Notas Sobre o Gênero Épico João Adolfo Hansen
Notas Sobre o Gênero Épico João Adolfo Hansen
Notas Sobre o Gênero Épico João Adolfo Hansen
1
“Antigo” como formulado por Francis Bacon: “And to speak truly, Antiquitas saeculi juventus mundi.These
times are the ancient times,when the world is ancient, and not those which we account ancient…by a
computation backward from ourselves”[ E para falar a verdade, a Antigüidade é a juventude do mundo. Esses
tempos são os tempos antigos, quando o mundo é antigo(velho),e não aqueles que julgamos antigos …por um
cálculo retrospectivo a partir de nós mesmos] . Francis Bacon. Ed. B.Vickers, Oxford,1996, pp.145-146.
2
Este texto é um lugar onde outros lugares convergem de modo não totalizante, mas indicial , como
definições aristotélicas, latinas, italianas,espanholas e portuguesas da épica que interessam para a doutrina
poética dos textos publicados neste livro.
2
Para ler a epopéia historicamente, deve saber que, até a segunda metade do século
XVIII, os códigos da poesia foram retóricos, imitativos e prescritivos, diferentes dos
critérios expressivos e descritivos da estética, da crítica e da história literária então
inventadas pela revolução romântica, que subjetivou todas as artes como expressão da
consciência infeliz dividida e multiplicada pelo dinheiro. É o que se observa quando se
reconstitui a longa duração da instituição retórica greco-latina e suas inumeráveis
apropriações cristãs que evidentemente não conheceram as classificações retrospectivas,
evolutivas e dedutivas dos estilos feitas a partir do século XIX nas histórias literárias e
3
Por exemplo, se lê o primeiro verso da proposição de Os Lusíadas, deve atribuir-lhe significado, fazendo
uma tradução que reconhece uma figura relevante. A palavra poética não existe em “estado de dicionário”,
pois é retórica, não apenas semiótica ou gramatical: “As armas e os barões assinalados” é enunciado
intencional que se relaciona com outros, no poema, e com matérias simbólicas anteriores e contemporâneas.
Assim, “armas” é sinédoque, parte pelo todo, valendo por “guerras”, “feitos militares” da história medieval
portuguesa, principalmente, que Camões lê em cronistas, como Fernão Lopes, e historiadores do seu tempo,
Damião de Góis, Rui de Pina, João de Barros. O termo é tópica do gênero épico associada à fé e à força do
caráter dos heróis do poema. E, como emulação do primeiro verso da Eneida: Arma virumque cano, “canto
as armas e o varão”, é signo para o destinatário ou preceito de leitura: termo de estilo alto, constitui um
destinatário épico, indicando-lhe que recebe o poema de modo determinado, sabendo que seu estilo é
sublime, “tuba canora e belicosa”, não lírico ou pastoral, “agreste avena ou frauta ruda” (I, 5). O leitor
também deve observar a funcionalidade da ordenação métrica, rítmica e sintática: o termo “armas” liga-se
imediatamente à fórmula “barões assinalados”, que significa “varões”, homens viris, e “barões”, fidalgos, que
são “assinalados” pelos feitos que os tornam dignos da memória que o canto épico começa a eternizar. Logo,
a expressão “as armas e os barões assinalados” antecipa a matéria histórica, o gênero, as tópicas, os tipos
heróicos, a ordem e o estilo para o leitor. O verso figura a matéria histórica como objeto direto posto em
relevo como os dois primeiros termos épicos da proposição.
3
4
Repetindo Aristóteles, Emanuele Tesauro define emulação em Il Cannocchiale Aristotelico:
"Chamo pois imitação uma sagacidade com a qual, quando para ti é proposta uma metáfora ou outra
flor do humano engenho, consideras atentamente as suas raízes e, transplantando-a em diferentes categorias
como em um solo cultivado e fecundo, propagas outras flores da mesma espécie, mas não os mesmos
indivíduos"(Tesauro- "Arguzie umane"- Il Cannocchiale Aristotelico. 5 ed. 1670). (Tesauro- "Arguzie
umane"- Il Cannocchiale Aristotelico. 5 ed. Torino, Zavatta, 1670).
5
Pallavicino, Sforza. Trattato dello stile e del dialogo,ove nel cercarsi l’idea dello scrivere insegnativo.
Roma, Stamperia del Mascardi, 1662, p.. 111.
5
6
Um poeta maior como Camões imita autoridades poéticas, filosóficas e históricas de várias durações,
algumas delas antiqüíssimas: o grande bloco greco-latino ou as doutrinas e a poesia gregas e latinas da arte
como mímese: a doutrina aristotélica da épica exposta na Poética; a doutrina da reminiscência de Platão e
Plotino; a doutrina do sublime de Longino e Hermógenes; as epopéias de Homero, a bucólica de Teócrito, a
épica de Virgílio, a ode de Horácio, a elegia erótica de Ovídio etc. Outras datam do século XV, como o
platonismo reciclado por Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Cristóforo Landino e Angelo Poliziano na
academia florentina de Careggi. Muitas datam dos séculos XII e XIII, como a poesia da coyta e do amor
cortês dos trovadores galego-portugueses e provençais; e o “doce estilo novo” italiano, mescla de língua
vulgar, formas poéticas e culto da Antigüidade, exercitado nos anos iniciais do século XVI por poetas
portugueses, como Sá de Miranda e Antônio Ferreira, que imitam o soneto e a canção de Petrarca, o terceto de
Dante, a elegia e os capítulos de Bembo, as éclogas de Sannazzaro, a oitava rima de Poliziano, Bocaccio,
Boiardo e Ariosto. Camões também figura o conhecimento cosmográfico antigo, fundamentado em Ptolomeu
e Euclides, e a experiência empírica das navegações portuguesas dos séculos XV e XVI sistematizada por
autores portugueses de tratados de cartografia e história natural, como Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira,
Garcia da Orta etc. E imita principalmente a prosa da história de seus contemporâneos João de Barros, Rui de
Pina e Diogo do Couto. E tratados teológico-políticos escolásticos que tratam das virtudes do príncipe cristão
e da “guerra de devaçam”, expressão de Gil Vicente para a cruzada contra não-cristãos da África e da Ásia.
Quando imita essas várias durações, a enunciação de Camões é modelada nas tópicas aristocráticas da
racionalidade de corte com que autores italianos e portugueses do século XVI, Baldessare Castiglione,
Giovanni Della Casa, D. Jerônimo Osório, definem a excelência do uomo universale, o homem universal,
cortesão perito em letras e armas, caracterizado por “engenho”, “discrição”, “prudência”, “agudeza”, “honra”,
“amor”, “gentileza”, “graça” etc.
7
O público antigo definia imitação servil com a alegoria do médico principiante que administra remédios por
ter visto em que ocasiões foram usados, mas sem saber porque fazem efeito. Ou como a imitação do escolar
que repete subservientemente o que acha nas composições do mestre porque sabe que agradaram e foram
louvadas, mas não é capaz de distinguir a causa por que agradam. Sforza Pallavicino escreve que o médico
experiente, vendo que determinado remédio atua sobre uma doença específica, sabe que isso ocorre porque
ele tem temperamento corretivo do humor deficiente. O médico experiente sabe inventar outro remédio contra
o mesmo mal, semelhante em temperamento à substância também usada para outros males decorrentes do
mesmo humor mórbido. Aqui, novamente, invoca-se a autoridade de Aristóteles para distinguir senso comum
e intelecto, ou experiência e arte: o senso comum e a experiência restringem-se ao particular, caso de Bento
Teixeira em relação a Camões; o intelecto e a arte visam a máxima universal aplicável a inumeráveis outras
coisas distintas, como Camões em relação a Virgílio. Cf. Pallavicino, op.cit. cap.XIII, pp.120-122.
6
8
Merlin, Hélène. Public et littérature en France au XVIIe siècle. Paris, Belles Lettres, 1994, pp. 385-388.
8
9
Cf. Dumézil, Georges. Mythe et Épopée.I-L’idéologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-
européens ;II-Types épiques indo-européens : Un héros, un sorcier, un roi ; III-Histoires romaines. Préface
de Joël H.Grisward. Paris, Gallimard, 1995 ; Vernant, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris,
PUF,1969; Svenbro, Jesper. “La Grèce Archaïque et Classique. L’invention de la lecture silencieuse”. In
Cavallo, Guglielmo e Chartier,Roger. Histoire de la Lecture dans le Monde Occidental. Paris, Seuil,1997.
10
A leitura latina da epopéia era pública, feita em voz alta como recitatio do volumen, o rolo que continha o
poema com os espaços entre as palavras marcados por pontos (interpuncta). O volumen era segurado na mão
direita e desenrolado pouco a pouco pela esquerda. O termo “cantar”, que se associa a partes materiais e à
enunciação da epopéia - “canto” (= “livro”); “Arma virumque cano”; “Cantando espalharei por toda parte”
etc.- designa a voz do intérprete que marcava com suas inflexões e batidas dos pés a elocução do poema.
Como diz Quintiliano, a composição deve ser regrada pela maneira como se dará voz ao escrito. Cf. Cavallo,
Guglielmo. “La lecture dans le monde romain”. In Cavallo, Guglielmo e Chartier, Roger. Op.cit
As epopéias luso-brasileiras dos séculos XVI, XVII e XVIII são textos escritos para serem lidos
individualmente em silêncio. Mas continuam seguindo Aristóteles e Virgílio: imitam ficcionalmente o
discurso da história escrita, definindo a verossimilhança como semelhança da verdade pressuposta nele.
9
11
Aristóteles, Poética, 154.
12
Horácio, Arte Poética de Q.Horacio Flacco.Traduzida, e illustrada em portuguez por Candido Lusitano.
Nova Edição. Lisboa, Rollandiana, 1833, X,p.59.
13
Obviamente, como é o modo mimético que importa na definição do gênero, a epopéia também pode ser
escrita em prosa. Cf., a respeito, o estudo exaustivo e excelente de Adma Fadul Muhana. A Epopéia em
Prosa Seiscentista: Uma Definição de Gênero. São Paulo, Editora da UNESP,1997.
10
grego e latino, ou na oitava rima italiana de verso decassílabo com as seis primeiras rimas
alternadas e as duas últimas emparelhadas (ABABABCC) das línguas vulgares, imitando
por modo misto, narrativo e dramático, a ação una, inteira e perfeita, de tipo superior,
ilustre ou heróico, metido em guerra histórica ou mítica, real ou fictícia, para a admiração,
o prazer e o ensino de virtudes cívico-morais.
