DISSERTAÇÃO A Cura Que Vem Do Fundo - Mayra Faro
DISSERTAÇÃO A Cura Que Vem Do Fundo - Mayra Faro
DISSERTAÇÃO A Cura Que Vem Do Fundo - Mayra Faro
BELÉM
2012
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BELÉM
2012
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BELÉM
2012
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Banca Examinadora:
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BELÉM
2012
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Agradecimentos
Carl Jung.
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Resumo
Este estudo tem como tema a Pajelança Cabocla em Soure, na Ilha do Marajó/PA, e analisa
práticas e saberes de cura em Soure e o papel da mulher no contexto religioso e simbólico da
pajelança. Compreende-se pajelança cabocla como um conjunto de crenças e práticas de cura
bastante difundidas na Amazônia, em que se encontram mesclados em graus variados
elementos de diversas culturas e expressões religiosas, entre as quais o Catolicismo popular, a
Umbanda, Pajelança indígena, Espiritismo e Nova Era. Neste trabalho serão abordadas as
principais características da pajelança cabocla, e as práticas e saberes de cura de algumas
mulheres curadoras de Soure. A metodologia utilizada foi de pesquisa de campo e
bibliográfica, com abordagem qualitativa e fenomenológica, constando da análise de
entrevistas narrativas e observações em ritos de cura com mulheres pajés. Teoricamente, essa
pesquisa se baseia em estudos de Galvão (1955), Maués (1990; 1999; 2005), Salles (1988;
2004), Motta-Maués (1993), Cavalcante (2008), Villacorta (2000, 2011), Eliade (1998; 2001),
Montal (1986) e outros. Ao todo foram realizadas seis visitas de campo, em períodos curtos
(de três a sete dias), em que foram estabelecidas diversas entrevistas com pajés e outros
sujeitos do local, além de observações em práticas de cura. Estudos sobre as mulheres pajés
na Amazônia estão se ampliando cada vez mais e demonstram que elas participam do
universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja agindo efetivamente como pajés ou
xamãs, seja agindo como serventes ou assistentes de um pajé. O presente trabalho demonstra
como se apresentam as formas de pajelança em Soure e como ocorre a participação da mulher
neste universo. A partir desse estudo compreendemos que a pajelança cabocla é um fenômeno
dinâmico e complexo, com diversas faces e aspectos, alguns conhecidos outros ainda não.
Abstract
This study has as object of search the Pajelança Cabocla in Soure, on Marajo Island/PA, and
analyze the practices and knowing of healing in Soure and the function of woman on religious
and symbolic context of pajelança. Pajelança cabocla is understood as a group of believes
and practices of healing quite widespread on Amazonia, that are mixed in varying degrees
elements of many cultures and religious expressions, including the popular Catholicism, the
Umbanda, indigenous Pajelança, Spiritism and New Age. This study will explain the main
characteristics of pajelança cabocla, and the practices and knowing of healing of some
women healers of Soure. The methodology used was the field and bibliographic search, with
qualitative and phenomenological approach, consisting in analyses of narrative interviews and
observations on rites of heal with pajés (shamans) women. Theoretically, this search is based
on studies of Galvão (1955), Maués (1990; 1999; 2005), Salles (1988; 2004), Motta-Maués
(1993), Cavalcante (2008), Villacorta (2000, 2011), Eliade (1998; 2001), Montal (1986) and
others. In general it was accomplished six visits in field, on short periods (from three to seven
days), in which was established many interviews with pajés and other local subjects, also
observations on healing practices. Studies about shamans women on Amazonia are growing
more and presenting that they participate on pajelança’s universe in many ways, acting as
pajés or shamans, or acting as servants or assistants of a pajé. The present study demonstrates
how are presented the forms of pajelança in Soure and how occurs the women’s participation
in this universe. From this study we understand the pajelança cabocla as a dynamic and
complex phenomenon, with many faces and aspects, some of them known and some of them
not known yet.
Sumário
Introdução 10
Traçando uma trajetória da pesquisa 10
A estrutura da dissertação 12
Referências 144
Glossário 148
Introdução
11
O interesse pelo estudo sobre pajelança cabocla remonta a 2008 quando ingressei no
grupo de pesquisa “Cultura e Sociabilidade na Amazônia” (hoje não mais ativo), sob a
coordenação do Prof. Dr. Maurício Costa. Os primeiros trabalhos que li sobre o tema foram o
de Eduardo Galvão, “Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá” (1955), e de
Heraldo Maués, “A Ilha Encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores”
(1990), a partir dos quais pude conhecer um pouco sobre o mundo dos pajés, dos encantados,
o conhecimento das ervas e plantas que curam, assim como os conflitos entre esses indivíduos
e a Igreja Católica, e entre eles mesmos por disputa de poder e autenticidade.
Essas características despertaram meu interesse e curiosidade em analisar mais
profundamente o que é chamado de Pajelança Cabocla 1, entendida como religiosidade
presente na região amazônica e marcada por elementos das culturas indígenas, dos cultos
afro-brasileiros e do catolicismo popular, principalmente, mas também de outros sistemas
religiosos, como o espiritismo e a Nova Era, mesclando-se em graus variáveis dependendo da
localidade e da “formação” do pajé.
A partir das leituras realizadas sobre o tema da pajelança, percebi que haviam dois
aspectos pouco contemplados por esses estudos. O primeiro é a localidade, a maioria dos
estudos se refere à região do salgado e bragantina, sendo poucos os trabalhos cujo locus da
pesquisa seja na região marajoara. O segundo aspecto refere-se à questão da mulher na
pajelança, pois como observou Galvão (1955), Maués (1990) e Motta-Maués (1993), por
exemplo, a pajelança em certas localidades é um campo quase que exclusivamente masculino.
Até mesmo em comunidades indígenas a maioria dos pajés são homens. Apesar de se ter o
conhecimento da existência de mulheres pajés, como na etnia Yawanawá, no Acre, que em
2006 duas índias foram iniciadas pajés 2.
Além disso, há registros em arquivos e documentos históricos de mulheres
conhecedoras de ervas, que faziam remédios caseiros ou naturais, banhos e “benzeções”.
Estudos recentes vêm demonstrando a recorrência de mulheres pajés em municípios do estado
do Pará, como apontam Villacorta (2000) e Cavalcante (2008), apesar destas pajés ou
curadoras enfrentarem constante discriminação por parte da população local. Portanto, esses
1
Apesar da problemática deste termo, em ser inicialmente utilizado em sentido pejorativo, como aponta Maués
(1990) e Figueiredo (2009), tornou-se bastante comum e usado em trabalhos científicos sobre o tema, e até
mesmo passou a ser usado pelos próprios curadores(as) de algumas cidades, como Soure. Por essa razão,
mantenho o uso deste termo neste estudo.
2
Folha do Meio Ambiente, abril de 2005.
12
3
Além desses, conversei também com D. Olga, filha do pajé Zé Piranha (já falecido), que em seus depoimentos
nos revelou informações bastante interessantes sobre a prática de cura de seu pai.
13
Zeneida Lima, observar a atuação desta pajé na cidade de Soure e como a população se
relaciona com ela, e analisar as formas de participação das mulheres na pajelança em Soure.
Do ponto de vista metodológico, esta é uma pesquisa de campo e bibliográfica
pautada em uma abordagem qualitativa. De acordo com Minayo (2002) esta abordagem
trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,
correspondendo a um campo mais profundo das relações, dos processos e fenômenos que são
difíceis de serem reduzidos à operacionalização de variáveis.
O embasamento teórico desta pesquisa é a Fenomenologia, ou Hermenêutica, que
busca uma interpretação “na qual símbolos e metáforas se entrelaçam e a linguagem-ação se
desdobra em um sentido que pode ser retomado numa tradição, num testemunho, numa
elucidação reflexiva, e em múltiplas interpretações” (JOSGRILBERG, 2001, p.17), e onde o
fenômeno e os significados religiosos são tão importantes quanto os dados factuais e
históricos.
A primeira etapa da pesquisa consistiu no estudo bibliográfico sobre a pajelança
cabocla na Amazônia e a questão de gênero, em que os principais estudiosos consultados
foram: Galvão (1955), Maués (1990, 1999, 2005), Motta-Maués (1993), Cavalcante (2008),
Braga et al (2002, 2003), Figueiredo (1972, 1976), Villacorta (2000, 2011), Segato (1998),
Mead (1999), entre outros. A autobiografia escrita por Zeneida Lima (1991/2002) foi também
de grande importância neste trabalho.
E a segunda etapa consistiu na pesquisa de campo, composta por entrevistas de
perguntas semi-abertas, registros audiovisuais, observação em rituais de pajelança de D.
Roxita e em eventos sócio educacionais da escola “Zeneida Lima de Araújo”. As entrevistas
são de tipo narrativa, que permitem “ao pesquisador abordar o mundo experimental do
entrevistado, de modo mais abrangente, com a própria estruturação desse mundo” (FLICK,
2004, p.109).
A estrutura da dissertação
Este trabalho segue a seguinte estrutura: uma Introdução, em que constarão prévias
informações sobre o tema, as motivações da pesquisa, as questões norteadoras, os objetivos e
a metodologia; cinco capítulos e considerações finais.
No primeiro capítulo, Apresentando o Campo: Soure, serão apresentadas
informações sobre a cidade, para que o leitor ou a leitora compreenda e conheça um pouco
sobre o local onde foi realizada a pesquisa.
14
Soure foi fundada na época dos jesuítas, tendo sido um aldeamento, com
fazendas administradas pela Ordem dos Capuchos, até a expulsão das ordens
religiosas, pelo Marquês de Pombal. Segundo Raiol (1992) a aldeia existente
na época, dedicada a São José do Mundi, foi posteriormente rebatizada como
freguesia do Menino Deus.
Figura 1
Soure e Salvaterra são cidades “irmãs” e ficam de frente para a outra, como foi
mencionado, separadas apenas pelo rio Paracauari. Muitas pessoas que moram em Salvaterra
fazem constantemente a travessia para Soure, ou vice-versa, seja para estudar no campus da
4
“Soure: a Pérola do Marajó”. Disponível em: <http://www.paraturismo.pa.gov.br/?q=soure-destinos>. Acesso
em: 19/09/2012.
16
UEPA ou UFPA, trabalhar, ou ir à praça principal de cada cidade em dias de show ou outro
evento semelhante. A balsa cessa de fazer a travessia às 22:00 horas, mas botes continuam
fazendo esse trabalho até a madrugada. A passagem do bote é de R$ 1,35 durante o dia, e R$
2,00 à noite, e uma associação de trabalhadores de bote regulariza esse trabalho.
Foram realizadas seis viagens ao campo, desde o ano de 2009 (quando se iniciou a
pesquisa) até 2011, em períodos curtos, entre três a cinco dias. Nas primeiras vezes fiquei na
casa de um familiar, localizada na 3ª rua, em frente a Igreja Matriz, mas não foi mais possível
ficar alocada nessa casa, e então, nas vezes seguintes fiquei em Salvaterra, na casa de uma
pessoa conhecida de uma amiga da turma de mestrado. Durante a última pesquisa de campo
que realizei, em dezembro de 2011, fiquei em Soure, novamente, na casa de um conhecido de
um amigo meu.
O acesso à Soure é um pouco complicado, e a viagem consiste de três etapas,
podendo acontecer por meio de barco, que sai do Terminal Hidroviário nas Docas ou balsa,
saindo de Icoaraci 5. A viagem de barco dura cerca de três horas e meia. Isto seria o que
podemos chamar de primeira etapa. As duas formas de viagem destinam-se ao porto de
Camará, de onde quem chega de carro por meio de balsa deve seguir estrada por alguns
quilômetros até Salvaterra, ou então, quem vem de barco deve pegar um ônibus ou van que
seguirá o mesmo trajeto. Esta segunda etapa da viagem pela estrada dura cerca de 45 minutos.
Figura 2
5
Anteriormente, até 2010 mais ou menos, era possível viajar a Soure também por meio de lancha, que saía da
Estação das Docas. Apesar de a passagem ser um pouco mais cara que a do barco, o transporte era bem mais
confortável e a viagem mais rápida. Era a preferência dos turistas. No entanto, por alguma razão, a lancha não
faz mais viagem a Soure.
17
Ao chegar em Salvaterra deve-se atravessar o rio Paracauari por meio da balsa, que faz
a travessia constante entre Soure e Salvaterra, concluindo, assim, a terceira etapa da viagem.
Figura 3
Entrada de Soure, escrito “Seja bem-vindo a Soure, Capital do Marajó” (Foto: Faro, 2009).
por exemplo, é precário, contando apenas com mototáxis, algumas kombis e pouquíssimos
ônibus (sendo que estes dois últimos ficam mais frequentes nos fins de semana e,
principalmente, em período de férias e feriados).
As ruas centrais da cidade são a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª ruas, onde se concentram diversas
atividades sociais, econômicas e religiosas, que ocorrem em diferentes períodos do ano. Na 1ª
rua localiza-se o trapiche de onde saem e chegam a balsa e pequenas embarcações, e também
a praça principal, chamada Independência, que no mês de julho fica bastante movimentada.
Figura 4
Palco de shows montado na praça Independência durante o mês de julho de 2010 (Foto: Faro, 2010).
Figura 5
Figura 6
Na 3a rua se localiza uma loja de artesanato bastante visitada, como mencionei acima,
onde são realizados nos fundos do estabelecimento cursos e oficinas de artesanato à
população.
20
Figura 7
Figura 8
Curso sobre artesanato em material reciclável sendo realizado nos fundos da loja de artesanato (Foto: Faro,
2011).
A 4ª rua é a mais extensa da cidade e leva às praias e fazendas, além de ser onde
acontecem festas de carnaval durante o mês de fevereiro. É pela 4ª rua também que se chega
à escola fundada por Zeneida Lima, que fica em uma área de sua fazenda.
A cidade é dividida em oito bairros: Tucumanduba, Centro, Pacoval, São Pedro,
Matinha, Bairro Novo, Macaxeira e Umirizal, e dispõe de quatro praias: Pesqueiro (a mais
conhecida e visitada), Araruna, Barra Velha e Garrote.
21
Figura 9
Ao caminhar pela cidade é comum ver búfalos nas ruas, soltos, andando, presos em
alguma árvore ou puxando uma carroça. A figura do búfalo é um dos símbolos da ilha, sendo
bastante produzido e vendido o “queijo do Marajó”, feito do leite do animal. Um dos queijos
mais conhecidos é o “Mironga”, produzido em uma fazenda e vendido em vários pontos da
cidade.
Figura 10
misteriosa, com seus rios de águas escuras e mata fechada, exerceu (e exerce) intensa
influência no imaginário e religiosidade local.
Na Amazônia, os domínios da floresta e da água, além de marcarem
caracteristicamente a religiosidade popular, marcam também o modo de vida da população.
De acordo com Diegues Jr., “a floresta e a água influíram na formação de mitos e crendices,
ao mesmo tempo em que contribuem ainda hoje para a rarefação demográfica” (1980, p. 38).
A forma de economia de diversas comunidades da região é baseada, sobretudo, na extração
vegetal e na pesca.
Pacheco (2009) escreve que o(s) Marajó(s) tem sua história e cultura profundamente
marcadas pela intensa presença da floresta e, sobretudo, das águas. De acordo com este autor:
Giovanni Gallo (1975) escreve que no Marajó o que reina na ilha, ou melhor, quem
comanda a dinâmica da vida social, cultural e econômica dos marajoaras é de fato a água,
caracterizando, segundo sua visão, um regime ditador da água. Nas palavras de Gallo (op. cit.,
p. 63):
Certamente que em muitas passagens do livro, como esta acima, apresenta uma ideia
romantizada do caboclo marajoara, no entanto, não podemos ignorar os aspectos
significativos da cultura, símbolos e religiosidade contidos nesta obra que é ao mesmo tempo
literária e etnográfica.
24
Figura 11
6
Além dessa, outras festas dedicadas a Iemanjá são realizadas em Soure. A própria D. Fátima organiza há alguns
anos uma festa a rainha do mar no dia 02 de fevereiro (no calendário católico, data comemorativa a Nossa
Senhora da Candelária). Contudo, a que é organizada pela Federação Espírita e Umbandista de Soure em
25
dezembro é a principal, movimentando um grande número de pessoas, como pude constatar durante pesquisa de
campo realizada em dezembro de 2011.
7
Esses dois curadores, uma mulher (D. Flor) e um homem (Sr. Lima), não se autodenominam como pajés, e sim
como curadores. D. Flor acredita que hoje em dia não há mais pajés, pois em sua concepção “pajé mesmo só
quando tudo isso aqui era índio”, como ela se expressou durante a entrevista, associando, portanto, a pajelança às
culturas indígenas somete. E o Sr. Lima (que não é analisado neste estudo) demonstrou ser um curador que
exerce suas práticas dentro de um contexto religioso afro, ou seja, em entrevista ele afirmou ter sido iniciado por
seu tio, que é um sacerdote afro-religioso (possivelmente do Tambor-de-Mina, mas não ficou muito claro em seu
depoimento).
26
remédios naturais (chás, sumo, pomadas a base de ervas medicinais) do que os remédios de
farmácia. Além disso, sua própria mãe, também marajoara, foi curadora e parteira, mas
atualmente devido a idade avançada não realiza mais curas, apesar de muitas pessoas ainda
procurarem por ela, como relatou D. Graça em uma de nossas informais conversas. D. Graça
cultiva diversas plantas em seu próprio quintal, e quando precisa de alguma que não tem em
sua casa, pede a algum vizinho ou amigo que tenha. E é dessa forma que adquire os
conhecimentos sobre as ervas.
Figura 12
Pé de urucum, localizado na 6a rua de Salvaterra. Segundo D. Graça três sementes do fruto vermelho dissolvidas
em um copo de água é um ótimo remédio para baixar o nível de colesterol (Foto: Faro, 2010).
(...) é um termo que vêm sendo utilizado para denominar indistintamente três
tipos de fenômenos: 1) uma cultura pré-colonial descoberta e estudada por
arqueólogos; 2) um estilo estético de inspiração arqueológica, representado
em produtos artesanais, principalmente cerâmica, e na arquitetura paraense;
3) a cultura do caboclo e vaqueiro habitantes da Ilha do Marajó. Em um
sentido mais amplo, “marajoara” refere-se simplesmente àquilo que vem da
Ilha do Marajó e a seus moradores.
Essa “cultura marajoara” está presente em diversas lojas, pequenas em sua maioria,
de artesanato, sendo a cerâmica a mais expressiva arte cultural, assim como o carimbó. Não é
27
difícil ver grupos de carimbó locais sendo contratados por donos de hotéis para realizarem
apresentações para seus hóspedes, ou até mesmo os restaurantes da praia do Pesqueiro
utilizarem essa mesma estratégia, como pude presenciar uma vez em julho de 2011, em uma
apresentação do grupo “Raízes do Mangue” de uma comunidade de pescadores. E isso é bom,
para o turismo na cidade, a economia local (restaurante, hotéis etc.) e para a comunidade 8 que
também tem um retorno econômico para si, além do reconhecimento cultural dos turistas para
com a população, e da população para com ela mesma.
