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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR

Cadernos Afro‑Paraibanos II

DIREITOS HUMANOS, POPULAÇÃO


AFRO-PARAIBANA E MULHERES NEGRAS

PROAFRO: Programa de Promoção da Igualdade Racial e Valorização da Matriz


Cultural Africana no Estado da Paraíba/Nordeste/Brasil

Linha Temática 12: Promoção da Igualdade Racial, no Subtema: Educação.


Edital N° 04, Programa de Extensão Universitária PROEXT 2011 MEC/SESu.

Marco Aurélio Paz Tella


(org)

João Pessoa
Dezembro 2012
E24 Direitos humanos, população afro-paraibana e mulheres
negras / Marco Aurélio Paz Tella (Org.).- João Pessoa:
NEABI/UFPB, 2012.
76p. (Cadernos Afro-Paraibanos; II)
ISBN: 978-85-66414-17-2
1. Direitos Humanos. 2. População Afro-paraibana.
3. Mulheres negras. II. Tella, Marco Aurélio Paz.

UFPB/BC CDU: 323.12


Ficha Técnica

Fernando Haddad Autoras e Autores


Ministério da Educação
Eduardo Fernandes de Araújo
Ivana Silva Bastos
Luiza Bairros Ivonildes da Silva Fonseca
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Luciano Mendonça de Lima
Racial (SEPPIR/PR) Maria da Vitória Barbosa Lima
Maria de Nazaré Tavares Zenaide
Rayssa Andrade
Universidade Federal da Paraíba Solange P. Rocha
Waldeci Ferreira Chagas
Rômulo Soares Polari
Reitor Assistentes de pesquisa

Lúcia de Fátima Guerra Ferreira Bianca Rodrigues da Silva


Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Graduanda em Ciências Sociais (UFPB)
Comunitários JoacilVenancio da Silva
Graduando em Serviço Social (UFPB)
Ariosvaldo da Silva Diniz Juliana Barbosa dos Santos
Diretor do Centro de Ciências Graduanda em Letras (UFPB)
Humanas, Letras e Artes Leidy Dayana Rozendo dos Santos
Graduanda em Biologia (UFPB)
KlaryceAraújo Freitas
Edição de Arte e Diagramação Graduanda em Serviço Social (UFPB)
Luis Carlos Kehrle

PROAFRO 2012
Capa Edital PROEXT 2011
Emerson Silva de Oliveira
Solange Pereira da Rocha
Coordenadora do Programa de Promoção da
Revisão Ortográfica Igualdade Racial e Valorização da Matriz
Rejane Maria A. Ferreira Cultural Africana no Estado da Paraíba/
Nordeste/Brasil

Revisor Geral Coordenadores de Projeto


Gustavo Acioli
Elio Flores
Formação de Banco de Dados para a escrita
Parcerias da história e memória da população negra da
Bamidelê: Organização de Mulheres Negras na Paraíba.
Paraíba Marco Aurélio Paz Tella
Coleção Cadernos Afro-Paraibanos
Centro de Referência dos Direitos Humanos/UFPB Surya Aaronovich Pombo de Barros
Formação docente e Educação Antirracista:
repensando nossa escola
Autoras e Autores

Eduardo Fernandes de Araújo: Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Direito


(Santa Rita). Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da UFPB (NEA-
BI). Coordenação colegiada do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB
(CRDH). Pesquisador do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
Coordenador da linha de pesquisa: Justiça e Violência Institucional - Ymyrapytã : As ligas
da Memória, Verdade e Justiça – UFPB.

Ivana Silva Bastos, Professora Substituta na Universidade Estadual da Paraíba, é pesquisadora de


Gênero e Religiões Afro-Brasileiras. Vem desenvolvendo ao longo de sua vida acadêmica
atividades voltadas ao estudo da liderança feminina no universo religioso afro-brasileiro,
mais especificamente no candomblé.

Ivonildes da Silva Fonseca (Vania Fonseca), Professora na Universidade Estadual da Paraíba


(UEPB), lotada no Departamento de Educação, Campus III. É integrante da Bamidelê –
Organização de Mulheres Negra na Paraíba e colaboradora no NEABI/UFPB. Lidera o
Grupo de pesquisaDandá Ê,desenvolvendo pesquisas na área da educação das relações
étnico-raciais com foco em gênero, representações afro-brasileiras e religiões afro-brasilei-
ras.

Luciano Mendonça de Lima é professor adjunto III da Unidade Acadêmica de História da Univer-
sidade Federal de Campina Grande, aonde desenvolve atividades nos cursos de gradua-
ção e pós-graduação. Desenvolve pesquisa sobre história da escravidão, relações raciais e
movimentos sociais no Brasil escravista, temas sobre os quais já publicou livros e artigos
em periódicos especializados.

Maria da Vitória Barbosa Lima é doutora em História e pós-doutoranda em Ciência da Infor-


mação (PPGCI/UFPB). É pesquisadora voluntária do Núcleo de Documentação e Infor-
mação Histórica Regional NDIHR/UFPB e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Afro-Brasileiros e Indígenas NEABI/UFPB. Desenvolve atividades de pesquisa e ensino nas
áreas de História Social da Escravidão, Arquivística e Paleografia.

Maria de Nazaré Tavares Zenaide: Professora Adjunta II do Curso de Serviço Social. Coorde-
nadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB. Professora do Programa
de Pós-Gradução em Direitos Humanos do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
(CCHLA). Líder do Grupo de Pesquisa Educação em Direitos Humanos/UFPB. Conselhei-
ra do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba. Membro do Comitê Nacional
de Educação em Direitos Humanos. Especialista, em Análise Sócio-Institucional do Servi-
ço Social, Saúde Pública e em Psicologia Social.

Rayssa Andrade Carvalho, Graduanda em História (Licenciatuta Plena) pela Universidade Federal
da Paraíba. É participante das atividades do NEABI/UFPB, desenvolvendo trabalhos na
área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos
seguintes temas: Mulheres negras, Movimentos sociais, Bamidelê - OMN, Identidade racial
e Feminismo negro.

Solange P. Rocha, Professora no Departamento de História, vinculada ao Programa de Pós-gradua-


ção em História e ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/
UFPB). Desenvolve pesquisas voltadas na área de História do Brasil, com ênfase no Perío-
do Imperial, com as temáticas de escravidão, família, parentesco e história das mulheres
negras.

Waldeci Ferreira Chagas, é Professor da UEPB-Campus de Guarabira, lotado no Departamento


de História, onde ensina História da África e História do Brasil. Coordena o Grupo de Es-
tudo e Pesquisa: Cotidiano, Cidadania e Educação, e está vinculado a linha de pesquisa:
história e cultura afro-brasileira. Têm dedicado as atividades de pesquisa e extensão na
área de ensino de história, formação de professor e a relação com a educação étnico-racial.
Sumário

APRESENTAÇÃO............................................................................................................... 9

DIREITOS HUMANOS: O ATO DE PENSAR E REPENSAR O TEMA DOS DIREITOS


HUMANOS ATRAVÉS DE UM OLHAR ÉTNICO-RACIAL E DA EDUCAÇÃO NA
AMÉRICA LATINA/BRASIL............................................................................................... 13
Maria de Nazaré Tavares Zenaide e Eduardo Fernandes de Araújo

CONSIDERAÇÕES LEGAIS ACERCA DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO‑BRASILEIRA


NO CURRÍCULO ESCOLAR............................................................................................. 25
Waldeci Ferreira Chagas

OS NEGROS E O QUEBRA-QUILOS NA PARAÍBA ESCRAVISTA................................... 33


Luciano Mendonça de Lima

OS QUILOMBOS NA PARAÍBA COLONIAL E IMPERIAL................................................ 39


Maria da Vitória Barbosa Lima

MULHERES NEGRAS NA PARAÍBA IMPERIAL E ENSINO DE HISTÓRIA1.................... 45


Solange P. Rocha

REGISTROS SOBRE O MOVIMENTO NEGRO DA PARAÍBA.......................................... 51


Ivonildes da Silva Fonseca

MULHERES NEGRAS EM AÇÃO: TRAJETÓRIAS DO MOVIMENTO


DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO........................................... 61
Rayssa Andrade

LIDERANÇA FEMININA NO CANDOMBLÉ PESSOENSE............................................... 69


Ivana Silva Bastos
DIREITOS HUMANOS, POPULAÇÃO AFRO‑PARAIBANA E
MULHERES NEGRAS

APRESENTAÇÃO

O racismo é um fenômeno das relações sociais do Brasil. No estado da Paraíba, onde mais de
60% da população é negra, não encontramos essa mesma proporcionalidade nas salas de aula das
universidades (entre alunos e entre professores), entre os médicos, os engenheiros, os advogados,
os juízes etc. Também não encontramos essa proporcionalide no acesso à saúde, entre os habitantes
dos bairros mais periféricos e degradados das cidades, entre os que ocupam os postos de trabalho
mais bem remunerados e valorizados e, por fim, quando analisamos os índices de violência, em que
o jovem negro, pobre e paraibano tem quase 20 vezes mais chances de morrer do que um branco de
classe média,também paraibano1.
Embora a população negra, formada pelos que se identificam como pretos e pardos, seja a
maioria entre os brasileiros, e o Brasil seja o país com a maior população negra fora do continente
africano, e da importante e extensa contribuição de africanos e seus descendentes para a nossa
sociedade, a escola e os livros adotados por elas reduzem e distorcem sua presença em nossa história
e cultura. Além desse quadro apresentado, não podemos minimizar outros dois fatores: a formação
de professores/as que ainda carecem de capacitação sobre temáticas referentes à população negra
brasileira, e da história e da cultura africana e afro-brasileira, e a imensa lista de estereótipos e
estigmas presentes nos livros, reproduzidos por professores e que passam a fazer parte das relações
cotidianas dos alunos, por meio de piadas, apelidos, preconceitos e discriminação, o que contribui
para a repetência e a evasão de estudantes negros. A presença de estereótipos e de estigmas instiga
a desigualdade das relações entre os alunos e não estimula uma visão crítica sobre as piadas, os
apelidos etc. Assim, o aluno branco espelha essa relação hierarquizada entre os alunos negros e os
brancos.
Nesse cenário, a escola desempenha um papel central no combate ao racismo, por meio de
conteúdo curricular que supere o eurocentrismo e que seja comprometido com a equidade educacional,
com a promoção e o reconhecimento da diversidade cultural, com os ideais de direitos humanos e
por uma educação antirracista que,segundo Cavalleiro2, apresenta as seguintes características:

1. Reconhece a existência do problema racial na sociedade brasileira;


2. Busca permanentemente uma reflexão sobre o racismo e seus derivados no
cotidiano escolar;
3. Repudia qualquer atitude preconceituosa e discriminatória na sociedade e no
espaço escolar e cuida para que as relações interpessoais entre adultos e crianças,
negros e brancos sejam respeitados;
4. Não despreza a diversidade presente no ambiente escolar: utiliza-a para promover
a igualdade, encorajando a participação de todos/as alunos/as;
5. Ensina às crianças e aos adolescentes uma história crítica sobre os diferentes grupos
que constituem a história brasileira;
6. Busca por materiais que contribuam para a eliminação do “eurocentrismo” dos
currículos escolares e contemplam a diversidade racial, bem como o estudo de
“assuntos negros”;
7. Pensa meios e formas de educar para o reconhecimento positivo da diversidade
racial;
1
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2011: os jovens no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari; Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2011.
2
CAVALLEIRO, Elaine. “Educação antirracista: compromisso indispensável para um mundo melhor”,in CAVALLEIRO, Eliane (orga.). São
Paulo, Summus, 2001.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 9


Apresentação

8. Elabora ações que possibilitem o fortalecimento do autoconceito de alunos e alunas


pertencentes a grupos discriminados.

A proposta de elaboração dos Cadernos Afro-Paraibanos está em consonância com ações


afirmativas, como a Lei 10.639/2003, que estabelece o ensino da História da África e da Cultura
Afro-brasileira nos sistemas de ensino, e com os objetivos do Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura afro-brasileira e africana, a saber:

- Promover o desenvolvimento de pesquisas e produção de materiais didáticos e


paradidáticos que valorizem, nacional e regionalmente, a cultura afro-brasileira;
- Criar e consolidar agendas propositivas junto aos diversos atores do Plano Nacional
para disseminar as Leis 10.639/03 e 11.645/08, junto a gestores e técnicos, no
âmbito federal e nas gestões educacionais de municípios, estados e do Distrito
política de Estado (Plano Nacional de Implementação, 2009).

Os Cadernos Afro-Paraibanos também contemplam os Parâmetros Curriculares Nacionais


para o Ensino de História, que incluem temas como as culturas tradicionais dos povos africanos, o
colonialismo e o imperialismo na África, a descolonização das nações africanas, os estados nacionais
africanos, as experiências socialistas, a segregação racial na África do Sul, as guerras civis na África,
as culturas e as nações africanas na atualidade e as africanidades localizadas na Diáspora, como os
estudos mais recentes sobre a população negra na Paraíba.
O projeto dos Cadernos Afro-Paraibanos também está em consonância com a Resolução
198/2010, do Conselho Estadual de Educação do Estado da Paraíba, em cujo primeiro artigo
regulamenta as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o ensino da
história e das culturas afro-brasileira e africana e da história e da cultura indígena para o sistema
estadual de ensino da Paraíba. No artigo terceiro dessa resolução, consta que o “ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana e da História e Cultura Indígena é obrigatório no estado da Paraíba e
abrange os estabelecimentos de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, públicos e privados,
incluindo todas as modalidades de ensino”.
O conteúdo dos Cadernos Afro-Paraibanos contempla o quinto artigo dessa resolução e deve
abranger a “história da África e dos africanos; as lutas dos negros por sua liberdade e melhores
condições de vida, contra estigmas, preconceitos, discriminações e racismo; a sua participação,
as contribuições e a valorização na formação e na configuração da sociedade brasileira, em seus
múltiplos aspectos (sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos)”3.
A Lei 10.639/03 e o Plano Nacional, cujo maior objetivo é o de implementar essa lei, é resultado da
luta e da reivindicação dos movimentos sociais negros e de aliados, que defendem uma educação inclusiva.
Contudo, ainda não está implantado na rede de ensino. Por isso, é fundamental o desenvolvimento de
projetos que visem à produção de materiais didáticos e pedagógicos referentes à matriz cultural africana,
com vistas a divulgar conhecimentos produzidos nos espaços acadêmicos e que merecem estar presentes
nas salas de aula da educação básica das escolas brasileiras.
Com essas expectativas, produzimos os Cadernos Afro-paraibanos, projeto que faz parte do
Programa de Promoção da Igualdade Racial e Valorização da Matriz Cultural Africanano estado da
Paraíba/Nordeste/Brasil/PROAFRO, contemplado pelo edital do Ministério da Educação, Proext
2011, na Linha Temática 12: Promoção da Igualdade Racial, no Subtema: Educação, em parceria
com SEPPIR. Deve-se destacar que o PROAFRO é uma das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB).
Como projeto do PROAFRO, os Cadernos Afro-Paraibanos têm o objetivo de elaborar material
didático sobre a história e as culturas africanas e afro-brasileiras, especialmente as afro-paraibanas,
e sobre as relações étnico-raciais na sociedade brasileira, voltado para os últimos anos do Ensino
Fundamental – do 6º ao 9º ano. Os outros dois projetos do PROAFRO são a organização de um
3
Referenciais Curriculares do Ensino Fundamental do Estado da Paraíba, Resolução nº 198/2010 – regulamenta a educação das relações
étnico-raciais no sistema de ensino do Estado.

10 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos, população afro-paraibana e mulheres negras

banco de dados sobre estudos científicos realizados acerca da população negra, relações étnico-raciais
e temáticas afins sobre a Paraíba e a realização do Curso de Formação de Professores e Estudantes.
Os Cadernos Afro-Paraibanos se inserem numa proposta de educação antirracista, pela justiça
social/racial e pela promoção da igualdade étnico-racial na sociedade brasileira, a partir da discussão
sobre a educação escolar. Considera-se que é preciso articular a produção de material didático
sobre os conteúdos curriculares previstos pela Lei 10639/03 e a formação inicial e continuada de
docentes, estudantes e ativistas de movimentos sociais. Essa iniciativa, articulada com a criação do
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, na Universidade Federal da Paraíba, é uma ação que
tem contribuído para melhorar as relações étnico-raciais paraibanas e brasileiras e, esperamos, da
atuação de professores da educação básica e de outros profissionais, uma vez que, em nosso curso
de formação, temos contado com a participação de estudantes das variadas áreas do conhecimento,
como humanas, exatas, biológicas, artes e saúde.
O volume 2, “Direitos humanos, população afro-paraibana e mulheres negras”, faz parte
da coleção Cadernos Afro-Paraibanos, com o qual se pretende contribuir para o conhecimento
da cultura e da história da população negra paraibanae estimular o autoconhecimento e a
identidade étnico-racial desse grupo.
No primeiro texto, Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos
humanos através de um olhar étnico-racial e da educação na América Latina/Brasil,Maria
de Nazaré Tavares Zenaide e Eduardo Fernandes de Araújo referem que é preciso conhecer, pensar
e repensar a historicidade dos direitos humanos, para que parte significativa da humanidade – a
população negra, por exemplo – não sejaesquecida como seres humanos. Os autores também
apresentam os princípios da educação em direitos humanos, que é antirracista, e não, eurocêntrica.
No segundo texto Considerações legais acerca da história e cultura afro-brasileira no
currículo escolar,Waldeci Ferreira Chagasapresenta reflexões sobre a relação da educação étnico-
racial e direitos humanos. De acordo com o autor, o Estatuto da Igualdade Racial referendou as Leis
10.639/003 e 11.645/008, ratificando a educação das relações étnico-raciais como política pública.
Esses três documentos oficiais são relevantes para um novo paradigma de educação, que não só
garanta a permanência dos sujeitos etnicamente diferentes na escola, como também contemplem
seus valores, práticas culturais e saberes nos conhecimentos ensinados e aprendidos na sala de aula.
Em Os negros e o Quebra-quilos na Paraíba escravista, Luciano Mendonça de Lima
conta a história do Quebra-quilos, um dos mais importantes movimentos da história paraibana, em
que grupos de homens e de mulheres, revoltados com a sociedade escravista, entram em confronto
com as forças policiais, recusam-se a pagar impostos e atacam os prédios onde funcionam algumas
repartições públicas - a Câmara, a Cadeia e Cartórios. Em Campina Grande, o movimento se
singularizou porque os escravos locais aproveitaram a ocasião para entrar em cena e se rebelar contra
seus senhores.
No quarto texto,Os quilombos na Paraíba colonial e imperial, Maria da Vitória Barbosa
Lima resgata uma das diversas formas de resistência da população negra ao sistema escravista
em nosso país, entre os anos de 1530 e 1888. A autora nos mostra que os quilombos não eram
exclusividade das matas e dos sertões paraibanos, mas também existiam dentro de algumas cidades,
os chamados quilombos urbanos.
No quinto texto,Mulheres negras na Paraíba imperial e ensino de história,Solange P.
Rocha dá visibilidade a histórias e trajetórias de mulheres negras, na condição de escravizadas na
Paraíba Imperial, que lutaram pela conquista da própria liberdade ou de seus filhos e filhas. A autora
demonstra que mulheres escravizadas não aceitaram, passiva e pacificamente, sua situação e lutaram
contra os desmandos da sociedade escravocrata.
EmRegistros sobre o movimento negro da Paraíba, de autoria deIvonildes da Silva
Fonseca, o texto faz um recorte nas formas de resistência no contexto pós-abolição e na organização
com caráter político reivindicatório, associado a uma ostentação da identidade negra específica, que
conhecemos, atualmente, como Movimento Negro. Assim, o objetivo da autora é de apresentar a
história do Movimento Negro da Paraíba pós-abolição.
Em “Mulheres negras em ação na Paraíba: trajetórias do Movimento de Mulheres
Negras no Brasil contemporâneo”, Rayssa Andrade nos mostra que as ações individuais e
coletivas de mulheres negras começaram no período colonial, na luta contra a escravidão. Essa luta

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 11


Apresentação

continuou no pós-abolição, quando as mulheres negras estiveram presentes, juntamente com os


homens negros, na militância do movimento negro contra o racismo e pela inserção da população
negra na sociedade brasileira.
O oitavo e último texto, “Liderança feminina no candomblé pessoense” de Ivana Silva
Bastos, articula o tema das religiões de matriz africana às discussões sobre gênero. A autora destaca
o papel desempenhado pelas mães de santo, mães pequenas, equedes, sidagãs etc. e as compara
com as funções que lhes são destinadas em outras denominações religiosas fora do campo religioso
de matriz africana.
Este é o segundo de dez volumes dos Cadernos Afro-paraibanos. Com eles, pretendemos
colaborar para o conhecimento e o autoconhecimento da população negra e, consequentemente,
para a construção positiva da autoestima e do sentimento de pertencimento desse grupo, o que pode
contribuir para a construção de novos discursos e comportamentos mais respeitosos, e também para
o fortalecimento da defesa dos direitos humanos no Brasil. Esperamos ainda que esse Caderno se
constitua um importante material didático para docentes da educação básica e possam subsidiar
as temáticas da história e cultura afro-brasileira e africana, conforme proposto pelo NEABI-UFPB,
em consonância com o Plano Nacional da Lei 10.639/03 (2009, p. 21), qual seja, a “elaboração de
material didático para uso em sala de aula, sobre Educação das Relações Étnico-raciais e História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana”, que atendam às legislações educacionais em vigência no Brasil
contemporâneo.

