1386 PB PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 529

C A D E R N O S 20

Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 1

DE LITERATURA EM TRADUÇÃO

Especial Rússia

OS RUSSOS ESTÃO CHEGANDO

Entrevista com Susanna Witt


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 1

CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO
2 Apresentação

USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes

FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda
Vice-Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins

Conselho Consultivo

Adail Sobral Márcia Schmaltz


Afonso Teixeira Filho Marco Syrayama de Pinto
Alípio Correia de Franca Neto Maria Silvia Betti
Anna Paisova Marie Helene Torres  
Andréia Guerini Marta Pragana Dantas 
Daniela Mountian Maurício Mendonça Cardozo 
Diego Leite Maurício Santana Dias
Dirceu Villa Nilce Pereira 
Germana Henriques Pereira   Pablo Cardellino Soto
Inês Oseki-Dépré Paulo Henriques Britto
Kyoko Sekino  Reginaldo Francisco
Lauro Maia Amorim  Simone Homem de Mello 
Lincoln Fernandes Sonia Branco
Mamede Jarouche Válmi Hatje-Faggion 
Marcelo Paiva de Souza Viviane Veras 
Marcelo Tápia  Walter Carlos Costa

Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográ-
fico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98).

Imagem da Capa:
Stalin as ‘David’ (2005, óleo sobre tela 208.3 x 167.6 cm). A obra, de um dos maiores nomes da “sots-art”, Leonid
Sokov (1941-), fez parte da retrospectiva do artista, Úgol zrênia (em português, “Ponto de vista”), no MOMMA
de Moscou, em 2012, quando chamou a atenção da editora deste número. As inúmeras brincadeiras que faz
com ursos, o símbolo nacional russo, com uma Marylin Monroe que acompanha Stálin em diversas situações,
ou um Lênin que se defronta com a clássica escultura expressionista de Giacometti “O homem que caminha”
compõem uma busca desenfreada do artista por desconstruir mitos. Como disse, em entrevista à revista “Afisha”,
“o mito pode ser tanto bom, como ruim. O bem e o mal são conceitos estéticos”.

Todos os direitos desta edição reservados à:


FFLCH/USP
Rua do Lago, 717
Cidade Universitária
05508-080 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: 3091-1514 / Telefax: (11) 3091-4589
e-mail: [email protected]

Maio 2018
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 3

CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO

Cadernos de Literatura em Tradução • n. 20 • 1-514 • São Paulo, 2018


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
4 Apresentação

Copyright © 2018 dos autores

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Cadernos de Literatura em Tradução / Faculdade de Filosofia, Letras


e Ciências Humanas/USP. – n. 1 (1997)- . – São Paulo : FFLCH/
USP, 1997-

Anual.
Modo de acesso: <http://www.revistas.usp.br/clt>
ISSN 2359-5388-e

1. Tradução. 2. Literatura. 3. Poesia. I. Universidade de São Paulo.


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
CDD 418.02

Esta publicação é indexada por GeoDados: Indexador <http://www.geodados.uem.br>

Serviço de Editoração e Distribuição


[email protected]

Editor Responsável
Prof. Dr. John Milton

Editora convidada
Marina Darmaros

Comissão Editorial
Álvaro Faleiros, Francesca Cricelli, Gisele Wolkoff, Magdalena Nowinska, Marina Della Valle,
Nilce M. Pereira e Telma Franco Diniz

Coordenação Editorial
Helena Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto gráfico e Diagramação


Marcos Eriverton Vieira

Capa
Acqua Estúdio Gráfico

Revisão
Deyse Libano Heitor e Marina Darmaros
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 5

Sumário

Apresentação...............................................................................................................09

Luana Chnaiderman de Almeida


Memórias de uma neta.......................................................................................................16

Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli


Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português.........................................................26

Era pós-soviética

Denise Regina de Sales


A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução.......................................................31

Eloah Pina Pereira


Assassinato no expresso do Oriente....................................................................................41

Período soviético e Revolução

Yuri Martins de Oliveira


Contos selecionados de Evguêni Kharitónov........................................................................63

Neide Jallageas
Terceira Carta de Shklóvski..............................................................................................79

Cássio de Oliveira
Moscou Feliz (Excerto).....................................................................................................82
6 Apresentação

Denise Regina de Sales, Bruno Palavro, Thiago Koslowsky da Rosa,


Daniel Martins Saeger, Douglas Rosa da Silva, Carlos Leonardo
Bonturim Antunes
“Lilás polar escuridão”......................................................................................................93

Marina Darmaros
O ringue de Iúli Daniel................................................................................................... 109

André Nogueira
Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva.............................................................. 128

Paula Costa Vaz de Almeida


Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em
Meu Púchkin, de Marina Tsvetáieva.............................................................................. 171

Rafael Bonavina
A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras................................................................... 188

Helder da Rocha
O Leão, de Evguéni Zamiátin........................................................................................ 198

Letícia Mei
Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski............................. 209

Luis Felipe Labaki


Aos kinocs do sul, Dziga Viértov.................................................................................. 227

Odomiro Fonseca
Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o
Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias................................................... 250

Graziela Schneider
Mulheres, revoluções e missões......................................................................................... 269
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 7

Márcia Pileggi Vinha


A Revolução por outro olhar........................................................................................... 280

Rússia Imperial

Natalia Quintero
Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer...................... 290

Diego Moschkovich
O Estudante, de A. Tchékhov........................................................................................ 326

Ekaterina Vólkova Américo, Melissa Teixeira Siqueira Barbosa


Minha Ordem Doméstica, uma tradução......................................................................... 333

Priscila Nascimento Marques


O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski:
aspectos poéticos e tradutórios........................................................................................... 339

Ekaterina Vólkova Américo, Melissa Teixeira Siqueira Barbosa


Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa das traduções direta e indireta...... 353

Lucas Simone
O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski................. 371

Fabrício Yuri de S. Vitorino


“Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:
tradução do polêmico artigo de N. V. Gógol na revista “O Contemporâneo”,
de A. S. Púchkin........................................................................................................... 391

Edelcio Americo
Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo............................................................... 421
8 Apresentação

Fernanda Naomi Kumagai


O judeu de Ivan Turguêniev............................................................................................ 441

Alípio Correia de Franca Neto, Elena Vássina


Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo........................................................................ 475

Entrevista

Marina Darmaros
Entrevista com Susanna Witt......................................................................................... 487

Colaboradores.......................................................................................................... 511
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 9

Apresentação

Marina Darmaros

Uma das maiores autoridades na literatura produzida na era Stálin, Evguêni


Dobrenko disse, em entrevista recente ao jornalista e tradutor brasileiro indicado
ao Jabuti Irineu Franco Perpetuo, que “antes, retirava-se da literatura tudo que
parecia antissoviético. Hoje, ao contrário, afasta-se tudo que é soviético. Uma
censura substitui a outra”1. Em um esforço para ressaltar a literatura soviética,
tanto a dissidente, como a do realismo socialista, além da contemporânea russa,
ainda pouco visitada mesmo pelos leitores mais ávidos deste lado do oceano, sub-
vertemos a ordem do material apresentado nesta edição especial sobre literatura
russa da Cadernos de Literatura em Tradução, iniciando com contemporâneos e
daí partindo para soviéticos e, posteriormente, os grandes clássicos do século 19.
Conquanto os estudos de literatura e cultura russa por muito tempo tenham
se detido sobre os clássicos no Brasil, um maior interesse pela era soviética e pe-
ríodos mais contemporâneos tem sido notado, conforme aumenta a atração de
nossos estudantes pela Rússia – apesar das dificuldades e incertezas representadas
pelos recentes fechamentos de programas universitários ligados a essas pesquisas. A
própria literatura do realismo socialista soviético, porém, como lembra Dobrenko,
baseava-se naqueles mesmos clássicos do século 19. “Nos anos 20, havia o slogan
‘aprenda com os clássicos’. Todos queriam escrever como Tolstói. (...) O realismo
socialista é uma imitação do ‘grande estilo’ dos clássicos russos. Simplesmente
não havia outros exemplos, pois o modernismo não era reconhecido nem pelos
bolcheviques, nem pelos tradicionalistas. Todos escreviam ‘sob Tolstói’.”

1 PERPETUO, Irineu Franco. Literatura na Rússia só é livre porque hoje ninguém mais lê, diz professor.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/10/1930585-literatura-na-russia-so-e-
-livre-porque-hoje-ninguem-mais-le-diz-professor.shtml
10 Apresentação

A imagem que estampa nossa capa, Stalin as David (2005, óleo sobre tela),
pintura de um dos mais renomados representantes da “sots-art”, Leonid Sokov,
também foi escolhida com o intuito de jogar luz sobre a literatura pós-Tolstói,
como ousamos chamar aqui o período revolucionário e soviético, em todas as
suas vertentes, e a literatura posterior a ela. Afinal, como notou Dobrenko, “sobre
o realismo socialista, é claro que continua parte importante da literatura russa
contemporânea, só que não mais como sujeito, e sim como objeto - retrabalhado
pela ‘soc-art’ [ou sots-art] na pintura e pelos conceitualistas na literatura”. E nada
mais explícito, neste sentido, que Stálin posando como o David de Michelangelo,
uniforme militar pendurado em uma árvore, cachimbo sobre o ombro. Uma grande
caricatura do realismo socialista que se transvestia de clássico, como o próprio
“vôjd” nu em pelo no pincel de Sokov.
Luana Chnaiderman de Almeida abre esta edição com emocionante
relato sobre o pioneiro das traduções russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-
2016). Divertido e leve, o texto é uma homenagem a seu avô, que moldou também
a figura da neta, escritora e professora de português.
Na sequência, Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli apresenta um ponto
de vista aprofundado sobre a tradução dos verbos de movimento russos que vai
muito além dos dicionários, citando como exemplos trechos de obras literárias de
Ilf e Petrof e Dostoiévski e suas traduções.
Em “A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução”, Denise
Regina de Sales verte ao português um texto desta escritora contemporânea,
nascida em 1965 e filha de um dos mais renomados autores infanto-juvenis so-
viéticos, Víktor Dragúnski. O conto “Os outros e a neve” faz parte da coletânea
“O segredo do camembert russo” (2015) e traz um recorte extremamente vívido e
sensível da Rússia atual.
Eloah Pina Pereira apresenta outro conto inédito em português, “Assassi-
nato no expresso Oriente”, de Dmítri Bykov (1967-), “um dos mais prolíferos – e
polêmicos – escritores russos contemporâneos”. A tradução comentada reproduz
a ironia e o humor do original, cheio de coloquialidade e intertexto soviético e
pop dos anos 1990.
Em “Contos selecionados de Evguêni Kharitónov”, Yuri Martins de
Oliveira expõe, também pela primeira vez em português, dois contos do escritor,
morto em 1981 e considerado o fundador da literatura russa LGBT moderna.
“Um morador escreveu um requerimento” é uma narrativa satírica a respeito da
burocracia soviética e “Traição-80”, conto póstumo com uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 11

Neide Jallageas verte ao português a Terceira Carta de Shklóvski (1893-


1984). O texto foi escrito quando o autor encontrava-se exilado na capital alemã,
onde também estava Elsa Triolet (1896-1970) – a qual, junto ao contexto, inspirou-o
na criação do romance epistolar.
Cássio de Oliveira traduz e comenta um excerto de “Moscou Feliz”, de
Andrêi Platónov (1899-1951). Como relembra o tradutor, Platónov é “admirado
por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana Tolstáia, e Elif Batuman, porém
praticamente desconhecido no Brasil”. Os impulsos e aspirações dos protagonistas
de “Moscou Feliz” refletem o clima utópico dos primeiros Planos Quinquenais de
Stálin – uma utopia que, como o próprio romance, é interrompida bruscamente
durante a segunda metade da década de 1930.
A tradução a doze mãos de um poema de Varlam Chalamov (1907-1982)
foi realizada, em seis variantes comentadas, por Denise Regina de Sales, Bruno
Palavro, Thiago Koslowsky da Rosa, Daniel Martins Saeger, Douglas Rosa
da Silva, Carlos Leonardo Bonturim Antunes em “Lilás polar escuridão”.
Aleksandr Daniel, filho de Iúli Daniel (1925-1988), tem traduzida e co-
mentada por Marina Darmaros uma introdução inédita ao poema “No ringue”,
escrito pelo pai e também vertido ao português aqui pela primeira vez. O pai
de Aleksandr ganhou fama, inclusive no Brasil, ainda nos anos 1960, quando
foi preso e enviado à gulag por publicar no exterior literatura que “difamava a
União Soviética”.
André Nogueira apresenta uma seleção de 35 poemas de Marina Tsve-
táieva (1894-1941), traduzidos e comentados, que abrangem desde os anos de
Revolução aos debates a ela relacionados. A análise sobre o ciclo de poemas de
Tsvetáieva é elegantemente fundamentada e finalizada com poema que resume
a postura complexa e cheia de nuances da poeta diante da revolução, da moder-
nidade e da tradição.
Paula Costa Vaz de Almeida traz em “Aspectos da tradução de versos dos
poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin, de Marina Tsvetáieva” uma análise
e exposição das estratégias de recriação tanto dos versos do “pai da língua russa
moderna” citados diretamente quanto daqueles que são citados indiretamente,
incorporando-se ao tecido do texto tsvetaieviano.
Rafael Bonavina traduz e comenta “Terra Natal”, poema de Andrêi Biély
(1880-1934), discutindo a transformação da figura feminina em sua produção e
sua relação com a revolução social, “o dia que virá”.
Em “O Leão, de Evguéni Zamiátin”, Helder da Rocha verte conto do
escritor cunhado já em Paris, em 1935. Fundador da literatura distópica com
12 Apresentação

“Nós”, Zamiátin (1884-1937) pediu licença a Stálin para emigrar em 1931, já que
toda sua obra estava proibida no país.
Letícia Mei apresenta, em “Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em
busca de Maiakóvski”, uma nova proposta em português para a primeira parte
do longo poema “Nuvem de Calças” (1915). A primeira e, durante muito tempo,
única tradução em nossa língua do poema foi assinada por E. Carrera Guerra.
Em “Aos kinocs do sul, Dziga Viértov” Luis Felipe Labaki introduz carta
escrita pelo cineasta Dziga Viértov (1896-1954) em março de 1925, quando ele
já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da
Rússia soviética. No contexto de relativa escassez de documentos sobre este tema,
a “Carta aos kinocs do sul” se torna especialmente interessante.
Em “Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre
o Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias”, Odomiro Fonseca
verte texto sobre o desconhecido escritor do realismo que viajou a pé pelas estradas
e confins de sua pátria estudando e captando a essência de sua população mais
vulnerável, os camponeses. Mesmo com o reconhecimento de grandes escritores
da época, Sleptsov (1836-1878) teve esquecida por mais de um século sua obra,
que hoje é resgatada internacionalmente.
Graziela Schneider apresenta, em “Mulheres, revoluções e missões”, tra-
dução inédita, direta do russo e comentada, do texto “Nossas missões”, publicado
por Aleksándra Kollontai (1872-1952) na revista “Rabótnitsa” apenas dois meses
depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem,
no Dia das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve
geral. A tradução tem o intuito, segundo Schneider, de “contribuir para recuperar
a expressão da mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na his-
toriografia e nas referências bibliográficas desse e de outros processos históricos”.
Em “A Revolução por outro olhar”, Márcia Pileggi Vinha traduz e co-
menta trecho do diário de Ivan Búnin (1870-1953), Dias Malditos. Após tradução
de trecho da obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do
tradutor, descrevendo questões como a opção pelo emprego de notas de rodapé
e contaminação do texto na língua de chegada.
Em “Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a
Kreutzer”, Natalia Quintero traz uma proposta de tradução direta do russo a
este elemento, que Tolstói (1828-1910) julgou tão importante à obra. A pesqui-
sadora também busca mostrar de que maneira o texto apresenta as respostas do
autor a questionamentos de leitores acerca da abstinência sexual pregada pelo
protagonista de sua novela.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 13

Em “O Estudante, de A. Tchékhov”, Diego Moschkovich verte ao portu-


guês e comenta a tradução do conto.
Tchékhov é visitado novamente por Ekaterina Vólkova Américo e
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa, que traduzem conto seu em “Minha Ordem
Doméstica, uma tradução”, após sentirem a necessidade de uma versão em português
do texto durante aula ministrada na Universidade Federal Fluminense. Na ocasião,
o Domostrói, do arcipreste Silvestr, remeteu diretamente a Tchékhov, mas, então,
os estudantes não puderam compreender de que se tratava, já que esta irônica joia
da literatura russa faltava em português.
Em “O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: as-
pectos poéticos e tradutórios”, Priscila Nascimento Marques aborda aspectos
poéticos e da tradução do conto Uma história desagradável, de Fiódor Mikháilovitch
Dostoiévski (1821-1881), publicado originalmente em 1862 na revista O Tempo, e
em primeira tradução direta para o português pela Editora 34, em 2016.
Dostoiévski também é objeto de estudo de Ekaterina Vólkova Américo
e Melissa Teixeira Siqueira Barbosa em “Crime e Castigo em reflexos: uma
análise comparativa das traduções direta e indireta”. As autoras do artigo compa-
ram a tradução indireta, feita por Rosário Fusco a partir do texto francês, com a
primeira tradução direta, realizada por Paulo Bezerra e publicada em 2001, além
do texto original e o interlinear em francês. Elas também apontam o curioso fato
de uma porção dos leitores preferir a tradução indireta, menos fiel ao discurso e
estilo dostoievskiano que a de Bezerra.
Em seguida, Lucas Simone verte “O conto do cadáver que pertencia não se sabe
a quem, de Vladímir Odóievski”. Como nota o tradutor, “‘O conto do cadáver
que pertencia não se sabe a quem’ remeterá o leitor habituado às singulares linhas
gogolianas a um ambiente familiar: o da Rússia profunda, rural, com seus buro-
cratas de província e seus funcionários corruptos, colocados frente a um elemento
sobrenatural, grotesco e inusitado, igualmente caro a Gógol e Odóievski [1803-
1869], os dois maiores mestres da narrativa fantástica na Rússia”.
Fabrício Yuri de S. Vitorino assina “‘Sobre o rumo da literatura de revista
nos anos de 1834 e 1835’: tradução do polêmico artigo de N. V. Gógol na revista
‘O Contemporâneo’, de A. S. Púchkin”. Nele, o pesquisador traduz e comenta a
primeira parte do longo texto creditado a Gógol (1809-1852), ácido e extremamente
crítico, que sobrevoava todo o cenário editorial do início do século 19 na Rússia,
associando nomes, publicações, estratégias mercadológicas e análise de público-alvo.
Gógol também aparece em “Cidades traduzidas: Moscou e São Petersbur-
go”, em que Edelcio Americo traz traduções diretas e comentadas dos textos
14 Apresentação

“Notas petersburguesas”, escrito por Nikolai Gógol, em 1836, e “Dois caráteres,


irmão e irmã”, de 1841, por Mikhail Zagóskin (1789-1852). O tradutor também
apresenta a oposição Moscou-São Petersburgo no conceito de texto de cidade,
ou seja, “a tradução de lugares e da memória cultural em texto, cuja decodificação
oferece enorme ajuda na compreensão das obras artísticas”.
Em “O judeu de Ivan Turguêniev”, Fernanda Naomi Kumagai apresenta
sua tradução do conto, que mostra a figura do judeu comparada à do russo exem-
plar. No texto, Tuguêniev (1818-1883) contrapõe aspectos físicos e morais, tendo
como protagonista o estereótipo de um judeu sórdido, e explora o antissemitismo
existente no Império Russo.
Com chave de ouro, Aleksandr Púchkin (1799-1837) fecha o ciclo de tradu-
ções e artigos, apresentado por Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina
em “Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo”. Além de tradução das primeiras
estrofes da obra, que contou também com a colaboração de Boris Schnaiderman,
os autores ressaltam no artigo as preferências de abordagens teóricas que acaba-
ram por influenciar as “escolhas” da tradução, em termos de uma tentativa de
reconstituição de estilo desta obra fundamental da literatura russa.
Por fim, o número é arrematado por entrevista com Susanna Witt, uma
referência hoje na divulgação dos Estudos da Tradução Russos em outras lín-
guas, tendo publicado diversos artigos e organizado e participado de coletâneas
em inglês e também em sua língua nativa, o sueco, sobre o assunto. Como essas
pesquisas são bastante restritas a autores russos, em geral, outros pesquisadores
de Estudos da Tradução, que costumam trabalhar em muitas línguas mas, muitas
vezes, não o russo, acabam por desconhecer seus trabalhos, e a ponte que vem
sido construída por Witt e seus colegas, neste sentido, é de inestimável valor. Seu
trabalho, porém, não está em simplesmente verter as pesquisas russas, e Witt tem
uma vasta investigação própria em arquivos soviéticos. Ela nos apresenta um
panorama das pesquisas levadas a cabo e publicadas em inglês e outras línguas,
e os principais nomes de pesquisadores que se debruçam hoje sobre as questões
russo-soviéticas nesta área.
Esta edição nunca teria podido chegar a sua forma atual não fosse pela
extrema gentileza de diversos detentores de direitos autorais que nos concede-
ram permissão de publicação e de outras figuras-chaves. Por isso, agradecemos
imensamente a Leonid Sokov, por permitir a publicação de Stálin as David; ao
tradutor Robert Chandler que nos colocou em contato com diversos detentores
de direitos autorais; a Aleksandr Daniel, que nos forneceu texto inédito sobre
o pai, Iúli Daniel, e concedeu permissão para publicação de seu “O Ringue”; a
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 15

Alexander Klimin e Yulia Dobrovolskaya, da agência ELKOST, além de Var-


vara Shklovskaya-Kordi, que nos permitiram publicar texto de Víktor Chklóvski;
a Dmitry Tsvetkov, da agência FTM, pela permissão de publicação de Andrêi
Platónov; a Aleksandr Rigosik e à agência FTM, pela permissão de publicação
de Varlam Chalamov, e a Anna Gavrílova, que auxiliou com os contatos para que
isto fosse possível; a Ksenia Dragunskaia e Dmítri Bykov, por permitirem a
publicação de suas próprias obras nesta edição. Além disso, é preciso agradecer
à revisora Deyse Líbano, cujo trabalho incansável na revisão desta quantidade
recorde de textos foi essencial para a finalização do número. Não fossem a paixão
desenfreada de John Milton, Telma Franco (a quem tanto importunei com uma
infinidade perguntas durante o processo de redação de sua tese), Marina Della
Valle e Francesca Cricelli pelos Estudos da Tradução e sua enorme dedicação à
Cadernos de Literatura em Tradução, este número também não teria sido possível.

Boa leitura!
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 1

CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO
2 Apresentação

USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes

FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda
Vice-Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins

Conselho Consultivo

Anna Paisova Diego Leite


Daniela Mountian Sonia Branco

Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográ-
fico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98).

Imagem da Capa:
Stalin as ‘David’ (2005, óleo sobre tela 208.3 x 167.6 cm). A obra, de um dos maiores nomes da “sots-art”, Leonid
Sokov (1941-), fez parte da retrospectiva do artista, Úgol zrênia (em português, “Ponto de vista”), no MOMMA
de Moscou, em 2012, quando chamou a atenção da editora deste número. As inúmeras brincadeiras que faz
com ursos, o símbolo nacional russo, com uma Marylin Monroe que acompanha Stálin em diversas situações,
ou um Lênin que se defronta com a clássica escultura expressionista de Giacometti “O homem que caminha”
compõem uma busca desenfreada do artista por desconstruir mitos. Como disse, em entrevista à revista “Afisha”,
“o mito pode ser tanto bom, como ruim. O bem e o mal são conceitos estéticos”.

Todos os direitos desta edição reservados à:


FFLCH/USP
Rua do Lago, 717
Cidade Universitária
05508-080 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: 3091-1514 / Telefax: (11) 3091-4589
e-mail: [email protected]

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907)


Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Maio 2018
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 3

CADERNOS 20
DE LITERATURA EM TRADUÇÃO

Cadernos de Literatura em Tradução • n. 20 • 1-514 • São Paulo, 2018


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
4 Apresentação

Copyright © 2018 dos autores

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Cadernos de Literatura em Tradução / Faculdade de Filosofia, Letras


e Ciências Humanas/USP. – n. 1 (1997)- . – São Paulo : FFLCH/
USP, 1997-

Anual.
Modo de acesso: <http://www.revistas.usp.br/clt>
ISSN 2359-5388

1. Tradução. 2. Literatura. 3. Poesia. I. Universidade de São Paulo.


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
CDD 418.02

Esta publicação é indexada por GeoDados: Indexador <http://www.geadados.uem.br>

Serviço de Editoração e Distribuição


[email protected]

Editor Responsável
Prof. Dr. John Milton

Editora convidada
Marina Darmaros

Arte da Capa
Marina Della Valle

Comissão Editorial
Álvaro Faleiros, Francesca Cricelli, Gisele Wolkoff, Magdalena Nowinska, Marina Della Valle,
Nilce M. Pereira e Telma Franco Diniz

Coordenação Editorial
Helena Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto gráfico e Diagramação


Marcos Eriverton Vieira

Capa
Acqua Estúdio Gráfico

Revisão
Deyse Libano Heitor e Marina Darmaros
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 5

Sumário

Apresentação...............................................................................................................09

Luana Chnaiderman de Almeida


Memórias de uma neta.......................................................................................................16

Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli


Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português.........................................................26

Era pós-soviética

Denise Regina de Sales


A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução.......................................................31

Eloah Pina Pereira


Assassinato no expresso do Oriente....................................................................................41

Período soviético e Revolução

Yuri Martins de Oliveira


Contos selecionados de Evguêni Kharitónov........................................................................63

Neide Jallageas
Terceira Carta de Chklóvski..............................................................................................79

Cássio de Oliveira
Moscou Feliz (Excerto).....................................................................................................82
6 Apresentação

Denise Regina de Sales, Bruno Palavro, Thiago Koslowsky da Rosa,


Daniel Martins Saeger, Douglas Rosa da Silva, Carlos Leonardo
Bonturim Antunes
“Lilás polar escuridão”......................................................................................................93

Marina Darmaros
O ringue de Iúli Daniel................................................................................................... 109

André Nogueira
Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva.............................................................. 128

Paula Costa Vaz de Almeida


Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em
Meu Púchkin, de Marina Tsvetáieva.............................................................................. 171

Rafael Bonavina
A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras................................................................... 188

Helder da Rocha
O Leão, de Evguéni Zamiátin........................................................................................ 198

Letícia Mei
Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski............................. 209

Luis Felipe Labaki


Aos kinocs do sul, Dziga Viértov.................................................................................. 227

Odomiro Fonseca
Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o
Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias................................................... 250

Graziela Schneider
Mulheres, revoluções e missões......................................................................................... 269
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 7

Márcia Pileggi Vinha


A Revolução por outro olhar........................................................................................... 280

Rússia Imperial

Natalia Quintero
Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer...................... 290

Diego Moschkovich
O Estudante, de A. Tchékhov........................................................................................ 326

Ekaterina Vólkova Américo, Melissa Teixeira Siqueira Barbosa


Minha Ordem Doméstica, uma tradução......................................................................... 333

Priscila Nascimento Marques


O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski:
aspectos poéticos e tradutórios........................................................................................... 339

Ekaterina Vólkova Américo, Melissa Teixeira Siqueira Barbosa


Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa das traduções direta e indireta...... 353

Lucas Simone
O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski................. 371

Fabrício Yuri de S. Vitorino


“Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:
tradução do polêmico artigo de N. V. Gógol na revista “O Contemporâneo”,
de A. S. Púchkin........................................................................................................... 391

Edelcio Americo
Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo............................................................... 421
8 Apresentação

Fernanda Naomi Kumagai


O judeu de Ivan Turguêniev............................................................................................ 441

Alípio Correia de Franca Neto, Elena Vássina


Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo........................................................................ 475

Entrevista

Marina Darmaros
Entrevista com Susanna Witt......................................................................................... 487

Colaboradores.......................................................................................................... 511
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 9

Apresentação

Marina Darmaros

Uma das maiores autoridades na literatura produzida na era Stálin, Evguêni


Dobrenko disse, em entrevista recente ao jornalista e tradutor brasileiro indicado
ao Jabuti Irineu Franco Perpetuo, que “antes, retirava-se da literatura tudo que
parecia antissoviético. Hoje, ao contrário, afasta-se tudo que é soviético. Uma
censura substitui a outra”1. Em um esforço para ressaltar a literatura soviética,
tanto a dissidente, como a do realismo socialista, além da contemporânea russa,
ainda pouco visitada mesmo pelos leitores mais ávidos deste lado do oceano, sub-
vertemos a ordem do material apresentado nesta edição especial sobre literatura
russa da Cadernos de Literatura em Tradução, iniciando com contemporâneos e
daí partindo para soviéticos e, posteriormente, os grandes clássicos do século 19.
Conquanto os estudos de literatura e cultura russa por muito tempo tenham
se detido sobre os clássicos no Brasil, um maior interesse pela era soviética e pe-
ríodos mais contemporâneos tem sido notado, conforme aumenta a atração de
nossos estudantes pela Rússia – apesar das dificuldades e incertezas representadas
pelos recentes fechamentos de programas universitários ligados a essas pesquisas. A
própria literatura do realismo socialista soviético, porém, como lembra Dobrenko,
baseava-se naqueles mesmos clássicos do século 19. “Nos anos 20, havia o slogan
‘aprenda com os clássicos’. Todos queriam escrever como Tolstói. (...) O realismo
socialista é uma imitação do ‘grande estilo’ dos clássicos russos. Simplesmente
não havia outros exemplos, pois o modernismo não era reconhecido nem pelos
bolcheviques, nem pelos tradicionalistas. Todos escreviam ‘sob Tolstói’.”

1 PERPETUO, Irineu Franco. Literatura na Rússia só é livre porque hoje ninguém mais lê, diz professor.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/10/1930585-literatura-na-russia-so-e-
-livre-porque-hoje-ninguem-mais-le-diz-professor.shtml
10 Apresentação

A imagem que estampa nossa capa, Stalin as David (2005, óleo sobre tela),
pintura de um dos mais renomados representantes da “sots-art”, Leonid Sokov,
também foi escolhida com o intuito de jogar luz sobre a literatura pós-Tolstói,
como ousamos chamar aqui o período revolucionário e soviético, em todas as
suas vertentes, e a literatura posterior a ela. Afinal, como notou Dobrenko, “sobre
o realismo socialista, é claro que continua parte importante da literatura russa
contemporânea, só que não mais como sujeito, e sim como objeto - retrabalhado
pela ‘soc-art’ [ou sots-art] na pintura e pelos conceitualistas na literatura”. E nada
mais explícito, neste sentido, que Stálin posando como o David de Michelangelo,
uniforme militar pendurado em uma árvore, cachimbo sobre o ombro. Uma grande
caricatura do realismo socialista que se transvestia de clássico, como o próprio
“vôjd” nu em pelo no pincel de Sokov.
Luana Chnaiderman de Almeida abre esta edição com emocionante
relato sobre o pioneiro das traduções russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-
2016). Divertido e leve, o texto é uma homenagem a seu avô, que moldou também
a figura da neta, escritora e professora de português.
Na sequência, Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli apresenta um ponto
de vista aprofundado sobre a tradução dos verbos de movimento russos que vai
muito além dos dicionários, citando como exemplos trechos de obras literárias de
Ilf e Petrof e Dostoiévski e suas traduções.
Em “A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução”, Denise
Regina de Sales verte ao português um texto desta escritora contemporânea,
nascida em 1965 e filha de um dos mais renomados autores infanto-juvenis so-
viéticos, Víktor Dragúnski. O conto “Os outros e a neve” faz parte da coletânea
“O segredo do camembert russo” (2015) e traz um recorte extremamente vívido e
sensível da Rússia atual.
Eloah Pina Pereira apresenta outro conto inédito em português, “Assassi-
nato no expresso Oriente”, de Dmítri Bykov (1967-), “um dos mais prolíferos – e
polêmicos – escritores russos contemporâneos”. A tradução comentada reproduz
a ironia e o humor do original, cheio de coloquialidade e intertexto soviético e
pop dos anos 1990.
Em “Contos selecionados de Evguêni Kharitónov”, Yuri Martins de
Oliveira expõe, também pela primeira vez em português, dois contos do escritor,
morto em 1981 e considerado o fundador da literatura russa LGBT moderna.
“Um morador escreveu um requerimento” é uma narrativa satírica a respeito da
burocracia soviética e “Traição-80”, conto póstumo com uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 11

Neide Jallageas verte ao português a Terceira Carta de Chklóvski (1893-


1984). O texto foi escrito quando o autor encontrava-se exilado na capital alemã,
onde também estava Elsa Triolet (1896-1970) – a qual, junto ao contexto, inspirou-o
na criação do romance epistolar.
Cássio de Oliveira traduz e comenta um excerto de “Moscou Feliz”, de
Andrêi Platónov (1899-1951). Como relembra o tradutor, Platónov é “admirado
por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana Tolstáia, e Elif Batuman, porém
praticamente desconhecido no Brasil”. Os impulsos e aspirações dos protagonistas
de “Moscou Feliz” refletem o clima utópico dos primeiros Planos Quinquenais de
Stálin – uma utopia que, como o próprio romance, é interrompida bruscamente
durante a segunda metade da década de 1930.
A tradução a doze mãos de um poema de Varlam Chalamov (1907-1982)
foi realizada, em seis variantes comentadas, por Denise Regina de Sales, Bruno
Palavro, Thiago Koslowsky da Rosa, Daniel Martins Saeger, Douglas Rosa
da Silva, Carlos Leonardo Bonturim Antunes em “Lilás polar escuridão”.
Aleksandr Daniel, filho de Iúli Daniel (1925-1988), tem traduzida e co-
mentada por Marina Darmaros uma introdução inédita ao poema “No ringue”,
escrito pelo pai e também vertido ao português aqui pela primeira vez. O pai
de Aleksandr ganhou fama, inclusive no Brasil, ainda nos anos 1960, quando
foi preso e enviado à gulag por publicar no exterior literatura que “difamava a
União Soviética”.
André Nogueira apresenta uma seleção de 35 poemas de Marina Tsve-
táieva (1894-1941), traduzidos e comentados, que abrangem desde os anos de
Revolução aos debates a ela relacionados. A análise sobre o ciclo de poemas de
Tsvetáieva é elegantemente fundamentada e finalizada com poema que resume
a postura complexa e cheia de nuances da poeta diante da revolução, da moder-
nidade e da tradição.
Paula Costa Vaz de Almeida traz em “Aspectos da tradução de versos dos
poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin, de Marina Tsvetáieva” uma análise
e exposição das estratégias de recriação tanto dos versos do “pai da língua russa
moderna” citados diretamente quanto daqueles que são citados indiretamente,
incorporando-se ao tecido do texto tsvetaieviano.
Rafael Bonavina traduz e comenta “Terra Natal”, poema de Andrêi Biély
(1880-1934), discutindo a transformação da figura feminina em sua produção e
sua relação com a revolução social, “o dia que virá”.
Em “O Leão, de Evguéni Zamiátin”, Helder da Rocha verte conto do
escritor cunhado já em Paris, em 1935. Fundador da literatura distópica com
12 Apresentação

“Nós”, Zamiátin (1884-1937) pediu licença a Stálin para emigrar em 1931, já que
toda sua obra estava proibida no país.
Letícia Mei apresenta, em “Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em
busca de Maiakóvski”, uma nova proposta em português para a primeira parte
do longo poema “Nuvem de Calças” (1915). A primeira e, durante muito tempo,
única tradução em nossa língua do poema foi assinada por E. Carrera Guerra.
Em “Aos kinocs do sul, Dziga Viértov” Luis Felipe Labaki introduz carta
escrita pelo cineasta Dziga Viértov (1896-1954) em março de 1925, quando ele
já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da
Rússia soviética. No contexto de relativa escassez de documentos sobre este tema,
a “Carta aos kinocs do sul” se torna especialmente interessante.
Em “Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre
o Realismo Russo e a importância de dar voz às minorias”, Odomiro Fonseca
verte texto sobre o desconhecido escritor do realismo que viajou a pé pelas estradas
e confins de sua pátria estudando e captando a essência de sua população mais
vulnerável, os camponeses. Mesmo com o reconhecimento de grandes escritores
da época, Sleptsov (1836-1878) teve esquecida por mais de um século sua obra,
que hoje é resgatada internacionalmente.
Graziela Schneider apresenta, em “Mulheres, revoluções e missões”, tra-
dução inédita, direta do russo e comentada, do texto “Nossas missões”, publicado
por Aleksándra Kollontai (1872-1952) na revista “Rabótnitsa” apenas dois meses
depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem,
no Dia das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve
geral. A tradução tem o intuito, segundo Schneider, de “contribuir para recuperar
a expressão da mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na his-
toriografia e nas referências bibliográficas desse e de outros processos históricos”.
Em “A Revolução por outro olhar”, Márcia Pileggi Vinha traduz e co-
menta trecho do diário de Ivan Búnin (1870-1953), Dias Malditos. Após tradução
de trecho da obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do
tradutor, descrevendo questões como a opção pelo emprego de notas de rodapé
e contaminação do texto na língua de chegada.
Em “Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a
Kreutzer”, Natalia Quintero traz uma proposta de tradução direta do russo a
este elemento, que Tolstói (1828-1910) julgou tão importante à obra. A pesqui-
sadora também busca mostrar de que maneira o texto apresenta as respostas do
autor a questionamentos de leitores acerca da abstinência sexual pregada pelo
protagonista de sua novela.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 13

Em “O Estudante, de A. Tchékhov”, Diego Moschkovich verte ao portu-


guês e comenta a tradução do conto.
Tchékhov é visitado novamente por Ekaterina Vólkova Américo e
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa, que traduzem conto seu em “Minha Ordem
Doméstica, uma tradução”, após sentirem a necessidade de uma versão em português
do texto durante aula ministrada na Universidade Federal Fluminense. Na ocasião,
o Domostrói, do arcipreste Silvestr, remeteu diretamente a Tchékhov, mas, então,
os estudantes não puderam compreender de que se tratava, já que esta irônica joia
da literatura russa faltava em português.
Em “O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: as-
pectos poéticos e tradutórios”, Priscila Nascimento Marques aborda aspectos
poéticos e da tradução do conto Uma história desagradável, de Fiódor Mikháilovitch
Dostoiévski (1821-1881), publicado originalmente em 1862 na revista O Tempo, e
em primeira tradução direta para o português pela Editora 34, em 2016.
Dostoiévski também é objeto de estudo de Ekaterina Vólkova Américo
e Melissa Teixeira Siqueira Barbosa em “Crime e Castigo em reflexos: uma
análise comparativa das traduções direta e indireta”. As autoras do artigo compa-
ram a tradução indireta, feita por Rosário Fusco a partir do texto francês, com a
primeira tradução direta, realizada por Paulo Bezerra e publicada em 2001, além
do texto original e o interlinear em francês. Elas também apontam o curioso fato
de uma porção dos leitores preferir a tradução indireta, menos fiel ao discurso e
estilo dostoievskiano que a de Bezerra.
Em seguida, Lucas Simone verte “O conto do cadáver que pertencia não se sabe
a quem, de Vladímir Odóievski”. Como nota o tradutor, “‘O conto do cadáver
que pertencia não se sabe a quem’ remeterá o leitor habituado às singulares linhas
gogolianas a um ambiente familiar: o da Rússia profunda, rural, com seus buro-
cratas de província e seus funcionários corruptos, colocados frente a um elemento
sobrenatural, grotesco e inusitado, igualmente caro a Gógol e Odóievski [1803-
1869], os dois maiores mestres da narrativa fantástica na Rússia”.
Fabrício Yuri de S. Vitorino assina “‘Sobre o rumo da literatura de revista
nos anos de 1834 e 1835’: tradução do polêmico artigo de N. V. Gógol na revista
‘O Contemporâneo’, de A. S. Púchkin”. Nele, o pesquisador traduz e comenta a
primeira parte do longo texto creditado a Gógol (1809-1852), ácido e extremamente
crítico, que sobrevoava todo o cenário editorial do início do século 19 na Rússia,
associando nomes, publicações, estratégias mercadológicas e análise de público-alvo.
Gógol também aparece em “Cidades traduzidas: Moscou e São Petersbur-
go”, em que Edelcio Americo traz traduções diretas e comentadas dos textos
14 Apresentação

“Notas petersburguesas”, escrito por Nikolai Gógol, em 1836, e “Dois caráteres,


irmão e irmã”, de 1841, por Mikhail Zagóskin (1789-1852). O tradutor também
apresenta a oposição Moscou-São Petersburgo no conceito de texto de cidade,
ou seja, “a tradução de lugares e da memória cultural em texto, cuja decodificação
oferece enorme ajuda na compreensão das obras artísticas”.
Em “O judeu de Ivan Turguêniev”, Fernanda Naomi Kumagai apresenta
sua tradução do conto, que mostra a figura do judeu comparada à do russo exem-
plar. No texto, Tuguêniev (1818-1883) contrapõe aspectos físicos e morais, tendo
como protagonista o estereótipo de um judeu sórdido, e explora o antissemitismo
existente no Império Russo.
Com chave de ouro, Aleksandr Púchkin (1799-1837) fecha o ciclo de tradu-
ções e artigos, apresentado por Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina
em “Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo”. Além de tradução das primeiras
estrofes da obra, que contou também com a colaboração de Boris Schnaiderman,
os autores ressaltam no artigo as preferências de abordagens teóricas que acaba-
ram por influenciar as “escolhas” da tradução, em termos de uma tentativa de
reconstituição de estilo desta obra fundamental da literatura russa.
Por fim, o número é arrematado por entrevista com Susanna Witt, uma
referência hoje na divulgação dos Estudos da Tradução Russos em outras lín-
guas, tendo publicado diversos artigos e organizado e participado de coletâneas
em inglês e também em sua língua nativa, o sueco, sobre o assunto. Como essas
pesquisas são bastante restritas a autores russos, em geral, outros pesquisadores
de Estudos da Tradução, que costumam trabalhar em muitas línguas mas, muitas
vezes, não o russo, acabam por desconhecer seus trabalhos, e a ponte que vem
sido construída por Witt e seus colegas, neste sentido, é de inestimável valor. Seu
trabalho, porém, não está em simplesmente verter as pesquisas russas, e Witt tem
uma vasta investigação própria em arquivos soviéticos. Ela nos apresenta um
panorama das pesquisas levadas a cabo e publicadas em inglês e outras línguas,
e os principais nomes de pesquisadores que se debruçam hoje sobre as questões
russo-soviéticas nesta área.
Esta edição nunca teria podido chegar a sua forma atual não fosse pela
extrema gentileza de diversos detentores de direitos autorais que nos concede-
ram permissão de publicação e de outras figuras-chaves. Por isso, agradecemos
imensamente a Leonid Sokov, por permitir a publicação de Stálin as David; ao
tradutor Robert Chandler que nos colocou em contato com diversos detentores
de direitos autorais; a Aleksandr Daniel, que nos forneceu texto inédito sobre
o pai, Iúli Daniel, e concedeu permissão para publicação de seu “O Ringue”; a
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 9-15 15

Alexander Klimin e Yulia Dobrovolskaya, da agência ELKOST, além de Var-


vara Shklovskaya-Kordi, que nos permitiram publicar texto de Víktor Chklóvski;
a Dmitry Tsvetkov, da agência FTM, pela permissão de publicação de Andrêi
Platónov; a Aleksandr Rigosik e à agência FTM, pela permissão de publicação
de Varlam Chalamov, e a Anna Gavrílova, que auxiliou com os contatos para que
isto fosse possível; a Ksenia Dragunskaia e Dmítri Bykov, por permitirem a
publicação de suas próprias obras nesta edição. Além disso, é preciso agradecer
à revisora Deyse Líbano, cujo trabalho incansável na revisão desta quantidade
recorde de textos foi essencial para a finalização do número. Não fossem a paixão
desenfreada de John Milton, Telma Franco (a quem tanto importunei com uma
infinidade perguntas durante o processo de redação de sua tese), Marina Della
Valle e Francesca Cricelli pelos Estudos da Tradução e sua enorme dedicação à
Cadernos de Literatura em Tradução, este número também não teria sido possível.

Boa leitura!
16 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta

Memórias de uma neta

Luana Chnaiderman de Almeida

Resumo: O presente texto, gentilmente cedido por Luana Chnaiderman à Cadernos de Literatura em Tradução, foi
apresentado durante a abertura da Jornada Internacional: Literatura Russa em Tradução, realizada na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 7 de abril de 2016, e dedicada ao grande pioneiro das traduções
russas no Brasil, Boris Schnaiderman (1917-2016).

Dezembro, 2016

Quando eu era criança, eu e minha mãe morávamos no mesmo quartei-


rão em que ficava o apartamento dos meus avós. Na mesma rua. Um pedaço
de calçada, algumas centenas de metros nos separavam. Era possível, do quarto
da minha mãe, ver a janela do quarto e da sala dos meus avós, e às vezes, para o
meu constrangimento e embaraço, minha mãe e vó conversavam das suas janelas,
entre gritos e gestos que atravessavam a vila de casinhas antigas e operárias que
nos separava. Hoje mal se vê essa vila, escondida atrás de um shopping center.
Outras casas foram derrubadas. A rua foi povoada de restaurantes e comércio
gourmet que antes não existiam nem no nome. Da janela da nossa sala, dava para
ver montanhas distantes, o Pico do Jaraguá, que eu nunca escalei nem subi, e que
hoje é imagem na memória, encoberta por prédios. Mas andar por aquela calça-
da, aquele pedacinho de terra em meio à cidade enorme é para mim lembrar dos
passos do meu avô, da casa onde cresci e da casa da minha avó.
A casa da minha avó era esse lugar perto, onde eu ia jogar dominó e con-
versar com minha avó na língua xadrez que nós duas havíamos inventado. Uma
casa de gatos, a Kika e a Gina, e cachorro, a Chiquinha, que fumava cigarros e
bebia uísque. Uma casa repleta de livros, quadros, roupas de seda, maquiagens
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 17

indianas e joias africanas, com as quais eu brincava enquanto comia os chocolates


que minha vó me dava, escondida da minha mãe.
Eu era criança e meu avô à noite às vezes percorria a calçada e vinha me
contar histórias. Contava histórias de objetos que à noite se rebelavam e faziam
festas enquanto as pessoas dormiam. Histórias de ursos malabaristas e lugares
distantes. Rebeldia da xícara de café ou do bule de chá. Colheres de prata em
revolta. No dia seguinte, nas aulas de redação, eu escrevia as histórias que meu
avô me contava, fingindo que eram minhas. Ficava um pouco envergonhada
quando chegava o meu caderno escolar repleto de marcações entusiasmadas da
professora, como eu era imaginativa e escrevia bem! Sabia-me fingidora, enganava
a professora, o nove conquistado não era meu, mas do meu avô, mas não revelava
o meu segredo a ninguém.
Meu avô andava pelo bairro inteiro. Sempre andou. Eu era criança e me
espantava e orgulhava dos passos firmes do meu avô. Saía pelo bairro para pagar
suas contas, comprar pão ou biscoitos, manteiga e geleia para o chá da tarde, ia
até o xerox fazer cópias dos livros que eu porventura pedia emprestado.
– Vô, empresta esse livro para mim?
– Eu xeroco, pode deixar.
E quando eu chegava à casa dele, lá estava o xerox, a bibliografia anotada
na letra desenhada do meu avô.
Vencia ladeiras gigantes, com seus passos rápidos e firmes, e vinha à USP de
ônibus. Nunca vi meu avô dirigindo um carro. A Jerusa para cima e para baixo em
seu Peugeot vermelho. Meu avô a pé. Tenho uma lembrança guardada, meu avô no
ponto de ônibus, a carteirinha de idoso na mão, tomando o ônibus que o levaria
para a faculdade. Havia algo ali, tão fora do lugar, e ao mesmo tempo tão dentro.
Andava e andava pelo bairro, do banco à farmácia, ocupado com o cotidiano
e suas miudezas e todos o conheciam como professor.
Eu achava bacana aquilo, meu avô era o professor Boris.
Como o porteiro, a caixa do banco, o sapateiro sabiam que meu avô dava
aulas? Todos chamavam meu avô de professor. O bairro inteiro. E eu achava, e
ainda acho, aquilo lindo.
Quando andávamos juntos pelas calçadas, meu avô sempre se colocava entre
mim e os carros. Demorou para eu perceber, tanto o gesto como aquilo que havia
no gesto. Uma gentileza cavalheiresca: ao andar pela calçada o homem deve se
colocar entre a mulher e o trânsito. Eu me sentia bem: quando eu me colocava do
lado errado do passeio, meu avô dava a volta para me proteger dos males da rua.
18 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta

Havia uma gentileza própria do meu avô, que não se separava da sua exis-
tência. Por favor, obrigado, muito bem. Uma noção profunda de horizontalidade
entre as pessoas, que se traduzia no trato com cada um.
Eu ia tomar chá, ou almoçar às terças-feiras com ele, e ele sempre me per-
guntava: o que você anda lendo com seus alunos?
– Vô, nós estamos lendo os contos do Tchékhov.
(Eu sempre pronunciava e continuo pronunciando errado, acho que chegou
um momento em que ele desistiu de me corrigir...)
– Muito bem, muito bem... E eles estão gostando dos contos do Tchékhov?
– Muito vô, se bem que uma aluna ficou revoltada com aquela história em
que um cachorro come os filhotinhos do gato. São tristes, né, vô, os contos do
Tchékhov?
– É, são terríveis, mas são uma maravilha.
– Sim. São uma maravilha, os alunos estão amando, vô.
– O Tchékhov falava que o conto devia terminar em pianíssimo.
– Eu sei, vô, você já me contou, mas sabe, eu não entendo bem isso, eu
acho que um monte de histórias dele têm sim um fim bem marcado e forte.
– Ele falava que os contos devem começar em forte, e terminar em pia-
níssimo.
– Vô, queria saber mais sobre teoria do conto.
– Eu tenho um artigo...
E na semana seguinte o artigo estava ali, xerocado à minha espera, a ca-
ligrafia do meu avô, cada vez mais torta, marcando as referências bibliográficas.
– Vô, me empresta esse livro?
– Eu xeroco para você.
Fazia bem, meu avô. Da adolescente confusa e perdida que eu era, eram
poucas as chances de os livros encontrarem seus caminhos de volta à estante da
casa do meu avô.
A língua russa que meu avô falava ao telefone, quando conversava com mi-
nha tia Berta, sua irmã, era tão legal, quando eu estava na casa dele e o ouvia falar
em russo com minha tia-avó. Parecia que a voz alcançava outra tonalidade e força,
uma força longínqua que vinha de um lugar muito distante e ali estava meu avô.
– Vô, você iria lá na escola, conversar com meus alunos sobre os contos
de Tchékhov?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 19

– Claro! Com prazer, com prazer.


E meu avô veio, boina e camisa alinhadas, veio à pé e eu fui recebê-lo à
porta da escola, toda orgulhosa, apresentando a todos o meu avô.
Os olhos azuis do meu avô.
Os alunos em círculo, meu vô contando da vida do Tchékhov, médico e
escritor, tão preocupado com a vida humana, com a dignidade da vida humana.
Vieram as perguntas.
O primeiro conto que lemos, aquele que abre a antologia A dama do
cachorrinho e outras histórias chama-se Pamonha. É a história de uma empregada
pamonha, que deixa que o patrão a explore até o último centavo, descontando
a louça quebrada, o dia resfriado, o bolo comido. Ao final, a babá recebe uma
ninharia, muito distante do salário que lhe era devido. Ela se curva ao patrão,
e diz: merci.
O patrão se enfurece, diz que estava fazendo um teste, brincando com ela,
como alguém pode ser tão pamonha? E tira da sua mesa de trabalho um envelope
com o salário inteiro.
Havíamos conversado bastante em sala de aula sobre esse conto.
E um aluno perguntou:
– Por que o conto se chama pamonha? Tem pamonha na Rússia?
Todos riram daquela pergunta tão fora de propósito. Eu mesma, professora,
me inquietei com aquela criatura que não parecia saber o que era uma metáfora
ou uma figura de linguagem.
Meu avô, já tendo vivido mais de noventa anos, olhou para o garoto.
– Não tem pamonha na Rússia.
Todos riram.
Meu avô continuou, sério:
– Você tem razão. Não é uma boa tradução. Eu vou mudar na próxima
edição.
O aluno assentiu, sério. E toda classe e eu olhamos em espanto para aque-
le professor, aquela autoridade máxima e sábia, que havia conversado e de fato
escutado a pergunta de um rapazote de dezessete, entre os muros de uma escola,
no bairro.
No dia seguinte meu avô me ligou, perguntando o nome completo do
menino, para contar no livro Tradução, ato desmedido, a história da pamonha e dar
os créditos devidos ao autor da pergunta.
20 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta

– Vô, por que você foi para a guerra?


– Não havia como não ir.
– Como assim, vô, fala mais sobre isso... desenvolve, me conta os detalhes.
– Era o fascismo, Luana. A gente tinha que lutar contra o fascismo. Não
havia como não ir.
Uma vez eu era criança chegando à adolescência e ganhei uma gatinha, quis
chamá-la de Krieg. Havia algo que eu achava bonito naquela sonoridade alemã,
lembrava o grito de guerra do Tarzã, krig ha bandolo, enfim.
– Como ela se chama?, perguntou meu avô.
– Krieg.
– Mas “krieg” quer dizer guerra, em alemão.
– Eu sei, vô, mas eu gosto do nome.
– Mas guerra é uma coisa horrível, não se deve dar um nome assim para
um bicho de estimação, é um nome terrível.
Eu me lembro da gata filhote, lembro de tê-la nas minhas mãos, mas
não lembro do seu destino, nem se ficou chamando Krieg. Espero que não.
Mas eu fazia muita besteira, naquela época, e acho que ainda agora, mas hoje
sei melhor dos pesadelos que meu avô tinha com a guerra, como ficava agitado
com as lembranças ruins, sei das histórias que contava e tento imaginar aquelas
que ele calou.
Eu era criança e ia fazer pesquisa na casa do meu avô. Ele e a Jerusa tinham
duas versões da Enciclopédia Britânica. De anos diferentes, uma mais filosófica,
outra mais informativa. Eram em espanhol e eu as enfrentava porque o mundo
inteiro estava naquelas enciclopédias. E nas estantes do meu avô.
Na casa do meu avô havia muitos quadros, um deles, uma fotografia em
preto e branco, os contrastes estourados, de uma mulher de olhos pretos arre-
galados olhando fixo para a lente da câmera. O cabelo muito preto, em coque,
separado por risca firme. O lábio marcado por batom quase preto. Ao lado dela,
um homem bonito, maxilar quadrado, marcado, olhos grandes e duros, que não
acabavam mais. Eu tinha medo daquela mulher, eu era criança e pensava que era
uma bruxa russa. E aquele homem misterioso que não sabia quem era, mas sabia
que havia se matado.
Depois soube. Eram Lilian Brik e Maiakóvski. Ela, musa dos poetas van-
guardistas russos, libertária. Ele fazia cartazes. E fazia poesias para os operários.
E eu imaginava aquele casal estranho, o homem careca de macacão de pintor,
em cima de uma escada, colando cartazes pelas ruas russas, antes de amar aquela
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 21

mulher de olhos arregalados. Seus retratos na casa do meu avô nunca deixaram
de me assombrar.
Eu usava umas camisetas enormes e chamativas, com grandes dizeres em
línguas estrangeiras, geralmente o inglês.
Um dia meu avô perguntou:
– O que está escrito na sua camiseta, Luana?
– Eu não sei, vô, está em inglês.
– E como você usa uma camiseta com escritas que você não entende?
– Sei lá, vô, é bonita.
– Mas e se tiver escrito, por exemplo, viva o Maluf ?
E eu nunca mais usei nenhuma camisa com dizeres que eu não soubesse
traduzir.
Usei outra, no colegial, que me fazia bastante popular, especialmente entre os
meninos mais velhos. Uma camiseta branca e justa, com uma frase do Maiakóvski,
em português. Andava com elas e as pessoas me paravam. Um dia um menino
mais velho me disse que queria até comprá-la. Uma frase famosa atribuída ao
Maiakóvski: “Antes morrer de vodca que morrer de tédio”.
Fazia muito sucesso, aquela camiseta. Eu achava o máximo.
Uma vez, na quinta série, o professor pediu para que a gente trouxesse um
poema para a classe, um poema que a gente gostasse muito. Todos trouxeram
Drummond, Vinicius. Manuel Bandeira. Eu, toda contente, cheguei com meu
poema preferido, que era Balalaica, do Maiakóvski, que decorei e sei até hoje.

Balalaica
[como um balido abala
a balada do baile
de gala]
[com um balido abala]
abala [com balido]
[a gala do baile]
louca a bala
laika.

O professor olhou o poema que eu havia trazido. Leu, releu, olhou para
a minha cara.
22 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta

Eu tinha dez anos, e ele me falou para ler o poema para toda a classe.
Eu li.
E o professor falou:
– Agora explica.
Eu fiquei quieta, a classe inteira olhando para mim.
Não tinha a menor ideia do que aquele poema significava.
Não sabia o que era uma balalaica, nem uma balada de um baile. Mas achava
lindo o som. E imaginava uma cabra balindo em meio a um baile de gala, coisa
mais engraçada. E legal. E quando meu avô falava o poema em russo, a música
era parecida.
Mas não sabia, nem soube, explicar o poema.
Saí do tablado um pouco envergonhada de ter trazido um poema que
ninguém entendia.
Hoje talvez fosse capaz de fazer uma análise sociológica, sonora, a luta de
classes, o instrumento popular em meio ao baile dos ricos, as aliterações e a força
aberta do A.
Mas eu prefiro minha imaginação de criança, que gostava da música e achava
engraçado uma cabra balindo no meio do baile.
Estávamos na quinta série, e aprendíamos sobre a Guerra Fria e eu tinha
avós russos, ateus e comunistas. Do outro lado, avós acreanos. Que espantam
meus alunos, que afirmam que o Acre não existe. Nem a Rússia. A União Soviética
não mais.
Eu tinha onze anos estávamos em plena Guerra Fria e o professor de his-
tória nos perguntou se alguém ali da classe sabia o que era a Sputnik, e eu toda
empolgada levantei a mão, ansiosa:
– Eu sei, eu sei! É uma vodca muito boa! Meu vô toma todos os dias um
copinho, sempre tem lá em casa, você deixa a vodca no congelador e ela fica leitosa.
A classe inteira riu, inclusive o professor.
Depois a vodca virou cachaças mineiras, que os amigos traziam. Um copi-
nho, de vez em quando, e eu achava meu avô muito russo, quando ele propunha
um brinde, virava o copo cheio, aos noventa e nove anos.
Toda minha vida, os professores, ao verem meu nome na chamada:
– Você é parente do Boris Schnaiderman?
– Ele é meu avô.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 23

E alguma história.
Na graduação, em letras, passei a assinar meus trabalho como Luana Almei-
da. Achava, tinha certeza, que os professores seriam mais exigentes e teriam mais
expectativas, ao saber do meu avô. Hoje, fico muito feliz em estar aqui como neta.
– Vô, eu escrevi um livro de contos e queria te mostrar.
Havia se passado muito tempo, desde o caderno infantil no qual eu copiava
ou transcriava, não sei, as histórias do meu avô.
Eu já havia me formado, feito mestrado, casado, separado, encontrado meu
amor que hoje me acompanha.
Continuei escrevendo, buscando histórias próprias, mas sempre escondida.
Mas agora eu tinha um livro de contos, escrito e reescrito e achei que podia
mostrá-lo ao meu avô.
Quem xerocou desta vez fui eu.
De xerox nas mãos, deixei o livro lá. Era a primeira vez que deixava algo
de meu para que ele lesse.
Alguns dias depois, meu avô me liga.
– Luana, eu li seu livro de contos, e gostaria de marcar uma conversa com
você. Você pode vir aqui em casa, na quarta feira, às cinco da tarde?
Fiquei sem dormir todos aqueles dias, até o dia marcado.
Eu tinha uma reunião com meu avô.
– Luana, eu li seu livro de contos e fiquei muito confuso. A gente não sabe
quando um conto termina e outro começa. Sabe, por mais que a gente tenha uma
concepção larga de contos, por mais que a gente saiba que não existe uma forma
fechada para aquilo que é conto, muitos dos seus escritos são apreensões de mo-
mentos pegos no ar, mas não são contos, eu fiquei muito confuso.
O livro corrigido, verbos e pronomes nos lugares errados.
– Mas tem um conto, um conto seu, que é grande e mostra onde você pode
chegar. Este conto irá permanecer e durar por muitos anos. E poderia estar em
qualquer antologia de grandes contos.
E eu voltei para casa feliz.
Meu livro estava tão confuso que meu avô nem tinha lido inteiro.
Mas tinha um conto ali que sim.
Que poderia durar e fazer sentido daqui a cinquenta anos.
E que o resto não era bem conto.
24 Luana Chnaiderman de Almeida. Memórias de uma neta

E eu reli, pensei, decidi que o que era apreensão de algum estado de espírito
catado no ar poderia talvez continuar assim, mas que eu deveria ter consciência
disso. E o que precisava de trabalho, corpo, enredo, personagem e ação, precisava
de trabalho. E eu refiz o livro inteiro.
Eu chegava às terças-feiras para almoçar com meu avô. Meio dia. Os
horários do meu avô e o relógio que lhe acompanhava os passos. Chegava para
encontrá-lo sempre sentado à sua mesa de trabalho, um grande caderno no qual
fazia anotações daquilo que lia, a máquina de escrever que lhe acompanhou a vida
inteira. A música das teclas da máquina de escrever.
– Vô, é difícil achar tinta para a máquina de escrever?
– Que tinta?! É fita, Luana, é fita...
Sentávamos um pouco no sofá, antes de o almoço ficar pronto.
– E o que você anda lendo com seus alunos?
O almoço ficava pronto e comíamos na cozinha, meu avô alegre e entusias-
mado com o tempero do feijão, do franguinho, a boa comida da Cecília e da Maria.
Meu avô animado com os livros do porvir.
Meu avô na cama do hospital no primeiro dia do internamento contando
sempre de tudo o que estava por vir.
Que ele precisava escrever. Os livros que ele preparava.
– Vô, você foi amigo do Murilo Mendes?
Sim, li um dos livros de poema dele, fiquei muito impressionado e escrevi
para ele. Nos correspondemos, tornamo-nos amigos. Ele tinha uma mulher muito
chata.
Rubem Fonseca. Cortázar.
– Vô, conta aquela história do Cortázar?
– Ele era muito atrapalhado, o Cortázar. Veio ao Brasil encontrar a mãe e
a irmã, o Mindlin disponibilizou um carro com motorista para levá-los a Campos
de Jordão. Ao final da temporada, o Cortázar me liga para dizer que não tinha
como pagar o hotel. Ele tinha consigo somente dólares canadenses, e o gerente
do hotel não queria aceitar o pagamento em dólares canadenses, ele era muito
atrapalhado, o Cortázar, não tinha nenhum senso prático... Um dia ele veio e nós
fomos passear pelo centro, tomar um chopp. Todos que passavam olhavam para
a gente, viravam o rosto, ficavam olhando. O Cortázar ficou todo contente: “Viu,
Boris, como eu sou famoso? Todos aqui me reconhecem, ficam me olhando,
sabem bem quem eu sou”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 16-25 25

Então meu avô começava a rir:


– Mas acontece que o Cortázar era uma figura muito estranha, aquele
homem muito bonito e gigante, e todos olhavam por causa disso, aquele homem
muito alto e estranho, andando pela rua, chamava a atenção e ele todo feliz: “viu
Boris, como eu sou conhecido?”
No hospital, nos últimos dias, contava de novo para mim essas histórias.
– Você me deu uma boa ideia, eu preciso escrever um texto sobre minha
amizade com o Cortázar, vou escrever, vou escrever.
Meu avô nas mostras de cinema, nas últimas exposições, empolgado com
as novas marchinhas de carnaval e com os memes de Whatsapp.
Meu avô apreciando a entrada na Jerusa, na casa, na cozinha, como está
bela, os colares, as bolsas, as cores da Jerusa e a alegria do meu avô ao vê-la.
A falta de jeito para o canto, que eu herdei do meu avô. O apreço pelo
silêncio e alguma falta de jeito para a conversa jogada fora, também herdados.
O entusiasmo, que é ter um deus dentro de si.
O sol vindo tomar um chá com o operário.
Explicando que gente é para brilhar.
Uma lição que meu avô nunca esqueceu.

Dezembro de 2016
26 Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli. Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português

Verbos de Movimento na Tradução


Russo-Português

Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli

Resumo: Comparam-se os meios de descrição do movimento nos dois idiomas e apresentam-se situações, nas quais
as necessidades da tradução produzem subsídios aos dicionaristas.
Palavras-chave: verbos de movimento, direção do deslocamento, posição do falante, tradução.

O principal auxiliar do tradutor são os dicionários. Eles apresentam-lhe a


palavra desconhecida e encaixam-na na frase em construção. Abri-los ao acaso e
reconhecer os vocábulos com a familiaridade de velho amigo é sempre agradá-
vel. Riqueza vocabular, porém, não basta para o domínio da língua de partida; é
preciso conhecer, também, sob qual perspectiva os seus falantes veem o ser ou
coisa, designado por esta ou aquela palavra.
Como ilustração do supradito escolheram-se o movimento e a sua descrição
no português e no russo. No primeiro, toma-se sempre um ponto de referência
fundamental, a localização do falante (местонахождение говорящего; doravante: LF): o
sítio onde, no momento da fala, se encontra a pessoa que comunique, oralmente
ou por escrito, o deslocamento dum animal ou objeto por terra. Em seguida,
considera-se a orientação do movimento (направление движения): se dirigido ao falante
(движение к говорящему) ou se partido de onde ele está (движение от говорящего);
usam-se os pares vir-trazer e ir-levar, respectivamente.

vir, trazer → →→→ L●F →→→→ ir, levar

Em russo, por sua vez, LF não tem nenhuma relevância. O que importa é
se o deslocamento se produz em uma única direção ou em várias (ou, pelo me-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 26-30 27

nos, com retorno). O tradutor deverá estabelecer a orientação do deslocamento,


tomando por base, por exemplo, um pronome: Идите с нами (со мной) [Vinde/
Venham conosco (comigo)]. Porém: Идите с ними [Ide/Vão com eles/as — com qual-
quer pessoa que não seja o falante ou com grupo que não o inclua.].
Seria de esperar que os correspondentes verbos do aspecto perfeito (пойти
e поехать) também pudessem indicar inda e vinda; no dicionário, porém, eles vêm
destituídos de tal possibilidade:

ПOЕХАТЬ Δ сов 1. ir* vi; partir vi, viajar (отправиться)1.


1

Contraponha-se a isso um trechinho do conto «Турист-единоличник»


(Turista individual), de Ilf e Petrov. A personagem Vypolniaev não se rende às
comodidades de uma excursão em grupo à Criméia, já que prefere viajar sozinha,
e diz a colegas de fábrica que não os acompanhará:
— Не поеду! — сказал наконец Выполняев. [Não irei! — disse, finalmente,
Vypolniáev.]2
Movimento partido do falante e, portanto, o conseqüente emprego de ir.
Os companheiros insistem com ele, usando, em lugar do Modo Imperati-
vo, uma construção equivalente: давай (implícito) + verbo do aspecto perfeito na
primeira pessoa do plural:
— Поедем с нами, фабзаяц! (...) [Vem conosco, chefe!]
Фабзаяц упрямился. [O fabzaiats teimava no seu.]
— Поедем, — говорили ему — (...) [Vem /conosco/, — diziam-lhe]3
O pronome oblíquo da primeira pessoa do plural, na primeira fala, e a pessoa
da forma verbal, na segunda, indicam que o falante coparticiparia no movimento;
isso torna o deslocamento de Vypolniáev dirigido a ele e leva ao uso de vir.
O papel decisivo, na escolha do verbo, coube à sintaxe da frase, na qual
havia uma forma verbal ou pronome referente a uma das pessoas incluidoras do
falante (nós). Outro exemplo provê-nos пойти, traduzido como:

1 VÓINOVA, N.; STÁRETS, S; VERKHUCHA, V.; ZDITOVIÉTSKII, F. Russko-portugálskii slovar


(Dicionário russo-português). Moscou: Rússkii iazyk, 1989, p. 445.
2 ILF, I. e PETROV, E. Sobránie sotchiniénii v piati tomakh (Obras reunidas em cinco tomos). Moscou:
Khudójestvennaia literatura, 1996, tomo 2, p. 333.
3 ILF, I. e PETROV, E. Obra citada, p. 332.
28 Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli. Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português

ПOЙТИ Δ сов 1. ir* vi; dirigir-se (para) (направиться)4.


4

Todos conhecem a historinha da querela dum mancebo com o velho, a


cuja guarda ele confiara dinheiro. O homem alega não haver recebido nada; o juiz
pergunta, então, ao queixoso onde se teria passado o facto; o moço responde que
sob uma determinada árvore, e recebe uma ordem insólita:
— Пойди и позови это дерево ко мне — сказал судья. [Vai e chama cá essa
árvore, – disse o juiz.]5
O movimento partiria do sítio onde se encontrava o seu futuro realizador;
portanto, пойти traduz-se como ir.
Cerca de meia hora depois, volta o rapaz e diz:
— Дерево не пошло со мной, мудрый судья!6
No original, está dito que a árvore não se movera (não partira) do lugar
— a ênfase está no ponto de partida (PP); já para nós outros, simplesmente não
ocorrera um movimento, dirigido ao sítio onde o falante já se encontrava (o que
está explicitado pelo adjunto adverbial со мной — соmigo), isto é, ao pé do juiz — a
ênfase está no ponto de chegada (PC); portanto:
— A árvore não veio [não quis vir] соmigo, sábio juiz!
Verbos com o prefixo при- fornecem outras situações, em que os dicio-
nários nada podem fazer pelo tradutor. Vejamos:

ПРИНЕСТИ сов В 1. trazer* vt (тж. перен.).7


7

Como descritor de movimento dirigido ao falante, está perfeito. Raskólnikov


vai à casa da velha onzeneira e diz-lhe:
— Заклад принёс, вот-с! — Trouxe uma coisa pra empenhar, esta!8

4 VÓINOVA, N.; STÁRETS, S; VERKHUCHA, V.; ZDITOVIÉTSKII, F. Obra citada, p. 447.


5 FINÁGUINA Iu. V. Rússkii iazyk kak inostránnyi (Possóbie po tchtiéniiu). Russo para estrangeiros
(Suplemento para leitura). São Paterburgo: ITMO, 2014, p. 4.
6 FINÁGUINA, Yu. Idem.
7 VÓINOVA, N.; STÁRETS, S; VERKHUCHA, V.; ZDITOVIÉTSKII, F. Russko-portugálskii slovar
(Dicionário russo-português). Moscou: Rússkii iazyk, 1989, p. 485.
8 DOSTOIÉVSKII, F. Prestupliéniie i nakazániie (Crime e castigo). Moscou: Rússkii iazyk, 1984,
p. 19.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 26-30 29

Acontece, porém, que o verbo também pode traduzir-se como levar. No


início do filme «Приезжая»/A forasteira (Моsfilm, 1977)9, uma moça conversa
com um pescador, às margens dum lago; ele dá-lhe dois peixes, e ela diz, enver-
gonhada de não estar com dinheiro:
— Вы скажите, сколько надо и где живёте, я принесу.
Os dois encontram-se no vilarejo V. Se ela morasse em outro povoado (V″),
o movimento seria de V″ para V, onde ela se encontra no momento da fala (V″
→ V = LF = PC), e dirigido, portanto, ao falante:
— Diga quanto devo e onde mora, e eu lhe trarei/virei trazer-lhe [o dinheiro].
Ambos, porém, habitam em V; este constitui o espaço maior, em cujo
interior ocorreria o deslocamento dela; o ponto inicial seria a sua casa, e o final,
a morada dele, não o lago (LF = PP); isso configuraria um movimento partido
da falante:
— Diga quanto devo e onde mora, e eu lhe levarei/irei levar-lhe [o dinheiro].
Se, entre vir e chegar, há muita afinidade semântica, em russo ela é total,
pois os dois traduzem-se por um mesmo verbo com o prefixo при-, por exemplo:

ПРИЙТИ Δ сов 1. vir* vi, chegar vi; vir de volta, voltar vi (вернуться)10.
10

Isso é um complicador da tradução. Testemunha-o um caso bem simples:


como verter «Грачи прилетели», nome do famoso quadro de Alekséi Savrássov?
As gralhas são as núncias da Primavera, e o seu retorno de países mais
quentes aguarda-se com impaciência; assim, «As gralhas chegaram» — o realizador
do movimento, dirigido aonde estava o falante, era esperado por este. Se, com o
aquecimento global, aves tropicais sul-americanas se aventurarem por terras russas,
as pessoas dirão: Колибри прилетели! Vieram beija-flores! — agora, o realizador
do movimento, dirigido aonde se encontrava o falante, não era esperado por este.
Veja-se, agora, a conversa de Razumíkhin com Raskólnikov, à saída duma
taberna. O primeiro diz ao segundo que, naquele dia, festejaria a sua mudança
para nova morada, e convida-o a comparecer ali:

9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1gnHVC0ikX0


10 VÓINOVA, N.; STÁRETS, S; VERKHUCHA, V.; ZDITOVIÉTSKII, F. Russko-portugálskii slovar
(Dicionário russo-português). Moscou: Rússkii iazyk, 1989, p. 483.
30 Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli. Verbos de Movimento na Tradução Russo-Português

— Ты знаешь, у меня сегодня собираются на новоселье, может быть


уж и пришли теперь, да я там дядю оставил, (...) — принимать приходящих.
(...) Зайдёшь, что ли?
— Sabe, hoje há reunião lá na minha nova casa, pra comemorar a minha mudança,
talvez até já tenham chegado, mas eu deixei o meu tio lá, (...) — prá receber os que fossem
chegando. (...) Pois então, passarás por lá?
— Не приду, Разумихин! — Раскольников повернулся и пошёл прочь.
— Não irei, Razumíkhin! — Raskólnikov virou-se e foi-se.
— Об заклад, что придёшь! — крикнул ему вдогонку Разумихин.
— Pois eu aposto que tu virás! — gritou-lhe atrás Razumíkhin.11
O mesmo verbo recebeu três traduções diferentes. O dicionário contempla
duas delas; uma, como chegar, por indicar a culminação do movimento de alguém
para um sítio (tenham chegado), e a outra, como vir, por indicar um deslocamento
(presumido) de alguém (Raskólnikov) à nova morada do falante, Razumíkhin, que
o esperaria por lá. Porém прийти, na segunda aparição, refere-se a um movimento
que partirá do falante (agora, Raskólnikov), e deve, portanto, traduzir-se como ir.

* * *

Em conformidade com a norma da língua russa para a descrição do movi-


mento, que é o critério da “unidirecionalidade ou multidirecionalidade”, o Dicionário de
Russo-Português apresenta os verbos com o prefixo по- ou при- сomo indicadores
de deslocamento numa única direção: ou de ida/levada (para os primeiros) ou de
vinda/trazida (para os segundos).
Os exemplos, no entanto, bastam a mostrar que, pelo critério lusófono
da “localização do falante”, o movimento representado ao menos por tais verbos
compreende dois deslocamentos opostos sob a mesma designação, os quais, em
português, recebem cada qual o seu próprio nome.
O tradutor deverá estabelecer PP e PC e, em seguida, LF em relação aos
dois; na escolha do verbo certo, ajudá-lo-á o contexto ou algum elemento da oração.

11 DOSTOIÉVSKII, F. Obra citada, p. 135.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 31

A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia


em tradução

Denise Regina de Sales

Resumo: Este artigo apresenta a tradução do conto “Другие и снег” (Druguíe i sniég; Os outros e a neve), da
escritora, dramaturga, roteirista e crítica de arte Ksenia Víktorovna Dragunskaia (1965-). Considerações sobre a
autora e a obra e reflexões sobre o processo tradutório acompanham os textos literários.
Palavras-chave: Ksenia Dragunskaia, Literatura russa, Tradução literária, Contos russos

Introdução

Na Rússia, KseniaVíktorovna Dragúnskaia (1965-) carrega o peso do so-


brenome. Seu pai, Víktor Iúzefovitch Dragúnski (1913-1972), é um clássico da
literatura soviética infantojuvenil. Em entrevistas e artigos sobre ela costumam
aparecer comentários ou perguntas sobre ele. Dmitri Bykov, escritor, professor e
crítico literário inovador e polêmico, não escapou do puxar desse fio de passado,
lembrança e influência. “O que você pensa da obra de seu pai e por que justamente
ele se tornou um escritor importante para as crianças soviéticas?”, pergunta Bykov
a Dragunskaia em entrevista publicada na Novaia Gazeta em 2015. A resposta
revela a inclinação da escritora à simplicidade, a um posicionamento naturalmente
distante de complexas elaborações retóricas:

O meu pai tornou-se um escritor importante, acima de tudo, porque não


se preocupou com isso. Simplesmente escrevia para agradar a si mesmo.
Qualquer tentativa de se tornar um importante autor da literatura infanto-
juvenil – estabelecer essa meta, obrigar-se a ficar sentado, trabalhando sem
parar, e também fazer amizade com críticos e membros de toda espécie
32 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução

de júri – está forçosamente fadada ao fracasso. Do mesmo modo, estão


fadadas ao fracasso as tentativas de explicar esse sucesso fenomenal. Quem
o povo – a grande massa de leitores – vai escolher como herói e por que,
isso é algo absolutamente imprevisível.1 (tradução minha)

Esse modo simples e prático de ver a vida reflete-se na escritura de Dra-


gunskaia, cujos contos são retratos delicados de situações corriqueiras que ex-
põem, apesar da singeleza, ou talvez por causa dela, profundas questões sociais
e existenciais. O conto escolhido para este artigo faz parte da coletânea Секрет
русского каменбера [Secret russkogo kamenbera; O segredo do camembert russo],
publicada em 2015.
Ksenia Dragunskaia escreve desde a adolescência, passada em Moscou,
onde nasceu em 1965. Na década de 90, publicou sua primeira peça de teatro
– hoje são mais de trinta. Sobre a prosa, contou a Dmitri Bykov: “Sempre quis
escrever prosa.” [...] “Escrever prosa é um sonho. Ficar sentada à beira do lago,
no campo, cuidar da horta, escrever prosa. Escrever a mão. Trabalhar, farfalhar
as folhinhas, acariciar as palavras. Cuidar da terra e escrever a mão, dois sonhos
[...].”2 (tradução minha)
A edição de 2015 utilizada para este artigo traz uma marca da irreverência
da autora, que desestabiliza o tom sério da advertência sobre uso de palavras obs-
cenas. De acordo com uma lei federal russa de 2014, todos os livros devem trazer
uma indicação explícita da presença de obscenidades e palavrões, inscrevendo-se
uma nota de advertência em local bem visível. Na quarta capa e no colofão do
livro de Dragunskaia, aparece a advertência, conforme exigido. Entretanto, num
aviso recortado na forma de bilhete (um retângulo cinza na capa alaranjada), lê-
-se o seguinte:

1 «Главным писателем» отец стал прежде всего потому, что не собирался им становиться. Просто
писал себе в свое удовольствие. Все попытки стать главным детским писателем принудительно,
наметив эту светлую цель и используя усидчивую задницу и трудолюбие, а также грамотно дружа с
критиками и членами всяческих жюри, – обречены на провал. Так же на полный провал обречены
и попытки объяснить этот феноменальный успех. Кого народ – широкие читательские массы –
назначит героем и почему, совершенно непредсказуемо.
2 “Всегда хотела писать прозу. [...] Писать прозу – мечта. Сидеть в деревне у озера, огородничать
и писать прозу. От руки. Работать, шуршать листочками, лелеять слова. Земледелие и чистописание,
две мечты [...]”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 33

Leitor, não se assuste!


Nestas trezentas e poucas páginas estão, no total, umas dez palavrinhas pesa-
das. E mesmo assim – tudo é só suavidade e pureza. Então leia essas estórias
tristes e engraçadas a respeito de todos nós, divirta-se e chore com elas.
Autora e personagem3
(DRAGUNSKAIA, 2015, quarta capa, tradução minha)

Другие и снег

А.К. проснулся и понял, что ему снился важный сон. Но какой, про
что, кто там был – А.К. не запомнил. Тогда он принял душ, позавтракал и
снова лёг спать, чтобы вспомнить. И оделся поприличнее, и одеколоном
набрызгался – мало ли кого во сне встретит...
А.К. уснул и стал думать про зиму.
«Зима строгая, умная, – думал А.К. – Не пустит болтаться по улицам,
велит сидеть дома, усадит за письменный стол... Снег лежит на ветках умело,
потому что уже привык...»
А.К. не то чтобы любил снег. Он снегу сочувствовал. Потому что в
ноябре каждый дурак любит снег, и ждёт его, и радуется ему, а уже в начале
марта снег лежит такой некрасивый и знает, что ему осталось недолго, что
он старый и всем надоел, а все его терпеть не могут, торопят его конец. А.К.
находил отношение к снегу вероломным и нечестным. А.К. понимал снег
всегда, и жалел его, и в марте ходил прощаться со снегом в поля.
Раньше А.К. думал, что он один – главный пониматель и защитник
снега. Но осенью нашлись другие. Они позвонили в звонок на крылечке рано
утром и, когда полуодетый, спящий на ходу А.К. отворил дверь, поклонились
и сказали почтительно и радостно:
– Снег, хозяин.
А ведь А.К. чуть было не проспал приход снега, он любил дожидаться
его ночного прихода, не то что всякие там «все остальные» – на всё
готовенькое – проснулись, а уж кругом белым-бело. А тут А.К. засмотрелся
снов и чуть было не прозевал встречу со снегом, когда он летит навстречу
земле, а земля ещё тёплая, и снег сперва тает недолетев, а потом укрывает её.

3 Читатель, не пугайся! Тут на триста с лишним страниц всего-то с десяток крепких словечек. А
так – одна сплошная нежность и целомдрие, так что читай, смейся и плачь над этими грустными
и смешными историями про нас с тобой. Автор и персонаж.
34 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução

А.К. поздоровался с бригадой любителей снега, и некоторое время


они вместе молча смотрели, как снег обживает чёрный, притихший полулес,
полусад А.К., скамейки и старые яблони, кривую вишиню, укутанный шалями
неисправный автомобиль и черепичную крышу дома. Налюбовавшись
снегом, А.К. попрощался, велев приходить ещё, когда снега наберётя
побольше.
И они стали приходить к нему часто, потому что зима удалась. Иногда
они приходили слишком рано, и тогда специально для них А.К. повесил
на дверь аккуратное объявление «ПРОСЬБА В ДВЕРЬ НЕ ЗВОНИТЬ». И
стал запирать на замок калитку. Обидно, если вдруг сон не досмотришь.
А.К. мог спать когда и сколько хочет. Жил он в своём доме,
окружённом лесным садом, где на заброшенных клумбах росли сыроежки, но
по осени, собирая грибы, можно было вдруг набрать много яблок, которые
падали с одичавших яблонь и часто оказывались под берёзами. На работу
А.К. не надо было. Он и без всякой работы был богатый. Так получилось.
Некоторые думают, что богатые обязательно глупые и злые, так это просто
неправильные богатые. Ненастоящие. А.К. был настоящий и правильный.
Он защищал справедливость. Ему не нравилась поговорка «нужно как рыб-
ке зонтик» – ведь откуда кому известно, что нужно рыбке, – и он построил
фабрику зонтиков для рыбок в зоне экономического бедствия. Безработные
получили работу, обрадовались и очень зауважали А.К., писали ему открытки
к праздникам, советовались по всяким вопросам или просто спрашивали,
как жить дальше. Но про это А.К. только шутил, потому что сам не знал.
А.К. спал и шёл берегом моря. Было пасмурно и тепло. Поодаль
впереди он увидел своего друга, пропавшено без вести давным-давно. Друг
ждал А.К., улыбаясь, и он заспешил по светлому песку, чтобы обнять его и
спросить, куда тот подевался и где его искать и надо ли вообще искать-то?..
В дверь позвонили.
Песок стал сырым и вязким, А.К. торопился, а друг помахал рукой и
быстро пошел прочь.
Опять позвонили.
«Убъю», – решил А.К., привычно нашаривая пистолет под вышитой
шёлковой думочкой. Пистолет всегда под рукой, а то мало ли что во сне
приключится.
В халате и с пистолетом А.К. вышел на крылечко.
Таджики сидели на корточках на снегу, как галки, в чёрных шапках и
тощих куртёнках. Они не умели прочесть объявление и не знали, что, если
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 35

калитка закрыта, не стоит лезть через забор. Но они любили снег. Никто
не встречал снег так радостно, как таджики, – ведь снег можно убирать за
деньги, покупать еду и папиросы, платить за постой бабульке в соседней
деревне, откупаться от милиционеров, а если снега много, то можно послать
кусочек денег домой.
– Снег, хозяин, – парень, который немножко говорил по-русски, встал
и поклонился А.К.
Рядом с таджиками тусовались общественные собаки. Таджики и
собаки смотрели на А.К. честными тёмно-карими глазами. И таджики, и
собаки были неунывающие и бывалые.
А.К. подумал, что собаки не различают цвета и всю жизнь смотрят
чёрно-белое кино про людей и кошек. И, наверное, это кино не очень
весёлое.
И тут А.К. догадался, как жить дальше.
Жить надо так, чтобы собакам было не стыдно и не противно
смотреть чёрно-белое кино про людей.
– Заходите, братцы, – сказал А.К. – Научу вас по-русски читать...

Os outros e a neve

A.K. despertou e percebeu que tinha sonhado algo importante. Mas o quê,
a respeito de que, quem estava lá – A.K. não se lembrava. Ele então tomou uma
ducha, o café da manhã e deitou-se de novo, para lembrar. Vestiu-se com esmero e
borrifou-se água-de-colônia – sabe-se lá quem podemos encontrar em um sonho...
A.K. adormeceu e começou a pensar no inverno.
“O inverno é severo, inteligente”, pensava A.K., “não deixa ninguém sair
batendo pernas pelas ruas, obriga todos a ficar em casa, sentados à escrivaninha...
A neve acomoda-se jeitosa sobre os galhos, porque já está acostumada...”
A.K. não só gostava da neve. Ele sentia a neve. Porque em novembro qual-
quer idiota gosta da neve, espera por ela, alegra-se com ela, mas, já no começo de
março, a neve caída fica tão feia, ela sabe que lhe resta pouco tempo, que encheu o
saco de todo mundo, que ninguém mais consegue suportá-la, que todos apressam
o seu fim. A.K. achava desleal e injusta essa relação com a neve. A.K. compreendia
a neve sempre, compadecia-se dela e, em março, ia ao campo para se despedir.
Antes A.K. pensava que era o único – o principal conhecedor e defensor
da neve. Mas, no outono, apareceram outros. Tocaram a campainha na entrada
36 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução

da casa logo cedo e, quando A.K. seminu, num passo sonolento, abriu a porta,
inclinaram-se e disseram-lhe com respeito e alegria:
– Neve, patrão.
E olha que A.K. por pouco não perdera a chegada da neve; ele gostava
de esperar a sua chegada noturna, não era como qualquer um – que pega tudo
pronto –, não era como “todos os restantes”, que despertavam quando tudo ao
redor já estava bem branquinho. E agora A.K. tinha ficado olhando tudo ao redor
e por pouco não deixara passar o encontro com a neve, aquele momento em que
a neve voa em direção à terra, primeiro derrete antes de tocar o solo, mas depois
cobre tudo.
A.K. cumprimentou a brigada de amantes da neve e, durante algum tempo,
eles ficaram juntos, em silêncio, olhando como a neve ocupava o negro e emudecido
meio-bosque, meio-jardim de A.K., os bancos e as macieiras antigas, a cerejeira
retorcida, o automóvel estragado e encoberto por xales, as telhas da casa. A. K.
deleitou-se longamente com a neve e então se despediu, ordenou que eles viessem
ainda outra vez, quando tivesse mais neve acumulada.
E eles passaram a visitá-lo com frequência, porque o inverno vingou. Às
vezes chegavam cedo demais e então, especialmente para eles, A.K. pendurou na
porta um aviso bem preciso, “PEDE-SE NÃO TOCAR A CAMPAINHA”. E
passou a trancar o portão. Que chato, de repente não conseguir sonhar até o fim.
A.K. podia dormir quando e quanto queria. Morava em casa própria, cercada
de bosques e jardins, onde cresciam cogumelos sobre canteiros de flores abandona-
dos, e no outono, ao colher cogumelos, às vezes acontecia de pegar muitas maçãs
que caíam de macieiras asselvajadas e que, com frequência, iam parar debaixo de
bétulas. Ao trabalho A.K. não precisava ir. Sem trabalhar nada, já era rico. Era
assim. Alguns pensam que os ricos são obrigatoriamente tolos e malvados, mas
esses são apenas os ricos indignos. Falsos. A.K. era verdadeiro e honesto. Ele de-
fendia a justiça. Ele não gostava do ditado “imprescindível como o guarda-chuva
a um peixinho” – pois como é que se sabe de que precisa um peixe? – e abriu
uma fábrica de guarda-chuvas para peixinhos em uma zona de pobreza extrema.
Os desempregados conseguiram trabalho, ficaram felizes e passaram a ter muita
consideração por A.K., mandavam-lhe cartões na época de festas, aconselhavam-se
com ele sobre todo tipo de questão ou simplesmente perguntavam como se deve
viver. Mas a esse respeito A.K. só gracejava, pois ele mesmo não sabia.
A.K. dormia e andava pela praia. O tempo estava sombrio e quente. À
frente, lá longe, ele viu um amigo que sumira sem dar notícias havia muito, muito
tempo. O amigo ficou esperando A.K., sorrindo, e ele apertou o passo pela areia
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 37

clara, para abraçá-lo, perguntar onde tinha se metido, onde podia encontrá-lo e,
afinal, se devia procurá-lo...
Tocaram a campainha.
A areia ficou úmida e pegajosa, A.K. apertou o passo, mas o amigo abanou
a mão e foi embora rapidamente.
Tocaram de novo.
“Mato um”, decidiu A.K., apalpando, num gesto habitual, a pistola sob a
almofadinha de seda bordada. A pistola estava sempre à mão, sabe-se lá o que
pode acontecer em um sonho.
De roupão e com a pistola, A.K. foi até a entrada.
Os tadjiques estavam sentados de cócoras sobre a neve, como gralhas, de
gorro preto e jaqueta leve. Eles não podiam ler o aviso e não sabiam que, se o
portão estivesse trancado, não era pra se esgueirar pela cerca. Mas eles amavam
a neve. Ninguém recebia a neve com tanta alegria como os tadjiques – pois é
possível limpar a neve em troca de dinheiro, comprar comida e cigarros, pagar o
cômodo alugado na casa de uma velhinha do povoado vizinho, livrar-se de poli-
ciais e, quando neva bastante, mandar então um pedacinho de dinheiro para casa.
– Neve, patrão. – o rapaz que falava um pouco de russo levantou-se e fez
uma reverência a A.K.
Perto dos tadjiques juntavam-se cães de rua. Os tadjiques e os cães dirigiam
seus olhos honestos, castanho-escuros, a A.K. Tanto os tadjiques quanto os cães
eram incansáveis e traquejados.
A.K. pensou que os cães não distinguem cores e passam a vida inteira
assistindo a filmes de pessoas e de gatos em preto e branco. E, na verdade, esses
filmes não são lá muito alegres.
Neste momento A.K. descobriu como se deve viver.
Deve-se viver de modo que os cães não sintam vergonha nem tristeza
ao assistir filmes de pessoas em preto e branco.
– Entrem, irmãos, – disse A.K. – Vou ensinar russo a vocês...4

4 Agradeço a Elena Vassilevich pelo cotejo do conto durante a revisão do artigo.


38 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução

Em português

Chama a atenção, em entrevistas e depoimentos de Dragunskaia, o tom de


bate-papo da sua conversa, como se fosse fim de tarde e ela estivesse olhando o
sol se pôr, enquanto, satisfeita com mais um dia de vida, joga conversa fora, sem
deixar transparecer que fala de coisas sérias e importantes. Assim soou o tom
da literatura de Dragunskaia desde a leitura do primeiro texto, desde “Дурные
наклонности” [Durníe naklónnosti, Más inclinações]. Essa estória começa na
época em que a personagem era criança. Sentada no parapeito interno da janela da
cozinha, a menininha observa os adultos, ouve as suas conversas e, ocasionalmente,
lança o olhar ao movimento de carros na rua. Nesse momento, ela confessa suas
más inclinações – gostar mais de carros do que de bonecas:

E os carrinhos continuam correndo pela avenida. Eu gosto tanto deles!


Quando eu crescer, com certeza vou ter meus próprios carrinhos, e vou ser
amiga deles, vou cuidar deles e dar banho neles, e juntos vamos passear em
lugares divertidos e interessantes. Puxa vida, eu entendo é de carrinho…
isso sim…
Mas todo mundo diz: “você é menina!” e me dão umas bonecas de plástico
daquelas grandonas.5 (Tradução de Daniel Saeger apresentada no Sarau
Literário do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul em dezembro de 2016. Texto não publicado).

A menina cresce e acompanha as transformações de Moscou: a ampliação


das avenidas, o fechamento de tradicionais pontos de encontro. A mulher tem um
filho, que também cresce, e não vê na mãe características de avó. Também como
avó, a personagem continua gostando mais de “carrinhos”, dos quais sente pena,
quando os engarrafamentos de Moscou os obrigam a se espremer nas grandes
avenidas.
Embora distante de “Más inclinações” em termos de conteúdo, “Os outros
e a neve” soa no mesmo tom. Aqui o termo “tom” tem como referência Boris

5 И машинки бегут по Садовому. Как я их люблю! Когда я вырасту, у меня непременно будут
свои машинки, и я буду с ними дружить, лечить их и умывать, и мы вместе будем ездить туда, где
весело и интересно.
Машинки – вот это да, это я понимаю...
Но все говорят: «Ты же девочка!» и дарят мне больших пластмассовых кукол. (DRAGUNSKAIA,
2015, p. 223-4).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 31-40 39

Schnaiderman na seção “Precisão semântica e precisão de tom” (2011, p. 31). Para


ele, concentrar-se na busca da precisão semântica pode tornar “o texto explicativo
e duro demais”. A “preocupação com o efeito artístico e certa leveza”, ou seja,
a busca da precisão de tom, às vezes implica em tomar liberdades no aspecto
semântico. E mais adiante, “a relação entre o semântico e o poético, este jogo de
imaginação e fantasia, acaba constituindo a pedra de toque de uma tradução” (p. 34).
Concomitantemente, podemos falar do “ritmo”, como destacado por Ana
Cristina César em “O ritmo e a tradução da prosa” (1999, p. 364-78): “Todo mundo
sabe que, em poesia, o tradutor deve levar em conta, acima de tudo, o ritmo. Em
prosa, o caso é diferente: o tradutor tende a concentra-se em problemas semân-
ticos”. Em seguida, César desenvolve suas ideias a respeito do “ritmo poético da
prosa”. A partir de exemplos de versões de romances de Machado de Assis para
o inglês, ela investiga se os textos traduzidos reproduzem ou tentam reproduzir
“a pontuação, o movimento, o compasso, a estrutura da frase original” (p. 366).
No conto de Dragunskaia um dos elementos do ritmo é a repetição. Nesse
texto curto, repetem-se 28 vezes as iniciais A. K. do nome da personagem. Sete
parágrafos são iniciados por elas. A estória gira em torno desse homem que vive
sozinho, não precisa trabalhar, faz apenas o que quer e se refugia no sonho. Ele
sente a neve; sentir aqui na acepção de ser sensível a, de deixar-se impressionar
por; ter compaixão, sentir pena. E a palavra neve se repete 23 vezes.
Em sua identificação com a neve, em seu gosto pelo inverno, A.K. percebe-
-se único e especial até que descobre outros iguais a ele, outros conhecedores e
defensores da neve, que se juntam a ele para observar como a neve pousa sobre a
natureza e os objetos. Esses outros, os trabalhadores tadjiques que migram para
a Rússia em busca de emprego e desempenham tarefas que não exigem mão de
obra qualificada, despertam em A.K. o mesmo sentimento de compaixão que ele
tem em relação à neve. A partir daí ele descobre como deve viver. Por isso os ou-
tros tornam-se irmãos no último período do conto, na fala final de A.K., a única
dele que se abre com travessão: – Entrem, irmãos, – disse A.K. – Vou ensinar russo
a vocês... Pelo travessão, este convite a entrar em casa, essa aceitação dos outros
como iguais, responde às duas outras falas abertas com travessão: – Neve, senhor,
ambas emitidas pelos tadjiques.
A pontuação entra tanto como elemento do ritmo quanto como marcação
da separação do mundo solitário de A.K., da relação de A.K. com o sonho, da
interação de A.K. com os outros e também da relação do narrador com os perso-
nagens. O mundo solitário é expresso pelo narrador onisciente sem marcações de
diálogo ou de pensamento. A fala de A.K. nos sonhos ou consigo mesmo desperto
40 Denise Regina de Sales. A prosa delicada de Ksenia Dragunskaia em tradução

aparecem entre aspas, como em “O inverno é severo, inteligente” ou em “Mato um”.


Os travessões que não abrem falas antecedem passagens de discurso indireto livre
em que o narrador fala em nome de A.K. como acontece no primeiro parágrafo
(Mas o quê, a respeito de que, quem estava lá – A.K. não se lembrava. [...]Vestiu-se melhor
do que antes e borrifou-se água-de-colônia – sabe-se lá quem podemos encontrar no sonho...),
ou dos tadjiques, como na última parte do conto (Ninguém recebia a neve com tanta
alegria como os tadjiques – pois é possível limpar a neve em troca de dinheiro, comprar comida
e cigarros, pagar o cômodo alugado na casa de uma velhinha do povoado vizinho, livrar-se de
policiais e, quando neva bastante, mandar então um pedacinho de dinheiro para casa.).
As frases simples e curtas e a predominância de períodos com orações
coordenadas dão leveza e naturalidade ao texto. Não há nada de empolado no
vocabulário. Por isso a decisão de usar simplesmente “cogumelos”, na passagem
em que a autora usou сыроежки [cyroiejki], nome popular de um dos cogumelos
do gênero Russula, que, se incluído no texto em português, poderia ter dado a
impressão de erudição, contrariando o tom geral de simplicidade.

Referências
CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.
DRAGUNSKAIA, Ksenia. Секретрусскогокамамбера[Secret russkogo kamabera; O segredo
do camembert russo]. Moscou: AST, 2015.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Website
Jornal Novaya Gazeta. Entrevista de Dmitri Bykov com Ksenia Dragunskaia. Disponível
em: https://www.novayagazeta.ru/articles/2015/12/21/66884-171-a-v-lob-187 . Acesso
em 25 ag. 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 41

Assassinato no expresso do Oriente

Eloah Pina Pereira

Resumo: Tradução de conto da coletânea ЖД-Рассказы (Contos de ferrovia), de Dmítri Lvóvitch Býkov.
Palavras-chave: Literatura russa contemporânea; Dmítri Býkov; intertextualidade; histórias de trem; tradução

Nota biográfica

Dmítri Lvóvitch Býkov nasceu em Moscou, em 1967. Jornalista de for-


mação, é editor, professor, palestrante, radialista e um dos mais prolíferos – e
polêmicos – escritores russos contemporâneos. Inédita em português, a coletânea
de contos ЖД-Рассказы (Contos de ferrovia) foi publicada em 2007 após seus
contos terem sido encomendados para a revista da companhia estatal de trens,
Саквояж СВ (Valise SV, sigla em russo para vagão-leito), sob a temática das histó-
rias de trem. Nela, Býkov destila toda sua ironia e humor, fazendo uso constante
da coloquialidade e do intertexto, seja esse relacionado ao passado soviético ou à
cultura pop que passou a invadir a vida russa a partir dos anos 1990. Assassinato
no expresso do Oriente, homônimo do romance de Agatha Christie, é um exemplo
de como Dmítri Býkov faz uso do cronótopo da via férrea, recorrente na literatura
russa, deixando clara sua irreverência iconoclasta em vários momentos da narrativa.

Assassinato no expresso do Oriente (Dmítri Lvóvitch Býkov)

Primeiro serviram gelatina de alce, depois taimen rosa defumado que derretia
na boca, patê lilás picante feito de caça, queijo Okhótnitchi com cheiro-verde, em
seguida carne de urso marrom-avermelhada, seca e fibrosa, um prato de pinhões
descascados, com tudo isso, a vodca Taiga no gengibre, depois um caldo forte com
42 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

pelmenis artesanais redondos e gordos – de novo, feitos de alce –, depois costelas de


javali assadas com repolho, alho selvagem salgado e brusníca em conserva, e Volódia
Coqtelho-Perverte1 devorou tudo. Devorou, mexendo os maxilares vigorosamente,
aprovando com a cabeça para as garçonetes, piscando para o tradutor, devorou,
como se não tivesse sido alimentado na França, na Alemanha e na Polônia, onde
estivera antes da turnê russa, como se estivesse se empanturrando para vingar toda
sua juventude faminta, gasta na compreensão da suprema sabedoria em mansardas
de Paris e favelas de Buenos Aires. Um escritor europeu petiscaria com requinte
ali, cheiraria aqui e pegaria um pedacinho de pão – seria suficiente; mas Coqtelho-
-Perverte era latino-americano e bem sabia que, enquanto oferecerem comida, é
preciso devorar. Depois não haverá mais. Apenas essa grande escola da vida vivida
impetuosamente reconciliou Syromiátnikov2 com Perverte, ainda que em parte.
Sentia-se que era um homem que não só cheirava, mas que sorvia o pão todo.
Célebre autor de romances policiais esotéricos, conquistador do mercado
literário internacional, amigo pessoal da Madonna, parceiro preferido do Paul
McCartney no bridge, no críquete e na meditação transcendental, confidente do
Maradona, talismã da seleção argentina de hóquei na grama, convidado habitual
da Sorbonne, padrinho do filho ilegítimo de Celentano3 e afilhado do dalai-lama,
batizado no budismo com o nome de Sutipon Brrátrrábratrrá, que significa, só
pode ser, verme cabeçudo careca que pretende parecer um líder espiritual – Vo-
lódia Coqtelho-Perverte nasceu em uma família de um grande latifundista, isto
é, proprietário de terras, no ano de 1951. O pai se afeiçoara aos ideais de Lênin
e homenageou-o dando seu nome ao filho, mas, para a felicidade de Volódia, ele
se contentava com a teoria, praticando o capitalismo predatório da maneira mais
mafiosa possível. O filhinho, professor espiritual dos estudantes europeus, ídolo
dos campi norte-americanos e dos companheiros cubanos, herdou do papai a feliz
capacidade de professar uma coisa e praticar outra. Foi estudar em Paris, lá pro-
vou todo tipo de neuroestimulantes e psicodélicos, largou os estudos, foi clochard
debaixo de pontes, viajou pela Europa, ganhou a vida de todo jeito – de kidnapping
até cunilíngua – e foi descoberto pelo papai preocupado em uma comunidade
maoísta-rastafári de Amsterdã que venerava uma negra grávida, Mãe dos Mundos.

1 O sobrenome Coqtelho-Perverte é um trocadilho com os sobrenomes de escritores contemporâneos


Paulo Coelho e Arturo Pérez-Reverte.
2 O sobrenome Syromiátnikov vem da palavra Syromiátnik, que em russo significa curtidor, aquele
que faz curtumes.
3 Adriano Celentano, cantor, compositor e ator italiano nascido em 1938. Muito popular na União
Soviética por ser protagonista das comédias Um blefe de mestre (1976), Loucamente apaixonado (1981) e Bingo
Bongo (1982).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 43

O papai concluiu, com razão, que a formação do filho estava concluída, e o pôs
para descansar em um hospital psiquiátrico em Buenos Aires, onde Volódia pela
primeira vez foi transpassado pela chamada Luz Cor de rosa. Sob a ação dessas
ondas mornas, ele psicografou, como se fosse ditado das alturas, as primeiras
páginas do romance policial esotérico A morte do beduíno, cujo herói, o detetive e
místico Raban, viajando por épocas e continentes, no fim das contas desmascarou
o mal mundial. Perverte estava sem absolutamente nada para fazer na clausura
confortável, as pílulas eram dosadas corretamente (sim, dizem, aliás, ter seduzido
uma bela enfermeira que também o abastecia com haxixe) – apenas lia e alucinava.
Ele leu As mil e uma noites, Borges, os sufistas, um par de interpretações populares do
Novo Testamento e criou um gênero que lhe trouxe grande fama. Todos os vinte
e três romances policiais místicos malfeitos sobre viagens do Raban por Borges e
pelos sufistas, com paradas regulares no Vaticano, em Meca, Jerusalém, na época
das cruzadas e do florescimento de Veneza, pareciam iguais a uma goma árabe
embrulhada numa página da Enciclopédia Britânica puída. Certa vez, Syromiátni-
kov comprou essa goma árabe em Istambul e surpreendeu-se com a semelhança
literal: viscosa, doce, e a todo esse grude exótico se prendiam fragmentos de manual
de história. No entanto, os intelectuais sabichões elegeram Perverte o principal
latino-americano pós-modernista, enquanto o leitor comum comprou A morte do
mufti, O corão roubado e Cabala dos hipócritas em tamanha quantidade que depois de
cinco anos de carreira literária Volódia adquiriu o hospital psiquiátrico onde teve
a iluminação e ali fundou a Escola Interconfessional de Iluminação Espiritual.
Lá se estudava seu testamento espiritual para os povos do mundo todo – Livro de
cabeceira dо Cavaleiro Iluminado. A contadora era aquela negra sempre grávida que
ele venerara em Amsterdã.
Coube a Syromiátnikov traduzir tudo isso – na universidade ele aprendeu
espanhol. Ele também escrevia romances policiais, e bem melhores que os de
Coqtelho, mas não tinham serventia para ninguém, já que os heróis de Syromiátnikov
eram mortos não no Louvre, mas em um hotel provinciano, e os assassinos não
eram monges da sociedade secreta voltairiana, mas desempregados locais levados
ao desespero. De seus romances policiais não dava para arrancar sequer uma
novelinha. Consequentemente, ele mamava nas tetas de Coqtelho e já arrastara
para a língua materna dos choupos-tremedores4 seis de seus cacarecos típicos,

4 Citação de um dos versos do epigrama escrito por Turguêniev para Nikolai Khristofórovitch Kettcher,
jornalista e tradutor, que traduzira Shakespeare para o russo, em prosa. A tradução foi malvista pelos
contemporâneos e, mais tarde, a expressão tornou-se popular para fazer referência às más traduções. “Eis
que o mundo ainda era claro/ Kettcher, amigo dos vinhos espumantes/ Estragduziu Shakespeare para
nós/ na língua materna dos choupos-tremedores.”
44 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

incluindo o recém-lançado Código de Afrodite. A moda russa de Vladímir come-


çou com Makarévitch,5 que conheceu o gordo bronzeado quando foi mergulhar
nos mares do sul e o convidou para ir à Rússia. Ele também trouxe para cá um
exemplar da Agenda do guerreiro de prata e, durante as apresentações de mais um
disco, mostrou-o para o editor-chefe do Eksnia.6 O Eksnia rapidamente percebeu
o que farejara – lhe ofereciam toda a cultura e religião mundial em um só frasco,
mastigada, vomitada e apimentada –, e logo a enorme bocarra do guerreiro da
luz escancarou-se em todos os billboards. A divulgação foi audaciosa e, no auge
da moda, Coqtelho foi convidado ao Oriente nevado do espírito mundial, como
chamou a Rússia já na primeira entrevista moscovita. O título do novo romance
tornou-se slogan da viagem: Rumo ao Oriente! Perverte expressou o desejo de atra-
vessar a Rússia – de Moscou até Tchitá –, encontrando-se com os admiradores
em cidades grandes e abençoando de longe as pequenas. No expresso do Oriente
Baikal Azul engancharam um salão-vagão, e nele equiparam uma cabine de luxo
para Perverte, uma para a secretária sérvia viril, e ainda uma para o secretário
colombiano afeminado (Syromiátnikov ainda não entendera com qual deles o
guerreiro da luz tinha um caso), para o próprio tradutor designaram um cubículo
modesto perto do banheiro, e diante dos flashes o amigo da Madonna se lançou
à sua primeira peregrinação russa.
Ele era, na maioria das vezes, um cara bom, que sabia perfeitamente o
preço de seus produtos. Vestindo-se com uma bata prateada bordada e um tur-
bante branco-neve, antes da parada em Kazan e Novossibirsk, Coqtelho assobiou
baixinho algo revolucionário, е com um olhar tão trapaceiro que, dessa vez,
Syromiátnikov não conseguiu resistir e piscou para ele. Traduzir sua algaravia era
surpreendentemente fácil – ele falava completos absurdos e deixava que o tradutor
o adornasse como quisesse. “Eu não me ofendo, amigo”,7 disse retumbante du-
rante o primeiro encontro, “se na tradução simultânea você se afastar do original
o quanto quiser. Confie na sua imaginação, que foi induzida pela presença do meu
espírito poderoso! Há! Há!” – e Syromiátnikov não se recusava a nada. “Jejum
regular nos dias pares, abstenções de deveres conjugais nos ímpares, contemplação
da constelação Rato Pensativo, como nós no Brasil chamamos a Ursa Maior, e
limpeza dos chacras por escovas de limpeza higienizantes da marca Salem, da qual
eu sou sócio, ajuda você já no final do primeiro ano das aulas a alcançar o Grau de

5 Andrei Vadímovitch Makarevitch, músico e rock star moscovita nascido em 1953.


6 Referência a Эксмо [Eksmo], uma editora moscovita de grande porte que publica também os livros
de Arturo Pérez-Reverte em russo.
7 Em espanhol no original.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 45

Absorção, do qual apenas um passo e meio ano de treino o separam do Estágio


de Defecação!” – descaradamente tagarelava ele, quase sem ouvir os balbucios
de Vladímir. À noite eles bebiam admiravelmente no salão do mestre, graças ao
editor, que não economizou com seu amado Jack Daniels.
– Meu poder de adivinhação está me dizendo, jovem amigo – disse Perverte
com malícia, apertando os olhos –, que você mesmo escreve de vez em quando,
ah sim, e muito bem. Admita, adivinhei?
– Não posso negar.
– E já publicou?
– Um pouco.
– Não tem problema, todos começam com alguma coisa... Parece-me que
todo seu problema está no fato, companiero, de que você não conhece a vida. Fidel
também, quando caçávamos nas suas propriedades, certa vez me disse: a vida, é
preciso conhecer a vida! Che lia livros, enquanto eu conhecia a natureza humana
– e agora, onde eu estou e onde está Che? Assim me disse Fidel, e Fidel é um
rapaz astuto. Eu viajei, ah sim, eu vi de tudo – e ele inventava mais uma história
que Maksim Górki invejaria. Perverte atravessou toda a Europa, viveu um mês
entre pigmeus africanos, filmou um documentário sobre pinguins reis, fez caridade
entre os aborígines da Oceania, em toda parte degustava a culinária nacional e
deixava descendentes. – Eu me espalhei generosamente nesse mundo sujo, é isso,
amigo!8 É preciso viver com gosto, como me disse Hugo Chávez, quando tirou
todos os bens de mais um oligarca. Eis que você está com trinta e cinco anos, e
do que você pode lembrar?
Syromiátnikov, é claro, tinha do que se lembrar – as estradas sujas das pro-
víncias russas, centenas de destinos despedaçados e milhares de expressões ácidas,
para as quais ele olhava como redator do departamento de investigações do jornal
Tribuna, pastas cinza dos mesmos processos penais – banditismo de um copeque
e muitos anos de prisão, fugas sem sentido e mais anos de prisão, furto de fios e
transformadores, afrouxamento dos trilhos, fugas do exército – mas com isso era
impossível preparar um best-seller até do tipo de O testamento do mouro. Por alguma
razão, os leitores teimam em não querer ler sobre aquilo que os cerca, não estão
nem aí para o sofrimento do vizinho paralisado e da vizinha empobrecida, mas
choram rios de lágrimas pela Isaura, que vivia na outra ponta do mundo, e mesmo
assim só na imaginação doentia do produtor.

8 Em espanhol, no original.
46 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

Coqtelho estudou ampla e profundamente a vida russa. Nos encontros em


livrarias, ele não falava tanto quanto ouvia; Syromiátnikov lhe traduzia crônicas
criminais da imprensa local; ele não só beliscava as condutoras e garçonetes até
ficarem roxas, para a felicidade delas, como também perguntava os mínimos
detalhes biográficos, desde o início da menstruação até os hábitos da sogra; o
apetite dele por comida, por bebida e por impressões era surpreendente. Às cinco
da manhã, ele digitava em uma pequena Toshiba com um monograma pessoal,
depois gravava no ditafone colunas para dois jornais argentinos (a transcrição
ficava para o secretário), depois fazia correções na recém-concluída autobiografia
para a Penguin Books (nisso a secretária ajudava), então almoçava com o mesmo
empenho e dava uma vigorosa coletiva de imprensa em mais uma cidade siberia-
na. Syromiátnikov admirou-se com sua infatigabilidade e com a imensidão russa:
Perverte produzira uma quantidade assustadora dos mesmos produtos e pela
janela se arrastava a quantidade assustadora da mesma Rússia – em comparação
com o ocidente compacto, o oriente russo surpreendia com sua redundância e
negligência – e se pensarmos assim, hóspede e anfitrião foram feitos um para o
outro. Em cada estação os admiradores davam suvenires a Perverte, ele dava mil
autógrafos, não se cansava de perguntar o nome dos leitores e a cada cinco livros
desenhava uma pomba, e à noite, quando pela janela se arrastava a longa, conífera,
úmida escuridão, sem uma luzinha sequer – contava a Syromiátnikov os capítulos
da futura autobiografia. Às vezes Syromiátnikov enjoava de Coqtelho, mas, de
modo geral, ele era grato pelo sustento.
Em outros vagões – não tão luxuosos, mas também de elite – viajavam
autoridades locais, funcionários públicos, business men, que não tinham nenhuma
relação com a literatura, mas sabiam, é claro, que ao trem estava engatado o salão
de um clássico vivo. Alguns, com autorização especial, entravam para conhecê-
-lo. No salão, visitaram Coqtelho o vice-governador de Tcheliábinsk, um grande
financista de Ekaterinburgo, o chefe da empresa Safe Siberia, que fabricava con-
traceptivos, e o célebre ex-deputado federal da facção Indissolubilidade, agora
banqueiro bem-sucedido do Extremo Oriente, Boris Kháilov – urso obeso, perto
do qual Perverte parecia quase gracioso. Kháilov citava demoradamente a Agenda
do Guerreiro de Prata, contava sobre seu caminho espiritual e sobre como ele doava
muito para templos, e também sobre como a Rússia estava melhorando rápido sob
a centralização do poder. Kháilov verificou que não tinha os livros de Coqtelho, e
lhe ofereceu a barriga lisa de uma moça da agência de modelos Luzes Siberianas
para autografar. Coqtelho pediu para a secretária virar-se e autografou a bunda
da moça, arrancando dela a promessa de não lavar a bunda por pelo menos uma
semana.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 47

– Interessante esse homem – disse ele à noite com um copo de Jack. –


Aprenda, amigo, enquanto ele está vivo. Algo me diz que ele não vai durar muito.
– Esses aí não morrem – resmungou Syromiátnikov.
– De morte natural quase nunca – acenou Coqtelho. – Um tipo admirável.
Escuridão limpa, pura, sem nenhum vislumbre. Acho que o Senhor gostaria de
pôr uma alma nele, mas não conseguiu encontrar sequer uma bolha de ar nesse
monólito. Um fenômeno, um fenômeno. Vou reservá-lo para um romance.
– Entre nós, um em cada dois é assim – queixou-se da pátria Syromiátnikov.
– O senhor se engana. Antes do encontro, estudei a biografia dele, pedi a
Rosa que preparasse um resumo para mim. – Chamava Rosa a uma sérvia que mais
parecia um cedro libanês. – É admirável, não há lugar onde não tenha deixado
pegadas. Vocês têm frequentemente uma só figura pública que roda por diversas
áreas? Nós, na Argentina, no Brasil, não temos esse costume. Não acreditamos
no management ocidental. Somente aqueles que passaram por todas as etapas e
estudaram business minuciosamente podem ser chefes. E não houve o que esse
não fosse – comissário militar, agente de compras, editor-chefe... Não, esse é um
tipo muito interessante. Eu não gostaria de estar na pele dele nem por todos os
aromas da Arábia. Aliás, contei a você como um xeque saudita me presenteou
com uma concubina árabe albina?
Ele contou durante muito tempo, prazerosamente, com detalhes admiráveis
– e só liberou Syromiátnikov às três horas da manhã, e apenas porque ele alegou
uma leve diarreia. “Bom, você sabe, comida pesada....”. De manhã, Syromiátnikov
escutou, em meio ao sono, como Perverte caminhava – com passos pesados pelo
corredor ao banheiro e, depois de uma longa permanência lá, voltava – xingando
de modo tão artístico que seria difícil para ele traduzir essa requintada obscenidade
espanhola.
De manhã, próximo a Tchitá, no pequeno Krasnokámensk, onde Perverte
não planejara nem encontro, nem sessão de autógrafos – o trem ficou parado por
muito tempo. Todos eram proibidos de descer à plataforma. A estação estava lotada
de policiais. Nela se agitavam em vão personagens de tipo burocrático, em paletós
escancarados, com as carrancas desnorteadas e bravas. Enfim, tiraram do sétimo
vagão algo enorme, coberto com um lençol branco, em uma maca.
– Desço para averiguar? – ofereceu-se Syromiátnikov.
– O que o senhor não entendeu? – perguntou Coqtelho altivo. – Esse é o
nosso amigo, representante do partido Grudar-se, dono do banco Trakh-bakh,
ou eu não avisei?
48 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

– E o senhor adivinha o futuro? – perguntou Syromiátnikov acidamente. A


presunção desse preferido de Rabindranath Tagore9 começou a cansá-lo.
– Como não. Ainda há cinco anos falei pro Paul: Paul, você vai largar a
Heather, essa menina não é pra você. No começo ele riu, depois ficou com raiva.
Faz um mês me mandou um bolo. Se ele me conhecesse na década de 80, talvez
eu avisasse John também...
– E por que o senhor não salvou esse daí?
– Ora, pois ele já sabia – disse Coqtelho. – Só não sabia quando.
O trem se moveu somente perto do meio-dia. Coqtelho mastigava ómul,
entregando-se a beber sua cerveja Porfírica Siberiana com ar sonhador.
– Então você é um escritor policial, ou pelo menos assim se declara – res-
mungou Syromiátnikov. – Estou certo, porém, de que caso tivesse que desvendar
um assassinato de verdade, o senhor desistiria no mesmo instante.
– Na verdade, jovem – Coqtelho respondeu em tom moralizante, sem des-
viar o olhar da taiga através da janela –, o cozinheiro não vai à caça, e o metalúrgico
não procura minério. Eu lavro a vida, mas não a refaço.
Essa grandiloquência oriental era-lhe especialmente repugnante – Syromi-
átnikov nunca entendeu como pessoas com ensino médio poderiam comprar tal
aparência falsa e barata.
– Mas já que eu andei no meio dos outros e vi muito de tudo na juventude
turbulenta – continuou Perverte, fumando um Uppman grosso – faria facilmente
em pedacinhos um caso de dificuldade média, se não me atrapalhassem. Agora no
sétimo vagão o inquérito está em andamento, a brigada inteira da polícia local foi
enviada ao trem para esclarecer as circunstâncias, mas garanto a você: não encon-
trarão o culpado. O condutor me contou que Kháilov sofreu muitos ferimentos
– foram sete, no total. Surpreendentemente, de algum jeito os condutores sempre
sabem tudo. Dois ferimentos mortais – no peito e na garganta. Os demais foram
na barriga, mas com sua camada de gordura visceral, era como grão de chumbo
em elefante. E daí? E daí que, de qualquer maneira, o assassino não estava sozinho,
visto que dois golpes foram dados por um profissional, e cinco por um diletante.
Alguém desceu do trem entre Baranóvka, onde Kháilov nos visitou ainda vivo, e

9 Poeta bengali (1861-1941), um dos principais representantes da cultura hindu, laureado com o No-
bel de Literatura em 1913. Foi bastante traduzido na Rússia durante o século XX, sobretudo por poetas
simbolistas e, mais tarde, por Boris Pasternak e Anna Akhmátova. Visitou a URSS deixando um livro de
cartas sobre suas impressões.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 49

Krasnokámensk, onde o acharam morto? Desse, ninguém foi atrás, era de noite,
os condutores são preguiçosos. Agora procuram essas pessoas como agulha no
palheiro, assim como a arma do crime. Enquanto isso, temos a chave na mão, e
se o senhor lesse com atenção o meu Código de Afrodite...
– Eu o traduzi! – explodiu Syromiátnikov.
– Traduzir não significa ler. Seu coração está fechado, o senhor não limpou
seus chacras com o meu livro. Mas ele está lá para isso! Teria prestado atenção na
grande importância dos números em nossa vida. E teria notado que, no começo
da atividade profissional, Kháilov teve exatamente sete cargos, e em cada um deles
– eu notei isso especialmente! – esmagou e oprimiu todos os vivos sem cansar.
Sim, e os cargos eram apropriados – em outros não o colocariam. Ele começou na
categoria de oficial e foi promovido a major, mas depois o expulsaram do exército
– ainda no tempo soviético – por excesso de crueldade! Isto está escrito até no
dossiê dele, que está na internet. Muitas vezes ele desmentiu essa informação, citou
testemunhas, trocou beijos com antigos soldados, os quais teriam servido sob seu
comando – mas no olhar dos soldados drapejava o horror, apesar de terem servido
há muito tempo. Oh, eu olhei o dossiê dele em detalhes, eu de fato me interessei
por esse rapaz, que descanse em paz no inferno... Depois do exército tornou-se
comissário militar e regularmente cumpria o plano de prender recrutas evadidos
– o senhor tem experiência nisso, eu sei. Acho que nesse cargo ele acumulou um
número gigantesco de inimigos! Por seu êxito total, transferiram-no para a chefia
do partido – e já ali ele se virou, sem cansar, erradicando a subversão. Na década
de 90 não era bem-visto se orgulhar disso, mas no ano passado ele contou a jor-
nalistas que conduziu pessoalmente a julgamento cinco subordinados – isso foi
antes de sua secretária-geral kagebista, que... bom, esse, de óculos...
– Andrópov10 – disse Syromiátnikov, azedo.
– Oh, sim, antropos... Na época dele prenderam muitos, mas por algum
motivo isso é lembrado como um primeiro sopro de liberdade. Não admira que
com o começo da liberdade nosso falecido amigo – essa foi a quarta etapa de sua
carreira – fundou uma cooperativa e ficou famoso por massacrar os concorrentes.
Um de seus companheiros foi encontrado com o crânio aberto, e ele tinha três
filhos, todos meninos... Você está seguindo meu raciocínio?
– Estou – acenou Syromiátnikov. – Faltam três cargos.

10 Referência a Iúri Vladímirovitch Andrópov (1914-1984), secretário geral do Partido Comunista


posterior a Leonid Brejnev, e chefe da KGB, o serviço secreto soviético, durante quinze anos.
50 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

– A seguir tudo é simples. – Coqtelho encolheu os ombros. – Na catego-


ria de deputado ele se recusou a ajudar dez crianças doentes, cada uma de um
pai. Na categoria de chefe adjunto da administração municipal, fechou o jornal
que o criticava, e o jornalista, que nisso havia especialmente se empenhado, foi
encontrado com a cabeça partida – pelo visto, essa era sua marca registrada.
Finalmente, no ano passado ele conseguiu prender seu suplente, que sabia algo
sobre ele, e esse suplente com certeza tem parentes... Em todos esses feitos ele se
comportou como um touro furioso pressionado, a essas pessoas nós chamamos
assim, chifrudos. Todos o temiam, mas em determinado momento o medo se
transforma em fúria – assim é a psicologia popular. E se o investigador tem a
cabeça no lugar, ele facilmente calculará a interseção dos conjuntos necessários.
Basta verificar por computador se em nosso trem viajou algum dos jovem recru-
tados por ele que deixaram em casa pais doentes e indefesos. Se esteve no vagão
algum dos padrinhos de seus cinco funcionários. Se saiu em Tchitá algum parente
do substituto assassinado. E et coetera – tudo isso, como o senhor entende, se
faz em uma semana na presença de mensageiros rápidos e com acesso regular à
internet. Quero notar que assassinato coletivo por vingança social é um motivo
extremamente tentador, e não é de se excluir que eu pondere sobre um livro com
esse tema já em nossa viagem. Para escrevê-lo não vai levar muito tempo. O senhor
há de concordar que o esquema tradicional do romance policial aqui se rompe
em essência – geralmente escolhemos um entre muitos, mas aqui nos é oferecida
uma variante, na qual todos são assassinos.
– Ouça, Vladímir – disse Syromiátnikov, sorrindo contra vontade. Não podia
resistir ao encanto daquele vigarista. – Você realmente acredita que ninguém leu
Assassinato no expresso do Oriente?
– Acredito que poucos leram – observou Coqtelho com calma. – Além
disso, o senhor está se esquecendo da cor local. Do enorme panorama da Rússia,
do ómul, do taimen, da maravilhosa culinária – o leitor ama menções às comidas
deliciosas, isso lhe é não menos importante que a descrição de um bom sexo...
E claro, do principal – o alto senso moral. Imagine: a Rússia de joelhos se põe
de pé. O país, humilhado por muitos anos, extenuado pela pobreza, deixando de
distinguir o bem do mal – por fim se vinga de anos de sofrimento, punindo um
daqueles que o trataram cruelmente durante todo esse tempo. O ex-funcionário do
partido, que ganhou favores dos novos donos, definha nas mãos da nova Rússia
– e quem investigará esse crime?! Um estrangeiro com propensões humanistas,
um homem do Ocidente, que conhece perfeitamente a mentalidade do Oriente e
está pronto para, caso necessário, fornecer um álibi para todos assassinos, e pôr
a culpa... bom, pelo menos em seu tradutor – um cara entediante e rabugento,
eternamente insatisfeito com a própria carreira literária!
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 51

Coqtelho deu um tapa no ombro de Syromiátnikov e uma gargalhada


ensurdecedora.
Syromiátnikov, por sua vez, não gostou da piada. Olhou Coqtelho com
olhinhos pequenos e pálidos, que tinham visto muitos malfeitos provincianos, e
balançou a cabeça.
– Você é um escritor fraco, Volódia.
– Por que isso, meu jovem amigo?!
– Porque olha para o país pela janela do expresso do Oriente. Mas a Rússia
não é para você Baikal de olhos azuis. Não há nenhuma nova Rússia, Volódia, nem
nunca haverá. E de joelhos ninguém vai se pôr de pé. E se vingar da morte, da
prisão, da humilhação, da pobreza e vergonha aqui também ninguém vai, entende?
Já houve uma experiência como essa, suficiente para toda a vida. “Uma nação de
escravos, de alto a baixo – são todos escravos!”11 O senhor sabe quem disse isso?
Um homem que viu na vida mais merda que você. E eu, a propósito, sei quem
viajava com Kháilov na cabine. É uma autoridade criminosa famosa em Primórie,
Bala, aquele mesmo que lhe pediu autógrafo anteontem. Ainda disse que leu você
no cárcere e que você transformou a alma dele.
– Eu lembro – respondeu Coqtelho, curioso. – E o que houve?
– Houve que Bala não suporta quando roncam perto dele! – exclamou
Syromiátnikov triunfante. – E eu sei disso perfeitamente porque também leio a
imprensa local. E desde que matar uma pessoa para ele é como enviar dois faxes,
então, no escuro, ele atingiu Kháilov sete vezes onde quer que fosse! Ele então
parou de roncar, e era disso que Bala precisava. Deitou-se tranquilamente de novo
e pegou no sono, porque toda a milícia local estava mancomunada. Aliás, sobre
isso até Moscou sabe, mas fazer Bala falar, isso não conseguem de jeito nenhum.
Ele está intimamente ligado com alguns piterenses. Chega de blá-blá-blá, Volódia.
Você nunca escreverá nada sobre a Rússia porque não a entende. Mas se escrever,
esse seu livro vai fracassar por aqui. Aqui nunca se rebelam e nunca se vingam de
ninguém, aqui vão engolir mais dez mil Kháilovs e esquecer tranquilamente toda
sua arte. E aqui matam pelo ronco, entende?
Coqtelho se calou.
– É por isso que eu sou um autor best-seller e milionário, e você meu tradu-
tor com uma dúzia de romances não publicados – disse com ares de importância.

11 Citação de excerto do romance Prólogo, de Nikolai Gravílovitch Tchernichévski, feita por Lênin em
seu discurso “Sobre o orgulho nacional dos Grão-Russos”, proferido em 1914.
52 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

– Por quê? – Syromiátnikov não entendeu.


– Porque eu ofereço uma versão que lisonjeia o leitor. Enquanto você
aponta no nariz dele uma mentira humilhante, que ninguém precisa para merda
nenhuma. Quem precisa desse seu Cartucho e desse seu assassinato por ronco?
E compara isso com o meu tema maravilhoso, do qual provêm ricos sentidos
metafísicos! Compara isso com a bela e fascinante história que sugeri – com
base em Agatha Christie, porque mastigado é mais fácil de digerir... Enquanto a
sua versão – suja, risível, e para dizer a verdade, idiota – não está mais perto da
verdade do que a minha!
– É? – perguntou Syromiátnikov ofendido.
– É! – gritou Coqtelho. – Na verdade, tudo não se deu de forma tão com-
plicada, como a minha, nem tão simples quanto a sua. Você com certeza lembra
como eu, às seis da manhã, passei por você no corredor? Eu praguejei de propósito
na sua porta!
– Você quer dizer que... que... – Syromiátnikov ficou sem ar.
– “Mude a vida, em que puder, e não duvide do seu direito” – disse
Coqtelho, cortando mais um pedaço de ómul. – Agenda do Guerreiro de Prata, parte
dois, capítulo quinze.

Убийство в Восточном экспрессе (Дмитрий Львоoвич Быков)

Сначала подали заливное из лося, потом розового, тающего во рту


копченого тайменя, лиловый и пряный паштет из дичи, сыр «Охотничий»
с зеленью, потом красно-бурую, волокнистую вяленую медвежатину,
блюдо очищенных кедровых орехов, ко всему этому «Таежную» на калгане,
потом крепкий бульон с круглыми, толстыми, ручной лепки пельменями –
опять-таки из лосятины,- потом жареный кабаний бок с капустой, соленой
черемшой и моченой брусникой, и Володя Коктельо-Перверте все это жрал.
Он жрал, мощно двигая челюстями, одобрительно кивая подавальщицам,
подмигивая переводчику, жрал, словно его не кормили во Франции,
Германии и Польше, которые он посетил перед российским турне, словно
нажирался за всю свою голодную юность, потраченную на постижение
верховной мудрости в мансардах Парижа и трущобах Буэнос-Айреса.
Европейский писатель изысканно колупнул бы там, понюхал тут и отломил
хлебца – и достаточно, но Коктельо-Перверте был латиноамериканец и
хорошо знал, что, пока кормят, надо жрать. Потом не будут. Только эта
большая школа бурно прожитой жизни и примиряла Сыромятникова с
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 53

Перверте, хотя бы отчасти. Чувствовался человек не только понюхавший,


но и хлебнувший.
Прославленный сочинитель эзотерических детективов, покоритель
международного книжного рынка, личный друг Мадонны, любимый партнер
Пола Маккартни по бриджу, крокету и трансцендентальной медитации,
духовник Марадоны, талисман сборной Аргентины по хоккею на траве,
регулярный гость Сорбонны, крестный отец внебрачного сына Челентано
и крестный сын далай-ламы, принявший в буддизме имя Суттипон
Бхатхабратха, что значит, должно быть, настырный лысый проныра с
закосами под духовного вождя,- Володя Коктельо-Перверте родился в
семье крупного латифундиста, сиречь землевладельца, в 1951 году. Его отец
увлекался идеями Ленина и назвал сына в его честь, но, к счастью для Володи,
ограничивался теорией, исповедуя на практике хищнический капитализм
самого мафиозного образца. Сынок, духовный учитель европейского
студенчества, кумир американских кампусов и кубинских компаньерос,
унаследовал от папы счастливую способность исповедовать одно и
практиковать другое. Отправившись учиться в Париж, он перепробовал там
все виды нейростимуляторов и психоделиков, забросил учебу, клошарил
под мостами, странствовал по Европе, зарабатывал на жизнь всем – от
киднепинга до куннилинга – и был обнаружен встревоженным папашей в
амстердамской коммуне маоистов-растаманов, поклонявшихся беременной
негритянке, Матери Миров. Папа справедливо заключил, что образование
сына закончено, и поместил его на отдых в психиатрическую лечебницу под
Буэнос-Айресом, где Володю впервые пронизал так называемый Розовый
Свет. Под действием этих теплых волн он записал как бы продиктованный
ему свыше первый эзотерический детектив «Смерть бедуина», герой
которого, сыщик и мистик Рабан, путешествуя по эпохам и континентам, в
конце концов ущучивал мировое зло. Перверте было совершенно нечего
делать в комфортабельном заключении, таблетками его пичкали исправно
(да, говорят, он вдобавок обольстил красивую медсестру, снабжавшую его
также гашишем) – знай читай да галлюцинируй. Он прочел «Тысячу и одну
ночь», Борхеса, суффиев, пару популярных толкований Нового Завета – и
основал жанр, принесший ему громкую славу. Все двадцать три сляпанных
им мистических детектива о странствиях Рабана по Борхесу и суфиям, с
регулярными заходами в Ватикан, Мекку, Иерусалим, эпоху крестоносцев и
расцвет Венеции, одинаково напоминали рахат-лукум, завернутый в страницу
из потрепанной Британской энциклопедии. Однажды Сыромятников купил
такой рахат-лукум в Стамбуле и поразился буквальности сходства: вязко,
54 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

сладко, и ко всей этой липкой экзотике прилипли фрагменты исторического


справочника. Однако высоколобые называли Перверте главным
латиноамериканским постмодернистом, а массовый читатель скупал «Смерть
муфтия», «Украденный Коран» и «Каббалу святош» в таких количествах, что
через пять лет литературной карьеры Володя приобрел психиатрическую
лечебницу, где его озарило, и основал там Межконфессиональную школу
духовного просвещения. Там изучали его духовный завет народам всего
мира – «Настольную книгу Светоносца». Бухгалтерию вела та самая вечно
беременная негритянка, которой он поклонялся в Амстердаме.
Сыромятникову досталось все это переводить – в университете он
выучил испанский. Сам он тоже писал детективы, и гораздо лучше, чем
Коктельо, но они никому не были нужны, поскольку сыромятниковских
героев убивали не в Лувре, а в провинциальных гостиницах, и убийцами
были не монахи тайного ордена Вольтерьянцев, а доведенные до отчаяния
местные безработные. Из его детективов нельзя было сляпать даже сериал.
В результате он кормился с Коктельо и перепер на язык родных осин уже
шесть его неотличимых поделок, включая только вышедший «Шифр
Афродиты». Российская мода на Владимира началась с Макаревича,
который познакомился со смуглым толстяком во время дайвинга в южных
морях и пригласил в Россию. Он же привез сюда экземпляр «Ежедневника
Серебряного Воина» и во время презентации очередного диска показал
главному редактору «Эксни». «Эксня» быстро смекнула, чем пахнет,- ей
предлагалась вся мировая культура и религия в одном флаконе, пережеванная,
отрыгнутая и поперченная,- и скоро широкий хавальник светоносного
воина скалился со всех билбордов. Раскрутка пошла лихо, и на пике моды
Коктельо был приглашен на снежный Восток мирового духа, как обозвал
он Россию в первом же московском интервью. Слоганом поездки стало
название нового романа «На Восток!»: Перверте выразил желание проехать
по России – от Москвы до Читы,- встречаясь с поклонниками в крупных
городах и издали благословляя мелкие. К Восточному экспрессу «Байкальская
синь» прицепили салон-вагон, в нем оборудовали роскошное купе для
Перверте, купе для мужеподобной секретарши-сербки, еще одно – для
женоподобного секретаря-колумбийца (Сыромятников все не мог понять,
с кем из них сожительствует воин света), самому переводчику выделили
скромную клетушку близ сортира, и под щелканье блицев друг Мадонны
отчалил в свое первое русское паломничество.
Он был, в общем, неплохой мужик, отлично знавший цену своей
продукции. Облачаясь в расшитый серебряный халат и белоснежную
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 55

чалму перед остановками в Казани и Новосибирске, Коктельо насвистывал


себе под нос что-то революционное, причем с таким хитрованским
видом, что Сыромятников однажды не удержался и подмигнул ему.
Переводить его тарабарщину было удивительно легко – он нес полную
пургу и предоставлял переводчику украшать ее как угодно. «Я не обижусь,
amigo,- пророкотал он при первой же встрече,- если в синхронном пе-
реводе вы сколь угодно далеко отойдете от оригинала. Положитесь на
вашу фантазию, индуцированную присутствием моего могучего духа! Ха!
Ха!» – и Сыромятников ни в чем себе не отказывал. «Регулярный пост по
четным числам, воздержание от супружеских обязанностей по нечетным,
созерцание созвездия Задумчивой Крысы, как называют у нас в Бразилии
Большую Медведицу, и прочистка чакр гигиеническим ершиком фирмы
«Салем», совладельцем которой я являюсь, поможет вам уже к концу первого
года занятий достигнуть Степени Поглощения, от чего только один шаг
и полгода тренировок до Стадии Испражнения!» – бесстыдно чесал он,
почти не прислушиваясь к болботанию Владимира. Вечерами они пре-
красно выпивали в салоне мэтра, благо на его любимый «Джек Дэниелс»
издатель не скупился.
– Мой дар предвидения подсказывает мне, молодой друг,- хитро щу-
рясь, говорил Перверте,- что вы и сами пописываете, о да, и весьма успешно.
Признайтесь, я угадал?
– Не без того.
– И печатают?
– Плохо.
– Ничего, все с чего-то начинали… Мне кажется, вся ваша проблема в
том, companiero, что вы не знаете жизни. Еще Фидель, когда мы охотились в
его угодьях, однажды сказал мне: жизнь, надо знать жизнь! Че читал книжки,
а я разбирался в людях,- и где теперь я, а где Че? Так сказал мне Фидель,
а Фидель хитрый парень. Я постранствовал, о да, я повидал всякого,- и он
загибал очередную историю, которой позавидовал бы Максим Горький.
Перверте проехал всю Европу, месяц прожил среди африканских пигме-
ев, снимал документальный фильм о королевских пингвинах, занимался
благотворительностью среди аборигенов Океании, везде дегустировал
национальную кухню и оставлял потомство. «Я щедро размазал себя по
этому грязному глобусу, так-то, amigo! Жить надо со вкусом, как сказал мне
Уго Чавес, отобрав у очередного олигарха всю его собственность. Вот вам
тридцать пять, а что вы можете вспомнить?»
56 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

Сыромятникову, конечно, было что вспомнить – грязные дороги


российской провинции, сотни изломанных судеб и тысячи кислых мин,
на которые он насмотрелся в качестве редактора отдела расследований
«Трибуны», серые папки одинаковых уголовных дел – копеечные грабежи и
многолетние сроки, бессмысленные побеги и опять сроки, кража проводов
и трансформаторов, развинчивание рельсов, побеги из армии,- но из этого
нельзя было изготовить даже один бестселлер типа «Завещания Мавра».
Почему-то читатель упорно отказывался читать про то, что его окружало,
плевать хотел на страдания парализованного соседа и нищей соседки, но
проливал реки слез по Изауре, которая жила на другом конце земли, да и
то исключительно в больном воображении продюсера.
Коктельо изучал русскую жизнь широко и основательно. На встречах
в книжных магазинах он не столько говорил, сколько слушал; Сыромятников
переводил ему криминальную хронику из местной прессы; проводниц и
подавальщиц он не только исщипал до синяков, к полному их блаженству,
но и расспросил о малейших биографических подробностях, вплоть
до начала месячных и привычек свекрови; жадность его к еде, выпивке
и впечатлениям была поразительна. С пяти утра он что-то выстукивал
на крошечной «Тошибе» с личной монограммой, потом наговаривал на
диктофон колонки для двух аргентинских газет (расшифровка лежала на
секретаре), потом вносил правку в только что оконченную автобиографию
для «Penguin books» (в этом помогала секретарша), потом так же неутомимо
обедал и темпераментно давал пресс-конференцию в очередном сибирском
городе. Сыромятников дивился его неуемности и российской необъятности:
Перверте производил страшное количество одинаковой продукции, за
окном тянулось страшное количество одинаковой России – по сравнению с
компактным Западом ее Восток поражал избыточностью и запущенностью,-
и в этом смысле гость и хозяйка были друг для друга созданы. На каждой
станции поклонники дарили Перверте сувенир, он раздавал тысячи
автографов, не уставая спрашивать имена читателей и на каждой пятой
книге рисовать голубка, а вечерами, когда за окном тянулась долгая, хвойная,
сырая, без единого огонька тьма,- рассказывал Сыромятникову главы будущей
автобиографии. Иногда Сыромятникова тошнило от Коктельо, но, в общем,
он был признателен кормильцу.
В прочем экспрессе – не таком роскошном, но тоже элитном – ехали
местные власти, чиновники, бизнесмены, не имевшие к литературе никакого
отношения, но знавшие, конечно, что к поезду прицеплен салон живого
классика. Некоторые, по особому разрешению, заходили познакомиться. В
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 57

салоне Коктельо побывали вице-губернатор Челябинска, крупный финансист


из Екатеринбурга, глава фирмы «Safe Siberia», производящей контрацептивы,
и прославленный бывший народный депутат от фракции «Неразрывность»,
ныне преуспевающий дальневосточный банкир Борис Хайлов – тучный
медведь, на фоне которого Перверте выглядел почти изящным. Хайлов долго
цитировал «Ежедневник Серебряного Воина», рассказывал о своем духовном
пути и о том, как много он жертвует на храмы, а также о том, как стремительно
улучшается Россия в условиях централизации. Книги Коктельо у Хайлова
не оказалось, и он предложил ему расписаться на плоском животе девушки
из модельного агентства «Сибирские огни». Коктельо попросил секретаршу
отвернуться и расписался у девушки на заднице, взяв с нее обещание не мыть
задницу по крайней мере неделю.
– Интересный человек,- сказал он вечером за стаканом «Джека».- Учи-
тесь, amigo, пока он жив. Что-то подсказывает мне, что осталось ему недолго.
– Такие не умирают,- буркнул Сыромятников.
– Своей смертью – практически никогда,- кивнул Коктельо.- Удиви-
тельный тип. Чистая, беспримесная тьма, без единого проблеска. Я думаю,
Господь хотел бы вставить в него душу, но не может найти в этом монолите
ни единого воздушного пузырька. Феномен, феномен. Я приберегу его для
романа.
– У нас тут таких – каждый второй,- наябедничал Сыромятников на
родину.
– Ошибаетесь. Перед встречей я изучил его биографию – поручил
Розе подготовить для меня сводку…- Розой звали сербку, похожую скорее
на ливанский кедр.- Удивительно, где он только не наследил. У вас это ведь
часто – что один и тот же управленец рулит во многих сферах? У нас, в Ар-
гентине, в Бразилии,- так не принято. Мы в западный менеджмент не верим.
Начальником может быть только тот, кто прошел все ступени и досконально
изучил бизнес. А этот кем только не был – военкомом, снабженцем, главным
редактором… Нет, это очень интересный тип. Я не хотел бы им быть за
все ароматы Аравии. Кстати, рассказывал я вам, как один саудовский шейх
подарил мне наложницу, арабку-альбиноску?..
Он рассказывал долго, смачно, с удивительными подробностями,-
и отпустил Сыромятникова только в третьем часу ночи, да и то лишь
потому, что сослался на легкий понос. «Все-таки, знаете, тяжелая кухня…»
Сыромятников слышал утром, сквозь сон, как Перверте грузно топочет по
коридору в сортир и, после долгого пребывания в нем, обратно – ругаясь
58 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

столь художественно, что перевести этот изысканный испанский мат он бы


затруднился.
Утром, на подъезде к Чите, в маленьком Краснокаменске, где
у Перверте не планировалось ни встреч, ни автограф-сессий,- поезд
остановился надолго. На перрон никого не выпускали. Станция была
запружена милицией. По ней беспомощно метались бюрократического
вида персонажи в распахнутых пальто, с растерянными и злыми мордами.
Наконец из седьмого вагона вынесли на носилках что-то огромное, покрытое
белой простыней.
– Я схожу, разведаю?- вызвался Сыромятников.
– Что вам неясно?- барственно спросил Коктельо.- Это наш друг,
представитель партии «Слипшиеся», хозяин «Трах-бах-банка», или я не
предупреждал вас?
– Вы и будущее угадываете?- кисло спросил Сыромятников. Самодо-
вольство этого любимца Рабиндраната Тагора начало утомлять его.
– А как же. Я еще пять лет назад говорил Полу: Пол, ты бросишь
Хизер, эта девочка не для тебя. Сначала он смеялся, потом обозлился. А месяц
назад прислал мне торт. Если бы он знал меня в восьмидесятом, может, я
предупредил бы и Джона…
– Что ж вы этого не спасли?
– Да ведь он знал,- сказал Коктельо.- Он только не знал когда.
Поезд тронулся только около полудня. Коктельо жевал омуля,
мечтательно запивая его «Сибирской порфирой».
– Вот вы детективщик, или по крайней мере так себя позиционируе-
те,- буркнул Сыромятников.- Уверен, однако, что доведись вам раскрывать
настоящее убийство – вы немедленно спасовали бы.
– Вообще-то, юноша,- назидательно ответил Коктельо, не отводя глаз
от тайги за окнами,- повара не охотятся за дичью, а металлурги не ищут руду.
Я обрабатываю жизнь, а не переделываю ее.
Эта восточная высокопарность была в нем особенно противна –
Сыромятников никогда не понимал, как могут люди со средним образованием
покупаться на такую дешевую бутафорию.
– Но поскольку я потерся среди людей и много всего повидал в бур-
ной юности,- продолжал Перверте, закуривая толстый «Упман»,- я легко
расколол бы дело средней сложности, если бы мне не мешали. Сейчас в
седьмом вагоне идет дознание, целая бригада местной полиции запущена в
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 59

поезд для выяснения обстоятельств, но уверяю вас – виновного не найдут.


Проводник мне поведал, что Хайлову нанесены множественные раны – об-
щим числом семь. Удивительно, откуда проводники всегда все знают. Две
раны смертельны – в грудь и в горло. Остальные пришлись на живот, но с
его жировой висцеральной прослойкой это – слону дробина. Следователь-
но? Следовательно, убийца был по крайней мере не один, ибо два удара
нанесены профессионалом, а пять – дилетантом. Сошел ли кто-нибудь с
поезда между Барановкой, где нас посетил еще живой Хайлов, и Краснока-
менском, где его нашли мертвым? За этим никто не проследил, дело было
ночью, проводники ленивы. Ищи-свищи теперь этих людей, как и орудие
убийства. А между прочим, у нас в руках ключ, и если бы вы внимательно
читали мой «Шифр Афродиты»…
– Я его переводил!- взорвался Сыромятников.
– Переводить – не значит читать. Ваше сердце закрыто, вы не
прочистили свои чакры моей книгой. А она стоит того! Вы обратили бы
внимание на великую роль чисел в нашей жизни. И запомнили бы, что
с начала трудовой деятельности Хайлов сменил ровно семь должностей,
на каждой из которых – я специально заметил это!- без устали подавлял и
угнетал все живое. Да и должности были соответствующие – на другие его не
поставили бы. Он начинал в качестве офицера и дослужился до майора, но
потом его выгнали из войск – еще в советское время – за особую жестокость!
Это написано даже в его досье, которое есть в Интернете. Он многократно
опровергал эту информацию, приводил свидетелей, целовался с бывшими
солдатами, которые якобы служили под его началом,- но в глазах солдат
плескался ужас, хотя служба давно была позади. О, я подробно просмотрел
его досье, меня в самом деле заинтересовал этот парень, ад ему пухом…
После армии он сделался военкомом и регулярно выполнял план по аресту
уклонявшихся призывников – у вас это практикуется, я знаю. Думаю, на этой
должности он нажил страшное количество врагов! За отличные успехи его
переводят в партийные начальники – и уж тут он развернулся, без устали
искореняя крамолу! В девяностые у вас не принято было этим гордиться, но
в прошлом году он поведал журналистам, что лично довел до суда пятерых
подчиненных – это было при вашем гэбэшном генсеке, который… ну этот,
в очках…
– Андропов,- кисло сказал Сыромятников.
– О да, antropos… При нем сажали очень много, но почему-то это
запомнилось как первое веяние свободы. Немудрено, что с началом свободы
60 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

наш покойный друг – это был четвертый этап его карьеры – создал коопе-
ратив и прославился расправами с конкурентами. Один его компаньон был
найден с раскроенным черепом, а у него ведь было трое детей, все мальчи-
ки… вы следите за моей мыслью?
– Слежу,- кивнул Сыромятников.- Остались три должности.
– А дальше все просто,- развел руками Коктельо.- В качестве депутата
он отказал в помощи десятку больных детей, у каждого из которых был отец.
В качестве заместителя главы городской администрации закрыл газету, крити-
ковавшую его, а журналиста, который в этом особенно усердствовал, нашли с
пробитой головой – видимо, это его фирменный стиль. Наконец, в прошлом
году он добился ареста своего заместителя, который кое-что про него знал,- а
у этого заместителя тоже наверняка есть родственники… Во всех этих делах
он вел себя с бешеным бычьим напором, у нас таких людей так и называют
– рогачами. Его боялись все, но в какой-то момент страх переходит в гнев –
такова народная психология. И если у следователя есть на плечах кой-какая
головенка, он легко вычислит пересечения нужных множеств. Достаточно
узнать по компьютеру, ехал ли в нашем поезде кто-нибудь из призванных
им юношей, у которых дома остались больные беспомощные родители. Был
ли в вагоне кто-нибудь из посаженных им пятерых чиновников. Выезжали
ли из Читы родственники убитого заместителя. И так далее – все это, как
вы понимаете, дело одной недели, при наличии расторопных курьеров и
регулярного доступа к Интернету. Хочу заметить, что коллективное убийство
из социальной мести – весьма соблазнительный мотив, и не исключено,
что книгу на этот сюжет я обдумаю уже в нашей поездке. Ее написание не
займет много времени. Согласитесь, что схема традиционного детектива
здесь существенно ломается – обычно мы выбираем одного из многих, но
тут нам предлагается вариант, при котором убили все!
– Слушайте, Владимир,- сказал Сыромятников, против воли улыбаясь.
Он не мог противиться обаянию этого жулика.- Вы действительно полагаете,
что никто не читал «Убийство в Восточном экспрессе»?
– Полагаю, что читали немногие,- невозмутимо заметил Коктельо.-
Кроме того, вы забываете о местном колорите. О широкой панораме России,
омуле, таймене, о прекрасной кухне – читатель любит упоминания вкусной
еды, это для него не менее важно, чем описание хорошего секса… И конечно,
главное – высокий нравственный смысл. Вообразите: Россия поднимается с
колен. Страна, многие годы униженная, измученная нищетой, переставшая
различать добро и зло,- наконец мстит за многолетние страдания, наказывая
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 41-62 61

одного из тех, кто так жестоко с нею обходился все это время! Бывший
партийный чиновник, выслужившийся при новых хозяевах, гибнет от рук
новой России – и кто же расследует это преступление?! Гуманно настроенный
иностранец, человек с Запада, отлично знающий ментальность Востока и
готовый в случае необходимости предоставить алиби всем убийцам, а вину
свалить… ну, хотя бы на своего переводчика – скучного и брюзгливого
малого, вечно недовольного собственной литературной карьерой!
Коктельо хлопнул Сыромятникова по плечу и оглушительно
расхохотался.
Сыромятников, однако, не принял шутки. Он посмотрел на Коктельо
маленькими блеклыми глазками, видевшими так много провинциальных
злодейств, и покачал головой.
– Плохой вы писатель, Володя.
– Почему это, мой юный друг?!
– Потому что смотрите на страну через окно Восточного экспресса.
А Россия – это вам не «Синеглазый Байкал». Никакой новой России нет,
Володя, и никогда не будет. И с колен никто не встает. И мстить за гибель,
тюрьму, унижения, нищету и позор здесь тоже никто не будет, понимаете?
Был уже один такой опыт, на всю жизнь хватило. Нация рабов, сверху донизу
– все рабы! Знаете, кто это сказал? Один человек, который повидал в жизни
дерьма побольше вашего. А я, между прочим, знаю, кто ехал с Хайловым в
купе. Это известный в Приморье криминальный авторитет Пуля, тот самый,
который просил у вас автограф позавчера. Еще сказал, что прочел вас в
заключении и вы перевернули его душу.
– Помню,- заинтересованно откликнулся Коктельо.- И что же?
– А то, что Пуля не выносит, когда при нем храпят!- торжествующе
воскликнул Сыромятников.- И я отлично это знаю, потому что тоже читаю
местную прессу. А поскольку убить человека для него – как два факса
отослать, то он и нанес Хайлову в темноте семь ранений куда попало! Тот
перестал храпеть, а Пуле этого и надо. Он спокойно лег обратно на полку
и заснул, потому что вся местная милиция у него в кармане. Между прочим,
об этом и в Москве знают, но сковырнуть Пулю не могут никак – он тесно
связан с некоторыми питерскими. Не надо ля-ля, Володя. Вы никогда ничего
не напишете о России, потому что не понимаете ее. А если напишете, эта
ваша книга здесь провалится. Здесь сроду не бунтуют и никому не мстят,
здесь проглотят еще десять тысяч Хайловых и спокойно забудут все их
художества. А убивают здесь из-за храпа, понимаете?
62 Eloah Pina Pereira. Assassinato no expresso do Oriente

Коктельо помолчал.
– Вот поэтому-то я автор бестселлеров и миллионер, а вы мой пере-
водчик с дюжиной ненапечатанных романов,- сказал он важно.
– Почему?- не понял Сыромятников.
– Потому что я предлагаю версию, которая льстит читателю. А вы
тычете ему в нос унизительной ложью, которая на фиг никому не нужна.
Кому нужны этот ваш Патрон и это ваше убийство из-за храпа? И сравните
это с моим прекрасным сюжетом, из которого выводятся богатейшие мета-
физические смыслы! Сравните это с красивой и увлекательной историей,
которую предложил я – пусть на основе Агаты Кристи, потому что уже
съеденное легче усваивается… А ведь ваша версия – грязная, смешная и, по
правде сказать, идиотская,- ничуть не ближе к правде, чем моя!
– Да?- спросил уязвленный Сыромятников.
– Да!- грохнул Коктельо.- На самом деле все обстояло вовсе не так
сложно, как у меня, и не так просто, как у вас. Вы же помните, как я в шесть
утра прошел мимо вас по коридору? Я специально чертыхался у вашей двери!
– Вы хотите сказать… сказать…- задохнулся Сыромятников.
– «Измени жизнь, где можешь, и не сомневайся в своем праве»,- сказал
Коктельо, отрезая еще кусок омуля.- «Ежедневник Серебряного воина», часть
вторая, глава пятнадцатая.

