Identarismo A Nova Cara Do Liberalismo FINAL LAVRAPALAVRA
Identarismo A Nova Cara Do Liberalismo FINAL LAVRAPALAVRA
Identarismo A Nova Cara Do Liberalismo FINAL LAVRAPALAVRA
Arthur Moura1
Ricardo Nascimento2
1
Cineasta (202 filmes), formado em História pela UFF, mestre em Educação pela FFP-UERJ.
2
Tecnólogo em Marketing e Bacharel em Administração pela UNESA, graduando em Ciências Sociais pela UFF e
membro fundador do coletivo Bacamarte.
Introdução
Este texto é resultado do grupo de estudos Concreto Pensado, do coletivo Bacamarte, do
qual fazemos parte. Nossos estudos têm perpassado temas como a indústria cultural, correlações
ente marxismo e arte, análises de conjuntura, discussões sobre a questão da mulher na pandemia e
diversos outros temas, todos sob a orientação do materialismo histórico-dialético como método.
Somos um coletivo de artistas independentes que vêm buscando aliar a teoria à prática
como forma privilegiada de compreender e superar determinados limites impostos pela sociedade
hodierna. As lives que fizemos estão disponíveis no canal da Bacamarte Produções no YouTube e
agora pensamos em registrar em formato de texto o debate sobre a questão do identitarismo,
transmitido em videoconferência no dia 25 de outubro de 2020 (NASCIMENTO; CHALHOUB,
2020). Há também uma análise, baseada neste artigo, disponível no canal da 202 filmes
(MOURA, 2020).
O livro escolhido como referência foi “Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de
hoje”, de Asad Haider, prefaciado pelo professor Silvio Almeida. Como leitura complementar há
diversos outros autores que também nos serviram como base e nos ajudaram a melhor descortinar
esse tema tão complexo. Ao longo do texto buscaremos destacar alguns pontos importantes
colocados por esses outros referenciais também.
A identidade, no entanto, é um dado material concreto. Como bem coloca Silvio Almeida
(2019, p. 08) no prefácio, “a identidade é [...] algo objetivo, vinculado à materialidade do mundo,
e pessoas não-brancas como Haider e eu somos pensados através da identidade, ainda que nela
não pensemos.” Ou seja, nós somos pensados por algo que já existe historicamente. Somos,
portanto, colocados em posições sociais determinadas de acordo com a identidade e, claro, o
poder aquisitivo. Esse lugar social, por exemplo, pode ser o do negro jovem e periférico enquanto
alvo preferencial da polícia que se configura como a vida matável, segundo conceito de Giorgio
Agamben (2002).
“Nós na verdade nunca, até onde posso dizer, no que diz respeito à definição
clássica, praticamos realmente o que as pessoas agora chamam de política
identitária. Porque a parte central e o foco central não era um aspecto da nossa
identidade, mas a totalidade do que significava ser uma mulher negra na
diáspora”. (Taylor apud HAIDER, 2019, p. 157)
O que se perdeu, no decorrer da história, foi a capacidade de superar tal relação de
dominação, acabando por reforçar a ideia de naturalização das relações capitalistas e uma falsa
ideia de superação ou combate ao racismo. Nesse sentido, Stuart Hall faz uma importante síntese
sobre a forma como a questão racial cai nos trilhos do capital:
"O capital reproduz a classe como um todo, estruturada pela raça. Ele domina a
classe dividida, em parte, através dessas divisões internas que tem o "racismo"
como uma de suas consequências. Ele contém e dá cabo das organizações
representativas de classe confinando-as, em parte, a estratégias e lutas
especificamente raciais, as quais não superam seus limites, suas barreiras.
Através da raça, ele continua a derrotar as tentativas de construir, num nível
político, organizações que de fato representem adequadamente a classe como um
todo - isto é, que a represente contra o capitalismo, contra o racismo." (Hall
apud HAIDER, 2019, p. 133)
A luta do negro no contexto geral dos Estados Unidos das décadas de 60 e 70, portanto,
não estava apartada da luta de classes, o que fica evidente nas posições do CCR com relação ao
racismo e sua relação direta com o capitalismo, certamente contrariando a colocação de Hall que
se refere a outro contexto em meio a um identitarismo descolado das relações de classe. A
transformação social depende de uma série de fatores. O próprio transcorrer do tempo pode ser
um desses fatores. O tempo avança e mudanças concretas acontecem no cenário social. No que
diz respeito a superar (ou emancipar) problemas sociais como a exploração do homem pelo
homem é preciso muito mais do que a simples e automática passagem natural do tempo. Aliás, o
tempo, neste sentido, pode ser um verdadeiro aliado das relações de dominação, pois, na medida
em que passa, naturaliza tais relações. Os homens então passam a acreditar que este fenômeno
nada tem de histórico: ele é natural, portanto, imutável.
