AUTO AJUDA. CRÍTICA. Auto Ajuda Nas Relações de Trabalho

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 377

i

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

Adriana Cludia Turmina

AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO:


A (CON)FORMAO DE UM TRABALHADOR DE NOVO TIPO

Florianpolis
2010

ii

iii
Adriana Cludia Turmina

AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO:


A (CON)FORMAO DE UM TRABALHADOR DE NOVO TIPO

Tese submetida ao Programa de PsGraduao


em
Educao
da
Universidade Federal de Santa
Catarina para a obteno de Grau de
Doutora em Educao.
Orientadora: Prof. Dr. Eneida Oto
Shiroma

Florianpolis
2010

iv

Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da


Universidade Federal de Santa Catarina

T941a Turmina, Adriana Cludia


Autoajuda nas relaes de trabalho [tese] : a (con)formao
de um trabalhador de novo tipo / Adriana Cludia Turmina ;
orientadora, Eneida Oto Shiroma. - Florianpolis, SC, 2010.
377 p.: fig., tab.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina,
Centro de Cincias da Educao. Programa de Ps-Graduao em
Educao.
Inclui referncias
1. Educao. 2. Trabalhadores - Educao. 3. Tcnicas de
autoajuda. I. Shiroma, Eneida Oto. II. Universidade Federal
de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Educao. III.
Ttulo.
CDU 37

vi

vii

AGRADECIMENTO ESPECIAL
Os ltimos quatro anos exigiram
muitas horas dedicadas ao tratamento
e diversas terapias para minimizar os
efeitos da leso no quadril. Foram
muitas privaes, muitos limites que
precisaram ser administrados com
serenidade, pacincia e tolerncia.
Nesse percurso, sua doura, sua
disponibilidade, bom humor foram
fundamentais. No entrei sozinha no
doutorado, carreguei voc comigo.
Longas horas ouvindo a leitura de
minhas produes, vrios momentos
lendo os meus livros, outros
momentos ajudando nos aspectos
finais da tese.... Enfim, foram diversas
as estratgias que voc encontrou para
manter-se junto a mim. Por tudo isso,
e milhes de outras razes, a
dedicatria especial desta tese para
voc Airton!

viii

ix
AGRADECIMENTOS
A concluso desta tese representa muito mais do que o findar de
um percurso acadmico que durou quatro anos e alguns meses.
Representa uma histria de superao. A superao de muita, muita
dor.... Foi justamente no ano de minha entrada no doutorado (2006) que
veio a leso no quadril. Dos perodos de repouso e muletas, que no
foram usadas como desculpa para no continuar, precisei administrar
muitos sentimentos. Exercitei a pacincia, a tolerncia comigo mesma,
que diante de muitos livros para ler, ato que parece to simples, tornouse de extrema complexidade. Foram anos de dedicao e tratamento. A
recuperao to rpida, eu explico, os mdicos no.
Nesse percurso, contei com a participao e presena de muitas
pessoas que se tornaram especiais, para as quais, registro meus
agradecimentos.
minha orientadora Eneida Oto Shiroma, agradeo a orientao
deste trabalho. Durante o perodo que precisei parar minha produo
terica, sua sensibilidade e pacincia, foram fundamentais. Foram
muitas as orientaes em casa pelos limites de acessibilidade s salas do
Centro de Educao. Voc tambm marcou presena nos muitos e-mails
carinhosos de incentivo, com brincadeiras para descontrair: Dri, voc
a seiva de sua tese fazendo aluso a autoajuda. Pequenos gestos foram
se somando e hoje, me permitem dizer o quanto aprendi com voc.
Alm disso, qual a orientanda que tem o prazer de comemorar seu
aniversrio no mesmo dia de sua orientadora? O dia 7 de novembro
lindo! Eneida, a voc, deixo um super obrigada pra l de especial!
Ao Professor Lucdio Bianchetti por continuar exercendo o que
considero uma de suas maiores caractersticas: Olhar para o outro de
forma emptica, pelas ricas contribuies na qualificao da tese e, por
deixar tanto de si, em cada uma de suas empreitadas.
A Professora Ivete Simionatto pelo acolhimento na disciplina,
Estado, Sociedade Civil e Polticas Sociais, no Programa de PsGraduao em Servio Social que propiciaram ricas reflexes e
discusses coletivas, alm de importante contribuio na qualificao da
tese.
A Professora Roselane Ftima Campos por toda sua contribuio
que foi incorporada, na medida do possvel, neste estudo.

x
A Professora Lcia Maria Wanderley Neves, agradeo sua
disponibilidade e gentileza ao encontrar espao em sua agenda dividindo
a riqueza de sua produo terica, valiosa ao estudo desenvolvido.
Aos colegas do GEPETO, grupo de estudos de Poltica
Educacional e Trabalho, pelo apoio e incentivo para que esta tese se
concretizasse. O que eu no poderia deixar de registrar o quanto os
GEPETISTAS sabem fazer uma boa festa. Vocs so fantsticos,
aliam estudo e diverso, imprimindo qualidade s duas atividades.
A Professora Valeska Nahas Guimares, sempre to perto,
torcendo, incentivando.
Ao meu pai, Fermino, e minha me, Nicette, por quem sou
apaixonada, pelo orgulho e torcida com que sempre viram os meus
estudos.
minha irm, Eliana, que outra paixo da minha vida, pelo
apoio e incentivo e, ao meu cunhado Ulisses, pessoa especial, pela
torcida para que esta tese, enfim, se concretizasse. Agora teremos mais
tempo para nos dedicarmos aos ensaios culinrios.
A Mara e a Ktia pela presena em muitos momentos importantes
nesse percurso, principalmente nos gostosos bate-papos.
Aos colegas da linha Trabalho e Educao pelas discusses
frutferas no decorrer das disciplinas cursadas, em especial, a Vnia e ao
Rafael que se tornaram presentes virtualmente.
A Snia, Patrcia e Bethania, secretrias do PPGE/UFSC/CED,
por respeitarem meus limites em subir escadas, facilitando o acesso aos
documentos.
Ao Senac/SC por abrir espao aos meus conhecimentos.

xi

A idia de que cada modo de produo tem uma


histria prpria inerente ao materialismo
histrico, pois o progresso sistemtico da
sociedade de um modo de produo para outro s
pode ser teorizado em termos de amadurecimento
das contradies de um modo de produo, as
quais o enfraquecem e lanam as bases para o
novo modo de produo.
(Bottomore, 2001)

xii

xiii
RESUMO
Na ltima dcada do sculo XX, a autoajuda foi colocada em evidncia.
A proliferao de discursos exaltando o poder do indivduo na resoluo
de seus problemas e a necessidade de aprender a ser um novo
trabalhador foi enfatizada. Assim, o objetivo desta pesquisa investigar
o carter ideolgico do discurso de autoajuda na formao de um
trabalhador de novo tipo, tendo em vista explicar seu papel na
construo da hegemonia. Para tanto, definiram-se como objetivos
especficos: estudar os princpios constitutivos do discurso da autoajuda
voltados ao trabalho em trs momentos distintos: gnese, no sculo
XIX, sob os impactos da revoluo industrial, primeira metade do
sculo XX, com o fordismo, e dcadas finais do sculo XX e alvorecer
do XXI; identificar quais os traos caractersticos do homem de novo
tipo demandado pelo capitalismo nestes perodos histricos e as
estratgias de divulgao destas caractersticas por meio de duas fontes:
os discursos de autoajuda e os relatrios da UNESCO. Analisaram-se os
elementos centrais das recomendaes dos gurus da autoajuda, os
princpios para aprender a ser um homem de novo tipo requerido pelo
capitalismo nos diferentes perodos histricos. Procurou-se evidenciar
que este processo ocorre por fora, mas tambm por dentro da escola,
analisando como estratgias e princpios da autoajuda so reproduzidos
nos Relatrios Faure e Delors, patrocinados pela UNESCO, e difundidos
mundialmente para reformar a educao. Duas foram as questes
norteadoras do presente estudo: que concepes de mundo, valores,
condutas os livros de autoajuda divulgam? De que forma a autoajuda
contribui para a consolidao de novos padres necessrios
sociabilidade burguesa exigida para o trabalhador no sculo XXI?
Adotou-se o referencial terico-metodolgico de Antonio Gramsci para
discutir a hegemonia e a difuso de novos modos de pensar, sentir e agir
condizentes sociabilidade do capital e de Norman Fairclough para
explicar a autoajuda como um discurso ideolgico. Trata-se de uma
pesquisa sobre a anlise do discurso de autoajuda, compreendendo o
discurso como texto, prtica discursiva e prtica social. As categorias
privilegiadas na anlise foram as concepes de mundo, homem,
trabalho e educao. Deste estudo concluiu-se que: a) o discurso de
autoajuda que difunde novos modos de ver e agir no trabalho, fazer
escolhas, vencer o medo e ensinar a ser tambm est presente nos
relatrios da UNESCO; b) a anlise da literatura de autoajuda permite
entender esse discurso como um elemento importante para a construo

xiv
da hegemonia, visto que tambm influencia sobre o modo como as
pessoas pensam, sentem e agem no trabalho; c) a autoajuda contribui
para a consolidao de novos padres necessrios sociabilidade
burguesa exigida para o trabalhador em tempos de neoliberalismo; e d) o
capital, ao longo de sculos, vale-se da autoajuda para realizar a
(con)formao de um trabalhador de novo tipo.
Palavras-chave:
Hegemonia.

Trabalho

educao.

Autoajuda.

Discurso.

xv
ABSTRACT
Self-help came to the fore in the last decade of the 20th. Century with the
proliferation of discourses exalting the power of the individual to
resolve his/her problems and the necessity to learn to be a new
employee being prominent. Thus, the objective of this work was to
investigate the ideological character of the discourse of self-help in the
development of a new employee, with a view to explaining its role in
the construction of hegemony. To this end, the following specific
objectives were defined: 1) to study the constitutive principles of the
discourse of self-help oriented towards work at three distinct times
genesis, in the 19th. Century, with the impact of the industrial revolution;
in the first half of the 20th. Century, with Fordism; and in the last
decades of the 20th. Century and the dawn of the 21st. Century; 2) to
identify the defining traits of the new human demanded by capitalism
in these historical periods and the strategies for the promotion of these
traits through two sources: the self-help discourses and UNESCO
reports. The central elements of the recommendations of the self-help
gurus were analysed, the principles for learning to be a human of the
new type required by capitalism in different historical periods. This
work sought to demonstrate that the process occurs not only out of
school but also within, analysing how strategies and principles of selfhelp are reproduced in the Faure and Delors Reports, sponsored by
UNESCO, and promoted worldwide to reform education. Two questions
were directed by the present study: what conceptions of the world,
values, and conduct do self-help books promote? In what way does selfhelp contribute to the consolidation of new standards required for the
bourgeois sociability demanded from the employee in the 21st. Century?
The theoretico-methodological reference of Antonio Gramsci was
adopted to discuss the hegemony and the spread of new ways of
thinking and acting that lead to the sociability of capital, and Norman
Fairclough was employed to explain self-help as an ideological
discourse. The work comprised analytical research on the discourse of
self-help, including discourse in the form of text, discursive practice and
social practice. The categories that were the focus of the analysis were
conceptions of the world, humankind, work and education. The
conclusions of this study are: a) the discourse of self-help that promotes
new ways of seeing and acting in the workplace, of making choices,
overcoming fear and teaching to be also is present in the UNESCO
reports; b) analysis of the self-help literature enables understanding of

xvi
this discourse as an important element in the construction of hegemony,
given that it also influences the way that people think and act in the
workplace; c) self-help contributes to the consolidation of new standards
required for the bourgeois sociability demanded of the employee in
times of neoliberalism; and d) capital has, over the centuries, made use
of self-help to achieve the conformity of a new employee.
Key words: Work and education. Self-help. Discourse. Hegemony.

xvii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 O manuscrito na parede

266

xviii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Categorias analticas propostas no modelo
tridimensional
Quadro 2 Seleo de livros de autoajuda e respectivos autores
Quadro 3 Seleo de livros de autoajuda de Samuel Smiles
Quadro 4 Seleo de livros de autoajuda de Dale Carnegie
Quadro 5 Seleo de livros de autoajuda atuais e respectivos
autores.
Quadro 6 Membros da Comisso Internacional para o
desenvolvimento da Educao

59
64
102
183
222
278

Quadro 7 Membros da Comisso da Unesco sobre Educao


para o Sculo XXI
311

xix
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACM
ASME
CFESP
FNUAP
FINEP
IDORT
MIT
OCDE
OIT
TVI
UNESCO
UNICEF
URSS

Associao Crist de Moos


American Society of Mechanical Engineers
Centro Ferrovirio de Ensino e Seleo de Trabalho
Fundo de Populao das Naes Unidas
Financiadora de Estudos e Projetos
Instituto de Organizao Racional do Trabalho
Massachussets Institute of Technology
Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento
Econmico
Organizao Internacional do trabalho
Televiso Independente
Organizao das Naes Unidas para a Educao,
Cincia e Cultura
Fundo das Naes Unidas para a Infncia
Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

xx
SUMRIO
1 INTRODUO
1.1 OBJETIVOS
1.2 AUTOAJUDA: UM FENMENO DE VENDA
1.3 DIVERSOS OLHARES SOBRE A AUTOAJUDA
1.4 AS PESQUISAS SOBRE AUTOAJUDA
1.5 AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
1.6 SITUANDO A PROBLEMTICA DE PESQUISA
1.7 HIPTESES
1.8 CONSIDERAES SOBRE O REFERENCIAL
TERICO-METODOLGICO
1.8.1 Pressupostos terico-metodolgicos para anlise do
discurso de autoajuda
1.8.2 Consideraes metodolgicas
1.9 ESTRUTURA DA TESE
2 AUTOAJUDA EM TEMPOS VITORIANOS: O DEVER E
A MORAL
2.1 TRABALHO EM TEMPOS VITORIANOS
2.2 VOLTANDO S ORIGENS: UM POUCO SOBRE
SAMUEL SMILES
2.3 REFORMA INDIVIDUAL PARA O PROGRESSO
SOCIAL: A DIFUSO DAS IDEIAS DE SMILES
2.4 CONHECENDO A OBRA AJUDA-TE: A GNESE DA
AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
2.5 O TRABALHO APERFEIOA O CARTER
2.5.1 O elogio ao carter
2.5.2 O exemplo o mais eficaz dos mestres: a educao
do carter
2.5.3 O carter didtico das aes exemplificadoras
2.5.3.1 As biografias como recurso pedaggico

25
29
30
33
35
41
44
46
47
53
58
65

67
68
72
81
86
97
102
108
109
112

xxi
2.6 AJUDA-TE E DEUS TE AJUDAR: AUTOAJUDA,
TICA PROTESTANTE E O ESPRITO DO
CAPITALISMO
2.6.1 O trabalho como caminho virtuoso
2.7 NO SOMOS SENO AQUILO QUE NS
FAZEMOS: A EDUCAO FORMAL EM SMILES
2.8 O TRABALHADOR DE CARTER EM TEMPOS
VITORIANOS
2.9 A AUTOAJUDA DE SMILES
3 AUTOAJUDA E A PRODUO DO TRABALHADORMASSA
3.1 EFEITOS DA RACIONALIZAO TAYLORISTA
3.1.1 A arte de ser produtivo
3.1.2 Do cronmetro esteira rolante
3.1.2.1 Fordismo: alm da produo
3.2 QUALIFICAO E CONTROLE DO TRABALHADOR
3.3 NO CRITIQUE, NO CONDENE, NO SE
QUEIXE: AUTOAJUDA NA FASE UREA DO
FORDISMO
3.3.1 Um modelo que se generaliza: um pouco sobre Dale
Carnegie
3.3.2 Mobilizar pessoas para um novo modo de pensar e
agir
3.3.3 Serenidade para aceitar as coisas que no posso
mudar: concepo de sociedade/mundo de Carnegie
3.3.4 Aprendemos fazendo: concepo de trabalho e
educao
3.3.5 Modelos de excelncia: a pedagogia de Carnegie
3.4 A AUTOAJUDA DE CARNEGIE
4 EM TEMPOS DE FLEXIBILIDADE ... SE NO MUDAR,
MORRERS!
4.1 CONTEXTUALIZANDO AS MUDANAS

114

122
124
137
142

145
146
152
160
163
172
178

183
186
187
191
196
199

202
203

xxii
4.2 REQUISITOS TCNICOS E COMPORTAMENTAIS
ESPERADOS DO TRABALHADOR
4.2.1 Formao flexvel
4.3 NEOLIBERALISMO E A FLEXIBILIZAO DAS
RELAES DE TRABALHO
4.4 A PRODUO DO TRABALHADOR FLEXVEL
4.5 AS DECISES SOBRE AS ESCOLHAS SO
SOMENTES SUAS!
4.6 O DISCURSO NOS BEST SELLERS DE AUTOAJUDA:
DICAS DOS GURUS ATUAIS
4.6.1 Empregos em baixa? Adote uma atitude positiva
4.6.2 Empregabilidade em alta: seis pilares e um check-up
4.6.3 A autoajuda de Minarelli
4.6.4 Sucesso consequncia do trabalho. Quem se
mantm como est, ficar para trs!
4.6.5 A vida nos devolve o resultado da nossa
competncia
4.6.6 A resposta est a dentro de voc: a coleo de frases
de Shinyashiki
4.6.7 A autoajuda de Shinyashiki
4.6.8 Se voc no mudar, morrer
4.6.9 A coleo de frases de Spencer Johnson
4.6.10 A autoajuda de Johnson
4.7 MORAL DA HISTRIA
5 LIES DA UNESCO PARA EDUCAR O HOMEM DE
NOVO TIPO
5.1 RELATRIO APRENDER A SER
5.1.1 Edgar Faure e os membros da Comisso
5.1.2 Da estrutura textual do Relatrio Aprender a ser
5.1.3 Considerando outros elementos na construo do
discurso
5.1.4 A fora dos verbos
5.1.5 Metforas

205
207
209
215
220
222
223
226
232
235
243
250
252
256
263
267
269

273
274
275
279
281
284
287

xxiii
5.1.6 Concepo de mundo
5.1.7 Educao para a formao de um homem de novo
tipo
5.1.8 Atitudes e valores: demandas do mundo do trabalho
ps anos 1970
5.1.9 Professor: motivador e controlador da aquisio do
saber
5.1.10 A fora do exemplo: aprendizagem pela experincia
5.2 ANLISE DO RELATRIO DELORS
5.2.1 Jacques Delors e os membros da Comisso
5.2.2 Da estrutura textual do Relatrio Delors
5.2.3 A fora dos verbos
5.2.4 Metforas e fbulas
5.2.5 Concepo de mundo
5.2.6 As demandas do mundo do trabalho para o sculo
XXI: atitudes e valores
5.2.7 Concepo de educao
5.2.8 Substituir a esperana de um emprego pela
criao de empregos:
a relao educao e trabalho
5.2.9 Professores, educao e mundo do trabalho
5.3 LIES DA UNESCO PARA APRENDER A SER
6 CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS

290
295
301
303
305
308
309
314
316
321
323
326
329
332
340
347
353
362

xxiv

25
1 INTRODUO
A proposta de estudar o discurso de autoajuda nas relaes de
trabalho constitui uma preocupao que remonta aos anos de 1990,
quando trabalhei com a organizao de eventos empresariais voltados
motivao de trabalhadores. Chamava a ateno o forte apelo que os
promotores dos eventos faziam em torno do nome de alguns conhecidos
autores da rea da gesto empresarial que a mdia denomina de gurus
da autoajuda. Era impressionante a mobilizao que tais autores
provocavam junto ao pblico ouvinte, como tambm, impactava o
grande nmero de livros que vendiam aps cada palestra. Entretanto, o
que mais despertava curiosidade era a comoo dos participantes ao
sarem daqueles eventos. Situaes dessa natureza tornaram-se
recorrentes, despertando o interesse por estudar o fenmeno da
autoajuda nas relaes de trabalho.
Ingressei no Curso de Mestrado no Programa de Ps-Graduao
em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina em 2003,
disposta a investigar a referida temtica. Este espao privilegiado de
estudos, discusso e reflexo propiciou a elaborao da dissertao
intitulada Mudar para manter: a autoajuda como a nova pedagogia do
capital, sob a orientao de Lucdio Bianchetti. (TURMINA, 2005).
Naquele estudo, buscou-se analisar os contextos de surgimento e
revalorizao da autoajuda nas relaes de trabalho e algumas
implicaes para a educao.
A partir de 1990, uma proliferao de discursos e publicaes de
diversos setores popularizou os novos requisitos educacionais dos
trabalhadores demandados pela produo flexvel. Com a reestruturao
produtiva, alteram-se no somente a base tcnica de produo como
tambm as exigncias de formao do trabalhador. Visando
acumulao, o capital tem procurado dar respostas s suas crises criando
formas mais eficazes de racionalizao, uso e controle da fora de
trabalho. Os desdobramentos desse reordenamento do processo
produtivo para as relaes de trabalho e educao podem ser
visualizados nos esforos empenhados pelos capitalistas para a
construo de um trabalhador de novo tipo. Reformas educacionais
procuram garantir que a formao escolar inclua os saberes e
competncias supostamente necessrios sobrevivncia em um mercado
de trabalho em constante mutao. Esse movimento remete observao

26
gramsciana de que, em cada estgio de seu desenvolvimento, a
sociedade forma os indivduos de que necessita para se reproduzir.
Em Americanismo e fordismo, Gramsci (1980) assinala que na
produo racionalizada ocorre um processo de valorizao do capital
que se efetiva pelos processos pedaggicos concebidos e veiculados
para garantir novas formas de organizao do trabalho com o objetivo
de manter as relaes capitalistas de produo. Isso d-se nos modos de
vida, atitudes, valores e comportamentos considerados necessrios para
a reproduo do modo de produo capitalista. A pedagogia da
hegemonia1, nos anos de fordismo e americanismo constituiu em
alargamento da cidadania poltico-social, de modo a impedir que o nvel
de conscincia e de organizao das classes dominadas ultrapassasse o
segundo momento econmico-corporativo [solidariedade] das relaes
de fora poltica. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 36). O capital
procura, em cada momento histrico, formar os indivduos necessrios
s suas demandas de valorizao.
Sob essa perspectiva, a autoajuda pode ser entendida como uma
prtica educativa que tem como horizonte a formao de uma complexa
e bem-articulada sociedade civil2, na qual o indivduo particular se
1
De acordo com Neves e SantAnna (2005, p. 27), na condio de educador, o Estado
capitalista desenvolveu e desenvolve uma pedagogia da hegemonia, com aes concretas na
aparelhagem estatal e na sociedade civil. Esse conceito, embora no tenha sido utilizado
explicitamente por Gramsci, por ele inspirado. Roberto Leher (2010), ao prefaciar Direita
para o social e esquerda para o capital: intelectuais na nova pedagogia da hegemonia no
Brasil, assinala que a sociedade civil concebida como locus do dilogo, das iniciativas
criadoras, do comunitarismo e da busca de uma vida melhor, autnoma (ou relativamente
autnoma) em relao ao Estado e ao mercado. Contudo, a participao dos chamados
excludos na sociedade civil no espontnea, dependendo das iniciativas dos aparelhos
privados de hegemonia, por meio de uma pedagogia especifica que vem sendo forjada pelo
capital: a pedagogia da hegemonia.
2
Segundo Acanda (2006, p. 160), Gramsci foi o primeiro pensador poltico a resgatar o tema
da sociedade civil do esquecimento relegado pela ideologia liberal a partir de meados do sculo
XIX. O pensador italiano no apenas utilizou o conceito de sociedade civil, mas, que, alm
disso, converteu-o elemento central de sua teoria. Interpretou-o, porm, de uma forma diferente
da tradicionalmente usada no pensamento liberal, reconstruindo seu contedo e o significado
de sua utilizao nos limites de uma reflexo crtica da sociedade. Ainda de acordo com
Acanda (2006, p. 166), a idia de sociedade civil surgiu na ideologia burguesa como
expresso do interesse dessa classe de limitar o poder de um Estado ainda no burgus e de
delimitar uma esfera de ao legtima e resguardada de sua autoconstituio como classe
enquanto sujeito social. A partir de 1848, a posio da burguesia na trama social mudou
radicalmente. Desse modo, se o conceito de sociedade civil fora uma palavra de ordem da
luta da burguesia no perodo em que defendia seu direito de se associar para resguardar seu
espao e ao e de troca econmicas [...], agora quando se tentava impedir o acesso a esses
espaos de associao dos grupos sociais opositores, sociedade civil tornou-se um tema

27
governe por si sem que, por isso, esse autogoverno entre em conflito
com a sociedade poltica, tornando-se, ao contrrio, sua continuao, seu
complemento orgnico. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 26). O
Estado capitalista, sob a hegemonia burguesa, vem disseminando a
necessidade de uma formao adaptada a uma civilizao que precisa
construir e fortalecer novos valores e saberes diante das mudanas
qualitativas na forma de organizao do trabalho, o que implica
desenvolvimento de uma nova pedagogia da hegemonia3. (NEVES;
SANTANNA, 2005). A educao pblica desempenha funo
estratgica na formao de um homem adequado acumulao flexvel
do capital. Em tempos de neoliberalismo, a nova pedagogia da
hegemonia visa redefinio do padro de politizao fordista.
Nesse sentido, poder-se-ia pensar que a divulgao em massa dos
princpios da autoajuda constitui uma das formas de disciplinamento,
uma estratgia do capital para educar os indivduos para o consenso,
para aceitao e adaptao s mudanas. Difunde-se a ideia de que os
excludos socialmente deveriam ser empoderados para auto-prover
sua empregabilidade e insero. A incluso dependeria de aes
especficas, de uma mobilizao pela fora de vontade, desenvolvendo
comportamentos almejados pelo mercado.
O discurso de autoajuda nas relaes de trabalho tem como
propsito moldar o indivduo, torn-lo competente visando o mximo de
eficincia, eficcia e produtividade. Os livros de autoajuda que enchem
as prateleiras de bancas e livrarias potencializam a reproduo e a
manuteno do capital, procurando incutir a responsabilizao no
trabalhador. Assim, os autores desse gnero espalham receitas, induzem
incmodo para essa mesma burguesia. (ACANDA, 2006, p. 167). Para Carlos Nelson
Coutinho (1999, p. 121), o conceito de sociedade civil se configura como portadora material
da figura social da hegemonia, como esfera de mediao entre a infra-estrutura econmica e o
Estado em sentido restrito. Assim, para Gramsci (1979, p. 11), sociedade civil o conjunto
de organismos chamados comumente de privados [...] que correspondem funo de
hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e quela de domnio direto
ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurdico. Trata-se ento, de um
conjunto de instituies nas quais elaboram as concepes de mundo pelas quais a sociedade
se representa a si mesma (suas lutas e aspiraes), onde se organizam os grupos sociais e se
realiza a direo poltica e cultural da sociedade. (SCHLESENER, 2001, p. 18).
3
Na formulao de Neves e SantAnna (2005, p. 35), a nova pedagogia da hegemonia atua no
sentido de restringir o nvel de conscincia poltica coletiva dos organismos da classe
trabalhadora que ainda atuam no nvel tico-poltico para o nvel econmico-corporativo. Mais
precisamente, a nova pedagogia da hegemonia estimula a pequena poltica em detrimento da
grande poltica, propiciando, contraditoriamente, classe trabalhadora a realizao da grande
poltica da conservao.

28
padres de pensamento, inculcam modelos, visam construir novas regras
de sociabilidade, de trabalho, induzem o indivduo a incorporar novos
valores. Na anlise de Chagas (2001, p. 34), a literatura de autoajuda
prope novos modos de estar no mundo, de pensar, de sentir e agir,
promovendo uma idealizao que vem intensificar a desintegrao da
vida comunitria medida que refora o individualismo. Alguns
autores insistem na linha do empoderamento, do esfora-te e
conseguirs.
Nessa perspectiva, disseminam-se exemplos de pessoas e
experincias exitosas, edificantes, exaltando ideais de competncia,
sucesso, empregabilidade, empreendedorismo que so construdos e
apresentados como modelos prticos de ao individual. A autoajuda
vale-se de exemplos e situaes transpostos de contextos muito
diversos. Solues de problemas do mundo dos esportes, por exemplo,
so mecanicamente transferidas para a ambincia organizacional.
Recomendaes padronizadas so traadas para trabalhadores,
desempregados, executivos, empresrios, professores, pais, empresas,
escolas e pessoas em crise, ou seja, servem para as mais variadas
situaes. Mas o que o pblico-alvo dos livros de autoajuda tem em
comum? Insatisfao com a situao atual, a necessidade de superar
obstculos, a busca de uma receita aplicvel para sanar diferentes males
com os quais preciso lidar.
Tambm recorrente nessa literatura a insistncia na necessidade
de adaptabilidade mudana. Esta tratada como ao individual. A
mudana de que se fala uma mudana de comportamento frente nova
realidade das relaes de trabalho reduo de postos de trabalho,
competio, obsolescncia, descartabilidade. Adaptar-se permitir ao
trabalhador manejar com maior habilidade as instveis condies sociais
e profissionais que desafiam a formao profissional em tempos de
reestruturao produtiva.
Desse modo, em um perodo de intensas e aceleradas mudanas
sociais, polticas, econmicas, culturais e profissionais, a formao de
um trabalhador de novo tipo ganha popularidade. No lugar de modelos
de trabalhadores massificados da Administrao Cientfica ou do
indivduo reativo e modelvel, como prega a Escola de Relaes
Humanas, o discurso na atualidade fala de um trabalhador que incorpore
ideais propalados pela autoajuda: flexibilidade, autonomia, talento,
adaptabilidade, criatividade, capacidade de trabalhar em equipe, aceitar
mudanas, empreender, entre outros. O trabalhador de novo tipo

29
almejado em tempos de neoliberalismo resiliente e ajustvel, o que
justifica o desenvolvimento de uma concepo de mundo to
consensual quanto seja possvel, tendo em vista as necessidades de
valorizao do capital. (KUENZER, 2002b, p. 82). A despeito de tais
nfases, saber agir e reagir com pertinncia; saber combinar os recursos
e mobiliz-los num contexto; saber transferir, saber aprender a aprender;
saber se engajar (RAMOS, 2001, p. 250) so atributos veiculados para
a formao de um trabalhador minimamente competente necessrio
reproduo do capitalismo contemporneo.
Novos valores, atitudes e habilidades so colocados em
circulao por intermdio das publicaes de autoajuda, cujo discurso
ajuda na adeso popular ao projeto em curso de formao de um
trabalhador de novo tipo, contribuindo para o processo de difuso de
novas concepes de mundo. (GRAMSCI, 1984).
Diante disso, o discurso de autoajuda torna-se objeto de ateno e
anlise, a partir do qual levantaram-se alguns questionamentos: que
concepes de mundo, valores, condutas, os escritores de autoajuda
divulgam? De que forma a autoajuda contribui para a consolidao de
novos padres necessrios sociabilidade burguesa exigida para o
trabalhador no sculo XXI?
1.1 OBJETIVOS
Como objetivo geral, pretende-se investigar o carter ideolgico
da autoajuda na formao de um trabalhador de novo tipo, tendo em
vista explicar o papel do discurso da autoajuda para a construo da
hegemonia. Para tanto, definiram-se os objetivos especficos: estudar os
princpios constitutivos do discurso da autoajuda voltados ao trabalho
em trs momentos distintos: gnese, no sculo XIX, sob os impactos da
revoluo industrial; primeira metade do sculo XX, com o fordismo, e
dcadas finais do sculo XX e alvorecer do XXI; identificar quais os
traos caractersticos do homem de novo tipo demandado pelo
capitalismo nesses perodos histricos e as estratgias de divulgao de
tais caractersticas por meio de duas fontes: os discursos de autoajuda e
os relatrios da UNESCO. Procurou-se analisar os elementos centrais
das recomendaes dos gurus da autoajuda e os princpios para
aprender a ser um homem de novo tipo requerido pelo capitalismo nos
diferentes perodos histricos. Buscando evidenciar que este processo
ocorre por fora, mas tambm por dentro da escola, procurou-se discutir a

30
incorporao dos princpios de autoajuda nos Relatrios de educao
Faure e Delors patrocinados pela UNESCO e difundidos mundialmente
para reformar a educao.
1.2 AUTOAJUDA: UM FENMENO DE VENDA
Na ltima dcada do sculo XX, a autoajuda foi colocada em
evidncia. A proliferao de discursos exaltando o poder do indivduo
na resoluo de seus problemas foi enfatizada em vrias reas como
educao, sade, relaes de trabalho, relaes pessoais, entre outras.
No contexto da acumulao flexvel, as teorias gerenciais
invadiram no s o mundo dos negcios, mas tambm as vrias esferas
da vida social. Assiste-se ao nascimento do que ficou conhecido como
circuito dos gurus da administrao (MICKLETHWAIT;
WOOLDRIDGE, 1998, p. xi), responsvel pela difuso da indstria da
autoajuda. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 1998, p. xii). Os
administradores passaram a produzir receiturios, disseminar
aconselhamentos que vo desde a organizao da mesa de trabalho
reavaliao da vida amorosa. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE,
1998, XII). Profissionais com formaes em outras reas tambm se
tornaram autoridades na rea das relaes de trabalho, determinando
como o indivduo deve conduzir sua vida profissional, a exemplo de
Shinyashiki e Lair Ribeiro, ambos mdicos de formao.
A retrica presente nesses manuais sempre a mesma: afirma-se
que o mundo do trabalho mudou, que as empresas tambm precisam
mudar, e para que isso se viabilize, o trabalhador precisa mudar. Tais
mudanas so impulsionadas por dois sentimentos muito evidenciados
nos livros de autoajuda: medo e ambio. Medo de perder o emprego e
ambio para se tornar um profissional de sucesso. Nessa literatura
constri-se um modelo de profissional ideal, sem medos para ousar,
criar, ser ativo, pr-ativo. Mostram-se caminhos que o indivduo deve
trilhar para adquirir ou reforar essas caractersticas.
Diante disso, pode-se entender por que a partir dos anos de
1990 que a autoajuda se tornou um fenmeno de vendas. Maestri, em
entrevista ao vice-presidente da Cmara Brasileira do Livro, assinala
que
as vendas de livros de auto-ajuda saltaram de 1,1
para 2,1 milhes de exemplares, em 97-98. A

31
impressionante expanso ocorreu apesar da queda
de 551 para 527 ttulos lanados. No Brasil, a
venda da auto-ajuda iniciou-se em 87, deu um
salto nos anos 90 - com o confisco de Collor de
Melo - e estabilizou-se com o Plano Real. Em
94, 107 ttulos venderam 410 mil livros. Em 96,
foram lanados 268 ttulos e vendidos 1,4 milho
de exemplares. O pico de vendas ocorreu em 98.
Para o Sr. Grossi, a exploso da auto-ajuda d-se
em detrimento da "literatura tradicional" e a
explicao de seu sucesso simples: [...] em
momentos de crise, o leitor pra um pouco de
sonhar, pe os ps no cho e procura as obras
que vo ensinar-lhe a melhorar sua vida. Se
discutvel que tais obras resolvam as dificuldades
dos leitores, indiscutvel que solucionam as do
senhor Grossi, diretor de marketing da Best Seller.
Atualmente, 50% dos lanamentos da editora so
de auto-ajuda, 30% administrativos e 20%
romances femininos. (MAESTRI, 2003, p. 3).

Se os nmeros de venda so significativos em fins do sculo XX,


tambm os primeiros anos do novo milnio mostram que os ndices
continuam crescendo e que o segmento da autoajuda constitui
efetivamente uma indstria.
O epicentro do fenmeno so os Estados Unidos.
Segundo a empresa Marketdata, [...] todo o
mercado de autoajuda, incluindo cursos, palestras,
publicaes e outros produtos, cresceu 50% no
pas entre 2000 e 2004, quando chegou a US$ 8,6
bilhes. A empresa estima que esse total chegue a
US$ 12 bilhes em 2008. No Brasil, segundo a
Cmara Brasileira do Livro, em 2003, foram
produzidos 2,9 milhes de exemplares de 510
diferentes obras de autoajuda. Nmero
significativo diante da pesquisa Retrato da Leitura
no Brasil, que, em 2001, calculou haver no Pas
apenas 26 milhes de leitores ativos (aqueles que
tinham lido pelo menos um livro nos ltimos trs
meses). (LOBO, 2005, p. 1).

Dados atualizados sobre o nmero de livros de autoajuda


vendidos so escassos. No h informaes que mostrem se a autoajuda

32
para as relaes de trabalho vende mais do que autoajuda voltada a vida
amorosa, por exemplo. A falta de dados mais precisos no tira o mrito
do crescimento de venda desse gnero de literatura. Tanto assim, que a
profissionalizao da autoajuda ganhou reforo em 2004 com a criao
do Clube do Palestrante4, no qual os profissionais de diversas reas
recebiam formao apontando a importncia desse gnero no mercado
editorial. Naquele ano, no site do Clube5, definia-se como misso da
organizao:
Ser o centro de informaes, produtos, servios e
integrao entre palestrantes, treinadores,
consultores e as pessoas que fazem qualquer tipo
de apresentao em seu ambiente profissional.
Realizar cursos, treinamentos, workshops,
seminrios, congressos e demais eventos para a
capacitao desse pblico e para a divulgao de
novos produtos, servios e profissionais que
possam complementar seus conhecimentos e
atuao no mercado de trabalho. (CLUBE DO
PALESTRANTE, 2004 TURMINA, 2005, p. 37).

Nessa perspectiva, como j mencionado, profissionais com


formao nas mais diversas reas prescrevem aconselhamentos para a
construo de um tipo de trabalhador em que se busca fortalecer a
crena no poder da fora de vontade, do potencial individual no
exerccio da superao de obstculos, estes voltados s situaes de
desemprego, ou como administrar conflitos decorrentes das situaes no
mercado de trabalho. Esse ensinar a ser no se vincula educao
pelos livros, acadmica, mas se apoia em uma abundncia de exemplos
bem-sucedidos, fragmentos biogrficos, revelando outra faceta da
autoajuda: um senso eminentemente prtico6. So esses fundamentos
4
O objetivo da organizao desse Clube no se refere apenas capacitao do crculo de
palestrantes, mas pretende congregar em uma mesma associao os palestrantes de maior
destaque no Brasil. O Clube do Palestrante seria uma espcie de agente intermedirio na
relao gurus e empresrios, podendo substituir as agncias de eventos que so
tradicionalmente conhecidas no que concerne contratao de palestrantes para eventos de
vrias naturezas. Mais a respeito do Clube do palestrante, consultar Turmina (2005).
5
Atualmente, o site do Clube do Palestrante no est mais ativo, mas em pesquisa na rede
mundial de computadores possvel ter notcias de que o clube permanece ativo, pressupondose que mantenha outra forma de divulgao. Uma hiptese para o no funcionamento pode
ser o fato de tentar-se construir algo coletivo em um terreno onde o que conta o individual!
6
A noo de senso prtico pode garantir uma adaptao mnima ao curso provvel deste
mundo, por meio das antecipaes razoveis, ajustadas em largos traos ( margem de

33
pragmticos, que se pode supor, fazem com que o discurso de autoajuda
nas relaes de trabalho seja to atraente e palatvel aos consumidores7.
Outro aspecto que atrai o leitor para este tipo de literatura sua
situao de instabilidade e insegurana, circunstncia que ajuda a
explicar os recordes de vendas de conselhos aos trabalhadores sobre
como proceder diante da complexidade das relaes de trabalho.
Propaga-se um conjunto de receitas que visam ativar o potencial interior
de cada um.
As publicaes de autoajuda disseminam uma viso de mundo,
uma interpretao para a crise, para diversos tipos de problemas e
receitas para super-los. Esse movimento mgico capaz de levar do
fracasso ao sucesso centrado no indivduo, em sua perseverana, fora
de vontade e capacidade de desenvolver valores, atitudes, saberes e
habilidades necessrias na atualidade. Tal discurso veicula, tambm,
experincias bem sucedidas, histrias de sucesso, trajetrias exitosas
que ressaltam as caractersticas e os comportamentos almejados do
trabalhador de novo tipo, flexvel, eficiente, inovador, empreendedor,
autnomo e adaptvel.
1.3 DIVERSOS OLHARES SOBRE A AUTOAJUDA
A expresso autoajuda usada para categorizar as proposies
que ensinam o indivduo a desenvolver capacidades objetivas e
subjetivas relacionadas ao sucesso nos negcios, relacionamentos,
educao, sade, entre outros. Contudo, difcil precisar uma definio
para este conceito que, na atualidade, abarca uma diversidade de
significados, mas uma caracterstica que a autoajuda composta de
aconselhamentos, um guia de receitas, tipologias, orientaes, normas
de conduta para auxiliar o indivduo a resolver problemas em uma
determinada rea.
Na rede mundial de computadores, a autoajuda um dos temas
com maior nmero de sites8.
qualquer clculo), as possibilidades objetivas... (BOURDIEU, 1999, p. 284-285). No que se
refere ao discurso de autoajuda, a noo de senso prtico permite entender que, ao utilizar
exemplos relacionados aos casos de sucesso, o leitor consegue trazer para si, para a sua vida,
uma situao que foi vivida por outros.
7
Tendo cincia da ampla variedade de manuais destinados as mais diversas reas, neste estudo,
a ateno para livros de autoajuda voltados s relaes de trabalho com orientaes para o
desemprego, insero e reinsero do trabalhador no mundo do trabalho.

34
A noo de ajudar a si prprio refora a ideia de que por
caminhos individuais possvel encontrar a soluo dos problemas.
Assim, dependeria da fora de vontade e do empenho pessoal a
promoo do auxlio prprio. De acordo com Corso (1994 apud Chagas,
2001, p. 21), essa literatura prega a sada pelo sucesso individual e usa
como parmetro a performance e a insero efetiva do sujeito na
circulao pelos valores sociais estabelecidos.
A literatura de autoajuda pode ser caracterizada como um
fenmeno recente resultante da convergncia de processos histricos
complexos, dos quais no pode ser separado sua formao e seu sentido
em nossa sociedade, conforme ressalta Rdiger (1996, p. 11).
Dessa maneira, a autoajuda constitui um arcabouo de
aconselhamentos que, com o passar dos sculos, renovou seu repertrio
diante das necessidades de os indivduos mobilizarem-se s mudanas
nos processos de trabalho e na organizao da vida em sociedade.
Parece claro o esforo desmesurado por parte da indstria da autoajuda
de pr-fabricar caminhos certos, passos retos, subidas garantidas,
procedimentos infalveis, esquemas irrecusveis ao peso de muita
retrica, mas, sobretudo sob o apelo astuto de fundamentos cientficos.
(DEMO, 2001c, p. 69).
Nesse sentido, a literatura de autoajuda reconhecida como um
conjunto de pregaes normativas que fornece aconselhamentos e
formulaes uniformes para situaes heterogneas. A proposta presente
no discurso de autoajuda a promoo de um homem que coopera e se
ajuda, desde que consuma os manuais e execute as orientaes
prescritas.
Porm, preciso lembrar que as mudanas sociais decorrentes da
modernidade na passagem do teocentrismo para o antropocentrismo -,
evidenciaram o poder de ao e transformao dos homens por meio de
suas aes, atitudes e comportamentos. Tal condio vem sendo
acentuada com a nfase nas solues individuais propostas,
principalmente, com o neoliberalismo o que tem despertado a ateno
de alguns autores que comeam a olhar para a autoajuda no apenas
como uma prtica individual isolada, mas como uma prtica de
interveno nas relaes sociais. Este um fenmeno global que tem
mobilizado as pessoas de tal forma que recebeu ateno de
8

Em janeiro de 2010, a busca na internet pelo verbete autoajuda mostrava 28.700.000


entradas.

35
pesquisadores de vrias reas do conhecimento. Ao configurar-se em um
sistema de aes, o fenmeno da autoajuda constitui campo de anlise
para a Psicologia/Psicanlise com as preocupaes voltadas
subjetividade e o eu; na Filosofia com o movimento do individualismo;
na Economia e Administrao com a nova gesto do trabalho e
demandas de trabalhadores que atendam s necessidades do capitalismo
em tempos de reestruturao produtiva. Ainda, na Lingustica com
estudos que enfatizam questes relativas ao uso das escolhas lingusticas
para estabelecer conexes entre escritor-leitor, nas Cincias Sociais com
a investida em pesquisas sobre a intimidade ou subjetividade das
pessoas .(DEMO, 2001a). Enfim, assiste-se a uma exploso desse tipo
de literatura sobre a vida psquica e social das pessoas cujo objetivo
ltimo interferir, de alguma forma, na conduta humana.
1.4 AS PESQUISAS SOBRE AUTOAJUDA
Dos estudos que visam cercar e compreender a autoajuda,
destaca-se o trabalho de Rdiger (1996), autor de Literatura de autoajuda e individualismo. A proposta central do livro reconstituir de
maneira tpico-ideal as condies histrico-universais que presidiram
formao dessas prticas e as programaes de conduta que elas tm
difundido socialmente. (RDIGER, 1996, p. 9). Analisando um
conjunto dessas obras, Rdiger busca compreender o significado dessa
espcie de textos na montagem de nossa civilizao. A tarefa
empreendida em sua pesquisa incidiu na anlise de apenas uma das
dimenses constitutivas da modernidade: o movimento combinado de
abstrao social do sujeito e desenvolvimento do individualismo.
(RDIGER, 1996, p. 9).
A literatura de autoajuda caracterizada como um conjunto de
relatos, de manuais, de textos, s vezes multimdia que nos ensina como
conduzir a vida, sobrepujar a depresso, manejar com pessoas, exercitar
a sexualidade, parar de fumar, prosperar financeiramente, etc.
(RDIGER, 1996, p. 9). O autor resume os propsitos dessa literatura,
afirmando tratar-se de um
conjunto textualmente mediado de prticas atravs
das quais as pessoas procuram descobrir, cultivar
e empregar seus supostos recursos interiores e
transformar sua subjetividade, visando a conseguir

36
uma determinada posio individual supra ou
intramundana. (RDIGER, 1996, p. 11).

Vale mencionar, ainda, que a publicao de Rdiger tornou-se


referncia para os autores que analisam a autoajuda sob as mais diversas
perspectivas. Tanto assim, que a partir de 1996 raro encontrar artigos,
monografias, dissertaes, teses ou livros que deixem de fazer meno
pesquisa de Rdiger.
Arnaldo Chagas, professor de psicologia da UFSM, escreveu, em
2001, A iluso no discurso da auto-ajuda e o sintoma social, livro no
qual procura investigar o imaginrio social individualista da tica
contempornea. O autor associa o conhecimento da literatura de
autoajuda a uma psicologia popular que tem por objetivo o auxlio e
guia de incentivo e orientao para a vida de muitas pessoas.
(CHAGAS, 2001, p. 31) e, como psicologia popular, tornou-se
amplamente difundida e conhecida do pblico. O autor apresenta
tambm a tese de que os manuais de autoajuda possuem um carter
manipulativo de consumo, sendo as tcnicas, modelos e experincias
bem-sucedidas tidas como dispositivos de uma idealizao social
perfeita e adequada. (CHAGAS, 2001, p. 38). Em outra publicao do
mesmo autor, O sujeito imaginrio no discurso da auto-ajuda, Chagas
(2002, p. 149) ressalta que a autoajuda sustenta-se por uma receita de
perfeio que no se cumpre. Analisando o discurso de um dos
idelogos da autoajuda, Lauro Trevisan9, Chagas aponta que nesses
manuais, exploram-se os supostos recursos interiores, pelo poder
mental, visando ao potencial humano. (CHAGAS, 2001, p. 36). Nesse
livro, considerando o fenmeno de autoajuda e o sujeito imaginrio
constitudo nesse discurso, o autor analisa o paradoxo dos ideais de
autonomia na cultura moderna em que o autor reflete sobre o
imaginrio social individualista. (CHAGAS, 2002, p. 19).
Na obra Dialtica da felicidade, composto por trs volumes,
Pedro Demo aproveita o momento de grande exposio do tema para
explorar a questo de como a felicidade tem sido tratada. Das suas
publicaes - Dialtica da Felicidade: olhar sociolgico (2001a),
9

No Brasil, Lauro Trevisan autor de Best-Sellers da literatura de autoajuda aliando o poder


do pensamento positivo com lies religiosas, como o caso de: Voc tem o poder de alcanar
riquezas (1986), Voc pode se pensa que pode (1984). Esses livros superam a 20 edio. Alm
desses, o autor publicou outros livros como: O poder da inspirao (1982), A f que remove
montanhas (1985), O poder infinito da orao (1988), Sem pensamento positivo no h
soluo (1996).

37
Dialtica da Felicidade: insolvel busca de soluo (2001b) e Dialtica
da Felicidade: felicidade possvel (2001c), a autoajuda tratada como
parte de um movimento da indstria cultural que transforma emoo em
mercadoria. A literatura de autoajuda analisada como uma entre tantas
outras estratgias para alcanar a felicidade. Para ele, esse um discurso
sem fundamentao que impressiona pela extrema proliferao. O
autor alerta que o
uso do termo 'auto-ajuda' enganoso, porque, em
vez de apontar para a possibilidade de cada pessoa
reconstruir seu caminho, reproduz atrelamentos a
frmulas feitas, geralmente baratas. A auto-ajuda
sinaliza, assim, mais um estilo de ajuda
'automtica' do que ajuda a si mesmo. O trao
mais forte desse tipo de literatura parece ser a
sagacidade com que autores se aproveitam da
fragilidade de seres humanos destroados pelo
sofrimento e desespero, usando para tanto
instrumentao cientfica disponvel, seja na linha
de possveis ajudas, seja na linha da produo de
armadilhas que se utilizam da instrumentao
cientfica. (DEMO, 2001a, p. 13).

Alm disso, Demo (2001b, p. 43) refere que a autoajuda detm a


tendncia comprometedora de forjar a farsa de uma ajuda que busca
atrelamento ostensivo, invertendo o sentido da autonomia. Para tanto,
apela abusivamente para esquemas mgicos de conduta, como a
numerologia, os passos retos e crescentes, as receitas infalveis, as
certezas retricas. O discurso bem elaborado fortalece a crena de que,
seguindo passo a passo o receiturio, consegue-se o resultado desejado,
atingem-se as metas propostas ou resolve-se aquilo que considerado
problemtico e que aflige individualmente cada ser humano. Atravs
dos jarges que pretendem recompor a auto-estima, h promessas de que
mora dentro de cada indivduo, um guerreiro capaz de vencer os
percalos da trajetria de vida de cada um. A felicidade depende apenas
da prpria iniciativa10 [...], sobretudo seguir a autoajuda e mais ainda,
comprar livros e materiais. (DEMO, 2001c, p. 69).

10

Roberto Shinyashiki repete frequentemente, em suas palestras, que dentro de cada homem
existe uma linda obra de arte.

38
Um cardpio de ttulos de autoajuda est disposio nas
prateleiras de livrarias11 oferecendo prescries para atender vrios
aspectos da conduta humana. Essa disponibilidade despertou a ateno
de Tomaz Tadeu da Silva (2001), que percebe nesse excesso de
frmulas uma tentativa de colonizao da subjetividade. A conduta
humana minuciosamente governada, controlada, dirigida. (SILVA,
2001, p. 43). O autor conta que passou a pensar a relao entre educao
e pedagogia com a autoajuda. Em seu artigo Pedagogia e auto-ajuda: o
que sua auto-estima tem a ver com poder?, publicado em A educao
em tempos de globalizao, o autor persegue a regularidade nesses
discursos. A concluso de que tanto o discurso da educao e da
pedagogia quanto o da autoajuda possuem a mesma meta: Os dois tipos
de interveno tm como objetivo nos transformar em um determinado
tipo de pessoa. (SILVA, 2001, p. 44). A autoajuda, nesse sentido,
vista pelo autor, como uma forma de interveno na subjetividade.
(SILVA, 2001, p. 43).
A retrica presente no discurso de autoajuda tambm chamou a
ateno de Anna Flora Brunelli que, em fevereiro de 2004, defendeu sua
tese de doutorado intitulada O sucesso est em suas mos: anlise do
discurso de auto-ajuda. Segundo a autora, este discurso ganhou seus
contornos afirmando que o segredo para que qualquer um consiga
melhorar de vida, alcanar o sucesso, ganhar muito dinheiro, etc. est na
crena incondicional na realizao dos sonhos, do projeto de vida, dos
desejos etc. Assim, quem acredita que vai conseguir consegue, e quem
duvida no consegue. (BRUNELLI, 2004, p. 45). Esta particular
pedagogia sustenta que o indivduo capaz de desencadear, de
promover as mudanas necessrias em sua vida, j que se trata apenas
de uma questo de f, de crena absoluta e, essencialmente, de jamais
duvidar do poder que se tem de mudar a realidade. (BRUNELLI, 2004,
p. 45). Se a aposta na/da autoajuda centra-se na elevao da autoestima
das pessoas, parece proposital que haja certa omisso de aspectos
negativos ou de situaes reais que possam inviabilizar o poder
mobilizador de aes desse tipo de discurso. Ainda de acordo com
Brunelli (2004, p. 19), o ethos do discurso de auto-ajuda, alm de ser o
ethos do homem focado, tambm o do homem persistente que no
desanima diante dos problemas da vida. Ao contrrio, ele os considera,
11

Um caso exemplar o do livro Felicidade de Eduardo Giannetti (2002), disponvel nas


livrarias nos estandes de autoajuda quando tem, na verdade, uma perspectiva crtico-filosfica
acerca da relao entre civilizao e felicidade. O ttulo acaba servindo de chamariz para que as
lojas estimulem sua venda aos consumidores da literatura do gnero.

39
numa atitude que revela todo o seu otimismo, como oportunidades de
crescimento.
Heidi Marie Rimke (2000), em um artigo publicado na Cultural
Studies intitulado Governing citizens through self-help literature,
desenvolve sua anlise a partir da Teoria Social, pautando-se numa
perspectiva foucaultiana em que explora o movimento da literatura de
autoajuda contempornea destacando-a como uma estratgia poltica de
governo dos cidados. Essa literatura se converteria em uma forma do
recrutamento da subjetividade do indivduo para que este se desenvolva,
se autoaperfeioe e exera uma autonomia individual. Apropriando-se
do liberalismo democrtico e do neoliberalismo, como uma maneira de
ver o mundo individual e social, a auto-ajuda promove a idia que um
bom cidado cuida de si prprio ou de si prpria para evitar ou negar as
relaes sociais. (RIMKE, 2000, p. 68, traduo nossa). Na prtica, a
autoajuda resulta no gerenciamento da populao, facilitando o seu
controle, reduzindo a autonomia individual, ao invs de aument-la,
conforme exalta tal discurso. A autora diz ainda que a autoajuda uma
atividade que se caracteriza pelo voluntarismo e pela atitude
individualista.
Em 2005, Pedro Demo, ainda s voltas com a discusso sobre o
fenmeno da autoajuda, publicou Autoajuda: uma sociologia da
ingenuidade como condio humana. Nesse livro, o autor se prope
discutir esta relao dialtica, para elucidar se vivel precisar do
outro sem dele se tornar subserviente. O irnico que o conceito de
autoajuda, de si, aponta para a perspectiva correta ajudar-se, em vez de
ser ajudado. (DEMO, 2005, p. 11). Analisa, desse modo, o lado
problemtico da autoajuda, em especial na perspectiva da sociologia,
no s para afastar a solidariedade como efeito de poder, mas
principalmente para oferecer o que poderia ser uma teoria crtica da
autoajuda. (DEMO, 2005, p. 11).
Carla Martelli (2006), em Autoajuda e gesto de negcios: uma
parceria de sucesso, discute como se combina a dura realidade da gesto
empresarial com o mundo aparentemente adocicado da literatura de
autoajuda. Em sua anlise, mostra que a exploso do fenmeno da
autoajuda no mundo dos negcios pode ser explicada a partir de quatro
eixos principais:
1) a reflexividade radicalizada na sociedade
contempornea abre espao para a proliferao de

40
receitas e modelos de auto-ajuda; 2) os sistemas
de auto-ajuda tm uma funo teraputica
fundamental numa poca que vive os dilemas do
sofrimento organizacional; 3) os discursos de
auto-ajuda se constroem na confluncia de vrias
formas de racionalidade, respondendo a uma
tendncia especfica de nosso tempo; 4) os
discursos de auto-ajuda padronizam uma forma de
pensar ao construrem ideais de competncia,
eficincia, sucesso, felicidade e ao consolidarem
modelos de natureza, homem e sociedade que
invadem e penetram todas as esferas da vida
organizada (MARTELLI, 2006, p. 18).

Do exposto anteriormente, vale reter o quarto eixo pela nfase


aos modelos de homem e de sociedade cultuados por essa indstria
(MARTELLI, 2006, p. 85) que nas ltimas dcadas evidenciam e
reforam as mais diversas solicitaes para formar um homem com
caractersticas que atendam s demandas do capital.
Nesse olhar sobre as pesquisas produzidas a respeito do discurso
de autoajuda, consta tambm a tese de Nilza Carolina Cercato (2006),
As interfaces do discurso de auto-ajuda: anlise em autores brasileiros
na perspectiva discursiva. A anlise de Cercato centra-se num vasto
nmero de livros, com especial ateno aos livros O sucesso no ocorre
por acaso, de Lair Ribeiro, e O sucesso ser feliz, de Roberto
Shinyashiki, alm de publicaes de Augusto Cury e Lauro Trevisan.
Em seu estudo, a autora conclui que a autoajuda revela um discurso que
se constitui como autoritrio e institudo, visando conduzir o
auditrio/leitor a realizar uma transformao em sua vida, a partir de
sua capacidade pessoal, [...] para tanto, o orador/autor motiva atravs de
vrias estratgias nas quais as imagens se entrecruzam, a fim de
convencer das possibilidades individuais de cada ouvinte/leitor.
(CERCATO, 2006, p. 145).
Em estudo recente, em 2009, Arquilau Moreira Romo defendeu
a tese de doutorado pela Unicamp, intitulada: Filosofia, educao e
esclarecimento: os livros de autoajuda para educadores e o consumo de
produtos semiculturais. Nesse trabalho o autor busca compreender o
processo de exploso comercial do livro de autoajuda que vem sendo
disseminado no campo educacional, interpretando os contedos
destinados a professores. (ROMO, 2009, p. vi). O autor investe ainda

41
em reflexes sobre a sociedade de consumo, sobre as matrizes da
educao brasileira, sobre a histria do livro e as novas maneiras de
apresentao do livro como mercadoria, revestidas de uma aura de valor
absoluto. (ROMO, 2009, p. vi). Para esse estudo o autor investigou
um total de 20 obras de cinco autores que se "especializaram" em
escrever livros endereados ao universo docente. Romo conclui que as
frmulas prontas de oferta da felicidade, os manuais de sucesso, as
cartilhas de como dar aula e administrar conflitos indicam o quanto
preciso refletir sobre o que julgamos ser uma viso estreita do mundo
baseada na conscincia ingnua e no senso comum que v a educao
como autnoma. (ROMO, 2009, p. vi).
Da reviso da literatura crtica a respeito da literatura de
autoajuda, pode-se afirmar que esse discurso visa legitimar uma
hierarquia de valores disseminando-os amplamente, de tal forma, que as
receitas, manuais, palestras tornaram-se os meios de difuso de
determinada concepo de mundo.
1.5 AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
A autoajuda aplicada s relaes de trabalho, com tais
caractersticas, extensivamente disseminada nos anos 90 do sculo
XX, considerado perodo do boom de publicaes de materiais do
gnero com origem no sculo XIX, mais precisamente nos meados dos
anos de 1840, perodo no qual que Samuel Smiles12 (1812 1904) lana
as bases do que ficou conhecido como autoajuda para trabalhadores. No
sculo XIX, a autoajuda visava construir um tipo de trabalhador com
valores fundamentados na formao do carter perante uma nova
ordenao produtiva. Diante da afirmao dos preceitos liberais, Smiles
disseminava os valores necessrios quela poca em seu livro Self-help.
Apenas nos dois primeiros anos, foi registrada a venda de 35.000 cpias
e, em menos de 40 anos, mais de 280.000 exemplares haviam sido
vendidos somente na Inglaterra. Nos Estados Unidos, o livro tornou-se
referncia em bibliotecas de muitas escolas, inclusive no Brasil, segundo
pesquisa de Bastos (2000). Self-Help foi publicado e traduzido para o
holands, alemo, sueco, francs, portugus, croata, russo, italiano,
espanhol, turco, dinamarqus, chins, siams, rabe, japons e alguns
12

Em 1859, Samuel Smiles publica Self-Help (Ajuda-te). Vale registrar nosso agradecimento
ao Prof. Dr. Francisco Rdiger, que viabilizou o acesso referida publicao. Esta passar a
ser citada no presente trabalho pelo ano de publicao ao qual se tem acesso, 1893.

42
dialetos indianos, o que evidencia a disseminao dos preceitos da
autoajuda de Smiles pelo mundo.
Em artigo Leituras da ilustrao brasileira: Samuel Smiles
(1812-1904), Maria Helena Cmara Bastos (2000) mostra como a
autoajuda de Smiles influenciou a intelectualidade brasileira no sculo
XIX. Em sua pesquisa, a autora descobriu que Smiles um dos
pensadores que a elite ilustrada brasileira leu nesse sculo. O tipo
dominante da ilustrao brasileira era o tipo liberal.
A histria da ilustrao brasileira chega a
confundir-se com a histria do liberalismo
nacional, em que pesem as mltiplas e diversas
orientaes, com seu esforo civilizador, com o
seu trabalho para fazer do Brasil um pas, no s
cronolgica, mas realmente uma nao do sculo
XIX. (BARROS, 1959 apud BASTOS, 2000, p.
118).

Bastos descreve que em 1886, nas salas do Museu Escolar


Nacional, o professor Luiz Augusto dos Reis realiza uma conferncia
pedaggica sobre a Tese: Influncia da escola sobre a educao dos
alunos: meios ao alcance do professor para a formao do carter dos
seus discpulos (BASTOS, 2000, p. 120). Para essa aula, dentre os
livros indicados para leitura constavam trs publicaes de Smiles: O
poder da vontade; O carter; e O dever. Estes livros tambm estavam
includos, no catlogo do material e livros aprovados para o uso das
escolas primrias de 1891 (BASTOS, 2000, p. 120). Considerando a
grande circulao das obras de Smiles, Bastos procurou conhecer mais a
respeito das suas idias e o porqu de terem atrado a intelectualidade
brasileira, querendo entender em que medida essas idias fortaleceram
uma viso liberal conservadora? Como se deu a apropriao de suas
idias pela intelectualidade brasileira? (BASTOS, 2000, p. 120).
Em sua pesquisa, a partir da anlise dos livros acima
referenciados, a autora constatou que as ideias divulgadas nesses
manuais foram traduzidas no Brasil, para fortalecer um iderio de
valorizao do trabalho livre, numa sociedade em processo de abolio
da escravatura, que precisava (re)valorizar o trabalho, nas novas
perspectivas que assumia e que deveria assumir. (BASTOS, 2000, p.
133). Na concepo de Smiles, o trabalho se naturaliza, a partir do que
se mostrava como um senso comum universal, preparando o esprito da

43
elite ilustrada brasileira, para a ideologia do sucesso individual, como
fruto da persistncia, do esforo e do trabalho. (BASTOS, 2000, p.
133).
As ideias de Smiles tambm tiveram forte influncia no oriente,
conforme afirma Jeffrey Liker, professor da Universidade de Michigan,
autor de O modelo Toyota: 14 princpios de gesto do maior fabricante
do mundo (2005). No livro, o autor traa a histria da famlia Toyoda e
do sistema de produo. Com a leitura do livro, o que surpreendeu? As
ideias de Smiles tambm exerceram influncia na trajetria de Sakichi
Toyoda. Toyada constituiu uma trajetria como funileiro e inventor que,
ao final, resultaram em teares automticos altamente sofisticados,
conhecidos como as prolas Mikimoto e os violinos Suzuki. (LIKER,
2005, p. 37). Dentre as invenes de Toyada, havia um mecanismo
especial para interromper o funcionamento de um tear toda vez que o fio
se partisse, uma inveno que partiu para um sistema mais amplo que
se tornou um dos pilares do Sistema Toyota de Produo, chamado
automao13 (automao com um toque humano). (LIKER, 2005, p.
37). Toyada era engenheiro e, por seus feitos, ficou conhecido como o
Rei dos Inventores no Japo. De acordo com Liker (2005, p. 37), a
maior contribuio de Toyoda, foi sua filosofia e abordagem de
trabalho, baseadas no zelo pela melhoria contnua que foram basilares
para o desenvolvimento da Toyota.
Eis aqui um aspecto importante: interessante que essa
filosofia, basicamente o Modelo Toyota, tenha sido significativamente
influenciada pela leitura de um livro de Samuel Smiles publicado pela
primeira vez na Inglaterra em 1859, intitulado Self-Help14. Por que
Smiles exerceu em Toyoda tal influncia? O livro prega as virtudes do
trabalho sistemtico, do autodesenvolvimento, da economia. Em SelfHelp, provavelmente encontrou semelhanas com a construo de sua
trajetria de invenes, j que o livro composto com ilustraes de
fragmentos de histrias de grandes inventores da indstria, com
destaque a James Watt, com o seu motor a vapor. Com o excerto
biogrfico de Watt entre outros inventores, Smiles destaca que no

13
Essencialmente, de acordo com Liker (2005, p. 37), automao significa acrscimo de
qualidade enquanto se produz o material ou constatao de erro. Refere-se tambm criao
de operaes de equipamentos para que os funcionrios no fiquem amarrados s mquinas, e
sim livres para desempenhar tarefas que agregam valor ao produto.
14
O livro inspirou tanto Toyoda que uma cpia da obra est exposta em um museu instalado
em sua terra natal [Kosai, Japo] (LIKER, 2005, p. 37).

44
provinham de um dom natural, mas de muito esforo, trabalho duro, da
perseverana e da disciplina. Essas eram exatamente as caractersticas
demonstradas por Sakichi Toyoda ao fazer seus teares funcionar com
motores a vapor. (LIKER, 2005, p. 38).
No incio do sculo XX, com as transformaes da base tcnica,
propagao dos princpios tayloristas de administrao e,
posteriormente, do fordismo, os processos de industrializao,
urbanizao, expanso da escola pblica e emprego coadunavam-se para
o controle e disciplinamento dos trabalhadores, como mostrou Gramsci.
Naquele contexto, a literatura de autoajuda voltou-se aos homens de
negcios. A crise de 1929, fechamento de fbricas, desemprego no
contexto entre guerras e avano do comunismo colocaram em cheque o
projeto societrio capitalista. Seguindo o entendimento de Hobsbawm
(1995), a Primeira Guerra Mundial assinalou o colapso da civilizao
ocidental do sculo XIX. As crises polticas e econmicas que o
capitalismo enfrentava no final do sculo XX e o impacto da
Revoluo de Outubro exigiam do capital uma resposta no s a nvel
do modo de acumulao e de gesto da fora de trabalho, mas tambm a
nvel da hegemonia sobre a sociedade. (VARGAS, 1985, p. 157). No
discurso de autoajuda da primeira metade do sculo XX, enfatiza-se o
conhecimento til, disciplina, aceitao e conformao. Aps a crise de
1970, a reestruturao das indstrias, do Estado, no contexto de
mundializao do capital, e a implantao das polticas neoliberais
impactam os mercados e as relaes de trabalho, formando as bases de
um novo bloco histrico.
A partir da dcada de 1990, a autoajuda refloresce e o discurso
dos autores atuais visa configurar um trabalhador de novo tipo solicitado
pela nova gesto do trabalho, administrao flexvel, tambm calcado
nos casos exemplares, nas biografias de empresrios de sucesso, homens
que reorganizaram empresas consideradas em crise.
1.6 SITUANDO A PROBLEMTICA DA PESQUISA
Conforme lembra Sennett (2006, p. 168), sob a gide da
mudana, as pessoas [...] precisam de uma ncora mental e
emocional; precisam de valores que as ajudem a entender se as
mudanas no trabalho [...] valem a pena. nesse sentido que se pode
apreender a autoajuda como um discurso que contribui na promoo
desses valores, que institui modos de viver e comportar-se no trabalho,

45
reforando as teses da adaptao, adequao, aceitao ideia de
mudana.
A autoajuda, assim compreendida, configura-se num discurso que
pretende formar um homem com caractersticas que atendam s
demandas do capital, propagando receitas de sucesso, induzindo a uma
iluso que promete promover a perfeio humana, mas que s se
concretiza se o indivduo construir uma hierarquia de valores os quais
tendem a fornecer os meios por excelncia de atualizao e formao.
Visa modificaes nos modos de pensar, nas crenas, nas opinies,
difundindo e ativando novos comportamentos a partir de uma
elaborao de indivduos singulares e no fruto de vontade e
pensamentos coletivos. (GRAMSCI, 2004).
Sob esse ponto de vista, a autoajuda ensina jeitos de ser no
trabalho para que o indivduo aprenda a ser um trabalhador de novo
tipo, exigncia da nova reordenao do capitalismo em tempos de
reestruturao produtiva. Esse ensinar a ser se d fora do ambiente
escolar, no caso do discurso de autoajuda, como tambm veiculado
dentro da escola. Assim, partindo do pressuposto gramsciano de que
toda relao de hegemonia necessariamente uma relao
pedaggica, prope-se discutir nesta pesquisa a nfase atribuda ao
aprender a ser presente no apenas na literatura de autoajuda, mas
tambm em dois importantes relatrios da UNESCO: o Relatrio da
Comisso Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao,
coordenado por Edgar Faure, em 1972, e o Relatrio da Comisso
Internacional sobre Educao para o sculo XXI, coordenado por
Jacques Delors, em 1996. Com isso, pretende-se evidenciar como as
diretrizes para a educao se alimentam, se nutrem dos princpios de
autoajuda para o trabalho percebendo aquilo que se conserva nos
discursos da UNESCO.
importante apontar que os autores de autoajuda disseminam
orientaes de como ser e o que fazer para alcanar sucesso profissional,
auferir riquezas, reconhecimento, status, mobilidade social, entre outras.
A sistematizao dessas recomendaes permite delinear um trabalhador
que possui as competncias atitudinais e um sistema de valores
esperados pelas empresas no capitalismo contemporneo.
Cumpre observar como as recomendaes encontradas nos
documentos para empresrios e trabalhadores do setor produtivo
tambm so reproduzidas nos documentos para professores e estudantes

46
no campo educacional. Estes modos de ser, caractersticas e atributos,
carteira de competncias, so discutidos no campo educacional, em
todos os nveis de ensino.
1.7 HIPTESES
A reviso de literatura empreendida, somada anlise dos livros
de autoajuda, tende a indicar que, dentre as estratgias do capital para
educar procurando construir o consenso das classes em torno de um
projeto social neste incio do sculo XXI, est difuso do iderio da
autoajuda na medida em que contribui para a (con)formao de um
indivduo que busca sadas solitrias para ter sucesso, gerindo
eficazmente seu desenvolvimento profissional, responsabilizando-se
individualmente pelos xitos e fracassos.
Em suma, as seguintes hipteses orientam este trabalho:
a) O discurso o veculo da ideologia (FAIRCLOUGH, 2001), difunde
concepes de mundo, de homem, de sociedade. O discurso de
autoajuda em suas diferentes formulaes e momentos histricos
dissemina uma forma de interpretao da realidade.
b) A ampla difuso do discurso de autoajuda uma das estratgias para
a construo da nova Pedagogia da hegemonia com vistas a formar um
homem de novo tipo na medida em que contribui para a rpida
disseminao de novas atitudes, comportamentos e condutas necessrios
sociabilidade capitalista obtidos no apenas pela coero, mas tambm
pelo consentimento.
c) No contexto do capitalismo contemporneo, preceitos da literatura de
autoajuda deram o tom dos discursos educacionais da virada do sculo,
remetendo noo de trabalhador eficiente, cidado pr-ativo e
empreendedor necessrio sociedade tida como harmnica, solidria,
que constri um desenvolvimento sustentvel a partir da coeso social.
d) O discurso de autoajuda voltado s relaes de trabalho contribui para
a formao de um ethos ou a moral/tica necessria sociabilidade
capitalista em cada momento histrico, sendo, assim, um elemento
importante para a construo da hegemonia.

47
1.8 CONSIDERAES SOBRE O REFERENCIAL TERICOMETODOLGICO
A autoajuda representa, sem dvida, muito mais do que um
fenmeno editorial de vendas. Esse discurso est contribuindo para a
organizao da cultura de uma poca. Os aconselhamentos, as
orientaes, as regras de conduta, os fragmentos biogrficos que visam
ensinar o indivduo a ser um trabalhador de novo tipo utilizam a
linguagem da administrao pelos fatos (LIKER, 2005), uma
linguagem pragmtica que doutrina muito mais do que uma teoria. Tal
linguagem no neutra, nela est contida uma determinada concepo
de mundo (GRAMSCI, 1984, p. 11) de forma a criar uma nova
identidade social entre os indivduos.
A autoajuda constitui-se em uma ideologia que difunde e desperta
o imaginrio de construo de um homem realizado, de sucesso, riqueza
e poder. Refora a noo de progresso da nao baseado no progresso
do individual, ao mesmo tempo em que recupera para o capital uma
imagem sadia, popularizando e naturalizando a ideia de competio,
mudana, adaptao e mobilidade social como responsabilidade
individual.
Tais concepes, ideologia dominante, esto sendo disseminadas
no terreno do senso comum e incorporadas pelos indivduos como
verdades. Por isso, ao pensar no discurso de autoajuda, a noo
gramsciana de ideologia importante ao se entender que sua finalidade
modificar a opinio mdia de uma determinada sociedade [...]
introduzindo novos lugares-comuns. (GRAMSCI, 2004, p. 208).
Remete-se aqui afirmao de Marx sobre a solidez das crenas
populares que se expressam no senso comum, [sendo] aprofundada e
atualizada a partir de novas condies histricas, na medida em que tais
crenas podem ser transformadas em um novo senso comum, ou seja, no
bom senso. (SIMIONATTO, 2004, p. 81). A afirmativa marxiana a
respeito da solidez das crenas populares possibilita a Gramsci (1984,
p. 63) concordar com outra anlise de Marx de que uma persuaso
popular tem, na maioria dos casos, a mesma energia de uma fora
material. Analisar ambas as afirmaes permite Gramsci (1984, p. 63)
relacion-las ao
fortalecimento da concepo de bloco histrico,
no qual, justamente, as foras materiais so o
contedo e as ideologias so a forma sendo que

48
esta distino entre forma e contedo puramente
didtica, j que as foras materiais no seriam
historicamente concebveis sem forma e as
ideologias seriam fantasias individuais sem as
foras materiais.

A ideologia concebida como a forma de um determinado


contedo desempenha uma funo ordenadora na sociedade. Essa
funo concretiza-se na difuso de discursos explicativos e ordenadores
de aes individuais. Tal processo exige um trabalho didtico-formativo
materializado numa linguagem veiculada tambm nas publicaes de
autoajuda evidenciando uma construo paciente e sistemtica voltada
aos trabalhadores de empresas, aos homens de negcios que, em sua
maioria, ocupam posies mais estratgicas nesses espaos. A
elaborao desse tipo de discurso no se destina a trabalhadores
analfabetos ou com pouca escolarizao, mas acaba sendo atingido e
assimilado tambm por esse pblico. Difundir determinadas premissas
em posies mais estratgicas da hierarquia laboral permite uma difuso
de um modo de pensar, sentir e agir mais homogneo que tende a
irradiar-se pelas demais hierarquias.
Interpretando o conjunto de materiais analisados como
prescries que oferecem substrato para o exerccio de aes de cunho
eminentemente individualista, entende-se o discurso de autoajuda como
um dos mecanismos responsveis por estabelecer conexes entre as
novas demandas do capital e o novo tipo de trabalhador necessrio para
atend-las. Neste novo senso comum, cabe ao indivduo desenvolver
aes prprias de insero e permanncia no mercado de trabalho.
Educa-se para o desenvolvimento de uma participao cvica, um dos
valores da nova sociabilidade requerida em tempos de neoliberalismo.
Conforme analisou Gramsci (1979, p. 178), cada camada social
tem seu senso comum e seu bom senso, que so, no fundo, a
concepo da vida e do homem mais difundida. O senso comum
manifesta uma postura passiva, em que se adotam comportamentos,
modos de sentir e de pensar. O bom senso constitui o movimento
espiritual pelo qual o indivduo assume uma postura crtica, assume o
desafio da crtica, da reflexo. De acordo com Simionatto (2004, p. 80),
o senso comum explorado e utilizado pelas classes dominantes para
cristalizar a passividade popular, bloquear a autonomia histrica que
poderia resultar, para as massas, no seu acesso a uma filosofia superior.
Nesse sentido, o senso comum

49
no algo rgido e imvel, mas se transforma
continuamente, enriquecendo-se com noes
cientficas e com opinies filosficas que
penetraram no costume. O senso comum o
folclore da filosofia e ocupa sempre um lugar
intermedirio entre o folclore propriamente dito
[...] e a filosofia, a cincia, a economia dos
cientistas. O senso comum cria o futuro folclore,
isto , uma fase relativamente enrijecida dos
conhecimentos populares de uma certa poca e
lugar. (GRAMSCI, 2004, p. 209).

Por meio dessa passagem, Gramsci auxilia-nos na compreenso


de que o discurso de autoajuda investe na construo de um novo senso
comum em cada um dos momentos histricos analisados. Em cada um
desses perodos, esse discurso estabelece conexes entre os modos de
pensar, sentir e agir para formar um trabalhador de novo tipo necessrio,
a partir da elaborao de pensamentos dos gurus, transformando-o num
pensamento genrico, consolidando-se como uma das bases do novo
senso comum. Essa relao entre o senso comum e a atuao dos gurus
de autoajuda exige a formulao e a difuso de um receiturio calcado
numa linguagem de fcil assimilao para orientar a concepo de
mundo e um padro de conduta a ser seguido por organizaes e
pessoas. (MARTINS; OLIVEIRA; NEVES et al., 2010, p. 151).
Na reflexo gramsciana,
o homem ativo da massa atua praticamente, mas
no tem uma conscincia terica desta sua ao,
que, no obstante, um conhecimento do mundo
na medida em que o transforma. Pode ocorrer,
inclusive, que a sua conscincia terica esteja
historicamente em contradio com o seu agir.
quase possvel dizer que ele tem duas
conscincias tericas (ou uma conscincia
contraditria): uma implcita na sua ao, e que o
une a todos os seus colaboradores na
transformao prtica da realidade; e outra,
superficialmente explcita ou verbal, que ele
herdou do passado e acolheu sem crtica. Todavia,
esta concepo verbal no inconseqente: ela
liga a grupo social determinado, influi sobre a
conduta moral, sobre a direo da vontade, de

50
uma maneira mais ou menos intensa, que pode,
inclusive, atingir um ponto no qual a
contraditoriedade da conscincia no permita
nenhuma ao, nenhuma escolha e produza um
estado de passividade moral e poltica.
(GRAMSCI, 1984, p. 20).

certo que muitos elementos so incorporados de forma acrtica,


produzindo esse estado de passividade moral e poltica, que tambm,
se poderia dizer, esto presentes nas entrelinhas do discurso de
autoajuda. Levanta-se, assim, a importncia do questionamento de
Gramsci (1984, p. 25), que pergunta: Por que e como se difundem,
tornando-se populares, as novas concepes de mundo? (GRAMSCI,
1984). Segundo o pensador italiano
pode-se concluir que o processo de difuso das
novas concepes ocorre por razes polticas, isto
, em ltima instncia, sociais: entretanto, o
elemento formal (a coerncia lgica), o elemento
autoritrio e o elemento organizativo tm uma
funo muito grande nesse processo to logo se
tenha verificado a orientao geral, tanto em
indivduos singulares como em grupos numerosos.
Disto se conclui, entretanto, que, nas massas como
tais, a filosofia no pode ser vivida seno como
uma f. (GRAMSCI, 1984, p. 26).

A adeso das massas a determinadas concepes de mundo era


apontada para o que Gramsci chamou de um elemento de f. Esse
elemento de carter no racional levou o pensador a perguntar-se:
Mas de f em quem e em qu? Notadamente no
grupo social ao qual pertence, na medida em que
este pensa as coisas tambm difusamente, como
ele: o homem do povo pensa que, no meio de
tantos, ele no pode se equivocar radicalmente,
como o adversrio argumentador queria fazer crer;
que ele prprio, verdade, no capaz de
sustentar e desenvolver as suas razes como o
adversrio o faz com as dele, mas que em seu
grupo- existe quem poderia fazer isto, certamente
ainda melhor do que o referido adversrio; e, de
fato, ele se recorda de ter ouvido algum expor,

51
longa e coerentemente, de maneira que ele se
convenceu de sua justeza, as razes da sua f.
(GRAMSCI, 1984, p. 26-27).

A adeso ou no de massas a uma ideologia constitui um


exerccio permanente de luta pela hegemonia de determinados grupos
em que se busca instituir modos de pensar que correspondam s
exigncias de um perodo histrico. Nesse sentido, destaca-se que
a disputa pela hegemonia passa, necessariamente,
pela elaborao, articulao e difuso de discursos
capazes de ordenar aspiraes, sonhos, fantasias
projetivas, valores j consolidados, necessidades
materiais e simblicas e projetos coletivos em que
os indivduos se percebam contemplados.
(RUMMERT, 2000, p. 37).

A elaborao de discursos, na acepo da autora, em suas


variaes destinadas s diferenciadas fraes de classe
fundamentalmente, pautada pelo projeto hegemnico, o qual desenha
sua matriz, e incorpora, de forma desarticulada e re-significada, os
elementos dos discursos opositores. (RUMMERT, 2000, p. 37). Sendo
assim, tem-se um permanente exerccio da hegemonia, por meio de
uma multiplicidade de formas e mediaes. (RUMMERT, 2000, p. 26).
Cumpre lembrar a observao gramsciana de que a hegemonia [deve
ser] entendida no apenas como direo poltica, mas tambm como
direo moral, cultural e ideolgica. (GRUPPI, 1978, p. 11).
Ao analisar a hegemonia no padro de acumulao fordista15,
uma das fases metamrficas do capital, Gramsci (2004), em
Americanismo e fordismo, sintetiza a expresso de uma racionalidade do
trabalho na forma mais desenvolvida do capital. O trabalho industrial
moderno converte-se no princpio educativo, no elemento integrador
entre cultura e cincia. Portanto, o americanismo tem um carter
histrico,
representando o desenvolvimento de condies
reais a uma nova civilizao por exigir do homem
um conhecimento de novo tipo, no qual a teoria e
15
De acordo com Jesus (1998, p. 43), o modo de produo de cada sistema social muito
importante para um processo educativo ser elaborado, assim como os fatores sociais, polticos
e culturais tambm o so.

52
a prtica se conformam numa unidade fazendo
emergir uma possibilidade de um novo
humanismo, de um novo tipo de relao entre
teoria e prtica, entre conhecimento e trabalho,
mesmo que essas condies no tenham sido
ainda exploradas. (SOUZA, 2002, p. 63).

nesse sentido que o processo de conquista e manuteno da


hegemonia pressupe a difuso de uma determinada concepo de
mundo (RUMMERT, 2000), que se d por meio de mediaes como a
construo de discursos, de uma linguagem que permita conceber
modos de ver a realidade e de agir sobre ela. Sem dvida, toda e
qualquer
transformao no modo de vida exigir que os
indivduos se adaptem. [...] A fora do
pensamento gramsciano est em ter notado que,
para criar e desenvolver a estrutura econmica de
uma sociedade, necessria a existncia de um
tipo especfico de homem possuidor de uma nova
estrutura de gestos e sentimentos, que
necessariamente se interrelacionem para manter e
reproduzir as transformaes implementadas. Este
processo no se estrutura apenas molecularmente
(no indivduo com ele mesmo ou no indivduo
com outro indivduo), mas deve assumir carter
praticamente absoluto em toda a sociedade.
(RUIZ, 1998, p. 34).

Para efetivar tais modos de apreender a realidade e agir, tem-se a


produo de discursos explicativos sobre a realidade que, apesar de
suas variaes, designam, a partir de um padro comum de referncias,
problemas, objetivos e valores de diferentes fraes das classes
dominadas. (RUMMERT, 2000, p. 36).
nessa perspectiva terica que se busca investigar o carter
ideolgico do discurso de autoajuda na formao de um trabalhador de
novo tipo, tendo em vista explicar o papel desse discurso para a
construo da hegemonia, de um projeto de sociabilidade do capital. A
linguagem da autoajuda busca delinear normas de conduta, disseminar
princpios de ordenao de novos modos de pensar e agir, promovendo a
exacerbao do individual, incorrendo no risco de se perder seu carter

53
de positividade para tornar-se
(RUMMERT, 2000, p. 44).

expresso

do

individualismo.

1.8.1 Pressupostos terico-metodolgicos para anlise do


discurso de autoajuda
Para realizar a anlise dos livros de autoajuda, recorremos s
contribuies de Fairclough (2001), o qual em Discurso e mudana
social relaciona discurso com mudana social, com a construo de
sistemas de conhecimento e crenas, permitindo discutir as ideologias
embutidas nas prticas discursivas que, de tanto serem repetidas,
acabam se tornando parte de uma linguagem do senso comum. O autor
usa o termo discurso considerando o uso da linguagem como uma
forma de prtica social e no como uma atividade puramente individual
ou reflexo de variveis situacionais. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 90). Tal
considerao implica ser o discurso um modo de ao, uma forma em
que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os
outros, como tambm um modo de representao. (FAIRCLOUGH,
2001, p. 90).
Dessa forma, o autor prope que se pense o discurso como uma
prtica social que tem implicaes no apenas no que concerne ao modo
de representao dos indivduos no mundo, mas como uma prtica
social que contribui na construo das relaes entre os homens com
implicaes econmicas, polticas, culturais e ideolgicas, e
acrescentam-se tambm implicaes no mbito educacional. A prtica
discursiva recorre a convenes que naturalizam relaes de poder e
ideologias particulares e as prprias convenes, e os modos em que se
articulam so um foco de luta. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94). Nesse
caso, pode-se pensar no discurso da autoajuda como uma prtica
ideolgica que, embora fale to insistentemente em mudana pessoal,
visa manter as relaes de dominao.
As ideologias embutidas nas prticas discursivas so muito
mais eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem os status de
senso comum. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117). Embora seja verdade
que as formas e o contedo dos textos trazem o carimbo (so traos) dos
processos e das estruturas ideolgicas, no possvel ler a ideologia
nos textos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 118). Evidencia-se que os modos
e estratgias discursivas produzem diferentes tipos de apelo aos leitores,
deixando obscurecido esse lugar de quem produz o discurso.

54
Fairclough deixa mais claro isso ao referenciar o uso de uma linguagem
prescritiva associada ao uso do pronome Ns. Nesse aspecto, o uso da
linguagem carrega consigo posies ideolgicas prprias de quem faz
uso do discurso. Todavia, por razes que so em si mesmas
ideolgicas, a maioria dos usurios da lngua no foi educada para
identificar uma ideologia no texto, mas para ler textos como
representaes naturais e inevitveis da realidade. (EGGINS, 1994
apud SILVA, 2000, p. 7).
Poder-se-ia dizer que o discurso de autoajuda se caracteriza como
um construto ideolgico de harmonizao e amoldamento s relaes
sociais e providencial no que se refere manipulao das aes dos
indivduos no capitalismo. Tal discurso ajuda a ditar padres de
comportamento e, da forma como apresentado, camufla relaes de
poder quando atribui ao indivduo o poder/liberdade de escolha,
circunscrito no poder da vontade envolta numa linguagem sedutora que
no neutra nem transparente.
Ao ter-se presente que as palavras e expresses mudam de
sentido segundo posies de quem as emprega, pode-se lembrar Pags et
al. (1987, p. 37) ao afirmar que o educador do homem da organizao
no so tanto as pessoas com as quais ele se relaciona, seus chefes, os
formadores da empresa, so a prpria organizao, suas regras, seus
princpios, suas oportunidades, suas ameaas.
Para Fairclough (2001), as representaes sociais podem ser
pensadas a partir da teoria social do discurso que se detm sobre como
os indivduos constroem e reconstroem as significaes do uso da
linguagem. Nessa direo, empresrios e gurus produzem um discurso
propondo estabelecer uma relao entre o que se deseja e as esferas da
subjetividade. Mas que interesses estariam norteando essa vontade de
empresrios e gurus de adentrar nessa esfera? Lembra-se o
questionamento feito por Foucault (1996, p. 8) quando pergunta o que
h de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? E continua: Onde, afinal, est o
perigo? Para responder a tal questionamento, pode-se pensar na
autoajuda como um discurso carregado de uma ideologia, como uma
pedagogia cujo efeito mais visvel transparece no interesse voltado ao
bem-estar do trabalhador. Foucault lembra que a produo do discurso
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda
por certo nmero de procedimentos [ressaltam-se livros e palestras] que

55
tm por funo conjurar seus poderes e perigos, [...] esquivar sua pesada
e temvel materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8).
A lgica de dominao das organizaes justifica-se em um
discurso que busca fortalecer e dar credibilidade s palavras que so
proferidas, carregadas de significaes e que visam mobilizar ou
desestimular aes dos indivduos em caso de conflito. A adeso
ideolgica e psicolgica do trabalhador assegura o controle da
organizao sobre os indivduos, que se valem do discurso para moldar
e direcionar o comportamento de seus trabalhadores. isso que Huxley
(1965 apud Meurer, 1998, p. 10, traduo nossa) destaca quando afirma
que
a antiga idia de que as palavras possuem fora
mgica falsa; mas isso falseia a distoro de
uma verdade importante. Palavras possuem um
efeito mgico - mas no da forma que os magos
[gurus] imaginam e nem no propsito que eles
esto tentando influenciar. Palavras so mgicas
na maneira que elas afetam a mente daqueles que
as usam. [...] esquecemos que as palavras tm o
poder de moldar homens e mulheres, que
canalizam seus sentimentos, direcionam suas
vontades e atuaes. Conduta e carter so
altamente determinados pela natureza das palavras
que usamos freqentemente para discutir sobre
ns mesmos e o mundo que nos cerca.

Determinantes na conduta social de um indivduo, as palavras


tambm adquirem um status hegemnico, ou como salienta Fairclough
(2001, p. 105), as palavras so formas de hegemonia, uma vez que
carregam consigo traos ideolgicos. No toa que as palavras
exercem um poder de coero, funcionando de maneira atrativa quando
utilizadas com o intuito de convencer o trabalhador por meio de um
discurso estruturado em tons de verdade. Nesse sentido Foucault (1992,
p. 231) assinala que vivemos numa sociedade que em grande parte
marcha ao compasso da verdade - ou seja, que produz e faz circular
discursos que funcionem como verdade, que passam por tal e que detm
por este motivo poderes especficos. Em decorrncia dessa proposio
que se estabelecem relaes em que o indivduo se v diante de uma
situao na qual os laos de cooperao so esgarados e o trabalhador
individual submete-se s determinaes da organizao.

56
Em A ideologia da sociedade industrial, Marcuse (1973, p. 54)
comenta que os controles tcnicos so a prpria expresso da razo,
colocada a servio de todos os grupos, de todos os interesses sociais, de
modo que toda contradio parece irracional e toda oposio
impossvel. O que o autor no previa que o discurso se tornaria to ou
mais eficaz como mecanismo de controle do trabalhador do que os
controles tcnicos.
A autoajuda para o trabalhador acaba se constituindo em uma
tentativa de mobilizao para uma ao, para a resoluo de situaesproblema nas relaes profissionais. Atribu-se ao indivduo o
compromisso com o sucesso da organizao e, tambm, seu sucesso
pessoal. Assim, a qualificao profissional fica sob a responsabilidade
do trabalhador, que em muitos casos no tem condies financeiras e
nem tempo disponvel para obt-la. Em geral, as empresas oferecem
cursos operacionais, mas nos seminrios, congressos e palestras
enfatizada a necessidade de um constante aperfeioamento que envolve
cursos superiores, treinamentos em management, lnguas, informtica,
entre outras exigncias. Para se desenvolver profissionalmente, o
trabalhador precisa investir em sua carreira, o que significa dizer que a
incumbncia em termos financeiros e de tempo disponvel fica a cargo
de cada trabalhador.
interessante observar, contudo, que o exerccio do poder na
relao entre capital e trabalho assegurado pelas mudanas na forma
de nominar as situaes e elaborar discursos. Recursos de linguagem,
nesse aspecto, so bem-vindos, de modo que por meio deles possvel
suavizar, minimizar ou at mesmo transpor uma situao para outra
menos hostil, at que a mensagem ganhe a significao e seja apropriada
pelo pblico de acordo com o desejo de seus anunciadores. Nessa linha
de pensamento, lembra-se Foucault (1996, p. 39), ao recordar narrativas
da cultura europeia, destacando que a comunicao, um dos elementos
da narrativa, funciona como uma figura positiva, constituindo um ritual,
em que os indivduos devem ocupar determinada posio, posio
esta que pressupe gestos, comportamentos, aes que conduzem a
determinadas prticas sociais. Foucault (1996, p. 43) ressalta que se
pode falar em sociedades de discurso cuja funo conservar ou
produzir discursos, mas para faz-los circular em um espao fechado,
distribu-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores
sejam despossudos por essa distribuio.

57
Uma das caractersticas marcantes da produo e distribuio dos
discursos de autoajuda, se assim se pode dizer, a luta pela assimilao
de seus contedos, uma verdadeira conquista ideolgica dos gurus
desse segmento que tende a ser mais eficaz quanto mais os leitores
forem capazes de elaborar e transpor as ideias disseminadas. Na viso
de Gramsci (2004, p. 205), um princpio metodolgico fundamental para
a elaborao nacional unitria de uma conscincia coletiva homognea
requer mltiplas condies e iniciativas. A difuso de um modo de
pensar homogneo, padro visado pelo discurso de autoajuda, consiste
em grande parte pela repetio das palavras. Esse discurso busca o
engajamento dos trabalhadores numa perspectiva tridimensional: como
texto, como uma prtica social e como prtica discursiva.
(FAIRCLOUGH, 2001). Nesse sentido, todo discurso engaja o
indivduo em algum tipo de ao, da Fairclough recorrer ao conceito de
ideologia gramsciano.
O uso que se faz da linguagem determina como um conceito ou
uma expresso pode ser transformado ou assimilado, produzindo um
sentido compatvel com aquilo que se deseja exprimir, ainda que o seu
significado no seja necessariamente o transmitido. Tanto significado
quanto sentido se efetivam, se transformam e se conservam pela
linguagem. Sob este aspecto, lembra-se Gramsci (1984, p. 13), quando
destaca que: Se verdade que toda linguagem contm elementos de
uma concepo de mundo e de uma cultura, ser igualmente verdade
que, a partir da linguagem de cada um, possvel julgar da maior ou
menor complexidade da sua concepo de mundo. Concordando com a
perspectiva gramsciana, v-se que a autoajuda constitui-se em uma
linguagem que contm e dissemina elementos de uma concepo de
mundo. Seu interesse est em construir um novo senso comum,
instituindo um novo modo de pensar, sentir e agir que se d pela
introduo de outras e novas palavras que entram no vocabulrio da
autoajuda de forma ressignificada.
Um exemplo ilustrativo dessa situao refere-se ao termo
empregabilidade. Max Gehringer (2002) aponta como o conceito de
empregabilidade pode transitar de uma significao negativa a outra
positiva com a mesma facilidade. O conceito de empregabilidade
basicamente otimista (O que eu preciso
continuar a fazer para continuar empregado),
enquanto a descartabilidade sai pela tangente do
pessimismo responsvel (Como me preparo para

58
ficar desempregado). E as duas evitam passar
perto do pessimismo crnico (A vida assim
mesmo. A gente ganha pouco, mas se diverte).
(GEHRINGER, 2002, p. 116).

Na acepo de Fairclough (2001, p. 128):


medida que uma tendncia particular de
mudana discursiva se estabelece e se torna
solidificada em uma nova conveno emergente, o
que percebido pelos intrpretes, num primeiro
momento,
como
textos
estilisticamente
contraditrios perde seu efeito de colcha de
retalhos, passando a ser considerado como
inteiros. Tal processo de naturalizao
essencial para estabelecer novas hegemonias na
esfera do discurso.

Sendo assim, analisa-se o discurso de autoajuda no apenas


como aquele que difunde uma concepo de mundo e de homem, mas
modos de ao no mundo, pautada em um conjunto de valores
pretensamente universais e indispensveis nova gesto do trabalho
em tempos de neoliberalismo, de forma a construir um ideal de
trabalhador. Trata-se de um trabalhador de novo tipo contemplado no
novo projeto de sociabilidade do capital para o sculo XXI em que
preciso mudar para manter (TURMINA, 2005).
1.8.2 Consideraes metodolgicas
Fairclough (2001) prope a anlise do discurso a partir de um
modelo tridimensional que compreende a anlise do texto, da prtica
discursiva e da prtica social. Para cada uma dessas dimenses so
propostas categorias analticas agrupadas da seguinte forma:

59

TEXTO
Vocabulrio
Gramtica
Coeso
Estrutura textual

PRTICA
DISCURSIVA
Produo
Distribuio
Consumo
Contexto
Fora
Coerncia

PRTICA SOCIAL
Ideologia
Sentidos
Pressuposies
Metforas
Hegemonia,
Orientaes
econmicas,
polticas, culturais,
ideolgicas

Intertextualidade
Quadro 1 Categorias analticas propostas no modelo tridimensional.
Fonte: Resende e Ramalho (2006, p.29).