Referências
BÝKOV, Dmítri. JD-Rasskazy. Moscou: Vagrius, 2007.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 63

Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

Yuri Martins de Oliveira*

Resumo: Tradução comentada dos contos “Um morador escreveu um requerimento” e “Traição-80”, de Evguêni
Kharitónov, inéditos em português até a presente data.
Palavras-chave: Kharitónov; prosa soviética; literatura russa

Sobre Evguêni Kharitónov e os contos “Um morador escreveu um


requerimento” e “Traição-80”

Evguêni Vladímirovitch Kharitónov nasceu em 1941, em Novossibirsk, uma


das maiores cidades da Sibéria. Aos 17 anos, parte para Moscou para ingressar no
Instituto Guerássimov de Cinematografia (VGIK, na sigla em russo), no qual se
forma ator. Depois de atuar em pequenos papéis no cinema, Kharitónov retorna
ao Instituto e defende a dissertação de mestrado A pantomima na formação do ator de
cinema (Пантомима в обучении киноактёра) e, tendo sido aprovado, torna-se pro-
fessor do VGIK. Nos 1970, além das aulas que ministra no Instituto, Kharitónov
dirige peças de teatro e abre seu próprio estúdio de artes cênicas, dedicando-se,
paralelamente, à literatura. Com o conto “Forno” (“Духовка”), de 1969, o escritor
começa a delinear o estilo característico, e também passa a tratar do tema que se
tornará central em sua obra: a homossexualidade masculina. Embora apareça em
muitos de seus escritos e versos, esse tema não se torna o único para o escritor,
que escreve sobre questões políticas e culturais, como vemos nos contos “Um
morador escreveu um requerimento” e “Traição-80 – Antiutopia”. O primeiro

* Yuri Martins de Oliveira é aluno de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura


Russa, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
64 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

conto, uma narrativa satírica a respeito da burocracia soviética, faz parte da cole-
tânea que o próprio Kharitónov organizou, em 1981, pouco antes de sofrer um
ataque cardíaco fatal, sob o título de Em prisão domiciliar (Под домашним арестом),
que só viria ser publicada nos anos 1990; já o segundo, uma ácida previsão sobre
o fim da União Soviética e o futuro da Rússia, estava entre os papéis do escritor
encontrados por amigos depois de sua morte. Atualmente, Kharitónov é um
escritor pouco conhecido entre russos e estrangeiros, embora tenha feito algum
sucesso nos anos 1990 com as traduções para o inglês de seus contos e versos a
respeito da homossexualidade. As traduções aqui apresentadas são as primeiras
para língua portuguesa.

Um morador escreveu um requerimento (Evguêni Kharitónov)

Um morador escreveu um requerimento ao JEK1, pois o assoalho da cozinha


tinha afundado, e o linóleo, fendido, precisava trocar. Ele, a princípio, foi falar com
os mestres de obra, estes cobravam vinte e cinco rublos por trabalho. Mas acontece
que o JEK faz de graça. A secretária disse – escreva um requerimento ao diretor,
primeiro precisa que a encarregada-técnica venha ver, depois é que vão começar;
Entregue este requerimento à encarregada-técnica, só que quem dará a autorização
é o diretor. A encarregada-técnica veio depois de dois dias, disse que era preciso
trocar todo o assoalho da cozinha; se só tapar os buracos, fica malfeito, a base
antiga vai começar a ruir em volta (a base era feita não de tábuas, mas de serragem
prensada); só que nós não temos linóleo. Depois de mais uns dois-três dias, por
ordem dela, veio o mestre de obras, aquele que pedira vinte e cinco rublos pelo
trabalho, deu uma olhada, disse não podemos fazer, não temos linóleo. O morador
diz pois o linóleo está aqui, olhe, e já faz tempo, eu mesmo comprei2. – Ah, então
esvazie a cozinha, volto já com meu ajudante. O morador tirou as coisas pesadas.
O mestre liga não precisa tirar nada, não iremos, não temos as ripas. O morador
liga para a mulher-encarregada – como é que eles não vêm? disseram para esvaziar
a cozinha, e agora não têm ripas? Ela titubeou ao telefone – espere um instante...
hum... é, não temos as ripas. – E quando é que vão ter? – Daqui uns dias vão trazer,
nós ligamos pro senhor; mas faremos até o final da semana. Passam-se alguns dias,

1 Abreviação de Жилищно-Эксплуатационная Контора, isto é, Escritório de Moradia e Manuten-


ção, órgão responsável pela administração regional das moradias nas cidades soviéticas. Criado em 1959,
permaneceu em atividade até 2005. (N.T.)
2 A pontuação no original está fora dos padrões russos e não é possível ter certeza de quem fala, se
narrador ou personagem. A tradução, assim, reproduz o estilo do original.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 65

ele mesmo liga – quando vão ter as ripas? Ela diz o senhor ligue de tempos em
tempos pra nós. Então ele liga e dizem que vai chegar dali uns dois dias; aí ele liga
dali dois dias e dizem que não se sabe quando vai chegar. As ripas, dizem, estão
no depósito, mas não tem carro pra trazer. Pois então finalmente ele foi dar queixa
da encarregada-técnica, e dizem – acabaram de trazer as ripas, amanhã mesmo
começamos. No dia seguinte, aquele mestre de obras vem, diz esvazie a cozinha,
já vamos começar a fazer, e mede para ele o linóleo novo, como se fosse cortá-lo.
Passa uma hora, nada do mestre. O morador liga, chamam o mestre ao telefone:
mas nós vamos começar amanhã, ou então vamos ter de desligar o seu gás, e aí
o senhor vai ficar dois dias sem gás. – Mas que diferença faz vocês desligarem o
gás hoje e começar só amanhã? dá na mesma; vocês disseram que vinham já, eu
estou esperando, esvaziei a cozinha. – Está bem, vamos agora então. Passa uma
hora e mais um pouco, o morador se veste e vai à oficina, na rua. O tal do mestre
não está lá, está o ajudante, embriagado. O ajudante diz volte amanhã. O morador
diz mas o mestre acabou de me dizer pelo telefone que já estava chegando; onde
ele está? – Ele saiu pra atender um chamado; saiu pra almoçar; ele me disse que
ligou pro senhor, mas não tinha ninguém em casa. – Pois eu mesmo falei com
ele, medimos juntos o linóleo, ele disse que vinha já, e com as ripas, três horas e
nada, aonde ele foi atender esse chamado, em qual casa? eu vou lá encontrá-lo.
O ajudante diz – anote, e estende um contraplacado. – Pode falar, fale, eu vou
lembrar. Mas o ajudante tinha estendido o contraplacado para que o morador
escrevesse ali o seu endereço. – Pra que o meu endereço, o mestre já esteve em
casa. – Tá, como quiser. – Você me diga aonde ele foi atender esse chamado, em
qual casa, eu vou lá encontrá-lo. O ajudante então deu o tal endereço, trocando
os números com os do endereço do morador. O morador foi até a encarregada-
-técnica dar queixa do mestre de obras. Ela voltou com ele até a oficina, começou
a xingar o ajudante, o mestre ainda não tinha chegado, e o outro dizia – o mestre
foi de manhã ao apartamento daquele morador que afundou o chão da cozinha,
disse que ele não estava em casa, que iríamos amanhã. O morador nem retrucou,
viu que seria inútil. A encarregada-técnica ordenou ao ajudante que começasse o
trabalho, serrasse as ripas em pedaços do tamanho da cozinha, de quebra ainda
expulsou da oficina as pessoas que, como ela acertadamente suspeitara, tinham
vindo beber com o ajudante, e foi embora. O ajudante diz – mas como é que eu
vou cortar, não sei o tamanho da sua cozinha. Mas todas as cozinhas eram idên-
ticas no bairro todo. O morador diz – está bem, venha comigo fazer a medição.
Eis que chegam, ajudante e morador, em casa, o ajudante faz a medição daquele
jeito, a régua a torto e a direto, e ele dizendo – tanto faz, antes de três dias não
podemos começar, o linóleo tem de ficar descansando três dias antes de fazer o
66 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

revestimento. – Pois é, mas já faz trinta e três dias que ele está descansando no
meu quarto! E aí o ajudante diz – Ah, mas se o senhor tem o seu próprio linóleo
é outra história, dá pra começar amanhã; então pra quê que eu medi a cozinha pra
ver de que tamanho cortar as ripas, se todas as cozinhas são idênticas no bairro
todo?; já que o senhor tem o linóleo, e já ficou descansando, então amanhã dá pra
começar. – Como assim amanhã, o mestre veio e disse que começava hoje; comece
hoje; se não conseguir terminar, amanhã você continua; vá pelo menos serrar as
ripas do tamanho certo e trazer pra cá. O ajudante disse tanto faz, sem o mestre
não posso. – Não pode o quê? Não pode serrar? – Serrar eu posso, mas como
vou trazer? os sarrafos são grandes, não tenho força de carregar. – Está bem, você
vai e corta tudo na oficina e me liga, se o mestre não estiver lá, eu desço e ajudo
você a trazer até aqui. E o morador deu a ele o seu telefone. Lá estava o morador
esperando, esperando, e o ajudante não ligava. Ah, vai se foder. O morador outra
vez se vestiu e foi até lá à oficina. O ajudante estava sentado, fumando, não tinha
nada serrado. O morador diz – o que aconteceu? E o ajudante responde não
aconteceu nada: é que primeiro a encarregada-técnica tem que vir e ver o quanto
que pode gastar de ripa pros consertos. – Pois não preciso de consertos, preciso
que façam o assoalho inteiro. – Não sei de nada, amanhã o mestre vem e decide
o quanto de ripa precisa, como fazer os consertinhos, ou se é o assoalho todo,
mas eu não sei de nada. – Mas ela viu tudo um mês atrás. – Não sei, não sei de
nada, vá falar com ela. O morador vai outra vez até a encarregada-técnica, esta
diz bem, o que fazer, um é um bêbado, o outro sabe-se lá onde está, o que fazer;
amanhã iremos e faremos tudo, faremos os consertos, eu vou acompanhar. No
dia seguinte, de fato, vieram e fizeram.

Жилец написал заявление (Евгений Харитонов)

Жилец написал заявление в ЖЭК, что у негo провалился на кухне пол,


потрескался линолеум, надо поменять. Он вначале обратился к мастерам,
те затребовали двадцать пять рублей за одну работу. Но оказалось, ЖЭК
делает бесплатно. Секретарша сказала: напишите заяв ление начальнику,
надо вначале чтобы пришла техник-смотритель посмотрела, тогда станут
делать. Вы отдайте это заявление технику-смотрителю, а уж даст разрешение
начальник. Техник-смотритель при шла через два дня, сказала, да, надо весь
пол на кухне поменять. Если только провалы заделать, будет непрочно, вокруг
них старая основа посыпется (основа была не из досок, а из прессованных
опилок), только у нас линолеума нет. Еще через день-два пришел по ее
распоря жению мастер, который просил двадцать пять рублей за работу,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 67

посмот рел, сказал не можем делать, у нас линолеума нет. Жилец говорит,
да вот линолеум, давно лежит, я сам купил. – А, ну тогда разбирайте кухню,
мы сейчас с подручным придем. Жилец разобрал тяжелые вещи. Мастер
звонит, не надо разбирать, не придем, теса нет. Жилец звонит женщине-
смотрителю – как это они не придут, сказали кухню разо брать, а теперь
теса нет. Она помялась по телефону – подождите... ммм... нет теса. – А когда
будет? – На днях подвезут, мы вам позвоним; но до конца недели сделаем.
Проходит несколько дней, он сам звонит - когда будет тес? Она говорит, а вы
позванивайте нам. То он звонит, говорят через день-два будет. Тес, говорят,
есть на складе, машины нет его везти. Вот, наконец, он заходит пожаловаться
на техника-смотрителя, говорят как раз только привезли тес, завтра начнем
вам делать. Назавтра тот мастер приходит, говорит, разбирайте кухню,
сейчас приду начнем делать, и померил ему новый линолеум как его резать.
Проходит час, нет мастера. Жилец звонит, мастера подзывают к телефону:
а мы завтра начнем, а то газ вам будем отключать, придет ся вам два дня без
газа. – Какая разница, сегодня вы газ отключите и начнете делать или завтра
то же самое; вы же сказали, сейчас придете, я жду вас, кухню разобрал. – Ну,
ладно, тогда придем сейчас. Проходит час с лишним, жилец одевается и идет
в мастерскую на улице. Там того мастера нет, сидит подручный нетрезвый.
Подручный говорит, придем завтра. Жилец говорит да мне мастер только
что сказал по телефону сейчас придет; где мастер? – А он ушел по заявке;
обедать ушел: он мне сказал, звонил вам, у вас никого дома не было. – Я же
с ним разговаривал, вместе померяли линолеум, он сказал сейчас при дет
с тесом, и три часа его нет, куда он пошел по заявке, в какой дом? я пойду
его найду. Подручный говорит – запишите, и протягивает фанеру. – Ну
говорите, говорите, я запомню. А подручный протянул фанеру чтобы жилец
написал свой адрес. – Да зачем мой адрес, мастер же был у меня. – Ну как
хотите. – Вы мне скажите куда он пошел по заявке, в какой дом, я пойду его
найду. Подручный тут назвал такой адрес, в нем перепутаны цифры из адреса
жильца. Жилец пошел к технику-смотрителю жаловаться на мастеров. Та с
ним назад пришла в мастерскую, стала ругать подручного, мастера так и нет,
тот гово рит – мастер с утра ходил вот в квартиру этого жильца, которому
на кухне пол перестилать, сказал его дома нет, завтра пойдем. Жилец уже
не возразил, видит бесполезно. Техник-смотритель велела подруч ному
пока начинать работу, напилить полосы теса по размерам кухни, и выгнала
заодно из мастерской людей, про которых правильно подо зревала, что они
пришли к подручному выпить с ним, и ушла. Подруч ный говорит – а как
я буду резать, я размеров вашей кухни не знаю. А все кухни одинаковые во
68 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

всем районе. Жилец говорит – ну хорошо, пойдемте со мной, померяете.


Вот пришли они с подручным к жильцу в дом, подручный измерил кое-как,
линейка идет вкривь и вкось и говорит – все равно раньше чем через три дня
нельзя начать, линоле ум должен три дня вылежаться перед настилкой. – Да
он уже тридцать три дня вылеживается у меня в комнате! Теперь подручный
сказал – а, так у вас свой линолеум, тогда другое дело, можно завтра начать;
так зачем я мерил по кухне как его резать, какого размера полосы теса делать,
все кухни одинаковые во всем районе; раз у вас линолеум есть, и отлежался,
так завтра можно начать. – Да как так завтра, мне мастер пришел сказал
сегодня; начинайте сегодня; если не успеете, завтра продолжите; пойдите
хоть напилите полосы теса по размерам и принесите сюда. Подручный сказал
все равно без мастера не смогу. – Что не сможете? Отпилить не сможете? –
Отпилить могу, а как понесу, полосы большие, у меня сил нет нести. – Ну
хорошо, вы идите отпилите в мастерской и позвоните мне, если еще ваш
мастер не пришел, я спущусь к вам помогу донести. И жилец записал ему
телефон. Вот жилец сидит ждет, ждет, не звонит подручный. О, еб твою
мать. Жилец опять оделся пошел к нему в мастерскую. Подручный сидит
курит, ничего не напилено. Жилец говорит – в чем дело? А под ручный
как ни в чем не бывало: а сперва к вам должна прийти техник- смотритель
посмотреть сколько садить из теса заплаты. – Да мне не заплаты, мне весь
пол делать надо. – Ничего не знаю, завтра техник при дет и решит сколько
теса на вас, какую делать заплатку, или на весь пол, а я ничего не знаю, идите
к ней. Жилец опять к технику-смотрителю, та сказала, ну что делать, этот
пьяный, тот неизвестно где, что делать; завтра придем и все сделаем, сделаем
заплаты, я прослежу. Назавтра, правда, пришли сделали.

TRAIÇÃO-80 (Evguêni Kharitónov)

Antiutopia

Pois então, a Praça Vermelha estava tomada de gente. E o povo avançava,


avançava e avançava. “Abaixo o canalha comunista!” – gritavam. Todos usando
losangos anticomunistas. Assim havia sido ordenado. Escavaram um buraco onde
ficava o mausoléu. O morto em pessoa jazia logo ali. Todos esperavam seu fim
solene. Afinal, aproximou-se um rolo compressor, desses que recapeiam o asfal-
to, e amassou o morto como uma panqueca. Mas, antes disso, tinham sorteado
algumas pessoas, dado a elas pílulas vomitórias para que elas vomitassem no rolo
do rolo compressor. Pois foi justamente com esse rolo lambuzado que passa-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 69

ram por cima do cadáver, sob a marcha de Beethoven, tocada num sintetizador.
Davam melancias e cerveja aos soldados defronte ao buraco, e eles urinavam lá
dentro. E depois disso emergiram a panqueca ali. Foi explicado a todos, é claro,
que estavam afogando um cadáver com 60 anos de jazigo; o jovem Uliánov3,
porém, era coisa bem diferente, ele tinha intenções genuínas e era digno de estar
nos museus. Ele, sem dúvida, desejava o bem para seu bronco país, mas havia
nele muito de tártaro, de Kazan. E em volta também. Foi a contragosto que ele
passou agir por meios tártaros. Se bem que, por outros meios, possivelmente,
não teria dado em nada. Possivelmente, os liberais Miliukov, Gutchkov, Pobedo-
nóstsev4 não poderiam ter feito nada com a Rússia, teriam sido devorados. Pois
até Blok, por exemplo, de natureza tão refinada, não os compreendia e desejava
ser um esquife5. Somente pelos meios tártaros de Lênin foi possível destruir a
Rússia, arruinar seu estúpido aparato burocrático – porém! Porém o Evangelho!
Terno e penetrante, o único ensinamento cristão confiável sobre a compaixão,
o amor, sobre não haver alegria na terra, era preciso deixar isso às crianças na
escola e aos adultos nas universidades de cultura. Pois ele foi fechando as igrejas.
Com tais ensinamentos, os infortúnios da vida passariam de forma bem mais
sóbria do que com as promessas comunistas. E outro “porém”, questão prática.
Lênin não era espião alemão o suficiente6. Como seria possível confiar o governo
da Rússia aos russos – e aos judeus, russificados, que adquiriram todos os traços
ruins dos russos, somados aos seus próprios, já não muito bons. Assim sendo,
seria necessário chamar os Varegues7, como no começo da história russa? Não,
os Varegues não entenderiam aquele momento e fariam da Rússia uma simples

3 Verdadeiro sobrenome de Lênin (N.T.).


4 Pável Nikoláevitch Miliukov (1859-1943) – um dos organizadores do Partido Constitucional Demo-
crata, redator do jornal Riétch. Em 1917, tornou-se ministro de relações exteriores da primeira formação
do Governo Provisório; Aleksandr Ivánovitch Gutchkov (1862-1936) – líder do partido “União do 17
de Outubro” (“outubrista”), deputado e, a partir de 1910, presidente da 3ª Duma. Em 1915 e 1917, foi
presidente do Comitê Bélico-Industrial, e, em 1917, ministro de guerra durante o Governo Provisório; e
Konstantin Petróvitch Pobedonóstsev (1827-1907) – Procurador Geral do Santíssimo Sínodo, de 1880 a
1905. Sua filiação aos “liberais” não se aplica. (N.E.)
5 Tem-se em vista o poema de Aleksandr Aleksándrovitch Blok (1880-1921) “Esquifes” (“Скифы”),
de 1918 (N.E.).
6 Em julho de 1917 começou a circular o boato de que Lênin, bem como outros líderes bolcheviques,
eram espiões a serviço da Alemanha. Entre as principais provas a este respeito estavam documentos
publicados pelo Governo Provisório, segundo os quais o Partido Bolchevique teria recebido subsídio
financeiro do governo alemão nos anos de 1916 e 1917. (N.E.)
7 Povo viking que, entre os séculos XI e XII, navegou da Escandinávia em direção ao Leste europeu,
fixando-se nos territórios que dariam origem à Bielorrússia, Rússia e Ucrânia. (N.T.)
70 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

colônia. Eles mesmos ainda não teriam aprendido a respeito da experiência do


socialismo. Eles devolveriam a Rússia ao seu tsar, à corte, e tudo voltaria àquela
mesmíssima revolução e à expulsão deles, os forasteiros. E chegaria, por fim, o
momento de chamar Riúrik8. Europeus qualificados e gestores americanos, atual-
mente, se convidam para ocupar todos os grandes (e pequenos) postos, mediante
acordo. Seriam todos convidados de diferentes países, sem nenhum tipo de pre-
ponderância. O trabalho criativo – científico, artístico – continuaria sendo nosso.
Mas já que de nós não sai administração alguma, nós então chamamos vocês para
ajudar, caros senhores, sejam bem-vindos!
A fronteira do país, a leste, se desloca até o Enissiéi9. Krasnoiarsk10 é o
ponto fronteiriço. (É possível que o renomeiem para Tchaadáev11.) Toda a po-
pulação, incluindo aí Vladivostok12 e Sakhalina13, se transfere para cidades novas,
especialmente construídas, na Sibéria Ocidental. O território liberado será doado
à China. Deixem que os chineses façam o que quiserem com ele. Porém para cá,
depois de Tchaadaevo14, não os deixaremos passar. Esperemos, pois, que eles se
contentem com território desses. Bom, eles são muitos mesmo, precisam viver
em algum lugar e comer alguma coisa.
As repúblicas da União.
Aos Países Bálticos, como à Europa, será permitido sair da composição
desse novo estado. Aliás, é decisão deles. Possivelmente, diante de um novo
direcionamento, não vejam sentido em sair.
O Cáucaso permanece conosco de qualquer jeito, pois é desatinado e
belicoso. Além disso, há petróleo em Baku.
Os nômades (Cazaquistão). Os nômades continuam como antes sendo
colônia, porque ainda não amadureceram tudo que tinham para amadurecer.

8 Rurik de Kíev (830-879) – chefe dos varegues que, de acordo com as crônicas antigas, foi chamado
no ano de 882 d.C. para tornar-se príncipe da Rus. Governou as regiões de Ladoga e Nóvgorod, ao norte
da Rússia. (N.E.).
9 Rio siberiano que desemboca no Oceano Ártico. É tido como a linha divisória entre o Oriente Médio
e o Extremo Oriente. (N.T.)
10 Capital do território de Krasnoiarsk, na Sibéria Oriental. A cidade é cortada pelo rio Enissiéi. (N.T.)
11 Piotr Iákovlevitch Tchaadáev (1794-1856) – filósofo russo, autor de uma série de cartas filosóficas
em que criticava o atraso da Rússia (N.T.)
12 A maior cidade portuária da Rússia no Oceano Pacífico e uma das maiores da Sibéria. É a parada
final da Transiberiana. (N.T.)
13 Ilha russa localizada no Mar do Norte, atualmente habitada por povos autóctones e russos. Entre a
década de 1860 até meados de 1900 foi usada pela Rússia como ilha de desterro. (N.T.)
14 Povoado da região de Vladímir, nas proximidades de Moscou. (N.T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 71

A questão com as repúblicas instruídas da União (tajiques, uzbeques) se


resolve como a dos Países Bálticos. A Pequena Rússia (Ucrânia), a Rússia Branca
(República Bielorrussa Piotr Macherov15) – elas é que decidem. Caso a Ucrânia
saia, então a Crimeia sai com ela e torna-se um território neutro, como a Suíça.
O censo para os representantes judeus na administração permanece li-
mitado, como antes, – para evitar uma abrupta explosão de antissemitismo, no
caso de alguma falta de sorte no governo.
Bem, como as questões domésticas não são da nossa alçada, passemos
de uma vez para as questões de ideologia, moral e diversão.
Pois bem, com o mausoléu já terminamos. O que vamos fazer com o
Kremlin? É claro, a tentação de fazê-lo voar pelos ares e queimá-lo é grande. E
eternizar este momento em transmissões ao redor do mundo todo. Seria muito
importante não se ater a certas relíquias, como se elas estivessem aderidas ao
coração da Rússia. De toda forma, elas carregam consigo um significado bizan-
tino. A qualquer momento, um monumento como esse pode se tornar o lar de
antigos estados de espírito. Além disso, queimar uma relíquia seria, outra vez,
exagero russo. Eis o que nos propõem os camaradas ocidentais, e nós, com pra-
zer, obedecemos. Abrir no Kremlin a melhor Casa de Encontros paga, para que
ela seja o ornamento de todo o nosso território. E aí precisaríamos das moças
de nossas colônias – Ásia Central, Norte. Cossacas, iacutas16, nanaiquinhas17 e
representantes do outro sexo. A Casa Pública “Kremlin” será ornamentada com
uma iluminação noturna (mas não brilhante, ofuscante), que ficará tremeluzindo
e piscando, como luzinhas na igreja ou num pinheirinho de Natal.
Na ideologia, vão incentivar e até mesmo impor (as instâncias responsáveis
se encarregarão disso) os impropérios e as maldições direcionadas à nova vida
e ao poder. Quanto mais a xingarem abertamente, tanto menos restará algo por
dizer. A ideologia da difamação se tornará predominante. Entretanto, para pro-
teger aqueles que são xingados dos atos grosseiros dos xingadores e para que os
impropérios se mantenham apenas no âmbito das palavras, em formas figuradas,
será criada uma rede especial de serviços. Vocês, é claro, entendem que o quadro

15 Piotr Mirónovitch Machérov (1918-1980) foi o primeiro secretário do Partido Comunista da Bielor-
rússia, a partir de 1956. Gozava de grande autoridade na Bielorrússia e estava cotado para ser o presidente
do Soviete dos Ministros da URSS. Morreu em 04 de outubro de 1980, num acidente de carro, sob cir-
cunstâncias suspeitas, levando à suposição de assassinato. (N.E.)
16 Povo turcomano que habita, especialmente, a República da Iacútia (norte da Sibéria). (N.T.)
17 Em russo, “нанаечки”, diminutivo de “нанайцы”, isto é, o povo nanái, de origem tungue, que habita
as margens do rio Amur e afluentes, na Rússia e na China. Também conhecidos como “hezhen”. (N.T.)
72 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

desse sistema será composto por ex-funcionários dos órgãos de segurança do


Estado e pelos recém-formados nessa escola. De modo geral, essa organização
será apreciada por nós como sendo única e perfeita dentre todas as existentes,
dentre todas as obras socialistas em todos os anos de organizações econômicas,
culturais e científicas. Justamente ela irá observar a afabilidade europeia junto aos
funcionários da esfera de serviços – novamente estimulando conversas funestas
direcionadas à nova revolução, aos governantes, proferidas nas filas que, é claro,
nos primeiros dez dias, e até mesmo durante a administração europeia, ainda não
terão desaparecido. Porque como é difícil ficar de pé numa fila, como é difícil ver
o desaparecimento de vários produtos, mas é ainda mais difícil não poder, amal-
diçoando o canalha comunista, juntar um monte de catarro na boca e cuspir com
gosto em seus retratos. “Pode, – diz aquilo agora o que antes fora o KGB. – E é até
mesmo preciso”. E ele próprio realizará esse gesto artístico. Ao mesmo tempo, ele
protege, e com justiça, as autoridades de atentados a suas vidas. Pois, de fato, não
é nada fácil administrar um país assim imenso. Aliás, que se tornou menor agora.
Uma das inovações interessantes dessa ideologia será a permissão da lin-
guagem de baixo calão. Haverá o incentivo de espetáculos de televisão, filmes no
cinema etc. que mostrem tudo que todo inimigo, por puro ódio, está pronto a
imaginar, e até mesmo com cores ainda mais concentradas, sinistras, sacrílegas.
Ao mesmo tempo, para balancear, e respeitando os costumes e o bom-gosto,
protegendo a saúde da geração mais velha, continuarão a criar produções leves,
atenuadas (um ou dois canais de televisão, o mesmo no rádio). E vai ser mesmo
agradável para as pessoas da geração intermediária, e da nova também, assistir a
programas assim. Eles parecerão originais em oposição àqueles pérfidos e serão
comoventes.
O palavreado baixo será expresso em letras luminosas (também com luzi-
nhas tremeluzentes) nas casas. Ao mesmo tempo, àqueles que queiram ver nisso os
sinais do apocalipse, concederão um megafone para que expressem abertamente
esse pensamento. Só não será permitido deixar de dizer alguma coisa, esconder
alguma coisa sobre si. Aquilo sobre o que não quiserem falar será considerado
socialmente perigoso. Por isso os antigos órgãos de segurança do Estado ficarão
observando, para que de forma alguma reste algo por dizer. Ao mesmo tempo,
àqueles que desejarem calar e esconder-se, também concederão esse direito e
haverá até clubes de silêncio.
A questão da igreja resolve-se assim: não haverá nenhum renascimento. Lá
e cá, especialmente nas novas cidades industriais, abrir-se-ão umas igrejinhas; nos
novos bairros das grandes cidades também; mas de modo muito limitado. Levando
em conta a maleabilidade especial dos nossos habitantes a todo tipo de influência
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 73

autoritária, ainda mais a influências de uma instituição dessas, autoritária e pode-


rosa, como a nossa igreja; levando em conta como a igreja paralisa, no nosso caso,
manifestações livres e vitais – não se deve permitir a sua expansão. Repetimos,
isso não se relaciona de modo algum aos ensinamentos do evangelho em si, que
devem ser, de todas as formas, saudados, lembrados nos manuais escolares, nos
programas infantis – nos de televisão, nas reuniões de pioneiros, nos espetáculos
de cultura de massa. Além disso, na igreja ortodoxa atual não se permite nenhum
tipo de reforma. Nem a menor das inovações. Ela deve permanecer tal e qual
sempre foi. Para que, se vocês quiserem entrar numa delas, entrem justamente
numa igreja ortodoxa russa, e não numa sabe-se lá qual.
Pois então, resumindo. A experiência de Pedro II (Uliánov-Lênin) no que diz
respeito ao desmoronamento da Rússia considera-se bem-sucedida, um sucesso.
Entretanto, a manobra não foi levada a cabo. Para que houvesse o remate final,
teria sido necessário recrutar forasteiros para o governo, como no começo da his-
tória russa. Visando a prevenção de descontentamento nacional, fez-se necessário
desenrolar uma rede de clubes de totalitarismo artificial, organizar festividades em
estádios com a performance de canções dos tempos estalinistas etc.
Desta forma, todos os propósitos foram mais ou menos alcançados. Mas
se vocês, de toda forma, amam a saudade e a tristeza, então resta uma última,
uma verdadeira saudade, que muitos não conheciam, por conta de pequenos in-
fortúnios. Quando tudo é possível, ela mesmo assim se torna maior e maior. Só
que esta não será uma saudade de alguma filazinha por aí, mas sim uma saudade
verdadeira, mortal.
Pois então, bem-vindos, senhores, à nossa terra.

ПРЕДАТЕЛЬСТВО-80 (Е. Харитонов)

Антиутопия

Итак, Красная площадь была запружена народом. Он шел, шел и шел.


«Долой коммунистическую сволочь!» - кричал он. Все несли антисоветские
лозунги. Так всем было приказано. На месте мавзолея выкопали яму. Сам
мертвец лежал невдалеке. Все ожидали его торжественной казни. Наконец
подъехал каток, которым раскатывают асфальт, и раскатал мертвеца
в лепешку. А перед этим выбрали по лотерее несколько человек, им
дали рвотного порошка, чтобы их стошнило на вал катка. Вот этим-то
измазанным валом и проехали по трупу под марш Бетховена, сыгранный на
74 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

синтезаторе. Солдатам возле ямы дали арбузов и пива, и они помочились


в яму. А уж затем лепешка была потоплена в ней. Конечно, всем было
объяснено, что это топят труп 60-ти лет лежания; а сам-то по себе юноша
Ульянов был с чистыми порывами и он достоин музея. Он, несомненно,
хотел хорошего своей грубой стране, но слишком много в нем самом
было татарского, казанского. Да и вокруг. И он поневоле стал действовать
татарскими методами. Впрочем, другими, возможно, ничего бы не вышло.
Возможно, либеральные деятели, Милюков, Глучков, Победоносцев18,
ничего бы не смогли сделать с Россией, их съели бы. Ведь даже Блок, на-
пример, такая тонкая натура, не воспринимал их и хотел быть скифом19.
Только татарскими методами Ленина можно было разрушить Россию,
поломать ее тупой бюрократический аппарат, - но! Но Евангелие! нежное
и проникновенное, единственно верное христианское учение о сочувст-
вии, о любви, о том, что нет на свете счастья, надо было оставить детям в
школе и взрослым в университетах культуры. Раз он позакрывал церкви.
С этим учением гораздо трезвее переносятся жизненные невзгоды, чем с
коммунистическими обещаниями. И другое «но», совсем практическое.
Ленин был недостаточно немецким шпионом20. Как можно было доверить
править Россией русским - и евреям, обрусевшим, перенявшим все плохие
русские черты плюс к неважным своим. Так что же, надо было позвать
Варягов, как в начале русской истории? Нет, Варяги не поняли бы того
момента и сделали бы хз России простую колонию. Они тогда еще сами не
научены были опытом социализма. Они вернули бы России ее царя, двор,
все снова пришло бы к той же революции и х их, иноземцев, изгнанию. И
вот, наконец, время приглашения Рюриков21 настало. Квалифицированные
европейские и американские управляющие приглашаются сегодня занять

18 Упоминуты: Милюков Павел Николаевич (1859-1943) – один из организаторов партии кадетов,


редактор газеты «Речь». В 1917 году – министр иностранных дел Временного правительства 1-го
состава. Гучков Александр Иванович (1862-1936) – лидер партии «Союз 17 октября» («октябристов»),
депетат и с 1910 года председатель 3-й Государственной думы. В 1915-1917 годах – председатель
Центрального военно-промышленного комитета. В 1917 году военный и морской министр Вре-
менного правительства. Победоносцев Константин Петрович (1827-1907) – 1880-1905 годах обе-
рпродуктор Святейшего Синода. Причисление последнего к «либеральным деятелям» неспрадливо.
19 Имеется в виду поэма Александра Александровича Блока (1880-1921) «Скифы» (1918).
20 Имеется в виду возникшая в ибле 1918 года версия о шпионской деятельности Ленина и
других лидеров большевиков в пользу Германии: одним из доказательств обвинения служили
опубликованные Временным правительством документы, согласно которым партия большевиков
получала в 1916-1917 годах денежные субсидии от германского правительства.
21 Рюрик – согласно летописям, глава военного отряда варягов, привазнный в 862 году на кня-
жение на Руси. Правил в Ладоге и в Новгороде.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 75

все крупные (и мелкие) посты, на договорах. Приглашаются все из разных


стран, без преимущества какой-нибудь одной. Творчество – научное,
художественное - остается нам. А уж управление у нас не выходит, и мы
зовем на помощь вас, уважаемые господа, милости просим!
Граница страны на востоке сдвигается до Енисея. Красноярск –
пограничный пункт. (Возможно его переименование в Чаадаев.) Все
население, по Владивосток включительно и Сахалин, переселяется в новые,
специально построенные города Западной Сибири. Освободившаяся
территория отдается Китаю. Пусть китайцы делают с ней что хотят. А
уж сюда, за Чаадаево, мы их не пустим. Да они, надеемся, удовлетворятся
и такой территорией. Ведь, правда же, их много, им надо где-то жить и
что-то есть.
Союзные республики.
Прибалтике, как Европе, разрешается выйти из состава нового
государства. Впрочем, на ее усмотрение. Возможно, при новом управлении
ей и не имеет смысла никуда выходить.
Кавказ остается нам в любом случае, потому что он несознательный
и воинственный. Кроме того, в Баку нефть.
Кочевники (Казахстан). Кочевники по-прежнему остаются колонией,
потому что до большего пока не доросли.
С просвещенными союзными республиками (таджики, узбеки)
вопрос решается, как и с Прибалтикой. Малая Россия (Украина), Белая
Россия (Белорусская республика имени Петра Машерова22) - вопрос на
их усмотрение. В случае отхода Украины от нас Крым изымается у нее и
объявляется нейтральной территорхей, как Швейцария.
Ценз на иудейских представителей в управлении остается
ограниченным, как и прежде, - во избежание резких вспышек юдофобии
в случае незадач в правлении.
Так как хозяйственные вопросы дело не нашего ума, переходим сразу
к вопросам идеологии, морали и развлечений.

22 Пётр Миронович Машеров (1918-1980) – советский партнийный и государственный деятель,


Герой Советского Союза (1944), Герой Социалистического Труда (1978), член ЦК КПСС (с 1964
года), кандидат в члены Политбюро ЦК КПСС (с 1966 года). С 1965 – 1-й секратарь ЦК компартии
Белоруссии. Пользоваашийся большим авторитетом в Белоруссии и рассчитывавший занять пост
Председателя Совета минимтров СССР Машеров погиб 04 октября 1980 года в автомобильной
катастрофе при обстоятельствах, позволяющих предполагать его умышленное убийство.
76 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

Итак, с мавзолеем покончено. Что будем делать с Кремлем? Конечно,


большой соблазн взорвать его и сжечь. И увековечить этот момент в
передачах по всему миру. Казалось бы очень важно не держаться за некоторые
святыни, как бы они ни приросли к сердцу России. Все равно они несут с
собой этот византийский смысл. В любой момент такой памятник может
стать очагом прежних настроений. Впрочем, сжигать святыню опять будет
российская крайность. Вот что нам предлагают западные товарищи, и мы
с удовольствием их послушаем. В Кремле открыть лучший, чтобы он был
украшением всей нашей территории, платный Дом свиданий. Вот здесь
и пригодятся девушки наших колоний - Средней Азии, Севера. Казашки,
якутки, нанаечки и лица другого пола. Публичный дом «Кремль» будет
украшен еженощно иллюминацией (но не яркой, ослепительной), чтобы
мерцала и бегала, как огоньки в церкви или на елке.
В идеологии будет поощряться и даже вменяться (за этим проследят
соответствующие инстанции) ругань и проклятие в адрес новой жизни и
властей. Чем больше будут ее открыто ругать, тем меньше будет оставаться
невысказанности. Идеология поношения объявляется господствующей.
Однако чтобы оградить тех, кого ругают, от грубых действий ругающих и
чтобы ругань поддерживалась в словах, в изобразительных знаках, - будет
создана специальная сеть служб. Вы, конечно, понимаете, что ее кадрами
будут бывшие работники органов государственной безопасности и новые
выпускники ее школ. Вообще: эта организация оценивается нами как
единственная совершенная в своем роде из всех существующих за годы
социалистического строительства хозяйственных, культурных, научных
организаций. Именно она будет следить за соблюдением европейской
любезности у работников сферы обслуживания, - опять же поощряя
мрачные речи в адрес новой революции, в адрес правителей, произносимые
в очередях, которые, конечно, в первые десять дней, даже при западной
администрации, еще не исчезнут. Потому что как ни тяжело стоять в
очередях, как ни тяжело видеть исчезновение многих продуктов, но еще
тяжелее, что нельзя, открыто проклиная коммунистическую сволочь,
смачно, набрав в рот соплей, плевать на их портреты. «Можно, - говорит
теперь то, что раньше было КТБ. - И даже нужно». И само сделает
этот артистический жест. В то же время справедливо охраняя власти от
покушений на их жизнь. Ведь действительно очень нелегко править такой
огромной страной. Впрочем, она же теперь стала меньше.
Одно из интересных нововведений идеологии - дозволение мата.
Поощрение телеспектаклей, кинофильмов и т. д., изображающих все,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 63-78 77

что каждый ненавистник готов от ненависти измыслить, даже в еще


более сгущенных, зловещих, кощунственных красках. В то же время для
баланса и уважая привычки и вкус, оберегая здоровье старшего поколения,
продолжают создаваться мягкие, сглаживающие всё произведения (один
или два канала телевидения, то же на радио). Да и для людей среднего
и молодого поколения приятно будет смотреть такие передачи. Они
оригинально будут выглядеть на фоне черных и трогать.
М а т ер щ ина выкла д ыва е т с я с ветящ им ися б уква м и (то ж е
перебегающими огоньками) на домах. В то же время тем, кто захочет
усмотреть в ней знаки апокалипсиса, предоставляются рупора открыто
высказывать и эту мысль. Не разрешается только что-то недоговаривать,
что-то таить про себя. Социально опасным будет считаться то, о чем не
хотят говорить. Поэтому бывшие органы государственной безопасности
следят, чтобы ни в коем случае ничто не осталось невысказанным. В то же
время желающим молчать и таиться тоже предоставляются такое право и
такие клубы молчания.
Вопрос с церковью решается так: никакого возрождения. Кое-где,
особенно в новых промышленных городках, открывается по церковке;
в новых районах больших городов тоже; но очень ограниченно.
Учитывая особую податливость нашего населения всяким авторитарным
воздействиям, тем более воздействию такого мощного авторитарного
учреждения, как наша церковь; учитывая, как парализует церковь, в нашем
случае, свободные витальные проявления, - не допускать ее расширения.
Повторяем, это никак не относится к самому евангельскому учению, которое
должно всячески приветствоваться, напоминаться в школьных учебниках, в
детских радио- и телепередачах, на сборах пионеров, в зрелищах массовой
культуры. При этом: в существующей православной церкви не допускается
никаких реформации. Ни малейших нововведений. Она должна оставаться
такой, какой была. Чтобы, если вы захотели пойти в нее, вы пошли бы в
русскую православную церковь, а не в какую-то неизвестно какую.
Итак, резюме. Опыт Петра 2-го (Ульянова-Ленина) в части развала
России считать успешным, удавшимся. Однако диверсия не была им
проведена до конца. В делах ее довершения привлечь к управлению
иноземцев, как в начале русской истории. В целях предотвращения
национального недовольства развернуть сеть клубов по художественному
тоталитаризму, устраивать празднества на стадионах с исполнением песен
сталинского времени и т. д.
78 Yuri Martins de Oliveira. Contos selecionados de Evguêni Kharitónov

Таким образом, все склонности будут более или менее удовлетворены.


А уж если вы все равно любите тоску и грусть, так остается настоящая,
последняя тоска, которую многие не знали за мелкими невзгодами. Когда
все можно, а она все равно и еще больше. Но это будет не тоска от каких-то
там очередей, а настоящая смертельная тоска.
Так что, милости просим, господа, на нашу землю.

Referências
KHARITÓNOV, E. Jilets napisal zaiavlenie [Um morador escreveu um requerimento].
In:____. Pod domachnim arestom [Em prisão domiciliar]. 2º edição. Moscou: Glagol,
2005, pp. 116-118.
____. Jilets napisal zaiavlenie [Um morador escreveu um requerimento]. In: BERMAN,
F. et al. Katalog [Catálogo]. Ann Arbor: Ardis, 1982, p. 256-258. Disponível em: http://
vtoraya-literatura.com/pdf/katalog_ardis_1982_text.pdf Consulta realizada em 20 de
agosto de 2017.
____. PREDATELSTVO-80 – Antiutopia [Traição-80 – Antiutopia]. In:____. Pod do-
machnim arestom [Em prisão domiciliar]. 2º edição. Moscou: Glagol, 2005, pp. 399-403.
____. PREDATELSTVO-80 – Antiutopia [Traição-80 – Antiutopia]. Disponível em:
https://openuni.io/course/5-course-4/lesson/2/material/464/ Consulta realizada em
20 de agosto de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 79-81 79

Terceira Carta de Chklóvski

Neide Jallageas

Resumo: Esta é uma das cartas que compõem o livro ZOO. Cartas não sobre o amor, ou Terceira Heloisa, de
Viktor Borisovitch Chklóvski (São Petersburgo, 1893-1984). Publicada pela primeira vez em 1923, em Berlim,
ela é traduzida aqui diretamente do russo.
Palavras-chave: Literatura Russa; tradução

Introdução

Esta é uma das cartas que compõem o livro ZOO. Cartas não sobre o amor,
ou Terceira Heloisa, de Víktor Borísovitch Chklóvski (São Petersburgo, 1893-1984),
publicado pela primeira vez em 1923, em Berlim. Chklóvski encontrava-se exila-
do na capital alemã onde também estava Elsa Triolet (1896-1970) que, junto ao
contexto, inspirou ao escritor na criação deste romance epistolar, composto de
fragmentos que se conectam por meio de metáforas do amor (que passa a ser
dirigido à Rússia, pátria distante), já que o missivista apaixonado por Alia/Elsa,
logo de início, fora impedido por sua amada de escrever sobre o amor. A “Terceira
Carta” é exatamente a que contém a interdição dirigida ao escritor, assinada pela
mulher amada e que recusa esse amor.
A presente tradução, realizada diretamente do russo, é inédita.
A tradutora agradece a leitura atenta e observações de Ekaterina Volkova
Américo para esta tradução.
80 Neide Jallageas. Terceira Carta de Chklóvski

ZOO. Cartas não sobre o amor, ou Terceira Heloisa (Viktor Chkló-


vski)

TERCEIRA CARTA

Segunda carta também de Alia.


Nela, Alia pede para que eu não escreva a ela sobre o amor.
Caro, meu querido. Não me escreva sobre o amor. Não precisa.
Estou muito cansada. Como você mesmo disse, entreguei os pontos. Seu
dia a dia nos separa. Não amo você e não amarei. Seu amor me amedronta; algum
dia você me ofenderá por me amar tanto. Pare com esse terrível lamento, pois
você é meu, apesar de tudo. Não me assuste! Você me conhece muito bem, mas
tudo faz para me assustar, para me afastar de você. O seu amor pode ser grande,
mas não é alegre.
Eu preciso de você, você sabe como despertar a minha própria face.
Não me escreva apenas sobre o seu amor. Não me ligue para fazer cenas
absurdas. Não seja cruel. Você sabe como envenenar os meus dias. Eu preciso
de liberdade, que ninguém ouse me perguntar qualquer coisa. Mas você exige de
mim todo o meu tempo.
Seja leve, para não se perder no amor. A cada dia sua tristeza aumenta.
Você precisa descansar, meu caro.
Escrevo na cama, de tanto que dancei ontem. Agora vou tomar um banho.
Talvez hoje nos vejamos.
Alia
5 de fevereiro
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 79-81 81

ZOO. Письма не о любви, или Третья Элоиза (Шкловский


Виктор)

ПИСЬМО ТРЕТЬЕ

Алино же второе.
В нем Аля просит не писать ей о любви. Письмо усталое.
Милый, родной. Не пиши мне о любви. Не надо.
Я очень устала. У меня, как ты сам говорил, сбита холка. Нас
разъединяет с тобой быт. Я не люблю тебя и не буду любить. Я боюсь твоей
любви, ты когда-нибудь оскорбишь меня за то, что сейчас так любишь. Не
стони так страшно, ты для меня все же свой. Не пугай меня! Ты меня так
хорошо знаешь, а сам делаешь все, чтобы испугать меня, оттолкнуть от себя.
Может быть, твоя любовь и большая, но она не радостная.
Ты нужен мне, ты умеешь вызвать меня из себя самой.
Не пиши мне только о своей любви. Не устраивай мне диких сцен по
телефону. Не свирепей. Ты умеешь отравлять мне дни. Мне нужна свобода,
чтобы никто даже не смел меня спрашивать ни о чем. А ты требуешь от
меня всего моего времени. Будь легким, а не то в любви ты сорвешься. А ты
с каждым днем все грустней. Тебе нужно ехать в санаторий, мой дорогой.
Пишу в кровати, оттого что вчера танцевала. Сейчас пойду в ванну.
Может быть, сегодня увидимся.
Аля
5 февраля

Referências
CHKLÓVSKI, Víktor Borísovitch. “ZOO. Pisma ne o liubvi, ili trtia Eloiza”. São Peter-
sburgo: Azbuka-klassika, 2009.
82 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

Moscou Feliz (Excerto)

Cássio de Oliveira*

Resumo: Apresentação, tradução e notas sobre Moscou Feliz (Schastlívaia Moskvá), que ocupa uma posição
única entre as obras de Andrei Platónov (1899-1951), autor dos romances Tchevengur e Kotlovan (A Escavação
da fundação), admirado por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana Tolstáia, e Elif Batuman, porém praticamente
desconhecido no Brasil.
Palavras-chave: Tradução; Literatura Russa; Andrei Platonov

Apresentação

Moscou Feliz (Schastlívaia Moskvá) ocupa uma posição única entre as obras
de Andrei Platónov (1899-1951), o autor dos romances Tchevengur e Kotlovan (A
Escavação da fundação), admirado por escritores como Joseph Brodsky, Tatiana
Tolstáia, e Elif Batuman, porém praticamente desconhecido no Brasil. Escrito
durante a primeira metade da década de 1930 e publicado somente em 1991,
Moscou Feliz se assemelha mais a uma novela ou pôviest’ na tradição literária russa,
mas é normalmente considerado um romance devido ao desenvolvimento mais
elaborado da narrativa. O consenso é que Moscou Feliz é um romance inacabado,
o que quer dizer que o que segue abaixo é um excerto de um fragmento. O caráter
inacabado do romance, seu namoro com o conceito da “obra aberta” de Umberto
Eco, somente contribui para o seu fascínio, já que, de certa forma, os impulsos e
aspirações de seus protagonistas refletem o clima utópico dos primeiros Planos
Quinquenais de Stálin – uma utopia que, como o próprio romance, é interrompi-
da bruscamente durante a segunda metade da década de 1930, com os Grandes

* Professor-Assistente de Russo na Portland State University. E-mail: [email protected]


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 83

Expurgos e a ansiedade que precedem a Segunda Guerra Mundial e a invasão


nazista da União Soviética em 1941.
A outra fonte da fascinação de Moscou Feliz consiste no estilo inusitado de
Andrei Platónov, conhecido daqueles que leram a tradução (de Denise Sales) de
“Makar, o duvidador” publicada na Nova Antologia do Conto Russo (2011). Na intro-
dução àquele conto, Bruno Gomide, o organizador da coletânea, define bem as
características da arte de Platónov que tornam a tradução de suas obras tão difícil
e ao mesmo tempo tão gratificante: “publicado e censurado alternadamente, [Pla-
tónov] permanece fiel a uma forte e idiossincrática noção utópica do comunismo,
ao mesmo tempo em que cria um universo da estranheza e da ambiguidade, que
impõe os mais complexos desafios a seus tradutores” (GOMIDE, 2011, p. 487).
No caso de Moscou Feliz, a estranheza e ambiguidade já começam com seu título,
que é uma referência, obviamente, à capital soviética na qual a trama se desen-
laça, mas também à protagonista do romance, uma órfã que adquire esse nome
em homenagem à capital do comunismo: em russo, Moscou é um substantivo
feminino terminado em –a, daí que o nome da personagem, ainda que estranho,
é gramaticamente aceitável.
A julgar pelo título, o leitor imaginaria que este é um romance sobre uma
pessoa (Moscou) ou uma cidade (Moscou) onde reina a felicidade; de fato, em
1935, Stálin declararia em um discurso que “A vida melhorou, a vida ficou mais
feliz” desde a implementação do comunismo. Porém, como já o primeiro capítulo
de Moscou Feliz demonstra, ninguém está feliz neste romance; todos – e Moscou
acima de tudo – estão, de fato, à procura de uma felicidade que eles mal podem
definir ou entender.
A alusão à felicidade, condição tão fundamental aos seres humanos, mas
nem sempre dependente do regime político ou da situação econômica nos quais
eles se encontram, antecipa o principal desafio que um texto de Platónov impõe
a seus tradutores: este é um texto que lida com uma realidade material bastante
específica, mas que sempre almeja descrever uma realidade espiritual e atemporal,
mas ainda assim vinculada ao mundo concreto, e até derivada dele. A solução para
Platónov é uma combinação inesperada, e às vezes completamente desconcer-
tante, do mundo físico com o mundo das ideias, de substantivos concretos com
substantivos abstratos, de jargões comunistas com expressões de cunho filosófico.
Um texto de Platónov se assemelha, às vezes, a algo que um poeta metafísico que
tivesse acabado de ler “O Manifesto Comunista” seria capaz de escrever: objetos
e condições físicas afetam o espírito, e conceitos abstratos, como a felicidade
ou a saudade, são algo que se desenvolve dentro do corpo e que se beneficia de
nutrientes ou do exercício.
84 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

Um exemplo dessa confusão aparece logo no primeiro parágrafo, onde


o texto russo lê “pâmiat’ i um rânnego diêtstva zárosli v eiô tiêle navsegdá posleduiuchêi
gizn’iu” («память и ум раннего детства заросли в её теле навсегда последующей
жизнью»), que eu traduzo como “no seu corpo, a memória e a mente da primeira
infância foram cobertas para sempre por sua vida posterior”. A palavra-chave desta
frase é o verbo zarastí, que significa “cobrir-se” com alguma coisa, por exemplo
quando um campo abandonado se cobre de mato, quando a pele cobre uma ferida
aberta, ou ainda, em animais, quando cabelos, pelos, ou penas cobrem uma parte
do corpo. Aqui, Platónov parece usar o verbo metaforicamente, sugerindo que
Moscou esqueceu suas experiências primordiais depois de ter crescido. Mas o leitor
atento logo nota que isso não é uma metáfora normal, ou que uma tradução que
simplesmente “explicasse” o original não seria capaz de reproduzir as características
formais do texto que o tornam tão complicado também em russo. Em primeiro
lugar, não é só a memória que se perde, mas também a mente: um, também traduzido
como “razão” ou “intelecto”, uma palavra que, em russo, ainda que denote uma
qualidade abstrata, mantém um vínculo mais forte com o mundo material por
representar a capacidade de pensar e raciocinar mais que somente a inteligência
em si. (A inteligência como qualidade abstrata é normalmente representada pela
palavra rázum, que normalmente significa o exercício intelectual, a conjecturação,
sem se obter necessariamente resultados concretos). Em segundo lugar, todas
essas operações descritas pelo narrador estão acontecendo no corpo de Moscou,
como se a memória e a mente tivessem uma localização física bastante específica.
Daí que a locução “no seu corpo”, que, devido a convenções e regras do russo,
segue o verbo no original, precisou ser enfatizada na tradução e, por isso, precede
a frase inteira.
O corpo humano (e, a propósito, o animal também) em Platónov está
cheio, não só de vida, mas de impulsos que frequentemente são independentes da
vontade daquela pessoa: alguns parágrafos abaixo, quando Moscou completa seus
estudos, suas mãos “ansiavam por trabalhar” (“tomílis’ po dêiatel’nosti”, «томились
по деятельности»), mas, frustradas em razão do casamento de Moscou, somente
“começaram a abraçar” (“stáli obnimát’sia”, «стали обниматься»). Platónov, como
esse exemplo evidencia, utiliza intensamente a prosopopeia, com dezenas de ações
perpetradas por sentimentos, partes do corpo, ou seres inanimados. As mãos de
Moscou se assemelham a uma máquina encarregada de repetir uma só operação
(“abraçar”) – e vale lembrar que a metáfora do corpo humano como máquina
se tornara um lugar-comum durante as primeiras décadas da União Soviética. A
diferença, para Platónov, é que até essa máquina é dotada de desejos e ânsias. Aqui,
por sinal, encontra-se mais um problema de tradução: em russo, a palavra ruká
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 85

significa tanto a mão quanto o braço. Enquanto a primeira locução verbal acima
funciona melhor com as “mãos” (pensa-se, por exemplo, na expressão “mãos à
obra”), a segunda locução faria mais sentido se “braços” fossem utilizados. Decidi
por “mãos” em ambos os casos, de modo a manter o paralelismo, e também de
modo a enfatizar a bizarrice da imagem que Platónov constrói: mãos, dotadas de
vontade própria, sendo forçadas a fazer algo que não lhes convém.
A combinação inusitada do impulso utópico com os desejos (incluindo dese-
jos sexuais) mais recônditos e incompreensíveis constitui o problema fundamental
abordado por Platónov em todas as suas obras. O excerto abaixo, e Moscou Feliz
em geral, oferece um dos exemplos mais contundentes dessa complexa visão do
mundo e, mais importante, da linguagem única que Platónov utiliza para transmitir
essa visão. Na tradução para o português eu tentei, ao máximo, reproduzir esse
senso de estranhamento (a famosa ostraniénie de Viktor Chklóvski) que impregna
o texto russo. Para usar o conhecido termo elaborado por Lawrence Venuti, meu
intuito com esta tradução foi o de criar uma forma de “estrangeirização” (foreigni-
zation). Porém essa estrangeirização não quer dizer simplesmente que eu almejei
reproduzir estruturas ou formas da língua russa no texto em português, ou seja, que
tentei enfatizar o caráter estrangeiro e “imigrante” do texto. Meu intuito principal
foi um pouco diferente: reproduzir, no texto em português, os desvios da norma
que caracterizam o texto em russo de Platónov. O julgamento dessa empreitada
deixo a cargo dos leitores.1

Moscou Feliz (Andrei Platónov)

1.

Um sujeito sombrio, carregando uma tocha ardente, corria pela rua em


uma melancólica noite de fim de outono. Uma garotinha, tendo acordado como
resultado de um triste sonho, o viu da janela de sua casa. Depois ela ouviu o forte
estampido de uma arma de fogo e um triste, pobre grito: provavelmente assas-
sinaram o fugitivo da tocha ardente. Logo se ouviram muitos tiros longínquos e
os rumores do povo na prisão ali perto... A garota adormeceu e depois, noutros
dias, esqueceu tudo que vira: ela era jovem demais e, no seu corpo, a memória e
a mente da primeira infância foram cobertas para sempre por sua vida posterior.

1 Expresso minha gratidão a Cynthia Sloan, que leu o manuscrito da tradução e fez várias sugestões
que muito me ajudaram no processo de revisão do texto.
86 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

Porém, até seus anos tardios, inesperada e tristemente, para ela o sujeito incógni-
to se levantaria e fugiria sob a pálida luz da memória, e novamente morreria na
escuridão do passado, no coração da criança crescida. Entre a fome e o sono, no
momento do amor ou de alguma outra jovem alegria, subitamente e de longe, o
desesperado grito do morto ecoaria novamente nos recônditos de seu corpo, e
a vida da jovem mulher se alteraria imediatamente: ela interromperia a dança, se
estivesse dançando, trabalharia mais auspiciosa e compenetradamente, se estivesse
labutando, cobriria o seu rosto com as mãos, se estivesse sozinha. Naquela noite
de intempéries do fim do outono começara a Revolução de Outubro – naquela
cidade, onde naquela época morava Moscou Ivánovna Tchêstnova.
Seu pai morrera de tifo, e a menina, faminta e órfã, saíra de casa e nunca
mais voltara. Sua alma tendo adormecido, sem se lembrar nem de pessoas, nem do
espaço, por alguns anos ela vagou e se alimentou pela pátria, como no deserto, até
ter acordado no orfanato e na escola. Ela se sentava na carteira à janela, na cidade
de Moscou. No bulevar as árvores já pararam de crescer, e, sem a força do vento,
as folhas caíam e cobriam a terra que havia sido calada em preparação para um
longo sono; era o fim do mês de setembro daquele ano em que todas as guerras
acabaram, e o transporte público começou a se reestabelecer.
A garota Moscou Tchêstnova já estava no orfanato havia dois anos; foi lá
que lhe deram um nome, um sobrenome, e até um patronímico, porque a menina
se lembrava muito indefinidamente de seu nome e de sua primeira infância. Ela
achava que seu pai a chamava de Olia, mas ela não tinha certeza disso e se calava,
como anônima e desconhecida, como aquele sujeito noturno que havia morrido.
Então lhe deram um nome em honra de Moscou, patronímico em memória de
Ivan – típico soldado russo do Exército Vermelho, morto no campo de batalha – e
sobrenome como sinal da honradez de seu coração2, que ainda não havia sucedido
em se tornar desonrado, ainda que já fosse há muito tempo infeliz.
A vida clara e ascendente de Moscou Tchêstnova começara a partir daquele
dia de outono, quando ela se sentava perto da janela na escola, já na segunda classe,
observava a morte das folhas secas no bulevar, e lera com interesse a tabuleta no
prédio do outro lado da rua: “Biblioteca e sala de leitura proletário-camponesa
A. V. Koltsóv3”. Antes da última aula, deram para todas as crianças, pela primeira
vez na vida delas, um pãozinho com um croquete e batata para cada uma, e ex-

2 A palavra tchést’, a partir da qual o sobrenome de Moscou é criado, significa “honra” em russo.
3 Aleksêi Vasílievitch Koltsóv (1809-1842), poeta russo natural de Vorôniej, a mesma cidade onde
nasceu Platónov.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 87

plicaram de onde vêm os croquetes – das vacas. Imediatamente deram a todas as


crianças um dever de casa para o dia seguinte: escrever uma redação sobre uma
vaca, quem as viu, e também sobre a sua própria vida futura. De noite Moscou
Tchêstnova, tendo se saciado com o pãozinho e o croquete cheio, escreveu uma
redação na mesa coletiva, quando todas as suas amigas já dormiam e a fraca luz
elétrica estava acesa. “O conto da garotinha sem pai nem mãe sobre a sua vida
futura: Atualmente estão nos ensinando a raciocinar, e a razão está na nossa cabeça,
não há nada fora dela. É necessário viver verdadeiramente trabalhando duro, eu
quero viver a vida futura, tomara que tenha biscoitos, geleia, bombons e que seja
sempre possível passear pelo campo entre as árvores. Senão eu não vou viver, se
for assim, eu não quero por causa do meu humor. Eu quero viver habitualmente
com felicidade. Não tenho mais nada a dizer.”
Moscou em seguida fugiu da escola. Um ano mais tarde ela foi mandada
de volta e foi envergonhada na assembleia pública, onde disseram que ela, como
filha da revolução, agia sem disciplina e sem ética.
– Eu não sou filha, eu sou órfã! – Moscou então respondeu e novamente
começou a estudar com aplicação, como se nunca tivesse se ausentado.
Por natureza ela gostava, acima de tudo, do vento e do sol. Ela adorava se
deitar em algum lugar na grama e ouvir como o vento, como uma pessoa invisível
e cheia de saudade, zune no meio do mato; e ver as nuvens de verão, flutuando ao
longe, sobre todos os países e povos desconhecidos; como resultado da observação
das nuvens e do espaço Moscou era acometida de palpitação do coração, como
se seu corpo fosse elevado às alturas e lá abandonado por sua conta. Depois ela
passeava pelos campos, pela terra ruim e simples, e, vigilantemente e com cuidado,
tudo observava atentamente e de perto, somente agora se familiarizando com a
vida no mundo e se alegrando com o fato que aqui tudo combina com ela – com
seu corpo, coração, e liberdade.
Ao completar seu nono ano de estudos Moscou, como toda pessoa jovem,
começou inconscientemente a procurar um caminho para o seu futuro, para a feliz
aglomeração humana; suas mãos ansiavam por trabalhar, seu sentimento buscava
orgulho e heroísmo, em sua mente triunfava com antecipação um destino ainda
misterioso, porém elevado. A Moscou de dezessete anos não podia entrar em
lugar nenhum sozinha, ela esperava um convite, como se estivesse valorizando
em si mesma o dom da juventude e da força amadurecida. Por isso ela se tor-
nara solitária e estranha por um tempo. Um sujeito acidental um dia conheceu
Moscou e a persuadiu com seu sentimento e gentileza – daí Moscou Tchêstnova
se casou com ele, para sempre e de uma só vez tendo estragado seu corpo e sua
88 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

juventude. Suas mãos grandes, apropriadas para a atividade corajosa, começaram


a abraçar; seu coração, à procura do heroísmo, começou a amar somente uma
pessoa astuciosa, que se agarrou a Moscou como ao seu patrimônio indispensável.
Porém em uma certa manhã Moscou sentiu tamanha exaustiva vergonha de sua
vida, sem saber com certeza de que ela sentia vergonha, que ela deu um beijo de
adeus na testa de seu marido a dormir e deixou o quarto, sem nem levar consigo
um outro vestido. Ela passeou pelos bulevares e às margens do rio Moscou até
o cair da tarde, sentindo somente o vento (sinal de uma pequena intempérie de
setembro) e, como que vazia e cansada, sem pensar em nada.
De noite ela queria se esconder para o pernoite em uma caixa em algum
lugar, queria achar um quiosque alimentício vazio da Mostrop4 ou ainda qualquer
outra coisa, como ela costumava agir anteriormente, durante sua infância vagabun-
dante, mas ela notou que já há muito tempo se tornara grande e não conseguiria
caber em lugar nenhum sem ser vista. Ela se sentou num banco na escuridão de
um bulevar tardio e cochilou, ouvindo como por perto vagabundeavam e mur-
muravam ladrões e arruaceiros mendicantes.
À meia-noite naquele mesmo banco se sentou uma pessoa insignificante,
tomada de uma esperança secreta e conscienciosa de que, talvez, essa mulher
viesse amá-lo repentinamente e por conta própria, visto que ele não seria capaz
de extrair o amor dela com persistência; ele não estava essencialmente à procura,
nem da beleza de um rosto, nem da formosura de um corpo. Ele estava disposto a
tudo e a sacrificar o que fosse no tocante a si mesmo, contanto que alguma pessoa
respondesse a ele com um sentimento genuíno.
– Do que o senhor precisa? – Moscou, tendo acordado, perguntou a ele.
– Eu não preciso de nada, – essa pessoa respondeu. – Simplesmente assim.
– Eu quero dormir, e não tenho para onde ir, – disse Moscou.
A pessoa imediatamente lhe informou possuir um quarto, mas que, de
modo a evitar quaisquer suspeitas concernentes às suas intenções, era melhor que
Moscou alugasse um quarto de hotel e lá durmisse bem, enrolada em um lençol
numa cama limpa. Moscou concordou, e eles partiram. No caminho, Moscou
pediu que seu companheiro lhe arranjasse estudos em algum lugar com comida
e um dormitório.

4 Moskóvskii trést obschêstvennogo pitâniia («Московский трест общественного питания»), ou “Truste


moscovita de alimentação social”, concessionária estatal encarregada dos supermercados e mercearias
na Moscou dos anos 1920. Em 1933, se incorporou à companhia estatal “Gastronom”, e o termo – um
tanto estranho até em russo, onde tais siglas se tornaram bastante comuns depois da Revolução – caiu
em desuso.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 89

– E o que você ama acima de tudo? – ele perguntou.


– Eu amo o vento no ar livre e algumas outras coisas mais, – Moscou disse,
fatigada.
– Então você vai para o instituto de aeronáutica, nada mais serve para você,
– decidiu o acompanhante de Moscou. – Vou ver o que eu posso fazer.
Ele arranjou um quarto de hotel para ela na Hospedaria de Minin, pagou
adiantado por três dias, e lhe deu trinta rublos para se alimentar. Ele mesmo foi
para casa, levando consigo sua consolação.
Cinco dias mais tarde Moscou Tchêstnova, graças aos seus cuidados, come-
çou a estudar no instituto de aeronáutica e se mudou para o dormitório.

Счастливая Москва (Андрей Платонов)

Темный человек с горящим факелом бежал по улице в скучную


ночь поздней осени. Маленькая девочка увидела его из окна своего дома,
проснувшись от скучного сна. Потом она услышала сильный выстрел ружья
и бедный грустный крик — наверно убили бежавшего с факелом человека.
Вскоре послышались далекие, многие выстрелы и гул народа в ближней
тюрьме… Девочка уснула и забыла все, что видела потом в другие дни: она
была слишком мала, и память и ум раннего детства заросли в ее теле навсегда
последующей жизнью. Но до поздних лет в ней неожиданно и печально
поднимался и бежал безымянный человек — в бледном свете памяти — и
снова погибал во тьме прошлого, в сердце выросшего ребенка. Среди голода
и сна, в момент любви или какой-нибудь другой молодой радости — вдруг
вдалеке, в глубине тела опять раздавался грустный крик мертвого, и молодая
женщина сразу меняла свою жизнь — прерывала танец, если танцевала,
сосредоточенней, надежней работала, если трудилась, закрывала лицо руками,
если была одна. В ту ненастную ночь поздней осени началась октябрьская
революция — в том городе, где жила тогда Москва Ивановна Честнова.
Отец ее скончался от тифа, а голодная осиротевшая девочка вышла из
дома и больше назад не вернулась. С уснувшей душой, не помня ни людей,
ни пространства, она несколько лет ходила и ела по родине, как в пустоте,
пока не очнулась в детском доме и в школе. Она сидела за партой у окна,
в городе Москве. На бульваре уже перестали расти деревья, с них без ветра
падали листья и покрывали умолкшую землю — на долгий сон грядущий;
90 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

был конец сентября месяца и тот год, когда кончились все войны и транспорт
начал восстанавливаться.
В детском доме девочка Москва Честнова находилась уже два года,
здесь же ей дали имя, фамилию и даже отчество, потому что девочка помнила
свое имя и раннее детство очень неопределенно. Ей казалось, что отец звал
ее Олей, но она в этом не была уверена и молчала, как безымянная, как тот
погибший ночной человек. Ей тогда дали имя в честь Москвы, отчество в
память Ивана — обыкновенного русского красноармейца, павшего в боях,
—  и фамилию в знак честности ее сердца, которое еще не успело стать
бесчестным, хотя и было долго несчастным.
Ясная и восходящая жизнь Москвы Честновой началась с того осеннего
дня, когда она сидела в школе у окна, уже во второй группе, смотрела в смерть
листьев на бульваре и с интересом прочитала вывеску противоположного
дома: «Рабоче-крестьянская библиотека-читальня имени А.В.Кольцова».
Перед последним уроком всем детям дали в первый раз их жизни по белой
булке с котлетой и картофелем и рассказали, из чего делаются котлеты — из
коров. Заодно велели всем к завтрашнему дню написать сочинение о корове,
кто их видел, а также о своей будущей жизни. Вечером Москва Честнова,
наевшись булкой и густой котлетой, писала сочинение за общим столом,
когда все подруги ее уже спали и слабо горел маленький электрический свет.
«Рассказ девочки без отца и матери о своей будущей жизни. — Нас учат
теперь уму, а ум в голове, снаружи ничего нет. Надо жить по правде с тру-
дом, я хочу жить будущей жизнью, пускай будет печенье, варенье, конфеты
и можно всегда гулять в поле мимо деревьев. А то я жить не буду, если так,
мне не хочется от настроения. Мне хочется жить обыкновенно со счастьем.
Вдобавок нечего сказать».
Из школы Москва впоследствии сбежала. Ее вернули снова через
год и стыдили на общем собрании, что она как дочь революции поступает
недисциплинированно и неэтично.
— Я не дочь, я сирота! — ответила тогда Москва и снова стала при-
лежно учиться, как не бывшая нигде в отсутствии.
Из природы ей нравились больше всего ветер и солнце. Она любила
лежать где-нибудь в траве и слушать о том, что шумит ветер в гуще растений,
как невидимый, тоскующий человек, и видеть летние облака, плывущие
далеко над всеми неизвестными странами и народами; от наблюдения
облаков и пространства в груди Москвы начиналось сердцебиение, как будто
ее тело было вознесено высоко и там оставлено одно. Потом она ходила по
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 82-92 91

полям, по простой плохой земле и зорко, осторожно всматривалась всюду,


еще только осваиваясь жить и радуясь, что ей здесь все подходит — к ее
телу, сердцу и свободе.
По окончании девятилетки Москва, как всякий молодой человек,
стала бессознательно искать дорогу в свое будущее, в счастливую тесноту
людей; ее руки томились по деятельности, чувство искало гордости и
героизма, в уме заранее торжествовала еще таинственная, но высокая
судьба. Семнадцатилетняя Москва не могла никуда войти сама, она ждала
приглашения, словно ценя в себе дар юности и выросшей силы. Поэтому
она стала на время одинокой и странной. Случайный человек познакомился
однажды с Москвой и победил ее своим чувством и любезностью, — и тогда
Москва вышла за него замуж, навсегда и враз испортив свое тело и моло-
дость. Ее большие руки, годные для смелой деятельности, стали обниматься;
сердце, искавшее героизма, стало любить лишь одного хитрого человека,
вцепившегося в Москву, как в свое непременное достояние. Но в одно утро
Москва почувствовала такой томящий стыд своей жизни, не сознавая точно,
от чего именно, что поцеловала спящего мужа в лоб на прощанье и ушла из
комнаты, не взяв с собой ни одного второго платья. До вечера она ходила
по бульварам и по берегу Москвы-реки, чувствуя один ветер сентябрьской
мелкой непогоды и не думая ничего, как пустая и усталая.
Ночью она хотела залезть на ночлег куда-нибудь в ящик, найти
порожнюю пищевую будку Мостропа или еще что-либо, как поступала она
прежде в своем бродячем детстве, но заметила, что давно стала большая и не
влезет незаметно никуда. Она села на скамью в темноте позднего бульвара
и задремала, слушая, как бродят вблизи и бормочут воры и бездомовные
хулиганы.
В полночь на ту же самую скамью сел незначительный человек, с
тайной и совестливой надеждой, что может быть эта женщина полюбит
его внезапно сама, поскольку он не мог по кротости своих сил настойчиво
добиваться любви; он в сущности не искал ни красоты лица, ни прелести
фигуры — он был согласен на все и на высшую жертву со своей стороны,
лишь бы человек ответил ему верным чувством.
— Вам чего? — спросила его проснувшаяся Москва.
— Мне ничего! — ответил этот человек. — Так просто.
— Я спать хочу, и мне негде, — сказала Москва.
Человек сейчас же заявил ей, что у него есть комната, но во избежание
подозрений в его намерениях — лучше ей снять номер в гостинице и там
92 Cássio de Oliveira. Moscou Feliz (Excerto)

проспать в чистой постели, закутавшись в одеяло. Москва согласилась, и они


пошли. По дороге Москва велела своему спутнику устроить ее куда-нибудь
учиться — с пищей и общежитием.
— А что вы любите больше всего? — спросил он.
— Я люблю ветер в воздухе и еще разное кое-что, сказала утомленная
Москва.
— Значит — школа воздухоплавания, другое вам не годится,
— определил сопровождающий Москву человек. — Я постараюсь.
Он нашел ей номер в Мининском Подворье, заплатил вперед за трое
суток и дал на продукты тридцать рублей, а сам пошел домой, унося в себе
свое утешение.
Через пять дней Москва Честнова посредством его заботы поступила
в школу воздухоплавания и переехала в общежитие.

Referências
GOMIDE, Bruno Barretto (ed.). Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998). São Paulo:
Editora 34, 2011.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 93

“Lilás polar escuridão”

Denise Regina de Sales


Bruno Palavro
Thiago Koslowsky da Rosa
Daniel Martins Saeger
Douglas Rosa da Silva
Carlos Leonardo Bonturim Antunes

Resumo: Este artigo apresenta seis traduções do poema “Iá bíeden, odinók i nag”, de Varlam Tíkhonovitch
Chalámov (1907-1982). A prosa de Chalámov, lançada recentemente no Brasil, há muito vinha sendo destacada
por Boris Schnaiderman como a grande obra de denúncia dos campos de trabalhos forçados do período stalinista. Na
poesia, o autor produziu o ciclo Cadernos de Kolimá, que contém o poema traduzido aqui.
Palavras-chave: Poesia russa, Varlam Chalámov, Tradução de poesia

“Tudo, o mundo inteiro comparava-se a versos: trabalho, tropel de cavalos,


casa, pássaro, penhasco, amor – toda a vida entrava suavemente nos versos
e acomodava-se bem ali.”1

Varlam Chalámov

Introdução

O título deste artigo não foi escolhido por nós, participantes da experiên-
cia de tradução de versos de Varlam Chalámov para o português, em belos dias
de inverno ameno de um julho de Porto Alegre. O título deste artigo se impôs.

1 Do conto “Xerez” em Contos de Kolimá. Trad. Denise Sales e Elena Vassilevich. Editora 34, 2016,
p. 111.
94 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

Tradução cuidadosamente literal do terceiro verso da primeira estrofe do poema


russo apresentado aqui, ele parecia provisório, destinado a desaparecer assim que
surgisse solução melhor.
Сиреневый полярный мрак [siriénivi poliárni mrak]. Siriénivi, adjetivo mascu-
lino singular, “relativo a lilás” (nome científico: Syringa; nomes vulgares: “cacho-
-roxo”, “cachorro-roxo”, “lilá”, “lilaseiro”), “da cor do lilás” (tonalidade bastante
clara da cor roxa). Poliárni, adjetivo masculino singular, “relativo aos polos”, “lo-
calizado nos polos”, “de aspecto ou características opostas a outro ou outros”,
“que possui polaridade”. Mrak, substantivo masculino singular, “ausência de cor”,
“ausência de iluminação”, “escuridão”, “obscuridade”, “tenebrosidade”, “trevas”,
“desolação”, “desespero”.
“Lilás polar escuridão” permaneceu. Em torno desse verso surgiram as
traduções. Imaginamos cenários polares do entardecer ou amanhecer na distante
região de Kolimá, no extremo nordeste da Rússia, perto do Alasca, longe da cidade
de Vladivostok, que se esboça para a maioria dos brasileiros quando se pensa no
Leste russo. Imaginamos as tonalidades dos cachos de lilás em árvores e arbustos
nos jardins, em versos de outros poetas, Aleksandr Blok, Ossip Mandelstam.
Imaginamos a escuridão volátil da região polar e a escuridão sólida da vida de
um homem jogado nos campos de trabalhos forçados, num clima inóspito, numa
rotina despida de humanidade, num mundo em que não havia esperança e onde
restava apenas o ódio.
O poeta permaneceu. Assim como Ossip Mandelstam, homenageado no
conto “Xerez”, Varlam Tikhonovitch Chalámov (1907-1882) deixou sua prosa em
Contos de Kolimá, e sua poesia em Cadernos de Kolimá. Deste último, do seu Caderno
azul, escolhemos o poema que apresentamos a seguir, acompanhado das traduções.

Um poema em sete cantos

Em russo, por Varlam Chalámov

Я беден, одинок и наг,


Лишен огня.
Сиреневый полярный мрак
Вокруг меня.

Я доверяю бледной тьме


Мои стихи.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 95

У ней едва ли на уме


Мои грехи.

И бронхи рвет мои мороз


И сводит рот.
И, точно камни, капли слез
И мерзлый пот.

Я говорю мои стихи,


Я их кричу.
Деревья, голы и глухи,
Страшны чуть-чуть.

И только эхо с дальних гор


Звучит в ушах,
И полной грудью мне легко
Опять дышать.2

Em explicação, por Denise Sales

Eu [estou] pobre, sozinho e nu,


Privado [de] fogo.
Lilás polar escuridão
[Ao] redor [de] mim.

Eu confio [à] treva pálida


Meus versos.
Nela improvavelmente na mente
meus pecados.

E [os] brônquios rompe meus [o] frio


E contrai [a] boca.
E, exatamente [como] pedras, gotas de lágrimas
E suor congelado.

2 In: Собрание сочинений: В 4-х т. / Сост., подгот. текста и примеч. И. Сиротинской. М.: Худож.
лит.: ВАГРИУС, 1998. (Sobranie sotchineni: V 4-kh t. / Sost., podgot. teksta i primetch. I. Sirotinskaia.
M.: Khudoj. lit.: VAGRIUS, 1998; Obras reunidas em 4 volumes. Organizadora, preparadora do texto e das
notas Irina Sirotinskaia. Moscou: Khudojestvnaia Literatura: VAGRIUS, 1998) Disponível em https://
shalamov.ru/library/14/3.html Acesso em 03 mai 2017.
96 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

Eu digo meus versos


Eu os grito.
Árvores, nuas e surdas,
Terríveis um pouquinho.

E apenas [o] eco [de] montanhas distantes


Soa nos ouvidos,
E [com] todo [o] peito me é fácil
de novo respirar.3

Essa foi a tradução-explicação apresentada aos participantes da disciplina


de pós-graduação Tradução de Poesia: Teoria e Prática, ministrada por Leonardo
Antunes no primeiro semestre de 2017 pelo PPG-Letras da UFRGS. A ideia era
mostrar, nos próprios versos, e explicar oralmente os principais elementos do
poema, para que, a partir deles, fosse possível a elaboração da sua tradução para
o português.
A língua russa não tem artigos, por isso, em português eles estão indicados
entre colchetes. No segundo verso da terceira estrofe, por exemplo, as três palavras
equivalem a “E contrai boca” – a conjunção “и” (i; e), o verbo “сводить” (svodit;
contrair, juntar, aproximar) na terceira pessoa do singular e o substantivo masculi-
no singular “рот” (rot; boca). O mesmo foi feito com acréscimos que equivalem
a elementos presentes na própria palavra, sobretudo por conta das declinações
dos respectivos casos. É o caso da preposição “de”, colocada entre parênteses
no segundo verso da primeira estrofe, para equivaler ao russo “лишён огня”
(lichión ogniá), em que “огонь” (ogón; fogo, luz) se encontra no caso genitivo.
Entre colchetes aparece ainda o verbo “estar”, que não se escreve no tempo pre-
sente em russo. Por isso, a tradução “Eu [estou] pobre, sozinho e nu”.
Alguns elementos da tradução palavra por palavra, como feito aqui, para
um primeiro contato dos participantes com a estrutura e as palavras do original,
tornaram obscuro o significado geral de alguns versos. O esclarecimento de dúvidas
foi feito oralmente durante a aula. Podemos citar, por exemplo, as estrofes “Nela
improvavelmente na mente/meus pecados”. No texto russo, “у ней едва ли на
уме/мои грехи”, cujo sentido fica mais claro na tradução: a treva provavelmente
não pensa, não se preocupa, não tem na cabeça, na mente/meus pecados.

3 Agradeço a Natália Cristina Quintero Erasso e Alexandr Kornev pelo cotejo do poema durante a
revisão deste artigo.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 97

Além da discussão das escolhas lexicais dessa tradução-explicação, abor-


damos também questões da vida e da obra do autor como um todo. Os versos
traduzidos compõem o segundo poema do Caderno azul, integrante do ciclo Cadernos
de Kolimá, cuja redação teve início em 1949, no caderno de prescrições médicas
da enfermaria onde Varlam Chalámov, preso condenado a trabalhos forçados,
desempenhava a função de auxiliar de enfermagem.
Chalámov considerava-se muito mais poeta do que prosador e seus contos
têm sido vistos como a prosa de um poeta que se baseou na palavra sonora, no
traçado rítmico preciso, na cruel seleção de impressões e na ferina dinâmica de um
relato em que não há descrições muito desenvolvidas nem retratos psicológicos
detalhados4. A ligação mais estreita entre poesia e prosa está no papel-chave desem-
penhado pela recuperação da memória dos anos vividos nos campos de trabalhos
forçados. Para Chalámov, “o dever do escritor está em levar ao leitor tudo que foi
preservado na memória – ‘cantar, chorar até o fim’ – , ressuscitar na consciência
a terrível experiência sofrida, personificá-la em versos, ensaios e contos”5.

Em música, por Leonardo Antunes

Nudez, pobreza, solidão,


Um frio sem fim.
Lilás polar escuridão
Em torno a mim.

À treva pálida eu falei


Os versos meus.
Esqueço ao certo se pequei,
Se errei com Deus.

E o peito rasga-se no frio


E a voz se esvai.
E choro em pedras, pedras mil,
E suo mais.

4 «Граница совести моей» (Granitsa sovesti moei; A fronteira da minha consciência). Iuli Chreider.
Disponível em https://shalamov.ru/critique/205/. Acesso em 15 jun 2017.
5 «Tема памяти в лирике В. Шаламова» (Tema pamiati v lirike V. Chalámov; O tema da memória
na lírica de V. Chalámov). Daria Kromova. Disponível em https://shalamov.ru/research/304/. Acesso
em 09 jun 2017.
98 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

Eu digo versos a ninguém,


Eu grito enfim.
A mata seca, surda é quem
Me assusta assim.

Mas das montanhas sinto vir


O eco soar
E o peito agora pode abrir
Pra respirar.

Para traduzir o poema, adotei como critério, em primeiro lugar, a reprodução


da forma sonora, a melopeia conforme o conceito formulado por Pound (2006, pp.
53-7). Como baliza, vali-me da versão musical criada por Dmitri Petriskov, que
musicou o poema e o disponibilizou no YouTube.6 Ainda que possa ser considera-
da amadora a sua versão, ela serviu excelentemente para tornar acessível a forma
rítmica e melódica do poema mesmo a alguém sem conhecimento da língua russa.
A partir dessa ótica, busquei traduzir o poema recriando a informação estética
necessária para que o texto pudesse ser trazido em condições semelhantes (na
mesma melodia e ritmo) para o Português.7
A adoção da música como intermédio para a tradução gerou algumas neces-
sidades formais. Além da adoção do mesmo metro, que alterna versos de 8 e de 4
sílabas, senti que também seria necessário manter outra característica importante
da forma de partida: a de traduzir o poema inteiro com versos agudos, ou seja,
terminados por palavras oxítonas. Isso foi percebido após uma primeira versão,
em que alternava livremente entre terminações graves e agudas. Notei que, apesar
de não terem uma influência tão forte no texto observado apenas enquanto objeto
escrito, ao serem transpostas para a músicas, as terminações graves destoavam
muito do texto russo. A partir disso, passei a pensar no efeito significativo das
terminações agudas, que, na economia sonora que produzem, salientam também
o aspecto árido expresso no conteúdo semântico do poema. A escassez de bens
materiais e víveres se acentua por esse aspecto formal, de versos enxutos, sem
nada sobrando ao final.

6 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=h0jQOYSau20. A versão foi apresentada por


Denise Sales a mim e aos alunos do curso durante a explicação do poema russo.
7 Nessa abordagem, sigo a proposta de Haroldo de Campos (2010, p. 100) de que, “[n]a tradução de
um poema, o essencial não é a reconstituição da mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em
que está incorporada esta mensagem, da informação estética, não da informação meramente semântica.”
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 99

A partir dessas necessidades, busquei traduzir o conteúdo semântico e re-


produzir outros efeitos formais na medida do possível, fazendo compensações e
adaptações quando necessário. Por exemplo, logo no verso de abertura, troquei a
ordem das informações e mudei a categoria das palavras, de adjetivos para subs-
tantivos. Ainda mais grave que isso, tive de suprimir a informação de que quem
está pobre, sozinho e nu é o eu-lírico. Por mais que isso vá se tornar evidente na
sequência da leitura, o texto de partida se abria com a palavra “eu”, efeito que é
perdido não só nesse primeiro verso, mas também em outros.
Em outros momentos, como na segunda estrofe, fui obrigado a inserir
informações que não constavam no texto de partida, como a ideia de se esquecer
ao certo se se pecou, se se errou com Deus, que traduz a difícil imagem do Russo,
em que os pecados do eu-lírico são improváveis na mente da treva pálida a quem
ele os diz.
Por outro lado, a sequência de versos iniciados pela conjunção aditiva “e”
pôde ser mantida ao longo da terceira estrofe do poema, ainda que o conteúdo
semântico, novamente, tenha sido adaptado.
Finalmente, a aliteração em /k/ do belo verso “И, точно камни, капли
слёз”, ainda que não se tenha recriado nesse mesmo verso, foi, de certa maneira,
compensada por uma aliteração em /s/ na estrofe seguinte, no verso “A mata seca,
surda é quem”. Por mais que sejam passagens distintas, com ênfases e conteúdo
semântico diferente, entendo que a permanência do efeito sonoro é importante
na fruição geral do poema, na percepção do todo de suas características estéticas
por quem o lê ou ouve.8

Em rima e ritmo, por Thiago Koslowsky da Rosa

Estou carente e em solidão,


já sem calor.
Lilás polar escuridão
ao meu redor.

Confio à tênue e parva treva


estes meus cantos.
Aqui a mente não afeta
os meus pecados.

8 Disponibilizei, também no YouTube, uma gravação do poema, em Português, usando a melodia de


Dmitri Petriskov. Está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ivKBJpuIURQ.
100 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

E o frio destrói os meus pulmões


e seca a goela.
E como pedra sai o pranto,
suor congela.

Assim declamo estes meus versos,


os vocifero.
Cenários surdos de inverno,
um tanto austeros.

E quando o eco de montanhas


distantes soar,
meu peito pode já com sanha
bem respirar.

Busquei na tradução deste poema atentar principalmente ao ritmo do origi-
nal russo, e, mais em particular, tentar reproduzir o ritmo jâmbico, caracterizado
pela sucessão de sílabas átonas e tônicas, em versos alternados de oito e quatro
sílabas. Outra preocupação para com a tradução foi a de tentar manter também as
rimas alternadas sempre quando possível. No entanto, manter esse padrão rítmico e
rímico aparentemente simples se mostrou bastante desafiador de modo que acabei
tomando algumas liberdades ao longo do processo tradutório.
Uma das dificuldades iniciais foi tentar reproduzir também os versos agu-
dos, nos quais o acento da última palavra do verso recai sobre a última sílaba, a
fim de manter a concisão do verso russo. Entretanto, a dificuldade em manter
esse padrão e reproduzir o conteúdo semântico do texto me levou a adotar versos
graves já que, a meu ver, tais versos não afetariam consideravelmente o ritmo do
poema em português.
Tomei liberdades em relação ao ritmo especialmente no segundo verso da
última estrofe ao quebrar o padrão jâmbico e acrescentar uma sílaba. Dessa forma,
optei por tomar essa liberdade na última estrofe por crer que o enjambement nesses
versos finais do poema gera uma sensação de prolongamento que confere uma
certa força a esses versos.
Em relação às rimas, utilizei em maior parte rimas toantes, nas quais
rimam-se apenas as vogais após a sílaba tônica, com a exceção de versos brancos
na terceira estrofe em “pulmões” e “pranto”, e também a alteração no padrão
rímico na quarta estrofe para ABBA pelo fato de ter-me parecido interessante a
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 101

associação entre “versos” e “austeros”, algo não presente no original russo, mas
que creio que pode contribuir para o sentimento de isolamento e austeridade
presentes no poema.
Ainda em relação às alterações de significado, talvez as mais distantes se-
jam “tênue e parva treva” para “бледной тьме” e “cenários surdos de inverno”
para “Деревья, голы и глухи”. Essas expressões apresentam de certo modo uma
interpretação minha ao adicionar o sentido de “tênue” para o que seria em russo
“pálida treva” e, no segundo caso, interpretar “árvores, nuas e surdas” como o
cenário vislumbrado pelo eu lírico, o qual é “surdo” pela quietude desse cenário.
Essa questão traz a tona uma das dificuldades que considero das mais
interessantes ao traduzir este poema que é a de como reproduzir em português
brasileiro expressões tão marcantes do frio siberiano. É bastante difícil reproduzir
a sensação do frio que rompe os brônquios ou a paisagem árida vislumbrada pelo
eu lírico. Em alguns casos, como a “lilás polar escuridão” creio que apesar desses
cenários não serem plenamente compreendidos por quem não possui proximi-
dade com tais regiões, evocam uma imagem que mistura a beleza e o isolamento
dessas regiões.
Por fim, gostaria de destacar o fato de como o processo tradutório me
fez apreciar mais a beleza deste poema, que, apesar de sua brevidade e estrutura
simples, apresenta uma concisão de ideias e imagens, assim como uma perfeita
harmonia entre todos os elementos que constituem o poema, demonstrando todo
o zelo que Chalámov deve ter tido ao compô-lo.

Em imagem e sonoridade, por Bruno Palavro

Estou pobre e nu em solidão,


Já sem calor.
Lilás polar escuridão
Ao meu redor.

À treva pálida confio


Estes meus versos.
Ficam ocultos meus desvios
Em sua alma imersos.

Com frio meus brônquios são rasgados,


Contrai minha boca.
102 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

E é como pedra o suor gelado


E o pranto em gotas.

Estes meus versos vou falando,


Eu solto em gritos.
Por galhos nus e surdos ando
Um tanto aflito.

Só quando lá dos montes vem


O eco a soar
De peito aberto volto enfim
A respirar.

A tradução do poema foi pautada principalmente em aspectos sonoros: na


reprodução tanto do ritmo iâmbico em versos alternados de 8 e 4 sílabas, bem
como do esquema de rimas ABAB. Por se tratar de versos curtos, parecem se es-
gotar mais rapidamente as possibilidades de rima quando se tem uma abordagem
que busca também não perder de vista o conteúdo semântico do poema, fato que
em boa medida dificultou o exercício da tradução. Foi nesse sentido que se deu a
escolha de rimas menos ortodoxas (o que não quer dizer que não sejam recorrentes
da literatura), sobre as quais faço algumas considerações.
Na primeira estrofe, a rima calor-redor inicia os exemplos. Tal escolha parte
do entendimento de que a diferença no núcleo da rima se dá meramente por um
traço distintivo, seja ele a abertura da vogal “o” em “redor”. Desse modo, não
parece ficar prejudicada a fluidez sonora da estrofe como todo. Fora dessa questão,
aproveito para destacar ainda na primeira estrofe o fenômeno chamado aférese,
ou seja, a supressão que ocorre na vogal inicial da palavra “estou” (leia-se ‘stou)
em se tratando de uma leitura condizente com o ritmo proposto.
Quase a mesma questão da rima mencionada anteriormente se encontra
em confio-desvios na segunda estrofe, embora nesse caso a diferença, também de
um único traço distintivo, resida na consoante que antecede o núcleo: trata-se do
vozeamento de “v” em relação a “f ”.
Na terceira estrofe, a rima toante boca-gotas praticamente desconsidera as
consoantes intervocálicas (embora sejam ambas oclusivas) e tem sua força na
repetição da tônica fechada “o” seguida da átona aberta “a”. Chamo atenção
ainda para a palavra “minha”, no segundo verso da mesma estrofe. Para que
ocorra uma leitura de acordo com o ritmo mencionado acima, o verso exige que
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 103

a palavra se torne monossilábica a partir de uma contração para o ditongo [mja].


O estranhamento possivelmente se desfaz ao se considerar o contexto pela tônica
seguinte: [mja.‘bo.kə].
A rima vem-enfim na quinta estrofe talvez seja a mais flexível. Contudo,
entendo que a aproximação das vogais “e” e “i” seguidas de nasalização, bem
como antecedidas por consoantes que só diferem em seu vozeamento, dá conta
de reproduzir uma sonoridade coesa sem a necessidade de grandes inversões
ou adaptações distantes do conteúdo original dos versos. A própria transcrição
fonética admite uma glide em [vẽj]̃ próxima do “i” de [ẽ.’fĩ].
Para além dessa abordagem fria acerca do ritmo, finalizo com algumas con-
siderações a respeito das imagens que achei fundamental preservar. Por julgá-las
determinantes para os efeitos do poema, foi a partir delas que pouco a pouco os
versos foram pensados e as rimas, ordenadas. No mesmo sentido da “lilás polar
escuridão”, a “treva pálida” parece vital ao ambiente de desolação apresentado.
O que se pode ter como uma oposição de forças entre a treva (imagem intensa) e
palidez (imagem de abatimento) não se anula, mas constitui um quadro bastante
distinto e expressivo. Já os termos “brônquios rasgados”, na terceira estrofe, são
muito significativos ao construir uma violenta imagem do frio que torna “como
pedra o suor gelado”. Por fim, a hostilidade do ambiente se completa com os “ga-
lhos nus e surdos” da quarta estrofe, que não somente estabelecem uma relação
perversa com o estado de nudez declarado pelo eu-lírico no primeiro verso do
poema, como também reforçam a mesma solidão nessa inação ambiente na qual
grito nenhum é ouvido e a única resposta é seu próprio eco.

Em emoção, por Douglas Rosa

Pobre sozinho nu,


calor ausente.
Lilás polar escuridão
frescor presente.

Exponho à palidez da treva,


minha criação.
Oculto no manchado verso,
minha perversão.

E a frieza está a rasgar,


E tranca a boca.
104 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

E a dureza faz gelar,


E lágrima oca.

Declamo o poema,
versos a bradar.
Desnudo a cena,
Em surdo o arvorar.

Mas longe o eco das montanhas


põe-se a anunciar,
Inteiro aberto vívido
eu posso respirar.

O presente exercício de tradução buscou desenvolver o preceito de tradu-


ção literária enquanto recriação, cuja finalidade elementar fosse “transmitir aquele
impacto emocional contido no texto original” (1988, p. 56), conforme elucida o
tradutor e crítico literário Paulo Vizioli, em uma das suas entrevistas. Desse modo,
os instrumentos utilizados na tradução apresentam-se consonantes com essa pers-
pectiva. A seguir, são elencados os apontamentos considerados significativos no
que se refere à atividade que aqui é abordada: no nível rímico, intentou-se alinhar
rimas posicionadas nos finais dos versos, ainda que não de forma predominante.
Empenhando-se em trazer ao poema um efeito sonoro típico9 do texto de Chalá-
mov, o emprego de rimas externas visava criar combinações que impulsionassem
um parentesco rímico entre os versos que, no poema fonte, também estabelecem
correlações. Considerando a dificuldade de encontrar equivalências na sonoridade
entre a língua portuguesa e a língua russa, optou-se pela dissonância sonora do
poema de partida. No entanto, a tentativa de manter os posicionamentos que
marcam o ritmo prevaleceu, o que culmina na presença predominante de rimas
cruzadas distribuídas ao longo do poema.
No nível lexical, conservou-se a linguagem coloquial10. Em relação às ca-
tegorias gramaticais e os modos como elas são empregadas no texto, verifica-se
que a terceira estrofe concentra o maior número de verbos, visto que se trata de
uma enumeração de fatos que requer certo dinamismo. Igual particularidade é

9 Ao empregar “efeito sonoro típico” entende-se que o modelo de correlação sonora estabelecida no
poema de partida foi parâmetro para o desenvolvimento do nível rímico do poema traduzido.
10 Apesar de alguns versos requererem maior atenção por parte do leitor, o tradutor tentou manter o
tom geral do poema em formato coloquial.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 105

retomada na última estrofe do poema, considerando que, a partir de uma ação,


é dada uma ruptura semântica que solicita o uso da palavra em tempo verbal.
No último verso do poema, verso que explicita a consequência das cenas que se
desenrolam na disposição poética, a utilidade do verbo pareceu substancial ao
tradutor – dinâmica que marca, assim, o ritmo inicial da respiração do sujeito
poético. Destaca-se também o uso de vocábulos (adjetivos e substantivos) que
objetivaram formar importantes pares antagônicos no poema, tais como: “calor
ausente/frescor presente” (verso 2 e 4) e “exponho à palidez da treva/oculto no
manchado verso” (verso 5 e 7).
No que tange ao nível sintático, a fim de estabelecer correlação de significação
entre os versos que, na perspectiva do tradutor, são fulcrais para o entendimento
do poema, suspenderam-se as vírgulas11 de versos específicos. Essa breve alteração,
que se afasta da configuração do poema de origem, foi dada para que se oferecesse
uma zona dialógica entre os referidos versos. Pobre sozinho nu (verso 1), lilás polar
escuridão (verso 3) e inteiro aberto vívido (verso 19), são versos-chaves para compreen-
der os três momentos que, fundidos, compõem a propulsão poética que encadeia
o poema. Dado esse recurso, o cenário do poema e o sujeito poético apresentam-
-se integrados, evidenciando uma simbiose que é particular e intrínseca ao texto.
No nível semântico, o tradutor encarregou-se de construir representativas
figuras de linguagem que fossem harmônicas ao poema de partida. Nesse nível,
notabiliza-se também o recurso estratégico que intentou elencar o eu posiciona-
do unicamente no findar do poema, traço que diverge da construção sintática
de Varlam Chalámov. Com isso, a presença do eu lírico dá-se pela primeira vez
justamente no verso que o vivifica: eu posso respirar (verso 20). Doravante de um
gesto que revela a nitidez do sujeito poético a partir do fim do poema, buscou-se
possibilitar a criação de um novo começo.
De modo conclusivo, e em sentido amplo e panorâmico, a experiência de
ver-se pobre, sozinho, nu (verso 1) até a reviravolta sinalizada por aquilo que o faz
inteiro aberto vívido (verso 19), o sujeito poético movimenta-se pela aura lilás polar
escuridão (verso 3) que o acompanha. O tradutor, pautado pela ideia de tradução
enquanto recriação, tenta fazer o movimento que possibilita ao leitor estender o
efeito “lilás polar escuridão” por todos os prolongamentos abertos pelo começo,
meio e fim do poema.

11 O uso das vírgulas, nesse caso, seria importante gramaticalmente, visto que se trata de versos cujas
palavras se ocupam em listar e especificar determinadas condições tanto do cenário quanto do sujeito
poético.
106 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

Em sentido, por Daniel Saeger

Estou nu e pobre em solidão,


fogo faz falta.
Lilás, polar escuridão
à minha volta.

À treva pálida transmito


os meus recados.
Em seu âmago quase omito
os meus pecados.

E o frio dilacera os pulmões,


e sela os lábios.
E lágrimas, eternos sermões,
e suor gelado.

Digo meus versos, minha dor,


Grito pr’o ar.
O ambiente, pouco acolhedor,
Faz-me chorar.

Basta o eco distante, antigo


Reverberar,
Que de peito aberto consigo
Enfim respirar.

Busquei, na tradução deste poema, atentar principalmente ao seu conteúdo


semântico, tentando tirar o máximo de proveito de meus conhecimentos da língua
russa. Como é sabido, o maior desafio em um exercício de tradução poética como
este constitui-se na conciliação da forma com o conteúdo. Na tradução deste
poema de Chalámov, portanto, adotei como critério principal a reprodução mais
próxima possível do conteúdo original russo. Posteriormente, tentei adequá-lo à
forma rítmica e estética, adotando o mesmo metro de versos alternados de oito e
quatro sílabas e sempre reproduzindo o padrão rítmico em ABAB.
Traduzir tem suas consequências: sempre se perde e também sempre se
ganha um pouco. Não é possível reproduzir absolutamente todos os detalhes e
aspectos de um texto, e dado o fato de que optei por uma reprodução mais próxima
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 93-108 107

do conteúdo de partida, por vezes tomei liberdades em outros pontos de modo


a conservar aquilo que julguei mais essencial. Listo a seguir alguns exemplos e
comentários que ajudam a ilustrar meu processo de reflexão e de tradução.
Primeiramente, saliento que este poema apresenta versos com terminações
agudas – versos que se caracterizam por sempre terminarem com palavras oxíto-
nas, cujo acento recai na última sílaba –, os quais geram um efeito estético muito
significativo, reforçando o caráter seco, decadente, escasso de recursos tanto físicos
quanto espirituais da situação descrita, justamente por não haver nada “sobrando”
do ponto de vista sonoro. Em minha versão, no entanto, nem sempre pude respeitar
esse padrão, pois era extremamente difícil conciliá-lo à semântica original. Assim,
optei por privilegiar a manutenção do conteúdo, o que, de certa forma, compensa
os “erros” para com a forma, o que se pode observar já na primeira estrofe do
poema. Com efeito, não há perda de informação; chamo a atenção somente para
a transposição do adjetivo “одинок” [odinôk] à locução “em solidão”.
Na segunda estrofe, podemos apontar uma mudança de “стихи” [stirrí]
(poema, verso) para “recados”, de modo que rimasse com “pecados” na última
linha. Fora esse detalhe, pode-se dizer que pouco se desviou do conteúdo semântico
original, apesar da dificuldade em traduzir a complexa estrutura “у ней едва ли
на уме” [u nhêi edvá-li na umiê]. Trata-se de uma construção impessoal equivalente
ao nosso verbo “ter”, muito comum em russo, com que se atribui algo a alguém:
у ней [u nhêi] [...] мои грехи [maí grerrí] seria literalmente “junto a ela [...] estão
meus pecados”, referindo-se à treva, personificada, que “teria” os pecados do
eu-lírico “em mente” (на уме) [na umiê]. Tal construção ainda está associada à
partícula de indecisão “едва ли” edvá-li (dificilmente, pouco provável), sugerindo,
portanto, algo na linha de que os pecados do autor dificilmente permaneceriam
na escuridão ou, ainda, que ela não o julgaria por seus pecados.
Ainda com certa inconsistência entre terminações agudas e graves, tomei
muitas liberdades ao traduzir a terceira e a quarta estrofe – inclusive no campo
semântico. Acho interessante comentar a escolha lexical do autor ao descrever o
frio, pois, em russo, existem (ao menos) duas palavras para ele: “холод” [khôlad] e
“мороз” [marôz,] o primeiro normalmente sendo usado para temperaturas “frescas”
e o segundo para indicar qualquer coisa abaixo de 20°C negativos, cuja definição
pode ser simplesmente de “очень сильный холод” [ôtchen’ síl’ny khôlad; frio
muito intenso], mas que em grande parte extrapola nossa compreensão brasileira
do frio extremo.
Na terceira estrofe, percebe-se uma repetição da conjunção “и” [i] iniciando
todos os versos, reforçando ainda mais a agonia do eu-lírico. Com muito esforço,
108 Denise R. S.; Bruno P.; Thiago K. R.; Daniel M. S.; D. R. S.; Carlos L. B. A. “Lilás polar escuridão”

foi possível reproduzir a sequência com um “e” iniciando cada verso ao mesmo
tempo em que se manteve parcialmente o conteúdo semântico: “точно камни”
[tôtchna kámni] foi traduzido como “eternos sermões”, ao passo que foram mantidas
as “lágrimas” [капли слёз; kápli slhôz], a imagem do frio dilacerando os brônquios
e fechando a boca, o suor congelando. Entretanto, a rima “lábios – gelado” ficou
um pouco comprometida, forçando uma solução menos usual.
Em outros momentos, foi necessário adaptar o conteúdo, como em
“деревья, голы и глухи” [diriêvia, gôly i glurrí] (o ambiente, pouco acolhedor),
onde as árvores tornaram-se o cenário e seu caráter nu, frio e quieto interpretado
como pouco acolhedor.
Vale também notar, no segundo e no último verso da quarta estrofe, a apa-
rente falta de rigor do próprio autor russo ao sugerir uma rima menos ortodoxa
entre “кричу” kritchú [krʲɪˈtɕu] e “чуть” tchut’ [tɕutʲ]12. O mesmo ocorre em todos
os quatro versos da última estrofe, sempre perfeitamente justificáveis, inclusive
com análises fonéticas: гор gôr [ɡor] – легко lirrkó [lʲɪxˈko]; ушах uchárr [ʊˈʂax]
– дышать dychát’ [dɨˈʂatʲ].
Finalmente, para além das mudanças feitas no conteúdo da última estrofe,
há um detalhe rítmico no último verso da mesma estrofe que gostaria de mencio-
nar: de modo que o metro de quatro sílabas seja respeitado, a palavra “respirar”
precisa ser pronunciada com uma leve síncope: [ʁesˈpɾa(ɾ)].

Referências
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010.
_____. “O texto como produção (Maiakóvski)”. In: _____. A operação do texto. São Paulo:
Perspectiva, 1976b, p. 43-88 (1ª. ed.: Maiakovski em português: roteiro de uma tradução.
Revista do Livro, no. 23/24, jul./dez. de 1961, p. 23-50).
NÓBREGA, Thelma Médice; GIANI, Giana M. G. “Haroldo de Campos, José Paulo Paes
e Paulo Vizioli falam sobre tradução”. Revista Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas,
v. 11, p. 53-65, jan./jun. 1988.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.
Bolshoi tolkovi slovar ruskogo iazika [Grande Dicionário Explicativo da Língua Russa]. Org.
S. А. Kuznetsov. São Petersburgo, 1998.

12 Optei, neste trecho, por acrescentar ambas a transliteração e a transcrição fonética em IPA (Inter-
national Phonetic Alphabet) do texto russo, o que permite a um leitor já familiarizado com esse tipo de
transcrição uma análise mais precisa e detalhada do tema.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 109

O ringue de Iúli Daniel

Marina Darmaros1

Resumo: Iúli Daniel nunca se considerou poeta, como relembra seu filho, Aleksandr, em introdução a este artigo.
Mas, durante os cinco anos entre o cárcere e o gulag, o tradutor dedicou-se a uma produção autoral que resultou na
publicação de uma coletânea de poemas, entre eles, “O ringue”, aqui vertido do russo ao português pela primeira
vez, apesar de sua figura ter ganhado alguma repercussão no Brasil ainda nos anos 1960, quando de sua prisão.
Palavras-chave: URSS, poesia, Estudos da Tradução, Literatura Russa

Abstract: Yuli Daniel never considered himself a poet, as his son Alexandr recalls in an introduction written
exclusively to this article. But during five years he spent between jail and gulag, the translator devoted himself to an
authorial production which resulted in the publication of a poem collection which included “The ring”, translated
here into Portuguese for the very first time although his figure have gained some repercussion in Brazil in the 1960s,
when he was arrested.
Keywords: USSR, poetry, Translation Studies, Russian Literature

Аннотация: Как писал в предисловии к этой статье его сын Александр, Юлий Даниэль никогда не
считал себя поэтом. Однако, в течение пяти лет между тюремным заключением и ГУЛАГом переводчик
посвятил себя созданию авторских произведений, которые позже были опубликованы в формате сборника
его стихов. В сборник вошло и стихотворение «На ринге», перевод которого на португальский публикуется
здесь впервые, несмотря на то, что в 1960-х годах, во время тюремного заключения автора, в Бразилии
его фигура не оставалась безызвестной.
Ключевые слова: СССР, поэзия, переводоведение, русская литература

1 Marina Darmaros é mestra em Jornalismo Internacional pela Rossisski Universitet Drujbi Narodov
e doutoranda no programa de Literatura e Cultura Russa da USP. Sua pesquisa atual, orientada pela Prof.
Dra. Elena Vássina, está voltada ao cotejo da obra original de Jorge Amado com suas traduções para o
russo na extinta União Soviética. Contato: [email protected]
110 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

A produção autoral de um tradutor per se no cárcere

Em 11 de fevereiro de 1966, o Jornal do Brasil publicou uma nota em


posição privilegiada - no canto superior da capa, ou seja, não era preciso sequer
desdobrá-lo para lê-la – sob o título “Escritores russos negam acusações”.
Tratava-se de um dos casos mais famosos no país acerca de intelectuais acusa-
dos de publicar no exterior literatura que difamava a União Soviética, relativo a
Iúli Daniel e Andrêi Siniávski. Seu julgamento teve ressonância mundo afora e
também no Brasil.
Nove dias depois, o mesmo jornal publicava, já no pé da página oito, a
íntegra de um manifesto e os nomes de todos os mais de cem “intelectuais bra-
sileiros” – entre eles, Antônio Callado, Millôr Fernandes, Dias Gomes, Fernanda
Montenegro, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha – que subscreviam o texto:

Os intelectuais brasileiros, abaixo assinados, fiéis a sua luta em defesa da


liberdade de pensamento e expressão, vêm manifestar seu repúdio à decisão
da Justiça da URSS que condenou os escritores Andrei Sinyavski e Yuli Da-
niel por terem formulado críticas ao Governo daquele país. Enfrentando a
arbitrariedade e o terrorismo cultural dentro de nossa Pátria, onde dezenas
de intelectuais têm sido condenados, presos e perseguidos, não podemos
aceitar, qualquer que seja a razão, a violência do Estado contra intelectuais
em qualquer parte do mundo. Lamentamos que fatos como esse continuem
a se verificar na URSS tantos anos depois da luta ali travada contra o obs-
curantismo stalinista. Reafirmamos nossa convicção de que só num clima
de ampla e irrestrita liberdade podem florescer a cultura e a democracia
(Jornal do Brasil, 1966: 8).

O tribunal qualificou como crime, apesar do frisson global, o fato de Da-


niel ter escrito contos que atacavam o sistema soviético e publicá-los no exterior,
“além disso, caluniando o prestígio da União Soviética sob os olhos dos países
capitalistas” (tradução minha)2, como relembra o pesquisador Mark Hutcheson
(1989). Publicando no exterior sob o pseudônimo de Nikolai Arjak, Daniel foi
julgado, junto a Andrêi Siniávski, que assinava como Abram Terts, em fevereiro
de 1966. Ambos foram condenados por uma corte criminal por traição à União
Soviética. Ainda segundo aponta o Hutcheson, Daniel alegava que apenas a des-
contextualização de seus textos poderia levar a tais conclusões.

2 No original: “... secondly, by publishing these stories abroad and thus detracting from the Soviet
Union’s prestige in the eyes of capitalist countries”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 111

Em 1989, o pesquisador analisaria o caso de Daniel como “uma reabilitação


de particular interesse” após a União Soviética “tornar-se tão tolerante com a poesia
que poetas recitavam suas obras pelas ruas de Moscou” (tradução minha)3 na era
Gorbatchov. A tendência, porém, já era anterior à glasnost e à Perestroika, como
escreve, em introdução a minha tradução que se apresenta em seguida, direta do
russo para o português, do poema “No ringue”, o filho de Iúli, Aleksandr Daniel.
Em apêndice a seu artigo, Hutcheson (1989) notava também que:

Na edição de maio de 1989 da [revista] Ogoniók, [o poeta] Evguêni Evtu-


chenko diz que o senador Robert Kennedy lhe informou, durante sua visita
a Nova York, em novembro de 1961, que a relação dos pseudônimos Arjak
e Terts com Daniel e Siniávski foi revelada pela CIA à KGB. Claramente,
sem essa informação, o julgamento nunca teria ocorrido. O motivo dos
americanos era distrair a atenção de seus bombardeios no Vietnã. Outras
fontes sugeriam que o próprio Kennedy era o responsável, dado que ele
era um dos mais importantes difamadores da União Soviética durante o
caso Daniel-Siniávski (tradução minha)4.

Hoje, passados 51 anos, infelizmente, a obra de Daniel, ao que parece, não


encontrou eco em traduções para o português. E, ainda que qualquer condenação
pela palavra escrita possa parecer cruel, o leitor lusófono ainda não pôde julgar
por si próprio o teor dos escritos de Daniel.
Conquanto tragamos aqui um poema cunhado pelo escritor já durante o
período em que se encontrava nos campos de trabalhos forçados, os chamados
gulag, acreditamos que esta possa ser uma primeira contribuição para uma me-
lhor compreensão do autor. A tradução que se apresenta em seguida, como já
mencionado, é introduzida por texto cunhado por seu filho, Aleksandr Daniel,
originalmente para esta edição da Cadernos de Literatura em Tradução, e vertido
do russo ao português, com notas, por mim. Já o poema, traduzido também por

3 No original: “... one rehabilitation of particular interest” e “The Motherland herself is becoming so
tolerant of poetry that poets reciting their work on the streets of Moscow are quite a common sight and
literary clubs are flourishing”.
4 No original: “In the May 1989 issue of Ogonyok Yevgeni Yevteshenko says that Senator Robert
Kennedy informed him during his visit to New York in November 1961, that the pseudonyms Arzhak
and Tertz had been linked by the C.I.A. to Daniel and Sinyavsky for the K.G.B. Clearly without this in-
formation the trial would never have taken place. The Americans’ motive was to distract attention from
their bombing campaign in Vietnam. Other sources suggest Kennedy himself was responsible, hypocritical
backstabbing given that Kennedy was one of the most vociferous American detractors of the Soviet
Union during the Daniel- Sinyavsky affair”.
112 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

mim, deve grandes agradecimentos ao olhar cauteloso do tradutor russo Dmítri


Golub, que colaborou com sua revisão.
Como bem sabem todos os que têm algum interesse pelos estudos da tra-
dução, verter um texto de uma língua a outra é uma escolha e uma “traição”. No
caso da tradução poética, isto é ainda mais patente. Ao verter “No ringue”, quase
sempre busquei manter-me fiel ao sentido, apesar de, para isso, conscientemente
trair a forma. Gostaria que este primeiro esforço em verter Daniel, entretanto,
fosse recebido como um incentivo para que outros tradutores também viessem
a trabalhar este e muitos outros autores soviéticos que ainda carecem de versões
em português.

Introdução da tradução de “O Ringue” para a revista Cadernos de


Literatura em Tradução (Aleksandr Daniel)

Iúli Daniel nunca se considerou poeta. Inicialmente, também não se passava


pela cabeça de Daniel ocupar-se sistematicamente da composição de versos. Salvo
de quando em quando, como muitos em seu círculo, ele se permitia compor paró-
dias em versos improvisadamente ou epigramas “ocasionalmente” – mas, como
se pode supor, não levava a sério essas experiências. É verdade que ele introduzia
com arte fragmentos poéticos em seus textos em prosa: na novela histórica inédita
“Begstvo”5 (em tradução livre, “Fuga”), há versos estilizados ao século 18 (o tempo
da ação da novela); capítulos da novela “Govorít Moskvá” (em tradução livre, “Fala
Moscou”) são abastecidos de epígrafes em versos assinadas por nomes de poetas
inexistentes; no conto “Iskuplenie” (em tradução livre, “Expiação”), montam-se
poemas e canções “compostos” por personagens da história. Apesar de todo o brilho
dessas miniaturas em versos, elas foram pensadas como elementos da prosa e não
pretendiam ter uma existência literária própria. (É verdade que, posteriormente, uma
dessas miniaturas – a canção “Tsigânki”, em tradução livre, “Ciganas”, executada
por um dos protagonistas de “Iskuplenie” – foi musicada, concomitantemente, por
vários músicos e, de repente, entrou para o folclore nacional).
Estritamente falando, ele não atribuía significado literário tampouco a sua
prosa – aos três contos, “Ruki” (“Mãos”), “Tchelovek iz MINAPa” (“O homem
do Instituto Moscovita de Profanação Científica”) e “Iskuplenie”, e uma novela

5 Nota de Aleksandr Daniel (daqui para frente, N.A.D.): Esta novela foi aceita para publicação em 1965
pela editora “Detgiz” e chegou a ser impressa em tipografia – mas então Daniel foi preso e toda a tiragem
impressa, destruída.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 113

curta, “Govorít Moskvá” –, a mesma prosa que ele publicou em segredo no exterior
sob o pseudônimo “Nikolai Arjak” e devido à qual foi condenado a cinco anos no
campo de trabalhos forçados. Seu amigo Andrêi Siniávski, condenado junto com
ele, formulou seu próprio projeto literário, que chamou de “realismo fantástico”, e
o concretizou vigorosamente em romances, novelas e contos de seu pseudônimo
Abram Terts. Siniávski tinha entendido claramente que trilhava um novo caminho
na literatura nacional. Já Daniel, lidava com grande respeito e admiração com o
experimento literário de Siniávski-Terts sem, no entanto, proceder de qualquer
projeto teórico: ele apenas experimentava a si próprio na literatura de ficção, não
superestimando (imagine só, melhor seria ainda dizer subestimando sim) os re-
sultados. Ele termina sua novela “Govorít Moskvá” com as palavras: “Penso que
minha obra poderia ter sido escrita por qualquer outra pessoa de minha geração,
de meu destino, já que eu também sou um amante deste detestável e belo país”.
A literatura de ficção não era a principal ocupação de sua vida: é interessante no-
tar que ele sempre escreveu sua prosa limpa, sem borrões, rascunhos e versões,
sujeitando os escritos apenas a edições estilísticas insignificantes. Às vezes me
parece que toda a história com a “escrita secreta” era para ele, principalmente,
uma aventura literário-biográfica, um incidente arriscado no mundo da filologia.
A verdadeira profissão literária de Iúli Daniel era a tradução poética, e ele
lidava com essa sua profissão com extrema seriedade. Para dar o som adequado
em russo a alguma oitava em língua estrangeira, ele podia se debruçar por semanas
ou meses sobre uma tradução literal, alterando e jogando fora dezenas de versões,
mergulhando, repetidas vezes, na arte do poeta traduzido, na cultura e na história do
outro país. Com orgulho, ele chamava a si próprio de artesão da tradução poética,
colocando no radical da palavra “artesão” seu significado primário, comercial-
-medieval e de agremiação.
Pretender a um título de poeta nem se passava pela cabeça de Daniel: ele co-
locava a poesia russa em uma posição alta demais, a mais alta possível, para fazê-lo.
Para mim, foi inesperado quando, em fevereiro de 1966, no primeiro en-
contro na solitária preventiva de Lefortovo, já após o julgamento e a condenação,
meu pai nos informou, a mim e minha mãe, que começara a compor versos na
prisão. Ele quis até mesmo ler para nós um deles, que, como disse, tinha “con-
teúdo puramente esportivo” – mas foi interrompido pelo vigilante carcereiro que
presenciava o encontro. Possivelmente, era justamente o poema “Na ringue” (em
tradução livre, “No ringue”).
“O que o papai tem?”, eu perguntei a minha mãe enquanto saíamos do
encontro. “O que há com ele, ele resolveu se reclassificar como poeta?”. “Não
114 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

se afobe”, respondeu filosoficamente minha erudita mãezinha. “Na prisão todos


escrevem versos.”
(Quando, dois anos e meio depois minha mãe, por sua vez, foi parar na
prisão, eu relembrei, em um encontro, as palavras dela. “Todos, menos eu!”, res-
pondeu orgulhosamente ela.)
Realmente, o primeiro verso da prisão de Iúli Daniel dedicado aos amigos
(“Vspomináite meniá. Iá vam vsem po stroke podaríu”, ou “Lembrem-se de mim.
Eu presentearei cada um com um verso”) foi escrito por ele em setembro de 1965,
alguns dias após sua detenção, na prisão preventiva de Lubianka6. Já seu último
poema, que também se chama “Poslednee” (“Último”), foi escrito na prisão de
Vladímir em agosto de 1970, algumas semanas antes de ser libertado. E acabou-se,
meu pai nunca mais tratou de poesia.
Não, ele não tinha vergonha de sua obra poética. Em suas cartas envia-
das do campo de trabalhos e da prisão de Vladímir, ele sempre a discutia com
seus correspondentes, apesar de o tom geral dessas discussões ser moderado:
era-lhe agradável quando os amigos elogiavam seus versos, mas quando os
criticavam, ele também não guardava muita mágoa. Transcrevo alguns trechos
dessas cartas:
“Resolvi decididamente que não escreverei em prosa aqui. O que escrevi, queimei. É
mal e não o é. Não se pode, não se deve escrever impensadamente. Mas é muito estranho, e eu
mesmo não entendo qual é o problema: escrevo versos sem grande cuidado, sem o ‘editor interno’.
Eis que é a isso que me limito – a meus versos e traduções” (da carta N° 17, datada de
16/11/1966)7
“Não tenho, ou praticamente não tenho amor-próprio de autor; pelo menos não em relação
à poesia. De qualquer maneira, não me relaciono com quem quer que seja que diga qualquer
coisa, exceto sobre as sinopses” (da carta N° 54, datada de 11/11/1968).8
“Não achei que fosse possível lidar com isso tão seriamente e falar sobre isso tão profis-
sionalmente. Apresentaram-me avaliações cada vez mais simples: ‘bem-sucedido e malsucedido’,
‘gosto ou não gosto’. Aí... há uma grande conversa literária, completa, cabível? [...] é estranho
e não é do meu feitio participar disto. E eu, com efeito, como pensava? Que tudo isso (não só

6 N.A.D. Andrêi Siniávski e Iúli Daniel estiveram entre os últimos prisioneiros desta conhecida prisão
preventiva da URSS: no outono ela foi fechada e todos os que eram mantidos nela sob investigação, entre
eles, Siniávski e Daniel, foram transferidos às solitárias preventivas da KGB em Lefortovo.
7 N.A.D. DANIEL, Iúli. “Iá vsio sbivaius na literaturu...”. Pismá iz zakliutchenia. Stihi. Moscou:
Memorial-Zvenia, 2000. p. 143.
8 N.A.D. Idem, p. 398.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 115

esses poemas, e não só poemas) era uma ilustração para mim” (da carta N° 68, datada de
18/12/1969).9
Levando em conta esses trechos, os poemas autorais de Daniel não eram
para ele “Poesia com ‘P’ maiúsculo”, mas somente um meio de expressão própria,
um meio amplo e enérgico de comunicação com o mundo, sobretudo com os
amigos. A verdadeira Poesia, segundo ele, não podia ser um meio, ela tinha um
fim em si própria; de lá vem a dúvida sobre se o que ele escreve é realmente poe-
sia. Mas a expressão própria e a comunicação são necessárias, porque Iúli Daniel
precisa se assinalar publicamente, sua percepção do mundo de então, seu ponto
de vista sobre o papel que ele acabava de desempenhar – o papel de herói de um
notório processo político. Para Daniel, um homem excepcionalmente isolado, foi
de uma estranheza profunda o papel de “figura pública”. Mas já que o destino o
levou a esse papel, ele não planejava se esquivar do destino – apesar de, ao mes-
mo tempo, ter a intenção de se distanciar com firmeza do pathos dissimulado que
frequentemente se conjuga à “posição civil significativa socialmente”. Existe, para
um escritor que domine a pena, uma maneira melhor de declarar sua verdadeira
posição que a poesia?
“... sei perfeitamente que não sou nenhum poeta lírico (nos versos, pelo menos), meus
versos são declaratórios (o que, pensando bem, parece-me justamente agora que tem certo sentido)
e, em geral, eles são uma condescendência por si sós. Escapo – ‘amarro-me’.” (da carta N° 4,
datada de 20/4/1966)10.
Toda essa imagem mais espontânea se relaciona também ao poema “Na
ringue” (em tradução livre, “No ringue”) – uma metáfora ingênua e nem um pouco
mascarada da oposição ao Comitê de Segurança Nacional, oposição pela qual o
autor acabava de passar e que ele ainda enfrentaria.
Além disso, os versos são o gênero tecnicamente mais oportuno para
prisões e campos de trabalhos forçados. Não é preciso ocultar a todo mo-
mento manuscritos receando uma súbita busca e confisco dos escritos, já que
é fácil lembrar-se de versos. Depois, às vezes, pode-se libertar11 o material

9 N.A.D. Idem, p. 532-533.


10 Idem, p. 46.
11 Nota da tradutora Marina Darmaros, daqui para frente, N.M.D.: Aqui, Aleksandr Daniel emprega a
palavra “vôlia” (“А потом, при случае, передать на волю”), que emprega novamente diversas vezes ao
decorrer do texto com diferentes verbos e que não tem uma expressão exata em português. De origem
protoeslava, “vôlia” não tem um correspondente preciso em português, aproximando-se tanto de “vontade
própria” como de “liberdade”. Nesse caso, “peredát na vôliu”, ao pé da letra, significaria “transferir/passar
à liberdade/vontade própria”, e acredito que a personificação desses papéis que conseguiam “passar à
liberdade”, “ser libertados” seria a melhor escolha para essa terminologia em português.
116 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

caso a censura do campo deixe passar por carta, ou, se não deixar, fazê-lo por
algum canal “ilegal”.

* * *

Fui apresentado aos poemas de meu pai em março de 1966, quando fomos
pela primeira vez ao campo de trabalhos forçados da Mordóvia, ao chamado
“encontro pessoal”. Os encontros pessoais no campo, que tinha regime de alta
segurança, aconteciam uma vez por ano (se haviam), com duração de 12 horas
a três dias. Nós, desta vez, recebemos dois dias. Para tanto, entre a primeira e
segunda fileira de arame farpado, foi construída a “casa dos encontros” – uma
pequena construção de um andar e adjacente à guarda, com três ou quatro peque-
nos quartos em ambos os lados do longo corredor. Foi em um desses quartinhos
que fomos jogados, e logo trouxeram também meu pai. Aqui viveríamos juntos
por dois dias.
Meu pai encontrou uma maneira de trazer consigo ao encontro, passando
pela revista obrigatória, algumas páginas de caderno em que, com a letra apertada,
anotou seus poemas da prisão e os primeiros do campo de trabalhos forçados;
então, ele já tinha cerca de duas dezenas deles. Naturalmente, ele próprio lem-
brava de seus versos mesmo sem cola; os textos anotados eram necessários para
que nós tentássemos render-lhes a liberdade12 depois do encontro. Mas não havia
qualquer certeza de que nós conseguíssemos isso: nós também deveríamos ser
revistados na saída, após o encontro. Por isso, gastei parte do encontro relendo
algumas vezes os poemas de meu pai e decorando-os. Consegui sem dificuldades:
aos quinze anos, a memória é jovem e tenaz, e sempre lembrei-me de poesias
com particular facilidade. (Resumindo, lembro desta seleção de versos ainda hoje,
50 anos depois, palavra por palavra). Também foi possível passar as anotações
sem problemas: antes do final do encontro, sem pensar muito, enfiei-as na meia,
calcei-me e saí para a área de guarda, soltando a cada passo um ruído suspeito.
Claro que a qualquer revista mais ou menos cuidadosa os papéis com os poemas
seriam inevitavelmente encontrados e confiscados. Felizmente, a revista desta vez
foi bem superficial: ordenaram-me que tirasse os sapatos e checaram as botas, mas
não me fizeram tirar as meias.

12 N.M.D.: Aleksandr faz novo uso de “vôlia” sobre os papéis, desta vez, conjugado com o verbo “vi-
nesti” (retirar, passar): “... чтобы мы попытались после свидания вынести их на волю”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 117

De um jeito ou de outro, os poemas se lançaram à liberdade,13 foram trazidos


para casa, datilografados na máquina de escrever e passados de mão em mão. E
despertaram um interesse notável entre o público leitor. A seleção de poemas de
Iúli Daniel pegou no misterioso mecanismo do samizdat,14 no qual demanda e oferta
são, em essência, a mesma coisa, como se fosse a rebuscada poesia do “século de
prata”, e penetrou de uma coleção particular a outra, multiplicando-se às dezenas,
e, talvez, às centenas de exemplares – testemunho disto são os muitos arquivos de
samizdat que se mantiveram até os nossos dias. Praticamente em qualquer um deles
encontramos uma cópia datilografada dos poemas da prisão de Daniel. Mais ou
menos no ano de 1967, esta seleção foi parar além das fronteiras, e foi publicada
na revista de emigrantes russófonos “Grani”.
Por que os poemas de Daniel, de repente, gozaram de popularidade? E
qual quinhão dessa popularidade deve-se atribuir ao talento poético do autor,
e qual ao interesse quanto à personalidade de um dos julgados no mais ruidoso
processo político daqueles anos? O próprio Iúli Daniel deu sua opinião sobre isso
de maneira bastante cética:
“... infelizmente, entendo perfeitamente que o interesse quanto aos meus poemas se deve
muito ao autor, sua situação e condição. Transpus a felicidade de criar algo que existisse sozinho
para o leitor, independente de mim.” (da carta N° 43, datada de 22/05/1968).15
O quanto ele estava certo ou errado, não cabe a mim julgar, mas aos leitores
de seus versos.
No campo de trabalhos forçados e, depois, na prisão de Vladímir, para
onde transferiram meu pai em 1969 por “mau comportamento”, ele continuou a
escrever versos. Ele anexou novamente sua obra poética em cartas, e a indulgente
censura frequentemente não as liberava; às vezes, aliás, os censores desanexavam as
inclusões poéticas e ele precisava reenviá-las usando diversos modos “ilegais”. Já
alguns poemas de caráter claramente publicístico ele nem tentava enviar por meios
legais. Lembro-me de como, no outono de 1968, algum dos colegas de campo do
meu pai trouxe-me uma caixa de fósforos dentro da qual, dobrada quatro vezes,
havia uma ksíva16 – dois diminutos quartos de papel de cigarro. Nestes dois papei-

13 N.M.D.: No original, “Так или иначе, стихи вырвались на волю...”.


14 N.M.D. Cópias caseiras de livros proibidos. Mais sobre a prática e suas variações pode ser encon-
trado no seguinte artigo: https://br.rbth.com/arte/literatura/2017/07/11/os-homens-que-copia-
vam_800320
15 N.A.D. Idem, p. 330-331.
16 N.M.D.: Proveniente do iídiche, a palavra é utilizada em russo para designar anotação ou carta passada
de maneira ilegal de cela em cela, de campo em campo e a partir da prisão para a liberdade, e vice-versa.
118 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

zinhos microscópicos, com letras quase indistinguíveis a olho nu, estava inscrito
um ciclo poético ou, melhor dizendo, o poema de Iúli Daniel “A v eto vrêmia...”
(“E neste tempo...”), com quase 300 linhas; cada um dos nove poemas desse
ciclo ocupava, em média, seis centímetros quadrados de papel. Isto foi resultado
do trabalho, como eu soube depois, de um companheiro de campo do meu pai,
Serguêi Mochkov; antes da prisão, Serguêi era um estudante do quinto ano da
faculdade de biologia e tinha uma ótima experiência com preparados microscópi-
cos. Eu não tinha tal habilidade, e passei alguns dias com a lupa decifrando essas
inscrições. Outra ksíva que chegou mais tarde continha a tradução cunhada por
meu pai de um poema do poeta letão Knuts Skuienieks, hoje reconhecidamente
líder da literatura contemporânea letã, mas, naquele tempo, colega de campo de
trabalhos forçados de Daniel. O poema, intitulado “Ne ogliádivaisia!” (“Não olhe
para trás!”), era em si próprio uma inversão da trama do mito da Antiguidade de
Orfeu e Eurídice (Eurídice desce a Hades para retirar de lá o autor, Orfeu) e era
repleto de alusões aos campos e reminiscências. Meu pai, de qualquer maneira,
até no campo tentava, sobretudo, retornar a sua profissão literária principal: a de
tradutor de poesia.
No que diz respeito a sua própria poesia autoral, em cinco anos de cativeiro
Iúli Daniel reuniu quase meia centena de poemas independentes e aquele curto
supramencionado. Tudo isso foi publicado na coletânea “Stikhí iz nevôli” (“Poe-
mas do cativeiro”), que foi lançada em Amsterdã em 1971, logo após a libertação
de Daniel da prisão. Relativamente há pouco tempo, já depois da morte de meu
pai, fiquei sabendo que a publicação foi feita com seu conhecimento e sob seu
consentimento.
Em liberdade, Daniel lidava com os resultados poéticos de seus cinco anos
de “missão artística” da mesma maneira como o fazia durante a prisão: de maneira
moderada, sem afetação, mas também sem se autodestruir. Quando pediam que
ele declamasse seus poemas do campo e da prisão, ele o fazia, apesar de também
sem grande desejo. Com grande prazer, porém, lia suas traduções feitas naquele
mesmo período, do supracitado poema de Knuts Skuienieks até o clássico francês
do século 19 Théophile Gautier, que traduziu na prisão de Vladímir. Quando foi
libertado, ele se entregou completamente a sua principal ocupação literária, a tra-
dução de poesia, e trabalhou muito e de maneira frutífera nessa esfera, realizando-a
com alegria e deleite, apesar de as condições para publicação serem bastante humi-
lhantes: ele só estava autorizado a publicar suas traduções sob pseudônimo (e não
aquele, claro, sob o qual um dia publicou sua prosa “criminosa” além-fronteiras,
mas outro, imposto pela KGB, Iúri Petróv). Iúli Daniel também não deixou, de
maneira alguma, a prosa, apesar de já não haver retornado à literatura de ficção: até
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 119

meados dos anos 1980, ele continuou o ciclo de miniaturas de memórias e ensaios
pensados ainda na prisão de Vladímir, sob o título geral de “Svobôdnaia okhôta”
(“Caça livre”). Mas, ao transpor o limiar dessa prisão em 12 de setembro de 1970
e sair para a liberdade, ele não compôs mais nem um único verso poético autoral
(à exceção de diferentes tipos de improvisos cômicos, os quais todos fazemos de
vez em quando). Jamais.

На ринге No ringue
Юлий Даниэл Iúli Daniel

Я вышел, боксом не владея, Eu entrei, sem o boxe dominar,


Рискнув удачливой судьбой. Arriscando um destino de sorte.
Не звал ни Бога, ни людей я — Não invoquei Deus ou homem –
И проиграл до боя бой. E perdi a luta antes de lutar.

Толпа — грохочущая прорва, A multidão – estrondosa massa,


Перчатки — парою гранат... As luvas – um par de granadas...
Удар! Я смят, отброшен, взорван, Golpe! Eu aniquilado, lançado, arrebentado,
И спину мне обжег канат. E o cordão minhas costas a queimar.

Удар! Бесстрастно смотрят судьи, Golpe! Impassivelmente assistem os juízes


Как дышит голая душа, Como respira uma alma nua,
Как до моей до тайной сути Como, sem se apressar, o mestre
Добрался мастер не спеша. minha essência secreta extenua.

Он — бог. Его движенья четки, Ele é deus. Seus movimentos, precisos,


Как протоколы — без прикрас, Como protocolos – sem invencionices,
И ставят черные перчатки E as luvas negras a deixar
Удары — точки после фраз. Golpes – pontos depois das frases.

Мне от беды не отвертеться, Eu da desgraça não escapo,


Меня везде достанет плеть, Por todo o lado o açoite a me alcançar,
А все ж не будет полотенце Mas, pelo menos, toalha não haverá
У ног, постыдное, белеть! às pernas, vergonhosa, a branquear!

Я жду: сейчас меня накажут Espero: agora serei castigado


За дерзость и за простоту. Pelo atrevimento e pela simplicidade.
120 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

Ну что же — бей! Пускай нокаут E então?! Bata! Deixe o nocaute


Под схваткой подведет черту. colocar o ponto final no combate.

Я поражение любое Eu qualquer derrota aceito


Приму, зажав зубами крик, Cerrando com os dentes o grito,
Не для победы, а для боя Não é pela vitória, mas pela luta
Я шел на ринг. Que o ringue eu adentro.

Предисловия к журнальной публикации стихотворения


Ю.М.Даниэля “На ринге” (Александр Даниэл)

Юлий Даниэль никогда не считал себя поэтом. До поры, до


времени Даниэлю и в голову не приходило заниматься стихотворчеством
систематически. Разве что изредка, как многие в его кругу, он позволял
себе экспромтом сочинить стихотворный шарж или эпиграммы «к
случаю» - но, разумеется, серьезно к этим опытам не относился. Правда, он
мастерски вставлял поэтические фрагменты в свои прозаические тексты: в
неопубликованной исторической повести «Бегство»17 встречаются вирши,
стилизованные под XVIII век (время действия повести); главы повести
«Говорит Москва» снабжены стихотворными эпиграфами, подписанными
именами несуществующих поэтов; в рассказ «Искупление» вмонтированы
стихи и песни, «сочиненные» персонажами повести. При всем блеске этих
стихотворных миниатюр, они задумывались как элементы прозы и на
самостоятельное литературное существование не претендовали. (Правда,
впоследствии одна из таких миниатюр, - песня «Цыганки», исполняемая
одним из героев «Искупления», - была положена на музыку одновременно
несколькими исполнителями авторской песни и неожиданно вошла в
городской фольклор).
Строго говоря, и прозе своей, - трем рассказам («Руки», «Человек
из МИНАПа», «Искупление») и одной небольшой повести («Говорит
Москва» ), - той прозе, которую он тайно публиковал за рубежом под
псевдонимом «Николай Аржак», и за которую получил пять лет лагерей,
он не придавал большого литературного значения. Его друг и «одноделец»

17 Эта повесть в 1965 году была принята к публикации в издательстве «Детгиз» и даже отпечатана
в типографии – но тут Даниэля арестовали и весь отпечатанный тираж пошел «под нож».
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 121

Андрей Синявский выработал собственный литературный проект,


который назвал «фантастическим реализмом» и мощно реализовал этот
проект в романах, повестях и рассказах своего литературного двойника
Абрама Терца. Синявский отчетливо понимал, что прокладывает новый
путь в отечественной литературе. Даниэль же, с огромным пиететом и
восхищением относившийся к литературным экспериментам Синявского-
Терца, сам ни из каких теоретических проектов не исходил; он просто
пробовал себя в беллетристике, не слишком переоценивая (пожалуй,
скорее, недооценивая) результаты. Свою повесть «Говорит Москва» он
заканчивает словами: «Я думаю, что написанное мною могло быть написано
любым другим человеком моего поколения, моей судьбы, так же, как и
я любящим эту проклятую, эту прекрасную страну». Беллетристика не
была главным делом его жизни: интересно, что прозу он писал всегда
набело, без помарок, черновиков и вариантов, подвергая написанное лишь
незначительному стилистическому редактированию. Иногда мне кажется,
что вся история с «тайным писательством» была для него, главным образом,
литературно-биографической авантюрой, рискованным приключением в
мире словесности.
Настоящей литературной профессией Юлия Даниэля был
поэтический перевод, и к этой своей профессии он относился предельно
серьезно. Ради того, чтобы добиться адекватного звучания на русском какого-
нибудь иноязычного восьмистишия, он мог неделями и месяцами сидеть
над подстрочником, перебирать и отбрасывать десятки вариантов, вновь и
вновь погружаться в творчество переводимого поэта, в культуру и историю
другой страны. Он с гордостью называл себя ремесленником поэтического
перевода, вкладывая в слово «ремесло» его первоначальное, торжественно-
средневековое, цеховое значение.
А претендовать на звание поэта Даниэлю даже не приходило в голову:
он слишком высоко, выше всего на свете, ставил русскую поэзию, чтобы
решиться на такое.
Для меня было неожиданностью, когда в феврале 1966, на первом
свидании в Лефортовском следственном изоляторе, уже после суда и
приговора, отец сообщил нам, - моей матери и мне, - что в тюрьме он стал
сочинять стихи. Он даже хотел прочесть нам одно из них, - как он выразился,
«чисто спортивное по содержанию», - но был остановлен бдительным
надзирателем, присутствовавшим на свидании. Наверное, это как раз и было
стихотворение «На ринге».
122 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

«Что это с папой?», - спросил я у матери, выйдя со свидания. – «Он,


что, решил переквалифицироваться в поэты?». «Не волнуйся», - философски
ответила моя эрудированная матушка. – «В тюрьме все пишут стихи».
(Когда два с половиной года спустя моя мать в свою очередь попала
в тюрьму, я на свидании напомнил ей эти слова. «Все – но не я!», - гордо
сказала она.)
И в самом деле: первое тюремное стихотворение Юлия Даниэля,
обращенное к друзьям («Вспоминайте меня. Я вам всем по строке подарю»)
было написано им в сентябре 1965 года, через несколько дней после ареста,
в Лубянской следственной тюрьме18. Последнее же стихотворение, которое
так и называется – «Последнее» («Этот год пройдет с пустой котомкой»), пи-
салось во Владимирской тюрьме в августе 1970-го, за пару недель до выхода
на свободу. Все, больше мой отец к поэзии никогда не обращался.
Нет, он не стеснялся своего поэтического творчества. В своих письмах
из мордовского лагеря и Владимирской тюрьмы он часто обсуждает его
со своими корреспондентами, хотя общая тональность этих обсуждений
сдержанная: ему приятно, когда друзья хвалят его стихи, но когда их ругают,
он тоже не очень огорчается. Приведу несколько цитат из этих писем:
Я твердо решил, что писать прозу я здесь не буду. То, что написал, — сжег.
Плохо и не то. Нельзя, невозможно писать с оглядкой. Но очень странно, сам не
пойму, в чем дело: стихи пишу без всяких оглядок, без «внутреннего редактора». Вот
этим и ограничусь — своими стихами и переводами (из письма №17, запись от
16/XI-66).19
«У меня нет или почти нет авторского самолюбия, во всяком случае,
применительно к стихам. Все равно, кто бы что бы ни говорил, иначе как к конспектам
я к ним не отношусь» (из письма №54, запись от 11/XI-68).20
«Я не думал, что к этому можно относиться так всерьез и говорить об этом
так профессионально. Мне как-то все больше простенькие оценки представлялись:
«удачно — неудачно», «нравится — не нравится». А тут... Полно, уместен ли большой
литературный разговор? <…> …страшно и не по чину мне в этом участвовать. Я

18 Андрею Синявскому и Юлию Даниэлю выпало стать едва ли не последними узниками этой
самой знаменитой в СССР следственной тюрьмы: осенью она была закрыта, а всех содержавшихся
в ней подследственных, в том числе Синявского и Даниэля, перевели в следственный изолятор
КГБ в Лефортово.
19 Юлий Даниэль. «Я все сбиваюсь на литературу…». Письма из заключения. Стихи. – М.:
«Мемориал»-«Звенья», 2000. - С.143.
20 Там же, с.398.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 123

ведь как думал? Все это (не только эти стихи и не только стихи) — иллюстрация ко
мне» (из письма №68, запись от 18/XII-69).21
Судя по этим цитатам, собственные стихи для Даниэля не «Поэзия
с большой буквы», а лишь средство самовыражения, емкое и энергичное
средство коммуникации с миром, прежде всего – с друзьями. Настоящая
же Поэзия, по его мнению, не может быть средством, она самоценна;
отсюда постоянные сомнения в том, действительно ли то, что он пишет,
настоящая поэзия. А самовыражение и коммуникация необходимы, ибо
Юлию Даниэлю необходимо публично обозначить себя, свое нынешнее
мироощущение, свой взгляд на роль, которую он только что сыграл – роль
героя громкого политического процесса. Даниэлю, сугубо частному человеку,
была глубоко чужда роль «общественного деятеля». Но коль скоро судьба
привела его к этой роли, он не собирается уклоняться от судьбы – однако
при этом намерен твердо дистанцироваться от ложного пафоса, часто
сопрягаемого с «общественно значимой гражданской позицией». Есть ли
для литератора, владеющего пером, лучшее средство декларировать свою
истинную позицию, чем стихи?
«…отлично знаю, что никакой я не лирик (в стихах, по крайней мере), вирши
мои декларативны (что, впрочем, именно сейчас кажется мне имеющим определенный
смысл) и вообще они — поблажка самому себе. Выберусь на волю — «завяжу»» (из
письма №4, запись от 20/IV-66).22
Все это самым непосредственным образом относится и к
стихотворению «На ринге» - нехитрой и нисколько не замаскированной
метафоре противостояния с Комитетом госбезопасности, того,
противостояния, через которое автор только что прошел, и того, которое
ему еще предстоит.
Кроме того, стихи – технически самый подходящий жанр для тюрьмы
и лагеря. Не надо прятать и перепрятывать рукописи, опасаясь внезапного
обыска и изъятия написанного, ибо стихи легко запомнить. А потом, при
случае, передать на волю, если лагерная цензура их пропустит, – в письме,
если нет – по какому-нибудь «нелегальному» каналу.

* * *

21 Там же, с.532-533.


22 Там же, с.46.
124 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

С тюремными стихами отца я познакомился в марте 1966, когда мы


впервые приехали в мордовский лагерь на так называемое «личное свидание».
Личные свидания в лагерях строгого режима давали (если давали) раз в год,
длительностью от полусуток до трех; нам в тот раз дали двое суток. Для
этого между первым и вторым рядами колючей проволоки, опоясывающей
лагерь, был выстроен «дом свиданий» - примыкающее к вахте небольшое
одноэтажное строение, с тремя или четырьмя маленькими комнатками по
обе стороны длинного коридора. В одну из этих комнаток нас и запустили,
а вскоре сюда привели и отца. Здесь нам предстояло прожить вместе двое
суток.
Отец ухитрился пронести с собой на свидание через обязательный
обыск несколько тетрадных листочков, на которых убористым почерком
записал свои тюремные и первые лагерные стихотворения; к этому времени
их у него около двух десятков. Сам он, естественно, помнил свои стихи и без
шпаргалки; записанные тексты нужны были для того, чтобы мы попытались
после свидания вынести их на волю. Однако, уверенности в том, что у
нас это получится, не было никакой: нас ведь тоже должны были после
свидания обыскать на выходе. Поэтому часть свидания я потратил на то,
чтобы несколько раз перечитать отцовские стихи и запомнить их наизусть.
Это удалось без труда: в пятнадцать лет память молодая и цепкая, а стихи я
всегда запоминал особенно легко. (Впрочем, эту стихотворную подборку я
и сегодня, через 50 лет, помню слово в слово). Записи тоже удалось вынести
без проблем: перед окончанием свидания я, недолго думая, запихнул их в
носок, обулся и пошел на вахту, издавая на каждом шагу подозрительное
шуршание. Конечно, при любом мало-мальски добросовестном обыске
листочки со стихами были бы неизбежно обнаружены и изъяты. К счастью,
обыск в тот раз был весьма поверхностным: мне приказали разуться и
проверили ботинки, но носки снимать не заставили.
Так или иначе, стихи вырвались на волю, были привезены домой,
перепечатаны на пишущей машинке и пошли по рукам. И вызвали
неожиданно заметный интерес у читающей публики. Загадочный механизм
«самиздата», в котором спрос и предложение суть одно и то же, подхватил
подборку тюремных стихотворений Юлия Даниэля, как если бы это была
изысканная поэзия «серебрянного века», и понес их от одной домашней
коллекции к другой, на ходу размножая ее в десятках, а, может быть, сотнях
экземпляров – об этом сегодня свидетельствуют многочисленные личные
архивы самиздата, сохранившиеся до нашего времени. Почти в любом из
них мы находим машинописные копии тюремных стихов Даниэля. Году
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 125

примерно в 1967 эта подборка попала уже и за границу, и была опубликована


в русскоязычном эмигрантском журнале «Грани».
Почему стихи Даниэля неожиданно приобрели популярность? И
какую долю этой популярности следует отнести на счет поэтического таланта
автора, а какую – на счет общественного интереса к личности одного из
подсудимых на самом громком политическом процессе тех лет? Сам Юлий
Даниэль высказывался по этому поводу довольно скептически:
«…увы, я очень хорошо понимаю, что в интересе, проявляемом к моим стихам,
слишком много приходится на долю автора, его положения и состояния. Меня миновало
счастье создать вещь, которая существовала бы для читателя отдельно и независимо
от меня» (из письма №43, запись от22/V-68).23
Насколько он был прав или неправ – судить не мне, а читателям его
стихотворений.
В лагере, а потом и во Влалимирской тюрьме, куда моего отца
перевели в 1969 году за «плохое поведение», он продолжал писать стихи.
Вновь сочиненные стихотворения он вкладывал в письма, и снисходительная
цензура чаще всего их пропускала; иногда, впрочем, стихотворные
вложения изымались цензором, и ему приходилось пересылать их разными
«нелегальными» способами. А некоторые стихи явно публицистического
характера он и не пытался посылать легально.
Lembro-me de como, no outono de 1968, algum dos colegas do meu pai,
ao deixar o campo de trabalhos forçados, trouxe-me uma caixa de fósforos dentro
da qual, dobrada quatro vezes, havia uma ksíva
Помню, как осенью 1968 года кто-то из освободившихся солагерников
отца принес мне спичечный коробок, в котором, сложенная вчетверо,
лежала «ксива» - две крохотных четвертушки папиросной бумаги. На этих
двух листочках микроскопическими, почти неразличимыми невооруженным
глазом буковками был записан стихотворный цикл или, скорее, поэма Юлия
Даниэля «А в это время…», объемом более 300 строк; каждое из девяти
стихотворений этого цикла занимало в среднем 6 кв.см листка. Это была, как
я узнал позднее, работа лагерного товарища моего отца, Сергея Мошкова;
перед арестом Сергей был студентом 5 курса биологического факультета и
имел отличные навыки работы с микроскопическими препаратами. Я такого
навыка не имел и провел с лупой несколько дней, расшифровывая эту запись.

23 Там же, с.330-331.


126 Marina Darmaros. O ringue de Iúli Daniel

Другая «ксива», пришедшая позднее, содержала сделанный отцом перевод


поэмы латышского поэта Кнута Скуениекса, ныне – признанного лидера
современной латышской литературы, а в то время – солагерника Даниэля.
Поэма называлась «Не оглядывайся!», представляла собой сюжетную
инверсию античного мифа об Орфее и Эвридике (Эвридика спускается в
Аид, чтобы вывести оттуда автора – Орфея) и была переполнена «лагерными»
аллюзиями и реминисценциями. Отец мой все-таки даже в лагере больше
всего стремился вернуться к своей основной литературной профессии –
поэтическому переводу.
Что касается собственной оригинальной поэзии, то за пять лет неволи
у Юлия Даниэля набралось около полусотни отдельных стихотворений и
одна небольшая поэма, упомянутая выше. Все это было опубликовано в
сборнике «Стихи из неволи», вышедшем в Амстердаме в 1971 году, вскоре
после освобождения Даниэля из заключения. Сравнительно недавно, уже
после смерти отца, мне стало известно, это издание состоялось с его ведома
и согласия.
На свободе Даниэль относился к поэтическим результатам своей
пятилетней «творческой командировки» так же, как и в заключении:
сдержанно, без аффектации, но и без самоуничижения. Когда его просили
почитать свои лагерные и тюремные стихи – читал, хотя и без особой
охоты. С куда большим удовольствием он читал свои переводы, сделанные
в тот же период, от названного выше перевода поэмы Кнута Скуениекса до
французского классика XIX века Теофиля Готье, которого он переводил
во Владимирской тюрьме. Выйдя на свободу, он полностью отдал себя
своей основной литературной профессии – поэтическому переводу,
работал в этой области много и плодотворно, занимался этим радостно и
с наслаждением, хотя условия публикации были довольно унизительными:
ему разрешено было публиковать свои переводы только под псевдонимом
( не тем, разумеется, под которым он когда-то печатал за границей свою
«криминальную» прозу, а под другим, навязанным КГБ – «Ю.Петров»). Прозу
Юлий Даниэль тоже не вовсе оставил, хотя к беллетристике уже не вернулся:
до середины 1980-х он продолжал задуманный еще во Владимирской
тюрьме цикл мемуарно-эссеистических миниатюр под общим названием
«Свободная охота». Но, перешагнув 12 сентября 1970 порог этой тюрьмы и
выйдя на волю, он не сочинил больше ни одной собственной поэтической
строчки (за исключением разного рода шуточных экспромтов, которые все
мы слагаем от случая до случая). Никогда.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 109-127 127

Referências
Daniel, Iúli. Iá vsio sbivaius na literaturu... Pismá iz zakliutchenia. Stihi. Moscou: Memorial-
-Zvenia, 2000. p. 143.
Hutcheson, Mark. Russian Poetry and Glasnost: A Case Study. The Poetry Ireland Review.
No. 26 (Summer, 1989), pp. 62-67.
Jornal do Brasil. Escritores russos negam acusações. 11/02/1966, p. 8.
Jornal do Brasil. Brasileiros defendem escritores. 20/02/1966, p. 8.

