Louis Althusser-O Futuro É Muito Tempo (Seguido de Os Factos) PDF
Louis Althusser-O Futuro É Muito Tempo (Seguido de Os Factos) PDF
Louis Althusser-O Futuro É Muito Tempo (Seguido de Os Factos) PDF
JORGH AM AD O
C onversas com A lice R a illa rd
I /6 dc \(tiv ii/h m de I9SO. o unindo eslremeeen:
l.onis .Mlhnsser. o clehiv lihisofo iiinrxisln. o uiesire
inconlesindo de Ioda ninn '^erndo de inleleeliuiis
e ielirisins /lollieos. es/rnn_>nlnrn a snn jim lirin innlher.
Ilelene. nincndo de ninn crise de deiiincin. \ n o honre
processo, item condenao: considerado iniiupnldrel.
encerrado nnin hospcio psirpiidlrico. ahalen-.se sohre ele
niiia pesada cortina de silncio. Pnlrelanlo. com a crise
do m arxism o, os sens Urros, (pie tin h a m sido rerdadeiros
hreridrios. transform aram -se em peas de m nsen.
O nando Althn.s.ser morren. em O ntnhro de IhdO. jd ha
m nito tinha m orrido na m em ria das piuites (' do tempo.
,SVi (pie ento .se de.scohre (/ne. d u ra n te e.s.ses /c : <tiios.
.Mthn.s.ser no ce.s.sara de rejlectir. de pensar, de escretvr.
/ ipie no meio do .sen esplio, d a ctilo p ra fid o p o r ele.
pronto para pnhiicao. lutt ia um d o cum ento trpico e
extraordinrio em <pie o f 'iloso/. com o tpie respondendo
no proce.sso ipie no tere. explicara o .sen crim e e
m erpnlhara nas razes m ais fniidts da sna demncict: este
( ) ruuiro M liIo Tniipo,
/;' esta extraordinria e d ram tica con/i.s.so /lstiinut de
.Mthn.s.ser a cpie se ju n ta na juvsente edio n m ontro
eshoo antohioprlico indito. O s IsiU o s, redipido em
I9M ) . (pie as lidties . l.S. l se orpnlham de apora
aju e.sentar (to leitor jiortiipns. fioncos me.se.s de/xiis do
retnm hante sucesso ohtido pela edio oripinal francesa.
LOUIS ALTHUSSER
O FUTURO MUITO TEMPO
SEGUIDO DE
OS FACTOS
ED I O O RG ANIZAD A E APRESENTADA POR
1^
ASA
l I 1 { BA 1 U RA
IIII 1.0(IRK.INAI
I. A\E.MRDLRh I.ONGIFMPS
l-) 2. Idiuun^ IMS(
i' S>c7vniAi-ii O-
A presentao. 9
OS FACTOS 301
APRESENTAO
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L O I I S A L T U [ S S E R
A anlise dos docum entos e dos testem unhos at aqui reunidos perm item
adiantar com segurana os pontos seguintes: a redaco de O F uturo M uito
Tempo foi despoletada, ainda que o projecto de uma autobiografia seja m uito
anterior, pela leitura, no M onde do dia 14 de Maro de 1985, de um bilhete
de Claude Sarraute intitulado Petite fa im . (Mnsagrado essencialmente ao assas
snio antropofgico de uma jovem holandesa pelo japons Issei Sagawa e ao xito
que conheceu em seguida no Japo o liv ro onde este narrava o seu crime, depois
de ter sido repatriado na sequncia de um a declarao de im procedncia e de
uma breve estadia num hospital psicjuitrico francs, o artigo de Cdaude Sarraute
evocava de passagem outros casos: [...] Nos m edia, assim que descobrim os
um nom e de prestgio imiscudo num processo suculento Althusser. Thibault
d Orlans transform am o-lo em grande acontecim ento. A vtima? No merece
trs linhas sequer. A vedeta o culpado [ ..].
Aps a publicao deste bilhete, diversos amigos de Louis Althusser
aconselharam -no a protestar junto do jornal contra a aluso a um processo
suculento. Mas ele seguiu o conselho de outros amigos, que em bora criticas
sem a m aneira com o a coisa fora feita, achavam que, em todo o caso, Claude
Sarraute punha em evidncia um ponto essencial, e para ele dram tico: de
Veja-sc \un i.h;r liorr.w., to iiis Althusser. u n e biograpbie. tom o i, Cirasset, 1992.
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arquivos no havia qualquer fotocpia dele. Um dos seus amigos, Andr Tosei,
conta que s o p d e ler, em Maio de 1986, na presena do Autor, em casa deste
c sem tom ar notas.
Acrescente-se p o r fim que para a redaco de O F uturo M uito Tempo,
Louis Althusser, sobretudo no que se refere aos prim eiros captulos, se inspi
rou com toda a evidncia e em grande m edida na sua prim eira autobiografia
intitulada Os Factos, de que conservara duas verses m uito parecidas.
Esse texto. Os Factos, que publicam os na segunda parte deste volume, foi
escrito em 1976 (a indicao do ano figura na prim eira pgina), e de acordo
com toda a verosim ilhana, no decorrer do seu segundo semestre. Louis
Althusser props e entregou o texto a Rgis Debra)-, que o destinava ao
segundo nm ero de um a n o \a revista, a ira, cujo nm ero zero fora publi
cado em Janeiro de 1976 e que acabaria p o r no ver a luz do dia. Do co nheci
m ento de alguns amigos de Louis Althusser, esta autobiografia perm aneceu
tam bm at data totalm ente indita.
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.iqui nas pginas 237-241 ^ O m esm o se passa com a ltim a parte - do cap
tulo consagrado a anlises polticas sobre o futuro da esquerda em Frana e a
'itu a o do Partido C om unista (aqui captulo XIX ). Ao que parece Lous
Althusser pretendia utilizar estas pginas para uma outra obra sobre A Verda
deira Tradio M aterialista. Mas, para l destes trs captulos, representando
sessenta e um a folhas m etidas num a capa parte que tem o ttulo referido, no
existem outros elem entos de inform ao mais precisos acerca deste projecto de
li\ ro inacabado; as pginas em causa talvez venham a ser objecto, nom eadamente
os dois captulos sobre Maquavel e Spinoza, de um a publicao posterior.
Em ltim a anlise, optm os p o r publicar este texto de O Futuro M uito
Teuipo. quase sem indicaes de variantes, excepo de alguns raros acres
centos margem para os quais o Autor no procedera s ligaes indispens-
^x4s e que apresentam os p o r isso em nota, rem etendo os investigadores para o
dossier preparatrio e para o m anuscrito. Q uanto ao resto, as indicaes edito
riais extrem am ente precisas (sublinhados, m udanas de pargrafo, insero de
acrescentos, etc.) deixadas por Louis Althusser foram integralm ente seguidas e
s introduzim os correces editoriais m enores e correntes no dom nio das
concordncias verbais e da pontuao, bem com o precises sobre os nom es
prprios das pessoas citadas. Os erros de facto ou de datao foram deixados
com o estavam: para a sua eventual verificao, o leitor poder reportar-se
biografia do Autor que publicada ao m esm o tem po que este texto. Naigumas
passagens, todavia, o acrescento de uma palavra ou de uma locuo, entre parn
teses rectos, revelar-se-ia indispensvel para um a leitura mais ciara do texto.
O m anuscrito de Os Factos, pelo seu lado, apresenta-se sob a form a de
uma dactilografia com m uito poucas correces e acrescentos, sendo portanto
as variantes m nim as e relativas sobretudo ordem dos prim eiros pargrafos.
Louis Althusser conservara nos seus arquivos apenas duas fotocpias do
m anuscrito, co rrespondendo a duas verses sucessivas e m uito prxim as um a
da outra.
' De Mas ames de chegarmos a Marx |...| a |..,| Penso que ainda no esgotm os este pensa
m ento sem precedentes c infelizmente sem continuidade.
- .V seguir a |...| po r causa do qual no deixariam de o atacar (p. 263).
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a segunda verso a aqui publicada, mas c evidente que o texto deve ter
conhecido anteriorm ente um a ou vrias redaces, pois que num a carta a San
dra Salomon, no decurso do Vero de 19"^6, Louis Althusser anuncia: Vou
p o d er reescrever a m inha autobiografia" que enriquecerei consideravel
m ente com recordaes reais e outras imaginrias (os meus encontros com o
Joo XXIII e com De Gaulle) e sobretudo com a anlise das coisas que conto,
juntando depois em anexo todos os itiateriais. Ests de acordo? Ser a poltica
pelo lado de dentro e pelo lado de fora ao m esm o tem po e isso perm itir-m e-
introduzir coisas cjue com certeza no ho-de desiludir quem as ler [...].
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"rccisamente p o r funo d e lim ita r'. Teremos assim passado para o lado da
nco, ou seja, de um im aginrio feehado circularm eiite no sistema sim blico
C l texto, rem etendo apenas para si p rprio? Em certo sentido sim, e o caracter
.tamente trabalhado dos m anuscritos de que dispom os, com as suas diferen
te ' etapas, conduzir verosim ilm ente, com o acontece com qualquer criao
literria, a conceder mais tarde a prio rid ad e crtica interna do texto. E c o n
tudo. tam bm no podem os ler estas pginas com o um rom ance de Cline ou
tima novela de Borges, para citarm os dois autores a que Althusser gostava de
'C referir.
Se entram os, com os dois textos, na escrita da fantasia, da alucinao,
porque a sua m atria a loucura, quer dizer, a nica possibilidade para o
'u jeito de se declinar com o louco, e depois assassino, e no entanto, e sempre,
ao m esm o tem po, filsofo e com unista. Estamos aqui em presena de um tes
tem unho prodigioso da loucura, no sentido em que, contrariam ente aos
docum entos nosogrficos com o a M em ria do Presidente Schreber estudada
por Freud, ou o de Pierre Rivire (Moi, Pierre Rivire, a y a n t gorg m a mre,
m a soeur, m a fe m m e ) apresentado po r Michel Eoucault, com preendem os pela
sua leitura de que m aneira um intelectual, superiorm ente inteligente e filsofo
de profisso, habita a sua loucura, a sua m edicalizao sob a form a de doena
m ental pela instituio psiquitrica, e as roupagens analticas com que se
enfeita. Neste sentido, este bloco a utobiogrfico, com o seu ncleo constitu-
ti\o presente desde Os Factos, form a p o r certo o indispensvel correlato da
Ftistoire de la fo lie de Michel Eoucault. Escrito de um sujeito a quem a inim-
putabidade retirara de facto a qualidade de filsofo, e inextricvel m escla de
factos e de fantasmas, O F uturo M uito Tempo exibe sem dvida experi
m entalm ente, num ser de carne e de sangue, aquilo cujo lugar fora designado
p o r E oucault: a vacilao da distino entre loucura e razo. Com o possvel
que o pensam ento se apoie na loucura sem ser sim plesm ente seu refm ou seu
prurid o m onstruoso? Com o pode a histria de um a vida deslizar assim em
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Olivier CORPET
Yann MOULIER BOUTANG
Q uerem os agradecer a todos os que nos perm itiram realizar a edio deste
volume, e em prim eiro lugar a Franois B oddaert, herdeiro de Louis Althusser,
que tom ou a deciso de publicar estes textos e nos testem unhou incessante
m ente a sua confiana. Mas tam bm devem os os nossos agradecim entos a; Rgis
Debra\, Sandra Salomon, Paulette Taeb, Michelle Loi, D om iniqtie Lecourt,
Andr Tosei, Sianislas Breton, Ellne Troizier, Fernanda Navarro, Gabriel
Albiac. Jean-Pierrc Salgas... pelos docum entos e preciosos testem unhos que nos
forneceram , perm itindo efectuar a edio destes textos nas m elhores condies
possveis, sem que, no entanto, possam ser considerados responsveis p o r um
trabalho que po r completo nos cabe assumir. Os nossos agradecimentos igualmente
aos colaboradores do IMEC que nos deram o seu auxlio, e m uito em particular
a Sandrine Samson que assegurou grande parte da classificacj do Fundo Althusser.
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o FUTURO E MUITO TEMPO
1985
provvel que haja quem ache chocante que eu me no resigne ao silencio
E depois do acto que com eti. e depois tam bm da declarao de inim puta-
bilidade que o sancionou e da cjual, segundo o m odo de dizer espontneo,
beneficiei.
Mas se no tivesse beneficiado dessa declarao, teria tido ciue com pare
cer no tribunal. E se tivesse tido que com parecer, teria tido qtie responder
perante ele.
Este livro essa resposta a que noutras condies teria sidtt obrigado.
E tudo o que peo que ma concedam : que me concedam agora o que antes
poderia ter sido uma obrigao.
Bem entendido, estou consciente de que a resposta que aqui tento no
corresponde nem s regras de um processo que no teve lugar, nem forma
que num tribunal teria assum ido. Pergunto-me todavia se a ausncia, no pas-
sadtt e para sempre, do julgamento, com as suas regras c a sua form a prprias,
no acabar p o r expor ainda mais o que tentarei aqui dizer apreciao e
liberdade pblicas. Tal em todo o caso o m eu desejo. meu destino no
p o d e r pensar em acalm ar um a inquietao a no ser expondo-m e a uma srie
indefinida de outras.
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para a esquerda, enviesados, a zona mais dura cjue fica por baixo dos ouvidos.
Massajo em \'. Sinto um a grande fadiga m uscular nos a n te b r a o s b e m sei,
massajar d-me sem pre dores nos antebraos.
O rosto de Hlne est imvel e sereno, os seus olhos abertos fixam-se no
tecto.
E de repente fere-me o terror: os olhos dela esto interm inavelm ente fixos
e sobretudo h um a breve ponta de lngua que repousa, inslita e tranquila,
entre os dentes e os lbios dela.
Claro que j vi m ortos, mas nunca na m inha vida \ i o rosto de uma estran
gulada. E no entanto sei que um a estrangulada. IVIas com o? Ponho-m e de p
e g rito : estrangulei a Hlne!
Precipito-me, e num estado de pnico intenso, correndo o mais que
posst), atravesso o apartam ento, deso as peciuenas escadas com corrim o de
ferro que do para o ptio da frente com o seu alto p o rto de grades e diri
jo-me, sem parar de correr, para a enferm aria onde sei que se encontra o
dr. tienne. que m ora no prim eiro andar. No me cruzo com ningum ,
dom ingo, a Escola est semi-vazia e adorm ecida ainda. Sempre a gritar subo a
quatro e quatro os degraus das escadas do m d ic o ; Estrangulei a Ellne!
Bato com fora porta do m dico, que. tambm ele de roupo, acaba po r
\r abrir, desnorteado. C ontinuo a gritar sem descanso que estrangulei Hlne.
agarro o m dico pela gola do roupo: tem cjue v ir v -la com a m xima urgn
cia. seno pego fogo Escola. tienne no acredita em mim. impossvel.
Descem os a toda a pressa e eis-nos junto a Hlne. C ontinua com os m es
mos olhos fixos e o seu pedao de lngua entre os dentes e os lbios. tienne
ausculta-a: Nao se pode fazer nada, tarde de mais. E eu: Mas no se pode
reanim-la? No.
A seguir. tienne pede-m e licena por uns m inutos e deixa-me sozinho.
Mais tarde, com preenderei que deve ter ido telefonar, para o Director, para o
hospital, para o com issariado, sei l para onde mais! Fico espera, num tre
m or interm invel.
As longas cortinas verm elhas rasgadas e em pedaos pendem dos dois
lados da janela, uma delas, a da direita, contra os ps da cama. \ lto a ver o
nosso amigo jaeques M artin, que num dia de Agosto de 1964 foi encontrado
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faz sem prejuzos, tanto para o paciente, que m uitas vezes transform a em c r
nico, com o para o m dico, obrigado tam bm ele a viver num m undo fechado
onde se considera que ele sabe tudo sobre o paciente, enquanto com fre
quncia tem que viver num frente a frente angustiante com o paciente que
com excessiva frequncia controla po r m eio de um a insensibilidade postia e
de um a agressividade acrescida.
Mas isto ainda no tudo. A opinio corrente considera de bom grado
que o crim inoso ou o assassino, potencialm ente reincidente, e por isso cons
tantem ente perigoso, deve ou deveria continuar indefinidam ente separado
da vida social tendenciaIm ente d u ra n te toda a vida. por isso que se
ouvem tantos coros de indignao, nos quais alguns, cultivando para fins p a r
tidrios a angstia e a culpabilidade sociais, se tornam especialistas, em nom e
da segurana de pessoas e bens, contra as autorizaes de sada ou as liberta
es antecipadas concedidas aos condenados bem com portados antes do
expirar da sua pena. p o r isso que o tem a da priso perptua obsidia tantos
com entrios, no s enquanto substituio da pena de m orte, mas tam bm
enquanto sano natural de um a srie com pleta de crim es considerados p a r
ticularm ente odiosos para a segurana de crianas, velhos e polcias. Nestas
condies, com o poderia o louco, tido no limite com o mais perigoso p o r
que m uito mais imprevisvel do que o crim inoso com um , escapar mesm a
reaco de apreenso um a vez que o seu destino de internado po r natureza o
liga ao destino do culpado so de esprito?
Porm, preciso ir mais longe. A condio resultante da declarao de
im procedncia expe com efeito o louco que objecto de internam ento a
m uitos outros preconceitos alim entados pela opinio com um .
Na imensa m aioria dos casos, de facto, o culpado confesso que com parece
perante um tribunal sai deste condenado a um a pena geralm ente lim itada no
tempo, dois anos, cinco anos, vinte anos, e sabe-se que a priso perptua, pelo
m enos at ao presente, pode dar lugar a redues do tem po de pena. Pressu
pe-se que o culpado durante o tem po que dura o seu encarceram ento paga
.1 sua dvida sociedade. Uma vez paga a dvida, pode p o r conseguinte
regressar norm alm ente vida sem que, em princpio, tenha que prestar outras
ontas seja a quem for. Digo em princpio, porque a realidade no to
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do terrvel perodo de transio a que tem de lazer frente, o mais das veze;
s, ainda que no esteja isolado, e dos lentos e dolorosos progressos que
passo a passo, insensivelm ente, o vo eonduzir ao lim iar da sobrevivncia (
da \ ida.
Falo da opinio pblica (quer dizer, da sua ideologia) e do p b lic o
. o;
dois term os talvez no correspondam ao m esm o contedo. Mas aqui pouct
im porta isso. Pois rarta um pblico que no seja contam inado pela opinic
pblica, quer dizer, p o r uma certa ideologia reinante nessas questes de crim e
de m orte, de desaparecim ento e de estranha ressurreio: uma ideolctgia que
pe em jogo todo um aparelho m dico-legal e penal, as suas instituies e os
seus princpios.
Mas gostaria de falar tam bm das pessoas mais chegadas, das famlias c
dos amigos, c para alm destes, eventualm ente dos conhecidos. As pessoas
mais chegadas, quando viveram do seu lado e sua m aneira um dram a que
para elas continua sem explicao, se este as transtornou, vem-se dilacerados
entre a realidade de um dram a atroz e da explorao que dele faz certa
im prensa, que venda escndalos, por um lado, e p o r outro a sua afeio pelo
assassino, que conhecem hem e a quem m uitas vezes (nem sem pre) tm amor.
Dilacerados, no conseguem fazer coincidir a imagem do seu parente ou
amigo e a figura desse m esm o hom em transform ado em assassino. Tambm
eles, desam parados, procuram uma explicao que no lhes dada ou que lhes
parece irrisria em extrem o ejuando um m dico se aventura a confiar-lhes uma
hiptese: palavras, palavras! E a quem poderiam dirigir-se a no ser aos
m dicos encarregados do tratam ento quando pretendem form ar uma prim eira
ideia do incom preensvel ? Deparam ento, a coberto da figura do saber psi
quitrico, redobrado pelo segredo profissional, com hom ens obrigados
quanto ao essencial ao silncio im posto pela sua deontologia, e que muitas
vezes s se m ostram seguros de si para superarem a sua p r p ria incerteza, ou
at a sua prpria angstia, e para com baterem nos outros os efeitos do seu
prp rio sofrim ento interior (caso m uito frequente).
Com ea ento muitas vezes a actuar um a estranha dialctica entre a
angstia do paciente que. nos casos mais graves e mais intensos, mais pesa
dos tam bm de ameaas e de consequncias (com o foi o meu), conquista
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idcia.s pr]7rias que fazem do dram a com as explicaes que o seu amigo s
prop(.')e e llies prop/e, explicaes privadas, confidncias, que o mais d
\ezes no passam de tenfeios desconcertantes em busca, sem pre na noite d
loucura, de uma clareza imposscel?
bi-los. portanto, esses amigos, num a posio bem singular. Acerca d
perodo cpie precedeu o drama e do temp(/ interm invel da lK)spitalizao. po
SLiem muitas \ezes observaes e porm enores que o doente, envolvido n
am nsia profunda que o protege com o urna defesa, esqueceu. Sabem por issi
mais do ejue ele sobre num erosos episdios, exceptuando o m om ento d(
dram a. Hesitam em confiar ao seu amigo aquilo cjue sabem, com m edo de des
penarem nele a terrvel angstia do dram a c das suas sequelas, sobretudo as alu
ses m aldosas de certa im prensa (sobretudo quando o caso o de um hom en
conhecido), as reaces de uns e outros, e talvez sobretudo o silncio d<
alguns, tam bm eles, toda\ ia. m uito chegados. Sabem m uito bem que cada un
deles procurou pelo seu lado. ou fez tudo para estjuecer (essa tentati\ a im poss
\el) e que as suas confidncias ameaam afectar, dec ido s reaces do sei
amigo, sua solidariedade fraternal, no s a fraternidade tjue os liga ao sei
amigo com um , mas a prpria fraternidade que os ligava uns aos outros, qut
entre eles se joga no com efeito apenas a sorte do seu amigo, mas tambm,
tahez. sem dvida, certam ente, a sorte da prtpriti amizade ciue os une.
Tal foi a razo dado que at aqui todos puderam falar em vez de mim e
que juridicam ente me foi proibida qualcjuer explicao pblica p o r que
resoh i explicar-m e publicam ente.
Fao-o em prim eiro lugar para os meus amigos c se possvel para mim : para
Iccantar esta pesada pedra tum ular que assenta sobre mim. Sim, para me libertar
sozinho, po r mim prceprio, sem o conselho nem o parecer seja de ciuem for.
Sim, para me libertar da condio na qual a extrem a graiidade do m eu estado
(me puseraj (os m eus m dicos julgaram-me por duas vezes fisicam ente m o ri
bundo), do m eu assassnio, e tam bm e sobretudo dos efeitos equvocos da
declarao de im procedncia de que beneficiei, sem poder, nem de facto nem
de direito, opor-m e aos seus trm ites. Porque foi sob a pedra tum ular da impro-
cedncia. do silncio e da m orte pblica que ftii obrigado a sobreviver c a
aprender a viver.
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encorpado e pequeno, um tanto fechado, mas por trs do seu bigode recente,
bonito moo. O casam ento fez-se. com o ento era costum e na regio: sem his
tria. Mas nem do lado dos pais do meu av nem do lado dos pais da m inha
a\ havia terra suficiente para instalar e alim entar o jovem casal. Iam ter cjue
descobrir um lugar para viverem noutro lado. Eram os tem pos de Jules Ferr\
e da epopeia colonial da Frana. () meu av), nascido junto das florestas e no
querendo abandon-las, sonhaca com uma carreira de guarda florestal em
Madagscar! M adeleine no estava pelos ajustes. Antes do casam ento, precisara
em term os im perativos os seus pontos de vista: Guarda florestal, est bem,
mas nunca mais longe do c]ue na Arglia, seno no caso contigo! O meu at
tet e que ceder, seria a prim eira, mas no a ltim a \ez. A m inha av era uma
m ulher com cabea, sabia o que queria, mas m antinha-se sem pre serena e
com edida nas suas decises e pala\ ras. D urante a \ ida toda foi ela o elem ento
de equilbrio do casal.
Foi assim que os Berger se expatriaram para a Arglia e que o m eu av a
fez uma carreira de guarda florestal nas m ontanhas mais recuadas e selvagens
cia .\rglia, cujos nom es me voltaram m em ria quando se tornaram , nos anos
60, os lugares pri\ ilegiados de refgio e de com bate da Resistncia argelina.
O meu av arruinou a sade cm interm inveis correrias diurnas e n o c tu r
nas a cavalo. Os rabes e os berberes gostavam dele. Tinha p o r tarefa proteger
as florestas contra as cabras que trepavam s rvores e devoravam os rebentos
novos, mas sobretudo com bater os fogos, que podiam incendiar os bosques.
Mas estava tam bm encarregado de traar estradas nos acidentes de um relevo
difcil, e de vigiar as obras, fm a noite, cjuando a neve cobria todo o m acio de
Ghrca, partiu sozinho a p para a m ontanha em socorro de uma ecjuipa de sue
cos c]ue po r l se tinham aventurado e perdido. O m eu av conseguiu, nunca
ningum soube como. encontr-los e f-los chegar, trs dias e trs noites mais
tarde, extenuados, casa florestal. Foi condecorado por este acto de dedica
o: guardo ainda com igo a sua cruz.
Durante todo o tem po cpie duravam as suas sadas e obras, a m inha av
ficava sozinha, dia e noite, na casa florestal isolada nas matas. Insisto neste
ponto, que no deixa de ser importante. Lanados sem transio do cam po
m ort ands. onde reinava a convivialidade cam ponesa tradicional, nas florestas
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todas as suas econom ias de solteira (quem no com preenderia o m eu pai, que
ia \o lta r para a frente, sabia Deus talvez para m orrer, mas era tam bm um
hom em extrem am ente sensual que antes da m inha me tivera horror!
axenturas de rapaz incluindo um a amante cham ada Lotiise (esse nom e...) a
ciuem abandonara definitivam ente e sem um a palavra aps o casam ento, uma
m isteriosa rapariga pobre da qual a m inha tia me falou tam bm com o sendo a
pessoa cujo nom e nenhum a pessoa da famlia devia pronunciar). Para com ple
tar tudo o m eu pai decide inapelavelm ente que a m inha me deve abandonar
im ediatam ente a sua profisso de professora prim ria, ou seja, o seu m undo de
eleio, pois teria filhos e ele queria-a em casa e s para ele.
A seguir volta a partir para a frente, deixando a m inha m e transtornada,
roubada e violada, dilacerada no seu corpo, de.spojada dos poucos tostes que
pacientem ente econom izara (uma reserva, porque nunca se sabe o sexo e o
dinheiro associam-se aqui intim am ente), cortada sem apelo de um a vida cjue
aprendera a construir para si p rpria e a amar. Se forneo estes porm enores,
c porque eles contriburam por certo para form ar retrospectivam ente, p o r
tanto para confirm ar e reforar no inconsciente do m eu esprito, a imagem
de uma m e m r tir e a sangrar com o u m a fe r id a . Esta me associada a
recordaes (narradas tam bm elas m uito depois), episdios de um a am eaa
de m orte precoce (evitada po r milagre), ia transform ar-se na me padecente,
votada a um a do r ostentada e cheia de recrim inaes, m artirizada no dom ic
lio pelo m arido, com todas as suas feridas abertas: m asoquista mas por isso
m esm o tam bm terrivelm ente sdica, quer para com o m eu pai que tom ara o
lugar de Louis (e portanto fazia parte da sua m orte), quer para com igo (pois
no podia deixar de querer a m inha m orte, do m esm o m odo que esse Louis,
que ela amava, estava m orto). Perante este doloroso horror, eu iria sentir inces
santem ente um a angstia sem fundo, e a com pulso de me dedicar a ela de
corpo e alma, de me consagrar oblativam ente a socorr-la para escapar a uma
culpabilidade im aginria e para a salvar do seu m artrio e do seu m arido, bem
com o a convico inextirpvel de que tal era a m inha misso suprem a e a
m inha suprem a razo de viver.
Para mais. a m inha me via-se precipitada, desta feita pelo seu m arido,
num a nova solido sem apelo possvel, e com igo num a solido a dois.
4 4
r r I i R o / M r I I o E M p o
f todo o tem po que passm os em Argel (at 1930), eonser\'o duas ordens
J L ^ de reeordaes insustentat elm ente e afortunadam ente contrastantes.
As dos m eus pais cuja vida em famlia partilhaea e da escola onde andava, e as
dos meus a\ ()s m aternos durante todo o tem po que \ it eram na casa florestal
do Bois de Boulogne.
A recordao mais longnqua que guardo do meu pa (mas to precoce
tiLie por certo se trata de uma recordao encobrdora recom posta mais tarde)
o pr p rio instante do seu regresso de Frana, seis meses aps o fim da
(iiierra. F assim o que vejo ou creio ver, A m inha me que na obscenidade
elos seios quase descobertos me envergonha, transbordante de v ida. est comigo
ao colo quanelo se abre a porta do rs-do-cho, que d para o grande jardim,
at ao infinito do m ar e do cit: na m oldura da porta, contra o fundo do ar
primaveril. surge uma silhueta altssima e esguia, tra/endo atrs de si, por cima
da cabea, nas alturas das nuvens, o longo charuto preto do D ixm ude, esse
dirigvel alem o cedido Frana a ttulo de reparao, e que dentro de ins
tantes se afundaria no incndio e no mar. No sei nem quando, nem sobre
tudo conto, mas devo, retrospectivamente, ter constitudo ou reconstitudo esta
imagem, em qtie o m eu pai me apareceu tendo po r pano de fiinekt um sm
bolo dem asiado claro, sexo e m orte na catstrofe, Mas esta associao, ainda
cjue seja efeito de uma construo retrospectiva, tem sem dvida a sua im por
tncia, com o veremos, no cortejo das m inhas marcas inaugurais.
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/ i / r R o f .1/ ( / y o r ! u !>
O meu pai era um hom em de elc\ada estatura (um m etro e oitenta e qua
tro). .senhor de um belo rosto alongado, mtircado por um nariz fino e bem
desenhado (um im perador romano), enfeittido por um bigodinho que ele
eonservou inalterado at m orte, com a testa alta e cheia de inteligncia e
malcia. De facto, era na verdade extrem am ente inteligente e no apenas em
term os de inteligncia prtica. Disso deu provas alis na sua profisso, uma \ ez
que. tendo entrado para o bttnco com o simples m oo de recados e com o
diplom a do ensino elementar, subiu todos os escales da Com pagnie Alg-
rienne, a b so r\id a tardiam ente pelo Banejue de 1'Union Parisienne, c depois
pelo Crdit du Nord. Acabou cttmo director-geral das sucursais m arroquintis
da (iom pagnie Algrienne, depois com o director da im portante delegao de
Marselha, aps uma dupla etapa, prim eiro em Marselha com o deleg;u.lo. depo.''
em Lyon com o sub-director. A sua com petncia e a sua com preenso d:is tjiie-
tes financeiras e dos negcios, para no falar das tcnicas e da organizao d;i
produo (adttrava ir verificar pessoalm ente o andam ento de todos os uego-
cios em que o seu banco intervinha) foram m uito apreciadas pelos seu^ sup
riores de Paris, m otivo das suas prom oes e deslocates sucessi\as c ias
peregrinaes (entre Argel, Marselha, Casablanca e Lyon) que imps nossa
pequena famlia, com essas m udanas de casa de que a m inha me no para\ a
de se c(ueixar abertam ente a ejuem quisesse ouvi-la: tam bm neste captulo, ela
no passava de um lam ento perp tu o que me fazia sttfrer horrixelm cnte
O meu pai, no fundo extrem am ente autoritrio, e sob todos os aspectos
m uito independente, at m esm o e talvez sobretudo em relao aos scus. lttha
de uma vez p o r todas separado os dom nios e os poderes: para a m ulher ape
nas o lar e os filhos, para ele a sua profisso, o dinheiro e o m undo exterior.
.\o cjue se referia a esta diviso m ostrou-se sem pre intratvel. Nuncti tontou a
m enor iniciativa a respeittt do interior da casa ou da nossa educao Pni um
dom nio em que a m inha m:ie dispunha de todos os poderes. Km co n trap ar
tida, nunca falou em famlia da sua profisso nem das suas relaes no exterior
Icom cxcepo de r/o/s dos seus amigos que conhecem os atra\ s dele. e um
dos quais tinha um carro ciue nos levou um dia at neve de Chr.i). St) seis
meses antes de m orrer, no pequeno pavilho de Viroflay para onde se retirara
aps a reform a, o meu pai falou. Deve dizer-se que fui eu quem ter e. ni:i:s to
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!_ o r I s .I /, / II i s s /.
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/ r / r R o f: M i / I o I H M F O
lIos hom ens qne espera\am sua frente. Algumas palavras entre dentes, semi
c'tro p iad as e para mim totalm ente ininteligveis, s seus colaboradores sa-
.am. sem perguntar mais nada. Mas eles no perceberam ! No te aflijas;
ho-de perceber. Foi assim cjue. p o r acaso, descobri com o dirigia o m eu pai
' seu banco. Esta im presso seria confirm ada mais tarde por um dos seus anti
gos colaboradores cjue conhcci em Paris: O seu pai. mal conseguam os
cntend-lo. e m uitas vezes saamos sem nos atreverm os a faz-lo repetir o que
nos dissera. E depois? Depois era a nossa vez de arriscar! O m eu pai
governava assim: sem nunca chegar a fazer-se entender bem. uma m aneira
nilvez de deixar os seus colaboradores perante um a responsabilidade que
otbiam sancionada, mas no explicitam ente definida. Conheciam sem d\ ida
o seu ofcio, ele form ara-os sem dv ida havia m uito segundo a sua escola, e
'cm dvida sabiam o suficiente do m eu pai para com preenderem em que sen
tido se inclinava, Nem sequer o seu m otorista chegava sem pre a entend-lo
guando havia um novo itinerrio! O m eu pai transform ara-se assim num a per-
'onagem cheia de bonom ia mas autoritria e a tal ponto enigm tica nos seus
vtrborigm os que os seus cttlaboradores tinham aprendido, para no sofrerem
.; dureza das suas reprim endas, a antecipar-lhe as decises cjuase ininteligveis.
Dura escola do governo dos hom ens, que nem sec|uer Maquiavel teria imagi-
n.ido, e cujo xito foi surpreendente. Antigos colaboradores do m eu pai que
^onheci aps a sua m orte confirm aram -m e o seu estranho com portam ento e
'' respectivos efeitos. No o tinham esquecido e falavam dele com uma adm i
rao que raiava a devoo: no havia ningum com o ele. Um tippartc.
Nunca soube que parte de conscincia deliberada ou de indeciso
nterna, ou at de m al-estar interior, entrava no com portam enttt do m eu pai
:ais suas relaes com os outros, seno m esm o consigo prprio. Foda a sua
^um petncia e a sua inteligncia tinham que coabitar com uma dificuldade
orofunda de expresso clara perante outrem , com um a reserva, no tanto de
princpio com o de factv), sustentada po r uma reticncia ancorada na alma. Este
iiomem autoritrio, arrebatado s vezes po r exploses violentas, via-se ao
lesm o tem po e sem dvida profundam ente paralisado na sua expresso po r
ama espcie de im potncia em se m ostrar perante outrem , m edo que o preci-
mtava na sua reserva e o tornava incapaz de decises claram ente afirmadas.
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o y r 7 r K o M I / / o / /; 1/ P (J
\ ivia sem parar na apreenso dos seus gritos de fera insustentx eis que nunea
pude esqueeer. Q uando mais tarde, assum indo eom extrem a agressi\'idade a
defesa da m inha me m rtir contra ele, eu o provoca\a at ao limite da sua
pacincia, o meu pai levantava-se m uito direito, saa da mesa antes de acabar
a refeio, e soltando a nica palavra que ento di/a, Fautr! ', batia com a
porta e sumia-se na noite. Apoderava-se de ns, ou pelo m enos apoderava-se
de mim, uma angstia atroz: o meu pai abandonara a m inha me. abandonara
-nos (a m inha me parecia indiferente): teria partido para sempre? \o ltaria ou
desapareceria de \ez? Nunca descobri o que fazia ele nessas alturas, quando
ficava sem dvida a vaguear nas ruas nocturnas, iMas de todas as vezes, ao cabo
de um tem po que me parecia interm inr el, voltava a entrar e sem dizer palac ra
ia deitar-se, sozinho. Sempre me perguntei o que poderia ele dizer depois
m inha me. a mrtir, ou se lhe diria sequer alguma coisa. Achava-o incapaz de
lhe dizer fosse o que fosse. F. tanto antes com o depois da sua exploso, tn h a
mos direito ao m esm o hom em , incapaz de nos tratar de outro m odo que no
fosse mtxstrar-nos silenciosa e ostensivam ente m cara. Depois, tudo pas-
'a^ a.
Mas isto era s um dos aspectos da sua pessoa. Q uando estava com am i
gos (os raros que conhecam os), longe das preocupaes do trabalho, tornava-
se de uma ironia m ordaz e irresistvel. Brincava com as pessoas e consigo p r
prio, acumulava as intervenes espirituosas e as arrem etidas provocadoras,
sempre mais ou m enos carregadas de aluses sexuais, tudo com um a htra de
inreno incrvel, aprisionando os interlocutores no seu riso, riso cm plice e
t.imbm mal-estar: era dem asiado forte e ningum frente a ele ctmseguia ter a
ltima palavra. Ningum, c m enos do que todos os outros a m inha me. era
capaz de entrar no jt)go dele e de enfrentar os seus assaltos. Tratava-se pr>r
certo de um a defesa ainda, para evitar ter que dizer acjuilo que pensara ou
qtieria, talvez p o r no saber ao certo o que queria, mas no ciueria, sob o \ u
transparente de uma ironia desenfreada, seno dissim ular um mal-estar e uma
' a n tr i' paluMu invcniad pelo pai c l.oiii.s Altluis.scr. c om bina ndo pro\ avclmcntc aute
isncira). outre (indignado) c lallcv \ o u s airc) fouirc (foda sc). Isto com base numa informao
i'>rnccida pelos organizadores da edio francesa. ( \. d o 7. )
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/ o I I s A / 7 H r S S /. K
indeciso profundos. Acima cie tudo gostar a de p ro ro car as m ulheres dos seus
amigos, cjue espectculo! E eu sofria pela m inha me a \ -lo fazer-lhes assim
uma corte escandalosa. Excitava-o particularm ente a m ulher de um dos seus
colegas de escritrio, um dos raros amigos cjue lhe conhecam os. Ela cham ava
-se Suzy, era um a m ulher bastante bonita, cheia de vida, segura dos seus
encantos e encantada por se r e r provocada daquela m aneira. O m eu pai lan
ava o assalto diante de nc>s, e com eava um torneio ertico interm invel que
fazia Suzy derreter-se de confuso, riso e prazer. Em silncio eu sofria pela
m inha m e e pela ideia Cjue eu pr p iro d evia fazer do m eu pai.
De facto, este hom em poderoso era profundam ente sensual, gostava de
\ inho e de carnes mal passadas, tanto com o gostava de m ulheres. Foi ento
cjue um belo dia, em Marselha, a m inha m e se encantou po r um certo dr.
Om o mais um esprito puro que conquistou a sua ingenuidade. O m dico
possua um a bela casa de cam po nos jardins floridos do norte da cidade, onde
cultiva\a os legumes que com punham a sua dieta, e pregava um vegetaria
nism o estrito (uns frascos pequenos que vendia razoavelm ente caros). A m inha
me obrigou-nos ento, m inha irm e a mim, a seguir com o ela um regime
puram ente vegetariano e que se prokm garia po r seis anos! O m eu pai no
levantou qualquer objeco, mas exigiu continuar a ter todos os dias o seu bife
em sangue. Ento ns com am os co m es, castanhas e uma m istura de mel e
am ndoas ostensivam ente raladas diante dele. que partia tranquilam ente a sua
carne, enejuanto lhe m anifestvam os com toda a clareza a nossa com um rep ro
vao. Acontecia-me ento provoc-lo e atac-lo com extrem a violncia:
nunca me re.spondeu, mas po r vezes saa-lhe; Fautr!
E verdade que o m eu pai procurava de quando em quando um a cum plici
dade da m inha parte. Levou-me algumas vezes ao estdio, onde adorava
introduzir-se sem pagar, sob o olhar cm plice de um empregadet do banco que
arredondava os seus rendim entos vigiando as entradas. Fascinava-me a sua arte
de entrar borla. Coisa em cjue eu no me atreveria sequer a jvensar, ins
trudo com o fora pela m inha me e jselos m eus m estres nos grandes jvrincjsios
da honestidade e da virtude. Mau exem plo que me deixou uma recordao
m edonha, entrada de um estdio de tnis, m eu pai entrou com o habitual
m ente sem jsagar. Eu, que ia atrs dele, no jvude entrar. E ele deixou-m e ali
o F r M r I 1 F M p o
ficar sozinho. Mas mais tarde seria um a sria inspirao para mim a sua arte
das borlas. Ele entrava, eu seguia-o, assistam os ao desafio, que se desenro
lava num a atm osfera tum ultuosa. Lembro-me de que po r duas vezes, em Saint-
-Hugne, houve tiros entre o pblico. Sempre tiros! (Que sm bolo...) Tremia
com o se m e fossem destinados a mim.
alis desse tem po que guardo um a horrvel recordao. Andavam en
to a explicar-nos nas aulas as Cruzadas, e as cidades pilhadas e incendiadas,
os seus m oradores passados a fio de espada: o sangue corria pelas \aletas
das ruas. Eram tam bm em palados num erosos indgenas. Eu tinha um sem
pre diante dos olhos, um que assentava sem qualquer outro apoio na lana
que se lhe enterrava lentam ente pelo nus at ao ventre e ao corao, sendo
s ento que ele m orria no m eio de sofrim entos atrozes. O sangue corria-lhe
ao longo da lana e das pernas at ao cho. Que terror! Era eu que era ento
trespassado pela lana (talvez p o r esse Louis m orto que continuava a tr s de
mim). Conservei desse tem po um a outra recordao que se me deve ter
deparado num livro. Uma vtim a era fechada num a virgem de ao m unida de
alto a baixo de longas pontas finas e duras que lhe furavam lentam ente os
olhos, o crnio e o corao. Era eu quem estava fechado na virgem de ao.
Que atroz m aneira de m orrer lentamente! Ficava durante m uito tem po a tre
m er de m edo e sonhava com isso noite. Acreditem se quiserem , mas a ver
dade que no fao, nem aqui nem noutras passagens, uma auto-anlise,
deixando esse trabalho para todos os finrios de um a teoria analtica
m edida das suas obsesses e fantasmas prprios. Descrevo sim plesm ente os
diversos afectos que m e m arcaram para toda a vida, na sua form a inaugural
e na sua filiao retrospectiva.
Uma outra vez, um a s vez, o m eu pai, esse hom em regressado da guerra
com inm eras fotografias da sua diviso de artilharia, onde o vam os sempre
de p em frente de canhes gigantescos, peas de longo alcance, levou-me a
uma carreira de tiro m ilitar em Kouba. Fez-me apontar com a pesada espin
garda de guerra encostada ao om bro. Senti no om bro um chociue terrvel e ca
de costas no m eio do estam pido insuportvel da detonao. Ao longe agi
taram-se bandeirolas indicando que eu falhara o alvo. Teria talvez nove anos.
O m eu pai sentia-se orgulhoso de mim. Eu continuava aterrado.
53
L O l / ,S ,1 L 7 H l' V V 7: 77
Mas quando, mais tarde, a m inha candidatura foi aceite (m uito para o
. ; ' da lista, eu cjue era to bom aluno) no concurso para as bolsas de 1929,
leu pai perguntou-m e que cjueria que me desse ele com o prenda. Respondi
' l :ii hesitar uma carabina 9 mm da M anufactura de Armas e Bicicletas de
'..int-Htienne, cujo catlogo eu po r essa altura devorava e tantas coisas ciue eu
n.inca tivera nem \ ira. ao alcance do meu desejo.. ). b consegui sem mais difi
culdades a m inha carabina com cartuchos e balas, ante a reprovao da m inha
ni.le. mas sem que o m eu pai discutisse po r um segundo sequer a m inha esco-
I h. i essa carabina da qual faria um dia um to estranho uso.
Desde m uito cedo cjue me tornara bastante hbil em toda a espcie de
iiros: no atirar pedras a latas de c o n ser\a vazias, na funda tam bm . Experi-
ruentei atirar aos pssaros, mas falhava sempre. Hxcepto um dia, no cam po do
n e ii a\ em Bois-de-Vlle, quando me pus a caar frangos que vinham bicar os
ur.uis das semeaduras. De bastante longe (a uns vinte m etros) avistei um belo
u.il ) w rm elh o perto da sebe. \'isei-o com a m inha funda, e com terror vi o
u.do. atingido em cheio num olho, saltar de dor, bater \ iolentam entc com a
^.fnva no cho c fugir aos tropees. Fiquei com o corao a galopar durante
;v ir.i',
(^luanto carabina, eis o que se passou. De incio s me servia dela para
ue treinar com alvos de papelo, com os quais me saa bastante bem. Mas um
cm que estvam os num a pequena propriedade. Les Raves (Os Rabanetes),
cc.ic o meu pai achara p o r bem adquirir num a zona inacess\el de to alta,
ttcti-me pelos bosques com a m inha carabina na mo cm busca de alguma
re-.i \()ltil. Avistei de repente uma rola e atirei: a rola caiu, procurci~a inutil-
: ente entre as e r\a s secas, convencido no fundo de cjue falhara o tiro e de que
el.i o cara po r m anha, para me escapar. C ontinuei o meu cam inho e veio-mc
Ce 'u b ito ideia, sem ter alguma vez pensado no assunto e sem saber porqu,
. je poderia apesar de tudo tentar matar-me. O rientei ento o cano da arma
, :itra o meu ventre e ia a carregar no gatilho quando me reteve uma espcie
lIc escrpulo, nunca soube p o r que motivo. Abri ento a culatra: havia uma
vi!,i l.i dentro. Com o podia ela ali estar? Fosse com o fosse no fora eu quem
.1 .i pusera. Nunca soube com o foi que aquilo aconteceu. Mas ficiuei brusca-
n e n te c oberto de um suor de pnico, trem iam -m e os m em bros e tive que me
~i4
o / f / r /* o I M I / 7 o I h \ P O
deitar dem oradanicnte na terra antes de r oltar para a quinta, mais do que p e n
sativo. Uma vez mais se tratara da m orte: mas directam ente da m inha, desta
feita.