No capítulo 2, “Contradições entre as pessoas”, Haider produz algumas análises sobre o
aprofundamento da ideologia identitária, nos EUA dos anos 70, a partir do arrefecimento das
lutas sociais em múltiplas novas segregações, o que resultou, por exemplo, no apartamento das
lutas, fundando assembleias de POC (people of color: pessoas de cor, em tradução livre).
“Em Santa Cruz, a ideologia identitária nos levou cada vez mais para longe de
um projeto genuinamente emancipatório. Suas consequências não foram apenas
a desmobilização do movimento, mas também uma compartimentação política
degradante. [...] Ativistas “POC” focariam a brutalidade policial, estudos étnicos
e a teoria pós-colonial. O aumento do custo de vida, a privatização da educação
e a precarização do trabalho se tornariam questões de “brancos”.” (HAIDER,
2019, p. 68)
A perda dessa materialidade, que é a perda da própria história de como se forja a ideia de
raça, resulta numa perspectiva identitária pura e simples, sem qualquer relação direta com o
passado a não ser por um idealismo muitas vezes místico, metafísico. E o que é (ou se tornou) a
política identitária? Segundo Asad Haider (2019, p. 47):
"Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma inicial
como teorização da prática política revolucionária, a política identitária é um
método individualista. Ela é baseada na demanda individual por reconhecimento
e toma essa identidade individual como ponto de partida. Ela assume essa
identidade como dada e esconde o fato de que todas as identidades são
construídas socialmente. E porque todos nós temos necessariamente uma
identidade que é diferente da de todos os outros, ela enfraquece a possibilidade
de auto-organização coletiva. O paradigma da identidade reduz a política a quem
você é como indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de
ser baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva contra
uma estrutura social opressora. Como resultado, a política identitária
paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se propõe a criticar."
Por isso, conclui Haider que “essa experiência me mostrou que a política identitária é, ao
contrário, uma parte integral da ideologia dominante. Ela torna a oposição impossível.”
(HAIDER, 2019, p. 68).
De forma mais sintética, Haider (2019, p. 177) define a política identitária “como a
neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a ideologia que surgiu para apropriar
esse legado emancipatório e colocá-lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas.”
(grifos nossos). O autor (HAIDER, 2019) justifica tal colocação no desenrolar do livro,
esmiuçando as contradições das lutas sociais envolvendo negros, brancos pobres e imigrantes ou
mestiços, tendo como contradição central o apartamento desses múltiplos setores como método
privilegiado de evitar a conflagração de lutas populares unificadas.
Importante destacar nesse ponto que a ideia de raça é fundada a partir da luta de classes de
anglo-americanos e afro-americanos contra a classe dominante colonial europeia durante o
processo de transição americana ao capitalismo. Assim, a ideia de raça surge em primeiro lugar
como a ideia de “supremacia branca”, utilizada pela classe dominante para dividir os
trabalhadores brancos e negros americanos, justificando a transição de um sistema de exploração
de ambos baseado no trabalho por dívida por tempo determinado para um sistema escravista por
tempo indeterminado, que foi imposto somente aos negros. Nota-se que a ideia de raça surgiu
então como um artifício para dividir a classe trabalhadora na luta por impedir um processo da
acumulação capitalista que intensificava a sua exploração, que passou a se acelerar no século
XVIII. De fato, tanto escravidão quanto discriminação e exploração não se vinculavam à cor da
pele antes da constituição desse fenômeno histórico.
Assim, o caso dos Estados Unidos, a partir do século XVIII, constrói a ideia de raça
branca que levou irlandeses – historicamente discriminados e explorados na Europa – a
reproduzir futuramente sobre negros a mesma ideia de sub-humanidade que outrora produziram
discriminação concreta sobre outros grupos sociais – entre eles e prioritariamente – sobre os
próprios irlandeses.
