1386 PB PDF
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DE LITERATURA EM TRADUÇÃO
Especial Rússia
CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO
2 Apresentação
Conselho Consultivo
Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográ-
fico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98).
Imagem da Capa:
Stalin as ‘David’ (2005, óleo sobre tela 208.3 x 167.6 cm). A obra, de um dos maiores nomes da “sots-art”, Leonid
Sokov (1941-), fez parte da retrospectiva do artista, Úgol zrênia (em português, “Ponto de vista”), no MOMMA
de Moscou, em 2012, quando chamou a atenção da editora deste número. As inúmeras brincadeiras que faz
com ursos, o símbolo nacional russo, com uma Marylin Monroe que acompanha Stálin em diversas situações,
ou um Lênin que se defronta com a clássica escultura expressionista de Giacometti “O homem que caminha”
compõem uma busca desenfreada do artista por desconstruir mitos. Como disse, em entrevista à revista “Afisha”,
“o mito pode ser tanto bom, como ruim. O bem e o mal são conceitos estéticos”.
Maio 2018
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 3
CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO
Anual.
Modo de acesso: <http://www.revistas.usp.br/clt>
ISSN 2359-5388-e
Editor Responsável
Prof. Dr. John Milton
Editora convidada
Marina Darmaros
Comissão Editorial
Álvaro Faleiros, Francesca Cricelli, Gisele Wolkoff, Magdalena Nowinska, Marina Della Valle,
Nilce M. Pereira e Telma Franco Diniz
Coordenação Editorial
Helena Rodrigues – MTb n. 28.840
Capa
Acqua Estúdio Gráfico
Revisão
Deyse Libano Heitor e Marina Darmaros
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 5
Sumário
Apresentação...............................................................................................................09
Era pós-soviética
Neide Jallageas
Terceira Carta de Shklóvski..............................................................................................79
Cássio de Oliveira
Moscou Feliz (Excerto).....................................................................................................82
6 Apresentação
Marina Darmaros
O ringue de Iúli Daniel................................................................................................... 109
André Nogueira
Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva.............................................................. 128
Rafael Bonavina
A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras................................................................... 188
Helder da Rocha
O Leão, de Evguéni Zamiátin........................................................................................ 198
Letícia Mei
Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski............................. 209
Odomiro Fonseca
Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o
Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias................................................... 250
Graziela Schneider
Mulheres, revoluções e missões......................................................................................... 269
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 7
Rússia Imperial
Natalia Quintero
Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer...................... 290
Diego Moschkovich
O Estudante, de A. Tchékhov........................................................................................ 326
Lucas Simone
O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski................. 371
Edelcio Americo
Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo............................................................... 421
8 Apresentação
Entrevista
Marina Darmaros
Entrevista com Susanna Witt......................................................................................... 487
Colaboradores.......................................................................................................... 511
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 9
Apresentação
Marina Darmaros
1 PERPETUO, Irineu Franco. Literatura na Rússia só é livre porque hoje ninguém mais lê, diz professor.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/10/1930585-literatura-na-russia-so-e-
-livre-porque-hoje-ninguem-mais-le-diz-professor.shtml
10 Apresentação
A imagem que estampa nossa capa, Stalin as David (2005, óleo sobre tela),
pintura de um dos mais renomados representantes da “sots-art”, Leonid Sokov,
também foi escolhida com o intuito de jogar luz sobre a literatura pós-Tolstói,
como ousamos chamar aqui o período revolucionário e soviético, em todas as
suas vertentes, e a literatura posterior a ela. Afinal, como notou Dobrenko, “sobre
o realismo socialista, é claro que continua parte importante da literatura russa
contemporânea, só que não mais como sujeito, e sim como objeto - retrabalhado
pela ‘soc-art’ [ou sots-art] na pintura e pelos conceitualistas na literatura”. E nada
mais explícito, neste sentido, que Stálin posando como o David de Michelangelo,
uniforme militar pendurado em uma árvore, cachimbo sobre o ombro. Uma grande
caricatura do realismo socialista que se transvestia de clássico, como o próprio
“vôjd” nu em pelo no pincel de Sokov.
Luana Chnaiderman de Almeida abre esta edição com emocionante
relato sobre o pioneiro das traduções russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-
2016). Divertido e leve, o texto é uma homenagem a seu avô, que moldou também
a figura da neta, escritora e professora de português.
Na sequência, Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli apresenta um ponto
de vista aprofundado sobre a tradução dos verbos de movimento russos que vai
muito além dos dicionários, citando como exemplos trechos de obras literárias de
Ilf e Petrof e Dostoiévski e suas traduções.
Em “A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução”, Denise
Regina de Sales verte ao português um texto desta escritora contemporânea,
nascida em 1965 e filha de um dos mais renomados autores infanto-juvenis so-
viéticos, Víktor Dragúnski. O conto “Os outros e a neve” faz parte da coletânea
“O segredo do camembert russo” (2015) e traz um recorte extremamente vívido e
sensível da Rússia atual.
Eloah Pina Pereira apresenta outro conto inédito em português, “Assassi-
nato no expresso Oriente”, de Dmítri Bykov (1967-), “um dos mais prolíferos – e
polêmicos – escritores russos contemporâneos”. A tradução comentada reproduz
a ironia e o humor do original, cheio de coloquialidade e intertexto soviético e
pop dos anos 1990.
Em “Contos selecionados de Evguêni Kharitónov”, Yuri Martins de
Oliveira expõe, também pela primeira vez em português, dois contos do escritor,
morto em 1981 e considerado o fundador da literatura russa LGBT moderna.
“Um morador escreveu um requerimento” é uma narrativa satírica a respeito da
burocracia soviética e “Traição-80”, conto póstumo com uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 11
“Nós”, Zamiátin (1884-1937) pediu licença a Stálin para emigrar em 1931, já que
toda sua obra estava proibida no país.
Letícia Mei apresenta, em “Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em
busca de Maiakóvski”, uma nova proposta em português para a primeira parte
do longo poema “Nuvem de Calças” (1915). A primeira e, durante muito tempo,
única tradução em nossa língua do poema foi assinada por E. Carrera Guerra.
Em “Aos kinocs do sul, Dziga Viértov” Luis Felipe Labaki introduz carta
escrita pelo cineasta Dziga Viértov (1896-1954) em março de 1925, quando ele
já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da
Rússia soviética. No contexto de relativa escassez de documentos sobre este tema,
a “Carta aos kinocs do sul” se torna especialmente interessante.
Em “Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre
o Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias”, Odomiro Fonseca
verte texto sobre o desconhecido escritor do realismo que viajou a pé pelas estradas
e confins de sua pátria estudando e captando a essência de sua população mais
vulnerável, os camponeses. Mesmo com o reconhecimento de grandes escritores
da época, Sleptsov (1836-1878) teve esquecida por mais de um século sua obra,
que hoje é resgatada internacionalmente.
Graziela Schneider apresenta, em “Mulheres, revoluções e missões”, tra-
dução inédita, direta do russo e comentada, do texto “Nossas missões”, publicado
por Aleksándra Kollontai (1872-1952) na revista “Rabótnitsa” apenas dois meses
depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem,
no Dia das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve
geral. A tradução tem o intuito, segundo Schneider, de “contribuir para recuperar
a expressão da mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na his-
toriografia e nas referências bibliográficas desse e de outros processos históricos”.
Em “A Revolução por outro olhar”, Márcia Pileggi Vinha traduz e co-
menta trecho do diário de Ivan Búnin (1870-1953), Dias Malditos. Após tradução
de trecho da obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do
tradutor, descrevendo questões como a opção pelo emprego de notas de rodapé
e contaminação do texto na língua de chegada.
Em “Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a
Kreutzer”, Natalia Quintero traz uma proposta de tradução direta do russo a
este elemento, que Tolstói (1828-1910) julgou tão importante à obra. A pesqui-
sadora também busca mostrar de que maneira o texto apresenta as respostas do
autor a questionamentos de leitores acerca da abstinência sexual pregada pelo
protagonista de sua novela.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 13
Boa leitura!
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 1
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Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográ-
fico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98).
Imagem da Capa:
Stalin as ‘David’ (2005, óleo sobre tela 208.3 x 167.6 cm). A obra, de um dos maiores nomes da “sots-art”, Leonid
Sokov (1941-), fez parte da retrospectiva do artista, Úgol zrênia (em português, “Ponto de vista”), no MOMMA
de Moscou, em 2012, quando chamou a atenção da editora deste número. As inúmeras brincadeiras que faz
com ursos, o símbolo nacional russo, com uma Marylin Monroe que acompanha Stálin em diversas situações,
ou um Lênin que se defronta com a clássica escultura expressionista de Giacometti “O homem que caminha”
compõem uma busca desenfreada do artista por desconstruir mitos. Como disse, em entrevista à revista “Afisha”,
“o mito pode ser tanto bom, como ruim. O bem e o mal são conceitos estéticos”.
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Acqua Estúdio Gráfico
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Sumário
Apresentação...............................................................................................................09
Era pós-soviética
Neide Jallageas
Terceira Carta de Chklóvski..............................................................................................79
Cássio de Oliveira
Moscou Feliz (Excerto).....................................................................................................82
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O ringue de Iúli Daniel................................................................................................... 109
André Nogueira
Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva.............................................................. 128
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A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras................................................................... 188
Helder da Rocha
O Leão, de Evguéni Zamiátin........................................................................................ 198
Letícia Mei
Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski............................. 209
Odomiro Fonseca
Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o
Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias................................................... 250
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Rússia Imperial
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Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer...................... 290
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O Estudante, de A. Tchékhov........................................................................................ 326
Lucas Simone
O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski................. 371
Edelcio Americo
Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo............................................................... 421
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Entrevista
Marina Darmaros
Entrevista com Susanna Witt......................................................................................... 487
Colaboradores.......................................................................................................... 511
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Apresentação
Marina Darmaros
1 PERPETUO, Irineu Franco. Literatura na Rússia só é livre porque hoje ninguém mais lê, diz professor.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/10/1930585-literatura-na-russia-so-e-
-livre-porque-hoje-ninguem-mais-le-diz-professor.shtml
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A imagem que estampa nossa capa, Stalin as David (2005, óleo sobre tela),
pintura de um dos mais renomados representantes da “sots-art”, Leonid Sokov,
também foi escolhida com o intuito de jogar luz sobre a literatura pós-Tolstói,
como ousamos chamar aqui o período revolucionário e soviético, em todas as
suas vertentes, e a literatura posterior a ela. Afinal, como notou Dobrenko, “sobre
o realismo socialista, é claro que continua parte importante da literatura russa
contemporânea, só que não mais como sujeito, e sim como objeto - retrabalhado
pela ‘soc-art’ [ou sots-art] na pintura e pelos conceitualistas na literatura”. E nada
mais explícito, neste sentido, que Stálin posando como o David de Michelangelo,
uniforme militar pendurado em uma árvore, cachimbo sobre o ombro. Uma grande
caricatura do realismo socialista que se transvestia de clássico, como o próprio
“vôjd” nu em pelo no pincel de Sokov.
Luana Chnaiderman de Almeida abre esta edição com emocionante
relato sobre o pioneiro das traduções russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-
2016). Divertido e leve, o texto é uma homenagem a seu avô, que moldou também
a figura da neta, escritora e professora de português.
Na sequência, Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli apresenta um ponto
de vista aprofundado sobre a tradução dos verbos de movimento russos que vai
muito além dos dicionários, citando como exemplos trechos de obras literárias de
Ilf e Petrof e Dostoiévski e suas traduções.
Em “A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução”, Denise
Regina de Sales verte ao português um texto desta escritora contemporânea,
nascida em 1965 e filha de um dos mais renomados autores infanto-juvenis so-
viéticos, Víktor Dragúnski. O conto “Os outros e a neve” faz parte da coletânea
“O segredo do camembert russo” (2015) e traz um recorte extremamente vívido e
sensível da Rússia atual.
Eloah Pina Pereira apresenta outro conto inédito em português, “Assassi-
nato no expresso Oriente”, de Dmítri Bykov (1967-), “um dos mais prolíferos – e
polêmicos – escritores russos contemporâneos”. A tradução comentada reproduz
a ironia e o humor do original, cheio de coloquialidade e intertexto soviético e
pop dos anos 1990.
Em “Contos selecionados de Evguêni Kharitónov”, Yuri Martins de
Oliveira expõe, também pela primeira vez em português, dois contos do escritor,
morto em 1981 e considerado o fundador da literatura russa LGBT moderna.
“Um morador escreveu um requerimento” é uma narrativa satírica a respeito da
burocracia soviética e “Traição-80”, conto póstumo com uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 11
“Nós”, Zamiátin (1884-1937) pediu licença a Stálin para emigrar em 1931, já que
toda sua obra estava proibida no país.
Letícia Mei apresenta, em “Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em
busca de Maiakóvski”, uma nova proposta em português para a primeira parte
do longo poema “Nuvem de Calças” (1915). A primeira e, durante muito tempo,
única tradução em nossa língua do poema foi assinada por E. Carrera Guerra.
Em “Aos kinocs do sul, Dziga Viértov” Luis Felipe Labaki introduz carta
escrita pelo cineasta Dziga Viértov (1896-1954) em março de 1925, quando ele
já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da
Rússia soviética. No contexto de relativa escassez de documentos sobre este tema,
a “Carta aos kinocs do sul” se torna especialmente interessante.
Em “Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre
o Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias”, Odomiro Fonseca
verte texto sobre o desconhecido escritor do realismo que viajou a pé pelas estradas
e confins de sua pátria estudando e captando a essência de sua população mais
vulnerável, os camponeses. Mesmo com o reconhecimento de grandes escritores
da época, Sleptsov (1836-1878) teve esquecida por mais de um século sua obra,
que hoje é resgatada internacionalmente.
Graziela Schneider apresenta, em “Mulheres, revoluções e missões”, tra-
dução inédita, direta do russo e comentada, do texto “Nossas missões”, publicado
por Aleksándra Kollontai (1872-1952) na revista “Rabótnitsa” apenas dois meses
depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem,
no Dia das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve
geral. A tradução tem o intuito, segundo Schneider, de “contribuir para recuperar
a expressão da mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na his-
toriografia e nas referências bibliográficas desse e de outros processos históricos”.
Em “A Revolução por outro olhar”, Márcia Pileggi Vinha traduz e co-
menta trecho do diário de Ivan Búnin (1870-1953), Dias Malditos. Após tradução
de trecho da obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do
tradutor, descrevendo questões como a opção pelo emprego de notas de rodapé
e contaminação do texto na língua de chegada.
Em “Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a
Kreutzer”, Natalia Quintero traz uma proposta de tradução direta do russo a
este elemento, que Tolstói (1828-1910) julgou tão importante à obra. A pesqui-
sadora também busca mostrar de que maneira o texto apresenta as respostas do
autor a questionamentos de leitores acerca da abstinência sexual pregada pelo
protagonista de sua novela.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 13
Boa leitura!
16 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta
Resumo: O presente texto, gentilmente cedido por Luana Chnaiderman à Cadernos de Literatura em Tradução, foi
apresentado durante a abertura da Jornada Internacional: Literatura Russa em Tradução, realizada na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 7 de abril de 2016, e dedicada ao grande pioneiro das traduções
russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-2016).
Dezembro, 2016
Havia uma gentileza própria do meu avô, que não se separava da sua exis-
tência. Por favor, obrigado, muito bem. Uma noção profunda de horizontalidade
entre as pessoas, que se traduzia no trato com cada um.
Eu ia tomar chá, ou almoçar às terças-feiras com ele, e ele sempre me per-
guntava: o que você anda lendo com seus alunos?
– Vô, nós estamos lendo os contos do Tchékhov.
(Eu sempre pronunciava e continuo pronunciando errado, acho que chegou
um momento em que ele desistiu de me corrigir...)
– Muito bem, muito bem... E eles estão gostando dos contos do Tchékhov?
– Muito vô, se bem que uma aluna ficou revoltada com aquela história em
que um cachorro come os filhotinhos do gato. São tristes, né, vô, os contos do
Tchékhov?
– É, são terríveis, mas são uma maravilha.
– Sim. São uma maravilha, os alunos estão amando, vô.
– O Tchékhov falava que o conto devia terminar em pianíssimo.
– Eu sei, vô, você já me contou, mas sabe, eu não entendo bem isso, eu
acho que um monte de histórias dele têm sim um fim bem marcado e forte.
– Ele falava que os contos devem começar em forte, e terminar em pia-
níssimo.
– Vô, queria saber mais sobre teoria do conto.
– Eu tenho um artigo...
E na semana seguinte o artigo estava ali, xerocado à minha espera, a ca-
ligrafia do meu avô, cada vez mais torta, marcando as referências bibliográficas.
– Vô, me empresta esse livro?
– Eu xeroco para você.
Fazia bem, meu avô. Da adolescente confusa e perdida que eu era, eram
poucas as chances de os livros encontrarem seus caminhos de volta à estante da
casa do meu avô.
A língua russa que meu avô falava ao telefone, quando conversava com mi-
nha tia Berta, sua irmã, era tão legal, quando eu estava na casa dele e o ouvia falar
em russo com minha tia-avó. Parecia que a voz alcançava outra tonalidade e força,
uma força longínqua que vinha de um lugar muito distante e ali estava meu avô.
– Vô, você iria lá na escola, conversar com meus alunos sobre os contos
de Tchékhov?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 19
mulher de olhos arregalados. Seus retratos na casa do meu avô nunca deixaram
de me assombrar.
Eu usava umas camisetas enormes e chamativas, com grandes dizeres em
línguas estrangeiras, geralmente o inglês.
Um dia meu avô perguntou:
– O que está escrito na sua camiseta, Luana?
– Eu não sei, vô, está em inglês.
– E como você usa uma camiseta com escritas que você não entende?
– Sei lá, vô, é bonita.
– Mas e se tiver escrito, por exemplo, viva o Maluf ?
E eu nunca mais usei nenhuma camisa com dizeres que eu não soubesse
traduzir.
Usei outra, no colegial, que me fazia bastante popular, especialmente entre os
meninos mais velhos. Uma camiseta branca e justa, com uma frase do Maiakóvski,
em português. Andava com elas e as pessoas me paravam. Um dia um menino
mais velho me disse que queria até comprá-la. Uma frase famosa atribuída ao
Maiakóvski: “Antes morrer de vodca que morrer de tédio”.
Fazia muito sucesso, aquela camiseta. Eu achava o máximo.
Uma vez, na quinta série, o professor pediu para que a gente trouxesse um
poema para a classe, um poema que a gente gostasse muito. Todos trouxeram
Drummond, Vinicius. Manuel Bandeira. Eu, toda contente, cheguei com meu
poema preferido, que era Balalaica, do Maiakóvski, que decorei e sei até hoje.
Balalaica
[como um balido abala
a balada do baile
de gala]
[com um balido abala]
abala [com balido]
[a gala do baile]
louca a bala
laika.
O professor olhou o poema que eu havia trazido. Leu, releu, olhou para
a minha cara.
22 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta
Eu tinha dez anos, e ele me falou para ler o poema para toda a classe.
Eu li.
E o professor falou:
– Agora explica.
Eu fiquei quieta, a classe inteira olhando para mim.
Não tinha a menor ideia do que aquele poema significava.
Não sabia o que era uma balalaica, nem uma balada de um baile. Mas achava
lindo o som. E imaginava uma cabra balindo em meio a um baile de gala, coisa
mais engraçada. E legal. E quando meu avô falava o poema em russo, a música
era parecida.
Mas não sabia, nem soube, explicar o poema.
Saí do tablado um pouco envergonhada de ter trazido um poema que
ninguém entendia.
Hoje talvez fosse capaz de fazer uma análise sociológica, sonora, a luta de
classes, o instrumento popular em meio ao baile dos ricos, as aliterações e a força
aberta do A.
Mas eu prefiro minha imaginação de criança, que gostava da música e achava
engraçado uma cabra balindo no meio do baile.
Estávamos na quinta série, e aprendíamos sobre a Guerra Fria e eu tinha
avós russos, ateus e comunistas. Do outro lado, avós acreanos. Que espantam
meus alunos, que afirmam que o Acre não existe. Nem a Rússia. A União Soviética
não mais.
Eu tinha onze anos estávamos em plena Guerra Fria e o professor de his-
tória nos perguntou se alguém ali da classe sabia o que era a Sputnik, e eu toda
empolgada levantei a mão, ansiosa:
– Eu sei, eu sei! É uma vodca muito boa! Meu vô toma todos os dias um
copinho, sempre tem lá em casa, você deixa a vodca no congelador e ela fica leitosa.
A classe inteira riu, inclusive o professor.
Depois a vodca virou cachaças mineiras, que os amigos traziam. Um copi-
nho, de vez em quando, e eu achava meu avô muito russo, quando ele propunha
um brinde, virava o copo cheio, aos noventa e nove anos.
Toda minha vida, os professores, ao verem meu nome na chamada:
– Você é parente do Boris Schnaiderman?
– Ele é meu avô.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 23
E alguma história.
Na graduação, em letras, passei a assinar meus trabalho como Luana Almei-
da. Achava, tinha certeza, que os professores seriam mais exigentes e teriam mais
expectativas, ao saber do meu avô. Hoje, fico muito feliz em estar aqui como neta.
– Vô, eu escrevi um livro de contos e queria te mostrar.
Havia se passado muito tempo, desde o caderno infantil no qual eu copiava
ou transcriava, não sei, as histórias do meu avô.
Eu já havia me formado, feito mestrado, casado, separado, encontrado meu
amor que hoje me acompanha.
Continuei escrevendo, buscando histórias próprias, mas sempre escondida.
Mas agora eu tinha um livro de contos, escrito e reescrito e achei que podia
mostrá-lo ao meu avô.
Quem xerocou desta vez fui eu.
De xerox nas mãos, deixei o livro lá. Era a primeira vez que deixava algo
de meu para que ele lesse.
Alguns dias depois, meu avô me liga.
– Luana, eu li seu livro de contos, e gostaria de marcar uma conversa com
você. Você pode vir aqui em casa, na quarta feira, às cinco da tarde?
Fiquei sem dormir todos aqueles dias, até o dia marcado.
Eu tinha uma reunião com meu avô.
– Luana, eu li seu livro de contos e fiquei muito confuso. A gente não sabe
quando um conto termina e outro começa. Sabe, por mais que a gente tenha uma
concepção larga de contos, por mais que a gente saiba que não existe uma forma
fechada para aquilo que é conto, muitos dos seus escritos são apreensões de mo-
mentos pegos no ar, mas não são contos, eu fiquei muito confuso.
O livro corrigido, verbos e pronomes nos lugares errados.
– Mas tem um conto, um conto seu, que é grande e mostra onde você pode
chegar. Este conto irá permanecer e durar por muitos anos. E poderia estar em
qualquer antologia de grandes contos.
E eu voltei para casa feliz.
Meu livro estava tão confuso que meu avô nem tinha lido inteiro.
Mas tinha um conto ali que sim.
Que poderia durar e fazer sentido daqui a cinquenta anos.
E que o resto não era bem conto.
24 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta
E eu reli, pensei, decidi que o que era apreensão de algum estado de espírito
catado no ar poderia talvez continuar assim, mas que eu deveria ter consciência
disso. E o que precisava de trabalho, corpo, enredo, personagem e ação, precisava
de trabalho. E eu refiz o livro inteiro.
Eu chegava às terças-feiras para almoçar com meu avô. Meio dia. Os
horários do meu avô e o relógio que lhe acompanhava os passos. Chegava para
encontrá-lo sempre sentado à sua mesa de trabalho, um grande caderno no qual
fazia anotações daquilo que lia, a máquina de escrever que lhe acompanhou a vida
inteira. A música das teclas da máquina de escrever.
– Vô, é difícil achar tinta para a máquina de escrever?
– Que tinta?! É fita, Luana, é fita...
Sentávamos um pouco no sofá, antes de o almoço ficar pronto.
– E o que você anda lendo com seus alunos?
O almoço ficava pronto e comíamos na cozinha, meu avô alegre e entusias-
mado com o tempero do feijão, do franguinho, a boa comida da Cecília e da Maria.
Meu avô animado com os livros do porvir.
Meu avô na cama do hospital no primeiro dia do internamento contando
sempre de tudo o que estava por vir.
Que ele precisava escrever. Os livros que ele preparava.
– Vô, você foi amigo do Murilo Mendes?
Sim, li um dos livros de poema dele, fiquei muito impressionado e escrevi
para ele. Nos correspondemos, tornamo-nos amigos. Ele tinha uma mulher muito
chata.
Rubem Fonseca. Cortázar.
– Vô, conta aquela história do Cortázar?
– Ele era muito atrapalhado, o Cortázar. Veio ao Brasil encontrar a mãe e
a irmã, o Mindlin disponibilizou um carro com motorista para levá-los a Campos
de Jordão. Ao final da temporada, o Cortázar me liga para dizer que não tinha
como pagar o hotel. Ele tinha consigo somente dólares canadenses, e o gerente
do hotel não queria aceitar o pagamento em dólares canadenses, ele era muito
atrapalhado, o Cortázar, não tinha nenhum senso prático... Um dia ele veio e nós
fomos passear pelo centro, tomar um chopp. Todos que passavam olhavam para
a gente, viravam o rosto, ficavam olhando. O Cortázar ficou todo contente: “Viu,
Boris, como eu sou famoso? Todos aqui me reconhecem, ficam me olhando,
sabem bem quem eu sou”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 25
Dezembro de 2016
26 Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli. Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português
Resumo: Comparam-se os meios de descrição do movimento nos dois idiomas e apresentam-se situações, nas quais
as necessidades da tradução produzem subsídios aos dicionaristas.
Palavras-chave: verbos de movimento, direção do deslocamento, posição do falante, tradução.
Em russo, por sua vez, LF não tem nenhuma relevância. O que importa é
se o deslocamento se produz em uma única direção ou em várias (ou, pelo me-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 26-30 27
ПРИЙТИ Δ сов 1. vir* vi, chegar vi; vir de volta, voltar vi (вернуться)10.
10
* * *
Resumo: Este artigo apresenta a tradução do conto “Другие и снег” (Druguíe i sniég; Os outros e a neve), da
escritora, dramaturga, roteirista e crítica de arte Ksenia Víktorovna Dragunskaia (1965-). Considerações sobre a
autora e a obra e reflexões sobre o processo tradutório acompanham os textos literários.
Palavras-chave: Ksenia Dragunskaia, Literatura russa, Tradução literária, Contos russos
Introdução
1 «Главным писателем» отец стал прежде всего потому, что не собирался им становиться. Просто
писал себе в свое удовольствие. Все попытки стать главным детским писателем принудительно,
наметив эту светлую цель и используя усидчивую задницу и трудолюбие, а также грамотно дружа с
критиками и членами всяческих жюри, – обречены на провал. Так же на полный провал обречены
и попытки объяснить этот феноменальный успех. Кого народ – широкие читательские массы –
назначит героем и почему, совершенно непредсказуемо.
2 “Всегда хотела писать прозу. [...] Писать прозу – мечта. Сидеть в деревне у озера, огородничать
и писать прозу. От руки. Работать, шуршать листочками, лелеять слова. Земледелие и чистописание,
две мечты [...]”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 33
Другие и снег
А.К. проснулся и понял, что ему снился важный сон. Но какой, про
что, кто там был – А.К. не запомнил. Тогда он принял душ, позавтракал и
снова лёг спать, чтобы вспомнить. И оделся поприличнее, и одеколоном
набрызгался – мало ли кого во сне встретит...
А.К. уснул и стал думать про зиму.
«Зима строгая, умная, – думал А.К. – Не пустит болтаться по улицам,
велит сидеть дома, усадит за письменный стол... Снег лежит на ветках умело,
потому что уже привык...»
А.К. не то чтобы любил снег. Он снегу сочувствовал. Потому что в
ноябре каждый дурак любит снег, и ждёт его, и радуется ему, а уже в начале
марта снег лежит такой некрасивый и знает, что ему осталось недолго, что
он старый и всем надоел, а все его терпеть не могут, торопят его конец. А.К.
находил отношение к снегу вероломным и нечестным. А.К. понимал снег
всегда, и жалел его, и в марте ходил прощаться со снегом в поля.
Раньше А.К. думал, что он один – главный пониматель и защитник
снега. Но осенью нашлись другие. Они позвонили в звонок на крылечке рано
утром и, когда полуодетый, спящий на ходу А.К. отворил дверь, поклонились
и сказали почтительно и радостно:
– Снег, хозяин.
А ведь А.К. чуть было не проспал приход снега, он любил дожидаться
его ночного прихода, не то что всякие там «все остальные» – на всё
готовенькое – проснулись, а уж кругом белым-бело. А тут А.К. засмотрелся
снов и чуть было не прозевал встречу со снегом, когда он летит навстречу
земле, а земля ещё тёплая, и снег сперва тает недолетев, а потом укрывает её.
3 Читатель, не пугайся! Тут на триста с лишним страниц всего-то с десяток крепких словечек. А
так – одна сплошная нежность и целомдрие, так что читай, смейся и плачь над этими грустными
и смешными историями про нас с тобой. Автор и персонаж.
34 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução
калитка закрыта, не стоит лезть через забор. Но они любили снег. Никто
не встречал снег так радостно, как таджики, – ведь снег можно убирать за
деньги, покупать еду и папиросы, платить за постой бабульке в соседней
деревне, откупаться от милиционеров, а если снега много, то можно послать
кусочек денег домой.
– Снег, хозяин, – парень, который немножко говорил по-русски, встал
и поклонился А.К.
Рядом с таджиками тусовались общественные собаки. Таджики и
собаки смотрели на А.К. честными тёмно-карими глазами. И таджики, и
собаки были неунывающие и бывалые.
А.К. подумал, что собаки не различают цвета и всю жизнь смотрят
чёрно-белое кино про людей и кошек. И, наверное, это кино не очень
весёлое.
И тут А.К. догадался, как жить дальше.
Жить надо так, чтобы собакам было не стыдно и не противно
смотреть чёрно-белое кино про людей.
– Заходите, братцы, – сказал А.К. – Научу вас по-русски читать...
Os outros e a neve
A.K. despertou e percebeu que tinha sonhado algo importante. Mas o quê,
a respeito de que, quem estava lá – A.K. não se lembrava. Ele então tomou uma
ducha, o café da manhã e deitou-se de novo, para lembrar. Vestiu-se com esmero e
borrifou-se água-de-colônia – sabe-se lá quem podemos encontrar em um sonho...
A.K. adormeceu e começou a pensar no inverno.
“O inverno é severo, inteligente”, pensava A.K., “não deixa ninguém sair
batendo pernas pelas ruas, obriga todos a ficar em casa, sentados à escrivaninha...
A neve acomoda-se jeitosa sobre os galhos, porque já está acostumada...”
A.K. não só gostava da neve. Ele sentia a neve. Porque em novembro qual-
quer idiota gosta da neve, espera por ela, alegra-se com ela, mas, já no começo de
março, a neve caída fica tão feia, ela sabe que lhe resta pouco tempo, que encheu o
saco de todo mundo, que ninguém mais consegue suportá-la, que todos apressam
o seu fim. A.K. achava desleal e injusta essa relação com a neve. A.K. compreendia
a neve sempre, compadecia-se dela e, em março, ia ao campo para se despedir.
Antes A.K. pensava que era o único – o principal conhecedor e defensor
da neve. Mas, no outono, apareceram outros. Tocaram a campainha na entrada
36 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução
da casa logo cedo e, quando A.K. seminu, num passo sonolento, abriu a porta,
inclinaram-se e disseram-lhe com respeito e alegria:
– Neve, patrão.
E olha que A.K. por pouco não perdera a chegada da neve; ele gostava
de esperar a sua chegada noturna, não era como qualquer um – que pega tudo
pronto –, não era como “todos os restantes”, que despertavam quando tudo ao
redor já estava bem branquinho. E agora A.K. tinha ficado olhando tudo ao redor
e por pouco não deixara passar o encontro com a neve, aquele momento em que
a neve voa em direção à terra, primeiro derrete antes de tocar o solo, mas depois
cobre tudo.
A.K. cumprimentou a brigada de amantes da neve e, durante algum tempo,
eles ficaram juntos, em silêncio, olhando como a neve ocupava o negro e emudecido
meio-bosque, meio-jardim de A.K., os bancos e as macieiras antigas, a cerejeira
retorcida, o automóvel estragado e encoberto por xales, as telhas da casa. A. K.
deleitou-se longamente com a neve e então se despediu, ordenou que eles viessem
ainda outra vez, quando tivesse mais neve acumulada.
E eles passaram a visitá-lo com frequência, porque o inverno vingou. Às
vezes chegavam cedo demais e então, especialmente para eles, A.K. pendurou na
porta um aviso bem preciso, “PEDE-SE NÃO TOCAR A CAMPAINHA”. E
passou a trancar o portão. Que chato, de repente não conseguir sonhar até o fim.
A.K. podia dormir quando e quanto queria. Morava em casa própria, cercada
de bosques e jardins, onde cresciam cogumelos sobre canteiros de flores abandona-
dos, e no outono, ao colher cogumelos, às vezes acontecia de pegar muitas maçãs
que caíam de macieiras asselvajadas e que, com frequência, iam parar debaixo de
bétulas. Ao trabalho A.K. não precisava ir. Sem trabalhar nada, já era rico. Era
assim. Alguns pensam que os ricos são obrigatoriamente tolos e malvados, mas
esses são apenas os ricos indignos. Falsos. A.K. era verdadeiro e honesto. Ele de-
fendia a justiça. Ele não gostava do ditado “imprescindível como o guarda-chuva
a um peixinho” – pois como é que se sabe de que precisa um peixe? – e abriu
uma fábrica de guarda-chuvas para peixinhos em uma zona de pobreza extrema.
Os desempregados conseguiram trabalho, ficaram felizes e passaram a ter muita
consideração por A.K., mandavam-lhe cartões na época de festas, aconselhavam-se
com ele sobre todo tipo de questão ou simplesmente perguntavam como se deve
viver. Mas a esse respeito A.K. só gracejava, pois ele mesmo não sabia.
A.K. dormia e andava pela praia. O tempo estava sombrio e quente. À
frente, lá longe, ele viu um amigo que sumira sem dar notícias havia muito, muito
tempo. O amigo ficou esperando A.K., sorrindo, e ele apertou o passo pela areia
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 37
clara, para abraçá-lo, perguntar onde tinha se metido, onde podia encontrá-lo e,
afinal, se devia procurá-lo...
Tocaram a campainha.
A areia ficou úmida e pegajosa, A.K. apertou o passo, mas o amigo abanou
a mão e foi embora rapidamente.
Tocaram de novo.
“Mato um”, decidiu A.K., apalpando, num gesto habitual, a pistola sob a
almofadinha de seda bordada. A pistola estava sempre à mão, sabe-se lá o que
pode acontecer em um sonho.
De roupão e com a pistola, A.K. foi até a entrada.
Os tadjiques estavam sentados de cócoras sobre a neve, como gralhas, de
gorro preto e jaqueta leve. Eles não podiam ler o aviso e não sabiam que, se o
portão estivesse trancado, não era pra se esgueirar pela cerca. Mas eles amavam
a neve. Ninguém recebia a neve com tanta alegria como os tadjiques – pois é
possível limpar a neve em troca de dinheiro, comprar comida e cigarros, pagar o
cômodo alugado na casa de uma velhinha do povoado vizinho, livrar-se de poli-
ciais e, quando neva bastante, mandar então um pedacinho de dinheiro para casa.
– Neve, patrão. – o rapaz que falava um pouco de russo levantou-se e fez
uma reverência a A.K.
Perto dos tadjiques juntavam-se cães de rua. Os tadjiques e os cães dirigiam
seus olhos honestos, castanho-escuros, a A.K. Tanto os tadjiques quanto os cães
eram incansáveis e traquejados.
A.K. pensou que os cães não distinguem cores e passam a vida inteira
assistindo a filmes de pessoas e de gatos em preto e branco. E, na verdade, esses
filmes não são lá muito alegres.
Neste momento A.K. descobriu como se deve viver.
Deve-se viver de modo que os cães não sintam vergonha nem tristeza
ao assistir filmes de pessoas em preto e branco.
– Entrem, irmãos, – disse A.K. – Vou ensinar russo a vocês...4
Em português
5 И машинки бегут по Садовому. Как я их люблю! Когда я вырасту, у меня непременно будут
свои машинки, и я буду с ними дружить, лечить их и умывать, и мы вместе будем ездить туда, где
весело и интересно.
Машинки – вот это да, это я понимаю...
Но все говорят: «Ты же девочка!» и дарят мне больших пластмассовых кукол. (DRAGUNSKAIA,
2015, p. 223-4).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 39
Referências
CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.
DRAGUNSKAIA, Ksenia. Секретрусскогокамамбера[Secret russkogo kamabera; O segredo
do camembert russo]. Moscou: AST, 2015.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Website
Jornal Novaya Gazeta. Entrevista de Dmitri Bykov com Ksenia Dragunskaia. Disponível
em: https://www.novayagazeta.ru/articles/2015/12/21/66884-171-a-v-lob-187 . Acesso
em 25 ag. 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 41
Resumo: Tradução de conto da coletânea ЖД-Рассказы (Contos de ferrovia), de Dmítri Lvóvitch Býkov.
Palavras-chave: Literatura russa contemporânea; Dmítri Býkov; intertextualidade; histórias de trem; tradução
Nota biográfica
Primeiro serviram gelatina de alce, depois taimen rosa defumado que derretia
na boca, patê lilás picante feito de caça, queijo Okhótnitchi com cheiro-verde, em
seguida carne de urso marrom-avermelhada, seca e fibrosa, um prato de pinhões
descascados, com tudo isso, a vodca Taiga no gengibre, depois um caldo forte com
42 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente
O papai concluiu, com razão, que a formação do filho estava concluída, e o pôs
para descansar em um hospital psiquiátrico em Buenos Aires, onde Volódia pela
primeira vez foi transpassado pela chamada Luz Cor de rosa. Sob a ação dessas
ondas mornas, ele psicografou, como se fosse ditado das alturas, as primeiras
páginas do romance policial esotérico A morte do beduíno, cujo herói, o detetive e
místico Raban, viajando por épocas e continentes, no fim das contas desmascarou
o mal mundial. Perverte estava sem absolutamente nada para fazer na clausura
confortável, as pílulas eram dosadas corretamente (sim, dizem, aliás, ter seduzido
uma bela enfermeira que também o abastecia com haxixe) – apenas lia e alucinava.
Ele leu As mil e uma noites, Borges, os sufistas, um par de interpretações populares do
Novo Testamento e criou um gênero que lhe trouxe grande fama. Todos os vinte
e três romances policiais místicos malfeitos sobre viagens do Raban por Borges e
pelos sufistas, com paradas regulares no Vaticano, em Meca, Jerusalém, na época
das cruzadas e do florescimento de Veneza, pareciam iguais a uma goma árabe
embrulhada numa página da Enciclopédia Britânica puída. Certa vez, Syromiátni-
kov comprou essa goma árabe em Istambul e surpreendeu-se com a semelhança
literal: viscosa, doce, e a todo esse grude exótico se prendiam fragmentos de manual
de história. No entanto, os intelectuais sabichões elegeram Perverte o principal
latino-americano pós-modernista, enquanto o leitor comum comprou A morte do
mufti, O corão roubado e Cabala dos hipócritas em tamanha quantidade que depois de
cinco anos de carreira literária Volódia adquiriu o hospital psiquiátrico onde teve
a iluminação e ali fundou a Escola Interconfessional de Iluminação Espiritual.
Lá se estudava seu testamento espiritual para os povos do mundo todo – Livro de
cabeceira dо Cavaleiro Iluminado. A contadora era aquela negra sempre grávida que
ele venerara em Amsterdã.
Coube a Syromiátnikov traduzir tudo isso – na universidade ele aprendeu
espanhol. Ele também escrevia romances policiais, e bem melhores que os de
Coqtelho, mas não tinham serventia para ninguém, já que os heróis de Syromiátnikov
eram mortos não no Louvre, mas em um hotel provinciano, e os assassinos não
eram monges da sociedade secreta voltairiana, mas desempregados locais levados
ao desespero. De seus romances policiais não dava para arrancar sequer uma
novelinha. Consequentemente, ele mamava nas tetas de Coqtelho e já arrastara
para a língua materna dos choupos-tremedores4 seis de seus cacarecos típicos,
4 Citação de um dos versos do epigrama escrito por Turguêniev para Nikolai Khristofórovitch Kettcher,
jornalista e tradutor, que traduzira Shakespeare para o russo, em prosa. A tradução foi malvista pelos
contemporâneos e, mais tarde, a expressão tornou-se popular para fazer referência às más traduções. “Eis
que o mundo ainda era claro/ Kettcher, amigo dos vinhos espumantes/ Estragduziu Shakespeare para
nós/ na língua materna dos choupos-tremedores.”
44 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente
8 Em espanhol, no original.
46 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente
9 Poeta bengali (1861-1941), um dos principais representantes da cultura hindu, laureado com o No-
bel de Literatura em 1913. Foi bastante traduzido na Rússia durante o século XX, sobretudo por poetas
simbolistas e, mais tarde, por Boris Pasternak e Anna Akhmátova. Visitou a URSS deixando um livro de
cartas sobre suas impressões.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 49
Krasnokámensk, onde o acharam morto? Desse, ninguém foi atrás, era de noite,
os condutores são preguiçosos. Agora procuram essas pessoas como agulha no
palheiro, assim como a arma do crime. Enquanto isso, temos a chave na mão, e
se o senhor lesse com atenção o meu Código de Afrodite...
– Eu o traduzi! – explodiu Syromiátnikov.
– Traduzir não significa ler. Seu coração está fechado, o senhor não limpou
seus chacras com o meu livro. Mas ele está lá para isso! Teria prestado atenção na
grande importância dos números em nossa vida. E teria notado que, no começo
da atividade profissional, Kháilov teve exatamente sete cargos, e em cada um deles
– eu notei isso especialmente! – esmagou e oprimiu todos os vivos sem cansar.
Sim, e os cargos eram apropriados – em outros não o colocariam. Ele começou na
categoria de oficial e foi promovido a major, mas depois o expulsaram do exército
– ainda no tempo soviético – por excesso de crueldade! Isto está escrito até no
dossiê dele, que está na internet. Muitas vezes ele desmentiu essa informação, citou
testemunhas, trocou beijos com antigos soldados, os quais teriam servido sob seu
comando – mas no olhar dos soldados drapejava o horror, apesar de terem servido
há muito tempo. Oh, eu olhei o dossiê dele em detalhes, eu de fato me interessei
por esse rapaz, que descanse em paz no inferno... Depois do exército tornou-se
comissário militar e regularmente cumpria o plano de prender recrutas evadidos
– o senhor tem experiência nisso, eu sei. Acho que nesse cargo ele acumulou um
número gigantesco de inimigos! Por seu êxito total, transferiram-no para a chefia
do partido – e já ali ele se virou, sem cansar, erradicando a subversão. Na década
de 90 não era bem-visto se orgulhar disso, mas no ano passado ele contou a jor-
nalistas que conduziu pessoalmente a julgamento cinco subordinados – isso foi
antes de sua secretária-geral kagebista, que... bom, esse, de óculos...
– Andrópov10 – disse Syromiátnikov, azedo.
– Oh, sim, antropos... Na época dele prenderam muitos, mas por algum
motivo isso é lembrado como um primeiro sopro de liberdade. Não admira que
com o começo da liberdade nosso falecido amigo – essa foi a quarta etapa de sua
carreira – fundou uma cooperativa e ficou famoso por massacrar os concorrentes.
Um de seus companheiros foi encontrado com o crânio aberto, e ele tinha três
filhos, todos meninos... Você está seguindo meu raciocínio?
– Estou – acenou Syromiátnikov. – Faltam três cargos.
11 Citação de excerto do romance Prólogo, de Nikolai Gravílovitch Tchernichévski, feita por Lênin em
seu discurso “Sobre o orgulho nacional dos Grão-Russos”, proferido em 1914.
52 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente
наш покойный друг – это был четвертый этап его карьеры – создал коопе-
ратив и прославился расправами с конкурентами. Один его компаньон был
найден с раскроенным черепом, а у него ведь было трое детей, все мальчи-
ки… вы следите за моей мыслью?
– Слежу,- кивнул Сыромятников.- Остались три должности.
– А дальше все просто,- развел руками Коктельо.- В качестве депутата
он отказал в помощи десятку больных детей, у каждого из которых был отец.
В качестве заместителя главы городской администрации закрыл газету, крити-
ковавшую его, а журналиста, который в этом особенно усердствовал, нашли с
пробитой головой – видимо, это его фирменный стиль. Наконец, в прошлом
году он добился ареста своего заместителя, который кое-что про него знал,- а
у этого заместителя тоже наверняка есть родственники… Во всех этих делах
он вел себя с бешеным бычьим напором, у нас таких людей так и называют
– рогачами. Его боялись все, но в какой-то момент страх переходит в гнев –
такова народная психология. И если у следователя есть на плечах кой-какая
головенка, он легко вычислит пересечения нужных множеств. Достаточно
узнать по компьютеру, ехал ли в нашем поезде кто-нибудь из призванных
им юношей, у которых дома остались больные беспомощные родители. Был
ли в вагоне кто-нибудь из посаженных им пятерых чиновников. Выезжали
ли из Читы родственники убитого заместителя. И так далее – все это, как
вы понимаете, дело одной недели, при наличии расторопных курьеров и
регулярного доступа к Интернету. Хочу заметить, что коллективное убийство
из социальной мести – весьма соблазнительный мотив, и не исключено,
что книгу на этот сюжет я обдумаю уже в нашей поездке. Ее написание не
займет много времени. Согласитесь, что схема традиционного детектива
здесь существенно ломается – обычно мы выбираем одного из многих, но
тут нам предлагается вариант, при котором убили все!
– Слушайте, Владимир,- сказал Сыромятников, против воли улыбаясь.
Он не мог противиться обаянию этого жулика.- Вы действительно полагаете,
что никто не читал «Убийство в Восточном экспрессе»?
– Полагаю, что читали немногие,- невозмутимо заметил Коктельо.-
Кроме того, вы забываете о местном колорите. О широкой панораме России,
омуле, таймене, о прекрасной кухне – читатель любит упоминания вкусной
еды, это для него не менее важно, чем описание хорошего секса… И конечно,
главное – высокий нравственный смысл. Вообразите: Россия поднимается с
колен. Страна, многие годы униженная, измученная нищетой, переставшая
различать добро и зло,- наконец мстит за многолетние страдания, наказывая
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 61
одного из тех, кто так жестоко с нею обходился все это время! Бывший
партийный чиновник, выслужившийся при новых хозяевах, гибнет от рук
новой России – и кто же расследует это преступление?! Гуманно настроенный
иностранец, человек с Запада, отлично знающий ментальность Востока и
готовый в случае необходимости предоставить алиби всем убийцам, а вину
свалить… ну, хотя бы на своего переводчика – скучного и брюзгливого
малого, вечно недовольного собственной литературной карьерой!
Коктельо хлопнул Сыромятникова по плечу и оглушительно
расхохотался.
Сыромятников, однако, не принял шутки. Он посмотрел на Коктельо
маленькими блеклыми глазками, видевшими так много провинциальных
злодейств, и покачал головой.
– Плохой вы писатель, Володя.
– Почему это, мой юный друг?!
– Потому что смотрите на страну через окно Восточного экспресса.
А Россия – это вам не «Синеглазый Байкал». Никакой новой России нет,
Володя, и никогда не будет. И с колен никто не встает. И мстить за гибель,
тюрьму, унижения, нищету и позор здесь тоже никто не будет, понимаете?
Был уже один такой опыт, на всю жизнь хватило. Нация рабов, сверху донизу
– все рабы! Знаете, кто это сказал? Один человек, который повидал в жизни
дерьма побольше вашего. А я, между прочим, знаю, кто ехал с Хайловым в
купе. Это известный в Приморье криминальный авторитет Пуля, тот самый,
который просил у вас автограф позавчера. Еще сказал, что прочел вас в
заключении и вы перевернули его душу.
– Помню,- заинтересованно откликнулся Коктельо.- И что же?
– А то, что Пуля не выносит, когда при нем храпят!- торжествующе
воскликнул Сыромятников.- И я отлично это знаю, потому что тоже читаю
местную прессу. А поскольку убить человека для него – как два факса
отослать, то он и нанес Хайлову в темноте семь ранений куда попало! Тот
перестал храпеть, а Пуле этого и надо. Он спокойно лег обратно на полку
и заснул, потому что вся местная милиция у него в кармане. Между прочим,
об этом и в Москве знают, но сковырнуть Пулю не могут никак – он тесно
связан с некоторыми питерскими. Не надо ля-ля, Володя. Вы никогда ничего
не напишете о России, потому что не понимаете ее. А если напишете, эта
ваша книга здесь провалится. Здесь сроду не бунтуют и никому не мстят,
здесь проглотят еще десять тысяч Хайловых и спокойно забудут все их
художества. А убивают здесь из-за храпа, понимаете?
62 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente
Коктельо помолчал.
– Вот поэтому-то я автор бестселлеров и миллионер, а вы мой пере-
водчик с дюжиной ненапечатанных романов,- сказал он важно.
– Почему?- не понял Сыромятников.
– Потому что я предлагаю версию, которая льстит читателю. А вы
тычете ему в нос унизительной ложью, которая на фиг никому не нужна.
Кому нужны этот ваш Патрон и это ваше убийство из-за храпа? И сравните
это с моим прекрасным сюжетом, из которого выводятся богатейшие мета-
физические смыслы! Сравните это с красивой и увлекательной историей,
которую предложил я – пусть на основе Агаты Кристи, потому что уже
съеденное легче усваивается… А ведь ваша версия – грязная, смешная и, по
правде сказать, идиотская,- ничуть не ближе к правде, чем моя!
– Да?- спросил уязвленный Сыромятников.
– Да!- грохнул Коктельо.- На самом деле все обстояло вовсе не так
сложно, как у меня, и не так просто, как у вас. Вы же помните, как я в шесть
утра прошел мимо вас по коридору? Я специально чертыхался у вашей двери!
– Вы хотите сказать… сказать…- задохнулся Сыромятников.
– «Измени жизнь, где можешь, и не сомневайся в своем праве»,- сказал
Коктельо, отрезая еще кусок омуля.- «Ежедневник Серебряного воина», часть
вторая, глава пятнадцатая.
Referências
BÝKOV, Dmítri. JD-Rasskazy. Moscou: Vagrius, 2007.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 63
Resumo: Tradução comentada dos contos “Um morador escreveu um requerimento” e “Traição-80”, de Evguêni
Kharitónov, inéditos em português até a presente data.
Palavras-chave: Kharitónov; prosa soviética; literatura russa
conto, uma narrativa satírica a respeito da burocracia soviética, faz parte da cole-
tânea que o próprio Kharitónov organizou, em 1981, pouco antes de sofrer um
ataque cardíaco fatal, sob o título de Em prisão domiciliar (Под домашним арестом),
que só viria ser publicada nos anos 1990; já o segundo, uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia, estava entre os papéis do escritor
encontrados por amigos depois de sua morte. Atualmente, Kharitónov é um
escritor pouco conhecido entre russos e estrangeiros, embora tenha feito algum
sucesso nos anos 1990 com as traduções para o inglês de seus contos e versos a
respeito da homossexualidade. As traduções aqui apresentadas são as primeiras
para língua portuguesa.
ele mesmo liga – quando vão ter as ripas? Ela diz o senhor ligue de tempos em
tempos pra nós. Então ele liga e dizem que vai chegar dali uns dois dias; aí ele liga
dali dois dias e dizem que não se sabe quando vai chegar. As ripas, dizem, estão
no depósito, mas não tem carro pra trazer. Pois então finalmente ele foi dar queixa
da encarregada-técnica, e dizem – acabaram de trazer as ripas, amanhã mesmo
começamos. No dia seguinte, aquele mestre de obras vem, diz esvazie a cozinha,
já vamos começar a fazer, e mede para ele o linóleo novo, como se fosse cortá-lo.
Passa uma hora, nada do mestre. O morador liga, chamam o mestre ao telefone:
mas nós vamos começar amanhã, ou então vamos ter de desligar o seu gás, e aí
o senhor vai ficar dois dias sem gás. – Mas que diferença faz vocês desligarem o
gás hoje e começar só amanhã? dá na mesma; vocês disseram que vinham já, eu
estou esperando, esvaziei a cozinha. – Está bem, vamos agora então. Passa uma
hora e mais um pouco, o morador se veste e vai à oficina, na rua. O tal do mestre
não está lá, está o ajudante, embriagado. O ajudante diz volte amanhã. O morador
diz mas o mestre acabou de me dizer pelo telefone que já estava chegando; onde
ele está? – Ele saiu pra atender um chamado; saiu pra almoçar; ele me disse que
ligou pro senhor, mas não tinha ninguém em casa. – Pois eu mesmo falei com
ele, medimos juntos o linóleo, ele disse que vinha já, e com as ripas, três horas e
nada, aonde ele foi atender esse chamado, em qual casa? eu vou lá encontrá-lo.
O ajudante diz – anote, e estende um contraplacado. – Pode falar, fale, eu vou
lembrar. Mas o ajudante tinha estendido o contraplacado para que o morador
escrevesse ali o seu endereço. – Pra que o meu endereço, o mestre já esteve em
casa. – Tá, como quiser. – Você me diga aonde ele foi atender esse chamado, em
qual casa, eu vou lá encontrá-lo. O ajudante então deu o tal endereço, trocando
os números com os do endereço do morador. O morador foi até a encarregada-
-técnica dar queixa do mestre de obras. Ela voltou com ele até a oficina, começou
a xingar o ajudante, o mestre ainda não tinha chegado, e o outro dizia – o mestre
foi de manhã ao apartamento daquele morador que afundou o chão da cozinha,
disse que ele não estava em casa, que iríamos amanhã. O morador nem retrucou,
viu que seria inútil. A encarregada-técnica ordenou ao ajudante que começasse o
trabalho, serrasse as ripas em pedaços do tamanho da cozinha, de quebra ainda
expulsou da oficina as pessoas que, como ela acertadamente suspeitara, tinham
vindo beber com o ajudante, e foi embora. O ajudante diz – mas como é que eu
vou cortar, não sei o tamanho da sua cozinha. Mas todas as cozinhas eram idên-
ticas no bairro todo. O morador diz – está bem, venha comigo fazer a medição.
