A Teoria de "Continuum Mediúnico" de Cândido Procópio Camargo Nos Anos 1960-1970: Atualizações e Transformações Contemporâneas

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Religare, ISSN: 19826605, v.14, n.1, agosto de 2017, p. 05-27.

A teoria do “continuum mediúnico” de Cândido Procópio


Camargo nos anos 1960-1970: atualizações e
transformações contemporâneas

The theory of the "mediunistic continuum" of Candido


Procópio Camargo in the years 1960-1970: contemporary
actualization and transformation

Marcelo Camurça1

Resumo

Este texto busca discutir o alcance de uma noção elaborada no Brasil há cerca de
50 anos pelo sociólogo da religião Cândido Procópio Ferreira de Camargo para
dar conta das relações, interações e influências mútuas entre o Espiritismo e a
Umbanda. Ele chamou o conceito de “continuum mediúnico” ou “gradiente
espírita-umbandista”. Além de expor a estrutura do conceito, o artigo visa
apresentar suas virtudes e lacunas, méritos e críticas a ele. Por fim, busca
discutir possibilidades atuais de desdobramentos, a partir de sua intenção
inicial.

Palavras chave: Espiritismo, Umbanda, relações, continuum, gradiente.

Abstract

This text seeks to discuss the scope of a notion elaborated in Brazil about 50
years ago by the sociologist of religion Cândido Procópio Ferreira de Camargo
to account for the relations, interactions and mutual influences between
Spiritism and Umbanda. He called the concept "mediumistic continuum" or
"spiritist-Umbandist gradient". Besides exposing the structure of the concept,
the article aims to present its virtues and gaps, merits and criticisms to it.

1 Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua nos Programas da Pós-
Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) e em Ciências Sociais (PPGCSO). Pesquisador,
bolsista de produtividade 02 do CNPQ. Autor de “Espiritismo e Nova Era: interpelações ao
cristianismo histórico”, Editora Santuário, 2014.

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Finally, it seeks to discuss current possibilities of unfolding, from its initial


intention.

Key words: Spiritism, Umbanda, relationships, continuum, gradient

Introdução

O que fez e faz com que no Brasil, de forma geral, religiões de matriz e

estilo tão diferentes se comuniquem, interajam e se interpenetrem? E de forma

particular como a relação do Espiritismo de origem européia e a Umbanda de

tradição africana, adquira um destaque na afinidade eletiva que as aproxima? E

o porquê desta influência mútua e uma circulação de pessoas por entre seus

cultos?

O brazilianist Donald Warren, em um instigante ensaio, nos fala da

“inclinação comum a todos os brasileiros” a uma cultura “espiritualista

reflexa”, que se expressa num “ambiente no qual entidades rarefeitas - almas

penadas, santos, encostos, etc. - funcionavam como veículos que incorporavam

os medos e as esperanças” (1984:57-58). Pierre Sanchis em outro ensaio sublinha

o “clima ‘espiritualista’ que parece ser compartilhado por várias ‘mentalidades’

no Brasil” aonde “o ser humano está envolvido por um universo povoado de

forças, de espíritos que mantêm relações com os homens” (1997:32). Para o

autor, esta outra “dimensão do mundo” onde se encontram anjos, espíritos,

forças cósmicas, orixás, demônios, Nossas Senhoras e Espíritos Santos mantêm

uma influência “maléfica ou benfazeja” com nossa vida cotidiana,

influenciando diretamente “à existência dos homens” (1997:32). Aubrée e

Laplantine, no seu já clássico livro sobre o Espiritismo na França e no Brasil, de

modo explícito, se reportam a uma “cultura brasileira dos espíritos” (tomando

estes como, “santos”, “orixás” e “eguns”) fundada na “relação permanente

entre o mundo visível e o mundo invisível” (2009:225). E é esta concepção

alargada de espírito, que permite José Jorge de Carvalho concluir “que a

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religiosidade predominante no Brasil é, de fato, de tipo espírita” (1992:160). Da

mesma forma, o antropólogo Gilberto Velho na sua interpretação da

mentalidade brasileira, no que tange a questão da religião, destaca “a crença

generalizada em espíritos e nas suas possibilidades de se comunicarem,

manifestarem e influenciarem a vida cotidiana”, que se expressa no

“candomblé, umbanda, espiritismo, kardecismo”, para além de suas

circunscrições doutrinárias e institucionais e de suas “importantes diferenças,

conflitos e acusações recíprocas, têm como referência permanente um domínio

do sobrenatural, mais ou menos benigno ou maligno (,,,) manipulável, sempre

presente nas ações humanas” (1994:66).

Portanto, as afinidades entre Espiritismo e Umbanda, a despeito de suas

diferenças nos aspectos históricos de origem, doutrinários/cosmológicos ou

culturais/institucionais, dizem respeito ao fato de que ambos interagem,

dialogam e contribuem na consolidação da crença nesta “dimensão espiritual

comum” que marca a mentalidade religiosa brasileira. O Espiritismo francês ao

chegar a terras brasileiras, já encontrou aqui uma cultura e prática de

comunicação com seres espirituais, proveniente do xamanismo indígena, dos

cultos africanos e do poder de intercessão às almas e santos do catolicismo

popular português. Da mesma forma, a Umbanda foi se forjando enquanto

religião na captação dessas mesmas crenças e práticas indígenas e africanas

entremeadas com o “culto dos santos”; assim como, através da nítida influência

da própria doutrina espírita de origem francesa da comunicação dos espíritos e

da reencarnação. Por isso Emerson Giumbelli afirma que “há entre Espiritismo

e as religiões afro-brasileiras uma proximidade considerável, indicada não só

pela existência de concepções (intervenção espiritual) e práticas (mediunidade)

comuns, como pelo surgimento da umbanda, criação sincrética juntando

elementos do kardecismo, do candomblé, do catolicismo e de doutrinas

ocultistas” (1995:11).

