Isaac Bashevis Singer - O Mago de Lublin
Isaac Bashevis Singer - O Mago de Lublin
Isaac Bashevis Singer - O Mago de Lublin
Drio de Notcias
Digitalizao e Arranjo
Agostinho Costa
Dirio de Notcias
O Mago de Lublim
O Mago de Lublim
I.
1.
Naquela manh, Yasha Mazur, ou o Mago de Lublim, como era conhecido em toda a
parte, salvo na sua terra natal, acordou cedo. Depois de regressar de viagem,
passava sempre um dia ou dois na cama; o seu cansao exigia que se entregasse a um
sono contnuo. A sua mulher, Esther, trazia-lhe bolinhos, leite e um prato de papas
de aveia. Ele comia e repetia. O papagaio berrava; Yoktan, o macaco, resmungava; os
canrios assobiavam e trinavam, mas Yasha, no lhes prestando ateno, limitava-se
a recomendar a Esther que desse gua aos cavalos. No precisava preocupar-se com
tais recomendaes, pois ela lembrava-se sempre de tirar gua do poo para Kara e
Shiva, a parelha de mulas cinzentas, ou P e Cinzas, como Yasha os alcunhava.
Embora Yasha fosse um mago, era considerado rico; possua uma casa e, com ela,
celeiros, silos, estbulos, um palheiro de feno, um quintal com duas macieiras e
at uma horta onde Esther cultivava os seus legumes. S no tinha filhos. Esther
no podia conceber. Em tudo o mais era uma boa esposa: sabia tricotar, fazer um
vestido de noiva, cozer po de gengibre e tartes, cortar o pio a uma galinha,
aplicar uma ventosa ou sanguessugas e at sangrar um doente. Quando era mais nova
experimentara toda a espcie de remdios para a esterilidade, mas agora era tarde
de mais - tinha quase quarenta anos.
Como todos os magos, Yasha era tido em pouca conta pela comunidade. No usava barba
e s ia sinagoga no Rosh Hashonah e no Yom Kippur, isto , se por acaso calhava
estar em Lublim nessa altura. Esther, pelo contrrio, usava o leno
*1. Cozinha especial para a preparao de refeies segundo o rito judaico. (N. da
T.)
como deveria ter feito, e sem sequer ter dito as oraes da manh. Vestiu calas
verdes, calou chinelos de quarto vermelhos e um casaco de veludo preto decorado
com cequins de prata. Enquanto se vestia, assobiava aos canrios, falava com
Yoktan, o macaco, com Haman, o co, e com Meztotze, o gato. E esta era s parte dos
habitantes domsticos. No quintal tinha um pavo e uma pavoa, um casal de perus,
uma ninhada de coelhos e at uma serpente que tinha de ser alimentada todos os dias
com um rato vivo.
Era uma manh quente, mesmo antes do Pentecostes. J brotavam no jardim de Esther
rebentos verdes. Yasha abriu a porta do estbulo e entrou. Inalou profundamente o
odor a estrume de cavalo e acariciou as guas. Escovou-as e deu de comer aos outros
animais. s vezes, quando voltava de viagem, sabia que um dos seus animais
preferidos morrera, mas desta vez no houvera mortes.
Sentia-se bem disposto e vagueava sem destino pela sua propriedade. A erva do
quintal estava verde e ali crescia uma quantidade de flores: amarelas, brancas,
botes salpicados e rebentos em tufos, que voavam com a brisa. Os galhos e cardos
chegavam quase ao telhado do alpendre. As borboletas esvoaavam de um lado para o
outro e as abelhas zumbiam de flor em flor. Cada folha e cada haste tinha o seu
habitante: uma minhoca, um escaravelho, um mosquito, criaturas que mal se viam a
olho nu. Como sempre, Yasha ficou maravilhado perante elas. De onde provinham? Como
existiam? Que faziam de noite? Morriam no Inverno, mas no Vero apareciam novamente
as larvas! Como que isso acontecia? Quando estava na taberna, Yasha fazia-se de
ateu, mas acreditava realmente em Deus. A mo de Deus era visvel em toda a parte.
Cada flor de um fruto, cada seixo, cada gro de areia O proclamava. As folhas das
macieiras estavam molhadas de orvalho e luz matinal brilhavam como pequenas
velas. A sua casa ficava na periferia da cidade e dali avistava os verdes campos de
aveia que dentro de seis semanas estariam de um amarelo-ouro, prontos para a ceifa.
Quem criara tudo aquilo? Yasha perguntava-o a si mesmo. Seria o Sol? Se assim era,
ento talvez o Sol fosse Deus. Yasha lera em qualquer livro santo que antes de
aceitar a existncia de Jeov, Abrao adorara o Sol.
No, ele no era um iletrado. Seu pai fora um homem culto e Yasha, em rapaz, at
estudara o Talmude. Depois da morte do pai, fora aconselhado a prosseguir o estudo,
mas, em vez disso, juntara-se a um circo ambulante. Era meio judeu e meio pago -
nem judeu, nem pago. Fizera a sua prpria religio.
10
2.
11
com uma piscadela de olho. Depois voltou novamente a comer, mastigando enquanto o
seu olhar se perdia na distncia para l dela. As suspeitas nunca a abandonavam,
mas ele nada confessava, reafirmando-lhe depois de cada viagem que acreditava num
s Deus e numa s esposa.
- Os que andam com mulheres no podem caminhar no arame. E em terra firme a muito
custo que se arrastam. Sabes isso to bem como eu - replicou Yasha.
- Como que posso sab-lo? - perguntou ela. - Quando andas em viagem no estou aos
ps da tua cama.
O sorriso que ela lhe ofereceu tinha um misto de afeio e ressentimento. Ele no
podia ser vigiado como os outros maridos - passava mais tempo em viagem do que em
casa, encontrava todo o tipo de mulheres, vagueava mais do que um cigano. Sim, era
mais livre do que o vento, mas, graas a Deus, voltava sempre para ela e sempre com
algum presente na mo. A avidez com que a beijava e abraava dava-lhe a entender
que vivera uma vida de santo na sua ausncia, mas o que podia uma simples mulher
saber dos apetites do macho? Muitas vezes, Esther lamentava ter casado com um mago
em vez de um alfaiate ou um sapateiro ou com algum que ali estivesse sentado todo
o dia debaixo de vista. Porm, o seu amor por Yasha persistia. Ele era para ela
simultaneamente filho e esposo. Cada dia com ele era um dia de festa.
Esther continuou a observ-lo enquanto comia. Fazia coisas sempre diferentes das
outras pessoas. Quando comia, parava por vezes, como se estivesse mergulhado em
profundos pensamentos, recomeando depois a mastigar. Outro dos seus estranhos
hbitos era brincar com um pedao de fio, fazendo-lhe descuidadamente ns, mas com
tal percia que ficava um espao exactamente igual entre cada n. Esther fixava-o
muitas vezes nos olhos, como que tentando desvendar-lhes o mistrio, mas a sua
impassividade desarmava-a sempre. Ele escondia muita coisa, raramente falava a
srio e ocultava sempre os seus desgostos. Mesmo quando estava doente continuava a
andar a p ardendo em febre e Esther nem dava por isso. Muitas vezes, ela
interrogava-o sobre as actuaes que o tinham tornado famoso por toda a Polnia,
mas ele ora se furtava s perguntas com uma curta resposta, ora lhe fugia com um
gracejo. Por vezes, estava com ela na maior intimidade, para no momento seguinte se
mostrar absolutamente distante, e nunca ela se cansava de perscrutar cada um dos
seus movimentos, cada palavra, cada gesto. Mesmo quando ele estava com disposio
exuberante
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e tagarelava como um rapazito, tudo quanto dizia tinha significado. Por vezes, s
depois de ele se ter feito ao caminho novamente que Esther compreendia o que ele
quisera dizer.
Estavam casados havia vinte anos, mas ele era to brincalho com ela como nos
primeiros dias depois do casamento. Puxava-lhe o leno, beliscava-lhe o nariz,
tratava-a por diminutivos que ela sabia pertencerem ao calo dos msicos, tais como
Jerambola, Pussyball e Goose Cizzard. Os dias eram uma coisa, mas as noites eram
outra. Havia momentos em que gritava de xtase como um ganso, grunhia como um
porco, relinchava como um cavalo e em seguida quedava-se inexplicavelmente
melanclico. Em casa passava a maior parte do tempo no quarto, entretido com o seu
material: cadeados, cadeias, cordas, limas, pinas e todo o gnero de bugigangas.
Os que presenciavam os seus truques falavam da facilidade com que eram executados,
mas Esther era testemunha dos dias e das noites passados a aperfeioar a sua
parafernlia. Vira-o treinar um corvo a falar como um homem; vira-o ensinar Yoktan,
o macaco, a fumar cachimbo. Ela temia ao v-lo trabalhar demasiado ou pensando que
algum dos animais poderia mord-lo, ou que pudesse cair do arame. Para Esther, tudo
aquilo era feitiaria. At de noite, na cama, ela o ouvia estalar a lngua ou os
dedos dos ps. Os seus olhos eram como os do gato; conseguia ver no escuro; sabia
encontrar objectos perdidos; at era capaz de ler os pensamentos dela. Um dia, ela
tivera uma discusso com uma das costureiras, e noite, j muito tarde, ao chegar
a casa, Yasha mal tivera tempo de lhe falar e j tinha adivinhado que ela discutira
naquele dia. De outra vez, ela perdera a aliana e procurara-a por toda a parte
antes de lhe dizer que a tinha perdido. Ele pegara-lhe na mo e levara-a direita
pipa de gua em cujo fundo estava a aliana. H muito que chegara concluso de
que nunca seria capaz de lhe adivinhar toda a sua complexidade. Ele possua poderes
ocultos e tinha mais segredos do que a sagrada rom de Rosh Hashonah tem de
sementes.
3.
Era meio-dia e a taberna de Bella estava quase deserta. Bella dormitava na diviso
das traseiras, enquanto a sua empregada, a pequena Zipporah, servia ao balco.
Tinha sido espalhada no cho serradura fresca e sobre o balco tinham posto ganso
assado, perna
de vitela com geleia, arenque cortado, bolinhos de ovo
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e biscoitos. Yasha sentou-se mesa com Schmul, o msico. Schmul era um homem
grande, de cabelo preto emaranhado, de olhos negros, suas e um bigode fino.
Vestia-se maneira russa: blusa de cetim, cinto ornado com borlas e botas altas.
Schmul trabalhara para um nobre de Zhitomir, mas, como se meteu com a mulher do
mordomo, teve de fugir. Era considerado o mais competente violinista e tocava nos
melhores casamentos. Aquela, contudo, era a poca dos casamentos, entre a Pscoa e
o Pentecostes. Schmul tinha na sua frente uma caneca de cerveja. Estava encostado
parede, com um olho revirado para cima e o outro contemplando a bebida, como que na
dvida quanto a beber ou no. Sobre a mesa estava um po e sobre o po uma mosca de
um verde-dourado, que parecia tambm hesitante quanto deciso a tomar: voar ou
no?
Yasha ainda no tocara na cerveja. Parecia absorvido pela espuma. Uma a uma as
bolhas desintegravam-se no copo brilhante, at que ficou cheio apenas at trs
quartos. Yasha murmurou: "Aldrabice, aldrabice, bolhas, bolhas". Schmul tinha
acabado de tagarelar acerca de uma das suas aventuras amorosas, e naquele momento,
entre o fim de uma histria e o comeo de outra, os dois homens mantiveram-se
calados, com ar pensativo. Yasha gostava de ouvir as histrias de Schmul; se
quisesse, poderia responder-lhe letra, mas, com o prazer evocado pela histria de
Schmul, adveio-lhe um sentimento corrosivo e agourento de dvida. "Partamos do
princpio de que ele est a dizer a verdade", pensou, "ento quem que iludiu
quem?" Disse ento alto:
- C a mim no me parece grande triunfo. Capturaste um soldado que queria render-
se...
- Bom, tm de ser capturados no momento exacto. Em Lublim no to fcil como
pensas. Vs uma rapariga. Ela quer-te, tu quere-la - o problema est em como h-de
o gato saltar a sebe? Imagina que ests num casamento; depois da festa ela vai para
casa com o marido e tu nem sequer sabes onde ela mora. E mesmo que saibas, de que
te serve? H a me dela, a sogra, as irms, as cunhadas. Tu no tens esses
problemas, Yasha. Uma vez fora dos portes da cidade, o mundo teu.
- Certo, vem ento comigo.
- Levavas-me?
- Fao-te mais. Pago-te as despesas.
- Sim. E que diria Yentel? Quando um homem tem filhos, deixa de ser livre. No me
acreditas, mas ia ter saudades dos midos.
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Se saio da cidade por meio dia fico meio maluco. Consegues perceber isto?
- Eu? Eu percebo tudo.
- Sem querer s apanhado. como se pegasses numa corda e te atasses com ela.
- Que farias se a tua mulher se portasse como aquela de que me falaste?
A cara de Schmul tornou-se repentinamente sria.
- Acredita que a esganaria - e, erguendo a caneca at aos lbios, esvaziou-a.
"Bom, no diferente dos outros", pensou Yasha, enquanto sorvia a cerveja.
"Andamos todos ao mesmo. Mas como que isto acontece?"
Tambm Yasha, havia algum tempo, se vira envolvido no mesmo dilema. Preocupava-o
dia e noite. Sempre fora um introspectivo, dado a fantasias e a estranhas
conjecturas, mas desde que aparecera Emilia nunca mais a sua mente sossegara. Tinha
passado a ser um filsofo permanente. Naquele momento, em vez de engolir a cerveja,
fazia o seu travo amargo passar-lhe pela lngua, pelas gengivas e pelo palato.
Cometera outrora todas as diabruras da juventude, ligara-se e desligara-se em
inmeras ocasies, mas, l bem no fundo, o casamento permanecera para ele como uma
coisa sagrada. Nunca escondera que tinha mulher e sempre deixara bem claro que nada
faria para pr em jogo essa relao. Porm, Emilia exigia-lhe que sacrificasse
tudo: o lar, a religio e nem s isso era pedido. De qualquer maneira, tinha de
juntar considervel soma de dinheiro. Mas como poderia conseguir tal coisa
honestamente?
"No, tenho de pr termo a isto e quanto mais depressa melhor", pensava.
Schmul encaracolava o bigode e molhava-o com saliva, de modo a pr as pontas bem
afiadas.
- Como est a Magda? - perguntou-lhe. Yasha acordou do sonho.
- Como que havia de estar? Est na mesma.
- A me dela ainda viva?
- Sim.
- Ensinaste alguma coisa rapariga?
- Algumas coisas.
- O qu, por exemplo?
- capaz de voltear um barril com os ps e sabe dar cambalhotas.
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- S isso?
- S isso.
- Mostraram-me um jornal de Varsvia e tinha que se lhe dissesse. Que barulheira!
Dizem que s to bom como o mago de Napoleo Terceiro. Que ligeireza de mos, heim
Yasha? s realmente um mestre na arte de enganar.
As palavras de Schmul irritaram-no; Yasha no gostava de discutir a sua arte e por
uns minutos entrou em conflito consigo, acabando por decidir: "No lhe respondo
nada". Mas disse alto:
- Eu no engano ningum.
- No, claro que no. Engoles mesmo a espada.
- Claro que engulo.
- Vai contar essa tua tia.
- Meu palerma, como pode algum enganar os olhos? Ouviste a palavra enganar e ficas
para a a repeti-la como um papagaio. Sabes o que que a palavra quer dizer? Olha,
a espada entra mesmo pela garganta e no pelo bolso do casaco.
- A lmina entra-te na garganta?
- Primeiro na garganta e depois no estmago.
- E ficas vivo?
- At agora fiquei.
- Oh, Yasha, por favor no queiras que eu acredite nisso! - Quero l saber no que
acreditas! - disse Yasha, subitamente cansado. Schmul no passava de um fala-barato
que no era capaz de pensar por si s. "Vem com os seus prprios olhos e no
acreditam", pensou Yasha. Quanto a Yentel, mulher de Schmul, sabia certas coisas
que poriam aquela cabea-de-pedra maluco. Bem, toda a gente tem algo que guarda s
para si. Cada um tem os seus segredos. Se o mundo soubesse do que ia l por dentro
dele, havia muito que Yasha teria sido internado num manicmio.
4.
O crepsculo descia. Para l da cidade havia ainda alguma luz, mas entre as
estreitas ruas e os altos edifcios j estava escuro. Tinham-se acendido nas lojas
as candeias de azeite e as velas. Judeus barbudos, vestidos com capas compridas e
calando botas largas, iam pelas ruas a caminho das oraes da noite. Erguia-se uma
nova Lua, a Lua do ms de Sivan. Havia ainda poas nas ruas, vestgios das chuvas
primaveris,
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apesar de o sol ter brilhado durante todo o dia sobre a cidade. Aqui e alm as
sarjetas tinham transbordado com gua malcheirosa; o ar cheirava a estrume de
cavalo e de vaca e a leite fresco sado dos beres. Saa fumo das chamins; as
donas de casa andavam atarefadas na preparao da refeio da noite: aveia com
sopa, aveia com guisado, aveia com cogumelos. Yasha despediu-se de Schmul e
encaminhou-se para casa. Para l de Lublim o mundo era uma confuso. Todos os dias
os jornais polacos anunciavam guerra, revoluo, crise. Por toda a parte os judeus
estavam a ser levados a sair das suas aldeias. Muitos estavam a emigrar para a
Amrica. Ali, em Lublim, porm, sentia-se a estabilidade de uma comunidade radicada
havia muito tempo. Muitas das sinagogas da cidade tinham sido construdas havia
muito, ainda no tempo de Chmelnicki. No cemitrio estavam sepultados rabis, assim
como bem conhecidos autores de comentrios, legistas e santos, cada um sob o seu
tmulo ou o seu jazigo. Ali prevaleciam os velhos costumes: as mulheres dirigiam o
negcio e os homens estudavam o Tora.
Faltavam ainda alguns dias para o Pentecostes, mas os rapazes do cheder(1) j
tinham decorado as montras com numerosos desenhos e recortes; havia tambm pssaros
modelados em massa e com casca de ovo; do campo tinham trazido ramos e folhas para
festejar o dia santo, aquele em que o Tora fora entregue no Monte Sinai.
Yasha parou junto de uma das casas de orao e espreitou l para dentro. Os fiis
entoavam as oraes da noite. Ouvia um zumbido tranquilo; estavam a dizer as
dezoito bnos do Santssimo. Os judeus piedosos que serviam o seu Criador batiam
todo o ano no peito, proclamando: "Pecmos. Prevaricmos". Uns erguiam as mos e
outros os olhos ao cu.
Um velho de gabardina, com um chapu de copa alta sobre dois solidus, um sobre o
outro, agarrava-se barba e salmodiava lentamente. Nas paredes danavam as sombras
luz da vela memorial colocada no menorah. Yasha deteve-se por momentos junto da
porta aberta, aspirando a mistura de cera, sebo e algo de bolorento - algo que ele
recordava desde a infncia. Judeus - toda uma comunidade - falavam a um Deus que
ningum via.
Apesar de as ddivas d'Ele para com eles serem pestes, fomes, pobreza e
perseguies, denominavam-No piedoso e compassivo
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18
Algum o acotovelou. Era Haskell, o carregador de gua, com dois baldes cheios
pendurados na canga. Parecia ter brotado da terra. A sua barba ruiva parecia ir
colher, no se sabe onde, raios de luz.
- Haskell, s tu?
- Quem havia de ser?
- No j muito tarde para andares a carregar gua?
- Preciso de dinheiro para as festas.
Yasha remexeu nos bolsos, encontrou uma moeda de vinte groschen.
- Toma, Haskell.
Haskell mostrou-se indignado.
- Que isso? No aceito esmolas.
- No uma esmola, para o teu mido comprar um bolo de manteiga.
- Certo. Aceito e... obrigado.
E os dedos sujos de Haskell misturaram-se por momentos com os de Yasha.
Yasha chegou a casa e olhou l para dentro pela janela. As costureiras estavam a
trabalhar no enxoval de uma noiva. Os dedos com dedal cosiam rapidamente. luz da
candeia, o cabelo ruivo de uma das costureiras parecia incendiado. Esther andava
atarefada de volta do fogo, deitando tronquinhos de pinheiro sob a trempe, em cima
da qual o jantar cozia. No centro da sala havia um alguidar de massa coberto com
trapos e com uma almofada; Esther ia fazer dali uma quantidade de bolinhos de
manteiga para o Pentecostes. "Poderei deix-la?", pensou Yasha. "Foi ela o meu
apoio durante todos estes anos. Se no fosse a sua dedicao, h muito que j me
tinha perdido como uma folha no vendaval..."
No foi logo para o quarto, foi antes pelo corredor at ao ptio para deitar uma
olhadela s mulas. O quintal era como que um retalho de horta no meio de uma
cidade. A erva estava orvalhada, as mas verdes e duras, mas j cheirosas. Aqui o
cu parecia mais baixo, mais densamente recamado de estrelas. Quando Yasha entrou
no ptio, houve uma estrela que, algures no espao, se desprendeu e caiu
vertiginosamente deixando um rasto de fogo. O ar tinha um cheiro semi-doce, semi-
acre, impregnado de sussurros, de agitao e do cricri dos grilos, que de vez em
quando se transformava num toque forte de campainha. Os ratos do campo corriam por
ali. As toupeiras tinham cavado tocas no cho, havia ninhos de pssaros nos ramos
das rvores, no celeiro e nos beirais do telhado.
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Todas as noites a passarada debicava por cima do to disputado portal. Yasha
respirou fundo. Estranho, que cada estrela fosse maior do que a Terra e a milhes
de milhas de distncia. Se algum cavasse uma vala com milhes de milhas de
profundidade, chegaria Amrica... Abriu a porta do estbulo. Os cavalos
destacavam-se indistintamente, envoltos na escurido. Os olhos de enormes pupilas
estavam salpicados de ouro ou de fogo. Yasha recordou o que o seu pai (que esteja
em descanso) lhe dizia: que os animais conseguiam ver as foras do mal. Kara
sacudiu a cauda e bateu no cho. Uma tocante afeio animal emanava da gua para o
seu dono.
5.
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"Como pode ela acreditar nisto?", perguntava-se. "No, ela est s a fingir. Todos
esto a fingir. Toda a gente encena uma farsa porque todos tm medo de dizer: "No
sei"."
Caminhava para trs e para diante. Os seus pensamentos eram sempre estimulados
quando ficava sozinho em casa, enquanto os outros estavam no templo. Como que
aquilo acontecera? Seu pai sempre fora um judeu piedoso, um pobre negociante de
quinquilharias. Sua me morrera quando Yasha tinha sete anos e seu pai no voltara
a casar; o rapaz tivera de se criar. Ia um dia para o cheder e escapava-se nos trs
dias seguintes. Havia na loja do seu pai uma quantidade de cadeados e chaves e
Yasha sempre se interessara por eles. Lutava e remexia um cadeado at ser capaz de
o abrir sem chave. Quando vinham a Lublim magos de Varsvia e de outras grandes
cidades, Yasha seguia-os de rua em rua, observando-lhes os truques e tentava depois
imit-los. Se via algum fazer um truque de cartas, punha-se a brincar com um
baralho at ser capaz de o fazer. Via um acrobata caminhar no arame e ia logo para
casa para o imitar. Quando caa, voltava a subir. Trepava ao cimo dos telhados,
nadava em guas fundas, saltava de varandas (para cima da palha tirada dos colches
depois da Pscoa), mas o certo que nunca se magoava. Aldrabava as oraes e no
respeitava os sbados, mas continuava a acreditar que um anjo-da-guarda o vigiava e
protegia do perigo. Apesar da sua reputao de incrdulo, de tratante e de
selvagem, Esther, uma rapariga respeitvel, tinha-se apaixonado por ele. Deambulou
com um circo como treinador de ursos e at com uma troupe ambulante de polacos que
actuava em tendas, mas Esther esperara por ele pacientemente, perdoando-lhe todos
os pecadilhos. A ela devia ter um lar e um estatuto. O facto de saber que Esther
esperava por ele desenvolvera-lhe o desejo de subir de condio, de aspirar a um
circo de Varsvia ou a teatros de Vero, para se tornar famoso por toda a Polnia.
Naquele momento j no era um ambulante annimo que anda pelas ruas de acordeo e
macaco - era um artista. Os jornais louvavam-no, chamavam-lhe "mestre, um grande
talento"; cavalheiros e grandes damas vinham aos bastidores cumpriment-lo. Todos
diziam que se vivesse na Europa Ocidental seria j mundialmente conhecido.
Os anos tinham passado nem ele sabia onde. Por vezes, sentia-se como um garoto;
outras vezes, parecia ter centenas de anos. Sozinho aprendera polaco, russo,
gramtica e aritmtica; j lera obras sobre lgebra, fsica, geografia, qumica e
histria. Tinha a mente cheia de factos, datas e informaes. Lembrava-se de tudo e
no esquecia nada.
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Para ele, um olhar definia-lhe o carcter de uma pessoa. Bastava algum abrir a
boca, para Yasha saber o que ia dizer. Conseguia ler de olhos vendados, era perito
em mesmerismo, magnetismo e hipnotismo. Mas o que acontecia entre ele e Emilia - a
viva bem-nascida de um professor - era algo de diferente. No fora ele que a
magnetizara, mas o contrrio. Embora estivessem separados por vrias milhas, ela
nunca o abandonava. Sentia-lhe o olhar, ouvia-lhe a voz, aspirava-lhe o perfume.
Sentia-se tenso como se andasse no arame. Logo que se deitava, ela vinha ter com
ele, em esprito, mas vibrantemente viva, murmurando ternuras, beijando-o,
abraando-o, cumulando-o de afeio, e, muito estranhamente, a filha dela, Halina,
tambm.
A porta abriu-se e entrou Esther, de livro de oraes debaixo de um brao, a cauda
do vestido de seda, com as dobras e as franjas no outro. O chapu de penas lembrava
a Yasha o primeiro sbado depois do casamento, quando Esther, a noiva, fora levada
ao templo. Agora os olhos dela brilhavam de alegria, o entusiasmo de quem
participara em cerimnias colectivas.
- Feliz dia santo!
- Feliz dia santo para ti, Esther!
Abraou-a e ela corou como uma noiva. Os longos perodos de separao tinham
conservado neles a sofreguido dos recm-casados.
- Que h de novo no templo?
- Dos homens ou das mulheres?
- Das mulheres. Esther riu-se.
- As mulheres so mulheres. Um pouco de orao, um pouco de m-lngua. Devias ter
ouvido o hino de Acadamuth! Foi maravilhoso! Podia comparar-se a uma das melhores
peras!
Ela comeou imediatamente a preparar a refeio de festa. Independentemente do que
Yasha decidira ser, ela estava apostada em manter um bom lar judeu como os outros.
Colocou na mesa um jarro de vinho, uma taa sagrada, dois frascos iguais de sal e
mel, um po de sbado e uma faca de po, de cabo de madreprola. Yasha abenoou o
vinho. Era algo que ele no se atrevia a negar-lhe. Estavam sozinhos e isso
lembrava sempre a Esther a sua infecundidade. As crianas teriam tornado tudo
diferente. Ela sorriu tristemente e limpou uma lgrima com a ponta do avental
bordado. Serviu o peixe, a massa com peixe, o kreplach com queijo e canela, a
sobremesa de ameixas assadas, bolo de manteiga e caf. Yasha ia sempre a casa pelas
festas;
22
era a nica altura em que estavam juntos. Enquanto comia, Esther olhava o marido.
Quem era ele? Porque que ela o amava? Sabia que ele levava uma vida condenvel.
Ela no dizia tudo quanto sabia; s Deus sabia at onde ele tinha cado. Mas ela
no conseguia resmungar com ele. Todos o recriminavam e a lamentavam, mas ela
preferia-o a qualquer homem, por maior que fosse, at um rabi.
Depois da refeio, o casal retirou-se para o quarto. Marido e mulher no se deitam
habitualmente de dia, mas quando ele foi fechar as portas de madeira ela no
protestou. Mal ele a envolveu com o brao, ela despertou como uma adolescente, pois
que uma mulher que nunca esteve grvida permanece para sempre virginal.
II
1.
24
no podia amar mais ningum; sem ele a sua vida acabaria, mas furtava-se muitas
vezes a este tipo de interrogatrio. Naquele momento, ele perguntava:
- Que aconteceria se me transformasse em asceta e me emparedasse numa cela sem
porta, como o santo da Litunia? Permanecer-me-ias fiel? Dar-me-ias comida por uma
fresta na parede?
Esther respondeu:
- Para algum se arrepender, no precisa de se emparedar numa cela.
- Tudo depende do tipo de paixo que se procura dominar - respondeu-lhe ele.
- Nesse caso, emparedava-me l dentro contigo - disse ela. Tudo terminou com novas
carcias, ternuras e protestos de
amor eterno. Quando mais tarde Esther adormeceu, teve um pesadelo horrvel e no dia
seguinte jejuou at ao meio-dia. Murmurou uma orao que encontrou num livro de
oraes: "Deus Todo-Poderoso, eu sou Tua e os meus sonhos so Teus...". Deitou
tambm seis groschen na caixa de esmolas de Reb Mayer, o Milagreiro. Pediu a Yasha
que lhe prometesse solenemente nunca mais a atormentar com conversas to tolas, j
que, afinal, que que pode saber-se do futuro? - Tudo estava traado no Cu.
As festas tinham acabado. Yasha ergueu a carroa e preparou-se para partir. Pegou
no macaco, no corvo e no papagaio. Esther chorou tanto que lhe incharam os olhos.
Doa-lhe a cabea, de um lado, e parecia que tinha um peso sobre o lado esquerdo do
peito. No era bebedora, mas nos primeiros dias depois da partida bebericava sempre
cherry-brandy para lhe levantar o moral. As costureiras sofriam com o desgosto
dela; criticava cada ponto. O que era estranho era que as raparigas tambm amuavam
depois de Yasha partir. Ele tinha tanta "sorte" como isso.
Ele partiu num sbado noite. Esther acompanhou a carroa at estrada. Teria ido
mais longe, mas ele afastou-a de brincadeira com o chicote. No queria que ela
fizesse uma grande caminhada de regresso, no escuro. Beijou-a pela ltima vez e ali
a deixou chorosa e de braos estendidos. Havia anos que se separava da mesma
maneira, mas aquela despedida parecia mais difcil do que nunca.
Deu um estalido com a lngua e os cavalos desataram a trotar. A noite estava
agradvel e no cu brilhava uma Lua em quarto minguante. Os olhos de Yasha
obscureceram-se; momentos depois deu rdea livre aos cavalos. A Lua acompanhava-o.
25
Nos maravilhosos campos iluminados pela Lua, as pontas do trigo verde resplandeciam
brilhantes e prateadas.
Conseguia distinguir cada espantalho, cada vereda, cada flor de milho ao longo da
estrada. O orvalho caa como farinha de uma peneira celestial. Havia agitao nos
campos, como se gros invisveis cassem num moinho invisvel. At os cavalos, de
vez em quando, voltavam a cabea. Quase se podia ouvir as razes aspirando a terra,
os caules crescendo e os riachos subterrneos correndo. Esporadicamente,
atravessava os campos uma sombra, como que de uma ave mtica. Por vezes, ouvia-se
um ronco nem animal nem humano, mas como se um monstro pairasse algures no espao.
Yasha respirou fundo e apalpou a pistola que trazia para se proteger dos
assaltantes. Ia a caminho de Piask. L, j fora da cidade, morava a me de Magda,
viva de um ferreiro. Mesmo em Piask conhecia vrios ladres famosos, bem como uma
tal Zeftel, uma esposa abandonada com quem tinha uma relao amorosa.
Em breve se materializou a oficina de ferreiro, uma construo escura, o telhado
torto e partido como um ninho abandonado, as paredes oblquas e a janela que era um
buraco. Outrora, ali, Adam Zbarsky, o pai de Magda, forjara machados e ps de
arado. Era filho de um nobre arruinado pela revolta de 1831 e mandara Magda
escola em Lublim. Morrera depois numa epidemia. Magda fora durante oito anos a
ajudante de Yasha. Como era acrobata, usava o cabelo curto e vestia de pele de
leopardo durante as actuaes, em que dava saltos mortais, rodava um barril nos ps
e dava a Yasha a sua parafernlia de prestidigitao. Na velha cidade de Varsvia
partilhavam o mesmo apartamento. Ela estava registada junto das autoridades
municipais como criada dele.
Os cavalos deviam ter reconhecido a oficina de ferreiro, porque comearam a andar
mais depressa. Passavam agora por campos de trigo mourisco e de batata, junto de um
santurio beira da estrada onde a Virgem Maria segurava nos braos o seu filho, o
menino Jesus. luz da Lua, a esttua parecia estranhamente viva. Mais adiante,
erguia-se numa colina o cemitrio catlico, rodeado por uma sebe baixa. Yasha
apurou a vista. Procurava sempre nos cemitrios sinais da vida depois da morte.
Ouvira todo o gnero de histrias de pequenas chamas que tremeluziam entre as
campas... bem como de sombras e fantasmas. Dizia-se que o av de Yasha aparecera
aos seus filhos e at a estranhos durante semanas e meses depois da sua morte.
Dizia-se at que fora uma vez arranhar a janela da sua filha. Naquele momento,
porm, Yasha nada conseguia ver.