Nesse sentido, a ideia de identidade foi sendo modificada ao longo de processos históricos
que descaracterizaram sua proposta inicial. Haider (2019) quer dizer por “diferente da sua forma
inicial” a orientação revolucionária do Coletivo Combahee River que, num de seus textos, “A
Black Feminist Statement”, criticava o racismo e o sexismo na esquerda:
“Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para
o bem coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam os produtos, e não para o
lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente distribuídos entre
aqueles que criam esses recursos. Porém não estamos convencidos de que uma
revolução socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista
garantirá nossa libertação.” (CCR apud HAIDER, 2019, p. 30)
E continuam:
Haider (2019, p. 31) afirma que “para o CCR, a prática política feminista significava, por
exemplo, participar dos piquetes durante greves na construção civil durante os anos 70.”
Portanto, ao longo da década de 60, o partido dos Panteras Negras, continua Haider (2019):
“teve que navegar entre duas preocupações. Eles reconheciam que os negros
foram oprimidos numa base especificamente racial e que, portanto, tinham que
se organizar de forma autônoma. Mas, ao mesmo tempo, falar de racismo sem
falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o povo tenha de fato
o poder em suas mãos. Apenas cria uma situação em que o policial branco é
substituído pelo policial negro. Para os Panteras isso não era uma libertação.”
Mas como esse processo de instrumentalização da solidariedade por uma elite se relaciona
com a identidade? Num dos diversos textos pesquisado sobre o assunto, foi encontrada a seguinte
definição de identitarismo, sem indicação do autor, presente nos comentários do texto “Luta de
classes e “identitarismo”: emocionados no reino da ignorância iluminada”, de Heribaldo Maia
(2019, online):
A identidade molda a experiência imediata das pessoas, mas para além disso é preciso
pensar que as classes sociais se antagonizam no processo produtivo do capital, o que implica na
divisão social do trabalho e toda sua alienação decorrente que muda de acordo com as
transformações e crises do capitalismo. Por mais que nos Estados Unidos houvesse a Rights Act
de 1964, que tornou ilegal a segregação racial, e o Voting Rights Act, de 1965, sobre o direito de
voto, a estrutura opressora permaneceu. O que nos chama atenção é a clara apropriação da direita
por essas pautas o que deve na verdade nos preocupar. O autor (HAIDER, 2019, p. 31) cita o
exemplo da campanha da Hillary Clinton, “que adotou a linguagem da “interseccionalidade” e
do “privilégio”, utilizando-se da política identitária para combater o surgimento de uma opção de
esquerda no Partido Democrata em torno de Bernie Sanders.”
As armadilhas da identidade
É nesse contexto histórico de produção concreta de desigualdades que a armadilha da
identidade mostra seus contornos. Mas, questiona Silvio Almeida (2019, p. 09), “como a
identidade pode ser uma “armadilha” se dentro dela já inevitavelmente estamos?” Eis aí a
questão central. Para Haider (2019, p. 31):
Não por acaso, empresas como Netflix, Apple e Amazon passaram a utilizar essa
estratégia, pois os grandes conglomerados se beneficiam dessa lógica ao disponibilizarem bens e
serviços em larga escala a preços baixos, substituindo pequenos produtores que antes
comercializavam esses bens a um custo elevado e de forma local.
Nesse sentido, pensando a transformação da identidade em mercadoria, buscamos a
seguinte analogia (grifos nossos):
Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter
social do trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva
estampada no produto deste; [...] (MARX, 2017, p. 147)
[...] porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho
(...) é apresentada a eles como uma relação social que existe não entre eles,
mas entre os produtos de seu trabalho. [...] (MARX, 2017, p. 147)
Por “relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias”,
pode-se entender aqui como a relação de valor entre o conteúdo e dados produzidos em rede
que os caracteriza como mercadorias. Estas evocam um valor simbólico fruto das interações
sociais entre pessoas concretas: o significado da identidade para quem a produz. Por sua vez, a
identidade associando-se à preferência por determinadas marcas, bens e serviços, que não têm
nenhuma relação com a realidade concreta das pessoas que os consomem. A relação entre os
indivíduos, que gera o trabalho intelectual que se traduz na mercadoria “conteúdo e dados
produzidos em rede”, também gera relações concretas historicamente constituídas, mas não se
percebe a relação entre as duas, pois a “relação entre coisas” mascara essa relação entre pessoas.