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Além disso, como apontam Aubrée e Laplantine, dentro da crença dual

dos brasileiros numa esfera espiritual, em cima, e outra, material, em baixo,

ambas em estado de mútua implicação; ou seja, um “mundo invisível” e um

“mundo visível” que vivem em constante relação, o que possibilita esta

comunicação é a idéia de mediação (2009:225). Ou seja, a presença de instâncias

intermediárias que assegurem a relação e a influência dos planos superiores nos

inferiores. E neste particular, há no fenômeno da mediunidade, ou incorporação,

um claro ponto de intersecção entre Espiritismo e Umbanda. Diferente de

outras formas de hierofanias, ou incidência do transcendente no imanente que

marcam as demais religiões no país, como visões, transportes, sonhos,

aparições, uso de substâncias sagradas (embora se possa dizer que algumas

destas podem constar nas duas religiões em foco), o traço que aproxima

Espiritismo e Umbanda é o dito fenômeno mediúnico e suas derivações. Neste

sentido, é que Cândido Procópio Ferreira de Camargo - o autor da noção teórica

que irei desenvolver neste texto - elegeu a experiência da mediunidade como

chave interpretativa para estabelecer a relação entre as duas religiões que a

praticam. Para ele, uma mesma experiência fenomênica (a “incorporação” de

“espíritos” por “médiuns”), apesar das diferenças de interpretação desta,

gerando “estilos e ênfases” distintos (1961:83), é que vai permiti-lo, classificar

ambas enquanto “religiões mediúnicas2” (1961: 77; 1973:166).

2 O antropólogo Renato Ortiz considera que Camargo, ao centrar-se no “método funcional”,


sendo seu interesse primordial voltado “para a função destas duas religiões no interior da
sociedade brasileira, (...) não estuda suficientemente o papel do transe”, que é diferenciado nas
duas religiões (1999:95). Da mesma forma, o teólogo Rogier Van Rossum vai apreciar a
classificação de Camargo do “continuum mediúnico” como este privilegiando sua “função
terapêutica” e “de compensação social” em detrimento da “função religiosa” (1992:60).
Entendo, porém, que a abordagem de Camargo, mesmo funcionando num registro sociológico-
funcionalista, no momento em que privilegia o vocábulo “mediúnico”, neste particular, está
abrindo espaço na sua abordagem funcionalista para a incorporação de estilos de
espiritualidade, e nesse sentido contemplando o aspecto religioso para sua classificação. Stoll e
Cavalcanti, nesta direção que eu enfatizo, chamam atenção na formulação de Camargo, a
primeira em tom de registro e a segunda de crítica, para a centralidade da “experiência
religiosa” da mediunidade, dentro de um mesmo “princípio” ou “conteúdo”, que para ele, a

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Resultou de tal monta o trânsito das práticas de “mediunidade” e seus

derivados entre estas duas distintas religiões, que uma dubiedade passou a

tomar conta até do léxico e dos designativos em cada uma delas. Isto se deu

quando a Umbanda passa reivindicar também o rótulo “Espiritismo”,

originalmente pertencente à doutrina de Allan Kardec3, para nomear seus

núcleos e Federações. Emerson Giumbelli se refere assim à questão: “‘espírita’

não é, para muitos, um termo que carregue as significações necessárias para

distinguir entre os adeptos da doutrina codificada por Kardec e os adeptos da

umbanda” (1995:11-12). E continua em nota: “a umbanda consolida-se (...) com

o nome de ‘espiritismo de umbanda’ e muitos de seus adeptos não hesitam em

identificar-se (...) como ‘espíritas’. Há inclusive federações umbandistas que

constam com a denominação ‘espírita’ em seu nome” (1995:12, nota 8). Aubrée e

Laplantine comentam, para o caso brasileiro, acerca da relação/tensão entre um

“espiritismo em ‘estado puro’ saído diretamente da matriz kardecista” com “a

umbanda que se define também como um movimento espírita” (2009:219). E o

próprio Cândido Procópio Camargo registra que “apesar dos protestos de

inúmeros Kardecistas, a expressão ‘espírita’ cobre [também a Umbanda] e

mesmo umbandistas mais ortodoxos sempre se dizem espíritas” (1961:14). Se

para a Umbanda ocorreu, para além desta nominação, à assimilação do termo

“espírita/ espiritismo”, para o Espiritismo, aconteceu, o contrário, através do

fato deste ganhar uma nova alcunha, de “fora para dentro”: “kardecismo”

(remissão ao nome do codificador francês da doutrina/movimento, Kardec) ou

“mesa-branca” (ligado ao fato de que os trabalhos de ‘incorporação” dos

“espíritos” ocorrerem em volta de uma mesa); ambas, como uma maneira de

partir deste núcleo fenomênico, gera variações empíricas, como as que se passam no Espiritismo
e na Umbanda (Stoll:2003:58; Cavalcanti:1983: 139).
3 O nome Espiritismo foi cunhado na França pelo próprio Allan Kardec para designar a
Doutrina e o movimento criado a partir da “codificação” das mensagens dos espíritos,
anunciando esta doutrina como a “terceira revelação” (Aubrée e Laplantine, 2009; Damazio,
1994; Rossum, 1992; Araújo,2016).

