Identarismo A Nova Cara Do Liberalismo FINAL LAVRAPALAVRA

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Identitarismo:

a nova cara do liberalismo

Arthur Moura1
Ricardo Nascimento2

“A política no liberalismo se caracteriza por nos tornarmos


sujeitos que participam na política através da sujeição ao
poder.”
Asad Haider

“Temos dois males a combater: o capitalismo e o racismo.”


Huey Newton

“O racismo vem do capitalismo.”


Fred Hampton

“Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação


da história que distingue decisivamente o marxismo da
ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”
György Luckács

1
Cineasta (202 filmes), formado em História pela UFF, mestre em Educação pela FFP-UERJ.
2
Tecnólogo em Marketing e Bacharel em Administração pela UNESA, graduando em Ciências Sociais pela UFF e
membro fundador do coletivo Bacamarte.
Introdução
Este texto é resultado do grupo de estudos Concreto Pensado, do coletivo Bacamarte, do
qual fazemos parte. Nossos estudos têm perpassado temas como a indústria cultural, correlações
ente marxismo e arte, análises de conjuntura, discussões sobre a questão da mulher na pandemia e
diversos outros temas, todos sob a orientação do materialismo histórico-dialético como método.
Somos um coletivo de artistas independentes que vêm buscando aliar a teoria à prática
como forma privilegiada de compreender e superar determinados limites impostos pela sociedade
hodierna. As lives que fizemos estão disponíveis no canal da Bacamarte Produções no YouTube e
agora pensamos em registrar em formato de texto o debate sobre a questão do identitarismo,
transmitido em videoconferência no dia 25 de outubro de 2020 (NASCIMENTO; CHALHOUB,
2020). Há também uma análise, baseada neste artigo, disponível no canal da 202 filmes
(MOURA, 2020).
O livro escolhido como referência foi “Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de
hoje”, de Asad Haider, prefaciado pelo professor Silvio Almeida. Como leitura complementar há
diversos outros autores que também nos serviram como base e nos ajudaram a melhor descortinar
esse tema tão complexo. Ao longo do texto buscaremos destacar alguns pontos importantes
colocados por esses outros referenciais também.

Identitarismo versus Marxismo


Recentemente temos visto principalmente na internet – assim como também nas relações
sociais concretas – diversas polêmicas que envolvem os chamados setores identitários com o
restante da sociedade de espectros políticos mais amplos. Isso naturalmente tem gerado enormes
desgastes sociais desde as relações interpessoais às organizações e demais setores da sociedade,
como o próprio Estado burguês. Essas polêmicas são carregadas de termos como lugar de fala,
apropriação cultural, cancelamento, lacração, pós-moderno, opressão, privilégio, gênero, raça
etc. Tudo isso faz parte das lutas sociais que decorrem de uma contradição da ordem estrutural,
ainda que raras vezes esteja presente nessas polêmicas conceitos como luta de classes,
contradição, História e capitalismo. Há também termos como inclusão, representatividade e
empoderamento, mas revolução e superação ou emancipação humana também pouco se vê.
Liberalismo também está presente, pois é a via escolhida por estes setores de uma forma geral.
Certamente há segmentos que partem de uma leitura materialista e revolucionária, mas são
veementemente combatidos, quase sempre por correntes de caráter pós-moderno ou pela extrema
direita. Uma das armas preferidas dos setores identitários é combater o materialismo histórico-
dialético, resultando na criminalização direta do comunismo e de qualquer luta que se pretenda
emancipatória do ponto de vista social, pois tal esforço requer enfrentar diretamente o socio-
metabolismo do capital.
Nesses termos o identitarismo funciona como uma espécie de moeda de troca com o
próprio sistema capitalista e sua máquina burocrática e repressiva – o Estado – sobretudo quando
reivindica inclusão no lugar do rompimento definitivo, deixando de lado, portanto, a perspectiva
anticapitalista. Segundo Haider (2019, p. 38):

“O que torna um movimento anticapitalista não é necessariamente o tema de


mobilização. O mais importante é saber se ele é capaz de atrair um amplo
espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização, buscando construir
uma sociedade na qual as pessoas se governam e controlam suas próprias vidas.
Possibilidade essa que é fundamentalmente impedida pelo capitalismo.”

A identidade, no entanto, é um dado material concreto. Como bem coloca Silvio Almeida
(2019, p. 08) no prefácio, “a identidade é [...] algo objetivo, vinculado à materialidade do mundo,
e pessoas não-brancas como Haider e eu somos pensados através da identidade, ainda que nela
não pensemos.” Ou seja, nós somos pensados por algo que já existe historicamente. Somos,
portanto, colocados em posições sociais determinadas de acordo com a identidade e, claro, o
poder aquisitivo. Esse lugar social, por exemplo, pode ser o do negro jovem e periférico enquanto
alvo preferencial da polícia que se configura como a vida matável, segundo conceito de Giorgio
Agamben (2002).

Contexto histórico do identitarismo


Haider destaca no capítulo 1 a militância do Coletivo Combahee River (CCR) um grupo
de militantes negras e lésbicas formado em Boston, Estados Unidos, em 1974, que tinha por
orientação pensar a identidade do negro, historicamente submetido a relações de dominação
direta sobre seus corpos, ações e pensamentos, mas num contexto geral do capitalismo, o que
quer dizer que sem pensar a relação dessa forma de opressão com a economia, a política, a
cultura, a história e o próprio conhecimento a emancipação humana não poderia ser concretizada.
Como Demita Frazer, do Combahee, colocou em 2017:

“Nós na verdade nunca, até onde posso dizer, no que diz respeito à definição
clássica, praticamos realmente o que as pessoas agora chamam de política
identitária. Porque a parte central e o foco central não era um aspecto da nossa
identidade, mas a totalidade do que significava ser uma mulher negra na
diáspora”. (Taylor apud HAIDER, 2019, p. 157)
O que se perdeu, no decorrer da história, foi a capacidade de superar tal relação de
dominação, acabando por reforçar a ideia de naturalização das relações capitalistas e uma falsa
ideia de superação ou combate ao racismo. Nesse sentido, Stuart Hall faz uma importante síntese
sobre a forma como a questão racial cai nos trilhos do capital:

"O capital reproduz a classe como um todo, estruturada pela raça. Ele domina a
classe dividida, em parte, através dessas divisões internas que tem o "racismo"
como uma de suas consequências. Ele contém e dá cabo das organizações
representativas de classe confinando-as, em parte, a estratégias e lutas
especificamente raciais, as quais não superam seus limites, suas barreiras.
Através da raça, ele continua a derrotar as tentativas de construir, num nível
político, organizações que de fato representem adequadamente a classe como um
todo - isto é, que a represente contra o capitalismo, contra o racismo." (Hall
apud HAIDER, 2019, p. 133)

A luta do negro no contexto geral dos Estados Unidos das décadas de 60 e 70, portanto,
não estava apartada da luta de classes, o que fica evidente nas posições do CCR com relação ao
racismo e sua relação direta com o capitalismo, certamente contrariando a colocação de Hall que
se refere a outro contexto em meio a um identitarismo descolado das relações de classe. A
transformação social depende de uma série de fatores. O próprio transcorrer do tempo pode ser
um desses fatores. O tempo avança e mudanças concretas acontecem no cenário social. No que
diz respeito a superar (ou emancipar) problemas sociais como a exploração do homem pelo
homem é preciso muito mais do que a simples e automática passagem natural do tempo. Aliás, o
tempo, neste sentido, pode ser um verdadeiro aliado das relações de dominação, pois, na medida
em que passa, naturaliza tais relações. Os homens então passam a acreditar que este fenômeno
nada tem de histórico: ele é natural, portanto, imutável.
No capítulo 2, “Contradições entre as pessoas”, Haider produz algumas análises sobre o
aprofundamento da ideologia identitária, nos EUA dos anos 70, a partir do arrefecimento das
lutas sociais em múltiplas novas segregações, o que resultou, por exemplo, no apartamento das
lutas, fundando assembleias de POC (people of color: pessoas de cor, em tradução livre).