Na anlise textual, que compreende os itens anteriormente


descritos, tem-se uma escala ascendente, segundo Fairclough (2001, p.
103), em que o vocabulrio trata principalmente das palavras
individuais, a gramtica das palavras combinadas em oraes e frases, a
coeso trata da ligao entre oraes e frases e a estrutura textual trata
das propriedades organizadas de larga escala de textos. Esses
elementos podem ser relacionados ao que Orlandi (2009) chama de
mecanismo da argumentao presentes no discurso de autoajuda pela
repetio de palavras, pela ocultao de conceitos que evidenciam o real
em substituio de termos que funcionam como eufemismos.
No que se refere prtica discursiva, Fairclough (2001, p. 92)
destaca que esta constitutiva tanto da maneira convencional como
criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais,
relaes sociais, sistemas de conhecimento e crena) como , mas
tambm contribui para transform-la. Ainda, a prtica discursiva
focaliza os processos de produo, distribuio e consumo textual.
Todos esses processos so sociais e exigem referncia aos ambientes
econmicos, polticos e institucionais particulares nos quais o discurso
gerado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 99). Alm desses aspectos, o autor
cita outros relacionados aos aspectos formais dos textos: a fora dos
enunciados que compreende os tipos de fala (promessas, pedidos,
ameaas) (FAIRCLOUGH. 2001, p. 103), a coerncia e a
intertextualidade dos textos. Em linhas gerais, a intertextualidade pode

60
ser analisada como uma combinao da voz de quem pronuncia um
enunciado com outras vozes que lhe so articuladas. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 65).
A intertextualidade basicamente a propriedade que tm os
textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser
delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar,
contradizer, ecoar ironicamente. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). A
intertextualidade conecta um texto a outro texto, o que faz dessa
categoria de anlise complexa e potencialmente frtil. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 65). Ademais, o conceito de intertextualidade
aponta para a produtividade dos textos, para como os textos podem
transformar textos anteriores e reestruturar as convenes existentes.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).
Nos textos de autoajuda, a intertextualidade est abundantemente
presente sob a forma de provrbios e citaes. O interesse estratgico no
uso das citaes reside no fato de que ela permite ao criador do discurso
confirmar o dito pelo reforo do outro. Maingueneau (1997, p. 100101), ao analisar os fenmenos enunciativos, caracteriza a citao como
citao de autoridade, que do seu ponto de vista pode chegar ao
estatuto de slogan. A citao de autoridade seria aquela em que o
locutor se apaga diante de um locutor superlativo que garante a validade
da enunciao. Dessa maneira, a citao adquire novas propriedades
sobretudo por estar ligada ao: o slogan, a um s tempo,
impulsiona e engana [...], ele est ligado a prticas. Os provrbios,
alm das citaes, representam outra atividade lingustica que validam o
discurso construdo.
Para tratar do aspecto de intertextualidade, sero considerados
outros elementos marcantes do discurso de autoajuda, o uso de
fragmentos de histrias de vida e a criao de frases de efeito presentes
nos livros selecionados. Os excertos biogrficos realam o modo de vida
cotidiano e fornecem um carter concreto a esse discurso.
(MAINGUENEAU, 1997).
A dimenso textual do discurso permite compreender processos
de luta hegemnica na esfera do discurso, que tm efeitos sobre a luta
hegemnica, assim como so afetados por ela no sentido mais amplo.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 128). Esse o terreno da mudana social que

61
deixa traos nos textos na forma de co-ocorrncia
de elementos contraditrios ou inconscientes
mesclas de estilos formais e informais,
vocabulrios tcnicos e no tcnicos, marcadores
de autoridade e familiaridade [...]. medida que
uma tendncia particular de mudana discursiva
se estabelece e se torna solidificada em uma nova
conveno emergente, o que percebido pelos
intrpretes, num primeiro momento, como textos
estilisticamente contraditrios perde o efeito de
colcha de retalhos, passando a ser considerado
inteiro. Tal processo de naturalizao essencial
para estabelecer novas hegemonias na esfera do
discurso. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 128).

Se a naturalizao essencial para estabelecer novas hegemonias


na esfera do discurso, conforme assinala o autor, preciso considerar
que as estratgias de persuaso do leitor, presentes nas narrativas que
constituem os textos, precisam ser consideradas na anlise.
(SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2004, p. 14).
A respeito do discurso como prtica social, Fairclough (2001, p.
116) situa-o em uma concepo de poder como hegemonia e em uma
concepo da evoluo das relaes de poder como luta hegemnica.
Ao entender que a prtica discursiva no se ope prtica social, ou
seja, a primeira uma forma particular da ltima (FAIRCLOUGH.
2001, p. 99), o autor considera que as ideologias embutidas nas prticas
discursivas so muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem
o status de senso comum. (FAIRCLOUGH. 2001, p. 99). Contudo, o
autor adverte sobre a propriedade estvel e estabelecida das ideologias
procurando no as reforar, j que sua referncia transformao
aponta para a luta ideolgica como dimenso da prtica discursiva, uma
luta para remodelar as prticas discursivas e as ideologias nelas
construdas no contexto da reestruturao ou da transformao das
relaes de dominao. (FAIRCLOUGH. 2001, p. 117).
De um ponto de vista discursivo, a ideologia uma maneira de
assegurar o consentimento por meio de lutas de poder levadas a cabo no
nvel do momento discursivo de prticas sociais, conforme assinalam
Resende e Ramalho (2006, p. 47). Isso implica ter presente que as
ideologias esto nos textos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 118).
Entretanto, ainda que os textos expressem os traos dos processos e das
estruturas ideolgicas,

62
no possvel ler as ideologias nos textos [...]
isso porque os sentidos so produzidos por meio
de interpretaes dos textos e os textos esto
abertos a diversas interpretaes que podem
diferir em sua importncia ideolgica e porque os
processos ideolgicos pertencem aos discursos
como eventos sociais completos so processos
entre as pessoas no apenas aos textos que so
momentos de tais eventos. (FAIRCLOUGH,
2001, p. 119).

por isso que o autor menciona que a ideologia est localizada


tanto nas estruturas como nos eventos discursivos. Essa dialtica entre
estrutura e ao importante, uma vez que implica diretamente na
possibilidade de mudana social. Dessa forma, a alegao comum de
que so os sentidos, e especialmente os sentidos das palavras [...] so
ideolgicos [...]. Os sentidos so importantes, naturalmente, mas
tambm o so outros aspectos semnticos, tais como as pressuposies
[...], as metforas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 119, sem grifo no
original).
Ao discutir sobre o uso de determinados tipos de metforas,
Resende e Ramalho (2006, p. 86) assinalam que, por meio destas,
perspectivas parciais tambm podem ser universalizadas. Nesse
sentido, Lakoff e Johnson (2002, p. 86) explicam que as metforas
esto infiltradas na vida cotidiana, no somente na linguagem, mas no
pensamento e na ao. Isso mostra que os conceitos, as expresses, os
jogos de palavras que estruturam os pensamentos estruturam tambm o
modo como percebemos o mundo, a maneira como nos comportamos no
mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.
(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 86). Outro aspecto a ser considerado,
de acordo com as autoras, que os conceitos so metaforicamente
estruturados no pensamento e, consequentemente, na linguagem, logo, a
metfora no nasce da linguagem, ela reflete-se na linguagem porque
existe em nosso sistema conceptual. (RESENDE; RAMALHO, 2006,
p. 86).
As metforas so outro elemento marcante da autoajuda, e como
critrio metodolgico, mostra-se fundamental para a anlise desse
discurso, visto que os textos estabelecem posies para os sujeitos
intrpretes que so capazes de compreend-los e capazes de fazer as
conexes e as inferncias, de acordo com os princpios interpretativos

63
relevantes, necessrios para gerar leituras coerentes. (FAIRCLOUGH,
2001, p. 113).
As metforas, os provrbios, a repetio de palavras, frases de
efeito, verbos na forma imperativa, excertos biogrficos de homens
notveis, edificantes e um farto uso de experincias evocando prticas
de sucesso, exitosas, constituem o arcabouo de elementos lingusticos
analisados tanto no discurso de autoajuda quanto nos Relatrios da
UNESCO.
Tem-se presente as palavras de Fairclough (2001, p. 75), de que
no h procedimento fixo para se fazer anlise de discurso, sendo que
as pessoas abordam-na de diferentes maneiras, de acordo com a
natureza especfica do projeto e conforme suas respectivas vises de
discurso. Assim, as indicaes metodolgicas de Fairclough (2001)
orientam a anlise de discurso das obras de autoajuda selecionadas pela
enorme repercusso que tiveram em diferentes momentos histricos,
segundo quadro abaixo, bem como compem a corpora dos materiais
analisados nos dois Relatrios da UNESCO: Relatrio da Comisso
Internacional sobre o Desenvolvimento da Educao, coordenado por
Edgar Faure, em 1972, e o Relatrio da Comisso Internacional sobre
Educao para o sculo XXI, coordenado por Jacques Delors, em 1996.

64

Ttulo
Self-Help
O carter
O dever: coragem,
pacincia e
resignao
Vida e trabalho
Como fazer amigos
e influenciar pessoas
Como falar em
pblico e influenciar
pessoas no mundo
dos negcios
Como venceram os
grandes homens
Como evitar
preocupaes e
comear a viver
Como desfrutar sua
vida e seu trabalho
Empregabilidade:
como ter trabalho e
remunerao sempre
Quem mexeu no
meu Queijo?
Voc: a alma do
negcio

Autor
Samuel Smiles
Samuel Smiles
Samuel Smiles

1. Edio
1859
1871
1880

Pas
Inglaterra
Inglaterra
Inglaterra

Samuel Smiles
Dale Carnegie

1887
1936

Inglaterra
EUA

Dale Carnegie

1981

EUA

Dale Carnegie

s.d

EUA

Dale Carnegie

1948

EUA

Dale Carnegie

1975

EUA

Jos Augusto
Minarelli

1995

Brasil

Spencer Johnson

1998

EUA

Roberto
Shinyashiki

2001

Brasil

Quadro 2 Livros de autoajuda selecionados para anlise. Elaborao prpria.

Considerando a hiptese de que o discurso de autoajuda um dos


veculos da ideologia dominante, esta vista como categoria central na
anlise aqui empreendida, em que pese a constituio de um corpo
sistemtico de representaes e de normas que nos ensinam a
conhecer e a agir. (CHAU, 2007, p. 15). Nesse sentido, com vistas a
conhecer os princpios e ideias que constituem o discurso difundido nos
manuais de autoajuda e documentos educacionais, foram definidas as

65
seguintes categorias para anlise: concepes de educao, trabalho,
homem, sociedade/mundo.
A partir disso, identificaram-se que os princpios, valores,
comportamentos, condutas e vises de mundo disseminados pela
literatura de autoajuda, estavam presentes tambm nas diretrizes e
reformas educacionais contemporneas. Tais evidncias possibilitaram
pressupor que os discursos da UNESCO que difundiram a prioridade do
aprender a ser funcionavam de forma semelhante e complementar aos
de autoajuda, valendo-se das estratgias de persuaso para a produo
de uma nova sociabilidade demandada pelo capital. Com esta
perspectiva, analisaram-se os Relatrios Faure (1972) e Delors (1996)
procurando demonstrar que esta estratgia da nova pedagogia da
hegemonia se desenvolvia por fora, mas tambm, por dentro do sistema
educacional.
1.9 ESTRUTURA DA TESE
Esta tese est organizada em cinco captulos. Neste primeiro
captulo introdutrio, apresentam-se a problemtica, os objetivos, as
hipteses, as pesquisas sobre a autojauda e as consideraes tericometodolgicas da pesquisa.
No segundo captulo, destacam-se brevemente aspectos
relevantes da vida e obra do idealizador da autoajuda para trabalhadores
em que se discute a gnese e nfases do discurso da autoajuda
apreendido nas formulaes de Samuel Smiles (1812-1904). Em tempos
vitorianos, o publicista adota um estilo intensivo de divulgao de
biografias edificantes visando disseminar valores liberais celebrando o
sucesso de homens considerados exemplos na conquista da ascenso
social. Smiles exacerba o individualismo na ideia de alcance de sucesso
por meios pessoais, apesar de parcos recursos. Ver-se- que sua
literatura moralmente construda considerando a utilidade do
conhecimento, o que evidencia a importncia do trabalho visto como
princpio educativo para trabalhadores. No sculo XIX, segundo
preceitos e valores disseminados por Smiles, buscava-se formar o
trabalhador de carter, exigindo autodisciplina, determinao e uma
inquebrantvel perseverana. A tica do trabalho protestante constituiu a
fora motriz nos escritos de Smiles e servia de antdoto contra o cio.
(LYONS, 1999).

66
No terceiro captulo, mostrar-se que a literatura de autoajuda
constituda nas primeiras dcadas do sculo XX est organicamente
articulada s demandas do fordismo. A vasta bibliografia sobre a
organizao do trabalho em moldes tayloristas e fordistas deixa evidente
as preocupaes capitalistas em encontrar o homem certo para o lugar
certo, definindo um tipo de trabalhador fordista, bem diferente do
almejado em tempos vitorianos. O discurso propalado nas primeiras
dcadas desse sculo tinha como propsito uma aplicao sistemtica de
valores e modos de pensar prprios esfera econmica industrial.
Destaca-se Dale Carnegie, autor norte-americano, que se tornou
expoente ao diagnosticar que a tica da personalidade, a carismtica
individual teria maior utilidade que os conhecimentos livrescos na
formao dos homens de negcios. Suas obras propagaram a ideia de
que a conquista do sucesso no dependia apenas do pensamento
positivo, mas da construo de uma personalidade agradvel capaz de
influenciar pessoas. Para o trabalho simples, fragmentado, caracterstico
da produo em massa, os requisitos de qualificao esperados do
trabalhador no eram tanto tcnicos, mas comportamentais e atitudinais.
No quarto captulo, explicitam-se os sentidos do discurso
contidos na literatura de autoajuda nas relaes de trabalho no sculo
XXI. Procura-se relacionar o discurso de autoajuda com o contexto
econmico, poltico, apontando a preocupao em formar um homem de
novo tipo. O que se poderia pensar ser apenas um modismo, gerou
consultorias especializadas e fez com que muitos autores, considerados
gurus da autoajuda, adentrassem aos mbitos do trabalho e da educao
pregando as virtudes daqueles que seguem as recomendaes contidas
nesses textos. Tais recomendaes invadiram a ambincia
organizacional, de forma que um conjunto de crenas, valores, sentidos,
difundido visando construir um modo de pensar calcado na mudana
individual.
No quinto captulo, desenvolve-se a anlise dos relatrios da
UNESCO sobre educao, o Relatrio Faure (1972) e o Relatrio Delors
(1996), demonstrando as continuidades entre o aprender a ser do
campo educacional com as recomendaes dos manuais de autoajuda e o
perfil de trabalhador demandado pelo capital em diferentes momentos
histricos. Por fim, apresentam-se as consideraes finais.

67
2 AUTOAJUDA EM TEMPOS VITORIANOS: O DEVER E A
MORAL
[...] as modificaes nos modos de
pensar, nas crenas, nas opinies,
no ocorrem mediante exploses
rpidas,
simultneas
e
generalizadas, mas sim, quase
sempre, atravs de combinaes
sucessivas, de acordo com
frmulas
de
autoridade
variadssimas e incontrolveis. A
iluso explosiva nasce da
ausncia de esprito crtico.
(GRAMSCI, 2004)

Neste captulo, tem-se por objetivo apresentar a gnese e os


principais elementos do discurso de autoajuda voltado s relaes de
trabalho. Sua origem remonta ao sculo XIX. Atribui-se ao publicista
escocs, mdico e administrador de estradas de ferro, Samuel Smiles
(1812-1904), a publicao do primeiro livro de autoajuda intitulado SelfHelp16, em 1859. Estudos mostram que o discurso de Smiles se
propagou, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, formando
toda uma escola de escritores moralistas e pedagogos populares.
(BASTOS, 2000). Isso explica, em parte, a grande popularidade
alcanada por seus livros em vrios pases, traduzidos em pelo menos 17
idiomas, porm pouco conhecidos do grande pblico no Brasil17. Verse- que Smiles centraliza sua proposta de autoajuda na formao do
carter, na constituio de um sistema de valores, cujos princpios esto
alicerados no dever e moral determinantes de conduta na sociedade.
No presente captulo, pretende-se evidenciar como as ideias do
referido autor esto profundamente alinhadas ao iderio dos puritanos,
estimulando uma moral e um dever para o trabalho. Por esta razo,
apresenta-se um breve resgate de sua vida e sntese de sua principal
obra, num primeiro momento, para posteriormente analisar suas
16
Para fins deste estudo, como j informado, Self-Help ser referenciada pelo ano de
publicao de 1893, da qual se tem acesso, assim, como as demais obras do autor analisadas
neste captulo.
17
As obras do precursor desse tipo de literatura eram pouco conhecidas do grande pblico, ao
menos at 1996, quando Francisco Rdiger publicou Literatura de auto-ajuda e
individualismo.

68
publicaes de maior repercusso e que guardam continuidade com os
valores apregoados em Self-Help: Ajuda-te (1893), O carter (1871), O
dever: coragem, pacincia e resignao (1880) e Vida e trabalho
(1887)18.
2.1 TRABALHO EM TEMPOS VITORIANOS
No sculo XIX, a consolidao do poder da burguesia
favorecida pela constituio de uma ideologia [liberal] que justifica e
racionaliza os interesses do capital, servindo, dessa maneira, de
sustentao e organizao das sociedades capitalistas. (SANTANA,
2007, p. 89). O liberalismo tambm chamado clssico correspondeu
expresso ideolgica do capitalismo em sua etapa concorrencial. Dias
(2007b) assinala que os liberais idealizaram o capitalismo como a
expresso acabada da natureza humana, como a forma legtima de fazer
a produo material, tendo o homo oeconomicus como o modelo das
virtualidades do homem burgus pretendendo eternizar e naturalizar o
capitalismo, a burguesia transformou seus princpios em leis da vida
social e suas regras em leis do mercado.
Ao longo do sculo XIX, o processo de industrializao
consolidou-se de tal maneira que o desenvolvimento das foras
produtivas foi viabilizado por novas formas e mtodos de administrar o
trabalho com a passagem dos trabalhadores das oficinas para o espao
da manufatura. O trabalhador-arteso, que conhecia e controlava todas
as etapas do processo, desde a sua concepo elaborao, cede lugar
ao trabalhador fragmentado e parcializado. De acordo com Marx (1968,
p. 400), "a estreiteza e as deficincias do trabalhador parcial tornam-se
perfeies quando ele parte integrante do trabalhador coletivo."
Do sculo XVII ao incio do sculo XIX soma-se um perodo de
intensa luta entre capitalistas e trabalhadores, que se acirra com a
diviso manufatureira do trabalho e a introduo da maquinaria,
configurando uma longa histria de luta de classes. Como destaca Marx
(1968, p. 427): Cinqenta mil trabalhadores que at ento viviam de
cardar l dirigiram uma petio ao Parlamento contra as mquinas de
carduar e de cardar de Arkwright. O descontentamento dos
trabalhadores com o maquinrio causou enorme destruio de
mquinas nos distritos manufatureiros ingleses durante os primeiros 15
18
As obras esto assim referenciadas pelo ano originalmente de publicao, mas para fins deste
trabalho sero citadas pelo ano de publicao no Brasil.

69
anos do sculo XIX, provocada principalmente pelo emprego do tear a
vapor. (MARX, 1968, p. 427. O movimento luddita19 como ficou
conhecido, levou Marx a afirmar, conforme j apontado, que precisaria
de tempo e experincia para que o trabalhador percebesse que o que
deveria ser atacado era a forma social de explorao qual estavam
submetidos, e no a introduo do maquinrio que poderia potencializar
o trabalho humano.
Enquanto Marx denunciava a situao de explorao dos
trabalhadores pelos capitalistas, Smiles exaltava o carter industrial de
expoentes ingleses, enfatizando o labor, a engenhosidade e
desconsiderando as relaes de trabalho e de explorao decorrentes do
aperfeioamento da maquinaria. Smiles (1893, p. 41) escreve:
Arkwright chegou a ser denunciado como inimigo
da classe operria, e um tear que construiu perto
de Chorley foi destrudo pela populao em
presena mesmo de um forte destacamento de
polcia e de tropa. Os negociantes do Lancashire
recusaram-se a comprar os seus produtos, apesar
de serem por todos reconhecidos como os
melhores. Negaram-se a pagar o direito de patente
pelo uso dos seus engenhos e combinaram-se para
esmag-lo perante os tribunais. Com grande
desgosto das pessoas sensatas, a patente de
Arkwright foi anulada. [...] estabeleceu novos
19

Os ludditas, conhecidos como os destruidores de mquinas, formavam uma organizao de


operrios que se dizia estar sob as ordens de um general chamado Ned Ludd, de quem deriva a
denominao. A destruio de mquinas continuou at meados de 1816. Segundo Huberman,
os ludditas, nas suas manifestaes, cantavam canes para externar seus sentimentos de
revolta diante das condies sociais que viviam. Uma das canes dizia: De p ficaremos
todos. E com firmeza juramos quebrar tesouras e vlvulas e pr fogo s fbricas daninhas.
(HUBERMAN, 1986, p. 186). Para os ludditas, a mquina seria a grande vil na relao de
trabalho. Interessante observar a interpretao de Marx (1968) sobre essa relao. Para ele,
incontestvel que a maquinaria em si mesma no responsvel de serem os trabalhadores
despojados dos meios de subsistncia [...]. A maquinaria, como instrumental de trabalho que ,
encurta o tempo de trabalho, facilita o trabalho, uma vitria do homem sobre as foras
naturais, aumenta a riqueza dos que realmente produzem, mas, com sua aplicao capitalista,
gera resultados opostos: prolonga o tempo de trabalho, aumenta sua intensidade, escraviza o
homem por meio das foras naturais, pauperiza os verdadeiros produtores. (MARX, 1968, p.
506). O problema estaria, ento, na relao social estabelecida uma relao em que homens
escravizam outros homens quando por meio da maquinaria poderia ento libert-los, conforme
se observa nas palavras de Marx. Era mister tempo e experincia para o trabalhador aprender
a distinguir a maquinaria de sua aplicao capitalista e atacar no os meios materiais de
produo, mas a forma social em que so explorados. (MARX, 1968, p. 491).

70
teares no Lancashire, no Derbyshire e em New
Lamark, na Esccia. O tear de Cromford passou
tambm para as suas mos quando findou a sua
sociedade com Strutt e eram tais o nmero e a
superioridade dos seus artefatos que em pouco
tempo conseguiu ser o regulador desta indstria, a
ponto que era ele quem fixava os preos e servia
de norma nas principais operaes dos outros
fabricantes. [...] todos os mais ramos principais da
indstria inglesa oferecem exemplos semelhantes
de homens enrgicos para os negcios, que tem
isso a causa de muitos benefcios para as
localidades em que trabalhavam e de aumento de
poder e riqueza para a nao em geral.

Smiles (1893, p. 58), ao referir-se ao movimento luddita, destaca


que algumas diferenas surgiram entre patres e operrios empregados
na manufatura de meias e rendas da parte sudoeste de Nottinghamshire e
nas circunvizinhanas de Derbyshire. O ex-mdico escocs limita-se
apenas a descrever como os ludditas, como uma organizao cada vez
mais secreta, destruiam as mquinas empregadas na manufatura. Das
numerosas fbricas cujas oficinas foram atacadas pelos ludditas, Smiles
chama a ateno para o inventor da mquina de ponto de rede, Mr.
Heathcoat, que, em 1816, teve dez de seus teares destrudos e que,
depois de ganhar uma indenizao do Tribunal do Banco da Rainha,
comprou uma velha fbrica em Liverton, estabelecendo uma oficina de
fundio de ferro. Smiles (1893, p. 61) considerava M. Heathcoat um
diligente educador de si prprio, por isso de boa
mente, protegia os jovens operrios em seu
servio, que o mereciam, estimulando-os o talento
e a energia. [...] os dois mil operrios que
empregava o consideravam quase como um pai, e
ele ocupava-se com solicitude do seu conforto e
bem-estar. [...] edificou escolas para a educao
dos filhos de seus operrios.

Em tais passagens, Smiles apresenta apenas um lado da histria, o


lado capitalista, cuja engenhosidade e invenes, aspecto valorizado do
povo ingls, so elementos fundamentais para o desenvolvimento da
indstria. Esta verso da histria no explicita como se configuraram as
relaes de trabalho. Em O capital, Marx (1968, p. 493) analisa que a

71
histria no oferece nenhum espetculo mais horrendo que a extino
progressiva dos teceles manuais ingleses, arrastando-se durante
decnios e consumando-se finalmente em 1838.
Do artesanato chamada indstria moderna, Marx (1968, p. 435)
sintetiza:
Com a afluncia das invenes e a procura
crescente de novas mquinas inventadas, cada vez
mais se diferenciava em ramos autnomos
diversos a produo de mquinas e se desenvolvia
a diviso do trabalho nas manufaturas que
construiam mquinas. A manufatura constitui
assim em base tcnica imediata da indstria
moderna. A primeira produzia a maquinaria com
que a segunda eliminava o artesanato e a
manufatura nos ramos de produo de que se
apoderava.

Nessa fala evidencia-se aquilo que Marx e Engels (1987), na


Ideologia Alem, diziam sobre uma forma de trabalho subverter a outra,
medida que esta se fixa. Assim, os homens fazem histria e produzem
sua existncia a partir de circunstncias dadas, e no de acordo com sua
vontade, que uma gerao jamais abdica das condies materiais
existentes, utilizando-as como um patamar a ser alcanado.
O longo sculo XIX sedimenta o que se chamou de capitalismo
concorrencial ou competitivo (BOTTOMORE, 2001, p. 285), em que a
mais-valia apropriada principalmente sob a forma de lucro e a diviso
do trabalho coordenada e orientada pelos mercados nos quais as
mercadorias so vendidas. No h dvida de que as relaes sociais se
complexificaram, tanto assim, que os acontecimentos nesse perodo
permitem tal afirmao. Segundo Hobsbawm (1995, p. 22), o longo
sculo XIX foi um perodo de progresso material, intelectual e moral
quase ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condies de vida
civilizada.
A construo das estradas de ferro foi provavelmente o fator mais
importante na promoo do progresso econmico europeu nos anos
1830 e 184020. A Inglaterra foi a maior beneficiada, uma vez que a
20

Marx tambm trabalhou nas estradas de ferro inglesas em meados da dcada de 50 do sculo
XIX. Escreve Gonzlez (2002, p. 81) que as dificuldades econmicas levaram Marx a

72
economia se diversifica e surge a necessidade de aperfeioar as ferrovias
para que sejam usadas para o transporte de mercadorias e pessoas. Os
polos de desenvolvimento econmico surgiram e a ferrovia significava
valorizao das terras e imveis. Por volta da dcada de 30 do sculo
XIX, as profundas transformaes econmicas deflagradas pela
Revoluo Industrial e a reorientao intelectual propiciada pelo
desenvolvimento da economia poltica burguesa - especialmente os
trabalhos de Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) foram as chaves tanto para a emergncia de um novo mundo quanto para
a disseminao de uma nova concepo de mundo. (RODRIGUES,
2002).
Esse o perodo em que vive Samuel Smiles, autor que centraliza
a discusso na formao do carter do indivduo, no cumprimento de
deveres morais para o progresso de uma sociedade.
2.2 VOLTANDO S ORIGENS21: UM POUCO SOBRE
SAMUEL SMILES
Samuel Smiles nasceu em Haddington (Esccia), em 23 de
dezembro de 1812, perodo em que uma srie de inovaes tcnicas
permitiu acelerar o processo de industrializao22. Smiles morava com
sua famlia, composta de 11 irmos, dos quais era o mais velho. Sobre
seus pais, o que se sabe que dirigiam um pequeno comrcio, no qual
Smiles muitas vezes ajudava. Aos 14 anos, enquanto frequentava a
escola, comeou a atuar como aprendiz de um mdico e, em 1829,
ingressou no curso de medicina da Universidade de Edimburgo, na
Esccia.
pretender um cargo de funcionrio na Companhia de Estradas de Ferro de Londres. Mas h um
empecilho insupervel para Marx tornar-se escriturrio de uma das mais desenvolvidas
empresas capitalistas: Karl tem letra ruim. No mesmo perodo, Smiles tambm trabalhou na
administrao de uma linha frrea, na Inglaterra.
21
Mais informaes a respeito de Samuel Smiles podem ser encontradas em Mudar para
Manter: a auto-ajuda como a nova pedagogia do capital (dissertao de mestrado), 2005.
22
Embora o termo industrializao esteja ausente nos escritos do sculo XIX, o conceito est
presente em Marx quando ele distingue a indstria moderna ou sistema fabril ou sistema
da maquinaria das formas anteriores de produo capitalista, a COOPERAO e a
MANUFATURA. A indstria moderna distingue-se pelo papel central que nela desempenha a
maquinaria: To logo as ferramentas se transformaram de implementos manuais do homem
em implementos de um aparelho mecnico, de uma mquina, o mecanismo motor tambm
adquiriu uma forma independente, totalmente emancipada das limitaes da fora humana.
Com isso, a mquina individual reduz-se a simples fator de produo pela maquinaria.
(MARX, 1981 apud BOTTOMORE, 2001, p. 192).

73
Durante o curso universitrio, Smiles participou da campanha
para a Reforma do Parlamento Ingls. Escreveu vrios artigos
publicados num jornal semanal de Edimburgo Edinburgh Weekly
Chronicle. Formou-se em 1832, voltando para Haddington para atuar
profissionalmente. No se sabe ao certo por quantos anos Smiles atuou
como mdico, mas ainda nesse perodo tornou-se simpatizante e
colaborador de Joseph Hume23, um poltico escocs radical que
conhecera durante o curso de medicina em Edimburgo.
Hume e outros parlamentares ingleses presenciaram um perodo
as primeiras dcadas do sculo XIX - de crescimento da indstria24. As
mudanas sociais e polticas decorrentes do processo de industrializao
podiam ser visualizadas pelo crescimento urbano e construo da classe
operria inglesa. A Revoluo Industrial possibilita enorme aumento da
produtividade em funo da utilizao dos equipamentos mecnicos, da
energia a vapor e, posteriormente, da eletricidade, substituindo
gradativamente as foras animal e humana. Apesar de um crescente
nmero de empregos, este no absorvia a demanda, gerando um excesso
de trabalhadores desempregados que se incorporaram grande massa de
mendigos.
Nas cidades, a populao aumentou consideravelmente com a
chegada dos camponeses que buscavam um emprego como operrios
nas fbricas, conforme dados e anlise que Marx (1984) faz ao
desvendar os segredos da chamada acumulao primitiva. A
populao de Leeds cidade em que Smiles passou a residir a partir dos
anos 30 do sculo XIX -, por exemplo, no tinha 53.000 habitantes em

23

Smiles considerava Hume um homem de perseverana cuja admirao se manifesta na


observao de sua trajetria de vida. Em Ajuda-te (1893), Smiles descreve, ainda que
resumidamente, a trajetria de Hume, que comea como aprendiz de cirurgio e acaba
tornando-se um bem-sucedido cirurgio mdico. Aps ser diplomado na profisso, empreendeu
vrias viagens ndia como cirurgio de bordo a servio da Inglaterra. Dedicou ateno ao
aprendizado sobre manobra de bordo e estudos sobre a navegao. Em 1812, Hume foi eleito
deputado para o Parlamento Ingls, no qual se manteve com pequenas interrupes, durante 34
anos.
24
A segunda metade do sculo XIX representativa do crescimento da indstria. De acordo
com Bisseret (1979, p. 42), as novas invenes tcnicas permitiram obter o ao que vai
desempenhar o papel motor que o algodo tivera sculo antes. Estradas, canais, ferrovias e
redes telegrficas se espalham pela Europa; a colonizao permite a abertura de novos
mercados lucrativos; as redes bancrias so instaladas, as sociedades annimas se constituem,
as concentraes financeiras e industriais se multiplicam. O trabalho social divide-se em
tarefas mltiplas e hierarquizadas, e criada uma verdadeira administrao da economia, que
exige, em todos os escales, homens com formao tcnica.

74
1801, chegando a 152.000 em 184125. Inversamente ao crescimento
industrial e populacional, as mudanas nas relaes de trabalho
reduziam as condies e as possibilidades de uma vida digna aos
trabalhadores. A explorao do trabalho humano com o
desenvolvimento do capitalismo degradou, alm da vida de
trabalhadores, milhares de mulheres e crianas, que eram submetidas
exaustiva e desgastante jornada de trabalho.
Naquele contexto, Smiles, que j havia desistido da carreira de
mdico, dedicando-se a escrever discursos, no para denunciar as
condies sociais vividas pelos trabalhadores, pelo contrrio, seus livros
e palestras passaram ao largo dos problemas sociais de sua poca. Essa
uma caracterstica marcante nas obras de Smiles: a de no mencionar
conflitos, tenses ou os antagonismos de classe entre burguesia e
proletariado, aspectos centrais na obra de Marx26. Em Smiles no h
referncia nem burguesia nem ao proletariado como classes sociais.
Por acreditar tanto na bondade humana no bom carter Smiles
dedicou sua vida literatura como uma misso de vida.
Smiles participou ativamente dos movimentos em prol da
Reforma Parlamentar da Inglaterra. Em 1837, ele comeou a contribuir
com alguns artigos sobre a reforma parlamentar para o Leeds Times jornal fundado em 1833, e em 1838, assume a chefia da edio do
jornal, abandonando definitivamente a carreira de mdico em favor de
sua militncia pela mudana poltica, pela via parlamentar. frente da
edio do jornal, Smiles criticou duramente o cartismo27, no pelos seus
objetivos, uma vez que se identificava com suas posies, mas porque
discordava da fora fsica empregada pelo movimento. Com o passar
25
Alm de Leeds, no perodo compreendido entre 1801 e 1841, cidades como Manchester
passam de 35.000 para 353.000 habitantes e Birmingham, de 23.000 para 181.000 habitantes.
(HUBERMAN, 1986).
26
Vale ressaltar que Smiles (1812-1904) e Marx (1818-1883) viveram na mesma poca, mas
como se um no tivesse tomado conhecimento da existncia e da atuao do outro, ainda que
ambos tenham tido participaes significativas no que se refere ao envolvimento, militncia e
aos escritos em relao ordem poltica, econmica e social estabelecida naquele momento.
Acredita-se que esse deixar passar em branco represente o posicionamento de Smiles no que
tange ao papel do Estado e luta de classes.
27
Segundo Castelo Branco (2005), o cartismo demonstra o aprendizado da classe trabalhadora
na defesa de seus interesses. Novas tticas de lutas foram incorporadas e o proletariado partiu
para um novo movimento reivindicatrio. Em 1838, trabalhadores britnicos, amparados pela
Associao dos Trabalhadores Londrinos, iniciaram um movimento de carter reformista que
ficou denominado de cartismo. Teve esse nome derivado do fato dessas reivindicaes serem
feitas atravs do envio de cartas, peties ou abaixo-assinados aos parlamentares ingleses
exigindo reformas urgentes.

75
dos anos, o Leeds Times foi recuperando seus ndices de venda e Smiles
permaneceu no cargo de editor-chefe at meados de 184528.
Em 1840, Smiles recebe o convite para secretariar a Associao
para a Reforma Parlamentar de Leeds, uma organizao que se guiava
pelos objetivos defendidos pelo cartismo. O movimento cartista
constituiu-se na campanha de agitao pela reforma da lei eleitoral e
suas reivindicaes, de acordo com Huberman (1986, p. 189), estavam
relacionadas ao:
1. Sufrgio universal para todos os homens; 2.
Pagamento aos membros da Cmara dos Comuns
(o que tornaria possvel aos pobres se
candidatarem ao posto); 3. Parlamentos anuais; 4.
Nenhuma restrio de propriedade para os
candidatos; 5. Sufrgio secreto para evitar
intimidaes; 6. Igualdade dos distritos eleitorais.

O cartismo, considerado o primeiro movimento de massa da


classe operria, do qual participaram os artesos, sob presso
econmica, conforme lembra Hobsbawm (1999, p. 124), significou
uma vitria da luta organizada do movimento operrio, que desde o
incio do sculo XIX tentava estruturar-se, ainda que essa organizao
existisse sob formas isoladas, incipientes e de pouca expresso. Mas a
mobilizao em favor dos direitos dos trabalhadores, pelo menos nas
primeiras dcadas, deve-se muito mais influncia de reformadores
sociais, mdicos humanistas, polticos liberais e escritores do que
propriamente s tentativas de organizao da classe operria. (GRAA,
2000, p. 25). Tanto assim que, em meados de 1840, o nome de Samuel
Smiles figura na lista dos participantes ativos do movimento. Alm de
Smiles, aparecem nomes como: Charles Connor (membro do Leeds
Northern Union), Joshua Hobson (membro da Leeds Radical
Association), Thomas Tannet (membro do Leeds Working Mens
Association). Em sua autobiografia Smiles29 relata:
Fui reunio pblica realizada em New Palace
Yard, em 17 de setembro de 1838. O objetivo era

28

Estas informaes encontram-se disponveis em: <http://[email protected]>.


Acesso em: 24 set. 2010. Traduo nossa.
29
Texto disponvel em: <http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/PRsmiles.htm>. Acesso em: 25
ago. 2010. Traduo nossa.

76
convencer o Parlamento em favor da Peoples
Chart [Carta do Povo]. O principal orador foi
Feargus OConnor, que fez bom alarde, e
Richardson, seu discpulo, tambm falou. Os
procedimentos foram prejudicados pelas atitudes
de intimidao fsica de alguns. No apreciei
muito a multido de Londres. Pareciam
vagabundos e preguiosos, e no trabalhadores.
[...] Em 1839 os trabalhadores sofreram muito.
Pelo final do ano, pelo menos 10.000 pessoas
estavam desempregadas em Leeds. Embora se
queixassem, no se rebelaram. Era diferente em
outras partes. Houve tumultos em Birmingham,
Manchester, Newcastle e outros lugares. Em
Newport, no Pas de Gales, uma rebelio cartista
ocorreu, terminando na captura de John Frost e
de alguns insurrectos. Em Bradford os homens
utilizaram armas de fogo abertamente. Dezesseis
deles foram pegos pela polcia e condenados a
muitos anos de priso. Feargus OConnor foi
condenado a dezoito meses de priso por incitar a
rebelio e por saquear Northern Star.

Diante do que Smiles expe sobre a reao dos representantes do


movimento cartista, parece haver certa decepo na forma como eles
conduziam as reunies. Smiles era favorvel ideia de uma reforma
social, mas por meios pacficos, pela ao individual. As brigas e as
revoltas eram consideradas manifestaes desnecessrias para o exmdico.
Naquele perodo, outros segmentos articulavam-se em prol dos
direitos dos trabalhadores. Na Gr-Bretanha, reformadores sociais como
Robert Owen (1771-1858) empenharam-se em construir uma cultura
mutualista, cooperativista, com vistas a criticar as condies de trabalho
dos operrios nas fbricas, de mulheres e crianas sob condies
degradantes, defendendo a instaurao de um sistema social em que
seriam possveis o progresso humano e a propriedade comum. Toda a
divulgao das ideias socialistas, em especial a dos socialistas utpicos,
no contagiou completamente a populao da Gr-Bretanha. Hobsbawm
(1999, p. 124) assinala que o socialismo cooperativo foi sempre um
fenmeno perifrico, em vias de ser esquecido mesmo quando o pas foi
empolgado pelo cartismo. Para o referido autor, o socialismo entrou em
decadncia em meados de 1840 devido, em parte, ao avano do

77
capitalismo britnico sobre os outros pases e tambm s prprias
condies polticas da Gr-Bretanha.
Em um perodo no qual o socialismo reformador d sinais de
decadncia, Samuel Smiles convidado a trabalhar com Robert Owen.
Esse encontro rendeu a Smiles uma sociedade30 com Owen no jornal
The Union31, de propriedade deste. Provavelmente as publicaes deste
jornal visavam impulsionar a Reforma Parlamentar de Leeds na qual
Smiles estava engajado. Segundo ele,
por que no estender o direito de voto aos
trabalhadores? Por exemplo, foi mostrado que
vinte e cinco pequenos municpios, de nenhuma
importncia, enviaram cinqenta membros ao
Parlamento, enquanto Leeds, com uma populao
muito maior que todos estes municpios juntos,
enviou apenas dois membros32.

Durante muitos anos, a Reforma do Parlamento Ingls tornou-se


o centro das atenes de Smiles e talvez isso explique o seu
envolvimento em outros movimentos como o Movimento Cooperativo
de Leeds e outras instituies como a Sociedade Mtua e a Sociedade de
Redeno de Leeds.
Ainda na dcada de 1840, sob os preceitos da doutrina liberal,
Smiles comea a pensar na importncia do aperfeioamento do carter
individual aplicado ao trabalho, para o desenvolvimento de uma nao
neste caso, a Inglaterra. O ponto de encontro de Smiles e Owen est
associado concepo de um ideal de reforma social que, para Smiles,
comearia pela reforma individual. A aproximao dos dois pode ser
entendida, ento, pela convergncia de suas ideias, em particular a
reforma da sociedade e o papel do carter nesse processo. Owen
30
importante que se diga que muitos artigos so contraditrios quanto ao fato de que Smiles
teria trabalhado com Robert Owen. Alguns textos os apontam como scios. Para outros, Smiles
seria um dos colaboradores do jornal.
31
De acordo com Engels (1980, p. 43), foi Owen quem presidiu o primeiro congresso em que
as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa grande organizao sindical nica.
Ainda, todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra no
interesse da classe trabalhadora, esto ligados ao nome de Owen. (ENGELS, 1980, p.43).
Assim, o jornal de propriedade de Owen provavelmente servia de instrumento de divulgao
das ideias em favor de melhorias das condies de trabalho nas fbricas.
32
Texto disponvel em: <http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/PRsmiles.htm>. Acesso em: 22
ago. 2010. Traduo nossa.

78
voltava-se mais s condies de trabalho nas fbricas, as quais
causavam inquietaes tanto pelo trabalho que emprega crianas e
mulheres, como pela exausto da jornada de trabalho empreendida. A
aproximao de ambos tambm se d pela viso de que a cooperao
individual constri uma sociedade cooperativa e coletiva. Smiles conta,
em sua autobiografia, que Leeds abrigava um Salo Socialista onde
eram realizadas reunies e tambm leituras socialistas. Ao assistir a
algumas dessas reunies, menciona que Robert Owen era um dos
novatos no movimento socialista. H nfase de Smiles quanto
conduo dessas reunies. Do seu ponto de vista, infelizmente [os
socialistas] misturaram um grande acordo de atesmo com suas vises
na cooperao33.
Apesar de acreditar na reforma social a partir da reforma
individual, Smiles tinha na religio a base de construo de seus valores.
O carter moral tinha relao com a moral religiosa. Protestante, Smiles
referencia em seus escritos vrias passagens bblicas, salmos, parbolas
de Salomo, trechos das cartas de So Paulo. Na principal obra do autor,
inicia com a seguinte frase: Ajuda-te e Deus te ajudar. (SMILES,
1893, p. 1). Owen, em contraposio a Smiles, propagava sua descrena
na religio, vendo nela uma instituio que deveria ser abandonada ou
modificada.
esse aspecto que marcar o distanciamento de Robert Owen e
Smiles. Owen (2002) no acreditava que a religio desempenhasse um
papel de unio entre os homens. Pelo contrrio, ele a via como fonte de
disperso, de diviso entre as naes justamente porque concebia o
desenvolvimento do ser humano independente de sua vontade. Em sua
opinio, evidente que a unidade e a harmonia no puderam jamais
existir nas religies e cdigos baseados na falsa idia de que o homem
tem o poder de crer e de sentir como quiser, pois os fatos provam que a
prpria vontade o resultado da ao de seus instintos. (OWEN, 2002,
p. 110). A verdadeira religio seria encontrada na busca da verdade, pois
aquilo que se chama religio era passvel de mltiplas interpretaes e
suscetvel a mudanas. por isso que Owen interpretava a verdadeira
religio como aquela que se sustenta na verdade, uma vez que a
verdade o que no muda com o tempo; o que esteve e sempre estar de
acordo com todos os fatos conhecidos, o que nunca est em oposio a
si, mas sempre, em todas as suas partes, em unidade e harmonia perfeita,
33
Texto disponvel em: <http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/PRsmiles.htm>.Acesso em: 25
jan. 2010. Traduo nossa.

79
sem sombra de contradio. (OWEN, 2002, p. 127). Essa verdade
esttica e absoluta que Owen imaginava existir possibilitaria uma
organizao coesa, harmnica, igualitria e perfeita de sociedade.
Aqui se apresenta, provavelmente, o ponto nodal das diferenas
entre Smiles e Owen e quem sabe, uma explicao de o porqu no se
encontra nenhuma publicao conjunta desses autores em anos
posteriores.
Em 1845, Smiles deixa o Leeds Times e assume a secretaria da
Companhia Ferroviria Leeds e Thirsk. Ficou neste cargo durante nove
anos, quando aceitou um cargo similar na Companhia Ferroviria SouthEastern. Nesse perodo conheceu George Stephenson, acabando por
biograf-lo em 1871. Stephenson era o que Smiles chamava de homem
da inveno. Foi o responsvel pelo aperfeioamento da mquina a
vapor modificada por Trevithinik. Das sucessivas modificaes,
Stephenson desenvolveu a locomotiva, propiciando mudanas
significativas no transporte ingls. O valor que Smiles atribui s
invenes deve-se crena de que o homem capaz de promover a sua
autoajuda, e as invenes representariam o expoente dessa capacidade.
O resultado de tais invenes, da mquina a vapor de Watt, lembrada
por Smiles em vrios de seus livros, significa para ele um monumento
do poder do auxlio prprio no homem. (SMILES, 1893, p. 34).
Em 1850, Smiles abandonou completamente os esforos para a
Reforma pela via Parlamentar, concentrando-se na divulgao da
instruo popular, escrevendo vrios livros e inmeras biografias de
carter moralizante, fortalecendo seu ideal de autoajuda como um
caminho para a reforma da sociedade. As evidncias de uma tica
protestante esto expressas em suas publicaes, em sua concepo de
homem e mundo cujos valores morais e deveres se voltam para uma
tica do trabalho. Tambm abundante a referncia a Calvino e a Lutero
como homens representativos, homens de bons exemplos, alm de
outros pastores luteranos.
A exemplo de um grande nmero de pastores protestantes, a
crena de que o conhecimento das histrias de vida de lderes da
indstria, enfatizando o trabalho e o esforo como resultantes de
sucesso, poderia proporcionar um estmulo para que outros alcanassem
tambm patamares de sucesso, levou Smiles a buscar nas biografias e
fragmentos destas, uma estratgia para mobilizar os jovens
trabalhadores ingleses. O autor defendia a reforma individual como

80
condio para a reforma social. Ao que consta, Smiles proferia palestras
divulgando suas ideias sobre o desenvolvimento do carter pelo cultivo
do hbito, da autoajuda, do valor da educao pelo e no trabalho, alm
do valor das biografias como modelos a serem seguidos. Em sua
concepo, competia ao homem a conduo de sua vida, uma vez que se
espera
que o indivduo seja capaz de usar sua vontade
para autocontrolar-se. O homem auto-suficiente
(). Um exemplo da divulgao destas idias,
repetidas por muitos doutores da poca, so as
conferncias pronunciadas no Leeds Mechanics
Institute, entre os quais o Dr. Samuel Smiles,
sobre Self-Help in Man34.

Em 1859, Smiles publica seu livro mais conhecido, Self-Help


(Ajuda-te), um tratado acerca da conduta humana nas relaes de
trabalho. De acordo com o autor, uma circunstncia aparentemente ftil
deu motivo a que eu escrevesse esse livro. (Smiles, 1910, p. II),
resultando em uma srie de conferncias proferidas em Leeds, num local
que abrigara um hospital provisrio para doentes de clera.
Em 1845, convidado por um grupo de trabalhadores, Smiles
procura convencer [...] de que a felicidade na vida dependia, sobretudo,
dos prprios esforos, da cultura do esprito, da rigidez de costumes.
(SMILES, 1910, p. 3). Em um ambiente improvisado, jovens
trabalhadores haviam se organizado para ensinarem uns aos outros
aquilo que haviam aprendido no decorrer de suas vidas, desde
aritmtica, qumica, geografia e matemtica. O contedo proposto por
Smiles compreendia biografias de homens da inveno e da indstria
apresentados como exemplos de pessoas que trabalharam arduamente e
realizaram seus sonhos. Propalava os feitos empreendidos por tais
homens em sua trajetria profissional como se no dependessem de
ningum, apenas de si para elevar-se. Este era o recurso pedaggico
utilizado pelo ex-mdico para ensinar jovens trabalhadores baseando-se
naquilo que

34

Informaes disponveis em:


<http://webs.uvigo.es/pmayobre/textos/pilar_iglesias_aparicio/tesis_doctoral/cap4
ginecologia del siglo xix>. Acesso em: 22 dez. 2009.

la

81
outros tinham feito a fim de mostrar o que cada
um deles podia, em maior ou menor escala, fazer
para si prprio, e indicando que sua felicidade e
bem-estar individuais, no decurso da vida
dependiam principal e necessariamente deles, da
cultura diligente de si mesmos, assim como de
poder sobre si prprios e, sobretudo, do
cumprimento exato do dever individual, em que
consiste a glria de um carter varonil (SMILES,
1893, p. 5).

Os exemplos do que esses homens empreenderam em suas


trajetrias e a boa aceitao destes pelos trabalhadores estimularam
Smiles a organizar a publicao do referido livro.
2.3 REFORMA INDIVIDUAL PARA O
SOCIAL: A DIFUSO DAS IDEIAS DE SMILES

PROGRESSO

No decorrer do sculo XIX em que viveu Smiles, cabia ao Estado


liberal garantir os contratos privados da economia e a liberdade das
relaes de troca, mas jamais imiscuir-se nos assuntos do mercado, sob
pena de arruinar sua estabilidade natural. A formao da empresa
capitalista, do mercado e do Estado estaria, assim, harmoniosamente
equilibrada. Como sabemos, a histria e os crticos da economia poltica
capitalista, como Marx, demonstraram ser esta uma imagem que no
coincidia nem com a dura realidade social e, tampouco, com o prprio
funcionamento da economia capitalista. Nessa perspectiva, Smiles
(1893, p. 2) argumenta em Ajuda-te que,
tornar-se evidente que a ao do governo mais
negativa do que positiva e ativa, resumindo-se
principalmente num sistema de proteo
proteo da vida, da liberdade e da propriedade.
As leis, sendo bem formuladas, podem assegurar
ao homem o gozo do fruto de seu trabalho do
corpo ou do esprito custa de um sacrifcio
pessoal comparativamente pequeno; mas nenhuma
lei, por mais compulsiva que seja, pode dar ao
preguioso a atividade, ao prdigo o esprito de
economia ou ao bebero, a sobriedade. [...] tais
reformas s podem ser efetuadas pela ao
individual, a economia e a abnegao. [...] o

82
governo de uma nao quase sempre o reflexo
dos indivduos que a compem.

Smiles poderia ser visto como um idealista utpico ao considerar


um ideal de homem que converteria vcios e ms aes em boas virtudes
pelo simples contato com exemplos de homens de bom carter,
reforando a ideia de que o indivduo possui aptides e talentos
prprios. Tal pensamento era favorvel acumulao capitalista,
determinando um agir moral que difundia uma concepo de que a
busca do interesse individual serviria ao interesse geral. Smiles refora,
nessa perspectiva, o individualismo, um dos pilares da doutrina liberal.
Nesse sentido, o princpio bsico do liberalismo [...] resumido
na expresso francesa de que o governo, em relao iniciativa privada,
deve laisser-faire, isto , deixar fazer, ou melhor, sair da frente e deixar
a iniciativa privada agir. (CHAVES, 2007, p. 9). Naquele contexto, um
dos expoentes dessa doutrina, Adam Smith, acreditava que a busca de
realizao dos interesses individuais resultava em benefcio para todos
na sociedade. Da mesma forma, pensava Smiles (1893) ao propagar em
suas publicaes o pressuposto de que os homens possuem em potencial
as virtudes intelectuais e que o progresso nacional resultante da
atividade, da energia e das virtudes de cada indivduo, assim como a
decadncia nacional a da preguia, do egosmo e dos vcios
individuais.
Concordando com John Locke (1632-1704), um dos expoentes do
liberalismo, Smiles afirmava que o progresso de uma nao ser
alcanado mediante o progresso de cada indivduo. A liberdade, assim,
pressupe que o indivduo possa atingir uma posio social elevada, o
que se daria pelo desenvolvimento de suas potencialidades. Este seria o
lcus no qual o Estado cumpriria seu papel: o de proporcionar um
espao para o indivduo melhorar a sua condio individual.
(SMILES, 1893, p. 3).
Sob tal ponto de vista, Smith (1983 apud Santana, 2007, p. 100)
partia do pressuposto de que o homem, ao exercitar as potencialidades
de sua mente, capaz de fazer comparaes e combinaes em
quantidade sem fim que o possibilitem eliminar as dificuldades com que
se depara no transcurso de sua existncia. Tanto em Smith quanto em
Smiles fica presente a ideia de que no exerccio de desenvolvimento de
suas potencialidades que o homem pode atingir os aspectos mais nobres

83
do carter humano. o exerccio de suas atividades, no trabalho, que
confere ao homem essa capacidade de aperfeioamento de seu carter.
Muitos dos valores que Smiles procura construir esto
relacionados ao pensamento que se firmava no sculo XIX, mas que j
vinha sendo delineado no sculo XVIII. Dentre essas influncias, podese destacar o papel da Escola Liberal Clssica35 no pensamento de
Smiles. A meno a Adam Smith revela a existncia de uma
concordncia de Smiles com o pensamento smithiano, que pode ser
associado seguinte passagem: Ao buscar a satisfao de seu interesse
particular, o indivduo atende frequentemente ao interesse da sociedade
de modo muito mais eficaz do que se pretendesse realmente defendlo. (SMITH, s.d apud HUGON, 1967, p. 121).
Alm da defesa de um ideal liberal em que o Estado no poderia
fazer mais pelos seus membros do que eles mesmos fariam por si,
Smiles aproxima-se do pensamento liberal clssico pelas caractersticas
pacifistas e individuais com que este pensamento estaria organizado.
Como diz Hugon (1967, p. 121), Smith, tal como os fisiocratas,
confiava no interesse privado como meio de assegurar ao homem o
progresso geral da riqueza e tambm otimista quanto aos resultados
desta ao individual. Desta forma, as bases do liberalismo econmico
estariam assentadas na busca do interesse individual, o que coincidiria
com o interesse geral de uma nao.
Contemporneo de Smiles, John Stuart Mill (1806-1873) deu
continuidade tradio clssica liberal36. De acordo com Hugon (1967,
p. 154), Mill prope, igualmente, o desenvolvimento de cooperativas
de produo, inspirando-se em Owen. A medida satisfaz ao seu penhor
individualista: a propriedade privada respeitada e mesmo fomentada,
pois a cooperao transforma a classe obreira em capitalista. Ainda, as
35
Smiles faz referncia, em suas publicaes, a escritores como Adam Smith, David Ricardo,
John Stuart Mill, que formaram a Escola Clssica Inglesa.
36
Hunt e Sherman (1977, p. 56) enfatizam que a viso de mundo subjacente ao liberalismo
clssico tornou-se a ideologia dominante do capitalismo. O intelecto humano valorizado, e
a razo que dita a necessidade de avaliar todas as alternativas que determinada situao
coloca para que a escolha recaia sobre a que oferece o mximo de prazer e o mnimo de dor.
O homem racional movido pela ambio, o que propicia as bases polticas e intelectuais para
o desenvolvimento fabril, afirmam os autores. Segundo eles, as ideias do liberalismo
econmico desenvolveram-se buscando os postulados dos grandes economistas do final do
sculo XVIII, principalmente Adam Smith, David Ricardo, Jean Batista Say e John Stuart Mill.
De outro lado, surgiram as reaes de cunho socialista, que atingem o ponto mximo com a
publicao do Manifesto Comunista de Marx e Engels em 1848.

84
distines de classe sero suprimidas, restando apenas as distines
devidas aos mritos pessoais. (HUGON, 1967, p. 154). A referncia a
Stuart Mill nos escritos de Smiles frequente, visto que este partilha das
idias liberais reafirmadas por aquele. Tanto que vrias so as passagens
de Mill reproduzidas por Smiles (1893, p. 1) em Ajuda-te: O valor de
um Estado , em suma, o valor dos indivduos que o compem. a
manifestao do empenho interior que fortalece uma nao. A posio
de Smiles em relao ao papel do Estado no desenvolvimento da vida de
um trabalhador aproxima-se mais das ideias de Owen do que das de
Stuart Mill. Assim como Smiles, Mill tinha grande simpatia pelas ideias
socialistas, mas o seu objetivo era promover a reforma do capitalismo.
Para Smiles (1893, p. 1), sempre que os homens esto sujeitos a
um excesso de proteo ou de governo, tal sistema tende
inevitavelmente a reduzi-los a um estado de impotncia relativa.
Assim, as melhores instituies no podem mesmo prestar ao homem
um auxlio eficaz. O mais que alcana deix-lo livre para se
desenvolver e para melhorar a sua condio individual (SMILES, 1893,
p. 2). E continua: A carreira industrial adotada pela nao tem sido
tambm o seu meio mais poderoso de educao constante ao trabalho,
sendo o melhor exerccio para cada indivduo em particular, tambm a
melhor disciplina para o Estado. (SMILES, 1893, p. 32).
A doutrina liberal preconiza indivduos autnomos,
independentes e autodeterminados, que desenvolvem a capacidade de
ajudar-se. Do mesmo modo que Adam Smith, Smiles argumentou em
favor da ao individual como aquela que seria traduzida em interesses
de um coletivo: naquele caso, a nao. Em Smith, a liberdade de
mercado considerada poderosa para impulsionar e melhorar a condio
humana, tanto assim que destaca:
O esforo natural de cada indivduo para melhorar
sua prpria condio, quando se permite exerc-la
com liberdade e segurana, , a princpio, to
poderoso que ele, sozinho, e sem nenhum auxlio,
no somente capaz de conduzir a sociedade
riqueza e prosperidade, mas de superar uma
centena de obstculos inoportunos, colocados
muito freqentemente pela loucura das leis
humanas para dificultar suas aes; embora a
conseqncia desses obstculos seja sempre mais
ou menos a usurpao de sua liberdade ou a

85
diminuio de sua segurana. (SMITH, 1937, p.
508).

Smiles, desta maneira, levava aos trabalhadores de Leeds,


Inglaterra, o axioma fundamental de que cada indivduo agindo em
interesse prprio, somado s aes de uma coletividade de indivduos,
maximizaria o bem-estar coletivo. Reforando tal perspectiva, o
publicista escocs argumenta:
[...] o fato de ter uma milionsima parte na
constituio da legislao do pas, votando em
favor de dois ou trs concidados a intervalos de
trs ou cinco anos, no pode exercer, por mais
conscienciosamente que se cumpra este dever,
seno influncia mnima na vida e no carter de
um homem. Alm disso, torna-se cada dia mais
evidente que a ao do governo mais negativa e
restritiva do que positiva e ativa, resumindo-se
principalmente num sistema de proteo
proteo da vida, da liberdade e da propriedade.
(SMILES, 1893, p. 2).

Perante as dificuldades, Smiles parece assumir uma postura que


aponta o homem como aquele capaz de vencer as suas prprias batalhas.
A vida, recorda Smiles, , tambm, batalha de soldados. (SMILES,
1893, p. 6), em que os homens precisam ser batalhadores, perseverantes,
pois, na sua opinio, desta forma que ocorre o progresso de uma
civilizao.
Popkewitz (1998, p. 149) destaca que as sociedades liberais do
sculo XIX estabeleceram uma nova relao entre o governo da
sociedade e o governo, ou controle, do indivduo. Lembra o autor que
as doutrinas constitucionais do sculo XIX acerca da liberdade, dos
direitos e da lei impuseram limites sobre as atividades do Estado
baseavam-se na pressuposio da existncia de indivduos que agiam
com responsabilidade pessoal para governar sua prpria conduta.
(POPKEWITZ, 1998, p. 149).
o que propagava Smiles (1893, p. 3) quando afirmava, que a
maneira pela qual um homem governado pode no ter grande
importncia, enquanto que tudo depende da forma por que ele se
governa a si prprio. As ideias que Smiles difundia sobre o
autogoverno esto inspiradas em Emerson (1804-1882), filsofo

86
americano que salientava: O auxlio que temos dos outros mecnico,
em comparao com as descobertas da natureza em ns. (EMERSON,
1996, p. 14).
Cabe lembrar que, no sculo XIX, as aes sociais, em sua
maioria, eram vistas como prticas invasoras do espao da
individualidade (CUNHA, 2001, p. 35), significando dizer, na
perspectiva das ideias de Adam Smith, que a atividade dos indivduos,
libertos tanto quanto possvel de restries polticas, a principal fonte
do bem-estar social e a fonte ltima do progresso social. (DEWEY,
1970, p. 20).
A adeso a esse pensamento embasou a construo do discurso de
autoajuda de Smiles no perodo vitoriano, disseminando modos de ao,
prticas individuais condizentes ao estilo de vida favorvel ordem
capitalista. Na medida em que se refora o esprito de autoajuda como
motivo de aes, reforam tambm o valor dos modelos de conduta e os
meios de transmisso de valores e educao, incitando prticas calcadas
na moral, dever e fora do carter como argumentos centrais de
constituio de um novo tipo de trabalhador em tempos de
desenvolvimento industrial. Dessa forma, se pode interpretar a pregao
da autoajuda como um processo que visa disseminar concepes de
mundo, de Estado, de educao e de trabalhador fundamentais para a
construo e manuteno da hegemonia capitalista.
2.4 CONHECENDO A OBRA AJUDA-TE: A GNESE DA
AUTOAJUDA NAS RELAES DE TRABALHO
Ajuda-te no a primeira obra de Smiles37, mas a principal no
que diz respeito construo de aconselhamentos e ensinamentos, isto
, de um recurso pedaggico com uma inteno declarada de mobilizar
jovens trabalhadores acreditando que o mercado livre proporcionaria o
mesmo grau de liberdade e igualdade aos indivduos que desejassem
ascender socialmente. As aptides, o talento e a fora de vontade
individual estabeleceriam laos sociais entre as escolhas individuais e o
Estado. Esta instituio existiria, do ponto de vista de Smiles, para
promover os meios necessrios para que o trabalhador conseguisse levar
adiante seus desejos pessoais de forma independente e autnoma.

37

A primeira obra de Smiles Phisycal Education, publicada em 1838 (BASTOS, 2000).

87
A autonomia pode ser considerada um conceito-chave em Ajudate, ainda que este termo no seja utilizado explicitamente, ficando
subsumida expresso auxlio prprio38. Smiles, em 1880, preocupa-se
em explicar no prefcio do livro O dever, que intitulou o seu livro
Ajuda-te a ti prprio, no tendo encontrado outra expresso melhor,
posto que auxlio mtuo parecesse talvez merecer a preferncia.
(SMILES, 1910, p. II). Terminada a obra, Smiles enfatiza que no
exerccio dirio da competio individual - elo para atingir o progresso
profissional -, que se percorrem os caminhos necessrios para se
alcanar a mobilidade social.
A autoajuda de Smiles parte da crena no potencial realizador do
indivduo relacionado ao desenvolvimento de um carter pautado na
moralidade, funcionando como condicionante do progresso individual.
Por tudo isto, Smiles negligencia a luta de classes, o antagonismo entre
proletariado e burguesia, acreditando que a superao das diferenas se
daria na dedicao ao trabalho, na disciplina da profisso, consolidando
a importncia da moral como determinante na organizao social dos
indivduos. A diferena entre os homens, segundo Smiles, se faz pela
inteligncia das suas observaes, condio essencial para o sucesso
na vida. Nessa obra, sua viso exalta uma espcie de darwinismo social
em que os mais fortes refere-se fora de vontade superariam os
mais fracos.
Fortalecer o carter significava estabelecer uma continuidade na
ordenao desses valores. Smiles fundamenta a prtica da autoajuda, de
modo que sob a gide do mandamento moral, este controlaria o
individualismo que vinha se firmando desde o sculo XVII. O autor
menciona algumas palavras de Herbert Spencer acerca da educao
moral:
A supremacia do domnio sobre si mesmo uma
das maiores perfeies do homem ideal. No
seguir todos os seus impulsos, no se deixar
arrastar por cada um dos desejos que nos
dominam alternativamente, mas, pelo contrrio,
saber manter-se num justo equilbrio, no se
deixar governar seno pelos sentimentos reunidos
numa espcie de conselho diante do qual cada
uma de nossas aes ser debatida e decidida com
38

No decorrer da obra, esta a expresso que aparece por conta, talvez, de seus tradutores.

88
calma: isso o que a educao moral, pelo menos,
se esfora por produzir. (SMILES, s.d, p. 75).

A preocupao de fundo - que permeava a sociedade naquele


contexto dizia respeito a como conciliar os valores individuais com os
valores morais. A prtica da autoajuda consubstanciada na moral
asseguraria que os indivduos continuariam melhorando o carter por
meio do cultivo de bons costumes, amoldando e garantindo o controle
das tentaes. em O dever: coragem, pacincia e resignao que
Smiles (1910) explicita melhor a questo: Ser possvel que na
Inglaterra [...] a onda sempre crescente da democracia esteja derrubando
os melhores frutos da disciplina domstica e do carter moral?
(SMILES, 1910, p. 56). Embora escrito duas dcadas depois, em
Ajuda-te que o autor formula a construo de um indivduo que se guia
por princpios morais, ticos cultivados habitualmente: Tudo no
homem hbito, at a prpria virtude. (SMILES, 1893, p. 445). O que
Smiles entende por hbito est relacionado com o cultivo dos princpios
que se constituem pelas palavras, enquanto os hbitos constituem os
fatos. Hbitos e princpios so formadores do carter. Neste sentido,
a educao do carter em grande parte uma
questo de modelos, porque nos amoldamos
inconscientemente ao carter, s maneiras, aos
hbitos e s opinies daqueles com quem
vivemos. Os bons preceitos podem fazer muito,
mas os bons modelos ainda mais, porque nestes
temos a instruo em ao, a sabedoria em obra.
(SMILES, 1893, p. 421).

O denominador comum nas publicaes analisadas a construo


de um discurso que se pauta essencialmente sobre a histria de vida de
homens ilustres, profissionais liberais, literatos, ou seja, homens a quem
considerou figuras edificantes39. Ajuda-te est estruturado em treze
captulos, sendo que, em cada um destes, Smiles instaura uma tradio
de biografar homens de negcios, utilizando-se de fragmentos
39
interessante observar como as estratgias discursivas utilizadas por Smiles assemelham-se
ao discurso neopragmtico (Rorty, 1999), em que tambm se prega o uso de histrias
inspiradoras sobre episdios e figuras do passado. H uma apologia aos exemplos de heris e,
conforme assinala Semeraro (2006, p. 77), Rorty toma partido indiscutvel a favor do
liberalismo [...], valoriza autores de seu interesse e desqualifica outros que no tm utilidade
para o seu discurso.

89
biogrficos como argumento para instituir modelos de conduta e
exemplos a serem perseguidos. A biografia pode ser considerada uma
forma particular de abordar a histria, de trazer tona elementos de
anlise de um contexto que transcende tanto quanto as suas influncias.
A biografia ultrapassa o tempo e repercute ao longo de uma poca.
Biografar - como se pode perceber no decorrer de sua obra o recurso
pedaggico usado pelo vitoriano para influenciar o indivduo a praticar a
autoajuda.
A tese central da qual parte Smiles para a construo de seus
argumentos em Ajuda-te explicitada pelo autor ao final do primeiro
captulo:
Os homens devem necessariamente ser os agentes
ativos de seu prprio bem-estar e do seu sucesso
no mundo e, que por muito de que os homens
sbios e bons sejam devedores aos outros, eles
mesmos que devem [...] ser os melhores
auxiliadores de si prprios. (SMILES, 1893, p.
30).

Tal concepo norteia o livro, com pouqussimos exemplares no


Brasil. Tendo claro que este um livro pouco conhecido, apresenta-se a
seguir uma smula de cada captulo.
No primeiro, Smiles prioriza argumentos em que ressalta a
importncia do papel de cada indivduo na constituio de uma nao.
Estabelece os preceitos do liberalismo, ressaltando que o governo das
aes no depende do Estado, mas de cada indivduo em particular.
Adentra nas biografias, generalizando exemplos singulares aventando a
possibilidade de que estes pudessem ser desenvolvidos por todos
independentemente de condio social. Sobressaem personalidades que
no pertencem exclusivamente s classes mais elevadas, tais como
Shakespeare, Newton, Laplace. Das classes que considerou mais
elevadas, destacam-se nomes como Alxis de Tocqueville e Disraeli,
entre outros. Smiles, semelhana de Emerson (1803-1882)40, utiliza
40
Ralph Waldo Emerson, pensador, ensasta, poeta, conferencista, filsofo e orador norteamericano nascido em Boston, Massachusetts, fundador do transcendentalismo, movimento
ideolgico que exerceu notvel influncia na formao da identidade cultural de seu pas e que
lhe trouxe grande prestgio internacional, viajou durante um ano pela Europa, esteve na
Inglaterra e conheceu pensadores britnicos como William Wordsworth, Samuel Taylor
Coleridge e Thomas Carlyle, o que o levou a iniciar sua prpria filosofia idealista. Ao voltar,

90
apenas fragmentos biogrficos, ou seja, utiliza recortes das histrias de
vida, fazendo meno especialmente s profisses exercidas pelos pais
dos homens retratados. Sapateiros, alfaiates, vidraceiros, corticeiros,
aougueiros, padeiros, entre outras profisses, so destaque nesse
captulo.
No segundo captulo, Smiles chama a ateno para o carter
industrial do povo ingls. Enfatiza o trabalho como princpio educativo,
colocando-o como um dever e uma bno. A atividade a que se refere
Smiles o trabalho manual. deste que surgem os inventores, homens
que, do ponto de vista do autor, so os responsveis pelo crescimento
das indstrias na Inglaterra. A mquina a vapor um dos exemplos a
que Smiles se reporta em vrias passagens de seu livro. Ela representaria
o monumento do poder do auxlio prprio no homem. (SMILES,
1893, p. 34). Em Vida e Trabalho, Smiles (1901, p. 2) reafirma que o
trabalho o melhor dos educadores, porque obriga o homem ao contato
de outros homens e das coisas como elas realmente so. Dentre os
exemplos de homens da indstria e da inveno, destaca James Watt,
George Stephenson e Arkwright.
O terceiro captulo versa sobre os trs grandes inventores da arte
cermica Bernard Palissy (vasos de barro), Friedrich Bttger (inventor
da porcelana dura) e Josiah Wedgwood (fabricante de louas)
biografados como empreendedores e como heris industriais do mundo
civilizado (SMILES, 1893, p. 104), uma vez que representam, para
Smiles, exemplos de dedicao ao trabalho, coragem e perseverana.
A perseverana e a aplicao ao trabalho o tema discutido por
Smiles no quarto captulo. E como lembra, o caminho da prosperidade
humana paralelamente velha e larga estrada da vontade perseverante;
e aqueles que so mais persistentes e tm amor sincero ao trabalho so,
em geral, os que obtm os maiores sucessos (SMILES, 1893, p. 105).
As biografias servem, nesse sentido, para ilustrar o que os inventores,
artistas, pensadores, como trabalhadores, fizeram e fornecem modelos
da mesma espcie e perseverana. (SMILES, 1893, p. 114). Alm

iniciou sua carreira como escritor e conferencista. Criou um grupo que se reunia no
Transcendental Club, o que deu origem ao nome do movimento, o transcendentalismo. As
fontes do seu pensamento podiam ser identificadas em muitos movimentos intelectuais como o
latonismo, neoplatonismo, puritanismo, poesia do Renascimento, misticismo, idealismo,
ceticismo e romantismo. Disponvel:
<http://www.sobiografias.hpg.ig.com.br/RalphWal.html>. Acesso em: 10 jul. 2010.

91
disso, nomes como George Stephenson, Shakespeare, Newton e
Beethoven voltam a ser mencionados.
Smiles aborda, no quinto captulo, que nenhum resultado se
conquista ao acaso, ou seja, a construo de uma trajetria profissional
bem-sucedida adquire-se somente pelo trabalho paciente, diligente, que
deve ser perseguido ao longo de uma vida. As grandes descobertas,
muitas atribudas a Newton, Darwin, Laplace, Galileu, so frutos no do
acaso, mas do empenho, da dedicao paciente ao trabalho de
investigao na qual culminou a produo cientfica dessas personagens
da histria. A referncia a tais personagens constri a histria da
formao de um carter verdadeiramente nobre nas condies mais
humildes da vida. (SMILES, 1893, p. 169). H uma nfase no valor do
trabalho como aquele que educa e protege do que amoral e ajuda a
escrever uma histria de vida.
No sexto captulo, Smiles insiste na importncia da autoaprendizagem, desconsiderando o papel da escola, um aprendizado que
se d pelo esforo prprio, pela prtica, captando ensinamentos de
homens de exemplos. Ele relembra um trecho dos escritos de
Beethoven: homem! Ajuda-te a ti mesmo!. Esta era a divisa da
sua vida artstica. (SMILES, 1893, p. 223). Tanto no quinto quanto no
sexto captulos so exibidos excertos biogrficos de homens humildes,
das camadas populares, pelos quais Smiles fez questo de enfatizar a
possibilidade de ascenso social.
Nas observaes do stimo captulo, h um retrato de homens aos
quais Smiles ressalta o esprito empreendedor e a nobreza de carter,
muito mais do que a nobreza de sangue:
O sangue de todos os homens decorre de origens
igualmente remotas; e ainda que alguns haja que
possam traar a sua descendncia alm dos seus
avs, todos, entretanto, tm igual direito de
colocar no alto da sua rvore de gerao os
grandes progenitores da espcie humana.
(SMILES, 1893, p. 229).

Smiles parece bater sempre na mesma tecla: o trabalho


perseverante e diligente o responsvel pelo fracasso ou sucesso de
qualquer empreendimento, podendo-se fazer aqui uma aluso tica
protestante.

92
Em Energia e coragem, chamada do oitavo captulo, Smiles
discute a importncia da fora de vontade como determinante do
progresso individual. Homens de negcios, nono captulo, Smiles elenca
alguns exemplos: David Ricardo, John Stuart Mill, Herbert Spencer41,
Shakespeare, entre outros nomes. O autor percebe que o caminho para o
sucesso passa necessariamente pela dedicao ao trabalho. Para
alcan-lo, o trabalho paciente e a assiduidade so to necessrios como
adquirir conhecimentos, ou fazer progressos na cincia. (SMILES,
1893, p. 304). Valendo-se de histrias pessoais, afirma que trs coisas
so necessrias para ser hbil em qualquer profisso: propenso natural,
estudo e prtica. (SMILES, 1893, p. 305). Nos negcios, o autor
considera que o grande segredo do sucesso ocorre pela prtica sbia e
diligentemente dirigida. Relembra a fbula dos trabalhos de Hrcules42
como exemplo de sucesso: Deveria fazer-se sentir a todos os jovens
que a felicidade e bem-estar na vida dependem deles mesmos, e do
exerccio das suas prprias energias, mais do que do auxlio e proteo
dos outros. (SMILES, 1893, p. 305). Nestas circunstncias, caberia ao
homem estruturar sua vida no em funo ou dependncia de outros,
mas por si s, pelo trabalho e empenho prprios.
Smiles v no trabalho, assim como Marx via embora por
diferentes perspectivas - a fonte de toda a construo da histria humana
e a base que garante a produo da existncia do homem. A
necessidade do trabalho pode, na verdade, ser considerada como a raiz
principal e a fonte de tudo o que chamamos progresso individual e
civilizao das naes; e caso para perguntar se haveria maldio
41
Foi um dos primeiros investigadores a defender a teoria evolucionista. Tentou aplicar o
conceito de evoluo no s biologia, mas tambm psicologia, sociologia, tica e
poltica. Defendeu que o processo de seleo natural se aplicava sociedade - o chamado
darwinismo social -, levando eliminao dos socialmente mais fracos. A sua obra mais
conceituada The Synthetic Philosophy (1896). A obra do filsofo ingls Herbert Spencer
inseparvel da ideologia do progresso - da idia de um desenvolvimento progressivo da
Humanidade e do evolucionismo cultural e social - que marcou o sculo XIX. Spencer introduz
as hipteses evolucionistas em 1854, em Social statics, que sero igualmente defendidas por
Darwin, em 1859, na sua obra A origem das espcies. Com uma importncia decisiva nos
Estados Unidos, Spencer no marcar de igual modo a Sociologia francesa, graas aos ataques
que lhe foram dirigidos por Durkheim. Disponvel em: <http://www.infopedia.pt/$herbertspencer>. Acesso em: 14 de ago. 2010.
42
O esforo e a superao de obstculos so contados na fbula em que Hrcules recebe 12
trabalhos do Rei de Argos, seu primo Euristeu. Os trabalhos so: vencer o Leo de Nemeia,
Hidra de Lerna, Javali de Erimanto, Cora de Cerinia, Aves do lago de Estinfalo, Estbulos de
Augias, Touro de Creta, guas de Diomedes, Bois de Gerio, Cinturo da Rainha Hiplita,
Busca do co Crebro, Pomos de ouro do jardim das Hesprides. Para conhecer mais sobre os
trabalhos de Hrcules, consultar Brando (1997).

93
maior para o homem do que a satisfao completa de seus desejos sem
esforo de sua parte, sem ter nada a esperar, a desejar, ou a conquistar.
(SMILES, 1893, p. 307). A motivao humana concretiza-se no
trabalho. Apesar de Smiles no apontar como eram as relaes de
trabalho, o autor evidencia em seus relatos que compete a cada homem
individualmente, pelos seus desejos, empenhar-se para conquistar o que
almeja. Em geral, as descries que aparecem em seu livro enfocam o
indivduo mais como um trabalhador independente e solitrio em suas
aes do que um trabalhador que divide um espao de trabalho com
outros trabalhadores. Ele no menciona o trabalho coletivo.
Smiles transcreve uma carta escrita por Lord Melbourne a Lord
John Russell em resposta a um pedido de emprego para um dos filhos do
poeta Moore:
Meu caro Joo, dizia ele; devolvo-lhe a carta de
Moore. Farei prontamente o que me pedes
quando isso me for possvel. Sou de opinio que
o que se fizer ser feito por Moore ele mesmo.
Isso mais claro, direto e inteligvel. difcil
justificar uma pequena proviso para um rapaz e,
alm disso, no h nada que lhe seja prejudicial.
Julga ter muito mais do que realmente tem, e no
faz esforo algum. Os rapazes no deveriam
ouvir outra linguagem seno esta: Tendes de
fazer a vossa carreira, e depende dos vossos
esforos morrerdes de fome ou no. Creia-me
etc. (MELBOURNE, s.d apud SMILES, 1893, p.
305).

A carta de emprego um sinal de que a histria se repete43. A


relativizao da importncia do currculo possibilita a abertura para as
redes de relacionamento e a reflexo de que as indicaes aos cargos
no so procedimentos de uma poca especfica. Nesta passagem,
Smiles tenta mostrar que os homens articulam estratgias para organizar
suas vidas e daqueles que os circundam. Assim,
os esforos prticos sbia e vigorosamente
aplicados produzem certos os devidos efeitos.
43
Gramsci (2007, p. 25), em referncia a alguns artigos e livros de Corrado Barbagallo, destaca
que sua concepo de mundo que no h nada de novo sob o sol, o mundo todo uma
aldeia, quanto mais as coisas mudam, mais so as mesmas.

94
Levam o homem para adiante, formam o carter e
estimulam os outros. Nem todos se levantam a
igual altura, mas, no entanto, cada um chega
quase sempre a uma posio correspondente aos
seus merecimentos. (SMILES, 1893, p. 306).

Nesse trecho, Smiles expe os valores morais e religiosos que


permeiam toda a sua incurso e esforo em propagar a prtica da
autoajuda, um iderio moral que contm e serve-se de apelos e preceitos
de superao, perseverana, semelhante aos apelos e preceitos
disseminados na autoajuda em tempos atuais. Em especial, neste
captulo, o autor admite que o comrcio pode ser uma tentao aos
homens de negcio porque pe o carter em perigo [mais] do que
qualquer outra profisso, e expe a srios ataques a honestidade, a
abnegao, a justia e a integridade. (SMILES, 1893, p. 326).
Enquanto o comrcio pode ser encarado como um desafio para o carter,
homens de negcio que se dedicam inveno, indstria, s artes,
religio parecem no sofrer tais tentaes, por isso so as profisses
mais valorizadas por Smiles.
Em Homens de negcios, nono captulo, o autor sustentou que o
caminho para o sucesso passa necessariamente pela dedicao ao
trabalho. Para alcan-lo, o trabalho paciente e a assiduidade so to
necessrios como adquirir conhecimentos, ou fazer progressos na
cincia. (SMILES, 1893, p. 304). Valendo-se de histrias pessoais,
afirma que trs coisas so necessrias para ser hbil em qualquer
profisso: propenso natural, estudo e prtica. (SMILES, 1893, p. 305).
No dcimo captulo, as observaes esto imbudas de sua
postura em relao religio. De credo protestante, o autor considera
que as aes relativas economia, emprstimos, aquisies ou
investimentos so indicativas dos valores morais do indivduo. A prtica
da economia importante para que o homem conquiste a sua
independncia, mas no deve tornar-se a finalidade de todas as aes. O
dinheiro representa, entre outras coisas, a manuteno da vida por meio
da aquisio de alimentos, vesturio e habitao. Um homem que no
consegue suprir suas prprias necessidades ou de sua famlia pode ser
considerado um escravo, na viso de Smiles.
No dcimo primeiro captulo, Educao de ns mesmos:
facilidades e dificuldades que apresenta, Smiles explica como
possvel praticar a autoajuda. Alm do cultivo dos bons hbitos,

95
mencionados anteriormente, a educao vista como um fator de
estmulo ao desenvolvimento humano. A educao a que Smiles se
refere no tem relao com a educao formal dos bancos escolares.
Esta ocupa uma posio secundria e pode ser relativizada em seus
escritos. Como j foi comentado, o trabalho educa, organiza, aproxima
os homens, estabelece relaes sociais. a isso que Smiles se refere
quando prioriza o trabalho como educativo em detrimento dos
conhecimentos adquiridos na escola. Tanto assim, que faz uma
verdadeira apologia ao trabalho ou quase uma evangelizao em torno
deste. O fato que a escola, para Smiles, no ensina os valores morais.
A escola da dificuldade a melhor escola da disciplina moral para as
naes e os indivduos. (SMILES, 1893, p. 391). Alm da experincia
prtica adquirida pelo trabalho -, dos bons exemplos, as dificuldades
so consideradas instrutivas e participam em grande parte na formao
do carter, uma vez que os trabalhos bem suportados exercitam o
carter e ensinam a auxiliar-nos a ns mesmos; e so utilssimos, ainda
que no queiramos reconhecer. (SMILES, 1893, p. 390). A
perseverana o outro elemento instrutivo do carter do indivduo ao se
considerar que esta aperfeioa suas qualidades, no se entregando
preguia e ociosidade. A perseverana tambm explica, segundo
Smiles (1893, p. 409), como
a posio dos rapazes na escola invertida depois
na vida real; e curioso observar como que
alguns, que foram to hbeis, se tornaram depois
to vulgares, enquanto que rapazes estpidos, dos
quais no se esperava coisa alguma, vagarosos no
desenvolvimento das suas faculdades, mas firmes
no caminhar, conquistaram a posio de chefes e
condutores de homens. O autor deste livro
[Samuel Smiles], sendo criana, tinha na sua
classe um companheiro dos mais estpidos. Todos
os professores tinham experimentado com ele
todos os meios sem nada conseguirem. Castigos
corporais, carcias, splicas: tudo era intil. Por
vrias vezes, se experimentou p-lo no primeiro
lugar da classe, e era curioso ver a rapidez com
que ele cai inevitavelmente no ltimo grau. Seus
mestres o abandonaram como estpido
incorrigvel, e um deles chegou a dizer que era
dotado de uma estupidez fenomenal. Entretanto,
apesar de lento, o estpido tinha em si uma

96
espcie de energia ntima e de tenacidade que se
desenvolveram ao mesmo tempo que os seus
msculos; e, coisa muito para estranhar, quando
afinal ele chegou a ter parte nas coisas prticas da
vida, viram-no tomar dianteira ao maior nmero
dos seus condiscpulos e deixar quase todos para
trs. A ltima vez que o autor teve notcias desse
condiscpulo, era ele o chefe da magistratura da
sua terra natal.

O dcimo segundo captulo foi construdo em torno da relevncia


dos exemplos e dos modelos, a partir dos quais Smiles dissemina os
preceitos para a prtica da autoajuda. Se no captulo anterior a educao
que provinha das vias formais era pouco valorizada, neste captulo, a
educao que se forma a partir dos exemplos ganha expresso. O
exemplo o mais eficaz dos mestres, apesar de ensinar sem linguagem.
a escola prtica da humanidade que ensina por meio de atos, que so
mais poderosos do que as palavras. (SMILES, 1893, p. 412). Smiles
defende que a convivncia com pessoas com uma conduta de vida
adequada aos preceitos e valores morais poderia ensinar
conhecimentos mais teis do que aprender contedos de qumica ou
fsica, conforme algumas passagens de sua obra. Ele acredita num
evolucionismo social44 no qual o carter dos pais ou dos homens que
figuram como modelos pode ser reproduzido naquele que acompanha
tais trajetrias. Seus ensinamentos pretendem ajudar a solidificar as
bases que constituem o progresso de uma nao. Da provm a grande
importncia do exemplo, constitui um ensino mudo que o mais pobre e
menos importante da sociedade pode dar na prtica cotidiana.
(SMILES, 1893, p. 417). E resume: No basta dizer aos outros o que
eles devem fazer: necessrio dar-lhes o exemplo das obras. (SMILES,
1893, p. 418). A educao do carter se d, ento, pelas biografias, no
acompanhamento de uma srie de modelos de conduta que podem ser
estudados, admirados e imitados pelos homens. desta forma que
Smiles acreditava no desenvolvimento do bom carter de cada
trabalhador, que consequentemente comporia o carter de uma nao.
No ltimo captulo, Smiles dedica grande parte de sua
argumentao necessidade e importncia da nobreza do carter. Para
ele, carter representa uma ordem moral que o indivduo incorpora,
cultivando-o pelo hbito. Os preceitos da doutrina liberal esto aqui
44

Indicando novamente a influncia do pensamento de Darwin.

97
apresentados sob a forma do incentivo prtica da autoajuda. A fora,
a indstria, a civilizao das naes, tudo depende do carter individual
[...] as leis e as instituies no so mais do que as manifestaes do
carter. (SMILES, 1893, p. 438). Homens de bom carter no possuem
uma hierarquia social. Tanto o operrio quanto um senador podem, na
opinio de Smiles, apresentar-se como exemplos a serem imitados. Ele
faz uso de parbolas bblicas para enaltecer os seus argumentos,
recorrendo principalmente s palavras de Salomo e So Paulo.
Aquele que relaxa no seu trabalho irmo do que desperdia o que
possui. Vai, preguioso, vai ver a formiga; olha para os meios que ela
emprega; e volta sbio. (SALOMO, s.d apud SMILES, 1893, p.
346); O caminho do homem ocioso uma cerca de espinhos.
(SALOMO, s.d apud SMILES, 1901, p. 24).
2.5 O TRABALHO APERFEIOA O CARTER
Herbert Spencer (1820-1903) um dos filsofos admirados por
Samuel Smiles. Em O carter, Smiles (s.d, p. 75) argumenta,
referenciando Spencer, que a supremacia do domnio sobre si mesmo
uma das maiores perfeies do homem ideal. De acordo com Orso
(2007, p. 167):
Herbert Spencer defende que o princpio do
laissez-faire seja levado ao seu extremo e que a
teoria da seleo natural de Darwin seja aplicada
ao campo social. Diz que o processo evolutivo
est marcado por uma adaptao cada vez mais
completa do indivduo ao meio, sobrevivendo
apenas os mais aptos, garantindo, assim, o
aperfeioamento da sociedade. A seleo natural
defendida por Spencer desemboca no darwinismo
social, no laissez-faire, no predomnio da
competio e do livre-mercado.

A idealizao de um indivduo que v nas aes sociais um risco


ao desenvolvimento de uma moral e de um carter tornou-se a tnica
discursiva da autoajuda smilesiana. Pedir auxlio aos outros para tomar
uma deciso, mais do que intil. O homem deve acostumar-se a poder
contar com seus prprios meios e a no depender seno de sua prpria

98
coragem nos momentos difceis45. (SMILES, s.d, p. 62). Spencer que
trabalhou, assim como Smiles, na construo das estradas de ferro
inglesas, tinha uma viso evolucionista da sociedade humana, segunda a
qual a fonte do progresso estaria, necessariamente, associada ao
desenvolvimento do individualismo.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a filosofia do laissez-faire
defendida pelos fisiocratas e pelos clssicos mostrava sinais de que a
regulao do mercado pelas leis naturais desmoronava diante dos
problemas sociais e das crises nas economias nacionais. Na defesa do
individualismo e do liberalismo econmico, o sistema capitalista se
instaura, [e] o controle sobre o indivduo mediado diretamente pelas
relaes sociais de produo e indiretamente pelo Estado.
(PALANGANA, 1998, p. 26).
Este o perodo em que Marx analisa a dissoluo das relaes
cooperativas entre os trabalhadores colocados sob o jugo de um
processo de trabalho que faz do homem o apndice da mquina, cuja
jornada de trabalho exaustiva e degradante. medida que avana o
processo de industrializao, o espao do indivduo se reduz fbrica.
Em Smiles, o processo de industrializao representa a expresso da
potencialidade criativa do homem, enquanto que em Marx, ao longo
das transformaes da sociedade burguesa [...] s restam duas
45

Vale a referncia discusso kantiana sobre o que o esclarecimento: a sada do homem


de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso
de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. O homem o prprio culpado dessa
menoridade se a causa dela no se encontra na falta de entendimento, mas na falta de deciso e
coragem de servir-se de si mesmo sem a direo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de
fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento. A preguia e a covardia
so as causas pelas quais uma to grande parte dos homens, depois que a natureza de h muito
os libertou de uma direo estranha (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom
grado menores durante toda a vida. So tambm as causas que explicam por que to fcil que
os outros se constituam em tutores deles. to cmodo ser menor. Se tenho um livro que faz
as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem conscincia, um mdico
que por mim decide a respeito de minha dieta etc., ento no preciso esforar-me eu mesmo.
No tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregaro
em meu lugar dos negcios desagradveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o
belo sexo) considera a passagem maioridade difcil e alm do mais perigosa, porque aqueles
tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superviso dela. Depois de terem primeiramente
embrutecido seu gado domstico e preservado cuidadosamente estas tranqilas criaturas a fim
de no ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram,
mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaa se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo
na verdade no to grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de
algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tmido o indivduo e atemoriz-lo em
geral para no fazer outras tentativas no futuro. (KANT, 2006, p. 1999).

99
categorias: ou se trabalhador ou se capitalista. (PALANGANA,
1998, p. 44). Das relaes de produo naquele perodo, observa
Palangana, decorre uma autoridade absoluta do capital sobre os
homens, da qual ningum consegue furtar-se, independentemente da
hierarquia social. (PALANGANA, 1998, p. 45).
Buscando referncia no texto Dos nomes e das proposies de
Stuart Mill, Palangana (1998, p. 41) destaca que este autor se pronuncia
sobre o momento no qual a sociedade se volta para o indivduo, a fim
de educ-lo. [...] preciso conhecer o indivduo, como ele pensa, sente,
aprende e se comporta. Com o desenvolvimento das foras produtivas,
o indivduo se forma, no corpo e no esprito, segundo as prescries e
necessidades da sociedade que toma a tcnica como fim e no como
meio. (PALANGANA, 1998, p. 46).
Para atender as necessidades da sociedade industrializada, o
trabalhador tem de comear sua aprendizagem muito cedo, a fim de
adaptar seu prprio movimento ao movimento uniforme e contnuo de
um autmato. (MARX, 1968, p. 481). o ritmo da mquina que
determina o perfil do trabalhador que, adaptado, produz ainda mais para
o capital. O trabalho com uma invarivel regularidade desafia o
indivduo a renunciar aos hbitos irregulares de trabalho (MARX,
1968, p. 485), forando-o a identificar-se com a disciplina necessria
produtividade imposta na jornada de trabalho.
Como afirma Marx (1968, p. 485), por meio do cdigo da
fbrica, [que] o capital formula, legislando particular e arbitrariamente,
sua autocracia sobre os trabalhadores, pondo de lado a diviso de
poderes to proclamada pela burguesia. Na fbrica, o capital exerce
toda sua capacidade reguladora, conformando o indivduo com tanta
eficincia, de maneira que eleva ainda mais o grau de submisso deste
ao capital.
O trabalho organizado nos moldes capitalistas veio demandando,
ao longo do processo produtivo, a transformao da natureza fsica e
espiritual do indivduo na sua relao com a atividade produtiva,
forando-a a esta estrutura se ajustar.
Assim, como o Estado foi modificado, para assegurar a produo
capitalista, tambm o indivduo precisou mudar para responder s
necessidades desse novo modo de produo, que, sabiamente, converteu
fora de trabalho em mercadoria, viabilizando a acumulao de capital.
A despeito das mudanas que o indivduo precisou incorporar em sua

100
natureza, se, por um lado, h por parte do capital um movimento que
explora construindo um homem de novo tipo, h tambm por parte da
autoajuda na voz de Smiles - um movimento que refora os preceitos
do individualismo sob o Estado liberal burgus, fazendo com que os
mesmos percebam que, sempre que os homens esto sujeitos a um
excesso de proteo ou de governo, tal sistema tende inevitavelmente a
reduzi-los a um estado de impotncia relativa. (SMILES, 1893, p. 1).
Nos textos de Smiles no h referncia a problemas sociais, no
h explorao, no h degradao humana motivadas pela brutalizante
jornada de trabalho, no h conflitos entre o capitalista e o trabalhador.
O pregador da autoajuda para trabalhadores dissemina valores liberais
bem sedimentados, divulga seu pensamento no intuito de fortalecer
aes de carter individual desconsiderando tais problemas, pois
necessrio firmar os preceitos liberais, substanciados pelo
individualismo como forma e estratgia para manter o povo ingls
trabalhando sob o argumento do crescimento da nao.
No discurso de autoajuda em tempos de Smiles, o trabalho
utilizado como um dos principais argumentos para manter e elevar a
produtividade, o que explicaria tamanha nfase educao do carter,
de uma educao pelo trabalho artesanal, e tambm aos homens pobres
mais virtuosos que pelas aes demonstravam elevao de carter. Mas
o trabalho visto como um dos principais educadores do carter
prtico produz a disciplina, a obedincia, a conscincia, a ateno, a
aplicao e a perseverana, dando ao homem destreza e habilidade em
sua profisso, a aptido e a inteligncia indispensveis para dirigir os
negcios de sua vida. (SMILES, s.d, p. 49, sem grifos no original).
A dinmica imposta pelo capital ao trabalhador forou-o a
adaptar-se, a mudar sua natureza para dar conta do processo de trabalho
que se colocava. Em Smiles, no perodo em que o trabalhador precisa se
ajustar estrutura de produo, as condies sob as quais isso acontece
no so discutidas.
Tambm a indolncia vista por Smiles como igualmente
degradante para os indivduos e para as naes. (SMILES, s.d, p. 49).
Talvez no haja em toda a natureza humana uma tendncia que mais se
deva combater do que a preguia. (SMILES, s.d, p. 49). Ainda para o
autor: A obrigao do trabalho aplica-se a todas as classes e a todas
condies da sociedade. Cada um em sua esfera tem sua obra a cumprir.

101
Ser ocioso e intil no nenhuma honra nem privilgio. (SMILES, s.d,
p. 50).
Smiles preocupou-se em constituir e fundamentar suas ideias
objetivando imprimir no trabalhador ingls um jeito de ser. Ao
difundir o individualismo, era preciso tornar as pessoas predispostas a
assumir mecanismos disciplinares de tal forma que, de to naturalizados,
o princpio do governo de si mesmo sedimentasse um agir individual
em que o homem assumisse que o seu destino nada mais era do que
resultado de suas obras. No auge da concepo de uma individualidade,
subjetividade privatizada, no mais presa s foras divinas ou naturais, a
formao de um homem de novo tipo embasa o ideal de que o
desenvolvimento do potencial de cada um se d por meio de um
rigoroso disciplinamento interior.
A autoajuda constituda por Smiles representa uma tentativa de
conciliar concepo moral do mundo fomentando o individualismo,
dada a necessidade de se camuflar a desigualdade de classes e a
explorao do trabalho, apelando para perspectivas e exemplos de
trajetrias individuais de homens de sucesso.
Os livros de Smiles revelam grande homogeneidade. O uso
abundante de exemplos extrados tanto de biografias, de falas de
personalidades do mundo poltico e acadmico, de frases bblicas,
provrbios, metforas, parbolas busca dar legitimidade e fora s
assertivas morais do autor, que esto presentes em seus livros, sendo
fontes de julgamentos sobre os homens e os fatos, direcionadas ao
abandono de maus hbitos, ligados, na maioria das vezes, prtica de
sociabilidade de setores tidos por menos civilizados. (BASTOS, 2000).
Para os objetivos desta pesquisa, selecionaram-se quatro obras
listadas abaixo por sintetizarem os fundamentos do discurso de
autoajuda no sculo XIX.

102

Ttulo
Self-Help
O carter
O dever: coragem,
pacincia e resignao
Vida e trabalho

Ano da
1. edio
1859
1871
1880

Inglaterra
Inglaterra
Inglaterra

Ano da ltima
edio
2006
2006
2009

1887

Inglaterra

2009

Pas

Quadro 3 Seleo de livros de autoajuda de Samuel Smiles. Elaborao


prpria.

Observando-se o ano da primeira e ltima edio dos livros,


editados em mais de 17 idiomas, pode-se ter uma noo da influncia e
da repercusso dos ideais de Smiles no mundo. Tais livros apresentam
as mesmas caractersticas: possuem um grande nmero de pginas, em
particular, Ajuda-te, Vida e trabalho e O dever excedem 500 pginas;
so constitudos de mais de dez captulos nos quais iniciam com duas ou
mais epgrafes. Outra particularidade dessas publicaes que o
prefcio do prprio Smiles que faz uma breve sntese dos objetivos
dos livros.
A anlise nos prximos tpicos ser feita a partir da seleo de
temticas recorrentes nessas publicaes, principalmente, o que versa
sobre a influncia do carter, a concepo de homem, de trabalho, de
educao do autor, distinguindo-se a educao fora da escola da que
educaria o carter pela imitao de modelos de homens ideais,
biografias com caractersticas edificantes da educao escolar, vista por
Smiles como expresso de conhecimentos inteis formao do carter.
2.5.1 O elogio ao carter
Nas publicaes de Samuel Smiles, o carter pode ser
compreendido como um elemento fundamental e eficaz para revitalizar
as qualidades solicitadas ao trabalhador. Nesta perspectiva, o carter
ganha a expresso de fora motriz do mundo (SMILES, s/d, p. 11).
Isso porque os homens de carter no so somente a conscincia da
sociedade; tambm os Estados bem governados so a fora motriz por
excelncia, porque so as qualidades morais que governam o mundo
(SMILES, 1893, p. 438). Desse modo, a anlise do sentido da autoajuda
nas obras de Smiles evidencia um homem que tem deveres a cumprir,

103
precisa cultivar a responsabilidade, quer na esfera familiar, na profisso
ou no exerccio de funes polticas. (CERCATO, 2006). O autor
assinala a importncia da nobreza do carter, destacando que o que
eleva um pas e lhe d a fora e dignidade, e
difunde o seu poderio, cria a sua influncia moral,
fazendo-a respeitada e obedecida, cativa a
simpatia de milhes de homens, e abate o orgulho
das outras naes, tornando-a instrumento da
obedincia, a fonte da supremacia, o verdadeiro
trono, a coroa, e o scepiro [sic] da prpria nao,
a aristocracia, no de sangue, da moda, ou do
talento somente, mas a aristocracia do carter. O
carter o verdadeiro braso do homem
(SMILES, 1893, p. 438).