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diferenciação (Camargo, 1961, 1973: Aubrée e Laplantine, 2009). “Kardecismo”

foi então, um apelido - que como na prática social/cultural brasileira - terminou

“pegando”, apesar dos “protestos” mencionados acima, dentro de uma

resignada aceitação por parte dos espíritas - como se dá em todos os casos de

apelidos, - assegurando, contudo, uma maneira de distinguirem-se dos cultos

afro-brasileiros, a Umbanda particularmente.

Outra forma de distinção entre Espiritismo e Umbanda, foi aquela

minuciosamente estudada na pesquisa histórico-antropológica de Emerson

Giumbelli, que separava um “alto espiritismo” de um “baixo espiritismo”

(1997). Para este autor, paulatinamente ao longo dos anos 1900 a 1930, o

movimento espírita através de campanhas e ações jurídicas movidas por seus

intelectuais vai se distanciando do cerco que lhe impuseram os poderes

públicos baseados na Constituição de 1890, quando o acusavam de

“curandeirismo” e “charlatanismo”. Este processo de legitimação perante as

autoridades e a sociedade da época, se deu através do mecanismo da

“caridade” e da benemerência promovido pelas instituições espíritas, que se

reivindicando uma “religião” e desta forma não cobrando pelos seus serviços

terapêuticos espirituais, não estava praticando exercício ilegal da medicina,

nem explorando a crendice popular, mas realizando atividades filantrópicas e

curativas de “amor ao próximo”. Ao contrário, aqueles cultos que sem

“fundamentação moral e doutrinária”, praticavam “sortilégios” com promessas

de cura e atendimento aos desejos dos consulentes, cobrando monetariamente

por estes serviços, apesar de possuírem semelhança no fenômeno da

mediunidade, não se configuravam enquanto pertencendo ao movimento

espírita. Este exitoso processo de legitimação capitaneado pela Federação

Espírita Brasileira (FEB) que, recebe a aquiescência dos órgãos jurídicos e

policiais do Estado, numa reviravolta de sua posição perseguidora inicial do

início do século XX; assim como da grande imprensa da época, vai exercer uma

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atração a setores da Umbanda, no sentido de sua desafricanização e assunção

de postulados mais cristãos e doutrinários (Ortiz, 1999).

Nesta direção, Aubrée e Laplantine destacam, que “tornar-se espírita é

afirmar que se emancipou da arraia-miúda que representa a sensualidade e a

desordem, e que se optou por valores como seriedade, trabalho, organização e

disciplina” (2009:221). E que em uma “umbanda freqüentada pelas classes

médias” termina por ocorrer um processo de “depuração” e “controle social”

através de uma “ordem moral”. Dizem eles, que “terreiros de umbanda

dirigidos e freqüentados pela pequena burguesia se orientam deliberadamente,

à maneira kardecista no sentido de uma domesticação de comportamentos

julgados excessivamente exuberantes e selvagens” (2009:222).

Foi para se defrontar com toda essa complexidade e indeterminação de

uma mentalidade religiosa inter-comunicante que atravessa e ultrapassa os

contornos das religiões existentes no Brasil (no caso em foco, Espiritismo e

Umbanda), que a teoria do “continuum mediúnico” ou do “gradiente espírita-

umbandista” formulada pelo sociólogo Cândido Procópio Ferreira de Camargo

nos anos 1960-1970, no meu entender, encontra seu lugar. Por sua ousadia em

tentar propor uma inteligibilidade para tal situação de fluidez de

imaginários/crenças sobre “o mundo espiritual”, para além dos compartimentos

de doutrinas e instituições religiosas aonde estes deveriam estar alocados

(segundo o desejo destas instituições e doutrinas, mas não o das pessoas

comuns envolvidas nestas crenças), considero que este conceito de Camargo

ganha um realce na sociologia/antropologia da religião brasileira,

transformando-se, pelo menos, em um lugar de referência, para ser aceito,

complementado ou criticado.

Passo em seguida a explicitação do conceito de “continuum/gradiente”

na formulação de Cândido Procópio Camargo, através de uma abordagem de

seus meandros e desenvolvimentos. Neste trecho do texto, vou ou me referir ao

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Espiritismo, como o faz Camargo (na sua busca por distingui-lo da Umbanda4),

tratando-o como Kardecismo, embora saiba que o movimento espírita não se

reconheça nesta nominação (conforme discussão já encaminhada acima). Mas

para propiciar ao leitor um melhor seguimento da formulação de Camargo, se

este for às fontes, preferi esta forma de tratamento. Em outros tópicos volto a

me referir à corrente como Espiritismo e seus adeptos, como espíritas; assim

como sua contraparte, Umbanda e umbandistas.

1. A teoria do “continuum”: proposição e funcionamento

A formulação de “continuum mediúnico” aparece explicitada no livro de

Cândido Procópio Camargo “Kardecismo e umbanda: uma interpretação

sociológica” (1961:13), contudo na obra de 1973, “Católicos, Protestantes e

Espíritas” do mesmo autor, na sua parte IV “Religiões Mediúnicas no Brasil” ela

aparece referida como “Gradiente espírita-Umbandista” (1973:166). Considero,

no entanto, que são termos intercambiáveis, significando para o autor a mesma

noção.

