O Coeficiente de Arte de Marcel Duchamp

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galeria [ STÉPHANE MALYSSE ]

Antropólogo visual, artista e professor de Artes e


Antropologia na EACH/USP. Doutor em Antropologia
Social pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS/Paris), com pós-doutorado pelo
Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da
Unicamp. Pesquisador associado do departamento de
Antropologia da Goldsmith (Londres) e colaborador
do Forum Permanente (ECA-USP). Autor de Diário
acadêmico (Estação das Letras e Cores, 2008).
E-mail: [email protected]

O “coeficiente de arte”
de Marcel Duchamp:
uma antropologia
da arte conceitual

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Marcel Duchamp, Fonte (1917)


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Arruinar. Urinar
Marcel Duchamp

Se a obra de arte é um ponto de vista sobre o mundo, pedindo um outro ponto


de vista, o do público, que deve ler e interpretar os gestos dos artistas e as suas in-
tenções, estamos propondo aqui uma pragmática da arte que seja uma estética pelo
gesto, em que o artista, em vez de esconder seus gestos criativos, transforma-os na
gênese da obra. Para o interacionismo simbólico da Escola de Sociologia de Chicago,
o pragmatismo virou a base da metodologia de pesquisa, pois o mundo só existe
através das interpretações que os homens fazem dele, o que significa que, para nós, a
arte só existe através das interpretações que os homens fazem dela, ou seja, “são os
espectadores que fazem os quadros”, como afirmava Duchamp (citado por MARCADÉ,
2008, p. 248).
Segundo Alfred Gell (1998, p. 134) “a obra de arte pode ser comparada a uma
armadilha, pois a obra sendo vista reativaria as qualidades colocadas intencionalmen-
te pelo artista, justamente para ativar todas as capacidades presentes na mente das
pessoas”. Leonardo da Vinci alertava que a pintura é coisa mental e temos aqui uma
nova forma de entender essa afirmação. Quando Gell (1998, p. 112) diz que olhar para
uma obra de arte é “como encontrar alguém”, faz referência ao poder que a obra de
arte tem de cristalizar as intenções do artista e, ao mesmo tempo, de concretizar uma
“rede de intenções” que leva o público a cair na armadilha. Se a obra fala pelo artista,
o público tem que sentir, ouvir e ver para descobrir as intenções em jogo na obra. Para
entender e sentir uma obra é preciso se jogar na armadilha, cair na rede de (in)tensões
e finalmente, tal como um animal preso, debater-se com as significações simbólicas
presentes na obra. Essa metáfora nos instiga a analisar uma obra de arte tal qual
uma armadilha; a obra de arte necessita de um cenário de captura, de uma vítima (o
público) e de um mecanismo de captura da atenção: uma isca, uma “estét-isca”. Gell
esclarece que “as armadilhas comunicam a idéia de uma rede de intenções e de rela-
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ções entre os caçadores e as suas presas através do material utilizado” (1998, p. 50).
Procurando desenvolver uma teoria universal da arte, teoria que seja capaz de tratar
tanto da arte ocidental como da arte tribal, Gell trabalha com os conceitos de pro-
dução, circulação e recepção da obra de arte, para definir uma antropologia da arte
capaz de interpretar tanto uma obra contemporânea de Damien Hirst como uma
armadilha Zandé da África Central. Nesse sentido, o autor concebe a arte como um
“sistema de ação” que prefere primordialmente mudar o mundo a ser o mero suporte
de proposições simbólicas. A noção central dessa nova teoria, a “intencionalidade”, co-
loca em xeque os debates clássicos sobre a definição da arte a partir de uma dinâmica
fundada sobre a rede de intenções entre o agente (o artista/a obra), o paciente (o pú-
blico) e o contexto (espaço de exposição). De certa maneira, Gell sobrepõe o conceito
de comunicação ao conceito de estética, considerando a obra de arte um elemento de
comunicação (e de comunhão) entre os indivíduos.
Para Gell “as obras de arte nos fazem imaginar as diferentes intenções liga-
das as suas produções e nos obrigam a representá-las com intenções próprias”
(1998, p. 148). Em vez de pensar a arte em termos de beleza, deveríamos, segun-
do ele, concebê-la em termos de intenções, sejam imaginárias ou reais:

O que chamamos de objeto de arte, e muitos outros objetos que não clas-
sificamos como arte, possui uma força ou um poder de fascínio porque
consideramos esses objetos como indicadores do que as pessoas que o
fabricaram e utilizaram tinham em mente. Assim a Mona Lisa nos permite
apreender tanto as intenções do pintor de produzir um belo objeto que
vai impressionar algumas pessoas, as intenções da mulher, ela mesma, de
seduzir e de ironizar, as da mulher sendo representada como sedutora irô-
nica, a vontade ou a resistência do artista a ilustrar o humor que o modelo
quer ver representado, a intenção do colecionador de encomendar o ob-
jeto, de mostrar a sua riqueza ou a beleza das mulheres sobre as quais ele
exerce o seu poder, as intenções do estado francês de mostrar seu poder e
sua riqueza através da aquisição e da exposição deste objeto... Todos estes
espíritos são, conscientemente ou inconscientemente, representados aqui
através da obra de Leonardo Da Vinci. (GELL,1998, p. 163)
E é assim que se vê, de acordo com Gell, o poder do objeto de arte. Se as obras são
“redes de intenções”, vemos que um objeto de arte continua a se abrir a novas redes
enquanto ele é visto e/ou utilizado.

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Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q (1919)

Por exemplo, a intervenção que Marcel Duchamp faz no quadro da Mona Lisa é
uma nova camada de intenção que podemos entender como uma forma de revisitar
a história da arte e, concomitantemente, uma (ir)reverência a Leonardo da Vinci e à
arte em geral. Com L.H.O.O.Q, Duchamp ataca a mulher representada, a sua ironia
sedutora e a sua suposta virtude e ataca também a própria história da arte. O artista
reativa toda a rede de intenções de Da Vinci e adiciona a ela novas intenções: o bi-
gode, a mensagem codificada e uma reflexão sobre a reprodução da obra de arte e a
autenticidade. Com o bigode, Duchamp tem a intenção de revelar o homem que se
esconde atrás dessa mulher, a possibilidade de ver um autorretrato de Leonardo da
Vinci e, talvez, a intenção de revelar a homossexualidade do pintor, já que ela (ele) tem
“fogo no rabo” (l.h.o.o.q em francês é abreviação para “elle a chaud au cul”). Quando
um artista trabalha a partir da obra de arte de um outro artista, as redes de intenções
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se acumulam, se juntam e se contextualizam de forma inédita, criando uma arma-


dilha hipertextual cujas intenções se hibridizam e se multiplicam ao infinito. “Minha
ironia”, dizia Duchamp, “é uma ironia da indiferença, uma meta-ironia” (citado por
MARCADÉ, 2008, p. 257). Para Duchamp, a angústia da repetição alimentou uma
longa reflexão sobre a sua relação com a reprodução e o original. Como destaca Mar-
cadé (2008), repetir é algo muito diferente do que reproduzir e é justamente através
dessas metaironias e metacópias que Duchamp critica o mundo capitalista das artes
que começava a se esboçar em Nova York e Paris nos anos 1920. Toda a existência
de Duchamp foi carregada de tentativas de religar a arte à vida, à sua própria vida. E,
numa perspectiva sartriana, afirmou através da sua estética existencial que ninguém
se torna revolucionário simplesmente por suas ideias ou suas intenções, mas sim por
suas ações, seus gestos que são realizações propriamente ditas. Como ressalta Marcel
Jousse (1970), “o homem é o gesto”.
Duchamp (1975) sustenta que a criação não supõe uma atividade manual
(artesanal) do artista, mas sim uma escolha, que está conectada a uma ideia, a
um saber mental que o artista detém sobre a sua criação, sobre o controle das
suas intenções artísticas. Jogando com a sua identidade, o artista multiplica as
possibilidades interpretativas e subverte a equação: a obra é o artista. Ao mesmo
tempo, extensão e exteriorização do seu ego, a obra de arte é conceitual (em sua
natureza) porque o artista comunica suas intenções conceitualmente, carregando
dessa forma as suas segundas intenções (fazer arte, torna-se artista). Duchamp,
com sua obra, desmistifica a figura do artista. Numa de suas conferências públicas,
em 1957, nos Estados Unidos, Duchamp lança as premissas para a compreensão
do que veio a ser a participação do espectador na arte contemporânea. Para ele,
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haveria na criação de uma obra de arte uma relação de proporções quase matemá-
ticas que chamou de “coeficiente de arte”. Essa fração seria resultante da relação
entre o que o artista desejou manifestar e ficou latente na obra, de um lado, e aquilo
que o observador apreende do trabalho, mas que não foi deliberadamente proposto pelo
artista. Essa diferença entre a intenção e a realização passaria despercebida pelo artista
e depois pelo observador.