26
As Zbarskis tinham estado espera de Yasha; nem a me nem a filha se tinham ainda
recolhido. Elzbieta Zbarsky, a viva do ferreiro, era uma mulher forte, que mais
parecia um saco de feno. Usava o cabelo apanhado atrs e o rosto era agradvel,
apesar do seu tamanho. Estava sentada fazendo pacincias. Embora no soubesse ler
nem escrever, por ter ficado rf muito cedo, o seu conhecimento de cartas indicava
seguramente uma origem aristocrtica. Deveria ter sido bela, outrora, visto que os
seus traos, mesmo naquela altura, eram regulares: nariz bem talhado e levemente
arrebitado, a boca fina e bem contornada com um dente a menos e os olhos
brilhantes. Mas tinha um grande duplo queixo, com uma papeira pendurada que lhe
chegava quase ao peito; o seio sobressaa-Lhe como um balco; os braos eram
invulgarmente grossos e pesados; o tronco era como um saco cheio de carne, donde
saam pequenos montculos, aqui e alm. Sofria dos ps e tinha de usar bengala. A
coberta onde jogava s cartas estava suja e amarrotada. Murmurava para consigo:
- Outra vez o s de espadas! mau sinal. Algo vai acontecer, meus filhos, algo vai
acontecer!...
- Que que vai acontecer, me? No seja to supersticiosa! - exclamou Magda.
Magda j tinha emalado as suas coisas num saco com argolas de lato, presente de
Yasha. Tinha quase trinta anos, mas parecia mais jovem; quem a via no lhe dava
mais de dezoito anos. Esguia, trigueira, de peito pequeno, quase pele e osso,
custava a acreditar que fosse filha de Elzbieta. Tinha os olhos de um azul-
acinzentado, nariz arrebitado, lbios carnudos e salientes como que prontos a serem
beijados, ou como os de uma criana prestes a chorar. O pescoo era longo e esguio,
o cabelo cor de cinza, os malares salientes eram rosados. A pele era borbulhenta;
na escola tinha a alcunha de a R. Fora uma rapariguinha compenetrada e
introspectiva, de ar furtivo, dada a bizarrias disparatadas. J nessa altura se
revelara invulgarmente gil. Era capaz de trepar a uma rvore,
27
danar a ltima dana, sair do dormitrio pela janela e voltar a entrar do mesmo
modo. Magda ainda falava do colgio interno como de um buraco infernal. Sem
propenso para o estudo, fora escarnecida pelas suas companheiras por seu pai ter
sido ferreiro; at os professores se lhe mostravam hostis. Tentara fugir vrias
vezes, discutira frequentemente com outras alunas e uma vez, depois de ter sido
castigada, cuspira na cara de uma freira. Quando o pai morreu, Magda sara da
escola sem trazer um diploma. Pouco depois, Yasha contratara-a como sua ajudante.
Quando Magda era mais nova, diziam que um homem na sua vida lhe curaria as
borbulhas, que eram obviamente devidas a uma frustrao de virgem; porm, havia
anos que era a amante de Yasha e a sua pele continuava to m como sempre. Magda
no fazia segredo da sua relao com o patro. Sempre que Yasha passava a noite em
casa dos Zbarski, ela dormia com ele na cama grande, no quarto de casal, e de manh
a me at lhes trazia cama ch com leite. Elzbieta tratava Yasha por "meu filho".
Havia anos que Bolek, o irmo mais novo de Magda, furioso com Yasha, jurara
vingana, mas finalmente at Bolek se habituara situao. Yasha sustentava a
famlia e dava dinheiro a Bolek para as suas farras e para os seus jogos de cartas
e domin. Sempre que Bolek, j bbado, ameaava vingar-se daquele judeu danado que
manchara o nome dos Zbarski, Elzbieta batia com os punhos na cabea e Magda dizia:
- Se te atreves a tocar-lhe num s cabelo, morremos os dois! Irs comigo para a
sepultura. Juro-te pela memria do pai...
E ela empinava-se, silvava e cuspia como um gato a um co.
A famlia cara muito baixo. Magda andava metida com um mago. Bolek fora juntar-se
aos ladres de Piask. Eles encarregavam-no de levar o saque aos que recebiam coisas
roubadas e dormira muitas vezes entre faquistas. Elzbieta, por sua vez, tornara-se
glutona. Estava to disforme que mal cabia na porta. Desde o romper do dia at ao
ltimo Padre-Nosso da noite mordiscava todo o tipo de guloseimas: salsichas com
chucrute, bolos feitos com toucinho, ovos fritos com cebolas e molhos gordos ou
frituras recheadas com carne ou aveia. As pernas tornaram-se-lhe to pesadas que j
no ia igreja, nem mesmo aos domingos.
- Estamos abandonadas, abandonadas! Desde que o teu pai descansou em paz, desde que
faleceu, passmos a ser esterco... Ningum se importa connosco...
A vizinhana dizia que Elzbieta sacrificara Magda por causa de
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29
- Querido!...
Ele apeou-se, beijou-a e abraou-a. Ela tinha a pele quase febril. Desde o
princpio que o Burek abanava a cauda para o visitante. O papagaio palrava da
gaiola, o corvo crocitava e falava. Elzbieta esperou que Yasha acabasse de
acarinhar a filha, antes de aparecer na soleira da porta. Ali ficou - grande e
tosca como um boneco de neve, esperando pacientemente que ele viesse beijar-lhe a
mo como um cavalheiro. Sempre que ele vinha, ela abraava-o, beijava-o na testa e
dirigia-lhe a mesma saudao: "Um hspede em casa - temos Deus em casa...".
E depois chorava e esfregava os olhos com o avental.
3.
Elzbieta ansiava pelas visitas de Yasha no s pela filha, mas tambm por si. Ele
trazia-lhe sempre de Lublim alguma coisa: uma guloseima, fgado, halvah ou bolos de
pastelaria; mas muito mais do que pelas guloseimas, ela ansiava por algum com quem
conversar. Apesar dos seus sacrifcios e abnegao, Bolek recusava-se a ouvi-la.
Mal ela comeava uma histria, ele interrompia-a brutalmente: "Certo, mam, deixe-
se estar deitada, deixe-se estar deitada".
E, perante o seu desinteresse, as palavras morriam na garganta de Elzbieta.
Comeava a tossir e ficava vermelha de apoplctica. Arfando e soluando, tinha de
permitir que aquele mesmo bruto infame do Bolek lhe fosse buscar gua e lhe desse
umas pancadas no pescoo e nas costas, para fazer desaparecer o engulho que tinha
na garganta.
Magda, pelo seu lado, mal falava. Podiam dirigir-se a ela contando-lhe os mais
estranhos acontecimentos sem que ela piscasse sequer um olho. S Yasha, o judeu, o
mago, puxava por ela, a encorajava a exprimir-se, a tratava como deve ser tratada
uma sogra, no odiada, mas amada. Ele, pobrezinho, ficara rfo muito cedo e
Elzbieta era como uma me para ele. No fundo, sentia que Magda a ela devia que
Yasha tivesse ficado com elas durante todo aquele tempo. Elzbieta cozinhava-lhe os
pratos favoritos, dava-lhe todo o tipo de conselhos prticos, avisava-o que tivesse
cuidado com os inimigos e at lhe interpretava os sonhos. Dera-lhe um elefante em
miniatura, uma herana do patrimnio de sua av, que ele usava debaixo da lapela
sempre que trabalhava no arame ou em qualquer dos seus outros trabalhos arriscados.
30
Embora sempre que chegava ele teimasse que no tinha fome, Elzbieta tinha-lhe
sempre uma refeio pronta. Tudo fora preparado com antecedncia: a toalha de mesa
lavada de fresco, a madeira estaladia no fogo, a chvena de porcelana por onde
ele bebia, o prato pintado de azul em que ele comia. Nada faltava, nem o
guardanapo. Elzbieta era considerada uma excelente dona de casa. O seu marido podia
ter sido ferreiro, mas o seu av, o escudeiro Czapinski, fora senhor de uma
propriedade de cem camponeses e caara com os nobres Radziwills.
Elzbieta j tinha jantado, mas a chegada de Yasha abrira-lhe o apetite. Depois dos
primeiros cumprimentos calorosos, Yasha e Magda retiraram-se para o quarto de casal
e Elzbieta ficou entregue preparao da refeio. O seu cansao desaparecera
miraculosamente; as pernas, que normalmente noite lhe pareciam pesadas, pareciam
ter sido curadas por um amuleto. Num instante ps o lume a arder no fogo; cozia e
fritava com espantosa agilidade. Suspirava de prazer. Seria de admirar que Magda o
adorasse? Se ele at a ela, Elzbieta, dava nova vida!
Os acontecimentos seguiram o curso normal. Ele afirmou-lhe que no tinha fome, mas
j a comida estava na mesa na sua frente, impregnando com o seu aroma cada canto da
sala. Ela preparara blintzes com cerejas e queijo, salpicados de acar e canela.
Sobre a mesa estava uma garrafa de cherry-brandy e o licor doce que Yasha trouxera
de uma anterior visita a Varsvia. Mal Yasha provou a comida, pediu mais. Magda,
que tinha o estmago atrofiado e sofria de priso de ventre, viu nascer-lhe de
repente um saudvel apetite. O co, abanando a cauda, mantinha-se junto dos joelhos
de Yasha. Depois do caf e dos bolinhos de toucinho, Elzbieta entrou nas
recordaes: quo dedicado lhe era o seu falecido marido, como ele a transportara
nos braos; e daquela vez em que a carruagem do czar parara em frente da oficina do
ferreiro para substituir uma ferradura a um cavalo que a perdera e o czar, em
pessoa, entrara em sua casa enquanto esperava e Elzbieta lhe dera um vodka. A sua
maior aventura fora durante a revolta de 1863, quando dera refgio a rebeldes
condenados e avisara as tropas polacas da aproximao dos cossacos. De maneira
eloquente e lavada em lgrimas, salvara uma mulher nobre de ser chicoteada pelos
soldados russos. Magda era ento uma criana, mas Elzbieta voltava-se para ela
espera de confirmao:
- No te lembras, Magda? Sentaste-te no colo do general; ele usava calas com
listas vermelhas e tu sentaste-te no colo dele a brincar com as medalhas. No te
lembras?
31
Ah, estas crianas... tm cabea de alho chocho. Come, meu querido filho, come
outro blintze. No te far mal. A minha av, Deus lhe fale na alma, costumava
dizer: "O intestino no tem fim".
Uma histria chamava outra. Elzbieta tivera todo o gnero de doenas. Fizera um
golpe no seio, que fora cosido com agulha. Ela baixava a blusa para mostrar a
cicatriz. Uma vez estivera beira da morte - o padre dera-lhe a extrema-uno e
tinham-lhe tirado as medidas para o caixo. Ela jazia como morta e viu anjos,
fantasmas e aparies. De repente aparecera-lhe o seu falecido pai, que afastara os
fantasmas gritando: "A minha filha tem filhinhos pequenos. No pode morrer!...", e
naquele momento ela comeara a transpirar com gotas de suor to grandes como
torres de acar.
O relgio com pesos de madeira marcava j a meia-noite, mas Elzbieta mal tinha
comeado. Tinha ainda dzias de histrias espera. Yasha ouvia delicadamente,
fazia perguntas adequadas, acenava afirmativamente nos intervalos precisos. Os
milagres e profecias que ela descrevia pareciam estranhamente semelhantes aos que
os judeus de Lublim contavam. Magda comeou a bocejar e a ficar corada.
- Da ltima vez, mam, contou a mesma histria de maneira completamente diferente.
- Que ests a dizer, criana? Como te atreves? Ests a desacreditar-me na frente do
meu querido filho? Sim, a tua me uma humilde viva, sem dinheiro, sem honra, mas
mentirosa - nunca!
- A me esquece-se!
- No esqueo nada. Tenho a minha vida perante os olhos como uma tapearia. - E
comeou a contar nova histria sobre uma terrvel geada. O Inverno comeara to
cedo, que os judeus nem tinham podido usar as tendas durante a Festa do
Tabernculo. Os ventos tinham feito voar os telhados de colmo. As torrentes
furiosas tinham destrudo as comportas dos moinhos, rompera o aude e inundara
metade da aldeia. Formaram-se depois montes de neve to grandes que as pessoas
atolavam-se neles como em pntanos e os seus corpos s foram descobertos na
Primavera seguinte. Os lobos famintos abandonaram as florestas e invadiram os
povoados, onde iam roubar bebs ao bero. A geada fora to forte que at os
carvalhos rebentaram. Nesse preciso momento entrara Bolek, com ar fanfarro. Era um
jovem de estatura mdia, robusto, de cara vermelhusca e bexigosa, olhos azul-
claros, cabelo amarelo e nariz achatado,
32
4.
Yasha estava ansioso por partir para Varsvia, mas viu-se obrigado a ficar por ali
um dia ou dois. Pouco depois retirou-se para descansar na larga cama do quarto de
casal. Elzbieta enchera o colcho de fresco com palha nova e forrara o travesseiro
e a almofada com pano novo. Magda no foi logo ter com ele. Lavou-se e penteou-se
primeiro. A me ajudou-a a ensaboar-se de alto a baixo e depois vestiu-lhe uma
camisa de noite com rendas na bainha e no peito. Yasha estava deitado, espantado
com o seu prprio comportamento. " por estar to aborrecido", dizia para consigo.
Escutava atentamente. Me e filha murmuravam acerca de qualquer coisa. Elzbieta
gostava de aconselhar Magda antes de ela ir para a cama. Tentava tambm que a filha
usasse um saquinho de alfazema atado ao corpo. Bolek ressonava estendido no banco-
cama. Estranho, mas ele, Yasha, vivia toda a sua vida como se caminhasse no arame,
a poucos centmetros do abismo. Um movimento em falso da sua parte e Bolek espetar-
lhe-ia, de certeza, uma faca no corao.
Yasha dormitou e sonhou que estava a voar. Ergueu-se acima do solo e elevou-se,
elevou-se. Perguntava-se porque no teria tentado aquilo antes - era to fcil, to
fcil.
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Sonhava com aquilo quase todas as noites e acordava sempre com a sensao de que
lhe fora revelada uma certa forma de verdade falseada. Muitas vezes, duvidava se
fora um sonho ou antes um exerccio mental. Havia anos que andava fascinado com a
ideia de pr um par de asas e voar. Se um pssaro o conseguia, porque no um homem?
As asas teriam de ser suficientemente grandes, feitas de um tecido forte como a
seda do tipo da que era utilizada em bales. Deveriam ser cosidas em tiras e poder
dobrar-se e desdobrar-se como um guarda-chuva. E se as asas no chegassem, podia
prender-se entre as pernas uma espcie de teia, como a do morcego, para ajudar a
pairar. O homem era mais pesado do que o ar, mas as guias e os falces tambm no
eram muito leves e conseguiam at elevar no ar um cordeiro e voar com ele. Todo o
tempo que Yasha conseguia roubar quele em que pensava em Emilia, era dedicado
quele problema. Tinha pastas cheias de planos e diagramas, resmas de recortes de
jornais e revistas. Claro que muitos dos que tinham tentado voar tinham morrido,
mas o facto que tinham voado, ainda que apenas por instantes. S que o material
tinha de ser suficientemente forte, as costelas elsticas, o homem gil, leve e
desembaraado, e o feito realizar-se-ia. Que sensao no causaria por todo o mundo
Yasha conseguindo voar por sobre os telhados de Varsvia, ou, melhor ainda, Roma,
Paris ou Londres!
Parecia que dormitara novamente, porque quando Magda se meteu na cama ele acordou
sobressaltado, embora ali tivesse estado deitado de olhos abertos. Ela trazia em si
o cheiro da camomila. Era e sempre fora tmida. Vinha ter com ele como uma virgem e
sorria como que pedindo desculpa. Deitou-se a seu lado - ossuda, glida, metida
numa camisa de noite demasiado grande, com o cabelo ainda molhado de se ter
penteado. Ele percorreu-lhe com as mos as costelas salientes.
- Que que tens? No comes?
- Sim, como.
- Para ti seria fcil voar. Pesas quase tanto como um ganso. Uma vez a caminho,
tornavam-se mais ntimos, mas naquele
momento e depois da longa ausncia - as semanas que ele passara longe dela, junto
da mulher - tinham-se separado e tinham de fazer novo reconhecimento. Era como que
uma noite de npcias. Ela estava deitada de costas para ele e Yasha teve de
acarinh-la em silncio para a fazer voltar-se. Ela ainda se sentia envergonhada
pela me e pelo irmo. Quando ele emitia sons demasiado altos, ela cobria-lhe a
boca com a palma da mo
34
para o silenciar. Ele abraava-a e ela esvoaava nos seus braos como um frango.
Murmurava-lhe to baixinho que ele mal a ouvia. Porque ficara ele to longe, por
tanto tempo? Ela temera que ele no voltasse. A me andara por ali mergulhada em
melancolia, queixando-se... preocupada por ele a ter abandonado. Bolek andava
metido com os ladres. Era uma vergonha, uma vergonha. Podia ser preso. E bebia de
mais. Embebedava-se e andava a meter-se em sarilhos. E o que estaria Yasha a fazer
em Lublim, todas aquelas semanas? Os dias corriam lentamente como melao.
Era espantoso como aquela tmida rapariga se incendiava de paixo, como que por
encanto. Inundava Yasha de beijos, entregava-se-lhe de todas as maneiras que ele
lhe ensinara - mas em silncio, com medo de acordar o irmo ou a me. Era como se
praticassem um ritual secreto, perante o esprito da noite. Embora tivesse
aprendido na escola um polaco impecvel, balbuciava naquele momento uma gria
rstica que ele mal entendia; murmurava palavras... estranhas, afectadas, herdadas
de geraes de camponeses.
Ele disse:
- Se por acaso eu te deixar, lembra-te que eu volto. S-me fiel.
- Sim, meu amado. At morte!
- Hei-de pr-te asas e fazer-te voar.
- Sim, meu senhor... j estou a voar.
5.
Era dia de mercado em Piask. Bolek fora para Lublim logo a seguir ao pequeno-
almoo. Yasha partira a p para Piask, com o pretexto de ter umas compras a fazer
nas lojas. Elzbieta tentara det-lo, desejosa da sua presena hora do almoo, mas
Magda detivera-a com um sinal de cabea. Ela nunca se metia na vida dele. Ele
beijou-a e ela disse-lhe humildemente:
- No te esqueas do caminho para casa.
O mercado abrira com o nascer do dia, mas alguns camponeses retardatrios ainda
caminhavam estrada fora. Um levava uma vaca escanzelada pronta para o matadouro,
outro um porco ou uma cabra. As mulheres, com armaes de madeira sob os lenos -
significando o seu estado de mulheres casadas -,
35
Zeftel, a esposa abandonada, vivia numa colina por trs do matadouro. Seu marido,
Leibush Lekach, tinha fugido havia anos da priso de Yanov e o seu paradeiro era
desconhecido, naquele momento. Uns diziam que fugira para a Amrica, outros
pensavam que estaria algures nos confins da Rssia. Havia muitos meses sem que
qualquer notcia dele se soubesse. Os ladres, que tinham a sua prpria confraria -
com os seus ancios e regulamentos -, davam semanalmente a Zeftel dois gulden, como
costumavam fazer quando o seu homem estava preso; mas comeava a tornar-se claro
que Leibush desaparecera para sempre. O casal no tivera filhos. Zeftel, que no
era uma rapariga da regio, provinha de algures do outro lado do Vstula.
Geralmente, as mulheres de ladres condenados portavam-se honestamente, mas Zeftel
era tida como pessoa de conduta duvidosa. Usava jias mesmo nos dias de semana,
trazia a cabea descoberta e cozinhava aos sbados. Mais dia menos dia a penso
ser-lhe-ia cortada.
Yasha sabia tudo aquilo, mas mesmo assim metera-se com ela; vinha ao seu encontro
por atalhos escondidos e dava-lhe notas de trs rublos. Levava-lhe agora um
presente de Varsvia - um colar de coral. Era uma loucura. Tinha mulher, tinha
Magda, estava loucamente apaixonado por Emilia - que que procurava naquele monte
de estrume? Decidira muitas vezes romper,
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mas sempre que vinha a Piask era atrado para ela. Corria agora para casa dela com
o temor e a ansiedade de um rapazito prestes a ir para a cama com a primeira
mulher. Aproximou-se de casa dela, no pela Rua Lublim, mas pelas traseiras. Embora
j tivesse passado o Pentecostes, o cho ali ainda estava viscoso e lamacento, mas
l dentro Zeftel tinha a casa limpa, com cortinas e um quebra-luz de papel no
candeeiro, um almofado na cama, o cho recm-esfregado e salpicado de areia como
nos sbados noite para a bno das velas. Zeftel estava de p no meio da sala.
Era uma mulher de aspecto jovem, de cabelo encaracolado, de olhos negros de cigana,
com um sinalzinho na face esquerda e um colar de contas de vidro em volta do
pescoo. Ela sorriu-lhe com ar ladino, exibindo os dentes brancos e falou no seu
dialecto de alm-Vstula:
- Pensei que de certeza j no vinhas!
- Quando digo que venho, venho - respondeu Yasha firmemente.
- Uma visita inesperada!
Tudo era para ele humilhante, desde os beijos, oferta de presentes, espera
enquanto ela ia buscar o caf com chicria, mas, tal como os ladres tinham de
roubar dinheiro, ele tinha de roubar amor. Ela trancou a porta para evitar
interrupes e encheu o buraco da fechadura com papel. Estava ela to disposta a
levar tempo quanto ele estava de apressado. Ele olhava para a cama com ar
significativo, mas ela correu a cortina de chita, dando a entender que a altura
ainda no tinha chegado.
- Que que se passa pelo mundo? - perguntou ela.
- Eu no sei.
- Quem que havia de saber seno tu? Ns estamos aqui encafuados, mas tu vagueias
pelo mundo, to livre como um pssaro.
Ela sentou-se junto dele, o seu joelho redondo encostado ao
dele. Comps a saia de forma que ele visse os canhes das meias
pretas e as ligas vermelhas.
- Vejo-te to raramente - queixou-se ela - que me esqueo entre uma vez e a
seguinte.
- Tiveste algumas notcias do teu marido?
- Desapareceu, como uma pedra no mar. - E sorriu... humilde, arrogante e
falsamente.
Teve de ouvi-la, pois que uma mulher loquaz igualmente apaixonada. Mesmo quando
se lamentava, as palavras brotavam - doces e torneadas como ervilhas de uma
zarabatana. Que lhe reservava o futuro ali em Piask? Leibush nunca mais voltaria.
37
O outro lado do oceano podia bem ser o outro lado do mundo. J era praticamente uma
viva. Eles concediam-lhe os doisguden por semana, mas por quanto tempo? O tesouro
deles estava esgotado. Metade da confraria estava na priso. E que podia ela
comprar com aquela ninharia? gua para as papas. Devia a toda a gente. No tinha
nada que vestir. Todas as mulheres eram suas inimigas. Murmuravam dela a toda a
hora e tinha sempre as orelhas a arder. Enquanto o Vero durava ainda suportava
aquilo, mas quando chegavam as chuvas endoidecia. E enquanto Zeftel continuava a
falar de tristezas, iam brincando com a argola do colar. De repente apareceu-lhe na
face direita uma covinha.
- Oh, Yashale, leva-me contigo!
- Sabes que no posso.
- Porque no? Tens uma companhia e uma carroa.
- Que diria Magda? Que diriam os vizinhos?
- Dizem-no de qualquer modo. Tudo o que essa tua polaca sabe fazer, tambm eu sei.
Talvez at melhor.
- s capaz de dar uma cambalhota?
- Se no for, aprendo.
Tudo aquilo era conversa fiada. Ela era forte de mais para vir a ser uma acrobata.
As pernas eram demasiado curtas, as ancas demasiado largas, o peito demasiado
saliente.
Nunca poderia ser mais do que uma criada... e outra coisa, pensava Yasha. Se bem
que Yasha no a amasse, sentiu cimes, por momentos. Como se portaria ela naquelas
semanas em que ele andava em viagem? "Bem, esta a ltima vez que aqui venho",
pensou. " s porque estou to aborrecido e porque quero esquecer por momentos",
tentava assim justificar-se da sua conduta. Como um bbado que afoga a sua tristeza
no lcool, pensava ele. Nunca poder compreender como que os outros se arranjam
para viver num s lugar e viver toda a vida com uma s mulher sem se tornarem
melanclicos. Ele estava quase sempre beira da depresso. De repente puxou por
trs rublos e, com uma gravidade infantil, colocou-os sobre a perna por baixo do
vestido: um perto do joelho, outro um pouco mais acima e o terceiro sobre a coxa.
Zeftel olhava-o, com um sorriso estranho, e disse:
- Isso no serve para nada.
- Mas tambm no faz mal.
Ele dirigiu-se-lhe cruamente, ao seu nvel. Adaptar-se a todos os caracteres era
uma das suas qualidades. Era um factor til
38 - 39
6.
- Sim, h uma nova - disse Yasha. Precisava de falar com algum. Com Zeftel sentia-
se to vontade como consigo mesmo. No lhe temia nem o cime nem a ira. Ela
estava presa a ele como uma camponesa a um escudeiro. Os olhos dela comearam a
brilhar. Sorriu com o sorriso daqueles que so enganados e sentem prazer nisso.
- Eu no disse? Quem ela?
- A viva de um professor.
- Viva, heim? Bom, bom.
- Bom, nada.
- Ama-la?
- Sim, um pouco.
- Se um homem diz "um pouco", quer dizer muitssimo. Como ela? Jovem, bonita?
-J no assim to nova. Tem uma filha com catorze anos.
- Qual delas amas, a me ou a filha?
- As duas.
A garganta de Zeftel moveu-se como se engolisse qualquer coisa.
- No podes ter as duas, meu amigo.
- Por agora, dou-me por satisfeito com a me.
- Um professor como um doutor?
- Ele ensinava matemtica na universidade.
- O que matemtica?
- Nmeros.
Ela pensou por uns momentos.
- Eu sabia, eu tinha a certeza. A mim no me enganas. Olho para um homem e sei
dizer tudo. Que pretendes fazer? Casar com ela?
- Mas eu j tenho mulher.
- E o que pode significar para ti uma esposa? Como que a conheceste?
- Ela estava no teatro e apresentaram-nos. No, eu estava a ler no pensamento e
disse-lhe que ela era viva e tudo o mais.
- Como que sabias?
- Esse o meu segredo.
- Bem, e depois?
- Ela apaixonou-se por mim. Quer deixar tudo e ir comigo para o estrangeiro.
- Sem mais nem menos?
- Quer casar comigo.
- Com um judeu?
- Quer que eu me converta um bocadinho...
- S um bocadinho, ha?... Porque que tens de sair do pas? O rosto de Yasha ficou
subitamente tenso.
- Que que eu tenho aqui? H vinte e cinco anos que apresento o meu nmero e
continuo pobre. Durante quanto tempo mais posso andar no arame? Dez anos, no
mximo. Todos me elogiam, mas ningum quer pagar. Noutros pases, as pessoas como
eu so apreciadas. L, um tipo que sabe apenas meia dzia de truques rico e
famoso. Representa perante as cabeas coroadas, viaja em ricas carruagens. At eu
seria tratado aqui na Polnia de maneira diferente se o meu nome se tornasse famoso
na Europa Ocidental. Percebes o que te estou a dizer? Aqui imitam tudo o que
estrangeiro. Um cantor de pera pode piar como um mocho, mas se cantou em Itlia
todos gritam: "Bravo!".
- Sim, mas terias de te converter.
- E depois? Benzes-te e eles borrifam-te com gua. Como que sabes qual o Deus
certo? Nunca ningum foi ao Cu. E eu, afinal de contas, nem rezo.
- Depois de seres catlico, tens de rezar.
- No estrangeiro ningum liga a isso. Sou um mago e no um padre. Agora h l uma
nova mania, sabes? Apagam-se as luzes
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e acham-se os espritos dos mortos. Sentam-se mesa com as mos sobre o tampo e a
mesa ergue-se. Todos os jornais falam disso.
- Espritos a srio?
- No sejas ridcula. O mdium faz tudo. Ele estende o p e levanta a mesa. Faz
estalar o dedo grande do p e diz que so os espritos a enviar mensagens. As
pessoas muito ricas que assistem a estas sesses, sobretudo as mulheres. Por
exemplo, se morre um filho a algum e querem comunicar com ele, do dinheiro ao
mdium e ele faz aparecer os espritos dele.
Zeftel tinha os olhos esbugalhados.
- A srio?
- Parva!
- Talvez seja magia negra?
- No sabem nada de magia negra.
- Disseram-me que h um homem em Lublim que capaz de mostrar os mortos num
espelho negro. Dizem que podia l ver Leibush.
- Ento porque que l no vais? Mostram-te um retrato e dizem-te que Leibush.
- Bom, eles mostram mesmo qualquer coisa.
- Disparate! - disse Yasha, surpreendido por estar a discutir tais coisas com
Zeftel. - Posso mostrar-te quem tu quiseres no espelho, at mesmo a tua av.
- No h Deus, pois no?
- Claro que h, mas nunca ningum Lhe falou. Como poderia Deus falar? Se falasse em
idiche, os cristos no entenderiam; se falasse em francs, os ingleses queixavam-
se. A Tora afirma que Ele falou em hebreu, mas eu no estava l para ouvir. Quanto
aos espritos, eles existem de facto, mas nenhum mago os pode conjurar.
- E o que dizes alma? Oh, tenho medo!
- Medo de qu?
- noite, deito-me e no consigo fechar os olhos: desfilam na minha frente todos
os mortos. Vejo como puseram a mam na campa. Toda branca... Afinal, para que
vivemos? Sinto tanto a tua falta, Yashale! No quero dar conselhos, mas essa finaa
h-de arrastar-te para o Inferno.
Yasha disse bruscamente:
- Porqu? Ela ama-me.
- No vale a pena. Faas o que fizeres, continuas a ser um judeu. Que vai ser da
tua mulher?
41
- Que que ela faria se eu morresse? Morre o marido e quatro semanas depois j a
mulher corre a meter-se debaixo do dossel nupcial. Zeftel, vou ser franco contigo.
Entre ns no h segredos. Quero fazer outra tentativa.
- E eu?
- Se ficar rico, no te esquecerei tambm.
- No, hs-de esquecer. No momento em que passares a soleira da porta, j te
esqueceste. No penses que tenho cimes. Quando te conheci, senti-me atordoada. Era
capaz de te lavar os ps e beber a gua. Mas depois que te conheci melhor, disse
para comigo: "Zeftel, uma perda todo esse estremecimento". No sou uma mulher
culta e no sei muito, mas tenho a cabea em cima dos ombros. Penso muito e vm-me
cabea muitas ideias. Quando o vento assobia na chamin, fico muito pensativa.
No me acreditas, Yasha, mas recentemente at pensei em suicdio.
- Porqu em suicdio?
- Apenas porque estava cansada e havia uma corda ali mo. Vi um gancho na trave.
Aquele mesmo gancho ao p da luz, subi para o banquinho e estava mesmo justa.
Depois desatei a rir.
- Porqu?
- Sem qualquer razo especial. D-se um puxo corda e acaba-se tudo... Yashale,
leva-me para Varsvia.
- E a moblia?
- Vendo tudo. Algum vai compr-la por uma pechincha.
- Que vais fazer em Varsvia?
- No te preocupes. No me agarro a ti. Irei de longe, como a pedinte da histria.
Pararei nalguma porta e direi: "Aqui fico". Poderei lavar a roupa e acarretar
cestos para qualquer lado.
III.
1.
Yasha planeara voltar para casa de Elzbieta hora de jantar, mas Zeftel no o quis
ouvir. Preparou-lhe o seu prato favorito: com massa, queijo e canela. Logo que
Zeftel destrancou a porta e abriu as cortinas, comearam a chegar as visitas. As
mulheres vinham para exibir as pechinchas que tinham comprado no mercado e os
presentes que os seus homens lhes tinham dado. As mais velhas delas calavam
chinelos rapados, vestiam vestidos deformados e usavam lenos de cabea sujos.
Sorriam a Yasha com a boca desdentada e pavoneavam a sua fealdade. As jovens
matronas tinham-se vestido bem e enfeitado com berloques, em honra do visitante.
Embora Zeftel parecesse esconder a sua relao com Yasha, mostrou a todas as
petulantes o colar de coral que ele lhe dera. Algumas das mulheres experimentaram-
no, sorriam afectadamente e piscavam o olho com ar entendido. A licenciosidade no
era coisa usada na colina. As mulheres dos ladres que estavam presos permaneciam
fiis durante anos, esperando a libertao dos seus maridos. Zeftel, porm, era uma
estranha - pior que uma cigana. Alm disso, era uma esposa abandonada. E Yasha, o
mago, tinha fama de ser um libertino. As mulheres abanavam a cabea, murmuravam e
deitavam a Yasha olhares de carneiro-mal-morto. Ali, os seus poderes mgicos eram
bem conhecidos. Muitas vezes, os ladres afirmavam que, se ele se juntasse
confraria, juncaria de ouro o cho que pisava. A opinio geral na colina era que
seria melhor ser esposa de ladro do que de um como Yasha, que viajava com uma
mulher no judia, s vinha a casa nas festas e apenas dava mulher vergonha e
infelicidade.
Ao fim de algum tempo, comearam tambm a aparecer os homens.
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com a Turquia? E o que queriam aqueles rebeldes que atiravam bombas, tentaram
assassinar o czar e convocavam greves contra o caminho-de-ferro? Que havia de novo
na Palestina? Quem eram aqueles hereges que construam colnias em pntanos
drenados? Yasha tudo explicava. Lia todos os jornais de Varsvia, bem como o
Israelita. Por vezes, deitava tambm os olhos gazeta hebraica, se bem que no
compreendesse as expresses modernas. Ali em Piask as pessoas viviam acocoradas
como sapos num toco de rvore, mas l fora, no mundo, os acontecimentos sucediam-
se. A Prssia tornara-se uma nao poderosa. Os franceses tinham anexado partes de
frica, onde viviam os negros. Em Inglaterra estavam a ser construdos navios que
podiam atravessar o oceano em dez dias. Na Amrica os comboios passavam por cima
dos telhados das casas e fora construdo um edifcio com trinta andares. At
Varsvia crescia e se tornava mais bela de ano para ano. Os passeios de madeira
tinham sido destrudos e fora instalada canalizao interna. As crianas judias
podiam frequentar o liceu e ir estudar para universidades estrangeiras.
