Jessé Souza - A Parte de Baixo Da Sociedade Brasileira - Revista Interesse Nacional

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ARTIGO

por Jess Souza

A Parte de Baixo da Sociedade Brasileira


A tese que pretendo expor e defender neste artigo a de que as classes populares no Brasil
a maioria da populao brasileira so literalmente invisveis e at hoje muito malcompreendidas entre ns. Esse resultado foi apenas confirmado pela realizao de dois
estudos empricos e tericos que totalizaram seis anos de trabalho ininterrupto e resultaram
em dois livros: A Ral Brasileira: Quem e Como Vive (UFMG, 2009) e Os Batalhadores
Brasileiros: Nova Classe Mdia ou Nova Classe Trabalhadora? (UFMG, 2010). Nesses dois
trabalhos foi examinado, tanto na dimenso das prticas sociais como das prticas
institucionais, o efeito do abandono secular da maioria esmagadora da populao brasileira.
Ao mesmo tempo, especialmente no estudo dedicado aos batalhadores, foi possvel tambm
compreender as razes da extraordinria tenacidade e capacidade de luta do assim chamado
povo brasileiro.
A invisibilidade das classes populares no Brasil o produto principal de uma interpretao
do Brasil que logrou institucionalizar-se e incorporar-se em todo brasileiro como uma
segunda natureza, sobre a qual no mais se reflete e que no mais se questiona. Essa teoria
a tese do patrimonialismo estatal. H que se deixar claro, antes de qualquer coisa, que as
ideias no so algo abstrato e abstruso de pessoas que vivem nas nuvens sem qualquer
relao com o mundo real. Na verdade, no existe nada no mundo real que no tenha sido
criado por ideias de intelectuais e cientistas. E no me refiro apenas aos carros e
computadores de todo dia. Tambm todas as escolhas institucionalizadas ou no que
definem para onde uma sociedade como um todo pode e deve ir so criaes de intelectuais.
Toda a ao de todos os partidos e tudo que se diz na mdia foram ou so tambm criao de
intelectuais. Os intelectuais no criam, obviamente, o mundo a seu bel-prazer, j que as
ideias tm de ser articuladas com interesses econmicos e polticos poderosos para se
institucionalizarem e se tornarem realidade material.

Patrimonialismo e racismo de classe: A interpretao pseudocrtica


dominante no Brasil moderno
Qual, ento, a gnese do encontro entre ideias e interesses que construram o Brasil
moderno? Foi na dcada de 30 do sculo passado que se gestou a revoluo simblica do
Brasil moderno. Dois so os protagonistas dessa revoluo: Gilberto Freyre e Srgio
Buarque. Freyre transforma toda a percepo negativa e naturalizada do Brasil que vigia
desde a independncia, fomentada pelo prestgio internacional do racismo cientfico que
condenava a sociedade brasileira a no ter nenhum futuro pelo fato de seu povo ser mulato e
mestio. Freyre inverte o mestio como signo de todo o mal, em signo de todo o bem,

transformando-o, inclusive, em emblema mximo da brasilidade a partir da. ele que


incorpora a plasticidade do portugus que implica percepo e incorporao da alteridade,
do outro, e de outras culturas como trao fundamental da luso-brasilidade. O principal
adversrio aqui o racismo e a intolerncia americanos, de modo que seja possvel criar a
fantasia compensatria que possa dizer: eles so mais ricos e democrticos, mas ns somos
mais generosos e humanos.
Se a identidade nacional brasileira moderna construda a partir e contra a ideia do racismo
na sociedade americana, a suposta teoria crtica brasileira, elaborada por Srgio Buarque de
Holanda no seu livro Razes do Brasil, construda por uma apropriao/inverso da tese de
Freyre por Srgio. Buarque no critica nenhum dos pressupostos da anlise freyriana, muito
especialmente seu culturalismo, ou seja, a ideia de que o brasileiro um tipo singular,
particularidade esta pensada de modo tendencialmente absoluto. Essa uma ideia
importante para o tipo de unidade coletiva que um mito nacional pode produzir, mas ela
simplista e superficial do ponto de vista cientfico. Cabe cincia criticar os mitos e no
reproduzi-los, maquiando-os com um charminho de cientificidade que , ao fim e ao cabo,
o que esta tradio iniciada por Buarque faz.
No se compreende a gnese da cincia social dominante no Brasil se no compreendemos
seu vnculo ntimo e carnal com o mito da brasilidade criado por Freyre. Como todos os
brasileiros desse perodo, Buarque foi influenciado decisivamente por Freyre . Antes de tudo,
a ideia de plasticidade como herana ibrica. Essa ideia, uma apropriao direta de Freyre,
vai ser fundamental para seu conceito de homem cordial e, consequentemente, para sua
tese do personalismo e do patrimonialismo pensado como a consolidao institucional
do personalismo como as marcas fundamentais da cultura brasileira.

