A Teoria de "Continuum Mediúnico" de Cândido Procópio Camargo Nos Anos 1960-1970: Atualizações e Transformações Contemporâneas
A Teoria de "Continuum Mediúnico" de Cândido Procópio Camargo Nos Anos 1960-1970: Atualizações e Transformações Contemporâneas
A Teoria de "Continuum Mediúnico" de Cândido Procópio Camargo Nos Anos 1960-1970: Atualizações e Transformações Contemporâneas
Marcelo Camurça1
Resumo
Este texto busca discutir o alcance de uma noção elaborada no Brasil há cerca de
50 anos pelo sociólogo da religião Cândido Procópio Ferreira de Camargo para
dar conta das relações, interações e influências mútuas entre o Espiritismo e a
Umbanda. Ele chamou o conceito de “continuum mediúnico” ou “gradiente
espírita-umbandista”. Além de expor a estrutura do conceito, o artigo visa
apresentar suas virtudes e lacunas, méritos e críticas a ele. Por fim, busca
discutir possibilidades atuais de desdobramentos, a partir de sua intenção
inicial.
Abstract
This text seeks to discuss the scope of a notion elaborated in Brazil about 50
years ago by the sociologist of religion Cândido Procópio Ferreira de Camargo
to account for the relations, interactions and mutual influences between
Spiritism and Umbanda. He called the concept "mediumistic continuum" or
"spiritist-Umbandist gradient". Besides exposing the structure of the concept,
the article aims to present its virtues and gaps, merits and criticisms to it.
1 Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua nos Programas da Pós-
Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) e em Ciências Sociais (PPGCSO). Pesquisador,
bolsista de produtividade 02 do CNPQ. Autor de “Espiritismo e Nova Era: interpelações ao
cristianismo histórico”, Editora Santuário, 2014.
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Introdução
O que fez e faz com que no Brasil, de forma geral, religiões de matriz e
o porquê desta influência mútua e uma circulação de pessoas por entre seus
cultos?
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entremeadas com o “culto dos santos”; assim como, através da nítida influência
da reencarnação. Por isso Emerson Giumbelli afirma que “há entre Espiritismo
ocultistas” (1995:11).
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destas podem constar nas duas religiões em foco), o traço que aproxima
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derivados entre estas duas distintas religiões, que uma dubiedade passou a
tomar conta até do léxico e dos designativos em cada uma delas. Isto se deu
constam com a denominação ‘espírita’ em seu nome” (1995:12, nota 8). Aubrée e
fato deste ganhar uma nova alcunha, de “fora para dentro”: “kardecismo”
partir deste núcleo fenomênico, gera variações empíricas, como as que se passam no Espiritismo
e na Umbanda (Stoll:2003:58; Cavalcanti:1983: 139).
3 O nome Espiritismo foi cunhado na França pelo próprio Allan Kardec para designar a
Doutrina e o movimento criado a partir da “codificação” das mensagens dos espíritos,
anunciando esta doutrina como a “terceira revelação” (Aubrée e Laplantine, 2009; Damazio,
1994; Rossum, 1992; Araújo,2016).
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(1997). Para este autor, paulatinamente ao longo dos anos 1900 a 1930, o
reivindicando uma “religião” e desta forma não cobrando pelos seus serviços
início do século XX; assim como da grande imprensa da época, vai exercer uma
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nos anos 1960-1970, no meu entender, encontra seu lugar. Por sua ousadia em
complementado ou criticado.
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Espiritismo, como o faz Camargo (na sua busca por distingui-lo da Umbanda4),
este for às fontes, preferi esta forma de tratamento. Em outros tópicos volto a
noção.
através do exame deste conceito, uma imagem espacial onde dois pólos (o
4 Intuo que Camargo evitou o termo “espiritismo” que ambos reivindicavam (o Espiritismo por
um viés histórico, pois foi fundado na França por Kardec com esse nome e a Umbanda, como
forma adaptativa de definição para suas atividades mediúnicas, reencarnacionistas, mesmo com
sua origem africana e o viés nacional-popular) justamente como critério de distinção entre os
dois. Estabelecendo, então, identidades distintas com nominações próprias - Kardecismo e
Umbanda - embora com afinidades no campo “mediúnico’”. Com isto, Camargo pôde para
operar as interações e relações entre os dois, através do seu dispositivo teórico-metodológico do
“continuum/gradiente”.
