História Oral, Etnografia e Dicções de Pai Francisco em Estado de Transe de Leandro Seawright Alonso PDF
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Introduo
social. Outrossim, consiste em tentar salvar o dito num tal discurso da sua
possibilidade de extinguir-se e fix-lo em formas pensveis (Geertz, 2008,
p. 15). Segundo James Clifford que estabeleceu elementos essenciais de
aproximao entre a antropologia e a histria , porm, a etnografia busca a
experincia, que, por suposto, tem recebido, em conjunto com a interpreta-
o, nfases sensoriais diferenciadas. No mor das vezes, estar l, no campo,
significa compartilhar as experincias e, com bastante responsabilidade,
transferi-las da esfera do vivido. Aduziu Clifford:
O campo de pesquisa
Quando cheguei fui recebida pela ekedi3 Daniela, que pediu para que eu
me sentasse na sala e ofereceu caf. Ela disse que o pai estava virado e que
eu esperasse um pouco porque eles logo subiriam (ele estava em um quarto
que fica na entrada da casa descendo as escadas).4 Daniela saiu e foi at
l. Depois de alguns minutos ela voltou e falou que ele estava me cha-
mando, que era seu Tiriri Lonan. Descemos as escadas e ela abriu a porta de
madeira, no pequeno quarto estava sentado em um banquinho de madeira
5 Alguidar ou igb um recipiente onde se deposita elementos que representam a fora da divindade
cultuada: ele o centro de toda a fora das divindades e tem a representao fsica do vnculo da pessoa
com seus orixs (Kileuy; Oxagui, 2011, p. 101).
6 Por ritual, entendemos [...] um conjunto sempre repetido de operaes litrgicas ou de prticas religiosas
ordinrias que comeam com as preservaes das reservas de memrias mticas primordiais e terminam
em celebraes cuja oralidade posiciona os religiosos por meio da narrativa (Seawright, 2016b, p.44).
7 Em histria oral privilegia-se o uso de estmulos, como distinguem Meihy e Ribeiro: pergunta dife-
rente de estmulo. Nas perguntas, busca-se ter respostas objetivas, diretas, e nos estmulos procura-se a
lgica e a construo do argumento (Meihy; Ribeiro, 2011, p. 12).
196 SEAWRIGHT, Leandro A.; BALIBERDIN, Aline. Histria oral, etnografia e dices de Pai Francisco...
se tornasse um ser encantado.8 Seu nome, Tiriri Lonan, segundo a sua expli-
cao, significa o dono do caminho.
8 Encantado, segundo o colaborador, a sua condio por ter nascido a partir de um encantamento, da
unio de elementos naturais em um igb. O igb de Exu Tiriri Lonan na casa de Pai Francisco contm,
entre muitos objetos, variaes de tipos de terras e minerais.
9 O mito cosmognico estruturalmente conta a histria da criao do mundo e da criao por excelncia.
Segundo Mircea Eliade: Os mitos de origem contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou
empobrecido (Eliade, 1972, p. 20).
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isso de tempos em tempos se perde, ento existe muito Tiriri, mas Lonan
mesmo, s um. Querem que encanto no pode incorporar em outro, no se
passa, no se d, a no ser que seu Francisco morra. A talvez uns milhes
de anos se d novamente, depende do que vai deter...
[est] escrito no livro sagrado que Deus pairou beira do abismo, s existia
trevas e, na verdade, o primeiro que veio foi Exu, o divino esprito santo
de Deus assim chamado. O africano fez evocao Olorum, Ol: dono,
Orum: universo, ao grande dono do universo e seu mensageiro Okaran
veio Terra para povoar a Terra.10
Assim, Ogum, deus do ferro e da guerra, patrono dos ferreiros, foi assimi-
lado a So Jorge ou So Miguel; Xang, associado aos troves e relmpagos,
10 Referncia ao Odu krn Meji, o primeiro Odu de If, na cada do jogo oracular quem responde Exu.
11 Ressaltamos que crioulizao e hibridismo cultural so expresses distintas, embora aproximadas.
Ainda assim, reportamos a ambas segundo distintos vieses o de Glissant e o de Burke.
198 SEAWRIGHT, Leandro A.; BALIBERDIN, Aline. Histria oral, etnografia e dices de Pai Francisco...
12 Egum ou egungum refere-se aos mortos ou espritos ancestrais: O egum, ao contrrio do orix, experi-
mentou a morte e sabe os seus mistrios (Reis, 2000, p. 57).
13 Por suposto, no suficiente apenas atribuir a imagem controversa de Exu aos aspectos do eurocen-
trismo em voga contemporaneamente; por isso, ressaltamos que a nossa interpretao uma entre outras
possveis.
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Exu se quebra em fragmentos como uma taa que no pode ser juntada
jamais, por mais que voc cole, aquela taa no vai ser a mesma coisa. Voc
me conta uma mentira, eu finjo que acredito... Foi voc que me enganou ou
eu que te enganei?
14 Il Ax Op Afonj uma casa de ax (terreiro) de grande reconhecimento dentro do culto aos orixs.
Fundada em 1910 em Salvador (BA), atualmente dirigida pela iyalorix Maria Stella de Azevedo San-
tos, ou Me Stella de Oxssi.
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capa azul contendo orikis.15 Pronta para o servio, ela entregou-o em minhas
mos, aberto nas pginas em que estava escrito um oriki para Exu. O colabo-
rador pediu para que eu lesse e, assim, o fiz em voz alta para que, inclusive,
ficassem registrados os termos do oriki na gravao.
s, o inimigo dos orixs. Ostr o nome pelo qual voc chamado por
seu pai.
Algogo j o nome pelo qual voc chamado por sua me.
s dr, o homem forte de dlfin. s, que senta no p dos outros.