A elevao do carter no est necessariamente associada


riqueza, na compreenso de Smiles. Em suas palavras, pelo contrrio, a
riqueza muitas vezes causa da corrupo e do envelhecimento do
carter. (SMILES, s.d, p. 14). Por outro lado, diz o autor, um estado
de pobreza relativa compatvel com o carter em sua mais bela
expresso. (SMILES, s.d, p. 14).
Assim, o carter , para Smiles, uma propriedade. Isso porque
o mais nobre de todos os bens. Tem direito aprovao e ao respeito de
todos. (SMILES, s.d, p. 15). Essa aprovao e respeito seriam
conquistados no pela riqueza, mas como recompensa na estima e na
considerao adquiridas honradamente. (SMILES, s.d, p. 15). Afirma
ainda o autor que justo que as boas qualidades tenham sua influncia
na vida; que a operosidade, a virtude e a bondade ocupem o primeiro
lugar, e que os homens verdadeiramente bons estejam sempre colocados
antes dos outros. (SMILES, s.d, p. 15).
A influncia do carter se d
na oficina, nos negcios, na bolsa, ou no senado.
Canning acertadamente escrevia em 1801: O meu
caminho para o poder deve ser aberto pelo carter;
e lisonjeio-me de que este meio, se no for o mais
pronto, ser o mais seguro. Admiram-se os
homens inteligentes; mas preciso mais alguma
coisa do que a inteligncia para poder confiar
neles; por isso Lord John Russell observou numa

104
frase cheia de verdade: Os partidos na Inglaterra
recorrem ao auxlio dos homens e gnio, mas s
se deixam guiar por homens de carter. (SMILES,
1893, p. 439).

Defendendo a formao do carter como aquela que preservaria o


homem das ms influncias, o autor salienta que, no comrcio da vida
ou nos negcios, a inteligncia no to precisa como o carter, a
cabea tem menos ao do que o corao; e o gnio no vale tanto como
a conscincia, a pacincia e a disciplina dirigida pelo critrio. Isso
porque, segundo Smiles (s.d, p. 17),
o carter forma-se por uma srie de circunstncias
nfimas, mais ou menos dependentes do modo de
vida e da vontade de cada indivduo. No se passa
um dia sem que ele se discipline para o bem ou
para o mal. No h uma ao, por mais trivial que
parea, que no traga uma srie de conseqncias.
A me de Schimmelpennick tinha razo quando
aconselhava a filha que nunca cedesse nas coisas
pequenas, pois por mais que se desprezem,
acabaro um dia por dominar na prtica. Cada
ao, cada pensamento, cada sentimento, contribui
para a educao do carter, dos costumes e da
inteligncia, e exerce uma influncia inevitvel
sobre todos os atos de nossa vida futura. por
isso que o carter est sujeito constante
alterao, para bem ou para mal, elevando-se por
um lado e abaixando-se pelo outro.

Contudo, Smiles alerta que a superioridade do carter no se


alcana sem custo. preciso, desse modo,
uma vigilncia e uma disciplina constantes e um
grande domnio sobre si mesmo. Sem dvida, h
de haver hesitaes, erros, desfalecimentos
momentneos. Ter-se- de lutar contra numerosas
dificuldades e tentaes, e de venc-las; mas se o
esprito forte e o corao justo, ningum deve
desesperar o xito. Cada tentativa sincera, que
fazemos para avanar e alcanar um grau mais
elevado do que aquele que j tnhamos alcanado
na escala moral, inspira e vivifica; e, ainda que

105
no possamos chegar ao fim que nos
propnhamos, no podemos deixar de nos
melhorar com cada esforo leal que fazemos para
subir. (SMILES, s.d, p. 19).

O que sustenta o carter, o que o fortalece a integridade de


palavras e aes [...] e a aderncia leal verdade como a sua feio
mais proeminente (SMILES, 1893, p. 443). Nesse sentido, o carter
manifesta-se nas aes dirigidas e inspiradas pelos princpios, pela
integridade e pela sabedoria prtica, em outras palavras, , em sua
mais alta expresso, a vontade individual atuando energicamente sob a
influncia da religio, da moral e da razo. (SMILES, s.d, p. 19).
Se assim est agindo, o homem de carter, na viso de Smiles,
aquele que inspirado por um corao nobre, cujas aes so dirigidas
pela retido e para quem o dever a lei da existncia. (SMILES, s.d, p.
20). Ademais, o autor destaca ainda outras atitudes do verdadeiro
homem de carter:
[...] consciencioso. Pe sua conscincia em suas
obras, em suas palavras, em suas aes. [...]
tambm respeitoso. A posse desta qualidade
distingue os tipos mais elevados de um e de outro
sexo. Respeita as coisas consagradas pelas
homenagens das geraes, os grandes objetivos,
as idias puras, as aspiraes nobres; respeita os
grandes homens dos tempos passados e os talentos
cultivados por seus contemporneos. O respeito
igualmente indispensvel felicidade dos
indivduos, das famlias e das naes. (SMILES,
s.d, p. 21).

Para que o homem alimente a formao de seu carter,


necessrio, constncia de hbitos, obrar com retido, quer em segredo,
quer na presena dos homens (SMILES, 1893, p. 444). Smiles
preocupa-se em esclarecer: Os princpios so, de fato, os nomes que
damos aos hbitos; porque os princpios so palavras e os hbitos
constituem fatos, que so nossos benfeitores ou tiranos conforme so
bons ou maus. (SMILES, 1893, p. 447).
O carter, na perspectiva de Smiles, fortalecido e sustentado
pela cultura dos bons hbitos (SMILES, 1893, p. 445). Tal
compreenso difundida de forma que no somente com os grandes

106
homens que se deve contar para apreciar as qualidades de uma nao,
mas tambm com o carter que domina na grande massa do povo
(SMILES, 1893, p. 24). O autor preocupa-se em ressaltar que
as naes, como os indivduos, tm de sustentar
seu carter; e sob um governo constitucional em
que todas as classes participam mais ou menos do
exerccio do poder poltico o carter nacional
depende necessariamente mais das qualidades do
maior nmero do que do menor. (SMILES, s.d, p.
24).

Em grande parte das obras desse autor, h uma mesma


preocupao, dar nfase de que as mesmas qualidades que determinam
os caracteres de um indivduo determinam tambm o carter das naes
(SMILES, s.d, p. 24). Portanto, se as aes individuais no forem
nobres, sinceras, honradas, virtuosas, tolerantes, sero tidas em pouca
estima pelas outras naes, e nenhum peso tero no mundo. (SMILES,
s.d, p. 24). Para ter carter, tambm devem ser respeitosas,
disciplinadas, conscienciosas e amantes do dever. (SMILES, s.d, p.
25).
A esse respeito, o autor insiste:
Para que uma nao seja grande, no necessrio
que tenha grande extenso, apesar de se confundir
muitas vezes a extenso com a grandeza. Uma
nao pode ser muito grande sob o ponto de vista
do territrio e da populao e, contudo, no ter
verdadeira grandeza. A estabilidade das
instituies depende da estabilidade do carter.
Um nmero qualquer de unidades depravadas no
pode formar uma grande nao. Um povo pode
parecer que est no pice da civilizao e estar
prximo de cair em pedaos ao menor toque de
adversidade. Sem integridade de carter
individual, no pode haver nem fora real, nem
coeso, nem solidez. Pode ser rico, culto, artstico
e, apesar disso, voltear na borda do abismo. Se
vive como um egosta, no tendo em vista seno
seu prazer, se para si mesmo um pequeno deus,
tal povo est condenado e sua decadncia

107
inevitvel. (SMILES, s.d, p. 27, sem grifos no
original).

O pensamento de Smiles, defendendo a formao do carter


individual, expressa o seu maior propsito: desenvolver a conscincia
moral de que o homem parte de um todo, logo, deve servir a uma
causa - o desenvolvimento da nao. Em seu discurso essa perspectiva
recorrente, de forma que o autor menciona que:
Quando o carter nacional deixa de ser elevado,
uma nao pode ser considerada como estando
perto de sua runa. Quando deixa de estimar e
praticar as virtudes a sinceridade, a honestidade,
a integridade e a justia no merece mais viver.
E quando uma nao chega o tempo em que a
riqueza est to corrompida, o prazer to
depravado e o povo to enfatuado, que a honra, a
ordem, a obedincia, a virtude e a lealdade
parecem coisas j passadas, ento, no meio das
trevas, quando os homens honrados se,
felizmente, ainda h alguns se agrupam
procurando apertar as mos uns dos outros, sua
nica esperana ser a restaurao e a elevao do
carter individual, porque s ele pode salvar uma
nao; mas se o carter est irrevogavelmente
perdido, no h, na verdade, mais nada que
merea a pena de ser salvo. (SMILES, s.d, p. 27).

Em O dever: coragem, pacincia e resignao publicado nove


anos depois de O carter, Smiles reafirma o objetivo de levar ao leitor a
ideia de que o o carter e a boa reputao formam-se de pequenos
deveres cumpridos com fidelidade, de abnegao, de sacrifcios, de atos
de generosidade. (SMILES, 1910, p. 26). Por isso, no lar domstico
que se forma o carter e se assentam as bases da reputao. (SMILES,
1910, p. 26). Smiles ainda refora:
O carter [...] uma vontade perfeitamente
educada, e a vontade, uma vez educada, pode
persistir firme e constante por toda a vida [...] a
vontade, afora a sua direo, consiste apenas na
constncia, na firmeza e na perseverana. bvio,
porm que, de no ser boa a direo dada ao
carter, essa vontade firme e tenaz torna-se

108
simplesmente em fora para o mal. (SMILES,
1910, p. 30)

Em resumo, diz o autor, o carter consiste em atos pequenos


praticados cotidianamente e honradamente; e a vida diria a pedreira
da qual extramos os materiais com que construmos o carter e
desbastamos os hbitos que o formam. (SMILES, 1893, p. 448). V-se
que a formao do carter e de um estilo de vida, metdico, voltado ao
trabalho, de forma disciplinada e ordenada constitui tanto a essncia do
discurso da autoajuda quanto do comportamento caracterstico do
protestantismo eram adequados ao desenvolvimento do capitalismo no
sculo XIX.
2.5.2 O exemplo o mais eficaz dos mestres: a educao do
carter
Se a prtica da autoajuda em Smiles tem seu fundamento na
formao do carter, o problema a ser enfrentado pelo autor estaria em
como difundir a ideia do homem que se ajuda de forma que a
realizao individual no perdesse de vista a prtica do trabalho aliada
ao cumprimento dos deveres estabelecidos pela sociedade. Nessa
perspectiva, o indivduo tem deveres, um homem de sucesso quando
concretiza, em sua trajetria, uma existncia laboriosa calcada no
desenvolvimento de um bom carter. A imitao de determinados atos
est associada imitao de bons exemplos. isso que Smiles frisa com
tanta propriedade: As palavras e os exemplos tm sempre muita
autoridade nos nimos da gente moa, a quem arrastam para o bem ou
para o mal. Porque no h coisa, quer palavra, quer exemplo que para
sempre fique esquecida ou perdida. (SMILES, 1910, p. 504).
Em ltima instncia, o projeto de Smiles consistia em educar
uma massa de homens engendrando a conscincia da responsabilidade
que envolve os seus pensamentos, palavras e obras. (SMILES, 1910, p.
506). Entretanto, dizia o autor:
Ainda que a educao do carter pelo exemplo
seja, em geral, espontnea e inconsciente, os
jovens, forosamente, no devem ser os
imitadores passivos daqueles que os rodeiam. Seu
prprio comportamento, mais que o de seus
companheiros, tende a fixar o propsito e a formar
os princpios de sua vida. Cada um possui em si

109
mesmo uma fora de vontade e de livre ao que,
corajosamente empregada, lhe permitir escolher
seus amigos e sua sociedade. S por falta de
resoluo que os jovens, da mesma maneira que
os velhos, se convertem em escravos de suas
inclinaes ou se entregam a uma imitao servil.
(SMILES, s.d, p. 41).

Smiles procurou consolidar a ideia de que na juventude que se


deve educar a vontade. Os bons exemplos, as boas aes exerceriam
forte influncia nessa fase, fortalecendo-se de maneira gradual.
Como Smiles no acredita que a educao adquirida na escola
possa formar o homem de carter, toda sua produo discursiva pretende
inculcar em seus leitores que a imitao de bons exemplos, , por
excelncia, o recurso vlido da autoeducao. dessa forma que a
admirao pelos grandes homens, vivos ou mortos, faz nascer em ns,
num grau mais ou menos vivo, o desejo de imit-los. (SMILES, s.d, p.
47). Ento, a educao do carter em grande parte uma questo de
modelos, porque nos amoldamos inconscientemente ao carter, s
maneiras, aos hbitos e s opinies daqueles com quem vivemos.
(SMILES, 1893, p. 421).
assim que Smiles em seus escritos procurou expressar uma
concepo moral, procurou educar seus leitores, argumentando em
favor da importncia da nobreza das boas aes, dos bons hbitos. Desse
modo, Smiles se valeu das biografias e excertos biogrficos como
recurso pedaggico para educar jovens trabalhadores tendo em vista
conciliar progresso pessoal, calcado no emprego da fora de vontade e
na moralidade tradicional, de maneira que se revertesse em progresso da
sociedade. Smiles desenvolveu um trabalho pastoral prtico no qual
cada indivduo deveria fortalecer sua vocao para o trabalho, segundo a
perspectiva calvinista que interpreta como dever de obter certeza da
prpria dedicao e justificao na luta diria pela vida [...] a fim de
alcanar aquela autoconfiana, uma intensa atividade profissional era
recomendada, como o meio mais adequado. (WEBER, 1996, p. 77).
2.5.3 O carter didtico das aes exemplificadoras
Preocupado com a maneira como jovens trabalhadores
conduziriam sua vida profissional, Smiles utiliza biografias para ensinar
o quanto um homem pode ser bom e fazer o bem. (SMILES, s.d, p.

110
47). No perodo em que permaneceu em Leeds, Inglaterra, dedicou-se a
estudar o carter dos homens que julgava dignos de servirem de
exemplo, considerados edificantes pela sua industrialidade, convertendo
suas anlises em biografias.
Sendo assim, os excertos biogrficos selecionados por Smiles
servem de guia e de incentivo, uma vez que ensinam
as normas de bem viver, de bem pensar, de
trabalhar cada um energicamente em seu prprio
proveito e no de seus semelhantes. Tm quase
tanto valor como os Evangelhos, pelos preciosos
exemplos que elas fornecem de caracteres nobres
e viris lentamente formados pela eficcia do
esforo pessoal, da firmeza de propsitos, da
assiduidade no trabalho, da constncia na
integridade. (SMILES, 1901, p. 98).

Para Smiles, importa reforar trajetrias de vida que mostrem


que o sucesso, em geral, no ocorre de imediato. preciso insistncia,
persistncia ou uma das qualidades mais valorizadas pelo autor:
perseverana.
O autor lembra a genialidade industrial de James Watt, que foi,
em sua opinio, um dos homens mais hbeis que jamais existiram. A
histria de sua vida permite Smiles afirmar que
no tempo de Watt havia muitos homens que
sabiam muito mais do que ele; mas nenhum havia
que trabalhasse to assiduamente como ele para
converter tudo quanto sabia em usos prticos.
Distinguia-se, principalmente, pelo seu ardor em
coligir fatos e em cultivar cuidadosamente esse
hbito de ateno inteligente do qual todos os
homens sensatos reconhecem que dependem em
grande parte as mais elevadas qualidades do
esprito. (SMILES, 1893, p. 35).

Smiles levanta verdadeiro clamor aos inventores da indstria. Em


destaque esto James Watt, Stephenson e Richard Arkwright, que so,
por ele, coroados como homens de sucesso. De Arkwright tem-se que

111
nunca o mandaram escola. No teve outra
educao seno a que ele deu a si prprio e
sempre teve dificuldade de escrever. Na sua
mocidade, foi aprendiz de barbeiro e, depois de ter
aprendido o ofcio, foi estabelecer-se em Boulton
numa loja abaixo do nvel da rua, com uma
taboleta em que se lia: Venham ao barbeiro
subterrneo Faz a barba por um penny. [...]
Arkwright, que tinha gosto pela mecnica, teve
ento o desejo de se fazer inventor de mquina ou
o bruxo, como ento se dizia vulgarmente.
Fizeram-se nessa poca vrias tentativas para
inventar um tear e o nosso barbeiro resolveu-se a
tentar com os mais a resoluo do problema. [...]
Dedicou-se com tanta assiduidade s suas
experincias que desprezou o seu negcio, perdeu
o pouco dinheiro que tinha economizado, e ficou
reduzido misria. [...] Arkwright largou ento o
comrcio de cabelos e dedicou-se ao
aperfeioamento de sua mquina. [...] a patente de
inveno foi concedida em nome de Richard
Arkwright, de Nottingham, relojoeiro e
circunstncia digna de notar-se, foi expedida em
1679, no mesmo ano em que Watt obtinha o
privilgio para a sua mquina a vapor. [...]
Estabeleceu novos teares no Lancashire, no
Derbyshire e em New Lanark, na Esccia. O tear
de Cromford passou tambm por suas mos
quando findou a sua sociedade com Strutt e eram
tais o nmero e a superioridade dos seus artefatos,
que em pouco tempo conseguiu ser o regular
exclusivo desta indstria, a ponto de que era ele
quem fixava os preos e servia de norma nas
principais operaes dos outros fabricantes.
(SMILES, 1893, p. 41-42).

Arkwright era considerado por Smiles dotado de grande fora de


carter e de uma coragem indomvel, pois possua muita prtica das
coisas do mundo e tinha a faculdade dos negcios desenvolvida que
chegava s raias de um gnio. (SMILES, 1893, p. 42).
Dentre os bons exemplos, Smiles tambm destaca John
Heathcoat. Este era

112
o filho mais novo de um respeitvel rendeiro,
pouco importante, em Duffield, no Derbyshire, e
nasceu nessa localidade em 1783. Fez rpidos e
constantes progressos na escola, de onde o tiraram
muito cedo para o meterem como aprendiz na
oficina de um fabricante de caixilhos de ferro,
perto de Loughborough. O rapaz aprendeu
depressa a servir-se da ferramenta com destreza e
adquiriu perfeito conhecimento das partes
componentes do tear de fazer meia, assim, como
da mais complicada mquina de fiar (warp). [...] o
primeiro
aperfeioamento
que
conseguiu
introduzir foi no tear no qual, por meio de um
aparelho engenhoso, produzia malhas que tinham
a aparncia da renda. E foi este fato que o
resolveu a continuar os seus estudos para inventar
uma mquina de fazer rendas. (SMILES, 1893, p.
54).

O esprito inventivo desses homens, foi para Smiles, digno de


ateno, j que retratou suas histrias de longa e laboriosa tarefa, que
exigia grande perseverana e aplicao (SMILES, 1893, p. 56).
Essencialmente, o que merece ser mencionado a capacidade de
aperfeioamento e adaptaes que os inventores procederam que suas
mquinas pudessem funcionar. Smiles pontua mais enfaticamente a
histria de Heathcoat, como aquela que mostra que o inventor reunia
qualidades como a retido, a honestidade e a integridade, que
constituem a verdadeira glria do carter humano. (SMILES, 1893, p.
60). Desse modo, sendo diligente educador de si prprio, por isso de
boa mente, protegia os jovens operrios em seu servio, que o
mereciam, estimulando-lhes o talento e a energia. (SMILES, 1893, p.
61).
2.5.3.1 As biografias como recurso pedaggico
Em seu discurso, Smiles argumenta que somos todos mais ou
menos aptos para aprender melhor pelos ouvidos do que pelos olhos [...]
o exemplo silencioso nos comunicado pelos costumes e que, de fato,
vive conosco, que nos serve de guia (SMILES, 1893, p. 412). Alm
disso, o exemplo constitui o mais eficaz dos mestres, prescindindo da
escola no que se refere aquisio de conhecimentos que influenciariam

113
na formao do carter. Smiles (s.d, p. 47) fez das biografias um de seus
recursos pedaggicos.
A utilidade das biografias, na viso do autor (1893, p. 425), se
deve abundncia de nobres modelos que apresentam. Ao fazer uso
desse recurso pedaggico, o vitoriano objetivava fornecer exemplos para
que seu pblico pudesse estudar, admirar e imitar os homens de
sucesso em suas trajetrias de vida. As biografias aumentam a
confiana do homem em si prprio, demonstrando o que ele pode ser,
[...] elevando suas aspiraes. (SMILES, 1893, p. 426). Smiles
construiu, durante as dcadas em que se dedicou a biografar, uma
corrente do exemplo. O carter didtico das aes exemplificadoras
utilizadas por Smiles tinha o propsito de mobilizar jovens
trabalhadores da Inglaterra, de maneira que estes assumissem para si
responsabilidade pela conduo e construo de suas trajetrias.
Encarregar-se de si prprio supe que a pessoa seja responsvel pelos
seus sucessos e, principalmente, assuma como seu o nus dos fracassos.
Tratava-se da defesa dos preceitos liberais, da meritocracia, dos
privilgios do sangue.
Ao longo de vrias dcadas, o discurso de Smiles vigorou no
sentido de fortalecer a construo de um trabalhador virtuoso, da moral
e observador do dever para com o trabalho e com Deus. No progresso
histrico-religioso da eliminao da magia do mundo, a literatura de
Smiles est em consonncia com a literatura puritana inglesa que
adverte contra qualquer confiana na ajuda da amizade dos homens.
(WEBER, 1996, p. 73).
Mostrando princpios de um projeto de formao, Smiles (s.d, p.
25) frisa sua concepo de histria:
[...] a histria universal no outra coisa mais do
que a histria dos grandes homens. Certamente,
so eles que marcam e designam as pocas da
vida de uma nao. Ainda que, at certo ponto,
seu esprito seja o produto do tempo em que eles
vivem, o esprito pblico tambm em grande
parte criado por eles. Sua ao individual
identifica a causa e o resultado. Tm grandes
pensamentos que vo se espalhando por toda a
parte e produzem os acontecimentos. Homens
como esses so a verdadeira seiva do pas a que
pertecem. Elevam-no e sustentam-no, fortificam-

114
no e enobrecem-no e derramam glria sobre o
exemplo que deixaram.

O aspecto educativo desses ensinamentos tem seu fundamento em


princpios morais, sociais e universais, que, para Smiles, formam e
aliceram, de certo modo, o trabalhador industrial. Ao reforar um tipo
de sociedade e de trabalho, Smiles instrui seus leitores para a formao
de uma conscincia individual que s pode ser representada pelos
trabalhadores em aes individuais em nome de um carter nacional.
Determinante de um modo de ser para o trabalho, o autor difunde esses
princpios buscando um modo de pensar comum. A partir de Gramsci
(2004, p. 232), se poderia dizer que estaria a ausncia de uma noo de
coletivo, uma vez que a coletividade deve ser entendida como produto
de uma elaborao de vontade e pensamentos coletivos, obtidos atravs
de um esforo individual concreto, e no como resultado de um
processo fatal estranho aos indivduos singulares. essa singularidade
que est no cerne da autoajuda smilesiana.
A autoajuda de Smiles constitui uma estratgia para ajudar
jovens trabalhadores a se desenvolverem segundo certo modo de ser e
seguindo uma determinada direo.
Nesse ponto, comum nos textos publicados por Smiles o uso de
citaes, mximas e provrbios bblicos. A voz do outro, na perspectiva
da lingustica, pode ser considerada mais um dos investimentos ou
estratgias do autor para convencer seu leitor sobre os ensinamentos por meio de exemplos -, necessrios formao do carter. Os exemplos
de homens notveis biografados por Smiles visavam difundir padres de
conduta, de comportamentos almejados no sculo XIX, em consonncia
com a tica protestante.
2.6 AJUDA-TE E DEUS TE AJUDAR: AUTOAJUDA,
TICA PROTESTANTE E O ESPRITO DO CAPITALISMO
Os textos evidenciam a afinidade de Smiles com a tica
protestante. So diversas as passagens em que esta verificada. A partir
dessa viso, Smiles (s.d, p. 15) comenta sobre a morte de Lutero e sua
influncia, visto que este
no deixou, como declarou em seu testamento,
nem dinheiro, nem tesouro de nenhuma
qualidade. Em certa poca de sua vida viu-se to

115
pobre, que foi obrigado, para ganhar a vida, a
trabalhar como torneiro, jardineiro e fabricante de
relgio. E mesmo durante o tempo em que
trabalhava com as mos, estava formando o
carter de seu pas, e era moralmente mais forte,
mais honrado e mais ouvido do que todos os
prncipes da Alemanha.

Considera-se importante destacar alguns aspectos discutidos em


A tica protestante e o esprito do capitalismo de Max Weber (18641920), buscando compreender um pouco mais sobre as concepes de
homem e de mundo smilesiana. O socilogo alemo dedicou-se a
compreender como se d o progresso da racionalizao no Ocidente a
partir de caractersticas da tica protestante que servem de pistas e
elementos para a anlise do discurso de autoajuda de Smiles.
Dessa forma, Weber investiga a influncia da religio na origem
do sistema econmico capitalista-industrial, mostrando como a tica
luterana muito mais favoreceu do que foi a nica a determinar o
capitalismo. Conforme o autor, a tica protestante deve ter sido
presumivelmente a mais poderosa alavanca da expresso dessa
concepo de vida, que aqui apontamos como esprito do capitalismo.
(WEBER, 1996, p. 123). Em contraposio, a perspectiva gramsciana
questiona as teses de Weber evidenciando que o capitalismo tenha sido
produto da evoluo superestrutural da tica protestante.
Para Gramsci, o processo mais complexo: sado da estrutura
socioeconmica como, alis, toda superestrutura ideolgica, o
calvinismo, tornando-se norma da conduta prtica, reage, por sua vez,
sobre a estrutura, sendo a fonte de novas iniciativas. A passagem do
calvinismo ao esprito capitalista, na compreenso de Gramsci, seria a
passagem da "necessidade liberdade." Assim, o mrito de Max Weber
no estaria na sada de um determinismo econmico, mas sim, mostrar,
a partir do exemplo protestante, o mecanismo de passagem de uma
concepo do mundo ao prtica. (PORTELLI, 1984 apud ALVES,
2010).
Nessa perspectiva, pode-se dizer que Smiles procurou instituir o
valor da constncia de atributos morais como garantia da tomada de
conscincia de tais comportamentos na construo da trajetria de vida
de cada trabalhador. Eis a importncia da fora do exemplo como um
meio de estimular e manter a disposio para o trabalho rduo. Tratava-

116
se de orientar a conduta individual mediante ideias religiosas, puritanas.
Nesse aspecto, o trabalho de Smiles aproxima-se de um trabalho
pastoral divulgando uma moralidade asctica, do trabalho como uma
vocao46. De acordo com a teoria weberiana, a religio motivou
diferentes formas de o indivduo se comportar. Tal comportamento, em
Smiles, pressupunha um agir moral articulado formao do carter.
interessante observar que o trabalho alienado, executado em
condies, degradantes nas ltimas dcadas do sculo XIX, apontado
como forma de ascenso do indivduo. Os princpios da doutrina liberal
que preconizam o desenvolvimento individual por meio do trabalho e do
talento so os instrumentos legtimos para a aquisio de bens materiais
e da prpria ascenso social. Tanto assim, que Smiles faz uma
verdadeira apologia aos homens que trabalham na indstria, vista como
um polo de desenvolvimento e amadurecimento de talentos. Smiles
(1893, p. 31) destaca que uma das feies mais notveis do povo ingls
o seu gnio industrioso. Em sua opinio, o desenvolvimento da
Inglaterra resultado do empenho da energia individual, e do nmero
de cabeas e braos que, em todas as pocas, se empregaram ativamente
na cultura do solo, na produo de artigos de utilidade, na fabricao de
ferramentas e mquinas, na publicao de livros e jornais. (SMILES,
1893, p. 31).
Apesar do registro acima, vale ressaltar que as situaes
escolhidas e que figuram nas publicaes de Smiles caracterizam o
universo de pessoas em condies financeiras estveis. As carreiras
exitosas e os exemplos de vida de pessoas bem-sucedidas forneceram as
bases para a elaborao da autoajuda smilesiana. O trabalhador, o
operrio da fbrica, partcipe do processo de industrializao, no
contemplado, uma vez que a rotina brutalizante, desgastante, no
aparece em seus escritos. Contemplados so os trabalhadores manuais
que em atividades autnomas ascendem por esforo prprio, a exemplo:
aougueiros, sapateiros. (SMILES, 1893).
Enquanto Smiles supervalorizava o desenvolvimento econmico
e industrial da Inglaterra em meados do sculo XIX, as transformaes
decorrentes do progresso industrial como o excedente de riquezas ou as
46
Weber (1996, p. 53) destaca que, nesse conceito de vocao que se manifestou o dogma
central de todos os ramos do Protestantismo, descartado pela diviso catlica dos preceitos
ticos [...] e segundo a qual a nica maneira de viver aceitvel para Deus no estava na
superao da moralidade secular pela ascece monstica, mas sim no cumprimento das tarefas
do sculo, imposta ao indivduo pela sua posio no mundo. Nisso que est a sua vocao.

117
benesses da industrializao no chegavam aos operrios, que viviam
em condies sociais degradantes. Com a grande indstria, os
trabalhadores eram submetidos a jornadas de trabalho exaustivas,
condies de higiene precrias, remunerao incompatvel com as
longas horas trabalhadas. Ademais, tambm cresciam os ndices de
violncia e a prostituio aumentava medida que as cidades cresciam.
Esse era o panorama do trabalho fabril na Inglaterra no perodo de
Smiles47.
Na leitura das obras de Smiles, evidencia-se a meno de vrios
exemplos de pastores luteranos, com destaque s aes destes para com
os jovens. Smiles no professa abertamente sua religiosidade, como j
mencionado, mas, a partir de seus escritos nos quais valoriza Lutero e
Calvino como exemplos de todas as virtudes, tm-se elementos para
consider-lo protestante, compreendendo, assim, o porqu da construo
de um homem de novo tipo em meados do sculo XIX calcado na
construo de uma moral e de um carter individuais.
Na acepo de Palangana (1998, p. 31),
o indivduo, criado pela organizao do trabalho
nos moldes do capitalismo, exaltado e
dignificado na concepo protestante-burguesa
enquanto pessoa autnoma, dona de seus atos;
enquanto pessoa que deve ser reconhecida e
valorizada por aquilo que ela , na sua bondade,
na sua capacidade de resignao, no seu esprito
cristo e no por aquilo que faz, pelo seu
trabalho.

Dessa forma, Smiles ajuda a disseminar que as atividades, as


aes desenvolvidas pelo indivduo so manifestaes de um
comportamento baseado no carter e no agir moral. Na Inglaterra,
sobretudo, as aes dos homens da indstria e da inveno, como insiste
47
Marx (1968, p. 476) lembra que, entre 1844 e 1850, na maioria das fbricas txteis de
algodo, de l e de seda, o esgotamento provocado pela sobreexcitao necessria ao trabalho
atento com as mquinas, cujo movimento foi grandemente acelerado nos ltimos anos, parece
ser uma das causas do excesso de mortalidade por doenas do pulmo, posto em destaque por
Dr. Greenhow em seu recente e admirvel relatrio. Alm disso, havia, na maior parte das
fbricas, a contratao de mulheres e crianas que eram submetidas s mesmas condies
degradantes de trabalho. Em contrapartida, os indicadores de sade agravam-se: a taxa de
mortalidade (por mil), entre 1831 e 1844, aumenta de 14.6 para 27.2, em Birmingham; de 16.9
para 31, em Bristol; de 21 para 34.9 em Liverpool.

118
Smiles, estariam por detrs daquilo que conduziu essa nao ao
desenvolvimento. preciso ressaltar que, do ponto de vista desse autor,
as invenes no seriam a essncia que determinaria tal crescimento,
mas antes um agir comportamental, dotado de moralidade e
fortalecimento do carter. O carter manifesto serviria de modelo,
justificando os sucessivos exemplos de homens de carter exemplar
enfatizados em seus escritos.
Alm de a preocupao de Smiles incidir sobre a formao moral
articulada aos exemplos de homens de elevado carter, h outra questo
igualmente importante, ainda que esta esteja um pouco subsumida em
seus textos: a religio48.
Para Smiles, o homem poderia ajudar-se de duas maneiras: a
primeira, praticando a autoajuda; posteriormente, depois de ajudar-se, a
sim deveria contar com a ajuda de Deus. deste modo que a reforma
individual, condio essencial para a reforma social, estaria atrelada
devoo a um Deus. Em Ajuda-te, so poucas as passagens nas quais o
autor deixa aflorar a sua religiosidade. Seu credo religioso aparece de
forma discreta ao pronunciar passagens de referncia a Lutero e
Calvino. Mas isso compreensvel, uma vez que quem professa uma
crena no a manifesta em palavras, mas em atitudes, em uma tica de
vida, em uma concepo de mundo e de homem. Em Smiles, o que
perceptvel que trabalhar significa mais do que garantir a produo
da existncia numa perspectiva marxiana -, mas antes uma forma de
redeno. O trabalho , de fato, a melhor proteo da inocncia e da
virtude. uma barreira contra toda a sorte de pecados e vcios,
guardando as entradas do corao, e afastando todos os ensejos e
tentaes de pecar. (SMILES, 1901, p. 24). Professando em seu
discurso o credo calvinista, Smiles permite entender a sua posio em
relao ao trabalho visto como virtude, um chamamento divino.
48
Em Gramsci (2007, p. 209-210), tem-se que a palavra religio, em seu significado mais
amplo, denota um vnculo de dependncia que religa o homem a uma ou mais potncias
superiores, das quais ele se sente dependente e s quais tributa atos de culto, ora individuais,
ora coletivos. No conceito de religio, portanto, esto pressupostos os seguintes elementos: 1)
crena de que existam uma ou mais divindades pessoais que transcendem as condies
terrestres temporais; 2) o sentimento dos homens de que dependem destes seres superiores que
governam totalmente a vida do cosmo; 3) a existncia de um sistema de relaes (culto) entre
os homens e os deuses. Salomo Reinach, no Orpheus, define a religio sem pressupor a crena
em poderes superiores [...]. Caberia tambm examinar se possvel chamar de religio uma
f que no tenha por objeto um deus pessoal, mas s foras impessoais e indeterminadas. No
mundo moderno, abusa-se das palavras religio e religioso, atribuindo-as a sentimentos que
nada tm a ver com as religies positivas.

119
Em A tica protestante e o esprito do capitalismo, publicado um
ano aps a morte de Smiles, Weber mostra como o protestantismo
asctico favoreceu a racionalizao da vida, a qual estaria materializada
na vida das pessoas pelo sistema econmico. Enquanto os catlicos
acreditavam na possibilidade de salvao pelas intenes, o Deus do
calvinista requeria de seus fiis, no apenas boas obras isoladas, mas
uma santificao pelas obras. (WEBER, 1996, p. 81-82). De acordo
com o autor,
os catlicos no levaram to longe quanto os
puritanos (e antes deles os judeus) a
racionalizao do mundo, a eliminao da mgica
como meio de salvao. Para eles, a absolvio de
sua Igreja era uma compensao para a sua
prpria imperfeio [...]. A vida do santo era
dirigida unicamente para um fim transcendental: a
salvao. Precisamente por esta razo, entretanto,
ela era completamente racionalizada do ponto de
vista deste mundo e dominada inteiramente pela
finalidade de aumentar a glria de Deus sobre a
terra. (WEBER, 1996, p. 81-82).
[Para os calvinistas], manteve-se como um dever
absoluto, de cada um considerar-se escolhido e de
combater todas as dvidas e tentaes do
demnio, j que a falta de autoconfiana era
resultado da falta de f, portanto, de graa
imperfeita. A exortao ao apstolo de
fortalecimento da prpria vocao aqui
interpretada como um dever de obter certeza da
prpria dedicao e justificao na luta diria pela
vida [...]. A fim de alcanar aquela autoconfiana,
uma
intensa
atividade
profissional
era
recomendada, como meio mais adequado.
(WEBER, 1996, p. 77).

Assim, o trabalho diligente e disciplinado traduziria a f em


Deus. A crena calvinista de que os homens dependem de Deus para a
sua salvao ou condenao poderia comprometer a vida terrena, j que
qualquer ao dependeria do veredicto de Deus. A glorificao de Deus
passa pela dedicao ao trabalho e, mais do que isso, preciso ter
sucesso, o que se faz pelo trabalho, confirmando a grandeza dessa
devoo. Para o catlico estavam claras as condies que conduziriam a

120
humanidade salvao, mas para o calvinismo isso permaneceu um
mistrio, de tal sorte que os sinais materiais foram eleitos como aqueles
que fariam o homem ser reconhecido em suas aes. O carter
especfico do protestantismo consiste em levar o indivduo a uma atitude
de engajamento diante do mundo. Dessa maneira, o que Smiles fez foi
impulsionar um determinado modo de agir e compreender o mundo,
estimulando atitudes materializadas no trabalho de cunho individuais.
Na prtica, o trabalho comeou a ser encarado como vocao
divina e o conseqente sucesso significava sinal de que o indivduo
estava predestinado salvao. No por acaso que Weber relacionou a
tica protestante ao desenvolvimento do capitalismo. A partir dessa
viso, os protestantes calvinistas passaram a dedicar-se poupana de
uma forma mais contundente. Os homens, por meio da acumulao de
bens materiais, aproximavam-se de Deus e essa era a recompensa,
cumprindo assim duas finalidades, na perspectiva weberiana: favoreceu
o avano do capitalismo e ajudou a manter o credo religioso de maneira
mais vigorosa entre os protestantes. Na perspectiva de Smiles, as
iniciativas puritanas visam garantir o ascetismo49 e a moralidade do
trabalhador. Essas consistem em elementos para um novo modo de
vida difundido na possibilidade de ascenso pelo trabalho. Em Smiles,
trata-se da construo de uma tica do trabalho. Weber (1996, p. 50)
lembra que o trabalho a servio de uma organizao racional para o
abastecimento de bens materiais humanidade, sem dvida, tem-se
apresentado sempre aos representantes do esprito do capitalismo com
uma das mais importantes finalidades da vida profissional.
certo que o pensamento de Smiles coaduna com os preceitos
liberais em tempos de desenvolvimento do capitalismo, sendo, nesse
sentido, um de seus propagadores. A nfase ao trabalho como um dever
de cada um, como uma vocao est bem demarcada no referido
provrbio bblico. Em O dever, Smiles (1910) assinala que preciso
aceitar o cumprimento do dever como essncia da mais desenvolvida
civilizao. A idia do dever est diretamente associada
responsabilidade de cada um.

49
De acordo com Weber (1996, p. 131), desde que o ascetismo comeou a remodelar o
mundo e a nele se desenvolver, os bens materiais foram assumindo uma crescente, e,
finalmente, uma inexorvel fora entre os homens, como nunca antes na Histria.

121
A mxima Deus ajuda quem se ajuda, orientadora de aes em
Smiles, discutida em Weber (1996, p. 80), lembrando que esta se
reflete em aes prticas na vida dos adeptos do calvinismo.
[O calvinista] criava sua prpria salvao ou,
como seria mais correto, a convico disto. Esta
criao, todavia, no podia, como no Catolicismo,
constituir-se do acmulo gradual de boas obras
isoladas a crdito de algum, mas, muito mais, em
sistemtico autocontrole que a qualquer momento
se via ante a inexorvel alternativa: escolhido ou
condenado? (WEBER, 1996, p. 80).

assim que o cristo virtuoso tem no trabalho um conjunto de


regras de conduta, como um dever moral ou indiretamente como aquele
que, segundo Smiles (1893, p. 313), consiste em se preservar do mal,
porque um crebro ocioso como a oficina do demnio, e o homem
preguioso uma das colunas do inferno. Em Smiles, a exemplo de
Weber, a mxima Deus ajuda quem se ajuda utilizada como
princpio orientador de conduta para os trabalhadores. Conforme Weber
(1996, p. 80), na prtica, tal mxima significava que o calvinista deveria
criar a sua prpria salvao, ou como seria mais correto, a convico
disto. A tica protestante, de forma intensiva, impunha uma valorizao
da ao moral, ao essa que perpassa as publicaes de Smiles.
Para o protestante, o homem que no trabalha, ou mais
precisamente, o homem preguioso e ocioso, carrega consigo as
consequncias sociais decorrentes disso. Primeiro, a mendicncia em
vrios pases da Europa passou a ser entendida como crime, sujeita a
determinadas penalidades; segundo, em termos religiosos, a penalidade
para o ocioso seria o caminho para o inferno. Em relao ideia de
condenao da preguia, do cio e da valorizao do trabalho, destacase a passagem de So Paulo na segunda carta aos tessalonicenses:
Quem no quer trabalhar, no coma. Ora, ouvimos
dizer que entre vs alguns vivem na ociosidade,
no querendo nada e gastando o tempo em
mexericos. Mandamos e insistimos com essas
pessoas, em nome do Senhor Jesus Cristo, que
trabalhem com tranqilidade e comam o po que
eles mesmos ganharem. (2 Ts, 3,10-12).

122
Ao aliar a sua orientao religiosa sua incessante pregao,
Smiles trabalhou numa constante luta pela divulgao de um ideal de
homem, de um ideal de sociedade na qual a moral e o carter,
impregnados no desenvolvimento individual de auxlio prprio,
representariam a possibilidade para a reforma social. Weber (1996, p.
87) considera o calvinismo uma doutrina de predestinao como
fundamento dogmtico da moralidade puritana no sentido de uma
conduta tica metodicamente racionalizada. Essa racionalizao da
vida respaldada na religio permite que o homem trabalhe e acumule
sem que isso seja considerado pecado como no catolicismo.
H de se considerar, entretanto, que acumular no considerado
um ato pecaminoso j que o homem que no garante o seu sustento no
pode ser considerado senhor de si mesmo. (SMILES, 1893, p. 337).
Se acumular no pecado, o que dir economizar. A economia uma
das virtudes do calvinista. A economia representa, em grande parte, a
manifestao extremada do auxlio individual, da ao conservadora do
carter e da felicidade. O esprito da economia, nas palavras de Smiles
(1893, p. 338), foi formulado pelo Divino Mestre nestes termos:
Apanhai os bocados que ficaram, para que no se desperdice coisa
alguma. A economia tambm significa o poder de resistir a uma
satisfao presente a fim de assegurar um maior bem futuro [...],
representa o ascendente da razo sobre os instintos animais. (SMILES,
1893, p. 338). A autoajuda de Smiles aconselha o bom comportamento,
a regularidade, a prudncia e o cuidado em no desperdiar. A economia
representa, para os protestantes, o poder de resistir s tentaes, a
ascendncia da razo sobre os instintos animais, mas, principalmente,
cumpre o preceito da acumulao.
2.6.1 O trabalho como caminho virtuoso
A construo de um discurso estruturado em torno de provrbios
e citaes de homens representativos constitui um forte apelo ao
individualismo, estratgia caracterstica no discurso de Smiles. Sob esse
ponto de vista, em O carter que Smiles oferece ao leitor um captulo
inteiramente dedicado ao trabalho. Essa perspectiva de integrao de sua
concepo de trabalho est estritamente relacionada difuso de um
novo padro de sociabilidade, de uma nova concepo de mundo em que
se redefinem e ressignificam as representaes que os indivduos tm a
respeito do trabalho e, mais precisamente, sobre como agir num
contexto de mudanas.

123
Recordam-se alguns dos provrbios bblicos e citaes com que
Smiles (s.d, p. 48) inicia a discusso acerca do valor do trabalho:
Levanta-se e trabalha que o Senhor esteja contigo. Liv. I das Crnicas,
XXII, 16 [...] Trabalha como se te fosse preciso viver para isso; reza,
como se devesse morrer hoje mesmo. Provrbio toscano [...] pelo
trabalho que se reina. Lus XIV. Explicitam-se, assim, elementos que
torna possvel compreender o valor atribudo ao trabalho numa
sociedade em franco desenvolvimento. A posio dos trabalhadores
precisava se desvincular de uma tica catlica associada ideia de
intenes (WEBER, 1996) para uma conduta moral puritana movida por
aes. Por isso, o trabalho [...] produz a disciplina, a obedincia, a
concorrncia, a ateno, a aplicao e a perseverana, dando ao homem
destreza e habilidade em sua profisso, a aptido e a inteligncia
indispensveis para dirigir os negcios de sua vida (SMILES, s.d, p.
49). Evita com isso, a ociosidade considerada malfica, o que torna o
homem intil [...] este no vive, vegeta. (SMILES s.d, p. 51).
Tal afirmao sinaliza o fato de que a dedicao ao trabalho
constri a disciplina, alm de educar tambm o carter. (SMILES, s.d,
p. 52). a partir dele que se desenvolvem ainda as qualidades
necessrias para a boa conduta dos negcios [que] compreendem a
aptido, a competncia indispensvel para fazer frente, com sucesso, ao
trabalho prtica da vida, quer estmulo se ache na direo domstica,
quer no exerccio de uma profisso, na indstria. (SMILES, s.d, p. 52).
No que tange ao trabalho, ainda que no produza resultado algum, s
porque trabalho, vale mais do que o torpor; desenvolve as faculdades e
prepara para um trabalho til. O costume de trabalhar ensina o mtodo.
Obriga-nos a economizar tempo e a no dispor dele seno com uma
premeditao discreta. (SMILES, s.d, p. 52).
Os elementos constitutivos de uma tica do trabalho, assim
apresentados por Smiles, permitem um olhar acerca do esprito do
capitalismo, que, na perspectiva weberiana, estaria relacionado a uma
tica de vida. isso que Smiles visa fortalecer, um modo de ver e
encarar a existncia que passa basicamente por virtudes morais
prudncia, justia, temperana, fortaleza (SMILES, 1901) - coloridas
pelo utilitarismo. (WEBER, 1996). Quando Smiles se refere noo de
trabalho til e economia de tempo, importante recordar as sentenas
ou mximas de Benjamin Franklin (1706-1790) utilizadas por Weber no
esclarecimento do que constitui o esprito do capitalismo: Lembra-te
de que tempo dinheiro; Lembra-te de que o crdito dinheiro;

124
Lembra-te de que o dinheiro de natureza prolfica, procriativa. O
dinheiro pode gerar mais dinheiro; Lembra-te deste refro: O bom
pagador dono da bolsa alheia. (WEBER, 1996, p. 29-30). De fato, tal
noo de trabalho assim difundida por Smiles, como um princpio
educativo, educador de preceitos morais, contribui para o
desenvolvimento do capitalismo no decorrer do sculo XIX. Acreditavase que a vida disciplinada, asctica, orientada pelas mximas de
Franklin, conduziriam ao lucro. Essa ascese, ao se pensar na perspectiva
de Smiles, deveria ser praticada no trabalho com rigor, disciplina,
pacincia, coragem e resignao. (SMILES, 1910).
Em referncia ascese protestante, Smiles (s.d, p. 84) destaca que
o homem que trabalha deve ser econmico com os seus meios [...] no
tenta fazer-se passar por mais rico do que : no faz dvidas para no
abrir uma porta runa. Esta afirmao remete outra mxima de
Franklin que diz: Aquele que gasta inutilmente um groat [velha moeda
inglesa de prata] por dia, desperdia mais de seis libras por ano, que o
preo do uso de cem libras (WEBER, 1996, p. 31). A inclinao ao
gasto, ao desperdcio, deveria ser controlada pelo dever ao trabalho
asctico, por atitudes morais desenvolvidas no seu exerccio. Por isso,
valores como a honestidade so teis porque asseguram o crdito; do
mesmo modo a pontualidade, a laboriosidade, a frugalidade, e esta a
razo pela qual so virtudes (WEBER, 1996, p. 32).
Na construo de uma nova sociabilidade, a concepo de
trabalho difundida por Smiles contribuiu para a formao de um
trabalhador de modo que esse se envolvesse no sistema de relaes de
mercado, conformando-se com as regras de ao capitalistas
(WEBER, 1996, p. 34). A introduo de princpios morais importante
nesse processo, a exemplo do dever, visto que este no um
sentimento: um princpio que penetra na vida e se manifesta na
conduta e nos atos (SMILES, s.d, p. 87) determinando um modo de ser
e agir no mundo.
2.7 NO SOMOS SENO AQUILO QUE NS FAZEMOS:
A EDUCAO FORMAL EM SMILES
A progressiva consolidao de uma sociedade de mercado funda
a noo de um indivduo que deve tomar para si a direo de sua
trajetria de vida. uma tentativa de manter os laos sociais tradicionais
desagregados pelo modo de produo que se fortalecia no sculo XIX.

125
Foi com pesar que Smiles assistiu ao crescente avano das foras
produtivas, uma nova ordenao do processo de produo em que se
romperam os laos da relao mestre-aprendiz. Rdiger (1996, p. 46), a
esse respeito, destaca que Smiles viu com horror [...] destruio do
sistema de produo mercantil simples, baseado na manufatura
mecnica e no trabalho artesanal, que, na prtica, fundamentava
socialmente a antiga moralidade. Naquele perodo, os pregadores do
sucesso
sempre justificaram a acumulao de riqueza
como uma coisa econmica, social e moralmente
correta de se fazer [...]. Isso era bom, no somente
porque construa o carter do indivduo, mas
tambm porque permitia ao homem de sucesso
contribuir de alguma maneira para o bem-estar da
comunidade e da nao. (HUBER, 1987 apud
RDIGER, 1996, p. 47).

A referida literatura procurou conciliar o cultivo de virtudes e


dever morais com responsabilidade pessoal e progresso da sociedade.
Este o cunho dos escritos de Smiles, que assume a tarefa de responder
os desafios impostos aos trabalhadores ingleses valendo-se de bons
exemplos de vida, procurando reproduzi-los por meio de palestras e
livros. Assim, conforme Rdiger (1996), no sculo XIX prevalecia uma
cultura moral dependente do conceito de dever, o que fez Smiles criar
um projeto no qual procurou conciliar o princpio da liberdade
individual com as obrigaes para com a sociedade. Para isso, Smiles
propagava a formao do carter como o meio pelo qual o indivduo
poderia sobreviver sem ser contaminado pelas mudanas em curso. O
condicionamento moral constitui um dos pilares de educar para o
governo de si50. Sobre o domnio de si mesmo, defende Smiles, que
no seno outra forma de coragem e pode ser considerada como a
essncia primitiva do carter. (SMILES, s.d, 75).
Particularmente, por influncia das ideias de Adam Smith,
formuladas no sculo XVIII, as noes de liberdade e individualidade
adquiriram significados
50

O governo de si entendido na perspectiva foucaultiana como uma certa forma de buscar a


realizao de fins sociais e polticos atravs da ao, de uma maneira calculada, sobre as
foras, atividades e relaes dos indivduos que constituem uma populao (ROSE, 1998, p.
35).

126
muito diferentes, subordinando a atividade
poltica economia: as leis naturais que sustentam
a idia de liberdade individual passaram a ser
entendidas como sujeitas s leis da produo e
troca [...]. Desse modo, Adam Smith tornou-se o
sustentculo da doutrina do laissez-faire, segundo
a qual a atividade dos indivduos, libertos tanto
quanto possvel de restries polticas, a
principal fonte do bem-estar social e fonte ltima
do progresso social. (CUNHA, 2001, p. 35).

Em O Dever, coragem, pacincia e resignao, Smiles (1910, p.


15) recorda Goethe quando este pergunta: Que dever o teu?, e a
resposta: Levar a cabo o trabalho que tens que fazer hoje. E continua:
Que forma de governo a melhor? Aquela que nos ensina a governarnos por ns mesmos. Trs palavras so essenciais para colher a
recompensa maior do que trs mil tomos escritos. So estas: domnio
sobre si prprio, dever e conscincia. Nesta publicao, Smiles no
perde a oportunidade de reativar o que comeou com jovens
trabalhadores ingleses: a de reafirmar, por meio de lies (exemplos) de
trabalhos de heris da cincia, da literatura e da indstria, o valor do
auxlio prprio.
No captulo XI de Ajuda-te, Smiles (1893, p. 359) faz referncia
educao de ns mesmos, destacando suas facilidades e dificuldades.
Para reforar tal concepo, refere-se uma passagem de Gibbon51
sobre como todo homem tem duas educaes: uma que lhe dada por
outrem e outra mais importante que ele d a si mesmo. Com essa
passagem Smiles inicia sua digresso por um caminho em que a escola,
como instituio formal, pela qual o homem aprende os conhecimentos
historicamente construdos, ganha pouco destaque.
Em sua concepo, a educao que se recebe na escola ou no
colgio no seno o princpio, e o seu valor consiste em exercitar o
esprito e acostum-lo a uma aplicao constante ao estudo. (SMILES,
1893, p. 359). Este um discurso que se completa ao afirmar que,
aquilo que metido em ns pelos outros sempre menos do que o que
adquirimos pelos nossos esforos diligentes e perseverantes. (SMILES,
1893, p. 359).

51
Historiador, autor de Declnio e queda do Imprio Romano escrito em 1776 (ROSE, 1998, p.
35).

127
interessante observar que Smiles, em seu propsito de educar
trabalhadores, constri seus argumentos a partir de situaes vividas
por homens que considerava dignos de exemplos da cincia, da
literatura e da indstria. Fortalecendo tal concepo, salienta que foi
com estes que o Dr. Arnald trabalhou: ensinava os discpulos a
contarem consigo mesmos e a desenvolverem as faculdades pelos
prprios esforos, limitando-se ele a gui-los, dirigi-los, estimul-los e
anim-los. (SMILES, 1893, p. 360). Valendo-se do pensamento do
historiador, Smiles reafirma o trabalho como princpio educativo,
fortalecendo o compromisso e uma moral familiar.
Smiles um convicto de que o trabalho educa. Para tanto, utilizase de numerosos exemplos de homens de condio humilde, mostrando
como estes alcanaram posies distintas, uma vez que provam que o
trabalho no incompatvel com a mais alta cultura intelectual.
(SMILES, 1893, p. 361). E refora: O trabalho educa o corpo e o
estudo educa o esprito (SMILES, 1893, p. 36). Alinha-se a isso, que a
educao de cada um desenvolve tambm as faculdades e cultiva a
fora. A soluo de um problema auxilia a de outro e, por esta forma, o
conhecimento converte-se em faculdade. (SMILES, 1893, p. 360).
O trabalho do qual Smiles faz uma verdadeira apologia o
trabalho manual, tido como aquele capaz de prevenir e conservar o
esprito maligno afastado. Convm notar que, para que se possa evitar
a preguia, preciso preencher o tempo com ocupaes fortes e teis;
porque a luxria introduz-se facilmente nos vcuos que h em ns, a
inao da alma e a comodidade do corpo, porque ningum pode
conservar-se casto no meio de tentaes, quando goza de sade e est
ocioso. (SMILES, 1893, p. 360). Nesse sentido, de todas as ocupaes,
o trabalho manual o mais til e o mais eficaz para garantir que as
perturbaes causadas pelas influncias que desvirtuariam o trabalhador
pudessem preservar a ordem social. O trabalho assume carter
medicamentoso para atenuar ou evitar o desencadear de tal situao.
O trabalho manual visto como a primeira educao. Para
ilustrar essa compreenso, aponta o exemplo de Elihu Burritt52, a quem
o trabalho pesado foi necessrio para faz-lo estudar eficazmente,
deixando por mais de uma vez os estudos e aula que tinha que reger.
Sobre isso, dizia Smiles (1893, p. 364): Tornou a pegar no seu avental

52

Burritt foi um protestante ingls, nascido em 1810.

128
de couro e voltou para a forja e a bigorna por causa da sade, quanto de
seu corpo como do seu esprito. Assim,
ensinar os rapazes a manejar a ferramenta numa
oficina tem, alm da vantagem de os educar no
conhecimento das coisas prticas, a de lhes
ensinar o uso de braos e das mos, de
familiariz-los com um trabalho salutar, de
exercitar a sua atividade em coisas visveis e
tangveis, de inculcar-lhes noes de mecnica
prtica, de os tornar capazes de executar trabalhos
teis e de fazer-lhes contrair o hbito de um
aturado esforo fsico. (SMILES, 1893, p. 364).

Essa uma aluso importncia do trabalho como condio para


manter a sade fsica, pois, sem esta, se compromete o sucesso na vida,
o qual depende, em grande parte, da manuteno de tais condies. Vse que em Smiles h grande preocupao em dar uma base slida
sade fsica. A mxima: o trabalho tudo vence muito, muito
verdadeira, sendo aplicada conquista do saber. (SMILES, 1893, p.
366).
medida que se segue na leitura de Ajuda-te, reafirma-se o valor
do trabalho, sendo que
coisa admirvel o que podem produzir pela
cultura de si prprios os que tm energia e
perseverana, se se aplicam em aproveitar as
ocasies e aproveitam os mais curtos instantes de
descanso e o que os preguiosos, pelo contrrio,
deixam invariavelmente perder. Assim, Ferguson
aprendeu astronomia contemplando o cu no alto
de uma montanha na Esccia [...], Stone aprendeu
matemtica enquanto trabalhava como jardineiro
num jornal. [...] Drew estudou a mais alta filosofia
nos intervalos que lhe deixava livre a profisso de
sapateiro-remendo; [...] Miller aprendeu sozinho
geologia enquanto trabalhava numa pedreira.
(SMILES, 1893, p. 367).

129
Segundo Smiles, a excelncia nunca concedida ao homem
seno como recompensa do trabalho. Se tendes grande talento53, o
trabalho o aperfeioar; se tendes recursos medocres, o trabalho suprir
o que vos faltar. Nada recusado ao trabalho bem dirigido e nada se
pode obter sem ele. (SMILES, 1893, p. 367).
Smiles acredita que no a quantidade de estudo, nem de
leitura, que se faz, que d a instruo real: a convenincia do assunto
do estudo para o objeto que se tem em vista, a concentrao do esprito
que se emprega no estudo e a disciplina habitual que presidem a
aplicao sistemtica de todas as foras intelectuais. (SMILES, 1893,
p. 369). O estudo mais proveitoso aquele que tem um fim e objeto
definidos (SMILES, 1893, p. 369). A leitura muito variada, disse
Robertson de Brighton, enfraquece o esprito como o fumo do tabaco e
serve de desculpa ao seu entorpecimento. (SMILES, 1893, p. 372).
Em seus escritos, Smiles busca em Pestalozzi respaldo para
afirmar que a instruo perniciosa, sendo que o que se aprende na
escola pode proteger o homem contra as vicissitudes da vida, mas no
pode, no mais pequeno gro, proteg-lo contra os seus vcios, se no for
fortalecida por costumes e princpios sos. (SMILES, 1893, p. 373). O
saber por si s, no sendo bem dirigido, s pode tornar mais perigosos
homens maus e converter a sociedade em que considerado como o
supremo bem, pouco melhor que pandemonium. (SMILES, 1893, p.
53
Aqui vale lembrar a Parbola dos talentos (Evangelho de Mateus cap. 25 vers. 14-29):
Como um homem que, ausentando-se do pas, chamou os seus servos e lhes confiou os seus
bens. A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um a cada um segundo a sua prpria
capacidade; e, ento, partiu. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com
eles e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas o
que recebera um , saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de
muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles, ento, aproximandose o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco
talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom
e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor. E,
aproximando-se tambm o que recebera dois talentos; disse: Senhor, dois talentos me
confiaste; aqui tens outros dois que ganhei. Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom e fiel;
foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei ; entra no gozo do teu Senhor. Chegando, por
fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que s homem severo, que ceifas onde
no semeaste e ajuntas onde no espalhaste, receoso, escondi na terra o teu talento; aqui o que
teu. Respondeu-lhe, porm, o Senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde no
semeei e ajunto onde espalhei? Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos
banqueiros; e eu, ao voltar, receberia com juros o que meu. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao
que tem dez. Porque a todo o que tem se lhe dar, e ter em abundncia; mas ao que no tem,
at o que tem lhe ser tirado. E o servo intil, lanai-o para fora, nas trevas. Ali haver choro e
ranger de dentes.

130
373). A cada indicao do que representa a educao do carter, Smiles
deixa um recado para que os jovens trabalhadores fortaleam as virtudes
morais de forma a construir seu bem-estar buscando bons exemplos.
De fato, para o autor, a ideia da necessidade sendo uma escola
pela qual se aprende permeia grande parte de suas obras. Ainda que esta
seja severa, mas so as experincias, lies de adversidades que
constituem os degraus que conduzem ao cu. (SMILES, 1893, p. 389).
Esse aprender o qual refora o publicista s se fortalece mediante
escola da dificuldade, que vista como a melhor escola de disciplina
moral para as naes e indivduos. (SMILES, 1893, p. 391).
nesse sentido que o principal objeto da educao no consiste
s em encher o esprito com pensamentos alheios, e em converter-nos
em receptculos de impresses mais ou menos estranhas, mas em
desenvolver a inteligncia individual e a fazer de ns, na sua esfera a
que somos chamados, valentes e teis trabalhadores (SMILES, 1893, p.
375). Muitos trabalhadores, conta Smiles, no sabiam ler e escrever
seno depois de serem homens feitos e apesar disso, executaram
grandes obras e tiveram carreiras muito honrosas. (SMILES, 1893, p.
375). Tudo o que se aprende
uma vitria sobre uma dificuldade; e uma vitria
ajuda a ganhar outra. H coisas na educao que,
primeira vista, parecem sem importncia: Tal
o estudo das lnguas mortas e as relaes das
linhas com as superfcies, a que chamamos
matemticas. So, porm, de grande valor prtico,
no tanto pelos conhecimentos que do, como
pelo desenvolvimento que determinam. A posse
dessa cincia demanda esforo, e faz cultivar
faculdades de aplicao, que sem isso ficariam
adormecidas. (SMILES, 1893, p. 393).

Smiles entende os conhecimentos construdos como aqueles que


deveriam propiciar transposio para situaes prticas da vida. nesse
aspecto que o autor faz severas crticas nfase dada educao
intelectual, justamente porque se esta no estiver atrelada a feitos de
experincias, perde o seu papel de educar o carter. Muito trabalho
intelectual, que apenas egosta, pois que no promove um
cometimento til ou um adiantamento cientfico, servindo apenas para o
deleite individual de quem dele se dedica. (SMILES, 1901, p. 61). Por

131
isso, a educao, fruto de vivncias pessoais, deveria ser estimulada. No
entanto, registrava que esta lenta. Eis o valor e o papel dos pais nessa
educao, como aqueles que vigiam e esperam, deixando que o bom
exemplo e as influncias suaves produzam os seus efeitos. (SMILES,
1910, p. 3).
As formulaes de Smiles remetem a alguns elementos prprios
do pragmatismo cuja nfase recai na ao, nas prticas concretas, nos
resultados verificveis coletivamente. (SEMERARO, 2006). A histria
de cada indivduo fruto da valorizao da experincia, do agir, que se
d, na viso de Smiles, pelo trabalho. Pela experincia, afirma Smiles
(1901, p. 34), aprende-se que no somos seno aquilo que ns
fazemos. Todo o homem cunha sobre si o seu prprio valor; eis porque
somos grandes ou pequenos conforme a nossa vontade. nesse sentido
que o pregador da autoajuda propunha que a disciplina e sujeio de
ns mesmos so os princpios da sabedoria prtica, que devem ter o seu
fundamento no respeito prprio. (SMILES, 1901). Com relao a isso,
refora:
Em todas as carreiras, a inteligncia habilita o
homem a adaptar-se mais facilmente s
circunstncias, a inventar melhores mtodos de
trabalho e aumenta a sua aptido, a sua habilidade
e a eficcia dos seus esforos. [...] O poder do
auxlio prprio crescer gradualmente nele e na
proporo do respeito de si prprio, achar-se-
armado contra as tentaes dos desejos srdidos.
(SMILES, 1901, p. 34).

Ainda:
A educao de si prprio pode, contudo, no
acabar sempre na eminncia, como aconteceu nos
numerosos exemplos que citamos. A grande
maioria dos homens, por muito ilustrada que seja,
ter sempre de ocupar-se nos trabalhos vulgares
da indstria e nenhum gro de cultura, a que a
comunidade possa atingir, lhe permitir, ainda
mesmo que isso fosse para desejar, como no
emancipar-se da rotina do trabalho dirio
indispensvel para a existncia da sociedade.
(SMILES, 1893, p. 378).

132
O esforo de uma educao individual, na opinio de Smiles,
pode no gerar riqueza material, mas h de dar em todo o caso a
companhia dos pensamentos elevados.
Contrapondo a ideia de riqueza material como via de acesso
educao, o autor vitoriano afirma a experincia da pobreza como
aquela capaz de mobilizar o trabalhador a superar os mais temveis
obstculos, prosperando sobre eles. Desse ponto de vista, a pobreza
extrema nunca foi um obstculo para os que consideram como dever o
trabalhar para se elevarem. (SMILES, 1893, p. 395). Dentre os tantos
exemplos utilizados para dar sentido aos seus valores, conta que:
O professor de lingstica, Murray, aprendeu a
escrever rabiscando as letras sobre um pedao de
papelo velho com uma haste de tojo queimada na
ponta. O nico livro que possua seu pai, pobre
pastor, era um catecismo de um penny; mas este
livro era demasiadamente valioso para seu uso
dirio, e por isso se guardava cuidadosamente
num armrio a fim de servir para a leitura dos
domingos. O professor Moor, sendo na sua
mocidade demasiadamente pobre para comprar os
Princpios de Newton, pediu este livro
emprestado e copiou-o todo pelo seu prprio
punho. (SMILES, 1893, p. 397)

Desse modo, os livros de Smiles so construdos com excertos


biogrficos escolhidos de maneira a desenhar que o sucesso profissional
pode ser alcanado por qualquer indivduo, desde que cultive os
preceitos necessrios, como: auxlio prprio, entendido como poder de
vontade, aplicao e perseverana. Estes constituem, para Smiles, o
grande legado que o homem poderia deixar s geraes futuras. A
articulao de perseverana e aplicao no trabalho apresentada ao
leitor numa narrativa de um rapaz francs, exilado poltico, que, estando
em Londres:
Empregou-se por algum tempo no seu oficio de
pedreiro; porm, vindo o trabalho a diminuir,
perdeu o seu lugar e teve de arcar com a pobreza.
Nesta conjuntura, foi ter com um companheiro,
exilado tambm, a fim de consult-lo sobre o que
deveria fazer para ganhar a vida. A resposta foi:
Fao-a professor! eu? Que no passo de pobre

133
pedreiro e no falo seno a algavaria de minha
terra! Est gracejando! Falo srio retorquiu o
outro, e torno-lhe a dizer que se faa professor.
Sujeite-se ao meu ensino, e procurarei ensinar-lhe
como que se ensinam os outros.- No, no!
Respondeu o pedreiro, isso impossvel; sou
muito velho para aprender; no tenho estudos; e,
portanto, no posso ser professor. retirou-se e,
novamente, procurou obter trabalho pelo oficio.
De Londres, foi para a provncia, e em vo
percorreu algumas centenas de milhas; mas no
pode encontrar trabalho. Regressando a Londres,
foi logo ter com o amigo que o aconselhara,
dizendo-lhe: Procurei trabalho por toda a parte, e
no o pude conseguir; estou agora disposto a
fazer-me professor. Ps-se imediatamente
debaixo da direo do seu amigo, e pela sua
constante aplicao, fcil compreenso e vigorosa
inteligncia, no tardou em assenhorar-se dos
elementos da gramtica, das regras da construo
e da composio, assim como da pronncia
correta do francs clssico, que era o que mais
precisava aprender. [...] Aconteceu que a escola
em se empregou estava situada num subrbio de
Londres onde ele trabalhara como pedreiro. [...]
Receou por algum tempo ser reconhecido como
pedreiro [...] entretanto, o respeito e amizade de
todos os que o conheciam, colegas e discpulos, e
quando a histria das suas lutas e dificuldades,
isto , quando o seu passado foi divulgado,
estimaram-no mais do que antes. (SMILES, 1893,
p. 399).

A partir de mais uma de suas narrativas, tem-se que a diferena


entre os homens, conforme o autor, reside na inteligncia de suas
observaes, fundamental para se obter sucesso na vida. Volta-se
nfase anterior, essncia de Ajuda-te, que o valor do auxlio prprio,
caracterizado a partir do sculo XX, como autoajuda. Associado
autoajuda, est o valor da perseverana que Smiles resgata das vrias
biografias utilizadas para ensinar os jovens trabalhadores para os quais
palestra e escreve suas obras. Na passagem de Walter Scott54, relata o
54
Conterrneo de Samuel Smiles nasceu em 1771 e faleceu em 1832. Foi o criador do
Romance Histrico.

134
fato de um amigo, John Leyden, como um dos exemplos mais notveis
do poder de perseverana. Este jovem era filho de um pastor e aprendeu
a escrever copiando as letras de um livro impresso enquanto guardava
o seu rebanho na encosta do vale de Roxburghshire, como Cairus, que
da ocupao de guardar gado em Lammermoor, se elevou pelo seu
trabalho e aplicao at a cadeira de professor que rege to dignamente.
(SMILES, 1893, p. 401).
Smiles repete determinadas vezes que no so os homens de
gnio que movem o mundo e o dirigem, mas aqueles que se distinguem
por vontade forte e um ardor incansvel. (SMILES, 1893, p. 405).
Tanto assim, que pergunta:
Que fim levam todas as crianas muito espertas?
Que feito dos rapazes que so os primeiros e
ganham os prmios? Segui-lhes os passos na vida,
e vereis freqentemente que os menos espertos, os
que eram vencidos na escola, passaram-lhe
adiante.
Os
discpulos inteligentes
so
recompensados, mas os prmios concedidos a sua
maior facilidade e viveza de inteligncia nem
sempre lhes servem de utilidade. O que deveria
recompensar seria antes o esforo, a perseverana
e obedincia; porque aquele que, apesar de ser
dotado de inferior talento natural, faz tudo quanto
pode, e que deveria ser animado mais do que
qualquer outro. (SMILES, 1893, p. 406).

A preocupao em valorizar os saberes da experincia, da prtica


leva Smiles a desconsiderar o aprendizado escolar. H, sem dvida, um
realce pouca utilidade que os conhecimentos adquiridos na escola
teriam para a conduo da vida prtica.
Em Smiles, a inteno declarada a de mostrar que a escola no
o espao no qual se exercita o poder da fora de vontade, espao de
superao. fora dela, pelo trabalho, que o carter testado, passando
por provaes que elevam o homem, ensinando-lhe aspectos que a
escola est longe de propiciar. Valendo-se de um fragmento da vida de
Isaac Newton, expe sua concepo:
O lugar de Newton, na escola, era na extremidade
do penltimo banco. Um dia um condiscpulo que
estava acima dele tendo-lhe dado um ponta-p,

135
Newton, o estpido, mostrou a sua coragem
desafiando-o para brigar e venceu-o. Em seguida,
comeou a trabalhar com vontade e resolvido a
vencer tambm o seu antagonista como estudante:
o que conseguiu, elevando-se at o primeiro lugar
da classe. [...] Walter Scott era um estpido,
sempre mais pronto para brigar do que para
estudar lies. [...] Napoleo e Wellington no
foram bons estudantes e no se distinguiram nos
estudos. [...] John Howard, o filantropo, foi outro
estpido ilustre, que nada aprendeu durante os
sete anos que passou na escola. (SMILES, 1893,
p. 407-408).

O esforo de Smiles nessa passagem o de fomentar que a


perseverana motor de aprendizagem. Havendo perseverana, a
energia tarda em converter-se em hbito. (SMILES, 1893, p. 409,
sem grifos no original). O que estabelece a diferena entre um rapaz e
outro no consiste tanto no talento como na energia energia,
entendida pelo autor, como persistncia e aplicao. Por isso, a
perseverana explica como que a posio dos rapazes na escola
invertida depois na vida real; e curioso observar como que alguns
que foram to hbeis se tornaram depois to vulgares. (SMILES, 1893,
410). Smiles explica que enquanto rapazes estpidos, dos quais no se
esperava coisa alguma, vagarosos no desenvolvimento de suas
faculdades, mas firmes no caminhar, conquistaram posio de chefes e
condutores de homens. (SMILES, 1893, p. 409). Concretiza sua
explanao com uma fbula: A tartaruga que segue o caminho direito
vence a lebre que vai pelo caminho tortuoso. (SMILES, 1893, p. 410).
A tartaruga e a lebre representam os personagens que Smiles biografa. A
tartaruga remete ao homem paciente, diligente, que aplicado, exercita
a pacincia e perseverante. A necessidade de cultivar essas qualidades
preciosas torna tais elementos os mais importantes na formao do
carter e o exerccio contnuo destas deve tornar-se hbito pela
frequncia e repetio com que so exercitadas. E por isso que os pais
no devem ter pressa de verem desabrochar os talentos de seus filhos.
(SMILES, 1893, p. 410).
Nessa direo, entendendo que, para um indivduo desenvolverse, mister tempo e pacincia, Smiles (1893, p, 111) recorre ao exemplo
de Adam Smith: [este] semeou o grmen de um melhoramento social
nessa velha e sombria universidade de Glasgow, onde trabalhou tanto

136
tempo e assentou as bases da sua Riqueza das naes, mas lembra que
setenta anos decorreram antes que a sua obra desse frutos substanciais,
que ainda hoje [dcada de 40 do sculo XIX] no foram colhidos na
totalidade.
Em sntese, h nos escritos de Smiles, em especial, nos escritos
de Ajuda-te, grande preocupao em mostrar que os bons hbitos
poderiam ser desenvolvidos por meio do trabalho. Antes seria preciso
que a vida domstica fosse uma preparao vida social e que o
esprito e o carter sejam, portanto, formados no lar. (SMILES, s.d, p.
29). nessa ambincia que os futuros membros da sociedade so
tratados individualmente e modelados um por um. (SMILES, s.d, p.
29).
A educao dos pais associada educao pelo trabalho produz,
para Smiles, o homem de valor um modelo de homem fruto da
influncia da famlia tida
como a escola mais influente da civilizao,
porque, em suma, a civilizao no seno uma
questo de educao individual e a sociedade ser
mais ou menos civilizada conforme as partes que
a compem tiverem sido mais ou menos bem
educadas em sua infncia. (SMILES, s.d, p. 29).

Na perspectiva do puritanismo, Weber (1996) ajuda a


compreender que os crculos puritanos constituem uma das influncias
que conservam e regulam uma tica convencional na formao do
carter nacional ingls. Pelo exposto, v-se que a formao do carter
constitui a base e o fundamento dos aconselhamentos de Smiles aos
jovens trabalhadores, a quem o autor, dirigia seu discurso. Por isso, em
vrias passagens de alguns de seus livros, l-se que a famlia o bero
do carter, mas alerta que a
melhor das escolas, tambm pode ser a pior [...] se
a me for preguiosa, viciosa, desmazelada; se sua
casa estiver invadida por um esprito de enredos,
de zangas e de descontentamentos, essa casa ser
a manso da misria, e melhor ser fugir dela do
que procur-la. As crianas que tiverem a
desgraa de serem criadas ali sero moralmente
ans e disformes: causa de misria para elas e para
os outros. (SMILES, s.d, p. 35).

137
Se a perseverana era uma das grandes virtudes valorizadas por
Smiles, os exemplos de vida dos inventores da indstria e homens da
cincia forneciam modelos, ou seja, serviam de recurso para que o
vitoriano disseminasse sua concepo de homem, trabalho e educao.
Os escritos do autor conferem um carter moral autoajuda desse
perodo. A ambio pessoal deixa de ser condenada para tornar-se
possibilidade de mobilidade pessoal. As virtudes, disseminadas por
Smiles em suas obras, pertencem a um universo moral que permite ao
homem determinar seu autogoverno.
Em sntese, a trajetria que o indivduo tem de percorrer para se
tornar um indivduo soberano de seu destino a histria dos esforos
pessoais que galgou para o sucesso. O progresso individual est
associado prtica da autoajuda pautada no exerccio da pacincia,
perseverana, aplicao, diligncia, sabedoria, ambio elevada,
economia, honra, carter, abnegao que fortalece o carter. Em ltima
instncia, a perspectiva de construo do progresso individual, todavia,
se efetiva se cada indivduo observar que tem deveres a cumprir e,
portanto, precisa cultivar a capacidade de preench-los, quer a sua esfera
de ao seja a administrao de uma famlia, quer seja a direo de uma
profisso, ou o governo de uma nao. (SMILES, 1893, p. 309).
Como visto, a religio contribui sobremaneira na construo de
uma moralidade para o trabalho e de uma sociabilidade funcionais
para a reproduo do sistema capitalista. Na sequncia, discute-se como
o discurso de autoajuda contribuiu para moldar o carter, atitudes,
enfim, o trabalhador demandado pelo capitalismo ao longo do sculo
XIX.
2.8 O TRABALHADOR DE CARTER EM TEMPOS
VITORIANOS
As premissas de Smiles sobre a relao do homem com o
trabalho retrata o esprito da poca em que o sucesso individual era tido
como fruto de esforo, persistncia e fora de vontade, em suma,
resultante da formao de carter.
Durante muitas dcadas, Smiles divulgou a ideia de que o homem
que ajuda a si mesmo baseia-se na formao do carter e representa o
dever deste para consigo mesmo e para a nao. Todo esse investimento
refora um processo de construo de individualidades, que no
liberalismo, pensado como autonomia dos indivduos.

138
O liberalismo fala de individualizao, afirma Dias (2006, p. 64),
mas este pensa os indivduos como sendo ahistricos, portadores de
uma natureza que se identifica com o capitalismo e se expressa na figura
do consumidor. Em Smiles, contudo, tal perspectiva no se limita ao
plano poltico, estendendo-se para o conjunto de relaes sociais em que
o problema consistia em saber como aplicar de maneira individual os
valores morais. Isso porque o arauto da autoajuda considerava que o
progresso da democracia e o predomnio cada vez maior do princpio da
liberdade moral (RDIGER, 1996) estariam derrubando os melhores
frutos da disciplina domstica e do carter moral, o que resultaria no
decaimento dos homens pblicos, da moral pblica dos princpios
polticos. (SMILES, 1910, 56, sem grifos no original). Em O dever,
Smiles discorre sobre Stein, por ele considerado, um dos maiores
estadistas da Prssia nas primeiras dcadas do sculo XIX. A partir
desse exemplo, destaca a figura do homem da autoajuda como aquele
homem de aes procedidas de um carter cheio de patriotismo, de
energia, de verdade e de f, alm de profundamente temente a Deus.
(SMILES, 1893, p. 68).
Os deveres para consigo mesmo, que, em outros termos,
significam os princpios que sustentam a relao com os outros, so
morais, isto , compartilhados socialmente como um bem, porque se
baseiam na prtica do trabalho (RDIGER, 1996, p. 43). A prtica do
trabalho explicaria a mobilidade social e a possibilidade desta, conforme
ressalta Smiles (1893, p. 337),
h s um meio seguro para um homem ou uma
classe qualquer de homens manter a posio ou
criar outra melhor: a prtica do trabalho, da
frugalidade e da honestidade. No h outra estrada
que encaminhe os homens para sarem de uma
posio que eles consideram desgraada, fsica ou
moralmente, do que a prtica dessas virtudes que
aproveitam quotidianamente a muitos deles para
se elevarem a melhorarem a sua sorte.

So rarssimas as passagens nas quais Smiles utilizava o conceito


classe, uma vez que narra histrias descontextualizadas, que
desconhecem as lutas e embates entre operrios e os donos dos meios de
produo travados na Inglaterra do XIX. A referncia palavra classe,
entendida no como relao social, mas como um estrato, aparece
vinculada a um segmento os operrios, vistos como classes laboriosas

139
[que] poderiam, com poucas excees, ser to frugazes, virtuosas,
instrudas e bem remediadas como muitos dos seus membros que
conseguiram todas essas vantagens. (SMILES, 1893, p. 336). Para o
vitoriano, todos poderiam ser o mesmo que esses poucos so.
Empreguem os mesmos meios e os resultados sero iguais. (SMILES,
1893, p. 336). O problema a ser combatido a fraqueza da
intemperana e da perversidade dos homens. [Por isso] a idia salutar de
desenvolvimento individual, se fosse propagada entre a classe operria,
serviria mais do que qualquer outro meio para elev-los como classe.
(SMILES, 1893, p. 336).
Smiles, em seus escritos, desenvolve uma espcie de diagnstico
de seu tempo presente de maneira a constatar que aos homens no basta
apenas trabalhar, preciso antes, conduzir a vida de forma que cada um
ajude a si prprio. Essa conduo moral.
Ser possvel que estejamos em Inglaterra
atravessando anlogas circunstncias, e que a
onda sempre crescente da democracia esteja
derrubando os melhores frutos da disciplina
domstica e do carter moral? [...] a nao
depende dos indivduos que a compem e no h
nao que possa distinguir-se em moralidade no
cumprimento do dever, no acatamento dos
preceitos e honradez e de justia, cujos cidados
individual e coletivamente no possuam essas
qualidades. (SMILES, 1910, p. 56).

A preocupao com a formao do carter e o enfraquecimento


da conscincia moral vinculam-se ao progresso da democracia, mas sua
principal causa, de fato, a falncia do sistema de artes mecnicas e o
avano do sistema fabril criado pelo capitalismo. (RDIGER, 1996, p.
45).
Em virtude disso, o trabalho que se desenhava na Inglaterra em
seu pleno desenvolvimento industrial era um trabalho
concludo ligeira, sem habilidade, sem
conscincia, sem arte. E da resulta desabarem os
tneis, abrirem as pontes e desmoronarem-se os
edifcios. Deixam-se as casas por concluir, canos
de esgotos abertos, espalhando assim a infeco.
Oh! Operrio britnico, hoje to descuidado! A

140
quantos roubaste a vida! A quantas famlias
levaste a desolao! Importa-se s dar fim ao
trabalho; que este esteja bem ou mal acabado, isso
importa-te pouco. (SMILES, 1910, p. 56).

Reportando-se aos trabalhadores, Smiles destaca:


Embora parea estranho, certo que os
americanos comeam a atribuir em parte a m
qualidade da obra e a m vontade do operrio ao
sistema escolar. Todos so to educados, que se
consideram acima do trabalho manual. J no h
aprendizes, nem criados na Amrica. Falamos
devidamente autorizados. Um redator do Jornal
Scribners Montly diz que os americanos
divinisavam o seu sistema escolar. Critic-lo
crime. Tem-se por inimigo da educao qualquer
que ouse duvidar das suas vantagens. Podemos
no obstante afirmar que, para preparar o homem
ao trabalho, especialmente ao trabalho manual,
esse sistema um estorvo e um erro. So
aparncias, futilidades e nada mais. (SMILES,
1910, p. 76).

Concordando com o redator do jornal acima, Smiles enfatiza que


o sistema de aprendizes caiu quase em desuso. A mocidade segue os
estudos escolares e no pode aprender um ofcio; donde resulta que o
trabalho manual est quase todo entregue em mos destrangeiros.
(SMILES, 1893, p. 76). Nesse sentido, o aluno cujos exerccios
preparatrios foram brilhantes, no acaricia a idia de ganhar a vida com
o trabalho. Perdeu o gosto pelo labor fsico. (SMILES, 1910, p. 77).
Justamente a sociedade que se desenvolve aquela que enterra
pouco a pouco a relao de aprendizagem entre mestre e aprendiz. a
essa sociedade cujo processo de industrializao torna o trabalho
destitudo de criao, de aperfeioamento, de resgate dos valores
familiares, que coloca em desajuste o trabalho manual que Smiles v,
com pesar, tornar-se presente. Decide escrever uma srie de tratados
morais no intuito de disseminar entre os jovens trabalhadores ingleses o
valor do trabalho manual e todos os valores morais a ele associados.
Formao de carter, perseverana, abnegao, aplicao, constituem
princpios com os quais se pode protelar a decadncia do trabalho

141
manual, numa perspectiva individual. O princpio educativo, em Smiles,
o trabalho em especial, o trabalho manual.
Sob esse ponto de vista, Smiles (s.d, p. 52) afirmava:
Falamos do trabalho como sendo uma disciplina:
tambm um educador do carter. [...] O costume
de trabalhar ensina o mtodo. Obriga-nos a
economizar o tempo e a no dispor dele seno
com uma premeditao discreta55. Uma vez
adquirida pela prtica a arte de preencher a vida
com ocupaes teis56, saberemos aproveitar os
minutos; quando vier o momento do descanso, o
gozaremos com muito gosto.

Em realce educao pelo trabalho e de sua extenso, Smiles


(s.d, p. 55) resume: o trabalho em proporo razovel to bom para o
esprito como para o corpo. O trabalho entendido no seu papel
educador, produtor de disciplina, felicidade, utilidade para a vida,
vitalidade, desenvolve as faculdades mentais, alm do desenvolvimento
de habilidades. A autoajuda de Smiles visa produzir no indivduo uma
identidade: a do trabalho como o seu educador.
O pensamento pedaggico de Smiles possui um carter
ideolgico de fortalecimento do ideal liberal, da economia capitalista em
desenvolvimento, da moral, do progresso e da ordem princpios
eminentemente positivistas. Estes constituem elementos da produo
social de um novo homem para o trabalho.
Os escritos do autor inspiraram, sem dvida, aes favorveis
acumulao do capital. Ao defender uma concepo de homem calcada
numa formao moral, Smiles ajudou a instaurar uma nova relao
moral entre os homens e seu trabalho, determinada por uma vocao.
Isso pressupe uma adeso ativa, iniciativas e sacrifcios livremente
assumidos (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), o que exige novos
modos de comportamentos, pensar e agir coerentes com o progresso
industrial.
A reproduo da ordem social possvel graas s orientaes de
aes capazes de justificar a importncia de cada indivduo na
55
56

Mesma mxima taylorista.


Nos escritos de Smiles, por vezes, identificamos alguns dos princpios do pragmatismo.

142
construo de sua trajetria. A autoajuda de Smiles, sob o ponto de vista
ideolgico, caracteriza-se pela difuso de um conjunto de princpios
morais, valores entendidos como elementos de harmonizao entre o
trabalho e as exigncias de acumulao, justificando que no seriam
todos os trabalhadores que conseguiram galgar sucesso em seus feitos.
O trabalhador bem-sucedido, na perspectiva da autoajuda do sculo
XIX, seria aquele que conseguiria, no cumprimento de seu dever,
praticar aes virtuosas, considerando os modelos de conduta exemplos
notveis de homens que, em sua trajetria profissional, se elevaram
graas ao esforo prprio, trabalho rduo.
A educao necessria, sob essas condies, a educao do
carter individual moldado pela imitao de bons exemplos. Educa-se
para formar o carter e essa formao no se daria na escola. Esta
vista por Smiles como aquela na qual no se ensinam conhecimentos
teis prtica do trabalho nem formao do carter, por isso o
princpio pedaggico da autoajuda est centrado no valor da fora do
exemplo. Pelo exemplo seria possvel formar um trabalhador de novo
tipo cujas caractersticas essenciais resumem-se em: carter; esforo;
agir moral, obedincia, autogoverno; resignao; pacincia; disciplina;
coragem; persistncia; aplicao; energia individual; ateno;
perseverana; fora de vontade; autodeterminao; autonomia, entre
outras. Em sntese, o trabalhador ideal prescrito no discurso de
autoajuda no sculo XIX o trabalhador de carter.
2.9 A AUTOAJUDA DE SMILES
A ampla popularizao das ideias de Smiles possibilita
compreender o discurso de autoajuda do sculo XIX constitudo e
constituinte do iderio positivista que prioriza a ordem e o progresso, a
valorizao do trabalho livre, perseverante, rduo, dedicado, concepo
amplamente frisada por Smiles nas publicaes analisadas.
Poder-se-ia situar o autor em sua influncia na intelectualidade
brasileira em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, no
imperialismo liberal burgus ingls, com o poder de universalizar os
particularismos associados a uma tradio histrica singular, isto ,
transpor idias de uma realidade de capitalismo industrial, para uma
sociedade escravocrata agrria-exportadora. (BASTOS, 2000, p. 132).
Isso deve-se ao fato de as ideias aparecerem desistoricizadas, como
resultado da neutralizao do contexto histrico que resulta da

143
circulao internacional dos textos e do esquecimento correlato das
condies de origem. (BOURDIEU; WACQUANT, 1999, p. 32).
Nessa linha de pensamento, Smiles aposta no efeito dos excertos
biogrficos, nos exemplos edificantes, de sucesso, no princpio da
evidncia de boas aes, boas prticas, que, uma vez generalizadas,
legitimariam as perspectivas de autorrealizao, possibilidade de
projeo e ascenso social. Em vista disso, em sua estratgia discursiva,
empecilhos e fracassos so desconsiderados. A carreira to rpida que
no tolera que nos detenhamos a informar-nos daqueles que caram
prostrados no caminho. (SMILES, 1910, p. 78).
Desse modo, o discurso de Smiles constitui-se num discurso da
prtica que para ser aceito, associa-se a outras estratgias discursivas
de forma a convencer os trabalhadores/leitores naquele momento
histrico. Dentre essas estratgias, destacam-se as frases de efeito a
partir de uma abundncia de citaes de personagens que o autor
considerava orientadoras de conduta: A confiana em si prprio e a
abnegao de si mesmo podem, entretanto, ensinar ao homem a beber de
seu prprio copo. (BACON, s.d apud SMILES, 1893, p. 22); O
caminho da prosperidade humana paralelo velha e larga estrada da
vontade perseverante. (WEDGWOOD, s.d apud SMILES, 1893, p. 22).
A propalao da autoajuda de Smiles d-se tambm pela profuso
massiva de provrbios ou mximas constituindo-se noutro mecanismo
lingustico de difuso das ideias do autor. Ajuda-te e Deus te ajudara
o provrbio basilar da autoajuda smilesiana. Alm deste, cita-se:
Levanta-se e trabalha, que o senhor esteja contigo; o caminho do
homem ocioso uma cerca de espinhos (SMILES, 1901; SMILES,
1893). Por estes e outras dezenas de provrbios recorrentes nos diversos
livros do autor, apreendem-se as concepes de trabalho, de homem e
sociedade/mundo disseminadas por Smiles. Negao do cio, apologia
ao esforo prprio por meio da vontade perseverante, descarte da
responsabilidade do governo na projeo das histrias de cada
indivduo, mas a composio destas, como resultado de uma nao.
Smiles concentrou seus esforos na perspectiva de uma instruo
popular, escrevendo livros, participando de palestras e afirmando um
carter moralizante, a fim de fortalecer um ideal de autoajuda como um
caminho para a reforma da sociedade externando valores morais e
deveres voltados a uma tica do trabalho. Suas ideias so retomadas e
repetidas, de maneira incessante, traduzidas em exemplos variados,
representando um suporte para reiterar uma preocupao permanente de

144
mobilizao e motivao pessoal dos trabalhadores. Dentre as
repeties, destaca-se: auxlio prprio; perseverana, aplicao; retido;
coragem; esforo; confiana; trabalho; exemplos etc.
Outro trao marcante na literatura de Smiles o uso de fbulas.
Estas constituem outro recurso metodolgico utilizado para respaldar de
modo operatrio as prescries do autor. A fbula dos trabalhos de
Hrcules, mencionada anteriormente, visa exaltar o esforo desmedido
empreendido pelo homem em suas aes, coragem, fora, podendo-se
interpretar o seu uso como exaltao ao heri que h em cada um
quando se dispe a enfrentar e a criar solues em condies adversas.
A divulgao das premissas de Smiles traduz um esprito de
poca, [em que] o trabalho se naturaliza, a partir do que se mostrava
como um senso comum universal, preparando o esprito da elite
ilustrada brasileira, para a ideologia do sucesso individual, como fruto
da persistncia, do esforo e do trabalho. (BASTOS, 2000, p. 133).
Tais modos de pensar e agir tambm foram e so amplamente
divulgados na autoajuda tanto no sculo XX como na atualidade,
conforme anlise nos captulos que seguem.

145
3 AUTOAJUDA E A PRODUO DO TRABALHADORMASSA
A histria da sociedade capitalista
marcada por contradies que
levam a constantes recuos e
avanos. O que move esta
sociedade justamente o esforo
desmedido para enfrentar e
resolver suas crises.
(PALANGANA, 1998).

Conforme anlise em captulo anterior, os discursos de autoajuda


tinham como pblico-alvo os trabalhadores diretos, visando formar uma
tica para o trabalho a partir de um sistema de valores condizente com o
desenvolvimento do capitalismo no sculo XIX. No presente captulo,
mostrar-se- que a literatura de autoajuda constituda nas primeiras
dcadas do sculo XX est organicamente articulada s demandas do
fordismo. A vasta bibliografia sobre a organizao do trabalho em
moldes tayloristas e fordistas deixa evidente as preocupaes capitalistas
em encontrar o homem certo para o lugar certo, definindo um tipo de
trabalhador necessrio, bem diferente do almejado em tempos
vitorianos. Esse o tempo de institucionalizao do assalariamento que
permitiu os trabalhadores consumirem minimamente o que se produzia
em srie e a baixo custo. (LAVAL, 2004). o tempo do trabalho
racionalizado, da produtividade e eficincia.
Com os processos acelerados de industrializao e urbanizao, o
controle e disciplinamento dos trabalhadores davam-se pelo emprego
que, como mostrou Gramsci em Americanismo e Fordismo, moldava
condutas, valores. Naquele contexto, outro pblico tornou-se alvo da
literatura de autoajuda, os homens de negcios vistos como ledores
dos sinais dos tempos, de modo a poderem nortear sadiamente o
pblico. (FORD, 1954, p. 426). A crise de 1929, fechamento de
fbricas, desemprego no contexto entre guerras e avano do comunismo
colocaram em xeque o projeto societrio capitalista. Seguindo o
entendimento de Hobsbawm (1995), a Primeira Guerra Mundial
assinalou o colapso da civilizao ocidental do sculo XIX. As crises
polticas e econmicas que o capitalismo enfrentava no final do sculo
XX e o impacto da Revoluo de Outubro exigiam do capital uma
resposta no s a nvel do modo de acumulao e de gesto da fora de

146
trabalho, mas tambm a nvel da hegemonia sobre a sociedade.
(VARGAS, 1985, p. 157).
Trabalha-se com a hiptese de que o discurso de autoajuda
contribui para a formao de um ethos necessrio sociabilidade
capitalista. No incio do sculo XX, vrios cnones so disseminados
pelos discursos de autoajuda relacionados aplicao sistemtica de
valores e modos de pensar prprios esfera econmica industrial.
Destaca-se Dale Carnegie, autor norte-americano que se tornou
expoente ao diagnosticar que a tica da personalidade, a carismtica
individual teria maior utilidade que os conhecimentos livrescos na
formao dos homens de negcios. Suas obras propagaram a ideia de
que a conquista do sucesso no dependia apenas do pensamento
positivo, mas da construo de uma personalidade agradvel capaz de
influenciar pessoas.
3.1 EFEITOS DA RACIONALIZAO TAYLORISTA
A sociedade industrial, nas ltimas dcadas do sculo XIX e
incio do sculo XX, dentre outros aspectos, poderia ser identificada
pelo incremento de tcnicas industriais para agilizar o sistema produtivo
e ultrapassar a organizao do trabalho que impedia a reproduo do
capital. O capitalismo industrial ganha o mundo, tornando-se uma
genuna economia (PALANGANA, 1998, p. 56). Do outro lado do
mundo, o capital avana na industrializao, mquinas de tear inglesas e
outros instrumentos vo sendo incorporados ao processo de trabalho,
mas o que ir se verificar nos Estados Unidos ser um conjunto de
transformaes de processo de trabalho ligadas s mudanas nas
condies de existncia do trabalho assalariado.
Se Ure57 e tambm Babbage, no decorrer da Revoluo
Industrial, foram os homens que se preocuparam com os problemas da
organizao do trabalho no bojo das relaes capitalistas de produo,
passado aproximadamente meio sculo, viu-se a intencional e
sistemtica aplicao da cincia produo (BRAVERMAN, 1987, p.
82), alm de um grande incremento no nmero de empresas e indstrias.
57
Marx (1968, p. 501), referindo-se a Ure como um apstolo do capital, destaca que embora
sua obra [...] aparecesse em 1835, quando o sistema fabril estava ainda relativamente pouco
desenvolvido, continua ela sendo a expresso clssica do esprito da fbrica, no s em virtude
do cinismo franco, mas tambm da ingenuidade com que descerra as contradies absurdas do
crebro capitalista.