Publicações eletrônicas:

https://br.rbth.com/arte/literatura/2017/07/11/os-homens-que-copiavam_800320
128 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

André Nogueira1

Resumo: Introdução, tradução e comentários de 35 poemas selecionados de “Acampamento de Cisnes”, de Marina


Tsvetáieva.
Palavras-chave: Marina Tsvetáieva, poesia russa, tradução literária.

Acampamento de cisnes (poemas selecionados de Marina Tsvetáieva)


* * * (1) ***
Gravaste o nome meu: Marina – На кортике своём: Марина —
Na adaga, pela Pátria erguida. Ты начертал, встав за Отчизну.
Primeira e última eu fui Была я первой и единой
Da heróica* tua vida. В твоей великолепной жизни.
Ainda o rosto iluminado posso vê-lo Я помню ночь и лик пресветлый
No vagão de soldados vindo à tona. В аду солдатского вагона.
Solto ao vento meus cabelos, Я волосы гоню по ветру,
Guardo a chaves as dragonas. Я в ларчике храню погоны.

Moscou, 18 de janeiro 1918 Москва, 18 января 1918

1 Formado bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Está em fase de conclusão
o mestrado no Programa de Pós-graduação em Cultura e Literatura Russa da Universidade de São Paulo,
sob a orientação do prof. Dr. Mário Ramos Francisco Júnior. E-mail [email protected]
* A pedido do tradutor e autor deste artigo, o mesmo se apresenta em sua grafia original, não acatando
ao novo “acordo” ortográfico da língua portuguesa. O autor-tradutor possui trabalhos em andamento,
onde se posiciona sobre o assunto, e solicita que se respeite seu posicionamento em toda a extensão de
sua atividade escrita, literária ou acadêmica.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 129

* * * (2) ***

Sobre a alta catedral – o vento sopra, Над церко́вкой — голубые облака,


Grita o corvo... Крик вороний…
Das revolucionárias tropas – И проходят — цвета пепла и песка —
Cinza e pó, a sua cor. Революционные войска.
Oh senhoril, oh soberana minha dor! Ох ты барская, ты царская моя тоска!

Não têm rosto, não têm nomes, – Нету лиц у них и нет имён, —
Nem canções eles entonam. Песен нету!
Só o Krêmlin badala e quase some Заблудился ты, кремлёвский звон,
Na floresta de revoltos estandartes. В этом ветреном лесу знамён.
Reza, Moscou, para teu eterno sono Помолись, Москва, ложись, Москва, на
a preparar-te. вечный сон!

Moscou, 2 de março 1917 Москва, 2 марта 1917

AO TSAR – À PÁSCOA (3) ЦАРЮ — НА ПАСХУ

Abram, abram alas ao Tsar! Настежь, настежь Царские врата!


Recua a escuridão da noite. Сгасла, схлынула чернота.
Acendam velas no altar Чистым жаром
E tudo aprontem. Горит алтарь.
– Cristo há de ressuscitar, — Христос Воскресе,
E o tsar que havia ontem! Вчерашний царь!

Caiu sem auréola Пал без славы


A águia bicéfala. Орёл двуглавый.
– Tsar! – Não honraste a tarefa. — Царь! — Вы были неправы.

Nos olhos teus, azuis e traidores Помянет потомство


Como dos bizantinos reis, Ещё не раз —
Hão de fitar teus sucessores, Византийское вероломство
Pela derradeira vez. Ваших ясных глаз.

Nos tribunais tua sentença – Ваши судьи —


Um turbilhão de causar pena. Гроза и вал!
Tsar! – O povo? – pensas, Царь! Не люди —
Mas é Deus quem te condena! Вас Бог взыскал.
130 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Eis que enfim chegou a Páscoa Но нынче Пасха


No país por toda parte, По всей стране,
Dorme em paz com Спокойно спите
Tua Aldeia a consolar-te, В своём Селе,
Em teu sonho não se hasteiem Не видьте красных
Os vermelhos estandartes. Знамён во сне.

Tsar! – A tua estirpe Царь! — Потомки


Se abriga – no teu sono. И предки — сон.
Toma o saco – de mendigo, Есть — котомка,
Já que extirpam – o teu trono. Коль отнят — трон.

2 de abril 1917, 2 апреля 1917,


Moscou, primeiro dia da Páscoa Москва, первый день Пасхи

* * * (4) ***

Pelo menino – o pombinho – o filho do rei, За Отрока — за Голубя — за Сына,


Pelo jovem tsariévitch Alexei, За царевича младого Алексия
Rússia devota, vossos círios acendei! Помолись, церковная Россия!

Pombinhos dois, angelicais, Очи ангельские вытри,


Como Dmitri de Ivan, Alexei de Nikolai, Вспомяни, как пал на плиты
Os olhos deles enxugai. Голубь углицкий — Димитрий.

Rússia, mãe benévola, a criança Ласковая ты, Россия, матерь!


Sob o véu de vossa bem-aventurança Ах, ужели у тебя не хватит
Cobrireis, até que as feras se amansem? На него — любовной благодати?

Por mais vil que seja o crime de seu pai, Грех отцовский не карай на сыне.
Oh, Rússia pastoril, vós perdoai Сохрани, крестьянская Россия,
O cordeirinho Alexei de Nikolai! Царскосельского ягнёнка — Алексия!

4 de abril 1917, 4 апреля 1917,


terceiro dia da Páscoa третий день Пасхи
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 131

* * * (5) ***

Ainda o dia vem raiando, – Чуть светает —


Ao ouvir o som de sinos, Спешит, сбегается
Como ratos, vão em bando, Мышиной стаей
Na surdina se esgueirando, На звон колокольный
De Moscou os clandestinos. Москва подпольная.

Abandonam suas tocas – Покидают норы —


Os ladinos, as corocas. Старухи, воры.
Que idéias eles trocam? Ведут разговоры.

Acenderam-se as velas. Свечи горят.


O Espírito procura Сходит Дух
Por caducas umas velhas На малых ребят,
E crianças pequeninas. На полоумных старух.
No soturno claro-escuro В полумраке,
O diácono revela Нехотя, кое-как
Quais idéias clandestinas. Бормочет дьяк.

E dos trapos Из чёрной тряпицы


Vêm à luz dos candelabros – Выползают на свет Божий —
Os tostões das viúvas, Гроши нищие,
Os tostões dos mendigos Гроши острожные,
E dos mais pobres diabos, По́том и кровью добытые
Com suor assegurados Гроши вдовьи,
Para o dia do Dilúvio Про чёрный день
Ou para ter enterro digno Да на помин души
Guardados. Отложенные.

Assim, na matutina quietude Та́к, на рассвете,


Acendem-se as velas Ставят свечи,
Em nome da Mãe e do Pai. Вынимают просфоры —
Rezam ladinos, rezam velhas Старухи, воры:
Pela vida e a saúde За живот, за здравие
Do servo de Deus – Nikolai. Раба Божьего — Николая.

Eis, à luz dos candelabros Та́к, на рассвете,


Nessa hora matutina, Тёмный свой пир
O macabro ritual dos clandestinos. Справляет подполье.

10 de abril 1917 10 апреля 1917


132 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

* * * (6) ***

Quem caiu de alguma parte И кто-то, упав на карту,


No tristonho meu país? Не спит во сне.
Como um jovem Bonaparte Повеяло Бонапартом
Ele sonha sem dormir, В моей стране.

Um ribombo se prolonga: Кому-то гремят раскаты:


– Entre o noivo! — Гряди, жених!
E como um turbilhão de fogo Летит молодой диктатор,
O ditador alça seu vôo. Как жаркий вихрь.

Riso louco, olhos vidrados – Глаза над улыбкой шалой —


Que em noite alguma dormem! Что ночь без звезд!
A cruzeta do soldado Горит на мундире впалом —
Na lapela do uniforme. Солдатский крест.

Dominou o calafrio, Народы призвал к покою,


Chamou o povo para a paz, – Смирил озноб —
Cerrou os punhos e franziu И дышит, зажав рукою
As sobrancelhas universais. Вселенский лоб.

21 de maio 1917 21 мая 1917
dia da Trindade. Троицын день

AOS CADETES ASSASSINADOS EM ЮНКЕРАМ, УБИТЫМ В


NIJNI NOVGOROD (7) НИЖНЕМ

Golpes de sabre – Сабли взмах —


Suspira a corneta com ar grave – И вздохнули трубы тяжко —
O enterro aconteça Провожать
Sem demora. Лёгкий прах.
Com os quepes nas cabeças... – С веткой зелени фуражка —
Um galhinho os condecora. В головах.

Ouve-se um rumor. Глуше, глуше


O dever seja cumprido Праздный гул.
Para aqueles que – ao dever Отдадим последний долг
Deram a alma. Тем, кто долгу отдал — душу.
O rumor logo se acalma... Гул — смолк.
Ouça! Sen – ti – do! — Слуша — ай! На́ — кра — ул!
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 133

Três são os quepes. Три фуражки.


Corneta ressona. Трубный звон.
Coração pronto desaba. Рвётся сердце.
Como, sem dragonas? — Как, без шашки?
Sem os sabres? Без погон
Em cova anônima – Офицерских?
Que à noite se abre? Поутру —
В безымянную дыру?

Som de corneta... – Смолкли трубы.


Boa noite para vossas Доброй ночи —
Honrarias de cadetes Вам, разорванные в клочья —
Despejadas numa fossa! На посту!

17 de julho 1917 17 июля 1917

* * * (8)

Noite. – Noroeste. – Som de ondas que se quebram.


Destroçaram a adega. As sarjetas a recebem,
Preciosa correnteza que escorre pelas ruas...
Sobre ela, ensangüentada, baila a lua.

Cantam pássaros de noite, como ébrios,


Cambaleiam as escoras dos casebres
E até o monumento do tsar parece débil,
Do tsar o monumento cuja queda eles celebram.

O porto bebe, o quartel... A terra é nossa!


Nosso o vinho das adegas suntuosas!
A cidade, como um touro que se coça,
Se atira a rolar nas turvas poças.

A lua em névoa de vinho arde em febre.


– Alto lá! Sê camarada, belezinha: bebe!
Na cidade corre certo causo alegre:
Ali há dois que se afogaram num casebre.

Feodóssia, últimos dias de Outubro


134 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

***

Ночь. — Норд-Ост. — Рёв солдат. — Рёв волн.


Разгромили винный склад. — Вдоль стен
По канавам — драгоценный поток,
И кровавая в нём пляшет луна.

Ошалелые столбы тополей.


Ошалелое — в ночи́ — пенье птиц.
Царский памятник вчерашний — пуст,
И над памятником царским — ночь.

Гавань пьёт, казармы пьют. Мир — наш!


Наше в княжеских подвалах вино!
Целый город, топоча как бык,
К мутной луже припадая — пьёт.

В винном облаке — луна. — Кто здесь?


Будь товарищем, красотка: пей!
А по городу — весёлый слух:
Где-то двое потонули в вине.

Феодосия, последние дни Октября

PARA MOSCOU

1 (9)

Quando agarrou-te aquele ruivo Impostor,


A ti não conseguiu deitar de bruços.
Onde está tua altivez? – O teu rubor,
Minha princesa? – Onde está o teu discurso?

Pedro, o Grande, cobiçou tua cabeça


Cometendo contra a lei um grande abuso.
De Morózova boiarda não te esqueças,
A resposta que ela deu ao tsar russo.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 135

Aos lábios congelados pelos ventos glaciais,


Déste teu fogo de beber a Bonaparte.
Outras vezes houve estábulos em tuas catedrais.
Tudo o Krêmilin suporta com seus firmes baluartes.

9 de dezembro 1917

МОСКВЕ

Когда рыжеволосый Самозванец


Тебя схватил — ты не согнула плеч.
Где спесь твоя, княгинюшка? — Румянец,
Красавица? — Разумница, — где речь?

Как Пётр-Царь, презрев закон сыновний,


Позарился на голову твою —
Боярыней Морозовой на дровнях
Ты отвечала Русскому Царю.

Не позабыли огненного пойла


Буонапарта хладные уста.
Не в первый раз в твоих соборах — стойла.
Всё вынесут кремлёвские бока.

9 декабря 1917

2 (10)

Não pôde o ladrão Grichka fazer-te polonesa,


E germânica tampouco para Pedro te fizeste.
Por que choras, palominha? – De tristeza.
Onde está tua altivez, Moscou? – Oeste.

– Onde estão tuas pombinhas? – Sem comida.


– Quem roubou? – Os negros corvos.
– Onde as cruzes das igrejas? – Destruídas.
136 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

– E os filhos de Moscou? – Em suas covas.

10 de dezembro 1917
2

Гришка-Вор тебя не ополячил,


Пётр-Царь тебя не онемечил.
Что же делаешь, голубка? — Плачу.
Где же спесь твоя, Москва? — Далече.

— Голубочки где твои? — Нет корму.


— Кто унёс его? — Да ворон чёрный.
— Где кресты твои святые? — Сбиты.
— Где сыны твои, Москва? — Убиты.

10 декабря 1917

3 (11) 3

Sino abafado, e em toda a capital – Жидкий звон, постный звон.


A proibida saudação habitual. На все стороны — поклон.

Choro de criança, mugido de vaca. Крик младенца, рёв коровы.


O impertinente nome do monarca. Слово дерзкое царёво.

Sangue na neve, o açoite assobia. Плёток свист и снег в крови.


Tsar – de amor a palavra sombria. Слово тёмное Любви.

Eco de asas: o Amor – para a estrelas. Голубиный рокот тихий.


Olhos negros da esposa de strieliets. Чёрные глаза Стрельчихи.

10 de dezembro 1917 10 декабря 1917

DON ДОН

<1> (12) <1>

Guarda branca – teu caminho é altíssimo: Белая гвардия, путь твой высок:
Contra a boca do fuzil – teu nu heroísmo. Чёрному дулу – грудь и висок.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 137

De Deus o teu branco, teu santo dever: Божье да белое твоё дело:
Ao branco corpo teu – na areia padecer. Белое тело твоё – в песок.
Bando de cisnes que voa à luz da aurora? Не лебедей это в небе стая:
O branco batalhão, em toda a sua glória, Белогвардейская рать святая
Como branca aparição – evapora, evapora... Белым видением тает, тает…

Dissipou-se o velho mundo, sonho bom. Старого мира – последний сон:


Juventude – valentia – Vandée – Don. Молодость – Доблесть – Вандея – Дон.

24 de março 1918 24 марта 1918

* * * (13) ***

A procissão pelas campinas se estende. Идёт по луговинам лития.


Lido até o fim, e fechado para sempre – Таинственная книга бытия
O livro mágico do Gênesis da Rússia. Российского – где судьбы мира скрыты –
O desígnio dos mundos aqui jaz. Дочитана и наглухо закрыта.

O vento pela estepe com estrépito soluça: И рыщет ветер, рыщет по степи́:
– Rússia! – Mártir! – Dorme em paz! – Россия! – Мученица! – С миром – спи!

30 de março 1918 30 марта 1918

* * * (14) ***

Difícil e admirável: lealdade até a morte! Трудно и чудно — верность до гроба!


Realeza magnânima – na era dos mercados! Царская роскошь — в век площадей!
Estóica a alma, estóico o porte, – Стойкие души, стойкие рёбра, —
Onde os homens que havia no passado?! Где вы, о люди минувших дней?!

Altar e trono incendiaram, como ruivos Рыжим татарином рыщет вольность,


Tártaros, vagando em seus corcéis. С прахом равняя алтарь и трон.
No banquete sobre as cinzas soa o uivo Над пепелищами — рёв застольный
De soldados traidores e mulheres infiéis. Беглых солдат и неверных жён.

11 de abril 1918 11 апреля 1918


138 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

* * * (15)

Se baionetas de soldados perfuraram o mundo,


Se a Imagem cobriram com trapo vermelho,
Se aos golpes segue Deus tão surdo e mudo,
Se na Páscoa ao povo vetaram o Krêmlin,

Pois faça a mariposa uma artística carreira,


Os peixes cantem, filosofem os macacos,
Ponha-se o cavalo a cavalgar no cavaleiro,
Amamentem as crianças como Baco,

Arremessem os defuntos das janelas,


Sol vermelho – à meia-noite – em apogeu,
E da noiva esqueça o noivo o nome dela,

E se casem as patrícias – com plebeus.

3º dia da Páscoa 1918

***

Коли в землю солдаты всадили — штык,


Коли красною тряпкой затмили — Лик,
Коли Бог под ударами — глух и нем,
Коль на Пасху народ не пустили в Кремль —

Надо бражникам старым засесть за холст,


Рыбам — петь, бабам — умствовать, птицам — ползть,
Конь на всаднике должен скакать верхом,
Новорожденных надо поить вином,

Реки — жечь, мертвецов выносить — в окно,


Солнце красное в полночь всходить должно,
Имя суженой должен забыть жених…

Государыням нужно любить — простых.

3-ий день Пасхи 1918


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 139

* * * (16) ***

É tão simples, como dois mais um são três: Это просто, как кровь и пот:
Os reis são do povo, o povo – dos reis. Царь — народу, царю — народ.

Como o mistério da Trindade é verdadeiro: Это ясно, как тайна двух:


Os dois são um só, o Espírito – o terceiro. Двое рядом, а третий — Дух.

Foi o céu quem destinou o rei ao trono: Царь с небес на престол взведён:
É tão claro, como a neve, como o sonho. Это чисто, как снег и сон.
Sobe o rei de volta ao trono cedo ou tarde – Царь опять на престол взойдёт —
É tão sagrado, como o mistério da Trindade. Это свято, как кровь и пот.

7 de maio 1918, 3º dia da Páscoa 7 мая 1918, 3-ий день Пасхи


(E tiraram-lhe a vida em menos de três meses!) (а оставалось ему жить меньше трёх месяцев!)

* * * (17) ***

Águia e arcanjo! Trovão de Deus! Орёл и архангел! Господень гром!


Nem a catedral, com sete cúpulas ao céu, Не храм семиглавый, не царский дом
Nem a morada do tsar são ninho teu. Да будет тебе гнездом.

Não. Na Praça Vermelha, em marcha Нет, — Красная площадь, где весь народ!
À guilhotina – como de praxe... – И — Лобное место сравняв — в поход:
Os pintinhos, teus órfãos, se acham. Птенцов — собирать — сирот.

O povo, sem cabeça, só espera uma coroa. Народ обезглавлен и ждёт главы.
Que o alento lhe devolvas com teu vôo. Уж воздуху нету ни в чьей груди.
Arcanjo! – Águia! – Trovoa! Архангел! — Орёл! — Гряди!

Não é raio nem tufão que vem descendo, Не зарева рыщут, не вихрь встаёт,
Nem no céu um arco-íris, – senão Pedro Не радуга пышет с небес, — то Пётр
Que aqui veio revistar seu passaredo. Птенцам производит смотр.

7 de maio 1918 7 мая 1918,


terceiro dia da Páscoa третий день Пасхи
140 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

* * * (18) ***

Deus é inocente Бог — прав


Pela praga dos roçados, Тлением трав,
A secura das nascentes Сухостью рек,
E a dor dos decepados, Воплем калек,

Pelos saques e seqüestros, Вором и гадом,


Pela fome e a rapina, Мором и гладом,
Os granizos e as pestes, Срамом и смрадом,
A desonra e fedentina. Громом и градом.

Pelo traído juramento. Попранным Словом.


Pelo povo traiçoeiro. Про́клятым годом.
Pelo ano sangrento. Пленом царёвым.
Pelo tsar em cativeiro. Вставшим народом.

12 de maio 1918 12 мая 1918

* * * (19) ***

Sete espadas atravessam o coração Семь мечей пронзали сердце


Da Mãe de Deus sobre seu Filho. Богородицы над Сыном.
Sete atravessam o coração da Mãe de Deus, Семь мечей пронзили сердце,
E sete vezes sete – o meu. А моё — семижды семь.

Já não sei, se vive ou não Я не знаю, жив ли, нет ли


Aquele, que amo mais que o coração, Тот, кто мне дороже сердца,
Aquele, que amo mais do que o Filho... Тот, кто мне дороже Сына…

Agora é tarde – só cantar que me distrai. Этой песней — утешаюсь.


Se encontrardes – avisai. Если встретится — скажи.

25 de maio 1918 25 мая 1918

* * * (20)

– Onde estão os cisnes? – O bando migrou.


– Os corvos também? – Os corvos aqui rasam.
– Migrou para onde? – Onde também vivem os grous.
– E por que? – Pois roubariam suas asas.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 141

– E papai, onde ele está? – Dorme! Vem o sonho,


Minha filha, da estepe galopando num potranco.
– E nos levará aonde? – Para o Don com as cegonhas.
Lá eu tenho – sabes tu? – um cisne branco...

9 de agosto 1918

***

— Где лебеди? — А лебеди ушли.


— А во́роны? — А во́роны — остались.
— Куда ушли? — Куда и журавли.
— Зачем ушли? — Чтоб крылья не достались.

— А папа где? — Спи, спи, за нами Сон,


Сон на степном коне сейчас приедет.
— Куда возьмет? — На лебединый Дон.
Там у меня — ты знаешь? — белый лебедь…

9 августа 1918

* * * (21) ***

Guardas brancos! Nó górdio Белогвардейцы! Гордиев узел


Da firmeza heróica russa! Доблести русской!
Guardas brancos! Brancos cogumelos Белогвардейцы! Белые грузди
Da melódica canção russa! Песенки русской!
Guardas brancos! Brancas estrelas! Белогвардейцы! Белые звёзды!
Na celeste abóbada resistam! С неба не выскрести!
Guardas brancos! Unhas negras Белогвардейцы! Чёрные гвозди
Nas costelas do Anticristo! В рёбра Антихристу!

9 de agosto 1918 9 августа 1918


142 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

* * * (22) ***

Sob estrondos de batalhas infernais, Под рокот гражданских бурь,


Eu neste ano tão cruel В лихую годину,
Te dou por nome – a paz Даю тебе имя — мир,
E por herança – o azul do céu. В наследье — лазурь.

Que vá embora o Satanás! Отыйди, отыйди, Враг!


O Pai, o Filho, a Mãe Divina Храни, Триединый,
Para ti, que bens eternos herdarás, Наследницу вечных благ
Minha recém-nascida Irina! Младенца Ирину!

8 de setembro 1918 8 сентября 1918

* * * (23) ***

Para cem vezes voluntários Ты дал нам мужества —


Tu nos deste audácia exímia. На́ сто жизней!
Girem o mundo ao contrário! Пусть земли кружатся,
Continuaremos firmes. Мы — недвижны.

Para merecer teu Reino И рёбра — стойкие


– Com estóicas costelas! – На мытарства:
Sabes tu o que passei no Дабы на койке нам
Meu viver sob o flagelo. Помнить — Царство!

Eis que este semelhante teu Своё подобье


Celeste pórtico alcança – Ты в небо поднял —
Pelo tanto que ele creu Великой верой
Em ser de Deus a semelhança. В своё подобье.

Dá-nos fôlego, portanto, Так дай нам вздоху


E suor para merecer И дай нам поту —
Subir aos céus com este santo, Дабы снести нам
Se assim for sua mercê! Твои щедроты!

30 de setembro 1918 30 сентября 1918


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 143

* * * (24)

Tufões de branca neve as gerações abismem.


Assim entrareis para as canções – brancos cisnes!

Sudário se tornou, cruzes bordadas, a bandeira.


Assim também para a história – brancos cavaleiros.

De vós nenhum retornará – oh, meus filhotes! –


Guia vosso batalhão a Mãe de Deus após a morte.

25 de outubro 1918

***

Бури-вьюги, вихри-ветры вас взлелеяли,


А останетесь вы в песне — белы-лебеди!

Знамя, шитое крестами, в саван выцвело.


А и будет ваша память — белы-рыцари.

И никто из вас, сынки! — не воротится.


А ведёт ваши полки — Богородица!

25 октября 1918

* * * (25) ***

Deus e Tsar! Perdoai vossos filhinhos – Царь и Бог! Простите малым –


Fracos, tolos, pecadores, incapazes, Слабым – глупым – грешным – шалым,
Os tragados pelo horrível torvelinho, – В страшную воронку втянутым,
Eles não sabem o que fazem! Обольщённым и обманутым, –

Deus e Tsar! A tormentos sem fim Царь и Бог! Жестокой казнию


Não condeneis Stenka Rázin! Не казните Стеньку Разина!

Deus e Tsar! Não quero mais Царь! Господь тебе отплатит!


Ouvir a lástima dos órfãos, os mortos С нас сиротских воплей – хватит!
Que por todo canto jazem – não suporto! Хватит, хватит с нас покойников!
Os ladrões e capatazes – vós poupai! Царский Сын, – прости Разбойнику!
144 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Os caminhos são vários que levam ao Pai. В отчий дом – дороги разные.
Perdoai Stenka Rázin! Пощадите Стеньку Разина!

Rázin, Rázin! Sua história é um mito! Разин! Разин! Сказ твой сказан!
À besta vermelha domaram e ataram, Красный зверь смирён и связан.
Quebraram seus dentes vorazes. Зубья страшные поломаны,
Pela vida de delitos, Но за жизнь его за тёмную,

Mas também por sua audácia lendária, Да за удаль несуразную –


Desatai Stenka Rázin! Развяжите Стеньку Разина!

Pátria, onde tudo morre e nasce! Родина! Исток и устье!


A Rússia toda a festejar! Радость! Снова пахнет Русью!
Os olhos frígidos se abrasem! Просияйте, очи тусклые!
Inimigos façam as pazes! Веселися, сердце русское!

Deus e Tsar! Pelas festas que hoje fazem – Царь и Бог! Для ради празднику –
Libertai Stenka Rázin! Отпустите Стеньку Разина!

Moscou, 1º aniversário de Outubro Москва, 1-ая годовщина Октября

EM MEMÓRIA DE A. A. STAKHÓVITCH

‘А Dieu — mon âme,


Mon corps — аu Roy,
Mоn соеur — аuх Dames,
L’honneur — роur moi’

1 (26)

Antes o armazém, trancado a sete cadeados,


E não ter para comer que seja algo.
Com teu passo senhoril, ombro asseado,
Tu desceste à sepultura – como o último fidalgo.

Velho mundo em chamas, o destino completava-se.


– Suceda o lenhador ao nobre douto!
As multidões prosperavam... Junto a ti se respirava
O ar do século dezoito.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 145

Até que, os tetos dos palácios derrubando,


Os despojos intentavam, como bárbaros em bando.
O universo desabava, as multidões iam a pino... –
‘Bon ton, mantien, tenue’ – ensinavas os meninos.

Aos bárbaros, com tédio, recusaste agradá-los.


E cruzaram-se – pela última vez –,
No reino negro dos recrudescidos calos,
Tuas mãos de absoluta polidez.

Moscou, março 1919

ПАМЯТИ А. А. СТАХОВИЧА

‘А Dieu — mon âme,


Mon corps — аu Roy,
Mоn соеur — аuх Dames,
L’honneur — роur moi’

Не от за́пертых на семь замков пекарен


И не от заледенелых печек —
Барским шагом — распрямляя плечи —
Ты сошёл в могилу, русский барин!

Старый мир пылал. Судьба свершалась.


— Дворянин, дорогу — дровосеку!
Чернь цвела… А вблизь тебя дышалось
Воздухом Осьмнадцатого Века.

И пока, с дворцов срывая крыши,


Чернь рвалась к добыче вожделенной —
Вы bon ton, maintien, tenue — мальчишек
Обучали — под разгром вселенной!

Вы не вышли к черни с хлебом-солью,


И скрестились — от дворянской скуки! —
В чёрном царстве трудовых мозолей —
Ваши восхитительные руки.

Москва, март 1919


146 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

2 (27) 2

Um sinal tímido conflui Высокой горести моей —


Do mais alto desespero: Смиренные следы:
Em minhas luvas azuis – На синей варежке моей —
Duas lágrimas de cera. Две восковых слезы.

Na capela – frio cortante. В продрогшей це́рковке — мороз,


O vapor do hálito é denso Пар от дыханья — густ.
Que das bocas se levanta И с синим ладаном слилось
Misturando-se ao incenso. Дыханье наших уст.

Notarias, meu amigo, Отметили ли Вы, дружок,


Dentre todos que respiram, — Смиреннее всего —
Como humilde me persigno Среди других дымков — дымок
E engulo meu suspiro? Дыханья моего?

Por tuas mãos imaculadas, Безукоризненностью рук


Eu humilde assim me curvo: Во всём родном краю
Me perdoe, porque guardo Прославленный — простите, друг,
Minhas mãos dentro das luvas. Что в варежках стою!

Março 1919 Март 1919

Para ÁLIA (28) АЛЕ

Na camisa de estrelas semeada, В шитой серебром рубашечке,


Em prata bordada – floresça! — Грудь как звёздами унизана! —
E, brotando dessa gola prateada, Голова — цветочной чашечкой
Um vaso de flor – a cabeça. Из серебряного выреза.

Os olhos – dois oásis no deserto, Очи — два пустынных озера,


Dois milagres que se encerram Два Господних откровения —
No inspirado rosto róseo coberto На лице, туманно-розовом
Pela névoa da Guerra. От Войны и Вдохновения.

Anjo que sabe de nada e de tudo, Ангел — ничего — всё! — знающий,


Um brotinho o corpo em riste... Плоть — былинкою довольная,
Guerreiro angélico, sem dúvida, Ты отца напоминаешь мне —
A teu pai que tu saíste. Тоже Ангела и Воина.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 147

Talvez peregrinar seja meu mérito – Может — всё моё достоинство —


Contigo – amanhã mesmo de manhã. За руку с тобою странствовать.
Roga pelo nosso Exército, — Помолись о нашем Воинстве
Meu anjo, para a Virgem de Kazán. Завтра утром, на Казанскую!

18 de julho 1919 18 июля 1919

Para SERGUEI EFRON (29) С. Э.

Queres saber como vai indo Хочешь знать, как дни проходят,
Minha vida no país da fria guerra? Дни мои в стране обид?
No coração um nome lindo, Две руки пилою водят,
Os dois braços trabalhando feito serras. Сердце — имя говорит.

Eh! Se pela casa tu andasses, Эх! Прошёл бы ты по дому —


Saberias! Como à noite me empenho Знал бы! Та́к в ночи пою,
Em serrar – e sem impasse! – Точно по чему другому —
Como mais que simples lenha. Не по дереву — пилю.

Assim canto, com a serra inspiradora, И чудят, чудят пилою


Os braços meus que tudo agüentam... Руки — вольные досель.
E varre, varre com a vassoura И метёт, метёт метлою
A Mãe, Senhora da Tormenta. Богородица-Метель.

Novembro 1919 Ноябрь 1919

* * * (30) ***

Vamos, com modéstia e piedade, Дорожкою простонародною,


Pela senda rude e pobre, Смиренною, богоугодною,
Mas de corpo e alma nobres, – Идём — свободные, немодные,
Fora de moda, – em liberdade! Душой и телом — благородные.

Está feita – a vossa obra... Сбылися древние пророчества:


Onde estais – Altezas? Majestades? Где вы — Величества? Высочества?

Vamos, mãe e filha – peregrinas. Мать с дочерью идём — две странницы.


Avança contra nós a negra turba. Чернь чёрная навстречу чванится.
Quem sabe agora nos descubram? Быть может — вздох от нас останется,
Valha-nos a proteção divina! А может — Бог на нас оглянется…
148 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Seja feita – a Vossa vontade... Пусть будет — как Ему захочется:


Pois não somos – Altezas, Majestades. Мы не Величества, Высочества.

Assim, com piedade, é que se sobe, Так, скромные, богоугодные,


Com o corpo e alma nobres, Душой и телом — благородные,
Pela senda rude e pobre, Дорожкою простонародною —
Minha filha, com certeza, Так, доченька, к себе на родину:

Para a pátria de Sonho e de Saudade – В страну Мечты и Одиночества —


Onde somos as Altezas, Majestades. Где мы — Величества, Высочества.

<“Incluo este poema de memória, e creio que <Вписываю во памяти и думаю, что осень
seja de outono de 1919”> 1919 г.>

Para BALMONT (31) БАЛЬМОНТУ

Nosso rubor, como rosa serena, Пышно и бесстрастно вянут


Majestoso murcha, corrói-se. Розы нашего румянца.
Dentro das roupas ficamos pequenos: Лишь камзол теснее стянут:
Passamos fome como espanhóis. Голодаем как испанцы.

Obteremos, de qualquer maneira... Ничего не можем даром


Mais rápido movamos a montanha! Взять — скорее гору сдвинем!
O velho orgulho não estranhe: И ко всем гордыням старым —
A fome – orgulho nosso, o derradeiro. Голод: новая гордыня.

De Inimigos do Povo o manto В вывернутой наизнанку


Ao avesso o temos revirado Мантии Врагов Народа
Com orgulho afirmando: Утверждаем всей осанкой:
A cebola – e a liberdade. Луковица — и свобода.

Os cabrestos que a vida nos impôs Жизни ломовое дышло


Não nos quebraram a postura Спеси не перешибило
De corcel. Venham depois: Скакуну. Как бы не вышло:
– A cebola – e a sepultura. — Луковица — и могила.

Para o céu de frondoso pomar Будет наш ответ у входа


A nossa estirpe assim cavalga. В Рай, под деревцем миндальным:
– No banquete do povo – Tsar! – — Царь! На пиршестве народа
Passamos fome como hidalgos. Голодали — как гидальго!

Novembro 1919 Ноябрь 1919


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 149

Para BLOK (32)

Raio de luz tímido irrompe o breu do inferno:


Sua voz, que com as bombas se alterna.

Sua voz quase inaudível, ao longe o motim...


Pois ribombem os trovões para este serafim!

Conta ele, em manhãs de antiga névoa


Como amou a nós, os cegos e malévolos,

Apesar da traição, a pior que há neste mundo.


E a mais terna – aquela, a mais profunda,

Perdida na noite – por um golpe de astúcia! –


Como nunca deixará de te amar, Rússia.

Pela testa seus desnorteados dedos


Passeando, anunciou todo o enredo,

Como em breve haverá Deus de se vingar,


Que chamaremos pelo sol – e ele não
se erguerá...

Assim, igual um preso, à solidão conforme


(Ou uma criança que delira enquanto dorme?),

Pereceu à ampla praça esconder em sua boca –


O sagrado coração de Alexander Blok.

9 de maio 1920

БЛОКУ

Как слабый луч сквозь чёрный морок адов —


Так голос твой под рокот рвущихся снарядов.

И вот в громах, как некий серафим,


Оповещает голосом глухим, —

Откуда-то из древних утр туманных —


Как нас любил, слепых и безымянных,
150 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

За синий плащ, за вероломства — грех…


И как нежнее всех — ту, глубже всех

В ночь канувшую — на дела лихие!


И как не разлюбил тебя, Россия.

И вдоль виска — потерянным перстом


Всё водит, водит… И ещё о том,

Какие дни нас ждут, как Бог обманет,


Как станешь солнце звать — и как не
‎встанет…

Так, узником с собой наедине


(Или ребёнок говорит во сне?),

Предстало нам — всей площади широкой! —


Святое сердце Александра Блока.

9 мая 1920

Para PEDRO (33) ПЕТРУ

Eis qual foi teu plano: Вся жизнь твоя — в едином крике:
– Contra os avós! – Pelos filhos! — На дедов — за сынов!
Não, grandíssimo Soberano, Нет, Государь Распровеликий,
Imperador de maravilhas, Распорядитель снов,

Não pelos filhos trabalhavas, – Не на своих сынов работал, —


Mas pelo que há de pior! – Беса́м на торжество! —
Tsar-carpinteiro, que não enxugava Царь-Плотник, не стирая пота
Da testa o suor. С обличья своего.

Os homenzinhos, sem teu porte imponente, Не ты б — всё по сугробам санки


O trenó não puxariam tão além. Тащил бы мужичок.
Nem a teu derradeiro descendente Не гнил бы там на полустанке
Enterrariam sob os trilhos de trem. Последний твой внучок.

Nem teriam de brincar a ousadia Не ладил бы, лба не подъемля,


Com teus barcos de criança – Ребячьих кораблёв —
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 151

E a santa Rússia putrefeita não viria Вся Русь твоя святая в землю
A se afundar nessa matança. Не шла бы без гробов.

Tiveste a genial idéia Ты под котёл кипящий этот —


Da caldeira, onde tudo aqui derrete. Сам подложил углей!
Defensor de assembléias, Родоначальник — ты — Советов,
Tu és pai dos Sovietes! Ревнитель Ассамблей!

E por isso é culpa tua Родоначальник — ты — развалин,


Cada cúpula que arde Тобой — скиты горят!
E que o povo destitua Твоею же рукой провален
Tua súpera cidade... Твой баснословный град…

Sal refinaste, sabão derreteste... – Соль высолил, измылил мыльце —


Tsar-artesão, tu deste ao homem Ты, Государь-кустарь!
O despeito que custou o sangue deste Державного однофамильца
Soberano de teu próprio sobrenome! Кровь на тебе, бунтарь!

Chega de inventar os teus brinquedos! Но нет! Конец твоим затеям!


O irmão tem uma irmã, afinal... У брата есть — сестра…
– Por Sofia! – Contra Pedro! — На Интернацьонал — за терем!
Pela antiga fortaleza – contra a Internacional! За Софью — на Петра!

Agosto 1920 Август 1920

* * * (34) ***

Tenho em meu porte – retidão oficial, Есть в стане моём – офицерская прямость,
E nas costelas – oficial dignidade. Есть в рёбрах моих – офицерская честь.
Não reclamo do meu fardo habitual – На всякую му́ку иду не упрямясь:
Eis que a coragem de um soldado me invade. Терпенье солдатское есть!

Como outrora endireitassem o meu passo Как будто когда-то прикладом и сталью
A coronhadas, com a cólera do aço, Мне выправили этот шаг.
E a cintura de tcherkessk ostentasse, Недаром, недаром черкесская талья
Só o cinto de couro apertado me laça. И тесный реме́нный кушак.

Como a largura da ilharga minha inteira А зо́рю заслышу – Отец ты мой ро́дный! –
Fosse feita para o peso da algibeira, Хоть райские – штурмом – врата!
Ao crepúsculo escuto o paraíso lá no alto Как будто нарочно для сумки походной –
– Oh, meu Pai! – que foi tomado de assalto! Раскинутых плеч широта.
152 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Um velho de guerra à criança nutria Всё может – какой инвалид ошалелый


Embalando-me em valente melodia, Над люлькой мне песенку спел…
E de berço trago o brio daqueles dias И что-то от этого дня – уцелело:
Das palavras quando faço – pontaria. Я слово беру – на прицел!

E assim meu coração ranger parece И так моё сердце над Рэ-сэ-фэ-сэром
Mastigando certo U-erre-esse-esse, Скрежещет — корми-не корми! —
E eu mesma oficial a mim descubro Как будто сама я была офицером
Como fosse no mortal tempo de Outubro. В Октябрьские смертные дни.

Setembro 1920. Сентябрь 1920

* * * (35) ***

Pelo bando que se foi – daqui migrou Об ушедших — отошедших —


Ao montanhoso elísio campo В горний лагерь перешедших,
Onde acampam também grous – В белый стан тот журавлиный —
E os pombinhos – cisnes brancos... Голубиный — лебединый —

Por ti clamo, que mudaste para longe, О тебе, моя высь,


Dos recônditos – responde-me! Говорю, — отзовись!

Esses jovens, como bosques de carvalho, О младых дубовых рощах,


Que os maus pelas raízes os arrancam, В небо росших — и не взросших,
Que se ergueram para o céu – sem alcançá-lo, Об упавших и не вставших, —
Hão de tornar-se eternamente cisnes brancos. В вечность перекочевавших, —

Vou por ti, minha carícia, О тебе, наша Честь,


Suspirando... – Dá notícia! Воздыхаю — дай весть!

Toda tarde, toda tarde Каждый вечер, каждый вечер


Os meus braços eu estendo para ti. Руки вам тяну навстречу.
Ao céu das revoadas, as mais belas amizades Там, в просторах голубиных —
Quantas delas vi partir? Сколько у меня любимых!

Na Rússia vermelha já vivi Я на красной Руси


Mais que o devido. – Ajuda-me a subir! Зажилась — вознеси!

Outubro 1920 Октябрь 1920


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 153

Considerações

Oferecemos aqui uma amostra tradutória de 35 dos 61 poemas que com-


põem Acampamento de Cisnes [Лебединый Стан], de Marina Ivánovna Tsvetáieva.
O livro foi escrito entre março de 1917 e fevereiro de 1921, em sua maior parte
na cidade de Moscou. Tsvetáieva não numerou os poemas de Acampamento de
Cisnes. Os números que constam entre parênteses, acompanhando as traduções,
servem apenas para a organização destas notas, onde os assinalamos em negrito
para facilitar sua localização no texto. A disposição dos poemas em Acampamento de
Cisnes segue, com exceção do primeiro (1), uma ordem cronológica, com as datas
ao final de cada um. O primeiro poema, com efeito, lança o motivo dramático,
que subjaz a todo o conjunto: trata-se da partida do marido, Serguei Efron, como
voluntário no Exército Branco, isto é, na resistência contra-revolucionária que
se seguiu à revolução de 1917, pelo período da guerra civil, até os fins de 1921.
Quando em 1917 estourou a revolução de fevereiro, Tsvetáieva encontrava-
-se em Moscou para dar à luz sua segunda filha, Irina. Efron estava na Criméia
para terminar a escola militar. Irina nasceu em 13 de abril. Em seguida Tsvetáieva
viajou para a Criméia, onde se deu a cena de separação descrita no poema que abre
Acampamento de Cisnes. Voltou a Moscou em novembro de 1917, ou seja, no instante
seguinte à revolução de outubro. Sua intenção de abandonar Moscou com as filhas
e viver com a irmã Anastássia em Feodóssia frustrou-se pelo bloqueio das estradas
e início da guerra civil. Foi nesse ambiente, presa na Moscou revolucionária, sem
marido ou família, sozinha com as duas filhas pequenas (a mais velha, Ariadna
[Ália]2, tinha então cinco anos de idade), sem trabalho e fonte de renda, exposta à
violência e às privações da guerra, que Tsvetáieva escreveu Acampamento de Cisnes.
Tsvetáieva veio de família intelectual e abastada; o pai, professor na Univer-
sidade de Moscou, fundador do Museu de Belas Artes de Moscou (hoje Museu
Púchkin); a mãe, pianista de origem polaca aristocrática. Em 1906, contudo, ficou
órfã da mãe, e em 1913 do pai. Casou-se com Serguei Efron em 1912, com vinte
anos de idade, tendo ele dezenove. A revolução, naturalmente, inverteu a situação
material da família. A sua casa em Moscou passou a ser habitada por inquilinos em
1917, a poeta com as filhas se instalaram no sótão; os bens rápido se consumiram
em troca de alimento, lenha, combustível para a calefação. Sem trabalho, viu-se
privada de um “cartão de racionamento”, e para sobrevivência passou a contar
com ajuda de vizinhos e amigos. Um de seus bem-feitores foi o poeta Konstantin

2 Na forma diminutiva.
154 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Balmont, a quem ela dedicou o poema de novembro de 1919 (31): “Passamos


fome como espanhóis”, diz. A crise de abastecimento, consequência da guerra e de
conflitos que se desenrolavam no campo, levou a uma escassez geral de alimento
na Rússia. Tsvetáieva foi impelida a entregar as filhas ao orfanato, onde morreu a
mais nova, Irina. Na edição de Acampamento de Cisnes revisada pela poeta em 1938,
no poema de 8 de setembro de 1918 (22) consta a seguinte nota da autora: “Minha
segunda filha Irina nasceu em 13 de abril de 1917 e morreu de fome, em 15 de
fevereiro de 1920, no asilo para crianças de Kuntsevo” (TSVETÁIEVA, 2006,
pág. 17)3. (O nome Irina, em grego, significa “paz”; daí a afirmação de Tsvetáieva
no poema: “Dou-te por nome – a paz/ E por herança – o azul do céu”).
Acampamento de Cisnes engloba só uma parte do grosso volume de poemas
escrito por Tsvetáieva nessa época; temos ainda a segunda parte de Verstas (Versty,
1917-1921), O Tsar-Donzela (Tsar-Devitsa, 1920), o livro Ofício (Remeslo, 1921-1922).
Os relatos e reflexões em prosa, à maneira de um diário, foram em parte reunidos
em Indícios Terrestres (Zemnye primety, 1917-1919). Compôs também, pela primeira
vez, para o teatro; um conjunto de seis peças curtas que Tsvetáieva reunirá sob o
título Romantika (Romantika, 1918-1919)4. Os críticos avaliam que os anos da revo-
lução, apesar dos pesares, encerram um dos períodos mais profícuos da poeta e,
principalmente, um passo decisivo de seu amadurecimento. Simon Karlinski (1985,
pág. 67) observou que o poema de 2 de março de 1917 (2) foi, possivelmente,
o primeiro de tema político na obra de Tsvetáieva. Tsvetán Todorov concorda
que “Tsvetáieva só encontra seu destino depois da Revolução de Outubro” (in
TSVETÁIEVA, 2008, pág. 17). Com ela, superando a indiferença política inicial,
Tsvetáieva conquista um salto material e qualitativo. Embora ambíguo, posto que
ao se engajar no tema da revolução, agarra-se à velha tradição, representando-a
no ideal da monarquia em derrocada.
O valor de Acampamento de Cisnes pode ser captado por essa ambigüidade, na
medida em que a poeta rejeita o espírito moderno, que a estrutura dicotômica faz

3 Nossa tradução. [Моя вторая дочь Ирина — родилась 13го апрѣля 1917 г., умерла 2го февраля
1920 г. въ Срѣтенiе, отъ голода, въ Кунцевскомъ дѣтскомъ прiютѣ]. Obs.: A edição de Лебединый
Стан a que nos referimos aqui, e indicada em primeiro lugar na Bibliografia, contém o texto original de
Tsvetáieva, revisado por ela em 1938. Em 1918 a língua russa passou por uma reforma ortográfica que
derrubou a letra iat (Ѣ), letra esta que a poeta (talvez não reconhecendo a legitimidade do governo) se
negou, terminantemente e até o fim, a suprimir de sua escrita e, ademais, de sua própria assinatura (posto
que a grafia original de seu sobrenome é “ЦвѢтаева”). Nessa edição consultamos as notas de Tsvetáieva,
algumas delas citadas neste comentário. Mas para a disposição dos textos originais junto à tradução usamos
a versão atualizada, constante nos endereços eletrônicos elencados em nossa Bibliografia.
4 A esse respeito ver TOLEDO, Raquel Arantes. Uma aventura: o teatro de Marina Tsvetáieva. São Paulo:
FFLCH-USP 2015. Dissertação disponível no sistema.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 155

afastar como a um inimigo de guerra, e por outro lado assume uma expressão cada
vez mais objetiva, que lhe permite superar a crise do simbolismo e ingressar para
a modernidade com todo o avanço que Tsvetáieva sabidamente representou para
a poesia russa do século XX. Os poetas de vanguarda, em particular os futuristas,
foram as pontas de lança no âmbito do experimento poético com a linguagem.
O rompimento radical que pregaram, no calor da revolução, para com a tradição
precedente, levou a cabo uma crítica ao simbolismo. Nessa época, Tsvetáieva pas-
sara por uma fase “simbolista”, como se costuma dizer, sob especial influência de
Alexander Blok, a quem dedicou um ciclo poético em 1916. Em Acampamento de
Cisnes ela não intenta se tornar uma poeta experimental e, pelo contrário, permanece
ligada à técnica simbolista, embora a supere, efetivamente, através do salto material
que a revolução provê. Um sinal disso vemos nesta nova dedicatória a Blok (32). Se
em Versos para Blok [Стихи к Блоку] (1916) o ícone da poesia simbolista figurava
para ela como um anjo, neste poema de 1920 o anjo está despedaçado em uma
Rússia que detonou seu ideal de mundo. Assim expressa a imagem da bomba que
o anuncia, como explica Tsvetáieva em nota: “Verídico: ao som das explosões no
bairro Khodinki e sob uma chuva de cacos, íamos – ele para o palco, nós para a
platéia. Na verdade, isso aconteceu sob os estrondos dos projéteis que irrompiam
da Revolução” (TSVETÁIEVA, 2006, pág. 24)5. Recepciona o antigo mensageiro
da alma russa a dissolução mesma da promessa messiânica que ademais animava
o movimento simbolista. Tsvetáieva, que nunca professara simpatia pela igreja
ortodoxa, cria com ela uma identificação momentânea, assume o elo ideológico
entre Deus, o Tsar e a Rússia, a terra prometida; não obstante, Tsvetáieva teste-
munha o sepultamento dessa promessa (13) com maior independência do que o
anjo desorientado que ela enxerga em Blok.
O mesmo ocorre com toda a simbologia de seu Acampamento de Cisnes.
Encontra-se o herói romântico, ideal da “rebelião individualista” que moveu a
fase juvenil da poeta e cujo principal protótipo fora Napoleão. Porém, ao atribuir
o título de Napoleão à figura de Alexander Kerenski, no poema de 21 de maio de
1917 (6), a poeta esboça antes um retrato da época: a associação entre o líder do
governo provisório e a figura de Bonaparte era corrente nos meios de comuni-
cação, comentava-se nas ruas os “olhos sonâmbulos” de Kerenski, os elementos
performáticos que marcaram sua ascensão e fama. Inclusive a imagem principal
do poema, “A cruzeta do soldado/ Na lapela do uniforme”, Tsvetáieva a extraiu

5 Nossa tradução. [Достовѣрно: подъ звуки взрывовъ съ Ходынки и стекольный дождь, подъ
к-ымъ шли — онъ на эстраду, мы — въ залъ. Но, помимо этой достовѣрности — подъ рокотъ
рвущихся снарядовъ Революцiи. М. Ц.]
156 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

de um fato noticiado, como ela explica: “A cruz que na assembléia um soldado


sacou de seu peito e pregou ao peito de Kerenski. Conferir os jornais do verão de
1917” (TSVETÁIEVA, 2006, pág. 6)6. Os quadros da época, que dão ao Acampa-
mento de Cisnes um teor de crônica dos anos revolucionários, se mesclam com os
interlúdios líricos que concentram o cerne simbólico do livro. Os cisnes brancos
e os negros corvos, como deixa entrever o poema de 9 de agosto de 1918 (20),
foram as imagens com que a mãe ofereceu para a criança uma explicação velada
para a guerra e a ausência do pai. O fato empírico, que subjaz ao simbolismo do
poema, nos lança de um conto de fadas para o sótão escuro onde conversavam
Marina e Ariadna. Sempre há aqui um substrato objetivo para uma imagem apa-
rentemente ideal: o peregrino, personagem tradicional da literatura russa, permite
à mãe informar a filha de um novo fato que a revolução provoca: a iminente
emigração para o estrangeiro.
Quanto ao tsar, em Acampamento de Cisnes a imagem tem camadas de signi-
ficação mais profundas do que um simples posicionamento anti-revolucionário,
se bem que o seja. Na língua russa tsar significa rei. Mas é evidente que a palavra
tem implicações específicas. Além de tudo, o tsar designa um personagem tra-
dicional da cultura russa, tem uma história na literatura oral e escrita. A poesia
de Tsvetáieva é habitada por tsares. Em Acampamento de Cisnes é a primeira vez
que Tsvetáieva identifica o “tsar” com a pessoa de Nicolau II, no contexto da
deposição e assassinato deste, conferindo à imagem poética sua materialidade
histórica. Mas a imagem não deixa de ser fruto de uma releitura a que Tsvetáieva
submete seu universo simbólico num momento em que a revolução o põe em
crise. Outra resposta que ela dará a esse problema, em direção contrária, será
conferir ao tsar uma representação puramente folclórica em seu poema-skazka
‘O Tsar-Donzela’.
A classe social, sem dúvida, foi um fator que determinou a recusa de
Tsvetáieva em relação à revolução. Literariamente, a poeta projetou no Exército
Branco seu romantismo de juventude (os ideais cavalheirescos de honra e lealdade),
exaltando o heroísmo trágico da guarda real suplantada pela marcha inevitável da
história. “Difícil e admirável:”, ela diz, “lealdade até a morte!/ Realeza magnânima
– na era dos mercados! Estóica alma, estóico porte –/ Onde os homens que havia
no passado!?” (14). Isso o que Tsvetáieva definiu não tanto como nostalgia, senão
um seu “amor por todos os vencidos, por todas as causes perdues – as últimas mo-

6 Nossa tradução. [Крестъ, на какомъ-то собранiи, сорванный съ груди солдатомъ и надѣтый на


грудь Керенскому. См. газеты лѣта 1917 г. М. Ц.]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 157

narquias, os últimos cocheiros, os últimos poetas líricos”7. A manifestação contra-


-revolucionária de Tsvetáieva em Acampamento de Cisnes expressa, antes de tudo,
um sentimento anti-moderno. Não obstante, a revolução depurou sua linguagem,
permitindo a Tsvetáieva atingir com ela um estágio efetivamente moderno, por
vezes destoante do conteúdo ideológico. A poeta reflete a respeito, uma década
depois em O Poeta e o Tempo [Поэт и время] (1932), ao recordar: “Quando numa
ocasião li o meu Acampamento de Cisnes num ambiente de todo inadequado, um dos
presentes disse: ‘Não está mal. Afinal de contas, você é um poeta revolucionário.
Tem o nosso ritmo”, e conclui: “Também sei que o verdadeiro público de meu
Perekop não são os oficiais da Guarda Branca, a quem... gostaria, de cada vez que
leio o poema, contar-lho em prosa – não são eles, mas os Cadetes do Exército
Vermelho, a quem todo o poema... chegaria – chegará.” (TSVETÁIEVA, 1993,
pág. 62) (O poema Perekop [Перекоп] foi mais uma homenagem de Tsvetáieva
à resistência do Exército Branco, desta vez na fortaleza de Perekop, na divisa da
Criméia com o atual território da Ucrânia). Assim, Tsvetáieva acredita que preci-
samente o avanço formal de seus versos, que os faz intragáveis para a emigração
conservadora, poderia satisfazer seus conterrâneos revolucionários, não fosse a
quem os poemas efetivamente se dedicam. Sobre seu poema de setembro de 1920
(34) (“Tenho em meu porte – retidão oficial...”), Tsvetáieva conta em 1938: “Em
Moscou, estes versos se chamaram ‘Sobre o oficial vermelho’, e durante um ano
e meio eu os lia em cada apresentação minha, com grande êxito, respondendo
aos invariáveis pedidos dos cadetes” (TSVETÁIEVA, 2006, pág. 27)8. Bastou um
retoque no título do poema para disfarçá-lo de revolucionário e obter um êxito
que, queixa-se a poeta, nunca obteria no ambiente “branco” dos emigrados.
Quanto a leituras em “ambientes inadequados”, Tsvetáieva registra em seu
diário: “Estou de visita. Pedem-me que recite alguns versos. Como está presente
um comunista, recito: ‘Guarda Branca – teu caminho é altíssimo...’. Depois da
Guarda Branca, outra Guarda Branca; depois da segunda, a terceira, todo o ‘Don’;
depois ‘Cavalos de pura raça’ e ‘Ao Tsar – à Páscoa’”9. Tsvetáieva intitulará essa

7 Nossa tradução: [любовь ко всем побежденным, ко всем causes perdues — последних монархий,
последних конских извозчиков, последних лирических поэтов]. http://www.tsvetayeva.com/prose/
pr_chert
8 Nossa tradução. [NB ! Эти стихи въ Москвѣ назывались «про красного офицера», и я полтора
года съ неизмѣннымъ громкимъ успѣхомъ читала ихъ на каждомъ выступленiи по неизмѣнному
вызову курсантовъ].
9 [Сижу в гостях. Просят сказать стихи. Так как в комнате коммунист, говорю “Белую
гвардию”. Белая гвардия — путь твой высок… За белой гвардией — еще белая гвардия, за второй
белой — третья, весь “Дон”, потом “Кровных коней” и “Царю на Пасху”]. http://www.tsvetayeva.
158 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

história de Um pernoite na comuna: conta como esse mesmo comunista, que estava
presente àquela noite, apreciou seus versos, e ao se inteirar da situação precária
em que vivia a poeta, lhe ofereceu ajuda. Com essa mesma sinceridade e pouca
noção do perigo, Marina Tsvetáieva conquistou entre os bolcheviques importantes
amizades. Foi o caso de seu inquilino, o polonês chamado Henrik Sachs, ele mesmo
um membro da polícia política, a Tcheká. A despeito da repressão ideológica da
Tcheká e o temor que ela infundia, “um de seus altos funcionários”, conta Simon
Karlinski, “não agiu como um carrasco, mas como uma espécie de anjo da guarda...

Marina Tsvetáieva não escondeu o fato de que seu marido estava lutando
contra os bolcheviques no Exército Branco. Chegou ao ponto de anunciar
esse fato vestindo um cinto de couro e carregando uma bolsa de campo que
faziam parte do uniforme de um oficial tsarista... [Nota-se de onde vêm o
cinto e a algibeira do poema (34)]10 Tsvetáieva não escondeu de Sachs seu
ódio do sistema soviético e sua esperança pela derrota do mesmo. No en-
tanto, ele a tratou com deferência amigável e freqüentemente compartilhou
suas rações [de alimento] com ela e suas filhas [...] Henrik Sachs gostou e
entendeu a poesia de Tsvetáieva... Ela valorizava especialmente amizades
como a dele: a boa vontade entre pessoas pertencentes a dois campos hos-
tis... e assim foi em vários outros contatos amistosos seus com membros
do Partido Bolchevique (por exemplo, Piotr Kogan, Anatoli Lunatcharski
e Boris Biessarabov)”. (KARLINSKY, 1985, págs. 77-78)11

Assim pensa também Tsvetán Todorov em Uma Vida sob o Fogo, que “Tsve-
táieva eleva-se acima do conflito entre os dois exércitos, o Branco e o Vermelho”
(TODOROV in: TSVETÁIEVA, 2008, pág. 22). Para sustentar essa ideia, cita

com/prose/pr_nochevka Obs. Todos os poemas aqui mencionados por Tsvetáieva integram Acampa-
mento de Cisnes. O poema O Don (12), em nossa tradução nesta coletânea, é na realidade o primeiro de um
tríptico. Foi na bacia do rio Don, no extremo oeste da Rússia, hoje território da Ucrânia, o maior foco da
resistência contra-revolucionária do Exército Branco.
10 Parêntese nosso.
11 Nossa tradução. [one of the top officials of the Lubianka acted not as an executioner but as something
of a guardian angel. [...] Marina Tsvetaeva did not hide the fact that her husband was fighting against the
Bolsheviks with the White Army. She went to the extent of advertising that fact by wearing a leather belt
and carrying a field pouch which were a part of a tsarist officer’s uniform [...] In conversations with Sachs,
Tsvetaeva did not conceal her hatred of the Soviet system and her hope for its defeat. Yet he treated her
with friendly deference and constantly shared his rations with her and her children. [...] Henryk Sachs
liked and understood Tsvetaeva’s poetry and he visited her after he moved away. His was the kind of
friendship that she especially valued: good will between people belonging to two hostile camps, whether
political or literary. As in several other instances of her friendly contacts with Bolshevik party members
(e.g., Piotr Kogan, Anatoly Lunacharsky and Boris Bessarabov)].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 159

um poema de 1920, o penúltimo de Acampamento de Cisnes, cujo trecho a seguir


foi traduzido, para a edição do mesmo artigo em português (na introdução do
volume auto-biográfico de Tsvetáieva que Torodov reuniu sob o título “Vivendo
sob o Fogo”), por Aurora F. Bernardini:

“Da esquerda à direita,


Bandeiras sangrentas,
E cada ferida:
– Mamãe querida!

E isso somente
Eu, bêbada, escuto,
De ventre – a ventre:
– Mamãe querida!

Ao lado deitados –
Parti-los, não posso.
Repara: um solado.
É deles? É nosso?

De branco a vermelho:
O sangue o pintou.
De vermelho a branco:
A morte ganhou”.
(TSVETÁIEVA, 2008, págs. 22-23)

(Notas):

Seguem algumas notas, numeradas de acordo com cada poema que demande
uma explicação específica.
(3) “Dorme em paz com/ Tua Aldeia a consolar-te...”/ Aldeia do Tsar,
Tsárskoie Seló, residência da família imperial russa, a 26 km de São Petersburgo.
Quando a revolução de 1917 destituiu Nicolau II, então o imperador da Rússia,
ele e sua família foram feitos prisioneiros, primeiramente, no palácio de Alexandre,
situado na Aldeia.
(4) “Como Dmitri de Ivan, Alexei de Nikolai”/ Refere-se a Alexei Niko-
laievitch, o tsariévitch, isto é, o príncipe Alexei, filho de Nicolau II. Dmitri, filho
de Ivan, foi Dmitri de Uglitch, filho de Ivan, o Terrível, assassinado aos 10 anos
160 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

de idade em 1591 na cidade de Uglitch. Marina Tsvetáieva, recorrendo a essa


referência histórica, clama pela vida do tsariévitch Alexei, então com 13 anos
de idade. Nicolau II, a tsarina Alexandra e seus cinco filhos, Alexei, Anastássia,
Maria, Tatiana e Olga, mais quatro empregados da família, foram fuzilados em
Ekaterinburgo no dia 17 de julho de 1918.// Obs.: Para provocar a rima ideal,
empregamos uma transliteração estrita do nome Nikolai.
(5) “Nessa hora matutina/ O macabro ritual dos clandestinos”/ Um intenso
anti-clericalismo marcou a revolução de outubro. A igreja ortodoxa russa, aliada
do governo tsarista, teve depredados seus templos, muitos dos sacerdotes foram
perseguidos e mortos. Um eco deste poema de 10 de abril de 1917 se encontra na
seguinte experiência que Marina Tsvetáieva registrou em seu diário:

“É de manhã bem cedo. Ália e eu passamos em frente à igreja de Boris e


Glieb. Está tendo serviço. Subimos, atrás de uma velhinha vestida de negro,
pelos degraus da branca escadaria. O templo repleto, por causa da hora
matutina e do silêncio profundo, passa a impressão de uma conspiração
[заговора]. Uns segundos depois, ouço claramente com meus próprios ou-
vidos: - Pois bem, irmãos, se essas terríveis notícias se confirmarem, apenas
mandarei que soe o sino e corram de casa em casa enviados-mensageiros,
que informarão a todos vocês sobre o inaudito crime. Estejam prontos,
irmãos! O inimigo vigia, vigiem também! Com o primeiro toque do sino, a
qualquer hora do dia ou da noite – todos, todos para a igreja! De pé, irmãos,
e peito erguido, para proteger o santuário! Tragam com vocês suas crianças
pequeninas, os homens não portem armas: ergueremos nossas mãos nuas,
em sinal de oração – veremos se eles se atrevem a usar a espada contra uma
multidão desarmada! E se assim fizerem – que seja, tombaremos todos,
tombaremos com o sentimento de dever cumprido nos degraus de nosso
templo defendendo, com a última gota de nosso sangue, Jesus Cristo nosso
Senhor e Soberano, intercessor de nossa igreja e nossa desgraçada pátria”12.

12 Nossa tradução. [Раннее утро. Идем с Алей мимо Бориса и Глеба. Служба. Всходим, вслед за
какой-то черной старушкой, по ступеням белого крыльца. Храм полон, от раннего часа и тишины
впечатление заговора. Через несколько секунд явственно ушами слышу: — …Итак, братья, ежели
эти страшные вести подтвердятся, как я только о том проведаю, ударит звонарь в колокол, и
побегут по всем домам гонцы-посланцы, оповещая всех вас о неслыханном злодеянии. Будьте
готовы, братья! Враг бодрствует, бодрствуйте и вы! По первому удару колокола, в любой час дня
и ночи — все, все в храм! Встанем, братья, грудью, защитим святыню! Берите с собой малолетних
младенцев ваших, пусть мужчины не берут оружия: возденем голые руки горe, с знаком молитвы,
посмотрим — дерзнут ли они с мечом на толпу безоружных! А ежели и это свершится — что ж,
ляжем все, ляжем с чувством исполненного долга на ступенях нашего храма, до последней капли
крови защищая Господа нашего и Владыку Иисуса Христа, покровителей храма сего и нашу
несчастную родину.] http://www.tsvetayeva.com/prose/pr_voin_hristov
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 161

(8) Como a cidade de seu próprio nascimento, Tsvetáieva já fizera de Mos-


cou um tema lírico, por exemplo em Versos sobre Moscou [Стихи о Москве] (1916);
cantou suas memórias, paisagens e construções históricas, as cúpulas do Krêmlin
que constantemente badalam em sua poesia. Mas em novembro de 1917 o cenário
é outro: Tsvetáieva acaba de chegar da Criméia à Moscou revolucionária, ainda
sob o fragor de outubro, cujo impacto ela registra nesse tríptico. Procurando por
palavras de encorajamento, enumera uma série de episódios históricos em que
Moscou foi palco de resistência e heroísmo.// “Quando agarrou-te aquele ruivo
Impostor...”: Refere-se a pseudo-Dmitri I, tsar impostor que governou a Rússia
no biênio de 1605-1606. Acredita-se que tenha sido Grigori (Grichka)13 Otriepiev,
que se aproveitou do vazio deixado no trono pelo assassinato de Teodoro II,
rebatizando-se com o nome de Dmitri, o mesmo filho de Ivan, morto na cidade de
Uglitch. Assim, fez acreditar na lenda de que Dmitri estaria vivo, que se mantivera
escondido, sendo ele mesmo o herdeiro legítimo, marchando com seu exército
da Polônia até Moscou, onde se apossou do trono. Por isso a idéia de que Dmitri
tentaria “polonizar” Moscou. Deposto e morto no ano de 1606, conta-se que seu
corpo foi cremado e as cinzas disparadas de um canhão em direção à Polônia.// “E
germânica tampouco para Pedro te fizeste...”/ A cidade de Moscou foi substituída
como capital da Rússia em 1713 por Pedro, o Grande, que mandou construir São
Petersburgo e fez dela a capital do que então passou a se chamar Império russo.
Com planos de modernizar a Rússia, Pedro empreendeu uma tentativa, sobretudo,
de a ocidentalizar, e ostensivamente importou inovações da Europa, em especial
da Alemanha. Ele enfrentou uma forte resistência da aristocracia conservadora
moscovita. A oposição entre Moscou e Petersburgo na cultura russa equivale à
velha Rússia medieval contra o florescimento do Império em sua abertura para
o ocidente. Em 1917 a revolução teve por efeito transferir a séde governamental
de volta para o Krêmlin em Moscou; a cidade se tornava novamente, agora sob
comando de Lênin, o centro do poder político da Rússia. Tsvetáieva, rejeitando
Lênin como a um impostor, invoca as forças conservadoras da antiga Moscou,
antagônicas ao espírito de modernidade que identifica no bolchevismo. Da mesma
forma, Feodóssia Morózova, mártir dos “velhos crentes”, se recusou a aceitar as
inovações no ritual ortodoxo impostas pelo patriarca Nikon em 1666; a Napoleão
a Rússia repeliu em 1812, derrotou sua campanha e assim preservou, contra os
ideais republicanos da revolução francesa, a autocracia tsarista; todos estes foram
movimentos “para trás”, em defesa dos velhos costumes, da ordem estabelecida.//

13 Na forma diminutiva.
162 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

(9) “Strieliets”/ Os strieltsi, categoria militar criada por Ivan, o Terrível,


constituíam-se de um grande conjunto de guardas armados à serviço da coroa.
Os strieltsi participaram, algumas vezes, de revoltas: em 1682 procuraram impedir a
coroação de Pedro e em 1698 intentaram o destituir e favorecer a nomeação de sua
irmã, Sofia Alexeievna. Pedro suprimiu o levante e mandou punir exemplarmente
os strieltsi. A este fato da história remete Tsvetáieva novamente em seu poema
Para Pedro (33), ao proclamar: “- Por Sofia! – Contra Pedro!”. Os apoiadores de
Sofia, como eram os strieltsi, reagiram às reformas de Pedro em consonância com
a velha aristocracia tradicionalista, os boiardos, avessos à ocidentalização forçada
empreendida pelo tsar. // “Sal refinaste, sabão derreteste/ Tsar-artesão”. Quando
foi surpreendido pela revolta dos strieltsi, Pedro integrava uma expedição à Europa,
de onde trouxe uma série de inovações em costumes e tecnologia militar e naval.
Ele usou um nome falso e ocultou sua identidade de tsar para se entregar aos
trabalhos manuais. Já na infância Pedro se interessava pela construção de navios,
aprendeu a manipular o torno mecânico, esculpir em madeira, “brincava” com uma
frota de verdade no Lago Plescheievo. “O ideal do tsar-artesão foi reiteradamente
repetido desde Simeon Polotski [...] até o ‘Estâncias’ de Púchkin [Стансы, 1826]”,
diz Iúri Lotman em ‘Contrato’ e ‘doação de si’ como modelos arquetípicos da cultura14. I.
Lotman considera as conseqüências da era petrina para o sistema religioso da
cultura russa, em particular no concernente ao status divino da figura do tsar e
seu processo de secularização, pelo qual a percepção do contrato, como modelo
de relação político-social, ofuscado pela deferência incondicional à autocracia, se
despertou no povo russo. Diz ele:

O século XVIII trouxe uma profunda mudança para todo o sistema da


cultura [russa]... O modelo estatal-religioso não desapareceu, mas sofreu
interessantes transformações... A atividade prática do “baixo” domínio foi
elevada ao topo da hierarquia de valores. A des-simbolização da vida, acom-
panhada de demonstrações em que se pisoteavam na lama os símbolos do

14 Nossa tradução. [Идеал царя-работника неоднократно повторялся от Симеона Полоцкого...


до «Стансов» Пушкина. [...] XVIII в. принес глубокие перемены во всей системе культуры. [...]
Государственно-религиозная модель не исчезла, а подверглась интересным трансформациям:...
Практическая деятельность из области «низкого» была поднята на самый верх ценностной
иерархии. Десимволизация жизни, сопровождавшаяся демонстративным затаптыванием символики
предшествующего периода в грязь и выставлением её на публичное осмеяние, поднимала авторитет
практического дела. Поэзия ремесла, полезных умений, действий, которые не являются ни знаками,
ни символами, а ценны сами собой, составляла значительную часть пафоса петровских реформ...].
http://evolkov.net/conflict/contract/Lotman.Yu.Contract.&.handing.of.self.html Obs.: “Estâncias”,
poema de Alexander Púchkin em louvor de Pedro, o Grande.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 163

período precedente, expondo-os ao ridículo público, elevou a autoridade do


trabalho prático. A poesia do artesanato, as habilidades úteis, ações que não
constituíam sinais nem símbolos, mas valorosas em si mesmas, formaram
parte significativa do pathos das reformas de Pedro...

O posicionamento de Tsvetáieva neste poema consiste não tanto em


desconsiderar o trabalho manual em si, senão em reconhecer os efeitos dessa
inversão histórica, agora que os trabalhadores de baixo deram cabo dela, com o
assassinato do tsar, em um último ato de profanação daquela escala de valores.
Pela reputação de tsar-artesão Tsvetáieva repreende Pedro nesse poema (33) como
a um “Soberano operário”, primeiro subversor da ordem de classes, por culpa
de quem está seu derradeiro descendente de mesmo sobrenome, ou seja, Nikolai
Románov, enterrado sob os trilhos de trem. Ela esclarece em nota: “Em Moscou
então pensávamos que ao Tsar haviam fuzilado em algum apeadeiro de trem nos
Urais” (TSVETÁIEVA, 2006, pág. 25)15.
(15) “Se a Imagem cobriram com trapo vermelho”/ Em 1938 Tsvetáieva
acrescenta a este verso a seguinte nota: “A bandeira vermelha, com a qual cobri-
ram a imagem de São Nicolau, o Milagroso. O que se segue é bem conhecido”
(TSVETÁIEVA, 2006, pág. 13)16.
(25) “Deus e Tsar!.../ Não condeneis Stenka Rázin!”/ Stepan (Stenka)17
Rázin foi o líder cossaco do Don, rebelde libertário que organizou um exército
popular contra o tsar Alexei I. Quando capturado, foi torturado e esquartejado na
Praça Vermelha, em Moscou, no ano de 1671. Stenka Rázin figura no folclore russo
como um herói da rebelião. Dele Tsvetáieva se recorda neste poema, ao primeiro
aniversário de Outubro. E acrescenta a seguinte nota: “Eram dias em que o general
Mamontov marchava em direção a Moscou – e toda a burguesia trocava kerenki por
tsarskie18 – e só eu não trocava (não apenas porque não os tinha, mas também...)
porque sabia que não entraria na Capital – o Exército Branco!” (TSVETÁIEVA,
2006, pág. 20)19. Konstantin Mamontov foi o líder da cavalaria na frente sul do

15 Nossa tradução. [въ Москвѣ тогда думали, что Царь разстрѣлянъ на какомъ-то уральскомъ
полустанкѣ.]
16 Nossa tradução. [Красный флагъ, к-ымъ завѣсили ликъ Николая Чудотворца. Продолженiе
извѣстно.]
17 Forma diminutiva.
18 Kerenki, dinheiro emitido por Kerenski, e tsarskie, os rublos do tsar.
19 Nossa tradução. [Дни, когда Мамонтовъ подходилъ къ Москвѣ — и вся буржуазiя мѣняла
керенскiя на царскiя — а я одна не мѣняла (не только потому, что ихъ не было, но и) потому
что знала, что н е войдетъ въ Столицу — Бѣлый Полкъ !]
164 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Exército Branco, sob o comando de Anton Denikin. Em janeiro de 1919 con-


quistou a bacia do Don, a partir de lá empreendendo vitórias que permitiram sua
aproximação de Moscou em julho do mesmo ano. Contudo, a campanha fracassou
e o Exército bateu em retirada para a Criméia. Tsvetáieva cria aqui uma situação
hipotética: se as esperanças se concretizassem, as forças tsaristas penetrassem em
Moscou e o próprio Tsar descesse dos céus, a poeta clamaria por clemência em
nome de Stenka Rázin. Imagem de conciliação que parece justificada pelo dia de
festa. Um último dado pertinente a este poema nos traz de volta às amizades de
Tsvetáieva entre os comunistas: Karlinski comentou que “Tsvetáieva começou
uma amizade com um alto e bonito soldado bolchevique, que fora um ladrão de
banco e condecorado herói militar na I Guerra. Ela o apelidou de Stenka Rázin,
como o famoso rebelde do século XVII, leu para ele sua poesia [...] e o presenteou
com seu anel de prata favorito” (KARLINSKY, 1985, pág. 80)20.
(26) Para A. A. Stakhóvitch. Leia-se, na epigrafe em francês: “A Deus –
minha alma./ Meu corpo – ao rei,/ O coração – às damas/ A honra – para mim”.
Em 1919 Tsvetáieva ingressou no mundo do teatro, envolvendo-se com um grupo
de atores no terceiro estúdio, dirigido por Ievgueni Vakhtangov, do Teatro de
Moscou. Deste grupo se destacaram a amizade com o poeta Paviel Antokolski e o
amor platônico pela atriz Sofia Holliday, a quem Tsvetáieva dedicou seu Versos para
Sónietchka [Стихи к Сонечке] (1919). Conheceu também Alexei Alexandrovitch
Stakhóvitch, velho ator do Teatro de Moscou, antes de ele se suicidar em 10 de
março de 1919 com a idade de 63 anos. A este respeito conta Simon Karlinski:

“Stakhóvitch fora oficial nas guardas, alcançou a posição de aide-de-camp na


corte imperial, e mais tarde tornou-se ator no Teatro de Arte de Moscou.
Após a revolução, quando Tsvetáieva o encontrou, ele era um professor
muito admirado de modos e etiqueta em uma escola teatral atendida pelos
membros do terceiro-estúdio. Tsvetáieva tinha ouvido falar bastante de
Stakhóvitch pelos seus amigos atores antes de conhecê-lo. Seu suicídio em
fevereiro [sic] de 1919 foi percebido por ela como um evento importante e
simbólico, marcando o desaparecimento iminente dos valores culturais que
ela associou ao século XVIII e início do XIX e com os quais se identificava
cada vez mais em poemas depois incluídos em Verstas II e Psiché. À memória
de Stakhóvitch Tsvetáieva dedicou vários poemas, um deles que estava pro-

20 Nossa tradução. [Tsvetaeva struck up a friendship with a huge and handsome Bolshevik soldier, who
was a former bank robber and a decorated military hero during World War I. She nicknamed him Stenka
Razin after the famed seventecnth-century rebel, read her poetry to him [...] and presented him with her
favourite silver ring.]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 165

gramado para ser lido em uma cerimônia comemorativa no Teatro de Arte


de Moscou. Sua leitura foi vetada por Vladimir Nemirovitch-Dantchenko,
um dos fundadores do Teatro (com Stanislavski). Ele sentiu que o poema
era perigosamente franco demais”.
(KARLINSKY, 1985, págs. 83-84).21

Conclusão

O poeta carioca Carlito Azevedo, em Livro das Postagens (2016), empresta


de Marina Tsvetáieva o personagem principal de seu “Prólogo canino-operístico”:

“[...]
Marina Tsvetáieva me conhece.
Certa vez, em plena fome
Dos primeiros anos da revolução
Que em breve completará cem anos,
Ela estava sentada numa calçada
Sem ter o que comer ou dar de comer
Às suas filhas (uma morreria de fome)
Quando me aproximei magro
Acreditando que um coração de poeta
Sentiria pena de mim
E me livraria da cartolina
Que me tinham pendurado no pescoço
Com os dizeres escritos a lápis:
Matem Lênin e Trotsky ou eu serei comido. [...]”
(AZEVEDO, 2016, págs. 13-14)

21 Nossa tradução. [Stakhovich, who was once an officer in the guards, then held the position of
aide-de-camp at the imperial court, and still later became an actor at the Moscow Art Theater. After
the revolution, when Tsvetaeva met him, he was a much admired teacher of deportment and etiquette
at a theatrical school attended by the members of the Third Studio. Tsvetaeva had heard a great deal
about Stakhovich from her actor friends before she actually got to meet him. His suicide in February
1919 was perceived by her as a momentous and symbolic event, marking the proximate disappearance
of the cultural values which she associated with the eighteenth and early nineteenth centuries and
with which she was identifying more and more in poems that were later included in Mileposts II and
Psyche. She dedicated several poems to the memory of Stakhovich, one of which she was scheduled to
read at a commemorative ceremony at the Moscow Art Theater. Her reading was vetoed by Vladimir
Nemirovich-Danchenko, one of the theater’s two founders (with Stanislavsky), who felt that the poem
was dangerously outspoken.]
166 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

Esse cão vem de uma anotação, tomada por Tsvetáieva em seu diário no
dia 10 de abril de 1920, que se resume à curta frase: “Andrei conta que viram
passar um cachorro que levava o cartaz: ‘Abaixo Trótski e Lênin – ou eu serei
comido’” (TSVETÁIEVA, 2008, pág. 142). Em um trecho de seu diário, publi-
cado por Tsvetáieva em 1925 sob o título O atentado contra Lênin, a poeta procura
esconder, em respeito ao amigo comunista Sachs, seu sorriso de esperança pela
morte do líder bolchevique. Nosso leitor já pode apreciar essas reações de Tsve-
táieva sem as reduzir ao maniqueísmo pró e contra-revolucionário. A tônica de
seu rechaço à revolução nada tem de aborrecimento reacionário, senão de uma
profunda irreverência individual que se revestiu, naquelas circunstâncias, de uma
roupagem “branca”. Essa mesma irreverência Tsvetáieva voltará contra a direita
da emigração russa na Europa, em particular os editores de revistas; com esse
mesmo rechaço tratará, em textos como O Caçador de Ratos [Крысолов] (1925),
Meu Púchkin [Мой Пушкин] (1937) ou em Versos para Tcheca [Стихи к Чехии]
(1938-1939), temas como a ascensão do nazi-fascismo, o racismo, a atmosfera
de ódio que levou a Europa à II Guerra. Não se pode esperar dos poetas uma
resposta uniforme aos fatos históricos, em especial dos que foram diretamente
atingidos por tais fatos. Entretanto, alguns cortaram a história de fora a fora
com irredutíveis gestos de coragem, protesto, recusa (não por acaso Augusto de
Campos incluiu Tsvetáieva em seu volume Poesia da Recusa, 2006). Nem o oficial
da guarda branca, nem o oficial vermelho são mais heróis do que esta mulher, que
para assim escrever, sozinha, sofridamente e na contra-mão da marcha totalitária,
deu provas dessa coragem.
Consideramos importante dar uma palavra para a recepção destas traduções
hoje, cem anos depois, neste centenário da revolução russa. A União Soviética
não viveu para ver esta comemoração; naufragou com sua promessa e tragou
seus poetas. “Minha poeta”, diz o cão de Azevedo, “deu de comer à corda/ o
próprio pescoço”. Refere-se ao suicídio de Marina Tsvetáieva em 1941. De volta
após 17 anos (1922-1939) na emigração, a poeta não suportou viver sob o regime
stalinista, e com o estouro da invasão nazista sobre a Rússia em junho de 1941,
no dia 31 de agosto Tsvetáieva deu, com a corda, sua declaração final de recusa.
Isto é, enforcou-se na cidade de Ielábuga. Ingressou para a lista dos artistas que o
sistema soviético trucidou. É assim que o cão de Carlito Azevedo, aprisionado em
um cubo de tortura, invoca os nomes de Marina Tsvetáieva, Anna [Akhmátova], e
também Vladimir “Maiakóvski... [o desesperançado cantor/ que me incorporava/
à sua assinatura nas cartas de amor]”. Para tudo o cão pergunta: como vim parar
aqui? A resposta, é claro, se produz como um balanço histórico:
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 167

“[...] Se vim parar aqui...


foi abanando o rabo para o futuro.
foi arreganhando os dentes para o futuro.
E ansiava por futuro. [...]”
(AZEVEDO, 2016, pág. 14)

No entanto, o tema da revolução russa, neste seu centenário, ultrapassa o


interesse historiográfico; ele é atual, estratégico, em torno dele ocorre uma disputa
política. Por isso nos cabe inverter a conclusão pessimista, implícita no poema
de Azevedo, segundo a qual o pesadelo do stalinismo teria sido, provavelmente,
um castigo pelo “pecado” de o povo ousar a tal ponto, de querer arrancar alguma
coisa ao futuro. Esse querer é o que move a literatura; em direção a ele a Rússia
floresceu, com ele a Rússia se revolucionou, contra ele desceu Stálin sua mão de
ferro. Um curto lampejo de momento histórico pode atravessar a história e iluminar
infinitamente após se ter apagado a estrela, que nasceu em 1917. Não por acaso,
o ano de 2017 foi lembrado também como o centenário da primeira greve geral
de trabalhadores no Brasil. Impulsionada pela notícia de uma revolução operária
na Rússia, a greve geral de 1917 em São Paulo marcou o começo de uma longa
trajetória de luta, ela mesma um legado dos movimentos anarquista e comunista
em nosso país, que rendeu uma série de importantes conquistas. A nossa crítica
ao passado soviético não nos impedirá de chegar a esta equação positiva. Seria
confirmar a opinião de Antônio Cândido, para quem “o socialismo é uma doutrina
totalmente triunfante”, porque

“esse pessoal [os comunistas, socialistas democráticos, anarquias... etc.]


começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não
trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez,
oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores
terem férias, para ter escola para crianças”, e completa: “O socialismo só
não deu certo na Rússia”22.

O leitor sabe em que conjuntura a greve geral de 1917 foi evocada este
ano. Em abril de 2017 os trabalhadores brasileiros tentaram, com uma nova greve
geral, impedir que o golpe de Estado em curso suprimisse alguns de seus direitos
garantidos por lei. A direita, de acentuada feição anti-comunista (cria do polo
norte-americano de influência na Guerra Fria), rasgou o véu da democracia bur-

22 Em entrevista ao Brasil de Fato, edição 435: https://www.brasildefato.com.br/node/6819/


168 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

guesa, em que a esquerda se fiou. Impotentes, sem ter de onde emprestar forças
como há cem anos atrás, vemos desfilar pelas ruas, mais uma vez, a “cadela do
fascismo” (para rebater com a máxima de Bertold Brecht). E quanto ao nosso
pobre cão, implorará que ressuscitem Trótski e Lênin.

Referências

Textos originais de Acampamento de Cisnes na língua russa:


ЦВѢТАЕВА, Марина. Лебединый Стань. München: Im Werden Verlag, 2006.
(Некоммерческое эектронное издание. Издание подготовил Сергей Нестеров).
Página eletrônica: http://imwerden.de/publ-876.html

Textos originais de Acampamento de Cisnes usados no corpo do traba-


lho tradutório. Segundo a ordem numérica que utilizamos:
(1) https://ru.wikisource.org/wiki/На_кортике_своём:_Марина_(Цветаева)
(2) https://ru.wikisource.org/wiki/Над_церковкой_—_голубые_облака_(Цветаева)
(3) https://ru.wikisource.org/wiki/Царю_—_на_Пасху_(Цветаева)
(4) https://ru.wikisource.org/wiki/За_Отрока_—_за_Голубя_—_за_Сына_(Цветаева)
(5) https://ru.wikisource.org/wiki/Чуть_светает_(Цветаева)
(6) https://ru.wikisource.org/wiki/И_кто-то,_упав_на_карту_(Цветаева)
(7) https://ru.wikisource.org/wiki/Юнкерам,_убитым_в_Нижнем_(Цветаева)
(8)https://ru.wikisource.org/wiki/Ночь._—_Норд-ост._—_Рёв_солдат._—_Рёв_
волн_(Цветаева)
(9) https://ru.wikisource.org/wiki/Москве_(1-3_—_Цветаева)/1
(10) https://ru.wikisource.org/wiki/Москве_(1-3_—_Цветаева)/2
(11) https://ru.wikisource.org/wiki/Москве_(1-3_—_Цветаева)/3
(12) https://ru.wikisource.org/wiki/Дон_(1-3_—_Цветаева)/1
(13) https://ru.wikisource.org/wiki/Идёт_по_луговинам_лития_(Цветаева)
(14)https://ru.wikisource.org/wiki/Трудно_и_чудно_—_верность_до_гроба!_
(Цветаева)
(15)https://ru.wikisource.org/wiki/Коли_в_землю_солдаты_всадили_—_штык_
(Цветаева)
(16) https://ru.wikisource.org/wiki/Это_просто,_как_кровь_и_пот_(Цветаева)
(17) https://ru.wikisource.org/wiki/Орёл_и_архангел!_Господень_гром!_(Цветаева)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 128-170 169

(18) https://ru.wikisource.org/wiki/Бог_—_прав_(Цветаева)
(19) https://ru.wikisource.org/wiki/Семь_мечей_пронзали_сердце_(Цветаева)
(20) https://ru.wikisource.org/wiki/Где_лебеди%3F_—_А_лебеди_ушли_(Цветаева)
(21) https://ru.wikisource.org/wiki/Белогвардейцы!_Гордиев_узел_(Цветаева)
(22) https://ru.wikisource.org/wiki/Под_рокот_гражданских_бурь_(Цветаева)
(23) https://ru.wikisource.org/wiki/Ты_дал_нам_мужества_(Цветаева)
(24)https://ru.wikisource.org/wiki/Бури-вьюги,_вихри-ветры_вас_взлелеяли_
(Цветаева)
(25) https://ru.wikisource.org/wiki/Царь_и_Бог!_Простите_малым_(Цветаева)
(26) https://ru.wikisource.org/wiki/Памяти_А._А._Стаховича_(Цветаева)/1
(27) https://ru.wikisource.org/wiki/Памяти_А._А._Стаховича_(Цветаева)/2
(28)https://ru.wikisource.org/wiki/Але_(В_шитой_серебром_рубашечке_—_
Цветаева)
(29) https://ru.wikisource.org/wiki/С._Э._(Цветаева)
(30) https://ru.wikisource.org/wiki/Дорожкою_простонародною_(Цветаева)
(31) https://ru.wikisource.org/wiki/Бальмонту_(Цветаева)
(32) https://ru.wikisource.org/wiki/Стихи_к_Блоку_(Цветаева)/9
(33) https://ru.wikisource.org/wiki/Петру_(Цветаева)
(34)https://ru.wikisource.org/wiki/Есть_в_стане_моём_—_офицерская_прямость_
(Цветаева)
(35) https://ru.wikisource.org/wiki/Об_ушедших_—_отошедших_(Цветаева)

Textos em prosa, cujos trechos traduzimos na sessão dissertativa


deste trabalho:
Nota 6 http://www.tsvetayeva.com/prose/pr_chert
Nota 8 http://www.tsvetayeva.com/prose/pr_nochevka
Nota 11 http://www.tsvetayeva.com/prose/pr_voin_hristov
Nota 20 https://www.brasildefato.com.br/node/6819/

Traduções de apoio e outros livros citados direta ou indiretamente


neste trabalho:
AZEVEDO, Carlito. Livro das Postagens, O. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
CAMPOS, Augusto de. Poesia da Recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
KARLINVSKY, Simon. Marina Tsvetaeva. The women, her world, and her poetry. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985.
170 André Nogueira. Acampamento de Cisnes, de Marina Tsvetáieva

LOTMAN, Iúri. «Договор» и «вручение себя» как архетипические модели культуры.


Disponível em: <http://evolkov.net/conflict/contract/Lotman.Yu.Contract.&.handing.
of.self.html> Acesso em: 2017.
TSVETÁIEVA, Marina. Cazador de Ratas. Tradução de Irina Bogdaschevski. Buenos Aires:
Paradiso ediciones, 2014.
____. Diablo, El. Tradução de Selma Ancira. Barcelona: Editorial Anagrama, 1991.
____. Espíritu Prisionero, Un. Tradução de Selma Ancira. Barcelona: Galaxia Gutenberg,
2016.
____. Poeta e o Tempo, O. Tradução de Fernando Pinto Amaral. Lisboa: 1993, Hiena.
____. Vivendo sob o Fogo. Tradução de Aurora F. Bernardini. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
____. Стихотворения и Поэмы. Санкт-Петербург: Азбука, 2014.
TOLEDO, Raquel Arantes. Uma aventura: o teatro de Marina Tsvetáieva. São Paulo: FFLCH-
-USP 2015. Dissertação disponível no sistema.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 171

Aspectos da tradução de versos dos poemas


de Púchkin citados em Meu Púchkin,
de Marina Tsvetáieva

Paula Costa Vaz de Almeida

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre alguns aspectos da tradução de versos de poemas de Aleksandr
Púchkin citados por Marina Tsvetáieva em seu ensaio Meu Púchkin, escrito em Paris no ano de 1937. Para tanto,
recorreu-se à análise e à exposição das estratégias de recriação tanto dos versos citados diretamente quanto daqueles
que são citados indiretamente, incorporando-se ao tecido do texto tsvetaieviano. Com isso, busca-se, ainda, pensar o
ofício da tradução literária de um modo geral, à luz do que seria a “tarefa do tradutor”, segundo Walter Benjamin.
Palavras-chave: Aleksandr Púchkin, Marina Tsvetáieva, poesia russa, prosa russo-soviética, tradução literária.

Não há um único grande poeta russo contemporâneo, cuja voz depois


da Revolução não tenha tremido e não tenha crescido.
(Marina Tsvetáieva)

Esta epígrafe, retirada de Poeta i vrêmia (“O poeta e o tempo”), ensaio de


Marina Tsvetáieva (1892-1941) de 1932, é um valioso lembrete para qualquer
pessoa que se proponha a aventurar-se no estudo e na tradução da literatura
russa do século XX, uma vez que jamais poderá perder de vista que a Revo-
lução Russa, e em especial a Revolução de Outubro, alterou profundamente,
tanto em termos estéticos quanto históricos, os rumos daquilo que a partir
de então se produziria no âmbito dessa arte. De um lado, em solo nacional,
fazia-se uma literatura que se convencionou chamar de literatura soviética
(ou literatura russo-soviética quando se busca mais especificidade), em que predo-
minava, pelo menos oficialmente, o realismo socialista; e, de outro, no exterior, a
172 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

chamada literatura russa de emigração, ou emigrée, formada por escritores saídos da


Rússia e que constituiriam círculos literários e políticos em Berlim e Praga, depois
em Paris.1
Meu Púchkin2, ensaio cujos problemas e estratégias de tradução este artigo
se propõe a comentar, publicado vinte anos após a Revolução de Outubro e cem
após a morte de Aleksandr Púchkin (1799-1837), foi escrito por Marina Tsvetáieva
quando esta se encontrava emigrada na França. Naquele momento, preparavam-
-se homenagens oficiais para lembrar a morte do poeta nacional tanto na URSS
quanto nos círculos dos emigrados em Paris. E cada lado, naturalmente, tratou de
conferir ao evento o caráter ideológico que melhor lhe representava. Tsvetáieva,
que mais de uma vez declarara “não estar com ninguém” (TSVETÁIEVA, 1994b, p.
345), escolhe representar um Púchkin íntimo e cotidiano, em tensão com o tempo
histórico em que o ensaio se insere, ou seja, o ano de 19373. Claro que o ensaio,

1 Vale notar que, com a ascensão dos movimentos nazistas e fascistas na Europa, muitos russos emi-
grados partem para as Américas, em especial para os Estados Unidos, onde produzem, muitas vezes, em
inglês, enquanto tantos outros retornam para a União Soviética. Este é o caso de Marina Tsvetáieva, que
chega à Rússia em 1939 e, depois de assistir, neste mesmo ano, às prisões do marido Serguei Efron e da
filha Ariadna Efron – ambos acusados de espionagem e atividades antissoviéticas –, em meio à invasão de
Moscou pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, suicida-se em Elabuga, cidade
russa da República Tártara.
2 A tradução direta do russo para o português do ensaio Meu Púchkin (em russo, “Мой Пушкин”),
acompanhada de notas críticas e explicativas, além de uma introdução, foi o centro do estudo desenvolvido
na dissertação que levou o título de “O Meu Púchkin de Marina Tsvetáieva: tradução e apresentação”, sob
orientação do Prof. Dr. Homero Freitas de Andrade e submetida à Área de Literatura e Cultura Russa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2008. A tradução
deste texto tão complexo não seria possível sem a paciente e generosa orientação, que proporcionou o
aprendizado prático do ofício da tradução, durante os cotejos em que se discutiram os desafios impostos
pelo texto e as possíveis estratégias e soluções (algumas delas serão expostas detalhadamente neste artigo),
e o estudo teórico do trabalho de tradução por meio da leitura de textos selecionados em conjunto. Além
do cotejo com o orientador, incluía-se nas tarefas a leitura prévia com um falante nativo e qualificado
da língua russa, cujo objetivo era confrontar o original e o texto traduzido. O sucesso da missão só foi
possível graças à paciência, ao cuidado e à dedicação da, hoje, Profa. Dra. Ekaterina Volkova Américo.
Vale dizer, ainda, que, para a elaboração deste artigo, algumas escolhas foram repensadas. Esta não foi,
todavia, uma decisão simples. Veio da própria reflexão da natureza do trabalho de tradução aqui proposta,
e foi encorajada pela leitura do artigo “Boris Schnaiderman e o autocomentário de tradução”, de Walter
Carlos Costa (2016), em que o autor aborda, entre outras coisas, a rigorosidade na revisão que o tradutor
empreendia a cada reedição e a autorrevisão em voz alta, a fim de controlar eventuais omissões.
3 É importante notar que o ano de 1937 é crucial para Tsvetáieva ainda em mais um sentido: sua filha Ariad-
na Efron decide voltar à Rússia em março e, em setembro, será a vez de seu marido Serguei Efron retornar.
O ex-cadete do Exército Branco convertido em agente stalinista envolve-se no assassinato de Ignace Reiss,
espião soviético que rompera com o partido por discordar das perseguições promovidas por Stálin, declaran-
do seu apoio a Leon Trótski e à Quarta Internacional, e é levado clandestinamente para a União Soviética.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 173

inclusive pela força poética por meio da qual são representadas as reminiscências
da infância, revela um Púchkin universal. Entretanto, é preciso destacar que o que
sobressai é o Púchkin localizado, figura corriqueira na vida russa.
Nesse contexto, o Púchkin de Meu Púchkin, ou seja, o Púchkin segundo
Marina Tsvetáieva, é um Púchkin que pode ser, ao mesmo tempo, mestre, negro,
monumento, perseguido, assassinado e amaldiçoado, sendo, sobretudo, poeta e o
primeiro professor, aquele que lhe ensinará as lições mais fundamentais. Púchkin é
a personagem principal de uma narrativa construída a partir do olhar da criança, ou
seja, da menina diante do porvir em confronto com o escrutínio da mulher adulta,
a qual, para tanto, repassa “passo a passo o Púchkin” (TSVETÁIEVA, 2008, p.
70) de sua infância. Nesse percurso, ela retoma seus poemas favoritos e transmite
ao leitor as lições mais valiosas que aprendera, ainda criança, com o poeta nacio-
nal. Com isso, Tsvetáieva recupera em seu ensaio estrofes e versos que considera
mais significativos. No entanto, ela não se limita a simplesmente citar e analisar os
versos e estrofes que seleciona. Além das diversas sugestões e referências indiretas,
a prosa tsvetaieviana parece contaminar-se com a poesia puchkiniana, inundar-se dela.
A impressão que se tem é de um movimento natural, como se a força do verso de Pú-
chkin se incorporasse às frases de Tsvetáieva, em alguns momentos, sobrepujando-as.
Trata-se de um texto que exige um olhar atento do tradutor, pois, em realidade, há ali um
intenso trabalho de construção, desconstrução e ressignificação das poesias escolhidas.
Que caminhos seguir? Que estratégias adotar? Que tarefas impor-se?
Walter Benjamin, em seu conhecido ensaio “A tarefa do tradutor”, afirma que
uma tradução que pretende servir como simples meio de comunicação não pode
“fazer passar mais do que a informação”, quer dizer, aquilo que é “inessencial”
(BENJAMIN, 2008, p. 82). E o essencial aqui, antes de mais nada, não é a fideli-
dade estrita ao sentido, mas, como afirma o mesmo Benjamin acerca da tradução
em geral, está na “forma como o que se quer dizer se articula com o modo do
querer dizer nessa palavra” (BENJAMIN, 2008, p. 93).
Ora, seja no nível da escolha vocabular, seja no que se refere ao arranjo das frases,
a elaboração que se opera na prosa tsvetaieviana em muito se assemelha ao
trabalho de construção do texto poético. Tal efeito é logrado a partir do jogo
que Tsvetáieva estabelece entre a percepção da criança e uma possível inten-
cionalidade do poeta. O jogo consiste em colocar a criança na posição de
aprendiz, que deve, antes de ser iniciado no ofício, decifrar enigmas, adivinhas,
trava-línguas, homonímias, polissemias, as quais, sob o pretexto da brincadei-
ra, lança ao leitor um desafio em cada linha. E, por consequência, ao tradutor,
a cada novo verso citado, do qual a poeta se apropria.
174 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

Ao traduzir o ensaio Meu Púchkin, portanto, do ponto de vista da inten-


cionalidade, teve que se levar em conta que, nesse caso, não se trata de uma, mas
de duas intencionalidades: a de Tsvetáieva e a de Púchkin. Desse modo, e partindo
da concepção benjaminiana de que a tarefa do tradutor “consiste em encontrar a in-
tencionalidade orientada para a língua da tradução, a partir da qual nesta é despertado
o eco do original” e que esse é um trabalho “no qual as próprias línguas
coincidem umas com as outras, completadas e reconciliadas no modo do seu
querer dizer” (BENJAMIN, 2008, p. 92), é possível afirmar que, no presente
caso, temos no original, num primeiro momento, não apenas uma língua, a
russa, mas duas línguas, que são poéticas: a de Púchkin, que produziu sua obra
no século XIX em solo russo, e a de Tsvetáieva, que escreve na Paris sombria
dos anos de 1930. E aqui é válida outra reflexão empreendida por Benjamin.
Ao criticar a teoria que pretende que a tradução seja uma imitação do original,
ele argumenta que o original transforma-se ao longo de sua sobrevida. Isso quer
dizer que as palavras e as tendências poéticas de uma dada época podem desapa-
recer, renovar-se, tornar-se arcaicas. Assim, o que se coloca logo de saída é que
tal problema é intrínseco ao original sobre cuja tradução tratamos aqui. O desafio
imposto, portanto, está em primeiro, por meio da análise, distinguir “o que se quer
dizer” de “como se quer dizer” de Púchkin e Tsvetáieva, para, uma vez tendo
conciliado essas duas instâncias, proceder, agora por meio da tradução, à tarefa de
fazer as distintas línguas, notadamente o português e o russo, completarem-se nas
intencionalidades que estão em jogo. Parafraseando Benjamin, depois de refletir
“sobre o processo de maturação da palavra estrangeira”, que se dá no interior
de Meu Púchkin e cobre em tempo mais de um século – da época de Púchkin à
época de Tsvetáieva –, foi necessário dar atenção “às dores de parto da palavra
própria” (BENJAMIN, 2008, p. 87), sem nunca trair a intencionalidade do poeta
em nome da intencionalidade da poeta.
Sendo assim, vejamos com exemplos como isso se deu na prática.
Um recurso amplamente usado pela autora é a incorporação de versos de
Púchkin ao discurso da criança, a começar por aquele que viria a ser seu “primeiro
Púchkin”: “Tsigâni”4 (“Os ciganos”).

– Então, era uma vez um jovem. Não, era uma vez um velho, e ele tinha
uma filha. Não, é melhor eu contar em versos. Ciganos em ruidoso tropel
– Vão pela Bessarábia viajando – Hoje à beira do rio estão ao léu – Em

4 “Poema longo”, de Púchkin, escrito de 1824 a 1825.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 175

suas tendas rotas pernoitando – Que liberdade alegre sua pousada – e assim
por diante – sem parar e sem vírgulas de permeio. – até: o retinir da bigorna
ambulante, que, eu acho, deve ser um instrumento musical, e deve ser isso
mesmo – acho eu. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 51).

A criança recita aqui os cinco primeiros versos da estrofe de abertura do


poema:

Ciganos em ruidoso tropel Цыганы шумною толпой


Vão pela Bessarábia viajando По Бессарабии кочуют.
Hoje, à beira do rio estão ao léu, Они сегодня над рекой
Em suas tendas rotas pernoitando В шатрах изодранных ночуют.
Que liberdade alegre sua pousada Как вольность, весел их ночлег
(PÚCHKIN, 2006, p. 288)

Este tipo de apropriação, que visa à incorporação dos versos de Pú-


chkin à fala da criança, é um procedimento que perpassa todo o ensaio. Além
disso, os poemas de Púchkin são também citados na forma do discurso di-
reto e utilizados, entre outras coisas, ora para explorar a polissemia de cer-
tas palavras com base nas confusões ensejadas pelo pensamento infantil da
criança em processo de alfabetização, ora para potencializar, pelas lentes da
poeta adulta, o contato com o elemento poético proporcionado pela leitura
da obra de Púchkin, ora como simples pretexto para compartilhar com o leitor
os ensinamentos do mestre.
Como estratégia de tradução dos versos e/ou estrofes dos poemas de Púchkin
citados por Tsvetáieva em Meu Púchkin, procurou-se preservar, na medida do possível,
as rimas e a métrica dos originais. Desse modo, os versos iâmbicos e trocaicos dos
tetrâmetros puchkinianos, na versão para o português, foram recriados em versos
octossílabos, decassílabos ou dodecassílabos.
Tomando como exemplo as citações acima, pode-se notar que, além de o texto de
Púchkin ser incorporado à fala da criança, tanto a própria fala da criança quanto a reflexão
da autora são contaminadas pelo ritmo do verso puchkiniano. Uma vez que se optou,
ao traduzir os versos de “Tsigâni” (“Os ciganos”) citados por Tsvetáieva, por adotar
como métrica em português o verso decassílabo, também as passagens que reproduzem,
no original, os pés do verso em russo, foram recriadas com as respectivas medidas.
Dessa maneira, as duas frases que se seguem à citação direta do poema – ou seja: “e
assim por diante – sem parar e sem vírgulas de permeio” – têm, respectivamente,
cinco e dez sílabas tônicas.
176 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

Ainda ao contar sua experiência com o poema sobre os ciganos, a au-


tora lança mão de um expediente que se repetirá em todo o texto. Partindo da
fala da criança, que, a essa altura, já conquistara, não sem alguma resistência,
uma audiência composta pela ama da irmã mais nova e por sua amiga, uma
costureira que viera visitar-lhes, a poeta procede à citação direta de dois ver-
sos do poema. Em seguida, numa espécie de discurso indireto livre, mistura a
voz da narradora, a mulher adulta que vive no estrangeiro, à da personagem,
a criança que “aos cinco anos, já era recurso espiritual de alguém” (TSVE-
TÁIEVA, 2008, p. 50), e reverbera em outras instâncias da narrativa, como,
por exemplo, na fala das personagens ao final da seguinte passagem:

– Então, essa filha se chamava Zemfira (em voz alta e ameaçadora:)


Zemfira – a filha diz ao velho que Alieko vai morar com eles, porque ela
o encontrou no deserto:

Encontrei-o no deserto vagando


E convidei-o ao pouso cigano.

E o velho ficou contente e disse para irmos numa mesma telega:


“Numa telega seguimos o curso – tá-tá-tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá-tá – E as aldeias
percorra com o urso..”
– O urso – ecoou a bá. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 52).

Além da poesia de Púchkin invadindo pela força da repetição de palavras-


-chaves as instâncias narrativas da prosa, influindo no modo como elas se relacio-
nam para criar a representação pretendida pela narradora, cabe destacar no trecho
acima alguns detalhes linguísticos, os quais se buscou recuperar na tradução e que
concorrem para o apagamento das marcas entre prosa e poesia. O primeiro é a
passagem do discurso da criança da terceira pessoa do plural, “eles”, para a primeira
pessoa do plural, “nós”, incluindo-se, assim, na narrativa do poema. Dessa manei-
ra, a pequena Marina deixa de ser apenas uma personagem criada pela narradora
no âmbito da prosa, para se tornar personagem de “Tsigâni” (“Os ciganos”). A
segunda relaciona-se com a substituição de dois versos do poema pela sequência
“tá-tá-tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá-tá”. Os versos omitidos aparecem destacados em itálico
na comparação da tradução com o original a seguir:

Numa telega seguimos o curso; В одной телеге мы поедем;


Servimos bem para qualquer ofício: Примись за промысел любой:
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 177

Forje o aço ou faça uma canção pr’ouvido Железо куй — иль песни пой
E as aldeias percorra com o urso. И селы обходи с медведем.
(PÚCHKIN, 2006, p. 289)

Ao omitir os dois versos, a criança acaba por marcar o ritmo do poema


“Tsigâni” (“Os ciganos”). Por essa razão, se, no texto tsvetaieviano original, te-
mos quatro sílabas em cada segmento (em russo não transliterado: “та-та-та-та,
та-та-та-та”), na tradução para o português, uma vez que se optou por versos
decassílabos, é preciso acrescentar uma sílaba a mais a cada parte do segmento
(“tá-tá-tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá-tá”).
As palavras descobertas nas “leituras roubadas” não tardam a fazer parte do
vocabulário da criança. No entanto, a pouca experiência da menina curiosa, dona
de uma timidez atrevida, logo começa a provocar confusões e mal-entendidos.
Num primeiro momento, o uso de um vocabulário precoce para sua idade resulta
em pequenos conflitos familiares, especialmente com a mãe.

Sob influência contínua da leitura roubada, naturalmente, o vocabulário


enriquecia-se.
– De qual boneca você gosta mais: a da tia de Nuremberg ou a da madrinha
de Paris?
– A de Paris.
– Por quê?
– Porque ela tem olhos apaixonados.
Mamãe, ameaçando:
– Como?!
– Eu, – me dando conta – Eu quis dizer: assustados.
A mãe ameaçando mais ainda:
– E mais essa! (TSVETÁIEVA, 2008, p. 56).

A interpretação que a narradora faz do episódio é bastante exemplar do


método empregado pela autora em “Meu Púchkin”:

Minha mãe não entendeu nada. Minha mãe entendeu o sentido


e, quem sabe, indignou-se com razão. Mas entendeu – errado. Os
olhos não eram apaixonados, mas fui eu que atribuí aos olhos o sen-
timento de paixão despertado em mim por este – olhar (e pelo véu
rosado, e pela naftalina, e pela palavra Paris, e pelo caso do baú, e
pela inacessibilidade da boneca). Não sou a única. Todos os poetas.
178 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

(E depois duelam entre si – porque a boneca não é apaixonada!) Todos os


poetas, e Púchkin o primeiro. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 57).

O que está em jogo aqui não é, necessariamente, o significado mais ime-


diato das palavras, mas aquele sentido específico que a criança, endossada pela
poeta, atribui às coisas do mundo que a cerca, seja ao olhar apaixonado da boneca
parisiense, seja à estátua de Púchkin, ao quadro de Naúmov, ao armário secreto
ou às palavras encontradas nos poemas de seu primeiro poeta. E mais que isso,
será a partir das contraposições criadas entre suas interpretações infantis e os
conflitos que essas suscitavam com a mãe, que a narradora será capaz de repassar
seu itinerário poético e refletir sobre sua formação, como mulher e como poe-
ta. Um exemplo disso é o viés um tanto quanto determinista por meio do qual
a cena da conversa entre Tatiana e Oniéguin, personagens do romance em versos
Evguéni Oniéguin, no jardim, à qual a criança assiste em uma apresentação pública,
é interpretada pela mulher adulta.

Este banco, no qual eles não se sentaram, revelou-se determinante. Nem


naquela época nem mais tarde, eu jamais gostei de quando se beijavam, sem-
pre – de quando se separavam. Jamais – de quando se sentavam, sempre
– de quando se apartavam. Minha primeira cena de amor foi de não-amor:
ele não amava (isso eu entendia), por isso não tinha se sentado, ela amava,
por isso tinha se levantado, eles não passaram juntos um instante sequer,
não fizeram nada juntos, fizeram exatamente o contrário um do outro: ele
falava, ela calava, ele não amava, ela amava, ele partiu, ela ficou, de modo
que, se erguerem a cortina – ela continua lá, sozinha, e, talvez, sente-se de
novo, porque ela estava em pé apenas porque ele também estava, mas daí
ela desabou, e assim ficará sentada para todo o sempre. Tatiana está sentada
naquele banco para todo o sempre.
Essa minha primeira cena de amor determinou todas as outras, toda essa
paixão pelo amor infeliz, impossível, não correspondido. Desde aquele
instante eu não quis mais ser feliz e me condenei ao – não-amor. (TSVE-
TÁIEVA, 2008, p. 59).

Assim, se o monumento a Púchkin representou a primeira lição de números,


de proporções, de matérias, de hierarquia e de ideia, além da confirmação prática
posteriormente verificada de que “de mil bonequinhas ainda que empilhadas uma
sobre a outra, não se faz um Púchkin” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 40), a Tatiana de
Púchkin representou: “Lição de coragem. Lição de orgulho. Lição de fidelidade.
Lição de destino. Lição de solidão” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 60).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 179

A harmonia dos sentidos que a criança constrói ao criar seu mundo é, como se
vê, sempre quebrada quando há a participação da mãe. Nos casos acima, a incompreen-
são surge a partir das imagens de Púchkin e suas personagens. Mas a principal é aquela
surgida a partir das perguntas da mãe sobre os versos trazidos pelo material di-
dático de seu meio-irmão mais velho, chamado de “a antologia do Andriucha”.
Maria Mein aproveita-se de poemas históricos, como “Полтава” (“Poltava”5), para
ensinar aos filhos e enteados a história da Rússia.
Para o tradutor, o desafio colocado é recriar nos diálogos os jogos de palavras
suscitados pelas confusões geradas pela falta de repertório sobre a história de seu
país, natural de criança em tão tenra idade, a coloquialidade típica da conversa de
uma mãe com seus filhos, independentemente do grau de exigência das perguntas,
e os versos de Púchkin, que se incorporam à conversa sem afetação.

“Quem é ele?” E de novo a mamãe ao Andriucha: “Então, Andriucha, quem


é ele?” E de novo o Andriucha com dignidade, tristeza e até mesmo revolta:
“E eu é que vou saber?” (Estranho mundo este – o da poesia, em que os
adultos perguntam e as crianças respondem!) “E você, Mússia? Sabe quem é
ele?” – “Um Gigante”. – “Por que um Gigante?” – “Porque ele consertou
de vez”. – “Mas o que significa ‘E de Pedro para a felicidade’?” – “Não
sei”. – “Diga, o que significa de Pedro?” (Nada na cabeça, a não ser a grafia
“depedro”6) “Você não sabe o significado de: de Pedro?” – “Não”. – “E
o que é do Andriucha, você sabe?” – “Sei, o cavalinho de balanço7 do An-
driucha, a bicicleta do Andriucha, o trenó do Andriucha...” – “Tá bom, tá
bom. Então, de Pedro é a mesma coisa. De Pedro. Você entende, agora, o
que significa de Pedro? E o que é felicidade – você sabe? (Silêncio.) Você
não sabe o que é felicidade?” – “Eu sei. Felicidade é quando nós estamos
voltando do passeio e de repente o vovô chega, e também quando eu achei
na minha cama...” – “Chega. Para de Pedro a felicidade significa para a
felicidade de Pedro. E que Pedro é esse?” – “Eh...” “Quem é ele? Então?”
– “Mas é o hóspede maravilhoso. Olha demoradamente para aquela direção.
Onde o hóspede maravilhoso acabou de sumir...” – “E como se chama este

5 Poema longo que Púchkin escreveu de 3 a 13 de outubro de 1828. O tema da obra é


a Batalha de Poltava, uma das mais famosas batalhas da Grande Guerra do Norte (1700-
1721), e a narrativa gira em torno de Vassíli Leontievitch Kotchubéi (1640-1780) e de seu
principal oponente, Ivan Stiepanovitch Mazepa (1639-1709), hetman da Ucrânia de 1687
a outubro de 1709.
6 Em russo, “Петрово”, adjetivo derivado do nome próprio “Пётр”.
7 No original, palavra alemã transliterada para o russo que significa “cavalo de balanço”.
180 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

hóspede maravilhoso?”. Eu, timidamente: “Seria Pedro?” (TSVETÁIEVA,


2008, p. 68).

Questões relativas à efetividade do método à parte, o fato é que, ao pro-


vocar os filhos com perguntas sobre personalidades históricas da Rússia, sendo
Pedro, o Grande a mais fundamental, a mãe está, na realidade, valendo-se de um
método utilizado pelo próprio Púchkin. Como observa Tsvetáieva nos parágrafos
finais da passagem:

Só agora, repassando passo a passo o Púchkin da minha infância, vejo o


quanto Púchkin gostava de recorrer a perguntas (...).
Mas não posso, da minha pessoa de então e de agora, não dizer que a
pergunta nos versos é um recurso irritante, pelo menos porque cada por
que exige e promete um porque e isso enfraquece o próprio valor de todo
o processo, toda a poesia se converte em um período, concentrando
nossa atenção para o objetivo final exterior, que o poema não deve fazer.
A pergunta insistente converte o poema em enigma e tarefa, e se todo o
poema é em si mesmo um enigma e uma tarefa, a resposta a este enigma
não é dada, e para o que aquela tarefa propõe não há solução no gabarito.
(TSVETÁIEVA, 2008, p. 70).

Ainda na antologia do Andriucha, porém já livre das perguntas da mãe,


a pequena Marina conhece os primeiros poemas de terror: Utoplennik8 (“O afo-
gado”), Vurdalak9 (“Vurdalak”) e Besi10 (“Os diabos”). Surpreendentemente, os
mal-entendidos ocasionados pelos jogos de perguntas e respostas de sua mãe e
de seu mestre começam a se dissipar na leitura dos poemas. Sem a exigência das
perguntas, a criança era livre para interpretar, de modo que as confusões e os jo-
gos de palavras explorados pela poeta operam em um nível ainda mais complexo.

Em primeiro lugar, aquelas crianças, ou seja, nós que brincamos sozinhos


no rio, em segundo, nós que vulgarmente chamamos o nosso pai: papá! e
em terceiro, nós que não temos medo de morto. Porque elas não gritam
amedrontadas, mas alegres e até cantarolando, assim: “Papá! Papá! Veja
nossas redinhas! Elas trouxeram até nós! Um morto!” – “É mentira de

8 Poema de Púchkin de 1928.


9 Poema de Púchkin que faz parte do ciclo “Canções dos eslavos do norte” (“Pesni zapadnikh slavian”),
de 1834.
10 Poema de Púchkin escrito em 1830.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 181

vocês, capetinhas, uma mentira – rabujou o pai. – Ah, e ainda dizer qu’eu
os fiz! Ora essa, vejam qu’obra: um morto!” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 71).

Do ponto de vista da língua literária, o que se tem aqui é uma exploração de


certo modo prosaica, porém absolutamente expressiva, das capacidades sonoras e
visuais da língua russa. O reconhecimento com o mundo narrado por Púchkin no
poema é imediato. Em um processo bastante similar ao que acontece em Tsigâni
(“Os ciganos”), muito rapidamente a voz narrativa passa da terceira pessoa do
plural (“aquelas crianças”) para a primeira do plural (“nós”). Não se trata apenas
de identificação ou de alguma outra forma de reconhecimento mais imediato com
as crianças ali retratadas. Há, antes, um processo de transmutação que a permite
– agora sim imediatamente – fazer todas as conexões necessárias para recriar a
atmosfera de horror suscitada pelo poema de Púchkin.
Retomando a citação acima, pensemos no que está dito por Púchkin, por
um lado, e o que é compreendido pela criança, por outro.

“Papá! Papá! Nossas redinhas «Тятя! тятя! наши сети


Trouxeram até nós! Um morto!” Притащили мертвеца».
– “Mentira de vocês, capetinhas, «Врите, врите, бесенята,»—
mentira – rabujou o pai. Заворчал на них отец; —
– Ah, e ainda dizer qu’eu os fiz! «Ох, уж эти мне робята!
Ora essa, vejam qu’obra: um morto!” Будет вам ужо мертвец!»
(PÚCHKIN, 2006, p. 118)

Em russo, o jogo é feito entre a interjeição “уж/ужо” e o substantivo “ужи”,
que significa “cobra”. Na falta de uma interjeição em português que permitisse
recriar imediatamente tal jogo, a solução proposta foi promover a contração da
expressão “que obra!”, valendo-se, para tanto, de uma expressão que, em português
do Brasil, também faz as vezes de interjeição, além de um expediente bastante
comum na poesia em língua portuguesa, a saber, o uso do apóstrofo para promover
uma elipse de fonema por meio da aglutinação da conjunção à palavra seguinte.
Com isso, logrou-se aproximar, por meio da sonoridade, como, ademais, acontece
no russo, a expressão “qu›obra!” da palavra “cobra”.
O jogo aqui empregado é fundamental para as associações que se operam a
seguir. A narrativa criada pela poeta em torno do poema Utoplennik (“Os afogados”)
prepara o leitor para o que está por vir. Ocorre que, a partir daqui, do ponto de
vista da contaminação da prosa tsvetaieviana pela poesia de Púchkin, aquilo que
se desenhava em segundo plano, começa a emergir como força fundamental. A
182 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

contaminação dos versos puchkinianos deixa de ser unicamente pela via vocabular
e passa, gradualmente, a se desenvolver de modo mais pleno no plano imagético.
É esse procedimento que permite associar a morte por afogamento do balseiro
à morte por câncer do avô:

(...) o vovô nem sequer morreu afogado, mas morreu de câncer – de cân-
cer? Só que:

E foi então que no corpo inchado


Os cânceres negros aferroaram!

...resumindo, através da porta de vidro da sala de jantar – nas colunas


fantasmagóricas do balcão e embaixo delas, trazendo todo o rio atrás de si:

Desde manhã o mau-tempo braveja


Vem a noite e a tempestade gela,
Chega então o afogado que golpeia
No portão e também na janela.

O morto-qu’obra com o duplo rosto do vovô Aleksandr Danílovitch e do


balseiro que afundou. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 72).

Do amor às paixões, do ponto de vista linguístico, os poemas de horror


representam um avanço na capacidade da menina de interpretação da poesia
de Púchkin. Ela ultrapassa aquele primeiro reconhecimento sonoro imediato
da palavra e a incompreensão causada pelas perguntas da mãe para começar a
construir imagens bastante sofisticadas. É importante observar que as descrições
presentes nas reminiscências líricas e ficcionalizadas de Marina Tsvetáieva são
extremamente plásticas. As pequenas tramas da infância, ambientadas em uma
Rússia que já não existe mais, qual eco de uma pátria impossível, cristalizam os
movimentos da narrativa por meio não apenas da transfiguração da experiência,
mas da própria poesia de Púchkin. Assim, na parte final do período dedicado a
Besi (“Os diabos”), ela declara:

Leitor! Eu sei que “Vocês, olhos, olhos azuis” – não é de Púchkin, mas de
uma canção, talvez até de uma romança, mas, naquela época, eu não sabia
disso e, agora, dentro de mim, onde há tudo – ainda é tudo, também não
sei, porque “rasgando o meu coração” e “a saudade do coração”, pequena
diabinha e bem-amada, estrada e estrada, separação e separação, amor e
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 183

amor é uma coisa só. Tudo isso se chama Rússia e minha infância, e se vocês
abrirem a minha barriga, além de diabos passando com nuvens e nuvens
passando com diabos, vocês também descobrirão em mim aqueles dois
olhos azuis. É a minha essência. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 76-77).

Na leitura desse poema, “o mais aterrorizante por afinidade e o mais afim


por aterramento” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 74) tudo foi compreensão. A descrição é
pictórica e construída por meio de um encadeamento de metonímias. Versos e palavras
fundamentais do poema são retomados, pois representam a Rússia, o poema como
um todo e a narradora, que na passagem se comporta como uma espécie de eu-lírico.
E não só cada elemento separadamente, mas o quadro completo que se pinta a
partir da união de todos eles, reunidos dessa forma no interior da poeta, constitui
uma metonímia na medida em que são aquela essência que forma a pessoa.
Meu Púchkin pode ser considerado o mais bem acabado entre os trabalhos
em prosa de Marina Tsvetáieva. Isso porque nele se reúnem os três componentes
fundadores de seu pensamento artístico de modo condensado e harmônico: o
amor, o poeta e a poesia. Aqui interessa-nos, especificamente, o que pode ser
considerado o terceiro plano temático do ensaio, o encontro com a essência da
poesia, que se dá por meio do poema “Ao mar”, último poema abordado e que
ocupa toda a parte final do ensaio.
Depois de afundar-se no armário secreto para ler As obras completas de A.
S. Púchkin, do Púchkin lírico e heroico, depois de todas as antologias e cartilhas
escolares e depois do Púchkin enigmático e incompreensível da mãe, a criança,
finalmente, ouve pela primeira vez o chamado inconteste da poesia, que a atingiu
no verão de 1902, em Gênova, por meio do poema de Púchkin “Ao mar” (“K
moriu”). A pequena poeta tinha 10 anos de idade quando a família foi para “o
mar” a fim de tratar a tuberculose da mãe. A brincadeira daqueles dias resumia-
-se a copiar repetidamente, e recomeçar a cada erro, o poema de Púchkin em
um caderno por ela mesma forjado, até o dia em que conhece o mar verdadeiro
– “azul e salgado” – e a menina ouve, pela primeira vez, o apelo dos elementos
livres da natureza:

E, de repente, dando-lhe as costas, escrevo com uma lasca de rocha no


rochedo.

Adeus, elemento livre!

Os versos são longos, e eu comecei do alto, o quanto a mão alcançava,


mas os versos, por experiência própria eu sei, são tão longos que nenhum
184 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

rochedo basta, e ali perto não há outro que seja tão liso, mas apesar disso,
as letras aperto e aperto, espremo e espremo, e as últimas não passam de
conchinhas, e sei que agora virá a onda e não deixará que eu termine, então
o desejo não se realizará — qual desejo? ah, Ao Mar! — mas, quer dizer que
já não há nenhum desejo? Mas, mesmo assim, até sem desejo! eu preciso
acabar de escrever antes da onda, acabar tudo antes da onda, mas a onda já
vem vindo, e eu bem que ainda tenho tempo de assinar:

Aleksandr Serguéievitch Púchkin —

E daí tudo é lavado, como que lambido por uma língua, e de novo estou
toda molhada, e de novo a ardósia lisa, já preta agora, como aquele granito…
(TSVETÁIEVA, 2008, p. 95).

Ao escrever essas palavras, a criança estava apenas obedecendo aos co-


mandos dos elementos livres do mar verdadeiro e do mar de Púchkin. Ao final,
ao assinar o nome do Sol da poesia russa, funde-se com um todo maior, que
compreende todos os poetas. E o banho involuntário no mar é o seu batismo. Se
para Púchkin, o mar representava a força primordial da natureza, para Tsvetáieva
essa força é representada pela poesia: “Os elementos livres são, decerto – os ver-
sos, e em nenhuma outra poesia isso é dito com tanta clareza.” (TSVETÁIEVA,
2008, p. 85).
E essa descoberta é feita por meio do poema Ao mar, ou seja, Púchkin
a conduziu desde o primeiro despertar até o momento em que se completa o
processo de formação da poeta. O jogo de palavras engendrado por Púchkin e
assimilado por Tsvetáieva constitui-se em uma formidável assonância na língua
original. Em russo, stikhia (“стихия”) são os quatro elementos da natureza, ou
seja, o fogo, a água, a terra e o ar, que no âmbito dos jogos formulados em Meu
Púchkin representam a força cósmica e caótica que se revela por meio da natureza
e dos sentimentos humanos ao poeta, o qual, por sua vez, deve desmitificá-la por
meio de fórmulas poéticas capazes de organizar o caos. Já a palavra russa stikhi
(“стихи”) significa “versos”. A partir disso, é possível pensar que será por meio
da poesia que os elementos se revelarão a Tsvetáieva.

E digo mais: a ignorância dos meus tempos de criança que confundia elemen-
to livre com versos era uma – intuição: o “elemento livre” eram os versos,
mas não o mar, os versos, ou seja, o único elemento ao qual jamais se diz
adeus. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 98)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 185

Onde se lê “elementos livres”, a criança, pequena poeta, lia “versos livres”,


jogo possível apenas em russo. Para a tradução, portanto, recorreu-se às contro-
versas notas de rodapé, as quais se deve evitar até o momento em que se tornam
imprescindíveis.
Estamos, possivelmente, diante de um dos vocábulos de mais difícil tradução
da língua russa, e eles não são poucos. Isso não apenas devido ao seu significado, mas,
especialmente, pela semelhança que as palavras guardam entre si e as consequentes
possibilidades de criação poética ensejadas por essa similitude. Além do encontro com
a palavra no poema de Púchkin (que, na realidade, não faz esse jogo, quem o percebe
é a criança, ou pelo menos é disso que, na busca de atestar sua vocação, a poeta tenta
convencer o leitor), Tsvetáieva cita da seguinte maneira o poema de Boris Pasternak,
seu irmão de poesia, “Tema e variações. Variante 1. A original” (“Тема и
варианциями. Варианция I. Оригинальная.”), de 1918, inspirado em “Ao mar”,
de Púchkin.

Ao mar era: o mar + o amor que Púchkin lhe tinha, o mar + o poeta, não! –
o poeta + o mar, dois elementos, sobre os quais Boris Pasternak de modo
inesquecível escreveu:

O elemento do elemento livre


Com o elemento livre do verso,

omitindo ou deixando subentendido o terceiro e único: o elemento lírico.


(TSVETÁIEVA, 2008, p. 97).

Entramos, nesse momento, no campo espinhoso da “intraduzibilidade”.


E o que se coloca aqui não é exatamente a correspondência ou a falta de corres-
pondência entre o significado das palavras nas línguas literárias de chegada e de
saída. Também não está colocado o sentido de cada palavra isoladamente, em
suas respectivas línguas, em estado de dicionário. E ainda que a própria tradução
para o português como “elemento” seja incompleta, não está em jogo sequer o
sentido, ou seja, a informação transmitida pela obra no original. Coloca-se aqui
algo tanto mais complexo quanto mais profundo, a saber: a “tradutibilidade do
original”. Segundo Benjamin:

Até que ponto uma tradução é capaz de corresponder à essência desta


forma, isso é determinado objetivamente pela tradutibilidade do original.
Quanto menos valor e dignidade a sua língua tiver, quanto mais ela for
informação, menos há a ganhar na tradução, até que o total predomínio
186 Paula Costa V. Almeida. Aspectos da tradução de versos dos poemas de Púchkin citados em Meu Púchkin...

desse sentido, muito longe de servir de alavanca para uma tradução for-
malmente perfeita, acabará por fazê-la malograr. Quanto mais elevada for
a forma de uma obra, tanto mais ela será traduzível, ainda que a tradução
aflore apenas ao de leve o seu sentido. […] Mas existe um ponto de pa-
ragem e atenção (ein Halten), que, no entanto, só o texto sagrado pode
garantir: nele, o sentido deixou de ser a linha de separação entre a torrente
da língua e a torrente da revelação. Se o texto pertencer, de forma não
mediatizada, sem a mediação do sentido e pela sua literalidade, à língua
verdadeira, à verdade ou à doutrina, existirá nele uma tradutibilidade de
princípio. Agora já não em função de si mesmo, mas apenas das línguas.
Na relação com ele exige-se à tradução uma confiança tão ilimitada que,
no plano desta literalidade e liberdade, sob a forma da versão interlinear, a
língua e a revelação terão necessariamente de se conjugar sem tensões, como
no texto original. Na verdade, todos os grandes textos, e em mais alto grau
os sagrados, contêm nas entrelinhas a sua tradução virtual. (BENJAMIN,
2008, p. 97-98).

Buscar uma tradução que integre as línguas de chegada e de saída em uma “língua
verdadeira” capaz de revelar “a tradução virtual” contida “em todos os grandes textos”
é a mais difícil, ambiciosa e, talvez, incontornável tarefa que o tradutor literário
de um modo geral, e o de poesia em particular, pode se impor, ainda que este
tenha a consciência de que essa batalha dificilmente será plenamente vencida.
Contudo, não existe pecado em buscar o ideal, em aceitar a utopia, por mais
romântica que essa visão possa parecer. Mesmo porque uma tradução jamais
será uma obra definitiva. Diferentemente do original, que subsiste no decorrer
de séculos graças à potência de sua universalidade, a tradução está sujeita à ação
do tempo. E da mesma forma que corre o risco de desaparecer, a palavra pode
sobreviver em sua língua e outras possibilidades de traduzi-la podem surgir.
Assim, a obra se revela ao leitor que não teria outro modo de conhecê-la se não por meio
da tradução. Como bem sintetizou Marina Tsvetáieva em Poeta i vrêmia (“O poeta
e o tempo”):

Uma obra universal é aquela que na tradução para outra língua e para outra
era – na tradução para a língua de outra era – o mínimo – nada se perde.
Tendo dado tudo à sua própria era e terra, tudo será dado mais uma vez
em todas as terras e eras. Ao revelar sua própria era e terra até seus limites
– revela-se de modo ilimitado tudo o que não é nem a terra nem a era: por
eras eternas. (TSVETÁIEVA, 2008, p. 97-98).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 171-187 187

Referências
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor (tradução de João Barrento). In: BRANCO, C. L. (org.).
A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quarto traduções para o português. Belo Horizonte:
Fale/UFMG, 2008.
COSTA, W. C. Boris Schnaiderman e o autocomentário de tradução. TradTerm, v. 28, 2016, pp.
23-34.
PÚCHKIN, A. S. Stikhotvorenia i poemi. Moscou: Eksmo, 2006.
TSVETÁIEVA, M. Meu Púchkin. In: ALMEIDA, Paula. O “Meu Púchkin” de Marina
Tsvetáieva: tradução e apresentação. Dissertação – Universidade de São Paulo. São Paulo,
2008. 155p.
____. Moi Puchkin. In: Sobranie sotchineni: V 7 t. T. 5: Avtobiografitcheskaia proza. Stati.
Esse. Perevodi. Sost., podgot. teksta i komment. A.A. Saakiants i L. A. Mnukhina. Moscou:
Ellis Lak, 1994a.
____. Poeta i vrêmia. In: Sobranie sotchineni: В 7 т. Т. 5: Avtobiografitcheskaia proza. Stati.
Esse. Perevodi. Sost., podgot. teksta i komment. A.A. Saakiants i L. A. Mnukhina. Moscou:
Ellis Lak, 1994b.
188 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.

A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras

Rafael Bonavina

Resumo: No presente artigo, apresentamos a tradução, com breves explicações a respeito da fundamentação teórica
utilizada em seu preparo, e uma sucinta análise do poema “Terra Natal”, de Andrei Biély.
Palavras chave: Século XX; Poesia russa; Andrei Biély; Simbolismo russo; Sóphia.

1. O batismo em fogo

Embora não existam chaves michas para a leitura da poesia de Andrei Biély
(1880-1934), a imagem da eterna feminilidade1 abre diversas portas da literatura
simbolista russa. Ela é um dos pontos comuns entre todos esses escritores, ou, nas
palavras de Victor Terras, “essa visão da ‘Dama Mais Bela,’ a ‘Mulher Vestida do
Sol,’ tornou-se um símbolo evocativo para diversos simbolistas (Biély inclusive)”
(TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)2.
Pouco divulgada, a produção de Andrei Biély é diversa e vasta. Por exemplo,
durante “o período entre 1903 a 1910 [...] ele publicou mais de duzentos artigos,
resenhas de livros, e ensaios, bem como três coleções de poesia” (TERRAS, 1985,
p. 45, tradução nossa)3. Perdido nesse labirinto de folhas de papel e carente de
um caminho determinado, o leitor precisa, ao menos, de uma estrela distante para
guiar-se. Para Carpeaux, as obras-primas de Biély são: “Sinfonia (1902); Ouro no

1 Em russo, Viétchnaia Jenstviennost’.


2 [This vision of a “Lady Most Beautiful,” a “Woman Clothed in the Sun,” became an evocative symbol
for several symbolists (Bely included)].
3 [The period 1903 to 1910 was an astonishingly productive one for Bely; he published over two hundred
articles, book reviews, and essays, as well as three collections of poetry].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 189

Azul (1904); Sinfonia nórdica (1904); A Volta (1904); Cinza (1908); Urna (1909);
Pomba de prata (1910); Peterburg (1916); Kotik Letaiev (1922); Recordações sobre
A. A. Blok (1923); Moscou (1926).” (CARPEAUX, 2014).
Nascido em 25 de Outubro de 1880, Boris Nikoláievitch Bugáiev era o único
filho de Nikolai Vassílievitch Bugáiev, um renomado matemático da Universidade
de Moscou, e sua esposa, Aleksandra Dmitrievna. “Eles eram um casal estranho:
o excêntrico, autocrático, porém brilhante pai estava profundamente dedicado às
ciências naturais e às suas próprias matemáticas” (TERRAS, 1985, p. 45, tradução
nossa)4, enquanto a mãe era uma mulher dedicada às artes, com certo talento mu-
sical, e uma ferrenha crítica da racionalidade. Esse embate da “ordem harmônica
contra desordem caótica, criação contra destruição, amor contra ódio, moralidade
versus amoralidade, unidade e comunhão contra desintegração e estranhamento”
(TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)5 são alguns dos centros de gravitação da
imagética bielyana. O poema traduzido ao final demonstra algumas manifestações
dessas contradições, dessa “visão científica baseada no caos cósmico” (TERRAS,
1985, p. 45, tradução nossa)6, de ausente causalidade lógica, a partir da qual, sozi-
nho, o homem cria um sentido para si.
Em 1903, Boris Bugáiev obtém seu diploma em ciências naturais, porém o
destaque maior nesse período cai sobre as suas Sinfonias, a Primeira desse mesmo
ano e a Segunda do anterior, contrariando o esperado. “Graças ao seu caráter
experimental e ‘decadente’, ele as publicou sob o pseudônimo, talvez evitando
constranger o pai” (TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)7. O pseudônimo de
Andrei Biély surge por sugestão de Vladimir Solovióv (1853-1900), velho amigo
da família.
Como afirma John Noyce, “ao final do século dezenove, o filósofo Vladimir
Solovióv desenvolveu a noção de Sóphia baseado nas suas próprias visões e nos
escritos teológicos anteriores de Böhme e seus sucessores.” (NOYCE, 2007, pp.
6-7, tradução nossa)8. Mais especificamente, a respeito dessas “visões”, Terras

4 [They were an ill-matched pair: the eccentric, autocratic, but brilliant father was deeply committed to
the natural sciences and to his own mathematics].
5 [harmonious order versus chaotic disorder, creation versus destruction, love versus hatred, morality
versus amorality, unity and community versus disintegration and estrangement].
6 [A scientifically based vision of cosmic chaos].
7 [Owing to their experimental, “decadent” character. he published them under a pseudonym, perhaps
to avoid embarassing his father].
8 [notion of Sophia based on his own personal visions and on the earlier theological writings of Boehme
and his successors].
190 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.

afirma que Biély fora influenciado pela “compreensão de Solovióv do processo


histórico e cosmológico como um movimento de religação com Deus” (TERRAS,
1985, p. 45, tradução nossa)9. Vale lembrar que a própria palavra “religião” tem
como raiz a palavra latina religio de etimologia obscura, provavelmente advinda de
religare, reconexão, reunião.
Essa figura feminina dedilhada na lira do filósofo Solovióv ecoará nos
acordes de outros autores, como Biély, Blok, e Merejkovsky. Como demonstra
Noyce, as raízes da imagem de Sófia não nascem em Solovióv, datam de séculos
antes, por exemplo, há a construção de Hagia Sofia, a Basílica de Santa Sofia. Ao
longo dos séculos, bem como dos poemas escritos dedicados à Sófia, a imagem
dela passa de uma pessoa tangível – por vezes atribuída à esposa de Solovióv –
para uma abstração arcana e baça.
No caso de Andrei Biély, a mudança atravessa diversos estágios, passando
por “Sófia, Virgem Radiante, Donzela dos Portões Arco-Íris” (NOYCE, 2007, p.
8, tradução nossa)10, inclusive pela forma de Alma do Mundo, que seria “a matéria
comum que liga todas as criaturas, que, certa feita, separaram-se voluntariamente
de Deus (que em seu amor dá liberdade à Criação), mas que é religada ao Logos
Divino através de Cristo” (TERRAS, 1985, p. 45, tradução nossa)11.
Aos poucos, em sua interpretação de Sófia, Biély transforma a Eterna
Mulher na Mulher Vestida do Sol, retirada ipsis literis da Bíblia católica. João relata
uma das revelações do fim dos tempos em que “[...] viu-se um grande sinal no
céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de
doze estrelas sobre a sua cabeça.” (BÍBLIA, Apocalipse, 12, 1).
A polifórmica Mulher não se cristaliza na bíblica “Mulher vestida do Sol”,
ela se recusa a engessar-se. No poema Terra Natal, de agosto de 1917, Sófia assume
a forma da própria Rússia – que também é um substantivo feminino em russo –
como “Messias do dia que virá”. Ao olhar para o poema, isolado do contexto de
produção, talvez o leitor considere uma ode ao mito da sacra missão russa, mas
ao levar em conta que ao final do ano começaria o ciclo de revoluções na Rússia,
nota que o poeta dialoga, também, com os eventos de sua realidade histórica. Não
se trata apenas de uma visão apocalíptica em sentido estrito, escatológico, mas

9 [Solovyov’s understanding of cosmological and historical process as a movement toward reunification


with God].
10 [Sophia, Radiant Virgin, Maiden of the Rainbow Gates].
11 [the common subject uniting all creatures, which once voluntarily separated itself from God (who in
his love grants creation freedom) but which is linked again to the Divine Logos through Christ].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 191

de uma ode à mudança. O eu-lírico ordena que se dobrem os joelhos “diante do


turbilhão de labaredas”, e vale um momento de reflexão a imagem das labaredas,
pois estas tem uma dupla significação.
Geralmente, o fogo relaciona-se aos conceitos de destruição ou de pu-
rificação. Dentro desta concepção está o ambíguo fogo bíblico, ora ligado às
desgraças, ora às sarças ardentes. Se tomarmos o livro de João, pois há evidente
intertextualidade, encontraremos a imagem do lago de fogo. Ser lançado nele “é a
segunda morte” (BÍBLIA, Apocalipse, 21, 8), uma morte da qual não escapam o
falso profeta, a besta, o Demônio, a morte, e o próprio inferno. E a partir dessas
chamas, nascem “um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a
primeira terra passaram, e o mar já não existe.” (BÍBLIA, Apocalipse, 21,1). O
transformador fogo bíblico será tomado por Biely e estará diretamente relacionado
com a manifestação da “Mulher Vestida do Sol” no poema, a Rússia. A mudança
trazida pela Rússia-Sófia, portanto, trata-se da mudança prometida pela revolução
social, “o dia que virá”. A respeito da destruição, Meletínski afirma que, “[...] ‘A
destruição e o caos’ remetem àquilo que encarnavam/personificavam no mito os
monstros ctônicos” (MELETÍNSKI, 1994, p. 217), porém o fogo, e, portanto,
a destruição, emana da própria Rússia, dessa manifestação ambígua do Eterno
Feminino, ou da Grande Mãe, em que estão representadas concomitantemente os
arquétipos de amante e feiticeira. A Rússia é o uroboros, ou seja, ao mesmo tempo,
é a heroína engolida e o ser ctônico que o engole. “O uroboros e sua soberania
estão estritamente ligados com a imagem da Grande Mãe [...] associada com a
terra e com a natureza absolutamente inconsciente em contraposição à cultura.”
(MELETÍNSKI, 1994, p. 25).
Seguindo o próprio conselho de curvar-se perante o “turbilhão de laba-
redas”, brada o eu-lírico: enlouquece, Rússia, tornando-me pó! Demonstrando
sua convicção na “concepção de Steiner de um processo de evolução cósmica
polvilhado por períodos violentos de transição”(TERRAS, 1985, p. 46, tradução
nossa)12. No entanto, faz-se necessário apontar que no ensaio escrito em 1917,
mesmo ano de publicação do poema, intitulado Revolução e Cultura (Revoliútsia i
Kultura), Biély insiste que o determinismo econômico

não traz em si nenhum espírito revolucionário, mas é meramente uma


forma de academicismo que deturpa a essência humana. O verdadeiro
progresso não é o desenvolvimento econômico, mas a elevação espiritual.

12 [Steiner’s conception of a process of cosmic evolution punctuated by violent periods of transition].


192 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.

A humanidade vai transcender da necessidade para a liberdade, não pela


operação de leis econômicas, mas através da criatividade estética e espiritual
(ROSENTHAL, 1980, p. 190, tradução nossa)13.

Assim, o poema não se trata de militância bolchevista panfletária, é um pa-


negírico à mudança espiritual e às promessas de libertação implicadas na revolução
social, física. Ainda afirma Rosenthal que “comparando o espírito revolucionário
a um cometa, ele fala sobre suas origens na ‘estrela inamovível dentro de nós’ [...]
e sobre como, na colisão da revolução contra a cultura, os dois tornam-se um”
(ROSENTHAL, 1980, p. 190). Ou seja, uroboros termina de engolir a si mesmo
e transforma-se em uma paradoxal mônada que, ao mesmo tempo, contém e é
contida.

2. As bem-ditas palavras

Evitando o conforto da penumbra do silêncio, nesta parte do trabalho, pre-


tendemos trazer à luz alguns dos muitos nós górdios encontrados nesta tradução
que afloraram no contato direto entre dois povos tão distantes. Tentaremos não
utilizar palavras estrangeiras para conduzir essa discussão, exceto no caso do
neologismo na segunda estrofe, pois este será inevitável. Não nos debruçaremos
exaustivamente sobre todas as dificuldades tradutológicas, pois foram muitas, e
isso só cansaria o leitor. “Em todo caso, [...] mais vale ler em tradução do que não
ler de todo ou fingir que se leu no original.” (RÓNAI, 2012, p. 66).
A tradução de um poema em russo implica em dois problemas: o de ser
um poema, e o de estar em russo. O primeiro destes, trataremos mais adiante. O
segundo, agora. A língua russa, por exemplo, não tem artigos. Então, se “existisse
tradução literal, isto é, fidelidade unilateral, o problema nem surgiria e deixaríamos
de pôr o artigo ao longo de toda a obra” (RÓNAI, 2012, p. 22). No entanto, se o
tradutor fizesse isso, o resultado causaria otite. O tradutor terá de optar por colocar
o artigo definido, ou indefinido, ou não usar nenhum. “Cada um desses casos (e
são milhares num só livro) é resolvido segundo as leis orgânicas do português; o
original não fornece indicação alguma.” (RÓNAI, 2012, p. 22). A teoria de uma
tradução verdadeiramente fiel cai por terra. Sem o acalento de poder apontar para
o original e esconder-se por trás das palavras de outrem e de uma língua desco-

13 [bears no revolutionary spirit but is merely a form of scholasticism that warps the human essence.
True progress is not economic improvement but spiritual uplift. Humanity will ascend from necessity to
freedom, not by the operation of economic laws, but through spiritual and aesthetic creativity].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 193

nhecida, o tradutor torna-se um nervo exposto. Porém não é necessário que ele
sinta-se assim, pois “a fidelidade alcança-se muito menos pela tradução literal do
que por uma substituição contínua. A arte do tradutor consiste justamente em
saber quando pode verter e quando deve procurar equivalências.” (RÓNAI, 2012,
p. 24). Mais, “como não há equivalências absolutas, uma palavra, uma expressão
ou frase do original podem ser frequentemente transportadas de duas maneiras,
ou mais, sem que se possa dizer qual das duas é a melhor.” (RÓNAI, 2012, p. 24).
Descartada a fidelidade fanática, tampouco a tradução proposta se baseia
“naquilo que o autor queria dizer”, afinal: “Se ele quisesse dizer, teria dito” (SAR-
TRE, 1951 apud CAMPOS, 2013, p. 4), inclusive de maneira oblíqua, se neces-
sário. Outra distorção que permeia os meandros tradutológicos é a de ser dever
do tradutor a reprodução do “sentido do texto”, “a mensagem”. Mas de nada
adiantaria “reproduzir apenas o ‘conteúdo’, a ‘mensagem’ de um poema, pois, a
nosso ver, limitar a tradução de poesia a este aspecto seria um empobrecimento e
uma deformação.” (CAMPOS et al., 1968, pp. 14-15). Assim, não nos fixaremos
no campo da versão fiel e literal, nem na recriação absolutamente desprendida
do original, de uma liberdade descompromissada. Há “entre a tradução literal e a
tradução livre uma terceira, a literária, precisamente aquela que devemos propor
como objetivo.” (RÓNAI, 2012, p. 48). Esta é a tradução que se busca na presente
proposta.
Apontado no início, o problema de se tratar de um poema a ser traduzido
está em que ele não é feito apenas de um sentido, ou seja, não é constituído pura-
mente de informações semânticas. Nele existem ritmo, antíteses, sonoridade,
choques, imprevisibilidades, características estéticas, estilísticas, nada semânticas.
São justamente essas informações estéticas que a presente tradução busca
recriar. Informação estética pode ser definida como aquela que “transcende a
semântica, no que concerne à ‘imprevisibilidade, à surpresa, à improbabilidade
da ordenação de signos’” (CAMPOS, 2013, p. 2). Seria descabido pensar que o
tradutor abordaria um poema de Olavo Bilac da mesma maneira que um poema
de Khliébnikov ou Du Fu.
Entre os problemas encontrados na tradução deste poema, há, por exemplo,
a dificuldade lexical do último verso da primeira estrofe. Nele há um imperativo
em segunda pessoa. O original traz um palavra estranha para a língua portuguesa
que significa “andar com filosofice” (VOINOVA, STARIETS et al, 1975, p. 811),
ao qual foi adicionado o prefixo semelhante o “des-”. A opção foi pela forma
imperativa do verbo “enlouquecer”. Apesar da construção pouco usual em russo,
ela não é tão estranha quanto à tradução fiel em português, que causaria espanto;
algo como “desfilosofizar-se”.
194 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.

Um caso fonológico pode ser encontrado no último verso da terceira estro-


fe. No original não se tratavam de “cósmicas semanas”, mas de “cósmicos dias”.
A troca parece pouco significativa, embora a opção feita dê a impressão de um
período mais longo, porém foi feita com o intuito de manter a sonoridade. No
original, a rima é intercalada entre as vogais brandas “ie” e “i”, de sutil diferença,
reproduzidas na tradução através da alternância dos sons “a” e “ã”. Parece grande
a diferença entre um “a” aberto e um nasalizado, mas se um estrangeiro pouco
habituado à fonética brasileira for questionado, terá dificuldade de distinguir um
do outro em primeiro momento e muito mais problemático será o trava-língua
de reproduzir tais sons.
A quarta estrofe precisou de um procedimento para suprir a ausência de
declinação, acrescido do tradicional malabarismo com vírgulas. Originalmente,
os dois primeiros versos da tradução encontravam-se ao final da estrofe, mas
dessa maneira a construção ficaria demasiado obscura para o leitor. Nessa mesma
passagem, ligado ao substantivo “Cristo”, há o particípio do verbo “descer”.
Mas “Cristo descido” seria mais um caso agudo de otite; “Cristo caído”, uma
antítese muito distante do original. Então optou-se pelo uso do antônimo de
“ascender aos céus”, “descender à terra”, e sua forma de particípio, “descen-
dido”, anteposta.
Semelhante é a dificuldade da penúltima estrofe: a construção feita por Biély
depende muito das declinações para ser compreendida e, mesmo assim, é confuso
pela coincidência da terminação semelhante entre o plural dos casos prepositivo e
o genitivo em russo. Ao contrário da solução anterior, optamos por trazer a “prata”
para o primeiro verso e passar os “anéis de saturno” para o seguinte, do contrário
seria difícil uma construção que fosse inteligível e transmitisse o pertencimento
da “prata” aos “anéis de saturno” e às “vias lácteas”.
Um leitor curioso, que passou direto pela introdução e correu para a tra-
dução do poema, sendo uma pessoa educada e gentil, apontará para os colegas
que há uma palavra absurda na segunda estrofe. Trata-se do monstrengo lexical
“pteróquiro”. E é justamente com essa dificuldade tradutológica que se exemplifica
a discussão a respeito das informações estéticas.
Na segunda estrofe do original, o leitor encontrará o termo kryloruki. Em
nenhum dos dicionários consultados, foi encontrada uma definição da palavra.
Separando as partes que compõe o neologismo, há duas raízes justapostas: a
primeira, kryló, significa “asa”; a segunda, ruká, “mão” ou “braço”, e a partir
dessa justaposição, o poeta forma um adjetivo. Praticamente, intraduzível para o
português, exceto com a criação de um pungente neologismo ilógico. No entanto,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 195

encontra-se no dicionário, a palavra rukokrýly, que significa “morcego”. Fica claro


que rukokryly é a base do neologismo, e Biély haveria invertido a ordem dos radicais
cunhando a palavra kryloruki, respeitando a regra de ortografia russa que impede
o uso do “i duro (y)” depois da letra “k”. Na tradução, não se toma a palavra
“morcego” como base, pois causa riso ler “cegomor”; mas, sim, o nome de sua
ordem taxonômica: chiroptera, dado pela formação anatômica das asas – em grego,
pterón – a partir dos longos dedos das mãos – em grego, cheir – do animal, entre os
quais há uma membrana que forma a asa. Logo, a ordem dos radicais é exatamente
a mesma do russo. Então pegamos essa palavra, ou melhor, não propriamente a
nomenclatura científica, mas o adjetivo “quiróptero”, que é o aportuguesamento
dela. Aplica-se, então, o mesmo procedimento utilizado por Biély, a inversão dos
radicais, e chegamos ao adjetivo: “pteróquiro”.
Com razão, o leitor torceria o nariz diante da estranha palavra. Mas, como
diz Boris Schnaiderman, “Uma das grandes dificuldades da tradução consiste em
procurar, na língua de chegada, o correspondente à estranheza, tão frequente nos
grandes textos literários.” (SCHNAIDERMAN, 2011, p. 69). Não é fácil men-
surar o grau de estranhamento causado por esta ou aquela palavra no leitor de
uma ou outra língua. Porém não é difícil perceber de maneira binária se ele existe
ou não. A ausência de rukokryly em diversos dicionários é um indício de o leitor
estranhar sua aparição no papel, embora não seja uma rejeição completa como a
opção “cegomor”.
Assim, o bizarro “pteróquiro” também é, ao mesmo tempo, estranho e
familiar. Schnaiderman concorda com Campos ao afirmar que focar na precisão
semântica “torna muitas vezes o texto explicativo e duro demais.” (SCHNAIDER-
MAN, 2011, p. 31). No nosso exemplo, seria possível traduzir a palavra rukokryly
por “mão-alados”, como fez Gerard Shelley em sua tradução para o inglês. Porém,
essa solução não reproduz o processo de derivação utilizado por Andrei Biély para
formar o neologismo.
Entretanto, para fazer uma tradução que reproduza todos os procedimentos
e elementos do original, seria necessário criar uma obra coincidente em tantos
aspectos que se acabaria por escrever novamente o original, tarefa só permitida a
Pierre Menard. Para nós, os outros, restam estas acalentadoras palavras: “O poeta
exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o
estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe
em traduzir o intraduzível.” (RÓNAI, 2012, p. 17).
196 Rafael Bonavina. A Rússia Vestida de Chamas Purificadoras.

Terra Natal Родине

Soluça, elemental relâmpago, Рыдай, буревая стихия,


em colunas de fogo trovejante! В столбах громового огня!
Rússia, Rússia, Rússia, Россия, Россия, Россия, —
cremando-me, enlouquece! Безумствуй, сжигая меня!

Nas tuas fatídicas ruínas, В твои роковые разрухи,


nos teus surdos abismos, В глухие твои глубины́, —
derramam os pteróquiros espíritos Струят крылорукие духи
seus resplandecentes onirismos. Свои светозарные сны.

Não choreis: ajoelhai-vos Не плачьте: склоните колени


frente ao turbilhão de chamas, Туда — в ураганы огней,
ao trovão das canções seráficas, В грома серафических пений,
ao dilúvio das cósmicas semanas! В потоки космических дней!

Descendido, Cristo consolará, Сухие пустыни позора,


com o raio de Seu inefável olhar, Моря неизливные слёз —
os secos desertos da infâmia e Лучом безглагольного взора
os mares de afogadas lágrimas. Согреет сошедший Христос.

Mesmo que haja no céu prata Пусть в небе — и кольца Сатурна,


dos anéis de Saturno e das vias lácteas, И млечных путей серебро, —
borbulha em fosfórica tempestade, Кипи фосфорически-бурно,
núcleo ígneo da Terra. Земли огневое ядро!