“Em Santa Cruz, a ideologia identitária nos levou cada vez mais para longe de
um projeto genuinamente emancipatório. Suas consequências não foram apenas
a desmobilização do movimento, mas também uma compartimentação política
degradante. [...] Ativistas “POC” focariam a brutalidade policial, estudos étnicos
e a teoria pós-colonial. O aumento do custo de vida, a privatização da educação
e a precarização do trabalho se tornariam questões de “brancos”.” (HAIDER,
2019, p. 68)
A perda dessa materialidade, que é a perda da própria história de como se forja a ideia de
raça, resulta numa perspectiva identitária pura e simples, sem qualquer relação direta com o
passado a não ser por um idealismo muitas vezes místico, metafísico. E o que é (ou se tornou) a
política identitária? Segundo Asad Haider (2019, p. 47):
"Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma inicial
como teorização da prática política revolucionária, a política identitária é um
método individualista. Ela é baseada na demanda individual por reconhecimento
e toma essa identidade individual como ponto de partida. Ela assume essa
identidade como dada e esconde o fato de que todas as identidades são
construídas socialmente. E porque todos nós temos necessariamente uma
identidade que é diferente da de todos os outros, ela enfraquece a possibilidade
de auto-organização coletiva. O paradigma da identidade reduz a política a quem
você é como indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de
ser baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva contra
uma estrutura social opressora. Como resultado, a política identitária
paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se propõe a criticar."

Por isso, conclui Haider que “essa experiência me mostrou que a política identitária é, ao
contrário, uma parte integral da ideologia dominante. Ela torna a oposição impossível.”
(HAIDER, 2019, p. 68).

Raça, identidade e interseccionalidade: um processo


histórico perverso de descaracterização

De forma mais sintética, Haider (2019, p. 177) define a política identitária “como a
neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a ideologia que surgiu para apropriar
esse legado emancipatório e colocá-lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas.”
(grifos nossos). O autor (HAIDER, 2019) justifica tal colocação no desenrolar do livro,
esmiuçando as contradições das lutas sociais envolvendo negros, brancos pobres e imigrantes ou
mestiços, tendo como contradição central o apartamento desses múltiplos setores como método
privilegiado de evitar a conflagração de lutas populares unificadas.
Importante destacar nesse ponto que a ideia de raça é fundada a partir da luta de classes de
anglo-americanos e afro-americanos contra a classe dominante colonial europeia durante o
processo de transição americana ao capitalismo. Assim, a ideia de raça surge em primeiro lugar
como a ideia de “supremacia branca”, utilizada pela classe dominante para dividir os
trabalhadores brancos e negros americanos, justificando a transição de um sistema de exploração
de ambos baseado no trabalho por dívida por tempo determinado para um sistema escravista por
tempo indeterminado, que foi imposto somente aos negros. Nota-se que a ideia de raça surgiu
então como um artifício para dividir a classe trabalhadora na luta por impedir um processo da
acumulação capitalista que intensificava a sua exploração, que passou a se acelerar no século
XVIII. De fato, tanto escravidão quanto discriminação e exploração não se vinculavam à cor da
pele antes da constituição desse fenômeno histórico.
Assim, o caso dos Estados Unidos, a partir do século XVIII, constrói a ideia de raça
branca que levou irlandeses – historicamente discriminados e explorados na Europa – a
reproduzir futuramente sobre negros a mesma ideia de sub-humanidade que outrora produziram
discriminação concreta sobre outros grupos sociais – entre eles e prioritariamente – sobre os
próprios irlandeses.
Nesse sentido, a ideia de identidade foi sendo modificada ao longo de processos históricos
que descaracterizaram sua proposta inicial. Haider (2019) quer dizer por “diferente da sua forma
inicial” a orientação revolucionária do Coletivo Combahee River que, num de seus textos, “A
Black Feminist Statement”, criticava o racismo e o sexismo na esquerda:

“Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para
o bem coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam os produtos, e não para o
lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente distribuídos entre
aqueles que criam esses recursos. Porém não estamos convencidos de que uma
revolução socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista
garantirá nossa libertação.” (CCR apud HAIDER, 2019, p. 30)

E continuam:

“Nunca acreditei que o Combahee, ou outros grupos feministas negros de que


participei, deveria focar apenas questões que diziam respeito a nós, mulheres
negras. Ou que, como mulheres lésbicas/bissexuais, devêssemos focar apenas
questões que diziam respeito a lésbicas. É de fato importante notar que o
Combahee foi fundamental na fundação de um abrigo local para mulheres
vítimas de violência. Trabalhamos em aliança com ativistas comunitários,
mulheres e homens, lésbicas e pessoas heterossexuais. Éramos muito ativas no
movimento por direitos reprodutivos, apesar de, naquele tempo, a maioria de nós
ser lésbica. Formamos aliança com o movimento dos trabalhadores porque
acreditávamos na importância de apoiar outros grupos, mesmo se as pessoas
naquele grupo não fossem todas feministas. Entendíamos que a construção de
alianças era crucial para a nossa própria sobrevivência.” (CCR apud HAIDER,
2019, p. 177-178)

Haider (2019, p. 31) afirma que “para o CCR, a prática política feminista significava, por
exemplo, participar dos piquetes durante greves na construção civil durante os anos 70.”
Portanto, ao longo da década de 60, o partido dos Panteras Negras, continua Haider (2019):

“teve que navegar entre duas preocupações. Eles reconheciam que os negros
foram oprimidos numa base especificamente racial e que, portanto, tinham que
se organizar de forma autônoma. Mas, ao mesmo tempo, falar de racismo sem
falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o povo tenha de fato
o poder em suas mãos. Apenas cria uma situação em que o policial branco é
substituído pelo policial negro. Para os Panteras isso não era uma libertação.”

Segundo o CCR (apud HAIDER, 2019), os grandes sistemas de opressão estão


interligados.

Nacionalismo Revolucionário e Nacionalismo Reacionário

À orientação que considera a interligação entre os sistemas de opressão, o autor


(HAIDER, 2019) chama de nacionalista revolucionária, pois tinha as lutas históricas entre as
classes sociais (trabalhadores e burguesia) como horizonte. Huey Newton (apud HAIDER, 2019,
p. 36) afirma que há dois tipos de nacionalismo – o nacionalismo revolucionário e o nacionalismo
reacionário:
“O nacionalismo revolucionário depende primeiro da revolução popular, tendo
como objetivo final o povo no poder. Portanto, para ser um nacionalista
revolucionário é necessário ser um socialista. Um nacionalista reacionário não é
um socialista, e o seu objetivo final é a opressão do povo.”

O nacionalismo de uma forma geral funciona a partir da defesa de uma abstração de


conjunto totalizante de uma determinada população como forma de legitimar e dar coesão ao
próprio estado burguês, pois sem estado não há qualquer serventia para a manutenção da ideia de
uma nação. O nacionalismo revolucionário ainda guardava muitos limites neste sentido, pois não
seria possível emancipar os trabalhadores por meio de uma simples independência nacional, cujo
qual pode simplesmente não existir frente as relações entre economias centrais e periféricas.
Estas configuram-se como um capitalismo dependente, segundo Ruy Mauro Marini (2000).
Ainda assim, a perspectiva defendida por Newton é muito mais avançada que a orientação
identitária liberal pós-moderna, pois pensa a luta integrada com os diversos segmentos da classe
trabalhadora que sofre as consequências devastadoras do capitalismo. Para Newton (apud
HAIDER, 2019, p. 41), “o nacionalismo implicava uma perspectiva política: ativistas negros se
organizando em vez de seguirem a liderança de organizações de brancos, construindo novas
instituições em vez de buscarem entrar na sociedade branca.” Como afirma Haider (2019, p. 37),
“trata-se de uma conclusão óbvia quando se entende o socialismo do modo que Huey Newton
entendia: com o povo no poder”. E continua (grifos nossos):

“Ele não pode ser reduzido à redistribuição de riqueza ou à defesa do Estado de


bem-estar social – socialismo é definido em termos do poder político do povo.
Portanto, não apenas o socialismo é um componente indispensável da luta dos
negros contra a supremacia branca, mas a luta anticapitalista deve incorporar a
luta pela autodeterminação dos negros.” (HAIDER, 2019, p. 37)