Eis que chegam, ajudante e morador, em casa, o ajudante faz a medição daquele
jeito, a régua a torto e a direto, e ele dizendo – tanto faz, antes de três dias não
podemos começar, o linóleo tem de ficar descansando três dias antes de fazer o
66 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov
revestimento. – Pois é, mas já faz trinta e três dias que ele está descansando no
meu quarto! E aí o ajudante diz – Ah, mas se o senhor tem o seu próprio linóleo
é outra história, dá pra começar amanhã; então pra quê que eu medi a cozinha pra
ver de que tamanho cortar as ripas, se todas as cozinhas são idênticas no bairro
todo?; já que o senhor tem o linóleo, e já ficou descansando, então amanhã dá pra
começar. – Como assim amanhã, o mestre veio e disse que começava hoje; comece
hoje; se não conseguir terminar, amanhã você continua; vá pelo menos serrar as
ripas do tamanho certo e trazer pra cá. O ajudante disse tanto faz, sem o mestre
não posso. – Não pode o quê? Não pode serrar? – Serrar eu posso, mas como
vou trazer? os sarrafos são grandes, não tenho força de carregar. – Está bem, você
vai e corta tudo na oficina e me liga, se o mestre não estiver lá, eu desço e ajudo
você a trazer até aqui. E o morador deu a ele o seu telefone. Lá estava o morador
esperando, esperando, e o ajudante não ligava. Ah, vai se foder. O morador outra
vez se vestiu e foi até lá à oficina. O ajudante estava sentado, fumando, não tinha
nada serrado. O morador diz – o que aconteceu? E o ajudante responde não
aconteceu nada: é que primeiro a encarregada-técnica tem que vir e ver o quanto
que pode gastar de ripa pros consertos. – Pois não preciso de consertos, preciso
que façam o assoalho inteiro. – Não sei de nada, amanhã o mestre vem e decide
o quanto de ripa precisa, como fazer os consertinhos, ou se é o assoalho todo,
mas eu não sei de nada. – Mas ela viu tudo um mês atrás. – Não sei, não sei de
nada, vá falar com ela. O morador vai outra vez até a encarregada-técnica, esta
diz bem, o que fazer, um é um bêbado, o outro sabe-se lá onde está, o que fazer;
amanhã iremos e faremos tudo, faremos os consertos, eu vou acompanhar. No
dia seguinte, de fato, vieram e fizeram.
посмот рел, сказал не можем делать, у нас линолеума нет. Жилец говорит,
да вот линолеум, давно лежит, я сам купил. – А, ну тогда разбирайте кухню,
мы сейчас с подручным придем. Жилец разобрал тяжелые вещи. Мастер
звонит, не надо разбирать, не придем, теса нет. Жилец звонит женщине-
смотрителю – как это они не придут, сказали кухню разо брать, а теперь
теса нет. Она помялась по телефону – подождите... ммм... нет теса. – А когда
будет? – На днях подвезут, мы вам позвоним; но до конца недели сделаем.
Проходит несколько дней, он сам звонит - когда будет тес? Она говорит, а вы
позванивайте нам. То он звонит, говорят через день-два будет. Тес, говорят,
есть на складе, машины нет его везти. Вот, наконец, он заходит пожаловаться
на техника-смотрителя, говорят как раз только привезли тес, завтра начнем
вам делать. Назавтра тот мастер приходит, говорит, разбирайте кухню,
сейчас приду начнем делать, и померил ему новый линолеум как его резать.
Проходит час, нет мастера. Жилец звонит, мастера подзывают к телефону:
а мы завтра начнем, а то газ вам будем отключать, придет ся вам два дня без
газа. – Какая разница, сегодня вы газ отключите и начнете делать или завтра
то же самое; вы же сказали, сейчас придете, я жду вас, кухню разобрал. – Ну,
ладно, тогда придем сейчас. Проходит час с лишним, жилец одевается и идет
в мастерскую на улице. Там того мастера нет, сидит подручный нетрезвый.
Подручный говорит, придем завтра. Жилец говорит да мне мастер только
что сказал по телефону сейчас придет; где мастер? – А он ушел по заявке;
обедать ушел: он мне сказал, звонил вам, у вас никого дома не было. – Я же
с ним разговаривал, вместе померяли линолеум, он сказал сейчас при дет
с тесом, и три часа его нет, куда он пошел по заявке, в какой дом? я пойду
его найду. Подручный говорит – запишите, и протягивает фанеру. – Ну
говорите, говорите, я запомню. А подручный протянул фанеру чтобы жилец
написал свой адрес. – Да зачем мой адрес, мастер же был у меня. – Ну как
хотите. – Вы мне скажите куда он пошел по заявке, в какой дом, я пойду его
найду. Подручный тут назвал такой адрес, в нем перепутаны цифры из адреса
жильца. Жилец пошел к технику-смотрителю жаловаться на мастеров. Та с
ним назад пришла в мастерскую, стала ругать подручного, мастера так и нет,
тот гово рит – мастер с утра ходил вот в квартиру этого жильца, которому
на кухне пол перестилать, сказал его дома нет, завтра пойдем. Жилец уже
не возразил, видит бесполезно. Техник-смотритель велела подруч ному
пока начинать работу, напилить полосы теса по размерам кухни, и выгнала
заодно из мастерской людей, про которых правильно подо зревала, что они
пришли к подручному выпить с ним, и ушла. Подруч ный говорит – а как
я буду резать, я размеров вашей кухни не знаю. А все кухни одинаковые во
68 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov
Antiutopia
ram por cima do cadáver, sob a marcha de Beethoven, tocada num sintetizador.
Davam melancias e cerveja aos soldados defronte ao buraco, e eles urinavam lá
dentro. E depois disso emergiram a panqueca ali. Foi explicado a todos, é claro,
que estavam afogando um cadáver com 60 anos de jazigo; o jovem Uliánov3,
porém, era coisa bem diferente, ele tinha intenções genuínas e era digno de estar
nos museus. Ele, sem dúvida, desejava o bem para seu bronco país, mas havia
nele muito de tártaro, de Kazan. E em volta também. Foi a contragosto que ele
passou agir por meios tártaros. Se bem que, por outros meios, possivelmente,
não teria dado em nada. Possivelmente, os liberais Miliukov, Gutchkov, Pobedo-
nóstsev4 não poderiam ter feito nada com a Rússia, teriam sido devorados. Pois
até Blok, por exemplo, de natureza tão refinada, não os compreendia e desejava
ser um esquife5. Somente pelos meios tártaros de Lênin foi possível destruir a
Rússia, arruinar seu estúpido aparato burocrático – porém! Porém o Evangelho!
Terno e penetrante, o único ensinamento cristão confiável sobre a compaixão,
o amor, sobre não haver alegria na terra, era preciso deixar isso às crianças na
escola e aos adultos nas universidades de cultura. Pois ele foi fechando as igrejas.
Com tais ensinamentos, os infortúnios da vida passariam de forma bem mais
sóbria do que com as promessas comunistas. E outro “porém”, questão prática.
Lênin não era espião alemão o suficiente6. Como seria possível confiar o governo
da Rússia aos russos – e aos judeus, russificados, que adquiriram todos os traços
ruins dos russos, somados aos seus próprios, já não muito bons. Assim sendo,
seria necessário chamar os Varegues7, como no começo da história russa? Não,
os Varegues não entenderiam aquele momento e fariam da Rússia uma simples
8 Rurik de Kíev (830-879) – chefe dos varegues que, de acordo com as crônicas antigas, foi chamado
no ano de 882 d.C. para tornar-se príncipe da Rus. Governou as regiões de Ladoga e Nóvgorod, ao norte
da Rússia. (N.E.).
9 Rio siberiano que desemboca no Oceano Ártico. É tido como a linha divisória entre o Oriente Médio
e o Extremo Oriente. (N.T.)
10 Capital do território de Krasnoiarsk, na Sibéria Oriental. A cidade é cortada pelo rio Enissiéi. (N.T.)
11 Piotr Iákovlevitch Tchaadáev (1794-1856) – filósofo russo, autor de uma série de cartas filosóficas
em que criticava o atraso da Rússia (N.T.)
12 A maior cidade portuária da Rússia no Oceano Pacífico e uma das maiores da Sibéria. É a parada
final da Transiberiana. (N.T.)
13 Ilha russa localizada no Mar do Norte, atualmente habitada por povos autóctones e russos. Entre a
década de 1860 até meados de 1900 foi usada pela Rússia como ilha de desterro. (N.T.)
14 Povoado da região de Vladímir, nas proximidades de Moscou. (N.T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 71
15 Piotr Mirónovitch Machérov (1918-1980) foi o primeiro secretário do Partido Comunista da Bielor-
rússia, a partir de 1956. Gozava de grande autoridade na Bielorrússia e estava cotado para ser o presidente
do Soviete dos Ministros da URSS. Morreu em 04 de outubro de 1980, num acidente de carro, sob cir-
cunstâncias suspeitas, levando à suposição de assassinato. (N.E.)
16 Povo turcomano que habita, especialmente, a República da Iacútia (norte da Sibéria). (N.T.)
17 Em russo, “нанаечки”, diminutivo de “нанайцы”, isto é, o povo nanái, de origem tungue, que habita
as margens do rio Amur e afluentes, na Rússia e na China. Também conhecidos como “hezhen”. (N.T.)
72 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov
Антиутопия
Referências
KHARITÓNOV, E. Jilets napisal zaiavlenie [Um morador escreveu um requerimento].
In:____. Pod domachnim arestom [Em prisão domiciliar]. 2º edição. Moscou: Glagol,
2005, pp. 116-118.
____. Jilets napisal zaiavlenie [Um morador escreveu um requerimento]. In: BERMAN,
F. et al. Katalog [Catálogo]. Ann Arbor: Ardis, 1982, p. 256-258. Disponível em: http://
vtoraya-literatura.com/pdf/katalog_ardis_1982_text.pdf Consulta realizada em 20 de
agosto de 2017.
____. PREDATELSTVO-80 – Antiutopia [Traição-80 – Antiutopia]. In:____. Pod do-
machnim arestom [Em prisão domiciliar]. 2º edição. Moscou: Glagol, 2005, pp. 399-403.
____. PREDATELSTVO-80 – Antiutopia [Traição-80 – Antiutopia]. Disponível em:
https://openuni.io/course/5-course-4/lesson/2/material/464/ Consulta realizada em
20 de agosto de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 79-81 79
Neide Jallageas
Resumo: Esta é uma das cartas que compõem o livro ZOO. Cartas não sobre o amor, ou Terceira Heloisa, de
Viktor Borisovitch Chklóvski (São Petersburgo, 1893-1984). Publicada pela primeira vez em 1923, em Berlim,
ela é traduzida aqui diretamente do russo.
Palavras-chave: Literatura Russa; tradução
Introdução
Esta é uma das cartas que compõem o livro ZOO. Cartas não sobre o amor,
ou Terceira Heloisa, de Víktor Borísovitch Chklóvski (São Petersburgo, 1893-1984),
publicado pela primeira vez em 1923, em Berlim. Chklóvski encontrava-se exila-
do na capital alemã onde também estava Elsa Triolet (1896-1970) que, junto ao
contexto, inspirou ao escritor na criação deste romance epistolar, composto de
fragmentos que se conectam por meio de metáforas do amor (que passa a ser
dirigido à Rússia, pátria distante), já que o missivista apaixonado por Alia/Elsa,
logo de início, fora impedido por sua amada de escrever sobre o amor. A “Terceira
Carta” é exatamente a que contém a interdição dirigida ao escritor, assinada pela
mulher amada e que recusa esse amor.
A presente tradução, realizada diretamente do russo, é inédita.
A tradutora agradece a leitura atenta e observações de Ekaterina Volkova
Américo para esta tradução.
80 Neide Jallageas. Terceira Carta de Chklóvski
TERCEIRA CARTA
ПИСЬМО ТРЕТЬЕ
Алино же второе.
В нем Аля просит не писать ей о любви. Письмо усталое.
Милый, родной. Не пиши мне о любви. Не надо.
Я очень устала. У меня, как ты сам говорил, сбита холка. Нас
разъединяет с тобой быт. Я не люблю тебя и не буду любить. Я боюсь твоей
любви, ты когда-нибудь оскорбишь меня за то, что сейчас так любишь. Не
стони так страшно, ты для меня все же свой. Не пугай меня! Ты меня так
хорошо знаешь, а сам делаешь все, чтобы испугать меня, оттолкнуть от себя.
Может быть, твоя любовь и большая, но она не радостная.
Ты нужен мне, ты умеешь вызвать меня из себя самой.
Не пиши мне только о своей любви. Не устраивай мне диких сцен по
телефону. Не свирепей. Ты умеешь отравлять мне дни. Мне нужна свобода,
чтобы никто даже не смел меня спрашивать ни о чем. А ты требуешь от
меня всего моего времени. Будь легким, а не то в любви ты сорвешься. А ты
с каждым днем все грустней. Тебе нужно ехать в санаторий, мой дорогой.
Пишу в кровати, оттого что вчера танцевала. Сейчас пойду в ванну.
Может быть, сегодня увидимся.
Аля
5 февраля
Referências
CHKLÓVSKI, Víktor Borísovitch. “ZOO. Pisma ne o liubvi, ili trtia Eloiza”. São Peter-
sburgo: Azbuka-klassika, 2009.
82 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)
Cássio de Oliveira*
Resumo: Apresentação, tradução e notas sobre Moscou Feliz (Schastlívaia Moskvá), que ocupa uma posição
única entre as obras de Andrei Platónov (1899-1951), autor dos romances Tchevengur e Kotlovan (A Escavação
da fundação), admirado por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana Tolstáia, e Elif Batuman, porém praticamente
desconhecido no Brasil.
Palavras-chave: Tradução; Literatura Russa; Andrei Platonov
Apresentação
Moscou Feliz (Schastlívaia Moskvá) ocupa uma posição única entre as obras
de Andrei Platónov (1899-1951), o autor dos romances Tchevengur e Kotlovan (A
Escavação da fundação), admirado por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana
Tolstáia, e Elif Batuman, porém praticamente desconhecido no Brasil. Escrito
durante a primeira metade da década de 1930 e publicado somente em 1991,
Moscou Feliz se assemelha mais a uma novela ou pôviest’ na tradição literária russa,
mas é normalmente considerado um romance devido ao desenvolvimento mais
elaborado da narrativa. O consenso é que Moscou Feliz é um romance inacabado,
o que quer dizer que o que segue abaixo é um excerto de um fragmento. O caráter
inacabado do romance, seu namoro com o conceito da “obra aberta” de Umberto
Eco, somente contribui para o seu fascínio, já que, de certa forma, os impulsos e
aspirações de seus protagonistas refletem o clima utópico dos primeiros Planos
Quinquenais de Stálin – uma utopia que, como o próprio romance, é interrompi-
da bruscamente durante a segunda metade da década de 1930, com os Grandes
significa tanto a mão quanto o braço. Enquanto a primeira locução verbal acima
funciona melhor com as “mãos” (pensa-se, por exemplo, na expressão “mãos à
obra”), a segunda locução faria mais sentido se “braços” fossem utilizados. Decidi
por “mãos” em ambos os casos, de modo a manter o paralelismo, e também de
modo a enfatizar a bizarrice da imagem que Platónov constrói: mãos, dotadas de
vontade própria, sendo forçadas a fazer algo que não lhes convém.
A combinação inusitada do impulso utópico com os desejos (incluindo dese-
jos sexuais) mais recônditos e incompreensíveis constitui o problema fundamental
abordado por Platónov em todas as suas obras. O excerto abaixo, e Moscou Feliz
em geral, oferece um dos exemplos mais contundentes dessa complexa visão do
mundo e, mais importante, da linguagem única que Platónov utiliza para transmitir
essa visão. Na tradução para o português eu tentei, ao máximo, reproduzir esse
senso de estranhamento (a famosa ostraniénie de Viktor Chklóvski) que impregna
o texto russo. Para usar o conhecido termo elaborado por Lawrence Venuti, meu
intuito com esta tradução foi o de criar uma forma de “estrangeirização” (foreigni-
zation). Porém essa estrangeirização não quer dizer simplesmente que eu almejei
reproduzir estruturas ou formas da língua russa no texto em português, ou seja, que
tentei enfatizar o caráter estrangeiro e “imigrante” do texto. Meu intuito principal
foi um pouco diferente: reproduzir, no texto em português, os desvios da norma
que caracterizam o texto em russo de Platónov. O julgamento dessa empreitada
deixo a cargo dos leitores.1
1.
1 Expresso minha gratidão a Cynthia Sloan, que leu o manuscrito da tradução e fez várias sugestões
que muito me ajudaram no processo de revisão do texto.
86 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)
Porém, até seus anos tardios, inesperada e tristemente, para ela o sujeito incógni-
to se levantaria e fugiria sob a pálida luz da memória, e novamente morreria na
escuridão do passado, no coração da criança crescida. Entre a fome e o sono, no
momento do amor ou de alguma outra jovem alegria, subitamente e de longe, o
desesperado grito do morto ecoaria novamente nos recônditos de seu corpo, e
a vida da jovem mulher se alteraria imediatamente: ela interromperia a dança, se
estivesse dançando, trabalharia mais auspiciosa e compenetradamente, se estivesse
labutando, cobriria o seu rosto com as mãos, se estivesse sozinha. Naquela noite
de intempéries do fim do outono começara a Revolução de Outubro – naquela
cidade, onde naquela época morava Moscou Ivánovna Tchêstnova.
Seu pai morrera de tifo, e a menina, faminta e órfã, saíra de casa e nunca
mais voltara. Sua alma tendo adormecido, sem se lembrar nem de pessoas, nem do
espaço, por alguns anos ela vagou e se alimentou pela pátria, como no deserto, até
ter acordado no orfanato e na escola. Ela se sentava na carteira à janela, na cidade
de Moscou. No bulevar as árvores já pararam de crescer, e, sem a força do vento,
as folhas caíam e cobriam a terra que havia sido calada em preparação para um
longo sono; era o fim do mês de setembro daquele ano em que todas as guerras
acabaram, e o transporte público começou a se reestabelecer.
A garota Moscou Tchêstnova já estava no orfanato havia dois anos; foi lá
que lhe deram um nome, um sobrenome, e até um patronímico, porque a menina
se lembrava muito indefinidamente de seu nome e de sua primeira infância. Ela
achava que seu pai a chamava de Olia, mas ela não tinha certeza disso e se calava,
como anônima e desconhecida, como aquele sujeito noturno que havia morrido.
Então lhe deram um nome em honra de Moscou, patronímico em memória de
Ivan – típico soldado russo do Exército Vermelho, morto no campo de batalha – e
sobrenome como sinal da honradez de seu coração2, que ainda não havia sucedido
em se tornar desonrado, ainda que já fosse há muito tempo infeliz.
A vida clara e ascendente de Moscou Tchêstnova começara a partir daquele
dia de outono, quando ela se sentava perto da janela na escola, já na segunda classe,
observava a morte das folhas secas no bulevar, e lera com interesse a tabuleta no
prédio do outro lado da rua: “Biblioteca e sala de leitura proletário-camponesa
A. V. Koltsóv3”. Antes da última aula, deram para todas as crianças, pela primeira
vez na vida delas, um pãozinho com um croquete e batata para cada uma, e ex-
2 A palavra tchést’, a partir da qual o sobrenome de Moscou é criado, significa “honra” em russo.
3 Aleksêi Vasílievitch Koltsóv (1809-1842), poeta russo natural de Vorôniej, a mesma cidade onde
nasceu Platónov.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 87
был конец сентября месяца и тот год, когда кончились все войны и транспорт
начал восстанавливаться.
В детском доме девочка Москва Честнова находилась уже два года,
здесь же ей дали имя, фамилию и даже отчество, потому что девочка помнила
свое имя и раннее детство очень неопределенно. Ей казалось, что отец звал
ее Олей, но она в этом не была уверена и молчала, как безымянная, как тот
погибший ночной человек. Ей тогда дали имя в честь Москвы, отчество в
память Ивана — обыкновенного русского красноармейца, павшего в боях,
— и фамилию в знак честности ее сердца, которое еще не успело стать
бесчестным, хотя и было долго несчастным.
Ясная и восходящая жизнь Москвы Честновой началась с того осеннего
дня, когда она сидела в школе у окна, уже во второй группе, смотрела в смерть
листьев на бульваре и с интересом прочитала вывеску противоположного
дома: «Рабоче-крестьянская библиотека-читальня имени А.В.Кольцова».
Перед последним уроком всем детям дали в первый раз их жизни по белой
булке с котлетой и картофелем и рассказали, из чего делаются котлеты — из
коров. Заодно велели всем к завтрашнему дню написать сочинение о корове,
кто их видел, а также о своей будущей жизни. Вечером Москва Честнова,
наевшись булкой и густой котлетой, писала сочинение за общим столом,
когда все подруги ее уже спали и слабо горел маленький электрический свет.
«Рассказ девочки без отца и матери о своей будущей жизни. — Нас учат
теперь уму, а ум в голове, снаружи ничего нет. Надо жить по правде с тру-
дом, я хочу жить будущей жизнью, пускай будет печенье, варенье, конфеты
и можно всегда гулять в поле мимо деревьев. А то я жить не буду, если так,
мне не хочется от настроения. Мне хочется жить обыкновенно со счастьем.
Вдобавок нечего сказать».
Из школы Москва впоследствии сбежала. Ее вернули снова через
год и стыдили на общем собрании, что она как дочь революции поступает
недисциплинированно и неэтично.
— Я не дочь, я сирота! — ответила тогда Москва и снова стала при-
лежно учиться, как не бывшая нигде в отсутствии.
Из природы ей нравились больше всего ветер и солнце. Она любила
лежать где-нибудь в траве и слушать о том, что шумит ветер в гуще растений,
как невидимый, тоскующий человек, и видеть летние облака, плывущие
далеко над всеми неизвестными странами и народами; от наблюдения
облаков и пространства в груди Москвы начиналось сердцебиение, как будто
ее тело было вознесено высоко и там оставлено одно. Потом она ходила по
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 91
Referências
GOMIDE, Bruno Barretto (ed.). Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998). São Paulo:
Editora 34, 2011.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 93
Resumo: Este artigo apresenta seis traduções do poema “Iá bíeden, odinók i nag”, de Varlam Tíkhonovitch
Chalámov (1907-1982). A prosa de Chalámov, lançada recentemente no Brasil, há muito vinha sendo destacada
por Boris Schnaiderman como a grande obra de denúncia dos campos de trabalhos forçados do período stalinista. Na
poesia, o autor produziu o ciclo Cadernos de Kolimá, que contém o poema traduzido aqui.
Palavras-chave: Poesia russa, Varlam Chalámov, Tradução de poesia
Varlam Chalámov
Introdução
O título deste artigo não foi escolhido por nós, participantes da experiên-
cia de tradução de versos de Varlam Chalámov para o português, em belos dias
de inverno ameno de um julho de Porto Alegre. O título deste artigo se impôs.
1 Do conto “Xerez” em Contos de Kolimá. Trad. Denise Sales e Elena Vassilevich. Editora 34, 2016,
p. 111.
94 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”
2 In: Собрание сочинений: В 4-х т. / Сост., подгот. текста и примеч. И. Сиротинской. М.: Худож.
лит.: ВАГРИУС, 1998. (Sobranie sotchineni: V 4-kh t. / Sost., podgot. teksta i primetch. I. Sirotinskaia.
M.: Khudoj. lit.: VAGRIUS, 1998; Obras reunidas em 4 volumes. Organizadora, preparadora do texto e das
notas Irina Sirotinskaia. Moscou: Khudojestvnaia Literatura: VAGRIUS, 1998) Disponível em https://
shalamov.ru/library/14/3.html Acesso em 03 mai 2017.
96 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”
3 Agradeço a Natália Cristina Quintero Erasso e Alexandr Kornev pelo cotejo do poema durante a
revisão deste artigo.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 97
4 «Граница совести моей» (Granitsa sovesti moei; A fronteira da minha consciência). Iuli Chreider.
Disponível em https://shalamov.ru/critique/205/. Acesso em 15 jun 2017.
5 «Tема памяти в лирике В. Шаламова» (Tema pamiati v lirike V. Chalámov; O tema da memória
na lírica de V. Chalámov). Daria Kromova. Disponível em https://shalamov.ru/research/304/. Acesso
em 09 jun 2017.
98 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”
associação entre “versos” e “austeros”, algo não presente no original russo, mas
que creio que pode contribuir para o sentimento de isolamento e austeridade
presentes no poema.
Ainda em relação às alterações de significado, talvez as mais distantes se-
jam “tênue e parva treva” para “бледной тьме” e “cenários surdos de inverno”
para “Деревья, голы и глухи”. Essas expressões apresentam de certo modo uma
interpretação minha ao adicionar o sentido de “tênue” para o que seria em russo
“pálida treva” e, no segundo caso, interpretar “árvores, nuas e surdas” como o
cenário vislumbrado pelo eu lírico, o qual é “surdo” pela quietude desse cenário.
Essa questão traz a tona uma das dificuldades que considero das mais
interessantes ao traduzir este poema que é a de como reproduzir em português
brasileiro expressões tão marcantes do frio siberiano. É bastante difícil reproduzir
a sensação do frio que rompe os brônquios ou a paisagem árida vislumbrada pelo
eu lírico. Em alguns casos, como a “lilás polar escuridão” creio que apesar desses
cenários não serem plenamente compreendidos por quem não possui proximi-
dade com tais regiões, evocam uma imagem que mistura a beleza e o isolamento
dessas regiões.
Por fim, gostaria de destacar o fato de como o processo tradutório me
fez apreciar mais a beleza deste poema, que, apesar de sua brevidade e estrutura
simples, apresenta uma concisão de ideias e imagens, assim como uma perfeita
harmonia entre todos os elementos que constituem o poema, demonstrando todo
o zelo que Chalámov deve ter tido ao compô-lo.
Declamo o poema,
versos a bradar.
Desnudo a cena,
Em surdo o arvorar.
9 Ao empregar “efeito sonoro típico” entende-se que o modelo de correlação sonora estabelecida no
poema de partida foi parâmetro para o desenvolvimento do nível rímico do poema traduzido.
10 Apesar de alguns versos requererem maior atenção por parte do leitor, o tradutor tentou manter o
tom geral do poema em formato coloquial.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 105
11 O uso das vírgulas, nesse caso, seria importante gramaticalmente, visto que se trata de versos cujas
palavras se ocupam em listar e especificar determinadas condições tanto do cenário quanto do sujeito
poético.
106 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”
foi possível reproduzir a sequência com um “e” iniciando cada verso ao mesmo
tempo em que se manteve parcialmente o conteúdo semântico: “точно камни”
[tôtchna kámni] foi traduzido como “eternos sermões”, ao passo que foram mantidas
as “lágrimas” [капли слёз; kápli slhôz], a imagem do frio dilacerando os brônquios
e fechando a boca, o suor congelando. Entretanto, a rima “lábios – gelado” ficou
um pouco comprometida, forçando uma solução menos usual.
Em outros momentos, foi necessário adaptar o conteúdo, como em
“деревья, голы и глухи” [diriêvia, gôly i glurrí] (o ambiente, pouco acolhedor),
onde as árvores tornaram-se o cenário e seu caráter nu, frio e quieto interpretado
como pouco acolhedor.
Vale também notar, no segundo e no último verso da quarta estrofe, a apa-
rente falta de rigor do próprio autor russo ao sugerir uma rima menos ortodoxa
entre “кричу” kritchú [krʲɪˈtɕu] e “чуть” tchut’ [tɕutʲ]12. O mesmo ocorre em todos
os quatro versos da última estrofe, sempre perfeitamente justificáveis, inclusive
com análises fonéticas: гор gôr [ɡor] – легко lirrkó [lʲɪxˈko]; ушах uchárr [ʊˈʂax]
– дышать dychát’ [dɨˈʂatʲ].
Finalmente, para além das mudanças feitas no conteúdo da última estrofe,
há um detalhe rítmico no último verso da mesma estrofe que gostaria de mencio-
nar: de modo que o metro de quatro sílabas seja respeitado, a palavra “respirar”
precisa ser pronunciada com uma leve síncope: [ʁesˈpɾa(ɾ)].
Referências
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010.
_____. “O texto como produção (Maiakóvski)”. In: _____. A operação do texto. São Paulo:
Perspectiva, 1976b, p. 43-88 (1ª. ed.: Maiakovski em português: roteiro de uma tradução.
Revista do Livro, no. 23/24, jul./dez. de 1961, p. 23-50).
NÓBREGA, Thelma Médice; GIANI, Giana M. G. “Haroldo de Campos, José Paulo Paes
e Paulo Vizioli falam sobre tradução”. Revista Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas,
v. 11, p. 53-65, jan./jun. 1988.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.
Bolshoi tolkovi slovar ruskogo iazika [Grande Dicionário Explicativo da Língua Russa]. Org.
S. А. Kuznetsov. São Petersburgo, 1998.
12 Optei, neste trecho, por acrescentar ambas a transliteração e a transcrição fonética em IPA (Inter-
national Phonetic Alphabet) do texto russo, o que permite a um leitor já familiarizado com esse tipo de
transcrição uma análise mais precisa e detalhada do tema.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 109
Marina Darmaros1
Resumo: Iúli Daniel nunca se considerou poeta, como relembra seu filho, Aleksandr, em introdução a este artigo.
Mas, durante os cinco anos entre o cárcere e o gulag, o tradutor dedicou-se a uma produção autoral que resultou na
publicação de uma coletânea de poemas, entre eles, “O ringue”, aqui vertido do russo ao português pela primeira
vez, apesar de sua figura ter ganhado alguma repercussão no Brasil ainda nos anos 1960, quando de sua prisão.
Palavras-chave: URSS, poesia, Estudos da Tradução, Literatura Russa
Abstract: Yuli Daniel never considered himself a poet, as his son Alexandr recalls in an introduction written
exclusively to this article. But during five years he spent between jail and gulag, the translator devoted himself to an
authorial production which resulted in the publication of a poem collection which included “The ring”, translated
here into Portuguese for the very first time although his figure have gained some repercussion in Brazil in the 1960s,
when he was arrested.
Keywords: USSR, poetry, Translation Studies, Russian Literature
Аннотация: Как писал в предисловии к этой статье его сын Александр, Юлий Даниэль никогда не
считал себя поэтом. Однако, в течение пяти лет между тюремным заключением и ГУЛАГом переводчик
посвятил себя созданию авторских произведений, которые позже были опубликованы в формате сборника
его стихов. В сборник вошло и стихотворение «На ринге», перевод которого на португальский публикуется
здесь впервые, несмотря на то, что в 1960-х годах, во время тюремного заключения автора, в Бразилии
его фигура не оставалась безызвестной.
Ключевые слова: СССР, поэзия, переводоведение, русская литература
1 Marina Darmaros é mestra em Jornalismo Internacional pela Rossisski Universitet Drujbi Narodov
e doutoranda no programa de Literatura e Cultura Russa da USP. Sua pesquisa atual, orientada pela Prof.
Dra. Elena Vássina, está voltada ao cotejo da obra original de Jorge Amado com suas traduções para o
russo na extinta União Soviética. Contato: [email protected]
110 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel
2 No original: “... secondly, by publishing these stories abroad and thus detracting from the Soviet
Union’s prestige in the eyes of capitalist countries”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 111
3 No original: “... one rehabilitation of particular interest” e “The Motherland herself is becoming so
tolerant of poetry that poets reciting their work on the streets of Moscow are quite a common sight and
literary clubs are flourishing”.
4 No original: “In the May 1989 issue of Ogonyok Yevgeni Yevteshenko says that Senator Robert
Kennedy informed him during his visit to New York in November 1961, that the pseudonyms Arzhak
and Tertz had been linked by the C.I.A. to Daniel and Sinyavsky for the K.G.B. Clearly without this in-
formation the trial would never have taken place. The Americans’ motive was to distract attention from
their bombing campaign in Vietnam. Other sources suggest Kennedy himself was responsible, hypocritical
backstabbing given that Kennedy was one of the most vociferous American detractors of the Soviet
Union during the Daniel- Sinyavsky affair”.
112 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel
5 Nota de Aleksandr Daniel (daqui para frente, N.A.D.): Esta novela foi aceita para publicação em 1965
pela editora “Detgiz” e chegou a ser impressa em tipografia – mas então Daniel foi preso e toda a tiragem
impressa, destruída.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 113
curta, “Govorít Moskvá” –, a mesma prosa que ele publicou em segredo no exterior
sob o pseudônimo “Nikolai Arjak” e devido à qual foi condenado a cinco anos no
campo de trabalhos forçados. Seu amigo Andrêi Siniávski, condenado junto com
ele, formulou seu próprio projeto literário, que chamou de “realismo fantástico”, e
o concretizou vigorosamente em romances, novelas e contos de seu pseudônimo
Abram Terts. Siniávski tinha entendido claramente que trilhava um novo caminho
na literatura nacional. Já Daniel, lidava com grande respeito e admiração com o
experimento literário de Siniávski-Terts sem, no entanto, proceder de qualquer
projeto teórico: ele apenas experimentava a si próprio na literatura de ficção, não
superestimando (imagine só, melhor seria ainda dizer subestimando sim) os re-
sultados. Ele termina sua novela “Govorít Moskvá” com as palavras: “Penso que
minha obra poderia ter sido escrita por qualquer outra pessoa de minha geração,
de meu destino, já que eu também sou um amante deste detestável e belo país”.
A literatura de ficção não era a principal ocupação de sua vida: é interessante no-
tar que ele sempre escreveu sua prosa limpa, sem borrões, rascunhos e versões,
sujeitando os escritos apenas a edições estilísticas insignificantes. Às vezes me
parece que toda a história com a “escrita secreta” era para ele, principalmente,
uma aventura literário-biográfica, um incidente arriscado no mundo da filologia.
A verdadeira profissão literária de Iúli Daniel era a tradução poética, e ele
lidava com essa sua profissão com extrema seriedade. Para dar o som adequado
em russo a alguma oitava em língua estrangeira, ele podia se debruçar por semanas
ou meses sobre uma tradução literal, alterando e jogando fora dezenas de versões,
mergulhando, repetidas vezes, na arte do poeta traduzido, na cultura e na história do
outro país. Com orgulho, ele chamava a si próprio de artesão da tradução poética,
colocando no radical da palavra “artesão” seu significado primário, comercial-
-medieval e de agremiação.
Pretender a um título de poeta nem se passava pela cabeça de Daniel: ele co-
locava a poesia russa em uma posição alta demais, a mais alta possível, para fazê-lo.
Para mim, foi inesperado quando, em fevereiro de 1966, no primeiro en-
contro na solitária preventiva de Lefortovo, já após o julgamento e a condenação,
meu pai nos informou, a mim e minha mãe, que começara a compor versos na
prisão. Ele quis até mesmo ler para nós um deles, que, como disse, tinha “con-
teúdo puramente esportivo” – mas foi interrompido pelo vigilante carcereiro que
presenciava o encontro. Possivelmente, era justamente o poema “Na ringue” (em
tradução livre, “No ringue”).
“O que o papai tem?”, eu perguntei a minha mãe enquanto saíamos do
encontro. “O que há com ele, ele resolveu se reclassificar como poeta?”. “Não
114 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel
6 N.A.D. Andrêi Siniávski e Iúli Daniel estiveram entre os últimos prisioneiros desta conhecida prisão
preventiva da URSS: no outono ela foi fechada e todos os que eram mantidos nela sob investigação, entre
eles, Siniávski e Daniel, foram transferidos às solitárias preventivas da KGB em Lefortovo.
7 N.A.D. DANIEL, Iúli. “Iá vsio sbivaius na literaturu...”. Pismá iz zakliutchenia. Stihi. Moscou:
Memorial-Zvenia, 2000. p. 143.
8 N.A.D. Idem, p. 398.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 115
esses poemas, e não só poemas) era uma ilustração para mim” (da carta N° 68, datada de
18/12/1969).9
Levando em conta esses trechos, os poemas autorais de Daniel não eram
para ele “Poesia com ‘P’ maiúsculo”, mas somente um meio de expressão própria,
um meio amplo e enérgico de comunicação com o mundo, sobretudo com os
amigos. A verdadeira Poesia, segundo ele, não podia ser um meio, ela tinha um
fim em si própria; de lá vem a dúvida sobre se o que ele escreve é realmente poe-
sia. Mas a expressão própria e a comunicação são necessárias, porque Iúli Daniel
precisa se assinalar publicamente, sua percepção do mundo de então, seu ponto
de vista sobre o papel que ele acabava de desempenhar – o papel de herói de um
notório processo político. Para Daniel, um homem excepcionalmente isolado, foi
de uma estranheza profunda o papel de “figura pública”. Mas já que o destino o
levou a esse papel, ele não planejava se esquivar do destino – apesar de, ao mes-
mo tempo, ter a intenção de se distanciar com firmeza do pathos dissimulado que
frequentemente se conjuga à “posição civil significativa socialmente”. Existe, para
um escritor que domine a pena, uma maneira melhor de declarar sua verdadeira
posição que a poesia?
“... sei perfeitamente que não sou nenhum poeta lírico (nos versos, pelo menos), meus
versos são declaratórios (o que, pensando bem, parece-me justamente agora que tem certo sentido)
e, em geral, eles são uma condescendência por si sós. Escapo – ‘amarro-me’.” (da carta N° 4,
datada de 20/4/1966)10.
Toda essa imagem mais espontânea se relaciona também ao poema “Na
ringue” (em tradução livre, “No ringue”) – uma metáfora ingênua e nem um pouco
mascarada da oposição ao Comitê de Segurança Nacional, oposição pela qual o
autor acabava de passar e que ele ainda enfrentaria.
Além disso, os versos são o gênero tecnicamente mais oportuno para
prisões e campos de trabalhos forçados. Não é preciso ocultar a todo mo-
mento manuscritos receando uma súbita busca e confisco dos escritos, já que
é fácil lembrar-se de versos. Depois, às vezes, pode-se libertar11 o material
caso a censura do campo deixe passar por carta, ou, se não deixar, fazê-lo por
algum canal “ilegal”.
* * *
Fui apresentado aos poemas de meu pai em março de 1966, quando fomos
pela primeira vez ao campo de trabalhos forçados da Mordóvia, ao chamado
“encontro pessoal”. Os encontros pessoais no campo, que tinha regime de alta
segurança, aconteciam uma vez por ano (se haviam), com duração de 12 horas
a três dias. Nós, desta vez, recebemos dois dias. Para tanto, entre a primeira e
segunda fileira de arame farpado, foi construída a “casa dos encontros” – uma
pequena construção de um andar e adjacente à guarda, com três ou quatro peque-
nos quartos em ambos os lados do longo corredor. Foi em um desses quartinhos
que fomos jogados, e logo trouxeram também meu pai. Aqui viveríamos juntos
por dois dias.
Meu pai encontrou uma maneira de trazer consigo ao encontro, passando
pela revista obrigatória, algumas páginas de caderno em que, com a letra apertada,
anotou seus poemas da prisão e os primeiros do campo de trabalhos forçados;
então, ele já tinha cerca de duas dezenas deles. Naturalmente, ele próprio lem-
brava de seus versos mesmo sem cola; os textos anotados eram necessários para
que nós tentássemos render-lhes a liberdade12 depois do encontro. Mas não havia
qualquer certeza de que nós conseguíssemos isso: nós também deveríamos ser
revistados na saída, após o encontro. Por isso, gastei parte do encontro relendo
algumas vezes os poemas de meu pai e decorando-os. Consegui sem dificuldades:
aos quinze anos, a memória é jovem e tenaz, e sempre lembrei-me de poesias
com particular facilidade. (Resumindo, lembro desta seleção de versos ainda hoje,
50 anos depois, palavra por palavra). Também foi possível passar as anotações
sem problemas: antes do final do encontro, sem pensar muito, enfiei-as na meia,
calcei-me e saí para a área de guarda, soltando a cada passo um ruído suspeito.
Claro que a qualquer revista mais ou menos cuidadosa os papéis com os poemas
seriam inevitavelmente encontrados e confiscados. Felizmente, a revista desta vez
foi bem superficial: ordenaram-me que tirasse os sapatos e checaram as botas, mas
não me fizeram tirar as meias.
12 N.M.D.: Aleksandr faz novo uso de “vôlia” sobre os papéis, desta vez, conjugado com o verbo “vi-
nesti” (retirar, passar): “... чтобы мы попытались после свидания вынести их на волю”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 117
zinhos microscópicos, com letras quase indistinguíveis a olho nu, estava inscrito
um ciclo poético ou, melhor dizendo, o poema de Iúli Daniel “A v eto vrêmia...”
(“E neste tempo...”), com quase 300 linhas; cada um dos nove poemas desse
ciclo ocupava, em média, seis centímetros quadrados de papel. Isto foi resultado
do trabalho, como eu soube depois, de um companheiro de campo do meu pai,
Serguêi Mochkov; antes da prisão, Serguêi era um estudante do quinto ano da
faculdade de biologia e tinha uma ótima experiência com preparados microscópi-
cos. Eu não tinha tal habilidade, e passei alguns dias com a lupa decifrando essas
inscrições. Outra ksíva que chegou mais tarde continha a tradução cunhada por
meu pai de um poema do poeta letão Knuts Skuienieks, hoje reconhecidamente
líder da literatura contemporânea letã, mas, naquele tempo, colega de campo de
trabalhos forçados de Daniel. O poema, intitulado “Ne ogliádivaisia!” (“Não olhe
para trás!”), era em si próprio uma inversão da trama do mito da Antiguidade de
Orfeu e Eurídice (Eurídice desce a Hades para retirar de lá o autor, Orfeu) e era
repleto de alusões aos campos e reminiscências. Meu pai, de qualquer maneira,
até no campo tentava, sobretudo, retornar a sua profissão literária principal: a de
tradutor de poesia.
No que diz respeito a sua própria poesia autoral, em cinco anos de cativeiro
Iúli Daniel reuniu quase meia centena de poemas independentes e aquele curto
supramencionado. Tudo isso foi publicado na coletânea “Stikhí iz nevôli” (“Poe-
mas do cativeiro”), que foi lançada em Amsterdã em 1971, logo após a libertação
de Daniel da prisão. Relativamente há pouco tempo, já depois da morte de meu
pai, fiquei sabendo que a publicação foi feita com seu conhecimento e sob seu
consentimento.
Em liberdade, Daniel lidava com os resultados poéticos de seus cinco anos
de “missão artística” da mesma maneira como o fazia durante a prisão: de maneira
moderada, sem afetação, mas também sem se autodestruir. Quando pediam que
ele declamasse seus poemas do campo e da prisão, ele o fazia, apesar de também
sem grande desejo. Com grande prazer, porém, lia suas traduções feitas naquele
mesmo período, do supracitado poema de Knuts Skuienieks até o clássico francês
do século 19 Théophile Gautier, que traduziu na prisão de Vladímir. Quando foi
libertado, ele se entregou completamente a sua principal ocupação literária, a tra-
dução de poesia, e trabalhou muito e de maneira frutífera nessa esfera, realizando-a
com alegria e deleite, apesar de as condições para publicação serem bastante humi-
lhantes: ele só estava autorizado a publicar suas traduções sob pseudônimo (e não
aquele, claro, sob o qual um dia publicou sua prosa “criminosa” além-fronteiras,
mas outro, imposto pela KGB, Iúri Petróv). Iúli Daniel também não deixou, de
maneira alguma, a prosa, apesar de já não haver retornado à literatura de ficção: até
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 119
meados dos anos 1980, ele continuou o ciclo de miniaturas de memórias e ensaios
pensados ainda na prisão de Vladímir, sob o título geral de “Svobôdnaia okhôta”
(“Caça livre”). Mas, ao transpor o limiar dessa prisão em 12 de setembro de 1970
e sair para a liberdade, ele não compôs mais nem um único verso poético autoral
(à exceção de diferentes tipos de improvisos cômicos, os quais todos fazemos de
vez em quando). Jamais.
На ринге No ringue
Юлий Даниэл Iúli Daniel
17 Эта повесть в 1965 году была принята к публикации в издательстве «Детгиз» и даже отпечатана
в типографии – но тут Даниэля арестовали и весь отпечатанный тираж пошел «под нож».
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 121
18 Андрею Синявскому и Юлию Даниэлю выпало стать едва ли не последними узниками этой
самой знаменитой в СССР следственной тюрьмы: осенью она была закрыта, а всех содержавшихся
в ней подследственных, в том числе Синявского и Даниэля, перевели в следственный изолятор
КГБ в Лефортово.
19 Юлий Даниэль. «Я все сбиваюсь на литературу…». Письма из заключения. Стихи. – М.:
«Мемориал»-«Звенья», 2000. - С.143.
20 Там же, с.398.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 123
ведь как думал? Все это (не только эти стихи и не только стихи) — иллюстрация ко
мне» (из письма №68, запись от 18/XII-69).21
Судя по этим цитатам, собственные стихи для Даниэля не «Поэзия
с большой буквы», а лишь средство самовыражения, емкое и энергичное
средство коммуникации с миром, прежде всего – с друзьями. Настоящая
же Поэзия, по его мнению, не может быть средством, она самоценна;
отсюда постоянные сомнения в том, действительно ли то, что он пишет,
настоящая поэзия. А самовыражение и коммуникация необходимы, ибо
Юлию Даниэлю необходимо публично обозначить себя, свое нынешнее
мироощущение, свой взгляд на роль, которую он только что сыграл – роль
героя громкого политического процесса. Даниэлю, сугубо частному человеку,
была глубоко чужда роль «общественного деятеля». Но коль скоро судьба
привела его к этой роли, он не собирается уклоняться от судьбы – однако
при этом намерен твердо дистанцироваться от ложного пафоса, часто
сопрягаемого с «общественно значимой гражданской позицией». Есть ли
для литератора, владеющего пером, лучшее средство декларировать свою
истинную позицию, чем стихи?
«…отлично знаю, что никакой я не лирик (в стихах, по крайней мере), вирши
мои декларативны (что, впрочем, именно сейчас кажется мне имеющим определенный
смысл) и вообще они — поблажка самому себе. Выберусь на волю — «завяжу»» (из
письма №4, запись от 20/IV-66).22
Все это самым непосредственным образом относится и к
стихотворению «На ринге» - нехитрой и нисколько не замаскированной
метафоре противостояния с Комитетом госбезопасности, того,
противостояния, через которое автор только что прошел, и того, которое
ему еще предстоит.
Кроме того, стихи – технически самый подходящий жанр для тюрьмы
и лагеря. Не надо прятать и перепрятывать рукописи, опасаясь внезапного
обыска и изъятия написанного, ибо стихи легко запомнить. А потом, при
случае, передать на волю, если лагерная цензура их пропустит, – в письме,
если нет – по какому-нибудь «нелегальному» каналу.
* * *
Referências
Daniel, Iúli. Iá vsio sbivaius na literaturu... Pismá iz zakliutchenia. Stihi. Moscou: Memorial-
-Zvenia, 2000. p. 143.
Hutcheson, Mark. Russian Poetry and Glasnost: A Case Study. The Poetry Ireland Review.
No. 26 (Summer, 1989), pp. 62-67.
Jornal do Brasil. Escritores russos negam acusações. 11/02/1966, p. 8.
Jornal do Brasil. Brasileiros defendem escritores. 20/02/1966, p. 8.
Publicações eletrônicas:
https://br.rbth.com/arte/literatura/2017/07/11/os-homens-que-copiavam_800320
128 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
André Nogueira1
1 Formado bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Está em fase de conclusão
o mestrado no Programa de Pós-graduação em Cultura e Literatura Russa da Universidade de São Paulo,
sob a orientação do prof. Dr. Mário Ramos Francisco Júnior. E-mail [email protected]
* A pedido do tradutor e autor deste artigo, o mesmo se apresenta em sua grafia original, não acatando
ao novo “acordo” ortográfico da língua portuguesa. O autor-tradutor possui trabalhos em andamento,
onde se posiciona sobre o assunto, e solicita que se respeite seu posicionamento em toda a extensão de
sua atividade escrita, literária ou acadêmica.
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* * * (2) ***
Não têm rosto, não têm nomes, – Нету лиц у них и нет имён, —
Nem canções eles entonam. Песен нету!
Só o Krêmlin badala e quase some Заблудился ты, кремлёвский звон,
Na floresta de revoltos estandartes. В этом ветреном лесу знамён.
Reza, Moscou, para teu eterno sono Помолись, Москва, ложись, Москва, на
a preparar-te. вечный сон!
* * * (4) ***
Por mais vil que seja o crime de seu pai, Грех отцовский не карай на сыне.
Oh, Rússia pastoril, vós perdoai Сохрани, крестьянская Россия,
O cordeirinho Alexei de Nikolai! Царскосельского ягнёнка — Алексия!
* * * (5) ***
* * * (6) ***
* * * (8)
***
PARA MOSCOU
1 (9)
9 de dezembro 1917
МОСКВЕ
9 декабря 1917
2 (10)
10 de dezembro 1917
2
10 декабря 1917
3 (11) 3
DON ДОН
Guarda branca – teu caminho é altíssimo: Белая гвардия, путь твой высок:
Contra a boca do fuzil – teu nu heroísmo. Чёрному дулу – грудь и висок.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 137
De Deus o teu branco, teu santo dever: Божье да белое твоё дело:
Ao branco corpo teu – na areia padecer. Белое тело твоё – в песок.
Bando de cisnes que voa à luz da aurora? Не лебедей это в небе стая:
O branco batalhão, em toda a sua glória, Белогвардейская рать святая
Como branca aparição – evapora, evapora... Белым видением тает, тает…
* * * (13) ***
O vento pela estepe com estrépito soluça: И рыщет ветер, рыщет по степи́:
– Rússia! – Mártir! – Dorme em paz! – Россия! – Мученица! – С миром – спи!
* * * (14) ***
* * * (15)
***
* * * (16) ***
É tão simples, como dois mais um são três: Это просто, как кровь и пот:
Os reis são do povo, o povo – dos reis. Царь — народу, царю — народ.
Foi o céu quem destinou o rei ao trono: Царь с небес на престол взведён:
É tão claro, como a neve, como o sonho. Это чисто, как снег и сон.
Sobe o rei de volta ao trono cedo ou tarde – Царь опять на престол взойдёт —
É tão sagrado, como o mistério da Trindade. Это свято, как кровь и пот.
* * * (17) ***
Não. Na Praça Vermelha, em marcha Нет, — Красная площадь, где весь народ!
À guilhotina – como de praxe... – И — Лобное место сравняв — в поход:
Os pintinhos, teus órfãos, se acham. Птенцов — собирать — сирот.
O povo, sem cabeça, só espera uma coroa. Народ обезглавлен и ждёт главы.
Que o alento lhe devolvas com teu vôo. Уж воздуху нету ни в чьей груди.
Arcanjo! – Águia! – Trovoa! Архангел! — Орёл! — Гряди!
Não é raio nem tufão que vem descendo, Не зарева рыщут, не вихрь встаёт,
Nem no céu um arco-íris, – senão Pedro Не радуга пышет с небес, — то Пётр
Que aqui veio revistar seu passaredo. Птенцам производит смотр.
* * * (18) ***
* * * (19) ***
* * * (20)
9 de agosto 1918
***
9 августа 1918
* * * (21) ***
* * * (22) ***
* * * (23) ***
* * * (24)
25 de outubro 1918
***
25 октября 1918
* * * (25) ***
Os caminhos são vários que levam ao Pai. В отчий дом – дороги разные.
Perdoai Stenka Rázin! Пощадите Стеньку Разина!
Rázin, Rázin! Sua história é um mito! Разин! Разин! Сказ твой сказан!
À besta vermelha domaram e ataram, Красный зверь смирён и связан.
Quebraram seus dentes vorazes. Зубья страшные поломаны,
Pela vida de delitos, Но за жизнь его за тёмную,
Deus e Tsar! Pelas festas que hoje fazem – Царь и Бог! Для ради празднику –
Libertai Stenka Rázin! Отпустите Стеньку Разина!
EM MEMÓRIA DE A. A. STAKHÓVITCH
1 (26)
ПАМЯТИ А. А. СТАХОВИЧА
2 (27) 2
Queres saber como vai indo Хочешь знать, как дни проходят,
Minha vida no país da fria guerra? Дни мои в стране обид?
No coração um nome lindo, Две руки пилою водят,
Os dois braços trabalhando feito serras. Сердце — имя говорит.
* * * (30) ***
<“Incluo este poema de memória, e creio que <Вписываю во памяти и думаю, что осень
seja de outono de 1919”> 1919 г.>
9 de maio 1920
БЛОКУ
9 мая 1920
Eis qual foi teu plano: Вся жизнь твоя — в едином крике:
– Contra os avós! – Pelos filhos! — На дедов — за сынов!
Não, grandíssimo Soberano, Нет, Государь Распровеликий,
Imperador de maravilhas, Распорядитель снов,
E a santa Rússia putrefeita não viria Вся Русь твоя святая в землю
A se afundar nessa matança. Не шла бы без гробов.
* * * (34) ***
Tenho em meu porte – retidão oficial, Есть в стане моём – офицерская прямость,
E nas costelas – oficial dignidade. Есть в рёбрах моих – офицерская честь.
Não reclamo do meu fardo habitual – На всякую му́ку иду не упрямясь:
Eis que a coragem de um soldado me invade. Терпенье солдатское есть!
Como outrora endireitassem o meu passo Как будто когда-то прикладом и сталью
A coronhadas, com a cólera do aço, Мне выправили этот шаг.
