Jessé Souza - A Parte de Baixo Da Sociedade Brasileira - Revista Interesse Nacional
Jessé Souza - A Parte de Baixo Da Sociedade Brasileira - Revista Interesse Nacional
Jessé Souza - A Parte de Baixo Da Sociedade Brasileira - Revista Interesse Nacional
classe mdia, ou seja, como classe privilegiada, mediante mero aumento do potencial de
consumo e renda, reflete, precisamente, esse desconhecimento. Os preconceitos que a
envolvem, e a negao pura e simples da classe de abandonados sociais,criada por uma
sociedade injusta, tambm decorrem do mesmo contexto. So essas ideias, afinal, que
selecionam e constroem um mundo que vai guiar a ao de governo, mdia, mercado,
indivduos e classes sociais. Por conta disso vale a pena critic-las em detalhe.
Mas essa classe no tem nada das classes mdias privilegiadas e estabelecidas. Para
compreender esta questo necessrio, antes, compreender como se formam as classes
sociais e seus interesses, precisamente o que o foco universal na renda mais esconde do que
esclarece. No apenas o conceito de classe mdia que problemtico em si por sua
heterogeneidade. o prprio conceito de classe social que sempre percebido
superficialmente no debate pblico. Isso se deve ao fato de que uma adequada compreenso
do processo de formao das classes sociais permite a crtica do princpio social mais
importante para a legitimao de todo tipo de privilgio injusto das sociedades modernas,
que o princpio da meritocracia. O privilgio injusto nessas sociedades admitido e
travestido como justo apenas porque ele percebido como fruto do desempenho individual
extraordinrio.
A compreenso liberal dominante que associa classe renda s to dominante
precisamente porque corrobora e mantm essa iluso do milagre do mrito apenas
individual, ao focar no resultado econmico do pertencimento de classe, e nunca nas suas
pr-condies sociais. Quando se atenta no s para o seu resultado fortuito, como a renda,
mas se percebe tambm a formao diferencial de tipos humanos com chances muito
distintas desde o nascimento, de sucesso tanto na escola quanto no mercado de trabalho, o
milagre do mrito individual, ento, pode ser desmascarado como sendo, em grande
medida, pelo menos, socialmente construdo pela socializao familiar muito distinta em
cada classe privilegiada. A base do privilgio individual moderno injusta, posto que
transmitida pelo sangue, por assim dizer, como na Idade Mdia, ou em qualquer sociedade
pr-moderna. Afinal, no existe culpa individual por se ter nascido na famlia errada, nem,
muito menos, mrito em se ter nascido na famlia certa.
Uma correta percepo dos emergentes, portanto, exige que percebamos o tipo humano
com dramas, tragdias, sonhos e capacidades singulares especfico desta classe, e no
apenas quantificar sua renda como normalmente feito. necessrio, tambm, compar-la
tanto com as classes mdias verdadeiras, sua contraparte acima, quanto com os
desclassificados sociais que chamamos provocativamente, em outro estudo recente, de
ral para denunciar seu abandono como sua contraparte para baixo da escala social. Os
emergentes, que preferimos chamar no nosso estudo de batalhadores ou nova classe
trabalhadora, no possuem nenhum dos privilgios de nascimento da classe mdia
verdadeira. Muito especialmente, o tempo livre, que permite a apropriao de
conhecimento til e altamente valorizado chamado por Pierre Bourdieu de capital
cultural que caracteriza a classe mdia verdadeira. Se a apropriao privilegiada de
capital econmico marca as classes altas, a apropriao privilegiada de capital cultural,
seja tcnico ou literrio, o que marca tipicamente as classes mdias modernas.