Que no come e no permite a quem est comendo que engula o alimento.
Quem tem dinheiro, reserva para s a sua parte.
Quem tem felicidade, reserva para s a sua parte.
s, que joga nos dois times sem constrangimento.
s, que faz uma pessoa falar coisas que no deseja. s, que usa pedra ao
invs de sal. s, o indulgente filho de deus cuja grandeza se manifesta em
toda parte.
s, apressado em esperar, que quebra em fragmentos o que no poder se
juntar novamente. s, no me manipule, manipule outra pessoa.
(Slmi, 1991, p. 25).
O ritual da entrevista
[...] uma frmula para o contnuo vaivm entre o interior e o exterior dos
acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrncias e gestos
especficos, pela empatia; de outro, d um passo atrs, para situar esses sig-
nificados em contextos mais amplos. (Clifford, 2014, p. 31).
17 O xir, ou sir a dana dos deuses no candombl; ela segue uma ordem sequencial de toques e cnticos
para cada divindade. O xir um congraamento, um encontro, o xir a roda onde os orixs se encon-
tram para danar e brincar! (Kileuy; Oxagui, 2011, p. 203).
204 SEAWRIGHT, Leandro A.; BALIBERDIN, Aline. Histria oral, etnografia e dices de Pai Francisco...
Vossunc consulente: Exu o que fao com a minha vida, por que to
perturbada estou assim, sem saber pra onde ir, da onde venho, o que devo
fazer?. Faa isso. Mas apenas figurativo, como se fosse num onixegum,
um mdico, e ele desse uma receita de remdio, tome isso para o seu mal.
Toma se quiser, compra se quiser, gasta se quiser. Eu no vou amassar a
receita e jogar fora. Continua na mesma inexatido. No papel apenas
orienta... Claro que existem outros jeitos ritualsticos, onde no papel
muito importante, mesmo na incorporao e usando a mo e o corpo de
seu Francisco, mas... a um outro assunto...
18 Notamos, porm, que em histria oral comum haver outras pessoas presentes no ambiente da entre-
vista.
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Pai Francisco, durante o transe em que respondia por Exu Tiriri Lonan,
vestia roupas simples e confortveis. Estava de cala jeans, casaco de zper
(pois fazia um pouco de frio no dia) e meias brancas. A informalidade de
sua vestimenta me fazia pensar o quanto a situao em que era incorporado
por sua divindade era habitual para ele. A importncia da presena mitol-
gica da sua divindade no era diminuda pela simplicidade de suas roupas
e gestuais.
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Dilogos e identidades
19 Ossaim, de acordo com a crena afro-brasileira, o orix que detm o segredo das plantas e folhas.
Segundo Bastide, ele preside todos os rituais em que o emprego das ervas indispensvel iniciao,
banhos de purificao, etc. (Bastide, 2001, p. 127).
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Uma histria varivel pde ser construda no Brasil a partir das nar-
rativas que recontam as naes africanas. H no candombl brasileiro a
tendncia de se distinguir a origem dos ritos por naes, isto , cada casa
de ax se declara costumeiramente como originria de determinada tradio
africana, de dada nao africana. As principais denominaes de naes no
Brasil so bantu, yorub e fon20 (Prandi, 1991); ganharam no raras vezes
outros nomes, quais sejam, respectivamente: angola, ketu e jeje. A casa de Pai
Francisco, Il As If w, conforme explicou o narrador, de nao jeje
apesar de tocar ketu na sala, o que significa que nos ritos internos utiliza-se
dos fundamentos do grupo fon, mas, em seus ritos pblicos, vale-se da tradi-
o yorub.
20 Bantu, yorub e fon so nomes para grupos tnico-culturais africanos no Brasil. Os bantu vieram de
regies atualmente conhecidas como Angola, Congo; os fons, provenientes do Benim, antigo Daom.
[...] Os iorubs, de cidades da atual Nigria, como Ilex, Oy, Ketu (Kileuy; Oxagui, 2011, p. 32).
210 SEAWRIGHT, Leandro A.; BALIBERDIN, Aline. Histria oral, etnografia e dices de Pai Francisco...
21 O significa bruxo. Alab um ttulo dado a um chefe do culto a Baba Egum; nas palavas de Exu
Tiriri Lonan/Pai Francisco: Marab seria igual a um papa, um supremo dono de todos os corpos de
existncia entre o cu e a terra.
212 SEAWRIGHT, Leandro A.; BALIBERDIN, Aline. Histria oral, etnografia e dices de Pai Francisco...
22 A heteroglossia em Bakhtin significa que as linguagens praticadas no campo de pesquisa foram atra-
vessadas por outras subjetividades, [...] por nuances contextuais especficos em torno de histrias trau-
mticas ou no, assim como de posicionamentos religiosos e polticos divergentes (Bakhtin, 1981 apud
Seawright, 2016a, p. 66).
23 Textualizao, segundo Clifford, o processo pelo qual o comportamento, a fala, as crenas, a tradio
oral e o ritual no escritos vm a ser marcados como um corpus, um conjunto potencialmente significa-
tivo separado de uma situao imediata discursiva ou performativa (Clifford, 2014, p. 36).
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Abstract: Through the methodological support of oral history and ethnography in a research
context, we wrote this article based on an interview with Pai Francisco and field notes. Based
on his life narrative, we aimed at understanding issues related to candombles mystique, the
narrators memory reserve and identity negotiations established between Pai Francisco and Exu
Tiriri Lonan. We describe an episode of religious trance and an interview with Pai Francisco/
Exu Tiriri Lonan along the mystical and narrative performance.
Recebido em 19/10/2016
Aprovado em 26/06/2017