No século XVI, pressupondo que a epopéia é poesia escrita para ser lida, Júlio César
Scalígero retoma a definição horaciana quando resume a matéria da fábula épica com
termos do estilo alto: Epicorum materia declaratur, dux, miles, classis, equus, victoria (
“Declara-se a matéria dos épicos: chefe, soldado, exército, cavalo, vitória”14). Em meados
do século XVI, Antonio Minturno retoma Horácio e Aristóteles, prescrevendo que poesia
heróica é
“Imitação de atos graves e ilustres, dos quais um contexto perfeito e completo tenha
justa grandeza, com dizer suave, sem música e sem dança, ora narrando simplesmente, ora
introduzindo outro [personagem] em ato e em palavra; de modo que pela piedade e pelo
medo das coisas imitadas e descritas purgue o ânimo de tais afetos com maravilhoso prazer
e proveito”15.
14
Cf. Scaliger, Iulius Caesar. Poetices libri septem ad Sylvium filium. Lyon, Apud Antonium Vincentium,
1561,p.144. Provavelmente, a referência da fórmula de Scalígero é a rota Vergilii, do século XIII, que elenca
tópicas da invenção e palavras da elocução de três estilos, humilde, medíocre e sublime, correspondentes às
Bucólicas, às Geórgicas e à Eneida.
stilus humilis mediocris gravis
(BUCOL.) (GEORG.) (ENEIDA)
---------------------------------------------------------
(ordem) pastor agricola miles
dominans
-----------------------------------------------------------
(nomes) Tytirus Caelius Aiax
Meliboeus Triptolemus Hector
------------------------------------------------------------
(animais) ovis bos equus
------------------------------------------------------------
(instrumentos) baculus aratrum gladius
------------------------------------------------------------
(lugares) pascua ager urbs
castra
------------------------------------------------------------
(plantas) fagus pomus laurus/cedrus
15
Minturno, Antonio Sebastiano(1500-1574). L’Arte Poetica del Signor Antonio Minturno nella quale si
contengono i precetti Eroici,Tragici, Comici,Satirici, e di ogni altra Poesia: com la dottrina de’ sonetti,
Canzoni, ed ogni sorte de Rime Toscane, dove s’ insegna il modo, che tenne il Petrarca nelle sue opere. E si
11
dichiara a’ suoi luoghi tutto quel, che da Aristotele, Orazio, ed altri Autori Greci e Latini è stato scritto per
ammaestramento de’ Poeti. In Napoli, Gennaro Muzio,1725, p. 9.
16
Tasso, Torquato. Discorsi del poema eroico (1594) Lib. I, p. 508.
17
A expressão chanson de geste (canção de gesta), documentada em francês desde o século XII, nomeia
poemas épicos longos escritos em língua vulgar. O termo do francês arcaico “geste” é o latim gesta, “ações”.
Chanson de geste significa “narrativa de grandes feitos” de um personagem, de uma família ou de uma
coletividade.
12
mesma maneira a vemos nos animais brutos que têm sobre outros nobreza e fortaleza, como
no leão e na águia: e não é sem razão que aquele movimento impetuoso e súbito,sem
palavras ou outra demonstração de cólera, que unidamente em um golpe, quase como um
estouro de bombarda, irrompe da calma, que é o seu contrário, é muito mais violento e
furioso que aquele que, crescendo por graus, esquenta pouco a pouco” 19
É Maquiavel quem diz o que está em jogo nessa aparência desdenhosa: “ (...) é justa
a guerra que é necessária; e as armas são piedosas onde não se espera outra coisa senão a
elas “20.O que caracteriza a função guerreira nas epopéias do século XVI é a transformação
paulatina da antiga nobreza de armas orgulhosa do sangue, da bruteza da força e da
ignorância da latinidade em uma nobreza de letras civilizada e erudita, movida por juízo,
“grave e taciturna”, “senhora de si”, como no texto de Castiglione, subordinada mais e mais
ao rei em uma corte. O poder guerreiro lentamente dá lugar ao império da escrita e da lei
que, por sua vez, recebem sua força do monopólio da violência legítima do soberano21.
Depois da publicação dos decretos do Concílio de Trento, em 1563, a épica cristã,
cavalheiresca, sprezzante, caprichosa e humorada de Boiardo e Ariosto se afunila, em
Camões e Torquato Tasso, como epopéia católica dessa civilização áulica. Mantendo as
velhas tópicas da cruzada contra o mundo muçulmano, é poesia moralizada: quando imita
a matéria histórica, pressupõe a definição tridentina da mesma como história sacra, para
afirmar contra a “vida libertina”, o ateísmo maquiavélico e as religiões reformadas, a
intervenção da Providência nos eventos da “vida beata” contra-reformada do herói. Seus
exemplos de ação heróica são, por assim dizer, mais virtuosamente nobres, como nobreza
cortesã traduzida pelas virtudes dos programas da piedade pós-tridentina. Antes dos
decretos do Concílio de Trento, o heroísmo era simplesmente a virtude do herói; depois
19
Cf. Micheli, Pietro. Op. cit. p. XXIII. .
20
Cf. Maquiavel, N. O Príncipe,último cap. Castiglione também evidencia que já não se combate por simples
espírito de aventura, mas por razões políticas, visando ampliar o poder e os domínios:
“Mas devem os principes fazer os povos belicosos não por cupidez de dominar, mas para poder defender-
se a si mesmos e aos mesmos povos de quem os queira reduzir à servidão ou fazer-lhes injúria em alguma
parte, ou para destituir os tiranos e governar bem aqueles povos que forem maltratados, ou para reduzir
aqueles que forem de tal natureza que mereçam ser feitos servos,com intenção de governá-los bem e dar-lhes
o ócio, o repouso e a paz”.Cf. Castiglione, Baldassare. Il Libro del Cortegiano. In Cordié, Carlo (Edit.) Opere
di Baldassare Castiglione, Giovanni della Casa, Benvenuto Cellini.Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi
Editore,1960,pp.313-314.
21
Varela, Julia. Modos de Educación en la España de la Contrarreforma. Madri, Las Ediciones de La
Piqueta, 1983, p.120.
14
deles, todas as virtudes católicas são consideradas heróicas, por isso o amor é uma virtude
tão heróica quanto a guerra, diz Tasso, tratando de “l’illustre de l’eroico”.
Camões e Tasso escrevem e publicam em sociedades controladas pela legibilidade
dogmática do Santo Ofício da Inquisição. Camões, auctor dos poetas luso-brasileiros dos
séculos XVI, XVII e XVIII, afirma a ortodoxia, fazendo uso alegórico da máquina
mitológica antiga: a Vênus terrestre e celeste de Os Lusíadas é composta como causa
segunda escolástica ou instrumento da Providência divina. E a ninfa Tétis, enviada por
Deus para revelar o segredo da máquina do mundo a Vasco da Gama, nega-se a si mesma
de maneira espantosamente inverossímil quando, apontando o Empíreo, declara ao herói
que ela mesma, que fala e continuará falando, é ficção falsa de “cego engano”, metáfora
fingida ou fabulosa para o prazer do leitor :
Aqui só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano;
Só para fazer versos deleitosos
Servimos...” (Os Lus.X,82 )
Antes de publicar A Jerusalém Libertada, Tasso enfrenta quatro censores
inquisitoriais; um deles repete as diretivas do Collegium Romanum e sugere que o episódio
do bosque encantado talvez se enquadre nos anátemas dos decretos do Concílio, exigindo
que o poeta suprima todas as passagens eróticas e personagens femininas fundamentais,
Armida, Clorinda, Sofrônia, Ermínia. Tasso antecipa-se à censura que desconjunta a obra e
escreve um posfácio para a edição de 1581, onde declara que todo o poema é alegoria
cristianíssima com sentido tropológico, moral, e anagógico, dos fins últimos. Quando o
compôs, não previra nenhum sentido alegórico para ele22.
Na primeira metade do século XVIII, tendo por referência as epopéias gregas (Ilíada,
Odisséia), latinas (Eneida, Farsália) e as do século XVI (Orlando Furioso, Os Lusíadas, A
Jerusalém Libertada), Ignacio Luzán sintetiza preceitos e finalidades do gênero: ação nobre
e grande de pessoas ilustres- e agora ilustradas- como reis e heróis, visando a instrução
22
Symonds, J.A. “Torquato Tasso”. In El Renacimiento em Italia. México, Fondo de Cultura Económica,
1995, 2 v., p. 792, 2º. v.
15
23
Luzán, Ignacio de. La poética o reglas de la poesía em general y de sus principales especies. Zaragoza,
Francisco Revilla,1737.
24
Francisco Joseph Freire (Candido Lusitano), Arte Poetica. 2 ed. Lisboa, 1759, Livro III,Cap. I, Tomo II, p.
165)
16
25
Candido Lusitano. Arte Poética. Ed. cit., Livro III, cap. I, p. 168.
26
C.Lusitano. Arte Poética. Ed. cit., Livro III,Cap. III, pp.182-183.
17
primeiros reis, Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio, Anco Márcio, que, por suas
iniciativas, figuram e agregam uma das funções. Rômulo, semideus criador da cidade, é rei
temível, acompanhado de achas, varas e ligaduras; Numa, sábio e religioso, funda os cultos,
os sacerdócios e as leis; Tulo Hostílio, chefe exclusivamente guerreiro, dá a Roma o
instrumento militar do poder; Anco Márcio, sob o qual se desenvolve a plebe romana e a
riqueza comercial, não faz guerra se não é constrangido a fazê-la para defender a cidade.
Dumézil estabelece correspondências entre Rômulo-Varuna e Numa-Mitra na função da
soberania; Tulo Hostílio corresponde a Indra, função guerreira; Anco Márcio, a vários
27
deuses, como Quirino . Quanto à épica grega, Dumézil lembra que a terceira função
compreende, ao lado da fecundidade e riqueza, também a beleza e a voluptuosidade. No
julgamento de Páris, a Afrodite que compete com Hera, doadora de soberania, e com Atena,
doadora de vitória guerreira, oferece ao príncipe troiano justamente “ a mais bela das
mulheres”, causa da guerra de Tróia cantada na Ilíada28.