As contradições das mobilizações nacionalistas, porém, ressalta Haider (2019, p. 41),


vieram “na forma daquilo que Huey Newton descreveu como “nacionalismo reacionário”,
representado por grupos como a US Organization, de Ron Karenga, com a qual os Panteras iriam
mais tarde entrar em conflito virulento.” E continua Haider (2019, p. 41):

“Como Newton apontou, o nacionalismo reacionário apresentou uma ideologia


de identidade racial, mas era baseado também em um fenômeno material. A
desagregação tornou possível a empresários e políticos negros entrarem na
estrutura de poder americana numa escala que não havia sido possível
anteriormente. E essas elites foram capazes de usar a solidariedade racial
como meio de encobrir suas posições de classe. Se eles dissessem representar
uma comunidade racial unitária com um interesse unificado, poderiam suprimir
as demandas dos trabalhadores negros, cujos interesses eram, na realidade,
totalmente diferentes dos deles.” (grifos nossos)

Mas como esse processo de instrumentalização da solidariedade por uma elite se relaciona
com a identidade? Num dos diversos textos pesquisado sobre o assunto, foi encontrada a seguinte
definição de identitarismo, sem indicação do autor, presente nos comentários do texto “Luta de
classes e “identitarismo”: emocionados no reino da ignorância iluminada”, de Heribaldo Maia
(2019, online):

“Grosso modo é a ideia de que a pessoa seria totalmente determinada por


algumas de suas propriedades e teria de agir de acordo com as expectativas
criadas sobre essas propriedades. Por exemplo, um ser humano tem várias
características que o tornam único, mas você tem de se agarrar a apenas uma ou
algumas delas e moldar seu comportamento e ideias a partir disso. Um gay deve
moldar seu comportamento e ideias baseados na sua característica de ser gay.
Todo o resto do que faz dele um indivíduo único deve ser deixado de lado. E,
sendo gay, ele deve se comportar assim e assado. Politicamente falando, é a
ideia de que não existe nada que una a maior parte das pessoas, por exemplo,
não ser proprietário dos meios de produção. Cada grupo deve se agarrar a
particularismos de tal e tal grupo e faz com que o capitalismo se adapte ao fato
de que existem vários grupos com diferentes expectativas de consumo e inserção
na sociedade do mercado. Não é possível então criar um movimento que respeite
as aspirações da maior parte das pessoas e tampouco tentar mudar o sistema em
que estamos.” (grifos nossos)

A identidade molda a experiência imediata das pessoas, mas para além disso é preciso
pensar que as classes sociais se antagonizam no processo produtivo do capital, o que implica na
divisão social do trabalho e toda sua alienação decorrente que muda de acordo com as
transformações e crises do capitalismo. Por mais que nos Estados Unidos houvesse a Rights Act
de 1964, que tornou ilegal a segregação racial, e o Voting Rights Act, de 1965, sobre o direito de
voto, a estrutura opressora permaneceu. O que nos chama atenção é a clara apropriação da direita
por essas pautas o que deve na verdade nos preocupar. O autor (HAIDER, 2019, p. 31) cita o
exemplo da campanha da Hillary Clinton, “que adotou a linguagem da “interseccionalidade” e
do “privilégio”, utilizando-se da política identitária para combater o surgimento de uma opção de
esquerda no Partido Democrata em torno de Bernie Sanders.”

As armadilhas da identidade
É nesse contexto histórico de produção concreta de desigualdades que a armadilha da
identidade mostra seus contornos. Mas, questiona Silvio Almeida (2019, p. 09), “como a
identidade pode ser uma “armadilha” se dentro dela já inevitavelmente estamos?” Eis aí a
questão central. Para Haider (2019, p. 31):

“O que começou como uma promessa de superar algumas limitações do


socialismo, de modo a produzir uma política socialista mais rica, mais diversa e
inclusiva, terminou sendo aproveitado por aqueles com uma política
diametralmente oposta àquelas do CCR.”

De forma bastante reducionista, podemos dizer que armadilha é um “artifício para


capturar ou seduzir alguém” (AULETE, s/d, online). Nesse sentido, como só pode fisgar
incautos, será também uma indicação de perigo para quem estiver atento. Da mesma perspectiva,
identidade é um estado de paridade absoluto, é a "circunstância de um indivíduo ser aquele que
diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja". Enquanto dinâmica de socialização, pode-se
dizer que é caracterizada pela troca de impressões subjetivas, de compenetração no sentimento ou
no pensamento alheio, se alinhando de forma coesa em uma conformação que resulta na fusão ou
confusão das identidades individuais em uma outra, única, coletiva. Analogamente, cria-se, como
consequência, uma dinâmica de diferenciação dessa identidade coletiva, então unificada, de
outros grupos que não compartilhem das mesmas características ou cujas ideologias ou
metodologias sejam consideradas politicamente incompatíveis.
De fato, não é possível pensar o capitalismo sem a opressão de raça, no entanto, é
fundamental entender como essa associação se dá a fim de atacar suas causas e não seus efeitos,
sua aparência.
As armadilhas identitárias num olhar webero-marxista: luta
de classes e estratificação social

Embora seja um método de organização coletiva – onde é possível identificar, enquanto


tipos ideais weberianos, quem são oprimidos e quem são opressores – urge estar (e sempre é
preciso estar) atento às armadilhas provocadas pelos desdobramentos desse processo de
organização social. A indignação – enquanto um dos sentimentos possíveis e legítimos – capaz de
levar à formação de grupos identitários na luta antirracista, frequentemente é cooptada pela lógica
fetichizadora do capital, cujo racismo intrínseco acaba por direcionar essa luta para seus próprios
propósitos de automanutenção.
A fetichização, nesse caso, ocorre quando a percepção das relações entre pessoas é
substituída por relações econômicas, com valor intrínseco associado a essas últimas em
detrimento das primeiras. Nesse sentido, a produção de grupos identitários com características
predefinidas e socialmente impostas, como colocado por Heribaldo Maia (2019), conforma-se
como o primeiro passo para transformá-las em mercadorias: commodities negociáveis em
relações de consumo. Oculta-se então o trabalho intelectual concreto – aqui entendido como
produção de conteúdo e dados para as redes sociais – envolvido nessas relações, transformando-o
em mero objeto de troca, o qual se acredita ter valor intrínseco traduzível em moeda de troca.
O processo acima descrito se refere ao âmbito econômico da perspectiva marxista
(MARX, 2017), mas procuraremos fazer também uma contextualização no que diz respeito ao
consumo – enquanto formação de classes a partir do poder aquisitivo direcionado a nichos de
mercado – e no que tange aos aspectos sociais e institucionais numa perspectiva weberiana
(LEMOS, 2012), quando se considera poder de influência e acesso a bens culturais, sociais e
políticos.

Identidade enquanto mercadoria: a visão marxista


É necessário, nesse ponto, uma breve digressão para compreender a relação estabelecida
acima de identidades enquanto mercadorias, haja vista que a produção de dados estatísticos sobre
– e a partir de – coletividades já é tratada como tal atualmente. Este processo se iniciou no início
do século XXI, quando os estudos de marketing e administração passaram a utilizar a lógica de
nichos de mercado. No livro “A cauda longa” – conceito capaz de evidenciar a construção
histórica dessa nova perspectiva mercadológica – Chris Anderson (2006) demonstra
estatisticamente que é mais lucrativo investir em produtos que não sejam mainstream, ou seja, em
nichos de mercado:
“A escassez requer “hits”. Se houver apenas algum espaço disponível nas
prateleiras só é sensato preenchê-lo com os artigos que venderão melhor. E se
for apenas isso que está disponível, é apenas isso que as pessoas vão comprar.
Mas e se houver espaço infinito? Talvez os “hits” sejam a maneira errada de
olhar para um negócio. Afinal, existem muitos mais não-“hits” do que “hits” e
agora ambos estão igualmente disponíveis. E se os não-“hits” (...) todos juntos
equivalerem a um mercado tão grande, se não maior, quanto ao dos “hits” em
si?” (ANDERSON, 2006, p. 08)

Não por acaso, empresas como Netflix, Apple e Amazon passaram a utilizar essa
estratégia, pois os grandes conglomerados se beneficiam dessa lógica ao disponibilizarem bens e
serviços em larga escala a preços baixos, substituindo pequenos produtores que antes
comercializavam esses bens a um custo elevado e de forma local.
Nesse sentido, pensando a transformação da identidade em mercadoria, buscamos a
seguinte analogia (grifos nossos):
Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter
social do trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva
estampada no produto deste; [...] (MARX, 2017, p. 147)

