, receberia com juros o que meu. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao
que tem dez. Porque a todo o que tem se lhe dar, e ter em abundncia; mas ao que no tem,
at o que tem lhe ser tirado. E o servo intil, lanai-o para fora, nas trevas. Ali haver choro e
ranger de dentes.
130
373). A cada indicao do que representa a educao do carter, Smiles
deixa um recado para que os jovens trabalhadores fortaleam as virtudes
morais de forma a construir seu bem-estar buscando bons exemplos.
De fato, para o autor, a ideia da necessidade sendo uma escola
pela qual se aprende permeia grande parte de suas obras. Ainda que esta
seja severa, mas so as experincias, lies de adversidades que
constituem os degraus que conduzem ao cu. (SMILES, 1893, p. 389).
Esse aprender o qual refora o publicista s se fortalece mediante
escola da dificuldade, que vista como a melhor escola de disciplina
moral para as naes e indivduos. (SMILES, 1893, p. 391).
nesse sentido que o principal objeto da educao no consiste
s em encher o esprito com pensamentos alheios, e em converter-nos
em receptculos de impresses mais ou menos estranhas, mas em
desenvolver a inteligncia individual e a fazer de ns, na sua esfera a
que somos chamados, valentes e teis trabalhadores (SMILES, 1893, p.
375). Muitos trabalhadores, conta Smiles, no sabiam ler e escrever
seno depois de serem homens feitos e apesar disso, executaram
grandes obras e tiveram carreiras muito honrosas. (SMILES, 1893, p.
375). Tudo o que se aprende
uma vitria sobre uma dificuldade; e uma vitria
ajuda a ganhar outra. H coisas na educao que,
primeira vista, parecem sem importncia: Tal
o estudo das lnguas mortas e as relaes das
linhas com as superfcies, a que chamamos
matemticas. So, porm, de grande valor prtico,
no tanto pelos conhecimentos que do, como
pelo desenvolvimento que determinam. A posse
dessa cincia demanda esforo, e faz cultivar
faculdades de aplicao, que sem isso ficariam
adormecidas. (SMILES, 1893, p. 393).
131
isso, a educao, fruto de vivncias pessoais, deveria ser estimulada. No
entanto, registrava que esta lenta. Eis o valor e o papel dos pais nessa
educao, como aqueles que vigiam e esperam, deixando que o bom
exemplo e as influncias suaves produzam os seus efeitos. (SMILES,
1910, p. 3).
As formulaes de Smiles remetem a alguns elementos prprios
do pragmatismo cuja nfase recai na ao, nas prticas concretas, nos
resultados verificveis coletivamente. (SEMERARO, 2006). A histria
de cada indivduo fruto da valorizao da experincia, do agir, que se
d, na viso de Smiles, pelo trabalho. Pela experincia, afirma Smiles
(1901, p. 34), aprende-se que no somos seno aquilo que ns
fazemos. Todo o homem cunha sobre si o seu prprio valor; eis porque
somos grandes ou pequenos conforme a nossa vontade. nesse sentido
que o pregador da autoajuda propunha que a disciplina e sujeio de
ns mesmos so os princpios da sabedoria prtica, que devem ter o seu
fundamento no respeito prprio. (SMILES, 1901). Com relao a isso,
refora:
Em todas as carreiras, a inteligncia habilita o
homem a adaptar-se mais facilmente s
circunstncias, a inventar melhores mtodos de
trabalho e aumenta a sua aptido, a sua habilidade
e a eficcia dos seus esforos. [...] O poder do
auxlio prprio crescer gradualmente nele e na
proporo do respeito de si prprio, achar-se-
armado contra as tentaes dos desejos srdidos.
(SMILES, 1901, p. 34).
Ainda:
A educao de si prprio pode, contudo, no
acabar sempre na eminncia, como aconteceu nos
numerosos exemplos que citamos. A grande
maioria dos homens, por muito ilustrada que seja,
ter sempre de ocupar-se nos trabalhos vulgares
da indstria e nenhum gro de cultura, a que a
comunidade possa atingir, lhe permitir, ainda
mesmo que isso fosse para desejar, como no
emancipar-se da rotina do trabalho dirio
indispensvel para a existncia da sociedade.
(SMILES, 1893, p. 378).
132
O esforo de uma educao individual, na opinio de Smiles,
pode no gerar riqueza material, mas h de dar em todo o caso a
companhia dos pensamentos elevados.
Contrapondo a ideia de riqueza material como via de acesso
educao, o autor vitoriano afirma a experincia da pobreza como
aquela capaz de mobilizar o trabalhador a superar os mais temveis
obstculos, prosperando sobre eles. Desse ponto de vista, a pobreza
extrema nunca foi um obstculo para os que consideram como dever o
trabalhar para se elevarem. (SMILES, 1893, p. 395). Dentre os tantos
exemplos utilizados para dar sentido aos seus valores, conta que:
O professor de lingstica, Murray, aprendeu a
escrever rabiscando as letras sobre um pedao de
papelo velho com uma haste de tojo queimada na
ponta. O nico livro que possua seu pai, pobre
pastor, era um catecismo de um penny; mas este
livro era demasiadamente valioso para seu uso
dirio, e por isso se guardava cuidadosamente
num armrio a fim de servir para a leitura dos
domingos. O professor Moor, sendo na sua
mocidade demasiadamente pobre para comprar os
Princpios de Newton, pediu este livro
emprestado e copiou-o todo pelo seu prprio
punho. (SMILES, 1893, p. 397)
133
pedreiro e no falo seno a algavaria de minha
terra! Est gracejando! Falo srio retorquiu o
outro, e torno-lhe a dizer que se faa professor.
Sujeite-se ao meu ensino, e procurarei ensinar-lhe
como que se ensinam os outros.- No, no!
Respondeu o pedreiro, isso impossvel; sou
muito velho para aprender; no tenho estudos; e,
portanto, no posso ser professor. retirou-se e,
novamente, procurou obter trabalho pelo oficio.
De Londres, foi para a provncia, e em vo
percorreu algumas centenas de milhas; mas no
pode encontrar trabalho. Regressando a Londres,
foi logo ter com o amigo que o aconselhara,
dizendo-lhe: Procurei trabalho por toda a parte, e
no o pude conseguir; estou agora disposto a
fazer-me professor. Ps-se imediatamente
debaixo da direo do seu amigo, e pela sua
constante aplicao, fcil compreenso e vigorosa
inteligncia, no tardou em assenhorar-se dos
elementos da gramtica, das regras da construo
e da composio, assim como da pronncia
correta do francs clssico, que era o que mais
precisava aprender. [...] Aconteceu que a escola
em se empregou estava situada num subrbio de
Londres onde ele trabalhara como pedreiro. [...]
Receou por algum tempo ser reconhecido como
pedreiro [...] entretanto, o respeito e amizade de
todos os que o conheciam, colegas e discpulos, e
quando a histria das suas lutas e dificuldades,
isto , quando o seu passado foi divulgado,
estimaram-no mais do que antes. (SMILES, 1893,
p. 399).
134
fato de um amigo, John Leyden, como um dos exemplos mais notveis
do poder de perseverana. Este jovem era filho de um pastor e aprendeu
a escrever copiando as letras de um livro impresso enquanto guardava
o seu rebanho na encosta do vale de Roxburghshire, como Cairus, que
da ocupao de guardar gado em Lammermoor, se elevou pelo seu
trabalho e aplicao at a cadeira de professor que rege to dignamente.
(SMILES, 1893, p. 401).
Smiles repete determinadas vezes que no so os homens de
gnio que movem o mundo e o dirigem, mas aqueles que se distinguem
por vontade forte e um ardor incansvel. (SMILES, 1893, p. 405).
Tanto assim, que pergunta:
Que fim levam todas as crianas muito espertas?
Que feito dos rapazes que so os primeiros e
ganham os prmios? Segui-lhes os passos na vida,
e vereis freqentemente que os menos espertos, os
que eram vencidos na escola, passaram-lhe
adiante.
Os
discpulos inteligentes
so
recompensados, mas os prmios concedidos a sua
maior facilidade e viveza de inteligncia nem
sempre lhes servem de utilidade. O que deveria
recompensar seria antes o esforo, a perseverana
e obedincia; porque aquele que, apesar de ser
dotado de inferior talento natural, faz tudo quanto
pode, e que deveria ser animado mais do que
qualquer outro. (SMILES, 1893, p. 406).
135
Newton, o estpido, mostrou a sua coragem
desafiando-o para brigar e venceu-o. Em seguida,
comeou a trabalhar com vontade e resolvido a
vencer tambm o seu antagonista como estudante:
o que conseguiu, elevando-se at o primeiro lugar
da classe. [...] Walter Scott era um estpido,
sempre mais pronto para brigar do que para
estudar lies. [...] Napoleo e Wellington no
foram bons estudantes e no se distinguiram nos
estudos. [...] John Howard, o filantropo, foi outro
estpido ilustre, que nada aprendeu durante os
sete anos que passou na escola. (SMILES, 1893,
p. 407-408).
136
tempo e assentou as bases da sua Riqueza das naes, mas lembra que
setenta anos decorreram antes que a sua obra desse frutos substanciais,
que ainda hoje [dcada de 40 do sculo XIX] no foram colhidos na
totalidade.
Em sntese, h nos escritos de Smiles, em especial, nos escritos
de Ajuda-te, grande preocupao em mostrar que os bons hbitos
poderiam ser desenvolvidos por meio do trabalho. Antes seria preciso
que a vida domstica fosse uma preparao vida social e que o
esprito e o carter sejam, portanto, formados no lar. (SMILES, s.d, p.
29). nessa ambincia que os futuros membros da sociedade so
tratados individualmente e modelados um por um. (SMILES, s.d, p.
29).
A educao dos pais associada educao pelo trabalho produz,
para Smiles, o homem de valor um modelo de homem fruto da
influncia da famlia tida
como a escola mais influente da civilizao,
porque, em suma, a civilizao no seno uma
questo de educao individual e a sociedade ser
mais ou menos civilizada conforme as partes que
a compem tiverem sido mais ou menos bem
educadas em sua infncia. (SMILES, s.d, p. 29).
137
Se a perseverana era uma das grandes virtudes valorizadas por
Smiles, os exemplos de vida dos inventores da indstria e homens da
cincia forneciam modelos, ou seja, serviam de recurso para que o
vitoriano disseminasse sua concepo de homem, trabalho e educao.
Os escritos do autor conferem um carter moral autoajuda desse
perodo. A ambio pessoal deixa de ser condenada para tornar-se
possibilidade de mobilidade pessoal. As virtudes, disseminadas por
Smiles em suas obras, pertencem a um universo moral que permite ao
homem determinar seu autogoverno.
Em sntese, a trajetria que o indivduo tem de percorrer para se
tornar um indivduo soberano de seu destino a histria dos esforos
pessoais que galgou para o sucesso. O progresso individual est
associado prtica da autoajuda pautada no exerccio da pacincia,
perseverana, aplicao, diligncia, sabedoria, ambio elevada,
economia, honra, carter, abnegao que fortalece o carter. Em ltima
instncia, a perspectiva de construo do progresso individual, todavia,
se efetiva se cada indivduo observar que tem deveres a cumprir e,
portanto, precisa cultivar a capacidade de preench-los, quer a sua esfera
de ao seja a administrao de uma famlia, quer seja a direo de uma
profisso, ou o governo de uma nao. (SMILES, 1893, p. 309).
Como visto, a religio contribui sobremaneira na construo de
uma moralidade para o trabalho e de uma sociabilidade funcionais
para a reproduo do sistema capitalista. Na sequncia, discute-se como
o discurso de autoajuda contribuiu para moldar o carter, atitudes,
enfim, o trabalhador demandado pelo capitalismo ao longo do sculo
XIX.
2.8 O TRABALHADOR DE CARTER EM TEMPOS
VITORIANOS
As premissas de Smiles sobre a relao do homem com o
trabalho retrata o esprito da poca em que o sucesso individual era tido
como fruto de esforo, persistncia e fora de vontade, em suma,
resultante da formao de carter.
Durante muitas dcadas, Smiles divulgou a ideia de que o homem
que ajuda a si mesmo baseia-se na formao do carter e representa o
dever deste para consigo mesmo e para a nao. Todo esse investimento
refora um processo de construo de individualidades, que no
liberalismo, pensado como autonomia dos indivduos.
138
O liberalismo fala de individualizao, afirma Dias (2006, p. 64),
mas este pensa os indivduos como sendo ahistricos, portadores de
uma natureza que se identifica com o capitalismo e se expressa na figura
do consumidor. Em Smiles, contudo, tal perspectiva no se limita ao
plano poltico, estendendo-se para o conjunto de relaes sociais em que
o problema consistia em saber como aplicar de maneira individual os
valores morais. Isso porque o arauto da autoajuda considerava que o
progresso da democracia e o predomnio cada vez maior do princpio da
liberdade moral (RDIGER, 1996) estariam derrubando os melhores
frutos da disciplina domstica e do carter moral, o que resultaria no
decaimento dos homens pblicos, da moral pblica dos princpios
polticos. (SMILES, 1910, 56, sem grifos no original). Em O dever,
Smiles discorre sobre Stein, por ele considerado, um dos maiores
estadistas da Prssia nas primeiras dcadas do sculo XIX. A partir
desse exemplo, destaca a figura do homem da autoajuda como aquele
homem de aes procedidas de um carter cheio de patriotismo, de
energia, de verdade e de f, alm de profundamente temente a Deus.
(SMILES, 1893, p. 68).
Os deveres para consigo mesmo, que, em outros termos,
significam os princpios que sustentam a relao com os outros, so
morais, isto , compartilhados socialmente como um bem, porque se
baseiam na prtica do trabalho (RDIGER, 1996, p. 43). A prtica do
trabalho explicaria a mobilidade social e a possibilidade desta, conforme
ressalta Smiles (1893, p. 337),
h s um meio seguro para um homem ou uma
classe qualquer de homens manter a posio ou
criar outra melhor: a prtica do trabalho, da
frugalidade e da honestidade. No h outra estrada
que encaminhe os homens para sarem de uma
posio que eles consideram desgraada, fsica ou
moralmente, do que a prtica dessas virtudes que
aproveitam quotidianamente a muitos deles para
se elevarem a melhorarem a sua sorte.
139
[que] poderiam, com poucas excees, ser to frugazes, virtuosas,
instrudas e bem remediadas como muitos dos seus membros que
conseguiram todas essas vantagens. (SMILES, 1893, p. 336). Para o
vitoriano, todos poderiam ser o mesmo que esses poucos so.
Empreguem os mesmos meios e os resultados sero iguais. (SMILES,
1893, p. 336). O problema a ser combatido a fraqueza da
intemperana e da perversidade dos homens. [Por isso] a idia salutar de
desenvolvimento individual, se fosse propagada entre a classe operria,
serviria mais do que qualquer outro meio para elev-los como classe.
(SMILES, 1893, p. 336).
Smiles, em seus escritos, desenvolve uma espcie de diagnstico
de seu tempo presente de maneira a constatar que aos homens no basta
apenas trabalhar, preciso antes, conduzir a vida de forma que cada um
ajude a si prprio. Essa conduo moral.
Ser possvel que estejamos em Inglaterra
atravessando anlogas circunstncias, e que a
onda sempre crescente da democracia esteja
derrubando os melhores frutos da disciplina
domstica e do carter moral? [...] a nao
depende dos indivduos que a compem e no h
nao que possa distinguir-se em moralidade no
cumprimento do dever, no acatamento dos
preceitos e honradez e de justia, cujos cidados
individual e coletivamente no possuam essas
qualidades. (SMILES, 1910, p. 56).
140
quantos roubaste a vida! A quantas famlias
levaste a desolao! Importa-se s dar fim ao
trabalho; que este esteja bem ou mal acabado, isso
importa-te pouco. (SMILES, 1910, p. 56).
141
manual, numa perspectiva individual. O princpio educativo, em Smiles,
o trabalho em especial, o trabalho manual.
Sob esse ponto de vista, Smiles (s.d, p. 52) afirmava:
Falamos do trabalho como sendo uma disciplina:
tambm um educador do carter. [...] O costume
de trabalhar ensina o mtodo. Obriga-nos a
economizar o tempo e a no dispor dele seno
com uma premeditao discreta55. Uma vez
adquirida pela prtica a arte de preencher a vida
com ocupaes teis56, saberemos aproveitar os
minutos; quando vier o momento do descanso, o
gozaremos com muito gosto.
142
construo de sua trajetria. A autoajuda de Smiles, sob o ponto de vista
ideolgico, caracteriza-se pela difuso de um conjunto de princpios
morais, valores entendidos como elementos de harmonizao entre o
trabalho e as exigncias de acumulao, justificando que no seriam
todos os trabalhadores que conseguiram galgar sucesso em seus feitos.
O trabalhador bem-sucedido, na perspectiva da autoajuda do sculo
XIX, seria aquele que conseguiria, no cumprimento de seu dever,
praticar aes virtuosas, considerando os modelos de conduta exemplos
notveis de homens que, em sua trajetria profissional, se elevaram
graas ao esforo prprio, trabalho rduo.
A educao necessria, sob essas condies, a educao do
carter individual moldado pela imitao de bons exemplos. Educa-se
para formar o carter e essa formao no se daria na escola. Esta
vista por Smiles como aquela na qual no se ensinam conhecimentos
teis prtica do trabalho nem formao do carter, por isso o
princpio pedaggico da autoajuda est centrado no valor da fora do
exemplo. Pelo exemplo seria possvel formar um trabalhador de novo
tipo cujas caractersticas essenciais resumem-se em: carter; esforo;
agir moral, obedincia, autogoverno; resignao; pacincia; disciplina;
coragem; persistncia; aplicao; energia individual; ateno;
perseverana; fora de vontade; autodeterminao; autonomia, entre
outras. Em sntese, o trabalhador ideal prescrito no discurso de
autoajuda no sculo XIX o trabalhador de carter.
2.9 A AUTOAJUDA DE SMILES
A ampla popularizao das ideias de Smiles possibilita
compreender o discurso de autoajuda do sculo XIX constitudo e
constituinte do iderio positivista que prioriza a ordem e o progresso, a
valorizao do trabalho livre, perseverante, rduo, dedicado, concepo
amplamente frisada por Smiles nas publicaes analisadas.
Poder-se-ia situar o autor em sua influncia na intelectualidade
brasileira em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, no
imperialismo liberal burgus ingls, com o poder de universalizar os
particularismos associados a uma tradio histrica singular, isto ,
transpor idias de uma realidade de capitalismo industrial, para uma
sociedade escravocrata agrria-exportadora. (BASTOS, 2000, p. 132).
Isso deve-se ao fato de as ideias aparecerem desistoricizadas, como
resultado da neutralizao do contexto histrico que resulta da
143
circulao internacional dos textos e do esquecimento correlato das
condies de origem. (BOURDIEU; WACQUANT, 1999, p. 32).
Nessa linha de pensamento, Smiles aposta no efeito dos excertos
biogrficos, nos exemplos edificantes, de sucesso, no princpio da
evidncia de boas aes, boas prticas, que, uma vez generalizadas,
legitimariam as perspectivas de autorrealizao, possibilidade de
projeo e ascenso social. Em vista disso, em sua estratgia discursiva,
empecilhos e fracassos so desconsiderados. A carreira to rpida que
no tolera que nos detenhamos a informar-nos daqueles que caram
prostrados no caminho. (SMILES, 1910, p. 78).
Desse modo, o discurso de Smiles constitui-se num discurso da
prtica que para ser aceito, associa-se a outras estratgias discursivas
de forma a convencer os trabalhadores/leitores naquele momento
histrico. Dentre essas estratgias, destacam-se as frases de efeito a
partir de uma abundncia de citaes de personagens que o autor
considerava orientadoras de conduta: A confiana em si prprio e a
abnegao de si mesmo podem, entretanto, ensinar ao homem a beber de
seu prprio copo. (BACON, s.d apud SMILES, 1893, p. 22); O
caminho da prosperidade humana paralelo velha e larga estrada da
vontade perseverante. (WEDGWOOD, s.d apud SMILES, 1893, p. 22).
A propalao da autoajuda de Smiles d-se tambm pela profuso
massiva de provrbios ou mximas constituindo-se noutro mecanismo
lingustico de difuso das ideias do autor. Ajuda-te e Deus te ajudara
o provrbio basilar da autoajuda smilesiana. Alm deste, cita-se:
Levanta-se e trabalha, que o senhor esteja contigo; o caminho do
homem ocioso uma cerca de espinhos (SMILES, 1901; SMILES,
1893). Por estes e outras dezenas de provrbios recorrentes nos diversos
livros do autor, apreendem-se as concepes de trabalho, de homem e
sociedade/mundo disseminadas por Smiles. Negao do cio, apologia
ao esforo prprio por meio da vontade perseverante, descarte da
responsabilidade do governo na projeo das histrias de cada
indivduo, mas a composio destas, como resultado de uma nao.
Smiles concentrou seus esforos na perspectiva de uma instruo
popular, escrevendo livros, participando de palestras e afirmando um
carter moralizante, a fim de fortalecer um ideal de autoajuda como um
caminho para a reforma da sociedade externando valores morais e
deveres voltados a uma tica do trabalho. Suas ideias so retomadas e
repetidas, de maneira incessante, traduzidas em exemplos variados,
representando um suporte para reiterar uma preocupao permanente de
144
mobilizao e motivao pessoal dos trabalhadores. Dentre as
repeties, destaca-se: auxlio prprio; perseverana, aplicao; retido;
coragem; esforo; confiana; trabalho; exemplos etc.
Outro trao marcante na literatura de Smiles o uso de fbulas.
Estas constituem outro recurso metodolgico utilizado para respaldar de
modo operatrio as prescries do autor. A fbula dos trabalhos de
Hrcules, mencionada anteriormente, visa exaltar o esforo desmedido
empreendido pelo homem em suas aes, coragem, fora, podendo-se
interpretar o seu uso como exaltao ao heri que h em cada um
quando se dispe a enfrentar e a criar solues em condies adversas.
A divulgao das premissas de Smiles traduz um esprito de
poca, [em que] o trabalho se naturaliza, a partir do que se mostrava
como um senso comum universal, preparando o esprito da elite
ilustrada brasileira, para a ideologia do sucesso individual, como fruto
da persistncia, do esforo e do trabalho. (BASTOS, 2000, p. 133).
Tais modos de pensar e agir tambm foram e so amplamente
divulgados na autoajuda tanto no sculo XX como na atualidade,
conforme anlise nos captulos que seguem.
145
3 AUTOAJUDA E A PRODUO DO TRABALHADORMASSA
A histria da sociedade capitalista
marcada por contradies que
levam a constantes recuos e
avanos. O que move esta
sociedade justamente o esforo
desmedido para enfrentar e
resolver suas crises.
(PALANGANA, 1998).
146
trabalho, mas tambm a nvel da hegemonia sobre a sociedade.
(VARGAS, 1985, p. 157).
Trabalha-se com a hiptese de que o discurso de autoajuda
contribui para a formao de um ethos necessrio sociabilidade
capitalista. No incio do sculo XX, vrios cnones so disseminados
pelos discursos de autoajuda relacionados aplicao sistemtica de
valores e modos de pensar prprios esfera econmica industrial.
Destaca-se Dale Carnegie, autor norte-americano que se tornou
expoente ao diagnosticar que a tica da personalidade, a carismtica
individual teria maior utilidade que os conhecimentos livrescos na
formao dos homens de negcios. Suas obras propagaram a ideia de
que a conquista do sucesso no dependia apenas do pensamento
positivo, mas da construo de uma personalidade agradvel capaz de
influenciar pessoas.
3.1 EFEITOS DA RACIONALIZAO TAYLORISTA
A sociedade industrial, nas ltimas dcadas do sculo XIX e
incio do sculo XX, dentre outros aspectos, poderia ser identificada
pelo incremento de tcnicas industriais para agilizar o sistema produtivo
e ultrapassar a organizao do trabalho que impedia a reproduo do
capital. O capitalismo industrial ganha o mundo, tornando-se uma
genuna economia (PALANGANA, 1998, p. 56). Do outro lado do
mundo, o capital avana na industrializao, mquinas de tear inglesas e
outros instrumentos vo sendo incorporados ao processo de trabalho,
mas o que ir se verificar nos Estados Unidos ser um conjunto de
transformaes de processo de trabalho ligadas s mudanas nas
condies de existncia do trabalho assalariado.
Se Ure57 e tambm Babbage, no decorrer da Revoluo
Industrial, foram os homens que se preocuparam com os problemas da
organizao do trabalho no bojo das relaes capitalistas de produo,
passado aproximadamente meio sculo, viu-se a intencional e
sistemtica aplicao da cincia produo (BRAVERMAN, 1987, p.
82), alm de um grande incremento no nmero de empresas e indstrias.
57
Marx (1968, p. 501), referindo-se a Ure como um apstolo do capital, destaca que embora
sua obra [...] aparecesse em 1835, quando o sistema fabril estava ainda relativamente pouco
desenvolvido, continua ela sendo a expresso clssica do esprito da fbrica, no s em virtude
do cinismo franco, mas tambm da ingenuidade com que descerra as contradies absurdas do
crebro capitalista.
147
Frederick W. Taylor (1856-1915) inicia o movimento da gerncia
cientfica nas ltimas dcadas do sculo XIX motivado por essas
mudanas. Sobretudo, vale mencionar que Taylor recebeu sua formao
em engenharia com base no sistema russo, no Stevens Institute of
Tecnology, formao esta, que o ajudou pr em ao um modo
sistemtico de organizar o processo de trabalho. Segundo estudos de
Della-Vos58 (1829-1864), o projeto de Taylor objetivava substituir o
comportamento irracional tanto dos trabalhadores quanto dos
capitalistas. De acordo com Bryan (1992, p. 501), o sistema Taylor
um projeto de desenvolvimento capitalista para enfrentar as crises
criadas pelo prprio desenvolvimento capitalista.
A racionalizao do trabalho, como ficou conhecida a gerncia
cientfica, baseia-se essencialmente na aplicao dos mtodos da
cincia aos problemas complexos e crescentes do controle do trabalho
nas empresas capitalistas. (BRYAN, 1992, p. 82). Taylor, a partir das
ideias que germinaram na Inglaterra e nos Estados Unidos durante o
sculo XIX, deu uma filosofia e ttulo a uma srie desconexa de
iniciativas e experincias. (BRYAN, 1992, p. 85). O trabalho, nessa
perspectiva, ganha um rigor metodolgico, os movimentos e os tempos
de trabalho so planejados. O processo de trabalho, dividido em partes
que beiram o indivisvel, sistematicamente estudado e classificado
para que, ao final, se retenha to-somente o modo mais rpido e eficaz
de execut-lo. (PALANGANA, 1998, p. 57). Sobre o trabalhador recai
58
148
a necessidade de uma modificabilidade, de uma interpretao daquilo
que o capitalista deseja em nome da mxima da produo. A
especializao figura como carro chefe na aprendizagem do
trabalhador na produo cientfica, s vezes mais intensa, s vezes
menos necessria. Parcelar, fragmentar uma estratgia que permite
controle. Fraciona-se o saber transmitido desde geraes, mas fracionase, sobretudo, o compasso ritmado que organiza os trabalhadores.
O taylorismo representou para o desenvolvimento histrico do
capitalismo, conforme observou Vargas (1985, p. 159), a criao de uma
camada intermediria de trabalhadores indiretos, os experts, a
gerncia cientfica, que realiza a mediao capital/trabalho. Ficam
sob responsabilidade dos experts a seleo e o treino de operrios, alm
do planejamento de suas atividades em consonncia com as exigncias
do mtodo racionalizado de produo. Sob esse aspecto interessante
mencionar que o taylorismo recebeu a influncia da penetrao da
cincia na indstria sob uma perspectiva positivista. (VARGAS, 1985,
p. 158). Decorre disso no s uma preocupao ideolgica de assumir
um carter de neutralidade pela legitimao cientfica [...] mas tambm
como uma real preocupao de utilizar o conhecimento, formalizado at
ento, para controlar a fora de trabalho. (VARGAS, 1985, p. 158).
Em nfase ao desenvolvimento do taylorismo no Brasil, Vargas
(1985) chama a ateno que, tanto nos Estados Unidos quanto aqui, os
engenheiros, representantes do conhecimento cientfico aplicado
industrializao, transformaram a natureza atendendo as determinaes
do capital. Em Engenheiro: trabalho e ideologia, Kawamura (1981, p.
11) destaca que a acumulao capitalista,
com base na produo e comercializao do caf,
na medida em que incorporou meios mais
eficientes para a sua realizao, teve que ampliar
servios de natureza urbana. [...] [estes]
comportavam a instalao de hidreltricas, de
servios de gs, de transporte urbano, saneamento
e edificaes. Tais empreendimentos abriram
ainda outras oportunidades para a prtica do
engenheiro diretamente na infraestrutura social.
149
trabalhadores, o engenheiro exercia uma funo delegada ao
capitalista. (KAWAMURA, 1981, p. 15).
De um olhar especfico dos engenheiros, que tiveram participao
essencial na difuso das idias de organizao racional do trabalho e na
definio de comportamentos adequados, especialmente em relao ao
operrio, para saber mandar (KAWAMURA, 1981, p. 79), amplia para
outros trabalhadores da fbrica que, na opinio de Vargas (1985),
tambm passaram a exercer funes dirigentes prprias do capitalista. O
mesmo autor caracteriza o taylorismo como aquela forma de organizar
o trabalho [em] um estatuto cientfico e denomina de novo
taylorismo esta forma que utiliza o conhecimento cientfico para
controlar o trabalhador. Vargas argumenta que esse segundo aspecto
aparece metamorfoseado na psicologia industrial, na ergonomia, na
medicina do trabalho, na pesquisa operacional [...] estes conhecimentos
acadmicos so aplicados pelos experts dos cargos da estrutura
empresarial line-staff (KAWAMURA, 1981, p. 159), entendendo-se
que tal movimento tem sua origem na conjugao das propostas de
Taylor e de Fayol (1841-1925).
A partir da leitura da clssica obra de Taylor (1953, p. 38)
Princpios de administrao cientfica, publicada em 1911, possvel
destacar dois aspectos importantes: as tcnicas de racionalizao do
trabalho e a criao da gerncia cientfica. Esta ltima refere-se
funo de reunir todos os conhecimentos tradicionais que no passado
possuram os trabalhadores e ento classific-los, tabul-los, reduzi-los a
normas, leis ou frmulas, grandemente teis ao operrio para execuo
do seu trabalho dirio. A gerncia ganha em Taylor, estatuto de cincia,
de modo que a direo exerce trs tipos de atribuies que envolvem
novos e pesados encargos para ela (TAYLOR, 1953, p. 38). Das
atribuies sistematizadas pelo autor, tem-se:
[...] Desenvolver para cada elemento do trabalho
individual uma cincia que substitua os mtodos
empricos. [...] Selecionar cientificamente, depois
de treinar, ensinar e aperfeioar o trabalhador. No
passado ele escolhia seu prprio trabalho e
treinava a si mesmo como podia. [...] Cooperar
cordialmente com os trabalhadores para articular
todo o trabalho com os princpios da cincia que
foi desenvolvida. [...] Manter a diviso eqitativa
de trabalho e de responsabilidade entre direo e o
150
operrio. A direo incumbe-se de todas as
atribuies, para as quais esteja melhor aparelhada
do que o trabalhador, ao passo que no passado,
quase todo trabalho e a maior parte das
responsabilidades pesavam sobre o operrio.
(TAYLOR, 1953, p. 38).
151
investir em mecanismos que eduquem ou adaptem o indivduo ao modo
de produo capitalista.
O estudo de Vargas (1985, p. 162), sobre a gnese e difuso do
taylorismo no Brasil, revela que essa concepo de mundo, orientada
com base nas exigncias de produo, requereu controle da formao e
reproduo de uma fora de trabalho nacional que se submetesse aos
novos requisitos de disciplinamento e formao tcnica fabris. Nos
anos de 1920, o iderio do fordismo j estava presente entre os
industriais paulistanos na forma de uma recusa intermediao do
Estado na regulao do mercado de trabalho e na perspectiva de
educar o trabalhador com a internalizao das normas de disciplina da
produo industrial. (VARGAS, 1985, p. 163). Com tal objetivo, o
Instituto de Organizao Racional de Trabalho (IDORT) estruturou
nesse perodo, o Centro Ferrovirio de Ensino e Seleo Profissional
(CFESP) que congregava diversas empresas ferrovirias que assumiam
a liderana na aplicao do Taylorismo. (VARGAS, 1985, p. 166). O
ensino profissional vinha atender a necessidade dos industriais na busca
de operrios qualificados para suprir a demanda da indstria. Em 1931
foi criada a Lei dos 2/3 [...] que obrigava a existncia de no mnimo
2/3 de empregados brasileiros em cada empresa. (VARGAS, 1985, p.
166), a qual foi muito adiada porque os empresrios no tinham
condies de substituir os trabalhadores estrangeiros por brasileiros nas
funes mais qualificadas. Com tal situao, surge o interesse
empresarial em atuar na formao da classe operria de acordo com a
disciplina e a moral taylorista. (VARGAS, 1985, p. 167).
A educao racionalizada consistia em colocar a criana em
situaes nas quais pudesse estabelecer comparaes entre dois modos
de executar um mesmo trabalho, por mais simples que seja e para
demonstrar, em casos mais concretos, que se pode fazer economia de
material, de movimentos, de tempos e de esforos mediante uma escolha
adequada do modo de proceder. (VARGAS, 1985, p. 169). O autor,
ressalta ainda que se deveria
fazer compreender criana que a diviso do
trabalho traz vantagens, que cada um deve
executar a parte do trabalho que possui mais jeito
ou que est de mais acordo com sua constituio:
tal como se verifica em todas as manifestaes da
vida na natureza, e que assim o trabalho se tornar
152
mais rpido e mais perfeito. (VARGAS, 1985, p.
166).
153
desenvolver em seu grau mximo, no trabalhador, os comportamentos
maquinais e automticos, quebrar a velha conexo psquica do
trabalhador profissional qualificado, o que requeria uma certa
participao ativa da inteligncia, da fantasia, da iniciativa do
trabalhador, e reduzir as operaes produtivas apenas ao aspecto fsico
maquinal. O ritmo da mquina adequada produo de sries
homogneas fora o trabalhador a se adequar padronizao, ao
disciplinamento, separao entre o trabalho mental e o trabalho
manual. Nas palavras de Gramsci (2004, p. 271), o taylorismo
determinou a separao entre o trabalho manual e o contedo humano
do trabalho59.
Um elemento de extrema importncia para que o sistema
racionalizado de trabalho tenha se tornado o que se tornou incide na
ideia de tarefa. Para Taylor, esta representa o elemento mais importante
da administrao cientfica. O trabalho de cada operrio
completamente planejado pela direo [...] cada homem recebe, na
maioria dos casos, instrues escritas completas que minudenciam a
tarefa de que encarregado e tambm os meios usados para realiz-las.
(TAYLOR, 1953, p. 40). Na tarefa, cada trabalhador recebia
especificado o que fazer, como fazer e o tempo exato para a sua
execuo.
Dos princpios da administrao cientfica, destaca-se a seleo
cientfica do trabalhador:
Nosso primeiro cuidado foi procurar o homem
adequado para iniciar o trabalho [...] investigamos
seu passado, tanto quanto possvel e fizemos um
inqurito completo a respeito do carter, dos
hbitos e ambies de cada um. (TAYLOR, 1953,
p. 46).
59
Gramsci (2004, p. 271-272) exemplifica esse exerccio para anular o contedo intelectual
referindo-se ao tipgrafo. [Este] [...] deve ser muito rpido, deve ter a mo e os olhos em
contnuo movimento, o que torna mais fcil sua mecanizao. Mas se pensarmos bem, o
esforo que estes trabalhadores devem fazer para isolar do contedo intelectual do texto, por
vezes muito apaixonante [...] sua simbolizao grfica, e para dedicar-se somente a esta, talvez
seja o maior esforo que se requer de uma profisso. Quando o processo de adaptao se
completou, verifica-se na realidade que o crebro do operrio, em vez de mumificar-se,
alcanou um estado de completa liberdade. Mecanizou-se complemente o gesto fsico; a
memria do oficio, reduzido a gestos simples repetidos com ritmo intenso, aninhou-se nos
feixes musculares e nervosos e deixou o crebro livre e desimpedido para outras ocupaes.
154
A referncia acima constitui apenas um pequeno trecho do
processo de seleo de um trabalhador para a vaga de carregador de
barra de ferro. Aps a escolha do homem adequado, Taylor (1953, p.
46) relata o dilogo com Schmidt, o operrio classificado:
Quando ele [supervisor] disser para levantar a
barra e andar, voc levanta e anda, e quando ele
mandar sentar, voc senta e descanse. Voc
proceder assim durante o dia todo. E, mais ainda,
sem reclamaes. Um operrio classificado faz
justamente o que se lhe mandar e no reclama.
Entendeu? [...] Finalmente, voc vem trabalhar
aqui amanh e saber, antes de anoitecer, se
verdadeiramente um operrio classificado ou no.
155
homem mais inteligente, no hbito de trabalhar de
acordo com as leis dessa cincia, para que possa
ser bem sucedido. (TAYLOR, 1953, p. 56).
156
A constituio da sociedade industrial faz exigncias, dentre elas,
prescreve-se maior rentabilidade em decorrncia de maior diviso das
operaes. (PALANGANA, 1998, p. 63). A noo de aprendizagem de
uma tarefa, antes fruto da relao mestre e aprendiz, d-se na ocupao
do posto de trabalho. O contedo e a forma do trabalho impem-se ao
indivduo guiado pela direo. Nesse sentido:
Deixando de lidar com homens, em grandes
equipes ou grupos, e passando a considerar cada
trabalhador individualmente, entregamos o
trabalhador que falha em sua tarefa, a instrutor
competente para lhe indicar o melhor modo de
executar o servio e para guiar, ajudar e encorajar,
bem como estudar suas possibilidades como
trabalhador. (TAYLOR, 1953, p. 64).
157
trabalhadores constitua-se basicamente no exerccio do trabalho
produtivo. [...] os operrios [...] se referiam ao aprendizado do seu
ofcio no exerccio do trabalho [...] ns aprendemos os macetes do ofcio
fazendo-o. (BRYAN, 1992, p. 332). A distino entre mecnico e
engenheiro estava centrada menos no saber tcnico que no exerccio de
uma significativa autoridade60. (BRYAN, 1992).
O que prevalece no taylorismo a crena de que os
conhecimentos no so gerados pelo trabalhador, mas devem ser
formulados e aperfeioados pelos instrutores61. Conforme Taylor (1953,
p. 111):
Se fosse possvel o trabalhador aperfeioar-se,
tornando-se hbil e capaz, sem os ensinamentos e
auxlio de leis formuladas a respeito de seu
trabalho, ento, poder-se-ia concluir tambm que
o menino no colgio aprenderia melhor
matemtica, fsica, qumica, latim, grego, etc.,
sem auxlio algum, e por si mesmo. A nica
diferena nos dois casos que os estudantes vo
aos professores, enquanto, pela prpria natureza
do trabalho dos mecnicos, sob a administrao
cientfica, os instrutores devem ir ao encontro
destes.
158
durante seus primeiros anos de estudo, submetido orientao
imediata de homens mais experimentados que lhe mostram
minuciosamente como executar cada elemento de sua tarefa.
(TAYLOR, 1953, p. 111). E argumenta: Este mtodo de ensinar no
lhe limita o desenvolvimento do esprito. Pelo contrrio, dota-lhe dos
melhores conhecimentos que vieram de seus predecessores.
(TAYLOR, 1953, p. 111). A nfase est num saber que se desenvolve
tendo como base a observao, repetio, os exemplos. Em Taylor, em
especial, o saber-fazer dotado de cientificidade com vistas ao aumento
da produtividade, da reproduo do capital. Este saber-fazer do operrio
ganha novo status dado o processo de seleo institudo por Taylor cujo
objetivo avaliar duas caractersticas essenciais dos trabalhadores, em
que pesem as sensrio-motoras e as morais. As caractersticas sensriomotoras, conforme destaca Bryan (1992, p. 379),
consideradas relevantes ao processo de avaliao,
so determinadas estritamente pelo contedo da
tarefa a ser executada pelo operrio no posto de
trabalho a que ser afetado na produo. Ao lado
dessas caractersticas fsicas, Taylor leva em conta
na seleo os traos de personalidade e padres de
conduta do trabalhador que o fazem dcil e
adaptvel disciplina da fbrica.
159
fosse desenvolvida com a mxima eficincia e produtividade, Taylor
considerava necessrio o isolamento dos trabalhadores. O trabalho
atomizado evitava o surgimento de relaes sociais que poderiam gerar
sentimentos de solidariedade. Tal sentimento condutor de
manifestaes de resistncia.
Em vista disso, ao invs de tentar disciplinar os trabalhadores por
meio de instrumentos visveis, Bryan (1992, p. 388) observa que Taylor
empenhava-se em elaborar meios camuflados pelo
manto da razo. E, portanto, no procurava a
constncia dos atributos morais da classe operria
pela aplicao de penalidades grosseiras como
multas que seriam apropriadas pela empresa, mas,
de forma cientfica, dosava os salrios62 de modo
a serem suficientemente altos para motivarem os
operrios a trabalhar com afinco sem que fossem,
por outro lado, to acima da mdia que os
saciassem em demasia.
160
vigorosamente juntos, situando-os na mesma direo. Eis que a
disciplina torna-se elemento central na implementao dos princpios
cientficos para o trabalho. Taylor procurava dar um estatuto de
legitimidade a seus mtodos administrativos apresentando-os como
meios cientficos, logo, politicamente neutros, para resolver um
problema crucial em qualquer tipo de sociedade o desperdcio do
trabalho, tanto o vivo como o objetivado em materiais, e das condies
naturais de produo. (BRYAN, 1992, p. 391).