E tu, elemento flamejante, И ты, огневая стихия,


Cremando-me, enlouquece, Безумствуй, сжигая меня,
Rússia, Rússia, Rússia, Россия, Россия, Россия —
és o messias do dia que virá! Мессия грядущего дня!

Agosto de 1917, август 1917,
Povoróvka Поворовка


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 188-197 197

Referências
BÍBLIA. Bíblia Sagrada Ave-Maria. São Paulo: Editora AveMaria, 1959.
BIÉLY, Andrei. Sobranie sotchinieni. Stikhotvororienia i poemy. Moskva: Respublika, 1994.
CAMPOS, Haroldo et al. Poesia Russa Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. São Paulo: Leya, 2011.
MELETÍNSKI, E. M. Os Arquétipos Literários; tradução Aurora Fornoni Bernardini, Ho-
mero Freitas de Andrade, Arlete Cavaliere. Cotia: Ateliê Editorial, 2015.
NOYCE, John. Sophia and the Mystical Tradition. S.l.: s.n., 2012.
RÓNAI, Paulo. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
ROSENTHAL, Bernice. Eschatology and the Appeal of Revolution: Merezhkovsky, Bely, Blok.
In: California Slavic Studies, Vol. 11, 1980, pp. 105-141.
TERRAS, Victor. Handbook of Russian Literature. New Haven: Yale University Press, 1985.
198 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

O Leão, de Evguéni Zamiátin

Helder da Rocha

Resumo: Tradução de “O Leão”, de Evguéni Zamiátin.


Palavras-chave: Tradução, Literatura Russa

Nota biográfica

Evguéni Zamiátin (1884-1937) foi um autor russo de ficção científica e


sátira política. Sua obra mais conhecida é a distopia Nós (Мы), escrita em 1921,
que trata de uma sociedade no futuro controlada por um estado policial. Esta
obra teria influenciado George Orwell a escrever sua obra-prima 1984 e também
o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Zamiátin viveu na Rússia até 1931
quando pediu permissão a Stalin para emigrar, uma vez que suas obras eram todas
censuradas no seu país. Mudou-se com a esposa para Paris, onde morreu seis anos
depois, aos 53 anos.
O Leão foi escrito em 1935, em Paris.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 198-208 199

Ilustração: Helder da Rocha

O Leão (Evguéni Zamiátin)

Tudo começou com um acontecimento absolutamente fantástico. Mais


precisamente, o grande rei dos animais, o leão, revelou-se um grande bêbado.
Ele tropeçou sobre as suas quatro patas e despencou para o lado. Isto foi uma
absoluta catástrofe.
O leão estudava na universidade de Leningrado e em paralelo trabalhava
como figurante de balé no teatro. No espetáculo de hoje, vestido em pele de
leão, ele deveria permanecer de pé no penhasco e esperar o instante em que seria
atingido por uma lança arremessada pela heroína do balé, quando o leão morto
cairia do penhasco em um colchão atrás do palco. Nos ensaios tudo ocorreu
perfeitamente, e justo hoje, no dia da estreia, faltando meia hora para a abertura
das cortinas, o leão apronta uma dessas! Não havia figurantes extras. Cancelar o
espetáculo seria impossível: nesta noite estaria presente um alto comissário do
governo vindo de Moscou. No gabinete do “diretor vermelho”, acontecia uma
reunião de emergência.
200 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

Alguém bate na porta, e no gabinete surge o bombeiro do teatro Pétia Je-


rebiákin. O “diretor vermelho” (ele agora estava realmente vermelho – de raiva)
atirou-se na direção dele:
– O que é isto? O que você precisa? Não tenho tempo! Vá embora daqui!
– Eu, senhor diretor… eu… tem a ver com o leão, – disse o bombeiro.
– Então, o que é que tem o leão?
– Como o nosso leão está bêbado, eu gostaria, senhor diretor, de ser o leão.
Não sei se existem ursos sardentos e de olhos azuis. Se existem, então
uma figura imensa como Jerebiákin, de coturnos que parecem de ferro fundido,
pareceria muito mais com um urso, do que com um leão. Mas e se por um mila-
gre qualquer ele pudesse ser o leão? Ele jura que pode, que ele assistiu todos os
ensaios das coxias, e que quando ainda era soldado fez um papel na peça “Rei
Maximiliano”. Então, com despeito pelo diretor da peça que esboçava um sorriso
torto, o diretor vermelho ordenou que Jerebiákin fosse vestir-se imediatamente
para fazer um teste.
Em alguns minutos os músicos no palco já tocavam de surdina a “Marcha
do Leão”. O Leão Pétia Jerebiákin apresentou-se na pele do leão, não como se
tivesse nascido numa aldeia da província de Riazan, mas num deserto da Líbia.
Porém, no último instante, quando deveria cair do penhasco, ele olhou para
baixo e hesitou.
– Cai logo, demônio… cai! – chiou sussurrando furiosamente o diretor
da peça.
O leão, obediente, despencou penhasco abaixo. Caiu de mal jeito sobre a
coluna e permaneceu deitado, sem conseguir ficar em pé. Será que ele não vai se
levantar? Será que no último instante teremos outra catástrofe?
Levantaram-no. Ele arrastou-se para fora da pele e levantou-se, pálido, com
a mão na coluna e um sorriso envergonhado. Um dos seus dentes superiores estava
faltando, e esse sorriso lhe passava uma aparência piedosa e infantil (se bem que
sempre existe algo de infantil em relação aos ursos, não é mesmo?)
Felizmente não foi, aparentemente, nada muito sério. Ele pediu água. O
diretor do teatro mandou que lhe trouxessem um copo de chá do seu gabinete.
Depois que ele bebeu o chá, o diretor do teatro começou a apressá-lo.
– Bem, camarada, vá se vestir de leão. Entre no seu couro. Entre, entre,
meu amigo, logo logo vamos começar!
Alguém, prestativo, veio correndo com o couro mas o leão recusou-se a
entrar nele. Declarou, resoluto, que tinha algo que precisava fazer fora do teatro.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 198-208 201

Que necessidade extrema era esta, ele recusou-se a explicar. Apenas sorriu enver-
gonhado. O diretor do teatro inflamou-se de raiva. Ele tentou obrigá-lo a cumprir
uma ordem, tentou lembrar a Jerebiákin que ele, candidato do partido, era um
operário padrão, mas o leão-operário-padrão, teimoso, não se rendeu. O diretor
teve que ceder. Então, com o brilho desdentado de seu sorriso, Pétia Jerebiákin
saiu correndo do teatro em disparada.
– Para que, para onde o diabo o carregou? – perguntou, mais uma vez
vermelho de raiva, o diretor do teatro. – Que segredos são esses que ele esconde?
Ninguém tinha a resposta que o diretor vermelho queria: o segredo era
conhecido apenas por Pétia Jerebiákin e, naturalmente, pelo autor desta estória.
Então, enquanto Pétia Jerebiákin corre para algum lugar debaixo de uma chuva de
outono em São Petersburgo, nós podemos fazer uma viagem no tempo até uma
certa noite de julho, onde nasceu o seu segredo.
Essa noite não era noite. Era dia, cochilando levemente por um segundo,
assim como cochila o soldado que marcha, sem interromper seus passos, con-
fundindo sonho com realidade. No espelho rosado do canal cochilam, viradas de
pernas para o ar, árvores, janelas, colunas, São Petersburgo. E de repente, com
uma suave brisa, São Petersburgo desaparece. Em seu lugar surge Leningrado.
Acordada pelo vento, com uma bandeira vermelha sobre o Palácio de Inverno. E
diante de uma cerca no jardim Aleksandrovski, um policial com uma espingarda.
O policial estava cercado de perto por um grupo de operários dos bondes
noturnos. Por detrás dos ombros, era visível a Pétia Jerebiákin apenas o rosto
do policial: redondo, parecido com as maçãs-adocicadas de Riazan. Algo muito
estranho acontece: agarram o policial pelos braços, pelos ombros, e finalmente,
um dos operários, tirando o cachimbo da boca, gentilmente tasca um beijo na
sua bochecha. O policial enrubesce, apita seu apito furiosamente, e os operários
dispersam. Permanece Pétia Jerebiákin sozinho, cara a cara com o policial, e
inesperadamente, como se assustado pelo vento do reflexo de São Petersburgo, o
policial desaparece. Diante de Jerebiákin está uma mulher com quepe e uniforme
de policial, a primeira policial feminina, posta pela revolução na avenida Niévski.
As sobrancelhas pretas sobre a ponte do seu nariz uniam-se com raiva. Dos seus
olhos saíam faíscas.
– Que vergonha, camarada! – A policial falou apenas isto, mas como falou!
Ele se atrapalhou, e balbuciou com culpa:
– Mas, juro, não fui eu! Eu estava apenas indo para casa…
– Eca! Você… um operário ainda por cima! – Disse a policial, encarando-
-o. E como encarou!
202 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

Se houvesse aqui, no calçamento, uma portinhola falsa, como essas que há


no palco do teatro, através dela Jerebiákin escaparia, e esta teria sido a sua salvação.
Mas ele teve que escapar caminhando devagar, sentindo aquele olhar atravessá-lo,
queimando suas costas.
O dia seguinte foi novamente uma noite branca, novamente estava Jerebiákin
indo do seu trabalho no teatro para casa, e novamente diante das grades do jardim
Aleksandrovski estava a policial. Jerebiákin quis passar de fininho mas percebeu
que ela olhava para ele, e, envergonhado, baixou a cabeça com culpa. Ela acenou.
No metal preto-espelhado da sua espingarda refletia a aurora, e o metal parecia
rosado. E diante dessa espingarda rosada Jerebiákin sentiu-se mais assustado do
que diante de todas aquelas espingardas que durante cinco anos atiraram nele em
várias frentes de batalha.
Apenas depois de uma semana ele arriscou iniciar uma conversa com a
policial. Descobriu que ela também, como Jerebiákin, veio da província de Riazan,
e que também lembrava das suas maçãs-adocicadas. Aquelas, que são doces, mas
um pouquinho amargosas. Como elas, por aqui não há…
Todos os dias, no caminho de casa, Jerebiákin demorava-se diante do jar-
dim Aleksandrovski. As noites brancas estavam enlouquecedoras, e o céu verde,
rosado e bronzeado não escurecia nem por um segundo. No jardim um casal que
se abraçava procurava, como se fosse dia, uma sombra para não ser visto.
Nessa noite, desajeitado como um urso, Jerebiákin perguntou à policial:
– Então, por exemplo, vocês policiais, no desempenho de suas obrigações…
vocês podem casar? Quero dizer, não quando estão em serviço, mas em geral,
como seu serviço é militar…
– E para que casar? – respondeu a policial Kátia, escorada na sua espingar-
da. – Agora nós somos como os homens: é só querer, e amar…
A espingarda dela estava rosada. A policial levantou o rosto para o brilho
do céu febril, depois olhou de passagem por Jerebiákin, e concluiu:
– Por exemplo, um homem que escrevesse poemas… ou um ator, que
entrasse em cena e o teatro inteiro aplaudisse…
Maçã-adocicada: é doce, é amarga. Pétia Jerebiákin compreendeu que seria
melhor ele ir embora dali e não voltar nunca mais: seu negócio estava terminado…
Não, não estava! Ainda existem milagres na terra! E quando aconteceu
aquele evento inacreditável, em que o leão, por vontade divina, caiu bêbado, a
sorte ocorreu a Pétia Jerebiákin e ele apressou-se ao gabinete do diretor.
Mas, isso tudo é passado. Agora ele corre debaixo de uma chuva de outono
pela rua Glinka. Felizmente isto fica ao lado do teatro, e felizmente ele encon-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 198-208 203

trou a policial Kátia em casa. Ela agora não era mais policial, era simplesmente
Kátia. Com as mangas arregaçadas, ela lavava no tanque uma blusa branca. Na
sua testa e nariz surgiram gotas de orvalho, e nunca ela esteve tão doce, quanto
agora, doméstica.
Quando Jerebiákin pôs diante dela o bilhete de cortesia e disse que hoje
ele iria atuar no espetáculo, ela não acreditou. Depois, ficou interessada. Depois,
por alguma razão, ficou envergonhada e baixou as mangas arregaçadas. Depois
olhou para ele (e como olhou!) e disse que iria sem falta.
O toque da campainha do teatro já soava alto pelas áreas de fumantes, pelos
corredores, pelo foyer. O comissário careca, no seu camarote, espremia os olhos
através de um pince-nez. No palco, por trás da cortina ainda fechada, as bailarinas
ajustavam suas saias com os mesmos gestos dos cisnes quando baixam as asas
para limpá-las na água. E por trás do penhasco, próximo do Leão Jerebiákin,
preocupavam-se os diretores da peça e do teatro.
– Lembre-se: você é um operário-padrão! Preste atenção! Não estrague
tudo! – sussurrou o diretor do teatro no ouvido do leão.
A cortina foi levantada, e atrás das luzes incandescentes da ribalta revelou-se
diante do leão, a sala escura preenchida até o teto de manchas brancas, de rostos.
Tempos atrás, quando era ainda apenas Jerebiákin, ele havia saltado para fora de
uma trincheira. Diante dele explodiam bombas. Ele se contorceu, e seguindo o
costume de sua aldeia, fez o sinal da cruz e prosseguiu adiante sem pensar. Agora
parecia que não conseguiria dar sequer um passo, mas o diretor da peça empurrou-
-o pelas costas, e ele, virando-se com dificuldade, com braços e pernas que de
repente se tornaram estranhos, escalou lentamente o penhasco.
No alto do penhasco o leão levantou a cabeça, e viu bem de perto, em um
balcão do segundo piso, escorando-se contra a barreira de proteção, a policial
Kátia. Ela olhava diretamente para ele. O coração leonino bateu forte uma, duas
vezes! E parou. Ele tremia todo. Agora seria decidido o seu destino. A lança já
voava na sua direção. Pá! Acertou-lhe do lado. Agora ele devia cair. Mas, e se ele
cair de mal jeito de novo, e tudo acabar? Ele ficou apavorado como nunca antes
na vida. Estava mais apavorado do que quando saiu da trincheira.
Na sala, o público já percebia que alguma coisa errada acontecia no palco:
um leão ferido de morte permanecia de pé no alto do penhasco e olhava para baixo.
Nas primeiras fileiras escutaram quando o diretor da peça gritou, num sussurro
terrível: “Cai, demônio, cai!” E depois, todos viram uma coisa absolutamente
fantástica: o leão levantou a sua pata direita, rapidamente fez o sinal da cruz e
despencou do penhasco como uma pedra…
204 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

Por um segundo, a estupefação geral, e depois, como um projétil mortal, a


sala explodiu em gargalhadas. A policial Kátia verteu lágrimas de tanto rir. O leão
morto, afundando o focinho nas patas, chorou.
1935

Лев (Евгений Замятин)

Все началось с происшествия совершенно фантастического: именно –


великолепный царь зверей, лев, оказался вдребезги пьяным. Он спотыкался
на все четыре лапы и валился на бок, это была совершенная катастрофа.
Лев обучался в Ленинградском университете и одновременно служил
балетным статистом в театре. В сегодняшнем спектакле, одетый в львиную
шкуру, он должен был стоять на скале и ждать, когда его сразит брошенное
героиней балета копье: тогда убитый лев падал со скалы на тюфяк за кулисы.
На репетициях все шло превосходно – и вдруг сегодня, в день премьеры,
за полчаса до подъема занавеса - лев подложил такую свинью! Запасных
статистов не было. Отменить спектакль было нельзя: на спектакле будет
приехавший из Москвы нарком. В кабинете у «красного директора» театра
шло SOS-ное заседание.
В дверь постучали, и в кабинет вошел театральный пожарный Петя
Жеребякин. «Красный директор» (он сейчас на самом деле был красный – от
злости) накинулся на него:
– Ну, что, что надо? Некогда! К черту!
– Я, товарищ директор... я – насчет льва, – сказал пожарный.
– Ну, что насчет льва?
– Как, значит, наш лев пьяный, то я желаю, товарищ директор, льва
сыграть...
Не знаю, бывают ли у медведей веснушки и голубые глаза. Если
бывают, то громадный, в чугунных сапожищах, Жеребякин гораздо больше
походил на медведя, чем на льва. Но вдруг чудом из него все-таки выйдет
лев? Он божился, что выйдет, что он из-за кулис смотрел на все репетиции,
что он, когда еще был солдатом, играл в «Царе Максимилиане». И в пику
криво ухмыльнувшемуся режиссеру директор приказал Жеребякину сейчас
одеться и попробовать.
Через несколько минут музыканты на сцене уже играли под сурдинку
«Марш льва». Лев Петя Жеребякин выступал в львиной шкуре так, как будто
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 198-208 205

он родился не в рязанском селе, а в Ливийской пустыне. Но в последний


момент, когда надо было падать со скалы, он глянул вниз – и запнулся.
– Падай же, черт... падай! – бешеным шепотом зашипел на него ре-
жиссер.
Лев послушно рухнул вниз. Он тяжело упал на спину и лежал, не
мог встать. Неужели не встанет? Неужели в последний момент - опять
катастрофа?
Его подняли. Он вылез из шкуры, он стоял бледный, держась за спину,
и сконфуженно улыбался. Одного верхнего зуба у него не хватало, и от этого
улыбка была какая-то жалостная и детская (впрочем, в медведях - всегда есть
что-то детское, не правда ли?).
К счастью, ничего серьезного с ним, видимо, не случилось. Он
попросил воды. Директор приказал принести ему стакан чая из своего
кабинета. Когда он выпил чай, директор стал его торопить:
– Ну, товарищ, назвался львом - полезай в шкуру. Лезь, лезь, брат,
скоро начнем!
Кто-то услужливо подскочил со шкурой, но лев не захотел в нее лезть:
он твердо заявил, что ему непременно надо выйти из театра. Что это была за
экстренная надобность – он отказался объяснить, он только сконфуженно
улыбался. Директор вскипел. Он попробовал приказывать, попробовал
напомнить, что Жеребякин – кандидат в партию, что он – ударник, но лев-
ударник упрямо стоял на своем. Пришлось уступить – и, просияв щербатой
улыбкой, Петя Жеребякин помчался куда-то из театра...
– Ну, куда, зачем его черт понес? – снова красный от злости спрашивал
директор. – Какие такие у него секреты?
Красному директору никто не мог ответить: секрет был известен
только Пете Жеребякину – и, разумеется, автору этого рассказа. И пока Петя
Жеребякин бежит куда-то сквозь осенний петербургский дождь, мы можем
переселиться на время в ту июньскую ночь, в которую родился его секрет.
Ночи в ту ночь не было: это был день, чутко задремавший на секунду,
как задремывает в походе солдат, не переставая шагать и путаясь между явью
и сном. В розовом стекле каналов дремлют опрокинутые деревья, окна,
колонны, Петербург. И вдруг от какого-то легчайшего ветерка Петербург
исчезает; вместо него - Ленинград, проснувшийся от ветра красный флаг
над Зимним дворцом, у решетки Александровского сада - милиционер с
винтовкой.
206 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

Милиционера тесно окружила кучка ночных трамвайных рабочих.


Из-за плеч Пете Жеребякину видно только лицо милиционера - круглое,
похожее на рязанское яблоко-ме-довку. Происходит что-то очень странное:
милиционера хватают за руки, за плечи – и наконец один из рабочих, вытянув
трубочкой губы, нежно чмокает его в щеку. Милиционер багровеет, яростно
свистит в свой свисток, рабочие разбегаются. Петя Жеребякин остается один
лицом к лицу с милиционером – и милиционер так же внезапно исчезает, как
вспугнутый ветром зеркальный Петербург: перед Жеребякиным – девушка в
милицейской фуражке и гимнастерке, первая милиционерка, поставленная
революцией на Невском проспекте. Черные брови над переносицей у нее
сердито сцепились, из глаз – искры.
– Стыдно вам, товарищ, – только и сказала она Пете Жеребякину, но
как сказала! Он растерялся, он забормотал виновато:
– Да это же, ей-богу, не я! Я просто домой шел...
– Эх ты... А еще рабочий! – посмотрела на него милиционерка, но
как посмотрела!
Если бы здесь, на мостовой, был люк, как на театральной сцене,
Жеребякин провалился бы в люк – и это было бы спасение. Но ему пришлось
медленно уходить, чувствуя на спине насквозь прожигающий взгляд.
Назавтра – снова белая ночь, и снова товарищ Жеребякин шел со
своего дежурства в театре домой, и снова у решетки Александровского сада
- милиционерка. Жеребякин хотел прошмыгнуть мимо, но заметил, что
она смотрит на него – и сконфуженно, виновато поклонился. Она кивнула.
На зеркально-черной стали ее винтовки отсвечивала заря, сталь казалась
розовой. И перед этой розовой винтовкой Жеребякин робел куда больше,
чем перед всеми, которые стреляли в него пять лет на разных фронтах.
Он рискнул заговорить с милиционеркой только через неделю.
Оказалось, что она тоже, как и Жеребякин, из Рязанской губернии и
еще помнит их рязанские яблоки-медовки. Ну, как же: и сладко, и горчит
маленько. Таких здесь нету...
Каждый раз, возвращаясь домой, Жеребякин останавливался у
Александровского сада. Белые ночи совсем сошли с ума – и зеленое, розовое,
медное небо не темнело ни на секунду. В саду обнявшиеся пары как днем
искали тени, чтобы их не было видно.
В такую ночь неуклюже, по-медвежьи, Жеребякин спросил
милиционерку:
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 198-208 207

– А что, например, вам, милиционеркам, при исполнении обязаннос-


тей можно замуж? То есть не при исполнении, а вообще – как ваша служба
вроде военная...
– А зачем – замуж? – опершись на винтовку, сказала Катя-милицио-
нерка. – Мы теперь – как мужчины: хочем и так любим...
Винтовка у нее была розовая. Милиционерка подняла лицо к
полыхавшему в лихорадке небу, потом поглядела куда-то мимо Жеребякина
– и договорила:
– Например, если бы такой человек, чтобы стихи сочинял... Или бы
актер: чтоб вышел и ему бы весь театр захлопал...
Яблоко-медовка: и сладкое, и горькое. Петя Жеребякин понял, что
лучше ему уйти и не возвращаться сюда больше: его дело – конченое...
Нет, не кончено! Бывают еще чудеса на свете! И когда случилось
невероятное это происшествие, что лев, божьим изволением, напился
пьяным, – Петю Жеребякина как осенило, он кинулся в кабинет к директору...
Впрочем, это все – уже позади: сейчас он сквозь осенний дождь мчался
на улицу Глинки. Счастье еще, что это – рядом с театром, и счастье, что он
застал милиционерку Катю дома. Это была теперь не милиционерка – это
была просто Катя. Засучив рукава, она стирала в тазу белую кофточку. На
носу, на лбу у ней проступали росинки – и никогда она не была милее, чем
вот такая, домашняя.
Когда Жеребякин положил перед ней контрамарку и сказал, что он
сегодня играет в спектакле, – она не поверила. Потом – заинтересовалась.
Потом почему-то сконфузилась и опустила засученные рукава. Потом
посмотрела на него (но как посмотрела!) и сказала, что придет непременно.
Звонки в театре уже трещали в курилке, в коридорах, в фойе. Лысый
нарком жмурился сквозь пенсне в ложе. На сцене, за закрытым еще занавесом
балерины оправляли юбочки тем самым жестом, каким, спускаясь в воду,
лебеди чистят крылья. И за скалой возле льва Жеребякина волновались
режиссер и директор.
– Помни: ты ударник! Смотри – не подгадь! – в львиное ухо шептал
директор.
Занавес пошел вверх – и за огненной чертой рампы перед львом
раскрылся темный зал, доверху полный белыми пятнами лиц. Давно, когда
он был еще Жеребякиным, он вылезал из окопа, перед ним рвались снаряды,
он вздрагивал, по деревенской привычке крестился – и все-таки бежал вперед.
208 Helder da Rocha. O Leão, de Evguéni Zamiátin.

Сейчас ему показалось – он не может сделать ни шагу. Но режиссер толкнул


его сзади, и он, с трудом ворочая свои, сразу ставшие чужими, руки и ноги,
медленно полез на скалу.
На верху скалы лев поднял голову – и совсем близко от себя, в ложе
второго яруса, увидел перевесившуюся через барьер милиционерку Катю:
она смотрела прямо на него. Львиное сердце громко ударило раз, два! – и
остановилось. Он весь дрожал: сейчас решалась его судьба, уже летело в него
копье. Раз! – ударило оно в бок. Теперь надо падать. А вдруг упадет опять
не так – и все погубит? Ему стало так страшно, как никогда в жизни, - куда
страшнее, чем когда он вылезал из окопа...
В зале уже заметили, что на сцене происходит что-то неладное:
смертельно раненный лев стоял неподвижно на верху скалы и смотрел вниз.
В первых рядах услыхали, как режиссер страшным шепотом крикнул: «Падай
же, черт, падай!» И затем все увидели нечто совершенно фантастическое: лев
поднял правую лапу, быстро перекрестился – и камнем рухнул со скалы...
Секунда всеобщего оцепенения, потом в зале, как смертоносный
снаряд, взорвался хохот. У милиционерки Кати от смеха текли слезы. Убитый
лев, уткнув морду в лапы, плакал.
1935

Referências
ZAMIÁTIN, Ievguêni Ivanovich. Lev. In: ZAMIÁTIN, I. I., SURIS, L. M. (Editor) Bich
bozhiy: sbornik proizvedeniy. Izdatelstvo Direct Media, Berlin-Moskva, 2016. p. 147-152.
ZAMIÁTIN, Ievguêni Ivanovich. Lev. Lib.ru/Klassika. Publicado em 27 jan. 2009. Dispo-
nível em: <http://az.lib.ru/z/zamjatin_e_i/text_0530.shtml>. Acesso em 31 ago. 2017.

Anexo: Ilustração para O Leão por Helder da Rocha (desenho e aquarela). 2016.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 209

Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em


busca de Maiakóvski

Letícia Mei1

Resumo: o artigo propõe uma retradução da primeira parte do longo poema de Maiakóvski “Nuvem de Calças”
(1915), cuja primeira e, durante muito tempo, única tradução em português é assinada por E. Carrera Guerra. À
luz de elementos característicos da poética maiakovskiana e de discussões teóricas acerca do espaço da retradução, este
trabalho oferece e comenta brevemente novas soluções, apontando diferenças de perspectiva em relação à primeira obra.
Palavras-chave: Maiakóvski, Nuvem de Calças, tradução de poesia, Emílio Carrera Guerra, retradução crítica.

Introdução

Maiakóvski é, provavelmente, o poeta russo mais conhecido no Brasil.


Sua recepção deu-se, sobretudo, através das traduções realizadas por Augusto e
Haroldo de Campos, em parceria com Boris Schnaiderman, presentes nas anto-
logias Poesia Russa Moderna e Maiakóvski. Poemas. Outra compilação relevante foi
Maiacovski. Antologia Poética, organizada e traduzida por Emílio Carrera Guerra, de
1956. Como fonte de todos, é impossível não mencionar a escritora argentina Lila
Guerrero e sua Antologia de Maiacovski na difusão do poeta na América Latina. Há
indícios de que tais tradutores também se serviram de traduções francesas, o que
torna muito interessante coadunar o trabalho de pesquisa da tradução/recepção
no Brasil, América Latina e França.2

1 Mestre e doutoranda em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
2 Sobre o assunto escrevi o artigo Um russo em Montparnasse: percepções de Maiakóvski na imprensa francesa
(1921-1930) ainda inédito.
210 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

A produção de Maiakóvski é colossal como ele. Sem considerar seu talen-


to multifacetado em inúmeras outras áreas artísticas (cinema, artes dramáticas,
desenho, pintura, etc.) percebe-se que ainda há uma grande lacuna nas traduções
existentes em português. Em termos quantitativos, se examinarmos o total de
poemas que compôs, curtos e longos, muito ainda há a se traduzir para o portu-
guês; e também em termos de gênero, pois a maior parte do que dele se traduziu
é classificado como “poema curto” ou “стихи (stikhi)”, gênero poético diverso
do “poema longo” ou “поэма (poema)”. É interessante na seleção de poemas de
E. C. Guerra a atenção dedicada a esses últimos. De acordo com Frioux, tradutor
da obra de Maiakóvski, é nesse gênero que se encontram mais bem trabalhados
os temas ideológicos fundamentais da sua obra.
Concentrando-se nas obras basilares citadas, chega-se ao seguinte corpus: os
irmãos Campos e o professor Boris traduziram fragmentos de A Flauta-Vértebra,
Sobre Isto e a Plenos Pulmões; Guerra traduziu trechos de A Nuvem de Calças e inte-
gralmente A Flauta Vertebrada, Amo e a Plena Voz. Em pesquisas mais recentes,
descobri as traduções integrais de André Nogueira de Uma Nuvem de Calças e Amo
que não discutirei neste artigo. Dentre tais obras, decidi abordar Nuvem de Calças,
espécie de poema inaugural que consagrou Maiakóvski como um grande poeta
no meio literário russo.
O intuito deste artigo é, pois, apresentar parte da tradução poética que
desenvolvi no doutorado do poema Nuvem de Calças, comentar algumas diretrizes
tradutórias e tecer reflexões críticas a respeito de algumas soluções propostas por
Guerra3. Para tanto, recorrerei a algumas discussões sobre (re)tradução crítica,
bem como sobre a tradução poética já levantadas por Álvaro Faleiros, José Paulo
Paes, Antoine Berman, Yves Gambier, dentre outros.
Na primeira parte, apresento o poema e o poeta, tentando contextualizar a
posição dessa obra no conjunto e justificar sua escolha. Ainda, pretendo apontar
as peculiaridades da fatura poética de Maiakóvski, uma vez que seus preceitos
de como fazer versos sempre me norteiam na desafiadora tarefa de dar-lhe voz
em português. Em seguida, apresentarei uma proposta de tradução poética para
a primeira parte do poema. Por fim, abordarei algumas discussões teóricas sobre
(re)tradução, crítica da tradução e tradução poética que têm embasado minha pes-
quisa; comentarei algumas soluções e discutirei algumas divergências em relação
à tradução de Guerra.

3 Dada a extensão da primeira parte do poema, apontaremos apenas exemplos da tradução de Guerra
e não transcreveremos seu trabalho na íntegra.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 211

1. O poeta, sua poética, o poema

Como fazer versos4.

A obra de Maiakóvski é múltipla, dinâmica, mas alinhavada por um todo


coerente. Não se pode resumir a sua obra ao viés político, embora este seja parte
integrante da sua poesia. Mesmo no mais lírico dos poemas, o encargo social e o
projeto de um homem novo, articulado com novas dinâmicas sociais, sempre esteve
presente. Lirismo e ideologia integrados. De todo modo, não se pode ignorar seus
vínculos com o cubofuturismo, seu compromisso constantemente reiterado com
as novas direções da arte e seu trabalho estético com a palavra. Qualquer desvio
dessas considerações implica a redução de sua genialidade.
Independentemente do tema, o tratamento da palavra e o cuidado com o
ritmo eram os princípios indispensáveis de sua oficina poética. Nessa empreitada,
a sonoridade tinha um papel central, portanto Maiakóvski privilegiava as rimas
inesperadas e a sonoridade áspera. Outras características da sua poética são a
irregularidade da pontuação, a instabilidade dos aspectos verbais e a economia
verbal.
Na minha proposta de tradução, é primordial a tentativa de recuperar a
oralidade da sua linguagem. Para assegurá-la, procuro evitar o vocabulário re-
buscado e não hesito em empregar palavras do cotidiano. Fujo, quando possível,
das inversões sintáticas que conferem um tom pesado à tradução em português.
No tocante ao metro, geralmente impera a polimetria, com grupos de diferentes
metros agrupados ao longo dos poemas. No caso da presente tradução, tentei
apenas respeitar a arquitetura geral do verso, longo ou curto.
Com efeito, os versos de Maiakóvski se destinam à voz, à recitação diante do
público, constroem-se não sobre acentos métricos, mas sobre os acentos da língua
falada. Um ponto importantíssimo da sua concepção sobre os versos é a questão
do ritmo. Para ele há a repetição de um ruído primordial e o poeta deve esforçar-
-se para organizá-los, como postulava o formalista Óssip Brik em Ritmo e Sintaxe.
Para o teórico, “o movimento rítmico é anterior ao verso” (BRIK, 1973, p. 132)
e “no poeta, aparece antes a imagem indefinida de um complexo lírico dotado de
estrutura fônica e rítmica e só depois essa estrutura transracional articula-se em
palavras significantes.” (BRIK, 1973, p. 137).

4 Alguns apontamentos desta sessão foram retomados da minha dissertação de mestrado “Sobre Isto”:
síntese da poética de Maiakóvski, defendida sob orientação de Arlete Cavaliere, em 2015.
212 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

Maiakóvski era a favor da economia na arte, ou seja, suprimia o que


parecia supérfluo, mantendo o essencial. O essencial para o seu encargo social.
Embora os poemas narrativos como Nuvem de Calças não sejam concisos em
sua extensão, pode-se falar, sim, em economia, na medida em que Maiakóvski
faz largo uso das construções elípticas que dinamizam o verso, surpreendem
e, muitas vezes, turvam a compreensão. Os estudos dos manuscritos empre-
endidos por Khardjiev e Trenin revelaram uma tendência essencial à expres-
sividade lacônica. Não raro, Maiakóvski “remaneja as partes de um poema,
rompe a unidade das construções sintáticas e acentua, assim, seu dinamismo”
(KHARDJEV; TRENINE, 1982, p. 247). Nesta tradução tentei manter as
mesmas construções e não desenvolver as elipses, uma prática, aliás, muito
corrente nas traduções consultadas.

Uma segunda tragédia

Conforme apontado na introdução, para Frioux é justamente nos poemy,


“grandes conjuntos de versos realizados em torno de um eixo semi-mitológico,
semi-narrativo” (MAIAKÓVSKI, 2005, p. 8), que os fundamentos da obra maiako-
vskiana se constroem de modo mais bem-acabado. Segundo ele:

esses poemas balizam toda a criação de Maiakóvski. Pode-se mesmo


dizer que eles lhe dão ritmo, formando uma série de articulações ou de
pontos focais que incarnam, da maneira mais elaborada e mais completa,
o conteúdo de todo o período de sua evolução. Os poemas [...] colocam
em evidência a estrutura cíclica do procedimento maiakovskiano. Cada
ciclo tem como material um certo número de elementos biográficos vi-
vidos, históricos, políticos que se projetam inicialmente sob uma forma
imediata, mais frequentemente fragmentária ou dispersa [...]. Advém, em
seguida, o segundo estágio, o poema propriamente dito, que extrai uma
certa universalidade desse material e o estabelece como sistema asso-
ciado às grandes linhas constantes do universo poético de Maiakóvski.
(Tradução minha).

O gênero poema seria, então, uma transfiguração simbólica para enunciar


temas fundamentais, ultrapassando o mero “grito lírico” e o “militantismo”
banal.
Em Nuvem de Calças, seu primeiro poema, Maiakóvski aborda o motivo do
amor trágico. É um poema de amor, na medida em que foi inspirado por uma
paixão que de fato viveu e porque a primeira parte visa desconstruir o amor in-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 213

feliz que lhe é infligido pelo mundo tal como ele era. Mas vai além: para mudar
a configuração do amor doloroso, há que se mudar o mundo todo, o mundo do
capital, da guerra e da superficialidade burguesa. Afinal, foi composto no início
de 1915, mas seu projeto inicial data do ano anterior, momento de deflagração da
Primeira Guerra Mundial. Em sua autobiografia Eu mesmo, o poeta diz: “Início de
1914. Sinto mestria. Posso dominar um tema. Inteiramente. Formulo a questão
do tema. Um tema revolucionário. Penso em ‘Uma nuvem de calças’.” (SCHNAI-
DERMAN, 1971, p. 95).
O título inicial da obra, O décimo terceiro apóstolo, foi imediatamente vetado pela
censura tzarista por blasfêmia. Além disso, outras seis páginas foram totalmente
substituídas por reticências por tratarem de “temas politicamente sensíveis” (JAN-
GFELDT, 2010, p. 77). O censor teria perguntado a Maiakóvski como associava
tanto lirismo e rudeza. A resposta teria sido um trecho do prólogo do poema: “Se
quiserem – / serei furioso até o osso / – e, como o céu, que novas cores realça /
se quiserem – / serei perfeitamente afetuoso, / não um homem, mas uma nuvem
de calças!”5. Eis o título definitivo.
Em julho de 1915, em busca de um editor, Maiakóvski conhece Ossip e Lilia
Brik, personagens centrais na sua obra e biografia a partir de então. Eles ouvem a
primeira leitura da versão definitiva do poema. Óssip declara que Maiakóvski “é um
grande poeta mesmo que nunca mais escreva uma linha sequer” (JANGFELDT,
2010, p. 77) e decide editá-lo às suas expensas. Entretanto, a primeira tiragem de
1050 exemplares não foi um sucesso de vendas.
Somente em 1918 Nuvem de Calças foi publicado integralmente, composto
de quatro partes precedidas de um prólogo6 antecipando o tom provocatório
da obra. O subtítulo “Tetráptico” faz uma referência ao típico tríptico do ícone
ortodoxo.

5 Tradução minha.
6 Apresentei uma proposta de tradução do prólogo no artigo E por falar em poesia: especificidades
tradutórias da lírica de Maiakóvski, publicado na revista Tradterm, v. 28 (2016). Tal proposta já foi revista
e levemente modificada dentro da perspectiva de auto-retradução crítica.
214 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

Figura 1. Tríptico de Cristo Pantocrator7

No prefácio dessa edição, Maiakóvski sentencia: “Eu considero Nuvem de


Calças o catecismo da arte atual. ‘Abaixo o seu amor’, ‘abaixo a sua arte’, ‘abai-
xo a sua ordem’, ‘abaixo a sua religião’ são os quatro gritos das quatro partes”.
(MAIAKÓVSKI, 2000, p. 69).
Segundo outro especialista na obra de Maiakóvski, Jangfeldt, por “seu” po-
de-se apreender “do mundo capitalista” (JANGFELDT, 2010, p. 71). No entanto,
para ele não se trata de uma revolta social, embora o protesto não seja desprovido
de tal dimensão. No final das contas, é uma “revolta mais profunda, uma revolta
existencial contra uma época e uma ordem de mundo que faz da vida humana
uma tragédia.” Para Jangfeldt (2010, p. 75) é, em suma, uma revolta contra Deus:

7 http://www.archangelsbooks.com/prodimages/Giant/Icons/LUM136602906.jpg,
acesso em 09 de setembro de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 215

o responsável pelo amor infeliz e impossível de Maiakovski não é ninguém


além de Deus [...] O amor conduz o homem à loucura, à beira do suicídio,
mas o céu permanece mudo; não há ninguém a quem pedir explicações. A
ordem do mundo permanece imutável, a revolta é vã e encontra apenas o
silêncio. (Tradução minha).

O diálogo mais imediato se estabelece com a peça Vladímir Maiakóvski.


Uma Tragédia, de 1913. No ensaio “Sobre os vários Maiakóvski”, o próprio poeta
chama Nuvem de Calças de “sua segunda tragédia”. Suas características são sui
generis se observarmos a produção anterior e considerarmos que em 1914-15 o
cubofuturismo estava no auge. Jangfeldt (2010, p. 70) diz que se comparada às
obras anteriores,

a Nuvem era de um não-futurismo surpreendente. Com efeito, o poema


continha metáforas audaciosas e neologismos, mas não consistia mais na-
quela poesia experimental de formalismo áspero que fizera sua reputação.
Não, a novidade residia na mensagem e no tom, mais expressionista que
futurista. (Tradução minha).

O poema completo tem 724 versos. Aqui, apresento uma proposta de


retradução poética dos 178 versos da primeira parte do poema. Nela fala-se do
amor por Maria, cuja inspiração muito provavelmente vem de Maria Denissova,
jovem por quem Maiakóvski se apaixonara. Nesta sessão, o eu-lírico a espera em
um quarto de hotel, mas a impaciência faz com que um nervo salte do crânio. Em
seguida, outros nervos saltam em violenta convulsão que faz desabar o forro do
teto do andar de baixo. Finalmente Maria chega e, fria, anuncia seu casamento. O
eu-lírico aparenta calma, mas no fundo há um “eu” violento que quer se rebelar e
fugir de si. Ele está doente, em chamas, mas não se pode escapar do incêndio do
próprio coração.
Aí se prenunciam muitos traços das obras subsequentes. Com forte carga
emocional e metáforas surpreendentes, Nuvem de Calças constitui uma obra basilar
concentrando temas que irrigam toda a sua obra: loucura, suicídio, conflito com
Deus, miséria existencial. Que o primeiro painel do tetrático consiga sugerir ao
leitor a relevância da obra inteira.
216 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

2. Uma possibilidade de retradução


ОБЛАКО В ШТАНАХ NUVEM DE CALÇAS

I I

Вы думаете, это бредит малярия? Acham que é delírio da malária?

Это было, Aconteceu,


было в Одессе. aconteceu em Odessa.

“Приду в четыре”, - сказала Мария. “Virei às quatro” – disse Maria.


Восемь. Oito.
Девять. Nove.
Десять. Dez.

Вот и вечер A tarde tomba


в ночную жуть sombria,
10 ушел от окон, fria,
хмурый, escapa pela janela
декабрый. rumo ao noturno macabro.

В дряхлую спину хохочут и ржут Às costas decrépitas, ri e rincha


канделябры. o candelabro.

Меня сейчас узнать не могли бы: Ninguém poderia me reconhecer:


жилистая громадина o colosso fibroso
стонет, geme
корчится. e se debate.
Что может хотеться этакой глыбе? O que tal bloco pode querer?
20 А глыбе многое хочется! Esse bloco tem tantas vontades!

Ведь для себя не важно Afinal não importa


и то, что бронзовый, se é de bronze
и то, что сердце - холодной железкою. e o coração de ferro frio
Ночью хочется звон свой À noite, quer abafar
спрятать в мягкое, seu som na suavidade,
в женское. no feminino.

И вот, Aqui estou,


громадный, colossal,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 217

горблюсь в окне, curvo-me para a janela,


30 плавлю лбом стекло окошечное. fundo a fronte na vidraça.
Будет любовь или нет? Será amor ou não?
Какая – De que tipo –
большая или крошечная? grande ou minúsculo?
Откуда большая у тела такого: Como pode ser grande num corpo assim?
должно быть, маленький, Deve ser um amor
смирный любёночек. pequeno e sereno.
Она шарахается автомобильных гудков. Ele sobressalta com a buzina dos carros.
Любит звоночки коночек. Gosta da campainha dos bondes a cavalo.

Еще и еще, Mais e mais,


40 уткнувшись дождю mergulhando o rosto
лицом, в его лицо рябое, no rosto bexigoso da chuva,
жду, espero,
обрызганный громом городского прибоя. salpicado pelo trovão da ressaca da cidade.

Полночь, с ножом мечась, Vem a meia-noite, sacudindo a faca,


догнала, capturou,
зарезала, – decapitou, –
вон его! Fora!

Упал двенадцатый час, Caiu a décima segunda hora,


как с плахи голова казненного. como do cadafalso a cabeça de um condenado.

50 В стеклах дождинки серые Nas vidraças, gotas de chuva gris


свылись, contorciam-se sibilando
гримасу громадили, compondo caretas,
как будто воют химеры como se latissem as quimeras
Собора Парижской Богоматери. da Notre-Dame de Paris.

Проклятая! Maldita!
Что же, и этого не хватит? Então ainda não basta?
Скоро криком издерется рот. Em breve o grito rebenta a boca.
Слышу: Ouço:
тихо, silenciosamente

60 как больной с кровати, saltou um nervo,


спрыгнул нерв. como da cama um doente.
И вот, – Veja, –
сначала прошелся primeiro veio
218 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

едва-едва, devagar,
потом забегал, depois se pôs a correr,
взволнованный, inquieto,
четкий. preciso.
Теперь и он и новые два Agora, ele e mais dois
мечутся отчаянной чечеткой. chacoalham num sapateado desesperado.

70 Рухнула штукатурка в нижнем этаже. Desabou a argamassa do andar de baixo.

Нервы – Os nervos –
большие, grandes,
маленькие, pequenos,
многие! – abundantes! –
скачут бешеные, saltam furiosos,
и уже e os nervos
у нервов подкашиваются ноги! já nem têm as pernas de antes.

А ночь по комнате тинится и тинится, – E a noite enlameia mais e mais o quarto,


из тины не вытянуться отяжелевшему глазу. do lodo o olho pesado não se desvencilha.
80 Двери вдруг заляскали, As portas começam a ranger de repente,
будто у гостиницы como se todo o hotel
не попадает зуб на зуб. batesse os dentes.

Вошла ты, Entrou,


резкая, как “нате!”, cortante como um “é com você!”,
муча перчатки замш, torturando as luvas de camurça,
сказала; disparou:
“Знаете – “Vê...
я выхожу замуж”. Vou me casar”.

Что ж, выходите, Que seja, case-se.


90 Ничего. Não faz mal.
Покреплюсь. Vou me conter.
Видите – спокоен как! Vejam – tão calmo!
Как пульс Como o pulso
покойника. de um cadáver.

Помните? Lembra?
Вы говорили: Você dizia:
“Джек Лондон, “Jack London,8

8 Escritor norte-americano de grande sucesso mundial à época.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 219

деньги, dinheiro,
любовь, amor,
100 страсть”, – paixão” –
а я одно видел: E eu só via uma coisa:
вы – Джиоконда, você era a Gioconda
которую надо украсть! que eu tinha de roubar!
И украли. E roubaram.

Опять влюбленный выйду в игры, Apaixonado, entrarei no jogo de novo,


огнем озаряя бровей загиб. iluminando o arco das sobrancelhas com fogo.
Что же! Tudo bem!
И в доме, который выгорел, Nas casas incendiadas,
иногда живут бездомные бродяги! vivem às vezes vagabundos também!
110 Дразните? Provocam-me?
“Меньше, чем у нищего копеек, “Tem menos esmeraldas de loucura,
у вас изумрудов безумий”. que o mendigo tostão”
Помните! Lembrem-se!
Погибла Помпея, Pompeia pereceu
когда раздразнили Везувий! por exasperar um vulcão!

Эй! Ei!
Господа! Senhores!
Любители Amantes
святотатств, de sacrilégios,
120 преступлений, crimes,
боен, – carnificinas, –
а самое страшное viram
видели – o mais terrível?
лицо мое, O meu rosto,
когда quando
я estou
абсолютно спокоен? totalmente em paz.
И чувствую – E sinto que
“я” “eu”
130 для меня мало. para mim é pouco.
Кто-то из меня вырывается упрямo. Alguém foge de mim como um louco.

Allo! Alô?
Кто говорит? Quem fala?
Мама? Mãe?
Мама! Mãe!
220 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

Ваш сын прекрасно болен! Teu filho está magnificamente doente!


Мама! Mãe!
У него пожар сердца. Ele tem um incêndio no coração.
Скажите сестрам, Люде и Оле, – Diz às irmãs, Liúda e Ólia, -
140 ему уже некуда деться. que ele já não tem pra onde fugir.
Каждое слово, Cada palavra,
даже шутка, até as piadas,
которые изрыгает обгорающим ртом он, que sua boca queimada vomita,
выбрасывается, как голая проститутка como uma prostituta nua se precipita
из горящего публичного дома. do bordel que arde.
Люди нюхают – As pessoas farejam –
запахло жареным! É de queimado esse cheiro!
Нагнали каких-то. Alguns correm.
Блестящие! Chegam capacetes brilhantes!
150 в касках! Com botas, não!
Нельзя сапожища! Digam aos bombeiros:
Скажите пожарным: é com delicadeza
на сердце горящее лезут в ласках. que se entra num coração.
Я сам. Eu mesmo
Глаза наслезнённые бочками выкачу. bombearei barris dos olhos marejados.
Дайте о ребра опереться. Vou ficar de lado.
Выскочу! Выскочу! Выскочу! Выскочу! Vou pular! Vou pular! Vou pular! Vou pular!
Рухнули. Desabou.
Не выскочишь из сердца! Não dá para pular do próprio coração!

160 На лице обгорающем Sobre o rosto chamuscado,


из трещины губ da fenda dos lábios,
обугленный поцелуишко броситься вырос. um beijinho carbonizado tenta se lançar.

Мама! Mãe!
Петь не могу. Não posso cantar.
У церковки сердца занимается клирос! Na capela do coração o coro se incendeia!

Обгорелые фигурки слов и чисел Silhuetas chamuscadas de palavras e números


из черепа, escapam do crânio,
как дети из горящего здания. como crianças de uma casa em chamas.
Так страх Foi assim o terror
170 схватиться за небо dos braços ardentes do Lusitânia9

9 Navio britânico bombardeado pelos alemães em 1915.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 221

высил erguendo-se
горящие руки “Лузитании”. para agarrar o céu.

Трясущимся людям A tocha de mil olhos resvala no cais,


в квартирное тихо invade a calma das camas
стоглазое зарево рвется с пристани. de pessoas trêmulas.
Крик последний, – Que ao menos meus gritos finais,
ты хоть gemam aos séculos que estou em chamas!
о том, что горю, в столетия выстони!

3. Comentários sobre a (re)tradução

Apontamentos sobre o espaço da retradução

Em sua tese de Livre-docência, Faleiros define a retradução como a “rea-


propriação de uma obra já traduzida, acrescentando-lhe novas leituras e relevos
por meio da reescritura da reescritura; movimento duplo, voluntário ou não, de
crítica: [...] A retradução configura-se, assim, como um espaço possível e rico de
reflexão sobre o fazer poético.” (FALEIROS, 2010, p. 10). Para Gambier (1994,
p. 413) “a retradução seria uma nova tradução, numa mesma língua de um texto já
traduzido, parcial ou integralmente. Ela estaria ligada à noção de atualização dos
textos, determinada pela evolução dos receptores, seus gostos, suas necessidades,
suas competências”.
Berman faz uma distinção entre tradução e retradução. Enquanto aquela
pertence ao domínio do inacabado, a retradução circunscreve-se no espaço da busca
pela completude. Consequentemente, as retraduções perfazem um caminho que
virtualmente conduz à tradução perfeita num processo infinito de busca. Já para
Skibinska (2007, p. 2) a retradução é o espaço em que se manifesta a subjetividade
do tradutor e “um terreno de investigação de predileção para examinar os traços
que o tradutor deixa no seu texto”.
Terreno fértil, espaço múltiplo, a retradução pode ser vista como uma forma
de crítica, “ao propor uma nova tradução em função de traduções já existentes.”
(FALEIROS, 2010, p. 29). Ainda sobre o viés crítico, de acordo com Paes, a crítica
de tradução tem a função de determinar quanto há de perda, compensação ou até
mesmo ganho durante o processo (PAES, 1990, p. 110).
A retradução constitui um fenômeno antigo e decorre de vários fatores,
como decisões comerciais e editorais e necessidade de atualizar o texto traduzido.
Já para Berman (1990, p. 5), a retradução surge da necessidade, não de suprimir,
222 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

mas ao menos de reduzir, o esmaecimento do original. Particularmente, aprecio


a visão de Susam-Sarajeva (SUSAM-SARAJEVA, 2003 apud SKIBINSKA, 2007,
p. 5) segundo a qual “uma nova tradução não é necessariamente consequência
do envelhecimento de uma ou mais traduções existentes ou da evolução dos
gostos do público, tampouco se quer sempre superá-las”. Também concordo
com Mavrodin (1990, p. 77), para quem muitas vezes a retradução se justifica
pela compreensão diversa que se tem do texto traduzido, como um encenador
que propõe um novo espetáculo.
Segundo Gambier (1994, p. 413), a retradução, levando em conta as ver-
sões precedentes, reelabora e encontra outras soluções para a tradução do texto
de partida. Assim, a retradução conjuga as dimensões sócio-cultural e histórica.
Compreendido o espaço próprio da retradução, a pergunta é: por que retraduzir?
Gambier (1994, p. 415) responde: para preencher lacunas de textos parcialmente
traduzidos, para corrigir possíveis contrassensos, para recuperar o estilo, o tom, o
ritmo do original. No entanto, isso não significa que todas as retraduções forço-
samente partam das primeiras versões, embora com elas se relacionem.

Uma leitura do poema

Conforme exposto anteriormente, meu “norte” na tradução de poesia são


os traços da poética do escritor traduzido. Portanto, as características elencadas na
sessão anterior balizam as soluções que busco alcançar. Conforme Tchukóvski, “o
mais importante [é transmitir] a personalidade artística do autor traduzida em toda
a originalidade do seu estilo.” (TCHUKÓVSKI, 2003 apud Barreiros, 2005, p. 129).
Assim, ilustrarei com exemplos os principais elementos que busquei recuperar: a
sonoridade expressiva baseada nas rimas e aliterações marcantes, a manutenção
das elipses e do caráter fragmentário do “fio narrativo” do poema, a oralidade da
composição e o léxico acessível.
No que concerne à tradução de E. C. Guerra, de 1956, seu prefácio sugere
seu objetivo e método. O intuito era “preencher uma lacuna” e repetir o que
“em outros países cultos” haviam feito “pela divulgação do grande poeta russo”.
Segundo Guerra, os poemas da antologia eram quase todos inéditos em portu-
guês e alguns mesmo em espanhol. Afirma ainda que para traduzir os poemas
cotejou “versões francesas, espanholas e inglesas e, em questões de somenos”,
consultou “algumas vezes o texto russo”. Prossegue: “em certos casos, tivemos
que optar antes por uma adaptação do que por uma tradução propriamente dita”
(MAIAKOVSKI, 1956, p. 4 ).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 223

A visão geral que se tem de sua tradução é que o conteúdo tem uma
preponderância sobre a forma. Embora se tenham mantido a estrutura em
versos e as imagens, pouca atenção foi dada a um dos aspectos fundamentais
da poética de Maiakovski: a sonoridade. Parece-me que a proposta de Guerra
está mais associada à ideia defendida por Goethe de uma tradução preocupada
em expor o conteúdo, desvencilhando-se num primeiro momento dos recursos
poéticos e apagando a estranheza do estrangeiro para melhor aclimatação da
tradução em solo nacional.
Em Nuvem de Calças, a complexidade da rima ainda está em desenvolvimento,
percebe-se menos regularidade de ocorrências e menor complexidade de forma-
ção. Ainda assim, permanece um recurso fundamental na escrita do poeta russo.

Original: Minha proposta: Tradução de Guerra:

Вот и вечер A tarde tomba E a tarde penetrou


в ночную жуть sombria, no horror da noite
ушел от окон, fria, indo-se da janela
хмурый, escapa pela janela para o frio de dezembro.
декабрый. rumo ao noturno macabro.

В дряхлую спину хохочут и ржут Às costas decrépitas, ri e rincha Às minhas costas, rindo, cintilavam
канделябры. o candelabro. os candelabros.

Nos versos 8 a 14, por exemplo, as rimas do original se fazem entre os


termos: хмурый, декабрый, канделябры. A solução foi alterar a ordem dos versos e
quebrar o grupo das rimas em “sombria-fria”, enquanto “candelabro”, no singular,
ecoa “macabro” (жуть, “horror”), o que não afeta a força da imagem. Para evitar
o adjetivo “dezembrino” (декабрый), pouco usual no português quotidiano, optei
por uma característica do inverno russo, daí o adjetivo “frio”.
A dinâmica da tradução de Guerra tende à explicitação, não há tanta
preocupação com a recuperação das marcas estilísticas do original. Talvez em
função do filtro das línguas intermediárias. Nos versos acima, não se verificam
rimas, aliterações e as imagens perdem a força. A imagem do original é grotesca:
os candelabros animalizados gargalham e rincham com um sonoro “хохочут и
ржут” em russo. Optei por “ri” e “rincha” para obter a aliteração e a onomato-
peia do riso. O trecho selecionado exibe a metodologia que se estende por toda
a tradução de Guerra.
Ainda acerca da sonoridade, como exemplo das escolhas das aliterações
podem-se apontar:
224 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

Minha proposta: Soluções de Guerra:


v. 8 “A tarde tomba” “A tarde penetrou”
v. 23 “ferro frio” “metal gelado”
v. 51 “contorciam-se sibilando” “se torciam/num ríctus”
v. 57 “Em breve o grito rebenta a boca” “Em breve, um grito/vai destroçar-me a boca”
vv. 92-94 “tão calmo!/como o pulso/de um “Não vês como estou calmo/Dir-se-ia o pulso
cadáver” de um morto”
v. 155 “bombearei barris dos olhos marejados” “Derramarei de meus olhos/tonéis de lágrimas”

Como a linguagem de Maiakóvski é fundamentalmente oral, privilegio


soluções que contemplem a fluidez da declamação do poema. Um dos pontos de
divergência com a tradução de Guerra refere-se à escolha do pronome de trata-
mento. Ele optou por “vós” e eu por “vocês”. Em russo, o pronome empregado
é вы que pode denotar tanto o singular de cortesia, quanto o plural formal ou
informal. Minha intenção foi, conforme ideia de Schleirmacher, trazer o texto
original de 1914-15 para o leitor de 2017 para que ele experimente o mesmo tom
de proximidade que tinha o russo nativo àquela época. No meu projeto de tradu-
ção levei em conta o intuito de aproximar a voz de rua de Maiakovski da nossa
variante atual de português. Acredito que “vós” envolve o texto em um véu que
o afasta do leitor atual.
Como mencionado, Maiakóvski tinha uma linguagem fragmentada, elíptica.
Procuro não cair na tentação de explicar ao leitor aquilo que era enigmático no
original. Tal procedimento não se verifica na tradução de Guerra. Antes, há uma
tendência à explicitação, ou seja, um desenvolvimento de elipses e um acréscimo
frequente de explicações que não se observam no original. É compreensível que
numa literatura fortemente vigiada o escritor desenvolva uma linguagem esópica.
Portanto completar frases, organizar em demasia a sintaxe, explicar aquilo que mal
foi sugerido não foram atitudes adotadas no meu processo tradutório.
Muitas outras observações poderiam ser feitas a respeito da minha tradu-
ção – que, aliás, é como toda tradução um trabalho em processo – e sobre a de
Guerra. Apontei linhas gerais que indicam caminhos diversos na prática tradutória.
A crítica não visa desvalorizar seu trabalho pioneiro, há inclusive boas soluções
cuja inspiração absorvi, como nos seus versos “Eu para mim é pouco. Algo se
empenha em sair de mim como um louco”10. Toda tradução envolve um sistema de
perdas e ganhos (BERMAN, 1984, p. 20) e “a compensação é a estratégia básica da

10 Na minha tradução: E sinto que / “eu” / para mim é pouco. Alguém foge de mim como um louco.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 209-226 225

tradução de poesia” (PAES, 1990, p. 38). No jogo de aproximação e afastamento,


textos de partida e de chegada devem caminhar lado a lado, sem subserviência de
um em relação ao outro. Uma extensa rede dialógica envolvendo texto original, e
(re)traduções. Como Berman, carrego a certeza de que não existe intraduzibilidade
absoluta, assim como não há tradução perfeita. Ela é um processo contínuo e pere-
ne. Felizmente, pode-se sempre retraduzir. Nesse continuum defendido por Gambier
(1994), tradução é ato inacabado, um eterno refazer, interlocução constante em
busca de uma perfeição inalcançável. Tela de Penélope tecida incessantemente à
espera da tradução derradeira.

Referências
BARREIROS, José Colaço. “O Que é uma Boa Tradução?” “É uma Tradução Bem feita” “E o
que é uma Tradução Bem Feita?...” Babilónia, Lisboa, n. 2-3, p. 129-145, 2005.
BERMAN, Antoine. «La retraduction comme espace de la traduction». Palimpsestes [en
ligne], 4/1990. URL: http://palimpsestes.revues.org/596
____. L’épreuve de l’étranger. Culture et traduction dans l’Allemagne romantique. Paris: Gallimard,
1984.
BRIK, Óssip. “Ritmo e Sintaxe”. In: Teoria da literatura. Formalistas russos. Porto Alegre,
Globo, 1973.
FALEIROS, Álvaro. Crítica e retradução poética. Tese apresentada ao Departamento de letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Livre-docente em Literatura Francesa. São Paulo, 2010.
____. Traduzir o poema. São Paulo: Ateliê, 2012.
GAMBIER, Yves. «La retraduction, retour et détours». Meta 393 (1994): 413-417. DOI:
10.7202/002799ar.
JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu. Paris: Albin Michel, 2010.
KHARDJIEV, Nikolai, TRENINE, Vladimir. La Culture Poétique de Maïakovski. Lausanne:
L’Age d’Homme, 1982.
MAIAKOVSKI, Vladímir. Maiakovski. Antologia Poética. Trad. E. Carrera Guerra. Max
Limonad, 1956.
____. Poèmes. 1913-1917. Vol. 1. Trad. e apresentação de Claude Frioux. Paris: L’Harmat-
tan, 2000.
____. À Pleine Voix. Anthologie Poétique 1915-1930. Prefácio de Claude Frioux. Trad.
de Christian David, Paris: Gallimard, 2005.
MAVRODIN, Irina. Proust Traduit et retraduitSeptème Assises de a traduction litteraire
(Arles 1990). arles: actes sud, 1991, p. 23-28.
226 Letícia Mei. Uma outra Nuvem de Calças: a retradução em busca de Maiakóvski

MEI, Letícia. E por falar em poesia: especificidades tradutórias da lírica de Maiakóvski, publicado
na revista Tradterm, v. 28 (2016).
____. “Sobre Isto”: síntese da poética de Maiakóvski. Dissertação de mestrado defendida na
Universidade de São Paulo, junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
Russa, sob a orientação de Arlete Cavaliere. São Paulo, 2015.
PAES, José Paulo. Tradução. A ponte necessária. Aspectos e problemas da arte de traduzir. São
Paulo: Ática, 1990.
SCHNAIDERMAN, Boris. A Poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva, 1971.
SKIBINSKA, Elzbieta. La retraduction, manifestation de la subjectivité du traducteur. Doletiana
1, 2007.
TCHUKÓVSKI, Kornéi. La traduzione: una grande arte. Trad. Bianca Maria Balestra e
Julia Dobrovolskaia. Veneza: Cafoscarina, 2003.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 227

Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

Luis Felipe Labaki

Resumo: O texto traduzido a seguir é uma carta escrita pelo cineasta Dziga Viértov em março de 1925, quando
ele já completava quase sete anos de trabalho na “frente do cinema não atuado” da Rússia soviética.
Palavras-chave: Tradução, cinema russo, Dziga Viértov, Vertov

Nota introdutória

O texto traduzido a seguir é uma carta escrita em março de 1925 pelo


cineasta Dziga Viértov, pseudônimo de David Ábelevitch Kaufman (1896-1954).
Quando a escreveu, Viértov já completava cerca de sete anos de trabalho na
“frente do cinema não atuado” da Rússia soviética, sendo responsável por alguns
dos mais importantes cinejornais então em produção – como o Goskinokalendár
(produzido entre abril de 1923 e maio de 1925) e, principalmente, o Kino-Pravda,
que teve 23 edições lançadas entre junho de 1922 e março de 1925 –, além de ter
realizado importantes filmes que compilavam materiais documentais filmados nos
primeiros anos do governo soviético, como os longas-metragens O Aniversário da
Revolução (Godovschína revoliútsii, 1918) e História da Guerra Civil (Istória grajdánskoi
voiny, 1921). No final de 1924, Viértov havia lançado também seu longa-metragem
Cine-olho: A vida tomada desprevenida (Kino-Glaz: Jízn vrasplôkh, 1924), resultado de
suas mais recentes investigações formais.
Era ainda intensa sua participação no debate público sobre o cinema do país,
tanto por meio de intervenções em mesas-redondas quanto por meio de textos
programáticos publicados ora em revistas cinematográficas, ora em periódicos de
228 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

ampla circulação, como o jornal Pravda. Artigos como “Nós. Variação do manifes-
to” (publicado em 1922 na edição Nº 1 de Kino-Fot), “Kinocs. Revolução” (incluído
na revista LEF Nº 3, junho de 1923) e “Nosso ponto de vista” (publicado em 15
de julho de 1923 no Pravda) expunham as bases teóricas da prática cinematográ-
fica que Viértov denominava “Kino-Glaz”, ou “Cine-Olho”. A expressão servia
também de nome para o próprio grupo de profissionais reunidos a seu redor,
chamados individualmente de kinocs, neologismo criado a partir das palavras kinó
(cinema) e ôko (uma antiga palavra russa para olho, glaz).
Em linhas gerais, Viértov defendia que o novo governo soviético deveria
alterar a correlação de forças existente na indústria cinematográfica: ao invés de
seguir importando produções ficcionais estrangeiras – que, diga-se, seguiriam
dominando o mercado exibidor do país por boa parte da década de 1920 – e in-
vestindo na produção de ficções que até certo ponto reproduziam a estética dos
dramas burgueses, o cineasta entendia que seria mais adequado centrar esforços na
criação de uma cinematografia “verdadeiramente revolucionária”. Neste momento,
para Viértov isto significava reconhecer que filmes de ficção seriam apenas uma
“potencialidade secundária” do meio, e que o mais importante seria partir para
a observação da realidade do país e refletir sobre “a vida como ela é” através de
diferentes tipos de ensaios cinematográficos “não atuados”.
Nesse sentido, para além de todo o riquíssimo e intenso debate estético
que se desenvolveu entre os intelectuais a respeito da polêmica “cinema atuado
x cinema não atuado” – e que envolveu figuras como Serguei Eisenstein, Viktor
Chklóvski, Óssip Brik e até Kazimír Maliévitch –, havia nas propostas defendidas
por Viértov também uma preocupação em democratizar as próprias imagens cine-
matográficas: de um lado, tornando o proletário e o camponês e seus problemas
cotidianos concretos o centro de suas atenções; de outro lado, ensaiando também
estratégias para permitir que os próprios cidadãos começassem a refletir sobre o
mundo à sua volta e a traduzi-lo em imagens. Alguns de seus textos deste período
possuem uma clara intenção didática, sugerindo ainda a criação de “células locais
de Cine-Olho” que deveriam começar a trabalhar, seguindo os princípios do grupo,
com os meios que estivessem à disposição, fossem estes câmeras cinematográficas
ou simples jornais fotográficos afixados em murais.
Essa atividade de formação de novos “cine-observadores” é ainda um
aspecto relativamente pouco explorado nos estudos sobre Viértov, talvez devi-
do à escassez de materiais que documentem como se deu na prática a interação
entre esses diferentes grupos. Nos arquivos do cineasta preservados no RGALI,
em Moscou, sobreviveram algumas atas de reuniões de “círculos de Cine-Olho”
formados por jovens amadores – ligados sobretudo ao movimento dos jovens
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 229

pioneiros –, mas o próprio Viértov deixou poucas notas a respeito da extensão


concreta dessa atividade. De todo modo, vale notar que Iliá Kopálin, que se
tornaria um dos mais famosos documentaristas da URSS nas décadas de 1940 e
1950, iniciou sua carreira vindo de um desses grupos organizados por Viértov
nas cercanias de Moscou.
Nesse contexto de relativa escassez de documentos sobre este tema, a
“Carta aos kinocs do sul” se torna especialmente interessante. Nos dias 16 e 17
de janeiro de 1925, aconteceu em Moscou a Primeira Conferência Moscovita da
Frente Esquerda das Artes, uma reunião convocada pelo grupo Iúgo-Lef (‘Lef-
-Sul’), formado por artistas de Odessa, “para a elaboração de um programa comum
para a Frente Esquerda Das Artes, para a centralização do comando das células
da LEF e a revisão dos próprios quadros pelos vanguardistas”1. Os resultados da
conferência, porém, parecem não ter sido nada satisfatórios: Vladímir Maiakóvski,
por exemplo, editor da revista Lef, abandonou a reunião deixando uma nota em que
declarava “não ter e não querer ter qualquer relação com as decisões e conclusões
da presente reunião [...] Se eu pudesse supor [...] que essa conferência histérica,
reunida sob o auspicioso slogan de ‘unificação’ [...] iria se esforçar para substituir
na surdina a combatente teoria e prática da Lef [...], eu não teria perdido nem um
minuto sentado nessas reuniões”2.
Tendo participado dos dois dias do encontro como representante do
movimento Cine-Olho, Viértov fez eco às críticas de Maiakóvski, reconhecendo,
porém, as boas intenções dos artistas vindos do Sul: “Nós consideramos que
aqui não estamos diante de algo sério, mas, no final das contas, de uma pequena
aventura. O camarada Tchuják, vindo do sul, um homem honesto, e muitos outros
camaradas [...] estão sendo enganados. Todo o objetivo dessa associação, sob os
slogans solenes de uma associação, é apenas a tomada da revista Lef e a expulsão
dos escritores que trabalham lá.”3
Independentemente dos embates ocorridos durante a conferência, os “ca-
maradas do Sul” parecem ter buscado preservar uma ligação com Viértov a fim
de firmar uma parceria com os kinocs moscovitas. O presente texto é a resposta
enviada pelo cineasta aos pedidos feitos pelo grupo de Odessa.

1 Cf. nota introdutória ao texto da carta de Viértov em Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí i vystupliênia.
Moscou: Eisenstein-Tsentr, 2008, p. 499.
2 MAIAKÓVSKI, Vladímir. “Ustroíteliam ‘Soveschánia Liévogo Fronta Iskússtv’” in: Pôlnoe sobránie
sotchiniênii v trinádtsati tomákh. Tom trinádtsati. Písma i druguíe materiali. Moscou: GIKhL, 1961, p. 275.
3 VIÉRTOV, Dziga. “[‘Osnovnôe Kino-Gláza’, ili ‘Verniéichei pút k kino-oktiabriú’]” in: Dziga Viértov.
Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí I vystupliênia, p. 87.
230 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

A carta foi publicada pela primeira vez apenas postumamente, na coletâ-


nea Dziga Viértov. Statí. Dnevnikí. Zámysly4 [Dziga Viértov. Artigos. Diários. Projetos],
porém de forma extremamente condensada. Grande parte dos documentos in-
cluídos nesse volume de 1966 – o único dedicado aos escritos de Viértov a sair
na Rússia soviética e fonte comum de todas as principais traduções de textos do
cineasta lançadas nos últimos 50 anos – sofreu algum tipo de corte e alteração
em decorrência da censura política do momento e de considerações subjetivas
do editor, Sergei Drobachenko5, mas esta carta está entre os documentos mais
prejudicados por esse processo. Sua própria “razão de ser” e seu sentido geral
foram consideravelmente alterados em decorrência das interferências editoriais.
A versão publicada em 1966 e em suas subsequentes traduções compreende
apenas alguns parágrafos retirados das diferentes seções nas quais a carta estava
originalmente dividida, e resulta em uma série de conselhos breves dados por
Viértov àqueles que desejavam trabalhar segundo seu método – uma carta cor-
dial e atenciosa, mas que não ofereceria mais do que instruções gerais um pouco
desconexas. Como podemos ver na carta original – que foi traduzida aqui a partir
da mais recente edição dos escritos de Viértov, Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom 2.
Statí i vystupliênia –, o cineasta respondera aos “kinocs do Sul” fornecendo uma
quantidade considerável de detalhes sobre como agir para efetivamente trabalhar
com o grupo, inclusive indicando os passos já tomados nessa direção, como as
negociações com um estúdio para o envio de materiais filmados. Ao final, Viértov
ainda faz breves comentários sobre relação dos kinocs com diferentes associações
da época. Sua explicação sobre os “cine-construtivistas” – aos quais o cineasta
hoje costuma ser frequentemente associado – é reveladora das “brigas internas”
existentes neste campo da arte de vanguarda que, visto hoje, pode às vezes nos
parecer relativamente homogêneo.
Ao longo da tradução, mantive as notas da edição original e acrescentei
algumas outras para esclarecer o significado de certos termos e siglas mencionadas
por Viértov, além de justificar certas decisões da própria tradução.

4 VIÉRTOV, Dziga; DROBACHENKO, Sergei [org.]. Dziga Viértov. Stat’í. Dnevnikí. Zámysly. Moscou:
Iskússtvo, 1966, p. 82-83.
5 Discuti os problemas existentes nesta coletânea na Parte I de minha dissertação de mestrado, Viértov
no papel: um estudo sobre os escritos de Dziga Viértov, defendida em outubro de 2016 no Programa de Pós-
-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP. Ver sobretudo o Capítulo 2: “Analisando
Statí. Dnevnikí. Zámysly”, pp. 63-128. Para a relação completa de passagens alteradas e/ou excluídas, em
comparação com os originais de Viértov tal como preservados no RGALI e publicados na mais recente
edição de seus escritos, Dziga Viértov. Iz Nasliêdia, ver a Parte IV: “Cotejo entre as edições Statí. Dnevnikí.
Zámysly e Iz Nasliêdia, volumes 1 e 2”, pp. 460-564.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 231

AOS KINOCS DO SUL


CARTA AOS KINOCS DO SUL6

Queridos camaradas, eu os saúdo em nome da reunião de comandantes de círculos


de “Cine-Olho”.
A carta que vocês enviaram, a primeira depois que nos conhecemos em Moscou,
é um passo firme para o estabelecimento de uma sólida ligação conosco7.
Vocês poderão encontrar a maior parte das respostas sobre os temas que lhes
interessam na coletânea do Proletkult que sairá neste mês, em que está incluído
nosso longo artigo “Cine-Olho” (eu enviarei a coletânea ou o artigo para vocês).
Um pouco depois deve sair um livro ou brochura chamado “Cine-Olho”, que ser-
virá como um apoio importante para cada kinoc. No livro, além do artigo, estarão
incluídos o programa e o estatuto da organização.
Agora, dentro dos limites de uma carta, vou tentar responder às suas questões de
maneira mais breve, de forma mais ou menos sistematizada.

História do surgimento do movimento “Cine-Olho”

Ano de 1918: observação dos espectadores operários e camponeses. 1919: protesto


contra os dramas cinematográficos burgueses8 que corrompem o espectador. Pri-
meira versão do manifesto9. Trabalho de dominação da técnica cinematográfica.
Primeiras atualidades cinematográficas. 1919-1921: trabalho com cinemas móveis,
trabalho na frente (filmagem e exibição). Série de experimentos em atualidades.
Filmes: O aniversário da revolução – 12 partes, História da Guerra Civil, 13 p., Batalha nas
cercanias de Tsarítsin; Cazaque vermelho, Estrela vermelha, Cáucaso Soviético, Trens de agitação
do VTsIK e outros.10 Primeiros pronunciamentos, advertências e apelos esparsos.

6 Nota do tradutor (N.T.): Título original: “Kinókam iúga. Pismó kinókam iúga.” Fonte utilizada para
a tradução: Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom 2: Statí i vystupliênia. Moscou: Eisenstein-Tsentr, 2008, p. 89-95.
Carta datada de março de 1925.
7 Nota da Edição Original (N.E.): Antes da revisão [feita por Viértov]: mostra que vocês não perderam tempo.
Respondo às suas mais importantes perguntas.
8 N.E.: Adianta, cortada a inserção: e soviéticos.
9 N.T.: Viértov se refere ao manifesto “Nós.” (‘My’). Como o próprio cineasta afirmaria em diferentes
artigos retrospectivos, apesar de haver sido publicado apenas em 1922 com o título de “Nós. Variação do
manifesto” (‘My. Variant manifiésta’) no número inaugural da revista Kino-Fot, o texto original datava de
1919.
10 N.T.: Títulos originais dos filmes citados: Godovschína revoliútsii; Istória Grajdánskoi voiní; Boi pod Tsarítsinom;
Krásni kazák; Krásnaia zviezdá; Soviétski Kavkáz; Agitpoezdá VTsIK.
232 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

Prática

de 1921 a 1924: Filmes11: Cinco anos de luta e vitórias em 2 partes, Exposição agropecuária
de toda a União em 5 partes, Judeus na Rússia Soviética, Sericultura, Ut-Arba12 e outros.
50 Goskinó-kalendár, 22 Kino-Pravda, dos quais, a partir do Nº 13, cada um consiste
em um cine-objeto13 independente:
Kino-Pravda Outubrista em 3 partes (Nº 13)
Dois Mundos (Kino-Pravda Nº 14)
Hoje (Kino-Pravda Nº 15)
Kino-Pravda Primaveril (Nº 16) em 3 partes
Exposição agropecuária: 17ª Kino-Pravda
1ª corrida da câmera cinematográfica (Kino-Pravda Nº 18)
2ª corrida da câmera cinematográfica (Kino-Pravda Nº 19)
(Moscou – Oceano Ártico – Moscou)
Kino-Pravda Pioneira (Nº 20)
Kino-Pravda Leninista (Nº 21) em 3 partes.
No coração do camponês, Lênin está vivo14 (Nº 22) em 2 partes
--------
Cine-Olho em sua primeira expedição
(1º episódio do cine-objeto em 6 episódios A VIDA TOMADA DESPREVE-
NIDA15)
--------

11 N. E.: Adiante, cortado: Processo dos S-R em 4 partes [Protséss SR v 4 tchastiákh].


12 N. T.: títulos originais dos filmes citados neste parágrafo: Piát let borbí i pobiêd; Vsesoiúznaia selskokho-
ziáistvennaia vístavka; Evriêi v Soviétskoi Rossíi; Chelkovôdstvo; Ut-Arba.
13 N.T. No original, “kino-viêsch”. Era assim que o cineasta se referia às suas obras, de modo a diferenciá-
-las dos tradicionais “filmes” (‘fílm’ ou ainda ‘fílma’ – até o início dos anos 1930 a palavra existia tanto
na forma masculina quanto feminina na Rússia). O emprego da palavra viêsch por Viértov está ligado
sobretudo à utilização do termo pelos construtivistas, produtivistas e outros agrupamentos de artistas que
exerciam considerável influência sobre seu léxico no início de sua carreira. Em 1922, o artista El Lissítski
(1890-1941) – que se tornaria amigo de Viértov – editou em Berlim três edições de uma revista de nome
trilíngue: Viêsch/Objet/Gegenstand. Partirei dessa aproximação via francês (‘objet’), feita no próprio contexto
construtivista, para traduzir “kino-viêsch” por “cine-objeto” e não “cine-coisa” – ainda que esta última
possibilidade seja também interessante por vir carregada, em português, de uma certa “dessacralização”
do objeto fílmico que também estava na mira de Viértov.
14 N.T.: Títulos originais dos filmes citados nessa lista: Oktiábrskaia Kino-Pravda; Dvá míra (Kino-Pravda
Nº 14); Segôdnia (Kino-Pravda Nº 15); Vesênniaia Kino-Pravda (Kino-Pravda Nº 16); S-Kh. vístavka – Kino-Pravda
17ª; 1-ii probiég kinoapparáta (Kino-Pravda Nº 18); 2-ôi probiég kinoapparáta (Kino-Pravda Nº 19); Pioniérskaia
Kino-Pravda (Nº 20); Liêninskaia Kino-Pravda (Nº21); V siérdtse krestiánina Liênin jív (Nº 22).
15 N.T.: Título original: Jízn vrasplôkh.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 233

Animações: Hoje, Tchervônets16, Trejeitos de Paris, Brinquedos soviéticos17 e outros


diagramas, animações-reclames, tabelas luminosas, quadros vivos etc.
--------
prepara-se a Rádio-Kino-Pravda 18

--------
O Cinecalendário leninista termina. Rejuvenescimento na Rússia
--------
Série de pronunciamentos orais e na imprensa, artigos, debates.
Organização de círculos de “Cine-Olho”.
Instruções para os círculos de “Cine-Olho”.
--------
Elaboração do estatuto e do programa:
Plataforma política do “Cine-Olho”

– programa do RKP (bolcheviques)


Plataforma cinematográfica do “Cine-Olho”

ver anexo “O fundamental do Cine-Olho”.


Próximas tarefas de organização

– aprovação do regulamento e programa do “Cine-Olho”, acordo com o Goskinó19


quanto à incorporação, no trabalho de produção, de todas as células constituídas
de cine-observadores e cine-produtores.
--------

16 N.T.: “Tchervônets” é o nome dado à nota de dinheiro equivalente a dez rublos.


17 N.T.: Títulos originais dos filmes listados aqui: Segôdnia; Tchervônets; Grimási Paríja; Soviétskie igrúchki.
18 N.T.: A Rádio-Kino-Pravda então em preparação seria a vigésima terceira e última edição do cinejornal
Kino-Pravda, e seria lançada em março de 1925 – ou seja, no mesmo mês em que Viértov redigiu a carta.
19 N.E.: Na versão datilografada, na p.6, corrigido: Kultkinó. Nota da tradução: O Goskinó, criado em
dezembro de 1922, foi um órgão estatal central responsável pela administração do setor cinematográfico.
Apesar de seu caráter oficial, ele não era a única empresa cinematográfica a operar no país, competindo na
produção, distribuição e exibição com outros órgãos locais e com empresas privadas ou de capital misto.
Em dezembro de 1924, o Goskinó foi reorganizado e deu lugar a outro órgão denominado Sovkinó.
Escrevendo a carta poucos meses após a mudança de nome, não é de se espantar que Viértov se confunda
e empregue a denominação antiga.
234 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

Particularmente em relação à organização de kinocs de Odessa, antes da


regulamentação da questão como um todo, obtive uma anuência inicial do Kul-
tkinó20 para receber cine-correspondências de vocês, a partir de acordos a serem
feitos com pessoas específicas.
Para isso, é indispensável uma declaração pessoal daqueles que desejarem
se tornar cine-correspondentes. O Kultkinó concordou em devolver aos cine-
-correspondentes a quantidade de película consumida nas filmagens e, além disso,
pagar 50 copeques por metro de negativo recebido.
A questão da credencial para a Lef-Sul21 como um todo para a obtenção
do direito de filmagens na Ucrânia só pode ser resolvida através de um acordo
especial da Lef-Sul com a direção do Goskinó ou Sovkinó22.

Sobre o trabalho dos círculos de “Cine-Olho”

Ver a instrução provisória “Aos círculos de Cine-Olho”23.


Eu a passei para o camarada Nedólia. Se for necessário, imprimo e envio
no dia 24.24
--------
Cada célula de produção do “Cine-Olho” é uma base para toda uma série
de círculos de cine-observadores.
Dos trabalhos práticos dos círculos de cine-observadores realizados até
este momento, destacamos: 1) publicação dos jornais de mural “Kinó” ou “Foto-
-Glaz”, nos quais são incluídas montagens de observações sobre diferentes temas;
2) foto-observações, observações fixadas com câmera fotográfica; 3) observações
registradas com câmera cinematográfica e incluídas em Kino-Pravda e, parcialmente,
no primeiro episódio de Cine-Olho.

20 N.T.: O Kultkinó, por sua vez, era o estúdio associado ao Sovkinó responsável pela produção de
atualidades.
21 Nota do tradutor: Lef-Sul (no original, Iúgo-Lef) era o braço da Lef (Liévi Front Iskússtv, ou Frente
Esquerda das Artes) com base na cidade de Odessa.
22 N.E.: Adiante, cortado: e, claro, exige conversas pessoais.
23 N.T.: Trata-se de um dos segmentos do longo artigo Kino-Glaz (‘Cine-Olho’) mencionado por Viértov
no início da carta.
24 N.E.: Na versão datilografada, na p. 6: imprimo e envio uma segunda [cópia].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 235

Além disso, destaco:


1) trabalho com lanternas mágicas e slogans em diapositivos 2) troca de
cartas com outras cidades25, troca de opiniões a respeito do “Cine-Olho” 3) pro-
nunciamentos públicos contra os dramas cinematográficos e a favor do Cine-Olho
em debates, em reuniões, passeatas etc.
--------
Lênin e o cinema

Nós e toda uma série de importantes camaradas consideramos nossa linha


como a linha leninista na cinematografia.
Lênin exigiu que se estabelecesse para os programas de exibição cinemato-
gráfica uma determinada proporção entre filmes “recreativos”, “especificamente
para reclames e lucros” e atualidades de propaganda “Da vida dos povos de todos
os países”.26
--------
A base do nosso programa não é a produção cinematográfica recreativa-
-lucrativa (que nós deixamos para o drama cinematográfico), mas a cine-ligação
entre os povos da URSS e de todo o mundo na plataforma da decodificação
comunista do que realmente existe.

Essa instrução de Lênin é de janeiro de 1922, e agora já é março de 1925,


e até agora nem um por cento dela foi cumprida.
Nossa luta pelo Cine-Olho é a luta pela linha leninista na cinematografia.
Aqueles que lutam contra nós e defendem a tomada de 100% das salas de
exibição por dramas cinematográficos de 1 ou 10 atos lutam contra o leninismo
na cinematografia.
É preciso lutar persistentemente sem se deixar abater pelos revezes, é preciso
criar cine-objetos a partir do material das atualidades cinematográficas e conseguir
que eles sejam exibidos em todas as salas de cinema.

25 N.E.: Antes da revisão, era: com o pessoal de...


26 N.E.: Viértov cita as palavras de Lênin a partir do livro de G.M. Boltiánski Lênin i kinó [‘Lênin e
cinema’], M., 1925, p. 13.
236 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

É preciso lutar contra a tomada da produção cinematográfica pelos


cinessacerdotes-diretores, contra a ocupação do mercado cinematográfico por
cine-tranqueiras soviéticas.
É preciso realizar uma ampla agitação na imprensa e entre os trabalhadores
do partido, é preciso não deixar que se distraiam com nossos sucessos de imitação
das tranqueiras estrangeiras, é preciso apoiar Kino-Pravda, Cine-Olho e todos os
outros trabalhos dos kinocs.
É indispensável desmascarar todas as tendências intermediárias e
conciliatórias na cinematografia e diferenciar os cine-objetos verdadeiros, ainda
que precários, de suas mais brilhantes imitações.
O cinema de ficção, sendo mais forte, possuindo o capital e os meios de
produção, engole, realiza e faz passar por suas todas as nossas conquistas, gran-
des e pequenas, nossas invenções, nossos métodos, nossas ideias, e às vezes são
justamente as nossas conquistas, quando utilizadas pelo cinema de ficção, que são
objeto dos mais efusivos elogios27.
Tal situação das coisas, em que nosso trabalho cerebral e experimental
serve não a nós mesmos, mas à prosperidade da cinematografia de ficção, se faz
possível pelo silenciamento de nossos pronunciamentos, pelo boicote aos nossos
cine-objetos (nem que seja pelo simples fato de as sessões serem preenchidas por
dramas de sete atos), pelo silêncio maldoso da imprensa cinematográfica que vive
às custas da cinematografia recreativa e lucrativa.
Por isso, nosso trabalho prático não conseguirá se desenvolver, viver e res-
pirar desimpedidamente se não conquistar para si um lugar sólido e significativo
na “proporção leninista”.
Cada conquista está ligada à luta. E como aqui se trata da luta do fraco
contra o forte, a luta deve ser longa, inteligente e cautelosa.
Vocês perguntam,

27 Ainda que não o afirme explicitamente na carta, Viértov está aqui se referindo sobretudo ao filme A
Greve (Státchka), de Serguei Eisenstein, que acabara de ser lançado. No mesmo mês de março de 1925, no
dia 24, Viértov publicaria no jornal Kinó o artigo “Cine-Olho sobre A Greve” (‘Kino-Glaz’ o ‘Státchke’) em
que, se por um lado indicava que o filme seria um positivo “passo da cinematografia ficcional em nossa
direção”, advertia que o filme não se afastaria o suficiente da “cine-igreja” do drama de ficção, sendo “uma
tentativa de inoculação de alguns métodos de construção de Kino-Pravda e Kino-Glaz na cinematografia
ficcional” (Cf. VIÉRTOV, Dziga. Iz Nasliêdia. Tom 2, p. 96-97). Nos meses seguintes, Viértov e Eisenstein
intensificariam os ataques mútuos, em uma polêmica que se estenderia por boa parte da década de 1920.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 237

o que pode alterar a correlação de forças desta luta a nosso favor?

Eu respondo:
1) o fortalecimento da organização (exclusão dos oscilantes, a firme decisão dos
restantes de dedicar sua vida a essa luta, a ligação com o centro, o convite de
importantes camaradas do partido à luta).
2) as seções de cinema de jornais e revistas devem cair nas mãos de membros da
organização ou de simpatizantes.
3) publicação de convocatórias, brochuras, folhetos, artigos (mediante um exame
cuidadoso de cada palavra).
4) organização de círculos de “Cine-Olho” de membros da Juventude Comunista,
pioneiros e operários. Atração de apartidários.
5) os departamentos de atualidades em todas as organizações cinematográficas
devem estar nas mãos dos kinocs e servir de base de produção para os círculos
de “Cine-Olho”.
6) é preciso cair em cima dos programas das salas de cinema e lançar o slogan dos
“programas mistos”, digamos, que em todos os cinemas uma vez por semana,
uma vez a cada duas semanas (considerando que uma “vez” corresponde a 3 dias)
aconteceriam “noites de miniaturas”. Exemplo de um programa28:

a) atualidade cinematográfica em 3 partes (digamos, Kino-Pravda Leninista)


b) animação em 1 parte
c) filme científico em 1 ou 2 partes (ou filme de vistas)
d) filme cômico em 2 partes.

Tais programas mistos, aos quais é preciso acostumar progressivamente os


cinemas e o público, são uma porta de entrada para as salas de exibição comerciais
e servirão como um início em direção à autossuficiência e rentabilidade de cine-
-objetos feitos de atualidades e filmes científicos, mesmo nos casos em que neles
forem gastos montantes significativos.
É claro que a proporção indicada pode se modificar de uma maneira ou
outra.

28 N.E.: Originalmente, o primeiro ponto era: a) filme cômico em 2 partes.


238 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

No que tange aos clubes operários, cinemas móveis rurais, izbás-de-leitura29


etc., aí a ofensiva é conduzida ao máximo, particularmente onde o cinema é exi-
bido pela primeira vez.
O camponês possui uma desconfiança natural em relação a tudo o que é
artificial, incluindo os homenzinhos “fajutos” na tela.
O estudo de espectadores camponeses durante sessões de cinema em al-
deias intocadas mostraram que a diferença que o espectador-camponês estabelece
entre um drama cinematográfico “convencional” mostrado a ele e uma atualidade
exibida é extremamente profunda.
Ela pode ser comparada à diferença entre uma boneca de pano e uma
criança viva, entre o desenho de um cavalo e o cavalo de verdade.
Esta desconfiança natural e justa dos camponeses em relação à cinema-
tografia de ficção, “de brinquedo”, deve ser utilizada por nós para a exibição de
cine-objetos com pessoas e fatos verdadeiros para o campesinato, cine-objetos
“sem os artista”30, cenários e semelhantes.
O espectador operário e camponês, tendo educado sua visão para cine-
-objetos verdadeiros e úteis (sem lua, amor e detetives) irá ditar sua vontade sobre
a produção cinematográfica, que até agora continua orientada para o espectador
comercial: o nepman, o casalzinho flertando e a mulher do presidente do Truste
das Paixões.31
--------
Nossa posição em relação aos “especialistas da ficção” e ao “drama de
ficção” decorre de nossa posição em relação à cinematografia de ficção como
um todo.
“Dramas de ficção”, no plano da proporção leninista, são lançados espe-
cificamente para a obtenção de lucros.

29 N.T.: Uma izbá é uma típica construção camponesa russa feita de toras de madeira. A construção de
izbás-de-leitura (izbá-tchitálnia), que funcionavam como bibliotecas e centros de ensino, foi incentivada
principalmente ao longo dos anos 1920 como parte do programa do governo soviético de erradicação
do analfabetismo (conhecido por likbez, acrônimo de likvidátsia bezgrámotnosti).
30 N.T.: No original, Viértov reproduz o sotaque dos espectadores camponeses: ao invés de “aktiôri”
[‘atores’], ele utiliza “akhtiôri”, entre aspas.
31 N.T.: No original, Serdtsetrest., literalmente “truste do coração”. Viértov ironiza aqui não apenas a
preferência do público pelos “dramas de ficção”, mas provoca também os próprios nepmen, homens de
negócios do período da Nova Política Econômica, e os trustes, conglomerados econômicos característicos
desse período, visto com desdém pelo cineasta neste e em outros textos da década.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 239

É indispensável também ter em mente que as empresas cinematográficas


subsistem com base em recursos advindos da exibição de “dramas de ficção”
estrangeiros. “Dramas de ficção” russos ainda não são lucrativos.
Faria mais sentido construir, a partir dos recursos advindos da exploração
de tranqueiras estrangeiras, não as suas próprias tranqueiras ficcionais, mas fazer
cine-objetos do tipo “Cine-Olho”, fitas científicas e propagandear, afinal, as
atualidades cinematográficas de toda a União.
Nossa posição em relação à filmagem científica ficará clara para vocês a
partir da seguinte fórmula:

Cine-Olho é a aliança da ciência com as atualidades para uma luta conjunta


contra os cine-obscurantistas 32, em prol da decodificação comunista do
mundo, em prol da emancipação da visão do proletariado33

Aconselho vocês a aplicarem todos os seus esforços para que já em seus pri-
meiros trabalhos nas atualidades seja sentida essa inclinação para o lado científico,
e, para isso, vocês devem atrair para seu lado os cientistas menos conservadores.
Familiarizem-se com a filmagem de animações. Aprofundem com dados
científicos as observações dos cine-observadores.
Guardem para si todas as suas conquistas, invenções e criações práticas
até terem a oportunidade de realizá-las da melhor maneira possível. Publiquem
cautelosamente, apenas o essencial, o fundamental, o que for de agitação. Tentem
não dar de bandeja para a cinematografia de ficção o melhor daquilo que vocês
já fizeram e que ainda farão.
No caso de se apoderarem de algum departamento de atualidades, dirijam-
-no com base na seguinte conta de acumulação de material:

1) atualidades cotidianas – 50%


2) -----//----- científicas – 20%
3) puramente políticas – 10%
4) fisiculturismo – 10%

32 N.E.: Antes da revisão: cine-sacerdócio.


33 N.E.: Adiante foi cortada um parágrafo-frase: A própria abordagem do trabalho cinematográfico (acumulação
de material e organização do cine-objeto) é uma abordagem mais científica que “artística”.
240 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

5) episódicas e ocasionais – 10%


______________
Resultado 100%

Excluam temporariamente a filmagem de paradas e funerais (enfadonhas


e aborrecidas), e de reuniões com oradores falando interminavelmente (intrans-
missíveis pela tela)34.
Organizem o material em pequenos cine-objetos, lancem, digamos, uma
Kino-Pravda de Odessa ou algo desse tipo.
Tendo se exercitado, passem a realizar também trabalhos maiores, como
Cine-Olho.
--------
Contra a tabela: 1) cinema de ficção – 95%
2) atualidades científicas e de vistas – 5%
___________
100%

estabeleçam a tabela:
1) Cine-Olho – 75% (cotidiano – 45%; científico-educativo – 30%)
2) “drama de ficção” – 25%35
--------
Vocês perguntam ainda sobre nossas relações com a ARK, VAPP36 e com
os construtivistas.
A ARK é um conglomerado de trabalhadores do cinema de ficção de dife-
rentes tipos: diretores novos e velhos, críticos de arte, atores etc. Não possui uma

34 N.E.: Adiante, cortado de uma nova linha: Ajam assim também quando do envio para os cinemas.
35 N.E.: Antes da correção:
1) Cine-Olho ------------------- 75%
2) puramente científicos ------20%
3) “drama ficcional” ----------25%
36 N.T.: ARK: Assotsiátsia Revoliutsiônnoi Kinematográfii, ou Associação da Cinematografia Revolucionária, criada
em meados de 1924. VAPP: Vsierossískaia assotsiátsia proletárskikh pissátelêi, ou Associação Pan-russa dos escritores
proletários, criada em 1920.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 241

cine-cara programática. Ocupam-se por enquanto com falações e com a proteção


do drama de ficção.37
Eles têm medo de nós e por isso não gostam de nós. ¾ da imprensa cine-
matográfica moscovita estão em suas mãos.
--------
A seção de cinema da VAPP foi criada há pouco tempo e briga com a
ARK. Ela parte do princípio de que os escritores proletários irão criar o repertó-
rio cinematográfico.38 Apoia-se no beletrismo renovado e protegido por círculos
de críticos-colaboradores. O que não tem nada em comum com os círculos de
“Cine-Olho” (nos quais os cine-correspondentes-observadores são os próprios
criadores dos cine-objetos).
No entanto, conversas com eles e tentativas de os fazer aceitar a plataforma
do “Cine-Olho” são possíveis. Conciliações táticas temporárias para pronuncia-
mentos conjuntos, no caso de serem indispensáveis, não estão excluídas.
--------
Sobre os cine-construtivistas eu ouvi falar pela primeira vez a partir do camarada
Gan39, na conferência em Moscou que é do conhecimento de vocês. Antes desta
conferência e depois dela não me aconteceu de ouvir nada a respeito desse grupo.
Nós temos muitos grupos dispersos de construtivistas (não apenas na área da
cinematografia)40, dos quais cada um se considera o único correto. A cinematogra-
fia dos construtivistas interessou ao camarada Gan, que até muito recentemente

37 N.E.: Adiante, cortado de uma nova linha: Há também aqueles que se enfiaram ali por acaso. A Assotsiátsiia
revoliutsîonnoi kinematográfii [Associação da Cinematografia Revolucionária] foi criada em Moscou em
1924 (seguiu existindo até 1935), integraram a direção em diferentes momentos A. D. Anóschenko, M.
E. Koltsóv, N. A. Liêbedev, A. M. Room, S. M. Eisenstein e outros. Em 1926, Viértov também foi eleito
membro da direção da organização.
38 N.E.: A seção de cinema da VAPP foi organizada no dia 12 janeiro de 1925; foi escolhido como seu
presidente D. I. Furmánov, e depois V. Kirchon a encabeçou.
39 Trata-se de Aleksiêi Gan, autor do livro Construtivismo (Konstruktivizm, 1922), editor da revista Kino-
-Fot (1922-1923) e figura próxima de artistas como Viértov, El Lissítski, Aleksándr Rôdchenko e Varvára
Stepánova. Foi casado com a documentarista Esfir Chub.
40 N.E.: Nos anos 1920, o construtivismo, como estilo, foi introduzido em todos os tipos de arte, e
não apenas na Rússia. O construtivismo pregava a obra como uma construção em que cada elemento
seria saturado de significação ao máximo. Dentro deste estilo trabalharam os pintores e arquitetos A.
Ródchenko, V. Stepánova, A. Lavínski, V. Tátlin, El Lissitski e outros. Ingressaram no grupo literário dos
construtivistas, surgido em Moscou em 1922 (mais tarde, chamado de LTsK) A. N. Tchitchiérin, K. L.
Zelínski, V. Inber e outros. No teatro, o estilo construtivista foi encarnado pelos espetáculos de Vsiêvolod
Meierkhôld.
242 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

considerava que a única linha correta do cinema era a linha dos kinocs, a linha de
Kino-Pravda e Cine-Olho.
Seu pronunciamento com o comunicado sobre os cine-construtivistas foi
evidentemente motivado pelo fato de os kinocs não terem recebido bem seu pri-
meiro trabalho prático, Os jovens pioneiros41, visto como um trabalho conciliatório
feito a partir de um slogan cine-menchevique (‘tipagem-natural”42).
Claro, o fracasso43 do camarada Gan não é obrigatório para outros cons-
trutivistas44.
Cada construtivista que reconheça e apoie a ideia do “Cine-Olho” pode, ao
passar para o trabalho na produção cinematográfica, ser arrolado dentre os kinocs,
com a condição da completa sinceridade de sua transição e completa dedicação
ao movimento “Cine-Olho”.
--------

Eu deixei passar uma pergunta sobre quem nos apoia em nossa luta.
Mais do que qualquer outra coisa, nos ajuda o público operário-camponês
nas regiões ainda não contaminadas pela cine-sífilis “artística45”.

* * *

41 N.E.: Refere-se ao filme de Aleksiêi Gan Óstrov iúnikh pioniêrov [‘A ilha dos jovens pioneiros’] (1924).
Nota da tradução: Até então consideravelmente próximo a Gan, que publicara diferentes artigos exaltando
sua prática cinematográfica, Viértov se irritou com o fato de o construtivista ter utilizado jovens atores
em seu filme, pretensamente um documentário. Para Viértov, essa contradição poderia prejudicar a luta
geral pelo “cinema não atuado”, motivo pelo qual se pronunciou publicamente mais de uma vez criticando
duramente o trabalho de Gan.
42 N.E.: Não fica totalmente claro a que se refere Viértov. Julgando a partir de textos posteriores, o
assunto aqui é o método de escolha de atores nos filmes de Abram Room e Sergei Eisenstein. No entanto,
tal definição não é encontrada em artigos de nenhum dos dois diretores.
43 N.E.: Antes da revisão, havia as seguintes variantes: esta abordagem; tal abordagem pessoal.
44 N.E.: Adiante, cortado: (ainda mais que nenhum programa seu foi até agora posto em marcha no cinema [antes
da revisão: ... não foi posto em marcha por nenhum construtivista].
45 No original russo, o termo que está entre aspas é “khudôjestvenni”, que literalmente significa “artís-
tico”. No entanto, este é o termo utilizado no país para se referir ao cinema ficcional [‘khudôjestvennaia
kinematográfia’], chamado, ao pé da letra, de “cinema artístico”. O estabelecimento dessa expressão foi
alvo de inúmeras polêmicas desde as origens do cinema russo, uma vez que tal definição pareceria indicar
que apenas o cinema ficcional poderia ser considerado “artístico”. Nesse sentido, Viértov aqui emprega as
aspas justamente para indicar seu descontentamento com a produção ficcional do país, “indigna” de ser
considerada “arte”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 243

КИНОКАМ ЮГА
ПИСЬМО К КИНОКАМ ЮГА

Дорогие товарищи, приветствую Вас по поручению совещания руководителей


кружков «Кино-Глаз».
Присланное Вами письмо, первое после нашего знакомства в Москве, —
верный шаг к установлению прочной связи с нами1.
Большинство ответов по интересующим вас темам вы найдете в выходящем
в этом месяце сборнике Пролеткульта, где помещена наша большая статья
«Кино-Глаз» (я сборник или статью вам вышлю). Несколько позже должна
выйти книга или брошюра «Кино-Глаз», которая послужит серьезной опорой
каждому киноку. В книге кроме статей будут помещены программа и устав
организации.
Сейчас же я постараюсь в рамках письма покороче ответить на Ваши вопросы
в несколько систематизированном порядке.
1918— год — наблюдение за рабочим и крестьянским зрителем. 1919 г.
— протест против буржуазных2 кинодрам, развращающих зрителя. 1-вый
вариант манифеста. Работа по овладению кинотехникой. 1-ая кинохрони-
ки. 1919—1921 — работа с кинопередвижками, работа на фронте (съемка и
демонстрация). Ряд этюдов по хронике. Картины: «Годовщина революции»
— 12 частей, «История Гражданской] войны»
13 ч., «Бой под Царицыном», «Красный казак», «Красная звезда», «Советск[ий]
Кавказ», «Агитпоезда ВЦИК» и др. Первые разрозненные выступления, пре-
дупреждения и воззвания.
Практика
с 1921 по 1924: Картины3: «Пять лет борьбы и побед» в 2- частях, «Всесоюзная
с.-х. выставка» в 5 частях, «Евреи в Советской] России», «Шелководство»,
«Ут- Арба» и др.
50 «Госкино-календарей», 22 «Кино-Правды», из которых, начиная с № 13го,
каждая представляет из себя отдельную кино-вещь:
«Октябрьская Кино-Правда» в 3- частях (№ 13)
«Два мира» («Кино-Правда» № 14)
«Сегодня» («Кино-Правда» № 15)
«Весенняя Кино-Правда» (№ 16) в 3- частях «С-Х. выставка — Кино-Правда
17-»
«1- пробег киноаппарата» («Кино-Правда» № 18)
«2- пробег киноаппарата» («Кино-Правда» № 19)
(Москва — Ледовитый океан — Москва)
«Пионерская Кино-Правда» (№ 20)
244 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

«Ленинская Кино-Правда» (N9 21) в 3- част[ях].


«В сердце крестьянина Ленин жив» (№ 22) в 2- частях
«Кино-Глаз на первой разведке»
(1ая серия из кино-вещи в 6 сериях «ЖИЗНЬ ВРАСПЛОХ»)
Шаржи: «Сегодня», «Червонец», «Гримасы Парижа», «Советские игрушки»
и др. диаграммы, рекламы-шаржи, свет[овые] таблицы, живые карты и т.д.
готовится «Радио-Кино-Правда»
«Кинок[алендарь] Ленинский]» заканчивается. «Омоложение в России»
Ряд печатных и устных выступлений, статей, диспутов. Организация кружков
«Кино-Глаз».
Инструкция кружкам «Кино-Глаз».
Выработка устава и программы:
— программа РКП (большевиков)
см. приложение «Основное Кино-Глаза»
Ближайшие организационные задачи
— утверждение устава и программы «Кино-Глаз», соглашение с Госкино4 на
предмет вовлечения в производственную] работу всех образовавшихся ячеек
кинонаблюдателей и ячеек кинопроизводственников.
В частности, по отношению к одесской организации киноков мной получено
впредь до урегулирования всего вопроса в целом — принципиальное согласие
Культкино на прием от Вас кинокорреспонденций в порядке соглашения с
отдельными] лицами.
Для этого необходимы персональные заявления от лиц, желающих стать
кинокорреспондентами. Культкино согласно возвращать корреспондентам
затраченную на съемки пленку и сверх того оплачивать по 50 к. за принятый
метр негатива.
Вопрос о мандате Юго-Лефу в целом на право съемок на Украине может быть
решен только путем специальн[ого] соглашения Юго-Лефа с правлением
Госкино или Совкино5.
О работе кружков «Кино-Глаз»
См. вр[еменную] инструкцию «Кружкам Кино-Глаза»6.
Я передал ее т. Недоле. Если требуется, отпечатаю и вышлю 24го7.
Каждая производств[енная] ячейка «Кино-Глаз» является базой для целого
ряда кружков кинонаблюдателей.
Из практических работ кружков кинонаблюдателей, проделанных
до сих пор, отмечаем: 1) выпуск стенных газет «Кино-» или «Фото-
Глаз», где помещены смонтированные наблюдения на разные темы; 2)
фотонаблюдения, наблюдения, зафиксированные фотоаппаратом; 3)
наблюдения, зафиксированные киноаппаратом и вошедшие в «Кино-Правду»,
отчасти в Iй2 серию «Кино-Глаза».
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 245

Кроме того назовем:


1) работу с волшебным фонарем и диапозитивами-лозунгами 2) переписку
с другими городами8, обмен мнений по поводу «Кино-Глаза» в) обществен-
ные выступления против худ-драм за Кино-Глаз на диспутах, на собраниях,
демонстрациях и т.д.
Ленин и кино
Нашу линию мы и целый ряд ответствен[ных] товарищей рассматривае[м]
как ленинскую линию в кинематографии.
Ленин требовал установления для программы кинопредставления
определенной пропорции между «увеселительными» картинами, «специально
для реклам и для дохода» и пропагандистской хроникой «Из жизни народов
всех стран»9.
Основой нашей программы является не увеселительно-доходное
кинопроизводство (которое мы оставляем худ-драме), а киносвязь между
народами СССР и все- мира на платформе коммунистической расшифровки
действительно существующего.
Это указание Ленина относится к янв[арю] 1922 года, а сейчас уже март 1925
года и оно не выполнено в жизнь ни в одном проценте.
Наша борьба за Кино-Глаз есть борьба за ленинскую линию в кинематографию.
Те, кто борется против нас и защищает 100%— захват кинотеатров 1
-10-актной худ-драмой, — тот борется против ленинизма в кинематографии!
Надо упорно бороться, не смущаясь неудачами, надо создавать кино-вещи из
материала кинохроники и добиваться их демонстрации во всех кинотеатрах.
Надо бороться против захвата кинопроизводства киножрецами-режиссерами.
против заполнения кинорынка советским кинобарахлом.
Надо ввести широкую агитацию в прессе и среди партийных работников,
надо- не давать увлекаться нашими успехами в плане подражания
заграничному барахлу, надо поддерживать «Кино-Правду», «Кино-Глаз» и
все другие работы киноков.
Необходимо разоблачать все промежуточные соглашательские течения в
кинематографии и отличать от настоящих, хотя бы и убогих, кино-вещей
самые блестящие суррогаты.
Художеств[енная] кинематография, как более сильная, как владеющая
капиталом и орудиями производства, все наши достижения, большие и
маленькие, наши изобретения, наши приемы, наши мысли — поглощает,
выполняет, выдает за свои и подчас именно наши достижения при
применении их в художеств[енной] кинематографии и являются объектом
наиболее неумеренных похвал.
Такое положение вещей, где наша мозговая, наша экспериментальная работа
идет на пользу не нам, а на процветание художеств[енной] кинематографии,
возможно при замалчивании наших выступлений, при бойкоте наших
246 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

кино-вещей (в силу хотя бы того, что сеанс заполняется 7-актн[oй] драмой),


при злорадном молчании кинопрессы, живущей за счет увесел[ительной]
доходной кинематографии.
Поэтому наша производств[енная] работа не может беспрепятственно
развиваться, жить и дышать, если не завоюет себе прочное и значительное
место в «ленинской пропорции».
Каждое завоевание связано с борьбой. А так как здесь идет речь о борьбе
слабого с сильным, то, значит, борьба должна быть долгая, умная и
осторожная.
Вы спрашиваете,
Я отвечаю:
1) укрепление организации (очистка колеблющихся, твердое решение у
оставшихся посвятить всю жизнь этой борьбе, связь с центром, привлечение
к борьбе ответств[енных] парт[ийных] товарищей).
2) киноотделы в газетах и журналах должны попасть в руки членам органи-
зации или сочувствующим.
3) выпуск воззваний, брошюр, листовок, статей (при тщательной проверке
каждого слова).
4) организация комсомольских, пионерских и рабочих кружков «Кино-Гла-
за». Привлечение беспартийных.
5) отделы кинохроники во всех киноорганизациях должны быть в руках
киноков и являться производственной опорой кружков «Кино-Глаз».
6) надо обрушиться на программы кинотеатров и выдвинуть лозунг «смешан-
ных программ», скажем, во всех театрах раз в неделю, раз в 2 недели (считая
«раз» за 3 дня) идут «вечера миниатюр». Примерная программа10:
а) кинохроника в 3- частях (скажем, «Ленинская Кино-Правда»)
б) шарж в 1ой части
в) научная в 1й или 2- частях (или видовая)
г) комическая в 2х - частях.
Такие смешанные программы, к которым следует постепенно приучить и
театры и публику, явятся дверью в коммерческие кинотеатры и послужат
началом к самоокупаемости и прибыльности кино-вещей из кинохроники
и научных картин, даже в том случае, если на них и затрачены значительные
суммы.
Конечно, указанная пропорция может изменяться в ту или другую сторону.
Что касается рабочих клубов, деревенских] кинопередвижек, изб-читален и т.д.
— там наступление ведется вовсю, в особенности где кино демонстрируется
впервые.
У крестьянина есть естественное недоверие ко всему искусственно-навязывае-
мому, в частности, к «липовым» мужичкам на экране.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 247

Наблюдения над крестьянским зрителем во время киносеансов в нетронутых


деревнях показали, что разница, которую крестьянин-зритель делает между
показываемой ему «условной» худ-драмой и демонстрируемой кинохроникой,
весьма глубока.
Она может быть приравнена к разнице восприятий от тряпичной куклы — и
от живого ребенка, от картинки с нарисованной лошадью и от самой лошади.
Это естественное и справедливое недоверие крестьян к «кукольной»
художеств[енной] кинематографии должно быть нами использовано для
демонстрации крестьянину кино-вещей с настоящими людьми и фактами,
кино-вещей «без ахтеров», декораций и прочего.
Рабочий и крестьянский кинозритель, воспитав свое зрение на настоящих и
полезных кино-вещах (без луны, любви и детективов) продиктует свою волю
кинопроизводству, которое пока все еще ориентируется на коммерческого
зрителя: на нэпмана, на флиртующую парочку и на жену председателя
Сердцетреста.
Наше отношение к «худ-спецам» и к «худ-драмам» вытекает из нашего
отношения к художественной] кинематографии в целом.
«Худ-драмы» в плане ленинской пропорции запускаются специально для
извлечения дохода.
Необходимо все же иметь ввиду, что кинематографические] предприятия
существуют на средства от проката заграничных «худ-драм». Русские «худ-
драмы» пока все убыточны.
Было бы больше смысла на средства, получаемые от эксплуатации
заграничного барахла, строить не свое худож[ественное] барахло, а делать
кино-вещи
типа «Кино-Глаз», научные ленты и пропагандировать, наконец, всесоюзную
хронику.
Наше отношение к научной съемке будет Вам ясно из следующей формулы:
Кино-Глаз — это смычка науки с хроникой для совместной борьбы
против кинопоповшины11 за коммунистическую расшифровку мира.
за раскрепощение зрения пролетариата12.
Советую Вам приложить все старания, чтоб уже в Ваших первых работах по
хро- нике ощущался этот уклон в научную сторону, для чего склоните на
Вашу точку зрения наименее окаменелых научных работников.
Познакомьтесь с мультиплик[аторной] съемкой. Углубляйте наблюдения
кинона- блюдателей научными данными.
Все Ваши достижения, изобретения, практические соображения оставляйте
при себе, добиваясь возможности осуществить их на деле. Публикуйте
осторожно, толь-
ко основное, принципиальное, агитационное. Старайтесь не отдать лучшего,
что у
248 Luis Felipe Labaki. Aos kinocs do sul, Dziga Viértov

Вас есть и будет, в руки художеств[енной] кинематографии.


В случае захвата Вами какого-либо отдела кинохроники руководствуйтесь
при накоплении материала следующим расчетом:
1) бытовой кинохроники — 50%
2) научной // — 20%
3) чисто политической — 10%
4) физкультура — 10%
5) эпизодический] и случайной] — 10%
Итого 100%
Временно исключайте съемку парадов и похорон (как надоевшую и
скучную и хронику заседаний с бесконечно выступающими ораторами (как
непередаваемую через экран)13.
Организуйте материал в небольшие кино-вещи, выпускайте, скажем,
«Одесскую Кино-Правду» или что-нибудь вроде.
Поупражнявшись, приступите и к большим работам типа «Кино-Глаз».
Против таблицы: 1) художественная] кинематография — 95%
2) научн[ая] хроника и видов[ая] —5%
100%
выставите таблицу:
1) Кино-Глаз — 75 % (быт — 45%, научн[о]-учебн[ая] — 30%)
2) «худ-драма» — 25%14
Вы еще спрашиваете о наших взаимоотношениях с АРК, ВАПП и с
конструктивистами.
94

АРК — это конгломерат работников художественной кинематографии разных


типов: режиссеров старых и новых, худ-критиков, актеров и т.д. Программного
кинолица не имеет. Занимаются пока болтологией и опеканием худ-драмы15.
Нас боятся и потому не любят. Кинопресса московская на 3/4 в их руках.
Киносекция ВАПП недавно образовалась, ругается с АРК. Исходит из
того, что пролетарские писатели создадут кинорепертуар16. Упирается
в литературщину, подновляемую и опекаемую рабкоро-рецензентскими
кружками. Что с кружками «Кино- Глаз» (где кинорабкоры-наблюдатели
являются сами создателями кино-вещей) ничего общего не имеет.
Тем не менее, переговоры с ними и попытки заставить их принять платформу
«Кино-Глаза» возможны. Временные тактические соглашения для совместных
выступлений в случае необходимости не исключаются.
О киноконструктивистах я впервые услышал на известном Вам совещании
в Москве от тов. Гана. До этого совещания и после этого совещания мне о
такой группе слышать не приходилось. У нас есть много разрозненных групп
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 227-249 249

конструктивистов (не только в области кинематографии)17, из которых каждая


считает себя единственно правой. Кинематографией из конструктивистов
заинтересовался тов. Ган, который до самого последнего времени считал
единственно правильной линией в кино — линию киноков,— линию «Кино-
Правды» и «Кино-Глаза».
Его выступление с сообщением о киноконструктивистах очевидно вызвано
было тем, что киноки не приняли его первой практической работы «Юные
пионеры»18, как работы соглашательского порядка по киноменьшевистскому
лозунгу («типаж-натю- рель»19).
Конечно, промах20 тов. Гана не обязателен для других конструктивистов21.
Каждый конструктивист, признающий и поддерживающий идею «Кино-
Глаз», может, переходя на работу в кинопроизводство, быть зачисленным в
киноки, при условии полной искренности перехода и полной преданности
движению «Кино-Глаз».
Я пропустил один ваш вопрос о том, кто поддерживает нас в нашей борьбе.
Больше всего нам помогает рабоче-крестьянская аудитория в незараженных
еще «художественным]» киносифилисом местностях.

Referências
DROBACHENKO, Serguei (Org.); VIÉRTOV, Dziga. Dziga Viértov. Statí. Dnevnikí. Zá-
mysly. Moscou: Iskússtvo, 1966.
VIÉRTOV, Dziga. Kinókam iúga. Pismó kinókam iúga. In: Dziga Viértov. Iz Nasliêdia. Tom
2. Statí i vystupliênia (Org.: Dária Krujkôva). Moscou: Eizenchtein-Tsentr, 2008, pp. 89-95.
250 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov


– Um estudo sobre o Realismo Russo e a
importância de dar voz às minorias

Odomiro Fonseca

Resumo: No presente trabalho, trazemos a tradução de um artigo do consagrado escritor Maksim Górki sobre o
desconhecido Vassíli Sleptsov, um escritor próprio do Realismo Russo, que viajou – a pé – pelas estradas e confins de
sua pátria a estudar e captar a essência de sua população mais vulnerável: os camponeses. Sleptsov deu voz às canções
populares e mostrou a miséria do trabalhador russo sem floreios. Mesmo com o reconhecimento de pares como Liév
Tolstói, Ivan Turguêniev e Kornei Tchukóvski, sua obra permaneceu esquecida por mais de um século. Hoje há um
movimento internacional pelo resgate de suas obras.
Palavras-Chave: Literatura Russa; Realismo Russo; Niilismo Russo; Vassili Sleptsov; Tradução.

Abstract: In the present text, we bring the translation of an article by the renowned writer Maxim Gorky about
the unknown Vasily Sleptsov, a writer of Russian Realism, who traveled - by foot - along the roads and limits of his
homeland to study and capture the essence of its most vulnerable population: the peasants. Sleptsov gave voice to the
popular songs and showed the misery of the Russian worker without flourishes. Even with the recognition of writers
like Leo Tolstoy, Ivan Turgenev and Kornei Tchukovski, his work remained forgotten for more than a century. Today
there is an international movement for the rescue of his works.
Keywords: Russian Literature; Russian Realism; Russian Nihilism; Vasily Sleptsov; Translation.

Sleptsov, um esquecido representante do Realismo Russo

Um dos períodos mais movimentados da história da Rússia é o que envolve


a regência (1855-1881) do tsar Alexandre II (1818-1881). Marcado por uma expres-
siva abertura política e por reformas estruturais na sociedade, seu governo também
foi palco de acaloradas discussões sobre os destinos do país, que envolviam desde
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 251

os setores mais conservadores da sociedade até os que estavam na vanguarda do


pensamento liberal-radical – esses últimos conhecidos como Niilistas, pelo fato
de negarem veementemente qualquer associação do futuro da Rússia ao regime
autocrático. A literatura, como meio principal de difusão e debates, também
passou por importantes transformações nesse período, após a entrada de críticos
liberais-radicais no comando editorial da principal revista grossa do período, O
Contemporâneo (Sovreménnik). Os principais nomes eram o de Nikolai Tcherniché-
vski (1828-1889) e Nikolai Dobroliúbov (1836-1861), que passaram a pregar por
um realismo que fosse voltado para a participação e educação política das massas.
Dobroliúbov e Tchernichévski acreditavam que a introdução de uma lingua-
gem mais fiel à realidade dos camponeses e dos proletários das grandes cidades,
além da abertura de espaço nas revistas para escritores que viessem do seio do
povo, ajudaria a despertar os setores letrados da sociedade para a necessidade de
mudanças, e consequentemente, a multiplicação desse tipo tão esperado: o novo
homem. Para isso, a literatura teria de desenvolver seu papel social, onde a arte
deveria obedecer às regras preestabelecidas de didatismo social. Para esses críticos,
a Beleza seria um adereço da atividade literária, não seu fim; o fundamental numa
obra de arte seria seu poder de despertar o aprendizado e a reflexão. Seguindo esse
modelo de didatismo literário, vários escritores raznotchínests1 ganharam evidência
na revista de maior circulação do país. Embora fosse de origem nobre, Sleptsov
apareceu nesse cenário em que a literatura dava bastante espaço ao naturalismo
da vida camponesa e dos casebres pobres das grandes cidades.
Nascido em 31 de julho de 1836, na cidade de Vorônej, sul da Rússia, Vassíli
Sleptsov é um escritor quase desconhecido da crítica literária internacional. Para
se ter uma noção do desinteresse por sua obra, até meados de 2016, seu único
trabalho traduzido para o inglês era o conto “A enfermaria”, de 1863, publicado
numa coletânea de contos russos de 19872. Existiam apenas duas traduções do seu
principal trabalho, o romance “Tempos Difíceis”, para o finlandês e o polonês; mas
no final do ano citado, entusiastas de sua obra, os pesquisadores estadunidenses
William C. Brumfield e Michael R. Katz disponibilizaram a primeira tradução para
a língua inglesa do romance. Apesar da boa nova, numa visita a um sítio virtual
democrático como a Wikipédia, por exemplo, vemos como sua descrição ainda é

1 Aquele que não tem classe social definida, ou seja, escritores de origem não nobre.
2 In the Depths: Nineteenth-century Russian stories. Compilled by Anatoley Shavkuta,
Nikolai Tkachenko, Evgueny Lebedev and Alexander Valdman. 293 pages. Raduga Pub-
lishers, 1987.
252 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

modesta. Visitar Sleptsov pode parecer um exótico caso de garimpagem literária,


se não houvesse pistas e testemunhos respeitáveis sobre sua qualidade artística e
importância no contexto social dos anos 1860.
Recentemente, Sleptsov passou a despertar interesse da crítica com a tese
de Victoria Thorstensson (“The Dialog with Nihilism in Russian Polemical Novels
of the 1860s-1870s”), de 2013; e o longo artigo de William Brumfield (“Sleptsov
Redivivus”), de 2014. Ambos os trabalhos mostram que a obra de Sleptsov contém
importantes elementos para o entendimento dos questionamentos mais vivazes
da instigante década de 1860 – e mais do que isso: apesar do esquecimento, por
razões que analisaremos adiante, Sleptsov sempre foi considerado um escritor de
respeito por seus pares.
Sua carreira começa em 1860, aos 24 anos de idade, quando Sleptsov
encontrava-se sozinho na agitada Moscou, e não tardou a se agrupar aos jovens
“radicais” que frequentavam o salão da condessa e escritora Evguênia Tur (1815-
1892). Da amizade com seu filho, Evguêni, surgiu a possibilidade de publicar
seu primeiro texto numa importante revista-grossa, O Discurso Russo (Russkaia
Riêtch), fundada por Evguênia Tur, ainda em 1860. Já nesse período, Sleptsov es-
tava muito afinado com o padrão estético proposto por Tchernichévski e a ideia
de conciliar o discurso intelectual com o popular fascinava-o. Outra importante
influência na construção da poiésis de Sleptsov foi a aproximação com o poeta
Vladímir Dál (1801-1872), importante pesquisador, literato da vida camponesa
russa e membro fundador da Sociedade Geográfica Russa. Dál, que Sleptsov
conhecera na faculdade, já era um escritor respeitado e conhecido como um dos
grandes nomes da literatura popular russa e que reunia uma grande erudição
aliada ao desejo de pesquisar de perto o inesgotável manancial folclórico da vida
camponesa. A presença de Dál incitou no jovem escritor o devir de aproximar-se
do povo e conhecê-lo por dentro, nas aldeias.
A pedido de Dál, Sleptsov foi admitido na Seção Etnográfica da Socieda-
de Geográfica Russa, e partiu a pé, em novembro de 1860, pelos povoados da
província de Vladímir a fim de recolher ditos, canções e histórias do imaginário
popular russo. As anotações e impressões deixaram marcas perenes nos trabalhos
literários de Sleptsov. Desde o seu primeiro ensaio literário, “Vladímirka e Kliázma”
(Vladímirka i Kliázma), a produção de Sleptsov, ficcional ou jornalística, foi perme-
ada pela presença do estudo etnográfico das populações aldeãs. Em “Vladímirka
e Kliázma”, Sleptsov expõe um vasto repertório do vernáculo camponês, mas
também denuncia as condições precárias em que eles trabalhavam, num contato
rudimentar e agressivo entre o progresso e a tradição.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 253

No período em que Sleptsov viajou a pé, acompanhou a construção de uma


ponte sobre o rio Kliázma, onde a convivência entre os engenheiros franceses e
os trabalhadores de origem camponesa russa delineava todo o abismo existente
entre os dois mundos que convergiam naquela construção.

Os efeitos da industrialização no campo, a ineficiência, a corrupção na


construção da estrada de ferro de Moscou a Níjni-Nóvgorod e as intole-
ráveis condições em que os trabalhadores russos eram forçados a viver;
foram tratadas e abordadas dentro dos termos do que hoje chamamos
de “reportagem investigativa”, mas que naquele tempo atendia ao termo
oblitchênie (crítica). Em resumo, não seria injusto incluir Vladímirka i Kliazma
no mesmo patamar literário dos relatos de viajantes na literatura russa, em
que figuram: Viagem de Petersburgo a Moscou (Puteschéstvie iz Petersburga
v Moskvu), de Radíschev; e a Ilha Sakhalina (Ostróv Sakhalin), de Tchékhov
(BRUMFIELD, 2014; 362).

Para Górki, o trabalho de Sleptsov era inovador no sentido de atender ao


chamado de Tchernitchévski para a literatura realista; de dar voz às populações
esquecidas dos vilarejos mais remotos. Em 1861, após retornar a Petersburgo de sua
peregrinação etnográfica, a atividade criativa de Sleptsov se intensificou. Abonado
pelos elogios dos liberais, viajou em novembro de 1861 para a vila de Ostáchkov, na
província de Tver, a fim de recolher material para mais um compêndio de realismo
etnográfico. “Cartas sobre Ostáchkov” (Pismá ob Ostachkóve) é publicado em O
Contemporâneo em 1862, seguindo os mesmos moldes denunciativos (corrupção
burocrática e social) de “Vladímirka e Kliázma”. As nove cartas narram a desilusão
com a histórica cidade que prometia ser o eldorado da industrialização têxtil russa,
comandada pela tradicional família Sávin que regia a política local desde o início
do século XIX. Ostáchkov recebeu inúmeros trabalhadores que buscavam vagas
nas indústrias de curtição de couro ou de telhas. Porém, a evolução do processo
industrial não se firmou e durante toda a segunda metade do século XIX, a cidade
de Ostáchkov passou por um período de êxodo e decadência.
Suas observações sobre a implantação de uma cultura liberal em Ostáchkov
por parte da família Sávin foram as mais pessimistas possíveis; profundamente
influenciado pela leitura de Marx e Engels, a desilusão com as condições de traba-
lho lembram aquelas expostas em “A Situação da Classe Trabalhadora em 1840”3.
Sleptsov desacreditou num futuro que passasse pela morosidade das reformas, para

3 Rogatchevskii, op. cit., 50.


254 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

o escritor era necessário que o povo iletrado e a intelectualidade russa tomassem o


mesmo caminho, de modo direto, revolucionário. Sua aproximação com as ideias
do corpo editorial da revista O Contemporâneo (que já havia publicado dois artigos
em 1861 sobre os trabalhos de Marx e Engels) renderam-lhe um espaço contínuo
na revista grossa de maior alcance entre os liberais da Rússia. Foram publicados
no suplemento Notas de Petersburgo (Petersburgskie Zamiétki), que acompanhava
O Contemporâneo, entre 1863 e 1864, os contos “Pitómka” (Pitómka), “Acampa-
mento Noturno” (Notchleg) e “Porcos” (Sviní), além de resumos, críticas e crônicas
jornalísticas. Fora de “O Contemporâneo”, no mesmo período, Sleptsov publicou
a história “O Coral” (Spiêvka) na revista Anais da Pátria (Otetchéstvennie Zapíski), e
algumas notas críticas na Abelha do Norte (Siévernaia Ptchelá) – revista que estava
sob supervisão editorial do escritor Nikolai Leskóv (1831-1895), com quem ainda
mantinha uma relação oscilante de amizade.
Desses trabalhos, “Pitómka” foi o que alcançou maior êxito e comoção
entre o público. Escrito num tom triste e sentimental, arrancou elogios afetuosos
de Tolstói e Turguêniev, entre outros. Os demais trabalhos se caracterizavam por
um tom humorístico, que se transformou numa marca registrada de Sleptsov;
humor escrito numa linguagem esópica que chegou a enganar os críticos sovié-
ticos mais de meio século após as suas publicações. Era comum que analisassem
o tom jocoso de suas observações como desrespeito e deboche aos camponeses.
No seu artigo de apresentação às “Obras Completas de Sleptsov”, publicado
em 1967, o poeta e crítico Kornêi Tchukóvski relata algumas acusações sofridas
por Sleptsov:

A maioria dos críticos estava inclinada à ideia de que Sleptsov posicionara-se


à margem da heroica luta pela emancipação das massas. Alguns até mesmo
afirmavam que ele adotara uma postura cínica em relação à libertação dos
servos, que ele zombava do povo russo. ‘Ele – escreveu o jornal liberal
Gazeta Russa (Russkie Vedomósti) – não se angustia nem sente raiva; ele ri
friamente, como se constatando que o fenômeno social é incapaz de lhe
causar qualquer sentimento, exceto o desprezo e a noção do ridículo.(...)4

O próprio Tchukóvski confessa que por muitos anos aceitou a opinião


geral de alguns críticos soviéticos sobre Sleptsov, até se dar conta de que o escri-
tor “niilista” utilizava-se da linguagem esópica em sua narrativa – tanto ficcional,

4 Tchukóvski, K. I., Litieratúrnaia Sudbá Vassilia Sleptsova. Litieratúrnoe Nasliêdstvo,


T. 71, 1963. P. 9. Traduzido do russo pelo autor do artigo.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 255

quanto jornalística. O discurso esópico (ezopóvskaia riêtch) era uma característica


recorrente dos escritores da Época dos Romances Polêmicos, que visava a driblar
a rígida censura, elaborando uma história principal de pano de fundo, mas que
escondia o tom denunciatório da narrativa. Entre seus pares do início da década
de 1860, a linguagem criptografada era compreendida, mas para os críticos das
décadas vindouras, sua ironia soou como deboche.

Essa linguagem é bem conhecida pelos escritores dos anos 1860. Mas
as gerações subsequentes esqueceram-na e perderam a chave que abria a
mensagem criptografada, por não atentarem aos artigos jornalísticos de
Sleptsov, publicados na revista O Contemporâneo, e outros periódicos da época.
Não sabiam que, além do significado explícito, esses artigos possuíam um
segredo, um significado secreto, que os pesquisadores atribuíram à categoria
de rascunhos, sem conceder-lhes valor literário ou político.5

No início da década de 1860, Sleptsov possuía cadeira cativa como colunista


da revista O Contemporâneo, escrevendo na coluna Notas Petersburguesas (Peter-
burgskie Zamiétki), onde combatia, com o magistral auxílio da linguagem esópica,
a burocracia governamental, a corrupção das instituições e a falta de perspectivas
no campo e na cidade após a emancipação desordenada dos servos. Sua antipatia
pelo governo e a defesa dos artistas e da população marginalizada renderam-lhe o
qualificado epíteto de “advogado do povo”. Nessa primeira metade da década de
1860, podemos afirmar que Sleptsov gozava de enorme prestígio e popularidade
entre a intelectualidade russa.
Porém, quando morre, em 1878, o obituário em homenagem a Sleptsov já
o classifica como um escritor “quase desconhecido”.6 Dez anos após sua morte,
a revista Espigas (Kolóssia) escreve um discreto artigo o chamando de “escritor
desconhecido”. Vinte e cinco anos depois, na revista Novo Tempo (Novoe Vrêmia),
1903, uma curta nota também já o descrevia como “escritor desconhecido”.
O nome de Vassíli Sleptsov entra no século XX esquecido, imperceptível ao
mercado editorial. Quando, em 1923, a pedido de Górki, foi publicada uma edição
de “Obras Completas” em tomo único, a mesma saiu com diversos erros grotescos,
onde o ensaio literário “Vladímirka e Kliázma” foi publicado de modo desajeitado,
com o início da história na parte final, entre outros exemplos de desleixo.

5 Tchukóvski, idem. Traduzido do russo pelo autor do artigo.


6 Idem, 11.
256 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

Hoje, com a recém-publicação do romance “Tempos Difíceis” em língua


inglesa, acredita-se que um novo interesse do público recaia sobre seu trabalho
– tão importante para entendermos a linguagem e a sociedade russa da época do
Realismo Russo. A obra de Sleptsov aguarda sua primeira tradução para a língua
portuguesa, em que o tradutor deverá ter ciência do empenho que consistirá se
envolver com expressões típicas do campesinato russo e com um humor sarcás-
tico sobre as relações sociais existentes. Como aperitivo para as futuras traduções,
deixamos esse artigo de Górki, escrito em 1922, mas só publicado em março de
1932, na coletânea Herança Literária (Literatúrnoe Naslédstvo), em que ele revela
todo o potencial da obra de Sleptsov e os desafios propostos por sua linguagem.

Sobre Vassíli Sleptsov (por Maksim Górki)7


O grandioso e original talento de Sleptsov pode, em certa medida, ser apa-
rentado à maravilhosa maestria de A. P. Tchékhov; embora Sleptsov não carregue
a mesma lírica pensativa e triste, a mesma contemplação diante da natureza e dos
temas suaves, tampouco a mesma precisão no trabalho com a linguagem que
possui Antón Tchékhov. Porém, ambos possuem em comum a mesma agudeza
nas observações, a independência intelectual e atitudes céticas similares diante da
realidade russa. Essas características aproximam, em termos gerais, esses escritores
tão distantes entre si.
Os ensaios de Sleptsov apareceram naquele período caracterizado na Lite-
ratura Russa pelo surgimento da alardeada temática do “nobre arrependido”, que
soava como uma sincera confissão dos filhos diante dos pecados de seus ancestrais;
uma confissão multifacetada, nem sempre sincera e apropriada à duras penas, pois
aqueles que foram chamados “filhos dos pecadores” (“Os pais comeram uvas
verdes, e os dentes dos filhos se embotaram”, Jeremias 31;29) foram vítimas de
uma inevitabilidade histórica, obrigatória e necessária ao desenvolvimento cultural
de todos os povos, que se entregaram a uma teimosa luta contra os fósseis do
passado, de corpo e alma, com toda a existência e o sentimento. Então, deu-se
um segundo ato neste estranho drama romântico que envolve a Literatura Russa
e sua relação com a sociedade: de um lado, aparece a figura do apaixonado herói
intelliguent; do outro, o povo insensível – as pessoas de verdade, que constituíam
a imensa maioria da população. Esses, os camponeses e os outros trabalhadores,

7 Tradução do original russo disponibilizado no endereço eletrônico: http://gorkiy.


lit-info.ru/gorkiy/articles/article-365.htm
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 257

praticamente não existiam ou eram mencionados pela Literatura. Logo então, o


povo passou a aparecer em suas páginas em tom apaixonado e elevado, numa
tentativa de justificar, antes de tudo, um conhecimento positivo de sua essência
e psiquê; exagerando-a muitas vezes, mas normalmente tentando despertar uma
atitude humana em relação ao mujique e à situação em que viviam na aldeia, e
nesse sentido, a literatura da época alcançou seu objetivo.
Nesse tempo, Sleptsov começou a narrar, em seu tom de calmo observa-
dor, o absurdo da vida pequeno-burguesa em Ostáchkov, uma cidadezinha que
surgiu miraculosamente em torno do empreendimento do burguês Sávin, que
por um lado extorquia os trabalhadores de todas as formas, e por outro decorava
estranhamente a cidade com peixinhos “rufus”8, habilmente talhados na madeira.
Esse ensaio é um verdadeiro retrato pitoresco sobre o significado histórico que o
desenvolvimento da cultura estrangeira, encarnada por um predador russo, obteve
em nosso país – que por um século inteiro não foi capaz de refrear uma epidemia
de tifo, mas que, entretanto, conserva os melhores balés do mundo. O significado
desse perspicaz ensaio de Sleptsov não pôde ser compreendido pelos jornalistas
nem pela crítica literária da época. Suas mais afetuosas preocupações estavam
sempre voltadas para as milhares de aldeias e as centenas de cidades russas, essas
últimas em que haviam pequenas fábricas controladas por espúrios burgueses,
defensores de um estúpido e fatal conservadorismo, cujas raízes penetravam
profundamente nas entranhas da pétrea ignorância. Essas cidades permaneciam
distantes de qualquer influência do pensamento liberal ou radical, assim como de
qualquer impacto benéfico de força intelectual.
Mesmo após os acontecimentos dos anos 1880 e de 1905-6, esses
ninhos provinciais russos, envoltos na inércia do tempo, não apresentaram
quase nenhuma variação em suas imobilidades. O sentido sociopolítico dessas
imobilidades já eram indecifráveis no tempo das “Grandes Reformas”9, inter-
pretados por muitos como um período errôneo, uma maré, inundação ou uma
catástrofe da natureza.

8 Tipo de peixe da família “percidae”, muito comum em toda a Eurásia.


9 Período que se inicia com a ascensão do tsar Alexandre II ao trono, em 1855, e que se
caracterizou por uma flexibilização das leis e da censura. O ponto alto das reformas foi a
emancipação dos servos, em 1861. Após o atentado do estudante Dmitri Korokózov, em
1866, o Estado retomou sua postura conservadora, e o fim da época das Grandes Refor-
mas não tem uma data precisa, podendo ser delimitada em 1866, 1874 ou 1881, quando
do assassinato do tsar.
258 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

Mais adiante, no ensaio “Vladímirka e Kliázma”, Sleptsov narra o episódio


em que os franceses trabalharam na construção de uma ponte ferroviária, e como
seus engenheiros discutiam e zombavam dos trabalhadores russos; de como os
trabalhadores franceses falavam aos chefes: “Eu te respeito, mas não tenho medo
de ti”; e assim dizia um meninote de treze anos, que fora parar naquela região de
Kliázma, vindo do Loire, sobre a Santa Rússia: “Essa é uma terra de bárbaros!”
Um russak10 conta a Sleptsov como um maquinista francês jogava água
quente bem “no focinho” do supervisor da construção da ponte. Enquanto o
narrador ria inofensivamente da cena com o francês, um outro russakinho afanava
uns copequinhos de um estrangeiro – uma ninharia se comparada à bolada russa
que os franceses levariam para casa.
Os trabalhadores franceses – descreve Sleptsov – eram homens imensos,
encorpados, esperançosos; todos ostentavam barbas negras, se metiam debaixo
de chapéus de pele de cordeiro e calçavam luvas bem curtidas. Alguns chefes
passavam vestindo roupas revestidas em pele de guaxinim. Eles não davam
ouvidos a ninguém, tampouco se importavam com os nossos – os franceses
eram livres, preocupados apenas com coisas como descascar nozes e outras
imperturbáveis atividades que não exigiam gritos nem aborrecimentos, fumavam
seus cigarros e cantavam canções sobre a Bela França... E lá longe, debaixo da
ponte, o povão desafortunado: cerca de trinta infelizes, cujas idades variavam
de quinze a setenta anos, puxavam, exaustos, uma corda retorcida e entoavam
uma velha canção russa:

“Negra gralhinha/ Terra limpinha/ Esposa Marussinha...


Tchernobróv, por que não dormes hoje na casinha? Irrá!”

Dez homens se equilibravam sobre o gelo e carregavam toras sobre a água


congelada. Por essa razão, o serviço se dava lentamente, como se de má vontade.
Cavava-se mais fundo, mais fundo, até que enfim as toras se arrastassem ou em-
pacassem, e se arrastassem e empacassem novamente, e mais uma vez até que o
encarregado observasse e gritasse:
– Ei, vocês, seus palermas! Estão vendo aquelas coisas ali, certo? Hein,
palermas? Aquele aço ali? Pois bem, tragam-no até aqui!

10 Russak [Русак] é um termo antigo para “russo”, normalmente atribuído para homens
do interior, “caipira”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 259

Tudo é retratado em cores vivas, vibrantes, seguras e com mãos impressio-


nantemente firmes; em falas breves e retratos de vidas tão hábeis, que os pitorescos
métodos de trabalho para a composição do ensaio apresentam as relações entre
os dois povos como se envoltas por uma nuvem densa e terrível, que se alevanta
e desce, segregando para um futuro distante e absurdo, os filhos da terra russa.
Sleptsov, assim, apresentava um tema novo, nunca aprofundado antes. Ele
escrevia sobre a vida dos trabalhadores das fábricas, sobre a vida mundana de São
Petersburgo e temas semelhantes. Seus ensaios são cheios de premonições – talvez
inconscientes – sobre os destinos de um futuro distante da Rússia; sua narrativa é
carreada de elementos do senso comum, ainda impercebíveis ao seu tempo, mas
que rapidamente foram incorporados por Gleb Uspiênski no livro “Os costumes
da Rua Rasteriáiev” (Nrávy Rasteriáievoi Úlitsii); por Aleksándr Levítov na mara-
vilhosa coletânea “A vida nas vielas de Moscou” (Jízn’ Moskóvskikh Zakoúlkov),
por Mikhail Vorônov e tantos outros proeminentes escritores desconhecidos
do público de hoje, mas que colaboraram em diversos números das revistas O
Contemporâneo (Sovremênnik), Anais da Pátria (Otetchêstvennie Zapíski), A Causa
(Diêlo) e A Palavra (Slóvo).
A atitude de Sleptsov em relação ao campo é o que o torna diferente dos
demais escritores. Nas cenas de “O Corpo Morto” (Miórtvoe Tiêlo), nas histórias
de “Os Porcos” (Sviníi), “Pitómka” (Pitómka), em “O Acampamento Noturno”
(Nôtchhleg), e em outras de Sleptsov, percebe-se o riso triste de um homem que
desconfia de tudo o que foi dito e pensado acerca da vida camponesa. Ele retrata
a ignorância do mujique, a indiferença do próximo em relação ao destino daquele
que sofre todos os infortúnios e carrega, submisso, o pesado fardo da nação pela
vontade de terceiros, mesmo quando torna-se evidente aos seus olhos a mesqui-
nhez dos interesses e a exploração do seu trabalho. Esse mujique, calmamente,
adentra “de penetra” na “vólost”11 e, pacientemente, espera o momento em que as
autoridades o açoitarão.
O historiador da literatura russa S. A. Venguérov12 dizia que Sleptsov
retratava o camponês russo como um verdadeiro “tapado”; o crítico Skabitché-
vski13 recriminava-o por essa atitude cética diante da aldeia russa, assim como

11 Vólost’ era a mais baixa sessão administrativa do Estado Imperial Russo, atuando
comumente no campo, principalmente entre os séculos XV e o final do século XVIII.
12 Semión Afanassiêvitch Venguérov (1855-1920).
13 Aleksandr Mikháilovitch Skabitchévski (1838-1911), foi um escritor e crítico literário
russo, famoso por participar do movimento “Populista” dos anos 1870-1880.
260 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

há outras opiniões de outros críticos desfavoráveis a Sleptsov. E embora todos


reconhecessem a originalidade do talento do novo escritor, louvavam-no por sua
simplicidade e capacidade persuasiva de suas histórias; as intrigas políticas com os
grandes cânones literários de sua época, provavelmente retiraram-no dos círculos
principais, isolando-o das amizades estratégicas. Essa ideia talvez explique o fato
de praticamente não haver uma biografia sobre Sleptsov, exceto das memórias de
Panáieva-Golovatchiôva14, amiga e colaboradora de N. A. Niekrássov. Nos anos
1860, a “Questão Feminina”15 era vista como um tema de importância social
primordial, e Sleptsov foi um dos primeiros que se interessou genuinamente pelo
assunto, devotando imensa energia para a causa; contribuindo, inclusive, para a
abertura de caminhos para as mulheres no mundo educacional por meio da tutoria
ao autoaprendizado.
Já no ano de 1863, ele iniciou uma série de palestras científicas e populares
direcionadas para mulheres que vinham das províncias para São Petersburgo, em
busca de conhecimento e liberdade, o que era naturalmente de praxe num país onde
a maioria esmagadora era iletrada. Esse movimento pró-mulheres foi duramente
criticado pelos maliciosos conservadores, que alardeavam o fim da família e sobre
os perigos que poderia causar à nação. Esses deram às mulheres, a cáustica alcunha
de “horizontais”, atribuindo-lhes toda espécie de pecados e vícios.
Mas as palestras de Sleptsov foram frequentadas por mulheres da estirpe
de Nadiêjda P. Súslova, filha de um camponês que foi a primeira mulher russa a
receber um título de doutora em Ciências Médicas, na Suíça, e que atuou e escre-
veu diversos artigos em São Peterburgo e Níjni Novgorod. Ou Maria Bókova,
que também conseguiu o título de doutora, só que na Alemanha, e que se tornou
famosa em Londres como cirurgiã em doenças oftalmológicas. Sleptsov também
era familiarizado com Sofia Kovaliêvskaia, proeminente professora de matemática
na Universidade de Estocolmo.
Entretanto essas palestras não foram bem-sucedidas: a escolha dos pales-
trantes não agradou muito o público, o número de mulheres que realmente queriam
aprender era menor do que as que iam apenas para saber as novidades, e como

14 Eles se referem às “Memórias” de Avdótia Panáieva-Golovatchiôva, publicadas em


1889.
15 A “Questão Feminina” (Jênskii Voprós) debruçava-se, basicamente, neste período, sobre
três grandes temas: o direito à liberdade matrimonial (escolher o cônjuge, pelo menos), o
direito a uma educação que fosse minimamente equiparada à dos homens, e o reconheci-
mento profissional.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 261

se pode presumir nesses casos, a fofoca tomou lugar da ocupação séria. Mas isso
não desencorajou Sleptsov, que logo criou uma “comuna” – um apartamento para
interessadas em ciências, onde também se organizou uma cooperativa de costurei-
ras, abriu um escritório para a formulação de documentos, organizou traduções
de textos de línguas estrangeiras, palestras públicas e debates literários para suas
“comunistas”. Em suma, trabalhou com obstinada resiliência para fazer o que
estava ao alcance do seu tempo e das condições oferecidas pela sociedade russa.
Essas atividades intensificaram a cruel perseguição às frequentadoras da comuna,
e culminou com uma batida policial. Os cidadãos logo espalharam boatos de que
Sleptsov criara uma espécie de seita, algo com uma galé de forçadas, e que nessa
seita reinava uma intensa promiscuidade; então, a polícia, suspeitando algo mais,
conduziu Sleptsov até os porões do Monastério de Aleksándr Niévski, onde ficou
por sete semanas e lá adoeceu de modo irremediável.
A sede incontrolável de vida e sua participação ativa na mesma, indubi-
tavelmente prejudicaram uma atividade mais assídua como escritor. E Sleptsov
escreveu mesmo pouco, ocupando seu tempo e energia em viagens pelos confins
da Rússia, na Questão Feminina e na vida, de modo geral.
O maior e mais maduro trabalho de Sleptsov foi o romance “Tempos Di-
fíceis”, que retrata perfeitamente um dos incontáveis dramas da época, mesmo
que esse drama, por vezes, se transmute em comédia – o que é uma característica
típica do drama russo, em que sempre temos infindáveis narrativas tediosas e
muito pouca paixão original. Schettínin, sua esposa e Riazánov são típicos heróis
de um tempo difícil. Sleptsov descreve-os com maestria, como um verdadeiro artista.
A esposa de Schettínin é uma daquelas mulheres que, levadas pelas agitações da
época, romperam com os difíceis laços familiares russos para seguirem ou pere-
cerem à chama do conhecimento em cidades como São Petersburgo, na distante
Suíça, nas “idas ao povo” ou nas prisões, exílios e trabalhos forçados do sistema
penal russo. Maria Schettína talvez fosse uma das mulheres que assistiram às
palestras de Sleptsov, que moraram em sua “comuna” ou tenha morrido na luta
pela liberdade de seu país.
Riazánov, por sua vez, é um daqueles intelliguenti que, percebendo que seus
ideais são estranhos e incompreensíveis ao povo e às outras classes todas, adqui-
rem um tom hostil e uma atitude crítica diante dos “sacramentos” da vida russa.
Abraçando o espírito da negação e da rejeição orgulham-se de sua condição de
niilistas. Por natureza, Riazánov é um irmão literário do niilista Bazárov, do romance
“Pais e Filhos”, de Ivan Turguêniev, mas ele tem uma conduta mais natural e mais
próxima da vida real do que o herói de Turguêniev.
262 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

“– Isso não é a vida, – Ele diz a Maria Schettína. – mas só o diabo é quem
sabe como funciona essa porcaria toda... Há sempre um ponto de vista em que
é possível observar todo o desengano da vida de modo simples e cristalino. Mas
as pessoas, como que de propósito, escolhem enxergar só o dedo mindinho do
capeta, porque parece ser mais divertido, surpreendente e aterrorizante. Bem,
assim o tempo vai passando, como você mesma tem vivenciado.
– Mas e então? – Perguntou Schettína. – Como fica a vida de uma pessoa
que perdeu a chance de viver tal qual os outros vivem?
– Como fica? – Riazánov olhou em volta de si. – Fica precisando ser rein-
ventada, mas até lá, então...
Ele fez um movimento de desistência com a mão.”
Essa é uma imagem do desengano que perturbava as cabeças e os espíritos
das pessoas de senso crítico na época dos “tempos difíceis”, uma gente que não
tinha um lar para chamar de seu. Os Bazárovs e Riazánovs foram criados pela vida
russa como que por um ato irrestrito de condenação. Seus papéis na trama são
desinteressantes, uma vez que seus corações e mentes já se entregaram à negação,
mas são como tantos outros heróis que deram a vida pela causa revolucionária,
cujos nomes ficaram respeitavelmente inscritos nas histórias da luta pela liberdade
e pela cultura.
1932

О Василии Слепцове

Крупный, оригинальный талант Слепцова некоторыми чертами


сроден чудесному таланту А.П.Чехова; хотя Слепцов совершенно не владел
вдумчивой, грустной лирикой, чутьём природы и мягким, однако точным
языком Антона Чехова, но острота наблюдений, независимость мысли и
скептическое отношение к русской действительноcти очень сближают этих
писателей, далёких друг другу в общем.
Очерки Слепцова появились в те годы, когда в русской литературе
особенно громко начали раздаваться голоса “кающихся дворян”, зазвучала
чувствительная исповедь потомков о грехах предков, — исповедь весьма
многослойная, не всегда сердечная и едва ли уместная, ибо то, что называлось
“грехом предков” (“отцы ели кислый виноград, а у детей на зубах оскомина”,
Иеремия, 31, 29), было исторической неизбежностью, обязательным для всех
народов этапом культурного развития и требовало не словесного раскаяния
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 263

потомков, а их упорной борьбы с окаменелостями прошлого в мысли и


деле, в быте и чувстве. Тогда разыгрывалось в русской литературе и под
её влиянием в обществе второе действие странной романтической драмы,
героями которой являлись, с одной стороны, влюблённая интеллигенция, с
другой — бесчувственный народ, причём за подлинный народ принималось
только большинство населения — крестьянство, другие же классы, например,
рабочий, как бы не существовали и не замечались литературой. О народе
литература говорила, как и надлежит влюблённой, повышенным тоном,
стараясь подчеркнуть прежде всего положительные начала его психики и
быта, невольно преувеличивая их, но в общем стремясь пробудить гуманное
отношение к мужику, действительное внимание к деревне, что и было
достигнуто литературой.
В это время Слепцов заговорил тоном спокойного наблюдателя
о нелепой жизни мещанского городка Осташкова, — городка, который
чудесным каким-то образом весь принадлежит купцу Савину, а купец,
всесторонне грабя его, в то же время односторонне украшает ершами, весьма
искусно вырезанными из дерева. Смысл этой исторически верной картинки
развития внешней культуры, творимой русским хищником, который в
течение столетия не мог избавить страну от ежегодных эпидемий тифа,
но создал лучший в мире балет, — смысл этого умного очерка остался не
понят публицистами и журналистами эпохи. Их сердечное внимание было
направлено в сторону тысяч деревень, а сотни уездных городов русских
— эти фабрики очень мелкой и скудоумной буржуазии, тупого, мёртвого
консерватизма, устои коего ушли глубоко в недра каменного невежества, —
эти города остались вне поля зрения либеральной и радикальной мысли, в
стороне от благотворного влияния интеллектуальной силы.
После — в восьмидесятых, в 1905—6 годах — уездные гнёзда
российской косности очень тяжко показали устойчивость своего быта, —
социально-политическое значение этой устойчивости остается недостаточно
понятым и в дни “великих реформ”, принятых многими подобно трусу,
мору, потопу и вообще “стихийным катастрофам”.
Далее, в очерке “Владимирка и Клязьма” Слепцов рассказывает,
как французы строят железнодорожный мост, как они ссорятся со
своими инженерами и немножко издеваются над русскими; как рабочий-
француз говорит начальнику своему: “Я вас уважаю, но — не боюсь”, а
тринадцатилетний мальчуган, попав на суздальскую Клязьму с французской
Луары, говорит о Святой Руси: “Это край варваров”.
264 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

Русак рассказывает Слепцову, как машинист-француз пускает “в рыло”


главного приказчика строителей моста струю горячего пара, рассказчик
безобидно смеётся над шуткой француза, а в это время другой русачок
выманивает у иноземца несколько медных копеек — нищенскую сдачу с тех
пудов русского золота, которые французы увезут на свою родину.
Работают французы, — описывает Слепцов, — народ всё крупный,
такой основательный, надёжный, все с такими густыми, чёрными бородами,
в тёплых мерлушковых шапках, в дублёных рукавицах. Прошёл какой-то
начальник в енотовой шубе, — никто и ухом не повёл, никому до него и
дела нет, всякий занят своим, прилаживают гайки, и всё это так просто,
свободно, без криков и понуканий, покуривая сигарку, распевая песенки о
своей прекрасной Франции... А там, внизу, под мостом, копошится народ:
человек тридцать каких-то нищих всех возрастов, начиная с пятнадцати и
до семидесяти лет, усиленно дёргали измочаленный канат и тянули песню
прекрасной России:
Черная галка,
Чистая полянка,
Жена Марусенька,
Черноброва —
Чего не ночуешь дома?
— Ух!
Человек десять ковырялись во льду, таская из воды обмёрзлые брёвна.
И так-то вяло, как будто нехотя. Поковыряют, поковыряют да почешутся или
примутся зевать и потягиваться и до той поры зевают, потягиваются, пока
не увидит их десятник и не закричит:
- Эй, вы! Шмони вы эдакие, право — шмони. Ну, что стали? Эх, палки
на вас нет!
Всё это нарисовано очень живо, ловкой, твёрдой рукой и настолько
внушительно, что из краткого, спешного очерка приёмов работы, навыков
жизни, отношений двух племён как будто возникает некая жуткая и густая
тень, возникает и падает далеко вперёд на будущее нелепой русской земли.
Слепцов вообще брал темы новые, не тронутые до него; он писал
о фабричных рабочих, об уличной жизни Петербурга; его очерки полны
намёков — вероятно, бессознательных — на судьбу отдалённого будущего
страны, полны живого смысла, не уловленного в своё время, но его темы
тотчас были подхвачены Глебом Успенским в книге “Нравы Растеряевой
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 265

улицы”, Левитовым и Вороновым в их славной книжке “Жизнь московских


закоулков” и затем целой группой менее видных, забытых теперь писателей,
сотрудников “Современника”, “Отечественных записок”, “Дела” и “Слова”.
Отношение Слепцова к деревне заметно разнилось с общим
повышенным отношением к ней. В сценах “Мёртвое тело”, в рассказах
“Свиньи”, “Питомка”, “Ночлег” и прочих у Слепцова чувствуется печальная
усмешка человека, который сомневается во всём, что в ту пору было принято
думать и говорить о деревне. Он изображает мужика неумным, равнодушным
к ближнему и своей судьбе, притерпевшимся ко всем несчастьям, почти
безропотно подчинённым чужой воле даже тогда, когда ему ясно, что её
цели и глупы и вредны его интересам. Этот мужик спокойно ходит в волость
“пороться” и терпеливо ждёт, когда начальство удосужится выпороть его.
Историк русской литературы С.А.Венгеров говорит, что Слепцов
изображал мужика “настоящим головотяпом”; критик Скабичевский упрекал
его в поверхностно скептическом отношении к деревне, есть и ещё мнения,
не лестные для Слепцова. И хотя все признавали оригинальность таланта
нового писателя, хвалили его за простоту и убедительность рассказов, однако
его расхождение с установленным эпохой литературным каноном, видимо,
отодвигало его в сторону от литературных кружков, оставляя человеком
без друзей. Думать так позволяет то обстоятельство, что о Слепцове почти
нет воспоминаний, кроме рассказа о нём Панаевой-Головачёвой, подруги
и сотрудницы Н.А.Некрасова. В шестидесятых годах “женский вопрос”
рассматривался как вопрос первостепенной социальной важности, —
Слепцов был одним из первых, кто искренне увлёкся вопросом и посвятил
ему не мало энергии, всячески пытаясь облегчить женщинам путь к знанию
и самообразованию.
Уже в 1863 году он затевает ряд популярно-научных лекций для
женщин, которые в то время десятками съезжались из провинции в
Петербург, стремясь к знанию и свободе, что было законно и естественно
в стране малограмотной. Это движение решительно и злобно порицалось
консерваторами, они кричали о разрушении семьи и опасностях,
вытекающих отсюда для нации, они дали учащимся женщинам едкое
прозвище “горизонталок”, приписывая им все грехи и пороки.
Но лекции Слепцова посещались такими женщинами, как
Н.П.Суслова, дочь крестьянина, первая русская женщина, получившая в
Швейцарии звание доктора медицинских наук и потом практиковавшая
в Петербурге, в Н.-Новгороде, автор нескольких ценных сочинений по
266 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

медицине; Бокова, которая тоже впоследствии получила диплом доктора в


Германии и стала известным в Лондоне оператором по болезням глаз; была
знакома со Слепцовым и Софья Ковалевская, знаменитая как профессор
математики в Стокгольме.
Но эти лекции не имели успеха, — подбор лекторов оказался
недостаточно удачным, женщин, которые искренне желали учиться, было
меньше, чем тех, которые мнимо желали этого, и, наконец, как это само собой
разумеется, вокруг честного дела неизбежно возникли грязные сплетни. Это
не обескуражило Слепцова, он устроил нечто вроде “коммун” — общую
квартиру для тружениц науки, пытался устроить для них переплётную и
белошвейные мастерские, открыть контору для переписки деловых бумаг,
организовал переводы с иностранных языков, устраивал публичные лекции,
спектакли, литературные номера в пользу своих “коммунисток”, делал всё,
что позволяли условия времени и стойкое сопротивление русского быта;
эти его затеи ещё более усилили грязные сплетни и, наконец, привлекли
внимание полиции. Обыватели стали говорить, что Слепцов основал новую
секту, нечто вроде “корабля” хлыстов, что в секте царит дикая распущенность,
и полиция, подозревая нечто иное, арестовала Слепцова и посадила его в
“каталажку” Александро-Невской части, откуда он через семь недель вышел
больным.
Жажда непосредственной близости к жизни, деятельное участие в
ней, несомненно, мешали кропотливому труду писателя, и Слепцов писал
немного, тратя силы и время на путешествия пешком по дорогам российским,
на “женский вопрос” и вообще — на жизнь.
Самое крупное и наиболее зрелое произведение Слепцова — повесть
“Трудное время” — превосходно изображает одну из бесчисленных драм
эпохи, и хотя порою эта драма переходит в комедию, но это вполне типично
для русских драм, в которых всегда слишком много нудной словесности и
так мало подлинной страсти. Щетинин, его жена, Рязанов — типичные
герои того трудного времени. Слепцов написал их мастерски, как настоящий
художник. Жена Щетинина — это одна из тех женщин, которые, увлекаемые
тревогой эпохи, смело рвали тяжкие узы русского семейного быта и, являясь
в Петербург, или погибали в нём, или ехали за огнём знания дальше — в
Швейцарию, или же шли “в народ”, а потом — в ссылку, в тюрьмы, в
каторгу. Щетинина, может быть, одна из женщин, которые слушали лекции
Слепцова, жили в его “коммуне” и, несомненно, погибли в борьбе за свободу
своей страны.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 250-268 267

А Рязанов — один из тех интеллигентов, которые, сознавая, что они


непонятны, не нужны и чужды “народу”, а всем другим классам враждебно
их критическое отношение к “устоям” русской жизни, отдавали себя духу
“отрицанья и сомненья” и с гордостью приняли кличку нигилистов. По
натуре своей Рязанов — родной брат нигилисту Базарову из книги Тургенева
“Отцы и дети”, но он — человек более естественный и лучше знающий
жизнь, чем знал её герой Тургенева.
— Это и не жизнь, — говорит он Марии Щетининой, — а чорт знает
что, дребедень такая же, как и всё прочее... Есть такая точка зрения, с которой
самое любопытное дело кажется столь простым и ясным, что на него скучно
смотреть... Но обыкновенно люди, как нарочно, выбирают такие дела, в
которых чорт ногу переломит, потому что хотя толку от этого бывает мало,
зато на каждом шагу можно удивляться, радоваться и ужасаться. Ну, время-то
и проходит, и кажется, что как будто в самом деле живёшь.
— Но что же тогда? — спрашивает Щетинина. — Что же остается
делать человеку, который потерял возможность жить так, как все живут?..
— Остаётся, — Рязанов посмотрел кругом, — остается выдумать,
создать новую жизнь, а до тех пор...
Он махнул рукой.
Это очень безнадёжно, но такие мысли и настроения должны были
мучить наиболее наблюдательных людей “трудного времени”, — людей,
которым “некуда” идти. Базаровы и Рязановы созданы русской жизнью
как бы нарочито для безудержного осуждения ею же самой себя. Эту роль
они исполнили самоотверженно, разбив себе лбы и сердца, погибнув в
отрицании, но по трупам их в жизнь вошли люди революционного дела,
сотни героев, имена которых почтительно вписаны на страницы истории
борьбы за свободу и культуру.

