Tese Dout SD Final 23.10.10.paginada
Tese Dout SD Final 23.10.10.paginada
Tese Dout SD Final 23.10.10.paginada
1
Ab alio expectes, quod alteri feceris
2
Desta construção, participaram pessoas e entidades, às quais expresso aqui o meu
profundo agradecimento.
À Sandra e ao Pedro.
3
RESUMO______________________________________________________________
A tese, elaborada sob orientação da Sra. Professora Doutora Lucília Nunes, inclui um
enquadramento apriorístico do estudo (Parte I), onde se identifica o conhecimento atual
na área da decisão ética de enfermagem, se sintetiza a ancoragem teórica de referência e
se situa o campo epistemológico escolhido. Ancoramo-nos em Aristóteles, Kant e Paul
Ricoeur quanto à decisão ética e em Lucília Nunes e Margarida Vieira na ligação da
ética à enfermagem. Tendo em conta o contexto problemático e metodológico do
estudo, situamo-nos no pos-modernismo enquanto campo epistemológico de referência.
A uma clarificação da metodologia utilizada do estudo (Parte II), segue-se a
apresentação dos resultados na Parte III. A parte IV é destinada à teorização da decisão
ética de enfermagem, discutindo os resultados do estudo com os referenciais teóricos
adotados.
4
Como principais conclusões, relevamos a definição do conceito de problema ético de
enfermagem, enquanto incerteza face à escolha das intervenções a realizar pelo
enfermeiro, a natureza não processual da construção da decisão ética de enfermagem e
uma predominância da utilização de fundamentos éticos para esta decisão. Como
propostas futuras, este estudo sugere o aprofundamento da investigação na área de
ligação entre a decisão clínica e a decisão ética de enfermagem.
5
ABSTRACT___________________________________________________________
This thesis resulted from a study conducted for the purpose of obtaining a doctoral
degree in nursing at Catholic University. It focuses on the ethical decision in nursing,
defining the concept of nursing ethical problem by setting out the stages of decision
making and ethical meaning the grounds used by nurses in their professional action.
The study explores two research problems, namely what constitutes an ethical problem
in clinical nursing and how nurses construct the ethical choice to solve these problems.
These problems resulted in three research questions: what constitutes ethical issues in
nursing; how nurses construct the decision nursing ethics and finally, what are the
grounds used by nurses in their clinical practice, to support the construction of ethical
decision nursing. The research questions formulated led to three goals, namely to define
the concept of ethical issues in nursing, to describe the construction of nursing and
ethical decision also means building the foundations of ethical decision nursing. For
these goals drew up a qualitative study, exploratory and descriptive, using the interview
as a method of data collection and use of content analysis to the analysis.
The thesis, prepared under the guidance of the Professor Lucilia Nunes, includes a priori
framework of the study (Part I), which identifies the current knowledge in the field of
nursing ethics decision, if synthesizes the theoretical grounding of reference and is
situated epistemological field chosen. Leaning in Aristotle, Kant and Paul Ricoeur on
the decision in ethical and in Lucilia Nunes, and in Margarida Vieira on the link to
nursing ethics. Having regard to the problematic context and methodology of the study,
are located within postmodernism as an epistemological field of reference.
The clarification of the methodology of the study (Part II), followed by the presentation
of results in Part III. Part IV is devoted to theorizing the decision nursing ethics,
discussing the study results with the theoretical frameworks adopted.
As main conclusions, we highlight the definition of ethical issues in nursing, while
uncertainty over the choice of interventions to be undertaken by nurses, not the nature
of the construction of procedural decision nursing ethics and a predominant use of
ethical foundations for this decision. As future proposals, this study suggests further
6
research in the area of connection between the clinical decision and the decision of
nursing ethics.
7
INDICE DE QUADROS_________________________________________________
Pag.
Parte II
Quadro 1 Caracterização da amostra do estudo. 72
Parte III
Quadro 1 Problemas éticos identificados, integrados na categoria informação 81
Quadro 2 Problemas éticos identificados, integrados na categoria acompanhamento em 83
fim de vida.
Quadro 3 Problemas éticos identificados, integrados na categoria decisão do destinatário 86
dos cuidados.
Quadro 4 Problemas éticos identificados, integrados na categoria respeito pela pessoa 87
Quadro 5 Problemas éticos identificados, integrados na categoria sigilo profissional. 88
Quadro 6 Problemas éticos identificados, segundo categorias de Lucília Nunes 91
Quadro 7 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria conflito 97
entre princípios: científicos e éticos
Quadro 8 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria conflito 99
entre normas.
Quadro 9 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria 100
desrespeito pela dignidade humana.
Quadro 10 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria conflito 101
entre valores.
Quadro 11 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria violação 102
de direitos.
Quadro 12 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria risco do 103
bem-estar.
Quadro 13 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria risco 103
para a saúde.
Quadro 14 Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria conflito 104
entre direitos.
Quadro 15 Categorização das características de problema ético de enfermagem. 105
Quadro 16 Fases de construção da decisão, enquanto categorias emergentes. 115
Quadro 17 Fundamentos éticos ponderados na construção da decisão ética de enfermagem. 122
Quadro 18 Fundamentos científicos ponderados na construção da decisão ética de 125
enfermagem.
Quadro 19 Fundamentos jurídicos ponderados na construção da decisão ética de 126
enfermagem.
8
Quadro 20 Fundamentos deontológicos ponderados na construção da decisão ética de 127
enfermagem.
Quadro 21 Fundamentos profissionais ponderados na construção da decisão ética de 128
enfermagem.
Quadro 22 Fundamentos culturais ponderados na construção da decisão ética de 129
enfermagem.
Quadro 23 Categorização dos fundamentos ponderados na construção da decisão ética de 130
enfermagem.
Quadro 24 Fundamentos éticos utilizados na decisão ética de enfermagem. 137
Quadro 25 Fundamentos científicos utilizados na decisão ética de enfermagem. 139
Quadro 26 Fundamentos profissionais utilizados na decisão ética de enfermagem. 141
Quadro 27 Fundamentos deontológicos utilizados na decisão ética de enfermagem. 143
Quadro 28 Fundamentos culturais utilizados na decisão ética de enfermagem. 144
Quadro 29 Fundamentos sociais utilizados na decisão ética de enfermagem. 145
Quadro 30 Fundamentos jurídicos utilizados na decisão ética de enfermagem. 146
Quadro 31 Categorização dos fundamentos utilizados na decisão ética de enfermagem. 147
9
INDICE DE FIGURAS__________________________________________________
Pag.
Parte III
Figura 1 Representação gráfica do Processo de Enfermagem em ligação à identificação 164
do problema ético de enfermagem.
Figura 2 Representação gráfica das fases da decisão ética de enfermagem. 202
Figura 3 Representação gráfica dos fundamentos da decisão ética de enfermagem. 248
10
INDICE GERAL________________________________________________________
Pag.
INTRODUÇÃO 15
1 REVISÃO DA LITERATURA 22
1.1 Problema ético em enfermagem 22
1.2 Decisão ética em enfermagem 24
2 ANCORAGEM TEÓRICA: DA DECISÃO À AÇÂO 29
2.1 A origem da decisão: o poder do homem livre 29
2.2 Os antecedentes da decisão: a intenção e a vontade 33
2.3 A ação como resultado da decisão 36
2.4 As consequências da decisão e da ação 41
2.5 A decisão de cuidado em enfermagem 44
3 ENQUADRAMENTO ESPISTEMOLÓGICO DO ESTUDO 48
3.1 Correntes epistemológicas 48
3.2 O campo epistemológico do estudo 53
3.3 O objeto disciplinar da enfermagem 54
4 IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA CIENTÍFICO DE ENFERMAGEM 58
4.1 O problema de enfermagem, nas filosofias, nos modelos conceptuais e nas 58
teorias
4.2 Filosofias de enfermagem 59
4.3 Modelos conceptuais e grandes teorias 61
4.4 Teorias e teorias de médio alcance 63
4.5 Conceitos de problema de enfermagem 64
Parte II METODOLOGIA 67
1 OPÇÕES METODOLÓGICAS 68
1.1 Tipo de estudo 68
1.2 Campo de Análise 69
1.3 Amostra 70
1.4 Método de recolha de dados 72
1.5 Análise dos dados 75
1.6 Considerações éticas 76
11
Parte III APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS: DO PROBLEMA À DECISÃO 77
ÉTICA DE ENFERMAGEM
12
5 FUNDAMENTOS UTILIZADOS PARA A DECISÃO ÉTICA DE 131
ENFERMAGEM
5.1 Fundamentos éticos utilizados 131
5.2 Fundamentos científicos utilizados 137
5.3 Fundamentos profissionais utilizados 140
5.4 Fundamentos deontológicos utilizados 141
5.5 Fundamentos culturais utilizados 143
5.6 Fundamentos sociais utilizados 144
5.7 Fundamentos jurídicos utilizados 145
5.8 Síntese dos fundamentos utilizados 146
13
4.1.6 O respeito pela vida e pela qualidade de vida 215
4.1.7 A promoção do bem-estar e o alívio do sofrimento 218
4.1.8 A proteção da saúde 220
4.1.9 O princípio da justiça 221
4.1.10 A confiança 223
4.2 Fundamentos deontológicos 225
4.3 Fundamentos jurídicos 230
4.4 Fundamentos profissionais 235
4.5 Fundamentos científicos 239
4.6 Fundamentos sócio-culturais 242
4.7 Síntese dos fundamentos da decisão ética de enfermagem 246
CONCLUSÃO 249
14
INTRODUÇÃO________________________________________________________
1
Como definido no nº 2 do artigo 4º do Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE),
aprovado pelo Decreto-Lei nº 161/96 de 4 de Setembro.
2
A publicação em lei do REPE em que os “cuidados de enfermagem” surgem como um conceito definido,
é uma manifestação inequívoca desse reconhecimento pela sociedade.
3
Referimos o termo enfermeiro como o profissional de enfermagem, independentemente do título
profissional atribuído em Portugal, de “enfermeiro” ou “enfermeiro especialista”.
15
desenvolve numa relação pessoa-enfermeiro. Frequentemente as ações do enfermeiro
envolvem outras pessoas para além do seu cliente, tido aqui como aquele que
estabeleceu a relação de cuidado. E podem ainda afetar o ambiente, como acontece na
utilização de recursos materiais para a prestação dos cuidados.
O cuidado de enfermagem, enquanto intervenção profissional do enfermeiro dirigida à
pessoa, manifesta-se assim no mundo social e no mundo material. Consubstancia-se
numa ação voluntária, precedida de uma decisão que se revela na realidade exterior ao
enfermeiro, para além dos efeitos verificados em si próprio.
Ocorrendo um problema ético, o enfermeiro necessita resolvê-lo, assumindo o seu dever
profissional de agir. Deste modo, o enfermeiro procura a ação adequada para resolver o
problema identificado, construindo uma decisão que se revele eticamente boa para a
pessoa em causa. Pela decisão e pela ação o enfermeiro responde, no âmbito da
responsabilidade profissional em enfermagem.
Esta ligação problemática do nosso estudo – a decisão ética de enfermagem – à
responsabilidade profissional do enfermeiro, permite-nos situá-la na esfera mais ampla
da responsabilidade profissional em enfermagem. Assim, quando nos situamos na
decisão ética de enfermagem, consideramos a decisão para o cuidado, ou seja uma
decisão que origina uma ação, em que ambas – decisão e ação – constituem objecto de
responsabilidade do enfermeiro.
4
Publicado em: DEODATO, Sérgio – Responsabilidade Profissional em Enfermagem: Valoração da
Sociedade. Coimbra: Edições Almedina, 2008. 194 p. ISBN 978-972-40-3401-0
16
encontrando-se estes prescritos na lei5, consideramo-los como a valoração da sociedade
da responsabilidade em enfermagem. Ou seja, sendo critérios identificados a partir da
interpretação da norma jurídica, resultante do poder legislativo do Estado, traduzem a
valoração que a sociedade faz da responsabilidade do enfermeiro, no exercício da sua
atividade profissional. Com o presente estudo, propusemo-nos investigar a decisão
ética, a partir da valoração dos enfermeiros e tendo em conta o problema ético de
partida.
5
O Código Deontológico do Enfermeiro integra o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo
Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado e republicado pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro.
6
Referimo-nos ao estudo de Lucília Nunes, publicado em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e
Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência,
2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8
7
Como os referidos por: BANDMAN, Elsie.; BANDMAN, Bertram – Nursing Ethics: Through The
Life Span. New Jersey: Prentice Hall, 2002 333 p. ISBN 0-83-85-6976-5; por:THOMPSON, Ian E;
17
realizados em Portugal sobre o assunto e os escassos estudos estrangeiros publicados
não originaram uma teoria acerca da tomada de decisão ou dos fundamentos utilizados
pelos enfermeiros na resolução de problemas éticos. Assim, consideramos pertinente a
construção de conhecimento neste domínio da conceptualização de problema ético de
enfermagem, da construção da decisão ética e dos fundamentos para decidir utilizados
pelos enfermeiros na sua prática de cuidados.
Considerando os contornos da realidade portuguesa, relativamente à reflexão no âmbito
da ética de enfermagem que tem proposto princípios e valores éticos8, aos princípios e
valores adotados pela profissão, à deontologia profissional e ao quadro jurídico vigente,
julgamos necessário a caracterização do modo e dos fundamentos da decisão ética do
enfermeiro no nosso país. Estamos assim a circunscrever-nos à nossa realidade sócio-
cultural, na linha de pensamento de Kim Lutzen9 que propõe que a investigação sobre a
decisão ética em enfermagem deve ser contextualizada a uma determinada cultura, uma
vez que a dimensão cultural dos cuidados de saúde e de enfermagem fazem com que os
problemas éticos sejam diferentes.
MELIA, Kath M; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem. Trad. PEREIRA, Helena; ROSA,
Margarida Cunha. Loures: Lusociência, 2004. ISBN 972-8383-67-3. p. 11 ou por: Manuela Gândara,
referindo-se aos modelos de P. Almenara e M. Burkhard e A. Nathaniel, em GÂNDARA, Manuela –
Dilemas Éticos e Processo de Decisão. IN NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para
uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 072-603-326-8. p.403-416
8
Como acontece em: NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética de
Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. 582 p. ISBN 072-603-326-8; Revista da Ordem
dos Enfermeiros. ISSN 1646-2629. Nº 15. (Dezembro.2004)
9
LUTZEN, K. Nursing Ethics Into the Next Millennium: a context-sensitive approach for nursing ethics.
Nursing Ethics. (Em linha) 4.3 (May 1997) 219-226. Academic Search Complete. EBSCO.
(Consult.25. Agosto.2008). Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=a9h&AN=7392903&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
18
descrever a construção da decisão ética de enfermagem e ainda, significar os
fundamentos da construção da decisão ética de enfermagem.
A escolha metodológica recaiu sobre um estudo de abordagem qualitativa, exploratório
e descritivo, com a utilização da entrevista semi-estruturada como método de recolha de
dados. Os sujeitos foram enfermeiros – com título de enfermeiro e enfermeiro
especialista – com exercício profissional na prestação de cuidados. Foram entrevistados
15 enfermeiros, cujas narrativas foram analisadas através da análise de conteúdo. Dos
seus discursos extraíram-se as referências que corporizaram o conjunto dos resultados
que deram resposta aos objetivos estabelecidos.
19
não impediu a procura de outros horizontes filosóficos e científicos. A ancoragem
teórica onde nos suportamos e o desenrolar da análise e discussão dos resultados do
estudo, permitiram as naturais incursões na ética, na deontologia, no direito, assentes no
eixo central da enfermagem.
A delimitação conceptual realizada através da definição de problema ético de
enfermagem, a descrição do modo de construção da decisão ética de enfermagem e a
identificação dos fundamentos utilizados pelos enfermeiros para o seu agir ético,
constituem os tópicos teóricos desta tese. A sua abordagem, tendo como origem os
resultados do estudo, resultou desta confluência de diversos domínios do saber, no
conhecimento de enfermagem. Na medida em que se situa no agir do enfermeiro
enquanto profissional do cuidado, refletindo alguns modos e fundamentos para este agir,
enquadra-se no âmbito da ética de enfermagem. O título – decisão ética em
enfermagem: do problema aos fundamentos para o agir – sintetiza assim o tema central
– decisão ética de enfermagem – e delimita o âmbito do estudo, quando considera o
problema ético de enfermagem como ponto de partida para a construção da decisão
ética, em que os fundamentos valorados pelos enfermeiros assumem uma dimensão
essencial.
Com esta tese pretendemos contribuir para o conhecimento de enfermagem, tendo como
propósito teorizar a decisão ética na prática clínica. Com o conhecimento produzido,
pretendemos contribuir para o desenvolvimento da ética de enfermagem e em concreto,
para o ensino e a formação em enfermagem sobre a tomada de decisão ética, na esfera
mais ampla da responsabilidade profissional, integrando assim a lacuna que
consideramos existir.
Por opção, o texto encontra-se redigido cumprindo o novo acordo ortográfico da língua
portuguesa.
20
PARTE I
_______________________________________________
ENQUADRAMENTO APRIORÍSTICO DO ESTUDO
21
1. REVISÃO DA LITERATURA__________________________________________
10
Como em: THOMPSON, Ian E; MELIA, Kath M; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem.
Loures: Lusociência, 2004. 445 p.Trad. PEREIRA, Helena; ROSA, Margarida Cunha. ISBN 972-8383-
67-3. p. 8
11
Como os casos de: “An ethical problem is a situation involving conflict about the right thing to do”.
Fonte: Park Hyeoun –AE, et-al - Korean Nursing Students' Ethical Problems and Ethical Decision
Making. Nursing Ethics [serial on the Internet]. (2003, Nov), [Consult. 1.Maio.2009]; 10(6): 638-653.
Available from: Academic Search Complete. Disponível em:
http://web.ebscohost.com/ehost/pdf?vid=37&hid=6&sid=545816ab-9f38-4dde-a047-
244807f9fb2e%40sessionmgr3; “situations where they can choose between different alternatives to
act, and where it is impossible to satisfy all parties’ interests and/or values in an ideal way”. Fonte:
Bolmsjö Ingrid; Edberg Anna-Karing; Sandman Lars - Everyday Ethical Problems in Dementia Care: a
teleological model. Nursing Ethics [serial on the Internet]. (2006, July), [Consult. 1.Maio.2009];
13(4): 340-359. Available from: Academic Search Complete. Disponível em:
http://web.ebscohost.com/ehost/pdf?vid=37&hid=6&sid=545816ab-9f38-4dde-a047-
244807f9fb2e%40sessionmgr3
12
HAN, Sung-Suk, et al - Korean nurses' perceptions of ethical problems: Toward a new code of ethics
for nursing. Nursing & Health Sciences (Em linha) 2.4 (Dec. 2000) 217-224. Academic Search
Complete. EBSCO. (Consult.25.Agosto.2008) Disponível em:
22
reflectisse os novos problemas encontrados. Neste estudo, deliberadamente13 não foi
definido problema ético à partida, aceitando todos os casos referidos pelos participantes.
Com base nos problemas éticos identificados, os autores propuseram14 que o novo
Código Coreano incluísse normas relativas aos direitos humanos, aos deveres legais, à
autonomia profissional, ao respeito pelos clientes e pelos enfermeiros, à defesa dos
clientes, à competência profissional e ao relacionamento com os outros membros da
equipa de saúde, uma vez que foram estas as categorias onde se incluem os problemas
encontrados.
No domínio específico dos cuidados de saúde primários, um estudo15 realizado em São
Paulo (Brasil) em 2001 e 2002, identificou um conjunto de problemas éticos a partir da
percepção de enfermeiros e médicos, que foram agrupados em 3 categorias: “problemas
éticos nas relações com usuários e família”, “problemas éticos nas relações da equipe”
e “problemas éticos nas relações com a organização e o sistema de saúde”. Os
problemas identificados relativos à relação com as pessoas clientes de cuidados,
incluem situações relacionadas com a relação propriamente dita, com o projecto
terapêutico, com a informação, e com a privacidade e confidencialidade. No global, os
problemas identificados, segundo os autores, “representam preocupações do cotidiano
da assistência à saúde e não as situações dramáticas próprias do hospital”16, o que
corrobora os resultados de outros estudos realizados noutros países, referidos neste
estudo.
Em Portugal, Lucília Nunes17 num estudo realizado entre 2001 e 2004, identificou um
conjunto de problemas éticos referidos pelos enfermeiros, que agrupou em 12
categorias: informação, acompanhamento de fim de vida, decisão do destinatário dos
cuidados, respeito pela pessoa, sigilo profissional, responsabilidade profissional nas
actividades interdependentes, responsabilidade institucional, distribuição de recursos,
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=a9h&AN=5485534&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
13
Como referem em: Idem, p. 2
14
Idem, p. 7
15
ZOBOLI, Elma L. C. P; FORTES, Paulo A. C. - Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas
éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil. Cadernos
de Saúde Pública. (Em linha) ISSN 0102 – 311X. Vol. 20. Nº 6 (Nov/Dez.2004). (Consult.
25.Abril.2008) Disponível em: http://www.scielosp.org/img/revistas/csp/v20n6/28t1.gif
16
Idem. Mantivemos a frase na escrita original brasileira.
17
Publicado em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos
Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 257-345
23
reflexão profissional, desenvolvimento das tecnologias, protecção da saúde e início de
vida.
Os problemas éticos relativos a cada um destas categorias, referem-se a decisões sobre
intervenções de enfermagem ou sobre outros aspectos inerentes à prática profissional do
enfermeiro. Destes emergem os problemas relacionados com a articulação com os
familiares da pessoa cliente de cuidados, nomeadamente quanto à transmissão da
informação, os relacionados com o agir em interdependência no seio da equipa de
saúde, assim como os problemas inerentes ao papel das organizações de saúde no
atendimento em saúde.
Estas categorias são as que iremos utilizar na análise dos resultados relativos à
identificação do problema ético de enfermagem, no capítulo 1 da Parte III.
18
SMURL, James F. - Ethical Problems. Nursing (Em linha) 18.6 (June 1988) 110-110. Academic Search
Complete. EBSCO. (Consult. 25Agosto2008). Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=a9h&AN=4888093&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
19
Referindo que a tomada de decisão implica: “a skill and an art developed by personal effort and
institutional support”
24
América, publicou um artigo propondo um modelo de fundamentação para a tomada de
decisão ética em enfermagem, que intitulou de “Greipps’s Model of Ethical Decision
Making”20 . Este modelo assenta no respeito pelos princípios éticos relacionados com os
cuidados de saúde – justiça, autonomia, beneficência, não-maleficência,
responsabilidade – tendo por base a deontologia de enfermagem e o princípio Kantiano
que considera a pessoa como um fim em si mesmo. Os pressupostos deste modelo são
os seguintes21: “todas as pessoas partilham a necessidade de cuidados básicos de
saúde”; “os enfermeiros agem como ‘analistas de dados/decisores’ diariamente”;
“agir segundo código deontológico”; “a tomada de decisão é um processo complexo,
sujeito a variações impostas pelas pessoas, pelas situações e pelos ambientes”.
Outros autores propõem modelos com identificação das fases do processo de tomada de
decisão ética pelo enfermeiro. Thompson et al22 propõem um processo intitulado por
“modelo DECIDE”, actualizando o modelo anterior “SPIRAL”, que inclui 6 etapas.
Uma primeira (“definir o problema”) destinada à identificação do problema a que se
segue uma segunda fase (“estudo ético”) de procura dos princípios éticos que ajudarão
a encontrar a solução adequada. Uma terceira etapa (“considerar opções”) é destinada à
análise das diversas alternativas possíveis de solução e uma quarta (“investigar os
resultados”) tem por fim identificar os resultados possíveis para cada uma das
alternativas consideradas. A quinta etapa deste processo (“decidir sobre a acção”) é
destinada à decisão e à implementação da acção decidida e na sexta e última
(“estimar/avaliar os resultados”) o enfermeiro avalia o resultado final da sua ação.
Desta forma, segundo os autores, seguindo um contínuo de passos, o enfermeiro
encontrará a melhor solução para os problemas éticos que lhe surgem no seu exercício
profissional.
20
GREIPP, ME - Greipp's model of ethical decision making. Journal of Advanced Nursing (Em
linha).17.6 (June 1992) 734-738. CINAHL Plus with Full Text. EBSCO.(Consult.24.Agosto.2008).
Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=1992147529&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
21
Tradução livre de (Idem, p. 737): “all clients share a need for basic health care”; “nurses act as 'data
analyst/decision maker' on a daily basis”; “all nurses practise within a code of ethics”; “decision
making is a complex process subject to variations imposed by people, situations and environments”.
22
Em: THOMPSON, Ian E; MELIA, Kath M; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem. Loures:
Lusociência, 2004. 445 p.Trad. PEREIRA, Helena; ROSA, Margarida Cunha. ISBN 972-8383-67-3. p.
324-331
25
Bandman e Bandman23 referem-se aos valores e aos princípios que devem suportar a
decisão ética em enfermagem, dando particular relevância à participação das pessoas
clientes, nos processos de tomada de decisão que lhes dizem respeito. Para tal, as
autoras consideram como essenciais a serem considerados na tomada de decisão ética
pelos enfermeiros, os princípios da autodeterminação, do bem-estar e da equidade.
Um estudo sueco24, utiliza um modelo de tomada decisão ética da autoria de Lars
Sandman (co-autora do estudo) para a decisão de casos com problemas éticos
relacionados com pessoas com problemas de demência, que integra um conjunto de
etapas. Estes passos são: identificação da situação-problema; identificação das
diferentes alternativas; avaliar as diferentes alternativas e por fim decidir, implementar a
decisão e avaliar.
Alguns estudos referem-se aos modos de tomada de decisão ética na saúde em geral e
em enfermagem, apontando algumas diferenças. Um estudo25 realizado em 2 hospitais
de Toronto, publicado em 1992, em que participaram 9 enfermeiros e 9 médicos, revela
que os enfermeiros e os médicos assumem decisões éticas diferentes. Na perspectiva
dos autores, os enfermeiros adotam mais um comportamento ético, mais preocupado
com o cuidado ao Outro como fim, enquanto que os médicos se preocupam mais com os
direitos das pessoas, com a sua doença e com a cura.
No Reino Unido, um estudo26 publicado em 1998 tendo como sujeitos enfermeiros,
identificou as influências na decisão ética de enfermagem. As influências identificadas
no processo de decidir dos enfermeiros, resultaram das atitudes dos médicos, dos
colegas, dos constrangimentos organizacionais e dos limites impostos pela autonomia
das pessoas cuidadas.
23
Cf. BANDMAN, Elsie.; BANDMAN, Bertram – Nursing Ethics: Through The Life Span. New
Jersey: Prentice Hall, 2002 333 p. ISBN 0-83-85-6976-5. p. 96-113
24
Bolmsjö Ingrid; Edberg Anna-Karing; Sandman Lars - Everyday Ethical Problems in Dementia Care: a
teleological model. Nursing Ethics [serial on the Internet]. (2006, July), [Consult. 1.Maio.2009];
13(4): 340-359. Available from: Academic Search Complete. Disponível em:
http://web.ebscohost.com/ehost/pdf?vid=37&hid=6&sid=545816ab-9f38-4dde-a047-
244807f9fb2e%40sessionmgr3
25
GRUNDSTEIN-AMADO, R. - Ethical decision-making processes used by health care providers."
Journal of Advanced Nursing (Em linha) 18.11 (Nov. 1993) 1701-1709. CINAHL Plus with Full
Text. EBSCO. (Consult. 25.Agosto.2008). Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=1994179253&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
26
LIPP; Alison – An Enquiry Into a Combined Approach for Nursing Ethics. Nursing Ethics. (Em
Linha). (1998) (Consult. 16.Agosto.2008). Disponível em :
http://web.ebscohost.com/ehost/pdf?vid=27&hid=101&sid=afc8ac9f-802f-4437-b0a1-
6c94b0b4a095%40sessionmgr2
26
Relativamente às componentes da tomada de decisão ética em enfermagem, um estudo27
realizado nos Estados Unidos da América e publicado em 1996, que entrevistou 19
enfermeiros de um hospital, revelou a emergência de 4 categorias comuns, relativas à
tomada de decisão ética: o contexto, a situação que inicia o processo, o processo de
tomada de decisão e os resultados.
Um estudo28 realizado nos Estados Unidos da América, com estudantes de enfermagem,
publicado em 2001, demonstrou que a distribuição dos 73 participantes pelos cinco
modelos de resolução de problemas conhecidos pelos estudantes foi relativamente
homogénea (entre os 11 e os 19), verificando-se contudo uma percentagem de 52 % (38
participantes) que utilizou modelos principialistas, pelo facto de, segundo os autores,
serem melhor apropriados pelos estudantes. Numa réplica deste estudo realizado na
Coreia do Sul29 publicado em 2003, com 97 estudantes de enfermagem, identificaram-se
97 problemas éticos – 1 por estudante – e o modo como foi resolvido por cada um.
Concluiu-se que, dos cinco modelos de resolução de problemas, o mais utilizado
(43,3%), foi o Modelo de guidelines para resolver problemas éticos, de Cameron ME.
Neste estudo, 91% dos estudantes consideraram útil a utilização de um dos modelos de
resolução de problemas éticos para a sua aprendizagem
Esta revisão da literatura, com alguns estudos (todos qualitativos) publicados, leva-nos a
concluir que não conhecemos em concreto o modo de decidir dos enfermeiros quando
se vêm confrontados com problemas éticos. Não conhecemos sobre se os processos de
tomada de decisão ética que são propostos pelos autores são de facto utilizados pelos
enfermeiros. Não conhecemos igualmente quais e de que natureza são os fundamentos
utilizados pelos enfermeiros na resolução de problemas éticos na sua relação de cuidado
com as pessoas.
27
SMITH, K V - Ethical decision-making by staff nurses. Nursing Ethics (Em linha) 3.1 (Mar. 1996): 17-
25.MEDLINE with Full Text. EBSCO. (Consult.24.Agosto.2008). Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=mnh&AN=8696860&site=ehost-live>.
28
CAMERON, Miriam; SCHAFFER, Marjorie; PARK, Hyeoun – Nursing Students’ Experience of
Ethical Problems and Use of Ethical Decision-Marking Models. Nursing Ethics
(Em linha). (2001) (Consult. 15.Agosto.2008). Disponível em:
http://web.ebscohost.com/ehost/pdf?vid=9&hid=116&sid=01f88d9f-4804-4f45-b1bf-
e6f97d0a9e85%40sessionmgr107
29
HAN, Sung-Suk, et al - Korean nurses' perceptions of ethical problems: Toward a new code of ethics for
nursing. Nursing & Health Sciences (Em linha) 2.4 (Dec. 2000) 217-224. Nursing & Allied Health
Collection: Comprehensive. EBSCO (Consult. 25.Agosto.2008). Disponível em:
<http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=nyh&AN=5485534&lang=pt-
br&site=ehost-live>.
27
É deste ponto de partida face ao conhecimento existente, que procuraremos respostas
para a problemática definida neste estudo.
28
2. ANCORAGEM TEÓRICA: DA DECISÃO À AÇÂO_______________________
A decisão que precede a ação resulta da capacidade que o Homem livre tem para guiar o
seu agir. A origem da decisão funda-se na capacidade, entendida como poder, própria da
pessoa capaz. São os seres humanos, os únicos capazes de realizar manifestações
externas a si, que resultam de processos racionais de decidir. Este poder, enquanto
exercício da autonomia individual, é próprio do ser humano que se apresenta aos outros
como um ser livre. Um ser que usa o poder de decidir de uma forma livre, procurando o
seu próprio sentido para a vida.
29
Se o poder, enquanto condição para agir é inerente à natureza de ser humano, a sua
manifestação externa ancora-se no exercício da liberdade. O poder para decidir e agir é
exercido pela pessoa livre, capaz de ponderar as diversas alternativas de que dispôe.
Poder e liberdade são assim dimensões essenciais da decisão humana, que nos importa
aprofundar, no sentido de compreender a especificidade da decisão ética, realizada no
exercício da actividade profissional de enfermagem.
A liberdade revela-se no agir, nas ações realizadas, através das escolhas que a vontade
livre determina. Como nos ensina Michel Renaud30 “a liberdade, deste modo, tem que
ver com o agir que se rege pela razão. O livre arbítrio consiste portanto no poder de
escolha, que precede o agir, e que se mede pela sua dimensão racional”. Deste modo, o
exercício da liberdade é concretizado através da utilização do poder para ponderar a
decisão entre diversas alternativas. Esta escolha realizada por cada um, consubstancia a
realização da decisão conducente à ação. O ato resulta assim do exercício da liberdade
individual, da possibilidade que cada um tem em escolher entre diferentes alternativas.
Deste modo, a liberdade está ligada à vontade, como nos refere Michel Renaud, que
considera que “efectivamente não se pode falar de liberdade sem implicar o exercício
da vontade”31, tornando assim a vontade livre. A liberdade materializada no agir, ou a
liberdade exterior – para distinguir da liberdade interior, a que habita apenas no
pensamento de cada um – pode assim ser considerada como o “exercício de uma
vontade (de um conjunto de vontades…)”32, como o refere Paulo Ferreira da Cunha.
Todavia, a liberdade não é absoluta e devemos considerar aquilo a que Renaud
denomina os “condicionamentos da liberdade”33. Desde logo, considera o autor, que a
“minha liberdade tem uma condição de possibilidade espácio-temporal que se enraíza
no nascimento”34. Ou seja, a própria finitude humana constitui-se como um
condicionamento a uma ideia de liberdade absoluta. Isabel Renaud35 considera como
30
RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p. 370
31
Idem, p. 369
32
Cf. CUNHA, Paulo Ferreira – Filosofia Jurídica Prática. Lisboa: Quid Júris?, 2009. 800 p. ISBN 978-
972-724-411-9. p. 31
33
RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p.371
34
Idem. 372
35
RENAUD. Isabel – A Sociedade e a Religião entre a Lei e a Relação. Proibição ou decisão Ética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 10 (Abril.2010). p.43
30
exemplos destes factores de condicionamento da liberdade, o corpo, a idade, a cultura,
mas não os vê como impeditivos, apenas como limites legítimos para a liberdade.
Depois, podemos também considerar, como o faz Michel Renaud, “as novas formas de
condicionamentos da liberdade”36, nomeadamente as que resultam das novas
possibilidades científicas que podem interferir diretamente no cérebro humano.
Do mesmo modo podemos analisar a liberdade, nomeadamente a liberdade para agir, na
perspectiva dos seus limites, como o direito habitualmente faz. De facto, sendo a
liberdade traduzida em ações, exteriorizada na relação com os outros, na esfera política
do ser humano, ela estende-se em possibilidades, mas de igual modo constrange-se com
limitações. Como considera Cunha, “nenhuma das liberdades prescinde, assim, da
mesura, da sabedoria, de limites. Os quais, longe de serem (quando são limites justos)
peias, talas, leitos de Procusta, pelo contrário são guias indicadores do recto caminho,
auxiliares do equilíbrio”37. Ou seja, os próprios limites da liberdade, não são
impossibilidade de agir, antes constituem fundamentos que devem servir de base à livre
escolha para as ações. A uma vida finita e desenvolvida na relação com os outros, não
pode associar-se uma ideia de liberdade absoluta, como que cada pessoa vivesse isolada
num planeta distante. É da própria natureza finita da vida e da condição de pluralidade
da ação humana, como considera Hannah Arendt38, que resulta o carácter não absoluto
da liberdade.
36
RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p.373
37
CUNHA, Paulo Ferreira – Filosofia Jurídica Prática. Lisboa: Quid Júris?, 2009. 800 p. ISBN 978-972-
724-411-9. p. 30
38
ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Lisboa: Relógio D’Água, 2010. Trad. Roberto Raposo.
407p. ISBN 9789727086375. p. 20
39
Cf. HEIDEGGER, Martin – A Essência do Fundamento. Lisboa: Edições 70 (sd). ISBN 978-972-44-
1336-5. p.99
40
Idem. P.99
31
aí”41. A decisão livre em Heidegger, encontra-se assim fortemente influenciada pela
transcendência, enquanto capacidade de abrir-se ao mundo, de tal forma “ a liberdade
como transcendência não é, contudo, apenas uma espécie particular de fundamento,
mas a origem do fundamento em geral”42. Deste modo, as ações, sendo resultado de
uma decisão livre, não nascem simplesmente determinados por uma causalidade
intrínseca ao sujeito, mas “radicam na transcendência”43, numa liberdade, por esta
razão, finita.
41
Ibidem, p. 101
42
Ibidem, p. 103
43
Ibidem, p. 99
44
RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
45
NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de
Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 137
46
Cf. RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. 224
47
Idem, p. 224
32
o tema do eu poderia, ou até do eu teria podido de outro modo, se tivesse querido”. E
deste modo, atribui à imaginação um papel relevante na construção da decisão pelo ser
humano.
A ação resulta assim da capacidade para decidir, à qual se junta uma intenção como
considera Ricoeur48. Uma intenção de fazer (ou não fazer) no exercício da vontade livre
que confere ao ser humano a sua condição de ser agente, o que age a partir de si e
exterioriza as ações para fora de si, originando mudanças nos outros e no ambiente. Se a
capacidade de fazer determina a possibilidade do agir, a intenção, segundo o filósofo,
assume também uma dimensão essencial que antecede a ação.
A intenção, em Ricoeur constitui o “critério distintivo da acção de todos os outros
acontecimentos”49, fazendo assim uma separação entre ato decidido e factos que
resultam de não-decisões. As ações são praticadas pela pessoa-capaz e com uma
deliberação prévia que Ricoeur considera tratar-se da razão de fazer. Neste contexto, o
filósofo50 distingue os conceitos de causa e de motivo, considerando que este se refere à
razão de fazer e portanto intrínseca à ação e não externa como seria a causa. Ricoeur
clarifica que a intenção está relacionada com os fundamentos usados para agir, de tal
forma que “classificar uma acção como intencional é decidir por qual tipo de lei ela
deve ser explicada”51. A ação humana é assim realizada e fundamentada em alguma
razão que levou a pessoa a decidir fazer, no uso do seu poder para agir.
Refletindo a razão de agir, Ricoeur encontra aquilo a que denomina de traços que
integram este conceito. O primeiro é a motivação para agir, considerando que desejar
uma ação é uma “condição mínima de inteligibilidade da acção sensata”52. Como
segundo traço, Ricoeur considera a possibilidade da ação ser explicada quanto aos
motivos que a determinaram. Ou seja, é possível o agente interpretar a sua ação, à luz
das disposições que constituíram os motivos. O terceiro traço, consiste no fim da ação,
48
Cf. RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-
011458-5. p. 94
49
Tradução livre de: “critère distinctif de l'action parmis tous les autres événements » em : RICOEUR,
Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-011458-5. p. 94
50
Idem, p.97-99
51
Tradução livre de: « classer une action comme intentionnelle, c'est décider par quel type de loi elle doit
être expliquée » em : RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990.
424 p. ISBN 2-02-011458-5. p. 98
52
RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. 239
33
ou seja aquilo para que se realizou o ato. A intenção com que a ação foi realizada,
constitui o quarto traço. A intenção, corresponde ao conceito de raciocínio prático que
Ricoeur53 introduz. Ele permite a ponderação das diversas razões e escolhe qual o
sentido da ação.
Verificamos assim que o agir exterioriza a decisão de fazer (ou não fazer), em resultado
da vontade livre do autor da ação. Nunes54 aborda a vontade no âmbito do poder para
agir, considerando que a “vontade quer fazer alguma coisa”55. Aludindo ao pensamento
de alguns filósofos56 situa a vontade enquanto capacidade do espírito que se dirige à
ação. Referindo-se ao pensamento de Santo Agostinho, a autora refere-nos que “o agir
supõe sempre um querer e o não-agir a falta de vontade ou de capacidade”57.
Em Kant, a ação resulta da vontade, que é sem si boa e capaz de justificar os atos
praticados pela pessoa. A vontade determina a ação, fazendo com que esta concretize o
seu querer, no respeito pela lei criada pelo Homem. As ações, encontram assim
fundamento na vontade, porque é esta que determina as escolhas.
Kant enunciou a lei universal das ações, segundo a qual, a pessoa decide o seu agir:
“devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima
se torne uma lei universal”58. É com base nesta lei, que constitui um princípio da
vontade, que devemos decidir sobre as ações a realizar. Ou melhor, esta é a única lei na
qual se justificam os atos que praticamos. Daí que Kant venha a denomina-la de lei
fundamental da razão pura prática. Ao agir segundo esta lei, agimos por dever, já que
“dever é a necessidade de uma acção por respeito à lei”59. Uma ação é boa se praticada
por dever, ou seja se respeitar a “máxima que a determina”60. A vontade constitui em
53
Idem, p.242
54
Em NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsbilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de
Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8
55
Idem p. 110
56
Nomeadamente: Aristóteles, Santo Agostinho, Kant e Hannah Arendt. Ibidem. P. 108-115
57
Ibidem, p.112
58
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8. p 33
59
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8 p. 31
60
Idem, p. 30
34
Kant “a faculdade de escolher”61 as ações e uma vez que faz “derivar as acções das
leis”62, é considerada a razão prática.