O iderio taylorista difundiu uma concepo de mundo orientada
a partir das exigncias da produo (VARGAS, 1985), mas, como se
ver a seguir, os novos mtodos de trabalho esto indissoluvelmente
ligados a um determinado modo de viver, de pensar, de sentir a vida, e
no dizer de Gramsci (2004), no possvel se obter xito em um campo
sem obter resultados tangveis em outro. Ou seja, as novas disposies
psicofisiolgicas necessrias ao novo modo de organizao da produo
no so obtidas apenas pela coero, mas tambm pelo consentimento.
3.1.2 Do cronmetro esteira rolante
A partir dos estudos de tempos e movimentos, foi possvel
identificar e controlar o ritmo de trabalho, permitindo, tambm,
introduzir padres, ferramentas e mecanismos que efetivassem a
racionalizao do trabalho. Com esta base construda, abriu-se caminho
para a adoo de princpios fordistas de economicidade, intensificao
e produtividade, mas, de acordo com Gurgel (2003, p. 76), isso s foi
possvel porque havia um mercado consumidor pronto para absorver
tamanha produo. O crculo virtuoso criado por uma economia em
expanso concorreu para erigir a produtividade condio de um
objetivo geral.
Assim, no boom da economia americana, Henry Ford (18631947) aprofunda - a linha de montagem mecanizada a padronizao e
a especializao sistematizadas por Taylor (1903) e Gilbreth (1911).
Nesse sentido, Gurgel (2003) lembra que a introduo da linha de
montagem63, em 1913, no ocorre ao acaso: resulta da proibio do
63
A montagem de um chassi, por exemplo, passa de 12 horas e 28 minutos para 1 hora e 33
minutos. (HARVEY, 1992).
161
congresso americano que vetou o uso do cronmetro na gerncia e
pesquisa da produo64.
O fordismo possibilitou um aprofundamento da gerncia
cientfica valorizada com a esteira rolante. Ao levar o trabalho ao
trabalhador, Ford elevou ao mximo a ideia da racionalizao de tempos
e movimentos de Taylor. O fordismo tornou-se um fenmeno das
massas [...] simplesmente a forma desse tipo de sociedade
racionalizada, na qual a estrutura domina mais imediatamente as
superestruturas, que so racionalizadas (simplificadas e em menor
nmero). (GRAMSCI, 1980, p. 382). Alm disso, o fordismo tornou-se
o paradigma funcionalista da poca, representado na ideologia
modernista, particularmente na arquitetura e no urbanismo, onde os
planejadores buscavam a padronizao da forma urbana e sua
funcionalidade para a moderna economia capitalista. (DIAS; SILVA
NETO, 2004, p. 11).
O modo como a organizao do trabalho fordista estabeleceu-se
configura, sem dvida, uma longa histria com origens nos primeiros
anos do sculo XX. Mas afinal, o que havia de especial em Ford?
Segundo Harvey, simbolicamente, pode-se buscar as origens do
fordismo nos anos de 1914. O que distingue as ideias de Ford das de
Taylor reside
em sua viso, seu reconhecimento explcito de que
a produo de massa significava consumo de
massa, um novo sistema de reproduo da fora
de trabalho, uma nova poltica de controle e
gerncia do trabalho, uma nova esttica e uma
nova psicologia, em suma, um novo tipo de
sociedade democrtica, racionalizada, modernista
e populista. (HARVEY, 1992, p. 122).
162
elevao do investimento e do consumo per capita. (HARVEY, 1992).
De acordo com esse mesmo autor, o fordismo, como modo de
regulao, tem as seguintes caractersticas: estabilidade nas relaes de
trabalho: convenes coletivas, o Welfare State, a legislao; relaes
entre bancos e firmas amenas: subcontrataes de empresas para tarefas
especializadas; controle da moeda pelo Banco Central e participao
importante do Estado na regulao econmica. (HARVEY, 1992).
O fordismo origina a formao de uma norma social de consumo
que se caracteriza, conforme Aglietta (1979 apud Braga 1996, p. 129),
como um novo estgio de regulao do capitalismo [...] , pois, o
princpio de uma articulao do processo de produo e do modo de
consumo, que instaura a produo em massa, chave da universalizao
do trabalho assalariado.
O assalariamento com poder de consumo um elemento
definidor do fordismo, mas vale lembrar ainda o que Gramsci (2007, p.
247) assinala sobre as experincias realizadas por Ford.
[...] a economia feita pela sua empresa atravs da
gesto do transporte e do comrcio da mercadoria
produzida, economia que influiu sobre o custo de
produo, permitiu melhores salrios e menores
preos de venda. A existncia dessas condies
preliminares, racionalizadas pelo desenvolvimento
histrico, tornou mais fcil racionalizar a
produo e o trabalho, combinando habilmente a
fora (destruio do sindicalismo operrio de base
territorial) com a persuaso (altos salrios,
benefcios sociais diversos, propaganda ideolgica
e poltica habilssima) para, finalmente, basear
toda a vida do pas na produo. A hegemonia
vem da fbrica e, para ser exercida, s necessita
de uma quantidade mnima de intermedirios
profissionais da poltica e da ideologia.
163
foi um dos fatores que mobilizou Ford a elevar os salrios no comeo
da Grande Depresso na expectativa de que isso aumentasse a demanda
efetiva, recuperasse o mercado e restaurasse a confiana na comunidade
de negcios. (HARVEY, 1992, p. 122).
Assim, Ford recorre persuaso quando decide pelo aumento dos
salrios, apelando para que os novos capitalistas se tornem atores reais
na direo da sociedade. (GOMEZ, 2004, p. 52). O industrial constatou
que,
embora os homens de negcio no se dem como
lideres dos movimentos, so eles na verdade os
verdadeiros chefes. Nem um s passo da atividade
econmica existe bem ou mau que no tenha
sido ensinado ao povo pelos homens de negcio.
Da terem mais influncia na sociedade que
polticos, professores ou sacerdotes. Seu contato
com o povo constante e sua influncia
inevitvel. Cada mau hbito econmico que o
povo revela foi-lhe ensinado pelos homens de
negcio e, como a influncia deles assim grande,
seria de boa poltica que mudassem de orientao,
transformando-se em, ledores dos sinais dos
tempos, de modo a poderem nortear sadiamente o
pblico. (FORD, 1954, p. 426).
164
firmam as bases do que ele designou economia programtica65. Da
passagem do individualismo econmico para a economia programtica,
o autor critica a economia europia com seus Estados de supraestruturas parasitrias, celebrando simultaneamente o que h de
moderno e tendente universalizao no taylorismo-fordismo da
experincia americana. (GOMES, 2005).
Nesse sentido, Braga (1996, p. 212) assinala que o americanismo
soube articular a coero (liquidao do sindicalismo de base
territorial) e o consenso (altos salrios e outros benefcios) de modo a
recompor e reproduzir as bases de legitimao (modificada) da estrutura
capitalista da poca.
O fordismo redesenhou os padres tayloristas de produo
articulando o processo de trabalho para a produo massificada com
bens padronizados, e a norma de consumo regulada pelas intervenes
institucionais (forma estatal) passa, pois, a ser o elemento definidor do
fordismo (BRYAN, 1992, p. 129). Tambm, na esfera poltica, o
fordismo caracteriza-se pela realizao de um compromisso de classes
produzido a partir de polticas e legislaes sociais, com a funo da
distribuio de renda, isto , da interveno do pblico sobre o privado.
(SILVA Jr., 2002, p. 24)
No texto do intelectual italiano, o americanismo aparece como
resposta a uma srie de problemas dentre eles a queda tendencial da
taxa de lucro. Toda a atividade industrial de Ford pode ser estudada
como uma luta contnua e incessante para fugir da lei da queda da taxa
de lucro, pela manuteno de uma posio de superioridade sobre os
concorrentes. (GRAMSCI, 1984, p. 243). Portanto, a lei tendencial da
queda da taxa de lucro estaria na base do americanismo, ou seja, seria a
causa do ritmo acelerado no progresso dos mtodos de trabalho e de
produo e de modificao do tipo tradicional do operrio. (GRAMSCI,
1984).
Nas palavras de Braga (1996, p. 207), o americanismo:
65
Gomes (2005) destaca que, segundo os tradutores, com a expresso economia
programtica Gramsci se refere provavelmente ao planejamento socialista da economia, tal
como vinha sendo empreendido pela Unio Sovitica. Para ele, tanto o americanismo quanto
o fascismo considerados como formas de revoluo passiva que respondem Revoluo
Russa de 1917 acolhem elementos de programao econmica na tentativa de conservar o
capitalismo.
165
Transforma-se, pois, no contedo de socializao
da fase imperialista do desenvolvimento do
capital, isto , a traduo de um projeto
hegemnico mais afinado com o objetivo
progressista, para as classes dominantes
tradicionais, de contrarrestar a queda tendencial
da taxa de lucro a partir da multiplicao das
variveis nas condies do aumento do capital
constante.
166
O industrialismo representa, para Gramsci (2004, p. 262),
uma luta contnua contra o elemento
animalidade do homem, um processo
ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento,
de sujeio dos instintos (naturais, isto ,
animalescos e primitivos) e sempre novos,
complexos e rgidos hbitos e normas de ordem,
exatido, preciso, que tornam possvel as formas
sempre mais complexas de vida coletiva, que so
a conseqncia necessria do desenvolvimento do
industrialismo.
167
prosperidade do lar faz a prosperidade da indstria porque na realidade
todos os problemas se entrelaam e a soluo de um ajuda a soluo de
outro. Para o autor, torna-se patente a relao entre a vida domstica e
a indstria. (FORD, 1954, p. 405).
Nesse sentido, alm da restrio sexual, Gramsci assinala que,
para obter xito, na Amrica,
a racionalizao do trabalho e o proibicionismo
esto indubitavelmente ligados: os inquritos dos
industriais sobre a vida ntima dos operrios, os
servios de inspeo criados por algumas
empresas para controlar a moralidade dos
operrios so necessidades do novo mtodo de
trabalho. [...] o significado e o alcance objetivo do
fenmeno americano, que tambm o maior
esforo coletivo realizado at agora para criar,
com rapidez incrvel com uma conscincia do fim
jamais vista na Histria, um tipo novo de
trabalhador e de homem. (GRAMSCI, 2004, p.
268, sem grifos no original).
168
carter, enquanto para Taylor, a elevao salarial inibiria o
comportamento indolente do trabalhador.
Ford, por sua vez, utilizava o alto salrio como um instrumento
para selecionar os trabalhadores aptos para o
sistema de produo e de trabalho e para manter a
sua estabilidade. O industrial estava atento
forma racionalizada como estes salrios seriam
gastos. Claro que um dos principais objetivos da
elevao salarial relaciona-se com o poder de
consumo de seus operrios na aquisio de seus
produtos, mas para que os gastos fossem
direcionados e controlados, Ford tentou intervir
com um corpo de inspetores, na vida privada dos
seus dependentes, e controlar a maneira como
gastavam os salrios e o seu modo de viver,
[estes] so um indcio destas tendncias privadas
ou latentes, que podem se tornar, [...] ideologia
estatal, amparando-se no puritanismo tradicional,
apresentando-se como um renascimento da moral
dos pioneiros, do verdadeiro americanismo.
(GRAMSCI, 2004, p. 269).
169
pensar, pelo menos quando superou a crise de
adaptao e no foi eliminado: e no s pensa,
mas o fato de que o trabalho no lhe d satisfaes
imediatas, e que ele compreenda que se quer
reduzi-lo a gorila amestrado, pode lev-lo a um
curso de pensamentos pouco conformistas.
(GRAMSCI, 2004, p. 273).
170
confiana na comunidade de negcios. (HARVEY, 1992, p. 122). A
Depresso implicou planejamento em larga escala, alm da
racionalizao do processo de trabalho, ainda que com um trabalhador
resistente produo da linha de montagem.
Naquele contexto, Harvey (1992, p. 123) aborda que a
disseminao do fordismo enfrentou duas barreiras nos anos entreguerras, a saber:
O estado das relaes de classe no mundo se
apoiava tanto na familiarizao do trabalhador
com longas horas de trabalho puramente
rotinizado, exigindo pouco das habilidades
manuais tradicionais e concedendo um controle
quase inexistente ao trabalhador sobre o projeto, o
ritmo e a organizao do processo produtivo. [...]
a segunda barreira importante a ser enfrentada
estava nos modos e mecanismos de interveno
estatal. Foi necessrio conceber um novo modo de
regulamentao para atender os requisitos da
produo fordista.
171
As teorias de motivao utilizadas no mundo do trabalho visam
reestabelecer as necessidades cognitivas e afetivas do ser humano no
ambiente de trabalho como meio de naturalizar e ocultar as contradies
inerentes ao capitalismo. (TURMINA, 2005, p. 24-26).
As escolas de Relaes Humanas e Comportamentalista, como
sublinha Kuenzer (1989, p. 66), exploram, alm dos incentivos
monetrios, as motivaes psicossociais, principalmente as necessidades
de segurana, de afeto, de aprovao social, de prestgio, de autorealizao. Nessa perspectiva, pode-se compreender a adoo do
discurso de autoajuda pelos homens de negcios com vistas a
influenciar a formao de um trabalhador de novo tipo.
Essa demanda do capitalismo foi partilhada com o Estado no psguerra, no contexto do Welfare State. De acordo com Esping-Andersen
(1995, p. 73) o Estado de Bem-Estar
economicamente, significou um abandono da
ortodoxia da pura lgica do mercado, em favor da
exigncia de extenso da segurana do emprego e
dos ganhos como direitos de cidadania;
moralmente, as de justia social, solidariedade e
universalismo. Politicamente, o welfare state foi
parte de um projeto de construo nacional, a
democracia liberal, contra o duplo perigo do
fascismo e do bolchevismo. Muitos pases se autoproclamavam welfare state, no tanto por
designarem desse modo as polticas sociais,
quanto por promoverem uma integrao social
nacional.
172
o Estado promove, entre outros, a escolarizao,
as comunicaes de massa e a indstria cultural, o
pleno emprego e o consumo. Sob o ponto de vista
cultural, esses processos podem ser vistos como
agentes de secularizao da sociedade, que pem
em crise sobretudo a famlia nuclear, patriarcal e
sexista, clula fundamental da reproduo social
inspirada em critrios hierrquicos e no princpio
da autoridade. [...] os processos de emancipao e
liberao das mulheres colocam em crise a
possibilidade de continuar a descarregar sobre a
famlia e sobre a esfera privada os custos
principais da reproduo da fora de trabalho.
(VACCA, 1991 apud SOUZA, 1999, p. 5).
173
necessidade de controle sobre as aes de cada um no espao de
trabalho. Nesse aspecto, interessante observar o que dizia Ford (1954,
p. 78) em seu livro Minha obra e minha vida66, no qual o industrial
destaca:
Queremos sim, completa responsabilidade
individual. O operrio responde pelo seu trabalho;
o mestre responde pelos homens sob seu
comando; o contramestre responde pelo seu
grupo; o chefe de seo responde pelo seu
departamento e o inspetor geral responde por toda
a fbrica. Cada um deles deve saber o que se
passa no seu raio de ao.
Minha obra e minha vida, com traduo e prefcio de Monteiro Lobato, faz parte de um
compndio publicado como Os princpios da prosperidade (1954) que contm, alm da obra
citada, outros dois livros de Henry Ford: Hoje e amanh e Minha Filosofia da indstria.
174
rua. Tudo o que temos realizado vem de homens
que se fizeram em nossa fbrica, impondo-se
unicamente pela sua capacidade. (FORD, 1954, p.
81).
175
Company; o que no resiste ao exame lanado
conta de perdas da escola. (FORD, 1954, p. 284).
176
o primeiro perodo do curso no qual o aluno
aprendia a usar todas as ferramentas. No segundo
perodo eram ensinados elementos de montagem
em trabalhos de madeira. [...] durante o terceiro
perodo o aluno prepara ele prprio seus planos e
o professor [mecnico perito] passava a agir como
superintendente. O objetivo era fazer com que
cada estudante desenvolvesse a capacidade de
iniciativas
e
seu
poder
de
assumir
responsabilidades. (BENNET, 1944 apud
FRIGOTTO, 1983, p. 41).
177
controle do trabalhador, uma vez que graas ao sistema de seleo da
nossa fbrica, estou certo que cada homem acaba por colocar-se no seu
lugar. (FORD, 1954, p. 81). Mas para que isso funcione,
uma disciplina severa rege a fbrica [...] exigimos
que os operrios executem o que lhes ordena.
Nossa organizao to especializada e to
intimamente se relacionam as partes, que nem por
um momento poderamos deixar ao operrio
liberdade de ao. Sem disciplina severa haveria
uma confuso espantosa [...] preciso que os
homens realizem um mximo de trabalho para
terem um mximo de salrio. (FORD, 1954, p.
92).
178
3.3 NO CRITIQUE, NO CONDENE, NO SE QUEIXE:
AUTOAJUDA NA FASE UREA DO FORDISMO
De fato, a crise dos anos de 1930 s reforou a necessidade de os
empresrios insistirem no valor do trabalho como estratgia e ajuda,
contribuio de cada trabalhador, face aos ndices de desemprego,
retrao nas demandas de produo. nesse sentido que Ford (1954, p.
19) insistia no trabalho como um princpio econmico. Observa
Harvey (1992, p. 119) que
a educao, o treinamento do trabalhador, a
persuaso, a mobilizao de certos sentimentos
sociais (a tica do trabalho, a lealdade aos
companheiros, o orgulho local ou nacional) e
propenses psicolgicas (a busca da identidade
atravs do trabalho, a iniciativa individual ou a
solidariedade social) desempenham um papel e
esto claramente presentes na formao de
ideologias dominantes cultivadas pelos meios de
comunicao de massa, pelas instituies
religiosas e educacionais, pelos vrios setores do
aparelho do Estado, e afirmadas pela simples
articulao da experincia por parte dos que
fazem o trabalho.
179
mesmo. O que no se permitia era a reduo da produtividade,
justificativa para a significativa profuso dos discursos de autoajuda
voltados s relaes de trabalho naquele perodo.
O crescimento desse gnero de literatura est ligado ao
fortalecimento da psicologia que pregava a emergncia de tecnologias
polticas que educam o cidado na desejabilidade do auto-governo.
(RDIGER, 1996). O referido movimento de autoajuda vinculado ao
apelo psicolgico do poder do pensamento positivo mantm forte
expresso nas primeiras dcadas do sculo XX com vrias publicaes
disseminando a ideia do querer poder.
Norman Vicente Peale (1898-1993) e Napoleon Hill (1883-1970),
porta-vozes do que ficou conhecido como Novo Pensamento67,
ajudaram a transformar a prtica de autoajuda em fenmeno de massas
difundindo o pensamento positivo baseado no poder da mente, na fora
do pensamento positivo. A ideia que embasa o discurso desses autores
que o pensamento cria e modifica nossa experincia no mundo, na
capacidade de transformar pensamentos em realidade. De forte cunho
religioso, mantinha-se um discurso cujo compromisso voltava-se s
necessidades da personalidade das grandes massas. (RDIGER, 1996,
p. 111). Isso fica mais compreensvel ao se saber que Peale se tornara
pastor protestante em 1932, perodo no qual os Estados Unidos viviam a
Grande Depresso. A religio passou a ser vista como uma teraputica,
reunindo muitos homens e mulheres que buscavam alento e respostas
para seus problemas. Peale, de acordo com Rdiger (1996), apropriou-se
dessa teraputica de massa em O poder do pensamento positivo
publicado em 1952. J Napoleon Hill, graas amizade com o magnata
do ao Andrew Carnegie, recebeu a tarefa de entrevistar, entre 1908 e
1928, pessoas bem-sucedidas e tentar traar denominadores comuns
explicando as causas do sucesso. Foram aproximadamente 20 anos de
pesquisa com 16 mil pessoas em que Hill levantou as atitudes que
levariam uma pessoa ao sucesso, ou seja, as causas do fenmeno da
realizao individual. Esse trabalho culminou na publicao A lei do
67
Conforme Susman (1984 apud Bosco, 2001), o movimento americano do Novo Pensamento
sintetiza as novas tendncias de literatura de sucesso. Associando a religiosidade, a psicologia
e cincias naturais (magnetismo), o Novo Pensamento apresenta a idia bsica do poder da
mente como uma emanao do Divino e, desta forma, apto a prover o indivduo em seus
desejos de sucesso ou sade. Abre-se a possibilidade da realizao do eu atravs do
desenvolvimento pessoal, ligado a um eu mstico e religioso, mas diminuindo a importncia de
uma ordem moral superior.
180
triunfo68, publicado em 1928 (HILL, 1948) e, posteriormente, Pense e
Enriquea, publicado em 1937. Marcando a difuso do pensamento
positivo, ficou muito conhecida a seguinte frase de Hill (1948): Se
minha mente consegue imaginar, ento eu consigo realizar.
Aos moldes dos livros edificantes de Samuel Smiles, com Dale
Carnegie (1888-1955) propagador dos princpios do novo ethos da
personalidade (Rdiger, 1996), que o movimento do Novo Pensamento
distingue-se pela explorao e manipulao da personalidade como um
instrumento orientado pela tcnica e no mais como fruto de uma
mentalizao positiva. Carnegie faz uma apologia sobre a importncia
das relaes pessoais no capitalismo desenvolvido. A ideia de
indivduos centrados em si prprios em competio. (BOSCO, 2001).
A proposta de Carnegie distanciou-se em parte dos
procedimentos de mentalizao, da fora do pensamento positivo,
voltando-se mais enfaticamente para o desenvolvimento da
personalidade, das relaes humanas e no emprego de tcnicas de
comunicao, ou seja, a personalidade deveria ser modelada como um
produto. O reconhecimento e o sucesso dependeriam da criao de boas
relaes humanas. (RDIGER, 1996). O sistema criado por Carnegie
funciona na forma de cursos de aperfeioamento e desenvolvimento
pessoal, com tcnicas que ensinam novos jeitos de ser no trabalho,
valendo-se do carisma pessoal na manipulao na relao com os outros.
O desenvolvimento dessa tendncia de autoajuda que sai da
crena do poder da mente est associado a Dale Carnegie, primeiro
publicista a articular os princpios do novo ethos da personalidade. O
movimento de culto personalidade e o movimento do poder do
pensamento positivo comungavam do mesmo objetivo: facilitar e
promover as necessidades dos indivduos, buscando respostas que
devem ser encontradas pelo e no prprio indivduo. A autoajuda do
sculo XX, como se v,
68
So estas as 16 atitudes caracterizadas como a lei do triunfo: Associao com outras pessoas
com o mesmo perfil de pensamento; Objetivo principal definido; Confiana em si prprio;
Hbito da economia; Iniciativa e liderana; Imaginao; Entusiasmo; Autocontrole; Hbito de
fazer mais do que a obrigao; Personalidade atraente; Pensar com exatido; Concentrao;
Cooperao; Fracasso; Tolerncia; Fazer aos outros aquilo que quer que seja feito a voc
mesmo (HILL, 1948).
181
promete o poder pessoal, que a habilidade de
mudar sua vida, de dar forma s suas percepes,
fazer com que as coisas trabalhem a seu favor [...]
a habilidade de dirigir seu prprio reino pessoal
seu
processo
de
pensamento,
seu
comportamento, a capacidade que permite voc
conseguir o que deseja. (ROBBINS, 1987 apud
RDIGER, 1996, p. 120).
182
empenho do poder da vontade, pela persistncia aplicada ao trabalho, ou
seja, pelas virtudes morais. Nas primeiras dcadas do sculo XX, mais
adequados a uma sociedade baseada em pequenos empreendedores, a f,
a diligncia, o trabalho duro e o carter no corresponderiam a uma
sociedade de grandes corporaes com sua crescente competio e
diminuio de oportunidades de ascenso individual. (BOSCO, 2001,
p. 11).
Junto ao culto da personalidade, em especial, a partir da dcada
de 1950, assiste-se ao fortalecimento de um novo movimento, o New
age, que nutria a crena em diversas prticas espirituais, doutrina de
harmonizao do eu. Marilyn Ferguson (1980), tida como a principal
porta-voz do movimento, afirmava que a competio deveria ceder lugar
comunidade; a racionalizao deveria estar subordinada
sensibilidade; a represso deveria desarmar em favor da livre expresso
do corpo. Dizia ela que, a busca do sucesso bloqueia a abertura de
relacionamentos, a questo seria a abertura a um estado de esprito.
Em 1960, Michael Murphy e Richard Price, valeram-se desse
pensamento fundando um movimento de revoluo da conscincia,
criando o Instituto Esalen nos Estados Unidos, a partir do qual surgiram
clnicas e programas de crescimento pessoal e desenvolvimento do
potencial humano. Nos anos de 1970, a propaganda em favor do
exerccio do pensamento positivo e do desenvolvimento da carismtica
individual foi contaminada pelas valoraes que distinguiam
moralmente o carter que cede lugar para: um programa psicolgico
dirigido no sentido da construo do poder pessoal e do saneamento dos
problemas interiores. O objetivo principal transformar o indivduo em
pessoa de sucesso - crena no self-made-man e no darwinismo social.
(RDIGER, 1996).
O discurso difundido na literatura de autoajuda nas primeiras
dcadas do sculo XX expressou, sem dvida, preocupaes centradas
na orientao de padres de vida adequados ordem social dominante.
Sobressair em tempos de cultura de massa constitua grande desafio
individual. nesse sentido que Carnegie torna-se um autor
representativo desse perodo nutrindo essa preocupao nas relaes de
trabalho. Apoiado, da mesma forma que Smiles, em biografias,
fragmentos destas, sistematiza uma srie de princpios, sua Frmula
Mgica para resolver situaes aflitivas.
183
Desde os anos de 1930, pode-se falar da atualidade de Carnegie
com sua tica da personalidade mantida graas a um sistema que
ensina tcnicas de desenvolvimento pessoal utilizando CDs, filmes,
livros, palestras motivacionais (CERCATO, 2006). Depois de sua
morte, a famlia Carnegie mantm ativo o Instituto Dale Carnegie
Training localizado nos principais estados e cidades do Brasil. Este
funciona por meio de cursos in company, treinamentos, seminrios de
liderana, comunicao, vendas.
Desse modo, visando conhecer mais a respeito dos escritos do
referido autor, empreendeu-se uma anlise das principais publicaes70,
buscando evidenciar as concepes de homem, sociedade/mundo,
trabalho e educao difundidas para influenciar pessoas nas relaes de
trabalho imprimindo novos modos de ser e agir.
Ttulo
1. Edio
Pas
1936
EUA
1981
EUA
s.d
EUA
1948
EUA
1975
EUA
As cinco publicaes analisadas no presente estudo sero referenciadas pelo ano de edio
do qual se tem acesso.
71
As informaes aqui apresentadas foram publicadas na ltima edio do Dale Carnegie
Newsbreak, jornal de circulao gratuita em Braslia, em 11 de fevereiro de 2009, sob o ttulo,
Registros que viraram histria.
184
abandonou a carreira de ator e decidiu que daria aulas de oratria em
escolas noturnas em busca de tempo livre para dedicar-se leitura,
preparao de palestras, escrita de romances e contos, j que seu desejo
era "de viver para escrever e escrever para viver". Sua primeira palestra
foi na Young Mens Christian Associations em outubro de 1912. Num
curto perodo de tempo, Carnegie j estava desenvolvendo o seu prprio
curso, e escrevendo panfletos que seriam publicados como livros.
Depois de ter servido no exrcito na Primeira Guerra Mundial, ele
conduziu o "tour" das palestras de Lowell Thomas. Em seguida,
conduziu o seu prprio "tour" a fim de promover suas ideias acerca do
sucesso valendo-se da oratria. No incio dos anos de 1930, passou a ser
conhecido por seus livros e por um programa de rdio, quando publicou
Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, ganhando sucesso imediato
e tornando-se um dos maiores best-sellers de todos os tempos. Tal fato
foi o suficiente para tornar-se um orador e um escritor: comeou a ter
colunas em jornais e criou o Instituto Dale Carnegie, destinado a
desenvolver a comunicao eficaz e relaes humanas, com filiais em
todo o mundo.
Dale Carnegie o responsvel pela produo de uma vasta
literatura cujo propsito fornecer diversas frmulas prticas,
sistematizadas em princpios, para resolver situaes adversas na
construo de trajetrias profissionais. Para tanto, o autor indica
caminhos para a prosperidade e o sucesso. semelhana de Smiles,
suas publicaes resultam de experincias de longos anos de cursos e
palestras, que, no caso de Carnegie, refere-se arte de falar em pblico,
um dos aspectos essenciais de sua literatura. Assim como Smiles,
recebeu convite dos trabalhadores para ensin-los, comeando sua
carreira falando para comerciantes que desejavam exprimir-se com mais
facilidade e autoconfiana. Estes, de acordo com Dorothy Carnegie, sua
esposa, no estavam dispostos a gastar tempo e dinheiro no estudo
mecnico da palavra, dico, regras de retrica e arte da gesticulao.
(CARNEGIE, 2006). O desejo era de um curso eminentemente prtico,
caracterstica exaltada por Carnegie, que via em suas aulas uma
proposta para conquista de xito imediato. O autor estaduninense
abordava o falar em pblico no como uma das belas-artes que exigiam
talentos e aptides especiais, mas como uma habilidade que qualquer
pessoa normalmente inteligente pode adquirir e desenvolver sua
vontade. (CARNEGIE, 2006, p. 11).
185
Carnegie ministrou seu primeiro curso em 1912 a pedido da
Associao Crist de Moos, em Nova York. Naquele momento, visava
formao de oradores e gigantes da tribuna, do tipo eloqente. A
partir das experincias em seus cursos, o autor publicou, em 1936,
Como fazer amigos e influenciar pessoas72. Esta, que constitui sua
principal obra, ganhou ampla repercusso na histria da editorao
como um dos best-sellers internacionais com grande tiragem de venda,
inicialmente com cinco mil exemplares chegando atualidade em sua
51. edio. A esse respeito, Wood Jr. (2005), em resenha do livro,
levanta a hiptese de que este seria a clula-tronco, a matriz
gentica dos livros de autoajuda empresarial. Destaca ainda que os
preceitos contidos no livro venceram as fronteiras do espao e do
tempo. Alcatias de vendedores de enciclopdia e de softwares
integrados de gesto continuam recorrendo aos seus conselhos.
(WOOD Jr., 2005, p. 59). Nessas circunstncias, considera-se a
atualidade de Dale Carnegie exercendo influncia no mundo dos
negcios.
Tamanho sucesso e repercusso tambm devem-se estrutura
criada para disseminar suas ideias a respeito de como se relacionar no
trabalho. Em 1912, Dale criou o Curso Dale Carnegie com o objetivo de
mostrar que a atitude com que encaramos o trabalho pode determinar
que nossos dias sejam tomados pelo entusiasmo e pela sensao de
realizao resultantes de um timo desempenho ou ento, por
frustrao, tdio e cansao. (CARNEGIE, 2000, p. 10). Rdiger (1996,
p. 115) salienta que a valorizao da capacidade oratria e a vocao
para o magistrio levaram Dale a dedicar-se vitoriosamente ao ensino
da comunicao, relaes humanas, sucesso nos negcios, atravs da
criao de centros e cursos de treinamento espalhados por mais de 60
pases, considerando diversos Estados brasileiros. Alm de seu principal
72
A estrutura do livro Como fazer amigos e influenciar pessoas permite fcil leitura, fcil
apropriao graas ao vasto nmero de exemplos relacionados. Antes mesmo da entrada do
ndice, h uma pgina cujo titulo : Oito coisas que este livro pode fazer por voc, guia de
como se apropriar das ideias que seguem. No ndice constam dois prefcios, um escrito por sua
esposa Dorothy e outro escrito pelo autor. H tambm uma breve referncia biogrfica sobre
Dale escrita por Lowall Thomas em 1936. Alm destes, consta Como e por que este livro foi
escrito, em que Dale relata um pouco das experincias iniciais em cursos para negociantes e
comerciantes em Nova York. Finalmente, Nove sugestes para conseguir extrair o mximo
deste livro, no qual prescreve dicas para uma melhor apropriao dos preceitos apresentados. O
livro, em sua estrutura geral, divide-se em quatro partes: Tcnicas fundamentais para
influenciar pessoas; Seis maneiras de fazer as pessoas gostarem de voc; Como conquistar as
pessoas para o seu modo de pensar; e Seja um lder: como modificar as pessoas sem as ofender
ou provocar ressentimentos.
186
best seller outra de suas publicaes tornou-se sucesso de vendas: Como
evitar preocupaes e comear a viver73. Outros ttulos merecem
referncia pela repercusso e nmero de edies atuais: Como falar em
pblico e influenciar pessoas no mundo dos negcios e Como desfrutar
sua vida e seu trabalho74, este ltimo contempla trechos selecionados
dos dois principais best sellers de Dale, alm de, Como venceram os
grandes homens constitudo, essencialmente, de excertos biogrficos.
Conforme afirma Dorothy (2000, p. 6) no prefcio de Como
desfrutar sua vida e seu trabalho,
participar de um treinamento de Dale Carnegie
uma aventura no processo de descoberta de si
mesmo; e este poder ser um momento decisivo
em sua vida. Voc j possui habilidades inatas, as
quais poderiam tornar-lhe a vida gloriosa. Tudo de
que voc precisa agora determinao para
descobri-las e utiliz-las.
Como evitar preocupaes e comear a viver vendeu mais de 15 milhes de exemplares e foi
publicado em 36 idiomas, desde a sua primeira publicao em 1948.
74
Como desfrutar sua vida e seu trabalho um livro composto de fragmentos de Como fazer
amigos e influenciar pessoas e Como evitar preocupaes e comear a viver publicados aps a
morte de Dale Carnegie, em 1955, por Dorothy e Donna Carnegie, em 1975.
187
na formao de comerciantes, negociantes, vendedores e outros
profissionais os homens de negcios - que queriam melhorar ou
exercer influncia nas relaes de trabalho.
Como lembra Carnegie (2006, p. 210), o processo de
comunicao afeta a relao do indivduo com os seus colegas de
trabalho, consequentemente, a qualidade de suas atividades. Como
vendedores, gerentes, balconistas, chefes de departamentos, professores,
sacerdotes, enfermeiras, executivos, mdicos, advogados, contadores e
engenheiros, temos todos ns o encargo de explanar reas especializadas
do conhecimento e dar instrues profissionais. O que est em jogo
nessa relao no o assunto em si, mas a maneira como algum
fala. (CARNEGIE, 2006, p. 162). Para desenvolver essa habilidade,
Carnegie acredita que o treinamento do lado humano do sucesso
suficiente para formar indivduos, transformando-os em lderes.
(CARNEGIE, 2006). Por isso, seus livros esto repletos de frmulas
mgicas indicando receitas e vrios passo a passo de como se deve
proceder para obter sucesso ao falar em pblico. Alis, no so os
problemas sociais que importam, mas sim, a maneira como se fale sobre
estes, a linguagem empregada, colocando em relevo que o trabalho de
um lder inclui a modificao de atitudes e comportamentos, ou seja, o
modo como se v o mundo condiciona o modo como se age sobre ele.
3.3.3 Serenidade para aceitar as coisas que no posso
mudar: concepo de sociedade/mundo de Carnegie
No prefcio de Como fazer amigos e influenciar pessoas,
Dorothy Carnegie (1995, p. 14) escreve que o livro tocou num nervo e
preencheu uma necessidade humana que estava alm de uma simples
moda gerada pelos dias que sucederam Depresso, permitindo refletir
sobre as mudanas que o mundo [vinha] sofrendo desde a dcada de
30. Num perodo em que os Estados Unidos buscavam reverter altos
ndices de desemprego e minimizar os efeitos da Crise de 1929, Lowell
Thomas, famoso jornalista nos anos de 1930, no prefcio do livro, conta
que em 1935, em Nova York durante um perodo de crise, com 20% da
sua populao recebendo auxlio dos cofres pblicos; 2.500 pessoas
deixaram seus lares e correram para o Hotel Pensilvnia atendendo ao
convite do anncio Aprenda a falar eficazmente: prepare-se para
dirigir. Dentre o pblico que atendeu a esse convite, estavam
dirigentes, empregadores e profissionais.
188
Carnegie (1995, p. 30) entendia que um dos problemas a se
enfrentar na sociedade era o trato com as pessoas visto como o maior
problema que o indivduo tem a encarar. Por isso, os princpios
apresentados em Como fazer amigos e influenciar pessoas, na defesa do
autor, no eram meras teorias ou conjeturas [...] trabalham como um
mgico [...] tenho visto a aplicao destas normas revolucionar
literalmente a vida de muita gente. Corroborando com essa viso,
Dorothy afirmava que Dale destacava que, como nunca, numa
atmosfera internacional cheia de tenses, medo e insegurana, [era
preciso] manter abertos os canais de comunicao entre os povos.
(CARNEGIE, 2006, p. 12). Negcios, vida social e satisfaes pessoais
dependem grandemente da capacidade de uma pessoa comunicar aos
semelhantes aquilo que ela , o que sente e em que acredita.
(CARNEGIE, 2006, p. 12). Esses aspectos, se bem trabalhados pelo
indivduo o habilitariam a transitar num mundo em crise. Por qu?
Porque a fala [pode] conduzir ao, afirmava Carnegie (2006, p. 12).
Um aspecto interessante a ser mencionado est descrito em Como
falar em pblico e influenciar pessoas no mundo dos negcios. Neste,
Dale conta que, aps a Primeira Guerra Mundial, estava em Londres
trabalhando com Thomas Lowell numa sequncia de palestras e, numa
de suas folgas, foi ao Hyde Park, local em que oradores de todos os
credos, cores e convices polticas e religiosas podiam verbalizar suas
opinies sem a interferncia da lei. (CARNEGIE, 2006, p. 77). Havia
vrios crculos de pessoas ouvindo diversos oradores, cada qual
reunindo uma pequena multido. Dale parou para escutar um catlico
explicando a doutrina de infalibilidade do Papa, deslocou-se nas
proximidades em uma multido e prestava ateno ao que tinha a dizer
um socialista sobre Karl Marx, alm de passar por outro grupo, cujo
orador falava sobre a poligamia. (CARNEGIE, 2006). Nesse passeio, o
que chamou a ateno de Dale no se ateve aos contedos das falas de
cada orador, mas como estes atraiam e mantinham a ateno do pblico.
Os dois primeiros oradores falavam sobre seus pontos de vista [...] com
vida e com alma, seus braos se moviam, em gestos apaixonados.
(CARNEGIE, 2006, p. 78). A explanao acentua que a vitalidade,
vivacidade, entusiasmo so as primeiras qualidades [...] essenciais de
um orador. (CARNEGIE, 2006, p. 78). Dale preocupou-se em destacar
a necessidade de prender a ateno do pblico exercitando essas
qualidades minimizando a importncia daquilo que vai ser dito. O que
importa de que maneira as palavras so proferidas. Nesse caso,
Carnegie (2006, p. 103) assinalava que o objetivo ou finalidade de uma
189
fala, quer o orador perceba ou no, tm desses quatro objetivos. Quais
so eles: persuadir ou conduzir ao; informar; impressionar ou
convencer; entreter.
Para o escritor estadunidense, o mundo da televiso americana
chama mais a ateno do que quaisquer situaes relacionadas s
questes sociais. A mdia televisiva vista como um mundo exigente
e, a cada temporada, animadores de alta cotao caem sob os fogos
fulminantes da competio. (CARNEGIE, 2006, p. 98, sem grifos no
original). Esse mundo a televiso representava um espao de
investimento em impressionar e convencer. Ainda que essa seja a
preocupao latente em Carnegie perpassando toda a sua literatura, com
a publicao de Como evitar preocupaes e comear a viver, em 1948,
o autor conta, em um dos captulos do livro, como seus pais dominaram
as suas preocupaes delegando f, religio grande parte da situao
de conforto que as palavras da bblia traziam famlia. Ressalta o autor
que no perodo de crise, em mdia, nos Estados Unidos h um suicdio
em cada trinta e cinco minutos. Em mdia, enlouquece algum em cada
cento e vinte segundos [...] a maior parte desses suicdios podiam ser
evitados se essa gente tivesse conhecido o alvio e a paz que se
encontram na religio e na prece. (CARNEGIE, 1994, p. 204).
Carnegie dizia que tal situao podia ser confirmada ao se
considerar a entrevista que realizou com Henry Ford nos anos de 1942
na qual:
Esperava encontrar, no seu aspecto, demasiados
sinais de tenso dos longos anos que passara
construindo e dirigindo uma das maiores
indstrias do mundo. De modo que me
surpreendeu verificar o seu aspecto calmo e
tranqilo, aos setenta e oito anos. Quando lhe
perguntei se nunca se preocupava, respondeu-me:
No, nunca. Creio que Deus dirige todos os
nossos problemas, e acho que ele no precisa de
conselhos nossos. Com o auxilio de Deus, tenho a
certeza de que tudo acaba bem. Se assim , para
que nos preocuparmos? (CARNEGIE, 1994, p.
199).
190
constitui uma verdade para o autor apontando que William James, o pai
da psicologia moderna, escreveu ao seu amigo Thomas Davidson,
dizendo-lhe que, medida que os anos passavam, via-se cada vez mais
impossibilitado de continuar o seu caminho sem Deus. Nessa linha de
pensamento, Carnegie (1994, p. 201) relata a histria de uma mulher,
que dizia: Durante a crise, a mdia do salrio de meu marido era
dezoito dlares semanais. Muitas vezes nem com isso podamos contar,
porque ele no ganhava quando estava doente A histria dessa mulher
extensa e Carnegie se vale dela para afirmar que a prece a mais
poderosa energia que podemos gerar, ela o instrumento que: Ajudanos a transformar em palavras o que nos perturba [...] a prece pe em
execuo o princpio ativo de fazer. (CARNEGIE, 1994, p. 215).
Esse princpio ativo no pressupe participao dos indivduos
nas discusses poltico-sociais de sua poca, mas evidencia que o
homem no feito para compreender a vida, mas para viv-la.
(CARNEGIE, 1994, p. 198), o que pressupe ao.