E a cintura de tcherkessk ostentasse, Недаром, недаром черкесская талья
Só o cinto de couro apertado me laça. И тесный реме́нный кушак.
Como a largura da ilharga minha inteira А зо́рю заслышу – Отец ты мой ро́дный! –
Fosse feita para o peso da algibeira, Хоть райские – штурмом – врата!
Ao crepúsculo escuto o paraíso lá no alto Как будто нарочно для сумки походной –
– Oh, meu Pai! – que foi tomado de assalto! Раскинутых плеч широта.
152 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
E assim meu coração ranger parece И так моё сердце над Рэ-сэ-фэ-сэром
Mastigando certo U-erre-esse-esse, Скрежещет — корми-не корми! —
E eu mesma oficial a mim descubro Как будто сама я была офицером
Como fosse no mortal tempo de Outubro. В Октябрьские смертные дни.
* * * (35) ***
Considerações
2 Na forma diminutiva.
154 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
3 Nossa tradução. [Моя вторая дочь Ирина — родилась 13го апрѣля 1917 г., умерла 2го февраля
1920 г. въ Срѣтенiе, отъ голода, въ Кунцевскомъ дѣтскомъ прiютѣ]. Obs.: A edição de Лебединый
Стан a que nos referimos aqui, e indicada em primeiro lugar na Bibliografia, contém o texto original de
Tsvetáieva, revisado por ela em 1938. Em 1918 a língua russa passou por uma reforma ortográfica que
derrubou a letra iat (Ѣ), letra esta que a poeta (talvez não reconhecendo a legitimidade do governo) se
negou, terminantemente e até o fim, a suprimir de sua escrita e, ademais, de sua própria assinatura (posto
que a grafia original de seu sobrenome é “ЦвѢтаева”). Nessa edição consultamos as notas de Tsvetáieva,
algumas delas citadas neste comentário. Mas para a disposição dos textos originais junto à tradução usamos
a versão atualizada, constante nos endereços eletrônicos elencados em nossa Bibliografia.
4 A esse respeito ver TOLEDO, Raquel Arantes. Uma aventura: o teatro de Marina Tsvetáieva. São Paulo:
FFLCH-USP 2015. Dissertação disponível no sistema.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 155
afastar como a um inimigo de guerra, e por outro lado assume uma expressão cada
vez mais objetiva, que lhe permite superar a crise do simbolismo e ingressar para
a modernidade com todo o avanço que Tsvetáieva sabidamente representou para
a poesia russa do século XX. Os poetas de vanguarda, em particular os futuristas,
foram as pontas de lança no âmbito do experimento poético com a linguagem.
O rompimento radical que pregaram, no calor da revolução, para com a tradição
precedente, levou a cabo uma crítica ao simbolismo. Nessa época, Tsvetáieva pas-
sara por uma fase “simbolista”, como se costuma dizer, sob especial influência de
Alexander Blok, a quem dedicou um ciclo poético em 1916. Em Acampamento de
Cisnes ela não intenta se tornar uma poeta experimental e, pelo contrário, permanece
ligada à técnica simbolista, embora a supere, efetivamente, através do salto material
que a revolução provê. Um sinal disso vemos nesta nova dedicatória a Blok (32). Se
em Versos para Blok [Стихи к Блоку] (1916) o ícone da poesia simbolista figurava
para ela como um anjo, neste poema de 1920 o anjo está despedaçado em uma
Rússia que detonou seu ideal de mundo. Assim expressa a imagem da bomba que
o anuncia, como explica Tsvetáieva em nota: “Verídico: ao som das explosões no
bairro Khodinki e sob uma chuva de cacos, íamos – ele para o palco, nós para a
platéia. Na verdade, isso aconteceu sob os estrondos dos projéteis que irrompiam
da Revolução” (TSVETÁIEVA, 2006, pág. 24)5. Recepciona o antigo mensageiro
da alma russa a dissolução mesma da promessa messiânica que ademais animava
o movimento simbolista. Tsvetáieva, que nunca professara simpatia pela igreja
ortodoxa, cria com ela uma identificação momentânea, assume o elo ideológico
entre Deus, o Tsar e a Rússia, a terra prometida; não obstante, Tsvetáieva teste-
munha o sepultamento dessa promessa (13) com maior independência do que o
anjo desorientado que ela enxerga em Blok.
O mesmo ocorre com toda a simbologia de seu Acampamento de Cisnes.
Encontra-se o herói romântico, ideal da “rebelião individualista” que moveu a
fase juvenil da poeta e cujo principal protótipo fora Napoleão. Porém, ao atribuir
o título de Napoleão à figura de Alexander Kerenski, no poema de 21 de maio de
1917 (6), a poeta esboça antes um retrato da época: a associação entre o líder do
governo provisório e a figura de Bonaparte era corrente nos meios de comuni-
cação, comentava-se nas ruas os “olhos sonâmbulos” de Kerenski, os elementos
performáticos que marcaram sua ascensão e fama. Inclusive a imagem principal
do poema, “A cruzeta do soldado/ Na lapela do uniforme”, Tsvetáieva a extraiu
5 Nossa tradução. [Достовѣрно: подъ звуки взрывовъ съ Ходынки и стекольный дождь, подъ
к-ымъ шли — онъ на эстраду, мы — въ залъ. Но, помимо этой достовѣрности — подъ рокотъ
рвущихся снарядовъ Революцiи. М. Ц.]
156 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
7 Nossa tradução: [любовь ко всем побежденным, ко всем causes perdues — последних монархий,
последних конских извозчиков, последних лирических поэтов]. http://www.tsvetayeva.com/prose/
pr_chert
8 Nossa tradução. [NB ! Эти стихи въ Москвѣ назывались «про красного офицера», и я полтора
года съ неизмѣннымъ громкимъ успѣхомъ читала ихъ на каждомъ выступленiи по неизмѣнному
вызову курсантовъ].
9 [Сижу в гостях. Просят сказать стихи. Так как в комнате коммунист, говорю “Белую
гвардию”. Белая гвардия — путь твой высок… За белой гвардией — еще белая гвардия, за второй
белой — третья, весь “Дон”, потом “Кровных коней” и “Царю на Пасху”]. http://www.tsvetayeva.
158 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
história de Um pernoite na comuna: conta como esse mesmo comunista, que estava
presente àquela noite, apreciou seus versos, e ao se inteirar da situação precária
em que vivia a poeta, lhe ofereceu ajuda. Com essa mesma sinceridade e pouca
noção do perigo, Marina Tsvetáieva conquistou entre os bolcheviques importantes
amizades. Foi o caso de seu inquilino, o polonês chamado Henrik Sachs, ele mesmo
um membro da polícia política, a Tcheká. A despeito da repressão ideológica da
Tcheká e o temor que ela infundia, “um de seus altos funcionários”, conta Simon
Karlinski, “não agiu como um carrasco, mas como uma espécie de anjo da guarda...
Marina Tsvetáieva não escondeu o fato de que seu marido estava lutando
contra os bolcheviques no Exército Branco. Chegou ao ponto de anunciar
esse fato vestindo um cinto de couro e carregando uma bolsa de campo que
faziam parte do uniforme de um oficial tsarista... [Nota-se de onde vêm o
cinto e a algibeira do poema (34)]10 Tsvetáieva não escondeu de Sachs seu
ódio do sistema soviético e sua esperança pela derrota do mesmo. No en-
tanto, ele a tratou com deferência amigável e freqüentemente compartilhou
suas rações [de alimento] com ela e suas filhas [...] Henrik Sachs gostou e
entendeu a poesia de Tsvetáieva... Ela valorizava especialmente amizades
como a dele: a boa vontade entre pessoas pertencentes a dois campos hos-
tis... e assim foi em vários outros contatos amistosos seus com membros
do Partido Bolchevique (por exemplo, Piotr Kogan, Anatoli Lunatcharski
e Boris Biessarabov)”. (KARLINSKY, 1985, págs. 77-78)11
Assim pensa também Tsvetán Todorov em Uma Vida sob o Fogo, que “Tsve-
táieva eleva-se acima do conflito entre os dois exércitos, o Branco e o Vermelho”
(TODOROV in: TSVETÁIEVA, 2008, pág. 22). Para sustentar essa ideia, cita
com/prose/pr_nochevka Obs. Todos os poemas aqui mencionados por Tsvetáieva integram Acampa-
mento de Cisnes. O poema O Don (12), em nossa tradução nesta coletânea, é na realidade o primeiro de um
tríptico. Foi na bacia do rio Don, no extremo oeste da Rússia, hoje território da Ucrânia, o maior foco da
resistência contra-revolucionária do Exército Branco.
10 Parêntese nosso.
11 Nossa tradução. [one of the top officials of the Lubianka acted not as an executioner but as something
of a guardian angel. [...] Marina Tsvetaeva did not hide the fact that her husband was fighting against the
Bolsheviks with the White Army. She went to the extent of advertising that fact by wearing a leather belt
and carrying a field pouch which were a part of a tsarist officer’s uniform [...] In conversations with Sachs,
Tsvetaeva did not conceal her hatred of the Soviet system and her hope for its defeat. Yet he treated her
with friendly deference and constantly shared his rations with her and her children. [...] Henryk Sachs
liked and understood Tsvetaeva’s poetry and he visited her after he moved away. His was the kind of
friendship that she especially valued: good will between people belonging to two hostile camps, whether
political or literary. As in several other instances of her friendly contacts with Bolshevik party members
(e.g., Piotr Kogan, Anatoly Lunacharsky and Boris Bessarabov)].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 159
E isso somente
Eu, bêbada, escuto,
De ventre – a ventre:
– Mamãe querida!
Ao lado deitados –
Parti-los, não posso.
Repara: um solado.
É deles? É nosso?
De branco a vermelho:
O sangue o pintou.
De vermelho a branco:
A morte ganhou”.
(TSVETÁIEVA, 2008, págs. 22-23)
(Notas):
Seguem algumas notas, numeradas de acordo com cada poema que demande
uma explicação específica.
(3) “Dorme em paz com/ Tua Aldeia a consolar-te...”/ Aldeia do Tsar,
Tsárskoie Seló, residência da família imperial russa, a 26 km de São Petersburgo.
Quando a revolução de 1917 destituiu Nicolau II, então o imperador da Rússia,
ele e sua família foram feitos prisioneiros, primeiramente, no palácio de Alexandre,
situado na Aldeia.
(4) “Como Dmitri de Ivan, Alexei de Nikolai”/ Refere-se a Alexei Niko-
laievitch, o tsariévitch, isto é, o príncipe Alexei, filho de Nicolau II. Dmitri, filho
de Ivan, foi Dmitri de Uglitch, filho de Ivan, o Terrível, assassinado aos 10 anos
160 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
12 Nossa tradução. [Раннее утро. Идем с Алей мимо Бориса и Глеба. Служба. Всходим, вслед за
какой-то черной старушкой, по ступеням белого крыльца. Храм полон, от раннего часа и тишины
впечатление заговора. Через несколько секунд явственно ушами слышу: — …Итак, братья, ежели
эти страшные вести подтвердятся, как я только о том проведаю, ударит звонарь в колокол, и
побегут по всем домам гонцы-посланцы, оповещая всех вас о неслыханном злодеянии. Будьте
готовы, братья! Враг бодрствует, бодрствуйте и вы! По первому удару колокола, в любой час дня
и ночи — все, все в храм! Встанем, братья, грудью, защитим святыню! Берите с собой малолетних
младенцев ваших, пусть мужчины не берут оружия: возденем голые руки горe, с знаком молитвы,
посмотрим — дерзнут ли они с мечом на толпу безоружных! А ежели и это свершится — что ж,
ляжем все, ляжем с чувством исполненного долга на ступенях нашего храма, до последней капли
крови защищая Господа нашего и Владыку Иисуса Христа, покровителей храма сего и нашу
несчастную родину.] http://www.tsvetayeva.com/prose/pr_voin_hristov
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 161
13 Na forma diminutiva.
162 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
15 Nossa tradução. [въ Москвѣ тогда думали, что Царь разстрѣлянъ на какомъ-то уральскомъ
полустанкѣ.]
16 Nossa tradução. [Красный флагъ, к-ымъ завѣсили ликъ Николая Чудотворца. Продолженiе
извѣстно.]
17 Forma diminutiva.
18 Kerenki, dinheiro emitido por Kerenski, e tsarskie, os rublos do tsar.
19 Nossa tradução. [Дни, когда Мамонтовъ подходилъ къ Москвѣ — и вся буржуазiя мѣняла
керенскiя на царскiя — а я одна не мѣняла (не только потому, что ихъ не было, но и) потому
что знала, что н е войдетъ въ Столицу — Бѣлый Полкъ !]
164 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
20 Nossa tradução. [Tsvetaeva struck up a friendship with a huge and handsome Bolshevik soldier, who
was a former bank robber and a decorated military hero during World War I. She nicknamed him Stenka
Razin after the famed seventecnth-century rebel, read her poetry to him [...] and presented him with her
favourite silver ring.]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 165
Conclusão
“[...]
Marina Tsvetáieva me conhece.
Certa vez, em plena fome
Dos primeiros anos da revolução
Que em breve completará cem anos,
Ela estava sentada numa calçada
Sem ter o que comer ou dar de comer
Às suas filhas (uma morreria de fome)
Quando me aproximei magro
Acreditando que um coração de poeta
Sentiria pena de mim
E me livraria da cartolina
Que me tinham pendurado no pescoço
Com os dizeres escritos a lápis:
Matem Lênin e Trotsky ou eu serei comido. [...]”
(AZEVEDO, 2016, págs. 13-14)
21 Nossa tradução. [Stakhovich, who was once an officer in the guards, then held the position of
aide-de-camp at the imperial court, and still later became an actor at the Moscow Art Theater. After
the revolution, when Tsvetaeva met him, he was a much admired teacher of deportment and etiquette
at a theatrical school attended by the members of the Third Studio. Tsvetaeva had heard a great deal
about Stakhovich from her actor friends before she actually got to meet him. His suicide in February
1919 was perceived by her as a momentous and symbolic event, marking the proximate disappearance
of the cultural values which she associated with the eighteenth and early nineteenth centuries and
with which she was identifying more and more in poems that were later included in Mileposts II and
Psyche. She dedicated several poems to the memory of Stakhovich, one of which she was scheduled to
read at a commemorative ceremony at the Moscow Art Theater. Her reading was vetoed by Vladimir
Nemirovich-Danchenko, one of the theater’s two founders (with Stanislavsky), who felt that the poem
was dangerously outspoken.]
166 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva
Esse cão vem de uma anotação, tomada por Tsvetáieva em seu diário no
dia 10 de abril de 1920, que se resume à curta frase: “Andrei conta que viram
passar um cachorro que levava o cartaz: ‘Abaixo Trótski e Lênin – ou eu serei
comido’” (TSVETÁIEVA, 2008, pág. 142). Em um trecho de seu diário, publi-
cado por Tsvetáieva em 1925 sob o título O atentado contra Lênin, a poeta procura
esconder, em respeito ao amigo comunista Sachs, seu sorriso de esperança pela
morte do líder bolchevique. Nosso leitor já pode apreciar essas reações de Tsve-
táieva sem as reduzir ao maniqueísmo pró e contra-revolucionário. A tônica de
seu rechaço à revolução nada tem de aborrecimento reacionário, senão de uma
profunda irreverência individual que se revestiu, naquelas circunstâncias, de uma
roupagem “branca”. Essa mesma irreverência Tsvetáieva voltará contra a direita
da emigração russa na Europa, em particular os editores de revistas; com esse
mesmo rechaço tratará, em textos como O Caçador de Ratos [Крысолов] (1925),
Meu Púchkin [Мой Пушкин] (1937) ou em Versos para Tcheca [Стихи к Чехии]
(1938-1939), temas como a ascensão do nazi-fascismo, o racismo, a atmosfera
de ódio que levou a Europa à II Guerra. Não se pode esperar dos poetas uma
resposta uniforme aos fatos históricos, em especial dos que foram diretamente
atingidos por tais fatos. Entretanto, alguns cortaram a história de fora a fora
com irredutíveis gestos de coragem, protesto, recusa (não por acaso Augusto de
Campos incluiu Tsvetáieva em seu volume Poesia da Recusa, 2006). Nem o oficial
da guarda branca, nem o oficial vermelho são mais heróis do que esta mulher, que
para assim escrever, sozinha, sofridamente e na contra-mão da marcha totalitária,
deu provas dessa coragem.
Consideramos importante dar uma palavra para a recepção destas traduções
hoje, cem anos depois, neste centenário da revolução russa. A União Soviética
não viveu para ver esta comemoração; naufragou com sua promessa e tragou
seus poetas. “Minha poeta”, diz o cão de Azevedo, “deu de comer à corda/ o
próprio pescoço”. Refere-se ao suicídio de Marina Tsvetáieva em 1941. De volta
após 17 anos (1922-1939) na emigração, a poeta não suportou viver sob o regime
stalinista, e com o estouro da invasão nazista sobre a Rússia em junho de 1941,
no dia 31 de agosto Tsvetáieva deu, com a corda, sua declaração final de recusa.
Isto é, enforcou-se na cidade de Ielábuga. Ingressou para a lista dos artistas que o
sistema soviético trucidou. É assim que o cão de Carlito Azevedo, aprisionado em
um cubo de tortura, invoca os nomes de Marina Tsvetáieva, Anna [Akhmátova], e
também Vladimir “Maiakóvski... [o desesperançado cantor/ que me incorporava/
à sua assinatura nas cartas de amor]”. Para tudo o cão pergunta: como vim parar
aqui? A resposta, é claro, se produz como um balanço histórico:
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 167
O leitor sabe em que conjuntura a greve geral de 1917 foi evocada este
ano. Em abril de 2017 os trabalhadores brasileiros tentaram, com uma nova greve
geral, impedir que o golpe de Estado em curso suprimisse alguns de seus direitos
garantidos por lei. A direita, de acentuada feição anti-comunista (cria do polo
norte-americano de influência na Guerra Fria), rasgou o véu da democracia bur-
guesa, em que a esquerda se fiou. Impotentes, sem ter de onde emprestar forças
como há cem anos atrás, vemos desfilar pelas ruas, mais uma vez, a “cadela do
fascismo” (para rebater com a máxima de Bertold Brecht). E quanto ao nosso
pobre cão, implorará que ressuscitem Trótski e Lênin.
Referências
(18) https://ru.wikisource.org/wiki/Бог_—_прав_(Цветаева)
(19) https://ru.wikisource.org/wiki/Семь_мечей_пронзали_сердце_(Цветаева)
(20) https://ru.wikisource.org/wiki/Где_лебеди%3F_—_А_лебеди_ушли_(Цветаева)
(21) https://ru.wikisource.org/wiki/Белогвардейцы!_Гордиев_узел_(Цветаева)
(22) https://ru.wikisource.org/wiki/Под_рокот_гражданских_бурь_(Цветаева)
(23) https://ru.wikisource.org/wiki/Ты_дал_нам_мужества_(Цветаева)
(24)https://ru.wikisource.org/wiki/Бури-вьюги,_вихри-ветры_вас_взлелеяли_
(Цветаева)
(25) https://ru.wikisource.org/wiki/Царь_и_Бог!_Простите_малым_(Цветаева)
(26) https://ru.wikisource.org/wiki/Памяти_А._А._Стаховича_(Цветаева)/1
(27) https://ru.wikisource.org/wiki/Памяти_А._А._Стаховича_(Цветаева)/2
(28)https://ru.wikisource.org/wiki/Але_(В_шитой_серебром_рубашечке_—_
Цветаева)
(29) https://ru.wikisource.org/wiki/С._Э._(Цветаева)
(30) https://ru.wikisource.org/wiki/Дорожкою_простонародною_(Цветаева)
(31) https://ru.wikisource.org/wiki/Бальмонту_(Цветаева)
(32) https://ru.wikisource.org/wiki/Стихи_к_Блоку_(Цветаева)/9
(33) https://ru.wikisource.org/wiki/Петру_(Цветаева)
(34)https://ru.wikisource.org/wiki/Есть_в_стане_моём_—_офицерская_прямость_
(Цветаева)
(35) https://ru.wikisource.org/wiki/Об_ушедших_—_отошедших_(Цветаева)
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre alguns aspectos da tradução de versos de poemas de Aleksandr
Púchkin citados por Marina Tsvetáieva em seu ensaio Meu Púchkin, escrito em Paris no ano de 1937. Para tanto,
recorreu-se à análise e à exposição das estratégias de recriação tanto dos versos citados diretamente quanto daqueles
que são citados indiretamente, incorporando-se ao tecido do texto tsvetaieviano. Com isso, busca-se, ainda, pensar o
ofício da tradução literária de um modo geral, à luz do que seria a “tarefa do tradutor”, segundo Walter Benjamin.
Palavras-chave: Aleksandr Púchkin, Marina Tsvetáieva, poesia russa, prosa russo-soviética, tradução literária.
1 Vale notar que, com a ascensão dos movimentos nazistas e fascistas na Europa, muitos russos emi-
grados partem para as Américas, em especial para os Estados Unidos, onde produzem, muitas vezes, em
inglês, enquanto tantos outros retornam para a União Soviética. Este é o caso de Marina Tsvetáieva, que
chega à Rússia em 1939 e, depois de assistir, neste mesmo ano, às prisões do marido Serguei Efron e da
filha Ariadna Efron – ambos acusados de espionagem e atividades antissoviéticas –, em meio à invasão de
Moscou pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, suicida-se em Elabuga, cidade
russa da República Tártara.
2 A tradução direta do russo para o português do ensaio Meu Púchkin (em russo, “Мой Пушкин”),
acompanhada de notas críticas e explicativas, além de uma introdução, foi o centro do estudo desenvolvido
na dissertação que levou o título de “O Meu Púchkin de Marina Tsvetáieva: tradução e apresentação”, sob
orientação do Prof. Dr. Homero Freitas de Andrade e submetida à Área de Literatura e Cultura Russa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2008. A tradução
deste texto tão complexo não seria possível sem a paciente e generosa orientação, que proporcionou o
aprendizado prático do ofício da tradução, durante os cotejos em que se discutiram os desafios impostos
pelo texto e as possíveis estratégias e soluções (algumas delas serão expostas detalhadamente neste artigo),
e o estudo teórico do trabalho de tradução por meio da leitura de textos selecionados em conjunto. Além
do cotejo com o orientador, incluía-se nas tarefas a leitura prévia com um falante nativo e qualificado
da língua russa, cujo objetivo era confrontar o original e o texto traduzido. O sucesso da missão só foi
possível graças à paciência, ao cuidado e à dedicação da, hoje, Profa. Dra. Ekaterina Volkova Américo.
Vale dizer, ainda, que, para a elaboração deste artigo, algumas escolhas foram repensadas. Esta não foi,
todavia, uma decisão simples. Veio da própria reflexão da natureza do trabalho de tradução aqui proposta,
e foi encorajada pela leitura do artigo “Boris Schnaiderman e o autocomentário de tradução”, de Walter
Carlos Costa (2016), em que o autor aborda, entre outras coisas, a rigorosidade na revisão que o tradutor
empreendia a cada reedição e a autorrevisão em voz alta, a fim de controlar eventuais omissões.
3 É importante notar que o ano de 1937 é crucial para Tsvetáieva ainda em mais um sentido: sua filha Ariad-
na Efron decide voltar à Rússia em março e, em setembro, será a vez de seu marido Serguei Efron retornar.
O ex-cadete do Exército Branco convertido em agente stalinista envolve-se no assassinato de Ignace Reiss,
espião soviético que rompera com o partido por discordar das perseguições promovidas por Stálin, declaran-
do seu apoio a Leon Trótski e à Quarta Internacional, e é levado clandestinamente para a União Soviética.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 173
inclusive pela força poética por meio da qual são representadas as reminiscências
da infância, revela um Púchkin universal. Entretanto, é preciso destacar que o que
sobressai é o Púchkin localizado, figura corriqueira na vida russa.
Nesse contexto, o Púchkin de Meu Púchkin, ou seja, o Púchkin segundo
Marina Tsvetáieva, é um Púchkin que pode ser, ao mesmo tempo, mestre, negro,
monumento, perseguido, assassinado e amaldiçoado, sendo, sobretudo, poeta e o
primeiro professor, aquele que lhe ensinará as lições mais fundamentais. Púchkin é
a personagem principal de uma narrativa construída a partir do olhar da criança, ou
seja, da menina diante do porvir em confronto com o escrutínio da mulher adulta,
a qual, para tanto, repassa “passo a passo o Púchkin” (TSVETÁIEVA, 2008, p.
70) de sua infância. Nesse percurso, ela retoma seus poemas favoritos e transmite
ao leitor as lições mais valiosas que aprendera, ainda criança, com o poeta nacio-
nal. Com isso, Tsvetáieva recupera em seu ensaio estrofes e versos que considera
mais significativos. No entanto, ela não se limita a simplesmente citar e analisar os
versos e estrofes que seleciona. Além das diversas sugestões e referências indiretas,
a prosa tsvetaieviana parece contaminar-se com a poesia puchkiniana, inundar-se dela.
A impressão que se tem é de um movimento natural, como se a força do verso de Pú-
chkin se incorporasse às frases de Tsvetáieva, em alguns momentos, sobrepujando-as.
Trata-se de um texto que exige um olhar atento do tradutor, pois, em realidade, há ali um
intenso trabalho de construção, desconstrução e ressignificação das poesias escolhidas.
Que caminhos seguir? Que estratégias adotar? Que tarefas impor-se?
Walter Benjamin, em seu conhecido ensaio “A tarefa do tradutor”, afirma que
uma tradução que pretende servir como simples meio de comunicação não pode
“fazer passar mais do que a informação”, quer dizer, aquilo que é “inessencial”
(BENJAMIN, 2008, p. 82). E o essencial aqui, antes de mais nada, não é a fideli-
dade estrita ao sentido, mas, como afirma o mesmo Benjamin acerca da tradução
em geral, está na “forma como o que se quer dizer se articula com o modo do
querer dizer nessa palavra” (BENJAMIN, 2008, p. 93).
Ora, seja no nível da escolha vocabular, seja no que se refere ao arranjo das frases,
a elaboração que se opera na prosa tsvetaieviana em muito se assemelha ao
trabalho de construção do texto poético. Tal efeito é logrado a partir do jogo
que Tsvetáieva estabelece entre a percepção da criança e uma possível inten-
cionalidade do poeta. O jogo consiste em colocar a criança na posição de
aprendiz, que deve, antes de ser iniciado no ofício, decifrar enigmas, adivinhas,
trava-línguas, homonímias, polissemias, as quais, sob o pretexto da brincadei-
ra, lança ao leitor um desafio em cada linha. E, por consequência, ao tradutor,
a cada novo verso citado, do qual a poeta se apropria.
174 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...
– Então, era uma vez um jovem. Não, era uma vez um velho, e ele tinha
uma filha. Não, é melhor eu contar em versos. Ciganos em ruidoso tropel
– Vão pela Bessarábia viajando – Hoje à beira do rio estão ao léu – Em
suas tendas rotas pernoitando – Que liberdade alegre sua pousada – e assim
por diante – sem parar e sem vírgulas de permeio. – até: o retinir da bigorna
ambulante, que, eu acho, deve ser um instrumento musical, e deve ser isso
mesmo – acho eu. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 51).
Forje o aço ou faça uma canção pr’ouvido Железо куй — иль песни пой
E as aldeias percorra com o urso. И селы обходи с медведем.
(PÚCHKIN, 2006, p. 289)
A harmonia dos sentidos que a criança constrói ao criar seu mundo é, como se
vê, sempre quebrada quando há a participação da mãe. Nos casos acima, a incompreen-
são surge a partir das imagens de Púchkin e suas personagens. Mas a principal é aquela
surgida a partir das perguntas da mãe sobre os versos trazidos pelo material di-
dático de seu meio-irmão mais velho, chamado de “a antologia do Andriucha”.
Maria Mein aproveita-se de poemas históricos, como “Полтава” (“Poltava”5), para
ensinar aos filhos e enteados a história da Rússia.
Para o tradutor, o desafio colocado é recriar nos diálogos os jogos de palavras
suscitados pelas confusões geradas pela falta de repertório sobre a história de seu
país, natural de criança em tão tenra idade, a coloquialidade típica da conversa de
uma mãe com seus filhos, independentemente do grau de exigência das perguntas,
e os versos de Púchkin, que se incorporam à conversa sem afetação.
vocês, capetinhas, uma mentira – rabujou o pai. – Ah, e ainda dizer qu’eu
os fiz! Ora essa, vejam qu’obra: um morto!” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 71).
contaminação dos versos puchkinianos deixa de ser unicamente pela via vocabular
e passa, gradualmente, a se desenvolver de modo mais pleno no plano imagético.
É esse procedimento que permite associar a morte por afogamento do balseiro
à morte por câncer do avô:
(...) o vovô nem sequer morreu afogado, mas morreu de câncer – de cân-
cer? Só que:
Leitor! Eu sei que “Vocês, olhos, olhos azuis” – não é de Púchkin, mas de
uma canção, talvez até de uma romança, mas, naquela época, eu não sabia
disso e, agora, dentro de mim, onde há tudo – ainda é tudo, também não
sei, porque “rasgando o meu coração” e “a saudade do coração”, pequena
diabinha e bem-amada, estrada e estrada, separação e separação, amor e
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 183
amor é uma coisa só. Tudo isso se chama Rússia e minha infância, e se vocês
abrirem a minha barriga, além de diabos passando com nuvens e nuvens
passando com diabos, vocês também descobrirão em mim aqueles dois
olhos azuis. É a minha essência. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 76-77).
rochedo basta, e ali perto não há outro que seja tão liso, mas apesar disso,
as letras aperto e aperto, espremo e espremo, e as últimas não passam de
conchinhas, e sei que agora virá a onda e não deixará que eu termine, então
o desejo não se realizará — qual desejo? ah, Ao Mar! — mas, quer dizer que
já não há nenhum desejo? Mas, mesmo assim, até sem desejo! eu preciso
acabar de escrever antes da onda, acabar tudo antes da onda, mas a onda já
vem vindo, e eu bem que ainda tenho tempo de assinar:
E daí tudo é lavado, como que lambido por uma língua, e de novo estou
toda molhada, e de novo a ardósia lisa, já preta agora, como aquele granito…
(TSVETÁIEVA, 2008, p. 95).
E digo mais: a ignorância dos meus tempos de criança que confundia elemen-
to livre com versos era uma – intuição: o “elemento livre” eram os versos,
mas não o mar, os versos, ou seja, o único elemento ao qual jamais se diz
adeus. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 98)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 185
Ao mar era: o mar + o amor que Púchkin lhe tinha, o mar + o poeta, não! –
o poeta + o mar, dois elementos, sobre os quais Boris Pasternak de modo
inesquecível escreveu:
desse sentido, muito longe de servir de alavanca para uma tradução for-
malmente perfeita, acabará por fazê-la malograr. Quanto mais elevada for
a forma de uma obra, tanto mais ela será traduzível, ainda que a tradução
aflore apenas ao de leve o seu sentido. […] Mas existe um ponto de pa-
ragem e atenção (ein Halten), que, no entanto, só o texto sagrado pode
garantir: nele, o sentido deixou de ser a linha de separação entre a torrente
da língua e a torrente da revelação. Se o texto pertencer, de forma não
mediatizada, sem a mediação do sentido e pela sua literalidade, à língua
verdadeira, à verdade ou à doutrina, existirá nele uma tradutibilidade de
princípio. Agora já não em função de si mesmo, mas apenas das línguas.
Na relação com ele exige-se à tradução uma confiança tão ilimitada que,
no plano desta literalidade e liberdade, sob a forma da versão interlinear, a
língua e a revelação terão necessariamente de se conjugar sem tensões, como
no texto original. Na verdade, todos os grandes textos, e em mais alto grau
os sagrados, contêm nas entrelinhas a sua tradução virtual. (BENJAMIN,
2008, p. 97-98).
Buscar uma tradução que integre as línguas de chegada e de saída em uma “língua
verdadeira” capaz de revelar “a tradução virtual” contida “em todos os grandes textos”
é a mais difícil, ambiciosa e, talvez, incontornável tarefa que o tradutor literário
de um modo geral, e o de poesia em particular, pode se impor, ainda que este
tenha a consciência de que essa batalha dificilmente será plenamente vencida.
Contudo, não existe pecado em buscar o ideal, em aceitar a utopia, por mais
romântica que essa visão possa parecer. Mesmo porque uma tradução jamais
será uma obra definitiva. Diferentemente do original, que subsiste no decorrer
de séculos graças à potência de sua universalidade, a tradução está sujeita à ação
do tempo. E da mesma forma que corre o risco de desaparecer, a palavra pode
sobreviver em sua língua e outras possibilidades de traduzi-la podem surgir.
Assim, a obra se revela ao leitor que não teria outro modo de conhecê-la se não por meio
da tradução. Como bem sintetizou Marina Tsvetáieva em Poeta i vrêmia (“O poeta
e o tempo”):
Uma obra universal é aquela que na tradução para outra língua e para outra
era – na tradução para a língua de outra era – o mínimo – nada se perde.
Tendo dado tudo à sua própria era e terra, tudo será dado mais uma vez
em todas as terras e eras. Ao revelar sua própria era e terra até seus limites
– revela-se de modo ilimitado tudo o que não é nem a terra nem a era: por
eras eternas. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 97-98).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 187
Referências
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor (tradução de João Barrento). In: BRANCO, C. L. (org.).
A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quarto traduções para o português. Belo Horizonte:
Fale/UFMG, 2008.
COSTA, W. C. Boris Schnaiderman e o autocomentário de tradução. TradTerm, v. 28, 2016, pp.
23-34.
PÚCHKIN, A. S. Stikhotvorenia i poemi. Moscou: Eksmo, 2006.
TSVETÁIEVA, M. Meu Púchkin. In: ALMEIDA, Paula. O “Meu Púchkin” de Marina
Tsvetáieva: tradução e apresentação. Dissertação – Universidade de São Paulo. São Paulo,
2008. 155p.
____. Moi Puchkin. In: Sobranie sotchineni: V 7 t. T. 5: Avtobiografitcheskaia proza. Stati.
Esse. Perevodi. Sost., podgot. teksta i komment. A.A. Saakiants i L. A. Mnukhina. Moscou:
Ellis Lak, 1994a.
____. Poeta i vrêmia. In: Sobranie sotchineni: В 7 т. Т. 5: Avtobiografitcheskaia proza. Stati.
Esse. Perevodi. Sost., podgot. teksta i komment. A.A. Saakiants i L. A. Mnukhina. Moscou:
Ellis Lak, 1994b.
188 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.
Rafael Bonavina
Resumo: No presente artigo, apresentamos a tradução, com breves explicações a respeito da fundamentação teórica
utilizada em seu preparo, e uma sucinta análise do poema “Terra Natal”, de Andrei Biély.
Palavras chave: Século XX; Poesia russa; Andrei Biély; Simbolismo russo; Sóphia.
1. O batismo em fogo
Embora não existam chaves michas para a leitura da poesia de Andrei Biély
(1880-1934), a imagem da eterna feminilidade1 abre diversas portas da literatura
simbolista russa. Ela é um dos pontos comuns entre todos esses escritores, ou, nas
palavras de Victor Terras, “essa visão da ‘Dama Mais Bela,’ a ‘Mulher Vestida do
Sol,’ tornou-se um símbolo evocativo para diversos simbolistas (Biély inclusive)”
(TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)2.
Pouco divulgada, a produção de Andrei Biély é diversa e vasta. Por exemplo,
durante “o período entre 1903 a 1910 [...] ele publicou mais de duzentos artigos,
resenhas de livros, e ensaios, bem como três coleções de poesia” (TERRAS, 1985,
p. 45, tradução nossa)3. Perdido nesse labirinto de folhas de papel e carente de
um caminho determinado, o leitor precisa, ao menos, de uma estrela distante para
guiar-se. Para Carpeaux, as obras-primas de Biély são: “Sinfonia (1902); Ouro no
Azul (1904); Sinfonia nórdica (1904); A Volta (1904); Cinza (1908); Urna (1909);
Pomba de prata (1910); Peterburg (1916); Kotik Letaiev (1922); Recordações sobre
A. A. Blok (1923); Moscou (1926).” (CARPEAUX, 2014).
Nascido em 25 de Outubro de 1880, Boris Nikoláievitch Bugáiev era o único
filho de Nikolai Vassílievitch Bugáiev, um renomado matemático da Universidade
de Moscou, e sua esposa, Aleksandra Dmitrievna. “Eles eram um casal estranho:
o excêntrico, autocrático, porém brilhante pai estava profundamente dedicado às
ciências naturais e às suas próprias matemáticas” (TERRAS, 1985, p. 45, tradução
nossa)4, enquanto a mãe era uma mulher dedicada às artes, com certo talento mu-
sical, e uma ferrenha crítica da racionalidade. Esse embate da “ordem harmônica
contra desordem caótica, criação contra destruição, amor contra ódio, moralidade
versus amoralidade, unidade e comunhão contra desintegração e estranhamento”
(TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)5 são alguns dos centros de gravitação da
imagética bielyana. O poema traduzido ao final demonstra algumas manifestações
dessas contradições, dessa “visão científica baseada no caos cósmico” (TERRAS,
1985, p. 45, tradução nossa)6, de ausente causalidade lógica, a partir da qual, sozi-
nho, o homem cria um sentido para si.
Em 1903, Boris Bugáiev obtém seu diploma em ciências naturais, porém o
destaque maior nesse período cai sobre as suas Sinfonias, a Primeira desse mesmo
ano e a Segunda do anterior, contrariando o esperado. “Graças ao seu caráter
experimental e ‘decadente’, ele as publicou sob o pseudônimo, talvez evitando
constranger o pai” (TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)7. O pseudônimo de
Andrei Biély surge por sugestão de Vladimir Solovióv (1853-1900), velho amigo
da família.
Como afirma John Noyce, “ao final do século dezenove, o filósofo Vladimir
Solovióv desenvolveu a noção de Sóphia baseado nas suas próprias visões e nos
escritos teológicos anteriores de Böhme e seus sucessores.” (NOYCE, 2007, pp.
6-7, tradução nossa)8. Mais especificamente, a respeito dessas “visões”, Terras
4 [They were an ill-matched pair: the eccentric, autocratic, but brilliant father was deeply committed to
the natural sciences and to his own mathematics].
5 [harmonious order versus chaotic disorder, creation versus destruction, love versus hatred, morality
versus amorality, unity and community versus disintegration and estrangement].
6 [A scientifically based vision of cosmic chaos].
7 [Owing to their experimental, “decadent” character. he published them under a pseudonym, perhaps
to avoid embarassing his father].
8 [notion of Sophia based on his own personal visions and on the earlier theological writings of Boehme
and his successors].
190 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.
2. As bem-ditas palavras
13 [bears no revolutionary spirit but is merely a form of scholasticism that warps the human essence.
True progress is not economic improvement but spiritual uplift. Humanity will ascend from necessity to
freedom, not by the operation of economic laws, but through spiritual and aesthetic creativity].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 193
nhecida, o tradutor torna-se um nervo exposto. Porém não é necessário que ele
sinta-se assim, pois “a fidelidade alcança-se muito menos pela tradução literal do
que por uma substituição contínua. A arte do tradutor consiste justamente em
saber quando pode verter e quando deve procurar equivalências.” (RÓNAI, 2012,
p. 24). Mais, “como não há equivalências absolutas, uma palavra, uma expressão
ou frase do original podem ser frequentemente transportadas de duas maneiras,
ou mais, sem que se possa dizer qual das duas é a melhor.” (RÓNAI, 2012, p. 24).
Descartada a fidelidade fanática, tampouco a tradução proposta se baseia
“naquilo que o autor queria dizer”, afinal: “Se ele quisesse dizer, teria dito” (SAR-
TRE, 1951 apud CAMPOS, 2013, p. 4), inclusive de maneira oblíqua, se neces-
sário. Outra distorção que permeia os meandros tradutológicos é a de ser dever
do tradutor a reprodução do “sentido do texto”, “a mensagem”. Mas de nada
adiantaria “reproduzir apenas o ‘conteúdo’, a ‘mensagem’ de um poema, pois, a
nosso ver, limitar a tradução de poesia a este aspecto seria um empobrecimento e
uma deformação.” (CAMPOS et al., 1968, pp. 14-15). Assim, não nos fixaremos
no campo da versão fiel e literal, nem na recriação absolutamente desprendida
do original, de uma liberdade descompromissada. Há “entre a tradução literal e a
tradução livre uma terceira, a literária, precisamente aquela que devemos propor
como objetivo.” (RÓNAI, 2012, p. 48). Esta é a tradução que se busca na presente
proposta.
Apontado no início, o problema de se tratar de um poema a ser traduzido
está em que ele não é feito apenas de um sentido, ou seja, não é constituído pura-
mente de informações semânticas. Nele existem ritmo, antíteses, sonoridade,
choques, imprevisibilidades, características estéticas, estilísticas, nada semânticas.
São justamente essas informações estéticas que a presente tradução busca
recriar. Informação estética pode ser definida como aquela que “transcende a
semântica, no que concerne à ‘imprevisibilidade, à surpresa, à improbabilidade
da ordenação de signos’” (CAMPOS, 2013, p. 2). Seria descabido pensar que o
tradutor abordaria um poema de Olavo Bilac da mesma maneira que um poema
de Khliébnikov ou Du Fu.
Entre os problemas encontrados na tradução deste poema, há, por exemplo,
a dificuldade lexical do último verso da primeira estrofe. Nele há um imperativo
em segunda pessoa. O original traz um palavra estranha para a língua portuguesa
que significa “andar com filosofice” (VOINOVA, STARIETS et al, 1975, p. 811),
ao qual foi adicionado o prefixo semelhante o “des-”. A opção foi pela forma
imperativa do verbo “enlouquecer”. Apesar da construção pouco usual em russo,
ela não é tão estranha quanto à tradução fiel em português, que causaria espanto;
algo como “desfilosofizar-se”.
194 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 197
Referências
BÍBLIA. Bíblia Sagrada Ave-Maria. São Paulo: Editora AveMaria, 1959.
BIÉLY, Andrei. Sobranie sotchinieni. Stikhotvororienia i poemy. Moskva: Respublika, 1994.
CAMPOS, Haroldo et al. Poesia Russa Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. São Paulo: Leya, 2011.
MELETÍNSKI, E. M. Os Arquétipos Literários; tradução Aurora Fornoni Bernardini, Ho-
mero Freitas de Andrade, Arlete Cavaliere. Cotia: Ateliê Editorial, 2015.
NOYCE, John. Sophia and the Mystical Tradition. S.l.: s.n., 2012.
RÓNAI, Paulo. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
ROSENTHAL, Bernice. Eschatology and the Appeal of Revolution: Merezhkovsky, Bely, Blok.
In: California Slavic Studies, Vol. 11, 1980, pp. 105-141.
TERRAS, Victor. Handbook of Russian Literature. New Haven: Yale University Press, 1985.
198 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.
O Leão, de Evguéni Zamiátin
Helder da Rocha
Nota biográfica
Que necessidade extrema era esta, ele recusou-se a explicar. Apenas sorriu enver-
gonhado. O diretor do teatro inflamou-se de raiva. Ele tentou obrigá-lo a cumprir
uma ordem, tentou lembrar a Jerebiákin que ele, candidato do partido, era um
operário padrão, mas o leão-operário-padrão, teimoso, não se rendeu. O diretor
teve que ceder. Então, com o brilho desdentado de seu sorriso, Pétia Jerebiákin
saiu correndo do teatro em disparada.
– Para que, para onde o diabo o carregou? – perguntou, mais uma vez
vermelho de raiva, o diretor do teatro. – Que segredos são esses que ele esconde?
Ninguém tinha a resposta que o diretor vermelho queria: o segredo era
conhecido apenas por Pétia Jerebiákin e, naturalmente, pelo autor desta estória.
Então, enquanto Pétia Jerebiákin corre para algum lugar debaixo de uma chuva de
outono em São Petersburgo, nós podemos fazer uma viagem no tempo até uma
certa noite de julho, onde nasceu o seu segredo.
Essa noite não era noite. Era dia, cochilando levemente por um segundo,
assim como cochila o soldado que marcha, sem interromper seus passos, con-
fundindo sonho com realidade. No espelho rosado do canal cochilam, viradas de
pernas para o ar, árvores, janelas, colunas, São Petersburgo. E de repente, com
uma suave brisa, São Petersburgo desaparece. Em seu lugar surge Leningrado.
Acordada pelo vento, com uma bandeira vermelha sobre o Palácio de Inverno. E
diante de uma cerca no jardim Aleksandrovski, um policial com uma espingarda.
O policial estava cercado de perto por um grupo de operários dos bondes
noturnos. Por detrás dos ombros, era visível a Pétia Jerebiákin apenas o rosto
do policial: redondo, parecido com as maçãs-adocicadas de Riazan. Algo muito
estranho acontece: agarram o policial pelos braços, pelos ombros, e finalmente,
um dos operários, tirando o cachimbo da boca, gentilmente tasca um beijo na
sua bochecha. O policial enrubesce, apita seu apito furiosamente, e os operários
dispersam. Permanece Pétia Jerebiákin sozinho, cara a cara com o policial, e
inesperadamente, como se assustado pelo vento do reflexo de São Petersburgo, o
policial desaparece. Diante de Jerebiákin está uma mulher com quepe e uniforme
de policial, a primeira policial feminina, posta pela revolução na avenida Niévski.
As sobrancelhas pretas sobre a ponte do seu nariz uniam-se com raiva. Dos seus
olhos saíam faíscas.
– Que vergonha, camarada! – A policial falou apenas isto, mas como falou!
Ele se atrapalhou, e balbuciou com culpa:
– Mas, juro, não fui eu! Eu estava apenas indo para casa…
– Eca! Você… um operário ainda por cima! – Disse a policial, encarando-
-o. E como encarou!
202 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.
trou a policial Kátia em casa. Ela agora não era mais policial, era simplesmente
Kátia. Com as mangas arregaçadas, ela lavava no tanque uma blusa branca. Na
sua testa e nariz surgiram gotas de orvalho, e nunca ela esteve tão doce, quanto
agora, doméstica.
Quando Jerebiákin pôs diante dela o bilhete de cortesia e disse que hoje
ele iria atuar no espetáculo, ela não acreditou. Depois, ficou interessada. Depois,
por alguma razão, ficou envergonhada e baixou as mangas arregaçadas. Depois
olhou para ele (e como olhou!) e disse que iria sem falta.
O toque da campainha do teatro já soava alto pelas áreas de fumantes, pelos
corredores, pelo foyer. O comissário careca, no seu camarote, espremia os olhos
através de um pince-nez. No palco, por trás da cortina ainda fechada, as bailarinas
ajustavam suas saias com os mesmos gestos dos cisnes quando baixam as asas
para limpá-las na água. E por trás do penhasco, próximo do Leão Jerebiákin,
preocupavam-se os diretores da peça e do teatro.
– Lembre-se: você é um operário-padrão! Preste atenção! Não estrague
tudo! – sussurrou o diretor do teatro no ouvido do leão.
A cortina foi levantada, e atrás das luzes incandescentes da ribalta revelou-se
diante do leão, a sala escura preenchida até o teto de manchas brancas, de rostos.
Tempos atrás, quando era ainda apenas Jerebiákin, ele havia saltado para fora de
uma trincheira. Diante dele explodiam bombas. Ele se contorceu, e seguindo o
costume de sua aldeia, fez o sinal da cruz e prosseguiu adiante sem pensar. Agora
parecia que não conseguiria dar sequer um passo, mas o diretor da peça empurrou-
-o pelas costas, e ele, virando-se com dificuldade, com braços e pernas que de
repente se tornaram estranhos, escalou lentamente o penhasco.
No alto do penhasco o leão levantou a cabeça, e viu bem de perto, em um
balcão do segundo piso, escorando-se contra a barreira de proteção, a policial
Kátia. Ela olhava diretamente para ele. O coração leonino bateu forte uma, duas
vezes! E parou. Ele tremia todo. Agora seria decidido o seu destino. A lança já
voava na sua direção. Pá! Acertou-lhe do lado. Agora ele devia cair. Mas, e se ele
cair de mal jeito de novo, e tudo acabar? Ele ficou apavorado como nunca antes
na vida. Estava mais apavorado do que quando saiu da trincheira.
Na sala, o público já percebia que alguma coisa errada acontecia no palco:
um leão ferido de morte permanecia de pé no alto do penhasco e olhava para baixo.
Nas primeiras fileiras escutaram quando o diretor da peça gritou, num sussurro
terrível: “Cai, demônio, cai!” E depois, todos viram uma coisa absolutamente
fantástica: o leão levantou a sua pata direita, rapidamente fez o sinal da cruz e
despencou do penhasco como uma pedra…
204 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.
Referências
ZAMIÁTIN, Ievguêni Ivanovich. Lev. In: ZAMIÁTIN, I. I., SURIS, L. M. (Editor) Bich
bozhiy: sbornik proizvedeniy. Izdatelstvo Direct Media, Berlin-Moskva, 2016. p. 147-152.
ZAMIÁTIN, Ievguêni Ivanovich. Lev. Lib.ru/Klassika. Publicado em 27 jan. 2009. Dispo-
nível em: <http://az.lib.ru/z/zamjatin_e_i/text_0530.shtml>. Acesso em 31 ago. 2017.
Anexo: Ilustração para O Leão por Helder da Rocha (desenho e aquarela). 2016.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 209
Letícia Mei1
Resumo: o artigo propõe uma retradução da primeira parte do longo poema de Maiakóvski “Nuvem de Calças”
(1915), cuja primeira e, durante muito tempo, única tradução em português é assinada por E. Carrera Guerra. À
luz de elementos característicos da poética maiakovskiana e de discussões teóricas acerca do espaço da retradução, este
trabalho oferece e comenta brevemente novas soluções, apontando diferenças de perspectiva em relação à primeira obra.
Palavras-chave: Maiakóvski, Nuvem de Calças, tradução de poesia, Emílio Carrera Guerra, retradução crítica.
Introdução
1 Mestre e doutoranda em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
2 Sobre o assunto escrevi o artigo Um russo em Montparnasse: percepções de Maiakóvski na imprensa francesa
(1921-1930) ainda inédito.
210 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski
3 Dada a extensão da primeira parte do poema, apontaremos apenas exemplos da tradução de Guerra
e não transcreveremos seu trabalho na íntegra.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 211
4 Alguns apontamentos desta sessão foram retomados da minha dissertação de mestrado “Sobre Isto”:
síntese da poética de Maiakóvski, defendida sob orientação de Arlete Cavaliere, em 2015.
212 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski
feliz que lhe é infligido pelo mundo tal como ele era. Mas vai além: para mudar
a configuração do amor doloroso, há que se mudar o mundo todo, o mundo do
capital, da guerra e da superficialidade burguesa. Afinal, foi composto no início
de 1915, mas seu projeto inicial data do ano anterior, momento de deflagração da
Primeira Guerra Mundial. Em sua autobiografia Eu mesmo, o poeta diz: “Início de
1914. Sinto mestria. Posso dominar um tema. Inteiramente. Formulo a questão
do tema. Um tema revolucionário. Penso em ‘Uma nuvem de calças’.” (SCHNAI-
DERMAN, 1971, p. 95).
O título inicial da obra, O décimo terceiro apóstolo, foi imediatamente vetado pela
censura tzarista por blasfêmia. Além disso, outras seis páginas foram totalmente
substituídas por reticências por tratarem de “temas politicamente sensíveis” (JAN-
GFELDT, 2010, p. 77). O censor teria perguntado a Maiakóvski como associava
tanto lirismo e rudeza. A resposta teria sido um trecho do prólogo do poema: “Se
quiserem – / serei furioso até o osso / – e, como o céu, que novas cores realça /
se quiserem – / serei perfeitamente afetuoso, / não um homem, mas uma nuvem
de calças!”5. Eis o título definitivo.
Em julho de 1915, em busca de um editor, Maiakóvski conhece Ossip e Lilia
Brik, personagens centrais na sua obra e biografia a partir de então. Eles ouvem a
primeira leitura da versão definitiva do poema. Óssip declara que Maiakóvski “é um
grande poeta mesmo que nunca mais escreva uma linha sequer” (JANGFELDT,
2010, p. 77) e decide editá-lo às suas expensas. Entretanto, a primeira tiragem de
1050 exemplares não foi um sucesso de vendas.
Somente em 1918 Nuvem de Calças foi publicado integralmente, composto
de quatro partes precedidas de um prólogo6 antecipando o tom provocatório
da obra. O subtítulo “Tetráptico” faz uma referência ao típico tríptico do ícone
ortodoxo.
5 Tradução minha.
6 Apresentei uma proposta de tradução do prólogo no artigo E por falar em poesia: especificidades
tradutórias da lírica de Maiakóvski, publicado na revista Tradterm, v. 28 (2016). Tal proposta já foi revista
e levemente modificada dentro da perspectiva de auto-retradução crítica.
214 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski
7 http://www.archangelsbooks.com/prodimages/Giant/Icons/LUM136602906.jpg,
acesso em 09 de setembro de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 215
I I
Проклятая! Maldita!
Что же, и этого не хватит? Então ainda não basta?
Скоро криком издерется рот. Em breve o grito rebenta a boca.
Слышу: Ouço:
тихо, silenciosamente
едва-едва, devagar,
потом забегал, depois se pôs a correr,
взволнованный, inquieto,
четкий. preciso.
Теперь и он и новые два Agora, ele e mais dois
мечутся отчаянной чечеткой. chacoalham num sapateado desesperado.
Нервы – Os nervos –
большие, grandes,
маленькие, pequenos,
многие! – abundantes! –
скачут бешеные, saltam furiosos,
и уже e os nervos
у нервов подкашиваются ноги! já nem têm as pernas de antes.
Помните? Lembra?