A determinar a vontade, encontram-se os imperativos63, que são princípios oriundos da
razão e que ditam os deveres a que a pessoa se deve obrigar. Kant distingue dois tipos
de imperativos: o hipotético e o categórico. O imperativo hipotético corresponde a
ações que constituem meios para atingir um determinado fim, enquanto que o
categórico representa “uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem
relação com qualquer outra finalidade”64. O imperativo categórico, corresponde à lei
universal que Kant definiu para o agir: “age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”65. É desta proposição que
derivam todos os imperativos de dever, que fundamentarão as ações. Este imperativo
tem como base o postulado de que o homem é um fim em si mesmo66, e portanto, tem
um valor absoluto, não estando dependente da vontade para existir. Existe, por si
mesmo, enquanto pessoa, enquanto natureza racional. Assim, Kant enuncia como
imperativo prático, do qual derivam as leis da vontade, o seguinte: “age de tal maneira
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”67. É desta natureza de
existir como um fim, que nasce a capacidade da pessoa de ser criadora das suas leis, que
são universais.
Como percursores destas leis que a vontade cria, encontram-se os princípios, que Kant
denomina de “princípios da razão pura prática”, que constituem “proposições que
contêm uma determinação geral da vontade, a qual inclui em si várias regras
práticas”68. Kant considera-os como princípios objectivos, que determinam leis
práticas e por isso válidas “para a vontade de todo o ser racional”69, por oposição aos
princípios subjectivos que determinam apenas a vontade do próprio.
Este princípio objetivo que antecede e determina a vontade, constitui, em Kant, a lei
moral. De tal forma, que “o valor moral das acções depende de que a lei moral
61
Ibidem, p. 47
62
Ibdiem, p. 47
63
Ibidem, p. 48
64
Ibidem, p. 50
65
Ibidem, p. 59
66
Ibidem, p. 68
67
Ibidem, p. 69
68
Cf. KANT, Immanuel – Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. 192 p. Trad. De Artur
Morão. ISBN 972-44-0153-7. p. 29
69
Idem, p. 29
35
determina imediatamente a vontade”70. Deste modo, as ações boas resultam de uma
vontade determinada pela lei moral e apenas por esta, sendo as outras possíveis
influências, como os sentimentos, afastados por ela.
Em Kant, a pessoa é, portanto, livre e é desta autonomia que resulta a dignidade71 do ser
humano. Do facto de ser autor da sua própria lei. Esta “autonomia é pois o fundamento
da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”72. A pessoa é autora
da lei moral e obriga-se a ela. A necessidade de realizar uma ação por obrigação, ou seja
por respeito à lei criada no âmbito da autonomia da vontade, constitui o dever. Assim, o
valor moral da acão resulta do “facto de a acção ter lugar a partir do dever, isto é,
somente por mor da lei”73. O agir realiza-se assim por dever, em resposta a uma
necessidade moral, que Kant denomina de obrigação. A ação, realizada pelo homem
racional livre, funda-se no dever em consequência de uma obrigação moral; moral
porque proveniente da lei, criada pela razão do próprio. Deste modo, “somos certamente
membros legisladores de um reino moral, possível mediante a liberdade, proposto ao
nosso respeito pela razão prática, mas ao mesmo tempo, no entanto, somos os seus
súbditos…”74.
Relativamente ao julgamento das ações que realizamos, no exercício livre da nossa
vontade, Kant enuncia uma regra: “interroga-te a ti mesmo se a acção que projectas, no
caso de ela ter de acontecer segundo uma lei da natureza de que tu próprio farias
parte, a poderias ainda considerar como possível mediante a tua vontade”75. É desta
resposta que nascerá a clarividência de cada um sobre a bondade das suas ações,
nomeadamente no que se refere ao cumprimento da vontade livre individual.
36
provocam alterações no mundo físico, denominados factos. Oliveira Ascensão define
acção como a “conduta humana voluntária que assenta na categoria de finalidade”76.
No direito penal, onde a ação é apreciada desde a sua criação no agente até aos
resultados que provoca nas pessoas ou nos seus bens (como também acontece na
responsabilidade disciplinar de enfermagem) Germano Marques da Silva define-a como
“um comportamento humano externo, um agere no mundo físico, um movimento
corporal, dominado pela vontade, objectivamente dirigido para a lesão de um bem
jurídico”77. Com excepção do fim desta definição, que lhe confere a natureza de ação
penal, verificamos que os outros elementos do conceito são os mesmos da definição
anterior. Como podemos constatar, os três elementos deste conceito são: a manifestação
exterior, a vontade e o fim. A ação consiste numa manifestação exterior do agente, em
que o seu corpo provoca uma alteração que afeta a realidade física. Este movimento
corporal do agente decorre da sua vontade, formada internamente, podendo contudo
receber influência de diversos factores externos. Por último, esta vontade determina um
fim ou um resultado que se pretende alcançar com esta actividade corporal.
O fim da ação constitui um elemento essencial deste conceito conferindo a natureza
humana ao acontecimento produzido uma que vez “que permite ao homem antecipar
mentalmente a sua realização e consentir nos objectivos previstos”78. Este elemento
conceptual assume uma relevância muito importante na ação de enfermagem, uma vez
que esta, acontecendo no âmbito do Processo de Enfermagem, é realizada para atingir
um determinado fim, considerado o resultado esperado.
A ação humana, para além desta definição em sentido lato, abrange também a omissão,
enquanto ausência de fazer. Para Ascensão, “há omissão quando o agente não interfere
na realidade exterior para evitar um evento, quando isso estava da dependência da sua
vontade”79. Silva, no âmbito do direito penal, define omissão enquanto
“comportamento que consiste na abstenção da actividade devida”80. Neste último caso,
releva-se a omissão enquanto negação de cumprimento do dever, que assume não
apenas relevância penal, mas também disciplinar em enfermagem, uma vez que está em
76
Cf. ASCENSÃO, Oliveira – Teoria geral do Direito Civil: Acções e Factos Juridicos. Lisboa: FDL,
1992. Vol. III. 517 p. p.13
77
Cf. SILVA, Germano Marques – Direito Penal Português. Parte geral. Teoria do Crime. 1ª ed.
Lisboa: Verbo, 1998. Vol. II. 354 p. ISBN 9722219022. P. 46
78
Cf. ASCENSÃO, Oliveira – Teoria geral do Direito Civil: Acções e Factos Juridicos. Lisboa: FDL,
1992. Vol. III. 517 p. p.15
79
Idem, p. 18
80
Cf. SILVA, Germano Marques – Direito Penal Português. Parte geral. Teoria do Crime. 1ª ed.
Lisboa: Verbo, 1998. Vol. II. 354 p. ISBN 9722219022. P. 46
37
causo o incumprimento de deveres. Contudo a omissão, pode ser deliberada como o
melhor agir perante determinadas circunstâncias. Trata-se de uma intenção deliberada
de não fazer porque tal é considerado pelo agente como o mais adequado naquele
contexto concreto.
A ação é assim realizada pelo ser humano, nascendo de si, enquanto vontade de tornar
externa a sua presença no mundo. Paul Ricoeur81 considera que “agir significa, acima
de tudo, operar uma mudança no mundo”, adoptando um conceito de ação enquanto
intervenção humana que se manifesta externamente. A ação em Ricoeur constitui assim,
uma intervenção intencional, numa alusão do filósofo ao pensamento de Wright. A ação
produz um acontecimento, uma modificação no mundo, sendo o agir uma “fazer
acontecer qualquer coisa”82.
Segundo a teoria da acção social de Eberhard Schmidt83, a ação é verificável através
dos seus efeitos nos outros. O agir humano, segundo esta teoria, é por natureza social,
porquanto a pessoa existe convivendo com os outros e os atos que pratica fazem-se
sentir nos outros. Ou seja, a ação enquanto fazer ou não fazer, que se repercute no
Outro. Um fazer que resulta do poder para fazer, da capacidade para decidir e para
concretizar uma intenção tendo em vista um resultado pretendido. Como clarifica
Ricoeur84 “agir é fazer sempre alguma coisa de modo a que aconteça qualquer outra
coisa no mundo”.
Esta exteriorização da ação face ao agente, que permite delimitar o ato da pessoa que o
praticou, compara Ricoeur à exteriorização da escrita face ao escritor, numa ligação
entre a teoria da ação e a teoria do texto. Para o filósofo, do mesmo modo que a leitura
permite o contacto de várias pessoas com a escrita realizada por um autor, também a
ação “é uma obra aberta, dirigida a uma sucessão indefinida de leitores”85. De resto, o
filósofo conclui a este respeito pela similitude entre o texto e a ação, até porque muitos
“- senão todos os textos – têm por referente a própria acção”86, referindo a narrativa
como um destes casos.87
81
RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. p. 174
82
Idem, p. 175
83
Cf. SCHMIDT, Eberhard – Teoria da Acção Social. Trad. Jorge de Castilho Pimentel. In Textos de
Direito Penal. Tomo II. Lisboa: AAFDL, 1984. p. 177-205.
84
RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. 176
85
Idem,p. 177
86
Ibidem, 177
87
Esta ancoragem teórica, serviu-nos também para a escolha do método, como é abordado no capítulo
respectivo.
38
Em Ricoeur, quer o texto quer a ação destacam-se do seu autor. No caso específico da
ação, esta “desliga-se do seu agente e desenvolve as suas próprias consequências”88.
Há aquilo que Ricoeur denomina uma autonomização da ação, uma vez que é possível
considerar em separado o agente e a ação. Ou seja, para além da intenção do autor ao
realizar o ato, os outros que se afetam por ele e nos quais os efeitos se produzem, fazem
eles próprios a sua interpretação, atribuindo-lhe os seus próprios significados. A ação
encerra assim em Ricoeur, uma dimensão social, na medida em que autonomizando-se
do agente, passa a ser considerada na perspectiva externa, por outros, nomeadamente
quanto aos efeitos que produz.
De outro modo, esta apreciação externa da ação pode ser feita por mais do que uma
pessoa. A ação e as suas consequências podem ser analisadas por diversas pessoas,
quando de alguma forma foram afetadas por ela. Ricoeur fala-nos da ação como uma
obra aberta, numa alusão metafórica ao texto, uma vez que vários leitores podem
encontrar diferentes significações. A ação permite mesmo, que novas significações
sejam encontradas, permanecendo aberta, no sentido em que a “significação está em
suspenso”89. As ações, em Ricoeur, encontram-se na disponibilidade interpretativa de
cada um, exactamente como o texto.
88
RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. 195
89
Idem, p. 198
90
ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores,
2004.ISBN 972-564-622-3. p. 59
91
Idem, p. 59
92
Ibidem 62.
39
Em Aristóteles a ação voluntária não se confunde com decisão, de tal forma que “uma
decisão parece tratar-se de um acto voluntário, mas nem todo o acto voluntário parece
resultar de uma decisão”93. A ação pode ser voluntária, mas não resultar de uma
decisão, mas sim de um desejo. Ora, “o desejo tem em vista o que é agradável e o que é
desagradável”94, enquanto que a decisão não. Desde logo, porque a decisão tem em
vista aquilo que é possível e apenas o que é possível através de nós próprios. Ao passo
que podemos desejar um fim – por exemplo a saúde – de facto só podemos decidir
“através do qual viremos a obter a saúde”95, ou seja sobre os meios.
A decisão em Aristóteles implica uma escolha entre alternativas possíveis, ou seja uma
deliberação96, que é prévia à decisão e por isso também anterior à ação. Assim, a
deliberação corresponde, não à escolha dos fins das ações, mas à ponderação dos meios
que se colocam em alternativa. Decorrente desta deliberação, a pessoa escolhe o seu
modo como agirá, ou seja, decide. É desta decisão que resulta o ato voluntário.
93
Ibidem, p. 65
94
Ibidem, p.63
95
Ibidem, p. 64
96
Ibidem, p. 65
97
Ibidem, p. 70
40
2.4 As consequências da decisão e da ação
O poder de cada um para ser autor dos seus atos, determina que a pessoa capaz
responda pelo seu agir. Passamos assim de uma dimensão anterior à ação, em que o
poder se revela como impulsionador da decisão de fazer, para uma dimensão posterior
de resposta pelo que se fez. Sendo capaz, a pessoa encontra-se em condições de
responder pelas suas decisões e pelos atos que praticou. É desta forma que a pessoa
assume a sua responsabilidade. É responsável aquele a quem o ato é imputável, ou seja,
ao autor que decidiu, no âmbito do seu poder-fazer, como considera Ricoeur98.
Esta imputação do ato a um agente, interessa sobremaneira em sede de
responsabilidade, quando é necessário concluir sobre se um determinado ato foi ou não
praticado por uma pessoa. Ou seja, se fora deste campo jurídico, podemos considerar
diversas interpretações acerca da ação e dos seus efeitos - como fazemos com os textos,
no dizer de Paul Ricoeur99 – quando se decide da responsabilidade pelo praticado,
importa concluir essa fase de discussão argumentativa das várias interpretações. Ou
seja, enquanto que a validação das diversas interpretações, perante um texto ou uma
ação em geral, não implica uma escolha, no campo da avaliação da responsabilidade,
tem que haver uma conclusão na diversa argumentação apresentada.
O filósofo discute a relação entre o ato e a pessoa que o praticou – o agente – e propõe
um novo conceito para definir essa relação, a saber, ascription, que traduziremos por
atribuição, no sentido da imputabilidade do ato ao seu autor. Ricoeur define ascription
como consistindo “na reapropriação pelo agente da sua deliberação”100. Há ascription
quando o agente narra o ato praticado e o descreve aludindo às razões que presidiram às
suas escolhas e desta forma, ficamos a conhecer a sua intenção. Assim, voltar à ação
através do discurso, permite ao agente recontar a ação e identificar os motivos que o
levaram a agir. Deste modo, ficamos a conhecer o autor do ato, aquele a quem a
responsabilidade pelo praticado pode ser atribuída.
98
RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
99
RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. p.205-206
100
Tradução livre de: "dans la réappropriation par l'agent de sa propre déliberation » em : RICOEUR, Paul
– Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-011458-5. p. 117
41
Ricoeur101 discute a responsabilidade pelas ações e sobretudo pelos seus efeitos, quando
estes causam dano a alguém – a responsabilidade civil – ou numa esfera mais ampla
sempre que se procura o autor do ato, procurando o seu objeto. De facto, a
responsabilidade pelo dano, constitui para o direito apenas uma modalidade de
responsabilidade. No plano jurídico, se na responsabilidade civil releva o dano, na
responsabilidade penal, na disciplinar e na administrativa, é valorada a conformação
com a lei. Ou seja, a responsabilidade é aferida na medida do cumprimento ou
incumprimento da norma jurídica e o que esta protege. Na responsabilidade penal, está
em causa a protecção dos bens jurídicos que a lei penal salvaguarda e na
responsabilidade disciplinar e na administrativa, os deveres. Em quaisquer destes tipos
de responsabilidade jurídica, relevam as ações, como resultados da decisão livre da
pessoa capaz.
101
RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
102
Idem. P. 54
103
NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de
Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 391
42
Quanto ao problema da extensão da responsabilidade no espaço e sobretudo no tempo,
Ricoeur considera que a medida será encontrada no meio-termo entre uma não
assumção das consequências dos atos e uma responsabilidade ilimitada pelas
consequências que se viessem a verificar. Para a procura desta justa medida, Ricoeur faz
apelo à prudência que permitirá antever quais as consequências nefastas, que devem ser
evitadas. É pela prudência que o agente conseguirá antever quais os efeitos das suas
ações que devem ser evitados e será sobre estes que assumirá a responsabilidade. Fá-lo
através da ponderação das alternativas durante a deliberação, em que as diversas
hipóteses de decisão são equacionadas. De tal forma que, Nunes104 descreve a prudência
como “uma forma de conhecimento, como as ciências e as artes, por isso situada nas
virtudes intelectuais”.
Deste modo, a pessoa-agente deve antever as consequências dos seus atos e decidir
sobre o realizado tendo também em conta os possíveis efeitos. Ou seja, para além da
finalidade que orienta o agir, a previsão dos resultados determina igualmente as
decisões. De tal forma, que na assunção da responsabilidade, são tidos em conta o ato
em si e os resultados produzidos. No plano jurídico, consoante a modalidade de
responsabilidade em apreço, estará em causa essencialmente o resultado, ou o conjunto
de ato-resultado. No primeiro caso, surge a responsabilidade civil, em que a relevância
vai para o dano, enquanto resultado verificado. Na segunda hipótese temos os outros
tipos de responsabilidade, em que, para além do resultado e independentemente dele, o
autor responde pela conformação do ato à norma jurídica.
104
NUNES, Lucília – Ética: Raízes e Florescências em Todos os Caminhos. Loures: Lusociência, 2009.
188 p. ISBN 978-972-8930-47-9. P. 89
43
resultado do compromisso de cuidado105 assumido, obriga a uma ponderação do
processo e dos fundamentos utilizados.
105
Como o considera Nunes em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e
Mediações nos Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8.
p. 353
106
Idem, p. 365
107
Ibidem
108
RICOEUR, Paul - Les trois niveaux du jugement médical. ESPRIT. Nº 227. (Dezembro.1996). p. 21-
33
44
do profissional de saúde, nem se sobrepõe nem se subalterna à decisão da pessoa
cuidada, mas onde é encontrada uma terceira via para o problema da autononia versus
paternalismo em saúde. O pacte de soins permite o envolvimento das duas pessoas na
relação – profissional e pessoa-cliente de cuidados – numa tentativa de harmonização
entre a oferta de cuidado com base no conhecimento científico sobre as necessidades em
resultado do estado de saúde/doença e a capacidade de aceitação do cuidado proposto.
De igual modo, o pacto de cuidado em Nunes é estabelecido entre um enfermeiro capaz
e competente e uma pessoa que se confiou aos seus cuidados, igualmente capaz para
exercer o seu poder de decidir sobre si. Este conceito de pacto é subsumível ao de
contrato, em que duas partes, iguais em capacidade de decidir, negoceiam os termos da
sua relação. No caso da relação de cuidado de enfermagem, este contrato estabelecer-se-
á entre enfermeiro e pessoa ao seu cuidado, numa procura de aproximações entre o que
cientificamente o enfermeiro propõe e a vontade do Outro para aceitar, em resultado das
suas convicções, das suas fragilidades ou dos seus projetos de vida.
Frequentemente a pessoa inclui na sua proximidade relacional, os seus familiares e
amigos, que constituem para si o seu suporte social. De tal forma que devemos
considerar o conceito de familiar como a pessoa, parente ou amigo, que cada pessoa
nomeia como convivente próximo, independentemente da sua relação sanguínea
(conceito adotado ao longo desta tese). Esta amplitude relacional implica uma
abrangência de cuidado por parte do enfermeiro, sem deixar contudo de situar o papel
de cada um na relação de cuidado estabelecida.
45
Deste modo, o enfermeiro, sendo juridicamente, um profissional autónomo, exerce o
seu poder de tomar de decisões de cuidado (assim como nas restantes áreas de atuação,
a saber, a gestão, a formação, o ensino, assessoria e a investigação, como prevê o
número 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 161/96 de 4 de Setembro). Assim, a uma
individualização científica que tem sido desenvolvida nas últimas décadas, a
enfermagem portuguesa encontra uma correspondente autonomia profissional,
claramente consagrada no ordenamento jurídico do país. É em resultado desta
autonomia científica e profissional, que o enfermeiro toma a seu cargo a formulação
diagnóstica e a decisão de cuidado, em função dos problemas identificados. E é no
âmbito desta decisão para o cuidado, que emergem problemas éticos. Emergindo da
relação de cuidado entre o enfermeiro e a pessoa, no âmbito do exercício profissional
autónomo, estes problemas serão considerados problemas éticos de enfermagem.
Do mesmo modo, realizando-se hoje a prestação de cuidados, nomeadamente em
situação de doença, sobretudo em ambiente multiprofissional, surgem igualmente
problemas que poderão não circunscrever-se ao domínio de enfermagem. A sua
resolução incluirá, para além do enfermeiro e da pessoa em causa, os demais
profissionais de saúde envolvidos.
46
competências profissionais. Relativamente à decisão ética em particular, o enfermeiro é
igualmente detentor de competências específicas, adquiridas na licenciatura de base e
desenvolvidas ao longo do seu percurso profissional. Este desenvolvimento da
competência profissional, que é ao mesmo tempo “capacidade de juízo e de acção”109,
é fundamental para a contínua necessidade de resolver os problemas éticos que vão
surgindo.
Deste modo, sendo um profissional autónomo e com as necessárias competências para a
tomada de decisão ética, o enfermeiro, sujeito capaz e livre, assume a responsabilidade
profissional. Age segundo critérios do agir profissional110, que decorrem da ética e
deontologia de enfermagem.
No plano deontológico esta responsabilidade é relativa às decisões, aos atos realizados e
aos atos delegados, como se encontra estabelecido na alínea b) do artigo 79º do Código
Deontológico do Enfermeiro, incluso no Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado
pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro. A responsabilidade profissional em
enfermagem inclui assim a decisão e a ação, numa clara proteção da pessoa cliente de
cuidados. Pelas decisões tomadas e pelos seus efeitos manifestados no Outro, o
enfermeiro responde. Fá-lo, na verificação da conformação das decisões e dos atos com
os deveres e as normas jurídicas que deve obedecer com a sua conduta profissional.
Responsabilizar-se pelo Outro, que no sentido ético determina o agir, nos planos
deontológico e jurídico implica o responder quando a afectação do Outro se tornou
negativa, causando-lhe dano. De tal forma que, havendo incumprimento de deveres com
violação de direitos das pessoas, há lugar a sanção. E assim, a um esperado agir
responsável, corresponde um regime deontológico e jurídico de responsabilidade
profissional que tem como finalidade a proteção das pessoas. É deste modo, que o
enfermeiro assume a plenitude do seu compromisso de cuidado e garante que o pacto de
cuidado é respeitado.
109
Como o considera Nunes em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e
Mediações nos Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8.
p. 365
110
Como abordamos em: DEODATO, Sérgio – Critérios do Agir Profissional. Revista da Ordem dos
Enfermeiros. ISSN 1646-2629. Nº 29 (Maio.2008). p. 45-50
47
3. ENQUADRAMENTO ESPISTEMOLÓGICO DO ESTUDO_________________
111
Cf. MONCADA, Cabral de – Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. 359
p. ISBN 972-32-0086-4. p. 232
48
de em alguns domínios, como a bioética, se discutir atualmente, a necessidade de uma
fundamentação ética para o direito, a verdade é que, na sociedade democrática em que
vivemos, a norma jurídica resulta, essencialmente do consenso social criado.
No domínio profissional, por exemplo, em que as éticas relativas a cada profissão têm
emergido com algum relevo, estas têm-se refugiado na deontologia normativa,
materializando na norma jurídica, os sues princípios e valores. No caso da enfermagem
portuguesa, cujo Código Deontológico é relativamente recente (1998), o seu
aparecimento surge incluído numa lei positiva, o Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril,
que cria a Ordem dos Enfermeiros e aprova o seu Estatuto. A posterior alteração deste
Decreto-Lei através da Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro, manteve inclusa a
deontologia profissional, onde se inclui o Código Deontológico. Uma tendência
positivista, associada sobretudo à necessária segurança jurídica da letra da lei, própria
do nosso tempo.
112
KANT, Imannuel – Crítica da Razão Pura. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. Trad.
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 680 p. ISBN 978-972-31-08623-7. p. 37
113
Ibidem, p. 61
114
Ibidem, p. 61
115
Ibidem, p. 61
49
é um produto do espírito humano”116. Bachelard critica o olhar positivista do
conhecimento científico mas considera que é possível uma conciliação entre este e o
novo pensamento epistemológico, para o qual propõe a introdução de “princípios
epistemológicos novos”117.
Para vincar esta sua rutura epistemológica, Bachelard, analisa o passado científico,
considerando que o pensamento científico se tem perpetuado inalterado nos últimos dois
mil anos. Dá como exemplo a Geometria, que, não sofre alteração epistemológica desde
Euclides. Critica igualmente Descartes e o seu método científico, considerando que está
a fazer uma “condenação da doutrina das naturezas simples e absolutas”118. Isto
porque, no seu entendimento “na realidade, não há fenómenos simples; o fenómeno é
um tecido de relações”119. Da mesma maneira, considera que também não existem
ideias simples e que estas “não são de modo nenhum a base definitiva do
conhecimento”120.
Marcando a sua tese racionalista, Bachelard, refere que “as regiões do saber científico
são determinadas pela reflexão”121 e que os factos só se tornam factos científicos,
quando tornados em pensamento racional. A revolução epistemológica que ele próprio
propõe, consiste em “evidenciar o racionalismo (a ordem das razões) e situar em
posição subalterna o empirismo (a ordem dos factos)”122. Desta forma, e referindo-se
ao que denomina de “materialismo racional”, considera que o conhecimento resulta do
racional que antecede a experiência, ou seja que “um potente a priori conduz a
experiência”123. O racionalismo de Bachelard, enuncia que o conhecimento científico
nasce da formulação de um problema pelo Homem e nunca parte do zero. De tal forma,
que o primeiro obstáculo colocado à descoberta do conhecimento é a experiência
inicial124. Assim, desde a sua origem, o conhecimento, reside na razão. De outro modo,
os fenómenos investigados são descritos através de conceitos científicos, ou seja,
conceptualizados pela razão.
116
BACHELARD, Gaston – O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 1996. 124 p. ISBN 971-44-
0915-5. p. 7
117
Idem, p. 18
118
Ibiden, p. 101
119
Ibidem, p. 105
120
Ibidem, p.105
121
Ibidem, p. 33
122
Ibidem, p. 35
123
Ibidem, p. 83
124
Ibidem, p. 120
50
Também na linha racionalista, Karl Popper, distingue dois tipos de conhecimento: o
conhecimento objetivo e o conhecimento subjetivo. O conhecimento objetivo é o
evidenciado aos sentidos e o subjetivo aquele que o Homem diz saber.
Ainda no domínio dos conceitos, Popper, distingue entre verdade e veracidade. A
verdade, em Popper, está ligada à descrição dos fenómenos “mas sempre em presença
do argumento e da crítica, porque afirmar que uma teoria é verdadeira ou falsa
representa fazer um juízo crítico sobre ela”125. Assim, em Popper, “o conhecimento
científico e a racionalidade humana que o produz são (...) sempre falíveis ou sujeitos a
erro”126, introduzindo assim o conceito de faliabilidade em ciência. O conhecimento
científico é conhecimento, até ser demonstrado, por novo conhecimento, que é falso e,
neste sentido, a ciência é revolucionária.
Temos assim a ideia de um conhecimento científico que não é imutável e que se
desenvolve no tempo. A investigação em ciência, surge como um meio de garantir o
desenvolvimento científico, na medida em que, colocando em causa descobertas
anteriores, produz conhecimento novo. Só aceitando esta falibilidade proposta por
Popper, justificamos a realização de investigação.
Lakatos, considera que para chegar à episteme127 ao contrário da doxa, é necessária uma
“metodologia dos programas de investigação”128. Lakatos, afasta-se assim de uma
investigação que tem como ponto de partida uma ou um conjunto de hipóteses,
considerando, inicialmente, “uma série de teorias em desenvolvimento”129, com uma
estrutura própria e sólida, que se colocam em estudo. É através dos programas de
investigação que o conhecimento se produz, revelando, se descoberto, a falsidade do
anteriormente conhecido.
125
POPPER, Karl – O Conhecimento e o Problema Corpo – Mente. Lisboa: Edições 70, 1997. Trad.
Joaquim Alberto Ferreira Gomes. 173 p. ISBN 972-44-0961-9. p. 113
126
POPPER, Karl – O Mito do Contexto. Em Defesa da Ciência e da Racionalidade. Lisboa: Edições
70, 1999. Trad. Paula Taipas. 253 p. ISBN 972-44-0997-X. p 9
127
LAKATOS, Imre – História da Ciência e sua Reconstruções Racionais. Lisboa: Edições 70, 1998.
Trad. Emília Picado Tavares Marinho Mendes. 175 p. ISBN 972-44-0958-9
128
Idem, p. 90
129
Ibidem, p. 90
51
estava errado, Thomas Kuhn, propõe o conceito de paradigma130. O conhecimento
científico, organiza-se em paradigmas ou corpo de conhecimento, aceite num
determinado tempo pela comunidade científica, que permite o desenvolvimento da
investigação a partir daí. A mudança de paradigma ocorre quando acontece uma
alteração nos princípios e nos conceitos básicos que suportam determinada teoria.
130
KUHN, Thomas – A Estrutura das Revoluções Científicas. 1ª ed. Lisboa: Guerra e Paz Editores,
2009. Trad. Carlos Marques. 286 p. ISBN 978-989-8175-42-0
131
Em SANTOS, Boaventura de Sousa – Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna. 6ª ed. Porto:
Edições Afrontamento, 2002. ISBN 972-36-0207-5. p. 151-152
132
Idem p, 154-155
133
Ibidem p.160
134
Ibidem p. 155
135
Ibidem, p. 147
52
outro modo, Boaventura Sousa Santos136 faz também referência à inclusão da dimensão
emocional no discurso científico pós-moderno, passando assim a considerar também a
componente não cognitiva, para além desta.
Santos137 propõe uma divisão entre a epistemologia e a sociologia da ciência. À
epistemologia cabe ocupar-se dos factores internos da ciência, as suas condições
teóricas e os seus aspectos cognitivos. Por sua vez, à sociologia da ciência caberá a
abordagem dos “factores não teóricos, externos ou não cognitivos”138. Ou seja,
considera que a existência desta sociologia crítica da ciência se deve ao facto de existir
um conjunto de condicionantes de natureza social na produção do conhecimento
científico.
Relativamente ao conhecimento científico, Santos considera a existência de duas ruturas
epistemológicas. Uma primeira quando o conhecimento novo se “confronta com o
senso comum”139 e a outra ocorre quando “esse conhecimento não se destinar a
transformar o senso comum e a transformar-se nele”140. À luz desta segunda rutura
epistemológica sugerida por Santos, surge a ciência pós-moderna, em que o
conhecimento científico se abre a outros saberes. A ciência pós-moderna, nascida do
paradigma emergente segundo o autor, considera que “todo o conhecimento científico é
auto-conhecimento. A ciência não descobre, cria, (...)”141 e os pressupostos do
investigador, como as suas crenças ou o seu juízo de valor, integram este conhecimento.
Sousa Santos, afasta-se assim do paradigma anterior, da ciência moderna, em que era
clara a distinção entre sujeito e objecto.
Face ao quadro epistemológico analisado, cabe-nos agora delimitar a corrente onde nos
situamos e na qual pretendemos situar o nosso estudo.
Partimos para esta investigação, com um trabalho anterior na mesma área da tomada de
decisão em enfermagem, consubstanciado na tese de mestrado em bioética. O que
pretendemos investigar, está fortemente influenciado por esse trabalho, pelo que a
136
Ibidem p. 133-135
137
Ibidem p. 156
138
Ibidem p. 156
139
Ibidem p. 168
140
Ibidem p. 168
141
SANTOS; Boaventura Sousa – Um Discurso Sobre as Ciências. 15ª ed. Porto: Edições Afrontamento,
2007. 59 p. ISBN 978-972-36-0174-9. p. 20
53
delimitação do objeto do estudo se fez a partir daí. De outro modo, consideramos a
investigação como o meio de descoberta do conhecimento, na medida em que descreve
os fenómenos, mas fá-lo, com o sentido da interpretação do investigador. Utilizando
qualquer dos métodos e das técnicas possíveis para colher dados, os resultados serão
sempre objecto de interpretação. Desta forma, consideramo-nos inseridos na corrente do
criticismo de Kant, procurando, com este estudo uma teorização sobre a decisão em
enfermagem, da forma que, humanamente, conseguiremos racionalizar, por via da
interpretação dos resultados obtidos e torna-lo conhecimento de enfermagem.
De outro modo, consideramo-nos também próximos do pós-modernismo de Boaventura
Sousa Santos. O autor, que considera que no paradigma epistemológico emergente, a
que corresponde a ciência pós-moderna, “o conhecimento é total, tem como horizonte a
totalidade universal”142. Assim, quando investigamos a decisão ética de enfermagem,
procurando, nomeadamente, os fundamentos utilizados, contamos, à partida, com
resultados que se incluíram em diversos domínios do saber, da enfermagem à sociologia
ou da ética ao direito. A natureza transversal da enfermagem, permitiu-nos lidar com
esta variedade de dados, também suportado, do ponto de vista epistemológico, pela tese
pós-modernista de Boaventura Sousa Santos.
A clarificação do campo epistemológico onde nos encontramos ajudou-nos a suportar as
decisões metodológicas e permitiu-nos igualmente justificar o trabalho de análise e
discussão dos resultados obtidos. Com efeito, a interpretação dos dados que realizamos
e as relações teóricas que estabelecemos resultam deste enquadramento epistemológico
que nos influenciou enquanto investigador.
142
Idem. p. 18
54
Jean Davallon143, distingue o objeto científico, que considera consistir numa
“representação já construída do real”, do objeto de investigação que corresponde ao
“fenómeno, ou o facto, tal como o investigador o constrói para o estudar” e do objeto
concreto, do domínio da observação. O autor considera o objeto científico como o
resultado final da investigação, consistindo no conhecimento produzido através dos
estudos realizados. Situa-se no fim da escalada do conhecimento que vai da observação
simples do real, passando pela realidade investigada, até ser produzido o conhecimento
científico. É este conhecimento que constitui o objeto da cada ciência.
Nestes termos, a identificação do objeto científico da enfermagem, resulta da
delimitação que o atual conhecimento de enfermagem fez emergir. O conhecimento
produzido, enquanto resultado da investigação realizada no campo onde os cuidados são
prestados, permite assim circunscrever o objeto científico da enfermagem.
Mas quando olhamos a enfermagem enquanto área do saber, partimos desde logo com
uma dificuldade ou antes um desafio, que é o de considerar a sua particularidade
epistemológica. Em primeiro lugar, seguindo Amendoeira144, devemos incluir a
enfermagem no grupo das disciplinas profissionais, ou seja aquelas em que cujo saber é
dirigido “para objectivos práticos”. Noutra perspectiva, o conhecimento de
enfermagem encerra mais do que o domínio científico, considerando Carper145 que
inclui também o conhecimento ético, o estético e o conhecimento pessoal do
enfermeiro. Ou seja, o conhecimento de enfermagem ultrapassa o domínio científico,
incluindo duas dimensões filosóficas, a ética e a estética e ainda o conhecimento que o
enfermeiro detém sobre si. A autora identifica estes quatro padrões de conhecimento de
enfermagem como integrantes do todo disciplinar que suporta a prestação do cuidado. O
conhecimento científico, empírico por natureza, que constitui a base fundamental da
disciplinar de enfermagem, constituído por teorias que apresentam explicações abstratas
143
DAVALLON, Jean – Objecto concreto, objecto científico, objecto de investigação. Trad. Helena
Santos. (Em linha). (Consult. 25.Ago.2007). Disponível em:
http://prisma.cetac.up.pt/artigospdf/3_objecto_concreto_objecto_cientifico_objecto_de_investigacao_j
ean_davallon.pdf. p 5
144
Cf. AMENDOEIRA, José – Cuidado de Enfermagem: Intenção ou Acção. O que Pensam os
Estudantes? (Em linha). (Consult. 28.Ago.2007). Disponível em:
http://joseamendoeira.com.sapo.pt/textos/artigos/CuidEnf.IntAc.OQPOE.pdf P.4
145
Cf. CARPER, B.A. Fundamental patterns of knowing in nursing. In POLIFRONI, Carol E.; WELCH,
Marylouise, Perspectives on Philosophy of Science in Nursing. An Historical and Contemporary
Anthology. Philadelphia: Lippincot, 1999
55
para os fenómenos estudados. O padrão ético que corresponde ao conhecimento
utilizado pelo enfermeiro na sua relação de cuidado que lhe permite um agir com cada
pessoa, no respeito por si e pela sua dignidade. O conhecimento estético que inclui a
criatividade usada na relação de cuidado e a adaptação artística que o enfermeiro faz do
cuidado a cada pessoa, tornando única cada relação de cuidado. E o conhecimento
pessoal do enfermeiro, enquanto conhecimento sobre a sua individualidade, que lhe
permite uma melhor utilização de Si na relação com o Outro. Considerar o
conhecimento em enfermagem, na perspectiva de Carper implica assim observar estes
diferentes padrões, enquanto dimensões complementares que, conjuntamente,
fundamentam o cuidado.
De todo o modo quando consideramos o objeto disciplinar da enfermagem este é
referido na literatura enquanto objeto científico, relevando-se assim a dimensão
empírica do conhecimento de enfermagem. Abel Paiva146 considera como “objeto de
estudo as respostas humanas envolvidas nas transições geradas pelos processos do
desenvolvimento ou por eventos significativos da vida que exigem adaptação”,
adoptando o conhecimento mais recente e aludindo em particular ao conceito de
transição de Meleis e Trangenstein. O conhecimento sobre as respostas humanas nas
transições de vida que as pessoas experimentam, corresponderá assim ao objeto
científico da enfermagem.
Contudo, se analisarmos outros autores deparamo-nos com outras propostas conceptuais
para o objeto disciplinar, dependendo do contexto histórico e da escola de pensamento
onde se encontra. Como traço comum realça-se o cuidado humano como resposta
disciplinar e profissional aos problemas apresentados pelas pessoas, no âmbito do
objeto disciplinar considerado. O conhecimento de enfermagem, suporta a prestação do
cuidado pelo enfermeiro, dirigindo-se para a promoção do auto-cuidado efetuado pela
pessoa e substituindo-a sempre que a sua situação de vida o exigir.
Deste modo, a delimitação do objeto disciplinar permite a identificação de problemas
que serão resolvidos através da prestação de cuidados de enfermagem. Os problemas de
enfermagem, que emergem do conhecimento disciplinar produzido, são aqueles com os
quais o enfermeiro lida na sua relação de cuidado e originam a formulação diagnóstica
que faz iniciar o Processo de Enfermagem. É destes problemas que nos ocuparemos no
capítulo seguinte, considerando que a clarificação do problema científico de
146
Cf. PAIVA, Abel – Enfermagem Avançada: Um Sentido para o Desenvolvimento da Profissão e da
Disciplina. Servir. ISSN 0871-2379. Nº 55. (Jan. Fev, 2007). P. 11-19
56
enfermagem como ponto de partida para a tomada de decisão clínica, permite contribuir
para a delimitação do meio onde ocorrem os problemas éticos de enfermagem.
57
4. IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA CIENTÍFICO DE ENFERMAGEM_____
Não sendo nosso objetivo uma análise profunda de cada filosofia, modelo ou teoria, mas
apenas a identificação do problema de enfermagem em cada um, optamos por utilizar
58
como fonte de pesquisa, uma obra que os resume147. Ou seja, servimo-nos da análise
destes autores e da sua interpretação dos textos produzidos pelos teóricos, para
identificar a emergência de um conceito de problema de enfermagem, nestas fontes de
conhecimento. Esta utilização de fontes secundárias, permitiu-nos uma maior
abrangência das filosofias, modelos e teorias analisadas, tornando assim possível uma
visão ampla sobre a abordagem da definição do conceito no conhecimento produzido.
No caso de Virgínia Henderson, considerando o seu contributo histórico para a
definição de enfermagem e tendo em conta que pela primeira vez situa o problema nas
Necessidade Humanas Básicas da pessoa – utilizado depois por diversas outras teorias –
utilizamos uma fonte primária.
59
um sentido de realização”; “divertir-se ou participar em várias formas de recreação”;
“aprender”150. São as necessidades apresentadas pelas pessoas que justificam e estão na
base da prestação dos cuidados. São necessidades comuns ao ser humano, para que este
mantenha a sua vida, mas cuja satisfação difere de pessoa para pessoa, como
consequência dos diversos factores internos e externos que influenciam os modos de
vida. Henderson considera mesmo que o enfermeiro “nunca poderá compreender
totalmente ou proporcionar tudo o que outra pessoa necessita para o seu bem-estar”151.
Deste modo, na perspectiva da autora, as necessidades que cada pessoa evidencia, são
diferentes, como diversas são também as suas formas de satisfação. Todavia, esta
circunstância não altera o fundamento para os cuidados de enfermagem, ou seja as
necessidades humanas. Com efeito, independentemente do tipo de necessidades em
causa e do modo com elas irão ser satisfeitas, continuamos a ter como objeto do
cuidado, as necessidades da pessoa. Assim, seguindo Virgínia Henderson, podemos
delinear a tomada de decisão em enfermagem destinado à prática do cuidado, que se
inicia na identificação de um problema que consiste numa necessidade humana alterada.
Faye Glenn Abdellah, partiu da sua convicção de que o ensino de enfermagem nos anos
50 do sec. XX nos Estados Unidos da América, precisava de uma base de conhecimento
próprio, para construir a tese dos 21 problemas de enfermagem, tendo como fonte as 14
necessidades de Virgínia Henderson. Para chegar a estes 21 problemas, Abdellah
realizou estudos em que utilizou a entrevista com pessoas doentes, para identificar 58
problemas que depois o National League for Nursing reduziu para os 21 finais. A
formulação destes problemas, surge como necessidades que as pessoas apresentam para
a sua sobrevivência.