A referida ao est voltada persuaso, a impressionar e
convencer outras pessoas. A esse respeito, Carnegie (1994, p. 146)
destaca que as demandas do comrcio moderno e a casualidade
corrente com que a moderna comunicao oral levada a efeito tornam
imperativa a necessidade de termos capacidade de mobilizar nossos
pensamentos rapidamente e verbaliz-los fluentemente. Como grande
parte de seu pblico era composta de negociantes e comerciantes, a
oratria o caminho pelo qual se materializava um saber-fazer por meio
de uma linguagem perspicaz que visava implantar a idia em suas
mentes e evitar o surgimento de idias opostas e contraditrias. Quem
tiver habilidade em assim proceder tem o poder da fala e de influenciar
outras pessoas. (CARNEGIE, 1994, p. 144).
Uma frase, ao final do livro Como evitar preocupaes e
comear a viver, ajuda a compreender que o objetivo central de Dale
Carnegie em sua literatura, modificar comportamentos, condutas,
modos de ser e viver no mundo sem que, para isso, o mundo precise
mudar: Conceda-me, Deus, a serenidade para aceitar as coisas que no
posso modificar, a coragem para modificar as coisas que posso, e a
sabedoria para conhecer a diferena. (CARNEGIE, 1994, p. 352).
191
3.3.4 Aprendemos fazendo: concepo de trabalho e
educao
Em Como fazer amigos e influenciar pessoas, alm do prefcio
de Dorothy Carnegie consta, em suas pginas iniciais um breve relato
intitulado Rumo certo distino no qual Thomas Lowell indaga por
que, em perodo de crise, em 1935, 2.500 homens e mulheres se
propuseram a participar de um curso Carnegie. Por que se tornava
mister mais educao devido crise? Segundo ele, aparentemente
no, pois tais cursos j eram dados em casas cheias na cidade de Nova
York nos ltimos 24 anos. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995,
p. 17). Para Lowell, no resta dvida que o fato de virem, estes
homens, que deixaram as escolas primrias, secundrias e alguns at as
superiores, dez ou vinte anos atrs, procura de tal treinamento, uma
prova evidente das chocantes deficincias do nosso sistema de
educao. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 17).
A partir dessa constatao, o jornalista explica que, em anos
anteriores se pesquisou sobre o que desejavam estudar os adultos. Esse
tema norteou uma pesquisa que incluiu a Universidade de Chicago, a
Associao Americana para a Educao de Adultos e as escolas da
A.C.M. Esta pesquisa durou aproximadamente dois anos e revelou o que
os adultos realmente desejavam aprender: [...] apenas sugestes que
possam empregar imediatamente nos contatos comerciais, sociais e no
lar. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 19). De acordo com
Lowell (1936 apud Carnegie, 1995, p. 18), os encarregados da pesquisa,
buscando um livro didtico que pudesse auxiliar os adultos na soluo
dos problemas dirios no seu convvio humano, viram que tal livro
jamais fora escrito. Para o jornalista, este fato explica facilmente a
razo por que 2.500 adultos se comprimiam no grande salo de bailes do
Hotel Pensilvnia, atendendo apenas a um simples anncio de jornal. A,
oferecia-se o que h muito eles buscavam. (LOWELL, 1936 apud
CARNEGIE, 1995, p. 18).
Nessa palestra, muitas das pessoas que participavam no viam o
interior de uma escola havia mais de trinta anos. [...] queriam resultados.
E queriam rapidamente resultados que pudessem aplicar no dia seguinte
nos encontros comerciais ou diante de outros grupos. (LOWELL, 1936
apud CARNEGIE, 1995, p. 27). Dessa forma, Carnegie ajudou homens
e mulheres de negcios a desenvolver suas possibilidades latentes, criou
192
um dos mais significativos movimentos na educao dos adultos.
afirmava LOWELL (1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 28).
Nessas circunstncias, Carnegie esclarece porque escreveu Como
fazer amigos e influenciar pessoas. Aps a pesquisa recentemente
mencionada, por experincia prpria [...] eu mesmo andei, anos a fio,
procurando descobrir um manual prtico e exeqvel sobre relaes
humanas (CARNEGIE, 1995, p. 31). Por isso o livro composto de
princpios que conduzem ao, considerando que o grande objetivo
da educao, afirmou Herbert Spencer, no o saber, mas a ao.
(CARNEGIE, 1995, p. 35).
Mas o que significa aprender, para Carnegie? Em referncia a
Bernard Shaw (1856-1950), o qual dizia que, se ensinardes alguma
coisa a um homem, ele nunca aprender. (SHAW, s.d apud
CARNEGIE, 1995, p. 38), Carnegie afirmava que o aprender um
processo ativo. Aprendemos fazendo. (CARNEGIE, 1995, p. 38). O
encmio ao saber-fazer alinha-se ideia de ao, uma ao que se daria
no desenvolvimento de discursos. Os anos de 1930 marcam a difuso
dos cursos e publicaes de Carnegie pelos Estados Unidos. Tal
expanso comeou a incomodar o autor devido ao grande nmero de
participantes em cada grupo. A linha organizacional seguida pelos
oradores desde os tempos de Aristteles (mtodo de introduo,
contexto e concluso) previa um tempo mnimo de dois minutos para os
pronunciamentos dos membros de uma turma. (CARNEGIE, 1995).
Esta limitao de tempo atendia to-somente ao objetivo de entreter e
informar, mas o objetivo de Carnegie era conduzir ao, o que tornava
o mtodo at ento aplicado, ineficiente. Desse amlgama de
experincia e de crebros, espervamos conseguir uma nova abordagem
organizao do discurso, que fosse concisa e ao mesmo tempo
refletisse a necessidade de nossa poca quanto a um mtodo lgico e
psicolgico para influenciar os ouvintes, levando-os a agir.
(CARNEGIE, 1995, p. 106, sem grifos no original).
Sem modstia, Carnegie destaca que desenvolveu um sistema de
auto-anlise, auto-educao, e por isso, muitas vezes inclino-me a darme os parabns depois de um dos cursos. (CARNEGIE, 1995, p. 39).
Surgiu, ento, a Frmula Mgica para a estrutura de uma fala. Essa
frmula mgica desenvolvida pelo publicista consistia em:
Simplesmente isto: comece o seu pronunciamento
dando-lhes detalhes do seu Exemplo, um
193
incidente que ilustre graficamente a idia que
voc deseja levar a bom termo. Em segundo lugar,
com expresses claras e concisas, apresente o seu
Objetivo, dizendo exatamente o que voc deseja
que o auditrio faa: em terceiro lugar, apresente
sua Razo, isto , esclarea as vantagens e
benefcios a serem obtidos pelo ouvinte, se fizer
aquilo que voc pediu que faa. (CARNEGIE,
1995, p. 107).
194
comportamento. Estudos recentes mostram que o
mesmo se aplica ao homem. Atravs da crtica
no operamos mudanas duradouras e amide
ocorre o ressentimento. (CARNEGIE, 1995, p.
46).
195
cheia de exemplos [...] de pessoas famosas lutando para se sentirem
importantes. (CARNEGIE, 1995, p. 62). Nesse aspecto, apresenta-se o
segundo princpio elaborado pelo publicista: Faa um elogio honesto e
sincero. (CARNEGIE, 1995, p. 71, sem grifos no original). Isso seria
possvel graas ao incentivo valorizao em detrimento a crtica. Esta
constitui uma virtude que pode ser desenvolvida. Carnegie busca nas
ideias do filsofo Emerson, muitas sentenas no intuito de reforar sua
linha de pensamento, no que diz: Todo homem que encontro superior
em alguma coisa. E nesse particular eu aprendo dele. (EMERSON, s.d
apud CARNEGIE, 1995, p. 72).
A respeito da relao entre ao e vontade, Carnegie, valendo-se
do psiclogo e filsofo William James (1842-1910), enfatiza:
A ao parece acompanhar a sensao, mas, na
realidade, ao e sensao andam juntas; e
regulando a ao, que est sob o mais direto
controle da vontade, podemos indiretamente
regular a sensao, que no o est. Deste modo, o
soberano e voluntrio caminho para o bom humor,
se o nosso foi perdido, proceder alegremente,
agindo e falando como se o bom humor j
estivesse l. (JAMES, s.d apud CARNEGIE,
1995, p. 112).
Nesse sentido, tambm Ford afirmava (1954, p. 427): O pensamento no ligado ao [...]
se torna mrbido.
196
Essa mudana est relacionada aos padres de pensamento. Ao mudar o
modo de pensar individual, possvel conquistar as pessoas para o seu
modo de pensar. (CARNEGIE, 1995, p. 155). Como isso possvel?
Utilizando-se de exemplos.
3.3.5 Modelos de excelncia: a pedagogia de Carnegie
Em Como venceram os grandes homens, Carnegie, assim como
Smiles, utiliza-se de um nmero significativo de fragmentos biogrficos
de homens notveis. Por meio destes, possvel apreender elementos
que indicam a concepo de Carnegie a respeito da relao trabalho e
educao e o papel da escola neste aspecto. Inicialmente, s primeiras
pginas do livro, o autor faz referncia a Bernard Shaw, acentuando que
sua vida cheia de contrastes marcantes e notveis. Sua instruo
escolar no foi alm de cinco anos [...] tornou-se um dos mais ilustrados
escritores contemporneos e recebeu a maior honra a que se pode um
escritor aspirar, o Prmio Nobel para Literatura. (CARNEGIE, s.d, p.
5).
Carnegie tambm destaca o mrito de George Marshall, general
do exrcito norte-americano na dcada de 1920, na conduo de suas
aes. Tratava-se de um homem com habilidade para executar uma
quantidade incrvel de trabalho, sem cansao fsico ou nervoso.
(CARNEGIE, s.d, p. 24). Valorizado pela sua inclinao para a
liderana, Marshall lembrado por Carnegie que, sistematizou alguns
princpios em referncia s suas aes: Primeiro: Ele nunca l
relatrios pormenorizados, apenas os resumidos e condensados,
fazendo referncia economia de tempo. Segundo: Treinou-se a ler
rapidamente, a concentrar-se inteiramente e a chegar a decises com
rapidez, sinalizando a repetio como parte de uma aprendizagem
eficiente. Terceiro: Quando toma uma deciso militar, nunca perde
inutilmente tempo e energia revisando-a. (CARNEGIE, s.d, p. 24-25).
Destes princpios possvel identificar a mxima taylorista-fordista da
eficincia e produtividade, alm de uma aprendizagem vinculada ao
saber-fazer. Marshall exemplo, ilustrao de sua disciplina pessoal.
Forou a si prprio deixar de fumar. (CARNEGIE, s.d, p. 25). Esse
feito, aos olhos de Carnegie, coloca Marshall como um homem de
negcio apto a se colocar junto a Csar e apontar o caminho.
(CARNEGIE, s.d, p. 25).
197
Noutra ilustrao admirvel, pode-se aventar o exemplo do
General Claire Chennault, do qual Carnegie destaca o desenvolvimento
de qualidades que o tornaram um importante lder militar. No rol de
qualidades deste esto: iniciativa, coragem, originalidade, raciocnio
rpido e tiro certeiro. (CARNEGIE, s.d).
Carnegie (1995, p. 132) conta que havia um pobre rapaz,
imigrante holands, [que] ocupava-se depois da escola, em limpar
vitrines de uma padaria para sustentar seus familiares. [...] este rapaz,
Edward Bok, no cursou em toda a sua vida mais do que seis anos de
escola; tornou-se, entretanto, um dos mais prsperos editores de revistas
na histria do jornalismo americano. Como conseguiu isso? Conforme
Carnegie, seu sucesso deve-se aplicao dos princpios preconizados
em seus escritos. Esse rapaz, nem por um momento abandonou a idia
de ter uma educao. Ao contrrio, comeou a educar-se (CARNEGIE,
1995, p. 132), de que forma? Lendo uma enciclopdia de biografias
americanas [...] leu a vida dos homens famosos e escreveu-lhes pedindo
informaes adicionais sobre sua infncia (CARNEGIE, 1995, p. 133).
Dentre as biografias lidas pelo rapaz esto a de Ralph Waldo Emerson e
Abraham Lincoln. Como dizia Carnegie (2006, p. 66), no se pode
negar o valor de uma histria em prender a ateno [...] os exemplos
pessoais so a maneira segura de prender a ateno: no os despreze. O
autor refora que Como fazer amigos e influenciar pessoas um livro
composto de ilustraes e exemplos que servem de apoio para que possa
ressaltar como as pessoas empregaram as tcnicas por ele criadas. Essas
histrias de homens notveis so viabilizadas de cinco maneiras:
Humanize, personalize, especifique, dramatize e visualize.
(CARNEGIE, 2006, p. 66). Essas tcnicas tornam-se uma estratgia
para impressionar.
O exemplo constitui matria-prima no processo de aprendizagem
dos indivduos. De acordo com as ideias de Carnegie (2006, p. 109, sem
grifos no original), aprendemos de duas maneiras: uma pela lei do
exerccio, em que uma srie de incidentes similares [exemplos] leva a
uma modificao de nossas linhas de comportamento; a segunda,
pela lei do efeito, em que um nico evento [exemplo] pode ser to
marcante a ponto de modificar nossa conduta. Desse modo, a partir do
exemplo, voc deve criar novamente um segmento de sua experincia,
de tal forma que ela tenda a ter o mesmo efeito sobre o seu auditrio
como originalmente teve sobre voc. (CARNEGIE, 2006, p. 111).
Aqui est exposto um dos princpios de mudana de conduta presente
198
em Como fazer amigos e influenciar pessoas: Dramatize suas idias.
Recordando vividamente tais incidentes, podemos transform-los em
base para influenciar a conduta de outras pessoas. Podemos faz-lo
porque as pessoas respondem s palavras quase da mesma maneira com
que respondem aos acontecimentos, afirma Carnegie (2006, p. 110).
Cumpre lembrar que o discurso de Carnegie visa educar o
indivduo para a ao. Dessa forma, uma experincia pessoal que lhe
ensinou uma lio de que voc jamais se esquecer o primeiro
requisito de uma fala persuasiva para conduzir ao. (CARNEGIE,
2006, p. 110). Para isso, uma das razes para comear sua fala com a
fase do Exemplo atrair imediatamente a ateno [...] seus ouvintes
lembrar-se-o do que voc disse e do que voc deseja que eles faam
somente se o Exemplo se gravar em suas mentes (CARNEGIE, 2006,
p. 114). Afirmando a importncia do valor educativo dos exemplos,
Carnegie, similarmente a Smiles, tambm vale-se de diversas passagens
bblicas no intuito de convencer seu pblico sobre essa estratgia de
educar para a mudana de conduta, comportamento. Para o autor, o
Novo Testamento um rico repositrio de princpios de conduta tica
reforados por exemplos plenos de interesse humano a parbola do
Bom Samaritano, por exemplo. (CARNEGIE, 2006, p. 114).
Assim, um discurso baseado em exemplos, em experincias
pessoais, permitiu a Carnegie (2006) pensar na segunda fase de sua
Frmula Mgica para convencer e influenciar pessoas. Esta
governada por trs regras: apresente o objetivo de forma breve e
especfica; torne o objetivo fcil de execuo pelos ouvintes; apresente o
objetivo com fora e convico. O exemplo o recurso didtico
pedaggico que deve ser utilizado para convencer, influenciar e mudar a
conduta das pessoas. O que no se deve perder de vista, para o autor,
que [...] ao falar para convencer outras pessoas ou impression-las [...]
[deve-se] justamente [...] implantar a idia em suas mentes e evitar o
surgimento de idias opostas e contraditrias. (CARNEGIE, 2006, p.
144). Associadas ao uso do exemplo outras tcnicas so preconizadas
pelo autor. Dentre elas, o emprego da analogia uma tima tcnica
para o apoio de uma idia principal. (CARNEGIE, 2006, p. 200). Essa
relao de similaridade entre duas proposies facilita o apelo ao.
importante chamar a ateno para o fato de que o investimento
de um orador na mudana de comportamento, de conduta, de padres de
pensamento de seu pblico com vistas ao, no tarefa
199
necessariamente de um educador, segundo o ponto de vista de Carnegie.
De acordo com o seu entendimento,
embora poucos de ns sejamos professores
profissionais, todos empregamos a palavra para
informar outras pessoas, em muitas ocasies
durante o dia. Como pais ensinando a nossos
filhos, como vizinhos explicando uma nova
tcnica de podar roseiras, como turistas trocando
idias quanto melhor excurso de lazer,
frequentemente nos encontramos em situaes
coloquiais que exigem clareza e coerncia de
pensamentos, vitalidade e vigor de expresso.
(CARNEGIE, 2006, p. 210).
200
Sendo assim, mais significativa do que qualquer aprendizagem era a
soluo habilidosa dos problemas (SHOOK, 2002), discurso este
extremamente adequado forma de organizao de trabalho dominante.
Essa literatura respalda no apenas vises normativas do que
deve ser feito versus o que no se deve fazer, mas um modo prescritivo
de como esse fazer est vinculado eficcia e produtividade no trabalho.
Cidado produtivo, moralismo, fora fsica, obediente, disciplinado,
abstmio, monogmico, adaptvel, hbil e dcil. O trabalhador
idealizado pela literatura de autoajuda e almejado para o trabalho no
sculo XX o operrio (con)formado.
Para isso, foi preciso investir na autoajuda para os homens de
negcios, um discurso que promoveria uma mudana individual e
desenvolvendo a capacidade de influenciar e converter os trabalhadores
para um determinado modo de pensar. Nesse sentido, a autoajuda de
Carnegie aposta no valor educativo dos exemplos. Estes constituem
uma estratgia eficaz de aprendizagem, educando para a ao, para a
mudana de conduta, permitindo desenvolver a serenidade para aceitar
as coisas que no se pode modificar. interessante observar como os
exemplos que incitam ao produzem a conformao.
Em vista a influenciar e convencer tanto o pblico leitor quanto
os participantes de cursos, Carnegie utiliza de maneira expressiva frases
de efeito e verbos na forma imperativa elementos marcantes em seus
livros que objetivam dar suporte para que o leitor se sinta forte, seguro,
incline-se a exercer o seu poder de persuaso visando convencer, ou nas
palavras do autor, impressionar.
Associadas ao uso de exemplos, outras tcnicas so preconizadas
pelo autor como estratgia de difuso de sua viso de mundo, trabalho e
educao. Dentre elas est o emprego da metfora ou analogia vista por
Carnegie como uma tima tcnica para o apoio de uma idia principal.
(CARNEGIE, 2006, p. 200).
A autoajuda de Carnegie tambm aproxima-se de um discurso
religioso, j que o alvio e a paz se encontram na religio e na prece.
(CARNEGIE, 1994, p. 204). O uso de parbolas bblicas como a do
Bom Samaritano encontra-se articulado s tcnicas de oratria
apresentadas pelo autor. Mescla-se religio o apelo ao poder do
pensamento positivo, apesar de alguns autores, a exemplo de Rdiger
(1996), afirmarem que Carnegie rompe com esse movimento voltandose carismtica, ao culto da personalidade: Use em seu trabalho as
201
tcnicas da linguagem positiva. (CARNEGIE, 2006, p. 210, sem
grifos no original). Segundo o autor, negcios, vida social e satisfaes
pessoais dependem, grandemente, da capacidade de comunicar-se, por
isso dedica uma primeira parte de seu livro Como fazer amigos e
influenciar pessoas no negcio aos fundamentos da oratria positiva.
A autoajuda de Dale Carnegie consolida-se em momentos de
crise, apresentando-se como um discurso orientador de conduta,
ensinando a arte de persuadir de forma a influenciar mudanas de
pensamento e de comportamento.
202
4 EM TEMPOS DE FLEXIBILIDADE ... SE NO MUDAR,
MORRERS!
Ao contrrio do que em geral se
cr, sentido e significado nunca
foram a mesma coisa, o significado
fica-se logo por a, direto, literal,
explcito, fechado em si mesmo,
unvoco, por assim dizer; ao passo
que o sentido no capaz de
permanecer quieto, fervilha de
sentidos segundos, terceiros e
quartos, de direes irradiantes que
se vo dividindo e subdividindo em
ramos e ramilhos, at se perderem
de vista, o sentido de cada palavra
parece-se com uma estrela quando
se pe a projetar mars vivas pelo
espao afora, ventos csmicos,
perturbaes magnticas, aflies.
(JOS SARAMAGO, 1997)
203
Na presente tese tenta-se demonstrar que esta (con)formao
ocorreu fora e dentro da escola.
Para a finalidade deste captulo, analisa-se o discurso de
autoajuda de autores mais vendidos nas ltimas dcadas, disseminando
um conjunto de orientaes, pregaes e aconselhamentos para
trabalhadores diante das transformaes no mercado e nas relaes de
trabalho e exigncias de um trabalhador de novo tipo. um discurso
que informa acerca das mudanas no mundo do trabalho, procurando dar
legitimidade s estratgias gerenciais objetivando adaptao, aceitao,
ao mesmo tempo que estimula novos modos de ser e agir no trabalho.
Considerando que a linguagem utilizada como instrumento de
mudana porque veicula representaes, valores e os refora
(LINHART, 2007, p. 111), analisa-se, neste captulo, o discurso de
autoajuda de Minarelli (1995), Johnson (2001) e Shinyashiki (2001). Os
materiais de autoajuda anunciam a pretenso de preparar os indivduos
para viver a mudana assimilando a ideia indispensvel de que em
tempos de flexibilidade se requer outro sistema de valores. Sem dvida,
est falando-se de uma formao da sociabilidade requerida, na
atualidade, pelo capital.
4.1 CONTEXTUALIZANDO AS MUDANAS
Aps a crise dos anos de 197078, a produo flexvel foi adotada
em algumas empresas como alternativa ao fordismo, gerando mudanas
nas relaes e mercado de trabalho e, conseqentemente, no trabalhador,
que deveria adequar-se s demandas da flexibilidade. A partir das
dcadas de 1980 e 1990, ampliaram-se os debates acadmicos sobre as
implicaes da emergncia de um novo paradigma produtivo, calcado
numa nova base tcnica de produo e organizao do trabalho.
No plano socioeconmico, essa recomposio do capital
centrado na produo flexvel evidenciou que o modelo fordista de
78
Conforme assinala Salerno (1994, p. 55), a reestruturao produtiva tem sua lgica derivada
de um contexto social, poltico e econmico marcado pelas crises financeiras, de mercado [...]
social (conflitos capital-trabalho, relativos organizao e controle da produo e do trabalho e
distributivo) que emergem nos anos 60/70 e colocam para as empresas novas necessidades de
integrao (para dar saltos de produtividade, necessrios devido tanto ao acirramento quanto
aos entraves sociais colocados s formas tradicionais de organizao da produo e do
trabalho) e de flexibilidade (como forma de fazer frente a um ambiente especialmente a um
mercado pouco previsvel e com alta instabilidade). Da surge o paradigma da empresa
integrada e flexvel, contrapondo-se quele da empresa taylorista-fordista.
204
produo e acumulao, baseado no consumo massificado de bens
individualizveis, estava em crise. A produo flexvel permitiu
diversificar e individualizar a produo e o consumo de bens. O domnio
da alta tecnologia possibilitou inovar, atendendo heterogeneidade do
mercado consumidor e desejos do cliente com uma produo
customizada.
No plano ideolgico, um arsenal discursivo foi acionado para
reforar as teses da competitividade e do individualismo. Criam-se e
ressignificam-se conceitos que passam a ser abundantemente utilizados
na gesto do trabalho flexvel.
Conceitos como flexibilidade79, competitividade, participao
foram popularizados nas ltimas dcadas. Em tempos de
recrudescimento salarial, de crescentes ndices de desempregos formas
precrias de contratao, acentuada excluso social, so necessrias
novas formas de sociabilidade do capital, tanto para estabelecer um
novo padro de acumulao quanto para definir as formas concretas de
integrao dentro da nova reorganizao da economia mundial.
(FRIGOTTO, 1994, p. 41).
Segundo anlise de Harvey (1992, p. 143),
diante da volatilidade do mercado, do aumento da
competio e do estreitamento das margens de
lucro, os patres tiraram proveito do
enfraquecimento do poder sindical e da grande
quantidade
de
mo-de-obra
excedente
(empregados ou subempregados) para impor
regimes e contratos de trabalho mais flexveis.
79
Ao estudar o modelo japons Shiroma (1996, p. 183) discute o conceito de flexibilidade. De
acordo com a autora: Wood (1989) distingue flexibilidade funcional, que diz respeito s
habilidades do trabalhador, da flexibilidade numrica, que se refere possibilidade de a
empresa variar o nmero de trabalhadores que emprega, conforme flutuaes da demanda,
atravs de arranjos - subcontratao, servio temporrio, tempo parcial que facilitem a
admisso e a dispensa. Os tipos de flexibilidade tm implicaes diferentes em setores
diferentes. Por exemplo: verifica-se o uso extensivo da flexibilidade numrica no setor de
servios (tercirio), enquanto a flexibilidade funcional predominante no setor manufatureiro.
Clutterback (1951, p. 91), esclarece que, para o setor industrial, o uso excessivo da
flexibilidade numrica prejudica o desenvolvimento da flexibilidade funcional, pois, para os
trabalhadores tornarem-se flexveis, precisam se qualificar e se envolver no trabalho, o que
requer tempo de casa e treinamento.
205
A flexibilidade nas relaes de trabalho foi viabilizada por
mudanas na legislao, impondo-se a desregulamentao do
ordenamento jurdico de perfil rgido. (RAMOS, 1997, p. 83). Este
fomento informalizao do mercado de trabalho, materializado na
subcontratao, empregos temporrios, atividades autnomas,
incentivada no discurso da empregabilidade80 e empreendedorismo81,
acentuou seus efeitos nas relaes de trabalho, consequentemente, nos
requisitos de acesso e formao de um trabalhador necessrio s novas
demandas do capital.
4.2 REQUISITOS TCNICOS E COMPORTAMENTAIS
ESPERADOS DO TRABALHADOR
Pesquisas sobre os impactos sociais da difuso do modelo
japons82 (SHIROMA, 1996) mencionam a demanda por novos
80
Empregabilidade, na acepo de Forrester (1997, p. 118), uma bela palavra [que] soa nova
e parece prometida a um belo futuro: [...] que se revela como um parente muito prximo da
flexibilidade, e at como uma de suas formas. Trata-se para o assalariado, de estar disponvel
para todas as mudanas, todos os caprichos do destino, no caso, dos empregadores. Ele dever
estar pronto para trocar constantemente de trabalho (como se troca de camisa [...]. Mas, contra
a certeza de ser jogado de um emprego ao outro, ele ter uma garantia razovel, quer dizer,
de um emprego a outro, encontrar emprego diferente do anterior que foi perdido, mas que
paga igual. Na perspectiva de Frigotto (1998, p. 46), a ideia de educao e formao para a
empregabilidade tornou-se um iderio do senso comum em praticamente todos os governos
europeus, prontamente adotado em nosso pas trabalhar menos para que todos trabalhem -,
, em realidade, profundamente reacionrio e conservador. Isto porque nenhum empregador
(privado ou pblico) est disposto a diminuir tempo de trabalho sem diminuir salrio. Ora, tal
mecanismo aliena conquistas histricas da classe trabalhadora no plano de melhoria da sua
qualidade de vida e, refora o pressuposto falso de que tal medida a nica vivel. O que no
se explicita , justamente, que o agravamento do desemprego e a intensificao da explorao
do trabalho assalariado e outras formas de trabalho subordinado ao capital so a alternativa
para retornar elevadas taxas de lucro. Ou, como diria Gentili (1998, p. 81), a desintegrao
da promessa integradora deixar lugar difuso de uma nova promessa, agora sim, de carter
estritamente privado: a promessa da empregabilidade.
81
Conforme analisa Bianchetti (2005, p. 154), a empregabilidade e o empreendedorismo, so
duas palavras que se tornam recorrentes na dcada de noventa do sculo XX, expressam
tambm a face de uma mudana conhecida sob muitos nomes, entre os quais: reengenharia,
reestruturao produtiva e inovao tecnolgica. A mudana institui um denominador comum:
o indivduo o nico e exclusivo responsvel e responsabilizado! pela sua entrada e
permanncia no cada vez mais restrito mundo dos trabalhadores formalmente empregados.
82
Conforme salienta Gurgel (2003, p. 134), um dos pais do toyotismo, importante referncia
da produo flexvel de alto volume, Ohno nos revela, com a franqueza oriental, que na
Toyota o conceito de economia indissocivel da busca da reduo de efetivos e de custos.
[...] ele formula a pergunta: o que fazer para elevar a produtividade, quando as quantidades
no aumentam? [...] E responde: H duas maneiras de aumentar a produtividade. Uma a de
aumentar as quantidades produzidas, a outra a de reduzir o pessoal de produo.
206
requisitos de formao e qualificao dos trabalhadores, exigidos pela
reconfigurao das relaes de trabalho, reiterados como condio
necessria de o indivduo manter-se ativo no mercado de trabalho.
Sustenta-se, convenientemente, que o desemprego sempre
voluntrio (HARVEY, 2008, p. 63), reforando a necessidade de
modificar a cultura poltica ao ampliar o campo da responsabilidade
pessoal e corporativa e estimular uma maior eficincia, a iniciativa
individual/corporativa e a inovao. (HARVEY, 2008, p. 71).
Tal exigncia est relacionada ao aumento do trabalho complexo
e reconhecimento da necessidade e possibilidade de aproveitar a
qualificao tcita da fora de trabalho. Desse modo, interessante
observar a exaltao de habilidades conceituais e abstratas em relao
qualificao tcnica. O sistema educacional estaria sendo mais exigido
no sentido de uma reformulao curricular, integrando as necessidades
do mercado de trabalho, flexibilizao e polivalncia.
Paiva ressalta que a nfase dos empresrios se situaria menos na
qualificao especfica do que em qualidades como flexibilidade,
disciplina, autonomia (PAIVA, 1990, p. 110). Nessas circunstncias,
Shiroma (1996, p. 176) destaca que a responsabilidade, a iniciativa, a
capacidade de previso, trabalho em equipe, mas acima de tudo a
confiabilidade tornam-se qualidades esperadas dos trabalhadores.
O trabalhador precisaria agora de outras qualificaes centradas
nas habilidades comportamentais e atitudinais para corresponder s
expectativas dos empregadores. Preconiza-se a necessidade de uma
equipe de trabalho competitiva e, sobretudo, com o esprito de aceitar
desafios e encarar as mudanas como um estmulo para vencer as
barreiras impostas pelo mercado.
A reduo e a extino de postos de trabalho, a flexibilizao das
regras de contratao e a busca de um trabalhador mais malevel
aproximam os discursos de empresrios, governantes, gurus da
autoajuda em palestras e publicaes, apontando e reforando que estas
so consequncias e condies necessrias para que empresas e
trabalhadores atuem com competitividade no mundo globalizado.
A racionalizao dos processos de trabalho significa, para os
empresrios, uma estratgia de sobrevivncia. Para os trabalhadores,
significa o convvio com mltiplas mudanas, em especial, no que se
refere aos contratos de trabalho. Estes so to flexveis e instveis
quanto os postos de trabalho.
207
Numa perspectiva mistificadora e alienadora, o discurso
neoliberal postula o individualismo, reafirmando as diferenas
individuais. As novas demandas do processo de valorizao do valor
esto redimensionando a educao dos trabalhadores.
4.2.1 Formao flexvel
Em decorrncia das exigncias de um trabalhador de novo tipo,
exige-se tambm uma nova pedagogia com vistas formao das novas
competncias requeridas para a organizao e gesto do trabalho
desregulado em tempos de acumulao flexvel. A mudana dos
procedimentos rgidos para os flexveis, conforme observou Kuenzer
(2002b, p. 86), atingem
todos os setores da vida social e produtiva nas
ltimas dcadas, passa a exigir o desenvolvimento
cognitivo e comportamental, tais como: anlise,
sntese, estabelecimento de relaes, rapidez de
respostas e criatividade diante de situaes
desconhecidas, comunicao clara e precisa,
interpretao e uso de diferentes formas de
linguagem, capacidade para trabalhar em grupo,
gerenciar processos, eleger prioridades, criticar
respostas, avaliar procedimentos, resistir a
presses, enfrentar mudanas permanentes, aliar
raciocnio lgico-formal intuio criadora,
estudar continuamente e assim por adiante.
208
produtiva no capitalismo. Esse disciplinamento configura-se como uma
transformao intelectual, cultural, poltica e tica (KUENZER, 2002b,
p. 90) de modo a possibilitar a formao do trabalhador capaz de
responder e superar desafios nas relaes de trabalho.
A preocupao presente nos estudos de Kuenzer (2002b, p. 78)
volta-se facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre
do ponto de vista do capital, de concepes elaboradas pela pedagogia
socialista, com isso, estabelece uma ambigidade nos discursos e nas
prticas pedaggicas. Tal apropriao tem levado muitos a imaginar
que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulao
flexvel, as polticas e propostas pedaggicas de fato passaram a
contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista
da democratizao. (KUENZER, 2002b, p. 78).
Desse ponto de vista, pode-se pensar na nova pedagogia da
hegemonia, expresso formulada pelos pesquisadores do Coletivo de
Poltica Educacional (NEVES et al., 2005) que destacam as estratgias
do capital para educar o consenso. De acordo com Neves e SantAnna
(2005, p. 35), a nova pedagogia da hegemonia ancorada no projeto
poltico da Terceira Via tenta incentivar movimentos caracterizados por
solues individuais [...] produz um macio investimento em um
modelo novo de cidadania, desviando
a ateno de importantes segmentos da classe
trabalhadora da reflexo sobre os mecanismos de
expropriao e explorao a que so submetidos,
ao mesmo tempo em que refora o individualismo
com valor moral radical, uma vez que rene
indivduos para tratar de seus problemas
especficos, desvinculando-os das questes sociais
gerais. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 36).
209
interessante observar, conforme aponta Palangana (1998, p.
120),
que as capacidades de leitura e compreenso, de
raciocnio,
de
resolver
problemas,
de
sociabilidade, to sublinhadas pelo discurso
dominante, como resultados admirveis da
automao flexvel, s tm conseguido tomar uma
atitude em relao aos marginalizados diga-se,
uma velha e conhecida atitude: o assistencialismo.
Quando os apelos sociabilidade retornam com
toda a fora, devido integrao das tarefas,
quando o individualismo mais se acentua.
210
diversos mecanismos: A apologia da esfera privada e da
descentralizao como mecanismos de democratizao e de eficincia
so os mais freqentes. (FRIGOTTO, 1994, p. 59). Nessa posio, as
polticas neoliberais, na opinio de Behring (2003, p. 59), comportam
orientaes/condies que se combinam tendo em vista a insero de
um pas na dinmica do capitalismo contemporneo, marcada pela busca
de rentabilidade do capital por meio da reestruturao produtiva e da
mundializao:
atratividade,
adaptao,
flexibilidade
e
competitividade.
A ideia de que a crise de emprego decorre da atuao excessiva
do Estado uma proposio defendida e disseminada pela Terceira Via uma nova forma de organizao social e econmica situada por seus
proponentes como nem Estado, nem mercado. De acordo com Lima e
Martins (2005, p. 52), um dos mais importantes princpios constitutivos
do projeto poltico da Terceira Via refere-se reinveno da sociedade
civil [...]. O argumento central [...] que a sociedade civil como
conhecemos foi produto de arranjos sociais que no mais existem.
Trata-se de gerir um Estado forte e enxuto que despreza o tipo
de consenso social dos anos de crescimento, com claras tendncias
antidemocrticas, afirma Behring (2003, p. 60). Nesse aspecto, a autora
assevera que a hegemonia burguesa no interior do Estado
afirma-se de forma contundente com o
neoliberalismo, cujas polticas engendram uma
concepo singular de democracia, que abandona
a perspectiva do Estado Liberal de direito e de um
tecido social mais denso e participativo em nome:
da participao nos processos eleitorais, os quais
se convertem [...] em um mecanismo plebiscitrio
de legitimao do sistema; do reforo do Poder
Executivo em detrimento dos demais poderes
constitucionais; do freio ao desenvolvimento de
uma sociedade civil capaz de interferir e controlar
os
processos
decisrios; [...]
de
um
associacionismo light e bem-comportado, que
tem a funo de amenizar as seqelas da dura
poltica econmica. (BEHRING, 2003, p. 60).
211
internacionais, como forma por meio da qual as economias nacionais
devem adaptar-se s novas condies da economia mundial.
(BEHRING, 2003, p. 64). Dentre as vrias implicaes, tem-se,
fundamentalmente, uma clara poltica social cuja orientao a
focalizao de aes voltadas mobilizao da solidariedade individual
e voluntria, bem como das organizaes filantrpicas e organizaes
no-governamentais prestadoras de atendimento, no mbito da
sociedade civil. (BEHRING, 2003, p. 65).
Fortalece-se, nesse processo, a ideia de que o Estado no deve
ser indistintamente fraco. Deve ser fraco na esfera da regulao
econmica, da tributao sobre o capital e na promoo de benefcios e
direitos sociais. O Estado neoliberal deve fortalecer-se para defender o
livre mercado e favorecer a acumulao capitalista. (COSTA, 2006, p.
78). A reforma do Estado brasileiro dos anos de 1990 orientou-se pela
agenda neoliberal, propondo reduzir a atuao do Estado com a nica
alternativa possvel para a modernizao do pas.
Desta maneira, o neoliberalismo, na acepo de Costa (2006, p.
77),
caracteriza-se essencialmente por um movimento
poltico e ideolgico que busca criar legitimidade
e manter os avanos da globalizao econmica,
justificando a desigualdade social a partir das
idias de diferenas naturais. O Estado est no
centro da disputa neoliberal, pois como
movimento
poltico-ideolgico
visa
essencialmente usar o poder poltico para dar
liberdade de ao para o grande capital.
83
A expresso individualismo possessivo refere-se viso dos indivduos como
proprietrios das suas prprias capacidades (MACHPHERSON, 1962 apud POPKEWITZ,
212
competitividade tornam-se os valores mximos de
nossa educao subordinada ao mercado. Uma
sociedade cujo contedo histrico da cidadania
consiste na forma de ser, cujos valores centrais
so a produtividade, a utilidade, o individualismo
e a competitividade, num contexto de ausncia de
reivindicao. (SILVA Jr., 2002, p. 36).
213
ideias constitutivas da concepo de mundo conveniente para a
consolidao das relaes de poder necessrias manuteno
hegemnica do capital. Dentre estes elementos est a noo de
qualificao, entendida por Amaral (2001 apud Behring, 2003, p. 227),
como
uma estratgia da passivizao, por meio do
patrocnio do consenso, para assegurar a
colaborao de classes. Os trabalhadores passam a
incorporar que a situao de desemprego gerada
pelas opes individuais ao longo da vida em
torno de sua qualificao para determinada
especialidade, ou pelas novas requisies
tecnolgicas. Assim, diluem-se os processos
sociais mais amplos que geram o desemprego e
possibilidades de luta coletiva de sadas para alm
da qualificao.
214
permanente desafio, oferecido aos indivduos, de viverem jogos
competitivos, de acordo com Rummert (2000, p. 62), corrobora o
processo de deslocamento do eixo das relaes sociais do ns para o
eu. Essa perspectiva contribui para a aceitao da idia de que a
melhoria das condies de vida s ocorre, efetivamente, a partir de
iniciativas individuais aos prprios interesses, e no em decorrncia das
lutas coletivas e solidrias (RUMMERT, 2000, p. 63).
A partir desse conjunto de elementos constitutivos do discurso
neoliberal que objetivam desqualificar os vnculos estveis das relaes
de trabalho, h uma sobrevalorizao da capacidade de empregabilidade
de cada um, valor que passa a reger os enunciados formulados a
respeito do mundo do trabalho e da insero social. (RUMMERT,
2000, p. 62). Discurso esse que reforado e incentivado pelos autores
de autoajuda, visando consolidar crenas e valores do iderio neoliberal
integrando-os nova sociabilidade requerida pelo capital. Nos atuais
modelos de organizao do trabalho que fortalecem as benesses da
empregabilidade, evidencia-se um discurso que mascara a
desestruturao do mercado de trabalho e a deteriorizao das condies
de emprego e salrio.
Nesse quadro de reorganizao e desregulamentao do trabalho,
vale resgatar a anlise de Jinkings (1999, p. 160) ao destacar que o
governo brasileiro vem procurando regulamentar um sistema flexvel de
remunerao da fora de trabalho, que contm enorme potencial
maximizador da lucratividade das empresas. Ainda na perspectiva da
autora,
do ponto de vista do capital, essas formas de
contrao adaptam-se perfeitamente aos seus
objetivos de autovalorizao, medida que
permitem s empresas ganhos enormes de
lucratividade, ao mesmo tempo em que
atingem fortemente a capacidade de
resistncia
da
classe
trabalhadora,
fragmentando-a
e
dificultando
sua
organizao sindical. (JINKINGS, 1999, p.
160).
Desse modo, a estratgia de reestruturao do capital implica,
sem dvida, uma nova interpretao e organizao dos processos
215
educativos e formativos do trabalhador em que a educao deste dever
atender s exigncias do mercado, sendo dotada de contedos exigidos
pelo capitalismo para seu desenvolvimento nessa nova fase.
(RUMMERT, 2000, p. 66).
4.4. A PRODUO DO TRABALHADOR FLEXVEL
Segundo Invernizzi (2005), Rummert (2000), Kuenzer (2002a),
Palangana (1998), entre outros autores, as polticas de gesto, no interior
das empresas, e o desemprego e subemprego, pressionando de fora,
esto confluindo numa crescente individualizao dos trabalhadores.
Esses elementos fomentam, na viso da autora, estratgias individuais
para manter o emprego, encontrando na incitao das empresas ao
comprometimento um veculo para esse objetivo. (INVERNIZZI,
2005, p. 126).
Sob o argumento da busca de maior competitividade, os
empresrios apresentam, como necessria, a construo de novos
padres de sociabilidade centrados nos valores e na lgica do mercado.
(RUMMERT, 2000, p. 100). Esses padres devem permear o tecido
social, permitindo a sustentao das novas formas de gerenciamento
das atividades produtivas e s diferentes modalidades de insero dos
indivduos no mundo do trabalho. (RUMMERT, 2000, p. 100).