Marco Aurélio Paz Tella

12 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


DIREITOS HUMANOS: O ATO DE PENSAR E REPENSAR O TEMA
DOS DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DE UM OLHAR ÉTNICO-
RACIAL E DA EDUCAÇÃO NA AMÉRICA LATINA/BRASIL

Maria de Nazaré Tavares Zenaide


Eduardo Fernandes de Araújo

O que são os direitos humanos e por que [...] los derechos humanos, en su integralidad
tanta história? (derechos humanos) y en su inmanencia
(trama de relaciones) pueden definirse como
el conjunto de procesos sociales, económicos,
Os direitos humanos1 são uma construção his-
normativos, políticos y culturales que abren
tórica, política, filosófica, cultural, antropológica y consolidan – desde el “reconocimiento”,
e jurídica da humanidade. Porém, nem sempre la “transferencia de poder” y la “mediación
foi visto dessa forma, visto que sua conceitua- jurídica”- espacios de lucha por la particular
ção e temporalidade histórica/filósofica partiu de concepción de la dignidad humana.
uma visão ocidental, branca, europeia e mascu-
lina do mundo. No Século XXI, as lutas coletivas se expan-
Essa percepção retirava qualquer possibilida- dem e diversificam-se os campos de conquistas,
de de um diálogo intercultural que levasse em trazendo a dimensão cultural para o palco da luta
consideração os anseios de grupos/nações/povos política. Com o avanço de lutas em defesa da
fora do eixo euro-norte americano, fossem eles igualdade com respeito às diversidades sociocul-
étnico-raciais, de orientação sexual não heteros- turais, novos sujeitos políticos, através de diálo-
sexual, de religiões de matrizes não cristãs ou de gos permanentes e conflituosos, vêm problema-
países localizados no hemisfério sul, assim como tizando e recriando a relação entre diversidade
dos países asiáticos. e igualdade, reivindicando, por exemplo, direitos
Em que pese esses aspectos iniciais, é preci- das futuras gerações a uma sociedade mais justa
so reconhecer que as conquistas pela afirmação e equitativa e inclusiva em relação às diferenças
dos direitos humanos envolveram a participa- sociais e culturais, meio ambiente sustentável, se-
gurança alimentar, entre outros.
ção de sujeitos de diversos segmentos políticos,
A cultura, desta forma, como palco de re-
culturais, econômicos e sociais até então exclu-
produção de violência e como espaço de resis-
ídos. Sem esses fatores, a matriz central dos di-
tências, traz novos embates e a necessidade de
reitos humanos, que primam pelas relações de
incluir a diversidade como dimensão conceitual
igualdade e de liberdade na modernidade, não dos direitos humanos.
se tornariam princípios sólidos que atribuíram Atualmente, para pensar os direitos humanos,
efeitos reais (políticos e jurídicos) ao conceito devemos perceber os passados propondo pre-
de dignidade humana ocidental. Nesse sentido, sentes viáveis e contextualizados, possibilitando
a consolidação da Declaração Universal de Di- aberturas em espaços teóricos, práticos e peda-
reitos Humanos de 1948, logo após a II Guerra gógicos que levem em consideração as experiên-
Mundial (1939-1945), é um momento ímpar na cias de grupos, povos e continentes.
história da humanidade. Assinala Flores (2003, Tais considerações sobre os direitos humanos
p.27) que são recorrentes nas discussões acadêmicas e so-
bremaneira relevantes para a vida cotidiana,
1
Importante frisar que a terminologia “direitos humanos” está pois essas relações são novos/velhos campos de
sendo usada para englobar, como conceito político de defesa e
promoção da dignidade humana, os direitos fundamentais con- análises e proporcionam uma releitura históri-
sagrados constitucionalmente no Estado brasileiro e o arcabouço co-conceitual da vida em sociedade e de suas
internacional desses direitos, positivados em Tratados, Conven-
ções, Declarações e Pactos. Outras perspectivas conceituais apro-
relações com os Estados/instituições/espaços de
fundam e distinguem, no plano político e jurídico, essa compreen- poder em um mundo cada vez mais interativo e
são. Diversos autores, como NOGUEIRA, 2003; RAMOS, 2004, complexo.
apontam tais direitos como: “direitos do homem”, “liberdades
públicas”, “direitos individuais”, “direitos subjetivos públicos” e Os fatos históricos, sociais, econômicos, polí-
“liberdades fundamentais”. ticos e culturais e suas consequências atuais não

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 13


Maria de Nazaré Tavares Zenaide & Eduardo Fernandes de Araújo

podem ser analisados por um viés linear passa- sões sobre a democracia e os direitos humanos
do-presente, porquanto a discussão em torno do e, mesmo acontecendo fora do continente eu-
tema dos direitos humanos, como perspectiva ropeu, está inserida como marco das aspirações
global, é de extrema pertinência no tempo pre- liberais ocidentais.
sente, pois sinaliza futuros. As tendências e as discussões políticas que
O sociólogo Boaventura Santos (2006, a, p. apresentavam um aspecto restrito de acesso à ci-
448), no livro A Gramática do tempo, considera dadania, na revolução norte-americana, também
que as raízes judaico-cristãs dos direitos huma- devem ser releituras obrigatórias como base con-
nos – a começar pelas primeiras escolas moder- ceitual para a discussão sobre os direitos huma-
nas do direito natural – são demasiado visíveis nos, como lembra Leandro Karnal (2003, p.144):
para serem ignoradas.
Por isso, envolver elementos que elaboram uma Dizer quem era cidadão – ao contrário de hoje,
perspectiva plural dos direitos humanos, no cam- em que supomos se tratar da maioria – era
po étnico-racial e regional (América Latina), sig- uma maneira de eliminar a possibilidade de a
nifica (re)pensar outras fontes de elaboração para maioria participar, e garantir os privilégios de
uma síntese cultural e histórica que colabore com uma minoria. Admitir o conceito de cidadania
tais singularidades e seus desejos humanos, no como um processo de inclusão total é uma lei-
tura contemporânea. Da mesma forma, os fun-
exercício de suas individualidades/subjetividades
dadores da República podiam falar de igualda-
e como coletividade/sociedade (ARAÚJO, 2008):
de e liberdade em meio a seiscentos mil seres
humanos escravizados.
[...] Cada cultura tem concepções diferenciadas
de dignidade humana. [...] um diálogo intercul-
tural sobre a dignidade humana que pode le- A independência dos Estados Unidos da
var, eventualmente, a uma concepção mestiça América, por exemplo, abriu um novo processo
de direitos humanos, uma concepção que, em histórico importantíssimo para toda a região no
vez de recorrer a falsos universalismos, se orga- campo da independência.
niza como uma constelação de sentidos locais, Nesse sentido, aprender com o pensamento/
mutuamente inteligíveis, e que se constituiu em história moderna europeia/norte-americana, é
redes de referencias normativas capacitantes importante, mas não podemos considerar como
(SANTOS, 1997, p. 114). fonte única para discussões sobre os direitos hu-
manos na atualidade na América Latina e no
A perspectiva meramente ocidental não pode Brasil, pois, se por uma perspectiva eurocên-
servir de argumento para afastar grupos sociais, trica, a consolidação de alguns direitos funda-
memórias antropológicas e leituras sociológicas mentais são frutos de lutas, conflitos e guerras,
subalternizadas, assim como suas interpretações em países extraeuropeus (latino-americanos e
sobre os direitos humanos. africanos), os processos foram excludentes, ou
Nessa direção, realizar leituras a partir do melhor, grupos vulneráveis socialmente partici-
olhar submerso (a história dos vencidos) dos param dele como vítimas (DUSSEL apud TOSI,
continentes africano, latino-americano e asiático, 2005, p.108).
visa estimular aos atores sociais/sujeitos coletivos Partindo de outra matriz teórica/conceitual
de direitos, outras visões de um dado momen- para aproximação das leituras de direitos huma-
to político, histórico, jurídico, social e cultural, de nos, o escritor Paul Gilroy busca traçar um para-
forma a amplificar o conceito e a prática da di- lelo entre o pensamento negro moderno, assim
versidade planetária.2 como as contribuições decorrentes das travessias
Nas Américas, a revolução norte-americana
(forçadas em suas idas e desejosas em seus retor-
(1776) tem uma grande influência nas discus-
nos) no Atlântico Negro.
2
As argumentações em torno da universalização dos direitos huma-
Paul Gilroy ampara suas reflexões a partir de
nos, em território global, exigem pesquisas profundas que possam relações com a questão judaica, suscitada, princi-
exaurir autores/as e seus aportes filosóficos, jurídicos, sociológicos palmente, no pensamento da filosofa e cientista
e políticos, abordando essa composição de significados particu-
lares e universais. A contribuição do texto apenas parte da in- política Hanna Arendt, aprofundando o significa-
dagação e da constatação fática de que as bases eurocêntricas do das relações étnico-raciais no mundo a partir
que constituíram a modernidade e consolidaram a temática dos
direitos humanos, em uma perspectiva universal, são as mesmas
do termo diáspora negra3.
que, em suas conquistas territoriais na América Latina, na África
e na Ásia, consolidaram uma prática hegemônica, histórica e cul- 3
Stuart Hall é outro autor que utiliza o termo diásporanegra para
turalmente, que perdura até a contemporaneidade. analisar o pensamento político negro.

14 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos humanos através de um olhar étnico-racial...

Esse exercício consiste em ponderar o sentido fronteiras além mar, deixou marcas no presente,
das influências do pensamento moderno euro- como a quase extinção da população originária4
peu e sua ressignificação no contexto histórico no continente americano.
do continente africano: O genocídio ocorrido com os povos originá-
rios no Continente americano fez parte de um
[...] o termo “diáspora” entra para o vocabulá- rastro sanguinário que foi perpetrado no con-
rio dos estudos sobre os negros e a prática pan- tinente africano: calcula-se em dez milhões, ou
-africanista a partir do pensamento judaico. Ele mais, a quantidade de africanos transportados
é empregado na Bíblia, mas começa a adqui- para as várias regiões das Américas entre os Sé-
rir algo como o seu emprego contemporâneo
culos XVI e XIX, e o Brasil recebeu 40% desse
mais livre durante o final do Século XIX – o
período que assistiu ao nascimento do sionis- contingente (GOMES, 2003, p. 448).
mo moderno e das formas de pensamento na- Essa dominação foi constituída em bases só-
cionalista negro, que comunga diversas de suas lidas, não apenas através da força bélica, mas
aspirações e parte de sua retórica. Os temas também com o convencimento, a mercancia de
de fuga e sofrimento, tradição, temporalidade seres humanos, o medo velado, a promulgação
e organização social da memória possuem um de leis, repetições de discursos e atos de autori-
significado especial na história das respostas ju- dades oficiais.
daicas à modernidade [...] mergulharam na re-
O genocídio dos povos, o sequestro, o tráfi-
lação entre a modernidade e o anti-semitismo e
co, a escravização dos africanos e o extermínio
nos papéis do racionalismo e irracionalismo no
desenvolvimento do pensamento racista euro- de povos nativos para justificar os atos de do-
peu (GILROY, 2001, p. 382-83). minação imperiais na América Pré-colombiana
são uma das raízes da cultura de guerra, que se
A contribuição para esse diálogo constante utiliza da apropriação de riquezas e da imposição
é o que determina a necessidade de conhecer, de culturas para dominar e oprimir. (ZAFFARO-
pensar e repensar a historicidade dos direitos NI,1989).
humanos, sob o risco de que parte significativa As violações à dignidade humana, praticadas
da humanidade, em suas múltiplas experiências, pela colonização europeia no território latino-
seja simplesmente esquecida como seres huma- -americano, e o processo de escravização do
nos. povo africano não são apenas uma afronta às
singularidades de cada indivíduo, porquanto a
Direitos Humanos e América Latina continuidade desse período histórico consolidou
o extermínio cognitivo coletivo (ARAÚJO,2008),
Na América Latina um dos principais pontos que atingiu as multiplicidades, os pluralismos e
para que essa relação seja aproximada seria a as diversidades das relações sociais, culturais,
partir do “achamento” das terras de Pindorama econômicas e emocionais entre nações e grupos
por Pedro Álvares Cabral em 1500 (ou 1492 com étnicos cujos territórios de origem foram desinte-
Cristovão Colombo). grados.
Esses “achamentos” não só proporcionaram É vergonho para a humanidade, que apenas
um encontro de diferenças e múltiplas concep- no ano de 2000, com a realização da Conferên-
ções culturais, sociais e econômicas que não se cia de Durban – África do Sul, a Organização das
coadunavam, como também demarcaram terri- Nações Unidades (ONU), organismo internacio-
tórios e novas fronteiras globais econômica, de- nal multilateral – foi reconhecida oficialmente
terminando o avanço de uma hegemonia socio- esses extermínios, ao passo, que logo após a se-
cultural. gunda guerra mundial (1939-1945), uma respos-
É fático que a força e a coerção foram utiliza- ta imediata ao genocídio praticado pelos nazistas
das de forma contundente, principalmente pelo foi efetivada pelo mesmo organismo, com a pro-
uso do aparato bélico europeu: as colonizações clamação da Declaração Universal de Direitos
nas Américas “produziram encontros desiguais, Humanos/DUDH em 1948, o que obviamente
fundamentalmente experiências históricas, en-
4
No Brasil, os índios eram denominados de negros da terra ou negros
volvendo trocas culturais, dominação, conflitos, brasis. Relatório de Desenvolvimento Humano – Racismo, pobre-
protestos e confrontos que uniram, inventando, za e violência. Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desen-
Europas, Américas e Áfricas” (GOMES, 2003, volvimento 2005. Nesse relatório, a expressão é retirada do autor
SCHWARTZ. Stuart, presente no livro: Segredos internos. Engenhos
p.447). O exemplo basilar de opressão e de e escravos na sociedade colonial, 1550 – 1835. São Paulo. Compa-
voracidade, no estabelecimento dessas novas nhia das Letras. 1988.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 15


Maria de Nazaré Tavares Zenaide & Eduardo Fernandes de Araújo

demonstra o grau de inserção / importância dada portes que auxiliem a problematizar as questões
aqueles/as que escrevem/pensam e catalogam a pendentes de aproximação com a perspectiva
história da humanidade e o significativo reco- global remete a uma real configuração dos direi-
nhecimento jurídico e político de determinados tos humanos na América Latina.
povos/grupos. O desafio é reconhecer que a historicidade
As reflexões sobre o tema dos direitos humanos dos direitos humanos, principalmente na Amé-
não se esgota neste texto, apenas abrem interlo- rica Latina, necessita de várias (re)contextualiza-
cuções com Pactos, Convenções, Tratados Inter- ções, ou seja, de “construir um novo paradigma
nacionais e a elaboração de novas Constituições de cultura, sociedade e Estado, em que as variá-
nos Estados Latino-americanos entre os anos de veis privilegiadas da política e da juridicidade são
1980-2010, que, através de uma perspectiva po- redefinidas”(WOLKMER, 2004, p. 5).
lítica jurídica (positivação) de reconhecimento de Legitimar uma perspectiva que envolve os
direitos, tem, em seus princípios, objetivos e/ou continentes latino-americano, africano e euro-
diretrizes, marcos fundamentais para a criação de peu, recolocando-os diante das aproximações
uma cultura social mais diversificada, assim como, da mesma história no Brasil, evidencia as incon-
a criação pelo Estado de mecanismos institucio- gruências em relação não apenas ao segmento
nais para proliferação da temática dos direitos hu- quilombola, indígena e demais povos tradicio-
manos ampliando pautas, entre elas, e sobretudo, nais, mas também a toda continuidade histórica
em relação a educação antirracista, plural e com oprimida e abafada das metas-narrativas oficiais.
respeito à diversidade em todos os níveis de for- Nesse sentido, o campo da educação é que irá
mação. nortear essas possibilidades.
Subverter as conceituações e reforçar o ca-
ráter emancipatório das lutas pela implemen- Educação em Direitos Humanos.
tação dos direitos humanos coaduna-se como
um desafio para a construção do significado Desde a Declaração Universal dos Direitos
de dignidade humana e de justiça social. Humanos (1948), que o mundo vem tratando
Nesse sentido posicionar o Estado perante do problema do desprezo e do desrespeito aos
uma demanda jurídico-política, em que o impac- direitos humanos como raízes de atos bárbaros
to do arcabouço internacional positivado fosse contra a humanidade. Por essa razão, propõe-se
repercutido nas Constituições nacionais no perí- que a educação insira como princípio o respeito
odo democrático é o caminho para que outras a esses direitos.
leituras dentro de um Estado democrático de di-
reito ocorram, apontando novos futuros, como A presente Declaração Universal dos Diretos
destacado por Flávia Piovesan (2002, p. 58): Humanos, como o ideal comum a ser atingido
por todos os povos e todas as nações, com o
Importa ressaltar que as Constituições da Ar- objetivo de que cada indivíduo e cada órgão
gentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, na qualida- da sociedade, tendo sempre em mente essa
de de marcos jurídicos da transição democrática Declaração, se esforcem, através do ensino e
nesses países, fortalecem extraordinariamente da educação, por promover o respeito a esses
a gramática dos direitos humanos, ao consa- direitos e liberdades, e pela adoção de medi-
grarem o primado do respeito a esses direitos das progressivas de caráter nacional e interna-
como paradigma propugnado para a ordem cional, por assegurar o seu reconhecimento e
internacional. a sua observância universais e efetivos, tanto
entre os povos dos próprios Estados-Membros,
Na América Latina, assim como no Brasil, quanto entre os povos dos territórios sob sua
as releituras de momentos históricos e políticos jurisdição.
poderão constituir caminhos que possibilitem a
problematização entre os avanços, no campo A história da humanidade não pode se esque-
jurídico positivado, e a lenta transformação es- cer de experiências de genocídios (Auschwitz,
trutural, cultural e social para garantir e efetivar Camboja, Treblinka, Ruanda, Kosovo, Bósnia,
esses direitos. Iraque) e de ditaduras. Tais experiências demons-
Nessa perspectiva, as contradições e as con- tram que “superar a barbárie é decisiva para a
quistas analisadas por leituras interdisciplina- sobrevivência da humanidade”, como destaca
res constituem um vasto e complexo campo de Adorno (2004), em educação e emancipação.
análise, portanto, revirar, buscar e considerar su- No Brasil, não podemos esquecer as experiên-

16 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos humanos através de um olhar étnico-racial...

cias de massacres e de chacinas, como El Doura- reafirmada a necessidade de as nações agirem


do de Carajás, Haximu, Carandiru, Corumbiara, no sentido da
Vigário Geral, mais recentes, assim como a guer-
ra dos bárbaros e a longa escravidão no período [...] eliminação rápida e abrangente de todas as
colonial e no Império. formas de racismo de da discriminação racial, de
Nessa perspectiva crítica, a educação se pro- xenofobia e de intolerância associadas a esses
põe a relacionar o passado com o presente, de comportamentos deve ser uma tarefa prioritária
modo a resistir criticamente às formas de opres- para a comunidade internacional. Os governos
são, de violência, de exclusão e desenraizamen- devem tomar medidas eficazes para preveni-las e
combatê-las. (VILHENA, 2001, p. 183).
tos, gestadas nas relações de dominação e de de-
sigualdade. As práticas de extermínio sistemáticas
de grupos e de pessoas com base em diferenças Um dos princípios teórico-metodológicos da
de nacionalidade, raça, religião e diferenças ét- educação em direitos humanos é de promover o
nicas tem revelado a necessidade da educação diálogo intercultural como medida preventiva e
em e para os direitos humanos. O princípio da afirmadora de dignidade e direitos.
igualdade presente na Declaração Universal dos
Direitos Humanos funda o da não discriminação 20. A Conferência Mundial sobre Direitos Hu-
como condição de dignidade. manos insta todos os Governos a adotarem
medidas imediatas e a desenvolverem políticas
sólidas de prevenção e combate a todas as for-
Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para
mas e manifestações de racismo, xenofobia ou
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
intolerância conexa, se necessário através da
nessa Declaração, sem distinção de qualquer
promulgação de legislação adequada, incluin-
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião,
do medidas de caráter penal, e através da cria-
opinião política ou de outra natureza, origem
ção de instituições nacionais para o combate
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
a tais fenômenos dessa natureza(VILHENA,
qualquer outra condição.
2001, p. 197).

Na perspectiva de explicitar as discriminações


Na Declaração das Nações Unidas sobre a Eli-
como base das práticas de extermínios e de ge-
minação de Todas as Formas de Discriminação
nocídio contra povos, desde 1960 que o princí-
pio da não discriminação norteou a criação da Racial (1963), o artigo 8º chama a atenção para
Convenção relativa à luta contra as discrimina- o fato de que
ções na esfera do Ensino, denunciando e nome-
todas as medidas eficazes devem ser tomadas
ando a discriminação no contexto escolar como
imediatamente nas áreas de ensino, a educa-
uma violação aos direitos humanos. O artigo 5,
ção e informação, com vista a eliminar a dis-
parte 1 da Convenção, propõe: criminação racial e o preconceito e promover
a compreensão, a tolerância e a amizade entre
1 - Os estados partes dessa Convenção acor- nações e grupos raciais, bem como propagar
dam que: a) A educação deverá ser orientada os propósitos e princípios da Carta das Nações
para o completo desenvolvimento da persona- Unidas, da Declaração Universal dos Direitos
lidade humana e para reforçar o respeito dos Humanos e da Declaração sobre a Concessão
direitos humanos e das liberdades fundamen- de Independência aos Países e Povos Coloniais.
tais e que deverá fomentar a compreensão, (http://www.oas.org).
tolerância e amizade entre todas as nações e
todos os grupos raciais ou religiosos e promo-
verá as actividades das Nações Unidas para a A Declaração e o Programa de Ação da III
manutenção da paz; (http://www.dhnet.org.br/ Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
direitos/sip/onu/educar/ensino60.htm). à Discriminação Racial, à Xenofobia e à Intole-
rância Correlata, de Durban, em 2001, confir-
Na Convenção Internacional sobre a Elimina- mou que três décadas de combate ao racismo e
ção de Todas as Formas de Discriminação Ra- à discriminação racial não foram suficientes para
cial (1965), os Estados-partes se comprometem enfrentar a persistência desses atos, fundados em
a realizar uma política voltada para a eliminação doutrinas de superioridade racial, cientificamente
de todas as formas de discriminação racial. No falsas e moralmente condenáveis. No plano da
Plano de Ação da 2ª Conferencia Mundial de Di- educação em direitos humanos, a Declaração de
reitos Humanos ocorrida em Viena, em 1993, foi Durban

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 17


Maria de Nazaré Tavares Zenaide & Eduardo Fernandes de Araújo

126. Incentiva a todos os Estados, em coopera- as experiências de ditadura ao longo do Século


ção com as Nações Unidas, UNESCO e outras XX: Venezuela (1908-1935 e 1950-1958), Pa-
organizações internacionais competentes, a ini- raguai (1954-1989); Brasil (1964-1985); Peru
ciarem e desenvolverem programas culturais e (1968-1980); Bolívia (1971- 1978 e 1980-1981);
educacionais que visem a combater o racismo,
Chile (1973-1990), Uruguai (1973-1984) e Ar-
discriminação racial, xenofobia e intolerância
gentina (1976-1983). Nesse sentido, a necessida-
correlata, com o intuito de assegurar o respeito
pela dignidade e pelo valor de todos os seres de de ações de proteção e de defesa das vítimas
humanos e para aumentar o entendimento mú- e dos familiares, assim como de denúncias das
tuo entre todas as culturas e civilizações. Ainda graves violações aos direitos humanos contra a
insta os Estados a apoiarem e implementarem humanidade, constitui uma origem comum da
campanhas públicas de informação e progra- educação em direitos humanos na América La-
mas específicos de capacitação no campo dos tina.
direitos humanos, quando necessário, formula- As primeiras experiências de educação em
dos com a linguagem local, para combaterem direitos humanos, segundo os registros do Con-
o racismo, discriminação racial, xenofobia e selho de Educação em Direitos Humanos da
intolerância correlata e promoverem o respeito
América Latina (CEAAL) e do Instituto Interame-
pelos valores da diversidade, do pluralismo, da
tolerância, do respeito mútuo, da sensibilida- ricano de Direitos Humanos (IIDH), concretizam-
de cultural, da integração e da inclusão. Tais -se através de experiências de educação popular
programas e campanhas devem ser dirigidos a e de educação formal, voltadas para a luta contra
todos os setores da sociedade, em particular, às os regimes autoritários, a luta, a conquista e a
crianças e aos jovens. construção de processos democráticos. Segundo
Basombrio,
A educação em direitos humanos, nessa pers-
pectiva, propõe-se a promover a educação em direitos humanos na América
Latina é uma prática jovem. Espaço de en-
[...] o entendimento e a conscientização das contro entre educadores populares e militantes
causas, consequências e males do racismo, de direitos humanos começa a se desenvolver
discriminação racial, xenofobia e intolerância coincidentemente com o fim de um dos piores
correlata e, também, recomenda aos Estados e momentos da repressão política na América la-
incentiva as autoridades educacionais e o setor tina e conquista certo nível de sistematização
privado a desenvolverem materiais didáticos, na segunda metade da década e dos 80. [...] A
em consulta com autoridades educacionais educação em DH é uma prática que tem sido
e o setor público, incluindo, livros didáticos e implementada de forma desigual, segundo di-
dicionários, visando ao combate daqueles fe- ferentes realidades nacionais, respondendo, no
nômenos. essencial, a capacidade de ação de entidades
ligadas à educação popular e de organizações
não-governamentais ligadas aos direitos huma-
Essas são medidas que atravessam a política nos, que tiveram grande importância na luta
educativa, que exige a revisão dos livros-textos, a contra regimes autoritários instalados entre as
formação de professores e mudanças no currícu- décadas de 1960 e 1970 (BASOMBRÍO apud
lo que proporcionem o respeito pela diversidade SILVA, p.63).
cultural.
Na América Latina, a educação em direitos hu-
História da Educação em Direitos Huma‑ manos surge, no contexto do processo de demo-
nos na América Latina e no Brasil cratização, em diferentes espaços institucionais,
como o da sociedade civil, ampliando os proces-
Como afirma Zaffaroni (1989), toda história sos de conquista dos direitos, e o da educação es-
da América Latina é história de violações dos di- colarizada, inserindo, no processo de formação, a
reitos humanos e de resistências. As práticas de cultura em direitos humanos.
resistência, ao longo dos períodos desses povos, No Brasil, a educação em direitos humanos
é que possibilitaram a pluralidade cultural como inicia-se de modo não formal com os movimen-
identidade social. tos sociais e as organizações da sociedade civil,
A educação em e para os direitos humanos junto com as universidades públicas, através das
emerge nas lutas e nos movimentos de resistên- ações de extensão, não só com as escolas, como
cias como uma prática não formal, que só tomou também com os bairros populares. Posteriormen-
formas sistematizadas e institucionalizadas após te, alcançou a educação formal das instituições