A mediunidade é a dimensão que atravessa as duas religiões implicadas

no conceito e que, portanto permite a elaboração do mesmo. Depreende-se

através do exame deste conceito, uma imagem espacial onde dois pólos (o

Kardecismo e a Umbanda) se situam nos extremos de uma linha e ao longo

desta pode-se alocar um infinidade de pontos que representam as gradações -

dos casos concretos de centros e terreiros onde se pratica a mediunidade - que

se definem com características mais “kardecistas” ou mais “umbandistas” de

4 Intuo que Camargo evitou o termo “espiritismo” que ambos reivindicavam (o Espiritismo por
um viés histórico, pois foi fundado na França por Kardec com esse nome e a Umbanda, como
forma adaptativa de definição para suas atividades mediúnicas, reencarnacionistas, mesmo com
sua origem africana e o viés nacional-popular) justamente como critério de distinção entre os
dois. Estabelecendo, então, identidades distintas com nominações próprias - Kardecismo e
Umbanda - embora com afinidades no campo “mediúnico’”. Com isto, Camargo pôde para
operar as interações e relações entre os dois, através do seu dispositivo teórico-metodológico do
“continuum/gradiente”.

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acordo com maior ou menor aproximação em relação aos pólos. Para Camargo,

o gradiente/continuum é uma ferramenta que ajuda situar a grande mobilidade

de pessoas por entre centros e terreiros a partir de suas escolhas (1973:166-67).

Entretanto, para Camargo, estes pólos não são simétricos, tendo o

Kardecismo uma “tradição histórico-cultural precisa e definida” ao passo que a

Umbanda, “mesmo em sua forma mais radical e africanista assimila traços

kardecistas” (1973:166). Ou seja, no pólo extremo kardecista não há nenhuma

influência da Umbanda, ela vai cessando na medida em que vai se

aproximando dos níveis da linha sob a órbita do seu pólo inverso, o

Kardecismo; ao passo que este estende suas características centrais não apenas

nos níveis mais próximos ao pólo extremo umbandista, mas de fato, contamina

até o próprio núcleo identitário do seu antípoda (1973: 171). Para estabelecer os

parâmetros que diferenciam os pólos e suas gradações ao longo do

continuum/gradiente, Camargo destaca “os aspectos da doutrina e ritual”

(1973:167). Neste particular, podem-se detectar no esquema do

continuum/gradiente, três dimensões de distinção: 1- a mediunidade,

“consciente” no kardecismo e “inconsciente” na Umbanda 5; 2- os princípios,

“ético”, “de inspiração cristã” no kardecismo e “mágico”, marcado “pelo

cumprimento de preceitos ritualísticos” e pelas “obrigações” prestadas as

entidades na Umbanda, 3- o estilo marcado pela “sobriedade” nos rituais

kardecistas e pelo “emocional” nas “giras” da Umbanda (1973:167-68).

Como que para exemplificar este seu esquema teórico/classificatório,

Camargo elege o aspecto dos rituais, descrevendo o que se passa “ideal-

5Maria Laura V.C. Cavalcanti na sua obra, apresenta, contudo, uma complexidade muito maior
do que a polaridade esquemática onde Camargo associa mediunidade consciente ao
Kardecismo, como algo mais da racionalidade e inconsciente à Umbanda, como algo mais
espontâneo. A autora revela que no meio espírita, há sempre a advertência para na
mediunidade consciente se evitar o “animismo”, que é a interferência do próprio espírito do
médium na sua comunicação, como se fosse um espírito incorporado. Ao contrário, na
mediunidade inconsciente, (e por isso valorizada) há uma clara distinção entre médium e o
espírito encarnado, pois o espírito encarnando do médium, “dá passividade” para o espírito
comunicante (1983:116-120)

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tipicamente”6 nos dois pólos do continuum/gradiente, dentro desse aspecto, e

como esses tipos exemplares vão se mesclando ao longo da escala de acordo

com a maior ou menor influência dos extremos.

No pólo Kardecista, o ritual se organiza pela fixidez da mesa e em torno

dela os médiuns e dirigentes, e em frente a ela a assistência. No início a leitura

do Evangelho espírita ou de mensagens psicografadas e em seguida em meio à

penumbra e ao “silêncio absoluto” se estabelece comunicação mediúnica com

“espíritos sofredores”, “ainda presos á matéria” para serem aconselhados sob a

orientação do dirigente da sessão. Os sinais de que está havendo incorporação,

são discretos “suspiros e gemidos” ou uma respiração mais forte e tremores que

acontecem com o médium. Tudo indicando um controle por parte da

mediunidade, o mais “consciente” possível (1973:169-69). Já no ritual

umbandista, chamado “gira”, as “entidades” “baixam” em ambiente de

“incenso, cor e música”, quando os “filhos de santo” dançam e cantam ao som

dos atabaques e nesta condição incorporam as entidades que marcam a sua

presença por “gritos, os caboclos” e “murmúrios, os preto-velhos” (1973:170). O

momento mais “doutrinário” do ritual é quando os “cavalos” - nome dos

médiuns na Umbanda – incorporados pelas entidades dão “passes” e consultas,

focando geralmente “problemas da vida diária, dificuldades econômicas,

questões de saúde e amor” (1973:1970).

Para explicar as variações, combinações e porosidades que ocorrem ao

longo do “continuum”, nos “pontos intermediários do gradiente”, entre os dois

pólos extremos, devido à maior aproximação ou distância da capacidade de

imantação deles, Camargo ilustra esta dinâmica com alguns exemplos. De um

6Associo aqui, a tipologia estabelecida por Camargo à noção de “tipo-ideal” de Max Weber; ou
seja, uma tipologia que não reproduz exatamente o empírico, uma noção que não tem
correspondência exata (mas aproximada) com a realidade. Embora essa associação possa ter
algo de artificial, Pierucci e Prandi lembram a clara influência weberiana na obra de Camargo
(particularmente em “Kardecismo e Umbanda”) tanto em torno das “questões de sentido” como
móvel para suas tipologizações, quanto na questão da “internalização”,
subjetivação/individualização da religião na modernidade (1996:09-20).