Portanto, exige-se um trabalhador de novo tipo capaz de
incorporar novos valores, condio fundamental de insero e
permanncia no mercado de trabalho. Na difuso dos valores
necessrios formao desse trabalhador, inclui-se, como um dos
veculos disseminadores, o discurso de autoajuda cuja ao pedaggica
d-se fora e dentro do mbito escolar ao criar nos trabalhadores novos
hbitos e atitudes, comportamentos que repercutiro nas relaes de
trabalho.
H, por parte das empresas, investimento na educao do
trabalhador. enfatizado, nesse sentido, que somente os que assumirem
o novo perfil requerido estaro em condies de integrar o conjunto de
indivduos includos na economia competitiva que o pas se prope ser.
(RUMMERT, 2000, p. 100). Nesse quadro, chama-se a ateno para o
estudo de Rummert (2000) analisando a educao e a identidade dos
trabalhadores sob a tica de vrias instituies empresariais, ao tomar o
discurso do Instituto Herbert Levy, discute o perfil do trabalhador
apresentado.
216
O trabalhador confiante em si mesmo e
emocionalmente envolvido com a empresa,
representar o retorno simples, lquido e certo
para o investidor, que passar a contar com: [...]
Um trabalhador mais pensante e, portanto mais
participativo, mais motivado do que nunca e mais
do que nunca disposto a enfrentar as novas
situaes, por mais difceis que sejam ou passam
assim parecer. [...] Algum que agora sabe que o
presente e futuro esto ao alcance de sua mo. [...]
Algum mais integrado na sociedade algum
mais cidado. [...] Algum que passa a ter
condies de transformar um mero emprego em
um trabalho, uma alavanca uma carreira. [...]
Algum disposto a enfrentar sem medo todos os
desafios, venha de onde vierem, daqui ou de fora.
[...] Algum preparado e, acima de tudo,
COMPETITIVO. Pronto para encarar qualquer
adversrio. [...] Enfim, um tigre. E que tigre!
(RUMMERT, 2000, p. 103).
217
tecnolgicos, que permita o desempenho de tarefas mltiplas, no
contexto da especializao flexvel. (RUMMERT, 2000, p. 105).
Rummert (2000, p. 105) caracteriza esses requisitos como
princpios educacionais de um projeto identificatrio do capital para o
trabalhador, constituindo-se um recurso de conquista e manuteno da
hegemonia. Dessa forma, apresenta
um enunciado que lana a proposta inclusiva de
modernidade,
simultaneamente
ordenando
aspiraes de diversas ordens e alertando para a
necessidade de adeso, que se faz impositiva,
como natural decorrncia do progresso, das novas
caractersticas do mundo do trabalho em
particular, e da sociedade como um todo que se
estrutura, agora, sobre os pilares do
conhecimento.
218
ser incorporada como prtica a ser vivenciada no
cotidiano;
f) a nfase na competitividade, que deve permear
todo o tecido social e reger as aes e decises de
cada indivduo em particular;
g) a articulao da nova lgica material de
produo com a lgica simblica de centralidade
do trabalhador, em substituio centralidade da
mquina. (RUMMERT, 2000, p. 105-106).
219
os ambientes de aprendizagem devem ser
potencializadores e criadores de oportunidades
que valorizem a atitude de querer aprender
sempre;
as instituies de ensino, os rgos de
treinamento devem rever rapidamente suas
estratgias, filosofia, processos e contedos
programticos para adequar-se s novas demandas
educacionais;
os trabalhadores devero preparar-se para
mudar continuamente de papel, assumindo
posturas e adquirindo competncias correlatas. A
vida profissional exigir, dos indivduos, que se
desfaam, continuamente, de idias, de
conhecimentos e espaos, e adquiram novos. A
flexibilidade deixar de ser uma caracterstica
para ganhar status de condio necessria de
sobrevivncia;
no mundo do trabalho contemporneo, a idia
de aprendizagem ganha novos contornos: ser
sujeito do processo implica desenvolver mapas
cognitivos, novas habilidades e rever valores que
possibilitem melhor entender e tentar atuar com
criticidade.
220
Para concretizar tais modos de pensar, sentir e agir, considera-se
que o discurso de autoajuda atua como difusor de um projeto
hegemnico afirmando uma aliana entre capital e trabalho, produzindo
uma imagem unificada da sociedade, com polarizaes suportveis e
aceitveis para todos os seus membros. (CHAU, 2007, p. 39).
Sistematizando os requisitos de um trabalhador de novo tipo
delineado nos manuais de autoajuda recentes, identificam-se as
principais caractersticas requeridas pelo mercado de trabalho na virada
do sculo, em que necessrio pr-atividade; criatividade; nfase na
resoluo de problemas; iniciativa; flexibilidade; responsabilidade;
capacidade de inovar; discernimento; participao ativa nas aes da
empresa; aptido para comunicar-se; elevado grau de tolerncia, esforo
na convivncia com o outro; trabalho em equipe; autogoverno;
valorizao e cultivo da empregabilidade, alm de um elevado esprito
para empreender.
Em resumo, o trabalhador almejado para o mercado de trabalho
no sculo XXI e idealizado pela literatura de autoajuda um trabalhador
de novo tipo, eficiente, inovador, pr-ativo, um empreendedor.
4.5 AS DECISES SOBRE AS ESCOLHAS SO SOMENTE
SUAS!
O capital delega uma pseudoautonomia para o trabalhador por
meio de um discurso que mascara a realidade. Vale-se da fora de uma
linguagem que substitui o vocbulo empregado pelo colaborador
tentando dirimir o conflito entre trabalhadores e patres, uma vez que
disfara a polarizao entre donos dos meios de produo e os
vendedores da fora de trabalho. A ttulo de exemplo, est a nfase dada
ao indivduo colaborador que aparece em um dos projetos de educao
profissional de uma das regionais do Servio Nacional da Indstria
SENAI, no qual, segundo Andrade (1998, p. 91), pretende-se produzir
no mais o trabalhador simplesmente amestrado, mas sim, agora o
colaborador.
O discurso da autoajuda encaminha seu pblico leitor para uma
determinada prtica social, mais especificamente orientando e
educando para uma mudana de atitude e comportamento perante as
relaes de trabalho, no no sentido da autonomia, mas do
enquadramento e da conformao. De acordo com Silva (2001) tanto o
discurso da autoajuda quanto o da educao tm como objetivo nos
221
transformar em um determinado tipo de pessoa, mais especificamente,
no exatamente nesse empreendimento, no empreendimento de
fabricar um determinado tipo de pessoa [trabalhador], que estamos
envolvidos todos ns que trabalhamos na educao? (SILVA, 2001, p.
44). Se os discursos que envolvem, camuflam, distorcem, conduzem,
apresentam verdadeiras ou falsas solues esto marcadamente
presentes na literatura de autoajuda, ento a relao entre trabalho e
educao percorre uma linha muito tnue, j que ambos os mundos
esto sendo diretamente afetados no que se refere entrada da autoajuda
como um discurso amalgamador, controlador e, principalmente, sedutor
(Morgado, 1995), que pretende interferir na qualidade subjetiva (a
identificao com o trabalho e seus aspectos motivacionais). (CRUZ,
1999, p. 179), convertendo-a em fator de produo.
Os princpios da autoajuda do sculo XIX esto revigorados nas
publicaes do gnero na atualidade com o firme propsito de ensinar a
ser um homem de novo tipo. O que se poderia pensar ser apenas um
modismo gerou consultorias especializadas e fez com que muitos
autores, considerados gurus da autoajuda, adentrassem aos mbitos do
trabalho e da educao pregando as virtudes daqueles que seguem as
recomendaes contidas nesses textos. Tais recomendaes invadiram a
ambincia organizacional, de forma que um conjunto de crenas,
valores, sentidos difundido visando construir um modo de pensar
calcado na mudana individual. Neste captulo, estudam-se os sentidos
do discurso contidos na literatura de autoajuda nas relaes de trabalho.
Assim, no intuito de conhecer quais as recomendaes
apregoadas nessa literatura quais os princpios para aprender a ser um
homem de novo tipo, analisam-se os discursos dos gurus atuais da
autoajuda que se tornaram best-sellers no campo das relaes de
trabalho no Brasil.
As publicaes selecionadas, por serem as mais representativas
desse momento, esto exibidas no Quadro 5. Chama-se a ateno para o
ano de publicao, bem como para a edio atual, em especial, para esta
literatura a partir dos anos de 1990.
222
Ttulo
Autor
Empregabilidade:
como ter trabalho e
remunerao sempre
Quem mexeu no
meu Queijo?
Jos
Augusto
Minarelli
Spencer
Johnson
Voc: a alma do
negcio
Roberto
Shinyashiki
1.
Edio
1995
Brasil
1998
EUA
2001
Brasil
Pas
Edio
atual
24.
Edio
53.
Edio
brasileira
22.
Edio
223
da capacidade de o indivduo conquist-la. Para isso, deve manejar os
recursos necessrios para aprimorar-se da capacidade de transformar
problemas em solues.
4.6.1 Empregos em baixa? Adote uma atitude positiva
Nos discursos destes autores, fica evidente um cuidado com a
escolha de palavras que possam comprometer a mensagem a ser
repassada. Isto ocorre porque a escolha das palavras certas garante a
venda dos textos que compem a literatura de autoajuda. Um exemplo
emblemtico o livro de Minarelli (1995), que apresenta dois ttulos
diferentes. O ttulo da capa Empregabilidade: como ter trabalho e
remunerao sempre mais atrativo do que o impresso na ficha
catalogrfica Empregabilidade: o caminho das pedras. Este ltimo
remete a algo penoso, de muito empenho e de uma busca sem certeza de
que o investimento dar resultado, enquanto a chamada da capa anuncia
uma receita de esperana, acena para uma possibilidade.
Minarelli, um ex-desempregado que se tornou consultor e
administrador de carreiras, considera-se um expert em recolocao
profissional e, por meio de palestras e publicaes, refora a importncia
da empregabilidade e do empreendedorismo. Seu discurso pretende
atenuar conflitos, relaes de poder e uma dura realidade: a de que no
h emprego para todos. O recurso utilizado traduz-se em conselhos
como: Risque a palavra desempregado do seu vocabulrio. A partir de
agora, voc um profissional disponvel. Essa expresso designa com
mais propriedade o seu status e o seu posicionamento positivo.
(MINARELLI, 1995, p. 30).
De acordo com esse autor, uma das ideias fundamentais do livro
aconselhar voc a no transformar o emprego na maior atividade da sua
vida. (MINARELLI, 1995, p. 31). At porque o profissional dos
novos tempos precisa tomar a iniciativa de oferecer e vender os seus
servios, em vez de ficar espera das demandas. Isto , precisa
empresariar o seu talento. (MINARELLI, 1995, p. 20).
Tal discurso tenta conferir sensao de poder ao indivduo e
liberdade de ao para conduzir sua trajetria. Na prtica, consiste em
faz-lo acreditar que uma carreira profissional responsabilidade de
quem a desenvolve [...], no do tomador de servios ou do empregador.
(MINARELLI, 1995, p. 22). Segundo o autor, tal conselho parece
bvio, mas no o . De tal forma que muita gente s acordou para o
224
fato de que tinha colocado a vida e o futuro nas mos do empregador
quando, numa reviravolta (ser mesmo?), perdeu o poder de deciso ou
o prprio emprego. (MINARELLI, 1995, p. 22). O questionamento
irnico ser mesmo?, provocativo, tenta induzir o leitor a mudar seu
conceito sobre o desemprego. A reviravolta, aqui entendida como uma
situao de desemprego, considerada altamente positiva, na
perspectiva de Minarelli, uma vez que abre a possibilidade de o
trabalhador perceber que com armas e bagagens intactas, [...] est
disposio do mercado para ajudar outro tomador de servios a resolver
os problemas dele com a sua competncia. Alm disso, afirma sua
disposio de trabalhar em outro lugar. (MINARELLI, 1995, p. 30). O
autor s evidencia a face positiva do desemprego, s o v como
oportunidade. Essa uma das caractersticas do discurso de autoajuda
atuais.
interessante observar que Minarelli, quando possvel, evita os
termos desemprego ou demisso, dizendo que, quando a forma
tradicional do emprego suprimida, cai no vazio acontece uma
ruptura profissional. (MINARELLI, 1995, p. 31). Outro eufemismo
para referenciar tal condio diz respeito a quando o emprego sai de
cena. Quem est nessa condio so trabalhadores, profissionais
honestos, competentes em suas respectivas reas de atuao, mas que
deixam de entrar em sintonia com os novos tempos e acabam confiando
os assuntos de sua responsabilidade a terceiros. (MINARELLI, 1995,
p. 31).
Minarelli (1995, p. 32) lembra que, sem emprego, o profissional
tem um novo problema nas mos, que cuidar de si mesmo e viabilizar
a continuidade da carreira em outro lugar ou situao. A demisso, a
situao de estar desempregado, ganha outra conotao, pois ser
demitido no o fim da sua carreira, mas sim um evento
biogrfico, representa a bem da verdade, um marco divisrio na
carreira. Para esse escritor, ser demitido significa ter a possibilidade
de vivenciar um daqueles acontecimentos que nos ajudam a sair da
acomodao, rever valores, a perceber a possibilidade de que podemos
ser melhores, dispondo de mais e melhores oportunidades.
(MINARELLI, 1995, p. 32). Assim, prope: Voc est pronto a reagir?
O primeiro passo ver o mundo com outros olhos. Voc vai olhar para
as mesmas coisas, mas sob um novo enfoque. Concentre sua viso.
Seguem, dessa forma, as recomendaes para quem se encontra na
condio de ausncia de emprego:
225
226
de venda fundamental para o empreendedor, da mesma forma
Minarelli tambm valoriza a habilidade de saber vender-se, destacando:
O profissional que empresaria o prprio trabalho
atua em um cenrio diferente:
227
profissional, idoneidade, sade fsica e mental, reserva financeira e
fontes alternativas e relacionamentos. (MINARELLI, 1995, p. 49). O
que Minarelli prega em cada um desses pilares?
No que se refere ao primeiro pilar: adequao vocacional, o autor
aconselha:
Adotem uma atitude positiva de busca de
convergncia entre trabalho e vocao, mesmo
que seja necessrio trocar de emprego ou
atividade. Ou seja, que se empenhem na correo
do roteiro de suas carreiras, procurando
aproximar-se cada vez mais de sua vocao. um
empenho
pessoal
de
aprendizado,
de
desenvolvimento e direcionamento da sua oferta
de trabalho rumo rea eleita. (MINARELLI,
1995, p. 50).
228
marketing. (MINARELLI, 1995, p. 54, sem grifos
no original).
229
O quinto pilar refere-se reserva financeira e fontes alternativas.
Tal reserva importante uma vez que o profissional, para manter sua
atualizao, precisa cuidar da sade, encontrar tempo e espao para
fazer exerccios ou para promover o lazer, tirar frias, viajar,
necessrio dinheiro. Um dinheiro que no est mais entrando. Dessa
forma, o profissional deve correr paralelamente, precisa saber planejar,
agir, ir em busca de fontes alternativas de receita [...] Esta reserva mais
um dos pilares que garantiro sua empregabilidade. (MINARELLI,
1995, p. 66).
O sexto e ltimo pilar o do relacionamento. Segundo Minarelli
(1995, p. 69), este um dos grandes patrimnios de um profissional.
Chamo-os de capital social85 porque tm um valor e podem solucionar
problemas. Essa noo de capital est associada a capital financeiro.
Esses so os seis pilares sobre os quais Minarelli assenta a
empregabilidade de um indivduo. Para o autor, sua proposta visa
desenvolver o conceito de empregabilidade e ampli-lo. Estou
convencido de que a segurana profissional no advm exclusivamente
da capacidade tcnica, mas do conjunto de fatores profissionais,
humanos e sociais. (MINARELLI, 1995, p. 12). Em seu livro, o autor
cria um procedimento que visa diagnosticar suas capacidades, as
tendncias e o cenrio que ter de enfrentar. Um deles o check-up
profissional e pessoal para avaliar as armas e bagagens, cujo roteiro,
composto de oitenta e oito perguntas. (MINARELLI, 1995, p. 13).
Ao final do check-up profissional e pessoal, composto pelas
questes relacionadas a cada um dos seis pilares, segue uma pequena
sntese do autor, parabenizando o leitor por ter completado o ciclo de
questes. Aps concluir tal etapa, o leitor dever traar o perfil da sua
empregabilidade. O autor deixa o alerta de que o teste no cientfico,
mas um instrumento que permite visualizar seu sentimento a respeito
do seu estado atual. (MINARELLI, 1995, p. 88). O perfil da
empregabilidade consiste em traar uma linha horizontal e outra vertical.
Na vertical, coloca-se em ordem crescente de baixo para cima de zero a
dez; na horizontal, ordenam-se os seis pilares da empregabilidade.
Depois de preenchido o perfil, Minarelli segue com um Menu de
conselhos. Esse conjunto de conselhos est expresso sob forma de
85
230
tarefas e compromissos de ao [...] eles foram agrupados segundo os
seis pilares que formam a base da empregabilidade. (MINARELLI,
1995, p. 93).
O referido menu de conselhos funciona da seguinte maneira:
Com base no autodiagnstico proporcionado pelo check-up de vida e
carreira, escolha os conselhos que melhor se aplicam ao seu caso.
(MINARELLI, 1995, p. 93). O leitor recebe um lembrete para no
esquecer que estas propostas tambm tm a funo de estimular sua
criatividade para engendrar outras opes inovadoras, de acordo com a
situao. (MINARELLI, 1995, p. 93). Para cada um dos pilares,
corresponde uma lista de tarefas e compromissos. O leitor dever marcar
um X em seu caderno de anotaes, naquelas que considerar aplicveis e
adequadas.
Abaixo, algumas tarefas e compromissos criados por Minarelli
para cada um dos pilares:
a) Adequao vocacional: corrigir a rota da carreira rumo verdadeira
vocao; trocar de emprego; evitar perder tempo com treinamento e
desenvolvimento que no contribuam para realizar a sua vocao.
b) Competncia profissional: elevar seu nvel de informao e cultura
geral; administrar a prpria carreira; tomar a iniciativa de buscar cursos
e treinamentos; revisar atitudes e comportamentos profissionais e
pessoais; desenvolver flexibilidade profissional, experimentar novas
relaes profissionais.
c) Idoneidade: ser leal nos relacionamentos; assumir os erros sem
dividir a culpa.
d) Sade fsica e mental: cuidar melhor da aparncia e da apresentao
pessoal; fazer os tratamentos recomendados; dormir o suficiente para
repor as energias; identificar e evitar situaes de stress; fazer terapia;
procurar aconselhamento psicolgico.
e) Reserva financeira e fontes alternativas: investir em atualizao
profissional; bancar o custo dos treinamentos, quando for necessrio;
planejar um negcio prprio; preparar-se para iniciar um negcio
prprio.
f) Relacionamentos: agradecer quando receber ajuda de qualquer tipo;
aprender a tcnica do networking; pedir informaes, conselhos,
orientaes, sugestes.
231
232
Trabalhei como consultor de outplacement com
um importante executivo demitido por uma
empresa multinacional aps vinte e dois anos de
servio. Ele gerenciava uma das filiais brasileiras
que a matriz decidiu fechar. Tinha 40 anos e
desesperou-se a ponto de perder a fala e deixar os
familiares em pnico quanto possibilidade de
suicidar-se. Era o que considervamos um caso de
alto risco. Alm do emprego, perdera tambm o
status. [...] Passei trs dias a seu lado, tentando
mostrar a ele que a vida continua, apesar do
emprego que havia perdido. Ele, contudo, achava
a situao irremedivel. A certa altura das muitas
conversas que tivemos, pedi a ele que descrevesse
o seu trabalho como gerente de uma fbrica de
cigarros. Ele me olhou meio desanimado, tomou
flego e comeou. [...] Nova guinada na conversa.
Pedi que ele falasse sobre as etapas de fabricao
de um mao de cigarros, do contedo
embalagem. [...] E se o tabaco fosse substitudo
por cacau? O cigarro de chocolate no seria
produzido da mesma forma? Ele disse que havia
muitas semelhanas no processo. [...] A conversa
continuou at concluirmos, juntos, que ele no era
s expert no gerenciamento de fabricao dos
cigarros, mas que se tornara um profissional
especializado em gerir processos de fabricao
contnua! Mais seguro e confiante, em pouco
tempo conseguiu recolocar-se com sucesso no
comando dos processos de produo de uma
cooperativa agroindustrial. (MINARELLI, 1995,
p. 26).
233
coletiva (GRAMSCI, 1984), mas tambm, na criao de discursos, a
exemplo dos disseminados na literatura de autoajuda.
Assim, aps anlise do que constitui a autoajuda de Minarelli,
possvel considerar que seu discurso prepara um terreno frtil para a
proliferao de um determinado modo de pensar o desemprego a partir
de uma conotao eminentemente positiva, por isso, a nfase
empregabilidade como capacidade individual de gerar trabalho e
renda. um discurso que pretende simplificar, ocultar as determinaes
econmicas, polticas e sociais que viabilizam as formas de explorao e
dominao para a reproduo do capital. Essa simplificao da
linguagem, do vocabulrio relativo ao desemprego particularmente
revelada pelo uso de eufemismos na defesa da tese que ser um
desempregado na atualidade significa, to e simplesmente: estar
disponvel; ter o tempo a seu favor; ter a oportunidade de alinhar o
trabalho com sua vocao; ter a possibilidade de solucionar problemas e
estar disposio do mercado; ser seu prprio empresrio ou promoter;
desemprego como ruptura profissional, desemprego visto como o
emprego sai de cena. (MINARELLI, 1995). Alm do que, deve estar
disposio do mercado para ajudar o tomador de servios. Tal discurso
est em consonncia com a anlise de Martins e Neves, que afirmam a
nova pedagogia da hegemonia como aquela que assegura que
o exerccio da dominao de classe seja
viabilizado por meio de processos educativos
positivos. Sua efetividade justifica-se em parte
pela fora de sua fundamentao terica, que
legitima iniciativas polticas de organizaes e
pessoas baseadas na compreenso de que o
aparelho de Estado no pode estar presente todo o
tempo e espao e que necessrio que a sociedade
civil e que cada cidado se tornem responsveis
pela mudana da poltica e pela definio de
formas alternativas de ao social. (MARTINS;
NEVES, 2010, p. 24).
234
posicionar o indivduo em situaes totalmente diversas. Em tais
situaes, preciso superao, mudana, coragem e enfrentamento, que
aparecem com maior freqncia associadas s metforas: Comportar-se
como uma pessoa diante de uma escada rolante que desce, ou ainda, o
quaradouro cai onde houver um pilar mais fraco. (MINARELLI, 1995,
p. 53).
Alm disso, dentre outras estratgias utilizadas por Minarelli em
sua prtica discursiva, esto os exemplos, os modelos de sucesso. Os
exemplos, os excertos biogrficos permitem ao autor condensar em seu
relato os princpios que deseja demarcar ou, como assinalava Smiles
(1893, p. 5), os exemplos produzem bons efeitos. Em termos
ideolgicos, os modelos de sucesso tendem a modificar
comportamentos, de tal forma que, associadas aos fragmentos de
histrias de vida, atitudes como coragem, pacincia, fora de vontade,
autodisciplina, automotivao, entre outras, so utilizadas num contexto
em que a sntese a moral da histria.
Na construo discursiva de Minarelli, esto presentes flexes
verbais no modo imperativo. O uso do imperativo na construo do
discurso de autoajuda manifesta ordem, apelo concretizao de uma
ao, remetendo sempre ao uso afirmativo do contedo exposto. Assim,
desenvolva habilidades [...] procure clientes [...] tema ser superado e
descartado [...] no fique parado [...] precisa adequar-se.
(MINARELLI, 1995).
As demandas expressas no discurso de Minarelli no so questes
meramente semnticas, mas visam recomendaes, receitas sobre o que
fazer e como fazer para tornar-se um trabalhador de novo tipo. A ideia
de produo de um indivduo fiel, dedicado, honesto, competente,
idneo, responsvel, com posicionamento e pensamentos positivos, com
iniciativa est associada noo de mudana, em especial, mudana do
conceito a respeito da situao de emprego e desemprego. Isso implica
que a cada um dos leitores est delegada a responsabilidade de criar seu
networking, examinar, decidir, corrigir o roteiro de sua carreira,
adequar-se aos padres, competir no mercado, saber vender bem os seus
servios (MINARELLI, 1995) e, em caso de fracasso, deve assumir os
erros sem dividir a culpa.
O discurso de autoajuda de Minarelli visa reduzir ao particular a
situao do desemprego, estimulando a empregabilidade como luta
235
individual, desencorajando as formas coletivas de luta e reivindicao,
buscando-se, assim, a reproduo da ordem estabelecida.
4.6.4 Sucesso conseqncia do trabalho. Quem se mantm
como est, ficar para trs!
Sucesso e trabalho: O que falar dessa combinao? Na viso de
Shinyashiki (2001, p. 61), para muita gente, trabalho e sucesso so
coisas desvinculadas. Muitas pessoas acreditam que o sucesso algo
que acontece por si s. Mas o autor esclarece: De uma vez por todas,
precisamos deixar claro que o sucesso conseqncia do trabalho.
Alm dos mais, para ter sucesso profissional, voc precisa
obrigatoriamente pensar no outro. [...] o trabalho bem feito passa pelo
esforo de pensar no prximo! (SHINYASHIKI, 2001, p. 77). Nesta
passagem, a preocupao no est relacionada benevolncia do ser
humano, mas visa frisar que o sucesso profissional est sempre ligado
capacidade de solucionar problemas ou satisfazer as necessidades de
algum. (SHINYASHIKI, 2001, p. 77). Ou seja, quando algum est
passando por uma crise profissional, porque abandonou o propsito
bsico de servir ao prximo, o que significa dizer que estar empregado
implica necessariamente servir ao empregador. Por isso, conclui o autor,
quem no sabe servir, certamente fracassar do ponto de vista
financeiro. (SHINYASHIKI, 2001, p. 78).
A felicidade profissional seria adquirida quando trabalhamos em
algo que verdadeiramente tem a ver com a nossa vocao.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 79, sem grifo no original). Assim como
Minarelli com a sua adequao vocacional, Shinyashiki (2001, p. 80)
assevera que preciso aproveitar para analisar qual a sua verdadeira
vocao e v atrs do seu sonho. A busca da vocao seria um dos
elementos que levariam ao sucesso profissional. Mas esta uma questo
de escolha individual, por isso,
so vrios os momentos especiais em que
preciso buscar dentro de si mesmo uma resposta:
236
Uma vez que a resposta para se alcanar o sucesso profissional
est no interior de cada um, Shinyashiki (2001, p. 85) ressalta que
nossas decises mais importantes nascem de uma anlise de fatores
externos, mas o essencial que sejamos fiis nossa vocao, voz
interior que nos diz quem de fato somos e para que de fato servimos.
Mas no basta voc fazer o que gosta para obter um bom retorno
financeiro, um dos pilares para o sucesso profissional. O importante
capacitar-se para que sua profisso lhe traga, alm do prazer natural de
cumprir sua misso, a tranqilidade econmica decorrente de um
trabalho realizado com o mximo de perfeio. (SHINYASHIKI, 2001,
p. 86).
Numa situao de desemprego, por exemplo, natural que [as
pessoas] se sintam inseguras. Quanto maior a velocidade das
mudanas tecnolgicas, mas inabalveis tm de ser os seus valores. Os
seus princpios devem alimentar cada deciso de sua vida.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 87). O autor tambm enfatiza que o sucesso
deve ser conquistado respeitando determinadas regras. A mesma coisa
acontece com o aluno que cola para passar de ano. Ele vence uma
prova, mas perde o respeito por si mesmo. um preo muito alto, ou
uma vitria que destri a auto-estima. (SHINYASHIKI, 2001, p.
87).
Adequao vocacional e competncia profissional so dois dos
pilares que sustentam as bases da empregabilidade, de acordo com a
formulao de Minarelli (1995). Mas, para Shinyashiki (2001, p. 88),
vocao e competncia tambm adquirem status essencial, visto que
importante ter valores fundamentais, respeitar a vocao, mas
essencial tambm desenvolver competncias que transformem nossa
vocao em resultados. A felicidade profissional ocorre quando nossa
vocao soma-se competncia.
Vocao e competncia pertencem ao universo do
empreendedorismo. Na terceira parte de seu livro, Empreender ou
morrer!, Shinyashiki discute com o seu leitor as bases que compem o
empreendedorismo. Inicia seu discurso, na mesma perspectiva de
Smiles, enfatizando que os grandes empresrios que se conhece, muitas
vezes, comearam suas vidas em situao de pobreza e hoje exibem
condio de sucesso, e servem de exemplo. Assim, essas pessoas que
admiramos, argumenta o autor, tm algo de especial: so todas
empreendedoras. (SHINYASHIKI, 2001, p. 91).
237
Shinyashiki constri o perfil do indivduo empreendedor, no que
salienta:
O empreendedor o negro que no se deixou
anular pelo racismo e construiu uma carreira de
sucesso. a mulher que superou o preconceito e
se transformou em presidente de uma grande
empresa. o jovem que no ficou esperando o
tempo passar para ganhar experincia e criou as
prprias oportunidades. o idoso que aproveitou
o estmulo de estar desempregado e soube
revolucionar sua vida. O empreendedor aquela
moa mimada que largou todas as mordomias de
sua casa e foi morar no exterior para fazer psgraduao. o jovem que deixou todas as
facilidades de trabalhar na empresa do pai para
criar o prprio caminho e construir suas vitrias.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 92).
238
elas
as
habilidades
dos
verdadeiros
empreendedores. (SHINYASHIKI, 2001, p. 93).
Refora o autor:
Pior ainda: agora no adianta reclamar de
ningum. Agora voc tem a chance de mostrar
que tudo o que dizia que faria quando fosse
promovido ser realizado. Agora no tem papai
nem mame. Agora, mais do que nunca, voc
precisa da primeira qualidade de um
empreendedor: a automotivao (SHINYASHIKI,
2001, p. 95).
239
A automotivao de um empreendedor o leva a ter conscincia
de que seu sucesso est relacionado capacidade de sempre ter energia
extra e eletrizante. (SHINYASHIKI, 2001, p. 97, sem grifos no
original). Essa motivao interior extrapola os limites do corpo e da
mente e, freqentemente, contagia toda a equipe (SHINYASHIKI,
2001, p. 97). A automotivao apresentada ao leitor como uma atitude
inata, que cada um j possui e que, para a despertar, basta querer. O
profissional automotivado sempre quer mais. Sua exigncia diz, a cada
instante, que deve produzir algo melhor do que j fez. Ele no mede
esforos para aperfeioar seu trabalho, ou seja, est continuamente no
limite entre a alegria de ter conquistado uma vitria e a vontade de
obter mais. Para ele, o cu o limite. (SHINYASHIKI, 2001, p. 97).
interessante observar como o autor explora as metforas do
esporte, falando ao trabalhador como um treinador faz recomendaes a
um atleta. A aluso imagem de um campeo, aos requisitos de
perseverana e esforo, fortalece esta ideia.
A segunda atitude de um empreendedor a autodisciplina. Para
Shinyashiki, a empresa smbolo dessa qualidade o McDonalds, mas o
argumento para tal nfase superficial e diz apenas que a rede criou
equipes dispostas a levar o negcio ao mximo da perfeio.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 98).
Disciplina, segundo Shinyashiki, nada mais do que respeito ao
prximo. O autor esclarece, ainda, que o sujeito disciplinado segue
um mtodo que evita o desperdcio de energia ou de oportunidades. No
fica mudando seus compromissos porque respeita seus clientes e sua
palavra. (SHINYASHIKI, 2001, p. 99). dessa forma que o
empreendedor
tem a disciplina dentro de si, mesmo que sua mesa
seja bagunada (muitas vezes ali h uma ordem
interna que s ele entende). Trabalha com os
prazos dentro da cabea. Realiza tarefas, s vezes
desagradveis, com a mesma dedicao com que
um obeso comprometido faz seu regime.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 99).
240
perspectivas. (SHINYASHIKI, 2001, p. 99). A disciplina tem a funo
de fazer com que o indivduo que empreende aja como um jogador
compulsivo que deixa para os dados a deciso do sucesso ou fracasso
dos negcios. nessa perspectiva que o bom empreendedor sabe
analisar. Ele reflete sobre seus pontos fracos e fortes. E, alm de
conhecer a si prprio, conhece a concorrncia , e sabe que seus
adversrios de mercado tambm tm pontos fracos e pontos fortes.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 100). justamente por isso que o
empreendedor
criterioso e faz um estudo completo do mercado,
analisa seus futuros concorrentes e s depois toma
uma deciso. Feito isso, mergulha com toda a
fora do seu corao no novo projeto. O
empreendedor tem o corao de um atleta amador,
mas
a
cabea
de
um
profissional.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 100).
241
trabalho gerar riquezas para a empresa. (SHINYASHIKI, 2001, p.
102).
Outra atitude que o verdadeiro empreendedor precisa colocar em
ao economizar. Este um sinal de inteligncia, diz Shinyashiki.
Isso significa que economizar funo de todos os colaboradores de
uma organizao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 104). Economizar passa
por aes simples como apagar as luzes, poupar papel, fazer ligaes
internacionais nas horas em que o custo mais baixo (SHINYASHIKI,
2001, p. 105). Conclui o escritor que, da mesma maneira como todos
precisam estar sintonizados com o departamento de vendas para atingir
as metas da organizao, todos devem aprender economizar para que os
lucros continuem aumentando. (SHINYASHIKI, 2001, p. 106).
Vender mais uma das qualidades essenciais que compem o
bom empreendedor. Vender um verbo precioso, diz Shinyashiki.
Isso porque vender contradiz a atitude passiva. A passividade mata a
nossa vida. Esperamos ser aceitos e respeitados sem a preocupao de
conquistar os clientes. No percebemos que, se quisermos que nossas
idias sejam compradas, precisaremos fazer um esforo para vend-las.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 108). Antes de tudo, preciso que o
indivduo pare e converse consigo mesmo durante alguns minutos.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 109). E pergunta: Voc acredita em seu
potencial, na sua sensibilidade, na sua capacidade de evoluir? Ento,
convena-se e negocie com voc mesmo com dinamismo. Tenha
sempre em mente que voc o seu cliente mais importante.
(SHINYASHIKI, 2001, p.109). Essa atitude de um eterno vendedor.
Tais mentores que se propem a ajudar cada um na soluo de
problemas aproximam-se quando escrevem, muitas vezes, trazendo para
o leitor a mesma temtica, com peculiaridades na abordagem.
Mas no decorrer de seu livro, Shinyashiki (2001, p. 150)
abandona a referncia ao empreendedor e passa a se referir ao indivduo
como um campeo, como um sbio.
Eu admiro muito mais os sbios do que os gnios.
So os sbios que transformam:
Tarefas em misses.
242
A quinta parte de seu livro versa sobre a sabedoria. Nas palavras
de Shinyashiki (2001, p. 149):
Agora o momento de entrar no significado de
nossas vidas, de ter a tranqilidade de uma vida
to plena que, quando a morte se aproximar,
possamos olh-la nos olhos com serenidade. Olhar
para o que fizemos em nossa viagem pelo planeta
Terra e dizer com calma: Valeu a pena, realizei a
minha misso, aprendi bastante e agora estou
preparado para nova viagem.
243
4.6.5 A vida nos devolve o resultado da nossa competncia
A autoajuda impulsionada por dois elementos fundamentais:
popularizao de uma variedade de exemplos e por indicar
recomendaes, receitas de ao para indivduos que estejam nas mais
variadas situaes. como se esses profetas dissessem o tempo todo
para seus leitores: prestem ateno no que dissemos, uma maneira de
preparar-se para o que est por vir.
Competncia um conceito muito explorado pelos gurus da
autoajuda. Lembra Shinyashiki (2001, p. 16) que o mundo profissional
exige competncia total. A explicao para o significado dessa
expresso feita com o seguinte exemplo:
Um grande amigo meu tem um filho com imenso
talento para jogar futebol. E esse rapaz realmente
faz milagres com a bola nos ps. Mas tem
dificuldade para manter-se em forma. No final do
ano passado, estava to gordinho que o tcnico
dele comeou a insistir para que cuidasse do peso
e, aproximando-se os jogos decisivos, ameaava
coloc-lo no banco de reservas se no perdesse os
quilos excedentes. At que, depois de um jogo da
semifinal do campeonato da escola, disse ao
rapaz:
- No prximo ano voc comea na reserva.
O rapaz abaixou a cabea, mas sorriu com
tranqilidade. Sabia da sua competncia. Quando
o pai lhe perguntou sobre a reserva, ele
respondeu:
- Pai, tenho certeza de que no fico no banco mais
que cinco minutos. Na hora em que o jogo apertar,
ele vai me chamar.
E assim aconteceu. O tcnico logo o chamou para
substituir um jogador menos talentoso. No
entanto, aquele jogo estava disputadssimo e, nos
ltimos minutos, j cansado, ele no conseguiu
voltar, um jogador adversrio o venceu na corrida
e marcou o gol da vitria.
Ele saiu arrasado.
O pai, na tentativa de melhorar o seu astral quis
convenc-lo de que o lance fatal tinha sido um
golpe de sorte do adversrio, mas o argumento
244
no surtiu efeito. O rapaz entrou no seu quarto e
no quis comer nem conversar com ningum.
Alguns dias depois, o garoto procurou o pai e
pediu que o levasse ao mdico. Tinha decidido
emagrecer. Meu amigo percebeu que havia espao
para uma conversa mais profunda com o filho:
- Filho, fcil enrolar o tcnico, o professor, o
pai, a me, mas difcil mesmo enganar a vida.
Daqui a algum tempo, meu filho, vai ser s voc
com o seu paciente na mesa de cirurgia e, ento, o
resultado vai demonstrar o que realmente sabe.
- Mas eu no vou ser mdico, pai. Eu quero ser
advogado!
- Filho, a mesma coisa. Daqui a algum tempo,
como advogado, diante do tribunal, sero voc, o
seu cliente e o advogado da outra parte. E a
sentena do juiz no ser dada com base no que
simplesmente aconteceu, mas no que vocs dois
conseguirem provar...Verdade! (SHINYASHIKI,
2001, p. 17-18).
245
a vida no est como voc planejou, chegado o
momento de parar e fazer uma profunda avaliao
do modo e dos objetivos em que tem investido a
sua energia. Olhe para dentro de si mesmo, reflita
sobre os seus valores, procure observar a maneira
como reage diante dos desafios. (SHINYASHIKI,
2001, p. 19).
246
Se o indivduo seguir tais recomendaes, ainda assim, perceber
que as mudanas so sempre acompanhadas de angstia e insegurana,
mas somente aqueles que mostrarem a coragem de enfrentar a
escurido tero direito ao maior prmio que pode existir: uma vida
plena de realizaes. (SHINYASHIKI, 2001, p. 74). Dito de outra
forma, nossa poca exige que todos se realizem como seres humanos
arriscando novos projetos profissionais. (SHINYASHIKI, 2001, p. 73,
sem grifo no original).
Com essa passagem, fica para o leitor, o desafio de avanar na
compreenso e estabelecer uma relao do trecho acima com o seu
trabalho, uma vez que a explicao do autor se detm apenas em
ressaltar que preciso assumir para si a culpa ao invs de culpar o outro.
Tudo uma questo de observar a maneira como voc reage diante dos
desafios. (SHINYASHIKI, 2001, p. 19).
Na atualidade, estamos na era da hipercompetio, afirma
Shinyashiki (2001, p. 25). Nesse universo, no basta somente esforo,
apenas os melhores atingiro suas metas. Quem mantm o que est
fazendo vai ficar inevitavelmente para trs. (SHINYASHIKI, 2001, p.
25). A busca de superao que acontece no mundo esportivo tambm
vale para o mundo do trabalho. Por isso, exemplifica:
Nas olimpadas de Sydney havia dois favoritos na
prova dos 1500 metros nado livre. Ambos
australianos. Um mais experiente, Kieren Pierkins
que ganhara a medalha de ouro nessa prova em
Atlanta -, e um novato, Grant Hackett. O novato
ganhou, e na entrevista coletiva perguntaram ao
veterano, que ficou em segundo lugar, como
estava se sentindo. Ele respondeu: Estou
frustrado com o resultado, pois queria ganhar a
medalha de ouro, mas ao mesmo tempo, estou
satisfeito com o meu trabalho porque consegui
bater o recorde olmpico. O problema que
Hackett fez um tempo ainda melhor que o meu.
Detalhe: a diferena entre os dois foi de apenas
cinco segundos! (SHINYASHIKI, 2001, p. 25).
247
Os campees [...] aproveitam as pequenas oportunidades que surgem
para mostrar sua competncia e, assim, ganhar mais pontos no jogo da
vida. (SHINYASHIKI, 2001, p. 33). Dessa maneira, o guru brinda
seu leitor com mais um de seus exemplos:
Voc j imaginou, por exemplo, o que seria passar
num concurso dos Correios e Telgrafos do Brasil
e ser deslocado para Pinheirinho do Vale, no Rio
Grande do Sul, uma cidade de apenas 4.500
habitantes, com um salrio de 200 reais?
Trabalhar nessa cidade talvez fosse algo que voc
jamais valorizasse. Mas a funcionria dos
Correios Noemi Maria Noetzole quebrou esse
paradigma.
H dois anos, ela passou nesse concurso, mudouse para Pinheirinho do Vale, arregaou as mangas
e tratou de reduzir ao mximo os dficits da
agncia. Noemi era a nica funcionria do local.
Quando chegou ao seu posto, virou tudo de pernas
para o ar: organizou um planejamento estratgico
que inclui aes promocionais extremamente
criativas e tratou de melhorar a diviso de seu
tempo.
Pela manh, Noemi organizava a expedio e
tarde entregava a correspondncia. Com isso,
regularizou as entregas, que chegavam sempre
com atraso. Noemi criou dezenas de promoes
para as datas comemorativas e encontrou sadas
inusitadas, como quando descobriu o aniversrio
do padre da parquia local e organizou uma super
campanha para que a populao mandasse um
telegrama e um cravo ao sacerdote.