27
Cf. Dumézil, Georges. “Mito y Epopeia”. In El Destino del Guerrero. México, Siglo Veinteuno, 1971,
p.22: “Mas advirtamos primeiro- isso não foi feito suficientemente- que o ‘ sistema’ formado pelos primeiros
reis de Roma não é uma descoberta de nossos estudos: os romanos o compreendiam, explicavam-no e o
admiravam como sistema e viam nele o efeito da benevolência divina: não fizemos mais que considerar esse
sentimento”.
Cf., no canto VI da Eneida, a caracterização funcional desses reis, quando Anquises apresenta a Enéias os
futuros primeiros reis de Roma.
28
Dumézil, op.cit. p.99.
29
Vernant, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris, PUF,1969, pp. 23-24
19
30
Vernant , Jean-Pierre. Op.cit. p. 26.
20
virtudes fecundas31. No caso dessa função, os personagens que a figuram costumam ser
benévolos e benfeitores, como a Vênus da Eneida e de Os Lusíadas.
O núcleo do gênero épico é a segunda função, a guerreira, a que se associam
complementarmente as outras duas. Res gestae Regumque,Ducumque,et tristia bella,/Quo
scribi possent numero, monstravit Homerus, como se viu na fórmula de Horácio: “Coisas
feitas de Reis e de Capitães e tristes guerras/ O número em que possam escrever-se mostrou
Homero”. Desde a Eneida, as epopéias que o imitam compõem a enunciação do narrador
como lembrança das res gestae dos heróis do enunciado. Como a matéria lembrada e
estilizada é antes de tudo coletiva, a imaginação do narrador transcende a experiência
individual do poeta, pondo em cena a memória anônima das ações exemplares que
condensam a função. Assim, como foi dito, a epopéia homérica é poesia que transforma
mythoi- imitações de ações ou narrativas, fábulas e “contos” coletivos e anônimos. A
partir principalmente da Eneida, de Virgílio, até o século XVIII, enquanto os preceitos da
Poética aristotélica têm legibilidade, a epopéia estiliza o discurso da história escrita como
sua matéria principal.
Nessa imitação, ela é, já se viu, discurso narrativo longo, quase sempre em verso
heróico, o hexâmetro datílico, e, principalmente a partir da Comédia, de Dante, em verso
decassílabo heróico, imitando a ação inteira e perfeita de personagem guerreiro ou heróico
em situação de guerra histórica ou mítica, real ou fictícia. Hegel lembrava as tristia bella do
verso de Horácio quando escreveu que, de modo geral, a situação que mais convém à
epopéia é caracterizada pelos conflitos do estado de guerra. Na guerra, é a nação inteira que
se põe em movimento estimulada a agir, pois trata de defender a “totalidade” da vertente
natural do seu caráter nacional pressuposta no idealismo do filósofo, evidenciando-a no
herói representativo, que sempre age movido por uma finalidade concreta32. Guerra feita
preferencialmente contra grupo ou nação estrangeira, lembra, criticando a Farsália e a
Henriade como epopéias defeituosas: Lucano e Voltaire tratam de guerras civis que
dividem a totalidade de um povo, não de guerras entre totalidades.
31
Cf. Scarpi, Paolo. Politeísmos: As Religiões do Mundo Antigo. São Paulo, Hedra, 2004, p.84.
32
Hegel, G.W.F. Eshétique (Trad. Intégrale de S. Jankélévitch). Paris, Aubier-Montaigne, 1944, Tome III,
pp.111-112.
21
33
Castelvetro, Lodovico. Poetica d’ Aristotele Vulgarizzata e Sposta. A cura di Werther Romani. Roma-Bari,
Gius. Laterza & Figli, 1978, 2 v., I, p.44.
34
Castelvetro, Lodovico. Op.cit. vol. I, p. 44
22
35
Melo, D. Francisco Manuel de. Epanáfora Triunfante Quinta (Restauração de Pernambuco, 1654). Lisboa,
1660, p. 479.
36
Cf. Bédier, Joseph. Les Légendes Épiques. Recherches sur la formation des chansons de geste.
Paris,Honoré Champion, 1912, III, pp.3-4: “O que se chama a epopéia francesa, ou- com um nome mais
familiar aos homens da Idade Média-as canções de gesta, são setenta ou oitenta romances, todos do século XII
ou do século XIII. Na maioria, são romances históricos, pois põem em cena personagens que viveram
realmente entre o século V e o X, Clóvis ou Carlos o Calvo, Girard ou Carlos Magno, Roland ou Raul de
Cambrai. “
37
Citado por Christian Mouchel. « Les rhétoriques post-tridentines(1570-1600) : la fabrique d’une société
chrétienne ». In Fumaroli, Marc (Dir.). Histoire de la rhétorique dans l’Europe moderne 1450-1950. Paris,
PUF, 1999, p. 440.
23
nenhum respeito da verdade ou da história que ele os mude e os mude ainda à vontade, que
ele os ordene e reordene e transforme da maneira que julgar melhor, mesclando o
verdadeiro com o fictício, mas de modo que o verdadeiro seja o fundamento da fábula,
como o ensina Aristóteles na sua Retórica e Alessandro Piccolomini em seu livro
Estrelas”38.
A narração dos poemas épicos deste livro reedita com maior ou menor fidelidade os
preceitos e as tópicas das definições aristotélicas, latinas e quinhentistas do gênero. Ela
compõe enunciados representantes, no sentido de Castelvetro, verossímeis ou semelhantes
à matéria histórica de momentos da colonização portuguesa: lutas, no século XVI, de
Jorge de Albuquerque Coelho, donatário de Pernambuco e Itamaracá, contra o gentio do
Nordeste, depois de ter vencido infiéis árabes na África e Ásia (Prosopopéia); pacificação e
conquista do território das Minas Gerais por herói ilustre, Albuquerque, no início do século
XVIII (Vila Rica); lutas contra invasores franceses huguenotes, conquista espiritual de
almas de índios por jesuítas, ação heróica de Diogo Álvares Pereira, no século XVI
(Caramuru); louvor do herói Gomes Freire de Andrade como emissário da civilização do
Marquês de Pombal defensora do direito natural das gentes, destruição do monopólio
jesuítico das missões dos Sete Povos do Uruguai, derrota dos índios guaranis pelo exército
português e espanhol na segunda metade do século XVIII (O Uraguai); luta nacionalista de
índios tupis federados contra portugueses no século XVI (Confederação dos Tamoios);
ação do tupi sublime não adequada à honra necessária para o sacrifício ritual que reitera a
originalidade ou nacionalidade de sua raça (I-Juca Pirama).
O preceito que determina a imitação da história pela ficção épica tem sua função
especificada retoricamente pelo docere, a utilidade: a epopéia ensina o amor das virtudes do
herói e seria inverossímil, pouco ou nada persuasivo, propor como modelo de virtude um
herói inexistente e ações que nunca ocorreram. Assim, entre outras razões que se verão
adiante, a fábula épica também é única por tratar de uma ação ilustre ou heróica abstraída
de matéria histórica considerada relevante: a guerra de Tróia; a origem de Roma; um novo
reino sublimado, a conquista de mares nunca dantes navegados; a libertação de Jerusalém
do domínio de infiéis; vitórias católicas contra o gentio e hereges; pacificação das Minas
Gerais; derrota da superstição religiosa, defesa do direito natural e civilização das Luzes
etc.
38
Tasso, T. Op. cit. Lib. III,pp.562-563.
24
As partes de quantidade
A proposição não pode apresentar nem o gênero nem a espécie, mas o indivíduo a
ser cantado, por isso não deve dar notícia de nenhum episódio. Camões foi censurado por
ter falado das “memórias gloriosas daqueles Reis”. Nesse sentido, também a proposição do
Orlando Furioso é considerada defeituosa, pois Ariosto propõe “mulheres, cavaleiros,
armas e amores”, confundindo episódios com a ação principal, segundo preceptistas. Da
mesma maneira, Cláudio Manuel da Costa erraria, segundo o preceito, pois propõe o
resultado da ação do herói, o episódio, no lugar do próprio herói e sua ação:
“Cantemos,Musa, a fundação primeira/Da Capital das Minas,onde inteira/Se guarda ainda,e
vive inda a memória/Que enche de aplauso de Albuquerque a história”.
39
Horácio,Arte Poética. Ed. cit. XV.
40
Candido Lusitano. Arte Poética. Ed. cit. p. 199.
26
encabeçada pelo acusativo mênin ou ‘ira’, como a da Odisséia, pelo acusativo ándra ou
‘varão’. Em particular, porém, o segundo acusativo, virum [ de ‘arma virumque cano’],
seria tradução do ándra da Odisséia, mas o primeiro, arma, não o seria do mênin da
Ilíada”41
Cândido Lusitano afirma que Homero dá o exemplo para todos, quando funde
invocação e proposição, pois a Musa deve preceder o herói por uma razão principal: é mais
religioso ou piedoso confiar as coisas grandes à proteção superior antes de começar o canto
que iniciá-lo dizendo “Eu canto” e só depois pedir auxílio. Outra razão é que a divindade
posta no início torna o poema mais magestoso, honesto e grave. Além disso, a presença do
nume demonstra que o poema canta coisas inexplicáveis que um homem sozinho não
alcança fazer e entender. E, por fim, a Musa confirma a fama do poeta como homem
animado de furor divino. Basílio da Gama realiza o preceito: “Musa, honremos o herói,que
o povo rude/Subjugou do Uruguai...”(O Uraguai, I-6-7)
Quanto à dedicatória, não deve equiparar o poderoso a uma divindade que inspira o
canto, pois o artifício demonstra que a subserviência é excessiva. Como se sabe, ela sempre
deve ser virtuosa. Quanto ao epílogo, não é necessário, mas grandes poetas o usaram, como
Camões: “Não mais, Musa...” Etc.
41
Cf. Martinho, Marcos. “Da Disposição da Eneida, ou do gênero da Eneida segundo as espécies da Ilíada e
da Odisséia”. In Letras Clássicas n. 5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP, 2001 (2005), p. 169
27
naturalis), contando do mais recuado do passado até o presente do narrador, o que foi
seguido por Lucano e muitos poetas, prescreve-se a ordo artificialis ou ordem artificial.