Idealizao ingnua dos EUA


Tudo o que era positivo em Freyre, a cordialidade, a emotividade e abertura ao outro,
transformado em negativo por Buarque e causa do atraso relativo brasileiro tanto na
economia como na vida poltica. Comea a a idealizao dos EUA como terra da eficincia,
da racionalidade e, acima de tudo, a terra das pessoas incorruptveis e dignas de confiana,
ao contrrio dos brasileiros cordiais e sempre dispostos a sacrificar o interesse pblico e a
racionalidade fria dos negcios em nome do interesse prprio e de seus amigos. A
idealizao ingnua e infantil dos EUA como terra da confiana interpessoal e das pessoas
incorruptveis ser o contraponto que permitir se travestir a teoria mais conservadora dos
interesses liberais em uma teoria supostamente crtica.
A partir de Buarque, autores dos mais influentes de nossa inteligncia pseudocrtica, como
Raymundo Faoro, Simon Schwartzman, Fernando Henrique Cardoso (inclusive em recente
artigo nesta revista), Roberto DaMatta e vrios outros, iro simplificar a tese de Buarque e
equalizar as virtudes americanas s virtudes do mercado enquanto tal e os vcios brasileiros
suposta influncia do Estado na vida social brasileira. Desde Buarque, o ponto fundamental
em todos esses autores extraordinariamente influentes a oposio entre um Estado
percebido como causa de todos os males, posto que ineficiente, politiqueiro e corrupto, e um
mercado visto crescentemente como o reino de todas as virtudes.