Os batalhadores, na sua esmagadora maioria, tiveram de trabalhar desde muito cedo,
estudaram em escolas pblicas, e estudam, quando estudam, em universidades privadas
noite. Sem acesso aos conhecimentos altamente valorizados que permitem a reproduo do
mercado e do Estado que garantem bons salrios e muito reconhecimento social e
prestgio s classes mdias os batalhadores compensam esta falta com extraordinrio
esforo pessoal, trabalhando sob condies penosas, sem garantias sociais, em atividades
muitas vezes informais, sem pagamento de impostos. O que explica essa persistncia e
A instituio escolar nesse contexto ineficiente, porque essas crianas j chegam como
perdedoras nas escolas, enquanto as crianas de classe mdia j chegam vencedoras pelo
exemplo e estmulo paterno e materno afetivamente construdo. Mas no apenas isso. A
instituio escolar pblica precria no Brasil e crescentemente tambm nos pases ditos
avanados passa a ser marcada pela m-f institucional, no sentido que Bourdieu e
Foucault utilizam esse termo, de tal modo que prometem a redeno dessa classe pela
educao enquanto, na verdade, possibilitam transformar, com o carimbo do Estado e
anuncia de toda a sociedade, o abandono social em culpa individual de alunos
supostamente burros e preguiosos. Em nossa pesquisa abundam declaraes tocantes de
jovens que se imaginam incapazes de estudo, sem inteligncia e incapazes de concentrao
por culpa prpria. Constri-se a partir disso um contexto onde tanto na dimenso
intersubjetiva da interao social face a face dos sujeitos, quanto tambm na dimenso das
prticas institucionais de todo tipo, sejam elas policiais, mdicas ou escolares, o desvalor
objetivo dos indivduos dessa classe despossuda existencial, moral e economicamente
reafirmado cotidianamente.
Pobres honestos
O mesmo contexto de reproduo da misria material e simblica o que explica, mais uma
vez, a impotncia poltica dessa classe de desclassificados. Notamos em nossa pesquisa que
existe um verdadeiro abismo entre os chamados pobres honestos aqueles que aceitam
vender sua energia muscular a preo pfio e aqueles percebidos como pobres
delinquentes aqueles que se revoltam reativamente de modo pr-poltico contra a
estrutura que os condenam. Em nenhum estrato social essa diferena to importante e
decisiva quanto na ral pesquisada. O drama cotidiano da imensa maioria das famlias da
ral muito especialmente das mais estruturadas dentre elas precisamente o tema da
honestidade percebida como a fuga do destino de bandidos para os meninos ou do
destino de bbados para os adultos masculinos e do destino de prostituta para as
meninas. Essas so as figuras paradigmticas da delinquncia nessa classe que est, por sua
fragilidade e pobreza, especialmente exposta aos riscos e sedues da vida desviante.
Constri-se com isso uma diviso insidiosa e virulenta dentro dessa classe, tornando
especialmente difcil qualquer forma de solidariedade interna dessa camada negativamente
privilegiada. Como praticamente toda famlia ou vizinhana tinha exemplos de vidas que
optaram pela delinquncia no sentido exposto acima, abundaram os relatos de mes que
exploravam economicamente a filha prostituta ao passo que a acusavam pela escolha de vida,
ou ainda de irmos que no se falavam por terem optado por caminhos diferentes nas nicas
duas opes possveis para membros dessa classe. A hierarquia valorativa dominante, que
pode ser exposta nos termos que viemos utilizando na oposio digno/indigno no s
transfere a culpa da indignidade de todos ao prprio indivduo, mas tambm quebra e
separa a classe como um todo e, dentro dela, cada famlia, cada vizinhana e, no limite, cada
indivduo em dois inimigos irreconciliveis.
O moralismo seletivo da tese do patrimonialismo no v qualquer problema tico na
reproduo de abandonados sociais sem qualquer culpa na prpria misria. A percepo
fragmentria dessa classe na mdia e no debate pblico distorce e impede a percepo de sua
origem e destino provvel comuns. Seja no tema segurana pblica, no gargalo da mo de
obra qualificada, no debate sobre a escola pblica e mais dezenas de temas semelhantes, o
que est em jogo unicamente a origem e o destino desta classe muito mal-compreendida
entre ns.
Esta no , entretanto, uma classe condenada para sempre. Parte dela pde ascender
socialmente nos ltimos anos, ainda que certamente sua redeno efetiva exija muito mais
que estmulos econmicos passageiros. Faz-se necessrio uma reforma das ideias e dos
espritos no Brasil. tempo de reconstruir consensos naturalizados no nosso pas que
permitam a reproduo de uma maioria superexplorada e humilhada, cujo sofrimento e dor
sequer podem ser percebidos pela violncia simblica de interpretaes que de crticas e de
ticas nada possuem. O debate de ideias a primeira trincheira do debate pblico
verdadeiramente comprometido com a mudana estrutural e com a reforma social.
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