Assim, afirma-se que a Farsália seria muito melhor se Lucano tivesse começado a narração
pondo César e Pompeu em luta na Tessália para depois voltar às coisas sucedidas antes, ao
invés de começar ab ovo, do início da contenda. A principal razão de a ordem natural ser
considerada defeito é o tédio do encadeamento linear de uma coisa depois de outra, como
afirma Scalígero, que propõe a ordem artificial como adequada para manter o ânimo do
leitor suspenso e curioso, coisa que não ocorre com a ordem natural própria do gênero
histórico, que particulariza as ações ocorridas desde o início.
As partes de qualidade
A fábula
A fábula épica é feito ilustre, grande ação de herói, rei ou chefe, que ensina uma
verdade moral com o exemplo espantoso. Narrada como ficção semelhante à história,
exige a ordem artificial (ordo artificialis), o uso de caracteres, pensamentos e costumes
heróicos com palavras de estilo alto ou sublime. Segundo os preceptistas, deve ser grande,
maravilhosa, inteira, una e verossímil.
Figura uma única ação, com começo, meio e fim, diferenciando-se da narração
histórica, que trata de um único tempo ou de todos os acontecimentos que sucederam a um
ou mais homens no decorrer de todo o tempo de sua existência. Na sucessão temporal de
uma vida, lembra Aristóteles, as coisas acontecem umas depois de outras ou
simultaneamente, sem ordem, começo e fim comuns (Poet. 23, 1459ª). Nesse sentido,
Homero é modelo para toda epopéia, porque não trata de toda a guerra de Tróia, mas só
de parte, evitando complicar a fábula com a multiplicidade de eventos diversos que
tornariam impossível memorizá-la.
A grandeza da ação, o caráter e as palavras do herói tornam a fábula maravilhosa
porque com eles o poeta narra o possível fictício, não o verdadeiro histórico. É preciso
28
42
Aristóteles. Retórica 3,9,3,140.
29
Os preceptistas dos séculos XVI, XVII e XVIII insistem em afirmar, no entanto, que
a epopéia é gênero para ser lido. Diferentemente do drama - cuja representação breve e
contínua não permite que o espectador volte ao início- a extensão da fábula passa a ser
definida como função da leitura. Galileu a pressupõe como critério técnico que aplica à
avaliação da qualidade poética da elocução de Orlando Furioso e de A Jerusalém
Libertada. Propondo a pintura como termo de comparação para a disposição e ornatos dos
poemas, Galileu desqualifica Tasso, afirmando que as transições bruscas e o acúmulo de
tropos e figuras agudamente herméticos são responsáveis pela falta de coesão estilística de
A Jerusalém Libertada, que aparece à leitura como pintura "társia", como que feita de
tesserulae, pedrinhas de mosaico, metaforizadas por Cícero no Orador, 149, como lumina,
" luzes". Quanto a Ariosto, afirma que seus versos dispõem os detalhes da ação narrada um
ao lado do outro, como cores cujos limites se esfumam docemente em uma tela. Conforme
Galileu, o leitor lê Orlando Furioso como se andasse por uma longa galeria alta e
iluminada onde, em toda a extensão, vão-se dispondo obras de arte em espaços regulares,
formando um todo claro e unificado. Já o poema de Tasso é literalmente con-fuso, oblíquo
e fantástico 43.
Questão bastante debatida no século XVI é a do princípio da ação da fábula.
Retoma-se o que Aristóteles determina: é princípio da ação aquela parte que não depende
43
“Uno fra gli altri difetti è molto familiare al Tasso, nato da una grande strettezza di vena e povertà di
concetti, ed è che mancandogli bem spesso la materia, è costretto andar rapezzando insieme concetti spezzati
e senza dependenza e connessione fra loro; onde la sua narrazione ne riesce piè presto uma pittura intarsiata
che colorita a olio; perchè essendo le tarsie um accozzamento di legnetti di diversi colori,com il quale non
possono giammai accopiarsi e unirsi così dolcemente,che non restino i lor confini taglienti,e dalla diversità
dei colori crudamente distinti,rendon per necessità le lor figure secche,crude, senza tondezza e rilievo;dove
che nel colorito a olio sfumandosi dolcemente i confini si passa senza crudezza dall’uma all’altra tinta,onde
la pittura riesce morbida,tonda, com forza,e com rilievo. Sfuma e tondeggia l’ Ariosto, come quelli che è
abbondantissimo di parole, frasi,locuzioni e concetti(...).
Cf. Galileo Galilei. Considerazione al Tasso. In Opere Letterarie.Con prefazione di Riccardo Balsamo
Crivelli e note di vari. Milano, Casa Editrice Sonzogno, s/d, p.25-26. Wesley Trimpi propôs que, segundo
Galileu, o poema de Tasso parece uma Kunst-und-Wunderkammer, uma saleta de maravilhas repleta de
singularidades triviais e isoladas que não se encadeiam linearmente, mas devem ser vistas uma a uma,
acumuladas na obscuridade do recinto. Se em Ariosto a poesia é produzida como galeria de pinturas que o
olho percorre linearmente, vendo-as com clareza, de longe e de uma só vez, em Tasso cada minúcia brilha na
obscuridade da câmara para ofuscar o olho, que perde o sentido do todo, enquanto se detém para observar,
de perto e várias vezes, partes e minúcias das partes. Ao contrário de Galileu, Emanuele Tesauro
hipervaloriza Tasso, quando escreve agudamente que a estrela da agudeza engenhosa evita a claridade onde
perde a luz, exigindo a noite hermética dos conceitos enigmáticos para que seu brilho passe sob o arco do
triunfo do cílio admirado do observador. Cf. Trimpi, Wesley- "The early metaphorical uses of SKIAGRAPHIA
and SKENOGRAPHIA" in Traditio (Studies in ancient and medieval history, thought and religion). New
York, Fordham University Press, 1978, vol. XXXIV, pp.412-413.
30
44
Castelvetro, L. Op. cit. pp. 208-209
45
Luzán, I. op.cit, pp.10-11. Cf. Aristóteles, Poética, cap.IV; “ ‘ Peripécia’ é a mutação dos sucessos no
contrário,efetuada do modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos, verossímil
e necessariamente.Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de libertá-lo
do terror que sentia nas suas relações com a mãe,descobrindo quem ele era,causou o efeito contrário”. “O
‘reconhecimento’,como indica o próprio significado da palavra[anagnórisis], é a passagem do ignorar ao
conhecer,que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a
desdita. A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que se dá juntamente com a peripécia, como,
31
por exemplo, no Édipo.” “São estas duas das partes do mito: peripécia e reconehcimento. Terceira é a
catástrofe. Que sejam a peripécia e o reconhecimento, já o dissemos. A catástrofe é uma ação perniciosa e
dolorosa,como o são as mortes em cena,as dores veementes,os ferimentos e mais casos semelhantes”(XI).
46
“ O principal objectivo dos Portugueses, depois da fundação do seu comércio, é a propagação da fé, e
Vênus encarrega-se do sucesso desta empresa. Falando a sério, um maravilhoso tão absurdo desfigura
completamente a obra aos olhos dos leitores sensatos”. Cf. Saraiva, António José. Luís de Camões.2 ed.
revista. Lisboa, Publicações Europa-América, 1972, p. 185.
32
47
Marsilio Ficino escreve: “ A beleza dos corpos não consiste na sombra da matéria, mas na claridade e
graça da forma; não na massa obscura, mas numa espécie de harmonia luminosa; não num peso inerte e
estúpido, mas no número e na medida conveniente. Luz, graça, proporção, número e medida que percebemos
pelo pensamento, visão e audição. É para isso que tende o ardor do verdadeiro amante. O desejo dos outros
sentidos, que arrasta para o material, pesado e informe – contrário à beleza, ao amor- não é o amor, mas um
apetite estúpido, opressor e perfeitamente feio”. Cf. Chastel, André. Marsile Ficin et l’ art. Genève,
Droz&Lille, Giard, 1954, p. 87.
33
Com Saraiva, deve-se dizer que a ação dos deuses da fábula de Os Lusíadas é
funcional, como formulação alegórica que interpreta o sentido das narrativas da história do
reino e da navegação de Vasco da Gama. E, discordando de Saraiva, dizer que não há
contradição de “humanismo pacifista” e “feudalismo bélico” em Camões. Na figuração
alegórica de Vênus ou Tétis, o leitor contempla a forma-matriz platônica, a concepção de
Eros como virtus unitiva do universo, a mesma que se lê na metafísica da luz da Divina
Comédia. A ação de Vênus e dos demais deuses é uma alegoria platonizante e traduz
poeticamente a teologia escolástica que fundamenta, interpreta e orienta o sentido da
fábula. No presente de Camões, a mesma teologia doutrina as virtudes guerreiras ou feudais
que movem o rei D. Sebastião na invasão do Marrocos, justificando as ações dos heróis da
“política católica” como feitos iluminados providencialmente pela luz natural da Graça.
A mesma doutrina teológico-política é figurada como interpretação do sentido da ação
heróica nos poemas luso-brasileiros que emulam Camões nos séculos XVI e XVIII,
Prosopopéia, Vila Rica e Caramuru.
O mesmo uso da alegoria interpretada escolasticamente encontra-se no posfácio que
Torquato Tasso fez para a edição de 1581 de A Jerusalém Libertada:
“A Heróica Poesia, quase animal em que duas naturezas se juntam, de imitação e
Alegoria é composta; com aquela alegra os ânimos e os ouvidos dos homens, e
maravilhosamente os agrada; com esta na Virtude,ou na Ciência, ou numa e noutra os
ensina: e como a Épica imitação outra coisa nunca é senão semelhança, e imagens de ação
humana, assim costuma a Alegoria dos épicos da humana vida ser a figura. Mas a imitação
observa as ações do homem, que estão aos sentidos exteriores submetidas, e em torno
dessas principalmente esforçando-se para representá-la com palavras eficazes. E
expressivas, e aptas a pôr claramente frente aos olhos corporais as coisas representadas;
considera os costumes ou os afetos delas, ou os discursos do ânimo enquanto esses são
intrínsecos, mas somente quando se ouvem fora, e na fala e nos atos e nas obras
manifestando-se acompanham a ação. A Alegoria ao contrário refere-se a paixões, e às
opiniões e aos costumes, não só quando eles aparecem, mas principalmente no seu ser
intrínseco, e mais obscuramente o significa com notas (por assim dizer) misteriosas, e que
apenas dos conhecedores da natureza das coisas podem ser plenamente compreendidas.48”
48
Tasso, Torquato. Allegoria del Poema. Tratta da vero Originale,com aggiunta di quanto manca nell’altre
Edittioni,com l’ Allegoria dello stesso Autore. Ferrara, Heredi di Francesco de’ Rossi, 1581, pp. 161-166.