18 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos humanos através de um olhar étnico-racial...

de educação e do Sistema de Segurança e de dados nas Declarações e nos Mecanismos de


Justiça. Proteção Internacionais e Nacional dos Direitos
Na década de 1970, no Brasil, a educação Humanos, a exemplo da Declaração Universal
em direitos humanos surgiu com as lutas sociais dos Direitos Humanos, da Conferência Mundial
pelas liberdades civis e políticas, e em 1980, as de Teerã (1968), da Conferência Mundial de Vie-
ações educativas ampliaram o foco para as lu- na (1993);
tas pelos direitos econômicos, sociais e culturais. - A Educação em Direitos Humanos cria
Nos anos 1990, expande-se para os agentes do multiplicidades de possibilidades de ações
poder público, por meio do Programa Nacional e metodologias de ação considerando e
de Direitos Humanos (PNDH), em 1996, e do envolvendo conhecimentos e técnicas do fazer
Plano Nacional de Educação em Direitos Huma- pedagógico, a relação entre teoria e prática, o
nos (PNEDH) em 2003. projeto político-pedagógico, o material didático,
A prática educativa, no campo dos direitos o processo de avaliação, a realidade social e edu-
humanos, envolve diferentes e distintos con- cacional, os conteúdos, a contextualização e o
textos sociais e institucionais: espaços, territó- universo cultural;
rios, instituições, movimentos (família, bairro, - A Educação em Direitos Humanos é atra-
escola, partidos, associações, universidades); vessada por relações de poder. Candau (1998,
abordagens multi, pluri, inter e transdisciplinar; p 36-27), ao explicitar esse princípio, afirma que
dimensões (ética, jurídica, histórica, econômica, essa prática “gera tensão entre falar e calar sobre
cultural, racial, educativa); atores (sociais e ins- a própria história pessoal e coletiva como neces-
titucionais); campos da Política Pública; saberes sidade de trabalhar a capacidade de recuperar a
científicos e vivencial; esferas de poder (nacio- narrativa das histórias na ótica dos direitos hu-
nal, estaduais, municipais); naturezas de poder manos”;
(público e privado); âmbitos de atuação (distin- - A Educação em Direitos Humanos se de‑
tas relações sociais); planos de ação (individual, senvolve de modo desigual, de acordo com
grupal, comunitário, territorial e organizacional); a construção diferenciada do processo de
modalidades de educação (formal, não formal e democratização em cada sociedade;
informal); níveis de ação (promoção, proteção, - A Educação em Direitos Humanos detém
defesa e reparação) e funções acadêmicas (ensi- um potencial crítico e transformador da re‑
no, pesquisa e extensão). alidade pedagógica, social e institucional;
- A Educação em Direitos Humanos atra‑
Princípios teórico-metodológicos da Edu‑ vessa os conteúdos e as práticas sociais e
cação em direitos humanos institucionais, ressignificando os métodos, os
conteúdos, as relações, os climas, a cultura, os
Vários são os princípios teóricos e metodoló- projetos de vida e de trabalho, logo, ela não pode
gicos da educação em direitos humanos, levan- ser reduzida a disciplinas ou a ações pontuais e
tados na análise de conteúdo de textos de educa- desintegradas;
dores na área, a saber: - A Educação em Direitos Humanos flexibili‑
- A Educação em Direitos Humanos incorpo- za a inter-relação entre temas e conteúdos
ra a visão crítica e política de educação, daí e promove o diálogo intercultural, porquan-
porque a mesma convive permanentemente com to retrata as diferenças sociais, denuncia as de-
tensões; sigualdades, afirma e celebra as diversidades e
- A Educação em Direitos Humanos promo- coloca os saberes a fazerem uma autocrítica e a
ve uma ética e uma cultura democrática, produzirem novas formas de produzir o conheci-
quando não se restringe à denúncia, mas anun- mento em que o outro não se apresenta apenas
cia e cria novos modos de pensar, agir e relacio- como objeto, mas como sujeito do processo;
nar consigo, com os outros, com o coletivo e com - A Educação em Direitos Humanos permeia
o que é público; e atua no cotidiano, dialogando passado e
- A Educação em Direitos Humanos se fun- presente como uma forma de projetar o aqui e
damenta na universalidade inerente a todo ser o agora com o amanhã, como uma forma de re-
humano, em meio à diversidade étnico-cultural, sistir à dissociação entre o campo do teórico e do
na indivisibilidade e na interdependência prático, o plano do discurso e da ação;
dos direitos civis, políticos, econômicos e cultu- - A Educação em Direitos Humanos possibili-
rais e sua inviolabilidade, formalizados e acor- ta a construção e a formação de sujeitos de

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 19


Maria de Nazaré Tavares Zenaide & Eduardo Fernandes de Araújo

direitos. Nahmías, Benevides e Dornelles res- prática da vida diária. A pesquisa investigativa,
saltam a dimensão política em que o sujeito, na através do diagnóstico participativo, de técnicas
educação em direitos humanos, insere-se como coletivas de investigação, proporciona a leitura
protagonista e parte do processo; crítica da realidade, a capacidade de problema-
- A Educação em Direitos Humanos integra‑ tização, a análise das demandas, a definição de
liza as concepções históricas dos direitos prioridades e o planejamento das ações.
humanos, articulando a dimensão individual e A produção de material didático, na educação
coletiva e as concepções históricas e filosóficas em direitos humanos, é uma constante, uma vez
dos direitos humanos; que o educando é um sujeito construtivo no pro-
- A Educação em Direitos Humanos contri‑ cesso de produção do conhecimento. A cartilha e
bui para a formação de novos hábitos, va‑ os textos construídos significam o processo.
lores e atitudes; Os textos gráficos - de revistas, jornais, didáti-
- A Educação em Direitos Humanos adota cos, cartas, artigos, material literário (textos, poe-
os princípios metodológicos da educação sias) - e os recursos sonoros também constituem
popular; e relevantes instrumentos pedagógicos. Trata-se da
- A Educação em Direitos Humanos promo‑ canção, da dança, dos rituais, da análise das mú-
ve a educação para a justiça social e a paz, sicas. Os recursos da informática, hoje, ampliam
gerando uma cultura ético-social comunitária as possibilidades de acesso dos educadores a
em defesa da vida e da preservação da espécie textos, imagens, canções, textos, fatos, notícias,
humana, estabelecendo um compromisso com a entre outros.
humanidade. Os recursos testemunhais são inconfundíveis
Os Recursos utilizados da Educação em na educação em direitos humanos, pois, através
Direitos Humanos deles, o sujeito participa ativamente da história
Para Bittar (2011), a educação em direitos e dos processos de luta. São exemplos desse re-
humanos pretende “uma educação dirigida a curso a participação dos educandos em vigílias,
uma autorreflexão crítica” capaz de resistir contra caminhadas, sessões, gritos dos excluídos, con-
as formas de desenraizamento e insensibilidade centrações públicas, entre outros.
presentes, o que significa trabalhar com a recupe- A produção e a distribuição de material infor-
ração da capacidade de sentir e de pensar como mativo é outro recurso utilizado na luta em prol
forma de afetar o modo de ver, de fazer, de falar, da promoção dos direitos humanos. A difusão da
informação requer, muitas vezes, a capacidade
de ouvir e intervir na realidade.
de sensibilização e de comunicação, o que exi-
Nesse sentido, os recursos metodológicos uti-
ge dos educadores mais conhecimentos sobre a
lizados na educação em direitos humanos, para
informação, a comunicação e a linguagem. São
ser coerentes com os princípios e os objetivos,
muito usados no trabalho de difusão os panfle-
ampliam-se e inovam-se no processo pedagó-
tos, os painéis, o folheto e o jornal.
gico. Zenaide (2005) trata e explicita como os
Os encontros são outro recurso na educação
recursos dramáticos, ideográficos, testemunhais, em direitos humanos, tanto com fins científicos e
plásticos e literários, que mesclam as ações edu- culturais (fóruns, seminários, congressos) quanto
cativas, oferecem linguagens múltiplas e possibi- de caráter político (conferências, congressos, de-
lidades educativas. bates) ou interacional (as vivências, as oficinas).
Os recursos dramáticos envolvem a espon- A história de vida pode ser um importante re-
taneidade, a interação, a participação e a ex- curso para relacionar o pessoal e o contextual,
pressividade individual e coletiva. São eles: as o vivencial e o teórico, o subjetivo e o objetivo.
dinâmicas de grupo, a dramatização, os jogos A elaboração conceitual constrói com os sujeitos
dramáticos, o sociodrama, o psicodrama peda- os significados vivenciais para, então, promover
gógico, os exercícios de expressividade e o teatro. a articulação teórica, os significados vivenciais e
Os recursos ideográficos e gráficos, por sua os conceitos.
vez, desenvolvem a expressividade projetiva das As técnicas de interrogação e de discussão
imagens e do desenho. Os desenhos, as charges, de dilemas éticos podem, também, ser utilizadas
o vídeo-debate, o filme, a fotografia, o recorte e como recurso didático na educação em direitos
a colagem de imagens são importantes recursos humanos e de acordos de convivência, para
utilizados na educação em direitos humanos. que as emergências dos grupos étnico-raciais e
A leitura crítica do cotidiano pode ser realiza- demais grupos vulneráveis sejam pautadas não
da através de diferentes recursos que foquem a apenas em um espaço pedagógico institucional,

20 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos humanos através de um olhar étnico-racial...

mas também na prática cotidiana de fazer o tema • Resolução nº 2, de 30 de janeiro de 2012


dos direitos humanos vivo e que o reconheci- do CNE, que define as Diretrizes Curricula-
mento seja em uma ordem local ou global. res Nacionais para o Ensino Médio;
• Resolução CNE/CP nº 1, de 30 de maio de
Concluindo nossas reflexões sobre a Edu‑ 2012, que estabelece Diretrizes Nacionais
cação em direitos humanos para a Educação em Direitos Humanos.

Como afirma Magendzo (2008), algumas


ideias foram sendo gestadas nas experiências Referências
de educação em direitos humanos na América
Latina e no Brasil: a inter-relação entre demo- ARAÚJO. E.F. AGOSTINHA – POR TRÊS LÉ-
cracia, direitos humanos e educação em direitos GUAS EM QUADRA: A temática quilombola na
humanos; uma educação pautada na perspec- perspectiva global-local. 2008. 217f. Dissertação
tiva político-transformadora capaz de formar (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade
pessoas comprometidas com a transformação Federal da Paraíba, 2008.
de uma sociedade justa e igualitária; uma edu- BITTAR, Eduardo C.B. Democracia, justiça e di-
cação integral e holística, que atravessa o coti- reitos humanos. Estudos de teoria crítica e filoso-
diano de modo formal e não formal, vivencial fia do direito. São Paulo: Saraiva, 2011.
e ético, ao longo da vida, por todas as moda-
lidades educativas; uma educação de valores, BRASIL. DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE FE-
construtora de paz e formadora de sujeitos de VEREIRO DE 2007. Institui a Política Nacional
dignidade e de direitos; uma proposta que en- de Desenvolvimento dos Povos e Comunidades
frenta resistências e possibilidades concretas no Tradicionais BRASIL.
regime democrático.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de setembro de
Podemos encerrar, destacando alguns passos
1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
importantes e desafiantes construídos ao longo
cional - LDBEN. Brasília, http://portal.mec.gov.
do processo democrático, focados para a educa-
br.
ção em direitos humanos no Brasil, quais sejam:
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da Re-
• Programa Nacional de Direitos Humanos I pública Federativa do Brasil. 24. ed. atual. eam-
(1996) e II (2002); pl., São Paulo: Saraiva, 2000.
• Plano Nacional de Educação em Direitos BRASIL. LEI Nº 7.716, DE 05 DE JANEIRO DE
Humanos (2003); 1989 (LEI CAÓ)  - Define os crimes resultantes
• Resolução CP/CNE nº 1, de 17 de junho de de preconceito de raça ou de cor.
2004 – institui as diretrizes nacionais para a
BRASIL.LEI Nº 9.459, DE 13 DE MAIO DE
educação das relações étnico-raciais e para
1997- Altera os arts. 1º e 20 da Lei 7.716, de
o ensino de história e cultura afro-brasileira
5 de Janeiro de 1989, que define os crimes re-
e africana em todos os níveis de ensino;
sultantes de preconceito de raça ou de cor, e
• Programa Nacional de Direitos Humanos acrescenta parágrafo no art. 140 do decreto-lei
III, Decreto nº 7.037/2009; nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
• Resolução nº 4 de 13 de julho de 2010, que BRASIL. LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE
define as Diretrizes Curriculares Nacionais 2003, alterada pela Lei 11.645 de 10 de mar-
Gerais para a Educação Básica; ço de 2008- Estabelece as diretrizes e bases para
• Lei nº 11.525, de 25 de setembro de 2007, incluir no currículo oficial da rede de ensino a
que modificou a Lei de Diretrizes e Bases obrigatoriedade da temática História e Cultura
da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), Afro-brasileira e Indígena.
acrescentando o § 5º ao seu art. 32, e torna BRASIL.LEI Nº 10.678, DE 23 DE MAIO DE
obrigatória a inclusão do conteúdo relativo 2003 – Cria a Secretaria Especial de Políticas de
aos direitos das crianças e dos adolescentes Promoção da Igualdade Racial.
no currículo do ensino fundamental, sob a
diretriz do Estatuto da Criança e do Adoles- BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CUL-
cente; TURA. Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 21


Maria de Nazaré Tavares Zenaide & Eduardo Fernandes de Araújo

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22 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Direitos humanos: o ato de pensar e repensar o tema dos direitos humanos através de um olhar étnico-racial...

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Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 23


CONSIDERAÇÕES LEGAIS ACERCA DA HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRA NO CURRÍCULO ESCOLAR

Waldeci Ferreira Chagas

A cidadania dos estudantes brasileiros (as) dor da escola e o cidadão que há anos está
não está apenas na garantia do acesso à escola, sendo formado por essa instituição. Dessa feita,
mas também no direito a aprender sua história professores (as) da educação superior também
e cultura, o que incide na abordagem dos con- têm responsabilidade e papel relevante nesse
teúdos que lhes são ensinados em sala de aula. processo, porquanto as IES são, por excelência,
Nesse sentido, saber sobre uma história e uma espaços formadores dos profissionais que atu-
cultura que lhe dizem respeito é direito dos (as) am na educação básica.
alunos (as), obrigação do professor (a) e dever
do Estado, portanto, uma prática de cidadania. Educação das relações étnico-raciais no
Assim, a escola que se quer cidadã não pode Brasil: uma questão de direitos humanos
continuar negando aos (às) estudantes negros
(as) e aos (às) não negros (as) o direito de conhe- No Brasil, as relações étnico-raciais são práti-
cerem a história e a cultura dos povos negros, cas históricas intrínsecas à formação da socieda-
visto que eles fazem parte da composição da tes- de brasileira. No entanto, o problema de sua ins-
situra social, política e cultural do Brasil. titucionalização curricular está na hierarquização
Apesar do aspecto multicultural do Brasil, a que passou a compor essas práticas e que contri-
perspectiva de educação que predominou, du- buiu para a afirmação da cultura branca, cristã
rante anos, no sistema escolar brasileiro, excluiu e europeia como hegemônica, dominante e su-
a história e a cultura afro-brasileiras do currículo perior. Em contrapartida, as culturas indígenas e
escolar, o que fez com que escola e a sociedade as negras foram concebidas como inferiores, me-
se acostumassem com a invisibilidade a que as nores, portanto, subservientes. Em função disso,
pessoas negras foram submetidas. Afinal, per- apesar de estarem no Brasil desde sua invenção,
durou o eurocentrismo como referência para se foram poucos os negros e os índios que compu-
pensar o Brasil e formar cidadãos (ãs). No má- seram cenas da história escrita desse país, pois
ximo, aprendemos e ensinamos que o Brasil é foram apagados dos currículos escolares, ignora-
formado por índios (as), negros (as) e brancos dos pela mídia e retirados dos lugares de poder,
(as), mas não sabemos - ou sabemos pouco - so- das decisões e dos postos de comando da socie-
bre as histórias e as culturas afro-brasileiras. A dade. Só recentemente, após a discussão em tor-
escola, quando não fez menção às pessoas ne- no dos direitos humanos e das políticas de ações
gras no Brasil, reforçou a tese de que elas não afirmativas para negros e índios e sua efetivação,
se desenvolveram como civilizações, logo, não eles ganharam um pouco de visibilidade na esco-
tinham histórias e culturas dignas de comporem la. Essa visibilidade, na sociedade e na mídia, é
o currículo escolar. fato recente e caminha a passos lentos, pois ain-
Para se contrapor ao enfoque eurocêntrico da predominam os estereótipos, o que faz com
na educação, a Lei 10.639/003 instituiu que a que as pessoas de ascendência negra ou indíge-
escola da educação básica teria a obrigação de na não se reconheçam nas imagens e nas tramas
implementar, no currículo escolar, os conteúdos narradas nos meios de comunicação e nos livros
de história e de cultura afro-brasileira e africa- didáticos. Por essa razão, pensar a educação, na
na. Essa lei não apenas determinou a obriga- perspectiva dos direitos humanos e das relações
toriedade para os (as) professores do ensino étnico-raciais é uma discussão sobremaneira im-
fundamental e médio, mas possibilitou aos (às) portante para a superação dos estereótipos e do
professores (as) de todos os graus de ensino a preconceito racial, porque garantirá que pessoas
oportunidade de repensarem o caráter forma- negras e indígenas, como também as não negras

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 25


Waldeci Ferreira Chagas

e não indígenas construam outras imagens de si conteúdos de História do Brasil a serem ensina-
mesmas e dos outros. dos devem contemplar as contribuições das et-
Desde as primeiras décadas do Século XX, nias indígenas, africana e europeia na formação
identificamos, no pensamento intelectual bra- do Brasil. Cabe observar que tais conteúdos fi-
sileiro, manifestações que apontam as relações caram restritos a um campo do saber - a História
étnico-raciais como um paradigma para o conhe- do Brasil – pois não se fez menção ao currículo
cimento do Brasil. Nas obras dos primeiros inte- escolar, e mesmo que aponte para a educação,
lectuais brasileiros que tratam de temas relaciona- não avança nas questões a ela relacionadas,
dos à etnia e à cultura das raças formadoras do visto que a diversidade cultural que caracteriza
Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes esse país não se restringe ao campo da História,
do Brasil) e Gilberto Freyre (Casa Grande & Sen- porque está igualmente presente nas demais áre-
zala), por exemplo, essa questão está presente. as do saber. Todavia, esse paragrafo é relevante
No entanto, as considerações desses estudiosos porque chama a atenção dos (as) professores (as)
nem sempre foram valorizadas pela comunida- de História para o fato de que não se pode pen-
de escolar, visto que os conteúdos referentes aos sar o Brasil sem levar em consideração os três
povos que compõem a matriz cultural do Brasil elementos culturais formadores dessa nação e de
permaneceram ausentes dos currículos escolares sua cultura.
e só recentemente passaram a ser mencionados De certo modo, o 4º paragrafo do artigo 26
nos documentos oficiais que organizam o sistema da LDB 9.394/96 atribuiu aos professores (as)
nacional de educação, como a Lei de Diretrizes e de História a responsabilidade de resolverem
Bases da Educação de 1996 (LDB 9.394/96), que o problema da falta de conhecimento dos (as)
estabelece: brasileiros sobre história e cultura dos povos in-
dígenas, africanos e negros, como se isso fosse
Os currículos do ensino fundamental e médio possível. Tal medida só contribuiu para que pro-
devem ter uma base nacional comum, a ser fessores (as) de História se limitassem a ensinar
complementada, em cada sistema de ensino e que o Brasil foi formado com a mistura das etnias
estabelecimento escolar, por uma parte diver‑ indígenas, africanas e europeias, mas não pro-
sificada, exigida pelas características regionais moveu a construção da identidade étnico-racial
e locais da sociedade, da cultura, da econo- a partir dos elementos, dos valores e das práticas
mia e da clientela (Conforme Art. 26 da LDB
culturais de cada etnia, visto que, paralelamente
9.394/96/CAPÍTULO II Da Educação Básica
a isso, ensinou-se e aprendeu-se que o Brasil era
Seção I/ Das Disposições Gerais). (Grifo nosso)
uma nação miscigenada, mas nunca negra nem
indígena, ou seja, o conceito de miscigenação,
Embora o artigo 26 da LDB 9.394/96 reco-
desde outrora propagado, foi reforçado e utiliza-
mende que os currículos das escolas de ensino
do para negar a identidade indígena e a negra
fundamental e médio sejam complementados
dos (as) brasileiros (as).
por uma base regional e local, de modo a aten-
Acerca dessa questão, é pertinente o fato de
der à diversidade que caracteriza o Brasil, não
que, nas narrativas de professores (as) de Histó-
menciona essa diversidade como étnico-racial,
ria, assim como nos livros didáticos, a história do
mas integrante dos aspectos culturais, econômi-
Brasil começa com a chegada dos portugueses
cos e de clientela. No entanto, dá margem para
em 1500. Índios e negros são mencionados es-
que a educação das relações étnico-raciais seja
poradicamente e pontualmente, quando envol-
implementada, devido à diversidade de etnias e
vidos em algum episódio, mas não têm história
de saberes que compõem o Brasil. Nesse senti-
própria, pois são tratados como coadjuvantes.
do, o paragrafo 4º do referido artigo faz menção
A perspectiva das relações étnico-raciais na
específica ao ensino de História e aponta para a
educação também está nos Parâmetros Curri-
questão das etnias que formam o Brasil nos se-
culares Nacionais (PCNs, 1997). No item desse
guintes termos: “O ensino da História do Brasil
documento sobre a diversidade que caracteriza
levará em conta as contribuições das diferentes
o Brasil, lê-se:
culturas e etnias para a formação do povo
brasileiro, especialmente das matrizes indígena, Currículo deve adequar objetivo, conteúdos
africana e europeia”. e critérios de avaliação, de forma a atender
Conforme se pode ver, esse texto legal tam- à diversidade existente no país. A escola, ao
bém aponta para a perspectiva da educação das considerar a diversidade, deve respeitar as di-
relações étnico-raciais quando afirma que os ferenças e não a desigualdade. A atenção à di-