No sei porqu, aproxim o esta recordao de uma outra, posterior, que
desencadeou em mim o m esm o terror pnico. Em Marselha, a m inha me e
eu, depois de sairm os do nosso apartam ento da rue Sbastopol, tnham os
m etido para cortar cam inho p o r urna larga trans\ersal ladeada de m uros
altos. Avistmos ento, ao longe no passeio da direita, duas m ulheres e um
hom em . As duas m ulheres, em fria e aos gritos, batiam-se \ iolcntam ente.
Ihiia estata cada no cho. a outra arrastava-a pelos cabelos. () hom em , ao
lado, imvel, contem plava a cena sem intervir. Q uando passm os p erto do
grupo ele soltou em nossa inteno um aviso perfeitam ente sereno: Cui
dado, ela" tem um revlver! A m inha me continuou o seu cam inho, cris-
pada, olhando para diante, sem nada querer \e r nem ou\ ir, cxtmpletamente
insensvel. Nem som bra de em oo. Nunca me disse um a palavra sequer
sobre este dram tico incidente. Era claro para mim que devia ter intervindo.
Mas eu era um cttbarde. Deviam reinar relaes bem singulares entre a m inha
me e eu, entre a m inha me e a m orte, entre o meu pai e a m orte, entre
mim e a m orte. S as com preendi infinitam em e mais tarde, durante a m inha
anlise.
T i\e realm ente um pai? Sem dvida, usava o nom e dele e ele ali estava,
presente. Mas n o utro sentido: no. Porque ele nunca interveio na m inha \ ida
para a orientar m inim am ente, nunca me iniciou na sua que me teria podido
servir de introduo quer defesa fsica, nas lutas de garotos, quer mais tarde
virilidade. Neste ltim o captulo foi ainda a m inha me quem por dever tra
tou das coisas, apesar do h o rro r que lhe inspiras a tudo o que dissesse respeito
ao sexo. Ao m esm o tem po, o m eu pai procurava m anifestam ente mas sem pre
em silncio a m inha cum plicidade: na sua prtica de borlista com o mais tarde
nas suas aluses s m inhas relaes femininas. Naturalm ente que nunca quis
ouvir falar das m ulheres que eu pudesse conhecer, nem do que pudesse fazer
com elas, mas sem pre que me despedia dele. ele lanaca em m inha inteno,
diante da m inha me silenciosa, um a simples frase que ntt exigia nem co m en
trio nem resposta: F-la feliz! La!'
i o r / ,s .) /. I n V V s n R
Pensava sem dvida que fizera a m inha me feliz! Mas ter-se- tornado j
e\ idente que tal no era o caso: no fundo o m eu pai era dem asiado inteligente
para alim entar a esse respeito a m n im a iluso. A m inha me era em nova
unta m ulher m uito bela, onze anos mais nova do que o meu pai, uma eterna
criana que passara sem transio da tutela dos pais para a do m arido, sem
qualquer experincia da vida, nem dos hom ens nem das m ulheres: tendo por
nica e eterna nostalgia no seu corao a m em ria desse Louis, desse esguio
noi\ m orto no cu, e dos professetres prim rios com ejuem se cruzara durante
a sua efm era carreira profissional, a que o m eu pai bruscam ente a arrancara.
T i\era igualmentc, em Argel, um a nica amiga da sua idade, um a rapariga to
pura com o ela, que se fizera m dica, mas fora brutalm ente arrancada existn
cia pela tubercuktse. Chamava-se Georgette. Q uando nasceu a m inha irm,
m uito naturalm ente a m inha m e deu-lhe o nom e da amiga m orta: Georgette.
Mais um m tm e prp rio de m orto.
A m inha me, sobre o pequeno, loura, rosto regular, belssim os seios t]ue
vejo com um a espcie de repulsa na m inha m em ria, cpier dizer, nas fotogra
fias dela, am ou-m e sem dvida profunclamente. Era o prim eiro filho do seu
corpo, e um rapaz, seu orgulho. Q uando nasceu a m inha irm, vi ser-me c o n
fiado o cuidado de olhar por ela a todo o m om ento, de a am im ar e mais tarde
de lhe dar a m o para atravessar as ruas com todas as precaues devidas, e
mais tarde ainda de cuidar dela pela c ida fora e em todas as ocasies. Cum pri
fielmente, o m elhor possvel, esta misso de criana e adolescente prom ovido
a uma tarefa de hom em , ou m esm o de pai (o meu pai tinha pela m inha irm
fraquezas cpie me revoltavam, e suspeitava abertam ente de que ele procedesse
a tentativas incestuosas quando a sentara ao colo de um a m aneira que me
parecia obscena), misso que, pela gravidade solene de que se revestia, devia
ser esm agadora para a criana de pouca idade que eu era de com eo e m esm o
para o adolescente que depois fui.
A m inha me no parava de me explicar que a m inha irm era frgil (sem
dvida com o ela prpria) por ser mulher, e conservo ainda no esprito um a
outra recordao obscena c(ue me horrorizou e escandalizou. Estvamos em
Marselha, a m inha m e lavava a m inha irm nua na banheira do nosso aparta
mento. Igualm ente nu. eu esperava que chegasse a m inha vez. O uo ainda a
56
/ r V r o w r / / o 7 /; .1/ r o
m inha me dizer-m c; Ests a ver, a tua irm um ser frgil, est m uito mais
exposta do que um rapaz aos micrbios e juntou o gesto voz para m ostrar
m elhor as coisas tu S(3 tens cos buracos no corpo, mas ela, ela tem trs>K
Senti-me inundado de vergonha p o r esta intruso brutal da m inha me no
dom nio da sexualidade com parada.
Vejt) hoje hem cjue a m inha me vivia literalm ente dom inada pelas fobias:
tinha m edo de tudo, m edo de se atrasar, m edo de deixar de ter (bastante)
dinheiro, m edo das correntes de ar (estava sem pre com dores de garganta, e eu
tam bm at altura do m eu serrio militar, tiuando a deixei), um m edo in
tenso dos m icrbios e do seu contgio, m edo das m ultides c do seu ruido.
m edo dos vizinhos, m edo dos acidentes na rua e noutros lugares, e acima de
tudo m edo dos maus encontros e das com panhias duvidosas que podem dar
maus resultados: falemos claro, acima de tudo, m edo do sexo, do roubo c da
violao, quer dizer, m edo de ser agredida na sua integridade corporal e de
com isso perder a integridade problem tica de um corpo ainda fragmentado.
G uardei dela ainda outra recordao, c|ue para mim tudo excedeu reco
berta por afectos posteriores, mas de uma lem brana dos meus treze ou
catorze anos, extrem am ente precisa e isolada enquanto tal, sem que qualcjuer
p o rm en o r se lhe tenha depois acrescentado. Que o seu afecto tenha sido
retrospectivam ente reforado por outros incidentes do m esm o tettr. possvel
e verosmii, mas esses incidentes limitaram-se depois a acentuar no seu sentido
prprio a \erg o n h a atroz que na altura senti e a m inha revolta indignada.
Estvamos cm Marselha, e eu andaria pelos m eus treze anos. Desde h
algumas sem anas observo com um a satisfao intensa que noite prazeres
\ ivos e escaldantes me chegam do m eu sexo, seguidos de um apaziguam ento
agradv el e de m anh grandes m anchas opacas aparecem nos m eus lenis.
Terei sabido que aquilo eram polues nocturnas? Pouco im porta: seja com o
for, sei m uito bem que se trata do m eu sexo. Ora, certa m anh depois de me
ter levantado ettm o de costum e e quando estou a tom ar o pequeno-alm oo na
cozinha, a m inha me entra, solene e grave, e diz-me: Vem c, m eu filho.
Leva-me at ao m eu quarto. Diante de m im abre os lenis da m inha cama,
aponta-m e com o dedo sem lhes tocar as grandes m anchas opacas e en d u re
cidas dos m eus lenis, contem pla-m e p o r um m om ento com um orgulho
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E j que estou a falar das recordaes mais m arcantes desse tem po, aqui
\ ai outra. Estou na sala de aula com o excelente professor que entre todos me
estima. O professor est a escrever no quadro de costas para ns. Nesse
m om ento o rapaz que est precisam ente atrs de mim d um peido. O profes
sor vira-se e olha para mim com um olhar desolado, cheio de recrim inaes:
Tu. Louis... No digo nada, a tal ponto me conveno de que fui eu o autor do
peido. Fico coberto de vergonha, com o qualquer autntico culpado. Em deses
pero de causa, conto o caso m inha me, que conhecia m uito bem aquele p ro
fessor ejue a orientara na sua form ao, e de quem ela gostava m uito: Tens
m esm o a certeza de que no foste tu quem (no se atreveu a dizer a palavra)
fez essa coisa m edonha? Ele to bom hom em , no se pode ter enganado.
Sem com entrios.
A m inha me amava-me profundam ente, mas s m uito mais tarde, luz
da m inha anlise, com preend de que m odo. Diante dela e fora dela sentia-me
sem pre esm agado por no existir p o r m im p r p rio e para mim prprio. Tive
sem pre a im presso de que havia ali um a distribuio de cartas errada, e que
no era deveras para mim que ela olhava nem deveras eu quem ela amava. No
a quero acusar de m aneira nenhum a, ao indicar este aspecto-, a infeliz vivia
com o podia aquilo que lhe acontecera; ter um filho que no conseguira im pe
dir-se de baptizar Louis, o nom e do hom em m orto que amara e na sua alma
amava ainda. Q uando me olhava, no era eu sem dvida que ela via, mas, por
trs de mim, nas m inhas costas, no infinito de um cu im aginrio para sem pre
m arcado pela m orte, u m outro, esse ou tro Louis cujo nom e eu usava, mas que
no era eu. esse m orto do cu de Verdun e puro cu de um passado sem pre
presente. Eu era assim com o que atravessado pelo seu olhar, desaparec para
mim nesse olhar que me sobrevoava para alcanar na distncia da m orte o
rosto de um Louis ejue no era eu, que nunca seria eu. R econstituo aqui o que
vivi e o que com preend do que vivi. Pode fazer-se sobre a m orte toda a litera
tura e toda a filosofia que se queira; a m orte, que circula ptar toda a parte na
realidade social onde investida, do m esm o m odo que a m oeda, nem sem
pre est presente sob as mesmas form as na realidade e nos fantasmas, No meu
caso. a m orte era a m orte de um hom em que a m inha me amava acima de tudo.
para alm de mim. No seu amor po r mim, alguma coisa me penetrou
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e m arcou desde a prim eira infncia, fixando p o r m uito tem po o que devia ser
o meu destino, j no se tratava de um fantasma, mas da prpria realidade da
m inha r ida. assim que para cada um o fantasma se torna vida.
Mais tarde, adolescente, quando vivi em Larochemillay com os m eus avs
m aternos, sonhei ter o nom e de jaeques: o do meu afilhado, o filho da sensual
Suzv Pascal. Talvez seja jogar um tanttt em excesso com os fonem as do signifi-
cante mas o j de Jaeques era um jacto (o do esperm a), o a profundo (Jc/c-
ques) o m esm o que o de C harles, nom e do m eu pai, o qties com excessiva evi
dncia a queue '. e jaeques era ainda x ja eq u e rie, a surda revolta cam ponesa
de cuja existncia eu tom ara ento conhecim ento atravs do meu av.
Em todo o caso, desde a prim eira infncia, tive direito ao nom e de um
hom em que no deixara de viver de am or na cabea da m inha me: o n o m e
de u m m orto.
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V
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me (com o se seduz uma pessoa de passagem , uma estranha) para cjue ela cor
sentisse em olhar-m e e amar-m e po r mim prprio. No s no sentido correm
em ejue o rapazinho tiuer, com o j dizia D iderot, deitar-se com a me, m;
no sentido mais profundo a que necessariam ente devia decidir-me. para cor
quistar para mim o am or da m inha me, para me to rn ar eu prpritr no hom ei
que po r trs de mim ela amava, no cu da m orte para sem pre puro: sediizi-l
rea liza n d o o seu desejo.
Tarefa possvel e impossr el! Porque eu no era esse outro, no era no fund
de mim esse ser to ajuizado e to punr que a minha me sonhava em mim. Quani
mais longe fui, mais senti com efeito as formas, at m esm o violentas, do mc
proprio desejo, e antes do mais esta forma elementar: no vi\ er no elem ento nei
:ii) fantasma da m orte, mas existir para mim prprio, sim, sim plesm ente exist
c antes do mais no m eu corpo que a m inha me tanto desprezava, porque (t:
.v m o esse Lotus que continuava a amar) lhe tinha horror.
De mim, rapazinho, conservei a imagem de um ser magro e m ole c
-nibros estreitos, c]ue nunca seriam os de um hom em , com a cara branc:
prim ida po r um a fronte dem asiado pesada e perdido na solido das le;
r.incas de um parque im enso e \azio. No chcga\a sequer a ser um rapaz, m;
. penas um rapariguinha fraca.
Esta imagem, que me perseguiu durante m uito tem po, e cujos efeitos ;
;'..,inifestaro mais tarde, ntida com o uma recordao encohridora, redesce
:i-a p o r milagre soh form a m aterial num a fotografiazinha recolhida entre <
.ipis do meu pai depois da sua m orte.
Sou realm ente eu, aejui estou L)e p, num a das imensas leas do parqt
, c (lalland, em Argel, p erto da nossa casa. Sou efectivam ente este rapaz mag
, rr.igil. sem om bros, a cabea com um a testa dem asiado grande coberta pt
chapu, tambm ele plido. Seguro pelo brao esticado, um co minseul
^lo Senhor Pascal, m arido de Suzy), esse m uito vivo e puxando a trela. S
: : grafia, exceptuando o cozinho, estou s: ningum nos arruam entt
/los Dir-me-o que esta solido pode no querer dizer nada, ejue o Sr. Pasc
. 'Oerara que os transeuntes desaparecessem . A realidade a seguinte; esta sol
: tah ez desejada pelo fotgrafo, reuniu na m inha lem brana a realidade
r.intasma da m inha solido e da m inha fragilidade.
6.S
/ o I I V .1 / / II r s s i k
lor mcionniia, a Ccolt Normalc SupOricurc, sediada na rue d l Im, cm Paris. (.V do T.)
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o ? '/ r R o \i i /: i; p o
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F c r r F o M r / / o T F M F o
- 1 pai nos apresenta^'a. Para dizer a verdade ha\ ia um nico: esse Pascal,
ega de escritrio do m eu pai, seu subordinado, cabelo parco, m acio com o
ado, sem som bra de vontade prpria diante da mtilher, a petulante Suz\.
\u m ano em t]ue a m inha irm apanhara \aricela (era uma criana que
:,;\a sem pre doente) a m inha me, para evitar o contgio (uma vez mais)
aiLi aos Pascal ejue me recebessem em casa deles. Conheci ento o seu ninho
aichegado de casal sem filhos e as suas manias, o esplendor de Suzy, \o lu p -
'i , sem pre de seios m ostra, e a sua calorosa autoridade, bem com o a
na de M, Pascal cpie lhe ohedecia em tudo com o o cozinho que condu-
pela trela no grande jardim do parque, Na m inha cama, eu tinha sem pre o
lvuo pesadelo: do cim o do arm rio saa um anim al m uito com prido, de\a-
" uma longa serpente sem cabea (castrada?), uma espcie de m inhoca
-,imesca que descia na m inha direco. Acordava a gritar, Suzy acudia e aper-
,-m e generosam ente contra o seu peito generoso, Eu sossegava.
( crta m anh, acordei tarde. C om preend que o Sr. Pascal j sara para o
^.ilho. l.evantei-me e, aproxim ando-m e com cautela, ouvi, por trs da porta
Lozinha, Suzy que se afadigava (o pequeno-alm oo ou o lavar da loua?).
^ei com o o soube, mas sonhe que ela estava n u a na cozinha. Im pelido
- um desejo irresistvel, e seguro, v-se l saber como. de cjue no corria o
;.or risco, abro a porta e contem plo-a longam ente: nunca vira um corpo nu
mulher, os seios, o \e n tre e o seu velo e as fascinantes ndegas! A atraco
:ruto proibido (eu teria talvez uns dez anos)? O esplendor sensual das suas
-:n.iv transbordantes? Saboreio longam ente o meu prazer. Depois ela d por
c. longe de me ralhar, puxa-m e para si e fica longam ente a beijar-m e con-
" seus seios e entre as suas coxas cjuentes. Nunca mais voltm os a falar no
',:nto os dois. Mas nunca esejueei esse m om ento de fuso intensa e sem
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VI
Q
ueridos avs! A a \ direita e magra, de olhos azuis claros e francos.
sem pre activa mas ao seu prp rio ritm o e sem pre generosa para com
todos, sobretudo para com igo tiue adorava mas sem ostentao, para todos
refgio da serenidade e da paz. Sem ela, o m eu av nunca teria sobrevivido ao
seu trabalho extenuante nas florestas da Arglia. As suas filhas... deve t-las
educado segundo princpios de sade e de virtude, que fizeram de ambas belas
raparigas aprum adas e puras, O av nervoso, inquieto, sem pre a resm ungar e
a soprar p o r trs do seu bon c dos seus bigodes, mas b o ndoso com o nin
gum: os dois constituam a m inha verdadeira famlia, a m inha nica famlia,
os m eus nicos amigos no m undo.
l m cpie se reconhecer que os espaos rasgados onde vivi junto deles,
onde fui ter com eles, eram de m olde a exaltar um a criana, at ento enclau
surada na solido de exguos apartam entos citadinos a m enos que, mais
verosim ilm ente afinal, fosse a sua presena e o am or que m e dedicavam e que
eu lhes retribua ao transform ar num paraso de criana as casas, os bosques e
os cam pos onde eles viviam.
Foi de incio, antes de o meu av se reform ar para voltar ao Morvan natal,
a grande casa florestal do Bois de Boulogne, dom inando o conjunto de Argel,
e foi mais tarde, por fim, a casinha de Larochem illay (Nivre) com o seu jardim
e os seus cam pos de Bois-de-VelIe.
O Bois de Boulogne! (ionserco uma lem brana deslum brante da sua casa
florestal aninhada no centro de um jardim enorm e. As divises eram baixas
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trescas. Descobri nela um a lavandaria som bria e m isteriosa onde corria uma
.;ua eterna: um a estrebaria onde cheirava ao feno doirado do penso, onde se
c'pirava o m aravilhoso esterco de cavalo e o arom a luzidio de dois esplndi-
: animais de raa palpitantes de \da nos seus flancos lisos: os belos cavalos
:c sela de que o m eu av cuidava com igo para os Senhores da Direco. Conti-
jo a achar os cavalos os anim ais mais belos do m undo, infinitam ente mais
cios do que os mais belos seres hum anos. Uma noite, os animais fizeram
' Liito barulho, assustando-m e: tinham sido sem dvida ladres de galinhas,
r.as os cavalos, mais vigilantes do que os ces, tinham -nos posto em fuga com
'Cu alarme.
A vinte m etros de casa erguia-se um tanque com prido e alto e, quando me
c antavam em braos, eu via l dentro estranhos peixes plidos, verm elhos,
crdes e violeta, desaparecendo lentam ente debaixo das com pridas ervas
caras e flexveis que frem iam. Mais tarde, ao ler Lorca, voltaria e encontr-las.
c'^as flexveis coxas de truta da m ulher adltera que parte para o rio: peixes
or.u essando os canios que se entreabrem .
Ha\ ia na casa florestal canteiros de flores fabulosas (aquelas anm onas,
.tciueles frsias de perfum e ertico e violento, aqueles ciclam es tm idos e
" de-rosa, com o o cor-de-rosa fem inino da Simone de Bandol, mais tarde,
I 'u a folhagem verde-negra), onde, na Pscoa, a m inha irm e eu amos pro-
r.ir os ovos de acar, muitas v^ezes j encetados pelas formigas. c[ue l
n.mi sido escondidos em nossa inteno; e os gigantescos gladolos multi-
rc'. de que o m eu pai levava todos os dom ingos um grande ram o para os
crcccr longe da nossa presena a um a jovem lindssima, de nom e belga.
_ c nunca vimos. E a im ensa horta cheia de nespereiras do Japo! Essas nespe-
. Davam frutos ovais de um am arelo plido que continham um par
. ..ido de caroos castanhos escuros, lisos e brilhantes e duros com o testcu-
' de hom em (mas claro que ento eu nada sabia disso, pelo m enos cons-
, itemente], caroos que eu acariciava dem oradam ente entre as mos com
i; .tlegria estranha. Q uando a m inha jovem tia Juliette, a fantasista da fam-
irepava po r mim s rvores com o um a cabra para as colher nos ramos e
estender, a mim cpie esperava debaixo dela cobiando o interessante inte-
: das suas saias, com o seu lquido m acio e aucarado a desfazer-se-me
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L O r / V -1 I. T n l A S 1: R
na b(5ca c separando o par de caroos luzidios, que sabor e que prazer! Mas
estas m esm as nsperas eram m uito m elhores ainda quando as apanhava da
terra, onde queim adas pelo sol tinham com eado a apodrecer no perfum e
rude e acre da terra! Mais adiante, havia ainda um tanquezinho, este da m inha
altura, cheio de uma gua ciara e cantante (uma fonte?) e bem l ao fundo, por
trs de grandes ciprestes negros, uma dzia de colm eias dispostas em fileira
que um ex-professor prim rio breto, o Senhor Kerruet, vinha muitas vezes
visitar, com o seu chapu de palha na cabea, mas sem vu nem luvas, pois
cpie as abelhas eram amigas dele. No o eram sem d\ ida de toda a gente, p o r
que num dia em que o meu av se aproxim ara dem asiado, enervadas e incjuie-
tas com o seu nervosism o e a sua inquietao, elas saltaram-lhe para a cara em
massa tendo elc ficado a dever a sua salvao a uma corrida desenfreada e a
um m ergulho no tanque grande. Mas curiosam ente dessa vez no experim entei
somhra de medo.
E sobretudo, m esm o no fundo do jardim esquerda, erguia-se uma alfar-
rt)beira im ensa e redonda cujas vagens lisas, alongadas e escuras (titie eu teria
gostackt de provar mas a m inha me dissera: proibido!) me fascinavam. Tra
tava-se de um ponto de obsercao im previsto de onde, sozinho, eu descobria
aos meus ps, deitada ao sol, m inscula e interm invel, a im ensa cidade, as
suas ruas, praas, prdios e porto, onde repousavam grandes navios imveis
com as suas cham ins, e formigavam centenas de em barcaes num m ovi
m ento perptuo. De m uito longe, no m ar sem pre liso e plido, eu conseguia
a\ istar prim eiro um fum ozinho m insculo no horizonte, depois a pouco e
pouco m astros e um casco, com o que imveis de to desesperadam ente len
tos: os navios da linha Marselha-Argel tjue acabavam, se eu tivesse pacincia
jrara tanto, p o r act)star com infinitas m anobras e precaues ao longo dos
raros cais li\ res do porto. Sabia que um dos navios (depois de tantos Gnral-
-C hanzy e outros) se chamava Charles-Roux. Charles com o o m eu pai (eu
acreditava ento firm em ente que todas as crianas, ao chegarem idade
adulta, m udaram de nom e para se passarem a cham ar (Charles, e s Charles!).
Imaginava que t> navio avanava por aco de rodas escondidas sob o casco,
surpreendendo-m e que ningum tivesse ainda dado p o r isso '.
'X otar a liomofonia entre Rou.x e rones (rodas), que ,sc perde na traduo. (.V, d o T.)
*"()
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ic tu o tn ttn d ia : sem pre uma ddiva sem troca, cjue me provava que
,.to existia. Ele m ostrava-me tam bm , contguos cerca da casa tlores-
Ltos m uros de segurana de tijolo da residncia da Rainha Rana\alo,
;x a ningum via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao invadirem
.1'Lur nos tem pos ureos da cam panha colonial tinham capturado a rai-
pais para a fecharem naquela residncia com pulsiva, estreitam ente
; na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
rnie negro de culos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuva
i - c a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
' t cruzava estendendo-lhes a mo, e dizendo-lhes Amigos, todos ami-
r ra Bhanzin, o antigo im perador do Daom , tambm ele desterrado
Arglia. Condio que me pareceu estranha: tratou-se sem dvida da
prim eira lio de poltica.
o F V T U R O E M r / / o 7 /; M P O
issim que eu o entendia: sem pre um a d d i\a sem troca, que me provava que
eu de facto existia. Ele m ostrava-m e tam bm, contguos cerca da casa tlores-
tal, os altos m uros de segurana de tijolo da residncia da Rainha Ranavalo.
que nunca ningum via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao in\ adirem
Madagscar nos tem pos ureos da cam panha colonial tinham capturado a rai
nha do pas para a fecharem naquela residncia compulsic a, estreitam cnte
vigiada, na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
um enorm e negro de culos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuNa
(vendia-se a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
quem se cruzava estendendo-lhes a mo. e dizendo-lhes Amigos, todos am i
gos!, Era Bhanzin, o antigo im perador do Daom , tam bm ele desterrado
para a Arglia. Condio que me pareceu estranha: tratou-se sem dvida da
m inha prim eira lio de poltica.
VII
passava do outro lado dos \ idros. Com am os ser\ indo-nos do apoict dos joe
lhos, depois de a m inha m e tirar do cesto as pro\ ises. preparadas de ante
mo, cm Argel, N unca nos foi dado conhecer os esplendores do vago-restau
rante; econom ias!
Em Chagny, apnhvam os um ramal secundrio: Chagny-Ne\ers M ud\a-
mos de com boio (cuidackt com as malas!) e subam os para carruagens bem
mais rsticas puxadas p o r uma vagarosa m quina ofegante. Mas est\am os
ento cada vez mais perto da terra, iMuito rapidam ente passei a conhecer e
a reconhecer as estaes, e nos taludes rentes linha do com boio (que seguia
a um ritm o de dispnia) tentava ac istar por entre as ervas daninhas os prim ei
ros m orangos braos com t]ue tencionava regalar-me: estariam j m aduros?
Por fim chegavam os ao term o da nossa viagem; a Millay, pequena garezinha
insignificante, mas era a que se iniciaca a verdadeira aventura.
Por trs da estao, espera\a-nos uma tipia, Da prim eira \ez, bac ia uma
chuc a fortssim a, que nos toldava p<tr com pleto a casta, mas ficmos ao abrigo
da cobertura de lona, encolhidos po r causa do frio mas das outras vezes,
quase sempre, fazia um belo sol. M. D ucreux, que viria a ser m aire de Laroche
em 1936, obtendo o lugar contra o senhor conde, conduzia tranciuilamente
uma bela gua baia de garupa possante e em brece coberta de espum a, e cuja
longa fenda carnuda, que me ficava debaixo dos olhos, me interessava p rodi
giosamente. Seis quilm etros de ascenso, depois as alturas de Bois-de-Velle de
onde se descortinaca uma imensa paisagem de m ontanhas frondosas (carva
lhos. castanheiros, faias, freixos, crpeas, para no falar das avelaneiras e sal
gueiros), em seguida um a descida ligeira mas prolongada ao longo da cjual a
egua adoptava um trote familiar, e po r fim a aldeia. A encosta m uito abrupta
de um cam inho bastante m au: passcam os diante da escola com unal (em gra
nito), e logo a seguir a casa, com a m inha av m uito direita que nos esperava
porta.
Desta vez, a casa no era m uito grande, mas tinha duas grandes caves fres
cas, um grande sto mais ou m enos arranjado a abarrotar de rom ances de
Delly recortados pgina a pgina da revista Le Petit cho de la m o d e ejue a
m inha av sem pre lera, alpendres para os coelhos e um grande galinheiro
L O l' I S A I. 1 II I S S f. R
gradeado onde deam bulavam as aves de criao cheias da sua lenta suficinc:.
mas de olhos sem pre alerta. Havia um a boa cisterna de cim ento (onde s \cv.
os gatos caam e para m eu terror dram a! (outra vez os m ortos) se afog
vam) destinada a recolher as guas da chuva. E acim a de tudo um belo jardir
inclinado com uma bela vista para um a das m ontanhas mais altas do Morva;
Touleur. Ao tem po, nem gua corrente na aldeia nem, claro, electricidad;
amos buscar a gua em baldes a casa de duas solteironas que viviam ei
frente, alum ivam o-nos com candeeiros de petrtleo ah! a bonita luz tii,
eles faziam, sobretudo quando, para m udarm os de cjuarto, lev va m o s a In
connosco e passavam ento pelas paredes sombras mveis e com frequnc;
desconcertantes: que segurana, a de quem leva a luz consigo!
Mais tarde o m eu av m andou abrir um poo a valer depois de consuh..
o vedor que. varinha na mo, decidiu que era ali, junto grande pereira, c
determ inada profundidade. O poo foi escavado mo, imagine-se, em plen
cam ada de granito cor-de-rosa! Que trabalho de fora e p reciso-. cavavam-s.
minas, cpie se faziam explodir, e depois era preciso tirar os blocos e escavar d,
no \'0 minas com um a haste. A gua apareceu profundidade exacta precist
pelo vedor. Ficou-me desse tem po uma verdadeira considerao pela arte du>
hom ens da varinha de aveleira, considerao que transferiria m uito mais tarch
para o velho Rocard, director do Laboratrio de Fsica na cole Norm ale :
pai de Michel Rocard (um estranho para mim e aparentem ente tam bm para <
pai), que procedia a estranhas experincias de m agnetism o, saindo a p con
a sua varinha pelos jardins da Escola, aos dom ingos (quando no havia nin
gum a observ-lo), ou de bicicleta, de carro e at de avio! Este hom em fabu
loso, que conseguira equipar os laboratrios de fsica de 1936, com pletam entc
vazios, a seguir penetrao das prim eiras tropas francesas na Alemanha, fre
tando p o r sua iniciativa cam ies militares e trazendo dos laboratrios alem c'
c das grandes fabricas todo o m aterial de que precisava. O que forneceu ao ser
Laboratrio de Fsica, um dos prim eiros de Frana (onde trabalhou Louis Kas
tler que viria a ser Prm io Nobel), m aterial com que funcionava. O mesm<.
Rocard pai tinha fama de ser o pai da bom ba atm ica francesa, o que nunc;;
foi nem confirm ado nem desm entido; mas esse ttulo ou pseudo-ttulo va
lia-lhc a hostilidade poltica da m aior parte dos iio n n a lien s. Rocard foi c
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/' l 7 r R o \t r / / o l 7: .)/ 7" o
V, fazer com elas a estrutura das cestas cam ponesas que me ensinou a fahri-
na ca\e, e m ostrou-m e quais eram os jo\ens rebentos de salgueiro que se
;am entrelaar entre os arcos da arm ao. Fmsinou-me tudo. os tanques, as
os lagostins, mas igualm entc toda a regio c as pessoas que nela se encon-
,im e com quem ele cavaqueava no falar local.
O Morvan era ento um a terra m uito pobre, \avia-se por l quase exclusi-
'.ente da criao de bovinos charoleses brancos, mas sobretudo da criao
o>rc(ts e.,. de crianas da Assistncia Pblica colocadas em grande nm ero
regio. Acrescente-se a isto a batata abundante, um pouco de trigo, ce^ada.
_ i-mourisco (que se dava m uito bem p o r l. na com panhia dos castanhei-
a castanha e a caa, nom eadam ente aos javalis durante o Inverno, alguma
:a e a lista fica com pleta.
\ a aldeia, num ponto elevado, a igreja, recente, sem graa nem realce, e
fe dela o clssico e m edonho m onum ento aos m ortos da Guerra de 19Ia-
"S, coberto de inum erveis nom es, aos tjuais se acrescentariam mais tarde,
jvouco po r toda a parte, as listas dos m ortos de 1939-1945, a seguir o nom e
.iguns deportados, enfim a lista das vtimas das guerras dt) Vietname e da
,clia. triste balano dem onstrando at ev idncia tjue com o sem pre essas
rras tinham ceifado a juventude dos campos. l'm antigo com batente da
jrra de 1914 assegurava o servio eclesistico, dizia a missa, em que eu
,i\a parte com o m enino de coro, dava o catecism o ejue frequentei mais
c:l num a m inscula salinha aquecida de Inverno po r um pequeno fogt) ao
ro O padre, desiludido de tudo, bonacheiro, generoso em relao aos
,.idos e sobretudo aos apetites ou at m esm o aos actos sexuais, sem curiosi-
,ies m rbidas na confisso, sem pre tranquilizador para as crianas, com o
cachim bo das trincheiras sem pre na boca, era a indulgncia em pessoa:
;is uma figura de bom pai.
Saa-se bastante bem nas suas funes, porqtie a regio era ainda dom i-
d.i pela autoridade aristocrtica indivisa do conde, cujo alto palcio do se
io x\ II se escondia por trs de altssimas rvores m ultisseculares. Tratava-se
um grande proprietrio de terras, possua vontade dois teros da fregue-
era de direito m aire, e controlava estreitam ente a m aior parte dos cam po-
'cs, seus rendeiros, ou mais frequentem ente ainda seus caseiros: subsidiava
"9
I. o ( / ,v , I /. r II i V V / R
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Todas estas coisas m e causavam uma grande alegria, mas devo reconhecer
que tudo isto se passava durante o Vero e que, term inadas as frias, tnham os
tlLie voltar para Argel. Contudo, no chegara ainda ao cm ulo das m inhas sur
presas nem da m inha felicidade.
l'm dia a m inha av, a m inha me, a m inha irm e eu partim os para Fours,
onde a m inha bisav m aterna, a velha Nectoux, viva ha^ ia muito, vivia sozi
nha num a nica diviso, terrivelm ente s na com panhia da vaca. Mais uma
m ulher velha assustadoram ente aprum ada e seca e alm disso m uda, se excep-
tuarm os algumas interjeies de um falar arcaico c que eu no com preendia.
Mas lem bro-m e m uito bem de um incidente que me im pressionou com grande
intensidade, junto pequena ribeira do lugar onde ela levara a sua pesada e
dcil \ aca a pastar. Hu estava a brincar com as liblulas coloridas que passavam
de flor em flor (st)bretudo as flores do prado intensam ente arom ticas).
,\ certa altura vi a m inha bisav, que nunca largava um grande bordo nodoso
ipor causa da vaca e para se apoiar nele ao andar) entregar-se a um co m p o rta
m ento deveras estranho. Sem uma palae ra, estava m uito direita, e o rudo forte
de um intenso jacto saa de baixo da sua longa saia negra. Corria-lhe um regato
claro aos ps. Le\ei certo tem po a realizar que ela estava assim a m ijar m uito
direita, p o r baixo da saia, sem se ter agachado com o as m ulheres fazem, o que
'ignificava que no tinha nada p o r baixo da saia. Fitjuei estupefacto: com tjue
ento havia m ulheres-hom ens, sem vergonha do seu sexo, e que chegavam ao
ponto de m ijar diante de toda a gente, sem reserva nem \ergonha, sem se
darem sequer ao trabalho de avisar fosse ciuem fosse! Que descoberta...
Embora ela fosse sim ptica para comigo, tudo se confundia: seria um hom em ,
aquela mulher, e que hom em , que dorm ia com a vaca, a guardava, e mijava
com o um hom em diante de toda a gente mas sem puxar o sexo para fora da
braguilha e sem se esconder p o r trs de um tronco de rvore! Mas era igual
m ente uma m ulher pois no possua um sexo de hom em , e era capaz de me
amar com dureza, sem dvida, mas tam bm com a ternura contida de um a boa
me... Aquilo nada tinha a ver com a me do m eu pai. Este episdio surpreen
dente no me inspirou m edo algum mas deixou-m e dem oradam ente pensa-
ti\o. Naturalmente a m inha me no dera por nada e nunca falou do assunto.
.\h! a insensibilidade da m inha m e perante tudo o que m e pudesse tocar...
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/. o r / V ,1 A 7 7/ r ,S ,S A
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/ r 7 r /( o t: ,U 7' / I o T i: M F o
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O F r / 1/ R o M r / 7 o / /; V7 /J o
Foi assim que me atirei com grande facilidade e extrem o prazer ao falar
m orvands, tendo em breve deixado de me distinguir fosse no que fosse dos
rapazes do lugar. Apesar disso eles flzeram-me sentir com dureza e durante
m uito tem po que no era um deles. Lembro-me, cjuando a prim eira neve caiu
e cobriu o ptio da escola, de ter sofrido um a sesso terrvel em que me m as
sacraram literalm ente com as bolas que me atiraram cara. e \ cjo ainda hoje
a arvorezinha m agra junto qual ca inanim ado debaixo dos seus golpes.
O m estre-escola, avisadamente, absteve-se de Intervir. Eu tivera a m inha conta,
mas sem som bra de angstia, e eles o seu prazer e a sua desforra. Depois, len
tamente, senti que me adoptavam . Que alegria!
Lembro-me ainda com em oo do m eu ltim o dia de aulas no Morvan,
quando, p o r um privilgio excepcional, m e deixaram escolher para o ltim o
recreio o jogo que quisesse. Escolhi a barra, cujas corridas de surpresa me
embriagavam, e a m inha equipa ganhou.
Eles. Era antes do mais o co n d u to r dos jogos e do grupo, um rapaz atar
racado, corado e forte, de cabelo preto, cham ado Marcei Perratidin, vago
prim o afastado dos meus avs. Tinha um a vitalidade prodigiosa, e com o tan
tos outros cam poneses m orreria mais tarde na guerra. Mais um m orto na
m inha t ida. De com eo, perseguia-m e sem piedade nem trguas, eu sentia
abertam ente m edo dele, estando longe de igualar a sua fora e sobretudo a sua
audcia, e tendo um m edo pnico de me ver obrigado ao com bate fsico: o
m edo, sem pre o mesmo, de ver o m eu corpo lesado. De facto, nunca, nem
u m a s vez, em toda a m inha vida me bati fisicamente.
No havia apenas jogos fsicos entre rapazes, mas sobretudo uma brinca
deira predilecta que consistia em cair em grupo e de surpresa em cima de um
tipo m om entaneam ente isolado, atir-lo ao cho num recanto mais escuro do
telheiro, dom in-lo, abrir-lhe com pletam ente a braguilha e pr-lhe o sexo de
fora, o que era sem pre m otivo de grande regozijo e gritaria. Tambm eu sofri
essa sorte, sem dvida que lutando, mas com um estranho prazer a apoderar-se
de mim. C onheci igualm ente na escola um rapaz da Assistncia Pblica, vindo
no se sabia de onde, m uito inteligente, e que me disputar a o prim eiro lugar
na aula. Era frgil e plido (com o eu) e m urm urara-se com com placncia que
ele brincava aos pais e s mes com uma rapariga do colgio das freiras.
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r i r I R o M r / T o 1 E M p o
' Icrm o do f;il;ir local; a palavra francesa para debulhadora hatteuse. (.V, do T.)
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o / r 7 r 77 o \ r I 7 o 7 h V p o
' Tcniio do falar local: a palavra francesa para dehnlliadora batteuse. (.V. d o I. }
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L O l I S A L T H r S S t: R
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VIII
m 1930 , tinha eu ento doze anos, o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em jMarselha. Instalm o-nos no n. 38 da rue Sbastopol,
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que no fica longe. Loiiis, Charles, Simone: h decididam ente
nom es cjue so destinos, com o diz Spinoza no seu tratado de gram tica
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitrio. iNo liceu a
at entura continua. Na cinquim e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Ib d a a m inha vida se passa entre o liceu (belo, em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo grande estao term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estaes terminais onde os com boio param pois no podem ir mais
longe contra grandes batentes. D ando para o lado da linha h um cam po de
jogos e ginstica. O interesse dessa ginstica est em que fazemos m uito poucos
exerccios, pois em breve o prof. d a sesso por term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se ecjuipas, no sei porqu atiram-me
para a frente, e ganham os pois temos nas redes um rapaz que mergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul, Falamos, entendem o-nos
c eis que rapidam ente se esboa entre ns um a singularssima amizade.
Paul no to forte nos estudos com o eu, nunca o ser, mas tem no sei
o qu que me falta: sem ser alto, largo de om bros, possui mos robustas.
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VIII
m 1930. tinha eu ento doze anos. o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em Marselha. Instalm o-nos no n." 38 da rue .Sbastopol.
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que no fica longe. Louis, Charles. Simone; h decididam ente
nom es que so destinos, com o diz Spinoza no seu tratado de gram tica
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitrio. No liceu a
aventura continua. Na cinquim e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Toda a m inha vida se passa entre o liceu (belo. em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo grande estao term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estaes terminais onde os com boio param pois no podem ir mais
longe contra grandes batentes. D ando para o lado da linha h um cam po de
jogos e ginstica. O interesse dessa ginstica est em que fazemos m uito poucos
exerccios, pois em breve o prof. d a sesso po r term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se equipas, no sei porque atiram-me
para a frente, e ganham os pois tem os nas redes um rapaz que m ergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul. Falamos, entendem o-nos
e eis que rapidam ente se esboa entre ns uma singularssinia amizade.
Paul no to forte nos estudos com o eu, nunca o ser, mas tem no sei
o qu que me falta: sem ser alto, largo de om bros, possui mos robustas.
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o /- r 7 7 77 O i; M r I 7 o 7 7: 1/ 7^ 77
Fck), e que era objecto. p o r causa da sua pequena estatura e da sua lbia, da
benevolncia do capelo, senhor de um grande nariz cheio de plos: Plo, um
caador de saias desgraado, pelo m enos disso se gabava alto e bom som. o
que me parecia extrem am ente incongruente naquela organizao catlica
dedicada pureza dos costum es.
No Vero, partam os para longas estadias de cam pism o, nas m ontanhas
dos Alpes.
Desta vez estam os perto de Allos num a bela pradaria dom inando os \ ales.
e Paul e eu, tal com o os outros, rodem os o espao ocupado pelas nossas ten
das, o nosso domnio p o r conseguinte, com pequenos m uretes de pedras
precedidos p o r um p rtico alto construdo com ram os leves de btula.
Ilido parecia preparar-se para correr s mil maravilhas. Ora contava-se
entre os da m inha patrulha um rapazito, mais velhtt do que eu, mas pobre,
enferm io, desajeitadtt, que no tinha a mesma educao do que eu, mas uma
m aneira de falar e m odos ordinrios, recusando-se agressicam ente a ob ed e
cer-me, apesar de ser esse o seu dever. Encarregado da responsabilidade
opressi\a com que me haviam oprim ido, no parava de tentar traz-lo
razo. No fim, tam bm ele queria bater-se com igo para acabar com a hist
ria. Por uma vez era eu de longe o mais forte, mas nem po r isso ele deixava de
me responder apenas com insultos, am eaas e proxocaes obscenas. As coi
sas entre esse rapaz e eu p r p rio ganharam tal feio que acabei por desespe
rar da m inha autoridade e ca num a espcie de depresso, a primeira da
m inha vida, p o r assim dizer. Como, no sei por que razo, o m eu amigo Paul
se sentiu, por seu turno, tam bm mal, talvez dos intestinos. Plo decidiu
m andar-nos retirar pro\ isoriam ente para o refgio de um grande celeiro, num a
quinta abandonada a quinhentos m etros dali. Levavam-nos l a com ida. Fic
mos ss. finalm ente ss. ternam ente enlaados na nossa desgraa com um , e
chorando a nossa sorte. Lembro-me m uito nitidam ente de que durante os abra
os que trocvam os senti agitar-se o meu sexo: no mais do que isso, mas era
extrem am ente agradvel sentir essa ereco surpreendente.
A m esm a coisa sucedeu no decorrer daquilo a que ento se chamava a
viagem da prim eira classe, prova destinada a fazer-nos ganhar um distintivo
especial e a obter um a prom oo de patente. Tratava-se para ns os dois
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/. o r / ,v ,1 L 7 H 7 ,S -V /;
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h l 1 r R o 7 M I l l O 7 R M r O
m arcado para toda a vida; digo bem, c isso h-de tornar-se elaro, p u r a toda a
vida.
Certo Vero, um colega do meu pai, que tinha uma m oradia em Bandol,
arrendou-nos o seu piso superior. O m eu pai ficava a trabalhar cm Marselha,
mas a m inha me, a m inha irm e eu instalm o-nos em Bandol. Ora o rs-do
-cho da m oradia cm breve foi ocupado pela m ulher c as duas filhas do colega
do m eu pai. A filha mais velha, Simone, im pressionou-m e assim que a vi: a
m esm a beleza, o m esm o perfil que o am or de Paul. m orena e ainda p o r cima
mais pequena: exactam erde segundo o m eu desejo. Nasceu em mim um a pai
xo violenta. Imaginava toda a espcie de ardis para a encontrar, segurar
diante das nossas mes a asa de um a cesta, segurando ela a outra! E at m esm o
ensinar-lhe os rudim entos do craivl am parando-lhe os seios e o baixo ventre
com as m inhas mos, e po r fim acom panh-la (soh a vigilncia da sua irm
mais nova, condio exigida pela m inha me!) s alturas da Madrague, a dez
quilm etros de Bandol, num a grande colina cuja areia fina corria dchaixo dos
nossos ps. Estava a desfazer-me de desejo p(tr ela. Cm dia dei-m e conta de
que, no tendo audcia bastante para a acariciar (ha\ ia a irm zinha esprei
ta e m esm o na sua ausncia eu no me atreveria sem dvida a nada de pare
cido), podia pelo m enos fazer correr entre os seus seios punhados de areia
lenta. areia descia-lhe para o ventre, alcanava-lhe a curvatura do pbis.
Ento .Simone punha-se de p, afastava as coxas e a parte de baixo do fato de
hanho, a areia caa para o cho e eu podia, durante o claro de um instante,
entrer er ao alto das suas esplndidas coxas nuas a profuso do seu velo negro
e sobretudo a fenda cor-de-rosa de um sexo: rosa de ciclame.
A m inha m e rapidam ente descobriu a m inha inocente mas \ iolenta pai
xo. Cham ou-m e de parte e teve a audcia de me declarar: tens dezoito anos,
.1 Simone dezanove, im pensvel pois seria imoral, dada a diferena de idades,
vjue se passasse algum a coisa entre vocs. No era conveniente! E de qual
quer m aneira tu s ainda m uito novo para amar!
O p ior aconteceu num dia de m uito sol, tarde. Sabia que Simone tomava
,mho num a praia do lado da Madrague. M ontei-me na m inha bicicleta de co r
rida e ia partir para ir ter com ela quando a m inha me apareceu, vinda de
dentro de casa. O nde vais? Eu sabia que ela sabia. Tornava-se impossvel ir ter
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/, o I I s ,1 /. / // r s V /: A>
com Simone. Sem hesitar um segundo, e num a reaco que no com preend
nem controlei, indiciuei m inha m e a direco directam ente oposta do
m eu desejo-, \'ou a La Ciotat! Pedalei depois com um a rai\a intensa, lem bro
-me bem, a chorar com uma revolta intensa m ontado na m inha bicicleta.