Figura 13
Grupo de Carimbó “Raízes do Mangue” se apresentando na Praia do Pesqueiro (Foto: Faro, 2011).
8
Que no caso desta comunidade, desenvolvia um projeto de carimbó com as crianças, que eram as próprias
dançarinas do grupo “Raízes do Mangue”.
28
Figura 14
9
A luta marajoara consiste em uma luta entre dois indivíduos (na categoria masculina ou feminina) e em que os
movimentos assemelham-se a luta dos búfalos, enquanto estes utilizam os chifres, os lutadores utilizam as mãos.
29
Figura 15
Outro exemplo é uma réplica de uma grande urna de cerâmica marajoara posicionada
em frente, do outro lado da rua, de uma casa que é a residência, salão de beleza e ponto de
venda de perfumes e outros artigos artesanais de um morador de Salvaterra, e especificamente
da Praia Grande.
Figura 16
Réplica de uma urna marajoara, localizada em frente um local residencial e comercial, na Praia Grande,
Salvaterra (Foto: Faro, 2010).
argila, e demoraria alguns dias para voltar. O artesão é Carlos Amaral, conhecido por ser filho
de mãe indígena, com quem teria aprendido a arte com cerâmica. Além da venda de
cerâmicas, o local também tem uma pequena exposição na parede esquerda interna de objetos
e vestígios aparentemente originais dos povos indígenas locais encontrados em fazendas e
outras áreas da região, além de fósseis de alguns animais (búfalo, jacaré, entre outros).
Figura 17
Figura 18
Figura 19
“Copo dos namorados”, um dos objetos que adquiri no local. Segundo D. Rosângela (esposa do artesão, Carlos
Amaral) que me vendeu a peça, este objeto representa um copo que deve ser usado pelo casal para trazer
felicidade. Os motivos desenhados simbolizariam a borboleta (felicidade), o sapo (fertilidade) e a vagina
(fecundidade). (Foto: Faro, 2012).
Figura 20
Pequena exposição de fragmentos de objetos arqueológicos encontrados em fazendas e outros locais da região
(Foto: Faro, 2011).
A outra coisa que me chamou atenção nesse aspecto em Soure foi um restaurante
situado na 2a rua, chamado “Restaurante Patu-Anu”, quando certa vez fui almoçar, depois de
uma tentativa frustrada de conversar com D. Zeneida Lima, com meu pai, me acompanhava
naquela pesquisa de campo, em setembro de 2011. Sentamos em uma das mesas, recebemos o
cardápio e qual não foi minha surpresa ao ler, entre diversas coisas escritas, uma nota no fim
do cardápio explicando sobre Patu-Anu.
32
Figura 21
O fato é que nas informações daquela nota reconheci minha própria escrita. Ou seja,
percebi que aquela nota havia sido tirada (quase na íntegra) muito provavelmente de um
artigo10 que escrevi e apresentei no III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, ocorrido em
2009 na cidade de Belém. Sem nenhuma referência à minha autoria, perguntei ao garçom se
ele sabia de onde provinha aquela informação. Ele respondeu que não sabia, e eu lhe disse,
então, que eu havia escrito aquilo, em algum trabalho ou artigo disponível na internet, pois a
pajelança cabocla em Soure era meu tema de pesquisa. A reação do rapaz foi de desconfiança,
pareceu não acreditar no que eu dissera, mas ele acenou com a cabeça dizendo “Ah tá...!” e se
retirou. Eu senti uma mistura de surpresa, com alegria (pelo “reconhecimento”) e um pouco
de indignação (por não ter meu nome naquela nota). Depois de rir um pouco com meu pai
naquela situação, refleti a respeito de como um grupo ou pessoa pode se apropriar de estudos
acadêmicos para legitimar de alguma forma a sua ação, prática ou crença. Isso também me fez
pensar sobre as influências que o trabalho de um pesquisador pode exercer em dada
comunidade ou sociedade. Schaan (2009, p. 95) ao escrever sobre a relação das pesquisas
arqueológicas na Ilha do Marajó com a população afirma que:
10
“Mistérios de Patu-Anu: um estudo sobre a pajelança e as mulheres pajés em Soure (Ilha de Marajó)”,
disponível em <http://www.wftl.org/pdf/054.pdf>. Acesso em 19/10/2012.
33
Essa situação que vivi também me fez refletir sobre o mundo virtual, da internet, que
torna o mundo realmente uma “aldeia global” e proporciona enorme visibilidade,
sociabilidade e divulgação de informações, pessoas e coisas. Não somos ilhas. Nenhuma
comunidade, cidade ou povo está isolado, e o mundo inteiro conversa entre si.
A “cultura marajoara” que existe em Soure, e também em diversas outras cidades do
arquipélago, é incentivada, (re)produzida e vendida, configurando-se como uma “tradição
inventada”, portanto. Segundo Hobsbawm (1997), as tradições inventadas, usam as
referências ao passado com intuito de coesão social e legitimação de ações. Isso implica que a
busca do passado, das raízes ou origens culturais, étnicas, é sempre feita dentro das
expectativas e com propósitos políticos, religiosos e sociais desenhados no presente.
A “cultura marajoara”, tal como é amplamente divulgada e pensada no Marajó, e no
Pará, que a reivindica como parte da história local não é, conforme Hobsbawm (1997), aquela
que foi preservada inteiramente na memória popular, mas a que foi selecionada, escrita,
popularizada e institucionalizada. De acordo com Schaan (2008), o desejo da população em
pensar o presente como uma extensão e sobrevivência de um passado remoto, às vezes
idealizado, e em legitimar as produções contemporâneas a faz interpretar, criar e recriar (à
vontade de sua inspiração ou ideal regido pela política, economia ou religião) a sua história e
passado, desenhando assim sua própria identidade.
Soure e a Ilha do Marajó tornam-se cada vez mais conhecidas no Brasil e no mundo.
Os livros de Zeneida Lima sobre pajelança, o desfile da escola de samba Beija-Flor no
carnaval de 1998, o filme “Amazônia Caruana” em vias de estreia no cinema brasileiro, e a
novela “Amor eterno amor” (que teve cenas filmadas na região e que foi exibida na rede
Globo em meados de 2012), são fatores que lançam ao mundo o Marajó e sua cultura, ou o
que acreditam ser essa cultura. Em quase todos esses fatores a figura de Zeneida Lima está
presente. Não é errado pensar que ela é responsável em grande parte por essa visibilidade do
Marajó para o mundo. Ela lançou e continua a lançar uma imagem de Soure e sua cultura que
não necessariamente corresponde à realidade, mas que ao mesmo tempo desempenha um
papel importante na cidade com a escola que hoje leva seu nome.
34
Alguns termos e conceitos são bastante utilizados nos estudos sobre pajelança cabocla,
sobretudo na área de antropologia. Adentrar neste campo de estudo sem conhecer essas
categorias e termos pode gerar confusão para aquele que se aventura a estudar o tema, e
principalmente para o leigo que deseja conhecer esse universo da encantaria.
Pajé, pajelança, xamanismo, encantaria, encantado, encante, bicho-do-fundo, corrente-
do-fundo, doença natural e não-natural ou doença enviada por Deus e doença de pajé, enfim,
uma imensidão de termos e conceitos (alguns criados por antropólogos, outros oriundos da
própria cultura ou população estudada), que agregam ideias, muito complexas até, a respeito
da doença e da cura, da relação entre ser humano e natureza, do pajé e encantado. Uma teia de
relações na qual a pajelança cabocla gira em torno e é, ao mesmo tempo, o seu próprio eixo.
Esses e outros conceitos serão abordados neste capítulo, em que serão apresentadas as
principais características da pajelança cabocla de acordo com estudos de diversos autores.
Alguns termos e ideias são bastante recorrentes nos estudos e coerentes com a realidade do
campo, outros, porém, são debatidos há tempos em seminários e artigos, como o próprio
termo “pajelança”, inicialmente usado em um sentido pejorativo, mas que acabou sendo
adquirido posteriormente por muitos curadores e hoje esse termo se encontra bastante
presente em seus discursos.
trabalho também adota esta terminologia para se referir a estas práticas e crenças, bem como
ao iniciado na mesma.
Outra questão, igualmente relevante de ser ressaltada, é a diferença entre “pajelança
cabocla” e “pajelança indígena”. A primeira é resultado da relação entre diversas tradições
culturais e religiosas (sobretudo, indígena, cristã católica e africana) provocada a partir da
colonização, que no caso da Amazônia ocorreu a partir do século XVII (MAUÉS, 1990). E a
segunda refere-se às práticas e crenças restritas as aldeias e etnias indígenas, que não tenham
sofrido e adquirido consideráveis influências religiosas externas 11.
Figura 22
O próprio termo pajé, segundo Miowa (2004), vem do tupi-guarani “payé” e quer
dizer pai ou senhor, e designa aquele que tem autoridade, respeito e cuidado com o povo.
Sobre os pajés caboclos, costuma-se observar a existência de dois tipos: o “de nascença” e o
“de agrado”. O pajé de nascença manifesta seu dom ainda no ventre da mãe, chorando ou
emitindo um som. Tal ocorrido não pode ser revelado publicamente antes do tempo, sob pena
de a pessoa perder seus poderes (MAUÉS, 2005). Ao alcançar certa idade, o jovem passa por
um processo chamado de corrente-do-fundo, de muito sofrimento, crises, doenças ou ataques
de violência ou possessão descontrolada de espíritos e caruanas. Ele deve, então, submeter-se
ao tratamento com um pajé experiente, que irá afastar os espíritos e os maus caruanas,
treinando o noviço para que ele possa controlar as incorporações. O pajé:
11
Como no caso da etnia Mura, no Amazonas, como podemos notar no documentário disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=KbnH4n5WSJg>. Acesso em 13/08/12.
37
12
Feito da casca do tauarizeiro, vegetal comum da flora amazônica.
40
Quando a vida foi criada, todos os seres se comunicavam numa mesma língua, o
que facilitava a união entre espécies diferentes. E, mais ainda, por trás da
aparência diversa residia uma semelhança niveladora: todos eram uma
concretização do fenômeno da vida e, mais, eram mortais e possuíam uma alma.
O fundamento que os animava era o mesmo e a diferença de aspecto pouco
significava.
Já na pajelança cabocla como é analisada por Maués (1990) e Galvão (1955), essa
relação deve ser, de certa maneira, distante e cautelosa, pois o homem/mulher caboclo
acredita que alguns bichos ou encantados, que costumam assumir a forma animal, causam mal
e doenças nas pessoas comuns, e apenas o pajé é protegido desses ataques, pois ele(a) sabe
como lidar com esses seres.
Galvão (1955) cita vários relatos de pescadores que evitam ou ignoram o contato
com botos, ou de moças em dias de lua (menstruação) que são proibidas de saírem de casa,
com o risco de, ao lavarem-se nos rios, serem penetradas por bichos ou enfeitiçadas por botos.
Figura 23
globalizado” (1999, p. 69) cita Lynn White que afirma que o cristianismo foi responsável, em
grande parte, pela introdução no Ocidente de uma espiritualidade de novo tipo e efeitos
radicais.
mesma coisa ao realizar sua pesquisa de campo em Itapuá, Vigia/PA, afirmando que há fortes
influências da Umbanda e Espiritismo na pajelança local. Decerto, essas influências
extrapolam as cidades e centros urbanizados e se estendem em menor ou maior grau para as
cidades do interior, como Soure, no Marajó.
Contudo, ambos os autores, Galvão (1955) e Maués (1990), atestam que o
catolicismo popular é o que exerce maior influência na pajelança cabocla, e não seria errado
até mesmo pensar que a pajelança cabocla seja uma faceta do catolicismo popular. Estes
autores nos contam que se perguntarmos a um pajé qual sua religião, prontamente ele
responderá que é católico. E tal fato foi possível de ser atestado em Soure durante as
pesquisas de campo, pois a maioria dos(as) pajés entrevistados afirmavam ser católicos ou
demonstravam ter uma prática religiosa muito próxima do catolicismo popular. A Igreja
Católica, entretanto, não reconhece as práticas de pajelança como católicas. Cria-se aqui um
conflito de visões de mundo diferentes entre o catolicismo popular e o oficial.
Em seu estudo realizado na cidade de Gurupá, Galvão (1955, p. 107) afirma que a
população local não encara:
exemplo, em uma determinada situação difícil, sua irmã Teté recorre às graças de Santa
Terezinha, enquanto que Zeneida (ainda jovem e recém “sentada”) recorre às forças do Vento,
do Sol e do Bacurizeiro (1991, 1 ed., p. 176-177).
Outro aspecto de divergência marcante entre a pajelança de Zeneida Lima (que será
analisada com mais ênfase em outro capítulo) e a de outros pajés estudados por pesquisadores
já citados, está no fato de ser uma mulher a exercer a pajelança. Aliás, a maioria dos
curadores observados em Soure durante essa pesquisa é composta por mulheres. Na maioria
dos estudos e trabalhos publicados observa-se uma recorrência maior de homens pajés ou
curadores do que de mulheres pajés, pois estas em grande parte dos casos sofrem restrições
pela família e pela comunidade em exercerem seu dom de cura, mesmo que seja um dom de
nascença. Em algumas localidades da Amazônia encontra-se uma forte interdição relacionada
à prática da pajelança por mulheres. Em outras situações, é mais comum encontrar
benzedeiras e parteiras do que propriamente pajés.
A diferença entre benzedeira(o) e pajé é que a(o) primeira(o) não incorpora ou não é
possuída(o) por forças mágicas para curar, mas apenas receita banhos, garrafadas, chás,
defumações, e utiliza-se sobretudo de orações e rezas, e sua maior aliada é a intuição e
observação atenta para saber que mal aflige os que a procuram. Por sua vez o(a) pajé
incorpora e serve como instrumento (“ave” ou “cavalo” 13, termos que Zeneida Lima e D.
Dica, respectivamente, utilizaram em seus relatos) dos encantados para efetuar a cura, além de
ser capaz de visitar o fundo ou encante, e acredita ser detentor de maior poder de cura para
diversas doenças, seja de causa física ou de causa espiritual ou mágica (provocada por
encantados ou espíritos).
13
Por sinal, “cavalo” é um termo também utilizado em religiões afro-brasileiras, e possui basicamente o mesmo
sentido empregado por D. Dica, o de ser instrumento dos encantados ou “cabocos”, ou seja, de ser possuído por
eles.
44
A cultura amazônica, por sua vez, em suas múltiplas faces e aspectos é resultante da
“integração dos elementos culturais de que eram portadores os que participaram do processo
de colonização da região” (FIGUEIREDO, 1972, p. 35). A pajelança cabocla é um
significativo aspecto da cultura brasileira, e especificamente, da cultura amazônica.
A pajelança é uma religiosidade bastante presente em várias localidades da
Amazônia, apresentando suas particularidades dependendo do contexto histórico-social e da
localidade na qual está inserida. Podemos atribuir como característica geral da pajelança
cabocla a que foi definida por Heraldo Maués em “A Ilha Encantada” (1990), como sendo um
conjunto de práticas e crenças xamanísticas que tem em suas expressões culturais diversos
elementos da religiosidade indígena, africana e católica, mesclados em graus variáveis.
Portanto, para se compreender a cultura, religiosidade e história da região
amazônica, é fundamental conhecer a pajelança cabocla e o imaginário que envolve os
processos de cura e encantaria. O imaginário, para Laplantine e Trindade (2003), é como um
mobilizador e evocador de imagens, utilizando o simbólico para se expressar e existir, e o
simbólico, por sua vez, pressupõe a capacidade imaginária. Segundo Laplantine e Trindade
(2003, p. 79):
A ideia da cura xamânica explicada acima pôde ser encontrada de fato na fala da
pajé Zeneida Lima, em entrevista realizada em julho de 2010. Embora esta pajé não utilize as
mesmas palavras e nem encare da mesma forma a cura xamânica, a ideia intrínseca é a
mesma. Nessa entrevista, Zeneida Lima explica que “[...] o que eu transfiro [ou seja, a energia de
cura] à pessoa, com tudo que eu tô fazendo, ela tem que ter confiança em mim e acreditar que eu sinto
amor por ela e desejo que ela fique boa”.
A pajé explica em seu depoimento que a fé da pessoa é fundamental para que a cura
se realize, e que muitas vezes o pajé tem que primeiro “desbloquear” as energias da pessoa,
ou seja, acalmá-la, torna-la confiante no poder do pajé e que a pessoa deseje ser curada, para
que, somente então, a pajelança seja realizada e a cura tenha êxito.
47
O pajé, portanto, é aquela pessoa que tem o poder de curar doenças de causa física e
de causa espiritual ou mágica com o auxílio dos encantados. E os encantados ou caruanas, são
seres mágicos que vivem no fundo dos rios e florestas, e são detentores de poder e sabedoria.
Ambos são os eixos principais que compõem a Pajelança.
O xamã, de acordo com Ioan Lewis (1971, p. 58):
Pode ser uma pessoa de qualquer sexo, que dominou os espíritos e pode
controlar suas manifestações, caindo em estados controlados de transe em
circunstâncias apropriadas. (...) De fato, por seu poder sobre os espíritos que
encarna é que o xamã consegue tratar e controlar males causados por
espíritos patogênicos em terceiros.
A partir desta definição podemos denominar o pajé (tanto da pajelança cabocla como
da indígena) como um xamã, pois o mesmo possui a capacidade de controlar a possessão dos
espíritos ou forças mágicas em seu corpo com o intuito de curar os indivíduos que sofrem de
males causados por fatores mágicos ou não, além de ter a capacidade de ir a lugares onde
habitam os seres que o auxiliam em seus rituais.
São normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais; mas podem
manifestar-se de formas diversas. A partir dessas formas distintas de
manifestação, eles são pensados em três contextos, recebendo, por isso,
denominações diferentes. São chamados de bichos do fundo quando se
manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e
jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem
provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se
manifestem sob forma humana, nos manguezais ou nas praias, são
chamados de “oiaras”; neste caso, eles frequentemente aparecem como se
fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas
para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles,
permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas
que têm o dom “de nascença” para serem xamãs, quer sejam as de quem “se
agradam”, quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso,
são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-se nos
pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o
bem, sobretudo para curar doenças (MAUÉS, 2005, p. 7).
Companheiros são espíritos ou seres que se supõe habitar o fundo dos rios.
Descrevem-nos sob forma humana com a pele muito branca e os cabelos
louros. São conhecidos por nomes cristãos. Agem como espíritos familiares
dos pajés e são por estes “chamados” durante as sessões de cura. [...] O
companheiro se insinua a um noviço ‘entrando’ em seu corpo, seja durante
a gestação, nascimento ou mais tarde na vida, como foi o caso de Sátiro.