Todas essas iniciativas deram to certo que Noemi
decidiu esbanjar ainda mais ousadia na Pscoa.
Resultado: vestiu a prpria filha de coelhinha
sedex para entregar as cestas de presente e artigos
relativos festa religiosa. claro que, depois
disso, o Dia dos Namorados no poderia passar
em branco: Os apaixonados de Pinheirinho do
Vale receberam perfumes via sedex, no Natal,
Noemi bateu a meta regional de venda de
aerogramas e cartes natalinos.
Foi tambm a primeira colocada em todo o Rio
Grande do Sul nas campanhas de sedex realizadas
248
pelos Correios. A empresa estipulou uma meta
para cada agncia, de acordo com o tamanho. A
agncia de Noemi to pequena que a meta de
sedex para oito meses era de 175 reais. Noemi
surpreendeu a todos e praticamente quadruplicou
esse valor.
Nada escapava ao faro comercial de Noemi: Dia
do Mdico, Dia da Enfermeira, do Professor e de
outros profissionais tambm entraram no rol de
promoes, angariando-se centenas de presentes
via sedex. Para realizar tudo isso, Noemi
estabeleceu parcerias com a prefeitura local, com
a floricultura e at com o bazar que vende cestas
de caf da manh.
Achando tudo ainda pouco, essa gacha
batalhadora encontrou tempo para fazer palestras
s crianas da escola local. O tema quase sempre
era o mesmo: como enderear uma carta.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 33-34).
249
O problema, insiste Shinyashiki, que a maior parte das pessoas
escolhe a profisso por motivos que nada tm a ver com sua alma, com
sua vocao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 80). H uma histria que
ilustra bem esse esprito:
Dizem que um homem que nunca tinha feito
nenhum contato com a civilizao. Um dia, j
adulto, foi at a cidade para assinar uns papis
relativos ao inventrio de um parente distante.
Quando retornou, os moradores de sua colnia
queriam saber quais as novidades da cidade. Ele
falou das ruas, dos carros e de muitas outras
novidades. Mas o que o impressionou foi uma
torneira. Comentou sobre a torneira com seu
pessoal e disse:
- Quando eu puder, vou dar um jeito de comprar
uma torneira para ns. a coisa mais linda que
existe. Vai ser muito til.
Alguns dias depois, levou um saco de milho para
a cidade, vendeu-o e, com o dinheiro, comprou
uma torneira. Quando voltou, reuniu toda a
famlia e disse:
- Agora no vamos mais precisar de baldes para
armazenar a gua. Nossos problemas esto
resolvidos. Vocs vo ver que maravilha...
Com um gesto grandioso, fez um pequeno buraco
na parede e fixou a torneira. Ento abriu-a e, para
sua surpresa, no saiu nada. Chocado, colocou a
torneira em outro lugar da parede e nada.... Com
muita raiva gritou:
- Desgraados! Eles me enganaram! Venderam
uma torneira que no funciona! (SHINYASHIKI,
2001, p. 122).
250
devemos descobrir tambm a razo de seu xito,
tudo o que ele fez para conseguir para que a gua
sasse pela torneira! Uns o conseguiram com
muito estudo, outros com vrios anos de
dedicao, todos, na verdade, chegaram ao
sucesso realizando essa mistura mgica que
acontece no corao das pessoas que se entregam
de corpo e alma sua meta. (SHINYASHIKI,
2001, p. 123).
251
atitudes. (SHINYASHIKI, 2001, p. 20). Deve-se considerar, de acordo
com o autor, que entregar a uma pessoa desafios que estejam acima de
sua competncia ajud-la a destruir uma possvel carreira de talento.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 20).
Na viso de Shinyashiki, as pessoas acham desagradvel
trabalhar em regime de competio. A grande discusso recai sobre os
limites da presso de um trabalhador em dada condio de trabalho. De
qualquer forma, segundo o autor, os campees adoram participar das
finais de toda a cobrana e presso. (SHINYASHIKI, 2001, p. 21).
Essa frase acentua a responsabilidade do trabalhador em aceitar e
aprender a manejar contextos de exigncias, cobranas, presso.
A ressalva de que importante perceber que necessrio
rasgar a sua carteirinha de scio do clube do avestruz.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 28, sem grifos no original) representa uma
chamada ou puxada de orelhas ao trabalhador para que assuma as rdeas
de sua vida, j que os avestruzes escondem a cabea para no ver o que
est acontecendo, [enquanto] os campees vo atrs dos seus projetos
(SHINYASHIKI, 2001, p. 28). No caso da histria da Noemi,
funcionria dos Correios, Shinyashiki assim formula sua frase de efeito,
tendo presente o exemplo dessa mulher: So pessoas que reconhecem
a existncia dos problemas, mas encontram nos grandes desafios o
alimento predileto dos campees. (SHINYASHIKI, 2001, p. 35, sem
grifos no original).
Partindo da premissa de que o sucesso profissional decorrncia
de uma srie de atitudes de cada trabalhador, o autor destaca que, na
realidade, todo mundo fala de sucesso, mas poucos falam em
trabalho bem-feito. Sucesso a concluso de um percurso que a
condio necessria para o prximo sucesso. (SHINYASHIKI, 2001,
p. 62, sem grifos no original). O trabalho bem-feito, nesse caso, est
relacionado quele que realizado sem reclamaes, com aceitao de
dificuldades; reclamar atitude de fracos. Desse modo, a ordem mais
forte que voc recebe chama-se agora iniciativa pessoal, ela que
faz com que assuma o controle da situao nos momentos mais
difceis. (SHINYASHIKI, 2001, p. 96, sem grifos no original). Alm
disso, um profissional que realmente atingiu o sucesso foi aquele
que soube ajudar algum. (SHINYASHIKI, 2001, p. 77, sem grifos
no original). Apesar dessa ressalva, Shinyashiki sustenta: Tenha
sempre em mente que voc o seu cliente mais importante.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 109, sem grifos no original).
252
Ao mesmo tempo que o profissional apregoado pelo autor deve
assumir uma condio de atleta, ver-se como o cliente mais importante,
deve ter presente que no h limites para o seu sonho. O profissional
campeo aquele que adora a vitria, mas que no deixa que a
vaidade o conduza acomodao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 127,
sem grifos no original). Mais do que isso, o campeo quer sempre
materializar seu sonho e d tudo de si para que isso acontea.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 131, sem grifos no original). Para que isso se
efetive, resista tentao de abandonar os seus sonhos e tome a
mesma deciso do piloto: voe mais alto. (SHINYASHIKI, 2001, p.
145, sem grifos no original).
O autor compara tal momento em que cada um deve assumir para
si a conduo de sua carreira, de sua vida, com o mais nobre momento
de aprendizado. Esse individual, pois o outro nunca a resposta para
os seus problemas. Se voc no aprender com a dificuldade, vai repeti-la
ao infinito. (SHINYASHIKI, 2001, p. 155). dessa forma que
Shinyashiki frisa: Os problemas so oportunidades de aprendizado,
e quando perdemos essa lio, a dor se torna intil.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 155, sem grifos no original). Chamando a
ateno para o cunho individualista desse processo, retoma: a soluo
sempre est dentro de voc. (SHINYASHIKI, 2001, p. 157, sem
grifos no original).
Todas essas frases se articulam a um mesmo objetivo: demarcar a
ao individual na construo de uma carreira, na resoluo dos
problemas dela decorrentes. Em destaque est: Por piores que sejam
as suas dificuldades, saiba que voc tem a fora necessria para
super-las e a coragem de caminhar atravs do seu calvrio. Isso
parte da conquista da maturidade. (SHINYASHIKI, 2001, p. 168,
sem grifos no original).
4.6.7 A autoajuda de Shinyashiki
O discurso de autoajuda de Shinyashiki constitui um modo de
reforar a ideologia dominante. Est em sintonia com a sociabilidade
requerida em tempos de trabalho flexvel, difundindo ideias no sentido
de garantir a adaptao dos novos homens s instveis condies sociais
e profissionais que marcam o incio desse milnio. (FALLEIROS;
PRONKO; OLIVEIRA, 2010, p. 93). O indivduo convidado a gerir
253
riscos considerando que os empregos mudaram de lugar e a
estabilidade no existe mais. (SHINYASHIKI, 2001, p. 28).
As recomendaes do mdico psiquiatra difundem uma
concepo de mundo em mudana, de incertezas, hipercompetitivo,
instvel, basilares para as afirmativas de que no individual preciso
assumir o controle da situao. Refora a crena enganosa de que a
soluo de problemas est apenas no prprio indivduo, desconsiderando
questes econmicas, sociais, histricas e polticas que envolvem a
produo da existncia. O discurso de Shinyashiki promove um corte
com o social e com o outro, uma vez que nele residem as respostas e as
solues, pois a responsabilizao individual transforma sonho e
oportunidades em resultados. (SHINYASHIKI, 2001).
O discurso desse autor possui um tom religioso. A vida nos
devolve o resultado de nossa competncia como prmio, beno. Na
mesma perspectiva de Smiles, enfatiza o valor educativo das
dificuldades, da dor, do sofrimento, necessrios ao crescimento
profissional. Tarefas so misses. Nesse sentido, a exemplo de
Minarelli, o uso de eufemismos tambm uma constante nas
recomendaes apregoadas pelo autor. Os problemas, as derrotas
ganham conotao positiva e so vistas como oportunidade de
aprendizado. (SHINYASHIKI, 2001). A essncia do trabalho servir.
De cunho religioso, o autor afirma que a melhor maneira de ser parceiro
de Deus servir ao prximo. O verbo servir, nessa formulao, indica
adaptao, aceitao e respeito s regras estabelecidas nas relaes de
trabalho. O conflito nada mais do que o resultado da dificuldade de ver
e analisar a partir do ponto de vista do outro. Quem cria conflito rgido
(inflexvel) e a rigidez leva ao radicalismo. (SHINYASHIKI, 2001).
Essas ideias aparecem reprisadas na profuso de frases de efeitos
que marcam o discurso de Shinyashiki. Estas so utilizadas como
sntese, como a essncia a ser retida pelo leitor. Pode ser considerada
uma estratgia para simplificar ainda mais um discurso que se prope
palatvel.
O uso de metforas, estratgia discursiva recorrente na literatura
de autoajuda, tambm providencial ao discurso de Shinyashiki. A
metfora funciona como um elo de proximidade com o leitor. Em Voc:
a alma do negcio, o profissional um atleta que decide se quer ser
campeo ou perdedor. Um campeo no se acomoda, quer voar mais
alto, adora a vitria, adora participar das finais dos campeonatos lidando
254
com toda a cobrana e presso, um guerreiro. por isso que o
indivduo deve ter seu radar sempre ligado para detectar ameaas e
oportunidades. (SHINYASHIKI, 2001). O jogo est nas mos de cada
um, assim possvel incendiar, eletrizar, energizar, mas disciplina
essencial. Passividade mata, j que h muitas redes de pescar que
aparecem todos os dias nos escritrios. (SHINYASHIKI, 2001). As
metforas de Shinyashiki servem como instrumento para fazer chegar
sua concepo de trabalho.
Alm disso, numa linguagem persuasiva, frases e verbos
imperativos so utilizados abundantemente visando induzir o
pensamento positivo com estmulo ao, pois como comentado
anteriormente, para o autor, a passividade mata. Assim, recomenda-se
ao leitor: pare de esperar que algum lhe diga o que fazer; assuma que
voc a alma do negcio; pare de reclamar do governo; seja a melhor
soluo; venda primeiro a sua imagem; valorize seus sentimentos, sua
intuio. (SHINYASHIKI, 2001).
Constata-se tambm, no discurso de Shinyashiki, a passivizao
das frases, ou grau de ocultamento do sujeito histrico: Os empregos
mudam de lugar, os avanos tecnolgicos geram as mudanas,
expressam um determinismo tecnolgico que caracteriza os discursos
ideolgicos.
De outro modo, o discurso do autor tambm opera por
associaes: os fracos buscam seus direitos; os bons fazem seus
deveres, e os sensacionais procuram mostrar que so imprescindveis;
os sbios conseguem compreender com os olhos do corao. Por meio
dessa estratgia, Shinyashiki fora o indivduo a assumir uma posio
no mercado de trabalho, pois, afinal, se deseja ser? Diante do cardpio
de opes, o leitor provavelmente no iria optar nem pelo fraco, nem
pelo bom. Quem no quer ser sensacional ou sbio? Mas apenas os
melhores atingiro suas metas. Quem se mantm como est, ficar para
trs. (SHINYASHIKI, 2001).
O carter dinmico das recomendaes da literatura de autoajuda
de Shinyashiki tambm reside no manejo de exemplos que visam
confirmar as assertivas do autor. necessrio ressaltar, ainda que j
apontado anteriormente, que os exemplos constituem uma estratgia
pedaggica recorrente de que se valem os autores desse gnero literrio.
Retratam e disseminam modos de ser e agir repisados em histrias de
sucesso, modelos ideais; querem convencer a respeito do valor das
255
solues pessoais. (MARTELLI, 2006). No caso de Shinyashiki,
recorda-se o exemplo da funcionria dos Correios, a Noemi. A soluo
pessoal criada e implementada por ela rapidamente promovida de
exceo regra, numa forma de reforo responsabilidade individual
contribuindo com a prosperidade social.
Assim sendo, acerca das asseres em destaque, o jogo de
empurra-empurra entre fracasso e sucesso tratado com extrema
superficialidade. A nfase do discurso da autoajuda de Shinyashiki a
busca do sucesso. Um exemplo a recomendao que diz que alguns
chegaram ao sucesso realizando essa mistura mgica que acontece no
corao das pessoas que se entregam de corpo e alma sua meta.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 123). Da mesma maneira, o fracasso s surge
para aqueles que desistem. (SHINYASHIKI, 2001, p. 125). Para esse
autor, s haver fracasso se houver desistncia, j que o nico
adversrio que existe mora dentro do seu corao. (SHINYASHIKI,
2001, p. 125).
Nas afirmativas utilizadas no discurso de autoajuda, verifica-se a
contradio. Ao mesmo tempo em que so prescritas as virtudes, as
qualidades que compem o novo perfil profissional, leem-se passagens
como esta: A maioria das habilidades que hoje levam algum ao
sucesso vem do corao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 124).
um autor que intercala dois discursos, o que postula ao,
mudana de atitude, responsabilizando os indivduos por suas escolhas,
alertando que s vencem os melhores, e outro discurso reconfortante
que fala das oportunidades de todos, de ter personalidade, alm de
habilidades para ser empreendedor, ou para reconhecer suas limitaes e
desenvolver determinadas atitudes para ser empregado.
Para isso, Shinyashiki prope em seu discurso solues, receitas
eminentemente prticas, afinal: A soluo est dentro de voc; a
deciso sobre suas escolhas somente sua; voc tem a fora para
superar, basta ter coragem, se no tiver, ser visto como covarde e
imaturo. Precisa ser ousado, empreendedor, analisar as chances de
sucesso, desenvolver a capacidade para trabalhar muito, mas com
criatividade e amor ao prximo. (SHINYASHIKI. 2001).
Assim, o objetivo de Shinyashiki (2001, p. 24), conforme ele
prprio anuncia, fazer mudanas na maneira de pensar e de trabalhar
do indivduo. Nessa perspectiva, o discurso de autoajuda altamente
favorvel ideologia capitalista. (BRUNELLI, 2008). Como diria
256
Gramsci (2004, p. 207), as modificaes nos modos de pensar, nas
crenas, nas opinies, no ocorrem, mediante exploses rpidas,
simultneas e generalizadas, mas sim, quase sempre, atravs de
combinaes sucessivas, de acordo com frmulas de autoridade
variadssimas e incontrolveis. Ao se pensar na linguagem de
autoajuda, poder-se-ia dizer que Shinyashiki um dos autores que
contribui na difuso de uma nova concepo de trabalho, educao, de
mundo condizente com a nova sociabilidade do capital.
4. 6. 8 Se voc no mudar, morrer
A autoajuda de Spencer Johnson, autor norte-americano tem
exercido grande influncia aqui no Brasil. Seus livros foram
presenteados, em alguns casos, aos executivos de grandes empresas de
forma que estes disseminassem os pretensos ensinamentos aos seus
colaboradores. Em 2002, Manoel Amorim (2002 apud Revista Veja,
2002), na ocasio diretor geral da Telefnica, uma das maiores empresas
de telefonia atuantes no Brasil, destacava que
os livros de auto-ajuda so ferramentas valiosas
mesmo para os profissionais que tm a melhor
formao. Eles so um meio de se reciclar e no
ficar obsoleto. Um exemplo Quem mexeu no
meu queijo?, que mostra como enfrentar algo
inerente ao mundo dos negcios nos dias de hoje:
as mudanas. Brilhante, diz tudo usando
personagens e metforas. Eu me empolguei tanto
que, no ano passado, resolvi distribuir exemplares
a 600 executivos da empresa. Outro livro valioso
se chama Os sete hbitos das pessoas altamente
eficazes. J adotamos um programa de
treinamento baseado nas teorias de seu autor, o
americano Stephen Covey, que ensina que a
liderana dentro de uma companhia deve ser
centrada em princpios.
257
Esta uma histria de mudana, que passa em um
Labirinto, onde quatro personagens engraados
procuram pelo Queijo, uma metfora para o que
queremos ter na vida: seja um emprego, um
relacionamento, dinheiro, uma casa grande,
liberdade, sade, reconhecimento, paz espiritual
ou at mesmo uma atividade como correr ou
golfe. Cada um de ns tem a sua prpria idia do
que um Queijo, e o procuramos porque
acreditamos que nos far felizes. Se o obtemos,
freqentemente ficaremos ligados a ele. E se o
perdermos, ou se nos tirado, isso pode ser
traumtico. (JOHNSON, 2001, p. 11).
258
personagens que pelas manhs vestiam roupas e tnis, saiam de suas
casas e corriam para o labirinto procura de seus queijos favoritos.
(JOHNSON, 2001, p. 24).
O labirinto representa o lugar, o espao em que se gasta tempo
procurando aquilo que se deseja. Pode ser a organizao [...], a
sociedade [...] ou os relacionamentos que tem em sua vida.
(JOHNSON, 2001, p. 12). O labirinto um emaranhando de corredores
e divises, um lugar fcil para se perder. (JOHNSON, 2001, p. 25).
Sniff e Scurry acordavam cedo todos os dias e corriam pelo
labirinto, sempre pelo mesmo caminho. Chegavam ao Posto C de
Queijo, tiravam os tnis e os amarravam com o cadaro ao pescoo. J
os duendes haviam estabelecido outra rotina, como achavam que havia
queijo suficiente para aliment-los sempre, sentiam-se seguros, felizes,
bem-sucedidos, acabando por mudar para as redondezas do Posto C,
criando ali mesmo uma vida social. O excesso de confiana aos poucos
se transformou em arrogncia, no lhes deixando perceber que o estoque
de queijo estava acabando. Diferentemente, Sniff e Scurry, os quais
chegavam todos os dias cedo, inspecionavam o local, no ficaram
surpresos quando se deram conta de que o queijo havia desaparecido
numa daquelas manhs.
O comportamento dos duendes foi muito diferente do dos ratos,
que saram em busca de um novo queijo. De outro lado, um dos duendes
se revoltou com a situao, inconformado at, ficando paralisado. Ao
contar a histria, Johnson frisa que o comportamento dos duendes no
foi correto, produtivo, mas era compreensvel. Hem aceitou melhor o
fato de o queijo estar esgotado, Haw estava inconformado.
Sniff e Scurry, fazendo uma analogia com indivduos
empreendedores, aventuraram-se em busca de novos queijos, ao passo
que Hem e Haw tentavam negar o que estava acontecendo.
(JOHNSON, 2001, p. 40). Por algum tempo os duendes percorriam o
mesmo caminho, de casa ao Posto C, mas o Queijo realmente
desaparecera. Haw era mais pr-ativo, intencionava sair em busca de
outro Posto de queijo; Pensando de maneira positiva, construiu uma
imagem na sua mente. Viu a si mesmo se aventurando pelo Labirinto
com um sorriso no rosto (JOHNSON, 2001, p. 43). Hem, por sua vez,
resolveu aguardar o queijo reaparecer. Enquanto Haw pensou que
259
o Velho Queijo poderia at mesmo ter comeado a
mofar, embora ele nem tivesse notado [...] se dava
conta de que a mudana provavelmente no o teria
apanhado de surpresa se ele tivesse observado o
tempo todo o que estava acontecendo e se
antecipado. Talvez tivesse sido isso que Sniff e
Scurry haviam feito. (JOHNSON, 2001, p. 51).
260
provavelmente j o teria encontrado se tivesse
esperado a mudana, em vez de perder tempo
negando que ela ocorrera. (JOHNSON, 2001, p.
70).
261
Hem lembra um amigo meu [...]. Seu
departamento estava fechando, mas ele no queria
enxergar isso. Comearam a realocar as pessoas.
Todos ns tentamos falar com ele sobre as muitas
outras oportunidades que existiam na empresa,
para aqueles que quisessem ser flexveis, mas ele
no achava que deveria mudar. Ele foi o nico que
ficou surpreso quando seu setor fechou. Agora
est tendo dificuldades para se ajustar s
mudanas que achava que no aconteceriam.
(JOHNSON, 2001, p. 83).
262
Nossos Scurrys gostavam de ter as coisas feitas,
ento foram estimulados a agir, baseados na nova
viso corporativa. Apenas precisavam ser
monitorados, assim no sairiam correndo para a
direo
errada.
Foram,
desse
modo,
recompensados por aes que os levaram ao Novo
Queijo. Acharam agradvel trabalhar em uma
empresa que valoriza ao e resultados.
[...] Hems eram as ncoras que nos levavam para
o fundo [...] ou se sentiam extremamente
confortveis ou muito medrosos para mudar.
Alguns de nossos Hemns s mudaram quando
compreenderam a sensata viso que construmos,
a qual lhes mostrava como as mudanas
contribuiriam para esta vantagem.
Nossos Hems nos disseram que queriam trabalhar
num lugar que fosse seguro. Dessa forma, as
mudanas precisavam fazer sentido para eles e
aumentar sua noo de segurana. Quando
perceberam o verdadeiro perigo de no mudar,
alguns deles modificaram-se. O que nos ajudou a
transformar muitos de nossos Hems e Haws.
A boa notcia que, mesmo enquanto nossos
Haws inicialmente se mostravam hesitantes,
estavam flexveis o suficiente para aprender algo
novo, agir de maneira diferente, e adaptar-se a
tempo de ajudar-nos a ter sucesso. Eles
comearam a esperar a mudana e procuravam
por isso ativamente. [...] Eles nos disseram que
queriam trabalhar em uma organizao que desse
confiana s pessoas, alm de ferramentas para
mudar. E nos ajudaram a manter nosso senso de
humor enquanto amos atrs do nosso Novo
Queijo. (JOHNSON, 2001, p. 91, sem grifos no
original).
263
(JOHNSON, 2001, p. 94). Outra sntese dos amigos que, quando
penso sobre isso, vejo que a mudana realmente pode lev-lo a um lugar
novo e melhor, embora no momento que ele acontece, voc ache que
no. (JOHNSON, 2001, p. 95).
Finalizando a reunio, a histria contada representou um modo
divertido de nos comunicarmos, porque forneceu uma linguagem fcil.
E tambm eficaz, porque teve uma grande penetrao na empresa.
(JOHNSON, 2001, p. 96). A moral da histria que as pessoas que
estiverem resistindo compreenderam logo a vantagem de mudar. At
mesmo ajudaram a promover a mudana. (JOHNSON, 2001, p. 98).
Tambm a histria de Quem mexeu no meu Queijo? funciona melhor,
claro, quando todos na organizao conhecem a histria, seja em uma
grande empresa, numa microempresa ou em sua famlia, pois uma
organizao pode mudar apenas quando um nmero suficiente de
pessoas muda (JOHNSON, 2001, p. 100).
4.6.9 A coleo de frases de Spencer Johnson
A parbola criada por Johnson, assim como o discurso construdo
por Roberto Shinyashiki, constitui uma estratgia discursiva
interessante: a utilizao de frases que funcionam como fechamento
de uma mensagem, uma sntese daquilo que se deseja transmitir. Tais
frases funcionam como um recurso pedaggico de fcil compreenso
para o leitor, pois, de certa forma, traduzem a mensagem de maneira
que este possa apreend-la. Em Quem mexeu no meu queijo?, o autor
mexe com o imaginrio utilizando o recurso visual. De que forma? Cada
uma dessas frases est escrita dentro do desenho da fatia de um queijo
que ganha destaque especial, ocupando uma pgina inteira.
Assim, em Quem mexeu no meu Queijo?, cria-se um jogo no qual
o autor desenvolve a trama de sua histria, mas a cada momento,
estratgico para ele, faz uma breve parada sntese com uma frase de
fechamento. Nesse sentido, quando os dois duendes estavam ainda no
Posto C do Queijo, situao de conforto e acomodao, decoraram as
paredes com frases e at mesmo contornaram com desenhos do queijo,
que os faziam sorrir. Uma das frases dizia: Ter Queijo o faz feliz.
(JOHNSON, 2001, p. 28).
Posteriormente, quando a situao mudava, ou seja, os duendes
percebiam que o Queijo havia acabado, sentiam-se famintos e
desencorajados. Mas, antes de partir, Haw escreveu na parede: Quanto
264
mais importante seu Queijo para voc, menos voc deseja abrir mo
dele. (JOHNSON, 2001, p. 35). A frase agora mudara para: Se voc
no mudar, morrer (JOHNSON, 2001, p. 46). nfase necessidade de
adentrar ao Labirinto buscando construir outra trajetria de forma que
pudessem encontrar outro Posto de Queijo. Na histria, Haw se permite
percorrer tal caminho, perguntando-se por que eu no me mexi e fui
procurar o Queijo mais cedo? (JOHNSON, 2001, p. 47). Enquanto um
dos duendes questionava-se, o outro, Hem, continuava paralisado,
inconformado esperando o queijo reaparecer. Como Haw decidira
adentrar o labirinto, registrava nova frase: O que voc faria se no
tivesse medo? (JOHNSON, 2001, p. 48).
A aventura no Labirinto mercado de trabalho requer ousadia,
compreender a mudana, mas, fundamentalmente, adaptar-se a ela. Foi
essa compreenso que Haw estava tendo da situao. Parou para
descansar e escreveu na parede do Labirinto: Cheire o Queijo com
freqncia para saber quando est ficando velho (JOHNSON, 2001,
p. 52, sem grifos no original). O duende estava se dando conta de que
ficava para trs porque carregava consigo o peso de suas crenas
assustadoras. (JOHNSON, 2001, p. 54, sem grifos no original).
Assim, escreveu nova frase: O movimento em uma nova direo
ajuda-o a encontrar um Novo Queijo. (JOHNSON, 2001, p. 55, sem
grifos no original).
Na histria, conta-se que, ao percorrer os labirintos escuros em
busca do Novo Queijo, Haw no compreendia, passou a sentir-se bem e
a frase que segue objetiva o porqu: Quando voc vence o seu medo,
sente-se livre. (JOHNSON, 2001, p. 57. sem grifos no original).
Assumir riscos, estar no mercado procura de um novo espao
pressupe, para o autor, sair da condio de prisioneiro de medos que
impedem a construo de uma trajetria individual. A frase que sintetiza
o novo sentimento de Haw: Imaginar-me saboreando o Novo Queijo,
antes mesmo de encontr-lo, conduz-me a ele (JOHNSON, 2001, p.
59, sem grifos no original). Eis a um forte apelo ao pensamento
positivo. possvel mudar mais rapidamente. Isso implica deixar para
trs velhas crenas, hbitos, comportamentos. Nessa perspectiva, Haw
escreve a nova frase: Quanto mais rpido voc esquece o Velho
Queijo, mais rpido encontra um Novo. (JOHNSON, 2001, p. 62,
sem grifos no original).
Para aquele que resiste a assumir riscos, inovar, experimentar
novas possibilidades, a histria clara ao dizer que o medo que voc
265
deixa aumentar em sua mente pior do que a situao que
realmente existe. (JOHNSON, 2001, p. 65, sem grifos no original).
Dessa forma a frase que vem a seguir refora essa ideia: mais seguro
procurar no Labirinto do que permanecer sem Queijo.
(JOHNSON, 2001, p. 64, sem grifos no original). Tambm Shinyashiki
conta suas histrias reforando que o medo impede o indivduo de
assumir riscos, posicionar-se, assumir a autoria de sua prpria histria.
Segue a histria contada por ele sobre um fotgrafo de Niteri:
Eu caminhava tranquilamente quando um nibus
subiu na calada e me atropelou. Quando cheguei
ao hospital, no meio de uma dor brutal, escutava
os enfermeiros perguntando entre si se eu iria
sobreviver. Nesse momento, um grande desespero
tomou conta de mim. Eu, que sempre vivi com
medo de tudo, de andar de motocicleta, de jet ski,
de escalar montanhas, estava correndo o risco de
morrer atropelado por um nibus enquanto
caminhava na calada. Naquele momento prometi
a mim mesmo que, se sobrevivesse, no deixaria
de fazer mais nada por causa do medo. Graas a
Deus, sobrevivi e a primeira deciso que tomei foi
pedir demisso do emprego em que trabalhava,
que no tinha nada a ver comigo. Ento me tornei
fotgrafo, algo que realmente adoro fazer. Ganho
quase tanto quanto ganhava antes, mas h uma
grande diferena: hoje eu sou um sujeito feliz.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 80).
266
Notar cedo as pequenas mudanas ajuda-o a adaptar-se s maiores
que ocorrero. (JOHNSON, 2001, p. 71, sem grifos no original). A
gesto da mudana ganha maior nfase no ambiente organizacional.
Na histria, como viu-se at o momento, so as vrias frases que
remetem diretamente ao que constitui o objetivo central desse livro:
adaptao mudana. Na estrutura do discurso, cada frase vem logo
aps o autor evidenciar questes importantes relacionadas mudana de
pontos de vista, comportamentos e atitudes. No bastando, quase ao
final da parbola, segue uma sntese das frases de efeito denominada O
Manuscrito na parede. Neste, recuperam-se as frases de efeito
elencadas no decorrer da histria, agora, acrescidas de outras
recomendaes:
267
4.6.10 A autoajuda de Johnson
Conforme j mencionado, Sennett (2006, p. 168), nos lembra que,
sob a gide da mudana, as pessoas [...] precisam de uma ncora
mental e emocional; precisam de valores que as ajudem a entender se as
mudanas no trabalho [...] valem a pena. nesse sentido que se pode
apreender o discurso de Johnson. Um discurso que contribui na
promoo desses valores, que institui modos de viver e comportar-se no
trabalho, reforando as teses da adaptao, adequao, aceitao a
ideia de mudana. Enfim, dissemina uma concepo de mundo e
trabalho cuja essncia recai na adaptao mudana. Associada ao
vocbulo da mudana est flexibilidade, palavra de ordem para o
sucesso profissional do alvorecer do sculo XXI.
Nessa linha de pensamento, ao considerar-se a afirmao de
Maingueneau (1998, p. 18) de que a produo de discursos possui uma
ordem prpria, analisar as formas de materializao da autoajuda de
Johnson permite apreender os recortes pertinentes a sua concepo de
mundo, trabalho e educao.
No discurso desse autor, a histria dos ratos em busca de um
novo queijo reporta necessidade de uma reviso de valores como
elementos para lidar como o inesperado, o que exige um novo modo de
pensar e agir para enfrentar desafios, pensar sobre os erros, rever
obstculos que esto dentro de cada um. (JOHNSON, 2001). A
adaptao, no discurso do autor, representa nada mais do que a
recompensa adeso ao novo modo de pensar, sentir e agir diante das
mudanas. Em reforo a esse novo jeito de ser no trabalho requerido
que se abandonem comportamentos de revolta, de inconformao,
paralisia, negao, de priso aos prprios medos. (JOHNSON, 2001).
So apregoados nessa literatura idias e comportamentos, relativos :
ousadia, pr-atividade, pensamento positivo: Quando voc acredita que
pode encontrar e apreciar um Novo Queijo, muda de direo;
imaginar-me saboreando o Novo Queijo, antes mesmo de encontr-lo,
conduz-me a ele. (JOHNSON, 2001), de manter-se alerta mudana,
de preparao para lidar com mudanas contnuas. Caracteriza-se, desse
modo, o uso abundante de frases de efeito que so estrategicamente
posicionadas no texto como sntese daquilo que deve ser apreendido na
leitura do manual. Reforando essa sntese, as frases aparecem dentro de
um desenho de uma fatia de queijo. O recurso visual um importante
mecanismo na busca da adeso aos preceitos da autoajuda de Johnson.
268
Dessa maneira, em seu discurso, o autor estabelece leis da
mudana e da adaptao. Essas leis so expressas por meio de uma
infinita repetio de palavras, um dos recursos lingsticos utilizados
pelo autor como artifcio para prender a ateno e persuadir os leitores.
O reforo repetio uma estratgia discursiva comum na literatura de
autoajuda e no caso de Johnson, as palavras mais frisadas so: mudana;
adaptao; flexvel; bem-sucedidos; comportamento; sucesso;
imaginao; medo. (JOHNSON, 2001).
Nas recomendaes de Johnson, caracterstico o uso de verbos
imperativos. Por meio dessa estratgia pretende-se estimular o
indivduo a aceitar uma ordem, uma orientao, conselho de forma que
se cumpra, se faa. Na forma impositiva, destaca-se: cheire; acredite;
procure; antecipe; monitore; aprecie; adapte-se. uma linguagem
persuasiva cujo discurso formulado de maneira a mostrar ao indivduo
os benefcios ao se atender os apelos e ordens dadas. Nesse aspecto,
recorda-se a anlise de Brunelli e Dall Aglio-Hattnher (2009), em que as
autoras explicam que o uso de imperativos no discurso de autoajuda
est associado ao interesse dos autores desse gnero de literatura, visto
que se prioriza um conjunto de orientaes, descartando a proposta de
reflexo sobre tais assertivas.
A autoajuda de Johnson visa educar tambm pelo uso de
metforas. A histria imaginria dos ratos e duendes concretiza a
metfora da mudana. O queijo e o labirinto esto articulados a imagens
e modelos que inspiram autorrealizao, sucesso, recompensa em
caso de adaptao. Cria-se uma perspectiva de interao entre a
metfora e o indivduo nutrindo-o para ser capaz de realizar e resolver
os seus problemas. Johnson faz um jogo de interessante em seu discurso.
Acrescenta no dilogo do grupo de amigos, exemplos prticos de
situaes ocorridas no trabalho reforando, assim, as leis da adaptao
s mudanas criadas pelo autor. Os exemplos reportam necessidade de
sair da condio de famintos e desencorajados; vencer o medo; sentir-se
livre; livrar-se de crenas assustadoras; procurar um novo espao;
assumir riscos, inovar, experimentar novas possibilidades; fazer
escolhas; mudar pontos de vista, comportamentos e atitudes.
(JOHNSON, 2001). Mudar atitudes significa enxergar a mudana como
importante, sobretudo mantendo o senso de humor, pois quem no
mudar, morrer! (JOHNSON, 2001).
269
4.7 MORAL DA HISTRIA
Por meio da anlise destes autores da atualidade, tentou-se
demonstrar a consonncia do discurso de autoajuda com os ideais
neoliberais que visam eliminao de toda a rigidez, inclusive
psquica, em nome da adaptao s situaes as mais variadas que o
indivduo encontra, tanto no seu trabalho quanto na sua existncia.
(LAVAL, 2004, p. 15). Como diz este autor, crucial, para o capital, o
enfraquecimento de tudo que constitui contrapeso a sua reproduo.
Diante disso, o discurso constitui uma estratgia de busca do consenso
em torno da ideia da adaptabilidade mudana. Por isso, certos modos
de comando e de prescrio (LAVAL, 2004, p. 19) esto no cerne do
que constitui o discurso de autoajuda.
Martins e Neves (2010, p. 24) assinalam que a nova pedagogia da
hegemonia se materializou, e sua principal caracterstica assegurar
que o exerccio da dominao de classe seja viabilizado por meio de
processos educativos positivos. nessa perspectiva que se difunde uma
nova concepo de mundo, novos modos de ser e agir no trabalho de
forma que a mudana ganha ares de naturalidade e uma conotao
eminentemente positiva.
No discurso de autoajuda, a partir dos anos de 1990, tem-se
insistido em estabelecer um diagnstico das relaes de trabalho,
fazendo aparecer certa ideologia para a fatalidade (LAVAL, 2004),
justificando difundir uma concepo de realidade exigindo
comportamentos e atitudes condizentes com as frmulas em vigor nessa
literatura.
Assim, as frases de efeito so empregadas com vistas a facilitar a
internalizao do receiturio. Mostradas em destaque, seja em negrito ou
dentro de desenhos, a exemplo das fatias de queijo, ajudam o leitor a
simplificar a compreenso dos elementos que precisam ser assimilados,
sintetizando a essncia das ideias dos autores.
Alm disso, na literatura de autoajuda, os autores utilizam
histrias de sucessos de figuras edificantes, recorrem pedagogia do
exemplo, escrevendo um receiturio para o sucesso, frmulas para a
perfeio. Os exemplos de fora de vontade, determinao, esto
intimamente relacionados aos conceitos de empregabilidade e
empreendedorismo no que tange noo de eficincia e eficcia, to
reiteradas na gesto do trabalho na atualidade. Talvez, o elemento
270
crucial para compreender o porqu do aporte da autoajuda em modelos
seja justificar os preceitos de adequao, adaptao ao contexto de
mudana. Em geral, os fragmentos biogrficos utilizados tanto por
Smiles, Carnegie, quanto pelos gurus atuais, remetem justamente a uma
situao de desafio, de incerteza, de problemas de difcil resoluo em
que a atitude do indivduo biografado fez a diferena. Se, ao seguir as
boas prticas o trabalhador no galgar o sucesso segundo o modelo,
de acordo com o que apregoado nessa literatura, o trabalhador
provavelmente falhou na anlise, no estudo, na opo, nas escolhas, no
esforo, economizou na ousadia, foi medroso, acomodado, enfim, os
autores so profissionais em oferecer motivos vrios para culpar o
indivduo que fracassa. Mas como todos acreditam que so capazes, so
bons, e buscam este tipo de literatura porque desejam mudar, enfrentam
o desafio e no lhes resta outra sada honrosa a no ser dizer que de fato
mudaram e obtiveram algum sucesso.
A autoajuda contribui para incentivar as boas relaes sociais
entre as pessoas, muito evidenciadas em grande parte das prescries
dos autores desse gnero. Apoia-se no princpio da sociabilidade, na
criao de redes de relacionamento (networking), entendidas por alguns
como capital social que precisa ser desenvolvido para obter-se sucesso
profissional. Aqui o indivduo submete-se a duas situaes: Para ter
sucesso profissional, voc precisa obrigatoriamente pensar no outro e,
por outro lado, apenas os melhores atingiro suas metas.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 24). Esse o jogo do trabalho em equipe e da
responsabilizao individual, to reprisado pelo senso comum. Como a
linguagem no transparente, poder-se-ia ler as passagens utilizadas
pelo autor como aquela que diz que pensar no outro est relacionado a
pensar na empresa com mxima produtividade e pr-atividade. A
autoajuda busca criar um indivduo pr-ativo, motivado, agentes ativos
do seu prprio bem estar.
Quanto ao uso das metforas na autoajuda, pode-se pensar nas
observaes de Fairclough (2001, p. 241) ao analisar que so to
profundamente naturalizadas no interior de uma cultura particular que as
pessoas [...] deixam de perceb-las. sobre esse aspecto que se quer
chamar a ateno: a metfora como uma estratgia para naturalizar
determinadas situaes. Desse modo, pode-se dizer que, quando os
autores se utilizam de metforas, esto construindo a realidade de uma
maneira e no de outra. Esto atribuindo significados que so
consumidos pelos leitores de forma que se opera a naturalizao de
271
uma situao que construda como individual, quando, na verdade, tem
carter social. Na concepo de Fairclough (2001, p. 91), o discurso
contribui para a constituio de todas as dimenses da estrutura social
que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas prprias
normas e convenes, como tambm relaes, identidades Ademais,
assinala o autor, o discurso uma prtica, no apenas de representao
do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o
mundo em significado. (FAIRCLOUGH , 2001, p. 91).
Sob este ponto de vista, possvel dizer que a proliferao do
discurso de autoajuda revela a constituio de uma prtica discursiva
que visa tornar hegemnicos alguns conceitos, vises de mundo e
produzir atitudes operacionais ao capital. De que forma isso acontece? O
uso e a escolha das palavras, as metforas, as frases de efeito, a
repetio de palavras, as frases imperativas, so elementos utilizados
pelos autores de autoajuda que operam uma mudana social. O discurso
da mudana, por exemplo, to repetitivo e reforado que quem seria
capaz de dizer que no considera importante mudar? Eis o efeito e o
poder do discurso. Assim, conforme j mencionado, possvel
distinguir trs aspectos constitutivos do discurso. O discurso contribui
para a construo de: a) identidades sociais e posies de sujeito, b)
relaes sociais entre as pessoas e c) construo de sistemas de
conhecimento e crena. (FAIRCLOUGH, 2001).
Dessa maneira, possvel dizer que a literatura de autoajuda
endereada a trabalhadores e desempregados recorre a exemplos de
empresrios e bem-sucedidos homens de negcio. Parte da constatao
da crise, do fracasso, para demover o leitor de um arraigado
posicionamento. Desenvolve um discurso centrado na mudana
individual. Os fragmentos de histrias de vida exemplificam como o
individual massivamente explorado nessa literatura, empurrando para
o indivduo a responsabilidade de assumir uma posio frente
realidade que o cerca. Para que isso acontea, so omitidos os contextos
e problemas sociais, os interesses antagnicos numa sociedade de
classes, uma vez que as biografias utilizadas citam exemplos de pessoas
de sucesso, histrias individuais praticamente sem referncias ao
contexto histrico em que ocorreram.