34
que associa as ações da fábula aos “sentidos exteriores” ou “olhos corporais”, e a alegórica
ou “intrínseca”, feita apenas por conhecedores da natureza verdadeira das coisas, que a
lêem com “olhos intelectuais”.
Alegoricamente, o exército de vários príncipes e soldados cristãos de A Jerusalém
Libertada significa o “homem viril” ou o varão composto de alma e corpo. Sua alma não é
simples, mas distinta em muitas e várias potências. Jerusalém, cidade fortificada posta em
áspera região montanhosa para a qual convergem todas as ações do exército cristão,
significa “a felicidade civil” que convém ao homem católico contra-reformado. Tal
felicidade é um bem muito difícil de conseguir, acima do fatigante jogo da virtude; para ela
se voltam, como última meta a ser atingida, todas as ações do homem político. Gofredo de
Bouillon, capitão do exército cristão, está no lugar do “intelecto”, particularmente do
intelecto que considera não as coisas necessárias, mas as mutáveis, que podem variamente
acontecer. Por vontade de Deus e dos Príncipes é eleito capitão da empresa guerreira,
porque Deus e a natureza constituem o intelecto senhor das outras virtudes da alma e do
corpo, comandando aquelas com poder civil e a este com império real. Assim, Rinaldo,
Tancredi e os outros Príncipes guerreiros estão no lugar das outras potências do ânimo
etc.Gofredo não ataca Jerusalém para obter o poder temporal sobre ela, mas para que nela
se celebre o culto divino e o Santo Sepulcro possa novamente ser visitado por peregrinos
cristãos. Por isso mesmo, fecha-se o poema com a adoração de Gofredo “ para demonstrar
que o intelecto cansado das ações civis deve finalmente repousar nas orações e na
contemplação dos bens da outra vida beatíssima e imortal” 49
Os preceptistas dos séculos XVI, XVII e XVIII determinam que a fábula épica
não deve imitar matéria histórica muito moderna nem antiga em demasia. Para inventar o
maravilhoso, o poeta deve fazer com que o herói principal viva experiências sobrenaturais;
se a matéria histórica é muito recente, caso das épicas luso-brasileiras dos séculos XVI e
XVIII, principalmente Prosopopéia, Vila Rica e O Uraguai, sua memória está fresca e não
dá lugar para ficções. Se a matéria é excessivamente antiga, o poeta se vê obrigado a figurar
costumes estranhos e desconhecidos do presente do leitor, que não os reconhece e julga o
poema inverossímil. Como diz Cândido Lusitano:
49
Tasso, T.Allegoria del Poema, ed. cit. p. 166.
35
“No primeiro defeito, segundo Garcez Ferreira, incorreu Camões, porque tomou por
assunto uma ação que sucedera cinqüenta anos antes que ele a principiasse a descrever; e
no segundo vício caiu Gabriel Pereira, e Miguel da Silveira, este escolhendo para a ação de
seu Poema a restauração do Templo de Jerusalém por Judas Macabeu, e aquele a edificação
de Lisboa por Ulisses; o que tudo é de tanta antigüidade,como sabe qualquer”50
Quanto à duração da ação da fábula, a maioria dos preceptistas propõe que deve
durar um ano, pois a epopéia é obra para ser lida e deve ser extensa. Camões, por exemplo,
segue Virgílio, fazendo decorrer um ano entre o princípio da narração, com Vasco da Gama
já em alto mar, e o final, em que o herói retorna para Portugal com as notícias da Índia.
Quanto ao final feliz, é a verossimilhança que o determina. Se a ação heróica
pudesse terminar comicamente com a desonra do herói, toda a fábula seria improvável e
inverossímil.
Episódios da fábula
O episódio é parte da fábula, devendo ter relação com o assunto do poema. Mais
extenso que o episódio cômico e trágico, é uma seqüência narrativa paralela da ação
principal dotada de começo, meio e fim, mas sem concluir o todo da fábula narrada pelo
poema. Por outras palavras, o episódio é funcional: situação narrativa ou dramática,
amplifica e diversifica a ação narrada como ornato e exemplo que tornam o poema mais
variado e versátil, enquanto relaciona o que veio antes com o que vem depois, para que o
herói continue agindo.
Pode-se compor o episódio como exposição de uma ação ou costume com os quais se
comparam o costume e a ação do herói. Por exemplo, uma ação que lembre ao leitor que o
herói age como um chefe antigo que conduzia muitos homens e não dormia a noite toda,
pois ocupava parte da mesma para a vigília em que examinava os assuntos que haviam de
ser executados na manhã da batalha.
O episódio também deve prever a verossimilhança do que é pensado ou tramado
pelo personagem sujeito do enunciado: na guerra, o herói pensa em coisas guerreiras,
50
Cândido Lusitano, op.cit. p. 175. As epopéias aqui publicadas tratam de matérias recentes: Prosopopéia
narra feitos dos donatários de Pernambuco e Itamaracá, Jorge de Albuquerque Coelho e Duarte de
Albuquerque Coelho, ainda vivos quando foi composta; Vila Rica imita ações passadas no início do século
XVIII; o Uraguai refere acontecimentos recentíssimos das guerras guaraníticas nos Sete Povos das Missões.
Caramuru e Confederação dos Tamoios tratam de matérias do século XVI. Em “I Juca Pirama”, a matéria é
fictícia.
36
soldados, víveres, armas, honra, lutas contra o inimigo etc., não em coisas imediatamente
relacionadas com a paz da res publica.
É comum o narrador épico compor o episódio como história narrada por
personagens de uma história contada por personagens da história que narra. O embutimento
virtualmente ilimitado de histórias dentro da história torna a narração épica extremamente
catalisável, no sentido da “expansão” descritivo-narrativa da seqüência dado ao termo por
Barthes, principalmente porque o acúmulo de ações encaixadas que expandem com
variedade as ações narradas tem a função de compor exemplos e testemunhos que tornam
crível ou verossímil, com a autoridade alegada, a fábula principal contada pelo narrador.
Aqui, o leitor está frente ao “tempo frio” da narração épica: o narrador tem todo o tempo do
mundo para contar, pressupondo o ócio, não o tempo do negócio. No entanto, o acúmulo
desproporcionado de episódios secundários desvia a atenção, pois também torna a narração
prolixa e confusa. Prescreve-se o uso de episódios como antídoto do tédio; logo, o próprio
uso não pode ser tedioso, mas artificiosamente calculado segundo o fim, a produção da
maravilha eficaz que diverte e ensina.
O pensamento
Como foi visto, a epopéia é narrativa e dramática: imita narrativamente uma ação e
simultaneamente põe em cena personagens que falam, apresentando-se diversamente uns
dos outros, conforme seu caráter e pensamento particulares. É por meio das diferenças de
caráter e de pensamento que as ações são qualificadas. Do que decorre, segundo o preceito
retórico, que as duas causas naturais que determinam as ações do herói são seu pensamento
e seu caráter. Ambos são produzidos como desenvolvimento poético do mythos (mito), uma
imitação de ações, entendendo-se por “caráter” a qualidade do herói e, por “pensamento”, o
que diz para demonstrar algo valoroso, manifestando a sua decisão heróica51.
51
Aristóteles, Poética VI,30.
37
circunstâncias de pessoa, como aspecto físico, nome, origem familiar, pátria, nação, idade,
sexo etc., expostas por Quintiliano na Instituição oratória. Além de Quintiliano, os lugares
demonstrativos do elogio são buscados pelos poetas épicos também em textos de Cícero e
da Retórica a Herênio.
O costume
bruscamente para comover o espectador com o medo e a piedade. A pintura dos hábitos
visa o útil, ou seja, elevar o leitor com virtudes. Costuma-se prescrever quatro qualidades
dos costumes do herói: bondade, conveniência, semelhança e igualdade.
Não se trata de apenas figurar qualidades morais dos costumes, pois a epopéia não é
tratado de ética nem sermão; antes de tudo, como é poesia, trata-se de figurar qualidades
morais poeticamente, como pintura verossímil e decorosa de qualidades morais dos
costumes. Para serem poéticas, devem adequar-se à fábula, ao caráter e pensamento do
herói e mais personagens. Luzán lembra que seriam maus os costumes de Mezêncio se
Virgílio, que no início do poema o figura como ateu e tirano (contemptor deum Mezentius),
depois o fizesse religioso e respeitoso dos deuses. Essa bondade moral faria com que os
costumes de Mezêncio fossem poeticamente incongruentes, maus antes de tudo por serem
contrários às regras da arte porque mal imitados. Logo, o poeta erra essencialmente quando
figura os costumes com inépcia técnica, não importa que sejam bons ou maus.
poeta. Mas, como se viu, as epopéias católicas prevêem o Santo Ofício da Inquisição, que
limita a autonomia ficcional da poesia com a censura teológico-política.
O herói
O ditador de Alba Longa, Mécio Fufécio, diz ao rei de Roma, Tulo Hostílio, que os
deuses dispuseram dois grupos de trigêmeos iguais em beleza, força e coragem, para serem
os campeões das duas cidades num duelo que decidirá qual delas será dominada. Os três
Horácios romanos e os três Curiácios albanos são primos-irmãos, pois suas mães são irmãs,
filhas do albano Sicínio. Tulo Hostílio diz que é boa a idéia do duelo, mas encontra uma
objeção de princípio: é contra as leis divinas que primos lutem uns contra os outros. Se seus
chefes (duces) determinam que cometam homicídios sacrílegos, a contaminação produzida
52
O sexto capítulo da Ynglingasaga descreve os berserkir deste modo: “Quanto a seus homens,iam sem
couraça,selvagens como cães e lobos.Mordiam seus escudos e eram fortes como ursos e touros.Matavam os
homens e nem o ferro e o aço podiam nada contra eles.A isso chamavam de ‘furor de berserkr”. Cf. Dumézil,
El Destino del Guerrero, ed. cit. p.171. Tácito (Germania,38,4) refere-se aos ulfhednar, “homens com pele de
lobo”que afirmavam a metamorfose usando peles para causar terror nos adversários
53
Dumézil, op.cit. p. 130.