Como o indivíduo não sabe “ver” e lidar com esses familiares voluntários,
sofre cada vez que os companheiros se apossam dele. O iniciado depende de
um pajé experiente para “endireitar-lhe os companheiros no corpo”,
prepará-lo para receber os familiares, ensinar-lhe a “ver”. Entre os
companheiros que o iniciado recebe, um se destaca como o “chefe” dos
demais. A obtenção de novos companheiros é lenta e gradual. Além dos
companheiros do fundo acredita-se que o espírito de um índio pode
ocasionalmente tornar-se familiar de um pajé.
E sublinha mais adiante afirmando que o mito da Iara e das mães d’água apresentam
influência preponderante da cultura africana. Salles (1988, p. 192) considera que:
Figura 24
Salles (op. cit., p. 191) faz uma importante conclusão sobre a miscigenação e
influências culturais, sobretudo africanas, no universo mítico da Amazônia, afirmando que:
mulher, sem parente, resolveu se casar com uma concha. Quando o filho
nasceu ele o carregou consigo, largando a mulher que voltou para as águas
da lagoa. “Nós, dizem os índios, somos netos do filho de Mavutsinin”
(VILLAS BÔAS, 1970, p. 55 apud JUNQUEIRA, 2004, p. 4).
A autora defende que em algumas sociedades antigas, em que a mulher exercia certa
importância no contexto social e religioso, o sangue menstrual era símbolo de poder e no
momento em que a mulher encontrava-se menstruada era capaz de intermediar forças
diferentes ou conectar-se com mundos diferentes, pois a mesma estava em uma condição
liminar.
53
mulher enquanto um ser dócil, mãe dedicada e esposa recatada, indício de um forte sistema
patriarcal, em que a mãe e os filhos são figuras subordinadas e dependentes da figura do pai.
No município de Colares (PA), Villacorta (2000) observou que mesmo sendo
limitado o exercício do gênero feminino na pajelança, havia mulheres pajés. Porém, elas eram
discriminadas por parte da sociedade e chamadas de Matinta-Perera, feiticeiras do imaginário
amazônico que, segundo a autora, mescla elementos mitológicos da cultura africana (as
“mulheres do pássaro da noite”), pré-judaica (Lilith) e do cristianismo medieval (a bruxa).
Acredita-se que a matinta é uma mulher ora de aparência idosa e feia, ora jovem e bela, que
carrega consigo um fado, herdado de família (de avó para neta), e que se contrariada ou
desrespeitada pode lançar um feitiço, doença ou desgraça para um indivíduo. Anda sempre
acompanhada de um pássaro, que com seu assobio anuncia a presença da bruxa.
No estado do Acre em 2005 duas mulheres indígenas da etnia Yawanawá, foram
iniciadas pajés. Raimunda Putani Yawanawá e Kátia Hushahu Yawanawá, naquela época com
idades de 27 e 26 anos, respectivamente.
Figura 25
A primeira foi uma das cinco mulheres premiadas pelo Senado Federal naquele ano,
na 5ª edição do Diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz, no Dia Internacional da Mulher. A
notícia saiu na Folha do Meio Ambiente, em abril de 2005, pelo jornalista Silvestre Gorgulho.
Ambas passaram por um período de iniciação, onde ficaram um ano isoladas na
mata, obrigadas a fazer abstinência sexual, comer apenas alimentos crus e beber apenas uma
bebida especial à base de milho. Segundo informações na reportagem, essas mulheres sabiam
das dificuldades e preconceito que enfrentariam, dentro e fora de sua aldeia, pois a tradição da
pajelança era reservada, até então, aos homens. Tinham consciência do paradigma que
55
estariam quebrando, e mesmo assim elas não temeram, como fala a pajé Raimunda
Yawanawá:
Não existe na história do nosso povo que uma mulher tenha mexido na
planta sagrada, o Rare. Nunca nenhuma mulher foi à luta para ser pajé.
Quem sempre era pajé eram os homens. A mulher é sempre a dona de casa,
faz a caiçuma, cria os filhos, está sempre do lado do esposo. Pra gente ir para
essa outra parte da nossa cultura, do nosso conhecimento, foi tipo quebrar
um tabu. Por isso que levamos ao pé da letra o cumprimento da dieta.
Muitos, quando fomos fazer a dieta, disseram que nós não aguentaríamos
com o argumento de que mulheres têm muitos desejos. Está com um ano e
dois meses que não temos relação com homem14.
O Rare é uma planta muito sagrada para os Yawanawá, e somente os pajés ou os que
pretendem se tornar pajés podem ter contato, a nível físico e espiritual, com a planta. Nas
experiências místicas que as pajés tiveram, a figura do feminino era marcante e representava o
espírito do Rare e da Jibóia, como explica Kátia Putani:
O Rare é uma planta muito sagrada. A partir do momento que a gente come,
a gente já planta ele dentro da gente. A partir desse momento, a gente já
passa a ter o conhecimento e o poder do Rare. [...] Podemos tocar numa
pessoa e dizer para ela que vai ficar boa. As nossas palavras são muito
sagradas. Ele é uma planta, mas é espírito. Ele também tem uma mulher.
Sempre é uma mulher tanto nele quanto na jibóia. Nos nossos sonhos é
sempre uma mulher que traz o conhecimento. Ele é muito poderoso 15.
Dessa forma, as visões e sonhos com a “mulher que traz o conhecimento” reforçam a
ideia (e a defesa) das pajés Yawanawá de que a mulher tem tanto poder e capacidade em ser
pajé quanto os homens, pois as próprias forças sagradas se manifestam na forma de uma
mulher.
Em algumas mitologias observa-se a existência de mitos que contam o surgimento do
xamanismo associado à mulher. Na América Central, há um mito que conta que a mulher
nasceu ao mesmo tempo em que o primeiro nagual (xamã), e por isso ela é considerada tão
capaz quanto ele, e às vezes até mais temível, no exercício do xamanismo. Sobre mulheres
xamãs, Montal (1986, p. 25) cita Dom Juan que diz que “de modo absoluto, elas levam ligeira
vantagem”. E o próprio processo de iniciação das mulheres segue as mesmas etapas que dos
homens no xamanismo.
14
A matéria sobre essas pajés Yawanawá e a entrevista com elas está disponível em
<http://altino.blogspot.com.br/2006/04/primeira-paj-brasileira.html>. Acesso em 15/08/2012.
15
Este relato, assim como a entrevista completa com as pajés pode ser encontrada no site referido na nota
anterior.
56
Retornando mais no tempo, Tedlock (2008) escreve que em diversas culturas da Era
do Gelo, a mulher exercia papel de grande importância, não de primazia, no xamanismo.
Escavações arqueológicas no sítio do Alto Paleolítico chamado Dolní Vestonice, na
República Tcheca, encontraram dois ossos da escápula de um mamute posicionados para
formar os dois lados de um teto de resina de pinheiro. Embaixo havia um esqueleto humano, e
na terra que o cobria, bem como nos ossos, viam-se traços de ocre vermelho, indicando que o
corpo fora pintado de vermelho antes de ser enterrado.
No entanto, esse túmulo não era de uma pessoa comum, pois encontraram também a
ponta de uma lança de sílex próxima a cabeça do cadáver e o corpo de uma raposa posto em
uma das mãos. Segundo a equipe de arqueólogos que estudaram o sítio, a raposa era um
indício claro de que a pessoa no túmulo fora um xamã. Contudo, foi uma surpresa quando a
análise do esqueleto revelou que o xamã em questão era uma mulher. Anos mais tarde, foi
descoberto próximo do túmulo da xamã uma cabana de terra batida contendo ossos estriados e
um forno grande com milhares de pedaços de argila cozida, alguns na forma de pés humanos,
mãos, cabeças, e outros eram fragmentos de figuras de animais.
A partir dessas escavações e estudos publicados por Bohuslav Kamí, o líder da
equipe de arqueólogos, Tedlock (2008, p. 14) defende que:
Esta autora argumenta que apesar das evidências da linguagem, dos artefatos,
representações pictóricas, narrativas etnográficas e relatos de testemunhas, a significativa
função das mulheres nas tradições xamanísticas de diversas culturas e épocas foi obscurecida
e negada, e o fato de que “corpos e mentes femininos são especialmente dotados do poder de
transcendência foi ignorado” (TEDLOCK, 2008, p. 14).
Diante disso, então, como a mulher em várias sociedades teve sua participação
limitada e às vezes subjugada na vida religiosa? Alguns estudos na área da antropologia vêm
buscando solucionar essa questão. Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”
(1999) apresenta importantes considerações sobre a construção cultural dos comportamentos e
papéis femininos e masculinos (o termo gênero surge somente alguns anos depois do seu
estudo), a partir de sua etnografia em comunidades da Nova Guiné. Esta autora lança luzes no
caminho da pesquisa sobre gênero, demonstrando que este é muito mais um fator construído
57
pela cultura, logo é relativo e suas configurações mudam de acordo com a sociedade em foco,
do que um fator biológico, ou seja, universal, como alguns estudiosos afirmavam até o século
XIX.
Rita Segato (1998) retoma essa ideia e afirma que o gênero não é algo observável,
pois é abstrato, ou seja, sua construção encontra-se muito mais na mentalidade social do que
necessariamente no corpo humano. Para Segato (1998), o gênero se transpõe, é complexo, e o
sujeito deve ser considerado uma composição mista, plural e não um ser monolítico, definido
por características “femininas” ou “masculinas”, que na realidade variam conforme o contexto
histórico e cultural, ou seja, o que é considerado característica feminina numa sociedade pode
ser considerado masculina em outra. Nesse sentido, podemos perceber algumas razões
(construídas socialmente) que tornam ora a mulher restrita ora participativa na atuação do
xamanismo.
Em Soure, é possível observar que as mulheres não sofrem extremas restrições em
serem pajés e nem precisam esperar até a menopausa para atuarem na cura, no entanto, no
período em que estão menstruadas as mulheres não podem realizar rituais de pajelança, pois
acreditam que o corpo está “impuro” para receber os caruanas, como afirmou Zeneida Lima
em entrevista, ou que “as correntes estão quebradas”, segundo o relato de D. Roxita. Apesar
de alguns estudos demonstrarem a dualidade do poder da mulher, representado pelo sangue
menstrual, de caráter ora construtivo ora destrutivo, é o caráter negativo (destrutivo) que
geralmente prevalece na ideia do(a)s pajés.
Incensos, meditação, cromoterapia, cristais, música estilo nova era (new age),
alimentação natural, visão holística do mundo, atitude ecológica... Todos esses elementos são
conhecidos dentro de muitos dos novos movimentos religiosos e daquilo que se convencionou
chamar de Nova Era. Acontece que esses aspectos são apenas “a ponta da ponta de um
iceberg”, pois fazem parte de um fenômeno social, em todos os seus ângulos (cultural,
religioso, intelectual, econômico, artístico...), maior, complexo e que ainda se apresenta difícil
de ser compreendido em sua totalidade pelos estudiosos.
Estamos vivenciando a plena modernidade ou o que alguns estudiosos chamam de pós-
modernidade, e todos os prós e contras desencadeados por elas. Na verdade, estamos
presenciando embates entre a primeira e a segunda, pois de acordo com Marilena Chauí
(1992), ambas não podem ser entendidas separadamente, já que a pós-modernidade é uma
58
uma influência em grandes proporções, pois se restringe a alguns casos ou pessoas, como
Zeneida Lima e mais evidentemente Roseana Gil, que atuou em Colares e Belém, como
Villacorta descreve em sua tese, “Rosa Azul: uma xamã urbana na metrópole da Amazônia”
(2011).
Os elementos citados no início deste tópico, comuns dos novos movimentos
religiosos e nova era, foram comuns também na prática da pajé Roseana, ou Rose, como era
mais conhecida. Somados a estes, a curadora se utilizava de defumação, banhos com ervas e
incorporação de encantados nos ritos de cura, além de apresentar crenças marcadamente
provenientes do espiritismo kardecista, expressão religiosa bastante difundida no Brasil.
Zeneida Lima, por sua vez, não apresenta com tanta evidência tais elementos, a não ser a
atitude ecológica e a concepção holística do mundo, que consiste na ideia de que tudo e todos
(ser humano, natureza, divindade) estão interligados. Além disso, o uso da tecnologia e outras
ferramentas de comunicação são presentes em sua atuação na pajelança, como a mídia e a
publicação de livros de sua autoria.
A quantidade de pesquisas sobre esse tema vem crescendo nos últimos anos, embora
ainda sejam poucas, visto que ainda não são muitos os pajés caboclos (e indígenas) que
tiveram suas práticas embebidas pela nova era. Mas o estudo de Villacorta (2011) e outros
que pesquisam esse tema, têm se mostrado bastante relevante e nos apontado a influência da
modernidade sobre as religiões, ou as facetas que as religiões adquirem a partir da
modernidade. Alguns estudiosos, como Guerriero (2006), afirmam que não estamos
testemunhando exatamente um surgimento de novas religiões, mas de novas maneiras de
vivenciar as religiões, e consequentemente o olhar dos estudiosos deve ser diferenciado e
atencioso sobre tal fenômeno, que nos surpreende a cada dia e toma as mais diversas e
complexas características.
crença nos encantados, práticas de cura (banhos, remédios a base de ervas) e a possessão
ritualística.
Além disso, o próprio termo, encantaria, é presente nessas e noutras expressões
religiosas, sendo bastante utilizado ao se referir principalmente ao mundo das entidades e
encantados, compreendido como uma esfera ou dimensão paralela ao mundo físico, onde não
há morte, doença nem medo, e a lógica do espaço-tempo não é a mesma que em nosso
mundo. Encantaria, portanto, é um termo e uma ideia bastante comum entre diversas religiões
e expressões culturais na Amazônia, entretanto, ainda é uma noção difusa e complexa para os
estudiosos dessas religiões. Não é meu intuito definir a Encantaria como uma religião que
engloba outras, tal como o cristianismo que abrange diversas vertentes e igrejas. E sim,
entender a Encantaria como um conjunto de crenças, práticas, mitos e ideias, não
institucionalizadas, porém comuns a várias manifestações religiosas e culturais, construídas
ao longo de toda uma história da região amazônica. A Encantaria, com seus encantados,
“cabocos”, mundos submersos ou escondidos na mata, o poder das plantas, a devoção aos
santos, a crença em Deus e nos mistérios do fundo das águas, torna-se a fonte cultural,
simbólica, ideológica de onde bebem as mais variadas expressões culturais e religiosas
presentes na região, tais como a Pajelança, a Umbanda, Tambor de Mina, o culto da Jurema,
Santo-Daime e demais religiões ayahuasqueiras. Portanto, falar de imaginário amazônico é
falar de Encantaria, e vice-versa.
Nessa concepção a Encantaria é algo extremamente fluido, que percorre diversas
expressões religiosas. Tão fluida como os próprios rios e igarapés do território amazônico,
que se estendem por vastas áreas e alcançam as mais inimagináveis regiões. Pensar a
Encantaria dessa forma é compreender a Amazônia e as religiões geradas ou acolhidas na
região com um olhar mais abrangente, contudo, sem ser limitado, pois nos revela a
complexidade do fenômeno que estamos lidando.
61
3.1. D. Flor
[...] antigamente eram os pajés, hoje em dia não são mais. Se você andar no
mundo todo é raro você encontrar um pajé, como de antigamente. Hoje em
dia é batuqueiro, pai de santo, pai disso, pai daquilo; então antigamente eram
os pajés, e aí o que acontece, tem muitos que passam o remédio até errado, é
mais pelo dinheiro, hoje em dia é mais pelo dinheiro (Entrevista em abril de
2010).
63
Ela afirma que o que ela faz são remédios naturais, que não incorpora encantado e
nem balança maracá. Contudo, admite que quando sente necessidade, recorre aos cabôcos ou
encantados e realiza alguns “trabalhos” a eles pedindo auxílio, mas de forma muito pessoal e
individual. Esse fato nos faz pensar sobre a própria concepção de pajé para os indivíduos de
Soure, ideia essa que varia de pessoa para pessoa. Para D. Flor, pajé existia entre os índios,
em tempos antigos, e não numa sociedade atual, urbanizada e cabocla, “sem índios”.
Entretanto, para D. Roxita, como veremos mais adiante, pajés existem sim e fazem parte de
um contexto não só indígena, pois ela mesma se considera pajé.
Seja qual for o termo utilizado por essas pessoas, a ideia essencial é a mesma: pajé
ou curador é aquele que possui o conhecimento e o dom da cura e o poder de se comunicar
com os encantados e espíritos. Curar é, portanto, a sua maior função; função esta cujo caráter
é mais social do que religioso (no sentido institucional, relacionado à religião), pois pajelança
cabocla não é considerada uma religião, e sim um complexo de práticas e crenças de cura.
D. Flor defende a importância da cura através das plantas, pois afirma que antes dos
médicos e cientistas, eram os curadores e as parteiras responsáveis pela saúde das pessoas. A
dificuldade de se locomover a um grande centro urbano, como Belém, em busca de
tratamento especializado faz com que muitas pessoas procurem o pajé ou curador, ao invés do
médico. Como explica D. Flor:
Então a gente vive aqui com as plantas naturais, com o remédio natural. E
aqui é um interior, se uma pessoa fica doente seja de pneumonia, de qualquer
problema sério, aí ele vai pro médico e o que o médico faz? Encaminha logo
pra Belém, e a gente, meu amor, não tem condições... Se for caso de vida ou
morte, vai morrer, porque nós não temos avião, o navio não pode chegar lá
dentro num piscar de olhos, e como já aconteceu, o paciente morre mesmo, é
melhor ficar em casa e morrer, porque não vai ter jeito. Então, a gente
prefere logo ir fazendo o tratamento. Olha, eu ponho a folha do limãozinho,
ou limãozinho na casca, tempera, faz o chá dele com alho e toma, fica uma
coisa relaxante, pode pegar o galho da cidreira, e fica uma coisa relaxante e
você pode tomar em qualquer mal estar, ou problema de pressão, aquilo vai
lhe dar um retorno. (Entrevista em abril de 2010).
D. Flor defende a importância de que qualquer pessoa deve ter o mínimo deste
conhecimento (dos remédios naturais, das plantas que curam), para em casos de emergência
ela saber o que deve fazer.
Então a gente tem que saber viver, sobreviver e conhecer, isso é muito
importante, porque se você não conhece nada, como é que você vai poder
reagir no ato que você se achar sozinho com seu amigo, com sua amiga, ou
mesmo com seu pai, mãe, irmão. Se der algum problema e você saber qual é
64
o problema e não ter o remédio ali. Por exemplo, uma picada de cobra, a
japamela é muito boa, sim senhora. Se uma pessoa for picada por cobra e
chegar em casa, é só você pegar a japamela, você soca a japamela branca ou
qualquer uma, mas a branca ainda é superior, aí você bate bem batida ali,
pega a folha e senta em cima, ela puxa todo o veneno (idem).
Além dos chás e banhos, D. Flor também faz “óleo de bicho”, feito à base de um
bicho ou larva que dá no interior do caroço de tucumã 16 ou da andiroba, que alega ser eficaz
na cura de câncer, como o câncer do cólon do útero, como ela receita:
Não há feitiço pior no mundo do que o olho, é pior do mundo. Tem pessoas
assim, então a gente tem que de vez em quando fazer um banhinho, basta
você pegar um pau da angola, um puracá, um abre-caminho. Já teve gente
que matou minha pimenteira, limoeiro meu, matou um monte de coisa
(Entrevista em abril de 2010).