Вы говорили: Você dizia:
“Джек Лондон, “Jack London,8
деньги, dinheiro,
любовь, amor,
100 страсть”, – paixão” –
а я одно видел: E eu só via uma coisa:
вы – Джиоконда, você era a Gioconda
которую надо украсть! que eu tinha de roubar!
И украли. E roubaram.
Эй! Ei!
Господа! Senhores!
Любители Amantes
святотатств, de sacrilégios,
120 преступлений, crimes,
боен, – carnificinas, –
а самое страшное viram
видели – o mais terrível?
лицо мое, O meu rosto,
когда quando
я estou
абсолютно спокоен? totalmente em paz.
И чувствую – E sinto que
“я” “eu”
130 для меня мало. para mim é pouco.
Кто-то из меня вырывается упрямo. Alguém foge de mim como um louco.
Allo! Alô?
Кто говорит? Quem fala?
Мама? Mãe?
Мама! Mãe!
220 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski
Мама! Mãe!
Петь не могу. Não posso cantar.
У церковки сердца занимается клирос! Na capela do coração o coro se incendeia!
высил erguendo-se
горящие руки “Лузитании”. para agarrar o céu.
A visão geral que se tem de sua tradução é que o conteúdo tem uma
preponderância sobre a forma. Embora se tenham mantido a estrutura em
versos e as imagens, pouca atenção foi dada a um dos aspectos fundamentais
da poética de Maiakovski: a sonoridade. Parece-me que a proposta de Guerra
está mais associada à ideia defendida por Goethe de uma tradução preocupada
em expor o conteúdo, desvencilhando-se num primeiro momento dos recursos
poéticos e apagando a estranheza do estrangeiro para melhor aclimatação da
tradução em solo nacional.
Em Nuvem de Calças, a complexidade da rima ainda está em desenvolvimento,
percebe-se menos regularidade de ocorrências e menor complexidade de forma-
ção. Ainda assim, permanece um recurso fundamental na escrita do poeta russo.
В дряхлую спину хохочут и ржут Às costas decrépitas, ri e rincha Às minhas costas, rindo, cintilavam
канделябры. o candelabro. os candelabros.
10 Na minha tradução: E sinto que / “eu” / para mim é pouco. Alguém foge de mim como um louco.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 225
Referências
BARREIROS, José Colaço. “O Que é uma Boa Tradução?” “É uma Tradução Bem feita” “E o
que é uma Tradução Bem Feita?...” Babilónia, Lisboa, n. 2-3, p. 129-145, 2005.
BERMAN, Antoine. «La retraduction comme espace de la traduction». Palimpsestes [en
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1984.
BRIK, Óssip. “Ritmo e Sintaxe”. In: Teoria da literatura. Formalistas russos. Porto Alegre,
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Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Livre-docente em Literatura Francesa. São Paulo, 2010.
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Limonad, 1956.
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de Christian David, Paris: Gallimard, 2005.
MAVRODIN, Irina. Proust Traduit et retraduitSeptème Assises de a traduction litteraire
(Arles 1990). arles: actes sud, 1991, p. 23-28.
226 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski
MEI, Letícia. E por falar em poesia: especificidades tradutórias da lírica de Maiakóvski, publicado
na revista Tradterm, v. 28 (2016).
____. “Sobre Isto”: síntese da poética de Maiakóvski. Dissertação de mestrado defendida na
Universidade de São Paulo, junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
Russa, sob a orientação de Arlete Cavaliere. São Paulo, 2015.
PAES, José Paulo. Tradução. A ponte necessária. Aspectos e problemas da arte de traduzir. São
Paulo: Ática, 1990.
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SKIBINSKA, Elzbieta. La retraduction, manifestation de la subjectivité du traducteur. Doletiana
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TCHUKÓVSKI, Kornéi. La traduzione: una grande arte. Trad. Bianca Maria Balestra e
Julia Dobrovolskaia. Veneza: Cafoscarina, 2003.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 227
Resumo: O texto traduzido a seguir é uma carta escrita pelo cineasta Dziga Viértov em março de 1925, quando
ele já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da Rússia soviética.
Palavras-chave: Tradução, cinema russo, Dziga Viértov, Vertov
Nota introdutória
ampla circulação, como o jornal Pravda. Artigos como “Nós. Variação do manifes-
to” (publicado em 1922 na edição Nº 1 de Kino-Fot), “Kinocs. Revolução” (incluído
na revista LEF Nº 3, junho de 1923) e “Nosso ponto de vista” (publicado em 15
de julho de 1923 no Pravda) expunham as bases teóricas da prática cinematográ-
fica que Viértov denominava “Kino-Glaz”, ou “Cine-Olho”. A expressão servia
também de nome para o próprio grupo de profissionais reunidos a seu redor,
chamados individualmente de kinocs, neologismo criado a partir das palavras kinó
(cinema) e ôko (uma antiga palavra russa para olho, glaz).
Em linhas gerais, Viértov defendia que o novo governo soviético deveria
alterar a correlação de forças existente na indústria cinematográfica: ao invés de
seguir importando produções ficcionais estrangeiras – que, diga-se, seguiriam
dominando o mercado exibidor do país por boa parte da década de 1920 – e in-
vestindo na produção de ficções que até certo ponto reproduziam a estética dos
dramas burgueses, o cineasta entendia que seria mais adequado centrar esforços na
criação de uma cinematografia “verdadeiramente revolucionária”. Neste momento,
para Viértov isto significava reconhecer que filmes de ficção seriam apenas uma
“potencialidade secundária” do meio, e que o mais importante seria partir para
a observação da realidade do país e refletir sobre “a vida como ela é” através de
diferentes tipos de ensaios cinematográficos “não atuados”.
Nesse sentido, para além de todo o riquíssimo e intenso debate estético
que se desenvolveu entre os intelectuais a respeito da polêmica “cinema atuado
x cinema não atuado” – e que envolveu figuras como Serguei Eisenstein, Viktor
Chklóvski, Óssip Brik e até Kazimír Maliévitch –, havia nas propostas defendidas
por Viértov também uma preocupação em democratizar as próprias imagens cine-
matográficas: de um lado, tornando o proletário e o camponês e seus problemas
cotidianos concretos o centro de suas atenções; de outro lado, ensaiando também
estratégias para permitir que os próprios cidadãos começassem a refletir sobre o
mundo à sua volta e a traduzi-lo em imagens. Alguns de seus textos deste período
possuem uma clara intenção didática, sugerindo ainda a criação de “células locais
de Cine-Olho” que deveriam começar a trabalhar, seguindo os princípios do grupo,
com os meios que estivessem à disposição, fossem estes câmeras cinematográficas
ou simples jornais fotográficos afixados em murais.
Essa atividade de formação de novos “cine-observadores” é ainda um
aspecto relativamente pouco explorado nos estudos sobre Viértov, talvez devi-
do à escassez de materiais que documentem como se deu na prática a interação
entre esses diferentes grupos. Nos arquivos do cineasta preservados no RGALI,
em Moscou, sobreviveram algumas atas de reuniões de “círculos de Cine-Olho”
formados por jovens amadores – ligados sobretudo ao movimento dos jovens
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 229
1 Cf. nota introdutória ao texto da carta de Viértov em Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí i vystupliênia.
Moscou: Eisenstein-Tsentr, 2008, p. 499.
2 MAIAKÓVSKI, Vladímir. “Ustroíteliam ‘Soveschánia Liévogo Fronta Iskússtv’” in: Pôlnoe sobránie
sotchiniênii v trinádtsati tomákh. Tom trinádtsati. Písma i druguíe materiali. Moscou: GIKhL, 1961, p. 275.
3 VIÉRTOV, Dziga. “[‘Osnovnôe Kino-Gláza’, ili ‘Verniéichei pút k kino-oktiabriú’]” in: Dziga Viértov.
Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí I vystupliênia, p. 87.
230 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov
4 VIÉRTOV, Dziga; DROBACHENKO, Sergei [org.]. Dziga Viértov. Stat’í. Dnevnikí. Zámysly. Moscou:
Iskússtvo, 1966, p. 82-83.
5 Discuti os problemas existentes nesta coletânea na Parte I de minha dissertação de mestrado, Viértov
no papel: um estudo sobre os escritos de Dziga Viértov, defendida em outubro de 2016 no Programa de Pós-
-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP. Ver sobretudo o Capítulo 2: “Analisando
Statí. Dnevnikí. Zámysly”, pp. 63-128. Para a relação completa de passagens alteradas e/ou excluídas, em
comparação com os originais de Viértov tal como preservados no RGALI e publicados na mais recente
edição de seus escritos, Dziga Viértov. Iz Nasliêdia, ver a Parte IV: “Cotejo entre as edições Statí. Dnevnikí.
Zámysly e Iz Nasliêdia, volumes 1 e 2”, pp. 460-564.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 231
6 Nota do tradutor (N.T.): Título original: “Kinókam iúga. Pismó kinókam iúga.” Fonte utilizada para
a tradução: Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí i vystupliênia. Moscou: Eisenstein-Tsentr, 2008, p. 89-95.
Carta datada de março de 1925.
7 Nota da Edição Original (N.E.): Antes da revisão [feita por Viértov]: mostra que vocês não perderam tempo.
Respondo às suas mais importantes perguntas.
8 N.E.: Adianta, cortada a inserção: e soviéticos.
9 N.T.: Viértov se refere ao manifesto “Nós.” (‘My’). Como o próprio cineasta afirmaria em diferentes
artigos retrospectivos, apesar de haver sido publicado apenas em 1922 com o título de “Nós. Variação do
manifesto” (‘My. Variant manifiésta’) no número inaugural da revista Kino-Fot, o texto original datava de
1919.
10 N.T.: Títulos originais dos filmes citados: Godovschína revoliútsii; Istória Grajdánskoi voiní; Boi pod Tsarítsinom;
Krásni kazák; Krásnaia zviezdá; Soviétski Kavkáz; Agitpoezdá VTsIK.
232 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov
Prática
de 1921 a 1924: Filmes11: Cinco anos de luta e vitórias em 2 partes, Exposição agropecuária
de toda a União em 5 partes, Judeus na Rússia Soviética, Sericultura, Ut-Arba12 e outros.
50 Goskinó-kalendár, 22 Kino-Pravda, dos quais, a partir do Nº 13, cada um consiste
em um cine-objeto13 independente:
Kino-Pravda Outubrista em 3 partes (Nº 13)
Dois Mundos (Kino-Pravda Nº 14)
Hoje (Kino-Pravda Nº 15)
Kino-Pravda Primaveril (Nº 16) em 3 partes
Exposição agropecuária: 17ª Kino-Pravda
1ª corrida da câmera cinematográfica (Kino-Pravda Nº 18)
2ª corrida da câmera cinematográfica (Kino-Pravda Nº 19)
(Moscou – Oceano Ártico – Moscou)
Kino-Pravda Pioneira (Nº 20)
Kino-Pravda Leninista (Nº 21) em 3 partes.
No coração do camponês, Lênin está vivo14 (Nº 22) em 2 partes
--------
Cine-Olho em sua primeira expedição
(1º episódio do cine-objeto em 6 episódios A VIDA TOMADA DESPREVE-
NIDA15)
--------
--------
O Cinecalendário leninista termina. Rejuvenescimento na Rússia
--------
Série de pronunciamentos orais e na imprensa, artigos, debates.
Organização de círculos de “Cine-Olho”.
Instruções para os círculos de “Cine-Olho”.
--------
Elaboração do estatuto e do programa:
Plataforma política do “Cine-Olho”
20 N.T.: O Kultkinó, por sua vez, era o estúdio associado ao Sovkinó responsável pela produção de
atualidades.
21 Nota do tradutor: Lef-Sul (no original, Iúgo-Lef) era o braço da Lef (Liévi Front Iskússtv, ou Frente
Esquerda das Artes) com base na cidade de Odessa.
22 N.E.: Adiante, cortado: e, claro, exige conversas pessoais.
23 N.T.: Trata-se de um dos segmentos do longo artigo Kino-Glaz (‘Cine-Olho’) mencionado por Viértov
no início da carta.
24 N.E.: Na versão datilografada, na p. 6: imprimo e envio uma segunda [cópia].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 235
27 Ainda que não o afirme explicitamente na carta, Viértov está aqui se referindo sobretudo ao filme A
Greve (Státchka), de Serguei Eisenstein, que acabara de ser lançado. No mesmo mês de março de 1925, no
dia 24, Viértov publicaria no jornal Kinó o artigo “Cine-Olho sobre A Greve” (‘Kino-Glaz’ o ‘Státchke’) em
que, se por um lado indicava que o filme seria um positivo “passo da cinematografia ficcional em nossa
direção”, advertia que o filme não se afastaria o suficiente da “cine-igreja” do drama de ficção, sendo “uma
tentativa de inoculação de alguns métodos de construção de Kino-Pravda e Kino-Glaz na cinematografia
ficcional” (Cf. VIÉRTOV, Dziga. Iz Nasliêdia. Tom 2, p. 96-97). Nos meses seguintes, Viértov e Eisenstein
intensificariam os ataques mútuos, em uma polêmica que se estenderia por boa parte da década de 1920.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 237
Eu respondo:
1) o fortalecimento da organização (exclusão dos oscilantes, a firme decisão dos
restantes de dedicar sua vida a essa luta, a ligação com o centro, o convite de
importantes camaradas do partido à luta).
2) as seções de cinema de jornais e revistas devem cair nas mãos de membros da
organização ou de simpatizantes.
3) publicação de convocatórias, brochuras, folhetos, artigos (mediante um exame
cuidadoso de cada palavra).
4) organização de círculos de “Cine-Olho” de membros da Juventude Comunista,
pioneiros e operários. Atração de apartidários.
5) os departamentos de atualidades em todas as organizações cinematográficas
devem estar nas mãos dos kinocs e servir de base de produção para os círculos
de “Cine-Olho”.
6) é preciso cair em cima dos programas das salas de cinema e lançar o slogan dos
“programas mistos”, digamos, que em todos os cinemas uma vez por semana,
uma vez a cada duas semanas (considerando que uma “vez” corresponde a 3 dias)
aconteceriam “noites de miniaturas”. Exemplo de um programa28:
29 N.T.: Uma izbá é uma típica construção camponesa russa feita de toras de madeira. A construção de
izbás-de-leitura (izbá-tchitálnia), que funcionavam como bibliotecas e centros de ensino, foi incentivada
principalmente ao longo dos anos 1920 como parte do programa do governo soviético de erradicação
do analfabetismo (conhecido por likbez, acrônimo de likvidátsia bezgrámotnosti).
30 N.T.: No original, Viértov reproduz o sotaque dos espectadores camponeses: ao invés de “aktiôri”
[‘atores’], ele utiliza “akhtiôri”, entre aspas.
31 N.T.: No original, Serdtsetrest., literalmente “truste do coração”. Viértov ironiza aqui não apenas a
preferência do público pelos “dramas de ficção”, mas provoca também os próprios nepmen, homens de
negócios do período da Nova Política Econômica, e os trustes, conglomerados econômicos característicos
desse período, visto com desdém pelo cineasta neste e em outros textos da década.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 239
Aconselho vocês a aplicarem todos os seus esforços para que já em seus pri-
meiros trabalhos nas atualidades seja sentida essa inclinação para o lado científico,
e, para isso, vocês devem atrair para seu lado os cientistas menos conservadores.
Familiarizem-se com a filmagem de animações. Aprofundem com dados
científicos as observações dos cine-observadores.
Guardem para si todas as suas conquistas, invenções e criações práticas
até terem a oportunidade de realizá-las da melhor maneira possível. Publiquem
cautelosamente, apenas o essencial, o fundamental, o que for de agitação. Tentem
não dar de bandeja para a cinematografia de ficção o melhor daquilo que vocês
já fizeram e que ainda farão.
No caso de se apoderarem de algum departamento de atualidades, dirijam-
-no com base na seguinte conta de acumulação de material:
estabeleçam a tabela:
1) Cine-Olho – 75% (cotidiano – 45%; científico-educativo – 30%)
2) “drama de ficção” – 25%35
--------
Vocês perguntam ainda sobre nossas relações com a ARK, VAPP36 e com
os construtivistas.
A ARK é um conglomerado de trabalhadores do cinema de ficção de dife-
rentes tipos: diretores novos e velhos, críticos de arte, atores etc. Não possui uma
34 N.E.: Adiante, cortado de uma nova linha: Ajam assim também quando do envio para os cinemas.
35 N.E.: Antes da correção:
1) Cine-Olho ------------------- 75%
2) puramente científicos ------20%
3) “drama ficcional” ----------25%
36 N.T.: ARK: Assotsiátsia Revoliutsiônnoi Kinematográfii, ou Associação da Cinematografia Revolucionária, criada
em meados de 1924. VAPP: Vsierossískaia assotsiátsia proletárskikh pissátelêi, ou Associação Pan-russa dos escritores
proletários, criada em 1920.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 241
37 N.E.: Adiante, cortado de uma nova linha: Há também aqueles que se enfiaram ali por acaso. A Assotsiátsiia
revoliutsîonnoi kinematográfii [Associação da Cinematografia Revolucionária] foi criada em Moscou em
1924 (seguiu existindo até 1935), integraram a direção em diferentes momentos A. D. Anóschenko, M.
E. Koltsóv, N. A. Liêbedev, A. M. Room, S. M. Eisenstein e outros. Em 1926, Viértov também foi eleito
membro da direção da organização.
38 N.E.: A seção de cinema da VAPP foi organizada no dia 12 janeiro de 1925; foi escolhido como seu
presidente D. I. Furmánov, e depois V. Kirchon a encabeçou.
39 Trata-se de Aleksiêi Gan, autor do livro Construtivismo (Konstruktivizm, 1922), editor da revista Kino-
-Fot (1922-1923) e figura próxima de artistas como Viértov, El Lissítski, Aleksándr Rôdchenko e Varvára
Stepánova. Foi casado com a documentarista Esfir Chub.
40 N.E.: Nos anos 1920, o construtivismo, como estilo, foi introduzido em todos os tipos de arte, e
não apenas na Rússia. O construtivismo pregava a obra como uma construção em que cada elemento
seria saturado de significação ao máximo. Dentro deste estilo trabalharam os pintores e arquitetos A.
Ródchenko, V. Stepánova, A. Lavínski, V. Tátlin, El Lissitski e outros. Ingressaram no grupo literário dos
construtivistas, surgido em Moscou em 1922 (mais tarde, chamado de LTsK) A. N. Tchitchiérin, K. L.
Zelínski, V. Inber e outros. No teatro, o estilo construtivista foi encarnado pelos espetáculos de Vsiêvolod
Meierkhôld.
242 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov
considerava que a única linha correta do cinema era a linha dos kinocs, a linha de
Kino-Pravda e Cine-Olho.
Seu pronunciamento com o comunicado sobre os cine-construtivistas foi
evidentemente motivado pelo fato de os kinocs não terem recebido bem seu pri-
meiro trabalho prático, Os jovens pioneiros41, visto como um trabalho conciliatório
feito a partir de um slogan cine-menchevique (‘tipagem-natural”42).
Claro, o fracasso43 do camarada Gan não é obrigatório para outros cons-
trutivistas44.
Cada construtivista que reconheça e apoie a ideia do “Cine-Olho” pode, ao
passar para o trabalho na produção cinematográfica, ser arrolado dentre os kinocs,
com a condição da completa sinceridade de sua transição e completa dedicação
ao movimento “Cine-Olho”.
--------
Eu deixei passar uma pergunta sobre quem nos apoia em nossa luta.
Mais do que qualquer outra coisa, nos ajuda o público operário-camponês
nas regiões ainda não contaminadas pela cine-sífilis “artística45”.
* * *
41 N.E.: Refere-se ao filme de Aleksiêi Gan Óstrov iúnikh pioniêrov [‘A ilha dos jovens pioneiros’] (1924).
Nota da tradução: Até então consideravelmente próximo a Gan, que publicara diferentes artigos exaltando
sua prática cinematográfica, Viértov se irritou com o fato de o construtivista ter utilizado jovens atores
em seu filme, pretensamente um documentário. Para Viértov, essa contradição poderia prejudicar a luta
geral pelo “cinema não atuado”, motivo pelo qual se pronunciou publicamente mais de uma vez criticando
duramente o trabalho de Gan.
42 N.E.: Não fica totalmente claro a que se refere Viértov. Julgando a partir de textos posteriores, o
assunto aqui é o método de escolha de atores nos filmes de Abram Room e Sergei Eisenstein. No entanto,
tal definição não é encontrada em artigos de nenhum dos dois diretores.
43 N.E.: Antes da revisão, havia as seguintes variantes: esta abordagem; tal abordagem pessoal.
44 N.E.: Adiante, cortado: (ainda mais que nenhum programa seu foi até agora posto em marcha no cinema [antes
da revisão: ... não foi posto em marcha por nenhum construtivista].
45 No original russo, o termo que está entre aspas é “khudôjestvenni”, que literalmente significa “artís-
tico”. No entanto, este é o termo utilizado no país para se referir ao cinema ficcional [‘khudôjestvennaia
kinematográfia’], chamado, ao pé da letra, de “cinema artístico”. O estabelecimento dessa expressão foi
alvo de inúmeras polêmicas desde as origens do cinema russo, uma vez que tal definição pareceria indicar
que apenas o cinema ficcional poderia ser considerado “artístico”. Nesse sentido, Viértov aqui emprega as
aspas justamente para indicar seu descontentamento com a produção ficcional do país, “indigna” de ser
considerada “arte”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 243
КИНОКАМ ЮГА
ПИСЬМО К КИНОКАМ ЮГА
Referências
DROBACHENKO, Serguei (Org.); VIÉRTOV, Dziga. Dziga Viértov. Statí. Dnevnikí. Zá-
mysly. Moscou: Iskússtvo, 1966.
VIÉRTOV, Dziga. Kinókam iúga. Pismó kinókam iúga. In: Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom
2. Statí i vystupliênia (Org.: Dária Krujkôva). Moscou: Eizenchtein-Tsentr, 2008, pp. 89-95.
250 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...
Odomiro Fonseca
Resumo: No presente trabalho, trazemos a tradução de um artigo do consagrado escritor Maksim Górki sobre o
desconhecido Vassíli Sleptsov, um escritor próprio do Realismo Russo, que viajou – a pé – pelas estradas e confins de
sua pátria a estudar e captar a essência de sua população mais vulnerável: os camponeses. Sleptsov deu voz às canções
populares e mostrou a miséria do trabalhador russo sem floreios. Mesmo com o reconhecimento de pares como Liév
Tolstói, Ivan Turguêniev e Kornei Tchukóvski, sua obra permaneceu esquecida por mais de um século. Hoje há um
movimento internacional pelo resgate de suas obras.
Palavras-Chave: Literatura Russa; Realismo Russo; Niilismo Russo; Vassili Sleptsov; Tradução.
Abstract: In the present text, we bring the translation of an article by the renowned writer Maxim Gorky about
the unknown Vasily Sleptsov, a writer of Russian Realism, who traveled - by foot - along the roads and limits of his
homeland to study and capture the essence of its most vulnerable population: the peasants. Sleptsov gave voice to the
popular songs and showed the misery of the Russian worker without flourishes. Even with the recognition of writers
like Leo Tolstoy, Ivan Turgenev and Kornei Tchukovski, his work remained forgotten for more than a century. Today
there is an international movement for the rescue of his works.
Keywords: Russian Literature; Russian Realism; Russian Nihilism; Vasily Sleptsov; Translation.
1 Aquele que não tem classe social definida, ou seja, escritores de origem não nobre.
2 In the Depths: Nineteenth-century Russian stories. Compilled by Anatoley Shavkuta,
Nikolai Tkachenko, Evgueny Lebedev and Alexander Valdman. 293 pages. Raduga Pub-
lishers, 1987.
252 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...
Essa linguagem é bem conhecida pelos escritores dos anos 1860. Mas
as gerações subsequentes esqueceram-na e perderam a chave que abria a
mensagem criptografada, por não atentarem aos artigos jornalísticos de
Sleptsov, publicados na revista O Contemporâneo, e outros periódicos da época.
Não sabiam que, além do significado explícito, esses artigos possuíam um
segredo, um significado secreto, que os pesquisadores atribuíram à categoria
de rascunhos, sem conceder-lhes valor literário ou político.5
10 Russak [Русак] é um termo antigo para “russo”, normalmente atribuído para homens
do interior, “caipira”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 259
11 Vólost’ era a mais baixa sessão administrativa do Estado Imperial Russo, atuando
comumente no campo, principalmente entre os séculos XV e o final do século XVIII.
12 Semión Afanassiêvitch Venguérov (1855-1920).
13 Aleksandr Mikháilovitch Skabitchévski (1838-1911), foi um escritor e crítico literário
russo, famoso por participar do movimento “Populista” dos anos 1870-1880.
260 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...
se pode presumir nesses casos, a fofoca tomou lugar da ocupação séria. Mas isso
não desencorajou Sleptsov, que logo criou uma “comuna” – um apartamento para
interessadas em ciências, onde também se organizou uma cooperativa de costurei-
ras, abriu um escritório para a formulação de documentos, organizou traduções
de textos de línguas estrangeiras, palestras públicas e debates literários para suas
“comunistas”. Em suma, trabalhou com obstinada resiliência para fazer o que
estava ao alcance do seu tempo e das condições oferecidas pela sociedade russa.
Essas atividades intensificaram a cruel perseguição às frequentadoras da comuna,
e culminou com uma batida policial. Os cidadãos logo espalharam boatos de que
Sleptsov criara uma espécie de seita, algo com uma galé de forçadas, e que nessa
seita reinava uma intensa promiscuidade; então, a polícia, suspeitando algo mais,
conduziu Sleptsov até os porões do Monastério de Aleksándr Niévski, onde ficou
por sete semanas e lá adoeceu de modo irremediável.
A sede incontrolável de vida e sua participação ativa na mesma, indubi-
tavelmente prejudicaram uma atividade mais assídua como escritor. E Sleptsov
escreveu mesmo pouco, ocupando seu tempo e energia em viagens pelos confins
da Rússia, na Questão Feminina e na vida, de modo geral.
O maior e mais maduro trabalho de Sleptsov foi o romance “Tempos Di-
fíceis”, que retrata perfeitamente um dos incontáveis dramas da época, mesmo
que esse drama, por vezes, se transmute em comédia – o que é uma característica
típica do drama russo, em que sempre temos infindáveis narrativas tediosas e
muito pouca paixão original. Schettínin, sua esposa e Riazánov são típicos heróis
de um tempo difícil. Sleptsov descreve-os com maestria, como um verdadeiro artista.
A esposa de Schettínin é uma daquelas mulheres que, levadas pelas agitações da
época, romperam com os difíceis laços familiares russos para seguirem ou pere-
cerem à chama do conhecimento em cidades como São Petersburgo, na distante
Suíça, nas “idas ao povo” ou nas prisões, exílios e trabalhos forçados do sistema
penal russo. Maria Schettína talvez fosse uma das mulheres que assistiram às
palestras de Sleptsov, que moraram em sua “comuna” ou tenha morrido na luta
pela liberdade de seu país.
Riazánov, por sua vez, é um daqueles intelliguenti que, percebendo que seus
ideais são estranhos e incompreensíveis ao povo e às outras classes todas, adqui-
rem um tom hostil e uma atitude crítica diante dos “sacramentos” da vida russa.
Abraçando o espírito da negação e da rejeição orgulham-se de sua condição de
niilistas. Por natureza, Riazánov é um irmão literário do niilista Bazárov, do romance
“Pais e Filhos”, de Ivan Turguêniev, mas ele tem uma conduta mais natural e mais
próxima da vida real do que o herói de Turguêniev.
262 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...
“– Isso não é a vida, – Ele diz a Maria Schettína. – mas só o diabo é quem
sabe como funciona essa porcaria toda... Há sempre um ponto de vista em que
é possível observar todo o desengano da vida de modo simples e cristalino. Mas
as pessoas, como que de propósito, escolhem enxergar só o dedo mindinho do
capeta, porque parece ser mais divertido, surpreendente e aterrorizante. Bem,
assim o tempo vai passando, como você mesma tem vivenciado.
– Mas e então? – Perguntou Schettína. – Como fica a vida de uma pessoa
que perdeu a chance de viver tal qual os outros vivem?
– Como fica? – Riazánov olhou em volta de si. – Fica precisando ser rein-
ventada, mas até lá, então...
Ele fez um movimento de desistência com a mão.”
Essa é uma imagem do desengano que perturbava as cabeças e os espíritos
das pessoas de senso crítico na época dos “tempos difíceis”, uma gente que não
tinha um lar para chamar de seu. Os Bazárovs e Riazánovs foram criados pela vida
russa como que por um ato irrestrito de condenação. Seus papéis na trama são
desinteressantes, uma vez que seus corações e mentes já se entregaram à negação,
mas são como tantos outros heróis que deram a vida pela causa revolucionária,
cujos nomes ficaram respeitavelmente inscritos nas histórias da luta pela liberdade
e pela cultura.
1932
О Василии Слепцове
Referências
BRUMFIELD, William C. Bazarov and Rjazanov: The Romantic Archetype in Russian Nihilism.
The Slavic and East European Journal, Vol. 21, n. 4 (Winter, 1977), pp. 495-505.
____. Sleptsov Redivivus. Ad Litteram, 2014, n. 2. pp. 357-389.
____. Two Hamlets: Questioning Romanticism in Turgenev’s Bazarov and Sleptsov’s Riazanov. Journal
of Siberian Federal University. Humanities and Social Sciences, 2015.
268 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...
Graziela Schneider
Resumo: Dois meses depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem, no Dia
das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve geral, Aleksándra Kollontai publica o texto
“Nossas missões”, no momento da efervescência do retorno da revista “Rabótnitsa”. A tradução inédita, direta do
russo, do referido texto, escrito por Kollontai no calor dos acontecimentos, tem o intuito de contribuir para recuperar,
por meio da fonte primária, a voz da própria mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na histo-
riografia desse e de outros processos históricos.
Palavras-chave: Revolução Russa; Aleksandra Kollontai; Movimentos de mulheres; questão de mulheres; tradução
Аннотация: Через два месяца после Февральской Революции, когда тысячи женщин-работниц решили
начать всеобщую забастовку в женский день вопреки решению большевистских лидеров, Александра
Коллонтай опубликовала текст “Наши задачи”, в момент возвращения к работе журнала “Работница”.
Прямой перевод с русского на португальский текста, написанного Коллонтай в разгар тех событий, призван
помочь восстановить через первичный источник голос самой русской женщины-революционерки, а также
противостоять умалчиванию её роли в историографии этого и других исторических процессов.
Ключевые слова: Русская Революция; Александра Коллонтай; Женское Движение; женский вопрос;
перевод
1 “Operária”. A revista começa a ser idealizada em 1913, por Inessa Armand (Choi Chatterjee, “Ce-
lebrating Women: Gender, Festival Culture, and Bolshevik Ideology, 1910-1939”, p. 30). Publicada pela
“Izdátelstvo Pressa”, a partir da iniciativa de mulheres, “Clements identifica a fundação da Rabótnitsa
270 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões
como o ponto em que o feminismo bolchevique emergiu” (Clements apud Scheide, Carmen, “‘Born in
October’: the Life and Thought of Aleksandra Vasil’evna Artyukhina, 1889-1969”, in Melanie Ilič (ed.),
“Women in the Stalin Era”, Palgrave Macmillan, 2002, p. 14). Voltada, como o próprio nome alude, para
operárias, o primeiro número “finalmente tem sua primeira edição, com tiragem de 12.000 cópias, em São
Petersburgo, no Dia Internacional das Mulheres, em 1914. Entretanto, “Rabótnitsa” foi lançada apenas
depois de quatro anos de debate sobre a necessidade de mulheres trabalhadoras terem mais do que uma
“página de mulheres” no Pravda. Argumentando que a “questão da mulher” era apenas “um aspecto” da
questão social geral, o POSDR, dominado por homens, opunha-se a uma publicação separada de mulheres,
alegando que era um desperdício de fundos.” (Jane Gary Harris, “Women’s Periodicals in Early Twentieth-
-Century Russia”, in “Encyclopedia of Russian women’s movements”, Norma Corigliano Noonan and
Carol Nechemias, ed., Greenwood Press, 2001, p. 113).
Apesar de ser atribuída a Lenin, há indícios, como cartas, de que a iniciativa da revista foi de mulheres,
Inessa Armand, Nadiéjda Krúpskaia e Konkórdia Samóilova. Além das referidas revolucionárias, impor-
tantes nomes como Anna Elizárova, Liudmila Stal, Praskóvia Kudelli, Klávdia Nikolaiéva, Zlata Lilina,
A. V. Artiúkhina, entre outras, faziam parte do conselho editorial e/ou participavam ativamente.
Ao longo de sua história, teve periodizações, tiragens e perfis variados, além de suspensões temporárias.
Ainda em 1914, depois de apenas sete números, é obrigada a encerrar as atividades, devido a repressão
policial, prisões e à I Guerra Mundial. Retomada somente em 1917, representa um instrumento de forma-
ção e conscientização, bem como um espaço para relatos de operárias sobre as condições de trabalho, as
especificidades e divergências entre as suas demandas e as dos homens, o machismo, as diferenças, tanto
no que diz respeito às próprias mulheres, que não formam um monólito, como entre os pensamentos e
posicionamentos delas sobre questões políticas e práticas, de que forma e com o que atuavam, em geral,
e, particularmente, na luta pela emancipação total das mulheres.
A partir da Guerra Civil, a edição é novamente interrompida, até 1923; posteriormente, passa a ser uma
publicação do Jenotdiél, e, a partir da década de 1930, quando a questão da mulher é decretada, de forma
unilateral e deliberada, resolvida, e o Jenotdiél impostamente fechado, seus contornos e sua temática
passam por profundas mudanças.
Cf., entre outros, Л.Н. Сталь, “История журнала “Работница”, в Печать и женское коммунистическое
движение”, М., Госиздат, 1927 (L. N. Stal, “Istória jurnála Rabótnitsa”, v “Pechát i jénskoie kommunistí-
tcheskoie dvijénie”, M., Gossizdát, 1927); А.Ф Бессонова, “К истории издания журнала “Работница”:
Документы Института Маркса-Энгельса-Ленина-Сталина при ЦК КПСС”, 1955. С. 25-53. 1913-1914;
ЦПА; (A. F. Bessanova, “K istórii izdánia jurnála “Rabótnitsa”: Dokumiénti Institúta Márksa-Éngelssa-
-Lénina-Stálina pri Ts. K. KPSS. S. 25-53. 1913-1914; TsPA, 1955); Александра В. Артюхина, “Первый
женский рабочий журнал в России”, в Всегда с вами: сборник посвященный 50–летию журнала
‘Работница’, Изд. ”Правда”, М. 1964 (Aleksándra V. Artiúkhina, “Piérvi jénski rabótchi jurnál v Rossíi’,
v Vsegdá s vámi: sbórnik posviaschénni 50–létiiu jurnála ‘Rabótnitsa’, Izd. “Pravda”, M., 1964); Rhonda
Lebedev Clark,.“Forgotten Voices: Women in Periodical Publishing of Late Imperial Russia, 1860-1905.”
Ph.D. Diss., University of Minnesota, 1996; Jehanne M. Gheith, e Barbara T. Norton (eds.), “An Improper
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 271
Profession: Women, Gender and Journalism in Late Imperial Russia”, Durham, NC, Duke University
Press, 2001; R. C. Elwood, “Inessa Armand: Revolutionary and Feminist”, Cambridge University Press,
2002; Валентина Ю. Смирнова, “Конструирование возраста в журнале “Работница” в советское
время”, Женщина в российском обществе. 2016. № 1 (78). С.92-102. (Valentina Iu. Smírnova, “Kons-
truírovanie vozrásta v jurnále “Rabótnitsa” v soviétskoie vrémia”, Jénschina v rossískom obschéstvie.
2016. № 1 (78). S.92-102.)
2 Cf. Steve Smith, Class and Gender: Women’s Strikes in St. Petersburg, 1895-1917 and in Shanghai,
1895-1927, Social History, Vol. 19, No. 2 (May, 1994) p. 141-168, em especial as notas 16, 17 e 21, p. 144
e 145; na última, o autor faz menção à estimativa de outro pesquisador, Robert McKean, de que “houve
22 greves desse tipo, em 1912; 25, em 1913; 25, nos primeiros seis meses de 1914; 18, em 1915; 29, em
1916; e 8, nas primeiras sete semanas de 1917”.
272 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões
3 A respeito do apagamento de mulheres russas, Cf, somente como alguns exemplos de muitos, e de
inúmeros outros campos, inclusive a literatura e as artes em geral, Ann H. Koblitz, “Science, Women
and the Russian Intelligentsia: The Generation of the 1860s”, Isis, Vol. 79, Nº 2, Jun, 1988, p. 208-226;
Olga Valkova, “The Conquest of Science: Women and Science in Russia, 1860-1960”, in Michael Gor-
din et alli (ed.), “Intelligentsia Science: The Russian Century 1860-1960”, 2008, p. 136-165; Наталья Л.
Пушкарева, “Из небытия: женские имена в российской науке начала XX В.”, Научные ведомости
Белгородского государственного университета. Серия: История. Политология. 2010. № 1 (72)
(Natália L. Puchkarióva, “Iz nebitiá: jénskie imená v rossískoi naúke natchála XX V.”, Naútchnie vedó-
mosti Belgoródskogo gossudárstvennogo universitéta. Séria: Istória. Politológuia. 2010. № 1 (72)); Н. Л.
Пушкарева, “Женщины-историки в России 1810-1917 гг”, Вестн. Перм. ун-та. Сер. История. 2012.
№ 1 (18). С.228-245 (N. L. Puchkarióva, “Jénschini-istóriki v Rossíi 1810-1917 gg”, Vestn. Perm. un-ta.
Ser. Istória. 2012. № 1 (18). S.228-245); Татьяна А. Минеева, “Письмо как форма коммуникации
между научным сообществом и женщинами-историками во второй половине XIX начале XX в”,
Вестн. Перм. ун-та. Сер. История. 2012. № 1 (18). С.246-251 (Tatiána A. Minéieva, “Pismó kak fórma
kommunikátsia méjdu naútchnim soobschéstvom i jénschinami-istórikami vo vtorói polovíne XIX na-
tchále XX v”, Vestn. Perm. un-ta. Ser. Istória. 2012. № 1 (18). S.246-251); Mary R. S. Creese, “Ladies in
the Laboratory IV: Imperial Russia’s Women in Science, 1800-1900. A Survey of their Contributions to
Research”, Rowman & Littlefield, 2015.
4 Ainda hoje, tanto a historiografia como as referências bibliográficas gerais sobre mulheres e sobre
mulheres e as revoluções russas, são, majoritariamente, de homens, apesar de existir ampla produção de
mulheres sobre o tema, seja de fontes (embora haja poucas coletâneas, mesmo em russo ou em inglês),
crítica ou pesquisa. Para citar apenas algumas, Cf. Надежда Д. Карпецкая, “Работницы и Великий
Октябрь”, Изд-во Ленинградского университета, 1974 (Nadiéjda D. Karpétskaia, ”Rabótnitsi i Velíki
Oktiábr”, Izd-vo Leningrádskogo universitéta, 1974); Barbara A. Engel, “The Emergence of Women
Revolutionaries in Russia”, A Journal of Women Studies, Vol. 2, Nº 1, Spring 1977, p. 92-105.; В. С.
Шакулова, “Культурная революция и женский вопрос”, “Опыт КПСС в решении женского
вопроса”, Отв. ред. Н. И. Кондакова, М., Мысль, 1981. – С. 77-102.. (V. S. Chakulóva, “Kultúrnaia
revoliútsia i jénski voprós”, “Ópit KPSS v rechénii jénskogo vopróssa”, Otv. red. N. I. Kondakova, M.,
Mísl, 1981. S. 77-102.); Rose L. Glickman, “Russian Factory Women: Workplace and Society, 1880-1914”,
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1984; Cathy Porter, “Women in Revolutionary
Russia”, Cambridge, Cambridge University Press, 1987; Christine Johansson, “Women’s Struggle for Higher
Education in Russia, 1855-1900”, Mc-Gill-Queen’s University Press, 1987; Элеонора А. Павлюченко,
“Женщины в русском освободительном движении: от Марии Волконской до Веры Фигнер”, Мысль,
1988 (Eleonora A. Pavliútchenko, Jénschini v rússkom osvobodítelnom dvijéni: ot Maríi Volkónskoi do
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 273
Наши задачи
Véri Figner, Mísl, 1988); Marie-Claude Burnet-Vigniel, “Femmes russes dans le combat revolutionnaire”,
Institut d’études slaves, Paris, 1990; Barbara E. Clements, “Bolshevik women”, Cambridge, CUP, 1997; B.
A. Engel, “Not by Bread Alone: Subsistence Riots in Russia during World War I”, The Journal of Modern
History 69, December 1997, p. 696-721; Наталья П. Рушанина, “Женский вопрос в России и основные
подходы к его изучению в дореволюционный период”, Magistra Vitae: электронный журнал по
историческим наукам и археологии. 1999. № 2 (10). С.77-87 (Natália P. Ruchanina, “Jénski voprós v
Rossíi i osnóvnie podkhódi k ego izutchéniu v dorrevoliutiónni períod”, Magistra Vitae: elektróni jurnál
po istorítcheskim naúkam i arkheológui. 1999. № 2 (10). S.77-87); Jane McDermid, “Midwives of the
revolution: female Bolsheviks and women workers in 1917”, London, UCL Press, 1999; Anna Hillyar;
Jane McDermid (ed.), “Revolutionary Women in Russia, 1870-1917: A Study in Collective Biography”,
Manchester, Manchester University Press, 2000; Rochelle G. Ruthchild, “Equality & Revolution: Women’s
Rights in the Russian Empire, 1905-1917”, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2010; Моника
И. Старуш, “К истории “Женского вопроса” в СССР в первые постреволюционные годы”,
Вестник МГУКИ, № 5, 2011, С.59-64 (Mónika I. Staruch, “K istórii “Jénskogo vopróssa” v SSSR v
pérvie postrevoliutsiónnie gódi”, Véstnik MGUKI, № 5, 2011, S.59-64); Aino Saarinen; Kirsti Ekonen;
Valentina Uspenskaia (eds.), “Women and Transformation in Russia”, Nova Iorque, Routledge, 2014;
Marianna Muravyeva; Natalia Novikova (eds), “Women’s History in Russia: (Re)Establishing the Field”,
Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Publishing, 2014, Erin K. Krafft, “Reading Revolution in
Russian Women’s Writing: Radical Theories, Practical Action, and Bodies at Work”, Phd. Dissertation,
Brown University, Providence, Rhode Island, 2015.
274 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões
Александра Коллонтай
“Работница”, 1917 г. № 1—2, стр. 3—4.
Nossas missões5
5 Publicado pela primeira vez em Работница (Rabótnitsa), 10 maio de 1917. № 1-2, p. 3-4.
276 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões
rários viveriam melhor e de forma mais promissora do que viviam sob a maldita
memória do reinado de Nikolai, o Sanguinário.
Mas, diante dos operários e operárias da Rússia não há agora apenas
a missão de conquistar e consolidar o poder estatal pelo proletariado e pelos
pequenos agricultores, de introduzir e instaurar normas para limitar as ambições
dos capitalistas exploradores, e de defender os interesses da classe trabalhadora. O
proletariado da Rússia se encontra agora em uma posição especial em comparação
com os operários e operárias de outros países.
A grande revolução russa nos colocou, operárias e operários russos, nas
primeiras filas dos combatentes por uma causa operária, universal, pelos interesses
dos operários em geral.
Podemos falar, escrever e agir com mais liberdade do que as operárias e
operários de outros países.
Como não usar essa liberdade, conquistada pelo sangue de nossos camara-
das, para, neste momento, sem perder tempo, concentrar nossas forças, as forças
das mulheres da classe operária, e conduzir uma luta das massas, incansável, per-
sistente, pelo fim, o mais rápido possível, do massacre mundial?
Nossas camaradas, operárias de outros países, esperam de nós esse passo.
A guerra é agora o mal mais terrível que gravita sobre nós. Enquanto a
guerra não acabar, não poderemos construir uma nova Rússia, não será resolvida a
questão do pão, da comida, não será superada a carestia. Enquanto a guerra matar
a cada hora, mutilar nossos filhos e maridos, não haverá paz para nós, mulheres
da classe operária!
Se a nossa primeira missão é ajudar nossos companheiros a construir uma
nova Rússia democrática, então a nossa segunda missão, não menos urgente, e
sim mais iminente, é alçar as operárias para a guerra contra a guerra.
E isso significa: primeiro, não apenas entender por nós mesmas que esta
não é nossa guerra, que ela é conduzida em nome dos interesses dos bolsos dos
patrões ricaços, banqueiros, industriais, mas também explicar isso a camaradas
operárias e operários incessantemente.
Segundo, isso significa: unir as forças das operárias e operários em torno do
partido que não só defende os interesses do proletariado da Rússia, mas também
luta para que o sangue proletário não seja derramado para a glória dos capitalistas.
Camaradas operárias, não temos mais forças para nos resignarmos com a
guerra, com a carestia! Devemos lutar! Vocês devem ir para as nossas fileiras, para
as fileiras do Partido Operário Social Democrata! Mas não basta se organizar no
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 277
Aleksandra Kollontai6
Rabótnitsa, 1917. № 1-2, p. 3-4.
Referências
CHATTERJEE, Choi. Celebrating Women: Gender, Festival Culture, and Bolshevik Ideology, 1910-
1939, University of Pittsburgh Press, 2002, p. 30.
HARRIS, Jane Gary. “Women’s Periodicals in Early Twentieth-Century Russia”, in En-
cyclopedia of Russian women’s movements, Norma Corigliano Noonan and Carol Nechemias
(ed.), Greenwood Press, 2001, p. 113.
KOLLONTAI, A. M. Наши задачи. “Работница”, 1917 г. № 1-2, стр. 3-4. (Náchi Za-
dátchi. “Rabótnitsa”, 1917. № 1-2, p. 3-4).
NOONAN, Norma Corigliano. “Kollontai, Aleksandra Mikhailovna (1872-1952)”, in
Encyclopedia of Russian women’s movements, Norma Corigliano Noonan and Carol Nechemias,
ed., Greenwood Press, 2001, p. 142-144.
SCHEIDE, Carmen. ‘Born in October’: the Life and Thought of Aleksandra Vasil’evna Ar-
tyukhina, 1889-1969, in Ilič, Melanie (ed.). “Women in the Stalin Era”, Palgrave Macmil-
lan, 2002, p. 14.
SMITH, Steve. Class and Gender: Women’s Strikes in St. Petersburg, 1895-1917 and in Shanghai,
1895-1927. “Social History”, Vol. 19, No. 2 (May, 1994) p. 141-168.
280 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar
Resumo: Tradução do russo para o português de trecho do diário de Ivan Búnin, Dias Malditos. Após introdução
sobre o autor e sua obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do tradutor, descrevendo questões
como a opção pelo emprego de notas de rodapé e contaminação do texto na língua de chegada.
Palavras-chave: tradução comentada; diário; Revolução Russa; Ivan Búnin
Dias Malditos é composto por notas curtas e rotineiras, datadas, que descre-
vem as tragédias da Guerra Civil mescladas a afazeres triviais num ambiente de
profunda mudança social e política. Em suas anotações o escritor revela também o
próprio olhar sobre como a sociedade passou a absorver as modificações em curso.
Os relatos são permeados pelas opiniões do autor, contrárias ao regime bolchevista
que acabara de aniquilar o tsarismo e, no momento da narrativa, procedia com
a aniquilação de toda uma classe social – a burguesia, representada por nobres,
burgueses e um incontável número de artistas e intelectuais – processo que Búnin
vivia, testemunhava e temia. O narrador também reproduz ao leitor as opiniões de
pessoas da rua, de amigos, bem como excertos de jornais bolchevistas, retratando
assim a diversidade de olhares sobre o momento histórico e compondo um verda-
deiro debate entre os dois lados de uma sociedade dividida entre os apoiadores do
antigo regime e os defensores do novo. Desta forma, o leitor pode acompanhar
a experiência subjetiva de testemunhas, tendo acesso à atmosfera da época, na
qual a polarização da sociedade já era tão intensa, que qualquer posicionamento
crítico sobre os acontecimentos não passaria livre da categorização de direita ou
esquerda. A voz de um branco prevalece, por certo, questionando a legitimidade
e a violência do poder tomado e exercido pelos vermelhos.
22 апреля.
22 de abril.
estilo elevado? E não é que até Korolenko (especialmente em cartas) tem isso a
cada passo? É infalível: não é cavalo, é Roucinante; ao invés de “eu me sentei para
escrever”, é “eu selei meu Pégasus”; não é farda, é “uniformes de cor celestial”.
*
Ao leitor brasileiro contemporâneo que acompanha o cenário político na-
cional enquanto lê Dias Malditos, é inevitável relacionar as mudanças pelas quais a
Rússia atravessava às mudanças pelas quais o Brasil atravessou nos últimos anos
e ainda atravessa. As analogias são tantas que o tradutor brasileiro projeta carac-
terísticas de sua própria sociedade no texto de tal forma que o vivencia como se
a história não lhe fosse de todo desconhecida, apesar de algumas semelhanças
serem um tanto às avessas, como será esclarecido. Tamanha proximidade nos
pareceu um desafio quase orgânico, talvez maior do que as dificuldades impostas
pelas questões técnicas da tradução.
Não obstante os cenários distintos que separam o leitor de hoje dos per-
sonagens da época, a polarização entre direita e esquerda é um dos traços que
guardamos em comum. O crítico Simon Karlinsky (1977, p. 5-6), exilado como
Búnin, comenta que, à época, nenhum posicionamento sobre os acontecimentos
em questão poderia suplantar essa categorização binária, que acabava reduzindo
a rótulos simplistas críticas com poder de esclarecimento, dificultando assim o
diálogo. Como exemplo ele cita a “Western self-censorship”, ou seja, a política
de alguns veículos dos países europeus e dos EUA de não publicar escritores
de direita, basicamente a esmagadora maioria dos emigrados. Tal categorização
ignorava, por exemplo, que os exilados não apenas emigravam pelo princípio da
liberdade na arte, mas também para preservar a própria vida – eram refugiados.
Que os rótulos caminham em direção contrária ao esclarecimento já se sabe. E o
que o livro nos faz refletir é sobre qual eficácia há, no debate nacional sobre os
rumos de nossa nação, de nos chamarmos mutuamente de petralhas, coxinhas,
patos, mortadelas, CBFs e paneleiros.
Outro paralelo inevitável é o visível aumento da agressividade quando o
asunto é política, tanto entre estranhos como entre pessoas ligadas por um relacio-
namento amistoso. Testemunhamos no Brasil a cólera com que opiniões diferentes
se encontravam pessoal e virtualmente, cólera que também existia nas ruas de
Odessa e Moscou. Em particular, Búnin também narra as trocas de acusações e
atribuição mútua de responsabilidade entre esses dois pólos da sociedade: se na
Rússia a esquerda acusava a elite de negligenciar e abusar dos trabalhadores, a direita
os acusava de uma longa lista de extorsão, roubo, assassinatos e linchamentos, vio-
lência que por princípio aniquilaria o próprio ideal revolucionário, argumentavam.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 285
7 de março.
4 Excerto traduzido do inglês. Para uma discussão detalhada dos fatos verdadeiros e falsos, veja Marullo,
1998, p. 43, 53, 55, 57, 94, 83, 124, 137, 175, 146, 179, 186 e 203.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 287
dando a entender que elas almejam o elevado e pecam pelo excesso, tornando-se
ridículas. Ele as atribuiu aos наших левых (nachikh levikh), literalmente, “nossos
esquerdistas”. A tradução literal dessa expressão nos pareceu inicialmente ideal:
tanto Búnin era considerado um “direitista” como os comunistas, “esquerdistas”.
Ao tradutor, a lógica era de que no Brasil, as pessoas de posicionamento político
de esquerda são consideradas “esquerdistas” pelas pessoas de direita, tal como
o narrador faz; logo, a tradução literal parecia não ter objeções. Entretanto, essa
solução imediata convivia com um desconforto difuso, que nos remete diretamente
à discussão a respeito dos possíveis paralelos entre os cenários do Brasil de hoje e
da Rússia de então para esclarecê-lo. A provocação de Búnin sobre o atendado ao
“bom russo” possui análogo no cenário político brasileiro e, em particular, no que
se refere ao atentado ao “bom português”. Para nos convencermos disso, basta
recordar as chacotas sobre o modo de falar do presidente Lula, as discussões sobre
presidenta ou presidente e as comemorações, após impeachment, de que finalmente
o Brasil teria um presidente que soubesse falar português, em parte porque o pre-
sidente atual também é conhecido por utilizar mesóclises, como manda o “bom
português”, apesar da prática questionável. As reflexões invocaram inevitáveis
reflexões e posicionamento sobre os valores da sociedade brasileira por parte do
tradutor. A semelhança dos cenários e a fusão do próprio tradutor-leitor com as
discussões misturadas – política, gramática e sociolinguística – pareciam agravar a
sensação de desconforto, sem levar à decisão clara sobre qual termo utilizar para
a esquerda. Seria o correspondente “esquerditas” uma opção que prezaria pelas
normas da língua, que o tradutor deveria necessariamente preservar tendo como
referência o texto original? No século passado Búnin estava defendendo o “bom
russo” ao empregar as palavras наших левых (nachikh levikh) – o que nos faz per-
guntar se a escolha eleita estaria fazendo o mesmo no português contemporâneo.
Foi então que Seligmann (2005, p. 190), pareceu orientar a resolução desse conflito,
com a afirmação: “É apenas abandonando uma coisa que a nomeamos” (apud
Benjamin, 1972, p. 506), ou seja, o distanciamento implica numa visão crítica, que
perde de vista o self, os vocábulos e seu contexto, para depois se reaproximar deles.