Desta forma, esta autora identifica um conjunto de problemas que são o ponto de partida
para os cuidados. De resto Abdellah define problema de enfermagem, considerando-o
como “uma situação enfrentada pelo doente ou pela família que a enfermeira pode
ajudar a resolver através do desempenho das suas funções profissionais”152. Para a
autora, os cuidados são prestados, na sequência de um processo que decorre da
identificação de um dos problemas de enfermagem definidos.
150
Idem, p. 15-16
151
Ibidem, p. 8
152
Cf. TOMEY, Ann Marriner; ALLIGOOD Martha Raile – Teóricas de Enfermagem e a Sua Obra.
Modelos e Teorias de Enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência, 2004. 750 p. Trad. Ana Rita
Albuquerque. ISBN 972-8383-74-6. p 131
60
Estas duas filosofias e nomeadamente a de Virgínia Henderson trouxeram um
contributo fundamental para o conhecimento de enfermagem e igualmente para a
prestação de cuidados. O problema de enfermagem encontra-se situado nas alterações
das Necessidades Humanas Básicas da pessoa, o que constitui um delimitação científica
do conceito. Trata-se de uma definição que assenta na pessoa e nas alterações que esta
apresenta na satisfação das suas necessidades básicas e que, por isso, constitui um
problema próprio da área do conhecimento de enfermagem. De tal forma que a
resolução desse problema fundamenta a realização de intervenções profissionais de
enfermagem, ou seja de cuidados.
Nestes termos a circunscrição disciplinar do conceito de problema – a necessidade
humana básica alterada – permite a clarificação do cuidado, uma vez que esta resulta da
identificação daquele e concretiza-se no âmbito de um processo científico de tomada de
decisão, o Processo de Enfermagem.
61
os indivíduos têm deliberadamente de desempenhar por si próprios ou que alguém a
execute por eles para preservar a vida, a saúde, o desenvolvimento e o bem-estar”156.
Ao considerar o “défice de auto-cuidado” como a diferença entre as necessidades de
auto-cuidado de uma pessoa e a sua atividade de cuidado próprio, Orem situa o
problema de enfermagem, uma vez que define os cuidados como aqueles que são
prestados por enfermeiros para satisfazer as necessidades das pessoas de auto-cuidado.
Apesar de não surgir definido, o problema de enfermagem em Orem será o défice do
auto-cuidado das pessoas.
Callista Roy criou o MAR: Modelo de Adaptação de Roy, segundo a qual “a adaptação
refere-se ao processo e resultado através do qual as pessoas pensantes e sensíveis,
enquanto indivíduos ou grupos, utilizam a consciência e a escolha para criar a
integração humana e ambiental”157. A enfermagem tem como objetivo central, segundo
Roy, promover a adaptação, no sentido de alcançar o bem-estar. Roy considera que os
problemas de adaptação, relativos à sua teoria “são vistos não como diagnósticos de
enfermagem, mas como áreas de preocupação para a enfermeira relacionada com a
pessoa ou grupo em adaptação”158. Os diagnósticos de enfermagem são construídos a
partir da avaliação do estado de adaptação das pessoas às suas situações de vida.
Betty Neuman criou o Modelo de Sistemas, que se baseia na teoria geral dos sistemas.
A pessoa é considerada como um sistema que inclui necessidades. A enfermagem atua
nesse sistema, quando há necessidades por satisfazer. O problema de enfermagem
156
Ibidem, p.218
157
Ibidem, p 307
158
Ibidem, 304
62
corresponderá a uma alteração nessas necessidades quando há “variações do bem-
estar”159, nomeadamente causadas pelos factores considerados como stressores.
159
Ibidem, p. 344
160
Nomeadamente as de: Hildergard Peplau; Ida Orlando; Joyce Travelbee; Ramona Mercer; Madeleine
Leininger; Rosemarie Rizz Parse; Merle Mishel; Margaret Newman; e Nola Pender.
161
Idem, p. 484
63
cuidados-criança”.162 Em 1981 definiu enfermagem como “o diagnóstico e tratamento
das respostas humanas aos problemas de saúde”163.
Não encontramos nesta teoria, qualquer definição de problema de enfermagem.
Todavia, a definição de enfermagem leva-nos a considerar que este se situará nas
respostas que as pessoas conseguirão dar ou não aos seus problemas de saúde.
162
Ibidem, p. 550
163
Ibidem, p. 547
164
Ibidem, p. 690
165
Ibidem, p. 692
64
filosofia, modelo conceptual ou teoria, um conceito diferente de enfermagem e de onde
emerge, de forma mais ou menos delimitada, um conceito próprio de problema de
enfermagem.
166
Cf. PAIVA, Abel – Enfermagem Avançada: Um Sentido para o Desenvolvimento da Profissão e da
Disciplina. Servir. ISSN 0871-2379. Nº 55. (Jan. Fev, 2007). P. 11-19
65
forma de promover a aplicação do conhecimento teórico de enfermagem à prática dos
cuidados.
66
PARTE II
_______________________________________________
METODOLOGIA
Fernando Pessoa
67
1. OPÇÕES METODOLÓGICAS_________________________________________
68
1.2 Campo de Análise
167
QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, LucVan – Manual de Investigação Em Ciências Sociais. 2ª
ed. Lisboa: Gradiva, 1998. 282 p. Trad. João Minhoto Marques; Maria Amélia Mendes; Maria
Carvalho. ISBN 972-662-275-1. p.157
168
Utilizaremos a expressão pessoa-cliente, para nos referirmos à pessoa que estabelece o pacto de
cuidado com o enfermeiro, iniciando com este uma relação de cuidado. Por relação de cuidado
entendemos a relação interpessoal entre a pessoa-cliente e o enfermeiro destinada à prestação de
cuidados de enfermagem.
69
1.3 Amostra
169
Segundo dados estatísticos da Ordem dos Enfermeiros (Em linha) (Consult. 23.Abril.2010). Disponível
em:
http://www.ordemenfermeiros.pt/membros/Documents/OE_Dados_Estatisticos_2000_2009_VFinal.pdf
170
QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, LucVan – Manual de Investigação Em Ciências Sociais. 2ª
ed. Lisboa: Gradiva, 1998. 282 p. Trad. João Minhoto Marques; Maria Amélia Mendes; Maria
Carvalho. ISBN 972-662-275-1. p.161
171
Como o consideram Procter e Alan, para a investigação qualitativa, em: PROCTER, Susan; ALAN,
Teresa – Muestreo. In GUERRISH, Kate; LACEY, Anne – Investigación en Enfermeria. 5ª ed.
Madrid: McGraw-Hill/Interamericana de España, 2008. Trad. dirigida por Vicent Montalt. ISBN 978-
84-481-6390-7. p. 181
172
QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, LucVan – Manual de Investigação Em Ciências Sociais. 2ª
ed. Lisboa: Gradiva, 1998. 282 p. Trad. João Minhoto Marques; Maria Amélia Mendes; Maria
Carvalho. ISBN 972-662-275-1. p.161
70
tipo “bola-de-neve” (snowball), como referem Polit e Beck173 (por exemplo) em que o
primeiro sujeito nomeou o segundo, este o terceiro e assim sucessivamente até ser
verificada a saturação dos dados. Partimos do princípio de que, ao ser explicado o fim
do estudo e tendo em conta que qualquer enfermeiro prestador de cuidados conhece
outros também prestadores de cuidados que resolveram problemas éticos, cada sujeito
entrevistado ficaria em condições de indicar o seguinte. As sucessivas nomeações
permitiram uma natural diversidade dos sujeitos. Para a primeira entrevista, utilizou-se
uma amostra de tipo conveniência, segundo a acessibilidade ao primeiro sujeito.
173
POLIT, Denise F.; BECK, Cherly, Tatano – Nursing Research: Principles and Methods. 7ª ed.
PHiladhelphia: LWW, 2004. 758 p. ISBN 0-7817-3733-8. p. 306-307
174
Segundo dados estatísticos de 31.12.2009, da Ordem dos Enfermeiros (Em linha) (Consult.
23.Abril.2010). Disponível em:
http://www.ordemenfermeiros.pt/membros/Documents/OE_Dados_Estatisticos_2000_2009_VFinal.pdf
71
análise dos resultados. Foi tida em conta a relação de cuidado em si, independentemente
do contexto organizacional onde os cuidados são prestados.
No quadro seguinte são apresentados os dados relativos à caracterização desta amostra.
N % TOTAL
GENERO F 12 80.00 15
M 3 20.00
IDADE 21-30 3 20.00
31-40 2 13.33 15
41-50 10 66.67
REGIÃO DE LVT 8 53.33 15
TRABALHO Alentejo 7 46.67
TÍTULO Enfermeiro 6 40.00 15
PROFISSIONAL Enf. Especialista 9 60.00
LOCAL DE Hospital 14 93.33 15
TRABALHO Estab. Prisional 1 6.67
ANOS 5-9 3 20.00
DE 10-14 2 13.33
ATIVIDADE 15-19 6 40.00 15
PROFISSIONAL 20-24 3 20.00
25-29 1 6.67
Legenda: F – Feminino; M – Masculino; LVT – Lisboa e Vale do Tejo; Enf. – Enfermeiro; Estab. -
Estabelecimento
72
sociais”177. Como o nosso propósito é delimitar problema ético e descrever a construção
da decisão de enfermagem e significar os fundamentos utilizados a partir da valoração
dos próprios enfermeiros, optamos pela recolha de dados através da entrevista, que
responde ao objeto do nosso estudo.
A opção pela entrevista resultou ainda do objetivo metodológico de pretender obter a
descrição da realidade de uma forma que Paul Ricoeur178 considera de revelada e
recriada pelo autor da experiência vivida. Seguindo o filósofo, as narrativas “imitam e
ordenam o agir humano”179, pelo que, conhecer a experiência vivida a partir da
narrativa do autor, permiteu-nos chegar às razões do seu agir. A narrativa de
experiências vividas pelo próprio, permiteu-nos interpretar os significados atribuídos ao
vivido. Ensina-nos Paul Ricoeur que “a percepção é dita, o desejo é dito”180, de tal
forma “que não há experiência emocional tão escondida, dissimulada ou distorcida que
não possa ser trazida à clareza da linguagem e revelada no seu próprio sentido”181. É
com estes fundamentos que optamos pela entrevista, como técnica para a recolha dos
dados.
177
Idem, p. 142
178
Cf. RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. p.8
179
Idem, p. 9
180
Ibidem, p. 40
181
Ibidem, p. 40
73
Assim, partimos de 4 questões:
1) Narre uma situação que tenha constituído um problema ético para si, enquanto
enfermeiro.
2) Justifique porque considerou que essa situação constituiu um problema ético de
enfermagem.
3) Narre como resolveu essa situação.
4) Realce as questões que esta situação lhe levantou após a sua resolução.
Para garantir a credibilidade182 dos dados pesquisados nas narrativas obtidas com as
entrevistas, pedimos a todos os participantes que a entrevista fosse gravada e que
procedessem à revisão dos respectivos verbatins. Só depois desta revisão se procedeu à
análise de conteúdo.
Pretendemos recolher os dados, a partir do discurso dos enfermeiros, sujeitos do estudo,
tomando as suas afirmações como a valoração que fizeram das suas decisões e dos seus
atos. Como Wittgenstein, estamos a considerar que “a verdade das minhas afirmações é
a prova da minha compreensão dessas afirmações”183. Seguimos assim o filósofo, neste
particular de dar ênfase à linguagem enquanto fonte de proposições que aceitamos como
182
Como consideram Streuber e Carpenter em: STREUBERT, Helen J.; CARPENTER, Dona R. –
Investigação Qualitativa em Enfermagem: Avançando o Imperativo Humanista. 2ª ed. Loures:
Lusociência, 2002. 383 p. Trad. Ana Paula Sousa Santos. ISBN 972-8383-29-0. p. 33
183
WITTGENSTTEIN, Ludwig – Da Certeza. Edição Bilingue. Lisboa: Edições 70, 2000. Trad. Maria
Elisa Costa. 191 p. ISBN 972-44-0816-7. p. 35
74
certas. A linguagem onde se inserem os conceitos, que podemos partilhar com os
outros.
184
BARDIN, Laurence – Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2003. 225p. Trad. Luís Antero e
Augusto Pinheiro. ISBN 972-44-0898-1
185
Cf. COSTA, António Firmino – A Pesquisa de Terreno em Sociologia. In SILVA, Augusto; PINTO,
José Madureira – Metodologia das Ciências Sociais. 14ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 2007.
ISBN 978-972-36-0503-7. p. 144
186
Como refere Judith Lathelan em: LATHELAN, Judith – Análises Cualitativo. In GUERRISH, Kate;
LACEY, Anne – Investigación en Enfermeria. 5ª ed. Madrid: McGraw-Hill/Interamericana de
España, 2008. Trad. dirigida por Vicent Montalt. ISBN 978-84-481-6390-7. p. 419
75
1.6 Considerações éticas
Os aspectos éticos relativos a este estudo estão relacionados com o meio, com os
participantes e com a confidencialidade dos dados.
Relativamente ao meio, uma vez que pretendemos obter relatos de enfermeiros inseridos
em contextos organizacionais de prestação de cuidados de enfermagem, tivemos que
equacionar a autorização formal dos responsáveis dessas organizações de saúde.
Todavia, uma vez que o pretendido foi o relato posterior de situações vividas pelos
enfermeiros, a recolha pôde ser feita fora do contexto de exercício profissional. Ou seja,
nenhuma organização de saúde constitui meio do estudo, uma vez que o nosso objetivo
foi pesquisar as narrativas dos enfermeiros. Assim, não havendo envolvimento da
organização de saúde enquanto meio de pesquisa e como os enfermeiros participantes
vieram ao estudo também sem ligação formal ao seu contexto de trabalho, consideramos
não ser necessária autorização das organizações de saúde onde os enfermeiros
participantes exercem a sua atividade profissional.
Relativamente aos sujeitos, como referimos, estes participaram, após o seu livre e
esclarecido consentimento, formalizado através de documento escrito. Foi assim
assegurada a participação livre de cada enfermeiro, tendo sido fornecida toda a
informação sobre o estudo, quanto aos fins e métodos utilizados. O feedback dos
resultados será assegurado através da publicação do estudo.
A confidencialidade das fontes foi garantida durante todo o processo. Para tal, as
entrevistas foram arquivadas com identificação codificada, sem referência aos sujeitos
nem aos locais onde foram realizadas. Os dados extraídos foram sempre manuseados
sem qualquer referência ao sujeito do estudo, inclusive na publicação dos resultados.
76
PARTE III
_____________________________________________________
APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS:
DO PROBLEMA À DECISÃO ÉTICA DE ENFERMAGEM
Mário Cesariny
77
1.IDENTIFICAÇÃO DOS PROBLEMAS ÉTICOS DE ENFERMAGEM________
187
Publicado em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos
Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8
78
na categoria sigilo profissional integram-se problemas apenas relativos a uma sub-
categoria: contexto das práticas.
1.2 Informação
Da análise dos dados resulta que a informação surge como uma área problemática, na
qual se inscrevem diversos problemas éticos, num total de 6 unidades de registo,
integrados em 2 sub-categorias: informação relativa aos cuidados e dilemas na
informação. A primeira com 5 e a segunda com uma única unidade de registo.
Esta área revela-se como problemática em enfermagem, como já havíamos verificado
em estudo anterior189. No estudo de Nunes190 do qual emergiu a classificação que
adotamos, esta categoria revelou-se igualmente como prevalente.
188
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 264
189
Publicado em: DEODATO, Sérgio – Responsabilidade Profissional em Enfermagem: Valoração da
Sociedade. Coimbra: Edições Almedina, 2008. 194 p. ISBN 978-972-40-3401-0
190
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8
79
consequências que essa transmissão pode originar nas pessoas. O enfermeiro confronta-
se com a dúvida sobre “contar ou não contar a verdade“, equacionando sobre os
efeitos que uma notícia, nomeadamente uma má notícia, podem provocar no estado de
saúde-doença das pessoas. Constatamos deste modo, que o problema se inicia com as
incertezas quanto ao agir, quando está em causa a proteção das pessoas. Perante um ato
que podia ser considerado como meramente acessório face à prestação de cuidados,
verificamos que o enfermeiro inclui esta sua atuação, na esfera da prestação de cuidado.
Do mesmo modo que pondera os efeitos das suas intervenções na pessoa e decide em
função da decisão clínica com base científica, o enfermeiro, coloca a decisão sobre a
transmissão da informação no domínio da decisão ética.
O conflito entre o respeito pelas normas vigentes e o dever de proteção das pessoas no
âmbito da transmissão da informação, constitui também um problema emergente nesta
sub-categoria, com a emergência de uma unidade de contexto. Perante a transmissão de
uma má notícia, em que o enfermeiro considera estar melhor colocado para a realizar,
coloca-se o problema da norma jurídica imputar essa responsabilidade a outro
profissional. O enfermeiro vê-se assim confrontado perante um conflito entre o respeito
pela lei191 e um agir que considera mais protetor do Outro. O conflito assume como foco
central a transmissão da informação e o lidar com as suas consequências, verificando-se
que a existência de uma norma constitui um obstáculo ao exercício profissional. Esta
ponderação entre o cumprimento “cego” da lei e uma decisão que garanta a proteção das
pessoas revela-se como problemática, colocando o enfermeiro numa séria interrogação
face ao seu agir profissional concreto.
191
“lei” em sentido amplo, considerando uma qualquer norma de natureza jurídica, independentemente da
sua fonte formal.
80
interrogações inserem-se, mais uma vez, no domínio das preocupações com o Outro,
nomeadamente quanto às consequências dos atos de enfermagem. No caso, a
ponderação dos efeitos noutras pessoas, em resultado de uma omissão, quando “o
doente também não queria que contássemos à namorada”.
Nesta situação, temos a transmissão da informação como uma ação em si mesmo, sem
uma ligação direta ao cuidado. Todavia, mais uma vez, chamando ao domínio da
decisão ética, o enfermeiro coloca esta transmissão da informação na própria esfera do
cuidado. Ou seja, informar ou não informar, constituem, eles próprios, cuidados de
enfermagem e é por esta razão que são considerados como problemas de enfermagem.
O acompanhamento em fim de vida foi a categoria que emergiu com maior número de
unidades de registo, num total de 49, o que nos leva a concluir pela importância desta
área dos cuidados de enfermagem. As decisões sobre cuidados na fase final da vida,
81
com as dúvidas sobre o prolongar da vida em condições de aumento do sofrimento ou as
incertezas quanto ao respeito pela opinião dos familiares, evidenciam-se como áreas
problemáticas.
Nesta categoria incluem-se problemas respeitantes a duas sub-categorias: dilemas face
ao morrer e obstinação terapêutica. A primeira conta com 47 unidades de registo e a
segunda com 2.
82
este limite. Para além de intenso, este contexto relacional revela-se bastante complexo,
tendo em conta as inúmeras variáveis com que o enfermeiro tem que lidar, muitas vezes
em tempo reduzido. A resposta sim ou não a um pedido destes, poderia inclusivamente
consubstanciar a decisão mais fácil, contudo, verificamos que a chamada a si da
situação enquanto problema, constitui uma evidência pela ponderação das intervenções
a realizar.
83
1.4 Decisão do destinatário dos cuidados
84
consentimento ou um agir que se entende no sentido do melhor beneficio do Outro.
Emerge claramente um conflito entre o respeito pela autonomia da pessoa e da sua
capacidade de escolher o cuidado, face ao dever de agir no sentido da manutenção da
vida ou da integridade física. Ou seja, o conflito entre princípios éticos profissionais,
considerados hoje como essenciais na relação de cuidado de enfermagem. Conflitos
entre a decisão clínica e decisão ética que se revelam bastante problemáticos para o
enfermeiro.
85
Quadro 3 – Problemas éticos identificados, integrados na categoria decisão do
destinatário dos cuidados.
CATEGORIA SUB-CATEGORIA UNIDADE DE CONTEXTO UE
DECISÃO DO DESTINATÁRIO RESPEITO PELA DECISÃO Não consentimento pelo cliente, para o 2
DOS CUIDADOS EXPRESSA
cuidado proposto, em situação de risco de
vida.
Não consentimento para internamento 1
proposto.
Não consentimento pelo cliente menor (15 1
anos) com capacidade de decidir sobre o
cuidado, sem risco de vida.
DECISÃO PELO OUTRO Não consentimento pelos pais de criança 1
menor, de cuidado necessário, mas sem risco
de vida.
86
relativa à escolha entre um agir no cumprimento das regras estabelecidas e no respeito
pelos direitos do cliente, violando regras e a segunda relativa a dúvidas sobre realizar
um cuidado considerado desumano.
De novo surgem dúvidas quanto a um agir que se mostra violador de regras
estabelecidas, mas que se pretende respeitador dos direitos humanos. Ou, de outro
modo, incerteza quanto a decidir cuidados que se consideram em si, violadores deste
direitos. O enfermeiro vê-se assim confrontado com situações em que a decisão de
determinado cuidado e a sua execução originariam práticas violadoras dos direitos das
pessoas, vislumbrando uma decisão alternativa, mas “realmente fora (…) do que está
estabelecido”. Ou seja, apesar da existência de normas institucionais que obrigam ao
cumprimento de todos, o enfermeiro equaciona, perante determinados casos concretos,
se essas normas respeitam ou não os direitos das pessoas em causa.
De outro modo, os casos em que o enfermeiro se vê confrontado com uma necessidade
de realizar uma intervenção que parece mostrar-se adequada face a uma situação de
elevado risco de vida, implicam também interrogações sobre o melhor agir. Estas
interrogações situam-se no âmbito da proteção da pessoa e do respeito pelos direitos
humanos, quando algumas intervenções são consideradas desumanas. É o caso em que
se afirma “eu nem diria contenção física, diria contenção”, quando a intervenção
contenção física, mais do que uma medida terapêutica, é ponderada quanto à sua
humanitude.
87
1.6 Sigilo Profissional
88
pela pessoa e o sigilo profissional, constituem os domínios relativamente aos quais
identificamos problemas éticos de enfermagem. Seguindo igualmente a categorização
de Nunes, foi possível integrar os diversos problemas identificados em sub-categorias,
sem contudo esgotar o total da classificação, como de resto aconteceu com as
categorias.
89
São interrogações quanto ao agir, partindo do princípio de que as escolhas terão que ser
ponderadas, tendo em conta as diferentes variáveis identificadas.
Na categoria respeito pela pessoa inscrevem-se problemas éticos que tomam como foco
central a proteção da pessoa enquanto destinatário dos cuidados, no que concerne à sua
dignidade e aos seus direitos. Alguns, que integram a sub-categoria cuidado
personalizado, são relativos à ponderação da decisão face ao conflito entre o
cumprimento das práticas instaladas e os direitos das pessoas. Outros, incluídos na sub-
categoria respeito pelos direitos humanos dizem respeito a dúvidas quanto à escolha da
melhor intervenção que garanta o respeito pelos direitos humanos, enquanto dimensão
essencial da humanitude da pessoa em causa. É a ponderação entre realizar ou não uma
intervenção, em resultado de uma rega estabelecida ou de uma prática comum, que
coloca o enfermeiro na situação de interrogação, quando este considera que o respeito
pela pessoa pode ser colocado em risco.
90
dilemática, em que as soluções que se vislumbram afiguram-se ambas como violadoras
de regras. Decidir entre elas constitui um problema ético situado no domínio do
exercício profissional do enfermeiro.
Como eixo central a este conjunto de problemas éticos referidos pelos enfermeiros,
identificamos a ponderação na escolha das intervenções, quando está em causa a
proteção da pessoa, seja enquanto cliente de cuidados, seja como familiar. O problema
encontra sempre ligação com este sentido de proteger o Outro, considerando esta
protecção como inerente ao cuidado de enfermagem. É este fim que faz equacionar
decisões, mesmo quando estão em causa, práticas ou normas em vigor.
Deste modo, concluímos que os problemas éticos de enfermagem identificados, têm na
sua essência uma interrogação face ao agir, quando se coloca como fundamento central
para a decisão, a pessoa e a sua dignidade. Todavia, o capítulo seguinte, relativo à
identificação da natureza do problema ético de enfermagem, permitirá clarificar esta
tendência conceptual.
91
Dúvidas sobre prestação de cuidados que 13
prolongam a vida em fim de vida.
Dúvidas sobre a escolha de algumas 3
intervenções para com os familiares
Pedido de eutanásia 3
DECISÃO DO DESTINATÁRIO RESPEITO PELA DECISÃO Não consentimento pelo cliente, para o 2
DOS CUIDADOS EXPRESSA
cuidado proposto, em situação de risco de
vida.
Não consentimento para internamento 1
proposto.
Não consentimento pelo cliente menor (15 1
anos) com capacidade de decidir sobre o
cuidado, sem risco de vida.
DECISÃO PELO OUTRO Não consentimento pelos pais de criança 1
menor, de cuidado necessário, mas sem risco
de vida.
RESPEITO PELA PESSOA CUIDADO Escolha entre, agir cumprindo a prática 8
PERSONALIZADO
instalada, violadora da intimidade dos
clientes e não cumprir a prática corrente,
protegendo a intimidade.
RESPEITO PELOS Escolha entre um agir no cumprimento das 2
DIREITOS HUMANOS
regras estabelecidas e no respeito pelos
direitos do cliente, violando regras.
Dúvidas sobre realizar um cuidado 2
considerado desumano.
92
2. A NATUREZA DO PROBLEMA ÉTICO DE ENFERMAGEM______________
93
esta análise foi sendo feita à medida que os dados foram sendo recolhidos através das
entrevistas realizadas, foi possível verificar a saturação das diversas categorias, num
momento relativamente próximo ao da saturação das demais categorias em análise.
Os resultados são agora apresentados nos sub-capítulos seguintes.
O conflito que surge entre princípios científicos e éticos perante a ponderação de uma
decisão de parar cuidados planeados, ocorre sempre que a decisão de cuidado exige
uma ponderação, na escolha como fundamento, entre um princípio científico e um
princípio ético que se encontram em confronto. O enfermeiro lida com uma situação em
que o plano de cuidados está estabelecido com base em conhecimento científico, mas
cuja execução é colocada em causa, perante princípios éticos que considera aplicáveis.
Estas situações ocorrem sobretudo em fim de vida, quando o conhecimento científico
determina algumas intervenções que começam a ser consideradas como eticamente
desadequadas. O problema coloca-se perante a constatação de que “era eu ver que não
fazia nada de bem aquela pessoa quando lhe ía prestar cuidados”. É perante este
conflito que se interroga “se deve ou não continuar o tratamento”, sendo que a decisão
mais difícil e por isso problemática, é a que pondera “como é que vamos suspender?”.
Nesta unidade de contexto integram-se 9 unidades de registo.
Noutro domínio emerge uma unidade de contexto relativa às dúvidas sobre a decisão
ética adequada, para a pessoa, que inclui 6 unidades de registo.
94
sobre se essas intervenções são eticamente aceitáveis. Interroga-se sobre “qual é a
melhor decisão, o que é que eu faço melhor para…”, colocando em causa os princípios
científicos normalmente aplicáveis aquela situação.
Esta incerteza quanto ao modo de agir, verificada em expressões do tipo “o que é que
eu faço?”, constitui o problema de partida com o qual o enfermeiro se confronta. É
perante ele e na constatação de que existem mais do que uma possibilidade de decidir,
que o enfermeiro inicia a construção de uma decisão que resolva o problema
identificado. Uma interrogação que não é diagnóstica, uma vez que do ponto de vista
científico o plano de cuidados está estabelecido, mas que é ética, na medida em que
equaciona a melhor intervenção, não apenas para responder ao diagnóstico de
enfermagem formulado, mas para contribuir para a proteção da pessoa em causa. Ou
seja, o problema assume esta natureza de conflito entre os princípios científicos
normalmente aplicáveis a situações clínicas semelhantes e princípios éticos que o
enfermeiro considera dever cumprir.
Outra unidade de contexto diz respeito a dúvidas sobre intervenções dirigidas aos
familiares, que integra 3 unidades de registo.
95
Do mesmo modo que as interrogações quanto ao agir perante a pessoa que se apresenta
como cliente de cuidados constituem problemas éticos para o enfermeiro, as incertezas
quanto aos familiares também se revelam problemáticas. Em situações de maior
complexidade do estado de saúde/doença como no fim de vida, o enfermeiro desloca o
seu foco de atenção para os familiares, de uma forma mais intensa. As dificuldades dos
familiares em lidar com o novo estado da pessoa doente constituem igualmente um alvo
dos cuidados de enfermagem. É nesta relação de cuidado com os familiares que surgem
interrogações quanto à melhor intervenção a realizar em determinado contexto
específico. O enfermeiro questiona-se sobre se “eu ligo à senhora que foi
descansada?”, por exemplo. Ou seja, se de uma perspectiva do conhecimento científico
de enfermagem, a intervenção deva ser realizada, a proteção da pessoa em causa coloca
em equação essa decisão, verificando-se assim um conflito entre o determinado pelo
conhecimento científico e os princípios do melhor agir ético.
Por fim, relativamente a esta categoria emerge uma unidade de contexto relativa ao conflito
entre decisão clínica adequada e decisão ética clinicamente desadequada, onde se
inserem 2 unidades de registo.
O conflito surge quando o enfermeiro é chamado a participar numa decisão
multiprofissional sobre o início de determinado tratamento. O enfermeiro vê-se
confrontado com a decisão sobre se deve iniciar “ou não um tratamento que se não
iniciar estamos a acelerar o seu processo de morte, ou estamos a fazer um tratamento
que não traz melhoria a este doente e estamos só a prolongar o sofrimento”. Perante
um determinado plano terapêutico cientificamente adequado, coloca-se a questão de
saber se, naquela pessoa em concreto, isso não significará um aumento do seu
sofrimento. Esta participação do enfermeiro numa decisão de equipa, revela-se
igualmente um problema ético de enfermagem.
96
Quadro 7 – Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria
conflito entre princípios: científicos e éticos
CATEGORIA UNIDADE DE CONTEXTO UE
97
normativo aplicável ou as normas deontológicas que prescrevem deveres. Este conflito
constitui um problema ético de enfermagem, colocando-se aquando da decisão sobre
que intervenção executar.
Num outro domínio, encontra-se o conflito entre o respeito por normas jurídicas e o
dever de promover o bem-estar das pessoas, que constitui também uma unidade de
contexto da categoria do conflito entre normas, com 5 unidades de registo. Nestes casos,
o conflito é relativo ao cumprimento entre o que se consideram ser normas jurídicas
aplicáveis e um agir diferente, suportado no respeito pelo dever profissional de
promover o bem-estar. Fica em conflito, uma norma que integra uma lei que se aplica à
situação concreta e outra norma que se aceita como prescritora do dever de promover o
bem-estar do Outro. O problema ético é relatado como a constatação de que “fiquei
dividida entre, vou esperar que aconteça a situação normal e ser eu - uma pessoa com
uma relação muito diferente e que acompanhou a situação – a fazê-lo“. Surge o
confronto entre “aquilo que nos é dito que é a norma….ou os passos que devem ser
dados…” no cumprimento de outras normas que se consideram mais adequadas à
situação em apreço.
Ainda nesta categoria emerge outra unidade de contexto relativa ao conflito entre regras
estabelecidas e respeito pelos direitos das pessoas, que inclui 3 unidades de registo.
O conflito acontece quando o enfermeiro equaciona “alterar uma norma ou uma prática
corrente” no respeito pelos direitos das pessoas. Mais uma vez, o sentido de proteção
das pessoas, leva o enfermeiro a ponderar se, numa situação concreta e em
circunstâncias específicas, deve seguir a norma organizacional vigente ou se deve
alterá-la, permitindo assim o exercício de determinado direito das pessoas em causa. O
problema surge no confronto do agir do enfermeiro no sentido de respeitar o Outro e os
seus direitos e a existência de regras que, estando adequadas à maioria dos casos, não
corresponde à necessidade específica de uma situação concreta. É esta interrogação
sobre quais normas aplicar, considerando que os direitos das pessoas estão inscritos em
normas jurídicas, que constitui o problema ético de enfermagem.
98
Quadro 8 – Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria
conflito entre normas.
CATEGORIA UNIDADE DE CONTEXTO UE
O conflito entre a vontade do cliente e respeito pela dignidade humana emerge como
uma unidade de contexto com 5 unidades de registo. Integra as referências a situações
em que o exercício da autonomia individual das pessoas a quem são prestados cuidados
fica em conflito com aquilo que o enfermeiro considera ser o respeito universal pela
dignidade humana. Perante um pedido de cuidado que a ser concretizado violaria de
forma inequívoca a dignidade da pessoa humana, o enfermeiro interroga-se: “o que é
que eu faço agora?“. São situações em que a decisão de cuidado implica uma
interrogação quanto à escolha da intervenção a executar, quando a ponderação dessa
escolha assume como limite o respeito pela dignidade.
99
próprio, mas que o enfermeiro considera ser lesiva da dignidade daquela pessoa em
particular e da dignidade humana de uma forma geral.
DESRESPEITO PELA DIGNIDADE Conflito entre a vontade do cliente e respeito pela dignidade 5
HUMANA humana
Desrespeito pela dignidade das pessoas 3
Outra categoria emergente, é relativa ao conflito de valores, que integra uma unidade de
contexto com 8 unidades de registo.
100
decidir não fazer, aumentando esse risco, revela-se como uma situação marcadamente
problemática em enfermagem.
A violação de direitos é outra categoria que surge com uma unidade de contexto, onde
se inserem 7 unidades de registo.
101
Quadro 11 – Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria
violação de direitos.
CATEGORIA UNIDADE DE CONTEXTO UE
Também o risco para o bem-estar constitui uma categoria emergente, com duas
unidades de contexto, onde se inserem 5 unidades de registo. As unidades de contexto
são: conflito entre proteção do bem-estar do cliente e do bem-estar dos familiares e
decisões que colocam em causa o bem-estar da pessoa.
102
Quadro 12 – Características do problema ético de enfermagem, segundo a categoria
risco do bem-estar.
CATEGORIA UNIDADE DE CONTEXTO UE
As decisões que podem implicar risco para a saúde são também consideradas como
problemas éticos de enfermagem neste estudo, constituindo uma categoria com uma
unidade de contexto.
As situações narradas integram a unidade de contexto risco para a saúde dos familiares,
com 2 unidades de registo. Dizem respeito a dificuldade de decisão no domínio da
transmissão da informação, quando estão em causa outras pessoas, para além do cliente
de cuidados. Ou seja, os casos de decisão sobre comunicar factos da saúde da pessoa-
cliente, quando isso implica com a proteção da saúde dos outros. Nomeadamente as
situações em que a não transmissão pode colocar em risco a saúde dos familiares.
O enfermeiro considera que “esse é que era o nosso problema: o risco para a saúde das
pessoas que estavam envolvidas com ele”. É a partir desta presunção de risco que é
ponderada a decisão, que a concretizar-se implicará a partilha de informação de saúde
alheia e portanto quebra de sigilo profissional. Todavia, este risco para a saúde dos
outros revela-se como bastante preponderante e é sobre ele que a situação é
equacionada. A decisão de transmitir ou não informação é sobretudo ponderada
assumindo este risco como foco e é a interrogação sobre como agir que constitui o
problema ético de enfermagem.
103
2. 9 Conflito de direitos
Por fim, o conflito de direitos emerge também como uma categoria, com uma unidade
de contexto.
Os problemas éticos identificados são relativos ao conflito entre direitos da pessoa e
direitos dos seus familiares. Perante a decisão de cuidado na proteção de um direito da
pessoa a quem são prestados cuidados, surgem situações em que pode estar em causa
proteção de um direito do familiar, surgindo a interrogação “até que ponto é que isso é
um direito dele”. A decisão de cuidado faz assim emergir um conflito de direitos, sendo
que o enfermeiro considera dever respeitar ambos. O conflito resulta da possibilidade da
acção, ao mesmo tempo que se fundamenta no facto do direito de um, ser violadora do
direito de outrem. A decisão, resultará da ponderação deste conflito, que consubstancia
um problema ético de enfermagem.
CONFLITO ENTRE DIREITOS Conflito entre direitos da pessoa e direitos dos seus familiares. 1
Deste modo podemos concluir que existe problema ético de enfermagem quando ocorre
um conflito entre princípios científicos e princípios éticos ou um conflito sobre normas
aplicáveis ao exercício da prática de cuidados de enfermagem. Verifica-se igualmente
um problema ético de enfermagem quando a intervenção ponderada coloca em risco o
desrespeito pela dignidade humana. Do mesmo modo, estamos perante um problema
ético de enfermagem sempre que a decisão implicar um conflito entre valores ou uma
violação de direitos das pessoas que integram a relação de cuidado. Também o risco
para o bem-estar ou o risco para a saúde estão na origem do problema ético de
enfermagem. Por fim, também o conflito entre direitos das pessoas envolvidas nos
cuidados, constitui um traço identitário da natureza de problema ético de enfermagem.
São estes elementos que contribuirão para a construção do conceito pretendido, quando
analisados segundo uma metodologia apropriada. Esta tarefa encontra-se concretizada
no capítulo 1 da parte IV.
105
Conflito entre regras estabelecidas e respeito pelos direitos das 3
pessoas
DESRESPEITO PELADIGNIDADE Conflito entre vontade do cliente e respeito pela dignidade 5
humana
Desrespeito pela dignidade humana. 3
CONFLITO ENTRE VALORES Conflito entre valores profissionais e valores do cliente. 8
VIOLAÇÃO DE DIREITOS Violação de um direito da pessoa. 7
RISCO DO BEM-ESTAR Conflito entre protecção do bem-estar do cliente e do bem-estar 4
dos familiares
Decisões que colocam em causa o bem-estar da pessoa 1
RISCO PARA A SAÚDE Risco para a saúde dos familiares 2
CONFLITO ENTRE DIREITOS Conflito entre direitos do cliente e direitos dos seus familiares. 1
106
3. FASES DA CONSTRUÇÃO DA DECISÃO ÉTICA DE ENFERMAGEM_____
Apesar de verificarmos que a construção da decisão ética de enfermagem não tem uma
natureza processual, no sentido em que uma etapa se segue a outra, ficou claro a
clarificação do começo da actividade mental de decidir. Como início da tomada de
decisão ética, surge a identificação do problema ético de enfermagem. Com efeito, há
lugar a decisão ética quando o enfermeiro se vê confrontado com uma situação da
prestação de cuidados de enfermagem que encerra em si um problema ético. Ou seja,
para que a decisão ocorra, é necessário que o enfermeiro contacte com alguma incerteza
face ao seu agir profissional que o obrigue a uma reflexão ética prévia à decisão. É
107
necessária a constatação de que “houve uma situação que me incomodou bastante”,
para que haja lugar a uma construção de decisão ética. De tal forma que esta só acontece
se, durante uma prática profissional de prestação de cuidados, surgir algum
acontecimento que seja valorado como um problema ético de enfermagem.
O enfermeiro ao narrar o ponto de partida para a decisão, tem a oportunidade de
verificar de que “aquilo gerou muita discussão entre nós todos na altura e revoltou-me
bastante”. É esta interrogação sobre como agir perante uma situação concreta no âmbito
de uma relação de cuidado estabelecida com uma pessoa ou com os seus familiares ou a
incerteza sobre “saber o que era melhor para o doente” naquele contexto específico,
que constitui o início da construção da decisão ética de enfermagem.
Esta identificação do problema ético de enfermagem constitui assim uma fase bem
determinada da construção da decisão ética pelo enfermeiro. Delimita-se enquanto fase
e emerge como a primeira face a todas as demais. É partir dela que as restantes
actividades mentais e de partilha com outros se desenrola, no sentido de alcançar uma
solução para o problema identificado, ou seja uma intervenção de enfermagem que se
considere adequada à situação concreta.
Uma outra fase que emerge da análise das narrativas, é o envolvimento do cliente e dos
familiares na decisão. De facto, a dada altura da construção da decisão e por vezes em
mais do que um momento, o enfermeiro procura que quer a pessoa ao seu cuidado, quer
os seus familiares, participem diretamente na construção de decisão. Ou seja, há uma
procura da solução para o problema, na própria vontade da pessoa em causa ou dos seus
familiares.
No caso da pessoa recetora dos cuidados, é procurado que ela, para além do destinatário
da intervenção, constitua ela mesma um sujeito na construção da decisão. O enfermeiro
considera que “o doente tem que ser informado detalhadamente e em pormenor e
termos a noção de que ele está a tomar uma decisão consciente”. Deste modo, ao
mesmo tempo que a pessoa constitui o centro do problema, o sujeito a partir do qual se
identificou uma interrogação quanto à melhor intervenção a realizar, é também chamado
a participar na procura da solução.
108
Nesta fase ganha particular relevância a transmissão da informação, considerando-se
que “é conversar, é dialogar, é explicar que não há outra hipótese....!”. É a transmissão
da informação de enfermagem, que é considerado como um factor determinante deste
envolvimento da pessoa na decisão sobre o problema ético que lhe diz diretamente
respeito. De tal forma que também na resolução de problemas éticos continua a existir
“uma relação terapêutica que valida…e exactamente o utente percebe que estamos ali
para o ajudar”. Deste modo, o enfermeiro revela a convicção de que “estamos sim
numa postura de ajuda e de parceria com ele”.