D. Flor afirma não cobrar pelos remédios que ensina, pois “quando você se oferece
de coração, você está fazendo muita coisa, você tá fazendo um bem que você não sabe o
tamanho que é. Se é de coração, é maravilhoso”, assim ela explica.
Quando lhe perguntei se havia alguém para quem ela estivesse transmitindo esses
conhecimentos ou saberes de cura, D. Flor lamentou, e respondeu que gostaria de repassar a
sua filha mais velha tal conhecimento, mas esta demonstrava pouco ou nenhum interesse. A
16
D. Flor não explicou com mais detalhes como e do quê seria feito o “óleo de bicho”, mas segundo uma
explicação da Prof.ª Dr.ª Taissa Tavernard durante a qualificação desta dissertação, realizada em junho de 2012,
o “óleo de bicho” seria feito a partir de um bicho, uma espécie de larva, que surge no interior do tucumã.
65
curadora teme que esse conhecimento se perca com ela, e não sobreviva nem mesmo para a
sua própria família.
Além de D. Flor, outra mulher também exerce práticas e rituais de cura em Soure,
que é D. Roxita.
3.2. D. Roxita
forte expressão de sua religiosidade, assim como elementos de outras religiões também
compõem o seu universo de crenças, como a ideia de reencarnação, espíritos perturbadores, e
outras provenientes do Espiritismo.
Figura 26
D. Roxita relata que a primeira vez em que realizou uma cura foi com o seu pai que
estava doente há um certo tempo, sentindo dores na direção da costela, “sem que remédio
nenhum desse jeito”. De alguma maneira, D. Roxita soube ou intuiu o que fazer:
E eu com sete anos fui aí embaixo dessa mangueira e tirei um cabo de folha
dessa Tamarioba, e mandei a minha tia bater e botar duas colher daquele
suco da folha, mel de abelha e mamão e dar pro meu pai tomar. Minha mãe
não queria aí minha tia disse “não, quem sabe não é esse remédio que vai
curar ele”. E ele tomou... [...] Aí ele pôs nas fezes uma bola assim, que era só
pus com sangue. Que antigamente chamava-se pusteme, do baque ficou
aquilo dentro. Aí ele ficou curado. E daí de vez em quando eu tive visões,
além da visão eu oiço muita coisa (Entrevista em fevereiro de 2009).
O seu pai teria sofrido uma queda durante o trabalho nas obras de uma escola e o
“baque” ou batida provocou a dor e o ferimento interno.
Sobre as coisas que D. Roxita ouve, ela explica que são orientações e intuições do
que deve fazer para curar os que a procuram, além de lhe avisarem sobre acontecimentos
futuros, principalmente se alguém a irá lhe visitar ou solicitar seu auxílio.
67
Na hora eu recebo a intuição do que é que eu tenho que ensinar pra ele fazer
o remédio. Eu tenho muito assim que... nós curadores não temos imagens de
cabôco... temos imagens de santos pequenos... como na minha casinha de
trabalho aí. Eles [referindo-se aos santos e encantados] me iluminam muito
com remédio de ervas, quando eles veem que a cura não é pra nós, com
remédio caseiro que é de ervas, eles sempre encaminham pro “bata branca”.
O bata branca é o médico (Entrevista em fevereiro de 2009).
Interessante como ela denomina o médico, curador científico, como “bata branca”,
sendo que ela mesma, uma curadora tradicional, utiliza bata branca em suas curas.
Figura 27
A pajé explica que pode curar qualquer tipo de doença, quando é para ela, ou seja,
quando pode ser tratada com ervas, quando não, ela (e as entidades) recomendam que a
pessoa procure o “bata branca”. Com o auxílio dos seres que a guiam, ela pode curar tanto
doenças de causa espiritual (perturbação de espíritos, por exemplo) como de causa física
(“tocedura”, “quebradura”), embora no último caso ela aconselhe procurar o médico, como foi
mencionado. Entretanto, pessoas podem solicitar sua ajuda para diversas outras razões, como
encontrar um animal perdido 17, pedir para serem “benzidas” ou protegidas espiritualmente.
17
Como testemunhei certa vez um rapaz pedindo ajuda à D. Roxita para encontrar sua égua fugida.
68
Em abril de 2010, logo depois de conversar com dona Roxita em sua casa, uma
mulher veio a sua procura para pedir auxílio, alegando sentir dores de cabeça constantes e
insônia. D. Roxita a convidou para entrar e disse que ia lhe fazer um “passe”. Perguntei a pajé
se eu poderia assistir, e a mesma consentiu. Em seu “quartinho de trabalho”, D. Roxita
acendeu uma vela no altar e um incenso de defumação (daqueles comumente vendidos em
casas de produtos afro-religiosos) e o deixou em uma “fonte” artificial de água. Em seguida,
posicionou a mulher em pé de frente para o altar, enquanto que a pajé ficava de frente para
suas costas. Com um pano de cetim cor-de-rosa sobre seu ombro direito, a pajé recitava
orações chamando por Jesus, Virgem Maria, Santo Antônio, “Nosso Senhor e os Santos”, ao
mesmo tempo em que fazia levemente com o pano movimentos circulares sobre a cabeça da
mulher e sinais em forma de cruz na direção de suas costas.
Figura 28
meio a natureza, pois afinal, é o meio natural dos encantados e onde a ligação com eles pode
ser melhor facilitada.
Ela afirma não cobrar das pessoas os ritos de cura ou remédios que realiza, pedindo
apenas o material que for necessário para o trabalho, caso ela própria não tenha esse material
em casa. D. Roxita diz que pajé não deve cobrar pelo seu trabalho, pois seria errado cobrar
por algo que foi dado por Deus, o dom de curar. Ela explica que:
O dia em que Deus me vender o meu dom, aí eu cobro pra vocês pra mim
pagar meu dom, mas ele ainda não me cobrou. [...] Porque tem muitos que
são escolhidos por Deus pra fazer caridade e eu tenho feito muita caridade, e
fico feliz (Entrevista em fevereiro de 2009).
Figura 29
Vasilha de barro com água e conchas, ao lado um vaso com flores vermelhas artificiais (Foto: Faro, 2009).
70
Figura 30
“Fonte” artificial, no momento sem água, contendo velas, flores artificiais, entre as quais há uma imagem do
rosto de Jesus, e outros objetos (Foto: Faro, 2009).
O relato da pajé Roxita sobre como aconteceu seu primeiro contato com os
encantados e o mundo submerso é bastante interessante, foi a partir dessa experiência,
inclusive, que ela iniciou de fato o caminho da pajelança.
Ela conta que aos nove anos de idade, no dia 22 de setembro, ela foi à ponte onde
atracava algumas embarcações. Era no fim da manhã e a maré estava cheia, quando ela
avistou próximo à margem do rio o que parecia ser as costas de um animal. Entrou na água
para aproximar-se dele e jogou algumas pedras na direção do bicho para saber o que seria, na
segunda ou terceira tentativa a pedra espirrou água no animal que se assustou, abriu a boca e
espalhou água na direção dela, para então mergulhar nas águas. O animal era o mero, um
peixe de grande porte e muito comum nos rios amazônicos. Como já estava na água, a jovem
Roxita aproveitou para tomar um rápido banho de rio. Ela mergulhou e quando voltou à
superfície:
[...] quando cheguei [em casa], já cheguei com dor de cabeça e febre, febre,
febre... aí eu via tudo aquilo, tudo eu via e queria pular a janela e ir embora
pra lá, e nada. Então me seguravam e aí mandaram chamar o Seu Tuxico,
que já faleceu, ele era um curador. Foi então que ele disse: “Ah, isso é o
povo dela que tá mexendo com ela, a senhora faz esse banho” (idem).
72
O curador, então, recomendou que a mãe de D. Roxita fosse à igreja, levasse uma
garrafa cheia de água e pedisse ao padre para benzer. Feito isso, deveria levar a menina no
local em que foi levada pro Fundo, e dar um banho com a água benta em D. Roxita.
Em outra experiência, ela conta que passou quinze dias sem comer nada, apenas
bebia água e se alimentava de uma fruta, chamada Parurú, que os encantados ofereciam a ela
no Fundo. Apesar de muito magra, ela afirma não ter sentido nenhuma dor ou febre. Depois
desses quinze dias, D. Roxita começou a ouvir vozes e ter visões. Foi um período, na verdade,
de preparação para o ofício da cura. D. Roxita foi iniciada na pajelança pelos próprios
encantados, que lhe ensinaram os mistérios da encantaria e lhe instruíram a preparar e
confeccionar seus instrumentos, como as cintas e o maracá.
Figura 31
de sua corrente, composta, segundo a pajé, na maioria por índios. Alguns desses encantados,
como Tabajara e Jurema, estão presentes também no universo mítico das religiões afro-
brasileiras, como Umbanda e Tambor-de-Mina, mas D. Roxita não reconhece ou não dá muita
importância a este fato.
Atualmente, D. Roxita já entrou no período da menopausa, mas ela explica que
durante os dias em que estava menstruada não era permitido realizar curas, pois as suas
“correntes estavam quebradas”, e só deveria voltar a curar quando terminasse o sangramento.
Ela também explica que não deve ter relação sexual três dias antes de um ritual de cura.
Ao longo de sua fala, D. Roxita afirma que a pajelança é mais próxima do
catolicismo do que dos cultos afro-brasileiros, que denomina de “tambor”, e ela demonstra,
inclusive, certa reprovação ou discriminação sobre tais práticas.
Contudo, a pajelança cabocla se encontra bastante relacionada às religiões de matriz
africana, apesar de cada uma apresentar suas características próprias. Porém, tal fato não é
reconhecido por muitos pajés ou curadores de Soure, que negam ou não reconhecem uma
aproximação de suas práticas com os cultos afro-brasileiros.
A pajé também desenvolve um papel social em sua comunidade. Ela criou uma
creche que hoje é municipalizada, e atende centenas de crianças. Fica localizada próximo ao
quartel da polícia militar, no mesmo bairro em que D. Roxita reside. A princípio, obtinha
ajuda financeira de amigos e conhecidos para manter a creche e pagar as professoras e
monitoras, e atualmente, recebe a verba do município, mas reclama que até o ano retrasado
era em grande parte desviada pelo ex-prefeito.
D. Roxita representa, portanto, um importante papel social desenvolvido com a
creche e com as curas que realiza, abrangendo o campo da religiosidade, da saúde e da
educação. Além disso, a creche é uma forma de estabelecer um grau de legitimidade de D.
Roxita e suas práticas de cura na sociedade e representa uma intersecção de dois campos, o do
xamanismo/pajelança com o social.
Além da benzeção ou passe que presenciei realizado por D. Roxita, também observei
um rito de cura que foi realizado em 8 de dezembro de 2011 em sua casa. Quando visitei D.
Roxita no dia 8 de dezembro, durante a pesquisa de campo que realizei nesse mês, ela me
disse que faria uma cura naquele mesmo dia, à noite, e perguntei se eu poderia assistir. Ela
prontamente respondeu que sim e informou o horário do ritual que seria às 20:30 horas.
74
cuidado com a inveja de “amigas”. E disse também: “agora vá minha branca, mas ainda
vamos precisar muito de você”. Agradeci e retornei para onde estava sentada na sala.
Outra pessoa foi chamada para entrar, aconselhou, receitou alguns remédios e a
defumou, e a pessoa voltou para sala.
Chamou novamente seu Enéas, que ainda estava sentado no banco dentro do
quartinho. Ele sentou-se no banco em frente a pajé, e esta derramou um pouco de cachaça em
cima de uma pedra no chão e ateou fogo. Nesse momento a pajé se concentrou e cantou a
doutrina:
Com a pedra ainda em chamas, a pajé passou cachaça pelo peito, ombros, braços e
pernas de seu Enéas, e tirava o excesso com as mãos para então jogar os respingos no fogo
azul, enquanto cantava a doutrina:
Ao terminar, disse para ele vestir a camisa e voltar para a sala. A pajé chamou de
novo D. Leonira e também seu Arnaldo. Depois de alguns segundos pediu que eu também
entrasse. Ao adentrar no quartinho ela me perguntou se eu já tinha ajudado um pajé antes.
Não entendi a pergunta e olhei para a ajudante, que percebeu minha incompreensão, e ela me
explicou que a pajé queria saber se eu já havia ajudado alguma vez um pajé a tirar malefício.
Respondi que não, e D. Roxita ou o caruana nela incorporado disse “então, vai ser agora”. Ela
me deu para segurar um prato branco onde derramou um pouco de vinho e cachaça, e disse
para eu olhar e ver se havia alguma coisa além do líquido. Eu disse que não havia nada. A
77
ajudante me explicou para aproximar o prato da boca de D. Roxita quando fosse a hora certa.
A pajé então iniciou o canto do caruana Bem-te-Vi:
aparência cansada, mas não abatida, ainda vestindo a bata e sentou-se no sofá, conversando
descontraidamente com todos.
Figura 32
D. Roxita sentada no sofá conversando com as pessoas após realizar a pajelança. Ao fundo, do lado esquerdo,
encontra-se o quartinho onde os trabalhos de cura são realizados em sua casa (Foto: Faro, 2011).
As pessoas a agradeciam e aos poucos iam embora. Ficou apenas eu, seu Enéas, seu
Arnaldo, D. Leonira e Eli, mais a ajudante e D. Roxita, na sala. A pajé me disse, então, que
cada trabalho é diferente um do outro, que há trabalhos em que ela faz mais cura, outros que
ela tira malefício, outros afasta espíritos perturbadores etc. No trabalho ou pajelança dessa
noite, D. Roxita curou e tirou malefícios.
Antes de ir embora seu Enéas perguntou a D. Roxita quanto deveria lhe dar. D.
Roxita respondeu em tom irônico: “O quê? Dar o quê? Ah o senhor quer preço? É cinco
mil...!”. E disse a ele que não era preciso dar nada. Mas seu Enéas queria retribuir com algo e,
sendo ele pescador, disse que levaria a ela um quilo de camarão no sábado. Ela agradeceu,
disse para não se preocupar, mas que aceitaria o camarão. Confirmou a ele para voltar no
sábado, pois lhe entregaria uma garrafada, como continuação do tratamento de cura que
estava fazendo nele. Ele afirmou que retornaria, se despediu de todos e foi embora. Para a D.
Leonira a pajé recomendou que não comesse nada reimoso e disse para ela voltar na segunda-
feira, pois iria continuar o procedimento de cura. D. Leonira também se despediu e foi
embora. E por fim, eu agradeci a D. Roxita por ter permitido que eu participasse dessa
pajelança, me despedi de todos e fui embora.
79
3.3. D. Dica
Conheci D. Dica por meio de D. Graça, uma senhora que conheci através de uma
amiga do mestrado e que me abrigou em sua casa, em Salvaterra, em algumas vezes durante o
trabalho de pesquisa.
80
Figura 33
Praça principal de Salvaterra, destaque para a Igreja de N. Sra. Da Conceição, santa padroeira da cidade (Foto:
Faro, 2011).
Figura 34
D. Dica sentada em seu sofá durante uma entrevista informal, realizada em dezembro de 2011 (Foto: Faro,
2011).
D. Dica contou-me que nasceu com o dom de curar. Aos sete meses, ainda na barriga
de sua mãe, ela chorou. E nesse momento sua mãe ouviu uma voz lhe falar para nunca bater
nem maltratar aquela criança, pois “ela seria os olhos e alegria da família”.
D. Dica também contou que nunca “se fez”, se formou ou iniciou, com nenhum pajé.
Ela simplesmente sabia, ouvia ou via o que fazer e como, que ervas usar e como preparar os
remédios. Alguns dos encantados que a acompanham são Mariana, Tabajara, Tupiassú e
Herondina. Entidades presentes também em outras expressões religiosas, como o Tambor-de-
Mina, principalmente Herondina e Mariana, que segundo ela é “uma caboca boa, que quando
gosta de alguém ela gosta, mas quando não gosta... não quer ver nem pintada de ouro”. D.
Dica é uma senhora cristã e que demonstra muita devoção por Deus, Jesus e Nossa Senhora, e
para ela o dom de curar é “uma luz dada por Deus”.
Ela relatou-me uma das experiências que teve quando jovem, no início de sua
segunda gravidez, em que estava prestes a dormir, ouviu uma voz dizendo “escuta, senta e
bora conversar”, D. Dica abriu os olhos e viu uma freira (que alguns de seus familiares
acreditam ter sido uma santa) entrar em seu quarto, e ela retrucou “não, agora não quero
conversar”, e a freira respondeu, “não, senta, eu vim trazer os dois nenéns, que tu estás
grávida”. Segundo D. Dica, a figura segurava dois bebês, um branco e outro moreno, e a freira
dizia à D. Dica que aquelas crianças eram os filhos que ela estava esperando, e predisse
também que ela não sentiria dor no parto e que teria os filhos sozinha em casa com o “Pai” e a
82
“Mãe”, que ela entendeu como sendo Jesus e Maria Santíssima. D. Dica contou que tudo
aconteceu conforme a visão lhe mostrava.
Ao longo de seu relato ela contou alguns casos de cura que realizou (aliás, todas as
curadoras que conversei contaram ao longo da entrevista vários casos de cura que teriam
feito), e dentre os remédios que mais utilizava ela enfatizou o mastruz e o mel de abelha puro,
que segundo ela, juntos são um poderoso remédio para diversos problemas de saúde. Além
disso, D. Dica também era parteira. A propósito, quase sempre uma curadora também é
parteira, mas dificilmente um curador o é. Entende-se que somente uma mulher poderia ter o
devido conhecimento e competência em agir em dadas situações tão particularmente
femininas. D. Dica afirmou que nunca cobrou dinheiro em troca dos remédios ou curas que
fazia.
Perguntei a ela se conheceu um curador chamado Mundico. Ela pensou por um
tempo, buscando na memória por esse nome, e enfim respondeu que conhecera um curador
chamado Mundico, da região de Maroacá, em Salvaterra, que era muito bom e conhecido no
Marajó. Segundo D. Dica, ele era cego e nasceu com o dom. Mas afirmou que curador mais
conhecido ainda foi o pai de Mundico, o mestre Modesto, que ela também conheceu quando
era pequena.
Ela conta que aos oito anos de idade foi com sua mãe na casa de mestre Modesto, em
Maroacá, e o viu curando uma mulher espanhola, que teria vindo do exterior para se curar
com o pajé. D. Dica, criança, ficou no canto observando a cura e por alguma razão começou a
achar graça e riu. De repente, ela ouvi um “fiiiiiti, bem agudo”, um assobio, e ao olhar para o
lado viu um índio grande fumando cigarro de tauari. E ele disse a ela “para não rir dessas
coisas”, e disse também pra “nunca cortar aquele meu cabelo bonito que tinha”. Sua mãe ao
ouvir a filha falando perguntou com quem ela falava, e ela respondeu “aqui mamãe, não tá
vendo? E minha mãe olhou e viu o índio, viu que era um caboco” (entrevista em dezembro de
2011).