Os ladres ouviam aquilo, coando a cabea. As mulheres, ruborizadas, trocavam
olhares. Yasha falou-lhes da Black Hand Society, da Amrica. Contou como eles
enviavam a um milionrio um bilhete assinado com uma mo negra: "Mande-nos tantos
dlares ou apanha uma bala na cabea". Mesmo que o milionrio tivesse mil guarda-
costas, se no pagasse o resgate era morto.
De repente Berish Visoker interrompeu-o:
- Aqui tambm se pode fazer isso.
- E a quem mandam a carta? A Treitel, o carregador de gua? Os ladres riram
estrondosamente e reacenderam os cigarros
apagados.
2.
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o cadeado com os olhos tortos e o ar cmico de espanto e troa que sempre provocava
o riso numa taberna cheia de camponeses, como no Alhambra, o teatro de Vero em
Varsvia. Assobiava, torcia o nariz e at abanava habilidosamente as orelhas. As
mulheres riam.
- Onde que foste desencantar esta geringona?
- melhor mostrares do que s capaz - disse o cego Mechl, meio zangado.
- Nem o prprio Deus era capaz de abrir um penico destes - disse Yasha, a brincar.
-J que arranjaste semelhante filo, pronto. No entanto, se me vendares os olhos
abro isto de olhos fechados. Talvez queiras apostar, hem? E se eu apostar dez
rublos contra um?
- Apostado.
- Pe l o dinheiro e deixa-te de conversa! - gritou Chaim-Leib.
- No precisamos de dinheiro. Eu confio nele.
- Rapazes, vendem-me! - disse Yasha. - Mas faam-no de maneira que eu no consiga
ver nada.
- Eu vendo-te com o meu avental - disse a pequena Malka, uma mulher de cabelo
ruivo, atado atrs com um leno. O seu marido estava a cumprir pena na
penitenciria de Yanov. Ela desatou o avental da cintura e, pondo-se por detrs de
Yasha, vendou-lhe os olhos. Entretanto, fazia-lhe ccegas entre as orelhas com o
indicador. Yasha permanecia calado.
"Que que eles puseram no mecanismo?", pensava. Embora estivesse confiante como
sempre, encarava a hiptese de fracassar. Uma vez um serralheiro fizera-lhe um
cadeado que nenhuma chave, nem truque podiam abrir. Tudo l por dentro tinha sido
soldado. Malka dobrou vrias vezes o avental de alpaca e apertou-o fortemente e com
vigor, apesar de as suas mos serem pequenas, mas, como sempre, entre os olhos e a
asa do nariz havia um espao atravs do qual ele conseguia ver. Mas Yasha no
precisava de ver. Tirou do bolso um forte pedao de arame com a ponta afiada. Era a
chave-mestra para todas as fechaduras. Mostrou-a ao grupo antes de se virar para a
fechadura. Depois bateu na fechadura ao de leve, como o mdico que bate no paciente
com o estetoscpio. Ainda vendado, localizou o buraco da fechadura e introduziu a
ponta do arame. Uma vez l dentro, trabalhou com o arame de forma a faz-lo
penetrar mais profundamente, alcanando o mago da fechadura. Por um momento,
experimentou e escarafunchou. A sua prpria competncia encantava-o. Aquele
pedacito de arame revelava-lhe todos os segredos, todos os ardis que os peritos de
Lublim tinham posto no cadeado. Por muito complexo que parecesse,
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era infantilmente simples como as adivinhas que os rapazes de escola fazem uns aos
outros no cheder. Se se adivinha uma, adivinham-se todas. Yasha podia ter aberto
imediatamente a fechadura, mas no quis envergonhar o cego Mechl. Decidiu fazer uma
pequena representao.
- Ol! Este um osso duro de roer! - resmungou. - Que raio de colmeia que
meteram aqui? Tantos dentes e ganchos, uma autntica mquina! - Esforava-se,
empurrava o arame. Encolhia os ombros como se quisesse dizer: "No fao a menor
ideia do que est aqui dentro!" O grupo estava to calado que o nico som audvel
era o de Chaim-Leib a respirar pelo seu nariz partido e com adenides. Algumas das
mulheres, em sinal de tenso, comearam a soltar risinhos e a murmurar. Yasha fez
ento a observao que fizera em numerosas actuaes. - Uma fechadura como uma
mulher. Mais tarde ou mais cedo acaba por se render.
As mulheres desataram a rir.
- Nem todas so iguais.
- uma questo de pacincia.
- No estejas to seguro de ti - disse, antecipando-se, o cego Mechl.
- Deixa de me dares pressa, Mechl. Tu andaste um ano inteiro s voltas com isto.
Meteste-lhe tudo quanto h. Afinal, eu no sou Moiss.
- No cede, hem?
- H-de ceder. H-de ceder. S preciso de acertar no ponto certo.
E naquele momento a fechadura abriu-se. Seguiu-se o aplauso geral, o riso e o
burburinho.
- Malka, desata-me - disse Yasha.
Com os dedos trementes, Malka desatou o avental. Sobre a mesa ficou o cadeado como
que impotente e envergonhado. Todos tinham um olhar feliz, apenas o cego Mechl
mantinha o seu nico olho terrivelmente srio.
- Tu s um feiticeiro, ou eu no me chamo Mechl!
- Claro, aprendi magia negra na Babilnia. Posso transformar-te a ti e a Malka em
coelhos.
- Porque me escolhes a mim? O meu marido precisa de uma esposa, no de uma coelha.
- E porque no uma coelha? Podias entrar-lhe na cela saltando por entre as grades.
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50
IV.
1.
Era repousante estar de novo na carroa com Magda. O Vero ia no auge. Os campos
tornavam-se dourados e os frutos amadureciam nos pomares. Os inebriantes perfumes
da terra sugeriam lassido e uma calma etrea.
- Oh, Deus Todo-Poderoso, s tu o mago, no eu! - murmurou Yasha. - Fazer brotar
plantas, flores e cores de um pedacito de terra negra!
Mas como que tudo surgia? Como que as hastes do centeio sabiam criar o gro? E
como que a aveia sabia reproduzir-se? No... que no sabiam. Faziam-no
instintivamente. Mas algum devia saber. Yasha, sentado no lugar do condutor, com
Magda ao lado, deu rdea livre aos cavalos. Eles j conheciam o caminho. Todo o
gnero de criaturas se cruzavam com eles: um rato de campo, um esquilo e at uma
tartaruga. Ouviam cantar e trinar pssaros que no se viam. Numa clareira de
floresta, Yasha avistou um bando de pssaros cinzentos, colocados em fila como se
estivessem em reunio.
Junto dele aninhava-se silenciosamente Magda. Os seus olhos de alde pareciam ver
coisas que um habitante da cidade no via. Tambm Yasha estava preocupado. Ao cair
da noite, quando o Sol se punha e a carroa avanava aos solavancos por uma estrada
da floresta, ele viu claramente o rosto de Emilia. Tal como a Lua por cima dos
pinheiros, tambm ela recuava. Os olhos negros sorriam e os lbios moviam-se
constantemente. Yasha ps o brao em volta de Magda e ela deitou-lhe a cabea no
ombro, mas no era com ela que ele estava. Dormia e estava acordado ao mesmo tempo.
Tentava tomar uma deciso,
52 - 53
mas nenhuma lhe surgia. A sua fantasia aumentava e sonhou que aquilo no era uma
carroa, mas sim um comboio para Itlia, no qual ele viajava com Halina e Emilia.
Quase conseguia ouvir o apito da locomotiva. Pela janela via passar ciprestes,
palmeiras, montanhas, castelos e vinhas, laranjais e olivais. Tudo parecia
diferente: os camponeses e as suas mulheres, as casas e as medas de feno. "Onde
que eu vi estas coisas?", perguntava Yasha. "Em quadros? Na pera? como se j
tivesse vivido tudo isto numa existncia anterior."
Habitualmente, fazia duas paragens durante a viagem, mas naquele momento decidiu
seguir e chegar de manh a Varsvia. Dizia-se que os salteadores de estrada
espreitavam, mas Yasha levava a pistola no bolso. Enquanto a carroa avanava, ele
imaginava-se actuando nos teatros da Europa. As damas dos seus camarotes apontavam-
lhe os seus binculos de teatro. Aos bastidores vinham cumpriment-lo embaixadores,
bares e generais. Agora, com um par de asas artificiais, voava ele por sobre as
capitais do mundo. Pelas ruas corriam multides apontando e gritando e enquanto
voava recebia por pombo-correio mensagens, convites de governantes, prncipes e
cardeais. Na sua propriedade do Sul de Itlia, Emilia e Halina esperavam-no. E ele,
Yasha, j no era um mago, mas um fabuloso hipnotizador que controlava exrcitos,
curava doentes, encorajava criminosos, localizava tesouros escondidos, erguia das
profundezas barcos afundados. Yasha tornara-se o imperador do mundo. Troava das
suas prprias fantasias, mas no conseguia livrar-se delas. Caam sobre ele como
gafanhotos: eram sonhos sobre raparigas de harm, escravas, truques sobrenaturais,
poes mgicas, sortilgios e encantamentos que revelavam todos os segredos e
infinitos poderes que lhe eram concedidos. Na sua imaginao at libertava os
judeus do exlio, devolvia-lhes a terra de Israel, reconstrua o templo de
Jerusalm. De repente comeou a fazer estalar o chicote como que tentando exorcizar
os demnios que lhe tinham invadido a mente. Agora, mais do que nunca, necessitava
de ter ideias claras. Preparara para o seu repertrio uma srie de novas e
perigosas acrobacias. Uma destas consistia numa cambalhota sobre o arame, uma
acrobacia nunca antes tentada por outro artista. O importante era decidir-se quanto
a Emilia. Estaria de facto preparado para abandonar Esther e partir para Itlia com
Emilia? Poderia tratar to cruelmente Esther, depois de todos os anos de dedicao
e lealdade? E estaria Yasha disposto a converter-se, a tornar-se cristo?
Prometera-o a Emilia, fizera juramento, mas estaria pronto a
cumpri-lo? E havia outra coisa: no podia levar a cabo os seus planos com Emilia
sem ter uma grande soma de dinheiro, pelo menos cinquenta mil rublos. Havia meses
que jogava com a ideia de um roubo, mas seria realmente capaz de se tornar um
ladro? Ainda recentemente dissera a Chaim-Leib que para si o Oitavo Mandamento era
sagrado. Yasha sempre se orgulhara da sua honestidade. E qual seria a reaco de
Emilia se soubesse da sua inteno? Que diria Esther? E, no outro mundo, seu pai e
sua me? Afinal, sempre acreditava na imortalidade. Havia pouco tempo, sua me
tinha-lhe at salvo a vida. Ouvira a voz dela avisando-o: "Afasta-te, filho,
afasta-te!", e, minutos depois, um pesado candelabro cara no local onde ele
estivera. T-lo-ia certamente esmagado se no tivesse prestado ateno ao aviso da
sua falecida me.
At quele momento adiara sempre a deciso. Mas no podia adiar mais. Emilia
esperava que se decidisse. Tinha tambm de decidir o que fazer com Wolsky, o seu
empresrio, que tratava de todos os seus contratos. Aquele Wolsky tirara Yasha da
pobreza, estimulara-lhe a carreira. No podia pagar a Wolsky com o mal. O amor que
Yasha sentia por Emilia era to forte, quanto cheio de tentaes.
Tinha de decidir naquela mesma noite, escolher entre a sua religio e a cruz, entre
Esther e Emilia, entre a honestidade e o crime (um nico crime pelo qual, com a
ajuda de Deus, pagaria mais tarde). A sua mente, porm, nada resolvia. Em vez de
atacar o problema principal, ela divagava, escapava-se tangente, tornava-se
frvola. Podia naquela altura ser j pai de filhos grandes e, no entanto,
permanecia o rapazito que brincava com os cadeados e as chaves de seu pai e seguia
os magos pelas ruas de Lublim. Nem sequer estava certo da intensidade do seu amor
por Emilia, nem sabia se aquele sentimento era o tal a que se chama amor. Seria
capaz de se lhe manter fiel? O Diabo j o tentava com todo o tipo de especulaes
sobre Halina, sobre como ela cresceria e se enamoraria dele e se tornaria rival de
sua me pelos seus carinhos.
" verdade, sou um depravado", pensava. "Que que o meu pai me chamava? Um
patife." Mais tarde o pai aparecera-lhe em sonhos todas as noites. Mal Yasha
fechava os olhos, via o pai. O velho pregava-lhe sermes, avisava-o, aconselhava-o.
- Em que que ests a pensar? - perguntou Magda.
- Oh, em nada.
- verdade que Zeftel, a ladra, vem para Varsvia? Yasha estremeceu.
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como desenrolavam as correias. Tudo lhe era estranho e, apesar de tudo, familiar.
Magda voltara para a carroa como que temendo todo aquele judasmo. Yasha decidiu
ficar mais um pouco. Fazia parte daquela comunidade. As suas razes eram as dele.
Trazia na carne a marca dela. Compreendia as suas oraes. Um velho disse: "Deus,
minha alma". Um outro contou lentamente a histria de como Deus testara Abrao,
ordenando-lhe que imolasse seu filho Isac em sacrifcio. Um terceiro entoou: "Que
somos ns? Que a nossa vida? Que a nossa piedade? Perante Ti todos os homens
so nada, os famosos como os que o no so, pois que a maior parte das suas obras
so vs e os dias das suas vidas perante Ti so coisa v". Ele recitou aquilo em
tom de lamentao e olhando sempre para Yasha, como se soubesse o que lhe ia no
esprito. Yasha respirou fundo. Cheirava-lhe a sebo, a cera e a algo mais, um misto
de putrefaco e de sais como no Dia de Reconciliao, quando era criana. Um
homenzinho de barba ruiva dirigiu-se a Yasha.
- Queres rezar? - perguntou. - Vou buscar-te os filatrios e a estola de orao.
- Obrigado, mas tenho a carroa espera.
- A carroa no foge.
Yasha deu um kopek ao homem. sada beijou o mezuzah. Na antecmara reparou num
barril cheio de folhas rasgadas dos livros santos. Vasculhou no barril e tirou de
l um livro rasgado. Um aroma sublime desprendeu-se das folhas esfarrapadas, como
se, embora continuando ali no barril, continuassem a ser lidas por si mesmas.
Ao fim de algum tempo, Yasha conseguiu encontrar uma estalagem. Ele e Magda tinham
de vestir roupas secas; ele tinha de consertar a carroa, olear os eixos e
descansar a parelha. Tinham de tomar o pequeno-almoo e dormir algumas horas. Como
viajava com uma no judia, Yasha falou polaco ao estalajadeiro, fazendo-se passar
tambm por polaco. Ele e Magda sentaram-se a uma mesa comprida e vazia e uma judia
de leno na cabea, de olhos avermelhados e queixo pontiagudo e peludo, serviu-lhes
po escuro, queijo caseiro e caf com chicria. Olhou o livro de oraes que Yasha
enfiara no bolso e disse:
- Onde que o senhor arranjou isso? Yasha estremeceu.
- Ah, apanhei-o prximo do vosso templo. Que ? Um livro sagrado?
- D-mo. O senhor tambm no o entendia. Para ns sagrado.
- Quero v-lo melhor.
- Como que pode l-lo? em hebreu.
- Tenho um amigo, sacerdote. Sabe hebreu.
- O livro est rasgado. D-mo, senhor!
- Deixa... - gritou-lhe l de longe o marido, em idiche.
- No quero que ele ande por a com um livro judaico - respondeu-lhe ela,
agressivamente.
- Que que est a escrito? - perguntou Yasha. - Como burlar os cristos?
- Ns no burlamos ningum, nem judeus nem cristos. Ganhamos o nosso po
honestamente.
Abriu-se uma porta lateral e entrou um rapazinho, usando um barrete coberto de
farrapos e um roupo desabotoado, sob o qual aparecia uma pea de roupa franjada.
Tinha um rosto estreito e dois grandes caracis de lado, como meadas de linho.
Parecia ter acordado naquele momento e tinha os olhos ainda pesados do sono.
- Av, d-me leite e gua - disse ele. -J fizeste as tuas ablues?
-J, j fiz.
-J deste Graas?
-J, j dei.
E limpou o nariz manga.
Yasha continuou a comer e a olhar para o rapaz. "Ser que poderei esquecer tudo
isto?", perguntou-se. "Isto meu, afinal, meu... Outrora fui exactamente como
este rapaz." Assaltou-o subitamente uma estranha pressa de examinar to rapidamente
quanto possvel, o que estava escrito naquele livro de oraes rasgado. Uma onda de
ternura levou-o at sua av, que se levantava todos os dias com o Sol e cozinhava
e cozia po, varria a casa e servia os hspedes. Havia na ombreira da porta uma
caixa de esmolas. Ali depositava cada groschen que conseguia economizar, para
ajudar os judeus que queriam ir morrer Terra Santa. No Sabath a atmosfera daquela
casa reacendia-se, bem como nos dias santos, na espera do Messias e do mundo que
h-de vir. Enquanto se atarefava, a velhota deixava escapar por entre os lbios
esbranquiados um murmrio e acenava com a cabea, como que na posse de uma verdade
s conhecida daqueles que se no deixam enganar pela fatuidade das coisas terrenas.
58
3.
Para Yasha era sempre um acontecimento a chegada a Varsvia. Dali lhe advinham os
lucros. Era onde vivia o seu empresrio Miechislaw Wolsky. Nas paredes j havia
cartazes anunciando: "A 1 de Julho, o Alhambra, teatro de Vero, apresenta o
distinto artista de circo e hipnotizador Yasha Mazur, com um novo repertrio de
truques que espantar o estimado pblico". Yasha tinha ali um apartamento na Rua
Freta, prximo da Avenida Dluga. At as mulas - P e Cinza - se animavam quando se
aproximavam de Varsvia. J no era preciso dar-lhes pressa. Logo que a carroa
atravessava a Ponte de Praga, perdia-se entre o emaranhado de casas, palcios,
nibus, carruagens, coches, lojas e cafs. O ar cheirava a po fresco, a caf, a
estrume de cavalo e a fumo dos comboios e das fbricas. Em frente do castelo,
ocupado pelo governador russo, tocava uma banda militar. Devia ser qualquer
feriado, visto que todas as varandas tinham bandeiras russas. As mulheres j usavam
chapus de palha de aba larga, decorados com frutos e flores artificiais. Rapazes
descuidados, de chapus de palha e fatos claros, passeavam volteando as bengalas.
No meio do tumulto assopravam e apitavam as locomotivas, os engates dos vages
gemiam. Dali saam comboios para Petersburgo, Moscovo, Viena, Berlim e
Vladivostoque. Depois do perodo de austeridade que se seguira revolta de 1863, a
Polnia entrara numa poca de reforma industrial. Lodz desenvolvera-se com uma
rapidez americana. Em Varsvia eram arrancados os passeios de madeira, era
instalada canalizao subterrnea, postos carris para os troleys de cavalos,
construdos altos edifcios, bem como grandes ptios e mercados. Os teatros
apresentavam a nova poca de drama, comdia, pera e concertos. Chegavam de Paris,
de Sampetersburgo, de Roma e at da longnqua Amrica conhecidos actores e
actrizes. As livrarias exibiam romances recm-publicados, bem como obras
cientficas, enciclopdias e dicionrios. Yasha respirou fundo. A viagem fora
estafante, mas a cidade excitava-o. "Se assim to estimulante aqui, quanto no
ser no estrangeiro!", cismava. Queria correr imediatamente para junto de Emilia,
mas dominou-se. No podia aparecer ensonado, por barbear e desgrenhado. Primeiro
tinha tambm de ver Miechislaw Wolsky. Yasha enviara-lhe um telegrama ainda de
Lublim.
Yasha no estivera recentemente em Varsvia.
59
Andara em digresso pela provncia. Quando andava em viagem, temia sempre que o seu
apartamento fosse assaltado. Tinha l a sua biblioteca, as suas antiguidades e a
sua coleco de cartazes, de recortes de jornais e revistas. Mas, Deus seja
louvado!, a porta ainda estava firmemente trancada com duas pesadas fechaduras e
tudo l dentro estava em ordem. Havia camadas de p por toda a parte e o ar
cheirava a mofo. Magda comeou imediatamente a arrumar. Wolsky apareceu num coche.
Era um pago com ar de judeu, nariz afilado e testa alta. A sua gravata de artista
encavalitava-se atrevidamente por sobre o peitilho da camisa. Yasha recebera dele
numerosas propostas para actuar em cidades russas e polacas. Enquanto encaracolava
o bigode, Wolsky ia falando apaixonadamente daqueles que dependem da fama dos
outros para sobreviver. Preparara at um plano para Yasha seguir, depois de
terminado aquele contrato de Vero no Alhambra. Yasha apercebia-se, contudo, de que
a linguagem bombstica de Wolsky era desnecessria. S o queriam na provncia. No
tinham chegado quaisquer convites de Moscovo, Kiev ou Sampetersburgo. Os seus
ganhos na provncia eram pequenssimos. At em Varsvia nada mudara. O proprietrio
do Alhambra recusara energicamente aumentar o salrio de Yasha. Por muito que o
elogiassem, os palhaos estrangeiros ganhavam mais. Era como que um mistrio,
aquela obstinao dos proprietrios dos teatros. Os argumentos e a discusso de
Wolsky foram inteis. Yasha era sempre dos ltimos quanto a pagamento. Emilia tinha
razo. Enquanto se mantivesse na Polnia trat-lo-iam como um artista de terceira
categoria.
Depois de Wolsky sair, Yasha deitou-se no quarto. O porteiro trataria dos cavalos e
Magda zelaria para que aos outros animais fosse dado de comer e de beber. Estavam
os trs, o papagaio, o corvo e o macaco alojados na mesma dependncia. Apesar de
ser escanzelada como era, Magda logo se ps a esfregar o cho. Herdara de geraes
de camponeses a sua fora, bem como o seu servilismo. Yasha dormitou, acordou e
voltou a dormitar. A casa era velha. L em baixo, no ptio no asfaltado, grasnavam
os gansos e os patos, e os galos cantavam como no campo. Entrava pela janela a
brisa proveniente do Vstula e das florestas de Praga. Na rua, um pedinte arranhava
uma cano num realejo e cantava uma velha melodia de Varsvia. Se no sentisse os
membros to pesados, Yasha ter-lhe-ia atirado uma moeda. Sonhava e pensava ao mesmo
tempo. Voltar a arrastar-se pelo interior pantanoso? Voltar a actuar em tendas de
campanha? No, estava farto! Os seus pensamentos revolviam-se ao ritmo do realejo.
"Tenho de partir, partir, deixar tudo." Custasse o que custasse,
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4.
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judeu, tal como nas veias da maior parte da nobreza polaca. Usava naquele momento
um vestido leve cor de caf com leite. Nunca parecera to bela: direita, gil, uma
beleza polaca de mas do rosto salientes, nariz eslavo, mas de olhos escuros de
judia, cheios de malcia e de paixo. O cabelo estava puxado para cima e rodeado
por uma trana em forma de grinalda. A cintura era fina e o peito alto, parecia
realmente muito mais nova do que os trinta e tantos anos que tinha. At o buo
sobre o lbio superior lhe dava um ar de rapazinho efeminado. O seu sorriso era
tmido e gaiato. J se tinham anteriormente beijado e abraado como amantes. Ela
confessava muitas vezes que era preciso todo o seu auto-controlo para se furtar a
uma entrega total. Ela, porm, desejava casar-se na igreja para comearem a vida de
casados de uma forma pura. Ele j lho prometera para lhe agradar: converter-se-ia
ao cristianismo.
- Obrigada pelas flores - disse, e estendeu-lhe a mo, que no era pequena, mas sim
clara e delicada. Levou-a aos lbios e beijou-a, mantendo-a por um momento entre as
suas. Envolviam-nas aromas de lils e de Primavera.
- Quando chegaste? - perguntou ela. - Esperava-te ontem.
- Estava demasiado cansado.
- Halina no parou de perguntar por ti. Ontem o Courier Warshawski dizia qualquer
coisa sobre ti.
- Sim, o Wolsky mostrou-me.
- Foi um salto mortal no arame?
- Foi.
- Oh, cus! Que que mais no tentaro! - exclamou com espanto e amargura. - Sim,
creio que um dom. Ests com bom aspecto - continuou, mudando de tom. - Parece que
Lublim te faz bem.
- L, descanso.
- Com todas as mulheres?
Ele no respondeu. Ela continuou:
- Nem sequer me beijaste ainda - e abriu-lhe os braos.
5.
Permaneceram colados naquele beijo como se fizessem um concurso para ver qual
respirava primeiro. Ela tinha sempre de obrig-lo a prometer que se controlava.
Havia quatro anos que ela
no conhecia homem, mas era melhor assim do que ser promscua. Dizia sempre: "Deus
v tudo. O esprito dos mortos est sempre presente e observa os actos dos que lhe
so queridos". Emilia tinha as suas convices religiosas. O dogma catlico mais
no era para ela do que um conjunto de regras. Lera os escritos msticos de
Svedenborg e Jakob Boehme. Discutia muitas vezes com Yasha a clarividncia, as
premunies, a leitura da mente e a comunicao com os espritos dos mortos. Depois
da morte de Stephan Chrabotzky, fez algumas sesses na sua sala de visitas, nas
quais acreditava trocar saudaes com Chrabotzky por toques na mesa. Mais tarde
apercebeu-se de que a mdium era uma aldrabona. De certa forma estranha, tinham-se
misturado em Emilia o misticismo, o cepticismo e um tranquilo sentido de humor.
Ridicularizava Yadwiga e o livro egpcio de interpretao de sonhos que a criada
guardava debaixo da almofada - no entanto, tambm ela acreditava nos sonhos. Depois
da morte de Chrabotzky, vrios colegas dele lhe propuseram casamento, mas num sonho
apareceu-lhe o defunto marido que a incitou a recus-los. Um dia at lhe aparecera
quando subia as escadas, ao anoitecer. Ela confessara a Yasha que o amava porque o
seu carcter era muito parecido com o de Chrabotzky e porque tinha indicaes de
que Chrabotzky aprovava o enlace. Pegou ento nos pulsos de Yasha, levou-o at uma
cadeira e sentou-o como se faz a um menino mau.
- Senta-te. Espera - disse ela.
- Quanto tempo tenho de esperar?
- Tudo depende de ti.
Sentou-se em frente dele, numa chaise-longue. Arrancar-se dos braos dele fora para
ela um esforo fsico. Sentou-se, ruborizando-se por momentos, como se se sentisse
surpreendida pelo seu prprio desejo.
Encetaram uma conversa com as frases srias daqueles que, sendo ntimos e tendo-se
separado, tentam novamente reatar os laos quebrados. Halina estivera doente duas
semanas antes. Tambm Emilia tivera gripe.
- Mandei dizer-te isso por carta, no mandei? Bom, esqueci-me... Sim, agora est
tudo bem... Halina? Foi ler para o parque. Anda agora muito interessada pelos
livros - mas que porcaria! Meu Deus, que m se tornou a literatura! Vulgar,
ordinria. Este ms de Maio foi frio, no foi? At nevou... Ao teatro? No, no
fomos a lado nenhum. Alm de o preo dos bilhetes ser exorbitante, a qualidade das
peas to absurda... tudo traduzido do francs
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e ainda por cima mal traduzido. O eterno tringulo... Mas no gostarias mais de
falar de ti? Por onde andaste todas estas semanas? Quando te vais embora tudo
parece irreal. Tudo me parece um sonho. Mas quando chega uma carta o mundo volta a
ser o mesmo. Bom, de repente eis que irrompe Halina muito excitada: veio no Courier
uma notcia sobre ti... Halina est convencida de que algum cujo nome venha no
jornal um semideus, mesmo que tenha vindo no jornal por ter sido atropelado por
um nibus... E tu, como ests? Tens bom aspecto. No pareces ter sentido a nossa
falta. Que que eu sei, de facto, sobre ti? Sempre foste e sers um enigma. Quanto
mais falas de ti menos te reconheo. Tens mulheres por toda a Polnia. Vagueias por
a numa carroa coberta, como um cigano. muito engraado. Uma pessoa com o teu
talento e to atrasada. Por vezes, penso que toda a tua conduta no passa de uma
pardia contigo e com o mundo... O qu? Sobre ns nada te posso dizer. Todos os
nossos planos pairam no ar. Temo que, se tudo assim continua, eles se arrastaro
at sermos ambos velhos e grisalhos...
- Vim ter contigo agora e no nos separaremos mais! - disse ele, surpreendido com
as suas prprias palavras. At quele momento ainda no tinha tomado uma deciso.
- O qu?... Bom, isso tudo quanto eu tenho esperado ouvir. tudo quanto queria
ouvir!
E os seus olhos ficaram hmidos. Voltou a cara e ele viu-lhe o perfil. Levantou-se
ento para dizer a Yadwiga que servisse o caf. Ela j o tinha preparado antes que
lho pedissem. Moera-o num moinho de caf, de acordo com a tradio polaca. O aroma
penetrou na sala. Yasha ficou s. "Bom, tudo o destino", murmurou de si para si.
Foi tomado de um tremor. Ao dizer aquelas palavras a Emilia, tinha de certa forma
traado o seu destino. Que seria agora de Esther? E de Magda? E onde iria arranjar
o dinheiro de que precisava? E seria mesmo capaz de mudar de religio? "No posso
viver sem ela!", era o que respondia a si mesmo. Assaltou-o de repente a
impacincia do condenado que anseia pela libertao. Cada hora uma eternidade.
Yasha levantou-se. Embora o corao lhe pesasse, sentia os ps invulgarmente leves.
"Neste momento era capaz de dar no um, mas trs saltos mortais seguidos no arame!
Como foi possvel adiar por tanto tempo?" Dirigiu-se janela, afastou os
cortinados, olhou para os luxuriantes Jardins Saxony, para os rapazinhos, para os
jovens peralvilhos, as governantas e os parzinhos que passeavam pelas leas.
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6.
A campainha da porta soou. Emilia desculpou-se e mais uma vez deixou Yasha sozinho.
Ele ficou quieto, como se estivesse escondido e receoso de denunciar a sua presena
a algum que o procurava. J comprometera Emilia, mas ela ainda o escondia dos seus
parentes. Tornara-se como que algum que v, mas invisvel. Ali ficou sentado
olhando a moblia e as carpetes. O pndulo do relgio do av balanava lentamente.
Os raios dourados do Sol resvalavam dos prismas do candelabro at encadernao de
veludo vermelho do lbum. Da casa vizinha provinham acordes de piano. Sempre
admirara a limpeza daquela casa, a sua grande arrumao. Tudo estava no lugar
certo. No havia um gro de p onde quer que fosse. Parecia que quem ali vivia
nunca produzia suj idade ou o que quer que fosse de suprfluo, nem odores
desagradveis, nem pensamentos inoportunos.
Yasha escutava atentamente. Emilia tinha vrios parentes afastados que viviam na
cidade. Apareciam por l
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frequentemente, sem serem esperados. Por vezes, Yasha tivera de sair pela porta da
cozinha. Enquanto escutava, tentava fazer o balano da sua situao. Para realizar
os seus planos precisava de dinheiro, pelo menos quinze mil rublos. S tinha uma
forma de obter tanto dinheiro. Mas mais uma vez, estaria ele preparado para dar um
tal passo? O facto de ter intimidade com tantas mulheres fizera dele algum que
vivia o momento e se conduzia s por impulso e inspirao. Fazia planos, mas tudo
ficava fluido. Falava de amor, mas no conseguia em verdade explicar a si mesmo o
que queria dizer com aquela palavra, nem sequer o que entendia Emilia, por ela. Em
todas as suas transgresses sempre sentira a mo da Providncia. Havia foras
escondidas que o incitavam durante as suas actuaes. Mas poderia esperar que Deus
o guiasse no roubo e na apostasia? Enquanto ouvia as notas do piano, escutava
tambm os seus pensamentos. Normalmente, antes de qualquer aco fazia-se ouvir uma
voz dentro de si, que falava claramente, ordenava firmemente e sugeria todos os
pormenores. Mas daquela vez experimentou uma sensao de antecipao. Estava
destinado que algo havia de acontecer, algo havia ainda de ser alterado. Na sua
agenda tinha uma lista de bancos, de moradas de gente rica, daquela que guardava o
dinheiro em cofres de metal, mas ainda no explorara aquelas possibilidades. J
conseguira justificar o feito que planeava, pois que fizera uma jura de retribuir
tudo quanto tirasse e com juros, logo que fosse famoso no estrangeiro, mas ainda
no conseguira apaziguar a sua conscincia. Permaneciam o medo, a repulsa e o
desprezo por si. Seria desacreditado como pessoa de honra. Os seus avs de ambos os
lados eram conhecidos pela sua honestidade. Um seu bisav seguira uma vez um
comerciante at Lenczno para lhe pagar dez groschen que tinha esquecido...
A porta abriu-se e Halina apareceu: bonita, parecendo repentinamente alta para os
seus catorze anos, com tranas louras, olhos azul-claros, nariz direito, lbios
carnudos e com a pele da palidez dos que sofrem de anemia ou dos pulmes. Crescera
durante o pouco tempo que ele estivera ausente e parecia envergonhada disso. Olhou
Yasha, satisfeita e simultaneamente embaraada. Halina saa ao pai - tinha uma
mente cientfica. Ansiava por entender tudo: cada truque que Yasha fazia, cada
palavra que dizia me, enquanto ela, Halina, estava presente. Era uma leitora
vida, coleccionava insectos, sabia jogar xadrez e escrevia poesia. J andava a
estudar italiano... Pareceu hesitar por momentos. Depois e subitamente correu para
Yasha e com um salto infantil caiu-lhe nos braos.
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- Tio Yasha!
Beijou-o e deixou que ele a beijasse.