Uma outra fase que emerge da análise dos dados é a relativa à construção da decisão em
equipa. Para além do envolvimento da pessoa e dos familiares, os resultados
evidenciam também uma procura do envolvimento dos outros elementos da equipa. Em
concreto, podemos mesmo distinguir uma chamada de enfermeiros apenas ou, num
plano mais alargado, dos restantes profissionais da equipa de saúde.
Trata-se de uma fase que não surge situada de forma processual num determinado
tempo, mas que é referida mais como estratégia de procurar a solução para o problema
ético encontrado. O recurso à equipa surge frequentemente como não planeado, mas de
uma forma espontânea perante o novo acontecimento, bastando a verificação de que
“estávamos a duas na unidade e o médico que estava de serviço, falamos ali.”
109
A equipa funciona assim como mais um recurso para a procura da solução, permitindo
nomeadamente a discussão de pontos de vista diferentes. Perante a dificuldade em
decidir, recorre-se ao profissional que está próximo, integrado na equipa que está
presente no contexto real, considerando-se que “vamos lá pensar as duas para tentar
resolver isto da melhor forma. E lá ficamos ali as duas a falar“. Frequentemente este
envolvimento da equipa é tido como essencial à construção da decisão afirmando-se que
“eu partilhei sempre com os colegas”. Ou seja, esta discussão emerge, não apenas
como subsidiária da tomada de decisão, mas assumida como fase fundamental dessa
construção.
Deste modo, sem abdicar da responsabilidade por procurar decidir, verifica-se que o
enfermeiro procura nos outros, colegas ou demais profissionais, uma validação para as
suas possibilidades de decisão, “provavelmente porque ela era uma pessoa com….anos
e com alguma sensibilidade e apoiou-me na minha decisão pessoal e disse-me para
fazer aquilo eu estava a pensar fazer”. A experiência e o saber do outro são factores
determinantes desta procura, assim como o reconhecimento pelas competências no
âmbito da decisão ética.
De outro modo, verifica-se igualmente que a identificação de um problema ético pode
funcionar como um desafio à discussão. A partir da dificuldade de escolher a melhor
intervenção, o enfermeiro aproveita o contexto para fomentar a reflexão dos outros e a
partilha em equipa, concluindo que “houve um grande debate”. De tal forma que a
resolução do problema ético acaba por promover o envolvimento do grupo em torno de
uma discussão, quando nem sempre essa possibilidade de partilha está presente.
110
da solução para o problema ético encontrado, o enfermeiro chama diferentes bases que
possam servir de alicerce ético para a sua decisão e para os seus atos.
Esta busca pela fundamentação da decisão ética constitui-se como uma fase que se
verifica após a identificação do problema ético de enfermagem e antecede a intervenção
escolhida. Situa-se assim entre estes dois pólos do contínuo da decisão ética, na medida
em que emerge após a confrontação do enfermeiro com a situação de onde resulta o
problema (ou os problemas) e constitui-se como uma fase da preparação da decisão,
antes da concretização da ação. Mais uma vez, como acontece com as duas fases
anteriores, a ponderação dos fundamentos para a decisão, não surge claramente situada
num tempo ou num percurso processual de decisão. Surge como inerente à construção
da decisão, mas sem uma situação processual definida.
Nesta fase, são colocados em equação fundamentos diversos e de diversa natureza. O
enfermeiro procura frequentemente “o melhor para ele…para ele”, numa clara
fundamentação ética do seu agir em função do Outro. Esta ponderação daquilo que
fundamenta o agir profissional é também evidenciada como uma equação das diferentes
alternativas, como fica claro na afirmação: “depois ainda pensei em dizer sem ele
saber”. Ou seja, verifica-se uma fase de reflexão, marcadamente vivida pelo enfermeiro
na busca da solução. Desenvolve-se assim uma atividade mental prévia à decisão que
consiste em “pensar conscientemente…ponderar uma série de factores, que estas
coisas têm que ser mais ponderadas”. Uma atividade mental que tem um objetivo a
atingir, que é o da procura da solução para o problema. Uma solução que é
consubstanciada numa intervenção de enfermagem, idêntica a qualquer outra, mas que
assume a importância de ter sido a escolhida (ou as escolhidas) face a uma situação
humana complexa e problemática.
A decisão resulta assim desta atividade de refletir o que é melhor e o que é pior,
assumindo-se como necessária. A intervenção surge “depois de ponderar muito os
aspectos” que envolvem a complexidade do problema, na procura dos diversos
fundamentos que a possam legitimar. Associa-se assim a ideia de que “é uma decisão
que precisa ser amadurecida para ponderar os prós e os contras”. Este
amadurecimento exige uma reflexão pessoal intensa que implica inclusivamente o
questionar sobre o “que é que eu estou enquanto técnico de saúde a proporcionar
aquele doente, quando lhe estou a fazer um tratamento”. Deste modo, interrogando,
questionando, antevendo consequências, o enfermeiro pondera os fundamentos éticos e
de outra natureza que possam suportar o seu agir.
111
Nesta categoria incluem-se 35 unidades de registo.
A decisão, enquanto atividade mental prévia ao ato (ou aos atos) constitui uma fase
essencial a esta construção que estamos a analisar. Com efeito, a decisão segundo os
fundamentos escolhidos emerge como uma categoria da análise dos dados recolhidos
das narrativas dos enfermeiros.
Perante um problema ético, o enfermeiro pondera os fundamentos que suportarão a
decisão, promove o envolvimento com a pessoa ao seu cuidado e com os seus familiares
e acaba por tomar a sua decisão. Uma decisão que visa dar resposta ao problema
identificado, mas que tem por base os fundamentos ponderados. Uma decisão de não
fazer porque “ele não está em risco de vida, a gente não vai actuar contra a vontade”.
Ou uma decisão de agir ativamente, assente no fundamento considerado “para afirmar
naquele momento que a minha decisão também era essa e porque é que era essa.”
A decisão surge assim associada ao seu fundamento, emergindo estas duas dimensões
como um bloco inseparável. Ou seja, a intervenção decidida resulta de uma construção
que incluiu outras fases e justifica-se através do fundamento que lhe está associado. De
tal forma, que a referência à decisão surge frequentemente com a referência ao
fundamento utilizado, afirmando-se que “isso pesou na minha decisão”. Ou seja, a
referência à decisão tomada vem associada à razão de decidir, considerando-se que
“também ficou definido o que é que eu tinha que fazer para proteger a doente daquela
situação”.
Deste modo, fica claro que a decisão constitui um momento importante da resolução do
problema ético identificado, verificando-se uma referência inequívoca a esta fase.
Afirmações de que “decidi contar nessa altura” ou “naquele dia decidi não dizer à
doente” demonstram uma consciencialização evidente da actividade mental de decidir.
De outro modo, verifica-se também uma assunção individual da decisão, como que uma
chamada a si próprio da última palavra. Afirma-se que “achei que era a melhor forma
de resolver aquela situação”, colocando a decisão na primeira pessoa do singular.
Mesmo nos casos em que, noutros momentos se procure um envolvimento de outros,
como o caso da pessoa cliente de cuidados, dos seus familiares ou dos outros
profissionais da equipa, no momento de decidir, toma-se isso a seu cargo. Existem
112
algumas referências a um “aceitamos prescrição …”, como que deslocando a decisão
da esfera individual para a coletiva, mas parece-nos ser sobretudo uma forma de
linguagem. Com efeito, numa alusão mais concreta à decisão, emerge sobretudo a
referência à individualidade da decisão, afirmando-se que “prescreveu a naloxona e
eu…concordei…”. Ou, de um modo mais veemente, “confesso que acabei por fazê-lo”.
A decisão, enquanto escolha do que fazer em concreto, tendo por base o fundamento
considerado, constitui assim uma fase inequívoca desta construção que antecede a ação.
113
partilhada em algumas fases e que termina numa decisão tomada pelo próprio, surge
igualmente uma assunção pessoal da ação. Isso é notório face à ação, assim como à
omissão, afirmando-se que “não fiz mais nada, mantive-me ali com ele”. Todavia,
relativamente à decisão, a referência ao coletivo da ação, através por exemplo de
“falamos com os pais …” é mais frequente. Ou seja, enquanto que a decisão é tida
sobretudo como uma atividade do próprio, a intervenção surge também considerada
como realizada em equipa. Há, por vezes, como que uma extensão da decisão tomada a
outros elementos da equipa sugerindo que em certos casos isso é natural acontecer
afirmando-se a primeira pessoa do plural, como por exemplo: “temos circunstâncias em
que temos mesmo”.
De todo o modo, esta referência à possibilidade da intervenção decidida ser praticada
por outros membros da equipa para além do próprio, evidencia-se como excepcional,
face à regra da execução por quem decide. De resto a afirmação do próprio na fase de
agir em conformidade com o que se decidiu é frequentemente afirmado através da
inclusão da primeira pessoa do singular na construção da frase, como por exemplo: “e
eu fui falar com ele”. Ou seja, a uma construção da decisão segue-se um agir em
conformidade com a equação e a fundamentação pessoal a prevalecer.
A última categoria a emergir desta análise dos resultados é relativa a uma nova fase e
trata-se da avaliação da decisão. Do mesmo modo que no caso anterior, esta categoria
surge em ligação às anteriores. De facto, de uma forma não generalizada, mas muito
frequente, surgem referências à avaliação da decisão e do praticado. O enfermeiro, após
realizar a intervenção que decidiu, volta a ela, muitas vezes num tempo posterior,
refletindo sobre se considera adequada a sua decisão e se a manteria, afirmando-se
“olho como uma decisão que me pareceu adequada e que depois pratiquei mais vezes”.
É feito um juízo acerca do que se decidiu e do que se realizou ou omitiu, voltando
frequentemente a equacionar os fundamentos utilizados para a decisão, considerando-se
“penso, sinceramente, que fiz o que devia“.
A referência a acontecimentos subsequentes à práticos dos atos, como “a família depois
veio cá mais tarde, agradecer tudo o que nós tínhamos feito”, são uma expressão desse
114
sentido de avaliação. Se em alguns casos se afirma a adequação do decidido e do
realizado, com alguma frequência se conclui o contrário, afirmando-se que “não devia
ter iniciado…”. São sobretudo colocados de novo em equação os fundamentos
utilizados, assim como se admite que não se conseguiu apreender toda a complexidade
da situação, afirmando-se que “eu não percebi na altura isso”. De outro modo, ficam
algumas vezes dúvidas que não se resolveram e que permanecem. Aquando da
avaliação sobre a decisão anterior, admite-se que “fiquei com aquela expectativa sobre
se não lhe devia ter dito também”.
Estas considerações demonstram a evidência da fase da avaliação em momento
posterior ao acontecimento e à intervenção realizada. É notória a emergência da
avaliação sobre a decisão, mesmo que a referência surja sob a forma de interrogação,
como na afirmação: “e o que me preocupa mais é se a decisão que eu tomei foi a mais
correcta naquela altura”. Ou seja, apesar de ser narrada de forma diferente, a avaliação
surge como inerente a este contínuo do problema à ação, considerando-se a ponderação
avaliativa sobre o decidido como fase posterior e autónoma das anteriores. De tal forma,
que é clara a separação temporal entre as fases anteriores e esta.
115
4. FUNDAMENTOS PONDERADOS PARA A DECISÃO ÉTICA DE
ENFERMAGEM_______________________________________________________
116
científicos (de enfermagem) e culturais. Para além destes, foi ainda considerada uma
categoria de fundamentos profissionais, onde se integraram unidades de contexto de
natureza profissional, distinta das diferentes categorias.
117
enfermeiro toma igualmente o consentimento presumido, a partir do conhecimento
sobre as escolhas anteriores da pessoa em causa.
A ponderação dos diversos fundamentos, inclui assim de forma relevante a equação
quanto ao respeito pela decisão da pessoa, considerando-se que “não vale a pena e ele
tomou a decisão de que não quer”. À partida, considera-se que “não estamos ali para o
privar das liberdades dele”, pelo que a decisão sobre a intervenção a realizar terá as
escolhas pessoais em conta.
O respeito pela vida emerge também como um fundamento ético, com 7 unidades de
registo. A vida e a sua proteção constitui assim uma razão para agir, na ponderação da
construção da decisão ética de enfermagem. O respeito pela vida, materializado na
proteção da vida daquela pessoa em concreto, é tido como fundamento ético para a
resolução dos problemas éticos de enfermagem.
Perante as diversas possibilidades de decisão, pondera-se: “mas respeitávamos mais a
vida…”. Esta ponderação envolve a escolha entre diversas alternativas, procurando-se
fundamentos de diversa natureza, em que o respeito pela vida ocupa um lugar de
118
destaque. De tal forma, que a sua valoração é tida como quase absoluta considerando-se
que o enfermeiro assume “o intuito de salvar vidas, de fazer tudo o que estiver ao nosso
alcance para a sobrevivência dos nossos utentes”. É exatamente esta ponderação entre
fundamentos diferentes e por vezes contraditórios que retira esta natureza quase-
absoluta ao respeito pela vida. Uma ponderação que leva a considerar esta valoração
apenas pela vida como um início de reflexão, considerando-se que “o primeiro
momento é salvar a vida”. Só depois de uma reflexão mais profunda e da equação em
simultâneo dos outros fundamentos, se atribui uma valoração relativizada face a outras
condições para agir.
Num outro domínio, mas igualmente com um sentido ético, surge a proteção da saúde
das pessoas como um fundamento ponderado para a tomada de decisão ética de
enfermagem. Foram contabilizadas 5 unidades de registo para este fundamento.
119
Perante uma decisão complexa e difícil por estarem envolvidos diversos direitos em
conflito, nomeadamente quando conflituam os direitos da pessoa cliente dos cuidados
de enfermagem e os dos seus familiares, este sentido da proteção da saúde das pessoas é
especialmente chamado à colação. Perante a ponderação realizada, considera-se que se
optaria por uma determinada decisão se estivesse “em risco a saúde de outros”. Deste
modo, o enfermeiro vê-se obrigado a sair da sua relação de cuidado com uma pessoa,
para alargar o foco das suas preocupações também aos familiares. A par da proteção da
saúde da pessoa ao seu cuidado, o enfermeiro encontra na proteção da saúde de outros,
um fundamento ético para decidir. E assim, a proteção da saúde, enquanto condição
para o agir, constitui-se como fundamento ético ponderado e abrange a relação de
enfermagem no seu todo, incluindo a pessoa cuidada e os sues familiares.
O respeito pelos valores da pessoa, surge igualmente como fundamento ético, com 4
unidades de registo. Numa expressão da sua autonomia, o enfermeiro tem em conta os
valores da pessoa em causa, para decidir sobre aquilo que lhe diz respeito. O
enfermeiro, perante decisões decorrentes de problemas éticos surgidos, adiciona aos
seus valores profissionais os valores da pessoa. Assume perante um eventual conflito
com a sua ética profissional que “eu não tenho que mudar os valores das pessoas”. Da
mesma forma que pondera os diversos fundamentos inerentes ao seu papel profissional,
integra igualmente na construção da decisão, os valores da pessoa, afirmando deste
modo o respeito por mais uma dimensão humana, integrando-a na sua relação de
cuidado.
120
Nesta construção da decisão ética de enfermagem será inevitável que o sofrimento surja
como uma referência obrigatória. Com efeito, aliviar o sofrimento humano constitui
também um fundamento ético que resulta das narrativas, integrando 4 unidades de
registo. Não prolongar o sofrimento e tentar evitá-lo ou alivia-lo, sendo uma dimensão
ética essencial da enfermagem, presente ao longo de todo o seu percurso histórico,
emerge aqui como um fundamento a ponderar na construção da decisão. Esta
ponderação surge sobretudo através de um “questiono-me se eu não estou apenas a
prolongar o sofrimento”. Deste modo, colocam-se em equação os cuidados que estão a
ser prestados, interrogando-se sobre a sua substituição, tendo em conta o alívio do
sofrimento do outro.
O respeito pela dignidade humana surge também como fundamento ético delimitado
face aos demais, com 3 unidades de registo. A chamada deste fundamento à ponderação
da decisão emerge sobretudo em situações de decisão difícil e com conflito
interprofissional incluído. O enfermeiro, ao ponderar as suas decisões de continuidade
de cuidados considera que “já tínhamos ultrapassado o limite do que é humano”,
considerando alterar o plano de cuidados. Na procura do suporte para a escolha das
intervenções a realizar, a dignidade humana evidencia-se como um princípio necessário
para a fundamentação ética apropriada. Justifica-se determinada escolha “porque,
devemos respeitar a dignidade das pessoas”. Recorre-se assim a uma dimensão total da
pessoalidade, apelando ao princípio do respeito pela dignidade humana para aplicação
em concreto na resolução de uma situação específica.
Na fundamentação ética em torno da vida, inclui-se também, uma outra dimensão, que
consideramos complementar ao respeito pela vida, a saber, o respeito pela qualidade de
vida, que inclui 3 unidades de registo. Ele é referenciado como integrante no respeito
geral pela vida humana, mas com uma valoração “essencialmente na qualidade de
vida”. Em vez de uma dicotomia de princípios, estes surgem ligados entre si,
nomeadamente em situações de decisão em fim de vida. As escolhas neste domínio
implicam uma ponderação que além da vida, considera a forma como as pessoas
desenvolvem os seus projectos pessoais. As decisões terão assim em conta, não apenas a
vida em si, de forma abstrata e absoluta, mas a ponderação da qualidade dessa vida, nas
circunstâncias concretas em apreço.
121
A justiça e o respeito pelo princípio da justiça surge também como fundamento ético na
ponderação para a decisão ética de enfermagem, com uma unidade de registo.
Considera-se que, relativamente às pessoas a quem são prestados cuidados “trata-las de
forma igual, respeita-las da mesma forma…e isto implica às vezes trata-las de maneira
diferente”.
122
4.2 – Fundamentos científicos ponderados
123
Ele surge sobretudo quando se equaciona a continuação de um plano terapêutico que se
revela sem eficácia terapêutica. Nesta altura interroga-se sobre decidir terminar
determinada intervenção “porque do ponto de vista clínico ele não está a melhorar”.
Havendo dificuldades na decisão, juntamente com outros fundamentos, o enfermeiro
adiciona as condições científicas que podem ajudar na escolha da intervenção adequada.
A constatação de que “não se via melhoras absolutamente nenhumas …não havia mais
nada”, evidencia uma inutilidade dos cuidados que estão ou podem vir a ser prestados.
Perante esta inutilidade que assume uma natureza científica, porquanto diz respeito ao
plano de cuidados estabelecido à luz do conhecimento científico de enfermagem e
frequentemente em ligação com outras ciências da saúde, o enfermeiro questiona-se
quanto ao seu agir. De tal forma que a antevisão desta inutilidade funciona como um
fundamento para a tomada de decisão e a escolha da intervenção.
124
O quadro seguinte enuncia as unidades de contexto e as unidades de enumeração desta
categoria.
O respeito pelas normas jurídicas surge como unidade de contexto, com duas unidades
de registo em sentidos diferentes. Uma em sentido positivo que apela ao cumprimentos
das normas jurídicas “…. nem que fosse em termos formais”. Outra que vai no sentido
negativo de considerar que “nem sempre a gerir-me por algumas normas, mesmo que
estas normas sejam internas de uma determinada instituição”.
A ponderação do respeito pelas normas revela assim que, existem situações em que o
seu cumprimento deve ser seguido, ao passo que perante outras circunstâncias, o
fundamento pode incluir o seu não cumprimento. Ou seja, a lei – tida aqui em sentido
amplo – é considerada, mas não significa que seja considerada como superior face aos
125
restantes fundamentos. De tal forma que o enfermeiro pondera quer o seu cumprimento
quer decidir em sentido diferente ao disposto nas normas jurídicas.
As restantes unidades de contexto são relativas, cada uma delas, ao respeito por um
direito das pessoas em causa. Sendo os direitos atribuídos por lei, consideramo-los
assim enquanto fundamentos de natureza jurídica.
Na construção da decisão ética, o enfermeiro toma em consideração o direito à reserva
da vida privada, o direito a morrer com dignidade, o direito à informação e o direito á
vida e à integridade física. Perante a situação problemática, o enfermeiro equaciona as
alternativas da sua decisão, mas fá-lo procurando respeitar os direitos das pessoas. Os
direitos surgem assim protegidos pela ação do enfermeiro, sendo utilizados como
fundamentação na ponderação quanto às escolhas das intervenções, quando a decisão se
revela problemática.
126
Na sua narrativa, o enfermeiro refere-se expressamente a alguns dos seus deveres, quer
pela positiva quer negativamente. Na construção da decisão equaciona se a sua decisão
cumpre ou viola o dever que considera como dever profissional. São feitas referências
aos deveres de sigilo, de respeito pela intimidade e pelo dever de cuidado.
O apelo ao dever de guardar segredo da informação, surge sobretudo pela possibilidade
da sua quebra afirmando-se: “estava a quebrar ali o segredo profissional”. Refere-se
um “estava ali” como a possibilidade de violar o dever de sigilo, no caso da realização
de determinada intervenção. Interroga-se sobre se essa intervenção não poderia originar
a divulgação de informação das pessoas, quando se considera que “eu devia manter só
para mim”.
Nesta ponderação do agir segundo os deveres deontológicos, são considerados outros
fundamentos. Refere-se que “neste caso foi o respeito pela intimidade, que é um dever
nosso, da enfermagem”, assumindo a proteção da intimidade das pessoas como um
dever do enfermeiro que deverá servir de fundamento à escolha das intervenções.
Do mesmo modo, é assumido o dever de cuidado, como uma premissa que deve
fundamentar a decisão ética de enfermagem. Considera-se que “nós estamos aqui para
cuidar dos doentes…”, na assunção de que esse cuidado constitui um dever
profissional, ponderado na tomada de decisão.
127
relacionados o exercício da profissão e com a sua condição de enfermeiro. Emergem
duas unidades de contexto: competência profissional e exercício da autonomia
profissional. A primeira integra duas unidades de registo e a segunda unidade de
contexto integra uma.
128
O enfermeiro assume como fundamento para decidir o respeito pelas crenças de
algumas pessoas, integradas num determinado contexto sócio-cultural, considerando
que “eles têm a crença e têm valores diferentes”. Este facto, faz equacionar a
possibilidade de decidir diferente do habitual, contrariando as regras estabelecidas, mas
que respeitarão uma cultura minoritária.
129
Como síntese desta análise, apresentamos no quadro seguinte o conjunto das categorias
e as respectivas unidades de contexto.
Dever de cuidado 1
130
5. FUNDAMENTOS UTILIZADOS PARA A DECISÃO ÉTICA DE
ENFERMAGEM_______________________________________________________
A categoria dos fundamentos éticos é a que integra a maior parte das unidades de
contexto dos fundamentos utilizados – 12 – onde se inserem 50 unidades de registo.
131
O princípio do respeito pela autonomia revela-se através de diversas referências que
consideram como razão de decidir, a vontade da pessoa, alvo dos cuidados. Afirma-se
que o que esteve na base da decisão tomada “foi pelo respeito sim, pela decisão”. O
respeito pela decisão do Outro. Um Outro que se entregou ao cuidado de enfermagem,
mas sobre o qual houve necessidade de decidir determinada intervenção em função do
problema ético surgido. A decisão tomada naquelas circunstâncias, ou seja no contexto
particular em que o problema aconteceu, resultou da vontade expressa da pessoa.
Mesmo perante pessoas sobre as quais se poderiam colocar dúvidas quanto à sua
capacidade para consentir, o enfermeiro justifica a sua decisão “porque respeitei a
vontade daquele adolescente”. Inclusivamente, perante o conflito entre a vontade da
pessoa em causa e a dos seus familiares, o enfermeiro valorou a decisão do próprio,
considerando que o que prevaleceu na decisão “foi a vontade dele e não da mãe …”.
Em algumas situações, este respeito pela autonomia do Outro, surge com referências
negativas. A utilização da vontade da pessoa como fundamento para decidir, é também
tida em conta quando não há consentimento. Nestes casos “é mesmo não ter
autorização, entre aspas, para o fazer, neste caso faltou a autorização do doente”.
Deste modo, a falta de expressão da vontade implica uma decisão de não fazer. Refere-
se que “ele não queria era ser puncionado e nós respeitamos isso…”.
Quer de um modo positivo em que a vontade expressa vai no sentido de agir, ou de
forma negativa em que a decisão pode originar uma omissão, o fundamento que suporta
a decisão é o respeito pela autonomia. O princípio ganha assim materialização nestas
decisões de enfermagem, na medida em que determina o agir do enfermeiro.
132
integridade dela ou de terceiros, de alguma forma, ou de bens…aí não temos muita
dúvida de que é de facto necessário o internamento”. Mesmo que o cuidado em si não
seja aceite pelo próprio. Nestes casos, aquilo que podia ser equacionado como uma
violação da autonomia do Outro nem surge na equação. A referência é apenas ao bem
para a pessoa e a necessidade de assegurar a sua vida ou a sua integridade física. É este
fundamento que acaba por prevalecer na decisão final.
O recurso ao princípio da beneficência para suportar a decisão ética, surge também nas
circunstâncias em que o melhor para o Outro não nasce da apreciação do enfermeiro,
mas tem origem externa. O enfermeiro apropria os pedidos da pessoa ou dos seus
familiares e constrói a sua decisão a partir daí. É o caso em “o que pesou naquela
decisão, foi o verbalizar da mãe”. Ou seja, recorre ao princípio da beneficência para
considerar que o melhor para a pessoa em causa, corresponde aquilo que ela ou os seus
familiares exteriorizam como sendo o melhor.
O valor verdade e justiça, do modo como está estabelecido enquanto valor profissional
no Código Deontológico do Enfermeiro (artigo 78º, nº 2, alínea c) do Estatuto da Ordem
dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado pela Lei
nº 111/2009 de 16 de Setembro), constitui igualmente um fundamento para a decisão
ética de enfermagem. Nesta unidade de contexto integram-se 8 unidades de registo.
Nas situações em que a transmissão da informação à pessoa ou aos seus familiares é
assumida como cuidado, o enfermeiro guia-se pelo valor verdade, mas não de forma
absoluta. As referências dizem respeito a uma conciliação entre o rigor da informação
quanto à sua veracidade, mas ao mesmo tempo uma atitude cuidativa que obriga a
moldar a forma e os conteúdos fornecidos, face às circunstâncias específicas daquela
(ou daquelas pessoas). Em fim de vida, por exemplo, afirma-se que “eu baseei-me no
princípio da verdade e como dar más noticias…”, fazendo apelo à ligação da verdade a
um condicionalismo da transmissão da informação.
Na tomada de decisão, o enfermeiro tem em conta “por um lado a verdade, mas por
outro lado…” as limitações que se colocam ao fornecimento da verdade absoluta. Ou
seja, para além da preocupação com dizer a verdade sobre a informação que pertence à
própria pessoa, verifica-se igualmente uma atitude de proteção face a um Outro que se
encontra particularmente vulnerável. Isto não significa que se aceite mentir ou não
informar a pessoa da sua situação de saúde. Considera-se, acima de tudo que “não era
eticamente correcto estarmos a enganar aquelas pessoas”. Ou seja, o valor verdade
133
sobressai como fundamento ético que justifica a ação, contudo, não é tido isolado ou
supremo face aos restantes valores. Daí que, considerando que a transmissão da
informação nos casos narrados é considerada em concreto face às circunstâncias
próprias e adaptada a esse contexto particular, que classificamos esta categoria como
respeito pela valor verdade e justiça. A justiça, enquanto juízo de equidade, adaptando a
medida da informação a fornecer à pessoa em causa, emerge também como fundamento,
ao lado da verdade. É por esta razão, que os consideramos junto, como de resto o valor
profissional proclama.
134
O enfermeiro tem assim em conta na resolução dos problemas éticos que enfrenta os
eventuais danos causados com determinadas escolhas e guia o seu agir pelo princípio de
não fazer mal.
Outro princípio que emerge da análise dos dados como fundamento para a decisão ética
de enfermagem, é o princípio da confiança, com 4 unidades de registo. Surgem
referências a decisões que ocorreram com base na relação próxima e de confiança que o
enfermeiro estabelece com as pessoas ao seu cuidado. É esta relação de confiança que
determina a decisão, nomeadamente quanto à escolha do sujeito para agir. Ou seja,
perante um problema ético que envolve uma pessoa, o enfermeiro decide ser o sujeito
na realização da intervenção “pela ligação com a pessoa”. Decide agir em determinado
sentido e ser ele o agente da ação escolhida, tendo em conta essa proximidade. De tal
forma, que se estende esta constatação a um domínio mais abstrato, afirmando-se que
“a proximidade que a enfermagem permite junto dos utentes e das famílias”. Passa-se
assim da esfera de uma relação de cuidado, para a consagração como fundamento do
princípio da confiança, da prestação de cuidados de enfermagem.
O respeito pela pessoa, pela sua totalidade única e não apenas por uma das suas
dimensões, surge também como um fundamento utilizado. Nesta unidade de contexto
integram-se 3 unidades de registo. As afirmações são relativas a um respeito
inespecífico pela pessoa, em situações em que a sua proteção está em risco. Nestes
casos, decide-se agir “pelo respeito por ele”. É este respeito pela pessoa enquanto
pessoa, sem mais nenhuma justificação especial ou alusão a algum dos seus direitos,
que constitui o fundamento da decisão.
135
específica da pessoa e adaptada às suas reais circunstâncias, consideramos aplicar-se o
princípio da justiça.
O respeito pela vida emerge também como um fundamento para a decisão de cuidado,
na resolução de problemas éticos, com uma unidade de registo. A decisão resulta da
convicção do valor vida e do que ele ocupa na actividade profissional de enfermeiro.
Perante uma possibilidade de intervenção que pode comprometer a vida, decide-se
considerando que “isso não faz parte das minhas decisões…tenho uma formação para a
vida ….”.
O respeito pelos valores da pessoa é também utilizado como fundamento ético para a
decisão de enfermagem, referido numa unidade de registo. O enfermeiro afirma que a
decisão foi tomada “pelo respeito precisamente pelos seus valores.” Mesmo numa
situação de doença e de eventual vulnerabilidade aumentada, os seus valores pessoais
são tidos em conta nas decisões que lhes dizem respeito. E como fundamento da decisão
são estes valores que sobressaem como fundamentos para decidir.
Por fim, neste conjunto de fundamentos éticos, surge o respeito pela palavra dada, com
uma unidade de registo. A decisão funda-se em algo que se prometeu através da palavra
e que, em circunstâncias problemáticas é trazido à relação de cuidado. O enfermeiro
decide o seu agir tendo em conta esse compromisso, afirmando que “foi a minha
palavra!”. A palavra, expressão de um acordo entre enfermeiro e pessoa ao seu
cuidado, a ganhar força de fundamento para a decisão, mantendo-se assim a confiança
nessa relação de cuidado.
136
O conjunto dos fundamentos analisados constitui a dimensão ética da decisão do
enfermeiro na resolução dos problemas éticos de enfermagem. Apresentamos no quadro
seguinte o total das unidades de contexto que integram esta categoria.
A análise dos dados revelou que, para além dos fundamentos éticos que constituíram a
categoria mais utilizada na decisão, os enfermeiros socorreram-se também de alguns
fundamentos de natureza científica. No total contam-se 4 unidades de contexto, onde se
integram 10 unidades de registo. Trata-se de fundamentos para a decisão que
consideramos incluídos no conhecimento científico de enfermagem e daí a nossa
classificação como científicos. Dizem respeito a confirmação diagnóstica, benefícios
terapêuticos, inutilidade dos cuidados e a necessidades de cuidados identificadas. Ao
mobilizá-los, o enfermeiro situa-se no plano da prestação de cuidados, com o
planeamento de intervenções que respondem aos problemas de enfermagem
identificados. A escolha destas intervenções é feita com base no conhecimento
científico de enfermagem que se considera adequado aplicar naquela situação, sendo
que, para finalmente decidir sobre que intervenção executar, o enfermeiro baseia-se nos
fundamentos referidos, que consideramos do domínio científico. Em concreto, verifica-
se pelas narrativas que, apesar da ponderação dos diversos fundamentos que é realizada
137
– como verificamos na capítulo anterior – a escolha final quanto à intervenção a
realizar, suporta-se na dimensão científica do cuidado.
138
A inutilidade dos cuidados constitui igualmente um fundamento para a decisão ética de
enfermagem, integrando 3 unidades de registo. Perante uma situação problemática em
que se verifica que os cuidados planeados, começam a mostrar-se inúteis quanto ao fim
terapêutico estabelecido, o enfermeiro decide parar, com base nessa inutilidade. A
constatação de que “não se via melhoras absolutamente nenhumas …não havia mais
nada”, levam a que o enfermeiro decida a sua intervenção, nomeadamente a sua
omissão de determinado cuidado, com este fundamento de natureza científica.
A ponderação, como vimos no capítulo anterior, demonstra que diversos fundamentos
são chamados à reflexão. Em algumas circunstâncias, a decisão de parar alguns
cuidados, nomeadamente em situação de fim de vida, funda-se em premissas de
natureza ética. Todavia, verificamos igualmente que, para além da dimensão ética nas
decisões de fim de vida, o enfermeiro utiliza também fundamentos científicos que lhes
permite escolher a intervenção a realizar (ou omitir). A decisão resulta sobretudo da
constatação de que “há uma degradação do ponto de vista clínico”. É esta
fundamentação que se revela como determinante na decisão.
139
5.3 – Fundamentos profissionais utilizados
140
Um outro fundamento de natureza profissional é relativo à competência profissional. A
decisão para determinada intervenção na decorrência de um problema ético, funda-se na
capacidade que o enfermeiro considera ter para aquele desempenho concreto. O
enfermeiro considera que “eu tenho competências pessoal ou
técnica…e…..conhecimentos”, pelo que decide realizar uma determinada intervenção. É
o facto dele se julgar competente em determinado domínio que o leva a escolher aquela
ação determinada.
Em algumas situações perante um agir em complementaridade na equipa de saúde, o
facto do enfermeiro auto-reconhecer competências profissionais na área em apreço, fá-
lo decidir em determinado sentido. Ou seja, verifica-se que o fundamento utilizado,
após a ponderação de outros, é o da competência profissional confirmada “pelos nossos
conhecimentos na área de enfermagem e treino”.
141
enfermeiro português, respectivamente no artigo 85º e 87º da Lei nº 111/2009 de 16 de
Setembro.
Para além do dever de sigilo, o dever de respeito pela intimidade das pessoas ao seu
cuidado, constitui também um fundamento deontológico na tomada de decisão ética,
com uma unidade de registo.
A necessidade de escolher uma intervenção, face à situação problemática com que se
debate, o enfermeiro coloca o respeito pela intimidade no centro da sua decisão. Após
ponderar outros fundamentos e tendo também em conta outras premissas para decidir,
fundamenta-se no respeito pela intimidade. Assume que “neste caso é a intimidade da
pessoa que temos que valorizar” e faz dessa valoração fundamento para a sua decisão.
Procura a intervenção adequada a partir desta condição para decidir e utiliza-a mesmo
no conflito com outros profissionais em que outras razões para a decisão são colocadas
142
em equação. O enfermeiro considera o respeito pela intimidade e refere-o como um
dever seu, sendo nessa medida que justifica a sua escolha.
Da análise das narrativas resulta também uma categoria de fundamentos utilizados para
sustentar a decisão, relacionada com a dimensão cultural do agir de enfermagem. As
referências são relativas ao respeito pelas crenças das pessoas, em função do seu
ambiente cultural, num total de 3 unidades de registo.
As crenças que as pessoas evidenciam e que são tidas em conta pelo enfermeiro estão
integradas no meio cultural onde as pessoas estão inseridas. Um meio cultural onde se
nasceu e vive, num ambiente socialmente fechado, e onde algumas crenças são aceitas
pela comunidade. O internamento de uma pessoa oriunda deste ambiente coloca-se
como dificultador da manutenção dos seus hábitos de vida e mesmo ameaçador de uma
vivência conforme às suas crenças culturais. Sendo hábitos de vida minoritários, coloca
ao enfermeiro um desafio ético da maior importância, respeitar esses hábitos de vida e
essas crenças.
É neste contexto que o respeito pelas crenças surge como fundamento para a decisão
ética de enfermagem. Perante o conflito entre o cumprimento das normas institucionais
e o respeito pela crenças das pessoas que fazem alterar o habitual das atividades de vida,
o enfermeiro escolhe o primeiro para justificar a sua ação. Fá-lo na convição de que “as
pessoas têm direito a ter as suas crenças”.
143
Este respeito pelas diferenças culturais funciona como premissa para decisão, em
detrimento de um seguimento cego pelas práticas instaladas. Assume-se como dimensão
integrante da decisão ética de enfermagem, este respeito pelas crenças do Outro,
conformando a intervenção terapêutica com esta atitude de respeito.
Destes resultados emerge uma outra dimensão onde se agrupam duas unidades de
contexto. São os fundamentos sociais, que integram também duas unidades de registo.
Estes resultados evidenciam uma extensão até à dimensão social, das razões que levam
o enfermeiro a fundamentar a sua decisão ética. Fazendo jus a uma relação de cuidado
ampla considerando a pessoa na sua plenitude, o enfermeiro tem em conta os aspetos
sociais da vida de cada pessoa e inclui-os na sua decisão profissional.
Os fundamentos identificados dizem respeito ao respeito pelas obrigações familiares e
à existência de uma família de suporte. Ambas situam-se no campo familiar, enquanto
esfera própria da dimensão social do indivíduo, à qual os cuidados de enfermagem são
sensíveis.
144
importância devida. Houve assim um olhar completo para a pessoa e para as suas
necessidades, fundamento o agir numa das suas dimensões essenciais.
145
Perante a interrogação quanto à transmissão da informação ao seu titular, no que diz
respeito à sua situação de saúde/doença, o enfermeiro decide-se pelo fornecimento dessa
informação. A suster esta escolha, encontra-se a convição de que a informação constitui
um direito para a pessoa e que o enfermeiro deve assumir o dever profissional de
respeita-lo. É com base nesta convição que a decisão é tomada.
No quadro seguinte dá-se conta da unidade de contexto que integra esta categoria.
146
Uma apresentação global dos fundamentos utilizados pelo enfermeiro na decisão ética
de enfermagem, poderá ajudar uma leitura sistémica. Daí que apresentemos no quadro
seguinte o conjunto dos fundamentos utilizados, distribuídos pelas diferentes categorias.
147
PARTE IV
______________________________________________________________________
TEORIZAÇÃO DA DECISÃO ÉTICA DE ENFERMAGEM
José Régio
148
1. CONCEITO DE PROBLEMA ÉTICO DE ENFERMAGEM_________________
192
DAHLBERG, Ingetraut. Teoria do conceito. Ciência da Informação. (Em linha).v. 7, n. 2, p. 101-07,
1978. Trad. Astério Campos. (Consult. 28.Dezembro.2009). Disponível em:
http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/view/1680/1286 . p 102
193
Idem, p.102
194
Ibidem, p. 103
149
conceitos individuais e por isso não se aplicam ao conceito em estudo que é geral, uma
vez que não depende das dimensões tempo e espaço195.
A procura da definição do conceito de problema ético de enfermagem no âmbito da
construção desta tese, para além de preocupações ontológicas, encerra igualmente uma
dimensão teleológica, na medida em que nos permitirá clarificar a discussão em torno
deste conceito. Seguimos assim Dahlberg que considera que “as definições são
pressupostos indispensáveis na argumentação e nas comunicações verbais e que
constituem elementos necessários na construção de sistemas científicos”196.
Assim, das situações problemáticas narradas pelos enfermeiros, retiramos os enunciados
que consideramos essenciais ou acidentais para a construção do conceito de problema
ético de enfermagem. A divisão categorial, através da análise de conteúdo, realizada no
capítulo 2 da Parte III, ao identificar as características quanto à natureza do problema
ético de enfermagem, permite-nos agora identificar os elementos necessários para a
construção do conceito. Fazendo corresponder as características identificadas,
traduzidas nas categorias emergentes, aos elementos identitários, ficamos com a
delimitação da natureza do conceito. Todavia, este somatório de atributos conceptuais
não permite uma clara delimitação conceptual. Precisamos agora analisar esse conjunto
de uma forma sistemática, utilizando a teoria de Dahlberg quanto aos diferentes tipos de
características.
195
Ibidem, p. 102
196
Ibidem, p. 106
150
determinada intervenção de enfermagem, por não ser clara qual deve realizar.
Frequentemente esta escolha ocorre, perante alternativas que obrigam a colocar em
causa a intervenção que seria esperada. Ou seja, são situações que colocam o enfermeiro
perante a necessidade de optar por realizar o cuidado normalizado ou esperado tendo em
conta o diagnóstico feito e uma outra alternativa que se considera eticamente mais
adequada. A relação de cuidado com determinada pessoa em concreto e naquelas
circunstâncias próprias, levam a que haja interrogação quanto ao cuidado adequado,
mesmo que fora da norma ou do habitual.