26 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Considerações legais acerca da história e cultura afro-brasileira no currículo escolar

versidade é um princípio comprometido com a PCNs (1997), ela instaurou a obrigatoriedade de


equidade social (MEC/Parâmetros Curriculares as escolas da educação básica incluírem no cur-
Nacionais, 1997). rículo escolar os conteúdos de história e cultura
afro-brasileira e africana, o que representou um
Em relação à LDB 9.394/96, os PCNs avan- avanço rumo à educação das relações étnico-
çam, visto fazerem referência tanto ao currículo -raciais.
quanto ao campo mentor e mobilizador da es- A Lei 10.639/003 ainda se diferencia das de-
cola, portanto, um espaço importante a definir o mais legislações citadas por duas questões, decor-
caráter e a perspectiva da educação e das práti- rentes do contexto que a antecedeu e da situação
cas pedagógicas a serem construídas e executa- em que foi sancionada. A primeira questão é o
das por cada comunidade escolar. fato de ter sido resultante das discussões fomen-
Logo, ao ser elaborado, pensado e construído, tadas no interior dos movimentos sociais negros
o currículo deve levar em consideração a diver- e do movimento de professores (as) interessados
sidade étnico-racial do Brasil. Esse documento (as) nas transformações sociais e políticas do
não limita a perspectiva da educação étnico-ra- Brasil. Desde os anos 1970, esses movimentos
cial a um campo específico do saber, como fez discutiam, junto com os grupos de base, a revi-
o paragrafo 4º do artigo 26 da LDB 9.394/96, são da história do Brasil ensinada nas escolas da
quando determinou a História, sobretudo a His- educação básica e narrada nos livros didáticos. A
tória do Brasil. Os PCNs ampliaram o campo de perspectiva era de que a cultura afro-brasileira e
ação ao mencionar o objetivo do currículo como a história da África e dos povos negros no Brasil
sendo o de que os conteúdos de história e cultura fossem incluídas no currículo escolar e fizessem
afro-brasileira, africana e indígena fossem fatos parte dos livros didáticos de História.
naturais no cotidiano da escola. Esse documento Para as lideranças negras e intelectuais, era in-
reconheceu a escola como diversa culturalmente concebível que, num país de maioria negra, esses
e prescreveu que os conteúdos deveriam atender conteúdos não fossem ensinados nas escolas e
ou corresponder a tal realidade. não compusessem o material didático que utili-
Ambos os textos legais apontam para a edu- zavam. Em parte, o artigo 26 da LDB 9.394/96,
cação das relações étnico-raciais em condições assim como os PCNs (1997), trouxeram alguma
diferentes, no entanto deixam a critério de pro- luz para essa discussão, mas não resolveram o
fessores (as) e gestores (as) implementarem ou problema, sobretudo porque não tornaram obri-
não os conteúdos de história e cultura afro-bra- gatórios tais conteúdos em termos curriculares,
sileira, africana e indígena no currículo escolar. o que, na prática, não agradou aos movimentos
Tais legislações não obrigam, apenas recomen- sociais negros que continuaram a reivindicar mu-
dam, e apelam para a consciência política dos danças nas práticas pedagógicas.
(as) professores (as) e gestores (as) em relação à A segunda questão é o fato de ter sido reali-
educação étnico-racial. zada, em 2001, a III Conferência Mundial Contra
Apesar de esses documentos explicitarem o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
a necessidade de uma mudança de comporta- e a Intolerância Correlatas, na África do Sul, ci-
mento de professores (as) e gestores (as), no sen- dade de Durban, da qual participaram o Brasil
tido de que os conteúdos de história e cultura e representantes do Estado e da sociedade ci-
afro-brasileira, africana e indígena passem a ser vil organizada, ou seja, dos movimentos sociais
contemplados no currículo e nas práticas escola- negros. Ao longo desse evento, o representante
res, nunca foi natural o diálogo da comunidade do Estado brasileiro assinou acordos internacio-
escolar com essas culturas, que a escola sempre nais e comprometeu-se em implantar políticas de
tratou como estranhas e externas ao seu cotidia- ações afirmativas em prol das populações negras.
no, chamando-as de “o outro”. No geral, os cur- O objetivo dessas novas políticas é de reduzir as
rículos e as práticas pedagógicas se mantiveram disparidades sociais entre negros (as) e brancos
eurocêntricos, e as práticas culturais das pessoas (as), combater o preconceito racial e promover
indígenas e negras, negadas e invisibilizadas na a equidade racial. Para tanto, começaram a ser
escola. elaboradas políticas públicas a serem aplicadas
Em meio a essa realidade, em janeiro de 2003, em alguns setores, como a saúde e a educação.
o presidente da República do Brasil, Luís Inácio Neste, em especial, as cotas raciais ganharam visi-
Lula da Silva, sancionou a Lei 10.639/003. Dife- bilidade na mídia. A Lei 10.639/003, sancionada
rentemente do artigo 26 da LDB 9.394/96 e dos em janeiro de 2003, é relevante, pois evidencia a

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 27


Waldeci Ferreira Chagas

possibilidade de consolidar, de fato, a educação As Diretrizes Curriculares Nacionais para a


das relações étnico-raciais no cotidiano escolar. Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Essa lei alterou o Artigo 26 da LDB 9.394/96 e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
acrescentou o artigo 26 A, que determina: Africana são importantes porque avançam para
além do ensino dos conteúdos e apontam para as
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e contribuições das pessoas negras na formação da
médio, oficiais e particulares, torna-se obriga‑ sociedade brasileira, quanto aos aspectos sociais,
tório o ensino sobre História e Cultura Afro- políticos, econômicos e culturais. Elas ratificam
-Brasileira. a humanização das pessoas negras, sobretudo,
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o
porque lhes garantem o direito de conhecerem
caput deste artigo incluirá o estudo da História
da África e dos Africanos, a luta dos negros no sua história e vivenciarem sua cultura.
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na Nesse sentido, quando pensamos na produ-
formação da sociedade nacional, resgatando a ção do conhecimento científico, político, econô-
contribuição do povo negro nas áreas social, mico e literário, comumente homens negros e
econômica e políticas pertinentes à História do mulheres negras, cujas ações e produções trans-
Brasil. formaram a sociedade brasileira, ainda estão au-
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultu- sentes do currículo escolar. Por isso, a educação
ra Afro-Brasileira serão ministrados no âmbi‑ étnico-racial pode ser igualmente desenvolvida
to de todo o currículo escolar, em especial
pelos professores (as) de Física, Química, Biolo-
nas áreas de Educação Artística e de Literatura
e Histórias Brasileiras (Presidência da Repúbli- gia e Matemática. Para isso, basta que eles abor-
ca – Casa Civil- Subchefia para Assuntos Jurí- dem a presença dos africanos e dos negros nes-
dicos – Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003). sas áreas do saber.
Por outro lado, as Diretrizes apontam para as
A Lei 10.639/003, quando comparada com o relações étnico-raciais estabelecidas no cotidiano
Artigo 26 da LDB (1996) e com os PCNs (1997), da escola. Trata-se de outra perspectiva de olhar
avança, visto trazer a obrigatoriedade do ensino e de lidar com os sujeitos negros, o que repre-
sobre história e cultura afro-brasileira e por afir- senta vê-los como capazes de pensar, produzir,
mar que esses conteúdos serão “ministrados no elaborar e sistematizar saberes. Essa questão, no
âmbito de todo currículo escolar”, embora espe- interior da escola, é vivenciada por professores
cifique suas áreas de atuação como sendo Educa- (as) de todas as áreas do conhecimento e devem
ção Artística, Literatura e História Brasileira. Isso ser pautadas no respeito às diferenças e na di-
não significa que as outras áreas do saber sejam versidade étnica presente na escola, mantidas de
impedidas de trabalhar tais conteúdos, uma vez maneira que os sujeitos revelem suas potenciali-
que por currículo se compreendem todas as áreas dades sem ser oprimidos em função da sua per-
do saber e as suas respectivas práticas na escola. tença étnica, e não, a partir de saber eurocêntrico
Apesar de os conteúdos da Matemática, da que se instituiu determinante.
Química, da Física e da Biologia terem o cará- Apesar do avanço que representa, quan-
ter exato, essas ciências não estão desvinculadas do comparada com a legislação anterior, a Lei
do social nem do humano, por isso, professores 10.639/003 trata, especificamente, da etnia ne-
(as) dessas áreas também podem trabalhar com gra, pois não incluiu como beneficiários os indí-
os conteúdos determinados pela Lei 10.639/003, genas. No entanto, isso não representou sua ex-
pelo fato de clusão do currículo escolar, visto que, no Brasil, a
história e a cultura indígena antecedem a história
as reivindicações e as propostas do Movimen- da África e das pessoas negras e suas relações
to Negro, ao longo do Século XX, apontarem com o Brasil. Portanto, são inseparáveis.
para a necessidade de diretrizes que orientem a Com o objetivo de garantir a inclusão da his-
formulação de projetos empenhados na valori- tória e das culturas indígenas no currículo esco-
zação da história e cultura dos afro-brasileiros
lar, em 2008, o Presidente Luís Inácio Lula da
e dos africanos, assim como comprometidos
com a educação de relações étnico-raciais po- Silva sancionou a Lei 11.645/2008, que alterou
sitivas, a que tais conteúdos devem conduzir o artigo 26 A, da LDB 9.394/96, a qual, por sua
(MEC/SECAD, 2004. Diretrizes Nacionais para vez, passou a vigorar com a seguinte redação:
a Educação das Relações Étnico-raciais e o
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Nos estabelecimentos de ensino fundamental
Africana). e de ensino médio, públicos e privados, torna-

28 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Considerações legais acerca da história e cultura afro-brasileira no currículo escolar

-se obrigatório o estudo da história e cultura 1994, de Aracaju, e a Lei Municipal nº 11.973,
afro-brasileira e indígena.§ 1o  O conteúdo de 4 de janeiro de 1996, de São Paulo .(1)
programático a que se refere este artigo incluirá Junta-se, também, ao disposto no Estatuto da
diversos aspectos da história e da cultura que Criança e do Adolescente (Lei 8.096, de 13 de
caracterizam a formação da população brasilei- junho de 1990), bem como no Plano Nacio-
ra, a partir desses dois grupos étnicos, tais como nal de Educação (Lei 10.172, de 9 de janeiro
o estudo da história da África e dos africanos, de 2001) (MEC/SECAD. Diretrizes Nacionais
a luta dos negros e dos povos indígenas no para a Educação das Relações Étnico-raciais e
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira, e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
o negro e o índio na formação da sociedade Africana, 2004).
nacional, resgatando as suas contribuições nas
áreas social, econômica e política, pertinentes à Ambas as legislações são importantes no pro-
história do Brasil.§ 2o  Os conteúdos referentes
cesso de implementação da educação das rela-
à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no
ções étnico-raciais, mas não definem quem deve
âmbito de todo o currículo escolar, em especial efetivá-las nem fazem menção à formação docen-
nas áreas de Educação Artística e de Literatura te, apenas afirmam a obrigatoriedade do ensino
e História brasileira (NR) (Presidência da Repú- de história e cultura afro-brasileira, africana e in-
blica – Casa Civil- Subchefia para Assuntos Ju- dígena no currículo escolar. Talvez devido a essa
rídicos – Lei 11.645, de 10 de março de 2008). indefinição de papéis na implementação desses
conteúdos, poucas ações foram desenvolvidas
A Lei 11.645/008, ao apresentar essa inova- nos sistemas públicos de ensino e executadas nas
ção, manteve as garantias e as áreas do saber escolas brasileiras, no interstício 2003-2010, vis-
estabelecidas pela Lei 10.639/003, bem como a to que, até 2010, comumente, professores (as) e
obrigatoriedade da inclusão do ensino de História gestores educacionais desconheciam tais leis.
e das culturas afro-brasileira, africana e indígena Com o objetivo de tornar exequíveis as dispo-
no currículo escolar. Essa legislação, ao obrigar a sições presentes nas leis 10.639/003, 11.645/008
inclusão de tais conteúdos, ratificou a educação e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
das relações étnico-raciais no sistema de ensino, Educação das Relações Étnico-raciais e para o
sobretudo, e consolidou-a juridicamente, visto Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
que essa perspectiva de educação já estava escri- Africana e resolver o problema da indefinição
ta, desde 2004, nas Diretrizes Curriculares Nacio- dos papéis dos órgãos e das instituições educa-
nais para a Educação das Relações Étnico-raciais cionais nesse processo, em maio de 2010, o Mi-
e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e nistério da Educação, através da SECAD, lançou
Africana, aprovada pelo Conselho Nacional de o Plano Nacional de Implementação dessas Dire-
Educação, à qual só foi acrescentado o elemento trizes. Trata-se de um documento oficial, que de-
indígena, que vieram cumpri-la. fine o papel de cada instituição pública e privada
de educação, dos órgãos gestores, das entidades
O estabelecido na Constituição Federal, nos e dos movimentos sociais negros, visando pro-
seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. mover e efetivar a educação das relações étnico-
242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. -raciais e das Leis 10.639/003 e 11.645/008.
26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes
A importância desse documento também está
e Bases da Educação Nacional, que asseguram
o direito à igualdade de condições de vida e no fato de garantir a educação das relações ét-
de cidadania, assim como garantem igual di- nico-raciais como política pública, uma vez que
reito às histórias e culturas que compõem a as ações para sua implementação não devem ser
nação brasileira, além do direito de acesso às apenas responsabilidade de um (a) ou outro (a)
diferentes fontes da cultura nacional a todos professor (a), em determinada escola. Tal orien-
brasileiros. Juntam-se a preceitos analógicos os tação passou a ser responsabilidade do gestor
Art. 26 e 26 A da LDB, como os das Constitui- do sistema público de educação, nas esferas
ções Estaduais da Bahia (Art. 275, IV e 288), nacional, estadual e municipal, bem como dos
do Rio de Janeiro (Art. 306), de Alagoas (Art.
conselhos, dos fóruns de educação, das institui-
253), assim como de Leis Orgânicas, tais como
a de Recife (Art. 138), de Belo Horizonte (Art.
ções de ensino superior e dos movimentos ne-
182, VI), a do Rio de Janeiro (Art. 321, VIII), gros. Cada qual tem um conjunto de ações a
além de leis ordinárias, como a lei Municipal nº executar, de modo a garantir que a educação
7.685, de 17 de janeiro de 1994, de Belém, a das relações étnico-raciais (MEC/SECAD. Plano
Lei Municipal nº 2.251, de 30 de novembro de Nacional de Implementação das Diretrizes Cur-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 29


Waldeci Ferreira Chagas

riculares Nacionais para a Educação das Rela- mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais
ções Étnico-raciais e para o Ensino de História para Educação das Relações Étnico-raciais e
e Cultura Afro-brasileira e Africana, 2010) seja para o Ensino de História e Cultura Afro-brasi-
efetivada. leira e Africana. Assim como o já aludido Plano,
Apesar de o referido Plano Nacional definir os o Estatuto ampliou a implementação da educa-
papéis e as ações a serem executadas por cada ção das relações étnico-raciais, ao defini-la como
órgão e instituição gestora e promotora da edu- política pública de Estado, visto que delega ao
cação, não se exime o papel nem a responsabili- Poder Executivo a responsabilidade de fomentar
dade de professores (as) nesse processo, uma vez a formação inicial e continuada de professores
que eles/elas se encontram na ponta final do fazer (as) e de elaborar material didático na área de
educativo e no cotidiano da sala de aula. Logo, história e cultura afro-brasileira e africana.
os (as) professores (as) são quem, de fato, reali- Portanto, cabe ao Executivo, através do MEC
zam e concretizam a educação formal e devem e das Secretarias de Educação, dos Estados e
agir de maneira consciente e esclarecida. Por isso, dos Municípios, implementar a educação das
esse Plano, diferentemente das Leis 10.639/003 relações étnico-raciais. Essa questão também
e 11.645/008, faz menção à formação docente e está definida no Plano Nacional de Implemen-
afirma que deve ser proporcionada pelas secre- tação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
tarias de educação e universidades, em parceria Educação das Relações Étnico-raciais e para o
com os movimentos sociais e os núcleos de estu- Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
dos afro-brasileiros e indígenas, que têm experi- Africana, quando, no capítulo III – As atribuições
ência acumulada nessa área de conhecimento e dos Sistemas de Ensino - define as ações a se-
podem colaborar com essa empreitada. rem executadas pelos governos federal, estadual
Dessa feita, o Plano Nacional ratificou a edu- e municipal, para implantar a educação das rela-
cação das relações étnico-raciais como um direi- ções étnico-raciais.
to do ser humano e como ação afirmativa para Assim, o Estatuto da Igualdade Racial não só
as populações negras do Brasil. Em 2010, essa referendou as Leis 10.639/003 e 11.645/008,
medida foi referendada pelo Estatuto da Igualda- mas também o Plano Nacional em pauta, e ratifi-
de Racial, em cujo artigo 11, da seção II, consta: cou a educação das relações étnico-raciais como
política pública. Portanto, esses três documentos
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e oficiais são relevantes na efetivação da educação
de ensino médio, públicos e privados, é obri- das relações étnico-raciais, porque apontam para
gatório o estudo da história geral da África e um novo paradigma no sistema de educação, ou
da história da população negra no Brasil, ob-
seja, uma perspectiva de educação que não só
servado o disposto na Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996. garanta a permanência dos sujeitos etnicamente
§ 1º Os conteúdos referentes à história da po- diferentes na escola, como também contemplem
pulação negra no Brasil serão ministrados no seus valores, práticas culturais e saberes nos co-
âmbito de todo o currículo escolar, resgatando nhecimentos ensinados e aprendidos no cotidia-
sua contribuição decisiva para o desenvolvi- no da sala de aula, na perspectiva de reconhecê-
mento social, econômico, político e cultural do -los como humanos.
país.
§ 2º O órgão competente do Poder Executivo
fomentará a formação inicial e continuada de
Referências
professores e a elaboração de material didático
específico para o cumprimento do disposto no
caput deste artigo. (Presidência da República, Brasil. Estatuto da Igualdade Racial: Lei no
Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos. 12.288, de 20 julho de 2010, que institui o Esta-
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui tuto da Igualdade Racial; altera as Leis nºs 7.716,
o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos de 5 de janeiro de1989, 9.029, de 13 de abril de
7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de13 de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778,
abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de1985, e de 24 de novembro de 2003 – Brasília : Câmara
10.778, de 24 de novembro de 2003).
dos Deputados, 2010.

O Estatuto da Igualdade Racial referendou o _______. Plano Nacional de Implementação


que já fora prescrito em 2003, na Lei 10.639, e das Diretrizes Curriculares Nacionais para
em maio de 2010, no Plano Nacional de Imple- Educação das Relações Étnico-Raciais e

30 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Considerações legais acerca da história e cultura afro-brasileira no currículo escolar

para o Ensino de história e cultura afro‑ _______. Lei de Diretrizes e Bases da Edu‑
brasileira e africana. Brasília: MEC/SECAD, cação. 9.394. Brasília: MEC/1996.
2010.
CHAGAS, Waldeci Ferreira. Formação docente
_______. 11.645. MEC/SECAD, 2008. e cultura afro-brasileira. In: Revista África e
Africanidades - Ano I - n. 3 - Nov. 2008
________. Diretrizes Curriculares Nacio‑
nais para a Educação das Relações Étni‑ NASCIMENTO, Dorval do.Raça, Ciência e Na-
co-Raciais e para o Ensino de História e çãoem Livros Escolaresna Era Vargas (1930-
Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: 1946). In: Revista Afro-Ásia. Nº 44, 2011.
MEC/SECAD, 2004.
OLIVEIRA, Leila Beatriz de Sá & CUNHA JÚ-
_______. Lei 10.639. MEC/SECAD, 2003. NIOR, Henrique Antunes. A importância da Lei
10.639. In: Revista África e Africanidades.
_______. Parâmetros Curriculares Nacio‑ Ano 4, nº 16 e 17, fevereiro/maio de 2012.
nais: introdução aos parâmetros curriculares na-
cionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 31


OS NEGROS E O QUEBRA-QUILOS NA PARAÍBA ESCRAVISTA

Luciano Mendonça de Lima

Assim como o Brasil, a Paraíba teve a sua for- e variada cultura de resistência que lhes permitiu
mação histórica profundamente condicionada sobreviver aos horrores da escravidão. Esse pro-
pela escravidão, especialmente a de matriz afri- cesso se iniciava no cotidiano do trabalho e se
cana. Isso significa dizer que foram os africanos estendia para as demais dimensões da vida so-
brutalmente retirados de suas terras de origem e cial, expresso em um ritmo próprio de trabalho,
seus descendentes aqui nascidos que construíram desvios de parte da produção do senhor para si,
a riqueza material e imaterial da “pequenina e estabelecimento de pequenas roças, movimentos
heroica” Paraíba. Foram eles que, em 1585, aju- de fuga, constituição de laços de família, constru-
daram a erguer o núcleo urbano, que deu origem ção de uma complexa vida espiritual manifesta
à, hoje, capital João Pessoa e, então, cidade de em linguagem, ritos, crenças etc.
Nossa Senhora das Neves ou Filipeia. Quando a Em determinadas conjunturas históricas, esse
região em seu entorno, a chamada zona da mata, substrato político e cultural poderia se transfor-
foi ocupada produtivamente pelos conquistado- mar em base de sustentação para ações coletivas
res europeus (portugueses, espanhóis, holan- mais ousadas de ruptura com o sistema, quando
deses), a presença de africanos escravizados a insatisfação cotidiana dos escravizados, mais ou
se constituiu de fundamental importância para menos difusa, transformava-se em revolta aber-
transformar a capitania da Paraíba em uma das ta. Nesse contexto, destacam-se as insurreições,
maiores regiões produtoras de açúcar do mundo. quando os próprios trabalhadores escravizados e
Quando, em meados do Século XVII, houve a seus aliados mais imediatos, ou seja, os libertos,
conquista do oeste paraibano pelas forças coloni- organizavam-se coletivamente para combater a
zadoras, os africanos também se fizeram presen- escravidão, em busca da liberdade, através de um
tes nas mais variadas atividades ali estabelecidas, plano ou projeto pensado e elaborado antecipa-
como as fazendas de gado, as engenhocas e os damente por seus participantes. Além disso, esses
sítios de mantimentos. No século seguinte, quan- mesmos escravizados se aproveitavam de deter-
do o algodão foi ganhando as terras do agreste minadas condições históricas de comoção social
e do sertão da América portuguesa, o fardo da para participar de movimentos políticos de outros
produção, mais uma vez, recaiu, em grande me- grupos sociais com maior ou menor autonomia,
dida, sobre as costas de homens e de mulheres como, por exemplo, as revoluções liberais e as re-
escravizados. voltas populares, que eclodiram ao longo do Sé-
Evidentemente que todo esse processo só foi culo XIX.
possível historicamente em função de um inten- É nesse último caso que se enquadra o nosso
so processo de exploração econômica e opressão tema, ao buscar narrar e entender os significa-
social, pois o sistema escravista era uma verda- dos políticos e culturais que os cativos imprimi-
deira máquina de consumir gente. Contudo, essa ram à sedição do Quebra-quilos, um movimento
gente negra jamais se conformou com a sina de originalmente composto por diferentes camadas
sofrimento, malgrado os esforços de senhores e livres da população do Norte do Império, como
autoridades de os transformarem em máquinas pequenos proprietários, sitiantes, artesãos, de-
de produção. Isso porque, além de força mus- socupados, feirantes, vaqueiros etc., que contou
cular, eles traziam consigo sentimentos e valores também com a participação de elementos da eli-
humanos que, com o tempo, transformaram-se te local, como padres, políticos e proprietários.1
em experiência viva. Foi sobre essa experiência 1
Sobre a historiografia do Quebra-quilos, ver. MAIOR, Armando
lavrada em sangue, suor e lágrimas que os escra- Souto. Quebra-quilos: lutas sociais no outono do Império. Brasília:
vizados paraibanos teceram no tempo uma rica INL/ Recife:FJN, 1978; JOFFILY, Geraldo. Quebra-quilos: a re-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 33