Referências
BRUMFIELD, William C. Bazarov and Rjazanov: The Romantic Archetype in Russian Nihilism.
The Slavic and East European Journal, Vol. 21, n. 4 (Winter, 1977), pp. 495-505.
____. Sleptsov Redivivus. Ad Litteram, 2014, n. 2. pp. 357-389.
____. Two Hamlets: Questioning Romanticism in Turgenev’s Bazarov and Sleptsov’s Riazanov. Journal
of Siberian Federal University. Humanities and Social Sciences, 2015.
268 Odomiro Fonseca. Impressões de Maksim Górki sobre Vassíli Sleptsov – Um estudo sobre o Realismo ...

IAKÚCHIN, N. Krúpnii, Origuinálnii Talánt. 1970. Disponível em: <http://az.lib.ru/s/


slepcow_w_a/text_0050.shtml>
ROGACHEVSKII, Andrei. Precursors of Socialist Realism: Vasilii Sleptsov’s “Trudnoe Vremia”
and its Anti-Nihiist Opponents. The Slavonic and East European Review, Vol. 75, n. 1 (Jan.,
1997), pp. 36-62.
TCHUKÓVSKI, K. I. Literatúrnaia sudbá Vassília Sleptsova. Literatúrnoe Nasledstvo. Vassili
Sleptsov. Moskva: Izdatel’stvo Akademii Naúk SSSR, 1963.
THORSTENSSON, Victoria. The Dialog with Nihilism in Russian Novels of the 1860s – 1870s.
A dissertation submitted in partial fulfillment of the requirements for the degree of
Doctor of Philosophy (Slavic Languages and Literatures) at the University of Wisconsin-
Madison, 2013.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 269

Mulheres, revoluções e missões

Graziela Schneider

Resumo: Dois meses depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares de operárias decidem, no Dia
das Mulheres, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve geral, Aleksándra Kollontai publica o texto
“Nossas missões”, no momento da efervescência do retorno da revista “Rabótnitsa”. A tradução inédita, direta do
russo, do referido texto, escrito por Kollontai no calor dos acontecimentos, tem o intuito de contribuir para recuperar,
por meio da fonte primária, a voz da própria mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento na histo-
riografia desse e de outros processos históricos.
Palavras-chave: Revolução Russa; Aleksandra Kollontai; Movimentos de mulheres; questão de mulheres; tradução

Аннотация: Через два месяца после Февральской Революции, когда тысячи женщин-работниц решили
начать всеобщую забастовку в женский день вопреки решению большевистских лидеров, Александра
Коллонтай опубликовала текст “Наши задачи”, в момент возвращения к работе журнала “Работница”.
Прямой перевод с русского на португальский текста, написанного Коллонтай в разгар тех событий, призван
помочь восстановить через первичный источник голос самой русской женщины-революционерки, а также
противостоять умалчиванию её роли в историографии этого и других исторических процессов.
Ключевые слова: Русская Революция; Александра Коллонтай; Женское Движение; женский вопрос;
перевод

Pouco tempo depois da Revolução de Fevereiro de 1917, em que milhares


de operárias decidem, à revelia dos líderes bolcheviques, dar início a uma greve
geral, Aleksándra Kollontai (Cf. nota 6) publica o texto “Nossas missões”, no
momento da efervescência do retorno da revista “Rabótnitsa”1.

1 “Operária”. A revista começa a ser idealizada em 1913, por Inessa Armand (Choi Chatterjee, “Ce-
lebrating Women: Gender, Festival Culture, and Bolshevik Ideology, 1910-1939”, p. 30). Publicada pela
“Izdátelstvo Pressa”, a partir da iniciativa de mulheres, “Clements identifica a fundação da Rabótnitsa
270 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões

No dia da Mulher de 1917 (23 de fevereiro na Rússia, que seguia o calen-


dário juliano), operárias têxteis conclamam mulheres e homens a protestos, que se
intensificam e culminam na Revolução de Fevereiro. Para além do ato ao mesmo
tempo concreto e simbólico, é importante compreender a participação das mulhe-
res russas no processo revolucionário de forma mais amplificada, antes, durante
e depois de Fevereiro e Outubro de 1917, e o seu protagonismo, que transcende
a célebre manifestação do Dia da Mulher.

como o ponto em que o feminismo bolchevique emergiu” (Clements apud Scheide, Carmen, “‘Born in
October’: the Life and Thought of Aleksandra Vasil’evna Artyukhina, 1889-1969”, in Melanie Ilič (ed.),
“Women in the Stalin Era”, Palgrave Macmillan, 2002, p. 14). Voltada, como o próprio nome alude, para
operárias, o primeiro número “finalmente tem sua primeira edição, com tiragem de 12.000 cópias, em São
Petersburgo, no Dia Internacional das Mulheres, em 1914. Entretanto, “Rabótnitsa” foi lançada apenas
depois de quatro anos de debate sobre a necessidade de mulheres trabalhadoras terem mais do que uma
“página de mulheres” no Pravda. Argumentando que a “questão da mulher” era apenas “um aspecto” da
questão social geral, o POSDR, dominado por homens, opunha-se a uma publicação separada de mulheres,
alegando que era um desperdício de fundos.” (Jane Gary Harris, “Women’s Periodicals in Early Twentieth-
-Century Russia”, in “Encyclopedia of Russian women’s movements”, Norma Corigliano Noonan and
Carol Nechemias, ed., Greenwood Press, 2001, p. 113).
Apesar de ser atribuída a Lenin, há indícios, como cartas, de que a iniciativa da revista foi de mulheres,
Inessa Armand, Nadiéjda Krúpskaia e Konkórdia Samóilova. Além das referidas revolucionárias, impor-
tantes nomes como Anna Elizárova, Liudmila Stal, Praskóvia Kudelli, Klávdia Nikolaiéva, Zlata Lilina,
A. V. Artiúkhina, entre outras, faziam parte do conselho editorial e/ou participavam ativamente.
Ao longo de sua história, teve periodizações, tiragens e perfis variados, além de suspensões temporárias.
Ainda em 1914, depois de apenas sete números, é obrigada a encerrar as atividades, devido a repressão
policial, prisões e à I Guerra Mundial. Retomada somente em 1917, representa um instrumento de forma-
ção e conscientização, bem como um espaço para relatos de operárias sobre as condições de trabalho, as
especificidades e divergências entre as suas demandas e as dos homens, o machismo, as diferenças, tanto
no que diz respeito às próprias mulheres, que não formam um monólito, como entre os pensamentos e
posicionamentos delas sobre questões políticas e práticas, de que forma e com o que atuavam, em geral,
e, particularmente, na luta pela emancipação total das mulheres.
A partir da Guerra Civil, a edição é novamente interrompida, até 1923; posteriormente, passa a ser uma
publicação do Jenotdiél, e, a partir da década de 1930, quando a questão da mulher é decretada, de forma
unilateral e deliberada, resolvida, e o Jenotdiél impostamente fechado, seus contornos e sua temática
passam por profundas mudanças.
Cf., entre outros, Л.Н. Сталь, “История журнала “Работница”, в Печать и женское коммунистическое
движение”, М., Госиздат, 1927 (L. N. Stal, “Istória jurnála Rabótnitsa”, v “Pechát i jénskoie kommunistí-
tcheskoie dvijénie”, M., Gossizdát, 1927); А.Ф Бессонова, “К истории издания журнала “Работница”:
Документы Института Маркса-Энгельса-Ленина-Сталина при ЦК КПСС”, 1955. С. 25-53. 1913-1914;
ЦПА; (A. F. Bessanova, “K istórii izdánia jurnála “Rabótnitsa”: Dokumiénti Institúta Márksa-Éngelssa-
-Lénina-Stálina pri Ts. K. KPSS. S. 25-53. 1913-1914; TsPA, 1955); Александра В. Артюхина, “Первый
женский рабочий журнал в России”, в Всегда с вами: сборник посвященный 50–летию журнала
‘Работница’, Изд. ”Правда”, М. 1964 (Aleksándra V. Artiúkhina, “Piérvi jénski rabótchi jurnál v Rossíi’,
v Vsegdá s vámi: sbórnik posviaschénni 50–létiiu jurnála ‘Rabótnitsa’, Izd. “Pravda”, M., 1964); Rhonda
Lebedev Clark,.“Forgotten Voices: Women in Periodical Publishing of Late Imperial Russia, 1860-1905.”
Ph.D. Diss., University of Minnesota, 1996; Jehanne M. Gheith, e Barbara T. Norton (eds.), “An Improper
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 271

Assim como a Revolução Russa não se iniciou em 1917, a produção e ação


das russas remontam pelo menos ao século XIX, quando já concebiam escritos,
instituições, eventos, periódicos. As mulheres sempre pensaram, escreveram,
criaram, sempre atuaram em diversas arenas, sociais, culturais, artísticas, literárias,
jornalísticas etc., sempre se organizaram, fizeram política, seja de forma declarada
ou não, e suas obras e atos evidentemente não se restringiam à chamada jénski voprós
(questão da mulher/de mulheres/feminina), nem apenas a temáticas relativas às
suas próprias demandas.
É necessário, então, considerar o significado das mulheres russas no
processo revolucionário como a de todas as mulheres de todas as épocas e
lugares, em todos os momentos históricos e quotidianos: como essencial, seja
nos protestos, seja nos combates, seja de forma direta, indireta, em suas lutas
diárias, anônimas.
Dessa forma, é preciso reconhecer o envolvimento das mulheres nas re-
voluções russas não apenas como um lampejo, mas como parte de um histórico
e contexto muito mais vastos e extensos no tempo e no espaço. Não foi apenas
um ato extremado de necessidade devido às condições precarizadas, à miséria, à
fome, não foi apenas por terra e por paz, não foi apenas pelo sufrágio universal,
mas parte de um continuum, tanto em relação às revolucionárias predecessoras, da
segunda metade do século XIX e início do XX, como de todas as mulheres que
lutaram em defesa de sua emancipação, das mais variadas formas, e por meio das
mais variadas armas, figuradas e físicas por palavras e protestos.
Um dos meios mais emblemáticos e imprescindíveis de enfrentamento,
as greves – e, no caso das mulheres russas uma espécie de metonímia, embora
incompleta, de seu protagonismo –, sobretudo as de 1905-07, 1912-1913, e as
anteriores à de fevereiro de 1917, são uma das várias possíveis pistas para se traçar
o percurso das revolucionárias2.

Profession: Women, Gender and Journalism in Late Imperial Russia”, Durham, NC, Duke University
Press, 2001; R. C. Elwood, “Inessa Armand: Revolutionary and Feminist”, Cambridge University Press,
2002; Валентина Ю. Смирнова, “Конструирование возраста в журнале “Работница” в советское
время”, Женщина в российском обществе. 2016. № 1 (78). С.92-102. (Valentina Iu. Smírnova, “Kons-
truírovanie vozrásta v jurnále “Rabótnitsa” v soviétskoie vrémia”, Jénschina v rossískom obschéstvie.
2016. № 1 (78). S.92-102.)
2 Cf. Steve Smith, Class and Gender: Women’s Strikes in St. Petersburg, 1895-1917 and in Shanghai,
1895-1927, Social History, Vol. 19, No. 2 (May, 1994) p. 141-168, em especial as notas 16, 17 e 21, p. 144
e 145; na última, o autor faz menção à estimativa de outro pesquisador, Robert McKean, de que “houve
22 greves desse tipo, em 1912; 25, em 1913; 25, nos primeiros seis meses de 1914; 18, em 1915; 29, em
1916; e 8, nas primeiras sete semanas de 1917”.
272 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões

Entretanto, para uma dimensão mais concreta do protagonismo das mulhe-


res russas, tanto a respeito do processo revolucionário como um todo, quanto em
relação a suas expressões e ações, diretas e indiretas, ao longo dos séculos XVIII
ao XX, é necessário “redescobrir” e restaurar as fontes, o incontável material sobre
elas, sobre suas questões, e, o mais importante, aquele produzido pelas próprias
mulheres, com suas visões, vozes, palavras, posicionamentos.
A tradução direta do russo do referido texto, escrito por Kollontai no calor
dos acontecimentos, tem o intuito de contribuir para recuperar a expressão da
mulher russa revolucionária e lutar contra o seu apagamento3 na historiografia e
nas referências bibliográficas desse e de outros processos históricos.4

3 A respeito do apagamento de mulheres russas, Cf, somente como alguns exemplos de muitos, e de
inúmeros outros campos, inclusive a literatura e as artes em geral, Ann H. Koblitz, “Science, Women
and the Russian Intelligentsia: The Generation of the 1860s”, Isis, Vol. 79, Nº 2, Jun, 1988, p. 208-226;
Olga Valkova, “The Conquest of Science: Women and Science in Russia, 1860-1960”, in Michael Gor-
din et alli (ed.), “Intelligentsia Science: The Russian Century 1860-1960”, 2008, p. 136-165; Наталья Л.
Пушкарева, “Из небытия: женские имена в российской науке начала XX В.”, Научные ведомости
Белгородского государственного университета. Серия: История. Политология. 2010. № 1 (72)
(Natália L. Puchkarióva, “Iz nebitiá: jénskie imená v rossískoi naúke natchála XX V.”, Naútchnie vedó-
mosti Belgoródskogo gossudárstvennogo universitéta. Séria: Istória. Politológuia. 2010. № 1 (72)); Н. Л.
Пушкарева, “Женщины-историки в России 1810-1917 гг”, Вестн. Перм. ун-та. Сер. История. 2012.
№ 1 (18). С.228-245 (N. L. Puchkarióva, “Jénschini-istóriki v Rossíi 1810-1917 gg”, Vestn. Perm. un-ta.
Ser. Istória. 2012. № 1 (18). S.228-245); Татьяна А. Минеева, “Письмо как форма коммуникации
между научным сообществом и женщинами-историками во второй половине XIX начале XX в”,
Вестн. Перм. ун-та. Сер. История. 2012. № 1 (18). С.246-251 (Tatiána A. Minéieva, “Pismó kak fórma
kommunikátsia méjdu naútchnim soobschéstvom i jénschinami-istórikami vo vtorói polovíne XIX na-
tchále XX v”, Vestn. Perm. un-ta. Ser. Istória. 2012. № 1 (18). S.246-251); Mary R. S. Creese, “Ladies in
the Laboratory IV: Imperial Russia’s Women in Science, 1800-1900. A Survey of their Contributions to
Research”, Rowman & Littlefield, 2015.
4 Ainda hoje, tanto a historiografia como as referências bibliográficas gerais sobre mulheres e sobre
mulheres e as revoluções russas, são, majoritariamente, de homens, apesar de existir ampla produção de
mulheres sobre o tema, seja de fontes (embora haja poucas coletâneas, mesmo em russo ou em inglês),
crítica ou pesquisa. Para citar apenas algumas, Cf. Надежда Д. Карпецкая, “Работницы и Великий
Октябрь”, Изд-во Ленинградского университета, 1974 (Nadiéjda D. Karpétskaia, ”Rabótnitsi i Velíki
Oktiábr”, Izd-vo Leningrádskogo universitéta, 1974); Barbara A. Engel, “The Emergence of Women
Revolutionaries in Russia”, A Journal of Women Studies, Vol. 2, Nº 1, Spring 1977, p. 92-105.; В. С.
Шакулова, “Культурная революция и женский вопрос”, “Опыт КПСС в решении женского
вопроса”, Отв. ред. Н. И. Кондакова, М., Мысль, 1981. – С. 77-102.. (V. S. Chakulóva, “Kultúrnaia
revoliútsia i jénski voprós”, “Ópit KPSS v rechénii jénskogo vopróssa”, Otv. red. N. I. Kondakova, M.,
Mísl, 1981. S. 77-102.); Rose L. Glickman, “Russian Factory Women: Workplace and Society, 1880-1914”,
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1984; Cathy Porter, “Women in Revolutionary
Russia”, Cambridge, Cambridge University Press, 1987; Christine Johansson, “Women’s Struggle for Higher
Education in Russia, 1855-1900”, Mc-Gill-Queen’s University Press, 1987; Элеонора А. Павлюченко,
“Женщины в русском освободительном движении: от Марии Волконской до Веры Фигнер”, Мысль,
1988 (Eleonora A. Pavliútchenko, Jénschini v rússkom osvobodítelnom dvijéni: ot Maríi Volkónskoi do
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 273

Наши задачи

Большая, ответственная, серьезная задача стоит сейчас перед


работницами и рабочими нашей страны. Надо построить “новую Россию”,
такую Россию, где рабочему люду, где наемнослужащим, прислуге,
поденщикам, работницам иглы и просто женам рабочих жилось бы лучше и
светлее, чем жилось при проклятой памяти царствования Николая Кровавого.
Но мало того, что перед рабочими и работницами России сейчас стоит
задача завоевать и закрепить за пролетариатом, за мелкими крестьянами
власть в государстве и провести, установить такие порядки, чтобы ограничить
аппетиты выжимателей-капиталистов, охранить интересы трудящихся.
Пролетариат России сейчас находится в особом положении по сравнению
с рабочими и работницами других стран.
Великая российская революция поставила нас, русских работниц
и рабочих, в первые ряды борцов за общемировое, рабочее дело, за
общерабочие интересы.
Мы можем свободнее говорить, писать и действовать, чем работницы
и рабочие других стран.
Как же не использовать нам эту свободу, завоеванную кровью наших
товарищей, для того чтобы теперь, не медля, сосредоточить наши силы, силы

Véri Figner, Mísl, 1988); Marie-Claude Burnet-Vigniel, “Femmes russes dans le combat revolutionnaire”,
Institut d’études slaves, Paris, 1990; Barbara E. Clements, “Bolshevik women”, Cambridge, CUP, 1997; B.
A. Engel, “Not by Bread Alone: Subsistence Riots in Russia during World War I”, The Journal of Modern
History 69, December 1997, p. 696-721; Наталья П. Рушанина, “Женский вопрос в России и основные
подходы к его изучению в дореволюционный период”, Magistra Vitae: электронный журнал по
историческим наукам и археологии. 1999. № 2 (10). С.77-87 (Natália P. Ruchanina, “Jénski voprós v
Rossíi i osnóvnie podkhódi k ego izutchéniu v dorrevoliutiónni períod”, Magistra Vitae: elektróni jurnál
po istorítcheskim naúkam i arkheológui. 1999. № 2 (10). S.77-87); Jane McDermid, “Midwives of the
revolution: female Bolsheviks and women workers in 1917”, London, UCL Press, 1999; Anna Hillyar;
Jane McDermid (ed.), “Revolutionary Women in Russia, 1870-1917: A Study in Collective Biography”,
Manchester, Manchester University Press, 2000; Rochelle G. Ruthchild, “Equality & Revolution: Women’s
Rights in the Russian Empire, 1905-1917”, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2010; Моника
И. Старуш, “К истории “Женского вопроса” в СССР в первые постреволюционные годы”,
Вестник МГУКИ, № 5, 2011, С.59-64 (Mónika I. Staruch, “K istórii “Jénskogo vopróssa” v SSSR v
pérvie postrevoliutsiónnie gódi”, Véstnik MGUKI, № 5, 2011, S.59-64); Aino Saarinen; Kirsti Ekonen;
Valentina Uspenskaia (eds.), “Women and Transformation in Russia”, Nova Iorque, Routledge, 2014;
Marianna Muravyeva; Natalia Novikova (eds), “Women’s History in Russia: (Re)Establishing the Field”,
Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Publishing, 2014, Erin K. Krafft, “Reading Revolution in
Russian Women’s Writing: Radical Theories, Practical Action, and Bodies at Work”, Phd. Dissertation,
Brown University, Providence, Rhode Island, 2015.
274 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões

женщин рабочего класса, и повести неустанную, настойчивую массовую


борьбу за скорейшее окончание мировой бойни?
Наши товарки, работницы других стран, ждут от нас этого шага.
Война сейчас — самое страшное зло, которое тяготеет над нами. Пока
война не кончена, не построить нам новой России, не разрешить вопроса о
хлебе, о продовольствии, не одолеть дороговизны. Пока война каждый час
убивает, калечит наших детей и мужей, нет покоя нам, женщинам рабочего
класса!..
Если наша первая задача — помочь нашим товарищам построить
новую демократическую Россию, то вторая, не менее назревшая и более
близкая наша задача,— поднять работниц для войны с войной.
А это значит: во-первых, не только самой понять, что это не наша
война, что ведется она во имя карманных интересов толстосумов-хозяев,
банкиров, фабрикантов, но и постоянно разъяснять это товарищам
работницам и рабочим.
Во-вторых, это значит: сплачивать силы работниц и рабочих вокруг
той партии, которая не только защищает интересы пролетариата России, но
и борется за то, чтобы во славу капиталистов не лилась пролетарская кровь.
Товарищи работницы, нет больше наших сил мириться с войной,
с дороговизной! Надо бороться! Идите в наши ряды, в ряды социал-
демократической рабочей партии! Но мало сорганизоваться в партию. Если
мы действительно хотим ускорить мир, надо, чтобы рабочие и работницы
повели борьбу за то, чтобы власть в государстве перешла бы из рук крупных
капиталистов, истинных виновников всех наших слез, всей крови, что
льется на полях битвы, в руки представителей наших — в Совет рабочих и
солдатских депутатов.
В борьбе с войной и дороговизной, в борьбе за то, чтобы закрепить
власть в России за неимущими, за трудящимися, в борьбе за новые порядки
и законы, многое зависит от нас, от работниц. Прошло то время, когда успех
рабочего дела решался только организованностью мужчин. Теперь, с этой
войной, произошла резкая перемена в положении женщин рабочего класса.
Женский труд встречается теперь повсюду. Война заставила работниц взяться
за работу, о которой раньше они и не помышляли. Если в 1912 году на 100
мужчин на фабриках, на заводах приходилось 45 женщин, то теперь нередко
бывает, что на 75 рабочих насчитывается 100 работниц.
Успех рабочего дела, успех борьбы рабочих за лучшую жизнь: за более
короткий день, за более высокую плату, за страхование на случай болезни,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 275

безработицы, старости и т. д., за защиту труда наших детей, за лучшие


школы — зависит теперь не только от сознательности и организованности
мужчин, но и от того, сколько нас, работниц, войдет в ряды организованного
рабочего класса. Чем больше нас будет в рядах организованных борцов за
наше общее рабочее дело и за наши рабочие нужды, тем скорее мы добьемся
уступок от капиталистов-выжимателей.
В организованности вся наша сила, вся наша надежда!
Наш клич должен быть сейчас: товарищи работницы!
Не стойте в одиночку! В одиночку мы — соломинка, которую всякий
хозяин согнет. Организованные, мы — великая сила, которую никто сломить
не может.
Мы, работницы, первые в дни русской революции подняли Красное
знамя, мы первые в Женский день вышли на улицу61. Поспешим же и
сейчас в первые ряды борцов за рабочее дело, идем в профессиональные
союзы, в социалдемократическую партию, в Совет рабочих и солдатских
депутатов!
Будем добиваться сплоченными рядами скорейшего окончания бойни
народов, будем бороться со всеми, кто забыл великий завет рабочего люда
о единении, о солидарности рабочих всех стран.
Только в революционной борьбе против капиталистов всех стран и
только в единении с работницами и рабочими всего мира мы завоюем новое
светлое будущее — социалистическое братство рабочих.

Александра Коллонтай
“Работница”, 1917 г. № 1—2, стр. 3—4.

Nossas missões5

Há uma grandiosa missão, crucial, séria, diante das trabalhadoras e traba-


lhadores do nosso país. É necessário construir uma “nova Rússia”, uma Rússia
onde as pessoas trabalhadoras, onde os empregados assalariados, as empregadas
domésticas, os temporários, as costureiras e simplesmente as esposas dos ope-

5 Publicado pela primeira vez em Работница (Rabótnitsa), 10 maio de 1917. № 1-2, p. 3-4.
276 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões

rários viveriam melhor e de forma mais promissora do que viviam sob a maldita
memória do reinado de Nikolai, o Sanguinário.
Mas, diante dos operários e operárias da Rússia não há agora apenas
a missão de conquistar e consolidar o poder estatal pelo proletariado e pelos
pequenos agricultores, de introduzir e instaurar normas para limitar as ambições
dos capitalistas exploradores, e de defender os interesses da classe trabalhadora. O
proletariado da Rússia se encontra agora em uma posição especial em comparação
com os operários e operárias de outros países.
A grande revolução russa nos colocou, operárias e operários russos, nas
primeiras filas dos combatentes por uma causa operária, universal, pelos interesses
dos operários em geral.
Podemos falar, escrever e agir com mais liberdade do que as operárias e
operários de outros países.
Como não usar essa liberdade, conquistada pelo sangue de nossos camara-
das, para, neste momento, sem perder tempo, concentrar nossas forças, as forças
das mulheres da classe operária, e conduzir uma luta das massas, incansável, per-
sistente, pelo fim, o mais rápido possível, do massacre mundial?
Nossas camaradas, operárias de outros países, esperam de nós esse passo.
A guerra é agora o mal mais terrível que gravita sobre nós. Enquanto a
guerra não acabar, não poderemos construir uma nova Rússia, não será resolvida a
questão do pão, da comida, não será superada a carestia. Enquanto a guerra matar
a cada hora, mutilar nossos filhos e maridos, não haverá paz para nós, mulheres
da classe operária!
Se a nossa primeira missão é ajudar nossos companheiros a construir uma
nova Rússia democrática, então a nossa segunda missão, não menos urgente, e
sim mais iminente, é alçar as operárias para a guerra contra a guerra.
E isso significa: primeiro, não apenas entender por nós mesmas que esta
não é nossa guerra, que ela é conduzida em nome dos interesses dos bolsos dos
patrões ricaços, banqueiros, industriais, mas também explicar isso a camaradas
operárias e operários incessantemente.
Segundo, isso significa: unir as forças das operárias e operários em torno do
partido que não só defende os interesses do proletariado da Rússia, mas também
luta para que o sangue proletário não seja derramado para a glória dos capitalistas.
Camaradas operárias, não temos mais forças para nos resignarmos com a
guerra, com a carestia! Devemos lutar! Vocês devem ir para as nossas fileiras, para
as fileiras do Partido Operário Social Democrata! Mas não basta se organizar no
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 277

partido. Se quisermos realmente antecipar a paz, os operários e operárias devem


conduzir a luta para que o poder estatal passe das mãos dos grandes capitalistas,
os verdadeiros culpados de todas as nossas lágrimas, de todo o sangue que é
derramado nos campos de batalha, para as mãos de nossos delegados – para o
Soviete de Deputados Operários e Soldados.
Na luta contra a guerra e a carestia, na luta para se consolidar o poder na
Rússia pelos desprovidos, pelos trabalhadores, na luta por novas normas e leis,
muito depende de nós, das operárias. Já passou o tempo em que o êxito da causa
operária era decidido apenas pela capacidade de organização dos homens. Neste
momento, contra essa guerra, houve uma transformação profunda na situação
de mulheres da classe operária. O trabalho feminino agora é visto por toda parte.
A guerra obrigou as operárias a começar a trabalhar com algo que nunca haviam
pensado antes. Se, em 1912, havia 45 mulheres para cada 100 homens nas fábricas,
neste momento não é raro que haja 100 operárias para cada 75 operários.
O êxito da causa operária, o êxito da luta dos operários por uma vida me-
lhor: por menos horas de trabalho, por um salário mais alto, por seguro em caso
de doença, desemprego, idade avançada etc., pela proteção contra o trabalho de
nossas crianças, por melhores escolas – depende neste momento não apenas da
consciência e da capacidade de organização dos homens, mas também de quanto
nós, operárias, ingressaremos nas fileiras da classe operária organizada. Quanto
mais estivermos nas fileiras dos combatentes organizados por nossa causa operária
comum e por nossas demandas operárias, mais cedo obteremos concessões dos
exploradores capitalistas.
Na capacidade de se organizar está toda a nossa força, toda a nossa espe-
rança!
Nosso brado agora deve ser: camaradas operárias!
Não fiquem sozinhas! Sozinhas, nós somos como um graveto, que qualquer
patrão despedaça. Organizadas, nós somos uma força muito grande que ninguém
pode quebrar.
Nós, operárias, fomos as primeiras a erguer a Bandeira vermelha nos dias
da revolução russa, fomos as primeiras a ir para a rua, no Dia da Mulher. Vamos
nos precipitar também agora para as primeiras fileiras dos combatentes pela causa
operária, vamos para os sindicatos, para o Partido Social-Democrata, para o Soviete
de Deputados Operários e Soldados!
Vamos obter por meio das fileiras unidas o fim, o quanto antes, do massacre
dos povos, lutaremos contra todos os que esqueceram a grande aliança da multi-
dão de operários pela união, pela solidariedade dos operários de todos os países.
278 Graziela Schneider. Mulheres, revoluções e missões

Somente na luta revolucionária contra os capitalistas de todos os países e


somente na união com as operárias e operários de todo o mundo conquistaremos
um futuro novo e promissor - a fraternidade socialista dos operários.

Aleksandra Kollontai6
Rabótnitsa, 1917. № 1-2, p. 3-4.

6 Aleksándra Mikháilovna Kollontai (1872-1952), possivelmente a revolucionária russo-soviética mais


célebre e mais traduzida, lida e pesquisada no Ocidente, também foi escritora, jornalista e política. Reu-
nida em mais de 10 tomos, sua obra inclui artigos, ensaios, memórias e ficção, sobretudo a respeito da
emancipação da mulher. No Brasil, começa a ser traduzida, indiretamente, a partir de 1958.
De família aristocrática, nasce em São Petersburgo. Filia‑se ao Partido Operário Social‑Democrata Russo,
em 1899; entre 1901 e 1903 vai para a Europa Ocidental. Ao retornar para a Rússia, participa da Revolução
de 1905; devido a uma publicação polêmica, é forçada a se exilar, novamente na Europa Ocidental, entre
1908 e 1917, e continua atuando em várias atividades políticas, aproximando e distanciando-se tanto dos
mencheviques como dos bolcheviques, até 1915, quando ingressa de forma mais categórica no Partido
Bolchevique. Na Revolução de Fevereiro ainda se encontra fora da Rússia; quando retorna, participa ati-
vamente de todo o processo revolucionário, ao longo de 1917, com discursos, textos, como delegada em
congressos, organizando greves etc. Depois da revolução de Outubro, foi a primeira mulher a atuar no
governo soviético, como comissária de Assistência Social, trabalhando em especial com políticas relativas
às questões das mulheres e sua concretização não apenas jurídica, mas na esfera cotidiana. Em 1919 ajuda
a instituir, com Inessa Armand, o Jenotdiél – Jénski Otdiél – o Departamento ou Seção de Mulheres
do Comitê Central do Partido Comunista da URSS. Participou do conselho editorial da “Rabótnitsa” e
da “Komunístka”. Em 1921, coopera na fundação da Oposição Operária. Foi embaixadora na Noruega
(1923-1926; 1927-1930), México (1926-1927) e Suécia (1930-1945), a primeira mulher da URSS e a segunda
da história. Falece em 1952, em Moscou.
Cf., entre outros, А. М. Иткина, “Революционер, трибун, дипломат: Страницы жизни А. М.
Коллонтай”, М.: Политиздат, 1970. (A. M. Itkina, “Revoliutsionér, tribún, diplomát: Stranítsi jízni A.
M. Kollontái”, M.: Politizdát, 1970); B. Evans Clements, “Bolshevik Feminist: The Life of Aleksandra
Kollontai”, Bloomington e London: Indiana University Press, 1979; Beatrice Farnsworth, “Aleksandra
Kollontai: Socialism, Feminism, and the Bolshevik Revolution”, Stanford, CA, Stanford University
Press, 1980; B. Williams, “Kollontai and After: Women in the Russian Revolution”, in S. Reynolds (ed.),
“Women, State and Revolution: Essays on Power and Gender in Europe since 1789”, Brighton, 1986,
p. 65-6.; Cathy Porter, “Alexandra Kollontai: A Biography”, London, Virago, 1980; З. С. Шейнис,
“Путь к вершине: Страницы жизни А. М. Коллонтай”, М.: Сов. Россия, 1987. (Z. S. Cheinis, “Put k
verchíne: Strabítsi jízni A. M. Kollontái”, M.: Sov. Rossía, 1987); Norma C. Noonan, “Two Solutions to
the Zhenskii Vopros in Russia and the USSR — Kollontai and Krupskaia: A Comparison.”, Women and
Politics 11, no. 3, 1991, p. 77-99; Norma Corigliano Noonan e Carol Nechemias (ed.), “Encyclopedia
of Russian women’s movements”, Greenwood Press, 2001, p. 142-144; Тимо Вихавайнена e Евгения
Хейсканена, “Александра Коллонтай и Финляндия.”. Перевод с финского на русский: Евгений
Хейсканен. Renvall Institute Publications 29. Hakupaino Oy. Helsinki, 2010. (Timo Vikhavainena i
Evguenia Kheiskanena, “Aleksandra Kollontái i Finliándia”. Perevód s fínskogo na rússki: Evgueni
Kheiskanen. Renvall Institute Publications 29. Hakupaino Oy. Helsinki, 2010.); Ирина И. Юкина, “На
пути к марксистскому феминизму. Деятельность Александры Коллонтай” (Irína I. Ipukina, “Na púti
k marksístskomu feminízmu. Deiátelnost Aleksándri Kollontái”), in Sociology of Science and Technology,
Volume 5, No. 2, 2014.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 269-279 279

Referências
CHATTERJEE, Choi. Celebrating Women: Gender, Festival Culture, and Bolshevik Ideology, 1910-
1939, University of Pittsburgh Press, 2002, p. 30.
HARRIS, Jane Gary. “Women’s Periodicals in Early Twentieth-Century Russia”, in En-
cyclopedia of Russian women’s movements, Norma Corigliano Noonan and Carol Nechemias
(ed.), Greenwood Press, 2001, p. 113.
KOLLONTAI, A. M. Наши задачи. “Работница”, 1917 г. № 1-2, стр. 3-4. (Náchi Za-
dátchi. “Rabótnitsa”, 1917. № 1-2, p. 3-4).
NOONAN, Norma Corigliano. “Kollontai, Aleksandra Mikhailovna (1872-1952)”, in
Encyclopedia of Russian women’s movements, Norma Corigliano Noonan and Carol Nechemias,
ed., Greenwood Press, 2001, p. 142-144.
SCHEIDE, Carmen. ‘Born in October’: the Life and Thought of Aleksandra Vasil’evna Ar-
tyukhina, 1889-1969, in Ilič, Melanie (ed.). “Women in the Stalin Era”, Palgrave Macmil-
lan, 2002, p. 14.
SMITH, Steve. Class and Gender: Women’s Strikes in St. Petersburg, 1895-1917 and in Shanghai,
1895-1927. “Social History”, Vol. 19, No. 2 (May, 1994) p. 141-168.
280 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar

A Revolução por outro olhar

Márcia Pileggi Vinha

Resumo: Tradução do russo para o português de trecho do diário de Ivan Búnin, Dias Malditos. Após introdução
sobre o autor e sua obra, o artigo discute o processo de tomada de decisão por parte do tradutor, descrevendo questões
como a opção pelo emprego de notas de rodapé e contaminação do texto na língua de chegada.
Palavras-chave: tradução comentada; diário; Revolução Russa; Ivan Búnin

O livro Dias Malditos, de Ivan Búnin (1870-1953), consiste no diário do


escritor referente aos anos de 1918 e 1919, período que marca seus últimos dias
na Rússia, anteriores ao exílio. A obra foi publicada em 1936, quase duas décadas
depois de escrita, vindo a ser realmente celebrada pela opinião pública russa nos
anos noventa quando, com o fim da censura soviética ela pôde circular livremente
entre os leitores. Considerada importante obra da literatura testemunhal, recen-
temente aceita-se também sua interpretação como obra ficcional, tendo como
justificativa, principalmente, o intenso trabalho editorial de Búnin com vistas a
tocar o leitor. Sabe-se que, à diferença de outros escritores, escrever e reescrever
o mesmo texto era prática central no seu trabalho criativo.
Assim foi com seus poemas e célebres obras, como a novela A Aldeia (1910)
e o conto O Senhor de São Francisco (1915), criados ainda na Rússia imperial. Em
1921, Búnin emigrou para a França, deixando para trás a guerra civil em que os
brancos perdiam cada vez mais força. Ele nunca mais retornaria, embora tenha
cogitado fazê-lo num momento posterior de seu exílio. Enquanto emigrante, a
Rússia continuou sendo o cenário principal de suas criações, fase marcada pelo
êxito de receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1933, tendo sido Búnin o pri-
meiro escritor russo a consegui-lo. No exílio ele escreveria obras que seriam ainda
mais celebradas, como A Vida de Arseniev (1933) e Aléias Escuras (1943), que se
tornaram parte dos cânones literários russos.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 281

Dias Malditos é composto por notas curtas e rotineiras, datadas, que descre-
vem as tragédias da Guerra Civil mescladas a afazeres triviais num ambiente de
profunda mudança social e política. Em suas anotações o escritor revela também o
próprio olhar sobre como a sociedade passou a absorver as modificações em curso.
Os relatos são permeados pelas opiniões do autor, contrárias ao regime bolchevista
que acabara de aniquilar o tsarismo e, no momento da narrativa, procedia com
a aniquilação de toda uma classe social – a burguesia, representada por nobres,
burgueses e um incontável número de artistas e intelectuais – processo que Búnin
vivia, testemunhava e temia. O narrador também reproduz ao leitor as opiniões de
pessoas da rua, de amigos, bem como excertos de jornais bolchevistas, retratando
assim a diversidade de olhares sobre o momento histórico e compondo um verda-
deiro debate entre os dois lados de uma sociedade dividida entre os apoiadores do
antigo regime e os defensores do novo. Desta forma, o leitor pode acompanhar
a experiência subjetiva de testemunhas, tendo acesso à atmosfera da época, na
qual a polarização da sociedade já era tão intensa, que qualquer posicionamento
crítico sobre os acontecimentos não passaria livre da categorização de direita ou
esquerda. A voz de um branco prevalece, por certo, questionando a legitimidade
e a violência do poder tomado e exercido pelos vermelhos.

22 апреля.

Вспомнился мерзкий день с дождем, снегом, грязью, – Москва,


прошлый год, конец марта. Через Кудринскую площадь тянутся бедные
похороны – и вдруг, бешено стреляя мотоциклетом, вылетает с Никитской
животное в кожаном картузе и кожаной куртке, на лету грозит, машет
огромным револьвером и обдает грязью несущих гроб:
– Долой с дороги!
Несущие шарахаются в сторону и, спотыкаясь, тряся гроб, бегут со всех
ног. А на углу стоит старуха и, согнувшись, плачет так горько, что я невольно
приостанавливаюсь и начинаю утешать, успокаивать. Я бормочу: – «Ну
будет, будет, Бог с тобой!» – спрашиваю: – «Родня, верно, покойник-то?» А
старуха хочет передохнуть, одолеть слезы и наконец с трудом выговаривает:
– Нет… Чужой… Завидую…
И еще вспомнилось. Москва, конец марта позапрошлого года.
Большой, толстый князь Трубецкой кричит, театрально сжимая свои
маленькие кулачки:
282 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar

– Помните, господа: пгусский сапог безжалостно газдавит нежные


гостки гусской свободы! Все на защиту ее!
Устами князя говорили тогда сотни тысяч уст. Нечего сказать, нашли
для кого защищать «русскую свободу!»
Зимой 18 года те же сотни тысяч возложили все свои упования на
спасение (только уже не русской свободы) именно через немцев. Вся Москва
бредила их приходом.
Понедельник, газет нет, отдых в моем помешательстве (длящемся с
самого начала войны) на чтении их. Зачем я над собою зверствую, рву себе
сердце этим чтением?
На редкость твердо уверены все эти Пешехоновы, что только им
принадлежит решение российской судьбы. И когда же? Когда они должны
были бы в тартарары провалиться хотя бы от одного стыда за все то, что они
явили на диво всему миру за свое шестимесячное царствование в 17 году.
Совершенно нестерпим большевистский жаргон. А каков был вообще
язык наших левых? «С цинизмом, доходящим до грации… Нынче брюнет,
завтра блондин… Чтение в сердцах… Учинить допрос с пристрастием…
Или – или: третьего не дано… Сделать надлежащие выводы… Кому
сие ведать надлежит… Вариться в собственном соку… Ловкость рук…
Нововременские молодцы…» А это употребление с какой-то якобы
ядовитейшей иронией (неизвестно над чем и над кем) высокого стиля? Ведь
даже у Короленко (особенно в письмах) это на каждом шагу. Непременно
не лошадь, а Россинант, вместо «я сел писать» – «я оседлал своего Пегаса»,
жандармы – «мундиры небесного цвета».

22 de abril.

Eu me lembrei de um dia horrível, com chuva, neve e lama – ano passado,


Moscou, final de março. Pela Praça Kudrinskaya se arrastava um pobre cortejo
fúnebre até que, de repente, atirando insano com uma motocicleta, vem voando
da Nikitskaya um animal de quepe de couro e casaco de couro que, apontando
um revólver enorme, ameaça e espirra lama nas pessoas que carregavam o caixão:
– Fora do caminho!
De um salto eles se afastam para o lado, e tropeçando, chacoalhando o cai-
xão, correm o mais rápido que podem. E, num canto, uma velha, contorcendo-se,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 283

chora de um jeito tão amargo que eu involuntariamente paro e começo a consolá-


-la, a acalmá-la. Balbucio: “Calma, calma… Deus está com você!” e pergunto: “É
seu parente, o falecido, não é?” A velha, que quer respirar e limpar as lágrimas,
finalmente articula:
– Não… não é… Que inveja, a minha...
Mais lembranças. Moscou, final de março do ano retrasado. O príncipe
Trubetskoi1, gordo, grande, está gritando, seus punhos pequeninos cerrados de
forma teatral.
– Lembguem-se, senhogues! A bota pgussa vai pisar sem dó nesses delicados
bgotos da libegdade russa! Todos pela sua pgoteção!2
Centenas de milhares de lábios repetiram suas palavras. Sem nada mais a
dizer – já encontraram alguém para defender a “liberdade russa”.
No inverno de dezoito essas mesmas centenas de milhares colocaram suas
esperanças na salvação (que já não era mais a liberdade russa), em particular, pelos
alemães. Moscou inteira delirou com sua chegada.
Hoje é segunda, jornal não circula, e eu descanso da minha insanidade (que
dura desde o comecinho da guerra) por lê-los. Por que eu cometo essa atrocidade
contra mim mesmo, despedaçando meu coração a cada leitura?
Todos esses Pechekhonoves3 estão convencidos de um jeito tão certo e
excepcional, que só a eles cabe sugerir uma solução para o destino russo. Mas
quando mesmo? Quando eles deveriam ter ido parar no quinto dos infernos pela
vergonha de tudo o que mostraram ao mundo inteiro com aquela maravilha de
reinado de um total de seis meses no ano de dezessete.
O jargão bolchevique é absolutamente insuportável. E qual foi a língua da
nossa esquerda? “Com cinismo, chegando ao gracioso… Atualmente morena,
amanhã loira… A leitura de todo coração… Fazer um interrogatório com afei-
ção... Ou, ou: outra opção não precisa… Chegar a uma conclusão devida… A
quem, presentemente, é conhecido ser devido… Cozinhar no seu próprio suco…
A destreza das mãos… Os heróis da nova era...” E esse emprego com uma certa
ironia, supostamente maliciosa (sem ficar claro contra o que e contra quem), em

1 No excerto, Búnin caracteriza o personagem como uma pessoa com anciloglossia.


2 Aleksei Pechekhónov (1967-1933), político socialista, líder partidário e economista, foi ministro do
Governo Provisório por alguns meses. Búnin se dirige a seus partidários.
3 Excerto traduzido do inglês. Para uma discussão detalhada dos fatos verdadeiros e falsos, veja Marullo,
1998, p. 43, 53, 55, 57, 94, 83, 124, 137, 175, 146, 179, 186 e 203.
284 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar

estilo elevado? E não é que até Korolenko (especialmente em cartas) tem isso a
cada passo? É infalível: não é cavalo, é Roucinante; ao invés de “eu me sentei para
escrever”, é “eu selei meu Pégasus”; não é farda, é “uniformes de cor celestial”.
*
Ao leitor brasileiro contemporâneo que acompanha o cenário político na-
cional enquanto lê Dias Malditos, é inevitável relacionar as mudanças pelas quais a
Rússia atravessava às mudanças pelas quais o Brasil atravessou nos últimos anos
e ainda atravessa. As analogias são tantas que o tradutor brasileiro projeta carac-
terísticas de sua própria sociedade no texto de tal forma que o vivencia como se
a história não lhe fosse de todo desconhecida, apesar de algumas semelhanças
serem um tanto às avessas, como será esclarecido. Tamanha proximidade nos
pareceu um desafio quase orgânico, talvez maior do que as dificuldades impostas
pelas questões técnicas da tradução.
Não obstante os cenários distintos que separam o leitor de hoje dos per-
sonagens da época, a polarização entre direita e esquerda é um dos traços que
guardamos em comum. O crítico Simon Karlinsky (1977, p. 5-6), exilado como
Búnin, comenta que, à época, nenhum posicionamento sobre os acontecimentos
em questão poderia suplantar essa categorização binária, que acabava reduzindo
a rótulos simplistas críticas com poder de esclarecimento, dificultando assim o
diálogo. Como exemplo ele cita a “Western self-censorship”, ou seja, a política
de alguns veículos dos países europeus e dos EUA de não publicar escritores
de direita, basicamente a esmagadora maioria dos emigrados. Tal categorização
ignorava, por exemplo, que os exilados não apenas emigravam pelo princípio da
liberdade na arte, mas também para preservar a própria vida – eram refugiados.
Que os rótulos caminham em direção contrária ao esclarecimento já se sabe. E o
que o livro nos faz refletir é sobre qual eficácia há, no debate nacional sobre os
rumos de nossa nação, de nos chamarmos mutuamente de petralhas, coxinhas,
patos, mortadelas, CBFs e paneleiros.
Outro paralelo inevitável é o visível aumento da agressividade quando o
asunto é política, tanto entre estranhos como entre pessoas ligadas por um relacio-
namento amistoso. Testemunhamos no Brasil a cólera com que opiniões diferentes
se encontravam pessoal e virtualmente, cólera que também existia nas ruas de
Odessa e Moscou. Em particular, Búnin também narra as trocas de acusações e
atribuição mútua de responsabilidade entre esses dois pólos da sociedade: se na
Rússia a esquerda acusava a elite de negligenciar e abusar dos trabalhadores, a direita
os acusava de uma longa lista de extorsão, roubo, assassinatos e linchamentos, vio-
lência que por princípio aniquilaria o próprio ideal revolucionário, argumentavam.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 285

Hoje, no nosso cenário, vemos muitos representantes da direita responsabilizando


representantes da esquerda pelas consequências nefastas de um impeachment
que eles apoiaram, enquanto a esquerda chama a direita à responsabilidade, pois
sem tal apoio o governo não teria mudado. A própria interpretação de como se
deu a mudança do poder político também permite um paralelo às avessas com a
Revolução: grosso modo, se a tomada do poder pelos bolcheviques foi uma vitória
legítima para a esquerda, para a direita era foi violenta, despreparada e ilegítima; já
aqui, observamos uma direita que vê o impeachment como uma conquista advinda
de instrumentos legais que refletem um avanço da democracia brasileira e maior
conscientização popular, ao mesmo tempo em que se vê uma esquerda apontando
para a incoerência factual e legal de um impeachment que considera ser um golpe
brando. Dias Malditos não deixa dúvida de que, tanto os russos de ontem como os
brasileiros de hoje ressentem as mudanças que vivenciam e remoem a sensação de
terem sido injustiçados pelo outro lado que levou cabo tais alterações, sensação que
no cenário brasileiro parece ainda estar acesa e mediar nossas relações e a forma
como atuamos na sociedade. A ideia de injustiça parece estar na base das reações
acaloradas em ambos os cenários, promovendo as acusações e reivindicações de
reparo, inevitavelmente legítimas a ambos os lados.
Outra analogia pertinente diz respeito às notícias falsas e boatos, que abun-
davam tanto no período em que elas levavam dias para chegar ao leitor, como nos
dias atuais, em que elas demoram segundos para correr o planeta. Em diversas
passagens Búnin narra as expectativas causadas por uma notícia que se verifica,
posteriormente, infundada. Muitas delas são apresentadas ao leitor por conversas
triviais, caracterizando a atmosfera de espera ansiosa e grande incerteza, como
no trecho abaixo:

7 de março.  

Na cidade estão falando:


– Eles resolveram exterminar, no geral, todos, todos menores de sete anos
para que depois nem uma pessoa se lembre de nossa época.
Pergunto ao zelador:
– O que você acha, é verdade?
Ele dá um suspiro: – Tudo é possível, tudo é possível.
– Será possível que o povo vai deixar?
– Vai, meu caro bárin, e como vai! Fazer o quê com eles? Dizem que foram
duzentos anos de domínio dos tártaros, mas será que naquela época o povo
já era assim tão mole? (Bunin, 2009, p. 341)
286 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar

Thomas Marullo, tradutor da obra para o inglês e estudioso do escritor,


deu-se ao trabalho meticuloso de verificar cada notícia que Búnin compartilhava
no diário. Vale reproduzir um trecho em que Búnin toma nota: “Aniuta disse: O
Exército Vermelho foi perseguido em Moscou.”. Marullo esclarece o comentário
em nota de rodapé: “Nada poderia estar mais longe da verdade.” (1998, p. 124)4.
Isso nos faz lembrar os vídeos e textos que circulam virtualmente com informações
tomadas como verdade por muitos, porém sem fundamento legítimo, que mais
disseminam o preconceito do que esclarecem. Como sabemos, nem sempre as
notícias são verificadas antes de serem tomadas como verdades. Esses paralelos
acabam levando o tradutor a um envolvimento emocional com o texto, que não ne-
cessariamente contribui para uma tradução leal, como exemplificaremos em breve.

Deixando de lado as questões subjetivas e voltando o olhar para os


componentes formais do texto, a composição é constituída por uma aparente
“displicência estilística”, certamente proposital, entremeada por trechos de
linguagem literária, suspendendo por vezes o ritmo da obra como um todo. O
tom de discurso oral, no entanto, prevalece. Nesse excerto a linguagem oral se
mistura visivelmente à literária. Tal efeito é obtido pela ausência de preposições
e de conectivos em associação à figuras de linguagem, característica de um texto
trabalhado: a marcação temporária, por exemplo, não ocorre no genitivo, nem a
espacial, no prepositivo, como manda a regra, sendo traços característicos da fala
e até da linguagem cinematográfica. Metáforas, como “atirando insano com uma
motocicleta” complementam, por exemplo, a repetição “de couro” e a palavra
“animal” como xingamento, que remetem à informalidade. Confessamos o desejo
de se inserir pequenos vocábulos que tornariam o texto em português mais fluído,
como “Eu me lembrei de um dia horrível (...) era em Moscou no ano passado, no
final de março”, pois eles não prejudicariam o sentido do texto. Igualmente, hou-
ve o ensejo de se ocultar a repetição “de couro”, pois soaria mais palatável aos
ouvidos brasileiros. Contudo, evitando causar desequilíbrio ao contraste de tons,
optamos por mantê-los no português.
A palavra чужой (tchujói), nesse caso, “que não é da família”, foi substituída
apenas pela dupla negação, tão característica ao português coloquial, e cuja com-
preensão é dada somente a partir da pergunta do interlocutor. Завидую (zavíduiu),
se traduzido na primeira pessoa no Presente do Indicativo, conforme no original,

4 Excerto traduzido do inglês. Para uma discussão detalhada dos fatos verdadeiros e falsos, veja Marullo,
1998, p. 43, 53, 55, 57, 94, 83, 124, 137, 175, 146, 179, 186 e 203.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 287

comprometeria o tom de conversa e aproximaria o texto do tom literário, já que


no português do Brasil utilizamos esse tempo na fala para ações genéricas e ha-
bituais (Garcia, 1991, p. 91). Cogitamos a possibilidade de traduzi-lo por “estou
com inveja…”, que nos pareceu demasiado neutro, ou então por “estou é com
inveja”, mas este já soaria enfático demais, de forma que chegamos ao “que inveja,
a minha...”, frase que condensa tanto a frustração e o desejo, recuperando a mesma
ideia do original, sem perder em força expressiva. Combinada à dupla negação,
ambas garantiriam a oralidade que marca esse diálogo entre dois desconhecidos,
nesse trecho representada em particular pelos coloquiais покойник-то (pokóinik-
-to) e верно (viérno).
O texto também faz alusão aos acontecimentos da época, período de Guerra
Civil e constantes lutas, conquistas e perdas de territórios nem sempre familiares
ao leitor russo. São recorrentes menções a pormenores que somente historiadores
especialistas, talvez, possam responder. Personalidades da época, nem sempre
conhecidas do leitor da língua de origem e de uma outra época, são igualmente
citados. Nesse excerto menciona-se o Príncipe Trubetskoi. A indesejada nota de
rodapé surgiu como solução para esse artigo, entretanto, no caso da publicação
da obra completa, um índice onomástico também seria uma saída mais aceitável
para driblar as notas excessivas, que devem ser salvaguardadas para explicações
históricas e para elucidar questões de tradução, no caso, como a representação
do defeito de fala. Boris Schnaiderman comenta que as notas revelam, “além do
tempo de enunciação e do tempo do enunciado, o tempo da tradução” (2011, p.
60), com o que devemos concordar. Contudo, seguindo o modelo do respeitado
tradutor, respondemos a essa afirmação com a pergunta que ele mesmo formula:
seriam as notas sempre uma calamidade? Nesse caso, Búnin faz uma descrição
jocosa, como se a personagem em questão tivesse a língua presa. E como traduzir
isso? Optamos pelo ato desmedido de tentar reproduzir o efeito tal como ele é
representado, fonetica e derrogatoriamente, no português e combiná-lo com uma
nota, colocando as intenções do autor. Assumimos o risco de cometer um exces-
so na própria tradução, porém por outro lado ganhamos ao nos aproximarmos
de como o brasileiro, num ambiente informal, reproduz o fenômeno de forma
depreciativa, tal como Búnin. Tendo em mente que nosso ofício é um caminho
cheio de armadilhas, ficamos novamente com o conselho do experiente tradutor,
ao compartilhar conosco que “a lição dos tropeços talvez seja tão importante
como a dos êxitos” (2011, p. 15), acreditando que no futuro talvez encontremos
uma solução melhor a esse problema.
Ao representar a linguagem dos veículos de comunicação da época, já
submetidos à censura soviética, Búnin lista pleonasmos e expressões incoerentes,
288 Márcia Pileggi Vinha. A Revolução por outro olhar

dando a entender que elas almejam o elevado e pecam pelo excesso, tornando-se
ridículas. Ele as atribuiu aos наших левых (nachikh levikh), literalmente, “nossos
esquerdistas”. A tradução literal dessa expressão nos pareceu inicialmente ideal:
tanto Búnin era considerado um “direitista” como os comunistas, “esquerdistas”.
Ao tradutor, a lógica era de que no Brasil, as pessoas de posicionamento político
de esquerda são consideradas “esquerdistas” pelas pessoas de direita, tal como
o narrador faz; logo, a tradução literal parecia não ter objeções. Entretanto, essa
solução imediata convivia com um desconforto difuso, que nos remete diretamente
à discussão a respeito dos possíveis paralelos entre os cenários do Brasil de hoje e
da Rússia de então para esclarecê-lo. A provocação de Búnin sobre o atendado ao
“bom russo” possui análogo no cenário político brasileiro e, em particular, no que
se refere ao atentado ao “bom português”. Para nos convencermos disso, basta
recordar as chacotas sobre o modo de falar do presidente Lula, as discussões sobre
presidenta ou presidente e as comemorações, após impeachment, de que finalmente
o Brasil teria um presidente que soubesse falar português, em parte porque o pre-
sidente atual também é conhecido por utilizar mesóclises, como manda o “bom
português”, apesar da prática questionável. As reflexões invocaram inevitáveis
reflexões e posicionamento sobre os valores da sociedade brasileira por parte do
tradutor. A semelhança dos cenários e a fusão do próprio tradutor-leitor com as
discussões misturadas – política, gramática e sociolinguística – pareciam agravar a
sensação de desconforto, sem levar à decisão clara sobre qual termo utilizar para
a esquerda. Seria o correspondente “esquerditas” uma opção que prezaria pelas
normas da língua, que o tradutor deveria necessariamente preservar tendo como
referência o texto original? No século passado Búnin estava defendendo o “bom
russo” ao empregar as palavras наших левых (nachikh levikh) – o que nos faz per-
guntar se a escolha eleita estaria fazendo o mesmo no português contemporâneo.
Foi então que Seligmann (2005, p. 190), pareceu orientar a resolução desse conflito,
com a afirmação: “É apenas abandonando uma coisa que a nomeamos” (apud
Benjamin, 1972, p. 506), ou seja, o distanciamento implica numa visão crítica, que
perde de vista o self, os vocábulos e seu contexto, para depois se reaproximar deles.
Em outras palavras, “a reflexão implica na saída do indivíduo de si mesmo, que
se dá através do confronto com um ‘outro’” (Seligmann, p. 190). Com tal auxílio,
compreendemos que embora formalmente equivalentes, a opção pela tradução
literal seria um equívoco semântico, já que a forma no português, além de ser um
neologismo recente, reproduz uma imagem social negativa do falante, incompatível
com o russo, no qual evidencia-se mais um sarcasmo. “Esquerdista”, portanto,
resultaria numa contaminação advinda de um tradutor excessivamente enredado
num texto com o qual se identifica. O termo mais induziria, do que traduziria.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 280-289 289

Assim, a opção do bom e velho “de esquerda” nos pareceu a mais correta, pois
contribuiria para uma leitura mais asséptica do texto.

Referências
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
BUNIN, Ivan. Jizn Arseneva. Okaiannie dni. Moscou: AST, 2009.
KARLINSKY, Simon. The bitter air of exile: Russian writers in the west, 1922-1972. [s.n.]:
University of California Press, 1977.
MARULLO, Tomas. Cursed Days. A diary of Revolution. Chicago: Ivan R. Dee, 1998.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SELIGMANN, Márcio. “Haroldo de Campos: tradução como formação e ‘abandono’ da
identidade” (pp. 189-204). In: O local da diferença. São Paulo, Editora 34: 2005.
290 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua


novela A Sonata a Kreutzer

Natalia Quintero

Resumo: O trabalho que segue é a apresentação de uma proposta de tradução direta do russo para o português do
posfácio, até agora, inédito no Brasil, que Liev Tolstói escreveu para sua obra A Sonata a Kreutzer. A tradução
está precedida por um comentário em que mostramos a importância que o próprio Tolstói deu a esse trabalho, e de
que maneira esse texto traz respostas do autor aos questionamentos dos leitores acerca da abstinência sexual pregada
pelo protagonista de sua novela. Salientamos a importância que tem o conceito tolstoiano de “ideal”, não apenas
como chave de leitura da obra, senão como ideia estrutural do conceito de amor universal que percorre toda a obra
artística e o pensamento do autor russo.
Palavras-chave: Liev Tolstói; Sonata a Kreutzer; conceito de ideal; amor universal

A novela A Sonata a Kreutzer é uma obra que não deixa indiferente quase
nenhum leitor. Foi assim desde sua primeira aparição em 18891. Desde então,
podemos afirmar quase sem temores que é uma das obras mais polêmicas de
Liev Tolstói. Tão logo foi publicada, gerou uma onda de reações que pode
ser constatada por meio de documentos como cartas e anotações de diário do
autor e, nos dias de hoje, por artigos acadêmicos e de jornais que tratam dessa
polêmica2. A novela conta a história de um marido que, tomado por ciúmes,

1 A primeira versão publicada de A Sonata a Kreutzer é de 1889. Contudo, Tolstói fez ainda correções
na obra, além de redigir o posfácio para a mesma. Essa versão, seguida pelo posfácio, apareceu em 1891,
e é considerada a variante definitiva da obra. A partir dela foram feitas as reimpressões sucessivas e as
traduções e edições em outras línguas.
2 Vide, por exemplo, o artigo “O que quer de mim essa música” de Samuel Titan Jr., surgido a pro-
pósito do lançamento de uma nova edição da novela em 2008. Também o artigo “Mulher de Tolstói
ganha voz própria” de William Grimes surgido na seção “Ilustrada” da Folha de São Paulo em 2014,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 291

mata sua esposa. Esse motivo simples, mas impactante, serve ao autor para
tecer uma trama de reflexões, que incluem, por um lado, um questionamento
da influência que exerce a música no ser humano e, portanto, de seu papel na
sociedade e, por outro, da posição da mulher na família, na sociedade e, por
fim, das relações entre homem e mulher, em que a vivência da sexualidade é
apresentada, intencionalmente, sem quaisquer enfeites românticos, e mostrada
como detonante de uma tragédia.
É justamente o tratamento da questão sexual o que vem inquietando várias
gerações de leitores. Muitas vezes o grande conhecedor e tradutor da obra de
Tolstói, professor Boris Schnaiderman, manifestou sua admiração pela arte de Liev
Tolstói, mas também seu desacordo com as ideias do autor russo. Precisamente,
ele abre o posfácio que escreveu para sua tradução dessa obra com as palavras
“O leitor atual de A Sonata a Kreutzer (1891) vive com certeza uma situação muito
contraditória. Realmente, não dá para aceitar em nossos dias o que Tolstói diz aí
sobre a relação entre os sexos” (SCHNAIDERMAN, 2013, p. 107).
Não apenas “em nossos dias”, os leitores ficam perplexos pelo que parece
uma prédica de Tolstói contra as relações sexuais e contra toda a organização, na
sociedade, das relações entre homens e mulheres. A novela não se limita apenas à
questão do problema da sexualidade como um pecado, senão apresenta, por meio
da fala de Pózdnichev, protagonista da obra, uma visão extremamente instigante
acerca da posição da mulher na sociedade3, como um ente vingativo que submete
o homem por meio da sedução, pelo fato de não desfrutar de direitos iguais aos

ou as declarações da professora Aurora Bernardini no capítulo 90 do programa “Literatura Fundamental”


da Univesp.
3 A questão da mulher na obra e pensamento de Liev Tolstói é um problema complexo que não
se limita apenas à sexualidade. É opinião comum que, apesar do papel relevante que as personagens
femininas exercem na criação tolstoiana, a visão do autor sobre as mulheres é machista e até misógina,
pois, em geral, as personagens femininas com destinos felizes, são aquelas que, após uma experiência de
desvio do modelo tradicional de retidão moral feminina, assumem seu papel de donas de casa e esposas
amorosas e fiéis, encontrando nisso a felicidade (caso de Natacha Rostova em Guerra e Paz, ou Kitty em
Anna Kariênina), ao passo que aquelas que rejeitam seu papel de mães e esposas são “castigadas” com a
morte (Anna Kariênina). Em relação à esposa de Pózdnichev, personagem feminina central da novela
A Sonata a Kreutzer, a opinião dominante não é diferente (vide, por exemplo o artigo de Teresa Martins
Marques que afirma que “a Sonata é uma confissão agressiva, virulenta e panfletária contra a mulher. Tem
muito de um ajuste de contas contra a sua própria mulher, Sónia, e com a mulher em geral. Não lhes
perdoa o facto de tanto o terem tentado, ao longo da vida, nem de tanto ter cedido à tentação, apesar da
luta”). Contudo, outra leitura em relação ao destino dessas mulheres “castigadas”, pode ser feita a partir
das noções de amor e igualdade que Tolstói trata, por exemplo, no próprio posfácio à Sonata a Kreutzer,
em outras de suas obras artísticas e em textos documentais. O tema da mulher no pensamento tolstoiano
merece um estudo separado, que não podemos tratar no espaço deste comentário.
292 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

do homem “no convívio entre os sexos” (TOLSTÓI, 2013, p. 34). E assim parece
que, para livrar-se desse domínio destruidor, Pózdnichev chega à conclusão de
que a melhor solução é a abstinência sexual.
Logo, os primeiros leitores ficaram preocupados com uma doutrina que
parecia querer conduzir à extinção da humanidade. Já os leitores contemporâ-
neos, mostram-se incomodados com o que poderia considerar-se como uma visão
retrógrada da sexualidade apresentada pelo escritor. Contudo é unanimidade a
percepção de que a novela está escrita com uma poderosa e convincente força,
o que desperta nos leitores a sensação de impossibilidade de rejeitar, de forma
taxativa, o que parece um absurdo: colocar-se a castidade como um objetivo de
vida. O próprio Boris Schnaiderman afirmou, de maneira certeira, que é caracte-
rística do estilo de Tolstói “a veemência, a capacidade de defender com vigor, do
modo mais direto, o que ele considerava justo” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 13).
Também Vladímir Nabókov, que por muitos anos dedicou-se ao ensino,
análise e difusão da literatura russa, manifestou em suas conferências, reunidas
posteriormente em forma de ensaio, que na criação tolstoiana é difícil separar o
artista do pensador, o gênio do pregador. Contudo, pondera Nabókov, não de-
vemos esquecer que a literatura não é organização de ideias, mas organização de
imagens. Com isso, o autor quer salientar que o que diferencia o discurso literário
de outras formas de discurso é, precisamente, o uso singular de determinados
recursos, nomeadamente, das imagens criadas a partir de metáforas, comparações,
símiles, além do uso do tempo e da descrição para fins específicos: “a palavra, a
expressão, a imagem é a verdadeira função da literatura” (NABÓKOV, 2015, p. 218).
Nesse mesmo sentido, já em 1917, Viktor Chklovski, em seu ensaio “A arte como
procedimento”, em que trata das diferenças entre linguagem cotidiana e linguagem
artística, apresenta um dos conceitos que têm sido mais produtivos para o estudo
e compreensão da arte de Tolstói – o estranhamento (ostranienie – остранение).
De acordo com Chklovski, a linguagem artística “desautomatiza”4 a per-
cepção dos objetos. Essa desautomatização acontece por meio de “procedimentos

4 Deciframos e entendemos o conteúdo de um texto sem realmente ler cada uma das letras que compõem
as palavras. Identificamos as palavras e captamos o significado, porque uma parte delas, por exemplo suas
letras iniciais, nos é suficientemente conhecida para identificar o todo. Por isso, podemos ler um texto,
mesmo que as letras estejam em desordem, sem prestarmos atenção especial a cada palavra, porque as
palavras em si não têm importância, mas a mensagem que se transmite por meio delas. Chklovski chama
esse processo de “automatização da língua”. O fenômeno é próprio da linguagem cotidiana. Diante
de objetos representados por meio da linguagem cotidiana, o leitor ouvinte ou espectador é levado ao
“reconhecimento” do objeto representado. Já diante de um objeto representado artisticamente, o leitor-
-espectador vê o objeto cotidiano sob uma forma nova, e o desconhece. Isto é, o artista, por meio de seus
procedimentos singulares de linguagem, provoca o “estranhamento”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 293

particulares, cujo objetivo é assegurar para estes objetos uma percepção estética”
(CHKLOVSKI, 1976, p. 41). Um dos meios mais comuns para provocar a desau-
tomatização da linguagem é o estranhamento. Chklovski mostra que é esse um dos
procedimentos mais utilizados por Liev Tolstói ao longo de toda sua produção
artística, trazendo exemplos extraídos de Guerra e paz, Ressurreição, A sonata a
Kreutzer e, de forma mais detalhada, de Kholstomer. De acordo com Chklovski, o
procedimento de estranhamento usado por Tolstói consiste em não chamar as coisas
por seu nome habitual, mas descrevê-las como se estivessem sendo vistas pela
primeira vez, e os acontecimentos, como se estivessem ocorrendo pela primeira
vez (CHKLOVSKI, 1976, p. 46). Por outras palavras, o estranhamento é uma espécie
de “descontextualização” – tirar os objetos comuns de seu âmbito cotidiano para
obrigar-nos a observá-los, a prestar atenção a eles, como se nunca antes os tivésse-
mos visto. É graças a essa forma singular de apresentar os objetos habituais, por
meio de um uso singular da descrição e das figuras de linguagem, que eles adquirem
aos nossos olhos um caráter inusitado. Em A sonata a Kreutzer, todo o discurso de
Pózdnichev está construído por meio desse procedimento. Assim por exemplo,
se o habitual em relação à descrição de um homicídio é a expressão grave, séria,
trágica, em A sonata a Kreutzer temos, junto a esses elementos, a irrupção inespera-
da de um elemento desconcertante: o assassino está de meias e sente-se, por isso
mesmo, ridículo, e impedido de agir como lhe parece que seria o esperado nessa
situação: “Eu quis correr atrás dele, mas lembrei-me de que seria ridículo correr
de meias atrás do amante de minha mulher, e eu não queria ser ridículo, queria
ser assustador. Não obstante a fúria terrível em que me encontrava, lembrei-me
o tempo todo da impressão que estava causando aos demais, e esta impressão
até me dirigia em parte” (TOLSTÓI, 2013, p. 98). Depois vem a descrição do
assassinato em si, e todas as reflexões que se passam pela cabeça de Pózdnichev
ao perceber que, realmente, ele foi capaz de matar sua esposa. Então pede que
avisem à polícia e por fim, adormece. Quando a irmã da esposa vem dizer-lhe que
ela está morrendo, que é preciso que ele vá para junto dela na hora derradeira,
Pózdnichev sente a ironia de sua situação e, de novo, está mais preocupado com
a possibilidade de seu ridículo, do que com a tragicidade do momento:

“Ir para junto dela?” – formulei esta pergunta a mim mesmo. E imediata-
mente respondi que era preciso ir, que, provavelmente sempre se faz assim,
que numa ocasião em que um marido matou, como eu, a mulher, é preciso
sem falta ir para junto dela. “Se é assim que se faz, tenho que ir” [...] “Agora,
haverá frases, caretas, mas eu não cederei a elas” – disse comigo.
– Espere, – dirigi-me à irmã –, é estúpido ir sem botas, deixe-me calçar
pelo menos os sapatos (TOLSTÓI, 2013, p. 102).
294 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

De forma semelhante, ao longo da novela Tolstói transforma, por meio de


seu personagem Pózdnichev, o que é habitual em inusitado e então a autoridade da
ciência e da medicina é vista por seu personagem como feitiçaria, o caráter natural
do sexo como um vício, ele compara o domínio da mulher sobre o homem com
o papel dos judeus no comércio, e chama o assassinato da esposa de “episódio
crítico”, tirando-lhe com isso todo o peso com que habitualmente um ato como
esse é percebido e representado. Enfim, como diz Chklovski, “qualquer um que
conheça bem Tolstói, pode encontrar centenas de exemplos desse tipo” (CHKLO-
VSKI, 2017, p. 6). Mas o importante é compreendermos que em Tolstói, o uso
dos procedimentos literários está subordinado a um plano em que a forma de
representação está indissoluvelmente unida à ideia e em função dela5:

Essa capacidade de ver as coisas fora de seu contexto fez com que Tolstói,
em suas últimas obras, ao examinar dogmas e rituais, usasse também o mé-
todo do estranhamento (ostranienie – остранение) para descrevê-los, substituindo
as palavras habituais de uso religioso por seus significados de uso comum;
disso resultou alguma coisa estranha, monstruosa, que muita gente tomou
com toda sinceridade, como uma blasfêmia que ofendeu profundamente a
muitos. No entanto, isso não era outra coisa além do mesmo procedimento
por meio do qual Tolstói percebia e relatava tudo o que o circundava. As
percepções tolstoianas abalaram-lhe a fé, ao atingir aquelas coisas que, por
muito tempo, ele não quisera tocar (CHKLOVSKI, 2017, p. 6. Tradução
de Natalia Quintero)6.

Assim, insatisfeito pela impressão de não ter conseguido expressar direito


em sua novela aquilo que lhe parecia essencial, Tolstói começou logo a pensar em
um texto complementar, um posfácio, quase imediatamente depois de concluir a
redação de A sonata a Kreutzer, em novembro de 1889. De acordo com a pesquisa

5 Nesse aspecto é extremamente interessante a análise nabokoviana segundo a qual “um traço peculiar
do estilo de Tolstói reside no fato de que, em geral, suas comparações, símiles e metáforas não são usa-
dos para fins estéticos, e sim éticos. Em outras palavras, suas comparações são utilitárias, funcionais. São
empregadas não para realçar as imagens, para dar novas cores à nossa percepção artística de determinada
cena; são empregadas, isto sim, para enfatizar um argumento moral” (NABÓKOV, 2015, p. 255).
6 [Всякий, кто хорошо знает Толстого, может найти в нем несколько сот примеров, по указанному
типу. Этот способ видеть вещи выведенными из их контекста, привел к тому, что в последних
своих произведениях Толстой, разбирая догматы и обряды, также применил к их описанию метод
остранения, подставляя вместо привычных слов религиозного обихода их обычное значение; —
получилось что-то странное, чудовищное, искренно принятое многими как богохульство, больно
ранившие многих. Но это был все тот же прием, при помощи которого Толстой воспринимал и
рассказывал окружающее. Толстовские восприятия расшатали веру Толстого, дотронувшись до
вещей, которых он долго не хотел касаться].
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 295

realizada pelos acadêmicos que prepararam a primeira edição das Obras Completas
de Tolstói em noventa volumes, naquela época, um dos principais interlocutores
do autor era seu colaborador e posteriormente editor Vladímir Tchertkov. Pela
correspondência entre eles, parece que Tchertkov sugeriu a Tolstói que escrevesse
um posfácio explicando o que o autor pensava sobre o tema da novela. Em resposta,
Tolstói disse que já tinha começado a redação desse texto. Ele trabalhou intensa-
mente na escrita de seu posfácio à Sonata a Kreutzer e, mesmo assim, a conclusão
do mesmo, entre diversas variantes e correções, levou praticamente um ano. O
trabalho não foi fácil porque, além de seus próprios questionamentos permanen-
tes acerca do tema da obra, Tolstói tinha também a preocupação de responder
aos questionamentos de seus leitores. De fato, apesar da insistência de Tchertkov
para que Tolstói escrevesse um posfácio, ou pelo menos algum esclarecimento
em relação à defesa da castidade absoluta, Tolstói sentiu-se mais encorajado a dar
continuidade à redação do texto graças às inquietações que lhe manifestavam os
leitores. Assim escreve Tolstói em uma cópia de uma carta enviada a Tchertkov,
em janeiro de 1890: “Fala-se de cinismo, indecência, pessimismo, soturnidade deste
relato” (TOLSTÓI, 2006, vol. 27, p. 627. Tradução de Natalia Quintero)7. Ao que
parece, Tolstói recebeu uma carta de um desconhecido, identificado como V. P.
Prókhorov que, em essência, estava preocupado com considerações de Tolstói em
relação ao casamento, e pede-lhe a gentileza de escrever-lhe qual é a ideia essen-
cial da novela A Sonata a Kreutzer. O leitor, que se dirige a Tolstói em tom muito
respeitoso, diz entender que talvez ele não tenha tempo para satisfazer o pedido,
ou até ache que é inútil responder a carta. Contudo, insiste em que a questão é
muito importante para ele, e que da resposta de Tolstói, poderiam depender deci-
sões capazes de mudar o curso de sua vida. Em relação a essa carta, no dia 11 de
março de 1890, Tolstói escreve no seu diário: “Pensei no posfácio em forma de
uma resposta à carta de Prókh[orov]” (TOLSTÓI, 2006, vol. 51, p. 26. Tradução
de Natalia Quintero)8. Tolstói não chega a realizar o plano de escrever o posfácio
a sua Sonata como uma resposta à carta de Prókhorov, mas isso não significa que
ignorasse os pedidos ou perguntas de seu público. Simplesmente, não era possível
atender a cada um, mas tentou considerar em seu texto as questões que pareciam
mais pungentes para a maioria dos leitores. Por isso, já em abril de 1890, escreve
a Tchertkov, informando que não pretende fazer mais correções no texto: “[...]
não é que eu esteja satisfeito com o posfácio. Tanto a forma da narrativa, como
a ordem e o tamanho não estão certos. Mas as ideias lá expressas estão certas e

7 [говорится о цинизме, неприличии, о пессимизме, мрачности этого рассказа]


8 [думал о послесловии в форме ответа на письмо Прох[орова]]
296 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

são sinceras. E eu as revelei com a maior intensidade e alegria” (TOLSTÓI, 2006,


vol. 27, p. 631. Tradução de Natalia Quintero)9. Todavia, Tolstói ainda fez corre-
ções e mudanças até novembro desse ano, com atenção especial ao problema do
casamento, que preocupava tanto a Tchertkov, como a muitos outros leitores10.
Com isso queremos mostrar que Tolstói sentia-se profundamente envolvido
com a opinião e as preocupações de seu público, era consciente do espanto que
a defesa da abstinência sexual despertava em muitas pessoas, e se hoje pudesse
ler as inquietações dos leitores contemporâneos em relação a sua novela, talvez
continuasse respondendo, modificando seu posfácio e “buscando a expressão
mais adequada”, a fim de que suas ideias por fim ficassem claras. Como quer que
seja, a resposta às inquietações comuns aos primeiros leitores e a muitos leitores
contemporâneos está ali, no posfácio. É por isso que, na nossa opinião, o posfácio
deveria ser compreendido como parte integrante da obra A Sonata a Kreutzer, da
mesma forma que o epílogo de Guerra e paz, com toda sua carga filosófica, é uma
parte inseparável do romance. O destino do posfácio de Tolstói a sua novela não
tem sido fácil. A existência de várias versões manuscritas incompletas do texto
tem dificultado o seu estabelecimento definitivo como o pensou seu autor. Mesmo
assim, existem traduções para várias línguas (inglês, espanhol, alemão), mas nem
sempre as edições de A Sonata a Kreutzer são acompanhadas pelo posfácio. No
caso brasileiro, o texto é, até agora, inédito.
O posfácio de Liev Tolstói a sua Sonata a Kreutzer é uma peça fundamental
para a compreensão da produção artística e do pensamento do autor. Nele, Tolstói
define com insistência (por meio de repetições de palavras que caracterizam o estilo
tolstoiano, como pensa Schnaiderman), com veemência (por meio de exemplos
e comparações extremas), e também com mestria artística, aquilo que pode ser a
chave para a compreensão, não apenas da defesa furiosa da abstinência sexual na
boca de Pózdnichev, senão também de boa parte do pensamento tolstoiano: trata-se

9 [я не то что доволен послесловием. И форма изложения, и порядок, и мера все неверно.


Но мысли, высказанные там, верны, искренны, и я с величайшим напряжением и радостью
открывал их]
10 A postura inflexível de Tolstói em relação ao casamento é uma resposta ao insistente pedido de Tcher-
tkov, de que repensasse a questão, pois ele considerava que a proposta da castidade absoluta, ao invés de
atrair, podia afastar as pessoas do caminho de Cristo. Tolstói então escreve a seu amigo e colaborador:
“Eu não consegui fazer no posfácio aquilo que o senhor quer, e no que insiste tanto, como espécie de
reabilitação do casamento honesto. Não existe tal casamento. Aliás, o senhor vai ver” (TOLSTÓI, 2006,
vol. 27, p. 631. Tradução de Natalia Quintero). [я не мог в «послесловие» сделать то, что вы хотите
и на чем настаиваете, как бы реабилитацию честного брака. Нет такого брака. Но, впрочем, вы
увидите]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 297

da concepção de “ideal”; para Tolstói, o ideal é um modelo que cada pessoa deve
colocar diante de si, para chegar cada vez mais adiante em seu desenvolvimento
como ser humano. Quanto mais elevado o ideal, mais longe chegará a pessoa em
seu crescimento. E, o mais importante, a condição obrigatória para que um ideal seja
tal, é o fato de ser irrealizável. Exatamente assim é a doutrina de Cristo. Nenhum
ser humano pode encarnar, na vida real, todas as características atribuídas a ele,
mas se Cristo fosse o modelo seguido pelas pessoas, então, sem dúvida, haveria
seres humanos cada vez melhores.
Essa noção é essencial para compreender o sentido que dava Tolstói para
a aspiração à castidade, não como uma norma de vida, como uma imposição ou
como uma exigência artificial e absurda, ainda mais por vir de um homem que,
em conformidade com os fatos (Tolstói foi pai de 13 filhos), predicava, mas não
praticava. A abstinência sexual é colocada por Tolstói em seu posfácio apenas
como um meio para aproximar-se, o máximo possível, da realização do amor uni-
versal, que constitui um dos alicerces de seu pensamento. Esse conceito de amor
que atravessa toda a produção, tanto artística, como não ficcional de Tolstói, está
presente desde os primeiros anos de trabalho do jovem Tolstói, de acordo com
as anotações de seu diário11.
O problema do amor permanece vivo no pensamento de Tolstói durante
toda sua vida, e a leitura do posfácio à Sonata a Kreutzer revela bem que o ideal
proposto por ele não é o da castidade e muito menos o da extinção da espécie
humana, mas o amor universal, que é o amor ao próximo, seja ele quem for, de
acordo com os ensinamentos da doutrina de Cristo. É evidente, pelas próprias
citações que traz o autor em seu posfácio, que a leitura dos Evangelhos teve
uma influência determinante em sua concepção definitiva da noção de amor.
Ele concebia o amor desinteressado por todos os seres como a aspiração mais
elevada que podia colocar-se o ser humano. Ao mesmo tempo, para Tolstói era
uma aspiração inatingível (ele se perguntava, por exemplo, quem teria forças para
amar um assassino ou estuprador) e, por isso mesmo, ideal. A principal virtude
da dificuldade desse ideal é que ele obriga, quem o aceitar, a viver uma vida cada

11 A primeira definição do conceito de amor em Tolstói, aparece em 1847, no primeiro ano em que o
autor começa a escrever seu diário. Nessa etapa de sua vida, a definição e solução de problemas éticos
ocupa um lugar central em suas preocupações. Entre elas, a concepção do ser humano como dividido em
corpo e alma e o desejo de que a vontade se torne uma força soberana sobre o corpo conduzem a uma
definição singular da vivência do amor por etapas, que vão do amor carnal, no estágio mais baixo, quando
o corpo ainda não está dominado pela força de vontade, ao amor universal, no estágio mais elevado. Esse
primeiro conceito de amor é repensado e reelaborado por Tolstói ao longo de sua vida, e está representado
em várias de suas obras artísticas.
298 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

vez melhor para si próprio e para todos os circundantes, a fim de aproximar-se,


cada vez mais, da materialização do ideal. Por outro lado, a castidade era entendida
por Tolstói como um mecanismo para dedicar toda a atenção e todas as forças
para cuidar do próximo e assim, servir a Deus. O fim do mundo e da espécie
humana seriam apenas uma consequência da superação do amor próprio em prol
da humanidade. Porque o amor carnal não é mais que a satisfação da vontade
pessoal de prazer. Se a pessoa conseguir colocar o bem comum antes da satisfa-
ção pessoal, não haverá mais união carnal, e será cumprida a profecia de Isaías12.
Tolstói afirma que a desaparição da espécie humana não é nem um ideal, nem uma
notícia nova, mas apenas um dogma tanto da ciência como da fé. Os homens da
ciência estão convencidos de que o esfriamento do sol é uma realidade ineludível
e, com ele, virá o fim da espécie humana. Mas o que incomoda seus leitores, de
acordo com Tolstói, é a ideia, ou até o temor, de que a espécie humana possa
desaparecer em decorrência da materialização do ideal de vida moral que Cristo
legou à humanidade.
Apesar do esforço de Tolstói em esclarecer no posfácio a ideia fundamental
de sua novela – o conceito de ideal –, as opiniões e exemplos ali contidos não fize-
ram mais que reafirmar o desconcerto dos leitores e atiçar as críticas13. Contudo,
como afirma Schnaiderman em seu posfácio à Sonata, “a novela nos arrasta com
seu tom arrebatado, com a exaltação e o patético desse texto” (SCHNAIDER-
MAN, 2013, p. 107).
Oferecemos a tradução do posfácio à Sonata a Kreutzer como uma tenta-
tiva de superar e compreender o porquê do espanto diante de uma obra que,
por mais que contradiga nossas próprias concepções, não podemos jogar fora
como se fosse o delírio de um desequilibrado. Como afirma Boris Eikhenbaum
na introdução a seu ensaio O jovem Tolstói (Molodoi Tolstoi) “O fenômeno literário
está vivo enquanto ele não é compreendido, enquanto ele surpreende. A crítica
surpreende-se, a ciência compreende” (EIKHENBAUM, 1987, p. 35. Tradução
de Natalia Quintero)14.

12 Isaías 2:4; Miquéias 4:1-5.


13 Tolstói escreve em seu diário de 11 de fevereiro de 1891 “Nestes dias, nos jornais só tem artigos
injuriosos. De Suv[orin], sobre o posfácio” (TOLSTÓI, 2006, vol. 52, p. 6. Tradução de Natalia Quintero)
[За эти дни были всё статьи в газетах ругательные. О послесл[овии] Сув[орина]. De acordo com
nota da edição comemorativa das obras completas de Tolstói em noventa volumes, Alexei Serguiêevitch
Suvorin (1834 – 1912) publicou no jornal “Novoe vremia” (Tempo novo) do dia 5 de fevereiro de 1891
o artigo “Malenkoe pismo” (Pequena Carta) em que critica o posfácio à Sonata a Kreutzer.
14 [художественное явление живо до тех пор, пока оно непонятно, пока оно удивляет. Критика
удивляется, наука понимает]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 299

Nota sobre a tradução

O objetivo principal da presente tradução do posfácio à Sonata a Kreutzer


é apresentar pela primeira vez em português um texto que, como já expusemos,
consideramos fundamental dentro do universo tolstoiano. Por outro lado, também
é nossa intenção que o trabalho sirva como base para uma pesquisa futura no
campo dos estudos da tradução, em que problemas específicos sobre os procedi-
mentos e dificuldades da tradução sejam analisados. Nesse sentido, constitui um
trabalho em desenvolvimento.
Por tratar-se de uma publicação em que a tradução é apresentada junto
com seu original em língua russa, consideramos importante explicar nesta nota os
critérios pelos quais resolvemos a tradução problemática dos termos “внешний
– vniêchnii” (exterior, externo, superficial, aparente) e “определение – opredeliê-
nie” (definição, determinação), que têm um papel importante no texto de Tolstói.
Frequentemente, mas não sempre juntos no posfácio, entende-se, no con-
texto, que essas palavras vêm a constituir uma unidade semântica que se refere às
práticas rituais que as diferentes religiões exigem de seus fiéis. A tradução literal
“definição exterior” não remete a esse sentido, e é por isso que essas palavras
foram traduzidas, em diferentes momentos, de maneiras diferentes. Em geral, a
expressão “внешние определения – vniêchnie opredeliênia» foi traduzida como
“práticas superficiais” ou “regras superficiais”; não “externas”, nem “aparentes”,
porque Tolstói faz uma crítica que aponta para a falsidade ou o sem-sentido que
existe em muitas práticas religiosas. A definição de “superficial” registrada no
Dicionário Aulete Digital como “Que supervaloriza coisas pouco importantes;
que julga por aparências; que age sem reflexão (pessoa superficial)”, pareceu-nos a
mais próxima do sentido que Tolstói queria transmitir. Por isso mesmo, na maio-
ria dos casos em que ele usou o adjetivo “внешний – vniêchnii”, optamos pela
tradução “superficial”, em lugar de “exterior”, “externo” ou “aparente”. Nisso,
nossa tradução difere das outras consultadas. Já o substantivo “определение –
opredeliênie”, quando empregado sem o adjetivo “внешний – vniêchnii”, foi
geralmente traduzido como “definição”.
O trabalho foi realizado a partir da edição das Obras completas de Liev
Tolstói em noventa volumes, disponíveis eletronicamente desde 200915. Essa edição
corresponde à digitalização, concluída no ano 2006, da primeira edição comemo-
rativa das Obras Completas de Liev Tolstói em noventa volumes, realizada entre

15 Ver http://tolstoy.ru/creativity/90-volume-collection-of-the-works/
300 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

1928 e 1958, e publicada pela editora estatal Khudójestvennaia Literatura. O redator


geral da edição comemorativa foi Vladímir Tchertkov, que fora o interlocutor mais
próximo de Liev Tolstói nos últimos anos de vida do escritor, e a quem o autor
legou a tarefa de cuidar da redação de suas obras.
No processo de cotejo, foram consultadas a tradução para o espanhol, di-
reta do russo, de Irene e Laura Andresco, publicada pela editora Aguilar. Também
consultamos a tradução para o inglês do professor Leo Wiener, cujo trabalho de
difusão e tradução da literatura russa é considerado precursor nos Estados Unidos.

Posfácio à Sonata a Kreutzer (Liev Tolstói)

Recebi e continuo recebendo muitas cartas de pessoas desconhecidas, que


me pedem para explicar, em palavras simples e claras, o que eu penso acerca do
assunto sobre o qual escrevi no relato intitulado “Sonata a Kreutzer”. Tentarei
fazer isso; quer dizer, explicar em poucas palavras, na medida do possível, a es-
sência daquilo que quis dizer nesse relato, e as conclusões que, na minha opinião,
podem ser feitas a partir dele.
Em primeiro lugar, quis dizer que, em nossa sociedade, tem se formado
uma sólida convicção, comum a todas as camadas sociais e respaldada por uma
ciência falsa, de que as relações sexuais são necessárias para a saúde e que, uma
vez que o casamento nem sempre é possível, então a prática do sexo fora dele –
que não obrigue o homem a nada exceto o pagamento pecuniário – é uma coisa
completamente natural e, por isso, deve ser estimulada. Essa convicção tem se
tornado a tal ponto comum e consistente que os pais, por conselho médico, or-
ganizam a perversão de seus filhos. Os governos, cuja única razão de ser está na
preocupação com o bem-estar moral de seus cidadãos, instituem a perversão. Isto
é, controlam todo um grupo de mulheres que devem perecer de corpo e alma para
a satisfação de necessidades imaginárias dos homens e, assim, pessoas solteiras
entregam-se, com a consciência absolutamente tranquila, à perversão.
Então eu queria dizer que isso não é bom, porque não é possível que para
garantir a saúde de algumas pessoas, tenha-se que sacrificar o corpo e a alma de
outras, da mesma forma que não é possível que, para a saúde de algumas pessoas,
seja necessário beber o sangue de outras.
Na minha opinião, a conclusão natural disso tudo é que submeter-se a essa
confusão e engano é desnecessário. E para não submeter-se é preciso, em primeiro
lugar, não acreditar em doutrinas imorais, por mais amparadas que elas estejam
em ciências ilusórias e, em segundo lugar, compreender que manter relações se-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 301

xuais tais em que as pessoas se desembaracem das possíveis consequências, isto


é, dos filhos, ou joguem todo o peso dessas consequências na mulher, ou evitem
o possível nascimento das crianças, é um crime contra a mais simples exigência
da moral, é uma vileza e, por isso, as pessoas solteiras que não queiram viver na
vileza não devem fazer isso.
E para que elas possam conter-se, devem, além de levar um estilo de vida
natural, não beber, não se empanturrar, não comer carne nem fugir do traba-
lho físico exaustivo (não estou falando de fazer ginástica ou de um trabalho de
brincadeira), e não devem permitir-se, em seus pensamentos, a possibilidade de
relacionar-se com as mulheres dos outros, da mesma forma que qualquer pessoa
não admite tal possibilidade entre ela e sua mãe, suas irmãs, parentes ou as mu-
lheres de seus amigos.
Todo homem poderá achar a seu redor uma centena de provas de que a
abstinência é possível e menos perigosa para a saúde do que a incontinência.
Essa é a primeira coisa.
Segundo, em nossa sociedade, como consequência da concepção das relações
amorosas, tanto como do prazer, não apenas como uma condição indispensável à
saúde, mas como um bem poético e sublime da vida, a infidelidade conjugal tem se
tornado, em todas as camadas da sociedade (especialmente entre os camponeses,
por causa do serviço militar dos soldados16), o fenômeno mais comum.
E eu suponho que não é bom. A conclusão que se pode tirar é que não se
deve fazer isso.
E para não fazê-lo, é preciso mudar a concepção sobre o amor carnal, para
que homens e mulheres sejam educados em famílias e por uma opinião pública
tais que, antes e depois do casamento, eles não pensem no amor carnal ligado a
ele como um estado poético e sublime, como pensam agora, mas que pensem
nele como uma humilhante condição animal do homem; e para que a falta ao
juramento de fidelidade, dado nas núpcias, seja condenada pela opinião pública,

16 Tolstói fala aqui sobre o serviço dos soldados que não pertencem à categoria de oficiais no exército.
Durante a Rússia czarista, o tempo de serviço dos soldados variou, em diferentes épocas, de vitalício, a 25
ou 15 anos. Se o serviço era de 15 anos, isso significava que o soldado tinha que passar 6 anos em qualquer
lugar do território do Império aonde fosse destinado, sem direito de se reunir com a família. Depois,
podia voltar para seu lugar de origem, passando a formar parte do corpo de reserva por um período de
nove anos, o que representava uma grande probabilidade de ser, de novo, enviado para outro destino.
Portanto, os soldados eram obrigados a passar longos períodos de tempo afastados de suas esposas e
famílias o que, de acordo com o raciocínio de Tolstói, provocou a proliferação da infidelidade. Na época
em que Tolstói escreveu A Sonata a Kreutzer, o serviço era de 6 anos (N. da T.).
302 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

pelo menos tal e como ela condena o incumprimento das obrigações pecuniárias
e os enganos no comércio, em lugar de celebrar tudo isso, como se faz hoje, em
romances, versos, canções, óperas e assim por diante.
Isso, em segundo lugar.
Terceiro, em nossa sociedade, como consequência, mais uma vez, da falsa
significância dada ao amor carnal, o nascimento de crianças perdeu seu sentido
e, em lugar de ser o objetivo e justificativa das relações conjugais, tornou-se um
empecilho para a continuidade prazerosa das relações amorosas. E é por isso
que dentro e fora do casamento, por conselho de servidores da ciência médica,
começou a estender-se o uso de meios que privam a mulher da possibilidade de
procriar, ou então começou a tornar-se um costume aquilo que antes não existia,
e que ainda não existe nas famílias camponesas patriarcais: a continuidade das
relações conjugais durante a gravidez e a amamentação.
Suponho que isso não seja bom. Não é bom usar meios contra o nasci-
mento de crianças, primeiro, porque isso libera as pessoas do cuidado e trabalho
com crianças, que são a redenção do amor carnal e, segundo, porque isso é o mais
próximo que pode existir da ação mais contrária à consciência humana, isto é, o
assassinato. E não é boa a incontinência durante a gravidez e a amamentação, porque
isso destrói as forças físicas e, o que é mais importante, as forças morais da mulher.
A conclusão que resulta disso tudo é que não se deve fazer isso. E para tanto,
é preciso entender que a abstinência, que é condição indispensável da dignidade
humana antes do casamento, é ainda mais necessária nele.
Isso em terceiro lugar.
Quarto, que em nossa sociedade, na qual as crianças constituem ora um
obstáculo para o prazer, ora um acidente, ou então um certo tipo de prazer, no
caso de serem trazidas ao mundo em uma quantidade previamente determinada.
Essas crianças são educadas não tendo em vista aquelas tarefas da vida humana
que estão diante delas como seres racionais e capazes de amar, mas apenas tendo
em vista aqueles prazeres que eles podem proporcionar aos pais. E como conse-
quência disso, as crianças humanas são educadas como os filhotes dos animais,
de tal forma que a tarefa principal dos pais consiste não em prepará-los para uma
atividade digna da pessoa, mas em alimentá-los da melhor forma possível, aumentar
sua estatura, torná-los limpos, brancos17, bem alimentados, bonitos (nisso, os pais

17 Tolstói menciona a brancura da pele como característica tida como desejável, porque ela podia ser
considerada como um símbolo da condição social, já que eram os camponeses que trabalhavam sob o sol
e tinham, portanto, peles queimadas (N. da T.).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 303

sustentam-se em uma ciência falsa chamada medicina). E nas crianças mimadas,


tal como no caso de quaisquer animais empanturrados, manifesta-se de forma ar-
tificialmente precoce uma volúpia insuperável que é a causa de terríveis tormentos
para essas crianças durante a adolescência. A roupa, a leitura, os espetáculos, a
música, a dança, os alimentos doces, toda a organização da vida, as imagens nas
embalagens até os romances, novelas e epopeias, atiçam ainda mais essa volúpia
e, como consequência disso, os mais terríveis vícios e doenças sexuais tornam-se
uma condição comum do crescimento das crianças de ambos os sexos e, com
frequência, isso permanece assim até a idade madura.
Eu suponho que isso não é bom. Portanto, a conclusão que se pode tirar
é que deve deixar-se de educar os filhos das pessoas como se fossem filhotes de
animais e colocar-se, para a educação dos filhos humanos, outros objetivos além
da formação de um corpo bonito e bem cuidado.
Isso em quarto lugar.
Quinto, em nossa sociedade, a paixão entre um homem jovem e uma mulher,
baseado, de qualquer forma, no amor carnal, tem sido elevado ao nível do mais
alto objetivo poético das aspirações humanas; disso dão testemunho toda a arte
e a poesia de nossa sociedade, em que os jovens dedicam a melhor época de suas
vidas: os homens à observação, à procura e à posse das melhores namoradas, seja
sob a forma de relações amorosas ou do casamento, e as mulheres e moças a atrair
e aproximar de si os homens, seja por meio de relacionamentos ou do casamento.
E por isso, as melhores forças humanas são gastas em um trabalho não ape-
nas improdutivo, mas prejudicial. Daí provém uma grande parte do insensato luxo
de nossa vida; daí também a ociosidade dos homens e a desvergonha das mulheres
que não se acanham em se expor, conforme a moda adotada entre aquelas que
são evidentemente depravadas, despertando a sensualidade das partes do corpo.
E eu suponho que isso não é bom.
Não é bom porque a realização da união com o ser amado no casamento
ou fora dele é um objetivo indigno do ser humano, por mais poetizado que seja,
da mesma forma que é indigno do ser humano o objetivo de adquirir para si
alimento doce e abundante, mesmo que isso seja apresentado a muitas pessoas
como um grande bem.
Portanto, a conclusão que se pode fazer disso é que se deve parar de pensar
que o amor carnal é algo especialmente elevado e deve-se entender que um objetivo
digno do ser humano (seja servir à humanidade, à pátria, à ciência, à arte, por não
falar já em servir a Deus), seja ele qual for, se é que o considerarmos digno, não
se atinge por meio da união com o ser amado, seja no casamento ou fora dele;
304 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

pelo contrário, a paixão e a união com o ser amado (por mais que se esforcem
em mostrar o contrário em versos e em prosa) nunca ajudam na realização de um
objetivo digno do ser humano, mas a dificultam.
Isso em quinto lugar.
Eis o que, em essência, quis dizer e pensei que disse em meu relato. E
pareceu-me que é possível refletir sobre como corrigir esse mal apontado nesses
enunciados, com os quais é impossível não concordar.
Pareceu-me que é impossível não concordar com esses enunciados, pri-
meiro porque eles estão, por completo, em conformidade com o progresso da
humanidade, indo sempre da licenciosidade para uma maior e maior castidade, e
em conformidade também com a consciência moral da sociedade e com nossa
consciência, que sempre condena a licenciosidade, ao passo que valoriza a castidade.
E segundo, porque esses enunciados são apenas conclusões ineludíveis da dou-
trina do Evangelho que nós ou professamos ou pelo menos reconhecemos, nem
que seja de forma inconsciente, como a base de nossa concepção sobre a moral.
Mas não deu certo.
É verdade que ninguém contesta, de forma direta, a afirmação de que não
se deve entregar-se à devassidão antes do casamento, nem depois dele, e que
não se deve aniquilar, artificialmente, a procriação, nem fazer das crianças um
divertimento, nem colocar as relações amorosas acima de tudo. Em uma palavra,
ninguém discute que a castidade é melhor que a licenciosidade. Mas falam: “se o
celibato é melhor que o casamento, é então evidente que as pessoas devem fazer o
que é melhor. Mas, se as pessoas fizerem isso, então será o fim do gênero humano
e, portanto, não pode ser que o ideal do gênero humano seja seu aniquilamento”.
E isso para não falar já de que o aniquilamento do gênero humano não é
um conceito novo para as pessoas de nosso mundo, mas um dogma de fé para
as pessoas religiosas e, para as pessoas de ciência, uma conclusão ineludível da
observação do esfriamento do sol. Na objeção disso, há um grande, velho e di-
fundido mal-entendido.
Falam: “se as pessoas atingirem o ideal da castidade absoluta, então elas
serão aniquiladas; portanto, esse ideal não está certo”. Mas aqueles que falam
assim, com ou sem intenção, estão misturando duas coisas diferentes: a regra, o
que está prescrito e o ideal.
A castidade não é uma regra ou prescrição, mas um ideal, ou antes, uma das
condições dele. E um ideal é ideal só quando sua realização é possível apenas na
teoria, no pensamento, quando se imagina que ele pode ser alcançado apenas no
infinito, e quando, por isso mesmo, a possibilidade de aproximar-se dele é infinita.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 305

Se um ideal fosse não apenas alcançável, senão que pudéssemos ainda imaginar sua
realização, ele deixaria de ser um ideal. Assim é o ideal de Cristo: o estabelecimento
do reino de Deus na terra é um ideal previsto pelos profetas, acerca da chegada do
tempo em que as pessoas serão instruídas por Deus, transformarão as espadas em
arado, as lanças em foices, o leão ficará deitado com o cordeiro, e quando todos os
seres vão se unir pelo amor. Todo o sentido da vida humana está no movimento
em direção a esse ideal e, por isso, a aspiração ao ideal cristão em seu conjunto, e
à castidade como uma das condições desse ideal, não só inclui a possibilidade da
vida, senão que a ausência desse ideal cristão destruiria o movimento para frente
e, em consequência, a possibilidade da vida.
A opinião de que o gênero humano será extinto caso as pessoas coloquem
todas suas forças em alcançar a castidade é semelhante àquela de que fariam (e
estão fazendo) desaparecer o gênero humano se as pessoas, em lugar de lutar
pela existência, colocassem todas suas forças em conseguir a materialização do
amor pelos amigos e pelos inimigos, e por todos os seres vivos. Tais opiniões são
resultado da incompreensão da diferença entre dois métodos do princípio moral.
Assim como existem duas formas de indicar o caminho para um viajante
em procura de orientações, existem também dois métodos do princípio moral
para aquele que procura a verdade humana. Um método consiste em mostrar à
pessoa os objetos que ele deveria encontrar; então, ela se encaminharia para esses
objetos. Outro método consiste em mostrar apenas a direção em uma bússola,
que a pessoa leva consigo, e na qual ela sempre observa uma direção imutável e,
portanto, observa também qualquer desvio dela.
O primeiro método do princípio moral é o das definições superficiais, o
das regras: dá-se à pessoa determinados indícios dos atos que deve e dos que não
deve realizar:
“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo, faz a circuncisão, não roubarás,
não beberás nem matarás, entrega o dízimo aos pobres, não cometerás adultério,
faz as abluções e reza cinco vezes por dia, faz o sinal da cruz, comunga, e assim por
diante18”. Tais são os mandamentos das doutrinas religiosas superficiais: bramanista,
budista, maometana, judaica e eclesiástica do falsamente chamado cristianismo.
Outro método é mostrar à pessoa a perfeição que ela nunca poderá alcançar,
mas cuja aspiração ela reconhece dentro de si: aponta-se para a pessoa o ideal, em

18 Alguns dos mandamentos citados aqui por Tolstói, correspondem ao Decálogo que Deus entregou
a Moisés no monte Sinai. Esse decálogo está em Êxodo, 20:1-17; Quanto à circuncisão, que hoje é obri-
gatória para os judeus, não para os cristãos, o mandado de Deus está em Gênesis 17: 9-14. (N. da T.).
306 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

comparação com o qual ela sempre poderá identificar seu grau de afastamento
em relação a ele.
“Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma,
com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti
mesmo”19, e “Portanto, deveis ser perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito20”.
Tais são os ensinamentos de Cristo.
A comprovação do cumprimento dessas doutrinas religiosas superficiais
é a coincidência dos atos com as definições dessas doutrinas, e essa coincidência
é possível.
A comprovação do cumprimento dos ensinamentos de Cristo é a consciên-
cia do grau de não correspondência com a perfeição ideal. (O grau de proximidade
não se vê: vê-se apenas o desvio da perfeição).
A pessoa que professa uma lei superficial é uma pessoa que está à luz de
um lampião pendurado em um poste. Ela está sob a luz desse lampião, está na
claridade, e não tem mais para onde ir. Quem professa os ensinamentos de Cristo
é como uma pessoa que leva um lampião diante de si, numa vara mais ou menos
comprida: a luz está sempre diante dessa pessoa, a estimula a ir sempre adiante e
revela-lhe permanentemente um espaço novo iluminado que a atrai.
O fariseu agradece a Deus por ele cumprir com tudo. O jovem rico, que
também cumpriu com tudo desde a infância, não entende o que lhe falta fazer. E
eles não podem pensar de outra forma, porque diante deles não está aquilo que
eles poderiam continuar esforçando-se por atingir. O dízimo foi dado, o sábado
foi guardado, os pais foram honrados, não cometeram adultério, nem roubaram,
nem mataram. O que mais então? Mas já para quem professa a doutrina cristã,
chegar até qualquer patamar de perfeição exige a ascensão ao patamar superior, a
partir do qual se revela um patamar mais alto, e assim eternamente.
Quem cumpre a lei de Cristo está sempre na posição do publicano. Ele se
sente sempre imperfeito, sem poder ver atrás de si aquele caminho que percorreu,
vendo sempre aquele por onde tem que ir e que ainda não percorreu.
Nisto consiste a diferença entre os ensinamentos de Cristo e todas as
demais doutrinas religiosas: a diferença está não em exigências diversas, mas nos
diversos métodos de guiar as pessoas. Cristo não deu nenhuma definição de vida,
nunca estabeleceu quaisquer instituições, e sequer estabeleceu casamento algum.

19 Lucas 10:27
20 Mateus 5:48.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 307

Mas as pessoas, que não entendem as singularidades dos ensinamentos de Cristo,


por estar acostumadas com as doutrinas superficiais e por terem o desejo de se
sentirem certas (da mesma forma que o fariseu sente que está certo) fizeram da
forma uma doutrina superficial de regras, que é contrária a todo o espírito dos
ensinamentos de Cristo, e trocaram a verdadeira doutrina do ideal de Cristo por
aquela doutrina superficial.
As doutrinas eclesiásticas que chamam a si próprias cristãs colocaram em
relação a todas as manifestações da vida, em lugar da doutrina do ideal de Cristo,
definições e práticas superficiais que são contrárias ao espírito dessa doutrina.
Assim foi feito em relação ao poder, aos tribunais, ao exército, à igreja, à missa, e
foi feito também em relação ao casamento. Apesar de cristo nunca ter instituído o
casamento – se for o caso de procurar por definições superficiais, ele antes rejeitou
o casamento (“Deixa tua esposa, e segue-me”) –, as doutrinas eclesiásticas que
chamam a si próprias cristãs estabeleceram o casamento como uma instituição
cristã; isto é, estabeleceram as condições exteriores pelas quais o amor carnal
pode, para o cristão, estar aparentemente livre de pecado, estar absolutamente
em conformidade com a lei.
Mas como na verdadeira doutrina cristã não há nenhuma base para a ins-
tituição do casamento, aconteceu que as pessoas de nosso mundo se afastaram
de uma margem, e não atracaram na outra. Ou seja, em essência, não acreditam
na definição eclesiástica do casamento, por sentir que essa instituição não tem
alicerce na doutrina cristã e, ao mesmo tempo, não veem diante de si, por estar
encoberto na doutrina eclesiástica, o ideal de Cristo da aspiração à castidade ab-
soluta e ficam, em relação ao casamento, sem direção alguma. Daí procede aquilo
que, no começo, parece um fenômeno estranho: que os judeus, os maometanos,
os budistas tibetanos entre outros, que professam doutrinas religiosas de nível
muito mais baixo que o cristianismo, possuem práticas precisas no que se refere
ao casamento, aos princípios conjugais e à fidelidade, práticas incomparavelmente
mais sólidas do que as que têm os assim chamados cristãos.
Aqueles têm certo concubinato ou poligamia restrito a determinados
limites. Já entre nós há um desleixo absoluto e o concubinato, a poligamia e a
poliandria, não se submetem a quaisquer regras e ocultam-se sob o aspecto de
uma monogamia imaginária.
Só porque, entre uma parte das pessoas que se unem, é realizada uma
cerimônia chamada casamento religioso, que o clero realiza a troco de dinheiro,
as pessoas de nosso mundo imaginam, inocente ou hipocritamente, que vivem
em monogamia.
308 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

Não pode existir o casamento cristão, e nunca existiu, tal como nunca
houve nem pode haver liturgia cristã (Mateus 6:5-12; João 4:21), nem mestres,
nem padres (Mateus 23:8-10), nem propriedade cristã, nem exército cristão, nem
tribunal, nem Estado. Assim foi sempre compreendido pelos cristãos verdadeiros
dos primeiros séculos e dos séculos seguintes.
O ideal do cristão é o amor a Deus e ao próximo, é renunciar a si mesmo
para servir a Deus e ao próximo; o amor carnal e o casamento, constituem o serviço
a si mesmo e, por isso, são, em qualquer caso, um empecilho para servir a Deus
e às pessoas, e é por isso que constituem, da ótica cristã, uma queda, um pecado.
O casamento não pode contribuir para servir a Deus e às pessoas, nem
sequer no caso em que aquele que se case tenha o objetivo de dar continuidade
à espécie humana. Para essas pessoas, em lugar de casar-se para fabricar vidas
infantis, seria muito mais fácil sustentar e salvar aqueles milhões de vidas infantis
que perecem ao nosso redor por falta, não digo já de alimento espiritual, mas de
alimento material.
O único caso em que o cristão poderia casar-se, sem sentimento de queda
ou de pecado, seria se ele visse e soubesse que todas as vidas das crianças que
existem estão abastecidas.
É possível não aceitar o ensinamento de Cristo, aquele ensinamento do qual
está impregnada toda nossa vida e no qual está baseada toda nossa moral, mas, se
aceitarmos esse ensinamento, não podemos não reconhecer que ele aponta para
um ideal de castidade absoluta.
Pois no Evangelho está dito claramente, e sem possibilidade de qualquer
interpretação, que primeiro: o homem casado não deve separar-se de sua esposa,
a fim de desposar outra, mas deve viver com aquela a quem se uniu (Mateus 5:31-
32; 19:8). Segundo: para o homem em geral e, em consequência, tanto o casado
como o solteiro, é pecado olhar para a mulher como um objeto para sua satisfação
(Mateus 5:28-29). E, terceiro: para o homem solteiro, o melhor mesmo é não se
casar, isto é, ser absolutamente casto (Mateus 19:10-12).
Para muitos e muitos, essas ideias parecerão estranhas e até contraditórias,
mas não entre si. Essas ideias contradizem toda a nossa vida e, sem querer, apa-
rece a dúvida: quem está certo? Essas ideias ou a vida de milhões de pessoas e
a minha própria? Eu experimentei esse mesmo sentimento, e no grau mais alto,
quando cheguei às convicções que estou expressando agora: eu não esperava que
o curso de meus pensamentos me levasse para onde me levou. Eu me horrorizei
de minhas conclusões, não queria acreditar nelas, mas não era possível. E por mais
que essas conclusões contradissessem toda a organização de nossa vida, e por
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 309

mais que contradissessem tudo o que eu pensava antes, e até o que eu expressei,
eu devia aceitá-las.
“Mas tudo isso são considerações gerais que até podem ser justas, mas têm
a ver com os ensinamentos de Cristo e, portanto, são obrigatórias para aqueles
que o seguem; mas a vida é a vida, e não se deve, depois de apontar lá na frente o
ideal inatingível de Cristo, deixar as pessoas sozinhas em uma das questões mais
pungentes, gerais e que provocam as maiores desgraças, apenas com esse ideal,
sem nenhuma orientação.”
“A pessoa jovem e apaixonada, no começo se deixará arrebatar pelo ideal,
mas não suportará e falhará, e sem saber nem conhecer regra alguma, cairá na
depravação absoluta!”
É assim que pensam comumente.
“O ideal de Cristo é inatingível, por isso não pode servir-nos como guia de
vida; pode-se falar sobre ele, sonhar com ele, mas ele não é aplicável à vida e, por
isso, é preciso abandoná-lo. Precisamos não de um ideal, mas de uma regra, um
guia à medida de nossas forças, que esteja no nível médio das forças morais de
nossa sociedade: por exemplo, um casamento eclesiástico honesto ou até mesmo
um casamento não de tudo honesto, em que um dos noivos, no nosso caso, o
homem, já tenha se unido a muitas mulheres; ou pelo menos um casamento com
possibilidade de divórcio, ou uma união de fato, ou (já que estamos indo por esse
caminho) nem que seja, um casamento japonês, com prazo, ou por que não chegar
então até as casas de tolerância?”
Falam que isso é melhor que a devassidão da rua. E nisso é que está a
desgraça: ao ter-se permitido rebaixar o ideal por causa da própria fraqueza, não
se consegue achar aquele limite no qual se deve parar.
Mas esse raciocínio está errado desde o começo. Antes de mais nada, está
errado que o ideal de perfeição infinita não possa servir como guia de vida, e que,
ao olhar para ele, seja preciso acenar-lhe adeus, afirmando que não preciso desse
ideal, já que nunca o alcançarei, ou então rebaixar o ideal até aquele degrau em
que quer permanecer minha fraqueza.
Raciocinar assim é a mesma coisa que um navegante falasse para si “já
que não posso ir por aquela linha que mostra a bússola, então vou jogá-la fora,
ou vou deixar de olhar para ela”. Quer dizer, ou jogo fora o ideal, ou vou fixar a
agulha da bússola naquele lugar que corresponda, neste minuto, com o caminho
de minha embarcação; isto é, rebaixo o ideal à altura de minha fraqueza. O ideal
de perfeição dado por Cristo não é um sonho ou o objeto de prédicas retóricas;
é, pelo contrário, o mais necessário guia da vida moral das pessoas, acessível a
310 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

todos, como a bússola: um instrumento necessário e acessível para a orientação


do navegante; só é preciso acreditar tanto em um como no outro. Não importa
em que situação se encontre a pessoa, sempre é suficiente a doutrina do ideal
dada por Cristo para obter a indicação mais certeira acerca dos atos que se deve
ou não realizar. Mas é preciso acreditar por completo nessa doutrina, e só nessa
doutrina, e deixar de acreditar em todas as outras, exatamente como o navegante
tem que acreditar na bússola e deixar de espreitar e orientar-se por aquilo que
vê pelos lados. É preciso saber orientar-se pela doutrina cristã, da mesma forma
que se sabe orientar-se pela bússola, e para isso, o mais importante é que se deve
compreender a própria situação e é preciso saber não ter medo de determinar,
com exatidão, seu próprio desvio da orientação ideal dada. Não importa em que
patamar se encontre a pessoa, sempre existe a possibilidade de aproximar-se do
ideal, e não há situação alguma em que se possa dizer que o ideal foi atingido, e
em que não se possa aspirar a uma maior aproximação dele. Tal é a aspiração do
ser humano ao ideal cristão como um todo e tal também é a aspiração à castidade
como uma parte desse ideal. Se imaginarmos, no que se refere à questão sexual,
as mais diversas situações das pessoas em que não se observa a abstinência – da
infância inocente ao casamento –, em cada patamar entre essas duas situações,
a doutrina de Cristo com o ideal que ele apresentou, sempre servirá como guia
claro e preciso do que se deve e não se deve fazer em cada um desses patamares.
O que devem fazer o jovem e a moça puros? Permanecer limpos de tenta-
ções, e para estar em condições de entregar todas suas forças ao serviço de Deus
e das pessoas, devem aspirar a uma castidade de pensamentos e desejos cada vez
maior.
O que devem fazer o jovem e a moça que tenham caído em tentação,
consumidos por pensamentos de um amor sem objetivo, ou de amor por uma
pessoa determinada, que tenham perdido, por causa disso, uma parte conhecida da
possibilidade de servir a Deus e às pessoas? A mesma coisa: não se permitir cair,
sabendo que a queda não os livrará da tentação, apenas a fortalecerá, e também
aspirar a uma castidade cada vez maior para que seja possível um serviço integral
a Deus e às pessoas.
O que devem fazer as pessoas quando elas não venceram sua luta e caíram?
Não olhar para sua queda como um prazer permitido pela lei, como fazem agora,
justificando a queda pelo rito do casamento, ou como um prazer casual que pode
ser repetido com outras pessoas, ou como uma desgraça, no caso de a queda
acontecer com um desigual e sem rito, mas olhar para essa primeira queda como
a única, como início de um casamento indissolúvel.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 311

O início desse casamento, com todas as consequências decorrentes dele


– o nascimento dos filhos – determina, para os que se iniciam nele, uma forma
nova, mais limitada de servir a Deus e às demais pessoas. Antes do casamento, as
pessoas podem servir a Deus e aos outros de forma imediata, e das mais diversas
maneiras; mas o casamento limita seu poder de ação e exige delas dedicar-se à
criação e educação dos filhos resultantes desse casamento, para serem futuros
servidores de Deus e das pessoas.
O que devem fazer o homem e a mulher que vivem em casamento e que,
produto de sua situação, executam apenas um limitado serviço a Deus e às pessoas
por meio da criação e da educação dos filhos?
A mesma coisa: devem aspirar juntos a livrar-se da tentação, à purificação
de si próprios e à cessação do pecado, a trocar as relações que impedem o serviço
essencial e particular a Deus e às demais pessoas e a trocar o amor carnal pelas
relações imaculadas que existem entre irmão e irmã.
Por isso, não é verdade que não possamos guiar-nos pelo ideal de Cristo,
porque ele não é nem tão alto, nem tão perfeito, nem tão inatingível. Nós só não
podemos guiar-nos por ele, porque mentimos para nós mesmos e enganamo-nos.
Pois se falarmos que devemos possuir regras mais executáveis do que o ideal
de Cristo, ou então nós, sem termos atingido esse ideal, cairmos na devassidão,
não estamos falando que o ideal de Cristo é alto demais para nós, mas apenas
que não acreditamos nele e não queremos condicionar nossos atos a esse ideal.
Se dissermos que, uma vez caídos, cairemos na devassidão, com isso só
estamos afirmando que já decidimos, com antecedência, que a queda com alguém
que não é nosso igual, não é um pecado, mas uma diversão, uma paixão, que não
obrigatoriamente devemos corrigir por meio disso que chamamos casamento.
Se entendêssemos que a queda é um pecado que deve e pode ser expiado só por
meio de um casamento indissolúvel, e por meio de toda a atividade que deriva da
educação dos filhos nascidos desse casamento, então entenderíamos também que
a queda não pode, de forma alguma, ser a causa da devassidão.
Isso é a mesma coisa que o lavrador que não considera como lavoura aquela
que não deu certo mas, depois de plantar em um segundo e terceiro lugar, consi-
derasse que é uma verdadeira lavoura aquele plantio que vingou. É evidente que
tal pessoa estragaria muita terra e sementes e nunca aprenderia a plantar. Tão só
coloquem-se o ideal de castidade, considerem que qualquer queda, seja ela qual
for, com qualquer pessoa que for, constitui o único e indissolúvel casamento para
toda a vida, e será claro que o guia dado por Cristo é, não apenas suficiente, mas
o único possível.
312 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

“O homem é fraco, é preciso lhe dar uma tarefa à medida de suas forças”,
dizem as pessoas. Isso é a mesma coisa que dizer “minhas mãos são fracas e eu não
posso traçar uma linha que seja reta, nem sequer a mais curta entre dois pontos
e, por isso, para facilitar-me o trabalho, vou pegar como modelo uma curva ou
uma linha quebrada, sendo que eu quero traçar uma reta”. Quanto mais fraca é a
minha mão, mais preciso de um modelo perfeito.
Não se deve, depois de ter reconhecido a doutrina cristã do ideal, fazer de
conta que não a conhecemos e trocá-la por normas superficiais. A doutrina cristã
do ideal foi revelada à humanidade justamente porque ela pode dirigi-la em sua
fase de desenvolvimento atual. A humanidade já viveu um período de normas
religiosas superficiais, e ninguém acredita já nelas.
A doutrina cristã do ideal é a única que pode dirigir a humanidade. É impos-
sível, não se deve trocar o ideal de Cristo por regras superficiais, mas é necessário
manter esse ideal firme diante de si, em toda a sua pureza e, o mais importante,
deve-se acreditar nele.
Àquele que navega à margem poderia se dizer: “atenha-se a essa elevação,
a esse promontório, a essa torre”, e assim por diante.
Mas chega o tempo em que os navegantes se afastam da margem, e devem
e podem servir-lhes de guia apenas os astros inalcançáveis e a bússola, que lhes
mostra a direção. Ambos nos foram dados.

Послесловие к “Крейцеровой Сонате” (Лев Николаевич


Толстой)

Я получил и получаю много писем от незнакомых мне лиц, просящих


меня объяснить в простых и ясных словах то, что я думаю о предмете
написанного мною рассказа под заглавием “Крейцерова соната”. Попытаюсь
это сделать, то есть в коротких словах выразить, насколько это возможно,
сущность того, что я хотел сказать в этом рассказе, и тех выводов, которые,
по моему мнению, можно сделать из него.
Хотел я сказать, во-первых, то, что в нашем общество сложилось
твердое, общее всем сословиям и поддерживаемое ложной наукой
убеждение в том, что половое общение есть дело необходимое для здоровья
и что так как женитьба есть дело не всегда возможное, то и половое
общение вне брака, не обязывающее мужчину ни к чему, кроме денежной
платы, есть дело совершенно естественное и потому долженствующее
быть поощряемым. Убеждение это до такой степени стало общим и
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 313

твердым, что родители, по совету врачей, устраивают разврат для своих


детей; правительства, единственный смысл которых состоит в заботе о
нравственном благосостоянии своих граждан, учреждают разврат, то есть
регулируют целое сословие женщин, долженствующих погибать телесно
и душевно для удовлетворения мнимых потребностей мужчин, а холостые
люди с совершенно спокойной совестью предаются разврату.
И вот я хотел сказать, что это нехорошо, потому что не может быть
того, чтобы для здоровья одних людей можно бы было губить тела и души
других людей, так же как не может быть того, чтобы для здоровья одних
людей нужно было пить кровь других.
Вывод же, который, мне кажется, естественно сделать из этого, тот, что
поддаваться этому заблуждению и обману не нужно. А для того, чтобы не
поддаваться, надо, во-первых, не верить безнравственным учениям, какими
бы они ни поддерживались мнимыми науками, а во-вторых, понимать, что
вступление в такое половое общение, при котором люди или освобождают
себя от возможных последствий его — детей, или сваливают всю тяжесть
этих последствий на женщину, или предупреждают возможность рождения
детей,— что такое половое общение есть преступление самого простого
требования нравственности, есть подлость, и что потому холостым людям,
не хотящим жить подло, надо не делать этого.
Для того же, чтобы они могли воздержаться, они должны, кроме того
что вести естественный образ жизни: не пить, не объедаться, не есть мяса и
не избегать труда (не гимнастики, а утомляющего, не игрушечного труда),
не допускать в мыслях своих возможности общения с чужими женщинами,
так же как всякий человек не допускает такой возможности между собой и
матерью, сестрами, родными, женами друзей.
Доказательство же того, что воздержание возможно и менее опасно
и вредно для здоровья, чем невоздержание, всякий мужчина найдет вокруг
себя сотни.
Это первое.
Второе то, что в нашем обществе, вследствие взгляда на любовное
общение не только как на необходимое условие здоровья и на удовольствие,
но и как на поэтическое, возвышенное благо жизни, супружеская неверность
сделалась во всех слоях общества (в крестьянском особенно, благодаря
солдатству) самым обычным явлением.
И я полагаю, что это нехорошо. Вывод же, который вытекает из этого,
тот, что этого не надо делать.
314 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

Для того же, чтобы не делать этого, надо, чтобы изменился взгляд на
плотскую любовь, чтобы мужчины а женщины воспитывались бы в семьях и
общественным мнением так, чтобы они и до и после женитьбы посмотрели
на влюбление и связанную с ним плотскую любовь как на поэтическое и
возвышенное состояние, как на это смотрят теперь, а как на унизительное
для человека животное состояние, и чтобы нарушение обещания верности,
даваемого в браке, казнилось бы общественным мнением по крайней мере
так же, как казнятся им нарушения денежных обязательств и торговые
обманы, а не воспевалось бы, как это делается теперь, в романах, стихах,
песнях, операх и т. д.
Это второе.
Третье то, что в нашем обществе, вследствие опять того же ложного
значения, которое придано плотской любви, рождение детей потеряло
свой смысл и, вместо того, чтобы быть целью и оправданием супружеских
отношений, стало помехой для приятного продолжения любовных
отношений, и что потому и вне брака и в браке, по совету служителей
врачебной науки, стало распространяться употребление средств, лишающих
женщину возможности деторождения, или стало входить в обычай и
привычку то, чего не было прежде и теперь еще нет в патриархальных
крестьянских семьях: продолжение супружеских отношений при
беременности и кормлении.
И полагаю я, что это нехорошо. Нехорошо употреблять средства
против рождения детей, во-первых, потому, что это освобождает людей
от забот и трудов о детях, служащих искуплением плотской любви, а
во-вторых, потому, что это почти весьма близкое к самому противному
человеческой совести действию—убийству. И нехорошо невоздержание во
время беременности и кормления, потому что это губит телесные, а главное
— душевные силы женщины.
Вывод же, который вытекает из этого, тот, что этого не надо делать. А
для того, чтобы этого не делать, надо понять, что воздержание, составляющее
необходимое условие человеческого достоинства при безбрачном состоянии,
еще более обязательно в браке.
Это третье.
Четвертое то, что в нашем обществе, в котором дети представляются
или помехой для наслаждения, или несчастной случайностью, или своего рода
наслаждением, когда их рождается вперед определенное количество, эти дети
воспитываются не в виду тех задач человеческой жизни, которые предстоят
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 315

им как разумным и любящим существам, а только в виду тех удовольствий,


которые они могут доставить родителям. И что вследствие этого дети людей
воспитываются как дети животных, так что главная забота родителей состоит
не в том, чтобы приготовить их к достойной человека деятельности, а в том
(в чем поддерживаются родители ложной наукой, называемой медициной),
чтобы как можно лучше напитать их, увеличить их рост, сделать их чистыми,
белыми, сытыми, красивыми (если в низших классах этого не делают, то
только по необходимости, а взгляд одни и тог же). И в изнеженных детях,
как и во всяких перекормленных животных, неестественно рано появляется
непреодолимая чувственность, составляющая причину страшных мучений
этих детей в отроческом возрасте. Наряды, чтения, зрелища, музыка, танцы,
сладкая пища, вся обстановка жизни, от картинок на коробках до романов и
повестей и поэм, еще более разжигают эту чувственность, и вследствие этого
самые ужасные половые пороки и болезни делаются обычными условиями
вырастания детей обоего пола и часто остаются и в зрелом возрасте.
И я полагаю, что это нехорошо. Вывод же, который можно сделать
из этого, тот, что надо перестать воспитывать детей людей, как детей
животных, и для воспитания людских детей поставить себе другие цели,
кроме красивого, выхоленного тела.
Это четвертое.
Пятое то, что в нашем обществе, где влюбление между молодым
мужчиной и женщиной, имеющее в основе все-таки плотскую любовь,
возведено в высшую поэтическую цель стремлений людей, свидетельством
чего служит все искусство и поэзия нашего общества, молодые люди лучшее
время своей жизни посвящают: мужчины на выглядывание, приискивание
и овладевание наилучшими предметами любви в форме любовной связи
или брака, а женщины и девушки — на заманиванье и вовлечение мужчин
в связь или брак.
И от этого лучшие силы людей тратятся не только на
непроизводительную, но на вредную работу. От этого происходит большая
часть безумной роскоши нашей жизни, от этого — праздность мужчин
и бесстыдство женщин, не пренебрегающих выставленным по модам,
заимствуемым от заведомо развратных женщин, вызывающих чувственность
частей тела.
И я полагаю, что это нехорошо.
Нехорошо это потому, что достижение цели соединения в браке или
вне брака с предметом любви, как бы оно ни было опоэтизировано, есть цель,
316 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

недостойная человека, так же как недостойна человека представляющаяся


многим людям высшим благом цель приобретения себе сладкой и
изобильной пищи.
Вывод же, который можно сделать из этого, тот, что надо перестать
думать, что любовь плотская есть нечто особенно возвышенное, а надо
понять, что цель, достойная человека,— служение ли человечеству, отечеству,
науке, искусству ли (не говоря уже о служении богу) — какая бы она ни была,
если только мы считаем ее достойной человека, не достигается посредством
соединения с предметом любви в браке или вне его, а что, напротив,
влюбление и соединение с предметом любви (как бы ни старались доказывать
противное в стихах и прозе) никогда не облегчает достижение достойной
человека цели, по всегда затрудняет его.
Это пятое.
Вот то существенное, что я хотел сказать и думал, что сказал в своем
рассказе. И мне казалось, что можно рассуждать о том, как исправить то
зло, на которое указывали эти положения, но что не согласиться с ними
никак нельзя.
Мне казалось, что не согласиться с этими положениями нельзя,
во-первых, потому, что положения эти вполне согласны с прогрессом
человечества, всегда шедшим от распущенности к большей и большей
целомудренности, и с нравственным сознанием общества, с нашей совестью,
всегда осуждающей распущенность и ценящей целомудрие; и, во-вторых,
потому, что эти положения суть только неизбежные выводы из учения
Евангелия, которые мы или исповедуем, или, по крайней мере, хотя и
бессознательно, признаем основой наших понятий о нравственности.
Но вышло не так.
Никто, правда, прямо не оспаривает положений о том, что
развратничать не надо до брака, не надо и после брака, что не надо
искусственно уничтожать деторождения, что не надо из детей делать забавы
и не надо ставить любовное соединение выше всего остального,— одним
словом, никто не спорит о том, что целомудрие лучше распущенности. Но
говорят: “Если безбрачие лучше брака, то очевидно, что люди должны делать
то, что лучше. Если же люди сделают это, то род человеческий прекратится,
и потому не может быть идеалом рода человеческого уничтожение его”.
Но не говоря уже о том, что уничтожение рода человеческого не
есть понятие новое для людей нашего мира, а есть для религиозных людей
догмат веры, для научных же людей неизбежный вывод наблюдений об
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 317

охлаждении солнца, в возражении этом есть большое, распространенное


и старое недоразумение.
Говорят: “Если люди достигнут идеала полного целомудрия, то они
уничтожаются, и потому идеал этот не верен”. Но те, которые говорят
так, умышленно или неумышленно смешивают две разнородные вещи —
правило, предписание и идеал.
Целомудрие не есть правило или предписание, а идеал или скорее
— одно из условий его. А идеал только тогда идеал, когда осуществление
его возможно только и идее, в мысли, когда он представляется достижимым
только в бесконечности и когда поэтому возможность приближения к нему
— бесконечна. Если бы идеал по только мог быть достигнут, но мы могли
б представить себе его осуществление, он бы перестал быть идеалом. Таков
идеал Христа,— установление царства бога на земле, идеал, предсказанный
еще пророками о том, что наступит время, когда вес люди будут научены
богом, перекуют мечи на орала, копья на серпы, лев будет лежать с ягненком
и когда все существа будут соединены любовью. Весь смысл человеческой
жизни заключается в движении по направлению к этому идеалу, и
потому стремление к христианскому идеалу во всей его совокупности и к
целомудрию, как к одному из условий этого идеала, не только не исключает
возможности жизни, по, напротив того, отсутствие этого христианского
идеала уничтожило бы движение вперед и, следовательно, возможность
жизни.
Суждение о том, что род человеческий прекратится, если люди всеми
силами будут стремиться к целомудрию, подобно тому, которое сделали бы
(да и делают), что род человеческий погибнет, если люди, вместо борьбы
за существование, будут всеми силами стремиться к осуществлению любви
к друзьям, к врагам, ко всему живущему. Суждения такие вытекают из
непонимания различия двух приемов нравственного руководства.
Как есть два способа указания пути ищущему, указания путешественнику,
так есть и два способа нравственного руководства для ищущего правды
человека. Один способ состоит в том, что человеку указываются предметы,
долженствующие встретиться ему, и он направляется по этим предметам.
Другой способ состоит в том, что человеку дается только направление
по компасу, который человек несет с собой и на котором он видит всегда
одно неизменное направление и потому всякое свое отклонение от него.
Первый способ нравственного руководства есть способ внешних
определений, правил: человеку даются определенные признака поступков,
которые он должен и которых не должен делать.
318 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

“Соблюдай субботу, обрезывайся, не крадь, не пей хмельного, не уби-


вай живого, отдавай десятину бедным, но прелюбодействуй, омывайся и мо-
лись пять раз в день, крестись, причащайся и т. под.”. Таковы постановления
внешних религиозных учений: браминского, буддийского, магометанского,
еврейского, церковного, ложно называемого христианским.
Другой способ есть способ указания человеку никогда не достижимого
им совершенства, стремление к которому человек сознает в себе: человеку
указывается идеал, по отношению к которому он всегда может видеть степень
своего удаления от него.
“Люби бога твоего всем сердцем, и всею душой твоей, и всем раз-
умением твоим и ближнего, как самого себя. Будьте совершенны, как отец
ваш небесный”.
Таково учение Христа.
Поверка исполнения внешних религиозных учений есть совпадение
поступков с определениями этих учений, и совпадение это возможно.
Поверка исполнения Христова учения есть сознание степени
несоответствия с идеальным совершенством. (Степень приближения не
видна: видно одно отклонение от совершенства.)
Человек, исповедующий внешний закон, есть человек, стоящий в свете
фонаря, привешенного к столбу. Он стоит в свете этого фонаря, ему светло, и
идти ему дальше некуда. Человек, исповедующий Христово учение, подобен
человеку, несущему фонарь перед собой на более или менее длинном
шесте: свет всегда впереди его и всегда побуждает его идти за собой и вновь
открывает ему впереди его новое, влекущее к себе освещенное пространство.
Фарисей благодарит бога за то, что он исполняет все.
Богатый юноша тоже исполнил все с детства и не понимает, чего
может недоставать ему. И они не могут думать иначе; впереди их нет того,
к чему бы они могли продолжать стремиться. Десятина отдана, суббота
соблюдена, родители почтены, прелюбодеяния, воровства, убийства — нет.
Чего же еще? Для исповедующего же христианское учение достижение
всякой ступени совершенства вызывает потребность вступления на высшую
ступень, с которой открывается еще высшая, и так без конца.
Исповедующий закон Христа всегда в положении мытаря. Он всегда
чувствует себя несовершенным, не видя позади себя пути, который он
прошел, а видя всегда впереди себя тот путь, по которому еще надо идти и
который он не прошел еще.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 319

В этом состоит различие учения Христа от всех других религиозных


учений, различие, заключающееся не в различии требований, а в различии
способа руководства людей. Христос не давал никаких определений жизни,
он никогда не устанавливал никаких учреждений, никогда не устанавливал и
брака. Но люди, не понимающие особенности учения Христа, привыкшие к
внешним учениям и желающие чувствовать себя правыми, как чувствует себя
правым фарисей, противно всему духу учения Христа, из буквы его сделали
внешнее учение правил, называемое церковным христианским учением, и
этим учением подменили истинное Христово учение идеала.
Церковные, называющие себя христианскими, учения по отношению
ко всем проявлениям жизни вместо учения идеала Христа поставили внешние
определения и правила, противные духу учения. Это сделано по отношению
власти, суда, войска, церкви, богослужения, это сделано и по отношению
брака; несмотря на то, что Христос не только никогда не устанавливал брака,
но уж если отыскивать внешние определения, то скорее отрицал его (“оставь
жену и иди за мной”), церковные учения, называющие себя христианскими,
установили брак как христианское учреждение, то есть определили внешние
условия, при которых плотская любовь может для христианина будто бы
быть безгрешною, вполне законною.
Но так как в истинном христианском учении нет никаких основании
для учреждения брака, то и вышло то, что люди нашего мира от одного
берега отстали и к другому не пристали, то есть не верят, в сущности, в
церковные определения брака, чувствуя, что это учреждение не имеет
оснований в христианском учении, и вместе с тем не видят перед собой
закрытого церковным учением идеала Христа, стремления к полному
целомудрию и остаются по отношению брака без всякого руководства.
От этого-то и происходит то, кажущееся сначала странным, явление, что у
евреев, магометан, ламаистов и других, признающих религиозные учения
гораздо низшего уровня, чем христианское, но имеющих точные внешние
определения брака, семейное начало и супружеская верность несравненно
тверже, чем у так называемых христиан.
У тех есть определенное наложничество, многоженство, ограниченное
известными пределами. У нас же существует полная распущенность и
наложничество, многоженство и многомужество, по подчиненное никаким
определениям, скрывающееся под видом воображаемого единобрачия.
Только потому, что над некоторой частью соединяющихся
совершается духовенством за деньги известная церемония, называемая
320 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

церковным браком, люди нашего мира наивно или лицемерно воображают,


что живут в единобрачии.
Христианского брака быть не может и никогда не было, как никогда
не было и не может быть ни христианского богослужения (Мф. VI, 5—12;
Иоан. IV, 21), ни христианских учителей и отцов (Мф. XXIII, 8—10), ни
христианской собственности, ни христианского войска, ни суда, ни госу-
дарства. Так и понималось это всегда истинными христианами первых и
последующих веков.
Идеал христианина есть любовь к богу и ближнему, есть отречение от
себя для служения богу и ближнему; плотская же любовь, брак, есть служение
себе и потому есть, во всяком случае, препятствие служению богу и людям,
а потому с христианской точки зрения — падение, грех.
Вступление в брак не может содействовать служению богу и людям
даже в том случае, если бы вступающие в брак имели бы целью продолжение
рода человеческого. Таким людям, вместо того чтобы вступать в брак для
произведения детских жизней, гораздо проще поддерживать и спасать те
миллионы детских жизней, которые гибнут вокруг нас от недостатка не
говорю уже духовной, но материальной пищи.
Только в том случае мог бы христианин без сознания падения, греха
вступить в брак, если бы он видел и знал, что все существующие жизни
детей обеспечены.
Можно не принимать учения Христа, того учения, которым
проникнута вся наша жизнь и на котором основана вся наша нравственность,
но, принимая это учение, нельзя не признавать того, что оно указывает идеал
полного целомудрия.
В Евангелии ведь сказано ясно и без возможности какого-либо
перетолкования — во-первых, то, что женатому не должно разводиться с
женой, с тем чтобы взять другую, а должно жить с той, с которой раз сошелся
(Мф. V, 31—32; XIX, 8); во-вторых, то, что человеку вообще, и, следователь-
но, как женатому, так и неженатому, грешно смотреть на женщину как на
предмет наслаждения (Мф. V, 28—29), и, в-третьих, то, что неженатому лучше
не жениться вовсе, то есть быть вполне целомудренным (Мф. XIX, 10—12).
Для многих и многих мысли эти покажутся странными и даже
противоречивыми. И они, действительно, противоречивы, но не между
собой, а мысли эти противоречат всей нашей жизни, и невольно является
сомнение: кто прав? — мысли ли эти или жизнь миллионов людей и моя?
Это самое чувство испытывал и я в сильнейшей степени, когда приходил
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 321

к тем убеждениям, которые теперь высказываю: я никак не ожидал, что ход


моих мыслей приведет меня к тому, к чему он привел меня. Я ужасался
своим выводам, хотел не верить им, но не верить нельзя было. И как ни
противоречат эти выводы всему строю нашей жизни, как ни противоречат
тому, что я прежде думал и высказывал даже, я должен был признать их.
“Но все это общие соображения, которые, может быть, и справедливы,
но относятся к учению Христа и обязательны для тех, которые исповедуют
его, но жизнь есть жизнь, и нельзя, указав впереди недостижимый идеал
Христа, оставить людей в одном из самых жгучих, общих и производящих на-
ибольшие бедствия вопросов с одним этим идеалом без всякого руководства.
“Молодой, страстный человек сначала увлечется идеалом, но не
выдержит, сорвется и, не зная и не признавая никаких правил, попадет в
полный разврат!”
Так рассуждают обыкновенно.
“Христов идеал недостижим, поэтому не может служить нам руковод-
ством в жизни; о нем можно говорить, мечтать, но для жизни он неприложим,
и потому надо оставить его. Нам нужен не идеал, а правило, руководство,
которое было бы по нашим силам, по среднему уровню нравственных сил
нашего общества: церковный частный брак или хоть даже не совсем честный
брак, при котором один из брачущихся, как у нас, мужчина, yжe сходился со
многими женщинами, или хотя бы брак с возможностью развода, или хотя
бы гражданский, или (идя по тому же пути) хотя бы японский на срок,—
почему же не дойти и до домов терпимости?”
Говорят, это лучше, чем уличный разврат. В том-то и беда, что,
позволив себе принижать идеал по своей слабости, нельзя найти того
предела, на котором надо остановиться.
Но ведь это рассуждение с самого начала неверно; неверно прежде
всего то, чтобы идеал бесконечного совершенства не мог быть руководством
в жизни и чтобы нужно было, глядя на него, или махнуть рукой, сказав, что
он мне не нужен, так как я никогда не достигну его, или принизить идеал до
тех ступеней, на которых хочется стоять моей слабости.
Рассуждать так — все равно, что мореплавателю сказать себе, что так как
я не могу идти по той линии, которую указывает компас, то я выкину компас
или перестану смотреть на него, то есть отброшу идеал, или прикреплю
стрелку компаса к тому месту, которое будет соответствовать в данную
минуту ходу моего судна, то есть принижу идеал к моей слабости. Идеал
совершенства, данный Христом, не есть мечта или предмет риторических
322 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

проповедей, а есть самое необходимое, всем доступное руководство


нравственной жизни людей, как компас — необходимое и доступное орудие
руководства морехода; только надо верить как в то, так и в другое. В каком бы
ни находился человек положении, всегда достаточно учения идеала, данного
Христом, для того, чтобы получить самое верное указание тех поступков,
которые должно и не должно совершать. Но надо верить этому учению
вполне, этому одному учению, перестать верить во все другие, точно так же
как надо мореходу верить в компас, перестать приглядываться и руководиться
тем, что он видит по сторонам. Надо уметь руководствоваться христианским
учением, как уметь руководствоваться компасом, а для этого, главное, надо
понимать свое положение, надо уметь не бояться с точностью определять
свое отклонение от идеального данного направления. На какой бы ступени
ни стоял человек, всегда есть для него возможность приближения к этому
идеалу, и никакое положение для него не может быть таким, в котором бы
он мог сказать, что он достиг его, и не мог бы стремиться к еще большему
приближению. Таково стремление человека к христианскому идеалу вообще
и таково же к целомудрию в частности. Если представить себе по отношению
полового вопроса самые различные положения людей — от невинного
детства до брака,— в которых не соблюдается воздержание, на каждой
ступени между этими двумя положениями учение Христа с выставляемым
им идеалом будет всегда служить ясным и определенным руководством того,
что должно и не должно на каждой из этих ступеней делать человеку.
Что делать чистому юноше, девушке? Соблюдать себя чистыми от
соблазнов и, для того чтобы быть в состоянии все свои силы отдать на
служение богу и людям, стремиться к большему и большему целомудрию
мыслей и желаний.
Что делать юноше и девушке, подпавшим соблазнам, поглощенным
мыслями о беспредметной любви или о любви к известному лицу и
потерявшим от этого известную долю возможности служить богу и людям? Все
то же; не попускать себя на падение, зная, что такое попущение не освободит от
соблазна, а только усилит его, и все так же стремиться к большему и большему
целомудрию для возможности более полного служения богу и людям.
Что делать людям, когда они не осилили борьбы и пали? Смотреть на
свое падение не как на законное наслаждение, как смотрят теперь, когда оно
оправдывается обрядом брака, ни как на случайное удовольствие, которое
можно повторять с другими, ни как на несчастие, когда падение совершается с
неровней и без обряда, а смотреть на это первое падение как на единственное,
как на вступление в неразрывный брак.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 323

Вступление это в брак своим вытекающим из него последствием


— рождением детей — определяет для вступивших в брак новую,
более ограниченную форму служения богу и людям. До брака человек
непосредственно в самых разнообразных формах мог служить богу и людям;
вступление же в брак ограничивает его область деятельности и требует от
него возращения и воспитания происходящего от брака потомства, будущих
служителей богу и людям.
Что делать мужчине и женщине, живущим в браке и исполняющим
то ограниченное служение богу и людям, через возращение и воспитание
детей, которое вытекает из их положения?
Все то же: стремиться вместе к освобождению от соблазна, очищению
себя и прекращению греха, заменой отношений, препятствующих и общему
и частному служению богу и людям, заменой плотской любви чистыми
отношениями сестры и брата.
И потому неправда то, что мы не можем руководиться идеалом
Христа, потому что он так высок, совершенен и недостижим. Мы не можем
руководиться им только потому, что мы сами себе лжем и обманываем себя.
Ведь если мы говорим, что нужно иметь правила более осуществимые,
чем идеал Христа, а то иначе мы, не достигнув идеала Христа, впадем в
разврат, мы говорим не то, что для нас слишком высок идеал Христа, а
только то, что мы в него не верим и не хотим определять своих поступков
по этому идеалу.
Говоря, что, раз павши, мы впадем в разврат, мы ведь этим говорим
только, что мы вперед уже решили, что падение с неровней не есть грех,
а есть забава, увлечение, которое необязательно поправить тем, что мы
называем браком. Если же бы мы понимали, что падение есть грех, который
должен и может быть искуплен только неразрывностью брака и всей той
деятельностью, которая вытекает из воспитания детей, рожденных от брака,
то падение никак не могло бы быть причиной впадения в разврат.
А то ведь это все равно, как если бы земледелец не считал посевом тот
посев, который не удался ему, а, сея на другом и третьем месте, считал бы
настоящим посевом тот, который удается ему. Очевидно, что такой человек
испортил бы много земли и семян и никогда бы не научился сеять. Только
поставьте идеалом целомудрие, считайте, что всякое падение кого бы то ни
было с кем бы то ни было есть единственный, неразрывный на всю жизнь
брак, и будет ясно, что руководство, данное Христом, не только достаточно,
но единственно возможно.
324 Natalia Quintero. Comentário ao Posfácio de Liev Tolstói a sua novela A Sonata a Kreutzer

“Человек слаб, надо дать ему задачу по силам”,— говорят люди. Это
все равно, что сказать: “руки мои слабы, и я не могу провести линию, ко-
торая была бы прямая, то есть кратчайшая между двумя точками, и потому,
чтоб облегчить себя, я, желая проводить прямую, возьму за образец себе
кривую или ломаную”. Чем слабее моя рука, тем нужнее мне совершенный
образец.
Нельзя, познав христианское учение идеала, делать так, как будто мы
не знаем его, и заменять его внешними определениями. Христианское учение
идеала открыто человечеству именно потому, что оно может руководить
его в теперешнем возрасте. Человечество уже выжило период религиозных,
внешних определений, и никто уже не верит в них.
Христианское учение идеала есть то единое учение, которое может
руководить человечеством. Нельзя, не должно заменять идеал Христа
внешними правилами, а надо твердо держать этот идеал перед собой во всей
чистоте его и, главное, верить в него.
Плавающему недалеко от берега можно было говорить: “держись того
возвышения, мыса, башни” и т. п.
Но приходит время, когда пловцы удалились от берега, и руководством
им должны и могут служить только недостижимые светила и компас,
показывающий направление. А то и другое дано нам.