Em outras palavras, as relações de mercado “tomam ares” de relações políticas de modo que se
tem a impressão de que a substituição não faz diferença. Mas faz. Basta dizer que se política é
pautada pela disputa por recursos comuns, a lógica que dá a impressão de que as relações se dão
entre coisas – não entre pessoas – distorce o propósito da política para a satisfação não das
necessidades das pessoas, mas da produção de coisas.
Garante-se assim, a expansão do capital em seu já citado processo de automanutenção.
Como a mercadoria agora atende a nichos identitários, estes grupos, resultantes da agregação
social de produções subjetivas – através do trabalho gratuito de produção de conteúdo para as
redes sociais – passam a ser o combustível que organiza a produção de informações estruturadas
que permitem manter e ampliar a produção de mercadorias que atenda aos nichos de mercado
consumidor. Em outros casos, reativa nichos em decadência, como no caso de camisas de malha
unissex que agora carregam a expressão “não-binárie” de forma destacada.
“[...] a arte como força política é somente arte enquanto preserva as imagens da
libertação; em uma sociedade que é em sua totalidade a negação dessas imagens,
a arte pode preservá-las somente através da recusa total, isto é, não sucumbindo
aos padrões da realidade sem liberdade, seja em estilo, ou na forma, ou na
substância. (MARCUSE apud SILVEIRA, 2009, p. 46)
Uma pista então para identificar essas novas marginalidades talvez seja justamente a
rejeição das estéticas ou temas progressistas, que substituem a emancipação coletiva pelo festivo
domínio da marginalidade como glamourização, portanto, entretenimento confortador. Trata-se
de lógica notoriamente inserida no campo da competição, haja vista sua predisposição para
produzir mercadorias – enquanto produtos culturais resultantes da expressão artística – cujo
capital simbólico reitere a centralidade da identidade per se. Aqueles que forem capazes de
melhor expressar as expectativas sobre determinada identidade, serão aqueles que obterão maior
retorno financeiro e de reconhecimento social para suas obras, inserindo-se com sucesso no
mercado da indústria cultural. A produção cultural baseada nessas premissas certamente produz
capital simbólico – no âmbito das abstrações – e novas elites na classe artística – do ponto de
vista das relações sociais. É sobre esse processo de estratificação – que não se restringe à classe
artística, mas à toda classe trabalhadora – que abordaremos a seguir.
“Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão
tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados
principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento,
tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver
nada para vender. A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de
deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente
deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana
triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo,
acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será
constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios
computacionais.” (MBEMBE, 2017, online)
Considerando que Mbembe escreveu este artigo em 2016, quando ainda não estávamos no
contexto da pandemia de COVID-19, tendemos a acreditar que sua análise de conjuntura tome
contornos ainda mais graves, à medida que constatamos a intensificação das relações digitais.
Nesse sentido, outra armadilha que a identidade traz é a individualização das pautas políticas que
acabam por convergir no compartilhamento e circulação de sentimentos em comum,
especialmente nas redes. Não é de se admirar que, num contexto de opressão que se dá constante
e consistentemente, o ódio e o ressentimento se tornem um dos elementos emocionais em torno
dos quais se constituem a forma de manutenção dessas identidades coletivas. Como coloca
Mbembe (2017, online):
“Cancelamentos e linchamentos são hoje das ações mais banais das estratégias
dos identitários, sejam esses de esquerda ou de direita, principalmente depois
que grande parte das nossas vidas passou a transcorrer em direta relação com
ambientes digitais. Nesses ambientes é que se consegue facilmente mobilizar
enorme montante de pessoas, insuflar em grandes massas um estado de
indignação moral ou furor ético e, enfim, colocar alvo em pessoas, instituições e
atos na direção dos quais toda a fúria deve ser dirigida. Para o linchamento e o
cancelamento digitais se requer, antes de tudo, uma multidão unida por algum
sentimento de pertencimento recíproco, motivado pela percepção de que todos
estão identificados entre si por algum aspecto essencial da sua própria
persona social. Um recorte comum, por meio do qual são separadas e
antagonizados, de um lado, o “nós”, de dentro do círculo, e, de outro, “eles”, os
de fora.” (GOMES, 2020, online)
Existe uma seletividade no cancelamento e isso tem relação direta com o funcionamento e
métodos identitários. Todo mundo pode um dia ser linchado digitalmente, explica Wilson Gomes
(2020, online):
“[...] mas só pessoas com visibilidade e importância social e, o que é mais
importante, que pareciam vinculadas a ou simpatizantes da pauta identitária, é
que podem ser canceladas. O cancelamento envolve ruptura e luto, uma vez que
o cancelado tem que ter representado alguma coisa para quem o cancela, mas o
sentido de ultraje moral e fúria linchadora é mesma.”