Luciano Mendonça de Lima

Apesar do pouco destaque que lhe foi dado sob a ruína da ordem. Maior desgraça não po-
pela historiografia brasileira, o Quebra-quilos deria naquela ocasião recair sobre a cidade de
foi um dos mais importantes movimentos de Campina Grande.2
nossa história, em termos de composição social
e impacto político. O seu aparecimento coincide Quem eram, então, esses escravos? Quais as
com uma conjuntura de crise da monarquia e suas expectativas e visões de mundo? Que falas e
da escravidão, cujos efeitos mais visíveis se ma- gestos eles acrescentaram ao conturbado cenário
nifestam abertamente nas províncias do Norte criado durante a sedição do Quebra-quilos? Por
do Império na segunda metade do Século XIX. que resolveram se insurgir “querendo impor a
Foram milhares de participantes e quase 80 lo- sua liberdade a seus senhores”? É o que tentare-
calidades conflagradas, entre vilas e cidades da mos responder neste texto, destacando o contex-
região em foco. to e o substrato político e cultural que informou a
Assim, nos meses finais do ano de 1874, di- ação dos revoltosos.
versas vilas e cidades das províncias da Paraíba, O Quebra-quilos começou no dia 31/10/1874,
de Pernambuco, de Alagoas e do Rio Grande do quando os populares aproveitaram a ocasião
Norte foram conflagradas por um conjunto de em que se realizava a feira semanal de Fagun-
acontecimentos que ficou conhecido, para a pos- des, termo de Campina Grande, para protestar.
teridade, com o nome de sedição ou revolta do Portanto, entre o começo da sedição e a entrada
Quebra-quilos. Onde quer que tenha acontecido, em cena dos escravos, no dia 4/12/1874, mais
a ação dos revoltosos seguiu um padrão mais ou de um mês haveria de se passar. Esse detalhe
menos comum: grupos de homens e mulheres, não pode ser desconsiderado para efeito de aná-
constituídos por agricultores pobres, artesãos, fei- lise. Nesse intervalo de tempo, eles mediram os
rantes e desocupados, entram em confronto com prós e os contras e as implicações de uma ação
as forças policiais, destroem os pesos e medidas coletiva. Diante de um quadro de acirramento
do novo sistema métrico decimal recém-implan- das tensões sociais, procuraram tirar partido da
tado; recusam-se a pagar impostos; atacam os situação, beneficiados pelo afrouxamento do
prédios onde funcionam algumas repartições controle e da vigilância de senhores e de autori-
públicas, tais como a Câmara, a Cadeia, os Car- dades. A senha para o levante foi dada por um
tórios e a Coletoria de Renda e, em seguida, grupo de cativos, que se dirigiu imediatamente
dispersam-se, não sem antes deixarem no ar um para uma propriedade de nome Timbaúba.
clima de apreensões difusas. Esse alvo não foi escolhido por acaso. Logo
Em Campina Grande, município do agreste após o episódio do arrombamento da cadeia de
paraibano, que se transformou no epicentro dos Campina Grande, a cidade ficou acéfala por um
acontecimentos, o movimento se singularizou longo tempo, em termos de autoridades constitu-
porque os escravos locais aproveitaram a oca- ídas. Alguns buscaram abrigo em suas proprieda-
sião para entrar em cena e se rebelar contra seus des rurais, nos arredores da cidade. Foi o caso do
senhores. Uma testemunha ocular nos deixou a presidente da Câmara municipal, o liberal Bento
sua impressão sobre isso: Gomes Pereira Luna, que juntou sua parentela
e se abrigou no dito lugar, propriedade de sua
No dia 4 de dezembro novo gênero de terror família. Além dele, o escrivão da Coletoria de
veio pungir a população da cidade de Cam- rendas, o secretário e o procurador da Câmara
pina; já não eram os sediciosos de dia desres- lá se refugiaram.3
peitando as autoridades e chasqueando das O “sossego” da família Luna e amigos haveria
poucas famílias que por falta de tempo e de
de durar pouco. Certa noite, a fazenda onde es-
meio não tinham fugido; já não eram os sedi-
tava foi cercada por um grupo de 30 a 40 escra-
ciosos arrombando cadeias e derramando o
terror na população; já não eram as chamas vos, armados de cacetes, foices e armas de fogo.
sinistras dos cartórios incendiados a noite, ao Capitaneado pelos negros Firmino e Manoel do
concerto de vaias, imprecações e gargalhadas; Carmo, o grupo começou a gritar pelos nomes
eram os escravos insurgidos querendo impor
sua liberdade a seus senhores, abusando das
2
Ver. Quebra-Quilos. Relatório do Comandante das Forças Impe-
riais Estacionadas na Província da Paraíba do Norte. Publicações
circunstâncias criticas em que esses se achavam do Arquivo Nacional. Vol. XXXIV, 1937. Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro (doravante ANRJ).
volta dos matutos contra os doutores. Brasília: Thessaurus, 1977; 3
Para o que segue, ler ANRJ. Sumário de culpa por sedição. Cor-
MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Revolta do Quebra-Quilos. São respondência do Ministério da Justiça com a presidência da pro-
Paulo: Ática, 1995. víncia da Paraíba do Norte. Códice IJI-317. 1875.

34 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Os negros e o quebra-quilos na Paraíba escravista

dos que se encontravam na casa-grande da pro- passava em Campina Grande por aqueles dias,
priedade. Daí a pouco, eles foram saindo, um por os proprietários locais não perderam tempo e,
um, tendo à frente o próprio Bento Luna. Nesse em que pesem as dificuldades de momento, pro-
momento, começou uma tensa conversa entre as curaram se articular, no sentido de perseguir os
partes: de um lado, os escravos, que, de forma escravos insurrecionados, antes que fosse tarde
firme, diziam ser livres a partir daquele momento demais. Para isso, juntaram milícias particulares
e, por isso mesmo, queriam os “papéis da liber- e o que naquele contexto restava de forças pú-
dade” e, de outro, autoridades amedrontadas, blicas para reprimir o levante. A partir desse mo-
querendo ganhar tempo ao máximo, afirmando mento, as notícias escassearam-se, e os escravos
que não tinham como garantir a liberdade da- saíram de cena de forma tão espetacular como
queles escravos rebeldes. haviam entrado.
Ao perceber que poderiam estar sendo enga- Coube ao Coronel Alexandrino Cavalcante
nados, os escravos, com palavras e gestos ame- de Albuquerque organizar as forças da repressão.
açadores, obrigaram os que ali se encontravam a Esse senhor tinha todos os motivos do mundo
sair das casas, após o que todos foram feitos pri- para proceder dessa forma, a começar pelo fato
sioneiros. Todas as ditas autoridades foram amar- elementar de que nove de seus escravos engros-
radas no lombo de cavalos e, sob forte vigilância, saram as fileiras do movimento.4 Para salvar os
obrigadas a marchar de volta à cidade, para bus- seus interesses e os de sua classe, lançou mão de
car os tão desejados papéis. A distância a separar mecanismos os mais inusitados possíveis. Arre-
o Sítio Timbaúba da cidade de Campina Grande gimentou uma milícia particular, que contou até
era de, aproximadamente, duas léguas, ou, treze com a participação de grupos de Quebra-quilos
quilômetros. Nessa caminhada, é possível que no- e, juntamente com as forças legais comandadas
vos escravos tenham se juntado ao grupo original, pelo delegado de polícia local, saíram à caça dos
pois essa era uma área formada por importantes levantados. A maioria desses últimos deve ter sido
propriedades escravistas. capturada, enquanto que outros podem ter se re-
Diferentemente dos populares que, dias antes, fugiado ainda por algum tempo. Podemos afirmar
chegaram gritando “abaixo os impostos” e “mor- que, embora os escravos tenham sido os últimos a
ra maçons, viva a religião católica”, os escravos entrarem em cena, foram os primeiros a sofrer os
entraram na cidade entoando suas próprias pala- efeitos sistemáticos da repressão ao Quebra-qui-
vras de ordem de “viva a liberdade”, como que a los. Em dezembro de 1874, com a chegada das
expressar novas demandas sociais e políticas em forças militares comandadas pelo Coronel Seve-
um contexto histórico maior. Depois disso, des- riano da Fonseca, provenientes da Corte, a sorte
locaram-se para a residência do procurador da do movimento estava selada.5
Câmara Raymundo Theorico e José Dornellas Apesar da repressão exemplar que se aba-
e se apropriaram do “livro da emancipação dos teu sobre os revoltosos, entre os últimos dias de
escravos”. Enquanto isso, um novo contingente 1874 e os primeiros momentos do ano de 1875,
de escravos, liderado pelo liberto Benedito, en- os fantasmas do Quebra-quilos continuariam a
grossou as fileiras dos sublevados. Sempre acom- sobressaltar os corações e as mentes das elites lo-
panhados dos prisioneiros, os escravos foram à cais durante muito tempo. Conforme já destaca-
presença do Vigário local, de nome Calixto Cor- mos, uma das ações dos sediciosos foi a queima
reia da Nóbrega, para tratar da liberdade deles de diversos papéis oficiais - processos criminais,
e de seus filhos, pois queriam daquele religioso inventários post-mortem, contratos de tutelas e
“o livro onde estavam pintados os escravinhos soldadas e o livro de matrícula para o registro de
novos”. escravos, símbolos de opressão social e política.
O Vigário tentou apaziguar os ânimos, afir- No que se refere aos papéis referentes espe-
mando que aquela não era a melhor maneira de cificamente aos escravos, eles foram criados no
se conseguir a liberdade e aconselhou-os a re- bojo da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871.
tornarem ao domínio de seus senhores. Parece Nesse contexto, podemos citar o livro de matrícu-
que os escravos não se deram por vencidos, pois la, que se transformou no principal instrumento
continuaram a lutar pela liberdade e, para isso, 4
De acordo com o livro de rematrícula de 1876, Alexandrino Ca-
saíram em direção à Vila de Alagoa Nova, distan- valcante de Albuquerque possuía 44 escravos, o que o transfor-
te apenas alguns quilômetros de Campina Gran- mava no maior escravocrata do município. Consultar ALMEIDA,
Elpídio. História de Campina Grande. 2ª ed. João Pessoa: Ed.
de, para se reunirem com novos cativos que os UFPB, 1979, p. 148.
aguardavam. Ao tomar conhecimento do que se 5
Consultar Quebra-Quilos. Relatório... Op. cit.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 35


Luciano Mendonça de Lima

legal da propriedade escrava. Por esse dispositi- das repartições públicas feita pelos populares anos
vo, os senhores ficavam obrigados a registrar, até antes. Em relação aos escravos, esse quadro era
a data limite de 30 de setembro de 1873, todos ainda mais preocupante, pois os próprios senho-
os seus escravos, preenchendo um formulário res sabiam (embora nem sempre admitissem)
padrão. O original era lançado em um livro cons- que eles não eram uma mercadoria como outra
tituído, especialmente, para isso e ficava arquiva- qualquer. Para reforçar sua assertiva, cita o caso
do nas coletorias locais, enquanto que uma cópia de José Mancio de Barros Souza, que, como sua
era entregue ao proprietário.6 Para aqueles muni- cliente e outros senhores locais, não havia conse-
cípios conflagrados pela ação dos sediciosos, o guido registrar seus cativos na data-limite. Portan-
governo imperial determinou, através do Aviso to, aproveitando as dificuldades enfrentadas pelos
Nº 576, de 28/09/1876, que os senhores teriam proprietários, simplesmente se recusavam a lhes
seis meses, a contar daquela data, para revalidar obedecer e vagavam “livres nessa cidade, entre-
as matrículas de seus respectivos cativos. Mui- gues a completa ociosidade”.7 Em outra ocasião,
tos proprietários, de fato, cumpriram os prazos e os escravos usaram de astúcia para se livrar do
conseguiram salvar suas posses. Outros, porém, cativeiro. Foi o que aconteceu com Nicolau, Pau-
por diferentes razões, não conseguiram. Para es- lino, Miguel, Domingos, Manoel, Antônio, There-
ses, não restava alternativa, a não ser entrar com za e Úrsula, que se aproveitaram de um descuido
uma ação ordinária de reforma de instrumento de seu senhor para roubar a cópia da matrícula
de matrícula no juizado de órfãos de seu lugar de que havia escapado das chamas dos sediciosos.
residência, onde deveriam provar, com testemu- Malgrado os esforços do proprietário, dessa vez,
nhas e documentos, que exerciam efetivamen- o Juiz deu ganho de causa aos oito cativos, todos
te o seu domínio e que não foram negligentes. declarados, no final, livres pela Justiça.8
Caso contrário, corriam o risco de perder seus Ora, naquele contexto de crescimento da resis-
escravos. Ora, esses procedimentos acabavam tência e de deslegitimação da escravidão, even-
gerando uma série de embaraços morais e ma- tos como esses contribuíram ainda mais para en-
teriais, que agravaram, ainda mais, as tensões fraquecer a dominação senhorial, e os escravos
entre senhores e escravos, num momento em campinenses souberam muito bem explorar a
que a própria escravidão perdia cada vez mais conjuntura ao seu modo, contribuindo para pôr a
legitimidade. Para os proprietários e seus repre- pá de cal na crise final do sistema. Assim, ao cati-
sentantes, além das custas e das demais despesas var seus sonhos de liberdade e de dignidade, na-
processuais, não poderiam explorar sua força de quele momento histórico, os escravos pregaram
trabalho enquanto durasse a contenda jurídica. uma grande peça em seus senhores. O susto foi
Por seu turno, para os cativos, significava expor tal que pode ter levado alguns contemporâneos
publicamente seu amo e se livrar, mesmo que mais temerosos a adotarem a tática do silêncio,
temporariamente, do jugo do cativeiro. jogando na lata do lixo da história as principais
O estado de espírito vivido, naquele contexto evidências dessa presença, no sentido de evitar o
crítico, foi sintetizado por um representante da fina pânico na população, numa conjuntura em que a
flor das classes dominantes de Campina Gran- ordem pública esteve seriamente abalada.
de. No ano de 1879, o doublé de proprietário e As lutas travadas pelos africanos e seus des-
Bacharel, Bento José Alves Viana, foi contrata- cendentes contra a exploração e a opressão es-
do por Dona Manoela Maria da Conceição para cravista e por liberdade e dignidade humana não
representá-la legalmente em ação de escravidão acabaram. Por isso é tão importante estudar, es-
que movia contra os escravos Benedito e Antô- pecialmente para as novas gerações, esses mes-
nia, por não terem sido rematriculados em tempo mos eventos do passado para compreendermos
hábil, conforme prescrevia a legislação. Depois bem mais as batalhas do presente, porque o que
de agenciar testemunhas e anexar documentos, veio depois da abolição da escravatura em 1888
o mencionado advogado fez um longo arrazoa- não foi, certamente, o melhor dos mundos para
do em defesa da propriedade privada, de uma 7
Ver Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação civil do juízo
maneira geral e, ao mesmo tempo, reconheceu de direito da comarca de Campina Grande. Apelante: O juiz de
a dificuldade de comprová-la devido aos incon- direito. Apelada: Dona Manoela Maria da Conceição, senhora dos
escravos Benedito e Antônia-1880. Arquivo do Instituto Arqueoló-
venientes gerados com a incineração dos papéis gico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
8
Ver Ação de escravidão de José de O. Vasconcelos contra os seus
6
Para obter mais detalhes, ler ver SLENES, Robert. “O que Rui escravos Nicolau, Paulino, Miguel, Domingos, Manoel, Antônio,
Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão”. Thereza e Úrsula, a fim de reformar o instrumento de matrícu-
Estudos econômicos. Nº 13, janeiro/abril 1983, pp. 117-149. la-1877. Arquivo Histórico de Campina Grande.

36 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Os negros e o quebra-quilos na Paraíba escravista

a maioria da população constituída de escravos e ra militar em 1964, com o apoio das classes do-
a população mestiça pobre como um todo. Mui- minantes locais. Malgrado os esforços das forças
to pelo contrário: a nova ordem capitalista então golpistas de se perpetuarem no poder em uma
implantada criou e recriou diferentes formas de espécie de eterno presente de medo e opressão, a
dominação para manter os privilégios de classe, sociedade se mobilizou, e a ditadura foi obrigada
entre elas, o racismo, e esses segmentos sociais a se retirar formalmente de cena, depois de mais
subalternos buscaram novas formas de resistên- de 20 anos do fatídico dia 01 de abril de 1964.
cia para fazer frente a essas novas formas de ex- Por outro lado, as lutas sociais foram retomadas,
ploração e de opressão estabelecidas em territó- inclusive a reforma agrária, com a emergência
rio paraibano e brasileiro. Nesse sentido, em que do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
medida a resistência de homens e de mulheres Terra e outras organizações populares. No caso
negros que viveram na Paraíba do Século XIX das populações negras, essa reivindicação secu-
pode contribuir para a luta de seus descendentes lar se expressa na constituição das comunidades
nos dias que correm? remanescentes de quilombolas, cujos direitos à
No caso dos embates travados pelos escravi- titulação legal de suas terras foi assegurado nas
zados e seus aliados, no contexto da revolta do disposições transitórias da Constituição de 1988,
Quebra-quilos, podemos citar ecos de sua me- não obstante a reação tenaz das forças latifundi-
mória e de seu exemplo, mesmo que indireta- árias e de seus aliados.
mente, em episódios posteriores da história da Na Paraíba de hoje, existem mais de 30 co-
Paraíba que contaram, e ainda contam, com for- munidades que lutam por direitos sociais básicos,
te presença de grupos afro-paraibanos. Citemos, expressos na posse coletiva da terra, em servi-
a propósito, dois eventos históricos que envolve- ços públicos e na construção de uma memória
ram a disputa pela terra em nosso estado, um grupal. Dentre as comunidades remanescentes
aspecto importante na luta dos africanos e de de quilombolas em território paraibano, merece
seus descendentes pela liberdade e por melhores registro a de Pedra D’Água, situada no município
condições de vida no passado e que ainda hoje
de Ingá. Segundo a memória coletiva da comuni-
não foi resolvido.
dade, expressa, especialmente, na lembrança dos
Na década de 1950, surgiu um importante
seus membros mais velhos, o ancestral comum,
movimento social, no contexto mais amplo da
uma espécie de fundador do grupo, chamava-se
mobilização dos trabalhadores do campo e da
Manuel Paulo Grande e teria nascido, vivido e
cidade por direitos - as Ligas Camponesas. Seu
morrido no Século XIX. O mais interessante nes-
objetivo básico era de organizar os trabalhadores
sa história é que esse personagem teria participa-
rurais para lutarem em favor da reforma agrária
do da revolta popular do Quebra-quilos, inclu-
e contra o arbítrio do latifúndio, especialmente
sive, chegou até a quebrar pesos na feira local.
o que veio dos usineiros da zona da mata e do
Portador de poderes mágicos ligados à cura e ao
brejo paraibano. O município de Sapé foi o foco
sobrenatural, ainda segundo a tradição popular,
por meio do qual a luta se irradiou para outras
áreas do Estado e do Brasil. Em seu auge, a Liga seu Manuel teria furado o cerco policial montado
de Sapé chegou a contar com mais de sete mil em torno de sua casa, após a repressão ao movi-
associados, entre pequenos proprietários, mora- mento, e se refugiou nos matagais próximos. Foi
dores, agregados e posseiros, muitos deles mes- assim que se originou a atual comunidade negra
tiços e negros. É sintomático que, quando esses de Pedra D’ Água.
trabalhadores se referiam ao trabalho rotineiro Enfim, se essas histórias fizerem algum sentido,
das usinas e dos canaviais, associavam-no a um podemos estabelecer os nexos entre o passado e o
universo de imagens e de experiências que lem- presente dos afrodescendentes paraibanos na luta
bravam o sofrimento do cativeiro, o que, na me- por liberdade e pelos direitos que lhes são nega-
mória de seus agentes, é traduzido na expressão dos até hoje, em um estado em que esse segmen-
“mundo cão”. Foi contra esse estado de coisas to representa quase 60% de sua população.
que líderes populares, como João Pedro Teixeira
e Negro Fubá, procuraram mobilizar a sua gente,
percorrendo as feiras, as vendas e as praças, em Referências
nome de uma vida melhor.
Esse processo foi brutalmente interrompido ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina
pelas forças sociais e foi implantada uma ditadu- Grande. 2. ed. João Pessoa: EDUFPB, 1978.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 37


Luciano Mendonça de Lima

ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba. 3. MEDEIROS, Maria do Céu e SÁ, Ariane Norma
ed. João Pessoa: EDUFPB, 1997. M. O trabalho na Paraíba: das origens à transi-
ção para o trabalho livre. João Pessoa. EDUFPB,
CÂMARA, Epaminondas. Os alicerces de Cam- 1999.
pina Grande. 2. ed. Campina Grande:Caravela,
1999. MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Crise agrária e
luta de classes. Brasília: Horizonte, 1980.
GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da es-
cravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa: ROCHA, Solange Pereira da.Gente negra na
EDUFPB, 1979. Paraíba oitocentista: população, família e paren-
tescoespiritual. Doutorado em História. Recife:
LIMA, Luciano Mendonça de. Derramando sus- UFPE, 2007.
to: os escravos e o Quebra-quilos emCampina
Grande. Campina Grande: EDUFCG, 2006. SÁ, Ariane Norma de Menezes. Escravos, liber-
tos e livres: a Paraíba na segundametade do Sé-
LIMA, Maria da Vitória Barbosa. Crime e castigo: culo XIX. Mestrado em História. São Paulo: USP,
a criminalidade escrava na Paraíba(1850-1888). 1994.
Mestrado em História. Recife: UFPE, 2002.
MAIOR, Armando Souto. Quebra-quilos: lutas
sociais no outono do Império. São Paulo/Recife:
ED. Nacional/Instituto Joaquim Nabuco, 1978.