40
pelo derramamento do sangue da família recairá sobre os reis responsáveis e sobre suas
cidades. Mécio Fufécio afirma que, para evitar a mácula, basta que os combatentes sejam
voluntários; também diz que já consultou os Curiácios e que, entusiasmados, declararam
ter escolhido lutar por Alba Longa. Tulo Hostílio se dirige aos Horácios, deixando-os livres
para decidir; submetem a questão ao seu pai, que também os libera.. Então, o primeiro deles
diz:
“São os Curiácios, não nós, que desfizeram primeiro o vínculo familiar com seus
primos; agora que o destino o quis assim, aceitaremos; tendo em vista que os Curiácios
apreciaram menos o parentesco que a glória, nós, os Horácios, não teremos a família por
bem mais precioso, mas a valentia”54
Os heróis decidem lutar porque o destino (fatum) o determina. Assim como os
Curiácios, que escolheram a glória, os Horácios escolhem a coragem que os faz furiosos.
Segue-se a narrativa da luta em que o primeiro e o segundo dos Horácios morrem e os três
Curiácios ficam feridos. O Horácio sobrevivente finge fugir; com o estratagema, separa os
Curiácios, persegue-os pelo campo do duelo e os mata um a um. Ainda possuído pelo furor
físico e sobrenatural do combate, assassina a irmã, noiva de um deles, que lamentava sua
morte publicamente: “romana de raça e nome, albana de coração, palavras e lágrimas”, diz
Dumézil55.
O herói salva Roma da servidão, mas comete um crime que mancha a ordem
natural. Associada ao religioso-jurídico, a ordem natural exige purificação. Os litores
declaram-no culpado e o condenam à morte; mas seu pai implora por sua vida e recebe
ordem de purificá-lo pecunia publica, às expensas da cidade. Mandando estender uma viga
na horizontal, cobre a cabeça do filho e o faz passar sob o jugo.
Passar sob a viga significa a aceitação das leis humanas, regressando do
sobrenatural ou do excepcional da fúria guerreira para o humano.A lenda desse Horácio
vencedor, furioso, criminoso, culpado e purificado era o mito da cerimônia que ocorria
anualmente no dia primeiro de outubro, na Roma primitiva, perto dos altares de Jano
Curiácio e Juno Sororia. A data marcava o término da estação militar, quando os guerreiros
voltavam do domínio do Marte furioso para o Mars qui praeest paci, o Marte que preside a
paz, Quirino,deus da terceira função. Para isso, eles se dessacralizavam, limpando-se das
54
Dumézil, op. cit. pp. 36-37.
55
Dumézil, op.cit. p.37.
41
56
Tito Lívio, História de Roma, I,28,9
42
57
“Tu,Indra, hábil perseguidor das faltas,como a espada os membros, cortas as falsidades de quem viola as
regras de Mitra e de Varuna como a gente viola a aliança da amizade. Contra os maus que violam Mitra e os
pactos, e a Varuna,contra esses inimigos, ó macho Indra,aguça uma morte forte,masculina,vermelha. Como a
pedra lançada do céu,golpeia com teu furor mais ardente a quem engana a amizade!” (Rgveda,X,89)
58
Cf. Homero. Odisséia. Trad. de Odorico Mendes. Edição de Antonio Rodrigues Medina. São Paulo,
EDUSP, 2000, p.65.
43
Como guerreiros, os heróis épicos têm um posto cósmico distinto e distintivo; não
podem desconhecer a ordem natural das coisas, pois sua função é justamente guardá-la:
“Mas, para garantir esse ofício, devem primeiro eles mesmos possuir, cultivar
qualidades que se assemelham demasiadamente aos defeitos de seus adversários. Na
batalha mesma, para evitar a derrota certa, devem responder à audácia, à surpresa, às fintas,
às traições, com operações do mesmo estilo, só que mais eficazes; ébrios ou exaltados,
devem pôr-se em um estado nervoso, muscular, mental, que multiplica e amplia seus
poderes, que os transfigura, mas também os desfigura, tornando-os estranhos no grupo que
protegem; e, sobretudo, consagrados à Força, são as vítimas triunfantes da lógica interna da
Força, que só se prova transpondo limites, ainda os próprios, ainda os da sua razão de ser, e
que não sossega com ser nada mais forte frente a tal ou qual adversário, em tal ou qual
situação, senão sendo forte em si, a mais forte- superlativo perigoso em um ser de segundo
59
“...o verdadeiro assumpto da Epopeia he huma acção heroica,só propria daquelles grandes homens,que
pelas suas singulares emprezas merecerão o nome de Heróes.Esta acção como heroica distingue-se da
Tragica, e da Comica: porque a Tragedia só imita huma acção illustre, e a Comedia huma ordinaria.”
Cf. Horácio. Arte Poetica de Q.Horacio Flacco. Traduzida, e Illustrada em Portuguez por Candido Lusitano.
Lisboa, Typographia Rollandiana, 1833, p. 58.
60
Cf. El Cid . In Tesoro de los Romanceros y Cancioneros Españoles Históricos,Caballerescos,Moriscos y
Otros Recogidos y Ordenados por Don Eugenio de Ochoa. Paris, Baudry,Librería Europea, 1882,p. 3.
44
61
Cf. Dumézil, “Fatalidades de la función guerrera”. In El destino del guerrero, ed.cit. pp. 131-132.
Comparando a ação de Indra e Varuna, Dumézil propõe que, na ação excessiva do guerreiro, encontra-se a
oposição da moral do Herói à moral do Soberano, em especial nas tradições hindus, que atribuem a Indra o
mérito de haver salvo in extremis vítimas humanas ou de ter substituído pelo ritual em que morre um cavalo o
ritual varuniano de consagração real manchado pela prática ou pela lembrança de sacrifícios humanos. O
guerreiro Indra e o bruxo Varuna ou, em outro plano, o soldado Indra e o polícia Varuna atentam igualmente,
quando faz falta,contra a liberdade e a vida de seus semelhantes, mas cada um opera segundo procedimentos
que repugnam ao outro.Assim, quando se coloca ao lado ou acima do código, o guerreiro se arroga o direito
de salvar e de quebrar os mecanismos da justiça rigorosa: em uma palavra, o direito de introduzir no
determinismo das relações humanas o milagre que é a humanidade . Lembre-se, na Ilíada, a posição dura de
Agamêmnon, semelhante à de Varuna, quando manda sacrificar a filha para que os ventos soprem.
45
Luzán catolicamente, ser valente com prudência, constante com magnanimidade, obediente
aos preceitos dos deuses, observante das cerimônias de sua religião, afável e benigno62. Por
exemplo, em Orlando Enamorado (II,I,45-51), Sobrino, que passa para a França com os
sarracenos de Agramante, é contrário à expedição, mas segue seu senhor para demonstrar
que não se opõe ao seu desígnio por vileza de ânimo. Em Orlando Furioso, propõe-se
cristãmente que a vida quase sempre é mais infeliz que alegre( IV,I), pois o mal supera o
bem, o herói e a dama podem ser miseráveis (X,1-5) e o benfeitor recebe ingratidão
(XXI,1). Mas o herói e a heroína sempre têm como conforto a pureza de sua crença no Bem
etc.
Obviamente, nem todas essas virtudes podem ser achadas em todos os heróis
épicos, pois seria contrário à verossimilhança acumular em um mesmo personagem todos
os caracteres. Enéias e Aquiles têm valor heróico, mas não o mesmo: o de Aquiles está
misturado com arrojo, crueldade, sanguinolência e cólera; o de Enéias, com piedade, doçura
e afabilidade. Assim, Le Bossu prescreve que a unidade do caráter do herói deve ser
composta com juízo. A unidade faz com que seja sempre o mesmo em todas as ocasiões,
pois uma qualidade do seu caráter sempre deve dominar todas as outras.
Curtius caracterizou o caráter do herói homérico, distinguindo-o do latino. Propõe
que, na Ilíada, observa-se a oposição complementar de dois conceitos ou princípios, a força
guerreira e a sabedoria. Aquiles é guerreiro valoroso, mas bruto irrefletido e cruel quando
profana o cadáver de Heitor, entre outras coisas. O que faz dele um herói épico é sua moira
ou destino: a vida breve de guerreiro bruto com glória e fama imorredouras. Mas falta-lhe
uma virtude fundamental, a sabedoria, figurada em Nestor. No caso da épica grega, a suma
das virtudes heróicas é o equilíbrio de força guerreira e entendimento sábio das coisas. É
Ulisses, provavelmente, quem funde o valor guerreiro à prudência sábia ou astuta.
A virtude heróica desdobra-se em formas fundamentais: força guerreira,
correspondente à coragem e aos grandes feitos de armas; sabedoria, correspondente à
experiência, à prudência, ao bom conselho e à eloqüência. Tais formas também tipificam
personagens secundários: a força guerreira aparece em suas virtudes marciais como
conhecimento da arte militar, destreza no combate e perícia em armas específicas. A
sabedoria corresponde à experiência do ancião, como Nestor; à sabedoria e à astúcia do
62
Luzán. Op. cit. p.15
47
63
Curtius, Ernst Robert. “Héroes e Soberanos”. In Literatura Europea y Edad Media Latina. México,Fondo
de Cultura Económica,1998,2 v., I, pp. 246-249.
64
Curtius,op.cit.p.251.
65
Tasso, T. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introd. e notas de Marco
Lucchesi.Fixação do texto e ensaios de Alexei Bueno e Pedro Lyra. Rio de Janeiro, Topbooks, 1998, p.113.
48
que necessariamente vai viver pouco. Na Eneida, Enéias tem que necessariamente
abandonar Dido, para dar origem à raça que destruirá Cartago etc.
66
Zumthor, Paul. “Les Chansons de Geste”. In Essai de poétique médiévale. Paris, Seuil, 1972, p. 455.
Zumthor trata da composição heteróclita da canção de gesta lembrando que justapõe episódios de tom e de
estilo diferentes, digressões, contradições de detalhes etc. Essas características se explicam não pela
incompetência dos poetas, mas pelo caráter exclusivamente oral que o gênero teve até a metade do século XII.
67
Matias Fernandes é celebrado em Muhuraida ou O Triumfo da Fé 1785, epopéia de Henrique João Wilkens
cuja matéria histórica é a pacificação dos índios mura da Amazônia no século XVIII. Cf. Wilkens, Henrique
João. Muhuraida ou o Triumfo da Fé 1785. Manaus:Biblioteca Nacional/UFAM, Governo do Estado do
Amazonas, 1993,p. 139.