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lado, influências umbandistas em centros kardecistas, situados em partes do

gradiente/continuum mais próximos do pólo da Umbanda, através do “uso de

velas, imagens e túnica branca; obrigação dos participantes não cruzarem as

pernas; diversas restrições alimentares no dia da sessão7”, práticas que

acontecem nestes centros (1973:169; 1961: 22-23). Embora deixe claro que, “a

influência umbandista decresce e deixa de existir quando se atinge o extremo

Kardecista” (1973: 171). De outro lado, a permanente influência kardecista que

atravessa as diversas gradações da Umbanda até o seu cerne, na medida em que

se torna mais destacada, é percebida pela simplificação do ritual: “desaparecem

os traços africanistas e o estilo torna-se menos emocional” (1973:171). Entre as

características dessa influência Kardecista na Umbanda destacam-se: “exclusões

de bebidas alcoólicas, charutos e cachimbos; abandono de atabaques e ‘pemba’

(...) chamados pontos riscados; uso de tênis em substituição à obrigação de estar

descalço” (1973:171).

Ainda dentro do seu esquema teórico visando mapear as gradações que

se dão entre as duas “religiões mediúnicas”, Camargo registra aspectos de

distinção que cada uma delas se auto-atribui em relação à outra, mantendo,

contudo, o caráter complementar dentro da proximidade, contigüidade e

extensão que esta outra sempre exerce em relação à identidade da primeira. No

caso do Kardecismo, este considera “a Umbanda como estágio inferior, embora

necessário, da experiência religiosa” (1973:172). E no caso da Umbanda, em

relação a algo que ela julga possuir e que não existe no Kardecismo, há uma

valorização de “sua tradição”, quando “idealiza sua origem” (africana,

7 Se na perspectiva de Camargo da influência umbandista em centros espíritas próximos a ela, a


presença destas “prescrições alimentares” dizem respeito a uma “proibição ritual ou mágica, à
maneira da Umbanda” (1961:22), já na visão de Cavalcanti, neste caso, não há incompatibilidade
com o caráter científico do Espiritismo, pois “evitar comidas pesadas, gordurosas, bebidas
alcoólicas” visa assegurar que “ o fluxo sanguíneo e o corpo fluídico devam estar o mais puros
possíveis, pois o cérebro trabalhará com grande intensidade (...) se essas recomendações não são
atendidas o organismo será sobrecarregado pelo trabalho mediúnico, produzindo dores de
cabeça, náuseas, mal estar no médium” (1983:98).

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oriental), e realça “a beleza do ritual e acentuando o [seu] caráter (...)

nacionalista” (1973:172). Se o pólo Kardecista funciona como “ponto de atração”

para segmentos umbandistas através do seu ideário “de evolução moral e

doutrinária”, levando a estes segmentos a busca de “melhor status” e ascensão

social; a Umbanda se considera mais “de raiz”, autêntica, possuidora de

“espíritos de terreiro considerados fortes” para a “doutrinação de espíritos

menos elevados”, logo, mais eficaz que o Kardecismo neste segmento espiritual

(1973: 172).

De toda forma, na explanação de Camargo, seu esquema teórico do

continuum/gradiente demonstra solidez e capacidade heurística, justamente

porque através do seu arcabouço fixo, funcional e linear pretende dar conta da

multiplicidade das situações empíricas que se passam na realidade.

2. O conceito como marco de referência acadêmica e críticas


contemporâneas a ele.

O conceito do continuum/gradiente tornou-se uma referência para toda

uma literatura que posteriormente a obra de Camargo, se debruçou sobre o

Espiritismo e sua relação com a Umbanda, e vice versa.

Renato Ortiz na sua obra “A morte branca do feiticeiro negro” que trata

do papel da Umbanda na sociedade brasileira, se reporta a noção do continuum

de Camargo, dizendo que esta enfoca a mesma questão que lhe interessa: a

“classificação da diversidade de cultos”, no caso de Camargo “referindo-se

sempre a práticas mediúnicas” (1999:95). Para Ortiz a abordagem funcionalista

de Camargo permite articular na mesma ferramenta teórica duas religiões

distintas, pois ambas “preenchem as mesmas funções” na sociedade brasileira –

“terapêuticas” e de resolução de “anomia social” (1999:95). Neste sentido, Ortiz

considera que a aproximação entre as duas religiões engendrada por Camargo

no seu conceito, se dá por um condicionante externo. Também afirma em nota,

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que ao lado desta origem funcionalista do conceito, há outra de cunho mais

culturalista, devido a influência de antropólogos norte americanos, como, como

Robert Redfield, que trabalharam com o conceito do continuum-folkurbano

(1999:95 nota 3).

Reginaldo Prandi, ao se referir dinâmica do “Espiritismo kardecista e da

Umbanda”, enquanto religiões “que se mantiveram em permanente contato,

resultando na adoção por cada uma delas de elementos mais característicos da

outra” (2012: 100), se reporta ao conceito do “gradiente” de Camargo. Segundo

este reconhecido autor das religiões afro-brasileiras, que foi aluno e orientando

de Camargo na década de 1960, a teoria do gradiente, “comprovou a existência

de gradações que vão do centro kardecista mais próximo do ideal dos

fundadores até o terreiro de umbanda ideal mais afinado com as tradições

africanas (2012:101).