A “característica objetiva estampada no produto do trabalho”, no contexto deste artigo e


dessa argumentação, é a identidade reificada, ou seja, a característica extrínseca a partir da qual
se define a identidade: não como resultado de um processo histórico baseado em elementos
concretos dialeticamente constituídos, mas como um estereótipo – enquanto conjunto de
características estanques – que a define. Seguindo com a analogia (grifos nossos):

[...] porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho
(...) é apresentada a eles como uma relação social que existe não entre eles,
mas entre os produtos de seu trabalho. [...] (MARX, 2017, p. 147)

Entenda-se aqui “produtores” enquanto produtores de conteúdo e dados para as redes


sociais que também podem ser entendidos como produtores de trabalho intelectual de abstração e
performance social, cuja soma total compreende o conjunto de dados obtidos – devidamente
tratados estatisticamente pelas empresas que os coletam. Essa “soma total”, ou seja, esse conjunto
de dados que configura uma identidade coletiva, apresenta-se para aqueles que a produziram
como uma relação entre os produtos de seu trabalho, em outras palavras, entre suas identidades
reificadas, não como uma relação historicamente constituída, entre pessoas que são atravessadas
por múltiplas características extrínsecas e intrínsecas que constituem – ou deveriam constituir – a
base de sua ação política ligada as contradições que se apresentam em sua realidade material.
Note-se que a mesma analogia pode ser feita com relação a produção acadêmica sobre
alguma identidade específica ou a constituição de identidades jurídicas no âmbito institucional do
Estado. Prosseguindo com a analogia (grifos nossos):
[...] A existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor entre os
produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm absolutamente
conexão alguma com suas propriedades físicas e com as relações materiais que
daí se originam… É uma relação social definida entre os homens que assume, a
seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 2017,
p. 147)

Por “relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias”,
pode-se entender aqui como a relação de valor entre o conteúdo e dados produzidos em rede
que os caracteriza como mercadorias. Estas evocam um valor simbólico fruto das interações
sociais entre pessoas concretas: o significado da identidade para quem a produz. Por sua vez, a
identidade associando-se à preferência por determinadas marcas, bens e serviços, que não têm
nenhuma relação com a realidade concreta das pessoas que os consomem. A relação entre os
indivíduos, que gera o trabalho intelectual que se traduz na mercadoria “conteúdo e dados
produzidos em rede”, também gera relações concretas historicamente constituídas, mas não se
percebe a relação entre as duas, pois a “relação entre coisas” mascara essa relação entre pessoas.
Em outras palavras, as relações de mercado “tomam ares” de relações políticas de modo que se
tem a impressão de que a substituição não faz diferença. Mas faz. Basta dizer que se política é
pautada pela disputa por recursos comuns, a lógica que dá a impressão de que as relações se dão
entre coisas – não entre pessoas – distorce o propósito da política para a satisfação não das
necessidades das pessoas, mas da produção de coisas.
Garante-se assim, a expansão do capital em seu já citado processo de automanutenção.
Como a mercadoria agora atende a nichos identitários, estes grupos, resultantes da agregação
social de produções subjetivas – através do trabalho gratuito de produção de conteúdo para as
redes sociais – passam a ser o combustível que organiza a produção de informações estruturadas
que permitem manter e ampliar a produção de mercadorias que atenda aos nichos de mercado
consumidor. Em outros casos, reativa nichos em decadência, como no caso de camisas de malha
unissex que agora carregam a expressão “não-binárie” de forma destacada.

Um breve adendo: a identidade no mercado cultural


Sobre essa situação, vale comentar como se reproduz a identidade na lógica da indústria
cultural, haja vista nosso interesse nesse tema. Enquanto artistas independentes de esquerda que
se organizam coletivamente, somos atravessados por diferentes perspectivas ideológicas, numa
dialética que evidencia uma clara contradição: somos independentes por que rejeitamos os
pressupostos de ampla padronização da arte ou por que não conseguimos nos inserir por
inadequação técnica, ideológica ou estética?
Acreditamos, baseados na observação de nossa realidade, que existem ambos os tipos de
artistas independentes: aqueles que “buscam um lugar ao sol” do mercado e aqueles que buscam
a marginalidade concreta a esse mesmo sistema, no sentido de pensar em alternativas à relação
capitalista de produção. Assim, o conceito do que se entende por artista independe varia para
cada um dos casos. No primeiro, trata-se daquele que é independente porque executa também
tarefas acessórias – tais como produção executiva, divulgação, atividades técnicas e articulação
com outros artistas e com instituições – associando-as à sua atividade-fim: a expressão artística
em si. Têm independência operacional da indústria cultural. No entanto, quando pensamos em
artistas independentes que optam por distanciar-se dessa indústria por discordar de sua finalidade,
temos o segundo caso: aqueles que se consideram independentes porque pretendem autonomia
deste mesmo sistema. Note-se que essa definição é apenas mais ampla que a primeira, não
excluindo, portanto, as prerrogativas do primeiro caso: a de trabalhadores que executam tarefas
acessórias à sua atividade principal. O que ocorre com artistas que buscam autonomia da
indústria cultural mainstrean é a ampliação do conceito para uma perspectiva coletiva, em que a
divisão social do trabalho é homogeneamente distribuída entre todos e as decisões são tomadas
coletivamente, num processo de formação profissional, intelectual, socioafetiva e política.
Ocorre, no entanto, que a marginalidade do sistema hegemônico já foi cooptada pelo
capital, no sentido de apresentarem-se dois horizontes para a indústria cultural, num processo
dialético de marginalidade da espetacularização e espetacularização da marginalidade. A
marginalidade da espetacularização diz respeito à capilaridade do poder de produzir sozinho o
espetáculo (aqui entendido na maior facilidade da produção de conteúdo na internet e nas redes
sociais). Já a espetacularização da marginalidade, a sua legitimação enquanto espetáculo. Assim o
artista independente periférico passa a associar-se a estéticas específicas que assim o
categorizam, inserindo-se, portanto, na lógica do mainstream. O que antes era lido como
marginal, subversivo, fora do padrão, ganha lugar no “centro do palco”, num processo de
assimilação do capital para viabilizar sua própria expansão. Esse mecanismo se vale também da
lógica identitária para produzir essa ideia de marginalidade, como nichos estéticos para o
mercado de consumo da cultura.
Ironicamente, se o que era marginal passa a uma posição de protagonismo e centralidade,
novas marginalidades necessariamente se produzem. Resta ao segundo tipo de artista
independente – que deseja manter-se fora da estrutura hegemônica – identificar na realidade
concreta que marginalidades são essas. E então negá-las, pois:

“[...] a arte como força política é somente arte enquanto preserva as imagens da
libertação; em uma sociedade que é em sua totalidade a negação dessas imagens,
a arte pode preservá-las somente através da recusa total, isto é, não sucumbindo
aos padrões da realidade sem liberdade, seja em estilo, ou na forma, ou na
substância. (MARCUSE apud SILVEIRA, 2009, p. 46)
Uma pista então para identificar essas novas marginalidades talvez seja justamente a
rejeição das estéticas ou temas progressistas, que substituem a emancipação coletiva pelo festivo
domínio da marginalidade como glamourização, portanto, entretenimento confortador. Trata-se
de lógica notoriamente inserida no campo da competição, haja vista sua predisposição para
produzir mercadorias – enquanto produtos culturais resultantes da expressão artística – cujo
capital simbólico reitere a centralidade da identidade per se. Aqueles que forem capazes de
melhor expressar as expectativas sobre determinada identidade, serão aqueles que obterão maior
retorno financeiro e de reconhecimento social para suas obras, inserindo-se com sucesso no
mercado da indústria cultural. A produção cultural baseada nessas premissas certamente produz
capital simbólico – no âmbito das abstrações – e novas elites na classe artística – do ponto de
vista das relações sociais. É sobre esse processo de estratificação – que não se restringe à classe
artística, mas à toda classe trabalhadora – que abordaremos a seguir.