Com efeito, em todas as categorias relativas à natureza do conceito197 verificamos que
os problemas éticos são relativos à escolha das intervenções e constituem incertezas
verificadas antes da sua execução. A análise efectuada no capítulo 2 da Parte III
permite-nos concluir que, nas diversas categorias, esta incerteza face ao agir constitui
um traço identitário comum. Na origem da interrogação podem estar fundamentos de
natureza diversa, como princípios, normas, valores, direitos ou outros, todavia, a
interrogação em si tem a ver com a decisão quanto ao ato profissional a executar.
A expressão desta incerteza quanto ao agir, revela-se claramente em todas as categorias
emergentes, surgindo algumas unidades de contexto formuladas através do vocábulo
dúvidas quanto à decisão e quanto à ação. Ou seja, o que constitui problema ético para o
enfermeiro, corresponde a uma interrogação colocada a dado momento da relação de
cuidado, relativamente às escolhas das intervenções a realizar. É esta incerteza sobre o
que fazer (ou não fazer) que emerge das narrativas como problemático. Ou seja,
independentemente de estar em causa o desrespeito pela dignidade humana ou a
violação dos direitos das pessoas, um conflito entre princípios, valores, normas ou
direitos ou em risco a saúde ou o bem-estar dos clientes, o problema ético de
enfermagem situa-se na esfera do planeamento do cuidado. É esta incerteza quanto à
decisão de cuidado, que emerge do estudo como um problema ético de enfermagem.
Esta interrogação, sobre o respeito pela pessoa e pela sua dignidade e que coloca
dúvidas ou conflitos sobre os fundamentos para decidir, é narrada perante uma decisão
de cuidado de enfermagem. Mesmo que em ambientes complexos, com articulação com
os demais profissionais de saúde, a incerteza manifestada é relativa ao cuidado de
enfermagem. Com efeito, quando analisamos as diferentes unidades de contexto das
diversas categorias relativas à natureza do problema ético de enfermagem que
197
Cf. Quadro 15, da Parte III, p. 102
151
emergiram do estudo, verificamos que as incertezas quanto às decisões, se referem a
intervenções de enfermagem. Mesmo nos casos narrados em que a situação
problemática está inserida num contexto multiprofissional, a valoração como problema
tem com foco central o cuidado de enfermagem. Do mesmo modo, o conflito surgido
entre os distintos fundamentos para a decisão relaciona-se com os cuidados de
enfermagem que se pretendem prestar.
Esta característica transversal às diferentes categorias emergentes e que consideramos
como elementos identitários do conceito de problema ético de enfermagem, assume
assim um importante elemento conceptual. Permite-nos clarificar o âmbito do conceito,
porquanto nos leva a considerar apenas o cuidado de enfermagem como entidade
conceptual. Ou seja, podendo todo o agir profissional do enfermeiro mostrar-se
problemático, verificamos que a delimitação do conceito do problema ético de
enfermagem tem como limite o contexto do cuidado enquanto intervenção. O foco do
conceito encontra-se no que se faz (ou não faz) enquanto materialização de uma decisão
profissional e é esta essencialidade de ação que confere ao conceito em construção uma
natureza ética. Deste modo, verificamos uma clara correspondência entre a valoração
consciente dos enfermeiros, que consideraram as situações narradas como problemas
éticos e a natureza do conceito que é possível construir a partir das suas narrativas.
Deste modo e seguindo Dahlberg consideramos que esta incerteza quanto ao cuidado a
realizar constitui a primeira característica essencial constitutiva, uma vez que constitui
um traço comum a todas as situações narradas. E assim, sendo comum, consideramo-lo
como substantivo face do objeto do conceito.
152
Em concreto e tendo em conta os resultados analisados no capítulo 2 da Parte III, o
problema surge quando a escolha do cuidado a prestar exige a ponderação face a um
possível desrespeito pela dignidade humana, ou uma violação dos direitos ou da vontade
das pessoas ou dos seus familiares. De igual modo, a possibilidade de risco para a saúde
ou para o bem-estar das pessoas ou seus familiares, constituem motivos de interrogação
face ao planeamento das intervenções.
Estamos assim a considerar como características essenciais constitutivas, os elementos
relativos à natureza do conceito, correspondentes às seguintes categorias que emergiram
do estudo: desrespeito pela dignidade onde se insere uma referência, numa unidade de
contexto, à vontade das pessoas; violação dos direitos; risco do bem-estar e risco para
a saúde.
De facto, a interrogação sobre o agir não surge isolada, mas ligada à possibilidade
destas consequências, de tal modo que a previsão destes resultados são eles próprios
elementos essenciais dos problemas identificados. A incerteza revela-se perante uma
previsão de ameaça a algo que se considera dever proteger.
É deste modo que o problema ganha uma natureza ética. A incerteza quanto à decisão e
ao ato está inserido no domínio da proteção da pessoa, enquanto centro do cuidado de
enfermagem. A escolha de como agir torna-se problemática quando há necessidade de
equacionar se determinada intervenção se revela violadora da dignidade humana. Essa
violação, face à pessoa concreta ou relativamente à dignidade das pessoas em geral,
constitui assim um limite para as escolhas das ações de enfermagem. A ponderação das
intervenções do enfermeiro situa-se numa esfera, onde a liberdade de escolher não
ultrapassa a proteção da dignidade humana. Como enuncia o princípio que estrutura a
deontologia de enfermagem em Portugal – artigo 78º, nº1 do Código Deontológico do
Enfermeiro, incluso no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-lei
nº 104/98 de 21 de Abril, alterado e republicado pela Lei nº 111/2009 de 16 de
Setembro - a ponderação do agir em enfermagem implica a “defesa da liberdade e da
dignidade da pessoa humana”. De tal forma, que as situações em que a dignidade possa
estar em causa, constitui um problema ético para o enfermeiro.
Do mesmo modo, também os casos em que se prevê violação dos direitos das pessoas –
cliente de cuidados e/ou familiar – constituem situações de incerteza em enfermagem.
Quando determinados direitos são considerados como integrantes da esfera de proteção
do enfermeiro, na sua relação de cuidado com as pessoas, a perspectiva da sua violação
153
constitui motivo para ponderar o agir. A proteção da pessoa é aqui considerada numa
dimensão específica, a dos direitos, ponderando-se sobre se os atos a realizar promovem
ou impedem o seu exercício. O enfermeiro chama a si esta proteção, considerando assim
os direitos como uma dimensão intrínseca da vida das pessoas que não fica alterada em
função da especial situação de saúde/doença de cada um.
Também uma possível violação da vontade das pessoas a quem se prestam cuidados ou
dos seus familiares, constitui um elemento essencial da delimitação conceptual de
problema ético de enfermagem. No planeamento das intervenções, o enfermeiro
pondera não realizar ações que se mostrem lesivas das escolhas individuais. A equação
surge inclusivamente no conflito entre o respeito pela dignidade a que o enfermeiro se
vincula e a vontade expressa da pessoa em causa.
Ainda como elemento essencial constitutivo, uma vez que surge como substantivo nas
narrativas, é a possibilidade de risco quer para a saúde, quer para o bem-estar das
pessoas. Com efeito, as situações em que as ações a realizar podem prejudicar a saúde
ou o bem-estar, levam a incerteza quanto à escolha dos actos a concretizar.
A saúde e o bem-estar, revelam-se assim como dimensões da esfera de protecção do
enfermeiro. Sempre que possa haver risco para ambas, coloca-se em equação como agir.
154
fundamentos que podem ser chamados a suportar a decisão, de tal forma que essa
ponderação se revela, ela mesma, como problemática, na medida em que é necessário
escolher entre mais do que um fundamento, sendo que em algumas circunstâncias, este
se encontram em conflito. É neste sentido, enquanto elemento que se mostra como
consequente face às características essenciais constitutivas, que consideramos estes
elementos como uma característica essencial consecutiva.
155
O fim de vida é particularmente rico em conflitos desta natureza, onde as intervenções
planeadas em função do conhecimento de enfermagem e que se julga adequado aos
diagnósticos de enfermagem formulados, são consideradas frequentemente como
desadequadas à particular situação da pessoa em causa. O respeito pela dignidade
humana, enquanto princípio essencial ao exercício dos cuidados de enfermagem
confronta-se em muitas situações com princípios relativos à satisfação das necessidades
de cuidados das pessoas em geral, mas cuja aplicação em concreto é duvidosa. O
enfermeiro vê-se confrontado com um planeamento que foi considerado adequado até
determinado momento do desenvolvimento da situação de saúde/doença da pessoa, mas
que, perante o aproximar do momento da morte, fica desadequado, face aos princípios
éticos que julga aplicar-se.
De igual modo, o conflito entre normas que se consideram dever aplicar-se ao caso em
presença, constitui-se como problemático em enfermagem. A incerteza quanto à decisão
a tomar encontra uma dificuldade acrescida quando se colocam em equação as
diferentes normas que são chamadas à fundamentação ética. Por um lado encontram-se
normas institucionais que se consideram de cumprimento obrigatório, mas por outro,
são equacionadas normas deontológicas ou jurídicas que conflituam na sua aplicação ao
caso concreto. A dificultar ainda mais a decisão, a escolha destes fundamentos de
natureza normativa, é frequentemente fortemente influenciada por intervenção externa
ao enfermeiro. O apelo às normas organizacionais ou às práticas correntes, surge como
obrigatório por elementos da equipa de saúde ou mesmo por pessoas externas com
responsabilidades institucionais. Nestes casos, o conflito ultrapassa a fronteira da
decisão individual, consubstanciando ao mesmo tempo um conflito no seio da equipa ou
organização de saúde.
Este conflito é considerado pelo enfermeiro como perturbador à sua decisão, sobretudo
porque as normas em apreço são elas próprias de natureza diferentes e visam proteções
distintas. É o caso em que normas institucionais, de aplicação geral, podem violar os
direitos das pessoas em causa. O enfermeiro coloca em equação o cumprimento das
normas que é hábito aplicar, mas que considera não dever utilizar como fundamento
para a decisão perante determinada pessoa, por não permitir o exercício de determinado
direito.
Num cultura com fortes tradições normativas, em resultado do seu percurso histórico e
sendo Portugal um Estado de Direito, como consagra o artigo 2º da Constituição da
156
República Portuguesa, é natural que as organizações de saúde e o próprio exercício de
enfermagem se encontrem intensamente reguladas. Acresce o facto histórico da
organizações de saúde serem predominantemente de tradição pública, onde o Direito
Administrativo, por natureza normativo, se manifesta através de um acervo amplo de
normas reguladoras e regulamentares. Ao mesmo tempo, os direitos das pessoas, assim
como a própria deontologia de enfermagem encontram-se inscritos em normas jurídicas,
o que determina que o conflito entre normas a aplicar ao caso concreto pelo enfermeiro,
possa surgir com particular naturalidade.
Também o conflito entre valores, na procura dos fundamentos para decidir, constitui um
elemento identitário do conceito de problema ético de enfermagem, ao corresponder a
uma categoria do estudo, relativa à natureza do problema. O confronto surge quando os
valores das pessoas ficam em conflito com os valores profissionais do enfermeiro.
Em Portugal, a deontologia de enfermagem prescreve um conjunto de valores “a
observar na relação profissional”, como enuncia o nº 2 do artigo 78º do Código
Deontológico do Enfermeiro. A igualdade, a liberdade responsável, com a capacidade
de escolha, tendo em atenção o bem comum, a verdade e a justiça, o altruísmo e a
solidariedade, a competência e o aperfeiçoamento profissional, constituem os valores
universais da profissão. Todavia, na sua relação de cuidado, o enfermeiro defronta-se
com os valores pessoais de cada um e podem verificar-se conflitos. A escolha da
intervenção face a este conflito revela-se como problemática, constituindo também uma
característica essencial consecutiva da delimitação conceptual do problema ético de
enfermagem.
Por fim, a existência de conflito entre os direitos da pessoa e os dos seus familiares,
revela-se como problemático. A ponderação entre a proteção dos direitos de um e o
respeito pelos direitos dos outros, revela-se difícil, na medida em que o enfermeiro
considera dever ter ambos em atenção.
A enfermagem toma como foco de atenção a pessoa, mas situada no seu contexto sócio-
familiar. Enquanto objeto central dos cuidados ou como cliente do enfermeiro,
encontra-se a pessoa que recebe os cuidados, mas esta não é considerada como um
elemento isolado do seu sistema familiar. Esta amplitude do objecto de cuidado revela-
se frequentemente como problemática, nomeadamente quando estão em causa direitos
ligados à reserva da relação estrita de cuidado, como é o caso do direito à reserva da
157
vida privada e o consequente dever de sigilo do enfermeiro. Nestes casos, é mesmo
necessário determinar uma fronteira nítida entre a pessoa a quem se prestam cuidados e
os outros que, mesmo familiares, são terceiros face à relação de confiança estabelecida
entre essa pessoa e o enfermeiro.
Todavia e mesmo nestas situações, os familiares, mesmo que estranhos face à
informação de saúde, por exemplo, constituem sempre foco de atenção do enfermeiro.
Apesar do sujeito-cliente ser identificável, o familiar é sempre objeto de uma relação de
enfermagem, onde o seu bem-estar – considerado como finalidade ética da enfermagem
por Nunes198 - é valorado como resultado a promover. É nesta inclusão do familiar
como elemento integrante da relação de cuidado em enfermagem, que os seus direitos
podem conflituar com a proteção dos direitos da pessoa-cliente.
198
Cf. NUNES, Lucília – A Especificidade da Enfermagem In NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO,
Susana – Para Uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 072-603-
326-8. p. 33-48
158
pessoa. De facto, a incerteza quanto à decisão a tomar tendo em conta as dúvidas ou o
conflito verificado face aos fundamentos a utilizar, tem origem numa necessidade que
foi identificada numa pessoa por quem o enfermeiro se responsabilizou. É este impulso
externo ao enfermeiro, resultado de factores diversos que afectam determinada pessoa
que determina a necessidade de intervenção de enfermagem. Ou seja, as dúvidas quanto
ao agir não se revelam à revelia de uma relação de cuidado, quanto a uma agir abstrato,
mas têm como foco central uma pessoa (ou mais, nos casos em que estão envolvidos os
familiares) à qual se deve prestar cuidados.
O problema ético de enfermagem tem assim uma ligação direta com a relação de
cuidado estabelecida entre o enfermeiro a pessoa ao seu cuidado. É dessa relação inter-
pessoal que emergem as incertezas quanto às decisões e aos atos. Do conjunto das ações
que o enfermeiro realiza no seu exercício profissional, que inclui actividades de gestão,
de planeamento de cuidados em equipa, actividades burocráticas institucionais, por
exemplo, são os relativos à prática do cuidado com as pessoas que estão na origem das
situações problemáticas. Mesmo nos casos em que o problema tem uma dimensão de
articulação em equipa ou de cumprimentos de normativos institucionais, o foco
problemático surge claramente colocado no cuidado a prestar a determinada pessoa.
Quando se verificam as diversas categorias do estudo e as unidades de contexto que as
integram, podemos constatar que, independentemente da manifestação em cada uma,
subjaz uma necessidade de cuidado de enfermagem numa pessoa em concreto. A
incerteza quanto à intervenção ou as dúvidas sobre que fundamentos utilizar são
relativas a um cuidado que se revelou como necessário em determinado contexto da
relação de cuidado estabelecida. As decisões em causa têm na origem a ponderação de
uma intervenção e tem igualmente como objetivo a efectivação dessa intervenção, numa
pessoa determinada.
159
dos fundamentos para agir. Por fim, como característica acidental geral consideramos a
necessidade de cuidado de uma pessoa em concreto. A reunião destes diferentes
elementos, seguindo uma lógica conceptual face ao conceito em estudo, permitiu-nos
construir o seguinte conceito:
160
2. PROBLEMA ÉTICO E PROBLEMA CIENTÍFICO DE ENFERMAGEM____
161
– constitui a fase de execução da intervenção que foi planeada. Estamos assim a
considerar o cuidado como a ação que o enfermeiro realiza, inserido num método
científico de decidir. O cuidado-ação, abordado em diferentes perspectivas científicas e
que dará origem a problemas éticos, uma vez que consubstancia o agir profissional de
enfermagem.
162
se essa intervenção deve ou não ser realizada ou se há lugar ao planeamento de outras
ações. A prestação do cuidado fica assim suspensa até à sua validação ética e só depois
da decisão construída, é reatada ou alterada.
Considerando o Processo de Enfermagem como um contínuo - avaliação inicial,
diagnóstico, planeamento de resultados e das intervenções, prestação do cuidado e
avaliação final - a decisão ética interrompe este processo ao interrogar a intervenção.
Provoca um corte no desenrolar deste processo metodológico, não sendo possível a sua
concretização com a execução do cuidado que seria esperado.
Deste modo, uma vez que o problema ético corresponde a esta dúvida sobre a prática de
um ato, que consiste num cuidado de enfermagem, que por sua vez decorreu de um
diagnóstico formulado com o conhecimento científico de enfermagem, concluímos que
o domínio onde a decisão ética se situa é o domínio da enfermagem.
Na identificação do problema ético, o enfermeiro não se afastou do seu campo
científico, uma vez que a sua interrogação é relativa a cuidados de enfermagem. Foi a
decisão clínica relativa a uma pessoa em resposta aos seus problemas de enfermagem
que deu origem ao surgimento do problema ético e consequentemente à decisão ética.
Uma decisão que tem em vista a prática de um cuidado que volta a inserir-se no
processo de cuidado da pessoa.
O problema de enfermagem – aquele que dá origem ao Processo de Enfermagem – e o
problema ético de enfermagem têm assim uma relação epistemológica e metodológica.
Por um lado situam-se ambos no domínio epistemológico de enfermagem, sendo que
um – problema de enfermagem – tendo natureza científica dá lugar ao planeamento de
intervenções com base nesse mesmo conhecimento, de onde emerge o problema ético
de enfermagem. De outro modo, e numa perspectiva metodológica, o problema de
enfermagem, surgindo primeiro, dá lugar a um processo de decisão científico – o
Processo de Enfermagem – de onde decorre a decisão ética com vista à resolução do
problema ético.
De uma forma gráfica podemos verificar esta inter-ligação na figura seguinte.
163
Figura 1 – Representação gráfica do Processo de Enfermagem em ligação à
identificação do problema ético de enfermagem.
Planear
resultados
Execução Avaliação
Avaliação Diagnóstico das final
inicial Planear
Intervenções intervenções
-
Problema
ético
199
Cf. Carper, B.A. Fundamental patterns of knowing in nursing. In POLIFRONI, Carol E.; WELCH,
Marylouise, Perspectives on Philosophy of Science in Nursing. An Historical and Contemporary
Anthology. Philadelphia: Lippincot, 1999
164
3. CONSTRUÇÃO DA DECISÃO ÉTICA DE ENFERMAGEM________________
165
Adotamos assim o conceito de fase, próximo do conceito da química, que a considera
como “uma região de um sistema de composição química uniforme e propriedades
físicas uniformes."200 Ou seja, consideramos fase como uma parte do todo sistémico que
é a construção da decisão, em que a articulação com as outras partes se faz através de
interpenetração e não em separação nítida, verificando-se mesmo alguma sobreposição.
Trata-se de um conceito que nos permite também clarificar esta natureza sistémica da
tomada de decisão ética e afastar de uma matriz processual por etapas seguidas no
tempo.
200
Cf. FILHO, Alberto Mesquita – Introdução à Física-Quimíca das Soluções (Em linha). (Consult.
23.Junho.2010). Disponível em - http://www.ecientificocultural.com/BFQ/solu01.htm
166
ato de cuidado corresponde à constatação de uma situação problemática que está a
acontecer no âmbito da relação de cuidado estabelecida.
É o confronto com uma situação nova que emergiu na sua relação com a pessoa ao seu
cuidado ou com os seus familiares que origina a tomada de decisão ética em
enfermagem. Nova, no sentido em que surge à margem do planeado e que impele a uma
decisão diferente daquela que seria esperada naquele contexto concreto. Para além de
nova, gera incerteza quanto à escolha das intervenções apropriadas, uma vez que estas
se afiguram como potencialmente violadoras da proteção da pessoa em causa. É esta
ocorrência anómala face a uma relação de cuidado que corre o seu curso natural que,
consubstanciando um problema ético de enfermagem – como definido no capítulo
anterior – sendo colocada ao enfermeiro, o leva a partir para a construção de uma
decisão tendo como finalidade a realização da ação eticamente adequada. Ou seja, é a
identificação de uma situação-problema que constitui a fase inicial dessa construção.
Deste modo, uma situação nova e que gera dúvida quanto à intervenção a realizar
revela-se como um problema ético para o enfermeiro, quando se insere no campo da
enfermagem. É a sua natureza que determina o agir profissional do enfermeiro, em
167
contextos que são frequentemente pluridisciplinares e multiprofissionais. Ou seja, a
identificação do problema como sendo de enfermagem legítima o início da construção
da decisão pelo enfermeiro, mesmo que num ambiente onde a pessoa em causa é
atendida por diversos profissionais.
Esta identificação do problema ético de enfermagem implica assim uma delimitação do
seu objeto e uma assunção pelo enfermeiro da sua identidade conceptual. Uma tarefa
que pode apresentar-se como difícil, uma vez que a situação problemática dizendo
respeito a uma pessoa, pode tornar complexa esta divisão. Daí que, a identificação como
problema de enfermagem resulte da valoração que o próprio enfermeiro faz perante a
situação em concreto, como o conceito construído no capítulo 1 nos leva a concluir.
Resulta da sua capacidade de interpretar os sinais exteriores como problemáticos,
individualizando uma realidade concreta, mesmo que esta se mostre envolta em
variáveis de diversa natureza. O enfermeiro, neste trabalho de delimitar o problema
ético, identificando-o como um problema ético de enfermagem, utiliza assim as suas
competências de avaliação. É a sua capacidade analítica de separar os diversos factores
do todo complexo a que corresponde a situação apresentada, que lhe permite efectivar
essa identificação.
201
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
168
determinará, segundo Kant202 a concretização da ação. A não ocorrer esta identificação,
não seria possível a formação da vontade, porque a realidade era desconhecida. É o
contacto com essa realidade nova e a sua valoração que leva a que o enfermeiro se
determine, pela sua vontade, a procurar uma decisão que se concretize numa
intervenção adequada à resolução do problema identificado.
Estamos assim situados no domínio da autonomia do enfermeiro, enquanto pessoa
capaz para determinar as suas ações. Passando ao domínio do seu exercício profissional,
onde a construção da decisão ética de enfermagem se desenrola, somos confrontados
com a questão da autonomia profissional. Ou seja, coloca-se a questão de saber sobre
como relacionamos esta identificação de um problema ético que promove uma tomada
de decisão, com a autonomia profissional do enfermeiro. Do mesmo modo podemos
discutir se esta identificação de problemas éticos de enfermagem consubstancia uma
atividade independente, face aos demais profissionais de saúde com que o enfermeiro se
articula.
De facto, quando conceptualizamos problema ético de enfermagem, como uma entidade
própria, somos levados a concluir que a sua identificação se insere no domínio
específico do agir do enfermeiro. Deste modo, sendo específico e relacionado com a
prestação de cuidados de enfermagem, apenas os enfermeiros poderão possuir a
capacidade da sua identificação. Ou seja, é necessário estar incluído no domínio
científico onde o problema ocorre, para conseguir delimitar um problema ético que
ocorra nesse domínio. De outro modo, estaríamos a considerar um problema ético em
geral, que pode ser colocado e resolvido por qualquer profissional de saúde (ou mesmo
por outros profissionais ou por outras pessoas habilitadas para tal), mas não de uma
situação específica. Sendo relativa à escolha das intervenções que respondem a um
diagnóstico de enfermagem, o problema ético identificado mantém-se neste domínio,
pelo que essa identificação é realizada pelo enfermeiro, enquanto profissional dessa área
científica. Neste sentido, a identificação de um problema ético de enfermagem apenas
pode ser realizada pelo enfermeiro, detentor do conhecimento próprio e por isso capaz
de exercício autónomo.
Da mesma forma, se situado num contexto multiprofissional, esta identificação
constitui-se como uma atividade profissional independente dos outros profissionais,
exactamente por revestir essa natureza autónoma. Sendo autónoma, tem que afirmar-se
202
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8
169
como tal num ambiente complexo, sem interferências externas. Ou seja, a identificação
de um problema ético de enfermagem, é uma atividade essencialmente autónoma e, por
isso, independente, quando o enfermeiro se articula em complementaridade com outros
profissionais.
Naturalmente que para que esta autonomia aconteça, é necessário que ela seja
juridicamente atribuída à profissão. Não basta que o conhecimento próprio o determine,
é indispensável que o direito reconheça essa autonomia científica e, em consequência,
atribua a autonomia ao exercício profissional do enfermeiro. Esta é uma característica
do Estado de Direito atual, em que a realidade social passa a ser consagrada quando o
ordenamento jurídico a chama às disposições legais. Ou seja, num Estado regulado pela
lei, é a esta a quem cabe o papel de regular a vida social, de tal forma que a existência
jurídica demonstra a valoração que a sociedade faz em cada momento histórico.
Em Portugal, a autonomia do exercício profissional de enfermagem encontra-se
reconhecido pelo direito desde 1996, com a publicação do Regulamento do Exercício
Profissional dos Enfermeiros (REPE) aprovado pelo Decreto-Lei nº 161/96 de 4 de
Setembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril. É a norma do nº 3 do
artigo 8º que consagra de forma inequívoca, esta autonomia ao estabelecer que “os
enfermeiros têm uma actuação de complementaridade funcional relativamente aos
demais profissionais de saúde, mas dotada de idêntico nível de dignidade e autonomia
de exercício profissional”. Mais tarde, em 1998 com a criação da Ordem dos
Enfermeiros, através do Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril (entretanto alterado e
republicado pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro), o direito voltou a vincar a
natureza autónoma da enfermagem portuguesa, devolvendo-lhe os poderes de auto-
regulação.
Deste modo, sendo o desempenho profissional do enfermeiro autónomo, é a ele quem
compete a decisão face aos cuidados de enfermagem. É neste domínio da tomada de
decisão autónoma que se insere a identificação do problema ético de enfermagem,
enquanto primeira fase da construção dessa decisão. É na medida em que o enfermeiro
se apresenta aos cidadãos como um profissional autónomo que chama a si a clarificação
daquilo que exige uma intervenção ética.
170
inesperado, valorado pelo enfermeiro como integrante da sua esfera profissional, em
resultado do seu exercício autónomo. Mas quando a consideramos no domínio da
decisão ética, estamos a considerar mais do que estas características. Estamos sobretudo
a procurar a sua dimensão ética e deste modo distingui-la da identificação comum de
problemas de enfermagem que levam ao planeamento dos cuidados. Ou seja,
pretendemos, com a clarificação dessa dimensão ética, separar do domínio científico
onde a avaliação inicial de enfermagem leva à identificação de problemas que dão
origem à aplicação do Processo de Enfermagem. Tratando-se de decisão ética,
encontraremos uma especificidade que lhe dá essa natureza, permitindo uma
delimitação conceptual e, ao mesmo tempo, prática, na medida em que esta clarificação
permite a continuidade da construção da decisão no seio da relação de cuidado entre o
enfermeiro e as pessoas.
Esta dimensão ética resulta do reconhecimento pelo enfermeiro da existência de um
problema ético, como o definimos anteriormente. Este reconhecimento consiste
essencialmente na verificação de que a pessoa ao seu cuidado (ou os seus familiares)
fica colocada numa situação de risco face à proteção que lhe é devida. O enfermeiro
reconhece, atribuindo significado aos acontecimentos surgidos, que uma pessoa está ou
encontra-se em risco de ser atingida na sua dignidade. Verifica e conforma-se com a
eventual desproteção do Outro, quando considera ser se dever garantir essa proteção. É
esta conformação com uma adversidade capaz de afectar o Outro na sua pessoalidade
digna e na sua integridade humana, que constitui o ponto de partida para um agir ético,
procurado na construção da decisão concreta que entretanto se inicia.
O enfermeiro, ao deixar afectar-se pela presença do Outro, como diria Margarida
Vieira203, dá conta daquilo que o desprotege ou o pode desproteger. Há um “apelo que
vem do outro” a que se deve cuidado, que impele a encontrar solução para um problema
emergente. Um apelo que não é completamente externo, porquanto entre a pessoa em
causa e o enfermeiro está já estabelecida (ou em vias de estabelecimento) uma relação
de cuidado. Apenas um reconhecimento particular relacionado com uma especial
vulnerabilidade manifestada num contexto específico que o obriga – a que o enfermeiro
203
Cf. VIEIRA, Margarida – Solidariedade e Responsabilidade In NEVES, Maria do Céu Patrão;
PACHECO, Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN
072-603-326-8. P.301-302
171
se obriga, numa atitude Kantiana – a tomar a seu cargo essa situação lesiva da
humanitude daquela pessoa.
Estamos assim situados no âmbito da responsabilidade solidária como o considera
Vieira204, em que a convivência relacional entre a pessoa e o enfermeiro, prescreve a
este o dever de agir em resposta aos problemas do Outro. O reconhecimento daquilo que
o afecta e a sua consagração como problemático para a enfermagem, insere-se assim
neste assumir de uma responsabilidade profissional que é por natureza solidária. O
exercício profissional é concretizado na relação e é no seio dessa inter-pessoalidade que
a protecção de um – no caso, a pessoa que recebe cuidados – obriga o agir do outro na
procura da sua proteção. E basta para tal que se verifique a presença, ou seja, que haja
constatação da existência de problema, independentemente de pedido expresso. A
responsabilidade pelo Outro, como nos ensina Ricoeur205, faz emergir o dever de
salvaguardar a sua dignidade e de promover os seus direitos. De tal forma que, quando
há afectação prejudicial do Outro, o enfermeiro assume voluntariamente a sua defesa. É
nisto que consiste a sua responsabilidade solidária. Uma responsabilidade que impele a
agir antes de responder pelas ações, fazendo emergir a solidariedade antes mesmo de
concretizar o ato profissional. Com efeito, a afectação pelo problema do Outro e a sua
valoração e inclusão no domínio profissional, através da identificação de um problema
ético, constitui uma manifestação desta responsabilidade pelo Outro. Responsabilizar-
se, com este sentido de tomar a seu cargo a resolução dos problemas emergentes na
relação de cuidado solidária, revela-se aqui no assumir de uma situação que, afectando o
Outro, origina no enfermeiro o dever de agir. É ao enfermeiro, detentor do
conhecimento e obrigado por dever profissional de tomar conta, a quem cabe, ou
melhor a quem compete – uma vez que se trata de relação profissional – identificar o
que constitui problema e com isso iniciar a construção da decisão com vista à
intervenção adequada. Sendo ético o problema identificado, a tomada de decisão que se
segue assume essa natureza, tendo como finalidade o cuidado promotor do bem-estar,
considerando como Nunes206, este como a finalidade ética da enfermagem.
204
Idem, p.301
205
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186
206
Cf. NUNES, Lucília – A Especificidade da Enfermagem In NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO,
Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 072-603-326-
8
172
3.3 Envolver a pessoa na construção da decisão
207
Como o considera Nunes em: NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e
Mediações nos Cuidados de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8.
p. 365
208
Cf. BEUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James – Principles of Biomedical Ethics. 5ª ed. Oxford:
Oxford University Press, 2002.
173
bioética. De todo o modo, quando hoje consideramos como essencial à construção da
decisão em saúde, o envolvimento da própria pessoa-cliente, estamos claramente
situados num paradigma que toma a pessoa como centro e sujeito ativo nessa
construção.
Esta constatação obriga-nos a pensar sobre o contexto ético em que essa construção da
decisão ocorre. Ou seja leva-nos a clarificar os fundamentos éticos que presidem a este
agir profissional que chama à decisão de enfermagem a pessoa a quem os cuidados se
dirigem. E verificamos que é o respeito pela pessoa que está na base deste
envolvimento.
Antes de individualizar os princípios específicos, os valores, os direitos ou os deveres
concretos que podem fundamentar este agir, podemos constatar que há uma
preocupação com o respeito pela pessoa enquanto pessoa, simplesmente. Um respeito
que se centra na valoração de que o exercício profissional e portanto os atos que se
praticam, são destinados a uma pessoa. Um valoração que nos leva a distinguir na
realidade ambiental em que nos encontramos, a pessoa e o resto do mundo.
Considerando a pessoa como o centro dessa realidade, envolta na sua dignidade própria,
que nos obriga a um respeito total por si. Um respeito por ser pessoa.
O enfermeiro ao planear os cuidados a prestar, seja numa decisão clínica, seja na
resolução de um problema ético, permite a entrada na esfera da decisão que lhe
compete, da opinião do Outro. Não se retira desta responsabilidade pela decisão,
transferindo-a para a pessoa. Isto seria aquilo que poderia ser considerado como um
respeito absoluto pela autonomia, mas, no plano ético e também deontológico, seria um
abandono da responsabilidade profissional. Com efeito, responsabilizar-se pelo Outro,
como nos ensina Ricoeur significa, acima de tudo, chamar a si as decisões e praticar os
atos necessários. Deste modo apelar cegamente a que o Outro decida sobre os cuidados,
pode querer dizer um respeito absoluto pela sua liberdade, mas, numa relação de
cuidado, assimétrica por natureza, significa muito mais um deixar de assumir o
exercício das suas competências profissionais. E, deste modo seria um abandono pelo
Outro, na medida em que o profissional se retirava do seu dever de decidir.
O que está subjacente neste envolvimento da pessoa na construção da decisão ética de
enfermagem, não é esta demissão pelo enfermeiro, mas antes uma inclusão do Outro
nessa construção. A decisão mantém-se na responsabilidade do enfermeiro, a quem
compete decidir sobre cuidados de enfermagem, mas a construção dessa decisão tem em
174
conta aquilo que a pessoa em causa pretende para si. Envolver, não significa devolver,
mas incluir na procura da melhor solução.
175
incluso no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei nº 104/98 de
21 de Abril, alterado pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro.
Deste modo, o direito a participar nas decisões de enfermagem está atribuído a todas as
pessoas pelo direito, pelo que o seu exercício deve também desenrolar-se segundo as
normas jurídicas aplicáveis. No caso, teremos que fazer apelo à regras gerais sobre a
capacidade de exercício estabelecidas no Código Civil português. O artigo 122º
estabelece que a capacidade plena é atingida com a maioridade que se verifica quando
são alcançados os 18 anos de idade. E o artigo 123º prescreve que as pessoas menores
não têm capacidade para exercer os seus direitos. Do mesmo modo, as pessoas com
anomalias psíquicas podem também estar impossibilitadas de tomar decisões sobre si,
na medida da sentença proferida, se tiver sido decretada pelo tribunal uma interdição,
nos termos do artigo 138º e seguintes ou uma inabilitação, nos termos do artigo 152º e
seguintes, ambos do Código Civil. Nestes casos, há uma incapacidade para decidir
consagrada juridicamente, o que permitirá ao enfermeiro obter uma fonte formal de
informação para decidir sobre o envolvimento ou não da pessoa em causa.
Todavia, dois tipos de sub-questões se colocam a este nível. Uma primeira relacionada
com o próprio critério jurídico da maioridade. Uma segunda sobre se uma fonte jurídica
prevalece sobre a avaliação do enfermeiro.
Quanto à primeira, verificamos que para além da referida norma do Código Civil,
existem outras relativas a consentimento que contemplam os 16 anos. É o caso do
regime jurídico do consentimento em direito penal estabelecido no artigo 38º do Código
Penal. Esta norma estabelece que, em certos crimes, se os respectivos atos forem
consentidos por quem detiver mais de 16 anos, deixa de ser considerado crime. Ora, se
para este regime a idade dos 16 anos é suficiente, parece-nos que em saúde esta também
deve ser a baliza etária. Acresce o argumento de que, a realização de intervenções em
saúde sem consentimento ser considerado crime pelo próprio Código Penal, nos artigos
156º e 157º, pelo que o regime do referido artigo 38º é diretamente aplicável. Assim
sendo, devemos considerar a capacidade jurídica para consentir em saúde e em
enfermagem, como adquirida plenamente aos 16 anos.
A segunda sub-questão diz respeito de qual deve ser o critério prevalente para decidir
sobre a participação de uma pessoa na construção da decisão sobre cuidados. Podemos
questionar sobre apenas a partir dos 16 anos uma pessoa pode ser chamada a consentir e
se, havendo uma sentença de interdição ou inabilitação que determina perda do
176
exercício do direito de consentir, se, ainda assim, isso impede o enfermeiro de envolver
a pessoa.
Ora, a existência destes regimes jurídicos têm como finalidade a proteção da pessoa, nos
casos em que as suas limitações a tornam mais vulneráveis, levando que fique
determinado quem exerce por si os seus direitos. Assim, sendo o fundamento ético a
proteção da pessoa, devemos concluir que estas normas apenas devem restringir o
exercício dos direitos, nos casos em que a ratio legis se verificar. Ou seja, a pessoa deve
ser excluída de exercer os seus direitos se, de facto, não estiver em condições para o
fazer. O que significa que, sempre que, para cada decisão em concreto, se verifique que
a pessoa tem capacidade mental para participar na decisão, esse envolvimento deve
acontecer. De resto é este regime que está estabelecido para os menores e para as
pessoas com doença mental. A Convenção Sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina, estabelece no nº 2 do seu artigo 6º que a opinião do menor deve ser tida
em conta na medida da sua capacidade para decidir e a Lei de Saúde Mental (Lei nº
36/98 de 24 de Julho) prescreve o mesmo regime para as pessoas com doença mental na
alínea c) do nº 1 do seu artigo 5º.
Verificamos assim que o respeito pela pessoa e pela sua liberdade de decidir sobre si
assume proteção jurídica e determina a sua participação na construção das decisões de
saúde, sempre que esta demonstre capacidade para tal, conforme a avaliação feita no
contexto e no tempo concreto.
Noutro campo de reflexão coloca-se a (segunda) questão relativa aos limites para o
respeito pela opinião da pessoa no que concerne às intervenções que lhe dizem respeito.
Noutros termos, podemos interrogar-nos sobre a natureza absoluta ou relativa da
expressão da autonomia do Outro quanto às decisões sobre si. O estudo trouxe-nos a
esta reflexão a questão particular das decisões em fim de vida, em que o problema dos
limites se coloca com maior acuidade. Em concreto, teremos que encontrar solução para
manifestação de vontade que tenham como objetivo terminar a vida. Mas, podemos
igualmente incluir nesta discussão todos os casos que coloquem em risco a vida ou a
integridade física, uma vez que estes são condições essenciais à sobrevivência e
consagrados pelo direito como bens jurídicos fundamentais. Ou seja, somos levados a
refletir sobre se no respeito pela autonomia do Outro, consideramos ou não alguns
limites ao exercício da sua vontade.
177
Como o considera Michel Renaud209, a liberdade individual que está na origem das
decisões em nenhuma circunstância é absoluta. Renaud refere-nos os “novos
condicionantes da liberdade” para nos dar conta dos factores que o nosso tempo veio
acrescentar como elementos que retiram a natureza absoluta da liberdade. No mesmo
sentido, Paulo Ferreira da Cunha210 apela aos limites do exercício da liberdade,
constituindo estes como “guias indicadores do recto caminho”, indispensáveis ao
equilíbrio das decisões.
Deste modo, não sendo a vontade da pessoa destinatária dos cuidados livre em absoluto,
como não é a de qualquer ser humano, existirão limites éticos que devem respeitados
quando se procura uma decisão de cuidado. E estes limites decorrerão do respeito pela
dignidade humana que difere do respeito pela dignidade de cada pessoa, porque
constitui-se como um conceito geral e abstrato dirigido à vida humana, antes de habitar
cada ser humano. É a vida humana e o seu natural curso que fundamenta uma existência
de limites para as decisões individuais que a coloquem em risco ou que pretendam pôr-
lhe fim. Assim, as manifestações de vontade que se mostrem violadoras da vida situam-
se fora dos limites da possibilidade de decisão profissional do enfermeiro. Não porque
se afasta o respeito pela autonomia, mas porque se considera que essas decisões
ficariam fora o âmbito do exercício da autonomia, uma vez que colocariam em causa a
base ética para o exercício da liberdade, ou seja a dignidade humana. É deste modo que
se configuram os limites para o respeito pelas decisões, mantendo a dimensão ética da
decisão e do exercício profissional do enfermeiro. Cumpre-se assim o princípio da
“preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa e do enfermeiro” que
estrutura a deontologia profissional de enfermagem em Portugal, ao estar consagrado na
primeira norma do Código Deontológico do Enfermeiro (Artigo 78º, nº 1 do Estatuto da
Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado
pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro). Cumpre-se igualmente o valor profissional da
“liberdade responsável, com a capacidade de escolha, tendo em atenção o bem
comum”, estabelecido na alínea b) do nº 2 do mesmo artigo 78º do Código
Deontológico.
209
Cf. RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p. 367-377
210
Cf. CUNHA, Paulo Ferreira – Filosofia Jurídica Prática. Lisboa: Quid Júris?, 2009. 800 p. ISBN 978-
972-724-411-9. p. 30
178
3.3.1 A participação dos familiares
211
Cf. TOMEY, Ann Marriner; ALLIGOOD Martha Raile – Teóricas de Enfermagem e a Sua Obra.