Referências
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.
ARROJO, R. Oficina de tradução. A teoria na Prática. São Paulo, Ática, 1986.
BERNARDINI, Aurora. (Entrevista concedida para o programa da Univesp, Literatura
Fundamental n. 90.) https://www.youtube.com/watch?v=iIbM0FobowE Consulta rea-
lizada em 30 de setembro de 2017.
CHKLOVSKI, Viktor. “A arte como procedimento”. In: Teoria da literatura. Formalistas
russos. Porto Alegre: Globo, 1976.
____.“Iskusstvo kak priem” in: Manifesty Opoiaza. http://www.opojaz.ru/manifests/
kakpriem.html Consulta realizada em 22 de dezembro de 2017.
EIKHENBAUM, Boris. O literature. Raboty raznykh let. Moskva: Sovietskii pisatel, 1987.
GRIMES, William. “Mulher de Tolstói ganha voz própria”. http://www1.folha.uol.com.
br/ilustrada/2014/09/1509202-mulher-de-tolstoi-ganha-voz-propria.shtml Consulta
realizada em 30 de setembro de 2017.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 290-325 325

MARTINS Marques, Teresa. “Estudo sobre o ciúme – final”. https://www.jornalopcao.


com.br/posts/opcao-cultural/estudo-sobre-o-ciume-final Consulta realizada em 30 de
setembro de 2017.
NABÓKOV, Vladímir Vladímirovitch. Lições de literatura russa. Edição, tradução e notas de
Fredson Bowers. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Três estrelas, 2015.
RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. Rio de Janeiro: Educom, 1976.
____. Escola de tradutores. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
SCHNAIDERMAN, Boris. Leão Tolstói. São Paulo: Brasiliense, 1983.
____. Posfácio. In: A Sonata a Kreutzer. São Paulo: Editora 34, 2013. pp. 107-113.
____. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SCHNEIDER URSO, Graziela. Versões de Nabókov. Tese apresentada à Faculdade de Filo-
sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Letras
Orientais. Área de concentração: Literatura e Cultura Russa. São Paulo. 2016.
TITAN, Samuel Jr. “‘O que quer de mim esta música?’”. http://cultura.estadao.com.
br/noticias/artes,o-que-quer-de-mim-esta-musica,104824 Consulta realizada em 30 de
setembro de 2017.
TOLSTÓI, Liev Nikoláevitch. A Sonata a Kreutzer. Tradução de Boris Schnaiderman. São
Paulo: Editora 34, 2013.
____. “Epilogue to The Kreutzer Sonata”. In the translation by Professor Leo Wiener.
1904. http://lol-russ.umn.edu/hpgary/russ1905/epilogue%20to%20kreutzer%20sonata.
htm Consulta realizada em 30 de setembro de 2017.
____. Obras. Traducción de Irene y Laura Andresco. Madrid: Aguilar, 1987.
____. Polnoe 90-tomnoe sobranie sotchinienii, 2006. (Obras completas em 90 volumes, 2006).
Disponível em: http://tolstoy.ru/creativity/90-volume-collection-of-the-works/ Consulta
realizada em 02/10/2017.
____. Sonata a Kreutzer. Traducción de Ricardo San Vicente. Barcelona: Acantilado, 2003.
326 Diego Moschkovich. O Estudante, de A. Tchékhov

O Estudante, de A. Tchékhov

Diego Moschkovich

Resumo: Tradução do conto “O Estudante”, de Anton Tchékhov.


Palavras-chave: Literatura Russa; Tradução

O Estudante (Anton Tchékhov)

Começou fazendo tempo bom, quieto. Os pássaros berravam e, das vizi-


nhanças do brejo vinha um zumbido queixoso, como se alguém soprasse numa
garrafa vazia. Uma galinha aparece e leva um tiro, que ecoa cortante e alegre pelo
ar primaveril. A chegada da noite, depois, que vem do leste e cai sobre a floresta
soprando um vento frio impróprio, faz tudo silenciar. Pequenas agulhas de gelo
começam a brotar pelas poças d’água, e tudo, tudo na floresta torna-se incômodo,
mudo e hostil. Cheira a inverno.
Ivan Velikopólski, estudante seminarista e filho do diácono, voltava para
casa apressado pela trilha que cortava o pântano. Os dedos já entorpeciam e o
vento queimava o rosto. Parecia que aquele vento repentino chegara para destruir
toda a ordem e o consentimento, de uma forma tão estranha à própria natureza
que, por isso mesmo, a noite engrossara antes do que devia. Os arredores estavam
desertos e especialmente sombrios. Uma fogueira luzia na horta das viúvas, e só.
Lá longe, onde ficava a aldeia, a umas quatro verstas, tudo mergulhava inteiramente
no gelado breu da noite. O estudante se lembrou de como, ao sair de casa, sua
mãe limpava o samovar sentada no chão, descalça. Lembrou de como seu pai se
esquentava deitado aos pés do forno, tossindo. Lembrou de como não se cozinhava
nada em casa naquela sexta-feira da Paixão, e de como queria-se dolorosamente
comer. Encolheu-se de frio e pensou em como aquele mesmo vento já soprava
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 326-332 327

nos tempos de Riúrik. Depois, pensou em como já soprava também nos tempos
de Ivan o Terrível e também nos tempos de Pedro, o Grande1. Pensou em como
existia, também, a mesma pobreza feroz, a fome, os mesmos telhados esburacados
de palha, a ignorância, a angústia, aquele mesmo deserto ao redor, as trevas, o sen-
timento de opressão. Todos horrores que existiam, existem e existirão, e poderiam
passar mais mil anos que a vida não se tornaria melhor. Ivan não quis ir para casa.
Chamava-se “horta das viúvas” por que era uma horta de duas viúvas, mãe
e filha. Uma fogueira queimava calorosa, aos estalidos, iluminando longe a terra
lavrada. A viúva Vacilíssa, velhota alta e gorda, metida num capote masculino,
estava parada em pé ao lado do fogo e olhava pensativa para a labareda; sua filha,
Lukéria, pequena, sardenta e de rosto estúpido, estava sentada no chão de terra
e lavava um caldeirão e algumas colheres. Obviamente tinham acabado de jantar.
Ouviam-se as vozes masculinas dos serviçais, que davam de beber aos cavalos
no rio ali perto.
– Olhem só, não é que o inverno voltou, mesmo? – disse o estudante, se
aproximando da fogueira. – Olá!
Vacilíssa se assutou, mas logo em seguida se lembrou do menino e abriu
um sorriso amigável.
– Nem te reconheci, você vai ficar rico!2 – disse ela. – Deus o guarde.
Conversaram. Vacilíssa – mulher experiente, serva ama-de-leite por algum
tempo, depois babá – se expressava delicadamente e seu rosto abria sorrisinhos
leves, aos poucos; sua filha, Lukéria, mulher da aldeia surrada pelo marido, olhava
vesga e calada para o estudante, com uma expressão estranha, quase surdomuda.
– Foi assim que o apóstolo Pedro se esquentou numa fogueira, – disse o
estudante, estendendo as mãos para o fogo. – Ou seja, naquela época também
fazia frio. Que noite mais estranha, não, tia? Uma noite extraordinariamente triste,
e longa!
Olhou ao redor para a escuridão. Perguntou, suspirando:
– Suponho que você já tenha ido às leituras dos doze evangelhos, tia?
– Fui, sim – respondeu Vacilíssa.

1 Riúrik, Ivan (o Terrível) e Pedro (o Grande) – foram tsares da Rússia. Riúrik (830-879 d.C.) é consi-
derado o primeiro tsar. Ivan (1530-1584), é considerado unificador do Império Russo. Pedro (1672-1725)
é considerado o modernizador da Rússia, tendo criado a face moderna do Império. (N.T.)
2 Trata-se de uma antiga superstição russa que diz que a pessoa que não for reconhecida num encontro
enriquecerá. (N.T.)
328 Diego Moschkovich. O Estudante, de A. Tchékhov

– Lembra o que Pedro disse a Jesus, na última ceia? “Contigo eu estou


pronto para ir até a escuridão, e até a morte.” E o senhor lhe respondeu: “Te digo,
Pedro, não cantará o galo hoje até que você me tenha negado três vezes, dizendo
que não me conhece.” Depois, enquanto Jesus sofria mortalmente no jardim, o
pobre Pedro, de alma cansada, fraco, sentia os anos pesados em suas costas. Sem
forças para lutar contra o sono acabou adormecendo e o resto você já sabe. Judas,
na mesma noite beijou Jesus e o traiu para seus inimigos. Foi levado acorrentado
até o sacerdote e espancado. Pedro, prostrado, incomodado pela angústia e pela
ansiedade, entende. Ele pressentiu, sem ter dormido, que aqui na terra estava para
acontecer algo terrível, e seguiu. Pedro amava Jesus apaixonada e incondicional-
mente, e agora via de longe como o espancavam.
Lukéria deixara as colheres e agora mantinha um olho fixo no estudante.
– Chegaram ao sacerdote, – continuou, – começaram a interrogar Jesus e,
ao mesmo tempo, os trabalhadores acenderam uma fogueira no meio do pátio.
Estava frio, eles precisavam se esquentar. E ali do lado do fogo, com eles, estava
Pedro, e se esquentava também, assim como eu, agora. Uma mulher o viu e disse:
“Este aqui também estava com Jesus”, ou seja: ele também precisava ser levado
ao interrogatório. E todos os trabalhadores acocorados em volta da fogueira
olharam desconfiados e severos para ele, porque Pedro se incomodara e dissera:
“Não o conheço.” Um pouquinho depois mais alguém reconheceu nele um dos
discípulos de Jesus e disse: “Você também é um deles.” Mas Pedro mais uma vez
negou. E pela terceira vez alguém se dirigiu a ele: “Não foi você que vi com ele
hoje no jardim?” E Pedro negou pela terceira vez. Depois disto, imediatamente
cantou o galo e Pedro, assistindo de longe a Jesus, lembrou-se das palavras que este
lhe dissera durante a ceia. Lembrou, voltou a si, saiu do pátio e amargo, amargo
chorou. Nos evangelhos está escrito: “E partira, chorando amargamente”. Eu fico
imaginando: o jardim quieto, quieto, escuro, escuro, na escuridão mal se ouve o
chorinho surdo...
O estudante suspirou e pensou. Continuando a sorrir, Vacilíssa de repente
soluçou e lágrimas grandes e abundantes começaram a deslizar sobre suas bo-
chechas. Ela afastou com as mãos o rosto do fogo, com vergonha de seu próprio
pranto. Lukéria corou olhando fixamente para o estudante, e sua expressão ficou
pesada, tensa, como numa pessoa que suporta uma dor imensa.
Os serviçais voltavam do rio. A luz do fogo já tremeluzia na figura do pri-
meiro, que vinha montado a cavalo. O estudante desejou às viúvas uma boa noite
e seguiu em frente. Mais uma vez rodearam-no as trevas e seus dentes começaram
a ranger. O vento soprava cruel. De fato retornava o inverno, e não parecia nada
que depois de amanhã seria Páscoa.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 326-332 329

O estudante pensava em Vacilíssa: se tinha chorado, é que tudo que passara


naquela noite estranha com Pedro fazia, para ela, algum sentido...
Olhou em torno. O fogo solitário piscava calmo na escuridão, e ao seu
redor já não se viam as pessoas. O estudante novamente pensou que, se Vacilíssa
chorara, e sua filha se incomodara, então obviamente aquilo que contara, ocorrido
dezenove séculos atrás, possuía relação com o presente - com as duas mulheres,
e claro, com aquela aldeia deserta, com ele próprio, com todos os homens. Se
a velhinha havia chorado não era porque ele sabia contar histórias, mas porque
Pedro lhe era próximo, e porque ela se interessara, com todo o seu ser, por aquilo
que acontecera na alma de Pedro.
De repente sentiu uma alegria levantar-se em sua alma. Uma alegria tão
grande que teve até mesmo de parar por um minuto, a recobrar o fôlego. O passa-
do, pensou, liga-se ao presente por uma corrente ininterrupta de acontecimentos,
que brotam um do outro. A impressão que tinha era que acabara de ver as duas
pontas desta corrente: tocara uma delas, distanciara-se da outra.
Ao se aprumar no barquinho para cruzar o rio, viu sua aldeia natal levantan-
do-se sobre a montanha ao leste, por onde, como uma fita, a fina e gélida aurora
carmim inundava o céu. Pensou que a verdade e a beleza, que haviam dirigido a
vida dos homens lá no pátio do sacerdote continuavam ininterruptamente até os
dias de hoje, e, ao que lhe parecia, sempre seriam o principal na vida humana, e
na Terra de forma geral; a sensação de juventude, saúde, força – ele tinha apenas
vinte e dois anos – e a inexpressável doce espera da felicidade, da invisível e se-
creta felicidade, tomaram conta dele aos pouquinhos. A vida lhe parecia deliciosa,
maravilhosa, e cheia do sentido mais elevado.
1894

Студент (Антон Чехов)

Погода вначале была хорошая, тихая. Кричали дрозды, и по соседству


в болотах что-то живое жалобно гудело, точно дуло в пустую бутылку.
Протянул один вальдшнеп, и выстрел по нем прозвучал в весеннем воздухе
раскатисто и весело. Но когда стемнело в лесу, некстати подул с востока
холодный пронизывающий ветер, всё смолкло. По лужам протянулись
ледяные иглы, и стало в лесу неуютно, глухо и нелюдимо. Запахло зимой.
Иван Великопольский, студент духовной академии, сын дьячка, возвращаясь
с тяги домой, шел всё время заливным лугом по тропинке. У него закоченели
330 Diego Moschkovich. O Estudante, de A. Tchékhov

пальцы, и разгорелось от ветра лицо. Ему казалось, что этот внезапно


наступивший холод нарушил во всем порядок и согласие, что самой природе
жутко, и оттого вечерние потемки сгустились быстрей, чем надо. Кругом
было пустынно и как-то особенно мрачно. Только на вдовьих огородах около
реки светился огонь; далеко же кругом и там, где была деревня, версты за
четыре, всё сплошь утопало в холодной вечерней мгле. Студент вспомнил,
что, когда он уходил из дому, его мать, сидя в сенях на полу, босая, чистила
самовар, а отец лежал на печи и кашлял; по случаю страстной пятницы
дома ничего не варили, и мучительно хотелось есть. И теперь, пожимаясь
от холода, студент думал о том, что точно такой же ветер дул и при Рюрике,
и при Иоанне Грозном, и при Петре, и что при них была точно такая же
лютая бедность, голод, такие же дырявые соломенные крыши, невежество,
тоска, такая же пустыня кругом, мрак, чувство гнета, — все эти ужасы были,
есть и будут, и оттого, что пройдет еще тысяча лет, жизнь не станет лучше.
И ему не хотелось домой. Огороды назывались вдовьими потому, что их
содержали две вдовы, мать и дочь. Костер горел жарко, с треском, освещая
далеко кругом вспаханную землю. Вдова Василиса, высокая, пухлая старуха
в мужском полушубке, стояла возле и в раздумье глядела на огонь; ее дочь
Лукерья, маленькая, рябая, с глуповатым лицом, сидела на земле и мыла котел
и ложки. Очевидно, только что отужинали. Слышались мужские голоса; это
здешние работники на реке поили лошадей. — Вот вам и зима пришла назад,
— сказал студент, подходя к костру. — Здравствуйте! Василиса вздрогнула,
но тотчас же узнала его и улыбнулась приветливо. — Не узнала, бог с
тобой, — сказала она. — Богатым быть. Поговорили. Василиса, женщина
бывалая, служившая когда-то у господ в мамках, а потом няньках, выражалась
деликатно, и с лица ее всё время не сходила мягкая, степенная улыбка; дочь же
ее Лукерья, деревенская баба, забитая мужем, только щурилась на студента и
молчала, и выражение у нее было странное, как у глухонемой. — Точно так же
в холодную ночь грелся у костра апостол Петр, — сказал студент, протягивая
к огню руки. — Значит, и тогда было холодно. Ах, какая то была страшная
ночь, бабушка! До чрезвычайности унылая, длинная ночь! Он посмотрел
кругом на потемки, судорожно встряхнул головой и спросил: — Небось,
была на двенадцати евангелиях? — Была, — ответила Василиса. — Если
помнишь, во время тайной вечери Петр сказал Иисусу: «С тобою я готов и в
темницу, и на смерть». А господь ему на это: «Говорю тебе, Петр, не пропоет
сегодня петел, то есть петух, как ты трижды отречешься, что не знаешь
меня». После вечери Иисус смертельно тосковал в саду и молился, а бедный
Петр истомился душой, ослабел, веки у него отяжелели, и он никак не мог
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 326-332 331

побороть сна. Спал. Потом, ты слышала, Иуда в ту же ночь поцеловал Иисуса


и предал его мучителям. Его связанного вели к первосвященнику и били,
а Петр, изнеможенный, замученный тоской и тревогой, понимаешь ли, не
выспавшийся, предчувствуя, что вот-вот на земле произойдет что-то ужасное,
шел вслед... Он страстно, без памяти любил Иисуса, и теперь видел издали,
как его били... Лукерья оставила ложки и устремила неподвижный взгляд
на студента. — Пришли к первосвященнику, — продолжал он, — Иисуса
стали допрашивать, а работники тем временем развели среди двора огонь,
потому что было холодно, и грелись. С ними около костра стоял Петр и тоже
грелся, как вот я теперь. Одна женщина, увидев его, сказала: «И этот был с
Иисусом», то есть, что и его, мол, нужно вести к допросу. И все работники,
что находились около огня, должно быть, подозрительно и сурово поглядели
на него, потому что он смутился и сказал: «Я не знаю его». Немного погодя
опять кто-то узнал в нем одного из учеников Иисуса и сказал: «И ты из них».
Но он опять отрекся. И в третий раз кто-то обратился к нему: «Да не тебя
ли сегодня я видел с ним в саду?» Он третий раз отрекся. И после этого раза
тотчас же запел петух, и Петр, взглянув издали на Иисуса, вспомнил слова,
которые он сказал ему на вечери... Вспомнил, очнулся, пошел со двора и
горько-горько заплакал. В евангелии сказано: «И исшед вон, плакася горько».
Воображаю: тихий-тихий, темный-темный сад, и в тишине едва слышатся
глухие рыдания... Студент вздохнул и задумался. Продолжая улыбаться,
Василиса вдруг всхлипнула, слезы, крупные, изобильные, потекли у нее по
щекам, и она заслонила рукавом лицо от огня, как бы стыдясь своих слез, а
Лукерья, глядя неподвижно на студента, покраснела, и выражение у нее стало
тяжелым, напряженным, как у человека, который сдерживает сильную боль.
Работники возвращались с реки, и один из них верхом на лошади был уже
близко, и свет от костра дрожал на нем. Студент пожелал вдовам спокойной
ночи и пошел дальше. И опять наступили потемки, и стали зябнуть руки.
Дул жестокий ветер, в самом деле возвращалась зима, и не было похоже, что
послезавтра Пасха. Теперь студент думал о Василисе: если она заплакала,
то, значит, всё, происходившее в ту страшную ночь с Петром, имеет к ней
какое-то отношение... Он оглянулся. Одинокий огонь спокойно мигал в
темноте, и возле него уже не было видно людей. Студент опять подумал,
что если Василиса заплакала, а ее дочь смутилась, то, очевидно, то, о чем
он только что рассказывал, что происходило девятнадцать веков назад,
имеет отношение к настоящему — к обеим женщинам и, вероятно, к этой
пустынной деревне, к нему самому, ко всем людям. Если старуха заплакала,
то не потому, что он умеет трогательно рассказывать, а потому, что Петр
332 Diego Moschkovich. O Estudante, de A. Tchékhov

ей близок, и потому, что она всем своим существом заинтересована в том,


что происходило в душе Петра. И радость вдруг заволновалась в его душе,
и он даже остановился на минуту, чтобы перевести дух. Прошлое, думал
он, связано с настоящим непрерывною цепью событий, вытекавших одно
из другого. И ему казалось, что он только что видел оба конца этой цепи:
дотронулся до одного конца, как дрогнул другой. А когда он переправлялся
на пароме через реку и потом, поднимаясь на гору, глядел на свою родную
деревню и на запад, где узкою полосой светилась холодная багровая заря, то
думал о том, что правда и красота, направлявшие человеческую жизнь там,
в саду и во дворе первосвященника, продолжались непрерывно до сего дня
и, по-видимому, всегда составляли главное в человеческой жизни и вообще
на земле; и чувство молодости, здоровья, силы, — ему было только 22 года,
— и невыразимо сладкое ожидание счастья, неведомого, таинственного
счастья овладевали им мало-помалу, и жизнь казалась ему восхитительной,
чудесной и полной высокого смысла.

Referências
TCHÉKHOV, Anton. Polnoe sobranie cotchinenii i pisem v 30 tomakh. Tom 8. [Obras Completas
e Cartas em 30 tomos. Tomo 8.] Nauka, Moscou, 1986.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 333-338 333

Minha Ordem Doméstica, uma tradução

Melissa Teixeira Siqueira Barbosa1


Ekaterina Vólkova Américo2

Resumo: Tradução comentada de conto de Anton Tchékhov publicado pela primeira vez em 1886 e assinado sob
pseudônimo.
Palavras-chave: Estudos da Tradução, Tchékhov, Literatura Russa

Introdução

Segundo a edição russa, o conto “Minha Ordem Doméstica” 3 foi publicado


pela primeira vez no volume 42 da revista Budilnik, em 26 de outubro de 1886
(com autorização emitida pela censura em 24 de outubro), p. 502, sob a assinatura
de “Irmão do meu irmão” (Brat moiegó brata), um dos pseudônimos preferidos do
jovem Anton Tchékhov.
No original, o conto é intitulado Moi Domostrói (do russo dom, casa + stroi,
construção, ordem). O título remete a uma obra da literatura russa do século
XVI conhecida como Domostrói ou O livro chamado Domostrói que contém informações,
ensinamentos e conselhos para todo bom cristão: marido, esposa, crianças, criados e criadas, cuja
autoria é atribuída ao arcipreste Silvestr.

1 Graduanda em Letras – Português/Inglês da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/


RJ – [email protected]
2 Professora de Literatura e Língua Russa da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ –
[email protected]
3 Tradução a partir de: TCHÉKHOV, A. P. Moi domostrói. In: Pólnoie sobránie sotchiniéni i píssem v 30
tomakh. (Obra completa em 30 volumes).  Volume 5. Moscou: Naúka, 1976, p. 359-360.
334 Melissa T. Siqueira Barbosa e Ekaterina Vólkova Américo. Minha Ordem Doméstica, uma tradução

A ideia de traduzir o presente conto surgiu em uma aula de literatura russa


da Universidade Federal Fluminense. O tema da aula em questão era literatura russa
antiga, e uma das obras abordadas foi o Domostrói, assunto que abriu caminho a
outra obra: o conto satírico de Anton Tchékhov Moi Domostrói.
O fato de não encontrarmos uma tradução para o português do conto e
nem todos os alunos (que eram provenientes de diversos cursos e habilitações)
terem conhecimento de língua russa não nos permitiu a leitura do conto na ocasião.
No que diz respeito ao processo de tradução, encontramos dificuldades
já ao verter o título. Para o leitor russo, a referência à obra homônima do século
XVI é evidente, e palavra domostrói inclusive se tornou, na língua russa, sinônimo
de uma concepção familiar demasiadamente tradicional e machista. Já para o leitor
estrangeiro, o título representa um enigma. Optamos, portanto, por alterá-lo para
Minha ordem doméstica, a fim de preservar seu efeito cômico.
Além disso, um dos maiores desafios foi encontrar equivalentes em portu-
guês para expressões idiomáticas presentes no texto em russo. Um bom exemplo é
a frase “Я покажу вам, где раки зимуют!”, que ao pé da letra significa: “Eu mostrarei
para vocês onde os caranguejos passam o inverno!” Essa expressão traz consigo
um tom de ameaça e a ideia de punir de forma severa ou “dar uma lição” a al-
guém. Ao traduzir, optamos por uma expressão muito conhecida em português e
que possui significado semelhante ao que queríamos comunicar: “mostrar o que
é bom para a tosse”.
Mantendo em mente o exemplo por nós supracitado, podemos dizer que,
entre os conceitos de “precisão semântica” e de “precisão de tom”, apontados
por Schnaiderman4, optamos, diversas vezes, pelo segundo para tentarmos nos
aproximar mais das informações que buscávamos transmitir.
Para finalizar, agradecemos ao Laboratório de Estudos da Tradução da
Universidade Federal Fluminense (LABESTRAD) pelo apoio na realização desta
tradução.

Minha Ordem Doméstica (Anton Tchékhov)

De manhã, quando eu, ao despertar do sono, coloco a gravata em frente


ao espelho, entram em meu quarto, silenciosamente e com decoro, minha sogra,
minha esposa e minha cunhada. Em fila e sorrindo respeitosamente, elas me

4 SCHNAIDERMAN, B. Tradução, Ato Desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 31-34.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 333-338 335

saúdam com um bom dia. Aceno com a cabeça e profiro um discurso, no qual
explico que o chefe da casa sou eu.
– Suas desprezíveis, – digo a elas – dou de comer e de beber a vocês, instruo
e ensino a vocês, criadas,5 o valor do bom senso, e em troca vocês têm a obrigação
de me respeitar, venerar, temer, admirar minhas obras e não extrapolar os limites
da obediência, nem um milímetro, caso contrário... Oh, mil raios e trovões, vocês
me conhecem! Eu coloco vocês nas rédeas! Vou mostrar a vocês o que é bom
para a tosse! – e assim por diante.
Depois de ouvir meu discurso, minhas parentas saem e começam a trabalhar.
Minha sogra e minha esposa correm para as editoras com os artigos: a esposa vai
para o Budílnik,6 e a sogra para o Nóvosti Dniá para tratar com Lipskiórov.7 Minha
cunhada senta-se para passar a limpo meus folhetins, novelas e tratados. Mando
minha sogra para receber o pagamento. Se o editor é pão-duro e vive pedindo
que ela volte amanhã, antes de mandar minha sogra para receber o pagamento,
alimento-a por três dias somente com carne crua, atiço até ela se enraivecer e
inspiro-lhe um ódio insuperável contra a tribo dos editores; ela, vermelha, feroz,
fervilhando, vai atrás do pagamento, e nunca aconteceu de retornar de mãos va-
zias. É também seu dever proteger minha pessoa da moléstia dos credores. Se os
credores são muitos e atrapalham meu sono, enxerto o vírus da raiva em minha
sogra seguindo o método de Pasteur e a posiciono perto da porta: não há um
desgraçado que passe!
Durante o almoço, enquanto me delicio com shchi e ganso com repolho,
minha esposa senta-se ao piano e toca para mim Boccaccio, Helena e Os sinos de Cor-
neville8; já minha sogra e minha cunhada dançam a cachucha9 em volta da mesa.
Àquela que me agradar em especial, prometo dar um livro de minha própria autoria
com fac-símile do autor, mas não cumpro a promessa, porque a sortuda naquele

5 No texto original a palavra utilizada é тумбы, que em tradução literal significa “criado-mudo”, trazendo
assim a ideia de servilidade. Por outro lado, a palavra também engloba o sentido de mulher baixinha e
robusta, com uma forma corporal que lembra o formato dessa peça de mobília.
6 O Buldílnik é uma revista humorística, publicada em São Petersburgo desde 1865 e em Moscou desde
1873 [Nota da edição russa].
7 Ia. Lipskerov (1848-1910) foi um jornalista que desde 1883 publicava em Moscou o jornal diário
ilustrado Nóvosti Dniá, muito popular na época [Nota da edição russa].
8 Boccaccio é uma opereta de F. Suppé (1879); Helena é uma opereta de J. Offenbach, “La Belle Hélène” (A
Bela Helena) (1864). Estava no repertório do Teatro de Taganrog nos anos da mocidade de Tchékhov. Les
Cloches De Corneville (Os sinos de Corneville) é uma opereta de R. Planquette (1877) [Nota da edição russa].
9 Cachucha é uma dança espanhola com castanholas [Nota da edição russa].
336 Melissa T. Siqueira Barbosa e Ekaterina Vólkova Américo. Minha Ordem Doméstica, uma tradução

mesmo dia consegue me desagradar com alguma coisa e então perde o direito
ao prêmio. Após o almoço, enquanto me deleito no sofá, propagando ao redor o
cheiro do charuto, minha cunhada lê em voz alta minhas obras para minha sogra
e minha esposa.
– Ah, como é bom! – elas exclamam por obrigação. – Esplêndido! Que
pensamento profundo! Que mar de emoções! Maravilhoso!
Quando começo a cochilar, elas se sentam a meu lado e sussurram alto
para que eu possa ouvir:
– É um talento! Não, é um talento extraordinário! A humanidade perde
muito por não tentar entendê-lo! Como nós, miseráveis, temos sorte, de conviver
sob o mesmo teto com tamanho gênio!
Se adormeço, a encarregada senta-se perto da cabeceira e, com um leque,
afasta as moscas.
Quando acordo, grito:
– Criadas, o chá!
No entanto, o chá já está pronto. Elas o trazem para mim e pedem,
curvando-se:
– Sirva-se, pai e benfeitor! Aqui estão a geleia, as roscas... Aceite nossa
humilde oferenda...
Após o chá, costumo fazer punições pelo desrespeito à ordem da casa. Se
não há desrespeito, puno mesmo assim para compensar os erros futuros. O grau
da punição corresponde ao tamanho do desrespeito.
Assim, se a correspondência, a cachucha ou a geleia não forem de meu agra-
do, a culpada é obrigada a decorar várias cenas da vida de comerciantes, galopar com
uma perna só por todo o quarto e ir atrás do pagamento em alguma editora onde
eu não trabalho. Em caso de desobediência ou expressões de descontentamento,
recorro a medidas mais severas: tranco na despensa, dou amônia para cheirar e
assim por diante. Caso minha sogra comece a se enfurecer, mando chamarem o
policial e o zelador.
De noite, enquanto durmo, todas minhas três parentas não dormem,
perambulam pelos quartos e vigiam para que ladrões não roubem minhas obras.

Мой домострой

Утром, когда я, встав от сна, стою перед зеркалом и надеваю галстух,


ко мне тихо и чинно входят теща, жена и свояченица. Они становятся в ряд
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 333-338 337

и, почтительно улыбаясь, поздравляют меня с добрым утром. Я киваю им


головой и читаю речь, в которой объясняю им, что глава дома — я.
— Я вас, ракалии, кормлю, пою, наставляю, — говорю я им, — учу вас,
тумбы, уму-разуму, а потому вы обязаны уважать меня, почитать, трепетать,
восхищаться моими произведениями и не выходить из границ послушания
ни на один миллиметр, в противном случае... О, сто чертей и одна ведьма,
вы меня знаете! В бараний рог согну! Я покажу вам, где раки зимуют! и т. д.
Выслушав мою речь, домочадицы выходят и принимаются за дело.
Теща и жена бегут в редакции со статьями: жена в «Будильник», теща в
«Новости дня» к Липскерову. Свояченица садится за переписку начисто моих
фельетонов, повестей и трактатов. За получением гонорара посылаю я тещу.
Если издатель платит туго, угощает «завтраками», то, прежде чем посылать
за гонораром, я три дня кормлю тещу одним сырым мясом, раздразниваю ее
до ярости и внушаю ей непреодолимую ненависть к издательскому племени;
она, красная, свирепая, клокочущая, идет за получкой, и — не было случая,
чтобы она возвращалась с пустыми руками. На ее же обязанности лежит
охранение моей особы от назойливости кредиторов. Если кредиторов много
и они мешают мне спать, то я прививаю теще бешенство по способу Пастера
и ставлю ее у двери: ни одна шельма не сунется!
За обедом, когда я услаждаю себя щами и гусем с капустой, жена сидит
за пианино и играет для меня из «Боккачио», «Елены» и «Корневильских
колоколов»,
- 360 -
а теща и свояченица пляшут вокруг стола качучу. Той, которая
особенно мне угождает, я обещаю подарить книгу своего сочинения с
авторским факсимиле и обещания не сдерживаю, так как счастливица в
тот же день каким-нибудь поступком навлекает на себя мой гнев и таким
образом теряет право на награду. После обеда, когда я кейфую на диване,
распространяя вокруг себя запах сигары, свояченица читает вслух мои
произведения, а теща и жена слушают.
— Ах, как хорошо! — обязаны они восклицать. — Великолепно! Какая
глубина мысли! Какое море чувства! Восхитительно!
Когда я начинаю дремать, они садятся в стороне и шепчутся так громко,
чтобы я мог слышать:
— Это талант! Нет, это — необыкновенный талант! Человечество мно-
гое теряет, что не старается понять его! Но как мы, ничтожные, счастливы,
что живем под одной крышей с таким гением!
338 Melissa T. Siqueira Barbosa e Ekaterina Vólkova Américo. Minha Ordem Doméstica, uma tradução

Если я засыпаю, то дежурная садится у моего изголовья и веером


отгоняет от меня мух.
Проснувшись, я кричу:
— Тумбы, чаю!
Но чай уже готов. Мне подносят его и просят с поклоном:
— Кушайте, отец и благодетель! Вот варенье, вот крендель... Примите
от нас посильный дар...
После чая я обыкновенно наказываю за проступки против домашнего
благоустройства. Если проступков нет, то наказание зачитывается в счет
будущего. Степень наказания соответствует величине проступка.
Так, если я недоволен перепиской, качучей или вареньем, то виновная
обязана выучить наизусть несколько сцен из купеческого быта, проскакать
на одной ноге по всем комнатам и сходить за получением гонорара в
редакцию, в которой я не работаю. В случае непослушания или выражения
недовольства я прибегаю к более строгим мерам: запираю в чулан, даю
нюхать нашатырный спирт и проч. Если же начинает бушевать теща, то я
посылаю за городовым и дворником.
Ночью, когда я сплю, все три мои домочадицы не спят, ходят по
комнатам и сторожат, чтобы воры не украли моих произведений.

Referências
TCHÉKHOV, A. P. Moi domostrói. In: Pólnoie sobránie sotchiniéni i píssem v 30 tomakh. (Obra
completa em 30 volumes). Volume 5. Moscou: Naúka, 1976, p. 359-360.  
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 339

O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de


Dostoiévski: aspectos poéticos e tradutórios

Priscila Nascimento Marques1

Resumo: O presente artigo aborda aspectos poéticos e da tradução do conto Uma história desagradável, de Fiódor
Mikháilovitch Dostoiévski, publicado originalmente em 1862 na revista O Tempo, e em primeira tradução direta
para o português pela Editora 34 em 2016 (DOSTOIÉVSKI, 2016). Inicialmente serão apresentados elementos
do enredo e do contexto que circundam a narrativa, particularmente a forte estratificação social russa e o período das
reformas do tsar Alexandre II. A seguir, são elencados aspectos poéticos do conto, escolhidos por serem característicos
da obra em questão. Em primeiro lugar será comentada a dramaticidade da prosa dostoievskiana, já observada pela
crítica (VÁSSINA, 2008), mas que será complementada e ponderada por uma análise do papel do narrador neste
texto. A seguir, serão tratadas a elaboração poética da linguagem (cf. SCHNAIDERMAN, 1982) e o humor,
aspecto menos privilegiados pela crítica do romancista. Por fim, serão comentados alguns momentos da tradução – uso
de notas, adaptações e tradução do título –, reforçando a ideia de que cada escolha reflete a necessidade de ajustes
conforme a língua de chegada e uma interpretação consistente da obra.
Palavras-chave: Dostoiévski, conto, crítica literária, tradução literária.

O conto: texto e contexto

A literatura russa do século XIX em geral e a prosa de Dostoiévski em par-


ticular é povoada por uma série de tipos: o “pequeno homem” (málenki tcheloviék),
“homem supérfluo” (líchni tcheloviék), “sonhador” (metchtátel). Em meio à enorme
galeria de personagens dostoievskianos, seria possível destacar uma variedade
inusitada, mas bastante interessante, que chamarei aqui de “dândi vaidoso”. Trata-

1 Pós-doutoranda do programa de Literatura e Cultura Russa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Mestre e doutora em Literatura e Cultura Russa
pela FFLCH-USP. Bolsista Fapesp (processo 2015/17830-1).
340 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

-se de uma figura de origem aristocrática, um alto funcionário que, apesar de seu
orgulho e posição social elevada, acaba por se envolver em alguma situação ridí-
cula e vexatória. É o caso do marido ciumento de “A mulher de outro e o marido
embaixo da cama” (DOSTOIÉVSKI, 2017); de Piótr Ivánovitch, de “Como é
perigoso entregar-se a sonhos de vaidade” (DOSTOIÉVSKI, 2017); e de Ivan
Ilitch Pralínski, de Uma história desagradável. O presente artigo se deterá nesse último
caso. Incialmente, será feita uma breve contextualização da obra e apresentação
do enredo. Em seguida, serão destacados e comentados alguns aspectos poéticos
do conto e de sua tradução para o português.
O conto Uma história desagradável foi publicado em 1862 na revisa O Tempo,
que era editada pelos irmãos Fiódor e Mikhail Dostoiévski e contava com colabo-
radores de diversos espectros ideológicos, como os eslavófilos Nikolai Strákhov
(1828-1896) e Apollón Grigóriev (1822-1864) e o radical Aleksiéi Rázin (1823-
1875). Com essa formação heterogênea, o periódico participou dos acalorados
debates que movimentavam a imprensa russa na década de 1860. A publicação
fazia, de modo geral, oposição à revista O Contemporâneo, veículo de orientação
mais radical de Nikolai Tchernichévski.
Já em suas primeiras linhas, é possível perceber alusões a acontecimentos
fundamentais do contexto social e histórico da Rússia na segunda metade do século
XIX. Ainda no primeiro parágrafo, o narrador descreve o momento como sendo
de “renascimento da nossa amada pátria e [d]o desejo de todos os seus gloriosos
filhos por novos destinos e esperanças” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 11). O clima
de mudanças sociais a que ele se refere, diz respeito às importantes reformas
conduzidas pelo tsar Alexandre II nos anos 1860. Os alvos dos novos decretos do
autocrata foram a servidão, com a Emancipação dos Servos; o sistema judiciário,
com a instituição do tribunal por júri; e a administração regional, com criação dos
zemstvos. Tais reformas, contudo, foram de cunho essencialmente administrativo,
não político, e visavam à modernização econômica da Rússia, que se encontrava
abatida pela derrota na Guerra da Crimeia. Isto é, elas não alteraram a estrutura
política da autocracia e modificaram apenas em termos burocráticos a organiza-
ção do poder; não à toa, resultou em profunda insatisfação e radicalização da ala
opositora do governo.
O conto inicia-se com a reunião de três altos funcionários para a come-
moração do aniversário de um deles: o conselheiro privado Stepán Nikíforovitch
Nikíforov (anfitrião e aniversariante), e os conselheiros efetivos de Estado: Semion
Ivánovitch Chipulenko e Ivan Ilitch Pralínski. Reunidos, os altos funcionários
discutem, entre outras coisas, sobre o amor à humanidade, ou mais precisamen-
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 341

te, segundo Pralínski, “a humanidade em relação aos subordinados (lembremos


que eles ainda são gente)” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 16), que pode “servir de
pedra angular para as futuras reformas e para a renovação das coisas em geral”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 17). Havia um embate mais explícito entre Pralínski
e Chipulenko, pois o primeiro, recém-promovido a general, era um entusiasta da
renovação da Rússia, ao passo que o segundo via as reformas com irritação e o
falatório de Pralínski com sarcasmo. Para Pralínski, Chipulenko não passa de um
reacionário, um tipo ultrapassado, incapaz de acompanhar os novos ventos que
sopram na Rússia. Súbito, meio que sem propósito, Stepán Nikíforovitch solta
em tom profético e fatalista uma condenação sobre aquele grupo aristocrático:
“Não vamos aguentar” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 17).
Ao final do encontro, Pralínski descobre que seu cocheiro havia desapare-
cido com sua caleça. Ao invés de castigá-lo fisicamente, como sugere Chipulenko,
resolve voltar a pé para casa, de modo a fazer com que o funcionário sinta-se
moralmente culpado. No caminho, passa por uma animada festa de casamento.
Ao saber que se tratava das bodas de um funcionário do seu departamento, Por-
fíri Petróvitch Pseldonímov, resolve entrar na festa para cumprir certo “objetivo
moral”, demonstrar como é generoso e magnânimo e, enfim, fazer uma singela
demonstração de amor à humanidade. Pralínski imagina seu ato como uma ver-
dadeira façanha, um grande feito heroico:

Que tipo de heroísmo? Deste tipo. Reflita: considerando as relações atuais


entre todos os membros da sociedade, o fato de eu, eu entrar depois da
meia-noite no casamento de meu subordinado, de um funcionário do regis-
tro que recebe dez rublos por mês, isso sim seria perturbação, um turbilhão
de ideias, os últimos dias de Pompeia, o caos! Isso ninguém compreenderá.
Stepán Nikíforovitch morreria e não compreenderia. De fato, ele mesmo
disse: não vamos aguentar. Sim, mas isso são os senhores, pessoas velhas,
paralíticas e inertes, mas eu a-guen-ta-rei! Transformarei o último dia de
Pompeia no mais doce dos dias para o meu subordinado, transformarei
uma atitude selvagem em uma atitude normal, patriarcal, moral e elevada.
Como? Assim. Tenha a bondade de ouvir... (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 25).

A seguir, Pralínski imagina em tons épicos toda a cena que está prestes a
acontecer, descreve sua atitude magnânima, a estupefação que acometerá todos
os presentes e o senso de hierarquia que não irá se desfazer em absoluto: “Com
delicadeza, lembrarei que entre eles e mim existe uma diferença. Como entre o
céu e a terra [...] No dia seguinte minha façanha já será conhecida na repartição”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 27). Essa passagem põe a nu a desmedida vaidade e
342 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

egocentrismo de Pralínski, e revela suas ambições íntimas. Ele aparece, assim,


como uma espécie de símbolo e caricatura das reformas realizadas por Alexandre
II, pois suas atitudes revelam um caráter formal e exterior, que não alteram, mas
até reforçam, as estruturas que sustentam o poder estabelecido. A façanha que
supostamente serviria para elevar moralmente o subordinado, deve, em última
instância, realçar e reafirmar a intransponível diferença entre as partes.
A realidade, não obstante, revelou-se um pastiche do sonho de glória
imaginado por Pralínski. Já no primeiro passo, ao adentrar o local da festa, ele
pisa numa sobremesa que havia sido deixada no chão para esfriar (uma imagem
síntese que antecipa sua presença “estraga-festa”). Os convidados, que dançavam
a quadrilha, não notaram sua chegada. Apenas depois de terminada a música, a
presença do conselheiro efetivo foi percebida e fez todos recuarem espantados.
Pralínski mostra-se bem menos desenvolto do que o fora em sua imaginação e
os convidados revelaram total falta de tato para receber tamanha eminência. A
única pessoa a demonstrar o servilismo esperado pelo conselheiro foi a senhora
Pseldonímova (mãe do noivo), que lhe trouxe a melhor comida e bebida da festa:
“Como são maravilhosas essas velhinhas russas! [...] Animou-nos a todos. Eu sem-
pre amei o povo...” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 39). Esse é o povo que Pralínski
espera: servil e ciente das diferenças hierárquicas.
A surpreendente e inesperada presença do conselheiro efetivo permanece
um enigma para os convidados, até que entre eles começa a se espalhar o rumor
de que o visitante estava “um tanto alto”. O boato teve efeito liberador para o
povo constrangido, que retomou a quadrilha. A reação de Pralínski a essa imagem
é bastante eloquente: “Eles, que estavam tão recuados, agora se emancipavam de
uma vez! Parecia não ser nada, mas essa transformação foi um tanto estranha:
era indicativa de algo. Era como se tivessem se esquecido da presença de Ivan
Ilitch!” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 49). O verbo utilizado é bastante significativo,
pois remete imediatamente à recente emancipação dos servos (ocorrida em
1861). Embora ali não se tratassem de servos, o emprego do termo revela como
a distância que separava as classes elevadas urbanas da imensidão de funcionários
de baixo escalão era tão abissal quanto a que existia entre o grande proprietário
e seus servos.
Longe de ter cumprido seu objetivo com a visita, Pralínski resolve per-
manecer para o jantar. A entrada: arenque e vodca. Esta seria a primeira vez que
o conselheiro efetivo tomaria a mais russa das bebidas alcoólicas, e o efeito foi
imediato e em turbilhão. A descrição que se segue no conto é uma verdadeira
anatomia de uma bebedeira. Primeiro, sentiu ódio por todos ao redor, desejou
ir-se embora, e teve vergonha por perceber que todos estavam desembaraçados e
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 343

rindo (seria dele?). Depois do ódio e da vergonha, a vodca trouxe coragem, ainda
que a consciência não lhe tivesse abandonado. Em seguida, teve vontade de chorar
e de fazer as pazes com todos:

Queria abraçar a todos, esquecer tudo e fazer as pazes. Além disso, queria
dizer abertamente tudo, tudo, isto é, o quanto ele era uma pessoa boa,
ótima, de talentos extraordinários [...] e o principal, como era progressista,
com que humanidade era capaz de ser condescendente com todos, até
os mais baixos, e enfim, para concluir, queria dizer francamente todos os
motivos que o levaram a aparecer na casa de Pseldonímov sem ter sido
convidado, beber das garrafas de champanhe e alegrá-lo com sua presença.
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 54).

Retornam os delírios de grandeza sobre como sua inciativa seria acolhida


pelos demais e sua grandeza enaltecida aos gritos. Novamente a realidade se revela
o avesso grotesco dos devaneios de Pralínski. O único grande talento que revela aos
presentes é lançar perdigotos enquanto tenta articular seus discursos tropeçando
a cada sílaba. A gagueira alcoólica do conselheiro efetivo vira motivo de chacota
generalizada e um redundante fracasso com seu desmascaramento por um dos
convidados. Ao acusá-lo de reacionário (mesma acusação feita por Pralínski aos
seus colegas conselheiros), o colaborador de um jornal satírico arranca o verniz das
boas intenções de Pralínski: “O senhor veio fazer pose e buscar popularidade [...]
apareceu para se gabar de sua humanidade! Atrapalhou a alegria de todos. Bebeu
champanhe sem se dar conta de como ele custa caro para um funcionário que
recebe dez rublos por mês de ordenado” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 59). O que
se segue é o colapso de Pralínski, que cai inconsciente no chão e é levado ao leito
nupcial, onde passa a madrugada sofrendo as consequências físicas dos excessos
daquela noite e sendo acudido pela servil senhora Pseldonímova.
Na manhã seguinte, Pralínski se recompõe e retorna à sua casa, de onde
não sairia por oito dias, sofrendo de ataques morais, desejando virar monge,
aposentar-se, imaginando como a história já teria se espalhado e arruinado sua
reputação. Quando resolve voltar à repartição, é surpreendido com uma recepção
séria e respeitosa. Recebe o chefe da seção para assinar alguns documentos, entre
os quais a petição de Pseldonímov para ser transferido para outro departamento
(precisamente o de Chipulenko, que lhe prometera a vaga). Pralínski, com sua
recém-conquistada autoconfiança, volta a discursar: “diga a Pseldonímov que não
lhe desejo mal, não desejo!... Que, ao contrário, estou disposto até a esquecer tudo
o que passou, esquecer tudo, tudo...” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 75). O chefe de
seção reage estupefato ao comentário disparatado, e se retira desajeitadamente
344 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

da sala, reabrindo a ferida do orgulho de Pralínski, que, desejando enterrar-se,


olhou-se no espelho e não viu o próprio rosto. Novamente a narração aponta uma
dissonância entre o que é expresso verbalmente pelo personagem por meio do
discurso direto e o que revela a narração de sua consciência, só que agora com sinais
invertidos. A fórmula verbalizada (dita em discurso direto) encontrada por Pralínski
para resolver sua situação é “rigidez, só rigidez e mais rigidez!”, em oposição ao
amor à humanidade inicial. Intimamente, porém, é atravessado por um profundo
sentimento de vergonha que o faz concluir com “Não aguentei!” (narração da
consciência, e não discurso direto). Assim, a profecia de Stepán Nikíforovitch é
retomada e cumprida, e a narrativa tem um desfecho cíclico.
O texto traz à tona a forte estratificação da hierarquia social russa. Os títulos
determinam a categoria a que cada indivíduo pertence, a forma de tratamento que
deve receber, seu círculo de convívio etc. Pralínski e Chipulenko, por exemplo, são
conselheiros efetivos de Estado (equivalente à patente de major-general), pertencem
à quarta classe do funcionalismo civil e devem ser tratados por “Vossa Excelência”.
Nikíforov, por sua vez, é conselheiro privado, funcionário de patente ainda mais
elevada. Abaixo deles estão os membros de níveis intermediários, como o chefe de
seção Akim Petróvitch e, por fim, os pequenos funcionários, como Pseldonímov.
Estão representados ainda estudantes, jornalistas e artistas independentes, que
também compõem as camadas sociais mais baixas.
Dessa forma, o conto apresenta um amplo espectro da sociedade russa e suas
camadas naquele período. Entre aqueles que ocupam posições mais elevadas não
há homogeneidade. Pralínski pretende-se mais progressista e aberto a mudanças,
ainda que, como as reformas de Alexandre II, deseje apenas alterações de certo
modo superficiais que não modifiquem o (des)equilíbrio de forças e a estrutura de
poder, mas, em última instância, os reforce. Chipulenko representa a aristocracia
mais tradicional, aquela acostumada ao funcionamento social convencional sem as
novas ideologias reformistas. Seu estatuto é reconhecido e compreendido também
pelas classes mais baixas (veja-se que é para Chipulenko que Pseldonímov recorre
depois do incidente com Pralínski).
O colaborador do jornal satírico representa a juventude radical raznotchíntsi,
questionadora das autoridades e desmascaradora de supostos progressistas. Entre
Pralínski e o colaborador há traços da polêmica dos pais versus filhos, representada
pelo romance de Turguêniev, isto é, da geração de intelectuais dos anos 1840 (os
pais), com seu refinamento e formação elevada, e a geração seguinte, de 1860, de
origem não aristocrática e ideias e planos de ação muito menos sutis. Pseldonímov
representa a classe dos pequenos funcionários, elevada à categoria literária como
málenki tcheloviék (pequeno homem). Este pretende ajustar-se àquela sociedade,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 345

sobreviver nela em uma condição o menos indigna possível. A mãe de Pseldoní-


mov aparece como representante do povo simples, generoso, abnegado, servil e
consciente das diferenças hierárquicas.
A narrativa apresenta o encontro de dois mundos afastados, que possuem
referências, costumes e valores profundamente diferentes. É possível resumir o
estranhamento entre esses universos pelas imagens do champanhe e da vodca:
cada qual representa um estrato social e, portanto, formas distintas de socialização
e de comunhão com o outro. Quando Pralínski, que fora acostumado a socializar
com champanhe, resolve ir à festa de seu subordinado, está atendendo ao grande
chamado do movimento populista da época para as classes elevadas e intelectuais:
“v narod! k narodu!”. Trata-se de um movimento que conclamava à ida ao povo
(khojdiênie v narod), isto é, a superação do fosso, marca da sociedade russa, que
separava essas classes sociais. Pralínski parece ser carregado por esse clamor tão
bem-intencionado. Mas na realidade ele é, como revelado pelo narrador, levado
por uma estrela (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 28), decerto aquela que ele carrega
no peito e que representa sua patente.

Aspectos da poética

Do estudo do conto que derivou do processo de tradução depreendem-se


três aspectos da poética dostoievskiana que se sobressaem na obra em questão: a
dramaticidade e o papel do narrador, uso poético da linguagem e humor.
Apesar de não ter escrito teatro, Dostoiévski é um dos autores mais en-
cenados do mundo. Segundo Vássina (2008), há na literatura do romancista uma
forte consciência dramática, que funciona como elemento estrutural básico de sua
poética. É possível identificar algumas características da composição que atestam
essa característica: as personagens e as situações são contrapostas num mesmo
lugar e tempo; há uma abundância de encontros inesperados; a ação é concentrada
em poucos núcleos, em pontos de catástrofe e em reviravoltas. Ademais, é a ação
que define os conflitos, os traços das personagens e domina a estrutura narrativa
da obra. As consequências (interiores e exteriores) dos acontecimentos compõem
a linha da ação e conferem dramaticidade a ela. Os diálogos são abundantes e
extremamente importantes. Há predomínio do tempo presente e a ação ocorre
em um ritmo acelerado.
Grossman (1967, p. 37) ressalta que as “cenas tumultuosas, em que participa
muita gente, e que parecem abalar toda a construção do romance: reuniões, brigas,
escândalos, histerias, bofetadas, crises” são típicas da composição do romancis-
346 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

ta. Para este mesmo crítico, “Tendo conduzido a cena do escândalo ao apogeu,
Dostoiévski desvia abruptamente a ação da ocorrência vulgar para o patético e o
heroico” (GROSSMAN, 1967, p. 38). Em toda sua obra, é patente a inclinação
dostoievskiana pelo excepcional, e Uma história desagradável não é exceção. O conto
transita entre o heroico e o patético e apresenta fatos que passam longe do coti-
diano vulgar. Em dois momentos o narrador trata os fatos nesses termos: “Mas
a desgraça é que aquele era um momento excêntrico” (DOSTOIÉVSKI, 2016,
p. 28), quando resolve ir à festa, e “De fato, sua situação se tornou mais e mais
excêntrica” (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 50), depois da vodca.
Ao lado desses evidentes elementos de drama, é importante ressaltar um
aspecto crucial da narrativa. O drama exterior, que se desenrola pelo embate dos
personagens e pelos diálogos entre eles, não se esgota no enredo de Pralínski.
A ação ocorre em duplicidade e espelhamento: no nível da consciência e no
nível factual. Cada ato do conselheiro é precedido por uma visão interior dele,
como a descrição do grandioso impacto que seu aparecimento teria na festa
do funcionário Pseldonímov. Ele imagina a cena, os diálogos, ergue suntuosos
castelos de ar que se desfazem quando a ação se desenrola na realidade, fora de
sua imaginação, fazendo a passagem do épico para o patético e o grotesco. O
dispositivo narrativo que possibilita o trânsito entre essas esferas é o narrador
onisciente seletivo composto por Dostoiévski. Além disso, devido ao estado al-
terado de consciência do personagem (sua embriaguez), o narrador é responsável
por traduzir o conteúdo disforme dessa consciência em linguagem literária. Na
passagem a seguir, ele faz uma breve digressão a esse respeito e reflete metalin-
guisticamente sobre sua função:

É sabido que, em um instante, todo um raciocínio se desenvolve em nossas


cabeças na forma de alguma coisa como sensações que não se traduzem em
linguagem humana, muito menos literária. Mas tentaremos traduzir todas
essas sensações de nosso herói e apresentar ao leitor ao menos a essência
delas, por assim dizer, o que há de mais indispensável e verossímil nela. Pois
muitas de nossas sensações, quando traduzidas para a linguagem comum,
parecem absolutamente inverossímeis. É por isso que elas nunca encon-
tram expressão no mundo, mas todos as temos. É claro que as sensações
e pensamentos de Ivan Ilitch eram um tanto desconexos. Mas os senhores
sabem o motivo. (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 24).

Nesse sentido, verifica-se que a ênfase na consciência dramática da poé-


tica dostoievskiana capta apenas um dos aspectos de sua construção estética,
cuja compreensão merece ser complementada pelo exame atento da construção
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 347

narrativa, particularmente da figura do narrador, que é tão inconspícua quanto


decisiva em sua literatura2.
Um segundo aspecto que merece ser destacado foi estudado por Schnaider-
man, em Dostoiévski Prosa Poesia (1982), e diz respeito ao uso poético da linguagem
pelo romancista. Por função poética, o autor entende, como Roman Jakobson, as
situações em que a ênfase recai sobre a combinação das palavras e não apenas no
seu significado. O crítico e tradutor destaca “o gosto pelo trocadilho, pelo humor
verbal, pela palhaçada em verso” (SCHNAIDERMAN, 1982, p. 115). Há, assim,
um Dostoiévski brincalhão, sarcástico, até grotesco.
Em Uma história desagradável essa característica se faz presente, por
exemplo, nos nomes de alguns personagens. Pseldonímov, por exemplo, deriva
de psevdoním (pseudônimo, em russo); Pralínski, de pralinê; Mlekopitáev, de
mlekopitaiuschee (mamífero). Em todos os casos a etimologia dos nomes carre-
ga alusões sobre o próprio caráter dos personagens, além de produzirem um
efeito humorístico3.
Esse procedimento leva ao terceiro aspecto que pretendemos abordar
no presente artigo: o humor em Dostoiévski. Trata-se de um tema pouco
abordado pela crítica e que aparece de maneira mais flagrante não apenas neste
conto, mas também em O crocodilo, “O tritão” e “A mulher de outro e o marido
embaixo da cama”. Em tais textos, tem-se desde o humor mais escrachado,
até a sátira e a ironia sutil, seja em relação à aristocracia ou à intelligentsia. Em
estudo sobre o riso em Crime e castigo, John Spiegel defende que ele pode revelar
os sentimentos mais profundos, atitudes ocultas e motivos inconscientes dos
personagens. O riso seria, assim, uma ferramenta para comunicar ideias com-
plexas e temas recorrentes de grande importância de uma maneira concisa e
econômica (SPIEGEL, 2000, p. 19). A degeneração da atitude de Pralínski, que
se pretende heroica e benevolente por meio do cômico e do grotesco, funciona
como reforço retórico para o desmascaramento completo e a condenação moral
da figura do “dândi vaidoso”.

2 Para mais reflexões sobre o papel do narrador em Dostoiévski, ver Ivantchikova (1994), Gigolov
(1988), Rosenshield (1978), Marques (2015).
3 Trata-se de um procedimento bastante recorrente na literatura russa em geral e na dostoievskiana em
particular, como se verifica no exemplo de Niétotchka Niezvânova, que provém de nie (não), zvat (chamar)
e simboliza as crianças infelizes, quase anônimas; e Raskólnikov, sobrenome oriundo de raskol (cisão, em
russo), termo que alude tanto ao cisma religioso quanto à cisão da consciência que marca este personagem.
348 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

Aspectos da linguagem e da tradução

Nesta seção serão comentados alguns momentos da tradução do conto. O


primeiro ponto diz respeito ao uso de notas de rodapé e paratextos. Durante a
preparação do volume, foi decidido, juntamente com a equipe editorial (Alberto
Martins e Danilo Hora), que o conto seria precedido por uma “Nota da traduto-
ra”, na qual seriam apresentadas algumas informações gerais do contexto russo
(a questão das hierarquias e das reformas de Alexandre II), com a intenção de
preparar e enriquecer a leitura do texto, além de evitar que ela fosse excessivamente
interrompida por informações complementares.
À tradução foram acrescentadas notas para esclarecimento de alguns termos,
etimologia dos nomes e traduções de expressões em francês. Optou-se por manter
os nomes em suas formas originais e apresentar a etimologia em nota, ao invés
de buscar uma tradução para estes, seguindo o padrão das traduções de literatura
russa. Quanto ao uso de expressões em francês, além de apresentar a tradução em
nota, informou-se adicionalmente a ocorrência da expressão em francês russificado
(transliterado para o alfabeto cirílico) ou não. Tal fato foi considerado importante,
pois ambas as formas estão presentes no conto, sendo que o registro russificado
aparece quando a expressão é empregada por indivíduos de classe mais baixa e o
original em francês é empregado apenas por Pralínski, revelando mais uma camada
de diferenciação social no nível da linguagem.
Em um determinado momento da narrativa, os convidados discutem sobre o
uso inadequado da língua como índice de iletramento e baixa formação intelectual.
O primeiro caso apresentado foi vertido como “literatura de acusamento”, em
referência ao gênero literatura de acusação. No original, tem-se áblitchitelnaia ao
invés de oblitchítelnaia literatura, portanto, uma confusão fonética (tônica erronea-
mente colocada na primeira vogal) e consequentemente ortográfica, um tipo de
equívoco comum no idioma russo. Na versão em português, optou-se por não usar
a mesma categoria de erro, mas fazer uma equivalência com uma confusão mais
comum e plausível no idioma de chegada (troca de sufixos). Adiante, os convida-
dos citam outros casos de deformações da língua cometidos pelo povo simples:
nevalid (vertido como “enválido”), ao invés de invalid (inválido); múmer (“múmero”),
ao invés de númer (número) e nimo (“deante”) ao invés de mimo (diante). Como é
possível observar, foram necessárias adaptações para que as deformações soassem
factíveis na língua de chegada e mantivessem o efeito de chiste do original.
A discussão sobre a linguagem popular e suas distorções em relação à língua
padrão ganha destaque nessa passagem, mas é possível dizer que todo o conto é
perpassado por níveis e significados sociais da língua e até por sua articulação com
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 349

o pensamento e a subjetividade. Inicialmente, Pralínski é descrito como bom orador


e frasista, alguém que “começou a falar muito e com eloquência de novos temas,
os quais assimilou de forma extremamente rápida e inesperada” (DOSTOIÉVSKI,
2016, p. 15). Sua fala afetada revela-se no texto por sílabas separadas, que repre-
sentam uma fala escandida, cerimoniosa, quase atuada. Com o desenrolar da ação,
vemos também a ruína dessa desenvoltura verbal. Mais tarde, as sílabas separadas
já não demonstram gravidade, mas a desarticulação e a disfemia produzidas pela
embriaguez. O colapso psicológico de Pralínski é também seu colapso verbal.
Como dito anteriormente, em Uma história desagradável, observa-se a exis-
tência de dois planos que coexistem e eventualmente se chocam. A ação real é
sempre precedida por uma ação imaginada. Pralínski, enquanto caminha a pé pelas
calçadas de madeira da periferia de São Petersburgo, fica imaginando as grandes
contribuições que sua tese sobre o amor à humanidade oferecerá para a Rússia
e, em seguida, devaneia sobre a grande lição de moral que dará ao povo quando
decide entrar na festa de casamento de Pseldonímov.
O que plasma formalmente a discrepância entre esses dois planos (do real
e do imaginado) é a escolha precisa e minuciosa das palavras. Ao contrário da
difundida ideia segundo a qual “Dostoiévski escrevia mal” (BIANCHI, 2008),
verifica-se que a linguagem tem um valor estético determinante nas obras do ro-
mancista. No caso do presente conto, observamos como o léxico escolhido suaviza,
estetiza a realidade, isto é, escancara o abismo entre o mundo da imaginação de
Pralínski e o mundo real.
Um exemplo disso é próprio título do conto, skviérni anekdot. O adjetivo
skviérni, pode ser traduzido por “mau, ruim, desagradável, indecente, nojento”;
em outras versões, o conto já foi intitulado “Uma história lamentável”, em inglês
recebeu os títulos “A nasty story”, “An unpleasant predicament”, “A most unfor-
tunate incident” e, ainda, “A disgraceful affair”. A opção por “desagradável” nessa
tradução seguiu dois critérios: consistência com outras ocorrências de svkiérni ao
longo do conto e correspondência com a ideia de linguagem usada em favor da
suavização da realidade.
A primeira ocorrência de skviérni é juntamente com o substantivo anekdot
e remete imediatamente ao título do conto. Chipulenko, ao ver que a caleça e o
cocheiro de Pralínski haviam desaparecido, exclama: “Que história desagradável!”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 19). A seguir, o adjetivo é empregado por Pralínski
ou pelo narrador para descrever: a pessoa e o rosto de Semión Ivánovitch (DOS-
TOIÉVSKI, 2016, p. 21); a situação desconfortável produzida por sua “invasão”
à festa de Pseldonímov e a reação desajeitada dos convidados (DOSTOIÉVSKI,
350 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

2016, p. 31-32); a situação em que vivia Pseldonímov antes do casamento (DOS-


TOIÉVSKI, 2016, p. 61); as palavras usadas pelo sogro de Pseldonímov no dia
do casamento (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 64); e o gosto na boca de Pralínski no
dia seguinte (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 72). Em todos os casos, “desagradável”
aparece como um eufemismo para um termo mais adequado, ou mais forte, que
foi omitido.
Nesse conto, as coisas não recebem o nome que têm: a embriaguez vira
“situação excêntrica”, o ato de expelir perdigotos enquanto fala torna-se “talento”
e o grande vexame de Pralínski é descrito apenas como uma “história desagra-
dável”. Esse procedimento de deslocar a linguagem para maquiar os fatos, dada
sua transparência, resulta no reforço da comicidade do texto, além de revelar
camadas mais profundas do caráter do protagonista. Explicita-se, assim, o apego
do conselheiro efetivo às aparências (apesar da retórica moral e supostamente
humanista), sua ligação com um mundo mais sensorial e superficial. O grotesco
da realidade fere seu senso estético e sua delicada sensibilidade. A superficialidade
de seus sentimentos é revelada, por exemplo, nas seguintes passagens:

Ele se lembrou de como, na época, surgiu-lhe um pensamento: não seria


o caso de dar ao coitado uns dez rublos pelo feriado para que se arrume
melhor? Mas como seu rosto era tristonho demais e o olhar tão feio que
chegava a despertar repulsa, esse pensamento bondoso evaporou-se por
si só, de modo que Pseldonímov acabou sem sua gratificação. (DOSTOI-
ÉVSKI, 2016, p. 23)
Pseldonímov, decerto, depois vai se emendar. Falta-lhe, por assim dizer,
aquele verniz da sociedade... (DOSTOIÉVSKI, 2016, p. 55)

A generosidade evapora diante da repulsa pelo feio, e o pequeno funcioná-


rio, ainda que continue levando uma vida insignificante, precisa necessariamente
do verniz que o tornará mais aprazível à sensibilidade refinada. Com a escolha
do adjetivo “desagradável”, objetivou-se, a um só tempo, transmitir a função
eufemística da linguagem em relação ao real, a qualidade superficial do caráter do
protagonista e a sutil presença da ironia do autor nesse texto de sátira e crítica
mordaz às “boas intenções” reformistas.

Considerações finais

Buscamos com este artigo fazer uma apreciação do conto Uma história desa-
gradável, a partir da dissecação do enredo, do estudo de alguns aspectos da poética
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 339-352 351

dostoievskiana, revelados pela narrativa e de comentários sobre alguns momentos


específicos da tradução, a primeira realizada diretamente do russo para o portu-
guês. As reflexões aqui presentes foram suscitadas pelo processo de tradução e
preparação da versão em português. Esse é um processo que requer do tradutor
a imersão no universo do material, que envolve a busca de informações sobre
o contexto e uma sensibilidade apurada para os procedimentos, estilo e tom do
texto. Assim, com este trabalho, tivemos em vista a explicitação e organização das
reflexões oriundas da tradução, as quais nortearam a interpretação e embasaram
as escolhas feitas. No caso de Uma história desagradável, foi necessário atentar-se
ao tom dos personagens, representantes de estratos sociais bastante distintos, e à
mordaz ironia que atravessa a voz do narrador e confere um tom satírico tanto às
ideias mais pretensiosas quantos aos momentos mais grotescos.

Referências
BIANCHI, Maria de Fátima. Dostoiévski escrevia mal? Anais do XI Congresso Internacional
da Abralic, 2008. Página eletrônica: <http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/
AnaisOnline/simposios/pdf/036/MARIA_BIANCHI.pdf>. Consulta realizada em 21
de agosto de 2017.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Uma história desagradável. Tradução de Priscila
Marques. São Paulo: Editora 34, 2016.
____. A mulher de outro e o marido debaixo da cama. In: Contos reunidos. Tradução de
Priscila Marques. São Paulo: Editora 34, 2017.
____. Como é perigoso entregar-se a sonhos de vaidade. In: Contos reunidos. Tradução de
Irineu Franco Perpétuo. São Paulo: Editora 34, 2017.
GIGOLOV, M. G. Tipologuiia rasskáztchikov ránnego Dostoiévskogo (1845-1865). In:
Dostoiévski: materiali i issliédovaniia. Leningrado: Naúka, 1988, vol. 8, p. 3-20.
IVANTCHIKOVA, E. A. Rasskáztchik v povestvovátel’noi strukture proizvediénii Dos-
toiévskogo. In: Dostoiévski: materiali i issliédovaniia. São Petersburgo: Naúka, 1994, vol.
11, p. 41-50.
GROSSMAN, Leonid. Dostoiévski artista. Tradução Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
MARQUES, Priscila Nascimento. O narrador de Crime e castigo segundo Gary Ro-
senshield: o romance polifônico em xeque. Rus – Revista de Literatura e Cultura Russa, v. 6, n. 6,
2015. Página eletrônica: <https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/108592/106886>.
Consulta realizada em 21 de agosto de 2017.
ROSENSHIELD, Gary. Crime and Punishment: The Techniques of the Omniscient Author.
Lisse: The Peter de Ridder Press, 1978.
352 Priscila Nascimento Marques. O dândi vaidoso de Uma história desagradável, de Dostoiévski: aspectos...

SCHNAIDERMAN, Boris. Dostoiévski Prosa Poesia. São Paulo: Perspectiva, 1982.


SPIEGEL, John. Dimensions of laughter in Crime and Punishment. London: Associated Uni-
versity Press, 2000.
VÁSSINA, Elena. A poética do drama na prosa de Dostoiévski. Cadernos de Literatura e
Cultura Russa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 353

Crime e Castigo em reflexos: uma análise


comparativa das traduções direta e indireta1

Ekaterina Vólkova Américo2


Melissa Teixeira Siqueira Barbosa3

Resumo: É bem provável que o romance Crime e Castigo (1866) de Fiódor Dostoiévski seja a obra da literatura
russa mais conhecida no mundo todo. Apesar de diversas edições do romance terem circulado no Brasil na primeira
metade do século XX, a primeira tradução verdadeiramente brasileira, assinada por Rosário Fusco, foi publicada
apenas em 1949. Ao comparar a tradução indireta, feita por Rosário Fusco a partir do texto em francês, com a
primeira tradução direta, realizada por Paulo Bezerra e publicada em 2001, confirmamos um amaneiramento geral
do texto original na versão indireta, bem como cortes e alterações de estilo e paragrafação.
Palavras-chave:  Tradução; Literatura russa; Dostoiévski, Crime e Castigo.

Abstract: There is a good chance that Fyodor Dostoyevsky’s novel, Crime and Punishment (1866), is the most widely
known work of Russian literature throughout the world. In the first half of the XX century in Brazil, several editions
of the novel were already made available, but the first truly Brazilian translation was only published in 1949, signed
by Rosário Fusco. When comparing the indirect translation – that Rosário Fusco made using as source the French
text – with the first direct translation - made by Paulo Bezerra and published in 2001 – we confirm that the text
of the indirect translation was smoothed and it suffered cuts, alterations in style and in the paragraph organization.
Keywords: Translation; Russian Literature; Dostoyevsky; Crime and punishment.

1 O presente trabalho foi desenvolvido como projeto de Iniciação Científica junto ao Laboratório de
Estudos da Tradução (LABESTRAD) da Universidade Federal Fluminense (UFF) ao qual agradecemos
pelo apoio tecnológico e bibliográfico.
2 Professora de Literatura e Língua Russa da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ –
[email protected]
3 Graduanda em Letras – Português/Inglês da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/
RJ – [email protected]
354 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

Introdução

Fiódor Dostoiévski é, provavelmente, o escritor russo mais conhecido e


disseminado no exterior. Além de ser um dos mais célebres nomes do realismo
russo, é inegável o peso de sua influência sobre diversos escritores, psicólogos e
filósofos. Crime e castigo (1866), seu magnum opus, um clássico da esfera literária até
os dias atuais ainda provoca uma intensa torrente de estudos, análises, críticas,
traduções e adaptações mundo afora. Junto com Anna Kariênina e Guerra e paz de
Liev Tolstói, o romance de Dostoiévski concorre ao título de bestseller mundial da
literatura russa.
Foi justamente o papel especial desempenhado por Crime e castigo na divul-
gação da literatura russa no exterior que motivou nossa escolha por esse romance
como objeto de estudo. Acreditamos que, por ser provavelmente o romance russo
mais conhecido mundo afora, sua trajetória no Brasil, bem como a comparação
entre as traduções direta e indireta, permitirão fazer observações de caráter mais
geral acerca da circulação da literatura russa no exterior e no caso particular do
Brasil.
O historiógrafo da recepção da literatura russa no Brasil Bruno Gomide
aponta que o “boom” do romance russo no Brasil se deve, em grande parte, a sua
difusão inicial na França. Essa propagação literária foi impulsionada por aconte-
cimentos como a Aliança Franco-Russa (1892-1917) e a publicação do livro Le
roman russe, de Eugène-Melchior de Vogüé, em 1886:

A chegada do romance russo ao Brasil foi pequena parcela de processo inter-


nacional deflagrado em França. Outros países deram sua cota de contribuição,
mas a influência francesa foi determinante, especialmente no quinhão que
nos cabe. Não se pode, pois, conhecer a crítica literária feita no Brasil sobre
Tolstói e Dostoiévski sem remeter a esse cenário transnacional. O romance
russo era a grande sensação europeia em meados da década de 1880. Na
verdade, foi “inventado” para consumo internacional nesse período, quando
surgem traduções em escala industrial e livros de crítica que, de forma pio-
neira, deram o tom (e estabeleceram os limites) do que seria dito depois. As
questões e balizas aportadas por essa bibliografia, em especial pelo ensaio
O romance russo, de Eugène-Melchior de Vogüé (1886), tornaram-se logo
paradigmáticas. A maioria dos críticos, ensaístas e intelectuais recorria a ela
para lastrear seus comentários (GOMIDE, 2004, p. 14-15).

A influência da cultura francesa teve um papel decisivo não apenas na divul-


gação do romance russo no exterior, como também no processo de sua tradução.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 355

Crime e castigo, polifonia e tradução indireta

Com a propagação do romance russo, um grande número de edições de


Crime e castigo foi publicado no Brasil. Entretanto, segundo os dados levantados
pela tradutora e historiadora de tradução Denise Bottmann (s/d), essas primeiras
edições eram cópias da tradução lusitana feita por Câmara Lima. Essa tradução
circulava e ainda circula pelo país sob diversos pseudônimos (Ivan Petrovitch, Irina
Wisnik Ribeiro, Jorge Jobinsky), ou até mesmo em anonimato. A primeira tradução
verdadeiramente brasileira da obra foi publicada apenas em 1949, assinada por
Rosário Fusco. A partir de 1963, passou a circular no Brasil ainda outra tradução,
lusitana, assinada por Natália Nunes e adaptada para o português do Brasil por
Oscar Mendes (BOTTMANN, 2012).
A tradução de Fusco foi uma tradução indireta, ou tradução de segunda mão,
como também é conhecida, ou seja, uma terceira língua foi usada como língua de
intermédio. De acordo com Bottmann (s/d), Fusco utilizou como base para seu
trabalho uma tradução francesa.
Há algumas décadas as traduções de obras de línguas consideradas mais
exóticas, ou de difícil acesso, eram feitas por intermédio das traduções existentes
em francês, inglês e espanhol. Essa recorrência da tradução indireta deu-se, segundo
o tradutor e teórico da tradução Paulo Rónai, (2012b, p. 27) pela “inexistência de
uma classe de tradutores”.
O fato de que a tradução de Rosário Fusco foi feita do francês tem, para
a nossa análise, uma importância especial, pois os tradutores franceses, principal-
mente do século XIX e início do século XX, eram famosos por alterar os textos
originais de forma significativa, tanto com o objetivo de suavizar e embelezá-los,
quanto por questões mercadológicas (GOMIDE, 2004, p. 113-115). No caso de
Dostoiévski, “a variação da tradução em relação ao original foi mais drástica, e
a repercussão disto foi mais profunda para a tradição crítica” (GOMIDE, 2004,
p. 116). Ainda segundo Gomide, eram as seguintes mudanças que os tradutores
franceses costumavam fazer nas obras da literatura russa:

1) “quebra” e redução de parágrafos. Períodos mais extensos são frag-


mentados em diálogos curtos. A alteração é mais dramática nas extensas
explanações filosóficas e metafísicas e nas exasperações da consciência
dos personagens;
2) nivelamento da linguagem: perde-se o complexo jogo entre cômico,
melodramático e trágico – a alternância vertiginosa de gêneros presente
em Dostoiévski fica reduzida a um registro sentimental;
356 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

3) adições de texto, às vezes capítulos inteiros;


4) mudança de léxico para termos mais suaves;
5) manutenção de algumas expressões “típicas” em russo para dar cor local
(GOMIDE, 2004, p. 116).

Em nossa análise, tentaremos verificar quais dessas alterações podem ser ob-
servadas na tradução indireta de Crime e castigo como possíveis “heranças francesas”.
Existem divergências de opiniões quanto à tradução indireta. Alguns es-
tudiosos da tradução, por exemplo, o tradutor Geir Campos, posicionam-se de
forma mais severa quanto a essa modalidade:

Na maioria dos casos, respectivas traduções intermediárias não eram muito


boas; daí a má qualidade das mais antigas traduções brasileiras de autores
russos e alemães, de Dostoiévski e Púschkin, entre os russos, de Heine e de
outros autores românticos alemães, por exemplo (CAMPOS, 2004, p. 32).

Por outro lado, há autores que atribuem a devida importância ao papel


que aquele tipo de tradução teve em determinada época. Paulo Rónai (2012a, p.
112), por exemplo, classifica as traduções indiretas como “um mal necessário”.
Os teóricos da tradução Annie Brisset (2000) e Clifford Landers (2001), assim
como Rónai, apontam para o fato de que as traduções indiretas desempenharam
papel importante na difusão de várias obras da literatura mundial que poderiam
ter permanecido desconhecidas, não fosse por essa modalidade de tradução, já que
nem sempre existem profissionais capazes de verter a obra diretamente da língua
original por falta de conhecimento da língua do texto original.
Sob perspectiva da semiótica da cultura, qualquer ato de fala já consiste em
uma tradução da “linguagem do meu ‘eu’ para a linguagem do teu ‘tu’” (LOT-
MAN, 2001 [1977], p. 563). Ao reformular o célebre esquema do ato comunicativo
sugerido por Roman Jakobson (1974 [1960]), o semioticista russo Iúri Lotman
destaca o papel fundamental dos “ruídos” e “defeitos” na transmissão de uma
mensagem de um interlocutor para outro. Como resultado desses mal-entendidos
pode até surgir uma mensagem totalmente nova (VÓLKOVA AMÉRICO, 2014,
p. 21). No que diz respeito às traduções diretas e indiretas, podemos supor que,
no segundo caso, o volume dos ruídos e o distanciamento da mensagem original
aumentaria de modo significativo. Com relação ao caso particular de Crime e casti-
go, nossa suposição é a de que esses “ruídos” ficariam mais evidentes justamente
na transmissão dos aspectos mais característicos do romance de Dostoiévski. É
preciso definir, portanto, quais particularidades seriam essas.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 357

Em Problemas da Poética de Dostoiévski (2015), Mikhail Bakhtin emprega o


termo polifonia como um dos conceitos-chave para a interpretação da obra dos-
toievskiana. Este conceito complexo engloba a noção da pluralidade de vozes em
uma narrativa: trata-se de personagens que não necessariamente compartilham das
mesmas opiniões e ideais do autor, sendo, por assim dizer, independentes, inclusive
no modo de se expressarem. Isto é, as particularidades biográficas e psicológicas
de cada um deles se expressam também no nível linguístico e estilístico.
Visto que a polifonia engloba diversas vozes com suas respectivas caracte-
rísticas, partimos do pressuposto de que, pelo fato de a obra de Dostoiévski ser
polifônica, justamente esta característica poderia gerar problemas na tradução,
principalmente se esta for indireta. No Prefácio do Tradutor, Paulo Bezerra toca na
questão dos problemas das traduções indiretas, referindo-se à tradução de Crime
e castigo feita por Rosário Fusco como exemplo:

Trata-se de um ótimo texto em português, porém, como foi traduzido do


francês, ou seja, é tradução da tradução, saiu fortemente marcado por muitos
elementos característicos da língua e da literatura francesa e do próprio
modo pelo qual os franceses costumam traduzir obras de autores russos.
Assim, nas muitas passagens em que o narrador, em plena empatia com a
profunda tensão psicológica que envolve a ação romanesca, constrói um
discurso em que essa tensão se manifesta através de evasivas, reticências,
hesitações, indícios de descontinuidade do fluxo narrativo, o texto de
Fusco é fluido, elegante, seguro, afastando a ideia da tensão que contagia
praticamente toda a narração. (BEZERRA, 2001, p. 7).

Foram essas as insatisfações que motivaram Paulo Bezerra a traduzir o


romance de Dostoiévski diretamente do russo. Desde sua publicação, em 2001,
foram vendidos mais de 120 mil exemplares desta primeira tradução direta de Crime
e castigo. Foi o início de uma nova era: a das traduções diretas. O quadro de ausência
de tradutores profissionais que pudessem traduzir diretamente do russo, como
apontado por Paulo Rónai (2012b, p. 27), foi inteiramente revertido. Fundada por
Boris Schnaiderman, formou-se e desenvolveu-se toda uma escola de tradução
literária. Foi uma verdadeira avalanche: surgiram novas gerações de tradutores,
foram traduzidos não só os grandes clássicos, como também outros autores me-
nos conhecidos e, inclusive, contemporâneos, entre eles Nikolai Leskov, Marina
Tsvetáieva, Mikhail Bulgákov, Mikhail Zamíatin, Daniil Kharms, Varlam Chalámov,
Serguei Dovlátov, entre muitos outros nomes. Como resultado, intensificou-se a
tradução não só de obras literárias, como também de crítica e teoria literária, como
é o caso, inclusive, da herança teórica de Mikhail Bakhtin, acima citado. Tornou-se
358 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

evidente ainda a necessidade de estudos críticos que abordassem especificamente


a historiografia da tradução da literatura russa no Brasil (SCHNEIDER URSO,
2016, p. 85-90).  
O papel da primeira tradução direta neste processo foi fundamental, pois
os leitores que conheciam bem as versões anteriores do romance de Dostoiévski
tiveram oportunidade de observar as diferenças, o que aqueceu os debates sobre
as traduções diretas e indiretas e estimulou o surgimento de novas traduções.
Inclusive, há leitores que, apesar de reconhecerem as vantagens da tradução não
intermediada, manifestam a sua preferência pelo texto de Rosário Fusco:

Sei que vou espantar e decepcionar os puristas e adeptos de traduções


vertidas diretamente do original, mas a tradução feita do francês do gran-
de escritor mineiro é, para mim, a que melhor capta o espírito, mais que a
letra, do romance mais famoso do grande autor russo. Há algo na cadência
febril do estilo de Fusco, algo na sua fuliginosidade, que o aproxima mais
do texto do que todos os esforços, mais que louváveis, decerto, do grande
Paulo Bezerra (diga-se de passagem, é bom que ambas as versões existam)
(MONTE, 2011).

De modo geral, a partir de 2001, a tradução direta tornou-se praticamente


uma exigência. No que diz respeito a Crime e castigo, hoje já existem duas traduções
diretas: em 2013 saiu, pela editora Martin Claret, outra versão do romance, desta
vez assinada por Oleg Almeida.

Cotejo: divergências de volume, paragrafação, pontuação e estilo

Com o objetivo de detectar e analisar os possíveis afastamentos do texto em


russo que uma tradução indireta possa trazer, decidimos comparar as traduções de
Crime e castigo de 1949 e de 2001. O método escolhido para a comparação foi o de
um cotejo paralelo. Uma vez que seria impossível utilizar o texto integral de Crime
e castigo, devido a sua grande extensão, foram selecionados alguns trechos que, a
nosso ver, ilustram o caráter polifônico da obra dostoievskiana, bem como suas
modificações no processo da tradução direta e indireta. Inicialmente, a quantida-
de de trechos selecionados era maior, mas preferimos reduzi-la, uma vez que os
fenômenos neles observados se repetem. Os trechos foram enumerados e orga-
nizados por meio de uma tabela (cf. Anexo), na qual se encontram justapostos da
seguinte forma: o texto original em russo (A); a tradução direta para o português
feita por Paulo Bezerra (B); a tradução indireta para o português realizada por
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 359

Rosário Fusco (C) e, por fim, decidimos incluir também a tradução francesa de
Doussia Ergaz (D), utilizada por Rosário Fusco.
O cotejo paralelo dos textos por meio de uma tabela nos proporcionou
uma primeira observação acerca da incoerência física dos tamanhos dos trechos
escolhidos: enquanto que o texto russo (A) e o texto da tradução direta (B) apre-
sentavam um tamanho mais ou menos condizente entre si, a tradução indireta
(C) por diversas vezes configurava-se como visivelmente mais curta. A redução
do tamanho do texto pode ser observada, por exemplo, nos trechos 3 (C e D) e
6 (C e D) da tabela.
Esta constatação provocou um certo grau de estranhamento, pois ao con-
siderar o fato de que a língua russa tende a ser sintética, enquanto a portuguesa
e a francesa tendem a ser analíticas, seria mais coerente se as traduções para o
português ou para o francês superassem o volume de palavras do texto original
em russo ou ao menos tivessem um tamanho parecido.
Ao confrontar os trechos do texto original (A) com o da tradução direta (B)
e da indireta (C), constatamos que realmente houve palavras e frases cortadas na
tradução indireta. Com base neste ponto, surgiu a questão: será que isso ocorreu
devido ao intermédio da tradução francesa, já que a qualidade do texto traduzido
em muito depende do estado do texto-fonte? Ou a alteração do tamanho teria
ocorrido no Brasil por exigência da editora? Graças às pesquisas de Denise Bott-
man (2012; s/d), que explora a historiografia das traduções da literatura russa no
Brasil, conseguimos detectar qual foi a tradução francesa usada por Rosário Fusco
como fonte para sua versão de Crime e castigo: foi Crime et chatîment, traduzida do
russo por Doussia Ergaz e publicada em 1931 pela Gallimard.
A partir da comparação entre o texto da tradução francesa de Doussia
Ergaz (D) e a versão de Rosário Fusco (C) foi possível confirmar que, em alguns
casos, na tradução francesa ocorreram sim cortes de palavras; já em outros casos,
quando não houve corte na tradução francesa, esta falta fez-se presente na tradução
indireta brasileira. Assim, na seleção B6 lemos:

Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo.  Men-
tir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no
primeiro caso és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro.

Já nas traduções C e D, o trecho aparece de forma mais que resumida: “Une


erreur originale vaut peut-être mieux qu’une vérité banale” (D6) e “Um erro original vale
mais que uma verdade banal”(C6).
360 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

No trecho B3, consta: “E mesmo que o senhor Lújin fosse todo feito do
mais puro ouro ou de um brilhante inteiro, nem assim ela aceitaria tornar-se con-
cubina legítima do senhor Lújin”. Ao compararmos essas linhas às da tradução
de Rosário Fusco e de Doussia Ergaz, percebemos a ausência de uma parte da
frase, além da preferência em não repetir “o senhor Lújin” duas vezes. Assim, no
trecho C3 há apenas “mais puro brilhante”, sem ouro, o que provavelmente foi
considerado um exagero: “Mesmo que o senhor Lújin fosse feito do mais puro
brilhante, ela jamais consentiria em ser sua concubina legítima.”
Segundo Landers (2001, p. 90-92), a concepção de estilo abarca não apenas
a escolha de palavras pelo autor, mas também de outros elementos, por exemplo,
a divisão de parágrafos, o comprimento das frases e as figuras de linguagem.
O texto de Dostoiévski não apresenta uma linguagem elegante e ordenada,
já que seu estilo é marcado pela busca de uma aproximação da linguagem cotidiana
e do caráter caótico dos pensamentos dos personagens. Entretanto, nem sempre
esse estilo foi devidamente compreendido e analisado como algo proposital. A
pesquisadora e tradutora da obra de Dostoiévski Fátima Bianchi (2008) afirma,
em seu Dostoiévski escrevia mal?, que entre algumas das características estilísticas da
obra dostoiévskiana estão a repetição de pontuações, palavras, expressões, frases;
a suspensão do discurso e a pausa do pensamento.
Talvez, esta desconsideração da estilística original de Dostoiévski, das bar-
reiras linguísticas ou até mesmo da exigência por uma linguagem mais “nivelada”
por parte da editora, tenham levado ao amaneiramento que seu texto sofreu ao
ser vertido para o francês e, consequentemente, para o português. Como escreve
Paulo Bezerra no Prefácio do tradutor de sua edição de Crime e castigo, “Amaneirar o
discurso de Dostoiévski para torná-lo ‘mais elegante’ e ‘mais fluido’ significaria
atentar contra a originalidade de um autor cuja peculiaridade principal é a ruptura
com as matrizes tradicionais do pensamento e suas formas de expressão” (BE-
ZERRA, 2001, p. 8-9).
Mais um exemplo do amaneiramento que a obra sofreu é o primeiro item
da tabela. Nesse caso, o personagem, um tenente, encontra-se imerso em cólera,
estado que interfere em sua articulação das palavras. No entanto, no texto traduzido
para o francês (D1), a vociferação entrecortada do personagem foi suprimida, o
que descaracteriza por completo a intensidade e agressividade de sua fala. Além
disso, a alteração impressa na tradução francesa foi repetida pela tradução indireta:

“Trate de ca-lar-a-bo-ca! O senhor está numa repartição pública. Nada de


gr-r-rosseria, senhor!” (B1).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 361

“Cale-se. O senhor está numa audiência. Não seja insolente, cavalheiro”.


(C1).

No que diz respeito às particularidades da linguagem das personagens, o


item 2 da Tabela talvez seja um exemplo mais expressivo e curioso. Trata-se de
uma alemã, proprietária de um prostíbulo, cuja fala consiste em uma deturpação
extremamente cômica das regras gramaticais russas, bem como em uma mistu-
ra de palavras russas e alemãs. Neste trecho, as divergências entre as traduções
começam logo no início. Assim, na tradução direta (B2), o autor dá a seguinte
característica ao modo de falar da personagem: “começou de repente a falar pelos
cotovelos, atropelando as palavras, com um forte sotaque alemão, embora em um
russo desenvolto”; enquanto na tradução indireta (C2) ela “exclamou, precipita-
damente, desde que lhe permitiu fazê-lo (falava russo corretamente, embora com
forte sotaque alemão)”.
No entanto, seu discurso inflamado sobre os acontecimentos não menos
tórridos na “casa nobre” está muito longe do que poderíamos chamar de “falar
russo corretamente”. Dostoiévski o constrói baseando-se justamente nos erros e
na violação das normas gramaticais. O efeito cômico surge mediante a justaposição
da linguagem “errada” e a descrição da confusão na “casa nobre”. Na tradução
francesa e na tradução indireta não só desaparecem as distorções linguístico-esti-
lísticas, como também o tradutor fica visivelmente inseguro ao inserir algumas (só
algumas!) palavras incorretas e ainda precipita-se em dar as devidas explicações ao
leitor (entre parênteses): “Nenhum, nenhum escândalo (dizia excandálo)”. [...] “Ele,
ele chegou inteiramente bêbado, pediu três garrafas (ela dizia carrafas) (...)”. Fora
isso, nessas traduções a personagem alemã fala em francês e português com uma
perfeita correção, a qual uma das autoras do presente artigo, também estrangeira,
só pode invejar. Além disso, há diferenças mesmo entre a tradução francesa e a
indireta: é claro que nesta última as alterações aumentam, tornando-a mais distante
do texto original. Assim, a exclamação indignada “Fui-fui-fui!” (B2), preservada na
tradução francesa (“Fi! Fi! Fi!”), desaparece por completo na tradução indireta (C2).
Outra divergência notada no cotejo foi quanto à paragrafação e transgres-
são quanto à pontuação. A título de exemplo: ainda no item 3 da tabela, vemos
que, enquanto o texto original (A3) e a tradução direta (B3) mantêm o trecho
destacado em apenas um parágrafo, na tradução para o francês (D3) e na tradu-
ção indireta para o português (3C) ocorre a quebra do parágrafo em duas partes.
Também pode ser notada nesse trecho outra mudança: a substituição do ponto
de exclamação pelo ponto final na primeira frase, o que também evidencia um
amaneiramento do texto.
362 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

No item 4, aparece a exclamação indignada “Que provas que nada!” e a


interjeição “Arre!” (B4). Na tradução francesa e na tradução indireta, a primeira é
suavizada até o ponto de se tornar o oposto: “Sim, provas” (C4): já a interjeição
desaparece sem deixar vestígios. A mesma tendência de suprimir os “exageros”
do romance dostoievskiano pode ser observada no item 5, em que a expressão
“precipitou-se para o marido” (B5) é substituída por “abraçando-se ao corpo
do marido” (C5). A escolha do verbo «abraçar» traz à tona uma ideia de relação
carinhosa, zelosa, coisa que é um pouco difícil de imaginar entre a personagem
Pulkhéria e seu marido, visto que ela o trata com toda severidade, como se ele
fosse apenas um homem inútil e um bêbado que, ao invés de colaborar para a
melhoria da situação da família, apenas se afunda mais na bebida, utilizando todos
os recursos disponíveis para alimentar o vício, seu meio de fuga.
Outra divergência notada por nós é a supressão de expressões idiomáticas
na tradução francesa e na tradução indireta. Assim, quando na tradução direta
(B2) aparecem expressões como “falar pelos cotovelos” (em russo, “точно горох
просыпали”) e “isso só pôs lenha na fogueira” (B6) equivalente a “это только поддало
жару”, nas traduções C e D elas estão ausentes.
Outra questão que chamou nossa atenção é a da transliteraçãode nomes
próprios e topônimos. Observamos que, na maioria dos casos, a transliteração
na tradução direta e indireta coincide (por exemplo: Lújin (B3 e C3), Ródia (B4
e C4), Pulkhéria Alieksándrovna (6B e 6C)) e, de modo geral, segue a tabela de
transliteração adotada pelo curso de Literatura e Cultura Russa da USP e pelas
editoras que trabalham com as traduções diretas do russo. Como a edição da
tradução indireta por nós utilizada é de 2010, isto é, posterior à publicação da
tradução direta em 2001, podemos supor que a padronização da transliteração
na tradução indireta é recente e foi feita justamente sob influência da tradução
direta. No entanto, em alguns casos, a tradução indireta evita utilizar derivaçõesde
nomes russos: por exemplo, no trecho C5, a forma coloquial Catierina Ivánov-
na é substituída pela forma “correta” Ekaterína Ivánovna. Provavelmente, essa
correção objetiva a não confundir o leitor com variações do mesmo nome, tão
comuns na língua russa.
No trecho 6, que, diga-se de passagem, é uma bela apologia à mentira,
há mais um caso curioso: o verbo russo врать, que, na tradução direta, aparece
como “mentir”, nas outras versões (6C e 6D) é suavizado para “dizer absurdos”
e “enganar-se”. Ainda nesse último trecho há frases em que a tradução francesa
e, por conseguinte, a tradução indireta brasileira, parecem ter se aproximado mais
do texto original. Assim, no final do trecho, lemos: “Правда не уйдет, а жизнь-то
заколотить можно; примеры были” (6A) que na tradução direta ficou como “A
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 363

verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos4; exemplos houve” (6B). A
tradução da expressão заколотить жизнь para o francês (D) e na primeira tradução
brasileira (C) está mais próxima de seu sentido no texto original, a saber: “La vérité
se retrouve toujours, tandis que la vie peut être enterrée à jamais; on en a vu des
exemples” (6D) e “A verdade se encontra sempre, ao passo que a vida pode ser
enterrada para sempre, estamos enjoados de ver exemplos” (6C). Entretanto, apesar
da “precisão semântica” (SCHNAIDERMAN, 2011, p. 31-34) na tradução indi-
reta, não observamos a brevidade e o estilo entrecortado da sentença no original.

Algumas conclusões

As traduções indiretas desempenharam um papel importantíssimo na divul-


gação da literatura russa no exterior. No caso específico da tradução indireta de
Crime e castigo realizada por Rosário Fusco, trata-se de um texto redigido por um
escritor talentoso, o que, sem dúvida, aumenta seu valor artístico. Nosso objetivo
não foi avaliar as traduções aqui citadas como “boas” ou “ruins”, mas apenas
confirmar a suposição de que em uma tradução indireta o grau de afastamento da
obra original é maior do que em uma tradução direta, bem como definir quais as
alterações sofridas pelo texto em russo em seu processo de tradução. Chegamos,
portanto, às seguintes conclusões:
1. As alterações tornam-se mais evidentes justamente na transmissão dos aspectos
mais característicos do romance de Dostoiévski, isto é, de seu caráter poli-
fônico. A descaracterização do estilo e da estrutura do romance na tradução
francesa e na indireta resulta em sua monologização, contra a qual advertia
Bakhtin (2015, p. 50).
2. A maioria das alterações na tradução indireta foi herdada da tradução francesa.
3. Há, porém, diferenças entre a tradução francesa e a indireta: na última, as
alterações aumentam, o que a torna mais distante do texto original.
4. Na tradução francesa e na tradução indireta ocorre uma redução do texto
original, que vai desde o corte de algumas palavras e frases até supressão de
passagens inteiras ou seu resumo, feito de modo bastante sintético.
5. Nota-se também uma alteração da paragrafação: os trechos que não eram
divididos em parágrafos no texto original foram fragmentados na tradução
francesa e, por conseguinte, na tradução indireta.

4 Aqui e nos exemplos a seguir o itálico é nosso.


364 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

6. Ocorre ainda a supressão de algumas características do texto original respon-


sáveis pela criação do efeito polifônico: repetições, exclamações, expressões
idiomáticas, palavras de baixo calão, marcas pessoais de fala (por exemplo, a
fala enraivecida de um dos personagens), erros gramaticais e a presença de
palavras estrangeiras (no caso da personagem alemã).

Nossa hipótese é a de que algumas dessas alterações podem ser explicadas


pela preocupação com o possível estranhamento do leitor. Com o aumento da
quantidade de traduções diretas de obras literárias russas nas últimas décadas,  o
leitor já está mais acostumado com as estranhezas e asperezas que pode encontrar
em um texto proveniente de outra cultura e, portanto, os tradutores já não têm
mais receio de assustá-lo e afugentá-lo. Notamos ainda a influência inversa que
a tradução direta exerceu sobre a indireta: nas edições mais recentes da tradução
de Rosário Fusco (C), tanto a grafia do nome do autor (Fiódor Dostoiévski),
quanto a dos nomes próprios e topônimos foi padronizada a fim de aproximá-la
da pronúncia em russo.
Devido às limitações impostas pelo gênero do artigo, nossas conclusões têm
um caráter breve e preliminar. Um estudo mais detalhado e profundo estendido
a outras obras de Dostoiévski e suas traduções no Brasil certamente ampliaria o
leque de possíveis observações.

ANEXO:
Texto original em Russo Tradução direta para o Tradução indireta para o Tradução para o francês, por
português, por Paulo Bezerra português, por Rosário Doussia Ergaz
Fusco
A B C D
1 “— Извольте ма-а-а-лчать! “Trate de ca-lar-a-bo-ca! O “-Cale-se. O senhor está « Taisez-vous ! Vous êtes à
Вы в присутствии. Не senhor está numa repartição numa audiência. Não seja l’audience, ne faites pas
гр-р-рубиянить, судырь!” pública. Nada de gr-r- insolente, cavalheiro.” l’insolent, monsieur. »
(DOSTOIÉVSKI, 2016, rosseria, senhor!” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 108) (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 137-138) p. 236-237)
p. 111-112)
2 “— Никакой шум и драки “-Não houve nenhum “Não houve em casa, « l n’y a eu chez moi ni tapage
у меня не буль, господин barulho nem briga na minha senhor capitão, nem ni rixe, monsieur le capitaine,
капитэн, — затараторила casa, senhor capiten – barulho, nem briga – s’écria-t-elle précipitamment
она вдруг, точно горох começou de repente a falar exclamou, precipitadamente, dès qu’on lui eut permis de le
просыпали, с крепким pelos cotovelos, atropelando desde que lhe permitiu fazê-lo faire (elle parlait le russe
немецким акцентом, хотя as palavras, com um forte (falava russo corretamente, couramment, avec un fort
и бойко по-русски, — и sotaque alemão, embora em embora com forte sotaque accent allemand), aucun,
никакой, никакой шкандаль, um russo desenvolto –, e não alemão). – Nenhum, nenhum aucun scandale (elle
а они пришоль пьян, и это aconteceu nenhum, nenhum escândalo (dizia excandálo). disait «schkandale»).
я всё расскажит, господин schkandall, mas eles chegô O homem já chegou bêbado Cet homme est arrivé
капитэн, а я не виноват… bêbado, e isso eu contará e eu vou lhe contar tudo, ivre et je vais vous raconter
у меня благородный дом, tudo, senhor capiten, mas eu senhor capitão, eu não tenho tout, monsieur le capitaine,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 365

господин капитэн, и não sou culpado...minha casa culpa...Minha casa é uma moi je ne suis pas coupable...
благородное обращение, é nobre, senhor capiten, o casa respeitável, minhas Ma maison est une maison
господин капитэн, и я tratamento também é nobre, maneiras são dignas, senhor convenable, mes manières
всегда, всегда сама не хотель senhor capiten, e eu sempre, capitão, e eu mesma não sont très convenables,
никакой шкандаль. А они eu mesma nunca quis nenhum queria nenhum excandálo. monsieur le capitaine, et
совсем пришоль пьян и schkandall. Mas eles chegó Ele, ele chegou inteiramente moi-même je ne voulais
потом опять три путилки completamente bêbado e bêbado, pediu três garrafas aucun schkandale. «Et lui, il
спросил, а потом один depois pediu mais três (ela dizia carrafas), em est venu tout à fait ivre, et il
поднял ноги и стал ногом carrafas, e depois um levantou seguida levantou as pernas e a demandé trois bouteilles
фортепьян играль, и это as pés e começou a tocar pôs-se a tocar piano com os (elle disait «pouteilles»), puis
совсем нехорошо в piano com a pé, e isso não é pés. Ora, isso não fica bem il a levé les jambes et
благородный дом, и он ганц nada bom num casa nobre, e numa casa decente; ele commencé à jouer du piano
фортепьян ломаль, и совсем, ele quebró ganz piano, e não quebrou o piano inteiro e avec son pied et cela, cela ne
совсем тут нет никакой tem nenhum, nenhum isso não é jeito de se portar. convient pas du tout à une
манир, и я сказаль. А он manero, e eu disse. Mas ele Observei-o. Então ele pegou maison convenable, et il a
путилку взял и стал всех pegou um carrafa e começó a na carrafa e começou a cassé tout le piano, et ce n’est
сзади путилкой толкаль. И empurrar todos por trás com ameaçar todo mundo com pas une manière de se
тут как я стал скоро дворник o carrafa. E aí eu começó ela. Então eu chamei, conduire; je le lui ai fait
позваль и Карль пришоль, logo chamar servente, e Karl imediatamente, o porteiro e observer, alors il a pris la
он взял Карль и глаз chegó, ele pegó Karl e bateu Karl veio. Então ele pegou bouteille et s’est mis à
прибиль, и Генриет тоже olho, e Henriet também Karl, amassou-lhe o olho, e repousser tout le monde avec.
глаз прибиль, а мне пять раз bateu olho, e em mim batéu o de Henriqueta também, a Alors moi j’ai lui payer quinze
щеку биль. И это так cinco vezes no face. E isso mim, também a mim, me roubles d’indemnité. Moi,
неделикатно в благородный é tão indelicado num casa deu cinco tapas. Isso não são monsieur le capitaine, je lui ai
дом, господин капитэн, и я nobre, senhor capiten, e eu maneiras de se conduzir numa payé cinq roubles sein Rock
кричаль. А он на канав окно gritó. Mas ele abriu o janela casa decente, senhor capitão, aussitôt appelé le concierge et
отворяль и стал в окно, как que dá pro canal e ficou então eu gritei. Aí, ele abriu a Karl est venu, alors il a pris
маленькая свинья, визжаль; em cima do janela ganindo janela que dá para o canal e se Karl et lui a poché un oeil et à
и это срам. И как можно в como um leitãozinho; e isso pôs a grunhir como um leitão. Henriette aussi, et moi, il m’a
окно на улиц, как маленькая é um vergonha. Como que E como se pode grunhir donné cinq gifles ; ce sont des
свинья, визжаль; и это срам. pode ganir do janela pra como um leitão na janela? manières si peu délicates, pour
Фуй-фуй-фуй! И Карль rua como um leitãozinho; Karl puxou-o por trás, pela une maison convenable,
сзади его за фрак от окна isso é um vergonha. roupa, não nego, senhor monsieur le capitaine, alors
таскаль и тут, это правда, Fui-fui-fui! E Karl capitão, arrancando-lhe uma moi je criais. Alors lui a ouvert
господин капитэн, o puxó do janela por trás das abas da casaca. Então, ele la fenêtre qui donne sur le
ему зейн рок pelo casaca e aí, é verdade, gritou man mouss me pagar canal et il s’est mis à pousser
изорваль. И тогда он senhor capiten, ele rasgou quinze rublos de indenização. des cris comme un petit
кричаль, что ему o sein Rock. E então ele Eu, senhor capitão, cochon. Et comment peut-on
пятнадцать целковых gritó que eu man muß lhe paguei-lhe cinco por sein pousser des cris comme un
ман мус штраф pagar quinze rublos de Rock e devo dizer que não petit cochon à la fenêtre ? Fi !
платиль. И я сама, multa. Eu mesma, senhor é um freguês decente, senhor Fi ! Fi! Et Karl le tirait
господин капитэн, пять capiten paguei a ele cinco capitão, pois além de fazer par-derrière par les pans de
целковых ему зейнрок rublos por sein Rock. todo esse excandálo, ainda son habit pour l’éloigner de la
платиль. И это Ele é um hóspede disse que pode contar toda fenêtre et il lui a, je ne le nie
неблагородный гость, vil, senhor capiten, e fez a história contra mim nos pas, monsieur le capitaine,
господин капитэн, schkandall de todo tipo! Eu jornais.” arraché une des basques de
и всякой шкандаль disse ele, vai gedriuk um son habit. Alors il a crié man
делаль! Я, говориль, на grande sátira do senhora, muss1 2 et je dois vous dire que
вас большой сатир porque em todos jornal (DOSTOIÉVSKI, 2010a, que ce n’est pas un client
гедрюкт будет, потому я posso escreveu tudo.” p. 140) convenable, monsieur le
во всех газет могу capitaine, c’est lui qui a fait
про вас всё сочиниль.” (DOSTOIÉVSKI, 2001, tout le scandale et il m’a dit
p. 113-114) qu’il peut raconter toute cette
(DOSTOIÉVSKI, 2016, histoire sur moi dans les
p. 110-111) journaux. »
(DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 241-242)
366 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

3 “И будь даже господин “E mesmo que o senhor “Mesmo que o senhor “M. Loujine pourrait être
Лужин весь из одного Lújin fosse todo feito do Lújin fosse feito do mais fait d’un pur ou d’un seul
чистейшего золота или из mais puro ouro ou de um puro brilhante, ela jamais brillant qu’elle ne consentirait
цельного бриллианта, и brilhante inteiro, nem assim consentiria em ser sua pas à devenir sa concubine
тогда не согласится стать ela aceitaria tornar-se concubina legítima. Por légitime. Pourquoi donc s’y
законною наложницей concubina legítima do senhor que, agora, se resolveu ela? résout-elle à présent ?
господина Лужина! Почему Lújin! Por que está aceitando Que mistério é esse? Onde « Quel est ce mystère ? Où
же теперь соглашается? В agora? Em que consiste essa a chave do enigma? A coisa est le mot de l’énigme ? La
чем же штука-то? В чем же coisa? Em que consiste a é clara, nunca se venderia chose est claire, elle ne se
разгадка-то? Дело ясное: adivinhação? A coisa é clara: por si própria, pelo seu vendrait jamais pour
для себя, для комфорта não se vende em proveito conforto, mesmo para elle-même, pour son
своего, даже для спасения próprio, por conforto, nem livrar-se da morte. Mas confort, même pour
себя от смерти, себя не para escapar da morte, mas o faz por um outro, échapper à la mort. Mais
продаст, а для другого вот se vende em proveito de vende-se por um ser elle le fait pour un autre ;
и продает! Для милого, для outro! Se vende por uma querido: Eis todo o mistério elle se vend pour un être
обожаемого человека pessoa querida, por uma explicado. Por seu irmão, aimé, chéri. Voilà tout le
продаст! Вот в чем вся наша pessoa adorada! É nisso que pela sua mãe, está pronta mystère expliqué : pour son
штука-то и состоит: за consiste toda essa nossa coisa: para se vender inteira. frère, pour sa mère, elle est
брата, за мать продаст! Всё pelo irmão, pela mãe ela se Quando se chega a esse prête à se vendre, à se
продаст! О, тут мы, при vende! Vende tudo! Oh, aqui, ponto, sacrifica-se até vendre en entier. Oh ! quand
случае, и нравственное havendo oportunidade, nós toda e qualquer resistência on en vient à cela, on fait
чувство наше придавим; esmagamos até o nosso moral. Expõe-se à venda violence même à tout
свободу, спокойствие, даже sentimento ético; levamos à sua liberdade, seu repouso, sentiment moral. On porte
совесть, всё, всё на loja de usados a liberdade, a sua consciência. Naufrague repos, sa conscience. Périsse
толкучий рынок снесем. tranqüilidade, até a nossa vida, desde que as notre vie, pourvu que les
Пропадай жизнь! Только consciência, tudo, tudo. criaturas queridas sejam créatures aimées soient
бы эти возлюбленные Dane-se a vida! Contanto felizes.” heureuses.”
существа наши que esses nossos seres
были счастливы.” apaixonados sejam felizes.” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 65-66) p. 107-108)
p. 51) p. 59)

4 “— Кой черт улики! А “Que provas que nada! Aliás, “–Sim, provas. Conquanto “– Ah bien, oui, des charges !
впрочем, именно по o prenderam precisamente tenha sido preso por quoiqu’il ait été arrêté pour
улике, да улика-то эта com base numa prova, uma que pesava sobre ele. quoiqu’il ait été arrêté pour
не улика, вот что só que ela não é prova, Contudo, de fato, essa prova une charge qui pesait sur lui.
требуется доказать! Это e é isso que se precisa não prova nada e aí está o Mais, en fait, cette charge n’en
точь-в-точь как сначала provar! Foi exatamente que queremos demonstrar. est pas une et voilà ce qu’il
они забрали и заподозрили assim que primeiro eles A polícia está tomando o nous faut démontrer. La
этих, как бишь их… Коха prenderam e puseram sob caminho errado, como, no police fait fausse route comme
да Пестрякова. Тьфу! Как suspeita esses, como é princípio, a propósito elle s’est trompée au début au
это всё глупо делается, mesmo que se chamam... daqueles dois...como se sujet de ces deux... comment
даже вчуже гадко Kokh e Piestriakov. Arre! chamam? Koch e Pestriakóv. s’appellent-ils déjà ? Koch et
становится! Пестряков-то, Quanta bobagem cometem Por mais indiferente que se Pestriakov ! Fi, si désintéressé
может, сегодня ко мне em tudo isso, dá nojo até seja ao caso fica-se assistindo qu’on soit dans la question,
зайдет… Кстати, Родя, ты em quem está de fora! É a um inquérito tão on se sent révolté en voyant
эту штуку уж знаешь, еще possivel que Piestriakov idiotamente conduzido. une enquête si sottement
до болезни случилось, venha hoje à minha casa... Pestriakóv talvez passe lá em conduite. Pestriakov va
ровно накануне того, как Aliás, Ródia, tu já conheces casa, logo mais...A propósito, peut-être passer chez moi
ты в обморок в конторе esse negócio, porque Ródia, não conheces esta tantôt... À propos, Rodia, tu
упал, когда там про это aconteceu ainda antes da história? Ela se passou antes connais cette histoire ; elle est
рассказывали…” tua doença, exatamente na da tua doença, justamente na arrivée avant ta maladie, juste
(DOSTOIÉVSKI, 2016, véspera do teu desmaio na véspera do dia em que la veille du jour où tu t’es
p. 149) delegacia, quando ouviste desfaleceste na polícia, na évanoui au bureau de police au
contar essa história...” hora em que falavam dela.” moment où on la racontait.”
(DOSTOIÉVSKI, 2001, (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 148) p. 185) p. 325-326)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 367

5 “— Добился! — “–Achou o que procurava – “–Isso tinha de acontecer! – “”– Cela devait lui arriver »,
отчаянно вскрикнула gritou Catierina Ivánovna em exclamou Ekaterína Ivánovna s’écria Catherine Ivanovna
Катерина Ивановна и desespero e precipitou-se com o ar desesperado, d’un air désespéré et elle
бросилась к мужу.” para o marido.” abraçando-se ao corpo s’élança vers son mari.”
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, do marido.” (DOSTOÏEVSKI, 1950,
p. 198) p. 191) (DOSTOIÉVSKI, 2010a, p. 432)
p. 243)
6 “— Послушайте, — робко “–Escute – interrompeu “Escute... – falou timidamente “– Écoutez, fit timidement
перебила Пульхерия timidamente Pulkhéria Pulkhéria Aleksándrovna, no Pulchérie Alexandrovna. Mais
Александровна, но это Alieksándrovna –, isso só pôs entanto essa interrupção só cette interruption ne fit
только поддало жару. lenha na fogueira. serviu para excitá-lo mais. qu’échauffer Rasoumikhine.
— Да вы что думаете? — – E o que a senhora acha? – –Não, mas o que é que estão – Non, mais qu’en
кричал Разумихин, еще gritou Razumíkhin, pensando disso – gritou, pensez-vous ? cria-t-il en
более возвышая голос, — levantando ainda mais a voz. elevando a voz mais ainda. – élevant encore la voix,
вы думаете, я за то, что они – A senhora acha que estou Pensam que tenho raiva deles vous pensez que je leur en
врут? Вздор! Я люблю, a favor de que eles mintam? porque dizem absurdos? veux parce qu’ils disent des
когда врут! Вранье есть Absurdo! Eu gosto quando Estão muito enganadas. absurdités ? Non ! J’aime cela,
единственная человеческая mentem! A mentira é o único Gosto disso! Que se qu’on se trompe !... C’est la
привилегия перед всеми privilégio humano perante enganem. É a única seule supériorité de l’homme
организмами. Соврешь — todos os organismos. Quem superioridade dos homens sur les autres organismes.
до правды дойдешь! mente chega à verdade! sobre os outros seres. É C’est ainsi qu’on arrive à la
Потому я и человек, что Minto, por isso sou um ser assim que se chega à vérité ! Je suis un homme,
вру. Ни до одной правды humano. Nunca se chegou a verdade. Sou homem, et c’est parce que je me
не добирались, не соврав nenhuma verdade sem antes e me porque trompe que je suis un
наперед раз четырнадцать, haver mentido de antemão sou homem. Não se homme. On n’est jamais
а может, и сто quatorze, e talvez até cento chega a nenhuma verdade arrivé à aucune vérité sans
четырнадцать, а это e quatorze vezes, e isso é sem nos enganarmos s’être trompé au moins
почетно в своем роде; ну, а uma espécie de honra; mas pelo menos quatorze quatorze fois ou peut-être
мы и соврать-то своим nós não somos capazes nem vezes, talvez cento e même cent quatorze et c’est
умом не умеем! Ты мне ври, de mentir com inteligência! quatorze, e isso é até peut être un honneur en son
да ври по-своему, и я тебя Mente para mim, mas mente uma honra. Mas nunca genre. Mais nous ne
тогда поцелую. Соврать a teu modo, e então eu te nos enganamos de savons même pas nous
по-своему — ведь это dou um beijo. Mentir a seu modo geral. Um erro tromper de façon personnelle.
почти лучше, чем правда modo é quase melhor do que original vale mais que Une erreur originale vaut
по одному по-чужому; в falar a verdade à moda uma verdade banal. peut-être mieux qu’une
первом случае ты человек, alheia; no primeiro caso és A verdade se encontra vérité banale. La vérité se
а во втором ты только um ser humano, no segundo, sempre, ao passo que a retrouve toujours, tandis
что птица! Правда não passas de um pássaro. vida pode ser enterrada que la vie peut être
не уйдет, а жизнь-то A verdade não foge e a vida para sempre, estamos enterrée à jamais; on en
заколотить можно; a gente pode segurar com enjoados de ver exemplos.” a vu des exemples.”
примеры были.” pregos; exemplos houve.” (DOSTOIÉVSKI, 2010a, (DOSTOÏEVSKI, 1950,
(DOSTOIÉVSKI, 2016, (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 272) p. 480-481)
p. 221) p. 214)

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5a ed.
revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BEZERRA, Paulo. Prefácio do Tradutor. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch.
Crime e castigo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.
BIANCHI, Maria de Fátima.  Dostoiévski escrevia mal? In: Congresso Internacional da Associação
Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC,  11, 2008, São Paulo, SP. Anais (on-line). São
368 Ekaterina V. Américo e Melissa T. S. Barbosa. Crime e Castigo em reflexos: uma análise comparativa ...

Paulo: ABRALIC, 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/


AnaisOnline/simposios/pdf/036/MARIA_BIANCHI.pdf>. Acesso em: 05 de Agosto
de 2016.
BOTTMANN, Denise. Crime e castigo no Brasil. 2012. Disponível em: <http://naogosto-
deplagio.blogspot.com.br/2012/03/crime-e-castigo-no-brasil.html>. Acesso em: 25 de
Abril de 2016.
BOTTMANN, Denise. Um curioso às voltas com uma curiosidade histórica. S/d. Disponível
em:<https://www.academia.edu/28188915/Um_curioso_%C3%A0s_voltas_com_uma_
curiosidade_hist%C3%B3rica>. Acesso em: 06 de setembro de 2016.
BRISSET, Annie. The Search For A Native Language: Translation and Cultural Identity.
In: VENUTI, Lawrence . The Translation Studies Reader. Londres: Routledge, 2000.
CAMPOS, Geir. O que é Tradução. São Paulo: Brasiliense, 2004.
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e castigo (edição especial). Tradução do russo, prefácio,
cronologia biográfica do autor, notas explicativas e texto de capa por Oleg Almeida. Martin
Claret: São Paulo, 2013.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Crime e castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed.
São Paulo: Editora 34, 2001.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Crime e castigo: volume I. Tradução de Rosário
Fusco. São Paulo: Abril, 2010a.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Crime e castigo: volume II. Tradução de Rosário
Fusco. São Paulo: Abril, 2010b.
DOSTOÏEVSKI, Fiodor. Crime et chatîment. Traduction Doussia Ergaz. Gallimard, 1950.
DOSTOIÉVSKI, FIÓDOR. Prestupliénie i nakazánie (Crime e castigo). São Petersburgo:
Azbuka Atticus, 2016.
GOMIDE, B. B. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil. Tese de doutorado,
UNICAMP, 2004. <Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/
document/?code=vtls000328892>. Acesso em 14 de agosto de 2017.
JAKOBSON, R. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e comunicação. [Trad.
de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes]. São Paulo: Editora Cultrix, 1974: 63-72.
LANDERS, Clifford E. Literary Translation: A Practical Guide. Great Britain: Multilingual
Matters, 2001.
LOTMAN, Iúri. Kultúra kak kollektívnyi intellekt i probliémy iskússtvennogo rázuma. (A
cultura como inteligência coletiva e os problemas da inteligência artificial). In: Semiosfera.
São Petersburgo: Iskússtvo-SPB, 2001, p. 557-567.
MONTE, Alfredo. Lusco-Fusco, o Crime e castigo de Rosário Fusco. 2011. Disponível
em: <https://armonte.wordpress.com/2011/12/05/lusco-fusco-o-crime-e-castigo-de-
-rosario-fusco/> Acesso em 25 de agosto de 2017.
RÓNAI, Paulo. A Tradução Vivida. 4° edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012a.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 353-369 369

RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. 7° edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012b.
SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SCHNEIDER URSO, Graziela. “Versões de Nabókov”. Tese de doutorado, USP, 2016. Dis-
ponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-16082016-152515/
pt-br.php>. Acesso em 14 de agosto de 2017.
VÓLKOVA AMÉRICO, Ekaterina. O conceito de tradução na obra de Iúri Lotman: entre
a intraduzibilidade e liberdade. In: Tradterm, v. 24, 2014, p. 17-33.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 371

O conto do cadáver que pertencia não se sabe a


quem, de Vladímir Odóievski

Lucas Simone

Resumo: Tradução comentada de conto de Vladímir Odóievski.


Palavras-chave: Tradução; Literatura russa; Vladímir Odóievski

Apresentação

Embora seu nome soe pouco ou nada familiar ao leitor de fora da Rússia,
o príncipe Vladímir Fiódorovitch Odóievski (1804-69) produziu, ao longo de sua
vida, uma das mais versáteis e curiosas obras da literatura russa do século XIX.
Sua pena gerou de livros infantis a ensaios filosóficos, de teoria musical a resenhas
gastronômicas. Tido como uma espécie de homem renascentista, devido a seu
conhecimento enciclopédico e a seu interesse pelos mais diversos assuntos, foi
membro ativo de inúmeros grupos literários e filosóficos, dentre eles a Sociedade
dos Amantes da Sabedoria (os chamados Liubomúdry), além de editar o periódico
Mnemozina. Grande propagador da filosofia idealista e do romantismo alemão,
trouxe ao público russo autores como Novalis e Schelling, do qual foi manifesto
admirador – essa filiação à literatura germânica, aliás, deixou marcas inequívocas
em seus escritos, rendendo-lhe o epíteto de “Hoffmann Russo”.
No conto que aqui apresentamos, porém, estão presentes ressonâncias
menos alemãs do que tipicamente russas; mais precisamente, é nítido o diálogo
com um dos grandes nomes da literatura russa, Nikolai Gógol, de cujas Noites
numa granja próximo de Dikanka Odóievski extrai sua epígrafe. “O conto do cadáver
que pertencia não se sabe a quem” remeterá o leitor habituado às singulares linhas
gogolianas a um ambiente familiar: o da Rússia profunda, rural, com seus buro-
372 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

cratas de província e seus funcionários corruptos, colocados frente a um elemento


sobrenatural, grotesco e inusitado, igualmente caro a Gógol e Odóievski, os dois
maiores mestres da narrativa fantástica na Rússia.
O texto a seguir foi publicado em 1833, dentro do volume Contos variegados
com um gracejo, coletânea esta que não recebeu acolhida calorosa do leitor russo.
A própria mãe de Odóievski teria afirmado, em carta ao filho, que as narrativas
encerradas no livro eram por demais díspares, e que a incompreensão do público
era previsível. Não à toa, o ciclo de histórias só voltaria ao papel em sua ordem
original numa edição em língua russa publicada na Inglaterra em 1988. “O conto
do cadáver que pertencia não se sabe a quem”, porém, apareceria em várias edi-
ções das obras reunidas do autor, bem como em coletâneas publicadas em língua
estrangeira.

O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem

É fato que o escrivão provincial, saindo de quatro da taverna, viu que a lua, sem mais
nem menos, dançava no céu, e jurou para todo o povoado que era verdade; mas os aldeões
balançaram a cabeça e até zombaram dele.

Gógol, nas Noites numa granja…

Aos povoados comerciais do distrito de Rejensk, foi emitida, por parte do


tribunal do ziémstvo, a seguinte declaração:
“Em nome do tribunal do ziémstvo de Rejensk, declara-se que, em sua
jurisdição, nos pastos do vilarejo de Morkóvkino-Natáchino, aos 21 do corrente
mês de novembro, foi encontrado morto um corpo do sexo masculino, de dono
desconhecido, vestido com um velho capote de feltro cinza, com uma cinta de
linha, um colete de feltro de cor vermelha e em parte verde, com uma camisa de
chita vermelha; na cabeça, havia um quepe feito com velhos trapos de chita, com
viseira de couro; o falecido tem aproximadamente 43 anos de idade, 2 archines e
10 verchoks de altura,1 cabelos castanho-claros, rosto branco, liso, olhos cinzentos,
barba feita, queixo com pelos grisalhos, nariz grande e um pouco para o lado,
compleição fraca. Assim, por meio desta declara-se: se houver ex-parentes do
referido corpo ou o proprietário do referido corpo, roga-se que se manifestem

1 Antigas medidas russas: o archin equivalia a 71 cm, enquanto o verchok equivalia a 4,4 cm. Era costume
dizer a altura em verchoks acima de dois archines. O morto tinha, portanto, 1,86 m de altura. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 373

no povoado de Morkóvkino-Natáchino, onde está sendo conduzido inquérito


sobre o corpo, pertencente não se sabe a quem; e se não os houver, roga-se que
se manifestem a esse respeito nesse mesmo povoado de Morkóvkino”.
Três semanas se passaram na espera dos proprietários do cadáver; ninguém
apareceu, e finalmente o assessor e o médico do distrito foram visitar o proprietá-
rio de terras em Morkóvkino; numa isbá sem dono, separaram um quarto para o
amanuense Sevastiánytch, que também fora enviado para o inquérito. Nessa mesma
isbá, no fundo da despensa, encontrava-se o cadáver, que o tribunal pretendia
dissecar e enterrar no dia seguinte, pelo procedimento comum. O afável proprie-
tário, para consolar Sevastiánytch em sua solidão, enviou-lhe do pátio senhorial
um ganso com molho e um jarro de licor caseiro para o estômago.
Já anoitecera. Sevastiánytch, homem ordeiro que era, em vez de seguir o
costume de seus confrades e trepar no poláti 2 que ficava junto ao forno ainda há
pouco aceso, julgou por bem dedicar-se à preparação dos papéis para a sessão
do dia seguinte, ainda mais pela consideração de que, embora do ganso tivessem
restado apenas os ossos, só um quarto do jarro tinha sido esvaziado; antes de tudo
ele ajeitou o castiçal na cabeceira de ferro, que o estaroste do povoado de Morkó-
vkino mantivera ali propositalmente, para casos como aquele, e depois tirou de sua
bolsa de couro um caderno velho e ensebado. Sevastiánytch não podia olhar para
ele sem se enternecer; eram cópias de diversos decretos relacionados a assuntos
do ziémstvo, que lhe foram deixados como herança pelo pai, escrivão subscritor
de saudosa memória – afastado do cargo na cidade de Rejensk por denúncias de
concussão e comportamento indecente, com a recomendação, aliás, de que dali
em diante não fosse nomeado em lugar algum e de que não fosse aceita petição
nenhuma por parte dele – pelo que ele gozava do respeito de todo o distrito. Se-
vastiánytch involuntariamente recordava que esse caderninho era o único código a
nortear o tribunal do ziémstvo de Rejensk em suas ações; que somente Sevastiánytch
podia ser o intérprete dos misteriosos símbolos daquele Livro Sibilino; que por
meio de seu poder mágico ele mantinha submissos tanto o comissário de polícia,
como os assessores, e forçava todos os habitantes da repartição a virem até ele
em busca de conselhos e instruções; e era por isso que ele o guardava como a
menina dos olhos, não o mostrava a ninguém e tirava-o do fundo da arca só em
caso de extrema necessidade; com um risinho, ele parava nas páginas em que, em
parte pelas mãos de seu finado pai e em parte por suas próprias mãos, estavam ora
manchadas, ora novamente escritas diversas partículas insignificantes, tais como:

2 Tradicional leito que se afixava em cima dos grandes fornos russos. (N. do T.)
374 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

“não”, “mas”, “e” etc., e da maneira mais natural vinha à mente de Sevastiánytch:
como eram estúpidas as pessoas, e como eram inteligentes ele e seu pai.
Enquanto isso, ele esvaziou o segundo quarto do jarro e começou a tra-
balhar; mas enquanto sua habituada mão traçava com rapidez ganchinhos no
papel, seu amor-próprio, desperto pela visão do caderno, trabalhava: ele recordava
quantas vezes ele transportara cadáveres para lá da divisa de um distrito vizinho,
livrando assim seu comissário de preocupações supérfluas: e no mais: se fosse para
elaborar uma sentença, tomar informações, fundamentas as leis, entrar em contato
com os peticionários, informar a chefia acerca da impossibilidade de cumprir suas
disposições – em toda parte e para tudo havia Sevastiánytch; com um sorriso, ele
recordava um expediente inventado por ele: toda busca geral direcionar para o
outro lado; ele recordava que, recentemente, por meio desse inocente método,
salvara um de seus favorecidos: esse favorecido fizera certa coisinha graças à qual
poderia facilmente empreender uma viagem não de todo agradável; foi feito o in-
terrogatório, deram o mandado de busca – mas nessa ocasião Sevastiánytch sugeriu
de inquirir em primeiro lugar um rapaz alfabetizado, da parte de seu favorecido;
de acordo com as palavras do rapaz alfabetizado, foi escrito um papel, que o rapaz
alfabetizado, persignando-se, assinou, e o próprio Sevastiánytch foi ter com um
cidadão, depois com outro, e com um terceiro, indagando: “Você também, você
também?” – e começou a revisá-los com tanta rapidez, que, enquanto os cidadãos
ainda estavam boquiabertos e apresentavam seus cumprimentos, preparando-se
para responder – ele conseguiu interrogar a todos, até o último, e novamente o
rapaz alfabetizado, por conta do desconhecimento das letras de seus camaradas,
assinou, persignando-se, seu testemunho unânime. Com semelhante satisfação,
Sevastiánytch recordava quando um desconto significativo foi imposto ao comis-
sário, e ele conseguiu implicar no caso umas quinze pessoas, dividir o desconto
entre a turma toda, e depois anistiá-los todos. – Resumindo, Sevastiánytch via que,
em todos os casos famosos do tribunal do ziémstvo de Rejensk, ele era o único
culpado, o único maquinador e o único executor; que, sem ele, estaria arruinado
o assessor, estaria arruinado o comissário, estariam arruinados tanto o juiz de
distrito, como o chefe de distrito; que somente por ele mantinha-se a antiga glória
do distrito de Rejensk – e involuntariamente passou pela mente de Sevastiánytch a
doce sensação do próprio mérito. É verdade que, de longe – como que das nuvens
–cintilavam em seus olhos os olhos enervados do governador, o rosto inquiridor
do secretário da câmara criminal; mas ele olhou para as janelas encobertas pela
nevasca; pensou nas trezentas verstas que o separavam de tão horrível visão; para
aumentar o ânimo, bebeu o terceiro quarto do jarro, e seus pensamentos ficaram
muito mais alegres: ele imaginou sua alegre casinha em Rejensk, ganha com seu
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 375

intelecto; os garrafões de licor de fruta na janela, entre dois vasos de balsamina; o


armário de louça e, em meio à louça, no meio, num lugar de honra, o pimenteiro
de cristal com pires de porcelana; lá vem sua Lukéria Petrovna, corpulenta e de
rosto branco; em suas mãos está um redondo e adocicado pão de grãos; uma
bezerra que foi cevada para as festividades natalinas olha para Sevastiánytch;
uma grande chaleira e um samovar saúdam-no e movem-se em sua direção; eis aí
seu cálido leito junto ao forno, e, junto ao leito, um colchão de penas com uma
manta bordada, e, debaixo da manta, um retalho dobrado de chita, e, na chita, um
pano de linho branco, e, no pano de linho, uma carteira de couro, e, na carteira
de couro, umas notas cinzentas; – nesse ponto, a imaginação de Sevastiánytch
transportou-o aos anos de sua juventude, ele se lembrou de sua pobre vidinha
na casa do pai; da frequência com que passava fome graças à avareza da mãe; de
como ele foi enviado ao sacristão para aprender a ler – de coração, ele gargalhou
ao relembrar uma vez em que, junto com seus camaradas, ele invadiu o jardim
de seu professor para pegar maçãs e assustou o sacristão, que o tomou por um
ladrão de verdade; lembrou-se de como foi açoitado por isso e de como, para se
vingar, deu comida gorda para seu professor bem na Sexta-Feira Santa; depois ele
se lembrou: de como ele finalmente deixou para trás todos os seus coetâneos e
chegou ao ponto de ler os Apóstolos na paróquia, começando com o baixo mais
profundo e terminando com a vozinha mais fina, para espanto de toda a cidade; de
como o comissário, percebendo que a criança daria proveito, alistou-o no tribunal
do ziémstvo; de como ele começou a ganhar consciência; contraiu matrimônio com
sua queridíssima Lukéria Petrovna; obteve a patente de registrador de província,3 na
qual se encontra até o presente dia, acumulando bens; seu coração derreteu-se de
comoção, e de alegria ele esvaziou o último quarto da encantadora bebida. Nesse
ponto, veio à mente de Sevastiánytch que ele não era um finório só na repartição,
mas por toda parte: o gosto com que o ouviam quando, no momento mais ani-
mado da festinha, ele começava a contar de Bova Korolévitch,4 das aventuras de
Vanka Kain,5 da viagem do mercador Korobéinikov a Jerusalém6 – era como um
gúsli7 incessante, isso sim! – e Sevastiánytch começou a sonhar: como seria bom
se ele tivesse a força de Bova Korolévitch e pudesse pegar alguém pela mão – e

3 Não havia tal patente na escala do funcionalismo público russo. (N. do T.)
4 Herói de diversas canções populares russas. (N. do T.)
5 Famoso ladrão moscovita do século XVIII, tornou-se personagem recorrente do folclore. (N. do T.)
6 Relato pseudo-histórico do século XVII acerca da viagem que um mercador russo teria feito a Jeru-
salém no século XVI. (N. do T.)
7 Tradicional instrumento russo de cordas, semelhante à harpa. (N. do T.)
376 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

essa mão seria arrancada; pegar alguém pela cabeça – e essa cabeça seria arrancada;
depois teve vontade de ver como era essa tal ilha do Chipre que, como descreve
Korobéinikov, é farta em azeite e sabão grego, onde as pessoas andam de burro
e de camelo, e ele começou a rir dos habitantes de lá, que não tinham pensado
em amarrá-los a um trenó; aí em sua cabeça começaram uns pensamentos: ele
achou que, ou nos livros tinham escrito mentiras, ou no geral os gregos deviam
ser um povo muito estúpido, porque ele mesmo perguntara – a uns gregos que
vieram à feira de Rejensk com sabão e pães de mel e que supostamente deveriam
saber o que se faz na terra deles – por que eles tomaram a cidade de Troia – como
escreve precisamente Korobéinikov – mas cederam Constantinopla aos turcos!
E ele não conseguiu arrancar daquele povo nada que fizesse sentido: os gregos
não conseguiram lhe dizer que Troia era aquela, dizendo que provavelmente essa
cidade tinha sido construída e tomada na ausência deles; enquanto ele se ocupava
com tão importante questão, diante de seus olhos passavam: bandoleiros árabes;
o mar Morto; a procissão do sepultamento do gato;8 as câmaras do Faraó, todas
banhadas a ouro por dentro; o pássaro avestruz, da altura de um homem, com
uma cabeça de pato, com uma pedra no casco…
Suas reflexões foram interrompidas pelas seguintes palavras, que alguém
pronunciou ao seu lado:
– Meu caro Ivan Sevastiánytch! Venho lhe pedir encarecidamente.
Essas palavras lembraram Sevastiánytch de seu papel de funcionário públi-
co, e ele, seguindo seu costume, pôs-se a escrever muito mais depressa, abaixou
a cabeça o máximo que pôde e, sem tirar os olhos do papel, respondeu com voz
arrastada:

– O que deseja?
– Os senhores do tribunal convocaram os proprietários do cadáver reco-
lhido em Morkóvkino.
– Pois si-im.
– Bem, veja o senhor, esse corpo é meu.
– Pois si-im.
– Então o senhor poderia fazer o obséquio de me devolver o corpo o
quanto antes?

8 Referência ao lubok Como os ratos enterraram o gato, uma das mais famosas obras da arte popular russa.
(N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 377

– Pois si-im.
– E o senhor pode contar com minha gratidão…
– Pois si-im. E o que era o falecido, seu servo, por acaso?...
– Não, Ivan Sevastiánytch, que servo. O corpo é meu, é meu próprio
corpo…
– Pois si-im.
– O senhor pode imaginar minha situação sem corpo… faça a fineza, ajude-
-me o mais depressa possível.
– Tudo é possível, meu senhor, mas é um pouquinho difícil resolver esse
caso rapidamente – afinal, isso não é uma panqueca, que dá para enrolar com o
dedo; é necessário coletar informações… Se molhar um pouquinho a mão…
– Mas não duvide disso – só me entregue meu corpo, e eu não pouparei
nem cinquenta rublos…

Ao ouvir essas palavras, Sevastiánytch ergueu a cabeça, mas, sem ver nin-
guém, disse:

– Mas entre aqui, por que ficar no frio?


– Mas eu estou aqui, Ivan Sevastiánytch, estou parado do seu lado.
Sevastiánytch ajeitou a luminária, esfregou os olhos, sem ver nada, balbuciou:
– Arre, vá para o inferno! – Mas eu fiquei cego ou o quê? Não consigo
vê-lo, senhor.
– Não tem nada de mais! Como é que o senhor iria me ver? Eu estou sem
corpo!
– Confesso que não entendo bem a fala do senhor, deixe-me pelo menos
dar uma olhada.
– Pois não, posso me revelar ao senhor por um momento… só que isso é
muito difícil para mim…
E com essas palavras num canto escuro começou a surgir um rosto sem
forma; ora aparecia, ora de novo sumia, como um jovem que vai ao baile pela
primeira vez – ele quer se aproximar das damas e tem medo, coloca o rosto para
fora da multidão e de novo se esconde…
– Perdão, senhor – disse a voz, enquanto isso –, faça o obséquio, perdão,
o senhor não pode imaginar como é difícil mostrar-se sem corpo!... faça o obsé-
quio, entregue-me o corpo o quanto antes – estou dizendo que não vou poupar
os cinquenta rublos.
378 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

– Fico feliz em servi-lo, meu senhor, mas confesso que não entendo bem
a sua fala… o senhor tem um requerimento?...
– Com o seu perdão, que requerimento? Como eu poderia tê-lo escrito sem
corpo? Pois faça o obséquio, o senhor tenha a bondade de fazer.
– É fácil dizer, meu senhor, tenha a bondade de fazer, estou lhe dizendo
que não entendo patavina…
– Pois só escreva, vou ditar para o senhor.
Sevastiánytch puxou uma folha de papel timbrado.
– Faça o obséquio de dizer: o senhor tem pelo menos patente, nome e
patronímico?
– Como não?... Eu me chamo Tsveerlei, John Louis.
– Sua patente, meu senhor?
– Estrangeiro.
E Sevastiánytch escreveu na folha timbrada com letras graúdas:
“Ao tribunal do ziémstvo de Rejensk, da parte do jovem nobre estrangeiro
Saviéli Jáluiev, uma explicação”.
– E depois?
– Faça o favor de só escrever, eu já vou lhe ditar; escreva: possuo…
– Seria um bem imóvel? – perguntou Sevastiánytch.
– Não, senhor: possuo infelizmente um fraco…
– Por bebidas fortes, é isso? Ah, isso não é nada louvável…
– Não, senhor: possuo infelizmente um fraco por sair do meu corpo…
– Mas que diabo! – exclamou Sevastiánytch, jogando a pena. – Mas o senhor
está me ludibriando!
– Eu lhe garanto que estou falando a mais pura verdade, escreva, mas saiba:
cinco rublos para o senhor por um só requerimento, e mais cinquenta quando o
senhor resolver o caso…
E Sevastiánytch novamente tomou a pena.
“Aos 20 de outubro viajava eu de quibitca, por necessidade minha, pela
estrada de Rejensk, na parte da carroça, e como fazia frio na rua, e as vias do
distrito de Rejensk são particularmente ruins…”
– Não, mas quanto a isso o senhor me perdoe – objetou Sevastiánytch –,
não posso escrever isso de jeito nenhum, isso é pessoal, e incluir coisas pessoais
em requerimentos é proibido por decreto…
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 379

– Por mim, pode ser; bom, então simplesmente: na rua estava tão frio,
que eu fiquei com medo de congelar a alma, e no mais me deu tanta vontade de
chegar logo à pousada… que eu não aguentei… e, de acordo com o meu hábito
e costume, saltei para fora do meu corpo…
– Com seu perdão! – exclamou Sevastiánytch.
– Está tudo certo, está tudo certo, continue; o que fazer se eu tenho esse
costume?... pois não há nada de ilegal nisso, há?
– Pois nã-ão – respondeu Sevastiánytch –, e depois?
– Queira escrever: saltei para fora do meu corpo, acomodei-o direitinho na
parte de dentro da quibitca… para que ele não caísse, amarrei suas mãos com as
rédeas e parti para a estação, na esperança de que o próprio cavalo correria para
sua estrebaria conhecida…
– É preciso reconhecer – observou Sevastiánytch – que nesse caso o senhor
agiu de modo bastante imprudente.
– Ao chegar à estação, trepei no forno para aquecer a alma, e quando,
pelos meus cálculos, o cavalo deveria ter voltado à hospedaria… eu saí para
encontrá-lo, e no entanto, ao longo de toda aquela noite, nem o cavalo nem o
corpo retornaram. No outro dia, de manhã, fui depressa ao local em que havia
deixado a quibitca… mas ela também não estava mais lá… suponho que meu
corpo inerte tenha caído da quibitca por causa dos buracos na estrada e tenha
sido recolhido por um comissário que passava, e que o cavalo tenha ido na rabeira
de um comboio… Depois de três semanas de buscas infrutíferas, eu, tomando
agora conhecimento da declaração do tribunal do ziémstvo de Rejensk, por meio
da qual foram conclamados os proprietários de um corpo que havia sido encon-
trado, venho rogar encarecidamente que meu corpo me seja entregue, como seu
proprietário legal… a que adiciono o pedido encarecido ao supracitado tribunal
de que me conceda o beneplácito de ordenar que meu corpo seja previamente
mergulhado em água fria, para que ele se recupere; e se, por conta da queda
ocorrida, houver no reiteradamente referido corpo algum defeito ou se ele tiver
sido danificado em algum local pelo frio, então que seja ordenado ao médico
do distrito que o conserte às minhas custas e que tudo isso seja feito conforme
determinam as leis, a que me subscrevo.
– Bem, queira então assinar – disse Sevastiánytch depois de concluir o papel.
– Assinar! É fácil dizer! Estou lhe dizendo que agora não estou com minhas
mãos aqui comigo – elas ficaram com o corpo; assine o senhor por mim, dada a
ausência de mãos…
380 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

– Não! Perdão – objetou Sevastiánytch –, não tem modelo para isso, e é


proibido aceitar por decreto os requerimentos que são escritos fora do modelo;
se o senhor quiser: por ausência de alfabetização…
– Como o senhor houver por bem! Por mim tanto faz.
E Sevastiánytch assinou: “A essa explicação, por ausência de alfabetização,
a pedido do próprio requerente, o registrador de província Ivan Sevastiánytch,
filho dos Blagosiérdov, colocou sua assinatura de próprio punho”.
– Fico-lhe profundamente agradecido, honorabilíssimo Ivan Sevastiánytch!
Bem, agora cuide o senhor para que esse caso seja resolvido logo; não pode ima-
ginar como é incômodo ficar sem corpo!... e eu agora vou correndo ver minha
esposa, mas tenha certeza de que não vou privá-lo de nada.
– Espere, espere, vossa honra! – exclamou Sevastiánytch. – Há uma con-
tradição no requerimento. Como é que, sem as mãos, o senhor se acomodou ou
acomodou seu corpo na quibitca? Arre, ao diabo com isso, não entendo nada.
Mas não houve resposta. Sevastiánytch leu mais uma vez o requerimento,
começou a pensar nele, pensou, pensou…
Quando ele acordou, a lâmpada de cabeceira estava apagada, e a luz ma-
tinal despontava pela janela coberta com uma bolsa. Com desgosto ele olhou
para o jarro vazio que estava diante dele; esse desgosto arrancou-lhe da cabeça o
acontecimento noturno; ele recolheu seus papéis sem olhar e partiu para o pátio
senhorial, na esperança de tomar uma para rebater a ressaca.
O assessor, depois de tomar uma tacinha de vodca, começou a examinar os
papéis de Sevastiánytch e deu com o requerimento do jovem nobre estrangeiro.
– É, irmão Sevastiánytch – exclamou ele, depois de ler –, ontem antes de
dormir você puxou bem; mas que besteirada escreveu! Ouça isso, Andrei Igná-
tievitch – ele acrescentou, dirigindo-se ao médico do distrito –, veja que tipo de
peticionário o Sevastiánytch nos trouxe. – E ele leu para o médico do distrito o
curioso requerimento, palavra por palavra, quase morrendo de rir.
– Vamos, senhores – disse ele, finalmente –, vamos dissecar esse corpo
falastrão, e se ele não der sinal de vida, aí nós o enterramos por bem ou por mal;
está na hora de ir à cidade.
Essas palavras fizeram Sevastiánytch recordar-se do acontecimento noturno,
e, por mais estranho que aquilo lhe parecesse, ele se lembrou dos cinquenta rublos
prometidos pelo peticionário se ele obtivesse o corpo e, com seriedade, começou a
exigir do assessor e do médico que não dissecassem o corpo, porque isso poderia
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 381

estragá-lo, de tal modo que ele já não prestaria para nada, e que se desse entrada
no requerimento de acordo com o procedimento comum.
É evidente que responderam a essa exigência de Sevastiánytch com o
conselho de que ficasse sóbrio; dissecaram o corpo, não encontraram nada nele
e o enterraram.
Depois desse acontecimento, o requerimento do defunto começou a passar
de mão em mão; por toda parte ele era copiado, complementado, enfeitado, lido,
e por muito tempo as velhinhas de Rejensk se benzeram ao ouvi-lo, horrorizadas.
A lenda não manteve o desfecho desse acontecimento incomum: em um
distrito vizinho, contavam que, no preciso momento em que o médico tocou o
corpo com seu bisturi, o proprietário saltou no corpo, o corpo se levantou, saiu
correndo, e que Sevastiánytch ficou um bom tempo correndo atrás dele pelo
vilarejo, gritando com todas as forças: “Peguem, peguem o falecido!”.
Já num outro distrito, asseguram que, até hoje, todo dia o proprietário vai
até a casa de Sevastiánytch, de manhã e de noite, dizendo: “Meu caro Ivan Sevas-
tiánytch, e o meu corpo? Quando é que o senhor vai me entregar meu corpo?” – e
que Sevastiánytch, sem perder o ânimo, responde: “É que ainda estão recolhendo
as informações”. Nisso já se passaram vinte anos.

Сказка о мёртвом теле, неизвестно кому принадлежащем

Правда, волостной писарь, выходя на четвереньках из шинка, видел, что месяц


ни с сего ни с того танцевал на небе, и уверял с божбою в том всё село; но миряне
качали головами и даже подымали его на смех.

Гоголь, в “Вечерах на хуторе”

По торговым сёлам Реженского уезда было сделано от земского суда


следующее объявление:
“От Реженского земского суда объявляется, что в ведомстве его, на
выгонной земле деревни Морковкиной-Наташиной то ж, 21-го минувшего
ноября найдено неизвестно чьё мёртвое мужеска пола тело, одетое в серый
суконный ветхий шинель; в нитяном кушаке, жилете суконном красного и
отчасти зелёного цвета, в рубашке красной пестрядинной; на голове картуз
из старых пестрядинных тряпиц с кожаным козырьком; от роду покойному
382 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

около 43 лет, росту 2 арш. 10 вершков, волосом светло-рус, лицом бел,


гладколиц, глаза серые, бороду бреет, подбородок с проседью, нос велик и
несколько на сторону, телосложения слабого. По чему сим объявляется: не
окажется ли оному телу бывших родственников или владельца оного тела;
таковые благоволили бы уведомить от себя в село Морковкино-Наташино
тож, где и следствие об оном, неизвестно кому принадлежащем, теле про-
изводится; а если таковых не найдётся, то и о том благоволили б уведомить
в оное же село Морковкино”.
Три недели прошло в ожидании владельцев мёртвого тела; никто не
являлся, и наконец заседатель с уездным лекарем отправились к помещику
села Морковкина в гости; в выморочной избе отвели квартиру приказному
Севастьянычу, также прикомандированному на следствие. В той же избе, в
заклети, находилось мёртвое тело, которое назавтра суд собирался вскрыть
и похоронить обыкновенным порядком. Ласковый помещик, для утешения
Севастьяныча в его уединении, прислал ему с барского двора гуся с подливой
да штоф домашней желудочной настойки.
Уже смерклось. Севастьяныч, как человек аккуратный, вместо того
чтоб, по обыкновению своих собратий, взобраться на полати возле только
что истопленной печи, рассудил за благо заняться приготовлением бумаг
к завтрашнему заседанию, по тому более уважению, что хотя от гуся
осталися одни кости, но только четверть штофа была опорожнена; он
предварительно поправил светильню в железном ночнике, нарочито для
подобных случаев хранимом старостою села Морковкина, – и потом из
кожаного мешка вытащил старую замасленную тетрадку. Севастьяныч не
мог на неё смотреть без умиления: то были выписки из различных указов,
касающихся до земских дел, доставшиеся ему по наследству от батюшки,
блаженной памяти подьячего с приписью, – в городе Реженске за ябеды,
лихоимство и непристойное поведение отставленного от должности, с
таковым, впрочем, пояснением, чтобы его впредь никуда не определять и
просьб от него не принимать, – за что он и пользовался уважением всего
уезда. Севастьяныч невольно вспоминал, что эта тетрадка была единственный
кодекс, которым руководствовался Реженский земский суд в своих действиях;
что один Севастьяныч мог быть истолкователем таинственных символов
этой Сивиллиной книги; что посредством её магической силы он держал в
повиновении и исправника и заседателей и заставлял всех жителей околотка
прибегать к себе за советами и наставлениями; почему он и берёг её как
зеницу ока, никому не показывал и вынимал из-под спуда только в случае
крайней надобности; с усмешкою он останавливался на тех страницах, где
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 383

частию рукою его покойного батюшки и частию его собственною были то


замараны, то вновь написаны разные незначащие частицы, как-то: не, а, и
и проч., и естественным образом Севастьянычу приходило на ум: как глупы
люди и как умны он и его батюшка.
Между тем он опорожнил вторую четверть штофа и принялся за
работу; но пока привычная рука его быстро выгибала крючки на бумаге,
его самолюбие, возбуждённое видом тетрадки, работало: он вспоминал,
сколько раз он перевозил мёртвые тела за границу соседнего уезда и тем
избавлял своего исправника от излишних хлопот: да и вообще: составить ли
определение, справки ли навести, подвести ли законы, войти ли в сношение
с просителями, рапортовать ли начальству о невозможности исполнить
его предписания, – везде и на всё Севастьяныч; с улыбкою вспоминал он
об изобретённом им средстве: всякий повальный обыск обращать в любую
сторону; он вспоминал, как ещё недавно таким невинным способом он
спас одного своего благоприятеля: этот благоприятель сделал какое-то
дельце, за которое мог бы легко совершить некоторое не совсем приятное
путешествие; учинён допрос, наряжён повальный обыск, – но при сём случае
Севастьяныч надоумил спросить прежде всех одного грамотного молодца с
руки его благоприятелю; по словам грамотного молодца написали бумагу,
которую грамотный молодец, перекрестяся, подписал, а сам Севастьяныч
приступил к одному обывателю, к другому, к третьему с вопросом: “И ты
тоже, и ты тоже?” – да так скоро начал перебирать их, что, пока обыватели
ещё чесали за ухом и кланялись, приготовляясь к ответу, – он успел их
переспросить всех до последнего, и грамотный молодец снова, за неумением
грамоты своих товарищей, подписал, перекрестяся, их единогласное
показание. С не меньшим удовольствием вспоминал Севастьяныч, как при
случившемся значительном начёте на исправника он успел вплести в это
дело человек до пятнадцати, начёт разложить на всю братию, а потом всех
и подвести под милостивый манифест. – Словом, Севастьяныч видел, что
во всех знаменитых делах Реженского земского суда он был единственным
виновником, единственным выдумщиком и единственным исполнителем;
что без него бы погиб заседатель, погиб исправник, погиб и уездный судья,
и уездный предводитель; что им одним держится древняя слава Реженского
уезда, – и невольно по душе Севастьяныча пробежало сладкое ощущение
собственного достоинства. Правда, издали – как будто из облаков – мелькали
ему в глаза сердитые глаза губернатора, допрашивающее лицо секретаря
уголовной палаты; но он посмотрел на занесённые метелью окошки;
подумал о трёх стах вёрстах, отделяющих его от сего ужасного призрака; для
384 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

увеличения бодрости выпил третью четверть штофа – и мысли его сделались


гораздо веселее: ему представился его весёлый реженский домик, нажитый
своим умком; бутыли с наливкою на окошке между двумя бальзаминными
горошками; шкап с посудою и между нею в средине на почётном месте
хрустальная на фарфоровом блюдце перешница; вот идёт его полная
белолицая Лукерья Петровна; в руках у ней сдобный крупичатый каравай;
вот тёлка, откормленная к святкам, смотрит на Севастьяныча; большой
чайник с самоваром ему кланяется и подвигается к нему; вот тёплая лежанка,
а возле лежанки перина с камчатным одеялом, а под периною свёрнутый
лоскут пестрядки, а в пестрядке белая холстинка, а в холстинке кожаный
книжник, а в книжнике серенькие бумажки; – тут воображение перенесло
Севастьяныча в лета его юности, ему представилось его бедное житьё-бытьё
в батюшкином доме; как часто он голодал от матушкиной скупости; как
его отдали к дьячку учиться грамоте, – он от души хохотал, вспоминая,
как однажды с товарищами забрался к своему учителю в сад за яблоками
и напугал дьячка, который принял его за настоящего вора; как за то был
высечен и в отмщение оскоромил своего учителя в самую страстную пятницу;
потом представлялось ему: как наконец он обогнал всех своих сверстников
и достиг до того, что читал апостол в приходской церкви, начиная самым
густым басом и кончая самым тоненьким голоском, на удивление всему
городу; как исправник, заметив, что в ребёнке будет прок, приписал его к
земскому суду; как он начал входить в ум; оженился с своею дражайшею
Лукерьей Петровной; получил чин губернского регистратора, в коем и
доднесь пребывает да добра наживает; сердце его растаяло от умиления, и он
на радости опорожнил и последнюю четверть обворожительного напитка.
Тут пришло Севастьянычу в голову, что он не только что в приказе, но хват
на все руки: как заслушиваются его, когда он под вечерок в веселый час
примется рассказывать о Бове Королевиче, о похождениях Ваньки Каина,
о путешествии купца Коробейникова в Иерусалим, – неумолкаемые гусли,
да и только! – и Севастьяныч начал мечтать: куда бы хорошо было, если бы
у него была сила Бовы Королевича и он бы смог кого за руку – у того рука
прочь, кого за голову – у того голова прочь; потом захотелось ему посмотреть,
что за Кипрский таков остров есть, который, как описывает Коробейников,
изобилен деревянным маслом и греческим мылом, где люди ездят на ослах и
на верблюдах, и он стал смеяться над тамошними обывателями, которые не
могут догадаться запрячь их в сани; тут начались в голове его рассуждения:
он нашёл, что или в книгах неправду пишут, или вообще греки должны быть
народ очень глупый, потому что он сам расспрашивал у греков, приезжавших
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 385

на реженскую ярмарку с мылом и пряниками и которым, кажется, должно


было знать, что в их земле делается, – зачем они взяли город Трою, – как
именно пишет Коробейников, – а Царьград уступили туркам! и никакого
толка от этого народа не мог добиться: что за Троя такая, греки не могли
ему рассказать, говоря, что, вероятно, выстроили и взяли этот город в их
отсутствие; – пока он занимался этим важным вопросом, пред глазами
его проходили: и арабские разбойники; и Гнилое море; и процессия
погребения кота; и палаты царя Фараона, внутри все вызолоченные; и
птица Строфокамил, вышиною с человека, с утиною головою, с камнем
в копыте…
Его размышления были прерваны следующими словами, которые
кто-то проговорил подле него:

– Батюшка, Иван Севастьяныч! я к вам с покорнейшею просьбою.