Identidade enquanto estratificação social: a visão weberiana


Subjacente às relações entre os detentores dos meios de produção e o proletariado,
anteriormente explicitadas, aplica-se a análise baseada na estratificação econômica em relação a
capacidade aquisitiva proposta por Weber (apud LEMOS, 2012). Desse modo, se constituem
“classes” weberianas de acordo com a capacidade de consumo de determinados grupos, como
acontece com o denominado “Pink Money” em relação a população LGBTI e, mais
recentemente, o “Black Money”, relacionado à população de pessoas autodeclaradas negras. De
fato, as duas abordagens – marxista e weberiana – se entrecruzam neste caso. Assim, a classe
dominante utiliza a subdivisão da classe trabalhadora em nichos de mercado diferentes como
mais um elemento desagregador das pautas comuns – interesses semelhantes de grupos oprimidos
distintos - em interesses de consumo diversificados. E estimula a constituição dessas diferenças
através da diversificação cada vez maior de mercadorias, cuja ampliação de escopo as
potencializa ainda mais à medida que se amplia seu consumo.
Note-se que, ao abordar a perspectiva marxista na seção anterior, o tema central era a
exploração por parte das classes dominantes – enquanto empresariado dono dos meios de
comunicação – na identificação e posterior estímulo ao consumo de mercadorias que atendam a
esses nichos. Já na perspectiva weberiana, analisamos o fenômeno que se dá a partir desse
primeiro movimento: a constituição de classes de consumo que competem entre si por satisfação
de interesses particulares na busca por ampliar seu poder de dominação econômica, social e
política, pois quanto maior a posse de bens e a amplitude de consumo de serviços relacionados a
um determinado nicho, mais se aprofunda o processo de identificação amparado pelas relações
sociais mediadas pelas mercadorias consumidas (consequentemente aumenta também o poder de
influir nas decisões de compra de seus pares). Social, pois o consumo ampliado de mercadorias
que associem o consumidor à identidade que ele deseja projetar, tende a aumentar seu status
naquela comunidade identitária (fora do âmbito econômico estrito, quanto maior a produção
intelectual relacionada àquela identidade, maior será a relevância social do indivíduo que a
veicule). Política, no âmbito institucional principalmente, à medida que é capaz de mobilizar a
constituição de subjetividades jurídicas – na esfera pública – e contratuais – na esfera privada –
que garantam direitos a uma determinada minoria política ou nicho de mercado, respectivamente
(aqui entendidos ambos como grupos identitários).
Assim, em complementação à abordagem econômica, já demonstrada, as demandas
político-institucionais – a influência nas decisões políticas através das relações de dominação – e
socioculturais – o status ou prestígio relacionado ao acúmulo de bens simbólicos – também
ganham relevância na análise da dinâmica do identitarismo.
Com relação aos aspectos socioculturais, é possível relembrar um episódio histórico, já
mencionado no início deste artigo, que esperamos ser suficiente para evidenciar como se dão
essas relações sociais na constituição de um fetichismo baseado na lógica de mercado em última
instância. Relembramos, então, o próprio Asad Haider (2019), quando menciona o movimento do
“nacionalismo reacionário”, no qual a elite, por meio da mobilização de um capital simbólico
derivado das lutas raciais, desvia-se de questões concretas que atingem a totalidade da classe
trabalhadora: tanto negra enquanto minoria política, quanto a de outras etnias. No mesmo sentido,
é possível citar a solidariedade racial entre elites brancas que se constitui como fonte de
manutenção de prestígio enquanto acúmulo de bens simbólicos: seja na produção intelectual, seja
na definição da etiqueta vigente ou do que consideram como referência estética aceitável.
Já no que diz respeito aos aspectos político-institucionais, dois exemplos bastante atuais –
demandas por políticas públicas compensatórias em detrimento das construtivas (MULLER,
2018) e eleições no sistema representativo social-democrata – os quais são descritos brevemente
a seguir – poderão ser capazes de demonstrar como a dinâmica identitária pode se constituir
como uma armadilha nesse campo.
Assim, no que se refere às políticas públicas, basta mencionar a demanda por ações do
Estado no sentido de buscar reparações históricas sem considerar a necessidade de
concomitantemente pleitear reformas mais profundas. De fato, o que não fica explícito neste
processo é a subjetivação jurídica que as inscreve em marcos legais e institucionais que
camuflam a necessidade de transformação da estrutura que gera as desigualdades. Enquanto as
políticas compensatórias são concedidas sistematicamente pelo Estado, ainda que a conta-gotas,
são convenientemente deixadas de lado as políticas construtivas – aquelas que constroem projetos
com o objetivo de avançar na reconfiguração da sociedade enquanto políticas capacitadoras.
Ainda que seu viés seja reformista, é clara a diferença entre priorizar apenas políticas
compensatórias e propor políticas ativas/positivas. Em alguma medida, estas últimas
representariam um avanço mais significativo no sentido de diminuir desigualdades sociais em
seus aspectos constitutivos, ainda que sua lógica esteja inscrita no limitado escopo da
socialdemocracia. Nesse sentido, a armadilha identitária se apresenta quando a identidade é
considerada como o único viés de reconhecimento de pautas políticas. Ao priorizar demandas que
atendam somente a questões de minorias, não pode ensejar identificar as demandas mais
universais, tanto do ponto de vista reformista – à medida que ajustes estruturais podem vir a
beneficiar os menos favorecidos, entre eles uma dada minoria política de referência – seja do
ponto de vista revolucionário – haja vista que pautas comuns a todas as minorias oprimidas tem
maior potencial de mobilização para a luta política.
Com relação ao segundo exemplo – as eleições no sistema representativo – basta
mencionar que a política institucional na socialdemocracia não é capaz de dar conta das
demandas de autonomia libertária da classe trabalhadora como um todo. Além disso, o fato de
determinada identidade ganhar representatividade política não significa necessariamente que
trabalhará em defesa dos melhores interesses do grupo que diz representar. Deste modo, quando a
identidade se torna uma referência tautológica, corre-se o risco de considerar válida qualquer
candidatura apenas pela sua autoproclamação identitária, sem considerar a sua proposta política
ou mesmo seu posicionamento ideológico. O caso Obama é clássico nesse sentido: embora seja
muito significativo simbolicamente ter um casal negro no mais alto cargo executivo dos EUA,
isso não significou mudanças concretas para a comunidade negra americana como um todo, nem
da perspectiva reformista, nem da revolucionária.

O populismo autoritário e a cultura do cancelamento


Destacamos aqui, entre os exemplos de armadilhas da identidade, o fenômeno
denominado “populismo autoritário”, cunhado por Stuart Hall, que é citado no artigo de Achille
Mbembe (2016), “A era do humanismo está terminando”. O autor (MBEMBE, 2017, online)
denomina o mesmo fenômeno de “autoritarismo liberal”:

O principal choque da primeira metade do século XXI [...] será entre a


democracia liberal e o capitalismo neoliberal [...]. Apoiado pelo poder
tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o
mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo,
transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando
os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas
inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam
relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a
liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da
propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão. Cada um destes artigos de
fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível
com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre
estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da
paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada
menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções
e afetos. (grifos nossos)
Assim, nos interessa destacar o que diz respeito à “liberação geral de paixões, emoções e
afetos” mencionada por Mbembe (2017, online), como uma das armadilhas da identidade pela
ênfase que dá ao viés exclusivamente subjetivo enquanto modo de interpretação da realidade. Por
mais válido e legítimo individualmente que seja reconhecer traumas, visões de mundo,
impressões e percepções – compartilhando-as para buscar sua superação através das trocas
afetivas – constituir identidades coletivas apenas a partir dessas percepções fracionadas embota a
visão objetiva, necessária a uma articulação social ampla. Impede-se, assim, a organização a
partir de pautas políticas comuns: coletivas enquanto conjunto de ações propositivas universais,
não de alinhamento comportamental e personalista. Enquanto isso, detentores dos meios de
produção utilizam esses dados objetivos para ampliarem sua dominação no sentido de definirem
os critérios pelos quais as relações entre pessoas se darão, substituindo de forma cada vez mais
profunda o papel do Estado e as próprias relações sociais concretas (grifos nossos):

“Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão
tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados
principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento,
tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver
nada para vender. A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de
deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente
deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana
triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo,
acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será
constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios
computacionais.” (MBEMBE, 2017, online)