Modelos e Teorias de Enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência, 2004. 750 p. Trad. Ana Rita
Albuquerque. ISBN 972-8383-74-6. p 131
212
ORDEM DOS ENFERMEIROS. Conselho de Enfermagem – Divulgar. Padrões de Qualidade dos
Cuidados de Enfermagem. Enquadramento Conceptual. Enunciados Descritivos. Lisboa: Ordem
dos Enfermeiros, 2002
213
Como é o caso de Abel Paiva em: PAIVA, Abel – O Papel do Enfermeiro. In NEVES, Maria do Céu
Patrão; PACHECO, Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004.
ISBN 072-603-326-8. P 51-61
214
Cf. VIEIRA, Margarida – Ser Enfermeiro: Da Compaixão à Proficiência. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa Editora, 2007. 160 p. ISBN 972-54-0146-8. P. 82
179
por si – são naturalmente chamados a participar nas decisões que interferem com o bem-
estar da pessoa em causa. Do mesmo modo, residindo o problema ético no seu seio, os
familiares são igualmente incluídos na procura da melhor intervenção de enfermagem.
A questão que devemos colocar é a de saber em que consiste esse envolvimento.
Importa sobretudo clarificar de que modo articulamos o dever de respeito pela
autonomia da pessoa-cliente com a inclusão de um terceiro na construção da decisão
que lhe diz respeito. Porque, no plano ético e também no plano deontológico e jurídico,
devemos distinguir entre a pessoa ao nosso cuidado e os outros que estão para lá da
relação estabelecida. Ou seja, revela-se necessário delimitar a fronteira entre envolver
na construção da decisão e devolver para o familiar o poder de decidir.
Esta delimitação passa por manter a esfera confidencial entre o enfermeiro e a pessoa e
abrir ao conhecimento dos familiares aquilo que for necessário para a tomada de
decisão. Ou seja, manter a informação de saúde da pessoa em segredo, no exercício do
dever de sigilo em enfermagem e utilizar como critérios para partilhar informação, os
que estão atualmente definidos no regime deontológico do segredo profissional em
enfermagem. Com efeito, a alínea b) do artigo 85º do Código Deontológico do
Enfermeiro, incluso no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei
nº 104/98 de 21 de Abril, alterado pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro enuncia
como critérios para a partilha de informação com terceiros, a implicação no plano
terapêutico e a necessidade de promoção do bem-estar da segurança e a defesa dos
direitos da pessoa em causa. Deste modo, a informação fornecida é limitada ao fim ético
estabelecido, pelo que a participação na decisão deve igualmente ter me conta esse fim.
O familiar, na procura da melhor solução para o problema ético identificado e no âmbito
da proteção da pessoa a quem a intervenção se destina, oferece a sua opinião, com base
no conhecimento que tem dessa pessoa e dos seus projetos de vida. Há assim o
estabelecimento de uma verdadeira parceria revestida de um ambiente de solidariedade
em que os diversos participantes na resolução do problema procuram a intervenção
eticamente mais adequada, tendo em vista, não os seus próprios interesses, mas as
necessidades do Outro.
O envolvimento dos familiares, de igual modo como a inclusão do próprio, visa o
mesmo objetivo, que é o de promover a defesa da vida e da dignidade da pessoa. Este
envolvimento revela-se promotor da autonomia da pessoa a quem o cuidado se destina,
da mesma forma que articula o respeito pela auto-governação individual com a
construção da decisão partilhada. Uma partilha que se estabelece para o bem e por isso
180
não conflituante, mas antes harmoniosa entre a esfera própria da relação de cuidado
entre enfermeiro e cliente e a inclusão de terceiros (familiares) que são chamados a dar
o seu contributo para a solução do problema ético de partida. A autonomia convive
assim com a natureza social do ser humano, trazendo à construção da decisão ética de
enfermagem a participação dos outros que partilham o ambiente de vida de cada pessoa.
Do mesmo modo que o enfermeiro procura na pessoa ao seu cuidado e nos seus
familiares, contributos para a decisão que vai tomar, dirige-se igualmente aos restantes
membros da equipa de saúde. Procura neles o enriquecimento das alternativas possíveis
para uma escolha mais adequada. Fá-lo, num e noutro caso, através de um movimento
para fora de si, envolvendo outros na procura da solução para o problema identificado.
Um movimento que se revela sobretudo de abertura e não de abandono da sua tarefa de
decidir. Verifica-se uma procura de ajuda na construção da decisão e não uma fuga.
Esta demanda dos outros profissionais resulta da constatação inicial de que o problema
ético se revela de difícil resolução. Verifica-se que a situação envolve contornos
complexos em que as diversas variáveis em jogo se apresentam misturadas e com
dificuldade de análise isolada. Esta complexidade adensa-se ainda mais quando o
problema em causa envolve, não apenas a pessoa cuidada, mas os seus familiares. A
decisão e o ato a escolher implica assim, não apenas a pessoa com a qual se estabeleceu
o pacto de cuidado, mas também terceiros à relação de cuidado. Deste modo, se a
escolha da intervenção só por si já se mostra difícil face aos diversos fundamentos em
causa, o facto de se encontrarem em presença mais do que um destinatário das
intervenções, aumenta esta dificuldade. Sendo difícil, exigindo a ponderação de diversas
possibilidades de decisão, mostrando-se esta equação pouco clara no início, o
enfermeiro procura ajuda na construção da sua decisão. Enquanto que a abertura à
pessoa-cliente e aos seus familiares se destina a uma procura do conhecimento da sua
vontade, neste caso o pretendido é a participação de outros profissionais na construção
de uma decisão que se apresenta como difícil. Pretende-se aproveitar o conhecimento e
a experiência profissional dos restantes membros da equipa no sentido de encontrar a
melhor solução.
Este movimento de procura de ajuda na construção parte assim da constatação de que a
situação ocorrida sai do âmbito da decisão clínica. O novo acontecimento que se revela
181
problemático resulta essencialmente da consciencialização pelo enfermeiro de que, no
decorrer da relação de cuidado estabelecida, ocorreu uma dificuldade de planeamento
dos atos a realizar. Há assim um chamar a si que nasce do confronto com o que afecta,
pela necessidade de intervenção. O enfermeiro chama a si a decisão e a ação, no
exercício do seu poder para agir como considera Ricoeur215. É a sua capacidade para
tomar decisões e para realizar os atos que delas resultam que possibilitam que o
enfermeiro incorpore na sua relação profissional de cuidado os problemas éticos que
identifica. É igualmente este poder para decidir e para realizar intervenções de
enfermagem que o levam a procurar contributos nas suas deliberações. Ou seja, os
contributos, sendo externos revelam-se como ajuda perante uma decisão difícil, mas são
incorporados pelo enfermeiro sujeito da decisão. Constituem perspectivas novas,
algumas vezes diferentes, mas não substituem a decisão individual. Não alteram a
capacidade de decidir, antes participam na construção da ponderação que levará à
escolha final da ação a realizar.
O envolvimento da equipa revela-se assim como uma manifestação da construção da
decisão ética de enfermagem. Com efeito, é na medida em que a decisão é construída,
com a procura de uma intervenção (ou várias) através da ponderação de diversas
alternativas, que a participação dos outros profissionais constitui uma fase dessa
construção. Havendo um período temporal a decorrer e colocando-se em equação
diversos factores, chamar outros profissionais constitui uma fase frequentemente
utilizada pelo enfermeiro. Trazem perspectivas novas, modos diferentes de pensar o
problema e isso enriquece a tomada de decisão.
Naturalmente que este envolvimento da equipa ocorre porque os outros existem como
recurso disponível. O facto do exercício profissional de enfermagem ser sobretudo
realizado em ambiente multiprofissional permite que os demais profissionais sejam
chamados a participar na construção da decisão ética de enfermagem. Com efeito, a
prestação de cuidados, sobretudo em situação de doença, exige uma resposta complexa
onde os diferentes saberes científicos se interligam. Daqui decorre que diferentes
profissionais de saúde se encontrem em torno de uma mesma pessoa procurando
satisfazer as suas necessidades face aos problemas de saúde/doença apresentados. De
215
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
182
resto, o próprio exercício de enfermagem é igualmente realizado em equipa, em que
participam diversos enfermeiros. Esta realidade favorece a partilha entre os diversos
membros da equipa, quer dos problemas, quer da procura das intervenções que os
resolvam ou atenuam. Há assim um colocar em comum quer com colegas da mesma
profissão, quer com outros profissionais de saúde, o que ajuda a construção da decisão.
O estudo revela-nos que algumas vezes é no seio da própria equipa que nascem os
problemas. Diferentes perspectivas sobre o agir ético em saúde, motivadas por
fundamentações valorativas diversas podem levar a que ocorram maneiras opostas de
encarar determinadas situações. De resto, as interrogações quanto ao agir concreto,
quando uma decisão de outro membro da equipa vai num sentido que desprotege a
pessoa, são tidas como um problema ético para o enfermeiro. Deste modo, verificamos
que, do mesmo modo que os restantes membros da equipa podem constituir a fonte do
problema, podem igualmente ajudar na solução. Sobretudo porque estão disponíveis e a
par do acontecimento problemático. Mas fundamentalmente porque constituem uma
fonte de conhecimento e de experiência de fácil utilização. De tal forma, que perante
uma incerteza quanto ao que decidir e fazer, este recurso constitui uma alavanca de
segurança para o responsável pela decisão. A partilha com que está ali por perto permite
uma vivência com outros daquilo que se apresenta difícil. E este colocar em comum e
discutir a escolha das intervenções a realizar aumenta a segurança de quem decide, ao
mesmo tempo que garante para o próprio, a bondade da decisão.
183
partindo de diferentes visões iniciais, em resultado do conhecimento que se detém e da
fundamentação que se consegue fazer emergir, o respeito pela pessoa e o sentido da sua
proteção permite uma escolha construída em equipa. É a discussão, enquanto período de
inquietação individual partilhada, que o possibilita.
Desde logo porque o contexto em que a decisão é realizada assim o exige. Com efeito,
sendo a decisão ética de enfermagem relativa aos cuidados de enfermagem, poderá
interferir com os outros atos dos demais profissionais de saúde. Os cuidados de
enfermagem são relativos a uma pessoa e ocorrem num contexto em que as
necessidades apresentadas exigem outras respostas. As intervenções de enfermagem
podem isolar-se do ponto de vista teórico, mas a sua concretização, ao acontecer numa
pessoa, inserem-se no todo sistémico que é a prestação de cuidados de saúde dirigidos a
essa pessoa. Podem ser realizados em separado, mas o objeto do cuidado é o mesmo. É
nele, ou seja numa pessoa, que as consequências se manifestam. Do mesmo modo, é por
ser realizado com e numa pessoa, que as diversas prestações necessitam de interligação
temporal e mesmo científica. Ou seja, é necessário que a prestação das diversas
intervenções profissionais seja dividida no tempo mas sobretudo é obrigatório ter em
conta as implicações que uns atos podem ter nos outros ou podem implicar pessoa, em
resultado das interações verificadas.
Assim, a um exercício profissional desta natureza, revela-se natural um envolvimento
da equipa na tomada de decisão ética de enfermagem. Sendo a discussão um elemento
frequentemente presente na decisão de cuidado, é igualmente aceitável que ela ocorra
sempre que alguma situação particularmente difícil aconteça. A discussão que origina
consenso, mas não abandono da responsabilidade por decidir, levando o enfermeiro a
encontrar a melhor intervenção decidida por si.
A questão que podemos colocar a esta altura é a de saber se este envolvimento dos
outros profissionais da equipa de saúde acontece de forma planeada ou não. Ou seja,
podemos interrogar-nos sobre se esta procura de discussão resulta de um planeamento
prévio durante a construção da decisão ética ou se, pelo contrário, ocorre
espontaneamente. O estudo demonstra-nos que o envolvimento dos outros profissionais
disponíveis – enfermeiros ou outros – não resulta de uma ponderação inserida num
eventual processo de decisão, como uma etapa que se seguisse a outra e precedesse a
próxima. Com efeito, tal como ocorre com as demais fases, o envolvimento dos
profissionais na construção da decisão ética pelo enfermeiro, acontece espontaneamente
184
após a identificação do problema, em qualquer momento prévio à decisão e à
concretização da intervenção precedida. A partilha das preocupações e a discussão dos
diferentes pontos de vista verifica-se sempre que outro profissional se encontrar
disponível e sempre que as circunstâncias do momento o proporcionem. Acontece de
forma natural face ao desenrolar das interrogações que surgem ao enfermeiro, perante o
problema ético que surgiu.
Deste modo, a partilha e discussão acerca da escolha dos cuidados a prestar revela-se
como natural face ao regular modo de decidir em enfermagem. Da mesma forma que a
decisão clínica é concertada no seio da equipa, também a decisão ética segue esse
registo de construção com a participação de outros. O enfermeiro, procura assim nas
perspectivas de terceiros outras alternativas para juntar às suas, fazendo da fase
aristotélica216 da deliberação uma fase partilhada. A ponderação das diversas
possibilidades de decisão que segundo Aristóteles conduzirão à decisão final e ao ato, é
frequentemente realizada com recurso a outros profissionais. São influências externas
que se acrescentam, sem contudo destituir a autoria da decisão. De tal forma, que
sempre que a opinião de terceiros se opõe por completo à do autor da decisão, a
discussão não é finalizada. Mantém-se a discussão de perspectivas até um encontro de
consenso ou, afasta-se por completo a perspectiva externa. Ou seja, a autoria da decisão
não é transferida para outro em caso de conflito não resolúvel. O enfermeiro assume a
autoria da decisão e as suas consequências, mesmo que nem sempre aceites por todos os
membros da equipa. A procura de ajuda externa lida assim com um limite à discussão,
que é o de garantir, segundo a perspectiva do próprio, a proteção da pessoa em causa.
Opiniões de outros profissionais que contrariem este fundamento, não são levadas em
consideração pelo enfermeiro. Deste modo a partilha da construção da decisão ética
garante uma intervenção que se enquadre nos fundamentos éticos considerados em
enfermagem, segundo a valoração do enfermeiro.
Do mesmo modo que o envolvimento dos outros profissionais não é planeada, também
não é processualmente delimitada no tempo. De facto, se é certo que a discussão ocorre
em tempo posterior ao da identificação do problema ético e antes da decisão e da
realização do cuidado, também é verdade que não é possível uma delimitação temporal
216
Cf. ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores,
2004.ISBN 972-564-622-3. p. 65
185
em que ela se verifica. Ou seja, mais uma vez constatamos que esta fase da construção
da decisão não incorpora um contínuo processual, mas surge em qualquer momento da
construção e pode mesmo repetir-se no tempo.
Depois de identificado o problema – frequentemente também de forma partilhada entre
o enfermeiro e outros colegas e outros profissionais de saúde – inicia-se a procura da
intervenção adequada e é esse caminho de busca que surge muitas vezes discutido. Não
apenas em determinado momento específico, mas durante todo o tempo relativo à
deliberação. Pode mesmo verificar-se a procura da perspectiva do outro em fase
posterior, como é o caso da avaliação depois do ato realizado. Neste caso, a discussão
ocorre, não na equação sobre a ação a realizar, mas sobre o cuidado prestado. A
avaliação com outros membros da equipa – enfermeiros ou outros – permite voltar ao
ato escolhido e reflectir sobre os seus efeitos e voltar a ponderar a tomada de decisão.
186
Sendo o problema de partida uma situação complexa, que frequentemente diz respeito à
pessoa ao cuidado do enfermeiro e também aos seus familiares, os fundamentos para
decidir serão igualmente múltiplos. Desde logo porque a intervenção a realizar na
pessoa e as suas consequências dependerão da dimensão humana que se pretende
proteger em concreto. Com efeito, se for a autonomia individual que se vise
salvaguardar, a escolha pode recair sobre determinado cuidado, mas se for a vida o
fundamento escolhido, a intervenção pode ser outra completamente diferente. Nas
situações de fim de vida em que o desalento e o medo do sofrimento influenciam
fortemente a vontade, as pessoas podem desejar que lhes sejam realizadas ações que
violem a vida.
Este conflito de diferentes fundamentos para decidir é colocado ao enfermeiro,
obrigando-a a uma ponderação rigorosa e utilizando uma criteriosa recolha de
informação e de acompanhamento terapêutico da pessoa em causa, para ter certeza da
real vontade. Todavia, esse confronto pode perdurar, o que leva que sejam tidos em
conta diferentes fundamentos e de natureza também diversa. Do mesmo modo, sempre
que estejam em causa situações que digam respeito à pessoa-cliente e também aos seus
familiares, em que os interesses de uns e de outros conflituam, as razões de decidir são
também variadas e distintas, podendo levar a intervenções completamente antagónicas.
Esta fase de ponderação revela-se assim como essencial numa tomada de decisão em
que o conflito entre a vontade ou os princípios e valores da pessoa em causa e aqueles a
que o enfermeiro está obrigado por força do seu compromisso profissional, é notório. A
situação de doença, ou as convicções levam a que cada pessoa demonstre uma vontade
que pode colidir com os fundamentos éticos, deontológicos e mesmo jurídicos que se
aplicam ao exercício profissional do enfermeiro.
A dignidade humana, a liberdade e a vida são fundamentos claramente afirmados na
prática profissional do enfermeiro. Em Portugal, a deontologia profissional de
enfermagem manifesta isso de forma inequívoca ao consagrar como princípio
estruturante que “as intervenções de enfermagem são realizadas com a preocupação da
defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro”217 e
prescrevendo como dever que o enfermeiro “no respeito do direito da pessoa à vida”
está obrigado a “atribuir à vida de qualquer pessoa igual valor, pelo que protege e
217
Cf. Artigo 78º , nº 1 da Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro, que constitui a primeira norma do Código
Deontológico do Enfermeiro.
187
defende a vida humana em todas as circunstâncias”218. Deste modo, perante um
problema ético, podem ficar em conflito princípios, valores ou direitos invocados e
manifestados na vontade expressa da pessoa e aqueles pelos quais o enfermeiro se rege.
O compromisso de cuidado considerado por Nunes219, é assumido pelo enfermeiro
como uma promessa para a prestação de cuidados no respeito pela pessoa, pela sua
vontade livre mas também no respeito pela sua vida e pela sua dignidade. O enfermeiro
apresenta-se assim ao Outro como o profissional que garante a sua proteção integral,
considerando-o como pessoa.
A liberdade para decidir sobre si constitui uma dimensão a respeitar, mas não emerge
como absoluta através de uma vontade que pode levar à extinção de si, por exemplo. A
liberdade exterioriza-se de cada um, através de um agir responsável, manifestando-se
numa abertura ao mundo, como considera Heidegger220. O respeito pela liberdade da
pessoa, leva assim o enfermeiro a considera-lo como um ser-no-mundo221 que vive com
os outros e estabelece com estes, relações de convivência. A sua liberdade, que se
manifesta numa vida feita com outras pessoas não pode assim ser absoluta, permitindo
que cada uma decida sobre si sem nenhum limite. A liberdade individual reveste-se, ela
própria de condicionamentos como o refere Michel Renaud222, que não impedem o
exercício da vontade, mas antes a condicionam no sentido do possível.
Deste modo, se por um lado o enfermeiro se vê confrontado com o necessário respeito
pela liberdade de decidir do Outro, ao mesmo tempo sente-se igualmente obrigado –
obrigando-se, ele também livremente, como o considera Kant223 - a ter em conta os
limites dessa liberdade. De resto, a isso está também igualmente obrigado em Portugal,
uma vez que a sua deontologia enuncia como valor a “liberdade responsável, com a
capacidade de escolha, tendo em atenção o bem comum”224. A liberdade não surge
isolada, mas acompanhada da responsabilidade que lhe retira um eventual caráter
absoluto.
218
Cf. Artigo 79º, alínea a) da mesma lei.
219
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 353
220
Cf. HEIDEGGER, Martin – A Essência do Fundamento. Lisboa: Edições 70 (sd). ISBN 978-972-44-
1336-5. p.99
221
Idem, p. 99
222
Cf. RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p. 370
223
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8
224
Como estabelece a alínea b) do nº 2 do artigo 78º do Código Deontológico, incluso na Lei nº 111/2009
de 16 de Setembro.
188
Assim, é este confronto entre o exercício autónomo da pessoa e o exercício da sua
liberdade nos termos considerados em enfermagem, que obriga a que seja feita uma
ponderação entre os diferentes fundamentos com que o enfermeiro se depara. O mesmo
acontece quando o confronto se verifica entre a vontade da pessoa e a dos seus
familiares. O enfermeiro vê-se igualmente obrigado a colocar em equação aquilo que
fundamenta a vontade de um e a dos outros. E acaba sempre por trazer igualmente à
colação os princípios e os valores, assim como os seus deveres profissionais, com os
quais se comprometeu.
A decisão resultará assim da equação de vários e diferentes fundamentos, após esta
atividade reflexiva que o enfermeiro realiza. Uma atividade mental que expressa a
capacidade profissional definida por Nunes225 como o poder-capacidade para agir
profissionalmente. O enfermeiro constrói uma decisão com vista à realização de um
cuidado, chamando a si a escolha dos diferentes fundamentos. Ouve e tem em conta a
pessoa em causa, assim como envolve os outros profissionais da equipa, mas
responsabiliza-se por ponderar as justificações para as ações a praticar. Envolve
terceiros, mas não transfere o poder de decidir. Usa o seu poder-capacidade para
reflectir a necessária equação.
Deste modo, o enfermeiro, ao ponderar sobre a fundamentação para os seus atos, prevê
ao mesmo tempo as intervenções e as suas consequências. Ao escolher determinado
fundamento, antevê qual (ou quais) as intervenções correspondentes e antecipa
mentalmente quais os seus efeitos. Ou seja, a ponderação não surge desligada daquilo
que provoca na pessoa em causa, mas antes permite estabelecer uma ligação direta entre
o fundamento escolhido e a implicação do ato. A preferência por determinado princípio
ou valor obriga a determinado cuidado, de tal forma que a fundamentos diferentes
correspondem também intervenções diversas. A equação permite assim uma escolha
alternativa que se adapte à solução mais adequada para o problema identificado.
Esta fase de ponderação dos fundamentos antecede a escolha definitiva daquele ou
daqueles que mostram mais adequados perante o caso em apreço. Decorre, não num
período temporal circunscrito, mas emerge sempre que a incerteza persiste. Com efeito,
quando se interroga qual intervenção realizar, o enfermeiro reflete sobre a
225
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de
Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 365
189
fundamentação para a sua decisão. E até à decisão final, esta ponderação pode sempre
ocorrer, como resposta a novas interrogações então surgidas.
Não se trata de uma hierarquização valorativa dos diversos fundamentos possíveis. A
reflexão faz emergir os diferentes fundamentos e coloca-os em igualdade uns perante os
outros. Ou seja, quando equaciona, o enfermeiro considera todos os fundamentos com
igual valor. São considerados todos os que podem levar a uma intervenção naquela
situação em concreto. De tal forma, que desta ponderação pode resultar não apenas um
escolhido, mas todos os que se mostrarem adequados para legitimar o cuidado. Ponderar
consiste assim em chamar à colação, obrigando a um exercício de antever as
consequências da escolha de cada um. Obrigando igualmente ao confronto entre os
resultados que cada uma originaria, caso levasse à concretização de uma ação.
A ponderação corresponde a uma procura das diversas dimensões que integram a
pessoas ou as várias pessoas que estão envolvidas na situação em apreço. Traz também
à reflexão os diferentes fundamentos que alicerçam o agir ético do enfermeiro. Ponderar
implica assim considerar todos os princípios, os valores, os deveres assim como os
direitos ou os legítimos interesses das pessoas envolvidas e colocar no mesmo plano de
equação as bases éticas deontológicas, jurídicas e profissionais que se aplicam ao
exercício autónomo de enfermagem.
É este ter em conta, analisando o seu conteúdo e antevendo as consequências que os
atos implicariam, que constitui uma fase essencial da procura da melhor solução para o
problema ético que emergiu. É através desta atividade reflexiva de natureza
predominantemente analítica, que o enfermeiro chega à síntese final de encontrar a
justificação ética para a sua decisão, passando assim a outra fase da construção da
decisão ética de enfermagem.
190
de uma relação de cuidado de natureza profissional. O enfermeiro realiza a atividade
mental de escolher, entre as diversas possibilidades de agir, qual (ou quais) ação vai
realizar.
É uma escolha que decorre de um período prévio de reflexão e de procura de
contributos externos, mas que se situa como actividade mental própria. Os elementos
exteriores que foram recolhidos são tidos em conta, através de uma apreciação muitas
vezes revestida de discussão com outros. Sobretudo é recolhida informação sobre a
vontade da pessoa em causa assim como daquilo que os seus familiares consideram ser
o melhor para si. Todavia, a decisão em si, enquanto período de seleção do que vai ser
feito, é uma tarefa individual.
O enfermeiro abre-se à construção da decisão, mas incorpora os contributos vindos de
fora como elementos que ajudarão a formar a sua vontade. No final, é a sua vontade que
determina a escolha, tida assim como considera Kant como a “faculdade de
escolher”226. Ou seja, a decisão sobre que intervenção realizar pelo enfermeiro que
chamou a si a responsabilidade pela situação problemática resulta da sua vontade,
mesmo que formada com contributos de diferentes proveniências. A decisão resulta
assim da sua lei, como considera Kant. A lei criada por si enquanto máxima para
fundamentar o ato escolhido, a partir da ponderação anterior. Com efeito, o trabalho de
reflexão realizado permite-lhe considerar os fundamentos que de justificam a
intervenção que melhor se adequa a proteger a pessoa. Essa reflexão leva-o a encontrar
a razão de decidir o cuidado que responda ao problema criado, no respeito pela pessoa e
pela sua dignidade, apreciadas as diversas dimensões humanas.
A decisão ocorre assim enquanto atividade mental individual nascendo com um só
autor. Este facto leva-nos a estabelecer uma inevitável ligação entre a autoria da decisão
ética de enfermagem e a responsabilidade profissional do enfermeiro. Com efeito, a
responsabilidade tida como a resposta pelo que se faz e não faz – ou seja, pelos atos e
pelas omissões – é relativa a uma pessoa que se intitula de autor das suas ações. A
decisão resultou de uma intenção para agir, sendo esta, segundo Ricoeur227 o critério
distintivo que permite separar as ações dos acontecimentos não decididos. O enfermeiro
formula a sua intenção com base na reflexão sobre os fundamentos em apreço e o seu
226
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8 p. 31
227
CF. RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-
011458-5. p. 94
191
poder para agir228 de que também nos fala Ricoeur, permite-lhe transformar essa
intenção em ação.
Deste modo, sendo individual e resultando do poder que o enfermeiro detém para
praticar atos, esta decisão insere-se no domínio da responsabilidade. O enfermeiro,
sendo uma pessoa capaz e tendo ponderado a sua decisão, está assim em condições de
responder por ela e pelo acto que se lhe segue. De outro modo, sendo esta decisão
tomada no seio de uma relação de cuidado, ela assume uma natureza profissional se
revestir do necessário contexto formal inerente a esse exercício. Para tal, basta que o
enfermeiro se apresente como profissional e assuma com a pessoa um pacto de cuidado
como nos refere Nunes229, seguindo o pensamento de Ricoeur.
Formalmente esta relação que se estabelece assume também relevância no mundo
jurídico em Portugal, uma vez que ela esta prevista na lei. Com efeito, o Regulamento
do Exercício Profissional dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-lei nº 161/96 de 4 de
Setembro, alterado pelo Decreto-lei nº 104/98 de 21 de Abril, ao enunciar as regras
gerais para o exercício profissional de enfermagem, consagra juridicamente a relação de
cuidado que o enfermeiro estabelece com as pessoas de quem cuida.
A decisão desenvolve-se num ambiente jurídico que a torna elemento de apreciação da
responsabilidade profissional do enfermeiro. Resulta de uma autoria individual, no seio
de uma relação profissional, logo é objeto de avaliação. Ou seja, o enfermeiro responde
por ela, tendo em conta os fundamentos que lhe deram origem e assumindo as
consequências que o ato praticado originou. É o que se encontra estabelecido na alínea
b) do artigo 79º do Código Deontológico do Enfermeiro, incluso no Decreto-lei nº
104/98 de 21 de Abril, alterado pela lei nº 111/2009 de 16 de Setembro, que enuncia o
regime deontológico da responsabilidade profissional em enfermagem, que prescreve
que o enfermeiro assume o dever de “responsabilizar-se pelas decisões que toma e
pelos actos que pratica ou delega”. Do mesmo modo, esta autoria pela decisão (e pelo
ato) está igualmente na origem da restantes modalidades de responsabilidade a que o
enfermeiro se encontra sujeito, a saber, a responsabilidade civil, criminal e disciplinar
perante a entidade patronal se trabalhar por conta de outrem.
228
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
229
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 353
192
A decisão resulta assim de uma fase de ponderação acerca da razão de fazer, como o
refere Ricoeur230 e destina-se a originar uma ação. A decisão ética de enfermagem tem
como finalidade a realização de uma intervenção pelo enfermeiro que se consubstancia
num ato ou numa omissão.
O enfermeiro ao estabelecer uma relação de cuidado com as pessoas, assume o dever de
cuidado. Este dever encontra fundamento formal no direito ao cuidado que o artigo 83º
do Código Deontológico consagra a todos os cidadãos em Portugal. Todavia, o
enfermeiro considera simplesmente esse dever como seu, ao deixar-se afectar pela
presença do outro que necessita de cuidados, como o considera Vieira231. O dever nasce
assim de necessidade o Outro e da imprescindibilidade que o enfermeiro assume de agir,
com um sentido profundamente ético na medida em que é tido como necessário para a
pessoa em causa. É considerado como indispensável face à situação que surgiu e funda-
se na responsabilidade que o enfermeiro assume como sua. Uma responsabilidade pela
prestação do cuidado necessário face a acontecimentos que então se verificaram. A
necessidade do Outro gera assim um assumir do dever de agir, na resposta a essa
necessidade. É deste modo que a relação profissional de enfermagem se concretiza,
sempre que um problema ético é identificado. A sua verificação apela à construção da
decisão ética, em que a escolha da intervenção (ou intervenções) a realizar constitui uma
fase essencial. É esta escolha sobre que cuidado realizar, em função dos fundamentos
ponderados que consubstancia a decisão. Uma decisão ética porque o ato a realizar
resulta de um problema ético de partida. Uma decisão que se assume como ética porque
visa a prestação de um cuidado que tem como finalidade a proteção do Outro e a
promoção do seu bem-estar. E como considera Nunes232, tendo como fim o bem-estar,
que segundo a autora constitui a finalidade ética da enfermagem, a decisão que visa a
resolução de um problema ético, assume igualmente a natureza ética.
230
Cf. RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-
011458-5. p. 94-99
231
Cf. VIEIRA, Margarida – Solidariedade e Responsabilidade In NEVES, Maria do Céu Patrão;
PACHECO, Susana – Para Uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN
072-603-326-8. p. 291-303
232
Cf. NUNES, Lucília – A Epecificidade da Enfermagem In NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO,
Susana – Para Uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 072-603-
326-8. p. 33-48
193
3.7 Prestar o cuidado decidido
233
Cf. RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. p. 174
194
A ação que resulta da construção da decisão, constitui uma manifestação da capacidade
humana para agir. A capacidade que Ricoeur considera o poder para agir próprio do ser
humano. Um poder para transformar uma intenção em ato que produz efeitos no Outro e
também no ambiente. Um poder que consegue criar a lei – seguindo Kant234- segundo a
qual se obriga no ato. É o poder para decidir e realizar atos que está na origem da
atribuição da autoria. É autor da decisão aquele que consegue formar vontade,
justificando racionalmente a sua formação e é agente o que realiza uma ação por si
decidida. Deste modo a capacidade para fazer que assume relevância ética quando se
concretiza em ação, ganha igualmente relevância jurídica, na medida em que essa
capacidade de agir corresponde à capacidade de exercício, própria dos adultos. E assim,
o poder para agir quando efectivado num ato ou numa omissão é também tido em conta
pelo direito, nomeadamente em sede de responsabilidade.
No nosso caso, em que o poder para agir resulta numa intervenção de enfermagem,
trata-se da capacidade para o exercício no âmbito de uma profissão. O enfermeiro, é
uma pessoa capaz, ou seja sem limitação ao exercício livre dos seus direitos,
concretamente efectivando o seu direito de trabalhar. Mas, sendo profissional, as ações
por si praticados resultam também da capacidade para ser enfermeiro. Uma capacidade
que formalmente resulta da atribuição de um título profissional que lhe confere esse
direito. E também porque o ordenamento jurídico consagra essa autonomia profissional.
No caso português este poder profissional para agir, resulta da atribuição da autonomia
profissional aos enfermeiros conferida pelo Regulamento do Exercício Profissional dos
Enfermeiros, em particular na norma do nº 3 do seu artigo 8º. É esta autonomia
profissional que permite ao enfermeiro identificar problemas, construir a decisão e
executar as ações decididas. É no âmbito desta autonomia que o conhecimento de
enfermagem permite a identificação de problemas próprios e planear uma tomada de
decisão inteiramente levada a cabo por enfermeiros. É igualmente esta autonomia
profissional que está na origem da responsabilidade assumida pelo enfermeiro, pelas
decisões que toma e pelos atos que pratica ou delega. Tendo capacidade para seu autor e
agente e materializando os actos decididos, o enfermeiro fica também em condições de
responder pelo praticado. É deste modo que a autonomia pessoal e profissional se
234
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8. p. 79
195
conjugam dando lugar à realização de intervenções revestidas de natureza profissional,
pelas quais o enfermeiro responde pelos resultados produzidos nas pessoas.
Relativamente à realização da ação, o estudo demonstra-nos que, algumas vezes, as
intervenções são realizadas em equipa. No momento de efectivar o ato, o enfermeiro
recorre a outros ou estes oferecem-se para participar nessa execução. De resto muitos
cuidados são prestados por mais do que um enfermeiro, sendo essa prática considerada
normal em diversos contextos de cuidado. No caso particular da intervenção relativa ao
problema ético de partida, o trabalho em equipa é facilitador das dificuldades inerentes a
alguns cuidados e será essa uma das razões para que os cuidados sejam prestados por
mais do que um enfermeiro. Do mesmo modo podem participar nas intervenções outros
profissionais e até os familiares, sendo mais frequente nos cuidados às crianças.
Esta realização conjunta das intervenções, acontecendo após o período de construção da
decisão em que a autoria ficou identificada, não altera a responsabilidade do agente. Ou
seja, efectivamente podem participar na prestação do cuidado várias pessoas, mas
apenas uma assume a autoria pela decisão e por isso pelo ato. Partilhar a prestação de
cuidados não se confunde com abandono de responsabilidade profissional, uma vez que
o agente ele próprio o papel de prestador principal.
196
3.8 Avaliar o impacto da ação realizada
235
Cf. RICOEUR, Paul – Do Texto à Acção. Porto: Rés-Editora, Lda (sd). 407 p. 198
197
sistema unitário que cada pessoa revela. Deste modo, avaliar as ações destinadas a
produzir efeitos em pessoas, ganha assim uma relevância ética da maior importância
porquanto estão em causa dimensões que integram a própria dignidade humana. As
intervenções realizadas quando provém de um problema ético de enfermagem, estão
relacionadas com a vida, com a morte, com a reserva da vida privada ou com o respeito
pelas convicções religiosas ou culturais. A escolha da intervenção a realizar implica
assim uma ponderação sobre a afectação das diversas dimensões que integram a
dignidade da pessoa em causa e da própria dignidade humana considerada em abstrato.
O confronto entre o respeito pela vontade da pessoa-cliente e a defesa da sua dignidade
em situações de fim de vida por exemplo, são expressão desta complexidade. Avaliar
coloca em equação os resultados observados face aos que foram inicialmente
perspectivados. A previsão do que iria acontecer dá lugar à verificação do acontecido e
se isso favoreceu ou prejudicou o bem-estar da pessoa. É assim altura de voltar aos
fundamentos que levaram à decisão, agora para validar a sua adequação. O enfermeiro
retoma os fundamentos que escolheu servirem de suporte à decisão e ao ato, para
verificar se estes se revelaram como adequados face ao problema identificado. Uma
análise a posteriori que permite voltar a considerar se os diferentes fundamentos tidos
em conta se mostraram capazes de originar uma ação que promoveu de facto a
dignidade da pessoa em causa e garantiu a efectivação dos seus direitos. Se o impacto
da ação foi no sentido de proteção da pessoa e promotora do seu desenvolvimento, ou se
pelo contrário agravou a situação problemática considerada negativa.
A avaliação permite validar a escolha que resultou da ponderação dos fundamentos e
verificar se os princípios, os valores, os direitos e os deveres tidos em conta, serviram
de facto de legitimação ética para a resolução do problema. Há como que um re-
ponderação, agora com os dados resultantes da intervenção conhecidos. Um pensar de
novo sobre as escolhas, comparando o decidido com efectivamente verificado,
descobrindo as aproximações e as diferenças quanto aos efeitos.
Esta avaliação acontece no agente e depende da sua capacidade de reflexão sobre o seu
agir, mas incorpora também contributos de terceiros. A própria pessoa a quem a
intervenção se dirigiu participa frequentemente de forma ativa, dando a sua opinião
sobre o que se passou. É um novo envolvimento da pessoa na prestação de cuidados em
que é objeto, colocando a avaliação na primeira pessoa. Aquele a quem os atos se
dirigiram e onde o impacto se verificou tem assim oportunidade de manifestar o que
sentiu com o cuidado prestado.
198
Também os familiares participam algumas vezes desta avaliação, trazendo dados que o
enfermeiro incorpora no juízo que faz. Os familiares que viveram a situação-problema e
que partilharam as inquietações, as angústias e os medos, tiveram também um papel
ativo no decorrer do acontecimento. Estão assim em condições de expressarem a sua
opinião sobre se a decisão tomada lhes parecer a melhor.
Os restantes membros da equipa, sobretudo se envolvidos na construção da decisão
participam igualmente na apreciação da intervenção realizada. Juntam outras
perspectivas, colocam novos dados em equação, enriquecendo assim esse trabalho
posterior de validar o que foi feito.
Estes contributos tornam o juízo do agente mais rico, na medida em que obrigam a uma
diversificação de pontos de vista. Colocam o enfermeiro na posição de se auto-avaliar,
refletindo sobre aquilo que foi a sua capacidade de decidir e de agir no passado. Mas,
deste modo, esta avaliação permite-lhe enriquecer a sua experiência profissional,
passando a conhecer novas situações problemáticas e a forma de lidar com elas. A
avaliação revela-se assim como um enorme contributo para o agir futuro, sendo
considerada pelo enfermeiro como um factor de segurança na construção da decisão
ética.
Ao realizar a avaliação das suas acções o enfermeiro assume aquilo a que Ricoeur
denomina de ascription236, ou um voltar ao acto através de uma reapropriação da
construção da sua decisão. Ricoeur refere a ascription através do dicurso, em que a
narrativa do vivido promove esse reencontro com a ação. O estudo demonstra que
frequentemente o enfermeiro realiza a avaliação narrando a outros o acontecido ou
discutindo com os outros membros da equipa que estiveram envolvidos. O discurso
favorece o retomar do ato, permitindo quer a auto, quer a hetero-avaliação. De tal forma
que o juízo de avaliação formado pelo enfermeiro, nomeadamente o que se refere à
utilização no futuro fica assim mais claro e mais enriquecido. Este voltar à ação através
da narrativa permite esse movimento de voltar a incorporar em si a ação que se havia
desprendido para produzir resultados no Outro.
Esta atividade mental de análise põe termo a um trabalho de construção de uma decisão
ética com vista à prática de uma intervenção de enfermagem. A avaliação, ocorrendo
depois do cuidado prestado encerra o ciclo de que se iniciou com a identificação do
236
Cf. RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-
011458-5. p. 117
199
problema ético. De resto, a avaliação corresponde já a um momento posterior que pode
inclusivamente originar a identificação de novos problemas. Frequentemente o
enfermeiro, ao realizar a avaliação em simultâneo com a prática do cuidado verifica os
efeitos produzidos e a reação da pessoa em causa, permitindo-lhe alterar o rumo da
decisão ao verificar que novas situações se apresentam como problemáticas. De todo o
modo, quando considerada como uma construção de decisão que culmina num ato, a
avaliação sobre o realizado, só por si, independentemente do tempo em que é
concretizada, constitui um finalizar de ciclo. Havendo uma avaliação após algum tempo,
este encerramento fica mais nítido.
Pensado desta forma, avaliar os atos profissionais corresponde à equação sobre se o
pacto de cuidado estabelecido foi ou não cumprido. Ou seja se este pacto, sofrendo uma
alteração com a ocorrência do problema ético, se manteve ou não nos termos acordados.
Avaliar sobre este cumprimento ou incumprimento é questionar sobre se os alicerces
éticos e a finalidade ética da relação de cuidado de enfermagem se mantém intactos. Se
os novos acontecimentos foram promotores do desenvolvimento de uma relação
profissional ética ou se, pelo contrário, as decisões tomadas violaram o sentido de
proteção do Outro.
Esta avaliação, na perspectiva do próprio, insere-se no seu assumir de papel de
responsabilidade pelo Outro, que, como considera Ricoeur237, o objeto da
responsabilidade, mais do que se encontrar centrado na ação e nos seus efeitos,
encontra-se situado na pessoa em si.