Assaltou-o imediatamente com perguntas. Quando chegara? Tambm viera de carroa
desta vez? Tinha visto animais ferozes na floresta? Tinha sido interceptado por
assaltantes? Como estava o macaco? O corvo? O papagaio? Como estavam os paves do
quintal de Lublim? E a serpente? A tartaruga? Iria mesmo dar um salto mortal no
arame, conforme diziam nos jornais? Seria possvel? Tinha sentido saudades delas -
da mam e dela? Parecia muito crescida; porm, pairava como uma criana. Dava, no
entanto, uma sensao de artifcio e de brincadeira.
- Cresceste como uma rvore! - disse Yasha.
- Todos fazem referncia minha altura! - disse, fazendo beicinho e em tom de
censura. - Como se eu tivesse culpa. Estou deitada e sinto-me crescer. H um
diabinho a puxar-me pelos ps. Eu no quero crescer. Queria ficar sempre pequenina.
Que hei-de fazer, tio Yasha? H algum exerccio para nos mantermos pequenos? Diz-
me, tio Yasha! - e beijou-o na fronte.
"Tanto amor! Tanto amor!", cismou Yasha. E disse:
- Sim, h uma maneira.
- Como?
- Pomos-te na caixa do relgio do av e fechamos a porta chave. No conseguirs
crescer mais do que o tamanho do compartimento.
Halina deu logo um pulo.
- Ele tem soluo para tudo! Como a sua mente trabalha depressa! Nem sequer tem de
pensar! Como que trabalha o teu crebro, tio Yasha?
- Porque que no lhe tiras a tampa e espreitas l para dentro? exactamente como
o mecanismo de um relgio.
- Mais relgios? tudo quanto tens hoje na cabea... relgios? Ests a trabalhar
num novo truque com um relgio? Leste o Courier? s famoso! Toda a Varsvia te
admira. Porque ficaste afastado de ns tanto tempo, tio Yasha? Estive doente e
chamava por ti a toda a hora. Tambm sonhei contigo. A mam repreendeu-me por eu
falar tanto de ti. Ela terrivelmente ciumenta! - disse Halina, corando ao dizer
isto. Nesse mesmo momento entrou Emilia.
- Com que ento, o teu tio Yasha j c est outra vez!... Nem sei quantas vezes ela
perguntou por ti.
- No lhe digas, mam. Estraga-lo com mimos. Pensa que, l porque um grande
artista e ns pessoas insignificantes,
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pode dominar-nos. Deus mais poderoso do que tu, tio Yasha. capaz de fazer
truques melhores.
Emilia ficou subitamente sria.
- No invoques o nome de Deus em vo. No assunto para ser tratado com
leviandade.
- Eu no estou a brincar, me.
- a ltima moda: trazer Deus a qualquer conversa ftil. Por uns momentos, Halina
pareceu perdida nos seus pensamentos.
- Mam, estou simplesmente a morrer de fome.
- Oh!?
- Sim, se no comer qualquer coisa nos prximos dez minutos, morro.
- Oh, como te portas! Como uma criana de seis anos. Diz a Yadwiga que te d algo
de comer.
- E tu, mam, no tens fome?
- No; consigo sobreviver entre uma refeio e a seguinte.
- Mas tu mal comes, mam. Para ti o pequeno-almoo um copo de cacau. E tu, tio
Yasha?
- Eu comia um elefante.
- Vem ento, vamos com-lo juntos.
7.
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72
- Claro, mas uma mulher mdico! Como que ela se veste? Como George Sand?
- Que sabes tu de George Sand? Fecho-te a biblioteca chave!
- No faas isso, mam. Amo-te, amo-te tanto e tu s to severa para comigo. O que
tenho eu alm dos meus livros? Todas as raparigas que conheo so umas chatas. O
tio Yasha raramente nos vem ver. Joga connosco s escondidas. Perco-me nos livros.
Porque que vocs no se casam?! - exclamou Halina de repente, espantada com as
suas prprias palavras. Empalideceu. Emilia corou at raiz dos cabelos.
- Ests doida ou qu?
- Ela tem razo. Casaremos brevemente - interrompeu Yasha. - Est tudo decidido.
Vamos os trs para Itlia.
Halina inclinou a cabea, envergonhada. Comeou a brincar com a ponta da trana
como se contasse os cabelos. Emilia baixou os olhos. Ali estava atrapalhada,
envergonhada e feliz pelas palavras de Yasha. A garota pairava descontroladamente,
mas desta vez a sua conversa tola fora muito til. Ele acabara por tornar a
situao oficial. Emilia ergueu os olhos.
- Halina, vai para o teu quarto!
V.
1.
Habitualmente, Yasha comeava a ensaiar duas semanas antes da estreia. Naquele ano,
exactamente quando tinha preparado um repertrio difcil, andava a adiar os ensaios
de dia para dia. O proprietrio do Alhambra recusara-se a aumentar o salrio de
Yasha. Wolsky, o empresrio, andava a negociar secretamente com outro teatro de
Vero, o Palace. Muitas vezes, durante o dia, quando Yasha estava sentado no Caf
Lurs, bebericando caf e folheando uma revista, era assaltado por uma estranha
premunio... uma sensao de que no actuaria naquela temporada. Temia aquele
pressgio e tentava afast-lo da mente, desvanec-lo, apag-lo... mas ele
continuava a surgir. Adoeceria? Estaria ele, Deus me perdoe, para morrer? Ou ser
outra coisa ou tudo junto? Levou as mos fronte, esfregou o couro cabeludo, as
faces e envolveu-se numa escurido cega. Tinha-se enleado em demasiados laos. Fora
levado a um dilema. Amava e desejava Emilia. At desejava Halina, mas como podia
infligir um tal tormento a Esther? Durante tantos anos ela demonstrara-lhe uma to
grande dedicao. Estivera a seu lado em todas as dificuldades, ajudara-o em todas
as crises; a sua tolerncia era do gnero da que os piedosos atribuem a Deus. Como
poderia ele pagar-lhe com uma bofetada? Ela no sobreviveria ao choque, Yasha
sabia-o... estremeceria e extinguir-se-ia como uma vela. Vira mais de uma vez
morrer gente de ataque cardaco, apenas porque no tinham razo para continuar a
viver. Docemente e sem explicao, o Anjo da Morte executa as suas magias.
76
Havia algum tempo que vinha tentando preparar Magda para a sua partida. Mas ela j
andava enervada. Sempre que voltava de Emilia, Magda olhava-o com uma censura muda.
J quase deixara de lhe falar e escondia-se como uma lapa na sua concha. Na cama
era frgida, distante, silenciosa. Depois do Vero as borbulhas que tinha na cara
costumavam desaparecer, mas naquele ano a sua pele estava cheia delas. A erupo
espalhara-se at ao pescoo e parte de cima dos seios. Comeou tambm a sofrer
acidentes. Os pratos escorregavam-se-lhe das mos. As cafeteiras entornavam-se-lhe
no fogo. Queimara um p, picara um dedo, quase perdera um olho. Naquele estado,
como que podia dar cambalhotas, dar-lhe os paus e as bolas de malabarismo ou
fazer rodar o barril sobre os ps? Mesmo que Yasha conseguisse fazer a temporada,
teria certamente de contratar outra partenaire ltima hora. Sim, e que seria da
pobre Elzbieta? A notcia de que abandonara Magda podia mat-la.
Havia uma soluo parcial para aquela infeliz situao: dinheiro. Se pudesse dar
dez mil rublos a Esther, isso aparar-lhe-ia de certo modo o golpe. Uma quantia em
dinheiro acalmaria Magda e Elzbieta. Precisava tambm de uma grande soma para si,
para Emilia e Halina. O seu plano era comprar uma vivenda no Sul de Itlia, cujo
clima beneficiaria os pulmes de Halina. Yasha no poderia comear imediatamente a
actuar. Primeiro teria de aprender a lngua, contratar um empresrio, estabelecer
contactos. L no podia vender os seus servios por to baixo preo como na
Polnia. Tinha de comear por cima. Para tudo aquilo, porm, precisava de um fundo
de maneio de pelo menos trinta mil liras. Emilia confessara-lhe o que na realidade
ele j sabia. Ela nada possua alm de um monte de dvidas, que teria de saldar
antes de sair da cidade.
Yasha no fumava habitualmente. Tinha perdido o vcio do cachimbo, convencido de
que lhe fazia mal ao corao e aos olhos, e que lhe perturbava o sono. Mas naquele
momento comeara a fumar cigarros russos. Chupava a ponta do cigarro, bebericava
caf de um pires e deitava uma olhadela a uma revista. O cheiro excitava-lhe as
narinas e o caf o palato. O artigo da revista no fazia sentido. Falava
desvanecidamente de uma actriz parisiense, uma tal Fifi a cujos ps se lanava a
Frana em adorao. O articulista insinuava que Fifi teria sido uma mundana.
"Porque que toda a Frana adoraria uma prostituta?", perguntava-se Yasha. "Era
aquilo a Frana? Era aquilo a Europa Ocidental de que Emilia falava com tanto
espanto? Era aquilo a cultura, a arte, a esttica de que os jornais falavam com
tanto entusiasmo?" Deitou a revista para
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o lado, a qual foi logo apanhada por um cavalheiro de bigode branco. Yasha apagou o
cigarro nos restos do caf. Todas aquelas reflexes e especulaes levavam
inevitavelmente a uma concluso: tinha de deitar a mo a uma grande quantidade de
dinheiro, se no por meios legais, roubando. Mas quando deveria levar a cabo o
crime? Onde? Como? Era estranho que, estando ele a planear aquele feito havia
meses, nunca entrara num banco, nem sequer se informara sobre de como se actuava
num banco; nem sequer ainda descobrira onde os bancos guardavam o dinheiro depois
de fechar, nem sequer o tipo de fechaduras e cofres que utilizavam. Adiara, adiara.
Sempre que passava por um banco apressava o passo, desviando a cara. Uma coisa era
abrir um cadeado no palco ou perante o bando de Piask, outra era assaltar um
edifcio com guardas armados. Para isso tinha de se ser um ladro nato.
Yasha bateu com a colher no pires para chamar o criado, mas o homem no ouviu ou
fingiu que no ouviu. O caf estava completamente cheio. Havia poucos clientes que
estivessem sozinhos como ele. A maior parte estava sentada em grupos, em crculos,
amontoados. Os homens vestiam fraques, calas de riscas e gravatas largas. Uns
usavam barba afilada e outros barba quadrada; uns tinham bigodes cados e outros
encaracolados. As mulheres usavam vestidos de saia de roda e chapus de aba larga
decorados com flores, frutos, alfinetes e penas. Os patriotas que os russos tinham
enviado para a Sibria em vages fechados depois da revolta estavam l a morrer s
centenas. Morriam de escorbuto, de tuberculose, de beribri, mas sobretudo de
tristeza e de saudade da ptria-me. No entanto, os clientes do caf aparentavam
ter-se reconciliado com o invasor russo. Falavam, gritavam, brincavam e riam. As
mulheres caam nos braos umas das outras aos risinhos. L fora rodava um carro
funerrio, mas os que estavam l dentro ignoravam-no como se a morte no fosse com
eles. De que palravam com tanto entusiasmo? - perguntou-se Yasha. Porque brilhavam
tanto os seus olhos? E aquele velhote de barba em forma de cunha e de olhos
papudos, porque pusera uma rosa na lapela? Para todos os efeitos, Yasha era seu
igual e, no entanto, uma barreira os separava. Mas o que era? Nunca achou uma
explicao clara. Lado a lado com a sua ambio e sensualidade habitavam-no a
tristeza, uma sensao da inutilidade de todas as coisas, uma culpa que no podia
ser nem reparada nem esquecida. Qual era o fim da vida se no se sabia porque se
nascia e porque se morria? Que sentido fazem bonitas palavras como positivismo,
reforma industrial e progresso, quando tudo terminava na sepultura?
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2.
No primeiro acto da pea, o marido convidava Adam Povolsky a passar com ele o Vero
na sua casa de campo, mas Adam Povolsky recusara. Revelou um segredo. Tinha uma
namoradinha, a jovem esposa de um velho nobre. Mas o marido era efeminado. A
namoradinha podia esperar. Queria que Povolsky desse lies de piano e de ingls
mulher durante as frias (o francs tinha passado de moda).
No segundo acto, Adam Povolsky mantinha relaes amorosas com me e filha. Para se
livrar do marido, os trs protagonistas convenceram-no de que era artrtico e de
que tinha de ir para Pischany a fim de tomar banhos de lama.
No terceiro acto o marido descobria o logro. "No tenho de ir a Pischany para
mergulhar na lama!", exclamou. "Tenho um pntano mesmo aqui dentro de casa!"
Desafiou Adam Povolsky para um duelo, mas nessa altura apareceu o marido enganado
da namorada de Povolsky, que o levou de volta para a sua propriedade. A pea
terminava com um discurso feito pelo velho nobre a Adam Povolsky sobre os perigos
dos enleios amorosos.
A farsa era adaptada do francs. Poucas peas eram levadas cena em Varsvia
durante o Vero, mas aquela em especial,
79
O Dilema de Povolsky, arrastava audincias mesmo com o maior calor. O riso comeava
mal se erguia o pano e no cessava at ao fim do terceiro acto. As mulheres
abafavam os risinhos nos lenos, enquanto enxugavam as lgrimas provocadas pelas
estrondosas gargalhadas. s vezes, l se ouvia um riso que parecia vagamente
humano. Estalava como um tiro e degenerava em lamria. Assim, um marido enganado
ria-se de outro. Batia nos joelhos e comeava a dar saltos na cadeira. Emilia
sorria e abanava-se. As luzes de gs faziam aumentar o calor. Yasha dificilmente
conseguia manter uma expresso afvel. Tinha visto centenas de farsas semelhantes.
O marido era sempre petulante, a mulher infiel, o amante astuto. Logo que Yasha
parava de sorrir, o sobrolho franzia-se. Ali, quem troava de quem? Aquela corja
abundava. Danava nos casamentos, lamuriava nos funerais, jurava fidelidade no
altar e corrompia a instituio casamento, choravam por um imaginrio orfozinho
abandonado e digladiavam-se em guerras, perseguies e revolues. Pegou na mo de
Emilia, mas a fria consumia-o. No podia abandonar Esther, converter-se, nem
tornar-se subitamente ladro por causa de Emilia. Olhava de lado para ela. Emilia
ria menos que as outras, talvez para no parecer vulgar, mas parecia tambm
apreciar as tortuosas artimanhas e o seu palavreado ambguo. Sabia-se l? Talvez
tambm se sentisse atrada por ele. Yasha era de pequena estatura, mas o actor era
alto e de ombros largos. Em Itlia, Yasha ver-se-ia mudo durante anos, enquanto
Emilia falaria francs e depressa aprenderia italiano. Enquanto ele andava em
bolandas fazendo habilidades, arriscando diariamente o pescoo, ela teria um salo
de visitas, receberia convidados, procuraria um par para Halina e talvez
encontrasse para si um Povolsky italiano. So todas iguais. Cada uma uma aranha!
"No, no!", gritou l por dentro. "No me deixarei caar. Amanh fujo. Deixarei
tudo - Emilia, Wolsky o Alhambra, a magia, Magda. J sou mago h demasiado tempo!
J caminhei demasiado no arame!" Lembrou-se de repente da nova proeza que
programara introduzir - o salto mortal no arame. Elas recostar-se-iam em almofadas,
enquanto ele, a raiar os quarenta como j estava, andaria a dar saltos mortais no
arame. E que aconteceria se ele casse e se esmagasse no cho? P-lo-iam entrada
da porta a pedir e nem um dos seus admiradores se deteria para lhe atirar um
groschen para ? o chapu.
80
Ele retirou a sua mo da de Emilia. Ela procurou-a novamente no escuro, mas ele
furtou-se-lhe no escuro, surpreendido com a sua prpria recusa. Aqueles pensamentos
no eram novidade para ele. J antes de conhecer Emilia se debatera com aqueles
problemas. Corria atrs das mulheres e, no entanto, odiava-as, do mesmo modo que um
bbado detesta o lcool. E enquanto planeava novas habilidades, ia temendo que as
velhas ultrapassassem j a sua capacidade e lhe causassem a morte a qualquer
momento. Assumira uma carga demasiado pesada perante Emilia. Sustentava Magda,
Elzbieta e Bolek. Pagava a renda do apartamento de Varsvia. Vagueava meses e meses
pela provncia, pernoitando em hotis baratos, actuando em tendas geladas, viajando
por estradas perigosas. E o que ganhava com tudo aquilo? O mais modesto hortelo
gozava de maior paz de esprito e de menos preocupaes. Esther costumava resmungar
que ele s trabalhava para o Diabo.
De forma estranha, a farsa corroborava as conjecturas. Quanto mais tempo vaguearia
assim? Quantas mais cargas suportaria? Por que mais perigos e desastres seria
assaltado. Sentia-se furioso com os actores, com o pblico, com Emilia e consigo.
Aquelas importantes damas e cavalheiros nunca o reconheceram, nem ele os
reconhecera. Subtilmente, tinham fundido a religio com o materialismo, o casamento
com o adultrio, o amor cristo com o dio humano. Porm, ele, Yasha, permanecera
um esprito torturado. As suas paixes flagelavam-no como chicotes. Nunca deixara
de sentir remorso, vergonha e medo da morte. Passava noites de agonia fazendo o
balano dos seus anos. Por quanto tempo se manteria ainda jovem? A velhice pairava
catastroficamente em torno dele. Que poderia haver de mais intil do que um velho
mago? s vezes, quando estava deitado, incapaz de fechar os olhos, vinham-lhe
mente passagens das Escrituras h muito esquecidas, oraes, sbios provrbios da
sua av e a severa moralizao de seu pai. Dentro de si comeava a ouvir um hino de
Yom Kippur:
A que pode o homem aspirar Quando a morte lhe extingue o fogo?
Assaltavam-no ideias de arrependimento. Talvez, afinal de contas, houvesse um Deus?
Talvez todas as sagradas citaes fossem verdadeiras? Apenas no parecia crvel que
o mundo se tivesse criado a si mesmo ou que simplesmente tivesse brotado de uma
bruma. Talvez que nos esperasse mesmo um Dia do Juzo,
81
no qual, segundo uma escala, as boas aces fossem pesadas como as ms. Se assim
era, cada minuto era precioso. Se assim fosse, ele teria preparado para si no um,
mas dois infernos. Um neste mundo, outro no outro!
Mas que soluo concreta poderia adoptar agora? Deixar crescer a barba e os
caracis laterais? Pr a estola de orao e os filactrios e rezar trs vezes por
dia? Onde que estava dito que toda a verdade residia no cdigo judaico? Talvez a
verdade estivesse com os cristos, com os maometanos, ou com outra qualquer seita?
Esses tambm tinham os seus livros sagrados, os seus profetas, todo o gnero de
lendas de milagres e revelaes. Sentia dentro de si debaterem-se as duas foras -
do bem e do mal. Passados alguns momentos, comeou a sonhar acordado com objectos
voadores, com novos amores, novas aventuras, viagens, tesouros, descobertas,
harns.
A cortina desceu no fim do terceiro acto. Os aplausos eram ensurdecedores. Os
homens comearam a gritar: "Bravo! Bravo!". Algum levou ao palco dois ramos de
flores. O elenco apertava-se as mos, fazia vnias, sorria, deitava olhares para os
camarotes ocupados pelos ricos. "Seria aquilo o objectivo da criao?", perguntava-
se Yasha. "Ser isto o que Deus quer? Talvez fosse melhor o suicdio."
- Que se passa? - perguntou Emilia. - Pareces estar hoje mal disposto.
- No, no nada.
3.
Do teatro a casa de Emilia, na Rua Krolevska, ia uma curta distncia, mas Yasha
alugou uma caleche para fazer o percurso. Ordenou ao cocheiro que fosse devagar. No
teatro estava muito quente, mas l fora soprava uma brisa fresca do Vstula e das
florestas de Praga. As luzes de gs produziam um brilho sombrio. O cu brilhante
resplandecia de estrelas. Bastava olhar o cu para acalmar o esprito. Yasha pouco
sabia de astronomia, mas lera alguns livros sobre o assunto. At vira os anis de
Saturno e as montanhas da Lua por um telescpio. Fosse onde fosse que residisse a
verdade, uma coisa era certa: o cu era vasto e interminvel. A luz viajava
milhares de anos desde as estrelas at alcanar os nossos olhos.
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As estrelas fixas, que tremeluziam e piscavam, eram cus, cada uma com os seus
planetas, provavelmente outros tantos mundos. Aquela plida mancha l em cima era
talvez a Via Lctea, uma meada de muitos milhes de corpos celestes. Yasha nunca
perdia os artigos do Courier Warshawski sobre astronomia e outros assuntos
cientficos. Os cientistas estavam constantemente a fazer novas descobertas. O
cosmo j no era medido em milhas, mas em anos-luz. Fora inventado um aparelho
capaz de analisar as componentes da mais distante estrela. Estavam a ser
construdos constantemente telescpios cada vez maiores, que revelavam os segredos
do espao. Previam com preciso cada eclipse do Sol e da Lua e o regresso de cada
cometa. "Se ao menos eu me tivesse dedicado ao estudo em vez da magia", resmungava
Yasha para consigo. "Mas agora tarde de mais."
A caleche rolava pela Praa Alexander, paralela aos Jardins Saxony. Yasha respirava
fundo. Na escurido, o parque parecia envolto em mistrio. Pequenas chamas
brilhavam nas profundidades. O aroma desprendia-se da verdura. Yasha ergueu a mo
enluvada de Emilia e beijou-lhe o pulso: voltava a sentir amor por ela. Desejava-
lhe o corpo. O rosto dela estava envolto em sombras. Os seus olhos brilhavam como
duas jias iguais, faiscavam como ouro, como fogo ou como uma promessa nocturna.
Comprara-lhe uma rosa a caminho do teatro e agora ela exalava um perfume
inebriante. Baixou as narinas at rosa e foi como se aspirasse o odor do
universo. Se um pouco de terra e gua podem criar semelhante aroma, a criao no
pode ser uma coisa m, concluiu.
- Tenho de acabar com estas meditaes.
- Que disseste, querido?
- Disse-te que te amo e que no posso esperar at que sejas minha.
Ela esperou um momento. O seu joelho tocava o dele atravs do vestido. Algo como
que electricidade se lhe transmitiu atravs da seda. Sentia-se avassalado pelo
desejo. Um arrepio percorria-lhe a espinha.
- Ainda mais difcil para mim do que para ti - disse ela. Pela primeira vez ela
tratou-o por tu. Mal conseguira sussurrar a palavra. Ele ouviu-a mais com a mente
do que com os ouvidos.
Ali ficaram calados, enquanto o cavalo caminhava a passo. Os ombros do cocheiro
estavam descados como se dormitasse. Pareciam ambos sentir o desejo que se
transmitia do joelho dele ao dela. Os seus corpos conversavam numa linguagem sem
palavras. "Tenho de possuir-te!", dizia um joelho ao outro. Um terrvel silncio
o consumia, tal como quando avanava no arame. De repente ela inclinou a sua cabea
para a dele. A aba do chapu de palha dela formou um tecto sobre a cabea dele. Os
lbios de Emilia tocaram-lhe a orelha.
- Quero ter um filho teu - murmurou ela.
Ele beijou-a mordendo-lhe os lbios. A sua boca bebia, bebia. Sentia-se como se
tivesse deixado de respirar. Esther falara muitas vezes de um filho, mas havia anos
que ela no mais tocara no assunto. Tambm Magda pedira um filho vrias vezes, mas
ele no a levara a srio. Parecia ter esquecido essa componente da vida. Mas Emilia
no esquecera. Era ainda suficientemente nova para conceber e parir. "Talvez seja
esta a verdadeira causa do meu tormento", pensou. "No tenho um herdeiro."
- Sim, um filho - disse ele.
- Quando?
E as suas bocas fundiram-se novamente. Consumiam-se de uma forma silenciosa e
bestial. O cavalo parou de repente. O cocheiro pareceu acordar.
- A,ohL.
Estacaram em frente da casa de Emilia e Yasha ajudou-a a sair. Ela no tocou logo
campainha, ficou ali com ele no passeio em frente do porto. No falavam.
- Bom, tarde - e, dizendo isto, ela puxou a corrente da campainha.
Pelos passos, Yasha apercebeu-se de que era a mulher do porteiro e no o porteiro
que vinha abrir o porto. O ptio estava escuro. Emilia entrou e Yasha seguiu-a.
F-lo distrada e espontaneamente. Nem Emilia se apercebera do que acontecera. A
porteira afastou-se, chinelando, para o seu cubculo. No escuro, ele segurou o
brao de Emilia. Ela sobressaltou-se.
- Quem ?
- Sou eu.
- Meu Deus, mas o que fizeste? - E no escuro ela soltou uma risadinha pela sua
fantstica habilidade e arrojo.
Ali ficaram como se tentassem silenciosamente decidir.
- No, assim no - murmurou ela.
- S quero beijar-te.
- Como que vais entrar em casa? A Yadwiga vem abrir a porta.
- Eu abro - disse ele.
Subiu com ela as escadas. Pararam diversas vezes para se beijarem. Ele fez uma
habilidade na porta e ela escancarou-se.
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O corredor estava escuro. Um silncio de noite avanada emanava dos quartos. Ele
entrou para a sala, puxando Emilia. Ela parecia opor resistncia. Lutaram em
silncio. Ele impeliu-a para o div e ela acedeu como algum que j no senhor de
si.
- No quero comear a nossa vida em pecado - murmurou Emilia.
- No.
Ele quis despi-la, mas o vestido de seda comeou a dar estalidos e a deitar
falhas. O fogo, que ele sabia ser electricidade esttica, espantou-o. Tambm ela
estava surpreendida. Emilia apertou-lhe de tal modo os pulsos que o magoou.
- Como que vais sair?
- Pela janela.
- Halina pode acordar. De repente deu um salto para trs e disse:
- No, tens de ir-te embora.
VI.
1.
No dia seguinte Yasha dormiu at tarde. Dormitou at uma da tarde. Magda mantinha
os mesmos hbitos campestres. No entendia como que algum podia ficar na cama
at ao meio-dia. Porm, havia j muito tempo que se habituara ao facto de que Yasha
no era como as outras pessoas. Era capaz de comer mais e jejuar mais tempo. Era
capaz de no dormir noites e noites e dormir um dia inteiro. Ao acordar de um sono
profundo, conseguia falar com ela como se tivesse estado a fingir que dormia. O
sobrolho e as veias das tmporas pareciam demonstrar que estava a pensar como se
estivesse acordado. E quem poderia diz-lo? Talvez fosse assim que inventava novas
habilidades. Magda caminhava quase em bicos de ps. Serviu-lhe gro de aveia com
batatas e cogumelos. Ele comeu e voltou a adormecer. Magda comeou a falar sozinha
no seu dialecto rural: "Ressona para a e expulsa os teus pecados, meu porco, meu
co vadio. Esgota-te com essa duquesa ranhosa". Para todos os males Magda tinha um
remdio - o trabalho. Magda mal cabia nas roupas e tudo precisava de ser
consertado. Perdia os botes, os atilhos rebentavam, usava uma camisa um dia e logo
a punha de lado como se estivesse horrvel. Era necessrio andar sempre atrs dele
a lavar, a polir, a coser. Tambm os seus animais tinham de ser tratados: os
cavalos que estavam no estbulo, o macaco, o papagaio, o corvo. Ela era tudo para
ele: uma esposa, uma criada, uma partenaire... E o que recebia? Nada - uma cdea de
po. Ele tambm no tinha nada. Todos o roubavam, o burlavam e enganavam. Esperto
como era no teatro, hipnotizando e lendo nas mentes ou quando lia os seus livros e
os seus papis, era estpido quando se tratava
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Talvez por isso ela tremera e se agarrara desesperadamente a ele. Por fim, foi
lavar a banheira. Havia uma costureira l na casa, perto da segunda porta. Magda
cuspiu na nota e meteu-a no seio. O dia tornara-se inesperadamente feliz.
2.
Dormiu todo aquele dia de Vero. J chovera e o cu j limpara. Ele abriu os olhos.
O quarto estava mergulhado numa semi-obscuridade. Da cozinha vinha-lhe um cheiro a
comida. Magda estava a fritar batatas e fazer costeletas com chucrute. Ele, que s
comera a papa de aveia, acordou esfomeado. Vestiu-se pressa e dirigiu-se
cozinha. Beijou Magda e comeu o que havia pronto: po com arenque e leite. Tirou
uma costeleta semicrua da frigideira. Magda repreendeu-o com ar bem disposto.
Depois disse:
- Quem me dera que todos os dias fossem como hoje. Enquanto ele falava ouviu-se
arranhar na porta da frente. Ali
estava uma rapariga com ar atrevido, embrulhada num enorme xaile. Parecia que ela o
conhecia, porque disse:
- Panie Yasha, est l em baixo uma senhora sua espera, junto ao porto.
- Que senhora?
- Chama-se Zeftel.
- Obrigado. Diz-lhe que deso j - e deu dois groschen rapariga.
Mal acabara de bater com a porta quando Magda, enclavinhando as mos, protestou:
- No! No vais! Tens o jantar a arrefecer!
- No posso deix-la ali espera.
- Sei bem quem ela ... aquela prostituta de Piask. Agarrou-o com tal fora que
ele se viu obrigado a sacudi-la para
se desprender. Instantaneamente o seu rosto distorceu-se, o cabelo eriou-se e os
olhos despediam fascas verdes como os de um gato. Ele empurrou-a e ela quase caiu
na pipa da gua. Era sempre assim. Sempre que era amvel para algum, ela queria
prend-lo. Fechou a porta atrs de si e ouviu Magda chorar, silvar como uma
serpente, gritar-lhe algo de ininteligvel. Teve pena dela, mas no podia deixar
Zeftel ali espera na rua. Desceu as escadas, sentindo os cheiros de cada andar.
As crianas choravam, os doentes suspiravam,
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90 - 91
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3.
"Era s o que me faltava!", pensou Yasha. Era esquisito ter-se esquecido de Zeftel
e do facto de lhe ter dado o dinheiro para a passagem para Varsvia. Esquecera
completamente a sua presena. Surpreendia-se com as suas ligaes; no entanto,
sentia nelas um certo prazer perverso, como se a sua vida fosse um livro em que a
situao se tornava cada vez mais tensa, a ponto de o leitor mal poder esperar pelo
voltar da pgina. A princpio sentira fome, mas naquele momento deixara de sentir.
A noite estava quente, at um pouco hmida, mas sentia um arrepio nas costas como
se tivesse estado doente e tivesse sado de casa prematuramente. Teve de se dominar
para no tremer. Procurou um trem, mas nenhum trem vinha Rua Freta e por isso
encaminhou Zeftel para a Rua Franciskaner. "Livro-me dela e vou ter com Emilia",
pensou. Que que Emilia iria pensar? Era a primeira vez que ele quebrara uma
promessa que lhe fizera. Temia que ela se sentisse mesmo ofendida. Da forma como as
coisas estavam, tudo estava preso por um fio. Lamentava tambm ter abandonado Magda
e apercebia-se de repente que algo mudara em si. Tempos houvera em que mantivera
meia dzia de ligaes ao mesmo tempo sem sentir a mnima preocupao. Enganara
todas sem pensar duas vezes e, quando precisara, libertara-se sem pesos de
conscincia.
Agora magicava em todas as insignificncias, procurava sempre fazer o que estava
certo. "Estou a tornar-me um santo, ou qu?", perguntava-se. No valia a pena
discutir com Emilia por causa de Magda e Zeftel e, no entanto, aquele espinho na
mente, que sempre tinha a ltima palavra, ordenava-lhe que ficasse com Zeftel.
Queria, sem saber porqu, tratar da sade quele alcoviteiro e dita irm.
A Rua Freta era escura e estreita, mas a Rua Franciskaner estava iluminada por
candeeiros a gs e pelas luzes das lojas que se mantinham abertas apesar da lei.
Ali os comerciantes negociavam em cabedal, tecidos, livros de oraes e penas. O
negcio processava-se at nos andares superiores e pelas janelas descortinava-se
todo o tipo de indstrias e de oficinas. Fiava-se, colavam-se sacos de papel,
cosiam-se lenis e guarda-sis, tricotava-se roupa interior. Dos ptios vinha o
som da serra e martelo e havia um barulho de maquinaria como no auge do dia de
trabalho. As padarias trabalhavam a todo o vapor e as chamins cuspiam fogo
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Junto dela dormitava um gato. Na mo segurava uma pega de homem enfiada num copo e
ia passajando. Ergueu os olhos semi-surpreendida.
- Senhora Miltz, este o tal homem de Lublim, de que lhe falei... o mago.
- Que tal pareo?
- Um msico.
- Uma vez fiz chiar uma rabeca.
-Ah, fizeste? Bom, e que que interessa o que faas, desde que faas sabes bem o
qu. - E esfregou o indicador na palma da mo.
Yasha comeou imediatamente a responder-lhe na mesma linguagem:
- No ests a dizer nenhuma mentira. O dinheiro um ladro.
- Olha por ela! Acabada de chegar a Varsvia e j vai a qualquer lado. - A senhora
Miltz apontou para Zeftel. - Como que o encontraste? Tive medo que ela se
perdesse. Porque que foste viver para a Rua Freta? - perguntou, dirigindo-se a
Yasha. - S l vivem no judeus.
- Os no judeus no metem o nariz em vasilhas estranhas.
- Se se tapar a vasilha com uma tampa, nem um judeu espreita l para dentro.
- Um judeu tiraria a tampa e cheiraria. Os olhos amarelos da mulher pestanejaram.
- Enquanto for viva e respirar, c a mim ningum me engana - disse, falando meio
para si, meio para Zeftel. - Sente-se. Zeftel,
traz uma cadeira.
- Onde est o seu irmo? - perguntou Zeftel. A mulher ergueu as sobrancelhas
amarelas.