Durante o ato criativo, o artista passa da intenção à realização, atra-


vés de uma série de ações em cadeia que são totalmente subjetivas.
A luta para realizar a sua obra leva o artista a passar por uma longa
série de esforços, dores, satisfações, recusas e decisões, que não po-
dem nem devem ser totalmente conscientes, pelo menos do ponto de
vista estético. O resultado desta luta é a diferença entre a intenção
e a realização, diferença da qual o artista nem sempre é consciente.
Um corte, uma parte que falta no seu processo criativo, representa a
impossibilidade do artista enxergar completamente a sua intenção.
Esta diferença entre o projeto inicial e a realização final é o próprio
coeficiente da arte. (DUCHAMP, 1975, p. 34)

Esse “coeficiente da arte” se concentra justamente nos gestos realizados pelos


artistas, gestos que ligam o conceito ao concreto, gestos que demonstram uma
diferença entre a intenção e a ação correspondente. Esse espaço intermediário,
essa “diferença”, como denomina Duchamp, é justamente a armadilha que o artis-
ta cria para si mesmo, uma autoficção que abre e fecha as nossas possibilidades
de descobrir as verdadeiras intenções do artista. Com a teoria de Gell, percebemos
que nada escapa às armadilhas das obras de arte e que é justamente nesse espaço
entre intenção e realização que as segundas intenções do artista, da obra e do
observador se juntam para recriar uma segunda rede de intenções, mais complexa
e mais aberta às interpretações secundárias que a primeira.
De fato, a dimensão conceitual é
bastante significativa na produção ar-
tística contemporânea e, ao tratar dos
gestos artísticos, constatamos que em
muitos casos o gesto é o conceito apli-
cado, realizado e concretizado. Nesse
sentido, o ready-made de Duchamp
torna-se o gesto inicial da arte concei-
tual e o paradigma de uma operação
na qual a autoria do gesto é compar-
tilhada. Quem fez o ready-made? inda-
ga o artista com seu gesto. Quando o
artista usa uma forma conceitual de
arte, todas as decisões são tomadas
antes da execução dos gestos; a ideia
torna-se o motor, o agente da arte. A
importância de Marcel Duchamp na
gênese dos gestos artísticos contem-
porâneos é a de reivindicar a validade
do gesto de escolher como sendo um
gesto de arte. Numa entrevista dada à
BBC, em 1966, Duchamp explica que
o ready-made deve ser “tratado como Marcel Duchamp, Roda da bicicleta (1913)
uma obra de arte, admirado como tal
mas não deve ser olhado como um quadro. Está exposto e ponto. É um objeto que [ 55 ]
mudou de destino. A obra de arte não é visível, ela não atinge mais a retina mas o
cérebro”. De fato, a arte é, para Duchamp, um conjunto de decisão e, sobretudo, a
decisão que cabe ao artista de dizer se isso é ou não é arte. Nesse contexto de vali-
dação da obra de arte pelo próprio artista (e não mais pelas instituições, críticos ou
galerias de arte), a decisão implica a realização de um outro gesto, o gesto autoral
por excelência: assinar a sua obra. Na lógica duchampiana da arte, basta o artista
assinar o que considera sua obra para que esse gesto firme a autenticidade da sua
criação. Contraditoriamente, Duchamp assinava todas as coisas que ele encontrava
para desvalorizar a própria arte. Os ready-mades simbolizam a relação artística de
Duchamp com seu próprio cotidiano como, por exemplo, no seu pente (1917) que
ele transforma em obra de arte inscrevendo a frase “3 ou 4 gotas de alteza não têm
nada a ver com o selvagem”. Para Duchamp, a criação de um ready-made é um ges-
to cuja intenção é a de arruinar a definição da obra de arte em si. Como esclarece
em Notas sobre os ready-mades (DUCHAMP, 1975, p. 34), “a arte é uma droga que
vicia... eu tive que me proteger dos meus próprios ready-mades, limitando as suas
produções a alguns exemplares por ano”.

REFERÊNCIAS
DUCHAMP, Marcel. Duchamp du signe: écrits. Paris: Flammarion, 1975.

GELL, Alfred. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Claredon Press, 1998.

JOUSSE, Marcel. Anthropologie du geste. Paris: Seuil, 1970.

MARCADÉ. Bernard. Marcel Duchamp: la vie à crédit. Paris: Flammarion, 2008.

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