Эти слова напомнили Севастьянычу его ролю приказного, и он, по
обыкновению, принялся писать гораздо скорее, наклонил голову как можно
ниже и, не сворачивая глаз с бумаги, отвечал протяжным голосом:
– Что вам угодно?
– Вы от суда вызываете владельцев поднятого в Морковкине мёртвого
тела.
– Та-ак-с.
– Так изволите видеть – это тело моё.
– Та-ак-с.
– Так нельзя ли мне сделать милость, поскорее его выдать?
– Та-ак-с.
– А уж на благодарность мою надейтесь…
– Та-ак-с. – Что же покойник-та, крепостной, что ли, ваш был?..
– Нет, Иван Севастьяныч, какой крепостной, это тело моё, собствен-
ное моё…
– Та-ак-с.
– Вы можете себе вообразить, каково мне без тела… сделайте одол-
жение, помогите поскорее.
– Всё можно-с, да трудновато немного скоро-то это дело сделать, –
ведь оно не блин, кругом пальца не обвернёшь; справки надобно навести…
Кабы подмазать немного…
386 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

– Да уж в этом не сомневайтесь, – выдайте лишь только моё тело, так


я и пятидесяти рублей не пожалею…

При сих словах Севастьяныч поднял голову, но, не видя никого, сказал:

– Да войдите сюда, что на морозе стоять.


– Да я здесь, Иван Севастьяныч, возле вас стою.
Севастьяныч поправил лампадку, протёр глаза, но, не видя ничего,
пробормотал:
– Тьфу, к чёрту! – да что я, ослеп, что ли? – я вас не вижу, сударь.
– Ничего нет мудрёного! как же вам меня видеть? я – без тела!
– Я, право, в толк не возьму вашей речи, дайте хоть взглянуть на себя.
– Извольте, я могу вам показаться на минуту… только мне это очень
трудно…
И при этих словах в тёмном углу стало показываться какое-то лицо
без образа; то явится, то опять пропадёт, словно молодой человек, в первый
раз приехавший на бал, – хочется ему подойти к дамам и боится, выставит
лицо из толпы и опять спрячется…
– Извините-с, – между тем говорил голос, – сделайте милость, из-
вините, вы не можете себе вообразить, как трудно без тела показываться!..
сделайте милость, отдайте мне его поскорее, – говорят вам, что пятидесяти
рублей не пожалею.
– Рад вам служить, сударь, но, право, в толк не возьму вашей речи…
есть у вас просьба?..
– Помилуйте, какая просьба? как мне было без тела её написать? уж
сделайте милость, вы сами потрудитесь.
– Легко сказать, сударь, потрудиться, говорят вам, что я тут ни черта
не понимаю…
– Уж пишите только, – я вам буду сказывать.
Севастьяныч вынул лист гербовой бумаги.
– Скажите, сделайте милость: есть ли у вас по крайней мере чин, имя
и отчество?
– Как же?.. Меня зовут Цвеерлей-Джон-Луи.
– Чин ваш, сударь?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 387

– Иностранец.
И Севастьяныч написал на гербовом листе крупными словами:
“В Реженский земский суд от иностранного недоросля из дворян
Савелия Жалуева, объяснение”.
– Что ж далее?
– Извольте только написать, я уж вам буду сказывать; пишите: имею я…
– Недвижимое имение, что ли? – спросил Севастьяныч.
– Нет-с: имею я несчастную слабость…
– К крепким напиткам, что ли? о, это весьма непохвально…
– Нет-с: имею я несчастную слабость выходить из моего тела…
– Кой чёрт! – вскричал Севастьяныч, кинув перо, – да вы меня моро-
чите, сударь!
– Уверяю вас, что говорю сущую правду, пишите, только знайте: пять-
десят рублей вам за одну просьбу да пятьдесят ещё, когда выхлопочете дело…
И Севастьяныч снова принялся за перо.
“Сего 20 октября ехал я в кибитке, по своей надобности, по реженскому
тракту, на одной подводе, и как на дворе было холодно, и дороги Реженского
уезда особенно дурны…”
– Нет, уж на этом извините, – возразил Севастьяныч, – этого написать
никак нельзя, это личности, а личности в просьбах помещать указами
запрещено…
– По мне, пожалуй; ну, так просто: на дворе было так холодно, что
я боялся заморозить свою душу, да и вообще мне так захотелось скорее
приехать на ночлег… что я не утерпел… и, по своей обыкновенной
привычке, выскочил из моего тела…
– Помилуйте! – вскричал Севастьяныч.
– Ничего, ничего, продолжайте; что ж делать, если такая у меня
привычка… ведь в ней ничего нет противозаконного, не правда ли?
– Та-ак-с, – отвечал Севастьяныч, – что ж далее?
– Извольте писать: выскочил из моего тела, уклал его хорошенько во
внутренности кибитки… чтобы оно не выпало, связал у него руки вожжами
и отправился на станцию в той надежде, что лошадь сама прибежит на
знакомый двор…
– Должно признаться, – заметил Севастьяныч, – что вы в сём случае
поступили очень неосмотрительно.
388 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

– Приехавши на станцию, я взлез на печку отогреть душу, и когда, по


расчислению моему, лошадь должна была возвратиться на постоялый двор…
я вышел её проведать, но однако же, во всю ту ночь ни лошадь, ни тело не
возвращались. На другой день утром я поспешил на то место, где оставил
кибитку… но уже и там её не было… полагаю, что бездыханное моё тело от
ухабов выпало из кибитки и было поднято проезжим исправником, а лошадь
уплелась за обозами… После трёхнедельного тщетного искания я, уведо-
мившись ныне о объявлении Реженского земского суда, коим вызываются
владельцы найденного тела, покорнейше прошу оное моё тело мне выдать,
яко законному своему владельцу… к чему присовокупляю покорнейшую
просьбу, дабы благоволил вышеписанный суд сделать распоряжение, оное
тело моё предварительно опустить в холодную воду, чтобы оно отошло; если
же от случившегося падения есть в том часто упоминаемом теле какой-либо
изъян или оное от мороза где-либо попортилось, то оное чрез уездного
лекаря приказать поправить на мой кошт и о всём том учинить как законы
повелевают, в чём и подписуюсь.
– Ну, извольте же подписывать, – сказал Севастьяныч, окончив бумагу.
– Подписывать! легко сказать! говорят вам, что у меня теперь со мною
рук нету – они остались при теле; подпишите вы за меня, что за неимением
рук…
– Нет! извините, – возразил Севастьяныч, – этакой и формы нет, а
просьб, писанных не по форме, указами принимать запрещено; если вам
угодно: за неумением грамоты…
– Как заблагорассудите! по мне всё равно.
И Севастьяныч подписал: “К сему объяснению за неумением
грамоты, по собственной просьбе просителя, губернский регистратор Иван
Севастьянов сын Благосердов руку приложил”.
– Чувствительнейше вам обязан, почтеннейший Иван Севастьянович!
Ну, теперь вы похлопочите, чтоб это дело поскорее решили; не можете
себе вообразить, как неловко быть без тела!.. а я сбегаю покуда повидаться
с женою, будьте уверены, что я уже вас не обижу.
– Постойте, постойте, ваше благородие! – вскричал Севастьяныч, – в
просьбе противоречие. Как же вы без рук уклались или уклали в кибитке
своё тело? Тьфу к чёрту, ничего не понимаю.
Но ответа не было. Севастьяныч прочёл ещё раз просьбу, начал над
нею думать, думал, думал…
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 371-390 389

Когда он проснулся, ночник погас и утренний свет пробился сквозь


обтянутое пузырём окошко. С досадою он взглянул на пустой штоф, пред
ним стоявший; эта досада выбила у него из головы ночное происшествие;
он забрал свои бумаги не посмотря и отправился на барский двор в надежде
там опохмелиться.
Заседатель, выпив рюмку водки, принялся разбирать Севастьянычевы
бумаги и напал на просьбу иностранного недоросля из дворян.
– Ну, брат Севастьяныч, – вскричал он, прочитав её, – ты вчера на сон
грядущий порядком подтянул; экую околёсину нагородил! Послушайте-ка,
Андрей Игнатьевич, – прибавил он, обращаясь к уездному лекарю, – вот
нам какого просителя Севастьяныч предоставил. – И он прочёл уездному
лекарю курьёзную просьбу от слова до слова, помирая со смеху.
– Пойдёмте-ка, господа, – сказал он наконец, – вскроемте это болтли-
вое тело, да если оно не отзовётся, так и похороним его подобру-поздорову,
в город пора.
Эти слова напомнили Севастьянычу ночное происшествие, и как оно
ни странно ему казалось, но он вспомнил о пятидесяти рублях, обещанных
ему просителем, если он выхлопочет ему тело, и серьёзно стал требовать
от заседателя и лекаря, чтоб тело не вскрывать, потому что этим можно его
перепортить, так что оно уже никуда не будет годиться, а просьбу записать
во входящий обыкновенным порядком.
Само собою разумеется, что на это требование Севастьянычу отвечали
советами протрезвиться, тело вскрыли, ничего в нём не нашли и похоронили.
После сего происшествия мертвецова просьба стала ходить по рукам;
везде её списывали, дополняли, украшали, читали, и долго реженские
старушки крестились от ужаса, её слушая.
Предание не сохранило окончания сего необыкновенного
происшествия: в одном соседнем уезде рассказывали, что в то самое время,
когда лекарь дотронулся до тела своим бистурием, владелец вскочил в тело,
тело поднялось, побежало и что за ним Севастьяныч долго гнался по деревне,
крича изо всех сил: “Лови, лови покойника!”
В другом же уезде утверждают, что владелец и до сих пор каждое утро
и вечер приходит к Севастьянычу, говоря: “Батюшка Иван Севастьяныч,
что ж моё тело? когда вы мне его выдадите?” – и что Севастьяныч, не теряя
бодрости, отвечает: “А вот собираются справки”. Тому прошло уже лет
двадцать.
390 Lucas Simone. O conto do cadáver que pertencia não se sabe a quem, de Vladímir Odóievski

Referências
GOMIDE, Bruno Barretto (org.). Nova antologia do conto russo (1792-1998). São Paulo:
Editora 34, 2011.
ODOEVSKII, V. F. The Salamander and Other Gothic Tales. Evanston: Northwestern Uni-
versity Press, 1992. Tradução e introdução de Neil Cornwell.
ODÓIEVSKI, V. F. Pióstrye skázki. Skázki diéduchki Iriniéia. Moscou: Khudójestvennaia
Literatura, 1993. Disponível no site az.lib.ru (consultado em 1º de setembro de 2017).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 391

“Sobre o rumo da literatura de revista nos anos


de 1834 e 1835”: tradução do polêmico artigo de
N. V. Gógol na revista “O Contemporâneo”,
de A. S. Púchkin

Fabrício Yuri de S. Vitorino*

Resumo: Em 1836, a revista “O Contemporâneo”, de A. S. Púchkin, publica um ácido e extremamente crítico


artigo apócrifo. Creditado tardiamente a Nikolai Vassílievitch Gógol, “Sobre o rumo da literatura de revista nos
anos de 1834 e 1835” apresenta o cenário da crítica literária da época. Neste artigo, a primeira parte do longo texto
é apresentada em tradução direta do original, em russo.
Palavras-chave: Gógol, Púchkin, O Contemporâneo, literatura russa, crítica literária

Introdução

Em 1836, em plena alvorada do cenário das revistas literárias na Rússia,


Nikolai Vassílievitch Gógol é convidado por Aleksandr Serguéievitch Púchkin a
participar do elenco de escritores e intelectuais de sua aguardada publicação – “O
Contemporâneo”1. O almanaque, que levava o nome do principal poeta e escritor
russo na capa, fora pensado para figurar como contraposto ao principal veículo da

* E-mail: [email protected]
1 Современник (Sovriemennik), revista russa publicada trimestralmente durante 1836-1846, em São
Petersburgo, onde foi publicada boa parte da produção do poeta, como “Cavaleiro de Bronze” e “A Filha
do Capitão”. Participaram do Современник inúmeros grandes nomes da literatura russa do século XIX,
como N. V. Gogol e A. I. Turguêniev.
392 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

época, a “Biblioteca para leitura”, editado por Ósip-Iulián Ivanovich Senkóvski2


e que almejava um grande público.
Mas, ao contrário do que era relativamente comum nas revistas literárias da
época, “O Contemporâneo” de Púchkin não trouxe, evidente, em seu primeiro nú-
mero um programa que fosse nortear sua linha editorial. Não se sabia se a publicação
abordaria análises históricas, factuais, se ficaria restrita à crítica literária ou mesmo
se traria ensaios, poesias, contos ou prosa de novos ou já consagrados autores. E
isto figurou como uma das grandes questões acerca de “O Contemporâneo”.
No volume de estreia, o autor de “Eugene Onegin” dispõe os textos de
modo a dar certa evidência à crítica-programática “Sobre os rumos da literatura
de revista nos anos de 1834 e 1835”. Era o primeiro texto em forma de prosa,
após duas poesias e uma peça. Um texto extremamente oral, veloz, eloquente, que
sobrevoava todo o cenário editorial do início do século 19 na Rússia, associando
nomes, publicações, estratégias mercadológicas e análise de público-alvo. Com
críticas mordazes e extremamente bem postadas, “Sobre os rumos...” estava ex-
posto, ainda que subliminarmente, para ser entendido como o programa da revista
literária de Púchkin. O texto foi impresso sem a assinatura de N. V. Gógol (ainda
que, nos primeiros números de “O Contemporâneo”, seu nome conste como
responsável pelo texto). O cenário estava montado e, ainda que sutilmente, era
inequívoca a disposição de Púchkin de exibir os talentos de seu mais novo amigo.
No entanto, diferentemente de seus contemporâneos (russos ou estran-
geiros) na crítica literária, Gógol transita com absoluta fluidez entre disciplinas
como a história e a filosofia, sempre pontuadas por muita ironia, e carregadas por
aspectos pedagógicos e científicos incomuns aos demais críticos. No artigo “Sobre
os rumos...”, conforme apontou Ivan Panáev, Gógol “provocou um grande baru-
lho na literatura, e causou uma significativa boa impressão no público”3. Já para
Vissarion Belínski, o artigo de Gógol é “um dos mais interessantes do programa
e reflete a alma e o direcionamento da nova revista”4.
Para Púchkin, a publicação do artigo de Gógol teve, sem dúvida, um aspecto
tático: apócrifo, o texto foi entendido facilmente como programa e linha editorial.
Dois números depois, “O Contemporâneo” publica uma “Carta ao editor”, de um
suposto leitor da cidade de Tveri, que fazia contestações ao artigo de Nikolai Vas-

2 Senkóvski (1800-1858) - Russo-polonês, também conhecido como ‘“Barão de Brambeus”. Orientalista,


tradutor, ensaísta e fundador da primeira publicação de massa da Rússia, a “Biblioteca para leitura”.
3 Panáev, I. I. Literaturnye vospominania (memórias literárias). Goslitzdat, 1960.
4 Belinski, V. G. Neskolko slov o sovriemenike (algumas palavras sobre “O Contemporâneo”).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 393

silievitch. Escrito em fantasia pelo próprio Púchkin, o texto fora respondido pelo
próprio poeta – desta vez assinado – e trazia a posição final do editor: “Sobre os
rumos da literatura de revista não é e nem poderia ser a linha editorial da revista”.
“Sobre os Rumos da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835” é, pro-
vavelmente, um dos últimos trabalhos de Gógol na Rússia antes de partir para
uma vida de dez anos no exterior. Sua jornada começa em 1830, quando começa
a colaborar regularmente com o periódico “Notas da pátria”, onde publicou sua
primeira prosa, “A Noite de São João”. A partir daí, conheceu grandes nomes da
intelectualidade russa, como V. A. Júkov e P. A. Pletniev, além do próprio Púchkin.
Publica em 1831-32 “Noites na Granja ao Pé de Dikanka” e, em 1835, “Mirgorod”,
“Arabescos”, “Avenida Niévski”, “Taras Bulba” e “Diário de um louco”.
O presente artigo traz a tradução para o português da primeira metade de
“Sobre os rumos da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”, diretamente do
russo. O texto de Gógol é dividido em duas partes – na primeira delas, o autor de
“O Capote” faz uma análise das revistas literárias da época, de seus fundadores,
editores e corpo editorial. Na segunda, o autor se aprofunda nas críticas.

Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1834


(Nikolai Gógol)

Literatura de revista é a literatura viva, fresca, loquaz, delicada, de modo


que indispensável às esferas das ciências e artes, como meio de comunicação para
os estados, como feiras e bolsas para compradores e negociadores. Ela determina
os gostos da massa, direciona e põe em marcha todas as publicações viabilizadas
pelo mundo dos livros, que, sem essa literatura de revista, seria um “capital morto”
em todos os sentidos. Ela é rápida, uma caprichosa troca de múltiplas opiniões,
uma conversa viva entre todas as máquinas tipográficas, sua voz é a verdadeira
representante da opinião de toda uma época e século. Essa opinião, aliás, desa-
pareceria silenciosamente sem a literatura de revista. Ela, por bem ou por mal,
domina e arrasta para sua área de influência 90% de tudo o que é feito nas áreas
da literatura. Tantas são as pessoas que julgam, falam e opinam graças ao fato de
que todas essas avaliações lhes chegam praticamente prontas. Essas pessoas não
opinariam, falariam ou julgariam se dependessem de si próprias. Desta forma, a
literatura de revista, em qualquer circunstância, tem o direito de demandar a mais
perscrutadora atenção.
Pode ser que há muito em nosso país não se tenha percebido tão fortemente
a ausência de produções literárias em revistas, bem como de um movimento vivaz
394 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

contemporâneo, como nos últimos dois anos. A falta de originalidade tem sido
a principal característica de grande parte das edições periódicas. Muitas revistas
antigas foram encerradas, outras se arrastam vagarosamente; das novas, além da
“Biblioteca para leitura”5 e o recente “Observador moscovita”6, nada foi mostrado,
exatamente assim como nada em nenhum lugar deste nosso tempo, de qualquer
atividade que requeira alguma atividade intelectual. Ainda assim aumentou em
muito sua quantidade de leitores. Mesmo que esta época seja tão pobre, ainda assim
ela também tem direito à nossa atenção, assim como qualquer outra que estivesse a
colocar em ebulição algum movimento, porquanto também pertencente à história
das nossas letras. Os leitores, assim, têm todo o direito de reclamar da pobreza
e do jejum de visões de nossas revistas: o “Telégrafo”7 há muito perdeu seu tom
incisivo, o qual lhe conferia um caráter belicoso em relação a outras publicações
de São Petersburgo. O “Telescópio”8 encheu-se de matérias nas quais nada há de
fresco, palpitante ou atual. Neste meio tempo, o vendedor de livros Smirdin9, há
muito conhecido por sua atividade е honestidade, embora sozinho, para a vergonha
de outros de seus camaradas míopes, demonstrou empreendedorismo e com suas
iniciativas colocou em movimento o mercado livresco. O vendedor de livros tomou
a decisão de editar revistas mais vastas, amplas, enciclopédicas, conquistar todos
os literatos quantos houver na Rússia, e de obrigá-los a participar de iniciativa. No
programa estavam exibidos nomes de praticamente todos os nossos escritores. O
professor de literaturas árabes, senhor Senkóvski, foi chamado a ser o responsá-
vel pela revista. A ele se juntou o editor, senhor Gretch10, muito conhecido pela
edição constante de duas revistas: “A abelha do norte”11 e “O filho da pátria”12.

5 Revista literária mensal editada em São Petersburgo, entre 1834 e 1865. (N. do T.)
6 Revista histórico-literária bimestral editada em Moscou, entre 1835 e 1839. (N. do T.)
7 Tida como a primeira revista literária, de formato “enciclopédico”, da Rússia. Editada entre 1825 e
1834 por Nikolai Polevói, era publicada a cada duas semanas. (N. do T.)
8 Revista literária quinzenal, editada em Moscou entre os anos de 1831 e 1836. Nela, publicaram textos
A. S. Púchkin, F. I. Tiútchev, V. G. Belínski e P. Ia. Tchaadáev. (N. do T.)
9 Aleksandr Filipovitch Smirdín (1795-1857), editor e negociador do ramo de livros, uma das mais
importantes figuras no desenvolvimento da literatura impressa da Rússia. (N. do T.)
10 Nikolai Ivánovitch Gretch (1787-1867), escritor, editor, tradutor, jornalista, tradutor e filólogo russo.
(N. do T.)
11 Revista político-literária editada em São Petersburgo entre 1825 e 1864, fundada por Faddei Bulgárin.
Um dos veículos mais importantes da história literária da Rússia. (N. do T.)
12 Revista político-literária, editada em São Petersburgo entre 1812 e 1852. Junto com a “Abelha do
norte”, teve um papel fundamental na fundação e desenvolvimento da literatura e do pensamento político
na Rússia. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 395

Não sabemos, porém, se eles mesmos se ofereceram para as posições ou se foram


convocados pelo senhor Smirdin, mas por qualquer que tenha sido a circunstância,
o vendedor de livros, por opinião geral, agiu deveras imprudentemente. Tendo tido
sucesso em arregimentar para sua edição tal quantidade de literatos, ele deveria
tê-los submetido ao crivo de escolha do editor.
Então, ninguém aparenta ter se ocupado da importante questão: deve a
revista ter apenas um tom, um posicionamento pré-definido, uma opinião re-
presentativa, ou ser o local de depósito de todas as correntes е orientações. Uma
revista desta natureza apresenta-se de forma surda, com declarações prosaicas, de
que a crítica será sempre leal, segura, imparcial, alheia a quaisquer personalidades
e impessoalidades – juramento, aliás, que presta qualquer jornalista. Com a publi-
cação do primeiro livro, o público claramente percebe que na revista predomina
um tom: as opiniões e pensamentos são um só, e que os nomes dos escritores,
cuja brilhante enumeração preencheu meia página da folha de rosto, foi tomada
apenas de aluguel, para entretenimento e gozo da maior parte dos assinantes.
De sua parte, o vendedor de livros Smirdin cumpriu tudo que o público
tinha o direito de exigir. Aquela mesma honestidade, que sempre o diferenciara,
fora mostrada por ele na edição da revista. O periódico era publicado com uma
regularidade incomum: os assinantes recebiam, a cada primeiro dia útil de mês, um
grosso livro - tamanho que, até pouco tempo atrás, não poderia ter sido impresso
por nenhuma gráfica de nosso país no período de dois meses. Em vez da prometida
quantidade de 18 páginas por mês, eram publicadas, por vezes, duas vezes mais.
Mas agora analisemos se era entregue tudo o que fora prometido pelo editor na
disposição da revista. O principal responsável e mola que impulsionava toda a
revista era o senhor Senkóvski. O nome do senhor Gretch foi utilizado apenas
proforma, de modo que nenhuma ação foi notada de sua parte. O senhor Gretch
já se tornou, há muito, editor honorário e indispensável de qualquer publicação
periódica tal como um honroso senhor de idade é convidado para padrinho de
casamento em qualquer cerimônia. Mas qual é o objetivo da redação desta revista,
qual problemática ela se propunha a resolver? Aqui, a contragosto, nós refletimos
muito sobre isso e, sem dúvida, também o fez o leitor. No programa, o senhor
Senkóvski nada diz sobre qual foi o caminho escolhido, qual foi a meta traçada.
Todos viram apenas como ele germinou imperceptivelmente o primeiro número
e como, ao seu final, ele mostrou-se como seu verdadeiro condutor.
Por outro lado, não é possível reclamar disto: e sabe-se que, para o jornalis-
ta, é imperativo possuir um tom afiado e, por vezes, até petulante (o que nós, no
entanto, não aprovamos, muito embora a nós seja sabido que, com tal qualidade,
os jornalistas sempre conseguem conquistar a opinião da massa), mas baseado em
396 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

qual preferência as atenções se voltaram para seu fundador, qual opinião dele se
sobrepôs a todo o resto, a que são direcionadas suas preferências, foram ou não
percebidos seu códex, de quais pessoas é preciso tirar as características para que
se destaque nele a originalidade e seja possível definir sua fisiognomia13?
Tendo lido tudo o que foi disponibilizado nesta revista, seguido por todas as
palavras ditas por eles, é involuntário ficar surpreso: o que é isso? O que motivou
essa pessoa a escrever? Nós vemos alguém que se apropria de dinheiro que não
lhe é dado gratuitamente, que trabalha incansavelmente com o suor no rosto, que
tem extremo cuidado com suas matérias, e que eventualmente corrige textos de
outros, que pode ser descrita em uma palavra: incansável. Para que afinal toda
essa atividade? Vamos analisar o editor em todos os gêneros de sua obra e iremos
dizer algumas palavras sobre as principais qualidades de suas matérias. Isso é, de
todas as maneiras, necessário.
O senhor Senkóvski atua em seu jornal como crítico, narrador, erudito,
satírico, arauto das notícias e mais e mais. Apresenta-se na forma de Brambeus14,
Morozov, Tiutiundja Olga, A. Belkin, e, por fim, como si próprio. Como erudito,
o senhor Senkóvski viabilizou uma enorme matéria sobre as sagas, matéria essa
baseada em hipóteses, não próprias, mas sequestradas exitosamente de diferentes
e mediocremente lidos livros, hipóteses absolutamente pertinentes à história da
Rússia. Tais sagas o perspicaz Shletser15, que até hoje não possui equivalentes em
força e profundidade de ponto de vista crítico, considerou como fábulas, indignas
de qualquer atenção maior; tais sagas ele coloca como pedra fundamental da história
russa sem prover qualquer evidência, sob o ponto de vista da crítica confiável: ele de
nenhuma forma atribuiu a elas uma real e contundente evidência ou sequer mérito.
As sagas são a essência da forma poética popular, com um enorme papel na histó-
ria. Esta matéria, recheada de figuras retóricas, agradou a bons, porém limitados,
leitores, e o senhor Bulgárin até mesmo escreveu uma crítica, na qual colocava o
senhor Senkóvski num patamar mais alto que Shletser, Humboldt e quaisquer ou-
tros eruditos que tenham existido. Outra evidência da extrema pretensão do senhor
Senkóvski e de sua verdadeira intenção é o Oriente. Aqui ele sempre eleva o tom
de voz, e sempre que é publicado algo sobre o Oriente, ou algo sobre o Oriente

13 Ciência que permite, através dos traços físicos da pessoa, prever o seu carácter psicológico. (N.
do T.)
14 Barão de Brambeus, um dos pseudônimos de O. I. Senkóvski. (N. do T.)
15 August Ludwig von Schlözer (1735-1809), historiador alemão que lançou as bases para a historiografia
da Rússia. E entrou em conflito com M. V. Lomonosov acerca do tema. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 397

é lembrado, ainda que seja em verso, ele encoleriza-se e sustenta que o autor não
deve julgar o Oriente, que o autor não conhece o Oriente. A palavra dita com o
coração é perdoável no homem que é apaixonado pelo seu tema e que, além de
tudo, vê o quão pouco sobre o assunto sabem os outros. Esse homem deve, afinal,
consolidar-se como autoridade no tema. O senhor Senkóvski certamente teria de
publicar algo sobre o Oriente. É difícil levar a sério a palavra de um homem que
nada fez, ainda mais quando sua argumentação é frágil e tem a alma impregnada de
impaciência; assim como em alguns de seus textos sobre o Oriente são percebidos
os mesmos defeitos que ele incansavelmente aponta nos outros. Nada de novo foi
dito nesses trechos sobre o Oriente, sequer um claro aspecto, um raciocínio em-
basado, uma formulação genial! Não se deve negar que o senhor Senkóvski tenha
evidências; pelo contrário, percebe-se que ele leu muito, mas em nenhum lugar é
percebida essa motivação, essa força cavalheiresca que o direcionaria a qualquer
que fosse o objetivo. Todas essas percepções são encontradas nele em alguma
forma efervescente, contradizendo-se umas às outras, e não sobrevivem entre si.
Analisamos suas opiniões, sobretudo aquelas que se relacionam com as correntes
atuais da literatura de belas letras. Na crítica, o senhor Senkóvski mostra ausência
de qualquer opinião, de forma que nenhum dos leitores pode dizer, provavelmente,
que a crítica lhe agradou e preencheu sua alma, que lhe atingiu os sentimentos:
nas suas resenhas não há argumentação positiva ou negativa, não há nada. Aquilo
que hoje lhe apetece amanhã lhe servirá como objeto de zombaria. Ele, de início,
colocou o senhor Kukolnik16 nas mesmas fileiras de Goethe, e ele mesmo declarou,
que o fizera isso apenas por ter chegado sozinho a tal conclusão. Deste modo, suas
resenhas não têm por objetivo convencer ou emocionar, mas simplesmente ser
uma consequência de seu estado de espírito. Walter Scott, este grande gênio, cuja
obra imortal aquece a vida com enorme amplitude, bom, Walter Scott é chamado
de charlatão. E isso foi lido pela Rússia, sobre isso falaram pessoas letradas, que já
haviam lido Walter Scott. Pode-se acreditar que o senhor Senkóvski disse isso sem
quaisquer segundas intenções, apenas por amargura, uma vez que ele nunca reflete
sobre o que fala, e, na próxima matéria, já não lembra o que fora escrito na anterior.
Em suas análises e críticas, o senhor Senkóvski também nunca comentou
sobre o caráter interno das composições escolhidas, não definiu factíveis e acurados
traços de seus méritos. Sua crítica era composta ora de elogios incondicionais, nas
quais o resenhista com toda sua alma deleitava-se com as próprias frases, infâmias
que eram proferidas com uma estranha obstinação. É composta de migalhas,

16 Nestor Vasílievitch Kúkolnik (1809-1868), escritor, poeta, dramaturgo. (N. do T.)


398 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

definida por três ou quatro sentenças e zombarias. Nada era dito sobre qual seria
o real objetivo do autor com a composição escolhida, como isso seria atingido e,
caso não conseguisse fazê-lo, como poderia. Acima de tudo o senhor Senkóvski
ocupava-se da análise de diferentes brigas literárias, variações de todo tipo de lite-
ratura vazia. Sobre elas, debochava, zombava e demonstrava aquela originalidade
que tanto agrada a alguns leitores. Por fim, emendou um caso inteiro sobre dois
pronomes: сейи оный17, que tanto lhe pareciam, sabe-se lá o motivo, despropo-
sitados na língua russa. Sobre essas preposições foram escritos por ele tratados
inteiros, bem como matérias, que discorriam sobre qualquer motivo indefinido,
sempre encerrando com o argumento de que essas preposições são completamente
grosseiras. Isso nos faz lembrar um velho processo de Tredyakov sobre a letra
“ijitsa”18 e das dezenas de variações do “i”, que por fim veio ganhar o apoio de
um professor. O livro, no qual o senhor Senkóvski tomou conhecimento destes
dois excertos, foi especialmente declarado como escrito com um estilo estúpido.
Suas composições próprias, contos e coisas afins, foram apresentadas sob a
assinatura de Brambeus. Tais narrativas e matérias similares a contos, a seus próxi-
mos, imitadores involuntários de quaisquer escritores franceses contemporâneos,
causaram espanto geral, graças ao fato de que o senhor Senkóvski menosprezou
toda a literatura francesa contemporânea. É inconcebível como, desta forma, ele
pode demonstrar tão pouca sagacidade e ao fazê-lo, menosprezar e tratar como
ingênuos todos os seus leitores. Também é incompreensível o motivo que o le-
vou a considerar alguns de seus textos como fantásticos. A ausência de qualquer
veracidade, verossimilhança ou caráter crível não são suficientes para caracterizar
algo como literatura fantástica. Os textos fantásticos do Barão de Brambeus nos
remetem a livros, que não nos fariam perder muito tempo lendo: “Не любо - не
слушай, а лгать не мешай”19, е outros do tipo. Tal irresponsabilidade demonstra
ainda menos compromisso com a argumentação de qualquer outro raciocínio. Os
leitores mais experientes perceberam isso como um extraordinário conjunto de
plágios, feitos às pressas, a toda velocidade: o autor mal se preocupou em conca-
tenar ideias. Tudo o que fazia sentido nos originais, nas cópias foi mostrado sem
qualquer lógica aparente.
Tais foram os trabalhos e atos do chefe da “Biblioteca para a leitura”. Nós
honrosamente precisamos mencionar sobre eles alguns aspectos, uma vez que ele

17 Forma arcaica do pronome russo “tal”, “ este”. (N. do T.)


18 Letra do alfabeto do eslavo antigo (Ѵ). (N. do T.)
19 “As aventuras do Barão Munchausen”, de Rudolf Erich Raspe. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 399

é o único regulador na “Biblioteca para leituras” e suas opiniões foram espalhadas


incrivelmente rápido, junto com quatro mil exemplares da revista, por todas as
casas da Rússia.
É inconcebível para uma revista, editada e publicada sob tais condições,
produzida pelo vendedor de livros Smirdin, ser ruim. Mérito a ele por ter editado
em um esquema grandioso, com êxito, revistas grossas. Essa foi a melhor notícia
para os assinantes, ainda mais para os moradores de nossas cidades e do interior.
Na “Biblioteca” encontravam-se traduções de interessantes artigos de revistas
estrangeiras, e no ramo das poesias apareciam nomes que iluminavam o parnaso
russo. Mas, com certa frequência, a melhor seção da “Biblioteca” era a mistura, que
trazia em si muitas notícias frescas sobre variados temas. Era uma seção viva, típica
de tais almanaques. A prosa de alto nível, original e traduzida, em contos е demais
formas, acabava sendo de muito mau gosto e baixa qualidade. Na “Biblioteca para
leitura” acontecia sempre a mesma coisa, algo até então inédito na Rússia. Seu
chefe passou a corrigir e reescrever praticamente todas as matérias impressas no
veículo, e é curioso que ele próprio declarava isso, de forma satisfatória e aberta:
“Aqui – dizia ele – na ‘Biblioteca para leituras’, não é como nas outras revistas:
não deixamos nenhum conto da forma crua, reescrevemos praticamente tudo:
por vezes fazemos, de duas, uma, por vezes até de três, e as matérias melhoram
significativamente com nossas intervenções”. Tal estranha tutela não fora vista
na Rus20 até então.
Muitos escritores começaram a ter receio de que o público não aceitaria
matérias, que porventura não fossem publicadas sem assinatura ou ainda sem algum
pseudônimo, por conta própria, e por isso começaram a declinar da participação
na edição de tais revistas. O número de integrantes diminuiu de tal forma que,
no ano seguinte, os editores não conseguiram montar uma lista tão grande de
nomes, e divulgaram cegamente que participavam os melhores literatos, mas sem
definir quais eram. A revista não mudou em grandeza e projeto, mas as matérias
notadamente começaram a ficar piores; percebia-se um esforço menor. Cada vez
menos lia-se a “Biblioteca” nas capitais, mas ainda muito nas províncias, e sua
opinião começou a voltar-se para esse fato rapidamente. Vamos agora nos voltar
para outras revistas.
A “Abelha do Norte” fechou sua linha editorial no noticiário oficioso, e
desta forma cumpriu seu papel. O periódico distribuía em suas páginas fatos po-

20 Nome que define o conceito de povo, língua e região dos estados medievais da Rus Kievana. Na
Europa, era conhecida como “Ruthenia”, do século 11 em diante. (N. do T.)
400 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

líticos, estrangeiros e nacionais. O editor, senhor Gretch, conduziu o almanaque


por uma correção impressionante: ele sempre saía ao devido tempo, mas nunca
trouxe consigo qualquer importância literária, não tinha nenhum tom relevante e
não demonstrava ter qualquer “pulso forte”, que guiasse sua opinião. A “Abelha
do Norte” funcionava como uma espécie de lata de lixo, na qual eram jogados
materiais sobre quaisquer assuntos que interessassem ao editor. As análises de livros,
quase sempre favoráveis, eram escritas por amigos, e muitas vezes pelos próprios
autores. Na “Abelha do Norte” diversos desconhecidos, sem dúvida nenhuma
jovens, treinavam a ironia de suas penas, ocultos sob variadas assinaturas, uma
vez que as matérias expressavam bastante audácia. Eles atacavam na maioria das
vezes até mesmo o mais indefeso dos provincianos. No que tange aos desmazelos
da publicação, surgiam críticas mordazes, que, por vezes, pareciam-se umas com
as outras. A principal característica das análises consistia em elogiar um livro e, ao
fim, eximir-se de todos os pecados com uma ressalva: “Ademais é desejável que o
referido autor corrija seus erros eventuais no que tange à língua e ao vocabulário”
ou “Um bom livro demanda um bom editor”, e coisas do tipo, com as quais os
autores frequentemente se incomodavam e reclamavam dos critérios do resenhistas.
Os livros normalmente eram dissecados pelos mesmos analistas que escreviam
as notícias sobre novas fábricas de tabaco abertas na capital, sobre cosméticos e
afins; tais notícias por vezes demonstravam bastante originalidade, e seus chistes
entregavam sagazes e bem-educadas pessoas que, sem dúvida, possuíam motivos
bastante razoáveis para estarem satisfeitos com os fabricantes. Por fim, da “Abelha
do Norte” não havia mais nada que se demandar: ela sempre foi uma lúcida agenda
de divulgação diária, e seus objetivos eram convidar o público. Porém, julgar e
analisar, ela deixava a cargo mesmo público.
A revista que trazia o nome “Filho da Pátria e Arquivo do Norte”21 era
praticamente invisível por todo esse tempo. Sobre ela ninguém falava, para ela nin-
guém escrevia, muito embora ela saísse regularmente todas as semanas e trouxesse
impresso um enorme programa em suas páginas, tal como dificilmente poderia
ser visto à época. No “Filho da Pátria” (segundo o programa) haveria arqueologia,
medicina, jurisprudências, estatística, história russa e história geral, filologia russa,
filologia estrangeira e filologia geral, geografia, etnografia e muito mais. É inevitável

21 Com a prisão dos “dezembristas”, em 1825, e a mudança da política na Rússia, o número de cola-
boradores do “Filho da pátria” caiu consideravelmente. Assim, a revista passou a ser dirigida por F. I.
Bulgárin, que acertou a fusão e colaboração com N. I. Gretch. Em 1829, as duas revistas, “Filho da Pátria”
e “Arquivo do Norte” se uniram e formaram uma só: “Filho da Pátria e Arquivo do Norte: revista de
literatura, política e história contemporânea”. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 401

não se espantar ao ler tal horrível programa, e pensar que tal edição enciclopédica
gigante foi capaz de existir. E absolutamente existiu: era impresso um magro e
deveras fino livretinho, com apenas três páginas, iniciando-se com uma matéria
sobre uma doença qualquer, algo que nem mesmo os médicos haviam lido. Um
texto crítico, que muito embora parecesse vívido e contemporâneo, não trazia em
si qualquer substância. O noticiário político consistia em fatos secos, extraídos
da “Abelha do Norte”, portanto já do conhecimento de todos. Também eram
publicados, aleatoriamente, contos originais que eram demasiadamente estranhos,
inesperadamente curtos e completamente sem colorido. Caso aparecesse algo
digno de atenção, teria passado despercebido. Os nomes dos editores Bulgárin e
Gretch figuravam apenas na página de rosto, e, definitivamente, da parte deles não
era vista nenhuma participação. Uma vez que a revista existia, pode-se dizer que
havia leitores e assinantes. E tais assinantes eram pessoas de idade e honoráveis,
que viviam nas províncias e para os quais ler qualquer coisa era tão indispensável
como tirar uma soneca após o almoço ou barbear-se duas vezes por semana.
Em São Petersburgo era ainda publicada durante todo esse tempo uma
revista puramente literária, liberta de quaisquer ciências indesejadas e informações
importantes, não política, não estatística, não enciclopédica, entusiasta de idosos,
e acima de tudo possuidora de um caráter relevante. O nome desta revista: “De-
senvolvimento literário para o inválido”22. Nela eram distribuídos contos levís-
simos, relatos de fazendeiros rurais sobre literatura, diálogos esses muitas vezes
suficientemente prosaicos, mas por vezes com locais impregnados de mordacidade,
bem próximos à verdade. O leitor, para sua surpresa, via como os fazendeiros se
tornavam praticamente literatos ao final das matérias, compreendendo de coração
a literatura contemporânea e temperando suas opiniões com alguma troça cáusti-
ca. Este almanaque sempre se mostrou como oposição, muito embora sua tática
consista unicamente em suprimir qualquer trecho que possa demonstrar alguma
leviandade jornalística e anexar, de sua parte, considerações raivosas sem muitas
delongas e com ponto de exclamação. O senhor Voeikov23 era um excepcional e
ativo pescador, e como pescador, sentava com a vara à beira do rio, sem perder
a paciência, muito embora em sua vara aparecesse na maior parte das vezes um
peixe miúdo. O editor mantinha patente uma vida estritamente literária, e o mes-

22 Revista literária e de variedades, editada em São Petersburgo entre 1831 e 1839. A tradução “Desen-
volvimento literário para o inválido” foi a opção encontrada para melhor adaptar o conteúdo do veículo
à língua portuguesa. (N. do T.)
23 Aleksander Fiodorovitch Voiéikov (1778-1839), poeta, tradutor, editor, jornalista e crítico literário.
Membro da Academia Russa. (N. do T.)
402 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

mo com calorosa atenção sequer retirava os olhos do mercado editorial. Eu não


tenho conhecimento sobre o número de leitores de suas revistas, se eram muitos
ou poucos, mas ela definitivamente valia a pena ser espiada, eventualmente.
Em Moscou, somente era editada a revista “Telescópio”, com um pequeno
acréscimo de páginas, sob o título de “Rumor”24. A revista de início deu sinais de
vivacidade, mas logo adoeceu, enchendo-se de matérias sem qualquer qualidade,
abrindo mão de qualquer movimento literário. Era notório que os editores não
dedicavam nenhuma atenção à revista e distribuíam os livretos de qualquer jeito.
O monopólio mantido pela “Biblioteca para leitura” não poderia sequer
ser ameaçado por qualquer outra revista da época. Mas a “Abelha do Norte” era
editada pelo mesmo senhor Gretch, nome que, algum tempo atrás, já constara na
folha de rosto da “Biblioteca para leitura”, como seu editor-chefe, muito embora
tal cargo, como já vimos anteriormente, fosse apenas de fachada, e por isso nos
pareceu natural que a “Abelha do Norte” devesse elogiar tudo o que fosse disposto
na “Biblioteca”, e sua força-motriz, que aparecia sob vários pseudônimos diferen-
tes, deveria ser chamada de “Humboldt russo”. E sem esse, a revista dificilmente
poderia se tornar uma oponente relevante, já que era comandada pela mesma força,
e diferentes literatos a acompanhavam somente para suprir suas necessidades. O
“Filho da Pátria” deveria apenas repetir as palavras da “Abelha”. Desta forma,
apenas duas outras revistas poderiam levantar-se contra sua opinião. O senhor
Voieikov demonstrou, na revista “Desenvolvimento literário para o inválido”,
algo que poderia lembrar uma oposição: mas sua oposição consistia em notas
leves dos erros das revistas, por vezes uma ironia bem-sucedida, demonstrada de
uma forma descontínua, em poucas palavras, por vezes com chistes, com muito
sentido para poucos literatos, mas imperceptível para os não-iniciados. As críti-
cas bem fundamentadas e minuciosas, que poderiam definir qualquer direção à
nova revista, não foram publicadas por ele em nenhum lugar. O “Telescópio”,
em colaboração com o “Rumor”, atuou contra a “Biblioteca para a leitura”, mas
agiu de forma débil, fraca, sem consistência, paciência e o necessário sangue frio.
Nas matérias críticas isso era demonstrado apenas com a indignação para com os
novos abastados, deboches sobre o baronato do senhor Senkóvski, e fazia alguns
comentários dignos com relação a suas imitações de escritores franceses, mas não
viu propósito em toda essa clareza. No “Rumor” repetiu-se a mesma alusão a
Brambeus, frequentemente com relação à análise de compêndios completamente

24 Revista que trazia ilustrações sobre moda e notícias. Começou a ser editada em 1831 e, em 1832, foi
anexada à revista “Telescópio”. Seu principal nome era V. G. Belínski. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 403

estranhos. Além do mais, o “Telescópio” muito se prejudicou com análise de


livretos ultrapassados, com a incorreção da edição e com suas matérias críticas
que, por vezes, pareciam ser do avesso.
É óbvio que as vontades e os meios destas revistas eram deveras débeis em
comparação com a “Biblioteca para leitura”, que se encontrava entre eles tal como
um elefante entre quadrúpedes. Tal luta era consideravelmente injusta e eles, ao
que parece, não levaram em consideração que a “Biblioteca para leitura” manti-
nha próximo de cinco mil assinantes, que a opinião da “Biblioteca para leitura”
se espalhava por todas as camadas da sociedade, nas quais sequer se havia ouvido
falar sobre a existência do “Telescópio” e do “Desenvolvimento da literatura”,
que as posições e compilados, dispostos na “Biblioteca”, eram elogiados pelos
próprios editores da “Biblioteca”, escondidos sob diferentes alcunhas, e elogiados
com entusiasmo, sempre exercendo influência em grande parte do público, pois
exatamente tudo aquilo que soa engraçado para os leitores iniciados é levado em
consideração pelos mais limitados e ingênuos, e estes sem dúvida, pode-se supor,
seriam maioria entre os leitores da “Biblioteca”. Além disso, a maior parte dos
assinantes eram pessoas jovens, que não conheciam revistas, portanto tomavam
tudo como verdade absoluta. E, por fim, que a “Biblioteca para leitura” garantia
para si um reforço de 4 mil exemplares da “Abelha do Norte”.

О движении журнальной литературы в 1834 и 1835 году

Журнальная литература, эта живая, свежая, говорливая, чуткая


литература, так же необходима в области наук и художеств, как пути
сообщения для государства, как ярмарки и биржи для купечества и торговли.
Она ворочает вкусом толпы, обращает и пускает в ход всё выходящее наружу
в книжном мире, и которое без того было бы в обоих смыслах мертвым
капиталом. Она - быстрый, своенравный размен всеобщих мнений, живой
разговор всего тиснимого типографскими станками; ее голос есть верный
представитель мнений целой эпохи и века, мнений, без нее бы исчезнувших
безгласно. Она волею и неволею захватывает и увлекает в свою область
девять десятых всего, что делается принадлежностию литературы. Сколько
есть людей, которые судят, говорят и толкуют потому, что все суждения
поднесены им почти готовые, и которые сами от себя вовсе не толковали
бы, не судили, не говорили. Итак, журнальная литература во всяком случае
имеет право требовать самого пристального внимания.
Может быть, давно у нас не было так резко заметно отсутствия
журнальной деятельности и живого современного движения, как в последние
404 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

два года. Бесцветность была выражением большей части повременных


изданий. Многие старые журналы прекратились, другие тянулись медленно
и вяло; новых, кроме Библиотеки для чтения и впоследствии Московского
наблюдателя, не показалось, между тем, как именно в это время была заметна
всеобщая потребность умственной пищи, и значительно возросло число
читающих. Как ни бедна эта эпоха, но она, такое же имеет право на наше
внимание, как и та, которая бы кипела движением, ибо также принадлежит
истории нашей словесности. Читатели имели полное право жаловаться
на скудость, и постный вид наших журналов: Телеграф давно потерял тот
резкий тон, который давало ему воинственное его положение, в отношении
журналов петербургских. Телескоп наполнялся статьями, в которых не
было ничего свежего, животрепещущего. В это время книгопродавец
Смирдин, давно уже известный своею деятельностию и добросовестностию,
который один только, к стыду прочих недальнозорких своих товарищей,
показал предприимчивость и своими оборотами дал движение книжной
торговле, книгопродавец Смирдин решился издавать журнал обширный,
энциклопедической, завоевать всех литераторов, сколько ни есть их в
России, и заставить их участвовать в своем предприятии. В программе
были выставлены имена почти всех наших писателей. Профессор арабской
словесности г-н Сенковский взялся быть распорядителем журнала; к нему был
присоединен редактором г-н Греч, известный уже постоянным изданием двух
журналов: Северной пчелы и Сына отечества. Не знаем, сами ли они взялись
за сие дело или упрошены были г-ном Смирдиным; но в том и другом случае
книгопродавец, по общему мнению, поступил несколько неосмотрительно.
Успевши соединить для своего издания такое множество литераторов, он
должен был предоставить их суду избрание редактора.
Никто тогда не позаботился о весьма важном вопросе: должен ли
журнал иметь один определенный тон, одно уполномоченное мнение, или
быть складочным местом всех мнений и толков. Журнал на сей счет отозвался
глухо, обыкновенным объявлением, что критика будет самая благонамеренная
и беспристрастная, чуждая всякой личности и неприличности, - обещание,
которое дает всякой журналист. С выходом первой книжки публика ясно
увидела, что в журнале господствует тон, мнения и мысли одного, что
имена писателей, которых блестящая шеренга наполнила полстраницы
заглавного листка, взята была только напрокат, для привлечения большего
числа подписчиков.
Книгопродавец Смирдин исполнил с своей стороны всё, чего
публика вправе была от него требовать. Ту же самую честность, которая
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 405

всегда отличала его, показал он и в издании журнала. Журнал выходил


с необыкновенною исправностию: подписчики вместе с первым числом
каждого месяца встречали толстую книгу, какой у нас в прежнее время ни
одна типография не могла бы поставить в два месяца. Вместо обещанного
числа осьмнадцати листов в месяц, выходило иногда вдвое более. Теперь
рассмотрим, исполнили ли долг те, которым он вверил внутреннее
распоряжение журнала. - Главным деятелем и движущею пружиною всего
журнала был г-н Сенковский. Имя г-на Греча выставлено было только для
формы, по крайней мере никакого действия не было заметно с его стороны.
Г-н Греч давно уже сделался почетным и необходимым редактором всякого
предпринимаемого периодического издания: так обыкновенно почтенного
пожилого человека приглашают в посаженые отцы на все свадьбы. Но какая
цель была редакции этого журнала, какую задачу предположила она решить?
Здесь поневоле должны мы задуматься, что, без сомнения, сделает и читатель.
В программе ничего не сказал г-н Сенковский о том, какой начертал для себя
путь, какую выбрал себе цель; все увидели только, что он взошел незаметно
в первый номер и в конце его развернулся как полный хозяин.
Впрочем нельзя жаловаться и на это: положим, для журналиста
необходим резкий тон и некоторая даже дерзость (чего однако ж мы не
одобряем, хотя нам известно, что с подобными качествами журналисты всегда
выигрывают в мнении толпы), но на что преимущественно было обращено
внимание сего хозяина, какая мысль его пересиливала все прочие, к чему
направлено было его пристрастие, были ли где заметны те неподвижные
правила, без коих человек делается бесхарактерным, которые дают ему
оригинальность и определяют его физиогномию?
Прочитавши всё, помещенное им в этом журнале, следуя за всеми
словами, сказанными им, невольно остановимся в изумлении: что это такое?
что заставляло писать этого человека? Мы видим человека, который берет
деньги вовсе не даром, который трудится до поту лица, не только заботится
о своих статьях, но даже переправляет чужие, одним словом, является
неутомимым. Для чего же вся эта деятельность? Последуем за распорядителем
во всех родах его сочинений и скажем несколько слов о главных качествах
его статей. Это во всех отношениях необходимо.
Г-н Сенковский является в журнале своем как критик, как повествователь,
как ученый, как сатирик, как глашатай новостей и проч. и проч., является
в виде Брамбеуса, Морозова, Тютюнджу Оглу, А. Белкина, наконец
в собственном виде. Как ученый, г-н Сенковский поместил довольно
большую статью о сагах, статью, исполненную ипотез, не собственных,
406 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

но схваченных наудачу из разных бегло прочитанных книг, ипотез, вовсе


не принадлежащих русской истории. Эти саги, которые проницательный
Шлецер, не имеющий доныне равного по строгому и глубокому
критическому взгляду, признал за басни, недостойные никакого внимания,
эти саги он ставит краеугольным камнем русской истории и не приводит ни
одного доказательства, поверенного критикою: он вовсе не определил их
истинного и единственного достоинства. Саги суть поэтическое создание
народа, игравшего великую в истории роль. Эта статья, испещренная
риторическими фигурами, понравилась добрым, но ограниченным людям, а
г-н Булгарин даже написал рецензию, в которой поставил г-на Сенковского
выше Шлецера, Гумбольта и всех когда-либо существовавших ученых.
Другое весьма важное притязание г. Сенковского и настоящий конек его
есть Восток. Здесь он всегда возвышал голос, и как только выходило какое-
нибудь сочинение о Востоке или упоминалось где-нибудь о Востоке, хотя
бы даже это было в стихотворении, он гневался и утверждал, что автор не
может судить и не должен судить о Востоке, что он не знает Востока. Слово,
сказанное с сердцем, очень извинительно в человеке, влюбленном в свой
предмет и который между тем видит, как мало понимают его другие; но этот
человек уже должен по крайней мере утвердить за собою авторитет. Г-ну
Сенковскому точно следовало бы издать что-нибудь о Востоке. Человеку,
ничего не сделавшему, трудно верить на слово, особливо, когда его суждения
так легковесны и проникнуты духом нетерпимости; а из некоторых его
отрывков о Востоке видны те же самые недостатки, которые он беспрестанно
порицает у других. Ничего нового не сказал он в них о Востоке, ни одной
яркой черты, сильной мысли, гениального предположения! Нельзя отвергать,
чтобы г-н Сенковский не имел сведений; напротив, очень видно, что он
много читал, но у него нигде не заметно этой движущей, господствующей
силы, которая направляла бы его к какой-нибудь цели. Все эти сведения
находятся у него в каком-то брожении, друг другу противоречат, между
собой не уживаются. Рассмотрим его мнения, относящиеся собственно к
текущей изящной литературе. В критике г-н Сенковский показал отсутствие
всякого мнения, так что ни один из читателей не может сказать наверное,
чтò более нравилось рецензенту и заняло его душу, чтò пришлось по его
чувствам: в его рецензиях нет ни положительного, ни отрицательного вкуса,
- вовсе никакого. То, что ему нравится сегодня, завтра делается предметом
его насмешек. Он первый поставил г-на Кукольника наряду с Гёте, и сам же
объявил, что это сделано им потому только, что так ему вздумалось. Стало
быть, у него рецензия не есть дело убеждения и чувства, а просто следствие
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 407

расположения духа и обстоятельств. Вальтер Скотт, этот великий гений,


коего бессмертные создания объемлют жизнь с такою полнотою, Вальтер
Скотт назван шарлатаном. И это читала Россия, это говорилось людям уже
образованным, уже читавшим Вальтер Скотта. Можно быть уверену, что г-н
Сенковский сказал это без всякого намерения, из одной опрометчивости;
потому что он никогда не заботится о том, что говорит, и в следующей
статье уже не помнит вовсе написанного в предыдущей.
В разборах и критиках г-н Сенковский тоже никогда не говорил о
внутреннем характере разбираемого сочинения, не определял верными
и точными чертами его достоинства. Критика его была или безусловная
похвала, в которой рецензент от всей души тешился собственными
фразами, или хула, в которой отзывалось какое-то странное ожесточение.
Она состояла в мелочах, ограничивалась выпискою двух-трех фраз и
насмешкою. Ничего не было сказано о том, что предполагал себе целью
автор разбираемого сочинения, как оное выполнил и, если не выполнил, как
должен был выполнить. Больше всего г-н Сенковский занимался разбором
разного литературного сора, множеством всякого рода пустых книг; над ними
шутил, трунил и показывал то остроумие, которое так нравится некоторым
читателям. Наконец даже завязал целое дело о двух местоимениях: сей и
оный, которые показались ему, неизвестно почему, неуместными в русском
слоге. Об этих местоимениях писаны им были целые трактаты, и статьи его,
рассуждавшие о каком бы то ни было предмете, всегда оканчивались тем,
что местоимения сей и оный совершенно неприличны. Это напомнило
старый процесс Тредьяковского за букву ижицу и десятеричное i, который
впоследствии еще не так давно поддерживал один профессор. Книга, в
которой г-н Сенковекий встречал эти две частицы, была торжественно
признаваема написанною дурным слогом.
Его собственные сочинения, повести и тому подобное, являлись
под фирмою Брамбеуса. Эти повести и статьи вроде повестей, своим
близким, неумеренным подражанием нынешним писателям французским,
произвели всеобщее изумление, потому что г. Сенковский охуждал гласно
всю текущую французскую литературу. Непостижимо, как в этом случае он
имел так мало сметливости и до такой степени считал простоватыми своих
читателей. Неизвестно тоже, почему называл он некоторые статьи свои
фантастическими. Отсутствие всякой истины, естественности и вероятности
еще нельзя считать фантастическим. Фантастические сочинения Барона
Брамбеуса напоминают книги, каких некогда было очень много, как-то: “Не
любо - не слушай, а лгать не мешай”, и тому подобные. Та же безотчетность
408 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

и еще менее устремления к доказательству какой-нибудь мысли. Опытные


читатели заметили в них чрезвычайно много похищений, сделанных
наскоро, на всем бегу: автор мало заботился о их связи. То, что в оригиналах
имело смысл, то в копии было без всякого значения.
Таковы были труды и действия распорядителя Библиотеки для чтения.
Мы почли нужным упомянуть о них несколько обстоятельнее потому, что
он один законодательствовал в Библиотеке для чтения и что мнения его
разносились чрезвычайно быстро, вместе с четырьмя тысячами экземпляров
журнала, по всему лицу России.
Невозможно, чтобы журнал, издаваемый при средствах, доставленных
книгопродавцем Смирдиным, был плох. Он уже выигрывал тем, что
издавался в большом объеме, толстыми книгами. Это для подписчиков
была приятная новость, особливо для жителей наших городов и сельских
помещиков. В Библиотеке находились переводы иногда любопытных
статей из иностранных журналов, в отделе стихотворном попадались имена
светил русского Парнаса. Но постоянно лучшим отделением ее была смесь,
вмещавшая в себе очень много разнообразных свежих новостей, отделение
живое, чисто журнальное. Изящная проза, оригинальная и переводная, -
повести и прочее, - оказывала очень мало вкуса и выбора. В Библиотеке
для чтения случилось еще одно, дотоле неслыханное на Руси явление.
Распорядитель ее стал переправлять и переделывать все почти статьи, в ней
печатаемые, и любопытно то, что он объявлял об этом сам довольно смело
и откровенно. “У нас, - говорит он, - в Библиотеке для чтения, не так, как в
других журналах: мы никакой повести не оставляем в прежнем виде, всякую
переделываем: иногда составляем из двух одну, иногда из трех, и статья
значительно улучшается нашими переделками”. Такой странной опеки до
сих пор на Руси еще не бывало.
Многие писатели начали опасаться, чтобы публика не приняла статей,
часто помещаемых без подписи или под вымышленными именами, за их
собственные, и потому начали отказываться от участия в издании сего
журнала. Число сотрудников так умалилось, что на другой год издатели
уже не выставили длинного списка имен и упомянули глухо, что участвуют
лучшие литераторы, не означая какие. Журнал хотя не изменился в величине
и плане, но статьи заметно начали быть хуже; видно было менее старания.
Библиотеку уже менее читали в столицах, но всё так же много в провинциях,
и мнения ее так же обращались быстро. Обратимся к другим журналам.
Северная пчела заключала в себе официальные известия и в этом
отношении выполнила свое дело. Она помещала известия политические,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 409

заграничные и отечественные новости. Редактор г-н Греч довел ее до строгой


исправности: она всегда выходила в положенное время; но в литературном
смысле она не имела никакого определенного тона и не выказывала
никакой сильной руки, двигавшей ее мнения. Она была какая-то корзина,
в которую сбрасывал всякой всё, что ему хотелось. Разборы книг, всегда
почти благосклонные, писались приятелями, а иногда самими авторами. В
Северной пчеле пробовали остроту пера разные незнакомцы, скрывавшиеся
под разными буквами, без сомнения, люди молодые, потому что в статьях
выказывалось довольно удальства. Они нападали разве уже на самого
беззащитного и круглого сироту. Насчет неопрятных изданий являлись
остроумные колкости, несколько похожие одна на другую. Сущность
рецензий состояла в том, чтобы расхвалить книгу и при конце сложить с
себя весь грех такою оговоркою: “Впрочем желательно, чтобы почтенный
автор исправил небольшие погрешности относительно языка и слога”, или:
“Хорошая книга требует хорошего издания”, и тому подобное, за что автор
разбираемой книги иногда обижался и жаловался на пристрастие рецензента.
Книги часто были разбираемы теми же самыми рецензентами, которые
писали известия о новых табачных фабриках, открывавшихся в столице, о
помаде и проч.; сии известия иногда довольно остроумны и в шутках своих
показывали ловких, и хорошо воспитанных людей, без сомнения, имевших
основательные причины быть довольными фабрикантами. Впрочем
от Сев<ерной> пчелы больше требовать было нечего: она была всегда
исправная ежедневная афиша, ее делом было пригласить публику, а судить
она предоставляла самой публике.
Журнал, носивший название Сына отечества и Северного архива,
был почти невидимкою во всё время. О нем никто не говорил, на него
никто не ссылался, несмотря на то, что он выходил исправно еженедельно
и что печатал такую огромную программу на своей обвертке, какую вряд ли
где можно было встретить. В Сыне отечества (говорила программа) будет
археология, медицина, правоведение, статистика, русская история, всеобщая
история, русская словесность, иностранная словесность, наконец просто
словесность, география, этнография, историческая галлерея и прочее.
Иной ахнет, прочитавши такую ужасную программу, и подумает, что это
огромнейшее энциклопедическое издание, когда-либо существовавшее на
свете. Ничуть не бывало: выходила худенькая, тоненькая книжечка в три
листа, начинавшаяся статьею о каких-нибудь болезнях, которой не читали
даже медики. Критическая статья, а тем еще более живая и современная, не
была в нем постоянною. Новости политические были те же сухие факты,
410 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

взятые из Северной пчелы, следственно уже всем известные. Помещаемые


какие-то оригинальные повести были довольно странны, чрезвычайно
коротенькие и совершенно бесцветны. Если попадалось что-нибудь
достойное замечания, то оно оставалось незаметным. Имена редакторов
гг. Булгарина и Греча стояли только на заглавном листке; но с их стороны
решительно не было видно никакого участия. Однако ж журнал существовал,
стало быть, читатели и подписчики были. Эти читатели и подписчики были
почтенные и пожилые люди, живущие в провинциях, которым что-нибудь
почитать так же необходимо, как заснуть часик после обеда или выбриться
два раза в неделю.
Издавалась еще в Петербурге в продолжение всего этого времени
газета чисто литературная, освобожденная от всяких вторжений наук и
важных сведений, не политическая, не статистическая, не энциклопедическая,
любительница старого, но при всем том имевшая особенный характер.
Название этой газеты: Литературные прибавления к Инвалиду. В ней
помещались легонькие повести: беседы деревенских помещиков о
литературе, беседы, часто довольно обыкновенные, но иногда местами
проникнутые колкостями, близкими к истине: читатель к изумлению своему
видел, что помещики к концу статьи делались совершенными литераторами,
принимали к сердцу текущую литературу и приправляли свои мнения едкою
насмешкою. Этот журнал всегда оказывал оппозицию противу всякого
счастливого наездника, хотя его вся тактика часто состояла только в том,
что он выписывал одно какое-нибудь место, доказывающее журнальную
опрометчивость, и присовокуплял от себя довольно злое замечание не
длиннее строчки с восклицательным знаком. Г-н Воейков был чрезвычайно
деятельный ловец и, как рыбак, сидел с удой на берегу, не теряя терпения, хотя
на его уду попадалась большею частию мелкая рыба, а большая обрывалась.
В редакторе была заметна чисто литературная жизнь, и он с неохлажденным
вниманием не сводил глаз с журнального поля. Я не знаю, много ли было
читателей его газеты, но она очень стоила того, чтобы иногда в нее заглянуть.
В Москве издавался один только Телескоп, с небольшими листками
прибавления, под именем Молвы; журнал, вначале отозвавшийся живостью,
но вскоре простывший, наполнявшийся статьями без всякого разбора,
лишенный всякого литературного движения. Видно было, что издатели не
прилагали о нем никакого старания и выдавали книжки как-нибудь.
Монополия, захваченная Библиотекою для чтения, не могла не
задеть за живое других журналов. Но Северная пчела была издаваема тем
же самым г-ном Гречем, которого имя некоторое время стояло на заглавном
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 411

листке в Библиотеке как главного ее редактора, хотя это звание, как мы уже
видели, было только почетное, и потому очень естественно, что Северная
пчела должна была хвалить всё, помещаемое в Библиотеке, и настоящего
ее движителя, являвшегося под множеством разных имен, называть
русским Гумбольтом. Но и без того она вряд ли бы могла явиться сильною
противницею, потому что не управлялась единою волею; разные литераторы
заглядывали туда только по своей надобности. Сын отечества должен был
повторять слова Пчелы. Итак, всего только два журнала могли восстать
против его мнений. Г-н Воейков показал в Литературных прибавлениях
что-то похожее на оппозицию; но оппозиция его состояла в легких заметках
журнальных промахов и иногда удачной остроте, выраженных отрывисто, в
немногих словах, с насмешкою, очень понятною для немногих литераторов,
но незаметною для непосвященных. Нигде не поместил он обстоятельной и
основательной критики, которая определила бы сколько-нибудь направление
нового журнала. Телескоп в соединении с Молвою действовал против
Библиотеки для чтения, но действовал слабо, без постоянства, терпения и
необходимого хладнокровия. В статьях критических он был часто исполнен
негодования против нового счастливца, шутил над баронством г-на
Сенковского, сделал несколько справедливых замечаний относительно его
странного подражания французским писателям, но не видел дела во всей
ясности. В Молве повторялись те же намеки на Брамбеуса часто по поводу
разбора совершенно постороннего сочинения. Кроме того, Телескоп много
вредил себе опаздыванием книжек, неаккуратностию издания, и критические
статьи его чрез то еще менее были в обороте.
Очевидно, что силы и средства этих журналов были слишком слабы
в отношении к Библиотеке для чтения, которая была между ними, как
слон между мелкими четвероногими. Их бой был слишком неравен, и они,
кажется, не приняли в соображение, что Библиотека для чтения имела около
пяти тысяч подписчиков, что мнения Библиотеки для чтения разносились
в таких слоях общества, где даже не слышали, существуют ли Телескоп
и Литературные прибавления, что мнения и сочинения, помещаемые в
Библиотеке для чтения, были расхвалены издателями той же Библиотеки для
чтения, скрывавшимися под разными именами, расхвалены с энтузиазмом,
всегда имеющим влияние на большую часть публики; ибо то, что смешно
для читателей просвещенных, тому верят со всем простодушием читатели
ограниченные, каких по количеству подписчиков можно предполагать более
между читателями Библиотеки, и к тому же большая часть подписчиков были
люди новые, дотоле не знавшие журналов, следственно принимавшие всё
412 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

за чистую истину; что наконец Библиотека для чтения имела сильное для
себя подкрепление в 4000 экземплярах Северной пчелы.
Ропот на такую неслыханную монополию сделался силен. В Москве
наконец несколько литераторов решились издавать какой-нибудь свой
журнал. Новый журнал нужен был не для публики, т. е. для большего
числа читателей, но собственно для литераторов, различно притесняемых
Библиотекою. Он был нужен: 1) для тех, которые желали иметь приют
для своих мнений, ибо Библиотека для чтения не принимала никаких
критических статей, если не были они по вкусу главного распорядителя; 2)
для тех, которые видели с изумлением, как на их собственные сочинения
наложена была рука распорядителя, ибо г-н Сенковский начал уже
переправлять, безо всякого разбора лиц, все статьи, отдаваемые в Библиотеку.
Он переправлял статьи военные, исторические, литературные, относящиеся
к политической экономии и проч., и всё это делал без всякого дурного
намерения, даже без всякого отчета, не руководствуясь никаким чувством
надобности или приличия. Он даже приделал свой конец к комедии
Фонвизина, не рассмотревши, что она и без того была с концом.
Всё это было очень досадно для писателей, решительно не имевших
места, куда бы могли подать жалобу свету и читателям.
Но уже один слух о новом журнале возбудил негодование Библиотеки
для чтения и подвинул ее к неожиданному поступку: она уверяла своих
читателей и подписчиков с необыкновенным жаром, что новый журнал будет
бранчивый и неблагонамеренный. Статья, помещенная по этому же случаю в
Северной пчеле, казалось, была писана человеком, в отчаянии предвидевшим
свою конечную погибель. В ней уведомляли публику, что новый журнал
хотел уронить Библиотеку для чтения, потому только, что издатели оного
объявили, что будут выпускать таковое же число листов, как и Библиотека
для чтения. Поступок чрезвычайно неосмотрительный! В подобном деле
необходимо скрыть свои мелкие чувства искусно и потом, выждав удобный
случай, нанесть обдуманный удар. Если я издаю журнал, зачем же не издавать
его и другому? И как могу гневаться, если другой скажет, что он будет брать
меня в образец? Не должен ли я, напротив, его благодарить? Не показывает
ли он тем степень уважения, мною заслуженного в публике? Чем больше
соревнования, тем больше выигрыша для читателей и для литераторов.
Но рассмотрим, в какой степени Московский наблюдатель выполнил
ожидания публики, жадной до новизны, ожидание читателей образованных,
ожидание литераторов и опасение Библиотеки для чтения.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 413

Новый журнал, несмотря на ревностное старание привести себя во


всеобщую известность, не имел средств огласить во все углы России о своем
появлении, потому что единственные глашатаи вестей были его противники
- Северная пчела и Библиотека для чтения, которые, конечно, не поместили
бы благоприятных о нем объявлений. Он начался довольно поздно, не с
новым годом, следственно не в то время, когда обыкновенно начинаются
подписки, наконец он пренебрег быстрым выходом книжек и срочною их
поставкою. Но важнейшие причины неуспеха заключались в характере
самого журнала. По первым вышедшим книжкам уже можно было видеть,
что предположение журнала было следствием одного горячего мгновения.
В Московском наблюдателе тоже не было видно никакой сильной пружины,
которая управляла бы ходом всего журнала. Редактор его виден был только
на заглавном листке. Имя его было почти неизвестно. Он написал доселе
несколько сочинений статистических, имеющих много достоинства,
но которых публика чисто литературная не знала вовсе. Литературные
мнения его были неизвестны. В этом состояла большая ошибка издателей
Московского наблюдателя. Они позабыли, что редактор всегда должен
быть видным лицом. На нем, на оригинальности его мнений, на живости
его слога, на общепонятности и общезанимательности языка его, на
постоянной свежей деятельности его, основывается весь кредит журнала. Но
г-н Андросов явился в Московском наблюдателе вовсе незаметным лицом.
Если желание издателей было постановить только почетного редактора, как
вошло в обычай у нас на ленивой Руси, то в таком случае они должны были
труды редакции разложить на себя; но они оставили всю ответственность на
редакторе, и Московский наблюдатель стал похож на те ученые общества,
где члены ничего не делают и даже не бывают в присутствии, между тем, как
президент является каждый день, садится в свои кресла и велит записывать
протокол своего уединенного заседания. В журнале было несколько очень
хороших статей, его украсили стихи Языкова и Баратынского - эти перлы
русской поэзии, но при всем том в журнале не было заметно никакой
современной живости, никакого хлопотливого движения; не было в нем
разнообразия, необходимого для издания периодического. Замечательные
статьи, поступавшие в этот журнал, были похожи на оазисы, зеленеющие
посреди целого моря песчаных степей. Притом издатели, как кажется, мало
имели сведения о том, что нравится и что не нравится публике. Статьи часто
хорошие делались скучными, потому только, что они тянулись из одного
нумера в другой с несносною подписью: “продолжение впредь”. Вот каков
был журнал, долженствовавший бороться с Библиотекой для чтения.
414 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

Наблюдатель начался оппозиционною статьею г. Шевырева о


торговле, зародившейся в нашей литературе. В ней автор нападает на
торговлю в ученом мире, на всеобщее стремление составить себе доход
из литературных занятий. Первая ошибка была здесь та, что автор статьи
обратил внимание не на главный предмет. Во-вторых: он гремел против
пишущих за деньги, но не разрушил никакого мнения в публике касательно
внутренней ценности товара. Статья сия была понятна одним литераторам,
нанесла досаду Библиотеке для чтения, но ничего не дала знать публике,
не понимавшей даже, в чем состояло дело. Притом сии нападения были
несправедливы, потому что устремлялись на непреложный закон всякого
действия. Литература должна была обратиться в торговлю, потому что
читатели и потребность чтения увеличилась. Естественное дело, что
при этом случае всегда больше выигрывают люди предприимчивые, без
большого таланта, ибо во всякой торговле, где покупщики еще простоваты,
выигрывают больше купцы оборотливые и пронырливые. Должно показать, в
чем состоит обман, а не пересчитывать их барыши. Что литератор купил себе
доходный дом или пару лошадей, это еще не беда; дурно то, что часть бедного
народа купила худой товар и еще хвалится своею покупкою. Должно было
обратить внимание г-ну Шевыреву на бедных покупщиков, а не на продавцов.
Продавцы обыкновенно бывают люди наездные: сегодня здесь, а завтра бог
знает где. При этом случае сделан был несправедливый упрек книгопродавцу
Смирдину, который вовсе не виноват, который за предприимчивость и
честную деятельность заслуживает одну только благодарность. Нет спора,
что он дал, может быть, много воли людям, которым приличнее было
заниматься просто торговлею, а не литературою. Талант не искателен, но
корыстолюбие искательно. На это так же смешно жаловаться, как было
бы странно жаловаться на правительство, встретивши недальновидного
чиновника. Для таланта есть потомство, этот неподкупный ювелир, который
оправляет одни чистые бриллианты. Г-н Шевырев показал в статье своей
благородный порыв негодования на прозаическое, униженное направление
литературы, но на большинство публики эта статья решительно не сделала
никакого впечатления. Библиотека отвечала коротко в духе обыкновенной
своей тактики: обратившись к зрителям, т. е. к подписчикам, она говорила:
“Вот какое неблагородство духа показал г-н Шевырев, неприличие и
неимение высоких чувств, упрекая нас в том, что мы трудимся для денег, тогда
как” и проч... Это обыкновенная политика петербургских журналов и газет.
Как только кто-нибудь сделает им упрек в корыстолюбии и в бездействии,
они всегда жалуются публике на неприличие выражений и неблагородство
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 415

духа своих противников, говорят, что статья эта писана с целию только
поддеть публику и забрать от читателей деньги, что они почитают с своей
стороны священным долгом предуведомить публику.
Итак, выходка Московского наблюдателя скользнула по Библиотеке
для чтения, как пуля по толстой коже носорога, от которой даже не чихнуло
тучное четвероногое. Выславши эту пулю, Московский наблюдатель
замолчал, - доказательство, что он не начертал для себя обдуманного плана
действий и что решительно не знал, как и с чего начать. Должно было или
не начинать вовсе, или если начать, то уже не отставать. Только постоянным
действием мог Наблюдатель дать себе ход и сделать имя свое известным
публике, как сделал его известным Телеграф, действуя таким же образом
и почти при таких же обстоятельствах. Наблюдатель выпустил вслед за
тем несколько нумеров, но ни в одном из них не сказал ничего в защиту и
подкрепление своих мнений. Чрез несколько нумеров показалась наконец
статья, посвященная Брамбеусу, по поводу одной давно напечатанной в
Библиотеке статьи, под именем: “Брамбеус и юная словесность”, в которой
Брамбеус назвал сам себя законодателем какой-то новой школы и вводителем
новой эпохи в русской литературе.
Это в самом деле было чрезвычайно странно. Случалось, что
литераторы иногда похваливали самих себя, или под именем друзей своих,
или даже сами от себя, но всё же с некоторою застенчивостию, и после
сами старались всё это как-нибудь загресть собственными руками, чувствуя,
что несколько провинились. Но никогда еще автор не хвалил себя так
свободно и непринужденно, как барон Брамбеус. Эта оригинальная статья
слишком была ярка, чтобы не быть замеченною. Ею занялся и Телескоп
и потрунил над нею довольно забавно, только вскользь; с обыкновенною
сметливостию о ней намекнул и г-н Воейков; она возродила статью и в
Московском наблюдателе. Цель этой статьи была доказать, откуда барон
Брамбеус почерпнул талант свой и знаменитость? какими творениями чужих
хозяев пользовался, как своим? другими словами: из каких лоскутов барон
Брамбеус сшил себе халат? Несколько безгласных книжек, выходивших
вслед за тем, совершенно погрузили Московского наблюдателя в забвение.
Даже самая Библиотека для чтения перестала наконец упоминать о нем, как
о бессильном противнике; продолжала шутить над важным и неважным и
говорить всё то, что первое попадалось под перо ее.
Вот каковы были действия наших журналов. Изложив их, рассмотрим
теперь, что сделали они в эти два года такого, которое должно вписаться
в историю нашей литературы, оставить в ней свою оригинальную черту;
416 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

какие мнения, какие толки они утвердили, что определили и какой мысли
дали право гражданства.
Длинная программа, сулящая статистику, медицину, литературу,
ничего не значит. Извещение о том, что критика будет благонамеренная,
чуждая личностей и партий, тоже не показывает цели. Она должна быть
необходимым условием всякого журнала. Даже множество помещенных в
журнале статей ничего не значит, если журнал не имеет своего мнения и не
оказывается в нем направление, хотя даже одностороннее, к какой-нибудь
цели. Телеграф издавался, кажется, с тем, чтобы испровергнуть обветшалые,
заматерелые, почти машинальные мысли тогдашних наших старожилов,
классиков; Московский вестник, один из лучших журналов, несмотря
на то, что в нем немного было современного движения, издавался с тем,
чтобы познакомить публику с замечательнейшими созданиями Европы,
раздвинуть круг нашей литературы, доставить нам свежие идеи о писателях
всех времен и народов. Здесь не место говорить, в какой степени оба сии
журнала выполнили цель свою; по крайней мере стремление к ней было
чувствуемо в них читателями. Но рассмотрите внимательно издававшиеся в
последние два года журналы; уловите главную нить каждого из них: сей-то
нити и не сыщете. Развернувши их, будете поражены мелкостью предметов,
вызвавших толки их. Подумаете, что решительно ни одного важного события
не произошло в литературном мире. А между тем:

1) Умер знаменитый шотландец, великий дееписатель сердца, природы


и жизни; полнейший, обширнейший гений XIX века.
2) В литературе всей Европы распространился беспокойный, волну-
ющийся вкус. Являлись опрометчивые, бессвязные, младенческие творения,
но часто восторженные, пламенные - следствие политических волнений той
страны, где рождались. Странная, мятежная, как комета, неорганизованная, как
она, эта литература волновала Европу, быстро облетела все углы читающего
мира. Пусть эти явления будут всемирно-европейские, хотя они отражались
и в России; рассмотрим литературные события чисто русские:
3) Распространилось в большой степени чтение романов, холодных,
скучных повестей, и оказалось очень явно всеобщее равнодушие к поэзии.
4) Вышли новыми изданиями Державин, Карамзин, гласно требовав-
шие своего определения и настоящей верной оценки так, как и все прочие
старые писатели наши, ибо в литературном мире нет смерти, и мертвецы так
же вмешиваются в дела наши и действуют вместе с нами, как и живые. Они
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 417

требовали возвращения того, что действительно им следует; они требовали


уничтожения неправого обвинения, неправого определения, бессмысленно
повторенного в продолжение нескольких лет и повторяемого доныне.
Но сказали ли журналы наши, руководимые строгим размышлением,
что такое был Вальтер Скотт, в чем состояло влияние его, что такое
французская современная литература, отчего, откуда она произошла, что
было поводом неправильного уклонения вкуса и в чем состоял ее характер?
Отчего поэзия заменилась прозаическими сочинениями? На какой степени
образования стоит русская публика и что такое русская публика? В чем
состоит оригинальность и свойство наших писателей?
Напрасно в этом отношении читатель станет искать в них новых
мыслей или каких-нибудь следов глубокого, добросовестного изучения.
Вальтер Скотта у нас только побранили. Французскую литературу одни
приняли с детским энтузиазмом, утверждали, что модные писатели
проникнули тайны сердца человеческого, дотоле сокровенные для
Сервантеса, для Шекспира... другие безотчетно поносили ее, а между тем
сами писали во вкусе той же школы еще с большими несообразностями.
Вопросом: отчего у нас в большом ходу водяные романы и повести? вовсе
не занялись, а вместо того вдобавок напустили и своих еще собственных.
О нашей публике сказали только, что она почтенная публика и что должна
подписываться на все журналы и разные издания, ибо их может читать и
отец семейства, и купец, и воин, и литератор; о Державине, Карамзине и
Крылове ничего не сказали или сказали то, что говорит уездный учитель
своему ученику, и отделались пошлыми фразами.
О чем же говорили наши журналисты? Они говорили о ближайших и
любимейших предметах: они говорили о себе, они хвалили в своих журналах
собственные свои сочинения; они решительно были заняты только собою;
на всё другое они обращали какое-то холодное, бесстрастное внимание.
Великое и замечательное было как будто невидимо. Их равнодушная критика
обращена была на те предметы, которые почти не заслуживали внимания.
В чем же состоял главный характер этой критики? В ней очень
явственно было заметно:

1) Пренебрежение к собственному мнению. Почти никогда не было


заметно, чтобы критик считал свое дело важным и принимался за него с
благоговением и предварительным размышлением, чтобы, водя пером сво-
им, думал о небольшом числе возвышенно-образованных современников,
перед которыми он должен дать ответ в каждом своем слове. Журнальная
418 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

критика по большой части была каким-то гаэрством. Как хвалили книгу


покровительствуемого автора? Не говорили просто, что такая-то книга
хороша или достойна внимания в таком-то и таком-то отношении, совсем
нет. «Это книга, - говорили рецензенты, - удивительная, необыкновенная,
неслыханная, гениальная, первая на Руси, продается по пятнадцати рублей;
автор выше Вальтер Скотта, Гумбольта, Гёте, Байрона. Возьмите, переплетите
и поставьте в библиотеку вашу; также и второе издание купите и поставьте
в библиотеку: хорошего не мешает иметь и по два экземпляра».
Большая часть книг была расхвалена без всякого разбора и совершенно
безотчетно. Если счесть все те, которые попали в первоклассные, то иной
подумает, что нет в мире богаче русской литературы, и только через
несколько времени противоположные толки тех же самых рецензентов о тех
же самых книгах заставят его задуматься и приведут в недоумение. Та же самая
неумеренность являлась в упреках сочинениям писателей, против которых
рецензент питал ненависть или неблагорасположение. Так же безотчетно
изливал он гнев свой, удовлетворяя минутному чувству.
2) Литературное безверие и литературное невежество. Эти два свойства
особенно распространились в последнее время у нас в литературе. Нигде не
встретишь, чтобы упоминались имена уже окончивших поприще писателей
наших, которые глядят на нас в лучах славы с вышины своей. Ни один из
критиков не поднял благоговейно глаз своих, чтобы их приметить. Никогда
почти не стоят на журнальных страницах имена Державина, Ломоносова,
Фонвизина, Богдановича, Батюшкова. Ничего о влиянии их, еще остающем-
ся, еще заметном. Никогда они даже не брались в сравнение с нынешнею
эпохой, так что наша эпоха кажется как будто отрублена от своего корня,
как будто у нас вовсе нет начала, как будто история прошедшего для нас
не существует. Это литературное невежество распространяется особенно
между молодыми рецензентами, так, что вообще современная критическая
литература совершенно похожа на наносную. Не успеет пройти год-другой,
как толки, вначале довольно громкие, уже безгласные, неслышные, как звук
без отголоска, как фразы, сказанные на вчерашнем бале. Имена писателей,
уже упрочивших свою славу, и писателей, еще требующих ее, сделались
совершенною игрушкою. Один рецензент роняет тех, которых поднял его
противник, и всё это делается без всякого разбора, без всякой идеи. Иное
имя бывает обязано славою своею ссоре двух рецензентов. Не говоря о пи-
сателях отечественных, рецензент, о какой бы пустейшей книге ни говорил,
непременно начнет Шекспиром, которого он вовсе не читал. Но о Шекспире
пошло в моду говорить - итак, подавай нам Шекспира. Говорит он: «С сей
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 391-420 419

точки начнем мы теперь разбирать открытую пред нами книгу. Посмотрим,


как автор наш соответствовал Шекспиру», а между тем разбираемая книга че-
пуха, писанная вовсе без всяких притязаний на соперничество с Шекспиром,
и сходствует разве только с духом и образом выражений самого рецензента.
3) Отсутствие чистого эстетического наслаждения и вкуса. Еще в
московских журналах видишь иногда какой-нибудь вкус, что-нибудь похожее
на любовь к искусству; напротив того, критики журналов петербургских,
особенно так называемые благопристойные, чрезвычайно ничтожны.
Разбираемые сочинения превозносятся выше Байрона, Гёте и проч.! Но
нигде не видит читатель, чтобы это было признаком чувства, признаком
понимания, истекло из глубины признательной, расстроенной души. Слог
их, несмотря на наружное, часто вычурное и блестящее убранство, дышит
мертвящею холодностию. В нем видна живость или горячая замашка
только тогда, когда рецензент задет за живое и когда дело относится к его
собственному достоинству. Справедливость требует упомянуть о критиках
Шевырева, как об утешительном исключении. Он передает нам впечатления
в том виде, как приняла их душа его. В статьях его везде заметен; мыслящий
человек, иногда увлекающийся первым впечатлением.
4) Мелочное в мыслях и мелочное щегольство. Мы уже видели,
что критика не занималась вопросом важным. Внимание рецензий было
устремлено на целую шеренгу пустых книг и вовсе не с тем, чтобы разбирать
их, но чтобы блеснуть любезностию, заставить читателя рассмеяться. До
какой степени критика занялась пустяками и ничтожными спорами, читатели
уже видели из знаменитого процесса о двух бедных местоимениях: сей и
оный. Вот до чего дошла наконец русская критика!
Кто же были те, которые у нас говорили о литературе? В это время
не сказал своих мнений ни Жуковский, ни Крылов, ни князь Вяземский, ни
даже те, которые еще не так давно издавали журналы, имевшие свой голос и
показавшие в статьях своих вкус и знание: нужно ли после этого удивляться
такому состоянию нашей литературы?
Отчего же не говорили сии писатели, показавшие в творениях своих
глубокое эстетическое чувство? Считали ли они для себя низким спуститься
на журнальную сферу, где обыкновенно бойцы всякого рода заводят свой
шумный бой? Мы не имеем права решить этого. Мы должны только заметить,
что критика, основанная на глубоком вкусе и уме, критика высокого таланта
имеет равное достоинство со всяким оригинальным творением: в ней виден
разбираемый писатель, в ней виден еще более сам разбирающий. Критика,
начертанная талантом, переживает эфемерность журнального существования.
420 Fabrício Yuri de S. Vitorino. “Sobre o rumo da literatura de revista nos anos de 1834 e 1835”:...

Для истории литературы она неоценима. Наша словесность молода.


Корифеев ее было немного; но для критика мыслящего она представляет
целое поле, работу на целые годы. Писатели наши отлились совершенно в
особенную форму и, несмотря на общую черту нашей литературы, черту
подражания, они заключают в себе чисто русские элементы: и подражание
наше носит совершенно северообразный характер, представляет явление,
замечательное даже для европейской литературы.
Но довольно. Заключим искренним желанием, чтобы с текущим годом
более показалось деятельности и при большем количестве журналов явилось
бы более независимости от монополии, а через то более соревнования
у всех соответствовать своей щели. По крайней мере заметно какое-то
утешительное стремление уже и в том, что некоторые журналы с будущим
годом обещают издаваться с большим противу прежнего рачением. Издатели
Сына отечества, издатель Телескопа заговорили об улучшениях. Нельзя
и сомневаться, чтобы при большем старании невозможно было сделать
большего. По крайней мере, со всем чистосердечием и теплою молитвою
излагаем желание наше: да наградятся старания всех и каждого сторицею, и
чем бескорыстнее и добросовестнее будут труды его, тем более да будет он
почтен заслуженным вниманием и благодарностию.

Referências
Caderno de Literatura e Cultura Russa número 1. São Paulo. Março, 2004.
DEBRECZENY, Paul. Social Functions of Literature: Alexander Pushkin and Russian
Culture. Stanford University Press, California, 1997.
DRIVER, Sam. Puskin: Literature and Social Ideas. Columbia University Press, New
York, 1989.
KAHN, Andrew. The Cambridge Companion to Pushkin. Cambridge University Press,
2006.
LÓTMAN, Iu. V chkole poetitcheskovo slova: Puchkin. Liermontov. Gogol’: kniga dlia
utchitelia. Prosveschenie, 1988.
PÚCHKIN, A. S. Sovriemennik, literaturnii jurnal, izdavaemii Aleksandrom Puchkinim.
Poln. sobr. sotch.: v 10 t. - 1977-1979.
VINOGRADOV, V. V. Slovar’ iazika Puchkina v 4 tomah. Azbukovnik, 2000.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 421

Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

Edelcio Americo1

Resumo: O objetivo do presente trabalho é trazer duas traduções do russo para o português: Notas petersburgue-
sas, escrita por Nikolai Gogol em 1836, e Dois caráteres, irmão e irmã, de 1841, escrita por Mikhail Zagóskin.
Palavras-chave: tradução literária; literatura russa.

O objetivo do presente trabalho é trazer duas traduções do russo para o


português: Notas petersburguesas, escritas por Nikolai Gogol em 1836, e Dois cará-
teres, irmão e irmã, de 1841, escrita por Mikhail Zagóskin. Para a contextualização
das obras supramencionadas, faço uma breve introdução do conceito de texto de
cidade: a tradução de lugares e da memória cultural em texto, cuja decodificação
nos oferece enorme ajuda na compreensão das obras artísticas.
A oposição Moscou e São Petersburgo tornou-se fato da história russa
desde o surgimento da nova capital, às margens do rio Nevá, por imposição do
Imperador Pedro, o Grande, em 1703, e atingiu todos os segmentos do desenvol-
vimento histórico-cultural da Rússia. Na cultura russa, desde então, começaram a
se formar divergências essenciais entre a nova e a velha capital, que representavam
dois conceitos políticos e fixavam dois tipos culturais.
O conceito de “texto” em relação à cidade, mais precisamente sobre São
Petersburgo, foi adotado inicialmente por Vladimir Toporov, em 1973,2 rendendo,
posteriormente, inúmeros trabalhos e gozando de grande popularidade.

1 Doutor em Letras – Russo pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Contato: [email protected].
2 TOPOROV, Vladimir. Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski em relação aos esquemas arcai-
cos do pensamento mitológico (O struktúre romana Dostoiévskogo v sviaí s arkhaítcheskimi skhiémami
mifologuítcheskogo mychliénia). In: Mito, ritual, símbolo, imagem (Mif, ritual, símvol, óbraz). Moscou: Progress,
1995, p. 193-258.
422 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

Para compreender como uma cidade pode ser representada em um texto


é preciso definir qual é a sua imagem na memória e no inconsciente popular. No
caso da literatura, o texto de uma cidade seria a sua imagem cultural expressa em
várias obras de diferentes autores e dotada de uma certa solidez semântica.
O texto de Moscou não pode ser plenamente compreendido sem levar em
consideração o texto de São Petersburgo e vice-versa. Petersburgo, em relação
à Moscou, é como uma árvore sem raiz. A sua raiz é Moscou, por representar o
contexto histórico cultural que faltava para a nova capital. De certa forma, São
Petersburgo “cresceu” de dentro de Moscou, é o seu fruto e a sua continuação:

Mas, essencialmente, os fenômenos de Petersburgo e Moscou no contexto


geral da Rússia, em suas diferentes fases não excluíam nem uma e nem outra,
as cidades se completavam, apoiavam e intercambiavam. As diferenças entre
as duas capitais decorriam não apenas de uma necessidade histórica, mas
daquela providencialidade que necessitava dos dois tipos, das duas estratégias,
dos dois caminhos de sua existência.3

Desse modo, para que o “texto de Petersburgo” exista, há a necessidade


da contraposição com a antiga capital:

Moscou, nesse caso, tem que ser considerada o membro líder da compara-
ção, pois a imagem de Petersburgo no “texto de São Petersburgo” se forma,
em muito, como um anti-modelo mitologizado de Moscou. Se trata da
característica mais importante, espacial, que combina os traços de diacronia
e de sincronia e que possui uma saída para as outras esferas (inclusive para a
esfera ética). O espaço de Moscou (corpo) contrapõe-se a Petersburgo e seu
espaço como algo orgânico, quase natural (daí a abundância das metáforas
vegetais nas descrições de Moscou), que apareceu por si mesmo sem vontade
de ninguém, sem planos, sem intervenção em oposição ao não-orgânico,
artificial, somente “cultural”, chamado à vida por uma vontade violenta, de
acordo com um esquema pensado, um plano, uma regra. Essa é a origem de
uma concretude especial e de uma realidade terrestre de Moscou, diferente
da Petersburgo abstrata, exagerada, fantasmagórica, “inventada”.4

Assim, por meio da constante correlação entre as duas capitais, surgiram


as principais características que diferem uma cidade da outra. Obviamente, seria

3 TOPOROV, Vladímir, São Petersburgo e “o texto de Petersburgo” da literatura russa. In: O texto de
Petersburgo da literatura russa. São Petersburgo: 2003, p. 22-23.
4 Idem, p. 20-21.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 423

incorreto dizer que, nessa relação, a Moscou foram atribuídas apenas qualidades
positivas, enquanto São Petersburgo recebeu só negativas. Ambas as cidades foram
marcadas tanto positiva quanto negativamente:

Justamente com base nessas ideias, em um determinado contexto criou-


-se, já há quase dois séculos, a contraposição atual entre Petersburgo e
Moscou. No geral, a demarcação dessas capitais formava-se conforme um
de dois esquemas possíveis. Segundo um deles, a Petersburgo desalmada,
burocrática, militar, oficial, regular de maneira antinatural, abstrata, desa-
conchegante, jacente, não russa, contrapunha-se à Moscou cordial, familiar,
íntima, patriarcal, aconchegante, “materialmente real”, natural, russa. Se-
gundo o outro esquema, Petersburgo, como uma cidade civilizada, cultural,
organizada de maneira planejada, correta e lógica, harmoniosa e europeia,
contrapunha-se a Moscou que parecia uma aldeia caótica, desordenada,
semi-asiática, contrária à lógica.5

Além disso, desde os tempos mais remotos, o homem relacionava os lugares


que conhecia a deuses ou espíritos locais. Nessa personificação, a Terra sempre
foi ligada à imagem feminina, materna. Em muitas culturas existem divindades
femininas que personificam a Mãe-Terra e, provavelmente, a mais conhecida delas
seja a deusa grega Gaia. Não é por acaso que em muitas línguas as palavras terra
e país pertencem ao gênero feminino. Embora em russo a palavra cidade, górod,
seja do gênero masculino, muitos dos topônimos das cidades russas são do gênero
feminino, basta lembrar Moscou (em russo, Moskvá), Samara, etc. Entre os países,
muitos também pertencem ao gênero feminino: Rússia, Inglaterra, Alemanha,
França e assim por diante.
Em geral, Moscou costuma ser descrita ou como uma senhora (ou viúva),
ou como uma moça (noiva, namorada). A imagem de Moscou como uma “velha
caseira” surgiu a partir da segunda metade do século XVIII, quando São Peters-
burgo passou a ser associada à ideia de progresso. Em comparação com a nova
capital em crescimento, Moscou começou a ser percebida como “mais arcaica do
que era”.6 Essa ideia foi claramente enunciada por Aleksandr Púchkin, que em
Viagem de Moscou para Petersburgo afirma:

5 Idem. P. 16.
6 IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorítcheskom dvijénii).
In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro et Contra Moskvá – Peterburg). Moscou: RGKHI, 2000, p. 10.
424 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

A decadência de Moscou é uma consequência inevitável da elevação de


Petersburgo. As duas capitais não podem igualmente florescer dentro do
mesmo Estado, assim como dois corações não coexistem no corpo humano.7

A inversão de características entre as cidades novamente aconteceu após a


transferência da capital, dessa vez de Petrogrado, como era chamada São Peters-
burgo entre os anos de 1914 e 1924, para Moscou. Aliás, Moscou nunca mudou de
nome, aqui podemos destacar mais uma oposição: transformação x estabilidade.
Quando em 1919 Moscou volta a ser capital ela adquire traços que antes
eram tipicamente petersburgueses: se torna a cidade que carrega a força desuma-
na do poder oficial. A partir de então, é como se as duas cidades trocassem de
lugar: dessa vez é Moscou que se transforma em um palco de acontecimentos
verdadeiramente fantásticos e diabólicos. Não é por acaso que no romance de
Mikhail Bulgákov, Mestre e Margarida (1940), um dos personagens principais, o
Diabo, escolhe justamente Moscou para sua aparição quando quer conhecer o
novo país soviético e o seu povo.
Moscou torna-se uma cidade contemporânea, que segue as últimas tendên-
cias europeias, já São Petersburgo passa a ser vista como uma capital da província
russa. São Petersburgo permanece como guardião das tradições e da cultura auten-
ticamente russa, enquanto Moscou se mostra submersa no ecletismo dos estilos.
Apresento abaixo a tradução de dois textos, escritos na primeira metade do
século XIX, e dedicados à imagem de Moscou e à sua oposição a então capital,
São Petersburgo. Vale ressaltar que o período que compreende o final do século
XVIII até o final do século XX foi de intensificação das controversas entre as duas
cidades. Uma das consequências inevitáveis da europeização da Rússia iniciada
por Pedro, o Grande, foi a questão do caminho que o país deveria seguir: imitar
a Europa ou buscar a autenticidade nacional. Nessa discussão, Moscou passou
a representar o tradicional e costumeiro, enquanto São Petersburgo se tornou o
símbolo do alheio e estrangeiro.
Os textos traduzidos representam apenas uma parte de um volumoso corpo
de textos dedicados às relações entre Moscou e Petersburgo. Aliás, são poucos os
textos que mencionam somente Moscou, sem mencionar a capital do Norte. Esse
fato serve como mais uma prova de que os textos das duas capitais não podem
ser analisados separadamente por serem, na verdade, dois lados de uma mesma
cultura, opostos, porém interligados.

7 IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorítcheskom dvijénii).
In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro et Contra Moskvá – Peterburg). Moscou: RGKHI, 2000, p. 11.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 425

O ensaio Notas petersburguesas, de 1836, escrito por Nikolai Gógol (1809-


1852) é um dos textos que melhor representa o bicentrismo na cultura russa, bem
como o caráter feminino de Moscou e masculino de São Petersburgo. Nele, temos
uma das melhores definições para o embate cultural estabelecido na famosa frase:
“a Rússia precisa de Moscou; Petersburgo precisa da Rússia”.
O ensaio de Mikhail Zagóskin (1789-1852) Dois caráteres. Irmão e irmã, de
1841, retoma vários dos temas inicialmente abordados por Gógol, entre eles os
traços femininos que a cidade de Moscou adquiriu na cultura russa em oposição
ao caráter masculino de São Petersburgo.

Notas petersburguesas de 18368 (Nikolai Gógol, excerto)

...Vejam só onde foi parar a capital russa, no fim do mundo! Como é estra-
nho esse povo russo: a capital era em Kiev, lá era quente demais, fazia pouco frio;
a capital mudou para Moscou, não, lá também fazia pouco frio: que Deus nos dê
São Petersburgo! A capital russa aprontará uma daquelas ao se avizinhar do Polo
Norte. Digo isso pois ela está salivando para ver os ursos brancos de perto. “Correr
para setecentas verstas longe da mãezinha! Mas que ágil!”, diz o povo moscovita,
apertando os olhos para o lado finlandês. Em compensação, que barbárie que há
entre a mãezinha e o filhinho! Que vista, que natureza! O ar repleto de neblina;
na terra pálida, cinza e verde, cepos queimados, floresta de abetos, barrancos...
Ainda bem que a estrada voa como uma flecha e as tróicas tilintantes o levarão
embora em um instante. E que diferença, mas que diferença entre esses dois! Ela
ainda é uma barba russa, ele já é um alemão asseado. Como se estendeu, como se
ampliou a velha Moscou! Como ela está despenteada! Como se juntou, como se
retesou o janota Petersburgo! Diante dele há espelhos por todos os lados: aqui está
o Nevá, ali o Golfo da Finlândia. Ele tem onde se olhar. É só ver uma pluminha
ou sujeirinha, que no mesmo instante segue um piparote. Moscou é uma velha
caseira, faz panquecas, olha de longe e escuta histórias sobre o que acontece no
mundo sem se levantar das poltronas; Petersburgo é um rapaz desembaraçado,
nunca fica em casa, sempre está bem vestido, passeia na fronteira e se enfeita para
a Europa, a qual vê, mas não ouve.
Petersburgo se mexe inteiro, das adegas até os sótãos; à meia-noite começa
a assar pães franceses que amanhã comerá o povo alemão, e a noite inteira brilha

8 O ensaio Notas petersburguesas de 1836 foi publicado pela primeira vez na revista Sovremiénnik, em 1837,
volume VI.
426 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

um de seus olhos, ou o outro; Moscou à noite dorme inteira, e, no dia seguinte,


após persignar-se e fazer reverências para todos os lados, sai para vender roscas
na feira. Moscou é do gênero feminino; São Petersburgo, masculino. Em Moscou,
todas são noivas; em São Petersburgo, todos são noivos. Petersburgo observa
grande decência em suas vestimentas, não gosta de cores variadas nem de quaisquer
alterações bruscas ou impertinentes da moda; em compensação, Moscou exige
que, caso tenha virado moda, que seja como deve ser: se a cintura deve ser com-
prida, ela a deixa ainda mais comprida; se as lapelas da casaca devem ser grandes,
as dela serão como portas de um galpão. Petersburgo é um homem ordenado,
um alemão completo, olha para tudo fazendo contas, e, antes de dar uma festa,
confere o bolso; Moscou é uma nobre russa, e se ela se diverte, faz isso até cair e
não se preocupa se vai gastar mais do que tem no bolso: ela não gosta de meio-
-termo. Em Moscou todas as revistas, por mais científicas que sejam, terminam
com um desenho de moda; as petersburguesas raramente acrescentam desenhos,
e, quando adicionam um, quem olha sem estar acostumado pode tomar um sus-
to. As revistas moscovitas falam de Kant, Schelling etc., etc.; nas revistas de São
Petersburgo só se fala do público e de boas intenções... Em Moscou, as revistas
andam junto com o século, mas as edições saem atrasadas; em Petersburgo, as
revistas não andam junto com o século, mas saem em ordem, no tempo previsto.
Em Moscou, os literatos perdem dinheiro, em São Petersburgo ganham. Moscou
sempre vai de carruagem, enrolada no casaco de pele de urso e, geralmente, para
o almoço; Petersburgo, de sobrecasaca de flanela, colocando ambas as mãos nos
bolsos, voa a todo vapor para a bolsa ou “para o serviço”. Moscou pandega até
quatro horas da madrugada e no dia seguinte não se levanta da cama antes de
uma e pouco; Petersburgo também farreia até as quatro, porém, no dia seguinte,
como se nada tivesse acontecido, apressa-se, com sua sobrecasaca de flanela, para
a repartição pública. A Rússia arrasta-se até Moscou com dinheiro no bolso e
volta sem nada; já em Petersburgo as pessoas chegam sem dinheiro e saem para
qualquer canto do mundo com um capital considerável. A Rússia arrasta-se de
kibitka9, pelos barrancos do inverno, até Moscou para vender e comprar, já para
São Petersburgo o povo russo vai a pé, no verão, para construir e trabalhar. Mos-
cou é um armazém, empilha as trouxas e cargas e nem se digna a olhar para um
vendedor pequeno. Petersburgo dissipou-se em pedacinhos, dividiu-se, expôs-se
em lojinhas e mercados e está atrás dos pequenos compradores. Moscou diz: “Se
o comprador precisar, ele achará”; Petersburgo empurra as placas para debaixo

9 Kibitka: trenó coberto.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 427

do seu nariz, cava mais um piso para instalar embaixo uma loja de vinhos e coloca
o ponto de cocheiros bem na porta da sua casa. Moscou não olha para os seus
moradores e manda mercadorias para toda a Rússia; Petersburgo vende gravatas
e luvas para os seus funcionários. Moscou é uma grande galeria de lojas; Peters-
burgo é um mercado iluminado. A Rússia precisa de Moscou; Petersburgo precisa
da Rússia. Em Moscou é difícil encontrar um botão de brasão10; em Petersburgo
não existe casaca sem botões. Petersburgo gosta de zombar de Moscou, do seu
mau gosto, por ela ser desajeitada e deselegante; Moscou cutuca Petersburgo por
ele ser um homem venal e não saber falar o russo. Em Petersburgo, na Avenida
Niévski, passeiam, às duas horas, pessoas que parecem ter saído das ilustrações
de jornais de moda; nas janelas, até as velhas têm cinturas tão finas que chega a
ser engraçado; em Moscou, na rua sempre é possível encontrar uma tiazinha com
lenço na cabeça e já sem cintura alguma. Eu diria ainda mais algumas coisas, mas...
A distância é enorme!11

Николай Гоголь

ПЕТЕРБУРГСКИЕ ЗАПИСКИ 1836 ГОДА.

...В самом деле, куда забросило русскую столицу -- на край света!


Странный народ русский: была столица в Киеве -- здесь слишком тепло, мало
холоду; переехала русская столица в Москву -- нет, и тут мало холода: подавай
бог Петербург! Выкинет штуку русская столица, если подсоседится к ледяному
полюсу. Я говорю это потому, что у ней слюна катится поглядеть вблизи на
белых медведей. «На семьсот верст убежать от матушки! Экой востроногой
какой!» -- говорит московский народ, прищуривая глаз на чухонскую сторону.
Зато какая дичь между матушкою и сынком! Что это за виды, что за природа!
Воздух продернут туманом; на бледной, серо-зеленой земле обгорелые пни,
сосны, ельник, кочки... Хорошо еще, что стрелою летящее шоссе да русские
поющие и звенящие тройки духом пронесут мимо. А какая разница, какая
разница между ими двумя! Она еще до сих пор русская борода, а он уже
аккуратный немец. Как раскинулась, как расширилась старая Москва! Какая

10 Botão de brasão: botões de casaca que eram uma espécie de cartão de visita tanto dos militares como
dos funcionários, e apenas a nobreza com direito ao título hereditário podia utilizá-los.
11 Aqui Gógol cita as palavras de Skalozub, um dos protagonistas da peça Górie ot umá de Aleksandr
Griboiédov: Onde é possível encontrar uma capital como Moscou? A distância é enorme.
428 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

она нечесанная! Как сдвинулся, как вытянулся в струнку щеголь Петербург!


Перед ним со всех сторон зеркала: там Нева, там Финский залив. Ему есть
куда поглядеться. Как только заметит он на себе перышко или пушок, ту
ж минуту его щелчком. Москва -- старая домоседка, печет блины, глядит
издали и слушает рассказ, не подымаясь с кресел, о том, что делается в
свете; Петербург -- разбитной малый, никогда не сидит дома, всегда одет и,
охорашиваясь перед Европою, раскланивается с заморским людом.
Петербург весь шевелится, от погребов до чердака; с полночи
начинает печь французские хлебы, которые назавтра все съест немецкий
народ, и во всю ночь то один глаз его светится, то другой; Москва ночью
вся спит, и на другой день, перекрестившись и поклонившись на все четыре
стороны, выезжает с калачами на рынок. Москва женского рода, Петербург
мужеского. В Москве всё невесты, в Петербурге всё женихи. Петербург
наблюдает большое приличие в своей одежде, не любит пестрых цветов
и никаких резких и дерзких отступлений от моды; зато Москва требует,
если уж пошло на моду, то чтобы во всей форме была мода: если талия
длинна, то она пускает ее еще длиннее; если отвороты фрака велики, то у
ней, как сарайные двери. Петербург -- аккуратный человек, совершенный
немец, на всё глядит с расчетом и прежде, нежели задумает дать вечеринку,
посмотрит в карман; Москва -- русский дворянин, и если уж веселится,
то веселится до упаду и не заботится о том, что уже хватает больше того,
сколько находится в кармане; она не любит средины. В Москве все журналы,
как бы учены ни были, но всегда к концу книжки оканчиваются картинкою
мод; петербургские редко прилагают картинки; если же приложат, то с
непривычки взглянувший может перепугаться. Московские журналы говорят
о Канте, Шеллинге и проч. и проч.; в петербургских журналах говорят только
о публике и благонамеренности... В Москве журналы идут наряду с веком,
но опаздывают книжками; в Петербурге журналы нейдут наравне с веком, но
выходят аккуратно, в положенное время. В Москве литераторы проживаются,
в Петербурге наживаются. Москва всегда едет, завернувшись в медвежью
шубу, и большею частию на обед; Петербург в байковом сюртуке, заложив
обе руки в карман, летит во всю прыть на биржу или «в должность». Москва
гуляет до четырех часов ночи и на другой день не подымется с постели
раньше второго часу; Петербург тоже гуляет до четырех часов, но на другой
день, как ни в чем не бывал, в девять часов спешит в своем байковом сюртуке
в присутствие. В Москву тащится Русь с деньгами в кармане и возвращается
налегке; в Петербург едут люди безденежные и разъезжаются во все стороны
света с изрядным капиталом. В Москву тащится Русь в зимних кибитках по
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 429

зимним ухабам сбывать и закупать; в Петербург идет русский народ пешком


летнею порою строить и работать. Москва -- кладовая, она наваливает
тюки да вьюки, на мелкого продавца и смотреть не хочет; Петербург весь
расточился по кусочкам, разделился, разложился на лавочки и магазины и
ловит мелких покупщиков. Москва говорит: «коли нужно покупщику, сыщет»;
Петербург сует вывеску под самый нос, подкапывается под ваш пол с «Ренским
погребом» и ставит извозчичью биржу в самые двери вашего дома. Москва
не глядит на своих жителей, а шлет товары во всю Русь; Петербург продает
галстухи и перчатки своим чиновникам. Москва -- большой гостиный двор;
Петербург -- светлый магазин. Москва нужна для России; для Петербурга
нужна Россия. В Москве редко встретишь гербовую пуговицу на фраке; в
Петербурге нет фрака без гербовых пуговиц. Петербург любит подтрунить
над Москвою, над ее аляповатостью, неловкостью и безвкусием; Москва
кольнет Петербург тем, что он человек продажный и не умеет говорить
по-русски. В Петербурге, на Невском проспекте, гуляют в два часа люди,
как будто сошедшие с журнальных модных картинок, выставляемых в окна,
даже старухи с такими узенькими талиями, что делается смешно; на гуляньях
в Москве всегда попадется в самой середине модной толпы какая-нибудь
матушка с платком на голове и уже совершенно без всякой талии. Сказал
бы еще кое-что, но --
Дистанция огромного размера!..

Dois caráteres (Mikhail Zagóskin)

Irmão e Irmã12
Caso vocês não os conheçam pessoalmente, decerto já ouviram falar deles.
Sem essa certeza eu não estaria aqui descrevendo esses dois caráteres, nos quais
não há nada de significativo e especial a não ser certa estranha oposição, apesar
de nos referirmos não a irmãos de criação ou primos, mas a irmãos de sangue, ou
seja, nascidos de uma mesma mãe. A educação dada a ambos foi igual, pelo menos
tiveram o mesmo professor; uma pessoa muito inteligente, um pouco severa, é
verdade, porém imparcial e amiga de verdade. Quando começou a ensiná-los, o
irmão era um bebê, enquanto a irmã já era uma jovem; o irmão vivia com ele em
um quarto, enquanto a irmã vivia em seu próprio cômodo; dessa forma, entende-

12 O artigo Dois caracteres foi publicado pela primeira vez na revista Moskvitiánin, em 1841, parte 2,
No 2.
430 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

-se que o professor passava mais tempo com seu aluno do que com sua aluna, do
que concluíram que ele amava mais o irmão, porém isso é uma completa calúnia.
Mas não é essa a questão.
Já lhes contei que a irmã era bem mais velha que o irmão, e, portanto, não
é de se admirar que na aparência eles fossem diferentes um do outro: ele é um
rapaz jovem, enquanto ela é uma senhora; ele não tem sequer uma ruga na face, e
ela, coitada, por mais que se maquie, avermelhe as bochechas ou pinte os cabelos,
os cachos grisalhos aparecem mesmo assim por debaixo do chapéu da moda. O
maninho tem aparência bela e jovial, arrumado, sempre em posição de sentido,
esbelto, aprumado, com cinto apertado, dando ao corpo forma de um cálice,
abotoado com todos os botões; a irmã, ao contrário, é uma senhora avantajada
e corpulenta, mantém-se bastante desleixada, gosta de fazer caretas, não suporta
nenhuma imposição, anda com roupa desabotoada e, como uma bela e mimada
concubina do harém, fica se espreguiçando o dia todo em seus travesseiros de
pluma de ganso. Entretanto, não podemos deixar de ser justos com ela: ela é mestre
em escolher suas posições e dar a elas uma graciosidade singular. Conheço muitos
que gostam bem menos dos movimentos corretos e das poses estéticas do irmão,
do que da maneira descuidada e modos pouco europeus da irmã.
O irmão anda muito a pé, não tem medo do aperto e gosta de viver no alto:
ele não se assusta com escadas, nem as de duzentos degraus. É difícil encontrar uma
pessoa que aprecie tanto limpeza e asseio quanto ele. Da mesma forma ele gosta
em excesso de uniformidade e simetria: caso um lado do colarinho de sua camisa
estiver aparecendo meio verchok13 debaixo da gravata, podem ter certeza de que do
outro lado não aparecerá nem um centímetro a mais ou a menos. Quando a velha
moda de usar dois relógios voltar, seguida pelos extravagantes móveis Rococó,
ele, sem dúvida alguma, será o primeiro a aparecer usando dois relógios, para que
do lado esquerdo do seu colete esteja pendurada uma corrente com chave, assim
como do lado direito. No geral ele é muito elegante e no inverno veste moda leve,
possivelmente porque na Itália e na França ninguém use casacos de pele de urso.
Mesmo com um frio intenso ele prefere deixar as orelhas congelarem a usar o
nosso gorro russo junto com seu chapéu europeu arredondado.
A irmã não gosta de andar a pé nem de andar em carruagem puxada por
dois cavalos a tal ponto que até mesmo à missa em sua paróquia não vai de outra
forma a não ser em carruagem puxada por quatro cavalos. Ela decididamente
não consegue viver no aperto; ela precisa de muito espaço, ou seja: de uma casa

13 Antiga unidade russa de medida equivalente a 4,4 cm.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 431

diferenciada, cômodos grandes e altos, vastos serviços, e mais do que tudo, de


um amplo pátio, mesmo que sujo, com um pequeno jardim no qual devem ser
plantados, necessariamente, sabugueiro, lilás e acácia; assim como seu irmão, ela
gosta de calçadas de granito, das maravilhosas pontes marginais de ferro fundido,
das margens do rio revestidas de grama, jardins, rosas e até mesmo de hortas de
repolho e batata. Basta dar uma olhada nela para ter certeza de seu completo ódio
por qualquer uniformidade e simetria. Olhem para o adorno em sua cabeça. Que
mistura! Que junção de cores vivas que não possuem entre si nenhuma harmonia!
Que estranha combinação do velho com o novo! Sobre o adorno de pérolas dessa
senhora russa estão presas flores de loja francesa; em meio a colares de pérolas
pesados brilha um broche à nova moda Sevigne14; nas mãos, luvas longas de pelica;
nos pés, botas pretas com bordas vermelhas; em um dos braços, um bracelete
parisiense, em outro, uma pulseira com pedras preciosas, uma verdadeira casa de
penhor. O que vocês acham? Apesar dessa variedade e falta de gosto, ninguém terá
coragem de dizer que esse traje é de mau gosto; pode ser até que vocês gostem.
Aliás, é preciso dizer que essa é a roupa para ficar em casa, pois quando ela sai,
juro que é impossível diferenciá-la de uma francesa; só não exijam que ela, por
conta da moda europeia, deixe congelar seu nariz e orelhas: isso ela não fará por
nada, e, se estiver frio, vestirá imediatamente por cima de uma touca de tule, um
gorrinho quente, e não sentirá vergonha alguma de, mesmo no mês de abril, sair
para passear com um casaco de pele de raposa, apesar de haver em seu guarda-
-roupa abrigos e até mesmo casacos que ela encomendou diretamente de Paris.
Há pouco tempo o irmão conseguiu uma casa. Incomparavelmente mais
rico do que a irmã, ele não é avarento, no entanto, é ponderado; já ela é uma gran-
de governanta e está sempre sem dinheiro. O irmão não costuma dar festas com
frequência, mas quando dá é realmente de causar inveja: com muito bom gosto,
com luxo, em uma palavra: uma maravilha! A irmã é muito hospitaleira; é claro, ela
nem sempre serve bem, e o vinho dela, vez ou outra, é servido com muito custo;
por outro lado, o irmão convida para o almoço, mas em seguida tranca o portão
e por mais que você toque a campainha, ele nunca atende; já a irmã está sempre
de portas abertas! As portas dela, sem sino e portão, estão sempre escancaradas.
O irmão é muito inteligente, enquanto a irmã é demasiadamente ingênua; ele é
ponderado, frio e desde a manhã até a noite está ocupado; ela é bondosa, amável
e fica o dia todo sem fazer nada. Ele aprecia o que é belo prazerosamente e não
economiza com isso; ela se encanta com tudo que é incomum e quer possuir tudo

14 Broche oval com três pingentes.


432 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

só que pelo valor mais barato possível. Pelo último item não há como julgá-la: de
que modo ela poderia competir com o irmão! E eis o que é estranho: se ela mesma
sente que não pode esbanjar dinheiro como o irmão, então por qual motivo quer
que a divirtam, assim como divertem ao seu irmão? Pois ela é uma senhora russa
e deveria conhecer o antigo provérbio: “vive-se de acordo com as posses”. O ir-
mão, assim como todas as pessoas ricas, gosta que o entretenham com novidades;
entretanto, não faz pouco caso do antigo, quando é bom. A irmã não tolera nada
que seja velho: sempre tem que ter algo novo. É tão leviana, que não dá nem para
falar! Hoje ela gosta de uma coisa, amanhã de outra; por exemplo, certa vez ela
colocou na cabeça que iria gostar do teatro francês até a morte e simplesmente
perdeu o juízo. “Quero o teatro francês! Não posso viver sem o teatro francês!” Fez
um escândalo e tanto! “Eu não me importo com dinheiro! Não me arrependerei
de nada: colocarei até o meu último bem na casa de penhor, quero apenas o teatro
francês!” E seja qual for o teatro francês a irmã se encanta: “Que perfeição! Que
talento! Que canto harmônico! Simplesmente uma maravilha!” Ela vai então ver
teatro francês uma vez, outra, uma terceira vez, e depois disso não aparece nunca
mais! Claro que isso não era difícil de prever, porque a minha senhora é russa, e
isso ela faz só para se gabar e fingir-se de francesa; mas o difícil é explicar como,
segundo as palavras dela, o teatro russo pode ser tão ruim, e o teatro francês ser
tão maravilhoso, a ponto dela se divertir só com ele! O que vocês acham disso?
Chegava a ferir as pernas de seus lacaios de tanto enviá-los, todos os dias, atrás
de bilhetes para o teatro russo, por outro lado, não queria sequer dar uma olhada
no teatro francês; e que traquinagem; ela jurava a todos que não frequentava mais
o teatro francês por não conseguir camarotes; mas há muitos diretores e é bem
provável que o próprio diretor conseguisse um para ela.
O irmão é uma pessoa calada, não diz sequer uma palavra em vão; já a irmã
é uma tagarela, Deus me livre! E se a conversa for sobre notícias, “se não gosta
não ouça”: o fulano casou, ciclano morreu e o terceiro subiu de classe; e se não
aconteceu nada, então não interessa! E como depois disso não desculpar o irmão
por ele às vezes fazer piadas de sua irmã mais velha? Porém, tenho certeza de que
ele a ama e respeita de verdade, e a amaria e respeitaria ainda mais se a conhecesse
mais de perto. Me esqueci de mencionar que eles sempre vivem separados. A irmã,
é lógico, tem seus defeitos; mas em compensação é uma mulher tão cordial, hos-
pitaleira e de bom coração, que, apesar de todas as suas estranhezas e caprichos, é
impossível não amá-la. Posso dizer por mim mesmo: uma vez a conhecendo, de
modo algum se quer ficar longe dela.
Tanto o irmão, quanto a irmã sofreram com grandes desgraças, só que
nisso os fatos não tiveram nenhuma relação. O irmão sempre sofreu com a água,
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 433

enquanto a irmã sofreu com o fogo. Certa vez ele se afundou nas águas, enquanto
ela, umas quatro vezes, por pouco não morreu nas chamas; é verdade que, da última
vez, ela mesma ateou fogo em sua própria casa; eu mesmo fui testemunha disso.
Vocês já sabem que ela é muito leviana e crédula; por exemplo, alguns ga-
barolas disseram a ela sabe deus o que sobre um monsieur, diabrete e desordeiro,
que ele era amável, bondoso e educado! Minha senhora ficou maluca, delirou por
ele dia e noite. Esses rumores chegaram até ele. É preciso dizer que esse monsieur
é uma pessoa cheia de amor-próprio e se considera o melhor de todos. Eis que
ele colocou na cabeça que a nossa senhora se apaixonou por ele completamente:
já haviam dito a ele que se tratava de uma mulher rica, de posse; dessa forma,
não é de se admirar que os olhos desse monsieur brilharam quando o assunto foi
a riqueza dela: “Espere!” - disse ele; “A visitarei! Não é perto, mas eu tenho um
bom cocheiro, chegarei logo. Ela, é claro, correrá ao meu encontro e se atirará em
meu pescoço; prometerei mundos e fundos, farei vários gracejos e me derreterei e
direi, ao me despedir: Senhora! Eu estou feliz com você! Minha espera foi recom-
pensada, eu a amo! E assim por diante.” Mas nada disso! O monsieur na verdade
chegou ao pátio dela rápido demais, aguardou, aguardou e não a encontrou, então
ele, sem ser anunciado, foi para o cômodo. Meu Deus! Como isso enfureceu a
senhora. “Como você se atreve? Quem lhe deu permissão? Por um acaso eu lhe
convidei? Ah, seu insolente!... Fora daqui, já!” Qualquer outro ficaria envergonha-
do, mas esse monsieur era um cabeça-dura; ele já estava acostumado a perambular
por propriedades alheias. Apesar do aborrecimento pelo fato de o receberem
com tanta indelicadeza, ele, mesmo assim, decidiu hospedar-se por lá. Vestiu um
roupão, ajeitou seu gorro e se acomodou na casa dela como se lá fosse sua própria
casa. “Já que é assim, – disse a senhora, meu amigo, eu o enxotarei!” – Ela então
chamou a estaroste Vassilíssa e a ordenou municiar todas as criadas com o que tivesse
à mão: vassoura, atiçador, e assim, ela mesma ateou fogo em sua própria casa e se
escondeu. O monsieur não apreciava nem um pouco o nosso inverno russo, e com
o fogo da mesma forma ele também não se deu. Eis que quando ele percebeu
que o queriam assar vivo saiu correndo! E então o atacaram dos esconderijos!
Ele até tentou mostrar as garras; em vão! Não deixaram o rapaz voltar a si!
Monsieur, pernas pra que te quero! E no seu encalço, no encalço, apenas a cabeça
ficou intacta, já os quadris estavam tão machucados que ele, de maneira alguma
conseguiria se arrastar até sua casa, se as pessoas de bom coração não o tivessem
levado de trenó. Sem dúvida alguma, essa atitude heroica e a abnegação de nossa
senhora foram descritos em prosa e verso em periódicos, mas ela, minha flor, de
modo algum se orgulhava disso, e sequer guardava rancor, tanto que, logo após
o ocorrido que a fez passar o monsieur, ela lhe enviou um cartão e ordenou que
434 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

buscassem informações sobre a sua saúde. Tudo isso é extremamente elogiável,


mas tem uma coisa pela qual não dá para elogiá-la: já há certo tempo, parece-me
que ela, por compaixão a esse desordeiro, arruinou-se completamente e o pior,
novamente se apaixonou por ele, ou fingiu estar apaixonada, sabe lá Deus! Por
mais que dessa vez ela não faça dengo, já não vai fazer o monsieur de bobo outra
vez! Ele deve pensar: “Não, madame, estás brincando! Chega de lançar olhares,
nós a conhecemos! O quê, novamente passei a ser o queridinho? Sou uma pessoa
instruída, eu mesmo sou educado e educo todos e assim por diante.”; mas apenas
experimente se meter! Você vai ser considerado um atiçador.
Eu poderia continuar ainda mais a comparação do irmão com a irmã mas,
com certeza, vocês já devem saber de quem estamos falando e podem continuar
essa comparação vocês mesmos. Mas, se ainda não descobriram quem é o irmão
e quem é a irmã, então eu terei de dizer-lhes quem são eles... Ou melhor não!
...Tenho medo! Eles são pessoas inteligentes e bondosas e acho que não ficarão
zangados com a brincadeira mas, sabe-se lá, pode ser que se ofendam se eu os
chamar pelos seus respectivos nomes.

1841

«Два характера»

Брат и сестра (Михаил Загоскин)

Если вы их не знаете лично, то уж, верно, знакомы с ними


понаслышке: без этой уверенности я бы не стал вам описывать два характера,
в которых нет ничего особенно замечательного, кроме какой-то странной
противоположности между собой, несмотря на то, что эти брат и сестра - не
сводные, не двоюродные, а единокровные, то есть: родились от одной и той
же матери. Воспитание получили они также одинаковое - по крайней мере,
учитель был у них один: человек очень умный, немного крутой - это правда,
но зато совершенно беспристрастный и истинный их друг. Когда он взял
их на выучку, брат был ребенком, а сестра уж девица взрослая; брат жил с
ним в одной комнате, а сестра на своей половине, - так, разумеется, он был
чаще со своим учеником, чем со своей ученицей; а из этого и заключили,
что он больше любил брата, чем сестру - только это совершенная клевета.
Да дело не о том.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 435

Я уж сказал вам, что сестра гораздо старее годами своего брата,


следовательно, вовсе не удивительно, что по наружности они не походят
друг на друга: он малый молодой, она пожилая барыня; у него нет ни одной
морщины на лице, а у нее, бедняжки - как она ни белится, ни румянится,
как ни красит волосы, - а все седые локоны так из-под модной шляпки и
выглядывают. Братец смотрит молодцом, выправлен, всегда навытяжке,
строен, подборист, затянут в рюмочку и застегнут на все пуговицы; сестра,
напротив, плотная, дородная барыня, держит себя весьма нерадиво, любит
покривляться, не терпит никакого принуждения, ходит нараспашку и, как
избалованная красавица гарема, нежится с утра до вечера на своих пуховых
подушках. Нельзя, однако ж, не отдать ей справедливости: она большая
мастерица выбирать свои положения и придавать им какую-то особенную
грациозность. Я знаю многих, которым правильные движения и эстетические
позы брата гораздо менее нравятся, чем небрежная манера и вовсе не
европейские ухватки сестры.
Брат много ходит пешком, не боится тесноты и любит жить высоко:
его не испугает лестница и в двести ступеней. Трудно найти человека,
который уважал бы более его чистоту и опрятность. Он также чрезвычайно
любит единообразие и симметрию: если один воротничок его рубашки
выпущен из-под галстуха на полвершка, так уж будьте уверены, что другой
ни на волосок не выставится ни больше, ни меньше этого. Когда старая мода
носить по двое часов вернется к нам вслед за вычурной мебелью Rococo, -
то, без всякого сомнения, он первый явится с двумя часами, для того чтоб на
левой стороне его жилета висела цепочка с ключиком, так же как и на правой.
Вообще, он большой щеголь, и зимой одевается отлично легко, вероятно,
потому, что в Италии и Франции никто не носит медвежьих шуб. В самый
сильный холод он скорее решится отморозить себе уши, чем надеть вместо
своей круглой европейской шляпы нашу теплую русскую шапку.
Сестра ходить пешком не охотница и до того не любит ездить парою
в карете, что даже к обедне в свой приход не поедет иначе, как четверней.
Жить в тесноте она решительно не может; ей надобен простор, то есть:
особый дом, высокие, большие комнаты, обширные службы, а пуще всего
хотя грязный, да просторный двор с небольшим садиком, в котором должны
расти непременно: бузина, сирень и акации; точно так же, как ее брат
любит гранитные тротуары, великолепные набережные и чугунные мосты,
она любит берега реки, обросшие травою, сады, розы и даже огороды с
капустою и картофелем. Стоит только на нее взглянуть, чтобы увериться в ее
совершенной ненависти ко всякому единообразию и симметрии. Посмотрите
436 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

на ее головной убор - какая пестрота! какое смешение ярких цветов, не


имеющих меж собой никакой гармонии! какое странное сближение старого
с новым! Над жемчужной поднизью старинной русской боярыни приколоты
цветы из французского магазина; посреди тяжелых ожерельев и монист
блестит новомодное севинье; на руках длинные лайковые перчатки; на ногах
черные коты с красною оторочкою; на одной руке парижский браслет, на
другой запястье, осыпанное драгоценными каменьями, - ну точно меняльная
лавка! - И что ж вы думаете?.. Несмотря на эту пестроту и безвкусие, у вас
язык не повернется сказать, что этот наряд дурен, - может быть, он вам даже
и понравится. Впрочем, надобно вам сказать, что это наряд домашний, а
когда она выезжает, так, уверяю вас, вы не распознаете ее от француженки;
- только не требуйте от нее, чтобы она ради европейства отморозила себе
нос или уши: этого она ни за что не сделает, и, если холодно, так наденет
непременно сверх тюлевого чепца теплую шапочку и вовсе не постыдится
даже в апреле месяце выйти погулять в салопе на лисьем меху, несмотря на
то, что в ее гардеробе есть и клоки, и манто, и даже бурнус, который она
выписала прямехонько из Парижа.
Брат недавно завелся домом, а несравненно богаче сестры; он не
скуп, однако ж, расчетлив; она большая экономка, и вечно без денег. Брат
не часто дает пиры, а уж если даст, так истинно на славу: с большим вкусом,
с роскошью, одним словом - все прекрасно. Сестра большая хлебосолка
- конечно, она не всегда хорошо накормит, и вино у нее подчас бывает с
грехом пополам; но зато брат дает обед, да тотчас и вороты на запор - как ни
звони в колокольчик, а все дома нет да нет, а к сестре каждый день милости
просим! У ней двери без колокольчика и вороты всегда настежь. Брат очень
умен, а сестра чрезвычайно простодушна; он рассудителен, холоден и с
утра до вечера занят делом; она добра, приветлива и целый день ничего не
делает. Он охотно любуется всем прекрасным и не жалеет на это денег; она в
восторге от всего необыкновенного и хочет все иметь; но только как можно
подешевле. За последнее осуждать ее нельзя: где ей тягаться за братом! Да вот
что странно: уж если она сама чувствует, что не может сорить деньгами, как ее
братец, так зачем же требует, чтоб ее забавляли точно так же, как забавляют
ее брата? Ведь она русская барыня и должна бы, кажется, знать старинную
пословицу: «По одежке тяни ножки». - Брат, как и все богатые люди, любит,
чтоб его тешили новостями; однако ж, не пренебрегает старым, когда оно
хорошо. Сестра не может терпеть ничего старого: давай ей каждый день
что-нибудь новенькое - такая ветреница, что и сказать нельзя! Сегодня ей
нравится одно, завтра другое; да вот, хоть, например, пришло ей однажды в
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 437

голову, что она до смерти любит французский театр - ну просто повредилась


на этом пункте. «Хочу французский театр! - Не могу жить без французского
театра!» - Шумит, да и только! - «Я, дескать, за казну не постою! Ничего
не пожалею: последнее именье в ломбард заложу - давайте мне только
французский театр!» - Вот, откуда ни возьмись, - явился французский театр
- сестрица в восторге! - «Что за совершенство! - Какие таланты!.. Как складно
поют!.. Ну, чудо да и только!» - Вот едет она во французский театр: раз,
другой, третий, - а там глядь-поглядь, и след простыл! - Конечно, это можно
было предвидеть, потому что моя барыня в душе русская и только так - ради
хвастовства - прикидывается француженкой; но вот что трудно изъяснить:
по ее словам, русский театр очень плох, а французский чудо - им только
она душу себе и отводит! - И что ж вы думаете? - С ног сбила своих лакеев,
посылая их каждый день за билетами в русский театр, а во французский и
заглянуть не хочет; да еще такая проказница - уверяет всех, будто бы не ездит
во французский театр оттого, что нельзя достать ложи; а их бери сколько
хочешь; я это знаю наверное - от самого директора.
Брат человек молчаливый, слова не скажет даром; сестра такая
болтунья, что не приведи господи! А уж если дело пойдет на новости, так
что твое «не любо - не слушай»: того женили, другого уморили, третьего
произвели в чин; а ничего не бывало - все вздор! - Ну как после этого не
извинишь брата, что он иногда над своей старшей сестрой подшучивает?
Хоть, впрочем, я уверен, что он ее истинно любит и уважает, и еще бы любил
и уважал больше, если бы знал ее покороче. Я забыл вам сказать, что они
всегда живут розно. Сестра, конечно, имеет свои недостатки; но зато такая
радушная, гостеприимная и добросердечная женщина, что, несмотря на все
ее странности и причуды, ее нельзя не полюбить. Я знаю это по себе: стоит
только раз с нею познакомиться, а там уж ни за что не захочешь расстаться.
С братом и с сестрой во время их жизни случались также большие
несчастья; только и в этом нет у них никакого сходства. Брат всегда страдал
от воды, а сестра от огня. Он однажды совсем было утонул, а ее раза четыре
чуть живую из полымя выхватывали; правда, в последний раз она сама зажгла
свой дом, и вот по какому случаю: я могу вам рассказать об этом как очевидец.
Вы уж знаете, что она большая ветреница и очень легковерна; вот
какие-то хвастунишки наговорили ей и бог знает что об одном мусье,
отъявленном сорванце и буяне - и мил-то он, и хорош, и любезен! Моя
барыня с ума сошла, бредит им день и ночь. Дошли и до него об этом слухи.
Надобно вам сказать, что этот мусье человек пресамолюбивый и считает себя
438 Edelcio Americo. Cidades traduzidas: Moscou e São Petersburgo

лучше всех на свете. Вот он и вообразил, что наша барыня влюбилась в него
по уши: ему же сказали, что она женщина богатая, что у нее всего много;
так не диво, что у этого мусье глаза разгорелись на ее богатство: «Постой, -
сказал он, - отправлюсь к ней в гости - оно не близко, да у меня лихой ямщик,
разом доставит. Она, разумеется, выбежит навстречу, кинется мне на шею; я
наговорю ей с три короба всяких комплиментов, облуплю как липку и скажу
ей на прощанье: Барыня! я доволен тобою! Ты оправдала мое ожидание - я
люблю тебя! - и прочее, и прочее». - Да, как бы не так! - Вот мусье в самом
деле шасть к ней на двор, подождал, подождал - встречи нет; он без доклада
и в комнату. - Батюшки! как взбеленилась моя барыня. - «Да как ты смел? - Да
кто тебе позволил? - Да разве я звала тебя в гости?.. Ах ты, наглец!.. Сейчас
со двора долой!» - Другому стало бы совестно, а у этого мусье медный лоб;
да он же и привык по чужим дворам шататься. Хоть и досадно было, что
его приняли так неласково, а он все-таки решился у нее погостить, надел
халат, натянул колпак и расположился у нее, как в своем доме. - «Так-то, -
сказала барыня, - так я же тебя, дружок, выкурю!» - Она призвала старостиху
Василису, приказала ей снарядить всех дворовых девок чем ни попало: кого
метлой, кого кочергою, а сама подсунула в дом огоньку и притаилась за
углом. Мусье очень не жалует нашего русского мороза, да ведь и огонь-то
не свой брат. Вот как он догадался, что его хотят живого изжарить - скорее
вон! А тут из засады на него и высыпали, да ну-ка его обрабатывать! - Он
было огрызаться, - куда! Не дали молодцу образумиться! Мусье давай бог
ноги! - А его вдогонку-то, вдогонку, - только одна голова и уцелела, а бока
так отломали, что он, сердечный, никак бы до дому не дотащился, если б
добрые люди его на салазках не довезли. Разумеется, этот геройский поступок
и самоотвержение нашей барыни расхвалили в газетах, описали и в прозе, и
в стихах, но она, моя голубушка, вовсе этим не возгордилась, и даже так была
не злопамятна, что очень скоро после обиды, которую ей сделал этот мусье,
отправила к нему визитную карточку и велела спросить о здоровье. - Все это
весьма похвально; а вот за что нельзя ее похвалить: давно ли, кажется, она,
по милости этого буяна, вконец было разорилась - а поверите ли?.. опять
уж в него влюблена или прикидывается, что ль, влюбленною - бог ее знает!
Только как она теперь ни кокетничай, а уж мусье другой раз на бобах не
проведешь! - Чай, он думает про себя: «Нет, madame, шутишь! Полно глазки-
то делать: знаем мы тебя! - Что? По-прежнему стал миленьким? - И человек-то
я образованный, и сам-то я просвещен, и других всех просвещаю - и то и се;
а попробуй - сунься! Так ты опять ухватом иль кочергою!»
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 421-439 439

Я мог бы еще продолжать это сравнение брата с сестрою, да, верно, уж


вы знаете, о ком речь идет, так можете и сами это сделать. А если вы еще не
отгадали, кто этот брат и кто эта сестра, так, пожалуй, я вам скажу, кто они...
Да нет!.. боюсь! Они люди умные, добрые и, кажется, за шутку гневаться не
станут; а ведь, бог знает, может быть, и рассердятся, если я назову их по имени.

1841

Referências
IUSSÚPOV, K. Diálogo das capitais no movimento histórico (Dialóg stolits v istorí-
tcheskom dvijénii). In: Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro ET Contra Moskvá – Peterburg).
Moscou: RGKHI 2000.
TOPOROV, Vladimir. Petersburgo e o texto de São Petersburgo da literatura russa
(Peterburg i peterbúrgskii tekst rússkoi literatury). In: Texto petersburguês da literatura russa
(Peterbúrgskii tekst rússkoi literatury), São Petersburgo: Iskusstvo, 2003.
____. Mito, ritual, símbolo e imagem, (Mif, Ritual, Símvol, Óbraz), Moscou, 1993.
____. O texto de São Petersburgo da literatura russa (Peterbúrgskii tekst rússkoi literatury), São
Petersburgo, 2003.
____. Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski em relação aos esquemas arcaicos
do pensamento mitológico (O struktúre romana Dostoiévskogo v sviaí s arkhaítcheskimi
skhiémami mifologuítcheskogo mychliénia). In: Mito, ritual, símbolo, imagem (Mif, ritual, símvol,
óbraz). Moscou, 1995. p. 193-258.
440 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

O judeu1 de Ivan Turguêniev

Fernanda Naomi Kumagai*

Resumo: Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818 – 1883), um dos principais autores russos do século XIX, tem seu
ápice com a publicação de Pais e Filhos (1862), considerado, hoje, um dos clássicos da literatura mundial. Escrito
por volta de 1846, o conto o “O Judeu”, publicado, anonimamente, pela primeira vez na revista O Contemporâneo
em 1847; traz a figura do judeu em relação ao russo exemplar, contrapondo aspectos físicos e morais, tendo como
protagonista o estereótipo de um judeu sórdido, explorando o antissemitismo existente no Império Russo.
Palavras-chave: Literatura Russa; Ivan Turguêniev; O Judeu.

Abstract: One of the most important Russian authors from the 19th century, Ivan Sergeevich Turgenev (1818 –
1883) reaches the greatest point of his career with the publication of Fathers and Sons (1862), which is considered
as part of the world literature’s classics until today. Published, anonymously, in 1847 on the periodical The Con-
temporary; in this short story the character of the jew, an greedy jewish stereotype, is compared to the ideal Russian
man, creating an opposition between their moral and physics characteristics; as well as revealing the antisemitism of
the Russian Empire.
Keywords: Russian Literature: Ivan Turgenev: The Jew.

…Vamos, conte-nos alguma coisa, coronel – finalmente dissemos a Nikolai


Ilítch.
O coronel sorriu, deixou passar um fio de fumaça de tabaco por seu
bigode, passou a mão nos cabelos grisalhos, olhou para nós e refletiu. Todos nós

1 No original Жид (Jid), palavra usada de forma pejorativa para chamar um judeu.
* Aluna de Língua e Literatura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (Email: [email protected]). A tradução
do conto Jid (O Judeu), de Ivan Turguêniev, foi realizada em nível de Iniciação Científica, sob a orientação
do professor doutor Mario Ramos Francisco Junior. (Email: [email protected])
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 441

gostávamos e respeitávamos muito Nikolai Ilítch por sua benevolência, bom senso
e indulgência para “entre nossos jovens irmãos”2, sua sinceridade, o olhar sábio,
o sorriso dócil, viril e a voz potente; tudo nele era agradável e atrativo.
– Pois, ouçam então – começou ele. – O fato ocorreu no ano de 1813,
nos arredores de Danzigue3. Naquele tempo eu servia em E… no regimento de
couraças e, recordo-me, acabava de ser promovido a alferes de cavalaria. Era uma
ocupação divertida, com combates e marchas, coisa boa, mas o destacamento
era muito tedioso. Sentávamo-nos outrora, todo o santo dia, em algum leito, sob
a tenda, na imundície ou na palha e jogávamos cartas da manhã até à noite. E
era contra o tédio que íamos assistir o voo das bombas ou das balas incandes-
centes. No começo, os franceses nos distraíam com ataques-surpresa, mas logo
aquietavam-se. Cavalgar sobre a forragem também aborrecia; em suma, éramos
atingidos por tal melancolia, apesar do bramido. Eu, então, acabara de completar
dezenove anos; era um rapaz sadio, corado, que pensava apenas em me divertir
com os franceses e com… bem, vocês entendem… ia tudo desta maneira. Para
me distrair, pus-me a jogar. Uma vez, depois de uma terrível derrota, eu tive
sorte, e ao amanhecer (nós jogávamos durante a noite) eu terminei ganhando
muito. Extenuado, sonolento, saí para o ar puro e sentei-me no barranco. Era
uma linda e silenciosa manhã; longas linhas dos nossos reforços desapareciam
na neblina; eu observava tudo e, depois, sentado, comecei a cochilar. Uma tosse
cuidadosa me acordou; abri os olhos e avistei diante de mim um judeu de apro-
ximadamente quarenta anos, num kaftan4 cinzento de abas longas, sapatos e de
solidéu5 preto. Este judeu, vulgo Guirchel, volta e meia vagueava pelo nosso
acampamento, sugeria-se aos poucos, dava-nos vinho, mantimentos e outras
ninharias; ele não era muito grande, meio magro, sarapintado, ruivo, piscava
constantemente com seus também ruivos olhinhos, seu nariz era curvo e longo
e tossia o tempo todo.
Começou a dar voltas diante de mim e a me cumprimentar humildemente.
– Bem, o que deseja? – perguntei a ele, por fim.

2 (N. do A.). Lermontov “Казначейше” (parece referir-se ao “Tambovskaia Kaznatcheicha”, ou “O


Tesoureiro de Tambov”, poema narrativo de Mikhail Iúrievitch Lérmontov (1814-1841), poeta romântico
russo.
3 Cidade localizada na província de Pomerânea, na Polônia.
4 Kaftan é uma vestimenta antiga russa longa, indo até os joelhos e com mangas longas. É, também,
um vestuário comum usado por judeus ortodoxos.
5 Solidéu é um pequeno barrete, em forma de calota, usado por bispos, padres e sobretudo judeus, para
cobrir o alto da cabeça.
442 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

– Ah assim6, vim saber se eu não posso fazer alguma coisa para o honrado
homem…
– Não preciso de você; vá embora.
– Como queira, como lhe for melhor… Eu pensei que, pode ser, talvez
qualquer coisa…
– Estou farto de você; vá, ande.
– Pois bem, pois bem. Com licença honrado senhor, venho felicitar pela
vitória no jogo…
– E como você sabe disso?
– Como eu não saberia… Foi um grande prêmio… grande… Oh! Que
grande…
Guirchel abriu os dedos e meneou a cabeça.
– Mas qual o sentido – disse eu com irritação –, por que diabos haveria
algum dinheiro aqui?
– Oh! Não fales, honrado senhor; ai, ai, não fales assim. O dinheiro é uma
coisa boa; sempre é necessário, tudo é possível conseguir com dinheiro, honrado
senhor, tudo! Tudo! Dê-lhe somente uma ordem e ele conseguirá tudo para você,
vossa honra, tudo! Tudo!
– Chega de mentir, judeu.
– Ai! Ai! – repetiu Guirchel, agitando suas suíças. – Vossa honra não acre-
dita em mim… ai… ai… ai… – O judeu fechou os olhos e lentamente moveu a
cabeça para a direita e para a esquerda… – E eu sei em que posso servi-lo, senhor
oficial… Sei… Sei mesmo!
O judeu adotou um aspecto muito caricatural.
– Sabe mesmo?
O judeu olhou com medo, depois inclinou-se para mim.
– Uma mulher tão bela, honrado senhor, tão bela!… – Guirchel novamente
fechou os olhos e franziu os lábios. – Honrado senhor, dê a ordem… O senhor
mesmo vai ver… O que eu vou falar agora e o senhor irá escutar… O senhor
não vai acreditar… É melhor ordenar que eu lhe mostre… É isso mesmo, é isso!
Eu fiquei calado e olhei para o judeu.

6 No original, o judeu acrescenta s no final de algumas palavras para demonstrar respeito pelo interlo-
cutor ou em sinal de auto depreciação; a partícula –c é um recurso linguístico muito usado na literatura
russa do século XIX para demonstrar respeito ou auto depreciação.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 443

– Pois bem, pois bem; bem, então eu vou mostrar ao senhor… – Aqui
Guirchel caiu na risada e de leve me deu umas palmadinhas no ombro, mas, no
mesmo instante, deu um pulo, como se tivesse se queimado.
– E então, honrado senhor, um adiantamento?
– Você vai é me enganar ou me apresentar a um espantalho qualquer.
– Ai, ai, o que o senhor está dizendo? – disse o judeu com uma emoção
descomunal e agitando os braços. – Como é possível? Mas o senhor… Honrado
senhor, então ordene que me deem quinhentas… Quatrocentos e cinquenta
vergastadas, – apressadamente ele adicionou… –Mas é o senhor quem manda…
Neste momento, um de meus companheiros levantou da extremidade da
tenda e me chamou pelo nome. E eu me levantei com pressa e joguei uma moeda
de ouro para o judeu.
– À noite, à noite – murmurou ele, depois, para mim.
Confesso a vocês, senhores, eu fiquei à espera da noite com uma certa
impaciência. Neste mesmo dia os franceses fizeram uma diligência; nosso regimento
marchou para o ataque. Teve início a noite; todos nós nos sentamos ao redor do
fogo… Os soldados fizeram uma papa. Foram conversar. Eu me deitei sobre a
burca7, bebi chá e ouvi os relatos dos companheiros. Convidaram-me para jogar
cartas e eu recusei. Estava inquieto. Aos poucos, os oficiais dispersaram-se pelas
tendas; as chamas começaram a se extinguir; os soldados também se retiraram, ou
adormeceram por ali mesmo; tudo aquietou-se. Não me levantei. Minha ordenança
estava de cócoras diante do fogo e, como se costuma dizer, “pescava”. Mandei-o
embora. Logo, todo o acampamento começou a se apaziguar. Passou-se um turno.
Substituíram as sentinelas. Eu ainda estava deitado e à espera de algo. Surgiram as
estrelas. Caiu a noite. Por muito tempo olhei para a chama que exauria… Enfim, a
última luzinha se extinguia. “Enganou-me, o maldito judeu” pensei com irritação
e ameacei a levantar-me…
– Honrado senhor… – balbuciou exatamente por sobre o meu ouvido
uma voz trêmula.
Eu olhei para trás: era Guirchel. Ele estava muito pálido, gaguejava e
balbuciava ligeiramente.
– Poderia ser na sua tenda.
Levantei-me e fui atrás dele. O judeu se encolheu todo e avançou com
cuidado pelo capim curto e úmido. Percebi ao lado uma figura imóvel, coberta.

7 Burca é uma capa de feltro usada no Cáucaso.


444 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

O judeu acenou a mão para ela e ela aproximou-se dele. Ele segredou algo a ela,
dirigiu-se a mim, acenou com a cabeça algumas vezes e nós três entramos na tenda.
É engraçado dizer: eu estava ofegante.
– Aí está, honrado senhor – o judeu sussurrou com esforço – aí está. Ela
está com um pouco de medo no momento, teme; mas eu disse a ela que o senhor
oficial é uma boa pessoa, formoso… E você, não tenha medo, não tenha medo
– continuou ele –, não tenha medo…
A figura coberta não se movia. Eu mesmo estava numa terrível perturbação
e não sabia o que dizer. Guirchel também trotava em seu lugar e estendia as mãos
de um jeito estranho…
– Você, por sua parte – disse eu a ele –, saia…
Guirchel, como que a contragosto, obedeceu. Aproximei-me da figura co-
berta e silenciosamente tirei o capuz escuro de sua cabeça. Em Danzigue um fogo
ardia: através do tom avermelhado, violento e débil do reflexo do incêndio distante,
eu avistei o rosto pálido de uma jovem judia. Sua beleza deixou-me estupefato.
Permaneci diante dela e olhei-a em silêncio. Ela não levantou os olhos. Um leve
sussurro me obrigou a olhar para trás. Guirchel, com cuidado, mostrava a cabeça
por debaixo da extremidade da tenda. Eu, com irritação, acenei com o braço para
ele… ele se escondeu.
– Como você se chama? – finalmente, proferi.
– Sara – ela respondeu e, por um instante, brilhou na escuridão um esquilo,
com seus grandes e compridos olhos e seus dentes pequenos, lisos, reluzentes.
Eu apanhei duas almofadas de couro, joguei-as na terra e pedi a ela que se
sentasse. Ela despiu sua capa e sentou-se. Usava um casaco cossaco curto, com
botões entalhados de prata redondos, na abertura frontal e de mangas largas. Uma
trança espessa e negra rodeava duas vezes sua pequena cabeça; eu me sentei ao
lado dela e tomei sua mão morena e delicada. Ela resistiu um pouco, mas como se
tivesse medo de olhar para mim, respirava a custo. Eu admirava seu perfil oriental
e com timidez apertei seus trêmulos e frios dedinhos.
– Você sabe russo?
– Sei… Um pouco.
– E gosta dos russos?
– Sim, gosto.
– Então você também gosta de mim?
– Gosto do senhor.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 445

Eu fiz menção de abraçá-la, mas ela ágil, afastou-se.


– Não, não, por favor, senhor, por favor.
– Pois bem, então ao menos olhe para mim.
Ela fixou em mim seus olhos pretos, penetrantes, e no mesmo instante
virou-se com um sorriso e enrubesceu.
Eu beijei a sua mão com ardor. Ela me olhou de soslaio e riu baixinho.
– O que foi?
Escondeu o rosto com as mãos e riu ainda mais do que antes. Guirchel
apareceu junto à entrada da tenda e ameaçou-a. Ela se calou.
– Já pra fora! – sussurrei para ele entre dentes – Estou farto de você.
Guirchel não se retirou.
Eu tirei da mala um punhado de moedas de ouro, enfiei-as em sua mão e
expulsei-o dali.
– Senhor, dê para mim também… – proferiu ela. Eu larguei algumas moedas
de ouro em seus joelhos; ela as pegou agilmente, como uma gata.
– Bem, agora eu vou te dar um beijo.
– Não, por favor, por favor – ela balbuciou assustada e com um ar supli-
cante na voz.
– De que você tem medo?
– Tenho medo.
– Basta disso…
– Não, por favor…
Ela me olhou com timidez, baixou a cabeça um pouquinho de lado e cruzou
os braços. Eu a deixei em paz.
– Caso queira… Aqui está, – ela disse depois de um certo silêncio e levou
sua mão até os meus lábios.
Eu beijei a mão sem muita disposição. Sara novamente desatou a rir.
O sangue me sufocava. Eu me afligia e não sabia o que fazer. No entanto,
pensei finalmente, mas que tolo sou eu?
Novamente eu me voltei para ela.
– Sara, ouça, eu estou apaixonado por você.
– Eu sei.
– Sabe? E não se zanga? E me ama também?
446 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

Sara meneou a cabeça.