Os autores dos livros analisados insistem na adaptao de
indivduos a sistemas de ao sobre os quais tm pouco controle,
buscam a construo de um novo indivduo ensinando novos modos
272
de SER. As mediaes do-se fundamentalmente pela mudana
individual.
Usando uma linguagem evasiva, o discurso de autoajuda
dissemina um pensamento positivo, princpios do auto-cultivo,
edificante, mas ao mesmo tempo utiliza um discurso prescritivo que
propala regras de conduta ao fornecer conselhos e ditar modelos a serem
seguidos.
Eis o cunho ideolgico da autoajuda: prescreve normas de
conduta humana para agir no social, operando no plano individual.
Observa-se, assim, sob esse aspecto, como o discurso de autoajuda
contribui para a construo de sistemas de conhecimento, crenas e
conformismos, constituindo-se num caminho para viabilizar um dos
pilares da educao do sculo XXI, conforme o Relatrio Delors, o
aprender a ser.
No prximo captulo, analisam-se dois importantes relatrios da
UNESCO sobre educao, indicando as similaridades entre o aprender
a ser do campo educacional e as recomendaes dos manuais de
autoajuda para formar o trabalhador demandado pelo capital em
diferentes momentos histricos presentes tanto na literatura de autoajuda
quanto nas recomendaes para a educao do sculo XXI.
273
5 LIES DA UNESCO PARA EDUCAR O HOMEM DE NOVO
TIPO
[...] a estrutura da fora exterior
que
subjuga
o
homem,
assimilando-o e o tornando
passivo, transforma-o em meio de
liberdade, em instrumento para
criar uma nova forma ticopoltica, em fonte de novas
iniciativas.
(GRAMSCI, 1979)
274
educao e o papel dos professores na formao de um homem de novo
tipo para o sculo XXI.
5.1 RELATRIO APRENDER A SER
A partir da anlise do Relatrio Aprender a ser da UNESCO,
conhecido como Relatrio Faure, publicado em 1972, procura-se
sinalizar alguns princpios de orientao poltica que, ao longo das
ltimas quatro dcadas, vm orientando internacionalmente as reformas
educacionais sob o argumento de que a educao est em crise.
Divulgando tal constatao, o referido Relatrio assinala a necessidade
de formar um novo homem [...] capaz de compreender as
conseqncias globais dos comportamentos individuais, de conceber as
prioridades e de assumir as formas de solidariedade que constituem o
destino da espcie. (FAURE, 1972, p. 24).
Em vista disto, interessa aqui analisar as nfases sobre o
aprender a ser a fim de ressaltar as similaridades com o discurso da
autoajuda voltado a formar um novo homem compatvel com as novas
demandas apontadas para os anos vindouros. Ao utilizar o termo
discurso, tem-se presente a linguagem como uma forma de prtica
social, e no como uma atividade puramente individual ou reflexo de
variveis situacionais conforme defende Fairclough (2001, p. 90). Essa
posio importante, uma vez que implica considerar o discurso como
um modo de ao, ou seja, entende-se que o discurso do aprender a
ser, disseminado no Relatrio analisado, visa construir uma nova
concepo de mundo, constituindo e construindo um mundo em
significados (FAIRCLOUGH, 2001), o que permite apreender o
discurso no seio de um sistema de relaes materiais que o estruturam e
o constituem. (FOUCAULT, 1996).
Considerando que o discurso, no sentido apregoado por
Fairclough (2001, p, 91), objetiva produzir trs efeitos constitutivos
relativos a: mudar posio dos indivduos, construir relaes sociais
entre as pessoas e contribuir para a construo de sistemas de
conhecimento e crenas, busca-se destacar os elementos do Relatrio
que possibilitam compreender a imperiosa necessidade de preparo de
um novo homem. A educao , assim, apresentada no Relatrio Faure
como via de superao das disparidades regionais, de desigualdades
sociais nos quais o aprender a ser emerge como uma demanda comum
e urgente proclamao de uma nova poltica educativa a fim de
275
melhorar, reformar, adequar os sistemas de ensino para a insero do
trabalhador no mundo do trabalho. Novos modos de ser e agir
coadunam-se com as novas demandas do capital em que o apelo
discursivo constitui um exerccio pedaggico de difuso de uma matriz
de percepo da realidade. (RUMMERT, 2000, p. 41).
5.1.1 Edgar Faure e os membros da Comisso
A Comisso Internacional para o Desenvolvimento da Educao
foi formada em princpios de 197186 sob a presidncia de Edgar Faure
(1908-1988) com o propsito de proceder a uma reflexo crtica de
homens de formao e origem diversas que pesquisassem com toda a
independncia e objetividade a via de solues de conjunto para os
grandes problemas suscitados pelo desenvolvimento da educao num
mundo em transformao. (FAURE, 1972, p. 9). Ao assumir tal tarefa,
esses homens apresentaram quatro postulados:
O primeiro, que constitui a prpria justificao da
tarefa empreendida, o da existncia duma
comunidade internacional que, sob a diversidade
de naes e culturas, das opes polticas e dos
nveis de desenvolvimento, se exprime pela
unidade de aspiraes, de problemas e de
tendncias e pela convergncia para um mesmo
destino.
O segundo a crena na democracia concebida
como direito de cada homem se realizar
plenamente e de participar na edificao do seu
prprio futuro.
Constitui o terceiro postulado o desenvolvimento
que tem por objetivo a expanso integral do
homem em toda a sua riqueza e na complexidade
das suas expresses e compromissos: indivduo,
membro duma famlia e duma coletividade,
86
Pode-se ver o limiar dos anos 1970 como o declnio da Era do Ouro do fordismo com
necessidade de uma nova composio diante de uma crise do capitalismo hegemonizado pelo
modelo americano de produo e consumo de massa, que, a partir dessa dcada, assumia,
ento, um carter universal e geral, e no apenas no seu sentido econmico, como tambm no
poltico, social e moral. Ou, nas palavras de Hobsbawm (2007, p. 20), no era a crise de uma
forma de organizar a sociedade, mas de todas as formas. A dcada de 1970 constituiu o lcus
de construo de um novo reordenamento social, cultural, poltico, moral, educacional, o que
permite entender o porqu de um documento como o Relatrio Faure ser gerado.
276
cidado e produtor, inventor de tcnicas e criador
de sonhos.
O nosso ltimo postulado o de que a educao
para formar este homem completo, cujo advento
se torna mais necessrio medida que coaes
sempre mais duras separam e atomizam cada ser,
ter de ser global e permanente. (FAURE, 1972,
p. 10, sem grifos no original).
277
O diretor-geral ressalta que as ideias presentes no Relatrio j
inspiram a ao da Organizao, reforando que
os vossos trabalhos no se limitam a uma reflexo
sobre a educao, por mais notvel que seja a sua
qualidade. Sinto-me feliz por verificar que
conduzem a recomendaes concretas que, como
o esperava, me parecem capazes de orientar a
ao da UNESCO, dos governos e da comunidade
internacional. (MAHEU, 1972 apud FAURE,
1972, p. 13).
278
Membros da
Comisso
Pas de
origem
Referncia profissional
Felipe
Herrera
Chile
AbdulRazzak
Kaddourra
Sria
Henri Lopes
Arthur V.
Ptrovski
Majid
Rahnema
Frederick
Champion
Ward
Repblica
Popular do
Congo
U.R.S.S
Ir
E.U.A
279
11), sublinha que, diante das noes apresentadas no Relatrio,
objetivou-se contribuir no esforo metodolgico necessrio aos fins de
elaborao de estratgias nacionais. Tal esforo reconhecido por
Maheu (1972 apud Faure, 1972, p. 14) assumindo o compromisso de
difundir as ideias do Relatrio para informar a opinio pblica e todos
os que se interessam pela educao e em todo o mundo trabalham para
ela.
5.1.2 Da estrutura textual do Relatrio Aprender a ser
A Apresentao do Relatrio composta de duas cartas. A
primeira, do presidente Edgar Faure ao diretor-geral da UNESCO, Ren
Maheu, datada de 18 de maio de 1972. Uma segunda carta, resposta de
Maheu a Edgar Faure, datada de 29 de maio, do mesmo ano. A seguir
destaca-se um Prembulo, escrito por Faure, contendo consideraes
que dizem respeito a: Educao e destino do homem; A revoluo
cientfica e tcnica: educao e democracia; A mutao qualitativa: a
motivao e o emprego; Instituio escolar e a cidade educativa; Os
instrumentos da transformao87 e A cooperao internacional. Nesse
espao, Faure (1972, p. 17), ressalta que a UNESCO, ao constituir a
Comisso Internacional para o Desenvolvimento da Educao, mostrase assim integrada no calendrio poltico contemporneo. Assinala
ainda que a educao solicita, acompanha ou consagra, a longo prazo
no s a evoluo social e poltica, como tambm a evoluo tcnica e
econmica, indivduos mais instrudos tendem a afirmar-se como
cidados e, se so em maior nmero, a antecipar reivindicaes
democrticas. (FAURE, 1972, p. 20).
So trs as partes em que est dividido o Relatrio. A primeira,
intitulada O que se verifica, contm trs captulos. O captulo I, O tema
da educao, que se subdivide em: A herana do passado e Aspectos
atuais. O captulo II, Progresso e barreiras, est organizado da seguinte
forma: Necessidade e procura; Os termos do possvel; Reservas e meios;
Desequilbrios e disparidades. O captulo III, A educao, produto e
fator da sociedade, que discute: Impresses e dificuldades; Contornos e
contedos e Caminhos da democracia. Consta ainda, nesse captulo, o
Eplogo I: (Em forma de anttese) A propsito de algumas idias
87
Essa uma das tnicas do discurso nos livros de autoajuda, em que os aconselhamentos, as
orientaes, as receitas, se seguidas, serviro de instrumentos de transformao do
indivduo, de sua realidade, de situaes que angustiam, afligem e no permitem seu
desenvolvimento.
280
feitas. Faure salienta nesse captulo, que no se pretende traar um
esboo histrico, mas apresentar uma das teses, do presente relatrio,
[...] de que o passado exerce poderosas influncias sobre a educao.
(FAURE, 1972, p. 43).
A segunda parte, sob o ttulo Perspectivas para o futuro,
composta tambm de trs captulos, a saber: Captulo IV, O tempo das
interrogaes, apontando para: O salto; As diferenas; Os danos e As
ameaas. O captulo V, Fatos que constroem o futuro, discute: O
laboratrio descobre; O desenvolvimento da cincia e da tecnologia e A
prtica aplica e por sua vez inventa. O captulo VI, Transcendncias,
discorre sobre: Para um humanismo cientfico; Pela criatividade; Por
um compromisso social; Para o homem completo. Nesse captulo
encontra-se o Eplogo II ( maneira de pressgio): Uma cidade
educativa. A segunda parte do Relatrio refora que a atual situao da
educao no mundo o produto de mltiplos componentes: tradies e
estruturas herdadas do passado com o seu tesouro88 de aquisies e
experincias, mas tambm o peso de vestgios que arrastam consigo.
(FAURE, 1972, p. 70).
A terceira e ltima parte do Relatrio, Para uma cidade
educativa, tambm est estruturada em trs captulos. O captulo VII,
Lugares e funes das estratgias educativas apresenta consideraes a
respeito de: Poltica, estratgia, planificao, bem como da
Caracterizao das estratgias educativas. No captulo VIII, Elementos
para as estratgias contemporneas, aborda: Melhorias e reformas,
alm de Inovaes e procura de alternativas. Por fim, o captulo IX, Os
caminhos da solidariedade, est subdividido em: Causas e razes;
Cooperao e permuta de experincias e Fontes e modos de assistncia.
Essa terceira parte est voltada construo de uma cidade educativa,
considerando que toda poltica de educao reflete as opinies
polticas, as tradies e os valores de um pas, assim como a idia que se
faz do seu devir. (FAURE, 1972, p. 256). A Comisso esclarece que o
enunciado duma poltica educativa o resultado
dum processo de pensamento que consiste:
88
O que se tornar ttulo central do Relatrio da Comisso de Educao para o sculo XXI:
educao um tesouro a descobrir presidido por Jacques Delors (1996) imprimindo educao
um carter messinico. Alm desse, o termo remete a ideia de herana valiosa to difundida
nas geraes de pais e avs que se orgulham em afirmar que os bens materiais no puderam
deixar grandes somas, mas o maior tesouro foi conseguir colocar os filhos na escola. Essa
forma de interpretar a educao est fortemente arraigada na sociedade.
281
- em harmonizar os objetivos educativos com os
objetivos globais;
- em deduzir, muitas vezes, os objetivos da
educao a partir das finalidades da poltica geral;
- em assegurar a concordncia dos objetivos
educativos com os objetivos relativos aos outros
setores da atividade nacional. (FAURE, 1972, p.
256).
282
Se as prticas discursivas disseminam determinada viso de
mundo, de homem, de sociedade, pode-se ler o Relatrio Faure,
considerando tais perspectivas. Os boxes intencionalmente
posicionados ora no decorrer da argumentao, ora ao final dos
captulos, ou ainda ao final de cada uma das partes, direcionam a
ateno do leitor para o que prope o documento de forma a reforar o
discurso, conforme o que segue:
Que concluses gerais se podem tirar, no que
concerne educao, desta perspectiva da
histria? [...] que na educao de hoje pesam
dogmas e usos caducos e sob esse aspecto,
frequentemente, as velhas naes no apresentam
menos anacronismos nos seus sistemas de ensino
do que os jovens Estados. Desse modo, uma
dupla tarefa, ao mesmo tempo de restituio e de
renovao, que nos parece convir histria da
educao. (FAURE, 1972, p. 54).
283
as contradies dos sistemas sociais e a impotncia relativa dos sistemas
educativos deve ser considerada um fato em evidncia. (FAURE,
1972, p. 118).
De uma perspectiva em que se apontam os problemas, a terceira
parte do Relatrio, mas especificamente no captulo VIII, refora
elementos para possveis estratgias, uma vez constatada a crise. No
estado atual das coisas e tendo em conta o crescimento das
possibilidades e das experincias j adquiridas. (FAURE, 1972, p.
271), o documento destina um espao a 21 princpios acompanhados
cada qual de argumentos apresentados como alternativas para a
educao. Essa estrutura merece um olhar mais atento pela forma como
exibida no Relatrio. Dos princpios derivam argumentos gerando um
box denominado Recomendao, seguido de um Comentrio em que
se conclui com uma Ilustrao que consta de exemplos e explicaes
que visam dar legitimidade a cada um dos princpios formulados pela
Comisso. Este um momento de exposio de experincias exitosas de
diversos pases visitados.
Outro aspecto que merece destaque: o uso abundante de quadros
estatsticos e muitas notas de rodap. Estes remetem, alm de um
reforo de explicao, a numerosas experincias em diversos pases e
depoimentos de membros da prpria Comisso.
Em cada captulo, outro recurso visual usado para direcionar a
leitura so os pequenos subttulos que ficam dispostos na margem
esquerda de cada pgina chamando a ateno para o tema da discusso
que segue. Outra evidncia a ser considerada a constituio de um
discurso que utiliza a repetio de palavras. Como exemplo, tm-se:
solidariedade; incerteza; progresso; sistema de ensino/educao;
estatsticas; tecnologias, estratgias e adaptao. Pode-se considerar
essas palavras, por vezes repetidas, como elementos que justificam a
disseminao de uma nova concepo de mundo que exige novos modos
de viver, pensar e sentir (GRAMSCI, 1979). Fundamenta-se, nesse
sentido, um discurso que justifica as inmeras assertivas do documento,
norteando os argumentos sobre a necessidade de repensar as finalidades
da educao e dos sistemas de ensino, segundo observou Rodrigues
(2008).
284
5.1.4 A fora dos verbos
Destaca-se, no documento, um discurso de enaltecimento era
da tecnologia (FAURE, 1972, p. 25). Ainda que faa breve ressalva a
seus inconvenientes, a Comisso considera a cincia e a tecnologia
fundamentais como elementos omnipresentes e fundamentais de todo o
empreendimento educativo (FAURE, 1972, p. 2), afirmando que a
era cientfico-tecnolgica implica a mobilidade
dos conhecimentos e a renovao das inovaes,
e por isso o ensino deve consagrar um esforo
mnimo distribuio e a cumulao do saber
adquirido [...] e dar maior ateno aprendizagem
dos mtodos de aquisio (aprender a aprender).
(FAURE, 1972, p. 29).
285
completam,
principalmente
nos
pases
industrializados, as mltiplas atividades no plano
profissional; programas de aprendizagem,
promoo
da
mo-de-obra,
cursos
de
aperfeioamento e de atualizao, estgios e
seminrios. (FAURE, 1972, p. 88).
286
Para dar conta de tais finalidades, tarefas da educao, a
Comisso destaca que
a procura das estratgias no lineares deve basearse, no sobre a extrapolao de tendncias
passadas, mas sobre uma anlise atual e imediata
das necessidades e das aspiraes dos indivduos e
dos grupos, quer dizer, sobre os objetivos
concebidos em sua funo, no s no plano
educativo, mas em domnios conexos como o
emprego, a produo, a produtividade agrcola, e
tambm sobre dados tais como as condies da
vida social, o desenvolvimento urbano, as relaes
sociais, as aspiraes individuais, a evoluo das
tcnicas e dos meios de comunicao, o nvel de
vida das populaes e os projetos de
desenvolvimento. (FAURE, 1972, p. 262).
287
mas que se encontram com uma formao mal
adaptada s necessidades da economia; 4- adultos
que trabalham em um emprego para o qual no
foram formados; 5- profissionais cuja formao
no corresponde s exigncias do progresso
tcnico no ramo em que trabalharam at ento,
denominados de sujeitos inadaptados e
inadaptveis.
288
educativos com os objetivos relativos aos outros setores da atividade
nacional. (FAURE, 1972, p. 256). Os elementos apresentados
constituem o enunciado de uma poltica educativa que resultado, de
acordo com a Comisso, de um processo de pensamento. (FAURE,
1972, p. 256).
As observaes sobre as metforas remetem ao objetivo com que
este recurso utilizado, gerando um efeito de aceitao ou
necessidade de mudana para o novo. Se as palavras comuns
transmitem o que j se tem presente, a metfora pressupe uma melhor
forma de propor o novo. o caso da metfora cidade educativa,
proposta no Relatrio Faure:
Se se aceitar a noo de um sistema de educao
global e permanente e a idia da cidade
educativa, no como um sonho de futuro, mas
como dado objetivo e projeto coletivo do nosso
tempo (para que concorrem j, conscientemente
ou no, educadores, pedagogos, cientistas,
polticos e utentes), convm agir simultaneamente
em duas direes: reforma interna e melhoria
constante dos sistemas educativos existentes;
procura de formas inovadoras, de alternativas e de
recursos novos. (FAURE, 1972, p. 265).
289
inegvel que, a despeito de sua inrcia e do seu
conservadorismo,
to
frequentemente
verificados e denunciados, o renovamento, a
modernizao, o aperfeioamento dos sistemas
educativos resultam tambm de impulsos internos.
290
135), possvel assinalar que os textos produzidos podem transformar
textos anteriores e reestruturar as convenes existentes. O documento
produzido visa dessa maneira, desencadear uma reforma educacional
imprimindo forte carter individualista e flexvel com vistas a contornar
sistemas tradicionais da educao, colocando em evidncia a
fragilidade de certas formas de instruo, e a fora de outras, alargando
as funes do autodidatismo e aumentando o valor das atitudes ativas e
conscientes de aquisio de conhecimentos. (FAURE, 1972, p. 32).
Aqui vale lembrar o alerta de Shiroma, Campos e Garcia (2004,
p. 10) destacando que, embora caracterizados por seu tom prescritivo e
recorrendo a argumento de autoridade, os textos da poltica do margem
a interpretaes e reinterpretaes, gerando, como conseqncia,
atribuio de significados e de sentidos diversos a um mesmo termo.
5.1.6 Concepo de mundo
Na compreenso da Comisso, o mundo precisa de mudanas.
Essas mudanas so consequncias dum processo de crescimento
inegvel, que procede por saltos e recuos, [que] no corrige um
desequilbrio seno criando outro, mas que est longe de apresentar
apenas aspectos negativos, mesmo se as adaptaes e as mutaes que
exige so penosas e extenuantes. (FAURE, 1972, p. 58). Trata-se de
um mundo cujo crescimento demogrfico [...] no uniforme
(FAURE, 1972, p. 75). Afirma-se que a exploso demogrfica, tantas
vezes evocada e muitas vezes temida, contm em si uma exploso
escolar ainda mais impiedosa. (FAURE, 1972, p. 74). Disso, prev-se
para o fim do sculo, que o nmero de pessoas em idade escolar e
universitria aumentar em mais de mil milhes, ou seja, cada ano um
excedente virtual de trinta e seis milhes de alunos e estudantes
(FAURE, 1972, p. 74). Reforando esse pensamento, a educao , ao
mesmo tempo, um mundo em si e reflexo do mundo. (FAURE, 1972,
p. 111).
Oferecer uma compreenso do mundo, na perspectiva da
Comisso, um
dos fins maiores da educao, mas esta
preocupao traduz-se, freqentes vezes, ou pelo
enunciado de explicaes abstratas, de princpios
pretensamente universais, ou por um utilitarismo
estreito, igualmente incapaz de responder s
291
interrogaes dos espritos jovens, confrontados
com o real e curiosos do seu prprio destino.
(FAURE, 1972, p. 123, sem grifos no original).
292
formas que permitam uma disseminao mais
vasta dos meios e possibilidades de aprender.
- Se as disparidades regionais de cada pas, e
mesmo
entre
os
pases,
entravam
o
desenvolvimento global, lgico encorajar os
esforos educativos em favor das categoriais
desfavorecidas da populao, das regies rurais e
dos pases mais desprovidos.
- Se evidente, ao nvel dos problemas
econmicos e sociais, que uma poltica global e
uma filosofia comum de desenvolvimento se
impem aos diferentes pases, a educao
evoluiria duma maneira mais eficaz se se apoiasse
num mtodo de aproximao comum, no qual as
diversas polticas nacionais se poderiam inspirar
vantajosamente. (FAURE, 1972, p. 168, sem
grifos no original).
293
o centro de muitas explicaes sobre a interpretao, de acordo com
Fairclough (2001), ento se poderia dizer que prevalecem no discurso do
Relatrio muitas incoerncias. Insistindo na mesma linha de discusso,
como seria possvel eliminar as disparidades regionais, que so de vrias
ordens, simplesmente encorajando esforos educativos? No explicitam
quais seriam estes esforos, mas as influncias da teoria do Capital
Humano podem ser percebidas no Relatrio.
Todos esses fatores, assim elencados, somam-se aos argumentos
que a Comisso utiliza para dizer que pela aprendizagem da
participao ativa no funcionamento das estruturas da sociedade que o
indivduo adquire plenitude das suas dimenses sociais. (FAURE,
1972, p. 235). Percebe-se que descrever um mundo essencialmente
catico estratgico para a Comisso, de modo que se incute a
necessidade de uma educao poltica. Destaca-se que preciso
praticar a educao para a poltica, de que maneira? Formando
homens para a compreenso das estruturas do mundo onde so
chamados a viver, para a realizao de trabalhos reais da existncia, a
fim de que no caminhem como cegos num universo indecifrvel.
(FAURE, 1972, p. 234). Para qu? Como uma condio de felicidade
individual, uma maneira de influir livremente sobre o destino. (FAURE,
1972, p. 235). Construindo tal perspectiva de responsabilizao do
indivduo, na apresentao do Relatrio, Faure (1972, p. 10), aponta a
necessidade de solues para os grandes problemas suscitados pelo
desenvolvimento da educao num mundo em transformao.
Essa a concepo de mundo difundida no Relatrio Faure, um
mundo em mutao, com disparidades econmicas, intelectuais,
cvicas que
pe em causa a unidade da espcie, o seu futuro, a
identidade do homem como tal. de recear no s
o espetculo penoso de graves desigualdades, de
privaes e de sofrimentos, mas uma verdadeira
dicotomia do gnero humano que se
compartimentaria em grupos superiores e
inferiores, em patres e escravos, em superhomens e infra-homens. Resultariam daqui no s
os riscos de conflitos e de desastres [...] mas um
perigo essencial a desumanizao que atingiria
indiferentemente
os
privilegiados
e
os
sacrificados. (FAURE, 1972, p. 19).
294
A partir dessas afirmaes, a Comisso investe na construo de
uma concepo comum insistindo que se deva considerar a educao
como um domnio poltico, onde a importncia da ao poltica
particularmente decisiva. (FAURE, 1972, p. 25).
Ao apresentar a educao como redentora dos males e problemas
sociais, sinaliza-se a participao responsvel de cada indivduo na
remisso de um mundo que est em transformao. Referindo-se
implicitamente perspectiva da Teoria do Capital Humano, indivduos
mais instrudos tendem a afirmar-se como cidado e, se so em maior
nmero, a antecipar reivindicaes democrticas. (FAURE, 1972, p.
20). Atendo-se Teoria do Capital Humano, o documento destaca que,
num olhar de conjunto [sobre] a evoluo da vida educativa ao longo
do tempo, verificamos facilmente que os progressos da educao
acompanham os da economia. (FAURE, 1972, p. 21).
A orientao da Comisso, nesse sentido, que se trabalhe para
superar a contradio que surge entre os produtos da educao e as
necessidades das sociedades. (FAURE, 1972, p. 57), j que a situao
poltica, as dificuldades e as contradies internas tornam mais difcil o
acesso a uma viso global do futuro social (FAURE, 1972, p. 57),
semelhana dos manuais de autoajuda que apregoam que a soma de
aes individuais resulta nas aes globais. um discurso pelo qual se
disseminam exemplos, situaes, fragmentos de histrias que remetem a
uma viso de mundo parcelada, fragmentada, descontextualizada. Sob
esse aspecto, a indagao de Gramsci (1999, p. 93) importante:
prefervel pensar sem disto ter conscincia
crtica, de uma maneira desagregada e ocasional,
isto , participar de uma concepo de mundo
imposta mecanicamente pelo ambiente exterior,
ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos
quais todos esto automaticamente envolvidos
desde sua entrada no mundo consciente, ou
prefervel elaborar a prpria concepo do mundo
de uma maneira consciente e crtica e, portanto,
em ligao com o trabalho do prprio crebro,
escolher a prpria esfera da atividade, participar
ativamente na produo da histria do mundo, ser
o guia de si mesmo e no aceitar do exterior,
passiva e servilmente, a marca da prpria
personalidade?
295
Afeito primeira opo, o discurso ideolgico do Relatrio
operacional ao capital que, naquele momento histrico, visa impor uma
determinada viso de mundo, de sociedade, de educao, modo de
pensar, sentir e agir adequados manuteno da ordem vigente em
busca da formao de um novo tipo de educao para formar o novo
homem desse mundo amplamente descrito.
A viso difundida no Relatrio Faure de um mundo: em
transformao; em mutao; de incertezas; exploso demogrfica; em
desequilbrio global; de injustias; de autoritarismos; discriminaes
regionais; perturbaes sociais; desigualdades sociais; em crise de
autoridade; de intensas descobertas cientficas que levam ao progresso
tecnolgico, mas que, ainda assim, eleva as disparidades sociais.
(FAURE, 1972). Esses problemas, para a Comisso, mostram bem a
dualidade das funes da escola, que no tem s por fim revelar
capacidades, aperfeio-las e diplom-las, mas sobretudo desenvolver as
atitudes e a personalidade. (FAURE, 1972, p. 128). Aprender a ser,
envolve aprender a agir num mundo cujas crises esto por toda a parte.
O homem do Relatrio Faure em grande medida, o homem universal,
igual a si mesmo em qualquer poca e em qualquer lugar. Todavia, o
indivduo particular um ser eminentemente concreto [...] quanto mais
obedece s suas leis e sua vocao pessoal, melhor realiza o propsito
comum da humanidade e est em melhores condies de se comunicar
com o prximo. (FAURE, 1972, p. 242).
5.1.7 Educao para a formao de um homem de novo tipo
A Comisso insiste que se deva considerar a educao como um
domnio poltico, onde a importncia da ao poltica particularmente
decisiva (FAURE, 1972, p. 25), como visto at ento. Para que isso
seja vivel, no documento h grande nfase idia de que a educao
est hoje posta em questo, que chegou o momento de se proceder sua
renovao, que preciso repens-la no seu conjunto. (FAURE, 1972, p.
37). Essa renovao,
tornada necessria pelas disfunes da prtica
educativa, exigida pela transformao das
estruturas socioeconmicas e pela revoluo
cientfica e tecnolgica, torna-se possvel graas
tomada de conscincia dos povos, investigao
296
cientfica e ao progresso das tecnologias que
interessam educao. (FAURE, 1972, p. 176).
297
[...] promoo do esprito de inveno
tecnolgica e da criao orientada para o
desenvolvimento. Este esforo comporta, por
conseguinte,
uma
finalidade
pedaggica
importante para todos os educadores. (FAURE,
1972, p. 211, sem grifos no original).
[...] formar homens para a compreenso das
estruturas do mundo onde so chamados a viver,
para a realizao de trabalhos reais de sua
existncia, a fim de que no caminhem como
cegos no universo indecifrvel. (FAURE, 1972, p.
234, sem grifos no original).
Uma das misses da educao ajudar os homens
a ver no estrangeiro no uma abstrao, mas um
ser vivo, real, com as suas razes, as suas penas e
alegrias, a descobrir nas diferentes expresses
nacionais a comunidade humana. (FAURE, 1972,
p. 237, sem grifos no original).
298
progresso para os pases em via de desenvolvimento, segundo expressa
o Relatrio:
O que se refere escolha dos mtodos de
modernizao da educao, parece-nos que os
pases em vias de desenvolvimento deveriam
simultaneamente
utilizar
as
tecnologias
avanadas, na medida em que isso possvel, e
orientar-se muito mais para o emprego das
tecnologias intermedirias e para a aplicao de
princpios tecnolgicos susceptveis de aumentar a
eficcia e de levar um auxlio educao desses
pases sem para tanto exigir apoios tecnolgicos
ou mecnicos sofisticados e caros. (FAURE,
1972, p. 36).
299
atitude de nenhum pedagogo progressista. (FAURE, 1972, p. 32). De
uma concepo tradicional de educao, investe-se numa pedagogia
moderna que considera o indivduo, as suas capacidades, estruturas
mentais, interesses e motivaes [...] por isso personalista (FAURE,
1972, p. 194). Est em voga a ideia de que o indivduo [...] torna-se
cada vez mais um agente ativo da sua prpria educao (FAURE,
1972, p. 194, sem grifos no original). Refere-se, desse modo, s
experincias desenvolvidas no Chile, com a concepo de
conscientizao de Paulo Freire; escola ativa, do suo Ferrire; a
auto-educao, da italiana Maria Montessori; ao trabalho em
equipe, do americano John Dewey; ao mtodo ativo, do belga
Decroly; e ao movimento da escola nova, de Celestin Freinet.
(FAURE, 1972). A educao ganha, assim, carter de fator de
libertao. Ainda h referncias, pedagogia institucional cujo
instrutor procura ser indutor de transformaes (como o psiclogo
diante do seu cliente), enquanto os membros do grupo assumem a
responsabilidade das investigaes inscritas no programa de estudos e
da soluo a dar aos problemas do dia-a-dia da vida coletiva.
(FAURE, 1972, p. 196, sem grifos no original).
O poder libertador da educao (FAURE, 1972) sustenta a
afirmativa de que se vive num mundo constitudo por ameaas,
injustias, contradies, perigos. H constante reforo de que preciso
tcnicas educativas que tendam individualizao do ensino, uma
educao individual do tipo voluntrio (FAURE, 1972, p. 198) que
forme indivduos para alm da competncia tcnica e profissional, que
desenvolva a sua instrumentalizao mental e o seu poder de
comunicao, semelhante gramtica discursiva da autoajuda dos anos
de 1970, baseada no poder da mente.
A formao, nesta perspectiva, deveria migrar para uma formao
de cidados para que se possam afirmar as suas responsabilidades
cvicas e sociais e reagir s contradies e s injustias. (FAURE,
1972, p. 40). Recomendam a formao de um homem de novo tipo
capaz de compreender as conseqncias globais dos comportamentos
individuais, de conceber as prioridades e de assumir as solidariedades
que compem o destino da espcie. (FAURE, 1973, p. 32). O novo
homem demandado no Relatrio um homem em devir um homem
cujos conhecimentos e meios de ao esto a tal ponto desenvolvidos
que os limites do possvel parecem-lhe infinitamente recuados.
(FAURE, 1972, p. 238, sem grifos no original). Nessa prescrio de um
300
novo homem, aprende, conhece e compreende o mundo, [...] dispe
ou sabe poder dispor de tcnicas para agir sobre o mundo, com
inteligncia. (FAURE, 1972, p. 238, sem grifos no original).
Essa proposta exige que o novo homem esteja em estado de
estabelecer um equilbrio entre suas capacidades desenvolvidas de
compreenso e poder e sua contrapartida potencial de ordem
temperamental afetiva e moral (FAURE, 1972, p. 44). Todavia, no
basta reunir o Homo sapiens e o Homo faber, ainda necessrio que ele
se sinta em harmonia com os outros e consigo prprio: Homo concors.
(FAURE, 1972, p. 40).
Pela primeira vez na histria, a educao empenha-se
conscientemente em preparar os homens para tipos de sociedades que
no existem ainda. (FAURE, 1972, p. 56, sem grifos no original). Para
cumprir essa tarefa, um dos caminhos apontados no documento, alm da
renovao da educao, da modernizao dos mtodos de ensino, est a
apropriao do mundo por meio de experincias via inter-relao escola
e mundo do trabalho. Para que isso seja vivel, preciso atentar para as
tarefas atribudas educao para os anos que seguem. De acordo com o
Relatrio, dentre as tarefas da educao ps anos 1970, esto: educar
para a democracia; educao permanente; formar um novo homem;
formao cvica; renovao dos contedos e das estruturas da educao;
a democratizao da educao; promoo da individualizao do ensino;
a modernizao de atividades educativas; desenvolvimento de
qualidades afetivas; a constituio de uma cidade educativa. (FAURE,
1972).
A Comisso atribui aos sistemas educativos o objetivo de realizar
a expanso integral do homem em toda a sua riqueza e na
complexidade das suas expresses e compromissos: indivduo, membro
de uma famlia e de uma coletividade, cidado e produtor, inventor de
tcnicas e criador de sonhos. (FAURE, 1972, p. 16, sem grifos no
original), que se articularia ao denominado carter global e permanente
da educao (FAURE, 1972) para formar um novo homem, ajudandoo a desenvolver-se em todas as suas dimenses: tanto como agente de
desenvolvimento, agente de transformao e autor da sua prpria
realizao o que vem contribuir [...] para o ideal do homem
completo. (FAURE, 1972, p. 243, sem grifos no original).
301
5.1.8 Atitudes e valores: demandas do mundo do trabalho ps
anos 1970
O estabelecimento de laos mais estreitos entre escola e o
ambiente uma resposta s crticas que a Comisso desenvolve a
respeito da educao tradicional. Da busca-se construir uma educao
concebida como um vasto movimento de massas, onde cada indivduo
instrudo tem o dever cvico de ensinar queles que no tiveram a sua
sorte. (FAURE, 1972, p. 65, sem grifos no original).
No decurso dos anos de 1970, afirmando a necessidade de
proceder articulao de objetivos econmicos, sociais e polticas
educativas a Comisso enfatiza que preciso uma renovao das
estruturas e dos contedos da educao, a fim de que esta possa
concorrer mais ou menos diretamente para as transformaes sociais.
(FAURE, 1972, p. 118). Para isso, uma atitude dinmica [...]
desejamos ver reforada. (FAURE, 1972, p. 118, sem grifos no
original).
Os programas de educao devem viabilizar uma educao
social, o que deve dar ao homem conscincia do seu lugar na
sociedade, acima do seu papel de produtor e consumidor; fazer-lhe
compreender que ele pode e deve participar democraticamente da vida
da coletividade e que lhe possvel, assim, tornar a sociedade melhor ou
pior do que j . (FAURE, 1972, p. 124). Isso implicaria rever o ensino
cientfico tradicional despreocupado em ligar os conhecimentos
adquiridos na aula e a prtica cientfica real, onde se verificam as
hipteses em vez de as expor, onde se descobrem as leis em vez de as
aprender (FAURE, 1972, p. 124).
O que a educao tradicional no evidencia o esprito criador,
de intuio, de imaginao, de entusiasmo e de dvida que comporta
a atividade cientfica. (FAURE, 1972, p. 124, sem grifos no original).
Assim entendido, falta educao estimular a faculdade de observar,
de colecionar, de medir, de classificar os fatos e deles tirar concluses
no deveria manter-se como apangio s das coisas cientficas. Em
questo est a necessidade do ensino da tecnologia permitir que cada
um compreendesse os meios pelos quais pode modificar o meio que o
rodeia. (FAURE, 1972, p. 126, sem grifo no original). Para que isso
seja possvel, a experincia artstica associada ao estudo da tecnologia
constitui uma das vias que levam percepo do mundo na sua eterna
renovao. (FAURE, 1972, p. 126).
302
Se a compreenso do mundo um dos fins maiores da
educao (FAURE, 1972, p. 123), necessrio desenvolver em cada
indivduo o poder da imaginao essa imaginao que uma das
grandes foras da inveno cientfica, assim como a origem da criao
cientfica. (FAURE, 1972, p. 127). Alm da imaginao, o interesse
pelo belo, a capacidade de o entender e de o integrar uma das
exigncias fundamentais da pessoa. (FAURE, 1972, p. 127).
A nfase em novos atributos de formao do indivduo,
preparando-o para uma nova sociedade, implica ter presente que a
noo de preparao profissional modifica-se. (FAURE, 1972, p. 127).
Essa afirmativa caracteriza claramente o discurso instituindo-se como
uma verdade, materializando uma imagem positiva do ensino da
tecnologia. Nesse sentido, do ponto de vista da Comisso:
Acelerando-se o ritmo do progresso tcnico,
muitos indivduos sero levados a exercer vrias
profisses durante a sua vida, ou a mudar
frequentemente de lugar de trabalho. Pode-se
observar, que em certos pases, metade da
populao assalariada exerce atividades que no
existem ainda no princpio do sculo. (FAURE,
1972, p. 127).
303
intuio; entusiasmo; interesse pelo belo; esprito criador; esprito de
competio; esprito de inveno tecnolgica; esprito da democracia;
cooperao.
No Relatrio Faure est pulverizado um rol de atributos
necessrios formao de um novo homem. Esse boom de atributos
sugere que o novo homem desenvolver seu prprio potencial e colocar
em ao um aprender a ser que resultar em benefcios a uma
coletividade a partir de atitudes individuais. Ao lado do aprender a ser, o
Relatrio pregou uma nova sociabilidade e criou condies para a
formao de um novo tipo de trabalhador orientado pela
individualidade, adaptao e busca de uma educao que favorea
melhorias e reformas.
5.1.9 Professor: motivador e controlador da aquisio do
saber
H, no Relatrio Faure, um forte apelo mudana, muito mais
associada ideia de melhoria e reformas como j salientado, numa
tentativa de preparar um novo homem para trabalhar e viver num mundo
em transformao. Anuncia que ao constituir a Comisso Internacional
para o Desenvolvimento da Educao, mostra-se assim integrada no
Calendrio poltico contemporneo (FAURE, 1972, p.17) e deve
formar um tipo de homem apto a contribuir para o desenvolvimento
da sociedade, a tomar uma parte ativa na vida, quer dizer,
validamente preparado para o trabalho (FAURE, 1972, p. 33, sem
grifos no original). Reforam a importncia da extenso de um setor
no escolar da educao considerando o corpo docente [...] um
grupo socioprofissional muito importante, ao ponto mesmo de
representar em numerosos pases em vias de desenvolvimento a
categoria mais vasta de assalariados. (FAURE, 1972, p. 62).
Para formar o homem (con)formado, o Relatrio compreende o
professor como um conselheiro, um interlocutor; mais o que ajuda a
procurar em comum os argumentos contraditrios do que aquele que
tem todas as verdades preparadas. (FAURE, 1972, p. 141, sem grifos
no original). Compete a esse profissional planejar aulas em que sejam
consagrados mais tempo e energia s atividades produtivas e criadoras:
interao, discusso, animao, compreenso, encorajamento.
(FAURE, 1972, p. 141, sem grifos no original). Educar pressupe, nessa
perspectiva, uma evoluo nas relaes entre educandos e educadores,
304
sem a qual no pode haver a autntica democratizao da educao.
(FAURE, 1972, p. 141).
Vislumbrando o progresso da educao num mundo em que se
pregam os poderes do homem sobre o ambiente, dominando os
avanos tecnolgicos, ressalta-se no Relatrio, que os educadores tm
uma tarefa apaixonante: a procura dum equilbrio harmonioso entre
formao racional e a libertao da sensibilidade. (FAURE, 1972, p.
142, sem grifos no original). Para viabilizar essa educao,
as escolas e as universidades [deveriam ser]
completadas, seguidas e por vezes substitudas por
uma quantidade de atividades extra-escolares ou
paraescolares que fazem apelo a todas as espcies
de meios recentemente aparecidos ou durante
muito tempo descuidados pelo ensino tradicional.
(FAURE, 1972, p. 62).
305
participao ativa no funcionamento das estruturas da sociedade e,
quando preciso, por um compromisso pessoal nas lutas que visam
reform-las que um indivduo adquire a plenitude das suas dimenses
sociais. (FAURE, 1972, p. 235).
5.1.10 A fora do exemplo: aprendizagem pela experincia
Sem dvida, uma das questes centrais expostas no Relatrio est
associada ideia de renovao. Reformar o sistema educativo a
alternativa que daria a dinmica necessria educao com vistas a
formar um novo homem para os desafios que se colocavam a partir dos
anos de 1970. Na viso da Comisso, a capacidade de realizar reformas
parciais , num sistema educativo, sinal de vitalidade e a garantia da sua
capacidade em se submeter a transformaes mais profundas. (FAURE,
1972, p. 270).
interessante observar que o discurso da reforma disseminado ao
longo do documento afirma o valor da experincia. Segundo a
Comisso, a experincia mostra que onde as reformas internas se
revelam ineficazes ou conduzem a um grande desperdcio de energias e
talentos tais fatos dependem geralmente de erro de coordenao e da
discordncia das instrues vindas de cima e das iniciativas vindas de
baixo. (FAURE, 1972, p. 270).