38 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


OS QUILOMBOS NA PARAÍBA COLONIAL E IMPERIAL

Maria da Vitória Barbosa Lima

Na África, para a maioria dos falantes das lín- Durante o período colonial, o quilombo mais
guas bantu da África Central e Centro-ocidental, importante e conhecido nas terras paraibanas
de onde veio uma grande quantidade de africa- foi o Mocambo do Cumbe, que aparece na do-
nos para cá, mocambo significava acampamen- cumentação alguns anos depois da notícia do
to militar e moradias. A palavra quilombo, na primeiro quilombo, mais especificamente, em
África, referia-se a um ritual de iniciação de uma 1701. Segundo Irineu Pinto (1977), alguns ne-
sociedade militar dos guerreiros dos povos imban- gros fugidos de Palmares e da própria Capitania
galas; também designava uma espécie de estaca reuniam-se no lugar chamado Cumbe. Esses
em formato de forquilha, utilizada para construir fugitivos faziam coisas “terríveis pelos roubos e
moradias em acampamentos provisórios. assassinatos cometidos nas regiões circunvizi-
Dessa tradição africana, no Brasil, mocam‑ nhas”. Foi o capitão Jerônimo Tovar de Macedo,
bos e quilombos são designações usadas com 40 homens, e João Tavares de Castro, com
para nomear as comunidades de fugitivos. seus escravos e mais gente paga a sua custa, que
Atualmente, a historiografia brasileira está conseguiram destruir o quilombo e aprisionar 25
revendo a terminologia quilombo. Hoje a negros. Esse foi o primeiro registro de destruição
expressão quilombagem corresponde a todas do Cumbe.
as ações de resistência da população negra con- Ressalte-se, contudo, que o Mocambo do
tra os sistemas de opressão. O que vamos relatar Cumbe não foi extinto, ele reapareceu, ou me-
a seguir corresponde a uma das formas de resis- lhor, encontramos uma nova notícia de sua
tência da população negra ao sistema escravista destruição no ano de 1731. De acordo com
que existiu em nosso país nos anos de 1530 a uma Carta Régia de 11 de outubro de 1731,
1888. A maioria das comunidades quilombolas o Mocambo do Cumbe, que “havia mais de
só surgiu na documentação colonial quando treze anos” existia nos “arredores do Sertão do
sua existência foi identificada pela administra- Cariry, Tapuá e Taipu”, teria sido fundado por
ção colonial, e o objetivo de tal reconhecimento quatro indígenas fugidos da escravidão. Com
era apenas um: o de intervir para extingui-los. o passar do tempo, agregou escravos fugidos
Na Capitania da Paraíba, a primeira notícia dos engenhos e das fazendas da região e do fa-
de um mocambo data do ano de 1691, num moso Quilombo dos Palmares, que havia sido
lugar que, há mais de 16 anos, era refúgio de destruído no início do Século XVIII. Percebe-se
negros fugitivos na Serra da Copaoba. Essa que os moradores do Mocambo do Cumbe in-
serra é um dos contrafortes da Borborema, que comodavam a Coroa portuguesa, não só pelos
corta a Paraíba de norte a sul, ou seja, começa constantes saques aos moradores das regiões
no Rio Grande do Norte e termina em Pernam- vizinhas, mas por constituírem uma comunida-
buco, e onde houve muitas guerras entre poti- de independente dentro do Estado português, o
guaras e portugueses. Nessa área, existiu uma que desafiava a sociedade colonial.
antiga aldeia de índios, cujo chefe, Ararambé Infelizmente, a documentação oficial pouco
(ou Zorobabé), foi enviado pelos portugueses revela sobre o funcionamento da Comunida-
ao Rei da Espanha, no Século XVII. Sabe-se de do Cumbe. Provavelmente, seus membros
que, com a chegada dos holandeses à Paraíba, criavam gado e plantavam alimentos de subsis-
muitos escravos e índios, fugindo das lutas entre tência que se adequassem ao clima da região.
portugueses e holandeses e da escravização, pe- Contudo, a presença de índios na comunidade
netraram no interior da capitania para viver nas influenciou diretamente o modo de vida dos
matas. É possível que a formação desse primei- quilombolas, através da aquisição de técnicas
ro quilombo seja dessa época. de sobrevivência indígena, como os hábitos ali-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 39


Maria da Vitória Barbosa Lima

mentares e o uso do arco e da flecha na guerra foram forçados os bandeirantes a usarem as


pela sobrevivência. Consta que, quando do ata- suas, matando cinco índios e aprisionando
que ao Mocambo, em 1731, ele contava com cinquenta e seis e sete negros, escapando dos
mais de setenta quilombolas. No confronto, quatro índios os cabeças dessa gente, três, de
que fugira um por nome Bartholomeo, tão
quatro indígenas foram mortos, e cinquenta e
atrevido que com quatro filhos seus fizeram
seis índios e sete quilombolas negros aprisiona- uma emboscada e mataram um soldado, fe-
dos. rindo também um cabo tentando os seguir os
A historiografia paraibana assinala a locali- quais escaparão por veredas impenetráveis
zação do Mocambo do Cumbe em dois muni- para as cabeceiras do rio Capibaribe da juris-
cípios diferentes. Ademar Vidal (1935) assinala dição de Pernambuco e cujo governador foi
sua localização em Santa Rita, baseado na exis- avisado para mandar prender (VIDAL, 1935,
tência de um engenho com o nome de Cumbe, p. 109-110).1
one hoje se situam as ruínas da Usina San-
ta Rita. Essa denominação, provavelmente, foi Os dados disponíveis não permitem a locali-
designada pelos espanhóis que permaneceram zação exata do Mocambo do Cumbe. Contudo,
na capitania, pois, na Colômbia e na Venezue- através da análise do mapa 1, é possível afirmar
la, os lugares de fuga e de reunião de escravos que o referido quilombo ficava nas proximida-
eram chamados de palenques ou cumbes. Essa des dessas três regiões, já que os quilombolas do
ideia foi encampada por muitos historiadores pa- Cumbe, de acordo com a Carta Régia de 1731,
raibanos, porém, Horácio de Almeida (1966) e realizavam assaltos no aldeamento dos índios ca-
Irineu Joffily (1977) localizam o Mocambo nos riris, que seria transformado em Vila de Nossa
arredores de Campina Grande, possivelmente, Senhora do Pilar em 1763. Considerando o ca-
levados pela expressão “sertão do cariri”. Essa minho de fuga do índio Bartholomeo em direção
confusão se deve a dois motivos: o primeiro, pela ao Rio Capibaribe, como o caminho mais fácil
própria denominação, pois a Usina, quando ain- para escapar, não podemos supor que o quilom-
da era engenho, recebia o nome de Cumbe; e o bo ficava na parte sul das referidas povoações,
segundo, pela falta de atenção na documentação abaixo do Rio Paraíba, em direção à Capitania
da localização do quilombo, que se situava perto de Pernambuco.
dos sertões do Cariry, Tapuá e Taipu.

Carta Régia de 11 de outubro de 1731


Dom João por graça de Deus, Rei de Portugal,
faço saber a vós, Francisco Pedro de Mendonça
Gurjão, capitão-mor da Paraíba, que se viu a
vossa carta de doze de junho desse ano, sobre
os roubos que experimentavam os moradores
do sertão do Cariry, Tapuá e Taipú do mocam-
bo Cumbe, aonde se achavam havia mais de
treze anos quatro índios que havia desapare-
cido da aldeia dos Carirys, de que eram mo-
radores, tendo posto com repetidos assaltos a
aldeia com grande diminuição de índios que Mapa 1: Localização da região do Aldeamento dos Cariris e dos Engenhos Tapuá, Taipu
e Cumbe.
para ela [o mocambo] os levam; agregando a Fonte: Carvalho ( 2008, p. 119).

sua companhia os negros fugidos que podiam;


com o que haviam se haviam aumentado ao Acreditamos que o mocambo do Cumbe pos-
número de quase setenta. Pedindo-me que sa ter existido no município de Pilar – área em
ordenasse ao sargento-mor Gaspar Pereira de
Oliveira que com o capitão Theodósio Perei-
destaque no mapa 1. Esse município está situa-
ra de Oliveira fizessem entrada no mocambo e do à margem esquerda do Rio Paraíba, no ponto
aprisionassem quanta gente nele houvesse; po- em que esse rio é mais estreito. Nesse local, exis-
rém com tal moderação que evite rompimento tia, originalmente, uma aldeia de Cariris – nação
e infusão de sangue, (...) que deu nome àquela parte da Serra da Borbore-
Só no caso de desobediência, e uso de armas, ma e que, ainda hoje, é conhecida como Cariris
se poderiam valer das que usavam, e fazen- de Fora –, por isso a região era denominada de
do a entrada nessa forma, pondo-se a gente
do mocambo em armas disparando flechas, 1
Informamos aos leitores que utilizamos a grafia da época.

40 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Os quilombos na Paraíba colonial e imperial

sertão do cariri. Era nesse local que existiam os Antônio, foram passadas para o chefe de polí-
Engenhos Taipu e Tapuá, por isso a expressão na cia, que se encarregou de informar o presidente
Carta Régia de 1731, “Sertão do Cariry, Tapuá da província. Porém, o chefe de polícia, Cláudio
e Taipu”. A capitania do Taipu era constituída Manuel de Castro, solicitou mais informações ao
pelos Engenhos Espírito Santo, Podre, Tapuá e delegado da Vila de Pilar, Ismael da Cruz Gou-
Taipu. Essa região, que foi área do Mocambo do véa, para saber “se porventura houve abuso por
Cumbe, no Século XVIII, também foi de outro parte da mesma escolta”, ou seja, se a morte de
quilombo destruído em 1851. Bento poderia ser evitada.
Quanto à Paraíba imperial, há poucas infor- Antônio Albuquerque, presidente da Paraíba,
mações sobre a existência de quilombos. No iní- informou, em 1851, sobre a tranquilidade da
cio de nossos estudos, acreditávamos na quase província e, logo depois, relatou que havia sido
impossibilidade de se trabalharem os quilombos “dissolvido hum quilombo de negros nas matas
no Século XIX, devido á pouca recorrência desse do Engenho Espírito Santo. Morrêo em rezistên-
assunto na documentação pesquisada. Contudo, cia hum escravo que atirou no Inspector. Forão
pouco a pouco, tomamos conhecimento de indí- encontrados signaes de furtos de gado, e outros
cios que ampliaram nossas perspectivas para o objectos roubados”.
estudo da questão quilombola na Paraíba. Esses Reafirmamos que não eram recorrentes, na
indícios se iniciaram com a correspondência do documentação oficial ou mesmo de particula-
subdelegado de Taipu, Feles de Mello Azedo, ao res, as referências a quilombos. As fontes de que
delegado do termo da Vila de Pilar, Coronel Is- dispomos são esparsas e dispersas e, quando se
mael da Cruz Gouveia, em 17 de junho de 1851. referem a comunidades de fugitivos, detalham,
Nessa documentação, diz o referido subdelegado quase que exclusivamente, as tentativas de des-
que existia, nas matas dos Engenhos Santo An- truição dos quilombos. Outras informações que
tônio e Espírito Santo, um quilombo, cujos escra- tratam da organização social, de motivações,
vos estavam cometendo “furtos, roubos, incên- de estratégias e de objetivos dos quilombolas,
dios em casas e atacando os próprios donos”. Os quando aparecem, são em forma de pequenos
quilombolas vinham desfechando ataques contra indícios. Contudo, reunindo esses fragmentos,
o Engenho Espírito Santo e, depois, contra Fran- conseguimos reconstruir o cenário da formação
cisco Monte Negro, que afirmou que havia, ao desse quilombo.
lado da própria casa, uma “cobra bicho” que o O cenário do quilombo eram as matas dos
atacara, mas que, “felizmente”, conseguira esca- Engenhos Espírito Santo e Santo Antônio. Este
par do atentado. pertencia, em 1851, a Alexandre da Costa Cunha
O subdelegado informou, ainda, que, nas Lima, e aquele, a João de Albuquerque Mara-
matas dos engenhos, a patrulha encontrara ape- nhão. Vejamos a localização desses engenhos no
nas três escravos no quilombo e que trataram de mapa 2.
capturá-los. Contudo, dois deles logo fugiram e
ficou apenas um, de nome Bento. A força policial
reconheceu-o como sendo escravo de José Ma-
rinho Leitão de Mello. Bento não se submeteu à
ordem de prisão dada pela patrulha, pois estava
armado de um “clavinote que trazia carregado
com munição”. É possível que a arma de fogo
tenha lhe dado a falsa esperança de que poderia
sair vencedor dessa disputa. Como o quilombola
resistiu à prisão, terminou por receber “um tiro
sobre o peito, dele viera a morrer poucos minu-
tos depois”. A patrulha não conseguiu encontrar
Mapa 2: Expansão da exploração rural: expansão do açúcar no Rio Paraíba, 1634-1757
os outros escravos e, por isso, conduziu o corpo Fonte: Carvalho (2008. p. 69).

para a Capela do Engenho Santo Antônio.


As informações da destruição do quilombo, No Século XVIII, os Engenhos Espírito Santo
nas matas dos Engenhos Espírito Santo e Santo e Santo Antônio, que compreendem a área des-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 41


Maria da Vitória Barbosa Lima

tacada por traços descontínuos formando um o menor número de escravos. Todavia existiram
círculo, pertenciam à Capitania de Taipu, e eles muitos quilombos em suas matas.
foram um dos mais antigos da região que ha- A presença de quilombos nas matas dos En-
viam sido edificados por volta de 1630. Esses genhos Espírito Santo e Santo Antônio já era
engenhos ficavam às margens do Rio Paraíba, conhecida pelas autoridades da província des-
sendo que esse rio e o seu afluente, Saramago, de 1848. Nesse ano, o chefe de polícia enviou
tracejavam entre os dois. Percebe-se que, por para Pilar o destacamento que estava destinado
essa época, a Capitania de Taipu fazia divisa à Vila de Ingá. Sua intenção era, ao enviar a
com a da capital. Porém, no Século XIX, ocor- tropa militar, de ajudar o delegado a destruir o
reram algumas mudanças territoriais. A área da quilombo que vinha “engrossando” e de cap-
freguesia de Taipu foi transformada em comar- turar criminosos homicidas que, porventura, ti-
ca, composta pelos municípios da Vila de Pilar, vessem ido se refugiar nessa região. As fontes
Vila de Pedras de Fogo, Vila do Ingá e Vila de não informam se o quilombo foi destruído no
Campina Grande. ano de 1848. Provavelmente não, o fato só teria
Nessa reorganização territorial, o Engenho ocorrido apenas em 1851, com o episódio já
Santo Antônio passou a pertencer à jurisdição de revelado.
Santa Rita, comarca da capital, enquanto o Es- Os quilombos situados às margens do Rio Pa-
pírito Santo permaneceu na antiga freguesia de raíba já eram velhos conhecidos, tanto dos se-
Taipu que, nessa época, pertencia ao município nhores de engenho quanto das autoridades, pos-
da Vila de Pilar que, em 1851, tinha 23 enge- sivelmente desde o final do Século XVII, como
nhos. Em termos socioeconômicos, a comarca já informamos. Embora, em várias ocasiões, as
continuou a plantar a cana, a produzir o açúcar autoridades afirmassem ter extinguido os qui-
e a dedicar-se à criação de gado. Porém, outro lombos na Paraíba, as fontes evidenciam que
produto importante foi incorporado à economia fugitivos foram capturados em áreas comprova-
da região, o algodão, ainda no Século XVIII. Se- damente de quilombos.
gundo o recenseamento feito em 1850, a popu- Os quilombos não identificados pela docu-
lação da comarca era distribuída como revela a mentação colonial ficaram retidos na memória
tabela 1. dos escravos fugitivos - os quilombos do sertão.
Foram diversos os escravos fugitivos capturados
Tabela 1: População da Comarca de Pilar, 1850 que trilharam o caminho para o sertão paraibano,
MUNICÍPIO
POP.
LIVRE
POP.
ESCRAVA
POPULAÇÃO TOTAL fossem da própria província ou de outras. O termo
Vila de Pedras de Fogo 1.242 3.591 5.133
sertão, do Século XIX e anteriores, não detinha
Vila de Pilar 3.358 760 4.098*
a mesma acepção conforme hoje é conhecido. O
Vilar de Ingá 9.610 871 10.481
sertão era toda a área que não fazia parte do dis-
Vila de Campina trito da capital e de Mamanguape, isto é, a zona
14.449 3.446 17.875
Grande
da mata litorânea. Havia diversos sertões, como
Comarca 31.308** 6.300 *** 37.608****
mostra o mapa 3.
Fonte: ROHAN, Henrique Beaurepaire. Chorographia da Parahyba do Norte. [1870?].
fl. 23-38.
Obs. Os números apresentam alguns erros na soma das parcelas. Assim, temos: * A popu-
lação total da Vila de Pilar corresponde a 4.118, e não, a 4.098; ** a população livre da
comarca contempla 28.659; *** a população escrava, 8.668, e **** o total da comarca,
com 37.327 pessoas, como registrou Rohan.

A Vila de Pilar fazia limites com outras vilas


- Mamanguape, Independência, Pedras de Fogo,
Ingá, Areia, na Paraíba, e com a Província de
Pernambuco. Sua produção consistia na cultura
da cana de açúcar, algodão, arroz, feijão, milho,
mandioca, tabaco e na criação de gado vacum e
cerdoso. Os produtos exportados eram escoados
pelas estradas que ligavam a vila à capital e pelo
Mapa 3: Ocupação do interior: regiões, povoações e estradas (c. 1700)
caminho que levava à cidade de Recife. Fonte: Carvalho, 2008, p.51.

Na tabela 1, apresentamos a distribuição da


população livre e escrava da comarca de Pilar, no Existiam o sertão do Cariri, o do Seridó, o de
ano de 1850. Entre os municípios que formavam Piancó e o de Piranhas, para identificar as gran-
a antiga capitania de Taipu, a Vila de Pilar tinha des áreas ou, então, o “sertão do Tapuá”, de for-

42 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Os quilombos na Paraíba colonial e imperial

ma mais precisa, para situar as terras da aldeia países que tiveram, durante algum período de
indígena que lá existiu e que denominou o enge- sua formação, como base produtiva, o traba-
nho Tapuá, construído no mesmo local. Como já lho escravo africano. Fica evidenciado o esfor-
afirmamos, o sertão era atrativo para os cativos ço, mesmo que tardio, da luta pela valorização
fugitivos, tanto pela dificuldade de se aplicar a da população negra e, devido a isso, a ressig-
justiça sob a orientação da capital quanto pela di- nificação do termo quilombo, através da qual
ficuldade de se capturar o fugitivo ou, ainda, pela comunidades negras, não remanescentes dos
possibilidade de alcançar uma mobilidade social, tradicionais quilombos do período colonial ou
como nos mostra o caso do escravo Joaquim, an- imperial, também estão atuando politicamente
gola, de idade de 35 anos, que fugiu da Capital, em defesa do título de legalização da proprieda-
levando consigo roupas e uma foice de roçar para de de suas terras.
“levantar currais de fazenda” no sertão.
Como é perceptível, os sertões eram muitos,
assim como foram os fugitivos. A possibilidade de Referências:
cativos fugirem para quilombos que a documen-
tação oitocentista não revela é bastante factível. ALBUQUERQUE, Antônio Coelho de Sá. Rela‑
Estudos recentes, a partir da década de 1980, torio apresentado à Assemblea Legislati‑
revelam a existência de remanescentes quilom- va Provincial da Prahyba do Norte ...2 de
bolas nos “sertões” paraibanos, em áreas em agosto de 1851. Parahyba: Typographia J. R.
que muitos escravos fugitivos foram encontra- da Costa, 1851.
dos, como a de Livramento, em Princesa Isabel,
no antigo sertão de Piancó e de Piranhas; o do ALMEIDA, Horácio de.História da Paraíba.
Talhado, em Santa Luzia, e Caiana dos Crioulos, João Pessoa: Imprensa Universitária, 1966. V. I.
em Alagoa Grande, no antigo sertão do Seridó.
A presença de quilombos não era exclusivida- AQUINO, Aécio Villar de. Quilombos e remanes-
de das matas e dos sertões paraibanos. É possí- centes de quilombos na Paraíba. In: MOURA,
vel perceber a existência de alguns dentro das ci- Clóvis. Os quilombos na dinâmica social do
dades, os chamados quilombos urbanos. Assim, Brasil. Maceió/AL: UFAL, 2001.
como os que havia nas matas, nesses, criavam-se AZEDO, Feles de Mello. Ofício de …, subdelega-
e recriavam-se laços de solidariedade e de expe- do suplente, ao coronel Ismael da Chrus Gou-
riências culturais. Na segunda metade do Século veia, delegado do Termo da Vila de Pilar. Sub-
XIX, na capital da Paraíba, conhecida como Ci- delegacia, 17 de junho de 1851. Localização:
dade da Parahyba, havia locais de grande circu- AHPB – Capilha: Subdelegacia de Taipu. Caixa:
lação de homens livres negros e libertos, como 29, Ano: 1851.
o Bairro Jardim e o Jaguaribe, onde existiam
casas destinadas a acoitar escravizados fugitivos, CARVALHO, Juliano Loureiro de. Formação
ou seja, a escondê-los. Havia áreas de sítios mais territorial da Mata Paraibana, 1750-1808.
afastadas da cidade, como Cruz do Peixe e Para- Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanis-
tibe, que eram espaços de circularidade da popu- mo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade
lação negra, fosse livre, liberta ou escrava. Federal da Bahia, 2008.
Em alguns dos locais onde, comprovadamen-
te, escravos fugitivos foram encontrados no Sé- CASTRO, Cláudio Manoel de. Ofício ..., chefe de
culo XIX e em anteriores e, ainda hoje, encon- polícia, a Ismael da Cruz Gouvéa, delegado do
tram-se comunidades negras, do litoral ao sertão, termo de Pillar. Secretaria de Polícia, 25 de junho
que se autorreconhecem como remanescentes de 1851. Secretaria de Polícia: correspondên-
quilombolas, algumas delas, como, por exemplo, cia expedida para as autoridades policiais, 1851.
Mituaçu, Ipiranga e Gurugi, em Conde, Serra Localização: AHPB.
do Talhado, em Santa Luzia do Sabugi, já foram JOFFILY, Irinêo. Notas sobre a Parahyba. Bra-
identificadas e reconhecidas pelo governo brasi- sília: Thesaurus, 1977.
leiro e lutam pelo definitivo título de propriedade
de suas terras. GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pân‑
Enfim, a legislação brasileira, que reconhece tanos: mocambos, quilombos e comunidades
o direito dos remanescentes quilombolas às ter- de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). São
ras que ocupam, serve de exemplo para outros Paulo: UNESP/Polis, 2005.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 43


Maria da Vitória Barbosa Lima

GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escra- VASCONCELLOS, João Antônio. Ofício de ...,
vidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: presidente da província, ao chefe de polícia. Pa-
Contexto, 2005. lácio do Governo, 24 de julho de 1848. Localiza-
ção: AHPB - Caixa: 26, Ano: 1848.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São
Paulo: Zumbi, 1959. VIDAL, Ademar. Três séculos de escravidão na
Paraíba. Estudos Afro-brasileiros. Rio de Ja-
PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para neiro, Ariel, v. 1, 1935.
a História da Paraíba. João Pessoa: UFPB,
1977.v. 1.
ROHAN, Henrique Beaurepaire. Chorographia
da Parahyba do Norte. [1870?]. Localização:
Biblioteca Nacional, Seção de Obras Raras,
4,3,23.

44 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


MULHERES NEGRAS NA PARAÍBA IMPERIAL E ENSINO DE
HISTÓRIA1

Solange P. Rocha

Penetrar no ensino público, interferir nos conteúdos curri-


culares, criar novos materiais didáticos, formar professo-
res comprometidos com os interesses dos grupos margi-
nalizados [...] tudo isso ganha uma ênfase nova quando
faz parte de um projeto de mudança mais amplo, confe-
rindo positividade à escola que vem sendo denunciada
pela sua face mais perversa [a de não combater o ra-
cismo]. Carta da Editora dos Cadernos de Pesquisa2 da
Fundação Carlos Chagas, 1987.