- Que ? Queres assinar contrato com ele?
- Este senhor quer falar com ele.
- Ele est no quarto l detrs, a vestir-se. Tem de sair daqui a pouco. Porque
que no tiras o xaile? Afinal, estamos no Vero, no estamos no Inverno.
Depois de hesitar uns momentos, Zeftel acabou por tirar o xaile.
- Ele vai ter de tomar um trem. Tem uns negociantes espera - disse para consigo a
senhora Miltz.
- Em que que ele negoceia, em gado? - perguntou Yasha, surpreendido com as suas
prprias palavras.
- Porque que havia de ser em gado? L de onde ele vem, gado no falta.
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amistosamente e em tom de confidncia. - Mas isso foi h muito, muito tempo. Gosto
de comer e no Yeshivah bem podamos pr os dentes no descanso. Pensei bem e achei
que aquilo no era para mim. Fui para Berlim estudar medicina, mas o mais-que-per-
feito da gramtica deles no me entrava na cabea. Atraam-me mais as raparigas
alems. Por isso, segui para Anturpia e tornei-me polidor de diamantes, mas
apercebi-me de que o dinheiro no vinha do polimento, mas da venda deles. Gosto de
jogar aos dados e acredito no velho ditado: "Nada de rugas na barriga". O certo
que fui para a Argentina. Mais tarde foram para l tambm muitos judeus. Chegam l
de trouxa ao ombro, de repente tornam-se homens de negcios. Ns chamamos-lhes
quentiniks, na Alemanha so hausierers, em Nova Iorque so vendedores ambulantes,
mas vai dar tudo ao mesmo. Aquela mulher da agncia... (como que ela se
chama?)... tem um filho em Buenos Aires que lhe mandou saudades. Encontrei a Zeftel
na agncia. Que que ela lhe ? Irm?
- No, no irm.
- C por mim at pode ser sua tia.
4.
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e mete os ps a caminho. Assim, a roda da fortuna vai rodando. Para a tua irm,
melhor ser vir comigo e ter o que quiser do que tornar-se criada e andar a lavar
as gavetas dos outros.
- Ela no minha irm.
- E se no , que que isso tem? Em Buenos Aires no pedimos o pedigree.
Costumamos dizer que a genealogia s serve para ficar inscrita na campa. Quando
para l vamos como se nascssemos de novo. Que truques que voc sabe fazer?
- De todo o gnero. -Joga s cartas?
- s vezes.
- A bordo no h mais nada que fazer. Se no fossem as cartas enlouquecia-se. Faz
um calor de abrasar e quando se passa... (como que se chama aquilo?)... o
equador, sufoca-se. O Sol est a pino. noite ainda est mais quente. Se se vai ao
convs, assa-se como num forno. Que resta ento? As cartas. Quando vinha de viagem
para c, houve um tipo que quis fazer batota comigo. Olhei para ele e disse: "
amigo, que que est a a sair da sua manga? O quinto s?". Ele queria saltar-me
em cima, mas eu no me assusto facilmente. L, toda a gente anda armada. Se algum
se armar em esperto, acaba cheio de buracos. Por isso, como toda a gente, tambm eu
trago uma arma. Gostava de ver um revlver argentino?
- Porque no? Tambm tenho uma arma.
- Para qu? Para fazer as suas habilidades?
- Talvez.
- O certo que ele viu que no estava a tratar com um mido. Tentou marcar as
cartas, mas eu vi-o. A Zeftel diz que voc sabe fazer truques com cartas. Que que
sabe?
- No fazer batota.
- Ento o que ?
- Arranje-me um baralho e eu mostro-lhe.
- Herman, tens de ir - disse a senhora Miltz, impacientemente.
- Espera, no me apoquentes; o negcio no foge, e, se fugir, no me ralo nada.
Sabes que mais? Vamos para a outra sala comer qualquer coisa.
- No tenho fome - mentiu Yasha.
- No preciso ter fome. Diz-se que o apetite aparece medida que se vai comendo.
Aqui na Polnia as pessoas no sabem comer devidamente. Massa e canja e canja e
massa. E que comida essa de massa? S gua. S incham a barriga.
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O espanhol atira-se a um bife de trs libras, porque isso que pe tutano nos
ossos. Se chegar a casa de um espanhol a meio do dia, d com ele a dormir que nem
uma pedra. Est um calor dos diabos e as moscas sugam-nos o sangue como
sanguessugas. No Vero a vida comea noite. Entre ns, se algum tem dinheiro
suficiente para comer ou para pagar a uma prostituta, escolhe a prostituta. O certo
que ningum morre de fome. Gosta de vodfea?
- s vezes.
- Ento tome l, beba um copo. Rytza, vai buscar-nos alguma coisa - disse Herman
para a mulher amarelada. - Os espanhis adoram os seus truques. Do tudo por um bom
truque.
A moblia da sala de estar consistia numa mesa coberta por um oleado, um sof e um
guarda-fato. Suspenso do tecto pendia um candeeiro de nafta, que quase se tinha
apagado, e Herman levantou o pavio. Por toda a casa estavam espalhadas maletas
cobertas de rtulos e montes de caixas. Numa cadeira pendia um casaco e sobre ela
estava tambm um colarinho engomado e uma bengala de casto de prata. At o prprio
ar que ali se respirava cheirava a terras estrangeiras e a distantes paragens. Na
parede havia duas fotografias, uma de um homem de barba branca e outra de uma
mulher com uma peruca completa.
- Sente-se - disse Herman. - A minha irm vai j trazer algum petisco. Ela podia
viver numa casa melhor, mas est habituada a esta e no quer mudar-se. L onde eu
vivo as casas no so to grandes e faz-se tudo mesmo no ptio. Ptio, como l se
diz. Os espanhis detestam subir escadas. Sentam-se c fora com a famlia e bebem
uma espcie de ch-mate. Todos bebem um golo pela mesma palhinha; vai de boca em
boca. Antes de nos habituarmos, parece que estamos a beber leite de alcauz mas
acabamos por nos habituar a tudo. Na Amrica do Norte, por exemplo, mascam tabaco.
H uma coisa que se deve entender: que o mesmo mundo em toda a parte. Em Buenos
Aires tambm no comem gente. Olhe para mim... ainda ningum me comeu.
- Talvez voc j tenha comido algum.
- Ah! Essa boa! Voc no parvo nenhum; aquele que conserva os cinco bem
aferidos h-de trepar sempre bem alto. Voc de Piask?
- No, de Lublim.
- A Zeftel disse que voc era de Piask.
- Voc tambm ladro. Herman desatou a rir.
- Olhe, tem razo. Nem toda a gente de Piask ladro,
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como nem toda a gente de Chelm parvo. So apenas ditos. Por outro lado, quem
que no rouba? A minha me, que descanse em paz, costumava dizer: "A honestidade
no a vida mais fcil". Pode fazer-se tudo desde que se saiba faz-lo. idade a
que cheguei, j experimentei de tudo. A Zeftel diz que voc pode fazer saltar
qualquer fechadura.
- verdade.
- Eu c no tinha pacincia. Para que que se h-de perder tempo com uma fechadura
se se pode arrombar a porta? Que que prende a porta? Apenas as dobradias. Mas
isso faz parte do passado. Tornei-me, como se diz, um cidado exemplar. Tenho
mulher e filhos. Zeftel contou-me a histria toda. O marido que a deixou e tudo o
mais. Se conseguisse divorciar-se, poderia casar com o homem mais rico da Amrica
do Sul.
- Quem que concedia o divrcio... tu?
- Que um divrcio? Um pedao de papel. Tudo papel, meu caro amigo, at o
dinheiro. Falo de dinheiro em nota, no de trocos. Os que tm uma caneta na mo
escrevem. Moiss era homem. Por isso escreveu que um homem podia ter dez mulheres,
mas se uma mulher olhasse para outro homem tinha de ser apedrejada. Se fosse a
mulher que tivesse a caneta na mo, teria escrito exactamente o contrrio. Ests a
perceber-me ou no? Na Rua Stavka h um escrivo que dos nossos e se lhe deres
dez rublos arranja-te um bom certificado de divrcio, assinado por testemunhas,
absolutamente legal. Eu estava disposto a adiantar-lhe o dinheiro da passagem de
barco...
Subitamente Yasha ergueu as sobrancelhas, e interrompeu o outro:
- Panie Herman, eu no sou um simplrio. Deixe a Zeftel em paz. Ela no o seu
tipo de mercadoria.
- O qu? Pode lev-la neste mesmo momento. Ela j me custou um par de rublos, mas
levo isso conta de caridade.
- No queremos os seus favores. Quanto que ela lhe custou? Eu pago-lhe tudo.
- Acalme-se, no se exalte. Aqui est o ch.
5.
101
e devez em quando tirava uma fumaa do charuto que poisava depois no pires.
Ofereceu tambm um charuto a Yasha, mas ele recusou.
- No arranja em Varsvia.- argumentou Herman. - um havano genuno. Nenhum dos
vossos de imitao substitui um dos genunos havanos. Algum mos trouxe de l
especialmente para mim. Em Berlim pagava dois marcos por cada um. Gosto de tudo de
primeira, mas tem de se pagar por tudo, e quando se paga, paga-se sempre de mais.
Afinal, que um havano? So folhas, no ouro. E o que uma rapariga bonita?
tambm carne e osso. O espanhol ciumento. Se se rir para a mulher dele, deita
logo a mo faca e dois quarteires mais adiante tem amante e filhos dela. Se
quiser uma preta, tem uma preta; se quiser uma branca, uma branca que arranja. Se
procurar uma litunia de Vilnio ou de Ayshyshok, no teria de procurar; se sentir
necessidade de produto de Varsvia, ser servido. Quanto a mim, nunca me meto
nisso. Para qu? Tenho mulher e filhos. Mas os jornais precisam de leitores.
aquilo que eu dizia: depende de quem tem a caneta. Digo-lhe uma coisa: so os
prprios maridos que mandam as mulheres l para o bairro. E sabe porqu? Porque
eles so demasiado preguiosos para irem trabalhar. E que diz a alguns dos seus
truques? Aqui tem um baralho de cartas.
- Se comeas com as cartas, j daqui no sais - disse a mulher amarelada.
- Amanh outro dia.
Herman comeou a baralhar e Yasha viu logo que tinha pela frente um jogador
profissional. As cartas passavam-lhe pelas mos como se tivessem vida prpria.
"Ah... ento s desses?!", disse Yasha para consigo. "Bom, vou mostrar-te daqui a
pouco que tens aqui um rapaz mais esperto."
Yasha deixou-o fazer alguns truques: o truque com as trs cartas, o outro dos
quatro setes, a carta trocada. Ao ver aquilo, Yasha abanou a cabea e estalou a
lngua:
- sk, sk, sk... - Quase que disse: "Esses truques j eu fazia em pequeno".
Lembrou-se de que j se fazia tarde e que, se queria ainda ver Emilia, tinha de
sair naquele momento; contudo, permaneceu sentado. Dentro dele uma voz murmurou
desdenhosamente: "J que to virtuosa, que espere!". Yasha bem sabia que o seu
pior inimigo era o tdio. Para lhe escapar, tinha cometido todo o tipo de loucuras.
Aoitava-o com chicotes. Por causa dele
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J eram onze horas, mas os homens ainda continuavam a mostrar os seus truques um ao
outro. Alguns dos truques exigiam pires, chvenas, caixas, pedaos de carto, bem
como um anel, um relgio, um vaso de flores. As mulheres continuavam a ir buscar o
material necessrio. Herman entusiasmava-se. Comeou a limpar o suor da testa.
-Juntos podamos fazer coisas.
- O qu, por exemplo?
- Podamos conquistar o mundo.
Rytza trouxe voka e os homens tocaram os copos e disseram: " sade!" maneira
citadina. Rytza deitou brande doce para si e para Zeftel. Comeram bolinhos de ovos,
po escuro, queijo suo. Herman comeou a falar com uma familiaridade de cl.
- Vi a tua Zeftel no agente. Ela bonita e tambm esperta, mas como que eu ia
saber quem era quem? Disse-me que o marido a deixara; pensei: "Que l v em paz.
Hei-de ajud-la de qualquer maneira". S mais tarde que ela me falou de ti.
Referiu-se a um mago, mas nem todos os magos so iguais. Os que se arrastam para a
pelos ptios com realejos tambm se intitulam magos. Mas tu, Panie Yasha, tu s um
artista! De primeira! O mximo! Eu tenho mais uns anitos do que tu e posso dizer-te
que por aqui no tens muito a esperar. Com a tua habilidade deves estar em
Berlim, em Paris, at em Nova Iorque. Londres tambm no uma m cidade. O ingls
adora ser enganado e paga por esse privilgio. L na Amrica do Sul eras um deus. A
Zeftel diz que consegues pr as pessoas a dormir... (como que isso se chama?) Ah,
magnetismo. Afinal, que essa coisa? J ouvi falar nisso... j ouvi falar nisso...
- Hipnotismo.
- Sabes disso?
- Um pouco.
-J vi isso em qualquer lado. O paciente cai mesmo a dormir?
- Que nem um cepo.
- Isso quer dizer que podias adormecer o Rothschild e tirar-lhe o dinheiro?
- Eu sou um mago, no sou um criminoso!
- Sim, claro, mas mesmo assim... Como que fazes isso?
- Imponho-me ao outro.
- Mas como? O mundo grande, verdade. H sempre coisas novas a aprender. Um dia
tive uma mulher que fazia tudo o que eu queria. Se quisesse que ela estivesse
doente, ela estava doente. Se quisesse que se pusesse boa, punha-se boa. Quando
quis que ela morresse fechou os olhos.
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- Quando que volta? - perguntou Herman. - Tenho algo a discutir consigo. Ns dois
temos de fazer uma espcie de acordo.
- Eu apareo.
- No se esquea.
Rytza pegou no candeeiro para iluminar o caminho a Yasha enquanto descia a escada.
Zeftel caminhava ao lado dele. Pegou-lhe no brao. Yasha foi assaltado por uma
alegria infantil. Gostava de falar idiche e tirar coisas da manga. Ali era como em
Piask, mas ainda mais divertido. Era bvio que Herman era um negociante de
escravatura branca e Rytza era a sua scia. Era difcil de compreender, mas nas
poucas horas em que se conheceram, Herman agira como se fosse amigo de Yasha. Rytza
olhava-o aparentemente com simpatia. Quem poderia dizer que prazeres amorosos
aquela mulher poderia proporcionar a um homem, que palavras estranhas poderia
murmurar nos arroubos de paixo? Por um momento a luz do candeeiro de nafta
iluminou o ptio cheio de toros e troncos. Ento a porta fechou-se l em cima e
mais uma vez tudo ficou s escuras. Zeftel aconchegou-se a Yasha.
- No podia ir contigo para qualquer lado?
- Para onde?... Hoje, no.
- Yashale, amo-te!
- Espera e deixa tudo comigo. Seja o que for que eu te diga para fazeres, f-lo.
- Quero ir contigo.
- Hs-de estar comigo. Hei-de levar-te comigo quando for para o estrangeiro. Hei-de
compensar todos quantos foram bons para mim. Mas prepara-te para tudo e no faas
perguntas. Se te disser que te ponhas de cabea para baixo, pe-te de cabea para
baixo, percebes?
- Sim.
- Fazes o que eu disser?
- Sim, tudo.
- Volta l para cima.
- Para onde vais?
- Tenho de tratar de mais uma loucura ainda hoje.
106
6.
A Rua Nizka estava deserta. Ali no havia hiptese de alugar um trem. Foi andando e
sentia os seus passos excepcionalmente leves. A rua estava escura e sobre as casas
de madeira, de telhados esparvonados, pairava um cu suburbano e profusamente
semeado de estrelas. Yasha olhou fixamente para cima. Que que pensaro l em cima
de algum como eu? Caminhou por toda a Rua Nizka e desembocou na Avenida Dzika.
Dissera a Zeftel que havia outro ponto de loucura na sua agenda. Mas de que gnero?
Dormira todo o dia e sentia-se agora to fresco e desperto como se fosse de manh.
Assaltou-o um sbito desejo de ver Emilia. Era absoluta loucura. quela hora ela j
estava certamente a dormir. Alm disso, o porto do ptio j devia estar trancado.
Mas o facto de ter na vspera trepado at janela dela fizera-o recordar que
portas e portes no eram nada para ele. No apartamento dela havia um balco.
Conseguia escal-lo num minuto. Emilia queixava-se de que dormia pouco. Havia de
ouvi-lo. Alm disso, havia de induzi-la e esper-lo e abriria as portas de madeira
(se no estivessem j abertas). Tinha o pressentimento de que naquele dia ela no
oporia mais resistncia. Era como se miraculosamente tivesse calado as botas-de-
sete-lguas, porque de repente viu-se na Avenida Dzika; mais uns minutos e j
caminhava pela Rua Rimarska. Deitou uma olhadela ao banco. Os pilares pareciam
guardar o edifcio como sentinelas gigantescas. O porto estava fechado, todas as
janelas s escuras. Algures por ali estavam os cofres da cave, onde os tesouros
eram guardados. Mas onde? O edifcio era to grande como toda uma zona comercial.
Para ser feito como devia ser, o trabalho levaria toda uma noite de Inverno. Yasha
lembrou-se ento do que lhe dissera Yadwiga, a criada de Emilia, acerca de um
senhorio mais velho, um tal Kazimierz Zaruski, que vendera as suas propriedades
havia uns anos e que guardava agora o seu dinheiro num cofre de ferro em sua casa.
Morava na Alameda Marshalkowska, perto da Rua Prozna, sem mais ningum alm de uma
criada surda que era amiga de Yadwiga. Quando Yadwiga lhe contara a histria, Yasha
no se dera ao trabalho de escrever a morada do homem. No tivera ideias daquelas e
muito menos envolvendo uma casa de que Emilia era visita. Mas agora tudo lhe
voltava ideia. "Tenho de fazer algo esta noite", pensou para consigo. "Esta noite
tenho poder para o fazer."
107
Da Rua Nizka Rua Krolevska ia uma distncia considervel, mas Yasha fez os vrios
versts em vinte minutos. Varsvia dormia, s havia aqui e alm um guarda-nocturno
que experimentava uma fechadura ou batia com o basto no passeio como que para se
certificar de que ningum escavava l em baixo. "Esto sempre de vigia, mas nada
est em segurana", disse Yasha para si. "Nem as suas mulheres, nem os seus bens."
Sabia l! Talvez que em tempos at Esther lhe tivesse sido infiel? Os seus
pensamentos vagueavam indolentemente. E se fosse espreitar ao quarto de Emilia e a
encontrasse com um amante? Coisas dessas aconteciam. Estava agora debaixo da janela
e olhava l para cima. Pensou em trepar varanda; o que pouco antes encarara no
s como vivel, mas tambm como eminentemente certo, parecia-lhe, agora que ali
estava, um puro absurdo. Havia sempre a possibilidade de ela acordar e confundindo-
o com um assaltante, soltar um grito de socorro. Yadwiga podia ouvi-la e talvez at
Halina. Emilia certamente nunca lhe perdoaria. A poca da Cavalaria j passara
havia muito. Estava-se agora no prosaico sculo xix. Mentalmente Yasha ordenara a
Emilia, mas parecia que no tinha ainda dominado essa faceta do hipnotismo. Mesmo
que desse resultado, seria um processo lento.
Comeou a descer a Alameda Marshalkowska em direco Rua Prozna. J que
inevitvel, porque no h-de ser esta noite? Claro que isso lhe fora previamente
ordenado. Como que chamava isso?... Predestinao? Se havia uma razo para tudo,
como diziam os filsofos, e o homem era uma mera mquina, ento era como se tudo
tivesse sido antecipadamente escrito. Chegou Rua Prozna. S havia uma casa
ocupada no quarteiro; do outro lado da rua estava um edifcio em construo. Havia
montes de tijolos empilhados, montes de areia e cal. A casa habitada era composta
de uma mercearia e sobre ela dois apartamentos, ambos com varandas. O apartamento
do senhorio dava obviamente para a frente, mas qual dos dois seria? Yasha soube, de
repente, que era o da direita. As janelas do apartamento da esquerda estavam
parcialmente cobertas por cortinados e por cortinas; o da direita tinha cortinas
velhas, daquelas que existem nas casas miserveis. "Bom, agora ou nunca!", disse
algo dentro de Yasha, apressando-o. "J que aqui ests, avana! Afinal, ele no
pode levar o dinheiro consigo para a cova... Olha que a noite no dura sempre!",
disse novamente a voz. A entoao dela era mais ou menos a de um pregador.
Trepar varanda foi fcil. Havia um ferro que ia da porta da mercearia at
varanda apoiada na cabea de trs esttuas.
108
7.
"No posso falhar", dizia-se Yasha. "J que dei o salto, tenho de lev-lo a bom
termo." Arrebitou as orelhas e escutou. Algures nos quartos vizinhos, Kazimierz
Zaruski e a criada surda dormiam. No ouviu qualquer som. "Que que eu faria se
eles acordassem?", perguntou-se, sem conseguir encontrar resposta. Poisou a mo no
cofre e sentiu o frio do metal. Rapidamente, localizou o buraco da fechadura.
Tacteou-a com o indicador, para lhe determinar o formato e o contorno. Depois,
procurou no bolso a gazua que tivera havia pouco na mo, mas no estava l. Tinha-a
certamente encafuado noutro bolso. Comeou a revistar os bolsos, mas a gazua tinha
desaparecido. Onde que a teria metido? J comea a pouca sorte! Rebuscou um pouco
mais. "T-la-ei deixado cair ao cho?" Se assim fosse, teria feito barulho. A gazua
tinha de estar ali mo, mas estava a esconder-se dele. Mais uma vez, meteu as
mos nos bolsos... outra e outra vez. "O mais importante no entrar em pnico!",
aconselhava-se. "Imagina que ests em cena."
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Yasha ficou imvel por momentos, preparado para saltar ao primeiro som. "No podia
mat-lo! No sou um assassino." Mas o velho cara outra vez num sono profundo.
Yasha inclinou-se para apanhar a gazua... no podia deixar qualquer pista; mas,
mais uma vez, ela desaparecera. Aquele pedacito de arame tinha-o envolvido num jogo
das escondidas. "Percebo, estou outra vez numa daquelas noites. Fui escolhido pelos
maus espritos." Algo dentro dele lhe dizia que fugisse, porque a sorte o
abandonara, mas, em vez de o fazer, aproximou-se mais da cama. "Tenta apanhar-lhe a
chave", dizia obstinadamente para consigo.
Passou a mo pela almofada, tocou sem querer na cara do velho. Retirou a mo como
se se tivesse queimado. O avarento gemeu um suspiro como se tivesse estado a fingir
que dormia. Yasha deteve-se. Estava preparado para o ataque, preparado para agarrar
Zaruski pela garganta e estrangul-lo. Mas no, o homem estava a dormir e das suas
narinas saa um som de apito. Parecia estar a sonhar. Enfiou a mo por baixo da
almofada, convencido de que tocaria na chave... mas no estava l chave nenhuma.
Levantou um pouco a cabea do velho juntamente com a almofada na qual mal se
apoiava, mas no conseguiu encontrar chave nenhuma. Daquela vez o seu instinto
enganara-o. S lhe restava uma alternativa: a fuga! Algo dentro dele lha
aconselhava. Tudo correra mal! No entanto, e mais uma vez, comeou a procurar a
gazua, no cho, mesmo sabendo que estava a atrair a catstrofe. "Aposto o meu
ltimo gulden e lano o s", pensou, lembrando um velho provrbio idiche. O ditado
viera-lhe mente de forma muito semelhante que lhe acudiam a meio da noite as
Escrituras e as lies do cheder. Subitamente o suor cobriu-o da cabea aos ps.
Era como se lhe tivessem despejado em cima uma bacia de gua. Sentia-se quente e
hmido como num banho turco. Mas continuava a procurar a gazua. "Talvez devesses
sufocar esse safado!", sugeriu algo exterior a si, um pedao dele que no tinha a
ltima palavra, mas que habitualmente lhe dava maus conselhos e lhe pregava cruis
partidas quando mais precisava das suas faculdades.
"Bom, uma causa perdida. Vou-me embora agora", murmurou para consigo. Ps-se de
p e recuou at porta semiaberta. Como ali estava claro, comparando com o quarto!
Conseguia ver todos os objectos. At os quadros que estavam na parede: as molduras,
no, as telas. Uma cmoda parecia erguer-se ali e em cima dela conseguia divisar
uma tesoura. "Exactamente aquilo de que preciso!", exclamou para si. Pegou na
tesoura e dirigiu-se ao cofre.
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8.
Ia mesmo a comear a descer quando ouviu vozes l em baixo. Algum falava em russo.
Era, sem dvida, uma patrulha de ronda. Recuou rapidamente a cabea. Talvez tivesse
sido visto quando subira? Talvez a patrulha estivesse sua espera. Ali ficou na
escurido escuta. Se do por mim, estou perdido! Mas no, ningum podia t-lo
visto. Antes de iniciar a subida olhara para todos os lados. A ronda passara apenas
por acaso. Mesmo assim, no se perdoava ter
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mas faltava-lhe a habitual agilidade de ps. Quis apoi-los nos ombros de uma
esttua de bronze, mas eles escorregaram-lhe, falhando por outro o objectivo. Ficou
suspenso, por momentos, da beira da varanda, sentindo que estava quase a
desmaiar... suspenso no ar. Naquele momento, porm, conseguiu poisar o p numa
reentrncia da parede. "No saltes", dizia para si, mas, no momento em que lhe
acudiu esse pensamento, caiu e apercebeu-se imediatamente de que cara demasiado
violentamente sobre o p esquerdo. "Era s o que me faltava, uma semana antes da
estreia!" Ali ficou no passeio experimentando o p e s ento sentiu a dor. S
nessa altura ouviu gritar. A voz parecia velha, rouca e em pnico. Seria o
senhorio? Olhou para cima, mas os gritos provinham da rua. Viu um guarda-nocturno
de barba branca correr para ele, brandindo um rijo cacete. O homem comeou a
apitar. Parecia ter visto Yasha descer da varanda. Yasha esqueceu-se do p magoado,
correu rpida e facilmente. A polcia iria chegar a qualquer momento. Nem ele sabia
em que direco corria. A julgar pela velocidade, pensar-se-ia que no tinha o p
magoado, mas enquanto corria sentiu uma guinada no p esquerdo, uma dor penetrante
abaixo do tornozelo e em volta dos dedos do p. Ou rompera um ligamento ou partira
um osso.
"Onde que estou agora?" Correra pela Rua Prozna abaixo e chegara Praa Grzybow.
J no ouvia gritar nem apitar, mas mesmo assim tinha de arranjar maneira de se
esconder, porque a polcia podia aproximar-se vinda de outra direco. Apressou-se
direito Rua Gnoyne. Ali a valeta estava cheia de lama e estrume. Alm disso,
estava escuro, como se o Sol ainda no tivesse nascido por aqueles lados. As luzes
dos candeeiros de rua brilhavam e Yasha esbarrou de encontro ao varal de uma
carroa desatrelada. Aquela parte da cidade era um amontoado de armazns de carga,
mercados e padarias. Havia por toda a parte o cheiro a fumo, a leo e a gordura.
Quase foi atropelado por uma carroa de carne. Os cavalos chegaram to perto dele
que pde cheirar-lhes o odor dos focinhos. O carroceiro lanou-lhe uma praga. Um
porteiro acenou-lhe com a vassoura em ar de furiosa indignao. Yasha subiu para o
passeio e avistou o ptio de uma sinagoga. O porto estava aberto. Um judeu mais
velho ia a entrar, levando debaixo do brao o saco com o xaile de orao. Yasha
lanou-se l para dentro... "Aqui no vo procurar! "
Atravessou uma sinagoga que parecia estar fechada (no se via qualquer luz pelas
janelas ogivais) e entrou numa sala de estudo.
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No ptio havia caixotes de folhas arrancadas dos livros sagrados. O cheiro a urina
era intensssimo. Yasha abriu a porta do que parecia ser uma sala de estudo ou um
albergue. A nica luz proveniente de uma vela bruxuleava junto da estante do orador
e deixava ver filas de homens deitados nos bancos, uns descalos, outros calando
sapatos muito velhos, outros cobertos de farrapos, outros seminus.
O ar exalava um cheiro nauseabundo a sebo, p e cera. "No, aqui no viro
procurar-me", dizia-se. Dirigiu-se a um banco vago e sentou-se. Ali ficou sentado,
atordoado e a descansar os ps doridos. Tinha pedaos de estrume agarrados s
calas e aos sapatos. Apetecia-lhe sacudi-los, mas naquele local sagrado seria um
sacrilgio. Durante um momento ficou a escutar o ressonar dos mendigos, ainda
incrdulo do que acontecera. O seu olhar desviou-se at porta e escutou as
passadas da polcia que vinha para o prender. Parecia-lhe ouvir o som de cascos,
uma patrulha montada que se aproximava, mas apercebia-se de que tudo no existia
seno na sua imaginao. Finalmente, ouviu-se uma voz roufenha gritando: "Upa! Upa!
A p, suas carcaas preguiosas!". Chegara o guarda. As silhuetas comearam a
sentar-se, a erguer-se, a espreguiar-se, a bocejar. Algum riscou um fsforo junto
do guarda e por momentos a sua barba ruiva ficou iluminada. Caminhou para uma mesa
e acendeu um candeeiro de nafta. Naquele momento deu-se na mente de Yasha um
lampejo e viu qual o tipo de fechadura que era o do cofre de Zaruski e como podia
ser aberta.
9.
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Havia nos seus ouvidos um barulho como se fossem campainhas a tocar. Um velho
dirigiu-se a ele e disse: "V, deixe-me ajud-lo. Levante a manga. Do brao
esquerdo, no do direito...".
"Qual a minha mo esquerda?", perguntava-se Yasha. Comeou a levantar a manga do
brao esquerdo e novamente o xaile de orao lhe escorregou dos ombros. Um grupo
reuniu-se sua volta. "Se Emilia visse isto!", pensou de repente. Naquele momento
deixara de ser Yasha, o mago, para ser apenas um estpido desajeitado a quem se
ajuda e de quem se faz alvo de troa. "Bom, chegou o castigo de Deus!", disse para
consigo ansiosamente.
Sentia-se esmagado pelo remorso e pela humilhao. S naquele momento se apercebia
de quanto tinha blasfemado e de como o Cu o castigava. Surgira-lhe como uma
revelao. Permitia que os homens fizessem o que entendessem, como algum que
tivesse sofrido uma fractura e que deixasse que os outros lha ligassem. O velho
enrolou as tiras em volta do brao de Yasha. Ele recitou a orao e Yasha repetiu-a
com ele como se fosse um rapazinho. Disse a Yasha que baixasse a cabea e nela
prendeu o filactrio adequado. Enrolou as tiras em volta dos dedos de Yasha, de
modo a formar as letras hebraicas Shadai.
- H muito tempo que no deve rezar - observou um homem novo.
- H muito tempo.
- Bem, nunca tarde de mais.
E aquele mesmo grupo de judeus que momentos antes o olhavam com uma espcie de
indulgncia de adulto miravam-no agora com curiosidade, respeito e afeio. Yasha
sentia perfeitamente o amor que deles flua para ele. "So judeus, so meus
irmos", dizia para si. "Sabem que sou um pecador e, no entanto, perdoam-me. Mais
uma vez, no por ter sido desajeitado, mas por ter trado aquela fraternidade,
porque lhe faltara e estivera disposto a abandon-la. Que que se passa comigo?
Afinal, descendo de geraes de judeus tementes a Deus. O meu bisav foi um mrtir
pelo santo nome." Lembrou o seu pai, que no seu leito de morte pedira a Yasha que
se aproximasse e disse: "Promete-me que permanecers judeu".
E pegara nas mos de Yasha e segurara-as at entrar no estertor.
"Como pude esquecer isso? Como?"
O crculo de judeus dispersara e Yasha ficou s com o xaile de orao, os
filactrios e o livro de oraes na mo. Sentia puxes e guinadas no p esquerdo,
mas continuava as oraes,
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traduzindo para si as palavras hebraicas: "Bendito seja Aquele que falou e criou o
mundo, bendito Aquele que no princpio criou o mundo. Bendito Aquele que fala e
faz. Bendito Aquele que determinou e executou. Bendito o que estende a sua piedade
sobre a Terra e bem recompensa os que O temem".
Por muito estranho que parecesse, naquele momento ele acreditava naquelas palavras:
Deus criara o mundo. Tem mesmo piedade das Suas criaturas. Recompensa mesmo os que
O temem. E enquanto entoava aquelas palavras, Yasha meditava na sua sorte. Tinha
durante anos evitado as sinagogas. De repente, e por acaso, duas vezes entrara em
casas de orao: da primeira vez, na estrada quando fora surpreendido pela
tempestade, e, agora, outra vez. Durante anos abrira as mais complicadas fechaduras
com facilidade, e naquele momento uma simples fechadura, que qualquer arrombador
faria saltar num minuto, tinha-o deixado atrapalhado. Centenas de vezes saltara das
alturas sem se magoar, e desta vez magoara o p ao saltar de uma varanda baixa. Era
bvio que quem estava l em cima, no Cu, no queria que ele se voltasse para o
crime, que abandonasse Esther, que se modificasse. Talvez at os seus defuntos pais
tivessem intercedido por ele. Mais uma vez, Yasha ergueu o olhar at cornija da
Santa Arca. Tinha faltado ou premeditara faltar a cada um dos Dez Mandamentos! Quo
prximo estivera de estrangular o velho Zaruski! At desejara Halina, tecera at j
a teia pronta para a enlear. Mergulhara no mais fundo da iniquidade. Como que
aquilo acontecera? E quando? Ele era naturalmente um homem de bom corao. No
Inverno espalhava migalhas para alimentar os pssaros. Raramente passava por um
pedinte sem dar esmola. Nutria um profundo dio pelos burles, falidos e
charlates. Sempre se orgulhara de ser honesto e moral.