Contraditoriamente, ao mesmo tempo que se prega o respeito
diversidade, na prtica, difunde-se a implementao de modelos, ou
seja, o que deu certo numa determinada regio, tambm dar em outra
independentemente das especificidades. O fracasso, nesse caso,
atribudo no ao padro imposto, mas sim
imaginao criadora que fica isolada, a inrcia
que trava a propagao das idias e das
experincias. Alm disso, as autoridades
educativas em todos os pases deveriam cuidar e
criar mecanismos especialmente encarregados de
promover a inovao, de divulgar com sucesso as
reformas experimentadas e de favorecer a sua
adoo. (FAURE, 1972, p. 270).
306
a noo de um sistema de educao global e
permanente e a idia da cidade educativa, no
como um sonho futuro, mas como dado objetivo e
projeto coletivo do nosso tempo [...] convm agir
simultaneamente em duas direes: reforma
interna e melhoria constante dos sistemas
educativos existentes; procura de formas
inovadoras, de alternativas e de recursos novos
(FAURE, 1972, p. 265).
307
As assertivas apresentadas no documento desqualificam a
educao existente para justificar a necessidade de reformas. Propem
organizar de uma maneira flexvel a educao desde a idade pr-escolar,
associando e responsabilizando a famlia e a comunidade local. Citam,
por exemplo, a educao pr-escolar da China que est muito
desenvolvida, do ponto de vista da Comisso e da, ento, U.R.S.S,
destacando que
mais de nove milhes e meio de crianas
freqentam creches e jardins. [...] A educao
dispensada nestas diferentes instituies visa
favorecer o harmonioso desenvolvimento fsico,
intelectual, moral e esttico das crianas. Inspirase em princpios uniformes, baseados em
experincias pedaggicas e nos resultados de
pesquisas cientficas. (FAURE, 1972, p. 285).
308
didtico-pedaggicos desempenhando funes ordenadoras na
sociedade. Podem ser vistos como discursos portadores de significados
que encontram acolhida em diferentes grupos sociais pela facilidade de
transposio, repercutindo como elementos ordenadores que ajudam a
disseminar modos de pensar, sentir e agir. Nesse prisma, o Relatrio
Faure reproduz uma interpretao da crise educativa dos anos de
1960/70 alargando os horizontes sobre a educao permanente e a
cidade educativa, assinalando o quo relevante a ligao entre
educao e progresso social. Um dos pilares do Relatrio formao do
homem completo (FAURE, 1972), por meio de uma educao
permanente num mundo em constante evoluo, no sentido de aprender
a ser. Estes pressupostos foram reforados duas dcadas depois, no
Relatrio Delors (1996), ampliando-se os pilares educacionais para
incorporar o aprender a conhecer; aprender a fazer, aprender a viver
juntos, mantendo-se o aprender a ser. (DELORS, 1996).
5.2 ANLISE DO RELATRIO DELORS
Na dcada de 1990 uma diversidade de documentos educacionais
foi publicada com proposies e recomendaes para uma formao de
um tipo de homem desejvel. Em linhas gerais, tais proposies e
recomendaes instituem a necessidade de se investir num tipo de
formao do trabalhador capaz de habilit-lo a lidar com as novas
formas de organizao do trabalho que se definem pela integrao e
flexibilidade dos processos produtivos. Para dotar esse homem com
caractersticas adequadas para um mundo do trabalho em transformao,
uma profuso de polticas educacionais visa dar consecuo a formao
desse novo tipo de homem.
Tendo isso presente, analisa-se a seguir o Relatrio Delors (1996)
Educao: um tesouro a descobrir, documento elaborado pela Comisso
Internacional sobre Educao para o sculo XXI da UNESCO que
disseminou as diretrizes e metas que nortearam as reformas
educacionais da ltima dcada.
Essa Comisso sobre a Educao, presidida por Jacques Delors,
desenvolveu uma argumentao pautada em circunstncias e problemas
sociais apontando o valor da mudana individual e coletiva para sua
soluo. A nfase do Relatrio recai sobre a necessidade de aprender a
adaptar-se mudana. Ver-se- que esta constitui, semelhana do
discurso de autoajuda, um dos elementos centrais do Relatrio.
309
Tomando como referncia o conceito de adaptao, argumenta-se em
defesa de uma educao que precisa ser modernizada. Insiste-se na
importncia desta como um trunfo indispensvel humanidade
(DELORS, 1996, p. 11), estando baseada num aprendizado til, j que a
[...] educao deve transmitir, de fato, de forma macia e eficaz, cada
vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados civilizao
cognitiva90, pois so as bases das competncias do futuro. (DELORS,
1996, p. 89). Nesse sentido, a educao ganha carter de uma via
privilegiada de construo da prpria pessoa, das relaes entre
indivduos, grupos e naes. (DELORS, 1996, p. 12).
A Comisso refora que educao cabe fornecer, de algum
modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao
mesmo tempo, a bssola que permita navegar atravs dele. (DELORS,
1996, p. 89). Esse um discurso de forte apelo ao papel messinico da
educao em que se articula uma diversidade de enunciados e
orientaes para que professores, alunos, a escola, se mobilizem, tomem
decises, considerem que precisam intervir num mundo multirriscos.
(DELORS, 1996). Para ganhar legitimidade, semelhana do Relatrio
Faure, o Relatrio Delors cita um conjunto de experincias exitosas para
afirmar a educao como elemento central de mudana, de soluo para
os males que afligem a humanidade, o que implica a formao de uma
vontade individual para a mudana.
Apresentam-se, a seguir, os membros que compem a referida
Comisso.
5.2.1 Jacques Delors e os membros da Comisso
Em 1991, a Conferncia Geral da UNESCO props ao diretorgeral convocar uma comisso internacional encarregada de refletir
sobre educar e aprender para o sculo XXI (DELORS, 1996, p. 268).
Para tal incumbncia, Jacques Delors foi convidado a presidir uma
comisso que reuniu catorze outras personalidades de todas as regies
do mundo, vindas de horizontes culturais e profissionais diversos
(DELORS, 1996, p. 268). Desse modo, no incio de 1993, foi
90
Uma viso holstica da educao est presente no documento, segundo o qual, as novas
exigncias do mercado de trabalho estariam colocando em evidncia a necessidade de
qualidades subjetivas, de forma que o desenvolvimento dos servios exige, pois, cultivar
qualidades humanas que as formaes tradicionais no transmitem necessariamente e que
correspondem capacidade de estabelecer relaes estveis e eficazes entre as pessoas.
(DELORS, 1996, p. 95).
310
oficialmente criada a Comisso Internacional sobre a Educao para o
sculo XXI, financiada pela UNESCO.
No que concerne ao presidente - Jacques Delors, francs, nasceu
em Paris em 1925 e presidiu a Comisso Europia durante os anos de
1985 a 1995. Dentre algumas de suas aes, destaca-se a aprovao do
Ato nico Europeu, em 1986, a partir do qual, em 1993, foi criado o
Mercado nico Europeu. Membro do partido socialista, em 1974, e do
seu comit diretor, em 1979, foi eleito parlamentar europeu em 1979 e
presidiu a Comisso Econmica e Monetria durante o primeiro
semestre de 1981. De maio de 1981 a julho de 1984, Jacques Delors foi
Ministro da Economia e das Finanas e tambm eleito Presidente da
Cmara de Clichy, de 1983 a 198491.
Os trabalhos da Comisso foram apresentados em sua forma final
em 1996, na Frana e no Brasil, a traduo do Relatrio veio a pblico
em 1998. O quadro abaixo apresenta cada uma das personalidades, pas
de origem e breve sntese de formao e atuao profissional:
91
311
Membros da
Comisso
Inam Al Mufti
Isao Amagi
Roberto Carneiro
Pas de
origem
Jordnia
Japo
Portugal
Fay Chung
Zimbbue
Bronislaw
Geremek
Polnia
Willian Gohram
Estados
Unidos
Aleksandra
Kornhauser
Eslovnia
Michael Manley
Jamaica
Marisela Padrn
Quero
Venezuela
Referncia profissional
Especialista em condio feminina,
conselheira de Sua Majestade a
rainha Noor al-Hussein; antiga
ministra
do
Desenvolvimento
Social.
Especialista
em
educao,
conselheiro especial do ministro
da Educao, Cincia e Cultura e
presidente da Fundao japonesa
para o Intercmbio Educativo
BABA
Presidente da TVI (Televiso
Independente), antigo ministro da
Educao.
Antiga ministra para os Assuntos
Internos, Criao de Emprego e
Cooperativas, antiga ministra da
Educao; diretora do Education
Cluster (UNICEF, Nova Iorque).
Historiador, deputado Dieta
Polonesa, antigo professor no
Colgio de Frana.
Especialista em poltica pblica,
presidente do Urban Institute de
Washington, D.C desde 1968.
Diretora do Centro Internacional de
Produtos Qumicos de Liubliana,
especialista em relaes entre
desenvolvimento
industrial
e
proteo do ambiente.
Sindicalista,
professor
universitrio e escritor, Primeiro
Ministro de 1972 a 1980 e de 1989
a 1992.
Sociloga, antiga diretora de
pesquisa da Fundao Rmulo
312
Marie-Anglique
Savan
Senegal
Karan Singh
ndia
Rodolfo
Stavenhagen
Mxico
Myong
Suhr
Won
Zhou Nanzhao
Coreia do
Sul
China
313
sobre os novos imperativos que da derivam para a educao.
(DELORS, 1996, p. 274).
As demandas necessrias formao de um novo tipo de homem
so traduzidas em metas e objetivos que sero difundidas pelos
organismos multilaterais que visam mudanas na educao para o
mundo. Recorda-se que, na Conferncia Mundial da Educao para
Todos, em Jomtein, Tailndia, em 1990, organismos internacionais
como Banco Mundial, PNUD, UNESCO j vinham discutindo que a
educao deveria contribuir para conquistar um mundo mais seguro,
mais sadio, mais prspero e ambientalmente mais puro, e que, ao
mesmo tempo, favorecesse o progresso social, econmico e cultural, a
tolerncia e a cooperao internacional. (UNESCO, 1990, p. 3). Na
ocasio, concentrava-se ateno na aprendizagem, considerando que
esta representaria a
traduo das oportunidades ampliadas de
educao em desenvolvimento efetivo - para o
indivduo ou para a sociedade - depender, em
ltima instncia, de, em razo dessas mesmas
oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou
seja,
apreenderem
conhecimentos
teis,
habilidades de raciocnio, aptides e valores.
(UNESCO, 1990, p. 5).
314
propostas, que histrias so contadas, que metforas so apresentadas,
que palavras, conceitos e concepes so reforados para direcionar a
formao do indivduo desejvel para o sculo XXI.
Com isso, pode-se interpretar o discurso no documento para a
UNESCO, como uma prtica discursiva que vai se formando como
verdade, que confere um jogo de poder social no mbito da prpria
linguagem materializando uma prtica discursiva prescritiva. Lembra-se
que caracterstico do discurso ideolgico fazer
coincidir com as coisas, anular as diferena entre
o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
lgica da identificao que unifique o
pensamento, linguagem e realidade para, atravs
da lgica, obter a identificao de todos os
sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto , a imagem da classe
dominante. (CHAU, 2007, p. 15).
315
Marcuschi (1988, p. 38), leitura e compreenso de um texto falado ou
escrito como ato individual de uma prtica social.
O Relatrio Delors est organizado em trs partes, Horizontes,
Princpios e Orientaes. A primeira parte, Horizontes, contextualiza o
leitor acerca da importncia de se articular o local e o global, a
necessidade de conhecer os problemas que afetam o mundo; alm da
necessidade de compreender o mundo como condio para compreender
o outro. Essa primeira parte composta por trs captulos que visam em
essncia, anunciar uma resposta aos problemas sociais apontando o
valor da participao individual somada participao da comunidade
local com vistas a ampliar e aperfeioar o acesso educao.
(DELORS, 1996, p. 26). A segunda parte, Princpio, composta por
dois captulos onde so apresentados os quatro pilares da educao e seu
papel como elemento definidor do progresso da sociedade. Na terceira
parte, Orientaes, esto presentes recomendaes para a educao do
nvel bsico ao superior. Enfatiza-se o valor da educao indicando as
condies propcias a um ensino eficaz, destacando o papel dos
professores na formao do aluno para o sculo XXI, a importncia da
escola articulada s aes da comunidade, bem como a vinculao entre
educao e mercado de trabalho. Aps os nove captulos, o Relatrio
Delors apresenta um Eplogo baseado em experincias descritas por
onze membros da Comisso de Educao.
Na construo de cada um dos captulos do Delors, utilizada
uma interessante estratgia discursiva. Depois de apresentar a ideia
central, esta seguida de uma espcie de sntese ou resumo com carter
prescritivo que deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas
educativas, tanto em nvel da elaborao de programas como definio
de novas polticas pedaggicas. (DELORS, 1996, p. 102). Ao final de
cada captulo h um importante elemento da estrutura textual do
documento Delors a ser considerado: uma sntese de cada captulo
intitulada Pistas ou recomendaes. Muito alm da funo de sntese,
pode-se analisar os referidos espaos como uma forma facilitadora de
fornecer ao leitor um simples diagnstico e ajud-lo a resolver as
situaes problemticas apontadas no Relatrio.
A Comisso assinala que houve grande esforo na elaborao de
um quadro prospectivo com alcance em qualquer parte do mundo e, por
isso, as pistas e recomendaes so orientaes vlidas, tanto em nvel
nacional como mundial. (DELORS, 1996, p. 12). Apesar de tal
afirmao, no documento mostram-se exemplos de experincias
316
exitosas, particulares, tomadas como universais. oportuno lembrar o
alerta de que as idias aparecem, ento, como representao do real, a
sua verdade, e como normas para a ao, isto , como conduta [...] ou
conforme a certos fins que seriam os mesmos para todos.. (CHAU,
2007, p. 39).
A Comisso deparou-se com vrias dificuldades, dentre elas, o
desafio de lidar com uma extrema diversidade de situaes que h no
mundo, de concepes de educao e suas modalidades de
organizao. Outra dificuldade, segundo relato descrito no Apndice do
documento, corolrio das apresentadas, que a Comisso s pde,
evidentemente, assimilar uma pequena parte da quantidade enorme de
informaes existentes. Da a necessidade imperiosa de optar e
determinar o que era essencial para o futuro (DELORS, 1996, p. 269).
Esse discurso adquire um carter humanista medida que manifesta
respeito ao leitor, solicitando deste que entenda a seleo de alguns
dentre muitos exemplos edificantes. Sabe-se, contudo, que as escolhas
dos exemplos no so frutos de escolhas fortuitas.
A arquitetura do documento inclui uma srie de quadros e tabelas
com dados estatsticos cuja fonte a prpria UNESCO. Outra evidncia
a ser considerada, so os pequenos textos independentes que aparecem
dentro de boxes sombreados, descrevendo uma infinidade de
experincias exitosas que visam legitimar, exemplificar os argumentos
da Comisso para o sucesso das reformas educativas. interessante
observar como essas experincias so evocadas de forma
descontextualizada, apresentadas, em geral, desarticuladas do eixo
principal da discusso, como um hipertexto. As histrias so contadas
de forma generalizada, desvinculadas do contexto nacional, formaes
sociais, determinantes econmicos e polticos, havendo, desse modo,
uma descontinuidade dos textos que compem o documento.
5.2.3 A fora dos verbos
Os verbos priorizados no Relatrio Delors sustentam a
necessidade de encaminhar para os pases recomendaes a partir de um
diagnstico do mundo em risco, de pobreza, de excluso social, de
opresses, incompreenses. (DELORS, 1996). Nesse sentido, deve-se
prestar ateno nos verbos utilizados, uma vez que estes induzem
ao, conforme o que segue:
317
Devemos cultivar, como utopia orientadora, o
propsito de encaminhar o mundo para uma maior
compreenso mtua, mais no sentido de
responsabilidade e mais solidariedade, na
aceitao das nossas diferenas espirituais e
culturais [...]. Os sistemas educativos devem dar
resposta aos mltiplos desafios das sociedades da
informao, na perspectiva de um enriquecimento
contnuo de saberes e do exerccio de uma
cidadania adaptada s exigncias do nosso tempo.
Estabelecer novas relaes entre a poltica
educativa e poltica de desenvolvimento a fim de
reforar as bases do saber e do saber-fazer nos
pases em causa: estimular a iniciativa, o trabalho
em equipe, as sinergias realistas, tendo em conta
os recursos locais, o auto-emprego e o esprito
empreendedor. (DELORS, 1996, p. 50-68, sem
grifos no original).
318
Os membros da Comisso transpem experincias, de forma que
estas so transferidas de uma realidade para outra sem a devida
contextualizao. Nas experincias exitosas contadas pelos convidados
no se mencionam insucessos. Os problemas, as adequaes so
escamoteadas de maneira que a leitura dos textos sugere que basta
querer para fazer ou implantar.
Contrariamente ideia de valorizar a diversidade das situaes,
indivduos, pases, as caractersticas culturais, nesse momento, so
desconsideradas e o mundo aparece como um todo homogneo. Tentam
generalizar a partir de uma experincia singular, universalizar uma
histria de sucesso. Se um pas conseguiu, implantou, outros podero
faz-lo se quiserem. Essa mesma prtica est presente no discurso de
autoajuda num exerccio constante de transposio de situaes de
natureza diferentes, singulares, por parte dos leitores. Mais do que
recomendar, objetiva-se direcionar, influenciar a produo de polticas
para reformas educacionais diante de um mundo em crise. Desta forma,
o relatrio prescreve. Tais prescries so camufladas por meio de
verbos, dissimulando os efeitos de sentido que aparecem sob a forma de
um discurso prescritivo que pretende no ser autoritrio, mas fruto de
um diagnstico que: recomenda, pensa, sonha, adverte,
observa, considera.
A Comisso no poupa argumentos assinalando que esforou-se
por elaborar os seus raciocnios num quadro prospectivo dominado pela
globalizao por selecionar as questes importantes e que se colocam
em qualquer parte do mundo, e por traar algumas orientaes vlidas,
tanto em nvel nacional como mundial. (DELORS, 1996, p. 12).
Tambm recomenda [...] que todas as potencialidades contidas nas
novas tecnologias da informao e da comunicao sejam postas a
servio da educao e da formao. (DELORS, 1996, p. 66, sem grifo
no original), uma vez que considera que o aparecimento de sociedades
de informao92 corresponde a um duplo desafio para a democracia e
para a educao, e que estes dois aspectos esto estreitamente ligados.
(DELORS, 1996, p. 66, sem grifo no original). Trata-se de valorizar os
sistemas educativos porque cumprem duplo papel, o de fornecer os
indispensveis modos de socializao, alm de conferir, igualmente,
92
Ver Bell (1973, p. 396) em sua publicao O advento da sociedade ps-industrial. Vale
frisar, que para esse autor, conhecimento e tcnica se constituem em capital humano, o que
qualifica o mrito dos indivduos na sociedade ps-industrial, de modo que a habilidade
tcnica passa a constituir a base e a educao o modo de acesso ao poder.
319
as bases de uma cidadania adaptada s sociedades de informao.
(DELORS, 1996, p. 66).
Pela leitura do Relatrio possvel apreender uma concepo de
homem e de mundo para o sculo XXI remete a afirmao de Gramsci
(2004, p. 13) de que tda linguagem contm os elementos de uma
concepo de mundo e de uma cultura. No documento analisado isto
est bem demarcado:
[...] os membros da Comisso compreenderam
que seria indispensvel, para enfrentar os desafios
do prximo sculo, assinalar novos objetivos
educao e, portanto, mudar a idia que se tem da
sua utilidade. Uma nova concepo ampliada de
educao devia fazer com que todos pudessem
descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo revelar o tesouro escondido em cada um
de ns. Isto supe que [...] se passe a consider-la
[a educao] em toda a sua plenitude: realizao
da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser.
(DELORS, 1996, p. 90).
320
que precisam ser desenvolvidos de forma que o esprito da
participao se irradie93 nos educadores, nas instituies engajadas no
intuito de minimizar o insucesso escolar. O sistema educacional,
supostamente descentralizado, uma maneira de operar a transferncia
de responsabilidade de construo dos valores necessrios ao mundo em
transformao. Nesse processo, atribui-se aos indivduo a
responsabilidade por mobilizao eficiente e eficaz.
Desse modo, a Comisso pensa [...] que no seio dos sistemas
educativos que se forjam as competncias e aptides que faro com que
cada um possa continuar e aprender. (DELORS, 1996, p. 121). Com
vistas a preparar esse indivduo, considerado agente de mudana,
propem-se valores como diversidade, respeito s diferenas, tolerncia,
esprito cvico, necessidade de aprender a viver junto94. Para sublinhar a
necessidade de aprender e implementar novos posicionamentos que
englobem as novas competncias e aptides, o documento farto na
apresentao de situaes que mostram como a participao das
comunidades, de aes diversificadas por estas implementadas, so mais
eficazes do que aes de interveno realizadas pelo Estado, sendo que
essa revelou-se uma soluo mais eficaz do que as aes vindas de
cima [Estado], visando impor o progresso. (DELORS, 1996, p. 132,
sem grifos no original). De acordo com essa viso, no se trata apenas
da aquisio do esprito democrtico. Trata-se, fundamentalmente, de
ajudar o aluno a entrar na vida com capacidade para interpretar os fatos
mais importantes relacionados quer com o seu destino pessoal, quer com
o destino coletivo. (DELORS, 1996, p. 60).
O Relatrio Delors difunde uma concepo de mundo na qual se
impe um conjunto de elementos, ideias e valores apresentados sob a
forma de exemplos e experincias que mostram ao, mobilizao,
requerendo a necessidade de formar agentes econmicos aptos a
93
Essa mesma perspectiva - de que as aes deveriam contaminar outros indivduos - estava
muito presente na autoajuda do sculo XIX, reflorescendo no sculo XX, indicando que a
lgica ainda a mesma para o sculo XXI.
94
Aqui vale mencionar que a prerrogativa do Relatrio Delors sobre o aprender a viver juntos
adquire uma dimenso maior quando se consideram que esse um discurso que visa criar
valores comuns, essenciais para garantir a adeso s orientaes prescritas em metas e
objetivos ao longo do documento. Assim, tecida a ideia de cooperao internacional, cuja
efetivao depende do cumprimento da exigncia de aprender a viver juntos nesta aldeia
global. (DELORS, 2001).
321
utilizar as novas tecnologias e que revelem um comportamento
inovador. (DELORS, 1996, p. 71, sem grifos no original).
5.2.4 Metforas e fbulas
A metfora um elemento lingstico, merece nfase no Relatrio
Delors. As construes e formulaes utilizadas tentam induzir ao.
No Prefcio, h a ressalva de que a educao no um abre-te ssamo
(DELORS, 1996, p. 11), visto que esta no seria um remdio
milagroso, mas sim uma via que conduz a um desenvolvimento
humano que faria recuar a pobreza, a excluso social, as
incompreenses, as opresses, as guerras. So tantos os problemas
sociais de ampla complexidade remediados pela educao que a
afirmativa de que a educao no um abre-te ssamo mais confunde
do que esclarece. Essa prtica discursiva baseada na divergncia visa
impulsionar o indivduo a romper a inrcia encarando a mudana da
realidade como uma tarefa que tambm sua. Apesar da aparncia
antagnica do discurso, a manuteno das divergncias na formao
discursiva pode ser entendida como um dos elementos na busca de
adeso aos preceitos desse discurso.
Trabalhando habilmente com as palavras, a Comisso utiliza o
termo imigrao como uma real metfora da interdependncia
planetria (DELORS, 1996, p. 41) em referncia ao deslocamento da
mo-de-obra como forma de medir a abertura de uma sociedade
moderna em relao ao que lhe estrangeiro. (DELORS, 1996, p.
42). Outra metfora associada a essa ideia a da fuga de crebros,
indicando que os pases industrializados tiram proveito das aptides dos
imigrados. Em destaque, o exemplo do Japo e da Austrlia, como
pases que se esforam para atrair imigrantes altamente
especializados. (DELORS, 1996, p. 73). Tal metfora reforada num
dos box intitulado A fuga de crebros para os pases ricos como
forma de incumbir os pases em desenvolvimento a dotar sistemas de
ensino adaptados s suas necessidades reais e melhorar a gesto da sua
economia. Mas, para isso, tero de ter mais amplo acesso aos mercados
internacionais. (DELORS, 1996, p. 73). Reconhecendo o papel
cognitivo da metfora, numa perspectiva aristotlica, em que esta no
representa um artifcio vazio, mas, sobretudo, propicia aprendizagem,
sinaliza no discurso do documento que os pases em desenvolvimento
devam encontrar sadas, estratgias para acessar os mercados
internacionais.
322
Nessa viso, as metforas mapa e bssola so utilizadas como
elementos de reforo educao organizada em torno de quatro
aprendizagens fundamentais, que ao longo de toda a vida, sero de
algum modo, para cada indivduo, os pilares do conhecimento.
(DELORS, 1996, p. 90). Os excessos de uso da locuo adverbial de
algum modo chamam a ateno, deixando evasivas.
Valendo-se de fbulas, a Comisso justifica que para a escolha do
ttulo do Relatrio Um tesouro a descobrir recorreu-se a La Fontaine,
com a fbula O lavrador e seus filhos. uma tentativa de fazer assimilar
por analogia. Simplifica e reduz os fatos sociais ao contingente. A
fbula parte de situaes simples, gerando propriedades que pressupem
fcil transposio para situaes sociais mais complexas. um recurso
de linguagem que potencializa modos de ao, modos de ver e agir no
mundo. Como diz Delors ao prefaciar o relatrio (1996, p. 32):
Atraioando um pouco o poeta, que pretendia
fazer o elogio ao trabalho, podemos pr na sua
boca estas palavras:
Mas ao morrer o sbio pai
Fez-lhes esta confisso:
- O Tesouro est na educao.
323
maneira como se compreende o mundo social e educacional e a posio
que os indivduos ocupam nele.
5.2.5 Concepo de mundo
Na acepo da Comisso Internacional sobre a Educao, o
mundo precisa de mudanas. Este descrito, nos anos de 1990, como
um mundo complexo, inseguro, e sem dvida mais perigoso.
(DELORS, 1996, p. 44). Apesar da afirmativa mais perigoso, no h
explicao sobre o porqu de ser mais perigoso. Nessas circunstncias,
h muitos problemas a resolver [...] [h] tantas desgraas causadas pela
guerra, pela criminalidade e pelo subdesenvolvimento. (DELORS,
1996, p. 44), tratadas no Relatrio como fenmenos naturais, colocando
a iminncia dos riscos como algo que no se possa interferir, como algo
externo, assim como os fenmenos da natureza.
O Relatrio sugere ainda que h problemas entre as naes,
etnias, preconceitos religiosos, guerras entre outros exemplos, sendo
utilizados para reforar a ideia de que se est vivendo em um mundo em
multirriscos. Termos como incerteza passam a ser recorrentes para dar
fora e justificar a situao de desequilbrio, desigualdades, degradao
que precisa de ateno dos indivduos e dos tomadores de decises
polticas. (DELORS, 1996, p. 46).
Dominar o sentimento de incerteza, compreender a complexidade
dos fenmenos mundiais, exige que se aprenda a relativizar os fatos e a
revelar o sentido crtico perante o fluxo de informaes (DELORS,
1996, p. 47). O relatrio no aponta aes concretas, mas enfatiza
sobremaneira, a necessidade de preparar cada indivduo para
compreender a si mesmo e ao outro, atravs de um melhor
conhecimento do mundo (DELORS, 1996, p. 47).
H inmeras formulaes discursivas que apontam a importncia
do respeito diversidade cultural. Mas contrariamente ao que
apregoado, h meno a uma problemtica expressa na multiplicidade
de lnguas. Existem mais de seis mil lnguas no mundo, o que
apresentado como um empecilho, por ser mais difcil encontrar
solues que se apliquem em todas as circunstncias. (DELORS, 1996,
p. 43). O discurso ressalta a importncia de perceber a diversidade como
um elemento a ser valorizado. Ao mesmo tempo, uma imagem
homognea e harmoniosa do mundo, sendo ento possvel, resolver os
problemas de diferentes naturezas, de forma idntica.
324
No Relatrio, o mundo descrito como aquele que desencadeia
mal-estar, incerteza, causa medos. Insiste-se em falar de
desequilbrios, destacam-se o medo de catstrofes, o sentimento de
vulnerabilidade perante fenmenos como o desemprego, devido
alterao das estruturas laborais (DELORS, 1996, p. 46), com o
objetivo de estimular o indivduo a conseguir ultrapassar tenses de
sentido oposto, que afetam, hoje em dia, muitas atividades humanas.
(DELORS, 1996, p. 47). Configura-se uma estratgia de reforo ao
engajamento pessoal para que o indivduo no se feche sobre si
mesmo, mas que crie um esprito novo que, graas [...] a uma anlise
partilhada dos riscos e dos desafios do futuro, conduza realizao de
projetos comuns ou, ento, uma gesto inteligente e apaziguadora dos
inevitveis conflitos. (DELORS, 1996, p. 19, sem grifos no original).
No discurso que expe um mundo com seus problemas e tenses,
naturalizam-se problemas, tenses, conflitos, fenmenos sociais
construdos historicamente, a exemplo do desemprego, como
encadeamente de causalidades. Precisa-se de um indivduo que se adapte
a essas fatalidades, ao passo que preciso criar possibilidades de
gerir e agir sem que se tornem refns neste mundo multirriscos.
(DELORS, 1996, p. 44).
De fato, o Relatrio descreve um mundo de crises. Refora o
determinismo tecnolgico ao afirmar que o rpido aumento do
desemprego nos ltimos anos em muitos pases constitui, em muitos
aspectos, um fenmeno estrutural ligado ao progresso tecnolgico.
(DELORS, 1996, p. 79). H ainda o alerta de que o perigo est em toda
a parte. (DELORS, 1996, p. 80), e o progresso tcnico avana mais
depressa do que a nossa capacidade de imaginar solues para os novos
problemas que ele coloca s pessoas e s sociedades modernas
(DELORS, 1996, p. 80). O perigo referido pelo Relatrio diz respeito
ameaa solidariedade nacional e, por isso, assegura que falta um
novo modelo de estruturao da vida humana. (DELORS, 1996, p. 80).
Por isso, a educao
manifesta [...] o seu carter insubstituvel na
formao da capacidade de julgar. Facilita uma
compreenso verdadeira dos acontecimentos, para
l da viso simplificadora ou deformada
transmitida, muitas vezes, pelos meios de
comunicao social, e o ideal seria que ajudasse
cada um a tornar-se cidado deste mundo
325
turbulento e em mudana, que nasce cada dia
perante nossos olhos. (DELORS, 1996, p. 47).
326
5.2.6 As demandas do mundo do trabalho para o sculo XXI:
atitudes e valores
O mundo do trabalho constitui um espao privilegiado de
educao tanto quanto a escola. H, sem dvida, um esforo em
propagar a ideia de que a escola formadora de um aluno
empreendedor. Para que isso seja possvel, o discurso disseminado no
Delors versa sobre o valor de articular a sala de aula s experincias
concretas. Para assegurar tal concepo, refora-se a estratgia do box
Aprender na empresa e na escola: a formao em alternncia na
Alemanha. Pelo ttulo, se v que os exemplos pontuados pela Comisso
so particulares e visam universalizar uma determinada situao. O que
se pode postular como crtica, no Delors, utilizado como um aspecto
relevante: A educao ao mesmo tempo universal e especfica. Deve
fornecer os fatores unificadores comuns a toda a humanidade,
abordando ao mesmo tempo as questes particulares que se pem em
situaes muito diferentes. (DELORS, 1996, p. 126).
So vrias as passagens nas quais so divulgados valores
universais como fundantes necessria educao para o sculo XXI.
Nanhzao, um dos membros da Comisso, ao traar um panorama acerca
da interao educao e cultura na tica do desenvolvimento econmico
numa perspectiva asitica -, enfatiza alguns dos valores culturais
globais que a educao deve cultivar para promover a tica global.
(DELORS, 1996, p. 263). Ao elencar tais valores, Nanhzao delineia para
a formao do indivduo, os atributos necessrios ao mundo do trabalho.
Dentre estes, destacam-se:
- a preocupao com a equidade social e com a
participao democrtica na tomada de decises e
no governo que deve ser o objetivo central em
todos os nveis de educao.
- compreenso e tolerncia em relao s
diferenas e ao pluralismo culturais, pr-requisito
indispensvel coeso social, coexistncia
pacfica e resoluo dos conflitos pela
negociao e no pela fora e, no fim das contas,
paz mundial.
- solicitude para com o outro, o valor decisivo
para a educao de amanh e manifestao
intrnseca de compaixo humana, de que se deve
dar provas no s em relao ao membros da
327
prpria famlia e aos colegas, mas tambm em
relao a todos os desfavorecidos, doentes, pobres
ou em situao de inferioridade, e que anda a par
como cuidado pelo bem-estar da humanidade e do
nosso planeta. (NANHZAO, 1996 apud DELORS,
1996, p. 264-265)
328
Os valores universais, assim reforados, inserem-se num contexto
de crises de valores humanos que afeta o mundo no seu conjunto
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 263). de notar-se, desse
modo, que os valores universais indispensveis ao sculo XXI esto
inscritos nas tradies culturais milenrias das grandes civilizaes
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 265). Na viso de
Nanzhao, eles refletem apenas as concepes morais e os ideais de
verdade, humanidade, beleza, justia e liberdade, defendidos pelos
nossos longnquos antepassados e magnificamente preservados nos
tesouros do pensamento. (NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p.
265).
Outra maneira de cultivar esses valores, assinala Nanzhao, a
educao lanar pontes entre as culturas orientais e ocidentais
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 265). Portanto, lembra o
especialista em educao que:
Quando o Oriente e o Ocidente forem capazes de
aprender um com o outro para proveito mtuo, e
quando cada um adotar o que o outro tem de
melhor combinando, por exemplo, a iniciativa
individual e o esprito de equipe, a
competitividade
e
a
solidariedade,
as
competncias tcnicas e as qualidades morais
ento os valores universais que invocamos
havero de se impor, pouco a pouco, e o advento
de uma tica global provocar uma profunda
reanimao de todas as culturas, e contribuir
profundamente para a educao da humanidade.
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 266).
329
Os principais valores culturais expressos no Relatrio so:
equidade social, igualdade de oportunidades, participao democrtica,
compreenso / tolerncia, respeito s diferenas, pluralismos, resoluo
de conflitos, solidariedade, responsabilidade, coeso social, esprito
empreendedor, aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer,
aprender a viver juntos.
Ao considerar-se que a linguagem profundamente determinada
pelo momento histrico, pelas contradies sociais e pelos conflitos
ideolgicos (CARBONI; MAESTRI, 2003, p. 55), pode-se
compreender mais a respeito da ateno dada pela Comisso ao mundo
tal como apresentado. Que fazer para melhorar a situao? No
discurso, simplifica-se esse questionamento destacando-se que, para no
agravar mais as tenses latentes e degenerar em conflitos, preciso
existir objetivos e projetos comuns [para] que os preconceitos e a
hostilidade latente possam desaparecer e dar lugar a uma cooperao
mais serena e at amizade. (DELORS, 1996, p. 97). H uma nfase
no discurso humanitrio reiterando-se valores universais que visam
promover a cultura da paz, a compreenso entre os homens,
valorizar a educao como esprito da concrdia, da emergncia de
um querer viver juntos. (DELORS, 1996).
Na acepo de Rodrigues (2008), esse processo de instituio
de verdades, pressupondo que as pessoas, ao compreenderem a
complexidade dos fenmenos e o papel da educao, atuariam de
maneira mais responsvel e ciente de que tambm so responsveis pelo
gerenciamento das crises que afetam o mundo. (TEDESCO, 2002).
5.2.7 Concepo de educao
No decorrer de todo o Relatrio, a educao abordada como
tbua de salvao, ganha um carter eminentemente utilitrio e
idealizada como um instrumento valioso na construo de uma
concepo de mundo e de homem que se adapte s circunstncias.
(DELORS, 1996, p. 83). Ser dono de seu destino tornou-se imperativo
no apenas de natureza individualista: a experincia recente mostra que
o que poderia parecer, somente, como uma forma de defesa do indivduo
perante um sistema alienante ou tido como hostil, tambm, por vezes,
a melhor oportunidade de progresso das sociedades. (DELORS, 1996,
p. 100). Essa concepo de um mundo em crise, perigoso, de medos
vem sendo difundida como o argumento que remete educao o dever
330
de formar indivduos aptos a utilizar as novas tecnologias e que
revelem um comportamento inovador. (DELORS, 1996, p. 71). H um
realce importncia do capital humano e, portanto, do investimento
educativo para a produtividade. (DELORS, 1996, p. 71).
Esse olhar mitificado sobre o papel da educao assimilado
tambm nas organizaes em que esta passa a ser vista com grande
responsabilidade [...] no sentido de anunciar um homem novo, de
propor a acreditar em novos valores, de contribuir para a formao de
homem cujo imaginrio seja o sonho de [...] ganhar seu sustento e
acesso vida plen.a (SCHIRATO, 2004, p. 144). Convm, nesse
sentido, assinalar a nfase numa formao considerando novas
aptides, [sendo que] os sistemas educativos devem dar resposta a esta
necessidade (DELORS, 1996, p. 71), de maneira que o objetivo de
puro crescimento econmico revela-se insuficiente para garantir o
desenvolvimento humano. (DELORS, 1996, p. 79).
Dos principais papis atribudos educao no Relatrio, alm de
dotar a humanidade da capacidade de dominar o seu prprio
desenvolvimento, diz-se que:
A educao deve, pois, adaptar-se constantemente
a estas transformaes da sociedade, sem deixar
de transmitir as aquisies, os saberes bsicos
frutos da experincia humana. (DELORS, 1996, p.
21).
Cabe educao a nobre tarefa de despertar em
todos, segundo as tradies e convices de cada
um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta
elevao do pensamento e do esprito para o
universal e para uma espcie de superao de si
mesmo. (DELORS, 1996, p. 16, sem grifos no
original).
A educao deve, pois, procurar tornar o
indivduo mais consciente de suas razes, a fim de
dispor de referncias que lhe permitam situar-se
no mundo, e deve ensinar-lhe o respeito pelas
outras culturas. (DELORS, 1996, p. 48).
A educao tem, pois, uma especial
responsabilidade na edificao de um mundo
mais solidrio, e a Comisso pensa que as
polticas de educao devem deixar transparecer,
331
de modo bem claro, essa responsabilidade.
(DELORS, 1996, p. 49, sem grifos no original).
Desenvolver os talentos e as aptides de cada um
corresponde, ao mesmo tempo, misso
fundamentalmente humanista da educao,
exigncia de equidade que deve orientar qualquer
poltica educativa e s verdadeiras necessidades
de um desenvolvimento endgeno, respeitador do
meio ambiente humano e natural, e da diversidade
de tradies e de culturas. (DELORS, 1996, p.
85).
A educao tem por misso, por um lado,
transmitir conhecimentos sobre a diversidade da
espcie humana e, por outro, levar as pessoas a
tomar conscincia das semelhanas e da
interdependncia de todos os seres humanos do
planeta. (DELORS, 1996, p. 97, sem grifos no
original).
332
Tomando como referncia o individual, possvel educar a
solidariedade e o novo esprito comunitrio (DELORS, 1996, p. 222),
de forma que a apropriao de determinados valores, como equidade,
igualdade de oportunidades, liberdade responsvel, respeito pelos
outros, defesa dos mais fracos, apreo pela diferena (DELORS, 1996,
p. 223), criem [...] as atitudes psicolgicas que predispem para agir de
maneira concreta pela justia social e em defesa dos valores da
democracia. (DELORS, 1996, p. 223). Diante de tal diagnstico, a
Comisso enfatiza que a educao
[...] sob as suas diversas formas, tem por misso
criar, entre as pessoas, vnculos sociais que
tenham a sua origem em referncias comuns. Os
meios utilizados abrangem as culturas e as
circunstncias mais diversas; em todos os casos, a
educao tem como objetivo essencial o
desenvolvimento do ser humano na sua dimenso
social. (DELORS, 1996, p. 51).
333
(1996 apud Delors, 1996, p. 227), da UNICEF de Nova Iorque,
analisando a educao na frica, afirma que esta deve desempenhar
um papel crucial no desenvolvimento econmico, bem como crucial
na instaurao de valores universais que moldaro o sculo XXI. O
desafio estaria em compreender que o comrcio exige conhecimentos
do mercado mundial e competncias no domnio empresarial,
conhecimentos e competncias de que carecem os pases em transio.
(KORNHAUSER, 1996 apud DELORS, 1996, p. 233).
As esperadas competncias para o mundo do trabalho servem ao
propsito de se caminhar para uma sociedade educativa. (DELORS,
1996, p. 18). Os progressos da cincia e da tcnica devem convercernos das vantagens de repensar o lugar ocupado pelo trabalho e seus
diferentes estatutos, e para criar essa sociedade esperada, a
imaginao humana deve ser capaz de se adiantar aos avanos
tecnolgicos, se quisermos evitar o aumento do desemprego, a excluso
social ou as desigualdades de desenvolvimento. (DELORS, 1996, p.
18). Evidencia-se, assim, uma das razes pelas quais a Comisso insiste
no conceito de educao ao longo da vida95, como aquele que sustentaria
uma formao com vantagens pela flexibilidade, diversidade e
acessibilidade no tempo e espao. (DELORS, 1996, p. 18). Associada
noo de educao permanente, esto as necessrias adaptaes
relacionadas com as alteraes da vida profissional, [que] [...] deve ser
encarada como uma construo contnua da pessoa humana, dos seus
saberes e aptides, da capacidade de discernir e agir. (DELORS, 1996,
p. 18).