Aubrée e Laplantine, na sua extensa obra comparativa entre o

espiritismo francês e o brasileiro, registram que para o caso do Brasil, partiram

“do conceito de ‘continuum mediúnico’ forjado por Procópio Ferreira de

Camargo (1961), cujos dois pólos extremos constituem-se, de um lado, pelas

religiões afro brasileiras (...) e de outro, pelo kardecismo em suas formas mais

ortodoxas” (2009:219);

Sandra Stoll menciona a teoria do continuum de Camargo, como uma

abordagem que privilegia a idéia de continuidade – continuum, de um princípio

cosmológico/fenomenológico comum a Espiritismo e Umbanda, expresso nos

conteúdos da reencarnação e mediunidade, mas que produzem variações

empíricas nos rituais, mitos e instituições particulares das duas religiões. Isto

em contraste com outras abordagens que se centram na oposição entre as

características sociais/étnicas e rituais/doutrinárias das duas religiões (2003:58).

Por fim, Giumbelli, reconhece, que a despeito de questionamentos que se

possa fazer à “imagem do ‘continuum’, ela serve para revelar a complexidade e

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a heterogeneidade que caracterizam as práticas religiosas no universo do

Espiritismo, da umbanda e do candomblé” (1995:15).

Mas quais seriam os questionamentos, a que se refere este autor? Que, no

meu entender, foram aparecendo na medida em que outras pesquisas surgiam

sobre a Umbanda e o Espiritismo.

Vou agrupar em seguida, duas modalidades de críticas que detectei em

autores que nas suas pesquisas sobre Umbanda e Espiritismo buscaram uma

interlocução com o trabalho de Camargo, consolidado anteriormente.

Uma primeira, que encontro em Cavalcanti e Ortiz, considera que a

noção de continuum/gradiente é construída a partir de categorias “externas as

formas religiosas em questão” (Cavalcanti, 1983:139); a saber, Espiritismo e

Umbanda. No caso de Cavalcanti, sua crítica visa à escolha de Camargo - para

compor seu esquema teórico - da experiência da mediunidade como possuindo

o mesmo “conteúdo” para Kardecismo e Umbanda, diferindo apenas nas

formas. Formas estas, que se expressando em “qualificativos opostos” definidos

de forma generalizante, como “consciente x inconsciente, racional x emocional,

ético x mágico”, não levariam em conta as “características internas a esses

sistemas religiosos” (1983: 139). Para Ortiz, o caráter funcionalista que organiza

o continuum de Camargo; onde “tanto a Umbanda quanto o Kardecismo

preenchem as mesmas funções” sociais, negligenciaria o “sistema de crenças

destas práticas religiosas” que possuem “uma série de elementos que se opõem

entre si” (1999:96). Embora as duas críticas apontem os fatores “externos” (que

comprometem o esquema teórico de Camargo) em lugares distintos -

Cavalcanti numa fenomenologia generalista que recobriria diferenças

estruturais entre as duas religiões; e Ortiz num sociologismo funcionalista de

papéis sociais, não levando em conta, justamente o “papel do transe” específico

nas religiões - ambos insistem que o esquema genérico de Camargo passou por

cima das especificidades das duas religiões que ele procurou colocar em

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comparação. Poderia se dizer em defesa da noção do continuum/gradiente, que

esta não quer assimilar o Espiritismo à Umbanda e vice-versa como se fossem

“idênticas”, como afirmou Ortiz (1999:96); ao contrário o conceito busca

expressar as gradações entre as duas - que realmente existem empiricamente na

variedade dos centros e terreiros que exercem entre si influências mútuas. Se é

verdade que “funções sociais” e generalizações abstratas como “ético” e

“mágico” estão entremeadas no conceito do continuum, é também fato, que elas

estão aí para ilustrar, conceituar, práticas que irrompem das configurações

específicas de cada religião: doutrina, cosmologia, origens e contextos de

origem, inserção social e cultural, etc, sobejamente resenhadas por Camargo em

descrições de cada uma das religiões. Ele nos seus dois livros, antes de discutir

a aplicação da sua noção de continuum, discrimina em apresentação detalhada,

cada uma das duas religiões e suas características próprias. Em “Kardecismo e

Umbanda” reserva o capítulo III para apresentar o primeiro e o capítulo IV para

a segunda (1961: 17-56). Em “Católicos, protestantes e espíritas”, na Parte IV do

livro dedicada as “Religiões Mediúnicas no Brasil”, separa no item 1.4 o

“Espiritismo Kardecista” do item 1.5 em que contempla as “Religiões Afro-

Brasileiras” (1973:159-166). Inclusive, o mesmo Ortiz, reconhece, que se

“recusarmos identificar Umbanda e Kardecismo, pensamos que o conceito do

continuum (...) pode ser de grande utilidade para a compreensão dos ritos

umbandistas” (1999:96-97). Desta forma, tendo a me aproximar da apreciação

de Stoll, que não toma partido diante das críticas, limitando-se a fazer um

levantamento das posições teóricas acerca do “campo mediúnico”;

descrevendo, de um lado os que vêem continuidades entre os agentes deste

campo, entre eles, Camargo e aqueles que vêem oposição entre os agentes,

dentre estes, Ortiz (Stoll:1999:58).