Em outras palavras, “a reflexão implica na saída do indivíduo de si mesmo, que
se dá através do confronto com um ‘outro’” (Seligmann, p. 190). Com tal auxílio,
compreendemos que embora formalmente equivalentes, a opção pela tradução
literal seria um equívoco semântico, já que a forma no português, além de ser um
neologismo recente, reproduz uma imagem social negativa do falante, incompatível
com o russo, no qual evidencia-se mais um sarcasmo. “Esquerdista”, portanto,
resultaria numa contaminação advinda de um tradutor excessivamente enredado
num texto com o qual se identifica. O termo mais induziria, do que traduziria.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 289
Assim, a opção do bom e velho “de esquerda” nos pareceu a mais correta, pois
contribuiria para uma leitura mais asséptica do texto.
Referências
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
BUNIN, Ivan. Jizn Arseneva. Okaiannie dni. Moscou: AST, 2009.
KARLINSKY, Simon. The bitter air of exile: Russian writers in the west, 1922-1972. [s.n.]:
University of California Press, 1977.
MARULLO, Tomas. Cursed Days. A diary of Revolution. Chicago: Ivan R. Dee, 1998.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SELIGMANN, Márcio. “Haroldo de Campos: tradução como formação e ‘abandono’ da
identidade” (pp. 189-204). In: O local da diferença. São Paulo, Editora 34: 2005.
290 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
Natalia Quintero
Resumo: O trabalho que segue é a apresentação de uma proposta de tradução direta do russo para o português do
posfácio, até agora, inédito no Brasil, que Liev Tolstói escreveu para sua obra A Sonata a Kreutzer. A tradução
está precedida por um comentário em que mostramos a importância que o próprio Tolstói deu a esse trabalho, e de
que maneira esse texto traz respostas do autor aos questionamentos dos leitores acerca da abstinência sexual pregada
pelo protagonista de sua novela. Salientamos a importância que tem o conceito tolstoiano de “ideal”, não apenas
como chave de leitura da obra, senão como ideia estrutural do conceito de amor universal que percorre toda a obra
artística e o pensamento do autor russo.
Palavras-chave: Liev Tolstói; Sonata a Kreutzer; conceito de ideal; amor universal
A novela A Sonata a Kreutzer é uma obra que não deixa indiferente quase
nenhum leitor. Foi assim desde sua primeira aparição em 18891. Desde então,
podemos afirmar quase sem temores que é uma das obras mais polêmicas de
Liev Tolstói. Tão logo foi publicada, gerou uma onda de reações que pode
ser constatada por meio de documentos como cartas e anotações de diário do
autor e, nos dias de hoje, por artigos acadêmicos e de jornais que tratam dessa
polêmica2. A novela conta a história de um marido que, tomado por ciúmes,
1 A primeira versão publicada de A Sonata a Kreutzer é de 1889. Contudo, Tolstói fez ainda correções
na obra, além de redigir o posfácio para a mesma. Essa versão, seguida pelo posfácio, apareceu em 1891,
e é considerada a variante definitiva da obra. A partir dela foram feitas as reimpressões sucessivas e as
traduções e edições em outras línguas.
2 Vide, por exemplo, o artigo “O que quer de mim essa música” de Samuel Titan Jr., surgido a pro-
pósito do lançamento de uma nova edição da novela em 2008. Também o artigo “Mulher de Tolstói
ganha voz própria” de William Grimes surgido na seção “Ilustrada” da Folha de São Paulo em 2014,
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mata sua esposa. Esse motivo simples, mas impactante, serve ao autor para
tecer uma trama de reflexões, que incluem, por um lado, um questionamento
da influência que exerce a música no ser humano e, portanto, de seu papel na
sociedade e, por outro, da posição da mulher na família, na sociedade e, por
fim, das relações entre homem e mulher, em que a vivência da sexualidade é
apresentada, intencionalmente, sem quaisquer enfeites românticos, e mostrada
como detonante de uma tragédia.
É justamente o tratamento da questão sexual o que vem inquietando várias
gerações de leitores. Muitas vezes o grande conhecedor e tradutor da obra de
Tolstói, professor Boris Schnaiderman, manifestou sua admiração pela arte de Liev
Tolstói, mas também seu desacordo com as ideias do autor russo. Precisamente,
ele abre o posfácio que escreveu para sua tradução dessa obra com as palavras
“O leitor atual de A Sonata a Kreutzer (1891) vive com certeza uma situação muito
contraditória. Realmente, não dá para aceitar em nossos dias o que Tolstói diz aí
sobre a relação entre os sexos” (SCHNAIDERMAN, 2013, p. 107).
Não apenas “em nossos dias”, os leitores ficam perplexos pelo que parece
uma prédica de Tolstói contra as relações sexuais e contra toda a organização, na
sociedade, das relações entre homens e mulheres. A novela não se limita apenas à
questão do problema da sexualidade como um pecado, senão apresenta, por meio
da fala de Pózdnichev, protagonista da obra, uma visão extremamente instigante
acerca da posição da mulher na sociedade3, como um ente vingativo que submete
o homem por meio da sedução, pelo fato de não desfrutar de direitos iguais aos
do homem “no convívio entre os sexos” (TOLSTÓI, 2013, p. 34). E assim parece
que, para livrar-se desse domínio destruidor, Pózdnichev chega à conclusão de
que a melhor solução é a abstinência sexual.
Logo, os primeiros leitores ficaram preocupados com uma doutrina que
parecia querer conduzir à extinção da humanidade. Já os leitores contemporâ-
neos, mostram-se incomodados com o que poderia considerar-se como uma visão
retrógrada da sexualidade apresentada pelo escritor. Contudo é unanimidade a
percepção de que a novela está escrita com uma poderosa e convincente força,
o que desperta nos leitores a sensação de impossibilidade de rejeitar, de forma
taxativa, o que parece um absurdo: colocar-se a castidade como um objetivo de
vida. O próprio Boris Schnaiderman afirmou, de maneira certeira, que é caracte-
rística do estilo de Tolstói “a veemência, a capacidade de defender com vigor, do
modo mais direto, o que ele considerava justo” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 13).
Também Vladímir Nabókov, que por muitos anos dedicou-se ao ensino,
análise e difusão da literatura russa, manifestou em suas conferências, reunidas
posteriormente em forma de ensaio, que na criação tolstoiana é difícil separar o
artista do pensador, o gênio do pregador. Contudo, pondera Nabókov, não de-
vemos esquecer que a literatura não é organização de ideias, mas organização de
imagens. Com isso, o autor quer salientar que o que diferencia o discurso literário
de outras formas de discurso é, precisamente, o uso singular de determinados
recursos, nomeadamente, das imagens criadas a partir de metáforas, comparações,
símiles, além do uso do tempo e da descrição para fins específicos: “a palavra, a
expressão, a imagem é a verdadeira função da literatura” (NABÓKOV, 2015, p. 218).
Nesse mesmo sentido, já em 1917, Viktor Chklovski, em seu ensaio “A arte como
procedimento”, em que trata das diferenças entre linguagem cotidiana e linguagem
artística, apresenta um dos conceitos que têm sido mais produtivos para o estudo
e compreensão da arte de Tolstói – o estranhamento (ostranienie – остранение).
De acordo com Chklovski, a linguagem artística “desautomatiza”4 a per-
cepção dos objetos. Essa desautomatização acontece por meio de “procedimentos
4 Deciframos e entendemos o conteúdo de um texto sem realmente ler cada uma das letras que compõem
as palavras. Identificamos as palavras e captamos o significado, porque uma parte delas, por exemplo suas
letras iniciais, nos é suficientemente conhecida para identificar o todo. Por isso, podemos ler um texto,
mesmo que as letras estejam em desordem, sem prestarmos atenção especial a cada palavra, porque as
palavras em si não têm importância, mas a mensagem que se transmite por meio delas. Chklovski chama
esse processo de “automatização da língua”. O fenômeno é próprio da linguagem cotidiana. Diante
de objetos representados por meio da linguagem cotidiana, o leitor ouvinte ou espectador é levado ao
“reconhecimento” do objeto representado. Já diante de um objeto representado artisticamente, o leitor-
-espectador vê o objeto cotidiano sob uma forma nova, e o desconhece. Isto é, o artista, por meio de seus
procedimentos singulares de linguagem, provoca o “estranhamento”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 293
particulares, cujo objetivo é assegurar para estes objetos uma percepção estética”
(CHKLOVSKI, 1976, p. 41). Um dos meios mais comuns para provocar a desau-
tomatização da linguagem é o estranhamento. Chklovski mostra que é esse um dos
procedimentos mais utilizados por Liev Tolstói ao longo de toda sua produção
artística, trazendo exemplos extraídos de Guerra e paz, Ressurreição, A sonata a
Kreutzer e, de forma mais detalhada, de Kholstomer. De acordo com Chklovski, o
procedimento de estranhamento usado por Tolstói consiste em não chamar as coisas
por seu nome habitual, mas descrevê-las como se estivessem sendo vistas pela
primeira vez, e os acontecimentos, como se estivessem ocorrendo pela primeira
vez (CHKLOVSKI, 1976, p. 46). Por outras palavras, o estranhamento é uma espécie
de “descontextualização” – tirar os objetos comuns de seu âmbito cotidiano para
obrigar-nos a observá-los, a prestar atenção a eles, como se nunca antes os tivésse-
mos visto. É graças a essa forma singular de apresentar os objetos habituais, por
meio de um uso singular da descrição e das figuras de linguagem, que eles adquirem
aos nossos olhos um caráter inusitado. Em A sonata a Kreutzer, todo o discurso de
Pózdnichev está construído por meio desse procedimento. Assim por exemplo,
se o habitual em relação à descrição de um homicídio é a expressão grave, séria,
trágica, em A sonata a Kreutzer temos, junto a esses elementos, a irrupção inespera-
da de um elemento desconcertante: o assassino está de meias e sente-se, por isso
mesmo, ridículo, e impedido de agir como lhe parece que seria o esperado nessa
situação: “Eu quis correr atrás dele, mas lembrei-me de que seria ridículo correr
de meias atrás do amante de minha mulher, e eu não queria ser ridículo, queria
ser assustador. Não obstante a fúria terrível em que me encontrava, lembrei-me
o tempo todo da impressão que estava causando aos demais, e esta impressão
até me dirigia em parte” (TOLSTÓI, 2013, p. 98). Depois vem a descrição do
assassinato em si, e todas as reflexões que se passam pela cabeça de Pózdnichev
ao perceber que, realmente, ele foi capaz de matar sua esposa. Então pede que
avisem à polícia e por fim, adormece. Quando a irmã da esposa vem dizer-lhe que
ela está morrendo, que é preciso que ele vá para junto dela na hora derradeira,
Pózdnichev sente a ironia de sua situação e, de novo, está mais preocupado com
a possibilidade de seu ridículo, do que com a tragicidade do momento:
“Ir para junto dela?” – formulei esta pergunta a mim mesmo. E imediata-
mente respondi que era preciso ir, que, provavelmente sempre se faz assim,
que numa ocasião em que um marido matou, como eu, a mulher, é preciso
sem falta ir para junto dela. “Se é assim que se faz, tenho que ir” [...] “Agora,
haverá frases, caretas, mas eu não cederei a elas” – disse comigo.
– Espere, – dirigi-me à irmã –, é estúpido ir sem botas, deixe-me calçar
pelo menos os sapatos (TOLSTÓI, 2013, p. 102).
294 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
Essa capacidade de ver as coisas fora de seu contexto fez com que Tolstói,
em suas últimas obras, ao examinar dogmas e rituais, usasse também o mé-
todo do estranhamento (ostranienie – остранение) para descrevê-los, substituindo
as palavras habituais de uso religioso por seus significados de uso comum;
disso resultou alguma coisa estranha, monstruosa, que muita gente tomou
com toda sinceridade, como uma blasfêmia que ofendeu profundamente a
muitos. No entanto, isso não era outra coisa além do mesmo procedimento
por meio do qual Tolstói percebia e relatava tudo o que o circundava. As
percepções tolstoianas abalaram-lhe a fé, ao atingir aquelas coisas que, por
muito tempo, ele não quisera tocar (CHKLOVSKI, 2017, p. 6. Tradução
de Natalia Quintero)6.
5 Nesse aspecto é extremamente interessante a análise nabokoviana segundo a qual “um traço peculiar
do estilo de Tolstói reside no fato de que, em geral, suas comparações, símiles e metáforas não são usa-
dos para fins estéticos, e sim éticos. Em outras palavras, suas comparações são utilitárias, funcionais. São
empregadas não para realçar as imagens, para dar novas cores à nossa percepção artística de determinada
cena; são empregadas, isto sim, para enfatizar um argumento moral” (NABÓKOV, 2015, p. 255).
6 [Всякий, кто хорошо знает Толстого, может найти в нем несколько сот примеров, по указанному
типу. Этот способ видеть вещи выведенными из их контекста, привел к тому, что в последних
своих произведениях Толстой, разбирая догматы и обряды, также применил к их описанию метод
остранения, подставляя вместо привычных слов религиозного обихода их обычное значение; —
получилось что-то странное, чудовищное, искренно принятое многими как богохульство, больно
ранившие многих. Но это был все тот же прием, при помощи которого Толстой воспринимал и
рассказывал окружающее. Толстовские восприятия расшатали веру Толстого, дотронувшись до
вещей, которых он долго не хотел касаться].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 295
realizada pelos acadêmicos que prepararam a primeira edição das Obras Completas
de Tolstói em noventa volumes, naquela época, um dos principais interlocutores
do autor era seu colaborador e posteriormente editor Vladímir Tchertkov. Pela
correspondência entre eles, parece que Tchertkov sugeriu a Tolstói que escrevesse
um posfácio explicando o que o autor pensava sobre o tema da novela. Em resposta,
Tolstói disse que já tinha começado a redação desse texto. Ele trabalhou intensa-
mente na escrita de seu posfácio à Sonata a Kreutzer e, mesmo assim, a conclusão
do mesmo, entre diversas variantes e correções, levou praticamente um ano. O
trabalho não foi fácil porque, além de seus próprios questionamentos permanen-
tes acerca do tema da obra, Tolstói tinha também a preocupação de responder
aos questionamentos de seus leitores. De fato, apesar da insistência de Tchertkov
para que Tolstói escrevesse um posfácio, ou pelo menos algum esclarecimento
em relação à defesa da castidade absoluta, Tolstói sentiu-se mais encorajado a dar
continuidade à redação do texto graças às inquietações que lhe manifestavam os
leitores. Assim escreve Tolstói em uma cópia de uma carta enviada a Tchertkov,
em janeiro de 1890: “Fala-se de cinismo, indecência, pessimismo, soturnidade deste
relato” (TOLSTÓI, 2006, vol. 27, p. 627. Tradução de Natalia Quintero)7. Ao que
parece, Tolstói recebeu uma carta de um desconhecido, identificado como V. P.
Prókhorov que, em essência, estava preocupado com considerações de Tolstói em
relação ao casamento, e pede-lhe a gentileza de escrever-lhe qual é a ideia essen-
cial da novela A Sonata a Kreutzer. O leitor, que se dirige a Tolstói em tom muito
respeitoso, diz entender que talvez ele não tenha tempo para satisfazer o pedido,
ou até ache que é inútil responder a carta. Contudo, insiste em que a questão é
muito importante para ele, e que da resposta de Tolstói, poderiam depender deci-
sões capazes de mudar o curso de sua vida. Em relação a essa carta, no dia 11 de
março de 1890, Tolstói escreve no seu diário: “Pensei no posfácio em forma de
uma resposta à carta de Prókh[orov]” (TOLSTÓI, 2006, vol. 51, p. 26. Tradução
de Natalia Quintero)8. Tolstói não chega a realizar o plano de escrever o posfácio
a sua Sonata como uma resposta à carta de Prókhorov, mas isso não significa que
ignorasse os pedidos ou perguntas de seu público. Simplesmente, não era possível
atender a cada um, mas tentou considerar em seu texto as questões que pareciam
mais pungentes para a maioria dos leitores. Por isso, já em abril de 1890, escreve
a Tchertkov, informando que não pretende fazer mais correções no texto: “[...]
não é que eu esteja satisfeito com o posfácio. Tanto a forma da narrativa, como
a ordem e o tamanho não estão certos. Mas as ideias lá expressas estão certas e
da concepção de “ideal”; para Tolstói, o ideal é um modelo que cada pessoa deve
colocar diante de si, para chegar cada vez mais adiante em seu desenvolvimento
como ser humano. Quanto mais elevado o ideal, mais longe chegará a pessoa em
seu crescimento. E, o mais importante, a condição obrigatória para que um ideal seja
tal, é o fato de ser irrealizável. Exatamente assim é a doutrina de Cristo. Nenhum
ser humano pode encarnar, na vida real, todas as características atribuídas a ele,
mas se Cristo fosse o modelo seguido pelas pessoas, então, sem dúvida, haveria
seres humanos cada vez melhores.
Essa noção é essencial para compreender o sentido que dava Tolstói para
a aspiração à castidade, não como uma norma de vida, como uma imposição ou
como uma exigência artificial e absurda, ainda mais por vir de um homem que,
em conformidade com os fatos (Tolstói foi pai de 13 filhos), predicava, mas não
praticava. A abstinência sexual é colocada por Tolstói em seu posfácio apenas
como um meio para aproximar-se, o máximo possível, da realização do amor uni-
versal, que constitui um dos alicerces de seu pensamento. Esse conceito de amor
que atravessa toda a produção, tanto artística, como não ficcional de Tolstói, está
presente desde os primeiros anos de trabalho do jovem Tolstói, de acordo com
as anotações de seu diário11.
O problema do amor permanece vivo no pensamento de Tolstói durante
toda sua vida, e a leitura do posfácio à Sonata a Kreutzer revela bem que o ideal
proposto por ele não é o da castidade e muito menos o da extinção da espécie
humana, mas o amor universal, que é o amor ao próximo, seja ele quem for, de
acordo com os ensinamentos da doutrina de Cristo. É evidente, pelas próprias
citações que traz o autor em seu posfácio, que a leitura dos Evangelhos teve
uma influência determinante em sua concepção definitiva da noção de amor.
Ele concebia o amor desinteressado por todos os seres como a aspiração mais
elevada que podia colocar-se o ser humano. Ao mesmo tempo, para Tolstói era
uma aspiração inatingível (ele se perguntava, por exemplo, quem teria forças para
amar um assassino ou estuprador) e, por isso mesmo, ideal. A principal virtude
da dificuldade desse ideal é que ele obriga, quem o aceitar, a viver uma vida cada
11 A primeira definição do conceito de amor em Tolstói, aparece em 1847, no primeiro ano em que o
autor começa a escrever seu diário. Nessa etapa de sua vida, a definição e solução de problemas éticos
ocupa um lugar central em suas preocupações. Entre elas, a concepção do ser humano como dividido em
corpo e alma e o desejo de que a vontade se torne uma força soberana sobre o corpo conduzem a uma
definição singular da vivência do amor por etapas, que vão do amor carnal, no estágio mais baixo, quando
o corpo ainda não está dominado pela força de vontade, ao amor universal, no estágio mais elevado. Esse
primeiro conceito de amor é repensado e reelaborado por Tolstói ao longo de sua vida, e está representado
em várias de suas obras artísticas.
298 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
15 Ver http://tolstoy.ru/creativity/90-volume-collection-of-the-works/
300 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
16 Tolstói fala aqui sobre o serviço dos soldados que não pertencem à categoria de oficiais no exército.
Durante a Rússia czarista, o tempo de serviço dos soldados variou, em diferentes épocas, de vitalício, a 25
ou 15 anos. Se o serviço era de 15 anos, isso significava que o soldado tinha que passar 6 anos em qualquer
lugar do território do Império aonde fosse destinado, sem direito de se reunir com a família. Depois,
podia voltar para seu lugar de origem, passando a formar parte do corpo de reserva por um período de
nove anos, o que representava uma grande probabilidade de ser, de novo, enviado para outro destino.
Portanto, os soldados eram obrigados a passar longos períodos de tempo afastados de suas esposas e
famílias o que, de acordo com o raciocínio de Tolstói, provocou a proliferação da infidelidade. Na época
em que Tolstói escreveu A Sonata a Kreutzer, o serviço era de 6 anos (N. da T.).
302 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
pelo menos tal e como ela condena o incumprimento das obrigações pecuniárias
e os enganos no comércio, em lugar de celebrar tudo isso, como se faz hoje, em
romances, versos, canções, óperas e assim por diante.
Isso, em segundo lugar.
Terceiro, em nossa sociedade, como consequência, mais uma vez, da falsa
significância dada ao amor carnal, o nascimento de crianças perdeu seu sentido
e, em lugar de ser o objetivo e justificativa das relações conjugais, tornou-se um
empecilho para a continuidade prazerosa das relações amorosas. E é por isso
que dentro e fora do casamento, por conselho de servidores da ciência médica,
começou a estender-se o uso de meios que privam a mulher da possibilidade de
procriar, ou então começou a tornar-se um costume aquilo que antes não existia,
e que ainda não existe nas famílias camponesas patriarcais: a continuidade das
relações conjugais durante a gravidez e a amamentação.
Suponho que isso não seja bom. Não é bom usar meios contra o nasci-
mento de crianças, primeiro, porque isso libera as pessoas do cuidado e trabalho
com crianças, que são a redenção do amor carnal e, segundo, porque isso é o mais
próximo que pode existir da ação mais contrária à consciência humana, isto é, o
assassinato. E não é boa a incontinência durante a gravidez e a amamentação, porque
isso destrói as forças físicas e, o que é mais importante, as forças morais da mulher.
A conclusão que resulta disso tudo é que não se deve fazer isso. E para tanto,
é preciso entender que a abstinência, que é condição indispensável da dignidade
humana antes do casamento, é ainda mais necessária nele.
Isso em terceiro lugar.
Quarto, que em nossa sociedade, na qual as crianças constituem ora um
obstáculo para o prazer, ora um acidente, ou então um certo tipo de prazer, no
caso de serem trazidas ao mundo em uma quantidade previamente determinada.
Essas crianças são educadas não tendo em vista aquelas tarefas da vida humana
que estão diante delas como seres racionais e capazes de amar, mas apenas tendo
em vista aqueles prazeres que eles podem proporcionar aos pais. E como conse-
quência disso, as crianças humanas são educadas como os filhotes dos animais,
de tal forma que a tarefa principal dos pais consiste não em prepará-los para uma
atividade digna da pessoa, mas em alimentá-los da melhor forma possível, aumentar
sua estatura, torná-los limpos, brancos17, bem alimentados, bonitos (nisso, os pais
17 Tolstói menciona a brancura da pele como característica tida como desejável, porque ela podia ser
considerada como um símbolo da condição social, já que eram os camponeses que trabalhavam sob o sol
e tinham, portanto, peles queimadas (N. da T.).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 303
pelo contrário, a paixão e a união com o ser amado (por mais que se esforcem
em mostrar o contrário em versos e em prosa) nunca ajudam na realização de um
objetivo digno do ser humano, mas a dificultam.
Isso em quinto lugar.
Eis o que, em essência, quis dizer e pensei que disse em meu relato. E
pareceu-me que é possível refletir sobre como corrigir esse mal apontado nesses
enunciados, com os quais é impossível não concordar.
Pareceu-me que é impossível não concordar com esses enunciados, pri-
meiro porque eles estão, por completo, em conformidade com o progresso da
humanidade, indo sempre da licenciosidade para uma maior e maior castidade, e
em conformidade também com a consciência moral da sociedade e com nossa
consciência, que sempre condena a licenciosidade, ao passo que valoriza a castidade.
E segundo, porque esses enunciados são apenas conclusões ineludíveis da dou-
trina do Evangelho que nós ou professamos ou pelo menos reconhecemos, nem
que seja de forma inconsciente, como a base de nossa concepção sobre a moral.
Mas não deu certo.
É verdade que ninguém contesta, de forma direta, a afirmação de que não
se deve entregar-se à devassidão antes do casamento, nem depois dele, e que
não se deve aniquilar, artificialmente, a procriação, nem fazer das crianças um
divertimento, nem colocar as relações amorosas acima de tudo. Em uma palavra,
ninguém discute que a castidade é melhor que a licenciosidade. Mas falam: “se o
celibato é melhor que o casamento, é então evidente que as pessoas devem fazer o
que é melhor. Mas, se as pessoas fizerem isso, então será o fim do gênero humano
e, portanto, não pode ser que o ideal do gênero humano seja seu aniquilamento”.
E isso para não falar já de que o aniquilamento do gênero humano não é
um conceito novo para as pessoas de nosso mundo, mas um dogma de fé para
as pessoas religiosas e, para as pessoas de ciência, uma conclusão ineludível da
observação do esfriamento do sol. Na objeção disso, há um grande, velho e di-
fundido mal-entendido.
Falam: “se as pessoas atingirem o ideal da castidade absoluta, então elas
serão aniquiladas; portanto, esse ideal não está certo”. Mas aqueles que falam
assim, com ou sem intenção, estão misturando duas coisas diferentes: a regra, o
que está prescrito e o ideal.
A castidade não é uma regra ou prescrição, mas um ideal, ou antes, uma das
condições dele. E um ideal é ideal só quando sua realização é possível apenas na
teoria, no pensamento, quando se imagina que ele pode ser alcançado apenas no
infinito, e quando, por isso mesmo, a possibilidade de aproximar-se dele é infinita.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 305
Se um ideal fosse não apenas alcançável, senão que pudéssemos ainda imaginar sua
realização, ele deixaria de ser um ideal. Assim é o ideal de Cristo: o estabelecimento
do reino de Deus na terra é um ideal previsto pelos profetas, acerca da chegada do
tempo em que as pessoas serão instruídas por Deus, transformarão as espadas em
arado, as lanças em foices, o leão ficará deitado com o cordeiro, e quando todos os
seres vão se unir pelo amor. Todo o sentido da vida humana está no movimento
em direção a esse ideal e, por isso, a aspiração ao ideal cristão em seu conjunto, e
à castidade como uma das condições desse ideal, não só inclui a possibilidade da
vida, senão que a ausência desse ideal cristão destruiria o movimento para frente
e, em consequência, a possibilidade da vida.
A opinião de que o gênero humano será extinto caso as pessoas coloquem
todas suas forças em alcançar a castidade é semelhante àquela de que fariam (e
estão fazendo) desaparecer o gênero humano se as pessoas, em lugar de lutar
pela existência, colocassem todas suas forças em conseguir a materialização do
amor pelos amigos e pelos inimigos, e por todos os seres vivos. Tais opiniões são
resultado da incompreensão da diferença entre dois métodos do princípio moral.
Assim como existem duas formas de indicar o caminho para um viajante
em procura de orientações, existem também dois métodos do princípio moral
para aquele que procura a verdade humana. Um método consiste em mostrar à
pessoa os objetos que ele deveria encontrar; então, ela se encaminharia para esses
objetos. Outro método consiste em mostrar apenas a direção em uma bússola,
que a pessoa leva consigo, e na qual ela sempre observa uma direção imutável e,
portanto, observa também qualquer desvio dela.
O primeiro método do princípio moral é o das definições superficiais, o
das regras: dá-se à pessoa determinados indícios dos atos que deve e dos que não
deve realizar:
“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo, faz a circuncisão, não roubarás,
não beberás nem matarás, entrega o dízimo aos pobres, não cometerás adultério,
faz as abluções e reza cinco vezes por dia, faz o sinal da cruz, comunga, e assim por
diante18”. Tais são os mandamentos das doutrinas religiosas superficiais: bramanista,
budista, maometana, judaica e eclesiástica do falsamente chamado cristianismo.
Outro método é mostrar à pessoa a perfeição que ela nunca poderá alcançar,
mas cuja aspiração ela reconhece dentro de si: aponta-se para a pessoa o ideal, em
18 Alguns dos mandamentos citados aqui por Tolstói, correspondem ao Decálogo que Deus entregou
a Moisés no monte Sinai. Esse decálogo está em Êxodo, 20:1-17; Quanto à circuncisão, que hoje é obri-
gatória para os judeus, não para os cristãos, o mandado de Deus está em Gênesis 17: 9-14. (N. da T.).
306 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
comparação com o qual ela sempre poderá identificar seu grau de afastamento
em relação a ele.
“Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma,
com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti
mesmo”19, e “Portanto, deveis ser perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito20”.
Tais são os ensinamentos de Cristo.
A comprovação do cumprimento dessas doutrinas religiosas superficiais
é a coincidência dos atos com as definições dessas doutrinas, e essa coincidência
é possível.
A comprovação do cumprimento dos ensinamentos de Cristo é a consciên-
cia do grau de não correspondência com a perfeição ideal. (O grau de proximidade
não se vê: vê-se apenas o desvio da perfeição).
A pessoa que professa uma lei superficial é uma pessoa que está à luz de
um lampião pendurado em um poste. Ela está sob a luz desse lampião, está na
claridade, e não tem mais para onde ir. Quem professa os ensinamentos de Cristo
é como uma pessoa que leva um lampião diante de si, numa vara mais ou menos
comprida: a luz está sempre diante dessa pessoa, a estimula a ir sempre adiante e
revela-lhe permanentemente um espaço novo iluminado que a atrai.
O fariseu agradece a Deus por ele cumprir com tudo. O jovem rico, que
também cumpriu com tudo desde a infância, não entende o que lhe falta fazer. E
eles não podem pensar de outra forma, porque diante deles não está aquilo que
eles poderiam continuar esforçando-se por atingir. O dízimo foi dado, o sábado
foi guardado, os pais foram honrados, não cometeram adultério, nem roubaram,
nem mataram. O que mais então? Mas já para quem professa a doutrina cristã,
chegar até qualquer patamar de perfeição exige a ascensão ao patamar superior, a
partir do qual se revela um patamar mais alto, e assim eternamente.
Quem cumpre a lei de Cristo está sempre na posição do publicano. Ele se
sente sempre imperfeito, sem poder ver atrás de si aquele caminho que percorreu,
vendo sempre aquele por onde tem que ir e que ainda não percorreu.
Nisto consiste a diferença entre os ensinamentos de Cristo e todas as
demais doutrinas religiosas: a diferença está não em exigências diversas, mas nos
diversos métodos de guiar as pessoas. Cristo não deu nenhuma definição de vida,
nunca estabeleceu quaisquer instituições, e sequer estabeleceu casamento algum.
19 Lucas 10:27
20 Mateus 5:48.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 307
Não pode existir o casamento cristão, e nunca existiu, tal como nunca
houve nem pode haver liturgia cristã (Mateus 6:5-12; João 4:21), nem mestres,
nem padres (Mateus 23:8-10), nem propriedade cristã, nem exército cristão, nem
tribunal, nem Estado. Assim foi sempre compreendido pelos cristãos verdadeiros
dos primeiros séculos e dos séculos seguintes.
O ideal do cristão é o amor a Deus e ao próximo, é renunciar a si mesmo
para servir a Deus e ao próximo; o amor carnal e o casamento, constituem o serviço
a si mesmo e, por isso, são, em qualquer caso, um empecilho para servir a Deus
e às pessoas, e é por isso que constituem, da ótica cristã, uma queda, um pecado.
O casamento não pode contribuir para servir a Deus e às pessoas, nem
sequer no caso em que aquele que se case tenha o objetivo de dar continuidade
à espécie humana. Para essas pessoas, em lugar de casar-se para fabricar vidas
infantis, seria muito mais fácil sustentar e salvar aqueles milhões de vidas infantis
que perecem ao nosso redor por falta, não digo já de alimento espiritual, mas de
alimento material.
O único caso em que o cristão poderia casar-se, sem sentimento de queda
ou de pecado, seria se ele visse e soubesse que todas as vidas das crianças que
existem estão abastecidas.
É possível não aceitar o ensinamento de Cristo, aquele ensinamento do qual
está impregnada toda nossa vida e no qual está baseada toda nossa moral, mas, se
aceitarmos esse ensinamento, não podemos não reconhecer que ele aponta para
um ideal de castidade absoluta.
Pois no Evangelho está dito claramente, e sem possibilidade de qualquer
interpretação, que primeiro: o homem casado não deve separar-se de sua esposa,
a fim de desposar outra, mas deve viver com aquela a quem se uniu (Mateus 5:31-
32; 19:8). Segundo: para o homem em geral e, em consequência, tanto o casado
como o solteiro, é pecado olhar para a mulher como um objeto para sua satisfação
(Mateus 5:28-29). E, terceiro: para o homem solteiro, o melhor mesmo é não se
casar, isto é, ser absolutamente casto (Mateus 19:10-12).
Para muitos e muitos, essas ideias parecerão estranhas e até contraditórias,
mas não entre si. Essas ideias contradizem toda a nossa vida e, sem querer, apa-
rece a dúvida: quem está certo? Essas ideias ou a vida de milhões de pessoas e
a minha própria? Eu experimentei esse mesmo sentimento, e no grau mais alto,
quando cheguei às convicções que estou expressando agora: eu não esperava que
o curso de meus pensamentos me levasse para onde me levou. Eu me horrorizei
de minhas conclusões, não queria acreditar nelas, mas não era possível. E por mais
que essas conclusões contradissessem toda a organização de nossa vida, e por
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 309
mais que contradissessem tudo o que eu pensava antes, e até o que eu expressei,
eu devia aceitá-las.
“Mas tudo isso são considerações gerais que até podem ser justas, mas têm
a ver com os ensinamentos de Cristo e, portanto, são obrigatórias para aqueles
que o seguem; mas a vida é a vida, e não se deve, depois de apontar lá na frente o
ideal inatingível de Cristo, deixar as pessoas sozinhas em uma das questões mais
pungentes, gerais e que provocam as maiores desgraças, apenas com esse ideal,
sem nenhuma orientação.”
“A pessoa jovem e apaixonada, no começo se deixará arrebatar pelo ideal,
mas não suportará e falhará, e sem saber nem conhecer regra alguma, cairá na
depravação absoluta!”
É assim que pensam comumente.
“O ideal de Cristo é inatingível, por isso não pode servir-nos como guia de
vida; pode-se falar sobre ele, sonhar com ele, mas ele não é aplicável à vida e, por
isso, é preciso abandoná-lo. Precisamos não de um ideal, mas de uma regra, um
guia à medida de nossas forças, que esteja no nível médio das forças morais de
nossa sociedade: por exemplo, um casamento eclesiástico honesto ou até mesmo
um casamento não de tudo honesto, em que um dos noivos, no nosso caso, o
homem, já tenha se unido a muitas mulheres; ou pelo menos um casamento com
possibilidade de divórcio, ou uma união de fato, ou (já que estamos indo por esse
caminho) nem que seja, um casamento japonês, com prazo, ou por que não chegar
então até as casas de tolerância?”
Falam que isso é melhor que a devassidão da rua. E nisso é que está a
desgraça: ao ter-se permitido rebaixar o ideal por causa da própria fraqueza, não
se consegue achar aquele limite no qual se deve parar.
Mas esse raciocínio está errado desde o começo. Antes de mais nada, está
errado que o ideal de perfeição infinita não possa servir como guia de vida, e que,
ao olhar para ele, seja preciso acenar-lhe adeus, afirmando que não preciso desse
ideal, já que nunca o alcançarei, ou então rebaixar o ideal até aquele degrau em
que quer permanecer minha fraqueza.
Raciocinar assim é a mesma coisa que um navegante falasse para si “já
que não posso ir por aquela linha que mostra a bússola, então vou jogá-la fora,
ou vou deixar de olhar para ela”. Quer dizer, ou jogo fora o ideal, ou vou fixar a
agulha da bússola naquele lugar que corresponda, neste minuto, com o caminho
de minha embarcação; isto é, rebaixo o ideal à altura de minha fraqueza. O ideal
de perfeição dado por Cristo não é um sonho ou o objeto de prédicas retóricas;
é, pelo contrário, o mais necessário guia da vida moral das pessoas, acessível a
310 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer
“O homem é fraco, é preciso lhe dar uma tarefa à medida de suas forças”,
dizem as pessoas. Isso é a mesma coisa que dizer “minhas mãos são fracas e eu não
posso traçar uma linha que seja reta, nem sequer a mais curta entre dois pontos
e, por isso, para facilitar-me o trabalho, vou pegar como modelo uma curva ou
uma linha quebrada, sendo que eu quero traçar uma reta”. Quanto mais fraca é a
minha mão, mais preciso de um modelo perfeito.
Não se deve, depois de ter reconhecido a doutrina cristã do ideal, fazer de
conta que não a conhecemos e trocá-la por normas superficiais. A doutrina cristã
do ideal foi revelada à humanidade justamente porque ela pode dirigi-la em sua
fase de desenvolvimento atual. A humanidade já viveu um período de normas
religiosas superficiais, e ninguém acredita já nelas.
A doutrina cristã do ideal é a única que pode dirigir a humanidade. É impos-
sível, não se deve trocar o ideal de Cristo por regras superficiais, mas é necessário
manter esse ideal firme diante de si, em toda a sua pureza e, o mais importante,
deve-se acreditar nele.
Àquele que navega à margem poderia se dizer: “atenha-se a essa elevação,
a esse promontório, a essa torre”, e assim por diante.
Mas chega o tempo em que os navegantes se afastam da margem, e devem
e podem servir-lhes de guia apenas os astros inalcançáveis e a bússola, que lhes
mostra a direção. Ambos nos foram dados.
Для того же, чтобы не делать этого, надо, чтобы изменился взгляд на
плотскую любовь, чтобы мужчины а женщины воспитывались бы в семьях и
общественным мнением так, чтобы они и до и после женитьбы посмотрели
на влюбление и связанную с ним плотскую любовь как на поэтическое и
возвышенное состояние, как на это смотрят теперь, а как на унизительное
для человека животное состояние, и чтобы нарушение обещания верности,
даваемого в браке, казнилось бы общественным мнением по крайней мере
так же, как казнятся им нарушения денежных обязательств и торговые
обманы, а не воспевалось бы, как это делается теперь, в романах, стихах,
песнях, операх и т. д.
Это второе.
Третье то, что в нашем обществе, вследствие опять того же ложного
значения, которое придано плотской любви, рождение детей потеряло
свой смысл и, вместо того, чтобы быть целью и оправданием супружеских
отношений, стало помехой для приятного продолжения любовных
отношений, и что потому и вне брака и в браке, по совету служителей
врачебной науки, стало распространяться употребление средств, лишающих
женщину возможности деторождения, или стало входить в обычай и
привычку то, чего не было прежде и теперь еще нет в патриархальных
крестьянских семьях: продолжение супружеских отношений при
беременности и кормлении.
И полагаю я, что это нехорошо. Нехорошо употреблять средства
против рождения детей, во-первых, потому, что это освобождает людей
от забот и трудов о детях, служащих искуплением плотской любви, а
во-вторых, потому, что это почти весьма близкое к самому противному
человеческой совести действию—убийству. И нехорошо невоздержание во
время беременности и кормления, потому что это губит телесные, а главное
— душевные силы женщины.
Вывод же, который вытекает из этого, тот, что этого не надо делать. А
для того, чтобы этого не делать, надо понять, что воздержание, составляющее
необходимое условие человеческого достоинства при безбрачном состоянии,
еще более обязательно в браке.
Это третье.
Четвертое то, что в нашем обществе, в котором дети представляются
или помехой для наслаждения, или несчастной случайностью, или своего рода
наслаждением, когда их рождается вперед определенное количество, эти дети
воспитываются не в виду тех задач человеческой жизни, которые предстоят
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 315
“Человек слаб, надо дать ему задачу по силам”,— говорят люди. Это
все равно, что сказать: “руки мои слабы, и я не могу провести линию, ко-
торая была бы прямая, то есть кратчайшая между двумя точками, и потому,
чтоб облегчить себя, я, желая проводить прямую, возьму за образец себе
кривую или ломаную”. Чем слабее моя рука, тем нужнее мне совершенный
образец.
Нельзя, познав христианское учение идеала, делать так, как будто мы
не знаем его, и заменять его внешними определениями. Христианское учение
идеала открыто человечеству именно потому, что оно может руководить
его в теперешнем возрасте. Человечество уже выжило период религиозных,
внешних определений, и никто уже не верит в них.
Христианское учение идеала есть то единое учение, которое может
руководить человечеством. Нельзя, не должно заменять идеал Христа
внешними правилами, а надо твердо держать этот идеал перед собой во всей
чистоте его и, главное, верить в него.
Плавающему недалеко от берега можно было говорить: “держись того
возвышения, мыса, башни” и т. п.
Но приходит время, когда пловцы удалились от берега, и руководством
им должны и могут служить только недостижимые светила и компас,
показывающий направление. А то и другое дано нам.
Referências
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.
ARROJO, R. Oficina de tradução. A teoria na Prática. São Paulo, Ática, 1986.
BERNARDINI, Aurora. (Entrevista concedida para o programa da Univesp, Literatura
Fundamental n. 90.) https://www.youtube.com/watch?v=iIbM0FobowE Consulta rea-
lizada em 30 de setembro de 2017.
CHKLOVSKI, Viktor. “A arte como procedimento”. In: Teoria da literatura. Formalistas
russos. Porto Alegre: Globo, 1976.
____.“Iskusstvo kak priem” in: Manifesty Opoiaza. http://www.opojaz.ru/manifests/
kakpriem.html Consulta realizada em 22 de dezembro de 2017.
EIKHENBAUM, Boris. O literature. Raboty raznykh let. Moskva: Sovietskii pisatel, 1987.
GRIMES, William. “Mulher de Tolstói ganha voz própria”. http://www1.folha.uol.com.
br/ilustrada/2014/09/1509202-mulher-de-tolstoi-ganha-voz-propria.shtml Consulta
realizada em 30 de setembro de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 325
O Estudante, de A. Tchékhov
Diego Moschkovich
nos tempos de Riúrik. Depois, pensou em como já soprava também nos tempos
de Ivan o Terrível e também nos tempos de Pedro, o Grande1. Pensou em como
existia, também, a mesma pobreza feroz, a fome, os mesmos telhados esburacados
de palha, a ignorância, a angústia, aquele mesmo deserto ao redor, as trevas, o sen-
timento de opressão. Todos horrores que existiam, existem e existirão, e poderiam
passar mais mil anos que a vida não se tornaria melhor. Ivan não quis ir para casa.
Chamava-se “horta das viúvas” por que era uma horta de duas viúvas, mãe
e filha. Uma fogueira queimava calorosa, aos estalidos, iluminando longe a terra
lavrada. A viúva Vacilíssa, velhota alta e gorda, metida num capote masculino,
estava parada em pé ao lado do fogo e olhava pensativa para a labareda; sua filha,
Lukéria, pequena, sardenta e de rosto estúpido, estava sentada no chão de terra
e lavava um caldeirão e algumas colheres. Obviamente tinham acabado de jantar.
Ouviam-se as vozes masculinas dos serviçais, que davam de beber aos cavalos
no rio ali perto.
– Olhem só, não é que o inverno voltou, mesmo? – disse o estudante, se
aproximando da fogueira. – Olá!
Vacilíssa se assutou, mas logo em seguida se lembrou do menino e abriu
um sorriso amigável.
– Nem te reconheci, você vai ficar rico!2 – disse ela. – Deus o guarde.
Conversaram. Vacilíssa – mulher experiente, serva ama-de-leite por algum
tempo, depois babá – se expressava delicadamente e seu rosto abria sorrisinhos
leves, aos poucos; sua filha, Lukéria, mulher da aldeia surrada pelo marido, olhava
vesga e calada para o estudante, com uma expressão estranha, quase surdomuda.
– Foi assim que o apóstolo Pedro se esquentou numa fogueira, – disse o
estudante, estendendo as mãos para o fogo. – Ou seja, naquela época também
fazia frio. Que noite mais estranha, não, tia? Uma noite extraordinariamente triste,
e longa!
Olhou ao redor para a escuridão. Perguntou, suspirando:
– Suponho que você já tenha ido às leituras dos doze evangelhos, tia?
– Fui, sim – respondeu Vacilíssa.
1 Riúrik, Ivan (o Terrível) e Pedro (o Grande) – foram tsares da Rússia. Riúrik (830-879 d.C.) é consi-
derado o primeiro tsar. Ivan (1530-1584), é considerado unificador do Império Russo. Pedro (1672-1725)
é considerado o modernizador da Rússia, tendo criado a face moderna do Império. (N.T.)
2 Trata-se de uma antiga superstição russa que diz que a pessoa que não for reconhecida num encontro
enriquecerá. (N.T.)
328 Diego Moschkovich. O Estudante, de A. Tchékhov
Referências
TCHÉKHOV, Anton. Polnoe sobranie cotchinenii i pisem v 30 tomakh. Tom 8. [Obras Completas
e Cartas em 30 tomos. Tomo 8.] Nauka, Moscou, 1986.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 333-338 333
Resumo: Tradução comentada de conto de Anton Tchékhov publicado pela primeira vez em 1886 e assinado sob
pseudônimo.
Palavras-chave: Estudos da Tradução, Tchékhov, Literatura Russa
Introdução
saúdam com um bom dia. Aceno com a cabeça e profiro um discurso, no qual
explico que o chefe da casa sou eu.
– Suas desprezíveis, – digo a elas – dou de comer e de beber a vocês, instruo
e ensino a vocês, criadas,5 o valor do bom senso, e em troca vocês têm a obrigação
de me respeitar, venerar, temer, admirar minhas obras e não extrapolar os limites
da obediência, nem um milímetro, caso contrário... Oh, mil raios e trovões, vocês
me conhecem! Eu coloco vocês nas rédeas! Vou mostrar a vocês o que é bom
para a tosse! – e assim por diante.
Depois de ouvir meu discurso, minhas parentas saem e começam a trabalhar.
Minha sogra e minha esposa correm para as editoras com os artigos: a esposa vai
para o Budílnik,6 e a sogra para o Nóvosti Dniá para tratar com Lipskiórov.7 Minha
cunhada senta-se para passar a limpo meus folhetins, novelas e tratados. Mando
minha sogra para receber o pagamento. Se o editor é pão-duro e vive pedindo
que ela volte amanhã, antes de mandar minha sogra para receber o pagamento,
alimento-a por três dias somente com carne crua, atiço até ela se enraivecer e
inspiro-lhe um ódio insuperável contra a tribo dos editores; ela, vermelha, feroz,
fervilhando, vai atrás do pagamento, e nunca aconteceu de retornar de mãos va-
zias. É também seu dever proteger minha pessoa da moléstia dos credores. Se os
credores são muitos e atrapalham meu sono, enxerto o vírus da raiva em minha
sogra seguindo o método de Pasteur e a posiciono perto da porta: não há um
desgraçado que passe!
Durante o almoço, enquanto me delicio com shchi e ganso com repolho,
minha esposa senta-se ao piano e toca para mim Boccaccio, Helena e Os sinos de Cor-
neville8; já minha sogra e minha cunhada dançam a cachucha9 em volta da mesa.
Àquela que me agradar em especial, prometo dar um livro de minha própria autoria
com fac-símile do autor, mas não cumpro a promessa, porque a sortuda naquele
5 No texto original a palavra utilizada é тумбы, que em tradução literal significa “criado-mudo”, trazendo
assim a ideia de servilidade. Por outro lado, a palavra também engloba o sentido de mulher baixinha e
robusta, com uma forma corporal que lembra o formato dessa peça de mobília.
6 O Buldílnik é uma revista humorística, publicada em São Petersburgo desde 1865 e em Moscou desde
1873 [Nota da edição russa].
7 Ia. Lipskerov (1848-1910) foi um jornalista que desde 1883 publicava em Moscou o jornal diário
ilustrado Nóvosti Dniá, muito popular na época [Nota da edição russa].
8 Boccaccio é uma opereta de F. Suppé (1879); Helena é uma opereta de J. Offenbach, “La Belle Hélène” (A
Bela Helena) (1864). Estava no repertório do Teatro de Taganrog nos anos da mocidade de Tchékhov. Les
Cloches De Corneville (Os sinos de Corneville) é uma opereta de R. Planquette (1877) [Nota da edição russa].
9 Cachucha é uma dança espanhola com castanholas [Nota da edição russa].
336 Melissa T. Siqueira Barbosa e Ekaterina Vólkova Américo. Minha Ordem Doméstica, uma tradução
mesmo dia consegue me desagradar com alguma coisa e então perde o direito
ao prêmio. Após o almoço, enquanto me deleito no sofá, propagando ao redor o
cheiro do charuto, minha cunhada lê em voz alta minhas obras para minha sogra
e minha esposa.
– Ah, como é bom! – elas exclamam por obrigação. – Esplêndido! Que
pensamento profundo! Que mar de emoções! Maravilhoso!
Quando começo a cochilar, elas se sentam a meu lado e sussurram alto
para que eu possa ouvir:
– É um talento! Não, é um talento extraordinário! A humanidade perde
muito por não tentar entendê-lo! Como nós, miseráveis, temos sorte, de conviver
sob o mesmo teto com tamanho gênio!
Se adormeço, a encarregada senta-se perto da cabeceira e, com um leque,
afasta as moscas.
Quando acordo, grito:
– Criadas, o chá!
No entanto, o chá já está pronto. Elas o trazem para mim e pedem,
curvando-se:
– Sirva-se, pai e benfeitor! Aqui estão a geleia, as roscas... Aceite nossa
humilde oferenda...
Após o chá, costumo fazer punições pelo desrespeito à ordem da casa. Se
não há desrespeito, puno mesmo assim para compensar os erros futuros. O grau
da punição corresponde ao tamanho do desrespeito.
Assim, se a correspondência, a cachucha ou a geleia não forem de meu agra-
do, a culpada é obrigada a decorar várias cenas da vida de comerciantes, galopar com
uma perna só por todo o quarto e ir atrás do pagamento em alguma editora onde
eu não trabalho. Em caso de desobediência ou expressões de descontentamento,
recorro a medidas mais severas: tranco na despensa, dou amônia para cheirar e
assim por diante. Caso minha sogra comece a se enfurecer, mando chamarem o
policial e o zelador.
De noite, enquanto durmo, todas minhas três parentas não dormem,
perambulam pelos quartos e vigiam para que ladrões não roubem minhas obras.
Мой домострой
Referências
TCHÉKHOV, A. P. Moi domostrói. In: Pólnoie sobránie sotchiniéni i píssem v 30 tomakh. (Obra
completa em 30 volumes). Volume 5. Moscou: Naúka, 1976, p. 359-360.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 339
Resumo: O presente artigo aborda aspectos poéticos e da tradução do conto Uma história desagradável, de Fiódor
Mikháilovitch Dostoiévski, publicado originalmente em 1862 na revista O Tempo, e em primeira tradução direta
para o português pela Editora 34 em 2016 (DOSTOIÉVSKI, 2016). Inicialmente serão apresentados elementos
do enredo e do contexto que circundam a narrativa, particularmente a forte estratificação social russa e o período das
reformas do tsar Alexandre II. A seguir, são elencados aspectos poéticos do conto, escolhidos por serem característicos
da obra em questão. Em primeiro lugar será comentada a dramaticidade da prosa dostoievskiana, já observada pela
crítica (VÁSSINA, 2008), mas que será complementada e ponderada por uma análise do papel do narrador neste
texto. A seguir, serão tratadas a elaboração poética da linguagem (cf. SCHNAIDERMAN, 1982) e o humor,
aspecto menos privilegiados pela crítica do romancista. Por fim, serão comentados alguns momentos da tradução – uso
de notas, adaptações e tradução do título –, reforçando a ideia de que cada escolha reflete a necessidade de ajustes
conforme a língua de chegada e uma interpretação consistente da obra.
Palavras-chave: Dostoiévski, conto, crítica literária, tradução literária.
-se de uma figura de origem aristocrática, um alto funcionário que, apesar de seu
orgulho e posição social elevada, acaba por se envolver em alguma situação ridí-
cula e vexatória. É o caso do marido ciumento de “A mulher de outro e o marido
embaixo da cama” (DOSTOIÉVSKI, 2017); de Piótr Ivánovitch, de “Como é
perigoso entregar-se a sonhos de vaidade” (DOSTOIÉVSKI, 2017); e de Ivan
Ilitch Pralínski, de Uma história desagradável. O presente artigo se deterá nesse último
caso. Incialmente, será feita uma breve contextualização da obra e apresentação
do enredo. Em seguida, serão destacados e comentados alguns aspectos poéticos
do conto e de sua tradução para o português.
O conto Uma história desagradável foi publicado em 1862 na revisa O Tempo,
que era editada pelos irmãos Fiódor e Mikhail Dostoiévski e contava com colabo-
radores de diversos espectros ideológicos, como os eslavófilos Nikolai Strákhov
(1828-1896) e Apollón Grigóriev (1822-1864) e o radical Aleksiéi Rázin (1823-
1875). Com essa formação heterogênea, o periódico participou dos acalorados
debates que movimentavam a imprensa russa na década de 1860. A publicação
fazia, de modo geral, oposição à revista O Contemporâneo, veículo de orientação
mais radical de Nikolai Tchernichévski.
Já em suas primeiras linhas, é possível perceber alusões a acontecimentos
fundamentais do contexto social e histórico da Rússia na segunda metade do século
XIX. Ainda no primeiro parágrafo, o narrador descreve o momento como sendo
de “renascimento da nossa amada pátria e [d]o desejo de todos os seus gloriosos
filhos por novos destinos e esperanças” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 11). O clima
de mudanças sociais a que ele se refere, diz respeito às importantes reformas
conduzidas pelo tsar Alexandre II nos anos 1860. Os alvos dos novos decretos do
autocrata foram a servidão, com a Emancipação dos Servos; o sistema judiciário,
com a instituição do tribunal por júri; e a administração regional, com criação dos
zemstvos. Tais reformas, contudo, foram de cunho essencialmente administrativo,
não político, e visavam à modernização econômica da Rússia, que se encontrava
abatida pela derrota na Guerra da Crimeia. Isto é, elas não alteraram a estrutura
política da autocracia e modificaram apenas em termos burocráticos a organiza-
ção do poder; não à toa, resultou em profunda insatisfação e radicalização da ala
opositora do governo.