O enfermeiro avalia os seus atos, refletindo o impacto na plenitude do Outro com quem
estabeleceu uma relação de cuidado, olhando à totalidade dos efeitos que o afectaram.
Quando volta ao realizado, procura se os fundamentos que utilizou foram ou não
promotores do bem-estar da pessoa e não apenas de procurar medir isoladamente algum
dos seus resultados. Preocupa-se com o efeito total sentido e valorado pela pessoa, para
além de atender a algum eventual dano. O dano, fica assim para avaliação externa,
quando a responsabilidade profissional for chamada a intervir. Nessa altura e nessa
sede, tem-se em consideração a parte ou a consequência isolada que importa verificar se
foi ou não danosa em alguma dimensão da pessoa. Ao enfermeiro, enquanto sujeito da
sua própria avaliação, é o todo que interessa. Não o dano causado, mas a afectação
237
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 54
200
global que a sua intervenção originou. É deste modo que a avaliação da ação realizada
se insere no domínio da responsabilidade profissional, aqui na perspectiva de Ricoeur
de responsabilidade pelo Outro.
201
delimitam umas das outras. Mas esta delimitação não tem correspondência temporal
podendo mesmo repetir-se no tempo.
A construção da decisão ética de enfermagem assume assim uma natureza sistémica em
que cada fase constitui um elemento que se relaciona com os demais. Com efeito, o
desenrolar de uma fase pode obrigar o enfermeiro a passar a outra e esta pode vir a
repetir-se mais tarde se algum dado surgido o originar. Este sistema inicia o seu
funcionamento com o impulso da identificação do problema ético e extingue-se com a
realização da intervenção e a sua avaliação. A razão da sua existência prende-se com o
exercício profissional de enfermagem que visa a prestação do cuidado que se assume
como protetor da pessoa e da sua dignidade. Um acontecimento que interrogue sobre
este sentido de proteção do Outro quando surge a dúvida sobre o agir concreto, origina a
construção de uma decisão que se torna ética por responder ao problema ético
identificado e por ter como fim o respeito pela humanidade da pessoa em causa.
A representação gráfica da figura seguinte pretende tornar mais clara esta natureza
sistémica da construção da decisão ética de enfermagem.
Ponderação dos
Envolvimento Fundamentos
pessoa/família
Agir conforme
decisão
Avaliação
Identificação do
Problema Construção da Decisão
decisão em Conforme aos
equipa Fundamentos
202
4. FUNDAMENTOS DA DECISÃO ÉTICA DE ENFERMAGEM______________
203
4.1 Fundamentos éticos
O respeito pela pessoa pela sua dignidade intrínseca, como o refere Daniel Serrão238 e,
ao mesmo tempo, o respeito pela dignidade humana em sentido abstrato, constitui um
fundamento essencial para justificar a decisão ética de enfermagem. A pessoa, com a
sua dignidade própria em resultado da sua condição natural de ser humano, considerada
como único na relação profissional do enfermeiro, mas sendo portador de uma
dignidade inerente a essa condição e por isso anterior, como também o reflete Serrão.
Uma pessoa que se entrega ao cuidado do enfermeiro, passando este a responsabilizar-
se pela satisfação das suas necessidades de cuidados, essenciais à sua sobrevivência. É
esta pessoa inserida no mundo que a rodeia, com os seus princípios de vida e os seus
valores, a sua cultura e as suas convicções religiosas, ideológicas e políticas que se
apresenta una à relação de cuidado, que constitui o principal objeto do respeito
demonstrado em cada construção de decisão ética. É o respeito pela unidade do todo
humano e não apenas por alguma das suas dimensões que podem apenas teoricamente
separar-se, que constitui uma razão fundamental para a escolha das intervenções que
respondam aos problemas éticos com que o enfermeiro se defronta.
Respeitar a pessoa corresponde a ter em conta a sua dignidade, promovendo-a e
defendendo-a. Um respeito que se dirige à vida e à sua valoração inequívoca, à
238
Cf. SERRÃO, Daniel – A Dignidade Humana no Mundo Pós-Moderno. Revista Portuguesa de
Bioética. Cadernos de Bioética. ISSN 1646-8082. Nº 11 (Julho.2010). p.191-199
204
promoção de modos de vida que se realizam com os outros, que defende a autonomia e
o poder individual para encaminhar a sua vontade. O respeito que dá importância aos
projetos individuais, mas ao mesmo tempo suporta a construção desses projetos no
sentido da humanidade da vida. Um respeito que se traduz em presença capaz de
transmitir a segurança necessária para lidar com situações de doença particularmente
dolorosas. O respeito que se transforma num agir concreto, no exercício de um papel
profissional que implica a responsabilidade pelo Outro, como o considera Ricoeur239.
O respeito pela pessoa constitui assim uma manifestação da capacidade de tomar o
Outro ao seu cuidado, não apenas na dimensão estrita da prestação de determinada
intervenção, mas numa atitude cuidativa global de resposta às necessidades de cuidado
apresentadas. Uma atitude que mesmo que o julgado necessário ultrapasse a esfera
profissional do enfermeiro, o obriga a encaminhar para outro profissional que se
encontre em condições e esteja vinculado ao dever de agir, como estabelecido no dever
da alínea b) do artigo 83º do Código Deontológico do enfermeiro português, incluso na
Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro.
É com o sentido de respeito pela pessoa e pela humanidade da sua vida que o
enfermeiro escolhe a intervenção que considera promover e defender essa humanidade.
Não se circunscreve à intervenção e ao seu efeito específico, mas situa-a numa proteção
total da pessoa, tomando a decisão com base na antevisão de como a consequência
dessa intervenção interfere no seu bem-estar. O enfermeiro ultrapassa assim a esfera
limitada do cuidado prestado com um objetivo particular, para se situar no campo mais
amplo da preocupação com a defesa da humanidade da pessoa.
Deste modo, guiar o seu agir no respeito pela pessoa e pela sua dignidade, implica
procurar o bem-estar como finalidade, em vez de estabelecer objetivos parcelares que
tenham em vista apenas alguns aspectos da situação de saúde/doença da pessoa em
causa. A decisão pretende alcançar um estado harmonioso da pessoa em que esta se
sinta e seja reconhecida pela plenitude da sua humanidade e não apenas o equilíbrio de
algum sistema corporal. De tal modo, que a escolha pode contrariar o planeamento
decorrente da aplicação do Processo de Enfermagem. A decisão ética pode levar a
intervenções que não são as mais eficazes para atingir determinado objetivo terapêutico,
mas que se mostram adequadas no respeito pela humanidade da vida daquela pessoa. É
239
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 54
205
neste sentido que a decisão ética se fundamenta no respeito pela pessoa e pela sua
dignidade.
Respeitar a pessoa e a dignidade humana e utilizar esse respeito como fundamento na
decisão ética de enfermagem corresponde assim a uma elevação da pessoa a valor
supremo. Implica a capacidade de considerar cada pessoa como depositário da
dignidade intrínseca da vida humana, constituindo-se, segundo Kant240 como um fim em
si mesmo. Considerar esta conclusão Kantiana leva o enfermeiro a orientar o seu agir no
respeito por essa elevação que a pessoa encerra, obrigando-o a decidir as ações que não
ponham em risco essa dignidade. Obriga-o a conformar-se com um agir que defenda a
vida e a liberdade e promova o desenvolvimento humano da pessoa. Constituindo-se
como fundamento para agir, o respeito pela pessoa e pela dignidade humana impele o
enfermeiro a decidir pela manutenção da humanidade da vida. Leva-o a prestar os
cuidados que garantam essa humanidade, quer em situações que tenham fim terapêutico,
quer em fim de vida. Usa como critérios a sua própria formação humana e ética,
indispensável a um exercício profissional autónomo. Faz-se autor da sua lei como
considera Kant241, e guia-se por ela, na procura das ações que não retirem a natureza
humana do cuidado de enfermagem. Decide o cuidado com o fim último de proteção da
pessoa e da sua humanidade, mantendo-se presente. Empresta-se à relação de cuidado
em vez de executar uma intervenção e é sobretudo através dessa relação humana que o
respeito pela pessoa do Outro e pela sua dignidade se efectiva.
240
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8 p. 68
241
Idem, p. 33
206
vezes presente e os modos de lidar com a sua vida e com os outros, comprometida. Ou,
há mesmo uma incapacidade normal ou acidental para se auto-governar. O caso das
crianças e das pessoas adultas cuja doença ou envelhecimento retirou a consciência de
si, do mundo e do tempo. É com esta (s) pessoa (s), que pode encontrar-se em diferentes
estados de capacidade de decidir, que o enfermeiro se relaciona e onde surgem os
problemas éticos que importa resolver.
A relação enfermeiro-pessoa (cliente) é sempre uma relação assimétrica,
independentemente da idade ou da capacidade de auto-governo do Outro, em que o
poder de conhecimento de um se contrapõe a uma especial vulnerabilidade,
particularmente aumentada em situação de doença. O Outro, com o qual o enfermeiro se
relaciona, mesmo adulto capaz, é frequentemente uma pessoa que se encontra debilitada
e portanto com maior dificuldade de se auto-governar. Acresce o facto do ambiente de
cuidado ser muitas vezes um contexto hospitalar em que essa assimetria se intensifica
por força do desconhecimento acerca desse local.
Nestes termos, podíamos questionar sobre o papel que a pessoa-cliente capaz assume na
construção da decisão ética que lhe diz respeito. Vimos no capítulo anterior que o seu
envolvimento constitui uma fase dessa construção e verificamos agora também que a
sua vontade integra o conjunto dos fundamentos éticos da decisão ética de enfermagem,
independentemente da idade.
A vontade da pessoa a quem o cuidado se dirige é tida em consideração na construção
da decisão ética, constituindo um dos fundamentos, entre outros que são ponderados.
Isto significa que a vontade da pessoa tida como não absoluta, é capaz de determinar,
por si própria, o agir do enfermeiro. Constitui um elemento a ter em conta, mas nem
sempre é o determinante exclusivo da decisão. Há assim um abandono da exclusividade
da autonomia individual, adoptando-se uma conduta ética de proteção da pessoa e da
humanidade que ela encerra, obrigando a uma ponderação das diversas dimensões da
condição humana e não apenas de uma. O enfermeiro não despreza a vontade da pessoa,
mas não faz dessa vontade um fundamento que se sobreponha a todos os outros. Numa
atitude ética de cuidado, ouve a opinião do Outro, interroga sobre a sua vontade mas
não a toma como única razão de decidir. O respeito pela pessoa e pela dignidade
humana leva a que o enfermeiro concilie essa vontade com as restantes dimensões da
dignidade da pessoa.
A manifestação da autonomia através da expressão da vontade perante um cuidado de
enfermagem constitui uma dimensão essencial da dignidade da pessoa humana, mas o
207
respeito pela vida constitui uma dimensão essencial da pessoalidade. Ser pessoa implica
determinar livremente a vontade e fazer dela, segundo Kant242, a lei universal, mas este
exercício da liberdade de decidir sobre si apenas se pode concretizar na pessoa viva. Daí
que, havendo confronto entre a vontade e o respeito pela vida, como é o caso do pedido
de eutanásia, o enfermeiro não fundamenta a sua decisão numa autonomia que pretende
extinguir o sujeito da liberdade. Procura pelo estabelecimento de uma relação
terapêutica que a vontade – provavelmente afectada pelo sofrimento – ajudar a pessoa a
refletir-se e a ponderar as suas escolhas. Fá-lo, porque não considerou a vontade como
fundamento absoluto, como de resto não o faz com nenhum outro. O enfermeiro
respeita a autonomia kantiana enquanto expressão fundamental da pessoalidade do
outro, mas segue igualmente Kant ao tomar em consideração a pessoa como um fim. Do
respeito pela vontade incluída numa esfera mais ampla da proteção da pessoa revestida
da sua dignidade intrínseca, resulta uma decisão fundamenta numa autonomia não
absoluta, em que o pretendido por cada pessoa não ultrapassa a dignidade da vida.
Esta atitude harmoniosa que pode ser do ponto de vista abstrato difícil de conseguir,
ficou muito bem demonstrada no estudo realizado, em que o respeito pela vontade do
sujeito capaz foi tida em conta, mas não permitindo que uma pretensão circunstancial
atentasse contra a dignidade humana. O enfermeiro adota na construção da decisão ética
um conceito próximo do conceito de acção social de Schmidt243, ao considerar os efeitos
da ação não apenas no sujeito mas também nos outros e assim, um dano na vida atinge
não apenas o próprio mas a dignidade da vida em abstrato. Ao ponderar fundamentar a
decisão na vontade da pessoa ao seu cuidado, alarga o seu campo de proteção ao não
retirar a pessoa do meio social em que se encontra. Um ambiente social que não é
apenas instrumental face às necessidades individuais, mas que constitui um sistema
humano onde a dignidade da vida deve ser respeitada. O enfermeiro insere assim a sua
atividade profissional de cuidado neste respeito pela dignidade da pessoa e da vida
humana, ao utilizar a vontade como fundamento não absoluto.
242
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8. p 33
243
Cf. SCHMIDT, Eberhard – Teoria da Acção Social. Trad. Jorge de Castilho Pimentel. In Textos de
Direito Penal. Tomo II. Lisboa: AAFDL, 1984. p. 177-205.
208
doença, de envelhecimento ou à menoridade são realidades com as quais o enfermeiro
lida no seu exercício quotidiano. Nestes casos, a vontade da pessoa não pode ser o
fundamento para decidir, uma vez que esta não se encontra formada.
Respeitar a autonomia do Outro pressupõe que a pessoa se encontre com capacidade
plena de decidir sobre a sua vida. A não ser que, havendo alterações da consciência, não
havendo vontade atual, seja possível conhecer a vontade da pessoa anteriormente
manifestada. Através da recolha de informação junto dos familiares, por exemplo, é
muitas vezes possível conhecer em que sentido a pessoa dirigia e pretende orientar a sua
vida, pelo que se torna viável respeitar a vontade anteriormente demonstrada. Em
Portugal, o regime jurídico do consentimento em saúde consagra este princípio no artigo
9º da Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, ratificada para o
Direito interno pelo Decreto do Presidente da República nº 1/2001 de 3 de Janeiro e
pela Resolução da Assembleia da República nº 1/2001 de 3 de Janeiro.
Do mesmo modo, também no caso das crianças, o regime jurídico português estabelece
no nº 2 do artigo 6º da referida Convenção, um princípio que respeita a possibilidade do
menor participar nas decisões de saúde. É estabelecido que a criança participe na
construção da decisão sobre as intervenções a ela dirigidas, na medida da sua
capacidade. A menoridade não surge assim como um limite à participação do próprio
em matéria de consentimento em saúde. O respeito pela autonomia individual como
princípio ético atualmente consagrado em saúde, levou o legislador a encontrar esta
solução legislativa que responde à exigência ética do respeito pela vontade do Outro.
Estes princípios hoje consagrados na lei, ficaram patentes no estudo como aplicados
pelo enfermeiro na construção da decisão ética de enfermagem. Com efeito, verifica-se
um recurso a familiares para recolher informação sobre a vontade anterior da pessoa,
quando esta se encontra impossibilitada de o manifestar no momento. Igualmente se
verifica um respeito pela vontade das crianças, sempre que estas expressam uma
vontade que surge como adequadamente formada. O respeito pela vontade apresenta-se
assim como fundamento que determina a decisão ética do enfermeiro,
independentemente da idade ou das limitações circunstanciais da pessoa em causa. Um
respeito que não se assume como absoluto, mas que entra na construção da decisão sem
afectar a dignidade da pessoa humana.
209
4.1.3 Respeito pelos princípios e pelos valores da pessoa
210
A solução, a ser encontrada no domínio concreto em cada decisão, funda-se na natureza
não absoluta da liberdade como claramente aborda Arendt244 em que uma vontade livre
para a realização de um determinado ato que deriva da aplicação de princípios ou
valores individuais não ultrapassa a fronteira do respeito pela dignidade humana. De
outro modo, os princípios e os valores não estariam colocados ao serviço da pessoa e da
sua natureza humana. Afastavam-se da sua função fundacional para as decisões de vida,
para servir fins retirados da humanitude da decisão. E estes, o enfermeiro não tem
obrigação de ter em conta, porque isso o afastaria do seu compromisso ético de cuidado.
Respeitar os princípios e os valores do Outro significa assim um respeito integral por si,
onde estes estão claramente inseridos na humanidade da vida. Implica sobretudo uma
adaptação do cuidado, muitas vezes normalizado em baseado em regras gerais e
abstratas, a uma pessoa que mantém a sua identidade pessoal íntegra. Dessa identidade
fazem parte as razões de princípio e de valor que foram sendo adotadas ao longo do
curso da vida e que não são retiradas ao poder de agir da cada um. Este poder para agir
como o refe Ricoeur245, que utiliza os princípios e os valores como determinantes da
vontade, não fica diminuído nas situações de doença. O respeito pela pessoa obriga a
uma valoração contínua da sua capacidade para decidir sobre si, a partir da própria
valoração ética utilizada por cada um. É deste modo que os princípios e os valores
constituem um fundamento para a decisão ética de enfermagem.
244
ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Lisboa: Relógio D’Água, 2010. Trad. Roberto Raposo.
407p. ISBN 9789727086375. p. 20
245
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 27
211
sentido da protecão de si, da sua vida e da sua humanidade através de cuidados que
satisfazendo as necessidades específicas identificadas, tomam o todo o holístico como
foco da intervenção de enfermagem. O bem é alcançado através de uma intervenção que
visa não apenas o problema particular, mas pondera a totalidade dos efeitos de bem-
estar pretendidos. De tal forma que o objetivo do cuidado decidido ultrapassa o curto
domínio do imediato, para passar a uma finalidade mais ampla que contemple as
diversas dimensões da pessoa, tendo em vista uma harmonia sistémica traduzida num
bem-estar consigo e com os outros, o mais completa possível. Ou, este sentido de bem
humano, significa a promoção de uma morte serena quando o fim da vida é inevitável.
Enquanto fundamento para a decisão ética, o bem para a pessoa é utilizado quando uma
ausência da capacidade de decidir impede a pessoa de participar na construção da
decisão ética. O enfermeiro vê-se confrontado com uma dúvida quanto ao agir mais
adequado e encontra-se impossibilitado de obter a vontade da pessoa. A relação de
cuidado estabelecida e o sentido profissional da sua conduta obriga a que o enfermeiro
encontre uma solução. O dever de cuidado, que se encontra claramente estabelecido no
artigo 83º do Código Deontológico português obriga a que haja decisão e a que seja
praticada a intervenção que se considera necessária. Este dever de agir leva a que o
enfermeiro procure o cuidado que promova o bem para a pessoa, efetivando a sua
proteção digna. O enfermeiro suporta-se no seu conhecimento científico mas ao mesmo
tempo serve-se do seu sentido ético de cuidado para ponderar e decidir as intervenções
que mantenham a vida digna ou permitam uma morte sem sofrimento, se for esse o
caso. Na situação concreta, o enfermeiro promove o bem para a pessoa agindo conforme
o que for melhor para ela, ou seja de acordo com o que a sua situação de saúde/doença
implicar como a intervenção se mostre verdadeiramente humana. Humana, no sentido
em que garante o respeito integral pela pessoa e pela humanitude da sua vida, afastando
o sofrimento ou a intervenção que prolongue artificialmente a vida. Humana e
responsável, com o sentido de responsabilidade pelo Outro de Ricoeur246, em que as
ações dirigidas a outra pessoa visam um assumir total das suas necessidades humanas.
Responsabilizar-se pelo Outro ganha assim esta característica de promoção do bem
enquanto fundamento essencial para as ações que se lhes destinam. É na medida em que
o enfermeiro se responsabiliza pela pessoa ao seu cuidado que se obriga a decidir
246
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p. 54
212
intervenções que promova o bem para si, fazendo assim da relação de cuidado uma
relação essencialmente ética.
247
Cf. TOMEY, Ann Marriner; ALLIGOOD Martha Raile – Teóricas de Enfermagem e a Sua Obra.
Modelos e Teorias de Enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência, 2004. 750 p. Trad. Ana Rita
Albuquerque. ISBN 972-8383-74-6. P 484
213
decide com base naquilo que não prejudica a pessoa ou que a posa afetar negativamente.
A decisão procura que os efeitos da ação realizada não causem danos à pessoa, evitando
assim o mal para ela.
Independentemente de uma intervenção ter sido pedida pelo próprio ou sugerida por um
familiar, o enfermeiro decide não concretiza-la se antever que isso implica um efeito
negativo para a pessoa. Um efeito que prejudique a sua integridade física, que agrave o
seu sofrimento que coloque em risco o seu bem-estar ou mesmo a sua vida.
Consequências desta natureza não são boas para a pessoa em causa, como o não são
para qualquer ser humano. São resultados de intervenções que violariam a dignidade
humana e como tal não são, por princípio, executadas.
Noutro domínio incluem-se as intervenções que podem mostrar-se numa pessoa
eticamente adequadas, mas provocarem dano noutra. Neste caso, não é a intervenção em
si que é má, mas o efeito específico causado naquela pessoa em concreto que não é
bom. A especificidade da situação e o estado atual da pessoa obriga a um agir também
especial em que o comum das intervenções pode revelar-se desadequado. A proteção da
pessoa tendo em conta a sua especial vulnerabilidade e as suas necessidades reais, exige
do enfermeiro um planeamento de intervenções que não sejam danosas. Não provocar
dano, pode ser assim o principal fundamento utilizado para a decisão ética de
enfermagem.
Incluem-se neste conceito de dano que pretende evitar-se, um conjunto de efeitos que
afectariam a pessoa e a sua dignidade. Pode ser causador de dano a violência de vontade
a ausência de envolvimento da pessoa na construção da decisão. Pode também originar
dano o não-respeito pelos direitos ou pelos legítimos interesses da pessoa. A
manutenção de funções vitais em situação de fim de vida, prolongando o sofrimento é
igualmente uma situação danosa. Uma intervenção violenta numa criança que implique
memórias negativas sobre os cuidados de saúde, pode também constituir um dano para
essa criança.
Evitar estas consequências que atentam contra a dignidade da pessoa, deixando de
considera-la como um fim em si mesmo como postula Kant248, revela-se assim como
uma forma de cumprir este fundamento. Decidir no respeito pela dignidade humana,
leva a que se evitem os efeitos nefastos que uma intervenção poderia causar. No fundo,
248
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8 p. 68
214
decidir pelo princípio da não-maleficência apela à natureza ética do cuidado de
enfermagem que deve eliminar, aliviar e nunca promover o sofrimento.
215
De outro modo, não coloca a vida como valor absoluto, à luz do qual toda a intervenção
deveria, por todos os meios, manter a pessoa viva. Defende a vida sempre que isso
signifique promover a dignidade da pessoa e da vida humana. Decide com base no
respeito pela vida, mas mantendo o sentido ético da decisão de enfermagem que procura
sempre salvaguardar a dignidade da pessoa humana.
Nas situações de fim de vida, em que a morte se revela inevitável, a decisão de
enfermagem não se funda cegamente no respeito pela vida. Respeitar a pessoa significa
sobretudo respeitar a natural finitude da vida e passar ao cuidado paliativo, quando a
morte se aproxima. A intervenção escolhida não se isola para um campo terapêutico
específico em que um objetivo particular poderia ser alcançado, mas procura um
fundamento ético que tenha a pessoa como foco de proteção central. O respeito pela
vida surge aqui no seu sentido metafísico levando a que a decisão de enfermagem
assegure que aquela pessoa em concreto termine serenamente a sua vida.
É com este sentido ético de respeito pela dignidade da vida humana que a teoria de
enfermagem se refere à vida. As diversas filosofias teorias e modelos de enfermagem249
ao considerarem a vida como dimensão essencial do cuidado, abordam em simultâneo a
promoção da vida e a garantia de uma morte digna. A defesa da vida surge associada à
defesa da dignidade da pessoa que experimenta a morte como etapa final da vida.
Promover a vida, como o aborda Collière250, implica a prestação de cuidados que
suportem o funcionamento do corpo e mantenham a pessoa em relação, no respeito pelo
natural ciclo vital e na aceitação da doença que pode provocar a morte. A promoção da
vida, neste sentido com que a enfermagem o tem construído, faz-se no respeito pela vida
vivida pela pessoa e pelo seu curso natural do começo ao fim.
O respeito pela vida enquanto fundamento ético para a decisão de enfermagem emerge
com estas características. Leva a que o enfermeiro decida a intervenção que mantenha a
vida da pessoa em causa se essa manutenção estiver garantir o respeito pela humanidade
da vida. Caso contrário, este fundamento dá lugar a outro que se adeqúe à defesa da
dignidade que se pretende garantir. Decidir no respeito pela vida não constitui assim um
fundamento absoluto, desde logo porque a vida também não é ilimitada. Escolher o agir
249
Como as analisadas em TOMEY, Ann Marriner; ALLIGOOD Martha Raile – Teóricas de
Enfermagem e a Sua Obra. Modelos e Teorias de Enfermagem. 5ª ed. Loures: Lusociência, 2004.
750 p. Trad. Ana Rita Albuquerque. ISBN 972-8383-74-6.
250
Cf. COLLIÈRE. Marie-Francoise – Promover a Vida: Da Prática das Mulheres de Virtude aos
Cuidados de Enfermagem. 3ª tiragem. Sindicato dos Enfermeiros Portugueses e Lidel: Lisboa, 1999.
385 p. Trad. Maria Leonor Braga Assis. ISBN 972-757-109-3
216
no respeito pela vida significa sobretudo assegurar o cuidado que concilie o valor
supremo da vida com a inevitabilidade da morte.
251
Cf. MAGALHÃES, Vasco Pinto – Qualidade de Vida: Desafio e Ambiguidades. In ARCHER, Luis et
al – Novos Desafios á Bioética. Porto: Porto Editora, 2001. ISBN 972-0-06036-0. p. 222-224
217
4.1.7 A promoção do bem-estar e o alívio do sofrimento
252
Cf. NUNES, Lucília – A Especificidade da Enfermagem In NEVES, Maria do Céu Patrão; PACHECO,
Susana – Para uma Ética de Enfermagem. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004. ISBN 072-603-326-
8
218
sofrimento, ajudando a pessoa a lidar com uma condição que pode ser particularmente
insegura. Promover o bem-estar é por isso ajudar na consolidação de um ambiente
seguro e terapêutico onde a pessoa se sinta protegida e digna.
Aliviar ou dissipar o sofrimento constitui assim um fim que se interliga com este
fundamento da promoção do bem-estar. A decisão de enfermagem tem por base ética
um objetivo terapêutico mais específico que é o de pôr termo a qualquer forma de
sofrimento que afeta a pessoa. O bem-estar é assim alcançado através da eliminação ou
do alívio do sofrimento que afecta negativamente a pessoa.
O sofrimento frequentemente traduzido em dor física intensa e por vezes crónica,
fazendo parte de inúmeras situações de doença, não é hoje um mal não evitável. O
conhecimento científico das diversas ciências da saúde onde a enfermagem se insere,
permite lidar com a dor a e o sofrimento que ela provoca. Tratar a dor diminuindo
fortemente a sua intensidade ou mesmo eliminando-a é hoje possível e constitui um
avanço terapêutico com a maior relevância ética. É que passou a ser possível aliviar o
sofrimento causado pela dor, permitindo que algumas pessoas com determinadas
doenças, mantenham a esperança de viver com uma qualidade de vida aceitável. Este
alívio do sofrimento contribui, desta forma, para a promoção da dignidade da vida ao
tornar possível que as pessoas não abandonem a sua condição de ser humano que
estados de grande sofrimento podem originar.
Em diversas situações e sobretudo nos casos de fim de vida, intervir no sentido do alívio
do sofrimento constitui assim uma motivação fundamental em enfermagem. O
enfermeiro, encontra na promoção do bem-estar um fundamento ético da maior
importância para as suas decisões de cuidado. A deliberação, que segundo Aristóteles253
permite a escolha entre diferentes alternativas, leva a uma opção pelo alívio do
sofrimento fundamentando-se aí a decisão de cuidado. A escolha dos meios como o
filósofo considera visam atingir esse fim que se revela de maior respeito pela pessoa
naquele momento. Procura-se atingir o bem-estar através do alívio do sofrimento e esse
fim passa a constituir o fundamento para a decisão ética. A pessoa ganha assim maior
relevância do que outros objetivos mais concretos que podiam ser legítimos do ponto de
vista do padrão terapêutico, mas numa determinada pessoa pode corresponder a uma
intervenção excessiva sem nenhuma razão ética. Deste modo, promover o bem-estar
253
Cf. ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores,
2004.ISBN 972-564-622-3. p. 65
219
contribui inequivocamente para a promoção e defesa da dignidade humana, horizonte
supremo dos cuidados de enfermagem em qualquer circunstância.
254
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186
255
Idem, p. 27
220
que a proteção da saúde, eleva o respeito pela vida humana e pela dignidade daquela
pessoa.
A protecção da saúde surge assim associada à vida humana como uma dimensão
essencial. Intervir na defesa da saúde do Outro, constitui um agir que promove e
defende a vida.
Nestes termos a saúde é tido como um direito humano, uma vez que se encontra
associado à pessoalidade de cada um. A vida e nomeadamente a vida de relação, fica
predominantemente afetada quando a doença se instala, o que corrobora este postulado.
A saúde é necessária para uma vida digna que permita a cada pessoa desenvolver-se e
intervir positivamente no mundo que a rodeia. A saúde favorece a relação com os outros
e o desempenho dos diversos papeis sociais que tornam a pessoa realizada. É neste
sentido que a proteção da saúde constitui um direito ligado à dignidade humana de cada
pessoa. Daí que, cada um, ou seja cada Outro, assume o dever de promover essa
proteção, como de resto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, enquanto
dispositivo jurídico a que os Estados se obrigaram, determina no seu artigo 25º, ainda
que de uma forma não muito convicta. Ao enfermeiro cabe assumir este dever como
inerente à sua actividade profissional, concretizando-o na utilização como fundamento
para a decisão ética de enfermagem. A intervenção que daí resulta, ao impedir que os
danos para a saúde se concretizem, contribui para a qualidade de vida da pessoa em
causa. E deste modo, ao promover o bem-estar evitando distúrbios na saúde, favorece
igualmente o desenrolar do curso natural da vida, sem desequilíbrios nefastos.
256
Cf. ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores,
2004.ISBN 972-564-622-3
221
ponderação no sentido do cuidado justo como o considera Vieira257, determinado e
prestado com compaixão e solicitude, a um Outro que sofre. Sobretudo perante um
sofrimento presente, a justiça concretiza-se através do cuidado presente em que a
essência da relação de cuidado reside na humanitude dessa relação. A presença do
enfermeiro no tempo que for preciso ao Outro constitui o principal recurso de cuidado,
permitindo a segurança e a confiança necessária para o desenrolar do processo
terapêutico. Agir com justiça é assim atender ao que a pessoa precisa, na medida em que
ela precisa, no tempo que ela precisa.
No caso particular da transmissão de informação à pessoa-cliente e aos seus familiares,
decidir com fundamento na justiça permite a resolução de problemas éticos complexos
que surgem neste domínio. O problema da verdade e da transmissão com base neste
valor origina interrogações sobre o modo de agir no sentido da protecção das pessoas.
Dizer a verdade quando ela não é boa notícia, tem um efeito na pessoa e no seu estado
de saúde que é previsível para o enfermeiro. Transmitir informação com base numa
verdade absoluta que determinasse o fornecimento de toda a informação conhecida,
sendo ela má, seria uma agir desadequado do ponto de vista profissional. É esperado
que um profissional de saúde e particularmente o enfermeiro que exerce no seio de uma
relação cuidativa, aja de modo a não provocar danos ou pelo menos que atue no sentido
de um lidar gradativo com as más notícias. É aqui que conflitua o valor verdade com o
princípio da justiça, na transmissão de informação de enfermagem.
O enfermeiro resolve este conflito utilizando como fundamento para decidir o valor
verdade e justiça que concilia os dois fundamentos que pareciam conflituar. Fa-lo, no
caso português, de acordo com o seu Código Deontológico, que estabelece como valor
profissional “a verdade e a justiça”258 e prescreve que relativamente à transmissão da
informação o dever de “atender com responsabilidade e cuidado todo o pedido de
informação ou explicação feito pelo individuo em matéria de cuidados de
enfermagem”259.
Utilizando como fundamento a verdade em ligação com a justiça, o enfermeiro adapta a
transmissão da informação as necessidades da pessoa em causa, fornecendo-lhe a
informação com que ela consegue lidar naquele momento. Através de um juízo de
257
Cf. VIEIRA, Margarida – Ser Enfermeiro: Da Compaixão à Proficiência. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa Editora, 2007. 160 p. ISBN 972-54-0146-8. P. 114-119
258
Cf. Alínea c) do nº 2 do artigo 78º da Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro
259
Cf. Alínea c) do artigo 84º da Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro.
222
equidade fornece a informação adequada ao seu estado de convivência com a doença e à
sua capacidade de lidar com ela.
Tratando-se de terceiros à relação de cuidado, como acontece no caso dos familiares, a
decisão justa sobre que informação fornecer obriga a uma ponderação do dever de
sigilo. A decisão resultará da conciliação entre o respeito pela guarda do segredo da
informação da pessoa-cliente e as necessidades que os seus familiares apresentam. Agir
com fundamentos de equidade neste domínio implica assim o estabelecimento de
limites à transmissão da informação aos familiares, de modo a proteger a intimidade da
pessoa.
Nos restantes domínios, fundamentar a decisão no princípio da justiça obriga a um juízo
de ponderação entre a igualdade do padrão considerado adequado e a especificidade das
necessidades da pessoa ao nosso cuidado. Um juízo ético na medida em que visa a
proteção da pessoa e da sua dignidade, mais do que o cumprimento ou adaptação da
regra. Uma ponderação que implica também uma antevisão dos efeitos das intervenções
de modo a manter o respeito pela dignidade da pessoa ou das pessoas envolvidas,
fazendo com a decisão justa seja, naturalmente, uma decisão digna.
4.1.10 A confiança
260
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 353
261
Cf. RENAUD, Isabel – A Confiança. In Revista da Ordem dos Enfermeiros. ISSN 1646-2629. Nº
34. (Junho.2010). p. 9-17
223
seus antecedentes de saúde, que originam no enfermeiro o dever de guardar essa
informação em segurança262. Do mesmo modo, há uma entrega do corpo despido que
pode assim ser observado (vezes sem conta) por um estranho. Há uma intromissão no
seu corpo, em locais que nem o próprio conhece. E há ainda uma partilha dos medos e
angústias assim como dos desejos e vontades relativas a si e aos que lhes estão
próximos nas relações familiares e de amizade. Uma relação com esta proximidade
implica uma confiança da pessoa face ao enfermeiro, do mesmo modo que este espera
boa-fé da sua parte.
Na decisão ética, a confiança que a pessoa depositou no enfermeiro é utilizada como
fundamento, levando este agir tendo em conta o pacto estabelecido. A intervenção a
realizar garante os acordos de cuidado que emergiram da relação entre os dois e das
promessas que ambos fizeram um ou outro. Cumprir o prometido constitui assim uma
forma de manter a confiança.
Nos casos de dificuldade de decidir face a um acontecimento novo então verificado e
tendo sido confiada determinada informação confidencial que revelar-se como
eventualmente necessária, a confiança é chamada a fundamentar a decisão ética. Perante
o dever de sigilo que o Código Deontológico do Enfermeiro português estabelece no seu
artigo 85º263, o enfermeiro, num apelo à confiança da relação de cuidado que
permanece, decide manter guardado o segredo da informação que recolheu. Ou no caso
do pedido de uma pessoa externa à relação sobre vontades da pessoa-cliente, também a
confiança determina que o enfermeiro se abstenha de fornecer essa informação para fora
da relação de cuidado.
A proximidade com que as pessoas se entregam ao cuidado de enfermagem permite a
entrada do enfermeiro na esfera íntima da pessoa e desse modo recolher informação que
de outro modo não teria acesso. O trabalho em complementaridade do enfermeiro,
obriga-o a partilhar informação com os outros profissionais de saúde, quando esta
partilha se mostre necessária para o plano terapêutico comum. Também aqui o
enfermeiro precisa garantir a confiança que alicerça a relação de cuidado com a pessoa.
Em concreto precisa ver garantido o dever de sigilo por parte dos outros membros da
equipa de saúde, de modo a manter circunscrita a partilha da informação de saúde da
pessoa.
262
Como o analisamos em: DEODATO, Sérgio – Segurança da Informação em Saúde. Revista da Ordem
dos Enfermeiros. ISSN 1649-2629. Nº 34. (Junho.2010). p. 41-46
263
Cf. Artigo 85º da Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro
224
Em todos os casos, fundamentar a decisão na confiança implica o uso da prudência
aristotélica264 para encontrar a intervenção que evite danos para a pessoa. Implica não
destronar a fé que está na base da entrega ao cuidado, agindo no respeito pela palavra
dada.
264
Cf. ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Trad. de António C. Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores,
2004.ISBN 972-564-622-3
225
forma verbal ou escrita – fruto das negociações que levaram ao acordo para o
estabelecimento de uma relação de cuidado.
Substancialmente os deveres consagrados em norma jurídica e as obrigações
decorrentes de contrato são a mesma realidade obrigacional, correspondendo a
compromissos de agir que livremente o enfermeiro se obrigou. Quer os deveres inscritos
em lei265 quer as obrigações contratuais constituem imposições para o exercício
profissional, por se tratarem de regras que se julgam necessárias ao agir profissional de
enfermagem. Contudo, formalmente, a distinção conceptual clarifica a sua origem e
permite prever as consequências jurídicas para o seu incumprimento, havendo algumas
diferenças a registar.
Dos diversos deveres profissionais, os deontológicos são os ganham maior relevância na
decisão ética de enfermagem. São os deveres que se constituem com uma base ética de
sustentação, colocando a pessoa cliente do cuidado, no centro da proteção profissional.
Os deveres deontológicos existem pela necessidade de manter protegida a pessoa, os
seus direitos e a sua dignidade em todo o ato de cuidado. São deveres que encontram no
Outro que sofre como diria Vieira266, num Outro vulnerável mas autónomo, a
fundamentação ética para a sua existência. E é devido a essa esfera de proteção que
reside na pessoa que se confia ao cuidado, que se impõem como obrigatórios.
Sendo deontológicos nascem da própria profissão e decorrem dos alicerces éticos que os
enfermeiros vão construindo ao longo do tempo. Adaptam-se ao evoluir da sociedade
respondendo às novas exigências do tempo, mas, do mesmo modo, conservam a sua
natureza ética que reside na defesa da dignidade da pessoa humana. A sua interpretação,
visando a sua aplicação no exercício profissional do quotidiano em cada relação de
cuidado permite densificar as normas prescritivas dando-lhe sentido concreto através de
identificação de enunciados de agir267.
Os deveres deontológicos do enfermeiro constituem a categoria de deveres que se
suportam na fundamentação ética que a enfermagem vai construindo através da sua
análise reflexiva sobre o agir profissional do enfermeiro na sua relação profissional com
as pessoas. Decorrem e realizam-se no seio desta relação intersubjectiva cuja
especificidade resulta da sua finalidade de cuidado.
265
Considerando aqui lei em sentido amplo, podendo tratar-se de qualquer diploma jurídico com carácter
vinculativo.
266
Cf. VIEIRA, Margarida – Ser Enfermeiro: Da Compaixão à Proficiência. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa Editora, 2007. 160 p. ISBN 972-54-0146-8. P. 115
267
Como o demonstramos em: Deodato, Sérgio – Responsabilidade Profissional em Enfermagem:
Valoração da Sociedade. Coimbra: Edições Almedina, 2008. 194 p. ISBN 978-972-40-3401-0
226
São estes deveres que constituem fundamento para a decisão ética de enfermagem, em
qualquer contexto de cuidado onde o problema ocorre. Reveste esta característica de
universalidade face à relação profissional de enfermagem, o que não significa um
padrão rígido de conduta. Com efeito, o carácter abstrato da norma do dever permite
uma adaptação concreta em cada relação de cuidado, respeitando assim aquela pessoa e
as suas necessidades de cuidados.
Deste modo, o dever deontológico permite a escolha da intervenção que se situe no seu
campo de proteção. Agir no respeito por um dever deontológico significa cumprir o seu
enunciado de conduta aplicado à pessoa e às circunstâncias atuais em que o problema
ético ocorre. Significa igualmente uma escolha do cuidado que respeite a
fundamentação ética do dever e a interpretação que o agente faz dela naquele contexto
específico. O dever, constituindo a razão de decidir, constitui o fundamento
deontológico para a ação, trazendo ao palco do acontecimento os princípios e os valores
que lhe dão suporte.