147
Frederick W. Taylor (1856-1915) inicia o movimento da gerncia
cientfica nas ltimas dcadas do sculo XIX motivado por essas
mudanas. Sobretudo, vale mencionar que Taylor recebeu sua formao
em engenharia com base no sistema russo, no Stevens Institute of
Tecnology, formao esta, que o ajudou pr em ao um modo
sistemtico de organizar o processo de trabalho. Segundo estudos de
Della-Vos58 (1829-1864), o projeto de Taylor objetivava substituir o
comportamento irracional tanto dos trabalhadores quanto dos
capitalistas. De acordo com Bryan (1992, p. 501), o sistema Taylor
um projeto de desenvolvimento capitalista para enfrentar as crises
criadas pelo prprio desenvolvimento capitalista.
A racionalizao do trabalho, como ficou conhecida a gerncia
cientfica, baseia-se essencialmente na aplicao dos mtodos da
cincia aos problemas complexos e crescentes do controle do trabalho
nas empresas capitalistas. (BRYAN, 1992, p. 82). Taylor, a partir das
ideias que germinaram na Inglaterra e nos Estados Unidos durante o
sculo XIX, deu uma filosofia e ttulo a uma srie desconexa de
iniciativas e experincias. (BRYAN, 1992, p. 85). O trabalho, nessa
perspectiva, ganha um rigor metodolgico, os movimentos e os tempos
de trabalho so planejados. O processo de trabalho, dividido em partes
que beiram o indivisvel, sistematicamente estudado e classificado
para que, ao final, se retenha to-somente o modo mais rpido e eficaz
de execut-lo. (PALANGANA, 1998, p. 57). Sobre o trabalhador recai
58

De acordo com Bryan (1992, p. 498), Della-Vos no compartilhou do medo cultura


tcnico-cientfica de idelogos e agentes do Estado autocrtico russo [...] formulou e ps em
prtica um plano de reforma do ensino tcnico baseado na implantao de um controle
objetivo, que rompe num s golpe com as prticas artesanais e a domesticidade relacionada
com o regime de servido. [...] Della-Vos procurou com seu mtodo formar o trabalhador
assalariado livre que, controlado durante o processo de ensino segundo a objetividade da
razo tcnica, habituado a submeter-se disciplina imposta pela mquina. Della-Vos contou,
para a implantao do seu plano, com as condies especialssimas em vigor na Rssia (onde o
capitalismo estava se desenvolvendo atravs da ao direta do Estado caso tpico da via
prussiana para o capitalismo como parte da estratgia de modernizao autoritria dirigida
pelo regime autocrtico) e na instituio em que trabalhava (antigo orfanato fundado pela
burguesia moscovita e mantido pelo trabalho dos alunos, independente da poltica reacionria
do Ministrio da Instruo Pblica). Separando as oficinas de aprendizagem das que se
destinavam a produzir bens para o mercado e estabelecendo a distino entre o artficeprofessor e o artfice-produtor, Della-Vos criou um espao e tempos novos, distintos do espao
e tempo da produo. Nesse espao destinado aprendizagem, implantou seu mtodo de
ensino de tcnicas de produo baseado na diviso do trabalho em operaes unitrias
organizadas na forma de tarefa. [...] Organizando o ensino com base na tarefa, Della-Vos
redefiniu o prprio sentido do trabalho. [...] O mtodo de Della-Vos revelou-se um meio
apropriado para formar rapidamente o trabalhador para exercer sua funo como parte do
trabalho coletivo na moderna organizao industrial.

148
a necessidade de uma modificabilidade, de uma interpretao daquilo
que o capitalista deseja em nome da mxima da produo. A
especializao figura como carro chefe na aprendizagem do
trabalhador na produo cientfica, s vezes mais intensa, s vezes
menos necessria. Parcelar, fragmentar uma estratgia que permite
controle. Fraciona-se o saber transmitido desde geraes, mas fracionase, sobretudo, o compasso ritmado que organiza os trabalhadores.
O taylorismo representou para o desenvolvimento histrico do
capitalismo, conforme observou Vargas (1985, p. 159), a criao de uma
camada intermediria de trabalhadores indiretos, os experts, a
gerncia cientfica, que realiza a mediao capital/trabalho. Ficam
sob responsabilidade dos experts a seleo e o treino de operrios, alm
do planejamento de suas atividades em consonncia com as exigncias
do mtodo racionalizado de produo. Sob esse aspecto interessante
mencionar que o taylorismo recebeu a influncia da penetrao da
cincia na indstria sob uma perspectiva positivista. (VARGAS, 1985,
p. 158). Decorre disso no s uma preocupao ideolgica de assumir
um carter de neutralidade pela legitimao cientfica [...] mas tambm
como uma real preocupao de utilizar o conhecimento, formalizado at
ento, para controlar a fora de trabalho. (VARGAS, 1985, p. 158).
Em nfase ao desenvolvimento do taylorismo no Brasil, Vargas
(1985) chama a ateno que, tanto nos Estados Unidos quanto aqui, os
engenheiros, representantes do conhecimento cientfico aplicado
industrializao, transformaram a natureza atendendo as determinaes
do capital. Em Engenheiro: trabalho e ideologia, Kawamura (1981, p.
11) destaca que a acumulao capitalista,
com base na produo e comercializao do caf,
na medida em que incorporou meios mais
eficientes para a sua realizao, teve que ampliar
servios de natureza urbana. [...] [estes]
comportavam a instalao de hidreltricas, de
servios de gs, de transporte urbano, saneamento
e edificaes. Tais empreendimentos abriram
ainda outras oportunidades para a prtica do
engenheiro diretamente na infraestrutura social.

Na prtica, o engenheiro exercia uma autoridade tcnica, o que,


na anlise de Kawamura, possibilitou o exerccio de funes prprias do
capitalista. Ao organizar e supervisionar os meios de produo dos

149
trabalhadores, o engenheiro exercia uma funo delegada ao
capitalista. (KAWAMURA, 1981, p. 15).
De um olhar especfico dos engenheiros, que tiveram participao
essencial na difuso das idias de organizao racional do trabalho e na
definio de comportamentos adequados, especialmente em relao ao
operrio, para saber mandar (KAWAMURA, 1981, p. 79), amplia para
outros trabalhadores da fbrica que, na opinio de Vargas (1985),
tambm passaram a exercer funes dirigentes prprias do capitalista. O
mesmo autor caracteriza o taylorismo como aquela forma de organizar
o trabalho [em] um estatuto cientfico e denomina de novo
taylorismo esta forma que utiliza o conhecimento cientfico para
controlar o trabalhador. Vargas argumenta que esse segundo aspecto
aparece metamorfoseado na psicologia industrial, na ergonomia, na
medicina do trabalho, na pesquisa operacional [...] estes conhecimentos
acadmicos so aplicados pelos experts dos cargos da estrutura
empresarial line-staff (KAWAMURA, 1981, p. 159), entendendo-se
que tal movimento tem sua origem na conjugao das propostas de
Taylor e de Fayol (1841-1925).
A partir da leitura da clssica obra de Taylor (1953, p. 38)
Princpios de administrao cientfica, publicada em 1911, possvel
destacar dois aspectos importantes: as tcnicas de racionalizao do
trabalho e a criao da gerncia cientfica. Esta ltima refere-se
funo de reunir todos os conhecimentos tradicionais que no passado
possuram os trabalhadores e ento classific-los, tabul-los, reduzi-los a
normas, leis ou frmulas, grandemente teis ao operrio para execuo
do seu trabalho dirio. A gerncia ganha em Taylor, estatuto de cincia,
de modo que a direo exerce trs tipos de atribuies que envolvem
novos e pesados encargos para ela (TAYLOR, 1953, p. 38). Das
atribuies sistematizadas pelo autor, tem-se:
[...] Desenvolver para cada elemento do trabalho
individual uma cincia que substitua os mtodos
empricos. [...] Selecionar cientificamente, depois
de treinar, ensinar e aperfeioar o trabalhador. No
passado ele escolhia seu prprio trabalho e
treinava a si mesmo como podia. [...] Cooperar
cordialmente com os trabalhadores para articular
todo o trabalho com os princpios da cincia que
foi desenvolvida. [...] Manter a diviso eqitativa
de trabalho e de responsabilidade entre direo e o

150
operrio. A direo incumbe-se de todas as
atribuies, para as quais esteja melhor aparelhada
do que o trabalhador, ao passo que no passado,
quase todo trabalho e a maior parte das
responsabilidades pesavam sobre o operrio.
(TAYLOR, 1953, p. 38).

Por meio da gerncia cientfica procurou-se adequar a fora de


trabalho s finalidades da produo. Esta soube dar corpo e vida a
vrias idias e experincias de submisso dos operrios, estabelecendo
assim as bases necessrias para ajustar o trabalho ao processo de
acumulao do capital. (GOMEZ, 2004, p. 51). A combinao da
iniciativa do trabalhador, com os novos tipos de atribuies conferidos
direo, permitiu, tirar a iniciativa do operrio na escolha do melhor
mtodo e, por outro lado, escolher, dentre os trabalhadores existentes,
aquele que melhor se adaptaria ao trabalho racionalizado. (VARGAS,
1985, p. 160).
Marx (1968, p. 414), em O capital, j apontava a constituio do
trabalhador mutilado em seu fazer e em seu saber. Da manufatura e
completando-se na indstria moderna, o trabalhador reduzido a uma
frao de si mesmo [...] que faz da cincia uma fora produtiva
independente de trabalho, recrutando-a para servir ao capital. Desta
forma, escreve:
O homem de saber e o trabalhador produtivo se
separaram completamente um do outro, e a
cincia, em vez de permanecer em poder do
trabalho, em mos do trabalhador para aumentar
suas foras produtivas em seu benefcio, colocouse contra ele em quase toda parte.... O
conhecimento torna-se instrumento que pode
separar-se do trabalho e opor-se a ele.
(THOMSON, s.d. apud MARX, 1968, p. 414).

A organizao cientfica impe-se de forma a tratar o indivduo


como um mecanismo coordenvel. Assim, nas palavras de Kuenzer
(2002a, p. 66), j que o taylorismo refere-se s formas de organizao
do trabalho de modo a favorecer a extrao de mais-valia, h que se
buscar formas de educao do operrio que permitam sua adaptao ao
trabalho dividido. Verifica-se, deste modo, a necessidade de o capital

151
investir em mecanismos que eduquem ou adaptem o indivduo ao modo
de produo capitalista.
O estudo de Vargas (1985, p. 162), sobre a gnese e difuso do
taylorismo no Brasil, revela que essa concepo de mundo, orientada
com base nas exigncias de produo, requereu controle da formao e
reproduo de uma fora de trabalho nacional que se submetesse aos
novos requisitos de disciplinamento e formao tcnica fabris. Nos
anos de 1920, o iderio do fordismo j estava presente entre os
industriais paulistanos na forma de uma recusa intermediao do
Estado na regulao do mercado de trabalho e na perspectiva de
educar o trabalhador com a internalizao das normas de disciplina da
produo industrial. (VARGAS, 1985, p. 163). Com tal objetivo, o
Instituto de Organizao Racional de Trabalho (IDORT) estruturou
nesse perodo, o Centro Ferrovirio de Ensino e Seleo Profissional
(CFESP) que congregava diversas empresas ferrovirias que assumiam
a liderana na aplicao do Taylorismo. (VARGAS, 1985, p. 166). O
ensino profissional vinha atender a necessidade dos industriais na busca
de operrios qualificados para suprir a demanda da indstria. Em 1931
foi criada a Lei dos 2/3 [...] que obrigava a existncia de no mnimo
2/3 de empregados brasileiros em cada empresa. (VARGAS, 1985, p.
166), a qual foi muito adiada porque os empresrios no tinham
condies de substituir os trabalhadores estrangeiros por brasileiros nas
funes mais qualificadas. Com tal situao, surge o interesse
empresarial em atuar na formao da classe operria de acordo com a
disciplina e a moral taylorista. (VARGAS, 1985, p. 167).
A educao racionalizada consistia em colocar a criana em
situaes nas quais pudesse estabelecer comparaes entre dois modos
de executar um mesmo trabalho, por mais simples que seja e para
demonstrar, em casos mais concretos, que se pode fazer economia de
material, de movimentos, de tempos e de esforos mediante uma escolha
adequada do modo de proceder. (VARGAS, 1985, p. 169). O autor,
ressalta ainda que se deveria
fazer compreender criana que a diviso do
trabalho traz vantagens, que cada um deve
executar a parte do trabalho que possui mais jeito
ou que est de mais acordo com sua constituio:
tal como se verifica em todas as manifestaes da
vida na natureza, e que assim o trabalho se tornar

152
mais rpido e mais perfeito. (VARGAS, 1985, p.
166).

Assim, para que as tcnicas tayloristas difundidas tivessem


eficincia, foi preciso investir na mudana da mentalidade do povo
brasileiro (VARGAS, 1985, p. 173), na capacidade de o trabalhador
incorporar e operar a nova dinmica do trabalho racionalizado. Em
consonncia com esse pensamento, para que o trabalhador
desempenhasse suas funes num processo de trabalho fragmentado, era
necessrio educar o trabalhador.
3.1.1 A arte de ser produtivo
O longo sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX
fortaleceram as novas formas de organizao do trabalho. Em especial,
com o taylorismo criou-se o elo que faltava na formao da tecnocracia
fabril e na intermediao com as cincias. (VARGAS, 1985, p. 159).
No sistema criado por Taylor, o discurso administrativo imbrica-se
ento com o pedaggico. (BRYAN, 1992, p. 356). Articulam-se o
processo de trabalho e o processo de transmisso de conhecimentos e
habilidades necessrios para a formao do trabalhador de forma
sistemtica. (BRYAN, 1992). Sem dvida, isso significou um
rompimento com a aprendizagem imitativa, lembrando a idia de Smiles
sobre aprender a partir de um exemplo.
Nessa perspectiva, a questo do saber, na produo de
mercadorias, assumiu nova dimenso. A tecnologia, segundo Vargas
(1985, p. 158), passou a articular o conhecimento cientfico com o
conhecimento produtivo, o que exigiu controle de tempos e
movimentos, a programao da tarefa de cada operrio isoladamente.
Objetiva-se tirar da iniciativa do operrio a deciso sobre como executar
o melhor mtodo e determinar, dentre o corpo de trabalhadores, qual o
mais adequado ao trabalho racionalizado. Com tal propsito, o
sistema proposto por Taylor (1953, p. 59) exigia um homem de tipo
bovino espcime difcil de ser encontrado e, assim, muito valorizado.
O trabalho racionalizado converte o trabalhador em mero autmato, em
verdadeiro boneco de madeira (TAYLOR, 1953, p. 110) uma vez que
no preciso pensar, mas agir.
A esse respeito, Gramsci (2004, p. 266) enfatiza que Taylor
expressa com brutal cinismo o objetivo da sociedade americana:

153
desenvolver em seu grau mximo, no trabalhador, os comportamentos
maquinais e automticos, quebrar a velha conexo psquica do
trabalhador profissional qualificado, o que requeria uma certa
participao ativa da inteligncia, da fantasia, da iniciativa do
trabalhador, e reduzir as operaes produtivas apenas ao aspecto fsico
maquinal. O ritmo da mquina adequada produo de sries
homogneas fora o trabalhador a se adequar padronizao, ao
disciplinamento, separao entre o trabalho mental e o trabalho
manual. Nas palavras de Gramsci (2004, p. 271), o taylorismo
determinou a separao entre o trabalho manual e o contedo humano
do trabalho59.
Um elemento de extrema importncia para que o sistema
racionalizado de trabalho tenha se tornado o que se tornou incide na
ideia de tarefa. Para Taylor, esta representa o elemento mais importante
da administrao cientfica. O trabalho de cada operrio
completamente planejado pela direo [...] cada homem recebe, na
maioria dos casos, instrues escritas completas que minudenciam a
tarefa de que encarregado e tambm os meios usados para realiz-las.
(TAYLOR, 1953, p. 40). Na tarefa, cada trabalhador recebia
especificado o que fazer, como fazer e o tempo exato para a sua
execuo.
Dos princpios da administrao cientfica, destaca-se a seleo
cientfica do trabalhador:
Nosso primeiro cuidado foi procurar o homem
adequado para iniciar o trabalho [...] investigamos
seu passado, tanto quanto possvel e fizemos um
inqurito completo a respeito do carter, dos
hbitos e ambies de cada um. (TAYLOR, 1953,
p. 46).

59
Gramsci (2004, p. 271-272) exemplifica esse exerccio para anular o contedo intelectual
referindo-se ao tipgrafo. [Este] [...] deve ser muito rpido, deve ter a mo e os olhos em
contnuo movimento, o que torna mais fcil sua mecanizao. Mas se pensarmos bem, o
esforo que estes trabalhadores devem fazer para isolar do contedo intelectual do texto, por
vezes muito apaixonante [...] sua simbolizao grfica, e para dedicar-se somente a esta, talvez
seja o maior esforo que se requer de uma profisso. Quando o processo de adaptao se
completou, verifica-se na realidade que o crebro do operrio, em vez de mumificar-se,
alcanou um estado de completa liberdade. Mecanizou-se complemente o gesto fsico; a
memria do oficio, reduzido a gestos simples repetidos com ritmo intenso, aninhou-se nos
feixes musculares e nervosos e deixou o crebro livre e desimpedido para outras ocupaes.

154
A referncia acima constitui apenas um pequeno trecho do
processo de seleo de um trabalhador para a vaga de carregador de
barra de ferro. Aps a escolha do homem adequado, Taylor (1953, p.
46) relata o dilogo com Schmidt, o operrio classificado:
Quando ele [supervisor] disser para levantar a
barra e andar, voc levanta e anda, e quando ele
mandar sentar, voc senta e descanse. Voc
proceder assim durante o dia todo. E, mais ainda,
sem reclamaes. Um operrio classificado faz
justamente o que se lhe mandar e no reclama.
Entendeu? [...] Finalmente, voc vem trabalhar
aqui amanh e saber, antes de anoitecer, se
verdadeiramente um operrio classificado ou no.

Concludo o dilogo, Taylor (1953, p. 46) afirma que, apesar de


este parecer um tanto quanto spero adequado a um homem de
mentalidade limitada. Destaca tambm que, se o trabalhador
selecionado fosse um mecnico educado ou mesmo um trabalhador
inteligente, provavelmente o dilogo transcorreria de forma diferente. O
exemplo narrado por Taylor caracteriza trs elementos que constituem a
essncia da administrao cientfica: cuidadosa seleo do trabalhador; o
mtodo de instru-lo; e depois trein-lo e ajud-lo a trabalhar de acordo
com o sistema da administrao cientfica. (TAYLOR, 1953, p. 47).
Ainda com relao narrativa de contratao do trabalhador para
carregar as barras de ferro, este aps o primeiro dia de trabalho,
conseguiu trabalhar em ritmo uniforme o dia todo sem fatigar-se. Para
reforar sua tese de que preciso msculo e no crebro para tal
atividade, Taylor (1953, p. 56) dizia que um dos primeiros requisitos
para um indivduo que queira carregar lingotes como ocupao regular,
ser to estpido e fleumtico que mais se assemelhe em sua
constituio mental a um boi. E acrescenta:
Um homem de reaes vivas e inteligente , por
isso mesmo, inteiramente imprprio para tarefa
to montona. No entanto, o trabalhador mais
adequado para o carregamento de lingotes
incapaz de entender a cincia que regula a
execuo desse trabalho. to rude que a palavra
percentagem no tem nenhuma significao para
ele, e, por conseguinte, deve ser treinado, por um

155
homem mais inteligente, no hbito de trabalhar de
acordo com as leis dessa cincia, para que possa
ser bem sucedido. (TAYLOR, 1953, p. 56).

Tais consideraes possibilitaram entender que uma das questes


essenciais do sistema proposto por Taylor est no controle do
trabalhador coletivo, dada a nfase coordenao de seu conhecimento,
alm da seleo e coordenao de seu trabalho. O prprio industrial
afirma que quando os trabalhadores esto reunidos, tornam-se menos
eficientes do que
quando a ambio de cada um estimulada
individualmente; que quando os homens
trabalham ao mais baixo nvel do pior homem do
grupo; e que todos pioram em vez de melhorarem
o rendimento com a colaborao. (TAYLOR,
1953, p. 67).

Mediado pelo adestramento de gestos, movimentos e tempos de


trabalho, o exerccio da funo baseado na repetio da tarefa no
amplia, muito menos assegura o conhecimento do processo de trabalho
como um todo. Com o taylorismo, maximiza-se e eleva-se a explorao
da capacidade de produo de cada trabalhador, de forma que a
interveno destes no processo de trabalho dissipada. (PALANGANA,
1998).
O trabalho tcnico requer obedincia a normas precisas. A
constituio de uma rotina de trabalho parcelar, a responsabilidade de
cada trabalhador relaciona-se apenas ao exerccio que preciso repetir,
garantindo o controle mais efetivo da gerncia da fbrica. Nesse sentido,
Taylor (1953) descreve que o trabalho em grupo foi suprimido,
utilizando o exemplo os trabalhadores de p, visto que estes foram
cuidadosamente selecionados e receberam treinamento cientfico e
individual. Para cada um desses trabalhadores, foi dado um vago para
descarregar e, ao final do dia, pagava-se salrio mais alto queles que
mais descarregassem minrio de ferro.
Tal passagem serviu para exemplificar a importncia da
individualizao da tarefa. Com isso, o sindicalismo de operrios precisa
ser quebrado. A reorganizao do processo, na viso de Palangana
(1998) constitui uma tentativa de equacionar os embates entre a classe
operria e patronal e aprendizagem no trabalho, controlada.

156
A constituio da sociedade industrial faz exigncias, dentre elas,
prescreve-se maior rentabilidade em decorrncia de maior diviso das
operaes. (PALANGANA, 1998, p. 63). A noo de aprendizagem de
uma tarefa, antes fruto da relao mestre e aprendiz, d-se na ocupao
do posto de trabalho. O contedo e a forma do trabalho impem-se ao
indivduo guiado pela direo. Nesse sentido:
Deixando de lidar com homens, em grandes
equipes ou grupos, e passando a considerar cada
trabalhador individualmente, entregamos o
trabalhador que falha em sua tarefa, a instrutor
competente para lhe indicar o melhor modo de
executar o servio e para guiar, ajudar e encorajar,
bem como estudar suas possibilidades como
trabalhador. (TAYLOR, 1953, p. 64).

Dentre os princpios fundamentais da administrao cientfica,


est colocar o homem certo no lugar certo. Para tanto, a seleo e o
aperfeioamento cientfico do trabalhador, que estudado, instrudo e
treinado, e pode-se dizer experimentado, em vez de escolher ele os
processos e aperfeioar-se por acaso. A aplicao deste princpio vai ao
encontro dos propsitos do capital que exige que se faa do trabalhador
um mero autmato. A aprendizagem vai se amesquinhando, na
acepo de Palangana (1998). Trata-se de um dos elementos que visa
(con)formar o trabalhador adequando-o necessidade de produo do
capital em cada uma de suas fases. No se trata de uma conformao
passiva, de cima para baixo, preciso que se torne a prpria pele do
trabalhador.
A necessidade de realizao do capital no decorrer do sculo
XIX fez com que Smiles assistisse destruio do sistema de produo
mercantil simples, baseado na manufatura mecnica e no trabalho
artesanal (RDIGER, 1996, p. 46). Na passagem do sculo XIX para o
sculo XX, instauram-se profundas alteraes de hbitos, habilidades
com implicaes imediatas no modo como os trabalhadores aprendem.
Se, em Smiles (1893, p. 5), o homem aperfeioa-se mais pelo trabalho
do que pela leitura fazendo referncia relao mestre-aprendiz e no
ao operrio sujeitado rotina brutalizante imposta pelo ritmo da fbrica,
tambm em Taylor o trabalhador aperfeioa-se no exerccio da
atividade. A repetio de uma atividade exercia funo eminentemente
educativa. Como viu-se no decorrer do sculo XIX, a aprendizagem dos

157
trabalhadores constitua-se basicamente no exerccio do trabalho
produtivo. [...] os operrios [...] se referiam ao aprendizado do seu
ofcio no exerccio do trabalho [...] ns aprendemos os macetes do ofcio
fazendo-o. (BRYAN, 1992, p. 332). A distino entre mecnico e
engenheiro estava centrada menos no saber tcnico que no exerccio de
uma significativa autoridade60. (BRYAN, 1992).
O que prevalece no taylorismo a crena de que os
conhecimentos no so gerados pelo trabalhador, mas devem ser
formulados e aperfeioados pelos instrutores61. Conforme Taylor (1953,
p. 111):
Se fosse possvel o trabalhador aperfeioar-se,
tornando-se hbil e capaz, sem os ensinamentos e
auxlio de leis formuladas a respeito de seu
trabalho, ento, poder-se-ia concluir tambm que
o menino no colgio aprenderia melhor
matemtica, fsica, qumica, latim, grego, etc.,
sem auxlio algum, e por si mesmo. A nica
diferena nos dois casos que os estudantes vo
aos professores, enquanto, pela prpria natureza
do trabalho dos mecnicos, sob a administrao
cientfica, os instrutores devem ir ao encontro
destes.

Ressaltando a cincia desenvolvida nas instrues, Taylor destaca


que o treinamento do cirurgio tem sido quase idntico ao tipo de
instruo e exerccio que ministrado ao operrio sob a administrao
cientfica. (TAYLOR, 1953, p. 110). No caso especfico do cirurgio,
60

O projeto Taylor j estava explcito na sua primeira comunicao apresentada na ASME:


substituir o comportamento, segundo ele, irracional tanto dos trabalhadores como dos
capitalistas, que levava instaurao de um estado de guerra permanente, pela irracionalidade
tcnica do engenheiro. Aprender a respeitar o engenho dos primeiros e os reconhecia como
detentores do saber necessrio produo [...] O espao da administrao, no sistema Taylor,
ocupado pelo tcnico [...]. (BRYAN, 1992, p. 501).
61
Toffler (2001, p. 65), em A terceira onda, lembra que, na Gr-Bretanha, no foi por
coincidncia que as crianas das culturas industriais foram ensinadas a ver as horas em tenra
idade. Os alunos eram condicionados a chegar escola quando tocava a sineta, a fim de que
mais tarde chegassem com segurana fbrica ou ao escritrio quando soasse a sirene. As
tarefas eram calculadas e divididas em seqncias medidas em fraes de segundo. Das nove
s cinco formava o quadro temporal para milhes de trabalhadores. E no era apenas a vida de
trabalho que era sincronizada. Em todas as sociedades da Segunda Onda, independentemente
do lucro ou de consideraes polticas, a vida social era regulada pelo relgio e adaptada s
exigncias da mquina.

158
durante seus primeiros anos de estudo, submetido orientao
imediata de homens mais experimentados que lhe mostram
minuciosamente como executar cada elemento de sua tarefa.
(TAYLOR, 1953, p. 111). E argumenta: Este mtodo de ensinar no
lhe limita o desenvolvimento do esprito. Pelo contrrio, dota-lhe dos
melhores conhecimentos que vieram de seus predecessores.
(TAYLOR, 1953, p. 111). A nfase est num saber que se desenvolve
tendo como base a observao, repetio, os exemplos. Em Taylor, em
especial, o saber-fazer dotado de cientificidade com vistas ao aumento
da produtividade, da reproduo do capital. Este saber-fazer do operrio
ganha novo status dado o processo de seleo institudo por Taylor cujo
objetivo avaliar duas caractersticas essenciais dos trabalhadores, em
que pesem as sensrio-motoras e as morais. As caractersticas sensriomotoras, conforme destaca Bryan (1992, p. 379),
consideradas relevantes ao processo de avaliao,
so determinadas estritamente pelo contedo da
tarefa a ser executada pelo operrio no posto de
trabalho a que ser afetado na produo. Ao lado
dessas caractersticas fsicas, Taylor leva em conta
na seleo os traos de personalidade e padres de
conduta do trabalhador que o fazem dcil e
adaptvel disciplina da fbrica.

O trabalhador-padro almejado por Taylor possua alguns traos


caractersticos: era um homem abstmio, monogmico e individualista.
Em Smiles, tambm h destaque para as caractersticas morais
reiteradas, sobretudo no que se refere dedicao incondicional ao
trabalho, este visto como meio de corrigir possveis desvios de
comportamento. Para Smiles, os traos de personalidade so
desenvolvidos de forma individualista, tendo como referncia as aes
de homens considerados expoentes tanto na indstria quanto no
progresso da cincia. O saber transmitido de uma gerao outra, no
decurso da aprendizagem prtica, formador do homem dotado de
moralidade. Esta sustentaria e legitimaria modos de ao coerentes com
o desenvolvimento do capitalismo.
Em Taylor, este saber igualmente atacado e decomposto,
mediado pelo adestramento dos gestos e dos tempos de trabalho. De
concreto, ressalta Palangana (1998, p. 59), restou a tarefa fracionada
e repetitiva que lhe cabe [ao trabalhador] executar. Para que esta

159
fosse desenvolvida com a mxima eficincia e produtividade, Taylor
considerava necessrio o isolamento dos trabalhadores. O trabalho
atomizado evitava o surgimento de relaes sociais que poderiam gerar
sentimentos de solidariedade. Tal sentimento condutor de
manifestaes de resistncia.
Em vista disso, ao invs de tentar disciplinar os trabalhadores por
meio de instrumentos visveis, Bryan (1992, p. 388) observa que Taylor
empenhava-se em elaborar meios camuflados pelo
manto da razo. E, portanto, no procurava a
constncia dos atributos morais da classe operria
pela aplicao de penalidades grosseiras como
multas que seriam apropriadas pela empresa, mas,
de forma cientfica, dosava os salrios62 de modo
a serem suficientemente altos para motivarem os
operrios a trabalhar com afinco sem que fossem,
por outro lado, to acima da mdia que os
saciassem em demasia.

Num sentido ideolgico, Taylor busca a adeso do trabalhador


aos princpios da administrao cientfica. O uso da metfora da equipe
esportiva ajuda a compreender o exposto. Assinalando que ingleses e
americanos so os povos mais amigos dos esportes. Sempre que um
americano joga basquetebol ou um ingls cricket, pode-se dizer que eles
se esforam, por todos os meios, para assegurar a vitria sua equipe.
(TAYLOR, 1953, p. 32). Essa uma estratgia discursiva utilizada
como forma de abstrair a noo de classe social, evidenciando que o
aumento da capacidade produtiva de cada um poderia assegurar a
vitria sua equipe. Contudo, o trabalhador vem ao servio, no dia
seguinte, e em vez de empregar todo o seu esforo para produzir a maior
soma possvel de trabalho, quase sempre procura fazer menos do que
pode realmente. (TAYLOR, 1953, p. 32).
Gurgel (2003) menciona que Taylor trabalha a ideia da harmonia
das classes, dizendo que o novo sistema transformaria patres de
antagonistas em companheiros, permitindo que todos trabalhem
62

O iderio taylorista propagava a eliminao da luta de classes fornecendo aos trabalhadores


maiores salrios, mas tambm, com o barateamento da produo, novas oportunidades de
consumo. Na gesto da produo, a gerncia cientfica procurava estabelecer objetivamente
os tempos de produo, os mtodos de trabalho e os salrios, promovendo uma intermediao,
com base cientfica, entre capital e o trabalho. (VARGAS, 1985, p. 159).

160
vigorosamente juntos, situando-os na mesma direo. Eis que a
disciplina torna-se elemento central na implementao dos princpios
cientficos para o trabalho. Taylor procurava dar um estatuto de
legitimidade a seus mtodos administrativos apresentando-os como
meios cientficos, logo, politicamente neutros, para resolver um
problema crucial em qualquer tipo de sociedade o desperdcio do
trabalho, tanto o vivo como o objetivado em materiais, e das condies
naturais de produo. (BRYAN, 1992, p. 391).
O iderio taylorista difundiu uma concepo de mundo orientada
a partir das exigncias da produo (VARGAS, 1985), mas, como se
ver a seguir, os novos mtodos de trabalho esto indissoluvelmente
ligados a um determinado modo de viver, de pensar, de sentir a vida, e
no dizer de Gramsci (2004), no possvel se obter xito em um campo
sem obter resultados tangveis em outro. Ou seja, as novas disposies
psicofisiolgicas necessrias ao novo modo de organizao da produo
no so obtidas apenas pela coero, mas tambm pelo consentimento.
3.1.2 Do cronmetro esteira rolante
A partir dos estudos de tempos e movimentos, foi possvel
identificar e controlar o ritmo de trabalho, permitindo, tambm,
introduzir padres, ferramentas e mecanismos que efetivassem a
racionalizao do trabalho. Com esta base construda, abriu-se caminho
para a adoo de princpios fordistas de economicidade, intensificao
e produtividade, mas, de acordo com Gurgel (2003, p. 76), isso s foi
possvel porque havia um mercado consumidor pronto para absorver
tamanha produo. O crculo virtuoso criado por uma economia em
expanso concorreu para erigir a produtividade condio de um
objetivo geral.
Assim, no boom da economia americana, Henry Ford (18631947) aprofunda - a linha de montagem mecanizada a padronizao e
a especializao sistematizadas por Taylor (1903) e Gilbreth (1911).
Nesse sentido, Gurgel (2003) lembra que a introduo da linha de
montagem63, em 1913, no ocorre ao acaso: resulta da proibio do

63
A montagem de um chassi, por exemplo, passa de 12 horas e 28 minutos para 1 hora e 33
minutos. (HARVEY, 1992).

161
congresso americano que vetou o uso do cronmetro na gerncia e
pesquisa da produo64.
O fordismo possibilitou um aprofundamento da gerncia
cientfica valorizada com a esteira rolante. Ao levar o trabalho ao
trabalhador, Ford elevou ao mximo a ideia da racionalizao de tempos
e movimentos de Taylor. O fordismo tornou-se um fenmeno das
massas [...] simplesmente a forma desse tipo de sociedade
racionalizada, na qual a estrutura domina mais imediatamente as
superestruturas, que so racionalizadas (simplificadas e em menor
nmero). (GRAMSCI, 1980, p. 382). Alm disso, o fordismo tornou-se
o paradigma funcionalista da poca, representado na ideologia
modernista, particularmente na arquitetura e no urbanismo, onde os
planejadores buscavam a padronizao da forma urbana e sua
funcionalidade para a moderna economia capitalista. (DIAS; SILVA
NETO, 2004, p. 11).
O modo como a organizao do trabalho fordista estabeleceu-se
configura, sem dvida, uma longa histria com origens nos primeiros
anos do sculo XX. Mas afinal, o que havia de especial em Ford?
Segundo Harvey, simbolicamente, pode-se buscar as origens do
fordismo nos anos de 1914. O que distingue as ideias de Ford das de
Taylor reside
em sua viso, seu reconhecimento explcito de que
a produo de massa significava consumo de
massa, um novo sistema de reproduo da fora
de trabalho, uma nova poltica de controle e
gerncia do trabalho, uma nova esttica e uma
nova psicologia, em suma, um novo tipo de
sociedade democrtica, racionalizada, modernista
e populista. (HARVEY, 1992, p. 122).

Para consolidar uma sociedade baseada no consumo de massa,


era preciso criar condies para tal. Nessa perspectiva, a linha de
montagem automtica facilitaria o aumento da produtividade, do lazer e,
consequentemente, o consumo. Ford acreditava em um poder
corporativo que poderia regulamentar a economia como um todo. Tendo
presente essas caractersticas, o fordismo proporcionou uma rpida
64

Segundo Gurgel (2003, p. 102), o Congresso norte-americano, acolhendo os reclamos e


denncias dos sindicatos e lderes polticos, proibiu o uso do cronmetro na gesto das
empresas, considerando-o um instrumento de desumanizao do trabalho.

162
elevao do investimento e do consumo per capita. (HARVEY, 1992).
De acordo com esse mesmo autor, o fordismo, como modo de
regulao, tem as seguintes caractersticas: estabilidade nas relaes de
trabalho: convenes coletivas, o Welfare State, a legislao; relaes
entre bancos e firmas amenas: subcontrataes de empresas para tarefas
especializadas; controle da moeda pelo Banco Central e participao
importante do Estado na regulao econmica. (HARVEY, 1992).
O fordismo origina a formao de uma norma social de consumo
que se caracteriza, conforme Aglietta (1979 apud Braga 1996, p. 129),
como um novo estgio de regulao do capitalismo [...] , pois, o
princpio de uma articulao do processo de produo e do modo de
consumo, que instaura a produo em massa, chave da universalizao
do trabalho assalariado.
O assalariamento com poder de consumo um elemento
definidor do fordismo, mas vale lembrar ainda o que Gramsci (2007, p.
247) assinala sobre as experincias realizadas por Ford.
[...] a economia feita pela sua empresa atravs da
gesto do transporte e do comrcio da mercadoria
produzida, economia que influiu sobre o custo de
produo, permitiu melhores salrios e menores
preos de venda. A existncia dessas condies
preliminares, racionalizadas pelo desenvolvimento
histrico, tornou mais fcil racionalizar a
produo e o trabalho, combinando habilmente a
fora (destruio do sindicalismo operrio de base
territorial) com a persuaso (altos salrios,
benefcios sociais diversos, propaganda ideolgica
e poltica habilssima) para, finalmente, basear
toda a vida do pas na produo. A hegemonia
vem da fbrica e, para ser exercida, s necessita
de uma quantidade mnima de intermedirios
profissionais da poltica e da ideologia.

Se um novo tipo de sociedade poderia ser criado aos olhos de


Ford, ento, o propsito dos salrios mais elevados tinha em parte como
objetivo obrigar o trabalhador a adquirir a disciplina necessria
operao do sistema de linha de montagem de alta produtividade
(HARVEY, 1992, p. 122), ou como dizia Ford (1954, p. 97), os
salrios s podem ser pagos se os operrios produzirem. Muito mais do
que isso, a crena no poder corporativo de regulamentao da economia

163
foi um dos fatores que mobilizou Ford a elevar os salrios no comeo
da Grande Depresso na expectativa de que isso aumentasse a demanda
efetiva, recuperasse o mercado e restaurasse a confiana na comunidade
de negcios. (HARVEY, 1992, p. 122).
Assim, Ford recorre persuaso quando decide pelo aumento dos
salrios, apelando para que os novos capitalistas se tornem atores reais
na direo da sociedade. (GOMEZ, 2004, p. 52). O industrial constatou
que,
embora os homens de negcio no se dem como
lideres dos movimentos, so eles na verdade os
verdadeiros chefes. Nem um s passo da atividade
econmica existe bem ou mau que no tenha
sido ensinado ao povo pelos homens de negcio.
Da terem mais influncia na sociedade que
polticos, professores ou sacerdotes. Seu contato
com o povo constante e sua influncia
inevitvel. Cada mau hbito econmico que o
povo revela foi-lhe ensinado pelos homens de
negcio e, como a influncia deles assim grande,
seria de boa poltica que mudassem de orientao,
transformando-se em, ledores dos sinais dos
tempos, de modo a poderem nortear sadiamente o
pblico. (FORD, 1954, p. 426).

Ler os sinais dos tempos constitui, para Ford (1954, p. 423), um


mtodo informativo aberto a todos. A capacidade de ler os sinais est
associada, por exemplo, a: ensinar o povo a empregar o seu dinheiro
sabiamente, pela aquisio de coisas que lhe tornem a vida mais
produtiva.
No que segue, ver-se- que Ford, em referncia s economias
obtidas por sua fbrica por meio da gesto direta do transporte e do
comrcio da mercadoria produzida, permitiu melhores salrios e
menores preos de venda (GRAMSCI, 2004), constituindo-se em
condies preliminares para racionalizar a produo e o trabalho.
3.1.2.1 Fordismo: alm da produo
Em Americanismo e Fordismo publicado em 1934, Gramsci
descreve num perodo que sucede crise de 1929, o momento em que se

164
firmam as bases do que ele designou economia programtica65. Da
passagem do individualismo econmico para a economia programtica,
o autor critica a economia europia com seus Estados de supraestruturas parasitrias, celebrando simultaneamente o que h de
moderno e tendente universalizao no taylorismo-fordismo da
experincia americana. (GOMES, 2005).
Nesse sentido, Braga (1996, p. 212) assinala que o americanismo
soube articular a coero (liquidao do sindicalismo de base
territorial) e o consenso (altos salrios e outros benefcios) de modo a
recompor e reproduzir as bases de legitimao (modificada) da estrutura
capitalista da poca.
O fordismo redesenhou os padres tayloristas de produo
articulando o processo de trabalho para a produo massificada com
bens padronizados, e a norma de consumo regulada pelas intervenes
institucionais (forma estatal) passa, pois, a ser o elemento definidor do
fordismo (BRYAN, 1992, p. 129). Tambm, na esfera poltica, o
fordismo caracteriza-se pela realizao de um compromisso de classes
produzido a partir de polticas e legislaes sociais, com a funo da
distribuio de renda, isto , da interveno do pblico sobre o privado.
(SILVA Jr., 2002, p. 24)
No texto do intelectual italiano, o americanismo aparece como
resposta a uma srie de problemas dentre eles a queda tendencial da
taxa de lucro. Toda a atividade industrial de Ford pode ser estudada
como uma luta contnua e incessante para fugir da lei da queda da taxa
de lucro, pela manuteno de uma posio de superioridade sobre os
concorrentes. (GRAMSCI, 1984, p. 243). Portanto, a lei tendencial da
queda da taxa de lucro estaria na base do americanismo, ou seja, seria a
causa do ritmo acelerado no progresso dos mtodos de trabalho e de
produo e de modificao do tipo tradicional do operrio. (GRAMSCI,
1984).
Nas palavras de Braga (1996, p. 207), o americanismo:

65
Gomes (2005) destaca que, segundo os tradutores, com a expresso economia
programtica Gramsci se refere provavelmente ao planejamento socialista da economia, tal
como vinha sendo empreendido pela Unio Sovitica. Para ele, tanto o americanismo quanto
o fascismo considerados como formas de revoluo passiva que respondem Revoluo
Russa de 1917 acolhem elementos de programao econmica na tentativa de conservar o
capitalismo.

165
Transforma-se, pois, no contedo de socializao
da fase imperialista do desenvolvimento do
capital, isto , a traduo de um projeto
hegemnico mais afinado com o objetivo
progressista, para as classes dominantes
tradicionais, de contrarrestar a queda tendencial
da taxa de lucro a partir da multiplicao das
variveis nas condies do aumento do capital
constante.

Segundo Braga (1996, p. 207), o americanismo refere-se,


tambm,
ao processo atravs do qual o grupo econmico
portador da funo produtiva, a burguesia
industrial
norte-americana,
alcana
sua
elaborao superior (Gramsci) fundando um tipo
de Estado renovado (chamado welfare,
posteriormente), desenvolvendo um complexo de
novas superestruturas e cedendo lugar expanso
generalizada pela nova sociedade civil. Nesse
ponto, o americanismo revoluo passiva sob o
domnio imperialista sintetiza a unidade entre a
histria e a lgica do desenvolvimento da
burguesia americana como classe historicamente
determinada.

Para que o fordismo pudesse se propagar tal qual aconteceu, foi


preciso uma srie de mudanas nas condies sociais, dos costumes e
hbitos individuais dos trabalhadores, ou seja, a racionalizao
determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, conforme o
novo tipo de trabalho e de processo produtivo. (GRAMSCI, 2007, p.
248).
A partir das contribuies de Gramsci, possvel caracterizar o
novo tipo de homem demandado pelo fordismo e que adentra s vrias
esferas da vida do trabalhador: [...] a verdade que no possvel
desenvolver um novo tipo de homem solicitado pela racionalizao da
produo e do trabalho, enquanto o instinto sexual no for
absolutamente regulamentado, no for tambm ele racionalizado
(GRAMSCI, 2004, p. 252). Trata-se de racionalizar a questo sexual,
mas tambm a questo do alcoolismo, da higiene, das casas, etc.

166
O industrialismo representa, para Gramsci (2004, p. 262),
uma luta contnua contra o elemento
animalidade do homem, um processo
ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento,
de sujeio dos instintos (naturais, isto ,
animalescos e primitivos) e sempre novos,
complexos e rgidos hbitos e normas de ordem,
exatido, preciso, que tornam possvel as formas
sempre mais complexas de vida coletiva, que so
a conseqncia necessria do desenvolvimento do
industrialismo.

Para que o industrialismo se imponha com vigor, os modos de


vida so devassados. Foi preciso adestrar o gorila do taylorismo,
sujeitar os instintos naturais dos homens, fabricando instintos
regulados, controlados. Efetivamente, Taylor, na acepo de Gramsci
(2004, p. 266),
exprime com cinismo brutal o objetivo da
sociedade americana; desenvolver ao mximo, no
trabalhador, as atitudes maquinais e automticas,
romper com o velho nexo psicofsico do trabalho
profissional qualificado que exigia uma
determinada participao ativa da inteligncia, da
fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as
operaes produtivas apenas no aspecto fsico
maquinal.

Com a racionalizao, novos mtodos de trabalho requereram um


controle sobre o sistema nervoso do trabalhador, cujo fio condutor foi o
instinto sexual. Para obter a dedicao exclusiva do operrio s
atividades de sua responsabilidade, com grau mximo de ateno e
aumento de produtividade, exigiram-se a regulamentao e a
estabilidade das relaes sexuais. (GRAMSCI, 2004, p. 267).
Fortalecer o sistema familiar foi uma das estratgias empreendida pela
fbrica fordizada. O reforo da monogamia contribuiu para a restrio
da sexualidade, possibilitando administrar com maior eficcia a
produtividade do operrio.
O interesse de Ford pelas relaes sexuais de seus empregados e
pela organizao de suas famlias faz parte da regulamentao e criao
de uma nova tica para o trabalho. Na viso de Ford (1954, p. 405), a

167
prosperidade do lar faz a prosperidade da indstria porque na realidade
todos os problemas se entrelaam e a soluo de um ajuda a soluo de
outro. Para o autor, torna-se patente a relao entre a vida domstica e
a indstria. (FORD, 1954, p. 405).
Nesse sentido, alm da restrio sexual, Gramsci assinala que,
para obter xito, na Amrica,
a racionalizao do trabalho e o proibicionismo
esto indubitavelmente ligados: os inquritos dos
industriais sobre a vida ntima dos operrios, os
servios de inspeo criados por algumas
empresas para controlar a moralidade dos
operrios so necessidades do novo mtodo de
trabalho. [...] o significado e o alcance objetivo do
fenmeno americano, que tambm o maior
esforo coletivo realizado at agora para criar,
com rapidez incrvel com uma conscincia do fim
jamais vista na Histria, um tipo novo de
trabalhador e de homem. (GRAMSCI, 2004, p.
268, sem grifos no original).

Nesse sentido, com um trabalho dotado de novas caractersticas,


exigiu-se a necessidade de uma nova concepo de mundo que
fornecesse ao trabalhador uma justificativa para sua prpria e crescente
alienao, e ao mesmo tempo, suprisse as necessidades do capital com
um homem cujos comportamentos e atitudes fossem compatveis com os
imperativos do novo sistema produtivo. (KUENZER, 2002a, p. 50).
Sob os princpios capitalistas, o homem, na anlise marxiana,
torna-se apndice da mquina, ou seja, o que humano valorizado
medida que convertido em produtividade. Se na fbrica fordizada est
chamando-se a ateno brutalidade empreendida, vale lembrar que na
fbrica taylorista no era diferente. O prprio Taylor (1953, p. 56),
como j observado, descreve que os requisitos do operrio para carregar
lingotes manifestam tal brutalidade: ser to estpido e fleumtico que
mais se assemelhe em sua constituio mental a um boi. Alm de tais
requisitos, Taylor aponta aquilo que Smiles tambm chamava ateno
nas primeiras dcadas do sculo XIX, a indolncia natural e a
vadiagem do trabalhador. Para Smiles estas podiam ser corrigidas
individualmente pelo indivduo por meio do cultivo da moral e do

168
carter, enquanto para Taylor, a elevao salarial inibiria o
comportamento indolente do trabalhador.
Ford, por sua vez, utilizava o alto salrio como um instrumento
para selecionar os trabalhadores aptos para o
sistema de produo e de trabalho e para manter a
sua estabilidade. O industrial estava atento
forma racionalizada como estes salrios seriam
gastos. Claro que um dos principais objetivos da
elevao salarial relaciona-se com o poder de
consumo de seus operrios na aquisio de seus
produtos, mas para que os gastos fossem
direcionados e controlados, Ford tentou intervir
com um corpo de inspetores, na vida privada dos
seus dependentes, e controlar a maneira como
gastavam os salrios e o seu modo de viver,
[estes] so um indcio destas tendncias privadas
ou latentes, que podem se tornar, [...] ideologia
estatal, amparando-se no puritanismo tradicional,
apresentando-se como um renascimento da moral
dos pioneiros, do verdadeiro americanismo.
(GRAMSCI, 2004, p. 269).

Os salrios relativamente altos podem ser compreendidos, como


uma dentre muitas medidas implementadas, para domesticar, adaptar
os trabalhadores aos novos mtodos de produo e de trabalho. O
fordismo forou um novo estilo de vida, instituindo um novo tipo de
regulao social. O disciplinamento caracterstico, para configurar esse
novo modo de vida, relacionava-se a tudo aquilo que pudesse significar
dispndio de energia do trabalhador. Tratava-se de garantir que o
operrio coletivo trabalhasse. Pagar altos salrios, um dos princpios
caractersticos da relao salarial do fordismo produo em massa para
consumo de massa era, na perspectiva gramsciana, uma faca de dois
gumes. No rtulo dos altos salrios, situava-se um embuste de
mecanismos que permitem ao capital aumentar a taxa de explorao da
fora de trabalho numa proporo superior possibilitada apenas pela
intensificao do trabalho. (BRYAN, 1992).
Os industriais norte-americanos compreenderam que o
`gorila amestrado [...] continua homem [...] pensa
mais ou, pelo menos, tem maior possibilidade de

169
pensar, pelo menos quando superou a crise de
adaptao e no foi eliminado: e no s pensa,
mas o fato de que o trabalho no lhe d satisfaes
imediatas, e que ele compreenda que se quer
reduzi-lo a gorila amestrado, pode lev-lo a um
curso de pensamentos pouco conformistas.
(GRAMSCI, 2004, p. 273).

Por isso, Gramsci (2004, p. 273) afirma que o aparelho de


coero necessrio para obter o resultado desejado custaria mais do que
os altos salrios. A coero, assim,
deve ser sabiamente combinada com persuaso e
consenso, e isto pode ser obtido, nas formas
prprias de uma determinada sociedade, por meio
de uma maior redistribuio, que permita um
determinado padro de vida, capaz de manter e
reintegrar as foras desgastadas pelo novo tipo de
esforo. (GRAMSCI, 2004, p. 273).

O fordismo, concepo moderna e bem-sucedida de produo,


abalado pela Grande Depresso, mas ainda permanece como modelo
de produo e distribuio a ser resgatado pelo modelo de gesto
macroeconmico keynesiano (GURGEL, 2003, p. 103).
Foi preciso a configurao de
regulamentao para atender aos requisitos da
produo fordista; e foi preciso o choque da
depresso selvagem e do quase-colapso do
capitalismo na dcada de 30 para que as
sociedades capitalistas chegassem a alguma nova
concepo de forma e de uso dos poderes do
Estado. (HARVEY, 1992, p. 124).

Mas tal questo s foi resolvida depois de 1945.


Dos anos de 1930 a meados de 1950, foi preciso uma enorme
revoluo da relao capital e trabalho para que a indstria de
automveis, na perspectiva fordista, se disseminasse na Europa.
Por acreditar no poder corporativo de regulamentao da
economia, Ford aumentou os salrios [...] na expectativa de que isso
aumentasse a demanda efetiva, recuperasse o mercado e restaurasse a

170
confiana na comunidade de negcios. (HARVEY, 1992, p. 122). A
Depresso implicou planejamento em larga escala, alm da
racionalizao do processo de trabalho, ainda que com um trabalhador
resistente produo da linha de montagem.
Naquele contexto, Harvey (1992, p. 123) aborda que a
disseminao do fordismo enfrentou duas barreiras nos anos entreguerras, a saber:
O estado das relaes de classe no mundo se
apoiava tanto na familiarizao do trabalhador
com longas horas de trabalho puramente
rotinizado, exigindo pouco das habilidades
manuais tradicionais e concedendo um controle
quase inexistente ao trabalhador sobre o projeto, o
ritmo e a organizao do processo produtivo. [...]
a segunda barreira importante a ser enfrentada
estava nos modos e mecanismos de interveno
estatal. Foi necessrio conceber um novo modo de
regulamentao para atender os requisitos da
produo fordista.

Esta situao comprova que os princpios fordistas de


intensificao e produtividade mximas adotados com a linha de
montagem, em todos os ramos da produo em srie, criavam a sua
prpria destruio. (GURGEL, 2003, p. 103).
Com vistas a minimizar a insatisfao dos trabalhadores em um
contexto de crise - Crise de 1929 -, e com o intento de imprimir feies
humanas ao processo de trabalho, o capital passa a valer-se do
Movimento da Escola de Relaes Humanas. Dentre as teorias, chamam
a ateno as formulaes de Elton Mayo (1880-1949), que representam
uma das primeiras reaes teoria clssica da gesto (taylorismo e
fordismo). (MACHADO, 1994, p. 22). Mayo levanta a tese de que a
produtividade no trabalho est relacionada com fatores psicolgicos e
sociais.
O autor desenvolveu uma pesquisa na fbrica da Western Eletric
de Chicago para verificar a relevncia desses fatores no comportamento
do trabalhador. interessante observar que na pesquisa de Mayo
ganham destaque fatores como motivao, liderana e comunicao. No
entanto, questes como o enriquecimento no contedo do trabalho no
so consideradas nessa nova concepo dos mtodos de gesto.

171
As teorias de motivao utilizadas no mundo do trabalho visam
reestabelecer as necessidades cognitivas e afetivas do ser humano no
ambiente de trabalho como meio de naturalizar e ocultar as contradies
inerentes ao capitalismo. (TURMINA, 2005, p. 24-26).
As escolas de Relaes Humanas e Comportamentalista, como
sublinha Kuenzer (1989, p. 66), exploram, alm dos incentivos
monetrios, as motivaes psicossociais, principalmente as necessidades
de segurana, de afeto, de aprovao social, de prestgio, de autorealizao. Nessa perspectiva, pode-se compreender a adoo do
discurso de autoajuda pelos homens de negcios com vistas a
influenciar a formao de um trabalhador de novo tipo.
Essa demanda do capitalismo foi partilhada com o Estado no psguerra, no contexto do Welfare State. De acordo com Esping-Andersen
(1995, p. 73) o Estado de Bem-Estar
economicamente, significou um abandono da
ortodoxia da pura lgica do mercado, em favor da
exigncia de extenso da segurana do emprego e
dos ganhos como direitos de cidadania;
moralmente, as de justia social, solidariedade e
universalismo. Politicamente, o welfare state foi
parte de um projeto de construo nacional, a
democracia liberal, contra o duplo perigo do
fascismo e do bolchevismo. Muitos pases se autoproclamavam welfare state, no tanto por
designarem desse modo as polticas sociais,
quanto por promoverem uma integrao social
nacional.

Mais do que a ao sobre a economia, uma das consequncias


funcionais do welfare state, conforme Souza (1999, p. 5), refere-se
socializao das responsabilidades pela reproduo da fora de
trabalho, tornando pblicas relaes antes limitadas esfera privada,
fazendo com que alocaes de recursos antes decididas por critrios de
mercado sejam determinadas politicamente. Tal articulao permitiu
mudanas na forma de organizar as famlias, o que por sua vez,
aumentaria, nas palavras desse autor, cada vez mais a demanda pelos
servios do welfare state.
Como decorrncia disso,

172
o Estado promove, entre outros, a escolarizao,
as comunicaes de massa e a indstria cultural, o
pleno emprego e o consumo. Sob o ponto de vista
cultural, esses processos podem ser vistos como
agentes de secularizao da sociedade, que pem
em crise sobretudo a famlia nuclear, patriarcal e
sexista, clula fundamental da reproduo social
inspirada em critrios hierrquicos e no princpio
da autoridade. [...] os processos de emancipao e
liberao das mulheres colocam em crise a
possibilidade de continuar a descarregar sobre a
famlia e sobre a esfera privada os custos
principais da reproduo da fora de trabalho.
(VACCA, 1991 apud SOUZA, 1999, p. 5).

Implantadas as bases materiais para essa nova ordem, era


necessrio difundir novos elementos a fim de constituir um novo modo
de vida adequado ao novo padro de sociabilidade do capital.
Isso levou o fordismo maturidade como regime de acumulao,
possibilitando que este formasse a base de um longo perodo de
expanso ps-guerra que se manteve mais ou menos intacto at 1973.
(HARVEY, 1992, p. 124). Nessa linha de pensamento, Silva Jr. (2002)
conclui que, ao mesmo tempo que o Estado produz essa equilibrao,
estabelece e administra politicamente o compromisso de classes.
Dessa forma, a indstria fordizada escolhia no campo homens
que eram msculos, pulmes, estmago. (GORZ, 1968, p. 112). A
nfase estava no saber-fazer, saber este que exigiu mecanismos de
controle eficazes para que o trabalhador permanecesse sob o domnio do
capital, mantendo a passividade e a fora fsica necessrias produo.
A produo em massa tambm exigiu uma formao em massa
(GRAMSCI, 2007), demandando novos mecanismos para educar o
trabalhador.
3.2 QUALIFICAO E CONTROLE DO TRABALHADOR
Na acepo de Harvey (1992, p. 119), produo de mercadorias
em condio de trabalho assalariado pe boa parte do conhecimento,
das decises tcnicas, bem como do aparelho disciplinar, fora do
controle da pessoa que de fato faz o trabalho. A familiarizao com o
trabalho na fbrica nas primeiras dcadas do sculo XX elevou a
responsabilidade individual de cada trabalhador e com este, a

173
necessidade de controle sobre as aes de cada um no espao de
trabalho. Nesse aspecto, interessante observar o que dizia Ford (1954,
p. 78) em seu livro Minha obra e minha vida66, no qual o industrial
destaca:
Queremos sim, completa responsabilidade
individual. O operrio responde pelo seu trabalho;
o mestre responde pelos homens sob seu
comando; o contramestre responde pelo seu
grupo; o chefe de seo responde pelo seu
departamento e o inspetor geral responde por toda
a fbrica. Cada um deles deve saber o que se
passa no seu raio de ao.

Ford explica porque esse controle um procedimento que no


construdo ao acaso. Um grupo de homens que quer firmemente que
um trabalho se faa no encontra dificuldades na gerncia de sua
execuo. (FORD, 1954, p. 78). Em sua concepo, o trabalho, nica
e exclusivamente, tem a voz de comando entre ns. Este um dos
motivos porque prescindimos de ttulos. (FORD, 1954, p. 79). A
dedicao ao trabalho explicaria a aceitao dos trabalhadores dos
diversos cargos de controle por entender que ao d valor ao salrio de
cada um, ou seja, o nico objetivo deve ser entregar o trabalho feito e
receber a paga. (FORD, 1954, p. 78).
No tocante aos nveis hierrquicos de controle na fbrica, a
devoo ao trabalho com vistas ao salrio garantiria o respeito dos
trabalhadores s chefias de controle, por outro lado, Ford, enfatizava que
isso nem sempre era to tranqilo, por isso a ascenso profissional nas
fbricas construda pelo trabalhador. O homem de maior capacidade
de trabalho [...] o que vence. (FORD, 1954, p. 45). Foi dessa maneira,
de acordo com o industrial, que
nosso pessoal chegou s suas posies. O gerente
da fbrica comeou como maquinista. O diretor da
grande fbrica de River Rounge comeou como
modelador. O chefe de uma das nossas sees
mais importantes entrou como varredor. No h
na empresa um homem que no tenha vindo da
66

Minha obra e minha vida, com traduo e prefcio de Monteiro Lobato, faz parte de um
compndio publicado como Os princpios da prosperidade (1954) que contm, alm da obra
citada, outros dois livros de Henry Ford: Hoje e amanh e Minha Filosofia da indstria.

174
rua. Tudo o que temos realizado vem de homens
que se fizeram em nossa fbrica, impondo-se
unicamente pela sua capacidade. (FORD, 1954, p.
81).

O engajamento dos homens, nessas dcadas, conforme aponta


Ford, dispensava titulaes. Nossa seo de contratos no rejeita
ningum por motivo dos seus antecedentes. Venha da universidade de
Harvard ou da penitenciria de Sing-Sing, ningum lhe pedir
diplomas (FORD, 1954, p. 80). A desconsiderao pelo saber escolar
passa pela aplicao direta ao processo de trabalho, o que Ford
questionava. J na primeira dcada do sculo XX, Ford comentava sobre
suas concepes de trabalho e de educao ao questionar o ensino
tcnico. Para ele:
A escola industrial no deve ser um compromisso
entre a escola superior e a primria, mas um lugar
onde se ensine s crianas a arte de ser produtivo.
Se os alunos so postos a fazer coisas sem
utilidades, a faz-las para depois desfaz-las, no
podem sentir interesse pelo ensino. E durante o
curso fica improdutivo; as escolas, a no ser por
caridade, no conseguem assegurar a subsistncia
dos alunos. (FORD, 1954, p. 280).

Tendo como base os pressupostos citados anteriormente, foi


fundada, em 1916, a Escola Industrial Ford cujo processo de trabalho
constitua o ncleo de aprendizagem em que o desempenho na produo
representava que a prpria fbrica constitua a melhor fonte de
conhecimento. Aos olhos do industrial,
[...] a fbrica oferece mais recursos para a
educao prtica do que a maioria das
universidades. As lies de clculo so dadas nos
problemas concretos de fabricao. [...] a escola
dispe de uma oficina montada. Os rapazes vo
passando de uma mquina para outra. Trabalham
apenas em artigos de que a nossa companhia se
utiliza; mas as nossas necessidades so to
grandes que a lista compreende quase tudo o que
existe. O produto do trabalho escolar, depois de
examinado, adquirido pela Ford Motor

175
Company; o que no resiste ao exame lanado
conta de perdas da escola. (FORD, 1954, p. 284).

O ideal de escolarizao defendido por Ford revela a nfase na


formao no interior da fbrica, ou seja, no setor produtivo que levava,
alm da eficincia relativa, aos aspectos prticos a importncia para o
capital da criao de uma relao de dependncia entre os donos dos
meios de produo e os trabalhadores que destes dependem para prover
sua subsistncia.
Ford desqualificava a escola como um espao de apropriao de
conhecimentos porque no proporcionava resultados prticos. Tanto
assim, que Monteiro Lobato, no Prefcio de Os princpios da
prosperidade, obra que condensa uma srie de publicaes de Ford
(1954), ao falar do industrial, destaca:
Nasceu mecnico e jamais trocou o estudo direto
das coisas pelo estudo falaz dos livros. Educou-se
a si mesmo e vem disso grande parte de sua
vitria. Quem entope a mioleira com a vida morta
dos livros torna-se inbil para bem compreender a
vida viva das coisas humanas. Olhava com seus
olhos, pensava com seu crebro, fazia com as
mos.

A ideia do aprender fazendo, aprender trabalhando no nova.


Em 1868, o diretor da Escola Tcnica Imperial de Estradas de Ferro de
Moscou, Vitor Della-Vos, quis obter um tipo de operrio treinando em
grau mais elevado, mais uniforme, em menor espao de tempo e por
preos mais baixos. Concluiu que no conseguiu isso pelos mtodos de
aprendizado usados nas oficinas de produo ligados escola.
(BENNET, 1944 apud FRIGOTTO, 1983). Tal concepo inspirou,
como j frisada anteriormente, os estudos de tempos e movimentos de
Taylor maximizados no fordismo. O processo de aprendizagem de
Della-Vos consistiu ento na criao de oficinas de instruo onde um
mecnico perito professor iniciava
o curso dando uma aula demonstrao sobre o
primeiro exerccio da srie e fazia com que os
alunos executassem o trabalho ensinado. [...] No
momento prprio fazia a segunda demonstrao, e
depois a terceira e assim por diante at completar

176
o primeiro perodo do curso no qual o aluno
aprendia a usar todas as ferramentas. No segundo
perodo eram ensinados elementos de montagem
em trabalhos de madeira. [...] durante o terceiro
perodo o aluno prepara ele prprio seus planos e
o professor [mecnico perito] passava a agir como
superintendente. O objetivo era fazer com que
cada estudante desenvolvesse a capacidade de
iniciativas
e
seu
poder
de
assumir
responsabilidades. (BENNET, 1944 apud
FRIGOTTO, 1983, p. 41).

O prprio Ford, narrando o desenvolvimento da Ford Motor


Company, destaca sua experincia como exemplo de aprendizagem.
Esse costume de fazer uma resenha completa das experincias
infelizes, sobretudo das bem feitas, impede que os espritos moos.
(FORD, 1954, p. 67) sigam o mesmo caminho. Como viu-se tambm,
essa era a concepo difundida por Smiles ao utilizar as biografias como
estratgia na educao de jovens trabalhadores. Ao estender-se a
concepo de espaos educativos para alm dos formais, a prtica no
trabalho situada como espao privilegiado de educao. Tambm
nesse sentido, para Ford (1954, p. 79), o trabalho, nica e
exclusivamente, tem voz de comando entre ns. Este um dos motivos
porque prescindimos dos ttulos. [...] os ttulos produzem efeitos
bizarros.
Nesse sentido, o industrial dizia que nenhuma escola poder
ensinar o que vai suceder no ano seguinte, visto que instruir-se no
absorver as teorias de um bando de professores. (FORD, 1954, p. 186).
Na mesma perspectiva de Smiles, Ford acreditava que a vida que nos
educa. um erro pensar que a universidade proporcionaria
ensinamentos teis prtica do trabalho, sendo que a educao real de
um homem comea depois que ele deixa a escola. (FORD, 1954, 186187).
Em realce a essa concepo de educao, Ford (1954, p. 419)
acrescenta que os inventores, por exemplo, no so um produto de
escolas; mas se a escola os livra de incidir em erros passados, haver
grande economia de precioso tempo considerando os princpios da
produtividade e eficincia.
Ao valorizar o trabalho e no o diploma, Ford buscava o
engajamento dos homens. Configura-se a um dos mecanismos de

177
controle do trabalhador, uma vez que graas ao sistema de seleo da
nossa fbrica, estou certo que cada homem acaba por colocar-se no seu
lugar. (FORD, 1954, p. 81). Mas para que isso funcione,
uma disciplina severa rege a fbrica [...] exigimos
que os operrios executem o que lhes ordena.
Nossa organizao to especializada e to
intimamente se relacionam as partes, que nem por
um momento poderamos deixar ao operrio
liberdade de ao. Sem disciplina severa haveria
uma confuso espantosa [...] preciso que os
homens realizem um mximo de trabalho para
terem um mximo de salrio. (FORD, 1954, p.
92).

Em busca de produtividade, a aplicao de normas no


aperfeioamento da linha de montagem consistiu em trazer o trabalho ao
operrio ao invs de levar o operrio ao trabalho, o que, segundo o
industrial, resultaria na economia de pensamento e na reduo ao
mnimo dos movimentos do operrio, que, sendo possvel, deve fazer
sempre uma s coisa com um s movimento. (FORD, 1954, p. 70).
Confirmando o que dissera Marx com relao manipulao da
jornada de trabalho, Ford reduziu o dia de trabalho a oito horas,
elevando o valor da hora/homem, impondo uma intensificao do ritmo
da produo, aumentando, com isto, a produtividade a nveis antes
desconhecidos. (GURGEL, 2003). Recorda-se Gramsci (2004) em sua
anlise a respeito do modelo fordista entendido para alm dos limites da
produo e da distribuio, mas exercendo grande influncia tambm no
modo de vida americano. Mas esse modo de vida tambm encontra seus
limites e entra em crise. No era a crise de uma forma de organizar a
sociedade, mas de todas as formas. (HOBSBAWM, 1995, p. 20). Nessa
perspectiva, basta considerar, de acordo com Harvey (1992, p. 118),
todo o complexo de foras implicadas na proliferao da produo, da
propriedade e do uso de massa do automvel para reconhecer a vasta
gama de significados sociais, psicolgicos, polticos, bem como mais
propriamente econmicos.

178
3.3 NO CRITIQUE, NO CONDENE, NO SE QUEIXE:
AUTOAJUDA NA FASE UREA DO FORDISMO
De fato, a crise dos anos de 1930 s reforou a necessidade de os
empresrios insistirem no valor do trabalho como estratgia e ajuda,
contribuio de cada trabalhador, face aos ndices de desemprego,
retrao nas demandas de produo. nesse sentido que Ford (1954, p.
19) insistia no trabalho como um princpio econmico. Observa
Harvey (1992, p. 119) que
a educao, o treinamento do trabalhador, a
persuaso, a mobilizao de certos sentimentos
sociais (a tica do trabalho, a lealdade aos
companheiros, o orgulho local ou nacional) e
propenses psicolgicas (a busca da identidade
atravs do trabalho, a iniciativa individual ou a
solidariedade social) desempenham um papel e
esto claramente presentes na formao de
ideologias dominantes cultivadas pelos meios de
comunicao de massa, pelas instituies
religiosas e educacionais, pelos vrios setores do
aparelho do Estado, e afirmadas pela simples
articulao da experincia por parte dos que
fazem o trabalho.

O discurso de autoajuda do sculo XX est relacionado a esse


cidado da democracia de massas em fase de crescente competio,
consequncia do estreitamento das oportunidades e, logo, da
possibilidade de ascenso social. um discurso que promete
reconhecer o valor pessoal, tirando do anonimato o homemmassa.
A partir dos anos de 1920, a conjuntura instalada com o regime
fordista foi marcada por uma profunda crise na subjetividade
(RDIGER, 1996). Modificam-se tcnicas produtivas, impem-se
novos padres de desenvolvimento de tarefas, nova poltica de controle
e gerncia do trabalho. A acelerao da produo representa reduo do
espao e realizao do trabalhador que no se v no resultado da
produo apropriado pelo capital. Tal apropriao surge como
alienao, e a alienao como apropriao (MARX, 2002, p. 122). A
alienao, entendida por Marx como uma relao contraditria do
trabalhador com o produto de seu trabalho, torna o homem estranho a si

179
mesmo. O que no se permitia era a reduo da produtividade,
justificativa para a significativa profuso dos discursos de autoajuda
voltados s relaes de trabalho naquele perodo.
O crescimento desse gnero de literatura est ligado ao
fortalecimento da psicologia que pregava a emergncia de tecnologias
polticas que educam o cidado na desejabilidade do auto-governo.
(RDIGER, 1996). O referido movimento de autoajuda vinculado ao
apelo psicolgico do poder do pensamento positivo mantm forte
expresso nas primeiras dcadas do sculo XX com vrias publicaes
disseminando a ideia do querer poder.
Norman Vicente Peale (1898-1993) e Napoleon Hill (1883-1970),
porta-vozes do que ficou conhecido como Novo Pensamento67,
ajudaram a transformar a prtica de autoajuda em fenmeno de massas
difundindo o pensamento positivo baseado no poder da mente, na fora
do pensamento positivo. A ideia que embasa o discurso desses autores
que o pensamento cria e modifica nossa experincia no mundo, na
capacidade de transformar pensamentos em realidade. De forte cunho
religioso, mantinha-se um discurso cujo compromisso voltava-se s
necessidades da personalidade das grandes massas. (RDIGER, 1996,
p. 111). Isso fica mais compreensvel ao se saber que Peale se tornara
pastor protestante em 1932, perodo no qual os Estados Unidos viviam a
Grande Depresso. A religio passou a ser vista como uma teraputica,
reunindo muitos homens e mulheres que buscavam alento e respostas
para seus problemas. Peale, de acordo com Rdiger (1996), apropriou-se
dessa teraputica de massa em O poder do pensamento positivo
publicado em 1952. J Napoleon Hill, graas amizade com o magnata
do ao Andrew Carnegie, recebeu a tarefa de entrevistar, entre 1908 e
1928, pessoas bem-sucedidas e tentar traar denominadores comuns
explicando as causas do sucesso. Foram aproximadamente 20 anos de
pesquisa com 16 mil pessoas em que Hill levantou as atitudes que
levariam uma pessoa ao sucesso, ou seja, as causas do fenmeno da
realizao individual. Esse trabalho culminou na publicao A lei do

67

Conforme Susman (1984 apud Bosco, 2001), o movimento americano do Novo Pensamento
sintetiza as novas tendncias de literatura de sucesso. Associando a religiosidade, a psicologia
e cincias naturais (magnetismo), o Novo Pensamento apresenta a idia bsica do poder da
mente como uma emanao do Divino e, desta forma, apto a prover o indivduo em seus
desejos de sucesso ou sade. Abre-se a possibilidade da realizao do eu atravs do
desenvolvimento pessoal, ligado a um eu mstico e religioso, mas diminuindo a importncia de
uma ordem moral superior.

180
triunfo68, publicado em 1928 (HILL, 1948) e, posteriormente, Pense e
Enriquea, publicado em 1937. Marcando a difuso do pensamento
positivo, ficou muito conhecida a seguinte frase de Hill (1948): Se
minha mente consegue imaginar, ento eu consigo realizar.
Aos moldes dos livros edificantes de Samuel Smiles, com Dale
Carnegie (1888-1955) propagador dos princpios do novo ethos da
personalidade (Rdiger, 1996), que o movimento do Novo Pensamento
distingue-se pela explorao e manipulao da personalidade como um
instrumento orientado pela tcnica e no mais como fruto de uma
mentalizao positiva. Carnegie faz uma apologia sobre a importncia
das relaes pessoais no capitalismo desenvolvido. A ideia de
indivduos centrados em si prprios em competio. (BOSCO, 2001).
A proposta de Carnegie distanciou-se em parte dos
procedimentos de mentalizao, da fora do pensamento positivo,
voltando-se mais enfaticamente para o desenvolvimento da
personalidade, das relaes humanas e no emprego de tcnicas de
comunicao, ou seja, a personalidade deveria ser modelada como um
produto. O reconhecimento e o sucesso dependeriam da criao de boas
relaes humanas. (RDIGER, 1996). O sistema criado por Carnegie
funciona na forma de cursos de aperfeioamento e desenvolvimento
pessoal, com tcnicas que ensinam novos jeitos de ser no trabalho,
valendo-se do carisma pessoal na manipulao na relao com os outros.
O desenvolvimento dessa tendncia de autoajuda que sai da
crena do poder da mente est associado a Dale Carnegie, primeiro
publicista a articular os princpios do novo ethos da personalidade. O
movimento de culto personalidade e o movimento do poder do
pensamento positivo comungavam do mesmo objetivo: facilitar e
promover as necessidades dos indivduos, buscando respostas que
devem ser encontradas pelo e no prprio indivduo. A autoajuda do
sculo XX, como se v,

68
So estas as 16 atitudes caracterizadas como a lei do triunfo: Associao com outras pessoas
com o mesmo perfil de pensamento; Objetivo principal definido; Confiana em si prprio;
Hbito da economia; Iniciativa e liderana; Imaginao; Entusiasmo; Autocontrole; Hbito de
fazer mais do que a obrigao; Personalidade atraente; Pensar com exatido; Concentrao;
Cooperao; Fracasso; Tolerncia; Fazer aos outros aquilo que quer que seja feito a voc
mesmo (HILL, 1948).

181
promete o poder pessoal, que a habilidade de
mudar sua vida, de dar forma s suas percepes,
fazer com que as coisas trabalhem a seu favor [...]
a habilidade de dirigir seu prprio reino pessoal

seu
processo
de
pensamento,
seu
comportamento, a capacidade que permite voc
conseguir o que deseja. (ROBBINS, 1987 apud
RDIGER, 1996, p. 120).

Desse modo, o progresso profissional e o sonho de ascenso


passaram a exigir no apenas a capacidade de desenvolver uma
determinada performance tcnica, mas tambm a capacidade de cada
sujeito redefinir e gerenciar os sentimentos interiores e a conduta
pessoal de acordo com as expectativas de sucesso e aceitao social.
(RDIGER, 1996, p. 132).
O discurso de autoajuda representa uma resposta aos problemas
da concorrncia individual e da especializao profissional. Verifica-se
que o trabalho, na perspectiva defendida por Smiles, dotado de valores
morais, perde esse carter no sculo XX. Carnegie inaugura uma tica
da personalidade na literatura de autoajuda dos anos de 1930. Elimina a
litania do cultivo das virtudes e do carter, dando visibilidade a um
conjunto de princpios ideais voltados ao culto da personalidade, o que
estimulou os relacionamentos tecendo uma malha social69 em que as
tcnicas de comunicao e o sucesso passam a ser a capacidade de se
relacionar com as pessoas. (CERCATO, 2006, p. 28).
Na autoajuda de Smiles, o progresso profissional advinha do
esforo individual ao perseguir as evidentes boas aes e condutas
apresentadas por meio de fragmentos biogrficos, de experincias
exitosas, maneira de o indivduo sobressair em seus feitos. As virtudes
pessoais, nessa perspectiva, resgatariam a responsabilidade social
ameaada pelas necessidades do mercado: a competio e acumulao
como fim em si. (BOSCO, 2001). Na esfera do trabalho racionalizado eficincia, previsibilidade, lucratividade, produtividade o progresso
profissional estava no ajuste social, no esforo em responder s
demandas do trabalho numa progressiva valorizao da esfera privada.
Diferenciar-se passou a ser um desafio. Em tempos vitorianos, a
ascenso social fomentada por Smiles passava necessariamente pelo
69

Pode-se levantar a hiptese de que a estaria o grmen da noo de networking, capital


social, trabalhados por Minarelli (1995) para consolidar os princpios da empregabilidade, que
ser discutida no prximo captulo.

182
empenho do poder da vontade, pela persistncia aplicada ao trabalho, ou
seja, pelas virtudes morais. Nas primeiras dcadas do sculo XX, mais
adequados a uma sociedade baseada em pequenos empreendedores, a f,
a diligncia, o trabalho duro e o carter no corresponderiam a uma
sociedade de grandes corporaes com sua crescente competio e
diminuio de oportunidades de ascenso individual. (BOSCO, 2001,
p. 11).
Junto ao culto da personalidade, em especial, a partir da dcada
de 1950, assiste-se ao fortalecimento de um novo movimento, o New
age, que nutria a crena em diversas prticas espirituais, doutrina de
harmonizao do eu. Marilyn Ferguson (1980), tida como a principal
porta-voz do movimento, afirmava que a competio deveria ceder lugar
comunidade; a racionalizao deveria estar subordinada
sensibilidade; a represso deveria desarmar em favor da livre expresso
do corpo. Dizia ela que, a busca do sucesso bloqueia a abertura de
relacionamentos, a questo seria a abertura a um estado de esprito.
Em 1960, Michael Murphy e Richard Price, valeram-se desse
pensamento fundando um movimento de revoluo da conscincia,
criando o Instituto Esalen nos Estados Unidos, a partir do qual surgiram
clnicas e programas de crescimento pessoal e desenvolvimento do
potencial humano. Nos anos de 1970, a propaganda em favor do
exerccio do pensamento positivo e do desenvolvimento da carismtica
individual foi contaminada pelas valoraes que distinguiam
moralmente o carter que cede lugar para: um programa psicolgico
dirigido no sentido da construo do poder pessoal e do saneamento dos
problemas interiores. O objetivo principal transformar o indivduo em
pessoa de sucesso - crena no self-made-man e no darwinismo social.
(RDIGER, 1996).
O discurso difundido na literatura de autoajuda nas primeiras
dcadas do sculo XX expressou, sem dvida, preocupaes centradas
na orientao de padres de vida adequados ordem social dominante.
Sobressair em tempos de cultura de massa constitua grande desafio
individual. nesse sentido que Carnegie torna-se um autor
representativo desse perodo nutrindo essa preocupao nas relaes de
trabalho. Apoiado, da mesma forma que Smiles, em biografias,
fragmentos destas, sistematiza uma srie de princpios, sua Frmula
Mgica para resolver situaes aflitivas.

183
Desde os anos de 1930, pode-se falar da atualidade de Carnegie
com sua tica da personalidade mantida graas a um sistema que
ensina tcnicas de desenvolvimento pessoal utilizando CDs, filmes,
livros, palestras motivacionais (CERCATO, 2006). Depois de sua
morte, a famlia Carnegie mantm ativo o Instituto Dale Carnegie
Training localizado nos principais estados e cidades do Brasil. Este
funciona por meio de cursos in company, treinamentos, seminrios de
liderana, comunicao, vendas.
Desse modo, visando conhecer mais a respeito dos escritos do
referido autor, empreendeu-se uma anlise das principais publicaes70,
buscando evidenciar as concepes de homem, sociedade/mundo,
trabalho e educao difundidas para influenciar pessoas nas relaes de
trabalho imprimindo novos modos de ser e agir.
Ttulo

1. Edio

Pas

Como fazer amigos e influenciar


pessoas

1936

EUA

Como falar em pblico e influenciar


pessoas no mundo dos negcios

1981

EUA

Como venceram os grandes homens

s.d

EUA

Como evitar preocupaes e comear a


viver

1948

EUA

Como desfrutar sua vida e seu trabalho

1975

EUA

Quadro 4 Seleo de livros de Dale Carnegie. Elaborao prpria.

3.3.1 Um modelo que se generaliza: um pouco sobre Dale


Carnegie71
Carnegie nasceu em Maryville, nos Estados Unidos. Trabalhou
como vendedor para a "Armorur and company" por dois anos e meio.
Mudou-se para Nova Iorque em 1911 para estudar na Academia
Americana de Artes Dramticas. Aps ter representado alguns papis,
70

As cinco publicaes analisadas no presente estudo sero referenciadas pelo ano de edio
do qual se tem acesso.
71
As informaes aqui apresentadas foram publicadas na ltima edio do Dale Carnegie
Newsbreak, jornal de circulao gratuita em Braslia, em 11 de fevereiro de 2009, sob o ttulo,
Registros que viraram histria.

184
abandonou a carreira de ator e decidiu que daria aulas de oratria em
escolas noturnas em busca de tempo livre para dedicar-se leitura,
preparao de palestras, escrita de romances e contos, j que seu desejo
era "de viver para escrever e escrever para viver". Sua primeira palestra
foi na Young Mens Christian Associations em outubro de 1912. Num
curto perodo de tempo, Carnegie j estava desenvolvendo o seu prprio
curso, e escrevendo panfletos que seriam publicados como livros.
Depois de ter servido no exrcito na Primeira Guerra Mundial, ele
conduziu o "tour" das palestras de Lowell Thomas. Em seguida,
conduziu o seu prprio "tour" a fim de promover suas ideias acerca do
sucesso valendo-se da oratria. No incio dos anos de 1930, passou a ser
conhecido por seus livros e por um programa de rdio, quando publicou
Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, ganhando sucesso imediato
e tornando-se um dos maiores best-sellers de todos os tempos. Tal fato
foi o suficiente para tornar-se um orador e um escritor: comeou a ter
colunas em jornais e criou o Instituto Dale Carnegie, destinado a
desenvolver a comunicao eficaz e relaes humanas, com filiais em
todo o mundo.
Dale Carnegie o responsvel pela produo de uma vasta
literatura cujo propsito fornecer diversas frmulas prticas,
sistematizadas em princpios, para resolver situaes adversas na
construo de trajetrias profissionais. Para tanto, o autor indica
caminhos para a prosperidade e o sucesso. semelhana de Smiles,
suas publicaes resultam de experincias de longos anos de cursos e
palestras, que, no caso de Carnegie, refere-se arte de falar em pblico,
um dos aspectos essenciais de sua literatura. Assim como Smiles,
recebeu convite dos trabalhadores para ensin-los, comeando sua
carreira falando para comerciantes que desejavam exprimir-se com mais
facilidade e autoconfiana. Estes, de acordo com Dorothy Carnegie, sua
esposa, no estavam dispostos a gastar tempo e dinheiro no estudo
mecnico da palavra, dico, regras de retrica e arte da gesticulao.
(CARNEGIE, 2006). O desejo era de um curso eminentemente prtico,
caracterstica exaltada por Carnegie, que via em suas aulas uma
proposta para conquista de xito imediato. O autor estaduninense
abordava o falar em pblico no como uma das belas-artes que exigiam
talentos e aptides especiais, mas como uma habilidade que qualquer
pessoa normalmente inteligente pode adquirir e desenvolver sua
vontade. (CARNEGIE, 2006, p. 11).

185
Carnegie ministrou seu primeiro curso em 1912 a pedido da
Associao Crist de Moos, em Nova York. Naquele momento, visava
formao de oradores e gigantes da tribuna, do tipo eloqente. A
partir das experincias em seus cursos, o autor publicou, em 1936,
Como fazer amigos e influenciar pessoas72. Esta, que constitui sua
principal obra, ganhou ampla repercusso na histria da editorao
como um dos best-sellers internacionais com grande tiragem de venda,
inicialmente com cinco mil exemplares chegando atualidade em sua
51. edio. A esse respeito, Wood Jr. (2005), em resenha do livro,
levanta a hiptese de que este seria a clula-tronco, a matriz
gentica dos livros de autoajuda empresarial. Destaca ainda que os
preceitos contidos no livro venceram as fronteiras do espao e do
tempo. Alcatias de vendedores de enciclopdia e de softwares
integrados de gesto continuam recorrendo aos seus conselhos.
(WOOD Jr., 2005, p. 59). Nessas circunstncias, considera-se a
atualidade de Dale Carnegie exercendo influncia no mundo dos
negcios.
Tamanho sucesso e repercusso tambm devem-se estrutura
criada para disseminar suas ideias a respeito de como se relacionar no
trabalho. Em 1912, Dale criou o Curso Dale Carnegie com o objetivo de
mostrar que a atitude com que encaramos o trabalho pode determinar
que nossos dias sejam tomados pelo entusiasmo e pela sensao de
realizao resultantes de um timo desempenho ou ento, por
frustrao, tdio e cansao. (CARNEGIE, 2000, p. 10). Rdiger (1996,
p. 115) salienta que a valorizao da capacidade oratria e a vocao
para o magistrio levaram Dale a dedicar-se vitoriosamente ao ensino
da comunicao, relaes humanas, sucesso nos negcios, atravs da
criao de centros e cursos de treinamento espalhados por mais de 60
pases, considerando diversos Estados brasileiros. Alm de seu principal
72

A estrutura do livro Como fazer amigos e influenciar pessoas permite fcil leitura, fcil
apropriao graas ao vasto nmero de exemplos relacionados. Antes mesmo da entrada do
ndice, h uma pgina cujo titulo : Oito coisas que este livro pode fazer por voc, guia de
como se apropriar das ideias que seguem. No ndice constam dois prefcios, um escrito por sua
esposa Dorothy e outro escrito pelo autor. H tambm uma breve referncia biogrfica sobre
Dale escrita por Lowall Thomas em 1936. Alm destes, consta Como e por que este livro foi
escrito, em que Dale relata um pouco das experincias iniciais em cursos para negociantes e
comerciantes em Nova York. Finalmente, Nove sugestes para conseguir extrair o mximo
deste livro, no qual prescreve dicas para uma melhor apropriao dos preceitos apresentados. O
livro, em sua estrutura geral, divide-se em quatro partes: Tcnicas fundamentais para
influenciar pessoas; Seis maneiras de fazer as pessoas gostarem de voc; Como conquistar as
pessoas para o seu modo de pensar; e Seja um lder: como modificar as pessoas sem as ofender
ou provocar ressentimentos.

186
best seller outra de suas publicaes tornou-se sucesso de vendas: Como
evitar preocupaes e comear a viver73. Outros ttulos merecem
referncia pela repercusso e nmero de edies atuais: Como falar em
pblico e influenciar pessoas no mundo dos negcios e Como desfrutar
sua vida e seu trabalho74, este ltimo contempla trechos selecionados
dos dois principais best sellers de Dale, alm de, Como venceram os
grandes homens constitudo, essencialmente, de excertos biogrficos.
Conforme afirma Dorothy (2000, p. 6) no prefcio de Como
desfrutar sua vida e seu trabalho,
participar de um treinamento de Dale Carnegie
uma aventura no processo de descoberta de si
mesmo; e este poder ser um momento decisivo
em sua vida. Voc j possui habilidades inatas, as
quais poderiam tornar-lhe a vida gloriosa. Tudo de
que voc precisa agora determinao para
descobri-las e utiliz-las.

Tais habilidades esto relacionadas ao movimento do novo ethos


da personalidade do qual Dale, na opinio de Rdiger (1996), foi o
primeiro publicista a articular esses princpios nas relaes humanas.
3.3.2 Mobilizar pessoas para um novo modo de pensar e agir
Verifica-se que a literatura de autoajuda de Carnegie
especializou-se em desenvolver a oratria, um discurso pelo qual se
influencia, convence e manipula as pessoas. Objetiva-se desenvolver a
habilidade de falar em pblico, a capacidade, a habilidade de mobilizar
pessoas mudando comportamentos, condutas para um novo modo de
pensar, sentir e agir nas relaes humanas. A comunicao a chave
para conseguir que outros pensem e ajam de maneira favorvel ao que se
deseja. O discurso permite convencer uma pessoa a aderir ou a
desconsiderar uma ideia. Por isso, continua-se insistindo na literatura
dos modelos sociais, a exemplo do sculo XIX. A partir das dcadas de
1930 at meados dos anos de 1950, Carnegie exerceu grande influncia
73

Como evitar preocupaes e comear a viver vendeu mais de 15 milhes de exemplares e foi
publicado em 36 idiomas, desde a sua primeira publicao em 1948.
74
Como desfrutar sua vida e seu trabalho um livro composto de fragmentos de Como fazer
amigos e influenciar pessoas e Como evitar preocupaes e comear a viver publicados aps a
morte de Dale Carnegie, em 1955, por Dorothy e Donna Carnegie, em 1975.

187
na formao de comerciantes, negociantes, vendedores e outros
profissionais os homens de negcios - que queriam melhorar ou
exercer influncia nas relaes de trabalho.
Como lembra Carnegie (2006, p. 210), o processo de
comunicao afeta a relao do indivduo com os seus colegas de
trabalho, consequentemente, a qualidade de suas atividades. Como
vendedores, gerentes, balconistas, chefes de departamentos, professores,
sacerdotes, enfermeiras, executivos, mdicos, advogados, contadores e
engenheiros, temos todos ns o encargo de explanar reas especializadas
do conhecimento e dar instrues profissionais. O que est em jogo
nessa relao no o assunto em si, mas a maneira como algum
fala. (CARNEGIE, 2006, p. 162). Para desenvolver essa habilidade,
Carnegie acredita que o treinamento do lado humano do sucesso
suficiente para formar indivduos, transformando-os em lderes.
(CARNEGIE, 2006). Por isso, seus livros esto repletos de frmulas
mgicas indicando receitas e vrios passo a passo de como se deve
proceder para obter sucesso ao falar em pblico. Alis, no so os
problemas sociais que importam, mas sim, a maneira como se fale sobre
estes, a linguagem empregada, colocando em relevo que o trabalho de
um lder inclui a modificao de atitudes e comportamentos, ou seja, o
modo como se v o mundo condiciona o modo como se age sobre ele.
3.3.3 Serenidade para aceitar as coisas que no posso
mudar: concepo de sociedade/mundo de Carnegie
No prefcio de Como fazer amigos e influenciar pessoas,
Dorothy Carnegie (1995, p. 14) escreve que o livro tocou num nervo e
preencheu uma necessidade humana que estava alm de uma simples
moda gerada pelos dias que sucederam Depresso, permitindo refletir
sobre as mudanas que o mundo [vinha] sofrendo desde a dcada de
30. Num perodo em que os Estados Unidos buscavam reverter altos
ndices de desemprego e minimizar os efeitos da Crise de 1929, Lowell
Thomas, famoso jornalista nos anos de 1930, no prefcio do livro, conta
que em 1935, em Nova York durante um perodo de crise, com 20% da
sua populao recebendo auxlio dos cofres pblicos; 2.500 pessoas
deixaram seus lares e correram para o Hotel Pensilvnia atendendo ao
convite do anncio Aprenda a falar eficazmente: prepare-se para
dirigir. Dentre o pblico que atendeu a esse convite, estavam
dirigentes, empregadores e profissionais.

188
Carnegie (1995, p. 30) entendia que um dos problemas a se
enfrentar na sociedade era o trato com as pessoas visto como o maior
problema que o indivduo tem a encarar. Por isso, os princpios
apresentados em Como fazer amigos e influenciar pessoas, na defesa do
autor, no eram meras teorias ou conjeturas [...] trabalham como um
mgico [...] tenho visto a aplicao destas normas revolucionar
literalmente a vida de muita gente. Corroborando com essa viso,
Dorothy afirmava que Dale destacava que, como nunca, numa
atmosfera internacional cheia de tenses, medo e insegurana, [era
preciso] manter abertos os canais de comunicao entre os povos.
(CARNEGIE, 2006, p. 12). Negcios, vida social e satisfaes pessoais
dependem grandemente da capacidade de uma pessoa comunicar aos
semelhantes aquilo que ela , o que sente e em que acredita.
(CARNEGIE, 2006, p. 12). Esses aspectos, se bem trabalhados pelo
indivduo o habilitariam a transitar num mundo em crise. Por qu?
Porque a fala [pode] conduzir ao, afirmava Carnegie (2006, p. 12).
Um aspecto interessante a ser mencionado est descrito em Como
falar em pblico e influenciar pessoas no mundo dos negcios. Neste,
Dale conta que, aps a Primeira Guerra Mundial, estava em Londres
trabalhando com Thomas Lowell numa sequncia de palestras e, numa
de suas folgas, foi ao Hyde Park, local em que oradores de todos os
credos, cores e convices polticas e religiosas podiam verbalizar suas
opinies sem a interferncia da lei. (CARNEGIE, 2006, p. 77). Havia
vrios crculos de pessoas ouvindo diversos oradores, cada qual
reunindo uma pequena multido. Dale parou para escutar um catlico
explicando a doutrina de infalibilidade do Papa, deslocou-se nas
proximidades em uma multido e prestava ateno ao que tinha a dizer
um socialista sobre Karl Marx, alm de passar por outro grupo, cujo
orador falava sobre a poligamia. (CARNEGIE, 2006). Nesse passeio, o
que chamou a ateno de Dale no se ateve aos contedos das falas de
cada orador, mas como estes atraiam e mantinham a ateno do pblico.
Os dois primeiros oradores falavam sobre seus pontos de vista [...] com
vida e com alma, seus braos se moviam, em gestos apaixonados.
(CARNEGIE, 2006, p. 78). A explanao acentua que a vitalidade,
vivacidade, entusiasmo so as primeiras qualidades [...] essenciais de
um orador. (CARNEGIE, 2006, p. 78). Dale preocupou-se em destacar
a necessidade de prender a ateno do pblico exercitando essas
qualidades minimizando a importncia daquilo que vai ser dito. O que
importa de que maneira as palavras so proferidas. Nesse caso,
Carnegie (2006, p. 103) assinalava que o objetivo ou finalidade de uma

189
fala, quer o orador perceba ou no, tm desses quatro objetivos. Quais
so eles: persuadir ou conduzir ao; informar; impressionar ou
convencer; entreter.
Para o escritor estadunidense, o mundo da televiso americana
chama mais a ateno do que quaisquer situaes relacionadas s
questes sociais. A mdia televisiva vista como um mundo exigente
e, a cada temporada, animadores de alta cotao caem sob os fogos
fulminantes da competio. (CARNEGIE, 2006, p. 98, sem grifos no
original). Esse mundo a televiso representava um espao de
investimento em impressionar e convencer. Ainda que essa seja a
preocupao latente em Carnegie perpassando toda a sua literatura, com
a publicao de Como evitar preocupaes e comear a viver, em 1948,
o autor conta, em um dos captulos do livro, como seus pais dominaram
as suas preocupaes delegando f, religio grande parte da situao
de conforto que as palavras da bblia traziam famlia. Ressalta o autor
que no perodo de crise, em mdia, nos Estados Unidos h um suicdio
em cada trinta e cinco minutos. Em mdia, enlouquece algum em cada
cento e vinte segundos [...] a maior parte desses suicdios podiam ser
evitados se essa gente tivesse conhecido o alvio e a paz que se
encontram na religio e na prece. (CARNEGIE, 1994, p. 204).
Carnegie dizia que tal situao podia ser confirmada ao se
considerar a entrevista que realizou com Henry Ford nos anos de 1942
na qual:
Esperava encontrar, no seu aspecto, demasiados
sinais de tenso dos longos anos que passara
construindo e dirigindo uma das maiores
indstrias do mundo. De modo que me
surpreendeu verificar o seu aspecto calmo e
tranqilo, aos setenta e oito anos. Quando lhe
perguntei se nunca se preocupava, respondeu-me:
No, nunca. Creio que Deus dirige todos os
nossos problemas, e acho que ele no precisa de
conselhos nossos. Com o auxilio de Deus, tenho a
certeza de que tudo acaba bem. Se assim , para
que nos preocuparmos? (CARNEGIE, 1994, p.
199).

Para acalmar as aflies, Carnegie (1994, p. 200) dizia que os


psiquiatras esto a transformar-se em evangelistas modernos. Isso

190
constitui uma verdade para o autor apontando que William James, o pai
da psicologia moderna, escreveu ao seu amigo Thomas Davidson,
dizendo-lhe que, medida que os anos passavam, via-se cada vez mais
impossibilitado de continuar o seu caminho sem Deus. Nessa linha de
pensamento, Carnegie (1994, p. 201) relata a histria de uma mulher,
que dizia: Durante a crise, a mdia do salrio de meu marido era
dezoito dlares semanais. Muitas vezes nem com isso podamos contar,
porque ele no ganhava quando estava doente A histria dessa mulher
extensa e Carnegie se vale dela para afirmar que a prece a mais
poderosa energia que podemos gerar, ela o instrumento que: Ajudanos a transformar em palavras o que nos perturba [...] a prece pe em
execuo o princpio ativo de fazer. (CARNEGIE, 1994, p. 215).
Esse princpio ativo no pressupe participao dos indivduos
nas discusses poltico-sociais de sua poca, mas evidencia que o
homem no feito para compreender a vida, mas para viv-la.
(CARNEGIE, 1994, p. 198), o que pressupe ao.
A referida ao est voltada persuaso, a impressionar e
convencer outras pessoas. A esse respeito, Carnegie (1994, p. 146)
destaca que as demandas do comrcio moderno e a casualidade
corrente com que a moderna comunicao oral levada a efeito tornam
imperativa a necessidade de termos capacidade de mobilizar nossos
pensamentos rapidamente e verbaliz-los fluentemente. Como grande
parte de seu pblico era composta de negociantes e comerciantes, a
oratria o caminho pelo qual se materializava um saber-fazer por meio
de uma linguagem perspicaz que visava implantar a idia em suas
mentes e evitar o surgimento de idias opostas e contraditrias. Quem
tiver habilidade em assim proceder tem o poder da fala e de influenciar
outras pessoas. (CARNEGIE, 1994, p. 144).
Uma frase, ao final do livro Como evitar preocupaes e
comear a viver, ajuda a compreender que o objetivo central de Dale
Carnegie em sua literatura, modificar comportamentos, condutas,
modos de ser e viver no mundo sem que, para isso, o mundo precise
mudar: Conceda-me, Deus, a serenidade para aceitar as coisas que no
posso modificar, a coragem para modificar as coisas que posso, e a
sabedoria para conhecer a diferena. (CARNEGIE, 1994, p. 352).