A p artir de ento, o episdio da violao (s um hom em , m eu filho!) e
o episdio do interdito de Simone passaram a constituir um s na m inha
m em ria, e aliaram-se repulsa obscena que me inspirara, em criana, ou
num a recordao projectada na infncia, a imagem dos seios da m inha m e e
da sua nuca branca levem ente frisada de louro: obscenos. Uma repulsa, um
dio viscerais; com o podia ela tratar assim os m eus desejos? E digo: a partir
de ento. No m eu inconsciente po r certo, mas no na m inha conscincia. S
m uito mais tarde, luz retrospectiva bem conhecida dos afectos, vi claram ente
estes episdios, a sua afinidade e a sua recomposio-, ao longo da m inha
anlise.
D urante todo este tem po de Marselha, continuei com as m inhas faanhas
escolares. ramos dois a disputar o prim eiro lugar da turm a: um rapaz de rosto
ingrato, atarracado, fortssim o em m atem tica (m atria em que eu, de acordo
com o desejo da m inha me era m edocre), cham ado Vieilledent. Dentes
\ elhos / casas velhas (Althusser: alte-H aser no falar alsaciano), cpie estranho
par. Lembro-me de que ele tentou um dia alistar-me nas juventudes do coronel
La Roque, mas eu no quis. O que no se de\ eu com certeza a um a conscincia
poltica, mas prudncia, tal e qual com o o m eu pai.
Desforrava-me dele nas puras letras. Conservei uma memciria ntida da
minha turm a da premire. a partir da qual creio ter mais tarde apreendido um
elem ento im portante da m inha estrutura psquica, lnham os um grande profes
sor de letras, M onsieur Richard, hom em alto e magro, m uito frgil e sempre
adoentado, com um longo rosto branco, tam bm ele esmagado por uma pesada
fronte, constantem ente afligido pelas dores de uma garganta que trazia sempre
em brulhada em cachecis de l (com o a m inha me e eu prprio, naturalmente,
nesse tem po); um hom em de um a doura e de uma delicadeza infinitas; tam
bm ele m anifestam ente um puro esprito, desligado de todas as tentaes do
corpo c da matria, com o a dupla imagem com posta da m inha me e de mim
(do que me dou conta neste preciso instante, ao escrev-lo); iniciava-nos, e com
9a
<) / r 7 r 77 o F V r / 1 I F \i p o
que calor, ternura e xito!, nos grandes hom ens de letras e poetas da histria.
Idcntifieava-mc eom pletam ente com ele (tudo a isso se presta\a). imitei de
pronto a sua letra, adoptei as suas construes de frase peculiares, fiz meus os
seus gostos, os seus juzos, cheguei ao ponto de lhe im itar a \'oz c as inflexes
de ternura, c nas m inhas dissertaes devolvia-lhe exaetam ente a imagem da
sua figura. Ele notou im ediatam ente os m eus m ritos. Que m rito ao certo? Eu
era sem d \ ida um bom aluno, m uito sensvel, m ovido se assim posso ex pri
m ir-me p o r uma inquietao constante de fazer as coisas bem feitas. Mas mais
tarde com preendi que se tratava de faeto de algo diferente.
Em prim eiro lugar identificava-m e com ele, pelas razes que acabo de
expor, ligadas m inha p rpria imagem de mim e da m e e, para alm dela.
imagem do tio m orto: Louis. Foi iM. Riehard quem me convenceu a preparar
mais tarde o concurso para a Eeole Norm ale Suprieure da rue d lHm, que os
meus pais e at m esm o a m inha m e ignoravam. De faeto com preendi que ele
representar a uma imagem po sitira dessa me que eu amava e que me amava,
uma pessoa real eom quem eu podia realizar essa fuso espiritual conform e
ao desejo da m inha me, mas ejue o seu ser repugnante me vedava.
Mas durante m uito tem po acreditei (e m esm o no com eo da m inha an
lise) que representava com ele o papel de filho amante e dcil, que, conside
rando-o ento com o um bom pai, pois desem penhara na ocasio a seu res
peito o papel do pai cUt pai, frm ula ciue durante m uito tem po me seduziu
e me pareceu dar conta dos m eus traos afcctivos, Era a m aneira de solucionar
paradoxalm ente a m inha relao com um pai ausente atribuindo-m c um pai
imaginrio, mas com portando-m e com o o seu p r p rio pai.
E efeetiram ente achei-m e em diversas ocasies repetitiras na mesma
situao e com a mesm a im presso afeetivas de me conduzir perante os meus
m estres com o o seu p r p rio mestre, tendo seno tudo a ensinar-lhes. pelo
m enos que me encarregar deles, com o se tivesse o sentim ento m uito \iv o de
ter que controlar, vigiar, censurar, ou at reger o com portam ento do meu pai
sobretudo em relao m inha me e m inha irm.
Mas ai! esta bela construo, justa a certo nvel, revelar-se-ia bem unilate
ral. C om preendi com efeito, mas m uito tarde, que negligenciava ento o ele
m ento mais im portante: os m eus artifcios, a im itao da voz. dos gestos e
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i o r I s .1 L H I ,V ,S E R
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f I / r K o .1/ r / / ( ; / /: 1/ /'
9^
IX
uando o meu pai foi nom eado para Lyon pelo banco, isso representou
V ^ / uma nova m udana de ares, para a minha me um novo exlio e suplcix
e para mim a entrada no Lyce du Pare, para os preparatrios do exame dt
admisso Normal Sup.
A preparao do exame prolongava-se por trs ou at quatro anos. O '
mais jovens viam-sc confinados hypokhgne, e os outros khgne. '
Senti-me literalmente perdido. No conhecia ningum, tinha diante de
mim rapazes j formados em todos os truciues e usos, que celebravam tradi
es colectivas e cultivavam o culto dos antigos admitidos (muito raros
naquela cidade de provncia). Para mim uma solido durssima de viver e que
se tornava ainda mais penosa pela convico de que no sa b ia n a d a , mas
nada mesmo, que tinha que me preparar para tudo e sem o auxlio de nin
gum.
Mantinha ao tem po um dirio de bordo (por recom endao de Guitton.
de quem j falarei), e todos os dias comeava a minha pgina pela invocao
da vontade de poder, frmula que eu apanhara algures e que me servia de
resoluo de sair do \ azio e de me afirmar pela fora de uma vontade vazia
tiuc no era capaz de substituir a natureza. A par dela figuravam longas decla
raes de am or p o r Simone, que nunca tive a coragem de lhe mandar. Isso
no se faz, respondera-me a minha nica esperana, a m inha tia, a quem
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F r T I R o \i r I 1 o M P o
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/ o r / V . i /. / H r V /: R
l'iquei c\ identem entf cheio de \ ergonh;i, mas o meu desespero era mais fone
no tugi nem mugi, apoderei-me da p ro \a corrigida pelo mestre. conser\ei =
essencial dela (as partes, os seus temas e a concluso) que adaptei o melho
que pude a meu modo, ciuer dizer, ao que j conseguira apreender com o send<
a maneira de Guitton. letra includa. Q uando Guitton nos entregou public;;
mente as provas, cobriu-me de elogios sinceros e estupefactos: tinha feito tat
tos progressos em to pouco tempo! F.ra o primeiro com 1" em 20 ,
Bom. Belo meu lado. eu tinha muito simplesmente copiado as correct
de Guitton, fizera batota, cravara e pilhara o seu te x to ; supretno artifcio
impostura para conquistar os seus hivores. Sentia-me confust): era imposs\i
ciue ele no tivesse dado por nada! \v) me estaria a m ontar uma armadilin:
Porque pensei que ele percebera tudo e por generosidade mo queria escontk
.Mas ciitando, passado tmiito tempo, talvez trinta anos. ele me voltou a fal..
C(.)tn adniiraqo desse exerccio e.xcepcional e eu lhe respond contatido-lba
verdade, ele ficou ainda mais estupefacto. Nem p<tr um instttnte desconfitira
minha impostura e continuav;i a no querer acreditar nel:i!
(guando eu dizia cjue tim mestre no destesta qite lhe devolvam a su;i pr.
pria imagem, e t|ue muitas vezes nem sequer a recotthece, sem dvicht s.
efeito d(t prazer consciente/inctmsciente qtte ela lhe d de se reconhecer nin
tiluno escolhido...
(^)ue benefcios tirei eu prprio do caso ? Setii dv id;i a vantagem de pass.:
directtimente pant a frente da ttirma, de gozar finahnente da considerao d<
meus jovens colegas sobretudo dos veterantts e de ser aceite pela turm.
.Mas a c|ue preo! Ao preo de utna verdadeira impostitra que, da em dian;
no parou de me atligir. J suspeitava de epte s conseguia existir custa c
artifcios, d;i contraco de ernprstitnos cpie tne eram estranhos. Mas d e
leita j no estav am em caitsti artifcios de qtte eu pelo menos me podia coti:-
derar o hbil autor, mas de uma im p o stu ra e de um roubo, ejue detnonstrav a*
claramente que eu s era capaz de existir ertsta de utna verdadeira falsifit
o da minha verdadeira natureza, pelo desvio sem escrpulos do pens
triento. do prprio raciocnio e das frtmilas do meu mestre, quer dizer, de m
outro diante do qual eu queria aparecer para aparentar seduzi-lo. Quandi,
culpabilidade intervm, a no-existncia para si deixa de ser um problet
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o F I I l R O F ,17 7 / 7 T F i; /' o
101
L O r / s A L T H r S S E R
grupo nem partilhava as suas idias reaccionrias, Lacroix foi, neste contexto
de excluso p o r certo muito duro de viver, um hom em de extrema coragem
que se em penhou na resistncia e apoiou depois da guerra todas as causa^
generosas.
Mas o hom em mais espantoso da K hgne de Lyon era o professor de his
tria Joseph Hours, a que chamavamos p o r afeio o velho Hours. Detesta\a
cordialmente Guitton, de quem dizia que no era um hom em , mas uma
mulher, e, pior ainda, uma me. Oh! minha me... Baixo, atarracado, com
uma cara e um bigode Lavai, estava muito metido na poltica, sendo um do
fundadores de VAuhe com Georges Bidault, e apresentando a singularidade d<
ser um catlico convicto, mas jacobino e naturalmente galicano, ferozmentc
contrrio ao ultramontanismo do partido europeu em que continuar a a ver a
herana do Sacro Imprio. No hesitava em nos elucidar em voz alta e na pr
pria sala de aula (e mais tarde em sua casa quando o visitavamos, privilgio
ciue lentamente fui conquistando) sobre a situao poltica francesa. Em 19.^
segundo recordo, dizia-me: A burguesia francesa odeia tanto a Frente Populat
que de hoje em diante lhe prefere Hitler. Hitler vai atacar e a burguesia fratt
ccsa vai escolher a derrota para escapar Frente Popular. Contento-me com
esta frase, mas que se apoiava numa anlise minuciosa da situao das fora
sociais e polticas e tambm da personalidade e da carreira de hom ens polti
COS cujo com portam ento ele observava com ateno. Deste m o d o distinguira
em particular iMaurice Thorez entre os melhores, e punha todas as suas espe
ranas no nos privilegiados mas no povo de Frana do qual escreveu uma
pequena H istria um pouco sem dvida na esteira de Michelet. ao velho
Flours que devo as minhas primeiras perspectivas sobre a poltica e o que nela
estava em jogo, e tambm sobre o comunismo, que para mim se reduzia a T h o
rez. Hac ia nele no sei o qu que me lembrava, fisicamente e pelos seus cons
tantes resmungos, a mem ria do meu av, que m orreu nesta altura, deixando
por vinte anos ainda, a minha av) sozinha na sua casa de Larochemillay,
Foi ento que tentei realizar um grande desgnio que elaborara a s)s
A Igreja lanara, para fazer frente ao desenvolvimento do socialismo, aquilo a
que se chamava os movimentos da Aco Catlica. No se tratava de um m ovi
mento global, mas de movimentos especializados para as diferentes camacLi'
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F l' T i' R O M V / 7 O T /:' .17 P O
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l o l ! V A !. / // / V V / R
1(J4
; mobilizado cm Issoire, num grupo dc alunos oficiais dc rcscr\a (1X)R)
F . artilharia hipomvcl. Conhcci as tristes reservas do exrcito francs,
idos cavalos de tiro requisitados, os turnos dc guarda da noite, as estre-
>nde uma rapariga esplndida, pequena e escura, com o perfil que se
,,iiis absolutamente dorm ir comigo na palha mas eu naturalmente
,is suas ofertas. Conhecemos as brincadeiras do comandante de pacoti-
.irbon de Casteljaloux, e arranjei excelentes amigos, dos quais desgraa-
vc s um sobret iveu.
,.imos at Primaxera de 19-i em Issoire, com a instruo a arrastar-se
, .1 tirle (le guerre Guitton estava em Clermont no estado-maior, e
,ic \ ez em quando visitar-me. Eu tinha muito m edo da guerra, no tanto
oorto com o de ficar fe r id o e, continuando a ser crente, descobrira uma
I para me ajudar a adorm ecer em paz: Meu Deus, seja feita a Mtssa
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/, o l s l T U l ,S E R
mais tarde, vi-me tambm eu ameaado pela aviao. Fingi adoecer e, ante^-
que o m dico \ iesse ver-me, tentei certa noite viciar o meu termmetro, esfrc-
gando-o vigorosamente na coxa. Mais uma batota desonrosa. E sem resultado,
segundo creio, () mdico apareceu e no me deu baixa.
Entretanto, o meu pai, felicssimo com os seus enorm es canhes, era
mobilizado para os Alpes, aiema de Menton: mas desta \ ez debaixo de cpula-'
de cimento: despreocupado. Comia e bebia muito bem na cantina com rancho
melhorado dos oficiais. Atirava-se de vez em quando um obus contra um porto
italiano, para manter o moral. Mas nada de muito srio.
A m inha me saiu de Lyon e foi ter com a minha av casa d(J Morc an
Estava finalmeiite sozinha! E acontcceu-lhe ento uma coisa mararilhosa
Tornou-se secretria da m airie, e teve de enfrentar numerosos problema
locais, agravados ainda pela derrocada de Maio-Junho de 1940. Desempenhou
a tarefa de maneira admirvel, sem o menc:)r incm odo de sade. Deixac:;
finalmente de estar sob a autoridade do marido, podia finalmente fazer o que
queria, sentia-se feliz e todas as suas doenas desapareceram.
Q uando hoje a \ ou ver sua clnica, mal me reconhece, mas diz-se muite
feliz, tem uma sade perfeita apesar da sua idade ar anada e recusa-se a sn
tratada por Mme Althusser. Lucienne Bergen o seu nom e de solteira, nada
mais. Assunto resolvido, mas s com sessenta anos de atraso!
Em Maro-Abril de 1940, mandaram-nos para Vannes. onde a instruo fo'
acelerada. Elouve um exame final, no qual fiquei naturalmente em ltimo lugar
O primeiro foi o padre Dubarle, hoje muito doente. Se tiver oportunidade ck
me ler. saiba que nunca o esqueci e que li os seus belos livros sobre HegcT.
As tropas alems aproximavam-se de rajada. Paul Reynaud anunciara qiu.
nos bateriamos no reduto breto mas, umas atrs das outras, as cidadc'
foram sendo, e entre elas Vannes, declaradas abertas. Os nossos oficiais [esta
vam] sob o com ando do sinistro traidor general Lebleu, que por m edo dO'
comunistas que podamos ser ou vir a ser, nos impediu de nos m ovim entar
mos na direco do Loire, ento livre em Nantes. passando depois para Sul
Mantcc e-nos reclusos no cjuartel. sob a nossa p r p r ia g u a rd a , inclusive n.;
altura em ejue os alemes e os seus carros de assalto chegaram, Se abandona
rem os vossos postos, sero considerados desertores e fuzilados!
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I. o r j V ,4 I. I n r s s /: R
camponeses norm andos com quem trabalha\a. Alguns, a coisa era mais forte
do que eles, esforaram-se para m ostrar os Chleubs com o se trabalhara em
Frana. Ns, os estudantes, fazamos o mentts possvel e no ramos bem ras
tos pelos nossos camaradas normandos. Estes ltimos acusar am-nos tranquila
mente de sabotagem!
Conheci ento hom ens para mim inauditos. Sobretudt) Sacha Simon,
grande jronalista de L Est r p iib lic a in . sempre a contar histrias pornogrficas
que me deixavam siderado. Masturbara duas mulheres ao mesmo tempo por
baixo da toalha da mesa de um grande jantar, nada mais fcil, elas no c)uerem
outra coisa. iMais tarde ouvi muitas outras semelhantes. Em particular as aven
turas de uma amiga funcionria internacional que s tem uma ambio na
rida; fazer ejacular p o r baixo da mesa os oficiais superiores do Exrcito Ver
melho. Um deles sucumbiu at de um enfarte devido emoo. Entretanto eia
j comeu a imensa maioria dos presidentes da repblica e diversos bipos e
cardeais. O seu objectir o ltimo, ainda no alcanado segtindo creio, o
papa. H ela ria, ria sem parar!
Um dia adoeci, ao que parece dos rins, e para meu grande espanto, por
deciso do mdico francs do campo, o tenente Zeghers. que eu voltaria
depois a encontrar no cam po central, uma ambulncia alem extremamente
confttrtvel conduziu-me. num dia de caminho, ao hospital do campo. Fitiuei
por l oito dias, e fui colocado no referido campo, Schleswig, staUig XA.
C) meu nmero, cheit) de zeros, era ~06~(). Ficava-me bem. Continuei a ter que
fazer trabalhos pesados, descarregar tages de carvo, etc.
Sentia-me perfeitamente vontade nestes exerccios de fora e sentia-me
feliz acima de tudo com a com panhia fraterna dos meus camaradas cam p o n e
ses: territrio que eu conhecia desde a infncia.
O campo albergav a contingentes de polacos que, tendo sido os primeiros
a chegar, haviam deitado a mo a todos os servios e viam com muito maus
olhos os franceses que tinham trado em 1939. Havia tambm belgas reple
tos. oficiais subalternos de carreira entre os c]uais um flautista e um actor que
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fazia dc m ulher no teatro, e srr ios misertueis dos quais vrios se enforca
ram nas suas camas.
Segundo a letra da Conveno de Genebra de 1929. cada nacionalidade
deveria estar representada junto das autoridades alems por um homem de
confiana eleito pelos seus camaradas. O primeiro, um certo Ceruiti ven
dedor de automveis na Sua , fora oficiosamente designado pelits alemes,
sem dc ida por falar muito bem alemo. Durante algum tem po fui despejado
na enfermaria do campo, onde me tornei especialista na arte das injeces,
que pessoahnentc no me doam nada (quase pelo contrrio) ejuando tinha
que ser eu a sofr-las (o contrrio da lana de empalar!). hncontrava-me sob
a protect) do dr. Zeghers. sempre eatita no seu impecvel uniforme, bu tinha
conscguidt aprender sozinho algum a lem o: fui assim chutado para enfer-
meiro-chefe. vi-me, com o outrora na minha patrulha de escuteiros, e mais
tarde no liceu Saint-Charles, frente a um enorm e fura-v das parisiense de calo
e \ oz fortes que no queria \ergar-sc s minhas ordens. .S queria partir-me
a cara. Recuei perante ele, foratk a engolir a minha vergonha.
Este suplcio durou at ao dia em que os alemes, para o recompensarem,
repatriaram o seu hom em dc confiana. Como Ptain obtivera de Elitler em
.Vlontoire o privilgio (contrrio Conveno de Genebra) de ser a Frana a
nao protectora dos seus prprios prisioneiros e com o Ptain aproveitara
esse acordo para m andar para os campos oficiais franceses ctjlaboracionis-
tas cjuc faziam propaganda da Rer oluo Nacional e po r l cria\ am lir remente
Crculos Ptain. os alemes consentiram que o novo hom em de confiana
fosse eleito, mas apresentando o seu candidato: o presidente do (.rculo
Ptain, um jor em de sangue azul e de uma beleza admirar ei.
Mas, a, no tinham contado com o esprito de contradio da arraia-
-mida francesa! Uma campanha eleitoral clandestina e gigantesca foi desenca
deada em dois dias, sob o impulso de um parisiense, proftico anarquista dc
falas insolentes. .Uu.xiliava um miservel oficial dentista baboso e m edonho
de SC r er, que passar a o seu tempo, diante de todos, a atirar bocados de c h o c o
late s desgraadas ucranianas do campo vizinho para elas lhe abrirem as p e r
nas robustas, a dez metros de distncia. E o oficial dentista masturbava-se
ento diante do sexo exposto das prisioneiras. Todo o campo estava ao
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ser coisa diferente de imposturas, que podiam muito pelo contrrio produzir
efeitos benficos para o seu autor e para os outros homens, na condio de se
saber o que se queria e de se dom inar toda a culpabilidade, em suma, se se
fosse livre, o cjue a minha anlise havia de me ensinar. Sem que ento o sou
besse e sem nunca cfectuar a mais pequena aproximao disso com a minha
mania-medo dos artifcios que me constituam, aproximava-me s muito
mais tarde o descobri das regras enunciadas pelo nico hom em digo
bem. o nico hom em , que reflectiu sobre as condies e as formas da aco
em poltica apenas , o nico hom em que, muito antes de Freud, como
penso explicar um dia, an tecip o u em g ra n d e m ed id a a sua descoberta
.
iMaquiat el. Porm eu estava ainda muito longe de a chegar.
O que me ensinou tambm a experincia do cativeiro, [foi] '(t bem que
me sabia \ iver na com panhia j no de pai e me e no universo (sem sombra
de exterior) dos estudos, das aulas e do apartamento familiar; em suma. j no
sob o terrvel, digo bem, terrvel, ouves-me, R obert F ossaert ouves-m e de
dentro do teu h o rrvel tim ulo, Gramsci?, do terrvel, do assu sta d o r e do
m a is m edonho de todos os aparelhos ideolgiccjs de Estado que , num a
nao onde bem entendido o Estado exista, a fa m lia . E se eu disser que
at em Lyon, durante trs anos quando tinha entre dezoito e vinte e um
anos! , fora dos meus companheiros de khgne e dos meus professores, eu
no conheci a b so lu ta m en te ningum'': E isso po r que razo, a no ser por
uma mescla atroz de medo, de educao, de respeito, de timidez, de culpabili
dade, que me fora inculcada por quem? pelos meus prprios pais, apanhados
eles prprios e encurralados com o nunca na estrutura ideolgica atroz para a
minha me e tambm para o meu pai, po r muito cjue as aparncias indicassem
o contrrio, e isso porqu seno para inculcar a uma criana todos os elevados
valores c|tie correm na sociedade em cjue ela viv e, o respeito absoluto por toda
a autoridade absoluta e acima de tudo pelo Estado que, aps Marx e l.cnine.
^ A incluso pelo auto r ele uma longa digresso acerca do papel da famlia. relaii\ amente a uma
primeira verso deste captulo, levou-nos no presente pargrafo e no seguinte a efectuar duas correc-
(,'es mnimas que figuram entre parnteses rectos e que perm item restituir a coerncia do desenvolv i
mento. (,V. d o E. fra n c s )
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L O I / S I / / II I S ,S I: R
sabemos, graas a Deus, ser uma lerr\el mquina ao servio (sim, Fossaei
sim, Gramsci), no da classe dominante, ciue nunca est sozinha no poder, m
das classes cpie constituem o bloco no poder, to bem designado por lu
certo Sorel aqui em Frana e no meio da indiferena terica e poltica gem
Mas por tjuanto tem po os espritos mais informados e mais inteligentes se ck
xaro iludir pelo que ainda mais cegtj e mais cegante do que o terrx'.
veneno surdo do inconsciente, que Freud soube pescar no mais fundo di
mares com a sua longa rede de malhas, por quanto tempo se deixaro ek
ainda iludir pela evidncia ofuscante da natureza profunda do aparelho itleok'
gico de Fstado da F arnia t Deveremos dizer hoje depois cias trs grandes fei
das narcsicas da Humanidade (a de CFaUleu, a de Darvvin e a do inconscienii
que existe uma ejuarta ainda mais profunda, pois a sua revelao absttlut.*.
mente inaceitvel pelo indi\ duo (porque a famlia com efeito a todo i
m om ento prprio lugar do sagrado, e portanto do p o d e r e da religio) e
realidade irrefutvel da Famlia surge deveras com o t) mais poderoso tios apa
relhos ideolgicos de Fstatk)?
,\o cativeiro tinha pela frente [alm dissoj um m undo completamentc
diferente do da maldita famlia: hom ens maduros e desligados, pelo meno''
para o melhor, da sua fa m lia , pois que adultos e livres: esses camponese
norm andos e peciueno-burgueses belgas, e estes oficiais subalternos de carreira
polacos que no paravam de evocar em voz alta quer os seus repastos panta-
grulicos dos tempos de paz. quer as suas av enturas e obsesses sexuais at ao^
porm enores mais crus e mais ntimos, ensinavam-me de certo m odo o que c
ser-se adulto e sexualmente liv re, ainda que o no fossem nem econom ica
mente, nem socialmente, nem politicamente, nem ideologicamente, muito
pelo contrrio, pois eram sob todos esses aspectos hom ens alienados (ou
seja, para deixarmos de falar com o Feuerbach ou Hegel, hom ens exploradores
ou explorados, opressores ou oprimidos, inculcadores ou inculcados!). Ora
tjue descobri eu neste m undo novo? A minha obsesso de querer sempre
poder dispor de reservas. F, foi um ponto capital para me com preender a mim
prprio.
Durante o primeiro ano, quando nos davamt ao todo e no mximo duzen
tos e cinquenta gramas de po escuro e cinquenta gramas de chourio de
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Tivera contudo a lucidez suficiente para concluir desses dois meses que tinha
de ajudar a minha irm (que interrompera os estudos para se tornar enfermeira
de crian(,as pequenas e tivera que cuidar dos terrveis feridos do bom bardea
mento de Casablanca) a sair dacjuele m undo sem sada. Assumi ento a causa
dela, convenci a minha me, que ma confiou, velho estribilho, e partimos
juntos, num navio avariado que s avanava em semi-crcuUts. parava e voltava
a arrancar Quatro dias e noites de m ar no meio de um cheiro ftido para che
gar a Marselha. Descobri um quarto para a minha irm em Paris e entrei final
mente para a cole.
Cm desastre! No conhecia l ningum (era o nico da minha le\a a ter
sido feito prisioneiro, e de resto, provinciano com o era, nunca teria co n h e
cido, mesmo em 1939, ningum do m esm o ano). Sentia-me irremediavelmente
velho e ultrapassado po r todos os acontecimentos. J no sabia nada do ciuc
outrora aprendera e chegara de um m undo completamente diferente do da
l ni\ersidade. Hsse outro mundo, e a impresso de ser completam ente estra
nho s pessoas, aos costumes e \ada universitrias, nunca dei-xaram de me
perseguir. De resto nunca estabeleci qualquer relao pessoal fosse com que
uni\ersitrio fosse, excepluados Jean-Toussaint Desanti e (leorges Canguilhem,
mas \er-se- depois porque. ,Se mais tarde defendi uma tese, foi sob a insistn
cia premente de Bernard Rousset. presidente da l PR de ,\miens, que desejava
que um parisiense, conhccitkt pela sua notoriedade (Heine), desse um
pouco de relevo a .Amiens. Pm suma. estar a coinpletamente sozinho, sentia-me
alm disso doente (as minhas obsesses sexuais e perturbaes da viso insis
tentes de facto simples moscas ratadoras que me faziam recear a
cegueira) e sem quaisquer perspectir as. Outrora, influncia sem dvida tk)
relho Hours e j gosto pela poltica, teria gostado de fazer histria. Mas
recuara diante desse objectivo (j no tinha memria, ou pelo m enos pensti-
ra-r>). Agarrei-me filosofia, dizendo para comigo ejue afinal de ctmtas me
chegaria saber fazer uma dissertao bem feita. A minha ignorncia pouco
importara, conseguiria sempre safar-me.
O mdico da Pscola, o jovem dr. tienne, para me proteger, embora sem
acreditar minimamente nas minhas afeces oculares (tinha toda a razo!),
admitira-me na enfermaria da Hscola onde ocupei um quartinho mesmo ao
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' Acrcsccniado na margem do texu). sem que a ligao com o resU) da frase tenha sido feita
pelo autor; sobre quem Helne. lendo-o c o n h ec id o cm Lyon. tinha idias hem definidas, com o as
tene o meu pai q u a n d o recei)eu a sua visita a (iasablanca e fez dissimuladamenie p o u c o dele contando-
-Ihe patranhas (podia-se contar com a discrio e o h u m o r feroz do meu pai)> . <.\. do J.. fruics)
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L O V I S A L T H V S S V K
122
XI
TV T uma noite de Dezembro de 46, com Paris coberta de ne\e, Lesr re con-
X^ vidou-me a visitar a sua me, que regressara da deportao num triste
estado, no apartamento dela ao cimo da rue Lepic. Ainda me vejo a atravessar
ao lado de Lesvre, que falava por dois, a ponte da Concorde, coberta de neve.
Ele falava-me da me. Foi ento que me disse: Vais conhecer tambm a
Hlne, uma grande amiga minha, um bocado louca, mas absolutamente
extraordinria pela sua inteligncia poltica e pela generosidade do seu cora
o. Um bocado louca? Que poderia isso significar ao p de tamanhos elo
gios? Encontramo-nos com ela ao fundo da rue Lepic sada do metro.
Efectivamente ela l estava, esperando-nos no meio da neve. Uma m ulher
pequenina, embrulhada numa espcie de capa que a dissimulava quase p o r
completo. Apresentaes. E logo a seguir caminhada at ao cimo da rue Lepic,
pelos passeios cobertos de gelo. O meu primeiro movimento inteiramente ins
tintivo, foi dar-lhe o brao para a amparar e a ajudar a subir a rua inclinada.
Mas foi tambm, sem que eu jamais tenha sabido porqu (ou antes, sei-o dem a
siado bem: um apelo de am or impossvel, juntamente com o meu gosto do
p a th o s e do exageres dos gestos) fazer no mesmo instante escorregar a minha
mo por baixo do brao dela at sua, e tomar-lhe assim a mo fria no calor
da minha. Fez-se silncio, estvamos a subir.
Conservo uma recordao pattica do sero. Ardia na lareira um grande
lume. Mme Lesvre. feliz po r voltar a ver o filho, recebeu-nos calorosamente.
Era uma m ulher alta, que as provaes tinham completamente descarnado.
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L o I S .-1 [ r H l S S f K
plida e quase apenas uma sombra; nunca sorria. Fala\a devagar, procurando
bem as palar ras para evocar as memrias exaltantes da Resistncia e os pesade
los sinistros da deportao: os campos de deportao no tinham de facto
nada a ver com os campets de prisioneiros que eu conhecera, e nem sequer
com as cttndies da Resistncia cjue tllne e Georges tinham vi\ ido. Com
eeito eram algo que no se podia sequer im aginar. Georges sempre fora dis
ereto quanto aos seus feitos nos Alpes e na cidade de Lyon. Fai ouvir afalar dos
deportados, mas era a primeira \e z que conhecia um deles, e trata\a-se para
mais de uma mulher, que se mantivera bem direita e firme nas suas provaes
Recordo que cu trazia ento vestido (sentido da economia, pelo que no com
prara outro) o casaco estreito e de mau corte, um casaco castanho tpie mal me
ser\ ia, que me tinham impingido barato em Paris aps o meu regresso do cati
\eiro. Mais tarde, Fllne falou-me muitas vezes desse casaco e da sua emoo
ao \er-m e to mal \estido. com o um adolescente desajeitado, completamentc
indiferente sua aparncia, um fantasma regressado de outro mundo.
F de facto durante muito tempo vesti-me com fatos desengraados, c o m
prados feitos, sem arranjos nem retoques h p o r economia e uma espcie de
deleite em ajtarentar pertencer ao m undo dos sem recursos, os pequenos ra
bes da minha infncia e os soldados do meu cativeiro. Lembro-me de que
nessa noite disse apenas algumas palavras para evocar a Guerra de Fspanha.
recordao do velho Flours e tambm da minha av que, um dia em que
estac a a ler-lhe em Larochemillay algumas pginas de VH spoir c Malraux, no
foi capaz de reprimir a sua campaixo: Pobres crianas! Hlne, atentssima
s palavras de Mme Lesvrc, e depois s minhas escassas afirmaes polticas,
no disse quase nada. Nada da sua prpria misria, nada dos seus amigos fuzi
lados durante a guerra pelos nazis, nada da sua infelicidade desesperada,
Entrec i nela apesar de tudo uma dor e uma solido insondveis e julguei c o m
preender retrospectivamente (mas no era c erdade, j o disse) por que que, na
' Acrescento miinuscrito margem do texto sem que a iiga<;o com o resto da frase tenha sido
eita pelo autor nunca por m edida lexcessivamenie caro) at que a belssima e amanissima (daire. o
meu primeiro a m or paralelo a lline, me ensinou a vestir-me com certa elegncia. Illcne sempre Ihe
reconheceu esse mrito. {.V. cio /;. francs)
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rue Lcpic. tomara a sua mo na minha. A partir desst m om ento fui ineadido
p(.)r um desejo e uma oblao exaltantes: salv-la, ajud-la a \ i\er! ,\Linca em
toda a nossa histria e at ao fim. me separei desta misso suprema c]ue no
deixou de ser a minha razo de ser nem no iiltimo momento.
Imagine-se o encontro: dois seres no auge da solido e do desespero que
por acaso se \ e m cara a cara e reconhecem um no outro a fraternidade de
uma mesma angstia, de um mesmo sofrimento, de uma mesma sttlido e de
uma mesma expectativa desesperada.
Pouco a pouco, eu ficaria a saber quem ela era. Oriunda de tima famlia
jtidaica dos confins da Rssia e da Polnia, fugida aos pogromes, R\ tmann de
seu nome. nascera em Frana, no x m ii bairro, do lado da rue Ordener, mas
brincara com os filhos da xaleta nas ruas da cidade. Conser\ara uma recorda
o atroz da me que. no tendo leite para lhe dar, nunca lhe deu o seio. nunca
a teve nos braos. A me odiax a-a, porque queria um rapaz, e atjuela rapariga
escura e selvagem alterava todos os planos do seu desejo. Nunca essa me te\c
um gesto de ternura j)ara ela: dio e s d i a Hlne que, com o qualquer
criana, desejac a ser amada pela sua me e \ ia que tudo lhe era recusado, o
calor do leite e do corpo, a ateno dos gestos de am or e de acolhimento, aca
bou por se identificar irrevogavelmente com a m edonha m ulher tjue a odiava,
e tambm com a imagem arroz que a me fazia da filha: detestada porque recu
sada, negra e seh tigem, pequeno animal rebelde imposst el de e\ itar, sempre
a transbordar de furor e violncia (sua nica defesa). ,A composio, a sobre
posio da imagem de uma me m edonha e cheia de dio e da imagem que
essa me, toda ela dio. fazia da sua menina, um animalzinho negro, raixoso
e \iolento lutando pela sobrexivncia. constiluiria durante toda a xida dela e
at ao fim o horrxel fantasma de Hlne: tinha um m edo incontrolvel de ser
para sempre ela prpria uma m ulher m edonha, uma megera, cheia da mais
extrema injustia e violncia, espalhando o mal sua xolta, sem nunca ser
capaz de dom inar os excessos atrozes cm que essa fora, mais forte do que ela.
sem trguas a lanava.
Tambm atiui no podem os garantir que Hlne pudesse ter a pretenso
de representar fosse no que fosse o reflexo objcctivo exacto da sua me real,
nem das intenes conscientes, e por maioria de razo inconscientes, dessa
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L O r / ,s A I. r If f S S H R
me. Podemos quando muito dizer que este fantasma inaugural no era arbitr
rio, antes se agarrava a indcios de realidade atravs dos quais o desejo (o
desejo implacvel) do inconsciente e da vontade da me podia investir-se.
verdade que Hlne em criana era raqutica, escura e violenta. Mas os aces
sos de violncia... deste modo, at a coberto da memria, algo de bem real se
expressava, algo que, literalmente, proibia Hlne de t'iver. to atroz era o seu
pavor de no passar de uma megera m edonha, para sempre incapaz de ser
amada, de ser amada porque amar, isso ela sabia-o, e de que maneira! Julgo
que nunca vi num a m ulher tamanha capacidade de amor, no em fantasmas
mas nos actos: provou-mo tanto!
Em contrapartida, conservara uma boa recordao do seu pai. Esse
hom em brando e atento tinha uma pequena loja de legumes no x\ iii bairro.
Na comunidade jucaica do lugar, era considerado um sbio consultavam-no
e ele estava sempre disposto a socorrer o prximo. Tinha uma p a ix o ; os cava
los (tambm ele). Acabou por com prar um, do qual tratava com a filha, c estes
cuidados partilhados em inteno do animal, no meio da confiana e da afei
o do pai, davam a Hlne uma verdadeira alegria, que nunca percebera
com o que o pai, a no ser graas a uma pacincia infinita, era capaz de \ iver
com a me. Em breve trocariam o x\ lu bairro por uma casa pequena no vale
de Chevreuse. Foi a que se desenrolou o drama.
O pa teve um cancro. Os irmos e a irm de Hlne viviam ao que parece
por sua conta, sem grandes atenes para com os pais. Foi Hlne, aos dez,
onze anos, quem passou sozinha meses e meses cabeceira do pai a assisti-lo
e a tratar dele, tarefa que a me alijara por completo nos ombros da m filha.
Havia sem dvida o bom dr. Delcroix, de quem Hlne gostava muito porque
a ajudava com o um hom em de verdade, caloroso e atento, sendo o seu nico
socorro num a solido e nesta responsabilidade de molde a esmagar uma
criana. Mas ai! um dia o bom m dico tentou, num m om ento de confiana,
brincar com as cuecas e o sexo da rapariguinha. Foi como se o seu nico
amigo no m undo a tivesse abandonado. Continuou a cuidar do pai, e foi a ela
que o dr. Delcroix pediu, nos ltimos m omentos de sofrimento, que desse ao
pai a derradeira injeco de uma dose elevada de morfina. A rapariga horrvel
tinha assim com o que assassinado o pai ejue a amava e ciue ela amava.
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H V 7 V R O li M r 1 T O I : i; )> o
12:
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maiori Andr Mart\, cuja fabulosa eloquncia c cujo mau feitio a impressio-
na\ ani. Xo dia 9 de Fevereiro de 193b, participou na batalha fsica de rua c o n
tra os fascistas, ao lado dos seus camaradas operrios mobilizados pelo sindi
cato e pelo Partido. Fra a poca de Maurice Thorez: .As bocas que se abram,
no queremos manequins no Partido! Um dia chegou mesmo a conhecer jac-
ques Duelos, num bar onde jogou ao bilhar com ele. vencendo a partida: As
inocentes saem de mos cheias! com entou Duelos, zombeteiro.
Foi nesta poca que nasceu nela a paixo da sua \ ida: a sua paixo p ela
classe operria. Fima verdadeira paixo, total, exigente e por certo que em
parte mtica, mas que a protegia eficazmente de um outro mito. o da organiza
o e dos dirigentes da classe operria. Nunca, nem na sua vida nem perante
mim, ela os confundiu: muito pelo contrrio, chegou at o momento, a seguir
a 19s8. em que ela dizia a quem a quisesse ouc ir que o Partido trara a classe
operria e j no compreendia que eu continuasse no Partido. Dos meus
livros, repetir-mc-ia sem descanso que davam classe operria o que por
direito lhe pertencia, e era por essa razo que os a p ro \a \a e estimulava. Para
ela, em poltica apenas contavam a classe operria, as suas \irtudes, os seus
recursos c a sua coragem revolucionrios.
Posso enfim a este propsito \arrer aqtii definiti\am ente um mito tenden
cioso que correu de boca em boca. acerca de Hlne e de mim, at mesmo
entre alguns dos meus amigos (mas sem d \id a que no entre os mais chega
dos): m m e a Hliie f e z a m n im a presso sobre m im . nem no dom nio filo
sfico nem no dom nio poltico. ,\o foi ela. mas sim Pierre Courrges, c
depois S\'eranne e os seus amigos, as minhas prprias experincias sindicais
na cole Normale onde me opus aos socialistas e consegui c'enc-los na dis
puta pela direco do sindicato, e jean-Toussaint Desanti, e Tran Duc Thao,
ciue, comunistas e filsofos, ensinar am na Fcole Normale, e cujos cursos segui
aps a agregao. !\u n ca , nos meus manuscritos, que naturalmente lhe dava a
ler. ela fez a m enor observao destinada a orient-los de outro m odo: no se
julgava competente nem em filosofia nem em teoria poltica, no conhecia
O C apital, mas tinha uma experincia incomparvel quer do Partido cjuer da
aco poltica. Contentava-se com aprovar-me, e s interr inha para me sugerir
modificaes de molde a reforar ou atenuar esta ou aquela frmitla. Sobre
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que um padre sinistro. Eu era ainda erente. Escrevi j no sei em que dirio
dois artigos sobre a \ iagem. As grandes destruies em Itlia ainda eram muito
recentes. O nosso co m b o io percorria devagar interm inveis pontes de
madeira, suspensas a uma altura vertiginosa sobre o vazio, e que oscilavam.
Quandv), de noite, comemos a avistar Roma, rezmos o Credo em coro.
Impressionante e comovente com o um raio. O papa (Pio XII) recebeu-nos em
grupo, mas teve, num francs inverosmil, uma pergunta e uma palavTa para
cada um de ns. Perguntou-me se estava na cole Normale sim letras ou
cincias? letras. Pois bem. seja um bom cristo, um bom professor e
sobretudo (sobretudo!) um bom cidado! Pio XII resumiu-se todo neste
sobretudo. E deu-me a sua bno. Verifico que no correspondi exacta-
mente s suas expectativas.
Foi em Fevereiro de 19-t" que o primeiro drama comeou. Eu continuava
a cortejar Angeline, nesse caso fora eu quem tomara a iniciativ^a, e estava assim
em vantagem e m elhor posio. Continuava tambm a ver Ellne de tempos
a tempos: ntas fora ela quem tomara a iniciativa, no eu: extremamente inc
modo. Tiv e ento no a ideia, mas a compulso irresistv el de apresentar Ange
line a lllne: no foi a ltima vez cjue me meti num a provocao e impasse
semelhantes, mas estava ao tem po muito longe de desconfiar dos motivos de
to bizarra ideia: o desejo irresistvel de obter de Fllne a sua aprovao para
uma escolha amorosa que no lhe dizia respeito a ela mas a uma outra mulher.
Convidei-as para um ch em minha casa, no meu pequeno cubculo da
enfermaria. Eu tinha perto de trinta anos. Hlne trinta e oito, Angeline vinte.
J no sei o que dissemos, mas sei muito bem com o as coisas acabaram: com
uma troca de opinies acerca de Sfocles. Angeline defendeu j n(t sei que
ideia, por certo que ainda muito escolar, acerca do grande trgico, eu no me
lembrava de nada que pudesse dizer. Ouvia. Foi ento que Hlne. pouco a
pouco, tentou criticar a opinio de Angeline. Primeiro muito serenamente e
com argumenttts srios, e com o Angeline lhe resistisse, o rosto e a voz de
Hlne comearam a transformar-se, ela tornou-se cada vez mais dura e intran
sigente, cortante, e acabou com uma espcie de cena ofensiva (a primeira e
no a ltima do seu gnero, infelizmente, a que assisti). que atingiu profunda
mente Angeline e a deixou banhada em lgrimas. Eu estava aterrado com
1. ^1
I o l I s A A / II r S S A A'
aquela exploso de \ iolneia que no com preendia (por que e que Angeliiu
resistira assim a argumentos perleitamente razo\eis?) e perante a qual me v ia
sem recursos. Angeiine t'oi-se embora e eu fiquei em silncio. Percebi qm
llaae no suportara a outra rapariga nem sobretudo a cerimnia que eu Ihc
impusera, a cerimnia, ou digamos antes a provocao, e que tudo se encoii
trava doravante partido e desfeito entre mim e Angeiine. No voltaria a v-la
Hlne tinha entrado com v iolncia, mas sem v iolncia contra mim, na minha
vida...
O drama precipitou-se uns dias mais tarde ejuando Hlne. sempre n*.
mesmo quartito da enfermaria, sentada na minha cama ao meu lado, me bet
jou. Hu nunca beijara uma mulher (aos trinta anosl). e sobretudo nunca for.i
beijado por uma mulher. O desejo subiu dentro de mim, fizemos am or en;
cima da cama. e era uma coisa nova, arrebatadora, exaltante e v iolenta. D epon
de ela partir, abriu-se em mim um abismo de angstia que nunca mais voltou
a fechar-se,
No dia seguinte, telefonei a Hlne para lhe comunicar violentamente qtic
nunca mais faria amor com ela. .Mas era demasiado tarde. A angstia j no me
deixava, e cada dia que (vasstiva a fazia mais intolervel. Ser preciso dizer que
no eram os meus princpios cristos que estavam em causa? Muito longe
disso 1 fratava-se de uma repulsa bem mais surda e violenta, etn todo o caso
mais forte do que todas as minhas resolutes e tentativas de me recom por
moral e reiigiostunente. Os dias passaram e afundei-me nas primcias de um.i
intensa depresso. Acontecera-me viver m omentos difceis, com o na minha
pturulha eni .Mios, depois durante o cativeiro, e por fim em Casablanca. Mas
natia de comparvel, e tudo durara apenas alguns dias, ou at algumas horas,
acabando em bem. lentei agarrar-me vida como podia, agarrar-me ao meu
amigo mdico, o dr. Htiennc: impossvel, de dia para dia afundava-me cada vez.
mais no vazio assustador da angstia, ttma angstia que rapidamente deixava
de ter losse que objecto fosse: aquilo a que os especialistas chamam, penso eu.
uma neurose de angstia sem objecto.