Considerando que Mbembe escreveu este artigo em 2016, quando ainda não estávamos no
contexto da pandemia de COVID-19, tendemos a acreditar que sua análise de conjuntura tome
contornos ainda mais graves, à medida que constatamos a intensificação das relações digitais.
Nesse sentido, outra armadilha que a identidade traz é a individualização das pautas políticas que
acabam por convergir no compartilhamento e circulação de sentimentos em comum,
especialmente nas redes. Não é de se admirar que, num contexto de opressão que se dá constante
e consistentemente, o ódio e o ressentimento se tornem um dos elementos emocionais em torno
dos quais se constituem a forma de manutenção dessas identidades coletivas. Como coloca
Mbembe (2017, online):

A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada


pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos
novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores
colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas
infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em
manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer
vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de
fazer cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão. A principal função
da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os
desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de
limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de
todos. Em parte, graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que
desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já
não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a
forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar
que a mediação já não é necessária. Isso explica a crescente posição anti-
humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela
democracia. [...] No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a
política se converterá em uma guerra mal sublimada. (grifos nossos)

Assim como Amazon, Netflix e Apple utilizam a estratégia de estimular o consumo


baseado em nichos mercadológicos, as redes sociais, Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp
promovem a criação de bolhas estanques, baseadas em preferências políticas, entre outras
impossíveis de serem definidas, haja vista o hermetismo do funcionamento dos algoritmos que as
regem. O fato é que surgem fenômenos como a instrumentação da linguagem: apagando a
polissemia de palavras e expressões, que passam a ser censuradas indiscriminadamente,
desconsiderando seu contexto e semiótica. Também a repetição sistemática de temas específicos,
baseado nas preferencias e comportamento virtual dos usuários, dificulta sua autonomia na
interlocução com pontos de vista diferentes. Em redes sociais com as mencionadas, a lógica de
mercado, assim como a lógica de segregação, já está posta pelos próprios algoritmos à medida
que estabelecem critérios de interação e seleção de conteúdo. Já mencionamos também a questão
do estímulo ao consumo segmentado, baseado em preferências a partir da coleta de dados
provenientes do que os usuários escrevem, do que curtem e mesmo do que falam em voz alta.
Geram-se assim dados que são vendidos para outras empresas anunciantes ou mesmo governos
que desejem influenciar resultados eleitorais, como já é de conhecimento geral. Achille Mbembe
continua (2017, online):

O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos


destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro
imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. [...]
Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que
falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres
destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas. [...] Em um
mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a
eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política
em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

No entanto, um fenômeno social que destacamos do autoritarismo liberal de Mbembe


(2017), no sentido que nos interessa discuti-lo – dada a sua relação direta com o identitarismo –, é
a chamada “cultura do cancelamento”.
Caracterização da cultura do cancelamento

A cultura do cancelamento não é nova. Com o advento da pós-modernidade, enquanto


sintoma dessa cisão progressiva entre a democracia liberal e o capital financeiro, ganhou novas
formas e desenvolveu seus próprios métodos. Trata-se tão somente da eliminação por meio do
constrangimento de adversários ou potenciais perigos que possam causar dissonância na dinâmica
interna de um determinado segmento social/político. Os métodos utilizados hoje privilegiam a
internet como ferramenta potente na exposição pública de determinados perfis nas redes sociais.
Os que são cancelados, porém, não são quaisquer indivíduos. Eles precisam ter algum tipo de
visibilidade, o que funciona como elemento que ajuda a reverberar o estrago causado, servindo de
exemplo aos demais. Segundo Wilson Gomes escreve no texto “O cancelamento da antropóloga
branca e a pauta identitária” (grifos nossos):

“Cancelamentos e linchamentos são hoje das ações mais banais das estratégias
dos identitários, sejam esses de esquerda ou de direita, principalmente depois
que grande parte das nossas vidas passou a transcorrer em direta relação com
ambientes digitais. Nesses ambientes é que se consegue facilmente mobilizar
enorme montante de pessoas, insuflar em grandes massas um estado de
indignação moral ou furor ético e, enfim, colocar alvo em pessoas, instituições e
atos na direção dos quais toda a fúria deve ser dirigida. Para o linchamento e o
cancelamento digitais se requer, antes de tudo, uma multidão unida por algum
sentimento de pertencimento recíproco, motivado pela percepção de que todos
estão identificados entre si por algum aspecto essencial da sua própria
persona social. Um recorte comum, por meio do qual são separadas e
antagonizados, de um lado, o “nós”, de dentro do círculo, e, de outro, “eles”, os
de fora.” (GOMES, 2020, online)

A projeção social do cancelado, ao passo que é prejudicado, é inversamente apropriado


pelo cancelador ou pela horda que cancela, estando em disputa também o público que assiste ao
espetáculo: reagindo por meio de curtidas, compartilhamentos e comentários, operando como
pequenos espoliadores desses eventos. A derrota do cancelado fica ainda mais evidente quando
este se redime perante o tribunal virtual como foi o caso da antropóloga Lilia Schwarz. A culpa e
a vergonha são amenizadas e às vezes o cancelado pode até ser readmitido, mas não sem as
marcas do passado. O cancelamento é não só um método perverso de ódio e justiçamento, mas
um meio eficiente de burlar a complexidade de debates históricos e teóricos e, principalmente, os
antagonismos entre as linhas teóricas em disputa.

Existe uma seletividade no cancelamento e isso tem relação direta com o funcionamento e
métodos identitários. Todo mundo pode um dia ser linchado digitalmente, explica Wilson Gomes
(2020, online):
“[...] mas só pessoas com visibilidade e importância social e, o que é mais
importante, que pareciam vinculadas a ou simpatizantes da pauta identitária, é
que podem ser canceladas. O cancelamento envolve ruptura e luto, uma vez que
o cancelado tem que ter representado alguma coisa para quem o cancela, mas o
sentido de ultraje moral e fúria linchadora é mesma.”

O cancelamento, portanto, é um método de acusação feito “aos gritos” onde não existem
argumentos, debates e espaço para o contraditório. O cancelamento é uma prática de
demonstração de poder, de influência pela ameaça e de ação metódica na construção de párias
sociais: sujeitos sem prestígio ou credibilidade. Por isso, o cancelado passa a se autopoliciar de
forma que o medo se torna uma marca perene. Excluir socialmente, recontar a história do
cancelado – ressaltando todos os seus pontos negativos e inculcando sua incapacidade de
regenerar-se – é o legado do cancelamento. Nesse sentido, trata-se então da prática da pequena
política, daquilo que não ofende o sistema exploratório geral: numa ilusão de que, anulando a
prática individual dos desajustados, seria possível modificar as redes e formas de dominação e
opressão. É precisamente assim, afirma Carlos Nelson Coutinho (2010, p. 29), “através da
exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia da época do neoliberalismo.”.
Gramsci (apud COUTINHO, 2010, p. 29), em “Cadernos do Cárcere”, afirma o seguinte:

“A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados,


à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas
orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões
parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já
estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas
frações de uma mesma classe política (política do dia a dia, política parlamentar,
de corredor, de intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande
política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.”

Carlos Nelson (COUTINHO, 2010, p. 31) complementa dizendo que a hegemonia da


pequena política:

“baseia-se precisamente no consenso passivo. Esse tipo de consenso não se


expressa pela auto-organização, pela participação ativa das massas por meio de
partidos e outros organismos da sociedade civil, mas simplesmente pela
aceitação resignada do existente como algo “natural”. Mais precisamente, da
transformação das ideias e dos valores das classes dominantes em senso comum
de grandes massas, inclusive das classes subalternas. Hegemonia da pequena
política existe, portanto, quando se torna senso comum a ideia de que a política
não passa da disputa pelo poder entre suas diferentes elites, que convergem na
aceitação do existente como algo “natural”.” (grifos nossos)
O cancelamento faz parte da nova militância aguerrida, intimamente ligada aos modos de
funcionamento da comunicação rápida e fugaz, porque não gera acúmulo teórico, só memórias de
exposições vexatórias. O resultado do cancelamento é também a disputa no mercado das
epistemes. Sempre que se cancela alguém, um outro toma o seu lugar, ganhando projeção,
influência social e dinheiro. Por exemplo, substituindo ou dando mais visibilidade a autores
negros que consequentemente venderão mais livros, terão mais oportunidades profissionais e
acadêmicas, receberão mais convites para palestras e lançamentos etc. O ressentimento é o que
alimenta a cultura do cancelamento.