191
3.3.4 Aprendemos fazendo: concepo de trabalho e
educao
Em Como fazer amigos e influenciar pessoas, alm do prefcio
de Dorothy Carnegie consta, em suas pginas iniciais um breve relato
intitulado Rumo certo distino no qual Thomas Lowell indaga por
que, em perodo de crise, em 1935, 2.500 homens e mulheres se
propuseram a participar de um curso Carnegie. Por que se tornava
mister mais educao devido crise? Segundo ele, aparentemente
no, pois tais cursos j eram dados em casas cheias na cidade de Nova
York nos ltimos 24 anos. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995,
p. 17). Para Lowell, no resta dvida que o fato de virem, estes
homens, que deixaram as escolas primrias, secundrias e alguns at as
superiores, dez ou vinte anos atrs, procura de tal treinamento, uma
prova evidente das chocantes deficincias do nosso sistema de
educao. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 17).
A partir dessa constatao, o jornalista explica que, em anos
anteriores se pesquisou sobre o que desejavam estudar os adultos. Esse
tema norteou uma pesquisa que incluiu a Universidade de Chicago, a
Associao Americana para a Educao de Adultos e as escolas da
A.C.M. Esta pesquisa durou aproximadamente dois anos e revelou o que
os adultos realmente desejavam aprender: [...] apenas sugestes que
possam empregar imediatamente nos contatos comerciais, sociais e no
lar. (LOWELL, 1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 19). De acordo com
Lowell (1936 apud Carnegie, 1995, p. 18), os encarregados da pesquisa,
buscando um livro didtico que pudesse auxiliar os adultos na soluo
dos problemas dirios no seu convvio humano, viram que tal livro
jamais fora escrito. Para o jornalista, este fato explica facilmente a
razo por que 2.500 adultos se comprimiam no grande salo de bailes do
Hotel Pensilvnia, atendendo apenas a um simples anncio de jornal. A,
oferecia-se o que h muito eles buscavam. (LOWELL, 1936 apud
CARNEGIE, 1995, p. 18).
Nessa palestra, muitas das pessoas que participavam no viam o
interior de uma escola havia mais de trinta anos. [...] queriam resultados.
E queriam rapidamente resultados que pudessem aplicar no dia seguinte
nos encontros comerciais ou diante de outros grupos. (LOWELL, 1936
apud CARNEGIE, 1995, p. 27). Dessa forma, Carnegie ajudou homens
e mulheres de negcios a desenvolver suas possibilidades latentes, criou

192
um dos mais significativos movimentos na educao dos adultos.
afirmava LOWELL (1936 apud CARNEGIE, 1995, p. 28).
Nessas circunstncias, Carnegie esclarece porque escreveu Como
fazer amigos e influenciar pessoas. Aps a pesquisa recentemente
mencionada, por experincia prpria [...] eu mesmo andei, anos a fio,
procurando descobrir um manual prtico e exeqvel sobre relaes
humanas (CARNEGIE, 1995, p. 31). Por isso o livro composto de
princpios que conduzem ao, considerando que o grande objetivo
da educao, afirmou Herbert Spencer, no o saber, mas a ao.
(CARNEGIE, 1995, p. 35).
Mas o que significa aprender, para Carnegie? Em referncia a
Bernard Shaw (1856-1950), o qual dizia que, se ensinardes alguma
coisa a um homem, ele nunca aprender. (SHAW, s.d apud
CARNEGIE, 1995, p. 38), Carnegie afirmava que o aprender um
processo ativo. Aprendemos fazendo. (CARNEGIE, 1995, p. 38). O
encmio ao saber-fazer alinha-se ideia de ao, uma ao que se daria
no desenvolvimento de discursos. Os anos de 1930 marcam a difuso
dos cursos e publicaes de Carnegie pelos Estados Unidos. Tal
expanso comeou a incomodar o autor devido ao grande nmero de
participantes em cada grupo. A linha organizacional seguida pelos
oradores desde os tempos de Aristteles (mtodo de introduo,
contexto e concluso) previa um tempo mnimo de dois minutos para os
pronunciamentos dos membros de uma turma. (CARNEGIE, 1995).
Esta limitao de tempo atendia to-somente ao objetivo de entreter e
informar, mas o objetivo de Carnegie era conduzir ao, o que tornava
o mtodo at ento aplicado, ineficiente. Desse amlgama de
experincia e de crebros, espervamos conseguir uma nova abordagem
organizao do discurso, que fosse concisa e ao mesmo tempo
refletisse a necessidade de nossa poca quanto a um mtodo lgico e
psicolgico para influenciar os ouvintes, levando-os a agir.
(CARNEGIE, 1995, p. 106, sem grifos no original).
Sem modstia, Carnegie destaca que desenvolveu um sistema de
auto-anlise, auto-educao, e por isso, muitas vezes inclino-me a darme os parabns depois de um dos cursos. (CARNEGIE, 1995, p. 39).
Surgiu, ento, a Frmula Mgica para a estrutura de uma fala. Essa
frmula mgica desenvolvida pelo publicista consistia em:
Simplesmente isto: comece o seu pronunciamento
dando-lhes detalhes do seu Exemplo, um

193
incidente que ilustre graficamente a idia que
voc deseja levar a bom termo. Em segundo lugar,
com expresses claras e concisas, apresente o seu
Objetivo, dizendo exatamente o que voc deseja
que o auditrio faa: em terceiro lugar, apresente
sua Razo, isto , esclarea as vantagens e
benefcios a serem obtidos pelo ouvinte, se fizer
aquilo que voc pediu que faa. (CARNEGIE,
1995, p. 107).

A partir dessa frmula mgica, possvel entender a dica


preciosa do autor para iniciar a leitura de seu best seller, uma vez que o
leitor estar seguindo um processo educacional que to empolgante
como inestimvel. (CARNEGIE, 1995, p. 39). O livro considerado
pelo autor como um dirio um dirio no qual se devem anotar todos
os seus triunfos na aplicao de tais princpios75. (CARNEGIE, 1995,
p. 39). Esse processo educacional apoia-se na fora do exemplo para
dar incio a um processo de convencimento, de influncia. A referida
frmula, na acepo de Carnegie (1995, p. 107), est altamente
ajustada ao nosso apressado sistema de vida atual. Explica o autor que
os auditrios no esto interessados em apologias ou em desculpas,
reais ou imaginrias. O que eles querem ao. (CARNEGIE, 1995, p.
107).
Desse modo, seus ensinamentos so eminentemente prticos.
Carnegie no fez mais do que aplicar os princpios do condicionamento
operante de B. F. Skinner (1904-1990). O psiclogo exerceu grande
influncia na concepo de educao do publicista. Segundo o prprio
autor:
Skinner, o mundialmente famoso psiclogo,
atravs de seus experimentos demonstrou que um
animal que recompensado por bom
comportamento aprender com maior rapidez e
reter o contedo com muito maior habilidade que
um animal que castigado por um mau
75
Destacam-se alguns dos princpios aos quais Carnegie (1995) refere-se: No critique, no
condene, no se queixe; Faa um elogio honesto e sincero; Desperte na outra pessoa um
ardente desejo; Sorria; Seja um bom ouvinte, incentive os outros a falar sobre eles mesmos; O
melhor meio de vencer uma discusso evit-la; Se errar, reconhea o erro imediatamente e
com nfase; Procure honestamente ver as coisas pelo ponto de vista alheio; Mostre-se
simptico s ideias e desejos alheios; Lance um desafio; Fale de seus prprios erros antes de
criticar os das outras pessoas.

194
comportamento. Estudos recentes mostram que o
mesmo se aplica ao homem. Atravs da crtica
no operamos mudanas duradouras e amide
ocorre o ressentimento. (CARNEGIE, 1995, p.
46).

A partir dessa concepo associada a uma variedade de exemplos,


Carnegie deriva o primeiro princpio na educao do indivduo: No
critique, no condene, no se queixe. (CARNEGIE, 1995, p. 58, sem
grifos no original). Aqui possvel dizer que esse princpio tal como foi
expresso extremamente adequado conformao de uma populao
que precisa voltar-se para si, conformando-se num contexto de intensa
crise, ao mesmo tempo que precisa dedicar-se ao trabalho com
coragem, calma e destreza. (CARNEGIE, s.d, p. 66).
A influncia behaviorista em Carnegie expressa-se em suas lies
de como tratar as pessoas, visto que aes que visam crtica situao
vivida so desestimuladas na perspectiva de educar. O mais importante
prestar ateno na mais profunda das solicitaes humanas [...] [que]
o desejo de ser importante. (DEWEY76, s.d apud CARNEGIE, 1995, p.
59). Corroborando com esse pensamento, Carnegie conta que
foi o desejo de ser importante que levou um
empregado num armazm, pobre e sem ilustrao,
a estudar alguns livros de direito que encontrara
no fundo de uma barrica de objetos pessoais
descartados e que comprara por cinqenta
centavos. Voc, por certo, j ouviu falar deste
empregado de armazm. Chamava-se Lincoln
[presidente dos Estados Unidos]. (CARNEGIE,
1995, p. 61).

O desejo visto por Carnegie como a fora de vontade necessria


para inspirar o indivduo ao, por isso, destaca que a histria est
76

Shook (2002) faz um panorama sobre os pioneiros do pragmatismo americano, destacando


que, poca de Dewey, alguns reformadores da educao acreditavam que os estudantes no
precisavam dos contedos transmitidos na escola, uma vez que a grande maioria estava
destinada ao trabalho na indstria. Prevalecia a mxima taylorista de separao entre os que
pensam e os que executam. Dewey preocupava-se com as fontes do conflito social em uma
democracia, e por isso, a educao era vista como formadora de um indivduo adequado e
adaptado, sendo a adaptao e a resoluo de conflitos uma tarefa social, mas de cunho
individual.

195
cheia de exemplos [...] de pessoas famosas lutando para se sentirem
importantes. (CARNEGIE, 1995, p. 62). Nesse aspecto, apresenta-se o
segundo princpio elaborado pelo publicista: Faa um elogio honesto e
sincero. (CARNEGIE, 1995, p. 71, sem grifos no original). Isso seria
possvel graas ao incentivo valorizao em detrimento a crtica. Esta
constitui uma virtude que pode ser desenvolvida. Carnegie busca nas
ideias do filsofo Emerson, muitas sentenas no intuito de reforar sua
linha de pensamento, no que diz: Todo homem que encontro superior
em alguma coisa. E nesse particular eu aprendo dele. (EMERSON, s.d
apud CARNEGIE, 1995, p. 72).
A respeito da relao entre ao e vontade, Carnegie, valendo-se
do psiclogo e filsofo William James (1842-1910), enfatiza:
A ao parece acompanhar a sensao, mas, na
realidade, ao e sensao andam juntas; e
regulando a ao, que est sob o mais direto
controle da vontade, podemos indiretamente
regular a sensao, que no o est. Deste modo, o
soberano e voluntrio caminho para o bom humor,
se o nosso foi perdido, proceder alegremente,
agindo e falando como se o bom humor j
estivesse l. (JAMES, s.d apud CARNEGIE,
1995, p. 112).

Carnegie acredita que o controle dos pensamentos no dependeria


de condies externas, mas sim, de condies internas do indivduo.
Assim, no bom ou mau, disse Shakespare, nosso pensamento o
que faz. (SHAKESPEARE, s.d apud CARNEGIE, 1995, p. 113).
Partilhando dessa afirmao, Carnegie desconsidera a realidade
material, a produo das condies objetivas de vida. Por isso, ao
concordar com o pensamento de que a maioria dos povos to feliz
como arquiteta ser nos seus crebros. (LINCOLN, s.d apud
CARNEGIE, 1995, 113), Carnegie no faz mais que dizer ao seu
pblico que possvel educar a mente, entendendo, desta forma, que o
pensamento a respeito de algo, de um acontecimento, situao mobiliza
e determinada uma ao77. Tenha sempre no pensamento a pessoa
capaz, importante e til que deseja ser e tal pensamento, a cada hora, o
transformar neste indivduo particular. (CARNEGIE, 1995, p. 114).
77

Nesse sentido, tambm Ford afirmava (1954, p. 427): O pensamento no ligado ao [...]
se torna mrbido.

196
Essa mudana est relacionada aos padres de pensamento. Ao mudar o
modo de pensar individual, possvel conquistar as pessoas para o seu
modo de pensar. (CARNEGIE, 1995, p. 155). Como isso possvel?
Utilizando-se de exemplos.
3.3.5 Modelos de excelncia: a pedagogia de Carnegie
Em Como venceram os grandes homens, Carnegie, assim como
Smiles, utiliza-se de um nmero significativo de fragmentos biogrficos
de homens notveis. Por meio destes, possvel apreender elementos
que indicam a concepo de Carnegie a respeito da relao trabalho e
educao e o papel da escola neste aspecto. Inicialmente, s primeiras
pginas do livro, o autor faz referncia a Bernard Shaw, acentuando que
sua vida cheia de contrastes marcantes e notveis. Sua instruo
escolar no foi alm de cinco anos [...] tornou-se um dos mais ilustrados
escritores contemporneos e recebeu a maior honra a que se pode um
escritor aspirar, o Prmio Nobel para Literatura. (CARNEGIE, s.d, p.
5).
Carnegie tambm destaca o mrito de George Marshall, general
do exrcito norte-americano na dcada de 1920, na conduo de suas
aes. Tratava-se de um homem com habilidade para executar uma
quantidade incrvel de trabalho, sem cansao fsico ou nervoso.
(CARNEGIE, s.d, p. 24). Valorizado pela sua inclinao para a
liderana, Marshall lembrado por Carnegie que, sistematizou alguns
princpios em referncia s suas aes: Primeiro: Ele nunca l
relatrios pormenorizados, apenas os resumidos e condensados,
fazendo referncia economia de tempo. Segundo: Treinou-se a ler
rapidamente, a concentrar-se inteiramente e a chegar a decises com
rapidez, sinalizando a repetio como parte de uma aprendizagem
eficiente. Terceiro: Quando toma uma deciso militar, nunca perde
inutilmente tempo e energia revisando-a. (CARNEGIE, s.d, p. 24-25).
Destes princpios possvel identificar a mxima taylorista-fordista da
eficincia e produtividade, alm de uma aprendizagem vinculada ao
saber-fazer. Marshall exemplo, ilustrao de sua disciplina pessoal.
Forou a si prprio deixar de fumar. (CARNEGIE, s.d, p. 25). Esse
feito, aos olhos de Carnegie, coloca Marshall como um homem de
negcio apto a se colocar junto a Csar e apontar o caminho.
(CARNEGIE, s.d, p. 25).

197
Noutra ilustrao admirvel, pode-se aventar o exemplo do
General Claire Chennault, do qual Carnegie destaca o desenvolvimento
de qualidades que o tornaram um importante lder militar. No rol de
qualidades deste esto: iniciativa, coragem, originalidade, raciocnio
rpido e tiro certeiro. (CARNEGIE, s.d).
Carnegie (1995, p. 132) conta que havia um pobre rapaz,
imigrante holands, [que] ocupava-se depois da escola, em limpar
vitrines de uma padaria para sustentar seus familiares. [...] este rapaz,
Edward Bok, no cursou em toda a sua vida mais do que seis anos de
escola; tornou-se, entretanto, um dos mais prsperos editores de revistas
na histria do jornalismo americano. Como conseguiu isso? Conforme
Carnegie, seu sucesso deve-se aplicao dos princpios preconizados
em seus escritos. Esse rapaz, nem por um momento abandonou a idia
de ter uma educao. Ao contrrio, comeou a educar-se (CARNEGIE,
1995, p. 132), de que forma? Lendo uma enciclopdia de biografias
americanas [...] leu a vida dos homens famosos e escreveu-lhes pedindo
informaes adicionais sobre sua infncia (CARNEGIE, 1995, p. 133).
Dentre as biografias lidas pelo rapaz esto a de Ralph Waldo Emerson e
Abraham Lincoln. Como dizia Carnegie (2006, p. 66), no se pode
negar o valor de uma histria em prender a ateno [...] os exemplos
pessoais so a maneira segura de prender a ateno: no os despreze. O
autor refora que Como fazer amigos e influenciar pessoas um livro
composto de ilustraes e exemplos que servem de apoio para que possa
ressaltar como as pessoas empregaram as tcnicas por ele criadas. Essas
histrias de homens notveis so viabilizadas de cinco maneiras:
Humanize, personalize, especifique, dramatize e visualize.
(CARNEGIE, 2006, p. 66). Essas tcnicas tornam-se uma estratgia
para impressionar.
O exemplo constitui matria-prima no processo de aprendizagem
dos indivduos. De acordo com as ideias de Carnegie (2006, p. 109, sem
grifos no original), aprendemos de duas maneiras: uma pela lei do
exerccio, em que uma srie de incidentes similares [exemplos] leva a
uma modificao de nossas linhas de comportamento; a segunda,
pela lei do efeito, em que um nico evento [exemplo] pode ser to
marcante a ponto de modificar nossa conduta. Desse modo, a partir do
exemplo, voc deve criar novamente um segmento de sua experincia,
de tal forma que ela tenda a ter o mesmo efeito sobre o seu auditrio
como originalmente teve sobre voc. (CARNEGIE, 2006, p. 111).
Aqui est exposto um dos princpios de mudana de conduta presente

198
em Como fazer amigos e influenciar pessoas: Dramatize suas idias.
Recordando vividamente tais incidentes, podemos transform-los em
base para influenciar a conduta de outras pessoas. Podemos faz-lo
porque as pessoas respondem s palavras quase da mesma maneira com
que respondem aos acontecimentos, afirma Carnegie (2006, p. 110).
Cumpre lembrar que o discurso de Carnegie visa educar o
indivduo para a ao. Dessa forma, uma experincia pessoal que lhe
ensinou uma lio de que voc jamais se esquecer o primeiro
requisito de uma fala persuasiva para conduzir ao. (CARNEGIE,
2006, p. 110). Para isso, uma das razes para comear sua fala com a
fase do Exemplo atrair imediatamente a ateno [...] seus ouvintes
lembrar-se-o do que voc disse e do que voc deseja que eles faam
somente se o Exemplo se gravar em suas mentes (CARNEGIE, 2006,
p. 114). Afirmando a importncia do valor educativo dos exemplos,
Carnegie, similarmente a Smiles, tambm vale-se de diversas passagens
bblicas no intuito de convencer seu pblico sobre essa estratgia de
educar para a mudana de conduta, comportamento. Para o autor, o
Novo Testamento um rico repositrio de princpios de conduta tica
reforados por exemplos plenos de interesse humano a parbola do
Bom Samaritano, por exemplo. (CARNEGIE, 2006, p. 114).
Assim, um discurso baseado em exemplos, em experincias
pessoais, permitiu a Carnegie (2006) pensar na segunda fase de sua
Frmula Mgica para convencer e influenciar pessoas. Esta
governada por trs regras: apresente o objetivo de forma breve e
especfica; torne o objetivo fcil de execuo pelos ouvintes; apresente o
objetivo com fora e convico. O exemplo o recurso didtico
pedaggico que deve ser utilizado para convencer, influenciar e mudar a
conduta das pessoas. O que no se deve perder de vista, para o autor,
que [...] ao falar para convencer outras pessoas ou impression-las [...]
[deve-se] justamente [...] implantar a idia em suas mentes e evitar o
surgimento de idias opostas e contraditrias. (CARNEGIE, 2006, p.
144). Associadas ao uso do exemplo outras tcnicas so preconizadas
pelo autor. Dentre elas, o emprego da analogia uma tima tcnica
para o apoio de uma idia principal. (CARNEGIE, 2006, p. 200). Essa
relao de similaridade entre duas proposies facilita o apelo ao.
importante chamar a ateno para o fato de que o investimento
de um orador na mudana de comportamento, de conduta, de padres de
pensamento de seu pblico com vistas ao, no tarefa

199
necessariamente de um educador, segundo o ponto de vista de Carnegie.
De acordo com o seu entendimento,
embora poucos de ns sejamos professores
profissionais, todos empregamos a palavra para
informar outras pessoas, em muitas ocasies
durante o dia. Como pais ensinando a nossos
filhos, como vizinhos explicando uma nova
tcnica de podar roseiras, como turistas trocando
idias quanto melhor excurso de lazer,
frequentemente nos encontramos em situaes
coloquiais que exigem clareza e coerncia de
pensamentos, vitalidade e vigor de expresso.
(CARNEGIE, 2006, p. 210).

Pode-se dizer que, diante da concepo de que para educar basta


treinar-se para isso, Carnegie desloca a importncia da escola como uma
instituio de ensino, uma vez que do seu ponto de vista, qualquer
indivduo exerceria a funo de educador na capacidade de influenciar
pessoas. O pblico-alvo de Carnegie so os homens de negcios. A eles
esto dirigidas as orientaes, assertivas, enfim, o receiturio para que
possam influenciar seus trabalhadores para o seu modo de pensar e
sentir visando um determinado jeito de agir no trabalho, constituindo-se
em intermedirios na (con)formao de um novo tipo de homem em
tempos de trabalho racionalizado.
3.4 A AUTOAJUDA DE CARNEGIE
A constituio do discurso de autoajuda nas primeiras dcadas do
sculo XX d-se em meio a um contexto de crise, de produo de massa
que tinha o tipo certo de proibio moral, de vida familiar e de
capacidade de consumo prudente e racional para corresponder s
necessidades e expectativas das empresas. (HARVEY, 1992). um
perodo com expressiva ascenso dos homens de negcios, pblicoalvo tanto dos escritos de Henry Ford quanto da literatura de autoajuda
de Carnegie.
Pode-se observar nessas dcadas uma nfase no saber-fazer e no
aprender-fazendo, na formao prtica do cidado produtivo via
administrao do trabalho racionalizado. O discurso de autoajuda, nesse
contexto difunde a crena no potencial humano para articular uma
ordem social democrtica e o espao de mobilizao do indivduo.

200
Sendo assim, mais significativa do que qualquer aprendizagem era a
soluo habilidosa dos problemas (SHOOK, 2002), discurso este
extremamente adequado forma de organizao de trabalho dominante.
Essa literatura respalda no apenas vises normativas do que
deve ser feito versus o que no se deve fazer, mas um modo prescritivo
de como esse fazer est vinculado eficcia e produtividade no trabalho.
Cidado produtivo, moralismo, fora fsica, obediente, disciplinado,
abstmio, monogmico, adaptvel, hbil e dcil. O trabalhador
idealizado pela literatura de autoajuda e almejado para o trabalho no
sculo XX o operrio (con)formado.
Para isso, foi preciso investir na autoajuda para os homens de
negcios, um discurso que promoveria uma mudana individual e
desenvolvendo a capacidade de influenciar e converter os trabalhadores
para um determinado modo de pensar. Nesse sentido, a autoajuda de
Carnegie aposta no valor educativo dos exemplos. Estes constituem
uma estratgia eficaz de aprendizagem, educando para a ao, para a
mudana de conduta, permitindo desenvolver a serenidade para aceitar
as coisas que no se pode modificar. interessante observar como os
exemplos que incitam ao produzem a conformao.
Em vista a influenciar e convencer tanto o pblico leitor quanto
os participantes de cursos, Carnegie utiliza de maneira expressiva frases
de efeito e verbos na forma imperativa elementos marcantes em seus
livros que objetivam dar suporte para que o leitor se sinta forte, seguro,
incline-se a exercer o seu poder de persuaso visando convencer, ou nas
palavras do autor, impressionar.
Associadas ao uso de exemplos, outras tcnicas so preconizadas
pelo autor como estratgia de difuso de sua viso de mundo, trabalho e
educao. Dentre elas est o emprego da metfora ou analogia vista por
Carnegie como uma tima tcnica para o apoio de uma idia principal.
(CARNEGIE, 2006, p. 200).
A autoajuda de Carnegie tambm aproxima-se de um discurso
religioso, j que o alvio e a paz se encontram na religio e na prece.
(CARNEGIE, 1994, p. 204). O uso de parbolas bblicas como a do
Bom Samaritano encontra-se articulado s tcnicas de oratria
apresentadas pelo autor. Mescla-se religio o apelo ao poder do
pensamento positivo, apesar de alguns autores, a exemplo de Rdiger
(1996), afirmarem que Carnegie rompe com esse movimento voltandose carismtica, ao culto da personalidade: Use em seu trabalho as

201
tcnicas da linguagem positiva. (CARNEGIE, 2006, p. 210, sem
grifos no original). Segundo o autor, negcios, vida social e satisfaes
pessoais dependem, grandemente, da capacidade de comunicar-se, por
isso dedica uma primeira parte de seu livro Como fazer amigos e
influenciar pessoas no negcio aos fundamentos da oratria positiva.
A autoajuda de Dale Carnegie consolida-se em momentos de
crise, apresentando-se como um discurso orientador de conduta,
ensinando a arte de persuadir de forma a influenciar mudanas de
pensamento e de comportamento.

202
4 EM TEMPOS DE FLEXIBILIDADE ... SE NO MUDAR,
MORRERS!
Ao contrrio do que em geral se
cr, sentido e significado nunca
foram a mesma coisa, o significado
fica-se logo por a, direto, literal,
explcito, fechado em si mesmo,
unvoco, por assim dizer; ao passo
que o sentido no capaz de
permanecer quieto, fervilha de
sentidos segundos, terceiros e
quartos, de direes irradiantes que
se vo dividindo e subdividindo em
ramos e ramilhos, at se perderem
de vista, o sentido de cada palavra
parece-se com uma estrela quando
se pe a projetar mars vivas pelo
espao afora, ventos csmicos,
perturbaes magnticas, aflies.
(JOS SARAMAGO, 1997)

Neste captulo faz-se um breve apanhado a respeito das mudanas


ocorridas nas relaes de trabalho na ltima quadra do sculo XX, em
decorrncia da reestruturao produtiva e polticas de ajuste ps-crise
dos anos de 1970. Vrias pesquisas (SHIROMA; CAMPOS, 1997;
KUENZER; 2007; MACHADO, 1996; LEITE; SHIROMA, 1995)
discutiram os novos requisitos de formao e qualificao do
trabalhador demandados pela produo flexvel e suas implicaes sobre
a escola e instituies de educao profissional, alterando a organizao
e gesto, prioridades e metas, projetos formativos, currculos, visando
formao de um trabalhador de novo tipo.
O modelo de produo, como sublinha Paiva (1990, p. 103),
precisa contar com um trabalho qualificado no
apenas tcnica, mas tambm socialmente, o que
significa introduzir nas fbricas e nas escolas
conhecimentos de dinmica de grupo, valorao
de critrios profissionais, qualificao para
profisses integradas e sistemtica educao
continuada.

203
Na presente tese tenta-se demonstrar que esta (con)formao
ocorreu fora e dentro da escola.
Para a finalidade deste captulo, analisa-se o discurso de
autoajuda de autores mais vendidos nas ltimas dcadas, disseminando
um conjunto de orientaes, pregaes e aconselhamentos para
trabalhadores diante das transformaes no mercado e nas relaes de
trabalho e exigncias de um trabalhador de novo tipo. um discurso
que informa acerca das mudanas no mundo do trabalho, procurando dar
legitimidade s estratgias gerenciais objetivando adaptao, aceitao,
ao mesmo tempo que estimula novos modos de ser e agir no trabalho.
Considerando que a linguagem utilizada como instrumento de
mudana porque veicula representaes, valores e os refora
(LINHART, 2007, p. 111), analisa-se, neste captulo, o discurso de
autoajuda de Minarelli (1995), Johnson (2001) e Shinyashiki (2001). Os
materiais de autoajuda anunciam a pretenso de preparar os indivduos
para viver a mudana assimilando a ideia indispensvel de que em
tempos de flexibilidade se requer outro sistema de valores. Sem dvida,
est falando-se de uma formao da sociabilidade requerida, na
atualidade, pelo capital.
4.1 CONTEXTUALIZANDO AS MUDANAS
Aps a crise dos anos de 197078, a produo flexvel foi adotada
em algumas empresas como alternativa ao fordismo, gerando mudanas
nas relaes e mercado de trabalho e, conseqentemente, no trabalhador,
que deveria adequar-se s demandas da flexibilidade. A partir das
dcadas de 1980 e 1990, ampliaram-se os debates acadmicos sobre as
implicaes da emergncia de um novo paradigma produtivo, calcado
numa nova base tcnica de produo e organizao do trabalho.
No plano socioeconmico, essa recomposio do capital
centrado na produo flexvel evidenciou que o modelo fordista de
78
Conforme assinala Salerno (1994, p. 55), a reestruturao produtiva tem sua lgica derivada
de um contexto social, poltico e econmico marcado pelas crises financeiras, de mercado [...]
social (conflitos capital-trabalho, relativos organizao e controle da produo e do trabalho e
distributivo) que emergem nos anos 60/70 e colocam para as empresas novas necessidades de
integrao (para dar saltos de produtividade, necessrios devido tanto ao acirramento quanto
aos entraves sociais colocados s formas tradicionais de organizao da produo e do
trabalho) e de flexibilidade (como forma de fazer frente a um ambiente especialmente a um
mercado pouco previsvel e com alta instabilidade). Da surge o paradigma da empresa
integrada e flexvel, contrapondo-se quele da empresa taylorista-fordista.

204
produo e acumulao, baseado no consumo massificado de bens
individualizveis, estava em crise. A produo flexvel permitiu
diversificar e individualizar a produo e o consumo de bens. O domnio
da alta tecnologia possibilitou inovar, atendendo heterogeneidade do
mercado consumidor e desejos do cliente com uma produo
customizada.
No plano ideolgico, um arsenal discursivo foi acionado para
reforar as teses da competitividade e do individualismo. Criam-se e
ressignificam-se conceitos que passam a ser abundantemente utilizados
na gesto do trabalho flexvel.
Conceitos como flexibilidade79, competitividade, participao
foram popularizados nas ltimas dcadas. Em tempos de
recrudescimento salarial, de crescentes ndices de desempregos formas
precrias de contratao, acentuada excluso social, so necessrias
novas formas de sociabilidade do capital, tanto para estabelecer um
novo padro de acumulao quanto para definir as formas concretas de
integrao dentro da nova reorganizao da economia mundial.
(FRIGOTTO, 1994, p. 41).
Segundo anlise de Harvey (1992, p. 143),
diante da volatilidade do mercado, do aumento da
competio e do estreitamento das margens de
lucro, os patres tiraram proveito do
enfraquecimento do poder sindical e da grande
quantidade
de
mo-de-obra
excedente
(empregados ou subempregados) para impor
regimes e contratos de trabalho mais flexveis.

79
Ao estudar o modelo japons Shiroma (1996, p. 183) discute o conceito de flexibilidade. De
acordo com a autora: Wood (1989) distingue flexibilidade funcional, que diz respeito s
habilidades do trabalhador, da flexibilidade numrica, que se refere possibilidade de a
empresa variar o nmero de trabalhadores que emprega, conforme flutuaes da demanda,
atravs de arranjos - subcontratao, servio temporrio, tempo parcial que facilitem a
admisso e a dispensa. Os tipos de flexibilidade tm implicaes diferentes em setores
diferentes. Por exemplo: verifica-se o uso extensivo da flexibilidade numrica no setor de
servios (tercirio), enquanto a flexibilidade funcional predominante no setor manufatureiro.
Clutterback (1951, p. 91), esclarece que, para o setor industrial, o uso excessivo da
flexibilidade numrica prejudica o desenvolvimento da flexibilidade funcional, pois, para os
trabalhadores tornarem-se flexveis, precisam se qualificar e se envolver no trabalho, o que
requer tempo de casa e treinamento.

205
A flexibilidade nas relaes de trabalho foi viabilizada por
mudanas na legislao, impondo-se a desregulamentao do
ordenamento jurdico de perfil rgido. (RAMOS, 1997, p. 83). Este
fomento informalizao do mercado de trabalho, materializado na
subcontratao, empregos temporrios, atividades autnomas,
incentivada no discurso da empregabilidade80 e empreendedorismo81,
acentuou seus efeitos nas relaes de trabalho, consequentemente, nos
requisitos de acesso e formao de um trabalhador necessrio s novas
demandas do capital.
4.2 REQUISITOS TCNICOS E COMPORTAMENTAIS
ESPERADOS DO TRABALHADOR
Pesquisas sobre os impactos sociais da difuso do modelo
japons82 (SHIROMA, 1996) mencionam a demanda por novos
80

Empregabilidade, na acepo de Forrester (1997, p. 118), uma bela palavra [que] soa nova
e parece prometida a um belo futuro: [...] que se revela como um parente muito prximo da
flexibilidade, e at como uma de suas formas. Trata-se para o assalariado, de estar disponvel
para todas as mudanas, todos os caprichos do destino, no caso, dos empregadores. Ele dever
estar pronto para trocar constantemente de trabalho (como se troca de camisa [...]. Mas, contra
a certeza de ser jogado de um emprego ao outro, ele ter uma garantia razovel, quer dizer,
de um emprego a outro, encontrar emprego diferente do anterior que foi perdido, mas que
paga igual. Na perspectiva de Frigotto (1998, p. 46), a ideia de educao e formao para a
empregabilidade tornou-se um iderio do senso comum em praticamente todos os governos
europeus, prontamente adotado em nosso pas trabalhar menos para que todos trabalhem -,
, em realidade, profundamente reacionrio e conservador. Isto porque nenhum empregador
(privado ou pblico) est disposto a diminuir tempo de trabalho sem diminuir salrio. Ora, tal
mecanismo aliena conquistas histricas da classe trabalhadora no plano de melhoria da sua
qualidade de vida e, refora o pressuposto falso de que tal medida a nica vivel. O que no
se explicita , justamente, que o agravamento do desemprego e a intensificao da explorao
do trabalho assalariado e outras formas de trabalho subordinado ao capital so a alternativa
para retornar elevadas taxas de lucro. Ou, como diria Gentili (1998, p. 81), a desintegrao
da promessa integradora deixar lugar difuso de uma nova promessa, agora sim, de carter
estritamente privado: a promessa da empregabilidade.
81
Conforme analisa Bianchetti (2005, p. 154), a empregabilidade e o empreendedorismo, so
duas palavras que se tornam recorrentes na dcada de noventa do sculo XX, expressam
tambm a face de uma mudana conhecida sob muitos nomes, entre os quais: reengenharia,
reestruturao produtiva e inovao tecnolgica. A mudana institui um denominador comum:
o indivduo o nico e exclusivo responsvel e responsabilizado! pela sua entrada e
permanncia no cada vez mais restrito mundo dos trabalhadores formalmente empregados.
82
Conforme salienta Gurgel (2003, p. 134), um dos pais do toyotismo, importante referncia
da produo flexvel de alto volume, Ohno nos revela, com a franqueza oriental, que na
Toyota o conceito de economia indissocivel da busca da reduo de efetivos e de custos.
[...] ele formula a pergunta: o que fazer para elevar a produtividade, quando as quantidades
no aumentam? [...] E responde: H duas maneiras de aumentar a produtividade. Uma a de
aumentar as quantidades produzidas, a outra a de reduzir o pessoal de produo.

206
requisitos de formao e qualificao dos trabalhadores, exigidos pela
reconfigurao das relaes de trabalho, reiterados como condio
necessria de o indivduo manter-se ativo no mercado de trabalho.
Sustenta-se, convenientemente, que o desemprego sempre
voluntrio (HARVEY, 2008, p. 63), reforando a necessidade de
modificar a cultura poltica ao ampliar o campo da responsabilidade
pessoal e corporativa e estimular uma maior eficincia, a iniciativa
individual/corporativa e a inovao. (HARVEY, 2008, p. 71).
Tal exigncia est relacionada ao aumento do trabalho complexo
e reconhecimento da necessidade e possibilidade de aproveitar a
qualificao tcita da fora de trabalho. Desse modo, interessante
observar a exaltao de habilidades conceituais e abstratas em relao
qualificao tcnica. O sistema educacional estaria sendo mais exigido
no sentido de uma reformulao curricular, integrando as necessidades
do mercado de trabalho, flexibilizao e polivalncia.
Paiva ressalta que a nfase dos empresrios se situaria menos na
qualificao especfica do que em qualidades como flexibilidade,
disciplina, autonomia (PAIVA, 1990, p. 110). Nessas circunstncias,
Shiroma (1996, p. 176) destaca que a responsabilidade, a iniciativa, a
capacidade de previso, trabalho em equipe, mas acima de tudo a
confiabilidade tornam-se qualidades esperadas dos trabalhadores.
O trabalhador precisaria agora de outras qualificaes centradas
nas habilidades comportamentais e atitudinais para corresponder s
expectativas dos empregadores. Preconiza-se a necessidade de uma
equipe de trabalho competitiva e, sobretudo, com o esprito de aceitar
desafios e encarar as mudanas como um estmulo para vencer as
barreiras impostas pelo mercado.
A reduo e a extino de postos de trabalho, a flexibilizao das
regras de contratao e a busca de um trabalhador mais malevel
aproximam os discursos de empresrios, governantes, gurus da
autoajuda em palestras e publicaes, apontando e reforando que estas
so consequncias e condies necessrias para que empresas e
trabalhadores atuem com competitividade no mundo globalizado.
A racionalizao dos processos de trabalho significa, para os
empresrios, uma estratgia de sobrevivncia. Para os trabalhadores,
significa o convvio com mltiplas mudanas, em especial, no que se
refere aos contratos de trabalho. Estes so to flexveis e instveis
quanto os postos de trabalho.

207
Numa perspectiva mistificadora e alienadora, o discurso
neoliberal postula o individualismo, reafirmando as diferenas
individuais. As novas demandas do processo de valorizao do valor
esto redimensionando a educao dos trabalhadores.
4.2.1 Formao flexvel
Em decorrncia das exigncias de um trabalhador de novo tipo,
exige-se tambm uma nova pedagogia com vistas formao das novas
competncias requeridas para a organizao e gesto do trabalho
desregulado em tempos de acumulao flexvel. A mudana dos
procedimentos rgidos para os flexveis, conforme observou Kuenzer
(2002b, p. 86), atingem
todos os setores da vida social e produtiva nas
ltimas dcadas, passa a exigir o desenvolvimento
cognitivo e comportamental, tais como: anlise,
sntese, estabelecimento de relaes, rapidez de
respostas e criatividade diante de situaes
desconhecidas, comunicao clara e precisa,
interpretao e uso de diferentes formas de
linguagem, capacidade para trabalhar em grupo,
gerenciar processos, eleger prioridades, criticar
respostas, avaliar procedimentos, resistir a
presses, enfrentar mudanas permanentes, aliar
raciocnio lgico-formal intuio criadora,
estudar continuamente e assim por adiante.

Compatvel ao novo tipo de produo flexvel, novos modos de


vida so concebidos disseminando comportamentos articulados aos
conhecimentos, habilidades, valores e atitudes, de maneira que, pelas
polticas e propostas pedaggicas veicula-se a necessidade de uma
formao que responda s demandas de valorizao do capital. nesse
sentido que Kuenzer (2002b, p. 79) analisa as novas relaes de trabalho
a partir da pedagogia toyotista, assinalando que em tal mbito que as
capacidades mudam e so chamadas de competncias. A autora frisa
que, ao invs de habilidades psicofsicas, fala-se em desenvolvimento
de competncias cognitivas complexas, mas sempre com o objetivo de
atender s exigncias do processo de valorizao do capital.
(KUENZER, 2002b, p. 80). Nesta perspectiva, o trabalho pedaggico no
toyotismo constitui-se em forma de disciplinamento para a vida social e

208
produtiva no capitalismo. Esse disciplinamento configura-se como uma
transformao intelectual, cultural, poltica e tica (KUENZER, 2002b,
p. 90) de modo a possibilitar a formao do trabalhador capaz de
responder e superar desafios nas relaes de trabalho.
A preocupao presente nos estudos de Kuenzer (2002b, p. 78)
volta-se facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre
do ponto de vista do capital, de concepes elaboradas pela pedagogia
socialista, com isso, estabelece uma ambigidade nos discursos e nas
prticas pedaggicas. Tal apropriao tem levado muitos a imaginar
que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulao
flexvel, as polticas e propostas pedaggicas de fato passaram a
contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista
da democratizao. (KUENZER, 2002b, p. 78).
Desse ponto de vista, pode-se pensar na nova pedagogia da
hegemonia, expresso formulada pelos pesquisadores do Coletivo de
Poltica Educacional (NEVES et al., 2005) que destacam as estratgias
do capital para educar o consenso. De acordo com Neves e SantAnna
(2005, p. 35), a nova pedagogia da hegemonia ancorada no projeto
poltico da Terceira Via tenta incentivar movimentos caracterizados por
solues individuais [...] produz um macio investimento em um
modelo novo de cidadania, desviando
a ateno de importantes segmentos da classe
trabalhadora da reflexo sobre os mecanismos de
expropriao e explorao a que so submetidos,
ao mesmo tempo em que refora o individualismo
com valor moral radical, uma vez que rene
indivduos para tratar de seus problemas
especficos, desvinculando-os das questes sociais
gerais. (NEVES; SANTANNA, 2005, p. 36).

A autoajuda presta-se dupla tarefa de fornecer blsamo de


esperanas e mascarar as contradies do sistema capitalista. Nesse
contexto, destacam-se as noes de Estado mnimo, ajustes,
reestruturao produtiva, sociedade do conhecimento, competncia,
flexibilidade, qualidade total, empregabilidade, empreendedorismo
(FRIGOTTO, 1994) como dispositivos inerentes estabilidade e
desenvolvimento desse padro de acumulao.

209
interessante observar, conforme aponta Palangana (1998, p.
120),
que as capacidades de leitura e compreenso, de
raciocnio,
de
resolver
problemas,
de
sociabilidade, to sublinhadas pelo discurso
dominante, como resultados admirveis da
automao flexvel, s tm conseguido tomar uma
atitude em relao aos marginalizados diga-se,
uma velha e conhecida atitude: o assistencialismo.
Quando os apelos sociabilidade retornam com
toda a fora, devido integrao das tarefas,
quando o individualismo mais se acentua.

Harvey (2008, p. 12) destaca: liberando-se as liberdades e


capacidades empreendedoras individuais no mbito de uma estrutura
institucional caracterizada por slidos direitos propriedade privada,
livres mercados e livre comrcio, tem-se um redimensionamento
atribudo ao papel do Estado.
4.3 NEOLIBERALISMO E A FLEXIBILIZAO DAS
RELAES DE TRABALHO
O Estado, na perspectiva neoliberal, salienta Harvey (2008, p.
75), deve favorecer fortes direitos individuais propriedade privada, o
regime de direito e as instituies de mercados de livre funcionamento e
do livre comrcio. Na viso do autor, a empresa privada e a iniciativa
dos empreendedores so julgadas as chaves da inovao e da criao de
riqueza. (HARVEY, 2008, p. 75). A competio entre indivduos, entre
empresas considerada uma virtude, cada indivduo julgado
responsvel por suas prprias aes e por seu prprio bem-estar, do
mesmo modo como deve responder por eles. (HARVEY, 2008, p. 75).
No processo de redefinio do papel do Estado, o slogan da
flexibilizao das relaes de trabalho constitui-se como elemento
estratgico de incorporao da ideia de que a qualificao para o
trabalho est sob responsabilidade da sociedade civil.
O desmonte do Estado no Brasil, na sua capacidade de financiar a
educao e outros servios, no chegou a nveis to perversos como no
Chile e na Argentina, segundo observou Frigotto (1994). Como
corolrio do Estado mnimo, esse desmonte do Estado fez-se mediante

210
diversos mecanismos: A apologia da esfera privada e da
descentralizao como mecanismos de democratizao e de eficincia
so os mais freqentes. (FRIGOTTO, 1994, p. 59). Nessa posio, as
polticas neoliberais, na opinio de Behring (2003, p. 59), comportam
orientaes/condies que se combinam tendo em vista a insero de
um pas na dinmica do capitalismo contemporneo, marcada pela busca
de rentabilidade do capital por meio da reestruturao produtiva e da
mundializao:
atratividade,
adaptao,
flexibilidade
e
competitividade.
A ideia de que a crise de emprego decorre da atuao excessiva
do Estado uma proposio defendida e disseminada pela Terceira Via uma nova forma de organizao social e econmica situada por seus
proponentes como nem Estado, nem mercado. De acordo com Lima e
Martins (2005, p. 52), um dos mais importantes princpios constitutivos
do projeto poltico da Terceira Via refere-se reinveno da sociedade
civil [...]. O argumento central [...] que a sociedade civil como
conhecemos foi produto de arranjos sociais que no mais existem.
Trata-se de gerir um Estado forte e enxuto que despreza o tipo
de consenso social dos anos de crescimento, com claras tendncias
antidemocrticas, afirma Behring (2003, p. 60). Nesse aspecto, a autora
assevera que a hegemonia burguesa no interior do Estado
afirma-se de forma contundente com o
neoliberalismo, cujas polticas engendram uma
concepo singular de democracia, que abandona
a perspectiva do Estado Liberal de direito e de um
tecido social mais denso e participativo em nome:
da participao nos processos eleitorais, os quais
se convertem [...] em um mecanismo plebiscitrio
de legitimao do sistema; do reforo do Poder
Executivo em detrimento dos demais poderes
constitucionais; do freio ao desenvolvimento de
uma sociedade civil capaz de interferir e controlar
os
processos
decisrios; [...]
de
um
associacionismo light e bem-comportado, que
tem a funo de amenizar as seqelas da dura
poltica econmica. (BEHRING, 2003, p. 60).

Neste cenrio, as polticas sociais podem ser caracterizadas por


meio de um discurso nitidamente ideolgico. (BEHRING, 2003). Este
o carter do ajuste estrutural proposto pelos organismos

211
internacionais, como forma por meio da qual as economias nacionais
devem adaptar-se s novas condies da economia mundial.
(BEHRING, 2003, p. 64). Dentre as vrias implicaes, tem-se,
fundamentalmente, uma clara poltica social cuja orientao a
focalizao de aes voltadas mobilizao da solidariedade individual
e voluntria, bem como das organizaes filantrpicas e organizaes
no-governamentais prestadoras de atendimento, no mbito da
sociedade civil. (BEHRING, 2003, p. 65).
Fortalece-se, nesse processo, a ideia de que o Estado no deve
ser indistintamente fraco. Deve ser fraco na esfera da regulao
econmica, da tributao sobre o capital e na promoo de benefcios e
direitos sociais. O Estado neoliberal deve fortalecer-se para defender o
livre mercado e favorecer a acumulao capitalista. (COSTA, 2006, p.
78). A reforma do Estado brasileiro dos anos de 1990 orientou-se pela
agenda neoliberal, propondo reduzir a atuao do Estado com a nica
alternativa possvel para a modernizao do pas.
Desta maneira, o neoliberalismo, na acepo de Costa (2006, p.
77),
caracteriza-se essencialmente por um movimento
poltico e ideolgico que busca criar legitimidade
e manter os avanos da globalizao econmica,
justificando a desigualdade social a partir das
idias de diferenas naturais. O Estado est no
centro da disputa neoliberal, pois como
movimento
poltico-ideolgico
visa
essencialmente usar o poder poltico para dar
liberdade de ao para o grande capital.

Conforme constata Silva Jr. (2002), em meio ao movimento de


extenso do capital para as novas esferas sociais, a poltica, a educao e
as polticas educacionais mercantilizam-se, produzindo relaes sociais
que se materializam em prticas humanas orientadas pela racionalidade
do capital. Em sua anlise, o autor afirma que:
[...] a esfera educacional torna-se um quasemercado: a escola assemelha-se a um emprio e o
individualismo
possessivo83
articulado

83
A expresso individualismo possessivo refere-se viso dos indivduos como
proprietrios das suas prprias capacidades (MACHPHERSON, 1962 apud POPKEWITZ,

212
competitividade tornam-se os valores mximos de
nossa educao subordinada ao mercado. Uma
sociedade cujo contedo histrico da cidadania
consiste na forma de ser, cujos valores centrais
so a produtividade, a utilidade, o individualismo
e a competitividade, num contexto de ausncia de
reivindicao. (SILVA Jr., 2002, p. 36).

Nessa perspectiva, a racionalidade social capitalista orienta-se


para a efetivao de mudanas sociais, polticas e culturais, de forma
que preciso justificar a necessidade de mudanas, como uma crena
verdadeira. (SILVA Jr., 2002). Para tornar tais crenas verdadeiras,
exige-se a busca de consenso, adaptao, aceitao de que estas
correspondem ao jeito como as coisas realmente so. (SILVA Jr.,
2002, p. 82). Como se v, a estratgia neoliberal de construo da
hegemonia no se limita ao campo poltico-econmico, avanando para
as esferas social e educacional. A educao, acentua Silva (1995, p. 28),
alvo estratgico dessa ofensiva precisamente
porque constitui uma dessas principais conquistas
sociais e porque est envolvida na produo da
memria histrica e dos sujeitos sociais. Integr-la
lgica e ao domnio do capital significa deixar
essa memria e essa produo de identidades
pessoais e sociais precisamente no controle de
quem tem interesse em manipul-la e administrla para seus prprios e particulares objetivos.

Gramsci (1984, p. 17), referindo-se ao papel do Estado na


conquista da hegemonia, ressalta que o Estado significa
particularmente direo consciente das grandes multides nacionais:
necessrio, portanto, um contato sentimental e ideolgico com estas
multides e, numa certa medida, simpatia e compreenso de suas
necessidades e exigncias. Como estratgia para estabelecer e
perpetuar esse contato, essencial, produo e difuso de elementos,
1997, p.153). Tal valor faz com que o indivduo passe a enxergar sua forma de ser como
natural, movimento semelhante ao que identificou, em certa medida, as cincias sociais s
fsicas e naturais. A inteligncia, o carter, o desempenho e a moralidade so tratados como
fatos objetivos que podem ser identificados e medidos independentemente da relao do
indivduo com a comunidade [...], o que implica dizer que possuir uma qualidade significa ser
seu dono como se de uma propriedade ou um bem. (POPKEWITZ, 1997 apud SILVA Jr.,
2002, p. 36).

213
ideias constitutivas da concepo de mundo conveniente para a
consolidao das relaes de poder necessrias manuteno
hegemnica do capital. Dentre estes elementos est a noo de
qualificao, entendida por Amaral (2001 apud Behring, 2003, p. 227),
como
uma estratgia da passivizao, por meio do
patrocnio do consenso, para assegurar a
colaborao de classes. Os trabalhadores passam a
incorporar que a situao de desemprego gerada
pelas opes individuais ao longo da vida em
torno de sua qualificao para determinada
especialidade, ou pelas novas requisies
tecnolgicas. Assim, diluem-se os processos
sociais mais amplos que geram o desemprego e
possibilidades de luta coletiva de sadas para alm
da qualificao.

Rummert (2000) destaca alguns elementos constitutivos


importantes para a compreenso dos processos educativos e formativos
dos trabalhadores a partir da dcada de 1990 como: nfase ao
individualismo; construo simblica dos culpados pelas diversas
formas de excluso e pelas carncias vividas pela maioria da sociedade;
permanente desafio, oferecido aos indivduos, de viverem jogos
competitivos. No que concerne nfase ao individualismo, assinala que
essa nfase oferece um vasto espao de liberdade de ao, sem os
limites impostos por vnculos associativos de classe ou frao de
classe. (RUMMERT, 2000, p. 61). Esta formulao acena para os
indivduos a possibilidade de agir de acordo com seus desejos e
potencialidades, sendo o nico limite a prpria capacidade de vencer.
(RUMMERT, 2000, p. 59). A respeito da construo simblica dos
culpados, a autora assinala que, no elenco de responsveis, destacase, inicialmente, o Estado, apresentado como ineficiente em decorrncia
de seu anacronismo e de seu gigantismo, o que o torna incapaz de
atender s demandas sociais, tais como apresentam-se numa sociedade
moderna, as quais sinalizam para a positividade dos processos de
privatizao. (RUMMERT, 2000, p. 61). Alm do Estado, so tidos
como culpados, ainda, os prprios excludos, que, por falta de mrito,
em decorrncia da ausncia de atributos positivos naturais ou pela
inexistncia de empenho real, so considerados artfices de sua prpria
situao de excluso. (RUMMERT, 2000, p. 61). Finalmente, o

214
permanente desafio, oferecido aos indivduos, de viverem jogos
competitivos, de acordo com Rummert (2000, p. 62), corrobora o
processo de deslocamento do eixo das relaes sociais do ns para o
eu. Essa perspectiva contribui para a aceitao da idia de que a
melhoria das condies de vida s ocorre, efetivamente, a partir de
iniciativas individuais aos prprios interesses, e no em decorrncia das
lutas coletivas e solidrias (RUMMERT, 2000, p. 63).
A partir desse conjunto de elementos constitutivos do discurso
neoliberal que objetivam desqualificar os vnculos estveis das relaes
de trabalho, h uma sobrevalorizao da capacidade de empregabilidade
de cada um, valor que passa a reger os enunciados formulados a
respeito do mundo do trabalho e da insero social. (RUMMERT,
2000, p. 62). Discurso esse que reforado e incentivado pelos autores
de autoajuda, visando consolidar crenas e valores do iderio neoliberal
integrando-os nova sociabilidade requerida pelo capital. Nos atuais
modelos de organizao do trabalho que fortalecem as benesses da
empregabilidade, evidencia-se um discurso que mascara a
desestruturao do mercado de trabalho e a deteriorizao das condies
de emprego e salrio.
Nesse quadro de reorganizao e desregulamentao do trabalho,
vale resgatar a anlise de Jinkings (1999, p. 160) ao destacar que o
governo brasileiro vem procurando regulamentar um sistema flexvel de
remunerao da fora de trabalho, que contm enorme potencial
maximizador da lucratividade das empresas. Ainda na perspectiva da
autora,
do ponto de vista do capital, essas formas de
contrao adaptam-se perfeitamente aos seus
objetivos de autovalorizao, medida que
permitem s empresas ganhos enormes de
lucratividade, ao mesmo tempo em que
atingem fortemente a capacidade de
resistncia
da
classe
trabalhadora,
fragmentando-a
e
dificultando
sua
organizao sindical. (JINKINGS, 1999, p.
160).
Desse modo, a estratgia de reestruturao do capital implica,
sem dvida, uma nova interpretao e organizao dos processos

215
educativos e formativos do trabalhador em que a educao deste dever
atender s exigncias do mercado, sendo dotada de contedos exigidos
pelo capitalismo para seu desenvolvimento nessa nova fase.
(RUMMERT, 2000, p. 66).
4.4. A PRODUO DO TRABALHADOR FLEXVEL
Segundo Invernizzi (2005), Rummert (2000), Kuenzer (2002a),
Palangana (1998), entre outros autores, as polticas de gesto, no interior
das empresas, e o desemprego e subemprego, pressionando de fora,
esto confluindo numa crescente individualizao dos trabalhadores.
Esses elementos fomentam, na viso da autora, estratgias individuais
para manter o emprego, encontrando na incitao das empresas ao
comprometimento um veculo para esse objetivo. (INVERNIZZI,
2005, p. 126).
Sob o argumento da busca de maior competitividade, os
empresrios apresentam, como necessria, a construo de novos
padres de sociabilidade centrados nos valores e na lgica do mercado.
(RUMMERT, 2000, p. 100). Esses padres devem permear o tecido
social, permitindo a sustentao das novas formas de gerenciamento
das atividades produtivas e s diferentes modalidades de insero dos
indivduos no mundo do trabalho. (RUMMERT, 2000, p. 100).
Portanto, exige-se um trabalhador de novo tipo capaz de
incorporar novos valores, condio fundamental de insero e
permanncia no mercado de trabalho. Na difuso dos valores
necessrios formao desse trabalhador, inclui-se, como um dos
veculos disseminadores, o discurso de autoajuda cuja ao pedaggica
d-se fora e dentro do mbito escolar ao criar nos trabalhadores novos
hbitos e atitudes, comportamentos que repercutiro nas relaes de
trabalho.
H, por parte das empresas, investimento na educao do
trabalhador. enfatizado, nesse sentido, que somente os que assumirem
o novo perfil requerido estaro em condies de integrar o conjunto de
indivduos includos na economia competitiva que o pas se prope ser.
(RUMMERT, 2000, p. 100). Nesse quadro, chama-se a ateno para o
estudo de Rummert (2000) analisando a educao e a identidade dos
trabalhadores sob a tica de vrias instituies empresariais, ao tomar o
discurso do Instituto Herbert Levy, discute o perfil do trabalhador
apresentado.

216
O trabalhador confiante em si mesmo e
emocionalmente envolvido com a empresa,
representar o retorno simples, lquido e certo
para o investidor, que passar a contar com: [...]
Um trabalhador mais pensante e, portanto mais
participativo, mais motivado do que nunca e mais
do que nunca disposto a enfrentar as novas
situaes, por mais difceis que sejam ou passam
assim parecer. [...] Algum que agora sabe que o
presente e futuro esto ao alcance de sua mo. [...]
Algum mais integrado na sociedade algum
mais cidado. [...] Algum que passa a ter
condies de transformar um mero emprego em
um trabalho, uma alavanca uma carreira. [...]
Algum disposto a enfrentar sem medo todos os
desafios, venha de onde vierem, daqui ou de fora.
[...] Algum preparado e, acima de tudo,
COMPETITIVO. Pronto para encarar qualquer
adversrio. [...] Enfim, um tigre. E que tigre!
(RUMMERT, 2000, p. 103).

Rummert (2000, p. 104) salienta que o discurso empresarial


demanda a formao de um trabalhador de novo tipo que domine os
conhecimentos bsicos de leitura, de escrita e de matemtica; seja capaz
de trabalhar em equipe, de comunicar-se com clareza e objetividade;
agregue os conhecimentos adquiridos na vivncia do cotidiano e nos
espaos formais de aprendizagem aos mtodos de trabalho; tenha
iniciativa e independncia em seu campo de ao, estando apto a gerir
seu trabalho e sua vida; faa do ato de pensar uma constante em sua
vida, estando aberto ao novo; domine a capacidade de aprender a
aprender de forma a adquirir nveis cada vez mais complexos de
conhecimentos; domine o raciocnio abstrato, sendo capaz de prevenir e
controlar as possibilidades de erro, identificando problemas e propondo
solues; seja capaz de adaptar-se ao avano tecnolgico e s novas
formas de organizao da sociedade, enfrentando com sucesso novas
situaes; considere-se, mais que um trabalhador, um colaborador que
possui liberdade de ao e domnio sobre os processos de trabalho;
compreenda que os novos tempos lhe conferem uma importncia e um
valor at ento negados aos trabalhadores. Alm desses requisitos,
destaca-se a necessidade de que o trabalhador seja portador de
qualificao diversificada e de uma viso globalizante dos processos

217
tecnolgicos, que permita o desempenho de tarefas mltiplas, no
contexto da especializao flexvel. (RUMMERT, 2000, p. 105).
Rummert (2000, p. 105) caracteriza esses requisitos como
princpios educacionais de um projeto identificatrio do capital para o
trabalhador, constituindo-se um recurso de conquista e manuteno da
hegemonia. Dessa forma, apresenta
um enunciado que lana a proposta inclusiva de
modernidade,
simultaneamente
ordenando
aspiraes de diversas ordens e alertando para a
necessidade de adeso, que se faz impositiva,
como natural decorrncia do progresso, das novas
caractersticas do mundo do trabalho em
particular, e da sociedade como um todo que se
estrutura, agora, sobre os pilares do
conhecimento.

Complementando, a autora cita algumas caractersticas que


demarcam o projeto identificatrio do capital:
a) a idia de que o trabalhador vive um novo
momento histrico, o qual lhe oferece nova
identidade que o valoriza, trazendo-o para o
centro do cenrio produtivo, como elemento
fundamental e, mesmo, como ator principal;
b) a apresentao da educao como via de acesso
oferecida ao trabalhador, pelo capital e pelo
Estado, para que este assuma o papel de sujeito na
atividade produtiva e na construo de seu projeto
pessoal de vida;
c) a nfase no fato de que a estrutura dos novos
sistemas produtivos confere poder ao trabalhador,
retirando-se da obscuridade em que at ento se
encontrava e colocando-o na posio de
dominador das mquinas e dos processos;
d) a construo simblica da imagem de um
trabalhador livre, que pode dispor de seus
conhecimentos para construir uma trajetria
pessoal de xitos, em aliana com o capital, dele
depende diretamente;
e) a valorizao da coragem e da capacidade de
enfrentar e vencer os desafios, atitude que deve

218
ser incorporada como prtica a ser vivenciada no
cotidiano;
f) a nfase na competitividade, que deve permear
todo o tecido social e reger as aes e decises de
cada indivduo em particular;
g) a articulao da nova lgica material de
produo com a lgica simblica de centralidade
do trabalhador, em substituio centralidade da
mquina. (RUMMERT, 2000, p. 105-106).

Este projeto identificatrio do capital incide fortemente sobre o


campo afetivo, voltando-se para os aspectos subjetivos, repletos de
significados que possibilitam ao trabalhador situar-se [...] na
complexidade das novas relaes sociais e identificar possibilidades
individuais de firmao nessa sociedade, a partir de seu empenho e
capacidade. (RUMMERT, 2000, p. 105).
Sendo assim, diferentemente do ideal taylorista/fordista de
trabalhador, em tempos de trabalho flexvel, as recomendaes dos
manuais de administrao e engenharia de produo indicam a
necessidade de determinado grau de participao ativa da inteligncia,
da fantasia, da criatividade e iniciativa do trabalhador. Nessa linha de
pensamento, Rehem (2009) discutindo o que ser empregvel ou ter
condies permanentes de trabalhar e obter renda lembra um seminrio
internacional, realizado pela PUC-SP, Rhodia S/A e Financiadora de
Estudos e Projetos (FINEP), em 1996, em So Paulo, no qual se
reuniram 35 especialistas acadmicos, empresariais, sindicais e
governamentais. Esse grupo analisava questes como:
As transformaes em curso no mundo do
trabalho, no que se refere aos seus impactos sobre
a relao de empregabilidade e educao; o novo
perfil requerido do indivduo trabalhador
(reconceituao da inteligncia, aprendizagem,
educao, qualificao para o trabalho e no
trabalho); a escola, a empresa, a cultura, como
ambientes de aprendizagem e autoformao.
(REHEM, 2009, p. 51).

Como resultado da discusso do referido seminrio, os


participantes chegaram a algumas concluses, conforme ressalta Rehem
(2009, p. 51 sem grifos no original):

219
os ambientes de aprendizagem devem ser
potencializadores e criadores de oportunidades
que valorizem a atitude de querer aprender
sempre;
as instituies de ensino, os rgos de
treinamento devem rever rapidamente suas
estratgias, filosofia, processos e contedos
programticos para adequar-se s novas demandas
educacionais;
os trabalhadores devero preparar-se para
mudar continuamente de papel, assumindo
posturas e adquirindo competncias correlatas. A
vida profissional exigir, dos indivduos, que se
desfaam, continuamente, de idias, de
conhecimentos e espaos, e adquiram novos. A
flexibilidade deixar de ser uma caracterstica
para ganhar status de condio necessria de
sobrevivncia;
no mundo do trabalho contemporneo, a idia
de aprendizagem ganha novos contornos: ser
sujeito do processo implica desenvolver mapas
cognitivos, novas habilidades e rever valores que
possibilitem melhor entender e tentar atuar com
criticidade.

Como se v, discursos que evidenciam os atributos e


caractersticas esperados de um novo trabalhador coincidem com os
comportamentos e jeitos de ser apregoadas na literatura de autoajuda na
atualidade. Como pode ser depreendido do discurso apontado por
Rehem, condio necessria ao trabalhador rever valores, desfazer-se
de ideias, conhecimentos, assumindo diversos papis adequados s
situaes e contextos de mudanas. Est-se universalizando um novo
jeito de ser no trabalho, permeado por elementos ideolgicos
voltados a legitimar uma nova concepo de homem e trabalho. Trata-se
de tecer uma nova cultura, calcada nos valores empresarias, que tm
sua centralidade na lgica do mercado, na nfase no individualismo e na
competitividade. (RUMMERT, 2000, p. 176). Nessa viso, o que se
prope a construo de uma nova matriz explicativa das relaes
sociais, redefinindo os modos de pensar a sociedade e nela viver.
(RUMMERT, 2000, p. 176).

220
Para concretizar tais modos de pensar, sentir e agir, considera-se
que o discurso de autoajuda atua como difusor de um projeto
hegemnico afirmando uma aliana entre capital e trabalho, produzindo
uma imagem unificada da sociedade, com polarizaes suportveis e
aceitveis para todos os seus membros. (CHAU, 2007, p. 39).
Sistematizando os requisitos de um trabalhador de novo tipo
delineado nos manuais de autoajuda recentes, identificam-se as
principais caractersticas requeridas pelo mercado de trabalho na virada
do sculo, em que necessrio pr-atividade; criatividade; nfase na
resoluo de problemas; iniciativa; flexibilidade; responsabilidade;
capacidade de inovar; discernimento; participao ativa nas aes da
empresa; aptido para comunicar-se; elevado grau de tolerncia, esforo
na convivncia com o outro; trabalho em equipe; autogoverno;
valorizao e cultivo da empregabilidade, alm de um elevado esprito
para empreender.
Em resumo, o trabalhador almejado para o mercado de trabalho
no sculo XXI e idealizado pela literatura de autoajuda um trabalhador
de novo tipo, eficiente, inovador, pr-ativo, um empreendedor.
4.5 AS DECISES SOBRE AS ESCOLHAS SO SOMENTE
SUAS!
O capital delega uma pseudoautonomia para o trabalhador por
meio de um discurso que mascara a realidade. Vale-se da fora de uma
linguagem que substitui o vocbulo empregado pelo colaborador
tentando dirimir o conflito entre trabalhadores e patres, uma vez que
disfara a polarizao entre donos dos meios de produo e os
vendedores da fora de trabalho. A ttulo de exemplo, est a nfase dada
ao indivduo colaborador que aparece em um dos projetos de educao
profissional de uma das regionais do Servio Nacional da Indstria
SENAI, no qual, segundo Andrade (1998, p. 91), pretende-se produzir
no mais o trabalhador simplesmente amestrado, mas sim, agora o
colaborador.
O discurso da autoajuda encaminha seu pblico leitor para uma
determinada prtica social, mais especificamente orientando e
educando para uma mudana de atitude e comportamento perante as
relaes de trabalho, no no sentido da autonomia, mas do
enquadramento e da conformao. De acordo com Silva (2001) tanto o
discurso da autoajuda quanto o da educao tm como objetivo nos

221
transformar em um determinado tipo de pessoa, mais especificamente,
no exatamente nesse empreendimento, no empreendimento de
fabricar um determinado tipo de pessoa [trabalhador], que estamos
envolvidos todos ns que trabalhamos na educao? (SILVA, 2001, p.
44). Se os discursos que envolvem, camuflam, distorcem, conduzem,
apresentam verdadeiras ou falsas solues esto marcadamente
presentes na literatura de autoajuda, ento a relao entre trabalho e
educao percorre uma linha muito tnue, j que ambos os mundos
esto sendo diretamente afetados no que se refere entrada da autoajuda
como um discurso amalgamador, controlador e, principalmente, sedutor
(Morgado, 1995), que pretende interferir na qualidade subjetiva (a
identificao com o trabalho e seus aspectos motivacionais). (CRUZ,
1999, p. 179), convertendo-a em fator de produo.
Os princpios da autoajuda do sculo XIX esto revigorados nas
publicaes do gnero na atualidade com o firme propsito de ensinar a
ser um homem de novo tipo. O que se poderia pensar ser apenas um
modismo gerou consultorias especializadas e fez com que muitos
autores, considerados gurus da autoajuda, adentrassem aos mbitos do
trabalho e da educao pregando as virtudes daqueles que seguem as
recomendaes contidas nesses textos. Tais recomendaes invadiram a
ambincia organizacional, de forma que um conjunto de crenas,
valores, sentidos difundido visando construir um modo de pensar
calcado na mudana individual. Neste captulo, estudam-se os sentidos
do discurso contidos na literatura de autoajuda nas relaes de trabalho.
Assim, no intuito de conhecer quais as recomendaes
apregoadas nessa literatura quais os princpios para aprender a ser um
homem de novo tipo, analisam-se os discursos dos gurus atuais da
autoajuda que se tornaram best-sellers no campo das relaes de
trabalho no Brasil.
As publicaes selecionadas, por serem as mais representativas
desse momento, esto exibidas no Quadro 5. Chama-se a ateno para o
ano de publicao, bem como para a edio atual, em especial, para esta
literatura a partir dos anos de 1990.

222

Ttulo

Autor

Empregabilidade:
como ter trabalho e
remunerao sempre
Quem mexeu no
meu Queijo?

Jos
Augusto
Minarelli
Spencer
Johnson

Voc: a alma do
negcio

Roberto
Shinyashiki

1.
Edio
1995

Brasil

1998

EUA

2001

Brasil

Pas

Edio
atual
24.
Edio
53.
Edio
brasileira
22.
Edio

Quadro 5 Seleo de livros de autoajuda atuais e respectivos autores.


Elaborao prpria.

4.6 O DISCURSO NOS BEST SELLERS DE AUTOAJUDA:


DICAS DOS GURUS ATUAIS
Os autores em destaque figuram entre muitos dos responsveis
pelo sucesso editorial ou a emergncia do que se poderia chamar de o
boom da autoajuda em tempos de reestruturao produtiva. Jos
Augusto Minarelli, por exemplo, Conselheiro profissional e pedagogo
pela USP, com especializao em Orientao Educacional e
Profissional. Em 1982, aps uma demisso involuntria, abriu sua
prpria empresa de aconselhamento profissional e, a partir da, passou a
disseminar um conjunto de receitas, exemplos, difundindo segredos
de sucesso em suas publicaes.
Roberto Shinyashiki, outro dos autores, tido como um guru de
autoajuda, mdico psiquiatra, com especializao em Administrao
de Empresas e diretor-presidente de um centro de desenvolvimento
humano e organizacional. Assim como Minarelli, o referido autor
tornou-se conhecido pelas publicaes que difundem experincias bemsucedidas, a partir das quais, a exceo apresentada como regra.
Alm desses autores, tambm se destaca Spencer Johnson, autor
estaduninense com grande repercusso no Brasil. Quem mexeu no meu
Queijo? um de seus livros de maior sucesso em vrios pases. Johnson,
nascido em Dakota do Sul (EUA), formado em Psicologia pela
Universidade da Califrnia, ganhou popularidade com o livro Gerenteminuto. Voltado ao ambiente organizacional, o autor enfatiza que a
realizao e o sucesso profissional dependem, nica e exclusivamente,

223
da capacidade de o indivduo conquist-la. Para isso, deve manejar os
recursos necessrios para aprimorar-se da capacidade de transformar
problemas em solues.
4.6.1 Empregos em baixa? Adote uma atitude positiva
Nos discursos destes autores, fica evidente um cuidado com a
escolha de palavras que possam comprometer a mensagem a ser
repassada. Isto ocorre porque a escolha das palavras certas garante a
venda dos textos que compem a literatura de autoajuda. Um exemplo
emblemtico o livro de Minarelli (1995), que apresenta dois ttulos
diferentes. O ttulo da capa Empregabilidade: como ter trabalho e
remunerao sempre mais atrativo do que o impresso na ficha
catalogrfica Empregabilidade: o caminho das pedras. Este ltimo
remete a algo penoso, de muito empenho e de uma busca sem certeza de
que o investimento dar resultado, enquanto a chamada da capa anuncia
uma receita de esperana, acena para uma possibilidade.
Minarelli, um ex-desempregado que se tornou consultor e
administrador de carreiras, considera-se um expert em recolocao
profissional e, por meio de palestras e publicaes, refora a importncia
da empregabilidade e do empreendedorismo. Seu discurso pretende
atenuar conflitos, relaes de poder e uma dura realidade: a de que no
h emprego para todos. O recurso utilizado traduz-se em conselhos
como: Risque a palavra desempregado do seu vocabulrio. A partir de
agora, voc um profissional disponvel. Essa expresso designa com
mais propriedade o seu status e o seu posicionamento positivo.
(MINARELLI, 1995, p. 30).
De acordo com esse autor, uma das ideias fundamentais do livro
aconselhar voc a no transformar o emprego na maior atividade da sua
vida. (MINARELLI, 1995, p. 31). At porque o profissional dos
novos tempos precisa tomar a iniciativa de oferecer e vender os seus
servios, em vez de ficar espera das demandas. Isto , precisa
empresariar o seu talento. (MINARELLI, 1995, p. 20).
Tal discurso tenta conferir sensao de poder ao indivduo e
liberdade de ao para conduzir sua trajetria. Na prtica, consiste em
faz-lo acreditar que uma carreira profissional responsabilidade de
quem a desenvolve [...], no do tomador de servios ou do empregador.
(MINARELLI, 1995, p. 22). Segundo o autor, tal conselho parece
bvio, mas no o . De tal forma que muita gente s acordou para o

224
fato de que tinha colocado a vida e o futuro nas mos do empregador
quando, numa reviravolta (ser mesmo?), perdeu o poder de deciso ou
o prprio emprego. (MINARELLI, 1995, p. 22). O questionamento
irnico ser mesmo?, provocativo, tenta induzir o leitor a mudar seu
conceito sobre o desemprego. A reviravolta, aqui entendida como uma
situao de desemprego, considerada altamente positiva, na
perspectiva de Minarelli, uma vez que abre a possibilidade de o
trabalhador perceber que com armas e bagagens intactas, [...] est
disposio do mercado para ajudar outro tomador de servios a resolver
os problemas dele com a sua competncia. Alm disso, afirma sua
disposio de trabalhar em outro lugar. (MINARELLI, 1995, p. 30). O
autor s evidencia a face positiva do desemprego, s o v como
oportunidade. Essa uma das caractersticas do discurso de autoajuda
atuais.
interessante observar que Minarelli, quando possvel, evita os
termos desemprego ou demisso, dizendo que, quando a forma
tradicional do emprego suprimida, cai no vazio acontece uma
ruptura profissional. (MINARELLI, 1995, p. 31). Outro eufemismo
para referenciar tal condio diz respeito a quando o emprego sai de
cena. Quem est nessa condio so trabalhadores, profissionais
honestos, competentes em suas respectivas reas de atuao, mas que
deixam de entrar em sintonia com os novos tempos e acabam confiando
os assuntos de sua responsabilidade a terceiros. (MINARELLI, 1995,
p. 31).
Minarelli (1995, p. 32) lembra que, sem emprego, o profissional
tem um novo problema nas mos, que cuidar de si mesmo e viabilizar
a continuidade da carreira em outro lugar ou situao. A demisso, a
situao de estar desempregado, ganha outra conotao, pois ser
demitido no o fim da sua carreira, mas sim um evento
biogrfico, representa a bem da verdade, um marco divisrio na
carreira. Para esse escritor, ser demitido significa ter a possibilidade
de vivenciar um daqueles acontecimentos que nos ajudam a sair da
acomodao, rever valores, a perceber a possibilidade de que podemos
ser melhores, dispondo de mais e melhores oportunidades.
(MINARELLI, 1995, p. 32). Assim, prope: Voc est pronto a reagir?
O primeiro passo ver o mundo com outros olhos. Voc vai olhar para
as mesmas coisas, mas sob um novo enfoque. Concentre sua viso.
Seguem, dessa forma, as recomendaes para quem se encontra na
condio de ausncia de emprego:

225

Enxergar problemas como oportunidades;

Entender que a perda do emprego pode


significar mais tempo disponvel para tratar dos
seus interesses;

Encarar a ausncia de empregador como


uma oportunidade de voc descobrir a sua
autonomia e ter vrios empregadores ou
tomadores de servio;

Transformar a falta de rotina em um


estmulo criatividade, renovao, ao
crescimento. (MINARELLI, 1995, p. 32).

Neste caso, o demitido tem a seu favor os fatores tempo e


necessidade. [...] no est mais ocupado com os assuntos do antigo
cargo e do seu ex-empregador. (MINARELLI, 1995).
O prprio Minarelli esclarece no prefcio de seu livro que
os conselhos contidos neste livro para
implementar a empregabilidade [...] foram
extrados da experincia que adquiri como
conselheiro profissional especializado em
outplacement, isto , a recolocao de
profissionais patrocinada pelas empresas, e em
administrao de carreiras. (MINARELLI, 1995,
p. 12).

Tais conselhos so importantes, acredita o autor, pois influem na


compreenso de que as mudanas no mundo do trabalho alteraram o
conceito de segurana profissional no final do sculo XX. Tanto assim,
que ser um empregado fiel e dedicado no garante o emprego. Agora, a
segurana a conseqncia da atratividade do prestador de servios aos
olhos dos empregadores, de acordo com as suas necessidades
momentneas. (MINARELLI, 1995, p. 41).
Minarelli (1995, p. 27) tambm discute a importncia do
autoempresariamento, enfatizando que o mercado feito de
problemas para resolver e, por isso, o trabalho existe em todos os
locais onde h problemas. Para esse autor, concretamente, existem
muitas possibilidades de vender a sua capacidade de solucionar
problemas ou, se preferir, de obter trabalhos e rendimentos.
(MINARELLI, 1995, p. 27). Se, para Shinyashiki, acionar a capacidade

226
de venda fundamental para o empreendedor, da mesma forma
Minarelli tambm valoriza a habilidade de saber vender-se, destacando:
O profissional que empresaria o prprio trabalho
atua em um cenrio diferente:

Precisa ser hbil para vender o seu peixe.

Alm de vender, precisa executar o que


prope. E bem.

Deve cuidar do relacionamento com o


cliente.

Tambm cabe a ele administrar a


contabilidade, os recolhimentos e aplicar o
dinheiro.

Precisa atualizar-se constantemente para


estar em dia com a sua profisso. (MINARELLI,
1995, p. 29).

4.6.2 Empregabilidade em alta: seis pilares e um check-up


Minarelli, como outros autores de autoajuda, esforam-se em
frisar que a to valorizada segurana profissional no existe mais. Para
tanto, destaca seis pilares que constituiriam as bases da
empregabilidade. Primeiramente, h uma nfase ao contexto de
instabilidade, insegurana, resultado das mudanas nas relaes de
trabalho. O receiturio de Minarelli d a soluo! O autor apresenta os
pilares que sustentariam a empregabilidade, vista como a sada em
tempos de incerteza. Conforme ele, estes seis pilares [...] funcionam em
conjunto, so a base. [...] a unio de todos eles d segurana ao
profissional, confere empregabilidade, isto , a capacidade de gerar
trabalho, de trabalhar e de ganhar. (MINARELLI, 1995, p. 49).
Utilizando a metfora de um quaradouro84, o autor defende que,
se esses pilares forem fortes, se estiverem interligados, a plataforma
onde as roupas esto esticadas ficar nivelada e firme. possvel at
uma pessoa subir sem cair. (MINARELLI, 1995, p. 49). Mas fica o
alerta: se faltar um deles [pilares], ou se no estiver seguro ou nivelado
o suficiente, adeus (MINARELLI, 1995, p. 49), ou seja, todos os
pilares precisam estar articulados e coesos. Quais seriam ento esses
pilares criados por Minarelli? Adequao vocacional, competncia
84
O prprio Minarelli (2001, p. 49) define quaradouro como uma estrutura de madeira
sustentada por pilares ou pernas, usada para estender e secar roupas.

227
profissional, idoneidade, sade fsica e mental, reserva financeira e
fontes alternativas e relacionamentos. (MINARELLI, 1995, p. 49). O
que Minarelli prega em cada um desses pilares?
No que se refere ao primeiro pilar: adequao vocacional, o autor
aconselha:
Adotem uma atitude positiva de busca de
convergncia entre trabalho e vocao, mesmo
que seja necessrio trocar de emprego ou
atividade. Ou seja, que se empenhem na correo
do roteiro de suas carreiras, procurando
aproximar-se cada vez mais de sua vocao. um
empenho
pessoal
de
aprendizado,
de
desenvolvimento e direcionamento da sua oferta
de trabalho rumo rea eleita. (MINARELLI,
1995, p. 50).

O ideal, na opinio de Minarelli, alinhar, sempre que possvel,


o seu trabalho com a sua vocao [...] quando fui demitido, tive essa
oportunidade. (MINARELLI, 1995, p. 52, sem grifos no original). Fica
sob a responsabilidade de cada um examinar e decidir. Afinal, voc o
administrador de sua carreira. Uma proposta, ou oportunidade, boa e
deve ser aceita se contribui para o progresso de sua carreira e se ajusta
sua opo vocacional. (MINARELLI, 1995, p. 52).
Com relao ao segundo pilar, competncia profissional,
Minarelli assevera que competncia sinnimo de capacitao
profissional. Com ela voc compete no mercado. Compreende os
conhecimentos adquiridos, habilidades fsicas e mentais, o jeito de atuar
e a experincia. (MINARELLI, 1995, p. 52). Tais competncias
serviriam para atender um mundo que exige atualizao constante e
rpida para atender s necessidades do mercado. (MINARELLI, 1995,
p. 53). Lembra o autor que:
O profissional adequado aos novos tempos precisa
posicionar-se como um solucionador de
problemas disposio do mercado. E o mercado
precisa saber de sua existncia e da sua
competncia. Por isso, o profissional deve ser
seu prprio empresrio, vender seu trabalho o
tempo todo, agir como um vendedor.
necessrio saber se promover, fazer o seu

228
marketing. (MINARELLI, 1995, p. 54, sem grifos
no original).

Mas esses elementos ainda no so suficientes, na opinio do


autor, preciso,
uma boa apresentao, [pois] permite que o
profissional comunique sua competncia. Voc
pode ser muito eficiente, ter solucionado
anteriormente problemas iguais ao que est sendo
apresentado, mas se estiver mal vestido, sentado
de forma deselegante e com a expresso tensa,
no conseguir a confiana do cliente. ele quem
vai decidir se compra ou no seus servios. [...]
Mas ateno! Voc precisa adequar-se aos
padres convencionais de sua profisso.
(MINARELLI, 1995, p. 59).

O terceiro pilar que rege a empregabilidade o da idoneidade. O


autor sustenta que o profissional idneo, correto, honesto, que conduz
sua vida e seu trabalho dentro de princpios legais e ticos, tem a seu
favor a considerao, o apreo, a admirao e a confiana das pessoas.
(MINARELLI, 1995, p. 60). Desse modo, algum s ser contratado se
for idneo: s ser recomendado se for honesto; s ser apresentado,
elogiado ou convidado se for correto, confivel. (MINARELLI, 1995,
p. 60). interessante observar como Minarelli afirma que aquele
profissional que competente, que tem ocupao adequada sua
vocao, sempre encontra quem o apresente, d boas referncias e faa
recomendaes. (MINARELLI, 1995, p. 61, sem grifos no original).
O quarto pilar que d sustentao empregabilidade o da sade
fsica e mental. De acordo com Minarelli (1995, p. 62), aquele que quer
administrar sua empregabilidade, sua carreira, que quer o melhor para a
sua vida, deve lutar para obter esse equilbrio. Ou seja, a grande
sabedoria est em colocar o trabalho no seu devido lugar. Isso ser
possvel se houver continuamente o equilbrio entre o trabalho e o
lazer, entre a obrigao e a diverso, entre o papel profissional e os
demais papis que desempenhamos na vida. (MINARELLI, 1995, 62).
O equilbrio aqui mencionado no modismo, mas sim tem funo
produtiva ao capital. Trabalhador doente no produz, por isso, o cuidado
com o corpo e a mente traz vantagens e benefcios para o profissional e,
indiretamente, ao empregador.

229
O quinto pilar refere-se reserva financeira e fontes alternativas.
Tal reserva importante uma vez que o profissional, para manter sua
atualizao, precisa cuidar da sade, encontrar tempo e espao para
fazer exerccios ou para promover o lazer, tirar frias, viajar,
necessrio dinheiro. Um dinheiro que no est mais entrando. Dessa
forma, o profissional deve correr paralelamente, precisa saber planejar,
agir, ir em busca de fontes alternativas de receita [...] Esta reserva mais
um dos pilares que garantiro sua empregabilidade. (MINARELLI,
1995, p. 66).
O sexto e ltimo pilar o do relacionamento. Segundo Minarelli
(1995, p. 69), este um dos grandes patrimnios de um profissional.
Chamo-os de capital social85 porque tm um valor e podem solucionar
problemas. Essa noo de capital est associada a capital financeiro.
Esses so os seis pilares sobre os quais Minarelli assenta a
empregabilidade de um indivduo. Para o autor, sua proposta visa
desenvolver o conceito de empregabilidade e ampli-lo. Estou
convencido de que a segurana profissional no advm exclusivamente
da capacidade tcnica, mas do conjunto de fatores profissionais,
humanos e sociais. (MINARELLI, 1995, p. 12). Em seu livro, o autor
cria um procedimento que visa diagnosticar suas capacidades, as
tendncias e o cenrio que ter de enfrentar. Um deles o check-up
profissional e pessoal para avaliar as armas e bagagens, cujo roteiro,
composto de oitenta e oito perguntas. (MINARELLI, 1995, p. 13).
Ao final do check-up profissional e pessoal, composto pelas
questes relacionadas a cada um dos seis pilares, segue uma pequena
sntese do autor, parabenizando o leitor por ter completado o ciclo de
questes. Aps concluir tal etapa, o leitor dever traar o perfil da sua
empregabilidade. O autor deixa o alerta de que o teste no cientfico,
mas um instrumento que permite visualizar seu sentimento a respeito
do seu estado atual. (MINARELLI, 1995, p. 88). O perfil da
empregabilidade consiste em traar uma linha horizontal e outra vertical.
Na vertical, coloca-se em ordem crescente de baixo para cima de zero a
dez; na horizontal, ordenam-se os seis pilares da empregabilidade.
Depois de preenchido o perfil, Minarelli segue com um Menu de
conselhos. Esse conjunto de conselhos est expresso sob forma de
85

Vale observar a continuidade com a perspectiva da tica da personalidade desenvolvida por


Dale Carnegie, que enfatiza a importncia dos relacionamentos e do tecido social valorizando
as tcnicas de comunicao para o sucesso. Na perspectiva do autor, sucesso est vinculado
capacidade de se relacionar com as pessoas.

230
tarefas e compromissos de ao [...] eles foram agrupados segundo os
seis pilares que formam a base da empregabilidade. (MINARELLI,
1995, p. 93).
O referido menu de conselhos funciona da seguinte maneira:
Com base no autodiagnstico proporcionado pelo check-up de vida e
carreira, escolha os conselhos que melhor se aplicam ao seu caso.
(MINARELLI, 1995, p. 93). O leitor recebe um lembrete para no
esquecer que estas propostas tambm tm a funo de estimular sua
criatividade para engendrar outras opes inovadoras, de acordo com a
situao. (MINARELLI, 1995, p. 93). Para cada um dos pilares,
corresponde uma lista de tarefas e compromissos. O leitor dever marcar
um X em seu caderno de anotaes, naquelas que considerar aplicveis e
adequadas.
Abaixo, algumas tarefas e compromissos criados por Minarelli
para cada um dos pilares:
a) Adequao vocacional: corrigir a rota da carreira rumo verdadeira
vocao; trocar de emprego; evitar perder tempo com treinamento e
desenvolvimento que no contribuam para realizar a sua vocao.
b) Competncia profissional: elevar seu nvel de informao e cultura
geral; administrar a prpria carreira; tomar a iniciativa de buscar cursos
e treinamentos; revisar atitudes e comportamentos profissionais e
pessoais; desenvolver flexibilidade profissional, experimentar novas
relaes profissionais.
c) Idoneidade: ser leal nos relacionamentos; assumir os erros sem
dividir a culpa.
d) Sade fsica e mental: cuidar melhor da aparncia e da apresentao
pessoal; fazer os tratamentos recomendados; dormir o suficiente para
repor as energias; identificar e evitar situaes de stress; fazer terapia;
procurar aconselhamento psicolgico.
e) Reserva financeira e fontes alternativas: investir em atualizao
profissional; bancar o custo dos treinamentos, quando for necessrio;
planejar um negcio prprio; preparar-se para iniciar um negcio
prprio.
f) Relacionamentos: agradecer quando receber ajuda de qualquer tipo;
aprender a tcnica do networking; pedir informaes, conselhos,
orientaes, sugestes.

231

Por fim, est disposio do leitor um plano de ao para a


melhoria do nvel de empregabilidade. E como diz Minarelli (1995, p.
105):
Continue utilizando o caderno em que anotou os
dados do check-up e transcreva para ele as tarefas
do captulo V que voc assinalou com um X.
Depois estabelea a forma de execuo e marque
as datas de incio. Utilize o modelo apresentado a
seguir. Execute o controle! Este o compromisso
com voc mesmo. Ningum vai fiscaliz-lo. Fique
atento, pois o interesse em obter todo seu.
Revise o que escreveu a cada seis meses para
avaliar os progressos alcanados e anote as novas
necessidades que surgirem. Reprograme as
tarefas. Habitue-se a zelar pela sua carreira.
Lembre-se: a carreira como uma escada rolante
que no pra de descer. Se voc ficar parado,
descer junto. Mantenha-se em movimento.
Sempre que as condies forem favorveis,
acelere o passo.

O plano de ao proposto nada mais do que um quadro dividido


em trs colunas em que constam: tarefas e compromissos; forma de
execuo e datas de incio, do que Minarelli (1995, p. 96) destaca:
Utilize o modelo apresentado a seguir. Execute o controle! Este o
compromisso com voc mesmo. Ningum vai fiscaliz-lo mesmo, a
responsabilidade toda sua. O indivduo dever cumprir as tarefas e
compromissos firmados na construo de sua carreira, sendo de
responsabilidade de cada indivduo o sucesso ou o fracasso do seu plano
de ao, lembrando que, em caso de fracasso, o indivduo dever
assumir os erros sem dividir a culpa. (MINARELLI, 1995, p. 96,
sem grifos no original).
Os exemplos de Minarelli merecem destaque pela mobilizao,
pela tentativa de envolvimento que criada. Consiste, na verdade, numa
estratgia de compreenso, associao por parte do leitor, da mensagem
que se deseja enviar. por isso que, para Minarelli (1995, p. 24), no
existe nada melhor que um bom exemplo:

232
Trabalhei como consultor de outplacement com
um importante executivo demitido por uma
empresa multinacional aps vinte e dois anos de
servio. Ele gerenciava uma das filiais brasileiras
que a matriz decidiu fechar. Tinha 40 anos e
desesperou-se a ponto de perder a fala e deixar os
familiares em pnico quanto possibilidade de
suicidar-se. Era o que considervamos um caso de
alto risco. Alm do emprego, perdera tambm o
status. [...] Passei trs dias a seu lado, tentando
mostrar a ele que a vida continua, apesar do
emprego que havia perdido. Ele, contudo, achava
a situao irremedivel. A certa altura das muitas
conversas que tivemos, pedi a ele que descrevesse
o seu trabalho como gerente de uma fbrica de
cigarros. Ele me olhou meio desanimado, tomou
flego e comeou. [...] Nova guinada na conversa.
Pedi que ele falasse sobre as etapas de fabricao
de um mao de cigarros, do contedo
embalagem. [...] E se o tabaco fosse substitudo
por cacau? O cigarro de chocolate no seria
produzido da mesma forma? Ele disse que havia
muitas semelhanas no processo. [...] A conversa
continuou at concluirmos, juntos, que ele no era
s expert no gerenciamento de fabricao dos
cigarros, mas que se tornara um profissional
especializado em gerir processos de fabricao
contnua! Mais seguro e confiante, em pouco
tempo conseguiu recolocar-se com sucesso no
comando dos processos de produo de uma
cooperativa agroindustrial. (MINARELLI, 1995,
p. 26).

Para cada histria contada, para cada exemplo evocado, existe


uma moral.
4.6.3 A autoajuda de Minarelli
Nessa linha de discusso, preciso dizer que a difuso dos
aconselhamentos do discurso de autoajuda torna-se um dos instrumentos
para se fazer chegar ideologias. Considerando-se a ideologia uma
concepo de mundo que est implicitamente manifesta na arte, no
direito, na atividade econmica e nas manifestaes da vida individual e

233
coletiva (GRAMSCI, 1984), mas tambm, na criao de discursos, a
exemplo dos disseminados na literatura de autoajuda.
Assim, aps anlise do que constitui a autoajuda de Minarelli,
possvel considerar que seu discurso prepara um terreno frtil para a
proliferao de um determinado modo de pensar o desemprego a partir
de uma conotao eminentemente positiva, por isso, a nfase
empregabilidade como capacidade individual de gerar trabalho e
renda. um discurso que pretende simplificar, ocultar as determinaes
econmicas, polticas e sociais que viabilizam as formas de explorao e
dominao para a reproduo do capital. Essa simplificao da
linguagem, do vocabulrio relativo ao desemprego particularmente
revelada pelo uso de eufemismos na defesa da tese que ser um
desempregado na atualidade significa, to e simplesmente: estar
disponvel; ter o tempo a seu favor; ter a oportunidade de alinhar o
trabalho com sua vocao; ter a possibilidade de solucionar problemas e
estar disposio do mercado; ser seu prprio empresrio ou promoter;
desemprego como ruptura profissional, desemprego visto como o
emprego sai de cena. (MINARELLI, 1995). Alm do que, deve estar
disposio do mercado para ajudar o tomador de servios. Tal discurso
est em consonncia com a anlise de Martins e Neves, que afirmam a
nova pedagogia da hegemonia como aquela que assegura que
o exerccio da dominao de classe seja
viabilizado por meio de processos educativos
positivos. Sua efetividade justifica-se em parte
pela fora de sua fundamentao terica, que
legitima iniciativas polticas de organizaes e
pessoas baseadas na compreenso de que o
aparelho de Estado no pode estar presente todo o
tempo e espao e que necessrio que a sociedade
civil e que cada cidado se tornem responsveis
pela mudana da poltica e pela definio de
formas alternativas de ao social. (MARTINS;
NEVES, 2010, p. 24).

Trata-se, assim, de um discurso criador e propagador de verdades


que reduzem ao singular a responsabilidade pelas condies adversas
do mercado de trabalho. Para a consolidao desse discurso, Minarelli
utiliza um discurso intermediado por estratgias como o eufemismo, j
salientado, tambm metforas que reforam tempos de incerteza e
constituem uma prtica discursiva em que se observa a tentativa de

234
posicionar o indivduo em situaes totalmente diversas. Em tais
situaes, preciso superao, mudana, coragem e enfrentamento, que
aparecem com maior freqncia associadas s metforas: Comportar-se
como uma pessoa diante de uma escada rolante que desce, ou ainda, o
quaradouro cai onde houver um pilar mais fraco. (MINARELLI, 1995,
p. 53).
Alm disso, dentre outras estratgias utilizadas por Minarelli em
sua prtica discursiva, esto os exemplos, os modelos de sucesso. Os
exemplos, os excertos biogrficos permitem ao autor condensar em seu
relato os princpios que deseja demarcar ou, como assinalava Smiles
(1893, p. 5), os exemplos produzem bons efeitos. Em termos
ideolgicos, os modelos de sucesso tendem a modificar
comportamentos, de tal forma que, associadas aos fragmentos de
histrias de vida, atitudes como coragem, pacincia, fora de vontade,
autodisciplina, automotivao, entre outras, so utilizadas num contexto
em que a sntese a moral da histria.
Na construo discursiva de Minarelli, esto presentes flexes
verbais no modo imperativo. O uso do imperativo na construo do
discurso de autoajuda manifesta ordem, apelo concretizao de uma
ao, remetendo sempre ao uso afirmativo do contedo exposto. Assim,
desenvolva habilidades [...] procure clientes [...] tema ser superado e
descartado [...] no fique parado [...] precisa adequar-se.
(MINARELLI, 1995).
As demandas expressas no discurso de Minarelli no so questes
meramente semnticas, mas visam recomendaes, receitas sobre o que
fazer e como fazer para tornar-se um trabalhador de novo tipo. A ideia
de produo de um indivduo fiel, dedicado, honesto, competente,
idneo, responsvel, com posicionamento e pensamentos positivos, com
iniciativa est associada noo de mudana, em especial, mudana do
conceito a respeito da situao de emprego e desemprego. Isso implica
que a cada um dos leitores est delegada a responsabilidade de criar seu
networking, examinar, decidir, corrigir o roteiro de sua carreira,
adequar-se aos padres, competir no mercado, saber vender bem os seus
servios (MINARELLI, 1995) e, em caso de fracasso, deve assumir os
erros sem dividir a culpa.
O discurso de autoajuda de Minarelli visa reduzir ao particular a
situao do desemprego, estimulando a empregabilidade como luta

235
individual, desencorajando as formas coletivas de luta e reivindicao,
buscando-se, assim, a reproduo da ordem estabelecida.
4.6.4 Sucesso conseqncia do trabalho. Quem se mantm
como est, ficar para trs!
Sucesso e trabalho: O que falar dessa combinao? Na viso de
Shinyashiki (2001, p. 61), para muita gente, trabalho e sucesso so
coisas desvinculadas. Muitas pessoas acreditam que o sucesso algo
que acontece por si s. Mas o autor esclarece: De uma vez por todas,
precisamos deixar claro que o sucesso conseqncia do trabalho.
Alm dos mais, para ter sucesso profissional, voc precisa
obrigatoriamente pensar no outro. [...] o trabalho bem feito passa pelo
esforo de pensar no prximo! (SHINYASHIKI, 2001, p. 77). Nesta
passagem, a preocupao no est relacionada benevolncia do ser
humano, mas visa frisar que o sucesso profissional est sempre ligado
capacidade de solucionar problemas ou satisfazer as necessidades de
algum. (SHINYASHIKI, 2001, p. 77). Ou seja, quando algum est
passando por uma crise profissional, porque abandonou o propsito
bsico de servir ao prximo, o que significa dizer que estar empregado
implica necessariamente servir ao empregador. Por isso, conclui o autor,
quem no sabe servir, certamente fracassar do ponto de vista
financeiro. (SHINYASHIKI, 2001, p. 78).
A felicidade profissional seria adquirida quando trabalhamos em
algo que verdadeiramente tem a ver com a nossa vocao.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 79, sem grifo no original). Assim como
Minarelli com a sua adequao vocacional, Shinyashiki (2001, p. 80)
assevera que preciso aproveitar para analisar qual a sua verdadeira
vocao e v atrs do seu sonho. A busca da vocao seria um dos
elementos que levariam ao sucesso profissional. Mas esta uma questo
de escolha individual, por isso,
so vrios os momentos especiais em que
preciso buscar dentro de si mesmo uma resposta:

Ao escolher uma profisso.

Ao decidir em que empresa vai trabalhar.

Ao optar entre um emprego e um negcio


prprio.

Ao avaliar como deve se posicionar no


mercado. (SHINYASHIKI, 2001, p. 85).