.Muito inquieta. Hlne aconselhou-me a consultar um especialista. Conse
guimos uma entrevista com Fierre .Mle, o grande psiquiatra e analista da
poca. Cjue me interrogou demoradam ente e concluiu tiue eu exibia um estado
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l.b^
L O l l S A L H r S S F R
dc iodas as feies, pela sua atitude e pelo seu mutismo zombeteiro, os pacien
tes tinham posto a alcunha de Estaline. Instalava-se tranquilamente em cada
uma das camas (ramos vontade uns trinta a sermos tratados por electrocho-
ques), e diante de todos os outros que esperavam a sua sorte, accionava o
manipulo, e o paciente entrat a num impressionante transe de epilepsia. O dra
mtico da situao que vamos Estaline aproximar-se ao longe, as suas \ ti-
mas entravam umas atrs das outras em sobressaltos desordenados e ele pas
sava ao doente seguinte, sem esperar pelo fim da crise do anterior. Ha\ ia o
risco de fracturas sseas (sobretudo das pernas). TTnhamos que apertar entre
os dentes uma toalha: para mim foi sempre a mesma, a minha nica toalha
imunda, para me impedir de cortar a lngua. Conservei durante anos na boca
o gosto ignbil e aterrador, pois ejue anunciava a pequena morte, o gosto
daquela toalha sem forma nem nome. Chegava a m inha cez, aps todos os
espectculos que os meus vizinhos me haviam proporcionado. Estaline, sem
pre silencioso, aproximava-se, punha-m e o capacete, eu cerrava os dentes e
preparava-me para morrer, e depois havia uma espcie de relmpago e mais
nada a seguir. Acordava passado pouco tempo (ficat a adorm ecido somente uns
dois minutos, para meu maior desespero, tal era a minha \o n ta d e de me aban
donar ao sono. enquanto quase todos os outros dormiam horas e horas, ou at
metade do dia!) sempre com a mesma pergunta: mas onde que eu estou? ciue
me aconteceu? Quanto mais avanava mais o meu terror (de morrer) crescia.
No fim, era insustentvel. Recusava com toda a energia a cerimnia de execu
o. mas amarravam-me solidamente cama.
Gostaria de referir um pequeno incidente, mas que diz muito da atmosfera
do meio hospitalar, da imagem dos pacientes e da incredulidade total dos
mdicos psiquiatras perante as afirmaes dc um doente. Como no conseguia
dormir e no dispunha de bolas Quis, para os ouvidos, pensei em fazer umas
com miolo dc po, minha nica matria-prima disponvel. Mas as bolas de
miolo de po metidas fora no canal do ouvido decompuseram-se rapida
mente (evidentemente, no so sustentadas pela rede elstica mas firme do
algodo das autenticas bolas Quis) e os seus gros viscosos entraram-me no
canal auditivo at ao tmpano. Esta dissoluo e esta queda no tm pano causa
ram-me sofrimentos ndizveis, dores de cabea e de garganta insuportveis.
134
() I r T V R o M r / i <j I H \1 P o
Falei disso aos meus mdicos a todo o momento, mas eles no quiseram dar
-me ouvidos, pensando que eu estava a delirar. D urante trs senuum s. repito,
trs sem anas, recusaram-se a fazer-me examinar po r um especialista de otor-
rino, e eu sofri o meu martrio. Uma vez mais foi necessria a interr eno de
Ajuria ' para os convencer e ao fim de trs semanas de horrv el provao, aca
baram p o r me levair ao otorrino que me livrou em dois segundos dos meus
pedacinhos de po e do meu suplcio... Os psiquiatras no tiveram para
comigo uma nica palavra de desculpas ou para lamentar o sucedido!
Bem vistas as coisas, o tratamento aconselhado por Ajuria foi dando lenta
mente os seus resultados e, passado muito tempo ainda, mas sem choques,
vrios meses depois da minha entrada para o Esquirol, senti-me melhor, embora
continuasse vacilante, mas m enos angustiado, e sa do hospital, Fllne estava
porta minha espera. Que alegria!
Lev'Ou-me para o minsculo quarto de um outro hotel onde uma criada de
quarto miservel lhe roubara todas as suas coisas: no tinha a mnima im por
tncia! Um roubo era para ela algo que no contava... p o r comparao comigo
e com o que ela fizera p or mim s o soube muito mais tarde, no por ela,
que conservou a esse respeito um silncio total, mas por uma das suas amigas:
Hlne, que engravidara na sequncia da nossa relao sexual isolada, fizera
um aborto em Inglaterra para que eu no sofresse o martrio de uma nova
depresso ao receber a notcia, de tal maneira lhe manifestara um horror atroz
por a ter amado com o meu corpo. Quem sabe o que um sacrifcio assim?
Ainda hoje me sinto transtornado e comov ido p o r ele em toda a minha alma
e todo o meu corpo. Havia [portanto] Vra, a sua amiga viva mas antiga, uma
m ulher muito alta, m orena e bonita, de origem russa e aristocrtica. Hlne
guardou silncio quanto ao roubo e a tudo o mais c eu fui recebido como
nunca. Tambm eu a tomei nos braos com uma ternura infinita, convencido
de que sem ela por l teria ficado, talvez para toda a v ida.
Hlne e Jacques Martin (que eu comeava a conhecer) descobriram para
mim um lugar de repouso: Combloux, que recebia estudantes fatigados ou
convalescentes. A calma e o esplendor da alta m ontanha que eu amava desde
os meus tempos de escuteiro, as atenes do casal Assathiany que dirigia a casa
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gu;ird()Li-tc para mim! Eu tremia dentro de mim ideia do perigo mortal a que
escapara, com a certeza de que nunca teria tido nem a fora nem a coragem
de enfrentar as provaes fsicas, mortais, da luta clandestina e armada, eu que
nunca disparara um tiro que fosse, esses tiros das armas de guerra que cm
criana me faziam tanto medo, eu cjue me teria ido logo abaixo diante do mais
pec]ueno perigo, cjue ddiva me oferecia ela e cjue confiana em mim! E e i s
que de sbito, graas a ela, no s me tornava igual a todos os combatentes
que ela conhecera, mas tambm, de muito longe, infinitamente superior a
todos aciueles p(tbres n o rm a lie n s cuja juventude e cujo saber me haviam
esmagado, ao p dos quais me sentira to irreparavelmente velho, to velho
que toda a juventude a mim que no tivera juventude me parecera proi
bida. Sentia-me ento jovem, com o nunca nem ningum e fiqtici-o sempre
crendo-nic po r exemplo sempre muito mais novo do que o meu analista, con
tudo exactamente meu contem porneo e noutro dia ainda, a semana pas
sada, houve essa mdica, com trinta anos, sem especial amabilidade. a
perguntar-me a minha data de nascimento; dia 16 de Outubro de 1918 no
pode ser. quer dizer 38! 38 o ciue Voc quer dizer! Como ela tinha razo, esta
juventude que para sempre devo a Hlne minha bem-amada.
verdade que a certeza subjectir a desta juventude finalmente descoberta
no se dava sem razes que a pouco e pouco elucidei. Se era e me sentia enfim
to novo, era porque Ellne era para mim ao mesmo tempo com o uma bo.i
me. enfim uma boa me, e tambm um bom pai; mais velha do que eu, con'
outra carga de experincia e de vida. amava-me como uma me ao seu filho
o seu filho miraculoso, e ao mesmo tempo com o um pai, um bom pai enfim
uma \ez cjue me iniciava muito simplesmente no m undo real, esse m undo infi
nito no qual eu nunca pudera entrar (cxcepto uma vez mais po r efraco
excepto no cativeiro), e iniciava-me tambm, pelo desejo tjue de mim tinha
pattico, no meu papel e na m inha \ irilidade de hom em : amava-me com o um.;
mulher ama um hom em ! Fazamos deveras amor, com o m ulher e homem
quando os meus companheiros andavam ainda em busca da maturidade c
eu tinha a certeza se ficavam pelo balbuciar de um amor irrisrio que
no saa da famlia e da cole. Prova disso era que eu comeara, aps um pro
k>ngado tem po de sofrimento, a amar at o cheiro da pele de m ulher dela. qm
antes, com o a pele da minha me, no era capaz de tolerar. Transformara-mc
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F r I r l o M r / 7 o t / M p o
' Scrx icc de Traxail O b lig ato irc S erv i o d e rra b a lb o O b rig at rit)) ao abrigf) d o qual irabalba-
dore.s r a n c c s e s e r a m d e p o r t a d o s p ara a .Alemanha d u r a n t e a O c u p a o , (.V. d o 70
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/, o I / V ,4 /, 7 // r s s i: K
mais do que Foucault), foi responder-lhe; no. nada. Mas que resposta insign-
ficante, quando talvez eu o pudesse ter salvado! Em todo o caso, tratou-se (.(
nico dinheiro que en t o nunca lamentei ter gasto sem retribuio. Em tod<
o caso. com jacques Martin, o suicdio entrara na minha vida, na nossa \ id.i
sem remdio nem retorno. Elavia, infelizmente, de me lembrar disso.
Jacques Martin no me ajudava, no nos ajudava apenas com a sua afeic>
intransigente e confiante. Ajudou-me tambm a descobrir algum do ofcii
capaz de me socorrer com a sua cincia. Pode parecer singular hoje, mas ui
tempo, para os estudantes desprovidos de meios e sem informaes que nt
mos, se j tnhamos ouvido falar de psicanlise, no conhecamos nenhum psi
canalista a ciuem nos dirigir nem tnhamos maneira de conhecer. Ora JacqiR '
soube um dia, por uma amiga com um que tentara rnatar-se vrias vezes, (ma^
um suicdio, mas falhado) a existncia de um hom em , terapeuta que fazia atta
Uses sob narcose, um bom hom em simptico, acolhedor e um pouco r stia
com a sua barriga saliente, que com eou a tratar de Martin, tendo eu seguid'
o seu exemplo. Durante doze anos, repito, doze anos, ele tratou-me, tiucr
dizer, fez-me na realidade uma psicoterapia de apoio. Tinha um grande presti
gio aos nossos olhos (acabou p o r tratar toda a famlia, a minha irm, a minha
me c muitos outros amigos chegados porque mantinha, segundo dizia, rela
es pessoais, que foram sempre um tanto misteriosas, com mdicos soviti-
ct)s que lhe enviavam ampolas de soro de Bogomctlcv que fariam maravilha-'
em quase todos os casos e permitiram, ao que parece, minha irm, que
morria desse desejo, ter um filht) do hom em com quem casara, um jovem pari
siense do povo, de ps bem assentes na terra, falando um calo transbordante.
com uma liberdade de linguagem sem dtvida excessiva mas de uma exemplar
honestidade e franqueza populares, e ejue o meu pai, bem entendido, nunca
pde nem ver. Eu amava uma judia, a minha irm casava com um hom em do
povo que ele achava ordinrio ou demasiado simples: o desejo do meu pai
batia em retirada. O que ele b e iT i nos fez sentir ao recusar-se a receber Ellne
e Yves. Em resposta, natureza! s me resolvi a casar com Ellne u m ano
depois d a m orte do m eu p a i (magra consolao pstum a para ele) e a minha
irm acabou p o r se divorciar, mas continuando a usar o nom e do ex-marido,
\Ves Boddaert, no querendo tambm ela chamar-se Althusser e, embora
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j. o i / V 1 / / // r s s /: A>
nas tintas , e toi assim que nie transformei com prazer num \erdadeiro
hom enzinho de interior, uma espcie de rapariga esguia e plida (a minha ima
gem encobridora no parque). Sentia-me de tal maneira assim nesse tempo que
tle\ ia efecti\ amcnte alguma coisa do lado da \ irilidade. No era um
rapaz, ou pelo m enos no era um hom em ; uma mulher de interior. O mesmo
se passou em relao a Hlne, mas com tiue diferena!
inha-a conhecido no fundo do abismo, na misria material mais sinistra.
Sinistra; era uma palav ra que lhe \ inha sem parar boca, e que lhe continua
ria a ser familiar at morte. F uma palavra que ainda me faz estremecer
quando a ouo com uma insistncia obsessiva na boca de uma outra amiga.
Sim, ela v ivia para si prpria uma existncia sinistra. De seu, perdera tudo,
v)s amigos prxim os e distantes, assassinados durante ;i Guerra, Renoir o infiel,
e Hnaff, e o padre Larue, o seu nico amor antes de mim. Perdera por fim
todo o contacto com o Partido. Quase no tinha alojamento, a no ser os
sinistros cubculos de criada, com o seu ambiente agressivo e duv idoso. .No
tinha trabalho, e por isso tambm no tinha rendimentos, e viv ia de expedien
tes, como vender alguns dos seus liv ros mais preciosos t)u bater mquina,
quase ao preo da chuva, teses de alunos da Ecole (a seguir minha) que eu
no sem vergonha lhe arranjava. F eu, pela minha parte, no tentava ajud-la?
Claro, e de toda a minha alma. mas de comeo todo o dinheiro que tinha eram
os Vinte francos da bolsa que a Fcole nos atribua antes de conseguirmos por
meio da aco ilegal do sindicato que tnhamos fundado. Maurice Caveing e
eu, obtermos para ns e todas as FXS um regime de vencimentos. F no me
atrev ia a pedir um tosto ao meu pai, fazia excessivamente ejuesto de lhe
esconder as minhas necessidades e o tipo de mulher, judia, cjue frequentava
e amava, e que lhe pareceria po r certo v ida de dinheiro; no so assim todas
as judias? Alm disso, j sublinhei o bastante com o me (tbcecava o m edo de vir
a ter falta de dinheiro, <ju seja, de reservas, para que o leitor imagine como,
apesar das minhas intenes mais generosas, tambm eu nt) me cansava de
contar os tostes a meu modo. Fembro-me ainda do dia em que, para FIlne
no ter demasiado frio no seu quarto de criada da rue du Val-de-Grce, lhe
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comprei um fogozinho a lenha de chapa metlica, frgil ele mais para no ser
perigoso e que de facto pouco aquecia o cmulo da dedicaco e das d e s
pesas e da insignificncia. Sim, no tinha meios ou transtorma\ a-mc em al
gum sem meios para engrandecer tanto quanto possvel a largueza das minhas
ddiras.
Tahez fosse aejui que tudo se jogava, ou pelo menos foi ae]ui t|ue tudo,
mais tarde, me pareceu jt)gar-se. E eis por que razo.
lisse cjue me sentia ineapaz de amar, e conto insensvel aos outro", ,to seu
amor, apesar de este no me ser poupatk), pelo menos por parte das m ulheres
e at mesmo por parte dos meus amigos homens, O que assim me ine.ipacitara
fora certamente o am or extremamente impessctal da minha me, uma \ ez c]ue
se no dirigia a mim, mas por trs de mim a um morto, inctipacitara me de
existir ao mesmo tem po para mim c para o outro, em particular uma outra.
Sentia-me com o que impotente, e tome-se esta palavra no seu sentido p l e n o ;
impotente para amar, sem dvida, mas tambm impotente antes do mais etn
mim prtprio e acimti de tudt) no meu prtprio corpo. Era comt) se me tivessem
tirado aciuilo que teria podido constituir a minha integridade fsica e psquica.
Pode-se justificadamente falar aqui de amputao, e por conseguinte de castra
o; quando nos tiram uma parte de n)s, que para sempre passar a faltar
nossa integridade pessoal.
E uma vez que estou neste campo, gostaria de regressar a esse fantasma
que \ivi com tamanha intensidade ao sair do cativeiro, qitando fui repatriado
para casa dos meus pais em Marroetts: a certeza de ter contrado uma doena
sexual, e portanto de nunca mais poder dispor deneras do meu sexo de
hom em . Na mesma linha de associaes e de lembranas (e desta feita trata
-se ainda de uma recordao muito precisa ciue conservei) lembro-me de ter
ficadt) muito angustiado com um fenm eno ao que parece corrente e que tem
alis um nom e em latim, a p h im o sis (nestas matrias o latim permite que se
digam basttmtes coisas impudicas,..), e cpie literalmente me envenenou a vida
durante anos em Argel e em Marselha,- passava o meu tempo a puxar pela pele
do meu sext) e no conseguia descascar a glande. Tinha ento aquilo a ciue
se chamam perdas brancas, que saam de baixo do meu prepcio e me
faziam pensar, imediata e interminav cimente, que sofria de uma grave afeco
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/. o r 1 s A I. I H I' ^
o sexo toruando-m e incapaz, sem estar doente, sem adoecer por causa disso,
de um a ereco completa e consum ada durante a evaculao. Puxava intermi-
navelmente a pele dorida, mas sem qualquer resultado. l m dia a m inha mae
alertou o m eu pai, que se fechou comigo na casa de banho. O m eu pai tentou
durante uma boa hora, no escuro da casa de banho (sem luz, por reserva ou
m edo de qu?), puxar para trs a pele do meu prepcio: cm vo e naturah
mente sem uma palavra! h isto durou anos, durante os quais estive convencido
de que decididamente, sob este aspecto, no era completamentc normal
Como se faltasse ao meu sexo alguma coisa para ser um sexo de hom em , como
se de facto eu no dispusesse deveras de um sexo de hom em , com o se disso
me tivessem (quem?) privado. A minha me, claro, que, como os leitores se
lembraro, litcralmente me deitara a mo.
Por cjue que insisto neste exemplo? Porque simblico, e para l do meu
caso preciso, nos diz respeito a todos. O que ento p o d e r amar? dispor da
integridade de si prprio, da potncia, no para o prazer ou por um excesso
de narcisismo mas, muito pelo contrrio, para se ser capaz de uma ddiva, sem
ausncia, resto, nem cjuebra, ou defeito. O c]ue ento ser amado, seno ser-se
capaz de ser aceite e reconhecido com o livre nas prprias ddivas, e de que
estas passem, descubram a sua cida e caminho de ddivas, para se receber
airats delas a contrapartida de uma outra d d ita desejada do fundo da alma:
precisamente ser amado, trocar a livre ddiva de amor-' Mas para se ser o livre
sujeito c objecto desta troca, necessrio, como dizer, poder encet-la,
necessrio comear por dar sem restries se se cpscr em troca (uma troca
que exactamente o contrrio de um clculo contabilstico de utilidade) rece
ber a mesma ddiva, ou mais ainda do ejue aquilo que se deu. Para isso pre
ciso bem entendido e segundo toda a evidncia no se ser limitado na liber
dade do prprio ser que se , c preciso no se estar danificado na integridade
do prprio corpo e da prpria alma, preciso, digamo-lo pois, no ser cas
trado mas dispor da potncia de ser (pensemos em Spinoza) sem amputao
de uma s das suas partes, sem o destino de ter que o com pensar ilusoria-
mente ou no \azio.
Ora eu fora castrado pela minha me, dez vezes, vinte vezes, na mesma
compulso que ela vivia de tentar em vo controlar o seu terror de ser ela
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prpria castrada, roubada (amputada da soma dos seus bens ou das suas eco
nomias) e violada (na dilacerao do seu prprio corptt). Sim, fui castrado por
ela, sobretudo c(uando ela pretendera fazer-me dom do meu prprio sexo,
gesto atroz que eu recebera com o a imagem da minha violao por ela, do
roubo e da violao do meu prprio sexo ao qual ela de facto deitara a mo
contra a minha vontade mais profunda, contra o meu desejo de ter um sexo
m eu, meu e de mais ningum, sobretudo, suprema obscenidade, meu e no
dela e po r isso sentia-me incapaz de amar porque mo tinham cierassculo.
porque fora d a n ific a d o no mais intenso da minha vida. Como poder, ou
sequer pretender, amar quando devassaram o mais ntimo de ns prprios, o
nosso desejo mais profundo, a fonte da nossa vida? Era assim que eu me sentia
e sempre me senti diante de Hlne atrars da agresso ntima da minha me:
como um hom em (um hom em ? dizer muito) incapaz do m enor dom \ erda-
deiro de am or autentico por ela, e atravs dela para com quem ejuer cjue fosse,
fechado em mim mesmo e sobre aquilo a que chamei a minha insensibilidade.
A minha insensibilidade? No fundo a da minha me que me pasmou quando,
de Marrocos, a pretexto de amibas nos intestinos ou de no sei j o qu. se
recusou a ir assistir a sua prpria me m oribunda e fui eu quem foi ao Mor-
van recolh-la a seguir ao seu enfarte no frio matinal da igreja. A minha insen
sibilidade? No fundo a da m inha me quando, por meio apenas do seu siln
cio, me afastou de Simone para me precipitar no furor da minha corrida de
bicicleta at La Ciotat. A minha insensibilidade? No fundo a da m inha me
ejuando a vi, friamente, sem a sombra de uma emoo, depor um beijo frio na
testa do meu pai morto, a que se seguiu um simples sinal da cruz. de joelhos
e zs. porta fora. A minha insensibilidade? No fundo a da minha me quando
o meu amigo Paul e Many foram, uma vez que eram os nicos que a c o n h e
ciam, visit-la ao seu pavilho solitrio de Viroflay para lhe anunciarem, sabe
Deus com c]ue precaues infinitas, que Hlne morrera e que eu a matara
e ento ela levou-os a visitar o jardim, sem dizer uma palavra como se nada
tivesse acontecido, com o esprito manifestamente ausente, bem de mais sei eu
onde. A minha insensibilidade? No fundo a da minha me quando, hoje li\re
de todas as suas fobias desde cjue ficou s e recusa o nom e de Mme Althusser
para guardar apenas o seu nom e de solteira: Berger, e se atira, desta feita sem
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no podia dar-me, um corpo jo\em e sem sofrimento e esse terno perfil que
eu perseguia em sonhos e que faltavam ao meu desejo danificado, prova de
que podia tambm, ao lado de um pai-me, desejar o corpo de uma mulher
simplesmente desejvel. Mas nunca consegui em preender coisa nenhum a sem
a sua aprovao explcita, excepto muito recentemente.
Descobria nisto inconsciente mas soberanamente a soluo de sntese.
Apaixt)nava-me por mulheres segundo o meu gosto, mas suficientemente dis
tantes de mim para evitar o pior: \ i \ e n d o ou na Sua (Claire) ou em Itlia
(Franca), portanto a uma distncia inconscientemente calculada para s as
ver com intermitncias (ao fim de trs dias eu ficava regularmente, quer dizer,
inconscientemente cansado e enjoado apesar de Claire e Franca terem sido
mulheres excepcionalssimas pela sua beleza e pela sua alma). Mas esta precau
o geogrfica no me dispensar a das minhas cerimnias de apror ao e de
proteco. Qtianck) conheci Franca, cm Agosto de 19-t. con\ idei de imediato
Hlne a conhec-la. no dia 15 de Agosto. Fntenderam-se as duas muito bem
mas seguiram-se ao fim de alguns meses episdios dolorosos em que fiquei
dividido entre Hlne e Franca, no sei quantos telegramas e chamadas telef
nicas entre Panara (ilha siciliana) e Paris, entre Bertinori e Paris, entre Vfcneza
e Paris, sem outro resultado que no fosse a multiplicao das minhas provo
caes sinuosas bem como o agravamento da situao.
Mas (j cmulo chegou com as minhas amigas quando elas levantaram, de
m odo indirecto ou no, a questo de eu viver com elas e de ter um filho. Com
Claire, o caso deu-se no talude de uma estrada da floresta de Rambouillet: ela
falou-me do peqtieno Julien que tanto tiueramos ter e props-me p(tis
tinha idias a meu respeito partilhar a sua vida.- eu fiquei logo doente,
deprimido. Com Franca, essa magnfica italiana de trinta e seis anos, cjuc. na
sua idade, desesjserara de conseguir voltar a amar, as coisas foram piores. Um
dia ela chegou a Paris sob o pretexto de assistir s aulas de Lvi-Strauss, que
traduzira para a sua lngua, e preveniu-me pelo telefone de que chegara e de
que eu podia fazer dela o que bem quisesse. Chegou a entrar em minha casa,
pois mal chegara a ver-me, galgando a janela. As coisas eram demasiado evi
dentes. Adoeci de imediato, intensamente deprimido. Tambm ela tivera
idias a meu respeito.
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XII
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alguns dos quais da sua escola. Fodem agora (agora no. pois ele est em Mos-
covo, mas no seu regresso) pedir-lhe explicaes.
Foi Nicole, que se tornara uma amiga querida mas cheia de fobias cpie me
paralisavam, quem me aconselhou a ir consult-lo. Comeava a desconfiar que
os cuidados do meu primeiro terapeuta rele \a \am no de uma anlise autn
tica, mas de um excelente apoio sem verdadeiro efeito analtico. Esse homem
generoso ajudara-me de facto nos meus m om entos difceis, interviera sempre
para me fornecer os medicamentos e os conselhos requeridos pelo meu estado,
e para me assegurar o ingresso em estabelecimentos ou clnicas de psiquiatria
(pinay, Meudon, etc.). Eu levava-lhe os meus sonhos por escrito, e durante a
narcose que me causava tantas delcias, ele comentava-os longamente, indican
do-me neles os elementos positivos a par dos elementos negati\os. C om
preend certas coisas, mas ele interveio pelo m enos uma vez na minha vida
pessoal, declarando a Eranca, cjuc solicitava a sua opinio enquanto eu era hos
pitalizado: O que se passou consigo no grave, foi um am or de frias.
E uma vez, quando eu estava hospitalizado na Valle-aux-Loups (antiga resi
dncia de (ihatcaubriand) e era assistido por uma senhora de idade, uma das
duas filhas de Flekhanov. fiz uma sria tentativa de suicdio com uma faca
romba e comprida, porque o meu terapeuta tardava em prescrever-me os elec-
trochoques cjue eu reclamava numa aflio sem nome, cheio de violncia. Em
suma, Nicttle aconselhou-me um verdadeiro analista, um hom em com costas
suficientemente largas para ti. Fixei estas pala\ ras, e certamente cjue no foi
por acaso. Afinal de contas teria podido pensar no meu amigo Faul, que efecti-
vamente tinhas as costas suficientemente largas para se bater em vez de mim.
Antes do Vero de 1965, avistei-me com o meu futuro analista vrias
vezes, em entrec istas preliminares, e finalmente ele disse que aceitava receber-
me regularmente para entrevistas analticas, m a s cara a cara. Explicou-se
sobre este ponto, mais tarde, em diversas ocasies: eu trazia em mim uma tal
carga de angstia que na sua opinio nunca teria aguentado o div, a angstia
redobrada de o no ver com os meus olhos, de suportar o seu silncio. De
facto, rosto a rosto, vendo-o reagir com toda a sua face, e ouvindo-o responder
muitas vezes instantaneamente, embora muito raramente de m odo directo s
minhas perguntas, senti-me certamente tranejuilizado: ele estava ali c bem ali.
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(> h [' 7 / K O M r / / o I /; M p o
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a culpa cra dc Hclnc. Fsta \crso fcil c tranciuilizadora tornar-sc-iu mais tarde
muito difundida ao nvel do diz-se, mas m u ito p o u co entre os meus amigos
mais chegados; de facto, esses conheeiam apesar de tudo Hlne e sabiam
(muito jsoucos, para dizer a verdade, o sabiam) que no formxamos o clebre
casal sado-masoquista clssico e tantas \ ezes mortal.
Fui admitido em Sois\', belo hospital moderno, pa\ ilhes no meio de uma
pradaria imensa, e eu pedia em altos gritos uma cura de sono, acreditando
(sempre os mitos soviticos) no seu milagre. Foi-me concedida satisfao par
cial, puseram-me a dorm ir um bocadinho durante o dia, eu sosseguei muito
rapidamente (o que me espantou) e pude sair ao fim de um ms, recomposto.
Fosteriormente. quase sempre submeti o meu analista mesma pre.sso, e
como no podia, na minha angstia, suportar que ele no se ocupasse de mim.
uma vez que ele se acha\a apanhado por uma situao j mareada por um pas
sado. ainda quando acabou por me deixar totalmente li\ re na minha deciso
de ser (ou no) internado, foi sempre no fundo por ele que a deciso passou,
pelo menos no que dizia respeito ao lu g a r da hospitalizao, quer fosse para
ir primeiro para Soisy, quer para me refugiar em seguida no Xsinet. cujos
responsseis eram amigos dele, e onde ele podia, atra\s deles, acompa
nhar-me, \ o Xsinet. todos os domingos de manh. chega\a o meu analista
de autom \el. sua dedicao confundia-me. c mais confuso ainda ficiuei
quando soube, depois da primeira hospitalizao, que ele me cobra\ a por esta
visita excepcional, incluindo um longo trajecto de autom>vel. o m esmo preo
(lue pelas minhas sesses habituais (pense-se na importncia para mim e
para os analistas' das questes tle dinheiro), enquanto o meu pai, a quem
eu alis no o solicitei, continuaxa a no me ajudar, cpiando ao tempo o teria
podido fazer sem esforo. F de todas as vezes eu recebia o meu analista num
estado de efuso que me levav a s lgrimas, como uma criana pequena junto
da sua me.
questo tornar-sc-ia ainda mais complicada posteriormente, em 19~t-
I9~s, Hlne, cujas perturbaes earacteriais eram manifestas, aceitou
entrar em anlise, eom uma mulher. Fsteve em tratamento eom ela durante
cerca de ano e meio, face a face. uma vez por semana, depois deixou-a brus
camente na sequncia de um incidente do qual apenas conheei a verso de
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tais como eram e. sobretudo, tiue me aceitassem a mim tal como era, sem t
gero, expresso que guardei de uma mulher que se me tornou extrem am er
querida: a primeira c[ue soube ver claro na minha maneira de ser. e sobreim:
dizer-mo cara a cara, sem sombra de hesitao nos termos: O que no :
agrada em ti quereres-te destruir.
H.xacerbao. exagero: nisto entra, claro, tambm a pro\t)cao: no n
exprimimos diante de uma mulher nos termos de um am or insensato e desn
dido sem c|ue nisso entre, inconscientemente, o desejo de que ela seja iir ,
gem desse am or e a ele conform e o seu ser. t)s seus gestos, os seus ai. ;<
sexuais e os setis sentimentos. Ibdat ia eu estava to div idido ciue, emhi
desejando as mais extremas confisses e ternuras das mulheres sobre as qu.:
me lanava, tinha ao m esmo tem po muito m edo das suas demonstraes p:.
v isveis, m edo de que isso me deixasse merc delas, porque ento a iniciar.'
teria mudatlo de campo, e o terrv el perigo de me desfazer entre as suas m.i
fazia antecipadamente empalidecer de angstia o meu rosto,
Com Hlne as coisas continuavam a ser da mesma natureza, mas p a "
vam-se de maneira muito diferente. No tinha sombra de medo de que ei.i r
deitasse a mo. ou de qtie tivesse idias a meu respeito. Hav ia entre ns ur
comunfio e uma fraternidade tais que nie preservavam desse perigo. Conttr:
no parava de a provocar. Mas, e creio t-lo tornado perceptvel, as min!,
provocaes assumiam aqui outro sentido. \ o descansava at tiue ela coir
cesse, o mais depressa possvel, as minhas novas amigas, para receber de!,
aprovao cjue esperava, afinal, de uma boa me com o nunca conhecera, '
Hlc-ne no se sentia de maneira nenhum a na pele de uma boa me, mas p
contrrio na de uma megera e de uma mulher m edonha. Reagia com o se p>
imaginar: de incio paciente, depois primeiro pouco a pouco e por fim de sub
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tiue foi (Hegcl). Q uando o meu amigo cita Trakl c Hegel. com o se eu \o l
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XIII
' o autor colocara entrada tlc.stc captulo cinco pginas, segundo toda a probabilidade dactilogra-
tadas ulteriormenie, sem ter modificado cm conformidade a continuao do seu texto, o c]iie implicara diver
sas repeties ou variantes dos mesmos factos, c om prom etendo a inteligibilidade da leitura do conjunto
tio captulo lor essa razo, achmos prefervel manter a primeira verst) do texto. (A', do E. francs)
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/ o V I s .) /. 7 H I S S /. R
> .Acrc.sccnto m anuscrito margem do tc.xto, sem que o autor tenha ele ctuado a ligao ao
resto da frase: <ao lado das batatas que m andava assar: distino subtil, ela no era c o n ti d a d a para a
mesa da m inha avo! (A', do E. fra n c s )
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o i r I i R o .1/ r I I n I I: M P (_)
I c rm o t[uc na gria estudanril designa uni encarregado de controlo na iicole Normale Supc-
ne i i r e ( A, d n I. >
n
/ r / r A' o i; l i o i ! M !>
cm primeiro lug:ir um curso sobre IMatfio, que me ocupou durante dois anos,
em seguida sobre outros autores. Mas sobretutlo let ei os meu> alunos, que em
breve se tornariam meus amigos, a fazerem certos exerccios retricos indis
pensveis. Merleau dissera-nos: no fundo, a agregao no passti de um exer
ccio de comunicao a partir de um mnimo de conhecimentos exigidos.
Coisa de que eu estava havia muito, e graas a (juitton. j com encido, .Mas
levei a coisa a peito e intiugurei uma prtica algo pessoal da correco dos
exerccios. Corrigia muito pouco margem, cxceptt) para rectificar um erro
declarado, ou para assinalar, com uma longa linha muda mas ap n n ttdora. ou
com um + , destinados a exprimir a satisfao do leitor, mas em seguida escre
via mquina uma longa nota de uma, duas ou vrias pginas segundo os
casos, na qual indicaca ao autor os pontos dignos de apreo mas sobretudo o
m odo com o e/e pocleri e deveria ter con stru d o o seu texto e a rg u m en ta d o
de m odo a d a r ct o rientao do seu p r p rio p e n sa m e n to (fosse esta q u a l
fosse) toda a fo r a de convico requerida. Nunca propus a ningum que
pensasse de outro m odo que no segundo a linha da sua prpria escolha, e de
resto tigir diferentemente teria sido insensato. Fizera disso um princpio que
sempre segui, p o r simples respeito pela personalidade dos meus alunos. Sob
este ponto de vista, nunca tentei inctilcar fosse o que fosse a quem quer que
fosse, contrariamente esttipidez de alguns jornalistas caa de caixas.
Nos primeiros anos dei um choco cheio de calor maternal aos meus
potros, fiz-lhes a papa, chegando at a organizar para eles. entre a prt)\ a escrita
a oral da agregao, um estgio de repotiso em Royaumont, do cjual comparti
lhara. Mais tarde tornar-me-ia mais reservado, mas perm anecendo iguaimente
atento s suas dificuldades e sobretudo orientao do seu prprio pensamento.
Tornei-me rapidamente secretrio da cole, assistindo a todas as reunies
da direco, aconselhando os directores em numerosas matrias, fazendo
muitas vezes com cjue tomassem importantes decises que continuam inscritas
nas paredes e instalaes da casa bem com o muitas das suas prticas sendo
o meu papel importante sobretudo nos perodos de intervalo entre os directo
res cjue se sucediam. Nada mais normal. Eu estava ali permanentemente, ao
passo que os directores m orriam ou abandonavam as suas funtes (caso, por
exemplo, de Flyppolite, cjue passou para o Collge dc France).
17,^
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H5
/ o r I V t /, / n I s S /: A'
^l.is maiores iniciati\as da minha \'ida com Hclne salda\a-se assim por un
Lqu\x)Co doloroso que eu tenta\a sempre emendar, mas em \'o. c os meus ira
cassos succssi\'os reforavam-me no meu tem or e prtneno duplos, refor
ando as dv idas que eu alimentava acerca de ser deveras um hom em , capa,
de amar uma m ulher e de a ajudar a viver.
Seja com o for, o certo que eu desempenhava funes de professor dt
filosofia, sentindo-me cada vez mais filsofo, a despeito de todos os meu''
escrpulos.
r,\ identemente, a minha cultura filosfica dos textos era bastante redu
zida. Conhecia bem Descartes. Malebranche, um pouco Spinoza, nada de Aric
tteles, dos sofistas, dos estieos, bastante bem Plato, Pascal, Kant nada,
Hegel um pouco e por fim certas passagens de Marx lidas muito atentamente
(ionstrura uma lenda acerca da minha maneira de aprender e por fim de saber
filosofia, com o gostav a de o repetir, por ouv ir falar (a primeira forma fruste
de conhecim ento segundo Spinoza), v alendo-me de jaeques Martin, mais ins-
trtido do que eu, dos meus amigos, apanhando esta ou aquela frmula de pas
sagem, e p o r fim dos meus prprios alunos nas suas exposies e dissertaes,
-Veabei assim, naturalmente, por fazer um ponto de honra altivo em aprender
por ouvir falar, o que me distinguia singularmente de todos os meus amigos
universitrios infinitamente mais instrudos do que eu. e repetia-o de bom
grado laia de paradoxo c provocao, suscitando a surpresa, a admirao (!)
e a incredulidade de terceirtts. para minha maior confuso e orgulho.
Mas possua sem dvida uma outra capacidade bem minha. A partir de
uma simples frmula, sentia-me capaz (que iluso!) de reconstituir se no o
pensamento, pelo menos a tendncia e a orientao de um autor ou de um
liv ro que no lera. Dispunha por certo de uma certa dose de intuio e sobre
tudo de uma capacidade de aproximat), quer dizer, de oposio terica, que
me permitiam reconstituir o que pensava ser o pensam ento de um autor, a par
tir dos textos a que ele se ttpunha. Procedia assim espontaneamente por co n
traste e demarcao, atitude ejue mais tarde viria a teorizar.
O meu gosto fantasmtico pela autonom ia total e pelo combate nos limi
tei de uma proteco absoluta, encontraria nestas prticas onde se investir. Alm
disso eu era. pela minha experincia da prtica poltica e o meu gosto pela
/ / 7 l K O II I I ! (I 7 /; 1/ /
poltica, dotado de uma intuio bastante \ i\a da <eonjuntLira- e dov seus efei
tos: mais um tema cjue viria a teorizar. Porque no interior de uma conjuntura
terica dada que podemos apreender as aproximac'- e as oposices filos(')Fi-
cas. De onde me \ inha esta sensibilidade conjuntura i' Sem d\ ida da minha
extrema sensibilidade s situaetes conflituais (sem sadai ciue no parara de
\'iver desde a minha infneia. Acreseente-se a isto uma outra conxicco de ins
tinto segundo a qual c prprio da filosofia agir distancia, no \a /io lo meu')
como o deus imvel de Aristteles, coisa que eu reencontrava na sittiaco anal
tica (e Sacha iNacht numa breve frmula impressi\a assinalara o m oti\oi, F.ra
portanto um filsofo, e como tal agia distncia, do meu refgio na Pcole,
longe do m undo uni\ersitrio de cpie nunca gostei, e que nunca frequentei. Ira-
tava d(ts meus assuntos sozinho, sem o auxlio dos meus pares, sem o auxlio
das bibliotecas, numa solido que me \ inha de longe e da tjual eu fazia uma
doutrina de pensamento e conduta. Agir de longe era tambm agir sem pr a
mo na massa, como sempre em posio segunda (o conselheiro, a eminncia
parda de Dal e dos dircctores da Escola), segunda, quer dizer, ao mesmo
tempo protegida e agressiva, mas a coberto da proteco. Ser o mestre do mes
tre ' continuava a ser a minha obsesso em surdina, mas justamente nessa dis
tancia protegida pelos mestres relaticamente aos quais tomava justamente a dis
tancia em que na verdade me comprazia. eu era sempre nesta relao perversa.
n(t o pai do pai, mas a me do meu pretenso mestre, impondo-lhe que reali
zasse por pessoa e desejo interpostos o meu prprio desejo alienado.
Mas na realidade, e s agora me dou conta disso (escrever ajuda e reflec-
tir), procedia sob estas aparneias de m odo inteiramente diferente. A frmula
expressiva que fixava de um autor (do seu prprio texto) ou que colhia da
boca de um aluno ou amigo servia-me com o outras tantas sondagens Jm ifiin-
das de um pensam ento filosfico. Sabe-se que a pesquisa petrolfera nas gran
des profundidades feita igualmente assim por meio de sondagens. As sondas
estreitas penetram profundam ente no subsvtlo e da l trazem para o ar livre
aquilo a que se chama cenouras, que do uma ideia concreta da composio
H8
XIV
f9
/ (; r / s , 1 /. / // r s s /:
' .\CRsutnt<) manusuriio margem do texto cuja ligao ao resto da frase no foi operada pelo
autor <acti\amcnte por efeito da minha p rpria iniciativa, sem a iniciati\a de mais ningum (Hlne.
Desanii. Merleau). excepto j. Martin que apenas me a juda\a com o um irmo mais velho (quando era
dois anos mais novo do que eu), mas, c o m o esere\ i numa nota necrolgica. com \ inte anos de avano
sobre ns - ( V i. f n w c s )
~ A \Xaldeck Rochet que admiraxa Spino/.a e deie me falou longam ente num dia de ju n h o de
I966> . dedicatria de fl/iiciiis cl autocrilicine. Paris. Hachette. 19"t ( do H. fra n c s )
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o / r 7 r R o M l I I n / / 1/ 7^ f;
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dom nio (m attrise). E, bem entendido, porque aqui tudo se refora de perto
(e no apenas em mim, sendo o pensamento e o estiJo funo de uma mesma
relao do filsofo com o seu conceito) esta unidade do pensamento e da
sua clareza (um dom nio em plena clareza, a clareza com o forma de domnio,
o que se entende) e da lngua, conquistou-me um pblico que a minha argu
mentao p o r si s ntt teria sem dvnda tocado de m odo to profundo. Foi
assim c|ue para minha m aior surpresa soube, p o r exempkt por Claudine Nor-
mand, que tinha um estilo e era minha maneira uma espcie de escritor,
E, bem entendido, desenvolvia com o teoria da filosofia uma teoria da filosofia
com o dom nio {m aitrise) tanto de si como do Todo, bem como dos elementos
e das articulaes desses elementos, e, para l da esfera propriam ente filos
fica, um dom nio (m a itrise) distncia atravs do cctneeito e da linguagem.
Como ciualquer filsofo, mas criticando radicalmcnte essa pretenso (criticava
deste m odo a prpria ideia, risvel para mim, de um pai todo-poderoso e pre
tendendo s-lo), considerava-me responsvel de algo que dizia respeito aos
ideais hum anos e at m esm o conduo da histria do m undo real. incluindo
aquilo que pretende conduzi-kt ao seu destino (um destino que s existe,
como muito bem disse Meidegger, na iluso da conscincia com um e dos pol
ticos). a saber, a poltica e as polticas. Foi por isso que diversas vezes me aven
turei no terreno concrett) da poltica, pronunciando-m e (arriscadamente sem
dvida) sobre o estalinismo, a crise do marxismo, os congressos do Partido e
o m odo de funcionamenttt do Partido. (Ce q u i ne p e iit p lu s d u rer d a n s le
p a r ti eom m uniste. 19~8). .Vias tjue filsofo, no fundo de si prprio, o mais das
\ezcs abertamente entre os grandes, e sobretudo quando no consente em co n
fess-lo, no cedeu a essa tentao, filosoficamente orgnica, de manter os
olhos postos no c]ue quer mudar, transformar no muncka? O prprio Heideg-
ger diz, certo que falando apenas da fenomenologia (mas porqu apenas ela?
.Mistrio), tjue esta visa mudar o mundo. Foi por isso que critiquei as cle
bres palavras das lscs sobre Feuerbach, de Marx: J no se trata de interpre
tar o mundo, mas de o transformar, m ostrando contra esta formula que todos
os grandes fil so fo s ciuiseram interc ir no curso da histria do mundo, ou para
o transktrmar, ou para o fazer regredir, ou para o conservar e reforar na sua
forma existente contra as ameaas de uma transformao tida p o r perigosa.
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profundidade que, definindo-se pelas teses que afirniax a sem ciualquer isossibi-
lidade de xerificao experimental, toda a filosofia era na sua essencia clo^^nid-
tica, e cheguei a proclam-lo no Cours de philosojshie pour 'Cientifiques-
(196^), dizendo, afirmando a verdade das suas teses sem outras jsrccauces
para alm do acto de as afirmar. Muito simplesmente, sustentaxa a linguagem
da xerdade quer do que pensaxa e fazia (afirmando teses, por xezc' aberta
mente. cf. Philosophie et p h ilosopbie spontane des savants). quer do que
toda uma filosofia fazia antes de mim, quer o reconhecesse abertamente (So
Toms, Spinoza, W ittgenstein, etc.) ou o calasse. Q uando nos sabemos nicos
responsxeis tanto peb.i nossa solido necessria xerdade tiite afirmamos em
teses, com o pela xerdade do filsofo que somos, e pela xerdade de toda a filo
sofia, a hon estid a d e mnima no ser sustenttir uma linguagem conforme, at
nas sitas formas de ititerxeno e de interpelao (xer o papel epte conferi
iixterpelao a propsito da ideologia), com a natureza daquilo tjue fazemos-'
no ser exprimirmo-nos na prpria forma ejue exprime, e sem rodeios, aquilo
t|ue pensamos e fazemos?
() meu pai tartamudeaxa, a minha me era clara e sonhaxa com a clareza.
Hu fui claro, mas to abrupto com o era o tneii pai no seu pensam ento interior
e nas suas interxenes brutais. Sem rodeios, o meu pai chamaxa as coisas
pelos nomes, at mesmo tiuando se calaxa, c era um hom em capaz de puxar
brutalmente pelo rex lxer, e houve itm dia em que chegou a saltar, para o mas
sacrar. sobre um ciclista infeliz, que, nas matas, derrubara a minha irm. Esta
recusa x iolenta de alimentttr iluses, esta brutalidade sem rodeios, cjue sentia
ser a de um pai t|ue me faltara e, pelo menos, nunca me iniciara nessa atitude,
nunca me ensinara que o m undo no itm m undo etereo mas um m undo de
lutas fsicas e outras, eis tpie eu tinha finalmente a audcia e a liberdade de
endossar a sua realidade. No me tornaria assim, por fim e realmente, o meu
prprio pai. quer dizer, itm homem?
No dexc procurar-se numa anlise deste gnero a ltima palax ra acerca
do sentido objectixo seja de que filosofia for. Forque, sejam quais forem as
motivaes internas, conscientes ou inconscientes, de um filsofo, a sua filo
sofia escrita um;i realidade objectiva. nisso fica inteira, e os seus efeitos ou
no sobre o m undo so efeitos ohjectiros que, no limite, no tm j qualquer
185
L O V I S A L 7 // r S S E R
relao com este interior que aqui descrevo, e graas a Deus! Porque a filoso
fia, como alis qualquer actividade, no seria ento mais do que o puro inte
rior de todas as subjectividades do mundo, fechada cada uma delas no seu
prprio solipsismo. Se alguma vez tivera dvidas a este respeito, aprend-lo-ia
com uma realidade terrvel, a de poltica em pessoa, mas para com ear no
interior da prpria filosofia.
186
XV
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Sabia, certo, por c[uc \ ia,s Ilcgcl c Marx ha\ iam sido introduzidos em
Frana; atravs de K oic\eniko\ (Kojve), emigrado russo com altas responsabi
lidades no Ministrio da Feonomia. Fui procur-lo um dia ao seu gabinete
ministerial para o convidar a proferir uma conferncia na Fcole. E ele foi,
hom em de rosto e cabelos escuros cheio de malcias tericas infantis. Li tuck)
o t|ue ele esertoera e conrenci-m e rapidamente de cpie ele ([ue todos,
incluindo Lacan, tinham escutado apaixonadamente antes da Guerra no
com preendera rigorosamente nada de Flegel ou Marx. ,\ele tudo girava em
torno da luta de morte e do Fim da flistria, a que ele atribua um espantoso
contedo burocrtico, lrm in ad a a histria, quer dizer, a histria da luta de
classes, a histria no acaba, mas nada mais se passa nela a no ser a rtttina da
a d m in istra o das coisas (vi\ai Saint-.Simonl). Gma forma de associar sem
ds ida os desejos do filsofo e o estatuto do grande burocrata.