Introdução1 vivências das mulheres negras que ganharam al-


guma visibilidade nas últimas décadas do Século
Com o objetivo de contribuir com a aplicação XX. Em tais estudos, foram destacados aspectos
da Lei 10.639/03, no âmbito da história do Bra- relacionados às mulheres negras, como as ocu-
sil, em particular, da Paraíba, ao elaborar o pre- pações econômicas desenvolvidas por elas, em
sente texto com alguns resultados de pesquisas variadas épocas e diferentes espaços físicos, as
históricas, procurei evidenciar algumas histórias relações familiares (consanguíneas e espirituais),
de mulheres negras, na condição de escraviza- a utilização de estratégias para a conquista da li-
das, na Paraíba Imperial, que agiram ativa e cria- berdade, o trabalho para sobreviver na condição
tivamente na conquista da própria liberdade ou de forra, à atuação na reelaboração das práticas
de seus filhos e de suas filhas.2 religiosas que contribuíram para a manutenção
Antes de adentrar nas trajetórias das mulheres da cultura negra, entre outros.3 Desse modo,
negras, farei uma breve discussão sobre a pers- procuro evidenciar uma visão contrária à histo-
pectiva teórica que possibilita a elaboração de riografia tradicional, mostrando que mulheres es-
pesquisas sobre elas: História das Mulheres, que cravizadas não aceitaram, passiva e pacificamen-
se beneficiou do avanço da História Social, cujo te, sua situação jurídica, visto que há histórias de
pressuposto está voltado para a valorização das algumas que ultrapassaram os limites impostos
pessoas comuns, anteriormente consideradas se- pela sociedade escravocrata e conquistaram um
res minorizados e sem história, sobre os quais se novo status social, para si ou para seus familiares.
entende que “não eram simples presas das forças
históricas externas e determinantes”. Pelo contrá- Mulheres e mães escravizadas: lutas no
rio, enfatizam o “papel ativo e essencial na cria- interior do sistema escravista para manter
ção de sua própria história e na definição da sua o vínculo familiar
identidade cultural” (DESSAN, 2001, p. 74). As-
sim, com a utilização e a análise de variadas fon- Começo narrando a história de Camila, mãe
tes primárias e abordagens metodológicas, têm natural de três crianças, inicialmente, todos per-
sido desvelados inúmeros universos femininos, tencentes a Joaquim de Mello Azedo, proprietário
como as pesquisas acerca das experiências e das do Engenho Poxi (localizado nas proximidades
1
Uma versão ampliada desse texto foi publicada no livro CE- 3
Destaco alguns estudos que mencionam as mulheres negras no
BALLOS, Rodrigo; BEZERRA, Josineide da Silva (Orgs.). Século XIX: Maria Odila L. da S. Dias (1984); Sônia Giacomini
História,memória e comemorações – ANPUH-PB. Campina (1988); Cecília M. Soares, 1994; Keila Grinberg, 1994; Solange
Grande: EDUFCG, 2012. P. Rocha (2001); Maciel Henrique C. da Silva (2004). Os artigos
2
O periódico intitulado Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos de Sheila Faria, 2007; Carlos E. S. Soares e Flávio dos S. Gomes,
Chagas, publicou um número sobre “Raça negra e Educação”, 2007 e Maria Elizabeth R. Carneiro, 2007. Vale mencionar o con-
resultante das discussões do Seminário O Negro e a Educação, junto de textos lançados recentemente, que abordam a história
realizado em dezembro de 1986, organizado pela mencionada das mulheres negras no período escravista e no pós-abolição, em
fundação e pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da 2012. Trata-se de livro organizado por Xavier; Farias; Gomes,
Comunidade Negra do estado de São Paulo. 2012.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 45


Solange P. Rocha

da capital, na freguesia de Santa Rita, área com no mês de março de 1870, cerca de seis meses
expressivo número de engenhos que, em 1855, após ter enviuvado de Joaquim de Mello Azedo,
totalizavam 29), e sua terceira esposa, Porfíria havia documento informando de sua nova con-
Cabral de Mello. Interessante destacar que Ca- dição de esposa de Francisco Gomes da Silvei-
mila passou por duas transmissões/partilhas de ra, que também foi o inventariante dos bens de
bens, em um curto período de três anos, o que Dona Porfíria, após sua morte, ocorrida em 04
resultou não só na separação de seus parceiros de fevereiro de 1872. Sua riqueza constava de
de escravidão como também de seus parentes. propriedade de escravizados – eram 20 pessoas
Mas ela não assistiu passivamente ao afastamen- (18 adultos: nove homens e nove mulheres; duas
to de seus filhos da abertura de um inventário crianças; 16 crioulos e quatro africanos), “bens”
para outro. Mostrou conhecer, minimamente, de raiz, imóveis e metais preciosos, que soma-
como funcionavam as relações escravistas e con- vam 37.198$237 réis (Inventário de Joaquim de
seguiu manter, com a compra da carta de alfor- Mello Azedo, 1869, fl. 94, ATJPB). Valor bem
ria, o convívio com um dos seus filhos. abaixo dos de 73:930$120 réis na primeira par-
Um mês depois da morte de Joaquim de Me- tilha. A divisão dos bens foi realizada em 16 de
llo Azedo, em 18 de outubro de 1869, teve início setembro de 1872. Nessa ocasião, Camila apa-
a elaboração do seu inventário,4 cuja inventa- recia, unicamente, como mãe de Joana, de oito
riante era a esposa Porfíria. Com a avaliação dos meses, avaliada em 100 mil réis.
bens, listaram-se, além do Engenho Poxi, quatro Mas, vejamos as ações de Camila na segun-
fazendas de gado, “uma parte de terra” em In- da partilha, feita a partir do Inventário de 1872.
dependência, um sobrado, no centro da capital, Convém lembrar que seus dois filhos – Serafim
e uma população escravizada de 34 pessoas (25 e Arcanja – pertenciam aos órfãos que os herda-
adultos: 13 homens, 12 mulheres e nove crian- ram em 1869. Nessa segunda partilha de bens,
ças: seis meninos e três meninas; 28 crioulos e os herdeiros seriam o marido de Porfíria e seus
seis africanos). Nossa personagem Camila (25 quatro filhos. Após a avaliação e a divisão dos
anos), em 1869, era mãe de duas crianças: Se- bens, o quadro que se observa para Camila era
rafim, de quatro anos, e Archanja, de seis meses. dos mais difíceis, pois, mais uma vez, ela pode-
Com a partilha, realizada em 28 de novembro ria ser dividida entre os herdeiros, e sua filha,
de 1869, os herdeiros e herdeiras de Mello Aze- herdada por terceiros. Essa hipótese é levanta-
do somavam oito pessoas - a esposa Porfíria e da com base nos documentos anexos contidos
os quatro filhos nascidos dessa união, além de nos inventários que revelam a tensão existente
três outros herdeiros que nasceram de outra rela- antes e depois da morte de Dona Porfíria. O pai,
ção marital do inventariado. Na divisão, Camila o Tenente-coronel Antônio Pereira de Castro, se-
foi destinada a “Dona” Porfíria Cabral de Mello, nhor do Engenho Pindoba (Santa Rita), dez dias
e seus filhos, Serafim e Arcanja, foram legados depois da morte da filha, em 14 de fevereiro de
aos filhos de sua proprietária, respectivamente, 1872, solicitou a tutoria dos quatro netos (Maria,
os órfãos Joaquim e Francisca. De modo que, nove anos; Emília, oito; Joaquim, cinco, e Fran-
pelo fato de os filhos de Porfíria serem menores, cisca, dois), outrora recusada, isto é, em 20 de
podemos destacar que havia grande probabili- novembro de 1871, como tutor dos netos, pois,
dade de os órfãos se manterem em companhia segundo as autoridades, ele tinha idade avança-
da mãe. Assim, a tendência era de que Camila da e era sujeito a adoecer (Inventário de Joaquim
continuasse a conviver com os filhos. Porém, le- de Mello Azedo, 1869, fl. 94, ATJPB).
galmente, eles pertenciam a senhores diferentes, Contudo, após a morte de Dona Porfíria, ele
e isso poderia afetar suas vidas no futuro, como, conseguiu ser tutor dos seus netos/órfãos. Na
de fato, ocorreu com a morte de “Dona” Porfíria, tentativa de intervir na divisão dos bens, seu ad-
em 1872. vogado solicitou que fosse “separado para os ór-
Passados pouco mais de dois anos da morte fãos [seus netos] a cativa Camila, indicada com a
do marido e de seu matrimônio com Francisco profissão de cozinheira, pela razão de dois filhos
Gomes da Silveira, Porfíria faleceu. Sobre o seu dela [Serafim e Arcanja] já pertence[rem] aos
segundo casamento, não se sabe com exatidão mesmos órfãos, como o inventário que se pre-
quando ela “contrai[u] segundas núpcias”, mas, cedeu por morte de seu pai” [Joaquim de Mello
Azedo]. Também afirmou: “A legislação que para
4
Os dois inventários analisados, pertencentes a Joaquim de Mello
Azedo (1869), e o de Porfíria de Mello Cabral (1872) estão arqui- isto é[era] citada, não tem cabimento, não po-
vados no ATJPB. dendo ser aplicada. Não se trata de partilhar mãe

46 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Mulheres negras na Paraíba imperial e ensino de história

e filhos. Esses já foram partilhados”. O tutor-avô dois dos seus filhos, Marcos e Pio. Além desses
não teve êxito em seu pleito, pois as crianças her- dois meninos, sua filha Paula recebeu carta de
deiras receberam apenas bens imóveis e animais alforria em testamento de Joaquim Gomes da
e não herdaram nenhum escravizado ou escra- Silveira, redigido no ano de 1866. Talvez essa te-
vizada. Porém Camila e mais cinco escravizados nha sido a maneira de o mencionado proprietá-
ficaram sob a posse do viúvo Francisco Gomes rio “agradecer” a Baldoína pelas várias crianças
da Silveira. nascidas do seu ventre escravo, pois comum era
E o que se reservava para a pequena Joana, libertar pessoas adultas, como ele mesmo fez, ao
filha de Camila, nascida dois meses antes da pro- “recompensar” três adultos (Mariano, africano;
mulgação da Lei Rio Branco, que “libertou” o Felicidade, crioula, e Antônio Tobias, pardo) pe-
ventre escravo? A própria Camila, que parecia ter los “bons serviços [...] prestados” à família Go-
mantido a convivência com Serafim e Arcanja, mes da Silveira, conforme Testamento de Joa-
após a segunda partilha (1872), foi separada de- quim Gomes da Silveira (1866, ATJPB).
les. Mas, dessa vez, ela procurou mudar o destino A cativa Baldoína também fazia parte das
reservado às mães-cativas, pois conseguiu com- poucas pessoas que conseguiram recursos para
prar a carta de alforria de sua filha, por 100 mil comprar a carta de liberdade, na ocasião da di-
réis. Ou seja, ela havia perdido o convívio com visão de bens da família Gomes da Silveira. Em
os dois filhos, na primeira partilha (1869), e não seu caso, ela buscava obter a liberdade de dois
deve ter medido esforços para obter a quantia filhos. Duas pessoas adultas (Felipe e Inácia)
para adquirir a liberdade de Joana. também conseguiram obter a carta de liberdade,
Para concluir, uma última história de mãe- via compra. Em comum, compraram a alforria
-escravizada, moradora também da propriedade por preços acima do que constava na avaliação
rural, que conseguiu comprar a carta de liberdade do inventário. O menino Pio estava avaliado no
de seus/as filhos/filhas, na Paraíba, em dramáti- Inventário em 200$000 réis, mas sua alforria
cos momentos da partilha de riquezas. Trata-se foi obtida depois de terem sido pagos 330$000.
de Baldoína, pertencente a Joaquim Gomes da Marcos constava por 300$000 réis, mas se exigiu
Silveira, dono de três engenhos na freguesia de a quantia de 400$000 réis pela sua liberdade;
Livramento (localizada nas proximidades de San- enquanto para a de Felipe, constava o valor de
ta Rita e a cerca de 15 quilômetros da Cidade da 1:200$000 réis, mas foi libertado por 1:295$000
Parahyba, como era nomeada a capital da pro- réis. Por último, temos Inácia, 60 anos, avalia-
víncia, a atual João Pessoa), no período oitocen- da em 100$000 réis, indicada no testamento
tista: Gargaú, do Meio e o Inhobim. Dentre eles, de Joaquim Gomes da Silveira para ser herda-
o Engenho do Gargaú era um dos principais da da por Apolônia Maria da Conceição (segunda
Zona da Mata da Paraíba no Século XIX e esta- mulher de Joaquim Gomes da Silveira). Todavia,
va na família Gomes da Silveira, provavelmente, ela conseguiu comprar sua alforria, “em juízo”,
desde a década de 1840, quando se tem o assen- por quantia bem superior ao valor pelo qual fora
to batismal de escravizados realizado na capela do avaliada: 255$000 réis. Nessa transação dos es-
referido engenho, cuja invocação era Sant’Ana, cravos, os Gomes da Silveira ganharam 480$000
mais especificamente, em 28 de julho de 1844. réis.
Essa era a época provável em que os Gomes da Como vimos, as duas mulheres/mães cativas
Silveira adquiriram o Engenho Gargaú, que per- (Camila e Baldoína), que viveram em áreas ru-
maneceu sob posse da família até 1892. rais da Zona da Mata da Paraíba, local da maio-
Trata-se da trajetória de Baldoína, mãe de ria dos engenhos de açúcar da província, cons-
nove crianças, nascidas entre 1850 e 1873, a truíram estratégias para adquirir a liberdade de
saber: Paula (que nasceu por volta da década seus filhos e filhas. Vale salientar que elas viviam
de 1850), Bernarda (1858), Josefa (1861), Mar- na zona rural e conseguiram formar economias
cos (1863), Pio (1864), Celestina (1868), Luzia e, com esses recursos, compraram a liberdade de
(1870), Lúcio (1871) e Atanázio (1873).5 seus filhos, mostrando assim, que valorizavam a
Na ocasião da divisão de riqueza (1870), Bal- relação afetiva com seus filhos e suas filhas. Elas
doína conseguiu comprar a carta de alforria de parecem confirmar uma afirmativa de João José
Reis e Eduardo Silva (1989, p. 33), que destaca-
Para obter dados sobre a idade dos filhos e das filhas de Baldoína,
5
ram a necessidade de escravizados “enfrentarem”
pesquisei o Livro de Batismo de Livramento, 1863-74, fls. 109
e 163, no AEPB, e o Inventário de Joaquim Gomes da Silveira, seus escravizadores com “inteligência e criativi-
1869, ATJPB. dade”, contribuindo para o desenvolvimento de

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 47


Solange P. Rocha

“uma fina malícia pessoal, uma desconcertante 1871) da qual, entre várias características, desta-
ousadia cultural, uma visão de mundo aberta ao co dois aspectos: a intensificação da intervenção
novo”. direta do Estado nas relações senhor/escraviza-
dor versus escravizado(a) e a legalização de uma
A luta nos tribunais nos anos finais da es‑ prática comum na sociedade escravista - o uso
cravidão de pecúlio para obtenção da carta de alforria.
Sobre isso, o Artigo 4º da Lei 2040 estabelecia:
Mulheres e homens escravizados da Paraíba “É permitido ao escravo a formação de um pecú-
oitocentista lançaram mão de diferentes lutas lio com o que lhe provier de doações, legados e
para conquistar a liberdade. Contudo, para fi- heranças” e “por consentimento do senhor, obter
nalizar este texto, destaco a ação empreendida do seu trabalho e economias”. Além disso, com-
por Antônia, uma escravizada parda, de 28 anos, plementava com o inciso segundo, informando
moradora de Areia, nos anos finais da escravi- que o escravizado com pecúlio, ou seja, com re-
dão. A trajetória de Antônia foi desvelada nas cursos para indenizar o seu valor, tinha “direito
pesquisas de Silva (2010, p. 168-170), que, a à alforria”, e se não houvesse acordo entre as
partir da leitura de fontes cartoriais, informa-nos partes, seria feito o “arbitramento”.6 Conforme
que, em março de 1883, Antônia, uma mulher Chalhoub (1990, p. 158), essa lei, apesar de re-
“parda”, de 28 anos, “impetrou uma petição” conhecer e legalizar a prática de pecúlio para a
no tribunal, com o objetivo de obter sua liber- obtenção de alforria, tem suas “ambiguidades
dade via compra com pecúlio/economias de que e vacilações”, contudo, concretamente “havia
dispunha, por ter dois animais (uma vaca e um chances mais reais de os escravos atingirem a
cavalo), um “roçado de algodão e outros bens”, alforria mesmo contra a vontade dos senhores”.
que somavam cerca de 100 mil réis. Em seguida, No caso de Antônia, sua ação se iniciou doze
o Juiz de órfãos, Alfredo Moreira Gomes, res- anos depois da aprovação da referida lei, e, em
ponsável pelo caso, indicou um curador – João todo o Brasil, muitas pessoas escravizadas já ha-
Lopes Coelho Gonçalves – e, conforme determi- viam se beneficiado e se libertado do cativeiro.
navam as leis imperiais, foi retirado do poder de Talvez, por isso mesmo, seu dono abriu mão de
seu dono – Manoel Guedes de Moura – e passou litigar nos tribunais por sua posse.
a ser responsabilidade de outro homem,Liberato Tais experiências históricas evidenciam a
dos Santos Leal, que foi nomeado seu depositá- “agência escrava” de mulheres da Paraíba, que
rio. conseguiram adquirir recursos e obter a liberda-
A ação de liberdade de Antônia foi exitosa, e de de seus filhos ou delas próprias. Certamen-
sua resolução se deu em poucos meses, de mar- te, ações dessa natureza ocorreram em todo o
ço a julho de 1883. No decorrer das audiências, Brasil, como estratégias políticas de resistência
foi evidenciada a ausência do proprietário. Toda- ao sistema escravista daquelas que conseguiram
via, o Juiz não deixou de deliberar sobre o caso romper com os destinos que lhe tentaram impor,
e tomou as seguintes decisões: formou comissão como os seus proprietários, os escravizadores.
para avaliar os bens de Antônia, em 24 de abril Finalizando
de 1883, e, em 12 de maio, convocou seu pro- Com as trajetórias das mulheres escravizadas,
prietário, por exigência do curador da escraviza- procurei desvelar aspectos de sua historicidade,
da. Foi informado que ele havia se mudado para mostrando que elas romperam o silêncio e se co-
a província do Rio Grande do Norte. Mesmo as- locaram, dentro de suas possibilidades e conforme
sim, em 15 de junho, realizou audiência para o conjunturas históricas, contra o sistema. Saliento,
“arbitramento” do valor de Antônia, cuja quan- ainda, que tais atuações foram individuais, mas,
tia foi de 60$000,00, considerando sua “idade e sem dúvida, as ações políticas dessas mulheres
estado de saúde”. Finalmente, no mês seguinte, contribuíram para enfraquecer o poder senhorial
em 27 de julho, Antônia conquistou sua carta de e, portanto, o próprio sistema escravista.
liberdade. Para isso, beneficiou-se das mudan- Essas histórias, ao serem levadas para o espa-
ças ocorridas no processo da abolição que, no ço da sala de aula, podem contribuir com a for-
Brasil, caracterizou-se como “lento e gradual”, mação e afirmação da identidade negra. Vale sa-
uma opção das elites imperiais para protelar o lientar que esse conhecimento sobre as mulheres
fim da escravidão. 6
A Lei Rio Branco (ou 2040) encontra-se, na íntegra, no livro de
Uma das maneiras de adiar a Abolição foi a SILVA, Jorge da.Direitos civis e relações raciais no Brasil.
aprovação da Lei Rio Branco (28 de setembro de Rio de Janeiro: Luam, 1994, p. 235-241.

48 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Mulheres negras na Paraíba imperial e ensino de história

negras atende aos princípios da Lei 10.639/03, Bibliografia


que orienta a “valorização da história dos povos
africanos e da cultura afro-brasileira na constru- ALBUQUERQUE, WlamyraR. de; FRAGA FI-
ção histórica e cultural brasileira” (DIRETRIZES, LHO, Walter. Uma história do negro no Bra‑
2005, p. 18). sil. Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais;
As trajetórias femininas da Paraíba mencio- Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
nados neste texto podem ser ampliadas com
outras informações históricas obtidas em mate- CARNEIRO, Maria Elizabeth R. Cartografia das
riais didáticos ou atividades desenvolvidas com amas-de-leite na sociedade carioca oitocentista.
a comunidade, com entrevistas e reconstituição Textos de História, Brasília, vol. 15, n. 1/2,
de histórias de vida, no caso de estudar temas 2007.
da contemporaneidade, buscando ter uma visão
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade:
ampla das mulheres negras que viveram no pas-
uma história das últimas décadas da escravidão
sado.
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,
Finalizando, destaco que a História, como
1990.
disciplina, pode ser um caminho para descons-
truir o imaginário extremamente negativo que é DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual
associado à população negra e, em particular, na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In:
às mulheres negras, e contribuir para que pes- HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradu-
soas negras possam forjar novas subjetividades ção Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. Rio de Janei-
e identidades, na quais sejam reconhecidas suas ro: Martins Fontes, 2001, p. 63-96.
origens raciais. Para os não negros – crianças,
adolescentes, jovens, adultos, idosos – as infor- DIAS, Maria Odila L. da S. Quotidiano e po‑
mações históricas sobre população negra pode der em São Paulo no Século XIX. São Paulo:
ser uma oportunidade de conhecer a diversidade Brasiliense, 1984.
racial e cultural dos sujeitos sociais que compõem
FARIA, Sheila. Damas mercadoras: as pretas mi-
a sociedade brasileira, conforme proposto pela
nas no Rio de Janeiro: (Século XVIII-1850). In:
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SOARES, Mariza de C. (Org.). Rotas atlânti‑
cas da diáspora africana: da Baía do Benim
ao Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUFF, 2007,
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Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 49


Solange P. Rocha

SILVA, Eleonora Félix da.Escravidão e resis‑ SOUZA, Andréia L. de; SOUSA, Ana Lúcia S.;
tência escrava na “Cidade d´Arêa” Oito‑ LIMA, Heloísa P.; SILVA, Márcia. De olho na
centista. Campina Grande. Dissertação (Mes- cultura! Pontos de vista afro-brasileiros. Salva-
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Fundação Cultural Palmares, 2006.
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SILVA, Maciel Henrique Carneiro da: Pretas de Estudos Afro-orientais; Brasília: Fundação
de honra: trabalho, cotidiano e representações Cultural Palmares, 2006.
de vendeiras e criadas no Recife do Século XIX
(1840-1870). Dissertação (Mestrado em Histó- XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B.; GOMES,
ria) UFPE: Recife, 2004. Flávio (Orgs.). Mulheres negras no Brasil es‑
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e trabalho urbano no Século XIX. In: SOARES,
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neiro. Rio de Janeiro: EdUFF, 2007, p. 191-224.