D. Dica me contou que seu Mundico deixara pessoas pajés, ou seja, que formou
outros pajés, mas que segundo ela, todos já faleceram. Questionei se ela conhecia a Zeneida
Lima, de Soure, que teria sido feita pajé por Mundico, mas D. Dica respondeu que não a
conhecia. Durante toda a conversa D. Dica não mencionou nenhum dos nomes dos caruanas
ou seres encantados reverenciados por Zeneida Lima (que veremos com mais detalhes no
capítulo cinco), nem quando falava a respeito de sua própria prática de cura, nem quando
falava sobre seu Mundico ou mestre Modesto. Mas por ela ser criança quando conhecera esses
curadores, é provável também que ela não se lembre muito bem dos detalhes da pajelança de
83
Zeneida Lima não foi a única pajé de Soure a ser conhecida fora do Marajó e
noticiada em jornais. Antes dela, Soure teve um curador muito conhecido e lembrado ainda
hoje como um grande pajé. Refiro-me ao seu Zé Piranha, como era chamado o seu José do
Espírito Santo, falecido em 2001.
Figura 35
Jornal Diário do Pará, de 6 de março de 1999, com matéria sobre o curador Zé Piranha (Foto: Faro, 2011).
Tive conhecimento sobre esse curador por meio de alguns moradores de Soure,
especificamente uma senhora, D. Zenilde, que me abrigou em sua casa durante os dias em que
estive pesquisando na cidade em dezembro de 2011. Ele morava na 4ª rua, justamente onde
fica a casa de D. Zenilde, e por essa razão ela o conheceu pessoalmente. Alguns dos filhos e
netos de seu Zé Piranha ainda moram na mesma casa, e foi então que pude conhecer e
conversar com D. Olga, sua filha, que por ter assistido muitas, se não todas, as curas e
pajelanças de seu pai, apresenta uma memória vívida sobre ele e suas práticas, pois ela não só
assistia as pajelanças como, junto com sua irmã, ajudava a escrever no papel as receitas de
remédios que seu pai ensinava.
85
Figura 36
Essa doutrina, que é cantada em um ritmo que lembra uma cantiga de ninar, conta a
história do Pretinho da Bacabeira, que segundo D. Olga:
A mãe dele estava grávida dele escondida da família, e ela teve ele
justamente debaixo de um juremár18 [jurema], que fica justamente aonde era
a Cohab, a árvore era lá perto da Cohab, e ela jogou ele justamente num
igarapé perto do Hotel Marajó. Só que ele não se afagou, ele se encantou.
[...] Aí ele começou a aparecer, depois de sete anos, ele começou a aparecer
por lá (Entrevista em dezembro de 2011).
D. Olga contou-me que seu pai nascera em Mangueiras, no interior do Marajó, e seu
dom de curar era de nascença. Com doze anos começou a desmaiar e “pegar caboco”, mas o
pai de seu Zé Piranha não acreditava no dom do filho e também não aceitava que fosse
curador, pois “ele dizia que todo pajé vivia de esmolas”. Anos depois se mudou para a
pequena cidade de Mucura e com 21 anos conheceu a mãe de D. Olga, com quem se casou,
teve oito filhos e com quem viveu até falecer.
Figura 37
D. Esmelinda e seu José do Espírito Santo, ou Zé Piranha, em um retrato na parede da casa de D. Olga (Foto:
Faro, 2011).
Em seguida se mudaram para Pau D’arco e depois para Soure, pois morando na
cidade ele acreditava que os cabocos não baixariam mais, pois pensava que eles teriam medo
da polícia19, entretanto, os encantados continuavam baixando nele, onde quer que fosse. Foi
então que seu Zé e sua esposa conheceram uma senhora em Soure em que seu marido,
18
Maneira como D. Olga fala “jurema”, e também como é cantada na doutrina.
19
Nessa época ainda ocorriam perseguições aos pajés e pais de santo pela polícia.
87
Francisco, mais conhecido como Tuxico 20 (já falecido), era curador. Ela sugeriu a esposa de
seu Zé que o levasse a um trabalho para “aprontá-lo” sem que ele soubesse, pois caso
soubesse ele poderia recusar. E foi o que fizeram, organizaram uma pajelança para “aprontar”
seu Zé e a partir de então ele tornou-se pajé, passando a realizar diversas curas.
Segundo D. Olga, os trabalhos que seu pai realizava eram durante a noite, não havia
toque de tambor, no máximo batiam palmas, e as doutrinas eram cantadas baixinhas, para não
incomodar vizinhos e, principalmente, não chamar a atenção da polícia. Seu Zé Piranha
trabalhava com duas categorias de encantados: os cabocos que vinham para curar e os que
vinham para tirar feitiço. Entre os que curavam estava o Doutor Bina, que D. Olga,
infelizmente, não lembra a história, mas lembra claramente da doutrina:
Outro encantado de cura é Norato Antônio, cuja história D. Olga também não
recorda, mas contam as histórias que ouvi em Soure que Norato Antônio foi o primeiro pajé
caboclo, que aprendera dos índios a arte de curar e se tornou um pajé tão poderoso que se
encantou, e assumiu a forma de uma cobra, por isso também é chamado de Cobra Norato. Nos
relatos da pajé Zeneida Lima, ela explica que:
Maués (2005, p. 4) registra uma das versões da lenda de Norato Antônio que coletou
na região do salgado no Pará. A lenda conta que:
Uma mulher deu a luz à dois gêmeos de ambos os sexos, que foram
chamados de Maria Caninana e Norato Antônio. Logo ao nascer, as crianças
se transformaram em cobras e deslizaram, rapidamente, para o rio, onde
passaram a viver. Cresceram e se transformaram em cobras-grandes.
20
Pelo nome, talvez possa ser o mesmo curador que D. Roxita citou em seus relatos, mas não temos como
afirmar com certeza.
88
Maria era uma peste e vivia provocando naufrágios. Norato, que era bom, foi
obrigado a matá-la. Como penitência, Norato, à noite, passou a transformar-
se em um rapaz sedutor, deixando na beira do rio sua longa pele. Diz a lenda
que, se alguém conseguisse pingar leite na boca da cobra e ferir sua cabeça,
ela se desencantaria e se tornaria só rapaz. Tal façanha foi conseguida por
um soldado do rio Tocantins.
Mas existem diversas versões sobre Cobra Norato, sendo que uma variante foi criada
por Bopp em sua obra poética, acima citada, na qual um rapaz mata Cobra Norato, veste sua
pele, transforma-se em Cobra-Grande e segue em busca de sua amada, a filha da rainha Luzia,
no mundo encantado.
Uma outra versão é descrita no livro de Zeneida Lima (2002, 6 ed.), em que esta pajé
afirma ser Norato Antônio o contramestre de suas cordas. Esse caruana é conhecido por sua
sabedoria, e segundo Lima (op. cit., p. 85) quando ele vem ao nosso mundo realiza curas e
aconselha. Além disso, ele detém os segredos da “Fonte da sabedoria e da cura” no mundo
encantado, e por isso possui um posto de grande importância dentro da hierarquia encantada.
Diante de todos esses simbolismos e importância deste caruana, poderíamos mesmo inferir
que Norato Antônio ou Cobra Norato é um “patrono” dos pajés e da Encantaria.
Na história contada no livro de Zeneida Lima (op. cit.), nas proximidades do lago
Guajará, existia uma grande cidade à margem de um igarapé, lugar em que Norato Antônio
vivia. Em noites de lua cheia ele saía das águas e andava entre os humanos para se divertir e
prestar favores, sem que nunca ninguém desconfiasse de sua real natureza. Um dia, estava
acontecendo uma festa na cidade, e Norato saiu do fundo para também se divertir com os
mortais. Sua aparência e encanto chamava a atenção, principalmente das moças, entre elas a
filha do dono da casa, que caiu de amores por Norato. Ela cercava-o de agrados e tentava de
todos os jeitos conquistá-lo. Ao se aproximar da meia-noite Norato disse a moça que tinha de
ir, mas ela insistiu para que ficasse e lhe ofereceu, autorizada pelos pais, hospitalidade em sua
casa. Diante de tanta insistência, o rapaz aceitou, mas exigiu uma condição, que ninguém o
procurasse, nem mesmo olhasse onde ele estava, depois que se recolhesse. Antes da meia-
noite, Norato se despediu de todos, da moça, e entrou para o quarto. A moça remoendo a
89
exigência que ele fizera e sem conter a curiosidade aproximou-se do quarto em que Norato
estava, olhou cuidadosamente pela fresta da porta e viu então o moço deitado na rede nu,
transformando-se lentamente no exato momento que dava meia-noite. A moça espantou-se
horrivelmente com o que via, Norato transforma-se em uma enorme cobra, e em seu susto
lançou um grito de pavor. Então,
Norato Antônio descoberto em seu segredo, fazia vibrar suas energias com
outros encantados para proteger-se da curiosidade dos mortais. Tudo que era
fixo, mexeu-se, as casas desfizeram-se como papel. As águas tragaram a
cidade, derramaram-se sobre a planície formando o lago Guajará. Até hoje,
ao atravessá-lo, ouve-se os sons da festa inacabada. (LIMA, 2002, p. 86).
pai trouxe a jibóia e nós tomamos o cuspe dela. Tomamos o cuspe e o conhecimento dela. A
gente não sentiu medo” 21.
Provavelmente, a Jibóia seja uma deidade ou força divina na espiritualidade do povo
Yawanawá, e estaria associada a sabedoria e ao poder de cura, virtudes que um pajé deve ter.
Na mitologia grega, Hermes porta um cajado envolto por serpentes, o caduceu,
símbolo do deus mensageiro, do comércio, das estradas, e tantos outros atributos. Por ser um
deus mensageiro, Hermes pode transitar e ter acesso aos mais diversos mundos e lugares. Na
América Central, a Serpente emplumada, representação do deus Quetzalcoatl dos nahualt, e
está relacionada ao céu, poder e sabedoria.
Seja qual for a mitologia, a cobra representa o poder, a cura e sabedoria, e além
disso, está ligada aos xamãs e sacerdotes, pessoas que fazem (e são, simbolicamente) a ponte
entre os deuses, os espíritos e o ser humano.
Na entrevista com D. Olga, esta relembra e canta a doutrina de Norato Antônio, que
é a seguinte:
Nessa cantiga parece estar claro um dos atributos principais de Norato Antônio, o
grande conhecimento sobre as ervas e a pajelança, por isso ele é considerado o mestre e/ou
contramestre de muitos pajés e curadores.
Quando “trabalhava” (curava) seu Zé Piranha usava uma calça branca, de bainha
enrolada, e ficava sem camisa. Utilizava o maracá, cigarro de tauari e três cintas, uma
amarrada na cintura, outra amarrada na altura do peito, e a outra colocada inclinada no tronco
e com o nó para trás, chamada de cinta-mestra e, segundo D. Olga, representava a Cobra
Caninana, “uma das cobras mais brabas que tem” (D. Olga). A Cobra Caninana pode referir-
se à Maria Caninana, irmã do caruana Norato. Essas cintas e, sobretudo, a cinta-mestra,
servem para a proteção do pajé, para afastar os cabocos ruins. Além disso, a cachaça também
era presente nos rituais de cura e muitas vezes era bebida pelo encantado, e “depois que
21
Entrevista com as pajés Yawanawá disponível no site <http://altino.blogspot.com.br/2006/04/primeira-paj-
brasileira.html>. Acesso em 15/08/2012.
91
acabava o trabalho ele [o pajé] estava bom, quer dizer, não é ele quem bebe, é o caboco”,
como afirma D. Olga.
Seu Zé Piranha também utilizava vinho nos trabalhos, com o qual ele fazia uma
bebida, que D. Olga chama de “sangria”, em que misturava um pouco do vinho com água e
açúcar e era distribuída, moderadamente, às pessoas presentes. A roupa que ele utilizava nos
trabalhos só era lavada pelas mãos de sua esposa, e seus instrumentos também eram limpos e
guardados em uma maleta por ela, que só eram novamente utilizados quando houvesse outro
ritual de cura.
D. Olga conta que Zé Piranha era católico, devoto de Santo Antônio e mantinha um
pequeno altar (ainda existente) em sua casa. Ela conta também que seu pai costumava ir à
missa, até que o padre começou a criticar a prática dos pajés e, então, seu Zé sentindo-se
ofendido, parou de ir com tanta frequência à igreja. D. Olga, e também D. Zenilde e sua
filha 22, relatam que ele tinha o costume de todo fim de tarde sentar-se e ler a bíblia, e depois
que lia explicava tudo o que tinha entendido aos seus filhos. Na foto de seu altar ou oratório
abaixo, observa-se uma imagem de Iemanjá entre as imagens de santos católicos. Segundo D.
Olga, seu Zé Piranha não cultuava Iemanjá ou outros orixás, mas essa imagem teria sido um
presente de uma pessoa curada por ele, e sendo um presente, não poderia recusar.
Figura 38
22
Pessoas que me abrigaram durante a pesquisa de campo realizada em dezembro 2011.
92
Seu Zé Piranha faleceu aos 77 anos devido a um infarto, e sua esposa viveu até os 90
anos de idade, falecendo em junho de 2011. E como deve ser feito quando morre um pajé,
seus instrumentos de cura foram lançados ao mar por alguns de seus filhos. Ele não deixou
nenhum pajé “formado”, mas D. Olga suspeita que sua neta, que está com dez anos, possa ter
nascido com o dom, pois ela teria tido uma visão de seu Zé Piranha, apesar de ter apenas
quatro meses de nascida quando ele faleceu. D. Olga afirma que se até os vinte e um anos a
menina não apresentar nenhum sinal de que tem realmente o dom de curar, ela não poderá
mais desenvolver esse dom. Por enquanto, as cantigas ou doutrinas dos encantados, o
chacoalhar do maracá, o cheiro de alecrim e a fumaça do tauari ficarão apenas nas lembranças
sobre o seu Zé Piranha, guardadas na memória de D. Olga e sua família.
Como é possível perceber, mesmo o pajé nesse caso sendo um homem, as mulheres
sempre estavam presentes e participando de uma forma ou de outra na pajelança. Se não fosse
a esposa de seu Zé Piranha, ele talvez jamais teria sido um pajé, e se não fossem as suas
filhas, dentre elas D. Olga, ele não teria tido apoio e assistência de pessoas confiáveis durante
os ritos de cura. E ainda, quem sabe, a neta de D. Olga (e bisneta de seu Zé Piranha), seja a
próxima pajé daquela família. A mulher, portanto, não sofre restrições em ser pajé em Soure,
pelo contrário, ela está presente, próxima e participativa de todos os processos de cura e
pajelança.
93
4. A Pajé Zeneida Lima: sua trajetória e relação com a mídia e a comunidade de Soure.
A mulher pajé que começou a ser conhecida no Brasil em 1998 e desperta hoje
admiração e também discussões polêmicas entre acadêmicos e leigos, é bastante reservada e
de difícil acesso. Consegui entrevistar, depois de muita persistência, Zeneida Lima três vezes,
em novembro de 2009, em julho de 2010 e julho de 2011, além de pequenas conversas
informais por telefone ou pessoalmente. Ainda assim restaram algumas lacunas na pesquisa,
pois não foi possível participar ou assistir a um ritual de pajelança realizado por D. Zeneida.
De certa forma, tive mais contato com seu neto, Raul Prazeres, do que com ela própria, pois
foi ele quem me levou e acompanhou três vezes ou mais na escola que hoje é chamada
“Zeneida Lima de Araújo”, e no espaço particular da pajé, onde se encontram estátuas de onze
caruanas reverenciados na pajelança de Zeneida Lima.
Figura 39
Raul me mostrando os trabalhos de cerâmica no barracão de artesanato na escola “Zeneida Lima de Araújo”, em
julho de 2011 (Foto: Adriano Cavalcante, 2011).
No início do trabalho de campo, tive impressão de que a filha mais velha de Zeneida
Lima demonstrava certa resistência para comigo, mais do que a própria Zeneida, que se
mostrou bastante simpática durante as conversas, apesar de ser um pouco impaciente em
alguns momentos, talvez devido ao cansaço de responder constantemente a entrevistas. Mas
essa resistência foi se dissipando a medida que me conheciam, e o que senti com o tempo não
fora mais resistência, mas um pouco de descaso, apesar de se mostrarem sempre simpáticos
quando os encontrava em Soure. Houve vários momentos em que fui à porta da casa de
Zeneida Lima para uma entrevista já agendada e tive a resposta de um de seus familiares ou
94
conhecidos de que naquele momento ela não poderia me atender, apesar de ter combinado
comigo tal horário.
Formalmente, foram três entrevistas que tive com esta pajé, que me recebeu na
varanda de sua casa para conversarmos sobre a “pajelança marajoara”, como ela define suas
práticas e que, segundo ela, se diferencia da que é praticada pelos demais pajés, cuja pajelança
seria da “linha do Maranhão e de São Sebastião" (entrevista em julho de 2010).
Figura 40
Sua casa em Soure se localiza no início da 2ª rua, é uma casa grande, possui varanda
em volta, um quintal, gramado em frente e ao redor da casa, e possui um muro branco
relativamente alto protegendo a privacidade. No alto, na fachada interior da casa, está escrito
“Chome Zomadonu”, referindo-se a principal entidade da Casa das Minas 23 no Maranhão.
Ferreti (2001, p. 02) cita um trecho do relatório do colóquio da UNESCO (1985, p. 41) em
São Luís que assinala sobre essa entidade o seguinte:
23
A mais antiga casa de culto afro-religioso do Tambor-de-Mina fundada em São Luís (MA).
95
Essa inscrição na casa de D. Zeneida indica uma relação existente entre ela, a Casa
das Minas e os cultos afro-religiosos. Um momento de sua vida ainda pouco relatada em seus
livros, salvo alguns trechos, em sua autobiografia, sobre sua amizade com o antropólogo
Nunes Pereira, que pesquisou a Casa das Minas. Em entrevista realizada em julho de 2011, D.
Zeneida contou-me sobre sua relação com a Casa das Minas no Maranhão e afirmou:
Eu fui no Maranhão. Conheci o Dr. Nunes Pereira, ele foi fazer um estudo lá
na Casa das Minas, e eu servi de fonte pro Dr. Manuel Nunes Pereira. Deixa
eu te dizer, porque a vovó, ela cultuava o povo da África, o candomblé, ela é
mina-jeje. Então a vovó, ela me contava muita coisa... E ela disse pra
mamãe, quando eu nasci, que se ela não fosse do santo de azeite ela me
tratava.
[...] quando a pessoa é de candomblé, né? Que se ela não fosse do santo de
azeite ela me tratava, mas ela era do santo do azeite, e eu pertencia ao povo
das águas (entrevista de julho de 2011).