No com preendia como, a no ser considerando a total ignorncia fran
cesa em relao a Hegel, Koj\e pudera fascinar tanto os seus ouvintes: Lacan,
Bataille. Queneau e muitos outros. Fm contrapartida, conceb uma estima infi
nita pelo trabalho erudito e corajoso de um Ll\ ppolite que, em \ez de interpre
tar Hegel, se contentava com dar-llie a palac ra na sua admirvel traduo de ,*f
rc n o m e n o lo g ia do Esprito.
Tal era portanto a conjuntura filosfica em cjue eu me via na obrigao de
apensar. Fstava a redigir, como j contei, uma tese sobre Hegel, na qual me
orientoti o meu amigo jactiues .Martin, que possua uma vasta cultura filosfica.
Facilmente me dei conta de que os hegelianos franceses discpulos de Kojve
nada ti>ihani com preendido de flegel. Bastasa, para se ter a certeza, ler o p r
prio Hegel. Finham-se ficado todos pela luta do senhor e do escravo e pelo
absurdo total de uma dialcctica da Natureza. .Mesmo Bachelard. notei-o pela
sua observao tjue atrs referi, nada compreendera. De resto, no tinha a esse
respeito quakiuer pretenso, pois no tis cra tempo para o ler. Sobre Hegel,/teVo
m enos em fra n a , continuava tuck.) por com preender e explicar.
Fm contrapartida, Husserl penetrara um tanto entre ns, atravs de Sartre
e de Merleau, F conhecido o clebre episadio contado pelo Castor Raymond
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Diminuti\() dc C;isanov;i (Laurent a quem o auto r ;ur:ts fez referncia). (,V. cio T. )
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Foi por isso que no tive cm filosofia, com o cscrc\ i no prefcio de Pour
Mcirx. nenhum verdadeiro mestre, nenhum mestre exeepto I hao, mas esse em
breve nos deixou para regressar ao Vietname e a apodrecer entre tarefas de
varredor de lixo e a doena, sem medicamentos (os seus amigos franceses ten
tam fazer-lhos chegar s mos), e Merleau, mas com o este fora j atrado pela
antiga tradio espiritualista dominante, era-me impossvel segui-lo
Inacreditvel tradio francesa que ento partilhava com a tradio dita
neo-kantiana de Brunsehvieg. tudo o que era filsofo da l niversidadel Tradi
o institucionalmente fundada po r \ ictor Cousin no incio d(t sculo xjx
(ver o interessante primeiro livro de Lucien Sve) e ciue. pela sua obra e sobre
tudo pelos seus programas oficiais bem com o por todas as elucubraes da
escola eclctica, to bem combatida pelo socialista Pierre Leroux. hom ens
com o Ravaisson. Bergson, Letiuicr e rceentemente Ferdinand Alqui tinham
-engendrado. ,\o estrangeiro, no descobrimos nada de equivalente a esta tra
dio. Xo deixou de ter mritos, ironia da dialciica da histria, uma vez
que defendeu at quase aos nossos dias (at aos trabalhos de Jules Nuillemin e
Jactjues Bouv eressc) a Frana da invaso do positivismo lgico anglo-saxmico,
e da filosofia analtica da linguagem britnica (de resto extremamente interes
sante). Fora destas duas correntes dominantes no exterior, uma obra como a de
W ittgenstein jact|ues Bouveressc e Dominitpte Fecourt e .Mari na Argentina
bem o mostraram e demonstraram permanecia para ns totalmcnte deset)-
nliecida. .Mas o qtie vale uma proteco por ignorncia ou repulsa? Maciuia-
vel bem o demonstrou: as fortalezas so os pontos mais fracos de ciualc|uer dis
positivo militar, e Lenine, na esteira de Cioethe, bem o disse: Se quiseres
co nhecera teu inim igo, ters que p e n e tra r no p a s do teu inimigo.-^ Tudo isto
era risvel. F mesmo o neo-kantismo de Brunsehvieg, deform ando Spinoza no
espiritualismo mais raso, o da conscincia e do esprito. Hoje, quando final
mente se traduziram alguns textos, quando Fleidegger depois de Nietzsche tem
enfim direito de cidade entre ns, quando Bouveressc nos deu estudos de
grande erudio sobre o neopositivismo lgico e ciuando Wittgenstein ou
> lendo c,sia frase sido parcialmcntc riscada pelo autor, o que a tornava coxa e incompreensi-
\el. resiUiimo ia acpii st)b a sua forma inicia] completa. (.V, do fnw cs)
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simples regras tcnicas gerais, ele. Lacan. que tivera em anlise diversas
m ulheres dos m eus antigos alunos, seus pacientes, com o ele pr p rio m o dis
sera p o r ocasio do nosso prim eiro encontro. Este incidente lanou sobre mim
estranhas perspectivas sobre as terrveis condies de anlise e das suas fam o
sas regras. Perdoem -me, se possvel, t-lo narrado fielmentc. mas atracs do
infeliz Sebag de quem eu gostaca m uito e de Judith que conhecia bastante bem
(viria a casar com Jacques-Alain Miller, m eu antigo aluno), tratava-se de mim
tam bm: De te fcih u la n a rra tu r . Mas desta feita a fbula era uma tragdia,
no s para Sebag, mas sobretudo para Lacan, cjue ento s exibia uma p reo
cupao m anifesta com a sua reputao profissional e o escndalo que se aba
tera sobre ele. Que os analistas que dirigiam no seu tem po uma petio ao
M onde (no publicada) para denunciar os mtodos do m eu analista faam o
favor de ver aqui o m eu depoim ento de testem unha.
Foi p o r essa altura (1974) ciue tive ensejo de fazer uma viagem a Moscoc o
para um Congresso Internacional de Filosofia Flegeliana. S apareci no C on
gresso para apresentar a m inha com unicao, que fora reservada para a sesso
cie encerram ento na im ensa sala de cerim nias. Falava nela do jovem Marx e
das razes profundas da sua evoluo. No final da m inha com unicao, da
qual a P ra vd a faria a cobertura... antecipada, fez-se o silncio oficial, mas
alguns estudantes ficaram na sala e vieram fazer-me p erguntas; o ciue o p role
tariado? o cjue a luta de classes? Manifestamente, no com preendiam que se
falasse disso. Fiquei estupefacto, mas viria a com preend-lo bem.
C om preendi-o porque, durante esses oito dias em que no frequentei o
Congresso, o meu m uito ciuerido amigo Merab, um georgiano filsofo de gnio
que nunca viria a querer sair da l RSS, ao contrrio do que fez o seu amigo
Zinoviev (porque aqui pelcj m enos se vem as coisas a nu, e sem disfarces)
deu-m e a conhecer uma boa centena de so\ iticos de todas as condies, que
nie falaram tanto do seu pas com o das condies materiais, polticas e intelec
tuais de existncia, e com preendi uma infinidade de coisas, que tudo o que de
srio li depois sobre a fTRSS me confirm ou.
A URSS no o pas habitualm ente descrito entre ns. verdade, qualquer
interveno pblica na vida poltica proibida e perigosa mas quanto ao resto,
que vida! Em prim eiro lugar, trata-se de um pas imenso que resolveu o problem a
do analfabetism o e da cultura num a escala desconhecida, m esm o entre ns.
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poltica? Imagino que haja expcctati\ as sobre o que vou dizer nesse cap
A tulo. De facto, teria uma infinidade de coisas a dizer, mas isso seria entrar
nas anedotas da pequena histria: sem interesse para a genealogia retrospec-
tica dos meus traum atism os de afectos psquicos. Anedotas? H-as por a para
dar e render, sobretudo vender. E coisa que no me interessa. Disse com
efeito cjue s queira fixar atjui da m inha r ida os acontecim entos ou recorda
es de acontecim entos que, tendo-m e m arcado, contriburam ou para inaugu
rar a estrutura do meu psiquism o, ou, e sobretudo, sent) sempre, na retrospec-
linclcide das repeties interm inveis, para a reforar, ou ainda, nos conflitos
de desejos, para a inflectir segundo form as estranhas s prim eiras, pelo m enos
na aparncia.
Aqui tenho que lem brar ao leitor alguns factos c]ue ele j conhece.
O Partido desem penhara um papel m uito grande na resistncia contra os
ocupantes nazis. E incontestvel ejue em Jtm ho de 19-iO a sua direco seguiu
uma linha nefasta. A teoria da III Internacional, que dirigia de facto. sob a
autoridade superior de Estaline. todos os partidos catmunistas (e o pr p rio Par
tido francs, controlado pelo delegado da Internacional, o checo Fried.
hom em notabilssim o ao que parece, e a quem Thorez ficou sem dtn ida a
dever m uito), era que a guerra era uma pura im p e r ia lis ta . op o n d o em
vista de fins puram ente imperialistas os franceses e os ingleses a<js alemes. Era
preciso deix-los entredevorarem -se, enejuanto a l RSS esperava a sua cez de
aproveitar o conflito. ,Se concluira assim os acordos germ ano-soviticos.
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a razo era m uito simples: j m uito antes de Munique, as dem ocracias o cid en
tais se m ostravam renitentes no respeito pelo que tinham assinado, m anifesta
m ente por m edo e fascnio de H itler e em virtude do clebre princpio mais
\a le Hitler do que a Frente Popular, mais vale o nazism o do que a Frente
Popular e a fo r tio r i do que a revoluo proletria. Com preende-se a burguesia
e tttdos disso tir em os a prova. A URSS negociara de m aneira desesperada aps
a prim eira grande derrota do m ovim ento operrio, em Espanha, onde inter-
viera am plam ente (armas, avies, brigadas internacionais) para obter o acordo
das dem ocracias ocidentais. Mas nem D aladier nem Cham berlain tinham tido
a coragem de respeitar sim plesm ente os seus com prom issos form ais p o lti
cos e militares: do que dariam provas pblicas p o r ocasio do abandono da
Checoslovquia, prim eiro dos Sudetas, e em seguida de todo o pas. E nesse
m om ento, nenhum a proibio, com o seria mais tarde o caso da Polnia fas
cista, os im pedia de intervir.
dem onstrao incontestvel: os factos so patentes e nenhum his
toriador m inim am ente srio t)s contesta. Apesar de tais factos e apesar da
sua profunda desconfiana assente nesses factos histricos, a URSS co n ti
nuou a tentar obter das dem ocracias ocidentais a constituio de uma frente
unida contra Hitler que se fazia cada vez mais dem ente e vido de espao
vital, acima de tudo das ricas plancies da Ucrnia. Evidentem ente para
Leste, mtiito longe da Erana e de Inglaterra. Foi nestas condies, cjuando
o atacjue hitleriano contra a Polnia se tornou iminente, quando a Polnia
fascista de Pilsudski proibiu ao Exrcito Vermelho que passasse pelos seus
territrios para entrar em contacto com a W ehrm acht, que a URSS, perante
a evidncia e a cobardia histrica dos seus aliados ocidentais, teve de se
resolver p o r um a negociao de com prom isso com o Reich de Hitler.
Foram os clebres acordos germ ano-soviticos e a partilha da Polnia, ine
vitvel: a URSS no podia abandonar a P olnia inteira ocupao hitle-
riana. Devia necessariam ente fazer avanar a sua fronteira o mais possvel,
in\()cando em caso de necessidade a razo histrica incontestvel de recon
quistar as terras da Rssia Branca cedidas Polnia pelo Tratado de Versa
lhes, a fim de dispor de uma posio de defesa avanada frente a um ataque
alemo.
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marxista no Partido? Bem vs, jrrcciso falar urna linguagem que sirva a todos,
a todos os intelectuais, a todos os socialistas... Ca das nuvens. E de outras nuvens
mais altas ainda quando ouvi Waldcck m urm urar com a sua voz calma: Temos
que Fazer alguma coisa p o r eles, se no t o-se todos embora. Fiquei to c h o
cado que no me atrevi secjuer a perguntar-lhe; mas qtiem so esses todos?
Muito depois, quando me encontrei com Marchais durante trs longas
horas, na Ciolonel-Fabien. assumi ainda mais um a atitude de superioridade, e
esvaziei o saco de tu d o aquilo que censurava nas prticas do Partido,
apoiando-m e num a enorm e massa de factos precisos. Durante trs horas bem
contadas, ladeado p o r Jacques Chambaz, Marchais ouviu-m e quase sem dizer
um a palavra e sem nunca me contradizer. Parecia m uito atento, c eu admirei
pelo m enos o desejo que ele manifestava de se inform ar: tinham -m e dito que
era um seu trao de carcter. E no falo dos meus encttntros com Roland Leroy.
que se armava em sedutor, em liberal, ciuando no fundo era m uito diferente:
um doutrinrio, nem desse passeio que fiz na sua com panhia durante uma festa
de }'H n n u m it , onde encontrei Renoit Frachon. razoavelm ente envelhecido, e
.\ragon, a quem fiz uma cena infernal de agresso e de insultos (j se ver p o r
qu). e no pude im pedir-m e de desem penhar um papel de destaque num a dis
cusso pblica, para lam entar at ao fim da m inha vida ter-me deixado levar a
p r politicam ente em causa o infeliz Pierre Daix. que nunca me perdoaria essa
interv'eno estalinista. a nica da m inha histria poltica. Deverei acrescentar
que no fora eu quem solicitara estes encontros de cpula, mas que para eles
fora pessoalm cntc convidado pelos dirigentes do Partido, interessados em
saber quem era eu afinal e o que teria afinal na cabea. Porejue as m inhas inter
venes em La N ouvelle C ritique e em La Pense (onde Marcei C ornu aberta
m ente me protegia) tinham produzido efeitos polticos, em particular entre os
n o rm a lie n s que inauguraram novos m todos de form ao e de aco na l'n i o
das Juventudes Com unistas, cujos dirigentes (_lean Cathala) ultrapassavam ,
antes de sarem para form ar a Unio das Juventudes Com unistas Marxistas-
-Leninistas (UJCML), ejue. antes de 68. desenvolvera um a intensa actividade sob
a direco de Kobert Linhart. um nos n o rm a lie n s que Hlne mais estimava.
F clarssim o que eu realizava assim no Partido o m eu desejo de iniciativa
prpria, o meu desejtv de oposio feroz direco e ao aparelho, mas no
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interior do prprio Partido, tiuer dizer, sob a sua proteco. Com efeito, nunca
me pus em posio, excepto talvez em 19^8, e m esm o ento ... de correr dc\e-
ras o risco de ser afastado. Nem secitier Roger Ciaraud que a seguir a .\rgenteuil,
onde s se tratara, a propsito de problem as culturais, dele e de num. e tjue no
dia seguinte me dirigiu um telegrama: Perdeste, vem falar comigo . me fez ceder
Nunca esti\'era com ele. nunca o vi. Sem dvida, para alm da fora da.s no^sus
di\ ergncias, eu devia sentir-m e suficientem ente seguro dos meu.s argum entos
e da proteco do Partido para o m andar passear a ele, o vencedor de Argenteuil,
Mas sob a fornta desta v i\a contestao, conduzida sob as garantias de
uma proteco cujos limites de tolerncia nunca infringi, o que eu realiza\a,
antes do mais. eram seguram ente os m eus prprios desejos, longam ente recal
cados ou censurados pelos meus, os desejos qtie com eara a \ i\ er durante a
m inba passagem pela escola de Larochemilla). que redescobrira durante o ser-
\ io m ilitar e po r fim no cativeiro. O desejo de me haver com o m undo real,
com o m undo dos hom ens cm toda a sua dicersidade, e sobrettido o desejo de
confraternizar com os mais despojados e tam bm os mais francos, os mais lm
pidos e honestos dos hom ens. Em suma, o desejo de ter um m undo m eu, que
fosse o m undo verdadeiro, o m undo da luta (acabei po r receber, com grande
esforo de determinat), cacetadas a valer da polcia, durante as m anifesta
es, com o essa assustacktra m anifestao contra Ridgway, quando cheios de
entusiasm o nos reunim os aos operrios da Renault, joviais e arm ados de
pequenos cartazes de chapa m etlica cortante cjue faziam m aravilhas nos
em bates... Esta com unidade de aco e de luta, eu perdido nas m ultides
imensas (desfiles, com cios), descobria enfim o que me interessava. Os meus
fantasmas de dom nio (m aitrise) ficavam ento m uito longe de mim.
Apesar de tudo ti\e cm certas circunstncias, umas dram ticas, as outras
sobretudos cmicas, que enfrentar directam ente o aparelho repressiro do
Partido. No st o Estado ejue dispe de um aparelho repressiw): dele dispe
tambm todo o aparelho ideolgico, ciualquer qtie seja. Sc conto estes epis
dios, sem pre pela mesma razo: ver claro cm mim '.
:ii
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.................
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por Legotien (Hlne, p o r dio ao seu patronm ico. adoptara segundr) os dese
jos do padre Larue o nom e de um dos prim eiros jesutas a \ isitar a (ihinai. era
ao m esm o tem po agente do Intelligenee Service e da Gestapo (s/o . Efectiva-
rnente, tinham corrido boatos dessa natureza em Lyon, sendo aqui necessrio
explicar-lhes a origem . Hlne estava ao tem po m uito ligada aos ,\ragon. e
durante o p erodo da Resistncia, levava-lhes muitas vezes da Sua produtos
inencontrveis em Frana, especialm ente meias de seda para Elsa. Ora aconte
ceu que um dia, as meias trazidas para Elsa no correspondiam cor ou qua
lidade desejada p o r pessoa to exigente. Aragon teve um a fria enorm e e rom
peu com Eflne. E com eou a acus-la de ser um a agente do Intelligenee
Service! Alm disso, Ellne, quando Lyon se tornou teatro dos com bates que
libertariam a cidade, tinha um corpo franco sob as suas ordens, um grupo de
rapazes que no estavam com meias m edidas. Capturaram um alto responsc el
da Gestapo que fecharam nas caves do prdio, torturaram -no e em seguida
executaram -no sum ariam ente. Ora Ellne dera ordens m uito rigorosas: p ri
meiro, que ele fosse bem tratado com o todos os prisioneiros, segundo, que o
m antivessem vivo para p o d e r ser interrogado e para se p o d er arrancar-lhe um
m xim o de inform aes teis Resistncia e ao recente exrcito das FFI '. Os
rapazes do corpo franco tinham infringido as suas instrues formais, O rum or
desta execuo difundiu-se em Lyon e chegou aos ouvidos do squito do car
deal Gerlier, cuja atitude durante a ocupao fora bastante duvidosa, l n dos
seus ntimos, c|ue o tal m ilitante com unista descrevia com o um padralho.
foi pedir contas a Hlne e prodigalizou com entrios sobre os m todos de to r
tura que ela impunha aos prisioneiros dos corpos francos. Outras tantas con-
tra-verdades evidentem ente, mas que scr\ iam de alibi m conscincia do
crculo de Gerlier, No sei Cjuem espalhou a histria e criou-se um boato que
dava Hlne com o agente da Gestapo. Nada m enos!
As revelaes do funcionrio do Partido causaram o efeito de um a bomba,
e em todo o caso forneceram o ensejo esperado para um ajuste de contas
pblico. Sabe-se c]ue Hlne, m em bro do Partido desde 19.^0, no conseguira
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nossa volta-, na rua todos os cam aradas nos cn itaAam. nica questo da
ordem do dia da clula era: salvar Althusser.
Bem entendido no contem porizei. Hlne e eu partim os pouco tem po
depois para nos refugiarm os num a outra solido, a de Cassis onde, se no
tnham os amigos, ningum nos evitava: e depois, havia a consolao e a paz
do vento e do mar. Hlne era de um a coragem adm irt el. Repetia-mc; A his
tria h-de dar-m e razo. O certo, contudo, que tnham os vivido um verda
deiro processo de Moscovo em plena Paris, e mais tarde pensei muitas \ezes
que se na pctca estivssem os na l;RSS, teram os acabado com uma bala na
nuca.
() que m e deu evidentem ente acerca do Partido, das suas direces e dos
seus m todos de aco uma perspectiva singularm ente realista. Hsta articulava-
se com um a outra experincia cjue tivera pouco tem po depois da m inha ad e
so. Levara ento a clula a fundar um Crculo Politzer na cole, para o qual
convidaram os grandes lderes sindicais e polticos que nos falassem da hist
ria do m ovim ento operrio: foi assim que ouvim os Benoit Frachon, Henri
.Monmousseau, Andr Marty e outros. Mas, prudentes e disciplinados, decidi
mos solicitar a opinio de Casanova, ento destacado para os intelectuais.
Fui ter com ele na com panhia de Desanti que, sendo corso, tinha um a relao
privilegiada com Laurent e que politicam ente o seguia, ele que m o perdoe,
com o um cachorrinho. Esperm os uma hora bem contada na antecm ara,
separada do gabiirete dele po r um estreito tabiejue de m adeira. Lm hora de gri
tos. de insultos e de descom posturas inauditas; ouvia-se apenas a voz de Casa
nova dirigindo-se a um interlocutor praticam ente m udo. Em questo estava a
cincia proletria, pala\ ra de ordem da poca. Ouvim os declaraes espanto
sas. inclusire sobre 2 -r 2 = -i. Burgus, ao que parecia! Xo fim \ imt.ts sair
um hom em , anitiuilado: Desanti disse-me o nom e dele. Marcei Prenant. Entr
mos no gabinete de Casa, que retom ou diante de ns a dem onstrao furi-
bunda tjue acabava de apresentar a Prenant, para depois, acalmando-se. ler o
m eu cartaz e mts dar a sua aprovao. Que lio!
O mais surpreendente que este gnero de acidente, sobretudo o mais
h o rrrel, o prim eiro, no me precipitou em qualquer depresso que fosse, Eu
sentia-me desfeito, mas indignado, c essa indignao m antinha-m e sem dvida
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eni vida, juntam ente com o extraordinrio exem plo da coragem de Hlne.
Estava a fazer-me um hom em .
Foi po r certo nestas prim eiras atribulaes que descobri a fora de realizar
no interior do Partido o m eu p r p rio desejo de resistir e de lutar, com o fiz
constantem ente da em diante. D escobrira por fim o m eu terreno de eleio,
mas com o continuava no Partido, a m inha luta desenrolava-se, com o j disse,
sob a proteco do prprio Partido. Nele fui atacado severamente, sem des
canso, mas toleravam -m e sem dvida p o r clculo e devido audincia que me
haviam valido as m inhas intervenes tericas. Eu extraa seguram ente alguns
benefcios desta situao cjue com binava ao m esm o tem po um desejo de p ro
teco at ento inextirpvel, e o m eu desejo de existir finalm ente num a luta
que at ao m om ento s p o r m eio de artifcios exercera. Desta feita, era a srio.
Foi-o, e cada vez mais, at 1980, ano do dram a.
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XVII
gora que disse p o r que vias de acesso rem otas cheguei a Marx ou me
A confortei no seu pensam ento, com o m e expliquei sobre toda a histria
da m inha relao com Marx quer em Pnur M arx (sobretudo no prefcio) cjuer
na Soutenance dAmiens^^ *, posso ser mais sucinto.
A verdade que posso dizer que foi em grande parte atravs d a s o rg a n i
zaes catlicas da Aco CMtlica que to m ei contacto com a lu ta de classes
e p o r conseguinte com o m a rxism o . Mas no indiquei j a surpreendente ast
cia da histria que, atravs da exposio da questo social e da poltica
social da Igreja, iniciou no socialism o um sem -nm ero de filhos de burgue
ses, e de pequeno-burgueses (incluindo cam poneses da Juventude Agrria
Crist), precisam ente devido ao m edo pnico de os ver passarem-se para o
cam po do socialismo? De facto, a Igreja, as suas encclicas e os seus capeles
instruram os seus p rprios m ilitantes sobre a existncia de um a certa questo
social que a m aior parte de ns ignorava p o r com pleto. Bem entendido, um a
vez reconhecidas a questo social e as propostas dos ridculos rem dios para
ela, pouco bastava, p o r exemplo, no m eu caso, a viso poltica profunda do
velho Hours, para quererm os ver o que se passava por trs das frm ulas
nevoentas da Igreja Catlica e aderirm os rapidam ente ao m arxism o, antes de
entrarm os no Partido Com unista! Tal foi o cam inho de dezenas de m ilhar de
m ilitantes das juventudes estudantis, operrias e agrrias crists (JEC, JOC,
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JAC:) que travaram conhecim ento com quadros da CGT ou do Partido n.;
m aior parte dos casos atravs da Resistncia. Hoje. podem os esperar resulta
dos mais im portantes do m ovim ento de massas que apoia a teologia da Liber
tao.
Mas durante m uito tem po conservei a m inha f, at cerca de 19-4". Est.:
fora sem dvida fortem ente abalada no cativeiro pela imagem, que me trans
tornara p o r altura de uma \ iagem dc camioneta com Dal at aos co m an d o '
dos campos, pelo claro da imagem de um a rapariga m uito jovem sentada n o '
degraus de uma escada, com os jo elh o s u n id o s e que, no seu silncio, achei
inacreditavelm ente bela. Mas dou-m e conta neste instante de que estes joelhos
iinidos^^ me lem bram um a espantosa aula de Elenri Guillemin que foi durante
quinze dias, em 1936, nosso professor de francs em L\'on. M andara-nos ler
A tala, e com o nts passavam os depressa de mais para o seu gosto pela descri
o do cadver da bela rapariga e sobretudo pela modstia dos seus joelhos
unidos, ficou furioso, cham ou-nos inocentinhos e p o r fim, uma vez que
ningum se atrevia a sugerir um a explicao, gritou-nos literalm ente; Mas se
ela est com os joelhos unidos porque ningum lhe abriu as coxas para a
foder! porejue ela virgem, no? Depois da prim eira violao, os joelhos
abrem-se! Esta sada pretensam ente explicativa deixou-m e, ccmfesso-o, bas
tante pensativo. Em todo o caso, possvel c[ue entre os joelhos da pretensa
virgindade Guillemin e os joelhos unidos da jovem e bela alem \ ista de pas
sagem, tenha havidet alguma relao de afecto. De resto, na khgne, em Lyon.
sentira-m e durante m uito tem po pertu rb ad o p o r um a ilustrao de um m anual
de histtria literria latina que rcpresentaca danarinas nuas e lascivas esculpi
das no bronze de um baixo-relevo alexandrino. Fit[uei a tal ponto comovido
no m eu corpo que me fui confiar ao padre Varillon. Ele pregou-m e um dis
curso sobre a arte e a sublimao. OK.
Seja com o for, tive m uito nitidam ente o sen tim en to de que deixava de ser
crente cm funo de um a incom patibilidade gritante entre a m inha f e os
meus desejos sexuais (lem bro-o uma vez mais; sem consequncias).
C ontinuei todavia crente at cerca de 1947, at ao m om ento em que, com
Maurice Caveing, Franois Ricci e outros, organizm os o nosso sindicato ilegal
que lutava para ser legalmente reconhecido (situao que no deixava de ligar-se
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enclausurado no meu velho apartam ento da cole de onde quase nunca saa,
c se m antinha todas as aparncias desta seh ajaria reclusa era para tentar entrar
no anonim ato em que pensava descobrir o m eu destino e por acrscim o a paz,
E agora que confio ao pblico que se dispuser a l-lo este li\ ro pessoalssimo,
ainda, mas por via paradoxal, p a r a en lra r clefhiitivciniente )in anoni}}iato.
no j da pedra tum ular da im procedncia, mas na publicao de tudo o que
de mim se pode saber, ficando de vez em paz perante as solicitaes indiscre
tas. Porque desta feita todos os jornalistas e outras pessoas dos meios de com u
nicao ficaro saciados, mas h-de ver-se que no necessariam ente satisfeitos
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Aqui est o que dom inou as m inhas relaes com Marx e o m arxism o.
A partir de ento descobri, com o qualquer outro pode faz-lo (e com o no
essencial Marx reconheceu), que o essencial filosfico e no cientfico do
m arxism o foi enunciado m uito tem po antes de Marx (Ibn K haldoun, Montes-
quieii, etc.) exceptuando essa nebulosa e literalm ente im pensvel teoria
do valor-trabalho que Marx reivindica com o a sua nica descoberta autentica
m ente pessoal. Dos aspectos polticos desta actividade de aparncia pura
m ente terica (ah! o que no se escreveu sobre o nosso teoricismo, o nosso
desprezo pela prtica!!), falo n o utro lugar.
224
XVIII
Q
uanto m inlia relao com o m arxism o, s agora que penso \-la
cx)m clareza. Lana \ez mais, no se trata da objectiv idade do que pude
cscre\er, e portanto da m inha relao com um objecto ou objectos objecti-
\ ()s, mas da m inha relao com um objectt) objectal, quer dizer, interno e
inconsciente. K unicam ente desta relao objectal cjue de m om ento c|uero
falar.
Eis como, hoje, isto , desde que estou a escrer er este ensaio, as coisas me
aparecem .
De que m odo tinha eu acesso ao m undo, to estreito e repetitivo, que mc
rodeava em criana? De que m odo, introduzindo-m e no desejo de m inha me,
podia eu esperar entrar em relao com o m undo? Com o ela, ejuer dizer, no
atravs do contacto do corpo e das mos, atravs do seu trabalho a partir de
uma m atria pr-existente. mas pela utilizao dos m eus olhos. O olho pas-
si\(), distncia do seu objccto. recebe a imagem deste, sem ter que trabalhar,
sem com prom eter o corptj em qualquer processo de aproxim ao, de c o n
tacto, de m anipulao (as mos sujas, a sujidade eram uma fobia da m inba
me e era por isso que eu tinha uma espcie de com placncia pela sujidade ).
O olho assim o trgo especulativo po r excelncia, de Plato e .-Vristteles a
So Toms e para alm dele. Em criana, nunca eu teria posto a mo no cu
fosse de que rapariga fosse, mas era razoaw lm ente royeiir. trao que me ficou
por m uito tempo. Distncia; a dupla distancia que mc era sugerida e imposta
pela m inha me. a que nos protege das intenes de outrem antes que outrem
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nos toque (roubo ou violao), a distancia a ciuc eu devia estar tam bm desse
outro Louis que a m inha me no paraca de olhar atravs de mim. Era assim
um filho do (dhar, sem contacto, sem corpo, porque de facto pelo corpo que
todo o contacto passa. Dizem-me que, por \'olta de 19~5. proferi a seguinte
terrvel frase: E depois h corpos e os corpos tm sexos! Com o no sentia
em mim qualcjuer corpo, no precisava seciuer de me defender de um simples
contacto com a m atria das coisas ou do corpo das pessoas, e era sem dv ida
p o r isso que tinha um meck) pnico de me bater, m edo de t[ue. nessas lutas
breves e violentas entre rapazes, o meu corpo (ou o c[ue dele eu tinha) pudesse
ficar ferido, danificado na sua ilusvria integridade de me bater ou, ideia cjue
nunca me ocorreu antes dos vinte e sete anos, de me masturbar.
Ora penso que o meu corpo desejava profundam ente ter a sua existncia
prtpria. De onde o m eu desejo de praticar futebol, de onde a extrem a habili
dade com que me serv ia de todos os meus mtfsculos, tanto os da boca e da gar
ganta com o os m sculos dos meus braos e das m inhas pernas (as lnguas, o
futebol, etc.). Este meu desejo perm aneceu no estado latente at ao tem po feliz
do meu av (. prim eiro na casa florestal do Bois de Boulogne, mas sobretudo na
sua horta e nos seus cam pos de Morvan, \e jo agora claram ente que este
perodo exaltante foi aquele em que finalm ente reconhcci e finalm entc me foi
reconhecida a existncia de um corpo, e em que me apropriei realm ente de
todas as virtualidades efectivas do meu corjvo. Ema vez mais o recordtv: os
cheiros, antes de mais o das flores, frutos, plantas, mas tambm o do seu ap o
drecim ento, o div inal cheiro do estrum e de cavalo, o cheiro da terra e da
m erda na peciuena casa de banho de m adeira no jardim por baixo de um sabu
gueiro de perfum e intenso; o gosto dos m orangos bravos que eu apanhava nos
taludes, o cheiro dos cogum elos e sobretudo dos ejue se podiam comer, o
cheiro das galinhas e o cheiro do sangue; o cheiro do gato e dos ces, o cheiro
dos cereais enfeixados, do azeite, dos jactos de gua a ferver, do suor dos ani
mais e dos hom ens, do tabaco do m eu av . o cheiro do sexo, o cheiro violento
d <7 vinho e dos tecidos, o cheiro da serradura, o cheiro do m eu prtprio suor
no m eu corpo em m ovim ento; a alegria de sentir os meus m sculos responde
rem ao m eu impulso, a m inha fora levantando os braados altura dos carros,
a erguer toros e troncos, com o tinham os meus m sculos respondido to
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/ r / i R o M I I r o / h \i p o
I-)cm ;u) m eu desejo de aprender sozinho a nadar bem, de aprender a jogar bem
tnis sozinho, a andar bem de bicicleta com o um campeo. Tudo isto me foi
dado pelo M orvan, cpier dizer, pela presena actic a e benfica do m eu av
(enciuinto a \ iolncia do meu pai em Argel e Marselha nunca foi para mim um
m odelo, mas um terror).
Foi assim cjue com ecei a pensar com o meu c o rp o : isso ficar-me-ia para
sempre. Pensar nct na dimenst) distante passiva do olhar, dos olhos, mas na
aco da mo. do jogo infinito dos m sculos, e de todas as sensaes do corpo.
Q uando passeava no jardim ttu no cam po do meu av e nos bosques, s p en
sava em trabalhar e rem exer a terra, ceifar o trigo e a cevada, afastar m inha
frente os ramos das rvores novas para os cortar com a m inha faca. ah' essa
faca, prenda do m eu av, to grande e afiada com o a dele, que alegria cortar os
ramos novos dos castanheiros para os arcos dos cestos, os rebentos de salgueiro
para os entrelaar na sua arm ao, tiiie alegria entrelaar eu prp rio esses ces
tos, que alegria cortar a lenha m ida dos m olhos secos com a podoa, ou rachar
a lenha grande m achadada, no cheiro a vinho e a m ofo da cave!
O corpo, o seu exerccio exaltante, as cam inhadas pelas matas, os trajectos
a p. as longas fugas de bicicleta por ladeiras extenuantes toda esta vida
enfim descoberta e tornada m inha substituira para sem pre a sim ples distncia
especulativa do olhar vo. Disse que experim entei a m inha exaltao pessoal
nos trabalhos fsicos do cativeiro, fm a constncia profunda cjue fixou para
'c m p re o meu destino, para a reconhecer o m eu prprio desejo (no o da
m inha me, que tinha um santo h o rro r p o r qualquer contacto fsico, to obce-
Lada era pela pureza do seu corpo que protegia de mil maneiras, e antes do
ntais com as suas inm eras fobias, de todos os atropelos perigosos). Torna
ra-me por fim feliz no m eu desejo, o de ser um corpo, de existir antes do mais
no meu corpo, na prova m aterial irrefutvel que ele me dava de existir deveras
c enfim. Hu nada tinha a ver com o So Toms da teologia que pensa ainda sob
.1 figura do olho especulativo, mas m uito mais com o So Tom dos Fvange-
.hos cjue t|uer tocar para acreditar. .Melhor, no me contentava com o simples
Lontacto da m o para acreditar na realidade, precisava de a trabalhar, de a
iranstrm ar para acreditar, m uito para l da realidade pura e simples, na m inha
prpria existncia, finalm ente conquistada.
7 7 ^
r o I ( s .1 / H (' s S li K
Q uando descobri o m arxism o, foi atravs cio meu co rpo que a ele aderi.
No s porque representava a crtica radical de toda a iluso especulativa,
mas porque me perm itiu n(t s viver, atrav s da crtica de toda a iluso espe
culativa. uma relao verdadeira com a realidade nua e p o d er tam bm viver
doravante essa relao fsica (de contacto mas sobretudo de trabalho a partir
da m atria social ou outra) no in terio r do p r p rio pensam ento. .\o m ar
xismo, na teoria m arxista, descobri um pensam ento cjuc levava em conta o
prim ado do corpo activo e trabalhador sobre a cvnvscincia passiva e especula
tiva. e pensava esta relao com o sendo ela o prprio materialismo. Fiquei fas
cinado com isto e aderi sem dificuldade a esta perspectiva cjue no era para
mim uma revelao mas um bem prprio. .Na ordem do pensam ento puro
(onde reinavam ainda em mim a imagem e o desejo da m inha me), eu desco
bria finalm ente esse prim ado do corpo, da m o e do seu trabalho de transfor
m ao de toda a m atria, tjue me perm itia p r fim m inha dilacerao interna
entre o meu ideal terico, resultante do desejo da m inha me. c o m eu pr p rio
desejo que reconhecera e reconquistara no m eu corpo o m eu desejo de existir
para mim. a m inha prpria m aneini de existir. Nao era p o r acaso que eu p e n
sava. no m arxism o, toda a categoria sob o prim ado da prtica, e propunha a
frm ula da prtica te rica s frm ula que satisfazia o m eu desejo de com pro
misso entre o desejo (especulativo, terico, resulttinte do desejo da m inha
m e) e o meu pr p rio desejo assom brado no tanto pelo conceito de prtica,
com o pela m inha experincia e o m eu desejo da prtica real, do contacto com
a m atria (fsica ou social), e da sua transform ao no trabalho (operrio) e na
aco (poltica). Ora esta frm ula, pensar produzir, encontra-se j em
babriola. Ningum deu p o r isso, mas quem tinha lido Labriola em Frana?
Tratava-se sem dvida de um com prom isso. Nos meus prim eiros escritos,
eu exprim ia ainthi minhti m aneira este com prom isso no elem ento, ainda
dom inante para mim, do puro pensam ento de... foi assim que, arranjando-m e
com o podia nr> interior deste cvtmpromisso, forjei em filosofia a dem asiado
clebre definio da filosofia com o Teoria da prtica terica (frgil m aius
cula que tanto com oveu Ciesarc L uporini...), mas para ela renunciar rapida
m ente sob as crticas de Rgis Debray e sobretudo de Robert Linhart, que
sabiam, pelo seu lado. o que eram a aco poltica e o seu prim ado. De facto, se
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com preende o que Deus lhe disse (tal a sorte de todos os profetas), mas nem
sequer aquilo que o povo lhe explica para o fazer com preender o que ouviu!!
Prova de que a ideologia pode, em certos casos, e por que no por natureza,
ser totalm ente opaca para aqueles t)ue se lhes encontram subm etidos. Isto era
para mim m oti \'0 de admirao, bem com o a concepo de Spinoza sobre as
relaes entre a ideologia religiosa dt) povo judeu e a sua existncia m aterial
no templo, os sacerdotes, os sacrifcios, as observncias, os rituais, etc. Mais
tarde, seguindo-o neste ponto, com o tam bm a Pascal que admirava m uito, eu
insistiria fortem ente na existncia m aterial da ideologia, no s nas suas con
dies materiais de existncia (o que encontram os j em Marx e, antes e depois
dele, em num erosos autores), mas na m ateriedidade da sua prpria existncia.
Mas eu ainda no chegara ao fim no cjue se refere a Spinoza. Ele era um
pensador que recusara toda a teoria do conhecim ento (de tipo cartesiano ou
mais tarde kantiano), um autor que recusara o papel fundador da subjectix i
dade cartesiana do cogito, para se contentar com escrever, com o um facto: o
hom em pensa, sem da extrair qualcpier consequncia transcendental. Era
tam bm um nom inalista, e Marx ensinar-m e-ia ejue o nom inalism o a estrada
real para o materialismo. ou. para dizer a xerdade, trata-se de uma estrada ejue
apenas em si prpria desem boca, e no conheo fo rm a de materialismo mais
profunda do que o nominalismo. Era por fim um hom em que, sem esboar uma
gnese do sentido originrio, enunciava o seguinte facto: temos um a ideia
verdadeira, uma norma da verdade que nos dada pela m atem tica mais
uma vez um facto sem origem transcendental, um hom em que im ediatam ente
pensava xn fa c tic id a d e do facto: surpreendente no autor que alguns preten
dem dogm tico deduzindo o m undo de Deus e dos seus atributos! Nada mais
m aterialista do que este pensam ento sem origem nem fim. Mais tarde eu
extrairia datjui a m inha frm ula da histria e da verdade com o processo sem
sujeito (originrio, fundador de todo o sentido) e sem fins (sem destino esca-
tolgico pr-estabelecido), pois recusar o pensam ento do fim com o causa ori
ginria (no reenvio especular da origem e do fim) era deveras pensar com o
materialista. Servi-me ento de um a m etfora: um idealista um hom em tiue
sabe ao m esm o tem po de tjue estao sai e qual o seu destino; sabe-o anteci
padam ente e quando apanha o com boio, sabe para onde vai, uma xez titie o
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que pensar forte e livremente, portanto pensar propriam ente com o corpo, no
corpo e p o r m eio do corpo, em suma o facto de o corpo p o d e r pensar, no e
pelo desabrochar das suas foras, era para mim absolutam ente deslum brante,
com o um a realidade e um a verdade que eu vivera e eram as m inhas. A tal
ponto verdade, com o m uito bem disse Hegel, que s se conhece aquilo que
se reconhece.
No entanto teria ainda necessidade de outros filsofos para um a verda
deira introduo a Marx. Em prim eiro lugar, foram, com o referi na m inha
Soiitenance d Arniens. os filsofos polticos dos sculos xvii e xviii, sobre
os quais tinha ento o projecto de elaborar um a tese de doutoram ento. De
Hobbes a Rousseau. descobria um a m esm a inspirao, profunda, a de um
m undo conflitual ao qual s a autoridade absoluta do Estado (Elobbes) pode
sem contrapartida garantir a segurana dos bens e das pessoas, pondo fim
guerra de todos contra todos: antecipao da luta de classes e do papel do
Estado, a propsito dos quais sabem os que o p r p rio Marx declara que os no
descobriu, mas foi buscar aos seus predecessores, em particular aos historia
dores franceses da Restaurao, apesar de estes serem m uito pouco progres
sistas, e aos econom istas ingleses, sobretudo Ricardo. Teria podido ir m uito
mais Umge. at ao clebre debate entre romanistas e germanistas, sem falar
dos autores que acabo de citar. O famoso cardeal Ratzinger. a quem a luta de
classes tira o sono, faria bem em se instruir um pouco. Rousseau, cjue pensava
no estado de natureza desenvoh ido a mesma conflitualidade social, dava-lhe
uma outra soluo: justam ente o fim do Estado, na dem ocracia directa do
contrato exprim indo um a vontade geral que nunca morre. O que convida
a sonhar para um dia o a d \e n to do com unism o! Mas o que tam bm me fasci
nava em Rousseau era (t Segundo Discurso e a teoria do contrato ilegtimo,
subterfgio c astcia nascidos da im aginao perversa dos ricos para subm ete
rem o esprito dos m iserveis: mais uma teoria da ideologia, mas desta feita
referida s suas causas e ao seu papel sociais, quer dizer, sua funo hegem
nica na luta de classes. Considero Rousseau o prim eiro terico da hegem o
nia aps Maquiavcl. Eram tam bm os planos de reform a para a Crsega e
para a Polnia onde Rousseau nos surge com o exactam ente o contrrio de um
Litopista, um realista que sabe levar em conta todos os dados com plexos de uma
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exactam ente o de Marx. Vejo bem que no fiz mais do que tentar tornar os tex
tos tericos de Marx, m uitas vezes obscuros e contraditrios, ejuando no
lacunares em certos pontos im portantes, inteligveis em si prprios e para ns.
Vejo bem que me m ovia nesta iniciativa uma dupla am bio sem apelo
. p ri
m eiro e antes do mais no alim entar iluses nem sobre o real, nem sobre o real
do pensam ento de Marx, e portanto distinguir neste aquilo a que cham ei a
ideologia (da juventude) e o pensam ento ulterior, ac|uele c|ue acreditava ser o
pensam ento da realidade com pletam ente nua, sem contributo externo
(Engels). No alim entar iluses, esta frm ula continua a ser para mim a
nica definio do m aterialism o; e tentar, pensando por mim prprio (pala-
\ ras de Kant retom adas p o r Marx), tornar o pensam ento de Marx claro e co e
rente para todos os leitores de boa f e exigncia terica. Naturalmente, isto
conferiu uma form a particular m inha exposio da teoria m arxista, de onde,
em num erosos especialistas e militantes, a im presso de que eu fabricara um
Marx m eu. algo estranho ao Marx real, um m arxism o im aginrio (Raymond
Aron). Reconheo-o de bom grackx porc]ue de facto suprim ia em Marx tudo o
cpie me parecia no s incom patvel com os seus princpios materialistas, mas
tam bm o que nele subsistia de ideologia, acima de tudo as categorias apolo-
gticas da ciialctica. ou at m esm o a prpria clialctica. c|ue me parecia no
servir nas suas famosas leis seno com o apologia (justificao) retrospectiva
cio facto consum ado do desenrolar-se aleatrio da histria para as decises da
direco do Partido. Neste ponto nunca m udei, e po r isso que a figura da
teoria m arxista que propus, e que de facto rectificava o pensam ento literal de
Marx em num erosos pontos, me valeu incontveis ataques de pessoas apega
das letra das expresses de Marx. Sim, dou-m e bem conta de ter com o que
fabricado para Marx uma filosofia diferente do m arxism o vulgar, mas com o
esta fornecia ao leitor um a exposio j no contraditria mas coerente e inte
ligvel, pensava que o objectivo estava alcanado e que eu me apropriara de
Marx observando as suas exigncias de coerncia e de inteligibilidade. Era de
resto a nica m aneira de quebrar a ortodoxia da II e desastrosa Internacional
da qual Estaline fora herdeiro a cem p o r cento.
Foi isto p o r certo que abriu a num erosos jovens, ao tem po, a seguinte
perspectiva nova: era possvel pensar no quadro desta nova apresentao de
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. 'HK) for a histria tem mais im aginao do que ns, seja com o for estamos
'eduzidos a pensar por ms prprios. No. no adopto a ideia de Sorel reto-
:i'..ida por Gramsci: o cepticism o da inteligncia mais o optim ism o da vontade.