A utilização do dever deontológico como fundamento para a decisão ética de
enfermagem constitui a utilização de uma parte do todo que a deontologia de
enfermagem portuguesa hoje integra. Com efeito, se os deveres correspondem ao
essencial da deontologia, esta inclui ainda princípios e valores que fundamentam a ação
do enfermeiro. Princípios, valores e deveres compõem assim a deontologia portuguesa
atual formando um sistema valorativo organizado harmoniosamente. No conjunto este
conjunto tripartido constitui o Código Deontológico que se encontra juridicamente
consagrado enquanto parte integrante do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, dos
artigos 78º ao 92º do Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado pela Lei nº
111/2009 de 16 de Setembro. O Código Deontológico do enfermeiro português assume
assim desde 1998 uma natureza jurídica que o inclui no sistema jurídico do país,
obrigando a uma articulação sistémica e hierárquica com as demais leis do Estado. Mas,
o Código Deontológico, com os princípios, os valores e os deveres profissionais,
constitui apenas uma parte da deontologia. Esta, integra ainda os direitos do enfermeiro,
consagrados no artigo 75º da referida lei, os deveres em geral no artigo 76º e as
incompatibilidades com o exercício de enfermagem no artigo 77º. A deontologia de
enfermagem atual consiste neste conjunto normativo que inclui direitos dos
enfermeiros, princípios, valores e deveres para com a pessoa e atividades profissionais
que se julgam de exercício incompatível com a enfermagem. Um sistema que, apesar
das diferentes disposições normativas com os seus objetivos específicos, se fundamenta
227
na mesma premissa ética, que é a defesa da dignidade humana. Com efeito, quer o
exercício dos direitos quer o cumprimento dos deveres, têm como fundamento ético
comum, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana através do respeito pelos seus
direitos em cada relação de cuidado de enfermagem.
Deste modo e com esta perspectiva sistémica da deontologia de enfermagem, utilizar os
deveres como fundamento deontológico para a decisão ética de enfermagem, ultrapassa
o mero cumprimento dos deveres considerados. Significa respeitar o normativo do
dever inserido na sua esfera ética mais ampla onde os princípios e os valores
profissionais assim como os direitos das pessoas protegidos se incluem. O dever,
enquanto fundamento para a decisão de cuidado, surge envolto na sua base ética
demonstrando assim o campo de proteção de onde emergiu. Quando o enfermeiro
recorre a um dever deontológico para justificar a sua ação, coloca no centro da sua
preocupação a pessoa e os seus direitos, escolhendo a intervenção que respeita este
acervo ético. O dever não encerra em si mesmo a orientação para a conduta, antes
constitui-se como uma manifestação normativa num domínio que a ética de
enfermagem visa proteger. Ao mesmo tempo constitui igualmente uma densificação dos
princípios jurídicos do país, em cujo sistema se inclui, onde a dignidade da pessoa
humana assume valor estruturante, ao encontrar-se consagrado no artigo primeiro da
Constituição da República Portuguesa. Uma harmonia ética e jurídica que também
encontra eco na deontologia, uma vez que este princípio está igualmente plasmado na
primeira norma do Código Deontológico, no nº 1 do artigo 78º da Lei nº 111/2009 de 16
de Setembro.
268
Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003. 117
p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8. p 33
228
obrigação de agir através da prestação do cuidado adequado. A razão determina o dever
de agir.
O enfermeiro enquanto pessoa livre e capaz de se auto-determinar como verificamos em
Kant269 e no uso da sua capacidade para agir com base na sua intenção, dando vida ao
seu poder para agir que encontramos em Ricoeur270, assume, ele próprio, o seu dever.
Conforme as necessidades da pessoa e conforme a dimensão humana que importa
proteger, o enfermeiro obriga-se por dever a agir num determinado sentido protetor que
tenha a dignidade humana como horizonte ético ou finalidade a atingir. Chama a si o
dever de proteger a intimidade se esta estiver em perigo no âmbito da prestação de
cuidados de saúde; age no sentido de manter sigilo se a confidencialidade da informação
da pessoa estiver ameaçada; procura o respeito pelos direitos especiais dos mais
vulneráveis quando estes vêm agravado o seu estado de saúde/doença; respeita as
manifestações de luto dos familiares em situação de morte de um seu ente querido ou
procura adaptar as regras organizacionais às necessidades demonstradas pelas pessoas
em determinadas situações. A obrigação de agir num determinado sentido ético
constitui assim o dever profissional que o enfermeiro utiliza como fundamento para a
decisão de cuidado. O enfermeiro forma a sua vontade na convicção de que o
fundamento considerado constitui um dever deontológico que o determina no seu
exercício profissional.
Como traço comum a este dever ao qual o enfermeiro se obriga, encontra-se o dever de
cuidado. O dever que prescreve a obrigação de prestar cuidados, antes de qualquer outro
fundamento para agir. Um dever a equacionar sempre que uma relação de cuidado se
estabelece, mas que ganha particular relevância quando o problema ético exige uma
decisão difícil. Impõe-se assim uma obrigação de realizar uma intervenção, mesmo que
em condições contextualmente adversas. O dever de cuidado opõe-se assim ao
abandono da pessoa, mantendo em todas as circunstâncias uma atitude profissional que
o determina a ficar presente.
Independentemente da intervenção, o dever de cuidado impele a uma atitude ativa
perante um problema ético que afete a pessoa. O compromisso de cuidado de Nunes271
obriga à procura de uma resposta para os problemas identificados, não abandonando a
269
Idem
270
Cf. RICOEUR, Paul – Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 424 p. ISBN 2-02-
011458-5
271
Cf. NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados
de Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 365
229
pessoa e os seus familiares. O enfermeiro obriga-se ao cuidado justo como o considera
Vieira272, fazendo da prestação do cuidado de enfermagem a sua resposta profissional à
necessidade de bem-estar das pessoas.
O dever de cuidado que impede o abandono do Outro ou quaisquer dos deveres a que o
enfermeiro se obrigue, levam a que o problema ético de partida não fique sem
resolução. O dever de agir obriga o enfermeiro a encontrar sempre um cuidado adaptado
à exigência ética do momento, traduzindo-se num ato ou numa omissão deliberada. O
dever e nomeadamente o dever deontológico com a sua base ética de suporte constitui
um fundamento para a decisão ética de enfermagem. As ações que dele decorrem vêm
assim com a garantia do respeito pela pessoa, pelas suas necessidades e pela sua
dignidade.
272
Cf. VIEIRA, Margarida – Ser Enfermeiro: Da Compaixão à Proficiência. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa Editora, 2007. 160 p. ISBN 972-54-0146-8. P. 115
230
Respeitar as normas jurídicas constitui um dever de cidadania e naturalmente do
enfermeiro. Contudo, na resolução de um problema ético, o enfermeiro pode ver-se
confrontado com a interrogação quanto a cumprir ou não o disposto na lei ou em
alguma norma institucional. Sobretudo se o cumprimento da norma não responde às
necessidades que a pessoa ou os seus familiares apresentam no momento. Nestes casos
o não cumprimento da norma abstrata pode ser a solução para o problema, havendo
necessidade de apelar aos princípios que determinaram a lei e à sua ratio legis para
adapta-la à situação em concreto. Mais do que um incumprimento trata-se de interpretar
a lei com juízo de equidade e encontrar soluções jurídicas que não violem a dignidade
da pessoa em causa.
Noutras situações é a norma jurídica que protege a pessoa e compete ao enfermeiro
fazer com que esta se aplique, mesmo que alguma circunstância externa o dificulte. É o
caso da normas que regulam a prestação de cuidados de saúde em Portugal e que visam
garantir a proteção da saúde das pessoas. Frequentemente surgem situações em que se
verifica algum atropelo por parte das instituições de saúde, aos direitos que este quadro
jurídico consagra. E muitas vezes também a pessoa encontra-se impossibilitada de fazer
valer os seus direitos exigindo o seu exercício adequado. O enfermeiro, profissional que
assumiu a responsabilidade pela pessoa e não apenas pelos cuidados que lhe presta,
como o aborda Ricoeur273, constitui o recurso que pode velar pela correta aplicação da
lei no sentido de responder à necessidades e aos direitos da pessoa e dos seus familiares.
Em certas situações o enfermeiro interfere mesmo junto das organizações de saúde,
assumindo o dever de garantir o exercício adequado da cidadania da pessoa ao seu
cuidado. Perante outros, sobretudo, promove o cumprimento da lei e faz disso a razão
fundamental para justificar a sua decisão ética. Utiliza um fundamento jurídico para um
fim que se revela predominantemente ético, uma vez que promove a defesa da pessoa e
dos seus direitos de cidadão.
273
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p.54
231
indispensável para a sua vida em sociedade. Os direitos constituem uma forma de
assegurar a cidadania permitindo um tratamento igual para todos.
Esta proteção conferida pelo exercício dos direitos pessoais, resulta da garantia atribuída
pelo direito. Para poder ser invocado, o direito tem que estar consagrado na norma
jurídica. Mesmo que se trate de um reconhecimento apenas, como é o caso dos direitos
humanos que se consideram universalmente atribuídos com a aprovação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, estes entra na esfera jurídica de cada pessoa, apenas
quando entrarem formalmente no ordenamento jurídico do país. No caso concreto dos
direitos humanos, esta consagração pelo direito positivo está estabelecida na norma do
nº 2 do artigo 16º da Constituição da República Portuguesa274. Deste modo, os direitos
podem ser exercidos, havendo penalizações para quem impeça esse exercício. É esta
garantia que a consagração em lei atribui ao exercício dos direitos das pessoas. De outro
modo, mesmo que estabelecidos em algum documento escrito, sem a garantia da lei,
não entram no mundo jurídico e por isso não podem ser reivindicados.
O respeito pelos direitos das pessoas enquanto fundamento jurídico para a decisão de
cuidado, significa assim a salvaguarda dos direitos juridicamente consagrados. De resto
é esta consagração em lei que atribui o caráter jurídico a este fundamento. O enfermeiro
não baseia a sua decisão num eventual direito invocado por alguém. Quando apela aos
direitos, dirige-se a cada um em concreto, com a certeza de que este se encontra
estabelecido no ordenamento jurídico do país.
Este facto determina que o conjunto de direitos atribuídos às pessoas dizem respeito a
cada país. Cada Estado, em resultado da sua soberania nacional exercida no seu
território nacional, determina os direitos que consagra aos cidadãos e apenas esses
podem ser invocados. Hoje há um acervo de direitos humanos, mesmo para além dos
que estão inscritos na Declaração Universal do Direitos Humanos, que são considerados
universais sem ligação a fronteiras dos estados. Estes fazem parte dos ordenamentos
jurídicos dos países, praticamente com os mesmos conteúdos. Todavia, o seu exercício
por cada pessoa só acontece se essa consagração jurídica interna existir. De outro modo,
podem ser referidos e podem constituir argumentação política, mas não podem ser
individualmente exercidos.
274
O nº 2 do artigo 16º da CRP estabelece que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos
fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem”. Deste modo consagra-se a Declaração Universal como fonte jurídica em
Portugal.
232
Orientar o agir profissional no respeito pelos direitos das pessoas constitui uma
dimensão do agir ético de enfermagem com recurso a fundamento de natureza jurídica.
O direito fornece um dos focos de proteção essencial – os direitos das pessoas – para
que a decisão de enfermagem configure uma natureza ética. Uma ligação estreita entre a
ética e o direito através de um elemento comum, que apesar de ser oriundo do terreno
epistemológico deste, integra-se no domínio de reflexão daquela. Refletir o agir ético e
sobretudo pensar o agir profissional no âmbito do cuidado ao Outro, implica
necessariamente ponderar uma conduta no respeito pelos direitos humanos, no contexto
particular da relação de cuidado estabelecida. A enfermagem encontra-se assim como
um campo de confluência entre a ética e o direito, neste domínio dos direitos das
pessoas. Uma confluência onde chega a consagração formal e a atribuição do direito a
cada pessoa que se interliga com o sentido ético da sua proteção.
A enfermagem, através do cuidado permite que esta proteção seja efetivada, através da
defesa e da promoção do exercício de cada direito numa pessoa em concreto. A ética de
enfermagem, ao fornecer a reflexão sobre o agir profissional no respeito pelos direitos
das pessoas, como o fazem Thompson et al275, favorece o estabelecimento de uma
relação de cuidado que assegure o exercício efectivo destes direitos. Havendo conflito
entre os direitos em causa, compete ao enfermeiro encontrar solução através da
ponderação e no respeito pela concordância prática na efectivação do exercício desses
direitos276.
Agir no sentido do respeito do Outro e na promoção da sua dignidade pressupõe que se
veja reconhecida em cada um a titularidade dos direitos e ao mesmo tempo que se
promova o seu exercício. Nomeadamente nas situações de doença e ainda mais nos
casos de gravidade extrema, o agir ético de enfermagem funciona como o garante da
manutenção dos direitos das pessoas, cujo exercício pleno se encontra comprometido.
Em concreto, cabe ao enfermeiro escolher as suas intervenções tendo em conta a
proteção específica do direito que estiver em causa ou for colocado em risco. Partindo
do princípio de que a titularidade do direito se mantém, compete-lhe decidir garantindo
que a esfera de proteção jurídica do direito em apreço não é reduzida ou eliminada.
275
Cf. THOMPSON, Ian E; MELIA, Kath M; BOYD, Kenneth M – Ética em Enfermagem. Loures:
Lusociência, 2004. 445 p.Trad. PEREIRA, Helena; ROSA, Margarida Cunha. ISBN 972-8383-67-3.
P. 151-180
276
Como o abordamos em: DEODATO, Sérgio – Conflitos de Direitos na decisão de Cuidado em
Enfermagem. Servir. ISSN 0871-2379. Vol. 56. Nº 3-4 (Maio-Agosto.2008). p. 112-117
233
Como principal direito a assegurar, encontra-se a proteção da saúde dos cidadãos em
Portugal que, ao encontrar-se consagrado no artigo 64º da Constituição, ganha assim
valor superior na ordem jurídica do país. A decisão ética de enfermagem situa-se assim
em primeiro lugar no respeito pelo direito à proteção da saúde, onde o direito ao
cuidado enfermagem, consagrado no artigo 83º da Lei nº111/2009 de 16 de
Setembro277, se inscreve. Proteger a saúde das pessoas, através da prestação do cuidado
de enfermagem constitui assim um dever do enfermeiro que deve estar presente em toda
a relação de cuidado. A ação do enfermeiro toma a proteção da saúde como o foco de
atenção essencial.
Na decisão ética de enfermagem, a proteção da saúde e a promoção de um estado
saudável, que inclui no conceito actual o bem-estar como elemento essencial, emerge
como um fundamento a ter em conta. As intervenções a realizar consubstanciam-se em
cuidados que promovam o equilíbrio sistémico da pessoa com um funcionamento
regular do seu corpo, que previnam ou ajudem a tratar as doenças existentes e que
contribuam para a recuperação após alterações patológicas debilitantes. Os cuidados são
frequentemente planeados e prestados em parceria com outros profissionais, incluindo-
se assim num ambiente multidisciplinar e pluriprofissional característica da intervenção
de saúde atual.
Ao agir deste modo, colocando a saúde das pessoas no centro da sua atenção quando um
problema ético surge, o enfermeiro reconhece a titularidade do direito à proteção do
Outro e conforma-se, na sua ação, como essa titularidade jurídica. Independentemente
da sua invocação formal, o enfermeiro age no respeito pelo exercício de um direito que
reconhece na esfera jurídica do Outro e baseia a sua decisão na salvaguarda desse
direito. Resolve o problema ético que identificou com a realização de intervenções que
garantam o estado saudável da pessoa ou evitem que a doença se agrave. Faz disso a sua
principal razão de decidir e age nessa conformidade.
Para além do direito à proteção da saúde, o agir ético do enfermeiro concretiza-se
também no respeito pelos outros direitos das pessoas e dirige-se mesmo à sua promoção
e defesa. Sobretudo em situação de eminência ou mesmo violação de algum direito
pessoal, o enfermeiro assume um papel ativo na sua defesa. Perante um problema ético
277
Artigo do Código Deontológico do Enfermeiro, que faz parte integrante do Estatuto da Ordem dos
Enfermeiros, aprovado por este lei. Nele está enunciado o dever de cuidado para o enfermeiro, com base
no respeito pelo direito ao cuidado das pessoas. Sendo uma lei, esta consagração do direito ao cuidado,
entra na ordem jurídica do país e atribui assim a titularidade aos cidadãos do país.
234
em que algum direito esteja em risco, fundamenta a sua decisão no respeito por esse
direito.
No estudo emergiram aqueles que se encontram fortemente relacionados com os
cuidados de enfermagem, a saber, o direito à integridade física, à reserva da vida
privada, à informação e a morrer com dignidade. São todos direitos consagrados pelo
direito português pelo que a sua utilização na decisão ética de enfermagem constitui um
fundamento iminentemente jurídico. O direito à integridade física encontra proteção
constitucional, no artigo 25º da lei fundamental, assim como o direito à reserva da vida
privada, consagrado no artigo 26º. O direito à informação de enfermagem tem proteção
deontológica específica e está estabelecido no artigo 84º da Lei nº 111/2009 de 16 de
Setembro278, assim como o direito a morrer com dignidade que se encontra plasmado no
artigo 87º da mesma lei.
O apelo a estes direitos – como aos demais – como fundamentação para a escolha das
intervenções, ocorre num movimento do enfermeiro para fora de si. Um centrar o seu
agir profissional na pessoa ao seu cuidado e nos seus familiares concretizando a sua
protecção através da promoção do exercício efectivo dos seus direitos. O enfermeiro
dedica a sua atenção profissional ao Outro, fazendo da relação de cuidado um meio para
atingir a promoção da condição humana da pessoa ao seu cuidado, onde os direitos
pessoais assumem uma dimensão substancial. Ao procurar que a pessoa tenha
possibilidade de exercer os seus direitos, garantindo-lhe condições para um exercício
digno, o agir ético de enfermagem acrescenta a promoção da cidadania como elemento
ético da sua acção profissional. Fa-lo através da decisão pelo cuidado que respeita cada
direito, que faz parte integrante da condição de cidadão com que a pessoa se apresenta
aos cuidados de saúde e de enfermagem. Ao promover o respeito por algum direito que
se encontre em risco de violação, intensifica a vivencia da cidadania plena, em
circunstâncias de maior vulnerabilidade e por isso de maior desproteção para a pessoa.
Este agir é possível, graças à consagração pela lei dos direitos humanos inerentes à
efetivação de uma vida digna e em sociedade para cada pessoa. É nesta medida que o
respeito pelos direitos das pessoas constitui um fundamento de natureza jurídica que se
insere no agir ético de enfermagem.
278
Artigo que integra o Código Deontológico do Enfermeiro e que, ao prescrever o dever de informar,
consagra o direito è informação de enfermagem para a pessoa cliente dos cuidados.
235
4.4 Fundamentos profissionais
279
Entendemos por quadro regulador o conjunto dos dispositivos jurídicos e profissionais que criam
regras para o exercício da profissão de enfermeiro em Portugal. Como elementos principais temos duas
leis, a saber, o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE) aprovado pelo Decreto-
Lei nº 161/96 de 4 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril e o Estatuto da
Ordem dos Enfermeiros, que inclui a Deontologia Profissional e o Código Deontológico, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril, alterado e republicado pela Lei nº 111/2009 de 16 de Setembro.
Como documentos profissionais mais importantes temos os Padrões de Qualidade para os Cuidados de
Enfermagem e as Competências do enfermeiro de cuidados gerais produzidos pela Ordem dos
Enfermeiros e os Regulamentos recentemente aprovados também pela Ordem dos Enfermeiros relativos
ao novo Modelo de Desenvolvimento Profissional em fase implementação.
236
intervenção pode assim ser dificultada pela partilha do ambiente de cuidado que obriga
a uma articulação entre os diversos planos terapêuticos. Neste contexto em que as
decisões de cada profissional precisam muitas vezes de ser negociadas, torna-se
necessário afirmar a autonomia profissional de enfermagem para garantir o direito ao
cuidado das pessoas.
280
Cf. RICOEUR, Paul – O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 195 p. ISBN
9789728407186. p.54
237
poder-capacidade trazido por Nunes281. Dotado da capacidade, o que significa no
mundo jurídico ser capaz, o enfermeiro exerce esse poder para recolher informação,
diagnosticar, planear resultados de cuidado a atingir e agir através da realização de
intervenções de enfermagem. É este poder para agir do enfermeiro, reconhecido pela lei
num Estado de Direito como é Portugal, que corresponde ao exercício da autonomia da
profissão e que funciona como fundamento para decidir por determinada intervenção
que decorre do conhecimento científico de enfermagem aplicável e do sentido ético de
respeitar a pessoa em causa.
281
NUNES, Lucília – Justiça, Poder e Responsabilidade: Articulação e Mediações nos Cuidados de
Enfermagem. Loures, Lusociência, 2006. 484p. ISBN 972-8930-17-8. p. 365
238
disponibiliza para agir sempre que se considera competente para tal, que interage com
os outros em complementaridade funcional. Um regime de articulação profissional que
não implica perda de autonomia de cada um, mas antes um exercício comum no sentido
de assegurar a globalidade dos cuidados de saúde que a pessoa precisa.
Do mesmo modo que o enfermeiro decide com base na necessidade de cuidados que
identificou e faz disso o principal fundamento para agir, disponibiliza-se para intervir no
âmbito de um trabalho em parceria com outros profissionais, em que o diagnóstico pode
ser de enfermagem ou de outro domínio científico. Fá-lo, com a legitimidade que a lei
lhe atribui, porque o nº 3 do artigo 8º do REPE e o artigo 91º do Estatuto da Ordem dos
Enfermeiro o consagra enquanto exercício em complementaridade funcional, mas age
dessa forma sobretudo porque essa é melhor resposta à necessidades de saúde da pessoa.
E deste modo, faz uso de fundamentos de natureza profissional para concretizar um agir
ético que responda às necessidades do Outro.
239
conhecimento. O diagnóstico de enfermagem consiste assim numa necessidade humana
básica alterada se seguirmos Virginia Hendersen ou num défice de auto-cuidado se nos
apoiarmos em Dorothea Orem. Ou então o problema de enfermagem reside numa
atividade de vida comprometida se considerarmos o Modelo de Nancy Rooper ou na
falta de uma medida de conforto se seguirmos Kolcaba. O resultado é sempre o mesmo,
a saber, o de identificar um problema que afeta a pessoa e que, segundo o conhecimento
científico de enfermagem constitui um diagnóstico. E, perante o diagnóstico formulado,
é planeado um resultado a atingir, que consiste numa modificação positiva do problema
considerado, através da prestação de cuidados.
Quando, perante um problema ético, o cuidado indispensável para resolver o
diagnóstico formulado se mostrar necessário naquelas circunstâncias para promover o
bem-estar da pessoa, o enfermeiro decide pela sua prestação. Usa como fundamento
essa necessidade, que sendo em primeiro lugar científica, assume igualmente uma
natureza ética quando se revela como adequado para solucionar o problema ético. O que
motiva o enfermeiro não é, em primeiro lugar, a concretização do plano de cuidados
estabelecido, mas a proteção da pessoa em determinada situação em que a sua vida, ou
seu bem-estar ou a sua dignidade ficaram colocadas em risco. Daí que, a motivação de
realização do cuidado não seja científica, mas eminentemente ética. Ou, talvez com
maior rigor, com uma fundamentação ética que inclui também uma dimensão científica,
afastando assim uma justificação analítica que seja difícil de demonstrar. Ou ainda
porque, considerando o paradigma epistemológico pós-moderno, o conhecimento de
enfermagem assume diversas dimensões, como o considera Carper282, sendo difícil
estabelecer uma fronteira entre a sua utilização pelo enfermeiro.
282
Cf. CARPER, B.A. Fundamental patterns of knowing in nursing. In POLIFRONI, Carol E.; WELCH,
Marylouise, Perspectives on Philosophy of Science in Nursing. An Historical and Contemporary
Anthology. Philadelphia: Lippincot, 1999
240
terapêuticos que habitualmente são atingidos no comum das pessoas, nesta caso não
são, uma vez que a morte é inevitável e aproxima-se. Os cuidados revelam-se assim
inúteis, não quanto ao seu fim científico, mas quanto aos resultados concretos naquela
pessoa.
O enfermeiro, no seu exercício profissional autónomo pondera as diferentes alternativas
de agir, acabando por formar a sua vontade livre como nos refere Michel Renaud283, que
o determina a afastar-se do padrão científico e a decidir-se pela omissão de determinado
cuidado que considera inútil. O seu sentido de respeito pela dignidade do Outro, na
situação particular de fim de vida, leva-o deixar de prestar alguns cuidados porque estes
já não conseguem contribuir para os resultados que seriam esperados. Uma decisão de
não fazer que se reveste da maior dificuldade uma vez que a manutenção da vida
constitui um objetivos muito enraizado nos profissionais de saúde em geral e também
nos enfermeiros. Difícil também porque pode parecer incompreensível para a pessoa e
sobretudo para os seus familiares que um cuidado considerado adequado passe a ser
visto como inútil e por isso seja suspenso. Dos profissionais de saúde e dos enfermeiros
espera-se que façam, que intervenham ativamente e não a passividade da omissão de
cuidado. É a convicção da sua inutilidade científica que pode levar a uma situação
obstinação terapêutica, que faz com que o enfermeiro assuma essa decisão. É o seu
sentido ético de respeito simultâneo pela vida, pela pessoa e pela sua dignidade, que
fundamenta a sua escolha. Um sentido ético Kantiano284 que o impede de aceitar a
instrumentalização da pessoa humana, tornando-o como objeto de intervenções de saúde
em vez de centro de cuidado digno. Um agir que respeita a dignidade da vida até esta se
extinguir, respeitando a naturalidade da finitude humana, permitindo que a pessoa morra
sem excessos de intervenções no seu corpo.
283
Cf. RENAUD, Michel – Os Novos Condicionamentos da Liberdade. Revista Portuguesa de Bioética.
Cadernos de Bioética. ISSN 1646-882. Nº 9 (Dezembro.2009). p. 369
284
Cf. Cf. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003.
117 p. Trad. Paulo Quintela. ISBN 972-44-0306-8 p. 68
241
manutenção desse cuidado, o enfermeiro decide-se pela sua continuação se isso se
revelar benéfico para a pessoa.
O resultado terapêutico é aqui considerado também como benefício ético, no sentido em
que é considerado o mais adequado para a promoção do bem-estar da pessoa. Sobretudo
nas situações de incapacidade do próprio para decidir sobre os cuidados que pretende,
sendo assim impossível obter o seu consentimento livre e esclarecido285, a decisão
segundo o benefício terapêutico da intervenção, constitui assim um assumir da
responsabilidade profissional pelo Outro e pela proteção da sua saúde. É esse benefício,
situado claramente no campo científico de enfermagem, que fundamenta a decisão ética,
demonstrando-se uma vez mais a articulação dos diversos domínios do conhecimento de
enfermagem, na aplicação prática da decisão de cuidado dirigida a uma pessoa.
285
Como o determina a legislação portuguesa vigente, nomeadamente a Convenção Sobre os Direitos do
Homem e a Biomedicina, ratificada para o Direito português pelo Decreto do Presidente da República nº
1/2001 de 3 de Janeiro e a Resolução da Assembleia da República nº 1/2001 de 3 de Janeiro.
242
4.6 Fundamentos sócio-culturais
O respeito pelas crenças da pessoa em ligação às suas raízes culturais e que determinam
alguns costumes, são um tipo de fundamento que o enfermeiro considera na decisão
ética de enfermagem. Aquilo em que a pessoa acredita em resultado do meio sócio-
cultural em que cresceu e no qual, deliberadamente, si incluiu são objeto de respeito do
enfermeiro ma sua ação de cuidado. Na presença de um problema ético, nomeadamente
em situações graves de doença, os valores de vida da pessoa emergem e obrigam a uma
286
Cf. COLLIÈRE. Marie-Francoise – Promover a Vida: Da Prática das Mulheres de Virtude aos
Cuidados de Enfermagem. 3ª tiragem. Sindicato dos Enfermeiros Portugueses e Lidel: Lisboa, 1999.
385 p. Trad. Maria Leonor Braga Assis. ISBN 972-757-109-3
243
ponderação pelos profissionais de saúde. Do mesmo modo, as crenças culturais e os
próprios costumes são frequentemente trazidos à relação de cuidado, pela própria
pessoa, ou pelos seus familiares. Fazem parte do acervo cultural que não se destaca
quando alguém é internado numa instituição hospitalar ou quando é submetido a
cuidados necessários ao seu estado de saúde/doença. Mantém-se na pessoa, muitas
vezes silenciados, oprimidos pelo ambiente institucional recheado de regras e rotinas a
cumprir. Mas permanecem enquanto elemento central da esperança e constituem fatores
internos promotores da segurança.
O enfermeiro lida com estes alicerces culturais que preenchem a vida das pessoas e
inclui-os no cuidado, podendo adotar aquilo que Leininger287 conceptualizou como a
enfermagem transcultural, tomando em consideração as diferenças culturais das pessoas
e fazendo disso fundamentação para o seu agir profissional. Isto implica uma
capacidade de compreender a especificidade cultural do Outro e conformar-se com os
seus valores e os seus modos de vida, abstendo-se de juízos pré-concebidos. Esta
compreensão dá lugar à acomodação e negociação que Boehs288 analisa na teoria de
Leininger. O respeito pelas referências culturais da pessoa implicam uma negociação
sobre os cuidados a prestar, adaptando (acomodando) as regras profissionais e
institucionais, aos seus costumes, sem colocar em causa a sua vida e a sua dignidade.
Respeitar as crenças culturais constitui assim uma atitude de cuidado que considera a
pessoa na sua totalidade e permite que as suas diferentes dimensões sejam tidas em
conta na decisão de cuidado. Este respeito inclui-se num agir ético de enfermagem, em
que o cuidado responde à globalidade e singularidade da pessoa e não apenas a uma
necessidade específica. Um cuidado que é capaz de equacionar as práticas correntes
para adaptar-se a concretizar um costume ou permitir uma prática decorrente de uma
crença. E deste modo determinar o agir ético, levando o enfermeiro a decidir as
intervenções ou omissões que respeitem e promovam a dimensão cultural da pessoa, do
mesmo modo que atende às outras dimensões da vida humana.
287
Cf. LEININGER, M. Transcultural nursing: concepts, theories and practices. New York: John
Wiley & Sons, 1978.
288
Cf. BOEHS, Astrid Eggert. Análise dos conceitos de negociação/acomodação da teoria de M.
Leininger. Rev. Latino-Am. Enfermagem [Em linha]. 2002, vol.10, n.1, pp. 90-96.
(Consult.26.Agosto.2010). Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
11692002000100014&script=sci_arttext#back. ISSN 0104-1169. doi: 10.1590/S0104-
11692002000100014.
244
Num domínio mais social, surge como fundamento ético a consideração de obrigações
familiares por cumprir quando a doença obriga a internamento prolongado, com grande
perda das capacidades de vida diária e nomeadamente em fim de vida. A previsibilidade
da morte leva a um equacionar dos pendentes da vida pessoal e social, verificando-se
frequentemente que existem algumas obrigações por realizar. As intervenções que
afectam a mobilidade e a consciência impedem que a pessoa planei a concretização
destas obrigações o que pode aumentar a ansiedade e a própria aceitação do estado de
saúde/doença. É um caso concreto em que a situação de doença, não retirando a
titularidade dos direitos das pessoas, impede o seu exercício pleno, causando uma
limitação de cidadania. O enfermeiro assume aqui um papel muito concreto de garantir
o exercício dos direitos, ao criar condições para que algumas atividades possam ser
realizadas pela pessoa que se encontra em ambiente hospitalar e muitas vezes com a
morte eminente.
O enfermeiro intervém no sentido de facilitar o cumprimento das obrigações familiares
que a pessoa considerar em falta. Reorganiza o seu plano de cuidados, negoceia com os
restantes membros da equipa de saúde, adapta algumas regras institucionais para
assegurar que a pessoa cumpra algum procedimento que assumiu como fazendo parte do
seu papel familiar ou social. Ultrapassa ao campo estrito da prestação do cuidado
terapêutico, para atender a necessidades pessoais que correm o risco de não serem
satisfeitas em virtude da nova e muitas vezes brusca situação em que a pessoa imergiu.
Responsabiliza-se pela pessoa e não apenas pelo ato, permitindo-lhe agir segundo a sua
vontade no exercício da sua liberdade exterior, como a denomina Cunha289. O
enfermeiro age profissionalmente como promotor da liberdade do Outro e da sua
vontade para realizar determinadas ações, em circunstâncias em que este exercício se
encontra fortemente limitado. Fundamenta o seu agir nessa vontade alheia, fazendo dela
uma razão ética para concretizar a sua responsabilidade pelo Outro e garantir assim a
satisfação das suas necessidades decorrentes do seu papel familiar, onde se mantém
inserido apesar das suas limitações de vida diária.
289
Cf. CUNHA, Paulo Ferreira – Filosofia Jurídica Prática. Lisboa: Quid Júris?, 2009. 800 p. ISBN 978-
972-724-411-9. p. 31
245
verificação de que a família tem um ambiente capaz de assegurar o apoio que a pessoa
necessita e que o envolvimento da família no processo de cuidado é possível, leva a que
o enfermeiro decida realizar intervenções com base nesse suporte. O regresso a casa,
por exemplo, ou a realização de uma atividade em meio extra-hospitalar, só poderão ser
possível se os familiares se dispuserem a participar. Decidir com estes objetivos torna-
se assim possível, graças à capacidade familiar de assumir um papel complementar mas
articulado com as instituições de saúde.
A família, enquanto célula social de vida em comum, onde a pessoa se desenvolve em
ambiente de partilha, funciona como a rede de apoio às necessidades individuais. Na
doença e particularmente no fim da vida, as necessidades aumentam e modificam-se
evidenciando a vulnerabilidade humana e a dependência inerente à vida. Os cuidados
ajudam a minimizar estes efeitos e permitem o caminhar para uma morte tranquila, ao
mesmo tempo que promovem a aceitação do estado terminal. A inclusão dos familiares
nos cuidados de enfermagem facilita a manutenção do ambiente familiar e social
valorizando assim a plenitude da vida humana. De outro modo, este envolvimento da
família nos cuidados facilita também a necessária ajuda do enfermeiro a cada familiar,
na medida das suas necessidades em lidar com a morte e o sofrimento. Ao mesmo
tempo que são chamados assumir o papel de cuidadores informais ficam também mais
perto da relação de cuidado que é possível estabelecer com o enfermeiro, concretizando-
se assim a atenção da enfermagem ao todo familiar.
A família permite assim o alargamento do cuidado à satisfação de necessidades que
apenas são possíveis com o seu suporte. A existência deste apoio permite ao enfermeiro
escolher intervenções que de outro modo não seriam ponderáveis, constituindo assim
como um fundamento para a decisão ética de enfermagem.
246
alcançar. A decisão ética de enfermagem toma como foco central da sua atenção a
pessoa humana e a resolução das ameaças que a sua vida e a sua dignidade sofrem.
A construção da decisão adequada implica a ponderação de diversos fundamentos que a
podem suportar. São equacionados diversas razões para agir, havendo necessidade de
escolher aquela que se mostra apta a justificar a intervenção escolhida.
Os fundamentos são de diversa natureza demonstrando a complexidade das variáveis
que a decisão de cuidado encerra. Aos fundamentos éticos que mais facilmente
legitimam uma decisão ética, juntam-se fundamentos deontológicos, jurídicos,
profissionais, científicos e sócio-culturais que completam a necessária fundamentação
para a escolha do cuidado a prestar.
A sua utilização não é exclusiva, podendo em cada decisão o enfermeiro utilizar mais
do que fundamento e mais do que uma categoria. Ao princípio ético pode juntar-se o
dever ou determinada norma jurídica, assim como a competência profissional num
determinado domínio ou a constatação de que uma intervenção se revela inútil do ponto
de vista terapêutico, podem completar o conjunto dos fundamentos utilizados. A uma
decisão complexa corresponde assim um conjunto variado de razões de fundo que a
podem sustentar.
De outro modo, existem fundamentos que podem ser incluídos em mais do que uma
categoria. É o caso da competência profissional que situamos no domínio profissional,
mas constitui igualmente um fundamento deontológico, uma vez que constitui um valor
profissional enunciado na alínea e) do número 2 do artigo 78º do Código Deontológico
dos enfermeiros em Portugal. Do mesmo modo, existem fundamentos que inserimos na
categoria ética, mas que podem igualmente se analisados na perspectiva jurídica. A
inclusão categorial resultou a interpretação dos sujeitos do estudo e das suas referências
no discurso analisado, todavia a questão da dupla inclusão categorial consideramos se
relevante realçar. Esta constatação sugere-nos a manutenção da discussão em torno da
interceção dos saberes, no âmbito do campo epistemológico do pós-modernismo. E
incita-nos igualmente a aprofundar as ligações entre estas diversas áreas do
conhecimento, entre si e com a enfermagem.
247
sobre se a acção decidida cumpriu o seu fim ético e resolveu o problema de partida é
feita posteriormente e frequentemente leva o enfermeiro a validar a sua escolha.
Fundamentar a decisão significa explicar para si e para os outros a razão da sua escolha,
tendo em conta o problema inicial e o fim em vista. Implica um movimento para dentro
e para fora de si, na procura da razão de decidir. Resulta do poder para agir e do uso da
liberdade e constitui uma manifestação da autonomia profissional. Mas decorre
sobretudo do sentido ético do seu exercício profissional e do dever assumido de agir na
proteção do Outro, dos seus familiares e no respeito pela dignidade humana.
Fundamentos Éticos
Fundamentos Deontológicos
Fundamentos Jurídicos
Fundamentos Profissionais
Fundamentos Científicos
Fundamentos Sócio-Culturais
248
CONCLUSÃO__________________________________________________________
Na reta final do percurso realizado é chegado o momento de encerrar o texto que foi
sendo construído a partir do estudo efectuado. É tempo de concluir, sintetizando os
conteúdos abordados realçando as ideias expostas.
249
A análise e discussão dos resultados deram origem a conhecimento novo de
enfermagem relativo à decisão ética de enfermagem. A tese agora concluída define o
conceito de problema ético de enfermagem, descreve a construção da decisão ética de
enfermagem e identifica os fundamentos utilizados pelos enfermeiros nessa construção.
Como grandes eixos de síntese, salientamos para cada um destes sub-domínios, uma
ideia conclusiva.
Como ideia síntese relativa à construção da decisão ética de enfermagem, releva o seu
carácter sistémico e não processual. A decisão ética de enfermagem é construída através
de uma atividade mental do enfermeiro que é desencadeada pelo confronto com um
problema ético de enfermagem. Esta construção desenrola-se em diversas fases,
podendo verificar-se alguma sobreposição no tempo e mesmo um retomar de uma fase
anterior.
Como ponto de partida e como primeira fase surge a identificação do problema ético,
que configura uma vivência de uma situação não planeada. Após esta identificação,
surgem as fases de envolvimento da pessoa e dos seus familiares e de envolvimento da
equipa de saúde, onde se incluem os outros enfermeiros e os restantes profissionais de
saúde. Surgem igualmente as fases de ponderação dos diversos fundamentos que se
revelam adequados à situação em apreço e a decisão final conforme aos fundamentos
250
escolhidos. Por fim, como fase posterior mas em ligação a esta construção, verifica-se a
avaliação sobre o impacto da decisão e das ações realizadas.
A decisão ética de enfermagem inclui assim um conjunto sistémico de fases que
permitem uma ponderação do agir adequado à situação específica de uma pessoa. O
enfermeiro constrói a sua decisão no sentido de resolver o problema ético identificado,
ou seja, escolher a intervenção que garanta a proteção da dignidade da pessoa em causa.
No que se refere aos fundamentos para a decisão ética de enfermagem, concluímos que
estes se situam em diversos domínios do saber, mas assumem uma predominância ética.
De facto, os fundamentos ponderados e utilizados para suportar a decisão ética pelo
enfermeiro revestem uma natureza deontológica, jurídica, profissional, científica e
sócio-cultural. Contudo, os fundamentos éticos são os mais predominantemente
utilizados. Verificamos igualmente que não existe diferença significativa entre os
fundamentos que são ponderados e os que são depois utilizados para sustentar a decisão.
Ou seja, não há diferença substancial entre o que se pondera e o que fundamenta a
decisão final.
A fundamentação para a decisão ética de enfermagem revela-se assim essencialmente
ética, sendo os princípios éticos e os valores as principais bases de sustentação do agir
profissional do enfermeiro. Na procura da intervenção mais adequada a prestar perante a
ocorrência de um problema ético, o enfermeiro guia-se pela dignidade da vida e pelo
respeito pela pessoa para encontrar o cuidado justo.
251
Do mesmo modo que a sociedade valora que o enfermeiro realize o seu exercício
profissional no respeito integral pelas pessoas de quem cuida, há igualmente por si uma
valoração da dimensão ética no cuidado de enfermagem. É esta valoração que emerge
como eixo central na construção da decisão ética de enfermagem e que se realça como
nota conclusiva final.
Estes resultados, do mesmo modo que nos permitiram construir conhecimento novo de
enfermagem, impelem-nos também a continuar a investigação em domínios que se
evidenciaram como problemáticos. Com efeito, a ligação verificada entre a decisão ética
e a decisão clínica de enfermagem, levam-nos a considerar a necessidade de aprofundar
a decisão clínica, nomeadamente quanto às suas fases. Consideramos que o
aprofundamento do conhecimento neste domínio clarificará a decisão de cuidado em
enfermagem, permitindo o estabelecimento de pontos de interceção entre a decisão
clínica e a decisão ética de enfermagem.
252
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