Ali permanecia de joelhos dobrados, espantado pela enormidade da sua degradao e
talvez ainda pior pela sua falta de discernimento. Irritara-se e preocupara-se, e
ignorava a verdadeira essncia do problema. Reduzira os outros a esterco e no via
- fingia no ver - como ele mesmo continuava a afundar-se na lama. Apenas um fio o
prendia, evitando o mergulho final no interminvel abismo. Mas as foras que so
piedosas para com o homem conspiraram para que naquele momento ele ali estivesse de
xaile de orao e filactrios e livro de oraes na mo, entre um grupo de honestos
judeus. Entoou: "Escuta, Israel", e cobria os olhos com a mo em concha. Recitou as
Dezoito Bnos, meditando em cada palavra. A devoo da infncia, h muito
esquecida, voltara agora,
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era uma f que no exigia comprovao, um xtase perante Deus, uma sensao de
remorso pela transgresso de algum. Que aprendera nos livros profanos? Que o mundo
se criara a si mesmo. Que o Sol, a Lua, a Terra, os animais, o homem tinham surgido
da neblina. Mas donde surgira a neblina? E como podia a neblina criar um homem com
pulmes, corao, estmago e crebro? Zombavam dos crentes que atribuam toda a
sabedoria a Deus, quando eles mesmos tinham atribudo todo o tipo de sabedoria e
todos os poderes a uma natureza invisvel que desconhecia at a sua prpria
existncia. Yasha sentia que dos filactrios partia uma espcie de radiao que lhe
atingia o crebro e os compartimentos fechados dele, iluminavam as zonas escuras,
desfaziam ns. Todos os que rezavam diziam o mesmo: H um Deus que v, que ouve,
que tem piedade do homem, que refreia a Sua ira, que perdoa o pecado, que quer que
o homem se arrependa, que castiga as ms aces, que recompensa as boas neste mundo
e - o que mais importante - no outro.
Que havia outros mundos, Yasha sempre o sentira. Quase conseguia v-los.
"Tenho de ser um judeu!", dizia para consigo. "Um judeu como os outros!"
VII.
1.
Quando Yasha saiu novamente, a Rua Gnoyne estava cheia de luz do Sol, de grandes
carroas, de cavalos, comerciantes de fora e de agentes, vendedores de ambos os
sexos apregoando as suas mercadorias. "Arenque fumado!", gritavam. "Bagels
frescos!" "Ovos quentes!" "Gros-de-bico com feijo doce!" "Pastelinhos de batata!"
Pelos portes entravam carros carregados de madeira, farinha, grades, barris,
mercadorias cobertas de lona, folhas e sacas. As lojas negociavam azeite, vinagre,
sabo verde, sebo para os eixos de rodas. Yasha ficou parado porta da sinagoga e
olhou em frente. Os prprios judeus que momentos antes tinham estado em adorao
com tanto fervor e que tinham entoado: "Que o grande nome seja louvado para sempre,
Amen!", haviam dispersado cada um para a sua loja, fbrica ou oficina. Uns eram
empregados, outros patres, uns eram mestres, outros ajudantes. Parecia agora a
Yasha que a rua e a sinagoga eram a negao uma da outra. Se uma era verdadeira, a
outra tinha de ser forosamente falsa. Entendia que, agora, o que ouvia era a voz
do mal, mas a piedade que o avassalara, enquanto se cobria com o xaile de orao e
com os filactrios na casa de orao, comeara a evaporar-se. Decidira jejuar
naquele dia como se fosse o Dia da Reconciliao, mas tinha de acalmar a fome que o
roa. Doa-lhe o p. As tmporas latejavam-lhe. As suas antigas queixas contra a
religio voltavam a ajustar-se. Porqu toda aquela excitao? Havia dentro de si
algo carente. Que prova h de que Deus existe? Quem nos escuta as oraes? H
inmeras religies no mundo e cada uma contradiz a outra. Era verdade que no fora
capaz de abrir o cofre de Zaruski e que magoara o p naquela histria, mas que
que isso provava?
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2.
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por ti. No quero ofender-te, mas em mim que depositam confiana, no em ti.
Quando vieste ter comigo, eras um mago vulgar que fazia truques nas praas pblicas
por meia dzia de groschen. Tirei-te da valeta. Agora, que estamos s portas do
sucesso, embebedas-te ou fazes sei l o qu. J devias estar a ensaiar desde a
semana passada e nem sequer apareceste no teatro. H cartazes espalhados por toda a
Varsvia, proclamando-te como o que ultrapassa todos os magos que at hoje
apareceram, mas tu ds cabo da perna e nem sequer chamas o mdico. No despes a
roupa desde ontem. Se calhar, saltaste de alguma janela - disse Wolsky, mudando de
tom.
Um arrepio percorreu as costas de Yasha.
- Ias com certeza a fugir de alguma mulher casada. Se calhar, apareceu o marido
inesperadamente. J se sabe o que so essas coisas. Eu sou velho nesse jogo. Despe-
te e mete-te na cama. S te enganas a ti. Vou chamar o mdico. Anda em todos os
jornais a notcia de que fazes o salto mortal no arame. Toda a cidade fala nisso. E
de repente fazes uma destas. Se falhares agora, o fim de tudo.
- Hei-de curar-me at estreia.
- Talvez sim e talvez no. Despe-te. J que foi um salto, deixa-me examinar a perna
toda.
- Que horas so?
- Quatro e dez.
Yasha queria dizer mais qualquer coisa, mas nesse momento ouviu a chave rodar na
fechadura. Era Magda. Entrou e Yasha escancarou os olhos. Vestia o vestido de
domingo, usava o chapu de palha do ano anterior, enfeitado com flores e cerejas, e
calava botinas. Parecia uma camponesa vinda cidade para trabalhar. Numa noite
emagrecera, tornara-se mais trigueira e mais velha. Tinha o rosto coberto de
arranhes e leses. Ao ver Wolsky, foi colhida de surpresa e comeou a recuar para
a porta. Wolsky tirou o chapu. O cabelo ficou amachucado como uma cabeleira
postia. Fez um aceno de cabea. Os seus olhos iam de Yasha a Magda, com uma
preocupao paternal. O lbio inferior pendia-lhe de espanto.
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3.
- Magda - comeou ao fim de uns momentos, em tom de quem d lies de moral, mas
que o faz relutantemente -, fizemos um acordo de que tratarias dele. Ele uma
criana. Os artistas so como criancinhas e, por vezes, at pior. V o que ele fez!
- Peo-te, Wolsky, no digas mais nada! - interrompeu Yasha. Magda no respondeu,
mas olhava em silncio o p descalo e
a perna ferida de Yasha.
- Onde que foste de manh to cedo? - perguntou Yasha. Apercebeu-se rapidamente
de que aquelas palavras denunciavam que no passara a noite em casa, mas era tarde
de mais para as engolir. Magda sobressaltou-se. Os seus olhos verdes iluminaram-se
e ganharam um ar malvolo como os de um gato assanhado.
- Depois fao-te o relato pormenorizado.
- Que que se passa entre vocs dois? - perguntou Wolsky, como um parente mais
velho. No esperou a resposta, e prosseguiu:
- Bom, tenho de ir buscar o mdico. Aplica compressas frias. Tm tintura de iodo c
em casa? Se no tm, eu trago da farmcia.
- Caro Wolsky, eu no quero o mdico! - disse Yasha em tom decisivo.
- Porqu? Tens seis dias at estreia. As pessoas j compraram bilhetes. Metade do
teatro est vendido.
- Estarei pronto para a estreia.
- Esse p no se cura assim to depressa sozinho. Porque que tens tanto medo do
mdico?
- Tenho de ir hoje a um stio. Depois vou ao mdico.
- Onde que tens de ir? No podes andar por a com o p nesse estado.
- Tem de ir ter com uma das suas putas! - cuspiu Magda. A boca tremia-lhe e tinha
os olhos postos algures. Era a primeira vez que Magda - a silenciosa, a tmida -
dizia uma coisa daquelas e em frente de uma pessoa de fora. As palavras saram-lhe
com um sotaque rural e, embora sem ter falado alto, tinham soado estridentes como
um grito. Wolsky fez uma careta como se tivesse engolido qualquer coisa.
- No quero intrometer-me nos vossos assuntos. Nem teria o direito de faz-lo,
ainda que quisesse. Mas h tempo para tudo. Espermos anos por este dia. a tua
oportunidade:
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vais tornar-te famoso. Como diz o ditado, "no deponhas as armas uma hora antes da
vitria".
- No estou a depor nada.
- Deixa-me ir buscar-te um mdico, peo-te.
- No.
- Bem, no, no. H trinta anos que sou empresrio e vi como os artistas cometem
suicdio. Trepam at ao cume durante anos e, quando o pico est vista, caem e
esmagam-se. Porque que isto acontece, que no sei. Talvez gostem da valeta. Que
que hei-de dizer a Kuzarski? Ele perguntou por ti. H no teatro uma conspirao
contra ti. E o que vou dizer ao director de Ekaterinoslava? Tenho de responder-lhe
ao telegrama.
- Dou-te uma resposta amanh.
- Amanh quando? Que que sabes amanh que no saibas hoje? E que ganham vocs em
questionar? Tm de trabalhar juntos. Tm de ensaiar como nos anos anteriores. S se
querem agradar aos vossos inimigos e dar-lhes o prazer do falhano.
- Tudo h-de correr bem.
- Bom, o que ter de ser, ser. Quando volto?
- Amanh.
- Venho c amanh de manh, mas faz alguma coisa por esse p. D um passo - vamos
l ver. Ests a coxear! No me enganas. Pe-no de molho em gua quente. Eu, no teu
caso, no esperava at amanh. O mdico pode mandar-te pr o p em gesso. Ento que
que fazes? A pateada vai deitar o teatro a baixo. J sabes como a clientela de
um teatro de Vero. No a pera, onde vem o director boca de cena e anuncia ao
respeitvel pblico que a prima dona tem dores de garganta. Neste, eles comeam
logo a atirar ovos podres e pedras.
-J te disse que tudo vai correr bem.
- Bom, esperemos que sim. s vezes, lamento no estar metido num negcio de
arenques.
Wolsky fez uma vnia a Magda e a Yasha. Resmungou qualquer coisa no trio. Saiu,
batendo a porta.
" cristo e lamenta-se como um judeu", disse Yasha para consigo. Sentiu vontade de
rir e espreitou Magda pelo canto do olho. Concluiu que ela no passara a noite em
casa. Devia ter andado por a. Mas onde que teria estado? Seria capaz de uma
vingana daquele tipo? No seu ntimo misturavam-se o cime e a repulsa. Sentiu um
impulso de agarr-la pelo cabelo e arrast-la pelo cho. Onde que estiveste?
Onde? Onde?
131
- queria dizer. Mas conteve-se. Imaginava ver a cada momento aumentar no rosto dela
o atrevimento. Relaxou o punho, baixou a cabea e olhou para a sua perna nua.
Lanou um olhar furioso a Magda. Depois disse:
- Vai ao poo buscar-me gua fresca.
- Vai tu.
E Magda desatou a chorar. Saiu a correr da sala, batendo to violentamente com a
porta que os vidros das janelas estremeceram.
"Acho que me vou estender mais meia hora", disse Yasha para si. A perna inchara e
mal conseguia estend-la. Ali ficou deitado, olhando o cu pela janela. L em cima
voava um pssaro. Parecia pequenino como um gro. Que aconteceria quela criatura
se ferisse uma perna ou uma asa? Para ela, s haveria uma sada - a morte. O mesmo
sucedia ao homem. A morte era a vassoura que varria todos os males, toda a loucura,
toda a sujidade. Fechou os olhos. O p pulsava, dava puxes. Quis tirar o sapato,
mas o atacador dera um n cego. O inchao aumentara! Sentia a carne dos dedos
dilatada e esponjosa. O p podia gangrenar. Talvez tivesse de ser amputado. No!
Antes a morte! "Bom, acabaram-se os meus sete anos de sorte! No se pode confiar
neles!", exclamou para si, sem saber se se referia a mulheres ou aos no judeus, ou
a ambos. Sem dvida que o Demnio habitava tambm em Emilia. O crebro esvaziou-se-
lhe e ali ficou naquela moleza morna que precede o sono. Sonhou que era Pscoa,
depois do Seder, e que o pai lhe dizia: "Que engraado, perdi umgroschen!". "Que
diz, pap? Pscoa." "Oh! O vinho da cerimnia embebedou-me."
O sonho durou apenas uns segundos. Acordou sobressaltado e a porta abriu-se quando
Magda entrou trazendo uma bacia de gua e uma toalhinha para servir de compressa.
Olhou-o com desprezo.
- Magda, amo-te - disse ele.
- Escumalha! Chulo! Assassino! - disse ela, rompendo novamente em lgrimas.
4.
Yasha tambm se apercebia de que aquilo que queria fazer era loucura, mas tinha de
ver Emilia. Era como um paciente que tivesse sido hipnotizado e tivesse de cumprir
as ordens do seu senhor. Emilia esperava-o e a sua espera atraa-o como um man.
Magda tinha sado novamente para ir a qualquer lado.
132
Sabia que aquele era o momento de sair. No dia seguinte podia ser tarde de mais.
Ps-se de p, decidido a ignorar o p. Precisava de um banho, de fazer a barba e
mudar de roupa. "Tenho de voltar a pr as coisas no seu lugar com ela", dizia para
si. "No posso deix-la assim suspensa." Quando foi para se barbear descobriu que a
navalha lhe desaparecera. Magda tinha o costume de esconder as coisas. Sempre que
fazia limpeza, alguma coisa desaparecia. Era capaz de encafuar uma gravata no fogo
e os chinelos debaixo de uma almofada. "Sempre uma camponesa!", pensou Yasha.
Vestiu uma camisa lavada, mas caiu-lhe um boto de punho da manga e desapareceu.
Parecia ter rolado para debaixo do guarda-fato, mas no era capaz de se baixar.
Tinha outros botes de punho em qualquer lado, mas onde? Magda at encafuava
dinheiro em stios esquisitos e depois s aparecia meses depois. Yasha estendeu-se
no cho e comeou a procurar debaixo do guarda-fato com a ajuda da bengala, mas
este esforo causou-lhe dores horrveis no p. Ento comeou tambm a doer-lhe o
estmago. "L esto os demnios outra vez", pensou. "Agora s tenho pouca sorte."
Magda voltara e despira o vestido de domingo. Viu que andara a fazer compras,
porque trazia um cesto donde espreitavam as pernas de uma galinha.
- Aonde vais? Ia mesmo agora preparar o almoo.
- Prepara-o para ti.
- Vais voltar para a tua puta de Piask?
- Vou onde me apetecer.
- Entre ns est tudo acabado. Volto hoje para casa. Porco judeu!
Ela pareceu temer as suas prprias palavras; a boca ficou entreaberta, a mo no ar,
como que para evitar a bofetada. Yasha empalideceu:
- Bom, o fim!
- Sim, o fim. Metes-me no Inferno!
Ela atirou com o cesto e entoou uma cantilena rude, como se tivesse sido
chicoteada. A galinha ali ficou, de pescoo ensanguentado cado, rodeada de
cebolas, beterrabas e batatas. Magda precipitou-se para a cozinha e Yasha ouviu um
som semelhante ao de um chocalho, como se ela estivesse a vomitar ou a estrangular-
se. Ele pusera-se de p, sempre agarrado bengala que usara para procurar o boto
de punho. Por qualquer razo inexplicvel, voltou a galinha e cobriu-lhe com uma
beterraba o pescoo cortado. Continuou a procurar o boto de punho. Queria ir
cozinha ver o que Magda estava a fazer,
133
mas absteve-se. "Dentro de pouco tempo Emilia vai chamar-me o mesmo. isso, tudo
se desmorona como um baralho de cartas."
Vestiu-se de qualquer maneira. Ao passar no corredor ouviu, para l da porta
fechada, Magda esfregando um tacho com um piaaba. Desceu a escada, a coxear,
sentindo uma dor a cada degrau. Mal conseguiu atingir a barbearia, mas no havia l
ningum. Chamou, bateu com o p so, deu murros na parede, mas no apareceu
ningum. "Deixam tudo e desaparecem!", resmungou para si. "A Polnia assim. E
ainda se queixam de que o pas est desfeito. Provavelmente, este vagabundo foi
jogar cartas! Bom, tenho de ir mesmo sem ser barbeado. Que veja o estado em que
estou." Ali ficou espera de um trem, mas no apareceu nenhum. " este o nosso
pas", resmungou. "S o que sabem fazer revoltar-se de uns quantos em quantos
anos e chocalhar as correntes."
Conseguiu chegar Avenida Dluga, viu uma barbearia e entrou. O barbeiro estava
ocupado a cortar o cabelo a um cliente.
- Quando um barril est cheio de couves, no se podem encafuar l mais - dizia o
barbeiro. - As couves no so como o linho, no se podem espremer. Quando o barril
est cheio, est cheio. Com a massa, meu caro senhor, ainda pior. Lembro-me do
que aconteceu a uma mulher que queria fazer um bolo para a me. Amassou a massa,
juntou o fermento e todas as coisas. ltima hora decidiu levar a massa para casa
da me em Praga e coz-la l, porque a chamin do fogo estava entupida e o fogo
deitava fumo, ou por uma coisa do gnero. Ento meteu a massa num cesto, cobriu-a
com um pano e tomou o nibus. No nibus fazia calor e a massa comeou a crescer.
Escorregava para fora do cesto como se estivesse viva. Ela tentava encafu-la
novamente, mas a massa uma coisa que no se pode amachucar. Quando se aperta de
um lado sai do outro. O pano voou. O cesto inchou e, bum!, estoirou. Alis, penso
que estoirou.
- A massa assim to forte? - perguntou o homem que estava sentado na cadeira.
- Claro que . Houve uma verdadeira revoluo no nibus. Iam l alguns
engraadinhos e...
- Ela deve ter deitado muito fermento na massa.
- No foi tanto do fermento como do calor. Era um dia quente de Vero e...
"Porque que estaro nisto? Alm do mais, ele um mentiroso; o cesto nunca
rebentaria", pensou Yasha. "Mas o meu sapato
134
estoira! O meu p est a inchar. E porque que ele no d por mim? Talvez veja,
mas no seja visto!"
- Ainda tenho muito que esperar? - perguntou.
- At eu acabar, senhor - respondeu o barbeiro, num misto de cortesia e desprezo. -
S tenho um par de mos. No posso cortar o cabelo com os ps e, se pudesse, como
que me mantinha de p? Talvez pudesse ficar de cabea para baixo? Que acha, senhor
Miechislaw?
- Tem toda a razo - respondeu o cliente. Este era pequeno e cabeudo, de nuca
direita, e louro, com cabelo espetado que fazia lembrar a Yasha as cerdas de um
porco. O homem virou-se para Yasha com desprezo. Os seus olhos eram de um azul-
aquoso, pequenos e fundos. Era evidente que o barbeiro e o cliente se tinham
aliado.
No entanto, esperou at o barbeiro ter terminado de tratar do cliente e at terem
sido lustradas as pontas do bigode do homem. Subitamente o barbeiro sofreu uma
transformao e comeou a cavaquear familiarmente com Yasha.
- Est um lindo dia, no acha? Vero, autntico Vero! Gosto do Vero. Que graa
tem o Inverno? Geada e catarro! s vezes faz calor de mais no Vero e sua-se, mas
isso no tragdia. Ontem nadei no Vstula e algum se afogou ali minha vista.
- Na casa de banho?
- Quis exibir-se e nadou da casa dos banhos dos homens para a das mulheres. No o
deixavam entrar, de qualquer forma, porque as mulheres tomam banho nuas. Ento para
que era aquilo tudo? Vale a pena jogar a vida por uma brincadeira? Quando o tiraram
parecia que estava a dormir. No acreditava que ele estava morto. E para qu aquele
sacrifcio? S para impressionar.
- Sim, as pessoas so loucas.
5.
"Tenho de decidir tudo hoje", disse Yasha para si, enquanto viajava no trem. "Hoje
o meu Dia do Juzo." Fechou os olhos, para se entregar exclusivamente aos seus
pensamentos. Mas passou rua aps rua sem conseguir tomar uma deciso. Voltou a
deixar-se levar s cegas, ouvindo os rudos das ruas e respirando-lhes os cheiros.
Os cocheiros gritavam,
135
estalavam os chicotes, as crianas chilreavam. Dos ptios e das lojas saa um sopro
quente, uma mistura de cheiro a estrume, a cebola frita, a esgoto e a matadouro. Os
trabalhadores andavam a arrancar os passeios de madeira, trocando as pedras
redondas por quadradas, instalando as luzes da rua, cavando valas para esgoto e
para as linhas telefnicas. As entranhas da cidade estavam a ser remodeladas. Por
vezes, quando Yasha abria os olhos, parecia-lhe sentir que o trem resvalava para as
profundezas arenosas. A terra parecia querer abrir-se e engolir os prdios; toda a
Varsvia parecia estar a ponto de sofrer a sorte de Sodoma e Gomorra. Como podia
decidir algo naquele momento? O trem passou pela sinagoga da Rua Gnoyne. "Quando
que j aqui estive?", perguntava-se confuso. "Teria sido hoje? Ou ontem?" Os dois
dias fundiam-se num s. A sua orao ali com o xaile de orao e os filactrios, a
piedade que se apoderara dele, eram agora para ele coisas estranhas, como que um
sonho. "Que espcie de poder me avassalou? Devo ter os nervos completamente
destroados!" O trem deteve-se frente casa de Emilia e Yasha estendeu ao cocheiro
um guZden em vez do preo habitual de vinte groschen. O cocheiro deu-lhe o troco,
mas Yasha fez-lhe um sinal de mo rejeitando-o. " um miservel", pensou. "Que
fique com os dez groschen que sobram." As suas boas aces serviriam para lhe pr
as contas em dia com o Cu. Subiu lentamente os degraus. O p agora incomodava-o
menos. Tocou campainha e Yadwiga abriu a porta. Sorriu e disse em tom de
confidncia:
- A senhora est sua espera desde ontem.
- Que novidades h por c?
-Absolutamente nada. Ah, sim, h uma! O senhor Yasha lembra-se de lhe ter falado no
velho Zanuski e na criada surda, aquela que minha amiga? Pois bem, foram ontem
roubados.
Yasha sentiu a boca secar.
- Roubaram-lhe a fortuna?
- No, o ladro assustou-se e fugiu. Saltou da varanda. O guarda-nocturno viu-o.
Nem queira saber o que por l vai! O velho fez um destes barulhos! Foi um horror!
Queria despedir a minha amiga. Veio a polcia. A minha amiga fartou-se de gritar.
Trinta anos, trinta anos numa casa!
Ela dizia tudo aquilo com uma espcie de prazer perverso. A infelicidade da amiga
dava a Yadwiga uma espcie de ntima satisfao. Os olhos brilhavam-lhe com malcia
tal, como Yasha nunca lhe vira.
- Sim, ladres no faltam em Varsvia.
136
- Ah, e com essa fortuna a tent-los! Queira entrar para a saleta, que eu vou
chamar a senhora!
Parecia a Yasha que Yadwiga rejuvenescera. Em vez de andar, quase deslizava. Entrou
para a saleta e sentou-se no sof. "No podem notar nada no meu p. Se o fizerem,
direi que ca. Ou talvez fosse melhor falar j nisso. Assim pareceria menos
suspeito." Yasha esperara que Emilia viesse ao seu encontro imediatamente, mas ela
demorou mais tempo do que era costume. "Est a vingar-se da noite passada", pensou.
Por fim, ouviu passos. Emilia abriu a porta e Yasha viu que trazia novamente um
vestido de cor berrante e que se via que era novo. Ele levantou-se, mas no se
dirigiu logo a ela.
- Que vestido maravilhoso!
- Gostas?
- soberbo! Volta-te, deixa-me v-lo por trs!
Emilia fez o que ele lhe dizia e Yasha aproveitou a ocasio para se aproximar dela.
- Sim, requintado! Ela voltou-se para ele.
- Estava com medo que no te agradasse. Que te aconteceu ontem? Por tua causa no
dormi toda a noite.
- Ento, se no dormiste, que fizeste?
- Que que se pode fazer numa altura dessas? Li, andei s voltas. A srio, estava
muito preocupada contigo. Pensei que j tinhas... - Emilia interrompeu-se.
"Como que ela podia ter estado a ler se no havia luz no quarto", pensou Yasha.
Quis p-la perante esta questo, mas deteve-se, sabendo que, se provocasse uma tal
confrontao, se denunciaria. Ela estudava-o, o seu rosto exprimia curiosidade,
ressentimento e devoo. Por qualquer poder desconhecido (ou pressentimento), ele
sabia que ela lamentava t-lo repelido na noite anterior e que naquele momento
estava preparada para corrigir esse erro. Ela enrugou a fronte, como que tentando
dissipar os pensamentos. Ele estudava-a e parecia-lhe que ela envelhecera no dias,
mas anos, como acontece, por vezes, a uma pessoa que sofreu uma doena grave ou um
desgosto profundo.
- Aconteceu uma coisa m, ontem - disse Yasha. O rosto dela empalideceu.
- O qu?
- Quando estava a ensaiar, ca e magoei o p.
- s vezes pergunto a mim mesma como que consegues
137
138 - 139
6.
- Todas as vezes dizes que havemos de decidir. H assim tanto que decidir? Se
decidirmos ir, tenho de desfazer a minha casa e vender a moblia. Talvez arranje
algum dinheiro assim, se bem que no valha j grande coisa. Mas talvez devamos
mand-la para Itlia. Isto so coisas prticas que temos de fazer. Nada se resolve
s com conversa. Devamos tambm pedir os passaportes,
porque os russos dificultam tudo. Devamos marcar a semana e dia exactos da nossa
partida. H tambm o problema financeiro. No discuti isso mais cedo contigo porque
o problema me muitssimo desagradvel. Sempre que vou a falar nele sobe-me o
sangue cara - o rosto dela ruborizou-se, de facto -, mas, sem isso, nada podemos
concretizar. Tambm falmos do teu... bom, tu prometeste adoptar a f crist... Sei
que estas coisas so meras formalidades, uma pessoa no adquire f s por ser
espargido com gua. Mas sem isso no podemos casar. Digo-te tudo isto partindo do
princpio de que as promessas que fizeste foram feitas de boa f. Se no foram, no
h razo para prolongar a farsa. J no somos crianas.
E Emilia parou de falar.
- Sabes que tinha inteno de cumprir cada uma das minhas palavras.
- No sei nada. Afinal, que que eu sei de ti? H alturas em que nem sei de mim.
Sempre que ouvia falar de casos destes, culpava a outra mulher. Afinal, tu tens
mulher, se bem que Deus seja testemunha de que no lhe s fiel e de que,
geralmente, a tua conduta a de um homem livre. Eu tambm estou em pecado, mas sou
leal minha religio. Do ponto de vista da Igreja catlica, quando algum se
converte nossa religio renasce e todas as suas relaes anteriores so anuladas.
No conheo a tua mulher, nem quero conhec-la. H outra coisa: que o teu
casamento um casamento estril. Um casamento estril s meio casamento. Eu
tambm j no sou jovem, mas ainda posso ter filhos e gostaria de conceber filhos
teus. Vais rir-te, mas at a Halina j falou nisso. Disse-me uma vez: "Quando casar
com o tio Yasha, gostaria de ter um irmozinho". Um homem com o teu talento no
devia morrer sem deixar um herdeiro. Mazur um bom nome polaco.
Yasha estava sentado no sof e Emilia numa chaise longue, na sua frente. Ele olhou-
a e ela respondeu ao seu olhar. Apercebeu-se de repente que no podia adiar as
coisas por mais tempo. As palavras que tinha a dizer tinham de ser pronunciadas
naquele mesmo momento. Mas ainda no tinha decidido o que dizer e como agir.
- Emilia, h algo que devo dizer-te - comeou Yasha.
- Diz. Estou a ouvir-te.
- Emilia, no tenho dinheiro. Toda a minha fortuna se resume casa de Lublim, mas
no posso tirar-lha.
Emilia pensou por um momento na questo.
140
- Porque que no me disseste antes? Pelo que dizias, parecia que o dinheiro no
era problema.
- Sempre senti que podia obt-lo ltima hora. Se a estreia fosse um xito, teria
sempre a possibilidade de actuar no estrangeiro. H sempre c proprietrios de
teatros estrangeiros...
- Desculpar-me-s, mas, em resumo, o teu plano era outro. Como que podias ter a
certeza de encontrar trabalho em Itlia? Podiam contratar-te para Frana ou para os
Estados Unidos. Seria estranho, se casssemos, termos de estar eu e Halina num
stio e tu noutro. Ela tem de ficar por uns tempos no Sul de Itlia. Um Inverno em
Inglaterra, por exemplo, mat-la-ia. Alm disso, tinhas planeado tirar um ano de
descanso para estudares lnguas europeias. Se viajares pela Europa sem saberes as
lnguas, se assim for, no te trataro melhor do que aqui na Polnia. Ests a
esquecer tudo o que tnhamos decidido. Tnhamos planeado comprar uma casa com
jardim perto de Npoles. Era esse o nosso plano. No quero censurar-te, de qualquer
maneira, mas, se queres melhorar a tua situao, tens de ter um plano definido.
Essa histria de viver o dia-a-dia, improvisadamente, como essa tua gente de teatro
faz, no te trouxe seno problemas. Tu prprio j concordaste.
- Sim, verdade, mas tenho de arranjar algum dinheiro. Quanto que tudo isso
poderia custar? Isto , qual seria o mnimo?
-J vimos isso. Precisvamos, pelo menos, de quinze mil rublos. Algo mais alm
disso seria muito bom.
- Tenho apenas de arranjar esse dinheiro.
- Como? Tanto quanto sei, no chovem rublos em Varsvia. Tinha a impresso de que
j tinhas junto esse capital.
- No. No tenho nada.
- Bom, assim. No deves pensar que os meus sentimentos para contigo se
modificaram por causa disto. Mas bvio que os nossos planos no podem manter-se.
J disse a certas pessoas ntimas que ia para o estrangeiro. A Halina no pode
ficar em casa eternamente. Uma rapariga da idade dela tem de frequentar a escola.
Alm disso, eu e tu no podemos viver juntos aqui. No seria sensato por ambos.
Tens uma famlia e sabe-se l que mais. Da forma que as coisas esto, comeo a
perder o sono pela piedade que sinto pela tua mulher, mas, se sasse do pas, ela
parecer-me-ia distante. Roubar um marido sua mulher e arriscar-me a que ela venha
ter comigo a chorar demasiado para mim!
E abanou a cabea em sinal de recusa, para sublinhar a sua rejeio. Ao mesmo tempo
que dizia isto estremecia.
141
- Eu arranjo o dinheiro.
- Como? Vais roubar um banco? Halina entrou.
- Ah, tioYasha! Emilia ergueu os olhos.
- Quantas vezes j te disse que batas antes de entrar? J no tens trs anos.
- Se interrompi alguma coisa, saio.
- No interrompeste nada - disse Yasha. - Que bonito vestido trazes!
- Que que tem de bonito? um vestido que eu acrescentei. Mas branco e eu adoro
o branco. Gostava que a nossa casa em Itlia fosse branca. Porque que o telhado
no h-de ser tambm branco? Oh, seria maravilhoso... uma casa branca com telhado
branco!
- Talvez queiras que o limpa-chamins seja tambm branco? - disse Yasha,
provocando-a.
- Porque no? possvel tornar a cinza branca. Li que quando um papa escolhido,
sai fumo branco da chamin do Vaticano; e, se o fumo branco, a cinza tambm pode
ser.
- Sim, tudo se arranjar tua maneira, mas agora vai para o teu quarto. Estamos a
discutir as coisas! - disse Emilia.
- De que que esto a falar? No faa essa cara, me, eu saio j. Estou cheia de
sede, mas isso no interessa. Antes de ir, h s uma coisa que gostava de dizer...
Parece de mau humor, tio Yasha. Que que se passa?
- Perdi um carregamento de leite azedo.
- O qu? Que expresso engraada essa?
- um ditado idiche!
- Gostava de saber idiche. Gostava de saber todas as lnguas: chins, trtaro,
turco. Dizem que os animais tambm tm a sua linguagem prpria. Passei uma vez na
Praa Grzybow e os judeus pareciam to estranhos com os seus caftans compridos e as
barbas negras. Que um judeu?
- Eu no te disse que te fosses embora? - disse Emilia, elevando a voz.
Halina voltou-se para sair, no momento exacto em que bateram porta. Yadwiga
estava na soleira da porta.
- Est l fora um homem. Quer falar com a senhora.
- Um homem? Quem ? Que que ele quer?
- No sei.
- Porque que no perguntaste o nome?
142 - 143
7.
- A tua me no quer que eu faa isso e eu no fao nada que ela no queira.
- Faa-o s at ela voltar.
- Isso no se faz assim to depressa. Alm disso, j ests hipnotizada.
- Que que quer dizer com isso?
- Ah, s forada a amar-me. Amar-me-s sempre. Nunca me esquecers.
- Isso verdade. Nunca! Gostava de dizer disparates. Posso dizer disparates?
Enquanto a mam no est na sala?
- Podes, va l...
- Porque que toda a gente no como o tio Yasha? Toda a gente to pomposa, to
cheia de importncia! Eu amo a mam, amo-a terrivelmente, mas s vezes detesto-a.
Quando fica mal disposta descarrega em mim. "No vs a! No fiques a!" Uma vez
quebrei um vaso de flores sem culpa nenhuma e ela no me falou
durante todo o dia. Nessa noite sonhei que um nibus, com cavalos, condutor,
passageiros e tudo, atravessava o nosso apartamento. Sentia-me confusa no meu
sonho: "Porque que um nibus havia de atravessar o nosso apartamento? Onde que
toda aquela gente ia presa? E como que o nibus passara pela porta?". Mas ele por
ali andava simplesmente e fazia paragens, enquanto eu pensava: "Quando a mam
voltar e vir isto, vai fazer uma zaragata enorme!" Tive de rir e acordei a rir.