Esta pajé escreveu sete livros, sendo o mais famoso “O Mundo Místico dos Caruanas
da Ilha do Marajó”, atualmente em sua 6ª edição (2002), em que escreve sobre sua infância
em Soure, os conflitos familiares, alguns acontecimentos do cenário político da época, sua
iniciação na pajelança, alguns conhecimentos de cura, sua estada no Rio de Janeiro, e outros
eventos de sua vida até o início da idade adulta. Os livros mais recentes da pajé, como “O
Recado do Papagaio”, são voltados ao público infantil e tratam sobre a preservação da
natureza. Além disso, há um segundo volume, que dará continuidade ao “Mundo Místico...”,
já escrito pela pajé esperando ser publicado pela editora Dialeto de São Paulo (segundo o que
ela me informou durante a entrevista de julho de 2011), e há também um filme de longa-
metragem dirigido por Tizuka Yamazaki chamado “Amazônia Caruana”, baseado nesta obra
autobiográfica de Zeneida Lima, mas ainda sem previsão de lançamento no cinema.
Essa estreita relação da pajé com a mídia é um fator que incomoda muitas pessoas,
desde o simples morador de Soure, ao pajé ou curador(a) que vê a divulgação das práticas de
cura e de uma pajelança geralmente diferente ou desconhecida por ele(a), até o estudioso
acadêmico do tema que se sente intrigado ou mesmo desconfiado diante de um estilo de
pajelança, até então, pouco estudado. Somado a isto, parte da população de Soure tem
antipatia pela pessoa de Zeneida Lima devido a um acontecimento ocorrido há mais de vinte
anos atrás, quando a filha do prefeito da época misteriosamente desapareceu. A menina era
afilhada da pajé e sumiu quando saiu da casa desta. Algumas pessoas da cidade passaram a
96
acusar a pajé de ter feito um ritual de “magia negra” com a menina, mas nada foi provado pela
polícia que comprovasse o envolvimento da pajé com o sumiço da criança, e a acusação do
povo representava mais uma atitude de discriminação contra Zeneida Lima do que um
testemunho verídico. Não possuo muitas informações sobre esse acontecimento, que aliás, até
hoje algumas pessoas recordam, mas preferem não comentar muito, portanto, não me deterei
muito nesse assunto.
D. Zeneida Lima também possui um site, em que divulga as atividades referentes à
ONG que fundou em 2001, a “Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia”, que
abarca uma escola de ensino fundamental, hoje chamada “Zeneida Lima de Araújo”, criada
em 2003. Esta escola além de oferecer as disciplinas obrigatórias do currículo escolar, oferece
também aos estudantes cursos e oficinas (de cerâmica, crochê, capoeira, música),
desenvolvendo a ideia de formação integral do indivíduo. Além de informar sobre as
atividades da escola, o site apresenta algumas informações sobre a pajelança praticada por
Zeneida Lima, seus livros etc.
Nascida em 21 de julho de 1934 no município de Soure, do matrimônio entre
Angelino Rodrigues de Lima e Maria José de Andrade Figueira de Lima (sua segunda
esposa), sendo Zeneida Lima a terceira dos doze filhos. Seu pai teria sido um influente
político e advogado, que nos anos 30 e 40 atuou ao lado de Justo Chermont e Magalhães
Barata, sendo este último o padrinho de nascimento de Zeneida Lima (LIMA, 2002).
Sua relação com figuras do meio político não se limita apenas a isso. Em seu livro,
ainda na primeira edição (1991), ela dedica agradecimentos a diversas pessoas importantes do
ramo da política, como vereadores, deputados, ex-prefeitos, ex-vice-governador, do ramo
militar, do magistério, como desembargadores, da medicina, e também da antropologia (no
caso, Manuel Nunes Pereira).
A sua atuação ao lado de políticos pode ser bem exemplificada no fato ocorrido em
28 de abril de 2010, quando a Assembleia Legislativa do Estado do Pará aprovou em 1º turno
o Projeto de Lei Ordinária Nº 289 elaborado pela deputada estadual Ana Cunha, que declara a
Pajelança Cabocla do Marajó integrante do Patrimônio Cultural Imaterial do Pará 24. Outros
eventos também podem ser citados, como a sua manifestação em defesa da preservação da
Amazônia no Senado brasileiro em maio de 2009, onde fez um pronunciamento perante os
políticos e entregou-lhes um abaixo-assinado, contou com o apoio de artistas, ambientalistas e
demais pessoas que defendem a causa ambiental.
24
Informação obtida no site <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 19/09/2012.
97
Figura 41
Figura 42
Figura 43
Zeneida Lima recebendo o prêmio Imortal da Vale ao lado de outras figuras importantes, entre elas o ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso (Foto divulgada por Josie Prazeres, neta de Zeneida Lima, em sua página
pessoal numa rede social da internet).
Eu agradeço ao Céu
Eu agradeço ao Mar
Eu agradeço a Terra
E agradeço ao Ar
Agradeço a natureza por tudo que ela criou
A coisa mais bonita pra mim é o Beija-Flor
Com sua fragilidade, com suas asas multicor
Ele voa na floresta a procura de uma flor
É o amor, é o amor
Como é lindo o Beija-Flor 26.
As quatro músicas (“A Lua”, “Olha o mar”, “Luar” e “Eu agradeço ao Céu”)
compostas por D. Zeneida e gravadas nesse álbum de Leila Pinheiro evocam claramente a
natureza, sua beleza e mistérios. Esta cantora, em um show aparentemente recente, também
declara ser amiga e grande admiradora de D. Zeneida 27.
No ano de 2008, na 17ª edição do Encontro para a Nova Consciência (ENC) em
Campina Grande/PB, a pajé Zeneida Lima participou do evento realizando uma palestra
intitulada “A criação do Mundo na visão dos índios marajoaras” 28, onde ela narrava o mito de
criação do mundo pelo Girador (a divindade primeira), o mesmo mito que é encontrado em
seu livro, “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” (2002, 6 ed.). Esse evento
acontece uma vez por ano durante o feriado do carnaval e reúne religiosos das mais diversas
vertentes que defendem a diversidade religiosa, o respeito ao outro e a preservação da
natureza. Sua participação nesse encontro evidencia, de certa forma, o ideal que norteia sua
25
Confira a matéria neste endereço: <http://www.youtube.com/watch?v=DlTQnqMoDyQ>. Acesso em
09/04/2012.
26
Esta música pode ser ouvida neste endereço: < http://www.youtube.com/watch?v=UkWpdvpF08k>. Acesso
em 18/10/2012.
27
Como mostra esse vídeo, trecho de um show de Leila Pinheiro em Belém:
<http://www.youtube.com/watch?v=RYCbxYJKEzo>. Acesso em 18/10/2012.
28
Até pouco tempo atrás havia no site do Youtube um vídeo mostrando a palestra na íntegra, mas por alguma
razão este vídeo foi retirado do site, e agora só há a primeira parte composta de uma palestra sobre ciganos
realizada por outro participante do Encontro, como podemos verificar aqui:
<http://www.youtube.com/watch?v=6X2QknQIles>. Acesso em 04/10/2012.
100
29
O enredo é intitulado “Pará, o mundo místico dos caruanas, nas águas do Patu-Anu”, a letra pode ser conferida
neste endereço: <http://www.academiadosamba.com.br/passarela/beijaflor/ficha-1998.htm>. Acesso em
18/10/2012.
101
Figura 45
Zeneida Lima acompanhada por uma de suas filhas, atores e a cineasta Tizuka Yamazaki, durante as gravações
do filme “Amazônia Caruana” em Soure (foto divulgada por Josie Prazeres, em sua página pessoal numa rede
social da internet).
Figura 46
Bastidores da gravação do filme “Amazônia Caruana”, em destaque está D. Zeneida aparentemente dando
instruções aos atores para a cena (idem).
Tal interesse (e outros por trás deste) chegou a tal ponto que em 2012 a rede de
televisão Globo lançou uma novela (“Amor eterno amor”) em que alguns capítulos se
passavam em Belém e na Ilha do Marajó, nas proximidades de Soure. Alguns atores que
gravavam as cenas no local tiveram a oportunidade de conhecer a “última pajé mulher do
Brasil” 30, a escola e a sua fazenda31, como mostra a foto abaixo.
30
“A última pajé mulher do Brasil”, como se referiu uma neta de Zeneida Lima à esta em um comentário numa
rede social da internet. Sabemos, na verdade, que essa informação está equivocada, pois existem outras pajés
mulheres no Brasil, inclusive Hushahu e Raimunda Yawanawá, mencionadas no segundo capítulo deste trabalho.
102
Figura 47
D. Zeneida ao lado de alguns atores, que durante o período de gravação da novela visitaram a escola e fazenda
da pajé (idem).
31
Que demorou certo tempo para eu conhecer, e quando conheci, quem me acompanhou foi Raul, e não D.
Zeneida, como gostaria.
32
A qual a maioria da população de Soure é adepta.
103
população sourense uma pajé nativa de Soure, apesar de ter se criado e vivido boa parte de
sua vida lá, pois sua relação se dá de forma muito mais intensa com pessoas de fora do que
propriamente de dentro de Soure. Além do mais, é possível perceber que D. Zeneida é mais
reconhecida em Soure por meio da escola e seus projetos na ONG Caruanas do Marajó, do
que por sua atuação na pajelança. Em outras palavras, ela é mais reconhecida pela população
de Soure como diretora da ONG do que como Pajé.
Isso nos leva as seguintes reflexões: estaria D. Zeneida buscando na mídia e espaço
público o apoio e a legitimidade que não consegue da maioria da população de Soure? Ou
seria apenas sua forma de mostrar a sociedade uma pajelança cabocla ainda pouco conhecida?
Uma forma de ganhar espaço e voz, ao lado de outras expressões religiosas que também
buscam visibilidade e legitimidade à sua tradição, como o candomblé, umbanda, espiritismo e
protestantismo? Será essa “pajelança marajoara” algo construído e ressignificado para “turista
ver”, uma cultura de exportação, uma “pajelança de vitrine”, que não encontra de fato reflexo
na realidade de Soure? Ou devemos considerar que sabemos pouco ou quase nada sobre as
culturas indígenas antigas no Marajó, e por essa razão é possível que a pajelança praticada por
D. Zeneida tenha de fato uma herança cultural indígena, desconhecida? Questões como essas
foram levantadas ao longo dessa pesquisa e enquanto escrevia este trabalho, algumas, creio
que, foram respondidas, outras continuaram com lacunas. Veremos, pois, neste e no capítulo
seguinte as conclusões que obtivemos. Neste momento, abordaremos sobre a escola “Zeneida
Lima de Araújo” e a Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia, pois é de
fundamental importância conhece-las e entender de que forma estão relacionadas à pajelança
exercida por D. Zeneida.
A primeira vez em que visitei a escola "Zeneida Lima de Araújo” foi durante a
pesquisa de campo em novembro de 2009, guiada pelo neto de D. Zeneida, o Raul, e dois
colaboradores/professores que estavam desenvolvendo cursos de cerâmica e crochê. No
entanto, devido ao feriado de finados não foi possível observar naquele momento a escola em
plena atividade. A escola fica inserida na área da fazenda (patrimônio da família) de Zeneida
Lima, e constitui um espaço realmente extenso, com várias salas, refeitório, biblioteca, sala de
informática, espaço para atividades socioculturais, barracão de cerâmica etc. Uma grande
porteira com as inscrições “O Mundo Místico dos Caruanas” indica a entrada da escola. A
104
vegetação está presente em todo o local, o que torna o ambiente muito agradável e
proporciona o contato direto com a natureza.
Figura 48
Figura 49
a Mãe-Terra não fosse sufocada e nem muito machucada pelo cimento e concreto. E também
para amenizar os riscos de alagamento nas salas e espaços nos períodos de chuva.
Figura 50
Figura 51
Estátua baseada na antiga cerâmica marajoara, que fica em frente a entrada do barracão de cerâmica, e foi
confeccionada por um artesão de Icoaraci/PA (Foto: Faro, 2011).
33
Informação no site oficial da Instituição Caruanas do Marajó (<www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em
19/10/2012).
106
Figura 52
Banner do evento exposto na área onde aconteciam as palestras. Está com um pequeno erro, indicando que é a
VI Jornada, mas na verdade é a V (Foto: Faro, 2011).
Jordy, e o público presente era relativamente grande, em torno de cinquenta pessoas ou mais,
sendo a maioria mulheres.
Figura 53
Palestra “Violência contra o menor. O que temos feito?”, ministrada por Arnaldo Jordy, durante a V Jornada de
Oficinas e Palestras da escola “Zeneida Lima de Araújo” (Foto: Faro, 2011).
As oficinas foram ministradas por pessoas vindas de Soure, Belém e Rio de Janeiro
(onde Zeneida Lima morou alguns anos antes de retornar a Soure), e algumas dessas pessoas
atuam em órgãos ou entidades como a Fundação Carlos Gomes, Secretaria de Estado de
Comunicação e o Sindicato dos trabalhadores rurais de Soure.
A programação da Jornada constituía de palestras e oficinas durante a manhã e a
tarde no espaço da escola, e apresentações musicais durante a noite na praça principal de
Soure, durante todos os dias do evento (21 a 25 de setembro). Dentre as atrações artísticas
estavam Quinteto de Metais, da Fundação Carlos Gomes, Pedrinho Cavalero e Nazaré Pereira.
Esta última é natural do Acre (cidade de Xapuri), mas reside há mais de 28 anos na França e
canta músicas populares da Amazônia, num estilo próximo ao carimbó. Nazaré Pereira fez
duas apresentações em Soure, e uma em Belém, após a V Jornada.
108
Figura 54
Nazaré Pereira em seu show no palco montado na praça principal de Soure (Foto: Faro, 2011).
Figura 55
Mural transmitindo a mensagem de preservação da natureza, exposto na grande área onde aconteceram as
palestras durante a V Jornada (Foto: Faro, 2011).
109
Figura 56
Alunas da escola “Zeneida Lima de Araújo” no micro-ônibus que fez o trajeto de ida e volta dos alunos durante a
V Jornada (Foto: Faro, 2011).
Este evento teve apoio do Governo do Estado e de alguns órgãos e entidades, mas de
longe não foi um evento grandioso como foi a IV Jornada, que teve a presença de artistas
(como Fafá de Belém), músicos, produtores de cinema e animação vindos de São Paulo e Rio
de Janeiro, e professores (como o Dr. Ribamar Bessa, da UFAM). Mas, sem dúvida, a V
Jornada foi um evento grande, que chamou a atenção da população de Soure, embora não
tenha mobilizado um grande público. D. Eliana, filha de Zeneida Lima e uma das
organizadoras do evento, afirmou que não receberam apoio do prefeito de Soure e reclamou
que ele não divulgou a Jornada nas rádios locais, e segundo ela, isso teria prejudicado o
conhecimento e participação da população no evento.
110
Figura 57
Cartazes ao lado do palco na praça principal agradecendo aos colaboradores do evento, com os dizeres
“Obrigado superintendente Paulo José Campos de Mello, Fundação Carlos Gomes” e “Os caruanas agradece o
apoio da SEICON” (Foto: Faro, 2011).
Figura 58
Apresentação de música das crianças da escola “Zeneida Lima de Araújo” (Foto: Faro, 2011)
Esse evento teve um propósito maior, que vai além de promover um evento sócio-
educacional para a escola e a comunidade de Soure (que de fato carece de iniciativas e
projetos como este). Esse evento, de certa forma, também mostrou à cidade que Zeneida Lima
não mais se esconde nos muros de sua casa, apesar de ainda manter uma postura bem
reservada. Mesmo que existam muitas pessoas que não reconheçam ou mesmo conheçam a
pajé Zeneida Lima, ou ainda que algumas dessas pessoas demonstrem hostilidade para com a
pajé (sobretudo devido ao caso do desaparecimento da menina), ela não teme mais ser
acusada ou até mesmo ameaçada 34 pela população de Soure. Com esse evento, Zeneida Lima
mostrou a Soure que ela “continua de pé” e caminha livremente pelas ruas da cidade, embora
ainda timidamente e sempre rodeada de parentes e amigos. No entanto, como pude perceber
em diversas ocasiões durante a pesquisa de campo, a população de Soure (re)conhece Zeneida
Lima mais em sua face de diretora da Instituição Caruanas e promotora de projetos sociais do
que em sua face de Pajé.
34
Como ela me afirmou em entrevistas que fora diversas vezes ameaçada por pessoas da população e da Igreja.
112
Figura 59
D. Zeneida sentada ao centro, cercada por parentes e colaboradores do evento, durante uma apresentação musical
na praça de Soure (Foto: Faro, 2011).
A relação com outros(as) pajés de Soure, como foi possível notar durante a pesquisa,
é de conflito ou no mínimo de indiferença, pois enquanto alguns pajés criticam a sua forma de
pajelança, outros simplesmente não conhecem Zeneida Lima ou sequer ouviram seu nome
(como D. Dica).
Em um relato durante entrevista realizada em julho de 2011, Zeneida critica D.
Roxita, afirmando que esta a acusa de fazer “coisa feita” (feitiço ou malefício) contra as
pessoas que a procuram, como Zeneida diz em seu depoimento:
Aqui no Marajó, essa Roxita, todo mundo que vai lá ela diz que eu faço
“coisa feita”. Todo mundo que vai lá, diz que eu faço “coisa feita”.
Entendeu? Diz que eu que mando isso pros outros... Onde já se viu isso
menina?!
E D. Roxita por sua vez, contou-me, na primeira entrevista que fiz com ela (em
fevereiro de 2009), que não concordava com a pajelança de Zeneida, dizendo que “aquilo não
é pajelança”.
Zeneida Lima falou algumas vezes nas entrevistas sobre as perseguições que sofreu
anos atrás, comentando, inclusive, que descreveu tudo em seu próximo livro que será
publicado (a continuidade do “Mundo Místico...”). Ela conta o seguinte:
113
[...] menina foi 300 pessoas aqui na minha porta pra me matar, pra me matar
mesmo. Com tocha de fogo, terçado, machado. [...] tá tudinho no livro, veio
polícia, veio tudinho pra cá. Invadiram, quebraram meu quarto pra ver se
tinha alguma coisa subterrâneo... Daí eu quero que tu leia, porque tu vai
ver... E hoje em dia todo mundo diz “ah dona Zeneida...”, sabe? E eu não
tenho raiva de ninguém, não guardo ódio de ninguém, eu não guardo raiva,
sabe, eu não tenho esse negócio de guardar raiva... Cada um dá o que tem,
né? E eu digo assim, a pior coisa que tem é o cego. É aquele que tem olhos,
mas não enxerga. E essas pessoas que fazem isso é porque ainda não estão...
é.... evoluída né, pra enxergar como eu enxergo, o mundo né?
Ela conta que sofreu perseguições tanto de parte da população, como da polícia e das
igrejas (católica e protestante). Esse relato parece se referir ao período em que D. Zeneida foi
acusada por parte da população de Soure pelo desaparecimento da menina, filha do prefeito da
época, e como foi mencionado anteriormente, nada foi provado pelas investigações e o caso
foi encerrado. Provavelmente é em razão dessas perseguições que D. Zeneida seja uma pessoa
tão reservada.