49
68
Osório, D. Jerônimo. Tratados da Nobreza Civil e Cristã. Tradução, introdução e anotações de A.
Guimarães Pinto. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 141.
69
Santo Tomás de Aquino. Summa theol. III a, 57,5
50
70
Osório, D.Jerônimo.Op.cit. p.119.
51
Enquanto vai atravessando o mar do poema, é emissário da monarquia cristã que, desde o
século XII, atravessa virtuosamente o mar alegórico das dificuldades da história interna do
reino e das guerras contra o Islão e Castela. A chegada à Índia e a derrota de Baco
reconfirmam a finalidade superior, providencialmente orientada desde Ourique, da
condução do reino pelas dinastias de Borgonha e Avis, que o levaram e levam com a
concórdia e a paz do "bem comum" pelos mares das dificuldades da história. Assim,
também o heroísmo de Vasco é o da interpretação católica da Ética aristotélica corrente em
Portugal no presente de Camões: toda virtude cristã é heróica.
É útil lembrar que, na “política católica” da monarquia portuguesa, a identidade
metafísica de Deus é sempre posta como Causa Primeira do tempo e, portanto, de todos os
seres e eventos finitos da natureza e da história. Por serem finitos, existem unidos à matéria
criada como análogos da substância divina de que são efeitos e signos. Participam em sua
Causa por atribuição e proporção, relacionando-se uns com os outros pela semelhança que
os une e define como seres criados. Evidentemente, nenhum deles tem relação de igualdade
com Deus nem pode tê-la, mas todos apresentam proporcionalidade entre a sua natureza
interior e a substância metafísica incriada. Nos seres e acontecimentos históricos, Deus é
Ato ou atualidade da analogia de proporcionalidade, funcionando como o termo comum
que inclui toda a criação na semelhança. O conceito indeterminado da identidade divina
também implica a analogia de proporção, que anima os seres e os eventos como diferenças
hierarquizadas. Nelas se acha a proporção de uma medida analógica comum, que os
especifica e particulariza como participação de vários graus na substância metafísica.
Catolicamente, a ação da fábula desses poemas ocorre entre dois limites negativos
ou duas exterioridades figuradas como falta de Bem ou ameaças à integridade da soberania
do “corpo místico” do reino e das virtudes fecundas da verdadeira fé e da verdadeira
política: de um lado, a selvageria e a barbárie de gentios desconhecedores da religião de
Cristo, índios, negros e orientais da América, África e Ásia, aos quais se dá combate em
“guerras justas”, quando o Livro não é eficaz como a Espada71; de outro, a heresia de
infiéis, tradicionalmente muçulmanos e judeus, agora também maquiavélicos, luteranos e
calvinistas, cuja destruição a ferro e fogo é celebrada. Pondo em cena as categorias
teológico-políticas das doutrinas do poder monárquico correntes em Portugal
principalmente depois do Concílio de Trento, os poemas as aplicam como interpretação do
sentido superior da fábula, propondo que o herói e seus feitos são reflexos proporcionados
da Razão eterna, signos da Providência divina, figuras proféticas dos futuros contingentes.
Quanto aos dois poemas épicos de românticos do século XIX, Gonçalves de
Magalhães e Gonçalves Dias, subjetivam psicologicamente a narração e substituem o
maravilhoso antigo pela ideologia nacionalista não menos mitológica e teológica, pintada
no índio-alegoria da originalidade política do país novo em que o herói é um burguês que
entra em casa pela porta da cozinha.
71
Cf. Cláudio Manuel da Costa, Soneto LXXXIII. In Obras Poéticas (1768): “Polir na guerra o bárbaro
Gentio,/Que as leis quase ignorou da natureza”.
53
do juízo do leitor, que parece vê-las, não lê-las. A evidentia do gênero épico deve ser, por
isso, magnífica ou sublime, prescrevendo-se que as palavras elevadas devem ser usadas
como correspondência às coisas elevadas da ação, para produzir o efeito visualizante da
maravilha verossímil e decorosa. O poeta é pintor. Como em torno de cada virtude pulula a
infinidade de vícios, também o desenho e a cor do estilo sublime compõem o delicado
equilíbrio da forma ameaçados pelos erros que a mancham e deformam com a
indeterminação do efeito, caso do inchado pomposo e do baixo pedestre, ambos vulgares e
defeituosíssimos.
Tasso lembra que o magnífico, o temperado e o humilde do heróico não são os
mesmos quando usados em outros gêneros. O humilde da epopéia não pode ser o humilde
do cômico, como acontece em Ariosto, quando diz: “Coveniente ad uom fatto di
stucco.../Che tutta via stesse a parlar com essa/Tenendo l’ali basse come il cucco”72,
usando palavras popularescas que inclinam o discurso segundo a baixeza cômica pela coisa
desonesta que representam. Da mesma maneira, o estilo medíocre da lírica, como “La
verginella è simile a la rosa”73, é inconveniente à épica.
O estilo heróico deve situar-se entre a gravidade simples do gênero trágico e a beleza
florida do lírico, prescrevendo-se que o poeta o incline na direção da simplicidade trágica
quando, imitando dramaticamente, faz personagens falar em primeira pessoa. Exemplo
magnífico é toda a fala de D. Inês de Castro, em Os Lusíadas, simultaneamente simples,
grave e trágica,como convém a dama de sua posição que enfrenta a crueldade de homens
“feros, e cavaleiros”. Deve fazê-lo, no entanto, sabendo que o estilo do trágico é grave,
porém menos magnífico que o épico. Quando fala na epopéia, o poeta o faz no estilo que
Camões pede às musas: “Dai-me hua furia grande e sonorosa,/E não de agreste avena ou
frauta ruda,/Mas de tuba canora e belicosa”(I,5). A tragédia trata de afetos que não existem
na epopéia. Por causa da verossimilhança, exigem pureza, propriedade e simplicidade dos
conceitos, uma vez que os personagens raciocinam e falam em cena cheios de medo, horror
ou misericórdia que, se forem figurados com muito ornamento, convencem menos, pois
desviam a atenção do público para o brilho e a agudeza das palavras, diminuindo o efeito
patético do afeto. Além disso, na tragédia o poeta nunca fala diretamente, mas inventa
72
Tasso, T. Op.cit. p. 32( grifos meus)
73
Tasso, idem ibid. p. 33
54
personagens com dicções particulares, para que a imitação dos seus caracteres seja
verossímil. Quando trata de matérias morais ou patéticas, o épico deve aplicar a
simplicidade trágica; e, quando os personagens falam em primeira pessoa, deve também
aproximar-se da beleza da lírica, mas sem a mediocridade da mesma, usando de um tom
adequado à magnificência. Lembre-se novamente a fala de Inês de Castro.
Aristóteles, Demétrio de Falero e Dionísio Longino dizem muitas coisas sobre a
magnificência, da qual Hermógenes distingue seis espécies: abundância, solenidade, brilho,
aspereza, veemência e vigor74. Essas espécies de magnificência são obtidas por meio de
conceitos, palavras e composição de palavras e frases.
A magnificência dos conceitos ocorre quando são de coisas grandes: Deus, o mundo,
batalhas, terrestres e navais, os heróis. Tasso especifica as figuras de sentença que a
efetuam, fazendo as coisas e as circunstâncias parecer grandes e solenes, como a
amplificação e a hipérbole, que elevam a coisa acima do verdadeiro; as reticências, que
calam com certa aspereza a coisa enquanto a sugerem, fazendo com que a imaginação do
destinatário a aumente; a prosopopéia, como ficção de pessoas de autoridade e reverência
que dão autoridade e reverência às coisas representadas.
Para comover o ânimo do leitor, o estilo magnífico deve usar palavras peregrinas,
distantes dos usos populares, brilhantes e veementes75. São palavras próprias, estrangeiras,
translatas, proporcionadas, fictícias. Translatas são metáforas que transferem o gênero para
a espécie, por exemplo quando o poeta dá o nome de “besta” ao cavalo; ou a espécie para o
gênero, por exemplo quando usa “armas” valendo por “guerras”; da espécie para a espécie,
quando diz que “o cavalo voa”. Ou quando usa palavras por analogia de proporção: a
mesma proporção que há entre “dia” e “pôr-do-sol” existe entre “vida” e “morte”, como em
Dante: “Che parea il giorno pianger che si more”. Palavras fictícias são as que nunca
foram usadas, como neologismos inventados pelo poeta: como taratantara, do poema de
Ênio, para imitar o som de instrumentos militares.
Como o sublime decorre de palavras translatas e de mais usos não-próprios de
palavras, seu efeito é ameaçado pela obscuridade, pois a magnificência épica deve ser
clara. Para evitar obscuridade, lembra-se que Homero e Virgílio não sobrecarregam o estilo
74
Cf. Hermógenes. Sobre los tipos de estilo. Trad. de A.Sancho Arroyo.Sevilha, Publicaciones de la
Universidad de Sevilla, 1991.
75
Tasso,T. Op.cit. p. 34.
55
com palavras desconhecidas, prescrevendo-se que o poeta relacione palavra translata com
palavra própria em um composto que impede o fechamento semântico da palavra figurada
e, simultaneamente, a vulgaridade da palavra de sentido próprio. Além disso, o poeta deve
evitar cuidadosamente palavras metafóricas cujo som possa lembrar o sentido próprio de
coisas plebéias e vulgares, também evitando transferir o significado de coisas menores para
maiores, como o som da tuba para o trovão, mas, fazendo o contrário, deve ir das coisas
maiores para as menores, atribuindo o som do trovão ao som da tuba.