\ o acredito no voluntarism o na histria. Em contrapartida, acredito na luci-
ez da inteligncia e no prim ado dos m o\ im entos populares Mtbre a intelign-
oa, A esse preo, porque no a instncia suprem a, a inteligncia pode acom-
vinhar os m ovim entos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles
recaiam nas aberraes passadas e para os ajudar a descobrir formas de ttrgani^
'.ico realm cnte dem ocrticas e eficazes. Se apesar de tudo podem os alimen-
;.ir alguma esperana de ajudar a inflectir o curso da histria, aqui que ela
e 't e s acjui. Ou pelo m enos n (7 est nos sonhos escatolgicos de uma ideo-
>gia religiosa que est a dar cabo de todos ns.
Mas eis-nos em plena poltica.
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XIX
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dc Robert Linhart (c no falo j de Rgis Debray que m uito cedo mas s traou
o seu cam inho fora do Partido para se em penhar ao lado do Che na guerrilha
boliviana), esses alunos-discpulos, depois de terem conquistado a organiza
o das Juventudes Com unistas p o r dentro, a abandonaram logo a seguir (sem
o m eu acordo) para fundarem no exterior do p artido uma nova organizao,
a Unio das Juventudes Com unistas m arxistas-leninistas (UJ(i m-1) que co n h e
ceu um a grande expanso, se organizou em escolas e grupos de form ao te
ricos e polticos, e passaram aco de massa, form ando em especial os com i
ts Vietname de base que tiveram antes de iMaio de 68 um a ampla expanso.
O Partido era literalm ente ultrapassado entre os estudantes, a tal ponto que,
com o ta h e z saibam, em Maio de 68 houve apenas um punhado, digo bem um
simples punhado (tendo Cathala ficado naturalm ente no seu gabinete), de
estudantes com unistas presentes no im enso m otim da Sorbonne.
E os rapazes da LJC m-1 tam bm l no estavam. Porqu? Tinham adop-
taclo uma linha aparentem ente rigorosa que foi na altura a sua perda: ir para
as portas das fbricas tentar realizar a unidade dos estudantes-trabalhadores
com os operrios. Ora no com petia a estudantes esquerdistas, mas a m ilitan
tes do Partido irem pedir aos operrios das fbricas que se juntassem no Qtiar-
ticr I.atin insurreio estudantil. A residia o erro fundam ental de Linhart e
dos seus camaradas. Os operrios, com raras excepes. no apareceram na
Sorbonne porque o Partido, nica instncia que tinha autoridade para isso,
no lhes pedira ciue o fizessem. A palavra de ordem poderia ter sido justa com
efeito se o Partido no desconfiasse com o da peste da revolta esquerdizante
das massas estudantis e tivesse deitado m o ocasio, a fortuna com o diria
Maquiavel, de desencadear e apoiar com toda a fora do seu p o d e r e das suas
organizaes (sobretudo a CGT que sem pre lhe foi fiel desde a ciso de 1948)
um m ovim ento de massas poderoso, capaz de arrastar no apenas a ciasse o p e
rria mas amplas cam adas da pequena burguesia, cuja fora e cuja resoluo
poderiam objectivam ente abrir cam inho a um a tom ada do p o d e r e a um a p r
tica revolucionrias. J Lenine escrevera, com o talvez alguns saibam, que no
tem po do caso Dreyfus, que nunca deu lugar a m otins de massa declarados
nem a barricadas, a agitao teria po d id o abrir cam inho a um a verdadeira
revoluo em Frana se o Partidcj O perrio no se tivesse posto m argem dos
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uma derrota sem massacres de operrios, pode dizer-se que isso no forosa-
m ente bom sinal para a classe operria que no fica com m rtires para chorar
ou celebrar. Os esquerdistas, que se dacatm conta do faeto. souberam ou julga
ram poder explorar os seus poucos m ortos, com o o infeliz 0 \ erne. Lem bro
-me da frase que no parei de repetir m inha volta, no prp rio dia do funeral
com ovente e prodigioso deste infeliz m ilitante da Cause cu peiiple i dois
m ilhes de pessoas no enterro no m eio das bandeiras e do silencio, e na ausn
cia do Partido e da CGT): No O verney que vai boje a e>iterrar. o esquer-
clismo. O que se seguiu rapidam ente m ostrou que eu avaliara bem a situao.
Ora este simples facto perm ite-m e abordar um outro argumento, .\lm de
que se trata de um a concepo m uito singular da determ inao e da ideologia
(pessoal) e da histria considerar com o o faria to exacerbadam ente um
G lucksm ann um indivduo, a sua obra e a sua eventual influncia capazes
de provocar entre num erosos jovens estudantes e intelectuais (os nicos atin
gidos) opes polticas decisivas e, no limite desta lgica, massacres em massa,
preciso ver o que representava ou podia representar para jovens burgueses
ou pequeno-burgueses a experincia da existncia, da organizao, das p rti
cas da linha econm ica, poltica e ideolgica do Partido. Expliquei-m e mais
tarde sobre o seu funcionam ento. Fora do Partido, fora de um a experincia
algo prolongada das prteas do Partido, no se pode fazer uma ideia do Par
tido e no so li\ ros anticom unistas com o os de um Philippe Robrieux que, no
tem po do Conselho Com unal, foi o dirigente mais estalinista de todos e o mais
atroz em agitar at m inha clula os horrores das condenaes do Conselho
Com unal, que podem esclarecer quem quer que seja, excepto le m b n m o aos
que p o r l passaram certo nm ero de dados cjue j conheciam ou de que des
confiavam . Nada substitui a experincia directa e os que no passaram po r ela.
se lerem os estudos, ou antes, os quase-panfletos raivosos de um jornalista
obcecado e sem assunto com o Robrieux, adquiriro quando m uito um vago
conhecim ento livresco que no os m arcar, se no estiverem j m arcados por
outras razes. Porque, no fundo, o que pode dizer esse gnero de trabalho,
seno o que uns j aprenderam p o r dentro ou o que outros j ouviram sob for
mas m enos precisas, sem dvida, da im ensa cam panha anticom unista, valen
do-se ontem de Soljenitsyne e hoje de M ontand, que desde sem pre dom ina a
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ideologia burguesa do nosso pas e se difunde por toda a parte? Alm do que.
nos anos 50, no havia esquerda nada a no ser o Partido e a CGT. que eram
as nicas foras reais, e alis im pressionantes, era preciso alinhar com elas e
n o h a v ia ab so lu ta n ien te n a d a que n a su a ordem as substitusse.
Oni. se eu tive algunvA influncia, co m o escreve Rancire nesse peq u en o
panfleto que m e deu m uito gosto ler porque era honesto no seu fu n d o e p ro
fundam ente sincero e com alguma consistncia terica e poltica (mas s
alguma), em que que essa influncia pode consistir, seno em convidar
alguns (ou m uitos, mas com o sab-lo?) a no abandonarem im ediatam ente o
Partido, mas a perm anecerem dentro dele? Ora estou convencido de que
nenhum a outra organizao em Frana, digo bem , nenhum a outra organizao
em Frana, podia ento oferecer a m ilitantes sinceros um a form ao e um a
experincia poltica prticas com parveis s que se podiam adquirir m ediante
uma prolongada presena m ilitante no Partido. No pretendo que o tenha
sabido conscientem ente, que no tenha tido outras m otivaes pessoais para
continuar no Partido (disso j falei longam ente, mas agora quero falar de efei
tos e de factos perfeitam ente objectivos). No pretendo ter sido tao lcido
com o Rancire ou outros (cujas razes m uito raram ente eram to puras). Mas
um facto: adoptei essa atitude. Nunca escrevi ou fiz de outro m odo cam pa
nha pblica ou privada para convencer fosse quem fosse a ficar no Partido, e
HLinca nem publicam ente nem em pricad o desautorizei ou condenei os que
s a i a m ou queriam sair. Cada um deve decidir em conscincia: tal era a m inha
regra de aco. Talvez eu tivesse ms razes pessoais para ficar ou no suficien-
ten^ente boa.s para sair: um tacto, fiquei, mas todos os m eus escritos m ostra-
- m bastante que nas questes fundam entais, tanto filosficas com o p o lti
cas c .d c l s , s , M,b,c c,u ,f.cs cic linha (cf le x x m C o ,n x ,
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' Force Ouvrire (F.O.) e Confcdration Franaise Dmocratiqiic dii Travail (C.F.D.T): ccntrai.s
sindicais Francesas. (.V. do T.)
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' C) auto r remete aqui para o seu projecto no concludo de um a obra sobre A Verdadeira Tra
d i o M a teria lista esocada na Apresentao do presente \ olume. (A. do H. francs)
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E st\amo,s cm 199-I980. O ano anunciava-se sob auspcios bastante bons.
Fati O utubro-D ezcm bro, cu resisti com xito a um com eo de depresso
que superei por mim prprio, sem hospitalizao. Apesar das nossas discus
ses perptuas, mas sem pre separadas por grandes perodos de paz e de enten
dim ento profundo, as coisas corriam sensivelm ente melhctr. Do lado de
Hlne, com toda a certeza: as suas entrevistas com o meu analista tinham
alcanado nela resultados m anifestos aos olhos de todos. Ela estava infinita
m ente mais paciente, m enos cortante, controlava m uito m elhor as suas reae-
es no trabalho e, s p o r isso, arranjara por l amigos que a estimavam e dela
gostavam deveras, referindo-se a ela com o a um a personalidade de excepo
ejue transform ara, pelo seu conhecim ento e com preenso dos m ecanism os
sociais, polticos e ideolgicos, os prprios m todos dos inquritos sociolgi
cos tjue eram uma das especialidades da casa, a Sedes. Apurara uma m odali
dade original de investigao de cam po que conquistara num erosos adeptos
entre os seus colegas de trabalho. J no era s eu a mostrar-lhe os meus am i
gos, era ela ciuem me convidava para cada dos dela. Q uando se reform ou (para
dar lugar aos mais novos), organizou com grande coragem um a activ idade pes
soal no rem unerada de inciurito de cam po, em Fos-sur-Mer. onde ia de
quinze em quinze dias. Tratava-sc de um resultado espantoso. Acabara p o r gos
tar at das m inhas amigas, com o Franca, que bi visitar sozinha e p o r sua p r
pria iniciativa a Itlia quando ela adoeceu gravem ente; quando a sua cunhada
(iiovanna ficou seriamente deprim ida, organizou para ela uma vagem a Veneza.
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qLie conhecia liem: (hovaiina ainda hoje me fala com emoo dessa generosa
iniciativa. Gostava muito de Hlne, com o todos os c|ue sc tinham e s f o r a d o
minimamente por conhec-la, mas nunca imagintira semelhante ateno to
cheia de delicadeza pttr parte dela. Ser-me-ia fcil multiplicar os e x e mp l o s .
Pelo meu lado, as coisas estavam tambm a m elhorar li \erdade cjue e
sem saber ao certo porqu tinha cada cez mais dificuldade em dar aulas,
esforando-me com tenacidade, mas sem graitde efeito, l-intrincheirac a-nte na
correco das dissertaes e das exposies dos alunos, que para eles com en
tava em privado, e em certas intervenes pontuais sobre este ou aquele pom o
da histria da filosofia. Mas as minhas relaes com as minhas amigas m ulhe
res tinham m udado seriamente.
Penso numa de entre elas. que conhecia desde 1969. De inicio, d escon
fiando de que ela tinha por mim uma paixo intensa, comeara, segundo a
minha reaco e a minha tcnica de proteco, ao mesmo tempo por dar os
primeiros passos e por me barricar furiosamente a seguir, Como ela era forte
mas de uma sensibilidade extrema, muito inquieta e capaz de reaces vivas,
tivemos durante muito temjso contactos tumultuosos, sobretudo por culpa
minha, de bom grado o reconheo. Depois, ou por, sob o efeito da minha an
lise, eu ter c\'oludo o suficiente, ou por ter com preendido que ela na realidade
no queria deitar-me a mo e ciue no tinha qualquer ideia a meu respeito,
em breve passei a ver nela uma verdadeira amiga, e as nossas relaes, m elhor
ou pior, no sem choques, mas j muito menos \ i\as. fonim melhorando. Ela
deu-me uma enorm e ajuda, que nem todos os meus amigos apreciaram igual
mente (na sua opinio, com o na de muitas enfermeiras, deveria ter sido muito
mais enrgica comigo), durante a m inha longa hospitalizao (1980-1983) e
ctintribuiu largamente para me ajudar a sobreviver. ,V nossti amizade transfor
mou-se para ns num hem partilhado.
.Mas alm disso tornara-me extremamente atento minha maneira de
abordar as mulheres, e quis e sobretudo pude dem onstrar a mim pniprio
quando, por \'olta de Ih^^s, ac istei p o r acaso, no fim de uma Feira do Li\ ro,
quando os pa\ ilhes estavam quase todos j sem ningum e a enorm e sala
quase vazia, uma mulher jovem, baixa, morena e com o famoso perfil. Delgada,
tmida, pudica. acanava no vazio da enorme sala em direco ao pa\ ilho
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:n^ estigao sobre a relao eonereta entre o aspecto p r tic o dos mo\ imeiitos
populares e a sua relao (directa, indirecta, perxersa?) com as ideologias e as
doutrinas tericas que lhes tinham estado ou continuam a estar associadas no
decorrer da histria. Naturalmente, a questo da constituio destes mo\ imen-
:os em organizaes no podia deixar de col(.)car-se a propsito da constitui
ro ou da transformao das ideologias e das doutrinas tericas : fazia parte do
:iiesmo problema. Um projecto de muito grande alcance, que eu acha\ a de
ictualidade para a investigao e m esmo para a vida terica c poltica, foi
ento delineado, sob a sigla de CEMPIT (Centrt) de Estudos dos Mo\ imentos
Idipulares, das suas Ideologias e Doutrinas 'lericas). Conseguiu o apoio da
eiireco da eole tjuc me concedeu alguns fundos e a promessa de nlai^
- poios po r parte do ministrio; obtive o acordo de uma boa centena de histo
; '.adores, socilogos, politlogos, economisas, epistemlogos e filosott dc
eidas as competncias e tendncias, p rom ori na cole, em Maro de 1980.
-ima reunio inaugural e diversos grupos comearam a trabalhar. Intencionai-
nente, queramos trabalhar sobre casos to diversos com o o movimento
perrio ocidental, o Islo, a China, o cristianismo, os campesinatos, para che-
, .irmos, se possvel, a resultados comparativos. Fizemos vrias reunies com a
cTcsena de especialistas que consegui que viessem da provncia e m esmo do
1 'trangeiro. l i n h a contactos pessoais com trs historiadores, stteilogos e fil-
' ifos soviticos notabilssimos: um trabalhava sobre os mo\ imentos populares
i Rssia pr-revolucionria, o outro sobre as religies de frica e o terceiro
- 'bre as ideologias, oficial e outras, na URSS. O projecto estava bem encami-
iiado com grandes receios de um ou dois amigos mais chegados que,
-..liando-me um tanto hipomanaco. temiam o j a i o r , c os grupos formados em
ena actividade, quando ti\e de enfrentar uma jaequena dificuldade pessoal
italmente inesperada, mas que acarretou pesadas consequncias.
Nos finais de 19^9. comecei com efeito a sofrer de vivas dores do esofago
. .1 restituir o mais das vezes aejuilo que ingeria. O dr. Etienne, generalista,
-erto. mas gastroenterologista dc formao, m andou-m e fazer uma endoscopia
, perante os seus resultados inquietantes m andou-m e radiografar: hrnia hia-
f. Tinha tjue ser operado, caso contrrio era de temer a prazo o aparecimento
, L lceras do esfago, cujo prognstico muitas vezes bastante gra\ e. Por duas
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\ezes foi fixada a data da operao, antes da Pscoa de 1980, c por duas \ezcs.
presa como que de um grave pressentimento (dizia a quem me quisesse ouvir
que a anestesia ia baralhar tudo), adiei a operao. Perante a insistncia dos
mdicos, acabei por ceder. operao teve lugar, depois tia nossa feliz viagem
Grcia, na Maison des Gardiens de la Paix, no boulen ard Saint-Marcel. At ao
ltimt) instante continuei a trabalhar intensamente na minha pequena cama de
hospital nos dossiers do (diMPIl que levara comigt).
Tecnicamente a operao correu bem. Administraram ine as drogas de
uma anestesia profunda, e eu acordei presa de uma angtfstia incoercvcT
(quando alguns anos antes recebera por causa de uma hrnia inguinal e de
uma apendicite duas anestesias sem tiuaist|uer conseciuncvas). Esta anestesia e
a primeira angstia precipitaram-mc jsouco a pouco num a no\a depresso
ciue. pela primeira vez. j no foi de feio neurtica e dut idosa, no franca,
mas uma n/eiaiico/hi aguda clssica, cuja gravidade alertou seriamente o meu
analista: Pela primeira vez, t[ue eu soubesse, disse-me ele mais tarde, voc
apresentat a todos os sintomas de uma melancolia clssica aguda e alm disso,
grave e inquictante.
Arrastei-me corno pude. como sempre tentando lutar com todas as minhas
foras, empurrando o tempo interminfu el, com o .ipoio de lilne, do rncu
analista, etc,, contra a minha angstia c o meu desejo de ser posto ao abrigo
numa clnica, mas desta \ cz sentia bem que no era com o no passadi.).
Contudo, o meu estado no paraxa de se agrax ar. P no dia 1 de ju n h o de
1980 entrei de nox t) para uma clnica, desta x'cz a clnica de Parc-Montsouris
(rue Dax itj ), e nt.) com o antes para o \ esinet. Os directores do Nesinet, M. e
Mme. Leullier. ambos psitpiiatras e xelhos amigos do meu analista, tinham-se
reformado, e o meu analista no conhecia o seu sucessor. Mas no era essa a
sua razo essencial: queria poupar a Hlne as interminveis x iagens de metro
(uma boa hora e meia, pelo m enos trs horas de ida c volta) entre a Ecoie c
o Vsinct.
preciso com preender em c|ue estado sc enctjntraria Pline. Durante
anos, tix'cra tjue suportar o peso e a angsta das minhas depresses e dos meus
estados hipomanacos, no s das minhas depresses mas, o que era ainda infi-
nitamenie mais duro, xis interminveis meses (ou semanas) t[ue eu vivia, numa
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no era capaz nem de acom panhar nem de articular, nem a fo r tio r i a minha
escrita, e apresentava formas de discurso delirantes, Alm disso, no para\ a de
viver noite pesadelos atrozes, cpie se prolongar am denutradamente no estado
de \igilia, e vivia os meus sonhos no estado de \igilia, quer dizer, agia
segundo os temas e a lgica dos meus sonhos, tom ando a iluso elo^ meus
stmhos pela realidade, e achava-me incapaz de distinguir ento em estado de
riglia as minhas alucinaes onricas da simples realidade. lira nes[a^ eondi-
es que desenvolvia sem descanso perante quem me r isitar a temas de perse
guio suicidaria. Pensar-a intensamente tiue havia hom ens tiue queriam a
minha morte e se prepararam para me matar: um barbudo em especial, que
der ia ter r isto algtires no servio: melhor, har ia um tribunal reunido na sahi
ao lado para me condenar morte; melhor, hom ens armados de espingardas
com mira telescpica que iam abater-me apttntando para mim das janelas das
casas fronteiras; por fim as Brigadas Mmmelhas tinham-me condenado morte
e iam irromper no meu quarto de dia ou de noite. .\o conservei na memria
todos estes porm enores alucinantes, ejue fictiram encobertos, excepto num ou
noutro claro, por uma pesada amncvsia, mas conheo-os pelos numerosos
amigos t]ue me vieram visitar, pelos mdicos cjue me trataram e pela c o n c o r
dncia exacta e coincidente das suas observaes e testemunhos que mais
tarde recolhi.
lo d o este sistema patolgico era acom panhado por um delrio suicid-
rio. C ondenado m orte e ameaado de execuo, s tinha um recurso: anteci
par a mttrte infligida matando-me prerentivamente. Imaginei todas as espcies
de solues mortais, e alm disso queria no s destruir-me fisicamente, mas
destruir tambm todo o rasto da minha passagem pela terra: em particular des
truir at ao ltimo os meus livros e todas as minhas notas c igualmente incen
diar a cole, e ainda, se possrel, suprimir, j agora, a prpria Hlnc. Pelo
menos confiei-o a um amigo que mo referiu nestes mesmos termos. (Acerca
deste ltimo ponto, s recolhi esse testemunho isolado, i
Sei que os mdicos ficaram extremamente incjuictos a meu respeito.
Recear am, no que eu me matasse disso estar a a salr-o. ao que parece, dadas
as condies e proteces de vigilncia da clnica embora em tais casos
nunca se saiba , mas recearam acima de tudt) que estas graves perturbaes
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um outro tema, latente nela havia meses, mas qtie desta feita assumiu uma
torma m edonha. Declarou-me cjtie no tinha outra soluo, dado o inonsiro
que eu era e o sofrimento inumano que lhe impunha, a no ser matar-se.
Ostensivamente, juntava e exibia as drogas nee'essrias para o seu 'uicdio, mas
falava tambm de outros meios, incontroleeis: o nosso amigo Nikos Poulant-
zas no se suicidara recentemente atirando-se. numa crise aguda de persegui
ro, do alto do vigsimo segundo andar da torre de Montparnasse - Outro ati-
rando-.se para debaixo de um camio pesado, e um terceiro para delxiixo de
um comboio? Citava-me estes meios, com o se me desse a escolher entre eles.
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para fazerem o silncio sua volta e para protegerem um dos seus dos rigores
da regra, ou talvez m esm o da lei. Hm suma, eu fora protegido pelo AlE do
ensino de que era membro. Q uando se sabe que os comentrios se prolonga
ram p o r muito tempo, porcjue foi preciso tempo para cjue chegassem primeiro
os resultados da autpsia, depois a deciso de im procedncia imagina-se
em cjue atmosfera de caa ao homem, ainda mais temvel por ter sido difusa
com o o rum or pblico que acompanhava os golpes de uma certa imprensa,
ticcram de viver os meus amigos desamparados. Digo os meus amigos, porque
no tinha famlia. O meu pai m orrera em 19"'5 e a minha me, muito envelhe
cida embora muito lcida, estava totalmente indiferente. Bousquet, muito
digno, teve de interc ir pessoalmente para rectificar na imprensa informaes
totalmente inexactas e difamatrias. Teve essa coragem, e assumiu publica
mente os seus riscos. Ciarantiu que eu sempre desem penhara o meu servio e
o meu ensino de maneira perfeitamente honesta e irrepreensvel, que era para
ele na cole um colaborador perfeito, conhecendo m elhor do que ningum os
meus prprios alunos, e que um doente tem direito a ser defendido pelo seu
director. Hste arqulogo cheio de brandura, que no vivia e no vive seno
para as suas esca\aes de Delfos, mostrou-se um hom em de coragem, de
aco e de generosidade. Bem entendido, fui tambm defendido no s por
todos os \ igilantes da cole. mas tambm por todos os filsofos que, segundo
um jornalista, formaram um bloco em torno de Althusser.
De tudo isto, naturalmente, nada soube na altura, e ainda durante um
km g perodo posterior. O m dico que me tratou em Sainte-Anne, com uma
ateno e uma generosidade que muito me comoveram, velava para que
nenhum a notcia pudesse chegar at mim: receava justificadamente que isso
me traumatizasse e agravasse o meu estado. Foi po r essa razo que blo
queou a imensa correspondncia que ento me foi endereada, o mais das
vezes po r desconhecidos que me cobriam de injrias (comunista criminoso!)
o mais das \ezes carregadas de intensas ressonncias, at ameaas sexuais.
Foi tambm pela mesma razo que tomou a deciso de proibir todas as visitas,
pois no sabia quem poderia aparecer nem para me contar o qu. Acima de
tudo (e esse m edo inspiraria todos os meus mdicos no s em Sainte-Anne,
mas muito tem po depois em Soisy, para onde fui transferido em Junho de
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.irtigo escandaloso. Este receio nada tinha de imaginrio. Soube m a i' t a 1 11L' C.j l v'
lado na minha cama e diante dos meus trs companheiros dc lsi n ' a r a i a .
O semanrio tencionava publicar este tktcumento com o ttulo: m ! 1 f I -.! ) ! i )
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.rcito m edico a seu favor, mas era preciso ter a simples coragem de o in\a)can
^le me defender dizendo que eu no era nem perigoso nem \'iolemo lo que era
mais do que evidente), c foi assim que pude, sem o saber, escapar sorte mais
extrema a cjue sem dvida no teria sobrevi\do, ou a que pelo menos no
|socieria ter escapado, por certo para toda a \'ida. Mas \ erdade que os meus
.iinigos teriam certamente alertado a opinio c que as coisas no se teriam pas-
'.ido com o queria o mais alto nvel. Entretanto tieeram lugar as eleies de
181 e o ministro da Justia, meu colega da Mormale. foi substitudo p(.)r
Hobert Badinter. Os meus amigos respiraram fundo e eu pude ser ene iado para
soisy-sur-Seine.
Todavia os meus mdicos ainda no tinham visto o fim dos seus traba-
ios; eu no queria sair de Sainte-Anne! Resistia ferozmente aos argumentos do
ncu analista que teve de voltar carga no sei quantas vezes. ,Sentia-me bas-
inte bem em Sainte-Anne onde, com o tantas vezes no meu passado, fizera a
minha toca, tinha l um amigo tiue no queria perder, e alimentava-me da
ida do imenso edifcio classificado onde os rostos mudavam sem parar, onde
rranjara um amigo cheio de tacto e de compreenso entre os enfermeiros, um
.ornem das Antilhas, corpulento, sempre franco e de bom humor. Tinha um
_r.mde m edo da mudana, e naturalmente transbordava de argumentos; \er-
.i.de ciue conhecia Soisy, mas ficava a quarenta quilmetros de Paris, eomo
' oderia l ter visitas? O meu analista em vo me dizia e eu sabia-o por expe-
icncia prpria que seria l mais bem tratado e estaria mais conforta\el-
'lente instalado, cjue longe de Paris e dos seus riscos poderia. pelo menos no
.rande parcjtie, beneficiar de uma maior liberdade de m o\im entos. que seria
xira ele mais fcil seguir-me, que de resto iria ) ver-me regularmente, eu no
,'.e dava ouvidos. Mantinha-me firmemente decidido: no queria sair de
'.unte-Anne. Mas, no final, com o se tratava dc escolher ou eu pensava que sim,
,ntre Carcassonne e Soisy, acabei por ceder, mas com a morte na alma.
Em Junho de 1981, sa portanto de Sainte-.\nne numa ambulncia, Como
.'.edida de precauo, o meu mdico anunciara a minha sada para as cinco
iras da tarde, mas a ambulncia levou-me s duas horas. Os e\entuais jorna-
'tas e fotgrafos tinham sido fintados.
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em relao ao horrio estabelecido. Foi nesta altura que com preend que o
mdico no tinha um poder absoluto sobre os seus enfermeiros, que tinha que
negociar com eles, ou m esmo fechar os olhos (nunca consegui que mc dessem
a minha droga da noite a horas, excepto uma vez quando um jovem estudante
de medicina muito amvel ficou no turno da noite, mas no foi p o r muito
tempo). Cheguei m esmo a pensar, o que era um exagero, que neste servio,
apesar de muito liberal e bem organizado, e sem dvida a fo r tio r i noutros ser-
\ios, m enos avanados, com enfermeiros m enos informados, o mdico
estava com frequncia subordinado ditadura do corpo dos enfermeiros.
Ainda que esta impresso deva ser matizada, acho que contm algo de essen
cial para a compreenso das relaes e da atmosfera que reinam em qualquer
regime de encerram ento psiciuitrico, K com que efeitos perniciosos!
(guando o meu mdico aparecia de m anh no meu quarto, havia j muito
tempo que eu estava s espera dele e agarrar a-me sua presena atenta. Fazia
um esforo enorm e nessa altura para sair dos meus pesadelos nocturnos, que
persistiam durante a \ iglia. contava-lhe em sonhos os meus sonhos pavorosos,
ele ouvia-me. dizia algumas palavras, mas era a sua escuta o essencial do que
eu esperav a dele. Por vezes, ele arriscava uma espcie de interpretao sempre
cheia de prudncia. Na aparncia eu encontrava-me inteiramente submetido s
suas palavras, Mas acontecia-me muitas vezes ir ter a seguir com uma enfer
meira para lhe pr a seguinte pergunta: Mas o doutor sabe o tiue est a fazer?
Sabe o ejue est a dizer? De nov o a dv ida me inv adia, e tambm a angstia:
de facto a angstia de estar s, uma vez mais, com o sempre, abandonado,
O meu analista vinha ver-me uma vez p o r semana, aos domingos de
manh, ao pavilho quase sem vivalma (s ficava no seu posto uma vigilante
de urgncia). Andava sempre s voltas com ele, mas sem nunca mc sentir cul
pado, em torno da razo profunda do meu assassnio. Lembro-me (j a formti-
lara diante dele em Sainte-Anne) de lhe ter apresentado uma hiptese: o assas
snio de Fllne teria sido um suicdio por pessoa interposta, Ele ouvia-me
sem me aprovar nem desaprovar. Soube mais tarde pelo meu m dico que
o meu analista se encontrava periodicam ente com ele e o apoiava. J uma
vez. quando eu fora admitido nos servios de reanimao de Sainte-Anne, o
meu analista, que conseguira, custa de negociaes incrveis, visitar-me
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Mas isto no era ainda o pior. E aqui chego a qualquer coisa que ao
mesmo tempo terrivelmente determinada mas tambm extremamente singular,
('ertamente, vi\ i a minha hospitalizao como sempre vivera as minhas hospi
talizaes anteriores: com o um refgio quase absoluto contra as angstias do
m undo exterior. Estaca ali com o num a fortaleza, fechado na sua solido por
muros insondw is: os da minha angstia, e com o sair deles? O meu mdlctt
sentia-o muito bem e, com preendendo, entrac a assim no meu jogo: no jogo da
minha angstia, e ficava ele prprio, por contgio, angustiado, tal como os
enfermeiros a quem eu no paraca de com unicar a minha angstia. Lembro
-me at de um dia em que fiz ao meu m dico a terrvel pergunta pensando
muito precisamente num a amiga cuja base do pescoo contemplara um dia
com pavor interrogando-me com angstia: e se eu recomeasse (a estrangular
uma mullter)? O meu mdico sossegara-me: claro tjue no!, sem me dar mais
nenhum a razo. Mas soube mais tarde tjue as enfermeiras tinham medo, depois
do cair da noite, de entrar sozinhas ik ) meu quarto, m edo de t]ue eu me ati
rasse a elas e as estrangulasse... com o se tivessem captado o meu terrvel
desejo e m o lc id o em angstia, ,Se falo deste contgio, porque o encerra
mento o prococa dc m odo inevitvel. angstia do paciente, do mdico, dos
enfermeiros e dos amigcjs dc \ isita comunica-se e comunicou-se to bem,
redobrando de efeitos, que o meu mdico se \ iu \ rias vezes em situao cr
tica, seno relatie amente aos seus enfermeiros (nunca me falou disso) pelo
menos diante dos meus amigos, que deram por isso. Com o cjue o mdico
pode ento escapar a este jogo de angstias mltiplas, em que ele ao mesmo
tempo causa e consequncia? Condio extraordinariamente difcil, que s se
pode resolver por meio de compromissos. O meu mdico soube descobri-los.
mas no sem efeitos secundrios.
Creio pcjder situar exactamente o lugar do principal destes efeitos secun
drios: diz respeito natureza ao mesmo tem po objectiva e fantasmtica da
fortaleza que eu vi\ ia com o proteco e refgio contra a angstia do c o n
tacto impossvel com o m undo exterior. Ora esse m undo exterior no existia
apenas no meu fantasma: era-me de facto trazido todos os dias pelos meus
amigos que chegavam do m undo exterior e a ele voltavam todos os dias. Vou
dar um nico exemplo: Eoucault veio pessoalmente visitar-me duas vezes, e
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lembro-me que era duas ocasies falmos de tudo o que se pa-^aN a no mundo
intelectual, com o eu fazia praticamente com tacini os meus amigos, das purso-
nagens que o povoam, dos seus projectos, obras c contiuos, Pa sjtua.lo pol
tica. Eu era ento perfeitamene normal, cstae a pcrfeitamentc ,io corrente de
tudo, as minhas idias voltavam, dcv'oivia por \ezes com malicn, .i boLi ,i 1ou -
cault, que voltou para casa convencido de que eu esta', a h.rt.mtc bem \oaitra
ocasie), Cjuando ele me foi ver, eu estava na companhi.t do padre Breton
Instaurou-se ento entre eles, sob a minha prpria arbitragem e egide, uma
extraordinria troca de idias e de experincias que nunca na minri.i \ ida
cseiuecerei. Foucault 1'ahna das suas incestigaes sobre os oaiores do. sristia
nismo do sculo I\ , c fazia a seguinte obsercao da maior importncia se ,i
Igreja colocara sempre muito alto o amor, destonfiara sempre \i\a m e n ie da
amizade, tiuc os filsofos clssicos e sobretucU) Epicuro colocaram pelo c o n
trrio no centro da sua tica concreta, Naturalmentc, clc. homossexual, no
podia [deixar de| aproximar a repulsa da Igreja pela amizade da repulsa, quer
elizer (outra ambivalncia ainda), da predileco de todo o aparelho da igreja
e da r ida monstica pela homossexualidade. Foi ento tjue, de maneira assom-
br)sa. o padre Breton interreio, no para lhe dar referncias teolgicas, mas
para lhe com unicar a sua experincia pessoal. 'Fendo nascido sem conhecer os
pais, recolhido pelo padre C[ue, notando a sua vir acidade de esprito, o inscre
vera no seminrio de Agen, tinha feito ;i uma parte dos seus estudos secund
rios. Filtrou aos quinze anos no noviciado, ler ando por l a r itht clieia da aus
eridade de um monge impessoalidade sem mim (no sendo Cristo uma
pessoa, mas um impessoal sulrsumido no \crbo). r ida composta de obserr n-
cias estritas. Por obedincia, esquecia o seu eu [no| superior: regra pensara
por ns. e porque pensaram por ns tiue todo o pensam ento pessoal se torna
um pecado de orgullio. S mais tarde, dada a eroluco dos costumes, se p ro
curou respeitar um bocadinlio mais, a faror daquilo a que se chamar a o perso
nalismo cristo, a originalidade de cada um. mas ainda assim uma medida
limitadssima! .Neste sentido. Breton, retomando uma expresso de foucault,
dizia que o hom em era uma descoberta muito recente nos conr entos. Breton
no ter e um nico amigo na sua \ ida. contm uattdo a arntzade a ser suspeita
por degenerar em amizade particular, forma la n a r de homossexualidade:
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F I I r R o M l I I o / /:' M P O
Mas antes, gostaria de insistir nos danos que pro\oca. por si so, a institui
o psiquitrica. E um facto bem conhecido que numerosos (.iocnte^. atingidos
por uma crise aguda, portanto transitria, c que so lanado^ compulsiva e
como que mecanicam ente no internamenut psiquitrico, podem tornar-se. por
aco das drogas e do cnclausuramento, crtnicos . \ erdadeiro'' doentes m en
tais, incapazes de voltarem a sair do recinto do hospital Fste efeito e bem
conhecido por todos os C[ue tentam eliminar o mecanismo da hospitaliz.ico e
lhe preferem intervenes ambulatrias, ou o hospital de dra. ou o dispens
rio, etc. Tal o sentido profundo da reforma realizada lou antes, adiogaclai em
Itlia pt)r Basaglia. O que Basaglia queria era presen ar tanto os casos agutlos
como os tornados crnicos dos malefcios mecnicos do internamento
fechando os hospitais psiquitricos e confiando os doentes ou a clnicas, ou a
famlias vaduntrias. Naturalmente, esta reforma s podia ser concehicla num
perodo de grandes movimentos populares, com o auxlio dos sindicatos e dos
partidos operrios. Em Frana dificilmente concebvel, dadas as constantes
de uma mentalidade repressiva. Na prpria Itlia, com o se sabe, a reforma
Basaglia foi literalmente um fracasso. Que fazer pois para arrancar os doentes
,io inferno das determinaes conjuntas de todos os AlH em causa?
Mas o que j menos sabido, menos conhecido, so os efeitos do interna
mento psiquitrico sobre os prprios mdicos, sobre a sua representao dos seus
doentes e das angtstias dos seus doentes. impressionante que. no meu caso.
o mdico mais bem intencionado do m undo e tambm o mais bem armado para
.1 escuta do seu paciente tenha projcctado sobre ele (eu) a sua prpria angstia
da fortaleza total, e em prte se tenha enganado, por fora dessa projeco e con
fuso. sobre o c|ue se passava efectivamente em mim. No era tanto o mundo exte
rior cjue fixava e provocava a minha angstia mas o intenso terror de l estar h'k
abandonado, de ser impotente para resolv er fosse que dificuldade fosse, a minha
impotncia para ser, para muito simplesmente existir. Ao passo que a ateno do
meu mdico se fixavai assim numa angstia determinada que ele me atribua mais
d(.) que a observava em mim, deslocando-a assim do seu ohjecto. ou antes, da
.lusncia de qualcjuer ohjecto. da perda de qualquer ohjecto sobre a figurao
c a representao da sua prpria angstia projectada em mim. desenvolvia-se em
mim uma dialctica completamente diferente: a do luto.
28"
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prodigiosa regresso que nela \ ivia, a velha compulso inaugural, tantas \ezes
repetida (cf. o episdio da carabina), sob tantas form as, de tjuc eu no era mais
do que uma existncia de artifcios e de imposturas, cjtier dizer, afinal nada de
autntico, portanto nada de verdadeiro nem de real. li de que a morte e'ta\ a
inscrita em mim desde os primrdios: a morte desse l.ouis. morto atr.is rie
mim, c[Lie o olhar da minha me fixava atravs de mim, condettam.!o-me a essa
morte c|ue ele conhecera no cu alto de Verdun e que ela no parae a de repetir
compulsivamente na sua alma e na repulsa desse desejo que eu no parara de
realizar.
Foi ento que compreendi (e acabo de o com preender a partir das pala
vras to elarivident.es da minha amiga) que o luto que eu vivia de Hlne. no
era desde a m orte (a destruio de Hlne) que o vivia e trabalhava sobre ele
mas desde sempre. De facto. sempre estivera de luto jsor mim prprio, pela
minha prpria morte po r me e mulheres interpostas. Como prova tangv el tie
no existir, quisera desesjacradamcnte destruir todas as provas da minha exis
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i o r I s T H l S V K
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XXI I I
m velho amigo mdico que nos conhecia ha\ ia muito, a Hclcne c a mim.
U Mostro-lhe este texto. E muito naturalmente favo-lhe a pergunta;
Que SC ter passado ento nesse domingo J6 de Novembro entre mim e
Hlne, para acabar naquele assassnio medonho?
Eis a sua resposta, exactamente tal com o ma deu;
Eu diria tjue se verificou uma sobreposio de factos puram ente aciden
tais quanto a uns, no fortuitos quanto aos outros, cuja conjuno era total
mente imprevisvel e teria podido ser muito facilmente evitada sem grande
esforo justamente se...
A meu ver trs factos dom inam a situao:
1. Por um lado, como comprovaram os trs mdicos especialistas, tu
estavas em estado de dem ncia" e portanto de irresponsabilidade: confuso
mental, onirismo, ficaste totalmente inconsciente antes e durante o acto, na
base de uma crise de melancolia aguda, logo. no responsv el pelos teus actos.
Da a inimputahilidade, regulamentar em tais casos.
2 . 'SV, p o r outro lado. houve uma coisa que impressionou no local os
investigadores da polcia: no havia o m enor sinal de desordem nem ntts vos
sos dois quartos, nem na tua cama. nem nas roupas de Hlne.
' Fste capimlo, niimeniclo a seguir aos oucr(,)s. tora igualnunie inritulado pelo auto r iDifiroce-
Lencia. (.V, d o fnw cs)
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O que tambm se pode dizer que tu, que lhe deste sem dvida a morte
tah ez querendo apenas massaj-la com cuidado, uma vez que no se observ i .
cjLialciuer sinal externo de estrangulamento, ters querido realizar o teu desc
de m orte e, ao mesnitt tempo que lhe prestavas o imenso serv io de a mat
em lugar dela (porque ela era realmentc incapaz de se matar), ters ao mesni
tem po ciuerido realizar inconscientemente o teu prprio desejo de autodc'
truio atravs da morte da pessoa que mais acreditav a em ti, para ficares ber.
certo de no seres seno essa personagem de artifcios e de imposturas t|u.
sempre te obsidiou. De facto a m elhor prova que podem os dar-nos de n.
existir destruirmo-nos a ns prprios destruindo aquela que nos ama .
acima de tudo acredita na nossa e x istn c ia .
Sei que h-de haver sempre pessoas, e at amigos, c]ue diro: a Hln.
era a doena dele. ele matou a sua doena. Hle matou-a porque ela lhe tornav.
a Vida impossvel. Ele matou-a porque a odiav a, etc. Ou, mais elaboradamente
ele matou-a porque vivia no fantasma da sua prpria autodestruio e porqu.
essa autodestruio passava "logicam ente" pela destruio da sua obra, da -i:.
celebridade, do seu analista, e por fim de Hlne que resumia toda a sua v id..
Ora o c|ue extremamente incm odo neste tipo de raciocnio (mui;
difundido porque muito tranquilizador com ele temos de facto unt.
"causa" indubitvel) o p o rq u e que introduz nisto uma necessidade sc:t
apelo, sem levar minimamente em conta a acumulao dos elementos aleat
rios objectivos.
Ora todos ns temos, todos ns, fantasmas inconscientes agressivos, u.
mesmo de homicdio, de assassnio. Se todos os que alimentam dentro dc '
tais fantasmas passassem ao acto, tornar-nos-amos todos, necessariamente
percebes?, todos assassinos. Ora a imensa maioria das pessoas pode perfeit.
mente viver com os seus fantasmas incluindo os de homicdio, sem nunca p.o
sar ao acto para os realizar.
Aqueles que dizem: ele matou-a p o rq u e j no podia suport-la, porqu-.
mesmo inconscientemente, desejava desembaraar-se dela. no compreendei'
nada do que se ptissou. ou no se do conta do que dizem. Se aplicassem .i '
prprios esta lgica, eles que alimentam a mesma lgica tambm neles pr
prios. fantasmas de agresso e de assassnio (e cjuem no os alimentai'), qt,.
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o J' l I l R O M r / / o 7 7; \l R O
S uma palavra mais: que aqueles que pensam saber e dizer mais a este
respeito no receiem diz-lo. J no podem seno ajudar-me a viver.
L.A.
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os E4CTOS
19 6
om o fui eu que organizei tudo. rnais \ale cjue me apresente sem mais
C delongas.
Chamo-me Pierrc Bergcr. No \erdade. fsse o nome do meu av materno,
que morreu de cansao em !93<S. depois de ter dado cabo da vida nas m o n ta
nhas da Arglia, em pleno mato, sozinho com a mulher e as duas filhas, como
guarda florestal contratado pela administrao das Aguas e Florestas da poca.
Nasci com tiuatro anos de idade na casa florestal do Bois de Boulogne,
nas alturas de Argel. Havia, alm dos caealos e dos ces, um grande tanque
com peixes, pinheiros, gigantescos eucaliptos cujas grandes folhas de casca eu
apanhava quando vinha o Inxerno, limtteiros. amendoeiras, laranjeiras, trange-
rineiras, e sobretudo nespereiras. que eram o meu regalo. A minha tia. ento
solteira, subia s rvores como uma cabra, e dava-me os melhores frutos. Eu
estava um bocadinho apaixonado por ela. Cm dia. houve um grande medo
Porque tnhamos tambm abelhas, criadas po r um velho que se aproximava
delas sem vu. e lhes falava. Ora. por uma razo desconhecida, talvez por ele
estar a resmungar, as abelhas lanaram-se sobre o meu av . que correu a m er
gulhar no tanque, para grande terror dos peixes. .Mas a vida era sossegada
naquelas alturas. Via-se o mar largo muito ao longe, e eu olhava para os barcos
que chegavam de Frana. Cm deles chamava-se Chenies-Roux. Durante muito
temjso admirou-me o facto de no se lhe verem as rodas '.
\ 'c r n o i a p. 0.
30,3
/ o r I s 1 / V H i s s /: K
304
o t- A C I O S
que chega\a das montanhas, e discutia coisas srias. Ainda falava dele no Mor-
van, mais tarde, depois de se reformar: esse era um hom em que fazia a sua
obrigao.
O meu av e a minha av tinham os dois os mesmos olhos: azuis, e a
mesma teimosia. Quanto ao resto... O meu a\ (') era pequeno e macio, passava
o tempo a bramar contra tudo e a tossir. Xinguem lhe liga\ a. minha a^' era
alta e esbelta (sempre me pareceu, de longe, uma rapariga i. calava-se. pensava,
compadecia-se (lembro-me das suas pala\ ras quando lhe li um dia V E spoir de
Malraux. onde se contam as atribulaes dos republicanos espanhis; pobres
crianas!) e, quando era preciso, sabia ser deterntinada. Xo princpio do
sculo, ejuando eclodiu na Arglia a insurreio popular armada dita de ,\lar-
gueritte, os acontecimentos deram-se numas montanhas que no ficaram
longe da casa florestal. O meu av no estava nessa noitc: andava cm servio
por fora, com o sempre. A minha a\ ) estava sozinha em casa com as suas duas
filhas, de trs e cinco anos. Era muito estimada pelos rabes locais. Mas no
tinha iluses, sabia cjue uma insurreio uma insurreio, e ejue o pior pode
ento suceder. Ficou de vela, com uma espingarda e trs cartuchos: no eram
para os rabes. A noite passou, e finalmente rompeu o dia. O meu av chegou
pouco depois, praguejando contra os insurrectos com quem se encontrara:
desgraados, vo arranjar maneira de os matarem.