Famosa em outros estados (sobretudo da região sudeste) e quase desconhecida na
própria cidade, D. Zeneida é uma figura contraditória, polêmica, mas ao mesmo tempo
intrigante e carismática. Apesar de dividida entre a hostilidade e a empatia da população de
Soure, esta pajé continua erguendo a bandeira da ecologia e de uma pajelança “marajoara”,
situada entre a tradição e a modernidade. Uma pajelança herdada, de culturas antigas, mas
também reinventada, como todas as demais pajelanças, e como todas as outras expressões
religiosas. Pois sem o constante processo de reinvenção e adaptação, não há cultura, e
tampouco religião.
114
Este prenúncio indica que um indivíduo possui o dom de ser pajé e é muito
conhecido e observado por vários pesquisadores, dentre eles Galvão (1955) e Maués (1990).
O segundo sinal ocorreu no sétimo mês de gravidez, durante uma viagem de barco
para Breves em que Maria José (ou Zezé, como também é chamada), Guiomar, Gumercindo e
Pedro (alguns conhecidos seus) pretendiam visitar um casal de amigos, cujo filho havia
115
quarto as abelhas agitaram-se desfazendo o casulo, e de uma só vez levantaram voo pela
janela (LIMA, 2002). A parteira examinou a criança e constatou que as abelhas não a haviam
ferrado.
Posteriormente a isso, outros acontecimentos estranhos teriam ocorrido ao longo da
vida de Zeneida, ora com características amistosas e amigáveis ora perigosas e hostis, mas
sempre misteriosas. Ela relata que muitas vezes ficou seriamente doente, e apenas conseguia
melhorar com a ajuda de um curador ou pajé, que receitava banhos e outros remédios à base
de plantas.
Assim como aconteceu com a pajé Roxita, Zeneida Lima também foi levada por
encantados para o mundo que habitam. Entretanto, sua experiência foi bem diferente. Quando
tinha onze anos de idade, ela, acompanhada de seu irmão, sua mãe e a empregada foram na
mata, nas redondezas da fazenda que residiam para apanhar açaí. Quando estava um pouco
afastada dos demais, sentiu um vento frio soprar sobre ela, e subitamente viu diante de si três
seres semelhantes a humanos, que tinham a aparência de serem dois homens e uma mulher.
Zeneida descreve que:
Começou a sofrer crises de choro, gritos, risos, debatia-se e queria sair correndo para
a floresta. Características do fenômeno conhecido em alguns lugares da Amazônia como
corrente-do-fundo, a qual todos os indivíduos que nascem com o dom sofrem antes de se
tornarem pajés. Zeneida Lima só melhorou quando levaram mestre Elpídio, um pajé, para vê-
la, que afirmou que a menina havia sofrido flechada de Anhangá. Ele também explicou que
Zeneida tinha o dom de ser “curandeira”, e não podia entrar na mata ou atravessar rios e
igarapés na lua minguante, pois “é nessa lua que as resmas [que podemos entender como
“energias negativas”] de Anhangá se espalham, ela tinha de fechar o corpo desde jitinha para
que não acontecesse isso” (LIMA, 2002, p. 145). Apenas um ritual de pajelança poderia livrar
Zeneida Lima da flechada de Anhangá, mas esse ritual só pôde ser realizado três dias depois,
pois era uma Sexta-Feira Santa, e em dias santos não se realiza pajelança.
A postura de respeito dos pajés perante os dias santos católicos pode ser uma
indicação de que a maioria dos curadores se declara católica, como observa Galvão (1955) e
Maués (1990), e como constatei também em Soure. Mas, além disso, pode ser entendido
como uma submissão culturalmente estabelecida, do catolicismo como sendo “superior” à
pajelança, e realizar rituais de cura ou encantaria em dias santos (como a Sexta-Feira Santa e
o Natal) pode ser considerado um desrespeito para com Deus, o que implicaria em grave
pecado.
Essa visão sacralizada dos dias santos é percebida também nas religiões afro-
brasileiras, como observou Vergolino (1987, p. 59) nos terreiros de Belém e afirma que “não
se trata apenas de uma justaposição [de religiões ou crenças religiosas], mas que, de fato, os
terreiros assimilaram e reinterpretaram esse calendário [cristão]”.
Maués (1990) afirma que os pajés caboclos costumam se definir religiosamente
como católicos, e não como seguidores ou líderes de uma religião ou culto de pajelança. Na
realidade, ser pajé é muito mais uma função social e espiritual do que uma devoção ou
pertença religiosa. Entretanto, observa-se que Zeneida Lima não se identifica como católica, e
sim como pajé, demonstrando uma intencionalidade de afirmar em si uma tradição cultural, de
acordo com ela, indígena marajoara. E mais do que isso, a pajé procura desvincular suas
práticas e crenças do catolicismo popular, reverenciando não Santo Antônio ou São Sebastião,
tão adorado e respeitado por diversas comunidades amazônicas, mas sim o Vento, os
Caruanas, o Girador, a Mãe Terra, dentre outras deidades (LIMA, 1991; 2002), e tudo dentro
de um discurso que defende a “pureza”, a autenticidade e a ancestralidade de sua pajelança.
118
Mas eu nunca misturei a pajelança sabe? O povo sabe pelo seguinte, porque
quando eu lancei o meu livro, ninguém falava de pajelança, e aqui no
Marajó, todo mundo tinha horror quando falava da pajelança, diziam que era
coisa de feiticeiro. Então eu fui e escrevi, mas eu não escrevi pra fazer
sucesso, eu escrevi pra deixar pras futuras gerações o que era a pajelança
cabocla. Ela só trata de cura... Não tem nada de negócio de macumba, não
tem nada de farofa... Não tem nada de nada. É tudo de ervas, de seiva... Só
isso, entendeu? Oito horas da manhã, a hora que o sol nasce, hora que o sol
senta, então nesses horários era tudo que a gente via as energias entendeu?
Sempre procurando pelo norte, sul, leste, oeste... Qual o vento que vem dali,
se vem detrás, do norte, ou do sul, entendeu? Então a gente está ligada
nessas coisas todas, a gente não tá ligada em coisa de macumba... de
frango... Mas não sou contra nada disso. Cada um tem o seu ponto de vista.
Agora eu sou contra deles fazerem uma salada, às vezes eles são pajé, daí
eles são umbanda com candomblé, e tudo isso pra quê? É pra ganhar
dinheiro. E na pajelança não tem dinheiro. Não cobra nada, não cobra, de
maneira nenhuma.
etapa é quando o pajé viaja, simbólica e misticamente, para o fundo das águas, como descreve
Zeneida Lima (2002, p. 150):
Ele parte ao encontro do peixe de sete asas para a troca de energias. Seus pés
são colocados sobre a areia molhada com água do mar. Ao retornar do
transe, sua cabeça é molhada com a mesma água, como símbolo de seu
retorno ao mundo dos mortais.
necessárias a serem feitas pela pajerana, ou seja, aquela que vai ser pajé (LIMA, 2002), que
deve seguir uma rigorosa alimentação, tomar nove banhos de ervas, sendo um a cada mês na
lua crescente, durante nove meses, e não deve olhar para a lua cheia, até o dia do ritual de
iniciação. O seu processo de formação como pajé teria durado um ano e dezessete dias,
durante o qual aprendeu com seu mestre sobre os rituais da pajelança (ou pajeísmo, como ela
também denomina), o mundo dos caruanas sob as águas, as sete cidades encantadas, as
divindades36, como o Girador, Patu-Anu, Auí, Anhangá, e outros conhecimentos.
Figura 60
A pajé Zeneida Lima com seus instrumentos de cura (Fonte: <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em
19/10/2012).
O pajé deve seguir diversos preceitos e interditos ao longo de sua vida. E quando o
pajé é do sexo feminino, mais interditos são somados as suas práticas de cura, principalmente
relacionados ao ciclo menstrual.
Zeneida afirmou em entrevistas não ter sofrido discriminação pelo fato de ser
mulher, mas pelo fato de ser pajé, tendo em vista que a pajelança ainda é uma prática
marginalizada em nossa sociedade. Em entrevista ela reclamou de ter sido alvo diversas vezes
de perseguição e preconceito, sobretudo em Soure, por parte da população e principalmente
das igrejas (católicas e protestantes). Como ela explica em seu depoimento:
36
Embora não sejam denominados dessa forma no livro e na fala de Zeneida, esses seres apresentam de fato
caráter e status de divindades.
121
Uma vez quase me mataram bem perto do mercado, foram três meninos me
jogando cada pedra enorme, me escondi atrás de uma árvore que tinha lá,
tava com a dona Dora, uma senhora, e ela começou a gritar, daí o pessoal
começou a chegar aí eles correram. Mas tudo mandado por outra pessoa. Eu
ia fazer pajelança, aí eles ficavam tudo escondidinhos no mato sentado pra
escutar, porque se cantasse alguma coisa que não falasse em santo aí eles
atacavam, então tinha que cantar e botar santo no meio, por exemplo, aquele
cântico em português que fala assim, é pra fechar até as cordas:
Daí eu tinha que cantar assim, porque eles queriam me apedrejar, me matar:
O preconceito que sofria, portanto, parece ser ou ter sido relacionado com a forma
em que ela praticava a pajelança. Para evitar que sofresse discriminação ou ataques de
intolerância, Zeneida “tinha que cantar e botar santo no meio”, ou seja, associar a pajelança ao
catolicismo, para que fosse aceito pela população.
Zeneida Lima também relata que durante o período em que estava menstruada não
poderia realizar pajelança, pois seu corpo estava impuro para receber os caruanas, sua
alimentação deveria se basear somente em peixe, e só poderia beber água três vezes no dia.
Ela também não poderia ter relação sexual durante a lua cheia. Caso ela não seguisse essas
regras, correria o risco de perder seu poder de cura, como ela explica:
Quando eu menstruava, quando eu tinha marido eu não podia fazer sexo com
o marido na lua cheia. Não podia fazer pajelança quando tava menstruada.
Meu corpo não estava puro para os caruanas. Então não tinha relação nem
fazia pajelança. Na lua cheia não tinha menstruação, mas se vinha na lua
cheia não podia também. Aí eu me alimentava só de peixe, mas só da parte
debaixo, não pode comer a parte da cabeça. Então tinha isso, e eu só bebia
água três vezes no dia. Quando passava aí acabava, fazia tudo dentro do que
o meu mestre me ensinou, pra mim não perder o meu poder de cura
(Entrevista em julho de 2010).
A pajelança para Zeneida (2002) é um culto oriundo dos indígenas, repassado aos
caboclos e que hoje, em nossa civilização “são as últimas marcas de um culto em vias de
122
extinção” (LIMA, op. cit., p. 16), pois estaria cada vez mais difusa entre elementos de outras
religiões. Ela alega que seus saberes e práticas seriam a sobrevivência de um culto
originalmente indígena das tribos do Marajó. Em entrevista, realizada em julho de 2010, a
pajé argumenta que a pajelança exercida por ela consiste na “pajelança marajoara”, que difere
da pajelança cabocla, que para ela é provinda do Maranhão. Em sua concepção a pajelança:
Todos nós, todos os viventes da Terra, tem de tá equilibrado dentro dos três
reinos da natureza, o vegetal, animal e mineral. Então quando ele passa de 1
a ponto 9... de 1 a 9, então se ele tiver no reino animal com 2, no outro 3, no
outro 5, ele tá desequilibrado, então perde dinheiro, perde emprego, briga
com a mulher, não há respeito e daí aquele rolo todo na família (Entrevista
de julho de 2010).
O pajé, portanto, é responsável por tratar deste desequilíbrio no indivíduo, por meio
de banhos e outros procedimentos. Para saber se as energias ou os reinos estão em equilíbrio
ou não, Zeneida realiza um pequeno ritual chamado de “conferência das energias”, que é
descrito com melhor detalhe mais adiante.
O pajé, para Zeneida Lima, não é somente o instrumento dos caruanas e a ponte de
ligação com o mundo dos encantados, mas também um defensor e guardião da natureza. Daí a
razão do trabalho que desenvolve com a educação e a ecologia.
No livro “O mundo místico dos caruanas da Ilha do Marajó” (2002), Zeneida Lima
descreve a criação do mundo, conforme teria ouvido de seu mestre. Segundo ela, o mundo dos
caruanas foi criado pelo Girador, a divindade primeva que possui a forma de uma grande
igaçaba ou pote. Sobre águas primordiais pairou o Girador, do qual surgiu Auí, um ser altivo
123
e luminoso, e seu povo, para o qual construiu sete cidades encantadas sobre as águas. Eles
viviam em harmonia com a Natureza, até que um dia Auí transgrediu uma regra ditada pelo
Girador, que não deveria se aproximar de lugares com desequilíbrios naturais. Auí avistou um
redemoinho nas águas, provocado por Anhangá, tido como o “resto da natureza”, e ao olhar
com mais atenção percebeu que o fundo das águas era feito do mesmo material que o Girador,
o barro. Mergulhou em direção ao centro das águas e isso provocou um desequilíbrio na
ordem natural. O que estava em cima foi para o fundo das águas, e o que estava embaixo
emergiu à superfície.
Assim criou-se a terra firme, e Auí e seu povo passaram a habitar o fundo. O Girador
então pairou no ar e lançou sobre a terra sementes da vida que originaram todos os seres
viventes. O corpo de Auí foi despedaçado pelo redemoinho, e deu origem a várias coisas na
natureza e também a seres mágicos, como o Peixe de Sete Asas coloridas, que conduz a alma
dos pajés aos mistérios das Sete Cidades Encantadas. Além destas deidades, existe também
Patu-Anu, criado pelo Girador para governar os caruanas e realizar transformações nas
cidades sob as águas, depois da imersão ao fundo.
Outros mitos como este são contados na autobiografia da pajé Zeneida Lima, e mais
especificamente em outro livro que ela escreveu, intitulado “Lendas da Amazônia” (2000).
Esses mitos são novos e desconhecidos na literatura mitológica da Amazônia, ao mesmo
tempo em que contêm, como no mito de criação, elementos padrões existentes em muitas
mitologias, como a água sendo o princípio de toda a existência, uma divindade primordial e
criadora do mundo, e ao mesmo tempo distante deste, que Eliade (2001) descreve como sendo
o deus “otiosus” (deus ocioso), a ordem ou harmonia natural, a transgressão dessa ordem, a
punição e “queda do paraíso”, o sacrifício do gigante ou de uma figura mítica que tem seu
corpo repartido, originando diversas coisas da natureza (ELIADE, 2001; CAMPBELL, 1990).
Segundo esse mito de criação (LIMA, 2002), Patu-Anu criou nas sete cidades
encantadas sob as águas algumas coisas para os caruanas, dentre elas estão a Escadinha de
Coral, a Casa de Espuma, a Fonte de Cura e Sabedoria, e a Lírica do Mar. Como Zeneida
Lima explicou, em entrevista de julho de 2010:
Na pajelança praticada por Zeneida Lima, essas coisas estão profundamente ligadas
aos caruanas e, de certa forma, também ao pajé. O Peixe de Sete Asas seria aquele que faz o
transporte da alma do pajé entre o mundo dos encantados e o mundo dos viventes. A Lírica do
Mar, por sua vez, é, nas palavras de Zeneida:
Em outras palavras, a Lírica do Mar seria uma espécie de meio de comunicação entre
os caruanas e os “viventes”, e mais especificamente, o pajé.
A Escadinha de Coral está relacionada ao processo de evolução espiritual e de poder
do caruana. Ela possui dezesseis degraus, e em cada degrau se encontra um caruana, como
explicou Zeneida em entrevista. Nessa concepção de pajelança, quanto mais o caruana desce
um degrau, mais ele evolui, pois se aproxima das águas profundas, ou seja, se aproxima do
princípio criador da vida, a Fonte, o Girador. Como explica Zeneida Lima:
A Casa de Espuma é o lugar, segundo Zeneida, para onde os encantados são levados
quando acabam de se encantar, e:
125
Da Casa de Espuma eles vão pra Escadinha de Coral, daí tem todo um ciclo
que eles fazem ali pra poder, essas energias vão se perdendo, vão mudando
até eles chegarem em Caruanas, e se transformarem em energia. [...] é donde
eles vão perdendo as energias e vão passando, as espumas, passando, até eles
se aprontarem, entendeu? Perderem todas as energias humanas e ficar só
com um lado da energia, só uma parte que fica dele, daí eles são invocados
pelo pajé... Essas energias elas ficam em cima das águas (ibdem).
Por meio desse relato podemos entender que a Casa de Espuma é o lugar para onde
vão os seres humanos que acabam de se encantar, para que sejam purificados ou “aprontados”
e estejam aptos a tornarem-se caruanas, que ela define como “energias das águas”.
A Fonte da Sabedoria e Cura é guardada pelo caruana Norato Antônio, que a
circunda, e nas palavras de Zeneida, “é de lá que ele vem, ele é o mestre”. Sobre esse caruana,
ela explica que foi o primeiro pajé caboclo, o primeiro que herdou o conhecimento dos índios.
E acrescenta que “[...] ele é mestre e contra mestre, ele que vem na hora da pajelança, ensina,
sabe tudo quanto é ervas, todos os remédios que é feito com as ervas, é ele que passa as
receitas” (Entrevista em julho de 2010).
Há também o “Mistério de Assum”, que surgiu no tempo primordial, durante a
criação do cosmo, e Zeneida explica que está relacionado a Anhangá, como conta:
Nessa cosmovisão, o pajé é visto como um parceiro dos caruanas e das divindades,
pois, assim como eles, o pajé é responsável por manter o equilíbrio no cosmos, harmonizando
o caos e a ordem, o ser humano e a natureza.
5.3. Os Caruanas
Os caruanas, de acordo com Zeneida Lima, são energias das águas. Ela explica que:
O domínio que ela se refere é o local onde reside cada caruana, ou seja, cada praia,
rio, igarapé é habitado por um ou mais encantados. Os caruanas são os encantados das águas
doces, e possuem caráter “positivo”, enquanto que os encantados das águas salgadas são
denominados de caruás, possuem caráter “negativo” e geralmente efetuam malinezas, mas
também têm o poder de curar (LIMA, 2002).
Os caruanas podem ter a forma tanto de animais (como borboleta, jacaré, cobra)
quanto de seres humanos, que em determinado momento de sua vida se encantaram, ou seja,
não morreram, mas desapareceram em um rio ou mata, e integraram-se de uma forma
misteriosa àquele lugar ou à algum animal, associado a sua história de vida. Por exemplo, o
caruana Raimundo Pavão que se encantou nas proximidades da praia Cajuúna em Soure.
Zeneida Lima (2002) escreve que esse caruana era um pescador e que um dia enquanto estava
em sua embarcação nessa praia, provavelmente durante seu ofício de pesca, avistou um pavão
sobrevoando seu barco. A ave deu algumas voltas no ar e se afastou para pousar então em:
[...] um areal que aflorava das águas, surgido do nada. Tocando o pequeno
barco para o areal, Raimundo notou que lá estavam muitos índios. Remou
firme para lá e diante de seus olhos tudo desapareceu. A partir de então,
Raimundo encantou-se assumindo as características de seu último estágio,
ou seja, a de um pavão, tendo por missão proteger as três praias; Pesqueiro,
Araruna e Cajuúna (LIMA, 2002, p. 84).