O conto inicia-se com a reunião de três altos funcionários para a come-
moração do aniversário de um deles: o conselheiro privado Stepán Nikíforovitch
Nikíforov (anfitrião e aniversariante), e os conselheiros efetivos de Estado: Semion
Ivánovitch Chipulenko e Ivan Ilitch Pralínski. Reunidos, os altos funcionários
discutem, entre outras coisas, sobre o amor à humanidade, ou mais precisamen-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 341
A seguir, Pralínski imagina em tons épicos toda a cena que está prestes a
acontecer, descreve sua atitude magnânima, a estupefação que acometerá todos
os presentes e o senso de hierarquia que não irá se desfazer em absoluto: “Com
delicadeza, lembrarei que entre eles e mim existe uma diferença. Como entre o
céu e a terra [...] No dia seguinte minha façanha já será conhecida na repartição”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 27). Essa passagem põe a nu a desmedida vaidade e
342 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...
rindo (seria dele?). Depois do ódio e da vergonha, a vodca trouxe coragem, ainda
que a consciência não lhe tivesse abandonado. Em seguida, teve vontade de chorar
e de fazer as pazes com todos:
Queria abraçar a todos, esquecer tudo e fazer as pazes. Além disso, queria
dizer abertamente tudo, tudo, isto é, o quanto ele era uma pessoa boa,
ótima, de talentos extraordinários [...] e o principal, como era progressista,
com que humanidade era capaz de ser condescendente com todos, até
os mais baixos, e enfim, para concluir, queria dizer francamente todos os
motivos que o levaram a aparecer na casa de Pseldonímov sem ter sido
convidado, beber das garrafas de champanhe e alegrá-lo com sua presença.
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 54).
Aspectos da poética
ta. Para este mesmo crítico, “Tendo conduzido a cena do escândalo ao apogeu,
Dostoiévski desvia abruptamente a ação da ocorrência vulgar para o patético e o
heroico” (GROSSMAN, 1967, p. 38). Em toda sua obra, é patente a inclinação
dostoievskiana pelo excepcional, e Uma história desagradável não é exceção. O conto
transita entre o heroico e o patético e apresenta fatos que passam longe do coti-
diano vulgar. Em dois momentos o narrador trata os fatos nesses termos: “Mas
a desgraça é que aquele era um momento excêntrico” (DOSTOIÉVSKI, 2016,
p. 28), quando resolve ir à festa, e “De fato, sua situação se tornou mais e mais
excêntrica” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 50), depois da vodca.
Ao lado desses evidentes elementos de drama, é importante ressaltar um
aspecto crucial da narrativa. O drama exterior, que se desenrola pelo embate dos
personagens e pelos diálogos entre eles, não se esgota no enredo de Pralínski.
A ação ocorre em duplicidade e espelhamento: no nível da consciência e no
nível factual. Cada ato do conselheiro é precedido por uma visão interior dele,
como a descrição do grandioso impacto que seu aparecimento teria na festa
do funcionário Pseldonímov. Ele imagina a cena, os diálogos, ergue suntuosos
castelos de ar que se desfazem quando a ação se desenrola na realidade, fora de
sua imaginação, fazendo a passagem do épico para o patético e o grotesco. O
dispositivo narrativo que possibilita o trânsito entre essas esferas é o narrador
onisciente seletivo composto por Dostoiévski. Além disso, devido ao estado al-
terado de consciência do personagem (sua embriaguez), o narrador é responsável
por traduzir o conteúdo disforme dessa consciência em linguagem literária. Na
passagem a seguir, ele faz uma breve digressão a esse respeito e reflete metalin-
guisticamente sobre sua função:
2 Para mais reflexões sobre o papel do narrador em Dostoiévski, ver Ivantchikova (1994), Gigolov
(1988), Rosenshield (1978), Marques (2015).
3 Trata-se de um procedimento bastante recorrente na literatura russa em geral e na dostoievskiana em
particular, como se verifica no exemplo de Niétotchka Niezvânova, que provém de nie (não), zvat (chamar)
e simboliza as crianças infelizes, quase anônimas; e Raskólnikov, sobrenome oriundo de raskol (cisão, em
russo), termo que alude tanto ao cisma religioso quanto à cisão da consciência que marca este personagem.
348 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...
Considerações finais
Buscamos com este artigo fazer uma apreciação do conto Uma história desa-
gradável, a partir da dissecação do enredo, do estudo de alguns aspectos da poética
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 351
Referências
BIANCHI, Maria de Fátima. Dostoiévski escrevia mal? Anais do XI Congresso Internacional
da Abralic, 2008. Página eletrônica: <http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/
AnaisOnline/simposios/pdf/036/MARIA_BIANCHI.pdf>. Consulta realizada em 21
de agosto de 2017.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Uma história desagradável. Tradução de Priscila
Marques. São Paulo: Editora 34, 2016.
____. A mulher de outro e o marido debaixo da cama. In: Contos reunidos. Tradução de
Priscila Marques. São Paulo: Editora 34, 2017.
____. Como é perigoso entregar-se a sonhos de vaidade. In: Contos reunidos. Tradução de
Irineu Franco Perpétuo. São Paulo: Editora 34, 2017.
GIGOLOV, M. G. Tipologuiia rasskáztchikov ránnego Dostoiévskogo (1845-1865). In:
Dostoiévski: materiali i issliédovaniia. Leningrado: Naúka, 1988, vol. 8, p. 3-20.
IVANTCHIKOVA, E. A. Rasskáztchik v povestvovátel’noi strukture proizvediénii Dos-
toiévskogo. In: Dostoiévski: materiali i issliédovaniia. São Petersburgo: Naúka, 1994, vol.
11, p. 41-50.
GROSSMAN, Leonid. Dostoiévski artista. Tradução Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
MARQUES, Priscila Nascimento. O narrador de Crime e castigo segundo Gary Ro-
senshield: o romance polifônico em xeque. Rus – Revista de Literatura e Cultura Russa, v. 6, n. 6,
2015. Página eletrônica: <https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/108592/106886>.
Consulta realizada em 21 de agosto de 2017.
ROSENSHIELD, Gary. Crime and Punishment: The Techniques of the Omniscient Author.
Lisse: The Peter de Ridder Press, 1978.
352 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...
Resumo: É bem provável que o romance Crime e Castigo (1866) de Fiódor Dostoiévski seja a obra da literatura
russa mais conhecida no mundo todo. Apesar de diversas edições do romance terem circulado no Brasil na primeira
metade do século XX, a primeira tradução verdadeiramente brasileira, assinada por Rosário Fusco, foi publicada
apenas em 1949. Ao comparar a tradução indireta, feita por Rosário Fusco a partir do texto em francês, com a
primeira tradução direta, realizada por Paulo Bezerra e publicada em 2001, confirmamos um amaneiramento geral
do texto original na versão indireta, bem como cortes e alterações de estilo e paragrafação.
Palavras-chave: Tradução; Literatura russa; Dostoiévski, Crime e Castigo.
Abstract: There is a good chance that Fyodor Dostoyevsky’s novel, Crime and Punishment (1866), is the most widely
known work of Russian literature throughout the world. In the first half of the XX century in Brazil, several editions
of the novel were already made available, but the first truly Brazilian translation was only published in 1949, signed
by Rosário Fusco. When comparing the indirect translation – that Rosário Fusco made using as source the French
text – with the first direct translation - made by Paulo Bezerra and published in 2001 – we confirm that the text
of the indirect translation was smoothed and it suffered cuts, alterations in style and in the paragraph organization.
Keywords: Translation; Russian Literature; Dostoyevsky; Crime and punishment.
1 O presente trabalho foi desenvolvido como projeto de Iniciação Científica junto ao Laboratório de
Estudos da Tradução (LABESTRAD) da Universidade Federal Fluminense (UFF) ao qual agradecemos
pelo apoio tecnológico e bibliográfico.
2 Professora de Literatura e Língua Russa da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ –
[email protected]
3 Graduanda em Letras – Português/Inglês da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/
RJ – [email protected]
354 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...
Introdução
Em nossa análise, tentaremos verificar quais dessas alterações podem ser ob-
servadas na tradução indireta de Crime e castigo como possíveis “heranças francesas”.
Existem divergências de opiniões quanto à tradução indireta. Alguns es-
tudiosos da tradução, por exemplo, o tradutor Geir Campos, posicionam-se de
forma mais severa quanto a essa modalidade:
Rosário Fusco (C) e, por fim, decidimos incluir também a tradução francesa de
Doussia Ergaz (D), utilizada por Rosário Fusco.
O cotejo paralelo dos textos por meio de uma tabela nos proporcionou
uma primeira observação acerca da incoerência física dos tamanhos dos trechos
escolhidos: enquanto que o texto russo (A) e o texto da tradução direta (B) apre-
sentavam um tamanho mais ou menos condizente entre si, a tradução indireta
(C) por diversas vezes configurava-se como visivelmente mais curta. A redução
do tamanho do texto pode ser observada, por exemplo, nos trechos 3 (C e D) e
6 (C e D) da tabela.
Esta constatação provocou um certo grau de estranhamento, pois ao con-
siderar o fato de que a língua russa tende a ser sintética, enquanto a portuguesa
e a francesa tendem a ser analíticas, seria mais coerente se as traduções para o
português ou para o francês superassem o volume de palavras do texto original
em russo ou ao menos tivessem um tamanho parecido.
Ao confrontar os trechos do texto original (A) com o da tradução direta (B)
e da indireta (C), constatamos que realmente houve palavras e frases cortadas na
tradução indireta. Com base neste ponto, surgiu a questão: será que isso ocorreu
devido ao intermédio da tradução francesa, já que a qualidade do texto traduzido
em muito depende do estado do texto-fonte? Ou a alteração do tamanho teria
ocorrido no Brasil por exigência da editora? Graças às pesquisas de Denise Bott-
man (2012; s/d), que explora a historiografia das traduções da literatura russa no
Brasil, conseguimos detectar qual foi a tradução francesa usada por Rosário Fusco
como fonte para sua versão de Crime e castigo: foi Crime et chatîment, traduzida do
russo por Doussia Ergaz e publicada em 1931 pela Gallimard.
A partir da comparação entre o texto da tradução francesa de Doussia
Ergaz (D) e a versão de Rosário Fusco (C) foi possível confirmar que, em alguns
casos, na tradução francesa ocorreram sim cortes de palavras; já em outros casos,
quando não houve corte na tradução francesa, esta falta fez-se presente na tradução
indireta brasileira. Assim, na seleção B6 lemos:
Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo. Men-
tir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no
primeiro caso és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro.
No trecho B3, consta: “E mesmo que o senhor Lújin fosse todo feito do
mais puro ouro ou de um brilhante inteiro, nem assim ela aceitaria tornar-se con-
cubina legítima do senhor Lújin”. Ao compararmos essas linhas às da tradução
de Rosário Fusco e de Doussia Ergaz, percebemos a ausência de uma parte da
frase, além da preferência em não repetir “o senhor Lújin” duas vezes. Assim, no
trecho C3 há apenas “mais puro brilhante”, sem ouro, o que provavelmente foi
considerado um exagero: “Mesmo que o senhor Lújin fosse feito do mais puro
brilhante, ela jamais consentiria em ser sua concubina legítima.”
Segundo Landers (2001, p. 90-92), a concepção de estilo abarca não apenas
a escolha de palavras pelo autor, mas também de outros elementos, por exemplo,
a divisão de parágrafos, o comprimento das frases e as figuras de linguagem.
O texto de Dostoiévski não apresenta uma linguagem elegante e ordenada,
já que seu estilo é marcado pela busca de uma aproximação da linguagem cotidiana
e do caráter caótico dos pensamentos dos personagens. Entretanto, nem sempre
esse estilo foi devidamente compreendido e analisado como algo proposital. A
pesquisadora e tradutora da obra de Dostoiévski Fátima Bianchi (2008) afirma,
em seu Dostoiévski escrevia mal?, que entre algumas das características estilísticas da
obra dostoiévskiana estão a repetição de pontuações, palavras, expressões, frases;
a suspensão do discurso e a pausa do pensamento.
Talvez, esta desconsideração da estilística original de Dostoiévski, das bar-
reiras linguísticas ou até mesmo da exigência por uma linguagem mais “nivelada”
por parte da editora, tenham levado ao amaneiramento que seu texto sofreu ao
ser vertido para o francês e, consequentemente, para o português. Como escreve
Paulo Bezerra no Prefácio do tradutor de sua edição de Crime e castigo, “Amaneirar o
discurso de Dostoiévski para torná-lo ‘mais elegante’ e ‘mais fluido’ significaria
atentar contra a originalidade de um autor cuja peculiaridade principal é a ruptura
com as matrizes tradicionais do pensamento e suas formas de expressão” (BE-
ZERRA, 2001, p. 8-9).
Mais um exemplo do amaneiramento que a obra sofreu é o primeiro item
da tabela. Nesse caso, o personagem, um tenente, encontra-se imerso em cólera,
estado que interfere em sua articulação das palavras. No entanto, no texto traduzido
para o francês (D1), a vociferação entrecortada do personagem foi suprimida, o
que descaracteriza por completo a intensidade e agressividade de sua fala. Além
disso, a alteração impressa na tradução francesa foi repetida pela tradução indireta:
verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos4; exemplos houve” (6B). A
tradução da expressão заколотить жизнь para o francês (D) e na primeira tradução
brasileira (C) está mais próxima de seu sentido no texto original, a saber: “La vérité
se retrouve toujours, tandis que la vie peut être enterrée à jamais; on en a vu des
exemples” (6D) e “A verdade se encontra sempre, ao passo que a vida pode ser
enterrada para sempre, estamos enjoados de ver exemplos” (6C). Entretanto, apesar
da “precisão semântica” (SCHNAIDERMAN, 2011, p. 31-34) na tradução indi-
reta, não observamos a brevidade e o estilo entrecortado da sentença no original.
Algumas conclusões
ANEXO:
Texto original em Russo Tradução direta para o Tradução indireta para o Tradução para o francês, por
português, por Paulo Bezerra português, por Rosário Doussia Ergaz
Fusco
A B C D
1 “— Извольте ма-а-а-лчать! “Trate de ca-lar-a-bo-ca! O “-Cale-se. O senhor está « Taisez-vous ! Vous êtes à
Вы в присутствии. Не senhor está numa repartição numa audiência. Não seja l’audience, ne faites pas
гр-р-рубиянить, судырь!” pública. Nada de gr-r- insolente, cavalheiro.” l’insolent, monsieur. »
(DOSTOIÉVSKI, 2016, rosseria, senhor!” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 108) (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 137-138) p. 236-237)
p. 111-112)
2 “— Никакой шум и драки “-Não houve nenhum “Não houve em casa, « l n’y a eu chez moi ni tapage
у меня не буль, господин barulho nem briga na minha senhor capitão, nem ni rixe, monsieur le capitaine,
капитэн, — затараторила casa, senhor capiten – barulho, nem briga – s’écria-t-elle précipitamment
она вдруг, точно горох começou de repente a falar exclamou, precipitadamente, dès qu’on lui eut permis de le
просыпали, с крепким pelos cotovelos, atropelando desde que lhe permitiu fazê-lo faire (elle parlait le russe
немецким акцентом, хотя as palavras, com um forte (falava russo corretamente, couramment, avec un fort
и бойко по-русски, — и sotaque alemão, embora em embora com forte sotaque accent allemand), aucun,
никакой, никакой шкандаль, um russo desenvolto –, e não alemão). – Nenhum, nenhum aucun scandale (elle
а они пришоль пьян, и это aconteceu nenhum, nenhum escândalo (dizia excandálo). disait «schkandale»).
я всё расскажит, господин schkandall, mas eles chegô O homem já chegou bêbado Cet homme est arrivé
капитэн, а я не виноват… bêbado, e isso eu contará e eu vou lhe contar tudo, ivre et je vais vous raconter
у меня благородный дом, tudo, senhor capiten, mas eu senhor capitão, eu não tenho tout, monsieur le capitaine,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 365
господин капитэн, и não sou culpado...minha casa culpa...Minha casa é uma moi je ne suis pas coupable...
благородное обращение, é nobre, senhor capiten, o casa respeitável, minhas Ma maison est une maison
господин капитэн, и я tratamento também é nobre, maneiras são dignas, senhor convenable, mes manières
всегда, всегда сама не хотель senhor capiten, e eu sempre, capitão, e eu mesma não sont très convenables,
никакой шкандаль. А они eu mesma nunca quis nenhum queria nenhum excandálo. monsieur le capitaine, et
совсем пришоль пьян и schkandall. Mas eles chegó Ele, ele chegou inteiramente moi-même je ne voulais
потом опять три путилки completamente bêbado e bêbado, pediu três garrafas aucun schkandale. «Et lui, il
спросил, а потом один depois pediu mais três (ela dizia carrafas), em est venu tout à fait ivre, et il
поднял ноги и стал ногом carrafas, e depois um levantou seguida levantou as pernas e a demandé trois bouteilles
фортепьян играль, и это as pés e começou a tocar pôs-se a tocar piano com os (elle disait «pouteilles»), puis
совсем нехорошо в piano com a pé, e isso não é pés. Ora, isso não fica bem il a levé les jambes et
благородный дом, и он ганц nada bom num casa nobre, e numa casa decente; ele commencé à jouer du piano
фортепьян ломаль, и совсем, ele quebró ganz piano, e não quebrou o piano inteiro e avec son pied et cela, cela ne
совсем тут нет никакой tem nenhum, nenhum isso não é jeito de se portar. convient pas du tout à une
манир, и я сказаль. А он manero, e eu disse. Mas ele Observei-o. Então ele pegou maison convenable, et il a
путилку взял и стал всех pegou um carrafa e começó a na carrafa e começou a cassé tout le piano, et ce n’est
сзади путилкой толкаль. И empurrar todos por trás com ameaçar todo mundo com pas une manière de se
тут как я стал скоро дворник o carrafa. E aí eu começó ela. Então eu chamei, conduire; je le lui ai fait
позваль и Карль пришоль, logo chamar servente, e Karl imediatamente, o porteiro e observer, alors il a pris la
он взял Карль и глаз chegó, ele pegó Karl e bateu Karl veio. Então ele pegou bouteille et s’est mis à
прибиль, и Генриет тоже olho, e Henriet também Karl, amassou-lhe o olho, e repousser tout le monde avec.
глаз прибиль, а мне пять раз bateu olho, e em mim batéu o de Henriqueta também, a Alors moi j’ai lui payer quinze
щеку биль. И это так cinco vezes no face. E isso mim, também a mim, me roubles d’indemnité. Moi,
неделикатно в благородный é tão indelicado num casa deu cinco tapas. Isso não são monsieur le capitaine, je lui ai
дом, господин капитэн, и я nobre, senhor capiten, e eu maneiras de se conduzir numa payé cinq roubles sein Rock
кричаль. А он на канав окно gritó. Mas ele abriu o janela casa decente, senhor capitão, aussitôt appelé le concierge et
отворяль и стал в окно, как que dá pro canal e ficou então eu gritei. Aí, ele abriu a Karl est venu, alors il a pris
маленькая свинья, визжаль; em cima do janela ganindo janela que dá para o canal e se Karl et lui a poché un oeil et à
и это срам. И как можно в como um leitãozinho; e isso pôs a grunhir como um leitão. Henriette aussi, et moi, il m’a
окно на улиц, как маленькая é um vergonha. Como que E como se pode grunhir donné cinq gifles ; ce sont des
свинья, визжаль; и это срам. pode ganir do janela pra como um leitão na janela? manières si peu délicates, pour
Фуй-фуй-фуй! И Карль rua como um leitãozinho; Karl puxou-o por trás, pela une maison convenable,
сзади его за фрак от окна isso é um vergonha. roupa, não nego, senhor monsieur le capitaine, alors
таскаль и тут, это правда, Fui-fui-fui! E Karl capitão, arrancando-lhe uma moi je criais. Alors lui a ouvert
господин капитэн, o puxó do janela por trás das abas da casaca. Então, ele la fenêtre qui donne sur le
ему зейн рок pelo casaca e aí, é verdade, gritou man mouss me pagar canal et il s’est mis à pousser
изорваль. И тогда он senhor capiten, ele rasgou quinze rublos de indenização. des cris comme un petit
кричаль, что ему o sein Rock. E então ele Eu, senhor capitão, cochon. Et comment peut-on
пятнадцать целковых gritó que eu man muß lhe paguei-lhe cinco por sein pousser des cris comme un
ман мус штраф pagar quinze rublos de Rock e devo dizer que não petit cochon à la fenêtre ? Fi !
платиль. И я сама, multa. Eu mesma, senhor é um freguês decente, senhor Fi ! Fi! Et Karl le tirait
господин капитэн, пять capiten paguei a ele cinco capitão, pois além de fazer par-derrière par les pans de
целковых ему зейнрок rublos por sein Rock. todo esse excandálo, ainda son habit pour l’éloigner de la
платиль. И это Ele é um hóspede disse que pode contar toda fenêtre et il lui a, je ne le nie
неблагородный гость, vil, senhor capiten, e fez a história contra mim nos pas, monsieur le capitaine,
господин капитэн, schkandall de todo tipo! Eu jornais.” arraché une des basques de
и всякой шкандаль disse ele, vai gedriuk um son habit. Alors il a crié man
делаль! Я, говориль, на grande sátira do senhora, muss1 2 et je dois vous dire que
вас большой сатир porque em todos jornal (DOSTOIÉVSKI, 2010a, que ce n’est pas un client
гедрюкт будет, потому я posso escreveu tudo.” p. 140) convenable, monsieur le
во всех газет могу capitaine, c’est lui qui a fait
про вас всё сочиниль.” (DOSTOIÉVSKI, 2001, tout le scandale et il m’a dit
p. 113-114) qu’il peut raconter toute cette
(DOSTOIÉVSKI, 2016, histoire sur moi dans les
p. 110-111) journaux. »
(DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 241-242)
366 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...
3 “И будь даже господин “E mesmo que o senhor “Mesmo que o senhor “M. Loujine pourrait être
Лужин весь из одного Lújin fosse todo feito do Lújin fosse feito do mais fait d’un pur ou d’un seul
чистейшего золота или из mais puro ouro ou de um puro brilhante, ela jamais brillant qu’elle ne consentirait
цельного бриллианта, и brilhante inteiro, nem assim consentiria em ser sua pas à devenir sa concubine
тогда не согласится стать ela aceitaria tornar-se concubina legítima. Por légitime. Pourquoi donc s’y
законною наложницей concubina legítima do senhor que, agora, se resolveu ela? résout-elle à présent ?
господина Лужина! Почему Lújin! Por que está aceitando Que mistério é esse? Onde « Quel est ce mystère ? Où
же теперь соглашается? В agora? Em que consiste essa a chave do enigma? A coisa est le mot de l’énigme ? La
чем же штука-то? В чем же coisa? Em que consiste a é clara, nunca se venderia chose est claire, elle ne se
разгадка-то? Дело ясное: adivinhação? A coisa é clara: por si própria, pelo seu vendrait jamais pour
для себя, для комфорта não se vende em proveito conforto, mesmo para elle-même, pour son
своего, даже для спасения próprio, por conforto, nem livrar-se da morte. Mas confort, même pour
себя от смерти, себя не para escapar da morte, mas o faz por um outro, échapper à la mort. Mais
продаст, а для другого вот se vende em proveito de vende-se por um ser elle le fait pour un autre ;
и продает! Для милого, для outro! Se vende por uma querido: Eis todo o mistério elle se vend pour un être
обожаемого человека pessoa querida, por uma explicado. Por seu irmão, aimé, chéri. Voilà tout le
продаст! Вот в чем вся наша pessoa adorada! É nisso que pela sua mãe, está pronta mystère expliqué : pour son
штука-то и состоит: за consiste toda essa nossa coisa: para se vender inteira. frère, pour sa mère, elle est
брата, за мать продаст! Всё pelo irmão, pela mãe ela se Quando se chega a esse prête à se vendre, à se
продаст! О, тут мы, при vende! Vende tudo! Oh, aqui, ponto, sacrifica-se até vendre en entier. Oh ! quand
случае, и нравственное havendo oportunidade, nós toda e qualquer resistência on en vient à cela, on fait
чувство наше придавим; esmagamos até o nosso moral. Expõe-se à venda violence même à tout
свободу, спокойствие, даже sentimento ético; levamos à sua liberdade, seu repouso, sentiment moral. On porte
совесть, всё, всё на loja de usados a liberdade, a sua consciência. Naufrague repos, sa conscience. Périsse
толкучий рынок снесем. tranqüilidade, até a nossa vida, desde que as notre vie, pourvu que les
Пропадай жизнь! Только consciência, tudo, tudo. criaturas queridas sejam créatures aimées soient
бы эти возлюбленные Dane-se a vida! Contanto felizes.” heureuses.”
существа наши que esses nossos seres
были счастливы.” apaixonados sejam felizes.” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 65-66) p. 107-108)
p. 51) p. 59)
4 “— Кой черт улики! А “Que provas que nada! Aliás, “–Sim, provas. Conquanto “– Ah bien, oui, des charges !
впрочем, именно по o prenderam precisamente tenha sido preso por quoiqu’il ait été arrêté pour
улике, да улика-то эта com base numa prova, uma que pesava sobre ele. quoiqu’il ait été arrêté pour
не улика, вот что só que ela não é prova, Contudo, de fato, essa prova une charge qui pesait sur lui.
требуется доказать! Это e é isso que se precisa não prova nada e aí está o Mais, en fait, cette charge n’en
точь-в-точь как сначала provar! Foi exatamente que queremos demonstrar. est pas une et voilà ce qu’il
они забрали и заподозрили assim que primeiro eles A polícia está tomando o nous faut démontrer. La
этих, как бишь их… Коха prenderam e puseram sob caminho errado, como, no police fait fausse route comme
да Пестрякова. Тьфу! Как suspeita esses, como é princípio, a propósito elle s’est trompée au début au
это всё глупо делается, mesmo que se chamam... daqueles dois...como se sujet de ces deux... comment
даже вчуже гадко Kokh e Piestriakov. Arre! chamam? Koch e Pestriakóv. s’appellent-ils déjà ? Koch et
становится! Пестряков-то, Quanta bobagem cometem Por mais indiferente que se Pestriakov ! Fi, si désintéressé
может, сегодня ко мне em tudo isso, dá nojo até seja ao caso fica-se assistindo qu’on soit dans la question,
зайдет… Кстати, Родя, ты em quem está de fora! É a um inquérito tão on se sent révolté en voyant
эту штуку уж знаешь, еще possivel que Piestriakov idiotamente conduzido. une enquête si sottement
до болезни случилось, venha hoje à minha casa... Pestriakóv talvez passe lá em conduite. Pestriakov va
ровно накануне того, как Aliás, Ródia, tu já conheces casa, logo mais...A propósito, peut-être passer chez moi
ты в обморок в конторе esse negócio, porque Ródia, não conheces esta tantôt... À propos, Rodia, tu
упал, когда там про это aconteceu ainda antes da história? Ela se passou antes connais cette histoire ; elle est
рассказывали…” tua doença, exatamente na da tua doença, justamente na arrivée avant ta maladie, juste
(DOSTOIÉVSKI, 2016, véspera do teu desmaio na véspera do dia em que la veille du jour où tu t’es
p. 149) delegacia, quando ouviste desfaleceste na polícia, na évanoui au bureau de police au
contar essa história...” hora em que falavam dela.” moment où on la racontait.”
(DOSTOIÉVSKI, 2001, (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 148) p. 185) p. 325-326)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 367
5 “— Добился! — “–Achou o que procurava – “–Isso tinha de acontecer! – “”– Cela devait lui arriver »,
отчаянно вскрикнула gritou Catierina Ivánovna em exclamou Ekaterína Ivánovna s’écria Catherine Ivanovna
Катерина Ивановна и desespero e precipitou-se com o ar desesperado, d’un air désespéré et elle
бросилась к мужу.” para o marido.” abraçando-se ao corpo s’élança vers son mari.”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, do marido.” (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 198) p. 191) (DOSTOIÉVSKI, 2010a, p. 432)
p. 243)
6 “— Послушайте, — робко “–Escute – interrompeu “Escute... – falou timidamente “– Écoutez, fit timidement
перебила Пульхерия timidamente Pulkhéria Pulkhéria Aleksándrovna, no Pulchérie Alexandrovna. Mais
Александровна, но это Alieksándrovna –, isso só pôs entanto essa interrupção só cette interruption ne fit
только поддало жару. lenha na fogueira. serviu para excitá-lo mais. qu’échauffer Rasoumikhine.
— Да вы что думаете? — – E o que a senhora acha? – –Não, mas o que é que estão – Non, mais qu’en
кричал Разумихин, еще gritou Razumíkhin, pensando disso – gritou, pensez-vous ? cria-t-il en
более возвышая голос, — levantando ainda mais a voz. elevando a voz mais ainda. – élevant encore la voix,
вы думаете, я за то, что они – A senhora acha que estou Pensam que tenho raiva deles vous pensez que je leur en
врут? Вздор! Я люблю, a favor de que eles mintam? porque dizem absurdos? veux parce qu’ils disent des
когда врут! Вранье есть Absurdo! Eu gosto quando Estão muito enganadas. absurdités ? Non ! J’aime cela,
единственная человеческая mentem! A mentira é o único Gosto disso! Que se qu’on se trompe !... C’est la
привилегия перед всеми privilégio humano perante enganem. É a única seule supériorité de l’homme
организмами. Соврешь — todos os organismos. Quem superioridade dos homens sur les autres organismes.
до правды дойдешь! mente chega à verdade! sobre os outros seres. É C’est ainsi qu’on arrive à la
Потому я и человек, что Minto, por isso sou um ser assim que se chega à vérité ! Je suis un homme,
вру. Ни до одной правды humano. Nunca se chegou a verdade. Sou homem, et c’est parce que je me
не добирались, не соврав nenhuma verdade sem antes e me porque trompe que je suis un
наперед раз четырнадцать, haver mentido de antemão sou homem. Não se homme. On n’est jamais
а может, и сто quatorze, e talvez até cento chega a nenhuma verdade arrivé à aucune vérité sans
четырнадцать, а это e quatorze vezes, e isso é sem nos enganarmos s’être trompé au moins
почетно в своем роде; ну, а uma espécie de honra; mas pelo menos quatorze quatorze fois ou peut-être
мы и соврать-то своим nós não somos capazes nem vezes, talvez cento e même cent quatorze et c’est
умом не умеем! Ты мне ври, de mentir com inteligência! quatorze, e isso é até peut être un honneur en son
да ври по-своему, и я тебя Mente para mim, mas mente uma honra. Mas nunca genre. Mais nous ne
тогда поцелую. Соврать a teu modo, e então eu te nos enganamos de savons même pas nous
по-своему — ведь это dou um beijo. Mentir a seu modo geral. Um erro tromper de façon personnelle.
почти лучше, чем правда modo é quase melhor do que original vale mais que Une erreur originale vaut
по одному по-чужому; в falar a verdade à moda uma verdade banal. peut-être mieux qu’une
первом случае ты человек, alheia; no primeiro caso és A verdade se encontra vérité banale. La vérité se
а во втором ты только um ser humano, no segundo, sempre, ao passo que a retrouve toujours, tandis
что птица! Правда não passas de um pássaro. vida pode ser enterrada que la vie peut être
не уйдет, а жизнь-то A verdade não foge e a vida para sempre, estamos enterrée à jamais; on en
заколотить можно; a gente pode segurar com enjoados de ver exemplos.” a vu des exemples.”
примеры были.” pregos; exemplos houve.” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 272) p. 480-481)
p. 221) p. 214)
Referências
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revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BEZERRA, Paulo. Prefácio do Tradutor. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch.
Crime e castigo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.
BIANCHI, Maria de Fátima. Dostoiévski escrevia mal? In: Congresso Internacional da Associação
Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC, 11, 2008, São Paulo, SP. Anais (on-line). São
368 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...
RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. 7° edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012b.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SCHNEIDER URSO, Graziela. “Versões de Nabókov”. Tese de doutorado, USP, 2016. Dis-
ponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-16082016-152515/
pt-br.php>. Acesso em 14 de agosto de 2017.
VÓLKOVA AMÉRICO, Ekaterina. O conceito de tradução na obra de Iúri Lotman: entre
a intraduzibilidade e liberdade. In: Tradterm, v. 24, 2014, p. 17-33.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 371
Lucas Simone
Apresentação
Embora seu nome soe pouco ou nada familiar ao leitor de fora da Rússia,
o príncipe Vladímir Fiódorovitch Odóievski (1804-69) produziu, ao longo de sua
vida, uma das mais versáteis e curiosas obras da literatura russa do século XIX.
Sua pena gerou de livros infantis a ensaios filosóficos, de teoria musical a resenhas
gastronômicas. Tido como uma espécie de homem renascentista, devido a seu
conhecimento enciclopédico e a seu interesse pelos mais diversos assuntos, foi
membro ativo de inúmeros grupos literários e filosóficos, dentre eles a Sociedade
dos Amantes da Sabedoria (os chamados Liubomúdry), além de editar o periódico
Mnemozina. Grande propagador da filosofia idealista e do romantismo alemão,
trouxe ao público russo autores como Novalis e Schelling, do qual foi manifesto
admirador – essa filiação à literatura germânica, aliás, deixou marcas inequívocas
em seus escritos, rendendo-lhe o epíteto de “Hoffmann Russo”.
No conto que aqui apresentamos, porém, estão presentes ressonâncias
menos alemãs do que tipicamente russas; mais precisamente, é nítido o diálogo
com um dos grandes nomes da literatura russa, Nikolai Gógol, de cujas Noites
numa granja próximo de Dikanka Odóievski extrai sua epígrafe. “O conto do cadáver
que pertencia não se sabe a quem” remeterá o leitor habituado às singulares linhas
gogolianas a um ambiente familiar: o da Rússia profunda, rural, com seus buro-
372 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski
É fato que o escrivão provincial, saindo de quatro da taverna, viu que a lua, sem mais
nem menos, dançava no céu, e jurou para todo o povoado que era verdade; mas os aldeões
balançaram a cabeça e até zombaram dele.
1 Antigas medidas russas: o archin equivalia a 71 cm, enquanto o verchok equivalia a 4,4 cm. Era costume
dizer a altura em verchoks acima de dois archines. O morto tinha, portanto, 1,86 m de altura. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 373
2 Tradicional leito que se afixava em cima dos grandes fornos russos. (N. do T.)
374 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski
“não”, “mas”, “e” etc., e da maneira mais natural vinha à mente de Sevastiánytch:
como eram estúpidas as pessoas, e como eram inteligentes ele e seu pai.
Enquanto isso, ele esvaziou o segundo quarto do jarro e começou a tra-
balhar; mas enquanto sua habituada mão traçava com rapidez ganchinhos no
papel, seu amor-próprio, desperto pela visão do caderno, trabalhava: ele recordava
quantas vezes ele transportara cadáveres para lá da divisa de um distrito vizinho,
livrando assim seu comissário de preocupações supérfluas: e no mais: se fosse para
elaborar uma sentença, tomar informações, fundamentas as leis, entrar em contato
com os peticionários, informar a chefia acerca da impossibilidade de cumprir suas
disposições – em toda parte e para tudo havia Sevastiánytch; com um sorriso, ele
recordava um expediente inventado por ele: toda busca geral direcionar para o
outro lado; ele recordava que, recentemente, por meio desse inocente método,
salvara um de seus favorecidos: esse favorecido fizera certa coisinha graças à qual
poderia facilmente empreender uma viagem não de todo agradável; foi feito o in-
terrogatório, deram o mandado de busca – mas nessa ocasião Sevastiánytch sugeriu
de inquirir em primeiro lugar um rapaz alfabetizado, da parte de seu favorecido;
de acordo com as palavras do rapaz alfabetizado, foi escrito um papel, que o rapaz
alfabetizado, persignando-se, assinou, e o próprio Sevastiánytch foi ter com um
cidadão, depois com outro, e com um terceiro, indagando: “Você também, você
também?” – e começou a revisá-los com tanta rapidez, que, enquanto os cidadãos
ainda estavam boquiabertos e apresentavam seus cumprimentos, preparando-se
para responder – ele conseguiu interrogar a todos, até o último, e novamente o
rapaz alfabetizado, por conta do desconhecimento das letras de seus camaradas,
assinou, persignando-se, seu testemunho unânime. Com semelhante satisfação,
Sevastiánytch recordava quando um desconto significativo foi imposto ao comis-
sário, e ele conseguiu implicar no caso umas quinze pessoas, dividir o desconto
entre a turma toda, e depois anistiá-los todos. – Resumindo, Sevastiánytch via que,
em todos os casos famosos do tribunal do ziémstvo de Rejensk, ele era o único
culpado, o único maquinador e o único executor; que, sem ele, estaria arruinado
o assessor, estaria arruinado o comissário, estariam arruinados tanto o juiz de
distrito, como o chefe de distrito; que somente por ele mantinha-se a antiga glória
do distrito de Rejensk – e involuntariamente passou pela mente de Sevastiánytch a
doce sensação do próprio mérito. É verdade que, de longe – como que das nuvens
–cintilavam em seus olhos os olhos enervados do governador, o rosto inquiridor
do secretário da câmara criminal; mas ele olhou para as janelas encobertas pela
nevasca; pensou nas trezentas verstas que o separavam de tão horrível visão; para
aumentar o ânimo, bebeu o terceiro quarto do jarro, e seus pensamentos ficaram
muito mais alegres: ele imaginou sua alegre casinha em Rejensk, ganha com seu
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 375
3 Não havia tal patente na escala do funcionalismo público russo. (N. do T.)
4 Herói de diversas canções populares russas. (N. do T.)
5 Famoso ladrão moscovita do século XVIII, tornou-se personagem recorrente do folclore. (N. do T.)
6 Relato pseudo-histórico do século XVII acerca da viagem que um mercador russo teria feito a Jeru-
salém no século XVI. (N. do T.)
7 Tradicional instrumento russo de cordas, semelhante à harpa. (N. do T.)
376 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski
essa mão seria arrancada; pegar alguém pela cabeça – e essa cabeça seria arrancada;
depois teve vontade de ver como era essa tal ilha do Chipre que, como descreve
Korobéinikov, é farta em azeite e sabão grego, onde as pessoas andam de burro
e de camelo, e ele começou a rir dos habitantes de lá, que não tinham pensado
em amarrá-los a um trenó; aí em sua cabeça começaram uns pensamentos: ele
achou que, ou nos livros tinham escrito mentiras, ou no geral os gregos deviam
ser um povo muito estúpido, porque ele mesmo perguntara – a uns gregos que
vieram à feira de Rejensk com sabão e pães de mel e que supostamente deveriam
saber o que se faz na terra deles – por que eles tomaram a cidade de Troia – como
escreve precisamente Korobéinikov – mas cederam Constantinopla aos turcos!
E ele não conseguiu arrancar daquele povo nada que fizesse sentido: os gregos
não conseguiram lhe dizer que Troia era aquela, dizendo que provavelmente essa
cidade tinha sido construída e tomada na ausência deles; enquanto ele se ocupava
com tão importante questão, diante de seus olhos passavam: bandoleiros árabes;
o mar Morto; a procissão do sepultamento do gato;8 as câmaras do Faraó, todas
banhadas a ouro por dentro; o pássaro avestruz, da altura de um homem, com
uma cabeça de pato, com uma pedra no casco…
Suas reflexões foram interrompidas pelas seguintes palavras, que alguém
pronunciou ao seu lado:
– Meu caro Ivan Sevastiánytch! Venho lhe pedir encarecidamente.
Essas palavras lembraram Sevastiánytch de seu papel de funcionário públi-
co, e ele, seguindo seu costume, pôs-se a escrever muito mais depressa, abaixou
a cabeça o máximo que pôde e, sem tirar os olhos do papel, respondeu com voz
arrastada:
– O que deseja?
– Os senhores do tribunal convocaram os proprietários do cadáver reco-
lhido em Morkóvkino.
– Pois si-im.
– Bem, veja o senhor, esse corpo é meu.
– Pois si-im.
– Então o senhor poderia fazer o obséquio de me devolver o corpo o
quanto antes?
8 Referência ao lubok Como os ratos enterraram o gato, uma das mais famosas obras da arte popular russa.
(N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 377
– Pois si-im.
– E o senhor pode contar com minha gratidão…
– Pois si-im. E o que era o falecido, seu servo, por acaso?...
– Não, Ivan Sevastiánytch, que servo. O corpo é meu, é meu próprio
corpo…
– Pois si-im.
– O senhor pode imaginar minha situação sem corpo… faça a fineza, ajude-
-me o mais depressa possível.
– Tudo é possível, meu senhor, mas é um pouquinho difícil resolver esse
caso rapidamente – afinal, isso não é uma panqueca, que dá para enrolar com o
dedo; é necessário coletar informações… Se molhar um pouquinho a mão…
– Mas não duvide disso – só me entregue meu corpo, e eu não pouparei
nem cinquenta rublos…
Ao ouvir essas palavras, Sevastiánytch ergueu a cabeça, mas, sem ver nin-
guém, disse:
– Fico feliz em servi-lo, meu senhor, mas confesso que não entendo bem
a sua fala… o senhor tem um requerimento?...
– Com o seu perdão, que requerimento? Como eu poderia tê-lo escrito sem
corpo? Pois faça o obséquio, o senhor tenha a bondade de fazer.
– É fácil dizer, meu senhor, tenha a bondade de fazer, estou lhe dizendo
que não entendo patavina…
– Pois só escreva, vou ditar para o senhor.
Sevastiánytch puxou uma folha de papel timbrado.
– Faça o obséquio de dizer: o senhor tem pelo menos patente, nome e
patronímico?
– Como não?... Eu me chamo Tsveerlei, John Louis.
– Sua patente, meu senhor?
– Estrangeiro.
E Sevastiánytch escreveu na folha timbrada com letras graúdas:
“Ao tribunal do ziémstvo de Rejensk, da parte do jovem nobre estrangeiro
Saviéli Jáluiev, uma explicação”.
– E depois?
– Faça o favor de só escrever, eu já vou lhe ditar; escreva: possuo…
– Seria um bem imóvel? – perguntou Sevastiánytch.
– Não, senhor: possuo infelizmente um fraco…
– Por bebidas fortes, é isso? Ah, isso não é nada louvável…
– Não, senhor: possuo infelizmente um fraco por sair do meu corpo…
– Mas que diabo! – exclamou Sevastiánytch, jogando a pena. – Mas o senhor
está me ludibriando!
– Eu lhe garanto que estou falando a mais pura verdade, escreva, mas saiba:
cinco rublos para o senhor por um só requerimento, e mais cinquenta quando o
senhor resolver o caso…
E Sevastiánytch novamente tomou a pena.
“Aos 20 de outubro viajava eu de quibitca, por necessidade minha, pela
estrada de Rejensk, na parte da carroça, e como fazia frio na rua, e as vias do
distrito de Rejensk são particularmente ruins…”
– Não, mas quanto a isso o senhor me perdoe – objetou Sevastiánytch –,
não posso escrever isso de jeito nenhum, isso é pessoal, e incluir coisas pessoais
em requerimentos é proibido por decreto…
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 379
– Por mim, pode ser; bom, então simplesmente: na rua estava tão frio,
que eu fiquei com medo de congelar a alma, e no mais me deu tanta vontade de
chegar logo à pousada… que eu não aguentei… e, de acordo com o meu hábito
e costume, saltei para fora do meu corpo…
– Com seu perdão! – exclamou Sevastiánytch.
– Está tudo certo, está tudo certo, continue; o que fazer se eu tenho esse
costume?... pois não há nada de ilegal nisso, há?
– Pois nã-ão – respondeu Sevastiánytch –, e depois?
– Queira escrever: saltei para fora do meu corpo, acomodei-o direitinho na
parte de dentro da quibitca… para que ele não caísse, amarrei suas mãos com as
rédeas e parti para a estação, na esperança de que o próprio cavalo correria para
sua estrebaria conhecida…
– É preciso reconhecer – observou Sevastiánytch – que nesse caso o senhor
agiu de modo bastante imprudente.
– Ao chegar à estação, trepei no forno para aquecer a alma, e quando,
pelos meus cálculos, o cavalo deveria ter voltado à hospedaria… eu saí para
encontrá-lo, e no entanto, ao longo de toda aquela noite, nem o cavalo nem o
corpo retornaram. No outro dia, de manhã, fui depressa ao local em que havia
deixado a quibitca… mas ela também não estava mais lá… suponho que meu
corpo inerte tenha caído da quibitca por causa dos buracos na estrada e tenha
sido recolhido por um comissário que passava, e que o cavalo tenha ido na rabeira
de um comboio… Depois de três semanas de buscas infrutíferas, eu, tomando
agora conhecimento da declaração do tribunal do ziémstvo de Rejensk, por meio
da qual foram conclamados os proprietários de um corpo que havia sido encon-
trado, venho rogar encarecidamente que meu corpo me seja entregue, como seu
proprietário legal… a que adiciono o pedido encarecido ao supracitado tribunal
de que me conceda o beneplácito de ordenar que meu corpo seja previamente
mergulhado em água fria, para que ele se recupere; e se, por conta da queda
ocorrida, houver no reiteradamente referido corpo algum defeito ou se ele tiver
sido danificado em algum local pelo frio, então que seja ordenado ao médico
do distrito que o conserte às minhas custas e que tudo isso seja feito conforme
determinam as leis, a que me subscrevo.
– Bem, queira então assinar – disse Sevastiánytch depois de concluir o papel.
– Assinar! É fácil dizer! Estou lhe dizendo que agora não estou com minhas
mãos aqui comigo – elas ficaram com o corpo; assine o senhor por mim, dada a
ausência de mãos…
380 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski
estragá-lo, de tal modo que ele já não prestaria para nada, e que se desse entrada
no requerimento de acordo com o procedimento comum.
É evidente que responderam a essa exigência de Sevastiánytch com o
conselho de que ficasse sóbrio; dissecaram o corpo, não encontraram nada nele
e o enterraram.
Depois desse acontecimento, o requerimento do defunto começou a passar
de mão em mão; por toda parte ele era copiado, complementado, enfeitado, lido,
e por muito tempo as velhinhas de Rejensk se benzeram ao ouvi-lo, horrorizadas.
A lenda não manteve o desfecho desse acontecimento incomum: em um
distrito vizinho, contavam que, no preciso momento em que o médico tocou o
corpo com seu bisturi, o proprietário saltou no corpo, o corpo se levantou, saiu
correndo, e que Sevastiánytch ficou um bom tempo correndo atrás dele pelo
vilarejo, gritando com todas as forças: “Peguem, peguem o falecido!”.
Já num outro distrito, asseguram que, até hoje, todo dia o proprietário vai
até a casa de Sevastiánytch, de manhã e de noite, dizendo: “Meu caro Ivan Sevas-
tiánytch, e o meu corpo? Quando é que o senhor vai me entregar meu corpo?” – e
que Sevastiánytch, sem perder o ânimo, responde: “É que ainda estão recolhendo
as informações”. Nisso já se passaram vinte anos.
При сих словах Севастьяныч поднял голову, но, не видя никого, сказал:
– Иностранец.
И Севастьяныч написал на гербовом листе крупными словами:
“В Реженский земский суд от иностранного недоросля из дворян
Савелия Жалуева, объяснение”.
– Что ж далее?
– Извольте только написать, я уж вам буду сказывать; пишите: имею я…
– Недвижимое имение, что ли? – спросил Севастьяныч.
– Нет-с: имею я несчастную слабость…
– К крепким напиткам, что ли? о, это весьма непохвально…
– Нет-с: имею я несчастную слабость выходить из моего тела…
– Кой чёрт! – вскричал Севастьяныч, кинув перо, – да вы меня моро-
чите, сударь!
– Уверяю вас, что говорю сущую правду, пишите, только знайте: пять-
десят рублей вам за одну просьбу да пятьдесят ещё, когда выхлопочете дело…
И Севастьяныч снова принялся за перо.
“Сего 20 октября ехал я в кибитке, по своей надобности, по реженскому
тракту, на одной подводе, и как на дворе было холодно, и дороги Реженского
уезда особенно дурны…”
– Нет, уж на этом извините, – возразил Севастьяныч, – этого написать
никак нельзя, это личности, а личности в просьбах помещать указами
запрещено…
– По мне, пожалуй; ну, так просто: на дворе было так холодно, что
я боялся заморозить свою душу, да и вообще мне так захотелось скорее
приехать на ночлег… что я не утерпел… и, по своей обыкновенной
привычке, выскочил из моего тела…
– Помилуйте! – вскричал Севастьяныч.
– Ничего, ничего, продолжайте; что ж делать, если такая у меня
привычка… ведь в ней ничего нет противозаконного, не правда ли?
– Та-ак-с, – отвечал Севастьяныч, – что ж далее?
– Извольте писать: выскочил из моего тела, уклал его хорошенько во
внутренности кибитки… чтобы оно не выпало, связал у него руки вожжами
и отправился на станцию в той надежде, что лошадь сама прибежит на
знакомый двор…
– Должно признаться, – заметил Севастьяныч, – что вы в сём случае
поступили очень неосмотрительно.
388 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski
Referências
GOMIDE, Bruno Barretto (org.). Nova antologia do conto russo (1792-1998). São Paulo:
Editora 34, 2011.
ODOEVSKII, V. F. The Salamander and Other Gothic Tales. Evanston: Northwestern Uni-
versity Press, 1992. Tradução e introdução de Neil Cornwell.
ODÓIEVSKI, V. F. Pióstrye skázki. Skázki diéduchki Iriniéia. Moscou: Khudójestvennaia
Literatura, 1993. Disponível no site az.lib.ru (consultado em 1º de setembro de 2017).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 391
Introdução
* E-mail: [email protected]
1 Современник (Sovriemennik), revista russa publicada trimestralmente durante 1836-1846, em São
Petersburgo, onde foi publicada boa parte da produção do poeta, como “Cavaleiro de Bronze” e “A Filha
do Capitão”. Participaram do Современник inúmeros grandes nomes da literatura russa do século XIX,
como N. V. Gogol e A. I. Turguêniev.
392 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...
silievitch. Escrito em fantasia pelo próprio Púchkin, o texto fora respondido pelo
próprio poeta – desta vez assinado – e trazia a posição final do editor: “Sobre os
rumos da literatura de revista não é e nem poderia ser a linha editorial da revista”.
“Sobre os Rumos da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835” é, pro-
vavelmente, um dos últimos trabalhos de Gógol na Rússia antes de partir para
uma vida de dez anos no exterior. Sua jornada começa em 1830, quando começa
a colaborar regularmente com o periódico “Notas da pátria”, onde publicou sua
primeira prosa, “A Noite de São João”. A partir daí, conheceu grandes nomes da
intelectualidade russa, como V. A. Júkov e P. A. Pletniev, além do próprio Púchkin.
Publica em 1831-32 “Noites na Granja ao Pé de Dikanka” e, em 1835, “Mirgorod”,
“Arabescos”, “Avenida Niévski”, “Taras Bulba” e “Diário de um louco”.
O presente artigo traz a tradução para o português da primeira metade de
“Sobre os rumos da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”, diretamente do
russo. O texto de Gógol é dividido em duas partes – na primeira delas, o autor de
“O Capote” faz uma análise das revistas literárias da época, de seus fundadores,
editores e corpo editorial. Na segunda, o autor se aprofunda nas críticas.
contemporâneo, como nos últimos dois anos. A falta de originalidade tem sido
a principal característica de grande parte das edições periódicas. Muitas revistas
antigas foram encerradas, outras se arrastam vagarosamente; das novas, além da
“Biblioteca para leitura”5 e o recente “Observador moscovita”6, nada foi mostrado,
exatamente assim como nada em nenhum lugar deste nosso tempo, de qualquer
atividade que requeira alguma atividade intelectual. Ainda assim aumentou em
muito sua quantidade de leitores. Mesmo que esta época seja tão pobre, ainda assim
ela também tem direito à nossa atenção, assim como qualquer outra que estivesse a
colocar em ebulição algum movimento, porquanto também pertencente à história
das nossas letras. Os leitores, assim, têm todo o direito de reclamar da pobreza
e do jejum de visões de nossas revistas: o “Telégrafo”7 há muito perdeu seu tom
incisivo, o qual lhe conferia um caráter belicoso em relação a outras publicações
de São Petersburgo. O “Telescópio”8 encheu-se de matérias nas quais nada há de
fresco, palpitante ou atual. Neste meio tempo, o vendedor de livros Smirdin9, há
muito conhecido por sua atividade е honestidade, embora sozinho, para a vergonha
de outros de seus camaradas míopes, demonstrou empreendedorismo e com suas
iniciativas colocou em movimento o mercado livresco. O vendedor de livros tomou
a decisão de editar revistas mais vastas, amplas, enciclopédicas, conquistar todos
os literatos quantos houver na Rússia, e de obrigá-los a participar de iniciativa. No
programa estavam exibidos nomes de praticamente todos os nossos escritores. O
professor de literaturas árabes, senhor Senkóvski, foi chamado a ser o responsá-
vel pela revista. A ele se juntou o editor, senhor Gretch10, muito conhecido pela
edição constante de duas revistas: “A abelha do norte”11 e “O filho da pátria”12.
5 Revista literária mensal editada em São Petersburgo, entre 1834 e 1865. (N. do T.)
6 Revista histórico-literária bimestral editada em Moscou, entre 1835 e 1839. (N. do T.)
7 Tida como a primeira revista literária, de formato “enciclopédico”, da Rússia. Editada entre 1825 e
1834 por Nikolai Polevói, era publicada a cada duas semanas. (N. do T.)
8 Revista literária quinzenal, editada em Moscou entre os anos de 1831 e 1836. Nela, publicaram textos
A. S. Púchkin, F. I. Tiútchev, V. G. Belínski e P. Ia. Tchaadáev. (N. do T.)
9 Aleksandr Filipovitch Smirdín (1795-1857), editor e negociador do ramo de livros, uma das mais
importantes figuras no desenvolvimento da literatura impressa da Rússia. (N. do T.)
10 Nikolai Ivánovitch Gretch (1787-1867), escritor, editor, tradutor, jornalista, tradutor e filólogo russo.
(N. do T.)