Portanto nasci ali, nas alturas de Argel, na casa florestal de final de car
reira: um pouco de paz. Foi numa noite de Outubro de 1918. pelas cinco horas
da manh, o meu av saiu a cavalo a caminho da cidade e foi buscar uma
mdica russa cujo nom e esqueci, mas que disse, segundo parece, pelo tama
nho da cabea, que eu tinha a sorte de vir um dia a ter coisas l dentro, v-se-
-l saber, disparates pelo menos teria com certeza. O meu pai estava ento na
frente de Verdun, na artilharia pesada, era tenente. Regressara frente de c o m
bate depois de uma licena durante a qual visitara a minha me, ento noiva
do irmo dele, Louis, que acabava de m orrer em \rd u n . no avio que o levava
com o observador. O meu pai pensara ser seu dever substituir o irmo junto da
minha me, que lhe deu t> sim que se impunha. H que se com preender a
situao. Os casamentos faziam-se de qualquer m odo entre as famlias, a opi
nio dos filhos pouco contava. Tudo fora arranjado pela me do meu pai
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/. o V l s -i /. 7 77 7' S ,S l. R
que. casada cia tambm com um hom em das guas e Florestas, sem nada de
seu mas funcionrio, distinguira na minha me a jovem modesta, pura e traba
lhadora que convinha ao seu primeiro filho, querido c predilecto, e j adm i
tido na cole Normale Suprieure de Saint-Cloud. Louis era o preferido, por
uma razo simples, c cpie no ha\ ia meios para pagar os estudos a dois rapazes,
portanto fora necessrio escolher, c o escolhido fora ele, por razes ligadas
ideia que a minha av paterna fazia das Fscolas. Mas. em compensao, o meu
pai tivera que comear a trabalhar aos treze anos: de incio paquete num
banco, trepara em seguida no emprego, pois era inteligente embetra sem baga
gem escolar. Ele costumava lembrar-me muitas vezes, como exemplo do rigor
seco da sua me. que no perdia de vista um vintm nem o futuro, o episdio
da Eachoda: assim que se tornara conhecida a ameaa de guerra, mandara o
meu pai catm toda a urgncia comprar quilos de feijo seco. supremo recurso
contn! a escassez alimentar, e retom ando assim, tal\'cz sem o saber, a mais
antiga tradio dos povos miserveis da Amrica I.atina, da Espanha e da Sic-
lia. Os feijes, contanto que sejam protegidos dos insectos, conservam-se inde
finidamente, mesmo em tempo de guerra. ,A mesma av, no o esqueci.
ofereceu-me um dia uma ratiueie, enquanto vamos d;i sua varanda o desfile
das tropas, no l-r de julho, ao longo dos cais de .Krgel.
O meu pai levava-me com frequncia ao estdio de futebol, onde se dis-
putac'am ento partidas picas, entre franceses, ou entre franceses e rabes.
E as coisas aqueciam a valer. Foi l ejue ou\ i o primeiro tiro da minha vida.
H om e um m om ento de pnico, mas o jogo continuou, uma vez que o rbitro
no fora ferido () meu pai levar a-me tambm, mas com a minha me, s corri
das de cavalos onde entrava gratuitamente, conhecendo do banco onde traba
lhava um porteiro cjue o deixava passar clisfaradamente. Apostava. Natural
mente quase nada. e perdia sempre, mas ficava satisfeito, ns tambm, e
\ iam-se lindas senhoras, que o meu pai contemplava com uma complacncia
um pouco excessiva a avaliar pelos silncios da minha me. que tinha os seus
motivos de t|ueixa. O meu pai levou-me s uma vez, mas sozinho, ao tiro de
espingarda, numa grande carreira militar, que ressoava dos tiros repetidos co n
tra alvos distantes. Era muito diferente do tiro de presso de ar das feiras, a que
eu estava habituado, tendo descoberto a maneira de acertar no ovo que dana
.^06
o ,s r A c 1 o ,s
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L O V I S .4 / r H l ,V S /; K
silncio tudo o que trazia comigo. Ele calou-se. Confesso que uma coisa cjue
ainda hoje me faz tremer.
Por comparao com este incidente, a questo do Bois, apesar de tal
com o a bofetada me ter apanhado de surpresa, no era grande coisa. Estva
mos a gozar o sol e a relva, a minha me, a minha irm. eu e uma amiga da
m inha me acom panhada dos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariguinha.
Tambm ento, po r d c aquela palha, dei po r mim a chamar de repente Tor-
tecuisse rapariguinha, expresso que lera num livro com o ofensiva, e que
lhe infligi sem razo aparente. O caso foi encerrado por uma troca de descul
pas entre mes. Eu estava espantado po r ser possvel ter-se idias sem as ter.
Em contrapartida, o que me impressionou para toda a vida foi um inci
dente ocorrido mais tarde, em jMarselha, quando com a minha me, metendo
p o r uma rua leprosa mas larga perto cia place Garibaldi, vimos no cho uma
m ulher que outra m ulher arrastava pelos cabelos cobrindo-a de insultos vio
lentos. Havia tambm um hom em , ali, imvel, saboreando a cena, e repetindo:
cuidado, ela tem um revlver. A minha me e eu fingimos nada ter visto nem
ouvido. J era bastante ficar cada um de ns com aquela imagem para si e
arranjar-se com ela o m elhor que pudesse. Eu no me sa l muito bem.
Depois da escola primria, fiz a sixim e no liceu de Argel, de que co n
servo uma recordao apenas: a de um magnfico \bisin branco descapotvel
c]ue esperava, com o motorista fardado e de bon, um dos meus condiscpulos
que no me falava. Lembro-me tambm de uma visita a casa de um propriet
rio rabe que o meu pai conhecia, e que nos deu a comer, antes do ch, uns
doces de abbora que nunca mais voltei a descobrir. O meu pai enfiava-nos
igualmente no velho Citroen de um amigo seu. que nos levava s montanhas,
at ao lugar onde, muitos anos antes, o meu av salvara da m orte uma equipa
sueca, segundo julgo, que se aventurara a sair durante uma tempestade de neve
que no permitia manter qualquer sentido de orientao. O meu av. que
detestava (como alis o meu pai) as condecoraes, recebera por este feito de
armas a cruz de guerra, com citao e palmas de reforo. Guardei todo este
material depois da m orte da minha av.
A casa florestal do Bois de Boulogne ficou na minha m em ria pela sua
situao excepcional: dominava Argel inteira, a baa e o mar, que se via at ao
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o s A c 7 n s
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o s 1 .4 4 / O S
com couves. Era ura belo espectcuU). o meu pai comia em silncio, seguro cia
sua fora, e nc)s trc^cvanns comentrios sobre <4S mritos comparados e d e si
guais dos regimes com carne e vegetariano, discretamente e para bom entende-
dor... Mas o meu pai no queria saber, e partia a sua carne em sangue com uma
faca de alto l com ela.
O meu pai tinha violncias c]ue me aterravam, ( crta noite em c|ue os vizi
nhos do lado estavam a cantar, pegou num caldeiro e numa concha, foi para
a varanda e fez uma algazarra terrvel, que nos aterrttu a todos, mas ps fim s
cantigas. C) meu pai tinha tambm, noite, pesadelos, que descmbocawim cm
longos uivos atrozes. No se dava conta do facto. e quandet acordava, dizia no
SC lembrar. A minha me sacudia-o para o fazer parar. No diziam nada um ao
outro, nada tjue pudesse levar a pensar cjue se amavam. Mas recordo c]ue uma
noite ouvi o meu pai, t]ue devia estar com a minha me nos braos, na cama
do cjuarto deles, murmurar-lhe: minha coisa s minha,.., o que me fez estre
mecer o corao. Recordo-me tambm de dois outros episdios cjue me sur
preenderam. Um dia em que tnhamos voltado ao apartamento de .Argel,
depois de sair do navio que nos trouxera de Frana, na varanda, o meu pai
sentiu-se mal. Esta\a sentado numa cadeira, e caiu ao cho. A minha me teve
medo, e falou-lhe. Nunca lhe falava. Recordo-me tambm de uma noite no
comboio, quando amos a caminho do Morvan, e dessa vez foi a minha me
quem se sentiu mal. O meu pai fez-nos apear noite na estao de Chlons,
e fomos procura de um hotel que aceitasse receber-mrs. A minha me estava
muito mal. O meu pai falava com ela, cheio de inquietao. Nunca lhe falava.
H com o que um cheiro a morte nestas duas recordaes. Amavam-se po r
certo sem nunca se falarem, como as pessoas se calam beira da morte e do
mar. Mas conservando, apesar de tudo. entre eles meia dzia de palav ras tac-
teantes para se certificarem de cjue estavam de facto presentes. O problema era
deles. Mas a minha irm e eu pagmo-lo terrivelmente caro. S muito mais
tarde o compreendi.
Uma vez que estou a falar da minha irm. lembro-me tambm de um inci
dente na zona alta de Argel, onde descobramos, se os procurssemos, p e q u e
nos ciclames debaixo dos arbustos. Estvamos ento num caminbo de terra, e
avanvamos tranquilamente, quando apareceu um jovem de bicicleta. No
,S 1 1
/, o ! / ,S .1 /. T II I ,s s i:
sei que manobra fez, mas atirou a minha irm ao cho. O meu pai lanou-se
sobre ele, e julguei que ia estrangul-lo. A minha me interps-se. A minha
irm esta\a ferida, roltm os pressa para casa, trouxe apesar de tudo alguns
ciciames entre os dedos, mas perdera todo o interesse pelas flores. Esta violn
cia do meu pai, ciual a minha me era, na aparncia pelo menos, completa
mente indiferente, enquanto passava o tem po a queixar-se do martrio da sua
vida, e do sacrifcio em que tivera que consentir, forada pelo meu pai. a aban
donar uma carreira de mestra-escola cjue a fazia feliz, parecia-me uma coisa
estranha: ele to seguro das suas atitudes, perdia a cabea de sbito sem conse
guir controlar a sua violncia, mas devo dizer que tudo se passava como se afi
nal tambm a controlasse, pois ciue se saa sempre bem. Tinha hciraka, e
tudo o que acontecia acabava por resultar em seu benefcio. Sabia abster-se
quando necessrio, foi o nico director de banco de Lyon a no aderir
Legio de Ptain entre 1940 e 1942, enquanto se encontrara na cidade, No se
contou entre os partidrios do general Juin, quando este tentou fazer com er
palha aos m arroquinos e, ainda que dilacerado nos seus sentimentos de pied-
-noir ', no se ops a De Gaulle qtiando ele optou pela independncia arge
lina. resmungou o mais que pde, mas ficou-se por a.
Soube pelos seus empregados, depois da sua morte, que o meu pai tinha
uma maneira muito especial de dirigir o banco, quando acedeu ao cargo de
director. Tinha, seno um princpio, pelo menos uma prtica: era calar-se ou
proferir pala\ ras absolutamente ininteligveis. Os seus subordinados no se
atreviam a dizer-lhe que no tinham percebido nada, iam-se embora e
arranjavam-se, cm geral muito bem. p o r si prprios, mas sempre a pergunta
rem-se se no se teriam enganado, o que os m antinha alerta. Nunca soube se
o meu pai utilizav^a este m todo deliberadamente ou no, porejue se servia
mais ou m enos dele tambm para connosco, mas, em contrapartida, quando
estava com os clientes ou os amigos, era de uma loquacidade imparvel, e per-
feitamente inteligvel. Estava sempre a gracejar, o que colocava os seus interlo
cutores numa posio de inferioridade e de fascnio, desconcertando-os. Tal
vez me tenha deixado um pouco desse gosto pela provocao. O meu pai
L itcralm cntc <'pc negro n o m e p o r qu e eram designado,'^ os co lo n o s franceses da Arglia. (A" d o 7.)
.4 1 2
o V f ,1 (. 7 O V
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o seu pai chefe de uma gare que fora suprimida (imaginem-se os gracejos
'Obre o arrendam ento da estao), com eou a explicar outro texto, sempre
cm ingls, mas com um m todo de dissecao indito. Distinguiu exacta-
mente quarenta e trs pontos de vista, a comear pelos mais clssicos, o
ponto de vista histrico, o ponto de \ ista geogrfico, para acabar nas disci
plinas menos frequentadas, como a ornitologia (cjue teve muito xito junto
do professctr apaixonado por a\es marinhas), a cozinha, a fragologia iver-
-se- dentro de m omentos porqu) e outros disparates. Branger surgiu e\ i-
dentemente a propsito da poesia, desencadeando o clssico furor.
Quanto a mim, quando fui apertado, tomei uma opo diferente. Prt)-
curei nos livros e na memria de um amigo hispanizante uma citao de um
monge do sculo x \ l, inquisidor calejado. Dom Gueranger, e introduzi-o
contendo a respirao no m om ento crtico, julgando ter o iu id o falar de
Branger, o professor preparava-se para a fria hahitual, e tive a maior difi
culdade do m undo para o fazer reconhecer o seu erro, garantindo-lhe que
Dom Gueranger nada tinha a ver com Branger, pois nascera dois ou trs
'ctilos antes e nunca fizera poesia. No fim do ano, pagou-nos uma rodada,
.1 sombra das rcores do part[ue, no bufete, havia barcos no lago, e raparigas
l dentro, perguntando-nos ns o que estariam elas ali a fazer, com aquele
alor.
Tambm com o velho Hours m antnham os relaes de desafio. Ele
ostumava, tjuando tinha que dizer alguma coisa em ingls, petr exemplo
Wellington, parar de falar, aproximar-se ckt cjuadro preto e. desculpando-ce
de no pronunciar a lngua inglesa, escrevia a palac ra cm questo no qua
dro, sublinhando-a. para que todos entendessem. Falava copiosamente. com
uma das mos apoiada na secretria, consultando com a outra, para s a b a r as
.iparncias. algumas vagas folhas que prova\ elmentc no continham quais
quer notas, e era impossvel det-lo... Dizia: j \ t)s disse que a Inglaterra era
uma ilha? e esperava a resposta que no aparecia. Do que tirava ento toda
a e,spcie de concluses. Depois da Guerra, disse-me um dia na presena de
Hlne, que militara na Resistncia, que esta teria sido absolutamente impos-
'\e l em Inglaterra, no p o r se tratar de uma ilha, mas porque, m orando
todos os ingleses em cottages, a clandestinidade se tornava impossvel para
L O l I S A !. I n r S S l: R
mundiais de tnis, mas demasiado indolente para fazer fosse o que fosse, e qi
veio a ser, para contrariar toda a gente, um dos jornalistas mais clebres l
imprensa francesa. Hours mal comeara a falar e j ele se abatia na carteir.; .
adormecia, para nosso grande gozo, uma vez que ressonava sonoramen:,
Todo o problema era ento para ns: por cjuanto tempo? porque o \c!:
Hours acabava sempre por dar por isso. Pnto aproximava-se com ps tk
do aluno adorm ecido e sacudia-o com o a uma rvore de fruto gritando: 1
Charpv! Chegmos, toca a sair do comboio! Charpy abria um olho, con^t"
vando o vnitro nunca se sabe fechado, e voltava a ack)rmecer. O vc!:
flours, considerando Cjue fizera j mais do que o seu dever, recomeav.
explicar-nos que a Inglaterra era uma ilha.
Ridos ns (excepto o poeta, e um rapaz que, sem avisar ningum, par:
um dia para Hspanha. nas Brigadas Internacionais, para l sc deixar m.,:.
como toda a gente) ramos nesse tem po mais ou menos monrquicos, cl:)-
era de Chambrillon, um esteta brilhante, e de Parain, cujo pai era fabricante .
fitas para chapus em Saint-tienne, t|ue tocava admiravelmente piano c ei.:
apaixonado por uma m ulher que ainda no encontrara, mas sentia-se que o
encontrar, chidas as idias que lhe enchiam cabea e corao. Tratava-se de .
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o V /' A ( / O V
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parte de Parain, a quem eu disse no ter qualquer mrito, uma r ez que o i'
texto fora escrito dc antemo. Por fim, deste tem po que conservo a mem
de uma vocao religiosa possrel, mas falhada, e de uma certa d ispov,
para a eloquncia eclesistica.
coisa no podia ter grande influencia na questo, mas acresccnti=
nos Dttmbes, no havia raparigas, quando durante o resto do tem po tropev-
mos nelas em todo o lado. No s sob a aparncia de Mlle Molino, que c'..
fora de causa disputar a Bernard (nome do nttsso poeta), mas nt) parcpic
dins. ruas e igualmente no famoso caf onde tive. como todo o novo recri.:
que pagar o meu quinho de cerveja e discursos. O discurso que fiz ficvi.
memtria de alguns colegas meus. Eles aterravam-nos, estavam ali para i "
ns tremamos dando-lhes desse m odo todo o prazer desejado. A hora c hc.
por fim. Lembro-me de ter com eado assim: Cozinho cozinho coz
cozinho, dizia o mido. E a me: po r tiue cjtie no fizeste chichi antc'
entrar? A seguir a esta entrada decisiva, o resto j no tinha importncl.i '
tava-se, creio eu. de u m p a stic h e de Valry em que entre outras coisas eu
No depus a minha espada por d c aciuela palha, mas sem dizer pvr,
nem tiue espada era a espada, nem que palha era a palha. Fosse como r> -
inteno nem a todos escapou, o que me foi ciaramente dado a ente
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foi para l fazer, mas feria sido com certeza para fugir a Ptain. Havia por fim
urna figura encorpada cjue s pensa\a em mdhercs. Acabara por descobrir
uma. que se deitava juntameme com os ca\alos e fazia amor na palha, e ele
sustentava que isso valia todo o ouro do mundo, pois ela no estava com ceri
mnias, queria sempre mais. e ele chegou mesmo a arranjar-lhe um quarto de
hotel, era caro mas mais prtico, excejsto cjuando o \im o s r oltar para junto de
ns a dizer que a rapariga cra uma cabra porque lhe pregara um esquenta-
mento. Na altura, no era coisa que se curasse com excessi\a facilidade. Este
episdio confirmou-me na ideia que era preciso desconfiar das mulheres,
sobretudo quando dormiam na palha dos ca\ aios
Como o tempo passasse e a guerra se irrolongasse sem a\anar. isergunta-
ram-nos se nos oferecamos com o xoluntrios para a a\ao. Bchard e os
outros disseram que sim, Eu tive m edo c adocei tiurante o tempo necessrio
para me esquivar opo. 'Eive febre que bastasse para o conseguir, e julgo ate
que esfregava conscienciosamente o term m etro para obter o rcstiltado dese
jado. () mdico passou, \ iu a minha curva de temperaturas e no insistiu.
Fiquei soz.inho com Courbon. que preferia a equitao aciao. .Vias a cthsa
perdera a graa.
que restava de ns foi m andado para a Bretanha, para Vnnes, a fim de
completarmos a instruo. Deparei a com uma nova companhia, menos
hom ognea e menos dicertida. Agora trabalhavamos a valer: sadas nocturnas,
caa de espies (descobrimos um dia, rasgados, papis pertencentes a espa-
nhtis em fuga), tiros fictcios em espaos balizados, marclias foradas, exames
escritos, etc.
Entretanto, chegaram os refugiados, com as suas miser\ei> bagagens,
E em breve as tropas alems se aproximaram, enquanto ns no.s preparr amos
para defender o reduto breto de Paul Rem aud. que largar a entretanto para
Bordeaux com o g o rerno em debandada. Vannes foi proclamada cidade
aberta, e ns espermos a p firme os alemes, m ontando guarda volta dt)
nosso quartel para impedirmos os soldados refugiados de voltarem para casa
com o desertores. Eram as ordens do general Eebleu, tiue aplicara assim um
plano bem reflectido, destinado a entregar-nos ao exrcito alemo, em virtude
do princpio: mais vale, c mais seguro politicamente, que os hom ens sigam
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para iim cativeiro alemo do que \ o para o Sul de Frana onde Fariam sab,
l o qu. dar ouvidos a De Gaulle por exemplo. Raciocnio irrepreen.M\.
eficaz.
Os alemes chegaram em side-cars. prestaram-nos as honras devida' .
vencidos, mostraram-se corteses, prometeram iibertar-nos dentro de d o i' .
e preveniram-nos caridosamente de que se fugssemos, haveria reprc'..
sobre as nossas famlias uma vez que o seu poder chegava a toda a p.a
Alguns fizeram orelhas moucas e puseram-se ao fresco, sem escrpulos !
tava um trajo civil e meia dzia de francos. Foi de resto o tiuc fez o mei; :
antigo prisioneiro de It, ciue conhecia a cantiga e no se deixou enib..
Arranjou, no sei como, um trajo ci\ il, roubou uma bicicleta, e seguiu tra,r,.
lamente o seu caminho, dando-se at ao luxo de atrat essar o l.oire. a preu
de ir mijar na outra margem (sou canhoto, senhor oficiaF>), c um belo dia .
receu mulher completamentc siderada: mas tu ainda nos vais arranjar
plicaes. O meu tio era de earcter suficientemente ruim para ficar d c ',.
sado. Morreu mais tarde, depois de criar a famlia e de atormentar a mui
mas isso outra histria.
Quanto a ns. os alemes transportaram-nos atenciosamente, par.i
perm itir visit-los antes da partida, para diversos locais, chamados carnpi-
prisioneiros mas cheios de correntes de ar. ainda na Bretanha. Lembro-nu
um desses campos onde bastava apanhar a ambulncia para se ficar c fora
outro onde bastava uma pessoa descer do com boio e perder-se na aldciaz::'
por detrs da estao para reconc]uistar a liberdade. Mas havia o problem..
desero e a promessa de fazermos tudo respeitando as regras. Alis O' .
mes tinham-me apreendido uma pequena Kodak, que o meu pai me d
mas naturalmente era para a guardarem em lugar seguro antes de ma deva
rem. Podamos escrever. Tudo parecia correr bem. Bastava esperar.
Entretanto, tnhamos j feito os exames escritos regulamentares dos f.
O primeiro classificado foi o padre Dubarle, Como no concurso geral a:
no com o no concurso da Feole Normale. onde ficara cm sexto lugar, creic ;
em Julho de 1939. tendo tido 19 em latim, nada menos, e 3 em grego, que r
celire me perdoe, e de ter feito um a exposio filosfica sobre a causalid.:
eficiente c|ue no tinha a httnra de conheer. que agradou boa alma que
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concentrao, mas ns tambm no. e fosse com o fosse eles sempre estacaiv,
em m elhor posio do cjue ns para o que desse e viesse.
Acabmos por chegar a uma gare sem nome. no meio da charneca con-^
tantemente varrida pela c h m a e pelo vento. Mandaram-nos apear e pusemo-
-nos a caminho, sob a ameaa dos chicotes e das espingardas, ao longo de qua
renta cjuilmetros. Numerosos camaradas ficaram pelo caminho, mas, de tiir.
m odo geral, os alemes no os lic[uidaram. Mandaram \ ir cavalos para os le\ a
rem. Lembro-me que para o que desse e viesse, e tendo presente o dizer dc
Goethc, surripiara uma espcie de impermevel britnico de oleado que
pusera por baixo da camisa, a fim de qtie os alemes mo ntt confiscassem. 1 1/
os meus ejuarenta cjuikxmetros com aquela coisa em cima da pele, escusadi
ser dizer que transpirei um bom bocadtj, e fiquei com medtt. ao chegar
tenda, de apanhar no mnimo uma constipao, mas nada disso, e de resto ni
dia seguinte os alemes confiscaram-me a minha pseudo-camisa, declarandi
que lhes podia ser til. Acho que sim. .A partir da, habituei-me chuva, e de--
cobri que uma pessoa pode molhar-se sem se constipar.
.A noite na tenda foi inacreditwl, ITnhamos fome. sede, mas acima dc
tudo estram os estoirados. e camos no sono de tal maneira que no di.i
seguinte tiw ram que nos puxar pelos jss para nos acordar, a fim de sermo^
submetidos aos exames de controlo do catiw iro alemo. .Mas eu tinha apren
dido ciue os hom ens se aquecem uns aos outros, principalmente quando se
sentem infelizes e fatigados, e que, apertados uns contra os outros, as coisa-
acabam por se arranjar.
.Mas no para toda a gente. O nosso campo confinava com um outro
campo, onde r amos vaguear seres esfaimados. t|ue deviam ter vindo do lestc
da Polnia, uma vez que falavam russo, no se atreviam a aproximar-se do-
arames farpados electrificados. e ento n )S atirvamos-lhes um bocado de
po, algumas roupas, e algumas palavras que sabamos perfeitamente que ele-
no perceberiam. mas no interessava, sempre lhes fazia bem a eles e bem a
ns, ficvamos menos ss na nossa misria.
Depois, fomos distribudos p o r com andos separados. Tive direito, junta
mente com alguns estudantes e trezentos camponeses e pequeno-burgueses, a
um campo especial, porque se tratava de escavar reservatrios subterrneo-
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que ela vivesse, e tratei de que isso fosse possirel. se ela estivesse de acordo.
Fugiriamos os d(tis num barco, ao cair da noite, e fariamos am or no alto mar,
na condio de no haver vento, mas apenas um bocadinho de brisa garantindo
o fresco e o prazer. No tive tempo de terminar esta obra-prima, onde o Girau-
doux dos ourios tinha a sua parte, porque adoeei scriamente: dos rins, ao que
parece, segundo o mdico francs do campo, um liomem do norte, altivo e
competente, que explicou aos alemes que o caso no era para brincadeiras,
tinham de me e n v ia r de urgncia para o hospital central do campo. Chegou
uma ambulncia branca, e pela primeirti vez fui transportado ciewigar. ao longo
de quilmetros de terra desolada, a caminho cio campo de Sehleswig. Dei
entrada no hospital, onde fui bem assistido por um mdico alemo cansado
que, ao cabo de quinze dias. me declarou curado e me m andou \o ltar para o
campo. Mas tratava-se agora do campo central. l'm mundo. Os prisioneiros
polacos, que tinham sido os primeiros a chegar, ocupavam todos os postos-
-chave, e uma pequena guerra opunha os franceses, os belgtts. os sr\ ios a esses
polacos, que acabaram po r abrir mo de alguns postos. Fiquei cm condites de
trabalhar no exterior, descarregar carvo, c a\ar trincheiras, fazer jardinagem,
antes de penetrar nos lugares do campo: na enfermaria onde reinava o mdico
que me m andara para o hospital, c um proftico brejeiro, que jsassava o tempo
a m andar tabletes de chocolate s mulheres ucranianas do campo fronteiro para
que elas de longe lhe mostrassem as coxas abertas. Con\erti-m e assim em
enfermeiro sem nunca o ter sido, e tratava de toda a espcie de doentes. \ i
assim m orrer um pobre canonetista parisiense com uma gangrena provocada
por uma operao a cu aberto praticada por um jo\ em mdico nazi alemo
que queria adquirir experincia. A maior parte dos meus doentes eram-no por
fingimento. Emagreciam por meio de jejuns a fim de serem considerados como
sofrendo de uma lcera de estttmago p o r meitj de uma radiografia tirada depois
de terem engolido um pedao de fio com uma bolinha de prata de chocolate
amarrada na ponta. A coisa nem sempre resulta^ a. Fu tentei, mas em vo. Tentei
fazer-me reformar com o enfermeiro, pedindo que me enviassem certos pajsis
que, como p o r acaso, descobriria diante de um guarda ao abrir uma e n c o
menda. No tive xito, porque me tinha esquecido de tirar da minha caderneta
militar os dados que provavam que fora aluno oficial da reserva.
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a Mia solido: cada um por si, com a sua terra, separado dos outros, mas domi
nado pelos grandes, inclusivamente nas cooperaiix as e nos siiulicatos campotie-
ses. No foi o que se passou depois da Guerra com os jovens agricultores, enqiur
drados pelas organizaes catlicas, que alterou fosse no cjue fosse esta sittiao
continuam a ser os grandes cjue dom inam e ditam a lei aos mdios, aos petiuenos
e aos pobres. Os camponeses no foram educados pelo capitalismo industrial
como o foram os operrios fabris, concentrados no local de trabalho, submeti
dos disciplina da diviso e da organizao do trabalho, explorados rigida
mente, e obrigados a organizarem-se luz do dia para se defenderem. Permane
cem isolados, cada um para o seu lado, e no conseguem reconhecer os seus
interesses comuns. So uma presa de antemo disponvel para o Estado burgus,
que os pou p a (impostos quase inexistentes, crditos, etc.) e os tem assim sua
merc para os conxerter em dcil clientela eleitoral. So um dos elementos dessa
barreira persistente cuja existncia foi um dia reconhecida por um secretrio
de federao do Partido Comunista, p o r volta de 19~3, na setiuncia da t|uebra
eleitoral do Partido, Mas eu no tinha conhecido operrios. Pequeno-burgueses.
sim, tanto oficiais sulbalternos de carreira, com o funcionrios, ou empregados,
ou comerciantes, ou universitrios. l'm outro mundo, falador, este, apressado,
\ ido de voltar a ver mulher, filhos e emprego, pronto a engolir todas as notcias,
sobretudo as mulheres, com m edo dos russtis. mais m edo dos russos do que dos
alemes, habilidosos, dispostos a tudo para conseguirem ser repatriados pra
guejando contra De Gaulle sem dizerem bem de Ptain porque De (jatille fazia
com que a guerra se prolongasse, m andando \ ir de Frana encomendas sum p
tuosas, que alis partilhaxam de bom grado com todos os outros. pre(.teupados
com a sua aparncia, c falando de mulheres o dia inteiro. Lembro-me de um
corso que foi obrigado a deitar-se na sua cama de tbuas, a ciuem tiraram as cal
as e masturbaram fora. Passou-se isto num barraco onde todas as noites um
professor de Clermont chamado Ferrier organizaxa uma emisso de rdio.
Iodos os barraces enviax am os seus representantes, e Ferrier dava as notcias
militares e polticas do dia que ouvira numa emissora alem, num escritrio
h onde trabalhava e conseguira conquistar a confiana do seu guarda, um com u
nista alemo. Ferrier alimentava o moral de todo o campo. Por xezes suficiente
que um simples indivdtio tenha certa iniciatixa para o clima se transformar.
3.31
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No entanto \'eio tinta vez uma mulher ao eampo: uma francesa, cantora,
:io bonita, e toda a gente ficou de cabea perdida. Cantou no teatro, a
, _air DacM convidou-a para a sua mesa pessoal, num encontro a ss que deve
^ acabado bem. Tambm ele gostava de mulheres, e de bom grado se punha
o.l.ir delas. Contava as stias aventuras de jm entude. o jogo de pctker des
o com certas jovens, entre as quais a fillia do embaixador da China, e
c.io arranjavci sempre maneira de perder, o que lhe permitia ganhar o que
.cria. Como conquistara no campo a simpatia do oficial encarregado de o
. mpanhar na fiscalizao dos comandos a bordo de um camio conduzido
r um tipo cham ado Toto, jovem operrio parisiense de soiatpie cerrado.
. cl conseguiu um dia titie esse oficial o levasse a Hamburgo, at um t|uarto
de estava espera dele uma belssima polaca que soulte receb-lo com as
. ' idas atenes, aventura que no deixava porm de ter os seus riscos para os
olicados. Que eu saiba, Dal no foi mais longe. .Ao regressar do cativeiro,
ivenceu uma jovem c[ue at ento no conhecia de que poderiam enten-
cr-se. construir uma vida e ter filhos. Escreveu-me e n t o : No podes imagi-
. c o barulho dos saltos dos sapatos dela no passeio minha direita... Manteve
'ua palavra, sem a m enor quebra de contrato, reduzido a vender filmes para
' outros, cjtte misria quando pensamos no hom em tjue ele era. Pelo menos
ou umas belas crianas, os seus filhos. A m ulher sobrev'iv'e-lhc ainda, nas
r.iias da Mancha. H cora certeza muitos hom ens em Frana (ele no tentou
itar a ver ningum) que pensa ainda e por muito tempo continuaro a pen-
- nele, como num a figura de milagre e semi-fabttlosa.
Tenho de contar aqui mais um episdio que se desenrolou entre mim e
..el, por tim lado. e, por oumv lado. a adversidade. QuancU.i Dal. fatigado,
vindonoti t) seu cargo de hom em de confiana, depois de termos reflectido
v-moradamente nos impasses da situao, perguntmo-nos se no valeria a
cita tentarmos evadir-nos. A dificuldade residia no facto de durante as trs
emanas que se seguiam a cada evaso, todas as foras da guarda e da polcia
em serem mobilizadas na perseguio aos evadidos. que po r isso ficavaim
r.iticamente sem hipteses. Tratava-se portanto de contornar esta dificuldade,
iiaginmos a seguinte soluo: bastava dei.xarmos passar o perodo de trs
emanas e, para no provocarmos o desencadear das medidas de controlo, no
3.^.^
/. o i: / V ,1 1 H l S ,S /;
nos cvadirmos durante as mesmas trcs semanas. O que s era poss\el nur
condio: ficarmos espera no campo, depois de consideracios oficialme-'
com o evadidos, durante as trs semanas necessrias. Para tanto bastava ciiie n
escondssemos num stio qualquer, deixando depois passar o tempo, coma;'
que o esconderijo fosse seguro.
Ora nada mais fcil do tiue descobrinm)s no camptt central um escont.
rijo seguro. Instalmo-nos nele com a cumplicidade de alguns amigos exr
rientes, que nos traziam alimentcjs e informaes animadoras sobre o af l;
alemes, e deixmos passar as trs semanas. Dejaois pusemo-nos ao largo fa>.
mente, com Dal a permitir-se cum prim entar de passagem, com o de costu;r
a sentinela embasbacada. As coisas correram muito bem, conform e o pre\ i':
se exceptuarmos esse pequeno imprevisto que foi encontrarm os um funcic;
riozinho dos Correios que, num lugarejo qualquer, nos perguntou a mor.: ,
exacta de um destinatrio que no conhecamos. O que o fez desconfiar e
^aleu uma recompensa pela nossa captura, conform e o previsto.
Acrescento, para dizer toda a verdade, que esta histria foi de facto pre;
rada por ns tal com o a contei, mas cjtie no chegmos a sair do campo
gando-nos stificientemente compensados |')elo nosso esforo de imagina.
pela descoberta do princpio da soluo. ,\o o esqueci, desde que volte
ocujoar-me de filosofia, pois no fundo o problema dos problemas filosfio -
polticos e militares ) saber como sair de um crculo continuando dc.' o
dele.
Q uando as tropas inglesas chegaram a cinquenta quilmetros do can"
a derrocada alem agravou-se e Dal aplicou outros princpios estratgu
Foi ter com os alemes para lhes propor um negcio: vocs vo-se eml^ -
ns ocupamos os vossos lugares e em troca eu passo-\x)s certificados de n
comportam ento. Eles aceitaram e deixaram, durante a noite, tudo no cair :
A seguir bastou-nos proceder nossa instalao. Foi uma grande revolu.
nossa existncia. Para comear, Toto conseguiu p o d e r deitar-se com a a k
que lhe chamara a ateno, graas ao seu perfume, de longe, num escrir -
Formaram-se casais, mais ou m enos abenoados pelo padre Poirier. Os ab,:-
cimentos foram organizados em grande, po r m eio de batidas que rendiam .
uma delas a sua carga de gamos, coras, e tambm lebres e outros animak
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o ' ! \ ( r u s
legumes ou lcoois subsequentes. Des\ imos uma ribeira para eonstguir gua.
Por fim fizemos po franes. Reunimos a populao jsara lhe darm os inform a
es e formao polticas. F.nsinmos com o manejar armas, e tambm ingls e
russo aos jovens alemes e s jo\ens alems, inicialmente aterrorizados, depois
'crenos. Jogmos futebol e fizemos teatro com mulhercv a valer. Ura domingo
todos os dias, quer dizer, o comunismo,
Mas os malditos ingleses no ha\ i;i ni.ineira dc chegarem, Dal e eu c o n
cebemos o projecto de ir ao encontro delc' par.t o ' innrm arm os da situao,
.Cpodermo-nos de uma \ iatura. de um motorista uirn hoc.ido ecsgoi c m ete
mos pela estrada direittxs a tlamlsurgo, onde os ingleses nos atolheram to
friamente t|ue preferimos igracais a um c.xpediente do motoristai deixar a sua
companhia e voltar ao campo, onde fomos muitt) mal r e c eb i d o s , julgando os
nossos camaradas tjue os tnhamos abandonado, incluindo o padre Poirier.
que tinha a sua moral (h coisas ciue no se fazem), (lonsolmo nos com um
beltt guisado de gamo. e espermos pelo epie \ iesse a seguir.
Os ingleses acabaram apesar de tudo por chegar e asseguraram-nos trans
porte na ctmdio de ali deixarmos todos os nossos tesouros pessoais, de
.ivio. primeiro para Bruxelas, a seguir para i^aris, e para mim a seguir ainda
para Marrocos, onde ento vi\ iam os meus pais e onde o meu pai continuava
,1 jogar tnis e percorria o imprio cherifiano a duzentos hora. excepto
quando os camelos, que nunca do prioridade a ningum no seu caminho, lhe
cortavam o passo. Tinha um mtttorista espanhol que dizia; <^Maclanie. ele tem
medo dos camelos, do Senhor no tem ela medo.
Foi um reencontro muito difcil. Ku tinha a impresso de estar \elho. de
ter perdido o comboio, c de j no ter nem genica nem nada na cabeca. ,\'o
me sentia capaz de \oltar Fcole. embora esta me t i r o s e en\iacio livros e
continuasse de portas abertas para mim. FOi ento que i\e a primeira das
minhas depresses. Passei por tantas, to graces. to dramticas, desde h
rrinta anos (devo ter passado ao todo uns bons quinze anos em hospitais ou
clnicas psiquitricas, e l estaria ainda com toda a certeza se no fosse a an
lise), tjue me perm itiro no falar do assunto. De resto, com o falar da angistia
que litcralmente intolervel, vizinha do inferno, e do vazio que insondvel
c apavorante?
5,s5
/, o ! / V 1 / // V ,s i:
,^.^6
o s / -1 f / o s
D i m i n i i ti v o d o p si q u i a t r a j u l i a n Ajuriagucra . ( .V d o 7. )
3 3 "
/ o r / s ,1 / / // / ,s i: A
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o ,s / I ( r o V
galinhas, c p o r conseguinte o\os, gatos que da\ am pelo nome, o que raro, e
no havia ces. Havia duas grandes ca\x's, uma para a lenha do Inverno, outra
para o vinho, e o meu av instalar a-se l no \ero. ao fresco, para ler La Tri-
bune cu fo n c tio n n a ire sentado num banquinho de madeira. Havia tambm
uma cisterna alta, de onde po r duas \ ezes sah ei um dos no>sos gauts c]ue cara
l dentro, e era um espectculo algo terrr el \ er o animal alito. mesmo gato
enfiou um dia na cabea uma lata de conserr as \azia, ti\e uma \ez mais que
o livrar dac]uilo, ainda hoje no sei por que milagre: o g.ito soltou um miado
de terror e durante vrios dias andou fugido de casa fm contrapartida, eu era
poupado matana das galinhas e dos coelhos. Tinha um fraco por esses ani
mais idiotas e incapazes de se defenderem. Chegara at. para lhe' denurnstrar
a minha amizade, a fabricar uma seringa de madeira de sabugueiro escaziada
do miolo, e regava-os de longe com ela, o que pro\a)ca\a sempre reflexos ines
perados, cacarejos de surpresa nas galinhas alticas, considerando de cabea
levantada e olho arregalado aquele acontecimento que atentava contra a sua
dignidade, fuga relmpago dos coelhos que no parar am de correr s roltas
nas suas coelheiras. Mas quando chegava a hora da verdade, pediam-me que
me afastasse. ,Sei que o meu av assentava ento um murro na nuca do coelho,
e que a minha av rasgava com uma tesoura ferrujenta o pescoo das galinhas.
Quando era um pato, cortavam-lhe simplesmente a cabea com um golpe de
podoa, e o pato continuava ainda a correr pelo cho durante uns segundos.
As batatas e as azedas desempenhavam o papel principal na nossa alimen
tao, juntamente com as castanhas no Inverno (o Morvan vivia ento de trs
criaes: os porcos, os bovinos e as crianas da Assistncia Pblicai. Eu ia
escola oficial, cujos muros altos ficavam perto do poo. por trs de uma
grande pereira titie dava uns frutozinhos duros, com que a minha av fazia
uma compota avermelhada como nunca mais voltei a comer. Na escola, umas
vinte crianas da regio, das quais oito ou nove da .Nssistncia Pblica estuda
vam, sob a vigilncia de um mestre-escola socialista. .M. Boucher. bonito e
bondoso hom em . Fui recebido pelas partidas do costume, ejue se prolongaram
por um bom ms, tendo os midos uma predileco especial pelo jogo que
consistia em perseguirem um de entre eles. cjue depois deitavam no chtv e a
quem tiravam as calas, para lhe verem o sexo, fugindo a seguir aos gritos.
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SoLibe mais tarde que se trata\ a de uma prtica prxim a do que se faz em cer:,
sociedades primitivas. Tive que suportar a prova, e a seguir dcixaram-mc t
paz. Jogava barra no ptio, e bastante bem, o que me valeu algum apreo. C)r
o professor me considera 4a bom aluno, as coisas iam andando. ITn dia mandi
-mc fazer o exame do concurso das bolsas em Nevers. Nesse dia, o meu a\ w
tiu o seu fato de ir cidade, pts um bon novo, e apanhmtts os dois o combo:
A seguir escolheu cuidadosamente um hotel, e eu tive ocasio de conhece;
maravilhosa Igreja de Saint-tienne que tem os mais belos tons de luz e soml'
do mundo. Fiquei em 6 . lugar no concurso, o que me valeu, por escolha minl
uma carabina como prenda paterna. Ciom esta carabina aconteceu-me uma o
algo estranha. Com efeito o meu pai adqtiirira, a seis cjuilmeros da n o "
aldeia, um terreno de seis hectares com uma casa velha, uma espcie de qur.
Fica\ a num alto para l da linha de caminho de ferro, mais ou m enos inacessw
a tal ponto tudo se encontrava coberto de castanheiros e fetos, mais do t]ue abi,
dantes. C) meu av saa quase todas as manhs que tinha livres, pelas cin,
horas, a caminho das Fougres, naturalmente a p (na altura no havia aiitom
veis na regio) e, velho guarda florestal aguerrido que era. rasgava uma passagt
para ter acesso casa. Havia colmeias na zona. Deve dizer-se que era uma paix
dos meus pais. depois da experincia da \elh a casa florestal de Argel. oiv.
M. Quruet as criara, virem a ter abelhas. Flavia-as tambm no Bois-de-\e:
onde o meu av tinha um campo que me ensinou a cultir ar, plantando l i
pouco de tudo, mas principalmentc trigo, que aprendi a ceifar e a enfeixar. c
batatas que aprendi a arrancar sem as cortar. Portanto, amos s vezes em e \c .
so familiar s Fougres. e eu passeava pelos carreiros dos bosques com a mirb
carabina a postos, carregada. Lembro-me de que um dia, em que no atirei .
alvo, deitado, com o em Argel com a arma de guerra, \ i uma rola, e disparei sob
ela sem lhe acertar. Voltei a carregar a minha arma, e continuei o passeio. Pass.
-me ento pela cabea a ideia louca de a disparar na barriga, para \ er o que aci
tecia. Estava convencido de que no tinha bala no cano. No ltimo segundo he-
tei e abri a espingarda: havia uma bala l dentro. Fiquei coberto de suor. mas n.i
me vangloriei do incidente.
amos muitas vezes s Fougres, num a carroa guiada p o r um jovem camj'
ns plcido, que seria m aire local durante a Frente Popular, e puxada por u:'
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dncia Mas por cjue que ps dois exergos no seu texto, primeiro a m 'i ,
de Ren Clair: "o conceito obrigatrio porque o conceito a liberdade
depois as pala\ ras de Branger: mais \ ale um contedo do tiue duas pronie-
sas? Tu respondi: Para resumir o contedo. Ele calou-sc e insistiu: M
po r tiue tjue fala de crculo em Hegel, no seria m elhor falar de circulac.f
do conceito? Eu respondi: A circulao um conceito de Malebranche. be
com o a reproduo, e a prova est em que Malebranche c o filsofo dos im
cratas. que Marx disse serem os primeiros teorizadores da circulao na rep r
duo. Ele sorriu-me e deu-me 18. Era em Outubro de 194". eu tinha passa;
o \'ero, depois da terrvel depresso da Primavera, a redigir pressa esta tc'
cjue me ajtressei a abandonar crtica corrosiva dos ratos. Martin fizera ca :
o mesmo Bachelard, e com desenhos obscenos por epgrafe, uma tese mui:
boa sobre o indivduo em Hegel. Falava de problemas que eu s) jsarcialmer.:
compreendia, apesar das explicates dele. Tudo era dom inado nessa tese pci
conceito de jsroblemtica, cjue me deu que jsensar, e tratava-se de uma filosot;
materialista, que jsrocurava chegar a uma ideia justa da dialctica. Discutia--
Ereud, fazia-se (j!) uma crtica ponderada de Eacan, c no remate surgia
comunismo, ainda me recordo: onde j no h pessoa humana, mas ajsen.i
indivduos.
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o s f .1 c I o s
Na cole. conhcci Tran Duc Thao, que st* celebrizara publicando muito
cedo a sua tese sobre a fcnomenologia e o materialismo dialctico: extrema'
mente husserliano, tal como perm aneceu, a julgar pelos artigos que tem
enviado de Hani, onde reside desde 1956. para Ia Pense l hao data-nos
aulas particulares, e explicava-nos: Xdcs so todos egos transcendentais e so
todos iguais enquanto egos. ' F. c om eata ento ;i expor uma teoria do
conheciment) bastante fiel a Husserl, que eu voltaria ;t encontrar mais tarde na
boca de jean-Toussaint Desanti. com a mesma preocupao de casar Husserl e
.Marx, o cjue era contrrio cjuilo que Martin sustentatai, I hao conhecia muito
bem nessa altura Domarchi, brilhante terico de economia poltica, que coti\ i-
dmos para a cole. Deu um curso fulgurante e incompreensvel sobre \\ ick-
scll, e desapareceu, apaixonado po r uma m ulher que no deixou de perseguir
com os seus assdios, mas com quem no conseguiu casar. Fliao e Desanti \ei-
culavam ento as esperanas da nossa gerao, com o mais tarde Desanti. .Mas
no as cumpriram, e a culpa foi de Husserl. Ser de acrescentar qualquer coisa
ainda sobre Gusdorf, ciue ento instaurara o terror do seu governo sobre os
candidatos agregao de filosofia da cole? Fizera a tese durante o cativeiro
trabalhando todos os dirios ntimos que conhecia, e dera-lhe por ttulo La
D couverte de so. Recebeu um dia uma carta do director do Falais de la
Dcouverte que resumidamente lhe dizia; no sendo estranho ao Falais de la
Dcouverte nada do que diz respeito descoberta de si. ficar-lhe-ia muito
grato se... (iiisdorf foi ao Falais, voltou com cumprimentos, um prospecto, e a
impresso de ter sido logrado. Mas a partir de ento o seu li\ ro figura nas
estantes da biblioteca do Falais. Gusdorf tinha a mania de responder a qual
quer pergunta embaraosa por meitt da expresso; <<e a tua irm', e quando
nos despedamos dele no seu gabinete, onde tinha uma secretria Luis X\' de
imitao, dizia; desculpe-me se no o acompanho, palavras que proferia
igualmente ao telefone, juntamente com dcixc-sc estar com o chapu. Fra
um hom em que dispunha de um ntimero reduzido de expresses, mas que
delas se servia sempre muitssimo bem. Da\a-se mal com Fauphilet. nom eado
' Iro c a d ilh o b a .s c a d o na h o m o fo n ia, in c.x iste iitf cm p o rtu g u s, en tre egos e g a u x (ig u a isi
i V d o r. I
34 3
/. o ( I s A I. 7 H r S S F R
Idade Mdia) e a sua predileco pelos bailes populares onde recrutava con
assiduidade discpulos de um tipo especial, a quem recitava versos de Francc' '
Villon c]ue sabia de cor. Poi enterrado atrs do cubculo do porteiro da Kco!^
para no se sentir deslocado. Ningum o sabe. ou toda a gente o esc|ueccL.
exceptt) algumas rosas belssimas que ali crescem po r acaso, e que o porteir
rega regularmente at que m urchem. Sempre pensei que Pauphilet. tjiie gi '
tava de mulheres e de dores, apreciaria tal ateno.