236
Uma vez que a resposta para se alcanar o sucesso profissional
est no interior de cada um, Shinyashiki (2001, p. 85) ressalta que
nossas decises mais importantes nascem de uma anlise de fatores
externos, mas o essencial que sejamos fiis nossa vocao, voz
interior que nos diz quem de fato somos e para que de fato servimos.
Mas no basta voc fazer o que gosta para obter um bom retorno
financeiro, um dos pilares para o sucesso profissional. O importante
capacitar-se para que sua profisso lhe traga, alm do prazer natural de
cumprir sua misso, a tranqilidade econmica decorrente de um
trabalho realizado com o mximo de perfeio. (SHINYASHIKI, 2001,
p. 86).
Numa situao de desemprego, por exemplo, natural que [as
pessoas] se sintam inseguras. Quanto maior a velocidade das
mudanas tecnolgicas, mas inabalveis tm de ser os seus valores. Os
seus princpios devem alimentar cada deciso de sua vida.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 87). O autor tambm enfatiza que o sucesso
deve ser conquistado respeitando determinadas regras. A mesma coisa
acontece com o aluno que cola para passar de ano. Ele vence uma
prova, mas perde o respeito por si mesmo. um preo muito alto, ou
uma vitria que destri a auto-estima. (SHINYASHIKI, 2001, p.
87).
Adequao vocacional e competncia profissional so dois dos
pilares que sustentam as bases da empregabilidade, de acordo com a
formulao de Minarelli (1995). Mas, para Shinyashiki (2001, p. 88),
vocao e competncia tambm adquirem status essencial, visto que
importante ter valores fundamentais, respeitar a vocao, mas
essencial tambm desenvolver competncias que transformem nossa
vocao em resultados. A felicidade profissional ocorre quando nossa
vocao soma-se competncia.
Vocao e competncia pertencem ao universo do
empreendedorismo. Na terceira parte de seu livro, Empreender ou
morrer!, Shinyashiki discute com o seu leitor as bases que compem o
empreendedorismo. Inicia seu discurso, na mesma perspectiva de
Smiles, enfatizando que os grandes empresrios que se conhece, muitas
vezes, comearam suas vidas em situao de pobreza e hoje exibem
condio de sucesso, e servem de exemplo. Assim, essas pessoas que
admiramos, argumenta o autor, tm algo de especial: so todas
empreendedoras. (SHINYASHIKI, 2001, p. 91).

237
Shinyashiki constri o perfil do indivduo empreendedor, no que
salienta:
O empreendedor o negro que no se deixou
anular pelo racismo e construiu uma carreira de
sucesso. a mulher que superou o preconceito e
se transformou em presidente de uma grande
empresa. o jovem que no ficou esperando o
tempo passar para ganhar experincia e criou as
prprias oportunidades. o idoso que aproveitou
o estmulo de estar desempregado e soube
revolucionar sua vida. O empreendedor aquela
moa mimada que largou todas as mordomias de
sua casa e foi morar no exterior para fazer psgraduao. o jovem que deixou todas as
facilidades de trabalhar na empresa do pai para
criar o prprio caminho e construir suas vitrias.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 92).

Empreendedorismo, para o escritor, representa mais do que


apenas criar um negcio, significa principalmente assumir um modo
mais ousado de viver, de ir luta para criar algo melhor para todos.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 92). Alm disso, o modelo de empreendedor,
proposto por Shinyashiki, no se contenta em ficar observando o jogo
da arquibancada. Ele quer entrar em campo. O mundo de um
empreendedor infinito, como ilimitadas so as possibilidades de
transformar oportunidades em resultados. (SHINYASHIKI, 2001, p.
92).
Ento, o que faz um verdadeiro empreendedor? Responde:
simples: ele sabe transformar um sonho em negcio. E no se contenta
simplesmente em criar mais um negcio. Ele quer ser especial. E o
melhor de tudo que consegue! (SHINYASHIKI, 2001, p. 93). Para
que isso se efetive, h alguns segredos que o indivduo precisa saber
para desenvolver seu esprito empreendedor.
Existem infinitas razes para o fracasso: muitas
vezes, as pessoas comearam um negcio sem
fazer um estudo do mercado, montaram um hotel
na localizao errada, no conseguiram enfrentar
concorrentes com fortes vantagens competitivas.
Mas pior de tudo que provavelmente faltavam a

238
elas
as
habilidades
dos
verdadeiros
empreendedores. (SHINYASHIKI, 2001, p. 93).

O esprito empreendedor algo a ser construdo pelo prprio


indivduo. Afinal, cada vez mais assumir o prprio negcio uma
aventura muito arriscada. Antes de entrar nessa empreitada, importante
analisar suas chances de sucesso e, principalmente, descobrir se voc
tem a personalidade necessria para se tornar o dono do negcio.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 95). Se no tiver essas habilidades, o
trabalho mais importante no vai ser dirigido ao negcio, mas a
determinadas atitudes que podem criar os fundamentos do seu
sucesso. (SHINYASHIKI, 2001, p. 95, sem grifos no original).
Dessa forma, quais seriam essas atitudes, pilares, para
fundamentar o sucesso, o esprito empreendedor de um indivduo? Na
acepo de Shinyashiki (2001), so estes os fundamentos essenciais a
serem desenvolvidos: automotivao; autodisciplina; fazer o negcio dar
lucros; economizar como sinal de inteligncia; aprender a vender e ser
um eterno vendedor.
A respeito dos seis pilares do sucesso de um empreendedor, a
automotivao, por exemplo, requer que o indivduo assuma que
agora o jogo est em suas mos. No haver
ningum acima de voc para motiv-lo. Agora a
sua vez de incendiar o time. A energia toda ter
que comear dentro de voc. No adianta ficar
esperando que algum aparea para fornecer o gs
extra de que voc precisa. Ou cria o pique para
fazer o que precisa ser feito, ou as coisas no vo
acontecer. (SHINYASHIKI, 2001, p. 95, sem
grifos no original).

Refora o autor:
Pior ainda: agora no adianta reclamar de
ningum. Agora voc tem a chance de mostrar
que tudo o que dizia que faria quando fosse
promovido ser realizado. Agora no tem papai
nem mame. Agora, mais do que nunca, voc
precisa da primeira qualidade de um
empreendedor: a automotivao (SHINYASHIKI,
2001, p. 95).

239
A automotivao de um empreendedor o leva a ter conscincia
de que seu sucesso est relacionado capacidade de sempre ter energia
extra e eletrizante. (SHINYASHIKI, 2001, p. 97, sem grifos no
original). Essa motivao interior extrapola os limites do corpo e da
mente e, freqentemente, contagia toda a equipe (SHINYASHIKI,
2001, p. 97). A automotivao apresentada ao leitor como uma atitude
inata, que cada um j possui e que, para a despertar, basta querer. O
profissional automotivado sempre quer mais. Sua exigncia diz, a cada
instante, que deve produzir algo melhor do que j fez. Ele no mede
esforos para aperfeioar seu trabalho, ou seja, est continuamente no
limite entre a alegria de ter conquistado uma vitria e a vontade de
obter mais. Para ele, o cu o limite. (SHINYASHIKI, 2001, p. 97).
interessante observar como o autor explora as metforas do
esporte, falando ao trabalhador como um treinador faz recomendaes a
um atleta. A aluso imagem de um campeo, aos requisitos de
perseverana e esforo, fortalece esta ideia.
A segunda atitude de um empreendedor a autodisciplina. Para
Shinyashiki, a empresa smbolo dessa qualidade o McDonalds, mas o
argumento para tal nfase superficial e diz apenas que a rede criou
equipes dispostas a levar o negcio ao mximo da perfeio.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 98).
Disciplina, segundo Shinyashiki, nada mais do que respeito ao
prximo. O autor esclarece, ainda, que o sujeito disciplinado segue
um mtodo que evita o desperdcio de energia ou de oportunidades. No
fica mudando seus compromissos porque respeita seus clientes e sua
palavra. (SHINYASHIKI, 2001, p. 99). dessa forma que o
empreendedor
tem a disciplina dentro de si, mesmo que sua mesa
seja bagunada (muitas vezes ali h uma ordem
interna que s ele entende). Trabalha com os
prazos dentro da cabea. Realiza tarefas, s vezes
desagradveis, com a mesma dedicao com que
um obeso comprometido faz seu regime.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 99).

A disciplina importante porque faz com que o empreendedor


analise minuciosamente um projeto antes de inici-lo. Impede que a
ousadia faa o general levar seu exrcito para uma batalha sem

240
perspectivas. (SHINYASHIKI, 2001, p. 99). A disciplina tem a funo
de fazer com que o indivduo que empreende aja como um jogador
compulsivo que deixa para os dados a deciso do sucesso ou fracasso
dos negcios. nessa perspectiva que o bom empreendedor sabe
analisar. Ele reflete sobre seus pontos fracos e fortes. E, alm de
conhecer a si prprio, conhece a concorrncia , e sabe que seus
adversrios de mercado tambm tm pontos fracos e pontos fortes.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 100). justamente por isso que o
empreendedor
criterioso e faz um estudo completo do mercado,
analisa seus futuros concorrentes e s depois toma
uma deciso. Feito isso, mergulha com toda a
fora do seu corao no novo projeto. O
empreendedor tem o corao de um atleta amador,
mas
a
cabea
de
um
profissional.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 100).

Shinyashiki mostra ao leitor que a disciplina essencial para o


sucesso profissional e afirma que, quando uma pessoa no tem
disciplina, torna-se catica. Vive adiando a resoluo de seus problemas,
fica esquecida, a cada dia chega em hora diferente empresa, confunde
as datas e os compromissos, faz promessas que no cumpre e, por esse
motivo, uma pessoa sem disciplina acaba precisando de um chefe.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 100). Por fim, o guru conclui que a
disciplina a humildade de continuar num caminho mesmo que os
resultados ainda no estejam aparecendo. (SHINYASHIKI, 2001, p.
101).
Esse negcio tem de dar lucros, outra qualidade que um
empreendedor precisa para ter sucesso diz respeito a que precisamos ter
em mente que o fruto do nosso trabalho deve ser acompanhado de
lucro. (SHINYASHIKI, 2001, p. 104). Assim, aqueles que tm o
prazer de aumentar os lucros do negcio ocuparo sempre um lugar de
destaque na organizao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 104). Shinyashiki,
ao discutir esse aspecto, confunde o leitor, quando ora volta-se para o
indivduo empreendedor que gera renda abrindo seu prprio negcio, e
ora volta-se ao mesmo indivduo que trabalha como empregado em uma
determinada empresa. O profissional campeo tem prazer em dar lucro
para a sua organizao. Ele no fica ressentido quando v o fruto de seu

241
trabalho gerar riquezas para a empresa. (SHINYASHIKI, 2001, p.
102).
Outra atitude que o verdadeiro empreendedor precisa colocar em
ao economizar. Este um sinal de inteligncia, diz Shinyashiki.
Isso significa que economizar funo de todos os colaboradores de
uma organizao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 104). Economizar passa
por aes simples como apagar as luzes, poupar papel, fazer ligaes
internacionais nas horas em que o custo mais baixo (SHINYASHIKI,
2001, p. 105). Conclui o escritor que, da mesma maneira como todos
precisam estar sintonizados com o departamento de vendas para atingir
as metas da organizao, todos devem aprender economizar para que os
lucros continuem aumentando. (SHINYASHIKI, 2001, p. 106).
Vender mais uma das qualidades essenciais que compem o
bom empreendedor. Vender um verbo precioso, diz Shinyashiki.
Isso porque vender contradiz a atitude passiva. A passividade mata a
nossa vida. Esperamos ser aceitos e respeitados sem a preocupao de
conquistar os clientes. No percebemos que, se quisermos que nossas
idias sejam compradas, precisaremos fazer um esforo para vend-las.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 108). Antes de tudo, preciso que o
indivduo pare e converse consigo mesmo durante alguns minutos.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 109). E pergunta: Voc acredita em seu
potencial, na sua sensibilidade, na sua capacidade de evoluir? Ento,
convena-se e negocie com voc mesmo com dinamismo. Tenha
sempre em mente que voc o seu cliente mais importante.
(SHINYASHIKI, 2001, p.109). Essa atitude de um eterno vendedor.
Tais mentores que se propem a ajudar cada um na soluo de
problemas aproximam-se quando escrevem, muitas vezes, trazendo para
o leitor a mesma temtica, com peculiaridades na abordagem.
Mas no decorrer de seu livro, Shinyashiki (2001, p. 150)
abandona a referncia ao empreendedor e passa a se referir ao indivduo
como um campeo, como um sbio.
Eu admiro muito mais os sbios do que os gnios.
So os sbios que transformam:

Vitrias em momentos de alegria.

Derrotas em experincias de aprendizado.

Tarefas em misses.

Pessoas esforadas em verdadeiros


campees.

242
A quinta parte de seu livro versa sobre a sabedoria. Nas palavras
de Shinyashiki (2001, p. 149):
Agora o momento de entrar no significado de
nossas vidas, de ter a tranqilidade de uma vida
to plena que, quando a morte se aproximar,
possamos olh-la nos olhos com serenidade. Olhar
para o que fizemos em nossa viagem pelo planeta
Terra e dizer com calma: Valeu a pena, realizei a
minha misso, aprendi bastante e agora estou
preparado para nova viagem.

interessante notar que com esta passagem que o autor tem a


inteno de esclarecer ao leitor o que sabedoria. Tanto que, na
sequncia, afirma: Isso se chama sabedoria [...] a sabedoria que d
colorido s batalhas do nosso dia-a-dia. (SHINYASHIKI, 2001, p.
149).
Assim, a passagem que segue visa dar fundamento a quem o
sbio:
Quantas pessoas iriam perder noites de sono para
se lamentar da ingratido do funcionrio e ficar se
culpando por acreditar em algum que no
mereceu sua confiana! Ele simplesmente
aproveitou a lio. No gastou energia julgando o
outro nem se martirizando. Ele saiu mais forte de
um
problema
que
poderia
derrot-lo.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 149).

O sbio ento aquele que compreende ao invs de julgar, que


procura virtudes ao invs de buscar defeitos, procura solues ao invs
de mostrar problemas. Ademais, o sbio tem a capacidade de ver um
acontecimento dos mais variados ngulos, dos mais diferentes pontos de
vista. Conflito o resultado da dificuldade de ver e analisar uma
situao do ponto de vista do outro. Essa rigidez leva ao radicalismo.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 151). Shinyashiki conclui o perfil do
indivduo sbio: aquele que consegue compreender um
acontecimento com os olhos do corao. (SHINYASHIKI, 2001, p.
151).

243
4.6.5 A vida nos devolve o resultado da nossa competncia
A autoajuda impulsionada por dois elementos fundamentais:
popularizao de uma variedade de exemplos e por indicar
recomendaes, receitas de ao para indivduos que estejam nas mais
variadas situaes. como se esses profetas dissessem o tempo todo
para seus leitores: prestem ateno no que dissemos, uma maneira de
preparar-se para o que est por vir.
Competncia um conceito muito explorado pelos gurus da
autoajuda. Lembra Shinyashiki (2001, p. 16) que o mundo profissional
exige competncia total. A explicao para o significado dessa
expresso feita com o seguinte exemplo:
Um grande amigo meu tem um filho com imenso
talento para jogar futebol. E esse rapaz realmente
faz milagres com a bola nos ps. Mas tem
dificuldade para manter-se em forma. No final do
ano passado, estava to gordinho que o tcnico
dele comeou a insistir para que cuidasse do peso
e, aproximando-se os jogos decisivos, ameaava
coloc-lo no banco de reservas se no perdesse os
quilos excedentes. At que, depois de um jogo da
semifinal do campeonato da escola, disse ao
rapaz:
- No prximo ano voc comea na reserva.
O rapaz abaixou a cabea, mas sorriu com
tranqilidade. Sabia da sua competncia. Quando
o pai lhe perguntou sobre a reserva, ele
respondeu:
- Pai, tenho certeza de que no fico no banco mais
que cinco minutos. Na hora em que o jogo apertar,
ele vai me chamar.
E assim aconteceu. O tcnico logo o chamou para
substituir um jogador menos talentoso. No
entanto, aquele jogo estava disputadssimo e, nos
ltimos minutos, j cansado, ele no conseguiu
voltar, um jogador adversrio o venceu na corrida
e marcou o gol da vitria.
Ele saiu arrasado.
O pai, na tentativa de melhorar o seu astral quis
convenc-lo de que o lance fatal tinha sido um
golpe de sorte do adversrio, mas o argumento

244
no surtiu efeito. O rapaz entrou no seu quarto e
no quis comer nem conversar com ningum.
Alguns dias depois, o garoto procurou o pai e
pediu que o levasse ao mdico. Tinha decidido
emagrecer. Meu amigo percebeu que havia espao
para uma conversa mais profunda com o filho:
- Filho, fcil enrolar o tcnico, o professor, o
pai, a me, mas difcil mesmo enganar a vida.
Daqui a algum tempo, meu filho, vai ser s voc
com o seu paciente na mesa de cirurgia e, ento, o
resultado vai demonstrar o que realmente sabe.
- Mas eu no vou ser mdico, pai. Eu quero ser
advogado!
- Filho, a mesma coisa. Daqui a algum tempo,
como advogado, diante do tribunal, sero voc, o
seu cliente e o advogado da outra parte. E a
sentena do juiz no ser dada com base no que
simplesmente aconteceu, mas no que vocs dois
conseguirem provar...Verdade! (SHINYASHIKI,
2001, p. 17-18).

A histria contada visa mudana na condio humana. No


entanto, o autor remete ao leitor a responsabilidade de uma leitura que
seja mais adequada a sua situao. Em rpido comentrio a sua moral
da histria -, destaca apenas que preciso gastar menos tempo culpando
os outros e investir mais na resoluo dos problemas.
Shinyashiki (2001, p. 18) afirma que
muitas pessoas gastam tempo e energia para jogar
a culpa de seus insucessos naqueles que as
rodeiam, nas situaes e circunstncias
perifricas, e no admitem a realidade. Vivem
num mundo ilusrio, com pensamentos amargos e
estratgias equivocadas que nunca resolvero seus
problemas. Podem at convencer os outros de que
o mundo muito cruel e injusto, mas nunca
construiro sua vitria.

Para esse autor, as pessoas vivem culpando os pais,


responsabilizando os chefes, criticando os clientes e acusando os
concorrentes, mas no mudam de atitude perante a carreira e a vida.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 19). Nesse sentido,

245
a vida no est como voc planejou, chegado o
momento de parar e fazer uma profunda avaliao
do modo e dos objetivos em que tem investido a
sua energia. Olhe para dentro de si mesmo, reflita
sobre os seus valores, procure observar a maneira
como reage diante dos desafios. (SHINYASHIKI,
2001, p. 19).

Nessa literatura, a resposta est a, dentro de voc.


(SHINYASHIKI, 2001, p. 20).
Desse modo, em vez de reclamar, o indivduo precisa
compreender que os empregos mudaram de lugar, diz Shinyashiki
(2001, p. 28). O que fazer ento? Aproveitar as novas oportunidades
para evoluir como profissionais e crescer em nossas carreiras. Para
isso, o escritor refora: Pare de reclamar do governo. As solues no
esto em Braslia (SHINYASHIKI, 2001, p. 28), j que o governo
sozinho no tem a capacidade de resolver os problemas da nossa
sociedade porque eles somente tero soluo quando entendermos que
fazemos parte do problema e teremos de fazer parte da soluo.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 59, sem grifos no original). Os autores
aventam que do indivduo a responsabilidade de adequao, de
melhoria de sua condio de empregabilidade, visto que cada indivduo
pode encontrar um novo emprego dentro ou fora de uma empresa
seguindo os conselhos contidos em suas publicaes.
Assim, argumenta Shinyashiki (2001, p. 73), a estabilidade no
existe mais. Em uma poca de mudanas permanentes, evoluir mais do
que opo, obrigao. Para isso, ressalta:
Ateno: esta uma nova era, que exige pessoas
que amem o prximo e tambm estejam atentas ao
mundo. Abra as portas da sua carreira e tenha a
coragem de explorar os seus talentos. Questione
todos os seus valores e crenas a respeito da sua
forma de trabalhar e tenha coragem de abandonar
o que no lhe serve mais. No incio, pode ser
ameaador. Mas depois de algum tempo voc vai
ter prazer em viver a aventura da auto-realizao.
Ser um longo caminho, mas tenho certeza de que
no fim desse percurso voc sentir muito orgulho
de si mesmo. (SHINYASHIKI, 2001, p. 74, sem
grifos no original).

246
Se o indivduo seguir tais recomendaes, ainda assim, perceber
que as mudanas so sempre acompanhadas de angstia e insegurana,
mas somente aqueles que mostrarem a coragem de enfrentar a
escurido tero direito ao maior prmio que pode existir: uma vida
plena de realizaes. (SHINYASHIKI, 2001, p. 74). Dito de outra
forma, nossa poca exige que todos se realizem como seres humanos
arriscando novos projetos profissionais. (SHINYASHIKI, 2001, p. 73,
sem grifo no original).
Com essa passagem, fica para o leitor, o desafio de avanar na
compreenso e estabelecer uma relao do trecho acima com o seu
trabalho, uma vez que a explicao do autor se detm apenas em
ressaltar que preciso assumir para si a culpa ao invs de culpar o outro.
Tudo uma questo de observar a maneira como voc reage diante dos
desafios. (SHINYASHIKI, 2001, p. 19).
Na atualidade, estamos na era da hipercompetio, afirma
Shinyashiki (2001, p. 25). Nesse universo, no basta somente esforo,
apenas os melhores atingiro suas metas. Quem mantm o que est
fazendo vai ficar inevitavelmente para trs. (SHINYASHIKI, 2001, p.
25). A busca de superao que acontece no mundo esportivo tambm
vale para o mundo do trabalho. Por isso, exemplifica:
Nas olimpadas de Sydney havia dois favoritos na
prova dos 1500 metros nado livre. Ambos
australianos. Um mais experiente, Kieren Pierkins
que ganhara a medalha de ouro nessa prova em
Atlanta -, e um novato, Grant Hackett. O novato
ganhou, e na entrevista coletiva perguntaram ao
veterano, que ficou em segundo lugar, como
estava se sentindo. Ele respondeu: Estou
frustrado com o resultado, pois queria ganhar a
medalha de ouro, mas ao mesmo tempo, estou
satisfeito com o meu trabalho porque consegui
bater o recorde olmpico. O problema que
Hackett fez um tempo ainda melhor que o meu.
Detalhe: a diferena entre os dois foi de apenas
cinco segundos! (SHINYASHIKI, 2001, p. 25).

Em referncia anterior quando se destacou a posio de


Shinyashiki a respeito do Estado, dizendo ao leitor que as solues no
esto em Braslia, que no adianta reclamar do governo, pois compete a
cada um resolver seus problemas. Para isso, a postura adequada seria:

247
Os campees [...] aproveitam as pequenas oportunidades que surgem
para mostrar sua competncia e, assim, ganhar mais pontos no jogo da
vida. (SHINYASHIKI, 2001, p. 33). Dessa maneira, o guru brinda
seu leitor com mais um de seus exemplos:
Voc j imaginou, por exemplo, o que seria passar
num concurso dos Correios e Telgrafos do Brasil
e ser deslocado para Pinheirinho do Vale, no Rio
Grande do Sul, uma cidade de apenas 4.500
habitantes, com um salrio de 200 reais?
Trabalhar nessa cidade talvez fosse algo que voc
jamais valorizasse. Mas a funcionria dos
Correios Noemi Maria Noetzole quebrou esse
paradigma.
H dois anos, ela passou nesse concurso, mudouse para Pinheirinho do Vale, arregaou as mangas
e tratou de reduzir ao mximo os dficits da
agncia. Noemi era a nica funcionria do local.
Quando chegou ao seu posto, virou tudo de pernas
para o ar: organizou um planejamento estratgico
que inclui aes promocionais extremamente
criativas e tratou de melhorar a diviso de seu
tempo.
Pela manh, Noemi organizava a expedio e
tarde entregava a correspondncia. Com isso,
regularizou as entregas, que chegavam sempre
com atraso. Noemi criou dezenas de promoes
para as datas comemorativas e encontrou sadas
inusitadas, como quando descobriu o aniversrio
do padre da parquia local e organizou uma super
campanha para que a populao mandasse um
telegrama e um cravo ao sacerdote.
Todas essas iniciativas deram to certo que Noemi
decidiu esbanjar ainda mais ousadia na Pscoa.
Resultado: vestiu a prpria filha de coelhinha
sedex para entregar as cestas de presente e artigos
relativos festa religiosa. claro que, depois
disso, o Dia dos Namorados no poderia passar
em branco: Os apaixonados de Pinheirinho do
Vale receberam perfumes via sedex, no Natal,
Noemi bateu a meta regional de venda de
aerogramas e cartes natalinos.
Foi tambm a primeira colocada em todo o Rio
Grande do Sul nas campanhas de sedex realizadas

248
pelos Correios. A empresa estipulou uma meta
para cada agncia, de acordo com o tamanho. A
agncia de Noemi to pequena que a meta de
sedex para oito meses era de 175 reais. Noemi
surpreendeu a todos e praticamente quadruplicou
esse valor.
Nada escapava ao faro comercial de Noemi: Dia
do Mdico, Dia da Enfermeira, do Professor e de
outros profissionais tambm entraram no rol de
promoes, angariando-se centenas de presentes
via sedex. Para realizar tudo isso, Noemi
estabeleceu parcerias com a prefeitura local, com
a floricultura e at com o bazar que vende cestas
de caf da manh.
Achando tudo ainda pouco, essa gacha
batalhadora encontrou tempo para fazer palestras
s crianas da escola local. O tema quase sempre
era o mesmo: como enderear uma carta.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 33-34).

Com essa histria, Shinyashiki assinala que h em nosso pas


muitos cidados annimos como Noemi que esto criando um Brasil
novo. So geradores de opes que acreditam em si mesmos, enxergam
possibilidades onde os outros s vem obstculos e tm a coragem de
trabalhar em direo sua realizao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 35).
Essa realizao de que fala Shinyashiki consequncia de um trabalho
bem-feito! e est relacionado com a nossa vocao. (SHINYASHIKI,
2001, p. 79).
A moral da histria aqui tem a ver com frustraes. Shinyashiki
refora que a felicidade, e consequentemente, o sucesso profissional
esto diretamente relacionados vocao: Aproveite o momento para
analisar qual a sua verdadeira vocao e v atrs do seu sonho
(SHINYASHIKI, 2001, p. 80), mas isso nem sempre to simples,
talvez voc precise de algum tempo para essa
transio, mas no se abandone atrs de uma mesa
fazendo algo que no tem nada a ver com voc at
chegar o glorioso dia da aposentadoria. Anlise
a sua vocao, os seus talentos e corra em direo
aos seus sonhos. (SHINYASHIKI, 2001, p. 80).

249
O problema, insiste Shinyashiki, que a maior parte das pessoas
escolhe a profisso por motivos que nada tm a ver com sua alma, com
sua vocao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 80). H uma histria que
ilustra bem esse esprito:
Dizem que um homem que nunca tinha feito
nenhum contato com a civilizao. Um dia, j
adulto, foi at a cidade para assinar uns papis
relativos ao inventrio de um parente distante.
Quando retornou, os moradores de sua colnia
queriam saber quais as novidades da cidade. Ele
falou das ruas, dos carros e de muitas outras
novidades. Mas o que o impressionou foi uma
torneira. Comentou sobre a torneira com seu
pessoal e disse:
- Quando eu puder, vou dar um jeito de comprar
uma torneira para ns. a coisa mais linda que
existe. Vai ser muito til.
Alguns dias depois, levou um saco de milho para
a cidade, vendeu-o e, com o dinheiro, comprou
uma torneira. Quando voltou, reuniu toda a
famlia e disse:
- Agora no vamos mais precisar de baldes para
armazenar a gua. Nossos problemas esto
resolvidos. Vocs vo ver que maravilha...
Com um gesto grandioso, fez um pequeno buraco
na parede e fixou a torneira. Ento abriu-a e, para
sua surpresa, no saiu nada. Chocado, colocou a
torneira em outro lugar da parede e nada.... Com
muita raiva gritou:
- Desgraados! Eles me enganaram! Venderam
uma torneira que no funciona! (SHINYASHIKI,
2001, p. 122).

Na continuidade, o autor esclarece: O problema no estava na


torneira, bvio, mas na ausncia de uma estrutura que faria a gua
chegar at ela. (SHINYASHIKI, 2001, p. 123). Interessante a
explicao que segue estabelecendo a relao entre a histria e a vida
profissional.
Da mesma maneira, o sucesso profissional no
est somente em fazer aquilo que parece mais
fcil. Sempre que vemos algum bem-sucedido,

250
devemos descobrir tambm a razo de seu xito,
tudo o que ele fez para conseguir para que a gua
sasse pela torneira! Uns o conseguiram com
muito estudo, outros com vrios anos de
dedicao, todos, na verdade, chegaram ao
sucesso realizando essa mistura mgica que
acontece no corao das pessoas que se entregam
de corpo e alma sua meta. (SHINYASHIKI,
2001, p. 123).

Em meio leitura desses textos, pode-se inferir que se fora o


leitor a operar uma associao entre situaes cotidianas de diversas
naturezas realidade das relaes de trabalho.
4.6.6 A resposta est a dentro de voc: a coleo de frases de
Shinyashiki
Voc: a alma do negcio um livro todo perpassado por frases
que so apresentadas ao leitor visando que este relacione
acontecimentos que fazem parte das relaes de trabalho, no intuito de
promover mudana de comportamentos e pontos de vista sobre os
mesmos. Tais frases aparecem no texto em negrito, visto que se espera
que o leitor d especial ateno, pois estas so utilizadas como uma
espcie de sntese do que preciso no esquecer. Dessa, forma, segue
uma dessas frases, tambm em negrito, de acordo com o texto original:
Assuma que voc a alma do negcio e pare de esperar que algum
lhe diga o que fazer. (SHINYASHIKI, 2001, p. 14). Isso implica cada
um ter conscincia de que a deciso sobre as escolhas sua e somente
sua!. por isso que o referido autor classifica os profissionais em trs
categorias:
Os fracos, que esto sempre procurando saber
quais os seus direitos.
Os bons, que procuram cumprir com seus deveres.
Os sensacionais, que buscam oportunidades para
mostrar
que
so
imprescindveis.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 15).

A vida nos devolve o resultado da nossa competncia


(SHINYASHIKI, 2001, p. 17), uma vez que muito tem se falado em
marketing pessoal e pouco em desenvolvimento de competncias e

251
atitudes. (SHINYASHIKI, 2001, p. 20). Deve-se considerar, de acordo
com o autor, que entregar a uma pessoa desafios que estejam acima de
sua competncia ajud-la a destruir uma possvel carreira de talento.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 20).
Na viso de Shinyashiki, as pessoas acham desagradvel
trabalhar em regime de competio. A grande discusso recai sobre os
limites da presso de um trabalhador em dada condio de trabalho. De
qualquer forma, segundo o autor, os campees adoram participar das
finais de toda a cobrana e presso. (SHINYASHIKI, 2001, p. 21).
Essa frase acentua a responsabilidade do trabalhador em aceitar e
aprender a manejar contextos de exigncias, cobranas, presso.
A ressalva de que importante perceber que necessrio
rasgar a sua carteirinha de scio do clube do avestruz.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 28, sem grifos no original) representa uma
chamada ou puxada de orelhas ao trabalhador para que assuma as rdeas
de sua vida, j que os avestruzes escondem a cabea para no ver o que
est acontecendo, [enquanto] os campees vo atrs dos seus projetos
(SHINYASHIKI, 2001, p. 28). No caso da histria da Noemi,
funcionria dos Correios, Shinyashiki assim formula sua frase de efeito,
tendo presente o exemplo dessa mulher: So pessoas que reconhecem
a existncia dos problemas, mas encontram nos grandes desafios o
alimento predileto dos campees. (SHINYASHIKI, 2001, p. 35, sem
grifos no original).
Partindo da premissa de que o sucesso profissional decorrncia
de uma srie de atitudes de cada trabalhador, o autor destaca que, na
realidade, todo mundo fala de sucesso, mas poucos falam em
trabalho bem-feito. Sucesso a concluso de um percurso que a
condio necessria para o prximo sucesso. (SHINYASHIKI, 2001,
p. 62, sem grifos no original). O trabalho bem-feito, nesse caso, est
relacionado quele que realizado sem reclamaes, com aceitao de
dificuldades; reclamar atitude de fracos. Desse modo, a ordem mais
forte que voc recebe chama-se agora iniciativa pessoal, ela que
faz com que assuma o controle da situao nos momentos mais
difceis. (SHINYASHIKI, 2001, p. 96, sem grifos no original). Alm
disso, um profissional que realmente atingiu o sucesso foi aquele
que soube ajudar algum. (SHINYASHIKI, 2001, p. 77, sem grifos
no original). Apesar dessa ressalva, Shinyashiki sustenta: Tenha
sempre em mente que voc o seu cliente mais importante.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 109, sem grifos no original).

252
Ao mesmo tempo que o profissional apregoado pelo autor deve
assumir uma condio de atleta, ver-se como o cliente mais importante,
deve ter presente que no h limites para o seu sonho. O profissional
campeo aquele que adora a vitria, mas que no deixa que a
vaidade o conduza acomodao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 127,
sem grifos no original). Mais do que isso, o campeo quer sempre
materializar seu sonho e d tudo de si para que isso acontea.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 131, sem grifos no original). Para que isso se
efetive, resista tentao de abandonar os seus sonhos e tome a
mesma deciso do piloto: voe mais alto. (SHINYASHIKI, 2001, p.
145, sem grifos no original).
O autor compara tal momento em que cada um deve assumir para
si a conduo de sua carreira, de sua vida, com o mais nobre momento
de aprendizado. Esse individual, pois o outro nunca a resposta para
os seus problemas. Se voc no aprender com a dificuldade, vai repeti-la
ao infinito. (SHINYASHIKI, 2001, p. 155). dessa forma que
Shinyashiki frisa: Os problemas so oportunidades de aprendizado,
e quando perdemos essa lio, a dor se torna intil.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 155, sem grifos no original). Chamando a
ateno para o cunho individualista desse processo, retoma: a soluo
sempre est dentro de voc. (SHINYASHIKI, 2001, p. 157, sem
grifos no original).
Todas essas frases se articulam a um mesmo objetivo: demarcar a
ao individual na construo de uma carreira, na resoluo dos
problemas dela decorrentes. Em destaque est: Por piores que sejam
as suas dificuldades, saiba que voc tem a fora necessria para
super-las e a coragem de caminhar atravs do seu calvrio. Isso
parte da conquista da maturidade. (SHINYASHIKI, 2001, p. 168,
sem grifos no original).
4.6.7 A autoajuda de Shinyashiki
O discurso de autoajuda de Shinyashiki constitui um modo de
reforar a ideologia dominante. Est em sintonia com a sociabilidade
requerida em tempos de trabalho flexvel, difundindo ideias no sentido
de garantir a adaptao dos novos homens s instveis condies sociais
e profissionais que marcam o incio desse milnio. (FALLEIROS;
PRONKO; OLIVEIRA, 2010, p. 93). O indivduo convidado a gerir

253
riscos considerando que os empregos mudaram de lugar e a
estabilidade no existe mais. (SHINYASHIKI, 2001, p. 28).
As recomendaes do mdico psiquiatra difundem uma
concepo de mundo em mudana, de incertezas, hipercompetitivo,
instvel, basilares para as afirmativas de que no individual preciso
assumir o controle da situao. Refora a crena enganosa de que a
soluo de problemas est apenas no prprio indivduo, desconsiderando
questes econmicas, sociais, histricas e polticas que envolvem a
produo da existncia. O discurso de Shinyashiki promove um corte
com o social e com o outro, uma vez que nele residem as respostas e as
solues, pois a responsabilizao individual transforma sonho e
oportunidades em resultados. (SHINYASHIKI, 2001).
O discurso desse autor possui um tom religioso. A vida nos
devolve o resultado de nossa competncia como prmio, beno. Na
mesma perspectiva de Smiles, enfatiza o valor educativo das
dificuldades, da dor, do sofrimento, necessrios ao crescimento
profissional. Tarefas so misses. Nesse sentido, a exemplo de
Minarelli, o uso de eufemismos tambm uma constante nas
recomendaes apregoadas pelo autor. Os problemas, as derrotas
ganham conotao positiva e so vistas como oportunidade de
aprendizado. (SHINYASHIKI, 2001). A essncia do trabalho servir.
De cunho religioso, o autor afirma que a melhor maneira de ser parceiro
de Deus servir ao prximo. O verbo servir, nessa formulao, indica
adaptao, aceitao e respeito s regras estabelecidas nas relaes de
trabalho. O conflito nada mais do que o resultado da dificuldade de ver
e analisar a partir do ponto de vista do outro. Quem cria conflito rgido
(inflexvel) e a rigidez leva ao radicalismo. (SHINYASHIKI, 2001).
Essas ideias aparecem reprisadas na profuso de frases de efeitos
que marcam o discurso de Shinyashiki. Estas so utilizadas como
sntese, como a essncia a ser retida pelo leitor. Pode ser considerada
uma estratgia para simplificar ainda mais um discurso que se prope
palatvel.
O uso de metforas, estratgia discursiva recorrente na literatura
de autoajuda, tambm providencial ao discurso de Shinyashiki. A
metfora funciona como um elo de proximidade com o leitor. Em Voc:
a alma do negcio, o profissional um atleta que decide se quer ser
campeo ou perdedor. Um campeo no se acomoda, quer voar mais
alto, adora a vitria, adora participar das finais dos campeonatos lidando

254
com toda a cobrana e presso, um guerreiro. por isso que o
indivduo deve ter seu radar sempre ligado para detectar ameaas e
oportunidades. (SHINYASHIKI, 2001). O jogo est nas mos de cada
um, assim possvel incendiar, eletrizar, energizar, mas disciplina
essencial. Passividade mata, j que h muitas redes de pescar que
aparecem todos os dias nos escritrios. (SHINYASHIKI, 2001). As
metforas de Shinyashiki servem como instrumento para fazer chegar
sua concepo de trabalho.
Alm disso, numa linguagem persuasiva, frases e verbos
imperativos so utilizados abundantemente visando induzir o
pensamento positivo com estmulo ao, pois como comentado
anteriormente, para o autor, a passividade mata. Assim, recomenda-se
ao leitor: pare de esperar que algum lhe diga o que fazer; assuma que
voc a alma do negcio; pare de reclamar do governo; seja a melhor
soluo; venda primeiro a sua imagem; valorize seus sentimentos, sua
intuio. (SHINYASHIKI, 2001).
Constata-se tambm, no discurso de Shinyashiki, a passivizao
das frases, ou grau de ocultamento do sujeito histrico: Os empregos
mudam de lugar, os avanos tecnolgicos geram as mudanas,
expressam um determinismo tecnolgico que caracteriza os discursos
ideolgicos.
De outro modo, o discurso do autor tambm opera por
associaes: os fracos buscam seus direitos; os bons fazem seus
deveres, e os sensacionais procuram mostrar que so imprescindveis;
os sbios conseguem compreender com os olhos do corao. Por meio
dessa estratgia, Shinyashiki fora o indivduo a assumir uma posio
no mercado de trabalho, pois, afinal, se deseja ser? Diante do cardpio
de opes, o leitor provavelmente no iria optar nem pelo fraco, nem
pelo bom. Quem no quer ser sensacional ou sbio? Mas apenas os
melhores atingiro suas metas. Quem se mantm como est, ficar para
trs. (SHINYASHIKI, 2001).
O carter dinmico das recomendaes da literatura de autoajuda
de Shinyashiki tambm reside no manejo de exemplos que visam
confirmar as assertivas do autor. necessrio ressaltar, ainda que j
apontado anteriormente, que os exemplos constituem uma estratgia
pedaggica recorrente de que se valem os autores desse gnero literrio.
Retratam e disseminam modos de ser e agir repisados em histrias de
sucesso, modelos ideais; querem convencer a respeito do valor das

255
solues pessoais. (MARTELLI, 2006). No caso de Shinyashiki,
recorda-se o exemplo da funcionria dos Correios, a Noemi. A soluo
pessoal criada e implementada por ela rapidamente promovida de
exceo regra, numa forma de reforo responsabilidade individual
contribuindo com a prosperidade social.
Assim sendo, acerca das asseres em destaque, o jogo de
empurra-empurra entre fracasso e sucesso tratado com extrema
superficialidade. A nfase do discurso da autoajuda de Shinyashiki a
busca do sucesso. Um exemplo a recomendao que diz que alguns
chegaram ao sucesso realizando essa mistura mgica que acontece no
corao das pessoas que se entregam de corpo e alma sua meta.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 123). Da mesma maneira, o fracasso s surge
para aqueles que desistem. (SHINYASHIKI, 2001, p. 125). Para esse
autor, s haver fracasso se houver desistncia, j que o nico
adversrio que existe mora dentro do seu corao. (SHINYASHIKI,
2001, p. 125).
Nas afirmativas utilizadas no discurso de autoajuda, verifica-se a
contradio. Ao mesmo tempo em que so prescritas as virtudes, as
qualidades que compem o novo perfil profissional, leem-se passagens
como esta: A maioria das habilidades que hoje levam algum ao
sucesso vem do corao. (SHINYASHIKI, 2001, p. 124).
um autor que intercala dois discursos, o que postula ao,
mudana de atitude, responsabilizando os indivduos por suas escolhas,
alertando que s vencem os melhores, e outro discurso reconfortante
que fala das oportunidades de todos, de ter personalidade, alm de
habilidades para ser empreendedor, ou para reconhecer suas limitaes e
desenvolver determinadas atitudes para ser empregado.
Para isso, Shinyashiki prope em seu discurso solues, receitas
eminentemente prticas, afinal: A soluo est dentro de voc; a
deciso sobre suas escolhas somente sua; voc tem a fora para
superar, basta ter coragem, se no tiver, ser visto como covarde e
imaturo. Precisa ser ousado, empreendedor, analisar as chances de
sucesso, desenvolver a capacidade para trabalhar muito, mas com
criatividade e amor ao prximo. (SHINYASHIKI. 2001).
Assim, o objetivo de Shinyashiki (2001, p. 24), conforme ele
prprio anuncia, fazer mudanas na maneira de pensar e de trabalhar
do indivduo. Nessa perspectiva, o discurso de autoajuda altamente
favorvel ideologia capitalista. (BRUNELLI, 2008). Como diria

256
Gramsci (2004, p. 207), as modificaes nos modos de pensar, nas
crenas, nas opinies, no ocorrem, mediante exploses rpidas,
simultneas e generalizadas, mas sim, quase sempre, atravs de
combinaes sucessivas, de acordo com frmulas de autoridade
variadssimas e incontrolveis. Ao se pensar na linguagem de
autoajuda, poder-se-ia dizer que Shinyashiki um dos autores que
contribui na difuso de uma nova concepo de trabalho, educao, de
mundo condizente com a nova sociabilidade do capital.
4. 6. 8 Se voc no mudar, morrer
A autoajuda de Spencer Johnson, autor norte-americano tem
exercido grande influncia aqui no Brasil. Seus livros foram
presenteados, em alguns casos, aos executivos de grandes empresas de
forma que estes disseminassem os pretensos ensinamentos aos seus
colaboradores. Em 2002, Manoel Amorim (2002 apud Revista Veja,
2002), na ocasio diretor geral da Telefnica, uma das maiores empresas
de telefonia atuantes no Brasil, destacava que
os livros de auto-ajuda so ferramentas valiosas
mesmo para os profissionais que tm a melhor
formao. Eles so um meio de se reciclar e no
ficar obsoleto. Um exemplo Quem mexeu no
meu queijo?, que mostra como enfrentar algo
inerente ao mundo dos negcios nos dias de hoje:
as mudanas. Brilhante, diz tudo usando
personagens e metforas. Eu me empolguei tanto
que, no ano passado, resolvi distribuir exemplares
a 600 executivos da empresa. Outro livro valioso
se chama Os sete hbitos das pessoas altamente
eficazes. J adotamos um programa de
treinamento baseado nas teorias de seu autor, o
americano Stephen Covey, que ensina que a
liderana dentro de uma companhia deve ser
centrada em princpios.

A histria de Quem mexeu no meu queijo? comea com Kenneth


Blanchard, co-autor do livro O gerente-minuto escrito juntamente com
Johnson, contando a histria por trs da histria. Descreve-a desta
forma:

257
Esta uma histria de mudana, que passa em um
Labirinto, onde quatro personagens engraados
procuram pelo Queijo, uma metfora para o que
queremos ter na vida: seja um emprego, um
relacionamento, dinheiro, uma casa grande,
liberdade, sade, reconhecimento, paz espiritual
ou at mesmo uma atividade como correr ou
golfe. Cada um de ns tem a sua prpria idia do
que um Queijo, e o procuramos porque
acreditamos que nos far felizes. Se o obtemos,
freqentemente ficaremos ligados a ele. E se o
perdermos, ou se nos tirado, isso pode ser
traumtico. (JOHNSON, 2001, p. 11).

A histria inclui quatro personagens imaginrios: dois ratos, Sniff


e Scurry, e dois duendes, Hem e Haw, e est dividida em trs partes: 1)
Uma reunio: Chicago; 2) A histria; e 3) Um debate: Mais tarde,
naquele mesmo dia.
Na primeira parte, Uma reunio: Chicago, vrios antigos colegas
de turma encontraram-se para almoar. Foi um momento de
compartilhar como estavam suas vidas at aquele momento. Os amigos,
ngela, Nathan, Michael, Carlos, Jssica, Elaine e Cory conversaram
sobre como estavam tentando lidar com as mudanas inesperadas com
que haviam se deparado nos ltimos anos. A maioria admitia que no
sabia lidar bem com elas. (JOHNSON, 2001, p. 20). Michael contou
sua experincia nos negcios e como uma histria o fez ver as
mudanas de um modo diferente. (JOHNSON, 2001, p. 20). Essa
uma histria de como ns nos adaptamos melhor s mudanas.
(JOHNSON, 2001, p. 21). Quem no compreende a histria tem
dificuldade de adaptao, de acordo com a perspectiva do livro.
A segunda parte, A histria, retrata um pas muito distante no
qual viviam quatro personagens: dois ratos e dois duendes que corriam
num labirinto procura de queijo que os alimentasse e os fizesse felizes.
A caracterstica dos dois ratos, Sniff e Scurry, que, possuindo apenas
crebros simples de roedores, mas instintos aguados, procuravam pelo
queijo duro de roer de que gostavam, como os ratos costumam fazer
(JOHNSON, 2001, p. 24). Os dois duendes, Hem e Haw, usavam seus
crebros, cheios de muitas crenas, para procurar um tipo diferente de
queijo com Q maisculo -, que achavam que os tornaria felizes e bemsucedidos. (JOHNSON, 2001, p. 24). O aspecto comum entre os

258
personagens que pelas manhs vestiam roupas e tnis, saiam de suas
casas e corriam para o labirinto procura de seus queijos favoritos.
(JOHNSON, 2001, p. 24).
O labirinto representa o lugar, o espao em que se gasta tempo
procurando aquilo que se deseja. Pode ser a organizao [...], a
sociedade [...] ou os relacionamentos que tem em sua vida.
(JOHNSON, 2001, p. 12). O labirinto um emaranhando de corredores
e divises, um lugar fcil para se perder. (JOHNSON, 2001, p. 25).
Sniff e Scurry acordavam cedo todos os dias e corriam pelo
labirinto, sempre pelo mesmo caminho. Chegavam ao Posto C de
Queijo, tiravam os tnis e os amarravam com o cadaro ao pescoo. J
os duendes haviam estabelecido outra rotina, como achavam que havia
queijo suficiente para aliment-los sempre, sentiam-se seguros, felizes,
bem-sucedidos, acabando por mudar para as redondezas do Posto C,
criando ali mesmo uma vida social. O excesso de confiana aos poucos
se transformou em arrogncia, no lhes deixando perceber que o estoque
de queijo estava acabando. Diferentemente, Sniff e Scurry, os quais
chegavam todos os dias cedo, inspecionavam o local, no ficaram
surpresos quando se deram conta de que o queijo havia desaparecido
numa daquelas manhs.
O comportamento dos duendes foi muito diferente do dos ratos,
que saram em busca de um novo queijo. De outro lado, um dos duendes
se revoltou com a situao, inconformado at, ficando paralisado. Ao
contar a histria, Johnson frisa que o comportamento dos duendes no
foi correto, produtivo, mas era compreensvel. Hem aceitou melhor o
fato de o queijo estar esgotado, Haw estava inconformado.
Sniff e Scurry, fazendo uma analogia com indivduos
empreendedores, aventuraram-se em busca de novos queijos, ao passo
que Hem e Haw tentavam negar o que estava acontecendo.
(JOHNSON, 2001, p. 40). Por algum tempo os duendes percorriam o
mesmo caminho, de casa ao Posto C, mas o Queijo realmente
desaparecera. Haw era mais pr-ativo, intencionava sair em busca de
outro Posto de queijo; Pensando de maneira positiva, construiu uma
imagem na sua mente. Viu a si mesmo se aventurando pelo Labirinto
com um sorriso no rosto (JOHNSON, 2001, p. 43). Hem, por sua vez,
resolveu aguardar o queijo reaparecer. Enquanto Haw pensou que

259
o Velho Queijo poderia at mesmo ter comeado a
mofar, embora ele nem tivesse notado [...] se dava
conta de que a mudana provavelmente no o teria
apanhado de surpresa se ele tivesse observado o
tempo todo o que estava acontecendo e se
antecipado. Talvez tivesse sido isso que Sniff e
Scurry haviam feito. (JOHNSON, 2001, p. 51).

O ocorrido serviu para que ficasse mais alerta, esperaria a


mudana acontecer e atentaria para isso. Acreditaria em seus instintos
bsicos para sentir quando a mudana estava prestes a ocorrer e ficaria
preparado para se adaptar a isso. (JOHNSON, 2001, p. 52).
Depois de algum tempo Haw, encontrou um novo Posto de
Queijo e desejava saber se Hem havia se mexido ou se estava paralisado
pelo medo. Haw percebeu que ele vinha sendo mantido prisioneiro pelo
seu prprio medo. Mover-se para uma nova direo o libertou.
(JOHNSON, 2001, p. 58). Somente aps o ocorrido, percebeu que se
tivesse sado de onde estava antes, poderia ter encontrado o Novo
Queijo ali em grande quantidade. (JOHNSON, 2001, p. 60).
Haw, nessa perspectiva, sabia que seu antigo modo de pensar
fora afetado por suas preocupaes e seus medos. Ele se acostumara a
pensar em no ter Queijo suficiente, ou no t-lo o tempo que desejaria.
Pensara mais no que poderia dar errado, e esquecera o que poderia dar
certo (JOHNSON, 2001, p. 65). Essa atitude, de acordo com a histria,
era natural, porque a mudana ocorria continuamente, sendo ou no
esperada. (JOHNSON, 2001, p. 66). Pensando dessa forma, Haw havia
mudado suas crenas.
O duende adquirira agora novas crenas e notou que estava se
comportando de modo diferente de quando ficava correndo para o
mesmo Posto sem queijo. (JOHNSON, 2001, p. 68). Ele deduziu que
tudo depende daquilo que escolhemos acreditar. (JOHNSON,
2001, p. 68, sem grifos no original).
O que ficou presente para Haw:
Estaria em melhor forma se tivesse lidado com a
mudana muito antes e sado do Posto C mais
cedo. Teria se sentido mais forte fsica e
espiritualmente, e poderia ter enfrentado melhor o
desafio de encontrar um Novo Queijo. De fato,

260
provavelmente j o teria encontrado se tivesse
esperado a mudana, em vez de perder tempo
negando que ela ocorrera. (JOHNSON, 2001, p.
70).

Para Haw, na compreenso do mentor da histria, quela altura


[...] havia se libertado do passado e estava se adaptando ao presente.
(JOHNSON, 2001, p. 72). Haw aprendeu com os ratos: Eles
simplificavam a vida. No analisavam ou complicavam demais as
coisas. Quando a situao mudou e o Queijo foi tirado do lugar, eles
mudaram e foram sua procura. (JOHNSON, 2001, p. 74). Haw
refletiu a respeito da histria, e pensando sobre seus erros, descobriu que
deveria aprender a lidar com a mudana [...] [que] precisava adaptarse mais rpido, porque se voc no se adapta a tempo, talvez nunca
venha a se adaptar. (JOHNSON, 2001, p. 74).
Na busca do Novo Queijo, Haw teve que admitir que o maior
obstculo mudana esteja dentro de voc mesmo, e que nada melhora
at voc mudar. (JOHNSON, 2001, p. 74). Depois dessa lio, o
duende lembrou do companheiro, e pensou que, de algum modo, Hem
tinha de ver a vantagem da mudana. (JOHNSON, 2001, p. 76).
At aqui se viu uma pequena sntese do que constitui a histria de
Quem mexeu no meu queijo?. uma histria da adaptabilidade s
mudanas como condio indispensvel para a sobrevivncia de pessoas
e organizaes, e mais ainda, para seu sucesso na economia global de
hoje. Quem consegue se adaptar recompensado. (JOHNSON, 2001,
p. 14).
Na terceira e ltima parte do livro, Um debate: Mais tarde,
naquele mesmo dia, transcorre em forma de dilogo entre os amigos de
turma que ao ouvir a narrativa da histria contada por Michael, passam a
conversar sobre o que ouviram associando com suas experincias
profissionais. Comearam a buscar identificao com as personagens.
Quem seria Sniff, Scurry, Haw e Hem. Um dos amigos disse que no
era Sniff j que no farejava a situao e nem percebia a mudana
cedo. E eu certamente no era Scurry, pois no agia imediatamente.
(JOHNSON, 2001, p. 82). Carlos, ento, identificou-se com Hem, que
queria ficar em territrio conhecido [...] no quis lidar com as
mudanas. (JOHNSON, 2001, p. 82). Ficou mais evidente que Carlos
estava falando de uma situao de demisso. Na conversa entra Frank,
que destacou:

261
Hem lembra um amigo meu [...]. Seu
departamento estava fechando, mas ele no queria
enxergar isso. Comearam a realocar as pessoas.
Todos ns tentamos falar com ele sobre as muitas
outras oportunidades que existiam na empresa,
para aqueles que quisessem ser flexveis, mas ele
no achava que deveria mudar. Ele foi o nico que
ficou surpreso quando seu setor fechou. Agora
est tendo dificuldades para se ajustar s
mudanas que achava que no aconteceriam.
(JOHNSON, 2001, p. 83).

Outro colega, Nathan, acrescentou: Queria que a minha famlia


tivesse ouvido essa histria antes. Infelizmente, ns no quisemos
enxergar as mudanas que estavam ocorrendo em nosso negcio, e
agora tarde demais. Estamos fechando vrias lojas. (JOHNSON,
2001, p. 83). O rapaz constatou, que em vez de ser como Sniff e
Scurry, ns ramos como Hem. Tentamos ignorar o que estava
acontecendo e agora estamos com problemas. (JOHNSON, 2001, p.
85). A essncia dessa discusso versa sobre a necessidade de mudana.
H pessoas que nunca mudam. E elas pagam um preo por isso. Vejo
muitas pessoas como Hem no exerccio da minha profisso mdica. Elas
acham que merecem o seu Queijo. Ficam zangadas quando ele lhes
tirado e culpam os outros, salientou Cory. (JOHNSON, 2001, p. 87).
Michael, que havia contado a histria aos amigos, explicou como a
aplicou em sua empresa e quais resultados obteve: [...] quando
perguntei s pessoas da empresa quem eles seriam na histria, vi que
tnhamos cada um dos quatro personagens em nossa organizao.
Comecei a enxergar os Sniffs, Scurrys, Hems e Haws cada qual
precisando ser tratado de uma forma diferente. (JOHNSON, 2001, p.
89). Assim rotulados, Michael descreve como identificou e trabalhou
esses papis com seus colaboradores:
Nossos Sniffs puderam farejar mudanas no
mercado, e assim nos ajudaram a atualizar nossa
viso corporativa. Foram estimulados a identificar
como as mudanas poderiam resultar em novos
produtos e servios que nossos clientes iriam
querer. Os Sniffs adoraram isso e disseram que
gostavam de trabalhar em lugar que reconhecia
mudanas e adaptava-se a tempo.

262
Nossos Scurrys gostavam de ter as coisas feitas,
ento foram estimulados a agir, baseados na nova
viso corporativa. Apenas precisavam ser
monitorados, assim no sairiam correndo para a
direo
errada.
Foram,
desse
modo,
recompensados por aes que os levaram ao Novo
Queijo. Acharam agradvel trabalhar em uma
empresa que valoriza ao e resultados.
[...] Hems eram as ncoras que nos levavam para
o fundo [...] ou se sentiam extremamente
confortveis ou muito medrosos para mudar.
Alguns de nossos Hemns s mudaram quando
compreenderam a sensata viso que construmos,
a qual lhes mostrava como as mudanas
contribuiriam para esta vantagem.
Nossos Hems nos disseram que queriam trabalhar
num lugar que fosse seguro. Dessa forma, as
mudanas precisavam fazer sentido para eles e
aumentar sua noo de segurana. Quando
perceberam o verdadeiro perigo de no mudar,
alguns deles modificaram-se. O que nos ajudou a
transformar muitos de nossos Hems e Haws.
A boa notcia que, mesmo enquanto nossos
Haws inicialmente se mostravam hesitantes,
estavam flexveis o suficiente para aprender algo
novo, agir de maneira diferente, e adaptar-se a
tempo de ajudar-nos a ter sucesso. Eles
comearam a esperar a mudana e procuravam
por isso ativamente. [...] Eles nos disseram que
queriam trabalhar em uma organizao que desse
confiana s pessoas, alm de ferramentas para
mudar. E nos ajudaram a manter nosso senso de
humor enquanto amos atrs do nosso Novo
Queijo. (JOHNSON, 2001, p. 91, sem grifos no
original).

Na continuidade, vrios amigos, na discusso sobre a histria,


traduzem o que representa o queijo: Talvez o Velho Queijo seja
apenas o antigo comportamento. Na verdade, temos de abrir mo do
comportamento que causa o relacionamento ruim. E ento procurar ter
um modo melhor de pensar e agir. (JOHNSON, 2001, p. 94). Tambm
que o Novo Queijo um novo relacionamento com a mesma pessoa.

263
(JOHNSON, 2001, p. 94). Outra sntese dos amigos que, quando
penso sobre isso, vejo que a mudana realmente pode lev-lo a um lugar
novo e melhor, embora no momento que ele acontece, voc ache que
no. (JOHNSON, 2001, p. 95).
Finalizando a reunio, a histria contada representou um modo
divertido de nos comunicarmos, porque forneceu uma linguagem fcil.
E tambm eficaz, porque teve uma grande penetrao na empresa.
(JOHNSON, 2001, p. 96). A moral da histria que as pessoas que
estiverem resistindo compreenderam logo a vantagem de mudar. At
mesmo ajudaram a promover a mudana. (JOHNSON, 2001, p. 98).
Tambm a histria de Quem mexeu no meu Queijo? funciona melhor,
claro, quando todos na organizao conhecem a histria, seja em uma
grande empresa, numa microempresa ou em sua famlia, pois uma
organizao pode mudar apenas quando um nmero suficiente de
pessoas muda (JOHNSON, 2001, p. 100).
4.6.9 A coleo de frases de Spencer Johnson
A parbola criada por Johnson, assim como o discurso construdo
por Roberto Shinyashiki, constitui uma estratgia discursiva
interessante: a utilizao de frases que funcionam como fechamento
de uma mensagem, uma sntese daquilo que se deseja transmitir. Tais
frases funcionam como um recurso pedaggico de fcil compreenso
para o leitor, pois, de certa forma, traduzem a mensagem de maneira
que este possa apreend-la. Em Quem mexeu no meu queijo?, o autor
mexe com o imaginrio utilizando o recurso visual. De que forma? Cada
uma dessas frases est escrita dentro do desenho da fatia de um queijo
que ganha destaque especial, ocupando uma pgina inteira.
Assim, em Quem mexeu no meu Queijo?, cria-se um jogo no qual
o autor desenvolve a trama de sua histria, mas a cada momento,
estratgico para ele, faz uma breve parada sntese com uma frase de
fechamento. Nesse sentido, quando os dois duendes estavam ainda no
Posto C do Queijo, situao de conforto e acomodao, decoraram as
paredes com frases e at mesmo contornaram com desenhos do queijo,
que os faziam sorrir. Uma das frases dizia: Ter Queijo o faz feliz.
(JOHNSON, 2001, p. 28).
Posteriormente, quando a situao mudava, ou seja, os duendes
percebiam que o Queijo havia acabado, sentiam-se famintos e
desencorajados. Mas, antes de partir, Haw escreveu na parede: Quanto

264
mais importante seu Queijo para voc, menos voc deseja abrir mo
dele. (JOHNSON, 2001, p. 35). A frase agora mudara para: Se voc
no mudar, morrer (JOHNSON, 2001, p. 46). nfase necessidade de
adentrar ao Labirinto buscando construir outra trajetria de forma que
pudessem encontrar outro Posto de Queijo. Na histria, Haw se permite
percorrer tal caminho, perguntando-se por que eu no me mexi e fui
procurar o Queijo mais cedo? (JOHNSON, 2001, p. 47). Enquanto um
dos duendes questionava-se, o outro, Hem, continuava paralisado,
inconformado esperando o queijo reaparecer. Como Haw decidira
adentrar o labirinto, registrava nova frase: O que voc faria se no
tivesse medo? (JOHNSON, 2001, p. 48).
A aventura no Labirinto mercado de trabalho requer ousadia,
compreender a mudana, mas, fundamentalmente, adaptar-se a ela. Foi
essa compreenso que Haw estava tendo da situao. Parou para
descansar e escreveu na parede do Labirinto: Cheire o Queijo com
freqncia para saber quando est ficando velho (JOHNSON, 2001,
p. 52, sem grifos no original). O duende estava se dando conta de que
ficava para trs porque carregava consigo o peso de suas crenas
assustadoras. (JOHNSON, 2001, p. 54, sem grifos no original).
Assim, escreveu nova frase: O movimento em uma nova direo
ajuda-o a encontrar um Novo Queijo. (JOHNSON, 2001, p. 55, sem
grifos no original).
Na histria, conta-se que, ao percorrer os labirintos escuros em
busca do Novo Queijo, Haw no compreendia, passou a sentir-se bem e
a frase que segue objetiva o porqu: Quando voc vence o seu medo,
sente-se livre. (JOHNSON, 2001, p. 57. sem grifos no original).
Assumir riscos, estar no mercado procura de um novo espao
pressupe, para o autor, sair da condio de prisioneiro de medos que
impedem a construo de uma trajetria individual. A frase que sintetiza
o novo sentimento de Haw: Imaginar-me saboreando o Novo Queijo,
antes mesmo de encontr-lo, conduz-me a ele (JOHNSON, 2001, p.
59, sem grifos no original). Eis a um forte apelo ao pensamento
positivo. possvel mudar mais rapidamente. Isso implica deixar para
trs velhas crenas, hbitos, comportamentos. Nessa perspectiva, Haw
escreve a nova frase: Quanto mais rpido voc esquece o Velho
Queijo, mais rpido encontra um Novo. (JOHNSON, 2001, p. 62,
sem grifos no original).
Para aquele que resiste a assumir riscos, inovar, experimentar
novas possibilidades, a histria clara ao dizer que o medo que voc

265
deixa aumentar em sua mente pior do que a situao que
realmente existe. (JOHNSON, 2001, p. 65, sem grifos no original).
Dessa forma a frase que vem a seguir refora essa ideia: mais seguro
procurar no Labirinto do que permanecer sem Queijo.
(JOHNSON, 2001, p. 64, sem grifos no original). Tambm Shinyashiki
conta suas histrias reforando que o medo impede o indivduo de
assumir riscos, posicionar-se, assumir a autoria de sua prpria histria.
Segue a histria contada por ele sobre um fotgrafo de Niteri:
Eu caminhava tranquilamente quando um nibus
subiu na calada e me atropelou. Quando cheguei
ao hospital, no meio de uma dor brutal, escutava
os enfermeiros perguntando entre si se eu iria
sobreviver. Nesse momento, um grande desespero
tomou conta de mim. Eu, que sempre vivi com
medo de tudo, de andar de motocicleta, de jet ski,
de escalar montanhas, estava correndo o risco de
morrer atropelado por um nibus enquanto
caminhava na calada. Naquele momento prometi
a mim mesmo que, se sobrevivesse, no deixaria
de fazer mais nada por causa do medo. Graas a
Deus, sobrevivi e a primeira deciso que tomei foi
pedir demisso do emprego em que trabalhava,
que no tinha nada a ver comigo. Ento me tornei
fotgrafo, algo que realmente adoro fazer. Ganho
quase tanto quanto ganhava antes, mas h uma
grande diferena: hoje eu sou um sujeito feliz.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 80).

Por meio da parbola, recomenda-se aceitar a mudana como


algo natural, uma vez que, agindo dessa forma, a adaptao potencializa
alcanar objetivos, o que se afirma nessa frase: As velhas crenas
no levam ao Novo Queijo. (JOHNSON, 2001, p. 67, sem grifos no
original). Novas crenas, novos comportamentos, atitudes so essenciais
para galgar novos degraus. A resistncia mudana representaria, assim,
no avanar, no crescer, manter-se na mesma condio. Por isso,
acreditar e fazer escolhas fundamental para o sucesso profissional, o
que se pode pressupor com esta frase: Quando voc acredita que
pode encontrar e apreciar um Novo Queijo, muda de direo.
(JOHNSON, 2001, p. 69, sem grifos no original). Em seguida, vem
outra frase, deixada para Hem, que insistia em no mudar, continuava
acomodado espera que seu queijo reaparecesse espontaneamente.

266
Notar cedo as pequenas mudanas ajuda-o a adaptar-se s maiores
que ocorrero. (JOHNSON, 2001, p. 71, sem grifos no original). A
gesto da mudana ganha maior nfase no ambiente organizacional.
Na histria, como viu-se at o momento, so as vrias frases que
remetem diretamente ao que constitui o objetivo central desse livro:
adaptao mudana. Na estrutura do discurso, cada frase vem logo
aps o autor evidenciar questes importantes relacionadas mudana de
pontos de vista, comportamentos e atitudes. No bastando, quase ao
final da parbola, segue uma sntese das frases de efeito denominada O
Manuscrito na parede. Neste, recuperam-se as frases de efeito
elencadas no decorrer da histria, agora, acrescidas de outras
recomendaes:

Figura 1: O manuscrito na parede (JOHNSON, 2001, p. 77).

267
4.6.10 A autoajuda de Johnson
Conforme j mencionado, Sennett (2006, p. 168), nos lembra que,
sob a gide da mudana, as pessoas [...] precisam de uma ncora
mental e emocional; precisam de valores que as ajudem a entender se as
mudanas no trabalho [...] valem a pena. nesse sentido que se pode
apreender o discurso de Johnson. Um discurso que contribui na
promoo desses valores, que institui modos de viver e comportar-se no
trabalho, reforando as teses da adaptao, adequao, aceitao a
ideia de mudana. Enfim, dissemina uma concepo de mundo e
trabalho cuja essncia recai na adaptao mudana. Associada ao
vocbulo da mudana est flexibilidade, palavra de ordem para o
sucesso profissional do alvorecer do sculo XXI.
Nessa linha de pensamento, ao considerar-se a afirmao de
Maingueneau (1998, p. 18) de que a produo de discursos possui uma
ordem prpria, analisar as formas de materializao da autoajuda de
Johnson permite apreender os recortes pertinentes a sua concepo de
mundo, trabalho e educao.
No discurso desse autor, a histria dos ratos em busca de um
novo queijo reporta necessidade de uma reviso de valores como
elementos para lidar como o inesperado, o que exige um novo modo de
pensar e agir para enfrentar desafios, pensar sobre os erros, rever
obstculos que esto dentro de cada um. (JOHNSON, 2001). A
adaptao, no discurso do autor, representa nada mais do que a
recompensa adeso ao novo modo de pensar, sentir e agir diante das
mudanas. Em reforo a esse novo jeito de ser no trabalho requerido
que se abandonem comportamentos de revolta, de inconformao,
paralisia, negao, de priso aos prprios medos. (JOHNSON, 2001).
So apregoados nessa literatura idias e comportamentos, relativos :
ousadia, pr-atividade, pensamento positivo: Quando voc acredita que
pode encontrar e apreciar um Novo Queijo, muda de direo;
imaginar-me saboreando o Novo Queijo, antes mesmo de encontr-lo,
conduz-me a ele. (JOHNSON, 2001), de manter-se alerta mudana,
de preparao para lidar com mudanas contnuas. Caracteriza-se, desse
modo, o uso abundante de frases de efeito que so estrategicamente
posicionadas no texto como sntese daquilo que deve ser apreendido na
leitura do manual. Reforando essa sntese, as frases aparecem dentro de
um desenho de uma fatia de queijo. O recurso visual um importante
mecanismo na busca da adeso aos preceitos da autoajuda de Johnson.

268
Dessa maneira, em seu discurso, o autor estabelece leis da
mudana e da adaptao. Essas leis so expressas por meio de uma
infinita repetio de palavras, um dos recursos lingsticos utilizados
pelo autor como artifcio para prender a ateno e persuadir os leitores.
O reforo repetio uma estratgia discursiva comum na literatura de
autoajuda e no caso de Johnson, as palavras mais frisadas so: mudana;
adaptao; flexvel; bem-sucedidos; comportamento; sucesso;
imaginao; medo. (JOHNSON, 2001).
Nas recomendaes de Johnson, caracterstico o uso de verbos
imperativos. Por meio dessa estratgia pretende-se estimular o
indivduo a aceitar uma ordem, uma orientao, conselho de forma que
se cumpra, se faa. Na forma impositiva, destaca-se: cheire; acredite;
procure; antecipe; monitore; aprecie; adapte-se. uma linguagem
persuasiva cujo discurso formulado de maneira a mostrar ao indivduo
os benefcios ao se atender os apelos e ordens dadas. Nesse aspecto,
recorda-se a anlise de Brunelli e Dall Aglio-Hattnher (2009), em que as
autoras explicam que o uso de imperativos no discurso de autoajuda
est associado ao interesse dos autores desse gnero de literatura, visto
que se prioriza um conjunto de orientaes, descartando a proposta de
reflexo sobre tais assertivas.
A autoajuda de Johnson visa educar tambm pelo uso de
metforas. A histria imaginria dos ratos e duendes concretiza a
metfora da mudana. O queijo e o labirinto esto articulados a imagens
e modelos que inspiram autorrealizao, sucesso, recompensa em
caso de adaptao. Cria-se uma perspectiva de interao entre a
metfora e o indivduo nutrindo-o para ser capaz de realizar e resolver
os seus problemas. Johnson faz um jogo de interessante em seu discurso.
Acrescenta no dilogo do grupo de amigos, exemplos prticos de
situaes ocorridas no trabalho reforando, assim, as leis da adaptao
s mudanas criadas pelo autor. Os exemplos reportam necessidade de
sair da condio de famintos e desencorajados; vencer o medo; sentir-se
livre; livrar-se de crenas assustadoras; procurar um novo espao;
assumir riscos, inovar, experimentar novas possibilidades; fazer
escolhas; mudar pontos de vista, comportamentos e atitudes.
(JOHNSON, 2001). Mudar atitudes significa enxergar a mudana como
importante, sobretudo mantendo o senso de humor, pois quem no
mudar, morrer! (JOHNSON, 2001).

269
4.7 MORAL DA HISTRIA
Por meio da anlise destes autores da atualidade, tentou-se
demonstrar a consonncia do discurso de autoajuda com os ideais
neoliberais que visam eliminao de toda a rigidez, inclusive
psquica, em nome da adaptao s situaes as mais variadas que o
indivduo encontra, tanto no seu trabalho quanto na sua existncia.
(LAVAL, 2004, p. 15). Como diz este autor, crucial, para o capital, o
enfraquecimento de tudo que constitui contrapeso a sua reproduo.
Diante disso, o discurso constitui uma estratgia de busca do consenso
em torno da ideia da adaptabilidade mudana. Por isso, certos modos
de comando e de prescrio (LAVAL, 2004, p. 19) esto no cerne do
que constitui o discurso de autoajuda.
Martins e Neves (2010, p. 24) assinalam que a nova pedagogia da
hegemonia se materializou, e sua principal caracterstica assegurar
que o exerccio da dominao de classe seja viabilizado por meio de
processos educativos positivos. nessa perspectiva que se difunde uma
nova concepo de mundo, novos modos de ser e agir no trabalho de
forma que a mudana ganha ares de naturalidade e uma conotao
eminentemente positiva.
No discurso de autoajuda, a partir dos anos de 1990, tem-se
insistido em estabelecer um diagnstico das relaes de trabalho,
fazendo aparecer certa ideologia para a fatalidade (LAVAL, 2004),
justificando difundir uma concepo de realidade exigindo
comportamentos e atitudes condizentes com as frmulas em vigor nessa
literatura.
Assim, as frases de efeito so empregadas com vistas a facilitar a
internalizao do receiturio. Mostradas em destaque, seja em negrito ou
dentro de desenhos, a exemplo das fatias de queijo, ajudam o leitor a
simplificar a compreenso dos elementos que precisam ser assimilados,
sintetizando a essncia das ideias dos autores.
Alm disso, na literatura de autoajuda, os autores utilizam
histrias de sucessos de figuras edificantes, recorrem pedagogia do
exemplo, escrevendo um receiturio para o sucesso, frmulas para a
perfeio. Os exemplos de fora de vontade, determinao, esto
intimamente relacionados aos conceitos de empregabilidade e
empreendedorismo no que tange noo de eficincia e eficcia, to
reiteradas na gesto do trabalho na atualidade. Talvez, o elemento

270
crucial para compreender o porqu do aporte da autoajuda em modelos
seja justificar os preceitos de adequao, adaptao ao contexto de
mudana. Em geral, os fragmentos biogrficos utilizados tanto por
Smiles, Carnegie, quanto pelos gurus atuais, remetem justamente a uma
situao de desafio, de incerteza, de problemas de difcil resoluo em
que a atitude do indivduo biografado fez a diferena. Se, ao seguir as
boas prticas o trabalhador no galgar o sucesso segundo o modelo,
de acordo com o que apregoado nessa literatura, o trabalhador
provavelmente falhou na anlise, no estudo, na opo, nas escolhas, no
esforo, economizou na ousadia, foi medroso, acomodado, enfim, os
autores so profissionais em oferecer motivos vrios para culpar o
indivduo que fracassa. Mas como todos acreditam que so capazes, so
bons, e buscam este tipo de literatura porque desejam mudar, enfrentam
o desafio e no lhes resta outra sada honrosa a no ser dizer que de fato
mudaram e obtiveram algum sucesso.
A autoajuda contribui para incentivar as boas relaes sociais
entre as pessoas, muito evidenciadas em grande parte das prescries
dos autores desse gnero. Apoia-se no princpio da sociabilidade, na
criao de redes de relacionamento (networking), entendidas por alguns
como capital social que precisa ser desenvolvido para obter-se sucesso
profissional. Aqui o indivduo submete-se a duas situaes: Para ter
sucesso profissional, voc precisa obrigatoriamente pensar no outro e,
por outro lado, apenas os melhores atingiro suas metas.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 24). Esse o jogo do trabalho em equipe e da
responsabilizao individual, to reprisado pelo senso comum. Como a
linguagem no transparente, poder-se-ia ler as passagens utilizadas
pelo autor como aquela que diz que pensar no outro est relacionado a
pensar na empresa com mxima produtividade e pr-atividade. A
autoajuda busca criar um indivduo pr-ativo, motivado, agentes ativos
do seu prprio bem estar.
Quanto ao uso das metforas na autoajuda, pode-se pensar nas
observaes de Fairclough (2001, p. 241) ao analisar que so to
profundamente naturalizadas no interior de uma cultura particular que as
pessoas [...] deixam de perceb-las. sobre esse aspecto que se quer
chamar a ateno: a metfora como uma estratgia para naturalizar
determinadas situaes. Desse modo, pode-se dizer que, quando os
autores se utilizam de metforas, esto construindo a realidade de uma
maneira e no de outra. Esto atribuindo significados que so
consumidos pelos leitores de forma que se opera a naturalizao de

271
uma situao que construda como individual, quando, na verdade, tem
carter social. Na concepo de Fairclough (2001, p. 91), o discurso
contribui para a constituio de todas as dimenses da estrutura social
que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas prprias
normas e convenes, como tambm relaes, identidades Ademais,
assinala o autor, o discurso uma prtica, no apenas de representao
do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o
mundo em significado. (FAIRCLOUGH , 2001, p. 91).
Sob este ponto de vista, possvel dizer que a proliferao do
discurso de autoajuda revela a constituio de uma prtica discursiva
que visa tornar hegemnicos alguns conceitos, vises de mundo e
produzir atitudes operacionais ao capital. De que forma isso acontece? O
uso e a escolha das palavras, as metforas, as frases de efeito, a
repetio de palavras, as frases imperativas, so elementos utilizados
pelos autores de autoajuda que operam uma mudana social. O discurso
da mudana, por exemplo, to repetitivo e reforado que quem seria
capaz de dizer que no considera importante mudar? Eis o efeito e o
poder do discurso. Assim, conforme j mencionado, possvel
distinguir trs aspectos constitutivos do discurso. O discurso contribui
para a construo de: a) identidades sociais e posies de sujeito, b)
relaes sociais entre as pessoas e c) construo de sistemas de
conhecimento e crena. (FAIRCLOUGH, 2001).
Dessa maneira, possvel dizer que a literatura de autoajuda
endereada a trabalhadores e desempregados recorre a exemplos de
empresrios e bem-sucedidos homens de negcio. Parte da constatao
da crise, do fracasso, para demover o leitor de um arraigado
posicionamento. Desenvolve um discurso centrado na mudana
individual. Os fragmentos de histrias de vida exemplificam como o
individual massivamente explorado nessa literatura, empurrando para
o indivduo a responsabilidade de assumir uma posio frente
realidade que o cerca. Para que isso acontea, so omitidos os contextos
e problemas sociais, os interesses antagnicos numa sociedade de
classes, uma vez que as biografias utilizadas citam exemplos de pessoas
de sucesso, histrias individuais praticamente sem referncias ao
contexto histrico em que ocorreram.
Os autores dos livros analisados insistem na adaptao de
indivduos a sistemas de ao sobre os quais tm pouco controle,
buscam a construo de um novo indivduo ensinando novos modos

272
de SER. As mediaes do-se fundamentalmente pela mudana
individual.
Usando uma linguagem evasiva, o discurso de autoajuda
dissemina um pensamento positivo, princpios do auto-cultivo,
edificante, mas ao mesmo tempo utiliza um discurso prescritivo que
propala regras de conduta ao fornecer conselhos e ditar modelos a serem
seguidos.
Eis o cunho ideolgico da autoajuda: prescreve normas de
conduta humana para agir no social, operando no plano individual.
Observa-se, assim, sob esse aspecto, como o discurso de autoajuda
contribui para a construo de sistemas de conhecimento, crenas e
conformismos, constituindo-se num caminho para viabilizar um dos
pilares da educao do sculo XXI, conforme o Relatrio Delors, o
aprender a ser.
No prximo captulo, analisam-se dois importantes relatrios da
UNESCO sobre educao, indicando as similaridades entre o aprender
a ser do campo educacional e as recomendaes dos manuais de
autoajuda para formar o trabalhador demandado pelo capital em
diferentes momentos histricos presentes tanto na literatura de autoajuda
quanto nas recomendaes para a educao do sculo XXI.

273
5 LIES DA UNESCO PARA EDUCAR O HOMEM DE NOVO
TIPO
[...] a estrutura da fora exterior
que
subjuga
o
homem,
assimilando-o e o tornando
passivo, transforma-o em meio de
liberdade, em instrumento para
criar uma nova forma ticopoltica, em fonte de novas
iniciativas.
(GRAMSCI, 1979)

Em captulos anteriores, abordaram-se os princpios constitutivos


do discurso da autoajuda voltada ao trabalho em trs momentos
distintos: no sculo XIX, sob os impactos da revoluo industrial;
primeira metade do sculo XX, com o fordismo; e dcadas finais do
sculo XX e alvorecer do XXI. Procurou-se identificar quais as
caractersticas dos trabalhadores demandadas pelo capitalismo nesses
diferentes perodos e analisar em que medida tais traos se constituam
em elementos centrais das recomendaes dos gurus da autoajuda.
Trabalhou-se com a hiptese de que o discurso da autoajuda
disseminava os princpios do aprender a ser um homem de novo tipo,
funcional ao capitalismo nos diferentes momentos histricos.
Identificou-se que os princpios, valores, comportamentos,
condutas e vises de mundo disseminados pela literatura de autoajuda
tambm estavam presentes nas diretrizes e reformas educacionais
contemporneas. Tais evidncias possibilitaram desenvolver a hiptese
de que os discursos da UNESCO que difundiram a prioridade do
aprender a ser funcionavam de forma semelhante e complementar aos
de autoajuda, valendo-se das estratgias de persuaso para a produo
de uma nova sociabilidade demandada pelo capital. Com esta
perspectiva, analisaram-se os Relatrios Faure (1972) Delors (1996)
buscando demonstrar que esta estratgia da nova pedagogia da
hegemonia se desenvolvia por fora, mas tambm por dentro do sistema
educacional.
Neste captulo, analisam-se os relatrios Faure e Delors
procurando ressaltar o uso de metforas, verbos, repetio de palavras,
exemplos, evidenciando as concepes de mundo, de trabalho, de

274
educao e o papel dos professores na formao de um homem de novo
tipo para o sculo XXI.
5.1 RELATRIO APRENDER A SER
A partir da anlise do Relatrio Aprender a ser da UNESCO,
conhecido como Relatrio Faure, publicado em 1972, procura-se
sinalizar alguns princpios de orientao poltica que, ao longo das
ltimas quatro dcadas, vm orientando internacionalmente as reformas
educacionais sob o argumento de que a educao est em crise.
Divulgando tal constatao, o referido Relatrio assinala a necessidade
de formar um novo homem [...] capaz de compreender as
conseqncias globais dos comportamentos individuais, de conceber as
prioridades e de assumir as formas de solidariedade que constituem o
destino da espcie. (FAURE, 1972, p. 24).
Em vista disto, interessa aqui analisar as nfases sobre o
aprender a ser a fim de ressaltar as similaridades com o discurso da
autoajuda voltado a formar um novo homem compatvel com as novas
demandas apontadas para os anos vindouros. Ao utilizar o termo
discurso, tem-se presente a linguagem como uma forma de prtica
social, e no como uma atividade puramente individual ou reflexo de
variveis situacionais conforme defende Fairclough (2001, p. 90). Essa
posio importante, uma vez que implica considerar o discurso como
um modo de ao, ou seja, entende-se que o discurso do aprender a
ser, disseminado no Relatrio analisado, visa construir uma nova
concepo de mundo, constituindo e construindo um mundo em
significados (FAIRCLOUGH, 2001), o que permite apreender o
discurso no seio de um sistema de relaes materiais que o estruturam e
o constituem. (FOUCAULT, 1996).
Considerando que o discurso, no sentido apregoado por
Fairclough (2001, p, 91), objetiva produzir trs efeitos constitutivos
relativos a: mudar posio dos indivduos, construir relaes sociais
entre as pessoas e contribuir para a construo de sistemas de
conhecimento e crenas, busca-se destacar os elementos do Relatrio
que possibilitam compreender a imperiosa necessidade de preparo de
um novo homem. A educao , assim, apresentada no Relatrio Faure
como via de superao das disparidades regionais, de desigualdades
sociais nos quais o aprender a ser emerge como uma demanda comum
e urgente proclamao de uma nova poltica educativa a fim de

275
melhorar, reformar, adequar os sistemas de ensino para a insero do
trabalhador no mundo do trabalho. Novos modos de ser e agir
coadunam-se com as novas demandas do capital em que o apelo
discursivo constitui um exerccio pedaggico de difuso de uma matriz
de percepo da realidade. (RUMMERT, 2000, p. 41).
5.1.1 Edgar Faure e os membros da Comisso
A Comisso Internacional para o Desenvolvimento da Educao
foi formada em princpios de 197186 sob a presidncia de Edgar Faure
(1908-1988) com o propsito de proceder a uma reflexo crtica de
homens de formao e origem diversas que pesquisassem com toda a
independncia e objetividade a via de solues de conjunto para os
grandes problemas suscitados pelo desenvolvimento da educao num
mundo em transformao. (FAURE, 1972, p. 9). Ao assumir tal tarefa,
esses homens apresentaram quatro postulados:
O primeiro, que constitui a prpria justificao da
tarefa empreendida, o da existncia duma
comunidade internacional que, sob a diversidade
de naes e culturas, das opes polticas e dos
nveis de desenvolvimento, se exprime pela
unidade de aspiraes, de problemas e de
tendncias e pela convergncia para um mesmo
destino.
O segundo a crena na democracia concebida
como direito de cada homem se realizar
plenamente e de participar na edificao do seu
prprio futuro.
Constitui o terceiro postulado o desenvolvimento
que tem por objetivo a expanso integral do
homem em toda a sua riqueza e na complexidade
das suas expresses e compromissos: indivduo,
membro duma famlia e duma coletividade,

86
Pode-se ver o limiar dos anos 1970 como o declnio da Era do Ouro do fordismo com
necessidade de uma nova composio diante de uma crise do capitalismo hegemonizado pelo
modelo americano de produo e consumo de massa, que, a partir dessa dcada, assumia,
ento, um carter universal e geral, e no apenas no seu sentido econmico, como tambm no
poltico, social e moral. Ou, nas palavras de Hobsbawm (2007, p. 20), no era a crise de uma
forma de organizar a sociedade, mas de todas as formas. A dcada de 1970 constituiu o lcus
de construo de um novo reordenamento social, cultural, poltico, moral, educacional, o que
permite entender o porqu de um documento como o Relatrio Faure ser gerado.

276
cidado e produtor, inventor de tcnicas e criador
de sonhos.
O nosso ltimo postulado o de que a educao
para formar este homem completo, cujo advento
se torna mais necessrio medida que coaes
sempre mais duras separam e atomizam cada ser,
ter de ser global e permanente. (FAURE, 1972,
p. 10, sem grifos no original).

Em continuidade ao ltimo postulado, define com maior clareza e


objetividade o que se pretende: Trata-se de no mais adquirir, de
maneira exata, conhecimentos definitivos, mas de se preparar para
elaborar, ao longo de toda a vida, um saber em constante evoluo e de
aprender a ser. (FAURE, 1972, p. 10, sem grifos no original). Em
1972, foram lanadas as bases do que se tornou justificativa para a
implementao de reformas educacionais considerando a necessidade de
formar um novo homem centrado no desenvolvimento de uma educao
permanente. Num discurso revestido de um carter universal, o desafio
que se impe est longe da neutralidade anunciada s primeiras pginas
do Relatrio. Evidencia-se, assim, que as ideologias, em seus diferentes
nveis de elaborao e complexidade, esto presentes em todo o tecido
social como um dos elementos organizadores de um dado momento
histrico, como observa Rummert (2000, p. 30).
Na apresentao do Relatrio, ainda pode-se assinalar que este
exprime um amplo acordo dos membros da Comisso, sendo que o
registrado se limita a reproduzir os nossos contributos e trocas de
pontos de vista, frequentemente animados, que as paredes dos locais
postos nossa disposio abrigaram. (FAURE, 1972, p. 11). Esta , na
opinio de Faure (1972, p. 12), uma obra concreta e voltada para a
ao, este relatrio deve muito s misses que efetuamos em vinte e trs
pases, graas s facilidades que os governos interessados e vs prprios
nos concederam.
Ren Maheu, na ocasio, diretor-geral da UNESCO, referindo-se
apresentao de Edgar Faure, destaca que o documento responde aos
seus objetivos, bem como s exigncias do momento. Reconhece que a
Comisso com profissionais diferentes, mas unidos por uma mesma
aspirao de objetividade, as personalidades eminentes [...] elaboraram
um inventrio da educao atual e definiram uma concepo global da
educao de amanh que, sem dvida, jamais foi objeto duma
formulao to completa. (MAHEU, 1972 apud FAURE, 1972, p. 13).

277
O diretor-geral ressalta que as ideias presentes no Relatrio j
inspiram a ao da Organizao, reforando que
os vossos trabalhos no se limitam a uma reflexo
sobre a educao, por mais notvel que seja a sua
qualidade. Sinto-me feliz por verificar que
conduzem a recomendaes concretas que, como
o esperava, me parecem capazes de orientar a
ao da UNESCO, dos governos e da comunidade
internacional. (MAHEU, 1972 apud FAURE,
1972, p. 13).

Por fim, Maheu menciona que o relatrio sublinha a importncia


da ligao entre a educao e o progresso da sociedade, creio
indispensvel p-lo disposio das instituies que, a ttulos variados,
se consagram ao desenvolvimento. (MAHEU, 1972 apud FAURE,
1972, p. 14).
O presidente da Comisso, Edgar Faure, foi membro do governo
provisrio em Argel e, desde 1946, deputado pelo Partido Radical
Socialista. Ocupou, em 1952, o cargo de primeiro-ministro, ficando
poucas semanas no cargo por discordar da poltica de seu adversrio,
Pierre Mends-France, voltando, posteriormente, cargo que passou a
ocupar entre 1955 e 1956. Faure participou no perodo de 1962, de
diversas misses diplomticas especiais, preparando o terreno para o
estabelecimento de relaes diplomticas com a Repblica Popular da
China. Aps a revolta estudantil de maio de 1968, ocupando o cargo de
ministro da Educao (at 1969), reformou o ensino universitrio
francs. De 1973 a 1978, presidiu a Assembleia Nacional, assumindo
depois o mandato de deputado no Parlamento Europeu.
No que se refere aos membros da Comisso, o quadro abaixo
mostra cada uma das personalidades, pas de origem e breve sntese de
formao e atuao profissional:

278

Membros da
Comisso

Pas de
origem

Referncia profissional

Felipe
Herrera

Chile

Professor da Universidade do Chile;


ex-presidente do Banco
Interamericano de Desenvolvimento
BID

AbdulRazzak
Kaddourra

Sria

Professor de fsica nuclear na


Universidade de Damasco

Henri Lopes
Arthur V.
Ptrovski
Majid
Rahnema
Frederick
Champion
Ward

Repblica
Popular do
Congo
U.R.S.S
Ir
E.U.A

Ministro dos Negcios Estrangeiros,


ex-ministro da Educao Nacional
Professor, membro da Academia das
Cincias Pedaggicas da U.R.S.S
Ex-ministro do Ensino Superior e das
Cincias
Conselheiro para a Educao
Internacional na Fundao Ford

Quadro 6 Membros da Comisso Internacional para o Desenvolvimento da


Educao. Elaborao prpria.

Essa Comisso, assim reunida, buscou responder, de acordo com


Faure (1972, p. 11), a uma procura de educao sem precedentes, face
a tarefas inditas e a funes novas, [pois] no bastam as frmulas
tradicionais, as reformas parciais. Alm disso, o presidente da
Comisso diz que se voltou
para os fatos que fazem o futuro: as pesquisas
intelectuais, as perspectivas conceituais recentes e
os progressos da tecnologia, na medida em que,
evidentemente, se integravam numa viso global,
correspondente finalidade de conjunto da
educao j evocada a formao do homem.
(FAURE, 1972, p. 11).

A formao de um novo homem sublinhada afirmando-se que


este deve ser um objetivo comum a todos os sistemas de educao.
(FAURE, 1972, p. 11). Tendo em vista essa referncia, Faure (1972, p.

279
11), sublinha que, diante das noes apresentadas no Relatrio,
objetivou-se contribuir no esforo metodolgico necessrio aos fins de
elaborao de estratgias nacionais. Tal esforo reconhecido por
Maheu (1972 apud Faure, 1972, p. 14) assumindo o compromisso de
difundir as ideias do Relatrio para informar a opinio pblica e todos
os que se interessam pela educao e em todo o mundo trabalham para
ela.
5.1.2 Da estrutura textual do Relatrio Aprender a ser
A Apresentao do Relatrio composta de duas cartas. A
primeira, do presidente Edgar Faure ao diretor-geral da UNESCO, Ren
Maheu, datada de 18 de maio de 1972. Uma segunda carta, resposta de
Maheu a Edgar Faure, datada de 29 de maio, do mesmo ano. A seguir
destaca-se um Prembulo, escrito por Faure, contendo consideraes
que dizem respeito a: Educao e destino do homem; A revoluo
cientfica e tcnica: educao e democracia; A mutao qualitativa: a
motivao e o emprego; Instituio escolar e a cidade educativa; Os
instrumentos da transformao87 e A cooperao internacional. Nesse
espao, Faure (1972, p. 17), ressalta que a UNESCO, ao constituir a
Comisso Internacional para o Desenvolvimento da Educao, mostrase assim integrada no calendrio poltico contemporneo. Assinala
ainda que a educao solicita, acompanha ou consagra, a longo prazo
no s a evoluo social e poltica, como tambm a evoluo tcnica e
econmica, indivduos mais instrudos tendem a afirmar-se como
cidados e, se so em maior nmero, a antecipar reivindicaes
democrticas. (FAURE, 1972, p. 20).
So trs as partes em que est dividido o Relatrio. A primeira,
intitulada O que se verifica, contm trs captulos. O captulo I, O tema
da educao, que se subdivide em: A herana do passado e Aspectos
atuais. O captulo II, Progresso e barreiras, est organizado da seguinte
forma: Necessidade e procura; Os termos do possvel; Reservas e meios;
Desequilbrios e disparidades. O captulo III, A educao, produto e
fator da sociedade, que discute: Impresses e dificuldades; Contornos e
contedos e Caminhos da democracia. Consta ainda, nesse captulo, o
Eplogo I: (Em forma de anttese) A propsito de algumas idias
87

Essa uma das tnicas do discurso nos livros de autoajuda, em que os aconselhamentos, as
orientaes, as receitas, se seguidas, serviro de instrumentos de transformao do
indivduo, de sua realidade, de situaes que angustiam, afligem e no permitem seu
desenvolvimento.

280
feitas. Faure salienta nesse captulo, que no se pretende traar um
esboo histrico, mas apresentar uma das teses, do presente relatrio,
[...] de que o passado exerce poderosas influncias sobre a educao.
(FAURE, 1972, p. 43).
A segunda parte, sob o ttulo Perspectivas para o futuro,
composta tambm de trs captulos, a saber: Captulo IV, O tempo das
interrogaes, apontando para: O salto; As diferenas; Os danos e As
ameaas. O captulo V, Fatos que constroem o futuro, discute: O
laboratrio descobre; O desenvolvimento da cincia e da tecnologia e A
prtica aplica e por sua vez inventa. O captulo VI, Transcendncias,
discorre sobre: Para um humanismo cientfico; Pela criatividade; Por
um compromisso social; Para o homem completo. Nesse captulo
encontra-se o Eplogo II ( maneira de pressgio): Uma cidade
educativa. A segunda parte do Relatrio refora que a atual situao da
educao no mundo o produto de mltiplos componentes: tradies e
estruturas herdadas do passado com o seu tesouro88 de aquisies e
experincias, mas tambm o peso de vestgios que arrastam consigo.
(FAURE, 1972, p. 70).
A terceira e ltima parte do Relatrio, Para uma cidade
educativa, tambm est estruturada em trs captulos. O captulo VII,
Lugares e funes das estratgias educativas apresenta consideraes a
respeito de: Poltica, estratgia, planificao, bem como da
Caracterizao das estratgias educativas. No captulo VIII, Elementos
para as estratgias contemporneas, aborda: Melhorias e reformas,
alm de Inovaes e procura de alternativas. Por fim, o captulo IX, Os
caminhos da solidariedade, est subdividido em: Causas e razes;
Cooperao e permuta de experincias e Fontes e modos de assistncia.
Essa terceira parte est voltada construo de uma cidade educativa,
considerando que toda poltica de educao reflete as opinies
polticas, as tradies e os valores de um pas, assim como a idia que se
faz do seu devir. (FAURE, 1972, p. 256). A Comisso esclarece que o
enunciado duma poltica educativa o resultado
dum processo de pensamento que consiste:
88
O que se tornar ttulo central do Relatrio da Comisso de Educao para o sculo XXI:
educao um tesouro a descobrir presidido por Jacques Delors (1996) imprimindo educao
um carter messinico. Alm desse, o termo remete a ideia de herana valiosa to difundida
nas geraes de pais e avs que se orgulham em afirmar que os bens materiais no puderam
deixar grandes somas, mas o maior tesouro foi conseguir colocar os filhos na escola. Essa
forma de interpretar a educao est fortemente arraigada na sociedade.

281
- em harmonizar os objetivos educativos com os
objetivos globais;
- em deduzir, muitas vezes, os objetivos da
educao a partir das finalidades da poltica geral;
- em assegurar a concordncia dos objetivos
educativos com os objetivos relativos aos outros
setores da atividade nacional. (FAURE, 1972, p.
256).

Esse discurso pretende conjugar o mundo do trabalho com as


novas prticas educativas. Em busca de construir consentimento e
divulgar um aprender a ser condizente com a nova sociabilidade do
capital, a Comisso difunde noes de riscos, de situaes conflitivas
que estariam latentes. Recorre ao discurso de uma educao
salvacionista e redentora [que] foi concebido como poltica
compensatria na soluo dos problemas econmicos e como aliado na
administrao de eventuais conflitos sociais. (SHIROMA;
EVANGELISTA, 2003, p. 83).
5.1.3 Considerando outros elementos na construo do
discurso
Identificam-se no Relatrio Faure, como sugere Fairclough
(2001), discursos que se combinam para produzir um novo e complexo
discurso. A estratgia da Comisso marcada pela repetio de
palavras, pelo abusivo uso de quadros, boxes colocados no decorrer
dos captulos ou ao final destes dando um carter de sntese, fechamento
ou concluso. Estes iniciam da seguinte forma: Em resumo; Parecenos; desejvel; Exprimimos os votos de; Recomendao;
Sobre este ponto conclumos, Convm segundo a nossa opinio,
Assim, preconizamos, Conclumos. Esses elementos so essenciais
prtica de convencimento, de interpretao comum de diferentes
realidades.
Tais expresses visam encaminhar uma orientao, remetendo a
pensar a intertextualidade. Esta envolve diversas maneiras pelas quais
possvel construir um discurso a exemplo do box -, relacionando
fatores que tornam a utilizao das colchas de retalho uma estratgia
extremamente til nos processos de transformao para mudanas na
identidade social. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 170).