Em entrevista feita em julho de 2010, Zeneida Lima contou que é auxiliada por
diversos caruanas, entre eles estão Norato Antônio, Raimundo Pavão, Raimundo da Barca,
Raimundinho do Cajueiro e Pitanga Azul. Além desses existem um grupo de dezesseis
caruanas, que compõem a Escadinha de Coral, e que a auxiliam na pajelança de forma direta
ou indireta. Esses caruanas são considerados mais evoluídos, e alcançam um status
semelhante ao de divindades.
37
Extraído do site <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 19/10/2012.
127
[...] essa energia [caruana], ela tem um significado, ela tem um óleo, uma
casca ou alguma raiz que representa, então você pode utilizar na sua bolsa,
para trazer boas energias que tu desejas pra alguma coisa (Raul, em
entrevista realizada em julho de 2011).
.
Raul também revela que Zeneida pretende escrever um livro contendo essas
informações sobre os caruanas, suas funções e elementos relacionados, e também que ela e
seus familiares pretendem um dia transformar essa área da fazenda em um espaço de
exposição sobre os caruanas e a pajelança “marajoara”.
As onze estátuas ficam espalhadas pelo espaço da fazenda, sendo que as primeiras a
serem avistadas são a do caruana Beija-Flor e o caruana Churuíra. O primeiro é associado às
aves e, em especial, ao beija-flor, e parece ser um dos caruanas mais importantes na pajelança
de Zeneida. É a única figura que possui “pontos” no chão ao seu redor, e que segundo Raul
128
Figura 61
Figura 62
Em seguida, Raul mostrou-me as imagens dos caruanas Jacundá e Jandiá, que ficam
uma de frente para a outra, e segundo ele “são as primeiras energias que são recebidas no
fundo das águas (...), eles têm as chaves, eles que abrem, assim, as portas”. As duas estátuas
são semelhantes, e possuem a forma de peixes (e não poderia ser diferente, já que jacundá e
jandiá são tipos de peixes), e ambas têm as mãos elevadas para o alto, segurando uma esfera
com uma ponta em cima. Seu corpo é cercado por pontas, que parecem espinhos, e segundo
Raul essas pontas simbolizam a ligação entre o mundo das águas e mundo da superfície, ou
entre o mundo espiritual e o material.
130
Figura 63
38
Raul utiliza mais o termo energia do que caruana durante suas explicações.
131
Figura 64
Raul explica que esse caruana é o que mais está relacionado ou próximo ao pajé, no
caso a Zeneida Lima, e tem a função de indicar qual o melhor momento para “trabalhar”, isto
é, curar, realizar pajelanças. Segundo Raul, não é em toda fase lunar que Zeneida faz
pajelanças, e sim apenas no período da lua crescente até o primeiro dia da lua cheia.
A imagem do caruana da Lua, como se observa na foto, segura em seu único braço
uma esfera, que representa a lua cheia, e contém alguns símbolos, que são três traços curvados
e um círculo, que representam a energia caruana, segundo Raul, e um círculo com um traço no
interior, mas Raul não soube explicar o significado desse símbolo, assim como a alça que há
no topo da esfera. Ele afirma que há certos conhecimentos que Zeneida não transmite e que só
ela compreende essa simbologia. A face do caruana da Lua apresenta o desenho de uma
espiral e lembra um caracol, que em diversas mitologias está associado simbolicamente ao
mar ou a água primordial (ELIADE, 2002). A estátua é acompanhada por alguns objetos que
são identificados com os próprios objetos ou instrumentos de um pajé. Nas extremidades
seriam duas cuias, no meio um paneiro e ao lado um maracá. A figura entre o maracá e o
paneiro é chamada por Raul, e Zeneida, de Caruanaís, e na estátua do caruana da Lua essa
figura encontra-se em duas posições, uma com os “braços” voltados para cima e outra, para
baixo, sendo que esta última fica em frente ao caruana da Lua.
132
Figura 65
Raul explica que o Caruanaís representa o vivente, o ser humano, e essa figura
representaria uma cerimônia ou ritual realizado pelos antigos pajés indígenas do Marajó, mas
que hoje não é mais realizada. Raul conta que Zeneida teria ouvido de seu mestre a história
sobre o caruanaís, e relata que:
exato do caruanaís, e infelizmente, não houve oportunidade depois para conversar com a pajé
Zeneida sobre isso.
Outra imagem de caruana que há na fazenda é a do caruana Papagaio, que, de acordo
com Raul, é o protetor da fala, da comunicação, do som e responsável por “espalhar as
informações”. Sua imagem é acompanhada por um objeto que parece ser um instrumento de
som, um tambor, talvez, e suas mãos estão posicionadas sobre esse “tambor”, como se ele
estivesse tocando tal instrumento.
Figura 66
Na entrevista realizada com D. Zeneida em julho de 2010, ela cantou uma doutrina
que faz referência a este caruana, talvez seja a própria doutrina dele:
Essa doutrina indica que o caruana Papagaio também é responsável por fazer a ponte,
a comunicação, entre os caruanas e o pajé, entre o mundo encantado e o mundo humano.
Outro caruana é o Lírio do Mar, sobre o qual Raul explica que:
134
Figura 67
A imagem deste caruana não lembra muito bem a de um lírio, mas se aproxima mais
a de um pássaro. Talvez ele esteja relacionado à Lírica do Mar, pois os termos são parecidos
(Lírio do Mar / Lírica do Mar), e nesse caso, é possível que esse caruana seja o responsável
pela Lírica do Mar. Se observarmos a foto acima, notaremos que o caruana parece estar
olhando fixamente para o objeto a sua frente, que pode ser a Lírica do Mar.
O caruana Iguacuí está relacionado com a linha do fundo, ou seja, com as curas. Sua
imagem possui um pote e acima deste, há um objeto, uma lua minguante ou lua nova.
Simbolicamente, a lua nova representa renovação, renascimento e cura (ELIADE, 2002). O
pote, fechado, talvez seja um símbolo de mistério e conhecimentos ocultos dos caruanas e dos
pajés.
135
Figura 68
Figura 69
A imagem do caruana Pingo D’água foi a mais difícil de fotografar, pois estava
distante e cercada pelo mato alto. Essa “energia”, como Raul define, está presente no orvalho
da manhã, contido nas flores e folhas da floresta, e nas pequenas gotas de chuva. Possui um
corpo mais ou menos humano, mas não tem braços e sim algumas pontas, insinuações, talvez
gotas ou pingos, saindo de seu tronco, e sua cabeça é esguia e fina, como de uma garça.
Figura 70
Figura 71
5.4. Os Rituais
Durante minhas pesquisas de campo, de 2009 a 2011, não foi possível presenciar
uma pajelança realizada por Zeneida Lima. Ficava sempre a espera de um telefonema ou e-
mail com uma notícia de que haveria uma pajelança, mas Zeneida ou seus familiares nunca
me ligaram ou responderam meus telefonemas e e-mails quando eu solicitava informação
sobre um ritual de pajelança. O mais próximo que consegui chegar foram descrições sobre os
rituais em relatos durante entrevistas realizadas em julho de 2010 e julho de 2011. É possível
que Zeneida nem realize mais rituais de pajelança, devido sua idade avançada, ou que ela
simplesmente estivesse evitando que eu presenciasse seus rituais.
Com base em seus depoimentos, Zeneida Lima afirma que ao longo do ano são
realizados alguns rituais, como o ritual da Mãe-Terra, para curá-la e alimentá-la; o ritual de
Anhangá, que ocorre geralmente em 24 de fevereiro ou mais precisamente na data em que
ocorre o alinhamento da Terra, do Sol e da Lua. Zeneida explicou-me que esse é um ritual
secreto, pois:
São rituais secretos porque o pajé... algumas pessoa veem, mas é com urtiga,
sabe? Então o pajé se rola por cima da urtiga todinha, o servente bate o
corpo do pajé tudo com urtiga. Então é um ritual, vamos dizer, pesado.
Porque Anhangá, a energia de Anhangá, é pesada. Ele faz isso, o servente do
pajé faz isso, bate no pajé, pra acalmar essas energias na Terra, entendeu?
Pra que essas energias, não haja tanto desgastes [desastres], tantas coisas
ruins, ele acalma as energias dela. Então ela só acalma com esses rituais
(Zeneida Lima, em entrevista de julho de 2010).
E por fim os rituais de cura, chamados por ela de “pajelanças”, e só são realizados
em último caso, quando não consegue curar o doente por meio de outros procedimentos,
como banhos, chás, “transmissão de energias” etc. Antes de realizar uma pajelança, Zeneida
explica que precisa fazer um ritual de “conferência das energias” ou “ritual da cumbuca”,
como ela relata:
139
Daí eu vou e dou uns enrolados, com três elementos da natureza, é uma
pedra, um besouro e uma semente, aí você pega e depois fica dentro da
cumbuca; essa cumbuca é preparada para fazer esse tipo de conferência das
energias, depois disso eu pego os enrolados e abafo essa cumbuca com os
enrolados, numa folha sagrada que ela tem o poder de reter essas energias
ali. Daí eu levo pro tempo e deixo três dias, depois de três dias eu vô e tiro
do tempo a cumbuca, tiro todas as folhas que eu botei, os enrolados de folha
que eu botei, e pego os elementos e vô olhar e vejo a coloração. Às vezes
eles ficam vermelhos, tem outros que ficam esverdeados. Tem vezes que tá
tudo certo, você tá certa, suas energias estão certinhas. A partir daí é que eu
mando... eu vejo o reino que tava... porque um representa a terra... a partir
daí é que eu posso mandar as energias pra te curar (entrevista de julho de
2010).
A partir desse processo, Zeneida decide como será o tratamento de cura na pessoa:
Eu vou botar uma cumbuca toda furadinha assim na sua cabeça, adonde eu
deixo uma fumaça, boto uma fumaça com umas ervas propícias e daí você
começa a conversação, daí eu venho e converso com você também. Aí eu
converso sete vezes, quatorze vezes e vinte e uma vez com você, daí você se
solta até você contar o problema que você tem e fica boa.
fazendo... você não enxerga, mas invisivelmente vai se fazendo uma roda,
um círculo, adonde vai esfumaçando, as energias. Aquela roda que vai se
fazendo ela vai protegendo as guias pra se fazer a cura. Daí a gente canta e
vai se fazendo um outro círculo fora daquele, protegendo também. Daí
quando chega a hora da cura quando vem as energias do povo de Auí, aí a
gente faz a vibração em cima do doente (entrevista em julho de 2010).
Nos rituais Zeneida utiliza alguns instrumentos sagrados, que são o maracá, que deve
ser de três tipos: o maracá da cura (que contém penas da asa da arara azul), o maracá para
marcar os ritmos da dança e dos cânticos (com penas do rabo da arara vermelha), e o maracá
de espinho (enfeitado com espinhos e penas amarelas) que serve para afastar Anhangá nos
rituais de cura, pois “quando ele bate esse maracá de espinho é como se formasse uma cerca
de espinho, impedindo a energia de Anhangá” (Zeneida Lima, em entrevista de julho de
2010). Os maracás, e em especial o da cura, deve ser preparado ritualisticamente antes de ser
utilizado. Segundo Zeneida:
[...] ele é envolvido todo na cera da abelha e ele fica ali, depois na outra lua é
que você tira pra consagrar ele na pajelança, daí passa ele na fumaça das
resinas sagradas e daí é que você vai bater ele na pajelança, depois que já
incorporou todas as pedrinhas, as sementes dentro dele. [...] É, são sementes
sagradas, é passado de um pajé pra outro pajé, entendeu? É pedrinhas do
leito do rio (idem).
Há também as cintas, amarradas no corpo da pajé; um cipó, que ela utiliza para
delimitar um círculo sagrado; um arco e flecha; cigarros de tauari; cuias ou cumbucas
contendo água e outras coisas (segundo o depoimento de Zeneida, em entrevista de julho de
2010).
As pajelanças seriam realizadas geralmente na fazenda de Zeneida, no espaço
particular onde fica uma casa (que estava em reforma) e algo semelhante a uma oca indígena,
na qual seriam realizados os rituais de pajelança.
141
Figura 72
Espaço onde seriam realizados os rituais de pajelança de Zeneida Lima (Foto: Faro, 2011).
39
Em uma das entrevistas com Zeneida, ela me afirmou que já estava “se despedindo”, dando a entender que
estava parando aos poucos de realizar pajelanças, devido a sua idade avançada.
142
mesmos caruanas (Beija-Flor, Jacundá, Lua, Ventania etc.). A não ser que de fato as antigas
tribos marajoaras tivessem essa forma de xamanismo, o que não podemos afirmar, pois não há
registros suficientes sobre essas culturas, infelizmente, há anos desaparecidas.
Hobsbawn (op. cit) também afirma que só ocorre a necessidade de inventar tradições
quando sua forma genuína já está em processo de degeneração, e que “as tradições inventadas
são altamente aplicáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente recente” (p.
22). Essa “inovação histórica” pode ser entendida como o momento histórico, social e cultural
em que nossa sociedade está vivendo, isto é, a mudança de paradigma, a consciência
planetária, que envolve os mais diversos setores da sociedade, desde a ciência, arte, educação,
política, até a religião. Um momento histórico em que mais e mais expressões religiosas
surgem ou se renovam buscando inspiração nas tradições culturais antigas ou pré-cristãs da
humanidade, valorizando a relação harmoniosa entre ser humano e natureza. Nesse contexto,
a pajelança praticada por Zeneida Lima surge defendendo esta relação, e ao mesmo tempo
afirmando que o divino encontra-se na natureza. Com isso, esta pajé quer dizer que ao se
relacionar com a natureza, o ser humano estará se relacionando também com o divino. Tal
crença não se encontra muito forte na pajelança cabocla como um todo na Amazônia, como
podemos verificar em Capanema/PA, em um estudo de Silva & Pacheco (2011) sobre
encantaria nesse município. Os autores citam uma rezadeira (dona Deuza) que dedica muito
do seu ofício de cura para expulsar os encantados, em especial as Oiaras ou mães d’água. Em
um trecho de seu depoimento, ela afirma que certa vez derrubou ou matou os açaizeiros de
seu quintal depois de derramar uma mistura de cachaça e alho preto no solo, e segundo ela os
açaizeiros eram as casas das Oiaras ou a porta por onde elas transitavam do mundo encantado
(o Fundo) para o mundo humano. Como fica evidente no artigo desses autores, a relação entre
a curadora e os seres encantados se configura de forma bastante conflituosa, situação diferente
da que é apresentada por Zeneida Lima, que busca uma relação harmoniosa, ecológica, com a
natureza e os encantados.
O intuito deste estudo não é afirmar se Zeneida é ou não pajé, ou se sua pajelança é
tradicional ou não, mas demonstrar que a pajelança cabocla em Soure apresenta diversas
facetas e características, sendo todas válidas do ponto de vista cultural e religioso. E é
justamente isso que faz a diversidade da Amazônia ter sentido, a diversidade de saberes,
conhecimentos, culturas e expressões religiosas. Penso que o mais interessante (e desafiante)
a ser observado e analisado atualmente pelos estudiosos é como esses saberes, culturas e
expressões religiosas se relacionam e se reinventam diante da modernidade, e compreender
que dessa reinvenção surgem novas significações para antigos e novos anseios do ser humano.
143
Considerações Finais
Referências
BARROS, Maria Nazareth Alvim de. Uma Luz sobre Avallon. São Paulo: Mercuryo, 1994.
BOPP, Raul. Cobra Norato. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
BRAGA, Ana et al. Entre índios aruãns, colonizadores europeus e o caboclo marajoara:
revisitando Chaves. Belém: UNAMA, 2003.
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Glossário
Auí: na pajelança de Zeneida Lima, é o ser luminoso criado pelo Girador (a divindade
primeva, criadora) que governava a princípio as cidades encantadas. Descumpriu a ordem do
Girador de não observar o que havia no fundo das águas e ao fazê-lo, inverteu a ordem do
mundo, o que havia embaixo subiu, e o que havia em cima desceu para as profundezas das
águas. Com isso seu corpo foi dilacerado e ao dividir-se deu origem aos três reinos da
natureza: reino animal, mineral e vegetal (aqui encontra-se um tema mítico universal, “o
sacrifício do gigante ou semi-deus”, segundo Eliade, 2001).
Anhangá: na pajelança de Zeneida Lima, é um ser caótico, nem maléfico nem benéfico, que
pude os agressores da natureza e aqueles que quebram o equilíbrio do universo. Vivia no
fundo das águas até emergir a superfície quando foi visto por Auí.
Caruana: Seres encantados que vivem no fundo das águas e florestas, e possuem poder de
cura e maldição (podem “malinar”). Chamados também de encantados, companheiros do
fundo, camaradas, guias, caboclos, povo das águas e gente do fundo. Um fato interessante é
que a expressão “caruana” parece ser utilizada somente no Pará, e em especial na Ilha do
Marajó. Podem assumir a forma animal, humana ou ambas, ou ainda serem invisíveis aos
olhos mundanos. Alguns caruanas foram pessoas que se “encantaram”, desapareceram
misteriosamente na mata ou nas águas. Para a pajé Zeneida Lima, a ideia de caruanas é
semelhante a esta, mas vai um pouco além, pois para ela caruanas são as “energias das águas”.
Encantaria: grande sistema de crenças e práticas, difuso e fluido como a água. Imaginário que
engloba diversas práticas religiosas, entre elas a(s) Pajelança(s) Indígena(s), Pajelança
Cabocla, Umbanda, Tambor de Mina e outras práticas de cura relacionadas aos encantados e
seu Mundo das Águas.
Malineza: termo que designa o ato de provocar intencionalmente ou não o sofrimento (na
forma de doenças de causa incomum ou supranatural) em pessoas. Encantados geralmente
“malinam” com humanos que perturbam sua morada (igarapés, matas, olhos d’água...) ou a
poluem, quando se sentem ofendidos ou por simples vontade de “malinar”.
O Fundo: como é chamado o lugar onde habitam os encantados, já que eles moram no fundo
das águas e das matas.
Pajé: Homem ou mulher que tem o dom de curar doenças de causa “comum” (exemplo: gripe,
dor de cabeça, dor de barriga, fratura etc.) ou “incomum” ou melhor, supranaturais
(provocadas por encantados ou humanos, exemplo: mau olhado, quebranto, “flechada de
150
bicho” etc.). Em alguns locais da Amazônia, a mulher sofre restrições em ser pajé, em outros
(como em Soure), não.
Patu-Anu: na pajelança de Zeneida Lima, foi criado pelo Girador para governar as cidades
encantadas no Fundo depois que Auí transgrediu a ordem. Ele teria criado várias coisas boas
nas cidades encantadas, como a Lírica do mar e a Casa de Espuma (que são explicadas neste
trabalho e são melhor descritas no livro autobiográfico de Zeneida Lima, “O Mundo Místico
dos Caruanas da Ilha do Marajó”, 2002).