11 Revista político-literária editada em São Petersburgo entre 1825 e 1864, fundada por Faddei Bulgárin.
Um dos veículos mais importantes da história literária da Rússia. (N. do T.)
12 Revista político-literária, editada em São Petersburgo entre 1812 e 1852. Junto com a “Abelha do
norte”, teve um papel fundamental na fundação e desenvolvimento da literatura e do pensamento político
na Rússia. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 395
qual preferência as atenções se voltaram para seu fundador, qual opinião dele se
sobrepôs a todo o resto, a que são direcionadas suas preferências, foram ou não
percebidos seu códex, de quais pessoas é preciso tirar as características para que
se destaque nele a originalidade e seja possível definir sua fisiognomia13?
Tendo lido tudo o que foi disponibilizado nesta revista, seguido por todas as
palavras ditas por eles, é involuntário ficar surpreso: o que é isso? O que motivou
essa pessoa a escrever? Nós vemos alguém que se apropria de dinheiro que não
lhe é dado gratuitamente, que trabalha incansavelmente com o suor no rosto, que
tem extremo cuidado com suas matérias, e que eventualmente corrige textos de
outros, que pode ser descrita em uma palavra: incansável. Para que afinal toda
essa atividade? Vamos analisar o editor em todos os gêneros de sua obra e iremos
dizer algumas palavras sobre as principais qualidades de suas matérias. Isso é, de
todas as maneiras, necessário.
O senhor Senkóvski atua em seu jornal como crítico, narrador, erudito,
satírico, arauto das notícias e mais e mais. Apresenta-se na forma de Brambeus14,
Morozov, Tiutiundja Olga, A. Belkin, e, por fim, como si próprio. Como erudito,
o senhor Senkóvski viabilizou uma enorme matéria sobre as sagas, matéria essa
baseada em hipóteses, não próprias, mas sequestradas exitosamente de diferentes
e mediocremente lidos livros, hipóteses absolutamente pertinentes à história da
Rússia. Tais sagas o perspicaz Shletser15, que até hoje não possui equivalentes em
força e profundidade de ponto de vista crítico, considerou como fábulas, indignas
de qualquer atenção maior; tais sagas ele coloca como pedra fundamental da história
russa sem prover qualquer evidência, sob o ponto de vista da crítica confiável: ele de
nenhuma forma atribuiu a elas uma real e contundente evidência ou sequer mérito.
As sagas são a essência da forma poética popular, com um enorme papel na histó-
ria. Esta matéria, recheada de figuras retóricas, agradou a bons, porém limitados,
leitores, e o senhor Bulgárin até mesmo escreveu uma crítica, na qual colocava o
senhor Senkóvski num patamar mais alto que Shletser, Humboldt e quaisquer ou-
tros eruditos que tenham existido. Outra evidência da extrema pretensão do senhor
Senkóvski e de sua verdadeira intenção é o Oriente. Aqui ele sempre eleva o tom
de voz, e sempre que é publicado algo sobre o Oriente, ou algo sobre o Oriente
13 Ciência que permite, através dos traços físicos da pessoa, prever o seu carácter psicológico. (N.
do T.)
14 Barão de Brambeus, um dos pseudônimos de O. I. Senkóvski. (N. do T.)
15 August Ludwig von Schlözer (1735-1809), historiador alemão que lançou as bases para a historiografia
da Rússia. E entrou em conflito com M. V. Lomonosov acerca do tema. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 397
é lembrado, ainda que seja em verso, ele encoleriza-se e sustenta que o autor não
deve julgar o Oriente, que o autor não conhece o Oriente. A palavra dita com o
coração é perdoável no homem que é apaixonado pelo seu tema e que, além de
tudo, vê o quão pouco sobre o assunto sabem os outros. Esse homem deve, afinal,
consolidar-se como autoridade no tema. O senhor Senkóvski certamente teria de
publicar algo sobre o Oriente. É difícil levar a sério a palavra de um homem que
nada fez, ainda mais quando sua argumentação é frágil e tem a alma impregnada de
impaciência; assim como em alguns de seus textos sobre o Oriente são percebidos
os mesmos defeitos que ele incansavelmente aponta nos outros. Nada de novo foi
dito nesses trechos sobre o Oriente, sequer um claro aspecto, um raciocínio em-
basado, uma formulação genial! Não se deve negar que o senhor Senkóvski tenha
evidências; pelo contrário, percebe-se que ele leu muito, mas em nenhum lugar é
percebida essa motivação, essa força cavalheiresca que o direcionaria a qualquer
que fosse o objetivo. Todas essas percepções são encontradas nele em alguma
forma efervescente, contradizendo-se umas às outras, e não sobrevivem entre si.
Analisamos suas opiniões, sobretudo aquelas que se relacionam com as correntes
atuais da literatura de belas letras. Na crítica, o senhor Senkóvski mostra ausência
de qualquer opinião, de forma que nenhum dos leitores pode dizer, provavelmente,
que a crítica lhe agradou e preencheu sua alma, que lhe atingiu os sentimentos:
nas suas resenhas não há argumentação positiva ou negativa, não há nada. Aquilo
que hoje lhe apetece amanhã lhe servirá como objeto de zombaria. Ele, de início,
colocou o senhor Kukolnik16 nas mesmas fileiras de Goethe, e ele mesmo declarou,
que o fizera isso apenas por ter chegado sozinho a tal conclusão. Deste modo, suas
resenhas não têm por objetivo convencer ou emocionar, mas simplesmente ser
uma consequência de seu estado de espírito. Walter Scott, este grande gênio, cuja
obra imortal aquece a vida com enorme amplitude, bom, Walter Scott é chamado
de charlatão. E isso foi lido pela Rússia, sobre isso falaram pessoas letradas, que já
haviam lido Walter Scott. Pode-se acreditar que o senhor Senkóvski disse isso sem
quaisquer segundas intenções, apenas por amargura, uma vez que ele nunca reflete
sobre o que fala, e, na próxima matéria, já não lembra o que fora escrito na anterior.
Em suas análises e críticas, o senhor Senkóvski também nunca comentou
sobre o caráter interno das composições escolhidas, não definiu factíveis e acurados
traços de seus méritos. Sua crítica era composta ora de elogios incondicionais, nas
quais o resenhista com toda sua alma deleitava-se com as próprias frases, infâmias
que eram proferidas com uma estranha obstinação. É composta de migalhas,
definida por três ou quatro sentenças e zombarias. Nada era dito sobre qual seria
o real objetivo do autor com a composição escolhida, como isso seria atingido e,
caso não conseguisse fazê-lo, como poderia. Acima de tudo o senhor Senkóvski
ocupava-se da análise de diferentes brigas literárias, variações de todo tipo de lite-
ratura vazia. Sobre elas, debochava, zombava e demonstrava aquela originalidade
que tanto agrada a alguns leitores. Por fim, emendou um caso inteiro sobre dois
pronomes: сейи оный17, que tanto lhe pareciam, sabe-se lá o motivo, despropo-
sitados na língua russa. Sobre essas preposições foram escritos por ele tratados
inteiros, bem como matérias, que discorriam sobre qualquer motivo indefinido,
sempre encerrando com o argumento de que essas preposições são completamente
grosseiras. Isso nos faz lembrar um velho processo de Tredyakov sobre a letra
“ijitsa”18 e das dezenas de variações do “i”, que por fim veio ganhar o apoio de
um professor. O livro, no qual o senhor Senkóvski tomou conhecimento destes
dois excertos, foi especialmente declarado como escrito com um estilo estúpido.
Suas composições próprias, contos e coisas afins, foram apresentadas sob a
assinatura de Brambeus. Tais narrativas e matérias similares a contos, a seus próxi-
mos, imitadores involuntários de quaisquer escritores franceses contemporâneos,
causaram espanto geral, graças ao fato de que o senhor Senkóvski menosprezou
toda a literatura francesa contemporânea. É inconcebível como, desta forma, ele
pode demonstrar tão pouca sagacidade e ao fazê-lo, menosprezar e tratar como
ingênuos todos os seus leitores. Também é incompreensível o motivo que o le-
vou a considerar alguns de seus textos como fantásticos. A ausência de qualquer
veracidade, verossimilhança ou caráter crível não são suficientes para caracterizar
algo como literatura fantástica. Os textos fantásticos do Barão de Brambeus nos
remetem a livros, que não nos fariam perder muito tempo lendo: “Не любо - не
слушай, а лгать не мешай”19, е outros do tipo. Tal irresponsabilidade demonstra
ainda menos compromisso com a argumentação de qualquer outro raciocínio. Os
leitores mais experientes perceberam isso como um extraordinário conjunto de
plágios, feitos às pressas, a toda velocidade: o autor mal se preocupou em conca-
tenar ideias. Tudo o que fazia sentido nos originais, nas cópias foi mostrado sem
qualquer lógica aparente.
Tais foram os trabalhos e atos do chefe da “Biblioteca para a leitura”. Nós
honrosamente precisamos mencionar sobre eles alguns aspectos, uma vez que ele
20 Nome que define o conceito de povo, língua e região dos estados medievais da Rus Kievana. Na
Europa, era conhecida como “Ruthenia”, do século 11 em diante. (N. do T.)
400 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...
21 Com a prisão dos “dezembristas”, em 1825, e a mudança da política na Rússia, o número de cola-
boradores do “Filho da pátria” caiu consideravelmente. Assim, a revista passou a ser dirigida por F. I.
Bulgárin, que acertou a fusão e colaboração com N. I. Gretch. Em 1829, as duas revistas, “Filho da Pátria”
e “Arquivo do Norte” se uniram e formaram uma só: “Filho da Pátria e Arquivo do Norte: revista de
literatura, política e história contemporânea”. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 401
não se espantar ao ler tal horrível programa, e pensar que tal edição enciclopédica
gigante foi capaz de existir. E absolutamente existiu: era impresso um magro e
deveras fino livretinho, com apenas três páginas, iniciando-se com uma matéria
sobre uma doença qualquer, algo que nem mesmo os médicos haviam lido. Um
texto crítico, que muito embora parecesse vívido e contemporâneo, não trazia em
si qualquer substância. O noticiário político consistia em fatos secos, extraídos
da “Abelha do Norte”, portanto já do conhecimento de todos. Também eram
publicados, aleatoriamente, contos originais que eram demasiadamente estranhos,
inesperadamente curtos e completamente sem colorido. Caso aparecesse algo
digno de atenção, teria passado despercebido. Os nomes dos editores Bulgárin e
Gretch figuravam apenas na página de rosto, e, definitivamente, da parte deles não
era vista nenhuma participação. Uma vez que a revista existia, pode-se dizer que
havia leitores e assinantes. E tais assinantes eram pessoas de idade e honoráveis,
que viviam nas províncias e para os quais ler qualquer coisa era tão indispensável
como tirar uma soneca após o almoço ou barbear-se duas vezes por semana.
Em São Petersburgo era ainda publicada durante todo esse tempo uma
revista puramente literária, liberta de quaisquer ciências indesejadas e informações
importantes, não política, não estatística, não enciclopédica, entusiasta de idosos,
e acima de tudo possuidora de um caráter relevante. O nome desta revista: “De-
senvolvimento literário para o inválido”22. Nela eram distribuídos contos levís-
simos, relatos de fazendeiros rurais sobre literatura, diálogos esses muitas vezes
suficientemente prosaicos, mas por vezes com locais impregnados de mordacidade,
bem próximos à verdade. O leitor, para sua surpresa, via como os fazendeiros se
tornavam praticamente literatos ao final das matérias, compreendendo de coração
a literatura contemporânea e temperando suas opiniões com alguma troça cáusti-
ca. Este almanaque sempre se mostrou como oposição, muito embora sua tática
consista unicamente em suprimir qualquer trecho que possa demonstrar alguma
leviandade jornalística e anexar, de sua parte, considerações raivosas sem muitas
delongas e com ponto de exclamação. O senhor Voeikov23 era um excepcional e
ativo pescador, e como pescador, sentava com a vara à beira do rio, sem perder
a paciência, muito embora em sua vara aparecesse na maior parte das vezes um
peixe miúdo. O editor mantinha patente uma vida estritamente literária, e o mes-
22 Revista literária e de variedades, editada em São Petersburgo entre 1831 e 1839. A tradução “Desen-
volvimento literário para o inválido” foi a opção encontrada para melhor adaptar o conteúdo do veículo
à língua portuguesa. (N. do T.)
23 Aleksander Fiodorovitch Voiéikov (1778-1839), poeta, tradutor, editor, jornalista e crítico literário.
Membro da Academia Russa. (N. do T.)
402 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...
24 Revista que trazia ilustrações sobre moda e notícias. Começou a ser editada em 1831 e, em 1832, foi
anexada à revista “Telescópio”. Seu principal nome era V. G. Belínski. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 403
листке в Библиотеке как главного ее редактора, хотя это звание, как мы уже
видели, было только почетное, и потому очень естественно, что Северная
пчела должна была хвалить всё, помещаемое в Библиотеке, и настоящего
ее движителя, являвшегося под множеством разных имен, называть
русским Гумбольтом. Но и без того она вряд ли бы могла явиться сильною
противницею, потому что не управлялась единою волею; разные литераторы
заглядывали туда только по своей надобности. Сын отечества должен был
повторять слова Пчелы. Итак, всего только два журнала могли восстать
против его мнений. Г-н Воейков показал в Литературных прибавлениях
что-то похожее на оппозицию; но оппозиция его состояла в легких заметках
журнальных промахов и иногда удачной остроте, выраженных отрывисто, в
немногих словах, с насмешкою, очень понятною для немногих литераторов,
но незаметною для непосвященных. Нигде не поместил он обстоятельной и
основательной критики, которая определила бы сколько-нибудь направление
нового журнала. Телескоп в соединении с Молвою действовал против
Библиотеки для чтения, но действовал слабо, без постоянства, терпения и
необходимого хладнокровия. В статьях критических он был часто исполнен
негодования против нового счастливца, шутил над баронством г-на
Сенковского, сделал несколько справедливых замечаний относительно его
странного подражания французским писателям, но не видел дела во всей
ясности. В Молве повторялись те же намеки на Брамбеуса часто по поводу
разбора совершенно постороннего сочинения. Кроме того, Телескоп много
вредил себе опаздыванием книжек, неаккуратностию издания, и критические
статьи его чрез то еще менее были в обороте.
Очевидно, что силы и средства этих журналов были слишком слабы
в отношении к Библиотеке для чтения, которая была между ними, как
слон между мелкими четвероногими. Их бой был слишком неравен, и они,
кажется, не приняли в соображение, что Библиотека для чтения имела около
пяти тысяч подписчиков, что мнения Библиотеки для чтения разносились
в таких слоях общества, где даже не слышали, существуют ли Телескоп
и Литературные прибавления, что мнения и сочинения, помещаемые в
Библиотеке для чтения, были расхвалены издателями той же Библиотеки для
чтения, скрывавшимися под разными именами, расхвалены с энтузиазмом,
всегда имеющим влияние на большую часть публики; ибо то, что смешно
для читателей просвещенных, тому верят со всем простодушием читатели
ограниченные, каких по количеству подписчиков можно предполагать более
между читателями Библиотеки, и к тому же большая часть подписчиков были
люди новые, дотоле не знавшие журналов, следственно принимавшие всё
412 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...
за чистую истину; что наконец Библиотека для чтения имела сильное для
себя подкрепление в 4000 экземплярах Северной пчелы.
Ропот на такую неслыханную монополию сделался силен. В Москве
наконец несколько литераторов решились издавать какой-нибудь свой
журнал. Новый журнал нужен был не для публики, т. е. для большего
числа читателей, но собственно для литераторов, различно притесняемых
Библиотекою. Он был нужен: 1) для тех, которые желали иметь приют
для своих мнений, ибо Библиотека для чтения не принимала никаких
критических статей, если не были они по вкусу главного распорядителя; 2)
для тех, которые видели с изумлением, как на их собственные сочинения
наложена была рука распорядителя, ибо г-н Сенковский начал уже
переправлять, безо всякого разбора лиц, все статьи, отдаваемые в Библиотеку.
Он переправлял статьи военные, исторические, литературные, относящиеся
к политической экономии и проч., и всё это делал без всякого дурного
намерения, даже без всякого отчета, не руководствуясь никаким чувством
надобности или приличия. Он даже приделал свой конец к комедии
Фонвизина, не рассмотревши, что она и без того была с концом.
Всё это было очень досадно для писателей, решительно не имевших
места, куда бы могли подать жалобу свету и читателям.
Но уже один слух о новом журнале возбудил негодование Библиотеки
для чтения и подвинул ее к неожиданному поступку: она уверяла своих
читателей и подписчиков с необыкновенным жаром, что новый журнал будет
бранчивый и неблагонамеренный. Статья, помещенная по этому же случаю в
Северной пчеле, казалось, была писана человеком, в отчаянии предвидевшим
свою конечную погибель. В ней уведомляли публику, что новый журнал
хотел уронить Библиотеку для чтения, потому только, что издатели оного
объявили, что будут выпускать таковое же число листов, как и Библиотека
для чтения. Поступок чрезвычайно неосмотрительный! В подобном деле
необходимо скрыть свои мелкие чувства искусно и потом, выждав удобный
случай, нанесть обдуманный удар. Если я издаю журнал, зачем же не издавать
его и другому? И как могу гневаться, если другой скажет, что он будет брать
меня в образец? Не должен ли я, напротив, его благодарить? Не показывает
ли он тем степень уважения, мною заслуженного в публике? Чем больше
соревнования, тем больше выигрыша для читателей и для литераторов.
Но рассмотрим, в какой степени Московский наблюдатель выполнил
ожидания публики, жадной до новизны, ожидание читателей образованных,
ожидание литераторов и опасение Библиотеки для чтения.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 413
духа своих противников, говорят, что статья эта писана с целию только
поддеть публику и забрать от читателей деньги, что они почитают с своей
стороны священным долгом предуведомить публику.
Итак, выходка Московского наблюдателя скользнула по Библиотеке
для чтения, как пуля по толстой коже носорога, от которой даже не чихнуло
тучное четвероногое. Выславши эту пулю, Московский наблюдатель
замолчал, - доказательство, что он не начертал для себя обдуманного плана
действий и что решительно не знал, как и с чего начать. Должно было или
не начинать вовсе, или если начать, то уже не отставать. Только постоянным
действием мог Наблюдатель дать себе ход и сделать имя свое известным
публике, как сделал его известным Телеграф, действуя таким же образом
и почти при таких же обстоятельствах. Наблюдатель выпустил вслед за
тем несколько нумеров, но ни в одном из них не сказал ничего в защиту и
подкрепление своих мнений. Чрез несколько нумеров показалась наконец
статья, посвященная Брамбеусу, по поводу одной давно напечатанной в
Библиотеке статьи, под именем: “Брамбеус и юная словесность”, в которой
Брамбеус назвал сам себя законодателем какой-то новой школы и вводителем
новой эпохи в русской литературе.
Это в самом деле было чрезвычайно странно. Случалось, что
литераторы иногда похваливали самих себя, или под именем друзей своих,
или даже сами от себя, но всё же с некоторою застенчивостию, и после
сами старались всё это как-нибудь загресть собственными руками, чувствуя,
что несколько провинились. Но никогда еще автор не хвалил себя так
свободно и непринужденно, как барон Брамбеус. Эта оригинальная статья
слишком была ярка, чтобы не быть замеченною. Ею занялся и Телескоп
и потрунил над нею довольно забавно, только вскользь; с обыкновенною
сметливостию о ней намекнул и г-н Воейков; она возродила статью и в
Московском наблюдателе. Цель этой статьи была доказать, откуда барон
Брамбеус почерпнул талант свой и знаменитость? какими творениями чужих
хозяев пользовался, как своим? другими словами: из каких лоскутов барон
Брамбеус сшил себе халат? Несколько безгласных книжек, выходивших
вслед за тем, совершенно погрузили Московского наблюдателя в забвение.
Даже самая Библиотека для чтения перестала наконец упоминать о нем, как
о бессильном противнике; продолжала шутить над важным и неважным и
говорить всё то, что первое попадалось под перо ее.
Вот каковы были действия наших журналов. Изложив их, рассмотрим
теперь, что сделали они в эти два года такого, которое должно вписаться
в историю нашей литературы, оставить в ней свою оригинальную черту;
416 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...
какие мнения, какие толки они утвердили, что определили и какой мысли
дали право гражданства.
Длинная программа, сулящая статистику, медицину, литературу,
ничего не значит. Извещение о том, что критика будет благонамеренная,
чуждая личностей и партий, тоже не показывает цели. Она должна быть
необходимым условием всякого журнала. Даже множество помещенных в
журнале статей ничего не значит, если журнал не имеет своего мнения и не
оказывается в нем направление, хотя даже одностороннее, к какой-нибудь
цели. Телеграф издавался, кажется, с тем, чтобы испровергнуть обветшалые,
заматерелые, почти машинальные мысли тогдашних наших старожилов,
классиков; Московский вестник, один из лучших журналов, несмотря
на то, что в нем немного было современного движения, издавался с тем,
чтобы познакомить публику с замечательнейшими созданиями Европы,
раздвинуть круг нашей литературы, доставить нам свежие идеи о писателях
всех времен и народов. Здесь не место говорить, в какой степени оба сии
журнала выполнили цель свою; по крайней мере стремление к ней было
чувствуемо в них читателями. Но рассмотрите внимательно издававшиеся в
последние два года журналы; уловите главную нить каждого из них: сей-то
нити и не сыщете. Развернувши их, будете поражены мелкостью предметов,
вызвавших толки их. Подумаете, что решительно ни одного важного события
не произошло в литературном мире. А между тем:
Referências
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VINOGRADOV, V. V. Slovar’ iazika Puchkina v 4 tomah. Azbukovnik, 2000.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 421
Edelcio Americo1
Resumo: O objetivo do presente trabalho é trazer duas traduções do russo para o português: Notas petersburgue-
sas, escrita por Nikolai Gogol em 1836, e Dois caráteres, irmão e irmã, de 1841, escrita por Mikhail Zagóskin.
Palavras-chave: tradução literária; literatura russa.
1 Doutor em Letras – Russo pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Contato: [email protected].
2 TOPOROV, Vladimir. Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski em relação aos esquemas arcai-
cos do pensamento mitológico (O struktúre romana Dostoiévskogo v sviaí s arkhaítcheskimi skhiémami
mifologuítcheskogo mychliénia). In: Mito, ritual, símbolo, imagem (Mif, ritual, símvol, óbraz). Moscou: Progress,
1995, p. 193-258.
422 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
Moscou, nesse caso, tem que ser considerada o membro líder da compara-
ção, pois a imagem de Petersburgo no “texto de São Petersburgo” se forma,
em muito, como um anti-modelo mitologizado de Moscou. Se trata da
característica mais importante, espacial, que combina os traços de diacronia
e de sincronia e que possui uma saída para as outras esferas (inclusive para a
esfera ética). O espaço de Moscou (corpo) contrapõe-se a Petersburgo e seu
espaço como algo orgânico, quase natural (daí a abundância das metáforas
vegetais nas descrições de Moscou), que apareceu por si mesmo sem vontade
de ninguém, sem planos, sem intervenção em oposição ao não-orgânico,
artificial, somente “cultural”, chamado à vida por uma vontade violenta, de
acordo com um esquema pensado, um plano, uma regra. Essa é a origem de
uma concretude especial e de uma realidade terrestre de Moscou, diferente
da Petersburgo abstrata, exagerada, fantasmagórica, “inventada”.4
3 TOPOROV, Vladímir, São Petersburgo e “o texto de Petersburgo” da literatura russa. In: O texto de
Petersburgo da literatura russa. São Petersburgo: 2003, p. 22-23.
4 Idem, p. 20-21.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 423
incorreto dizer que, nessa relação, a Moscou foram atribuídas apenas qualidades
positivas, enquanto São Petersburgo recebeu só negativas. Ambas as cidades foram
marcadas tanto positiva quanto negativamente:
5 Idem. P. 16.
6 IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorítcheskom dvijénii).
In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro et Contra Moskvá – Peterburg). Moscou: RGKHI, 2000, p. 10.
424 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
7 IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorítcheskom dvijénii).
In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro et Contra Moskvá – Peterburg). Moscou: RGKHI, 2000, p. 11.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 425
...Vejam só onde foi parar a capital russa, no fim do mundo! Como é estra-
nho esse povo russo: a capital era em Kiev, lá era quente demais, fazia pouco frio;
a capital mudou para Moscou, não, lá também fazia pouco frio: que Deus nos dê
São Petersburgo! A capital russa aprontará uma daquelas ao se avizinhar do Polo
Norte. Digo isso pois ela está salivando para ver os ursos brancos de perto. “Correr
para setecentas verstas longe da mãezinha! Mas que ágil!”, diz o povo moscovita,
apertando os olhos para o lado finlandês. Em compensação, que barbárie que há
entre a mãezinha e o filhinho! Que vista, que natureza! O ar repleto de neblina;
na terra pálida, cinza e verde, cepos queimados, floresta de abetos, barrancos...
Ainda bem que a estrada voa como uma flecha e as tróicas tilintantes o levarão
embora em um instante. E que diferença, mas que diferença entre esses dois! Ela
ainda é uma barba russa, ele já é um alemão asseado. Como se estendeu, como se
ampliou a velha Moscou! Como ela está despenteada! Como se juntou, como se
retesou o janota Petersburgo! Diante dele há espelhos por todos os lados: aqui está
o Nevá, ali o Golfo da Finlândia. Ele tem onde se olhar. É só ver uma pluminha
ou sujeirinha, que no mesmo instante segue um piparote. Moscou é uma velha
caseira, faz panquecas, olha de longe e escuta histórias sobre o que acontece no
mundo sem se levantar das poltronas; Petersburgo é um rapaz desembaraçado,
nunca fica em casa, sempre está bem vestido, passeia na fronteira e se enfeita para
a Europa, a qual vê, mas não ouve.
Petersburgo se mexe inteiro, das adegas até os sótãos; à meia-noite começa
a assar pães franceses que amanhã comerá o povo alemão, e a noite inteira brilha
8 O ensaio Notas petersburguesas de 1836 foi publicado pela primeira vez na revista Sovremiénnik, em 1837,
volume VI.
426 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
do seu nariz, cava mais um piso para instalar embaixo uma loja de vinhos e coloca
o ponto de cocheiros bem na porta da sua casa. Moscou não olha para os seus
moradores e manda mercadorias para toda a Rússia; Petersburgo vende gravatas
e luvas para os seus funcionários. Moscou é uma grande galeria de lojas; Peters-
burgo é um mercado iluminado. A Rússia precisa de Moscou; Petersburgo precisa
da Rússia. Em Moscou é difícil encontrar um botão de brasão10; em Petersburgo
não existe casaca sem botões. Petersburgo gosta de zombar de Moscou, do seu
mau gosto, por ela ser desajeitada e deselegante; Moscou cutuca Petersburgo por
ele ser um homem venal e não saber falar o russo. Em Petersburgo, na Avenida
Niévski, passeiam, às duas horas, pessoas que parecem ter saído das ilustrações
de jornais de moda; nas janelas, até as velhas têm cinturas tão finas que chega a
ser engraçado; em Moscou, na rua sempre é possível encontrar uma tiazinha com
lenço na cabeça e já sem cintura alguma. Eu diria ainda mais algumas coisas, mas...
A distância é enorme!11
Николай Гоголь
10 Botão de brasão: botões de casaca que eram uma espécie de cartão de visita tanto dos militares como
dos funcionários, e apenas a nobreza com direito ao título hereditário podia utilizá-los.
11 Aqui Gógol cita as palavras de Skalozub, um dos protagonistas da peça Górie ot umá de Aleksandr
Griboiédov: Onde é possível encontrar uma capital como Moscou? A distância é enorme.
428 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
Irmão e Irmã12
Caso vocês não os conheçam pessoalmente, decerto já ouviram falar deles.
Sem essa certeza eu não estaria aqui descrevendo esses dois caráteres, nos quais
não há nada de significativo e especial a não ser certa estranha oposição, apesar
de nos referirmos não a irmãos de criação ou primos, mas a irmãos de sangue, ou
seja, nascidos de uma mesma mãe. A educação dada a ambos foi igual, pelo menos
tiveram o mesmo professor; uma pessoa muito inteligente, um pouco severa, é
verdade, porém imparcial e amiga de verdade. Quando começou a ensiná-los, o
irmão era um bebê, enquanto a irmã já era uma jovem; o irmão vivia com ele em
um quarto, enquanto a irmã vivia em seu próprio cômodo; dessa forma, entende-
12 O artigo Dois caracteres foi publicado pela primeira vez na revista Moskvitiánin, em 1841, parte 2,
No 2.
430 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
-se que o professor passava mais tempo com seu aluno do que com sua aluna, do
que concluíram que ele amava mais o irmão, porém isso é uma completa calúnia.
Mas não é essa a questão.
Já lhes contei que a irmã era bem mais velha que o irmão, e, portanto, não
é de se admirar que na aparência eles fossem diferentes um do outro: ele é um
rapaz jovem, enquanto ela é uma senhora; ele não tem sequer uma ruga na face, e
ela, coitada, por mais que se maquie, avermelhe as bochechas ou pinte os cabelos,
os cachos grisalhos aparecem mesmo assim por debaixo do chapéu da moda. O
maninho tem aparência bela e jovial, arrumado, sempre em posição de sentido,
esbelto, aprumado, com cinto apertado, dando ao corpo forma de um cálice,
abotoado com todos os botões; a irmã, ao contrário, é uma senhora avantajada
e corpulenta, mantém-se bastante desleixada, gosta de fazer caretas, não suporta
nenhuma imposição, anda com roupa desabotoada e, como uma bela e mimada
concubina do harém, fica se espreguiçando o dia todo em seus travesseiros de
pluma de ganso. Entretanto, não podemos deixar de ser justos com ela: ela é mestre
em escolher suas posições e dar a elas uma graciosidade singular. Conheço muitos
que gostam bem menos dos movimentos corretos e das poses estéticas do irmão,
do que da maneira descuidada e modos pouco europeus da irmã.
O irmão anda muito a pé, não tem medo do aperto e gosta de viver no alto:
ele não se assusta com escadas, nem as de duzentos degraus. É difícil encontrar uma
pessoa que aprecie tanto limpeza e asseio quanto ele. Da mesma forma ele gosta
em excesso de uniformidade e simetria: caso um lado do colarinho de sua camisa
estiver aparecendo meio verchok13 debaixo da gravata, podem ter certeza de que do
outro lado não aparecerá nem um centímetro a mais ou a menos. Quando a velha
moda de usar dois relógios voltar, seguida pelos extravagantes móveis Rococó,
ele, sem dúvida alguma, será o primeiro a aparecer usando dois relógios, para que
do lado esquerdo do seu colete esteja pendurada uma corrente com chave, assim
como do lado direito. No geral ele é muito elegante e no inverno veste moda leve,
possivelmente porque na Itália e na França ninguém use casacos de pele de urso.
Mesmo com um frio intenso ele prefere deixar as orelhas congelarem a usar o
nosso gorro russo junto com seu chapéu europeu arredondado.
A irmã não gosta de andar a pé nem de andar em carruagem puxada por
dois cavalos a tal ponto que até mesmo à missa em sua paróquia não vai de outra
forma a não ser em carruagem puxada por quatro cavalos. Ela decididamente
não consegue viver no aperto; ela precisa de muito espaço, ou seja: de uma casa
só que pelo valor mais barato possível. Pelo último item não há como julgá-la: de
que modo ela poderia competir com o irmão! E eis o que é estranho: se ela mesma
sente que não pode esbanjar dinheiro como o irmão, então por qual motivo quer
que a divirtam, assim como divertem ao seu irmão? Pois ela é uma senhora russa
e deveria conhecer o antigo provérbio: “vive-se de acordo com as posses”. O ir-
mão, assim como todas as pessoas ricas, gosta que o entretenham com novidades;
entretanto, não faz pouco caso do antigo, quando é bom. A irmã não tolera nada
que seja velho: sempre tem que ter algo novo. É tão leviana, que não dá nem para
falar! Hoje ela gosta de uma coisa, amanhã de outra; por exemplo, certa vez ela
colocou na cabeça que iria gostar do teatro francês até a morte e simplesmente
perdeu o juízo. “Quero o teatro francês! Não posso viver sem o teatro francês!” Fez
um escândalo e tanto! “Eu não me importo com dinheiro! Não me arrependerei
de nada: colocarei até o meu último bem na casa de penhor, quero apenas o teatro
francês!” E seja qual for o teatro francês a irmã se encanta: “Que perfeição! Que
talento! Que canto harmônico! Simplesmente uma maravilha!” Ela vai então ver
teatro francês uma vez, outra, uma terceira vez, e depois disso não aparece nunca
mais! Claro que isso não era difícil de prever, porque a minha senhora é russa, e
isso ela faz só para se gabar e fingir-se de francesa; mas o difícil é explicar como,
segundo as palavras dela, o teatro russo pode ser tão ruim, e o teatro francês ser
tão maravilhoso, a ponto dela se divertir só com ele! O que vocês acham disso?
Chegava a ferir as pernas de seus lacaios de tanto enviá-los, todos os dias, atrás
de bilhetes para o teatro russo, por outro lado, não queria sequer dar uma olhada
no teatro francês; e que traquinagem; ela jurava a todos que não frequentava mais
o teatro francês por não conseguir camarotes; mas há muitos diretores e é bem
provável que o próprio diretor conseguisse um para ela.
O irmão é uma pessoa calada, não diz sequer uma palavra em vão; já a irmã
é uma tagarela, Deus me livre! E se a conversa for sobre notícias, “se não gosta
não ouça”: o fulano casou, ciclano morreu e o terceiro subiu de classe; e se não
aconteceu nada, então não interessa! E como depois disso não desculpar o irmão
por ele às vezes fazer piadas de sua irmã mais velha? Porém, tenho certeza de que
ele a ama e respeita de verdade, e a amaria e respeitaria ainda mais se a conhecesse
mais de perto. Me esqueci de mencionar que eles sempre vivem separados. A irmã,
é lógico, tem seus defeitos; mas em compensação é uma mulher tão cordial, hos-
pitaleira e de bom coração, que, apesar de todas as suas estranhezas e caprichos, é
impossível não amá-la. Posso dizer por mim mesmo: uma vez a conhecendo, de
modo algum se quer ficar longe dela.
Tanto o irmão, quanto a irmã sofreram com grandes desgraças, só que
nisso os fatos não tiveram nenhuma relação. O irmão sempre sofreu com a água,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 433
enquanto a irmã sofreu com o fogo. Certa vez ele se afundou nas águas, enquanto
ela, umas quatro vezes, por pouco não morreu nas chamas; é verdade que, da última
vez, ela mesma ateou fogo em sua própria casa; eu mesmo fui testemunha disso.
Vocês já sabem que ela é muito leviana e crédula; por exemplo, alguns ga-
barolas disseram a ela sabe deus o que sobre um monsieur, diabrete e desordeiro,
que ele era amável, bondoso e educado! Minha senhora ficou maluca, delirou por
ele dia e noite. Esses rumores chegaram até ele. É preciso dizer que esse monsieur
é uma pessoa cheia de amor-próprio e se considera o melhor de todos. Eis que
ele colocou na cabeça que a nossa senhora se apaixonou por ele completamente:
já haviam dito a ele que se tratava de uma mulher rica, de posse; dessa forma,
não é de se admirar que os olhos desse monsieur brilharam quando o assunto foi
a riqueza dela: “Espere!” - disse ele; “A visitarei! Não é perto, mas eu tenho um
bom cocheiro, chegarei logo. Ela, é claro, correrá ao meu encontro e se atirará em
meu pescoço; prometerei mundos e fundos, farei vários gracejos e me derreterei e
direi, ao me despedir: Senhora! Eu estou feliz com você! Minha espera foi recom-
pensada, eu a amo! E assim por diante.” Mas nada disso! O monsieur na verdade
chegou ao pátio dela rápido demais, aguardou, aguardou e não a encontrou, então
ele, sem ser anunciado, foi para o cômodo. Meu Deus! Como isso enfureceu a
senhora. “Como você se atreve? Quem lhe deu permissão? Por um acaso eu lhe
convidei? Ah, seu insolente!... Fora daqui, já!” Qualquer outro ficaria envergonha-
do, mas esse monsieur era um cabeça-dura; ele já estava acostumado a perambular
por propriedades alheias. Apesar do aborrecimento pelo fato de o receberem
com tanta indelicadeza, ele, mesmo assim, decidiu hospedar-se por lá. Vestiu um
roupão, ajeitou seu gorro e se acomodou na casa dela como se lá fosse sua própria
casa. “Já que é assim, – disse a senhora, meu amigo, eu o enxotarei!” – Ela então
chamou a estaroste Vassilíssa e a ordenou municiar todas as criadas com o que tivesse
à mão: vassoura, atiçador, e assim, ela mesma ateou fogo em sua própria casa e se
escondeu. O monsieur não apreciava nem um pouco o nosso inverno russo, e com
o fogo da mesma forma ele também não se deu. Eis que quando ele percebeu
que o queriam assar vivo saiu correndo! E então o atacaram dos esconderijos!
Ele até tentou mostrar as garras; em vão! Não deixaram o rapaz voltar a si!
Monsieur, pernas pra que te quero! E no seu encalço, no encalço, apenas a cabeça
ficou intacta, já os quadris estavam tão machucados que ele, de maneira alguma
conseguiria se arrastar até sua casa, se as pessoas de bom coração não o tivessem
levado de trenó. Sem dúvida alguma, essa atitude heroica e a abnegação de nossa
senhora foram descritos em prosa e verso em periódicos, mas ela, minha flor, de
modo algum se orgulhava disso, e sequer guardava rancor, tanto que, logo após
o ocorrido que a fez passar o monsieur, ela lhe enviou um cartão e ordenou que
434 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo
«Два характера»
лучше всех на свете. Вот он и вообразил, что наша барыня влюбилась в него
по уши: ему же сказали, что она женщина богатая, что у нее всего много;
так не диво, что у этого мусье глаза разгорелись на ее богатство: «Постой, -
сказал он, - отправлюсь к ней в гости - оно не близко, да у меня лихой ямщик,
разом доставит. Она, разумеется, выбежит навстречу, кинется мне на шею; я
наговорю ей с три короба всяких комплиментов, облуплю как липку и скажу
ей на прощанье: Барыня! я доволен тобою! Ты оправдала мое ожидание - я
люблю тебя! - и прочее, и прочее». - Да, как бы не так! - Вот мусье в самом
деле шасть к ней на двор, подождал, подождал - встречи нет; он без доклада
и в комнату. - Батюшки! как взбеленилась моя барыня. - «Да как ты смел? - Да
кто тебе позволил? - Да разве я звала тебя в гости?.. Ах ты, наглец!.. Сейчас
со двора долой!» - Другому стало бы совестно, а у этого мусье медный лоб;
да он же и привык по чужим дворам шататься. Хоть и досадно было, что
его приняли так неласково, а он все-таки решился у нее погостить, надел
халат, натянул колпак и расположился у нее, как в своем доме. - «Так-то, -
сказала барыня, - так я же тебя, дружок, выкурю!» - Она призвала старостиху
Василису, приказала ей снарядить всех дворовых девок чем ни попало: кого
метлой, кого кочергою, а сама подсунула в дом огоньку и притаилась за
углом. Мусье очень не жалует нашего русского мороза, да ведь и огонь-то
не свой брат. Вот как он догадался, что его хотят живого изжарить - скорее
вон! А тут из засады на него и высыпали, да ну-ка его обрабатывать! - Он
было огрызаться, - куда! Не дали молодцу образумиться! Мусье давай бог
ноги! - А его вдогонку-то, вдогонку, - только одна голова и уцелела, а бока
так отломали, что он, сердечный, никак бы до дому не дотащился, если б
добрые люди его на салазках не довезли. Разумеется, этот геройский поступок
и самоотвержение нашей барыни расхвалили в газетах, описали и в прозе, и
в стихах, но она, моя голубушка, вовсе этим не возгордилась, и даже так была
не злопамятна, что очень скоро после обиды, которую ей сделал этот мусье,
отправила к нему визитную карточку и велела спросить о здоровье. - Все это
весьма похвально; а вот за что нельзя ее похвалить: давно ли, кажется, она,
по милости этого буяна, вконец было разорилась - а поверите ли?.. опять
уж в него влюблена или прикидывается, что ль, влюбленною - бог ее знает!
Только как она теперь ни кокетничай, а уж мусье другой раз на бобах не
проведешь! - Чай, он думает про себя: «Нет, madame, шутишь! Полно глазки-
то делать: знаем мы тебя! - Что? По-прежнему стал миленьким? - И человек-то
я образованный, и сам-то я просвещен, и других всех просвещаю - и то и се;
а попробуй - сунься! Так ты опять ухватом иль кочергою!»
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1841
Referências
IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorí-
tcheskom dvijénii). In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro ET Contra Moskvá – Peterburg).
Moscou: RGKHI 2000.
TOPOROV, Vladimir. Petersburgo e o texto de São Petersburgo da literatura russa
(Peterburg i peterbúrgskii tekst rússkoi literatury). In: Texto petersburguês da literatura russa
(Peterbúrgskii tekst rússkoi literatury), São Petersburgo: Iskusstvo, 2003.
____. Mito, ritual, símbolo e imagem, (Mif, Ritual, Símvol, Óbraz), Moscou, 1993.
____. O texto de São Petersburgo da literatura russa (Peterbúrgskii tekst rússkoi literatury), São
Petersburgo, 2003.
____. Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski em relação aos esquemas arcaicos
do pensamento mitológico (O struktúre romana Dostoiévskogo v sviaí s arkhaítcheskimi
skhiémami mifologuítcheskogo mychliénia). In: Mito, ritual, símbolo, imagem (Mif, ritual, símvol,
óbraz). Moscou, 1995. p. 193-258.
440 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
Resumo: Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818 – 1883), um dos principais autores russos do século XIX, tem seu
ápice com a publicação de Pais e Filhos (1862), considerado, hoje, um dos clássicos da literatura mundial. Escrito
por volta de 1846, o conto o “O Judeu”, publicado, anonimamente, pela primeira vez na revista O Contemporâneo
em 1847; traz a figura do judeu em relação ao russo exemplar, contrapondo aspectos físicos e morais, tendo como
protagonista o estereótipo de um judeu sórdido, explorando o antissemitismo existente no Império Russo.
Palavras-chave: Literatura Russa; Ivan Turguêniev; O Judeu.
Abstract: One of the most important Russian authors from the 19th century, Ivan Sergeevich Turgenev (1818 –
1883) reaches the greatest point of his career with the publication of Fathers and Sons (1862), which is considered
as part of the world literature’s classics until today. Published, anonymously, in 1847 on the periodical The Con-
temporary; in this short story the character of the jew, an greedy jewish stereotype, is compared to the ideal Russian
man, creating an opposition between their moral and physics characteristics; as well as revealing the antisemitism of
the Russian Empire.
Keywords: Russian Literature: Ivan Turgenev: The Jew.
1 No original Жид (Jid), palavra usada de forma pejorativa para chamar um judeu.
* Aluna de Língua e Literatura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (Email: [email protected]). A tradução
do conto Jid (O Judeu), de Ivan Turguêniev, foi realizada em nível de Iniciação Científica, sob a orientação
do professor doutor Mario Ramos Francisco Junior. (Email: [email protected])
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 441
gostávamos e respeitávamos muito Nikolai Ilítch por sua benevolência, bom senso
e indulgência para “entre nossos jovens irmãos”2, sua sinceridade, o olhar sábio,
o sorriso dócil, viril e a voz potente; tudo nele era agradável e atrativo.
– Pois, ouçam então – começou ele. – O fato ocorreu no ano de 1813,
nos arredores de Danzigue3. Naquele tempo eu servia em E… no regimento de
couraças e, recordo-me, acabava de ser promovido a alferes de cavalaria. Era uma
ocupação divertida, com combates e marchas, coisa boa, mas o destacamento
era muito tedioso. Sentávamo-nos outrora, todo o santo dia, em algum leito, sob
a tenda, na imundície ou na palha e jogávamos cartas da manhã até à noite. E
era contra o tédio que íamos assistir o voo das bombas ou das balas incandes-
centes. No começo, os franceses nos distraíam com ataques-surpresa, mas logo
aquietavam-se. Cavalgar sobre a forragem também aborrecia; em suma, éramos
atingidos por tal melancolia, apesar do bramido. Eu, então, acabara de completar
dezenove anos; era um rapaz sadio, corado, que pensava apenas em me divertir
com os franceses e com… bem, vocês entendem… ia tudo desta maneira. Para
me distrair, pus-me a jogar. Uma vez, depois de uma terrível derrota, eu tive
sorte, e ao amanhecer (nós jogávamos durante a noite) eu terminei ganhando
muito. Extenuado, sonolento, saí para o ar puro e sentei-me no barranco. Era
uma linda e silenciosa manhã; longas linhas dos nossos reforços desapareciam
na neblina; eu observava tudo e, depois, sentado, comecei a cochilar. Uma tosse
cuidadosa me acordou; abri os olhos e avistei diante de mim um judeu de apro-
ximadamente quarenta anos, num kaftan4 cinzento de abas longas, sapatos e de
solidéu5 preto. Este judeu, vulgo Guirchel, volta e meia vagueava pelo nosso
acampamento, sugeria-se aos poucos, dava-nos vinho, mantimentos e outras
ninharias; ele não era muito grande, meio magro, sarapintado, ruivo, piscava
constantemente com seus também ruivos olhinhos, seu nariz era curvo e longo
e tossia o tempo todo.
Começou a dar voltas diante de mim e a me cumprimentar humildemente.
– Bem, o que deseja? – perguntei a ele, por fim.
– Ah assim6, vim saber se eu não posso fazer alguma coisa para o honrado
homem…
– Não preciso de você; vá embora.
– Como queira, como lhe for melhor… Eu pensei que, pode ser, talvez
qualquer coisa…
– Estou farto de você; vá, ande.
– Pois bem, pois bem. Com licença honrado senhor, venho felicitar pela
vitória no jogo…
– E como você sabe disso?
– Como eu não saberia… Foi um grande prêmio… grande… Oh! Que
grande…
Guirchel abriu os dedos e meneou a cabeça.
– Mas qual o sentido – disse eu com irritação –, por que diabos haveria
algum dinheiro aqui?
– Oh! Não fales, honrado senhor; ai, ai, não fales assim. O dinheiro é uma
coisa boa; sempre é necessário, tudo é possível conseguir com dinheiro, honrado
senhor, tudo! Tudo! Dê-lhe somente uma ordem e ele conseguirá tudo para você,
vossa honra, tudo! Tudo!
– Chega de mentir, judeu.
– Ai! Ai! – repetiu Guirchel, agitando suas suíças. – Vossa honra não acre-
dita em mim… ai… ai… ai… – O judeu fechou os olhos e lentamente moveu a
cabeça para a direita e para a esquerda… – E eu sei em que posso servi-lo, senhor
oficial… Sei… Sei mesmo!
O judeu adotou um aspecto muito caricatural.
– Sabe mesmo?
O judeu olhou com medo, depois inclinou-se para mim.
– Uma mulher tão bela, honrado senhor, tão bela!… – Guirchel novamente
fechou os olhos e franziu os lábios. – Honrado senhor, dê a ordem… O senhor
mesmo vai ver… O que eu vou falar agora e o senhor irá escutar… O senhor
não vai acreditar… É melhor ordenar que eu lhe mostre… É isso mesmo, é isso!
Eu fiquei calado e olhei para o judeu.
6 No original, o judeu acrescenta s no final de algumas palavras para demonstrar respeito pelo interlo-
cutor ou em sinal de auto depreciação; a partícula –c é um recurso linguístico muito usado na literatura
russa do século XIX para demonstrar respeito ou auto depreciação.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 443
– Pois bem, pois bem; bem, então eu vou mostrar ao senhor… – Aqui
Guirchel caiu na risada e de leve me deu umas palmadinhas no ombro, mas, no
mesmo instante, deu um pulo, como se tivesse se queimado.
– E então, honrado senhor, um adiantamento?
– Você vai é me enganar ou me apresentar a um espantalho qualquer.
– Ai, ai, o que o senhor está dizendo? – disse o judeu com uma emoção
descomunal e agitando os braços. – Como é possível? Mas o senhor… Honrado
senhor, então ordene que me deem quinhentas… Quatrocentos e cinquenta
vergastadas, – apressadamente ele adicionou… –Mas é o senhor quem manda…
Neste momento, um de meus companheiros levantou da extremidade da
tenda e me chamou pelo nome. E eu me levantei com pressa e joguei uma moeda
de ouro para o judeu.
– À noite, à noite – murmurou ele, depois, para mim.
Confesso a vocês, senhores, eu fiquei à espera da noite com uma certa
impaciência. Neste mesmo dia os franceses fizeram uma diligência; nosso regimento
marchou para o ataque. Teve início a noite; todos nós nos sentamos ao redor do
fogo… Os soldados fizeram uma papa. Foram conversar. Eu me deitei sobre a
burca7, bebi chá e ouvi os relatos dos companheiros. Convidaram-me para jogar
cartas e eu recusei. Estava inquieto. Aos poucos, os oficiais dispersaram-se pelas
tendas; as chamas começaram a se extinguir; os soldados também se retiraram, ou
adormeceram por ali mesmo; tudo aquietou-se. Não me levantei. Minha ordenança
estava de cócoras diante do fogo e, como se costuma dizer, “pescava”. Mandei-o
embora. Logo, todo o acampamento começou a se apaziguar. Passou-se um turno.
Substituíram as sentinelas. Eu ainda estava deitado e à espera de algo. Surgiram as
estrelas. Caiu a noite. Por muito tempo olhei para a chama que exauria… Enfim, a
última luzinha se extinguia. “Enganou-me, o maldito judeu” pensei com irritação
e ameacei a levantar-me…
– Honrado senhor… – balbuciou exatamente por sobre o meu ouvido
uma voz trêmula.
Eu olhei para trás: era Guirchel. Ele estava muito pálido, gaguejava e
balbuciava ligeiramente.
– Poderia ser na sua tenda.
Levantei-me e fui atrás dele. O judeu se encolheu todo e avançou com
cuidado pelo capim curto e úmido. Percebi ao lado uma figura imóvel, coberta.
O judeu acenou a mão para ela e ela aproximou-se dele. Ele segredou algo a ela,
dirigiu-se a mim, acenou com a cabeça algumas vezes e nós três entramos na tenda.
É engraçado dizer: eu estava ofegante.
– Aí está, honrado senhor – o judeu sussurrou com esforço – aí está. Ela
está com um pouco de medo no momento, teme; mas eu disse a ela que o senhor
oficial é uma boa pessoa, formoso… E você, não tenha medo, não tenha medo
– continuou ele –, não tenha medo…
A figura coberta não se movia. Eu mesmo estava numa terrível perturbação
e não sabia o que dizer. Guirchel também trotava em seu lugar e estendia as mãos
de um jeito estranho…
– Você, por sua parte – disse eu a ele –, saia…
Guirchel, como que a contragosto, obedeceu. Aproximei-me da figura co-
berta e silenciosamente tirei o capuz escuro de sua cabeça. Em Danzigue um fogo
ardia: através do tom avermelhado, violento e débil do reflexo do incêndio distante,
eu avistei o rosto pálido de uma jovem judia. Sua beleza deixou-me estupefato.
Permaneci diante dela e olhei-a em silêncio. Ela não levantou os olhos. Um leve
sussurro me obrigou a olhar para trás. Guirchel, com cuidado, mostrava a cabeça
por debaixo da extremidade da tenda. Eu, com irritação, acenei com o braço para
ele… ele se escondeu.
– Como você se chama? – finalmente, proferi.
– Sara – ela respondeu e, por um instante, brilhou na escuridão um esquilo,
com seus grandes e compridos olhos e seus dentes pequenos, lisos, reluzentes.
Eu apanhei duas almofadas de couro, joguei-as na terra e pedi a ela que se
sentasse. Ela despiu sua capa e sentou-se. Usava um casaco cossaco curto, com
botões entalhados de prata redondos, na abertura frontal e de mangas largas. Uma
trança espessa e negra rodeava duas vezes sua pequena cabeça; eu me sentei ao
lado dela e tomei sua mão morena e delicada. Ela resistiu um pouco, mas como se
tivesse medo de olhar para mim, respirava a custo. Eu admirava seu perfil oriental
e com timidez apertei seus trêmulos e frios dedinhos.
– Você sabe russo?
– Sei… Um pouco.
– E gosta dos russos?
– Sim, gosto.
– Então você também gosta de mim?
– Gosto do senhor.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 445
– Ouça, Guirchel, que ela venha outra vez, não vou te ofender… Só que
você, por favor, não apareça com a sua cara tola na minha tenda e nos deixe em
paz; está ouvindo?
Os olhinhos de Guirchel cintilaram.
– E então? Ela vos agrada?
– Bem, agrada-me.
– É uma beleza! Não há mulheres tão belas em nenhum lugar. E um di-
nheiro para mim, daria agora?
– Tome, mas escute: a palavra dada vale mais do que o dinheiro. Traga-a,
e que o diabo te carregue. Eu mesmo a levarei para casa.
– É impossível, não há como, é absolutamente impossível – retrucou ime-
diatamente o judeu. – Ai, Ai, é absolutamente impossível. Eu, pode ser, vou andar
por perto da tenda, honrado senhor; eu, eu, honrado senhor, vou me afastar, pode
ser, um pouquinho… Pois bem? Eu me afastarei.
– Pois bem, veja bem… Traga-a, estás ouvindo?
– É realmente uma bela mulher? Senhor oficial, hein? Honrado senhor?
Bela mulher? Hein?
Guirchel se inclinava e me olhava nos olhos.
– Ela é bela.
– Pois bem, então me dê mais uma moedinha de ouro…
Eu joguei para ele uma moeda de ouro; separamo-nos.