Ainda agora tenho de me rir quando penso naquele sonho disparatado. Mas ser culpa
minha? Tambm sonho consigo, tio Yasha; mas, como mau e no me hipnotiza, no lhe
conto o sonho.
- Que que sonhas sobre mim?
- No lhe digo. Os meus sonhos so muito cmicos e absolutamente loucos. Vai pensar
que sou doida. Assaltam-me ideias terrveis. Quero afast-las, mas no consigo.
- Que espcie de ideias?
- Isso no lhe posso dizer.
- De mim no tens nada a esconder. Amo-te.
- Oh, isso o que diz. Na realidade, meu inimigo. Talvez at seja um demnio que
assumiu a figura humana? Se calhar, at tem cornos e cauda como o Baba Yaga?
- Sim, tenho cornos.
E Yasha ps dois dedos na testa.
- No faa isso, assusta-me. Sou uma terrvel cobarde. noite fico simplesmente
aterrorizada. Tenho medo dos fantasmas, dos espritos maus e de coisas dessas. Um
vizinho nosso tinha uma filha de seis anos, a Janinka. Uma criana linda, com
caracis louros e olhos azuis como um querubim. De repente apanhou escarlatina e
morreu. A mam no quis que eu soubesse, mas eu soube tudo. At vi pela janela
quando eles levaram o caixo - um caixozinho pequenino, decorado com flores. Oh, a
morte horrvel! Durante o dia no penso nisso, mas quando escurece comeo a
pensar.
Emilia entrou. Olhou para Yasha e Halina e comentou:
- Bom, vocs os dois fazem um belo par!
- Quem era o estranho? - perguntou Yasha, surpreendido com sua prpria audcia.
- Se te dissesse, rias-te, se bem que no seja para rir. Temos uma pessoa conhecida
que mora aqui perto, um velho rico chamado Zaruski, um usurrio, um avarento. Nem
bem um conhecido, a Yadwiga que amiga da criada dele e, por isso, ele comeou a
cumprimentar-me. A noite passada algum lhe assaltou a casa. O ladro entrou pela
varanda
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- verdade. Como que sabias que o Zaruski morava num primeiro andar?
- Porque o ladro sou eu - disse Yasha roucamente e sentindo-se chocado com as
palavras que pronunciara. A garganta contraiu-se-lhe. Desceu em frente dos seus
olhos a escurido e voltou a ver as centelhas brilhantes. Era como se um esprito
tivesse falado de dentro de si. Um arrepio percorreu-lhe, em ziguezague, a espinha.
Mais uma vez, sentiu a nusea que precede o desmaio.
Emilia calou-se por um momento.
- Bom, boa ideia. J que s capaz de descer das varandas, tambm deves ser capaz
de as subir.
- E, na verdade, posso.
- O qu? No te ouvi.
- Disse que posso.
- Ento porque que no abriste o cofre? Quando se comea uma coisa deve acabar-
se.
- s vezes no se pode.
- Porque que ests a falar to baixo? No percebo o que ests a dizer.
- Disse que s vezes no se pode.
- Se no se pode, tenta-se - como diz o velho provrbio. engraado que ainda h
pouco eu pensava que os ladres podiam assaltar-lhe a casa. Toda a gente sabe que
ele guarda o dinheiro em casa. Mais tarde ou mais cedo, tem de ser roubado. o
destino de todos os avarentos. Bom, mas acumulao de riqueza j por si uma
paixo.
- Uma espcie de paixo.
- Qual a diferena? No sentido absoluto, todas as paixes so talvez ou
absolutamente disparatadas ou completamente sensatas. Que que qualquer de ns
sabe disso?
- No, no sabemos nada.
Ficaram ambos em silncio. E ento, finalmente, ela quebrou esse silncio:
- Que se passa contigo? Tenho de ver o teu p.
- Agora no, agora no.
- Porque no agora? Como que caste, diz-me?
"Ela no me acredita, pensa que estou a brincar", pensou Yasha. "Bom, no fim de
contas, tudo est perdido." Olhou para Emilia e viu-a como que entre uma neblina. A
sala estava escura; as janelas eram viradas a norte e estavam cobertas por pesados
cortinados cor de vinho. Foi assaltado por uma estranha indiferena, aquele tipo de
indiferena que surge
146
quando algum est beira de cometer um crime ou de arriscar a vida. Sabia que o
que estava para dizer iria estragar tudo, mas no se importava. Ouviu-se dizer:
- Magoei o p ao saltar da varanda de Zaruski. Emilia ergueu o sobrolho.
- Realmente, este no o momento apropriado para piadas.
- Esta a absoluta verdade.
8.
Durante o silncio que se seguiu, ouvia o chilrear dos pssaros l fora. "Bom, o
pior j passou", disse para consigo. Compreendeu ento o seu objectivo - pr fim
quele caso. Tinha posto sobre si uma carga demasiado pesada. Precisava de se
libertar de tudo. Deitou um olhar porta, como se se preparasse para partir sem
uma palavra. No baixou os olhos, mas, pelo contrrio, olhou frontalmente para
Emilia, no com orgulho, mas com o medo daquele que no se pode dar ao luxo de ter
medo. Emilia devolveu-lhe o olhar, no zangada, mas com aquela curiosidade
misturada com desdm que se sente ao ver-se a gratuidade do seu interesse. Olhava-o
como se estivesse a impedir-se de rir.
- Palavra que no acredito...
- Sim, verdade. Foi em frente da tua casa, ontem noite. At quis vir ver-te.
- Mas em vez disso foste l?
- No quis acordar Halina e Yadwiga.
- Espero que estejas apenas a arreliar-me. Sabes que sou crdula. Deixo-me levar
facilmente...
- No, no estou a arreliar-te. Ouvi Yadwiga falar dele e pensei que seria uma
soluo para o nosso problema. Mas entrei em pnico. Parece que no estou talhado
para esse gnero de coisas.
- Vieste fazer-me essa confisso, isso?
- Perguntaste-me.
- Que que eu perguntei? Mas o mesmo, o mesmo. Se no se trata de uma das tuas
brincadeiras, s posso ter pena de ti. Isto , de ambos. Se uma brincadeira, s
sinto desprezo por ti.
- No vim aqui para brincar.
147
- Quem pode dizer o que farias ou no farias? bvio que no s uma pessoa normal.
- No.
- Sei de uma mulher que se deixou seduzir por um louco.
- Tu s mulher.
Os olhos de Emilia semicerraram-se.
- essa a minha sorte. O Stephan, que descanse em paz, era tambm um psicopata.
Parece que sou atrada para esse tipo de homem.
- No deves culpar-te. s a mulher mais nobre que j me foi dado conhecer.
- Quem que tu conheceste? Opes-te escumalha e s escumalha. Perdoa a dureza
das minhas palavras, mas estou apenas a verificar um facto. A culpa s minha. Eu
sabia tudo; na verdade, no me escondeste nada. Mas no drama grego h uma espcie
de destino - no, tem outro nome - em que uma pessoa v tudo o que lhe ir
acontecer, e, apesar disso, tem de cumprir o seu destino. V o precipcio, mas,
apesar disso, precipita-se nele.
- Tu ainda no ests no precipcio.
- No posso estar mais no precipcio do que j estou. Se tivesses uma centelha de
hombridade em ti, ter-me-ias poupado a esta desgraa final. Podias ter partido e
nunca mais teres voltado. No teria mandado um emissrio tua procura. Pelo menos
teria ficado com uma recordao.
- Desculpa.
- No peas desculpa. Disseste-me que eras casado. At confessaste que Magda era
tua amante. Tambm me disseste que eras ateu ou l o que tu dizes que s. Se pude
aceitar isso, no h razo para temer um ladro. S cmico que te tenhas revelado
um ladro to inbil. - E Emilia soltou uma espcie de risadinha entre dentes.
- Ainda posso vir a ser um ladro hbil.
- Obrigada pela promessa, s no sei o que dizer a Halina - disse Emilia, mudando
de tom. - Espero que tenhas entendido que tens de te ir embora para no mais
voltares. Nem sequer deves escrever. Quanto a mim, ests morto. E tambm eu estou
morta. Mas os mortos tambm tm o seu milieu.
- Sim, vou-me embora. Fica tranquila que nunca mais... - E Yasha esboou um
movimento como se fosse levantar-se.
- Espera! Vejo que no consegues levantar-te. Que que fizeste? Torceste o
tornozelo? Partiste o p?
148
149
VIII.
1.
Yasha ficou uns momentos parado porta do ptio. Estaria o polcia espera dele
l fora? De repente lembrou-se da gazua. No, no estava no fato que tinha vestido.
Estava no que tinha vestido no dia anterior. Mas se a casa fosse revistada, ento a
gazua seria descoberta. "Bom, agora no importa. Que me prendam! Afinal, os jornais
de amanh vo aparecer cheios com o meu nome. O que dir Esther quando descobrir? O
bando de Piask vai delirar; vo achar uma ironia fantstica. E o Herman? E a
Zeftel? E a Magda - para j no falar do irmo? E o Wolsky? E a multido do
Alhambra? De qualquer forma, serei levado para o hospital da priso." Sentia o
inchao do p comprimir-se no sapato. "E, afinal, perdi tambm a Emilia", disse
para si. Saiu o porto, mas nenhum polcia o esperava. Talvez o fulano estivesse
espreita do outro lado da rua. Yasha pensou entrar nos Jardins Saxony, mas no o
fez; Emilia estaria a espreitar da janela e podia v-lo. Encaminhou-se para a Rua
Graniczna e foi dar novamente Rua Gnoyne e viu numa montra de relojoeiro que s
faltavam dez para as quatro. Deus do Cu, como aquele dia era longo! Parecia um
ano! Sentiu que tinha de se sentar e lembrou-se de entrar novamente na sala de
estudo. Dirigiu-se ao ptio da sinagoga. "Que foi que me aconteceu!", dizia para
consigo, espantado. "De repente transformei-me num verdadeiro judeu frequentador da
sinagoga!" L dentro, as cerimnias estavam a decorrer. Um judeu da Litunia
entoava as Dezoito Bnos. Os que assistiam ao culto usavam casacos curtos e
chapus altos. Yasha sorriu. Descendia do hassidim polaco. Em Lublim havia poucos
judeus lituanos, mas ali em Varsvia havia muitos. Vestiam-se de maneira diferente,
falavam de maneira
152
153
eram civilizados em comparao com os judeus, isto na opinio de Wolsky. Por outro
lado, os judeus que usavam capas curtas e rapavam a barba, ou estavam desejosos de
russianizar a Polnia ou eram revolucionrios. Muitas vezes, eram as duas coisas e
agitavam simultaneamente as classes operrias. Eram radicais, pedreiros-livres,
ateus e internacionalistas desejosos de abarcar, dominar e emporcalhar tudo.
Um silncio desceu sobre Yasha. Podia ser considerado um daqueles judeus sem barba,
mas achava-os mais estranhos do que os outros do tipo piedoso. Desde a infncia que
se vira rodeado de pessoas religiosas. At Esther cultivava um lar judeu com uma
cozinha kosher e tudo. Uma tal educao era talvez demasiado asitica, como
proclamavam os judeus cultos, mas pelo menos tinham f e uma ptria espiritual, uma
histria e uma esperana. Alm das suas leis que regulavam o comrcio, tinham a sua
literatura hassdica e estudavam a sua cabala e os seus livros de moral. Mas o que
possuam os judeus assimilados? Nada de seu. Num lado falavam polaco, noutro russo
e ainda noutros alemo e francs. Sentavam-se no Caf Lurs ou no Caf Semodeni, ou
no Caf Strassburger, a beber caf, a fumar cigarros, a ler os jornais de/ais
divers e revistas, e a contar piadas daquelas que provocam o tipo de riso que Yasha
sempre achara desagradvel. Continuavam com as suas lutas polticas, planeando
sempre revolues e greves, apesar de as vtimas dessas actividades serem sempre os
judeus pobres, seus prprios irmos. Quanto s suas mulheres, pavoneavam-se com
diamantes e plumas de avestruz, despertando a inveja dos cristos.
Era estranho, mas Yasha no s dera consigo numa casa de orao, como ainda
comeara a fazer um balano da sua alma. Era certo que se separara dos piedosos,
mas no se passara para o lado dos assimilados. Perdera tudo: Emilia, a sua
carreira, a sade, a casa. Vinham-lhe mente as palavras de Emilia: "Deves ter uma
espcie de pacto secreto com Deus, pois que Ele te castiga de imediato". Sim, o Cu
tinha os olhos postos nele. Talvez porque ele nunca deixara de acreditar. Mas o que
pretendia de si? De manh cedo, naquele dia, soubera o que era desejvel que
fizesse - seguir o caminho do bem como fizera seu pai e o pai de seu pai e todos
antes dele. Estava agora prisioneiro da dvida. Porque que Deus precisava de
capas, daqueles caracis cados, dos solidus e das faixas? Quantas geraes mais
se interrogariam sobre o Talmude? Quantas mais restries os judeus se imporiam?
Quanto tempo mais esperariam o Messias, eles que j esperavam havia dois mil anos?
Deus era uma coisa e os dogmas feitos pelo homem eram outra. Mas poder-se-ia servir
Deus sem os dogmas?
154
Como que ele, Yasha, chegara sua situao actual? Com toda a certeza no se
teria envolvido em todos aqueles casos de amor e em todos os outros pecadilhos se
tivesse usado o paramento franjado e rezado trs vezes por dia. Uma religio como
um exrcito - para resultar necessrio haver disciplina. Uma f abstracta acaba
inevitavelmente por conduzir ao pecado. A casa de orao era como uma caserna; ali
se instruam os soldados de Deus.
Yasha no podia ali ficar mais tempo. Sentia calor e, contudo, tremia. De certeza
que tinha febre. Decidiu ir para casa. "Que me prendam, se quiserem!", pensou.
Estava conformado em esvaziar a taa at ltima gota amarga.
Antes de sair da sala de estudo tirou, ao acaso, da prateleira um livro; abriu-o no
meio, consultou-o como fazia seu pai sempre que duvidava do caminho a seguir.
Reparou que se tratava de Os caminhos do Eterno, do rabi Leib, de Praga. Na pgina
do lado direito havia um versculo da Escritura: "Ele fechou os olhos para no ver
o mal", acompanhado da explicao talmdica: "Esse homem o que no olha para as
mulheres quando elas esto a lavar". Com dificuldade, Yasha traduziu as palavras
hebraicas. Compreendeu o que elas queriam dizer: tem de haver disciplina. Se um
homem no olhar, no deseja, e, se no desejar, no peca. Mas se quebra a
disciplina e olha, acaba por violar o Stimo Mandamento. Abrira o livro e
encontrara o texto que dizia respeito exactamente ao problema que trazia em mente.
Voltou a guardar o livro; momentos depois tirou-o novamente e beijou-o. Pelo menos
aquele livro queria algo de si, Yasha. Marcava-lhe o caminho a seguir, embora fosse
um caminho difcil. Mas a simples palavra profana no pedia nada. Pelo que esses
autores diziam, ele podia roubar, fornicar e destruir-se, bem como aos outros.
Muitas vezes, em cafs e teatros encontrara homens de Letras; passavam o tempo a
beijar as mos de mulheres e a distribuir cumprimentos para a esquerda e para a
direita; estavam sempre a discursar sobre os editores e os crticos.
Fez sinal a um coche e mandou seguir para a Rua Freta. Sabia que Magda ia fazer uma
cena, mas ensaiava mentalmente as palavras que iria dizer-lhe: "Querida Magda,
estou morto. Leva tudo quanto tenho - o meu relgio de ouro e o anel de diamante,
os meus poucos rublos - e vai para casa. Perdoa-me, se puderes".
155
2.
Naquele coche, Yasha sentiu o maior medo que jamais experimentara. Sentia medo de
algo, mas no sabia de qu. O tempo estava quente e, contudo, tinha frio. Todo ele
tremia. Os dedos tinham-se-lhe enrugado e tornado brancos, as pontas dos dedos
encarquilharam-se-lhe como as de algum mortalmente doente ou as de um cadver. Era
como se o corao lhe estivesse a ser esmagado por um punho gigante. "Que que se
passa comigo?", perguntou-se. "Ser que chegou a minha ltima hora? Terei medo de
ser preso? Terei saudades de Emilia?" Continuou a tremer e foi assaltado por uma
cibra; mal conseguia respirar. O seu estado era to desesperado que comeou a
consolar-se: "Bom, nem tudo est perdido ainda. Posso bem viver sem uma perna. E
talvez encontre alguma soluo. E, mesmo que seja preso, quanto tempo me mantero
na priso? No fim de contas, s fiz uma tentativa de assalto - no cheguei a fazer
nada". Encostou-se s costas do banco. Quis levantar a gola do casaco, mas sentiu-
se envergonhado de faz-lo num dia to quente. Meteu os dedos dentro do casaco para
os aquecer. "Que ? Ser gangrena?", perguntava-se. Quis desapertar o atacador do
sapato, mas quando se inclinou quase caiu do assento. Evidentemente que o cocheiro
suspeitou de que algo se passava com o seu passageiro e virava-se constantemente
para trs. Yasha reparou que tambm os pees olhavam para ele. Alguns at paravam e
ficavam a olhar.
- Que que se passa? - perguntou ansiosamente o cocheiro. - Quer que eu pare?
- No, continue.
- Quer que o leve a uma farmcia?
- No, obrigado.
O coche parava mais do que rodava, impedido de prosseguir por carroas carregadas
de madeira e de sacos de farinha e por enormes carros de mudanas. Os cavalos das
carroas firmavam as patas largas nos paraleleppedos do cho e as pedras lanavam
chispas. A certa altura tiveram de contornar porque um cavalo tinha cado. Pela
terceira vez, naquele dia, Yasha passou pelo banco da Rua Rimarska. Daquela vez nem
sequer olhou para o edifcio. Perdera o interesse em bancos e em dinheiro. Naquele
momento sentia no apenas receio, mas repugnncia por si. Aquela sensao era to
forte
156
que lhe causava nusea. "Talvez tenha acontecido alguma coisa a Esther", pensou
subitamente.
Lembrou-se do sonho que tivera, mas, mal o sonho comeara a tomar forma, escapou-
se-lhe sem deixar rasto. Que seria? Um animal? Um versculo das Escrituras? Um
cadver? Em certa altura fora atormentado, de noite, por sonhos. Sonhava com
monstros, funerais, bruxas, leprosos. Acordava alagado em suor. Mas naquelas
semanas sonhara pouco. Caa a dormir exausto. Por muitas vezes acordara na posio
em que adormecera. Sabia, porm, que no deixara de sonhar. Quando adormecia tinha
uma outra vida, uma existncia distinta. De vez em quando lembrava-se de um sonho,
de ter voado ou de qualquer bizarria contrria natureza, alguma coisa puerilmente
disparatada, baseada em mal-entendidos de criana ou talvez at nalgum erro verbal
ou gramatical. Se o sonho era to fantasticamente absurdo, o crebro, quando
acordado, no conseguia ret-lo. Lembrava-o e esquecia-o no mesmo momento.
Acalmou-se, mal saiu do coche. Subiu lentamente as escadas, apoiando-se ao
corrimo. No tinha consigo a chave de casa, nem a gazua. Se Magda no estivesse em
casa, tinha de esperar no patamar. Mas Anthony, o porteiro, tinha uma chave. Antes
de bater, Yasha escutou porta. No ouviu qualquer som. Comeou a bater, mas, mal
tocou na porta com os ns dos dedos, ela abriu-se de par em par. Ao entrar na sala
deparou-se-lhe um espectculo horrvel. Magda pendia do tecto, tendo debaixo dos
ps uma cadeira virada. Viu logo que estava morta. Em vez de gritar ou de cortar
imediatamente a corda, ali ficou boquiaberto. Ela tinha apenas um saiote vestido;
os ps descalos tinham-se tornado azuis. No lhe via a cara, s o pescoo com o
rolo de cabelo. Parecia-lhe uma boneca gigantesca. Queria avanar e cortar-lhe a
corda, mas ali permanecia como que perdido. Onde que estaria uma faca? Sabia que
devia pedir auxlio, mas sentia vergonha dos vizinhos. Finalmente, atirou com a
porta para trs e gritou:
- Socorro!
O grito no fora muito alto e ningum lhe respondeu. Pensou elevar a voz, mas no
conseguiu. Quase o assaltou a necessidade infantil de fugir, mas, em vez disso,
abriu a porta do apartamento vizinho e disse:
- Tm de ajudar-me. Aconteceu uma coisa horrvel!
O apartamento estava cheio de crianas descalas e seminuas. Prximo da cozinha
estava uma mulher no judia, forte
157
e de cabelo lustroso, que voltou para Yasha o rosto salpicado de suor. Estava a
acabar de descascar uma cebola. Ao v-lo perguntou:
- Que se passa?
- Venha! Preciso de ajuda! A Magda... - E no conseguiu dizer mais nada.
A mulher seguiu-o at ao apartamento dele e comeou imediatamente a gemer. Agarrou-
se-lhe aos ombros.
- Solte-a! Solte-a! - ordenou.
Ele queria fazer o que ela lhe dizia, mas a mulher estava agarrada a ele, a chorar-
lhe ao ouvido, tendo ainda na mo a faca e a cebola. A orelha de Yasha quase foi
cortada. De repente entraram outros habitantes do prdio. Yasha viu um deles
manusear desajeitadamente a corda, erguer Magda, alargar o n e desenfiar-lho da
cabea. Todo aquele tempo ali ficou imvel. Agora estavam todos ocupados a tentar
reanim-la, fazendo-lhe rodar os braos, puxando-lhe o cabelo, borrifando-a com
gua. A cada minuto mais gente entrava. J l estava o porteiro e a mulher. Algum
saiu a correr para ir buscar um polcia. Yasha no conseguia ver a cara de Magda,
apenas o corpo mole que se entregava a toda a manipulao com a irresistente
flacidez da morte. Uma mulher beliscou o rosto do cadver e depois benzeu-se. Trs
bruxas velhas lanaram-se nos braos umas das outras e pareciam estar a conspirar
em silncio. S ento Yasha se apercebeu que do outro compartimento no vinha
qualquer som. Entrou l e deu com os trs animais mortos. Dava a impresso que
Magda os estrangulara. O macaco jazia de olhos abertos. O corvo, fechado na sua
gaiola, parecia ter sido embalsamado. O papagaio estava deitado de lado, com uma
gota de sangue seco no bico. Porque fizera ela aquilo? Certamente para evitar que
os animais dessem o alarme. Yasha puxou pela manga de algum para mostrar o que se
passara. O polcia j estava no apartamento. Ele puxou pelo livrinho de notas e
escreveu o que Yasha lhe dizia.
Havia outros que chegavam: um mdico, um militar paisana, outro polcia. Yasha
esperava ser preso momentaneamente. Queria que o levassem para a priso, mas os
polcias saram e a nica preveno que fizeram foi a de que no deveriam tocar no
cadver. O resto dos homens saiu e voltou s suas ocupaes - um era sapateiro e o
outro tanoeiro. S ficaram duas mulheres: a mulheraa que estava a descascar a
cebola e a velha bruxa de cabelo branco, com o rosto salpicado de verrugas. O
cadver fora colocado sobre uma das camas; virando-se para Yasha, a mulheraa
disse:
- Tem de ser vestida de luto, sabe. Era catlica.
158 - 159
3.
Chegou um carro funerrio e levavam Magda. Um tipo alto, de avental azul e com um
bon de oleado que mal lhe cobria o tufo de cabelos amarelos, pegou-lhe com uma mo
como se fosse uma galinha, estendeu-a numa maca e cobriu-a com uma saca grossa.
Gritou qualquer coisa a Yasha e estendeu-lhe um documento. Era ajudado por um
baixote de bigode retorcido, que parecia igualmente zangado com qualquer coisa. O
ajudante exalava um fedor a usque e esse cheiro f-lo pensar numa bebida. A dor e
o medo tinham-se-Lhe tornado insuportveis. Ouviu os dois homens a descer as
escadas. Do outro lado da porta vinham murmrios. Geralmente os parentes ocultavam
o corpo das autoridades tentando evitar a autpsia. Yasha apercebeu-se de que
deveria ter feito qualquer contacto com um padre, mas tudo se passara depressa de
mais. Ficara por ali sem fazer nada. Sabia que os vizinhos falavam dele, espantados
com o seu estranho procedimento. Nem sequer acompanhara o corpo de Magda at ao
carro funerrio; apoderou-se dele uma vergonha infantil. Se no tivesse de
enfrentar as pessoas, teria sado, mas esperou que a multido dispersasse. Naquela
altura o apartamento estava quase s escuras. Continuava com o olhar preso a um
ponto no trinco da porta, sentindo-se cercado por todos os lados, por foras
misteriosas. Atrs de si o silncio rosnava e roncava. Tinha medo de voltar a
cabea. Ali por perto esgueirava-se qualquer sombra, pronta a saltar-lhe em cima e
atac-lo com garras e dentes - algo de monstruoso e inominvel. Desde criana que
aquela presena lhe era familiar. Revelava-se-lhe em pesadelos. Ele afirmava a si
mesmo que se tratava de um produto da sua imaginao, mas, mesmo assim, no podia
negar a sua existncia. Susteve a respirao. Um tal terror s podia ser suportado
durante uns segundos.
L fora os barulhos tinham cessado e Yasha precipitou-se para a porta. Tentou abri-
la, mas ela no se moveu. "Ser que eles no vo deixar-me sair?", perguntou-se,
aterrorizado. Agarrou-se ao puxador e de repente a porta escancarou-se como que
empurrada por uma rajada de vento. Viu um vulto escuro escapar-se a correr; quase
matara um gato. O suor ensopava-lhe as roupas. Batendo com a porta atrs de si,
correu escada abaixo como se fosse perseguido. Viu o porteiro sozinho no ptio e
esperou at o homem se retirar para o seu cubculo. O seu corao palpitava mais do
que batia. Sentia um formigueiro no escalpe. Algo lhe descia rastejando pela
espinha.
160
No sentia o mesmo terror que anteriormente, mas sabia que no podia voltar mais
quele apartamento.
O porteiro fechou a porta do seu quarto e Yasha saltou o porto. Naquele momento
sentiu novamente a tal dor aborrecida no p. Manteve-se colado s paredes, pois que
o seu maior desejo era no ser visto ou pelo menos no se aperceber de que os
outros o viam. Chegou Rua Franciskaner e virou apressadamente a esquina, como o
rapazinho que se quer escapar ao cheder. Os acontecimentos das ltimas vinte e
quatro horas pareciam ter feito dele novamente um rapazinho, um rapazinho de
escola, assustado e culpado, perseguido por medos que no podia comunicar e por
laos que nenhum estranho poderia entender. Simultaneamente possua a sobriedade da
maturidade - como algum que sonha e sabe que sonha.
Embebedar-se? Haveria por ali uma taberna? Havia vrias na Rua Freta, mas ali todos
o conheciam. Por outro lado, a Rua Franciskaner era habitada s por judeus; no
havia bebidas. Lembrou-se de que havia um bar na Rua Bugay, mas como que podia l
chegar sem passar pela Rua Freta? Caminhou at Rua Nowiniarska e foi dar a uma
rua chamada Bolesc.(1) "Deveria ser esse o nome de todas as ruas", dizia para
consigo. "O mundo todo ele um grande sofrimento." Passara pela Rua Bugay e
voltava a retomar o mesmo trilho. Os transeuntes j se encostavam aos candeeiros de
rua e juntavam-se aos portes, embora ainda no fosse noite; nenhum deles, porm,
se lhe dirigiu. "Serei assim to repulsivo que nem eles se interessam por mim?",
perguntava-se. Um trabalhador, alto e usando um casaco de xadrez, um bon azul e
botins, aproximou-se. Tinha uma cara estreita e chupada, que fora em parte
devorada, e no lugar do nariz tinha um pedao de gesso negro preso por um fio. Uma
prostituta an, que mal chegava ao peito do homem, dirigiu-se a ele e levou-o.
Yasha via as pernas do homem a tremer. A rapariga no tinha mais de quinze anos.
"De que que ele teria medo?", perguntou algo dentro de Yasha, com um riso.
"Sfilis?"
Yasha chegou Rua Bugay, mas a taberna que se lembrara l ter visto desaparecera.
Teria sido fechada? Queria perguntar a algum transeunte, mas teve vergonha. "Que
que h comigo? Porque que me hei-de sentir atrapalhado como uma cabra numa horta
de couves?" Entretanto, ia procurando a taberna;
161
sabia que devia ser por ali perto e que se escondia dele. Como estava desejoso de
no ser visto, todos o espreitavam. "Ser que por aqui me conhecem?", pensava.
"Alguns deles foram com certeza ao Alhambra. No, no possvel." Murmuravam sua
volta, riam-lhe na cara. Um cozito rosnava e agarrara-se-lhe s calas. Sentia-se
envergonhado de enxotar um ser to pequeno, mas o co espumava de raiva e uivava
to alto que no parecia assim to pequeno. O Demnio, que perpetrava a sua
vingana sobre Yasha, parecia no estar ainda satisfeito. Continuava ajuntar
aborrecimento a aborrecimento. Ento e de repente Yasha viu a taberna. Estava mesmo
junto dela. Como se todos tivessem participado na brincadeira, desataram de repente
a rir. Naquele momento j ele no desejava l entrar; teria preferido outro local,
mas sentiu que no podia virar as costas e afastar-se. Isso significaria rendio.
Subiu os trs degraus, abriu a porta e foi atingido por uma lufada de calor e de
vapor. O cheirete a vodka e a cerveja misturava-se com algo de oleoso e bolorento.
Havia algum que tocava acordeo e o ambiente era agitado, balanavam-se, batiam
palmas e danavam. Parecia que ali todos eram uma grande famlia. Os olhos
turvaram-se-lhe um pouco e por momentos deixou de ver. Procurou uma mesa, mas no
havia nenhuma, nem sequer havia bancos. Sentiu-se cego e como se lhe tivessem posto
na frente, para tropear, uma bengala ou uma corda. L conseguiu chegar ao bar, mas
no conseguia furar a multido de bebedores, e at o empregado j se tinha afastado
para o outro lado do balco. Yasha meteu as mos aos bolsos procura de um leno,
mas no conseguiu encontr-lo. No conseguia mexer-se, nem para trs nem para a
frente. Era como se tivesse sido apanhado numa armadilha. Da testa corriam-lhe
pesadas gotas de suor. O desejo de beber transformara-se-lhe em repulsa. Voltou a
sentir a nusea e em frente dos olhos bailavam-lhe as centelhas de fogo: duas
enormes centelhas to grandes como carves.
- O que deseja?- perguntou algum por detrs do bar.
- Eu? - respondeu Yasha.
- Quem havia de ser?
- Queria um copo de ch - e at ele ficou surpreendido com as suas prprias
palavras. O outro hesitou.
- Isto no sala de ch!
- Ento vodka.
- Copo ou garrafa?
- Garrafa.
- De metade de meio litro, ou de meio?
162
- De meio.
- De quarenta ou de sessenta?
- De sessenta. Surpreendentemente, ningum se riu.
- Alguma coisa para comer?
- Pode ser.
- Um pastel salgado?
- Serve.
- Sente-se; j l lhe levo.
- Onde que a gente se senta?
- Onde que h-de ser?
Naquele momento Yasha descobriu uma mesa. Era como nas exibies de hipnotismo,
sobre as quais tinha lido nas revistas e que mais de uma vez dirigira.
4.
163
Despejou um pouco de vodka na mo, curvou-se e esfregou com ele o tornozelo. Bom,
de qualquer forma tarde de mais! Em seguida bebeu outro copo cheio. O lcool
subiu-lhe cabea, mas no o fez sentir-se melhor. Imaginou a cabea de Magda a
ser separada do corpo e o estmago a ser aberto. E ainda horas antes ela trouxera
uma galinha do mercado, para lhe preparar a ceia. "Porque teria ela feito aquilo?
Porqu?", gritava-lhe algo dentro de si. J de outras vezes a abandonara. Ela
sabia-Lhe todos os segredos. Fora tolerante para com ele. Era quase inacreditvel
que ainda na vspera, quela mesma hora, ele estivesse de boa sade e a planear a
execuo de saltos mortais no arame e tendo ainda Magda e Emilia. A catstrofe
atingira-o como a Job. Um passo em falso e perdera tudo... tudo...
Agora s restava uma sada. Era tempo de ver o que havia do outro lado da cortina.
Mas como? Lanar-se ao Vstula? Seria terrvel para Esther. No podia abandon-la.
O mnimo que podia fazer era proporcionar-lhe novo casamento... Mal conseguiu
evitar o vmito. Sim, a Morte era a sua dona. A vida lanara-o ao vento.
Pegou na garrafa, mas no conseguiu beber mais. Ali ficou sentado, com as plpebras
cerradas como um cego. O acordeo no parava de tocar a mazurca polaca. O barulho,
na taberna, era agora ainda maior. J se decidira a morrer, mas, apesar disso,
precisava de um local onde passar aquela noite. Havia ainda algo em que pensar. Mas
onde poderia ir com o p magoado? Se ao menos fosse de dia! quela hora estava tudo
fechado. Um hotel? Qual? E como poderia ir at l, com o p naquele estado? Era
pouco provvel encontrar uma carruagem naquelas imediaes. Quis calar o sapato,
mas este desaparecera-lhe. Procurou-o, tacteando com o dedo do p, mas no estava
l. Algum o roubara? Abriu os olhos e olhou em volta os olhos esbugalhados e os
rostos corados. As mos acenavam, os corpos enovelavam-se, braos lnguidos
pareciam querer lutar; por todo o lado se abraavam e beijavam. Os criados, de
aventais encardidos, andavam de um lado para o outro transportando comida e vodka.