– Não, responda-me como deve ser.
– Vamos, deixe-me vê-lo – disse ela.
Eu me inclinei para ela. Sara colocou a mão no meu ombro, começou a
examinar o meu rosto, franzia o cenho, sorria… Eu não resisti e dei-lhe um beijo
na bochecha. Ela saltou e num pulo foi parar na entrada da tenda.
– Ora, como você é tímida!
Ela estava calada e não saía do lugar.
– Venha até mim…
– Não, senhor, adeus. Até outra vez.
Guirchel novamente mostrou a sua cabecinha encaracolada, disse duas pa-
lavras para ela; ela se inclinou e se esquivou, como uma serpente. Eu saí correndo
da tenda atrás dela, mas não a vi, nem Guirchel.
Durante toda a noite eu não pude adormecer.
Na manhã seguinte nós ficamos na tenda com nosso capitão de cavalaria;
eu jogava, mas sem vontade. Entrou a minha ordenança.
– Perguntam pelo senhor, honrado senhor.
– Quem está perguntando sobre mim?
– Um judeu está perguntando.
“Será que é Guirchel!” eu pensei. Esperei o fim do jogo, ergui-me e saí. De
fato, avistei Guirchel.
– E então – ele me perguntou com um sorriso agradável – honrado senhor,
está satisfeito?
– Ah você!… (Aqui o coronel espiou ao redor.) Parece que não há nenhuma
dama… Aliás, não faz diferença. Ah você, meu caro, – eu respondi a ele – Mas
você está se divertindo comigo, então?
– E como foi?
– Como foi? Você ainda pergunta?
– Ai, ai, senhor oficial, mas como é o senhor – disse Guirchel com uma
reprimenda, mas não parou de sorrir. – Uma moça jovem, simples… O senhor
assustou-a, assustou mesmo.
– Mas que modéstia! E o dinheiro, então, por que ela pegou?
– Mas que dúvida? Se dão dinheiro, por que não pegar?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 447

– Ouça, Guirchel, que ela venha outra vez, não vou te ofender… Só que
você, por favor, não apareça com a sua cara tola na minha tenda e nos deixe em
paz; está ouvindo?
Os olhinhos de Guirchel cintilaram.
– E então? Ela vos agrada?
– Bem, agrada-me.
– É uma beleza! Não há mulheres tão belas em nenhum lugar. E um di-
nheiro para mim, daria agora?
– Tome, mas escute: a palavra dada vale mais do que o dinheiro. Traga-a,
e que o diabo te carregue. Eu mesmo a levarei para casa.
– É impossível, não há como, é absolutamente impossível – retrucou ime-
diatamente o judeu. – Ai, Ai, é absolutamente impossível. Eu, pode ser, vou andar
por perto da tenda, honrado senhor; eu, eu, honrado senhor, vou me afastar, pode
ser, um pouquinho… Pois bem? Eu me afastarei.
– Pois bem, veja bem… Traga-a, estás ouvindo?
– É realmente uma bela mulher? Senhor oficial, hein? Honrado senhor?
Bela mulher? Hein?
Guirchel se inclinava e me olhava nos olhos.
– Ela é bela.
– Pois bem, então me dê mais uma moedinha de ouro…
Eu joguei para ele uma moeda de ouro; separamo-nos.
Enfim, o dia passou. Caiu a noite. Eu fiquei sozinho por muito tempo na
minha tenda. No pátio estava um pouco claro. Na cidade soaram as duas horas. Eu
já começava a xingar o judeu… De repente, Sara entrou, sozinha. Ergui-me de um
salto, abracei-a… Com os lábios toquei o seu rosto… Estava frio como gelo. Eu
mal podia distinguir seus traços… Eu a fiz sentar-se, ajoelhei-me diante dela, peguei
as suas mãos, toquei o seu corpo… Ela estava calada, não se movia, e de repente,
desfez-se num pranto ruidoso, numa convulsão. Eu me esforçava inutilmente em
tranquilizá-la, acalmá-la… Ela soluçava… Eu a acariciava, enxugava as suas lágrimas;
ela não se opunha como antes, não respondia às minhas interrogações e chorava,
chorava aos prantos. Meu coração deu reviravoltas; eu me levantei e saí da tenda.
Guirchel surgiu da terra, exatamente na minha frente.
– Guirchel, – disse para ele – eis o seu dinheiro prometido. Leve Sara.
O judeu imediatamente lançou-se para ela. Ela parou de chorar e se agarrou
a ele.
448 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

– Perdoe-me, Sara – Eu disse a ela. – Deus esteja com você, perdoe-me.


Algum dia nos encontraremos, num outro momento.
Guirchel estava calado e me cumprimentou. Sara se inclinou, pegou a minha
mão, apertou-a contra os lábios; eu a recolhi…
Durante cinco ou seis dias, senhores, eu pensava o tempo todo na minha
judia. Guirchel não apareceu, e ninguém o viu no acampamento. À noite dormi
muito mal: parecia-me que tudo o que eu via eram os negros olhos úmidos, os
longos cílios; meus lábios não podiam esquecer o toque na bochecha, lisa e fresca,
como casca de ameixa. Mandaram-me com o pelotão para a forragem num vilarejo
distante. Enquanto meus soldados vasculhavam pelas casas, eu permaneci na rua
e não desci do cavalo. De repente, alguém me agarrou pela perna.
– Meu Deus, Sara!
Ela estava pálida e perturbada.
– Senhor oficial, senhor… Ajude, salve-nos: os soldados nos ofendem…
Senhor oficial… Ela me reconheceu e corou.
– Mas você mora aqui mesmo?
– Aqui.
– Onde?
Sara apontou-me uma casa pequena e antiga. Eu esporeei o cavalo e ele
começou a galopar. No quintal da casa, uma judia feia e despenteada esforçava-se
para arrancar três galinhas e um pato das mãos do meu alto furriel Siliavka. Ele
erguia sua presa acima da cabeça e ria; as galinhas cacarejavam, o pato grasnava…
Outros dois couraceiros a cavalo carregavam seus sacos de farinha, feno e palha.
Na mesma casa ouviam-se exclamações e palavrões num dialeto8… Eu dei um
grito para os meus, ordenando-os que deixassem os judeus em paz, que não to-
massem nada deles. Os soldados obedeceram; o furriel sentou na sua égua baia
Prozerpina, ou, como ele a chamava, “Projerpila”, e saiu atrás de mim para a rua.
– Pois bem, – disse a Sara – satisfeita com a minha ajuda?
Com um sorriso, ela olhou para mim.
– Por onde você andou por esse tempo?
Ela baixou os olhos.
– Amanhã irei até o senhor.

8 No original малороссийски, trata-se de um dialeto do russo de uma região que abarca províncias
importantes da atual Ucrânia.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 449

– À noite?
– Não, senhor, de manhã.
– Preste atenção, não vá me enganar.
– Não… Não, não o enganarei.
Olhei avidamente para ela. À luz do dia ela me pareceu mais bela. Lembro-
me que fiquei surpreendido com a sua tez pálida e de âmbar e o seu cabelo negro-
azulado... Debrucei-me sobre o cavalo e apertei com força a sua pequena mão.
– Adeus, Sara… Olhe, venha então.
– Irei.
Ela foi para casa; ordenei que o sargento me acompanhasse com o desta-
camento, e parti a galope.
No outro dia levantei-me bem cedo, vesti-me e saí da tenda. A aurora era
maravilhosa; naquele instante o sol despontava, e em cada haste de erva reluzia
uma púrpura úmida. Subi no alto parapeito e me sentei na borda. Abaixo de
mim, um canhão espesso de ferro fundido, mostrava do chão sua boca negra.
Distraído, eu olhava para todos os lados... Subitamente avistei, a cem passos,
uma figura contraída em um kaftan cinza. Reconheci Guirchel. Ele ficou imóvel
por muito tempo no mesmo lugar, depois, de repente, correu um pouco para o
lado, com pressa e com medo, olhando para trás… Soltou um grito, sentou-se,
esticou o pescoço com cuidado e começou novamente a olhar ao redor e pôr-se
à escuta. Eu via com muita clareza todos os seus movimentos. Ele passou a mão
pelo peito, tirou um pedaço de papel, um lápis e começou a escrever ou desenhar
alguma coisa. Guirchel constantemente parava, estremecia como uma lebre, exa-
minava com atenção os arredores, como se copiasse nosso acampamento. Mais
de uma vez ele escondeu seu pedaço de papel, apertou os olhos, farejou o ar e
novamente começou a trabalhar. Por fim, o judeu sentou-se na grama, tirou os
sapatos, preencheu um pedaço de papel; porém, não teve tempo de endireitar-se;
de repente, a dez passos dele, do outro lado do talude da encosta, surgia a cabeça
bigoduda do furriel Siliavka e, aos poucos, soergueu-se da terra todo o corpo longo
e desajeitado do judeu. O judeu estava de costas para ele. Siliavka aproximou-se
com agilidade e colocou a sua pesada garra em seus ombros. Guirchel contraiu-se.
Tremeu como uma folha e soltou um grito doentio, como uma lebre. Siliavka,
ameaçador, começou a falar com ele, agarrando-o pelo colarinho. Eu não podia
ouvir sua conversa, mas pelos movimentos desesperados do judeu, por seu ar su-
plicante, comecei a adivinhar, do que se tratava. O judeu atirou-se duas vezes aos
pés do furriel, enfiou a mão no bolso, tirou um lenço xadrez e rasgado, desatou
450 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

um nó e tirou uma moeda de ouro… Siliavka, com ar de importância, aceitou o


presente, mas não deixou de arrastar o judeu pelo colarinho. Guirchel soltou-se e
disparou para um lado; o furriel foi em seu encalço. O judeu corria com enorme
agilidade; seus pés, calçados em meias azuis, apareciam e desapareciam de fato
com muita rapidez; mas Siliavka depois de duas ou três “agarradelas”, capturou
o judeu que estava de cócoras, ergueu-o e levou-o em seus braços direto para o
acampamento. Levantei-me e fui ao encontro dele.
– Ah! Honrado senhor! – começou a gritar Siliavka – trago um infiltrado
para o senhor, um infiltrado!.. – O suor escorria do forte pequeno russo9. – Mas
pare de se remexer, judeu do diabo! Agora, então… Vamos lá! Ora, não o estou
esmagando, olhe!
O infeliz Guirchel apoiava-se debilmente com os cotovelos no peito de Si-
liavka, e balançava as pernas com fraqueza… Seus olhos rodavam em convulsão…
– O que é isso? – perguntei a Siliavka.
– Pois bem, honrado senhor: queira despir o sapato do pé direito dele, – eu
fiquei desconcertado. Ele ainda segurava o judeu em seus braços.
Eu despi o seu sapato, tirei o pedaço de papel cuidadosamente dobrado,
desdobrei-o e vi um desenho detalhado do nosso acampamento. Sobre as áreas
havia uma grande quantidade de notas, escritas em letras miúdas, em língua judaica.
Enquanto isso, Siliavka colocou Guirchel de pé. O judeu arregalou os olhos,
viu-me e atirou-se de joelhos diante de mim.
Em silêncio, mostrei-lhe o pedaço de papel.
– O que é isso?
– Isso é, assim, senhor oficial. Eu… Assim… Bem…– A sua voz inter-
rompeu-se.
– És um infiltrado10?
Ele não me entendeu, balbuciava palavras incoerentes, tremendo, tocava
nos meus joelhos…
– És um espião?

9 No original моролосс, expressão que refere-se a uma região do Império Russo que abarca alguns
territórios da Ucrânia.
10 No original лазутчик (lazuttchik), ou seja, “espião”: a tradução por “infiltrado” mantém a incompre-
ensão do judeu em relação ao termo; o termo шпион (chpion), que também significa espião, foi traduzido
como tal, mantendo a diferença que há no original.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 451

– Ai! – Ele soltou um grito fraco e balançou a cabeça. – Como seria possí-
vel? Eu, nunca, de jeito nenhum. Não é possível, não há como. Estou disposto...
Eu, agora. Eu vou dar dinheiro… Vou pagar… – sussurrou e fechou os olhos.
O solidéu moveu-se de seu pescoço; os cabelos ruivos e úmidos de suor frio
pendiam em fiapos, os lábios tornaram-se azuis e crisparam-se convulsivamente,
as sobrancelhas apertavam-se, doentias, o rosto se encolheu…
Os soldados cercaram-nos. A princípio eu queria muito intimidar Guirchel
e ordenar que Siliavka se calasse, mas agora o assunto tornara-se público e não
poderia escapar da “junta de autoridades”.
– Leve-o para o general, – disse eu para o furriel.
– Senhor oficial, honrado senhor! – o judeu começou a gritar com a voz
desesperada, – não sou culpado; não sou… Mande que me soltem, mande…
– Sua excelência vai analisar – proferiu Siliavka. – Vamos.
– Honrado senhor! – o judeu começou a gritar para mim – Ordene! Tenha
piedade!
Seu apelo me atormentou. Redobrei os passos.
Nosso general era um homem de origem alemã, íntegro e bondoso, mas
um executor severo ao conduzir os seus serviços. Entrei em sua pequena casa,
construída às pressas, e em poucas palavras expliquei o motivo de minha visita.
Eu conhecia todo o rigor das resoluções militares e por isso não pronunciei a
palavra “infiltrado”, mas, sim, esforcei-me apresentar todo o acontecimento como
insignificante e não merecedor de atenção. Porém, para a desgraça de Guirchel, o
general sempre pôs o cumprimento da obrigação acima da compaixão.
– O senhor, rapaz – disse para mim – é inexperiente. O senhor ainda é
inexperiente no ofício de militar. O assunto, sobre o qual (o general gostava muito
da palavra “qual”) o senhor me informou é sério, muito sério… Onde está essa
pessoa que foi capturada? Esse judeu11? Onde está?
Eu saí da tenda e ordenei que trouxessem o judeu.
Trouxeram o judeu. O infeliz mal ficava de pé.
– Sim – proferiu o general, dirigindo-se a mim – e onde está o plano en-
contrado com este homem?
Entreguei para ele o pedaço de papel. O general desdobrou-o, recuou,
apertou os olhos, franziu o cenho.

11 No original o general utiliza еврей, que pode ser traduzido como judeu ou hebreu.
452 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

– Isso é sur-pre-en-den-te… – disse ele, pausadamente. – Quem o prendeu?


– Eu, vossa excelência! – soltou Siliavka com nitidez.
– Ah! Bom! Bom!.. Vamos, meu caro, o que você tem a dizer para se jus-
tificar?
– Vos… vos… vossa excelência – balbuciou Guirchel, – Eu… Tenha pie-
dade… Vossa excelência… Não sou culpado… Pergunte, vossa excelência, para
o senhor oficial… Sou um feitor, vossa excelência, um honesto feitor.
– Ele deve ser interrogado – disse o general a meia voz, balançando a cabeça
com imponência. – Vamos, como você fez isso, amigo?
– Não sou culpado, vossa excelência, não sou culpado.
– É impossível acreditar nisso. Você, como se diz em russo, foi pego me-
recidamente, no flagra!
– Permita-me dizer, vossa excelência: eu não sou culpado.
– Você desenhou o plano? É um espião inimigo?
– Não sou! – Guirchel soltou um grito repentino – Não sou, vossa excelência!
O general olhou para Siliavka.
– Mas ele mente, vossa excelência. O próprio senhor oficial tirou do sapato
dele a carta.
O general olhou para mim. Fui forçado a acenar com a cabeça.
– Você, meu caro, é um inimigo infiltrado… Meu caro…
– Eu não… Eu não… – murmurou o judeu desconcertado.
– Você já levou alguma informação deste tipo para o inimigo antes? Con-
fesse…
– Como seria possível?
– Você, meu caro, não vai me enganar. Você é um infiltrado?
O judeu fechou os olhos, balançou a cabeça e segurou a aba de seu kaftan.
– Enforque-o – disse o general de um modo expressivo, depois de um certo
silêncio – conforme as leis. Onde está o senhor Fiódor Schlikelman?
Correram atrás de Schlikelman, com o ajudante do general. Guirchel
empalideceu, abriu a boca, esbugalhou os olhos. Chegou o ajudante. O general deu
a ele as devidas ordens. O escrivão exibiu no mesmo momento seu rosto magro
e bexiguento. Dois ou três oficiais curiosos espiaram para dentro do cômodo.
– Tenha piedade, vossa excelência – disse eu ao general em alemão, do jeito
que pude – solte-o…
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 453

– O senhor, rapaz – respondeu-me em russo – eu lhe disse, é inexperiente,


portanto, peço-lhe que permaneça em silêncio e não me aborreça mais.
Guirchel caiu, num apelo, aos pés do general.
– Vossa excelência, perdão, não sigamos, não vamos, vossa excelência, eu
tenho esposa… Vossa excelência, tenho filha… Perdão…
– O que se há de fazer!
– Culpado, vossa excelência, sou de fato culpado… Foi a primeira vez,
vossa excelência, a primeira vez, acredite!
– Você não entregou outros documentos?
– Foi a primeira vez, vossa excelência… Esposa… Filhos… Perdão…
– Mas você é um espião.
– Esposa… Vossa excelência… Filhos…
O general estava desgostoso, mas não havia nada a fazer.
– Conforme as leis, enforque o judeu – disse numa voz arrastada e com ar
de pessoa constrangida, sacrificando a contra gosto seus melhores sentimentos
por um dever inexorável. – Enforque-o! Fiódor Karlich, peço-lhe para escrever
um relatório sobre essa ocorrência, a qual…
De repente, uma mudança espantosa ocorreu em Guirchel. Em lugar do
habitual susto alarmado, próprio da natureza judaica, em seu rosto transparecia uma
terrível, agônica melancolia. Ele estava agitado como um animalzinho capturado,
abriu a boca, enrouqueceu de modo surdo, até mesmo saltitava no mesmo lugar,
agitando convulsivamente os cotovelos. Estava apenas com um sapato; esquecera
de calçar o outro… Seu kaftan se abriu… O solidéu caiu.
Todos nós nos sobressaltamos; o general calou-se.
– Vossa excelência – comecei novamente – Perdoe este infeliz.
– É impossível. Quem governa é a lei. – retrucou o general com voz en-
trecortada, e não sem emoção – é um exemplo para os outros.
– Pelo amor de Deus…
– Senhor alferes da cavalaria, queira dirigir-se para o seu posto – disse o
general e indicou-me imperiosamente a porta com a mão.
Fiz uma reverência e saí. Mas já que eu não tinha um posto, de fato, em
lugar algum, detive-me próximo da pequena casa do general.
Cerca de dois minutos depois, Guirchel apareceu acompanhado por Silia-
vka e três soldados. O pobre judeu estava em torpor e movia-se com dificuldade.
454 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

Siliavka passou pelo acampamento sem me notar e logo retornou com uma corda
nas mãos. Em seu rosto rude, mas sem sinal de raiva, transparecia uma piedade
estranha, bruta. À vista da corda, o judeu agitou as mãos, sentou-se e desfez-se
em prantos. Em silêncio, os soldados ficaram perto dele e olhavam a terra de um
jeito lúgubre. Aproximei-me de Guirchel e comecei a falar com ele; ele soluçava
como uma criança, e nem sequer olhou para mim. Acenei, fui para a minha tenda,
atirei-me sobre o tapete e fechei os olhos…
De repente, alguém entrou correndo de um modo abrupto, fazendo barulho
em minha tenda. Levantei a cabeça e vi Sara; o seu rosto não era o mesmo. Ela
atirou-se sobre mim e agarrou-me a mão.
– Vamos, vamos, vamos – ela repetia com a voz sufocada.
– Para onde? Para quê? Vamos ficar aqui.
– Até o meu pai, para o pai, rápido… Salve-o… Salve-o!
– Que pai?…
– O meu pai; querem enforcá-lo…
– Como! Será que Guirchel é…
– Meu pai… Explicarei tudo para você depois – ela acrescentou, desesperada
torcendo as mãos – Apenas vamos… Vamos…
Nós saímos correndo da tenda para lá. No campo, no caminho para a
bétula solitária, avistava-se um grupo de soldados… Em silêncio, Sara apontou
com o dedo…
– Pare – eu disse subitamente – Para onde iremos? Os soldados não vão
me obedecer.
Sara continuava a arrastar-me atrás dela… Confesso que minha cabeça
girava.
– Ouça-me, Sara – disse eu a ela – qual o sentido de corrermos para lá? É me-
lhor eu ir novamente até o general; vamos juntos; talvez, consigamos convencê-lo.
De repente, Sara deteve-se e como uma louca, olhou para mim.
– Veja se me compreende, Sara, pelo amor de Deus. Eu não posso perdoar
o seu pai, mas o general pode. Vamos até ele.
– Mas agora vão enforcá-lo – ela gemeu…
Olhei ao redor. O escrivão não estava longe.
– Ivanov – gritei a ele – desça, por favor, vá lá até eles: mande-os esperar,
diga que fui ter com o general.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 455

– Às ordens…
Ivanov pôs-se a correr.
Não permitiram que entrássemos para ter com o general. Inutilmente, pedi,
persuadi, por fim até xinguei… Inutilmente, a pobre Sara arrancava os cabelos e
atirou-se sobre os sentinelas: não nos deixaram passar.
Sara, descontrolada olhou ao redor, agarrou a cabeça com ambas as mãos
e, apressada, correu pelo campo até o seu pai. Fui atrás dela. Olhavam-nos, per-
plexos…
Aproximamo-nos dos soldados. Eles estavam em um círculo e imaginem,
senhores!, caçoavam, caçoavam do pobre Guirchel! Irrompi e gritei com eles. O
judeu viu-nos e lançou-se nos braços da filha. Sara agarrou-se a ele convulsivamente.
O pobre coitado imaginou que haviam-no perdoado… Ele já começava a
me agradecer… Dei-lhe as costas.
– Honrado senhor – começou a gritar e apertou as mãos – Eu não fui
perdoado?
Calei-me.
– Não?
– Não.
– Honrado senhor – começou a murmurar – olhe, honrado senhor, olhe…
Veja só ela, ela é uma moça sabe, ela é minha filha.
– Sei – respondi e virei-me novamente.
– Honrado senhor – começou a gritar – Não me afastei da tenda! Por nada…
– ele deteve-se e fechou os olhos por um instante… – Queria o vosso dinheiro,
honrado senhor, é preciso confessar, o dinheiro… Mas por nada…
Eu fiquei calado. Para mim, Guirchel era sórdido e ela era a sua cúmplice…
– Mas agora, se o senhor salvar-me – disse o judeu em voz baixa – Vou
mandar - Eu… compreende?.. Tudo… Eu farei de tudo…
Ele tremia como uma folha, e às pressas olhava ao redor. Sara abraçava-o
em silêncio e com paixão.
O ajudante aproximou-se de nós.
– Senhor alferes de cavalaria – disse a mim – Sua excelência mandou prender
o senhor. E você… – Em silêncio ele indicou o judeu para os soldados… – agora…
Siliavka aproximou-se do judeu.
– Fiódor Karlich – disse ao ajudante (cinco soldados chegaram com ele) –
mande ao menos levar essa pobre moça…
456 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

– Certamente. Concordo.
A infeliz mal respirava. Guirchel resmungava em seu ouvido em ídiche…
Os soldados tiraram Sara com dificuldade do abraço do pai e levaram-na
com cuidado por cerca de vinte passos de distância. Mas, de repente, ela escapou
de suas mãos e correu até Guirchel… Siliavka a conteve. Sara empurrou-o, seu
rosto cobriu-se de um leve rubor, os olhos tornaram-se brilhantes, e ela estendeu
os braços.
– Vocês, assim, serão condenados – começou a gritar em alemão – con-
denados, triplamente condenados, vocês e todas as suas gerações abomináveis,
com a maldição de Datã e Abirão12, com a maldição da pobreza, da infertilidade
e da violência, com uma morte vergonhosa! Que a terra se abra sobre os seus pés,
hereges, cães sanguinários…
A sua cabeça pendeu para trás… ela caiu sobre terra… ergueram-na e
levaram-na.
Os soldados tomaram Guirchel pelos braços. Então compreendi porque
caçoavam do judeu quando eu e Sara chegamos correndo do acampamento. Ele
estava ridículo de fato, a despeito de toda sua horrível situação. A cruel tristeza
da separação da vida, da filha, da família, expressavam-se no infeliz judeu de
forma estranha, em gestos disformes, em clamores, saltos, de tal modo que todos
nós sorríamos involuntariamente embora fosse terrível e estivéssemos muito
horrorizados. O pobre estacou de medo…
– Ai, ai, ai! – ele gritava – ai… Espere! Eu vou contar, vou contar muitas
coisas. Senhor sub-furriel, o senhor me conhece. Sou um feitor, um feitor honesto.
Não me prenda; espere mais um minuto, um minutinho, espere um insignificante
minutinho! Deixe-me ir: sou um pobre judeu. Sara… Onde está Sara? Ah, eu sei!
Ela foi até a tenda do tenente (sabe lá deus por que ele atribuida a mim tamanha
patente sem precedentes). Senhor, o alojamento do tenente! Não me afastei da
tenda. (Os soldados detiveram Guirchel por um instante… ele soltou um grito
estrondoso e esgueirou-se das mãos deles.) Vossa excelência, perdoe um infeliz pai
de família! Darei dez moedas de ouro, quinze, vossa excelência!.. (Arrastaram-no
para a bétula.) Perdoe! Tenha piedade! Senhor a tenda do tenente! Senhor conde!
Senhor, general subalterno e chefe comandante!
Colocaram no judeu um laço… Fechei os olhos e corri.

12 Os irmãos Datã e Abirão rebelaram-se contra Moisés, como castigo foram engolidos por uma fenda
que se abriu na terra abaixo deles. Antigo testamento, Livro de Números, 16.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 457

Passei duas semanas preso. Disseram-me que a viúva do infeliz Guirchel


viera atrás das vestimentas do falecido. O general ordenou que entregassem
cem rublos a ela. Não vi mais Sara. Fui ferido; enviaram-me para o hospital e,
quando recobrei a saúde, Danzigue já se rendera, e alcancei o meu regimento até
as margens do Reno.

ЖИД

...Расскажите-ка вы нам что-нибудь, полковник,-- сказали мы наконец


Николаю Ильичу.
Полковник улыбнулся, пропустил струю табачного дыма сквозь усы,
провел рукою по седым волосам, посмотрел на нас и задумался. Мы все
чрезвычайно любили и уважали Николая Ильича за его доброту, здравый
смысл и снисходительность к нашей братье молодежи. Он был высокого
роста, плечист и дороден; его смуглое лицо, “одно из славных русских
лиц” {Лермонтов в “Казначейше”. (Прим. автора.)}, прямодушный, умный
взгляд, кроткая улыбка, мужественный и звучный голос-все в нем нравилось
и привлекало.
– Ну, слушайте ж,-- начал он. Дело было в тринадцатом году, под
Данцигом. Я служил тогда в Е -- м кирасирском полку и, помнится, только что
был произведен в корнеты. Веселое занятие -- сраженья, и походы -- хорошая
вещь, но в осадном корпусе очень скучно было. Сидишь себе, бывало, целый
божий день в каком-нибудь ложементе, под палаткой, на грязи или соломе,
да играешь в карты с утра до вечера. Разве от скуки пойдешь посмотреть, как
летают бомбы или каленые ядра. Сначала французы нас тешили вылазками, да
скоро притихли. Ездить на фуражировку тоже надоело; словом, тоска напала
на нас такая, что хоть вой. Мне всего тогда пошел девятнадцатый год; малый
был я здоровый, кровь с молоком, думал потешиться и насчет француза и
насчет того... ну, понимаете... а вышло-то вот что. От нечего делать пустился
я играть. Как-то раз, после страшного проигрыша, мне повезло, и к утру (мы
играли ночью) я был в сильном выигрыше. Измученный, сонный, вышел я
на свежий воздух и присел на гласис. Утро было прекрасное, тихое; длинные
линии наших укреплений терялись в тумане; я загляделся, а потом и задремал
сидя. Осторожный кашель разбудил меня; я открыл глаза и увидел перед
собою жида лет сорока, в долгополом сером кафтане, башмаках и черной
ермолке. Этот жид, по прозвищу Гиршель, то и дело таскался в наш лагерь,
напрашивался в факторы, доставал нам вина, съестных припасов и прочих
458 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

безделок; росту был он небольшого, худенький, рябой, рыжий, беспрестанно


моргал крошечными, тоже рыжими глазками, нос имел кривой и длинный
и все покашливал.
Он начал вертеться передо мной и униженно кланяться.
-- Ну, что тебе надобно?-спросил я его наконец.
-- А так-с, пришел узнать-с, что не могу ли их благородию чем-ни-
будь-с...
-- Не нужен ты мне; ступай.
-- Как прикажете-с, как угодно-с... Я думал, что, может быть-с, чем-
нибудь-с...
-- Ты мне надоел; ступай, говорят тебе.
-- Извольте, извольте-с. А позвольте их благородие поздравить с
выигрышем...
-- А ты почему знаешь?
-- Уж как мне не знать-с... Большой выигрыш... большой... У! какой
большой...
Гиршель растопырил пальцы и покачал головой.
-- Да что толку,-- сказал я с досадой,-- на какой дьявол здесь и деньги?
-- О! не говорите, ваше благородие; ай, ай, не говорите такое. Деньги --
хорошая вещь; всегда нужны, все можно за деньги достать, ваше благородие,
все! все! Прикажите только фактору, он вам все достанет, ваше благородие,
все! все!
-- Полно врать, жид.
-- Ай! ай!-- повторил Гиршель, встряхивая пейсиками.-- Их благоро-
дие мне не верит... ай... ай... ай...-- Жид закрыл глаза и медленно покачал
головою направо и налево...-- А я знаю, что господину офицеру угодно...
знаю... уж я знаю!
Жид принял весьма плутовской вид...
-- В самом деле?
Жид взглянул боязливо, потом нагнулся ко мне.
-- Такая красавица, ваше благородие, такая!..-- Гиршель опять закрыл
глаза и вытянул губы. Ваше благородие, прикажите... увидите сами... что
теперь я буду говорить, вы будете слушать... вы не будете верить... а лучше
прикажите показать... вот как, вот что!
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 459

Я молчал и глядел на жида.


-- Ну, так хорошо; ну, вот хорошо; ну, вот я вам покажу...-- Тут Гир-
шель засмеялся и слегка потрепал меня по плечу, но тотчас же отскочил,
как обожженный.
-- А что ж, ваше благородие, задаточек?
-- Да ты обманешь меня или покажешь мне какое-нибудь чучело.
-- Ай, ваи, что вы такое говорите? -- проговорил жид с необыкновен-
ным жаром и размахивая руками.-- Как можно? Да вы... ваше благородие,
прикажите тогда дать мне пятьсот... четыреста пятьдесят палок,-- прибавил
он поспешно...-- Да вы прикажите...
В это время один из моих товарищей приподнял край палатки и назвал
меня по имени. Я поспешно встал и бросил жиду червонец.
-- Вецером, вецером,-- пробормотал он мне вслед.
Признаюсь вам, господа, я дожидался вечера с некоторым нетерпением.
В этот самый день французы сделали вылазку; наш полк ходил в атаку.
Наступил вечер; мы все уселись вокруг огней... солдаты заварили кашу.
Пошли толки. Я лежал на бурке, пил чай и слушал рассказы товарищей.
Мне предложили играть в карты,-- я отказался. Я был в волнении. Понемногу
офицеры разошлись по палаткам; огни стали гаснуть; солдаты также
разбрелись или заснули тут же; все затихло. Я не вставал. Денщик мой сидел
на корточках перед огнем и, как говорится, «удил рыбу». Я прогнал его. Скоро
весь лагерь утих. Прошла рунда. Сменили часовых. Я все лежал и ждал чего-
то. Звезды выступили. Настала ночь. Долго глядел я на замиравшее пламя...
последний’ огонек потух наконец. «Обманул меня проклятый жид»,-- подумал
я с досадой и хотел было приподняться...
-- Ваше благородие...-- пролепетал над самым моим ухом трепетный
голос.
Я оглянулся: Гиршель. Он был очень бледен, заикался и пришепетывал:
-- Пожалуйте-с в вашу палатку-с.
Я встал и пошел за ним. Жид весь съежился и осторожно выступал
по короткой сырой траве. Я заметил в стороне неподвижную, закутанную
фигуру. Жид махнул ей рукой -- она подошла к нему. Он с ней пошептался,
обратился ко мне,-- несколько раз кивнул головой, и мы все трое вошли в
палатку. Смешно сказать: я задыхался.
-- Вот, ваше благородие,-- прошептал с усилием жид,-- вот. Она
немножко боится теперь, она боится; но я ей сказал, что господин офицер
460 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

хороший человек, прекрасный... А ты не бойся, не бойся,-- продолжал он,--


не бойся...
Закутанная фигура не шевелилась. Я сам был в страшном смущении
и не знал, что сказать. Гиршель тоже семенил на месте, как-то странно
разводил руками...
-- Однако,-- сказал я ему,-- выдь-ка ты вон...
Гиршель как будто нехотя повиновался. Я подошел к закутанной
фигуре и тихо снял с ее головы темный капюшон. В Данциге горело: при
красноватом, по рывистом и слабом отблеске далекого пожара увидел я
бледное лицо молодой жидовки. Ее красота меня поразила. Я стоял перед
ней и смотрел на нее молча. Она не поднимала глаз. Легкий шорох заставил
меня оглянуться. Гиршель осторожно высовывал голову из-под края палатки.
Я с досадой махнул ему рукой... он скрылся.
-- Как тебя зовут? -- промолвил я наконец.
-- Сара,-- отвечала она, и в одно мгновенье сверкнули во мраке белки
ее больших и длинных глаз и маленькие, ровные, блестящие зубки.
Я схватил две кожаные подушки, бросил их на землю и попросил
ее сесть. Она скинула свой плащ и села. На ней был короткий, спереди
раскрытый казакин с серебряными круглыми резными пуговицами и
широкими рукавами. Густая черная коса два раза обвивала ее небольшую
головку; я сел подле нее и взял ее смуглую, тонкую руку. Она немного
противилась, но как будто боялась глядеть на меня и неровно дышала. Я
любовался ее восточным профилем -- и робко пожимал ее дрожащие,
холодные пальцы.
-- Ты умеешь по-русски?
-- Умею... немного.
-- И любишь русских?
-- Да, люблю.
-- Стало быть, ты меня тоже любишь?
-- И вас люблю.
Я хотел было обнять ее, но она проворно отодвинулась...
-- Нет, нет, пожалуйста, господин, пожалуйста.
-- Ну, так посмотри на меня по крайней мере.
Она остановила на мне свои черные, пронзительные глаза и тотчас
же с улыбкой отвернулась и покраснела.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 461

Я с жаром поцеловал ее руку. Она посмотрела на меня исподлобья и


тихонько засмеялась.
-- Чему ты?
Она закрыла лицо рукавом и засмеялась пуще прежнего. Гиршель
появился у входа палатки и погрозил ей. Она замолчала.
-- Пошел вон!-- прошептал я ему сквозь зубы.-- Ты мне надоел.
Гиршель не выходил.
Я достал из чемодана горсть червонцев, сунул их ему в руку и вытолкал
его вон.
-- Господин, дай и мне...-- проговорила она. Я ей кинул несколько
червонцев на колени; она подхватила их проворно, как кошка.
-- Ну, теперь я тебя поцелую.
-- Нет, пожалуйста, пожалуйста,-- пролепетала она испуганным и
умоляющим голосом.
-- Чего ж ты боишься?
-- Боюсь.
-- Да полно...
-- Нет, пожалуйста.
Она робко посмотрела на меня, нагнула голову немножко набок и
сложила руки. Я оставил ее в покое.
-- Если хочешь... вот,-- сказала она после некоторого молчанья и
поднесла свою руку к моим губам.
Я не совсем охотно поцеловал ее. Сара опять рассмеялась.
Кровь меня душила. Я досадовал на себя и не знал, что делать. Однако,
подумал я наконец, что я за дурак?
Я опять оборотился к ней.
-- Сара, послушай, я влюблен в тебя.
-- Я знаю.
-- Знаешь? И не сердишься? И сама меня любишь?
Сара покачала головой.
-- Нет, отвечай мне как следует.
-- А покажите-ка себя,-- сказала она.
Я нагнулся к ней. Сара положила руки ко мне на плечи, начала
разглядывать мое лицо, хмурилась, улыбалась... Я не выдержал и проворно
462 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

поцеловал ее в щеку. Она вскочила и в один прыжок очутилась у входа


палатки.
-- Ну, какая же ты дикарка!
Она молчала и не трогалась с места.
-- Подойди же ко мне...
-- Нет, господин, прощайте. До другого разу.
Гиршель опять выставил свою курчавую головку, сказал ей два слова;
она нагнулась и ускользнула, как змея. Я выбежал из палатки вслед за нею,
но не увидел ни ее, ни Гиршеля.
Целую ночь я не мог заснуть.
На другое утро мы сидели в палатке нашего ротмистра; я играл, но
без охоты. Вошел мой денщик.
-- Спрашивают вас, ваше благородие.
-- Кто меня спрашивает?
-- Жид спрашивает.
«Неужели Гиршель!» -- подумал я. Я дождался конца талии, встал и
вышел. Действительно, я увидел Гиршеля.
-- Что,-- спросил он меня с приятной улыбкой,-- ваше благородие,
довольны вы?
-- Ах ты!.. (Тут полковник оглянулся.) Кажется, нет дам... впрочем, все
равно. Ах ты, мой любезный,-- отвечал я ему,-- да ты смеешься надо мной,
что ли?
-- А что-с?
-- Как что-с? Еще ты спрашиваешь!
-- Ай, ай, господин офицер, какой же вы,-- проговорил Гиршель с
укоризной, но не переставая улыбаться. Девица молодая, скромная... Вы ее
испугали, право испугали.
-- Хороша скромность! а деньги-то она зачем взяла?
-- А как же-с? Деньги дают-с, так как же не брать-с?
-- Послушай, Гиршель, пусть она придет опять, я тебя не обижу...
только ты, пожалуйста, своей глупой рожи не показывай у меня в палатке и
оставь нас в покое; слышишь?
У Гиршеля засверкали глазки.
-- А что? нравится вам?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 463

-- Ну, да.
-- Красавица! такой нет красавицы нигде. А денег мне теперь пожа-
луете?
-- Возьми, только слушай: уговор лучше денег. Приведи ее, да убирайся
к черту. Я ее сам провожу домой.
-- А нельзя, нельзя, никак нельзя-с,-- торопливо возразил жид. Ай, ай,
никак нельзя-с. Я, пожалуй, буду ходить около палатки, ваше благородие; я,
я, ваше благородие, отойду, пожалуй, немножко... я, ваше благородие, готов
вам служить, я, пожалуй, отойду... что ж? я отойду.
-- Ну, смотри же... Да приведи ее, слышишь?
-- А ведь красавица? господин офицер, а? ваше благородие? краса-
вица? а?
Гиршель нагибался и заглядывал мне. в глаза.
-- Хороша.
-- Ну, так дайте же мне еще червончик...
Я бросил ему червонец; мы разошлись.
День минул наконец. Настала ночь. Я долго сидел один в своей
палатке. На дворе было неясно. В городе пробило два часа. Я начинал уже
ругать жида... вдруг вошла Сара, одна. Я вскочил, обнял ее... прикоснулся
губами до ее лица... Оно было холодно как лед. Я едва мог различить ее
черты... Я усадил ее, стал перед ней на колени, брал ее руки, касался ее
стана... Она молчала, не шевелилась и вдруг громко, судорожно зарыдала. Я
напрасно старался успокоить, уговорить ее... Она плакала навзрыд... Я ласкал
ее, утирая ее слезы; она по-прежнему не противилась, не отвечала на мои
расспросы и плакала, плакала в три ручья. Сердце во мне перевернулось; я
встал и вышел из палатки.
Гиршель точно из земли передо мною вынырнул.
-- Гиршель,-- сказал я ему,-- вот тебе обещанные деньги. Уведи Сару.
Жид тотчас бросился к ней. Она перестала плакать и ухватилась за него.
-- Прощай, Сара,-- сказал я ей. Бог с тобой, прощай. Когда-нибудь
увидимся, в другое время.
Гиршель молчал и кланялся. Сара нагнулась, взяла мою руку, прижала
ее к губам; я отвернулся...
Дней пять или шесть, господа, я все думал о моей жидовке. Гиршель
не являлся, и никто не видал его в лагере. По ночам спал я довольно плохо:
464 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

мне все мерещились черные влажные глаза, длинные ресницы; мои губы не
могли забыть прикосновенья щеки, гладкой и свежей, как кожица сливы.
Послали меня со взводом на фуражировку в отдаленную деревеньку. Пока
мои солдаты шарили по домам, я остался на улице и не слезал с коня. Вдруг
кто-то схватил меня за ногу...
-- Боже мой, Сара!
Она была бледна и взволнована.
-- Господин офицер, господин... помогите, спасите: солдаты нас оби-
жают... Господин офицер... Она узнала меня и вспыхнула.
-- А разве ты здесь живешь?
-- Здесь.
-- Где?
Сара указала мне на маленький старенький домик. Я дал лошади
шпоры и поскакал. На дворе домика безобразная, растрепанная жидовка
старалась вырвать из рук моего длинного вахмистра Силявки три курицы и
утку. Он поднимал свою добычу выше головы и смеялся; курицы кудахтали,
утка крякала... Другие два кирасира вьючили лошадей своих сеном, соломой,
мучными кулями. В самом доме слышались малороссийские восклицания
и ругательства... Я крикнул на своих и приказал им оставить жидов в покое,
ничего не брать у них. Солдаты повиновались; вахмистр сел на свою гнедую
кобылу Прозерпину, или, как он называл ее, «Прожерпылу», и выехал за
мной на улицу.
-- Ну что,-- сказал я Саре,-- довольна ты мной?
Она с улыбкой посмотрела на меня.
-- Где ты пропадала все это время?
Она опустила глаза.
-- Я к вам завтра приду.
-- Вечером?
-- Нет, господин, утром.
-- Смотри же, не обмани меня.
-- Нет... нет, не обману.
Я жадно глядел на нее. Днем она показалась мне еще прекраснее. Я
помню, меня в особенности поразили янтарный, матовый цвет ее лица и
синеватый отлив ее черных волос... Я нагнулся с лошади и крепко стиснул
ее маленькую руку.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 465

-- Прощай, Сара... смотри, приходи же.


-- Приду.
Она пошла домой; я приказал вахмистру догнать меня с командой
-- и поскакал.
На другой день я встал очень рано, оделся и вышел из палатки. Утро
было чудесное; солнце только что подымалось, и на каждой былинке сверкал
влажный багрянец. Я взошел на высокий бруствер и сел на краю амбразуры.
Подо мной толстая чугунная пушка выставила в поле свое черное жерло. Я
рассеянно смотрел во все стороны... и вдруг увидал шагах во ста скорченную
фигуру в сером кафтане. Я узнал Гиршеля. Он долго стоял неподвижно на
одном месте, потом вдруг отбежал немного в сторону, торопливо и боязливо
оглянулся... крикнул, присел, осторожно вытянул шею и опять начал
оглядываться и прислушиваться. Я очень ясно видел все его движенья. Он
запустил руку за пазуху, достал клочок бумажки, карандаш и начал писать
или чертить что-то. Гиршель беспрестанно останавливался, вздрагивал, как
заяц, внимательно рассматривал окрестность и как будто срисовывал наш
лагерь. Он не раз прятал свою бумажку, щурил глаза, нюхал воздух и снова
принимался за работу. Наконец жид присел на траву, снял башмак, запихал
туда бумажку; но не успел он еще выпрямиться, как вдруг, шагах в десяти
от него, из-за ската гласиса показалась усастая голова вахмистра Силявки
и понемногу приподнялось от земли все длинное и неуклюжее его тело.
Жид стоял к нему спиной. Силявка проворно подошел к нему и положил
ему на плечо свою тяжелую лапу. Гиршеля скорчило. Он затрясся, как лист,
и испустил болезненный, заячий крик. Силявка грозно заговорил с ним
и схватил его за ворот. Я не мог слышать их разговора, но по отчаянным
телодвижениям жида, по его умоляющему виду начал догадываться, в чем
дело. Жид раза два бросался к ногам вахмистра, запустил руку в карман,
вытащил разорванный клетчатый платок, развязал узел, достал червонец...
Силявка с важностью принял подарок, но не переставал тащить жида за
ворот. Гиршель рванулся и бросился в сторону; вахмистр пустился за ним в
погоню. Жид бежал чрезвычайно проворно; его ноги, обутые в синие чулки,
мелькали действительно весьма быстро; но Силявка после двух или трех
«угонок» поймал присевшего жида, поднял и понес его на руках -- прямо в
лагерь. Я встал и пошел к нему навстречу.
-- А! ваше благородие!-- закричал Силявка,-- лазутчика несу вам, лазут-
чика!..-- Пот градом катился с дюжего малоросса. Да перестань же вертеться,
чертов жид! да ну же... экой ты! не то придавлю, смотри!
466 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

Несчастный Гиршель слабо упирался локтями в грудь Силявки, слабо


болтал ногами... Глаза его судорожно закатывались...
-- Что такое? -- спросил я Силявку.
-- А вот что, ваше благородие: извольте-ка снять с его правой ноги
башмак, мне неловко. Он все еще держал жида на руках.
Я снял башмак, достал тщательно сложенную бумажку, развернул ее
и увидел подробный рисунок нашего лагеря. На полях стояло множество
заметок, писанных мелким почерком на жидовском языке.
Между тем Силявка поставил Гиршеля на ноги. Жид раскрыл глаза,
увидел меня и бросился передо мной на колени.
Я молча показал ему бумажку.
-- Это что?
-- Это -- так, господин офицер. Это я так. Так...-- Голос его перервался.
-- Ты лазутчик?
Он не понимал меня, бормотал несвязные слова, трепетно прикасался
моих колен...
-- Ты шпион?
-- Ай! -- крикнул он слабо и потряс головой. Как можно? Я -- никогда;
я совсем нет. Не можно; не есть возможно. Я готов. Я -- сейчас. Я дам денег...
Я заплачу,-- прошептал он и закрыл глаза.
Ермолка сдвинулась у него на затылок; рыжие, мокрые от холодного
поту волосы повисли клочьями, губы посинели и судорожно кривились,
брови болезненно сжались, щеки ввалились...
Солдаты нас обступили. Я сперва хотел было пугнуть порядком
Гиршеля да приказать Силявке молчать, но теперь дело стало гласно и не
могло миновать «сведения начальства».
-- Веди его к генералу,-- сказал я вахмистру.
-- Господин офицер, ваше благородие! -- закричал отчаянным голосом
жид,-- я не виноват; не виноват... Прикажите выпустить меня, прикажите...
-- А вот его превосходительство разберет,-- проговорил Силявка.--
Пойдем.
-- Ваше благородие! -- закричал мне жид вслед,-- прикажите! поми-
луйте!
Крик его терзал меня. Я удвоил шаги.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 467

Генерал наш был человек немецкого происхождения, честный и


добрый, но строгий исполнитель правил службы. Я вошел в небольшой,
наскоро выстроенный его домик и в немногих словах объяснил ему причину
моего посещения. Я знал всю строгость военных постановлений и потому
не произнес даже слова «лазутчик», а постарался представить все дело
ничтожным и не стоящим внимания. Но, к несчастию Гиршеля, генерал
исполнение долга ставил выше сострадания.
-- Вы, молодой человек,-- сказал он мне,-- суть неопытный. Вы в во-
инском деле еще неопытны суть. Дело, о котором (генерал весьма любил
слово: который) вы мае рапортовали, есть важное, весьма важное... А где же
этот человек, который взят был? тот еврей? где же тот?
Я вышел из палатки и приказал ввести жида.
Ввели жида. Несчастный едва стоял на ногах.
-- Да,-- промолвил генерал, обратясь ко мне,-- а где же план, который
найден на сем человеке?
Я вручил ему бумажку. Генерал развернул ее, отодвинулся назад,
прищурил глаза, нахмурил брови.
-- Это уд-див-вит-тельно...-- проговорил он с расстановкой.-- Кто его
арестовал?
-- Я, ваше превосходительство! -- резко брякнул Силявка.
-- А! хорошо! хорошо!.. Ну, любезный мой, что ты скажешь в своем
оправданье?
-- Ва... ва... ваше превосходительство,-- пролепетал Гиршель,-- я...
помилуйте... ваше превосходительство... не виноват... спросите, ваше пре-
восходительство, господина офицера.., Я фактор, ваше превосходительство,
честный фактор.
-- Его следует допросить,-- проговорил генерал вполголоса, важно
качнув головой. Ну, как же ты это, братец?
-- Не виноват, ваше превосходительство, не виноват.
-- Однако же это есть невероятно. Ты, как по-русски говорится, поде-
лом взят, то есть на самих делах!
-- Позвольте сказать, ваше превосходительство: я не виноват.
-- Ты рисовал план? ты есть шпион неприятельский?
-- Не я! -- крикнул внезапно Гиршель,-- не я, ваше превосходительство!
Генерал посмотрел на Силявку.
468 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

-- Да врет же он, ваше превосходительство. Господин офицер сам из


его башмака грамоту достал.
Генерал посмотрел на меня. Я принужден был кивнуть головой.
-- Ты, любезный мой, есть неприятельский лазутчик... любезный мой...
-- Не я... не я...-- шептал растерявшийся жид.
-- Ты уже доставлял сему подобные сведения и прежде неприятелю?
Признавайся...
-- Как можно!
-- Ты, любезный мой, меня не будешь обманывать. Ты лазутчик?
Жид закрыл глаза, тряхнул головой и поднял полы своего кафтана.
-- Повесить его,-- проговорил выразительно генерал после некоторого
молчания,-- сообразно законов. Где господин Феодор Шликельман?
Побежали за Шликельманом, генеральским адъютантом. Гиршель
позеленел, раскрыл рот, выпучил глаза. Явился адъютант. Генерал отдал
ему надлежащие приказания. Писарь показал на миг свое тощее рябое лицо.
Два-три офицера с любопытством заглянули в комнату,
-- Сжальтесь, ваше превосходительство,-- сказал, я генералу по-немец-
ки, как умел,-- отпустите его...
-- Вы, молодой человек,-- отвечал он мне по-русски,-- я вам сказывал,
неопытны, и посему прошу вас молчать и меня более не утруждать.
Гиршель с криком повалился в ноги генералу.
-- Ваше превосходительство, помилуйте, не буду вперед, не буду, ваше
превосходительство, жена у меня есть... ваше превосходительство, дочь
есть... помилуйте...
-- Что сделать!
-- Виноват, ваше превосходительство, точно естем виноват... в первый
раз, ваше превосходительство, в первый раз, поверьте!
-- Других бумаг не доставлял?
-- В первый раз, ваше превосходительство... жена... дети... помилуйте...
-- Но ты есть шпион.
-- Жена... ваше превосходительство... дети...
Генерала покоробило, но делать было нечего.
-- Сообразно законов, повесить еврея,-- проговорил он протяжно и
с видом человека, принужденного скрепя сердце принести свои лучшие
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 469

чувства в жертву неумолимому долгу,-- повесить! Феодор Карлыч, прошу


вас о сем происшествии написать рапорт, который...
В Гиршеле вдруг произошла страшная перемена. Вместо
обыкновенного, жидовской натуре свойственного, тревожного испуга на
лице его изобразилась страшная, предсмертная тоска. Он заметался, как
пойманный зверек, разинул рот, глухо захрипел, даже запрыгал на месте,
судорожно размахивая локтями. Он был в одном башмаке; другой позабыли
надеть ему на ногу... кафтан его распахнулся... ермолка свалилась...
Все мы вздрогнули; генерал замолчал.
-- Ваше превосходительство,-- начал я опять,-- простите этого не-
счастного.
-- Нельзя. Закон повелевает,-- возразил генерал отрывисто и не без
волненья,-- другим в пример.
-- Ради бога...
-- Господин корнет, извольте отправиться на свой пост,-- сказал гене-
рал и повелительно указал мне рукою на дверь.
Я поклонился и вышел. Но так как у меня, собственно, поста не было
нигде, то я и остановился в недалеком расстоянии от генеральского домика.
Минуты через две явился Гиршель в сопровождении Силявки и трех
солдат. Бедный жид был в оцепенении и едва переступал ногами. Силявка
прошел мимо меня в лагерь и скоро вернулся с веревкой в руках. На грубом,
но не злом его лице изображалось странное, ожесточенное сострадание.
При виде веревки жид замахал руками, присел и зарыдал. Солдаты молча
стояли около него и угрюмо смотрели в землю. Я приблизился к Гиршелю,
заговорил с ним; он рыдал как ребенок и даже не посмотрел на меня. Я махнул
рукой, ушел к себе, бросился на ковер -- и закрыл глаза...
Вдруг кто-то торопливо и шумно вбежал в мою палатку. Я поднял
голову -- и увидел Сару; на ней лица не было. Она бросилась ко мне и
схватила меня за руки.
-- Пойдем, пойдем, пойдем,-- твердила она задыхающимся голосом.
-- Куда? зачем? останемся здесь.
-- К отцу, к отцу, скорее... спаси его... спаси!
-- К какому отцу?..
-- К моему отцу; его хотят вешать...
-- Как! Разве Гиршель...
470 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

-- Мой отец... я тебе все растолкую потом,-- прибавила она, отчаянно


ломая руки,-- только пойдем... пойдем...
Мы выбежали вон из палатки. В поле, на дороге к одинокой березе,
виднелась группа солдат... Сара молча указала на нее пальцем...
-- Стой,-- сказал я вдруг,-- куда же мы бежим? Солдаты меня не по-
слушаются.
Сара продолжала тащить меня за собой... Признаюсь, у меня голова
закружилась.
-- Да послушай, Сара,-- сказал я ей,-- что толку туда бежать? Лучше я
пойду опять к генералу; пойдем вместе; авось мы упросим его.
Сара вдруг остановилась и как безумная посмотрела на меня.
-- Пойми меня, Сара, ради бога. Я твоего отца помиловать не могу, а
генерал может. Пойдем к нему.
-- Да его пока повесят,-- простонала она...
Я оглянулся. Писарь стоял невдалеке.
-- Иванов,-- крикнул я ему,-- сбегай, пожалуйста, туда к ним: прикажи
им подождать, скажи, что я пошел просить генерала.
-- Слушаю-с...
Иванов побежал.
Нас к генералу не пустили. Напрасно, я просил, убеждал, наконец даже
бранился... напрасно бедная Сара рвала волосы и бросалась на часовых: нас
не пустили.
Сара дико посмотрела кругом, схватила обеими руками себя за. голову и
побежала стремглав в поле, к отцу. Я за ней. На нас глядели с недоумением...
Мы подбежали к солдатам. Они стали в кружок и, представьте, господа!
смеялись, смеялись над бедным Гиршелем! Я вспыхнул и крикнул на них.
Жид увидел нас и кинулся на шею дочери. Сара судорожно схватилась за
него.
Бедняк вообразил, что его простили... Он начинал уже благодарить
меня... я отвернулся.
-- Ваше благородие,-- закричал он и стиснул руки. Я не прощен?
Я молчал.
-- Нет?
-- Нет.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 440-472 471

-- Ваше благородие,-- забормотал он,-- посмотрите, ваше благородие,


посмотрите... ведь вот она, эта девица -- знаете, она дочь моя.
-- Знаю,-- отвечал я и опять отвернулся.
-- Ваше благородие,-- закричал он,-- я не отходил от палатки! Я ни
за что...-- Он остановился и закрыл на мгновенье глаза...-- Я хотел ваших
денежек, ваше благородие, нужно сознаться, денежек... но я ни за что...
Я молчал. Гиршель был мне гадок, да и она, его сообщница...
-- Но теперь, если вы меня спасете,-- проговорил жид шепотом,-- я
прикажу -- я... понимаете?.. все... я уж на все пойду...
Он дрожал как лист и торопливо оглядывался. Сара молча и страстно
обнимала его.
К нам подошел адъютант.
-- Господин корнет,-- сказал он мне,-- его превосходительство приказал
арестовать вас. А вы...-- Он молча указал солдатам на жида...-- сейчас его...
Силявка подошел к жиду.
-- Федор Карлыч,-- сказал я адъютанту (с ним пришло человек пять
солдат),-- прикажите по крайней мере унести эту бедную девушку...
-- Разумеется. Согласен-с.
Несчастная едва дышала. Гиршель бормотал ей на ухо по-жидовски...
Солдаты с трудом высвободили Сару из отцовских объятий и бережно
отнесли ее шагов на двадцать. Но вдруг она вырвалась у них из рук и
бросилась к Гиршелю... Силявка остановил ее. Сара оттолкнула его, лицо
ее покрылось легкой краской, глаза засверкали, она протянула руки.
-- Так будьте же вы прокляты,-- закричала она по-немецки,-- прокляты,
трижды прокляты, вы и весь ненавистный род ваш, проклятием Дафана и
Авирона, проклятием бедности, бесплодия и насильственной, позорной
смерти! Пускай же земля раскроется под вашими ногами, безбожники, без-
жалостные, кровожадные псы...
Голова ее закинулась назад... она упала на землю... Ее подняли и
унесли.
Солдаты взяли Гиршеля под руки. Я тогда понял, почему смеялись
они над жидом, когда я с Сарой прибежал из лагеря. Он был действительно
смешон, несмотря на весь ужас его положения. Мучительная тоска разлуки
с жизнью, дочерью, семейством выражалась у несчастного жида такими
странными, уродливыми телодвижениями, криками, прыжками, что мы
472 Fernanda Naomi Kumagai. O judeu de Ivan Turguêniev

все улыбались невольно, хотя и жутко, страшно жутко было нам. Бедняк
замирал от страху...
-- Ой, ой, ой! -- кричал он,-- ой... стойте! я расскажу, много расскажу.
Господин унтер-вахмистр, вы меня знаете. Я фактор, честный фактор. Не
хватайте меня; постойте еще минутку, минуточку, маленькую минуточку
постойте! Пустите меня: я бедный еврей, Сара... где Сара? О, я знаю! она у
господина квартир-поручика (бог знает, почему он меня пожаловал в такой
небывалый чин). Господин квартир-поручик! Я не отхожу от палатки. (Сол-
даты взялись было за Гиршеля... он оглушительно взвизгнул и выскользнул у
них из рук.) Ваше превосходительство, помилуйте несчастного отца семей-
ства! Я дам десять червонцев, пятнадцать дам, ваше превосходительство!..
(Его потащили к березе.) Пощадите! змилуйтесь! господин квартир-поручик!
сиятельство ваше! господин обер-генерал и главный шеф!
На жида надели петлю... Я закрыл глаза и бросился бежать.
Я просидел две недели под арестом. Мне говорили, что вдова
несчастного Гиршеля приходила за платьем покойного. Генерал велел ей
выдать сто рублей. Сару я более не видал. Я был ранен; меня отправили в
госпиталь, и когда я выздоровел, Данциг уже сдался,-- и я догнал свой полк
на берегах Рейна.

Referências
TURGUÊNIEV, Ivan Serguêievitch. “Jid”. In: Sobranie sotchinienii v dessiati tomakh (tom
piatii). Moskva: Khudojestvienaia Literatura. 1977.
The jew and the Other Stories. Trad. Constance Garnett. CreateSpace, 2014.

Dicionários

AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (em 5 volumes). Rio de Janeiro:
Editora Delta, 1968.
ALEKSANDROVNA, Zinaida. Slovar sinonimov russkovo iazyka. 2. ed. Moskva: Sovietskaia
Entsiklopedia, 1969. 600 p.
FELITSYNA, Vera Petrovna. Russkie frazeologizmy: lingvostranovedtcheskii slovar. Moskva:
Russki Yazyk, 1990. 221 p.
OXFORD Russian Dictionary. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2007.
VOINOVA, N. Dicionário russo – português. 2. ed. Moscovo: Edições Russki Yazik, 1989.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 473

Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

Alípio Correia de Franca Neto1 e Elena Vássina2

Resumo: Apresentamos a tradução das primeiras dez estrofes do Capítulo I do romance em versos Evguêni Oniê-
guin, de Aleksandr Púchkin (1799-1837), que contou também com a colaboração inestimável do falecido Prof. Boris
Schnaiderman. No artigo ressaltamos preferências de abordagens teóricas que acabaram por influenciar as “escolhas”
da tradução, em termos de uma tentativa de reconstituição de estilo desta obra fundamental da literatura russa.
Palavras-chaves: A. Púchkin; romance Evguêni Oniêguin; tradução.

Já faz muito tempo que o estilo deixou de ser considerado apenas em termos
de seus traços linguísticos. Questões como outridade, contextualização, aspectos
psicológicos, estrangeirização, modos específicos e culturalmente limitados de
conceitualizar e exprimir sentidos, a par de modos universais de fazê-lo vieram
a fazer parte do estudo do estilo. Para Jakobson, por exemplo, o estilo era o que
definia a diferença entre textos literários e não literários.
Ele estava particularmente interessado em características que pudessem
fazer de textos obras literárias. Na verdade, tinha isso em comum com adeptos
da Nova Crítica Americana, como Cleanth Brooks, por exemplo, e proponentes
ingleses da close reading, como I. A. Richards e William Empson. Desse ângulo,
tal interesse dá a razão da predileção de Jakobson por poesia. A seus olhos, ela
parecia lhe encarnar a natureza essencial da literatura, em virtude do nexo que
apresentava – passível de observação –, entre forma e conteúdo. Ao afirmar que

1 Pós-doutor em Teorias da Tradução e Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Uni-
versidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
2 Profa. Dra. DLO/FFLCH/USP. E-mail: [email protected]
474 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

toda língua se vale dos mesmos recursos, Jakobson considerava a linguagem literária
e, em particular, a poética, uma modalidade com um funcionamento diferente,
visto que ela fazia um uso distinto dessas mesmas fontes – um uso responsável
pela “função poética”. Segundo suas famosas verbalizações, essa função “projeta
o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação”.
Bradford (1994. p. 13), interpretando as ideias de Jakobson, acreditava que um
denominador comum em sua obra era que “a substância material do signo nunca
é inteiramente distinguível de suas propriedades significantes”. Desse ângulo, ao
se transpor o signo de uma língua para outra, suas “propriedades significantes”
seriam diferentes.
É de notar que esses argumentos implicavam a ideia da perda da unidade
entre forma e conteúdo, e, claro, a impossibilidade de “tradução”. É muito comum
se esquecer, porém, que esses mesmos argumentos acabariam sendo relativizados
num artigo de 1959, em que ele afirmava que a tradução de poesia não poderia
se dar senão por meio de “transposição criativa”. Na verdade, a explicação dessa
afirmação foi dada por ele por meio de uma menção, a propósito de um obstáculo
poético”, a São Constantino, que “opõe resolutamente o preceito de Dionísio, o
Aeropagita, segundo o qual deve-se estar atento aos valores cognitivos..., e não às
palavras propriamente ditas”:

Se fosse preciso traduzir para o português a fórmula tradicional “traduttore,


traditore” por “o tradutor é um traidor”, privaríamos o epigrama rimado
italiano de um pouco do seu valor paronomástico. Donde uma atitude
cognitiva que nos obrigaria a mudar esse aforismo numa proposição mais
explícita e a responder a perguntas: tradutor de que mensagem? Traidor de
que valores? (JAKOBSON, 1970, p. 72)

Como se vê, as preocupações de Jakobson iam além dos aspectos formais da


poesia, e, a exemplo de Richards e outros, ele considerava metáforas, metonímias
e outras figuras de linguagem como decorrentes de processos psicológicos. Com
isso, haveria de antecipar de modo pioneiro a Estilística Cognitiva3. De qualquer
forma, a exploração dos “valores cognitivos” da linguagem aludidos por Jakobson
– os quais, diferentemente dos argumentos que enfatizam a unidade entre forma

3 O que não deixa de ser um fato curioso, já que sua própria linguística é de base indutiva e estrutu-
ralista, e, diferentemente da Estilística Cognitiva, não tem a mente humana como foco principal de suas
preocupações.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 475

e sentido na poesia, eram “traduzíveis” – punham em relevo as relações entre os


elementos universais e culturalmente específicos nas línguas, ou o que Levine, por
exemplo, chamou de “vínculos secretos entre todas as línguas” (LEVINE, 1991,
p. 8), que tornariam possível a “tradução”4.
O interesse de Jakobson pelo universal subjazendo ao específico, manifesto
em títulos de ensaios como “A Magia de uma Linguagem Comum”, ou “À Procura
da Essência da Linguagem”, também estava por trás de suas famosas descrições de
tipos de traduções (intralingual, intersemiótica e interlingual), que traziam implícita
a ideia de que diferentes modos de transposição, como reescrita ou adaptação,
poderiam ser considerados “traduções”.
Na época em que Jakobson começava a escrever sua obra, a linguística
estruturalista não estava apta a explicar essas coisas. Seu foco principal eram
regularidades, ou características comuns, por trás de detalhes de línguas específi-
cas. Só quando a linguística porém passou a se ocupar dos “valores cognitivos”
de Jakobson, tornou-se possível explicar aquelas características comuns como
consequência da estrutura da mente.
Preocupações de ordem pragmática e psicológica, bem como a preocupação
quanto a contextos culturais, considerados agora como construtos cognitivos, as-
similando aspectos sociais e históricos da produção e da compreensão dos textos,
viriam assim a ser conciliadas em análises derivadas da Linguística Cognitiva, com
sua crença na ideia de uma relação de universalidade com a escolha individual no estilo.
Desse ângulo, pelo simples fato de uma escolha estilística ser sempre opcional, o
estilo nos diz algo sobre a pessoa que usa a expressão.
Esses e outros aspectos contextuais, pois, acabaram por se integrar aos estu-
dos estilísticos, cada vez mais preocupados com suas origens na mente do escritor
e seus efeitos sobre a mente do leitor. Assim, o contexto, no sentido de plano de
fundo, passou a ser considerado por sua vez como “uma entidade psicológica”. A
conclusão disso é que, ao tentar reconstituir um estilo numa tradução, o tradutor
não faz senão reconstituir “valores cognitivos identificados por ele no texto, sempre
atentando para a especificidade de estados mentais sob a influência de sociedades/
culturas diversas. Desse ponto de vista, sua própria “leitura” do estilo de um texto

4 É verdade que essas argumentações foram motivo de suspeição da parte de autores sobretudo com
orientação pós-estruturalista ou pós-modernista, que enfatizaram o que Assman (ASSMANN, 1996:, p.
85) chamou, como dissemos, de “fundamentalização da pluralidade”, para ele uma forma de respeitar a
outridade na tradução. No entanto, como tantas vezes se disse, não há nada errado com o universalismo
per se, contanto que ele venha acompanhado de a uma consciência de possíveis limitações.
476 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

é o que lhe fornece o inventário do que a professora Jean-Boasse Beier chama de


“cerceamentos” que ele precisará superar em seu trabalho de escrita5.
É fácil perceber que a percepção crítica que um tradutor tem de diversos
estilos literários exerce seu efeito sobre suas traduções, em que cada palavra advirá
de uma escolha (em oposição àqueles aspectos da língua que não se prestam a
opção), baseada por sua vez em sua compreensão pessoal de traços estilísticos
identificáveis no original, estes também servindo de base para o leitor/crítico de
tradução interpretar o que o tradutor fez.
No espaço limitado de um artigo, essas reduções um tanto violentas acerca
de tópicos tão abrangentes visam apenas a ressaltar preferências em termos de
abordagens teóricas que acabaram por influenciar as “escolhas”, em termos de
uma tentativa de reconstituição de estilo, em nossa tradução do Evguêni Oniêguin
(1823-1831), de Aleksandr Púchkin (1799-1837), que contou também com a co-
laboração inestimável do falecido Prof. Boris Schnaiderman e a ser publicada em
breve pela Ateliê Editorial.
Chamado de “enciclopédia da vida russa” pelo crítico Vissárion Belínski,
esse “romance em versos” representa para a literatura da Rússia o mesmo que os
Lusíadas, A Divina Comédia, o Dom Quixote e as peças de Shakespeare representam
respectivamente para Portugal, a Itália, a Espanha e a Inglaterra.
Aleksandr Púchkin é o mais universal dos poetas russos. Fiódor Dostoiévski
chegou a dizer que sua obra era uma afirmação da ideia da universalidade da Rússia,
e que o sentimento de compaixão destilado em sua obra legitimava o parentesco
autêntico do seu gênio com os gênios de todos os tempos e povos do mundo.
Ao mesmo tempo, de modo paradoxal, “Puchkin representa uma extraordinária
manifestação, talvez a única, do espírito russo”, como bem apontou outro escritor
russo célebre, Nikolai Gógol. Já durante quase dois séculos Púchkin representa o
maior ícone cultural da Rússia. Ele é considerado o fundador da literatura russa
moderna, suas obras fazem parte das leituras obrigatórias dos russos e seu nome
está presente em toda parte da Rússia.
Evguêni Onéguin é um romance escrito em versos tetrâmetros (mais ou
menos equivalentes aos versos de oito sílabas em português), num total de 384
estrofes de 14 versos cada. Trata-se, pois, de uma obra que realiza uma verdadeira
fusão de modalidades literárias – romance e poesia –, fusão que curiosamente lhe
empresta um sabor na época do pós-modernismo, que é também, dentre outras

5 Uma edição de ensaios críticos de sua autoria, organizada e traduzida por Correia Neto, será lançada
em breve pela Ateliê Editorial.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 477

coisas, a era da narratividade. Em termos de linguagem, a obra é a expressão


máxima do gênio de Púchkin, cuja magia reside sobretudo em sua naturalidade
de expressão, capaz de fazer com que as palavras mais comuns, utilizadas por nós
em conversas, se encham de conteúdo poético e ironia. Em virtude dessa fluência
verbal, os versos de Evguêni Onéguin acabam criando uma impressão de absoluta
espontaneidade e leveza.
Ora, falar dessa “impressão de absoluta espontaneidade e leveza” é falar
de um “estilo” original, e as estrofes que se seguem, como uma amostra do livro,
não poderiam ser senão resultado da “intenção” dos tradutores de o reconstituir
tão mimeticamente6 quanto possível a cada escolha, e de sua crença em “equiva-
lências” – essa ilusão necessária – que possam ser reconhecidas pelo leitor.

Capítulo I
E corre para viver e se apressa a sentir.
Príncipe Viázemski7

I I

«Мой дядя самых честных правил, Meu tio dos mais nobres preceitos,
Когда не в шутку занемог, Quando ficou doente à beça,
Он уважать себя заставил Logrou dos outros o respeito,
И лучше выдумать не мог. Sem invenção melhor do que essa.
Его пример другим наука; O exemplo sirva de lição;
Но, боже мой, какая скука Mas, meu bom Deus!, que amolação,
С больным сидеть и день и ночь, Passar com um morto-vivo hora a hora,
Не отходя ни шагу прочь! Sem nunca pôr o pé pra fora!
Какое низкое коварство Que insídia reles e que tédio,
Полуживого забавлять, Ter que entretê-lo o tempo inteiro,
Ему подушки поправлять, Lhe endireitar o travesseiro,

6 Concepções e conceitos mencionados aqui, como o de “paráfrase poética” são desenvolvidos em


CerzidoInvisível: Regras de um Jogo, de Correia Neto, a ser lançado pela Ateliê Editorial.
7 A epígrafe é extraída de “A Primeira Neve” (1819), poema do príncipe Piotr Viázemski (1792-1878),
um amigo íntimo de Púchkin mencionado diversas vezes no Oniêguin e aparecendo em pessoa no Capítulo
VIII. O sujeito da oração é o “ardor juvenil” comparado à excitação de uma corrida de trenó.
478 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

Печально подносить лекарство, Com aspecto triste, dar remédio


Вздыхать и думать про себя: E com um suspiro, se indagar,
Когда же черт возьмет тебя!» “Quando o diabo vai-te levar?”

II II

Так думал молодой повеса, Pensava assim o nosso boêmio,


Летя в пыли на почтовых, Num coche8 voando pela poeira,
Всевышней волею Зевеса Por decisão de Zeus supremo
Наследник всех своих родных. Herdeiro da família inteira.
Друзья Людмилы и Руслана! Leitor de Ludmila e Ruslam9!
С героем моего романа Vou apresentar a todo fã
Без предисловий, сей же час O meu herói, e com um relato
Позвольте познакомить вас: Sem preâmbulos e de imediato:
Онегин, добрый мой приятель, Meu amigo, Oniêguin, foi nascido
Родился на брегах Невы, Próximo às margens do Nievá 10,
Где, может быть, родились вы Talvez tenha nascido lá,
Или блистали, мой читатель; Brilhado lá, leitor querido;
Там некогда гулял и я: Também passeei nesse local:
Но вреден север для меня. E a mim o Norte11 me fez mal.

III III

Служив отлично благородно, Após servir exímio e lhano,
Долгами жил его отец, O pai só emprestava dinheiro,
Давал три бала ежегодно Dava três bailes todo ano
И промотался наконец. E torrou o patrimônio inteiro.
Судьба Евгения хранила: A sorte guarda Evguêni Oniêguin:

8 No original, literalmente, “carruagem de posta”.


9 Ruslan e Ludmila (1820), um poema pseudo-épico, foi a primeira grande obra de Púchkin a granjear
popularidade, e embora tenha suscitado o estranhamento dos críticos quando de sua publicação, sobretudo
em virtude de uma surpreendente mistura de gêneros e estilos, ela acabaria por consagrar Púchkin como
um dos escritores mais notáveis e promissores da época.
10 Rio que atravessa todo o centro de São Petersburgo.
11 Alusão ao primeiro exílio de Púchkin ao sul do Império russo em 1820, ocorrido devido ao fato de
poemas políticos de Púchkin terem sido considerados subversivos. Reza a nota I de Púchkin ao capítulo:
“Escrito na Bessarábia”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 479

Сперва Madame за ним ходила, Para Madame12 foi entregue,


Потом Monsieur ее сменил. Então Monsieur a substituiu.
Ребенок был резов, но мил. Infante inquieto, mas gentil.
Monsieur l’Abbé, француз убогой, Monsieur l’Abbé, pobre francês,
Чтоб не измучилось дитя, Pra não afadigar a criança,
Учил его всему шутя, Em tudo a instruía com folgança,
Не докучал моралью строгой, Sem regras chatas, sisudez;
Слегка за шалости бранил Birras causavam sua revolta
И в Летний сад гулять водил. E a guiava ao Liétni Sad13 pra volta.

IV IV

Когда же юности мятежной Tendo a estação da rebeldia


Пришла Евгению пора, Advindo a Evguêni certa hora,
Пора надежд и грусти нежной, De esperança e melancolia,
Monsieur прогнали со двора. Monsieur foi posto porta afora.
Вот мой Онегин на свободе; Eis meu Oniêguin solto, ei-lo,
Острижен по последней моде, Seguindo a moda no cabelo,
Как dandy лондонский одет – Trajado de dandy londrino –
И наконец увидел свет. E no fim viu o mundo grã-fino.
Он по-французски совершенно Falado ou escrito, o seu francês
Мог изъясняться и писал; Era impecável14; se dançasse
Легко мазурку танцевал Mazurca, o passo tinha classe;
И кланялся непринужденно; Saudava de um jeito cortês;
Чего ж вам больше? Свет решил, Que queres mais? O mundo viu
Что он умен и очень мил. Que tinha brilho e era gentil.

V V

Мы все учились понемногу A gente estuda um pouco disso,


Чему-нибудь и как-нибудь, Daquilo e seja como for;

12 Os refugiados da Revolução francesa de 1789 na Rússia em geral eram empregados como tutores
pelas famílias aristocráticas russas.
13 O Liétni Sad [literalmente, “Jardim de Verão”] é um parque criado pelo imperador Pedro, o Grande,
no centro de São Petersburgo à beira do rio Nievá que na época de Púchkin se tornou um lugar para os
passeios matinais de crianças.
14 Saber falar e escrever em francês impecável era uma exigência da aristocracia russa do século XIX,
por isso, o francês era a primeira língua que se ensinava aos filhos das famílias nobres.
480 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

Так воспитаньем, слава богу, Daí, bom Deus, não ser difícil,
У нас немудрено блеснуть. Em nosso meio, o esplendor;
Онегин был по мненью многих A muitos, nosso Oniêguin era
(Судей решительных и строгих) (Aos de opinião firme e severa)
Ученый малый, но педант: Alguém versado, mas pedante:
Имел он счастливый талант Tinha o talento cativante
Без принужденья в разговоре De resvalar qualquer matéria
Коснуться до всего слегка, Com jeito, tudo sendo dito
С ученым видом знатока Com uns ares doutos de perito;
Хранить молчанье в важном споре Calava-se em conversa séria,
И возбуждать улыбку дам Fazia as damas rir com as chamas
Огнем нежданных эпиграмм. De inusitados epigramas15.

VI VI

Латынь из моды вышла ныне: Latim saiu de moda agora:


Так, если правду вам сказать, Mas, vou dizer-lhe uma verdade,
Он знал довольно по-латыне, Sabia bem latim – embora
Чтоб эпиграфы разбирать, Pra ler epígrafes16, tratar de
Потолковать об Ювенале, Um poeta como Juvenal17, e,
В конце письма поставить vale, Ao concluir cartas, pôr um vale18,
Да помнил, хоть не без греха, Lembrando uns dois versos completos
Из Энеиды два стиха. Da Eneida19, embora não corretos.
Он рыться не имел охоты De historiografias terrestres
В хронологической пыли Não desejava revolver a
Бытописания земли: Cronologia e sua poeira;
Но дней минувших анекдоты Mas anedotas dos ancestres,

15 Púchkin usa “epigrama” não como definição do gênero poético (saberemos que Oniêguin não possui
nenhum dom poético), mas como um comentário sarcástico.
16 A palavra epígrafe é usada aqui no sentido original do termo grego (epigrafhé), qual seja, inscrição
em prosa ou verso talhada sobre tumbas ou em outros lugares em honra a pessoas e eventos na Grécia
antiga.
17 Juvenal (c. 42-c.125 d. C.) foi um poeta romano satírico, bastante popular entre os decembristas em
virtude das denúncias que fez de despotismo e corrupção.
18 Forma epistolar latina no arremate de uma carta.
19 Poema épico de Vergílio (70-19 a. C.).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 481

От Ромула до наших дней Dos dias de Rômulo até agora,


Хранил он в памяти своей. Ele guardava na memória.

VII VII

Высокой страсти не имея Sem o alto afã de sacrifício


Для звуков жизни не щадить, Em prol de sons, troqueus e jambos,
Не мог он ямба от хорея, Por mais esforços nossos pra isso,
Как мы ни бились, отличить. Ele não distinguia entre ambos;
Бранил Гомера, Феокрита; Homero20 e Teócrito21, chatice,
Зато читал Адама Смита Mas lia em troca Adam Smith22
И был глубокой эконом, E era um economista e tanto,
То есть умел судить о том, Isto é, avaliava quanto
Как государство богатеет, Faz rico o Estado, do que vive,
И чем живет, и почему Por que motivo, quando tem
Не нужно золота ему, Produto simples23, o ouro vem
Когда простой продукт имеет. A ser de fato prescindível.
Отец понять его не мог Seu próprio pai não o compreendia
И земли отдавал в залог. E hipotecou-lhe a terra um dia.

VIII VIII

Всего, что знал еще Евгений, O mais que conhecia Evguêni


Пересказать мне недосуг; Falta ocasião pra que o relate;
Но в чем он истинный был гений, Mas no que ele era mesmo um gênio,

20 Antigo poeta grego, a quem se atribui a autoria da Ilíada e da Odisséia.


21 Antigo poeta grego, autor de célebres idílios, que floresceu no terceiro século antes de Cristo. Iúri
Lotman lembra que os pré-românticos russos, à procura de uma cultura nacional e popular contraposta à
precedente tendência elitista e ocidental do rococó, traduziram extensamente Homero e Teócrito e neles
se inspiraram.
22 Economista escocês (1723-1790) que influenciou bastante as ideias político-econômicas dos membros
da conspiração dos dezembristas – revolucionários da alta nobreza russa que participaram da revolta contra
a coroação do czar Nicolau I em 14 de dezembro de 1825. Embora Púchkin não fosse um participante
direto desse movimento revolucionário, ele tinha vários amigos próximos entre dezembristas.
23 Um dogma fundamental da teoria econômica fisiocrata, que se originou na França do século XVIII, de
acordo com o qual a riqueza se baseava no “produit net” da agricultura. O interesse pela economia política
foi um traço característico da juventude russa no período de 1818 -1820.
482 Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. Evguêni Oniêguin: em busca de um estilo

Что знал он тверже всех наук, O que sabia mais do que à arte,
Что было для него измлада O que lhe fora desde o início
И труд, и мука, и отрада, Batente, júbilo, suplício
Что занимало целый день E o que ocupava cada instante
Его тоскующую лень, – De sua indolência angustiante
Была наука страсти нежной, Era a arte da paixão airosa
Которую воспел Назон, Que Naso24 decantou em loas,
За что страдальцем кончил он Por que sofreu, e então findou a
Свой век блестящий и мятежный Sua era ilustre e tempestuosa
В Молдавии, в глуши степей, Na Moldávia, na estepe densa,
Вдали Италии своей Longe da Itália de nascença.

IX IX25
..................................... ....................................
..................................... ....................................
..................................... ....................................

X X

Как рано мог он лицемерить, Quão cedo soube usar disfarce,


Таить надежду, ревновать, Velar o anseio, mostrar ciúme,
Разуверять, заставить верить, Levar a crer, desenganar, se
Казаться мрачным, изнывать, Mostrar soturno, com azedume,
Являться гордым и послушным, Com ar de altivez e obediência,
Внимательным иль равнодушным! Ou de atenção e indiferença!
Как томно был он молчалив, Quão langoroso silenciava,

24 Trata-se do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a. C.-16 d. C.), autor das Metamorfoses e do escan-
daloso poema erótico A Arte de Amar, com quem Púchkin sentia ter certa afinidade em virtude de seu
exílio: Ovídio morreu em exílio junto ao Mar Negro. Diga-se que a alusão à A Arte de Amar de Ovídio
acrescenta uma nuança pejorativa ao caráter das aventuras amorosas de Evguêni.
25 Na edição de Evguêni Oniêgui, Púchkin omitiu esta estrofe, indicando a omissão com três linhas
pontilhadas. Diga-se aliás que, ao longo do poema, as estrofes omitidas são de três tipos; as escritas e
descartadas; as que Púchkin intentava escrever mas nunca levou a cabo; e as vazadas num estilo irônico
a modo de Sterne, Byron e Hoffmann. O importante é que as estrofes omitidas deveriam ser compreen-
didas não como uma “lacuna” do texto, mas como pausas semânticas com o efeito estético de sugerir,
como ressaltou o célebre teórico do formalismo russo, Iúri Tyniánov, que o romance que se lê extrapola
a representação dessas mesmas estrofes.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 473-483 483

Как пламенно красноречив, Quão inflamada a sua palavra,


В сердечных письмах как небрежен! Nas cartas de amor, que descaso!
Одним дыша, одно любя, Respirando, amando um objeto,
Как он умел забыть себя! Como esquecia de si! Que inquieto
Как взор его был быстр и нежен, E terno, tímido e audaz o
Стыдлив и дерзок, а порой Olhar, que às vezes de repente
Блистал послушною слезой! Luzia com a lágrima obediente!

Referências
BRADFORD, M. Roman Jakobson: Life, Language and Art. Londres Londone Nova New
York, Routledge, 1994.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1970.
LEVINE, S. J. The Subversive. Minnesota, Graywolf Press, 1991.
ASSMANN, A. “The Curse and Blessing of Babel: or looking back on universalisms”. in “The
Translatability of Cultures: figurations of the space between”, Sanford Budick e Wolgang
Iser (orgs.), Stanford University Press, 1996.
484 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

Entrevista com Susanna Witt: História da


tradução soviética foi assunto sensível
e, por isso, negligenciado

Marina Darmaros

Susanna Witt tem formação em Estudos Eslavos e defendeu seu douto-


rado, em 2001, sobre a criação de Doutor Jivago por Pasternak, na Universidade
de Estocolmo, onde leciona atualmente. De lá para cá, enveredou nos caminhos
dos Estudos da Tradução, área de pesquisa sobre a qual se debruça atualmente,
dedicando-se principalmente à era soviética.

1 – Conte-nos um pouco sobre sua trajetória e como começou nos Estudos da Tradução russos.
Foi um caminho difícil nos Estudos da Tradução voltados especificamente para a realidade
russo-soviética?

Tenho formação em Estudos Eslavos, com especialização em literatura


russa. Defendi meu doutorado, Criando a Criação: Leituras de Doutor Jivago, de
Pasternak1 [tradução nossa] na Universidade de Estocolmo em 2001 e comecei a
publicar na área de modernismo literário russo. Borís Pasternak também era um
tradutor de renome e, mais tarde, escrevi um artigo sobre sua versão de Hamlet, de
Shakespeare. Como resultado, interessei-me por uma significação mais ampla da
tradução literária como fenômeno cultural na Rússia e, particularmente, na União
Soviética, mas fiquei surpresa ao descobrir que o assunto era, em grande medida,
negligenciado nos Estudos Eslavos (ocidentais) e praticamente inexistente das

1 Creating Creation: Readings of Pasternak’s Doktor Zhivago.


Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 485

principais publicações de Estudos da Tradução modernos. Isto ocorreu por volta


de meados da década de 2000. Na Rússia em si tem havido, claro, uma longa e
forte tradição de estudos e teorização da tradução, mas ela é monolinguisticamente
russófona e, durante os tempos soviéticos, frequentemente teve uma abordagem
normativa e severamente ideologizada. Por motivos ideológicos, a história da
tradução daquele período era um assunto sensível e, por isso, negligenciado. A
pesquisa da tradução do final da União Soviética e do período pós-soviético se
baseou em grande parte na linguística e teve caráter prescritivo. Essa cegueira foi
a razão pela qual decidi me dedicar à questão em um projeto, “Totalitarismo e
Tradução: Controle e Conflito nas Práticas de Tradução Soviéticas, 1932-1953”2
[tradução nossa], voltado a estabelecer a tradução literária como objeto de pesquisa
dentro dos estudos da cultura do período Stálin. Durante os anos de 2009 a 2013,
trabalhei extensivamente em arquivos russos, o que foi uma nova experiência para
mim – e realmente difícil, com certeza. De alguma maneira, eu senti que as coisas
não haviam mudado muito desde os tempos soviéticos (durante os quais passei
um ano na Universidade de Moscou), apesar da rápida e evidente modernização
da cena urbana e da vida cotidiana.

2 – Em seu artigo “A Arte da Acomodação: A Primeira Conferência de Tradução da Pan-


-União” 3 [tradução nossa], de 2013, você escreve: “Um dos aspectos da cultura soviética ainda
muito negligenciado, porém, é o da tradução literária”. Você acredita que esses estudos ainda
sejam deixados de lado ou eles estão crescendo?

Eu diria que, agora, o cenário mudou radicalmente (especialmente tendo em


mente que o artigo citado por você foi escrito alguns anos antes de sua publicação,
em 2013). Dentro da ampliação geral das perspectivas geográficas que os estudos
da tradução têm visto nas últimas décadas (pense no grande volume de pesquisas
sobre tradução relativos a Índia, China, Japão, África e Américas) e que vem de-
safiando as prioridades tradicionalmente eurocêntricas da disciplina, a Rússia e o
Leste Europeu finalmente ganharam visibilidade. Isto ocorreu devido à colaboração
internacional, conferências e iniciativas de publicação que reuniram pesquisadores
de diversas disciplinas e fronteiras. Em 2008, participei da maior conferência da
área, organizada por Emily Lygo na Universidade de Exeter, Grã Bretanha (“Os

2 Totalitarianism and Translation: Control and Conflict in Soviet Translation Practices, 1932-1953.
3 The art of accommodation: The First All-Union Conference of Translators.
486 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

Post Horses4 de Púchkin: Tradução Literária e Cultura Russa”5 [tradução nossa]).


A conferência reuniu acadêmicos da Rússia, Europa e América, muitos dos quais
seriam úteis para promover a pesquisa na área, sobretudo Brian James Baer, que
editou e publicou em 2011 o tomo Contextos, Entrelinhas e Pretextos: A Tradução
Literária no Leste Europeu e na Rússia6 [tradução nossa]. Também colaborei com um
capítulo para o livro, apresentando os primeiros resultados de meu projeto. Já a
conferência de Exeter resultou no tomo de 2013 A Arte da Acomodação: Tradução
Literária na Rússia7 [tradução nossa] (editada por Leon Burnett e Emily Lygo).
Em 2014, organizei uma conferência internacional (“Tradução em Contextos
Russos: Pontos de Partida Transculturais, transliterais e Transdisciplinares”)8, na
Universidade de Uppsala, na Suécia, junto a minha colega Julie Hansen. Seus 60
participantes provenientes de 15 países subsequentemente compuseram o núcleo
de uma rede de pesquisadores em expansão na área, que agora inclui mais de 100
pesquisadores. Um volume baseado em colaborações selecionadas da conferência
de Uppsala acaba de sair (editado por Brian James Baer e Susanna Witt, Tradução
em Contextos Russos: Cultura, Política, Identidade9 [tradução nossa]). Também gostaria
de citar Andrea Ceccherelli, Lorenzo Costantino, Cristiano Diddi (eds.) Translation
Theories in the Slavic Countries, Salerno 2015. Esta é uma edição especial da publicação
Europa Orientalis, vol. XXXIII (2014), baseada em uma conferência realizada
quase simultaneamente com a nossa de Uppsala, em 2014.
Como sinal de um marco revolucionário transdisciplinar, edições especiais
dedicadas à Rússia estão saindo em publicações de tradução, como o Translation
and Interpreting Studies (11:1, 2016) e o Translation Studies (11:2, 2018), enquanto,
por exemplo, o Slavic and East European Journal deu, recentemente, destaque a um
“fórum” sobre tradução na Rússia (60:1, 2016). Também houve um crescimento
no interesse quanto à pesquisa russa sobre tradução, como testemunhou a confe-
rência “Rumo a Leste: Descobrindo Tradições Novas e Alternativas nos Estudos

4 Termo utilizado para designar um cavalo mantido na estalagem para mensageiros e carruagens de
correio ou para aluguel a viajantes (Dicionário Collins. Acesso em 07/02/2018 https://www.collinsdic-
tionary.com/pt/dictionary/english/post-horse). (N. do T.)
5 Pushkin’s Post Horses: Literary Translation in Russian Culture.
6 Contexts, Subtexts and Pretexts: Literary Translation in Eastern Europe and Russia.
7 The Art of Accommodation: Literary Translation in Russia (eds. Leon Burnett and Emily Lygo)
8 Translation in Russian Contexts: Transcultural, Transliteral and Transdisciplinary Points of Departure.
9 Brian James Baer, and Susanna Witt (eds.), Translation in Russian Contexts: Culture, Politics, Identity,
London: Routledge, 2018
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 487

da Tradução”10 [tradução nossa], realizado na Universidade de Viena em 2014 (e


o tomo de 2016 de mesmo título, editado por Laris Schippel e Cornelia Zwis-
chenberger). É também digno de nota aqui o tomo editado por Birgit Mensel e
Irina Alekseeva Russische Übersetzungswissenschaft an der Schwelle zum 21. Jahrhundert,
que saiu em 2013. Assim, o volume de pesquisas sobre tradução e os estudos
da tradução no contexto russo está aumentando continuamente (inclusive com
um número crescente de teses de doutorado), apesar de haver ainda obstáculos,
como os sistemas relativamente fechados de circulação: as pesquisas acadêmicas
em língua francesa, alemã e inglesa ainda tendem a ignorar umas as outras, en-
quanto estudos baseados na Rússia frequentemente operam sem referências ao
conhecimento internacional.

3 – Quais são os principais pesquisadores desta área na atualidade, na sua opinião? E quais
textos você considera canônicos e recomenda a alguém que tenha já alguma base em Estudos da
Tradução, mas queira enveredar pelos Estudos da Tradução Russos? Que conselhos você daria
a alguém iniciando seu caminho nos Estudos da Tradução Russos?

Já citei alguns nomes anteriormente. Quando se fala em tradução no contex-


to russo, uma das figuras centrais é, sem dúvidas, o supracitado Brian James Baer,
que publicou sua monografia Tradução e a Construção da Literatura Russa Moderna11
[tradução nossa] em 2016. Em um contexto mais amplo da história da tradução
na Rússia, gostaria de citar o livro de Serguêi Tiulênev Tradução e Ocidentalização
da Rússia do Século Dezoito: Uma Abordagem Sócio-Sistêmica12 (2012) [tradução nossa].
Quanto à pesquisa de arquivo (possibilitada com a quebra do sistema soviético),
é preciso mencionar a monografia de Andrêi Azóv, de 2013, Literalistas derrotados:
Da história da tradução literária na URSS nos anos de 1920-196013 [tradução nossa].
Minha própria pesquisa, parcialmente baseada no mesmo material-fonte, tem
muitos pontos em comum com a dele, apesar de minha abordagem ser mais ampla
e incluir análise da tradução distintiva. Há uma pesquisa interessante sendo condu-
zida também sobre periódicos soviéticos que apresentavam a literatura estrangeira
em tradução para o russo, as publicações Internatsionálnaia literatura14 (1933-1943)

10 Going East: Discovering New and Alternative Traditions in Translation Studies.


11 Translation and the Making of Modern Russian Literature.
12 Translation and the Westernization of Eighteenth Century Russia: A Social-Systemic Approach.
13 Poverjennie bukvalisti: Iz istori khudojestvennogo perevoda v SSSR v 1920-1960-e godi.
14 Em tradução livre, “Literatura internacional”.
488 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

e Inostránnaia literatura15 (1955–). A última é objeto de um projeto de pesquisa na


Escola Superior de Economia de Moscou conduzido por colegas do meu círculo,
Elena Zemskova e Elena Ostrovskaia, e tem por foco os aspectos institucionais e
pessoais das atividades dos periódicos. Este periódico também foi estudado por
Nailya Safiullina e Rachel Polonsky, que se concentraram, entre outros, na recep-
ção desses textos na Rússia de Stálin. Uma contribuição valiosa aqui também é a
monografia de Samantha Sherry, Discursos de Regulamentação e Resistência: Censurando
Traduções nas Eras Stálin e Khruschov da União Soviética16 [tradução nossa], um estudo
comparativo de dois periódicos. Quanto a “textos canônicos”, os estudos pionei-
ros de Maurice Friedberg (apesar de não serem baseados em arquivos) devem ser
citados aqui: Uma década de Euforia. Literatura Ocidental na Rússia Pós-Stálin, 1954-6417
(1997) [tradução nossa]. A teoria soviética da tradução é apresentada de maneira
seletiva no livro também pioneiro de Lauren Leighton de 1991 Dois Mundos, Uma
Arte: Tradução Literária na Rússia e na América18 [tradução nossa]. Alguns clássicos
da tradução russo-soviética podem ser acessados em outras línguas: o clássico de
Kornêi Tchukóvski Alta Arte19 [tradução nossa], que foi traduzido por Lauren
Leighton como The Art of Translation: Kornei Chukovskii’s “The High Art” (1984);
Efim Etkind, um dos mais astutos pesquisadores da tradução russa, é representado
em francês pelo volume Un art en crise: essai de poétique de la traduction poétique (1982,
traduzido por Wladimir Troubetzkoy)20. Brian James Baer está traduzindo agora
o seminal Fundamentos para uma teoria geral da tradução21 [tradução nossa] (primeira
edição de 1953), de Andrêi Fiôdorov, e publicou anteriormente Escritores Russos
Sobre Tradução: Uma Antologia22 [tradução nossa] (2013, juntamente com Natália
Olchanskaia). No momento, eu mesma, junto com Baer, estou preparando uma
“História soviética da tradução em documentos”, tornando acessíveis textos do
início dos anos 1920 e posteriores.

15 Em tradução livre, “Literatura estrangeira”.


16 Discourses of Regulation and Resistance: Censoring Translation in the Stalin and Khrushchev Era
Soviet Union.
17 A Decade of Euphoria. Western Literature in Post-Stalin Russia, 1954-64 (1977) and Literary Transla-
tion in Russia. A Cultural History.
18 Two Worlds, One Art: Literary Translation in Russia and America.
19 Intitulado originalmente em russo como Vissókoe iskússtvo.
20 Intitulado originalmente em russo como Osnovi obschei teorii perevoda (“Fundamentos de uma
teoria geral da tradução”).
21 Foundations for a general theory of translation.
22 Russian Writers on Translation: An Anthology.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 489

Meu conselho a quem “estiver trilhando seu caminho nos Estudos da Tra-
dução russos” seria, talvez, manter-se atento ao fato de que a tradução na Rússia
sempre foi “mais que tradução” (para parafrasear o dito popular na Rússia de
que “um poeta é mais que um poeta”): já que a tradução é a manifestação física
de um encontro com “o estrangeiro”, ela sempre foi uma atividade sensível em
uma sociedade que foi frequentemente informada por suspeita e se resguardou
ao longo da história com regulamentações de viagem e coisas similares. Um local
de negociação, contestação e resistência, a tradução russa sempre tem que ser
contextualizada para poder ser conceituada. Isto, claro, diz respeito à tradução
em geral, mas talvez seja ainda mais importante aqui.

4 – Em muitas de suas obras, você estuda casos que envolvem linguagens em que não é nativa,
ao que me parece (como nas traduções de Djambul ou Pasternak de dialetos lequíticos etc.).
Como você escolhe os casos que pesquisará, presumindo que a barreira da língua pode ser maior
neste sentido?

É verdade. Há limitações óbvias para o número de línguas que um


pesquisador pode conhecer razoavelmente. Minha língua nativa é o sueco, sou
fluente em russo e inglês e tenho habilidade de leitura em francês, polonês e ucra-
niano. Mas eu diria que tudo depende do tipo de pesquisa que você queira fazer.
Os casos que você cita são muito diversos, apesar de unidos pelo fato de que são
ambos mediados, e não traduções diretas. Ambos são produzidos com o auxílio de
uma língua russa interlinear, o chamado podstrochnik (que significa, literalmente, “sob
a linha”)23, uma prática soviética muito comum à qual dediquei diversos estudos.
Assim, os próprios tradutores soviéticos nem sempre conheciam (na realidade,
mais frequentemente eles não conheciam) as línguas do original, especialmente
quando isso se referia a traduções das muitas línguas da própria União Soviética.
Quanto a Djambul, muitos dos textos originais em cazaque estão faltando ou são
contestáveis, e meu principal foco foi a função e o significado dessas traduções em
seu contexto. Eu também consegui detectar o manejo institucional deles e esboçar o
provável processo de produção, que parecia ser uma empreitada coletiva resultando
em traduções e também nos textos originais em cazaque. No caso da tradução
de Pasternak do poeta lequítico Óndra Łysohorsky, encontrei os textos originais
no arquivo de Pasternak, assim como o próprio russo interlinear de Łysohorsky.

23 Em russo, o vocábulo tem sentido de tradução literal, palavra a palavra. (N. do T.)
490 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

Pude ler o original graças a meus conhecimentos de polonês, já que o lequítico,


um dialeto que o próprio Łysohorsky promoveu a língua, é algo entre polonês,
tcheco e eslovaco. Pude estimar a proximidade que o interlinear tinha do original
e analisar a tradução de Pasternak a partir disso. Conduzi análises detalhadas da
tradução apenas de idiomas que conheço, como a versão de Gueórgui Chengueli de
Don Juan, de Byron (WITT, Susanna, “Translation and Intertextuality in the Soviet-
-Russian Context: The Case of Georgii Shengeli’s Don Juan.” Cluster on Russian
translation, ed. by Brian James Baer. Slavic and East European Journal, 60:1, 2016).

5 – Você poderia pontuar algumas das características peculiares aos Estudos da Tradução Russos
que o diferem dos estudos em outras linguagens e realidades? “Literalismo”, “tradução livre”,
“tradução realista”, “naturalismo”, “tradução realista” são, sob meu ponto de vista, caracterís-
ticas desconhecidas por muitos pesquisadores que não se concentram na área russa desses estudos,
você concorda? Você poderia pontuar também alguns dos casos mais interessantes em Estudos
da Tradução russos em sua opinião? Em suas pesquisas, você cita o caso da pseudotradução
de Maimbet, ou a breve discussão iniciada por Gideon Toury sobre o caso Djambul como um
exemplo de “planejamento cultural”... Você poderia falar um pouco sobre isto?

Você tem razão, é claro que essas noções não são exclusivamente russas
(exceto, talvez, pela “tradução realista”, que, ao que eu saiba, não foi conceituada
em nenhum outro lugar). Mas uma característica distintiva do contexto soviético
é a idealização da norma, ligando determinadas abordagens da tradução a posições
ideologicamente repreensíveis e definindo os limites do discurso da tradução. É
preciso lembrar que, em certos períodos, essas questões não eram puramente
acadêmicas, e podiam mandar as pessoas aos campos de trabalhos forçados.
Gideon Toury (2005) foi o primeiro a trazer Djambul, o bardo cazaque do
estalinismo, à pesquisa acadêmica ocidental da tradução. Mas sua única fonte para
teorizar o que ele chamou de pseudotradução neste caso foram as memórias do
compositor Dmítri Chostakóvitch, um texto que é um pouco controverso em si
mesmo. Não oficialmente, no contexto soviético, o caso Djambul também foi um
tratamento mais completo como indicador das práticas soviéticas de tradução e
atitudes quanto à tradução em um contexto imperial. No processo, descobri alguns
casos similares em que poetas das “nacionalidades”24 publicados principalmente
em traduções russas eram promovidos a representantes de suas literaturas nativas

24 As diversas etnias encontradas na Rússia são chamadas, até hoje, de “nacionalidades” (natsionálnasti)
dentro do país. (N. do T.)
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 491

para serem incluídos no cânone soviético. É a isto que eu, usando o conceito de
Toury e até de Even Zohar de “planejamento cultural”, refiro-me como “plane-
jamento cultural de baixo”, já que os próprios tradutores (russos) eram frequen-
temente instrumentais em publicar esses textos. O caso de Maimbet é extremo
porque não apenas não havia textos originais, mas tampouco havia um poeta
original. Esta figura cazaque foi lançada em 1935 por um jornalista local russo
em Alma-Ata. As traduções dele de Maimbet apareceram até no jornal central
Pravda, acompanhadas de uma foto do bardo, um homem típico da Ásia Central
com seu tradicional instrumento de cordas. Naquele tempo, havia uma grande
demanda (criada de cima) por poetas “das nacionalidades” para representar suas
repúblicas em festivais culturais nas maiores cidades russas. Assim, o jornalista
foi abordado pelas autoridades, que pediam que ele trouxesse seu poeta a Mos-
cou para o festival cazaque, em 1936. Sua solução para o problema foi anunciar
que Maimbet, membro de uma família nômade, havia cruzado a fronteira para a
China e ficado por lá. O status imaginário de Maimbet foi confirmado em uma
carta de denúncia dos colegas do jornalista na união dos escritores local, que
encontrei nos arquivos. O mesmo jornalista tornou-se, então, um dos principais
tradutores de Djambul.

6 – Você acredita que os tradutores da era soviética podiam, de alguma forma, influenciar a
publicação de determinados escritores, agindo como gatekeepers? Eles podiam pular algumas
das regras ao alterar ou omitir trechos, eles tinham algum poder nos encontros da União dos
Escritores? Você acha que isto poderia ter mudado no período do “degelo”, eles poderiam ter
ganhado mais autonomia então?

Os tradutores podiam propor trabalhos para tradução, tentando promover


determinados escritores etc. Mas as decisões, claro, eram tomadas em um nível
superior, envolvendo as corporações formais da censura. Como mostrado por
Samantha Sherry em seu livro supracitado, a censura não era apenas formal,
mas onipresente, e envolvia diversas camadas, indo da autocensura do tradutor
ao processo de edição, em que um editor experiente frequentemente executava
uma censura prévia que envolvia cortes, reescritas, omissões e práticas similares.
O editor, por sua vez, frequentemente tinha que negociar certas escolhas com
outras pessoas, e assim por diante, até que o manuscrito pudesse ser aprovado,
novamente por um órgão formal de censura. Então seria mais exato dizer que
a função do gatekeeper era realizada por este processo de diversas camadas de
censura.
492 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

7 – No Brasil, quase até o final do século passado, a maioria das traduções de literatura russa
era feita a partir de traduções com intermediários do francês ou inglês. Algo similar ocorreu em
países nórdicos ou escandinavos? Você também pesquisou a prática soviética em traduções com
intermediários. Quais foram suas principais conclusões?

Sim, nos períodos iniciais (final do século 19 e início do século 20) muitas
obras literárias russas chegaram aos países nórdicos por meio de traduções ale-
mãs. Esta tradução indireta do russo foi praticamente abandonada na primeira
década do século 20. Mas práticas indiretas continuaram a ser a norma quando
o assunto é a literatura de línguas das repúblicas soviéticas. Esses trabalhos são,
em geral, traduzidos de uma tradução russa. Como citado anteriormente, estudei
o uso de interlineares de língua russa em tradução das línguas de nacionalidades
para o russo e entre essas próprias línguas. Minha conclusão é a de que, ainda que
a prática tenha sido considerada inferior e medidas administrativas tenham sido
tomadas repetidamente contra isso, ela persistiu até o final da era soviética como
parte indispensável do funcionamento do sistema da literatura soviética.

8  – Ao escrever sobre as pseudotraduções na URSS, você tange o vasto uso de elementos


estrangeirizantes derivados de línguas das ex-repúblicas soviéticas como um modo usado pelo
pseudotradutor para marcar o fato de que o texto era realmente originário de literatura não
russa (e que existia mesmo). Mas os mesmos elementos estrangeirizantes são empregados também
nas traduções para o russo das obras do brasileiro Jorge Amado por seu tradutor soviético,
Iúri Kalúguin. Neste caso, entretanto, os regionalismos brasileiros soam estrangeiros até para
brasileiros de regiões diferentes da Bahia de Amado e do Nordeste do Brasil. Como você
explicaria o uso deste tipo de elementos estrangeirizantes em literatura soviética “progressista”
dos anos 1950 e 1960?

É uma observação muito interessante! Talvez isto pudesse estar ligado ao


estudo de Brian Baer sobre o acondicionamento das traduções “progressistas”
do Terceiro Mundo no periódico Inostrânnaia literatura nos anos 1950, que era
frequentemente nacionalista, salientando a peculiaridade cultural dessas nações
(ver Baer, Brian, “From International to Foreign: Packaging Translated Literature
in Soviet Russia,” Slavic and East European Journal, 60.1, 2016).

9 – Você poderia definir brevemente a literatura estrangeira traduzida para o russo e a traduzida
para as línguas das repúblicas russas e as zonas de influência russas durante a era soviética? O
que diferencia esses fluxos nas políticas culturais do Partido, em sua opinião?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 493

Os clássicos da literatura mundial (inclusive literatura infantil) eram, claro,


traduzidos e retraduzidos durante todo o período. A literatura moderna “progres-
sista” constituiu um cânone tradutório que frequentemente colocava em primeiro
plano autores que não eram conhecidos em seus países de origem, como Howard
Fast durante o início dos anos 1950 (o mais traduzido de todos os autores estran-
geiros da URSS!). Durante os anos 1960, autores modernos ocidentais que não
eram tão progressistas e até modernistas (Salinger, Auden, Kafka) podiam chegar
até os leitores russos. Katerina Clark escreve de maneira interessante sobre os
esforços soviéticos nos anos 1930 para maquinar uma literatura mundial centra-
da em Moscou por meio de traduções em russo e do russo (Moscow, The Fourth
Rome: Stalinism, Cosmopolitanism, and the Ecolution of Soviet Culture, 1931-1941, 2011).
Quanto às repúblicas, um ponto importante é que muita literatura estrangeira foi
traduzida em suas diversas línguas de modo indireto por meio de traduções russas
das obras em questão. A tradução russa (já censurada), deste modo, funcionava
como um gatekeeper.

10 – A literatura de Jorge Amado também traz inúmeras menções a rituais religiosos (cristãos,
negros etc.) e Amado era conhecido praticante de religiões africanas, bastante difundidas em seu
Estado natal, a Bahia. Essas menções não são suprimidas nas traduções russas, por exemplo,
na primeira tradução de “Gabriela, cravo e canela”, de 1961, ao contrário do que se poderia
esperar, enquanto alguns trechos mais sensuais de sua obra são omitidos (ao mesmo tempo em
que outros, na mesma obra, são mantidos e outros ainda, intensificados) e menções a Lênin ou
ao tsar são completamente cortadas. Você poderia citar os casos mais interessantes, a seu ver,
envolvendo cortes e omissões ou a manutenção inesperada de elementos que poderiam ser contrários
à ideologia do Partido (considerando ainda a anedota de que “na URSS não havia sexo” e a
situação em que ela nasceu)?

Um caso interessante é o da tradução de 1960 de Rita-Rait Kovaliôva do


romance de J. D. Salinger O Apanhador no Campo de Centeio, que representou muitas
dificuldades à tradutora soviética em termos de gírias, palavrões, franqueza sexual
etc. A tradutora desenvolveu suas próprias e eficientes estratégias de transmitir
tais elementos sem cortes. Como mostrado por Aleksêi Semenenko, “ao invés
de escolher a solução fácil e frequentemente usada de eliminar e/ou substituir as
obscenidades com eufemismos, na maioria dos casos Rait cria expressões ad hoc
que produzem um efeito de desfamiliarização, fazendo o leitor parar e adivinhar
o significado do contexto” (SEMENENKO, Aleksei, “Smuggling the other: Rita
Rait-Kovaleva’s Translation of J. D. Salinger’s The Catcher in the Rye,” Translation
494 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

and Interpreting Studies, Special Issue: Contexts of Russian Literary Translation, ed.
By Julie Hansen and Susanna Witt, 11.1, 2016).

11  – Em seus trabalhos, você usa muitas informações e citações dos arquivos de Moscou,
principalmente do RGALI. Não existem tantos artigos e livros sobre casos e historiografia dos
Estudos da Tradução russos em inglês, espanhol, português, pelo menos de acordo com minhas
pesquisas, como sobre os Estudos da Tradução acerca de outras línguas, que não a russa, apesar
de haver trabalhos importantes sobre os Estudos da Tradução na Rússia em língua russa, como
Literalistas Derrotados, de Azóv etc., além de dezenas de artigos sobre casos, autores ou textos
específicos. Apesar disto, Azóv, por exemplo, já deixou suas atividades acadêmicas. Você acha
que a academia russa deveria se esforçar mais para lidar com o problema da falta de trabalhos
nesta área ou haveria alguma falta de interesse nela, talvez por motivos políticos? Você concorda
que há uma deficiência em sistematizar esses estudos por parte dos pesquisadores russos? Acha que
ainda há muito terreno virgem para ser explorado por pesquisadores internacionais nesta área?

Sim, absolutamente, ainda há muito por fazer por parte dos pesquisadores,
tanto internacionais como russos, nesta área. Há muito material nos arquivos
relativo ao trabalho e à vida de tradutores individuais, assim como a instituições,
por exemplo, as editoras. Ainda que tenha surgido um estudo alemão da editora
Vsemírnaia literatura25, o grande empreendimento tradutório da década de 1920 e
a editora Academia, um dos principais estabelecimentos para literatura traduzida
no final dos anos 1920 e início dos 1930, tenho certeza de que há muito relacio-
nado a elas (o estudo em questão é de Tatiana Bedson e Maxim Schulz, Sowjetische
Übersetzungskultur in den 1920er und 1930er Jahren: Die Verlage Vsemirnaja literatura
und Academia, 2015). Sei que há pesquisas muito interessantes sendo realizadas na
Universidade Estatal de Moscou e na Escola Superior de Economia (Moscou),
assim como em São Petersburgo (por exemplo, na Casa Púchkin), mas seria
certamente uma boa ideia fazer um balanço das pesquisas realizadas em outros
lugares para se ter uma ideia melhor. Não acho que haja uma falta de interesse
por motivos políticos.

12 – Você concorda que, até certo ponto, os arquivos russos, apesar de seu passado obscuro
poderiam hoje em dia ser considerados muito mais abertos que em muitos outros países (de-
senvolvidos) do mundo com o volume de documentos soviéticos já abertos a um amplo público,
inclusive estrangeiro?

25 “Literatura mundial”.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 495

Não estou certa sobre o ponto dos arquivos russos serem muito mais abertos
que outros. É verdade que muitos arquivos russos estão abertos a pesquisadores,
inclusive estrangeiros, mas outros são menos acessíveis hoje que há 20 anos – por
exemplo, os arquivos da KGB, que seriam de grande interesse para pesquisa sobre
muitos pesquisadores individualmente. E ainda há muita burocracia e dificuldades
em se obter cópias de material de arquivo.

13 – Qual o status dos Estudos da Tradução russos em países nórdicos atualmente?

Na Suécia, há alguns pesquisadores acadêmicos que conduzem pelo me-


nos alguma pesquisa dentro dos Estudos da Tradução Russos. Na última década,
tivemos algumas teses de doutorado: Hamlet, o Sinal: Traduções Russas de Hamlet e
a Formação do Cânone Literário26 [tradução nossa] (Estocolmo, 2007), de Aleksei
Semenenko, e Os sonetos de Shakespeare em Russo: o Desafio da Tradução27 [tradução
nossa] (Umeå, 2017), de Elena Rassokhina, e também uma dedicada a traduções
do russo para o sueco, Janela para o Leste: a Literatura russa em tradução para o sueco
com um estudo de caso da recepção sueca de Nikolai Gógol 28 [tradução nossa] (em sueco,
Uppsala, 2012), de Nils Håkanson. Mas isto é mais parte dos Estudos da Tradução
suecos... Quanto a outros países nórdicos, a Universidade da Finlândia Oriental
em Joensuu é, talvez, o único lugar onde o setor está bem estabelecido.

14 – Você esteve entre os organizadores da conferência Tradução em Contextos Russos29 [tradução


nossa], em Uppsala, Suécia, e a série de mesas-redondas e conferências dedicadas aos Estudos
da Tradução Russos e Eslavos nas conferências da ASEEES em 2015 e 2016. Como foi
organizar tais eventos? E quais outros projetos você tem ligados a esta área de pesquisa para o
futuro? Algum outro livro a ser lançado em breve também?

Tenho organizado diversos painéis em assuntos relacionados na ASEEES


desde 2011, mas o formato de “série” foi introduzido em 2016 e continuado
neste ano, em Chicago (2017). Acredito que este seja um modo muito frutífero
de continuar a colaboração dentro da rede que mencionei acima. Temos tentado

26 Hamlet the Sign: Russian Translations of Hamlet and Literary Canon Formation.
27 Shakespeare’s Sonnets in Russian: the Challenge of Translation.
28 Window to the East: Russian literature in Swedish translation with a case study of the Swedish recep-
tion of Nikolai Gogol.
29 Translation in Russian Contexts.
496 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

isso em outras conferências também, como a ICCEES, o Congresso Nórdico


de Eslavistas e a Primeira e Segunda Conferência Anual de Tartu sobre Estudos
Russos e do Leste Europeu (em 2016 e 2017). Meu projeto de pesquisa atual,
“The Interface with the Foreign: The ‘Soviet School of Translation,’ Cold War
and World Literature, 1945-1985” é financiado pelo Conselho de Pesquisa Sueco
para o período de 2015-2018 e, espera-se, deve resultar em uma monografia.

15 – Atualmente como você caracterizaria as traduções literárias para o russo? Elas seguem
alguma linha específica, em sua opinião?

Infelizmente, não tenho tempo para monitorar a área de traduções contem-


porâneas para o russo. Mas seria interessante analisar a situação atual tendo em
vista o pano de fundo da anteriormente hegemônica “escola soviética de tradução”
com seu ímpeto bastante domesticador.

* * *

Interview with Susanna Witt: Soviet translation


history was a sensitive subject and
therefore neglected

Marina Darmaros

Susanna Witt is graduated in Slavic Studies and defended her PhD thesis
on the creation of Doctor Zhivago by Pasternak, in 2001, at the University of
Stockholm, where she is currently an associate professor and lecturer. Since then,
she is devoted to Translation Studies, focusing on the Soviet period.

1 – Can you tell us about your background and how did you start in Russian Translation
Studies? Was it a though way to go through in Translation Studies specifically in the Russian/
Soviet reality?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 497

My background is in Slavic Studies with a specialization in Russian literatu-


re. I defended my PhD, Creating Creation: Readings of Pasternak’s Doktor Zhivago, at
Stockholm University in 2001 and began publishing in the field of Russian literary
modernism. Boris Pasternak was also a renowned translator and later I wrote an
article on his 1940 rendition of Shakespeare’s Hamlet. As a result, I got interested
in the broader significance of literary translation as a cultural phenomenon in
Russia, and the Soviet Union in particular, but was surprised to find out that the
topic was largely neglected in (western) Slavic Studies and virtually absent from
the central publications of modern Translation Studies. This was around the mid-
-2000s. In Russia itself, there has of course been a long and strong tradition of
studying and theorizing translation, but it has been monolingually Russophone,
and during Soviet times it often had a normative and heavily ideologized approach.
For ideological reasons the history of translation of that period was a sensitive
topic and thus neglected. Late Soviet and post-Soviet translation scholarship has
largely been linguistically based and prescriptive in character. These blind spots
are the reason why I decided to address the issue in a project, “Totalitarianism
and Translation: Control and Conflict in Soviet Translation Practices, 1932-1953,”
aimed to establish literary translation as an object of research within studies of
the culture of the Stalin period. During the years 2009-2013 I worked extensively
in Russian archives, which was a new experience for me and a really tough one,
for sure. In some sense I felt that not so much had changed since Soviet times
(during which I spent a year at Moscow University), despite the rapid and obvious
modernization of the cityscape and everyday life.

2 – In your paper “The art of accommodation: The First All-Union Conference of Trans-
lators”, from 2013, you write: “One aspect of Soviet culture still largely neglected, however, is
that of literary translation”. Do you believe these studies are still neglected or are they rising? 

I would say that by now the picture has changed radically (especially bearing
in mind that the article you mention was written some years prior to its publica-
tion in 2013). Within the overall broadening of geographical perspectives that
translation studies have seen over the last decades (think about the large body of
scholarship on translation relating to India, China, Japan, Africa, the Americas)
and which has been challenging the traditionally Eurocentric priorities of the
discipline, Russia and Eastern Europe have at last gained visibility. This is due to
international collaboration, conferences and publication initiatives which have
gathered scholars across disciplines and national borders. In 2008 I attended the
first major conference in the field, organized by Emily Lygo at Exeter university,
Great Britain (“Pushkin’s Post Horses: Literary Translation in Russian Culture”).
498 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

It brought together scholars from Russia, Europe and America, several of whom
were to be instrumental in promoting research in the field, above all Brian James
Baer who published his edited volume Contexts, Subtexts and Pretexts: Literary Transla-
tion in Eastern Europe and Russia in 2011. To this book I also contributed a chapter,
presenting the first results of my project. The Exeter conference itself resulted
in the 2013 volume The Art of Accommodation: Literary Translation in Russia (eds.
Leon Burnett and Emily Lygo). In 2014 I organized an international conference
(“Translation in Russian Contexts: Transcultural, Transliteral and Transdisciplinary
Points of Departure”) at Uppsala University, Sweden, together with my colleague
Julie Hansen. Its 60 participants from 15 countries subsequently made up the core
of an expanding network of scholars in the field which by now includes over a
hundred researchers. A volume based on selected contributions to the Uppsala
conference has just appeard (Brian James Baer, and Susanna Witt (eds.), Transla-
tion in Russian Contexts: Culture, Politics, Identity, London: Routledge, 2018). I would
like to mention as well Andrea Ceccherelli, Lorenzo Costantino, Cristiano Diddi
(eds.) Translation Theories in the Slavic Countries, Salerno 2015. It is a special issue of
the journal Europa Orientalis, vol. XXXIII (2014), based on a conference held
almost simultaneously with our Uppsala conference in 2014. As a sign of a trans-
disciplinary breakthrough, Russian-themed special issues of translation journals
such as Translation and Interpreting Studies (11:1, 2016) and Translation Studies (11:2,
2018) are appearing while, for example, Slavic and East European Journal recently
featured a “forum” on translation in Russia (60:1, 2016). There has also been an
increase in interest towards Russian scholarship on translation, as witnessed by the
conference “Going East: Discovering New and Alternative Traditions in Transla-
tion Studies” held at Vienna University in 2014 (and the 2016 volume by the same
title, edited by Laris Schippel and Cornelia Zwischenberger). Noticable here is also
Birgit Menzel’s and Irina Alekseeva’s edited volume Russische Übersetzungswissenschaft
an der Schwelle zum 21. Jahrhundert which appeared in 2013. So, the body of research
on translation and translation scholarship in the Russian context is growing steadily
(including an increasing number of PhD theses), although there are still obstacles
such as the relatively closed systems of circulation: French, German and English-
language scholarship still tend to ignore each other while Russia-based studies
often operates without references to international scholarship.

3 – What are the main researchers in this area nowadays in your opinion? And which texts
you consider canonical and would recommend to anyone that has some basis by and large in
Translation Studies and is wishing to make his way towards Russian Translation Studies?
What advice would you give to anyone starting to path his way in Russian Translation Studies?
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 499

Above I have already mentioned some names. When it comes to literary


translation in the Russian context, one of the central figures is, undoubtedly, the
above-mentioned Brian James Baer, who published his monograph Translation and
the Making of Modern Russian Literature in 2016. As for the larger picture of the
history of translation in Russia I would like to mention Sergey Tyulenev’s book
Translation and the Westernization of Eighteenth Century Russia: A Social-Systemic Approach
(2012). As for archival-based research (made possible with the break-up of the
Soviet system), one should mention Andrei Azov’s 2013 monograph Poverzhennye
bukvalisty: Iz istorii khudozhestvennogo perevoda v SSSR v 1920-1960-e gody [The defea-
ted literalists. From the history of literary translation in the USSR 1920s through
the 1960s]. My own research, partly based on the same source material, has many
points in common with his, although my approach is broader and includes trans-
lation analysis proper. Interesting research is also being conducted on the Soviet
journals that presented foreign literature in Russian translation, the periodicals
Internatsional’naia literatura [International literature] (1933-1943) and Inostrannaia
literatura [Foreign literature] (1955-). The former is the issue of a research project
at Higher School of Economics in Moscow conducted by my network colleagues
Elena Zemskova and Elena Ostrovskaia and focusing on institutional and personal
aspects of the journal’s activities. This journal has also been studied by Nailya
Safiullina and Rachel Polonsky, who focused, inter alia, on the reception of these
texts in Stalin’s Russia. A valuable contribution here is also Samantha Sherry’s 2015
monograph Discourses of Regulation and Resistance: Censoring Translation in the Stalin
and Khrushchev Era Soviet Union, a comparative study of the two journals. As for
“canonical texts” Maurice Friedberg’s pioneering (although not archival-based)
studies should be mentioned here: A Decade of Euphoria. Western Literature in Post-
-Stalin Russia, 1954-64 (1977) and Literary Translation in Russia. A Cultural History
(1997). Soviet theory of translation is selectively presented in Lauren Leighton’s
likewise pioneering 1991 book Two Worlds, One Art: Literary Translation in Russia
and America. Some classics of Soviet-Russian translation scholarship are accessible
in other languages: Kornei Chukovskii’s classical Vysokoe iskusstvo has been trans-
lated by Lauren Leighton as The Art of Translation: Kornei Chukovskii’s “The High
Art” (1984), Efim Etkind, one of the most astute Russian translation scholars, is
represented in French by the volume Un art en crise: essai de poétique de la traduction
poétique (1982, trans. Wladimir Troubetzkoy). Brian James Baer is now translating
Andrei Fedorov’s seminal Foundations for a general theory of translation (first ed. 1953)
and has previously published Russian Writers on Translation: An Anthology (2013,
together with Natalia Olshanskaia). At present, I am myself together with Baer
preparing a “Soviet history of translation in documents,” making accessible texts
from the early 1920s and on.
500 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

My advice to anyone “starting to path his way in Russian Translation Studies”


would perhaps be to stay aware of the fact that translation in Russia always has
been “more than translation” (to paraphrase the traditional saying that in Russia,
“a poet is more than a poet”): since translation is the physical manifestation of
an encounter with “the foreign” it has always been a sensitive activity in a society
which has more often than not been informed by suspicion and has guarded
itself through history with travel regulations and the like. A site of negotiation,
contestation and resistance, Russian translation has always to be contextualized
in order to be conceptualized. Which is of course true for translation in general,
but perhaps even more important here.

4 – In many of your works you study cases that involve languages in which you are not
native, as I understand (as in Dzhambul or Pasternak translating from Lachian). How do
you choose the cases you are going to research, presuming that the language barrier is bigger
in this sense?

True. There are obvious limitations as to the number of languages a


researcher may reasonably know. My own native language is Swedish, I have flu-
ency in Russian and English, plus reading ability in French, Polish and Ukrainian.
But I would say that all depends on what type of research you want to do. The
cases you mention are very different, although united by the fact that both are
mediated and not direct translations. They are both produced with the help of a
Russian-language interlinear, a so-called podstrochnik (literally meaning ‘under the
line’), a very common Soviet practice, to which I have devoted several studies.
So the Soviet translators themselves did not always know (in fact, very often they
didn’t) the languages of the original, especially when it came to translations from
the many languages of the Union itself. As for Dzhambul, the original Kazakh
texts of whom are largely lacking or disputable, my main focus was the function
and significance of these translations in their context. I was also able to pinpoint
the institutional handling of them and to sketch the probable production process,
which appeared to be a collective enterprise resulting in translations as well as
original Kazach texts. In the case of Pasternak’s translation of the Lachian poet
Óndra Łysohorsky, I found the original texts in Pasternak’s archive, as well as
Łysohorsky’s own Russian-language interlinear. I was able to read the original
thanks to my knowledge of Polish since Lachian, a dialect that Łysohorsky him-
self promoted as a language, is something in between Polish, Czech and Slovak.
I could assess the closeness of the interlinear to the original and then analyze
Pasternak’s translation from it. Detailed translation analyses I have carried out
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 501

only from languages I know, such as Georgii Shengeli’s rendition of Byron’s Don
Juan (Witt, Susanna, “Translation and Intertextuality in the Soviet-Russian Context:
The Case of Georgii Shengeli’s Don Juan.” Cluster on Russian translation, ed. by
Brian James Baer. Slavic and East European Journal, 60:1, 2016).

5 – Could you punctuate some of the particular characteristics of Russian Translation Studies
that differ from these studies on other languages/realities? “Literalism”, “free translation”,
“realist translation”, “naturalism”, “realist translation” are, in my view, features yet to be dis-
covered by many researchers not concentrated in the Russian field of these studies, do you agree?
Could you punctuate as well some of the most interesting cases on Russian Translation Studies
in your opinion? In your researches there are mentions to the Maimbet pseudotranslation case, or
the brief  discussion started by Gideon Toury on the Dzhambul case as an example of ‹culture
planning›... Could you speak a little about it?

You’re right, of course these notions are not exclusively Russian (except
perhaps for the “realist translation,” which to my knowledge have not been
conceptualized elsewhere). But a distinguishing feature in the Soviet context was
the ideologization of norm, tying certain approaches to translation to ideologically
reprehensible positions and defining the limits of translation discourse. It must be
remembered that here, at certain periods, such issues were not purely academic,
but could send people to the camps.
GideonToury (2005) was the first to bring Dzhambul, the Kazakh bard of
Stalinism, into western translation scholarship. But his only source for theorizing
what he called pseudotranslation in this case were the memoirs of composer
Dmitrii Shostakovich, a text which in itself is somewhat debated. Inoficially, in
the Soviet context, the Dzhambul case was also habitually referred to as fakelore,
a thing taken for granted. I decided that the case deserved more thorough treat-
ment as indicative of Soviet translation practices and attitudes to translation in an
imperial context. In the process I discovered quite a few similar cases, in which
“nationalities” poets published mainly in Russian translation were promoted as
representatives of their native literatures to be included in the Soviet canon. This
is what I, using Toury’s and Even Zohar’s concept of “culture planning” refer to
as “culture planning from below” since the (Russian) translators themselves were
often instrumental in publishing these texts. The case of Maimbet is an extreme
one because not only were there no original texts, there was no original poet
either. This Kazakh figure was launched in 1935 by a local Russian journalist in
Alma-Ata. His translations of Maimbet appeared even in the central newspaper
Pravda, supplied with a photo of the bard, a typical Central Asian man with his
502 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

traditional string instrument. At the time there was great demand (created from
above) for “nationalities” poets to represent their republics at cultural festivals in
the larger Russian cities. So the journalist was approached by the authorities and
asked to bring his poet to Moscow for the Kazakh festival in 1936. His solution
to this problem was to announce that Maimbet, as a member of a nomadizing
family, had crossed the border to China and remained there. The imaginary status
of Maimbet was confirmed in a letter of denunciation from the journalist’s colle-
agues at the local writers’ union which I found in the archive. The same journalist
then became one of the principal translators of Dzhambul.

6 – Do you believe that translators from the Soviet era could somehow influence the publication
of some specific writers, acting as gatekeepers? Could they skip some of the rules by changing
or omitting excerpts, did they have any power in the Writers Union’s meetings? Do you believe
this could have changed in the period of the “Thaw”, could they have gained more autonomy then?

Translators could propose works for translation, trying to promote certain


writers etc. But the decisions were of course taken at higher levels, involving the
formal bodies of censorship. As shown by Samantha Sherry in her abovementioned
book, censorship was not only formal but ubiquitous and multilayered, stretch-
ing from the selfcensoring of the translator to the editing process in which the
experienced editor often carried out preemptive censorship involving excisions,
rewritings, omissions and the like. The editor, in turn, often had to negotiate certain
choices with other people, and so on, until the manuscript could be approved,
again by the formal body of censorship. So it would perhaps be more precise to
say that the function of gatekeeper was carried out by this multilayered process
of censorship.

7 – In Brazil, almost until the end of the last century, most of the translations from Russian
literature were done through retranslations from French and English. Was there anything alike
in Nordic or Scandinavian countries? You researched as well the Soviet practice in retranslations.
What were your main conclusions on it?

Yes, in the early periods (late 19th and early 20th century) many works of
Russian literature reached the Nordic countries via German translations. Such
indirect translation from Russian was practically abandoned in the first decade of
the 20th century. But indirect practices continued to be the norm when it came to
literature from the languages of the Soviet republics. Such works were generally
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 503

translated from a Russian translation. As mentioned above, I have studied the use
of Russian-language interlinears in translation from nationalities languages into
Russian and between such languages themselves. My conclusion was that even
if the practice was deemed inferior from the very beginning and administrative
measures were repeatedly taken against it, it persisted until the end of the Soviet
era as an indispensable part of the functioning of system of Soviet literature.

8 – When writing about pseudotranslations in USSR, you touch the vast use of  foreignizing
elements derived from languages from former Soviet republics as a way used by the pseudotrans-
lator to mark that the text is in fact originated from a non-Russian literature (and that it indeed
exists). But these same foreignizing elements are employed as well in the translations into Russian
of Brazilian Jorge Amado’s works by his Soviet translator, Yuri Kalugin. In this case, however,
the Brazilian regionalisms sound foreign even to Brazilians from areas other than Amado’s
Bahia and Brazilian northeast. How would you explain the use of such kinds of  foreignizing
elements in “progressive” Soviet literature of the 1950s and 1960s?

This is a very interesting observation! Perhaps it could be related to Brian


Baer’s study of the packaging of “progressive” translations from the Third World
in the journal Inostrannaia literatura during the 1950s, which was often nationalist,
underscoring the cultural peculiarity of these nations (see Baer, Brian, “From
International to Foreign: Packaging Translated Literature in Soviet Russia,” Slavic
and East European Journal, 60.1, 2016).

9 – Could you define briefly the foreign literature translated into Russian and the one translated
into the Russian republics languages and Russian influence zones during the Soviet era? How
do these influxes differ in the cultural policies of the Party as you see it?

The classics of world literature (including children’s literature) were of


course translated and retranslated during the whole period. “Progressive” modern
literature made up a translational canon which often foregrounded authors who
were not well known in their native countries, such as Howard Fast during the
early 1950s (the most translated of all foreign authors in the USSR!). During the
1960s modern western authors who were not so progressive and even modernist
(Salinger, Auden, Kafka) could find their way to Russian readers. Katerina Clark
writes interestingly about the Soviet efforts in the 1930s to devise a Moscow-cen-
tered world literature by ways of translations into and from Russian (Moscow, The
Fourth Rome: Stalinism, Cosmopolitanism, and the Evolution of Soviet Culture, 1931-1941,
504 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

2011). As for the republics, an important thing is that much foreign literature was
translated into their various languages in an indirect way via the Russian transla-
tions of the works in question. The Russian (already censored) translation thus
functioned as a gatekeeper.

10 – Jorge Amado’s literature also brings countless mentions to religious rituals (Christian,
black etc.) and Amado was a well-known practitioner of African religions that are widespread
in his home state, Bahia. These mentions are not suppressed in the Russian translations, for
example, in the first translation of “Gabriela, clove and cinnamon”, of 1961, on the contrary
of what one could expect, while some, more sensual excerpts of his works are omitted (at the
same time as others, in the same works, are kept, and even others are intensified) and mentions
to Lenin or the tsar are completely cut. Could you mention the most interesting cases, in your
view, involving cuts and omissions or the unexpected maintenance of elements that could be
contrary to the Party’s ideology (considering further the anecdote that “in USSR there wasn’t
sex” and the situation that gave birth to it)?

An interesting case is Rita Rait-Kovaleva’s 1960 translation of J.D. Salinger’s


novel The Catcher in the Rye, which presented many difficulties to the Soviet translator
in terms of slang expressions, foul language, sexual explicitness, etc. The translator
developed her own effective strategies in conveying such things without excisions.
As shown by Aleksei Semenenko, “instead of choosing the often-used easy solu-
tion of eliminating and/or replacing the obscenities with euphemisms, in most
instances Rait creates ad hoc idioms that produce an effect of defamiliarization,
making the reader pause and guess the meaning form the context.” (Semenenko,
Aleksei, “Smuggling the other: Rita Rait-Kovaleva’s Translation of J.D. Salinger’s
The Catcher in the Rye,” Translation and Interpreting Studies, Special Issue: Contexts
of Russian Literary Translation, ed. By Julie Hansen and Susanna Witt, 11.1, 2016)

11 – In your works, you use many information and quotes from the Moscow archives (above all
RGALI). Russian Translation Studies in English, Spanish, Portuguese (at least according to
my researches) aren’t as much abundant of papers and books dedicated to its cases and histo-
riography as Translation Studies on languages other than Russian, though there are important
works on Russian Translation Studies in Russian, such as Azov’s “Poverzhenie bukvalisti”
etc., besides dozens of articles on specific cases, authors or texts. Even though, the young Azov,
for example, has already left his scholar activities. Do you believe Russian academy has to make
bigger efforts to tackle the lack of works in this field or would there be a lack of interest on it,
maybe for political reasons? Do you agree there’s a deficiency in systematizing these studies by
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 484-506 505

Russian researchers? Do you believe there are still a lot of virgin territories to be explored by
international researchers in this area?

Yes, absolutely, there is still so much to do for researchers, international


as well as Russian, in this area. There is a lot of material in the archives pertain-
ing to the work and life of individual translators as well as to institutions such as
publishing houses. Even if there has appeared a German study of Vsemirnaia
literatura [World literature] publishing house, the great translation enterprise of the
1920s, and the publishing house Academia, a main outlet for translated literature
in the later 1920s and early 1930s, I am sure that there is a lot more to do with
them. (The study i question is Tatiana Bedson and Maxim Schulz, Sowjetische
Übersetzungskultur in den 1920er und 1930er Jahren: Die Verlage Vsemirnaja
literatura und Academia, 2015). I know that interesting research is going on at
Moscow State University and Higher School of Economics (Moscow), as well as
in St. Petersburg (for example, at the Pushkin House), but it would surely be a
good idea to take stock of research carried out elsewhere to get a better picture.
I don’t think there is a lack of interest for political reasons.

12 – Do you agree that, at some extent, that the Russian archives, despite its obscure past,
could be nowadays considered much more open than in many other (developed) countries of the
world with the volume of Soviet files that are already open for a wide public, including foreign?

I’m not sure about the point of Russian archives being much more open
than other ones. It is true that many Russian archives are open to researchers,
including foreigners, but other ones are less accessible now than 20 years ago –
for example, the KGB archives, which would be of great interest for research on
many individual translators. And still there is a lot of bureaucracy and difficulties
in obtaining copies of archival material.

13 – What is the status of Russian Translation Studies in Nordic countries currently?

In Sweden there is a handful of scholars who conduct at least some research


within Russian Translation Studies. For the last decade we have had a couple of
PhD theses: Aleksei Semenenko’s Hamlet the Sign: Russian Translations of Hamlet and
Literary Canon Formation (Stockholm, 2007) and Elena Rassokhina’s Shakespeare’s
Sonnets in Russian: the Challenge of Translation (Umeå, 2017) and also one devoted
506 Marina Darmaros. Entrevista com Susanna Witt: História da tradução soviética foi assunto ...

to translations from Russian into Swedish, Nils Håkanson’s Window to the East:
Russian literature in Swedish translation with a case study of the Swedish reception of Nikolai
Gogol (in Swedish, Uppsala, 2012). But that is rather part of Swedish Translation
Studies... As for the other Nordic countries, the university of Eastern Finland at
Joensuu is perhaps the only place where the field is well established.

14 – You were among the organizers of the conference “Translation in Russian Contexts,” in
Uppsala, Sweden, and the series of round-tables and conferences dedicated to Russian and
Slavic Translation Studies in the ASEEES conferences in 2015 and 2016. How was it to
organize such events? And which other projects do you have connected to this field of research
for the future? Any other books coming up soon?

I have been organizing various panels on related topics at the ASEEES


since 2011, but the “series” format was introduced in 2016 and continued this year
in Chicago (2017). I think this is a very fruitful way of continuing collaboration
within the network mentioned above. We have tried it at other conferences as well,
such as the ICCEES, the Nordic Congress of Slavists and the First and Second
Annual Tartu Conference on Russian and East European Studies (in 2016 and
2017). My current research project, “The Interface with the Foreign: The ‘Soviet
School of Translation,’ Cold War and World Literature, 1945-1985” is funded by
the Swedish Research Council for the period 2015-2018 and will hopefully result
in a monograph.

15 – Currently, how would you characterize the literary translations into Russian? Do they
follow an specific line on your opinion?

Unfortunately, I don’t have time to monitor the field of contemporary


translations into Russian. But it would be interesting to analyze the current situation
against the background of the previously hegemonic “Soviet school of transla-
tion” with its generally quite domesticating thrust.
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 507-514 507

Colaboradores

Alípio Correia de Franca Neto é poeta, tradutor, pós-doutor em Teorias da


Tradução, Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada e atualmente é
professor honorário na University of Roehampton. Por três vezes foi agraciado
com o Prêmio Jabuti por suas traduções de Pomas, um tostão cada (Iluminuras, 2001)
de James Joyce; A balada do velho marinheiro, de S. T. Coleridge (Ateliê Editorial,
2006); e Vênus e Adônis, de William Shakespeare (Editora Leya, 2014), que também
lhe rendeu um prêmio do conselho Britânico. Contato: [email protected]

André Nogueira é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas.


Está em fase de conclusão o mestrado no Programa de Pós-graduação em Cultura
e Literatura Russa da Universidade de São Paulo. Contato: [email protected]

Bruno Palavro é graduando da Licenciatura em Letras – Português/Grego na


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalha como bolsista
de Iniciação Científica, na qual desenvolve a proposta de uma nova tradução em
hexâmetro dactílico brasileiro para a Teogonia de Hesíodo, sob a orientação do
professor Carlos Leonardo Bonturim Antunes. Contato: [email protected]

Carlos Leonardo Bonturim Antunes é doutor em Letras Clássicas pela Univer-


sidade de São Paulo (USP), trabalha como professor de Língua e Literatura Grega
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Publicou, em 2011, o
livro Ritmo e Sonoridade na Poesia Grega Antiga: Uma tradução comentada de 23 poemas,
fruto de seu mestrado, em que fez reconstruções rítmicas da lírica grega.  Lançou
neste ano de 2017 o ciclo de sonetos João e Maria: Dúplice coroa de sonetos fúnebres.

Cássio de Oliveira é bacharel em Estudos Russos pelo Bard College (2005), mes-
tre e doutor em Línguas e Literaturas Eslavas pela Universidade de Yale (2014).
Após ter lecionado como professor visitante na Universidade do Arizona, Dickin-
508 Colaboradores

son College, e Universidade de Vanderbilt, desde 2016 é professor assistente de


Russo na Universidade Estadual de Portland (Portland State University), Estado
de Oregon, EUA. A ênfase de sua pesquisa é na literatura e cultura do período
entreguerras da União Soviética. Seus artigos foram publicados na RUS: Revista de
Cultura e Literatura Russa (USP), Revista de Estudos Orientais (USP), Slavonica (Reino
Unido), Canadian Slavonic Papers (Canadá), Studies in Slavic Cultures (EUA), e Russian
Literature (Holanda, no prelo). Contato: [email protected]

Daniel Martins Saeger é bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS), com ênfase em Francês. Desenvolveu, sob orientação de
Denise Sales e coorientação de Sandra Loguercio, monografia acerca de aspectos
divergentes entre traduções diretas e indiretas do russo para o português. Trabalha
como tradutor e professor autônomo de língua francesa e russa. Contato: daniel-
[email protected].

Denise Regina de Sales é professora de Língua e Literatura Russa no Instituto


de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Concluiu o
mestrado e o doutorado em Literatura e Cultura Russa na Universidade de São
Paulo (USP). Trabalha com tradução literária do russo para o português desde
2001. Traduziu, entre outros títulos, Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov, Minha
vida e Três anos, de Anton Tchékhov. Contato: [email protected]

Diego Moschkovich é graduado em Artes Cênicas pelo Instituto Estatal Russo


de Artes da Cena (RGISI/LGITMiK), em São Petersburgo, e mestrando em
Cultura e Literatura Russa na FFLCH/USP. Publicou, em português, as traduções
de Do Teatro, de Vsévolod Meyerhold (Iluminuras/2012), Stanislávski ensaia,
de Vassíli Toporkov (É, 2016) e Análise-Ação, de Maria Knebel (34, 2016). Sua
pesquisa de mestrado “O último Stanislávski em ação: tradução e análise das ex-
periências do Estúdio de Ópera e Arte Dramática (1935-1938)” é fomentada pela
FAPESP e atualmente dedica-se a um estágio de pesquisa (BEPE-FAPESP) para
a investigação dos Arquivos do Teatro de Arte de Moscou, na Rússia. Contato:
[email protected]

Douglas Rosa da Silva é mestrando na área de concentração em Estudos Lite-


rários do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Mestrado do CNPq. Graduado em Letras
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 507-514 509

Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).


Contato: [email protected]

Edelcio Americo é doutor em literatura e cultura russas pela FFLCH-USP em


2011, professor substituto de língua russa na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, coordenador e professor do curso de língua russa no Programa de Lín-
guas Estrangeiras Modernas (PROLEM) na Universidade Federal Fluminense-
-RJ. Intérprete oficial do governo brasileiro em diversos projetos no Brasil e no
exterior. Indicado a intérprete da Vice-Presidência da República. E-mail: americo.
[email protected]

Ekaterina Vólkova Américo é professora de Língua e Literatura Russa da Univer-


sidade Federal Fluminense - UFF (2015) e docente do Programa de Pós-graduação
em Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo (USP).  Tradutora e
pesquisadora das obras de Iúri Lotman, Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev, Valentin
Volóchinov e Piotr Bogatyriov, entre outros. Organizou e traduziu, em parceria
com Sheila Vieira de Camargo Grillo, os livros Marxismo e filosofia da linguagem
de Valentin Volóchinov (Editora 34, 2017), O método formal nos estudos literários
de Pável Medviédev (Contexto, 2012) e Questões de estilística no ensino de língua
de Mikhail Bakhtin (Editora 34, 2013). Contato: [email protected]

Elena Vássina é pesquisadora russa, doutora em História e Teoria de Arte e pós-


-doutorado em Teoria e Semiótica de Cultura e Literatura pelo Instituto Estatal de
Pesquisa da Arte (Rússia). Organizadora, autora e tradutora dos livros “Tipologia
do simbolismo nas culturas russa e ocidental” (2005), “O cadáver vivo”, de L.
Tolstói (2007), “Liev Tolstói: Os últimos dias”(2011), “Teatro russo: literatura e
espetáculo” (2011), “Stanislávski: Vida, obra e Sistema” (2015), entre outros. Em
2016, foi finalista do premio Jabuti e do premio Aplauso Brasil. Atualmente trabalha
como professora dos cursos de graduação e de pós-graduação da USP. Contato:
[email protected]

Eloah Pina Pereira é Mestra em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e bacharel em
Letras pela mesma instituição. Sua pesquisa, sob orientação de Elena Vássina, é
dedicada à prosa do escritor russo contemporâneo Dmitri Býkov. Contato: eloah.
[email protected]
510 Colaboradores

Fabrício Yuri Vitorino é jornalista e pesquisador de cultura russa. Trabalha


há 12 anos no Grupo Globo e foi professor de disciplinas de língua russa da
graduação em Letras/Russo da UFRJ. É mestre e doutorando em Literatura e
Cultura Russa na USP, focando nos jornais literários da Rússia no século XIX.
Fez especialização em língua russa na MGU (Moscou) e é bacharel em Comuni-
cação Social/Jornalismo, pela UFF, e em Letras (Português/Russo), pela UFRJ.
Contato: [email protected]

Fernanda Naomi Kumagai é estudante de gradução do último ano de Letras


(Português/Russo) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Desenvolveu a tradução direta do russo para o portu-
guês do conto “O Judeu” de Ivan Turguêniev sob orientação do Prof. Dr. Mario
Ramos Francisco Jr. Contato: [email protected]

Graziela Schneider Urso é tradutora, bacharel em russo e português, mestre


e doutora em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP. Foi professora substituta de língua e literatura russa
na UFRJ. Traduziu diversas autoras e autores russos. Seu trabalho mais recente
foi a organização de “A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia
Soviética” (Boitempo, 2017).

Helder da Rocha cientista da computação, engenheiro e artista de várias moda-


lidades. Também é autor de traduções literárias do russo, mas também do italiano
e do inglês, como Inferno e Purgatorio de Dante Alighieri, 1998, e O Corvo de Edgar
Allan Poe, 1999. Contato: [email protected]

Letícia Mei é mestre e doutoranda em Literatura e Cultura Russa e Bacharel em


Letras (Francês, Português e Russo) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Suas pesquisas concentram-se nos poemas
líricos longos de Maiakóvski e nas questões relativas à (re)tradução de poesia e sua
crítica. Dele, traduziu o longo poema Sobre Isto, de 1923 (Editora 34, no prelo).
Contato: [email protected]

Luana Chnaiderman de Almeida é formada em Letras pela USP onde também


fez mestrado. Dá aulas de português no Colégio Equipe e é escritora. Publicou
os livros infanto-juvenis Minhocas, pela Cosac e Naify(2014), Fuga, pela FTD
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 507-514 511

(2017) e o livro de contos Os animais domésticos e outras receitas, Perspectiva,


2018. Contato: [email protected]

Lucas Simone nasceu em São Paulo, em 1983. É historiador formado pela


FFLCH-USP e doutorando no Programa de Literatura e Cultura Russa, da mesma
faculdade. Atua como tradutor há quase dez anos, tendo publicado versões de
Dostoiévski, Górki, Chalámov etc. Contato: [email protected]

Luis Felipe Labaki é cineasta e tradutor. Formou-se no Curso Superior do


Audiovisual da ECA-USP e é mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela
mesma escola, com a dissertação Viértov no papel: Um estudo sobre os escritos de Dziga
Viértov (2016). Dirigiu os curtas-metragens O Pracinha de Odessa (2013) e Que tal
a vida, camaradas? (2017). Como tradutor, publicou Esqueci Como Se Chama (Daniil
Kharms, CosacNaify, 2015) e traduziu textos de Dziga Viértov, Esfir Chub e
Artavazd Pelechian para a coletânea A Verdade De Cada Um (org. Amir Labaki,
CosacNaify, 2015). Contato: [email protected]

Márcia Pileggi Vinha é tradutora do russo para o português e professora de


português como língua estrangeira no Centro Cultural Brasileiro em Tel Aviv, além
de doutoranda em literatura russa pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Israel.

Marina Darmaros é doutoranda no Departamento de Cultura e Literatura Rus-


sa da Universidade de São Paulo (USP). Foi pesquisadora no Departamento de
Filologia da Universidade Estatal de Moscou Lomonóssov e tem mestrado pela
Universidade Russa da Amizade dos Povos (Patrice Lumumba). Atualmente,
pesquisa as conexões entre o escritor brasileiro Jorge Amado e a União Soviética,
com foco no gatekeeping e cotejo da obra original com suas traduções para o russo,
além de documentos dos arquivos soviéticos em Moscou. Contato: marinadar-
[email protected]

Melissa Teixeira Siqueira Barbosa é graduanda em Letras - Português/ Inglês


pela Universidade Federal Fluminense. É tradutora russo-português e inglês-por-
tuguês. Junto a Ekaterina Vólkova Américo traduziu os artigos “Sobre a questão
do sufrágio feminino na sociedade russa, nos ziémstvo e nas cidades” (1907),
de Liubóv Guriévitch; “Os sindicatos e a trabalhadora” (1921), de Aleksandra
Kollontai e “Mulher e Política” (1908) de Elena Kuvchínskaia; presentes no livro
512 Colaboradores

A Revolução das Mulheres (Boitempo, 2017) organizado por Graziela Schneider.


Contato: [email protected]

Natalia Quintero é formada em estudos literários pela Universidad Nacional de


Colombia. Mestre e doutora em literatura e cultura russas pela USP, onde realizou
trabalhos dedicados ao estudo do diário como gênero da literatura documental,
e, especificamente, à análise dos vínculos do diário de juventude de Liev Tolstói
com algumas de suas obras literárias. É tradutora do russo e do espanhol. Alguns
de seus trabalhos foram publicados pelas editoras Penguin-Companhia das Letras
e Boitempo Editora. Contato: [email protected]

Neide Jallageas é pesquisadora, artista, tradutora, ensaísta e editora do Kino-


russ Edições e Cultura. Pós-doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela
Escola de Comunicação e Artes (2013-2014) e em Literatura e Cultura Russa
pela Faculdade de Filosofia Letras da Universidade de São Paulo, com Estágio de
Pesquisa em Moscou no Centro Eisenstein de Pesquisa e Museu de Cinema Russo
(2010-2013). Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2007) com tese sobre o cinema de Andrei Tarkóvski e
Pavel Floriênski. Mestre em Estética e Comunicação do Audiovisual pela Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (2002). Possui obras nos
acervos do MAM-SP, Coleção Pirelli-Masp, MAC-USP e Sesc-SP. Contato: neide.
[email protected]

Noé Oliveira Queiroz Policarpo Polli estudou Matemática e Letras na USP e


cursou o doutorado na Universidade Estatal M. V. Lomonóssov, de Moscou, na
então União Soviética (1983-1989). É professor de língua russa na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e dedica-se ao estudo comparativo
do russo com o português e à tradução de obras de autores clássicos russos, tendo
já publicado coletâneas de contos de Antón Tchékhov (O violino de Rotschild;
Veredas, 1990), Aleksandr Kuprin (O bracelete de granadas; Globo, 2007) e Ni-
kolai Leskov (Homens interessantes; Ed. 34, 2012). Contato: [email protected]

Odomiro Fonseca é doutor em Letras (Literatura e Cultura Russa), pela USP;


mestre em Letras, pela UFPE; e licenciado em História, pela UFPE. Tradutor,
professor e escritor. Autor da tese “Niilismo: estrada para a emancipação. O des-
tino literário das personagens femininas russas na época das Grandes Reformas
(1855-1866). Contato: [email protected]
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 20, p. 507-514 513

Paula Costa Vaz de Almeida tem graduação em Letras (Português/Russo)


pela Universidade de São Paulo (2004), mestrado (2008) e doutorado (2014) em
Literatura e Cultura Russa também pela USP, ambos com bolsa da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nos quais estudou
a prosa da poeta russa Marina Tsvetáieva. Tem experiência como professora dos
ensinos Fundamental II, Médio e Superior. Dedica-se também à tradução de textos
literários e de especialidades, tendo traduzido, além do ensaio “Meu Púchkin” para
a dissertação de mestrado, dois ensaios de Marina Tsvetáieva e o livro Teoria geral
do direito e marxismo, de Evguiéni Pachukanis, ambos para a Boitempo Editorial,
entre outros. Contato: [email protected]

Priscila Nascimento Marques é tradutora, psicóloga formada pela Universidade


Presbiteriana Mackenzie e mestre e doutora pela Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Cultura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde atualmente realiza estágio de
pós-doutoramento (bolsa Fapesp, processo 2015/17830-1). Contato: priscilanm@
gmail.com

Rafael Bonavina Ribeiro é graduando em Letras pela Universidade de São Paulo,


com dupla habilitação em Português e Russo. Contato: [email protected]

Susanna Witt é professora associada de línguas e literaturas eslavas e palestrante


sênior em russo no departamento de Línguas Eslavas e Bálticas, Finlandês,
Holandês e Alemão na Universidade de Estocolmo. Ela também é tradutora
juramentada de russo-sueco. Especialista na poesia e prosa de Borís Pasternak
(Creating Creation: Readings of Pasternak’s Doktor Zhivago, 2000), escreveu extensiva-
mente sobre temas relacionados à história da tradução do período soviético, como
as práticas russas de tradução indireta, a tradução de “línguas de povos da URSS”,
o conceito da “Escola soviética de tradução” e a tradução e intertextualidade no
contexto soviético. Ela é coeditora (junto a Brian James Baer) de Translation in
Russian Contexts: Culture, Politics, Identity (Routledge, 2018). Contato: [email protected]

Thiago Koslowsky da Rosa é licenciado em Letras pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS). Interessa-se pela poesia lírica grega, tendo realizado
monografia sobre a elegia histórico-narrativa e participado de Iniciação Científica
dedicada à tradução rítmica de epigramas de Meleagro. Participa, também, de grupo
514 Colaboradores

de pesquisa relacionado à comparação de contos brasileiros e australianos. Atua


como tradutor e revisor freelancer. Contato: [email protected]

Yuri Martins de Oliveira é Bacharel e Licenciado em Português-Russo pelas


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FFLCH-FE-USP). Atualmente, é aluno de Mestrado
no Programa de Cultura e Literatura Russa da FFLCH-USP. Contato: yuri.mar-
[email protected]

Você também pode gostar