Enfim, o dia passou. Caiu a noite. Eu fiquei sozinho por muito tempo na
minha tenda. No pátio estava um pouco claro. Na cidade soaram as duas horas. Eu
já começava a xingar o judeu… De repente, Sara entrou, sozinha. Ergui-me de um
salto, abracei-a… Com os lábios toquei o seu rosto… Estava frio como gelo. Eu
mal podia distinguir seus traços… Eu a fiz sentar-se, ajoelhei-me diante dela, peguei
as suas mãos, toquei o seu corpo… Ela estava calada, não se movia, e de repente,
desfez-se num pranto ruidoso, numa convulsão. Eu me esforçava inutilmente em
tranquilizá-la, acalmá-la… Ela soluçava… Eu a acariciava, enxugava as suas lágrimas;
ela não se opunha como antes, não respondia às minhas interrogações e chorava,
chorava aos prantos. Meu coração deu reviravoltas; eu me levantei e saí da tenda.
Guirchel surgiu da terra, exatamente na minha frente.
– Guirchel, – disse para ele – eis o seu dinheiro prometido. Leve Sara.
O judeu imediatamente lançou-se para ela. Ela parou de chorar e se agarrou
a ele.
448 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
8 No original малороссийски, trata-se de um dialeto do russo de uma região que abarca províncias
importantes da atual Ucrânia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 449
– À noite?
– Não, senhor, de manhã.
– Preste atenção, não vá me enganar.
– Não… Não, não o enganarei.
Olhei avidamente para ela. À luz do dia ela me pareceu mais bela. Lembro-
me que fiquei surpreendido com a sua tez pálida e de âmbar e o seu cabelo negro-
azulado... Debrucei-me sobre o cavalo e apertei com força a sua pequena mão.
– Adeus, Sara… Olhe, venha então.
– Irei.
Ela foi para casa; ordenei que o sargento me acompanhasse com o desta-
camento, e parti a galope.
No outro dia levantei-me bem cedo, vesti-me e saí da tenda. A aurora era
maravilhosa; naquele instante o sol despontava, e em cada haste de erva reluzia
uma púrpura úmida. Subi no alto parapeito e me sentei na borda. Abaixo de
mim, um canhão espesso de ferro fundido, mostrava do chão sua boca negra.
Distraído, eu olhava para todos os lados... Subitamente avistei, a cem passos,
uma figura contraída em um kaftan cinza. Reconheci Guirchel. Ele ficou imóvel
por muito tempo no mesmo lugar, depois, de repente, correu um pouco para o
lado, com pressa e com medo, olhando para trás… Soltou um grito, sentou-se,
esticou o pescoço com cuidado e começou novamente a olhar ao redor e pôr-se
à escuta. Eu via com muita clareza todos os seus movimentos. Ele passou a mão
pelo peito, tirou um pedaço de papel, um lápis e começou a escrever ou desenhar
alguma coisa. Guirchel constantemente parava, estremecia como uma lebre, exa-
minava com atenção os arredores, como se copiasse nosso acampamento. Mais
de uma vez ele escondeu seu pedaço de papel, apertou os olhos, farejou o ar e
novamente começou a trabalhar. Por fim, o judeu sentou-se na grama, tirou os
sapatos, preencheu um pedaço de papel; porém, não teve tempo de endireitar-se;
de repente, a dez passos dele, do outro lado do talude da encosta, surgia a cabeça
bigoduda do furriel Siliavka e, aos poucos, soergueu-se da terra todo o corpo longo
e desajeitado do judeu. O judeu estava de costas para ele. Siliavka aproximou-se
com agilidade e colocou a sua pesada garra em seus ombros. Guirchel contraiu-se.
Tremeu como uma folha e soltou um grito doentio, como uma lebre. Siliavka,
ameaçador, começou a falar com ele, agarrando-o pelo colarinho. Eu não podia
ouvir sua conversa, mas pelos movimentos desesperados do judeu, por seu ar su-
plicante, comecei a adivinhar, do que se tratava. O judeu atirou-se duas vezes aos
pés do furriel, enfiou a mão no bolso, tirou um lenço xadrez e rasgado, desatou
450 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
9 No original моролосс, expressão que refere-se a uma região do Império Russo que abarca alguns
territórios da Ucrânia.
10 No original лазутчик (lazuttchik), ou seja, “espião”: a tradução por “infiltrado” mantém a incompre-
ensão do judeu em relação ao termo; o termo шпион (chpion), que também significa espião, foi traduzido
como tal, mantendo a diferença que há no original.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 451
– Ai! – Ele soltou um grito fraco e balançou a cabeça. – Como seria possí-
vel? Eu, nunca, de jeito nenhum. Não é possível, não há como. Estou disposto...
Eu, agora. Eu vou dar dinheiro… Vou pagar… – sussurrou e fechou os olhos.
O solidéu moveu-se de seu pescoço; os cabelos ruivos e úmidos de suor frio
pendiam em fiapos, os lábios tornaram-se azuis e crisparam-se convulsivamente,
as sobrancelhas apertavam-se, doentias, o rosto se encolheu…
Os soldados cercaram-nos. A princípio eu queria muito intimidar Guirchel
e ordenar que Siliavka se calasse, mas agora o assunto tornara-se público e não
poderia escapar da “junta de autoridades”.
– Leve-o para o general, – disse eu para o furriel.
– Senhor oficial, honrado senhor! – o judeu começou a gritar com a voz
desesperada, – não sou culpado; não sou… Mande que me soltem, mande…
– Sua excelência vai analisar – proferiu Siliavka. – Vamos.
– Honrado senhor! – o judeu começou a gritar para mim – Ordene! Tenha
piedade!
Seu apelo me atormentou. Redobrei os passos.
Nosso general era um homem de origem alemã, íntegro e bondoso, mas
um executor severo ao conduzir os seus serviços. Entrei em sua pequena casa,
construída às pressas, e em poucas palavras expliquei o motivo de minha visita.
Eu conhecia todo o rigor das resoluções militares e por isso não pronunciei a
palavra “infiltrado”, mas, sim, esforcei-me apresentar todo o acontecimento como
insignificante e não merecedor de atenção. Porém, para a desgraça de Guirchel, o
general sempre pôs o cumprimento da obrigação acima da compaixão.
– O senhor, rapaz – disse para mim – é inexperiente. O senhor ainda é
inexperiente no ofício de militar. O assunto, sobre o qual (o general gostava muito
da palavra “qual”) o senhor me informou é sério, muito sério… Onde está essa
pessoa que foi capturada? Esse judeu11? Onde está?
Eu saí da tenda e ordenei que trouxessem o judeu.
Trouxeram o judeu. O infeliz mal ficava de pé.
– Sim – proferiu o general, dirigindo-se a mim – e onde está o plano en-
contrado com este homem?
Entreguei para ele o pedaço de papel. O general desdobrou-o, recuou,
apertou os olhos, franziu o cenho.
11 No original o general utiliza еврей, que pode ser traduzido como judeu ou hebreu.
452 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
Siliavka passou pelo acampamento sem me notar e logo retornou com uma corda
nas mãos. Em seu rosto rude, mas sem sinal de raiva, transparecia uma piedade
estranha, bruta. À vista da corda, o judeu agitou as mãos, sentou-se e desfez-se
em prantos. Em silêncio, os soldados ficaram perto dele e olhavam a terra de um
jeito lúgubre. Aproximei-me de Guirchel e comecei a falar com ele; ele soluçava
como uma criança, e nem sequer olhou para mim. Acenei, fui para a minha tenda,
atirei-me sobre o tapete e fechei os olhos…
De repente, alguém entrou correndo de um modo abrupto, fazendo barulho
em minha tenda. Levantei a cabeça e vi Sara; o seu rosto não era o mesmo. Ela
atirou-se sobre mim e agarrou-me a mão.
– Vamos, vamos, vamos – ela repetia com a voz sufocada.
– Para onde? Para quê? Vamos ficar aqui.
– Até o meu pai, para o pai, rápido… Salve-o… Salve-o!
– Que pai?…
– O meu pai; querem enforcá-lo…
– Como! Será que Guirchel é…
– Meu pai… Explicarei tudo para você depois – ela acrescentou, desesperada
torcendo as mãos – Apenas vamos… Vamos…
Nós saímos correndo da tenda para lá. No campo, no caminho para a
bétula solitária, avistava-se um grupo de soldados… Em silêncio, Sara apontou
com o dedo…
– Pare – eu disse subitamente – Para onde iremos? Os soldados não vão
me obedecer.
Sara continuava a arrastar-me atrás dela… Confesso que minha cabeça
girava.
– Ouça-me, Sara – disse eu a ela – qual o sentido de corrermos para lá? É me-
lhor eu ir novamente até o general; vamos juntos; talvez, consigamos convencê-lo.
De repente, Sara deteve-se e como uma louca, olhou para mim.
– Veja se me compreende, Sara, pelo amor de Deus. Eu não posso perdoar
o seu pai, mas o general pode. Vamos até ele.
– Mas agora vão enforcá-lo – ela gemeu…
Olhei ao redor. O escrivão não estava longe.
– Ivanov – gritei a ele – desça, por favor, vá lá até eles: mande-os esperar,
diga que fui ter com o general.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 455
– Às ordens…
Ivanov pôs-se a correr.
Não permitiram que entrássemos para ter com o general. Inutilmente, pedi,
persuadi, por fim até xinguei… Inutilmente, a pobre Sara arrancava os cabelos e
atirou-se sobre os sentinelas: não nos deixaram passar.
Sara, descontrolada olhou ao redor, agarrou a cabeça com ambas as mãos
e, apressada, correu pelo campo até o seu pai. Fui atrás dela. Olhavam-nos, per-
plexos…
Aproximamo-nos dos soldados. Eles estavam em um círculo e imaginem,
senhores!, caçoavam, caçoavam do pobre Guirchel! Irrompi e gritei com eles. O
judeu viu-nos e lançou-se nos braços da filha. Sara agarrou-se a ele convulsivamente.
O pobre coitado imaginou que haviam-no perdoado… Ele já começava a
me agradecer… Dei-lhe as costas.
– Honrado senhor – começou a gritar e apertou as mãos – Eu não fui
perdoado?
Calei-me.
– Não?
– Não.
– Honrado senhor – começou a murmurar – olhe, honrado senhor, olhe…
Veja só ela, ela é uma moça sabe, ela é minha filha.
– Sei – respondi e virei-me novamente.
– Honrado senhor – começou a gritar – Não me afastei da tenda! Por nada…
– ele deteve-se e fechou os olhos por um instante… – Queria o vosso dinheiro,
honrado senhor, é preciso confessar, o dinheiro… Mas por nada…
Eu fiquei calado. Para mim, Guirchel era sórdido e ela era a sua cúmplice…
– Mas agora, se o senhor salvar-me – disse o judeu em voz baixa – Vou
mandar - Eu… compreende?.. Tudo… Eu farei de tudo…
Ele tremia como uma folha, e às pressas olhava ao redor. Sara abraçava-o
em silêncio e com paixão.
O ajudante aproximou-se de nós.
– Senhor alferes de cavalaria – disse a mim – Sua excelência mandou prender
o senhor. E você… – Em silêncio ele indicou o judeu para os soldados… – agora…
Siliavka aproximou-se do judeu.
– Fiódor Karlich – disse ao ajudante (cinco soldados chegaram com ele) –
mande ao menos levar essa pobre moça…
456 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
– Certamente. Concordo.
A infeliz mal respirava. Guirchel resmungava em seu ouvido em ídiche…
Os soldados tiraram Sara com dificuldade do abraço do pai e levaram-na
com cuidado por cerca de vinte passos de distância. Mas, de repente, ela escapou
de suas mãos e correu até Guirchel… Siliavka a conteve. Sara empurrou-o, seu
rosto cobriu-se de um leve rubor, os olhos tornaram-se brilhantes, e ela estendeu
os braços.
– Vocês, assim, serão condenados – começou a gritar em alemão – con-
denados, triplamente condenados, vocês e todas as suas gerações abomináveis,
com a maldição de Datã e Abirão12, com a maldição da pobreza, da infertilidade
e da violência, com uma morte vergonhosa! Que a terra se abra sobre os seus pés,
hereges, cães sanguinários…
A sua cabeça pendeu para trás… ela caiu sobre terra… ergueram-na e
levaram-na.
Os soldados tomaram Guirchel pelos braços. Então compreendi porque
caçoavam do judeu quando eu e Sara chegamos correndo do acampamento. Ele
estava ridículo de fato, a despeito de toda sua horrível situação. A cruel tristeza
da separação da vida, da filha, da família, expressavam-se no infeliz judeu de
forma estranha, em gestos disformes, em clamores, saltos, de tal modo que todos
nós sorríamos involuntariamente embora fosse terrível e estivéssemos muito
horrorizados. O pobre estacou de medo…
– Ai, ai, ai! – ele gritava – ai… Espere! Eu vou contar, vou contar muitas
coisas. Senhor sub-furriel, o senhor me conhece. Sou um feitor, um feitor honesto.
Não me prenda; espere mais um minuto, um minutinho, espere um insignificante
minutinho! Deixe-me ir: sou um pobre judeu. Sara… Onde está Sara? Ah, eu sei!
Ela foi até a tenda do tenente (sabe lá deus por que ele atribuida a mim tamanha
patente sem precedentes). Senhor, o alojamento do tenente! Não me afastei da
tenda. (Os soldados detiveram Guirchel por um instante… ele soltou um grito
estrondoso e esgueirou-se das mãos deles.) Vossa excelência, perdoe um infeliz pai
de família! Darei dez moedas de ouro, quinze, vossa excelência!.. (Arrastaram-no
para a bétula.) Perdoe! Tenha piedade! Senhor a tenda do tenente! Senhor conde!
Senhor, general subalterno e chefe comandante!
Colocaram no judeu um laço… Fechei os olhos e corri.
12 Os irmãos Datã e Abirão rebelaram-se contra Moisés, como castigo foram engolidos por uma fenda
que se abriu na terra abaixo deles. Antigo testamento, Livro de Números, 16.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 457
ЖИД
-- Ну, да.
-- Красавица! такой нет красавицы нигде. А денег мне теперь пожа-
луете?
-- Возьми, только слушай: уговор лучше денег. Приведи ее, да убирайся
к черту. Я ее сам провожу домой.
-- А нельзя, нельзя, никак нельзя-с,-- торопливо возразил жид. Ай, ай,
никак нельзя-с. Я, пожалуй, буду ходить около палатки, ваше благородие; я,
я, ваше благородие, отойду, пожалуй, немножко... я, ваше благородие, готов
вам служить, я, пожалуй, отойду... что ж? я отойду.
-- Ну, смотри же... Да приведи ее, слышишь?
-- А ведь красавица? господин офицер, а? ваше благородие? краса-
вица? а?
Гиршель нагибался и заглядывал мне. в глаза.
-- Хороша.
-- Ну, так дайте же мне еще червончик...
Я бросил ему червонец; мы разошлись.
День минул наконец. Настала ночь. Я долго сидел один в своей
палатке. На дворе было неясно. В городе пробило два часа. Я начинал уже
ругать жида... вдруг вошла Сара, одна. Я вскочил, обнял ее... прикоснулся
губами до ее лица... Оно было холодно как лед. Я едва мог различить ее
черты... Я усадил ее, стал перед ней на колени, брал ее руки, касался ее
стана... Она молчала, не шевелилась и вдруг громко, судорожно зарыдала. Я
напрасно старался успокоить, уговорить ее... Она плакала навзрыд... Я ласкал
ее, утирая ее слезы; она по-прежнему не противилась, не отвечала на мои
расспросы и плакала, плакала в три ручья. Сердце во мне перевернулось; я
встал и вышел из палатки.
Гиршель точно из земли передо мною вынырнул.
-- Гиршель,-- сказал я ему,-- вот тебе обещанные деньги. Уведи Сару.
Жид тотчас бросился к ней. Она перестала плакать и ухватилась за него.
-- Прощай, Сара,-- сказал я ей. Бог с тобой, прощай. Когда-нибудь
увидимся, в другое время.
Гиршель молчал и кланялся. Сара нагнулась, взяла мою руку, прижала
ее к губам; я отвернулся...
Дней пять или шесть, господа, я все думал о моей жидовке. Гиршель
не являлся, и никто не видал его в лагере. По ночам спал я довольно плохо:
464 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev
мне все мерещились черные влажные глаза, длинные ресницы; мои губы не
могли забыть прикосновенья щеки, гладкой и свежей, как кожица сливы.
Послали меня со взводом на фуражировку в отдаленную деревеньку. Пока
мои солдаты шарили по домам, я остался на улице и не слезал с коня. Вдруг
кто-то схватил меня за ногу...
-- Боже мой, Сара!
Она была бледна и взволнована.
-- Господин офицер, господин... помогите, спасите: солдаты нас оби-
жают... Господин офицер... Она узнала меня и вспыхнула.
-- А разве ты здесь живешь?
-- Здесь.
-- Где?
Сара указала мне на маленький старенький домик. Я дал лошади
шпоры и поскакал. На дворе домика безобразная, растрепанная жидовка
старалась вырвать из рук моего длинного вахмистра Силявки три курицы и
утку. Он поднимал свою добычу выше головы и смеялся; курицы кудахтали,
утка крякала... Другие два кирасира вьючили лошадей своих сеном, соломой,
мучными кулями. В самом доме слышались малороссийские восклицания
и ругательства... Я крикнул на своих и приказал им оставить жидов в покое,
ничего не брать у них. Солдаты повиновались; вахмистр сел на свою гнедую
кобылу Прозерпину, или, как он называл ее, «Прожерпылу», и выехал за
мной на улицу.
-- Ну что,-- сказал я Саре,-- довольна ты мной?
Она с улыбкой посмотрела на меня.
-- Где ты пропадала все это время?
Она опустила глаза.
-- Я к вам завтра приду.
-- Вечером?
-- Нет, господин, утром.
-- Смотри же, не обмани меня.
-- Нет... нет, не обману.
Я жадно глядел на нее. Днем она показалась мне еще прекраснее. Я
помню, меня в особенности поразили янтарный, матовый цвет ее лица и
синеватый отлив ее черных волос... Я нагнулся с лошади и крепко стиснул
ее маленькую руку.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 465
все улыбались невольно, хотя и жутко, страшно жутко было нам. Бедняк
замирал от страху...
-- Ой, ой, ой! -- кричал он,-- ой... стойте! я расскажу, много расскажу.
Господин унтер-вахмистр, вы меня знаете. Я фактор, честный фактор. Не
хватайте меня; постойте еще минутку, минуточку, маленькую минуточку
постойте! Пустите меня: я бедный еврей, Сара... где Сара? О, я знаю! она у
господина квартир-поручика (бог знает, почему он меня пожаловал в такой
небывалый чин). Господин квартир-поручик! Я не отхожу от палатки. (Сол-
даты взялись было за Гиршеля... он оглушительно взвизгнул и выскользнул у
них из рук.) Ваше превосходительство, помилуйте несчастного отца семей-
ства! Я дам десять червонцев, пятнадцать дам, ваше превосходительство!..
(Его потащили к березе.) Пощадите! змилуйтесь! господин квартир-поручик!
сиятельство ваше! господин обер-генерал и главный шеф!
На жида надели петлю... Я закрыл глаза и бросился бежать.
Я просидел две недели под арестом. Мне говорили, что вдова
несчастного Гиршеля приходила за платьем покойного. Генерал велел ей
выдать сто рублей. Сару я более не видал. Я был ранен; меня отправили в
госпиталь, и когда я выздоровел, Данциг уже сдался,-- и я догнал свой полк
на берегах Рейна.
Referências
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piatii). Moskva: Khudojestvienaia Literatura. 1977.
The jew and the Other Stories. Trad. Constance Garnett. CreateSpace, 2014.
Dicionários
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (em 5 volumes). Rio de Janeiro:
Editora Delta, 1968.
ALEKSANDROVNA, Zinaida. Slovar sinonimov russkovo iazyka. 2. ed. Moskva: Sovietskaia
Entsiklopedia, 1969. 600 p.
FELITSYNA, Vera Petrovna. Russkie frazeologizmy: lingvostranovedtcheskii slovar. Moskva:
Russki Yazyk, 1990. 221 p.
OXFORD Russian Dictionary. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2007.
VOINOVA, N. Dicionário russo – português. 2. ed. Moscovo: Edições Russki Yazik, 1989.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 473
Resumo: Apresentamos a tradução das primeiras dez estrofes do Capítulo I do romance em versos Evguêni Oniê-
guin, de Aleksandr Púchkin (1799-1837), que contou também com a colaboração inestimável do falecido Prof. Boris
Schnaiderman. No artigo ressaltamos preferências de abordagens teóricas que acabaram por influenciar as “escolhas”
da tradução, em termos de uma tentativa de reconstituição de estilo desta obra fundamental da literatura russa.
Palavras-chaves: A. Púchkin; romance Evguêni Oniêguin; tradução.
Já faz muito tempo que o estilo deixou de ser considerado apenas em termos
de seus traços linguísticos. Questões como outridade, contextualização, aspectos
psicológicos, estrangeirização, modos específicos e culturalmente limitados de
conceitualizar e exprimir sentidos, a par de modos universais de fazê-lo vieram
a fazer parte do estudo do estilo. Para Jakobson, por exemplo, o estilo era o que
definia a diferença entre textos literários e não literários.
Ele estava particularmente interessado em características que pudessem
fazer de textos obras literárias. Na verdade, tinha isso em comum com adeptos
da Nova Crítica Americana, como Cleanth Brooks, por exemplo, e proponentes
ingleses da close reading, como I. A. Richards e William Empson. Desse ângulo,
tal interesse dá a razão da predileção de Jakobson por poesia. A seus olhos, ela
parecia lhe encarnar a natureza essencial da literatura, em virtude do nexo que
apresentava – passível de observação –, entre forma e conteúdo. Ao afirmar que
1 Pós-doutor em Teorias da Tradução e Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Uni-
versidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
2 Profa. Dra. DLO/FFLCH/USP. E-mail: [email protected]
474 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo
toda língua se vale dos mesmos recursos, Jakobson considerava a linguagem literária
e, em particular, a poética, uma modalidade com um funcionamento diferente,
visto que ela fazia um uso distinto dessas mesmas fontes – um uso responsável
pela “função poética”. Segundo suas famosas verbalizações, essa função “projeta
o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação”.
Bradford (1994. p. 13), interpretando as ideias de Jakobson, acreditava que um
denominador comum em sua obra era que “a substância material do signo nunca
é inteiramente distinguível de suas propriedades significantes”. Desse ângulo, ao
se transpor o signo de uma língua para outra, suas “propriedades significantes”
seriam diferentes.
É de notar que esses argumentos implicavam a ideia da perda da unidade
entre forma e conteúdo, e, claro, a impossibilidade de “tradução”. É muito comum
se esquecer, porém, que esses mesmos argumentos acabariam sendo relativizados
num artigo de 1959, em que ele afirmava que a tradução de poesia não poderia
se dar senão por meio de “transposição criativa”. Na verdade, a explicação dessa
afirmação foi dada por ele por meio de uma menção, a propósito de um obstáculo
poético”, a São Constantino, que “opõe resolutamente o preceito de Dionísio, o
Aeropagita, segundo o qual deve-se estar atento aos valores cognitivos..., e não às
palavras propriamente ditas”:
3 O que não deixa de ser um fato curioso, já que sua própria linguística é de base indutiva e estrutu-
ralista, e, diferentemente da Estilística Cognitiva, não tem a mente humana como foco principal de suas
preocupações.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 475
4 É verdade que essas argumentações foram motivo de suspeição da parte de autores sobretudo com
orientação pós-estruturalista ou pós-modernista, que enfatizaram o que Assman (ASSMANN, 1996:, p.
85) chamou, como dissemos, de “fundamentalização da pluralidade”, para ele uma forma de respeitar a
outridade na tradução. No entanto, como tantas vezes se disse, não há nada errado com o universalismo
per se, contanto que ele venha acompanhado de a uma consciência de possíveis limitações.
476 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo
5 Uma edição de ensaios críticos de sua autoria, organizada e traduzida por Correia Neto, será lançada
em breve pela Ateliê Editorial.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 477
Capítulo I
E corre para viver e se apressa a sentir.
Príncipe Viázemski7
I I
«Мой дядя самых честных правил, Meu tio dos mais nobres preceitos,
Когда не в шутку занемог, Quando ficou doente à beça,
Он уважать себя заставил Logrou dos outros o respeito,
И лучше выдумать не мог. Sem invenção melhor do que essa.
Его пример другим наука; O exemplo sirva de lição;
Но, боже мой, какая скука Mas, meu bom Deus!, que amolação,
С больным сидеть и день и ночь, Passar com um morto-vivo hora a hora,
Не отходя ни шагу прочь! Sem nunca pôr o pé pra fora!
Какое низкое коварство Que insídia reles e que tédio,
Полуживого забавлять, Ter que entretê-lo o tempo inteiro,
Ему подушки поправлять, Lhe endireitar o travesseiro,
II II
III III
Служив отлично благородно, Após servir exímio e lhano,
Долгами жил его отец, O pai só emprestava dinheiro,
Давал три бала ежегодно Dava três bailes todo ano
И промотался наконец. E torrou o patrimônio inteiro.
Судьба Евгения хранила: A sorte guarda Evguêni Oniêguin:
IV IV
V V
12 Os refugiados da Revolução francesa de 1789 na Rússia em geral eram empregados como tutores
pelas famílias aristocráticas russas.
13 O Liétni Sad [literalmente, “Jardim de Verão”] é um parque criado pelo imperador Pedro, o Grande,
no centro de São Petersburgo à beira do rio Nievá que na época de Púchkin se tornou um lugar para os
passeios matinais de crianças.
14 Saber falar e escrever em francês impecável era uma exigência da aristocracia russa do século XIX,
por isso, o francês era a primeira língua que se ensinava aos filhos das famílias nobres.
480 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo
Так воспитаньем, слава богу, Daí, bom Deus, não ser difícil,
У нас немудрено блеснуть. Em nosso meio, o esplendor;
Онегин был по мненью многих A muitos, nosso Oniêguin era
(Судей решительных и строгих) (Aos de opinião firme e severa)
Ученый малый, но педант: Alguém versado, mas pedante:
Имел он счастливый талант Tinha o talento cativante
Без принужденья в разговоре De resvalar qualquer matéria
Коснуться до всего слегка, Com jeito, tudo sendo dito
С ученым видом знатока Com uns ares doutos de perito;
Хранить молчанье в важном споре Calava-se em conversa séria,
И возбуждать улыбку дам Fazia as damas rir com as chamas
Огнем нежданных эпиграмм. De inusitados epigramas15.
VI VI
15 Púchkin usa “epigrama” não como definição do gênero poético (saberemos que Oniêguin não possui
nenhum dom poético), mas como um comentário sarcástico.
16 A palavra epígrafe é usada aqui no sentido original do termo grego (epigrafhé), qual seja, inscrição
em prosa ou verso talhada sobre tumbas ou em outros lugares em honra a pessoas e eventos na Grécia
antiga.
17 Juvenal (c. 42-c.125 d. C.) foi um poeta romano satírico, bastante popular entre os decembristas em
virtude das denúncias que fez de despotismo e corrupção.
18 Forma epistolar latina no arremate de uma carta.
19 Poema épico de Vergílio (70-19 a. C.).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 481
VII VII
VIII VIII
Что знал он тверже всех наук, O que sabia mais do que à arte,
Что было для него измлада O que lhe fora desde o início
И труд, и мука, и отрада, Batente, júbilo, suplício
Что занимало целый день E o que ocupava cada instante
Его тоскующую лень, – De sua indolência angustiante
Была наука страсти нежной, Era a arte da paixão airosa
Которую воспел Назон, Que Naso24 decantou em loas,
За что страдальцем кончил он Por que sofreu, e então findou a
Свой век блестящий и мятежный Sua era ilustre e tempestuosa
В Молдавии, в глуши степей, Na Moldávia, na estepe densa,
Вдали Италии своей Longe da Itália de nascença.
IX IX25
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X X
24 Trata-se do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a. C.-16 d. C.), autor das Metamorfoses e do escan-
daloso poema erótico A Arte de Amar, com quem Púchkin sentia ter certa afinidade em virtude de seu
exílio: Ovídio morreu em exílio junto ao Mar Negro. Diga-se que a alusão à A Arte de Amar de Ovídio
acrescenta uma nuança pejorativa ao caráter das aventuras amorosas de Evguêni.
25 Na edição de Evguêni Oniêgui, Púchkin omitiu esta estrofe, indicando a omissão com três linhas
pontilhadas. Diga-se aliás que, ao longo do poema, as estrofes omitidas são de três tipos; as escritas e
descartadas; as que Púchkin intentava escrever mas nunca levou a cabo; e as vazadas num estilo irônico
a modo de Sterne, Byron e Hoffmann. O importante é que as estrofes omitidas deveriam ser compreen-
didas não como uma “lacuna” do texto, mas como pausas semânticas com o efeito estético de sugerir,
como ressaltou o célebre teórico do formalismo russo, Iúri Tyniánov, que o romance que se lê extrapola
a representação dessas mesmas estrofes.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 483
Referências
BRADFORD, M. Roman Jakobson: Life, Language and Art. Londres Londone Nova New
York, Routledge, 1994.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1970.
LEVINE, S. J. The Subversive. Minnesota, Graywolf Press, 1991.
ASSMANN, A. “The Curse and Blessing of Babel: or looking back on universalisms”. in “The
Translatability of Cultures: figurations of the space between”, Sanford Budick e Wolgang
Iser (orgs.), Stanford University Press, 1996.
484 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
Marina Darmaros
1 – Conte-nos um pouco sobre sua trajetória e como começou nos Estudos da Tradução russos.
Foi um caminho difícil nos Estudos da Tradução voltados especificamente para a realidade
russo-soviética?
2 Totalitarianism and Translation: Control and Conflict in Soviet Translation Practices, 1932-1953.
3 The art of accommodation: The First All-Union Conference of Translators.
486 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
4 Termo utilizado para designar um cavalo mantido na estalagem para mensageiros e carruagens de
correio ou para aluguel a viajantes (Dicionário Collins. Acesso em 07/02/2018 https://www.collinsdic-
tionary.com/pt/dictionary/english/post-horse). (N. do T.)
5 Pushkin’s Post Horses: Literary Translation in Russian Culture.
6 Contexts, Subtexts and Pretexts: Literary Translation in Eastern Europe and Russia.
7 The Art of Accommodation: Literary Translation in Russia (eds. Leon Burnett and Emily Lygo)
8 Translation in Russian Contexts: Transcultural, Transliteral and Transdisciplinary Points of Departure.
9 Brian James Baer, and Susanna Witt (eds.), Translation in Russian Contexts: Culture, Politics, Identity,
London: Routledge, 2018
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 487
3 – Quais são os principais pesquisadores desta área na atualidade, na sua opinião? E quais
textos você considera canônicos e recomenda a alguém que tenha já alguma base em Estudos da
Tradução, mas queira enveredar pelos Estudos da Tradução Russos? Que conselhos você daria
a alguém iniciando seu caminho nos Estudos da Tradução Russos?
Meu conselho a quem “estiver trilhando seu caminho nos Estudos da Tra-
dução russos” seria, talvez, manter-se atento ao fato de que a tradução na Rússia
sempre foi “mais que tradução” (para parafrasear o dito popular na Rússia de
que “um poeta é mais que um poeta”): já que a tradução é a manifestação física
de um encontro com “o estrangeiro”, ela sempre foi uma atividade sensível em
uma sociedade que foi frequentemente informada por suspeita e se resguardou
ao longo da história com regulamentações de viagem e coisas similares. Um local
de negociação, contestação e resistência, a tradução russa sempre tem que ser
contextualizada para poder ser conceituada. Isto, claro, diz respeito à tradução
em geral, mas talvez seja ainda mais importante aqui.
4 – Em muitas de suas obras, você estuda casos que envolvem linguagens em que não é nativa,
ao que me parece (como nas traduções de Djambul ou Pasternak de dialetos lequíticos etc.).
Como você escolhe os casos que pesquisará, presumindo que a barreira da língua pode ser maior
neste sentido?
23 Em russo, o vocábulo tem sentido de tradução literal, palavra a palavra. (N. do T.)
490 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
5 – Você poderia pontuar algumas das características peculiares aos Estudos da Tradução Russos
que o diferem dos estudos em outras linguagens e realidades? “Literalismo”, “tradução livre”,
“tradução realista”, “naturalismo”, “tradução realista” são, sob meu ponto de vista, caracterís-
ticas desconhecidas por muitos pesquisadores que não se concentram na área russa desses estudos,
você concorda? Você poderia pontuar também alguns dos casos mais interessantes em Estudos
da Tradução russos em sua opinião? Em suas pesquisas, você cita o caso da pseudotradução
de Maimbet, ou a breve discussão iniciada por Gideon Toury sobre o caso Djambul como um
exemplo de “planejamento cultural”... Você poderia falar um pouco sobre isto?
Você tem razão, é claro que essas noções não são exclusivamente russas
(exceto, talvez, pela “tradução realista”, que, ao que eu saiba, não foi conceituada
em nenhum outro lugar). Mas uma característica distintiva do contexto soviético
é a idealização da norma, ligando determinadas abordagens da tradução a posições
ideologicamente repreensíveis e definindo os limites do discurso da tradução. É
preciso lembrar que, em certos períodos, essas questões não eram puramente
acadêmicas, e podiam mandar as pessoas aos campos de trabalhos forçados.
Gideon Toury (2005) foi o primeiro a trazer Djambul, o bardo cazaque do
estalinismo, à pesquisa acadêmica ocidental da tradução. Mas sua única fonte para
teorizar o que ele chamou de pseudotradução neste caso foram as memórias do
compositor Dmítri Chostakóvitch, um texto que é um pouco controverso em si
mesmo. Não oficialmente, no contexto soviético, o caso Djambul também foi um
tratamento mais completo como indicador das práticas soviéticas de tradução e
atitudes quanto à tradução em um contexto imperial. No processo, descobri alguns
casos similares em que poetas das “nacionalidades”24 publicados principalmente
em traduções russas eram promovidos a representantes de suas literaturas nativas
24 As diversas etnias encontradas na Rússia são chamadas, até hoje, de “nacionalidades” (natsionálnasti)
dentro do país. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 491
para serem incluídos no cânone soviético. É a isto que eu, usando o conceito de
Toury e até de Even Zohar de “planejamento cultural”, refiro-me como “plane-
jamento cultural de baixo”, já que os próprios tradutores (russos) eram frequen-
temente instrumentais em publicar esses textos. O caso de Maimbet é extremo
porque não apenas não havia textos originais, mas tampouco havia um poeta
original. Esta figura cazaque foi lançada em 1935 por um jornalista local russo
em Alma-Ata. As traduções dele de Maimbet apareceram até no jornal central
Pravda, acompanhadas de uma foto do bardo, um homem típico da Ásia Central
com seu tradicional instrumento de cordas. Naquele tempo, havia uma grande
demanda (criada de cima) por poetas “das nacionalidades” para representar suas
repúblicas em festivais culturais nas maiores cidades russas. Assim, o jornalista
foi abordado pelas autoridades, que pediam que ele trouxesse seu poeta a Mos-
cou para o festival cazaque, em 1936. Sua solução para o problema foi anunciar
que Maimbet, membro de uma família nômade, havia cruzado a fronteira para a
China e ficado por lá. O status imaginário de Maimbet foi confirmado em uma
carta de denúncia dos colegas do jornalista na união dos escritores local, que
encontrei nos arquivos. O mesmo jornalista tornou-se, então, um dos principais
tradutores de Djambul.
6 – Você acredita que os tradutores da era soviética podiam, de alguma forma, influenciar a
publicação de determinados escritores, agindo como gatekeepers? Eles podiam pular algumas
das regras ao alterar ou omitir trechos, eles tinham algum poder nos encontros da União dos
Escritores? Você acha que isto poderia ter mudado no período do “degelo”, eles poderiam ter
ganhado mais autonomia então?
7 – No Brasil, quase até o final do século passado, a maioria das traduções de literatura russa
era feita a partir de traduções com intermediários do francês ou inglês. Algo similar ocorreu em
países nórdicos ou escandinavos? Você também pesquisou a prática soviética em traduções com
intermediários. Quais foram suas principais conclusões?
Sim, nos períodos iniciais (final do século 19 e início do século 20) muitas
obras literárias russas chegaram aos países nórdicos por meio de traduções ale-
mãs. Esta tradução indireta do russo foi praticamente abandonada na primeira
década do século 20. Mas práticas indiretas continuaram a ser a norma quando
o assunto é a literatura de línguas das repúblicas soviéticas. Esses trabalhos são,
em geral, traduzidos de uma tradução russa. Como citado anteriormente, estudei
o uso de interlineares de língua russa em tradução das línguas de nacionalidades
para o russo e entre essas próprias línguas. Minha conclusão é a de que, ainda que
a prática tenha sido considerada inferior e medidas administrativas tenham sido
tomadas repetidamente contra isso, ela persistiu até o final da era soviética como
parte indispensável do funcionamento do sistema da literatura soviética.
9 – Você poderia definir brevemente a literatura estrangeira traduzida para o russo e a traduzida
para as línguas das repúblicas russas e as zonas de influência russas durante a era soviética? O
que diferencia esses fluxos nas políticas culturais do Partido, em sua opinião?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 493
10 – A literatura de Jorge Amado também traz inúmeras menções a rituais religiosos (cristãos,
negros etc.) e Amado era conhecido praticante de religiões africanas, bastante difundidas em seu
Estado natal, a Bahia. Essas menções não são suprimidas nas traduções russas, por exemplo,
na primeira tradução de “Gabriela, cravo e canela”, de 1961, ao contrário do que se poderia
esperar, enquanto alguns trechos mais sensuais de sua obra são omitidos (ao mesmo tempo em
que outros, na mesma obra, são mantidos e outros ainda, intensificados) e menções a Lênin ou
ao tsar são completamente cortadas. Você poderia citar os casos mais interessantes, a seu ver,
envolvendo cortes e omissões ou a manutenção inesperada de elementos que poderiam ser contrários
à ideologia do Partido (considerando ainda a anedota de que “na URSS não havia sexo” e a
situação em que ela nasceu)?
and Interpreting Studies, Special Issue: Contexts of Russian Literary Translation, ed.
By Julie Hansen and Susanna Witt, 11.1, 2016).
11 – Em seus trabalhos, você usa muitas informações e citações dos arquivos de Moscou,
principalmente do RGALI. Não existem tantos artigos e livros sobre casos e historiografia dos
Estudos da Tradução russos em inglês, espanhol, português, pelo menos de acordo com minhas
pesquisas, como sobre os Estudos da Tradução acerca de outras línguas, que não a russa, apesar
de haver trabalhos importantes sobre os Estudos da Tradução na Rússia em língua russa, como
Literalistas Derrotados, de Azóv etc., além de dezenas de artigos sobre casos, autores ou textos
específicos. Apesar disto, Azóv, por exemplo, já deixou suas atividades acadêmicas. Você acha
que a academia russa deveria se esforçar mais para lidar com o problema da falta de trabalhos
nesta área ou haveria alguma falta de interesse nela, talvez por motivos políticos? Você concorda
que há uma deficiência em sistematizar esses estudos por parte dos pesquisadores russos? Acha que
ainda há muito terreno virgem para ser explorado por pesquisadores internacionais nesta área?
Sim, absolutamente, ainda há muito por fazer por parte dos pesquisadores,
tanto internacionais como russos, nesta área. Há muito material nos arquivos
relativo ao trabalho e à vida de tradutores individuais, assim como a instituições,
por exemplo, as editoras. Ainda que tenha surgido um estudo alemão da editora
Vsemírnaia literatura25, o grande empreendimento tradutório da década de 1920 e
a editora Academia, um dos principais estabelecimentos para literatura traduzida
no final dos anos 1920 e início dos 1930, tenho certeza de que há muito relacio-
nado a elas (o estudo em questão é de Tatiana Bedson e Maxim Schulz, Sowjetische
Übersetzungskultur in den 1920er und 1930er Jahren: Die Verlage Vsemirnaja literatura
und Academia, 2015). Sei que há pesquisas muito interessantes sendo realizadas na
Universidade Estatal de Moscou e na Escola Superior de Economia (Moscou),
assim como em São Petersburgo (por exemplo, na Casa Púchkin), mas seria
certamente uma boa ideia fazer um balanço das pesquisas realizadas em outros
lugares para se ter uma ideia melhor. Não acho que haja uma falta de interesse
por motivos políticos.
12 – Você concorda que, até certo ponto, os arquivos russos, apesar de seu passado obscuro
poderiam hoje em dia ser considerados muito mais abertos que em muitos outros países (de-
senvolvidos) do mundo com o volume de documentos soviéticos já abertos a um amplo público,
inclusive estrangeiro?
25 “Literatura mundial”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 495
Não estou certa sobre o ponto dos arquivos russos serem muito mais abertos
que outros. É verdade que muitos arquivos russos estão abertos a pesquisadores,
inclusive estrangeiros, mas outros são menos acessíveis hoje que há 20 anos – por
exemplo, os arquivos da KGB, que seriam de grande interesse para pesquisa sobre
muitos pesquisadores individualmente. E ainda há muita burocracia e dificuldades
em se obter cópias de material de arquivo.
26 Hamlet the Sign: Russian Translations of Hamlet and Literary Canon Formation.
27 Shakespeare’s Sonnets in Russian: the Challenge of Translation.
28 Window to the East: Russian literature in Swedish translation with a case study of the Swedish recep-
tion of Nikolai Gogol.
29 Translation in Russian Contexts.
496 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
15 – Atualmente como você caracterizaria as traduções literárias para o russo? Elas seguem
alguma linha específica, em sua opinião?
* * *
Marina Darmaros
Susanna Witt is graduated in Slavic Studies and defended her PhD thesis
on the creation of Doctor Zhivago by Pasternak, in 2001, at the University of
Stockholm, where she is currently an associate professor and lecturer. Since then,
she is devoted to Translation Studies, focusing on the Soviet period.
1 – Can you tell us about your background and how did you start in Russian Translation
Studies? Was it a though way to go through in Translation Studies specifically in the Russian/
Soviet reality?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 497
2 – In your paper “The art of accommodation: The First All-Union Conference of Trans-
lators”, from 2013, you write: “One aspect of Soviet culture still largely neglected, however, is
that of literary translation”. Do you believe these studies are still neglected or are they rising?
I would say that by now the picture has changed radically (especially bearing
in mind that the article you mention was written some years prior to its publica-
tion in 2013). Within the overall broadening of geographical perspectives that
translation studies have seen over the last decades (think about the large body of
scholarship on translation relating to India, China, Japan, Africa, the Americas)
and which has been challenging the traditionally Eurocentric priorities of the
discipline, Russia and Eastern Europe have at last gained visibility. This is due to
international collaboration, conferences and publication initiatives which have
gathered scholars across disciplines and national borders. In 2008 I attended the
first major conference in the field, organized by Emily Lygo at Exeter university,
Great Britain (“Pushkin’s Post Horses: Literary Translation in Russian Culture”).
498 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
It brought together scholars from Russia, Europe and America, several of whom
were to be instrumental in promoting research in the field, above all Brian James
Baer who published his edited volume Contexts, Subtexts and Pretexts: Literary Transla-
tion in Eastern Europe and Russia in 2011. To this book I also contributed a chapter,
presenting the first results of my project. The Exeter conference itself resulted
in the 2013 volume The Art of Accommodation: Literary Translation in Russia (eds.
Leon Burnett and Emily Lygo). In 2014 I organized an international conference
(“Translation in Russian Contexts: Transcultural, Transliteral and Transdisciplinary
Points of Departure”) at Uppsala University, Sweden, together with my colleague
Julie Hansen. Its 60 participants from 15 countries subsequently made up the core
of an expanding network of scholars in the field which by now includes over a
hundred researchers. A volume based on selected contributions to the Uppsala
conference has just appeard (Brian James Baer, and Susanna Witt (eds.), Transla-
tion in Russian Contexts: Culture, Politics, Identity, London: Routledge, 2018). I would
like to mention as well Andrea Ceccherelli, Lorenzo Costantino, Cristiano Diddi
(eds.) Translation Theories in the Slavic Countries, Salerno 2015. It is a special issue of
the journal Europa Orientalis, vol. XXXIII (2014), based on a conference held
almost simultaneously with our Uppsala conference in 2014. As a sign of a trans-
disciplinary breakthrough, Russian-themed special issues of translation journals
such as Translation and Interpreting Studies (11:1, 2016) and Translation Studies (11:2,
2018) are appearing while, for example, Slavic and East European Journal recently
featured a “forum” on translation in Russia (60:1, 2016). There has also been an
increase in interest towards Russian scholarship on translation, as witnessed by the
conference “Going East: Discovering New and Alternative Traditions in Transla-
tion Studies” held at Vienna University in 2014 (and the 2016 volume by the same
title, edited by Laris Schippel and Cornelia Zwischenberger). Noticable here is also
Birgit Menzel’s and Irina Alekseeva’s edited volume Russische Übersetzungswissenschaft
an der Schwelle zum 21. Jahrhundert which appeared in 2013. So, the body of research
on translation and translation scholarship in the Russian context is growing steadily
(including an increasing number of PhD theses), although there are still obstacles
such as the relatively closed systems of circulation: French, German and English-
language scholarship still tend to ignore each other while Russia-based studies
often operates without references to international scholarship.
3 – What are the main researchers in this area nowadays in your opinion? And which texts
you consider canonical and would recommend to anyone that has some basis by and large in
Translation Studies and is wishing to make his way towards Russian Translation Studies?
What advice would you give to anyone starting to path his way in Russian Translation Studies?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 499
4 – In many of your works you study cases that involve languages in which you are not
native, as I understand (as in Dzhambul or Pasternak translating from Lachian). How do
you choose the cases you are going to research, presuming that the language barrier is bigger
in this sense?
only from languages I know, such as Georgii Shengeli’s rendition of Byron’s Don
Juan (Witt, Susanna, “Translation and Intertextuality in the Soviet-Russian Context:
The Case of Georgii Shengeli’s Don Juan.” Cluster on Russian translation, ed. by
Brian James Baer. Slavic and East European Journal, 60:1, 2016).
5 – Could you punctuate some of the particular characteristics of Russian Translation Studies
that differ from these studies on other languages/realities? “Literalism”, “free translation”,
“realist translation”, “naturalism”, “realist translation” are, in my view, features yet to be dis-
covered by many researchers not concentrated in the Russian field of these studies, do you agree?
Could you punctuate as well some of the most interesting cases on Russian Translation Studies
in your opinion? In your researches there are mentions to the Maimbet pseudotranslation case, or
the brief discussion started by Gideon Toury on the Dzhambul case as an example of ‹culture
planning›... Could you speak a little about it?
You’re right, of course these notions are not exclusively Russian (except
perhaps for the “realist translation,” which to my knowledge have not been
conceptualized elsewhere). But a distinguishing feature in the Soviet context was
the ideologization of norm, tying certain approaches to translation to ideologically
reprehensible positions and defining the limits of translation discourse. It must be
remembered that here, at certain periods, such issues were not purely academic,
but could send people to the camps.
GideonToury (2005) was the first to bring Dzhambul, the Kazakh bard of
Stalinism, into western translation scholarship. But his only source for theorizing
what he called pseudotranslation in this case were the memoirs of composer
Dmitrii Shostakovich, a text which in itself is somewhat debated. Inoficially, in
the Soviet context, the Dzhambul case was also habitually referred to as fakelore,
a thing taken for granted. I decided that the case deserved more thorough treat-
ment as indicative of Soviet translation practices and attitudes to translation in an
imperial context. In the process I discovered quite a few similar cases, in which
“nationalities” poets published mainly in Russian translation were promoted as
representatives of their native literatures to be included in the Soviet canon. This
is what I, using Toury’s and Even Zohar’s concept of “culture planning” refer to
as “culture planning from below” since the (Russian) translators themselves were
often instrumental in publishing these texts. The case of Maimbet is an extreme
one because not only were there no original texts, there was no original poet
either. This Kazakh figure was launched in 1935 by a local Russian journalist in
Alma-Ata. His translations of Maimbet appeared even in the central newspaper
Pravda, supplied with a photo of the bard, a typical Central Asian man with his
502 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...
traditional string instrument. At the time there was great demand (created from
above) for “nationalities” poets to represent their republics at cultural festivals in
the larger Russian cities. So the journalist was approached by the authorities and
asked to bring his poet to Moscow for the Kazakh festival in 1936. His solution
to this problem was to announce that Maimbet, as a member of a nomadizing
family, had crossed the border to China and remained there. The imaginary status
of Maimbet was confirmed in a letter of denunciation from the journalist’s colle-
agues at the local writers’ union which I found in the archive. The same journalist
then became one of the principal translators of Dzhambul.
6 – Do you believe that translators from the Soviet era could somehow influence the publication
of some specific writers, acting as gatekeepers? Could they skip some of the rules by changing
or omitting excerpts, did they have any power in the Writers Union’s meetings? Do you believe
this could have changed in the period of the “Thaw”, could they have gained more autonomy then?
7 – In Brazil, almost until the end of the last century, most of the translations from Russian
literature were done through retranslations from French and English. Was there anything alike
in Nordic or Scandinavian countries? You researched as well the Soviet practice in retranslations.
What were your main conclusions on it?
Yes, in the early periods (late 19th and early 20th century) many works of
Russian literature reached the Nordic countries via German translations. Such
indirect translation from Russian was practically abandoned in the first decade of
the 20th century. But indirect practices continued to be the norm when it came to
literature from the languages of the Soviet republics. Such works were generally
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 503
translated from a Russian translation. As mentioned above, I have studied the use
of Russian-language interlinears in translation from nationalities languages into
Russian and between such languages themselves. My conclusion was that even
if the practice was deemed inferior from the very beginning and administrative
measures were repeatedly taken against it, it persisted until the end of the Soviet
era as an indispensable part of the functioning of system of Soviet literature.
8 – When writing about pseudotranslations in USSR, you touch the vast use of foreignizing
elements derived from languages from former Soviet republics as a way used by the pseudotrans-
lator to mark that the text is in fact originated from a non-Russian literature (and that it indeed
exists). But these same foreignizing elements are employed as well in the translations into Russian
of Brazilian Jorge Amado’s works by his Soviet translator, Yuri Kalugin. In this case, however,
the Brazilian regionalisms sound foreign even to Brazilians from areas other than Amado’s
Bahia and Brazilian northeast. How would you explain the use of such kinds of foreignizing
elements in “progressive” Soviet literature of the 1950s and 1960s?
9 – Could you define briefly the foreign literature translated into Russian and the one translated
into the Russian republics languages and Russian influence zones during the Soviet era? How
do these influxes differ in the cultural policies of the Party as you see it?
2011). As for the republics, an important thing is that much foreign literature was
translated into their various languages in an indirect way via the Russian transla-
tions of the works in question. The Russian (already censored) translation thus
functioned as a gatekeeper.
10 – Jorge Amado’s literature also brings countless mentions to religious rituals (Christian,
black etc.) and Amado was a well-known practitioner of African religions that are widespread
in his home state, Bahia. These mentions are not suppressed in the Russian translations, for
example, in the first translation of “Gabriela, clove and cinnamon”, of 1961, on the contrary
of what one could expect, while some, more sensual excerpts of his works are omitted (at the
same time as others, in the same works, are kept, and even others are intensified) and mentions
to Lenin or the tsar are completely cut. Could you mention the most interesting cases, in your
view, involving cuts and omissions or the unexpected maintenance of elements that could be
contrary to the Party’s ideology (considering further the anecdote that “in USSR there wasn’t
sex” and the situation that gave birth to it)?
11 – In your works, you use many information and quotes from the Moscow archives (above all
RGALI). Russian Translation Studies in English, Spanish, Portuguese (at least according to
my researches) aren’t as much abundant of papers and books dedicated to its cases and histo-
riography as Translation Studies on languages other than Russian, though there are important
works on Russian Translation Studies in Russian, such as Azov’s “Poverzhenie bukvalisti”
etc., besides dozens of articles on specific cases, authors or texts. Even though, the young Azov,
for example, has already left his scholar activities. Do you believe Russian academy has to make
bigger efforts to tackle the lack of works in this field or would there be a lack of interest on it,
maybe for political reasons? Do you agree there’s a deficiency in systematizing these studies by
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 505
Russian researchers? Do you believe there are still a lot of virgin territories to be explored by
international researchers in this area?
12 – Do you agree that, at some extent, that the Russian archives, despite its obscure past,
could be nowadays considered much more open than in many other (developed) countries of the
world with the volume of Soviet files that are already open for a wide public, including foreign?
I’m not sure about the point of Russian archives being much more open
than other ones. It is true that many Russian archives are open to researchers,
including foreigners, but other ones are less accessible now than 20 years ago –
for example, the KGB archives, which would be of great interest for research on
many individual translators. And still there is a lot of bureaucracy and difficulties
in obtaining copies of archival material.
to translations from Russian into Swedish, Nils Håkanson’s Window to the East:
Russian literature in Swedish translation with a case study of the Swedish reception of Nikolai
Gogol (in Swedish, Uppsala, 2012). But that is rather part of Swedish Translation
Studies... As for the other Nordic countries, the university of Eastern Finland at
Joensuu is perhaps the only place where the field is well established.
14 – You were among the organizers of the conference “Translation in Russian Contexts,” in
Uppsala, Sweden, and the series of round-tables and conferences dedicated to Russian and
Slavic Translation Studies in the ASEEES conferences in 2015 and 2016. How was it to
organize such events? And which other projects do you have connected to this field of research
for the future? Any other books coming up soon?
15 – Currently, how would you characterize the literary translations into Russian? Do they
follow an specific line on your opinion?
Colaboradores
Cássio de Oliveira é bacharel em Estudos Russos pelo Bard College (2005), mes-
tre e doutor em Línguas e Literaturas Eslavas pela Universidade de Yale (2014).
Após ter lecionado como professor visitante na Universidade do Arizona, Dickin-
508 Colaboradores