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acordo com maior ou menor aproximação em relação aos pólos. Para Camargo,
Kardecismo; ao passo que este estende suas características centrais não apenas
nos níveis mais próximos ao pólo extremo umbandista, mas de fato, contamina
até o próprio núcleo identitário do seu antípoda (1973: 171). Para estabelecer os
5Maria Laura V.C. Cavalcanti na sua obra, apresenta, contudo, uma complexidade muito maior
do que a polaridade esquemática onde Camargo associa mediunidade consciente ao
Kardecismo, como algo mais da racionalidade e inconsciente à Umbanda, como algo mais
espontâneo. A autora revela que no meio espírita, há sempre a advertência para na
mediunidade consciente se evitar o “animismo”, que é a interferência do próprio espírito do
médium na sua comunicação, como se fosse um espírito incorporado. Ao contrário, na
mediunidade inconsciente, (e por isso valorizada) há uma clara distinção entre médium e o
espírito encarnado, pois o espírito encarnando do médium, “dá passividade” para o espírito
comunicante (1983:116-120)
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são discretos “suspiros e gemidos” ou uma respiração mais forte e tremores que
6Associo aqui, a tipologia estabelecida por Camargo à noção de “tipo-ideal” de Max Weber; ou
seja, uma tipologia que não reproduz exatamente o empírico, uma noção que não tem
correspondência exata (mas aproximada) com a realidade. Embora essa associação possa ter
algo de artificial, Pierucci e Prandi lembram a clara influência weberiana na obra de Camargo
(particularmente em “Kardecismo e Umbanda”) tanto em torno das “questões de sentido” como
móvel para suas tipologizações, quanto na questão da “internalização”,
subjetivação/individualização da religião na modernidade (1996:09-20).
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acontecem nestes centros (1973:169; 1961: 22-23). Embora deixe claro que, “a
descalço” (1973:171).
relação a algo que ela julga possuir e que não existe no Kardecismo, há uma
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menos elevados”, logo, mais eficaz que o Kardecismo neste segmento espiritual
(1973: 172).
porque através do seu arcabouço fixo, funcional e linear pretende dar conta da
Renato Ortiz na sua obra “A morte branca do feiticeiro negro” que trata
de Camargo, dizendo que esta enfoca a mesma questão que lhe interessa: a
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este reconhecido autor das religiões afro-brasileiras, que foi aluno e orientando
africanas (2012:101).
religiões afro brasileiras (...) e de outro, pelo kardecismo em suas formas mais
ortodoxas” (2009:219);
empíricas nos rituais, mitos e instituições particulares das duas religiões. Isto
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autores que nas suas pesquisas sobre Umbanda e Espiritismo buscaram uma
sistemas religiosos” (1983: 139). Para Ortiz, o caráter funcionalista que organiza
destas práticas religiosas” que possuem “uma série de elementos que se opõem
entre si” (1999:96). Embora as duas críticas apontem os fatores “externos” (que
nas religiões - ambos insistem que o esquema genérico de Camargo passou por
cima das especificidades das duas religiões que ele procurou colocar em
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descrições de cada uma das religiões. Ele nos seus dois livros, antes de discutir
continuum (...) pode ser de grande utilidade para a compreensão dos ritos
de Stoll, que não toma partido diante das críticas, limitando-se a fazer um
campo, entre eles, Camargo e aqueles que vêem oposição entre os agentes,
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relação das duas religiões, termina, de certa forma, embutindo no seu esquema,
dimensões éticas.
“uma mediunidade consciente (...) e uma possessão inconsciente (...) entre uma
prática ‘mais intelectual’ e uma prática ‘mais afetiva’, entre ética (que estaria no
8 Além da “literatura sociológica” eles acrescentam a literatura “espírita” (2009:223, nota 197),
com isto reforçando meu argumento, de que existe uma afinidade entre o que postula o
Espiritismo na sua diferença hierárquica em relação à Umbanda e a teoria do continuum de
Camargo.
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197). Para os autores isto reflete “um processo etnocêntrico que legitima e
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Carneiro, mas é realçada por Bastide (1971, 1978) na suas preocupações sobre as
entre ambas (com as críticas posteriores que advirão desta sua visão): o
espírita paulista dos anos 1950, Edgar Harmond (Arribas, 2014), passando pelas
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2003).
Segundo Stoll, “uma das lacunas dessa literatura consiste justamente no fato de
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apresentar o Espiritismo como uma doutrina que recupera “às próprias raízes
Roger Bastide analisa o Espiritismo, como uma religião que quer se distinguir
Conclusão
um nó cujos fios constituintes (...) deixam rastros e são capturados por outros
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poderemos deslocar o olhar e o foco das nossas pesquisas, das instituições, para
o trânsito das pessoas com suas práticas, rituais realizados nas trilhas em
movimento por entre estas. Menos a “permanência e solidez” das igrejas e mais
conexão da “rede” proposta por Bruno Latour (2006). Aqui também não se trata
condutores que se prestam ao vai e vem incessante dos fluxos das pessoas em
suas combinações.
Referências
ARAÚJO, Augusto. Espiritismo: esta loucura do século XIX. São Paulo: Fonte
Editorial, 2016.
ARRIBAS, Célia da Graça. No Princípio era o Verbo: Espíritas e espiritismos na
modernidade religiosa brasileira. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia)
Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 2014
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, Pioneira, 1971.
______________. O candomblé da Bahia: rito nagô. Trad, de Le candomblé de
Bahia, de 1958. 3. ed. São Paulo, Nacional, 1978.
_______________. “Le spiritisme au Brésil”. Archives de Sociologie des Religions n°
24, 1967, pp.03-16.
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