Essa oposio frgil e descabida, j que Estado e mercado formam um sistema


interdependente, alm do prprio mercado brasileiro, em todas as instncias, ter sido criado
e se desenvolvido sombra do Estado. Alm disso, a ltima crise internacional deixa clara
como a luz do sol a falcia que o fundamento e o pilar principal da teoria pseudocrtica
dominante no Brasil moderno: precisamente o mercado internacional que frauda e
corrompe, muito especialmente so o mercado e os bancos americanos que maquiam
balanos, falseiam relatrios e avaliaes, institucionalizam a fraude como fundamento dos
negcios e do lucro e do um baque bilionrio no planeta inteiro. Esses so os incorruptveis
e dignos de confiana dos nossos pensadores mais importantes e influentes que vendem at
hoje a autoimagem dos EUA sobre si mesmos como verdade cientfica, emprestando o
prestgio cientfico a todo tipo de violncia simblica que legitima privilgios de fato.
Assim, como no existe dominao eficiente se o oprimido no incorpora como sua a viso
do mundo do opressor, toda a nossa sociologia e cincia poltica dominante entre ns utiliza
at hoje as mesmas categorias que a sociologia da modernizao americana utilizou e ainda
utiliza para justificar sua dominao ftica poltica e econmica sobre o resto do mundo.
este repertrio sociolgico superficial e capenga que usado para compreender o Brasil
como falta e como erro moral pela suposta influncia deletria do Estado. A principal
categoria moralizante e refere-se a confiana interpessoal como principal caracterstica
cultural dos americanos e do mercado competitivo moderno. A mesma confiana que os
grandes bancos americanos tm demonstrado possuir sobejamente na arena internacional,
como j comentamos acima. Era isso que Buarque via como faltando ao homem cordial
brasileiro, e esta mesma categoria que est pressuposta no tema do patrimonialismo
seletivo, s do Estado, em Faoro, FHC (como fica claro no seu ltimo artigo nesta revista) e
Roberto DaMatta. Algum j imaginou o prejuzo em relaes sociais e econmicas desiguais
nacional e internacionalmente legitimadas com base nessa farsa?
Mais interessante ainda para nossos propsitos a ligao orgnica entre a tese do
patrimonialismo estatal e o racismo de classe contra as classes populares entre ns. Como
essa relao seletiva com a tica s tem olhos para a corrupo no Estado, as classes
populares so condenadas como antiticas por seu apoio ao Estado atuante, permitindo
juntar os temas do patrimonialismo e do racismo de classe das classes privilegiadas como
fundamento do moralismo seletivo travestido de cincia da ordem liberal no Brasil. So as
mesmas categorias que comprovam a superioridade moral americana e do mercado sem
freios que so usadas at hoje tambm para mostrar como as classes superiores no Brasil so
ticas e as classes populares, incapazes de solidariedade efetiva e de comportamento
moral . Nossa cincia social dominante masoquista e servil em relao cincia dos mais
fortes internacionalmente, para justificar seus prprios privilgios, e sdica e opressiva em
relao s classes populares e dominadas de dentro do prprio pas.
Todo esse arsenal interpretativo est hoje em dia a servio do (des)conhecimento e do
preconceito contra as classes populares no Brasil, tanto em relao ao que chamo
provocativamente de ral quanto, tambm, em relao aos batalhadores da chamada
classe C. precisamente o obscurecimento sistemtico de todo conflito de classes entre
ns, em nome da falsa oposio j naturalizada entre mercado e Estado, que abre espao
para um economicismo liberal que desconhece a produo sociocultural de indivduos
diferenciais por heranas de classe distintas. A percepo equivocada da classe C como

classe mdia, ou seja, como classe privilegiada, mediante mero aumento do potencial de
consumo e renda, reflete, precisamente, esse desconhecimento. Os preconceitos que a
envolvem, e a negao pura e simples da classe de abandonados sociais,criada por uma
sociedade injusta, tambm decorrem do mesmo contexto. So essas ideias, afinal, que
selecionam e constroem um mundo que vai guiar a ao de governo, mdia, mercado,
indivduos e classes sociais. Por conta disso vale a pena critic-las em detalhe.

A assim chamada Nova Classe Mdia


Os emergentes so a maior novidade econmica, social e poltica do Brasil na ltima dcada.
Como uma classe crescente desde que mantidas as condies favorveis e que foi
decisiva para o crescimento econmico brasileiro baseado no consumo interno da ltima
dcada, sua importncia no s econmica, mas tambm poltica, nodal. Ela a grande
novidade social do Brasil bem-sucedido dos ltimos anos e ainda muito pouco conhecida.
Seu apelo resultado, portanto, de fatores objetivos.
Mas essa classe muito pouco conhecida e existe muito preconceito em relao a ela como,
em geral, aos setores populares no Brasil. Na pesquisa que realizamos sobre a classe dos
emergentes, procuramos nos concentrar nos aspectos no econmicos na contracorrente
de toda a percepo triunfalista que cerca a (in)compreenso desta classe no debate pblico
brasileiro. O nome que se d s coisas muito importante porque traz em si toda uma
compreenso singular que sempre enviesada e mais ou menos distorcida da realidade.
Quando se chamam os emergentes de nova classe mdia est se querendo dizer que o
Brasil est se tornando um pas de primeiro mundo, onde as classes mdias e no os pobres
formam o grosso da populao. Isso, infelizmente, ainda est muito longe de ser verdade.
Os batalhadores, nome que uma homenagem a essa classe que se reinventou sozinha sob
as piores condies , se assemelham muito mais a uma classe trabalhadora precarizada,
tpica do contexto social do ps-fordismo, sem direitos e garantias sociais, que trabalha de 10
a 14 horas ao dia, estuda noite e faz bicos nos fins de semana. Seu potencial de consumo
pressupe extraordinrio esforo pessoal, sacrifcio familiar de todo tipo, alm de todo tipo
de sofrimentos e dores silenciadas pelo discurso triunfalista dominante. Essa classe no s
brasileira. Ela expressiva em todos os pases ditos emergentes, com grandes massas
dispostas a todo tipo de trabalho sob as piores condies para execut-lo.
O outro lado, o lado benigno desta nova classe social, foi sua ascenso econmica e social. O
crescimento econmico brasileiro dos ltimos anos beneficiou tanto os setores superiores e
privilegiados quanto os setores populares. Mas o crescimento mais dinmico veio da parte
de baixo da sociedade brasileira, o que mostra o efeito positivo para todos inclusive para
os setores privilegiados que ganham, e muito, com o novo quadro econmico de polticas
simples, como o Bolsa Famlia, o microcrdito e a ao da religiosidade tardia como fonte de
autoconfiana e estmulo, compensando o abandono familiar e social tpico de vrias fraes
das classes populares no Brasil. Foram precisamente as classes desprezadas e abandonadas
secularmente no Brasil que mostraram incrvel poder de reao e de capacidade de trabalho.