Gusdorf tinha um mtodo, que se revelou excelente, pessoalssimo, de n> -
preparar para a agregao. No dava aulas, no nos punha a fazer exercci -
(iontentava-se com ler-nos, sem os comentar, extractos da sua tese sobre -
dirios ntimos. Daqui tirei a lio, proveitosa, de c|ue a m elhor maneira vi
preparar a agregao no seguir aulas nem po r conseguinte d-las, mas
trechos seja do cjue for. Porque l tive que fazer a minha agregao. Arran i
outra depresso, c no fim do ano estava a postos. Fui o primeiro na pr>
escrita (tendo-me Alqui dito na minha primeira dissertao sobre o ter
Ser possvel uma cincia dos factos humanos?, que eu fizera a partir
Leibniz e de Marx, que a minha primeira parte tinha 19, a segunda 16, m.o
terceira, dado tudo o que eu dizia sobre Hegel e Marx, com muita pena
s podia ter l4). Fiquei em segundo na prova oral, por causa de um com :
-senso a propsito de uma passagem de Spinoza onde confundi a solido o
o sol, o que era um aristotelismo algo excessivo. Fllne estava minha espm
ao fundo da rue Victor-Cousin, e abraou-se a mim. Tivera muito m edo de .
eu no conseguisse sair da minha depresso. Nunca deixei, pobre Hlnc ,
a assustar com as minhas depresses.
A vida filosfica na cole no era particularmente intensa. Esta\ ;
m oda exibir desdm p o r Sartre, que estava na moda, e parecia reinar de im; :
alto sobre todo o pensam ento possvel, pelo m enos em Frana, esse b.i::,
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,s-t
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o s /' -1 ( i o s
.. ilc Icilc azedo. A rceio fiea\ a-llic sempre muito cara, mas hoje que e p ro
p o r titular, eondecorado, pai de famlia casado com uma matemtica, pai de
:i n o rn ia lien (tinha esprito, o mido i. continua, com agrado, mas perto
grande buraco dos Halles, onde descobriu um restaurante sua medida que
L s e n e ps de porco com compota de casais Sn\ tlers tinha um grande p ro
nto. ao cjual te\e infelizmente t[ue renunciar, criar um CiXRC. Centro .\acio-
,i de Incestigao Culinria C .Sustentax a que e pocleriam extrair efeitos
Mcressanles do matadsorro frito e da compota dc palha, h um caso a estudar.
lendo ICtuphilet, antes de m orrer nome ado Frigent. que \ iniia das Breia-
vas. para a Mcole. e afastado (msdorf. fui nomeaelo adiunio daquele, graas
"lizacie da \elha Pore. essa mulher que fez funcionar a iiojle, apesar de
dos os directores que tece, durante cerca ele quarenta anos. primeiro como
..arregada da rouparia, depois com o secretria do directot. futha carcici.
.cias acerca da correspondncia e da pedagogia, e soeibe tratar t o m o de\ ui os
oiies quancUj estes apareceram uma bela manh para prender Bruliat. Deeo
L muito, e no sou o nico. Morreu na solido de um horrxel lar de velhos,
. plena floresta, a cem cjuilmetros de Paris, tjuasc sem visitas. Coisas assim
; .io proibidas quando transformarmos a sociedade.
seguir minha agregao, na qualidade de monitor, tive ciue me encar-
_.ir dos meus jovens colegas que preparar am as suas provas de agregao
vco. l.ucien S\e e uma dezena de outros ainda. l'i\e a fraqueza de pensar,
.-'ar dos a\ isos dc (lusdorf, que devia ministrar-lhes um ctirso: foi sobre Pla-
. comigo a debitar-lhes salgalhadas sobre a teoria das idias e a remimsccn-
.. como teoria-recordao-encobridora para mascarar os [troblemas da luta
. classes. Extra alguns belos efeitos de Scrates como ese|uecimcnto, c do
rpo com o esquecimento, portanto do corpo dc Scrates como esqueci-
u nto. do corpo de .Mnon como recordao, c desemharacei-nic como pude
-"C impossvel ( rtilo. onde Plato sustenta e nega qiic 'c puse dizer que
1 boi um boi. C) que me fascinara em Plato era 'c r poschel ser->e a tal
nto inteligente e conserrador, ou mesmo reaccionrio. ter culiir ado os reis
' jor ens, falado to bem do desejo e do amor. e de tockis os ofcios da r ida.
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at da lama, c|uc tambm tem algtires no cti a sua idcia, juntamente com O'
sapatos e o Bem. Fra tambm um hom em de misturas, sabia fazer compota^
com o um dia confiei a Snyders ciue me olhoti com o um louco. De facto, conti
nuei a ser louco, perm itindo-m e uma depresso anual ou quase, o que resoU ;.
o problema das aulas. Mas tendo os n o r m a lie m adcpiirido o hbito de passar
na agregao, excepto quando partiam para as ndias ou numa grande aventur.:
de amor, assunto de cjiie tratava Mme Pore (espere at agregao, meu rapa/
ter depois todo o tempo ejue for preciso), tudo isto acabava po r no tc'
importncia. x\lis o padre tard. bibliotecrio da cole. dava-lhes. na qual
dade de sucessor de Lucien Herr, todas as indicaes bibliogrficas iitcn
A nica contrariedade era que, ciuando amos ter com o bom do httmem er.
preciso termos desmarcado antecipadamente todos os outros encontros c.
uma semana bem contada. Ele no parava de falar da histria das religic'
citando a esse propsito uma tese de doutoram ento cjue tinha na cabea, m..-
no arranjara tempo para passar ao papel. Alis falava de toda a gente, tanto l/.
Herriot como de Soustelle. Soustelle no fizera ainda a sua grande carrer
argelina. Mas Etarci dizia dele: incapaz de fazer seja o que for sozinho, 'c:
sempre um seguidor. E tinha razo. Soustelle gerira sob a direco de Boug ,
antes da guerra, um centro de docum entao em que participaram Aro:'
alguns alemes fugidos ao nazismo, ciue a cctle albergou. Contavam-se en::.
eles, segundo creio, Horkheimer, Borkenau e alguns mais. Borkenau infe
mente acabou mal, ao servio do Pentgono, segundo creio, mas a guc:
explica muita coisa. Depois da m orte de Bougl, o centro desaparecera, s^-
preciso esperar por Jean Elyppolite para que fosse restaurado sob novas forr. .
mais adequadas s exigncias m odernas da economia poltica e da inform.i:
Dupont, qumico especializado na resina de pinheiro, sucedeu a Paur
let Dizia: lam ento muito, mas escolheram-me a mim porque os melh
morreram durante a guerra. Infelizmente, era verdade. Foi um director ir.
ciso, teve alguns acessos de clera breves e inofensivos, ciue Raymond W.
ento C a m a u ' de grego, resumia em esprito e verdade: absolutaiiK
indispenscel... ejue algum assuma as minhas responsabilidades. Dupon; .
.^50
o ,s /' -1 C I o s
''istido eni l.ctras pelo manso (diapouthier. que fiea\a ingenuamente sur-
'reendido ao ver que rapazes to novos e bonitos casam to cedo, o que o
.r.instornava. Q uando fica\a na bcole, com os alunos, espera dos resultados
:,i agregao, comia com eles, c durante a maior parte do tempo fazia-se con-
idado. porque a mulher no lhe deixa\ a um \ imm nos bolsos. Hspantou-se
,:m dia ao ver Michel Foucault doente, eu ds^e-lhc tjue no era grave, mas ele
,ontinuou espantado por Foucault. que \ ira transtornado nos corredores, no
.lie ter dirigido a pala\'ra, Foticault foi nesse mesmo ano ,ipro\ado na agrega-
,o. Acabaria, com o sabido, ou comearia, no (iollgc de France, oride tinha
.ilguns amigos.
Por fim Hyppolite, depois da morte de (ihapouthier foi nom eado director
.idjunto, antes de assumir a direco da Ecole. Fra um homem entroncado,
atarracado, com uma enorm e cabea de pensador, semjire a fumar, dorm indo
irs horas por noite, sem nunca parar de pensar e de procurar a amizade dos
m\estigadores cientficos entre os quais Yves Rocard, organizador genial,
ditar a a lei. f h ppolite ps as coisas em pratos limpos logo no seu discurso de
chegada; Sempre soube que viria a ser um dia director da Ecole... a cole
deve ser uma casa de tolerncia, esto a perceber. E com eou a organizar
'cminrios. palavra que tinha sempre na boca. A coisa soube-se, e ele recebeu
um dia uma longa carta escrita por uma mo tremula, e assinada por um coro
nel de car alaria na rese n a , \iv e n d o em Cahors, ejue lhe falava do seu interesse
pelas iniciatiras dele, lhe confiava as suas prprias experincias pedaggicas
no exrcito, onde tambm ele desde havia muito organizara seminrios, e pro
punha um intercmbio de experincias, \ i n h a apensa uma outra carta, assi
nada pela filha do coronel, dizendo que o paizinho se interessava realmente
muito pelo problema, e seria ptim o cpie lhe respondessem ,,. Hyppolite res
pondeu, e uma longa correspondncia, que duraria anos. estabeleceu-se entre
os dois. O coronel, apesar dos seus ferimentos de guerra, veio a Paris visitar
Hyppolite, e fez na cole uma conferncia que agradou, apesar da sua term i
nologia um tanto excessivamente militar. O coronel chamava-se C. Minner.
Hvppolite tinha uma maneira muito peculiar de dirigir a cole: a adminis
trao vem a reb(.)cjue. De hicto. adi;intava-se. sob a direco de Eetellier, tjue
tinha ares de senhor e no olhava a despesas. E deste perodo que datam os
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/ o r / s A /. / II I S S I: R
que no esqueci. mas voc tambm tem um corpo, no? Oito dias de
corpo de .Merleau traa-o de repente: o corao.
.vs-
o .V / ,1 c r o V
Hste texto no foi enco n trad o nos arquivos de Louis Althusser. (A', do E. fm u c s ).
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mentos dele. Militava tambm no sindicato dos alunos, que era ilegal e
batia po r ser oficialmente reconhecido. Foi nele que consegui, se assim p -
dizer, o meu primeiro sucesso poltico de massa, obtendo a demisso do ' t .
tariado inteiramente nas mos dos socialistas, no que contei com a coLi '
o de Maurice Caveing.
Conservo tambm a memria de um vivo incidente que me ops a A s :.
SNES, num dia em que os agentes da cole, em greve, queriam ir manifc' . *
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/. o / V ,1 r H ( S S E R
cole os elem entos da histria do m ovim ento operrio. Foi assim que falaram
a nosso convite, Racamond, e Frachon, e Marty (duas vezes, com grande autc
ridade professoral).
Estvamos na poca da guerra-fria e do Apelo de Estocolmo. Andei n.
recolha de assinaturas porta a porta no bairro da estao de Austerlitz e n:'i<
consegui l muitas adeses, excepto a de um trabalhador do lixo, que recrut.;
m os para o Conselho Com unal, e de uma jovem tiue assinou por compaixi
dnham os instalado um painel para afixar cartazes na rue Poliveau, no cjual ci
actualizava todos os dias a docum entao sobre a am eaa da guerra e os pr:
gressos da resposta popular. Deixavam-me faz-lo sem entraves, mas as pesso.;-
pouco liam os nossos cartazes,
Tudo isto teve p o r desfecho um a histria hcarrvel. J falei do Consellv
C om unal do v bairro: no se confundia com a seco do Partido do
em bora alguns m ilitantes fizessem parte das duas organizaes. Ora, um di.
em ejue Hlne tinha ido buscar cartazes rue des P ramides, foi reconhecid.
por um ex-responsvel das Juventudes Com unistas de Lyon, cjue a denuncio,
im ediatam ente com o provocadora bem conhecida pelo nom e de Sabine. F .
m quina repressiva do Conselho Com unal ps-se em m ovim ento, apesar dc
um apelo a Yves Farge, que se m anteve em silncio, quando um gesto seu teri.
sido suficiente.
Para se com preender o caso, necessrio evidentem ente recuar no temp
Fllne, que fora uma das poucas a no pr em causa o pacto germ ano-sor ic
tico. que m ilitara nos anos trinta no xv bairro ao lado de Michels, Timbaud ^
outros de cpiem gostara muito, vira-se, com o a m uitos aconteceu, sem con
tacto com o Partido em 1939. Nem p o r isso deixara de m ilitar num a organiz..
o no-com unista da Resistncia, continuando a tentar entrar em contact
com o Partido, mas cm vo. Todavia conhecera m uito bem Aragon e Eis.;
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o V F A c r o S
liem com o luarcl e alguns outros com unistas da Resistncia, mas que se
cncontrac am tam bm sem contactos com o Partido. Iodos esses amigos e m ui
tos outros se encontravam nos Cahiers du Sud. em casa de jea n e Marcou Bal-
iard. Foi na setiuncia de um a histria idiota, conhecida pelo nom e de meias
da Elsa, que Aragon rom peu com Hlne. Ele queria uma certa cor de meias,
c Hlne no as conseguira arranjar dessa cor. Do m esm o m odo ou tiuase.
I.acan, cjue ela tinha conhecido em .\ice, rom pera com Hlne po r ela no ter
^onseguido descobrir para a m ulher dele. judia, a casa de refgio de que ela
precisava. O certo tjue a ruptura com os Aragon ganhou um aspecto m uito
arave, cjuando Hlne. tendo na altura da libertao de Lyon im portantes res
ponsabilidades, e estando em jogo a sorte jurdica de prisioneiros nazis e de
..olaboracionistas franceses, se tornou alvo de um violento atacjue conduzido
oelo cardeal G erlier e toda a com panhia dos colaboracionistas locais, com
Fferliet cabea. Foi acusada de crim es imaginrios, de ter protegido crim ino-
'os de guerra, que na realidade queria m anter vivos para deles extrair informa-
Les preciosas ou para os trocar por resistentes presos em M ontluc (com o o
padre Larue, que m orreria sob as balas alems na vspera da libertao da
cidade). Efectivamente, usava nessa altura o pseudetnimo de Sabine, e tam bm
um outro pseudnim o . Legotien. Tinha em resum o trs nom es, o que lhe foi
ensurado com o um sinal suspeito. Da a actisarem-na de ser agente da Ges-
:apo, era um passo ejue os acusadores do Conselho Com unal no hesitaram em
dar. Aragon acusara-a de facto, ainda em Lyon, de pertencer ao Intelligence
'ervice.
Foi nestas condies que tive de assistir s sesses do Conselho. Hlne
um vo invocou o testem unho de resistentes que a conheciam m uito bem e
ju e estavam ao corrente da sua aco em Lyon. isso de nada serviu. Foi acu-
'.icla de todos os crim es, e de os ter escondido. Entre os m em bros do Conse-
h, houve alguns hom ens ejue se calaram, dignam ente, inseguros quanto ao
uzo a proferir. Mas no se opuseram em bloco aos outros, que tinham o
poder de condenar,
Hlne foi portanto excluda do Conselho Com unal nestas condies infa-
niantes. Os m em bros do Partido entenderam -se entre si. Lembro-me que a
arande preocupao dos m em bros da m inha clula bem com o dos Desanti.
l o f / V .1 7 H r 5 5 E R
era salvar Althusser. Fizeram presso sobre mim no sei bem com cjue objc^
tivo, mas eu no lhes prestei qualquer ateno.
Hlne e eu fomos para Cassis, para nos afastarm os um pouco desta hisn
ria horrvel. Era literalm ente alucinante verm os o mar, impassvel, continuar .
despejar as suas ondas na praia, debaixo de um sol im placvel. Recompuse
m o-nos, nem eu sei bem como, e quinze dias mais tarde retom avam os o cam;
nho de Paris.
Foi a v'ez de entrar em cena o Partido. Gaston Auguet convocou long..
m ente Hlne, e repetiu todos os argum entos da acusao. Foi buscar histri. '
sinistras de um certo Gayman, expulso do Partido, e que p o r isso no pod;.
testem unhar, mas que saberia a verdade sobre a pertena ou no de Hlne
Partido em 1939, na altura do pacto. Imposssvel p o r conseguinte saber-se
Hlne era ainda ou no m em bro do Partido. Auguet deixou-a com esta ir
form ao, dizendo-lhe que podia recorrer. Mas ao m esm o tem po inform ou-m .
de que eu era obrigado a separar-m e im ediatam ente de Hlne. Eu no nv
separei.
Esta histria m edonha, que me precipitou de novo na doena (por poui
no me suicidei nes.sa altura), juntam ente com o suicdio do m eu prim cir
secretrio de clula, abriu-me os olhos para a triste realidade das prticas es:.;
linistas no Partido francs. Eu no tinha ento a serenidade de Hlne qu;
segura de si, no se deixou afectar, considerando que o caso lhe dizia respci:
a ela, ao passo que eu o sentia com o um a prova pessoal atroz. Fosse cor.
fosse tudo isto ps fim a algumas das nossas relaes. Tiv^emos, com o aconu
ceu a todos os expulsos, que viver num a solido quase com pleta, pois o P.o
tido no nos dat a trguas nem deixava as coisas a meio. Desanti vincou as s u .-
distncias, com o bom amigo de Casanova que era, em bora guardando p '
mim um a espcie de amizade. Os m eus camaradas de clula, com Le R
Ladurie cabea, faziam com o se no me conhecessem . Ficava-me a ma: -
parte dos que preparavam a sua agregao, e alguns cam aradas corajo> -
com o Lucien Sve, sem pre fiel, e Michel Verret, que com preendia. Mas er.r
rarssimos, e foi uma v'erdadeira travessia do deserto.
Apesar de tudo continuei a trabalhar por m im , e pouco a pouco conscg
escrever alguns artigos. Militava ento na Associao dos Professores .
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o ,v F A C I O S
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L O l I S A L r H l V ,V H R
360
o V / I c / o s
a alma pura do papa. Sob a sua aparncia exterior ele borguinho am ante do
tinto, era um hom em de grande ingenuidade e de uma generosidade profunda,
com laivos de utopia, com o veremos. Com efeito, em mim interessou-se pelo
m em bro do Partido Com unista Francs e expIicou-m e dem oradam ente que
tinha o desejo de reconciliar a Igreja Catlica com a Igreja O rtodoxa. Precisava
de interm edirios para conseguir de Brejnet as base' de um acordo unitrio,
\ o escondia t) seu jogo. Eu objectei com tts dificuldades ideolgicas e p o lti
cas de sem elhante iniciatir a. com a situao de M indszemt. por quem ele pro
fessava um desprezo com pleto (est m uito bem onde esta; pode l fic.in. e
muito sim plesm ente tam bm com a tenso internacional e com o anticom u
nism o reinante na Igreja. F.lc declarou-m e que se encarregaria pessoalm em e
desse ltim o aspecto se os com unistas estivessem dispostos a um pequeno
gesto. F,m vo lhe rctorqui que esse gesto era m uito difcil de conseguir, que
nem m esm o o Partido italiano o faria, t|ue o Partido francs estava ainda pior
colocado para isso, e ele por pouco no me descom ps, dizendo-m e que a
Igreja de Frana era galicana e que isso dev ia pelo m enos servir jvara alguma
coisa, que a aliana franco-russa era uma antiga tradio, etc. Deixei-o deso
lado com a m inha im potncia, sem conseguir convenc-lo de que era apenas
eu quem ali estava. Voltei a v-lo em duas ocasies, sem pre com a m esm a reso
luo e sem pre igualm ente irritado por este problem a que levava a peito.
Fmeontrei-me com De Gaulle em condites espantosas, pois no o c o n h e
cia pessoalm ente, Foi num a rua do vu bairro. Um hom em alto que tinha na
boca um cigarro pendente pediu-m e lume. Eu dei-lho. Ele perguntou-m e sem
mais aquelas-, quem vttc? o que que faz? Eu resjvondi-lhe: ensino na cole
Xormale. F. ele: o sal da terra. Eu: do mar. a terra no salgada. Q uerer dizer
que lbrica? No: c suja. ' Ele resjaondeu-me: vocabulrio no lhe falta. Eu:
c o m eu trabalho. Ele: os militares no o tm to rico. Eu: o que que o
senhor faz? Ele.- sou o general De Gaulle. E de facto era. Oito dias mais tarde
o PBX da Ecole. desvairado, transm itia-m e uma cham ada da Presidncia da
Repblica, convidando-m e para jantar. De Gaulle fez-me perguntas atrs de per
guntas, sobre m im , sobre a m inha v ida, o meu cativeiro, a pttltica, o Partido
' ,|()go de palavras intraduzvel entve sei (sab, salace d b rico i c sale (sujo). ( V. da T.)
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L O I I S A L T U r S S /: R
Com unista, mas sem me dizer uma palavra que fosse sobre a sua pessoa, Trc-
horas. Depois despedi-m e. Voltei a v-lo durante a sua travessia do deserto.
dessa vez foi ele a falar. Disse-me tudo o ejue se sabe que ele dizia: o pior p o '
svel dos militares, m uito bem de Estaline e de Thorez (hom ens de Estado
m uito mal da burguesia francesa (no tem estofo para produzir hom ens
Estado, com o o dem onstra o facto de ser obrigada a dirigir-se aos militarc-
que, apesar de tudo, teriam mais que fazer). Tambm ele estava preocupad
com o Partido Com unista: Acha que eles so capazes de perceber que eu so.
o nico a p o d e r m anter a Amrica em respeito? e a instalar em Frana um.
coisa parecida com o socialism o de que eles falam? Todas as nacionalizac-
que quiserem , e m inistros com unistas, claro, eu no sou com o os socialist. -
que correram com eles p o r ordem dos am ericanos. A Rssia? Eu trato dis
A grande questo o Terceiro Mundo, j dei a liberdade a quase todos os terr
trios. falta a Arglia, vai ver que a puta da burguesia francesa me h-de cf .
m ar quando as coisas lhe com earem a correr mal, Guy Mollet o seu home
de servio, mas no passa de um incapaz, e Lacoste p ior ainda. Estou so/
nho? Sim. sem pre o estive, mas com o escreveu Maquiavel. sem pre preo
estar-se sozinho quando se com ea uma coisa grande, mas o povo francc' .
gaullista, e eu tenho alguns amigos fiis, veja o Debr, veja o Buis, dei-lhes u
pedao mais de cu. Q uando leio as descries de Malraux, que explor,;
fundo algumas frases dt) grande hom em e as tem pera sua m oda, penso nco:
afirm aes simples, na sua grandeza e na sua rigidez: o arame do funm bic
Era um equilibrista poltico de gnio. Muito duro a respeito dos cam pone/c-
s pensam nos im postos, e alis o fisco p o u p a -o s; e acerca da Igreja: pem -
a balir para dom esticar o lobo, no sabem que preciso ser-se mais lobo .
c|ue o lobo; mas respeitava certos catlicos com o M andouze: esses saber,
que estar sozinho. Extra daqui a lio de que uma certa solido por \ c,
necessria quando nos querem os fazer ouvir.
Eu conhecia a solido atravs das clnicas psiquitricas onde passa\ a re_
larm ente as m inhas tem poradas. Conhecia-a tambm nos rarssim os m om er:
em que, saindo das depresses, voltara tona, e, im pelido no sei por .
vaga, subia mais alto do que eu. num a espcie de exaltao em que tud
tornava fcil para mim. em ciue conseguia inevitavelm ente uma n o ra rap.;: _
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que SC convertia na m ulher da m inha vida. a quem ler axa s cincx) da manlr
os prim eiros crttissants quentes de Paris, juntam ente com as groselhas da Pri
mavera (porque curiosam ente, quando eu voltava tona, era sem pre Maio ou
Junho, com o mc fazia notar m aliciosam ente o m eu analista, nem todos os
meses so iguais, os das frias so um bocadinho diferentes, e sobretudo os de
vsperas de ferias). Nessas alturas inxentava toda a espcie de loucuras, que
faziam trem er Hlne, porque ela assistia sem pre da prim eira fila ao m eu furor,
e inquietavam tam bm os m eus amigos, apesar de estes estarem habituados s
m inhas fantasias incontrolx eis.
Tinha um fraquinho pelas facas de cozinha ejue enferrujam , roubei uma
quantidade delas num arm azm , e le\ei-as no dia seguinte outra \ ez para l.
pretextando que no me conx inham . para as recender mesm a em pregada
espantada. Decidi tam bm roubar um subm arino nuclear, caso que foi natural
m ente abafado pela im prensa. Telefonei ao com andante de um dos nossos sub
m arinos nucleares de Brest, fingindo ser o m inistro da .Marinha, para lhe
anunciar uma im portante jrromoo, e lhe dizer que o seu sucessor ia apresen-
tar-se-lhe im ediatam ente, para o substituir no m esm o instante. Efectixamente
apareceu um oficial fardado, trocou com o ex-com andante a docum entao
regulamentar, assumiu o com ando, e o outro foi-se em bora. O segundo reuniu
ento a tripulao e com unicou-lhe que, para com em orar a prom oo do seu
ex-com andante, lhes concedia oito dias de licena extra. A sua arenga foi sau
dada por e ivas. Toda a gente desceu de bordo, excepto o m estre-cuca que
quase ia fazendo ir tudo por gua abaixo a pretexto de uma ratataoiiiU c que
tinha a apurar a lume brando. Mas at ele acabou p o r partir, tirei o m eu bon
de circunstncia, e telefonei a um gangster cjue precisara de um subm arino
nuclear para fazer chantagem com refns internacionais, ou com Brejncv. a
dizer-lhe que podia levantar a encom enda. Foi nest.i m esm a poca que fiz o
clebre assalto sem sangtie Banque de Paris et des Pays Bas para ganhar uma
aposta com o meu amigo e ex-condiscpulo lherre .Moussa. que o dirigia.
Reservei unt cofre no banco, fiz-me acojnpanhar at l. abri-o e m eti-lhe
dentro ostensivam ente um nm enr consicierxel de notas falsas (para dizer
a verdade bastavam alguns pacotes com a form a das notas de quinhentos
francos) diante dtj guarda do cofre. Fui ento ter com Moussa e disse-lhe
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que queria fazer uma declarao sob palavra de lK)nra acerca do valor do nu
depsito: um bilio de francos novos. Moussa, que sabia das m inhas rela.
com Moscovo, no pestanejou. No dia seguinte, voltei ao banco, pedi que ir
abrissem o cofre, e verifiquei com estupefaco que estava compIetameiT
vazio: gangsters habilssimos, abrindo todas as portas, tinham no visita^,
durante a noite. O mais extraordinrio era cjue de\ iam estar a par do m ontan
do depsito que estava no m eu cofre, pois no tinham assaltado outros cofin
(assaltado, com o quem diz, um a vez que tinham as chaves). () guarda, o ;
vocado, confirm ou tam bm que o cofre, que vira cheio na cspera, est,;
vazio. Moussa igualmente, fazendo com que a Lloyds pagasse no espao -
oito dias. Mas Moussa no se deixara levar. Pediu-me uma pequena contrib:.
o jaara a caixa de solidariedade dos antigos directores de bancos, e par.;
associao dos antigets alunos da Ecole Normale. As contribuies em car,-
ficaram registadas nos anurios das duas associaes. Devo dizer que o pr,
feito da polcia do tem po te\e uma atitude m uito correcta: assim, as b-
m aneiras fazem parte da Alta Administrao. Pus ao corrente da histria o in.
pai, t]Lie riu baixinho: conhecia bem Moussa, que fora um dia visit-lo a .M.
roct)s para lhe explicar a situao local. O meu pai ouvira-o sem dizer pahn.^
e apertara no fim a m o de Moussa transm itindo-lhe alguns endereos que b
perm itiram encontrar belas finlandesas (Moussa tinha ento um fraco po r c "
gnero de m idas) e bourbon repescado do fundo do mar. Rctubei muK
outras coisas, incluindo uma av e um sargento de cavalaria na reserva, n
no aqui lugar para falar disso, pois acabaria p o r arranjar com plicaes o
o Vaticano, uma vez que o sargento pertencera Guarda Sua. Eu tinha b>
relaes com o Vaticano, tendo tido a honra de ser recebido (entre cent-
nocenta c dois outros estudantes parisienses, levados a Roma pelo padre Ch
ies em 19-t) por Pio XII, que me pareceu sofrer do fgado, mas era m uito car
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No conheci nem Joo XXIII, esse hom em fabuloso, que era com o o cnego
Kir mas em santo, nem Paulo VI, essa \elh o ta inquieta sem pre de um lado para
o outro e que s tem um sonho na sua vida: encontrar-se com Brcjncc', Mas
Jean G uitton conhecia-os p o r mim. um a vez que os livros dele eram as suas
obras de cabeceira, ejue eles trocavam correspondncia com ele. e toi assim
que m e m antive ao corrente dos casos do dia a dia do Miticano c tjue ptide
preparar o golpe do sargenttt suo que, um a vez regressado ao estado ci\ il.
queria ir ter com a bem -am ada aos Grisons,
Naturalm ente este \e n to de loucura, durante o ciual me apaixonei ainda
por um a arm nia c|ue vic ia em Paris, bela com o um pano cru. com cabelos de
um a cor diferente e olhos ejue vogavam docem ente na noite, no se prolongoti
por m uito tempo. Voltei a uma das m inhas casas de sade. Tinha feito alguns
progressos desde o Esciuirol. Fui para Soisy, onde no davam electrochoques.
mas se faziam curas de sono fictcias, tiue me davam a im presso de m e curar.
Recolhi em Soisy uma experincia algo surpreendente, que deveria abrir cam i
nho antipsiquiatria. Toda a gente, excepto os m dicos e o porteiro, se reunia
num a grande sala cheia de cadeiras: os doentes, os enferm eiros, as enferm ei
ras, etc. E toda a gente se olhaca antes de se calar. O cjue duraca horas, (ra um
doente se levantava para ir mijar, ora outro acendia um cigarro, ora uma enfer
m eira tinha um a crise de choro, e quando acabavamos de conversar, toda a
gente ia ou comer, ou deitar-se po r causa da cura de sono. Sempre tive uma
extrem a adm irao pekts m dicos: arranjavam sem pre m aneira de no apare
cer, no conseguam os sequer v-los em particular, sustentavam que a sua
ausncia fazia parte do trabalho, o que os no im pedia de estarem ocupadssi-
mos a tratar fora do hospital um a outra clientela priwtda que precisava dos
seus cuidados: ou ento faziam a corte s enferm eiras com quem casavam,
quando no lhes faziam filhos. A que ponto podiam ser perigosas as curas de
sono, eontrariam ente a uma opinio geralm ente aceite que no leva em conta
o sonam bulism o, foi algo de que me convertei atravs de um incidente que me
sucedeu em pleno Int erno, quando o solo da regio estar a coberto p o r uma
cam ada de vinte centm etros de n e \e endurecida. Fui encontrado p o r \o lta
das trs horas da m anh, com pletam ente nu no m eio da neve, a duzentos
m etros do meu pavilho, e ferira o p num a pedra. As enferm eiras tireram
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cam inho s negociaes de Grenelle com Pom pidou frente a Frachon e Sguy
e s eleies que lhe dariam , a seguir m anifestao dos Champs-lyses, uma
m aioria inencontrvel.
O m ovim ento de Maio, em que os operrios em greve e os estudantes
revoltados se tinham m om entaneam ente cruzado (no dia 13 no grande cortejo
que atravessou Paris), extinguiu-se pouco a pouco. Os operrios, uma vez satis
feitas as suas reivindicaes essenciais em Grenelle, retom aram pouco a
pouco, p o r vezes com relutncia, o seu trabalho. Os estudantes dem oraram
mais tem po a aceitar a derrota: mas acabaram, com a evacuao do O don e
da Sorbonne, p o r baixar os braos. Era um grande sonho cpie abortav a. Toda
via no desapareceu das m em rias. Conservou-se, conservar-se- por muito
tem po a recordao desse ms de Maio, em que toda a gente estava na rua.
onde reinava uma verdadeira fraternidade, onde qualquer pessoa podia falar
com t]ualquer pessoa, com o se se conhecessem desde sempre, onde tudo se
tornara de sbito natural, onde todos pensavam que a im aginao estava no
potler e que p o r baixo das pedras da calada havia a suavidade das praias
Depois de Maio, o mov im ento estudantil assumiu a form a de seitas, ou de
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antes de publicar as suas conversas com Sartre que o tom ara com o secretrio
particular.
O verdadeiro esquerdism o. o esquerdisnu; operrio, anarco-sindicalista e
populista, refugiou-se noutros lugares: num a parte do Fsp na CFDT. Mas
esta era um a \'erdade ejue os estudantes france^c' no queriam reconheer: h
dois esejuerdismos, um m uito amigt). o e-querdism o operrio, e outro muito
recente, o esquerdism o estudantil, e encjuanto o prim eiro que faz parte do
m ovim ento operrio tem possibilidades de futuro, o segundo no pode, se
gundo os seus princpios, deixar de afastar-se do m ovim ento operrio. A situa
o diferente em Itlia e em Espanha, por razes histricas, pois ejue a po d e
m os ver, ;i esquerda d(t Partido Com unista, form aes polticas com uma base
no apenas estudantil mas tam bm operria, o que actualm ente impossvel
e im penst el em Frana, com o bem sabe a direco do Partido francs tendo
dado p ro \as disso m esm o com a sua tctica em Maio de 68 e posteriorm ente.
Bastou-lhe fechar-se na sua fortaleza operria, a C(>T e o Partido, para que se
decom pusesse por si, apesar das im precaes, o esquerdism o estudantil,
m aosta ou no maosta.
Devo falar aqui de uma iniciatic a que tom m os em grupo na Primavera de
1967: fundar um grupo de trabalho a que dem os o nome, transirarentc, de ,Spi-
noza, A m aior parte dos meus amigos participaram , m em bros do Partido ou
no. Foi um a experincia interessante porcjue proftica. Estvamos na altura
convencidos de que as coisas se desencadeariam na fnixersidade, O resultado
seria um livro, assinado apenas por Baudelot e Fstablet po r razes de dix ergn-
cia poltica, sobre A Escola C apitalista em Eya)ia. E um outro grande traba
lho de Bettelheim sobre as lutas de classes na l RSS.
Em preendram os tambm um estudo das relaes de luta de classes em
Frana mas que, po r falta de meios e de tempo, no pde ser concludo.
O grupo acabou po r se d isso h e r por si (em consequncia de uma das minhas
depresses e da conjuntura, e da sada de Alain Badiou. um dos nossos mais
brilhantes colaboradores, que decidiu que era necessrio preparar a reunifica
o dos grupos maostas em Frana a fim de renovar o Partido). Badiou
publica actualm ente na M aspero uns fascculos interessantes, onde descobri
m os curiosam ente a fiktsofia sartriana da revolta que ele nunca renegou, ao
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burguesas, Esta ltim a determ inao era evidentem ente de longe a mais im p o r
tante. Portanto era preciso pensar e aceitar a natureza ideoltgica de ciasse d>
substrato da teoria burguesa da econom ia poltica, Mas era preciso ao mesm.
tem po aceitar reconhecer cjue esta form ao da ideologia burguesa se apresen
tara sttb a forma de um a teoria, abstracta, rigorosa e at, em certo sentid-
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form al, cientfica. Foi assim que Marx tratou o pensam ento de Ricardo, e
m esm o de Smith, na iluso de que essas teorias tinham podido ser cientficas
porque a luta de classes conhecera um perodo de trcy u a' em Inglaterra sc t.
tese tiue toda a obra de Marx desmente, F ne-ta ikoo que hoje se me afigura
indispensvel procurar, no prprio Marx, e no ap en a' nas o h ra' de jtoxmtude
mas em O C apital, a origem de num erosos m al-entendidos, que lecarana a
um a m interpretao do m arxism o, ou sua falsificao \ oluntria. 'Iodaria
a ideia simples segundo a qual. se Marx fundou de tacto uma cincia, essa
cincia, com o qualcpter cincia, derer ser. seno revista, pelo m enos reto
m ada, os seus princpios m elhor fundam entados e as suas concluses tornadas
mais precisas, pode ser fecunda. O resultado ser uma enorm e sim plificao
de um a obra acerca da qual .Marx pensou, na m esm a iluso, que o seu
comeo seria rduo, ettmo em qualquer cincia, o que falso; uma reviso
da 1.* seco do Lir ro I do C apita! para que chamei a ateno h vrios anos,
e sobretudo a distino cuidados entre o que Marx escreveu em O C ap ita i e
nos seus rascunhos de leitura, com o as 'lorias da mais-valia, onde muitas
\ezes se contenta com copiar pura e sim plesm ente os textos de Smith sobre o
trabalhador produtivo, por exempk), teoria, distinta da do trabalho produtivo,
que desaparece do C apitai. Haveria po r certo m uito mais coisas a dizer, e eu
tentarei diz-las, acerca de todos estes mal-entenditU)s cuidadosam ente alim en
tados po r gente dem asiado interessada na falsificao da obra de Marx.
Contentar-m e-ei de m om ento com algumas palavras sobre a questo da
filosofia m arxista. Depois de ter durante m uito tem po pensado que ela existia,
mas que Marx no tivera tem po para a formular, ou depois que no tivera os
m eios necessrios para iss(t. depois cie ter pensado durante m uito tem po que
bem vistas as coisas, e apesar de .Materi^ilismo e E!pirocritici.c?>/o. tam bm
Lenine no tivera tem po ou. mais tarde, os meios necessrios para a sua for
mulao, cheguei com dificuldade a uma ideia dupla, Primeiro, contraria
m ente ao que eu julgara e afirmara. Marx no descobrira uma filosofia nova,
no estilo da sua descoberta das leis da luta de classes mas adoptara uma
nova posio em filosofia, portanto num a realidade (a filosofia) que existia
antes dele e que continua a existir depois dele. Em seguida, esta posio nova
ligava-se em iiltima instncia sua posio terica de classe. .Mas se esta ltim a
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proposio fosse verdadeira, implicava que toda a filosofia (pelo m enos toda
a grande filosofia, e talvez at as peciuenas) era determ inada em ltim a anlise
pela sua posio de classe, e portanto a filosofia, tom ada no seu conjunto, no
passava, em ltim a instncia, de luta de classes na teoria, luta de classes c o n
tinuada. com o Engels bem vira. no interior da teoria. Naturalmente, esta tese
colocava problem as temveis, no s no cjue diz respeito aos incios da filoso
fia, mas cjuanto s formas desta luta de classes, e t|uanto s relaes evidentes
entre a filosofia e as cincias. Portanto era necessrio reconhecer que a filoso
fia no exclusiva dos filsofos de profisso, no a sua propriedade privada,
mas p rpria de qualquer hom em (todo o hom em filsofo, Gramsci). C on
tudo era preciso reconhecer filosofia dos filsofos uma form a particular, a
da abstraco sistem tica e rigorosa, diferentem ente das ideologias (religiosa,
moral, etc.), e reconhecer tjue no lab o ra t rio da filo s o fia dos fil so fo s
alguma coisa se elabora que no coisa nenhum a, mas tem efeitos no dom nio
das ideologias cjuc so a parada seguinte das lutas de classes filosficas. Que
poderia ser esse qualquer coisa que se elabora assim no laboratrio da filosofia
dos filsofos ' Durante m uito tem po pensei que se tratava de um a e.spcie de
com prom isso, de remendo, destinado a reparar no tecido filosfico os estra
gos feittts pela irrupo das cincias (acarretando os cortes epistem olgicos
rupturas filosficas) na unidade filosfica anterior. Mas dei-m e conta de c)ue as
coisas eram m enos m ecnicas, e de que a filosofia tinha, com o toda a histria
testem unha, uma relao com o Estado, com o poder do aparelho de Estado,
m uito precisam ente com a constituio, quer dizer, com a unificao, a siste-
m atizao da ideologia dom inante, pea m estra da hegem tm ia ideolgica da
classe no poder. Re\elou-se-m e ento que a filosofia dos filsofos assumia o
papel de contribuir para unificar com o ideologia dom inante, tanto para uso da
classe dom inante com o para uso da classe dom inada, os elem entos co n tra d it
rios de ideologia que toda a ciasse dttm inante descobre ao chegar ao poder
diante dela, ou contra ela.
A p artir desta perspectiva, as coisas tornavam -se relativam ente ciaras, ou
pelo m enos inteligveis. C om preendia-se que todo o hom em fosse filsofo
uma vez ejue vi\ ia sob um a ideologia im pregnada de consequncias filosfi
cas. efeito do trabalho filosfico de unificao da ideologia em idectlogia
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dom inante. C om preendia-se tambm que fosse necessrio classe dom inante
que existissem filsofos profissionais, trabalhando em e ista dessa unificao.
C om preendia-se finalm ente que houvesse categorias filosfica' cm aco na
prtica cientfica, um a vez que nenhum a cincia do m undo sc d c se n \o h e ,
nem a p rpria m atem tica, fora quer das ideologia' reinantes, quer da luta
filosfica, que tem com o alvo a constituio da ideologia domin.ante em ideo
logia unificada. As coisas antes obser\aida' ordenar am -'e a " im . c comer^a-
m os a entender o singular silencio de Marx e de Lenine, com o os fracassos dos
filsofos (com o Lukcs) que cm ralo haram tentado c o n 'titu ir uma filosofia
m arxista, ou por m aioria de razo d aq u ele' que tinham degradado icom o fista-
line e os seus mulos) a filosofia em simples ideologia de justificao pragm
tica. Marx e Lenine tinham podido calar-se a respeito da filosofia, uma rez que
lhes bastar a adoptarem uma posio de classe proletria para tratarem em c o n
form idade as categorias filosficas de que precisaram , quer para a cincia da
luta de classes (o m aterialism o histrico), quer para a prtica poltica. O que
no quer naturalm ente dizer que no seja necessritt aprofundar a elaborao
dos efeitos filosficos dessa posio de classe proletria, mas a tarefa assumia
agora um aspecto com pletam ente diferente: nt) se tratava de fabricar uma
n o ra filosofia na form a clssica da filosofia, mas de remodelar, a partir das
novas posies, as categorias existentes, e que existem em toda a histria da
filosofia. As palavras de Marx em A Ideologia A lem , a filosofia no tem his
tria. ganhar a ento um sentido inteiram ente novo, inesperado, uma r ez que
em toda a histria da filosofia que se repete a mesm a luta, aquilo a que eu
utrora chamar a ainda o m esm o traado de dem arcao, o m esm o r azio de
um a distancia assumida. E ento podam os partir em busca, em toda a h ist
ria da filosofia, dos m elhores traados, que no so forosam ente os de data
mais recente. Ento podam os atribuir um sentido m aterialista r elha intuio
espiritualista de p h ilo so p b ia pereiinis. com a diferena de que para ns a
eternidade em causa no passara da repetio da luta de classes. No, a filo
sofia no , com o pretendia ainda o jovem .Marx. neste ponto discpulo fiel de
Hegel, a conscincia de si de um a poca histrica, o lugar de um a luta de
classes que se repete e que s atinge as suas formas mais aproxim adas em cer
tos m om entos da histria, em certos pensadores: para ns, antes do mais.
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mas est quase term inado hoje, e posso falar um pouco do assunto. Redescobri
por mim aquilo que Freud descret e nos seus li\ ros, a existncia dos fantasmas
inconscientes, a sua extrem a pobreza de princpio, c a extrem a dificuldade em
negociar o seu apagam ento progressito. Tudo se passar a cm rosto a rosto, e
para aum entar as dificuldades, o m esm o hom em js.issou a receber tambm
Hlne, mas m uito mais tarde, e som ente uma \ez por semana, durante meia
hora. H ouve episdios dram ticos, umas quinze depresses, e tam bm
m om entos pouco duradouros de exaltao man.ca em que eu fazia tudo e
mais alguma coisa. Punha-m e por exem plo a roubar, no para possuir, mas
laia de dem onstrao.
De \'0 dizer aqui algumas pala\ ras sobre a m inha anlise. Pertena.) a uma
gerao, ou pelo m enos a uma cam ada social, que no sabia que a anlise exis
tia, e que podia curar as neuroses e ;it psicoses. Entre lh a s e hoje. muitas coi
sas a este respeito m udaram em Frana. J disse com o entrei em contacto com
um m dico que trataea por m eio de narcose. e com o uma amiga m uito querida
m e convenceu um dia a ir consultar D. que tem costas suficientem ente largas
para ti. De facto, tinha que ter as costas largas para me ajudar a arranjar uma
sada, um a \ ez que as coisas se prolongaram por quinze anos: de depresses,
quer dizer, na realidade de resistncias. Nada to simples com o os elem entos
inconscientes a partir dos quais o analista trabalha, mas nada to com plicado
com o as suas com binaes individuais. Com o um amigo me disse um dia. o
inconsciente com o o tric, com a mesm a l os pontos podem \a ria r at ao
infinito. Q uanto a mim, o que em breve emergiu foram, com o sempre, fantas-
m as-encobridores, e principalm ente o duplo tema do artifcio, e do pai do pai.
Tinha a im presso de s por im postura ter conseguido fazer tutk) o que conse
guira fazer na \ ida: antes do mais os meus xitos escolares, um a vez que
copiara provas, e inventara citaes para ter sucesso. E com o s seguia os meus
m estres para lhes dem onstrar que era m elhor do que eles. a im postura e a \it)-
ria assim conseguida eram uma s e a mesm a coisa. Remo longam ente estes
temas, quando outros apareceram . Antes de tudo o m edo do sexo feminino,
abism o onde m e podia perder sem regresso, o m edo das m ulheres, o m edo da
me, essa me que no parava de gem er por causa da sua \ ida, e que sem pre
tivera na cabea um hom em puro ao qual se confiar a o n o iro m orto durante
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