Outra crítica ao modelo do gradiente/continuum, da qual tendo

partilhar, diz respeito a uma hierarquização que o conceito corre o risco de

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produzir entre as duas religiões, apesar de se pretender um instrumento

operativo de compreensão da relação entre elas. Pois a pretexto de analisar a

relação das duas religiões, termina, de certa forma, embutindo no seu esquema,

justamente os valores diacríticos com os quais o Espiritismo busca se diferenciar

da Umbanda. Ao propor os seguintes pares de oposição e classificação, fica o

Espiritismo com a parte da consciência, sobriedade e ética, ao passo que a

Umbanda resta a da inconsciência, extravasamento e magia, Ao pretender

interpretar as diferenças e gradações entre as duas religiões, o artefato teórico

de Camargo pode terminar desqualificando a Umbanda. De fato, a realidade é

mais nuançada, e esses condicionantes escolhidos por Camargo (para medir as

reais diferenciações e estabelecer gradações entre as duas configurações) podem

resultar externos, arbitrários e abstratos diante da realidade que quer tipificar,

tal como na crítica de Cavalcanti (1983:139). A questão da mediunidade

consciente e inconsciente é bem mais sofisticada a que a repartição colocada no

esquema do continuum, como já comentei em nota acima, e a rígida divisão

entre “ética” e “mágica”, reminiscência de um olhar evolucionista-positivista, já

se encontra bem superada nos estudos contemporâneos da religião; pois

religiões baseadas em doutrinas podem ter seus componentes ditos “mágicos”;

e religiões baseadas em obrigações e rituais podem ter incrustados nestes,

dimensões éticas.

De uma forma mais velada, sem mencionar explicitamente a teoria do

continuum (com as quais eles dialogam muito positivamente), Aubrée e

Laplantine, criticam “distinções” utilizadas numa “literatura sociológica” 8 entre

“uma mediunidade consciente (...) e uma possessão inconsciente (...) entre uma

prática ‘mais intelectual’ e uma prática ‘mais afetiva’, entre ética (que estaria no

8 Além da “literatura sociológica” eles acrescentam a literatura “espírita” (2009:223, nota 197),
com isto reforçando meu argumento, de que existe uma afinidade entre o que postula o
Espiritismo na sua diferença hierárquica em relação à Umbanda e a teoria do continuum de
Camargo.

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kardecismo) e o ritualismo mágico ( quer estaria na umbanda)” (2009:223, nota

197). Para os autores isto reflete “um processo etnocêntrico que legitima e

hierarquiza menos os fatos que os valores preconizados pelos que se exprimem

desta forma” (2009:223, nota 197).

3. Possibilidades de alargamentos e transformações na teoria do


continuum

Se a teoria de Cândido Procópio Camargo nos anos 1960-1970 teve o

mérito de considerar a diversidade de práticas e os hibridismos que se

realizavam nos intervalos entre as religiões constituídas, como pensar hoje a

dinâmica do panorama religioso no Brasil com sua complexidade: tanto de

novos grupos emergentes, quanto dos trânsitos realizados por indivíduos

buscadores? Naquilo que já veio a se chamar do movimento de

desinstitucionalização religiosa e da self religion.

Será que poderíamos pensar em alargar espacialmente as conexões deste

“continuum/gradiente mediúnico” da ligação estrita e linear entre Kardecismo-

Umbanda, para uma série de ramificações e capilaridades que irromperiam

tanto de um lado de um pólo, quanto do outro pólo. Neste sentido, eles

deixariam de serem pólos para se transformarem em nódulos ou núcleos de

uma malha extensa que tenderia a se reproduzir e se adensar nas múltiplas

conexões entre estes núcleos.

No caso do continuum/gradiente linear proposto por Cândido Procópio

Camargo, esta expansão multidirecional significaria para o pólo da umbanda,

desdobramentos e articulações em direção aos esoterismos, as religiosidades de

uso das “plantas do conhecimento”, resultando novas gradações da Umbanda,

como a Umbanda esotérica (Corrêa, 1999), e a Umbandaime (Guimarães, 1996).

Estas ramificações se fariam sem abandonar a conexão matricial e original com

o Candomblé, em torno das raízes africanas fixadas em contexto brasileiro,

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presentes em ambas. Relação esta, sintetizada na denominação, hoje já canônica

de “religiões afro-brasileiras” (Prandi, 2013:204). O nome composto “afro-

brasileiro” que atravessa as duas religiões recobre também, como assinalou

Reginaldo Prandi, outra série de manifestações que poderiam se situar, dentro

de uma perspectiva de continuum, enquanto gradações e singularidades entre

as referências do Candomblé e da Umbanda, como: xangô, tambor-de-mina,

batuques, catimbó, encantaria, etc. (2007:07). A necessidade de ver Candomblé e

Umbanda em relação remonta os antigos estudos de Nina Rodrigues e Edson

Carneiro, mas é realçada por Bastide (1971, 1978) na suas preocupações sobre as

duas religiões enquanto expressões sócio-culturais do povo negro na sociedade

brasileira. Será em torno da combinação entre representações simbólicas e

processo de aculturação social, que Bastide estabelecerá a distinção valorativa

entre ambas (com as críticas posteriores que advirão desta sua visão): o

Candomblé preservando uma idéia de “África mítica” e com isso forjando

comunidades autóctones e a Umbanda se dispersando, num processo sincrético

em contexto urbano, e com isso descaracterizando-se (1971; 1978), Também o

próprio Camargo, ainda que destaque a o continuum entre Umbanda e

Espiritismo, não se furta de examinar o fato de que ao se aproximar do

Espiritismo, a Umbanda, conseqüentemente se afasta da outra influência

constitutiva de sua identidade, a “tradição africana”. Segundo ele, “a Umbanda

assimilando a doutrina Kardecista, substituiu gradativamente os deuses

africanos pelos espíritos” e por isso “o fiel umbandista encara o espírito

desencarnado de acordo com os princípios do Kardecismo, projetando para um

plano mais distante a organização de falanges e orixás” (1973:167-168).