Nos séculos XVI e principalmente no XVII, o discurso poético é engenhosamente
agudo, o que determina por exemplo que, ao representar a paixão amorosa do herói, o poeta
divida a oração que forma o verso em partes simétricas, que se espelham como antíteses e
quiasmas. O artifício calculadíssimo da sintaxe pode esfriar a intensidade do amor
declarado, fazendo com que a paixão impetuosa do personagem pareça mais afetação de
amor que outra coisa. Logo, o poeta também deve ser cuidadoso com as imagens ou
similitudes. É conselho dos retores que, onde a metáfora pode parecer muito rebuscada, seja
convertida numa similitude, como faz Camões no episódio da morte de D. Inês de Castro,
no canto III de Os Lusíadas, construindo a similitude - “assim como” – pela comparação de
“bonina” e “donzela”:
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, candida e bela,/
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta a pálida donzela (III,134).
adequada à epopéia que o terceto dantesco, pois faculta jogos fônicos que reforçam a
aspereza ou o brilho efetuadores da evidentia. Quando Ariosto narra a ação mágica de
Alcina, fada que pesca sem redes e sem anzóis, a sonoridade, principalmente as oposições
de fonemas como /v/-/b/ e /i/-/o/, efetua a agitação dos peixes que vêm para a praia:
Veloci vi correvano i delfini
vi venia a bocca aperta il grosso tonno;
i capidogli coi vecchi marini
vengon turbati dal lor pigro sonno;
Muli, salpe,salmoni e coracini
nuotano a schiere in più fretta che ponno;
pistrici,fisisteri,orche e balene
escon dal mar con mostruose schiene(Orl.Fur.VI, 36).
Ou Camões: “Dos cavalos o estrépito parece/Que faz que o chão debaixo todo
treme”(Os Lus. VI 64). Virgílio fornece modelos para essa imitação sonora. Por exemplo,
quando pinta o galope de cavalos: “quádrupedánte putrém sonitú quatit úngula cámpum
(En.VIII 596) (“o casco sonoro dos quadrúpedes martela a areia do campo”); ou quando
descreve com espondeus os cíclopes que levantam os grandes braços com força e
vagarosamente: “illi inter sese magna vi bracchia tollunt”(En. VIII 452);e, com versos
extremamente musicais: “devenere locos laetos et amoena vireta/fortunatorum nemorum
sedesque beatas” (En.VI 638-9) (“chegaram aos lugares ledos e amenas veredas /das
florestas dos felizes, mansões beatas”).
A amplitude dos oito versos da oitava rima, as inversões, como os hipérbatos
construídos principalmente pelo uso de verbos fora do lugar usual, produzem
magnificência. Compondo a proposição, Camões formula o objeto direto “As armas e os
barões assinalados” como o primeiro verso de Os Lusíadas. Depois de 14 versos, ou seja,
depois de 130 sílabas métricas intermediárias, escreve o verbo desse objeto, “espalharei”,
acrescentando-lhe o modo como difunde a fama dos heróis e suas causas, eficiente e
formal: “Cantando espalharei por toda parte,/Se a tanto me ajudar o engenho e arte” (Os
Lus. I,15). A pouca amplitude do período determinada pelo uso de versos emparelhados é
uma das razões de limitação da magnificência épica, como ocorre nos de Vila Rica que,
imitando o prosaísmo da Henriade, de Voltaire, obrigam Cláudio Manuel da Costa a
compor enunciados sem largueza e extensão suficientes para imitar grandes ações.
57
Como a epopéia trata de tipos elevados, deve tirar lição de suas ações para o leitor.
Dois elementos narrativos são fundamentais para isso na sua disposição e elocução, a
sentença e a gnome. A sentença ( grego dianoia, latim sententia) é um axioma moral e
instrutivo; sua finalidade é o docere, o útil, exortando o destinatário a algo ou dissuadindo-
o de algo. Quando condensada, a sentença é chamada gnome. O uso é necessário para a
elevação moral do destinatário, mas o poeta facilmente fica afetado, se fala como pregador
ou professor. E, quando excessivamente gnômico, fica obscuro, contradizendo o fim do
gênero, a maravilha das grandes ações. Em seu Traité du poème épique (1675), Le Bossu
propõe que as agudezas são para o Agradável o que as sentenças são para o Útil. Na
epopéia, as sentenças comunicam “preceitos morais”; mas, por serem “morais”, esfriam a
intensidade magnífica do pathos heróico com a gravidade inoportuna com que pretendem
ensinar. Poetas maiores, como Virgílio e Camões, preferem usá-las dramaticamente: eles as
põem na boca de personagens, como que lhes atribuindo a responsabilidade por elas:
“Aprendei, ó mortais escarmentados com os castigos de Deus, a ser justos e temê-lo”.
Virgílio sabia que, sendo muito elevada, pareceria coisa de moralista se fosse dita pelo
narrador da Eneida. Por isso, faz o narrador dizer que é uma fala de Flégias, na qual a
moralidade aparece como que dissimulada: “Está sentado e o estará eternamente o infeliz
Teseu; e Flégias, ainda mais infeliz, avisa e admoesta a todos dizendo com voz alta:
aprendei, ó mortais,em meu escarmento, a ser justos e a temer os deuses” .
Poetas ineptos que pretendem ser úteis sem arte, como Gonçalves de Magalhães,
fazem o narrador dizer sentenças cívicas que aborrecem o leitor, ao invés de elevá-lo: “Ele,
que aqui nasceu,nos lega o exemplo/De como esses dous bens amar devemos/E quando
alguma vez vier altivo/Leis pela força impor-nos o estrangeiro/Imitemos a
Aimbire,defendendo/A honra, a cara pátria, e a liberdade”. A ideologia nacionalista de
Magalhães é ruim poeticamente, antes de tudo, porque é a própria imitação épica que falha
em A Confederação dos Tamoios (1856), como Alencar demonstrou com minuciosa razão
nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, indicando o romance como o gênero mais
adequado aos novos tempos.
Tão sério como esse, outro defeito da epopéia é o ampuloso ou o dilatado
produzido como inchação que, pretendendo a magnificência, cai aquém do elevado, perto
do ridículo ou já ridículo. O ampuloso nasce de conceitos muito distantes do verdadeiro:
58
Tasso dá como exemplo dizer que na pedra arremessada por Polifemo contra o navio de
Ulisses havia cabras pastando. O inchado também nasce das palavras quando
excessivamente antigas, peregrinas e rebuscadas, como as metáforas muito agudas: “O
inchado é semelhante ao contador de vantagem que se gaba dos bens que não tem, e aos
que possui usa fora de propósito”76. Exemplo de inchação dado por vários autores é o de
Lucano, agudíssimo quando diz Victrix causa Diis placuit, sed victa Catoni [A causa
vencedora agradou aos Deuses, mas a vencida a Catão] (De bello civili I,128). Hobbes
afirma que esse verso indicia grande agudeza mais apropriada para um retor que para um
poeta, opondo-se mesmo à discrição, pois nada poderia ser dito mais gloriosamente para a
exaltação de um homem, nem mais desgraçadamente para o rebaixamento dos deuses77.
Outro defeito máximo nasce de razões contrárias ao estilo inchado: trata-se da baixeza,
defeito do estilo humilde. Como se sabe, é humilde o conceito que nasce ordinário na
mente e que, dito artificiosamente como se não tivesse artifício, é apto para ensinar coisas,
mas nunca para efetuar a maravilha heróica. A elocução humilde é feita com palavras
próprias, não-peregrinas, conhecidas e não-estrangeiras, pouco translatas e sem as agudezas
que convêm ao magnífico. Também é humilde a composição de membros e períodos
breves, com orações sem conectivos e sem inversões sintáticas, com versos sem ruptura e
rimas comuns.
Na épica, a baixeza também consiste nos conceitos cômicos, vis, obscenos, porcos, e
nas palavras popularescas, que contradizem os conceitos elevados. O estilo medíocre,
posto entre o magnífico e o humilde, excede pelos conceitos e pela elocução o modo
ordinário de falar, mas com pouca força e nervo heróicos, por isso também fica aquém do
magnífico. Na epopéia, o medíocre é inépcia poética, pois inconveniente para figurar os
afetos com magnificência.
Fundamentalmente, em todos os casos, as imagens épicas devem ser semelhantes à
coisa imitada ou imaginada. Aristotelicamente, palavras são imagens e imitações de
conceitos; logo, as da epopéia devem depender ou nascer dos conceitos elevados, sendo
elevadas em decorrência deles, não o contrário.
76
Tasso,T. Op.cit. p. 36.
77
Hobbes, Thomas. “On Epic Poetry”. In Vickers, Brian (Ed.). English Renaissance Literary Criticism.
Oxford, Oxford University Press, 2003, p.622.
59
No caso da poesia épica, feita num tempo em que a exaustão da produção do ouro
brasileiro obriga Portugal a rever-se, revendo sua política colonial, as idéias iluministas
são apropriadas praticamente na redefinição de categorias, tópicas e preceitos retóricos e
teológico-políticos do costume antigo, que permanecem sendo aplicados, mas
modificados. As idéias iluministas têm eficácia prática na redefinição da própria prática
de fazer poesia, não importa que, como idéias, sejam ou não representacionalmente
adequadas à situação de seus usos e tenham ou não possibilidade de realização efetiva
como “iluminismo”, supondo-se também a impossibilidade de uma definição unitária do
mesmo, nas condições econômicas, políticas e culturais de Portugal e suas colônias, o
Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará.
Com isso, é possível deslocar o foco do modo habitual de ler essas letras como
representação de conteúdos. Não interessam imediatamente os supostos “conteúdos
iluministas” que a poesia luso-brasileira do século XVIII possa ou não representar. O que
se deve ressaltar é a materialidade mesma das redefinições da prática poética e das suas
modalidades elocutivas, pois não são exteriores ao seu tempo como práticas simbólicas
constitutivas da realidade dele. São tais redefinições que devem ser consideradas,
primeiramente, como práticas simbólicas “ilustradas”.
A “ilustração” da poesia desse tempo consiste fundamentalmente na apologia
intelectual e moral do juízo, que prescreve e regula o meio-termo sensato da elocução
poética. Esta continua defininindo e aplicando o juízo segundo um aristotelismo empirista
legível nos dois principais textos portugueses que então doutrinam o controle da
imaginação nas artes, Verdadeiro Método de Estudar, de 1746, de Luís Antônio Verney, e
Arte Poética, de 1748, de Francisco José Freire, Cândido Lusitano.
Comparando-se essa poesia com as idéias iluministas francesas, por exemplo, é o
meio-termo do juízo aplicado aristotelicamente à invenção dela que a torna análoga - mas
não idêntica- à racionalidade nominalista ou empirista delas. E, se é comparada com os
discursos das reformas pombalinas, a proporção racional da linguagem com que figura suas
tópicas é homóloga da racionalidade alegada neles como socialização progressiva e
ordenada da razão, pelo menos em teoria, pois o autoritarismo centralizador do Marquês de
modo algum era liberal ou democrático e, no caso da colônia brasileira, significava mais
impostos.
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