O cancelamento, portanto, é um método de acusação feito “aos gritos” onde não existem
argumentos, debates e espaço para o contraditório. O cancelamento é uma prática de
demonstração de poder, de influência pela ameaça e de ação metódica na construção de párias
sociais: sujeitos sem prestígio ou credibilidade. Por isso, o cancelado passa a se autopoliciar de
forma que o medo se torna uma marca perene. Excluir socialmente, recontar a história do
cancelado – ressaltando todos os seus pontos negativos e inculcando sua incapacidade de
regenerar-se – é o legado do cancelamento. Nesse sentido, trata-se então da prática da pequena
política, daquilo que não ofende o sistema exploratório geral: numa ilusão de que, anulando a
prática individual dos desajustados, seria possível modificar as redes e formas de dominação e
opressão. É precisamente assim, afirma Carlos Nelson Coutinho (2010, p. 29), “através da
exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia da época do neoliberalismo.”.
Gramsci (apud COUTINHO, 2010, p. 29), em “Cadernos do Cárcere”, afirma o seguinte:
Conclusão
O debate identitário é extremamente importante, pois através dele identificamos como o
indivíduo e grupos de indivíduos com características semelhantes são oprimidos, no entanto, não
é único debate necessário, pois há outras instâncias e modos de produção da vida que não são
atravessados por esse viés. No fim das contas, a pauta identitária, quando voltada exclusivamente
para si mesma, tem esvaziado o debate político e o tornado facilmente cooptável pelos interesses
do mercado, pois desuniversaliza as pautas enquanto centraliza o debate no monitoramento do
comportamento individual. Foca na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado a
identificação por semelhanças.
Ainda que seja necessário debater como cada um de nós reproduz o racismo estrutural que
dá sustento ao sistema capitalista a que está intrinsecamente atrelado, bem como outras formas de
discriminação, isso não bastará para destruir os mecanismos que instrumentalizam a comunicação
através das redes sociais com seus algoritmos que predeterminam critérios de visibilidade e meios
de comunicação de massa que segmentam pautas e olhares sobre os fatos. Certamente há outros
modos de comunicação possíveis – como as relações concretas – e poder utilizar a rede mundial
de computadores para pesquisa e interação social é também um avanço em relação a precariedade
de comunicação existente em períodos históricos anteriores. No entanto, se não há estímulo ao
pensamento crítico e a um debate que não se prenda a processos tautológicos – como tem sido
predominantemente o da perspectiva identitária – aqueles que têm meios para tentar distorcer
nosso olhar em favor de seus próprios interesses não hesitarão um segundo em fazê-lo. Dessa
forma, fica cada vez mais afastada a possibilidade de organização coletiva em direção a
mudanças radicais nos modos de organização humana.
Obviamente, os movimentos identitários não são os únicos e principais responsáveis pelas
mazelas sociais e políticas que nos assolam. A proposta desse artigo é apontar as armadilhas que
o identitarismo traz quando inserido na lógica do sistema capitalista, notadamente para os setores
identitários da esquerda, pois acreditamos que o debate nesse espectro é urgente e necessário.
Justamente porque classe e raça (bem como gênero, sexualidade e outras formas de representação
de minorias políticas) estão associadas de forma intrínseca ao processo de manutenção da
exploração capitalista, é que a constituição de identidades coletivas deve manter sempre em
perspectiva modos alternativos de associação política, notadamente aqueles que se constituam
pela classe – haja vista que sua maior abrangência desestimula sectarismos – mantendo exposto o
elemento central de exploração em última instância: o trabalho humano. Dessa forma, no
contexto do livro de Haider (2019), ao considerar a perspectiva de raça atrelada à de classe pela
associação inseparável entre racismo e capitalismo, será possível, encontrar formas de
organização amplas, articuladas, revolucionárias e emancipatórias.
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MAIA, Heribaldo. Luta de classes e “identitarismo”: emocionados no reino da ignorância iluminada.
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