Mas essa classe no tem nada das classes mdias privilegiadas e estabelecidas. Para
compreender esta questo necessrio, antes, compreender como se formam as classes
sociais e seus interesses, precisamente o que o foco universal na renda mais esconde do que
esclarece. No apenas o conceito de classe mdia que problemtico em si por sua
heterogeneidade. o prprio conceito de classe social que sempre percebido
superficialmente no debate pblico. Isso se deve ao fato de que uma adequada compreenso
do processo de formao das classes sociais permite a crtica do princpio social mais
importante para a legitimao de todo tipo de privilgio injusto das sociedades modernas,
que o princpio da meritocracia. O privilgio injusto nessas sociedades admitido e
travestido como justo apenas porque ele percebido como fruto do desempenho individual
extraordinrio.
A compreenso liberal dominante que associa classe renda s to dominante
precisamente porque corrobora e mantm essa iluso do milagre do mrito apenas
individual, ao focar no resultado econmico do pertencimento de classe, e nunca nas suas
pr-condies sociais. Quando se atenta no s para o seu resultado fortuito, como a renda,
mas se percebe tambm a formao diferencial de tipos humanos com chances muito
distintas desde o nascimento, de sucesso tanto na escola quanto no mercado de trabalho, o
milagre do mrito individual, ento, pode ser desmascarado como sendo, em grande
medida, pelo menos, socialmente construdo pela socializao familiar muito distinta em
cada classe privilegiada. A base do privilgio individual moderno injusta, posto que
transmitida pelo sangue, por assim dizer, como na Idade Mdia, ou em qualquer sociedade
pr-moderna. Afinal, no existe culpa individual por se ter nascido na famlia errada, nem,
muito menos, mrito em se ter nascido na famlia certa.
Uma correta percepo dos emergentes, portanto, exige que percebamos o tipo humano
com dramas, tragdias, sonhos e capacidades singulares especfico desta classe, e no
apenas quantificar sua renda como normalmente feito. necessrio, tambm, compar-la
tanto com as classes mdias verdadeiras, sua contraparte acima, quanto com os
desclassificados sociais que chamamos provocativamente, em outro estudo recente, de
ral para denunciar seu abandono como sua contraparte para baixo da escala social. Os
emergentes, que preferimos chamar no nosso estudo de batalhadores ou nova classe
trabalhadora, no possuem nenhum dos privilgios de nascimento da classe mdia
verdadeira. Muito especialmente, o tempo livre, que permite a apropriao de
conhecimento til e altamente valorizado chamado por Pierre Bourdieu de capital
cultural que caracteriza a classe mdia verdadeira. Se a apropriao privilegiada de
capital econmico marca as classes altas, a apropriao privilegiada de capital cultural,
seja tcnico ou literrio, o que marca tipicamente as classes mdias modernas.
Os batalhadores, na sua esmagadora maioria, tiveram de trabalhar desde muito cedo,
estudaram em escolas pblicas, e estudam, quando estudam, em universidades privadas
noite. Sem acesso aos conhecimentos altamente valorizados que permitem a reproduo do
mercado e do Estado que garantem bons salrios e muito reconhecimento social e
prestgio s classes mdias os batalhadores compensam esta falta com extraordinrio
esforo pessoal, trabalhando sob condies penosas, sem garantias sociais, em atividades
muitas vezes informais, sem pagamento de impostos. O que explica essa persistncia e