282
Se as prticas discursivas disseminam determinada viso de
mundo, de homem, de sociedade, pode-se ler o Relatrio Faure,
considerando tais perspectivas. Os boxes intencionalmente
posicionados ora no decorrer da argumentao, ora ao final dos
captulos, ou ainda ao final de cada uma das partes, direcionam a
ateno do leitor para o que prope o documento de forma a reforar o
discurso, conforme o que segue:
Que concluses gerais se podem tirar, no que
concerne educao, desta perspectiva da
histria? [...] que na educao de hoje pesam
dogmas e usos caducos e sob esse aspecto,
frequentemente, as velhas naes no apresentam
menos anacronismos nos seus sistemas de ensino
do que os jovens Estados. Desse modo, uma
dupla tarefa, ao mesmo tempo de restituio e de
renovao, que nos parece convir histria da
educao. (FAURE, 1972, p. 54).

O que marca o contedo da maioria desses boxes


precisamente a apresentao de aspectos negativos, de crises, de
problemas, para, ento, apontar para o que, do ponto de vista da
Comisso, seria a soluo.
Conclumos exprimindo a esperana de que as
autoridades nacionais responsveis pela educao,
apoiando-se na assistncia que lhes oferecem para
este efeito as instncias internacionais,
reconhecero a necessidade, primordial, de situar
os problemas da educao numa perspectiva
global e de procurar respostas para esta
inquietao
fundamental:
o
instrumento
educativo, tal como concebido, corresponder
realmente s necessidades e s aspiraes dos
homens e das sociedades do nosso tempo?
(FAURE, 1972, p. 69).

Nessa linha de pensamento, em outro box, afirma-se: Apesar


das esperanas suscitadas h uma vintena de anos, a educao no fez
at aqui exceo cruel regra da nossa poca, que tende a gerar no
mundo uma disparidade enorme na repartio dos bens e dos meios.
(FAURE, 1972, p. 110). A Comisso partilha de que a correlao entre

283
as contradies dos sistemas sociais e a impotncia relativa dos sistemas
educativos deve ser considerada um fato em evidncia. (FAURE,
1972, p. 118).
De uma perspectiva em que se apontam os problemas, a terceira
parte do Relatrio, mas especificamente no captulo VIII, refora
elementos para possveis estratgias, uma vez constatada a crise. No
estado atual das coisas e tendo em conta o crescimento das
possibilidades e das experincias j adquiridas. (FAURE, 1972, p.
271), o documento destina um espao a 21 princpios acompanhados
cada qual de argumentos apresentados como alternativas para a
educao. Essa estrutura merece um olhar mais atento pela forma como
exibida no Relatrio. Dos princpios derivam argumentos gerando um
box denominado Recomendao, seguido de um Comentrio em que
se conclui com uma Ilustrao que consta de exemplos e explicaes
que visam dar legitimidade a cada um dos princpios formulados pela
Comisso. Este um momento de exposio de experincias exitosas de
diversos pases visitados.
Outro aspecto que merece destaque: o uso abundante de quadros
estatsticos e muitas notas de rodap. Estes remetem, alm de um
reforo de explicao, a numerosas experincias em diversos pases e
depoimentos de membros da prpria Comisso.
Em cada captulo, outro recurso visual usado para direcionar a
leitura so os pequenos subttulos que ficam dispostos na margem
esquerda de cada pgina chamando a ateno para o tema da discusso
que segue. Outra evidncia a ser considerada a constituio de um
discurso que utiliza a repetio de palavras. Como exemplo, tm-se:
solidariedade; incerteza; progresso; sistema de ensino/educao;
estatsticas; tecnologias, estratgias e adaptao. Pode-se considerar
essas palavras, por vezes repetidas, como elementos que justificam a
disseminao de uma nova concepo de mundo que exige novos modos
de viver, pensar e sentir (GRAMSCI, 1979). Fundamenta-se, nesse
sentido, um discurso que justifica as inmeras assertivas do documento,
norteando os argumentos sobre a necessidade de repensar as finalidades
da educao e dos sistemas de ensino, segundo observou Rodrigues
(2008).

284
5.1.4 A fora dos verbos
Destaca-se, no documento, um discurso de enaltecimento era
da tecnologia (FAURE, 1972, p. 25). Ainda que faa breve ressalva a
seus inconvenientes, a Comisso considera a cincia e a tecnologia
fundamentais como elementos omnipresentes e fundamentais de todo o
empreendimento educativo (FAURE, 1972, p. 2), afirmando que a
era cientfico-tecnolgica implica a mobilidade
dos conhecimentos e a renovao das inovaes,
e por isso o ensino deve consagrar um esforo
mnimo distribuio e a cumulao do saber
adquirido [...] e dar maior ateno aprendizagem
dos mtodos de aquisio (aprender a aprender).
(FAURE, 1972, p. 29).

A orientao da Comisso versa a respeito da necessidade de


aprender. Esse aprender est relacionado a reinventar e a renovar
constantemente, ento o ensino torna-se educao e, cada vez mais,
aprendizagem. (FAURE, 1972, p. 34). No que se refere aos mtodos de
modernizao da educao, insistentemente reforados no documento,
afirma-se que
os pases em vias de desenvolvimento deveriam
simultaneamente
utilizar
as
tecnologias
avanadas, na medida em que isso possvel, e
orientar-se muito mais para o emprego das
tecnologias susceptveis de aumentar a eficcia e
de levar um auxlio educao desses pases sem,
para tanto, exigir apoios tecnolgicos ou
mecnicos sofisticados e caros. (FAURE, 1972, p.
36).

A despeito dessas possibilidades, a Comisso reala que


preciso juntar a este balano do esforo da
escolarizao a soma de inumerveis atividades
extra-escolares:
emisses
educativas
radiodifundidas ou televisionadas, programas de
alfabetizao de adultos, universidades populares,
cursos por correspondncia, mltiplas atividades
culturais, crculos de estudos, etc., que

285
completam,
principalmente
nos
pases
industrializados, as mltiplas atividades no plano
profissional; programas de aprendizagem,
promoo
da
mo-de-obra,
cursos
de
aperfeioamento e de atualizao, estgios e
seminrios. (FAURE, 1972, p. 88).

Do ponto de vista da Comisso, os conhecimentos tcnicos


revestem-se duma importncia vital no mundo moderno e devem fazer
parte da instruo de base de cada pessoa. (FAURE, 1972, p. 126).
nesse aspecto que se refora que o ensino da tecnologia, ao nvel
conceitual, deveria permitir que cada um compreendesse os meios pelos
quais pode modificar o meio que o rodeia. (FAURE, 1972, p. 126,
sem grifos no original). Est exposta, assim, uma crtica utilizao
passiva da tecnologia.
No plano prtico, pretende-se apresentar a tecnologia como o
processo pelo qual os materiais so transformados, o que sempre exige
energia e saber. (FAURE, 1972, p. 126). Nessa perspectiva, seria
preciso [...] analisar os princpios sobre os quais repousa toda a
transformao, simples ou complexa, e mostrar que a tecnologia
interessa a tudo o que o homem faz para modificar o mundo em que
vive. (FAURE, 1972, p. 126, sem grifos no original).
Por uma atitude de responsabilizao individual, destaca a
Comisso que
a lio a tirar, para a educao, duma mais
moderada viso das condies do progresso
deveria ser o reconhecimento da incapacidade de
remediar sozinha os defeitos da sociedade,
devendo entregar-se tarefa de aumentar o
poder que os povos tm de agir sobre o seu
prprio destino; deve esforar-se, ajudando cada
indivduo a alargar as suas faculdades pessoais,
a liberar a fora criadora dos povos, a
transformar em energia real a energia potencial de
centenas de milhes de pessoas; respondendo aos
temores que inspira a longo prazo a dureza
tcnica, deve procurar chamar a ateno, pela
afirmao de finalidades humanistas, para o risco
duma desumanizao progressiva da existncia.
(FAURE, 1972, p. 146, sem grifos no original).

286
Para dar conta de tais finalidades, tarefas da educao, a
Comisso destaca que
a procura das estratgias no lineares deve basearse, no sobre a extrapolao de tendncias
passadas, mas sobre uma anlise atual e imediata
das necessidades e das aspiraes dos indivduos e
dos grupos, quer dizer, sobre os objetivos
concebidos em sua funo, no s no plano
educativo, mas em domnios conexos como o
emprego, a produo, a produtividade agrcola, e
tambm sobre dados tais como as condies da
vida social, o desenvolvimento urbano, as relaes
sociais, as aspiraes individuais, a evoluo das
tcnicas e dos meios de comunicao, o nvel de
vida das populaes e os projetos de
desenvolvimento. (FAURE, 1972, p. 262).

Assim sendo, as novas estratgias da educao devem proceder


duma viso global dos meios e dos sistemas educativos, considerados,
segundo a sua aptido, para responder s necessidades em perptua
mudana. (FAURE, 1972, p. 263). Como diz Rodrigues (2008, p. 59),
a educao , portanto, reconhecida como problema e tarefa universal.
incumbida de assumir tarefas inditas e novas funes para as quais os
sistemas de educao, localizados como a materialidade do problema,
devero adequar-se.
Sob esse ponto de vista, torna-se necessrio para a UNESCO,
investir num discurso que conquiste, convena os pases da necessidade
de construo de novos sistemas educativos. Conforme anlise de
Rodrigues (2008, p. 60), a Comisso refora a necessidade de
uma reviso radical dos sistemas educativos e um
esforo de solidariedade por parte das naes mais
ricas em relao s mudanas necessrias nesses
sistemas educativos, pois, segundo sua anlise,
cinco fatores imporiam educao srios
problemas do ponto de vista da economia e do
emprego: 1- jovens que nunca foram escola,
identificados como praticamente desprovidos de
toda a preparao para o trabalho; 2- indivduos
que deixaram a escola prematuramente,
considerados nada preparados; 3- jovens que
completaram seus estudos regulares com sucesso,

287
mas que se encontram com uma formao mal
adaptada s necessidades da economia; 4- adultos
que trabalham em um emprego para o qual no
foram formados; 5- profissionais cuja formao
no corresponde s exigncias do progresso
tcnico no ramo em que trabalharam at ento,
denominados de sujeitos inadaptados e
inadaptveis.

Entende-se, assim, a investida em diferentes recursos de


linguagem que visam dar maior legitimidade ao discurso da mudana.
5.1.5 Metforas
Metfora no um enfeite tardio da linguagem, mas um de seus
modos fundamentais uma forma bsica de pensamento discursivo.
(LVI-STRAUSS 1964 apud KIERAN, 2002, p. 81). Considerando tal
perspectiva, tem-se que as metforas estruturam o modo como
pensamos e agimos, funcionando como estratgia de reconhecimento de
fatos, situaes, bem como identificao com os mesmos.
(FAIRCLOUGH, 2001). Poder-se-ia dizer que a metfora gera um
equivalente que significa, emite uma determinada mensagem.
Em busca da construo de novos significados para os
estabelecimentos educativos, a Comisso faz referncia metfora do
atelier. Com tal imagem pretende-se a criao duma atmosfera
educacional dum novo tipo (FAURE, 1972, p. 217, sem grifos no
original) para tentar recuperar a importncia perdida do espao
educativo tradicional. A essa metfora, associa-se que o agrupamento
dos alunos, a organizao do espao, o emprego do tempo, a
distribuio dos professores, a repartio dos recursos materiais, tendem
para a mobilizao, para uma flexibilidade maior da instituio, em
funo da evoluo social ou tcnica. (FAURE, 1972, p. 217).
Ao relacionar os estabelecimentos educativos a um atelier, buscase atribuir um novo sentido, uma nova funo para a escola associada
necessidade de mudana. Lembra-se que o pensamento metafrico age
por comparao, ou seja, ver uma coisa em termos de outra permite
ver o mundo numa perspectiva de mudana, engajando os indivduos a
harmonizar os objetivos educativos com os objetos globais [...] em
deduzir, muitas vezes, os objetivos da educao a partir das finalidades
da poltica geral [...] em assegurar a concordncia dos objetivos

288
educativos com os objetivos relativos aos outros setores da atividade
nacional. (FAURE, 1972, p. 256). Os elementos apresentados
constituem o enunciado de uma poltica educativa que resultado, de
acordo com a Comisso, de um processo de pensamento. (FAURE,
1972, p. 256).
As observaes sobre as metforas remetem ao objetivo com que
este recurso utilizado, gerando um efeito de aceitao ou
necessidade de mudana para o novo. Se as palavras comuns
transmitem o que j se tem presente, a metfora pressupe uma melhor
forma de propor o novo. o caso da metfora cidade educativa,
proposta no Relatrio Faure:
Se se aceitar a noo de um sistema de educao
global e permanente e a idia da cidade
educativa, no como um sonho de futuro, mas
como dado objetivo e projeto coletivo do nosso
tempo (para que concorrem j, conscientemente
ou no, educadores, pedagogos, cientistas,
polticos e utentes), convm agir simultaneamente
em duas direes: reforma interna e melhoria
constante dos sistemas educativos existentes;
procura de formas inovadoras, de alternativas e de
recursos novos. (FAURE, 1972, p. 265).

Algumas metforas so profundamente naturalizadas no interior


de uma cultura particular para que as pessoas no apenas deixam de
perceb-las na maior parte do tempo. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 241).
O discurso da mudana, to reiterado no Relatrio Faure nos anos de
1970 associa essa ideia com a da reforma, melhoria e adaptao. Mudar
significa to simplesmente reformar. De acordo com Faure (1972, p.
267-268), a motivao para as reformas tem trs fontes principais, quais
sejam:
Elas so ditadas, antes de tudo, pela preocupao
de remediar as incapacidades e as insuficincias
que a experincia necessariamente denuncia no
funcionamento de todo o sistema educativo e que
as exigncias do tempo presente no deixam de
acusar. [...] pelas descobertas da cincia e pelos
ensinamentos da investigao, que sugerem e
fornecem sem cessar novos meios de aperfeioar
ou de racionalizar a prtica educativa. [...] Enfim,

289
inegvel que, a despeito de sua inrcia e do seu
conservadorismo,
to
frequentemente
verificados e denunciados, o renovamento, a
modernizao, o aperfeioamento dos sistemas
educativos resultam tambm de impulsos internos.

A metfora representa, desse modo, a expresso visvel de uma


situao que precisa ganhar nova aparncia, sem que, necessariamente,
se mude sua essncia. Na perspectiva reformista, acredita-se que
realizar reformas parciais , num sistema educativo, sinal de vitalidade
e a garantia da sua capacidade em se submeter s transformaes mais
profundas. (FAURE, 1972, p. 270). Tanto assim, que a Comisso
refora que preciso a UNESCO dar o exemplo. Ora a renovao da
educao reveste cada vez mais, aos nossos olhos, o carter dum
empreendimento de dimenses internacionais que exige ser pensado sob
uma luz universal. (FAURE, 1972, p. 360, sem grifo no original).
Tais prticas discursivas, apoiadas em metforas, produzem uma
viso de mundo e de educao associadas a uma possibilidade de
mudana similar a dos receiturios de autoajuda, onde aprende-se que,
se agir conforme o recomendado, alcanar as melhorias decorrentes da
mudana de atitude.
Como as metforas, a intertextualidade marca o documento. So
as vozes de outros autores, mix de discursos, expressos na voz da
Comisso. Para dar mais sentido e fora aos eventos, situaes,
concepes apresentadas no documento, autores aparecem sendo apenas
referenciados por meio de citaes indiretas, parfrases, ou ainda, por
meio de transcries diretas. Valem-se de autores como Carl Rogers,
Lukacs, Weber, Lenine, entre outros. Alm destes, a Comisso busca
respaldo em documentos de vrios organismos internacionais, como
UNESCO e OCDE. Emprega-se o ponto de vista daqueles que partilham
do mesmo objetivo, afirmando a educao como ncora que elimina
desigualdades, disparidades provendo por meio de uma reforma
necessria, uma educao de novo tipo para formar um novo tipo de
homem.
Esse carter prescritivo dos textos da poltica semelhana dos
textos de autoajuda dissemina uma viso de mundo que atrela a
mudana individual como condio para a reforma da educao em
nvel global. Se a intertextualidade pode ser considerada uma entre as
estratgias adotadas pela Comisso, recorrendo a Fairclough (2001, p.

290
135), possvel assinalar que os textos produzidos podem transformar
textos anteriores e reestruturar as convenes existentes. O documento
produzido visa dessa maneira, desencadear uma reforma educacional
imprimindo forte carter individualista e flexvel com vistas a contornar
sistemas tradicionais da educao, colocando em evidncia a
fragilidade de certas formas de instruo, e a fora de outras, alargando
as funes do autodidatismo e aumentando o valor das atitudes ativas e
conscientes de aquisio de conhecimentos. (FAURE, 1972, p. 32).
Aqui vale lembrar o alerta de Shiroma, Campos e Garcia (2004,
p. 10) destacando que, embora caracterizados por seu tom prescritivo e
recorrendo a argumento de autoridade, os textos da poltica do margem
a interpretaes e reinterpretaes, gerando, como conseqncia,
atribuio de significados e de sentidos diversos a um mesmo termo.
5.1.6 Concepo de mundo
Na compreenso da Comisso, o mundo precisa de mudanas.
Essas mudanas so consequncias dum processo de crescimento
inegvel, que procede por saltos e recuos, [que] no corrige um
desequilbrio seno criando outro, mas que est longe de apresentar
apenas aspectos negativos, mesmo se as adaptaes e as mutaes que
exige so penosas e extenuantes. (FAURE, 1972, p. 58). Trata-se de
um mundo cujo crescimento demogrfico [...] no uniforme
(FAURE, 1972, p. 75). Afirma-se que a exploso demogrfica, tantas
vezes evocada e muitas vezes temida, contm em si uma exploso
escolar ainda mais impiedosa. (FAURE, 1972, p. 74). Disso, prev-se
para o fim do sculo, que o nmero de pessoas em idade escolar e
universitria aumentar em mais de mil milhes, ou seja, cada ano um
excedente virtual de trinta e seis milhes de alunos e estudantes
(FAURE, 1972, p. 74). Reforando esse pensamento, a educao , ao
mesmo tempo, um mundo em si e reflexo do mundo. (FAURE, 1972,
p. 111).
Oferecer uma compreenso do mundo, na perspectiva da
Comisso, um
dos fins maiores da educao, mas esta
preocupao traduz-se, freqentes vezes, ou pelo
enunciado de explicaes abstratas, de princpios
pretensamente universais, ou por um utilitarismo
estreito, igualmente incapaz de responder s

291
interrogaes dos espritos jovens, confrontados
com o real e curiosos do seu prprio destino.
(FAURE, 1972, p. 123, sem grifos no original).

De forma veemente, o documento expressa que as injustias,


autoritarismo, discriminaes, alm das perturbaes sociais, tm
contribudo em conjunto para atualizar a necessidade duma
democratizao acelerada do ensino. (FAURE, 1972, p. 130). Ao longo
do Relatrio, insiste-se em reforar o termo injustia. A imagem de um
mundo futuro sem diferenas entre as regies supostamente
construda. Neste mundo de iguais, no haveria desigualdades, j a
Comisso considera que a injustia influencia sempre, de mil maneiras,
o universo educativo. (FAURE, 1972, p. 131).
Injustias, desigualdades, discriminaes, disparidades, aparecem
descritas no documento como limitantes da democratizao poltica e
social. Afetando diretamente o sistema de ensino, a democracia
educativa no resulta s da multiplicao dos estabelecimentos
escolares, da extenso das possibilidades de acesso aos diferentes nveis,
do prolongamento dos anos de estudo. (FAURE, 1972, p. 136).
Defendem os membros da Comisso que reduzir o problema a isto
desprezar o fato de que existem outras solues capazes de oferecer aos
indivduos os meios de desenvolver as suas aptides e orientar o seu
destino. (FAURE, 1972, p. 136).
Um pressuposto fundamental, para que os indivduos
desenvolvam-se, segunda essa premissa, no perder de vista que a
educao est inserida num mundo dominado por problemas sociais.
Ainda que se alerte que o encadeamento das determinaes no seja
concebido de maneira mecnica, tais problemas j so apresentados com
a pretensa soluo. Diante disso, destacam-se exemplos de problemas e
as possveis solues:
- Se os desequilbrios entre os recursos e a sua
utilizao constituem um obstculo a eliminar, o
desenvolvimento da educao deveria inserir-se
sempre e mais no quadro duma poltica do
progresso econmico.
- Se as desigualdades sociais entravam o avano
das sociedades de amanh, as estratgias
educativas devem necessariamente tender com
maior resoluo para um aproveitamento das

292
formas que permitam uma disseminao mais
vasta dos meios e possibilidades de aprender.
- Se as disparidades regionais de cada pas, e
mesmo
entre
os
pases,
entravam
o
desenvolvimento global, lgico encorajar os
esforos educativos em favor das categoriais
desfavorecidas da populao, das regies rurais e
dos pases mais desprovidos.
- Se evidente, ao nvel dos problemas
econmicos e sociais, que uma poltica global e
uma filosofia comum de desenvolvimento se
impem aos diferentes pases, a educao
evoluiria duma maneira mais eficaz se se apoiasse
num mtodo de aproximao comum, no qual as
diversas polticas nacionais se poderiam inspirar
vantajosamente. (FAURE, 1972, p. 168, sem
grifos no original).

Esses exemplos remetem a anlise de Fairclough (2001) a


respeito da coerncia89 na construo de um discurso. Esse um
aspecto importante considerando-se que a construo de um texto
possibilita diferentes leituras. Nessa linha de pensamento, resgata-se
parte da citao acima: Se as desigualdades sociais entravam o avano
das sociedades de amanh, as estratgias educativas devem
necessariamente tender com maior resoluo para um aproveitamento
das formas que permitam uma disseminao mais vasta dos meios e
possibilidades de aprender. (FAURE, 1972, p. 168). Um intrprete
poderia ler essa passagem percebendo a educao como nica condio
de superao das desigualdades sociais. Numa outra leitura, pode-se
questionar como possvel a partir de um problema, as desigualdades
sociais, galgar uma resoluo apenas disseminando mais meios e
possibilidades de aprender?
Da mesma forma pode-se indagar: se as disparidades regionais
de cada pas, e mesmo entre os pases, entravam o desenvolvimento
global, lgico encorajar os esforos educativos em favor das
categoriais desfavorecidas da populao, das regies rurais e dos pases
mais desprovidos. (FAURE, 1972, p. 168). Se o conceito de coerncia
89

Para Fairclough (2001, p. 171), os textos postulam sujeitos intrpretes e implicitamente


estabelecem posies interpretativas para eles que so capazes de usar suposies de sua
experincia anterior para fazer conexes entre os diversos elementos intertextuais de um texto
e gerar interpretaes coerentes.

293
o centro de muitas explicaes sobre a interpretao, de acordo com
Fairclough (2001), ento se poderia dizer que prevalecem no discurso do
Relatrio muitas incoerncias. Insistindo na mesma linha de discusso,
como seria possvel eliminar as disparidades regionais, que so de vrias
ordens, simplesmente encorajando esforos educativos? No explicitam
quais seriam estes esforos, mas as influncias da teoria do Capital
Humano podem ser percebidas no Relatrio.
Todos esses fatores, assim elencados, somam-se aos argumentos
que a Comisso utiliza para dizer que pela aprendizagem da
participao ativa no funcionamento das estruturas da sociedade que o
indivduo adquire plenitude das suas dimenses sociais. (FAURE,
1972, p. 235). Percebe-se que descrever um mundo essencialmente
catico estratgico para a Comisso, de modo que se incute a
necessidade de uma educao poltica. Destaca-se que preciso
praticar a educao para a poltica, de que maneira? Formando
homens para a compreenso das estruturas do mundo onde so
chamados a viver, para a realizao de trabalhos reais da existncia, a
fim de que no caminhem como cegos num universo indecifrvel.
(FAURE, 1972, p. 234). Para qu? Como uma condio de felicidade
individual, uma maneira de influir livremente sobre o destino. (FAURE,
1972, p. 235). Construindo tal perspectiva de responsabilizao do
indivduo, na apresentao do Relatrio, Faure (1972, p. 10), aponta a
necessidade de solues para os grandes problemas suscitados pelo
desenvolvimento da educao num mundo em transformao.
Essa a concepo de mundo difundida no Relatrio Faure, um
mundo em mutao, com disparidades econmicas, intelectuais,
cvicas que
pe em causa a unidade da espcie, o seu futuro, a
identidade do homem como tal. de recear no s
o espetculo penoso de graves desigualdades, de
privaes e de sofrimentos, mas uma verdadeira
dicotomia do gnero humano que se
compartimentaria em grupos superiores e
inferiores, em patres e escravos, em superhomens e infra-homens. Resultariam daqui no s
os riscos de conflitos e de desastres [...] mas um
perigo essencial a desumanizao que atingiria
indiferentemente
os
privilegiados
e
os
sacrificados. (FAURE, 1972, p. 19).

294
A partir dessas afirmaes, a Comisso investe na construo de
uma concepo comum insistindo que se deva considerar a educao
como um domnio poltico, onde a importncia da ao poltica
particularmente decisiva. (FAURE, 1972, p. 25).
Ao apresentar a educao como redentora dos males e problemas
sociais, sinaliza-se a participao responsvel de cada indivduo na
remisso de um mundo que est em transformao. Referindo-se
implicitamente perspectiva da Teoria do Capital Humano, indivduos
mais instrudos tendem a afirmar-se como cidado e, se so em maior
nmero, a antecipar reivindicaes democrticas. (FAURE, 1972, p.
20). Atendo-se Teoria do Capital Humano, o documento destaca que,
num olhar de conjunto [sobre] a evoluo da vida educativa ao longo
do tempo, verificamos facilmente que os progressos da educao
acompanham os da economia. (FAURE, 1972, p. 21).
A orientao da Comisso, nesse sentido, que se trabalhe para
superar a contradio que surge entre os produtos da educao e as
necessidades das sociedades. (FAURE, 1972, p. 57), j que a situao
poltica, as dificuldades e as contradies internas tornam mais difcil o
acesso a uma viso global do futuro social (FAURE, 1972, p. 57),
semelhana dos manuais de autoajuda que apregoam que a soma de
aes individuais resulta nas aes globais. um discurso pelo qual se
disseminam exemplos, situaes, fragmentos de histrias que remetem a
uma viso de mundo parcelada, fragmentada, descontextualizada. Sob
esse aspecto, a indagao de Gramsci (1999, p. 93) importante:
prefervel pensar sem disto ter conscincia
crtica, de uma maneira desagregada e ocasional,
isto , participar de uma concepo de mundo
imposta mecanicamente pelo ambiente exterior,
ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos
quais todos esto automaticamente envolvidos
desde sua entrada no mundo consciente, ou
prefervel elaborar a prpria concepo do mundo
de uma maneira consciente e crtica e, portanto,
em ligao com o trabalho do prprio crebro,
escolher a prpria esfera da atividade, participar
ativamente na produo da histria do mundo, ser
o guia de si mesmo e no aceitar do exterior,
passiva e servilmente, a marca da prpria
personalidade?

295
Afeito primeira opo, o discurso ideolgico do Relatrio
operacional ao capital que, naquele momento histrico, visa impor uma
determinada viso de mundo, de sociedade, de educao, modo de
pensar, sentir e agir adequados manuteno da ordem vigente em
busca da formao de um novo tipo de educao para formar o novo
homem desse mundo amplamente descrito.
A viso difundida no Relatrio Faure de um mundo: em
transformao; em mutao; de incertezas; exploso demogrfica; em
desequilbrio global; de injustias; de autoritarismos; discriminaes
regionais; perturbaes sociais; desigualdades sociais; em crise de
autoridade; de intensas descobertas cientficas que levam ao progresso
tecnolgico, mas que, ainda assim, eleva as disparidades sociais.
(FAURE, 1972). Esses problemas, para a Comisso, mostram bem a
dualidade das funes da escola, que no tem s por fim revelar
capacidades, aperfeio-las e diplom-las, mas sobretudo desenvolver as
atitudes e a personalidade. (FAURE, 1972, p. 128). Aprender a ser,
envolve aprender a agir num mundo cujas crises esto por toda a parte.
O homem do Relatrio Faure em grande medida, o homem universal,
igual a si mesmo em qualquer poca e em qualquer lugar. Todavia, o
indivduo particular um ser eminentemente concreto [...] quanto mais
obedece s suas leis e sua vocao pessoal, melhor realiza o propsito
comum da humanidade e est em melhores condies de se comunicar
com o prximo. (FAURE, 1972, p. 242).
5.1.7 Educao para a formao de um homem de novo tipo
A Comisso insiste que se deva considerar a educao como um
domnio poltico, onde a importncia da ao poltica particularmente
decisiva (FAURE, 1972, p. 25), como visto at ento. Para que isso
seja vivel, no documento h grande nfase idia de que a educao
est hoje posta em questo, que chegou o momento de se proceder sua
renovao, que preciso repens-la no seu conjunto. (FAURE, 1972, p.
37). Essa renovao,
tornada necessria pelas disfunes da prtica
educativa, exigida pela transformao das
estruturas socioeconmicas e pela revoluo
cientfica e tecnolgica, torna-se possvel graas
tomada de conscincia dos povos, investigao

296
cientfica e ao progresso das tecnologias que
interessam educao. (FAURE, 1972, p. 176).

Em vista dessa necessidade de renovao da educao, no


documento h um destaque para novas formas educativas, a saber:
Tendncia para tornar flexveis organizaes
rgidas, articulao da instituio educativa com o
meio social, redistribuio dos empregos e das
funes internas, substituio das funes
autoritrias por estruturas de participao,
aparecimento das noes de ambiente de meio
educativo total, individualizao, sistemas e
programas modulares, etc. (FAURE, 1972, p.
177).

A educao, medianeira do saber aos olhos da Comisso, tem


um papel maior a desempenhar, que abolir, o mais breve possvel, as
disparidades que reinam entre os homens das diferentes partes do
mundo, quanto ao direito instruo. (FAURE, 1972, p. 103).
Entende-se, assim, a afirmao de que a educao no escapa lei de
todo o empreendimento humano, que o de envelhecer e de se cobrir de
resduos e de partes mortas. (FAURE, 1972, p. 143). O uso da metfora
traduz a necessidade de renovar a educao na qual se objetiva que esta
continue [como] um organismo vivo, capaz de
responder com inteligncia e vigor s exigncias
das
pessoas
e
das
sociedades
em
desenvolvimento, deve evitar as armadilhas das
complacncias e das situaes adquiridas e repor
constantemente em questo de seus objetivos,
contedos e mtodos. (FAURE, 1972, p. 143).

Por este discurso, a Comisso esfora-se em qualificar a


educao como aquela que cimenta a unidade nacional e social; [que]
favorece a mobilidade social; iguala as oportunidades. (FAURE, 1972,
p. 148). Nesse aspecto, compete educao:
[...] preparar homens capazes de se adaptarem
s transformaes, caracterstica essencial do
nosso tempo. (FAURE, 1972, p. 175).

297
[...] promoo do esprito de inveno
tecnolgica e da criao orientada para o
desenvolvimento. Este esforo comporta, por
conseguinte,
uma
finalidade
pedaggica
importante para todos os educadores. (FAURE,
1972, p. 211, sem grifos no original).
[...] formar homens para a compreenso das
estruturas do mundo onde so chamados a viver,
para a realizao de trabalhos reais de sua
existncia, a fim de que no caminhem como
cegos no universo indecifrvel. (FAURE, 1972, p.
234, sem grifos no original).
Uma das misses da educao ajudar os homens
a ver no estrangeiro no uma abstrao, mas um
ser vivo, real, com as suas razes, as suas penas e
alegrias, a descobrir nas diferentes expresses
nacionais a comunidade humana. (FAURE, 1972,
p. 237, sem grifos no original).

Tais objetivos estritamente vinculados a responder s


necessidades de uma sociedade em perptua mudana exigem novas
estratgias da educao [que] devem proceder duma viso global dos
meios e dos sistemas educativos. (FAURE, 1972, p. 263). Nessa viso,
os instrumentos de transformao da educao esto relacionados ao
uso da informtica.
A Comisso verifica o fraco desenvolvimento do ensino
programtico; vemos que o rdio, a televiso e, com mais forte razo, os
ordenadores se utilizam de maneira insuficiente para fins educativos.
(FAURE, 1972, p. 35). Resulta disso um forte apelo utilizao da
informtica, em que os alunos deveriam ser iniciados, desde muito
jovens, na linguagem elementar das mquinas. Primeiro, porque o
algoritmo um notvel mtodo de lgica, depois porque o contato com
esta fora misteriosa muitas vezes uma grande motivao para o
conhecimento. (FAURE, 1972, p. 35). Nessa viso otimista acerca dos
benefcios pedaggicos do uso da informtica, lembram-se as palavras
de Schaff (1995, p. 155) que dizia que a sociedade informtica
proporcionaria os pressupostos para uma vida humana mais feliz;
eliminar aquilo que tem sido a principal fonte de m qualidade de vida
das massas na ordenao do cotidiano: a misria ou, pelo menos, a
privao. Verifica-se que o emprego da tecnologia, em especial, uma
tecnologia educativa e princpios tecnolgicos seria condio de

298
progresso para os pases em via de desenvolvimento, segundo expressa
o Relatrio:
O que se refere escolha dos mtodos de
modernizao da educao, parece-nos que os
pases em vias de desenvolvimento deveriam
simultaneamente
utilizar
as
tecnologias
avanadas, na medida em que isso possvel, e
orientar-se muito mais para o emprego das
tecnologias intermedirias e para a aplicao de
princpios tecnolgicos susceptveis de aumentar a
eficcia e de levar um auxlio educao desses
pases sem para tanto exigir apoios tecnolgicos
ou mecnicos sofisticados e caros. (FAURE,
1972, p. 36).

proposta pela Comisso a criao de formas de ajuda


tecnolgica educativa com o objetivo de utilizao em benefcio de
todos os pases. (FAURE, 1972, p. 38). O esforo visa promoo
intelectual do Terceiro Mundo beneficiando a coletividade mundial.
(FAURE, 1972, p. 39). Dentre as orientaes do Relatrio, a renovao
da educao para formar um novo tipo de homem merece mais
ateno. Nesse sentido, chama-se a ateno para uma das propostas dos
membros desta Comisso a respeito do estabelecimento de um
programa internacional para as inovaes educativas. Com que
objetivo? Orientar para as inovaes em todos os seus domnios, ou
antes, para a renovao educativa no seu conjunto, este programa
parece que poderia tornar-se particularmente til e eficaz com a
introduo das tecnologias educativas. (FAURE, 1972, p. 38, sem
grifos no original).
O discurso da inovao e da renovao perpassa todo o
documento subsidiando duas noes fundamentais para a Comisso: a
educao permanente e a cidade educativa. Tais noes suscitam novas
formas de aprender e de formar legitimadas pelo argumento de que o
sistema tradicional de educao est muito envelhecido e paralisado.
(FAURE, 1972, p. 32). Prope-se, assim, reform-lo, porque
preciso aproximar a escola da vida. (FAURE, 1972, p. 32).
A Comisso recorre a algumas experincias estrangeiras que tm
como finalidade mostrar que o desprezo para com a educao extraescolar apenas um vestgio do passado e no pode corresponder

299
atitude de nenhum pedagogo progressista. (FAURE, 1972, p. 32). De
uma concepo tradicional de educao, investe-se numa pedagogia
moderna que considera o indivduo, as suas capacidades, estruturas
mentais, interesses e motivaes [...] por isso personalista (FAURE,
1972, p. 194). Est em voga a ideia de que o indivduo [...] torna-se
cada vez mais um agente ativo da sua prpria educao (FAURE,
1972, p. 194, sem grifos no original). Refere-se, desse modo, s
experincias desenvolvidas no Chile, com a concepo de
conscientizao de Paulo Freire; escola ativa, do suo Ferrire; a
auto-educao, da italiana Maria Montessori; ao trabalho em
equipe, do americano John Dewey; ao mtodo ativo, do belga
Decroly; e ao movimento da escola nova, de Celestin Freinet.
(FAURE, 1972). A educao ganha, assim, carter de fator de
libertao. Ainda h referncias, pedagogia institucional cujo
instrutor procura ser indutor de transformaes (como o psiclogo
diante do seu cliente), enquanto os membros do grupo assumem a
responsabilidade das investigaes inscritas no programa de estudos e
da soluo a dar aos problemas do dia-a-dia da vida coletiva.
(FAURE, 1972, p. 196, sem grifos no original).
O poder libertador da educao (FAURE, 1972) sustenta a
afirmativa de que se vive num mundo constitudo por ameaas,
injustias, contradies, perigos. H constante reforo de que preciso
tcnicas educativas que tendam individualizao do ensino, uma
educao individual do tipo voluntrio (FAURE, 1972, p. 198) que
forme indivduos para alm da competncia tcnica e profissional, que
desenvolva a sua instrumentalizao mental e o seu poder de
comunicao, semelhante gramtica discursiva da autoajuda dos anos
de 1970, baseada no poder da mente.
A formao, nesta perspectiva, deveria migrar para uma formao
de cidados para que se possam afirmar as suas responsabilidades
cvicas e sociais e reagir s contradies e s injustias. (FAURE,
1972, p. 40). Recomendam a formao de um homem de novo tipo
capaz de compreender as conseqncias globais dos comportamentos
individuais, de conceber as prioridades e de assumir as solidariedades
que compem o destino da espcie. (FAURE, 1973, p. 32). O novo
homem demandado no Relatrio um homem em devir um homem
cujos conhecimentos e meios de ao esto a tal ponto desenvolvidos
que os limites do possvel parecem-lhe infinitamente recuados.
(FAURE, 1972, p. 238, sem grifos no original). Nessa prescrio de um

300
novo homem, aprende, conhece e compreende o mundo, [...] dispe
ou sabe poder dispor de tcnicas para agir sobre o mundo, com
inteligncia. (FAURE, 1972, p. 238, sem grifos no original).
Essa proposta exige que o novo homem esteja em estado de
estabelecer um equilbrio entre suas capacidades desenvolvidas de
compreenso e poder e sua contrapartida potencial de ordem
temperamental afetiva e moral (FAURE, 1972, p. 44). Todavia, no
basta reunir o Homo sapiens e o Homo faber, ainda necessrio que ele
se sinta em harmonia com os outros e consigo prprio: Homo concors.
(FAURE, 1972, p. 40).
Pela primeira vez na histria, a educao empenha-se
conscientemente em preparar os homens para tipos de sociedades que
no existem ainda. (FAURE, 1972, p. 56, sem grifos no original). Para
cumprir essa tarefa, um dos caminhos apontados no documento, alm da
renovao da educao, da modernizao dos mtodos de ensino, est a
apropriao do mundo por meio de experincias via inter-relao escola
e mundo do trabalho. Para que isso seja vivel, preciso atentar para as
tarefas atribudas educao para os anos que seguem. De acordo com o
Relatrio, dentre as tarefas da educao ps anos 1970, esto: educar
para a democracia; educao permanente; formar um novo homem;
formao cvica; renovao dos contedos e das estruturas da educao;
a democratizao da educao; promoo da individualizao do ensino;
a modernizao de atividades educativas; desenvolvimento de
qualidades afetivas; a constituio de uma cidade educativa. (FAURE,
1972).
A Comisso atribui aos sistemas educativos o objetivo de realizar
a expanso integral do homem em toda a sua riqueza e na
complexidade das suas expresses e compromissos: indivduo, membro
de uma famlia e de uma coletividade, cidado e produtor, inventor de
tcnicas e criador de sonhos. (FAURE, 1972, p. 16, sem grifos no
original), que se articularia ao denominado carter global e permanente
da educao (FAURE, 1972) para formar um novo homem, ajudandoo a desenvolver-se em todas as suas dimenses: tanto como agente de
desenvolvimento, agente de transformao e autor da sua prpria
realizao o que vem contribuir [...] para o ideal do homem
completo. (FAURE, 1972, p. 243, sem grifos no original).

301
5.1.8 Atitudes e valores: demandas do mundo do trabalho ps
anos 1970
O estabelecimento de laos mais estreitos entre escola e o
ambiente uma resposta s crticas que a Comisso desenvolve a
respeito da educao tradicional. Da busca-se construir uma educao
concebida como um vasto movimento de massas, onde cada indivduo
instrudo tem o dever cvico de ensinar queles que no tiveram a sua
sorte. (FAURE, 1972, p. 65, sem grifos no original).
No decurso dos anos de 1970, afirmando a necessidade de
proceder articulao de objetivos econmicos, sociais e polticas
educativas a Comisso enfatiza que preciso uma renovao das
estruturas e dos contedos da educao, a fim de que esta possa
concorrer mais ou menos diretamente para as transformaes sociais.
(FAURE, 1972, p. 118). Para isso, uma atitude dinmica [...]
desejamos ver reforada. (FAURE, 1972, p. 118, sem grifos no
original).
Os programas de educao devem viabilizar uma educao
social, o que deve dar ao homem conscincia do seu lugar na
sociedade, acima do seu papel de produtor e consumidor; fazer-lhe
compreender que ele pode e deve participar democraticamente da vida
da coletividade e que lhe possvel, assim, tornar a sociedade melhor ou
pior do que j . (FAURE, 1972, p. 124). Isso implicaria rever o ensino
cientfico tradicional despreocupado em ligar os conhecimentos
adquiridos na aula e a prtica cientfica real, onde se verificam as
hipteses em vez de as expor, onde se descobrem as leis em vez de as
aprender (FAURE, 1972, p. 124).
O que a educao tradicional no evidencia o esprito criador,
de intuio, de imaginao, de entusiasmo e de dvida que comporta
a atividade cientfica. (FAURE, 1972, p. 124, sem grifos no original).
Assim entendido, falta educao estimular a faculdade de observar,
de colecionar, de medir, de classificar os fatos e deles tirar concluses
no deveria manter-se como apangio s das coisas cientficas. Em
questo est a necessidade do ensino da tecnologia permitir que cada
um compreendesse os meios pelos quais pode modificar o meio que o
rodeia. (FAURE, 1972, p. 126, sem grifo no original). Para que isso
seja possvel, a experincia artstica associada ao estudo da tecnologia
constitui uma das vias que levam percepo do mundo na sua eterna
renovao. (FAURE, 1972, p. 126).

302
Se a compreenso do mundo um dos fins maiores da
educao (FAURE, 1972, p. 123), necessrio desenvolver em cada
indivduo o poder da imaginao essa imaginao que uma das
grandes foras da inveno cientfica, assim como a origem da criao
cientfica. (FAURE, 1972, p. 127). Alm da imaginao, o interesse
pelo belo, a capacidade de o entender e de o integrar uma das
exigncias fundamentais da pessoa. (FAURE, 1972, p. 127).
A nfase em novos atributos de formao do indivduo,
preparando-o para uma nova sociedade, implica ter presente que a
noo de preparao profissional modifica-se. (FAURE, 1972, p. 127).
Essa afirmativa caracteriza claramente o discurso instituindo-se como
uma verdade, materializando uma imagem positiva do ensino da
tecnologia. Nesse sentido, do ponto de vista da Comisso:
Acelerando-se o ritmo do progresso tcnico,
muitos indivduos sero levados a exercer vrias
profisses durante a sua vida, ou a mudar
frequentemente de lugar de trabalho. Pode-se
observar, que em certos pases, metade da
populao assalariada exerce atividades que no
existem ainda no princpio do sculo. (FAURE,
1972, p. 127).

Valendo-se de experincias exitosas de pases altamente


industrializados como os Estados Unidos e a Alemanha, a Comisso
frisa que raro que a educao prepare o indivduo medida de se
adaptar a mudanas, ao desconhecido (FAURE, 1972, p. 128). Por
isso, deveria ser aceita a ideia de uma formao comum de carter
geral e politcnico ao nvel secundrio, garantia da mobilidade
profissional ulterior dos alunos, e a prpria a interess-los na via da
educao permanente. (FAURE, 1972, p. 128). Evidencia-se, assim, a
preparao postulando a concepo de um novo mundo, de uma nova
sociedade de uma educao ps anos 1970 calcada na idia de uma
educao ao longo da vida, continuada, permanente. Est delegada a
esse novo tipo de educao a responsabilidade por viabilizar a formao
de um novo tipo homem, preparando-o ao desenvolvimento dos
atributos necessrios e habilitando-o a atuar de maneira produtiva e
eficiente. Dentre os atributos necessrios formao de um novo
homem, constam no Relatrio: Solidariedade; criatividade; adaptao s
mudanas; imaginao tecnolgica; esprito de inovao; dever cvico;

303
intuio; entusiasmo; interesse pelo belo; esprito criador; esprito de
competio; esprito de inveno tecnolgica; esprito da democracia;
cooperao.
No Relatrio Faure est pulverizado um rol de atributos
necessrios formao de um novo homem. Esse boom de atributos
sugere que o novo homem desenvolver seu prprio potencial e colocar
em ao um aprender a ser que resultar em benefcios a uma
coletividade a partir de atitudes individuais. Ao lado do aprender a ser, o
Relatrio pregou uma nova sociabilidade e criou condies para a
formao de um novo tipo de trabalhador orientado pela
individualidade, adaptao e busca de uma educao que favorea
melhorias e reformas.
5.1.9 Professor: motivador e controlador da aquisio do
saber
H, no Relatrio Faure, um forte apelo mudana, muito mais
associada ideia de melhoria e reformas como j salientado, numa
tentativa de preparar um novo homem para trabalhar e viver num mundo
em transformao. Anuncia que ao constituir a Comisso Internacional
para o Desenvolvimento da Educao, mostra-se assim integrada no
Calendrio poltico contemporneo (FAURE, 1972, p.17) e deve
formar um tipo de homem apto a contribuir para o desenvolvimento
da sociedade, a tomar uma parte ativa na vida, quer dizer,
validamente preparado para o trabalho (FAURE, 1972, p. 33, sem
grifos no original). Reforam a importncia da extenso de um setor
no escolar da educao considerando o corpo docente [...] um
grupo socioprofissional muito importante, ao ponto mesmo de
representar em numerosos pases em vias de desenvolvimento a
categoria mais vasta de assalariados. (FAURE, 1972, p. 62).
Para formar o homem (con)formado, o Relatrio compreende o
professor como um conselheiro, um interlocutor; mais o que ajuda a
procurar em comum os argumentos contraditrios do que aquele que
tem todas as verdades preparadas. (FAURE, 1972, p. 141, sem grifos
no original). Compete a esse profissional planejar aulas em que sejam
consagrados mais tempo e energia s atividades produtivas e criadoras:
interao, discusso, animao, compreenso, encorajamento.
(FAURE, 1972, p. 141, sem grifos no original). Educar pressupe, nessa
perspectiva, uma evoluo nas relaes entre educandos e educadores,

304
sem a qual no pode haver a autntica democratizao da educao.
(FAURE, 1972, p. 141).
Vislumbrando o progresso da educao num mundo em que se
pregam os poderes do homem sobre o ambiente, dominando os
avanos tecnolgicos, ressalta-se no Relatrio, que os educadores tm
uma tarefa apaixonante: a procura dum equilbrio harmonioso entre
formao racional e a libertao da sensibilidade. (FAURE, 1972, p.
142, sem grifos no original). Para viabilizar essa educao,
as escolas e as universidades [deveriam ser]
completadas, seguidas e por vezes substitudas por
uma quantidade de atividades extra-escolares ou
paraescolares que fazem apelo a todas as espcies
de meios recentemente aparecidos ou durante
muito tempo descuidados pelo ensino tradicional.
(FAURE, 1972, p. 62).

A relao entre educao e democracia ressaltada neste


Relatrio. Passou-se a se fortalecer que o futuro das nossas sociedades
a democracia, o desenvolvimento, a transformao. Desse ponto de
vista, o homem que as sociedades tm de formar o homem da
democracia, do desenvolvimento humanizado e da transformao.
(FAURE, 1972, p. 172). Eis uma das nfases dada educao num
mundo em transformao, cujo ensino da democracia deveria vir
articulado a uma prtica poltica, prtica do trabalho, de forma que se
deve simultaneamente dar aos cidados bases slidas de conhecimentos
em matria socioeconmica e desenvolver a sua capacidade de
julgamento; incit-los a comprometerem-se de maneira ativa na vida
pblica, social, sindical, cultural. (FAURE, 1972, p. 173). Por que o
desenvolvimento da democracia interessa tanto Comisso? Porque tal
desenvolvimento pressupe incentivo paz, favorece a tolerncia, a
amizade e a cooperao entre as naes. (FAURE, 1972, p. 236).
Na opinio da Comisso, o papel do professor tende a
modificar-se na medida em que a funo magistral de transmisso dos
conhecimentos se completou com as suas funes de diagnstico das
necessidades dos estudantes, de motivao e de encorajamento ao
estudo, de controle da aquisio do saber. (FAURE, 1972, p. 216).
Numa reviso das funes do professor, a transmisso dos saberes de
forma autoritria, referncia do ensino tradicional, cederia espao para a
criao de um clima educacional mais harmonioso. O objetivo uma

305
participao ativa no funcionamento das estruturas da sociedade e,
quando preciso, por um compromisso pessoal nas lutas que visam
reform-las que um indivduo adquire a plenitude das suas dimenses
sociais. (FAURE, 1972, p. 235).
5.1.10 A fora do exemplo: aprendizagem pela experincia
Sem dvida, uma das questes centrais expostas no Relatrio est
associada ideia de renovao. Reformar o sistema educativo a
alternativa que daria a dinmica necessria educao com vistas a
formar um novo homem para os desafios que se colocavam a partir dos
anos de 1970. Na viso da Comisso, a capacidade de realizar reformas
parciais , num sistema educativo, sinal de vitalidade e a garantia da sua
capacidade em se submeter a transformaes mais profundas. (FAURE,
1972, p. 270).
interessante observar que o discurso da reforma disseminado ao
longo do documento afirma o valor da experincia. Segundo a
Comisso, a experincia mostra que onde as reformas internas se
revelam ineficazes ou conduzem a um grande desperdcio de energias e
talentos tais fatos dependem geralmente de erro de coordenao e da
discordncia das instrues vindas de cima e das iniciativas vindas de
baixo. (FAURE, 1972, p. 270).
Contraditoriamente, ao mesmo tempo que se prega o respeito
diversidade, na prtica, difunde-se a implementao de modelos, ou
seja, o que deu certo numa determinada regio, tambm dar em outra
independentemente das especificidades. O fracasso, nesse caso,
atribudo no ao padro imposto, mas sim
imaginao criadora que fica isolada, a inrcia
que trava a propagao das idias e das
experincias. Alm disso, as autoridades
educativas em todos os pases deveriam cuidar e
criar mecanismos especialmente encarregados de
promover a inovao, de divulgar com sucesso as
reformas experimentadas e de favorecer a sua
adoo. (FAURE, 1972, p. 270).

No captulo VIII do Relatrio Elementos para as estratgias


contemporneas, destaca-se o claro direcionamento para que se aceite

306
a noo de um sistema de educao global e
permanente e a idia da cidade educativa, no
como um sonho futuro, mas como dado objetivo e
projeto coletivo do nosso tempo [...] convm agir
simultaneamente em duas direes: reforma
interna e melhoria constante dos sistemas
educativos existentes; procura de formas
inovadoras, de alternativas e de recursos novos
(FAURE, 1972, p. 265).

Pensando na reforma da educao, inovar e buscar alternativas


apresenta-se como possibilidade de todos os pases seguirem tal
orientao. Assim, o discurso est estruturado sob a forma de
Princpios, seguidos de Argumentos, Recomendaes, Comentrios e,
por fim, uma Ilustrao. sobre esta ltima que se detm maior
ateno, considerando a apresentao de numerosos exemplos de
reformas educativas em diversos pases.
Dentre tais exemplos, tem-se a reforma educativa elaborada no
Peru que previa uma refundio geral do sistema na tica da educao
permanente. (FAURE, 1972, p. 272). A referida reforma, incide sobre
o conjunto das instituies e das atividades educativas, escolares e no
escolares. Ultrapassando largamente o quadro duma reforma
pedaggica, considera-se como um elemento ligado transformao
estrutural da sociedade peruana. (FAURE, 1972, p. 272). Ao utilizar
esse exemplo, no se explicitam as dificuldades, disparidades regionais,
desigualdades sociais, to frisadas no documento.
Na mesma linha de argumentao, traz-se o exemplo da reforma
educativa em curso naquela ocasio, no Canad. A nfase centraliza-se
no objetivo de firmar a educao permanente em que a Comisso
responsvel exprime:
A educao deve desenvolver na pessoa a
faculdade
de
aprender
em
mltiplas
circunstncias, em tempo parcial, no domiclio,
por diferentes meios, e fora das estruturas prestabelecidas [...] Estudo e aprendizagem
integram-se no trabalho nos tempos do cio [...].
O que assim pretendido , por conseguinte, o
homem total e no s o homem que produz: a
existncia criadora e no s a existncia produtora
de bens materiais... (FAURE, 1972, p. 274).

307
As assertivas apresentadas no documento desqualificam a
educao existente para justificar a necessidade de reformas. Propem
organizar de uma maneira flexvel a educao desde a idade pr-escolar,
associando e responsabilizando a famlia e a comunidade local. Citam,
por exemplo, a educao pr-escolar da China que est muito
desenvolvida, do ponto de vista da Comisso e da, ento, U.R.S.S,
destacando que
mais de nove milhes e meio de crianas
freqentam creches e jardins. [...] A educao
dispensada nestas diferentes instituies visa
favorecer o harmonioso desenvolvimento fsico,
intelectual, moral e esttico das crianas. Inspirase em princpios uniformes, baseados em
experincias pedaggicas e nos resultados de
pesquisas cientficas. (FAURE, 1972, p. 285).

Ainda referem-se a exemplos dos Estados Unidos e do Senegal


sem nenhuma referncia s diferenas no modo de produo e regime
poltico desses pases.
Com relao ao Princpio 6 a educao elementar, em tempo
completo se possvel, sob outras formas se necessrio, deve ser
efetivamente assegurada a todos (FAURE, 1972, p. 286), destaca-se
que, na ndia,
um Projeto de Desenvolvimento Intensivo da
Educao, lanado escala de quatro distritos,
agrupando uma populao de nove milhes e
meio de habitantes [...] dirige-se globalmente s
crianas e aos adultos dos trs aos quarenta e
cinco anos. Combina programas de ensino a
tempos integrais e a tempos parciais e programas
de rdio diferenciados em funo das
necessidades de mltiplas categorias, desde os
adolescentes e os adultos que receberam uma
educao mais ou menos completa at aos que
nunca foram escola. (FAURE, 1972, p. 288).

semelhana dos livros de autoajuda, o Relatrio Faure vale-se


de uma infinidade de exemplos que visam garantir a transferncia de
situaes de natureza dspares para outras de natureza complemente
diferentes. Os exemplos podem ser considerados como recursos

308
didtico-pedaggicos desempenhando funes ordenadoras na
sociedade. Podem ser vistos como discursos portadores de significados
que encontram acolhida em diferentes grupos sociais pela facilidade de
transposio, repercutindo como elementos ordenadores que ajudam a
disseminar modos de pensar, sentir e agir. Nesse prisma, o Relatrio
Faure reproduz uma interpretao da crise educativa dos anos de
1960/70 alargando os horizontes sobre a educao permanente e a
cidade educativa, assinalando o quo relevante a ligao entre
educao e progresso social. Um dos pilares do Relatrio formao do
homem completo (FAURE, 1972), por meio de uma educao
permanente num mundo em constante evoluo, no sentido de aprender
a ser. Estes pressupostos foram reforados duas dcadas depois, no
Relatrio Delors (1996), ampliando-se os pilares educacionais para
incorporar o aprender a conhecer; aprender a fazer, aprender a viver
juntos, mantendo-se o aprender a ser. (DELORS, 1996).
5.2 ANLISE DO RELATRIO DELORS
Na dcada de 1990 uma diversidade de documentos educacionais
foi publicada com proposies e recomendaes para uma formao de
um tipo de homem desejvel. Em linhas gerais, tais proposies e
recomendaes instituem a necessidade de se investir num tipo de
formao do trabalhador capaz de habilit-lo a lidar com as novas
formas de organizao do trabalho que se definem pela integrao e
flexibilidade dos processos produtivos. Para dotar esse homem com
caractersticas adequadas para um mundo do trabalho em transformao,
uma profuso de polticas educacionais visa dar consecuo a formao
desse novo tipo de homem.
Tendo isso presente, analisa-se a seguir o Relatrio Delors (1996)
Educao: um tesouro a descobrir, documento elaborado pela Comisso
Internacional sobre Educao para o sculo XXI da UNESCO que
disseminou as diretrizes e metas que nortearam as reformas
educacionais da ltima dcada.
Essa Comisso sobre a Educao, presidida por Jacques Delors,
desenvolveu uma argumentao pautada em circunstncias e problemas
sociais apontando o valor da mudana individual e coletiva para sua
soluo. A nfase do Relatrio recai sobre a necessidade de aprender a
adaptar-se mudana. Ver-se- que esta constitui, semelhana do
discurso de autoajuda, um dos elementos centrais do Relatrio.

309
Tomando como referncia o conceito de adaptao, argumenta-se em
defesa de uma educao que precisa ser modernizada. Insiste-se na
importncia desta como um trunfo indispensvel humanidade
(DELORS, 1996, p. 11), estando baseada num aprendizado til, j que a
[...] educao deve transmitir, de fato, de forma macia e eficaz, cada
vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados civilizao
cognitiva90, pois so as bases das competncias do futuro. (DELORS,
1996, p. 89). Nesse sentido, a educao ganha carter de uma via
privilegiada de construo da prpria pessoa, das relaes entre
indivduos, grupos e naes. (DELORS, 1996, p. 12).
A Comisso refora que educao cabe fornecer, de algum
modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao
mesmo tempo, a bssola que permita navegar atravs dele. (DELORS,
1996, p. 89). Esse um discurso de forte apelo ao papel messinico da
educao em que se articula uma diversidade de enunciados e
orientaes para que professores, alunos, a escola, se mobilizem, tomem
decises, considerem que precisam intervir num mundo multirriscos.
(DELORS, 1996). Para ganhar legitimidade, semelhana do Relatrio
Faure, o Relatrio Delors cita um conjunto de experincias exitosas para
afirmar a educao como elemento central de mudana, de soluo para
os males que afligem a humanidade, o que implica a formao de uma
vontade individual para a mudana.
Apresentam-se, a seguir, os membros que compem a referida
Comisso.
5.2.1 Jacques Delors e os membros da Comisso
Em 1991, a Conferncia Geral da UNESCO props ao diretorgeral convocar uma comisso internacional encarregada de refletir
sobre educar e aprender para o sculo XXI (DELORS, 1996, p. 268).
Para tal incumbncia, Jacques Delors foi convidado a presidir uma
comisso que reuniu catorze outras personalidades de todas as regies
do mundo, vindas de horizontes culturais e profissionais diversos
(DELORS, 1996, p. 268). Desse modo, no incio de 1993, foi
90
Uma viso holstica da educao est presente no documento, segundo o qual, as novas
exigncias do mercado de trabalho estariam colocando em evidncia a necessidade de
qualidades subjetivas, de forma que o desenvolvimento dos servios exige, pois, cultivar
qualidades humanas que as formaes tradicionais no transmitem necessariamente e que
correspondem capacidade de estabelecer relaes estveis e eficazes entre as pessoas.
(DELORS, 1996, p. 95).

310
oficialmente criada a Comisso Internacional sobre a Educao para o
sculo XXI, financiada pela UNESCO.
No que concerne ao presidente - Jacques Delors, francs, nasceu
em Paris em 1925 e presidiu a Comisso Europia durante os anos de
1985 a 1995. Dentre algumas de suas aes, destaca-se a aprovao do
Ato nico Europeu, em 1986, a partir do qual, em 1993, foi criado o
Mercado nico Europeu. Membro do partido socialista, em 1974, e do
seu comit diretor, em 1979, foi eleito parlamentar europeu em 1979 e
presidiu a Comisso Econmica e Monetria durante o primeiro
semestre de 1981. De maio de 1981 a julho de 1984, Jacques Delors foi
Ministro da Economia e das Finanas e tambm eleito Presidente da
Cmara de Clichy, de 1983 a 198491.
Os trabalhos da Comisso foram apresentados em sua forma final
em 1996, na Frana e no Brasil, a traduo do Relatrio veio a pblico
em 1998. O quadro abaixo apresenta cada uma das personalidades, pas
de origem e breve sntese de formao e atuao profissional:

91

Informaes disponveis em: <http://www.eurocid.pt/pls/wsd>. Acesso em: 03 de set. 2010.

311

Membros da
Comisso
Inam Al Mufti

Isao Amagi

Roberto Carneiro

Pas de
origem
Jordnia

Japo

Portugal

Fay Chung

Zimbbue

Bronislaw
Geremek

Polnia

Willian Gohram

Estados
Unidos

Aleksandra
Kornhauser

Eslovnia

Michael Manley

Jamaica

Marisela Padrn
Quero

Venezuela

Referncia profissional
Especialista em condio feminina,
conselheira de Sua Majestade a
rainha Noor al-Hussein; antiga
ministra
do
Desenvolvimento
Social.
Especialista
em
educao,
conselheiro especial do ministro
da Educao, Cincia e Cultura e
presidente da Fundao japonesa
para o Intercmbio Educativo
BABA
Presidente da TVI (Televiso
Independente), antigo ministro da
Educao.
Antiga ministra para os Assuntos
Internos, Criao de Emprego e
Cooperativas, antiga ministra da
Educao; diretora do Education
Cluster (UNICEF, Nova Iorque).
Historiador, deputado Dieta
Polonesa, antigo professor no
Colgio de Frana.
Especialista em poltica pblica,
presidente do Urban Institute de
Washington, D.C desde 1968.
Diretora do Centro Internacional de
Produtos Qumicos de Liubliana,
especialista em relaes entre
desenvolvimento
industrial
e
proteo do ambiente.
Sindicalista,
professor
universitrio e escritor, Primeiro
Ministro de 1972 a 1980 e de 1989
a 1992.
Sociloga, antiga diretora de
pesquisa da Fundao Rmulo

312

Marie-Anglique
Savan

Senegal

Karan Singh

ndia

Rodolfo
Stavenhagen

Mxico

Myong
Suhr

Won

Zhou Nanzhao

Coreia do
Sul

China

Betancourt, antiga ministra da


famlia; diretora da diviso da
Amrica Latina e Caribe (FNUAP,
Nova Iorque).
Sociloga, membro da Comisso
sobre Governabilidade, diretora da
diviso da frica (FNUAP, Nova
Iorque).
Diplomata e vrias vezes ministro,
em especial, da Educao e da
Sade, autor de vrias obras nas
reas do ambiente, da filosofia e da
cincia poltica, presidente do
Templo
da
Compreenso,
importante
organizao
internacional interconfessional.
Pesquisador em cincias polticas e
sociais, professor no Centro de
Estudos Sociolgicos, El Colgio
de Mxico.
Antigo ministro da Educao,
presidente
da
Comisso
Presidencial para a Reforma da
Educao (1985-1987).
Especialista em educao, vicepresidente e professor do Instituto
Nacional Chins de Estudos
Educacionais.

Quadro 7 Membros da Comisso da UNESCO sobre a Educao para o sculo


XXI. Elaborao prpria.

Os membros da Comisso, especialistas em educao, exministros e representantes da UNICEF, apontaram a necessidade de


proceder a vasta anlise, tanto dos elementos disponveis sobre a
situao atual, como sobre as previses feitas e as tendncias reveladas
pelas polticas e reformas nacionais de educao, aplicadas em
diferentes regies do mundo, ao longo dos ltimos vinte anos.
(DELORS, 1996, p. 274). Com base nisso, a Comisso buscava
desenvolver uma reflexo profunda sobre as grandes linhas de
orientao do desenvolvimento humano no dealbar do sculo XXI, e

313
sobre os novos imperativos que da derivam para a educao.
(DELORS, 1996, p. 274).
As demandas necessrias formao de um novo tipo de homem
so traduzidas em metas e objetivos que sero difundidas pelos
organismos multilaterais que visam mudanas na educao para o
mundo. Recorda-se que, na Conferncia Mundial da Educao para
Todos, em Jomtein, Tailndia, em 1990, organismos internacionais
como Banco Mundial, PNUD, UNESCO j vinham discutindo que a
educao deveria contribuir para conquistar um mundo mais seguro,
mais sadio, mais prspero e ambientalmente mais puro, e que, ao
mesmo tempo, favorecesse o progresso social, econmico e cultural, a
tolerncia e a cooperao internacional. (UNESCO, 1990, p. 3). Na
ocasio, concentrava-se ateno na aprendizagem, considerando que
esta representaria a
traduo das oportunidades ampliadas de
educao em desenvolvimento efetivo - para o
indivduo ou para a sociedade - depender, em
ltima instncia, de, em razo dessas mesmas
oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou
seja,
apreenderem
conhecimentos
teis,
habilidades de raciocnio, aptides e valores.
(UNESCO, 1990, p. 5).

Na Declarao de Jomtiem, dentre os objetivos traados, tem-se


que o desenvolvimento da educao o enriquecimento dos valores
culturais e morais comuns. nesses valores que os indivduos e a
sociedade encontram sua identidade e sua dignidade. (UNESCO, 1990,
p. 7).
A escolarizao aparece como pr-requisito para se conseguir
desempenho adequado nova gesto do trabalho que vai se instituindo.
Advoga-se a necessidade de um indivduo que esteja numa dupla relao
na sociedade em que vive: como cidado tem deveres cvicos, e como o
indivduo, deve prover uma formao para a aquisio dos novos
requisitos explicitados exaustivamente no Relatrio Delors.
Partindo-se do pressuposto de que a linguagem no s uma
modalidade verbal, mas representa prticas sociais que visam mudana
social (FAIRCLOUGH, 2001), busca-se identificar no Relatrio Delors
quais as recomendaes para aprender a ser, que solues so

314
propostas, que histrias so contadas, que metforas so apresentadas,
que palavras, conceitos e concepes so reforados para direcionar a
formao do indivduo desejvel para o sculo XXI.
Com isso, pode-se interpretar o discurso no documento para a
UNESCO, como uma prtica discursiva que vai se formando como
verdade, que confere um jogo de poder social no mbito da prpria
linguagem materializando uma prtica discursiva prescritiva. Lembra-se
que caracterstico do discurso ideolgico fazer
coincidir com as coisas, anular as diferena entre
o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
lgica da identificao que unifique o
pensamento, linguagem e realidade para, atravs
da lgica, obter a identificao de todos os
sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto , a imagem da classe
dominante. (CHAU, 2007, p. 15).

Reforando o discurso da responsabilidade individual na


construo e consolidao de um projeto comum de sociedade
(DELORS, 1996), o Relatrio dissemina modelos capazes de viabilizar
propostas de uma poltica educacional calcada nas mudanas ocorridas
nos processos produtivos dos pases industrializados e em
desenvolvimento. Num cenrio em que prevalecem relaes desiguais,
tecida a ideia de cooperao internacional, cuja efetivao depende do
cumprimento da exigncia de aprender a viver juntos nesta aldeia
global. (DELORS, 1996).
Feitas essas consideraes, o objetivo deste captulo evidenciar
os elementos e estratgias discursivas que buscam justificar a
necessidade de uma educao que atenda a formao de um trabalhador
de novo tipo eficiente, pr-ativo, flexvel e funcional reproduo das
relaes capitalistas de produo.
5.2.2 Da estrutura textual do Relatrio Delors
Tentando focalizar aspectos que caracterizam a estrutura desse
documento, considera-se importante explorar as evidncias de diferentes
modos de conceber um texto, cuja argumentao pretende mobilizar,
mudar a posio de um indivduo na prtica social, ou como diria

315
Marcuschi (1988, p. 38), leitura e compreenso de um texto falado ou
escrito como ato individual de uma prtica social.
O Relatrio Delors est organizado em trs partes, Horizontes,
Princpios e Orientaes. A primeira parte, Horizontes, contextualiza o
leitor acerca da importncia de se articular o local e o global, a
necessidade de conhecer os problemas que afetam o mundo; alm da
necessidade de compreender o mundo como condio para compreender
o outro. Essa primeira parte composta por trs captulos que visam em
essncia, anunciar uma resposta aos problemas sociais apontando o
valor da participao individual somada participao da comunidade
local com vistas a ampliar e aperfeioar o acesso educao.
(DELORS, 1996, p. 26). A segunda parte, Princpio, composta por
dois captulos onde so apresentados os quatro pilares da educao e seu
papel como elemento definidor do progresso da sociedade. Na terceira
parte, Orientaes, esto presentes recomendaes para a educao do
nvel bsico ao superior. Enfatiza-se o valor da educao indicando as
condies propcias a um ensino eficaz, destacando o papel dos
professores na formao do aluno para o sculo XXI, a importncia da
escola articulada s aes da comunidade, bem como a vinculao entre
educao e mercado de trabalho. Aps os nove captulos, o Relatrio
Delors apresenta um Eplogo baseado em experincias descritas por
onze membros da Comisso de Educao.
Na construo de cada um dos captulos do Delors, utilizada
uma interessante estratgia discursiva. Depois de apresentar a ideia
central, esta seguida de uma espcie de sntese ou resumo com carter
prescritivo que deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas
educativas, tanto em nvel da elaborao de programas como definio
de novas polticas pedaggicas. (DELORS, 1996, p. 102). Ao final de
cada captulo h um importante elemento da estrutura textual do
documento Delors a ser considerado: uma sntese de cada captulo
intitulada Pistas ou recomendaes. Muito alm da funo de sntese,
pode-se analisar os referidos espaos como uma forma facilitadora de
fornecer ao leitor um simples diagnstico e ajud-lo a resolver as
situaes problemticas apontadas no Relatrio.
A Comisso assinala que houve grande esforo na elaborao de
um quadro prospectivo com alcance em qualquer parte do mundo e, por
isso, as pistas e recomendaes so orientaes vlidas, tanto em nvel
nacional como mundial. (DELORS, 1996, p. 12). Apesar de tal
afirmao, no documento mostram-se exemplos de experincias

316
exitosas, particulares, tomadas como universais. oportuno lembrar o
alerta de que as idias aparecem, ento, como representao do real, a
sua verdade, e como normas para a ao, isto , como conduta [...] ou
conforme a certos fins que seriam os mesmos para todos.. (CHAU,
2007, p. 39).
A Comisso deparou-se com vrias dificuldades, dentre elas, o
desafio de lidar com uma extrema diversidade de situaes que h no
mundo, de concepes de educao e suas modalidades de
organizao. Outra dificuldade, segundo relato descrito no Apndice do
documento, corolrio das apresentadas, que a Comisso s pde,
evidentemente, assimilar uma pequena parte da quantidade enorme de
informaes existentes. Da a necessidade imperiosa de optar e
determinar o que era essencial para o futuro (DELORS, 1996, p. 269).
Esse discurso adquire um carter humanista medida que manifesta
respeito ao leitor, solicitando deste que entenda a seleo de alguns
dentre muitos exemplos edificantes. Sabe-se, contudo, que as escolhas
dos exemplos no so frutos de escolhas fortuitas.
A arquitetura do documento inclui uma srie de quadros e tabelas
com dados estatsticos cuja fonte a prpria UNESCO. Outra evidncia
a ser considerada, so os pequenos textos independentes que aparecem
dentro de boxes sombreados, descrevendo uma infinidade de
experincias exitosas que visam legitimar, exemplificar os argumentos
da Comisso para o sucesso das reformas educativas. interessante
observar como essas experincias so evocadas de forma
descontextualizada, apresentadas, em geral, desarticuladas do eixo
principal da discusso, como um hipertexto. As histrias so contadas
de forma generalizada, desvinculadas do contexto nacional, formaes
sociais, determinantes econmicos e polticos, havendo, desse modo,
uma descontinuidade dos textos que compem o documento.
5.2.3 A fora dos verbos
Os verbos priorizados no Relatrio Delors sustentam a
necessidade de encaminhar para os pases recomendaes a partir de um
diagnstico do mundo em risco, de pobreza, de excluso social, de
opresses, incompreenses. (DELORS, 1996). Nesse sentido, deve-se
prestar ateno nos verbos utilizados, uma vez que estes induzem
ao, conforme o que segue:

317
Devemos cultivar, como utopia orientadora, o
propsito de encaminhar o mundo para uma maior
compreenso mtua, mais no sentido de
responsabilidade e mais solidariedade, na
aceitao das nossas diferenas espirituais e
culturais [...]. Os sistemas educativos devem dar
resposta aos mltiplos desafios das sociedades da
informao, na perspectiva de um enriquecimento
contnuo de saberes e do exerccio de uma
cidadania adaptada s exigncias do nosso tempo.
Estabelecer novas relaes entre a poltica
educativa e poltica de desenvolvimento a fim de
reforar as bases do saber e do saber-fazer nos
pases em causa: estimular a iniciativa, o trabalho
em equipe, as sinergias realistas, tendo em conta
os recursos locais, o auto-emprego e o esprito
empreendedor. (DELORS, 1996, p. 50-68, sem
grifos no original).

A rigor, h duas lgicas contraditrias presentes na constituio


do discurso da Comisso: a heteronomia e a autorresponsabilizao que
aparecem de forma abundante ao longo do Relatrio.
A educao permanente [...] deve ampliar a todos
as possibilidades de educao, com vrios
objetivos, quer se trate de oferecer uma segunda
ou terceira oportunidade, de dar resposta sede de
conhecimento, de beleza ou de superao de si
mesmo, ou ainda, ao desejo de aperfeioar e
ampliar as formaes estritamente ligadas s
exigncias da vida profissional, incluindo as
formaes prticas. (DELORS, 1996, p. 117, sem
grifo no original).

No documento, mantm-se fortemente o discurso da


responsabilizao e a necessidade de participao do indivduo,
destacando-se que a participao democrtica depende, de algum
modo, das virtudes cvicas (DELORS, 1996, p. 68, sem grifos no
original), sendo que esta pode ser encorajada ou estimulada pela
instruo e por prticas adaptadas sociedade dos meios de
comunicao social e de informao. (DELORS, 1996, p. 68).

318
Os membros da Comisso transpem experincias, de forma que
estas so transferidas de uma realidade para outra sem a devida
contextualizao. Nas experincias exitosas contadas pelos convidados
no se mencionam insucessos. Os problemas, as adequaes so
escamoteadas de maneira que a leitura dos textos sugere que basta
querer para fazer ou implantar.
Contrariamente ideia de valorizar a diversidade das situaes,
indivduos, pases, as caractersticas culturais, nesse momento, so
desconsideradas e o mundo aparece como um todo homogneo. Tentam
generalizar a partir de uma experincia singular, universalizar uma
histria de sucesso. Se um pas conseguiu, implantou, outros podero
faz-lo se quiserem. Essa mesma prtica est presente no discurso de
autoajuda num exerccio constante de transposio de situaes de
natureza diferentes, singulares, por parte dos leitores. Mais do que
recomendar, objetiva-se direcionar, influenciar a produo de polticas
para reformas educacionais diante de um mundo em crise. Desta forma,
o relatrio prescreve. Tais prescries so camufladas por meio de
verbos, dissimulando os efeitos de sentido que aparecem sob a forma de
um discurso prescritivo que pretende no ser autoritrio, mas fruto de
um diagnstico que: recomenda, pensa, sonha, adverte,
observa, considera.
A Comisso no poupa argumentos assinalando que esforou-se
por elaborar os seus raciocnios num quadro prospectivo dominado pela
globalizao por selecionar as questes importantes e que se colocam
em qualquer parte do mundo, e por traar algumas orientaes vlidas,
tanto em nvel nacional como mundial. (DELORS, 1996, p. 12).
Tambm recomenda [...] que todas as potencialidades contidas nas
novas tecnologias da informao e da comunicao sejam postas a
servio da educao e da formao. (DELORS, 1996, p. 66, sem grifo
no original), uma vez que considera que o aparecimento de sociedades
de informao92 corresponde a um duplo desafio para a democracia e
para a educao, e que estes dois aspectos esto estreitamente ligados.
(DELORS, 1996, p. 66, sem grifo no original). Trata-se de valorizar os
sistemas educativos porque cumprem duplo papel, o de fornecer os
indispensveis modos de socializao, alm de conferir, igualmente,
92

Ver Bell (1973, p. 396) em sua publicao O advento da sociedade ps-industrial. Vale
frisar, que para esse autor, conhecimento e tcnica se constituem em capital humano, o que
qualifica o mrito dos indivduos na sociedade ps-industrial, de modo que a habilidade
tcnica passa a constituir a base e a educao o modo de acesso ao poder.

319
as bases de uma cidadania adaptada s sociedades de informao.
(DELORS, 1996, p. 66).
Pela leitura do Relatrio possvel apreender uma concepo de
homem e de mundo para o sculo XXI remete a afirmao de Gramsci
(2004, p. 13) de que tda linguagem contm os elementos de uma
concepo de mundo e de uma cultura. No documento analisado isto
est bem demarcado:
[...] os membros da Comisso compreenderam
que seria indispensvel, para enfrentar os desafios
do prximo sculo, assinalar novos objetivos
educao e, portanto, mudar a idia que se tem da
sua utilidade. Uma nova concepo ampliada de
educao devia fazer com que todos pudessem
descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo revelar o tesouro escondido em cada um
de ns. Isto supe que [...] se passe a consider-la
[a educao] em toda a sua plenitude: realizao
da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser.
(DELORS, 1996, p. 90).

Se uma nova concepo ampliada de educao devia fazer com


que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial
criativo, conforme anunciado pela Comisso, ento, poder-se-ia dizer
que a velha concepo de educao deve ser superada ou adequada. A
formao dos tempos de taylorismo/fordismo centrada no homem
executor, homem boi, torna-se obsoleta, no atendendo a necessidade
de uma nova perspectiva de desenvolvimento humano sustentvel.
(DELORS, 1996, p. 234).
Nesta linguagem esto presentes representaes e valoraes
ideolgicas na medida em que escamoteiam e camuflam as reais
condies da situao social. (SEVERINO, 1986, p. 30). de notar-se
que, ao longo do documento, que o desenvolvimento humano via
educao ser conquistado simplesmente ao se melhorar os nossos
conhecimentos. (DELORS, 1996, p. 234). A melhoria da qualidade de
vida implica, ento, ntima aliana entre conhecimentos e valore.s
(DELORS, 1996, p. 234). por isso, que a Comisso insiste em chamar
a ateno para o interesse de uma sbia descentralizao, que conduza
a um aumento da responsabilidade e da capacidade de inovao de cada
estabelecimento de ensino. (DELORS, 1996, p. 26). Estes so valores

320
que precisam ser desenvolvidos de forma que o esprito da
participao se irradie93 nos educadores, nas instituies engajadas no
intuito de minimizar o insucesso escolar. O sistema educacional,
supostamente descentralizado, uma maneira de operar a transferncia
de responsabilidade de construo dos valores necessrios ao mundo em
transformao. Nesse processo, atribui-se aos indivduo a
responsabilidade por mobilizao eficiente e eficaz.
Desse modo, a Comisso pensa [...] que no seio dos sistemas
educativos que se forjam as competncias e aptides que faro com que
cada um possa continuar e aprender. (DELORS, 1996, p. 121). Com
vistas a preparar esse indivduo, considerado agente de mudana,
propem-se valores como diversidade, respeito s diferenas, tolerncia,
esprito cvico, necessidade de aprender a viver junto94. Para sublinhar a
necessidade de aprender e implementar novos posicionamentos que
englobem as novas competncias e aptides, o documento farto na
apresentao de situaes que mostram como a participao das
comunidades, de aes diversificadas por estas implementadas, so mais
eficazes do que aes de interveno realizadas pelo Estado, sendo que
essa revelou-se uma soluo mais eficaz do que as aes vindas de
cima [Estado], visando impor o progresso. (DELORS, 1996, p. 132,
sem grifos no original). De acordo com essa viso, no se trata apenas
da aquisio do esprito democrtico. Trata-se, fundamentalmente, de
ajudar o aluno a entrar na vida com capacidade para interpretar os fatos
mais importantes relacionados quer com o seu destino pessoal, quer com
o destino coletivo. (DELORS, 1996, p. 60).
O Relatrio Delors difunde uma concepo de mundo na qual se
impe um conjunto de elementos, ideias e valores apresentados sob a
forma de exemplos e experincias que mostram ao, mobilizao,
requerendo a necessidade de formar agentes econmicos aptos a

93
Essa mesma perspectiva - de que as aes deveriam contaminar outros indivduos - estava
muito presente na autoajuda do sculo XIX, reflorescendo no sculo XX, indicando que a
lgica ainda a mesma para o sculo XXI.
94
Aqui vale mencionar que a prerrogativa do Relatrio Delors sobre o aprender a viver juntos
adquire uma dimenso maior quando se consideram que esse um discurso que visa criar
valores comuns, essenciais para garantir a adeso s orientaes prescritas em metas e
objetivos ao longo do documento. Assim, tecida a ideia de cooperao internacional, cuja
efetivao depende do cumprimento da exigncia de aprender a viver juntos nesta aldeia
global. (DELORS, 2001).

321
utilizar as novas tecnologias e que revelem um comportamento
inovador. (DELORS, 1996, p. 71, sem grifos no original).
5.2.4 Metforas e fbulas
A metfora um elemento lingstico, merece nfase no Relatrio
Delors. As construes e formulaes utilizadas tentam induzir ao.
No Prefcio, h a ressalva de que a educao no um abre-te ssamo
(DELORS, 1996, p. 11), visto que esta no seria um remdio
milagroso, mas sim uma via que conduz a um desenvolvimento
humano que faria recuar a pobreza, a excluso social, as
incompreenses, as opresses, as guerras. So tantos os problemas
sociais de ampla complexidade remediados pela educao que a
afirmativa de que a educao no um abre-te ssamo mais confunde
do que esclarece. Essa prtica discursiva baseada na divergncia visa
impulsionar o indivduo a romper a inrcia encarando a mudana da
realidade como uma tarefa que tambm sua. Apesar da aparncia
antagnica do discurso, a manuteno das divergncias na formao
discursiva pode ser entendida como um dos elementos na busca de
adeso aos preceitos desse discurso.
Trabalhando habilmente com as palavras, a Comisso utiliza o
termo imigrao como uma real metfora da interdependncia
planetria (DELORS, 1996, p. 41) em referncia ao deslocamento da
mo-de-obra como forma de medir a abertura de uma sociedade
moderna em relao ao que lhe estrangeiro. (DELORS, 1996, p.
42). Outra metfora associada a essa ideia a da fuga de crebros,
indicando que os pases industrializados tiram proveito das aptides dos
imigrados. Em destaque, o exemplo do Japo e da Austrlia, como
pases que se esforam para atrair imigrantes altamente
especializados. (DELORS, 1996, p. 73). Tal metfora reforada num
dos box intitulado A fuga de crebros para os pases ricos como
forma de incumbir os pases em desenvolvimento a dotar sistemas de
ensino adaptados s suas necessidades reais e melhorar a gesto da sua
economia. Mas, para isso, tero de ter mais amplo acesso aos mercados
internacionais. (DELORS, 1996, p. 73). Reconhecendo o papel
cognitivo da metfora, numa perspectiva aristotlica, em que esta no
representa um artifcio vazio, mas, sobretudo, propicia aprendizagem,
sinaliza no discurso do documento que os pases em desenvolvimento
devam encontrar sadas, estratgias para acessar os mercados
internacionais.

322
Nessa viso, as metforas mapa e bssola so utilizadas como
elementos de reforo educao organizada em torno de quatro
aprendizagens fundamentais, que ao longo de toda a vida, sero de
algum modo, para cada indivduo, os pilares do conhecimento.
(DELORS, 1996, p. 90). Os excessos de uso da locuo adverbial de
algum modo chamam a ateno, deixando evasivas.
Valendo-se de fbulas, a Comisso justifica que para a escolha do
ttulo do Relatrio Um tesouro a descobrir recorreu-se a La Fontaine,
com a fbula O lavrador e seus filhos. uma tentativa de fazer assimilar
por analogia. Simplifica e reduz os fatos sociais ao contingente. A
fbula parte de situaes simples, gerando propriedades que pressupem
fcil transposio para situaes sociais mais complexas. um recurso
de linguagem que potencializa modos de ao, modos de ver e agir no
mundo. Como diz Delors ao prefaciar o relatrio (1996, p. 32):
Atraioando um pouco o poeta, que pretendia
fazer o elogio ao trabalho, podemos pr na sua
boca estas palavras:
Mas ao morrer o sbio pai
Fez-lhes esta confisso:
- O Tesouro est na educao.

A pretenso implcita no relatrio mostrar que se est em um


mundo em riscos, de incertezas, de contradies, por isso, faz-se
necessrio potencializar modelos de ao. O discurso da Comisso
enaltece a educao como um elemento central para promover e
determinar mudanas individuais, j que lhe faculta o papel conciliador
de contradies e embates decorrentes da complexificao das relaes
sociais, visando uma convivncia harmnica entre os homens nfase
ao pilar viver juntos. como dizer: cada um deve fazer a sua parte.
Dessa maneira, semelhana do discurso da autoajuda, o uso de
metforas, em documentos como o Relatrio Delors, reflete a ideologia
e uma concepo de mundo dominante, visando adeso, mobilizao e
motivao para mudanas nos modos de pensar, sentir e agir. Tanto na
autoajuda quanto no Relatrio, estas so apresentadas como fenmeno
individual e no social. No questionam as causas da desarmonia.
Nessa direo, possvel dizer que um dos objetivos do discurso
messinico no Delors minar o senso comum, alterando, assim, a

323
maneira como se compreende o mundo social e educacional e a posio
que os indivduos ocupam nele.
5.2.5 Concepo de mundo
Na acepo da Comisso Internacional sobre a Educao, o
mundo precisa de mudanas. Este descrito, nos anos de 1990, como
um mundo complexo, inseguro, e sem dvida mais perigoso.
(DELORS, 1996, p. 44). Apesar da afirmativa mais perigoso, no h
explicao sobre o porqu de ser mais perigoso. Nessas circunstncias,
h muitos problemas a resolver [...] [h] tantas desgraas causadas pela
guerra, pela criminalidade e pelo subdesenvolvimento. (DELORS,
1996, p. 44), tratadas no Relatrio como fenmenos naturais, colocando
a iminncia dos riscos como algo que no se possa interferir, como algo
externo, assim como os fenmenos da natureza.
O Relatrio sugere ainda que h problemas entre as naes,
etnias, preconceitos religiosos, guerras entre outros exemplos, sendo
utilizados para reforar a ideia de que se est vivendo em um mundo em
multirriscos. Termos como incerteza passam a ser recorrentes para dar
fora e justificar a situao de desequilbrio, desigualdades, degradao
que precisa de ateno dos indivduos e dos tomadores de decises
polticas. (DELORS, 1996, p. 46).
Dominar o sentimento de incerteza, compreender a complexidade
dos fenmenos mundiais, exige que se aprenda a relativizar os fatos e a
revelar o sentido crtico perante o fluxo de informaes (DELORS,
1996, p. 47). O relatrio no aponta aes concretas, mas enfatiza
sobremaneira, a necessidade de preparar cada indivduo para
compreender a si mesmo e ao outro, atravs de um melhor
conhecimento do mundo (DELORS, 1996, p. 47).
H inmeras formulaes discursivas que apontam a importncia
do respeito diversidade cultural. Mas contrariamente ao que
apregoado, h meno a uma problemtica expressa na multiplicidade
de lnguas. Existem mais de seis mil lnguas no mundo, o que
apresentado como um empecilho, por ser mais difcil encontrar
solues que se apliquem em todas as circunstncias. (DELORS, 1996,
p. 43). O discurso ressalta a importncia de perceber a diversidade como
um elemento a ser valorizado. Ao mesmo tempo, uma imagem
homognea e harmoniosa do mundo, sendo ento possvel, resolver os
problemas de diferentes naturezas, de forma idntica.

324
No Relatrio, o mundo descrito como aquele que desencadeia
mal-estar, incerteza, causa medos. Insiste-se em falar de
desequilbrios, destacam-se o medo de catstrofes, o sentimento de
vulnerabilidade perante fenmenos como o desemprego, devido
alterao das estruturas laborais (DELORS, 1996, p. 46), com o
objetivo de estimular o indivduo a conseguir ultrapassar tenses de
sentido oposto, que afetam, hoje em dia, muitas atividades humanas.
(DELORS, 1996, p. 47). Configura-se uma estratgia de reforo ao
engajamento pessoal para que o indivduo no se feche sobre si
mesmo, mas que crie um esprito novo que, graas [...] a uma anlise
partilhada dos riscos e dos desafios do futuro, conduza realizao de
projetos comuns ou, ento, uma gesto inteligente e apaziguadora dos
inevitveis conflitos. (DELORS, 1996, p. 19, sem grifos no original).
No discurso que expe um mundo com seus problemas e tenses,
naturalizam-se problemas, tenses, conflitos, fenmenos sociais
construdos historicamente, a exemplo do desemprego, como
encadeamente de causalidades. Precisa-se de um indivduo que se adapte
a essas fatalidades, ao passo que preciso criar possibilidades de
gerir e agir sem que se tornem refns neste mundo multirriscos.
(DELORS, 1996, p. 44).
De fato, o Relatrio descreve um mundo de crises. Refora o
determinismo tecnolgico ao afirmar que o rpido aumento do
desemprego nos ltimos anos em muitos pases constitui, em muitos
aspectos, um fenmeno estrutural ligado ao progresso tecnolgico.
(DELORS, 1996, p. 79). H ainda o alerta de que o perigo est em toda
a parte. (DELORS, 1996, p. 80), e o progresso tcnico avana mais
depressa do que a nossa capacidade de imaginar solues para os novos
problemas que ele coloca s pessoas e s sociedades modernas
(DELORS, 1996, p. 80). O perigo referido pelo Relatrio diz respeito
ameaa solidariedade nacional e, por isso, assegura que falta um
novo modelo de estruturao da vida humana. (DELORS, 1996, p. 80).
Por isso, a educao
manifesta [...] o seu carter insubstituvel na
formao da capacidade de julgar. Facilita uma
compreenso verdadeira dos acontecimentos, para
l da viso simplificadora ou deformada
transmitida, muitas vezes, pelos meios de
comunicao social, e o ideal seria que ajudasse
cada um a tornar-se cidado deste mundo

325
turbulento e em mudana, que nasce cada dia
perante nossos olhos. (DELORS, 1996, p. 47).

Nesse sentido, a Comisso orientou sua reflexo sobre a


Educao para o sculo XXI com o objetivo de dotar a humanidade da
capacidade de dominar o seu prprio desenvolvimento (DELORS,
1996, p. 82). Sobre isso, observa-se a nfase dada educao, sendo que
mais do que nunca esta tem como papel essencial conferir a todos os
seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e
imaginao de que necessitam para desenvolver os seus talentos e
permanecerem, tanto quanto possvel, donos do seu prprio destino.
(DELORS, 1996, p. 100, sem grifos no original).
Verifica-se no Relatrio a responsabilidade delegada educao
em fornecer s crianas e aos adultos as bases culturais que lhes
permitam decifrar, na medida do possvel, as mudanas em curso
(DELORS, 1996, p. 68). Da vem a insistente pregao de que vivendo
num mundo em mudana [...] o sculo XXI necessita desta diversidade
de talentos e de personalidades, mais ainda de pessoas excepcionais,
igualmente essenciais em qualquer civilizao. (DELORS, 1996, p.
100).
Essas pessoas excepcionais tm como desafio intervir num
mundo, apresentado como perigoso, cada vez mais complexo, dominado
por incertezas. um mundo caracterizado por um sistema alienante e
hostil, marcado pela agitao e pela violncia, dominado pela
globalizao, de tenso entre o global e o local, de desigualdades de
desenvolvimento, de constantes ameaas solidariedade nacional. Alm
destes, h um intenso aumento do desemprego e de fenmenos de
excluso social, de complexidade das situaes lingusticas, bem como
de conflitos tnicos e religiosos.
Essa viso de mundo visa estimular o indivduo a tomar nas
mos o seu prprio destino (DELORS, 1996, p. 58), semelhana do
que prescrito nos manuais de autoajuda. Trata-se de formar para a
inovao pessoas capazes de evoluir, de se adaptar a um mundo em
rpida mudana e capazes de dominar essas transformaes.
(DELORS, 1996, p. 72). Nesse aspecto, o desenvolvimento da
educao permite, de fato, lutar contra um conjunto de fatores de
insegurana: desemprego, excluso social, desigualdades de
desenvolvimento entre naes, conflitos tnicos ou religiosos.
(DELORS, 1996, p. 180).

326
5.2.6 As demandas do mundo do trabalho para o sculo XXI:
atitudes e valores
O mundo do trabalho constitui um espao privilegiado de
educao tanto quanto a escola. H, sem dvida, um esforo em
propagar a ideia de que a escola formadora de um aluno
empreendedor. Para que isso seja possvel, o discurso disseminado no
Delors versa sobre o valor de articular a sala de aula s experincias
concretas. Para assegurar tal concepo, refora-se a estratgia do box
Aprender na empresa e na escola: a formao em alternncia na
Alemanha. Pelo ttulo, se v que os exemplos pontuados pela Comisso
so particulares e visam universalizar uma determinada situao. O que
se pode postular como crtica, no Delors, utilizado como um aspecto
relevante: A educao ao mesmo tempo universal e especfica. Deve
fornecer os fatores unificadores comuns a toda a humanidade,
abordando ao mesmo tempo as questes particulares que se pem em
situaes muito diferentes. (DELORS, 1996, p. 126).
So vrias as passagens nas quais so divulgados valores
universais como fundantes necessria educao para o sculo XXI.
Nanhzao, um dos membros da Comisso, ao traar um panorama acerca
da interao educao e cultura na tica do desenvolvimento econmico
numa perspectiva asitica -, enfatiza alguns dos valores culturais
globais que a educao deve cultivar para promover a tica global.
(DELORS, 1996, p. 263). Ao elencar tais valores, Nanhzao delineia para
a formao do indivduo, os atributos necessrios ao mundo do trabalho.
Dentre estes, destacam-se:
- a preocupao com a equidade social e com a
participao democrtica na tomada de decises e
no governo que deve ser o objetivo central em
todos os nveis de educao.
- compreenso e tolerncia em relao s
diferenas e ao pluralismo culturais, pr-requisito
indispensvel coeso social, coexistncia
pacfica e resoluo dos conflitos pela
negociao e no pela fora e, no fim das contas,
paz mundial.
- solicitude para com o outro, o valor decisivo
para a educao de amanh e manifestao
intrnseca de compaixo humana, de que se deve
dar provas no s em relao ao membros da

327
prpria famlia e aos colegas, mas tambm em
relao a todos os desfavorecidos, doentes, pobres
ou em situao de inferioridade, e que anda a par
como cuidado pelo bem-estar da humanidade e do
nosso planeta. (NANHZAO, 1996 apud DELORS,
1996, p. 264-265)

Alm da equidade social, da compreenso, tolerncia e solicitude


com o outro, o membro da Comisso afirma o valor do esprito de
solidariedade. Segundo Nanzhao (1996 apud Delors, 1996, p. 264):
A solidariedade tanto mais necessria quanto a
competio um fenmeno quotidiano e
omnipresente em todos os domnios da existncia.
Como observou Jacques Delors, O mundo a
nossa aldeia: se uma das casas pega fogo, os tetos
por cima de ns ficam igualmente ameaados. Se
um de ns tentar reconstruir a casa sozinho, os
seus esforos tero apenas um valor simblico. A
solidariedade dever ser a nossa palavra de ordem:
cada um de ns deve assumir a parte que lhe cabe
de responsabilidade coletiva.

Se o esprito de solidariedade importante, igualmente o


esprito de iniciativa, em que a qualidade exigida no para se ser
produtivo e competitivo no domnio econmico, mas tambm para fazer
face a todas as situaes da vida. (NANZHAO, 1996 apud Delors,
1996, p. 264).
A criatividade outro valor universal importante porque
necessria aos progressos tecnolgicos e sociais, dinmica econmica
e a todas as situaes da vida. (NANZHAO, 1996 apud Delors, 1996,
p. 264). Diante dos progressos tecnolgicos e sociais, tambm h
destaque para o esprito aberto mudana como nica coisa que no
mudar, e vontade no s de aceitar a mudana, mas de agir de modo
que ela se encaminhe num sentido positivo. (NANZHAO, 1996 apud
Delors, 1996, p. 265).
A Comisso tambm ressalta o sentido das responsabilidades, no
que diz respeito proteo do ambiente e ao desenvolvimento
sustentvel, a fim de no hipotecar a herana econmica social e
ecolgica a transmitir s geraes futuras. (NANZHAO, 1996 apud
DELORS, 1996, p. 265).

328
Os valores universais, assim reforados, inserem-se num contexto
de crises de valores humanos que afeta o mundo no seu conjunto
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 263). de notar-se, desse
modo, que os valores universais indispensveis ao sculo XXI esto
inscritos nas tradies culturais milenrias das grandes civilizaes
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 265). Na viso de
Nanzhao, eles refletem apenas as concepes morais e os ideais de
verdade, humanidade, beleza, justia e liberdade, defendidos pelos
nossos longnquos antepassados e magnificamente preservados nos
tesouros do pensamento. (NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p.
265).
Outra maneira de cultivar esses valores, assinala Nanzhao, a
educao lanar pontes entre as culturas orientais e ocidentais
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 265). Portanto, lembra o
especialista em educao que:
Quando o Oriente e o Ocidente forem capazes de
aprender um com o outro para proveito mtuo, e
quando cada um adotar o que o outro tem de
melhor combinando, por exemplo, a iniciativa
individual e o esprito de equipe, a
competitividade
e
a
solidariedade,
as
competncias tcnicas e as qualidades morais
ento os valores universais que invocamos
havero de se impor, pouco a pouco, e o advento
de uma tica global provocar uma profunda
reanimao de todas as culturas, e contribuir
profundamente para a educao da humanidade.
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 266).

A nfase aos valores universais na perspectiva asitica


transposta pela Comisso para as demais sociedades, reforando o ideal
de uma educao que no compete apenas transmitir o patrimnio
cultural s novas geraes, mas tambm modernizar as tradies.
(NANZHAO, 1996 apud DELORS, 1996, p. 263). A partir do exemplo
asitico de Nanzhao, o discurso da Comisso pretende uma adeso
crescente, postulando valores universais como princpios de ao, como
apelo responsabilidade social de cada indivduo que transcende o
local, mas visa uma disseminao de valores culturais globais.