Cultura do Cancelamento e Identitarismo


O consenso passivo daqueles que participam das dinâmicas de cancelamento como
espectadores baseia-se também no natural desejo de agradar ou de evitar atritos considerados
desnecessários. Nesse sentido, as pessoas reagem à militância tóxica e agressiva dando razão aos
argumentos superficiais ou mesmo a meras acusações sem qualquer argumento para não se
indisporem com uma pauta aparentemente progressista. Na verdade, a militância identitária
tautológica – elitista que é – para justificar suas acusações, utiliza-se de estatísticas de opressão
de grupos concretos e de militâncias sinceramente interessadas em defender minorias políticas
contra desigualdades sociais históricas. Valem-se da solidariedade para impor pautas que
favorecem apenas um estrato do grupo identitário pretendido.
Quando as estratégias são mais grosseiras, constroem-se então consensos baseados em
argumentos falaciosos que justificam suas perspectivas ideológicas ou epistemológicas como as
únicas moralmente aceitáveis, manipulando a subjetividade alheia por meio da culpa. Quando
mais sutis, justificam o isolamento do indivíduo cancelado como “medida educativa necessária
para seu processo reflexivo”. Criam-se com isso situações extremamente delicadas, pois mistura-
se o que é já é considerado condenável no campo progressista com o que é construção de novas
etiquetas de linguagem, baseadas em interpretações incipientes de teorias científicas por parte
dessa mesma militância. Essa confusão dificulta o posicionamento crítico de pessoas comuns,
que não conhecem as peculiaridades de uma determinada minoria a fundo, fazendo com que
optem por não se posicionar. Na prática, a não-ação acaba se refletindo na progressiva admissão
tácita, pelo senso comum, do que aquela militância procura tornar um consenso.
Trata-se de um fenômeno bastante comum na esquerda e na direita. Pessoas bem-
intencionadas, mas ignorantes quanto aos processos históricos específicos de determinados
grupos identitários, podem, em vez de simplesmente aceitar suas palavras de ordem
resignadamente, se aliar ativamente a essa militância. A motivação parece se afigurar a mesma:
blindar-se preventivamente contra a possibilidade de cancelamento futuro. Ocorre que o critério
da militância identitária tautológica não é baseado na ética, mas na etiqueta, portanto, ao menor
deslize ou sinal de questionamento ou discordância, esse grupo pode se voltar contra um de seus
apoiadores. Nessa lógica circular, não parece haver escapatória senão a submissão absoluta à
subjetividade daquela identidade coletivamente constituída. Constata-se, nesse contexto, que essa
militância se baseia na valorização das aparências, no sentido de pressupor que o outro evitará o
confronto para manter a aura progressista em um assunto que não domina diante de uma suposta
autoridade moral ou intelectual. É comum o uso de retóricas, falácias, construções lógicas
autorreferenciadas, censura linguística e exigência de priorização de aspectos secundários ao
debate: uso de pronomes de tratamento específicos, supressão de termos considerados
inadequados ou prioridade epistemológica. Esse processo termina por esvaziar a discussão,
vencendo o oponente pelo cansaço, pois não consegue identificar a necessidade objetiva a ser
atendida, já que se trata por definição de demanda subjetiva que precisa ser “respeitada” dentro
de uma lógica de dominação.
Ocorre que marxistas, por princípio, tendem a lidar com quaisquer fenômenos sociais
buscando desmistificar sua aparência em primeira instância, partindo da materialidade em
detrimento das construções abstratas, contextualizando sua história e identificando contradições
para então tratá-las de forma dialógica. Recurso sistemático de comportamento derivado do
método materialista histórico-dialético. Nesse sentido, outro expediente utilizado por essa
militância identitária tautológica é a associação vexatória: relativizam as críticas recebidas
comparando-as com argumentos usados por alas conservadoras ou reacionárias, como se
tivessem a mesma abordagem epistemológica. Assim, uma crítica a uma dada atitude política de
aliar-se a ideologia neoliberal, por exemplo, será refutada com acusações de que fazemos a
mesma crítica da direita, também neoliberal, desqualificando o “mérito” daquele indivíduo
pertencente à uma minoria pelo fato dele pertencer a uma identidade específica. Em outras
palavras, apontam o preconceito – de fato presente em pessoas de esquerda e de direita – como
única causa possível para a crítica a uma determinada atitude. Note-se que a acusação de
semelhança em si não faz sentido, pois embora o fenômeno objeto de julgamento seja o mesmo,
as motivações são diferentes e sua análise recai sobre aspectos distintos. Da mesma forma que o
identitarismo reclama a relativização dos pontos de partida dos quais se fazem as análises,
contraditoriamente procura negar ao interlocutor a avaliação de fenômeno anteriormente
analisado por outrem sob olhar diverso, ainda que as constatações finais sejam as mesmas.
Dito de outro modo, reforçam a centralidade dos debates em aspectos secundários,
relacionados à aparência, não à essência: aqui entendida como a discussão das contradições
identificadas pela crítica realizada ou, em outras palavras, às peculiaridades contextualizadas do
que foi efetivamente evidenciado.
Por exemplo, parece óbvio que o comportamento de muitos trabalhadores brancos reflete
o preconceito estimulado pela classe dominante, da mesma forma que esta considera útil aos seus
propósitos o ressentimento provocado pelos processos sócio-históricos de exclusão de pessoas
negras. No entanto, esse fenômeno não faz desaparecer o fato de que trabalhadores negros e
brancos são explorados e estimulados a competirem entre si por postos no mercado de trabalho.
Assim, uma determinada apreciação sobre a competição entre negros e brancos nessa esfera –
haja vista que da perspectiva marxista o problema encontra-se no estímulo dado pelas classes
dominantes à competição entre trabalhadores explorados pela mesma lógica sistêmica – é tomada
como idêntica à crítica da direita conservadora que acusa o movimento negro de “vitimista” e
preguiçoso – na perspectiva neoliberal de meritocracia ou na perspectiva conservadora da
estigmatização racial – quando demanda cotas raciais ou o fim da discriminação de negros em
processos seletivos de trabalho. Desconsiderar essas diferenças anula o debate e o centraliza na
perspectiva única da identidade que, para essa militância específica, é o centro único e imutável
de todo e qualquer questão.
Note-se que a reação defensiva dos identitaristas autorrecursivos procura encobrir a
admissão tácita de uma lógica da democracia burguesa que, de fato, privilegiará apenas alguns.
Como a militância tautológica não quer ver expostos seus interesses particulares de possível
inserção numa elite, opta por atacar seus críticos por associação a campos reacionários ou
conservadores. Em vez de se colocar de forma dialética no debate, aceitando as contradições
existentes e trabalhando no sentido de encontrar alternativas que as superem para todo conjunto
da identidade coletiva que defendem, preferem a estratégia da associação vexatória. Isso só
reforça a evidência de uma capitulação desses grupos à logica de mercado, baseada na aceitação
de que a única alternativa possível é a estruturação hierárquica e meritocrática, considerando
aceitáveis, portanto, que existam dinâmicas de exclusão de seus pares (desde que não se apliquem
a eles). Dessa forma, acabam por empobrecer um debate que tem o potencial revolucionário de
encontrar soluções mais amplas e definitivas para a origem das desigualdades sociais que o
capitalismo ajuda a conservar.
O mesmo na direita, para citar um exemplo em outra esfera, onde acusações de
“cristofobia” se multiplicam indefinidamente a qualquer discordância ou comportamento
considerado ofensivo por um militante identitário tautológico “que se entenda influente o
suficiente para mobilizar atenção nas redes”. Obviamente, é sempre importante levar em conta a
fala de outrem quando este identifica algo que considera pessoalmente ofensivo. No entanto, é
preciso mais uma vez relembrar que o critério individual se aplica ao campo das relações
individuais, portanto, passíveis de debate e resolução neste mesmo circuito. Ocorre que se
transforma a insatisfação privada em acusação vexatória pública, muitas vezes descolada da
realidade do que venha a ser objetivamente um ato discriminatório: agressão física, ofensa verbal
ou comportamento sistemático de impedimento ao acesso de direitos ou recursos considerados
universais apenas por pertencer a uma dada identidade.
Confunde-se aí a discriminação pessoal da estrutural, que é muitas vezes inconsciente e
não se soluciona exclusivamente por oposição identitária. Em lugar de apontar a crítica ao
comportamento supostamente inadequado, esclarecendo as razões pelas quais são consideradas
ofensivas, opta-se pela execração do sujeito em si, reforçando a ideia de que as discriminações
acontecem devido a uma suposta “contra-identidade” opressora, fixa e imutável. Evidencia-se
então o reforço de estereótipos que deveriam estar sendo combatidos, de modo que a opção do
acusado – ontologicamente enquadrado – é se posicionar com a mesma radicalidade: ou aceita a
“contra-identidade” que lhe é imputada – assumindo a constante e sistemática vexação pública –
ou a nega – sendo imediatamente associado à figura abstrata de um opressor estrutural em polo
político conservador ou reacionário. Ora, reforçar identidades como elementos incapazes de
reabilitação e adaptação é também um ato preconceituoso e desumano em si mesmo.
Há casos também em que acusações de transfobia, para citar outra esfera, são baseadas
não na percepção pessoal do ofendido, mas nos pressupostos epistemológicos e ideológicos de
setores específicos de uma determinada corrente em um movimento social ou identitário mais
amplo. Acusar de transfobia uma pessoa que faz referência à biologia dos corpos, nesse contexto,
não parece fazer o menor sentido, haja vista que é a própria condição biológica de uma pessoa
transexual, em oposição a como se percebe, que a define enquanto transexual. Não houvesse a
concretude biológica de machos e fêmeas, não haveria sequer por que haver transexualidade.
Nesse sentido, há, no entanto, correntes de militância que defendem a ciência biológica como
construção estritamente social. Provavelmente interpretações rasas e equivocadas de teorias de
gênero pós-estruturalistas. Ora, pressupor que o sistema classificatório da biologia é construído a
partir de abstrações e não de observação científica meticulosa e prolongada é igualmente um
contrassenso. Se as combinações de masculinidade e feminilidade permanecem presentes nas
variadas expressões de gênero, ainda que se negue o sexo biológico, ainda serão diretamente
derivadas daquilo que existe historicamente em primeiro lugar: corpos de machos e fêmeas. Na
verdade, o que parece fazer mais sentido objetivamente é o contrário: as abstrações relativas ao
que se considera próprio de um gênero ou de outro é que derivam dos comportamentos – estes
sim, socialmente construídos e devidamente categorizados de forma estereotipada – encontrados
com mais frequência em machos e fêmeas da espécie.
Nesse sentido, o que se observa na militância queerativista de gênero – pauta que aliás
consideramos impropriamente colocada para a comunidade LGBTI como prioritária, pois essa se
relaciona mais diretamente a questões sobre sexualidade – é assumir como pressuposto único e
fundamental o conceito de gênero em detrimento do conceito de sexo, quando, na pior hipótese,
ambos deveriam ser considerados partes de um construto teórico, desde que partisse do material
para o abstrato, ou seja, do sexo para o gênero. Um dos fenômenos que se deriva dessa percepção
equivocada é a análise anacrônica, utilizando-se do subterfúgio do revisionismo histórico. Um
exemplo disso é considerarem como transgêneros (note se tratar de fenômeno cunhado por
queerativistas que é totalmente diverso, e anulatório, da transexualidade) figuras públicas de gays
afeminados e lésbicas masculinizadas, numa estratégia clara de apagar e substituir identidades já
inseridas com sucesso na lógica de mercado. Outro exemplo, que ocorre em parte da militância
do movimento negro que associa figuras historicamente revolucionárias, como Malcom X, a
personagens políticos como Barack Obama. Desconsideram completamente suas finalidades
diametralmente antagônicas na perspectiva sócio-histórica: respectivamente, a libertação pela
associação colaborativa entre diferentes identidades e a opressão da classe trabalhadora pela
divisão social em bases raciais. Por fim, citamos a direita não-identitária brasileira, quando traz a
visão universalista de um mundo onde predomina, na verdade, a visão eurocêntrica do
iluminismo e/ou do liberalismo. Não percebem o quanto o ponto de vista que defendem se
identifica com uma perspectiva de branquitude que não representa a todos os segmentos da
sociedade brasileira em sua rica multiplicidade epistemológica e cultural.
Identificar inimigos e aliados enquanto tipos coletivos ideais exige um nível de
conformação e comportamento em blocos coesos que, em última instância, podem levar à
legitimação de uma lógica sectária de constituição de faschos. Isso não ocorre sem antes passar
pelos nichos mercadológicos e composição de guetos políticos que facilitam bastante os
processos de estímulo ao consumo de massas, o cerceamento das pautas discursivas de luta
política ampla e a constituição de elites de referência para estes mesmos grupos identitários.
Identificar-se claramente para identificar o inimigo é uma faca de dois gumes, pois pode induzir a
erros causados pela avaliação apressada de comportamentos individuais a partir de estereótipos
coletivos. Além disso, permite que o opressor – que tem meios e recursos para interferir de forma
ampla e massificada no comportamento – direcione as pautas, sentimento de indignação e,
principalmente, a proposição de soluções (para eles) aceitáveis das contradições que se
apresentam. Nessa lógica, indivíduos se atacam entre si, sem perceber que são subtraídos em
tenebrosas transações...