No pólo do Espiritismo, se destacam articulações com o meio esotérico e

new age, desde a influência teosófica nos escritos do intelectual e liderança

espírita paulista dos anos 1950, Edgar Harmond (Arribas, 2014), passando pelas

derivações espiritualistas da Projeciologia de Waldo Vieira (D”Andrea, 2000)

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até a atitude midiática e pós-moderna do médium performático Luiz

Gasparetto (Stoll, 2003). Anthony D’Andrea tem salientado a dinâmica de um

“número crescente de kardecistas e simpatizantes que passam a incorporar

crescentemente práticas espiritualistas e new age: espiritualistas, esotéricas,

orientalistas, paracientíficas”, no que se poderia chamar de uma “’nova-

erização do kardecismo” (2000:140).

Mas a conexão mais expressiva do Espiritismo brasileiro é, sem dúvida, a

que o liga à “religião hegemônica no país”, o Catolicismo, segundo a acertada

percepção de Sandra Stoll (2003:59). E neste particular, as conexões mais

desenvolvidas se dão com o catolicismo popular, particularmente através da

figura “santa”, compassiva e “milagreira” de Chico Xavier (Lewgoy, 2004; Stoll,

2003).

Sandra Stoll chama atenção com certa veemência para a desconsideração

desta relação crucial na moldagem da faceta identitária do Espiritismo. Para a

autora, esta afinidade tem ficado “oculta” ou “relegada a um segundo plano”

nas pesquisas de uma sociologia e antropologia do Espiritismo no Brasil.

Segundo Stoll, “uma das lacunas dessa literatura consiste justamente no fato de

não se dimensionar como o imaginário e as práticas católicas impactaram o

Espiritismo, influenciando de forma significativa o modo de sua expressão no

Brasil” (2003:59). Na mesma perspectiva, Bernardo Lewgoy, explora as

conexões espíritas com o catolicismo, em duas direções. Uma primeira - mais

afinada com a posição de Stoll - que se desenvolve através do processo de

“santificação” de Chico Xavier, quando este será identificado ao “próprio

sagrado popular católico, surgindo fora do catolicismo”, com isso o Espiritismo

“buscou-se mostrar-se como mais cristão do que os demais cristãos e mais

religioso e popular (...)” (2004:115). Uma segunda conexão com o Catolicismo,

levantada por Lewgoy revela a estratégia do Espiritismo doutrinário emergente

de incorporar traços do seu mais “feroz adversário”, o catolicismo ortodoxo,

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hierárquico e “romanizado”, voltando-os contra este. Querem com isso,

apresentar o Espiritismo como uma doutrina que recupera “às próprias raízes

cristãs”, ao passo que o Catolicismo se comporta como uma religião tipicamente

farisaica, no sentido estrito do termo, moldada por um caráter “externo” ritual,

supersticioso e pouco espiritualizado (2004: 109,115). Será dentro desta forma

não-católica de praticar os mesmos valores e imagens do Catolicismo, que

Roger Bastide analisa o Espiritismo, como uma religião que quer se distinguir

do Catolicismo no entanto, sem romper com a moral cristã-católica. E por isso

“os espíritas brasileiros, ao se converter, não tem a impressão de abandonar o

catecismo que receberam quando crianças, mas de ‘praticar’ o que os católicos

pregam, sem, contudo, traduzir isto em atos” (1967:14, tradução minha). Se na

análise de Lewgoy, os espíritas praticariam “uma espécie de anticatolicismo

‘romanizado’” (2004:109), reproduzindo contra a Igreja Católica o mesmo

rigorismo que esta impunha ao catolicismo popular; para Bastide, os espíritas

seriam os verdadeiros “católicos praticantes”.

Conclusão

Postular então, uma perspectiva alargada e múltipla de continuum e de

uma taxionomia expandida em situação de fluxo, serve também para relativizar

a clássica noção de campo religioso brasileiro enquanto um espaço fixo e

demarcado que englobaria e ordenaria todas as compartimentações, clivagens e

antagonismos, assim como as porosidades, empréstimos mútuos e hibridismos,

praticadas entre as religiões no Brasil.

E aqui nos aproximaríamos dos experimentos teóricos contemporâneos

da antropologia como as linhas de fluxo da “malha” de Tim Ingold (2012: 40).

Na concepção deste antropólogo (de inspiração heideggariana), nunca um

objeto/entidade é um fato consumado, destacado do resto da ambiência, “mas

um nó cujos fios constituintes (...) deixam rastros e são capturados por outros

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fios noutros nós” (2012:29). Então se tomarmos as religiões, não como

“entidades fechadas”, mas como “coisas” que “vazam”, “transbordando das

superfícies que se formam temporariamente em torno delas” (2012:29),

poderemos deslocar o olhar e o foco das nossas pesquisas, das instituições, para

o trânsito das pessoas com suas práticas, rituais realizados nas trilhas em

movimento por entre estas. Menos a “permanência e solidez” das igrejas e mais

o fluxo das transições das pessoas no seu contínuo fazer religioso.

Da mesma forma, poderíamos nos aproximar da idéia das linhas de

conexão da “rede” proposta por Bruno Latour (2006). Aqui também não se trata

de “objetos autocontidos” que se conectam entre si, mas de múltiplas rotas e de

condutores que se prestam ao vai e vem incessante dos fluxos das pessoas em

suas combinações.

Ou ainda numa sugestão contida em um dos últimos escritos desta

saudosa amiga e pesquisadora que foi Clara Mafra, no seu modelo de

“holograma”, proposto por ela para interpretar as situações de fluidez das

experimentações e bricolages que se dão nos fluxos hodiernos envolvendo

situações, agentes e materiais religiosos. Perspectiva, que, se diferenciando

daquela do “mapa”, busca captar o “constante movimento” e as “ramificações”

em desdobramentos “mais ousad[o]s e flexíveis” (2013, p.13-25).

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