capacidade de resistncia a construo de uma slida tica do trabalho que pressupe a


incorporao de disposies como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, onde
o futuro e a busca por uma vida melhor compensam qualquer sacrifcio no presente.
A ral nome provocativo em uma sociedade que nega e maquia todos os seus conflitos
principais que discutiremos abaixo, perfaz ainda quase 1/3 da populao brasileira, to
abandonada e desprezada socialmente que tem de cuidar do po de cada dia tornando-a
prisioneira do aqui e agora que a negao de qualquer perspectiva ou clculo de futuro. O
que retirado da ral por uma sociedade injusta que a explora como mo de obra barata
em atividades corporais para que a classe mdia possa se dedicar a estudos e empregos
rentveis e prestigiosos qualquer perspectiva de futuro. Existem classes literalmente
com futuro e outras sem futuro, o qual precisa ser cuidadosamente calculado e planejado
para acontecer. esse tipo de incorporao de certas capacidades e virtudes que
realmente separa as classes uma das outras, e no a renda, que mero resultado da presena
ou da ausncia desses pressupostos.
Assim, os batalhadores ainda que vrios sejam tambm pequenos empresrios possuem
um estilo de vida que se assemelha muito mais ao das classes trabalhadoras que so
sempre classes includas na esfera econmica e poltica do que ao das classes mdias que
pressupem a incorporao sutil e invisvel para o senso comum de uma srie de disposies
capacidade de pensamento abstrato tcnico ou literrio, conhecimento de lnguas,
socializao que ajuda na produo de relaes pessoais vantajosas, etc. que, juntas,
produzem a vida privilegiada. Diferentemente da ral, por outro lado, esses novos
trabalhadores a cu aberto possuem slida tica do trabalho e perspectiva de futuro,
produto tanto de famlias melhor estruturadas, ainda que pobres na sua maioria, quanto de
socializao religiosa tardia, religies essas to pouco compreendidas pelas classes mdias
estabelecidas.

A ral de desclassificados e abandonados sociais


A sociedade brasileira construiu e reproduz at hoje, tambm, uma classe de abandonados e
desclassificados sem qualquer chance de participao na competio social em qualquer
esfera da vida. Existe uma luta de classes intestina e inegvel, que permite que toda uma
classe que no consegue, pelo abandono social e poltico, incorporar conhecimento til para
participar no mercado econmico competitivo, possa ser explorada como mo de obra
barata reduzida a dispndio muscular pela ausncia da incorporao de conhecimento
valorizado pelo mercado competitivo nas funes de empregada, faxineira, bab, zelador,
prostituta, motoboy, porteiro, e todo tipo de trabalho, perigoso, sujo ou pesado, de modo a
poupar tempo das classes mdia e alta para estudo e trabalho de funes prestigiosas e
rentveis. Mas essa uma contradio da qual nunca se fala. A falsa contradio
pseudocrtica que ope mercado e Estado o limite do debate pblico brasileiro. Quando
esta classe chega ao noticirio quase sempre pela oposio bandido-polcia, despolitizando
os conflitos sociais e criando estigmas contra os mais fracos.
Em nossa pesquisa emprica e terica sobre esta classe, realizada entre 2005 e 2008, levada a
cabo em diversas regies brasileiras, desenvolvemos um mtodo emprico original baseado
nas pesquisas de Pierre Bourdieu na Arglia e de Bernard Lahire na Frana. O