329
Os principais valores culturais expressos no Relatrio so:
equidade social, igualdade de oportunidades, participao democrtica,
compreenso / tolerncia, respeito s diferenas, pluralismos, resoluo
de conflitos, solidariedade, responsabilidade, coeso social, esprito
empreendedor, aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer,
aprender a viver juntos.
Ao considerar-se que a linguagem profundamente determinada
pelo momento histrico, pelas contradies sociais e pelos conflitos
ideolgicos (CARBONI; MAESTRI, 2003, p. 55), pode-se
compreender mais a respeito da ateno dada pela Comisso ao mundo
tal como apresentado. Que fazer para melhorar a situao? No
discurso, simplifica-se esse questionamento destacando-se que, para no
agravar mais as tenses latentes e degenerar em conflitos, preciso
existir objetivos e projetos comuns [para] que os preconceitos e a
hostilidade latente possam desaparecer e dar lugar a uma cooperao
mais serena e at amizade. (DELORS, 1996, p. 97). H uma nfase
no discurso humanitrio reiterando-se valores universais que visam
promover a cultura da paz, a compreenso entre os homens,
valorizar a educao como esprito da concrdia, da emergncia de
um querer viver juntos. (DELORS, 1996).
Na acepo de Rodrigues (2008), esse processo de instituio
de verdades, pressupondo que as pessoas, ao compreenderem a
complexidade dos fenmenos e o papel da educao, atuariam de
maneira mais responsvel e ciente de que tambm so responsveis pelo
gerenciamento das crises que afetam o mundo. (TEDESCO, 2002).
5.2.7 Concepo de educao
No decorrer de todo o Relatrio, a educao abordada como
tbua de salvao, ganha um carter eminentemente utilitrio e
idealizada como um instrumento valioso na construo de uma
concepo de mundo e de homem que se adapte s circunstncias.
(DELORS, 1996, p. 83). Ser dono de seu destino tornou-se imperativo
no apenas de natureza individualista: a experincia recente mostra que
o que poderia parecer, somente, como uma forma de defesa do indivduo
perante um sistema alienante ou tido como hostil, tambm, por vezes,
a melhor oportunidade de progresso das sociedades. (DELORS, 1996,
p. 100). Essa concepo de um mundo em crise, perigoso, de medos
vem sendo difundida como o argumento que remete educao o dever

330
de formar indivduos aptos a utilizar as novas tecnologias e que
revelem um comportamento inovador. (DELORS, 1996, p. 71). H um
realce importncia do capital humano e, portanto, do investimento
educativo para a produtividade. (DELORS, 1996, p. 71).
Esse olhar mitificado sobre o papel da educao assimilado
tambm nas organizaes em que esta passa a ser vista com grande
responsabilidade [...] no sentido de anunciar um homem novo, de
propor a acreditar em novos valores, de contribuir para a formao de
homem cujo imaginrio seja o sonho de [...] ganhar seu sustento e
acesso vida plen.a (SCHIRATO, 2004, p. 144). Convm, nesse
sentido, assinalar a nfase numa formao considerando novas
aptides, [sendo que] os sistemas educativos devem dar resposta a esta
necessidade (DELORS, 1996, p. 71), de maneira que o objetivo de
puro crescimento econmico revela-se insuficiente para garantir o
desenvolvimento humano. (DELORS, 1996, p. 79).
Dos principais papis atribudos educao no Relatrio, alm de
dotar a humanidade da capacidade de dominar o seu prprio
desenvolvimento, diz-se que:
A educao deve, pois, adaptar-se constantemente
a estas transformaes da sociedade, sem deixar
de transmitir as aquisies, os saberes bsicos
frutos da experincia humana. (DELORS, 1996, p.
21).
Cabe educao a nobre tarefa de despertar em
todos, segundo as tradies e convices de cada
um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta
elevao do pensamento e do esprito para o
universal e para uma espcie de superao de si
mesmo. (DELORS, 1996, p. 16, sem grifos no
original).
A educao deve, pois, procurar tornar o
indivduo mais consciente de suas razes, a fim de
dispor de referncias que lhe permitam situar-se
no mundo, e deve ensinar-lhe o respeito pelas
outras culturas. (DELORS, 1996, p. 48).
A educao tem, pois, uma especial
responsabilidade na edificao de um mundo
mais solidrio, e a Comisso pensa que as
polticas de educao devem deixar transparecer,

331
de modo bem claro, essa responsabilidade.
(DELORS, 1996, p. 49, sem grifos no original).
Desenvolver os talentos e as aptides de cada um
corresponde, ao mesmo tempo, misso
fundamentalmente humanista da educao,
exigncia de equidade que deve orientar qualquer
poltica educativa e s verdadeiras necessidades
de um desenvolvimento endgeno, respeitador do
meio ambiente humano e natural, e da diversidade
de tradies e de culturas. (DELORS, 1996, p.
85).
A educao tem por misso, por um lado,
transmitir conhecimentos sobre a diversidade da
espcie humana e, por outro, levar as pessoas a
tomar conscincia das semelhanas e da
interdependncia de todos os seres humanos do
planeta. (DELORS, 1996, p. 97, sem grifos no
original).

Ademais, conforme o Relatrio, a educao tem o papel ainda


maior na insero das minorias na sociedade. (DELORS, 1996, p. 232).
Refora-se no documento que a educao [...] se situa no corao do
desenvolvimento tanto da pessoa humana como das comunidades.
Dessa forma, cabe-lhe a misso de fazer com que todos, sem exceo,
faam frutificar os seus talentos e potencialidades criativas, o que
implica, por parte de cada um, a capacidade de se responsabilizar pela
realizao do seu projeto pessoal. (DELORS, 1996, p. 16). Como vse, o discurso proclama um investimento numa educao que representa
no s h uma necessidade de renovao cultural, mas tambm e,
sobretudo, a uma exigncia nova, capital, de autonomia dinmica dos
indivduos numa sociedade em rpida transformao (DELORS, 1996,
p. 117).
semelhana do discurso dos livros de autoajuda de Smiles, um
mundo em constante transformao, precisa
reconstituir o ncleo de uma educao moral das
conscincias que supem uma cultura cvica feita
de inconformismo e de recusa perante a injustia e
capacitem para a cidadania ativa em que a
responsabilidade de interveno substitua a uma
mera cidadania por delegao. (DELORS, 1996,
p. 223, sem grifos no original).

332
Tomando como referncia o individual, possvel educar a
solidariedade e o novo esprito comunitrio (DELORS, 1996, p. 222),
de forma que a apropriao de determinados valores, como equidade,
igualdade de oportunidades, liberdade responsvel, respeito pelos
outros, defesa dos mais fracos, apreo pela diferena (DELORS, 1996,
p. 223), criem [...] as atitudes psicolgicas que predispem para agir de
maneira concreta pela justia social e em defesa dos valores da
democracia. (DELORS, 1996, p. 223). Diante de tal diagnstico, a
Comisso enfatiza que a educao
[...] sob as suas diversas formas, tem por misso
criar, entre as pessoas, vnculos sociais que
tenham a sua origem em referncias comuns. Os
meios utilizados abrangem as culturas e as
circunstncias mais diversas; em todos os casos, a
educao tem como objetivo essencial o
desenvolvimento do ser humano na sua dimenso
social. (DELORS, 1996, p. 51).

interessante observar que ter referncias comuns, conforme


consta no documento pressupe a construo e a difuso de valores
comuns. Dentre estes, como no discurso dos manuais de autoajuda, os
valores para a mudana merecem ateno. Define-se a necessidade de
valores comuns para a preparao de um projeto comum (DELORS,
1996, p. 51).
Alm disso, a Comisso assinala que a educao cvica constitui
um conjunto complexo que abarca, ao mesmo tempo, a adeso a valores,
a aquisio de conhecimentos e a aprendizagem de prticas de
participao na vida pblica. (DELORS, 1996, p. 62). Ao mesmo
tempo em que a Comisso insiste em afirmar que cada indivduo deva
assumir o rumo e as consequncias de seu destino, refora que as aes
individuais devem considerar prioritariamente o social, discurso
presente tambm nos manuais de autoajuda.
5.2.8 Substituir a esperana de um emprego pela criao
de empregos: a relao educao e trabalho
O discurso no Delors revela, em vrias passagens, uma
concepo de educao essencialmente utilitarista. Dentre as
contribuies individuais dos onze membros da Comisso, Fay Chung

333
(1996 apud Delors, 1996, p. 227), da UNICEF de Nova Iorque,
analisando a educao na frica, afirma que esta deve desempenhar
um papel crucial no desenvolvimento econmico, bem como crucial
na instaurao de valores universais que moldaro o sculo XXI. O
desafio estaria em compreender que o comrcio exige conhecimentos
do mercado mundial e competncias no domnio empresarial,
conhecimentos e competncias de que carecem os pases em transio.
(KORNHAUSER, 1996 apud DELORS, 1996, p. 233).
As esperadas competncias para o mundo do trabalho servem ao
propsito de se caminhar para uma sociedade educativa. (DELORS,
1996, p. 18). Os progressos da cincia e da tcnica devem convercernos das vantagens de repensar o lugar ocupado pelo trabalho e seus
diferentes estatutos, e para criar essa sociedade esperada, a
imaginao humana deve ser capaz de se adiantar aos avanos
tecnolgicos, se quisermos evitar o aumento do desemprego, a excluso
social ou as desigualdades de desenvolvimento. (DELORS, 1996, p.
18). Evidencia-se, assim, uma das razes pelas quais a Comisso insiste
no conceito de educao ao longo da vida95, como aquele que sustentaria
uma formao com vantagens pela flexibilidade, diversidade e
acessibilidade no tempo e espao. (DELORS, 1996, p. 18). Associada
noo de educao permanente, esto as necessrias adaptaes
relacionadas com as alteraes da vida profissional, [que] [...] deve ser
encarada como uma construo contnua da pessoa humana, dos seus
saberes e aptides, da capacidade de discernir e agir. (DELORS, 1996,
p. 18).
Em referncia a educao ao longo da vida, o Relatrio exalta a
necessidade de o indivduo estar preparado para acompanhar a
inovao, tanto na vida privada como na vida profissional. (DELORS,
1996, p. 19). Isso significa que preciso aprender a aprender no apenas
em relao aos conhecimentos, mas a capacidade de compreender os
outros [que] faz com que cada um se conhea melhor a si mesmo
95
Na viso da Comisso, a educao permanente concebida como indo muito alm do que j
se pratica, especialmente nos pases desenvolvidos: atualizao, reciclagem, e converso e
promoo de adultos. Deve ampliar a todos as possibilidades de educao, com vrios
objetivos, quer se trate de oferecer uma segunda ou uma terceira oportunidade, de dar resposta
sede de conhecimento, de beleza ou de superao de si mesmo, ou ainda, ao desejo de
aperfeioar e ampliar as formaes estritamente ligadas s exigncias da vida profissional,
incluindo as formaes prticas. (DELORS, 1996, p. 117).
Para essa discusso, sugere-se ver a tese de doutorado de Marilda Merncia Rodrigues (2008),
intitulada Educao ao longo da vida: a eterna obsolescncia humana.

334
(DELORS, 1996, p. 49), o que conduziria busca de valores comuns,
que funcionem como fundamento da solidariedade intelectual e moral
da humanidade, de que se fala no documento constitutivo da
UNESCO. (DELORS, 1996, p. 49).
Partilhar valores, de acordo com a Comisso, ajudaria na
construo de um mundo mais solidrio. (DELORS, 1996, p. 49).
Solidariedade um termo que aparece de forma recorrente ao longo do
Relatrio, de modo que a Comisso insiste em dizer que uma das tarefas
da educao reside em ajudar a transformar a interdependncia real em
solidariedade. (DELORS, 1996, p. 47). Desse modo, exige-se uma
solidariedade em escala mundial, de valores partilhados que constituem
o amlgama da coeso social96, de forma que laos materiais e
espirituais enriquecem-se e tornam-se, na memria individual e coletiva,
uma herana cultural [...] servindo de base aos sentimentos de pertencer
quela comunidade, e de solidariedade. (DELORS, 1996, p. 51, sem
grifos no original). O documento alega que, para no pr em perigo a
coeso social, valores integradores so necessrios. O que est em
causa a capacidade de cada um se comportar como verdadeiro
cidado. (DELORS, 1996, p. 54). Uma vez que a concepo presente
no documento de um mundo multirriscos, aponta-se que,
para podermos compreender a crescente
complexidade dos fenmenos mundiais, e
dominar o sentimento de incerteza [...]
precisamos, antes, adquirir um conjunto de
conhecimentos e, em seguida, aprender a
relativizar os fatos e a revelar sentido crtico
perante as informaes. (DELORS, 1996, p. 47).

Relacionar educao com o mundo do trabalho constitui, na


acepo da Comisso, uma das tarefas urgentes. Em vista disso, vrios
projetos universidade-indstria mostram que a participao direta de
estudantes e professores universitrios no mundo do trabalho muito
benfica. (DELORS, 1996, p. 38). Com tal afirmao, pretende-se
reforar que preciso preparar o indivduo para enfrentar um mundo
em transformao. (DELORS, 1996, p. 238). E por qu?

96
Lembra-se aqui o movimento construdo por Ruth Cardoso com a criao da Comunidade
Solidria no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

335
Aprende-se a trabalhar em grupo, [o aluno]
depara-se com problemas concretos que fazem
com que se passe do domnio das idias para o
domnio do mercado; verifica-se que a informao
mais recente j no basta, de fato, para manter a
concorrncia econmica escala mundial e que
preciso recorrer a sistemas de informao
internacionais; aprende-se a adquirir e organizar
informao recolhida de diferentes fontes;
buscam-se
sistemas
de
conhecimentos
susceptveis de servir de base formao de
hipteses; concebem-se interaes entre o
tratamento da informao e a investigao
experimental e presta-se colaborao a produes
piloto; buscam-se sadas comerciais e aprende-se
como se cria um mercado; identificam-se
possibilidades de transferncia de conhecimentos
e tecnologias e estabelece-se a lista de tecnologias
que no convm transferir; [...] adquirem-se as
competncias empresariais; aprende-se a conhecer
as possibilidades de trabalho independente, isto ,
a substituir a esperana de um emprego pela
criao de empregos etc. (DELORS, 1996, p.
238).

A passagem destacada na citao acima, leva a pensar que o


discurso presente no Relatrio Delors guarda algumas semelhanas com
o discurso veiculado nos textos de autoajuda. Em termos ideolgicos,
pretende-se orientar o indivduo empregabilidade e ao
empreendedorismo, autorresponsabilizando o indivduo acerca de sua
situao no mercado de trabalho. Se preciso encarar o mundo em
transformao, no qual se deve lidar com riscos e incertezas, o mundo
do trabalho tambm exige um comportamento diferenciado ao pessoal
de execuo a justa posio de trabalhos prescritos e parcelados.
(DELORS, 1996, p. 94). O trabalho com tais caractersticas deu lugar,
segundo a Comisso, a
empregadores [que] substituem, cada vez mais, a
exigncia de uma qualificao ainda muito ligada,
a se ver, idia de competncia material, pela
exigncia de uma competncia que se apresenta
como uma espcie de coquetel individual,
combinando a qualificao, em sentido estrito,

336
adquirida pela formao tcnica e profissional, o
comportamento social, a aptido para o trabalho
em equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto
pelo risco. (DELORS, 1996, p. 94).

O discurso que valoriza as competncias do trabalho em equipe, a


capacidade de iniciativa e o gosto pelo risco, presente tambm na
autoajuda, ganha fora ao longo do Relatrio. A ideia de que os
sistemas educativos preparem cada pessoa [...] desenvolvendo as suas
competncias sociais e estimulando o trabalho em equipe na escola.
(DELORS, 1996, p. 61). Tal preparao diz respeito participao
ativa na vida como cidado. (DELORS, 1996, p. 61). nessa
perspectiva que Nanzhao (1996 apud Delors, 1996, p. 257) afirma que
educao compete no apenas transmitir o patrimnio cultural s novas
geraes, mas tambm modernizar as tradies [...] suscitando uma
transformao positiva dos valores culturais, o que propiciaria ao
indivduo, de fato, se comportar como verdadeiro cidado, consciente
das vantagens coletivas e sociais de participar da vida democrtica.
(DELORS, 1996, p. 54).
A educao deve preparar o indivduo para se envolver na
comunidade na resoluo dos problemas sociais ativando a
participao cvica de cada um, mas ao mesmo tempo, os talentos
individuais so fundamentais. Quanto a isso, a Comisso adverte que os
sistemas educacionais so acusados, muitas vezes, e com razo, de
limitar a realizao pessoal, impondo a todas as crianas o mesmo
modelo cultural e intelectual, sem ter em conta a diversidade dos
talentos individuais. (DELORS, 1996, p. 55, sem grifos no original).
Logo, preciso privilegiar o desenvolvimento do conhecimento
abstrato em detrimento de outras qualidades humanas como a
imaginao, a aptido para comunicar, o gosto pela animao do
trabalho em equipe, o sentido do belo, a dimenso espiritual ou a
habilidade manual. (DELORS, 1996, p. 55). Frente a esta formulao,
a Comisso prope, fundamentalmente, culturas e modos de ser
diferentes. (DELORS, 1996, p. 31).
Mais uma vez, elegem argumentos para a construo de
discursos de verdade. (CECEA, 2005). Fragmentar para ento
produzir a perspectiva de um projeto comum que de comum tem
apenas a mobilizao de cada indivduo que deve estar engajado na
superao do fatalismo apresentado pelo documento. Sem dvida, o rol
dos atributos pessoais, dos talentos individuais necessrios, extenso. A

337
partir da compreenso de Daz (1998, p. 21), possvel dizer que os
discursos produzidos pela Comisso so transformados, reorganizados,
distribudos e recolocados num campo diferente, o campo da reproduo
discursiva de maneira a engajar, aderir aos preceitos demarcados.
Nesse sentido, lembra-se o que destacam Shiroma, Campos e Garcia
(2004, p. 15) valendo-se do Relatrio Dahrendorf (1995): as palavras
fazem diferena. Ou, as palavras morrem medida que desistem de seu
significado (Vygotsky, 1989), destacando-se a investida do Relatrio na
produo de sentidos.
Nessa direo, ao produzir discursos, alm do discurso
humanista, a Comisso apela para o discurso economicista. Na tentativa
de conseguir adeso, a Comisso, ao considerar a relao entre o ritmo
do progresso tcnico e a qualidade da interveno humana, torna-se,
ento cada vez mais evidente, a necessidade de formar agentes
econmicos aptos a utilizar as novas tecnologias e que revelem um
comportamento inovador. (DELORS, 1996, 71, sem grifos no
original). Para tanto, novas aptides so necessrias, de modo a garantir
a flexibilidade qualitativa da mo-de-obra. (DELORS, 1996, p. 71,
sem grifo no original). Trata-se, antes, de formar para a inovao
pessoas capazes de evoluir, de se adaptar a um mundo em rpida
mudana e capazes de dominar essas mudanas. (DELORS, 1996, p.
72, sem grifos no original). Essas palavras soam bem, pois que remetem
a idia de progresso, de crescimento. Quem, afinal, no gostaria de fazer
parte desse processo?
Nessa perspectiva, ganha fora o papel desempenhado pelas
aptides intelectuais e cognitivas, uma vez que a Comisso lembra que
j no possvel pedir aos sistemas educativos que formem mo-deobra para empregos industriais estveis (DELORS, 1996, p. 72). Ento
pedem, agora, que formem para trabalhos instveis, considerando um
mundo em constantes mudanas.
A noo de estabilidade, como fator positivo, desconstruda ao
longo do Relatrio numa tentativa de forar a educao a preparar
indivduos para encarar um mundo do trabalho no qual necessrio
criar empregos ao invs de conseguir empregos. Nesse sentido, podese recorrer a Shiroma e Evangelista (2003, p. 86), ao alertar que as
relaes entre educao e trabalho, escola e emprego, foram se
estabelecendo como respostas na ordem do dia, para operar no
imaginrio social uma inverso por meio da qual os problemas
econmicos so atribudos falta de preparo educacional.

338
A nfase no documento aos quatro pilares da educao vem ao
encontro dessa ideia, sendo que tais saberes aprender a viver juntos,
aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conhecer para a
Comisso, devem ser objeto de ateno de igual por parte do ensino
estruturado, a fim de que a educao aparea como uma experincia
global a levar a cabo ao longo de toda a vida, no plano cognitivo como
no prtico, para o indivduo enquanto pessoa e membro da sociedade.
(DELORS, 1996, p. 90).
A Comisso afirma a exigncia da busca de um compromisso
pessoal do trabalhador, tido como agente de mudana, de tal forma que
se torna evidente que as qualidades muito
subjetivas, inatas ou adquiridas, muitas vezes
denominadas
saber-ser
pelos
dirigentes
empresariais, se juntam ao saber e ao saber-fazer
para compor a competncia exigida o que
mostra bem a ligao que a educao deve manter
[...] entre os diversos aspectos da aprendizagem.
Qualidades como a capacidade de comunicar, de
trabalhar com os outros, de gerir e de resolver
conflitos, tornam-se cada vez mais importantes. E
esta tendncia torna-se ainda mais forte, devido ao
desenvolvimento do setor de servios. (DELORS,
1996, p. 94).

Postulando a necessidade de uma nova educao para o sculo


XXI, menciona-se que, num mundo em mudana, um dos principais
motores a inovao tanto social como econmica. Diante disso, deve
ser dada importncia especial imaginao e criatividade97 [...] a
preocupao em desenvolver a imaginao e a criatividade deveria,
tambm, revalorizar a cultura oral e os conhecimentos extrados da
experincia da criana e do adulto. (DELORS, 1996, p. 100).
As estratgias de inovao esto vinculadas a esse novo modelo
de produo, sinalizando mudanas nas necessidades de formao dos
97

Dentre os inmeros boxes exibidos ao longo do Relatrio, a Comisso destaca as


Recomendaes de Dacar cuja nfase est em diversificar as ofertas educativas [...] criar
capacidades de pesquisa e peritos em nvel regional [...] estimular o desenvolvimento da
criatividade e das capacidades de empreendedorismo endgenas. (DELORS, 1996, p. 84). Vse a insistncia em integrar a educao aos desafios de construo de um mundo em que novas
aptides so necessrias para a resoluo de problemas que impedem o seu desenvolvimento.

339
trabalhadores. Imaginar, criar e inovar so atributos que diferenciam os
indivduos do mero domnio de habilidades motoras. Para atuar num
mundo multirriscos, preciso flexibilidade, engajamento, participar
da mudana, adaptar-se a ela. Num mundo dessa natureza, o trabalho
exige a combinao de novas tcnicas gerencias exigncia da
formao de um novo homem para o trabalho. O desafio que impe para
a educao do sculo XXI formar esse novo trabalhador capaz de
conhecer, de aprender a fazer, de aprender a ser, aprendendo a viver
junto. A noo de educao no Delors amplia-se de tal forma que so
muitas as tarefas para o sculo XXI para esse cidado. Em destaque no
documento, esto: comportamento inovador, pr-ativo, esprito de
adaptao, agente de mudana, capaz de resolver problemas,
negociar com paz sem o uso da fora, modernizao de
mentalidades, construo de uma cultura pessoal, autonomia
individual, discernimento, gosto pela animao pelo trabalho em
equipe, aptido para comunicar, flexibilidade, criatividade, iniciativa,
imaginao e cooperao ativa.
Todas essas caractersticas necessrias formao adequada ao
sculo XXI circulam na atualidade, sendo repetidas insistentemente em
publicaes de vrios gneros. A autoajuda, por exemplo, faz uso e
abuso de tais aspectos como fundantes do profissional de sucesso. Tudo
que apresentado nesses manuais e repetido tambm em livros que
versam sobre a formao de professores destacando que o perfil
profissional na atualidade requer capacidades relacionadas com
criatividade, disciplina, solidariedade, atualizao permanente, rapidez
de raciocnio, flexibilidade, capacidade de adaptao, constituindo estes
como alguns dentre os muitos atributos necessrios ao alinhamento para
responder as exigncias na nova gesto do trabalho.
H grande nfase centralidade da formao profissional como
recurso estratgico para o enfrentamento dos seguintes desafios:
competitividade, produtividade, qualidade, equidade social, democracia.
Desconsiderando os problemas sociais e econmicos, indica-se uma
formao profissional atrelada resoluo dos problemas sociais quando
h adequao dos profissionais que devem intervir dando contributo
individual num processo de transferncia de saberes em situaes que
exigem tomada de deciso, capacidade de diagnstico para a soluo
eficiente e eficaz de situaes-problema.
Para compor a formao do novo homem, as caractersticas
supracitadas so consideradas pela Comisso como uma forma de

340
defesa do indivduo perante um sistema alienante ou tido como hostil,
tornando-se a melhor oportunidade de progresso para as sociedades.
(DELORS, 1996, p. 100).
5.2.9 Professores, educao e mundo do trabalho
No Relatrio, os professores so vistos como agentes importantes
na formao do aluno, futuro cidado para o sculo XXI. A eles foi
delegada a tarefa de, na prtica letiva diria, [...] dar origem
aprendizagem de mtodos de resoluo de conflitos e constituir uma
referncia para a vida futura dos alunos, enriquecendo a relao
professor/aluno. (DELORS, 1996, p. 99, sem grifos no original). o
mesmo argumento que diversos autores tm disseminado em suas
publicaes nessa ltima dcada, afirmando que nesse momento
histrico exigem-se professores que tenham a capacidade de integrar
teoria e prtica como condio de formar alunos capazes de transpor
conhecimentos para a soluo imediata de problemas que se apresentam
em determinadas condies de trabalho. (REHEM, 2009; VARGAS,
2001; RIBAS, 2000).
Diferentemente do simples repasse de contedos, a educao
formal ganha outro carter, em que se deve reservar tempo e ocasies
suficientes em seus programas para iniciar os jovens em projetos de
cooperao, logo desde a infncia, no campo das atividades desportivas
e culturais, mas tambm estimulando a participao em atividades
sociais [...] servios de solidariedade entre geraes. (DELORS, 1996,
p. 99).
Consoante a esta perspectiva, o professor, segundo o Relatrio,
tem um papel importante e decisivo na educao no sculo XXI. Ele
um agente de mudana, favorecendo a compreenso mtua e a
tolerncia. (DELORS, 1996, p. 152).
Nesse sentido, a educao deve contribuir para o
desenvolvimento total da pessoa (DELORS, 1996, p. 100). Face
necessidade de uma nova formao mais humanizada, no documento, os
professores so vistos como agentes determinantes formao de
atitudes - positivas ou negativas perante o estudo. Devem, assim,
despertar a curiosidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor
intelectual e criar as condies necessrias para o sucesso da educao
formal e da educao permanente. (DELORS, 1996, p. 152).

341
Perante as nfases ao papel do professor, trata-se de destacar as
aspiraes e responsabilidades da profisso, exigindo competncia,
profissionalismo e devotamento. (DELORS, 1996, p. 157). Ressalta-se
que
o trabalho do professor no consiste simplesmente
em transmitir informaes ou conhecimentos, mas
em apresent-los sob a forma de problemas a
resolver, situando-os num contexto e colocandoos em perspectiva de modo que o aluno possa
estabelecer a ligao entre a sua soluo e outras
interrogaes mais abrangentes.

O documento institui uma proposta de relao pedaggica em que


se
visa o pleno desenvolvimento da personalidade do
aluno no respeito pela sua autonomia e, deste
ponto de vista, a autoridade de que os professores
esto revestidos tem carter paradoxal, uma vez
que no se baseia numa afirmao de poder, mas
no livre reconhecimento da legitimidade do saber.
Esta noo de autoridade poder evoluir, mas, por
enquanto, permanece essencial, pois dela que
derivam respostas a questes que o aluno coloca
sobre o mundo e ela que condiciona o sucesso
do processo pedaggico. (DELORS, 1996, p.
157).

Mediante a insistncia sobre a necessidade de tais mudanas,


assinala-se que o Relatrio no menciona como ser a formao desse
professor preparado para lidar com as necessidades de uma nova
educao para o sculo XXI, de preparar um aluno com competncias
que atendam a dinmica social apresentada no Relatrio. Sobre a
formao dos professores, tem-se esta passagem:
A Comisso julga que preciso repensar a
formao de professores de maneira a cultivar nos
futuros professores, precisamente, as qualidades
humanas e intelectuais aptas a favorecer uma nova
perspectiva de ensino que v no sentido proposto
pelo presente Relatrio. (DELORS, 1996, p. 157).

342
Mas as atribuies dos professores so muitas, complexas e bem
demarcadas no documento. Alm das j citadas, destaca-se
a necessidade de o ensino contribuir para a
formao da capacidade de discernimento e do
sentido das responsabilidades individuais [que]
impem-se cada vez mais nas sociedades
modernas se se pretende que os alunos sejam,
mais tarde, capazes de prever e adaptar-se s
mudanas, continuando a aprender ao longo de
toda a vida. (DELORS, 1996, p. 157).

O trabalho e o dilogo com o professor so vistos pela Comisso


como uma estratgia que ajuda a desenvolver o senso crtico do aluno.
(DELORS, 1996, p. 157). Essa relao, assim estabelecida com o aluno,
por si s, no basta, a grande fora dos professores reside no exemplo
que do (DELORS, 1996, p. 157), semelhana da educao pelo
exemplo enfatizada nos discursos de autoajuda. Para que isso realmente
se efetive, preciso uma tomada de conscincia dos professores em
admitir que a sua formao inicial no lhes basta para o resto da vida:
precisam se atualizar e aperfeioar os seus conhecimentos e tcnicas, ao
longo de toda a vida. (DELORS, 1996, p. 161). Insiste a Comisso, que
a formao de professores deve inculcar-lhes uma concepo de
pedagogia que transcenda o utilitrio e estimule a capacidade de
questionar, a interao, a anlise de diferentes hipteses (DELORS,
1996, p. 162), de modo que os alunos e a sociedade no seu conjunto
tm o direito de esperar deles que cumpram a sua misso com dedicao
e com um profundo sentido de suas responsabilidades. (DELORS,
1996, p. 106).
H, no documento, a defesa de que, para o professor cumprir sua
misso, este deveria ter outras experincias, fruto de sua insero e
dilogo com outras profisses. nesse sentido que se estende a
concepo de educao para alm dos espaos formais reconhecidos
historicamente. O mundo do trabalho ganha status privilegiado de
espao de educao que deve ser valorizado, sobretudo, quanto ao
valor formativo do trabalho, em particular quando inserido no sistema
educativo (DELORS, 1996, p. 113).
Sob este ponto de vista, a Comisso constata que:

343
A formao ministrada aos professores tem
tendncia a ser uma formao parte que os isola
das outras profisses: esta situao deve ser
corrigida. Os professores deveriam tambm ter a
possibilidade de exercer outras profisses, fora do
mundo escolar, a fim de se familiarizarem com
outros aspectos do mundo do trabalho, como a
vida das empresas, que, muitas vezes, conhecem
mal. (DELORS, 1996, p. 163).

A partir da nfase formao em alternncia proposta no


Relatrio, lembra-se o trabalho de pesquisa de Cabrito (1994, p. 14), que
discute essa modalidade de formao de jovens em Portugal nos anos de
1990. De acordo com o autor, a formao de jovens parece responder a
um imperativo econmico urgente: existem postos de trabalho para os
quais no existe mo-de-obra qualificada. Corolrio imediato: formar
jovens, dotando-os de um atributo novo, a empregabilidade. Nessa
direo, Cabrito (1994, p. 14), diz que se a formao profissional
for pensada apenas como um processo que garanta
essa empregabilidade, ento ela tornar-se- num
mero instrumento operatrio ao servio das
necessidades da economia, onde o indivduo, o
jovem em formao, no passa de um elo da
cadeia produtiva e cujas necessidades, como
cidado, so ignoradas.

Nessa linha de pensamento, o mesmo autor declara que se


apercebeu de um conjunto de desafios
lanados aos sistemas de ensino e formao em
torno de eixos como os da educao para a
cidadania, para a autonomia e para o
empreendimento, para a capacidade de anlise,
resoluo de novos problemas, para o confronto
de novas situaes e para a mudana permanente e
que hoje formao profissional, desenvolvimento
pessoal e social se encontram indissoluvelmente
interligados [...] na construo do homem de
amanh (CABRITO, 1994, p. 18).

Atento a esses desafios, o autor expe sua defesa a uma formao


em alternncia ou formao-ao alegando a necessidade de um esforo

344
conjugado dos sistemas de ensino e produtivo como forma de superar
situaes de desemprego, bem como da falta de mo-de-obra
qualificada. (CABRITO, 1994). Esta necessidade de aproximao da
educao ao mundo do trabalho to discutida em muitos pases, em
especial em Portugal, fortemente criticada por alguns autores nessa
ltima dcada, a exemplo de Christian Laval98 (2004) em seu livro
intitulado A escola no uma empresa.
A discusso sobre as pontes entre a realidade educativa e o
mundo produtivo levantada por Cabrito (1994) permite entender a
nfase dada no Relatrio Delors ao sistema de formao em alternncia,
com elementos para que se possa compreender o porqu dedica-se
especial ateno formao de professores capazes de educar nessa
perspectiva. No tocante formao de professores desarticulada das
demais profisses, a Comisso bem clara: esta deve ser corrigida.
desejvel que se aumente a mobilidade dos professores no interior da
profisso e entre esta e as outras profisses de modo a ampliar a sua
experincia. (DELORS, 1996, p. 165). O professor, desse ponto de
vista, precisa vivenciar o mundo do trabalho para poder formar
adequadamente seus alunos, j que
os ensinamentos tericos transmitidos no nvel
secundrio servem, muitas vezes, sobretudo, para
preparar os jovens para os estudos superiores,
deixando margem, mal equipados para o
trabalho e para a vida, os que no tem sucesso,
que abandonam ou que no encontram lugar no
ensino superior. (DELORS, 1996, p. 136).

Nessa lgica, cabe lembrar as palavras de Gentili (1998, p. 7):


Restar ao indivduo (e no ao Estado, s
instncias de planejamento ou s empresas)
definir suas prprias opes, suas prprias
escolhas que permitam (ou no) conquistar uma
posio mais competitiva no mercado de trabalho.
A desintegrao da promessa integradora deixar
lugar difuso de uma nova promessa, agora sim,
98

O Socilogo francs, especialista em histria do pensamento liberal dos Estados Unidos


afirma em seu livro que, nessas ltimas dcadas, est em andamento um projeto globalizado
para anular a idia republicana de uma escola pblica orientada para os interesses da maioria
da populao (TOMAZI, 2005).

345
de carter estritamente privado: a promessa da
empregabilidade.

Est declarado, assim, que o mundo do trabalho constitui,


igualmente, um espao privilegiado de educao. Trata-se da
aprendizagem de um conjunto de habilidades e, a este respeito, importa
que seja reconhecido, na maior parte das sociedades, o valor formativo
do trabalho, em particular quando inserido no sistema educativo.
(DELORS, 1996, p. 113).
Tal considerao refora que os conhecimentos historicamente
construdos trabalhados nas escolas so insuficientes na formao do
aluno para o sculo XXI. Isso implica necessidade de formar indivduos
para desenvolver a habilidade de abandonar hbitos rapidamente e
substituir por outros provavelmente tambm no durveis (REHEM,
2009, p. 39). A autora afirma a necessidade da construo d.e um novo
perfil e nova formao do professor de educao profissional tcnica.
Tal habilidade fundamental, uma vez que o mundo passa a ser
presidido por mudanas instantneas e errticas, em que os hbitos
arraigados, as estruturas cognitivas slidas, os valores estveis, antes
prevalecentes, passam a ser desvantagens hoje. (REHEM, 2009, p. 39).
Ainda que no explicitados abertamente, no Relatrio, estes tambm so
os elementos que aparecem de forma recorrente, assim como em
diversas publicaes sobre a formao de professores e manuais de
autoajuda. As referidas publicaes tm em comum a insistncia em
ressaltar a necessidade de uma nova educao, para um mundo de
incertezas e culturalmente em modificao.
A formao docente precisaria buscar no mundo do trabalho
conhecimentos teis para a articulao dos quatro pilares prescritos pela
Comisso. o que o documento refora:
Para poderem fazer um bom trabalho, os
professores devem no s ser profissionais
qualificados, mas tambm beneficiar-se de apoios
suficientes. [...] ligao com associaes para
organizar contatos com o mundo do trabalho,
sadas, atividades culturais ou desportivas ou
outras atividades educativas sem ligao direta
com o trabalho escolar etc. (DELORS, 1996, p.
165).

346
Desse modo, sugere-se que a alternncia entre escola e empresa,
permite [...] uma melhor insero no mundo do trabalho. (DELORS,
1996, p. 147). Essa, considerada uma medida pela Comisso, poderia
limitar significativamente o abandono da escola e as sadas do sistema
escolar sem qualificaes. (DELORS, 1996, p. 147). Argumenta-se
insistentemente em favor do desenvolvimento de um sistema de
alternncia.
Este reconhecimento implica que se leve em
conta, em especial por parte da universidade, a
experincia adquirida no exerccio de uma
profisso. [...] Devem multiplicar-se as parcerias
entre o sistema educativo e as empresas de modo
a favorecer a aproximao necessria entre
formao inicial e formao contnua. As
formaes em alternncia para os jovens podem
completar ou corrigir a formao inicial e,
conciliando saber com saber-fazer, facilitar a
insero na vida ativa (DELORS, 1996, p. 113).

Apregoa-se a alternncia como fator de durao da


aprendizagem, como perspectiva de uma educao ao longo de toda a
vida. Nesta tica, a Comisso indica que:
A alternncia de perodos de escolaridade com
perodos de atividade profissional seria mais
adequada, talvez, ao modo como os jovens
aprendem. Contudo, cabe s autoridades velar
para que as portas se lhes mantenham abertas aos
jovens para o prosseguimento de seus estudos e
para que o ensino tcnico e profissional
freqentado, bem como os perodos de
aprendizagem, sejam reconhecidos oficialmente.
[...] Ser, pois, necessrio um apoio financeiro das
autoridades para levar os empregadores, por um
lado, a oferecer formao durante o emprego a
todo o seu pessoal e em especial, aos jovens, e,
por outro, para os levar a conceder licenas para
formao aos trabalhadores que queiram
prosseguir estudos ps-escolares. De uma maneira
geral, os princpios orientadores de uma educao,
ao longo de toda a vida , devem levar
determinao de novos percursos educativos

347
(comportando em particular a concesso de um
crdito em tempo e dinheiro) que permitam
alternar perodos de atividade profissional com
perodos de estudo. (DELORS, 1996, p. 137).

Diante de tal considerao, a Comisso finaliza: [...] os alunos e


a sociedade no seu conjunto tm o direito de esperar deles [os
professores] que cumpram a sua misso com dedicao e com um
profundo sentido de suas responsabilidades. (DELORS, 1996, p. 166).
Ao atribuir essas responsabilidades ao professor, evidencia-se no
Relatrio um alinhamento da educao s exigncias dos organismos
internacionais. A nfase desse discurso est no aprender a ser,
reiterada justamente porque aos professores compete ensinar a ser
esse homem de novo tipo preparado para o trabalho em tempos de
reordenamento do capitalismo. Prepara-se o terreno para o
aprimoramento da formao do cidado/trabalhador de acordo com a
nova sociabilidade do capital.
5.3 LIES DA UNESCO PARA APRENDER A SER
Em sntese, os dois relatrios da UNESCO apresentam propostas
para reformar a educao, concepes, prioridades e valores a partir de
determinadas concepes de mundo, de trabalho e de educao
presentes nos documentos de 1971 e 1996. A leitura de ambos os
materiais, possibilita constatar a difuso de idias de maneira a
transformar contradies, ambiguidades e conceitos sofisticados
(FREITAG, 1980) em um manual prescritivo para a educao para o
sculo XXI. Nessa ordem de idias, adquirir conhecimentos, no
suficiente para a atuao profissional, preciso mais, preciso
transposio desses conhecimentos na vida produtiva e social. Nessa
perspectiva, tambm os manuais de autoajuda propalam exaustivamente
jeitos de ser no trabalho. semelhana da autoajuda, os referidos
Relatrios tambm visam um ensinar a ser delineando traos,
atributos necessrios formao do trabalhador ideal reproduo do
capital. A partir da anlise de Falleiros, pode-se pensar que a proposta
educacional dos Relatrios tem como intuito
conformar o novo homem de acordo com os
pressupostos tcnicos, psicolgicos, emocionais,
morais e tico-polticos da flexibilizao do
trabalho e como um modelo de cidadania que no

348
interfira nas relaes burguesas fundamentais no
contexto da ampliao da participao poltica.
(FALLEIROS, 2005, p. 211).

Para idelogos como Samuel Smiles, o evangelho da autoeducao encorajava o trabalhador a no depender de organizaes
coletivas como o sindicato do comrcio. (LYONS, 1999, p. 51). Do
mesmo modo, a autoajuda de Carnegie, dos gurus na atualidade e os
documentos da UNESCO visam inculcar um jeito de ser
despolitizado, um aprender a ser cidado flexvel, produtivo,
conformado, competitivo, mudo, til, mas essencialmente solitrio.
(SILVA Jr., 2002, p. 102).
O discurso configurado no Relatrio Faure articula-se
diretamente s demandas do capital, difundindo as necessrias
estratgias educacionais que mais do que nunca ganham importncia
vital na profuso de contedos, habilidades e valores ligados ao modelo
de sociabilidade que se configura a partir dos anos de 1970. Propala-se
um diagnstico de um mundo em crise, de uma educao tambm em
crise. Conforme tal ponto de vista, anuncia-se a necessidade de
construo de uma nova concepo de mundo, constituindo e
construindo um mundo em significado focando na necessidade de
preparo de um novo homem para atuar num contexto de reestruturao
produtiva. Para tanto, preciso reformar, adequar os sistemas de ensino
para a insero do trabalhador no mundo do trabalho assinalado por
inovaes tecnolgicas, progresso, desenvolvimento. H um verdadeiro
enaltecimento da tecnologia da qual se exigiria uma reviso radical dos
sistemas educativos e um esforo de solidariedade, da apropriao e
assimilao da ideia do novo, ou seja, um novo modo de conceber a
educao.
Os fundamentos desse modo de ver a educao centram-se na
nfase ao aprender a ser, na urgncia em formar um novo homem
focado no desenvolvimento de uma educao permanente. Planta-se a o
que constitui o grmem do slogan da educao ao longo da vida. A
formao desse novo homem sublinhada afirmando-se que este deve
ser um objetivo comum a todos os sistemas de educao. A educao
para formar este homem completo, ter de ser global e permanente.
Sem dvida, est-se falando de uma educao de novo tipo capaz de
imprimir forte carter individualista e flexvel, cuja reforma educacional
poderia corrigir a fragilidade de certas formas de instruo, alargando as
funes do autodidatismo e aumentando o valor das atitudes ativas e

349
conscientes de aquisio de conhecimentos (FAURE, 1972). O
conhecimento, nessa perspectiva, visto em constante evoluo
reforando o porqu deve-se investir em aprender a ser, o que
ajudaria cada indivduo a alargar as suas faculdades pessoais, a liberar a
fora criadora.
Em busca de consenso ou adeso espontnea a essa nova
composio do capital, o Relatrio difunde que essa fora criadora est
relacionada vocao pessoal de cada um, caminho que favorece a
mobilidade social; iguala as oportunidades As inovaes para a
renovao educativa, no seu conjunto, tornam-se particularmente teis e
eficazes na formao do indivduo cidado, produtor, inventor de
tcnicas e criador de sonhos. (FAURE, 1972). O esprito criador, de
intuio, de imaginao, de entusiasmo e de dvida que comporta a
atividade cientfica, so vistos como elementos que desenvolveriam em
cada indivduo o poder da imaginao, interesse pelo belo, evidenciando
tambm uma preocupao com a esttica. Acelerando-se o ritmo do
progresso tcnico, muitos indivduos sero levados a exercer vrias
profisses durante a sua vida, ou a mudar frequentemente de lugar de
trabalho.
Delega-se educao a preparao do indivduo para adaptar-se
s mudanas, ao desconhecido. O homem que as sociedades tm de
formar o homem da democracia, do desenvolvimento humanizado e da
transformao. Deve-se simultaneamente dar aos cidados bases slidas
de conhecimentos em matria socioeconmica e desenvolver a sua
capacidade de julgamento; incit-los a comprometerem-se de maneira
ativa na vida pblica, social, sindical, cultural. Deve-se desestimular a
inrcia que trava a propagao das ideias e das experincias.
Na difuso de uma concepo de mundo/sociedade, educao e
homem, o Relatrio Faure vale-se de uma infinidade de exemplos que
visam garantir a transferncia de situaes de natureza dspares para
outras de natureza complemente diferentes, propagando funes
ordenadoras na sociedade com o propsito de ressaltar que, na educao
para o mundo do trabalho se requer participao individual e flexvel na
edificao do futuro de cada um.
Buscou-se identificar no Relatrio Delors as recomendaes para
aprender a ser, que solues so propostas, que histrias so contadas,
que metforas so apresentadas, que palavras, conceitos e concepes
so reforados para direcionar a formao do indivduo desejvel para o

350
sculo XXI. Seus elaboradores apresentam uma educao que atenda a
formao de um trabalhador de novo tipo eficiente, pr-ativo, flexvel
e funcional, solidrio, que aceite as diferenas espirituais e culturais.
Diante disso, estimula-se a iniciativa, o trabalho em equipe, as sinergias
realistas, tendo em conta os recursos locais, o autoemprego e o esprito
empreendedor. preciso educar para a superao de si mesmo, para a
responsabilizao e a necessidade de participao de cada um,
desenvolvimento de virtudes cvicas.
Tais tributos podem ser encorajados ou estimulados pela
instruo e por prticas adaptadas sociedade dos meios de
comunicao social e de informao. Ao considerar, numa perspectiva
gramsciana, que toda linguagem contm os elementos de uma
concepo de mundo e de uma cultura, no Delors, difunde-se que no
seio dos sistemas educativos que se forjam as competncias e aptides
que faro com que cada um possa continuar a aprender. preciso
formar agentes econmicos aptos a utilizar as novas tecnologias e que
revelem um comportamento inovador. Essa responsabilidade est
delegada educao a qual cabe fornecer s crianas e aos adultos as
bases culturais que lhes permitam decifrar, na medida do possvel, as
mudanas em curso. (DELORS, 1996).
Diante disso, reitera-se a importncia de estimular o indivduo a
tomar nas mos o seu prprio destino, de uma formao para tornar
o indivduo capaz de evoluir, de se adaptar a um mundo em rpida
mudana e capazes de dominar essas transformaes. Para responder as
exigncias desse mundo, necessrio desenvolver: esprito de iniciativa,
criatividade, estar aberto mudana, despertar o sentido das
responsabilidades, demonstrar comportamento inovador, pr-ativo,
esprito de adaptao, ser agente de mudana capaz de resolver
problemas, negociar com paz sem o uso de fora, modernizao de
mentalidades, construo de uma cultura pessoal, autonomia individual,
discernimento, gosto pelo trabalho em equipe, aptido para comunicar,
flexibilidade, mantendo, alm disso, cooperao ativa. (DELORS,
1996).
Isso exposto, delega-se educao a tarefa de contribuir para o
desenvolvimento total da pessoa, de despertar a curiosidade,
desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar as
condies necessrias para o sucesso da educao formal e da educao
permanente. Por tudo isso, o Relatrio alerta para a crucial necessidade
de se repensar a formao de professores.

351
O discurso dos Relatrios Faure e Delors, semelhana da
literatura de autoajuda, alimenta a ideologia da instrumentalidade, da
adaptao e do consenso. De que forma? Difundindo exemplos
edificantes, expressivos, modelos de sucesso, figuras notveis que
superaram as adversidades de forma a conquistar ascenso social e
insero no mercado de trabalho. um discurso que conforma cada
indivduo em sua diviso social. (SILVA Jr., 2002). Nessa viso de
mundo, o novo homem, destaca Falleiros (2005, p. 211), deve
sentir-se responsvel individualmente pela
amenizao de uma parte da misria do planeta e
pela preservao do meio ambiente; estar
preparado para doar uma parcela do seu tempo
livre para atividades voluntrias nessa direo;
exigir do Estado em senso estrito transparncia e
comprometimento com as questes sociais, mas
no deve jamais questionar a essncia do
capitalismo.

Nessa mesma linha de raciocnio, pode-se dizer que os membros


das Comisses dos Relatrios analisados so argutos na profuso de
diagnsticos de crises no mundo, na educao, construindo um terreno
frtil de consolidao de valores altrustas de solidariedade
individual e valores da iniciativa individual em prol do bem pblico.
(MONTAO, 2007, 184-233), mesma estratgia utilizada nos manuais
de autoajuda, instrumentalizando os indivduos em suas prticas nas
relaes de trabalho.
O aprender a ser propagado na autoajuda de Smiles e Carnegie
celebrava biografias de homens de sucesso. Ensinava-se pela difuso de
um conjunto de textos escritos e adaptados para formar o trabalhador de
novo tipo considerando os valores necessrios sociabilidade do capital
em cada um desses dois momentos histricos, constituindo o princpio
da educao pelos exemplos, prescindindo, portanto, do sistema
educacional.
Em contrapartida, o aprender a ser nos Relatrios da UNESCO
desenvolve-se por dentro da escola, influenciando currculos, formao
de professores, organizao escolar e gesto educacional com discurso e
aes que visam reformar a educao do sculo XXI atribuindo escola
a tarefa de ensinar as futuras geraes a exercer uma cidadania de
qualidade nova, a partir da qual o esprito de competitividade seja

352
desenvolvido em paralelo ao esprito da solidariedade, por intermdio
do abandono da perspectiva de classe. (FALLEIROS, 2005, p. 211).

353
6 CONSIDERAES FINAIS
Neste trabalho, foram analisadas as concepes de mundo,
homem, trabalho e educao, encontradas nos clssicos da autoajuda e
presentes, tambm, nos documentos da UNESCO para a educao,
explicitando uma convergncia aos preceitos e demandas capitalistas.
A autoajuda, desde o sculo XIX, vem consolidando-se com um
veculo da ideologia, difundindo uma forma de interpretar a realidade
adequada aos padres de sociabilidade necessrios ao capital. Sendo
assim, se a eficcia das ideologias decorre da sua capacidade de
interferir na vida concreta das classes, dos homens (DIAS, 2006, p.
74), as formulaes da autoajuda para as relaes de trabalho tm
servido, ao longo de sculos, para oferecer classe trabalhadora a
compreenso das questes sociais como problemas pessoais. Nesse
sentido, a anlise de Dias (2006, p. 107) ajuda a entender tal
constatao:
Culpabilizando-se a vtima, deixa-se intacta a
causa real do problema. [...] ao invs de
engolirmos a teoria da empregabilidade para a
qual no existe desemprego, mas trabalhadores
no qualificados, poderemos ter a compreenso de
que a fragmentao torna aleatria a causalidade
e, portanto, impede a compreenso do problema
real.

A vitria de um princpio hegemnico, explica Dias (2006, p. 74),


no se d pela pura superioridade tcnica, lgica ou racional [...] no se
move apenas no campo lgico-discursivo. Mas tambm no campo da
afetividade. nessa perspectiva que o discurso de autoajuda produz
efeitos, disseminando princpios, regras de conduta, aconselhamentos,
orientaes, buscando legitimar a necessidade de aprender a ser um
trabalhador de novo tipo num discurso que propala a face humanizadora
do capital.
Para viabilizar novos modos de pensar, sentir e agir, o capital
investe no discurso de autoajuda como uma das formas pedaggicas
pelas quais [...] busca conquistar apoio popular (SILVA, 1995, p. 15),
como uma das estratgias da pedagogia da hegemonia, para educar o
consenso em torno de ideias, ideais e prticas adequadas aos interesses

354
privados do grande capital nacional e internacional. (NEVES, 2010, p.
19).
Como viu-se, essa estratgia no atual, tem sido usada desde o
sculo XIX com Samuel Smiles, um dos idelogos do capital. Sua
literatura consiste numa apreciao da ideologia liberal do sculo XIX
calcada, principalmente, nos auspcios do individualismo. A autoajuda
de Smiles delineia como ideal de trabalhador aquele de carter e visa
esculpir comportamentos por meio da retrica da persuaso das lies
morais. (LEAHY, 1999, p. 99). Essas lies, conforme demonstrado,
serviam de fonte para a aquisio de conhecimentos teis, moralmente
construdos atendendo aos propsitos da busca de ascenso social por
mritos individuais. Smiles defendia o trabalho manual como princpio
educativo. No acreditava na educao escolar, dos livros, mas sim, na
educao da prtica. Na viso do autor, os inventores de esprito
empreendedor eram os heris do mundo civilizado, em franco
desenvolvimento, consagrando-os como modelos de conduta a ser
ensinado aos jovens. O exemplo constitua-se no mais eficaz dos
mestres. O desenvolvimento do carter ocorria por hbitos (fatos) e
princpios (palavras). Para Smiles, o carter a educao da vontade.
A autoajuda das primeiras dcadas do sculo XX assume outras
caractersticas. Os princpios e as orientaes para a formao do
trabalhador conformado de Carnegie so disseminados em seus
escritos para os homens de negcios. Os escritos no eram
endereados diretamente ao operrio-massa, mas aos que
gerenciariam seu trabalho. O pblico-alvo desse gnero de literatura
aquele capaz de convencer e influenciar os trabalhadores da fase urea
do fordismo. Carnegie enfatizava a carismtica individual na arte de
convencer, o que implicava no apenas uma variedade de tcnicas e
modos de agir, mas, acima de tudo, requeria dos leitores um estado de
cultivo de seu marketing pessoal. A educao da carismtica, desse
poder individual, dar-se-ia pelos modelos de conduta, de padres de
comportamento de homens notveis. A literatura de autoajuda, nessa
perspectiva, levava o leitor a um estado de fruio, e a adeso dos
trabalhadores aos ideais dos homens de negcios no se dava pela
coero, mas pela persuaso e pelo convencimento.
Atualmente, os conhecidos gurus da autoajuda anunciam
tempos de mudanas. Pregam e atribuem um novo valor educao
vista como possibilidade de transformao do status individual. O
discurso de autoajuda dos anos de 1990 e virada do sculo XXI contm

355
ideias, concepes que remetem a modos individuais de ordenamento de
carreira e possibilidade de mobilidade social. As noes fundamentais,
essncia dessa literatura para a vida laboral, continuam sendo a
empregabilidade e o empreendedorismo. Tais noes esto na base da
construo do trabalhador flexvel, do mesmo modo que a
interiorizao de regras de conduta, comportamentos que preservem a
flexibilidade, disseminada menos pelos exemplos baseados em
excertos biogrficos e mais pelo exemplo das boas prticas exitosas
apresentadas de forma descontextualizada. Os textos de Smiles e
Carnegie retratam figuras edificantes, homens de negcios, industriais,
filsofos, inventores, poetas renomados. Em contraposio, na literatura
de autoajuda atual, o dispositivo para a adeso do leitor d-se no retrato
de histrias cotidianas de gente como a gente em que se visa a
identificao do pblico com aes pontuais que adquirem dimenso
social.
No que se refere ao discurso difundido nos documentos para a
educao analisados, constatam-se semelhanas com o de autoajuda.
Vislumbrando a empregabilidade e o empreendedorismo, a noo da
mudana de comportamentos, atitudes, formas de ver e agir no mundo -,
constitui elemento central tanto na literatura de autoajuda, como nos
Relatrios Faure e Delors. A mudana sedimenta todo o investimento na
difuso de novas concepes de mundo, trabalho, educao, homem, e,
a partir dela, justificam-se discursos insistindo na necessidade de sair
de sua inrcia e do seu conservadorismo, entendendo que tais
aspectos so entraves para que se aceite a necessidade de sair de um
estado de acomodao que possa promover oportunidades. Investe-se
muito mais no senso de adequao, de adaptao s novas necessidades
decorrentes de novas relaes de produo e trabalho, uma vez que, no
decurso dos anos 70, os objetivos de desenvolvimento sero cada vez
mais amplos e complexos (FAURE, 1972, p. 77), com implicaes
para as dcadas futuras, conforme apresentado no Relatrio Delors
(1996).
Esse Relatrio d nfase ao papel dos professores como agentes
de mudanas e formadores de carter. (DELORS, 1996, p. 9). Lembrase que a formao do carter fundamenta a autoajuda do sculo XIX,
como tambm os autores desse gnero de literatura na atualidade
reforam a formao de valores como honestidade, idoneidade, senso de
justia. Cumpre destacar que a adaptao mudana, to reprisada no
discurso de autoajuda tambm enfatizada no Relatrio Delors onde se

356
afirma que o ingresso dos pases em desenvolvimento no universo da
cincia e da tecnologia, requer necessariamente adaptao de culturas e
de modernizao de mentalidades. (DELORS, 1996, p. 13). Na mesma
direo, expoentes da autoajuda reforam que mudar mentalidades
significa fazer mudanas na maneira de pensar e trabalhar.
(SHINYASHIKI, 2001, p. 24).
A Comisso da UNESCO ressalta que, alm das necessrias
adaptaes relacionadas com as alteraes de vida profissional, ela deve
ser encarada como uma construo contnua da pessoa humana, dos seus
saberes e aptides, da sua capacidade de discernir e agir. (DELORS,
1996, p. 18). Outra nfase presente no documento diz respeito a fazer
com que todos, sem exceo, faam frutificar os seus talentos e
potencialidades criativas, o que implica, por parte de cada um, a
capacidade de se responsabilizar pela realizao do seu projeto pessoal.
(DELORS, 1996, p. 16).
Identifica-se que algumas mximas liberais so disseminadas
tanto nos livros de autoajuda quanto nos relatrios de educao da
UNESCO, evidenciando que a formao de um homem de novo tipo dse tanto por fora quanto por dentro do sistema educacional. Esses
relatrios que ensinam a ser so difundidos mundialmente para
orientar as reformas atribuindo educao a responsabilidade exclusiva
pela situao social dos indivduos. Os argumentos em favor da
modificao de mentalidades, de comportamentos e de atitudes flexveis
visam moldar a sociabilidade demandada pelo capital em tempos de
neoliberalismo.
A ideia de que o Estado representa toda a sociedade e de que
todos os cidados esto representados nele uma das grandes foras
para legitimar a dominao dos dominantes. (CHAU, 2007, p. 39). Na
tentativa de consolidar tal ideia, foi possvel constatar que a autoajuda
tem contribudo, ao longo dos sculos, no ocultamento da diviso social
e no exerccio do poder por uma classe social sobre outros (CHAU,
2007, p. 39) e que o discurso de autoajuda contribuiu para fixar no
imaginrio coletivo o aceite do capitalismo como nico horizonte
possvel para a vida social. (DIAS, 2006, p. 23).
Um dos eixos da autoajuda nos trs momentos estudados a
positividade com que se deve ver situaes complexas. Apresentam um
mundo repleto de incertezas, catico, mas do posicionamento
individual, do olhar positivo que despertaro novos modos de pensar,

357
sentir e agir no mundo, a la Mnchausen99, praticando aes de cunho
individual e que prescindam do Estado.
A autoajuda est contribuindo para a atualizao e revitalizao
dos princpios pedaggicos escolanovistas, consolidados no aprender a
aprender, pois, como se viu, os clssicos da autoajuda estabelecem uma
hierarquia valorativa na qual aprender est acima do ensinar o que est
evidenciado nos quatro pilares da educao do sculo XXI.
Os princpios para aprender a ser esse novo trabalhador,
segundo a tica da autoajuda e da UNESCO, esto explicitados nos
seguintes atributos: perseverana, coragem, criatividade, capacidade
para inovar, flexibilidade, pensamento positivo, disciplina, carter,
pacincia, economia entre outros.
A educao escolar, na perspectiva da UNESCO, assume papel
central na formao e na difuso de um sistema de valores que
forneceriam as bases para a (con)formao tico-poltica dos
trabalhadores na obteno de maior eficincia na reproduo das
habilidades e personalidades requeridas pelo capitalismo.
(FALLEIROS et al., 2010, p. 90).
O discurso de autoajuda contribui para a rpida disseminao de
novas atitudes, comportamentos e condutas utilizando uma linguagem
palatvel, constituda de uma diversidade de recursos lingusticos, em
especial as metforas, permitindo operar analogias e associaes com
situaes cotidianas. O principal recurso pedaggico do discurso de
autoajuda so os exemplos, boas prticas, excertos biogrficos de
homens edificantes, notveis, empreendedores. O cotejo das diferentes
concepes visando a formao de um trabalhador de novo tipo,
presentes nos discursos de autoajuda e da UNESCO, evidenciou a
disseminao de princpios convergentes para a construo de uma
moral/tica do trabalho calcados essencialmente sob dois princpios:
mudana e adaptao. A formao de um trabalhador de novo tipo
propagada no discurso de autoajuda e UNESCO se sustenta em novos
modos de ver, sentir e agir no trabalho, o que significa: mudar pontos de

99
Conta-se que, certo dia, o Baro de Mnchausen, num de seus passeios a cavalo, afundou
num pntano. Estava afundando cada vez mais, como no havia ningum para socorr-lo, ele
teve a brilhante idia de puxar a si mesmo pelos cabelos, at que conseguiu sair do atoleiro,
juntamente com seu cavalo. Lembra-se tal conto infantil a respeito das aventuras do Baro de
Mnchausen como forma de ilustrar essa busca de sadas individuais, um dos apelos da
literatura de autoajuda.

358
vista, fazer escolhas, vencer o medo, ser flexvel, observar os exemplos
e aprender com eles, influenciando modos de ver e agir.
A autoajuda se constitui em uma das estratgias da pedagogia da
hegemonia para formar homens de novo tipo em cada fase do
desenvolvimento capitalista, disseminando um ideal de conduta cuja
adeso se d pelo consentimento da maioria dos governados tanto no
trabalho quanto no cotidiano.
Entendida como uma das estratgias educacionais do capital, a
autoajuda produz efeito na medida em que os escritores fazem com que
as grandes concepes de mundo cheguem ao povo. (MARTINS;
NEVES, 2010, p. 31). Nesse sentido, possvel considerar os
charlates ideolgicos (PETRAS, 2007) como organizadores e
persuasores permanentes contribuindo para manter ou para modificar
uma concepo de mundo, isto , para suscitar novas maneiras de
pensar. (GRAMSCI, 2004, p. 53). A obteno do consenso em torno da
concepo de mundo burguesa mantm-se e o discurso de autoajuda est
desde as dcadas iniciais do sculo XIX, contribuindo na conteno da
classe trabalhadora, oferecendo histrias personalizadas com vistas a
ocultar as contradies e minar a conscincia de classe.
Explorando uma variedade de recursos lingusticos, os escritores
de autoajuda visam influenciar um leitor suscetvel. Mas ser este leitor
um indivduo passivo? Acredita-se que no. Isso explicaria as
atualizaes desse discurso ao longo de sculos, renovando repertrios,
estratgias lingusticas, a exemplo das frases de efeito dentro das fatias
de queijo de Johnson, dos exemplos dos gurus da atualidade que buscam
abrigo em situaes cotidianas e aes pontuais, transformando-as de
exceo em regra. O discurso de autoajuda efmero. Como tal, precisa
ser constantemente renovado e repetido, com diferentes roupagens, para
que cumpra sua funo de modo que os indivduos aprendam a ser um
trabalhador de novo tipo com atitudes e comportamentos condizentes
aos padres e sociabilidade demandados pelo capitalismo.
De acordo com Gramsci (2004, p. 246), h duas perspectivas
pelas quais se pode considerar os leitores: [...] como elementos
ideolgicos, transformveis filosoficamente, capazes, dcteis,
maleveis transformao; [...] como elementos econmicos, capazes
de adquirir as publicaes e de faz-las adquirir por outros. O consumo
massivo do receiturio de autoajuda, com respostas prticas aos
problemas que derivam da forma como se v e age sobre o mundo,

359
explica a consolidao da indstria de autoajuda nas relaes de
trabalho.
Seguindo essa linha de pensamento, lembra-se a caracterizao
do autor a respeito de trs tipos fundamentais de revista100 que podem
ser caracterizados pelo modo como so redigidas, pelo tipo de leitor ao
qual pretendem dirigir-se, pelas finalidades educativas que querem
atingir. (GRAMSCI, 2004, p. 200). Gramsci preocupava-se com a
elaborao nacional unitria de uma conscincia coletiva homognea,
destacando que esta requeria mltiplas condies e iniciativas.
(GRAMSCI, 2004, p. 205), mas alertava que a difuso, por um centro
homogneo, de um modo de pensar e de agir homogneo a condio
principal, mas no deve ser a nica. (GRAMSCI, 2004, p. 205). Para o
autor, um erro muito difundido consiste em pensar que toda a camada
social elabora sua conscincia e sua cultura do mesmo modo, com os
mesmos mtodos, isto , com os mesmos intelectuais profissionais.
(GRAMSCI, 2004, p. 205). nesse sentido que Gramsci afirma que
somente a premissa da difuso orgnica, por um centro homogneo, de
um modo de pensar e de agir no bastaria sob pena de cair no
formalismo vazio.
Outro aspecto importante presente no discurso de autoajuda o
que Fairclough chama de a fora dos enunciados caracterizados como
atos de fala, que nos livros analisados podem ser identificados como
promessas, pedidos, ameaas (FAIRCLOUGH, 2001). Esses
elementos do sentido e coeso ao discurso construdo pelos autores de
autoajuda. Nesse discurso, considera-se tambm o significado das
palavras. Embora sociais, preciso observar que a relao entre as
palavras e os seus sentidos representam formas de hegemonia.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 105)
A anlise dos textos de autoajuda possibilitou apreender e
explicitar a funo destes discursos na construo da realidade social
(FAIRCLOUGH, 2001), entendendo que esse mesmo discurso pretende
100

O primeiro tipo pode ser definido pela combinao dos elementos diretivos que se
encontravam, de modo especializado, na Crtica de B. Croce, na Poltica de F. Coppola e na
Nueva Rivista Storica de C. Barbagallo. O segundo tipo, crtico-histrico-bibliogrfico, pela
combinao dos elementos que caracterizavam os fascculos mais bem elaborados de Leonardo
de L. Russo, da Unit de Rerum Scriptor e da Voce de Prezzolini. O terceiro tipo, pela
combinao de alguns elementos do segundo tipo com o tipo do semanrio ingls, como o
Manchester Weekly ou o Times Weekly (GRAMSCI, 2004, p. 201).

360
constituir, reproduzir, desafiar e reestruturar sistemas de conhecimento
e crena. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 211).
No presente estudo, procurou-se explicar o papel da autoajuda
como um dos mecanismos que disseminam uma concepo de mundo e
orientam a ao prtica. Em suma, a autoajuda uma heterogesto
travestida de autogoverno, governo de si prprio e gerente de seu
desenvolvimento pessoal e profissional. Com esta pesquisa, buscou-se
demonstrar como a autoajuda constitui uma das estratgias do capital
para educar o consenso visando (con)formar um trabalhador de novo
tipo.
Acerca da capacidade de resistncia dos trabalhadores, concordase com a argumentao de Dias (2006, p. 119):
Os indivduos no so tomos, mas blocos
histricos concretos, snteses da sua insero no
real contraditrio. No so apenas cidados e
assalariados, mas, pais, filhos, companheiros, tm
uma origem rural ou urbana, crentes ou no
crentes que so demarcados pelo real em suas
aes cotidianas. No so simples portadores de
uma racionalidade mercantil abstrata, mas ricas
individualidades carregadas de projetos e desejos
que se materializam na vida prtica.

Desse ponto de vista, Fairclough (2001, p. 70) defende que a


ideologia dialtica ao considerar que os sujeitos sociais [so]
moldados pelas prticas discursivas, mas tambm capazes de remodelar
e reestruturar essas prticas, por isso, assinala que nem todos os
intrpretes so submissos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 173).
A partir da anlise de Fairclough, entende-se que o discurso de
autoajuda contribui para a consolidao de novos padres necessrios
sociabilidade burguesa exigida para o trabalhador em tempos de
neoliberalismo. Entretanto, os homens no so meros produtos sociais,
mas tambm agentes histricos, sendo as circunstncias modificveis.
Se h resistncias e os indivduos no so to dcteis assim, preciso
reconhecer que o capital apresenta-se mais organizado, mais orgnico,
mobilizado, consistente (RUMMERT, 2000) e amplamente atento
necessidade de reformulaes discursivas, atualizando concepes de
mundo, homem, trabalho e educao. Desse ponto de vista, o capital, ao

361
longo de sculos, vem elaborando um discurso competente101,
entendendo-se, a autoajuda como parte desse discurso, visando a
(con)formao de um trabalhador de novo tipo.
Nesta tese procurou-se estranhar o discurso de autoajuda que
colonizou o senso comum; indagando o que e como ele diz o que diz e
sobre o que silencia.
Quando fazemos falar o silncio que sustenta a
ideologia, produzimos um outro discurso, o
contradiscurso da ideologia, pois o silncio, ao ser
falado, destri o discurso que o silenciava.
(CHAU, 1980, p. 25).

101
Um discurso competente, segundo Chau (2007, p. 19), aquele que pode ser proferido,
ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado [...] porque perdeu os laos com o lugar e o
tempo de sua origem.

362
REFERNCIAS
ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2006.
ALVES, Tarcsio Marcos. Antnio Gramsci: uma concepo marxista
inovadora sobre o fenmeno religioso. Disponvel em:
<http://www.moreira.pro.br/artigose06.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010.
ANDRADE, Flvio A. O projeto empresarial de formao do novo
trabalhador. Contexto & Educao. Iju: Uniju, ano 13, n. 49, p. 77102, jan./mar, 1998.
BASTOS, Maria H. C. Leituras da ilustrao brasileira: Samuel Smiles
(1812-1904). In: cone. v. 6, n. 1, jan./jun., 2000.
BELL, Daniel. O advento da sociedade ps-industrial: uma tentativa
de previso social. So Paulo: Abril Cultural, 1973.
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma:
desestruturao do Estado e perda de direitos. So Paulo: Cortez, 2003.
BIANCHETTI, Lucdio. Curriculum vitae em tempos de
empreendedorismo e empregabilidade. In: AUED, Bernardete. Traos
do trabalho coletivo. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005.
BISSERET, N. A ideologia das aptides naturais. In: DURAND, Jos
Carlos G. (Org.). Educao e hegemonia de classe: as funes
ideolgicas da escola. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, ve. O novo esprito do
capitalismo. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BOSCO, Angelo Marcos. Sucessos que no ocorrem por acaso:
Literaturas de Auto-Ajuda. 2001. 110 f. Dissertao (Mestrado em
Sociologia). Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, Instituto
de Filosofia e Cincias Humanas, Departamento de Sociologia,
Campinas, SP, 2001.
BOTTOMORE, Tom. Dicionrio do pensamento marxista. Rio de
Janeiro: ZAHAR, 2001.
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Lis. "Sobre as Artimanhas da
Razo Imperialista". Escritos de Educao. Petrpolis: Vozes, p. 1732, 1999.

363
______. A distino: crtica social do julgamento. So Paulo: EDUSP,
1999.
______. O campo econmico: a dimenso simblica da dominao.
Campinas: Papirus, 2000.
BRAGA, Ruy. A restaurao do capital: um estudo da crise
contempornea. So Paulo: Xam, 1996.
BRANDO, Junito de Souza. Dicionrio mtico-etimolgico da
mitologia grega. 3. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradao
do trabalho no sculo XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
BRUNELLI, Anna Flora. O sucesso est em suas mos: anlise do
discurso de auto-ajuda. 2004. 163 f. Tese (Doutorado em Lingstica)
Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP, 2004.
______. Iluso venda. Discutindo Lngua Portuguesa, v. 3, n. 13,
So Paulo, Escala Educacional, p. 34-41, 2008.
______; DALL AGLIO-HATTNHER, Marize. A qualificao do dever:
dilogo entre a anlise do discurso e abordagem funcional. Revista Gel,
So Paulo, v. 6, n. 1, p. 179-190, 2009.
BRYAN, Newton P. Educao, trabalho e tecnologia. 1992. 549 f.
Tese (Doutorado em Educao) - Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Educao, Campinas, SP, 1992.
CABRITO, Belmiro Gil. Formaes em alternncia: conceitos e
prticas. Lisboa: Educa, 1994.
CARBONI, Florence; MAESTRI, Mrio. A linguagem escravizada:
lngua, histria, poder e luta de classes. So Paulo: Expresso Popular,
2003.
CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas. 45. ed.
So Paulo: Editora Nacional, 1995.
______. Como evitar preocupaes e comear a viver. So Paulo:
Editora Nacional, 1994.
______. Como desfrutar sua vida e seu trabalho. 5. ed. So Paulo:
Editora Nacional, 2000.

364
______. Como falar em pblico e influenciar pessoas no mundo dos
negcios. 45. ed. Record: Rio de Janeiro; So Paulo, 2006.
______. Como venceram os grandes homens. So Paulo: Edimax, s.d.
CASTELO
BRANCO,
Eustaquio
Lagoeiro.
Direita...Esquerda...Volver.
Disponvel
em:
<http://www.eduquenet.net/direitaesquerda.htm>. Acesso em: 30 mai.
2009.
CECEA, Ana Esther. Hegemonia estadunidense e dominao
capitalista. In: CECEA, Ana Esther (Org.). Hegemonias e
emancipaes no sculo XXI. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
CERCATO, Nilza Carolina S. As interfaces do discurso de autoajuda: anlise em autores brasileiros na perspectiva discursiva. 2006.
165 f. Tese (Doutorado em Letras e Lingstica). Instituto de Letras,
Ps-Graduao em Letras e Lingustica, Universidade Federal da Bahia,
2006.
CHAGAS, Arnaldo. A iluso no discurso da auto-ajuda e o sintoma
social. 2. ed. Iju: Uniju, 2001.
______. O sujeito imaginrio no discurso da auto-ajuda. Iju: Uniju,
2002.
CHAU, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e
outras falas. 12. ed. So Paulo: Cortez, 2007.
______. Ideologia e educao. Educao & Sociedade. Campinas, n. 5,
2. semestre, p. 24-40, 1980.
CHAVES, Eduardo. O liberalismo na poltica, economia e sociedade e
suas implicaes para a educao. In: LOMBARDI, Claudinei;
SANFELICE, Jos L. Liberalismo e educao em debate. Campinas,
SP: Autores Associados, 2007.
COSTA, Lucia Cortes da. Os impasses do estado capitalista: uma
anlise sobre a reforma do Estado no Brasil. Ponta Grossa: UEPG; So
Paulo: Cortez, 2006.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre o seu
pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999.
CRUZ, Roberto Moraes. Formao profissional humana: os
(des)caminhos da relao homem-trabalho na modernidade. In: AUED,

365
Bernardete W. (Org.). Educao para o (des)emprego: (ou quando
estar liberto da necessidade de emprego um tormento). Petrpolis, RJ:
Vozes, 1999.
CUNHA, Marcus Vincios da. John Dewey: a utopia democrtica. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001.
DAHRENDORF, Ralph et al. Report on wealth creation and social
cohesion in a free society. London: The Comission on wealth creation
and social cohesion. July/1995.
DELORS, Jacques (Org.). Educao: Um tesouro a descobrir. Relatrio
para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para o
sculo XXI. So Paulo: Cortez; Braslia, DF: MEC:UNESCO, 1996.
DEMO, Pedro. Auto-ajuda: uma sociologia da ingenuidade como
condio humana. Petrpolis, RJ: Vozes, 2005.
DEMO, Pedro. Dialtica da Felicidade: olhar sociolgico psmoderno. Petrpolis, RJ: Vozes, 2001a. v. I.
______. Dialtica da Felicidade: insolvel busca de soluo.
Petrpolis: Vozes, 2001b. v. II.
______. Dialtica da Felicidade: felicidade possvel. Petrpolis: Vozes,
2001c. v. III.
DEWEY, John. Liberalismo, liberdade e cultura. Trad. Ansio
Teixeira. So Paulo: Nacional.Edusp, 1970.
DIAS, Edmundo Fernandes. Poltica brasileira: embate de projetos
hegemnicos. So Paulo: Instituto Jos Lus e Rosa Sundermann, 2006.
______. O liberalismo e a inveno da tradio. In: LOMBARDI,
Claudinei; SANFELICE, Jos Lus. Liberalismo e educao em
debate. Campinas, SP: Autores Associados, 2007b.
DIAS, Robson Santos; SILVA NETO, Romeu. Uma anlise das
transformaes espaciais decorrentes da passagem do regime fordista
para os regimes flexveis de acumulao. Vrtices. Rio de Janeiro, v. 6,
n. 2, maio/ago. 2004.
DAZ, Mario. Foucault, docentes e discursos pedaggicos. In: SILVA,
Tomaz T. (Org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e
outras formas de governo do eu. Petrpolis: Vozes: 1998.

366
EMERSON, Ralph Waldo. Homens representativos: sete conferncias.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
ENGELS, Friederich. Do socialismo utpico ao socialismo cientfico.
3. ed. So Paulo: Global, 1980.
ESPING-ANDERSEN, Gsta. O futuro do Welfare State na nova ordem
mundial. Revista Lua Nova, n. 35, p.73-111. 1995.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudana social. Braslia: Editora
Universidade de Braslia, 2001.
FALLEIROS, Ial. Parmetros Curriculares Nacionais para a educao
bsica e a construo de uma nova cidadania. In: NEVES, Lcia Maria
W. (Org). A nova pedagogia da hegemonia: estratgias do capital para
educar o consenso. So Paulo: Xam, 2005.
______. PRONKO, Marcela A; OLIVEIRA, Maria Teresa C de.
Fundamentos histricos da formao/atuao dos intelectuais da nova
pedagogia da hegemonia. In: NEVES, Lcia Maria W (Org.). Direita
para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova
pedagogia da hegemonia no Brasil. So Paulo: Xam, 2010.
FAURE, Edgar et al. Aprender a ser - La educacin del futuro. Madrid:
Ed. Cast. Alianza Editorial, 1972.
FERGUSON, Marilyn. A conspirao aquariana. Rio de Janeiro:
Record, 1980.
FORD, Henry. Os princpios da prosperidade. Rio de Janeiro: Brand,
1954.
FORRESTER, Viviane. O horror econmico. So Paulo: Ed. UNESP,
1997.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3. ed. So Paulo: Loyola,
1996.
______. Vigiar e punir: nascimento da priso. 22. ed. Petrpolis:
Vozes, 1992.
FREITAG, Brbara. Escola, estado e sociedade. 4. ed. So Paulo:
Moraes, 1980.
FRIGOTTO, Gaudncio. Fazendo pelas mos a cabea do trabalhador: o
trabalhador como elemento pedaggico na formao profissional.
Cadernos de Pesquisa. SP, FCC, n. 47, nov. p. 38-45, 1983.

367
______. Educao e formao humana: ajuste neoconservador e
alternativa democrtica. In: GENTILI, Pablo; SILVA, Tomaz T. (Orgs.).
Neoliberalismo e qualidade total na educao: vises crticas. 4. ed.
Petrpolis: Vozes, 1994.
______. Educao, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento:
teorias em conflito. In: FRIGOTTO, Gaudncio (Org.). Educao e
crise do trabalho: perspectivas de final de sculo. Petrpolis, RJ:
Vozes, 1998.
______; CIAVATTA, Maria. Educao bsica no Brasil na dcada de
1990: subordinao ativa e consentida lgica do mercado. Educao
& Sociedade, Campinas, SP, v, 24, n. 82, abril, 2003.
GEHRINGER, Max. No aborde seu chefe no banheiro: e outras
histrias corporativas. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
GENTILI. Pablo. Educar para o desemprego: a desintegrao da
promessa integradora. In: FRIGOTTO, Gaudncio (Org.). Educao e
crise do trabalho: perspectivas de final de sculo. Petrpolis, RJ:
Vozes, 1998.
GIANETTI, Eduardo. Felicidade. So Paulo: Companhia das Letras,
2002.
GOMES, Victor L. C. Por Que No Nos Rebelamos? Razes para
Aquiescncia em Antonio Gramsci. Revista Eletrnica Achegas, Rio
de Janeiro, v. 26, n. 1, nov/dez, 2005.
GOMEZ, Carlos M. Processo de trabalho e processo de conhecimento.
In: GOMEZ, Carlos M et. al. Trabalho e conhecimento: dilemas na
educao do trabalhador. 5. ed. So Paulo: Cortez, 2004.
GONZLEZ, Horacio. Karl Marx: o apanhador de sinais. So Paulo:
Brasiliense, 2002.
GORZ, Andr. Estratgia operria e neocapitalismo. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1968.
GRAA, Lus. Europa: uma tradio histrica de proteo social
aos trabalhadores. Disponvel em:
<http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos25.html>. Acesso em: 03 jan.
2000.

368
GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. In: Maquiavel, a
poltica e o Estado Moderno. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1980.
______. Os intelectuais e a organizao da cultura. 3. ed. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979.
______. Concepo dialtica da histria. 5. ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1984.
______. Cadernos do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1999. v. 1
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Crcere. Traduo: Carlos Nelson
Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004. v. 2
______. Cadernos do Crcere. Traduo: Carlos Nelson Coutinho. 2.
ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007. v. 4
GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. 4. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1978.
GURGEL, Claudio. A gerncia do pensamento: gesto contempornea
e conscincia neoliberal. So Paulo: Cortez, 2003.
HARVEY, David. Condio ps-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudana cultural. So Paulo: Loyola, 1992.
______. O neoliberalismo: histria e implicaes. So Paulo: Loyola,
2008.
HILL, Napoleon. A lei do triunfo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1948.
HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinrias: resistncia, rebelio e
jazz. 2. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1999.
______. Era dos extremos: o breve sculo XX 1914-1991. So Paulo:
Companhia das letras, 1995.
HUBERMAN, Leo. Histria da riqueza do homem. 21. ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1986.
HUGON, Paul. Histria das doutrinas econmicas. 14. ed. So Paulo:
Atlas, 1967.
HUNT, E. K; SHERMAN, Howard. Histria do pensamento
econmico. 10. ed. Petrpolis: Vozes, 1977.

369
INVERNIZZI, Noela. Mercado de trabalho, controle fabril e crise da
organizao operria. In: AUED, Bernardete (Org.). Traos do
trabalho coletivo. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005.
JESUS, Antnio Tavares de. O pensamento e a prtica escolar em
Gramsci. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.
JINKINGS, Nise. Trabalhadores bancrios: entre o fetichismo do
dinheiro e o culto da excelncia. In: AUED, Bernardete W (Org.).
Educao para o (des)emprego: (ou quando estar liberto da
necessidade de emprego um tormento). Petrpolis, RJ: Vozes, 1999.
JOHNSON, Spencer. Quem mexeu no meu queijo? 16. ed. Rio de
Janeiro; So Paulo: Record, 2001.
KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes e
outros escritos: texto integral. So Paulo: Martin Claret, 2006.
KAWAMURA, Lili Katsuco. Engenheiro: trabalho e ideologia. 2. ed.
So Paulo: tica, 1981.
KIERAN, Egan. A mente educada: os males da educao e a
ineficincia educacional das escolas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002.
KUENZER, Accia Z. Pedagogia da Fbrica: as relaes de produo
e a educao do trabalhador. 6. ed. So Paulo: Cortez, 2002a.
______. Excluso includente e incluso excludente: a nova dualidade
estrutural que objetiva as novas relaes entre educao e trabalho. In:
LOMBARDI, Jos C; SAVIANI, Dermeval; SANFELICE, Jos Lus
(Orgs.). Capitalismo, trabalho e educao. Campinas, SP: Autores
Associados, HISTEDBR, 2002b.
______. Ensino mdio e profissional: as polticas do Estado neoliberal.
4. ed. So Paulo: Cortez, 2007.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metforas da vida cotidiana.
Campinas: Mercado de Letras; So Paulo: Educ, 2002.
LAVAL, Christian. A Escola no uma empresa: o neo-liberalismo
em ataque ao ensino pblico. Londrina: Editara Planta, 2004.
LEAHY, Cyana. Leitura no final do sculo XIX: um caso de controle
pedaggico. In: LYONS, Martyn (Org.). A palavra imprensa: histrias
da leitura no sculo XIX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999.

370
LEHER, Roberto. Uma penetrante perspectiva terica para compreender
como os dominantes dominam (Prefcio). In: NEVES, Lcia Maria W
(Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da
nova pedagogia da hegemonia no Brasil. So Paulo: Xam, 2010.
LEITE, Marcia de Paula e SHIROMA, Eneida O. Novas tecnologias,
qualificao e capacitao profissional: Tendncias e perspectivas da
indstria metalrgica. Em Aberto, Braslia, n 65, p. 94-118,
jan./mar./1995.
LIKER, Jeffrey K. O modelo Toyota: 14 princpios de gesto do maior
fabricante do mundo. Porto Alegre: Bookman, 2005.
LIMA, Ktia Regina de S; MARTINS, Andr Silva. Pressupostos,
princpios e estratgias. In: NEVES, Lcia Maria W. (Org.). A nova
pedagogia da hegemonia: estratgias do capital para educar o
consenso. So Paulo: Xam, 2005.
LINHART, Daniele. A desmedida do capital. So Paulo: Boitempo,
2007.
LYONS, Martyn. A leitura e o audidata. In: LYONS, Martyn (Org.). A
palavra imprensa: histrias da leitura no sculo XIX. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 1999.
LOBO, Flvio. Lies de Buda e Gnsis Khan. In: Carta capital. Ed.
367. Disponvel em: <http://cartacapital.com.br/2005/11/3388>. Acesso
em: 21 jan. 2005.
MACHADO, Luclia R. Controle da qualidade total: uma nova gesto
do trabalho, uma nova pedagogia do capital. In: FIDALGO, Fernando S;
MACHADO, Luclia Regina (Orgs.). Controle da qualidade total:
uma nova pedagogia do capital. Belo Horizonte, MG: Movimento de
Cultura Marxista, 1994.
MACHADO, Luclia R. Racionalizao Produtiva e Formao no
Trabalho. Trabalho & Educao, Belo Horizonte, v. 1, p. 41-61, 1996.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Leitura e compreenso de texto falado e
escrito como ato individual de uma prtica social. In: ZILBERMAN;
SILVA, Ezequial (Orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. So
Paulo: tica, 1988.

371
MAESTRI, Mrio. Auto-ajuda: literatura da barbrie. Disponvel:
<http://www.correiocidadania.com.br/ed150/cultura. html>. Acesso em:
20 dez. 2003.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do
discurso. 3.ed. Campinas, SP: Pontes/Editora da Unicamp, 1997.
MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de
Janeiro: Zahar, 1973.
MARTELLI, Carla G. Auto-ajuda e gesto de negcios: uma parceria
de sucesso. Rio de Janeiro: Azougue, 2006.
MARTINS, Andr S; OLIVEIRA, Daniela M; NEVES, Lcia Maria W.
et al. Fundamentos tericos da formao/atuao dos intelectuais da
nova pedagogia da hegemonia. In: NEVES, Lcia Maria W (Org.).
Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova
pedagogia da hegemonia no Brasil. So Paulo: Xam, 2010.
MARX, Karl. O capital. So Paulo: Abril Cultural, 1984. v. I, tomo 2.
______. O capital: crtica da economia poltica. 11. ed. So Paulo:
Difel, 1968. Livro I, v. I.
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A ideologia alem. 6. ed. So
Paulo: Hucitec, 1987.
MARX, Karl. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Martin
Claret, 2002.
MEURER, Jos Luiz. Aspects of language in self-help counselling.
Florianpolis: Ps-Graduao em Ingls: UFSC, 1998.
MICKLETHWAIT, John; WOOLDRIDGE, Adrian. Os bruxos da
administrao: como entender a Babel dos gurus empresariais. Rio de
Janeiro: Campos, 1998.
MINARELLI, Jos Augusto. Empregabilidade: o caminho das pedras.
So Paulo: Gente, 1995.
MONTAO, Carlos. Terceiro setor e a questo social: crtica ao
padro emergente de interveno social. 4. ed. So Paulo: Cortez, 2007.
MORGADO, Maria Aparecida. Da seduo na relao pedaggica:
professor-aluno no embate com afetos inconscientes. So Paulo: Plexus,
1995.

372
NEVES, Lcia Maria W; SANTANNA, Ronaldo. Introduo: Gramsci,
o Estado educador e a nova pedagogia da hegemonia. In: NEVES, Lcia
Maria W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratgias do
capital para educar o consenso. So Paulo: Xam, 2005.
NEVES, Lcia Maria W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia:
estratgias do capital para educar o consenso. So Paulo: Xam, 2005.
NEVES, Lcia Maria W. (Org.). Direita para o social e esquerda para
o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. So
Paulo: Xam, 2010.
ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas de
discurso. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2009.
ORSO, Paulino Jos. Neoliberalismo: equvocos e conseqncias. In:
LOMBARDI, Claudinei; SANFELICE, Jos Lus. Liberalismo e
educao em debate. Campinas, SP: Autores Associados, 2007.
OWEN, Robert. O livro do novo mundo moral. In: TEIXEIRA, Alosio.
Utpicos, herticos e malditos. Rio de Janeiro: Record, 2002.
PAGS, Max et al. O poder das organizaes: a dominao das
multinacionais sobre os indivduos. So Paulo: Atlas, 1987.
PAIVA, Vanilda. Produo e qualificao para o trabalho. In:
FRANCO, Maria L; ZIBAS, Dagmar (Orgs.). Final de sculo: desafios
da educao na Amrica Latina. So Paulo: Cortez, 1990.
PALANGANA, Isilda Campaner. Individualidade: afirmao e
negao na sociedade capitalista. So Paulo: Plexus, 1998.
PETRAS, James. Imperialismo e luta de classes no mundo
contemporneo. Florianpolis: Ed. da UFSC, 2007.
POPKEWITZ, Thomas. A administrao da liberdade: a cultura
redentora das cincias educacionais. In: WARDE, Mirian (Org.). Novas
polticas educacionais: crticas e perspectivas. So Paulo: Programa de
Estudos Ps-Graduados em Educao: Histria e Filosofia da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, 1998.
RAMOS, Alexandre Luiz. Acumulao flexvel e direito do trabalho.
Revista de Cincias Humanas. v. 15. n. 22, 2. semestre, Florianpolis,
SC: Ed. UFSC, 1997.

373
RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competncias: autonomia
ou adaptao? So Paulo: Cortez, 2001.
REHEM, Cleunice Matos. Perfil e formao do professor de
educao profissional tcnica. So Paulo: Senac So Paulo, 2009.
RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Anlise de
discurso crtica. So Paulo: Contexto, 2006.
RIBAS, Marina H. Construindo a competncia: processo de formao
de professores. So Paulo: Olho dgua, 2000.
RIMKE, Heidi Marie. Governing citizens through self-help literature.
Cultural Studies: Taylor; Francis, v. 14, n. 1, p. 61-78, 2000.
RODRIGUES, Alberto Tosi. Capitalismo, Estado e sociologia: o carter
da fase contempornea do capitalismo. Sociologia da Educao. 3. ed.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 104- 109.
RODRIGUES, Marilda M. Educao ao longo da vida: a eterna
obsolescncia humana. 2008. 180 f. Tese (Doutorado em Educao) Centro de Cincias da Educao, Programa de Ps-Graduao em
Educao, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2008.
ROMO, Arquilau M. Filosofia, educao e esclarecimento: os livros
de auto-ajuda para educadores e o consumo de produtos semiculturais.
2009. 210 f. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2009.
RORTY, Richard. Para realizar a Amrica: o pensamento de esquerda
no sculo XX na Amrica. Traduao: Paulo Ghiraldelli Jr. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formao do eu privado. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Liberdades reguladas: a pedagogia
construtivista e outras formas de governo do eu. Petrpolis, RJ: Vozes,
1998.
RDIGER, Francisco. Literatura de auto-ajuda e individualismo:
contribuio ao estudo da subjetividade na cultura de massa
contempornea. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996.
RUIZ, Erasmo M. Freud no div do crcere: Gramsci analisa a
psicanlise. Campinas, SP: Autores Associados 1998. (Coleo
Polmicas do Nosso Tempo, 58).

374
RUMMERT, Sonia Maria. Educao e identidade dos trabalhadores:
as concepes do capital e do trabalho. So Paulo: Xam; Niteri:
Intertexto, 2000.
SALERNO, Mrio Srgio. Trabalho e organizao na empresa industrial
integrada e flexvel. In: FERRETTI, Celso J. (Org.). Novas tecnologias,
trabalho e educao: um debate multidisciplinar. 8. ed. Petrpolis, RJ:
Vozes, 1994.
SANTANA, Luiz Carlos. O liberalismo e a produo da escola pblica
moderna. In: LOMBARDI, Claudinei; SANFELICE, Jos Lus.
Liberalismo e educao em debate. Campinas, SP: Autores
Associados, 2007.
SARAMAGO, Jos. Todos os nomes. So Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
SCHAFF, Adam. Sociedade informtica: as conseqncias sociais da
segunda revoluo industrial, 3. ed., 1995.
SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. 2. ed.
Curitiba: Ed. da UFPR, 2001.
SCHIRATO, Maria Aparecida R. O feitio das organizaes: sistemas
imaginrios. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2004.
SEMERARO, Giovanni. Gramsci e os novos embates da filosofia da
prxis. Aparecida, SP: Idias & Letras, 2006.
SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro;
So Paulo: Record, 2006.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Educao, ideologia e contraideologia. So Paulo: EPU, 1986.
SHINYASHIKI, Roberto. Voc: a alma do negcio. So Paulo: Gente,
2001.
SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane F; GARCIA, Rosalba, M.
C. Subsdios tericos para construo de uma metodologia para anlise
de documentos e Poltica Educacional. In: SHIROMA, Eneida O.
DOSSI: Uma metodologia para anlise conceitual de documentos
sobre poltica educacional. Florianpolis, 2004 (mmeo).
SHIROMA, Eneida Oto; EVANGELISTA. Olinda. Um fantasma ronda
o professor: a mstica da competncia. In: MORAES, Maria Clia

375
(Org.). Iluminismo s avessas: produo de conhecimento e polticas
de formao docente. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
______. A educao do trabalhador num contexto de modernizao
tecnolgica. Perspectiva. ano 12, n. 21, jan/jul, p. 73-103. 1994.
______. O modelo japons e o debate sobre a qualificao e controle da
fora de trabalho. Perspectiva. Ano 14, n. 26, jul./dez, 1996.
______; CAMPOS, Roselane F. Qualificao e reestruturao
produtiva: um balano das pesquisas em educao. Educao &
Sociedade. Campinas, SP v. 18, n. 61, p. 13-35, 1997.
SHOOK, John. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
SILVA Jr., Joo do Reis. O longo perodo do esgaramento do pacto
social liberal: breves consideraes. In: LOMBARDI, Claudinei;
SANFELICE, Jos Lus. Liberalismo e educao em debate.
Campinas, SP: Autores Associados, 2007.
SILVA, urea Lcia de Oliveira. A interao escritor-leitor atravs
de escolhas lingsticas: um estudo em textos de espiritualidade, autoajuda e de Chiara Lubich. 2000. 190 f. Dissertao (Mestrado em
Lingustica Aplicada e Estudos da Linguagem) - Universidade Catlica
de So Paulo PUC. So Paulo, 2000.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Pedagogia e auto-ajuda: o que a sua autoestima tem a ver com o poder? In:
SCHMIDT, Sarai (Org.). A educao em tempos de globalizao. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A "nova" direita e as transformaes na
pedagogia da poltica e na poltica da pedagogia. In: GENTILI, Pablo;
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Orgs.). Neoliberalismo, qualidade total e
educao: vises crticas. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1995.
SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidncia no Brasil,
influncia no Servio Social. 3. ed. Florianpolis: Ed. da UFSC; So
Paulo: Cortez, 2004.
SMILES, Samuel. Ajuda-te (Self-Help). Rio de Janeiro: F. Briguiet &
CIA, 1893.
______. O carter. So Paulo: Papelivros, s.d.

376
______. O dever: coragem, pacincia e resignao. Rio de Janeiro:
Garnier, 1910.
______. O poder da vontade: carter, comportamento e perseverana.
Rio de Janeiro: Garnier, 1902.
______. Vida e trabalho. Rio de Janeiro: Garnier, 1901.
SMITH, Adam. A riqueza das Naes: investigao sobre sua Natureza
e suas Causas. So Paulo: Crculo do Livro, 1937.
SOARES, Jos Rmulo. O (neo)pragmatismo como eixo
(des)estruturante da educao contempornea. 2007. 189 f. Tese.
(Doutorado em Educao) Faculdade de Educao FACED,
Programa de Ps-Graduao em Educao. Universidade Federal do
Cear, Fortaleza, 2007.
SOUZA, Marcelo M. A transposio de teorias sobre a
institucionalizao do welfare state para o caso dos pases
subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: IPEA, 1999.
SOUZA, Jos dos Santos. Trabalho, educao e sindicalismo no
Brasil: anos 90. Campinas, SP: Autores Associados, 2002 (Coleo
educao contempornea).
TAYLOR, Frederick W. Princpios de administrao cientfica. 2. ed.
So Paulo: Atlas, 1953.
TEDESCO, Juan Carlos. Os fenmenos de segregao e excluso social
na sociedade do conhecimento. Cadernos de Pesquisa, SP, FCC, n.
117, p. 13-28, jul. 2002.
TOMAZI, Nelson. Resenha de: A escola no uma empresa: o
neoliberalismo em ataque ao ensino pblico de Christian Laval. Eccos
Revista Cientfica. ano/vol 7, n. 1. So Paulo, p. 175-177, 2005.
TOFFLER, Alvin. A terceira onda: a morte do industrialismo e o
nascimento de uma nova civilizao. 26. ed. Rio de Janeiro: Record,
2001.
TORRIGLIA, Patrcia L. Argentina: poltica de ajuste e paradoxos na
educao. In: MORAES, Maria Clia (Org.). Iluminismo s avessas:
produo de conhecimento e polticas de formao docente. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.

377
TURMINA, Adriana Cludia. Mudar para manter: a auto-ajuda como
a nova pedagogia do capital. 2005. 206 f. Dissertao (Mestrado em
Educao) - Centro de Cincias da Educao, Programa de PsGraduao em Educao, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianpolis, 2005.
UNESCO. Declarao mundial sobre educao para todos: satisfao
das necessidades bsicas de aprendizagem. Jomtien, 1990.
VARGAS, Nilton. Gnese e difuso do taylorismo no Brasil. In:
ANPOCS. Cincias Sociais Hoje, 1985. So Paulo, Cortez, p. 155-189,
1985.
VARGAS, Fernando. Educacin profissional: panorama en la America
Latina. Trabalho apresentado no Frum Iberoamericano de Educao e
Trabalho, Organizao dos Estados Iberoamericanos, Buenos Aires,
maro de 2001.
WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. 4. ed.
So Paulo: Pioneira, 1996.
WOOD Jr. Thomaz. Um dilogo pertinente. Stomatos. Canoas, v. 11, n.
20, jan./jun., p. 59-60, 2005.

Você também pode gostar