Conclusão
O debate identitário é extremamente importante, pois através dele identificamos como o
indivíduo e grupos de indivíduos com características semelhantes são oprimidos, no entanto, não
é único debate necessário, pois há outras instâncias e modos de produção da vida que não são
atravessados por esse viés. No fim das contas, a pauta identitária, quando voltada exclusivamente
para si mesma, tem esvaziado o debate político e o tornado facilmente cooptável pelos interesses
do mercado, pois desuniversaliza as pautas enquanto centraliza o debate no monitoramento do
comportamento individual. Foca na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado a
identificação por semelhanças.
Ainda que seja necessário debater como cada um de nós reproduz o racismo estrutural que
dá sustento ao sistema capitalista a que está intrinsecamente atrelado, bem como outras formas de
discriminação, isso não bastará para destruir os mecanismos que instrumentalizam a comunicação
através das redes sociais com seus algoritmos que predeterminam critérios de visibilidade e meios
de comunicação de massa que segmentam pautas e olhares sobre os fatos. Certamente há outros
modos de comunicação possíveis – como as relações concretas – e poder utilizar a rede mundial
de computadores para pesquisa e interação social é também um avanço em relação a precariedade
de comunicação existente em períodos históricos anteriores. No entanto, se não há estímulo ao
pensamento crítico e a um debate que não se prenda a processos tautológicos – como tem sido
predominantemente o da perspectiva identitária – aqueles que têm meios para tentar distorcer
nosso olhar em favor de seus próprios interesses não hesitarão um segundo em fazê-lo. Dessa
forma, fica cada vez mais afastada a possibilidade de organização coletiva em direção a
mudanças radicais nos modos de organização humana.
Obviamente, os movimentos identitários não são os únicos e principais responsáveis pelas
mazelas sociais e políticas que nos assolam. A proposta desse artigo é apontar as armadilhas que
o identitarismo traz quando inserido na lógica do sistema capitalista, notadamente para os setores
identitários da esquerda, pois acreditamos que o debate nesse espectro é urgente e necessário.
Justamente porque classe e raça (bem como gênero, sexualidade e outras formas de representação
de minorias políticas) estão associadas de forma intrínseca ao processo de manutenção da
exploração capitalista, é que a constituição de identidades coletivas deve manter sempre em
perspectiva modos alternativos de associação política, notadamente aqueles que se constituam
pela classe – haja vista que sua maior abrangência desestimula sectarismos – mantendo exposto o
elemento central de exploração em última instância: o trabalho humano. Dessa forma, no
contexto do livro de Haider (2019), ao considerar a perspectiva de raça atrelada à de classe pela
associação inseparável entre racismo e capitalismo, será possível, encontrar formas de
organização amplas, articuladas, revolucionárias e emancipatórias.

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