aproveitamento consequente de uma metodologia de pesquisa emprica autorreflexiva e


crtica nos permitiu, por meio do aproveitamento das lacunas e das contradies do discurso
dos indivduos dessa classe, reconstruir apesar do autoengano compreensvel de quem
no tem defesa contra a prpria humilhao social de que se vtima o sentido da vida em
condies extremas de excluso social em que vive cerca de 1/3 da populao brasileira.
Esse sentido parece ser construdo, em primeiro lugar, na reproduo da famlia
desestruturada, fruto da cegueira do debate cientfico e pblico dominante e do
consequente abandono poltico dessa classe. A naturalizao do abuso sexual dos mais velhos
e mais fortes em relao aos mais novos e mais fracos especialmente das meninas, mas,
tambm, dos meninos chocou todos os pesquisadores envolvidos na pesquisa. Esse tema
um tabu quase nunca veiculado pela mdia, o que apenas favorece a sua perpetuao no
tempo. De um modo mais geral, uma atitude abertamente instrumental de todos em relao
a todos no interior das famlias dessa classe no incomum . As feridas na autoestima e na
autoconfiana dos indivduos dessa classe, resultantes dessa prtica que se transmite de
gerao a gerao, cuidadosamente ocultada por um acordo silencioso entre vtimas e
algozes, no so difceis de serem imaginadas. Tambm os papis sociais de pais e filhos com
as obrigaes recprocas da famlia burguesa de classe mdia so apenas precariamente
reproduzidos. Nesse contexto, adquire todo o sentido a retomada por Axel Honneth da
importncia das relaes afetivas e emotivas familiares como pressuposto para o exerccio de
toda funo pblica, seja como produtor til seja como cidado . O abandono social e poltico
das famlias marcadas pelo cotidiano da excluso parece ser o fator decisivo para a
reproduo indefinida dessa classe social no tempo.
Outro fator fundamental ligado ao problema discutido acima o no aprendizado de
habilidades e capacidades fundamentais para a apropriao de capital cultural de qualquer
tipo. No relato de vrios de nossos informantes, no faltou a presena da instituio escolar.
No entanto, era muito comum a observao de que, quando crianas, eles ficavam fitando o
quadro negro durante horas sem nada aprender. Com a repetio desse tipo de relato, que
nos desconcertou no comeo, aprendemos a perceber que o problema em jogo era a
ausncia da incorporao afetiva da capacidade de se concentrar, algo que os indivduos de
classe mdia tendem a perceber como uma habilidade natural, como se simplesmente
nascssemos com ela, como acontece com a capacidade de enxergar ou de ouvir. Como
faltavam exemplos afetivos em casa, tornados possveis pelo processo de identificao
paterna e materna, essa capacidade ou disposio a se concentrar no era desenvolvida.
Mesmo nas famlias mais bem estruturadas dessa classe, onde os pais permaneciam juntos e
se esforavam para ter uma relao afetiva e de cuidado com os filhos, as marcas do
abandono social se mostraram presentes.
Como nunca se v o pai lendo um jornal, mas apenas fazendo servios braais e brincando
com os filhos com os instrumentos desse tipo de trabalho, que tipo de sucesso escolar podese esperar dessas crianas? Ou quando a me os instava para estudar, dizendo que apenas a
escola poderia mudar a vida para melhor; que efeito possui esse tipo de exortao se a
prpria me, que havia passado algum tempo na escola, no havia conseguido mudar a
prpria vida? Percebemos claramente com nossos informantes que no so os discursos,
proferidos da boca para fora, mas apenas as prticas sociais efetivas, moldadas por
exemplos efetivos, os verdadeiros instrumentos de mudana individual e social.