O acordeonista tocava, com o cabelo negro e o bigode espesso quase tocando o
instrumento, os olhos bem fechados e com uma expresso arrebatada. O corpo estava
vergado para o cho, salpicado de serradura. Havia certamente outra sala na
taberna, porque se ouvia o som de um piano. Um caracol de vapor circundava o
candeeiro de nafta. Em frente de Yasha estava sentado um homem enorme, de pele
bexigosa; tinha um bigode comprido e um nariz pequeno e borbulhento e uma cicatriz
na fronte. No parava de fazer
164 - 165
5.
Yasha pagou ao cocheiro e disse-lhe que esperasse. Tentou convencer o empregado dos
quartos a alugar-lhe um quarto, apesar de no trazer credenciais, mas o baixote que
se encontrava por de trs do balco foi inflexvel.
- No se pode fazer isso. estritamente proibido.
- E se uma pessoa perder os documentos? Tem de morrer? O empregado encolheu os
ombros
- So as ordens que tenho.
"Pensar coisa que eles no fazem", disse algo l dentro de Yasha. Era assim que o
seu pai classificava as leis russas.
Yasha saiu a tempo de ver ainda o trem a afastar-se; algum lhe levara o carro.
Sentou-se na soleira da porta de um edifcio ali prximo. Era a segunda noite
consecutiva que andava toa. "As coisas esto a passar-se rapidamente", pensou.
"Talvez amanh noite j eu esteja na sepultura. Dormirei no tmulo." Ali havia
tambm transeuntes. Do outro lado avistou uma mulher vestida de preto, que usava
uns brincos compridos. Parecia uma dona de casa de meia-idade, mas lanou-lhe um
olhar de prostituta. Certamente era uma das no registadas, daquelas que se do nos
ptios e nos portais. Ela enfrentou-o directamente, como que tentando hipnotiz-lo.
O olhar dela colou-se ao dele num ar suplicante. Parecia dizer-lhe: "J que estamos
os dois nos mesmos apuros, porque no havemos de nos aproximar?". A luz do
candeeiro de rua banhava-a de amarelo e Yasha distinguia-lhe as rugas do rosto, o
rouge que espalhara nas faces e a pintura em torno dos olhos grandes e escuros.
Faltou-lhe at a fora para se apiedar - s conseguiu sentir espanto. "So ento
estas as formas por que agem os poderes do ser", pensou; "brincam com um homem e
depois pem-no de parte como desperdcio. Mas porqu ele, de entre todos? Porqu
esta mulher? Em que que ela era pior do que aquelas senhoras emproadas que se
sentavam nos camarotes da pera e que olhavam o pblico pelos lorgnons? Seria tudo
devido a sorte? Se assim era, a sorte Deus. Mas que seria a sorte? Seria o
universo a sorte? Se no era o universo, poderia ao menos ser uma parte dele?"
Viu um trem aproximar-se e fez sinal ao cocheiro. O trem parou e ele subiu. A
mulher do outro lado da rua olhou-o com ar de reprovao. Os seus olhos pareciam
dizer a Yasha:
167
168
"S o facto de eu coxear lhe despertaria suspeitas." Embora esmagado pela angstia,
Yasha no conseguia libertar-se do orgulho e da vaidade. "A melhor soluo seria a
morte! Acabo com tudo. E, se calhar, esta noite mesmo!"
De repente sentiu-se mais calmo. Tinha decidido. Era como se tivesse deixado de
pensar. O trem voltou para a Rua Nizka e dirigiu-se novamente para o Vstula, mas
Yasha no se lembrava qual era a casa. Tinha a certeza de que tinha um tapume com
um porto, mas no se avistava qualquer ptio parecido. O cocheiro fez parar o
trem.
- Talvez seja perto da Rua Okopova.
- Sim, talvez.
- No posso dar a volta.
- E se eu descesse aqui e procurasse? - disse Yasha, consciente de que isso era um
disparate; cada passo significava um enorme esforo.
- Se quiser.
Pagou e desceu a custo. A perna magoada adormecera na articulao do joelho. S
depois de o trem partir Yasha se apercebeu de como ali estava escuro. Havia apenas
alguns candeeiros de rua cheios de fumo, situados a grande distncia uns dos
outros. A rua no era pavimentada, era uma confuso de covas e montculos. Yasha
olhou em volta, mas no conseguia ver nada. Parecia uma rua de aldeia. Se calhar,
nem sequer era a Rua Nizka. Podia ser a Rua Milia ou a Rua Stavka. Procurou os
fsforos, embora soubesse que no tinha nenhuns na algibeira. Coxeou at Rua
Okopova. Ter ido ali, fora uma loucura. Acabar com tudo? Como que se faria isso?
No podemos envenenar-nos ou enforcar-nos no meio da rua. Ir para o Vstula?... mas
esse ficava a verstas(1) de distncia. Do cemitrio soprava uma brisa. De repente
deu-lhe vontade de rir. Alguma vez algum se vira em semelhante dilema? Coxeou at
Rua Okoprova, mas a casa que procurava desaparecera. Ergueu o olhar e viu um cu
negro, cheio de estrelas, que parecia apenas preocupar-se com o seu celestial ser.
Quem que se importava com um mago terreno que se deixara cair na armadilha? Yasha
mancou at ao cemitrio. Aquelas vidas tinham terminado, aqueles tinham as contas
saldadas. Se encontrasse um porto e uma cova aberta deitava-se nela e faria a si
mesmo um funeral judeu condigno.
Que mais lhe restava?
169
6.
Contudo, voltou pelo mesmo caminho. J se habituara dor no p. Que dilacere, que
queime, que inche! Alcanou a Rua Smotcha e prosseguiu. De repente viu a casa. L
estava ela: o tapume, a entrada. Tocou no porto e ele escancarou-se, revelando as
escadas que conduziam ao apartamento. Os habitantes estavam a p; via-se luz de
candeeiro atravs da janela. Bom, o destino no quer que eu morra ainda! Sentia-se
envergonhado de entrar sem ter sido convidado, a coxear e desgrenhado, mas disse
para consigo, dando-se coragem: "Afinal, coisas destas j tm acontecido. No me
ho-de pr fora. E, mesmo que o faam, a Zeftel ir comigo. Ela ama-me". A luz do
candeeiro a cintilar na escurido incutiu-lhe nova vida. "Ho-de fazer algo pelo
meu p. Talvez se salve." Pensou em chamar por Zeftel, para os preparar para a sua
chegada, mas considerou que era um disparate. Foi at s escadas a coxear e comeou
a subir. Fazia todo o barulho que podia para anunciar a sua presena. J tinha
preparado a frase de entrada: "Um visitante inesperado! Aconteceu algo de muito
estranho". Mas os que l estavam dentro pareciam demasiado embrenhados no que
estavam a fazer para se darem conta do que se passava l fora. "Bom, temos de
passar por tudo", disse-se Yasha, para se consolar. Que que estava gravado
naquele anel?... "Tambm isto passar." Bateu levemente porta, mas no obteve
resposta. Pensou que estariam na outra sala. Bateu com mais fora, mas no ouviu
rudo de passos. Ali ficou, envergonhado, acabrunhado, pronto para se pespegar do
ltimo vestgio de orgulho que lhe restava. "Que isto me sirva de expiao dos meus
pecados", murmurou uma voz dentro de si. Bateu mais trs vezes, com muita fora,
mas ningum apareceu. Esperou e escutou. Estaro a dormir ou qu? Girou o puxador e
a porta abriu-se. Na cozinha havia um candeeiro aceso. Zeftel estava deitada na
cama de ferro e a seu lado estava Herman. Estavam ambos a dormir. Herman ressonava
profunda e estrondosamente. Todas as vozes cessaram dentro de Yasha. Ali ficou
espiando e afastou-se em seguida para o lado, com medo que o casal abrisse os
olhos. Assaltou-o ento uma vergonha como nunca sentira... uma vergonha, no pelo
casal, mas por si: a humilhao daquele que descobre que, apesar de toda a sua
sabedoria e experincia, no passou de um tolo.
Mais tarde seria incapaz de se lembrar quanto tempo ali estivera: um minuto? Vrios
minutos? Zeftel estava voltada para a parede, com um seio nu, o cabelo desalinhado,
170
Eplogo
1.
Trs anos tinham passado. Na sala da frente da casa de Esther, ela e mais duas
costureiras acabavam com certa algazarra um vestido de noiva. O vestido era to
volumoso e tinha uma cauda to grande que ocupava toda a mesa de trabalho. Esther e
as raparigas cirandavam por ali como anezinhos que construssem uma armadura para
um gigante. Uma das raparigas alinhava e a outra cosia uma fita. Esther, empunhando
um ferro, ia passando as rugas entre os debruns, experimentando constantemente o
ferro com o dedo. De vez em quando salpicava com gua de um jarro o stio que ia
passar. Embora no transpirasse facilmente, mesmo quando estava calor, tinha a
fronte coberta de gotas de suor. Que maior desastre podia haver do que fazer um
buraco com o ferro num vestido de noiva? Uma mancha castanha e todo o trabalho fora
em vo. Contudo, os olhos negros de Esther piscavam. Apesar do pulso fino e da mo
pequena, ela segurava firmemente o ferro. No era das que chamuscavam um vestido.
A toda a hora olhava pela janela que dava para o quintal. A pequena construo de
tijolo ou a priso, como Esther a achava, ali estava havia mais de um ano, mas
ainda no se habituara a ela. Por vezes, esquecia por momentos o que se passara e
pensava que estavam na Festa dos Tabernculos e que l fora tinham erguido um
caramancho. Geralmente, mantinha corrida a cortina daquela mesma janela, mas
naquele dia precisava da luz do dia. Aqueles trs anos tinham envelhecido Esther. A
pele sob os olhos tinha-se encarquilhado e o rosto largo adquirira uma cor
rubicunda de fruta demasiado madura.
172
Na cabea, como sempre, usava leno, mas os cabelos que se viam eram agora mais
cinzentos do que negros. S os olhos se tinham mantido jovens e brilhavam como
cerejas negras. Havia trs anos que dentro de si carregava um corao pesado.
Naquele dia no estava menos pesado, mas, mesmo assim, ela brincava com as
ajudantes, trocando com elas as habituais piadas sobre o noivo e a noiva. As
raparigas olhavam umas para as outras com ar entendido; o atelier delas j no era
um atelier vulgar. Era impossvel ignorar por um momento a presena da pequena casa
sem porta com a pequenssima janela, por trs da qual se sentava Yasha, o
Penitente, como era conhecido.
O aparecimento daquele fenmeno despertara grande excitao na cidade. O rabi, Reb
Abraham Eiger, mandara chamar Yasha e prevenira-o de que no fizesse o que
planeara. Era verdade que um ermita na Litunia se fizera emparedar, mas os judeus
piedosos eram contra esse gnero de coisas. O mundo fora criado para o exerccio do
livre arbtrio e os filhos de Ado tinham de se debater constantemente entre o bem
e o mal. Para qu emparedar-se? O significado da vida residia na liberdade e na
abstinncia do mal. O homem privado do livre arbtrio era como um cadver. Mas
Yasha no se deixava dissuadir facilmente. No seu ano e meio de penitncia
aprendera muito. Tinha contratado um explicador para lhe ensinar o Mishna,(1) o
Agada(2) do Talmude, o Midrash(3) e at o Sohar(4) e arranjou para apresentar ao
rabi uma variedade de prottipos - santos que se tinham submetido a um retiro com
medo de no resistirem tentao. No tinha um santo arrancado os olhos, para no
olhar para a sua amante romana? No se tinha votado ao silncio um judeu de
Shebreshin, com medo de murmurar alguma palavra caluniosa? No simulara cegueira,
durante trinta anos, um msico de Kovle, para evitar olhar a mulher do prximo? As
leis severas no eram mais do que barreiras para evitar que o homem pecasse. Os
jovens que assistiram aos debates de Yasha com o rabi ainda falavam deles. Custava
acreditar que aquele charlato, aquele libertino, tivesse aprendido tanto da Tora
num ano. O rabi discutia com ele de igual para igual. Yasha permanecera firme na
sua deciso. Por fim, o rabi colocara a mo sobre a cabea de Yasha e abenoara-o.
*1. Lei e prescries religiosas escritas em hebraico. (N. da T.)
2. Hino final das trs oraes dirias. (N. da T)
3. Prdica do servio divino em relao com a leitura da Tora. (N. da T.)
4. Obra principal da cabala, escrita em aramaico. (N. da T.)
173
174
de madeira e uma janela que se podia fechar com postigos por dentro. Os curiosos
continuaram a chegar at aparecerem as chuvas; ento o nmero decrescera. Todo o
dia os postigos de dentro permaneciam fechados. Esther mandara arranjar a sebe em
torno da casa, para afastar os estranhos. Depressa se viu que aqueles que tinham
apostado que Yasha no ficaria emparedado mais do que uma semana ou um ms, tinham
perdido a aposta. Passou um Inverno, um Vero e outro Inverno, mas Yasha, o Mago,
agora conhecido por Rebjacob, o Penitente, permanecia na sua priso auto-imposta.
Esther levava-lhe comida trs vezes por dia: po com papas de aveia, batatas com
casca e gua fresca. Trs vezes por dia, ele desistia das suas meditaes por ela e
falava-lhe durante alguns minutos.
2.
L fora estava um dia de sol e de calor, mas a cela de Yasha era fria e escura,
ainda que pela janela com postigo entrassem raios de sol e uma brisa quente. De vez
em quando Yasha abria o postigo e uma borboleta ou um abelho entravam. At ele
chegavam sons: o trinar dos pssaros, o mugido de uma vaca, o grito de uma criana.
Naquela tarde no precisara de acender a vela. Sentou-se na cadeira junto da
mesinha, lendo atentamente as Duas Tbuas da aliana. Houvera dias no Inverno em
que quisera deitar abaixo as paredes e libertar-se do frio e da humidade.
Sobreviera-lhe uma tosse forte. Os membros eram dilacerados com dores. Urinava com
demasiada frequncia. Durante a noite enrolava-se, vestido, debaixo da pelica e do
cobertor que Esther lhe passara pela janela, e mesmo assim no conseguia aquecer.
Do cho saa um frio cortante que o enregelava at aos ossos. Muitas vezes, sentia-
se como se estivesse j na sepultura, e, por vezes, desejara at a morte. Agora era
novamente Vero. direita da cela crescia uma macieira e ouvia o barulho das
folhas. Entre os ramos, uma andorinha fizera ninho e todo o dia por ali adejava,
trazendo no bico caules e lagartas para os seus filhotes. Yasha conseguiu enfiar a
cabea pela janela e avistou os campos na sua frente, o cu azul, o telhado da
sinagoga, o pinculo de uma igreja. Bastaria tirar alguns tijolos e, sabia-o,
poderia esgueirar-se pela janela. Mas o facto de pensar que podia abrir caminho
para a liberdade a qualquer momento que quisesse
175
amortecia-lhe o desejo de deixar a cela. Sabia bem que do outro lado da parede
espreitava a inquietao, a luxria e o medo do dia seguinte.
Enquanto ali se mantinha sentado, estava protegido de transgresses mais graves.
At as suas preocupaes eram diferentes das l de fora. Sentia-se como se tivesse
voltado a ser um feto nas entranhas de sua me e, mais uma vez, a luz a que o
Talmude se refere que brotava da sua cabea enquanto um anjo lhe ensinava a Tora.
Sentia-se livre de todas as necessidades. A sua comida custava apenas alguns
groschen dirios. No precisava nem de roupas, nem de vinho, nem de dinheiro.
Quando se lembrava das despesas que fazia quando estava em Varsvia ou quando
viajava pelas provncias, ria-se para dentro. Por muito que tivesse ganho naquela
altura, no lhe chegava. Sustentara uma autntica coleco de animais. Precisara de
ter um armrio cheio de fatos. Constantemente se entregava a novas despesas e
ficara em dvida para com Wolsky; pedira dinheiro a juros, a usurrios em Varsvia
e Lublim. Constantemente assinara promissrias, procurando a quem as endossar,
comprando prendas e devendo a toda a gente. Atolando-se nas suas paixes, cara
numa rede que cada vez mais o apertava. O trabalho no arame no lhe fora
suficiente. Continuava a tentar cada vez truques mais difceis que o levariam
certamente destruio. Dera em ladro - por uma unha negra escapara priso.
Ali, e na sua solido, tudo o que ficara l fora caa com a folhagem a que os
cabalistas chamavam "os espritos do mal". Cortara a rede e abrira caminho, como se
o fizesse faca. Saldara as suas contas com um s golpe. Esther conseguia ganhar o
seu po. Ele pagara todas as dvidas: dera a Elzbieta e ao filho Bolek a parelha e
a carroa; deixara a Wolsky todo o recheio do apartamento da Rua Freta, bem como o
seu material, fatos e toda a parafernlia. Agora, Yasha nada mais possua alm da
camisa que trazia no corpo. Sim, mas seria aquilo suficiente para o redimir dos
pecados? Poderia resgatar-se do mal que fizera apenas por reduzir a sua carga?
S ali, no silncio da sua cela, conseguia Yasha meditar na extenso da sua
fraqueza: o nmero de almas que condenara tortura, loucura, morte. No era um
assaltante de estrada governando a vida na floresta, mas, apesar de tudo, tinha
assassinado. Que diferena fazia vtima a forma como era assassinada? Poderia ser
absolvido perante um juiz mortal (tambm ele mau), mas o Criador no podia ser
subornado, nem enganado. Yasha destrura no inocentemente, mas de propsito: da
campa, Magda chamava-o. E no era s daquele horrvel caso
176
que era culpado. Naquele momento sabia quais eram todos eles. Ainda que
permanecesse na cela uma centena de anos, no se redimiria de toda a sua
iniquidade. S o arrependimento no chega para apagar um tal pecado mortal. A
absolvio s se obtm pedindo perdo vtima e recebendo-o dela. Se algum deve
um s groschen que seja a quem vive do outro lado do mundo, tem de localizar o seu
credor e saldar a dvida. Assim estava escrito em todos os livros sagrados. E em
cada dia Yasha se lembrava de algum mal por que fora responsvel. Violara todas as
leis da Tora, infringira quase todos os mandamentos. E enquanto praticava aqueles
actos sentira-se um homem digno, capaz de acusar os outros. Como que o
desconforto que naquele momento sentia se comparava com o sofrimento que causara?
Com mais ou menos sade, ainda estava vivo. At o p se curara e no ficara
aleijado. Sabia que o verdadeiro castigo s lhe seria aplicado no outro mundo; l
que se tem de prestar contas de cada acto, de cada palavra, de cada pensamento. S
restava uma consolao: Deus misericordioso e bom, e, no cmputo final, o bem
deve triunfar sobre o mal. Mas, que era o mal? Estudara durante trs anos o texto
da cabala com os seus explicadores: j sabia que o mal era simplesmente a demisso
de Deus de criar o mundo, de forma a poder ser chamado de Criador e a ter piedade
de todas as criaturas. Tal como um rei tem de ter os seus sbditos, o Criador tem
de criar e um benfeitor tem de ter os seus beneficiados. Neste sentido, o Senhor do
universo dependia dos seus filhos. Mas no chegava gui-los com a Sua mo
misericordiosa. Tinham de aprender por si a abrir caminho pela estrada do bem e
pelo seu livre arbtrio. O mundo celestial esperava isso deles. Os anjos e serafins
desejavam ardentemente que os filhos de Ado fossem dignos, rezassem com humildade,
dessem com compaixo. De facto, cada boa aco melhora o universo, cada palavra da
Tora tecia coroas a Deus. Pelo contrrio, a mais insignificante transgresso ecoa
no mundo etreo e retarda o dia da libertao.
Tempos havia, mesmo dentro da sua cela, em que a f de Yasha vacilava. Enquanto lia
os livros sagrados, assaltavam-no pensamentos aborrecidos: "Como que posso ter a
certeza de que isto a Verdade? Se calhar, no existe Deus. A Tora pode ser
inveno do homem. Talvez me esteja a torturar em vo". Ouvia distintamente o
Esprito do Mal discutir com ele sobre as delcias passadas e a incit-lo a voltar
aos seus antigos desmandos. De cada vez Yasha tinha de logr-lo de maneira
diferente. Quando era mais fortemente pressionado,
177
fingia concordar com o seu adversrio quanto ao facto de dever regressar ao mundo,
mas adiava depois o momento da libertao. Outras vezes respondia com a seguinte
rplica: "Digamos apenas, argumentando por argumentar, que Deus no existe,
Satans, mas que as palavras que em Seu nome so pronunciadas no deixam por isso
de ser correctas. Se a sorte de um homem depende do infortnio de outros, ento no
existe sorte para ningum. Se Deus no existe, ento o homem tem de se comportar
como um deus". Uma vez Yasha perguntou a Satans: "Ento quem criou o mundo? De
onde provenho eu? E tu? Quem faz cair a neve e soprar o vento, respirar os meus
pulmes, o meu crebro pensar? De onde provm a Terra, o Sol, a Lua e as estrelas?
Este mundo, com a sua ancestral sabedoria, tinha de ser o resultado de alguma mo.
Descortinamos a sabedoria de Deus, ento porque no acreditar que por detrs dessa
sabedoria se esconde a misericrdia do Criador?".
Dias e noites se passavam naquelas discusses, levando Yasha beira da loucura. De
vez em quando o Demnio retirava-se e a f de Yasha era restaurada, e ento via
realmente Deus e sentia a Sua mo. Comeava a entender porque era necessrio o bem,
saboreava a doura da orao, o delicioso sabor da Tora. Cada dia se lhe tornava
mais claro que os livros sagrados em que estudava conduziam virtude e vida
eterna, apontavam o caminho da inteno da criao, enquanto tudo o que fica para
l deles o mal - o desprezo, o crime, o roubo. No havia meio termo. Um s passo
fora do caminho de Deus e era-se precipitado irremediavelmente no abismo.
3.
178 - 179
180
4.
Uns atrs dos outros, l chegavam com os seus problemas. Falavam com Yasha, o
Mgico, como se ele fosse Deus:"A minha mulher est doente. O meu filho tem de ir
para a tropa. Um concorrente est a cobrir a minha oferta por uma quinta. A minha
filha enlouqueceu...". Um homenzito seco tinha na testa um tumor do tamanho de uma
ma. Uma rapariga tinha soluos havia uma semana e no conseguia parar: noite,
mal a Lua despontava, parecia um co a uivar. Claro que havia nela um esprito,
porque entoava cnticos e oraes com a voz de um solista. De vez em quando falava
em polaco ou em russo, lnguas que no lhe eram conhecidas e s vezes tinha vontade
de procurar um padre para se converter. Yasha rezava por todos. Mas sempre
sublinhava que no era um rabi, mas apenas um judeu vulgar e ainda por cima
pecador. Os que imploravam respondiam-lhe repetindo os pedidos. Uma mulher
abandonada, cujo marido desaparecera havia cinco anos e que o procurara por toda a
Polnia, gritava to alto que Yasha teve de tapar os ouvidos. Uivava de tal maneira
casinha, que parecia apostada em demoli-la com a sua profunda amargura. O seu
hlito cheirava a cebola e a dentes podres. Aqueles que estavam atrs dela na bicha
pediam-lhe que fosse mais breve nas suas queixas, mas ela respondia-lhes de punhos
fechados e continuava a gritar e a gemer. Finalmente foi arrastada. "Canalha,
chulo, assassino!", gritava para Yasha.
Um jovem triste confessou que os demnios o atormentavam, dando-lhe ns na sua
tnica franjada, entornando a gua que preparara para as suas ablues matinais,
pondo-lhe na comida
181
punhados de sal e pimenta, bem como vermes e excremento de cabra. Sempre que
tentava satisfazer as suas necessidades corporais, havia demnios-fmeas que o
impediam. O jovem tinha cartas de rabis e de outras pessoas idneas que comprovavam
o que ele dizia. Havia tambm sofistas cultos que procuravam Yasha para discutir
religio e faziam-lhe todo o tipo de perguntas impossveis. Jovens vadios para
troar dele e para o desacreditar com citaes pouco comuns do Talmude ou com
palavras em caldeu. Decidira receber as pessoas s durante duas horas por dia, mas,
como tudo decorria, acabava por ficar de p janela desde a aurora at ao
anoitecer. As suas pernas ficavam to cansadas que caa no catre de palha e dizia
as oraes da noite sentado.
Um dia veio v-lo Schmul, o msico, companheiro de bebedeira de Yasha. Schmul
queixou-se de que lhe doa tanto a mo que j no podia tocar o seu violino. Mal
pegava no instrumento comeava-lhe a dor. A mo com que carregava nas cordas
tornara-se-Lhe rgida e sem circulao, e mostrou a Yasha as pontas dos dedos
amarelas e encarquilhadas. Schmul queria ir para a Amrica. Trazia cumprimentos dos
ladres de Piask. Elzbieta morrera. Bolek estava na priso de Yanov, Chaim-Leib no
albergue de mendigos. O cego Mechl deixara de ver do seu olho so. Berish Visoker
mudara-se para Varsvia.
- Lembras-te da pequena Malka? - perguntou Schmul.
- Sim, como est ela?
- O marido dela morreu tambm - disse Schmul. - Foi espancado at morte na
priso.
- E onde est ela?
- Casou com um sapateiro de Zakelkow. Mal esperou os trs meses.
- Ah, foi?
- Talvez te lembres da Zeftel? A rapariga que era casada com Leibush Lekach - disse
Schmul, segredando.
Yasha corou.
- Sim, lembro-me dela.
- agora uma senhora em Buenos Aires. Casou com um tal Herman. Ele deixou a mulher
por causa dela. So donos de um dos maiores bordis.
Yasha calou-se por um momento.
- Como que sabes? - perguntou.
- O Herman vem a Varsvia para levar carregamentos
182
de mulheres. Conheo um msico que est de boas relaes com a irm dele. Ela vive
na Rua Nizka e dirige todo o negcio.
- A srio?
- E tu? verdade que s um rabi?
- No, no .
- Toda a gente fala de ti. Dizem que ressuscitas os mortos.
- S Deus pode faz-lo.
- Primeiro Deus, depois tu...
- No digas disparates.
- Quero que digas uma orao por mim.
- Que o Todo-Poderoso te ajude.
- Yashale, olho-te e no te reconheo. No consigo acreditar que s mesmo tu.
- Envelhecemos.
- Porque que fizeste isto? Porqu? -J no conseguia respirar.
- Bom, e aqui mais fcil? Penso em ti... penso em ti dia e noite.
A chegada de Schmul dera-se noitinha. Fora a prpria Esther que o anunciara.
Estava uma noite quente de Vero. Havia Lua e o cu estava cheio de estrelas.
Ouvia-se o coaxar das rs e de vez em quando uma vaca a mugir. Os grilos cantavam.
Os dois velhos companheiros olhavam-se, cada um do seu lado da janela. A barba de
Yasha tornara-se quase branca e havia manchas douradas nos seus olhos. Debaixo do
solidu saam-lhe dois caracis laterais despenteados. Tambm as patilhas de Schmul
estavam salpicadas de branco e tinha o rosto chupado. Foi a sua vez de falar e
disse em tom lamentoso:
-A verdade que estou farto de tudo. Toco aqui e acol. Uma marcha de casamento,
uma dana de amanhecer. Os cmicos dos casamentos contam sempre as mesmas piadas,
velhas e gastas. Por vezes, no meio das coisas, sinto vontade de fugir...
- Para onde?
- Nem eu sei. Talvez para a Amrica. Todos os dias morre mais algum. Sempre que
abro os olhos pergunto: "Yentel, quem que morreu hoje?". As amigas dela trazem-
lhe as notcias logo de manh. Logo que ouo dizer quem foi, sinto uma dor no
corao.
- Bom, e na Amrica no morre gente?
- L no conheo tanta gente.
- S morre o corpo. A alma continua a viver. O corpo como uma roupagem. Quando a
roupa fica suja ou se rompe posta de lado.
183
5.
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"Quo bons so os Teus princpios!" "Oh, Deus, a alma que me deste pura; Tu a
criaste; Tu a formaste; Tu a conservas em mim; a Tua vontade ma tirar, mas a Tua
vontade ma devolver depois." Ps ento o xaile de orao e os filactrios. Graas
a Deus que Yasha no estava encerrado numa priso a srio. Ali, na sua cela, podia
rezar alto e estudar a Tora. A poucos passos tinha a sua dedicada mulher. Judeus
importantes, netos de mrtires ou de santos procuravam o seu conselho e a sua
bno como se ele fosse um rabi. Embora tivesse pecado muito, Deus em toda a sua
piedade no o deixara morrer em pecado. O destino decidira que ele deveria cumprir
penitncia. Poderia existir maior benevolncia? Que mais podia um assassino
esperar? Como que um mortal o julgaria?
Depois do "Escuta Israel!", ofereceu as Onze Bnos: "Sim, no deixas de
ressuscitar os mortos!"; parou para meditar. Sim, um Deus moldava os flocos de
neve, formava um corpo de homem a partir do smen, controlava o Sol, a Lua, os
cometas, os planetas e as constelaes, tambm era capaz de ressuscitar os mortos.
S os loucos negariam uma coisa destas. Deus omnipotente. Essa omnipotncia
tornava-se cada vez mais evidente de gerao em gerao. Coisas que outrora tinham
parecido impossveis a Deus, eram agora feitas pelo homem. Toda a heresia se
baseava no pressuposto de que o homem sbio e Deus tolo; que o homem era bom e
Deus mau; que o homem est vivo e Deus morto. Logo que se abandonam estes maus
pensamentos, escancaram-se os portes da verdade. Yasha inclinava-se, batia no
peito, baixava a cabea. Ao abrir os olhos, deu com Esther janela. Os olhos dela
sorriam. Trazia uma caarola de onde saa uma nuvem de vapor. Como j tinha acabado
as Onze Bnos, fez-lhe um sinal de cabea e cumprimentou-a. Todo o pensamento
amargo o abandonara. Sentia-se novamente cheio de amor. Parecia que Esther lhe
detectara isso no rosto dele. No fim de contas, o homem capaz de julgar. V tudo,
se decidir ver.
Esther trouxe-lhe uma carta com a comida. O sobrescrito estava amachucado. Trazia
escrito o nome de Yasha e o da cidade. No trazia nem rua, nem nmero.
Tirou os filactrios e lavou as mos. Esther trouxera-lhe arroz e leite quente. Ele
comeu mesa, pondo de lado a carta que decidira ler s depois do pequeno-almoo.
Aquela meia hora pertencia a Esther. Ela ali ficava de p, olhando-o enquanto ele
comia. Temia que o refro fosse o mesmo de sempre: a sua sade, o facto de
estar a matar-se, a arruinar a vida, mas... no... naquela manh ela no se
entregou s queixas habituais.
Em vez disso, sorriu-lhe maternalmente e falou-lhe das encomendas que recebera,
tagarelou sobre o atelier e as costureiras, contou-lhe o projecto que tinha de
mandar pintar a casa para a Pscoa. Ele no queria comer o arroz todo, mas Esther
insistiu, jurou que no se movia dali enquanto ele no comesse a ltima colherada.
Ele sentiu as foras invadirem-lhe novamente o corpo. O leite que estava a beber
vinha da sua prpria vaca, o arroz fora cultivado algures na China. Centenas de
mos tinham trabalhado para lhe trazer a comida at boca. Cada gro de arroz
continha em si os poderes ocultos do cu e da terra.
Depois de ter acabado o arroz e o caf com chicria, abriu o sobrescrito. Deitou um
rpido olhar assinatura e os seus olhos toldaram-se. Sentiu um misto de alegria e
dor. Emilia escrevera-Lhe. Ento Emilia estava viva! Mas no comeou logo a ler,
ofereceu primeiro a sua orao a Deus. Depois enxugou os olhos com um leno e
comeou:
Meu querido Yasha (ou deverei dirigir-me a ti como Rabi Jacob?): abri esta manh o
Courier Poranny e vi o teu nome - pela primeira vez ao fim de trs anos. Foi tal a
surpresa que no consegui ler mais. O meu primeiro pensamento foi o de que estarias
novamente a actuar - aqui ou no estrangeiro -, mas depois, avidamente, li todo o
artigo e toda eu fiquei desolada e inerte. Lembrei-me de que muitas vezes
discutramos religio e que sempre exprimiste opinies que eu tinha por destas,
uma crena em Deus sem dogmas nem revelaes. Depois de nos deixares to
subitamente, dessa forma desusada, pensei muitas vezes que isso era a prova de como
uma f sem disciplina pouco pode pr uma pessoa em crise espiritual. Desapareceste
sem deixar rasto. Sumiste-te da vista, como uma pedra na gua, como se costuma
dizer. Muitas vezes te escrevi cartas mentalmente. Quero dizer-te, antes de mais,
se esta carta te chegar mo, que aceito todas as culpas. S depois de teres
partido me apercebi de quo mal me tinha portado. Sabia que tinhas mulher.
Arrastei-te para este caso amoroso, por isso sou moralmente responsvel. Quis
dizer-te isto vezes e vezes sem conta, mas estava convencida de que tinhas ido para
a Amrica, ou Deus sabe para onde.
A histria do jornal de hoje, que descreve como te emparedaste e te tornaste um
santo e como os homens e mulheres judeus esperam tua janela por uma bno,
causou-me uma impresso indelvel. No consegui continuar a ler por causa das
lgrimas. Muitas vezes chorei por ti, mas desta vez eram lgrimas de alegria. J
doze horas passaram e agora aqui estou
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Temos agora um telefone em casa, e vrios amigos que sabiam da nossa amizade
telefonaram-me. O prprio professor Rydzewsky sugeriu que te escrevesse e manda-te
os seus melhores cumprimentos, embora no te conhea. A Halina ficou exultante por
saber que ests vivo e vai escrever-te em breve... uma longa carta, segundo ela
diz. Que Deus te proteja. Tua eternamente dedicada,
Emilia.
Data da Digitalizao