Em referncia a educao ao longo da vida, o Relatrio exalta a
necessidade de o indivduo estar preparado para acompanhar a
inovao, tanto na vida privada como na vida profissional. (DELORS,
1996, p. 19). Isso significa que preciso aprender a aprender no apenas
em relao aos conhecimentos, mas a capacidade de compreender os
outros [que] faz com que cada um se conhea melhor a si mesmo
95
Na viso da Comisso, a educao permanente concebida como indo muito alm do que j
se pratica, especialmente nos pases desenvolvidos: atualizao, reciclagem, e converso e
promoo de adultos. Deve ampliar a todos as possibilidades de educao, com vrios
objetivos, quer se trate de oferecer uma segunda ou uma terceira oportunidade, de dar resposta
sede de conhecimento, de beleza ou de superao de si mesmo, ou ainda, ao desejo de
aperfeioar e ampliar as formaes estritamente ligadas s exigncias da vida profissional,
incluindo as formaes prticas. (DELORS, 1996, p. 117).
Para essa discusso, sugere-se ver a tese de doutorado de Marilda Merncia Rodrigues (2008),
intitulada Educao ao longo da vida: a eterna obsolescncia humana.
334
(DELORS, 1996, p. 49), o que conduziria busca de valores comuns,
que funcionem como fundamento da solidariedade intelectual e moral
da humanidade, de que se fala no documento constitutivo da
UNESCO. (DELORS, 1996, p. 49).
Partilhar valores, de acordo com a Comisso, ajudaria na
construo de um mundo mais solidrio. (DELORS, 1996, p. 49).
Solidariedade um termo que aparece de forma recorrente ao longo do
Relatrio, de modo que a Comisso insiste em dizer que uma das tarefas
da educao reside em ajudar a transformar a interdependncia real em
solidariedade. (DELORS, 1996, p. 47). Desse modo, exige-se uma
solidariedade em escala mundial, de valores partilhados que constituem
o amlgama da coeso social96, de forma que laos materiais e
espirituais enriquecem-se e tornam-se, na memria individual e coletiva,
uma herana cultural [...] servindo de base aos sentimentos de pertencer
quela comunidade, e de solidariedade. (DELORS, 1996, p. 51, sem
grifos no original). O documento alega que, para no pr em perigo a
coeso social, valores integradores so necessrios. O que est em
causa a capacidade de cada um se comportar como verdadeiro
cidado. (DELORS, 1996, p. 54). Uma vez que a concepo presente
no documento de um mundo multirriscos, aponta-se que,
para podermos compreender a crescente
complexidade dos fenmenos mundiais, e
dominar o sentimento de incerteza [...]
precisamos, antes, adquirir um conjunto de
conhecimentos e, em seguida, aprender a
relativizar os fatos e a revelar sentido crtico
perante as informaes. (DELORS, 1996, p. 47).
96
Lembra-se aqui o movimento construdo por Ruth Cardoso com a criao da Comunidade
Solidria no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
335
Aprende-se a trabalhar em grupo, [o aluno]
depara-se com problemas concretos que fazem
com que se passe do domnio das idias para o
domnio do mercado; verifica-se que a informao
mais recente j no basta, de fato, para manter a
concorrncia econmica escala mundial e que
preciso recorrer a sistemas de informao
internacionais; aprende-se a adquirir e organizar
informao recolhida de diferentes fontes;
buscam-se
sistemas
de
conhecimentos
susceptveis de servir de base formao de
hipteses; concebem-se interaes entre o
tratamento da informao e a investigao
experimental e presta-se colaborao a produes
piloto; buscam-se sadas comerciais e aprende-se
como se cria um mercado; identificam-se
possibilidades de transferncia de conhecimentos
e tecnologias e estabelece-se a lista de tecnologias
que no convm transferir; [...] adquirem-se as
competncias empresariais; aprende-se a conhecer
as possibilidades de trabalho independente, isto ,
a substituir a esperana de um emprego pela
criao de empregos etc. (DELORS, 1996, p.
238).
336
adquirida pela formao tcnica e profissional, o
comportamento social, a aptido para o trabalho
em equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto
pelo risco. (DELORS, 1996, p. 94).
337
partir da compreenso de Daz (1998, p. 21), possvel dizer que os
discursos produzidos pela Comisso so transformados, reorganizados,
distribudos e recolocados num campo diferente, o campo da reproduo
discursiva de maneira a engajar, aderir aos preceitos demarcados.
Nesse sentido, lembra-se o que destacam Shiroma, Campos e Garcia
(2004, p. 15) valendo-se do Relatrio Dahrendorf (1995): as palavras
fazem diferena. Ou, as palavras morrem medida que desistem de seu
significado (Vygotsky, 1989), destacando-se a investida do Relatrio na
produo de sentidos.
Nessa direo, ao produzir discursos, alm do discurso
humanista, a Comisso apela para o discurso economicista. Na tentativa
de conseguir adeso, a Comisso, ao considerar a relao entre o ritmo
do progresso tcnico e a qualidade da interveno humana, torna-se,
ento cada vez mais evidente, a necessidade de formar agentes
econmicos aptos a utilizar as novas tecnologias e que revelem um
comportamento inovador. (DELORS, 1996, 71, sem grifos no
original). Para tanto, novas aptides so necessrias, de modo a garantir
a flexibilidade qualitativa da mo-de-obra. (DELORS, 1996, p. 71,
sem grifo no original). Trata-se, antes, de formar para a inovao
pessoas capazes de evoluir, de se adaptar a um mundo em rpida
mudana e capazes de dominar essas mudanas. (DELORS, 1996, p.
72, sem grifos no original). Essas palavras soam bem, pois que remetem
a idia de progresso, de crescimento. Quem, afinal, no gostaria de fazer
parte desse processo?
Nessa perspectiva, ganha fora o papel desempenhado pelas
aptides intelectuais e cognitivas, uma vez que a Comisso lembra que
j no possvel pedir aos sistemas educativos que formem mo-deobra para empregos industriais estveis (DELORS, 1996, p. 72). Ento
pedem, agora, que formem para trabalhos instveis, considerando um
mundo em constantes mudanas.
A noo de estabilidade, como fator positivo, desconstruda ao
longo do Relatrio numa tentativa de forar a educao a preparar
indivduos para encarar um mundo do trabalho no qual necessrio
criar empregos ao invs de conseguir empregos. Nesse sentido, podese recorrer a Shiroma e Evangelista (2003, p. 86), ao alertar que as
relaes entre educao e trabalho, escola e emprego, foram se
estabelecendo como respostas na ordem do dia, para operar no
imaginrio social uma inverso por meio da qual os problemas
econmicos so atribudos falta de preparo educacional.
338
A nfase no documento aos quatro pilares da educao vem ao
encontro dessa ideia, sendo que tais saberes aprender a viver juntos,
aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conhecer para a
Comisso, devem ser objeto de ateno de igual por parte do ensino
estruturado, a fim de que a educao aparea como uma experincia
global a levar a cabo ao longo de toda a vida, no plano cognitivo como
no prtico, para o indivduo enquanto pessoa e membro da sociedade.
(DELORS, 1996, p. 90).
A Comisso afirma a exigncia da busca de um compromisso
pessoal do trabalhador, tido como agente de mudana, de tal forma que
se torna evidente que as qualidades muito
subjetivas, inatas ou adquiridas, muitas vezes
denominadas
saber-ser
pelos
dirigentes
empresariais, se juntam ao saber e ao saber-fazer
para compor a competncia exigida o que
mostra bem a ligao que a educao deve manter
[...] entre os diversos aspectos da aprendizagem.
Qualidades como a capacidade de comunicar, de
trabalhar com os outros, de gerir e de resolver
conflitos, tornam-se cada vez mais importantes. E
esta tendncia torna-se ainda mais forte, devido ao
desenvolvimento do setor de servios. (DELORS,
1996, p. 94).
339
trabalhadores. Imaginar, criar e inovar so atributos que diferenciam os
indivduos do mero domnio de habilidades motoras. Para atuar num
mundo multirriscos, preciso flexibilidade, engajamento, participar
da mudana, adaptar-se a ela. Num mundo dessa natureza, o trabalho
exige a combinao de novas tcnicas gerencias exigncia da
formao de um novo homem para o trabalho. O desafio que impe para
a educao do sculo XXI formar esse novo trabalhador capaz de
conhecer, de aprender a fazer, de aprender a ser, aprendendo a viver
junto. A noo de educao no Delors amplia-se de tal forma que so
muitas as tarefas para o sculo XXI para esse cidado. Em destaque no
documento, esto: comportamento inovador, pr-ativo, esprito de
adaptao, agente de mudana, capaz de resolver problemas,
negociar com paz sem o uso da fora, modernizao de
mentalidades, construo de uma cultura pessoal, autonomia
individual, discernimento, gosto pela animao pelo trabalho em
equipe, aptido para comunicar, flexibilidade, criatividade, iniciativa,
imaginao e cooperao ativa.
Todas essas caractersticas necessrias formao adequada ao
sculo XXI circulam na atualidade, sendo repetidas insistentemente em
publicaes de vrios gneros. A autoajuda, por exemplo, faz uso e
abuso de tais aspectos como fundantes do profissional de sucesso. Tudo
que apresentado nesses manuais e repetido tambm em livros que
versam sobre a formao de professores destacando que o perfil
profissional na atualidade requer capacidades relacionadas com
criatividade, disciplina, solidariedade, atualizao permanente, rapidez
de raciocnio, flexibilidade, capacidade de adaptao, constituindo estes
como alguns dentre os muitos atributos necessrios ao alinhamento para
responder as exigncias na nova gesto do trabalho.
H grande nfase centralidade da formao profissional como
recurso estratgico para o enfrentamento dos seguintes desafios:
competitividade, produtividade, qualidade, equidade social, democracia.
Desconsiderando os problemas sociais e econmicos, indica-se uma
formao profissional atrelada resoluo dos problemas sociais quando
h adequao dos profissionais que devem intervir dando contributo
individual num processo de transferncia de saberes em situaes que
exigem tomada de deciso, capacidade de diagnstico para a soluo
eficiente e eficaz de situaes-problema.
Para compor a formao do novo homem, as caractersticas
supracitadas so consideradas pela Comisso como uma forma de
340
defesa do indivduo perante um sistema alienante ou tido como hostil,
tornando-se a melhor oportunidade de progresso para as sociedades.
(DELORS, 1996, p. 100).
5.2.9 Professores, educao e mundo do trabalho
No Relatrio, os professores so vistos como agentes importantes
na formao do aluno, futuro cidado para o sculo XXI. A eles foi
delegada a tarefa de, na prtica letiva diria, [...] dar origem
aprendizagem de mtodos de resoluo de conflitos e constituir uma
referncia para a vida futura dos alunos, enriquecendo a relao
professor/aluno. (DELORS, 1996, p. 99, sem grifos no original). o
mesmo argumento que diversos autores tm disseminado em suas
publicaes nessa ltima dcada, afirmando que nesse momento
histrico exigem-se professores que tenham a capacidade de integrar
teoria e prtica como condio de formar alunos capazes de transpor
conhecimentos para a soluo imediata de problemas que se apresentam
em determinadas condies de trabalho. (REHEM, 2009; VARGAS,
2001; RIBAS, 2000).
Diferentemente do simples repasse de contedos, a educao
formal ganha outro carter, em que se deve reservar tempo e ocasies
suficientes em seus programas para iniciar os jovens em projetos de
cooperao, logo desde a infncia, no campo das atividades desportivas
e culturais, mas tambm estimulando a participao em atividades
sociais [...] servios de solidariedade entre geraes. (DELORS, 1996,
p. 99).
Consoante a esta perspectiva, o professor, segundo o Relatrio,
tem um papel importante e decisivo na educao no sculo XXI. Ele
um agente de mudana, favorecendo a compreenso mtua e a
tolerncia. (DELORS, 1996, p. 152).
Nesse sentido, a educao deve contribuir para o
desenvolvimento total da pessoa (DELORS, 1996, p. 100). Face
necessidade de uma nova formao mais humanizada, no documento, os
professores so vistos como agentes determinantes formao de
atitudes - positivas ou negativas perante o estudo. Devem, assim,
despertar a curiosidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor
intelectual e criar as condies necessrias para o sucesso da educao
formal e da educao permanente. (DELORS, 1996, p. 152).
341
Perante as nfases ao papel do professor, trata-se de destacar as
aspiraes e responsabilidades da profisso, exigindo competncia,
profissionalismo e devotamento. (DELORS, 1996, p. 157). Ressalta-se
que
o trabalho do professor no consiste simplesmente
em transmitir informaes ou conhecimentos, mas
em apresent-los sob a forma de problemas a
resolver, situando-os num contexto e colocandoos em perspectiva de modo que o aluno possa
estabelecer a ligao entre a sua soluo e outras
interrogaes mais abrangentes.
342
Mas as atribuies dos professores so muitas, complexas e bem
demarcadas no documento. Alm das j citadas, destaca-se
a necessidade de o ensino contribuir para a
formao da capacidade de discernimento e do
sentido das responsabilidades individuais [que]
impem-se cada vez mais nas sociedades
modernas se se pretende que os alunos sejam,
mais tarde, capazes de prever e adaptar-se s
mudanas, continuando a aprender ao longo de
toda a vida. (DELORS, 1996, p. 157).
343
A formao ministrada aos professores tem
tendncia a ser uma formao parte que os isola
das outras profisses: esta situao deve ser
corrigida. Os professores deveriam tambm ter a
possibilidade de exercer outras profisses, fora do
mundo escolar, a fim de se familiarizarem com
outros aspectos do mundo do trabalho, como a
vida das empresas, que, muitas vezes, conhecem
mal. (DELORS, 1996, p. 163).
344
conjugado dos sistemas de ensino e produtivo como forma de superar
situaes de desemprego, bem como da falta de mo-de-obra
qualificada. (CABRITO, 1994). Esta necessidade de aproximao da
educao ao mundo do trabalho to discutida em muitos pases, em
especial em Portugal, fortemente criticada por alguns autores nessa
ltima dcada, a exemplo de Christian Laval98 (2004) em seu livro
intitulado A escola no uma empresa.
A discusso sobre as pontes entre a realidade educativa e o
mundo produtivo levantada por Cabrito (1994) permite entender a
nfase dada no Relatrio Delors ao sistema de formao em alternncia,
com elementos para que se possa compreender o porqu dedica-se
especial ateno formao de professores capazes de educar nessa
perspectiva. No tocante formao de professores desarticulada das
demais profisses, a Comisso bem clara: esta deve ser corrigida.
desejvel que se aumente a mobilidade dos professores no interior da
profisso e entre esta e as outras profisses de modo a ampliar a sua
experincia. (DELORS, 1996, p. 165). O professor, desse ponto de
vista, precisa vivenciar o mundo do trabalho para poder formar
adequadamente seus alunos, j que
os ensinamentos tericos transmitidos no nvel
secundrio servem, muitas vezes, sobretudo, para
preparar os jovens para os estudos superiores,
deixando margem, mal equipados para o
trabalho e para a vida, os que no tem sucesso,
que abandonam ou que no encontram lugar no
ensino superior. (DELORS, 1996, p. 136).
345
de carter estritamente privado: a promessa da
empregabilidade.
346
Desse modo, sugere-se que a alternncia entre escola e empresa,
permite [...] uma melhor insero no mundo do trabalho. (DELORS,
1996, p. 147). Essa, considerada uma medida pela Comisso, poderia
limitar significativamente o abandono da escola e as sadas do sistema
escolar sem qualificaes. (DELORS, 1996, p. 147). Argumenta-se
insistentemente em favor do desenvolvimento de um sistema de
alternncia.
Este reconhecimento implica que se leve em
conta, em especial por parte da universidade, a
experincia adquirida no exerccio de uma
profisso. [...] Devem multiplicar-se as parcerias
entre o sistema educativo e as empresas de modo
a favorecer a aproximao necessria entre
formao inicial e formao contnua. As
formaes em alternncia para os jovens podem
completar ou corrigir a formao inicial e,
conciliando saber com saber-fazer, facilitar a
insero na vida ativa (DELORS, 1996, p. 113).
347
(comportando em particular a concesso de um
crdito em tempo e dinheiro) que permitam
alternar perodos de atividade profissional com
perodos de estudo. (DELORS, 1996, p. 137).
348
interfira nas relaes burguesas fundamentais no
contexto da ampliao da participao poltica.
(FALLEIROS, 2005, p. 211).
Para idelogos como Samuel Smiles, o evangelho da autoeducao encorajava o trabalhador a no depender de organizaes
coletivas como o sindicato do comrcio. (LYONS, 1999, p. 51). Do
mesmo modo, a autoajuda de Carnegie, dos gurus na atualidade e os
documentos da UNESCO visam inculcar um jeito de ser
despolitizado, um aprender a ser cidado flexvel, produtivo,
conformado, competitivo, mudo, til, mas essencialmente solitrio.
(SILVA Jr., 2002, p. 102).
O discurso configurado no Relatrio Faure articula-se
diretamente s demandas do capital, difundindo as necessrias
estratgias educacionais que mais do que nunca ganham importncia
vital na profuso de contedos, habilidades e valores ligados ao modelo
de sociabilidade que se configura a partir dos anos de 1970. Propala-se
um diagnstico de um mundo em crise, de uma educao tambm em
crise. Conforme tal ponto de vista, anuncia-se a necessidade de
construo de uma nova concepo de mundo, constituindo e
construindo um mundo em significado focando na necessidade de
preparo de um novo homem para atuar num contexto de reestruturao
produtiva. Para tanto, preciso reformar, adequar os sistemas de ensino
para a insero do trabalhador no mundo do trabalho assinalado por
inovaes tecnolgicas, progresso, desenvolvimento. H um verdadeiro
enaltecimento da tecnologia da qual se exigiria uma reviso radical dos
sistemas educativos e um esforo de solidariedade, da apropriao e
assimilao da ideia do novo, ou seja, um novo modo de conceber a
educao.
Os fundamentos desse modo de ver a educao centram-se na
nfase ao aprender a ser, na urgncia em formar um novo homem
focado no desenvolvimento de uma educao permanente. Planta-se a o
que constitui o grmem do slogan da educao ao longo da vida. A
formao desse novo homem sublinhada afirmando-se que este deve
ser um objetivo comum a todos os sistemas de educao. A educao
para formar este homem completo, ter de ser global e permanente.
Sem dvida, est-se falando de uma educao de novo tipo capaz de
imprimir forte carter individualista e flexvel, cuja reforma educacional
poderia corrigir a fragilidade de certas formas de instruo, alargando as
funes do autodidatismo e aumentando o valor das atitudes ativas e
349
conscientes de aquisio de conhecimentos (FAURE, 1972). O
conhecimento, nessa perspectiva, visto em constante evoluo
reforando o porqu deve-se investir em aprender a ser, o que
ajudaria cada indivduo a alargar as suas faculdades pessoais, a liberar a
fora criadora.
Em busca de consenso ou adeso espontnea a essa nova
composio do capital, o Relatrio difunde que essa fora criadora est
relacionada vocao pessoal de cada um, caminho que favorece a
mobilidade social; iguala as oportunidades As inovaes para a
renovao educativa, no seu conjunto, tornam-se particularmente teis e
eficazes na formao do indivduo cidado, produtor, inventor de
tcnicas e criador de sonhos. (FAURE, 1972). O esprito criador, de
intuio, de imaginao, de entusiasmo e de dvida que comporta a
atividade cientfica, so vistos como elementos que desenvolveriam em
cada indivduo o poder da imaginao, interesse pelo belo, evidenciando
tambm uma preocupao com a esttica. Acelerando-se o ritmo do
progresso tcnico, muitos indivduos sero levados a exercer vrias
profisses durante a sua vida, ou a mudar frequentemente de lugar de
trabalho.
Delega-se educao a preparao do indivduo para adaptar-se
s mudanas, ao desconhecido. O homem que as sociedades tm de
formar o homem da democracia, do desenvolvimento humanizado e da
transformao. Deve-se simultaneamente dar aos cidados bases slidas
de conhecimentos em matria socioeconmica e desenvolver a sua
capacidade de julgamento; incit-los a comprometerem-se de maneira
ativa na vida pblica, social, sindical, cultural. Deve-se desestimular a
inrcia que trava a propagao das ideias e das experincias.
Na difuso de uma concepo de mundo/sociedade, educao e
homem, o Relatrio Faure vale-se de uma infinidade de exemplos que
visam garantir a transferncia de situaes de natureza dspares para
outras de natureza complemente diferentes, propagando funes
ordenadoras na sociedade com o propsito de ressaltar que, na educao
para o mundo do trabalho se requer participao individual e flexvel na
edificao do futuro de cada um.
Buscou-se identificar no Relatrio Delors as recomendaes para
aprender a ser, que solues so propostas, que histrias so contadas,
que metforas so apresentadas, que palavras, conceitos e concepes
so reforados para direcionar a formao do indivduo desejvel para o
350
sculo XXI. Seus elaboradores apresentam uma educao que atenda a
formao de um trabalhador de novo tipo eficiente, pr-ativo, flexvel
e funcional, solidrio, que aceite as diferenas espirituais e culturais.
Diante disso, estimula-se a iniciativa, o trabalho em equipe, as sinergias
realistas, tendo em conta os recursos locais, o autoemprego e o esprito
empreendedor. preciso educar para a superao de si mesmo, para a
responsabilizao e a necessidade de participao de cada um,
desenvolvimento de virtudes cvicas.
Tais tributos podem ser encorajados ou estimulados pela
instruo e por prticas adaptadas sociedade dos meios de
comunicao social e de informao. Ao considerar, numa perspectiva
gramsciana, que toda linguagem contm os elementos de uma
concepo de mundo e de uma cultura, no Delors, difunde-se que no
seio dos sistemas educativos que se forjam as competncias e aptides
que faro com que cada um possa continuar a aprender. preciso
formar agentes econmicos aptos a utilizar as novas tecnologias e que
revelem um comportamento inovador. Essa responsabilidade est
delegada educao a qual cabe fornecer s crianas e aos adultos as
bases culturais que lhes permitam decifrar, na medida do possvel, as
mudanas em curso. (DELORS, 1996).
Diante disso, reitera-se a importncia de estimular o indivduo a
tomar nas mos o seu prprio destino, de uma formao para tornar
o indivduo capaz de evoluir, de se adaptar a um mundo em rpida
mudana e capazes de dominar essas transformaes. Para responder as
exigncias desse mundo, necessrio desenvolver: esprito de iniciativa,
criatividade, estar aberto mudana, despertar o sentido das
responsabilidades, demonstrar comportamento inovador, pr-ativo,
esprito de adaptao, ser agente de mudana capaz de resolver
problemas, negociar com paz sem o uso de fora, modernizao de
mentalidades, construo de uma cultura pessoal, autonomia individual,
discernimento, gosto pelo trabalho em equipe, aptido para comunicar,
flexibilidade, mantendo, alm disso, cooperao ativa. (DELORS,
1996).
Isso exposto, delega-se educao a tarefa de contribuir para o
desenvolvimento total da pessoa, de despertar a curiosidade,
desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar as
condies necessrias para o sucesso da educao formal e da educao
permanente. Por tudo isso, o Relatrio alerta para a crucial necessidade
de se repensar a formao de professores.
351
O discurso dos Relatrios Faure e Delors, semelhana da
literatura de autoajuda, alimenta a ideologia da instrumentalidade, da
adaptao e do consenso. De que forma? Difundindo exemplos
edificantes, expressivos, modelos de sucesso, figuras notveis que
superaram as adversidades de forma a conquistar ascenso social e
insero no mercado de trabalho. um discurso que conforma cada
indivduo em sua diviso social. (SILVA Jr., 2002). Nessa viso de
mundo, o novo homem, destaca Falleiros (2005, p. 211), deve
sentir-se responsvel individualmente pela
amenizao de uma parte da misria do planeta e
pela preservao do meio ambiente; estar
preparado para doar uma parcela do seu tempo
livre para atividades voluntrias nessa direo;
exigir do Estado em senso estrito transparncia e
comprometimento com as questes sociais, mas
no deve jamais questionar a essncia do
capitalismo.
352
desenvolvido em paralelo ao esprito da solidariedade, por intermdio
do abandono da perspectiva de classe. (FALLEIROS, 2005, p. 211).
353
6 CONSIDERAES FINAIS
Neste trabalho, foram analisadas as concepes de mundo,
homem, trabalho e educao, encontradas nos clssicos da autoajuda e
presentes, tambm, nos documentos da UNESCO para a educao,
explicitando uma convergncia aos preceitos e demandas capitalistas.
A autoajuda, desde o sculo XIX, vem consolidando-se com um
veculo da ideologia, difundindo uma forma de interpretar a realidade
adequada aos padres de sociabilidade necessrios ao capital. Sendo
assim, se a eficcia das ideologias decorre da sua capacidade de
interferir na vida concreta das classes, dos homens (DIAS, 2006, p.
74), as formulaes da autoajuda para as relaes de trabalho tm
servido, ao longo de sculos, para oferecer classe trabalhadora a
compreenso das questes sociais como problemas pessoais. Nesse
sentido, a anlise de Dias (2006, p. 107) ajuda a entender tal
constatao:
Culpabilizando-se a vtima, deixa-se intacta a
causa real do problema. [...] ao invs de
engolirmos a teoria da empregabilidade para a
qual no existe desemprego, mas trabalhadores
no qualificados, poderemos ter a compreenso de
que a fragmentao torna aleatria a causalidade
e, portanto, impede a compreenso do problema
real.
354
privados do grande capital nacional e internacional. (NEVES, 2010, p.
19).
Como viu-se, essa estratgia no atual, tem sido usada desde o
sculo XIX com Samuel Smiles, um dos idelogos do capital. Sua
literatura consiste numa apreciao da ideologia liberal do sculo XIX
calcada, principalmente, nos auspcios do individualismo. A autoajuda
de Smiles delineia como ideal de trabalhador aquele de carter e visa
esculpir comportamentos por meio da retrica da persuaso das lies
morais. (LEAHY, 1999, p. 99). Essas lies, conforme demonstrado,
serviam de fonte para a aquisio de conhecimentos teis, moralmente
construdos atendendo aos propsitos da busca de ascenso social por
mritos individuais. Smiles defendia o trabalho manual como princpio
educativo. No acreditava na educao escolar, dos livros, mas sim, na
educao da prtica. Na viso do autor, os inventores de esprito
empreendedor eram os heris do mundo civilizado, em franco
desenvolvimento, consagrando-os como modelos de conduta a ser
ensinado aos jovens. O exemplo constitua-se no mais eficaz dos
mestres. O desenvolvimento do carter ocorria por hbitos (fatos) e
princpios (palavras). Para Smiles, o carter a educao da vontade.
A autoajuda das primeiras dcadas do sculo XX assume outras
caractersticas. Os princpios e as orientaes para a formao do
trabalhador conformado de Carnegie so disseminados em seus
escritos para os homens de negcios. Os escritos no eram
endereados diretamente ao operrio-massa, mas aos que
gerenciariam seu trabalho. O pblico-alvo desse gnero de literatura
aquele capaz de convencer e influenciar os trabalhadores da fase urea
do fordismo. Carnegie enfatizava a carismtica individual na arte de
convencer, o que implicava no apenas uma variedade de tcnicas e
modos de agir, mas, acima de tudo, requeria dos leitores um estado de
cultivo de seu marketing pessoal. A educao da carismtica, desse
poder individual, dar-se-ia pelos modelos de conduta, de padres de
comportamento de homens notveis. A literatura de autoajuda, nessa
perspectiva, levava o leitor a um estado de fruio, e a adeso dos
trabalhadores aos ideais dos homens de negcios no se dava pela
coero, mas pela persuaso e pelo convencimento.
Atualmente, os conhecidos gurus da autoajuda anunciam
tempos de mudanas. Pregam e atribuem um novo valor educao
vista como possibilidade de transformao do status individual. O
discurso de autoajuda dos anos de 1990 e virada do sculo XXI contm
355
ideias, concepes que remetem a modos individuais de ordenamento de
carreira e possibilidade de mobilidade social. As noes fundamentais,
essncia dessa literatura para a vida laboral, continuam sendo a
empregabilidade e o empreendedorismo. Tais noes esto na base da
construo do trabalhador flexvel, do mesmo modo que a
interiorizao de regras de conduta, comportamentos que preservem a
flexibilidade, disseminada menos pelos exemplos baseados em
excertos biogrficos e mais pelo exemplo das boas prticas exitosas
apresentadas de forma descontextualizada. Os textos de Smiles e
Carnegie retratam figuras edificantes, homens de negcios, industriais,
filsofos, inventores, poetas renomados. Em contraposio, na literatura
de autoajuda atual, o dispositivo para a adeso do leitor d-se no retrato
de histrias cotidianas de gente como a gente em que se visa a
identificao do pblico com aes pontuais que adquirem dimenso
social.
No que se refere ao discurso difundido nos documentos para a
educao analisados, constatam-se semelhanas com o de autoajuda.
Vislumbrando a empregabilidade e o empreendedorismo, a noo da
mudana de comportamentos, atitudes, formas de ver e agir no mundo -,
constitui elemento central tanto na literatura de autoajuda, como nos
Relatrios Faure e Delors. A mudana sedimenta todo o investimento na
difuso de novas concepes de mundo, trabalho, educao, homem, e,
a partir dela, justificam-se discursos insistindo na necessidade de sair
de sua inrcia e do seu conservadorismo, entendendo que tais
aspectos so entraves para que se aceite a necessidade de sair de um
estado de acomodao que possa promover oportunidades. Investe-se
muito mais no senso de adequao, de adaptao s novas necessidades
decorrentes de novas relaes de produo e trabalho, uma vez que, no
decurso dos anos 70, os objetivos de desenvolvimento sero cada vez
mais amplos e complexos (FAURE, 1972, p. 77), com implicaes
para as dcadas futuras, conforme apresentado no Relatrio Delors
(1996).
Esse Relatrio d nfase ao papel dos professores como agentes
de mudanas e formadores de carter. (DELORS, 1996, p. 9). Lembrase que a formao do carter fundamenta a autoajuda do sculo XIX,
como tambm os autores desse gnero de literatura na atualidade
reforam a formao de valores como honestidade, idoneidade, senso de
justia. Cumpre destacar que a adaptao mudana, to reprisada no
discurso de autoajuda tambm enfatizada no Relatrio Delors onde se
356
afirma que o ingresso dos pases em desenvolvimento no universo da
cincia e da tecnologia, requer necessariamente adaptao de culturas e
de modernizao de mentalidades. (DELORS, 1996, p. 13). Na mesma
direo, expoentes da autoajuda reforam que mudar mentalidades
significa fazer mudanas na maneira de pensar e trabalhar.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 24).
A Comisso da UNESCO ressalta que, alm das necessrias
adaptaes relacionadas com as alteraes de vida profissional, ela deve
ser encarada como uma construo contnua da pessoa humana, dos seus
saberes e aptides, da sua capacidade de discernir e agir. (DELORS,
1996, p. 18). Outra nfase presente no documento diz respeito a fazer
com que todos, sem exceo, faam frutificar os seus talentos e
potencialidades criativas, o que implica, por parte de cada um, a
capacidade de se responsabilizar pela realizao do seu projeto pessoal.
(DELORS, 1996, p. 16).
Identifica-se que algumas mximas liberais so disseminadas
tanto nos livros de autoajuda quanto nos relatrios de educao da
UNESCO, evidenciando que a formao de um homem de novo tipo dse tanto por fora quanto por dentro do sistema educacional. Esses
relatrios que ensinam a ser so difundidos mundialmente para
orientar as reformas atribuindo educao a responsabilidade exclusiva
pela situao social dos indivduos. Os argumentos em favor da
modificao de mentalidades, de comportamentos e de atitudes flexveis
visam moldar a sociabilidade demandada pelo capital em tempos de
neoliberalismo.
A ideia de que o Estado representa toda a sociedade e de que
todos os cidados esto representados nele uma das grandes foras
para legitimar a dominao dos dominantes. (CHAU, 2007, p. 39). Na
tentativa de consolidar tal ideia, foi possvel constatar que a autoajuda
tem contribudo, ao longo dos sculos, no ocultamento da diviso social
e no exerccio do poder por uma classe social sobre outros (CHAU,
2007, p. 39) e que o discurso de autoajuda contribuiu para fixar no
imaginrio coletivo o aceite do capitalismo como nico horizonte
possvel para a vida social. (DIAS, 2006, p. 23).
Um dos eixos da autoajuda nos trs momentos estudados a
positividade com que se deve ver situaes complexas. Apresentam um
mundo repleto de incertezas, catico, mas do posicionamento
individual, do olhar positivo que despertaro novos modos de pensar,
357
sentir e agir no mundo, a la Mnchausen99, praticando aes de cunho
individual e que prescindam do Estado.
A autoajuda est contribuindo para a atualizao e revitalizao
dos princpios pedaggicos escolanovistas, consolidados no aprender a
aprender, pois, como se viu, os clssicos da autoajuda estabelecem uma
hierarquia valorativa na qual aprender est acima do ensinar o que est
evidenciado nos quatro pilares da educao do sculo XXI.
Os princpios para aprender a ser esse novo trabalhador,
segundo a tica da autoajuda e da UNESCO, esto explicitados nos
seguintes atributos: perseverana, coragem, criatividade, capacidade
para inovar, flexibilidade, pensamento positivo, disciplina, carter,
pacincia, economia entre outros.
A educao escolar, na perspectiva da UNESCO, assume papel
central na formao e na difuso de um sistema de valores que
forneceriam as bases para a (con)formao tico-poltica dos
trabalhadores na obteno de maior eficincia na reproduo das
habilidades e personalidades requeridas pelo capitalismo.
(FALLEIROS et al., 2010, p. 90).
O discurso de autoajuda contribui para a rpida disseminao de
novas atitudes, comportamentos e condutas utilizando uma linguagem
palatvel, constituda de uma diversidade de recursos lingusticos, em
especial as metforas, permitindo operar analogias e associaes com
situaes cotidianas. O principal recurso pedaggico do discurso de
autoajuda so os exemplos, boas prticas, excertos biogrficos de
homens edificantes, notveis, empreendedores. O cotejo das diferentes
concepes visando a formao de um trabalhador de novo tipo,
presentes nos discursos de autoajuda e da UNESCO, evidenciou a
disseminao de princpios convergentes para a construo de uma
moral/tica do trabalho calcados essencialmente sob dois princpios:
mudana e adaptao. A formao de um trabalhador de novo tipo
propagada no discurso de autoajuda e UNESCO se sustenta em novos
modos de ver, sentir e agir no trabalho, o que significa: mudar pontos de
99
Conta-se que, certo dia, o Baro de Mnchausen, num de seus passeios a cavalo, afundou
num pntano. Estava afundando cada vez mais, como no havia ningum para socorr-lo, ele
teve a brilhante idia de puxar a si mesmo pelos cabelos, at que conseguiu sair do atoleiro,
juntamente com seu cavalo. Lembra-se tal conto infantil a respeito das aventuras do Baro de
Mnchausen como forma de ilustrar essa busca de sadas individuais, um dos apelos da
literatura de autoajuda.
358
vista, fazer escolhas, vencer o medo, ser flexvel, observar os exemplos
e aprender com eles, influenciando modos de ver e agir.
A autoajuda se constitui em uma das estratgias da pedagogia da
hegemonia para formar homens de novo tipo em cada fase do
desenvolvimento capitalista, disseminando um ideal de conduta cuja
adeso se d pelo consentimento da maioria dos governados tanto no
trabalho quanto no cotidiano.
Entendida como uma das estratgias educacionais do capital, a
autoajuda produz efeito na medida em que os escritores fazem com que
as grandes concepes de mundo cheguem ao povo. (MARTINS;
NEVES, 2010, p. 31). Nesse sentido, possvel considerar os
charlates ideolgicos (PETRAS, 2007) como organizadores e
persuasores permanentes contribuindo para manter ou para modificar
uma concepo de mundo, isto , para suscitar novas maneiras de
pensar. (GRAMSCI, 2004, p. 53). A obteno do consenso em torno da
concepo de mundo burguesa mantm-se e o discurso de autoajuda est
desde as dcadas iniciais do sculo XIX, contribuindo na conteno da
classe trabalhadora, oferecendo histrias personalizadas com vistas a
ocultar as contradies e minar a conscincia de classe.
Explorando uma variedade de recursos lingusticos, os escritores
de autoajuda visam influenciar um leitor suscetvel. Mas ser este leitor
um indivduo passivo? Acredita-se que no. Isso explicaria as
atualizaes desse discurso ao longo de sculos, renovando repertrios,
estratgias lingusticas, a exemplo das frases de efeito dentro das fatias
de queijo de Johnson, dos exemplos dos gurus da atualidade que buscam
abrigo em situaes cotidianas e aes pontuais, transformando-as de
exceo em regra. O discurso de autoajuda efmero. Como tal, precisa
ser constantemente renovado e repetido, com diferentes roupagens, para
que cumpra sua funo de modo que os indivduos aprendam a ser um
trabalhador de novo tipo com atitudes e comportamentos condizentes
aos padres e sociabilidade demandados pelo capitalismo.
De acordo com Gramsci (2004, p. 246), h duas perspectivas
pelas quais se pode considerar os leitores: [...] como elementos
ideolgicos, transformveis filosoficamente, capazes, dcteis,
maleveis transformao; [...] como elementos econmicos, capazes
de adquirir as publicaes e de faz-las adquirir por outros. O consumo
massivo do receiturio de autoajuda, com respostas prticas aos
problemas que derivam da forma como se v e age sobre o mundo,
359
explica a consolidao da indstria de autoajuda nas relaes de
trabalho.
Seguindo essa linha de pensamento, lembra-se a caracterizao
do autor a respeito de trs tipos fundamentais de revista100 que podem
ser caracterizados pelo modo como so redigidas, pelo tipo de leitor ao
qual pretendem dirigir-se, pelas finalidades educativas que querem
atingir. (GRAMSCI, 2004, p. 200). Gramsci preocupava-se com a
elaborao nacional unitria de uma conscincia coletiva homognea,
destacando que esta requeria mltiplas condies e iniciativas.
(GRAMSCI, 2004, p. 205), mas alertava que a difuso, por um centro
homogneo, de um modo de pensar e de agir homogneo a condio
principal, mas no deve ser a nica. (GRAMSCI, 2004, p. 205). Para o
autor, um erro muito difundido consiste em pensar que toda a camada
social elabora sua conscincia e sua cultura do mesmo modo, com os
mesmos mtodos, isto , com os mesmos intelectuais profissionais.
(GRAMSCI, 2004, p. 205). nesse sentido que Gramsci afirma que
somente a premissa da difuso orgnica, por um centro homogneo, de
um modo de pensar e de agir no bastaria sob pena de cair no
formalismo vazio.
Outro aspecto importante presente no discurso de autoajuda o
que Fairclough chama de a fora dos enunciados caracterizados como
atos de fala, que nos livros analisados podem ser identificados como
promessas, pedidos, ameaas (FAIRCLOUGH, 2001). Esses
elementos do sentido e coeso ao discurso construdo pelos autores de
autoajuda. Nesse discurso, considera-se tambm o significado das
palavras. Embora sociais, preciso observar que a relao entre as
palavras e os seus sentidos representam formas de hegemonia.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 105)
A anlise dos textos de autoajuda possibilitou apreender e
explicitar a funo destes discursos na construo da realidade social
(FAIRCLOUGH, 2001), entendendo que esse mesmo discurso pretende
100
O primeiro tipo pode ser definido pela combinao dos elementos diretivos que se
encontravam, de modo especializado, na Crtica de B. Croce, na Poltica de F. Coppola e na
Nueva Rivista Storica de C. Barbagallo. O segundo tipo, crtico-histrico-bibliogrfico, pela
combinao dos elementos que caracterizavam os fascculos mais bem elaborados de Leonardo
de L. Russo, da Unit de Rerum Scriptor e da Voce de Prezzolini. O terceiro tipo, pela
combinao de alguns elementos do segundo tipo com o tipo do semanrio ingls, como o
Manchester Weekly ou o Times Weekly (GRAMSCI, 2004, p. 201).
360
constituir, reproduzir, desafiar e reestruturar sistemas de conhecimento
e crena. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 211).
No presente estudo, procurou-se explicar o papel da autoajuda
como um dos mecanismos que disseminam uma concepo de mundo e
orientam a ao prtica. Em suma, a autoajuda uma heterogesto
travestida de autogoverno, governo de si prprio e gerente de seu
desenvolvimento pessoal e profissional. Com esta pesquisa, buscou-se
demonstrar como a autoajuda constitui uma das estratgias do capital
para educar o consenso visando (con)formar um trabalhador de novo
tipo.
Acerca da capacidade de resistncia dos trabalhadores, concordase com a argumentao de Dias (2006, p. 119):
Os indivduos no so tomos, mas blocos
histricos concretos, snteses da sua insero no
real contraditrio. No so apenas cidados e
assalariados, mas, pais, filhos, companheiros, tm
uma origem rural ou urbana, crentes ou no
crentes que so demarcados pelo real em suas
aes cotidianas. No so simples portadores de
uma racionalidade mercantil abstrata, mas ricas
individualidades carregadas de projetos e desejos
que se materializam na vida prtica.
361
longo de sculos, vem elaborando um discurso competente101,
entendendo-se, a autoajuda como parte desse discurso, visando a
(con)formao de um trabalhador de novo tipo.
Nesta tese procurou-se estranhar o discurso de autoajuda que
colonizou o senso comum; indagando o que e como ele diz o que diz e
sobre o que silencia.
Quando fazemos falar o silncio que sustenta a
ideologia, produzimos um outro discurso, o
contradiscurso da ideologia, pois o silncio, ao ser
falado, destri o discurso que o silenciava.
(CHAU, 1980, p. 25).
101
Um discurso competente, segundo Chau (2007, p. 19), aquele que pode ser proferido,
ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado [...] porque perdeu os laos com o lugar e o
tempo de sua origem.
362
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