A instituio escolar nesse contexto ineficiente, porque essas crianas j chegam como
perdedoras nas escolas, enquanto as crianas de classe mdia j chegam vencedoras pelo
exemplo e estmulo paterno e materno afetivamente construdo. Mas no apenas isso. A
instituio escolar pblica precria no Brasil e crescentemente tambm nos pases ditos
avanados passa a ser marcada pela m-f institucional, no sentido que Bourdieu e
Foucault utilizam esse termo, de tal modo que prometem a redeno dessa classe pela
educao enquanto, na verdade, possibilitam transformar, com o carimbo do Estado e
anuncia de toda a sociedade, o abandono social em culpa individual de alunos
supostamente burros e preguiosos. Em nossa pesquisa abundam declaraes tocantes de
jovens que se imaginam incapazes de estudo, sem inteligncia e incapazes de concentrao
por culpa prpria. Constri-se a partir disso um contexto onde tanto na dimenso
intersubjetiva da interao social face a face dos sujeitos, quanto tambm na dimenso das
prticas institucionais de todo tipo, sejam elas policiais, mdicas ou escolares, o desvalor
objetivo dos indivduos dessa classe despossuda existencial, moral e economicamente
reafirmado cotidianamente.

Pobres honestos
O mesmo contexto de reproduo da misria material e simblica o que explica, mais uma
vez, a impotncia poltica dessa classe de desclassificados. Notamos em nossa pesquisa que
existe um verdadeiro abismo entre os chamados pobres honestos aqueles que aceitam
vender sua energia muscular a preo pfio e aqueles percebidos como pobres
delinquentes aqueles que se revoltam reativamente de modo pr-poltico contra a
estrutura que os condenam. Em nenhum estrato social essa diferena to importante e
decisiva quanto na ral pesquisada. O drama cotidiano da imensa maioria das famlias da
ral muito especialmente das mais estruturadas dentre elas precisamente o tema da
honestidade percebida como a fuga do destino de bandidos para os meninos ou do
destino de bbados para os adultos masculinos e do destino de prostituta para as
meninas. Essas so as figuras paradigmticas da delinquncia nessa classe que est, por sua
fragilidade e pobreza, especialmente exposta aos riscos e sedues da vida desviante.
Constri-se com isso uma diviso insidiosa e virulenta dentro dessa classe, tornando
especialmente difcil qualquer forma de solidariedade interna dessa camada negativamente
privilegiada. Como praticamente toda famlia ou vizinhana tinha exemplos de vidas que
optaram pela delinquncia no sentido exposto acima, abundaram os relatos de mes que
exploravam economicamente a filha prostituta ao passo que a acusavam pela escolha de vida,
ou ainda de irmos que no se falavam por terem optado por caminhos diferentes nas nicas
duas opes possveis para membros dessa classe. A hierarquia valorativa dominante, que
pode ser exposta nos termos que viemos utilizando na oposio digno/indigno no s
transfere a culpa da indignidade de todos ao prprio indivduo, mas tambm quebra e
separa a classe como um todo e, dentro dela, cada famlia, cada vizinhana e, no limite, cada
indivduo em dois inimigos irreconciliveis.
O moralismo seletivo da tese do patrimonialismo no v qualquer problema tico na
reproduo de abandonados sociais sem qualquer culpa na prpria misria. A percepo
fragmentria dessa classe na mdia e no debate pblico distorce e impede a percepo de sua
origem e destino provvel comuns. Seja no tema segurana pblica, no gargalo da mo de

obra qualificada, no debate sobre a escola pblica e mais dezenas de temas semelhantes, o
que est em jogo unicamente a origem e o destino desta classe muito mal-compreendida
entre ns.
Esta no , entretanto, uma classe condenada para sempre. Parte dela pde ascender
socialmente nos ltimos anos, ainda que certamente sua redeno efetiva exija muito mais
que estmulos econmicos passageiros. Faz-se necessrio uma reforma das ideias e dos
espritos no Brasil. tempo de reconstruir consensos naturalizados no nosso pas que
permitam a reproduo de uma maioria superexplorada e humilhada, cujo sofrimento e dor
sequer podem ser percebidos pela violncia simblica de interpretaes que de crticas e de
ticas nada possuem. O debate de ideias a primeira trincheira do debate pblico
verdadeiramente comprometido com a mudana estrutural e com a reforma social.

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