50 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


REGISTROS SOBRE O MOVIMENTO NEGRO DA PARAÍBA

Ivonildes da Silva Fonseca

NOTA INTRODUTÓRIA

Se o eixo central, tanto das lutas sociais dos movimentos


negros, como dos debates políticos e intelectuais engaja-
dos, é a mudança da sociedade brasileira visando à in-
clusão e participação qualitativa e quantitativa do negro,
essa mudança não se constrói no vazio [...] (MUNANGA,
Kabengele apud MOURA, 2004)

As resistências do povo negro, no Brasil, nas A necessidade de organização atende a um


sociedades escravista, pós-escravista ou contem- requisito universal humano: juntar-se, procurar
porânea, manifestaram-se e ainda se manifestam o outro para constituir força. O ajuntamento
de várias formas. Os registros são de fugas isola- proporciona o sentimento de afetividade e, uti-
das, formação de quilombos – dos quais Palma- lizado politicamente, promove a descoberta das
res é emblemático – aborto, suicídio, organização potencialidades e o seu compartilhamento em
de confrarias religiosas, candomblé, participação situações que requerem soluções, sobretudo no
no movimento abolicionista e organização do combate a atitudes provindas de um esquema de
movimento negro contemporâneo (CARDOSO, exploração humana, em que se destaca a escra-
2002, p. 26); (NASCIMENTO, 1981, p. 18);( vidão ocidental.
MOURA, 2004, p. 10);(FÉLIX, 1996, p. 211). No contexto da pós-abolição, eclodem mo-
A partir da exemplificação acima, fica asse- vimentos que a pesquisadora Elisa Nascimento
verado que organização social é necessidade (1981, p. 214) estabeleceu como marco histórico
humana, e esse processo é frequente na vida do início do Século XX, precisamente do ano de
da população negra do Brasil, na condição so- 1916 até a década de 1950, constituindo a época
cial de escravizada ou livre. Todavia, neste texto, do desenvolvimento de uma “consciência negra
faremos um recorte no conjunto das formas de sócio-política, que cresceria e se desenvolveria
resistência para o contexto pós-abolição e para com o tempo”, valendo a ressalva para o perfil
a organização com caráter político reivindicató- integracionista apresentado, ou seja, esses movi-
rio, associado a uma ostentação da identidade mentos reagiam “contra o mais emergente aspecto
negra específica, que conhecemos, atualmente, do racismo, isto é, a discriminação no mercado de
como Movimento Negro que, como realça Car- trabalho” (1981, p.183). A luta centrava “as con-
doso (2002, p. 9), “é uma continuidade das lutas dições de vida a que foi relegada a imensa maioria
travadas pela população negra no passado”. dos negros brasileiros” (FÉLIX, 1996, p. 213). O
Assim, nosso objetivo é de apresentar a his- integracionismo é, portanto, a denominação dada
tória do Movimento Negro da Paraíba, tomando à reivindicação por participação da população ne-
como ponto de referência a frase de Munanga, gra, na sociedade brasileira, sem discutir a estrutu-
extraída da epígrafe que abre este trabalho: “Essa ra social e sem visibilizar o caráter estruturante que
mudança não se constrói no vazio” (MUNANGA o racismo toma na sociedade.
apud MOURA, 2004). Portanto, inicialmente, te- A reação organizada resultou no que Nasci-
ceremos algumas considerações acerca do pro- mento (1981, p. 183) marca como o “primeiro
cesso de constituição desse Movimento. movimento político de massa do povo negro
Vale ressaltar que, no Brasil, o processo de no Brasil pós-abolição: a Frente Negra Brasilei-
organização do povo negro ocorre com o se- ra”, que se estendeu de 1931 a 1937. Por ser
questro, em terras africanas, de pessoas que aqui considerada ilegal pela ditadura do Estado Novo
foram colocadas em condições desumanas e se (1937-1945), figurou com o nome “União Negra
tornaram escravas. Foi o que aconteceu com gru- Brasileira” até 1938.
pos humanos que viviam em regiões da África A Frente Negra Brasileira é assunto obrigató-
Ocidental e parte da Oriental. rio para quem se debruça na história da organi-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 51


Ivonildes da Silva Fonseca

zação do povo negro no Brasil. Por conseguinte, A caixa pecuniária era uma forma de apoiar a
é citada ou descrita por muitos estudiosos. A data realização de alguns objetivos, tais como: levan-
de fundação dessa organização, considerada das tamento moral da raça; alfabetização do povo
mais fortes no Século XX, foi 16 de setembro de negro; reconstrução da família; formação da elite
1931 e teve como palco inaugural a cidade de da mulher negra e trabalho.
São Paulo, com itinerância para o interior paulis- Com o seu poder de mobilização, a Frente
ta. A força de difusão dessa organização chegou Negra conseguiu concretizar o seu propósito, em
aos estados da Bahia, de Pernambuco, do Mara- nível nacional, e foi transformada em partido
nhão, do Rio de Janeiro, de Sergipe, do Espírito político, o qual, em 1937, teve fim, pois Getúlio
Santo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Vargas decreta ilegal toda atividade política par-
Devido à valiosa informação de Clóvis Moura tidária (CARDOSO, 2002, p. 34); (NASCIMEN-
(MOURA apud CARDOSO, 2002, p. 31) sobre TO, 1981, p. 183).
a Frente Negra Brasileira, segue a transcrição do Além da Frente Negra Brasileira, outras or-
seu funcionamento: ganizações ocupam lugar na história do Brasil.
Porém, como esse espaço não é propício para
Sua estrutura organizacional já era bastante descrevê-las, apontaremos algumas que incorpo-
complexa, muito mais do que a quase inexis- raram o item educação em sua pauta de reivin-
tente dos jornais que a precederam e possibili- dicação. Assim, citamos o Teatro Experimental
taram o seu aparecimento. Era dirigida por um do Negro – TEN – cuja fundação ocorreu no Rio
Grande Conselho. Constituído de 20 membros,
de Janeiro, no ano de 1944, e que, nas palavras
selecionando, entre eles, o Chefe e o Secretário.
Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado
de Nascimento (1981, p. 188), “foi o primeiro
pelos Cabos Distritais da Capital. [...] Criou-se elemento do movimento afro-brasileiro a ligar,
ainda uma milícia frentenegrina, organização na teoria e na prática, o conceito intrinsecamen-
paramilitar. Os seus componentes usavam ca- te político da afirmação e do resgate da cultura
misas brancas e recebiam rígido treinamento negra-africana brasileira, com a atuação política
militar. Segundo depoimento de um dos seus ostensiva”.
fundadores, Francisco Lucrécio, a Frente Negra O trabalho de outras entidades negras e da Im-
foi criada por ele e outros companheiros em- prensa Negra, no Século XX, conforme pode ser
baixo de um poste de iluminação. Inicialmente apreciado no trecho abaixo, é digno de registro:
(ainda segundo ele), houve muita incompreen-
são. Diziam que estavam fazendo discrimina-
Além da Associação do Negro Brasileiro, que
ção ao contrário. No entanto, com o tempo, os
continuava atuando em São Paulo, havia na
membros da Frente Negra foram conseguindo
metade do Século a Frente Negra Trabalhis-
a confiança não somente da população, mas
ta (São Paulo), a União dos Homens de Cor
também das autoridades. Os seus membros
(Porto Alegre), a Turma Auri-verde e o grê-
possuíam carteira que os identificava, com re-
mio Literário Cruz e Souza (Minas Gerais); e a
tratos de frente e de perfil. Quando as autori-
União Cultural dos Homens de Cor (Rio), sob a
dades policiais encontravam um grupo negro
liderança de José Pompílio da Hora. Em 1949,
com esse documento, respeitavam-no, porque
fundou-se a União Nacional dos Homens de
sabiam que, na Frente Negra, só entravam pes-
Cor, que advogou a formação de cooperativas
soas de bem.
e escolas para melhorar a vida do favelado,
fornecimento de serviços de saúde gratuitos e
Para enriquecer o conhecimento sobre a Frente campanhas de alfabetização do afro-brasileiro
Negra, a Associação Cultural Bloco Carnavalesco [...]
Bloco Ilê Ayê (1995, p. 18) publica dados sobre a [...] No Rio de Janeiro, em 1948 , apareceu o
Frente Negra da Bahia, que surge um ano depois jornal Quilombo, dirigido por Abdias do Nasci-
da Frente Negra de São Paulo. A ação de funda- mento. Órgão do TEN, Quilombo, junto com a
ção foi liderada por Marcus Rodrigues dos Santos, imprensa negra de São Paulo, tomava posições
quando volta à Bahia, depois de trabalhar em São políticas em favor da gente negra. Em todos
Paulo como sapateiro, adjunto de conferente das os números, trazia uma declaração do “Nosso
Programa: trabalhar pela valorização do negro
docas, fiscal de estradas de rodagem e professor
brasileiro em todos os setores: social, cultural,
do Mosteiro de São Bento em Santos. educacional, político, econômico e artístico”.
Em São Paulo, a Frente Negra era mantida [...]
com a contribuição de um mil réis, por mês, e, na [...] Outros pontos incluíam o ensino gratuito
Bahia, o fundo era feito com base nas atividades para todas as crianças brasileiras; a admissão
de “festas beneficentes e atividades culturais”. subvencionada de estudantes negros nas ins-

52 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Registros sobre o movimento negro da Paraíba

tituições de ensino secundário e universitário, pinas e os estados do Rio Grande do Sul, da Ba-
onde o negro não entrava, como resultado da hia e do Rio de Janeiro. É fato a motivação vinda
discriminação e da pobreza resultante da sua da independência de Angola e de Moçambique
condição étnica: o combate ao racismo através (NASCIMENTO, 1981, p. 214).
de medidas culturais e de ensino; o esclareci-
Na década de 1970, com o ressurgimento da
mento da verdadeira imagem histórica do ne-
atividade afro-brasileira cultural e política, a for-
gro (NASCIMENTO, 1981, p. 192-93).
ça da militância gesta a fundação do Movimento
Negro Unificado contra o racismo e a discrimina-
A atuação das mulheres negras também foi
ção racial. Dotadas da consciência político-histó-
marcante, com a fundação do Conselho Nacio-
rica que pairava no país, as pessoas negras, na
nal das Mulheres Negras, que providenciava ser-
Paraíba, a partir da década de 1970, começaram
viços dos mais diversos, entre os quais, registro
a se encontrar para tratar do enfrentamento co-
de nascimento, carteira de trabalho e educação
letivo às injustiças sociais cometidas contra a po-
para crianças e adultos (NASCIMENTO, 1981).
pulação negra no Brasil e na Paraíba. Para tanto,
Havia, ainda, a Associação das Empregadas Do-
fundaram grupos com diferentes focos de atua-
mésticas que, sob a responsabilidade de Elza de ção, como, por exemplo, o cultural, o político, o
Souza, cooperava com o Conselho. religioso e o social, o que se estruturou, posterior-
Atentando para o fato de que o preconceito é mente, no Movimento Negro da Paraíba.
historicamente construído, vamos encontrar, nos
idos de 1930 a 1940, uma explícita rejeição so-
Anos de 1970 e o Movimento Negro
cial às mulheres negras para o cargo de emprega-
Unificado contra a Discriminação Racial –
das domésticas, fato que diverge do que vemos
MNUCDR
na sociedade atual, onde a mulher negra ainda é
vista como sendo capacitada, apenas, para essa
No dia 18 de junho de 1978, no Brasil, foi
função. As pessoas negras, organizadas em movi-
fundado, oficialmente, o Movimento Negro
mentos, fundaram, em 1941, “a Associação José
Unificado contra a Discriminação Racial (MNU-
do Patrocínio, que tratou, particularmente, dos
CDR), o primeiro movimento do povo negro de
problemas das empregadas domésticas, protes-
caráter nacional, depois da Frente Negra Brasilei-
tando contra a frequente rejeição da candidata
ra, “com o propósito de ser um movimento am-
negra explicitada nos anúncios” (NASCIMENTO, plo para lutar contra o racismo” (FÉLIX, 1996,
1981, p. 184). p. 213). Diferente da proposta integracionista, o
Voltando ao aspecto da educação, convém in- MNUCDR propunha a afirmação de uma identi-
formar que a Associação José do Patrocínio, que dade negra e a discussão do racismo como ele-
vigorou até o fim dos anos de 1950, “constituiu mento estruturante da sociedade brasileira.
a base da organização de um pequeno partido A primeira denominação – Movimento Negro
político, de modesta atuação, chamado de Mo- Unificado contra a Discriminação Racial – fora
vimento Afro-brasileiro de Educação e Cultura/ suprimida para Movimento Negro Unificado
MABEC” (NASCIMENTO, 1981, p. 184). O con- (MNU) no I Congresso Nacional do MNUCDR,
texto social do final da década de 1930 e início em 1979, no Rio de Janeiro, por se entender
da década de 1940 e após 1964 é de sufoca- que o objetivo da luta deveria ser maior do que
mento do exercício da cidadania, provocado pe- o combate à discriminação racial, tornando-se
los dois regimes militares e, principalmente, pela uma luta por uma sociedade justa e igualitária
promulgação do AI-51. Nos anos de 1975, ressur- (FÉLIX, 1996, p. 213). A gota d’água para a for-
ge a atuação da população negra, com a funda- mação desse movimento foram os atos discrimi-
ção de movimentos teatrais em São Paulo, com natórios e criminosos ocorridos em São Paulo,
destaque para as cidades de São Carlos e Cam- dentre os quais, o do Clube Tietê de São Paulo,
onde quatro atletas negros foram expulsos do
O Ato Institucional nº 5 (AI-5), sancionado em 13 de dezembro de
1

1968, durante o governo do general Costa e Silva (1964-1985), time juvenil do Clube Regata Tietê. Os outros
é considerado o momento mais duro do Regime Militar. Vigorou atos ganharam perfil trágico com duas mortes:
até dezembro de 1978. Nesse momento, o poder de exceção foi
dado aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem
uma foi a do operário negro, Nilton Lourenço,
inimigos do regime ou como tal considerados. A discussão sobre assassinado por um policial, no Bairro da Lapa
assuntos considerados de natureza política eram proibidos e, nesse (MOURA, 2004, p. 50), e a outra, do operário
conjunto, incluíam-se a discriminação racial e o racismo. Disponí-
vel em: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/AI5. negro, Robson Silveira da Luz, que veio a óbito
htm. Acesso em: 10 dez. 2008. após sofrer torturas executadas por policiais em

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 53


Ivonildes da Silva Fonseca

uma delegacia de Guaianazes, na capital paulista capital pernambucana, chegaram a João Pessoa
(NASCIMENTO, 1981, p. 215); SILVA, 1988, p. e, junto com as pessoas com as quais militavam,
7); (CARDOSO, 2002, p. 40). acordaram em fundar o Movimento Negro na ca-
Após a fundação do MNU, os militantes orga- pital paraibana, uma vez que o trabalho de mobi-
nizaram, em 07 de julho de 1978, em frente às lização negra já existia.
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, o Após muitas idas e vindas, segundo Silva
1º Ato Público, que reuniu mais de três mil ne- (1999, p.71), em 1980, o grupo foi estruturado,
gros. Nessa ocasião, lançaram uma carta aberta apesar de muitas dificuldades. Para isso, foram
à população, anunciando um novo passo contra fundamentais a força, a garra e a persistência dos
o racismo. Esse evento aconteceu em São Paulo, integrantes (em torno de dez) que participaram
mas envolveu outros estados brasileiros (Minas dessa empreitada, a saber: Vandinho, Tutu, João
Gerais, Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas), Balula, Regina Santos, Raquel, Socorro Freitas,
que se fizeram presentes através de moções de Nicinha de Carvalho, Paula Frassinete (que foi
apoio e telegramas de solidariedade. No con- eleita vereadora na cidade de João Pessoa, na
junto do apoio à criação do MNU, merece des- gestão 2004-2008), entre outros. As guerreiras e
taque a carta do grupo afro-brasileiro “Netos de os guerreiros estruturaram o Movimento Negro
Zumbi”, formado por presidiários, enviada para em João Pessoa, com a meta de levá-lo a outras
os organizadores do ato de 07 de julho de 1978. cidades da Paraíba (1999, p. 71).
Oficialmente, esse movimento surgiu em uma Naquela época, as reuniões ocorriam às sex-
localidade que abrigava expressivo número de tas-feiras, em uma sala do Departamento de Ar-
operários, uma categoria social que experimen- tes e Comunicação – DEAC/UFPB – onde eram
tava, cotidianamente, as relações de explora- realizados estudos sobre história do Brasil e di-
ção no trabalho e na rua. Foi um momento de ferentes eventos, tais como exibição de vídeos,
avanço político e organizativo dos trabalhadores realização de palestras e debates. Foi um mo-
brasileiros. Na proposta inicial, o grupo político mento em que a população universitária, por ser
“Liga Operária”, de ideologia trotskista e, depois, o público primeiro desse movimento organizado,
transformado em Convergência Socialista, de- foi levada a se questionar e a direcionar o seu
fendia que o movimento receberia qualquer pes- olhar para problemas raciais paraibanos. Um dos
soa que comungasse com os objetivos da luta. elementos que oferecem base para essa reflexão
Depois da primeira assembleia nacional, ficou foram os comentários gerados com a iniciativa
aprovada a participação exclusiva de pessoas dos militantes: “Pra que Movimento Negro, se
negras (FÉLIX, 1996, p.213). não existe um Movimento Branco? Vocês estão
O movimento repercutiu em outros estados querendo é fazer racismo às avessas!” (SILVA,
brasileiros, arregimentou grupos já existentes e 1999, p. 71).
motivou novas formas de organização e de rei- Continuando a leitura da dissertação da Pro-
vindicação da população negra e oprimida. fessora Tânia Maria Correia da Silva, encontra-
mos suas considerações acerca do crescimento
O Movimento Negro na Paraíba do Movimento e a necessidade de mudar o local
de reunião, que aconteceu em 1985. O MNJP
Os registros encontrados em documentos do pleiteou espaço físico na Associação do Magis-
Movimento Negro paraibano e em depoimentos tério Público do Estado da Paraíba. Sobre essa
da sua militância ressaltam que, como grupo or- solicitação, encontramos o seguinte depoimento:
ganizado, nasce o “Movimento Negro de João
Pessoa (MNJP)”, no ano de 1979, que ficou com Ganhamos a calçada daquela associação para
reunirmo-nos: até hoje ainda não apareceu
essa denominação durante mais de dez anos.
quem explicasse o porquê tudo lá era tão vasto,
Em dissertação de Mestrado, Tânia Maria com tanto espaço sem utilização... A diretoria
Correia da Silva (1999, p. 70) registrou que o foi categórica: só podia nos ceder a calçada...
Movimento Negro de João Pessoa - PB – nas- Aceitamos e passamos bons cinco anos com
ceu posterior à criação do MNU – Recife (1999, reunião todo sábado, no finalzinho das tardes
p. 70), depois de cuja fundação duas pessoas (Documento O Movimento Negro na Paraíba
militantes na Paraíba - Gilvandro de Carvalho, apud SILVA, 1999, p. 73).
também conhecido afetivamente por Vandinho,
e Gilvanete de Carvalho, carinhosamente cha- Em 1990, depois de enfrentar dificuldades de
mada por Tutu - que participaram do evento na várias ordens, o MNJP foi obrigado a se dissol-

54 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Registros sobre o movimento negro da Paraíba

ver. Todavia os diversos grupos existentes (mui- são dessas/es herdeiras/os de Zumbi, todos esta-
tos formados a partir da motivação do MNJP) vam atendendo ao apelo da ancestralidade ao
ficaram necessitados da referência aglutinadora fazer a justiça do Orixá Xangô. Era o tempo de,
representada pelo MNJP. No ano de 1991, foi juntos, começarem a cobrar, em forma do que
esboçada a tentativa de se criar uma “entidade- usualmente chamamos de “políticas compensa-
-mãe” para congregar os diversos grupos que ga- tórias”, as injustiças cometidas desde o Século
nharam vida desde os anos de 1979 e que, com XVI no território brasileiro.
a dissolução do MNJP, ficaram dispersos. É importante enfatizar que uma pesquisa mais
No final de 1996, no dia 17 de abril, em uma ampla identificará que, em todas as localidades
reunião, na cidade de João Pessoa, oficializou- da Paraíba, existem grupos nas escolas, nas
-se uma entidade “agregadora e representativa” universidades, nas igrejas e nas comunidades dos
das organizações negras na Paraíba. Dessa feita, bairros que trabalham aspectos socioculturais
o Movimento Negro alargou a sua área geográ- das suas próprias negras vidas e, por extensão,
fica, conforme demonstra sua nova denomina- das dos seus antepassados. Como exemplo
ção: Movimento Negro da Paraíba (MNPB). Vale disso, serão expostos, com base na informação
ressaltar que, em Campina Grande, ocorria uma do Professor Cristóvão Andrade (2007), da
movimentação em torno do Centenário da Abo- (Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), os
lição, no sentido de aglutinar grupos que, em es- nomes de, pelo menos, dois grupos sediados em
colas e em bairros, trabalhavam a questão negra. Campina Grande: o Acauã da Serra, um grupo
Nessa época, um grupo, do qual tomava parte o de danças afro-brasileiras, organizado pelo
Professor Josemir Camilo (UFCG e UEPB), ela- Professor Agnaldo Barbosa, da UEPB, que se
bora uma cartilha com conteúdo informativo e reunia, nos anos de 1980, no Colégio Estadual de
denunciativo da realidade social da população Bodocongó, e o Pretinho da Caipora, um grupo
negra (COMISSÃO Campinense do Centenário afro-nagô do Bairro do Catolé, entre outros. Na
da Abolição, 1988). década de 1990, depõe o Professor Andrade
O Estatuto do MNPB data de 17 de novembro (UFCG), ocorreu na Escola Cenecista Padre
de 1999 e registra que a cidade de João Pessoa é Cônego Serrão o I Encontro Afro-estudantil de
a sede, e a base territorial compreende o estado Campina Grande.
da Paraíba. Os objetivos descritos no Estatuto, Naquela época, segundo o Professor An-
dos quais transcreveremos alguns itens, são con- drade, eles conseguiram reunir as diversas lide-
siderados suas bandeiras de luta. ranças da educação que trabalhavam a cultura
a) Autoestima: consiste em ajudar o negro a afro-brasileira, em forma de danças, comidas,
gostar de si; b) Releitura da história: ajudar o ne- trabalhos didático-pedagógicos e arte decorativa.
gro a entender-se a partir da própria história; c) O evento envolveu toda a escola nos três turnos.
Combate ao racismo: consiste em estimular o ne- Um dos resultados foi a divulgação do trabalho
gro a exigir respeito para si, por sua cultura e sua dos discentes e dos docentes para as comunida-
história, na tentativa de lhe proporcionar uma des dos Bairros do Quarenta, José Pinheiro, Li-
convivência harmoniosa com as outras etnias; d) berdade e Santa Rosa, que também realizavam
Sensibilização em relação à religião dos Orixás: semanas culturais sobre a temática. Dando conti-
ajudar o negro a entender, respeitar e valorizar nuidade ao seu depoimento, Andrade (2007) re-
essa religião; e) Reconhecimento das comunida- latou: “Em 1988, realizamos a Semana Cultural
des negras descendentes de antigos quilombos; f) 100 anos de ZUMBI DOS PALMARES, que foi
Incentivo à solidariedade às outras etnias, à luta considerada um sucesso total na comunidade do
por uma vida digna; g) Formação permanente da Quarenta”.
militância: reforço ao compromisso das pessoas Propondo traçar o perfil do militante negro
que exerçam certa liderança através de leitura, em Campina Grande, Melânia Farias (2001, p.
estudo, reciclagem, revisão de prática etc. 17) registra, em sua monografia de graduação, a
Ao registrar a história da oficialização do Mo- criação da Comissão Campinense do Centenário
vimento Negro paraibano, devemos evidenciar da Abolição e as 11 entidades que a integravam:
este fato guardado na memória dos militantes: Memorial Zumbi, Grupo de Cultura Folclórica
o tempo em que as reuniões eram realizadas no Acauã da Serra, Grupo de Capoeira Abadauê
quintal da casa da família Santos Carvalho, e as dos Palmares, Grupo de Capoeira São Braz,
presenças mais frequentes eram as de Vandinho, Associação Campinense de Poetas e Escritores,
Tutu, Gilvanise/Gil e João Balula. Na compreen- Associação de Teatro Amador de Campina Gran-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 55


Ivonildes da Silva Fonseca

de, Diocese de Campina Grande, Grupo Afro- de atividades científicas que não contemplavam
-brasileiro Campinense, Secretaria de Educação a temática negra. Avançando na luta, o Movi-
e Cultura de Campina Grande, Centro Acadêmi- mento Negro da Paraíba tem congregado outras
co de História/UFPB – Campus II - e Sociedade organizações que combatem os mesmos males
de Amigos do Bairro de São José. (preconceito, discriminação, racismo), dentre
Como podemos notar, pela denominação das as quais, destacamos os Agentes Pastorais Ne-
entidades, houve uma frente composta por orga- gros/APNs, o Conselho Regional de Psicologia,
nizações de diferentes naturezas, fato de que, em o Grupo de Mulheres Negras (atualmente, é a
dias atuais, ainda se tem registro, embora seja ONG denominada Bamidelê), o Instituto de Re-
necessário que essa composição atue para além ferência Étnica3 (IRÊ) a Federação Independente
de momentos comemorativos. Nesse sentido, a dos Cultos Afro-brasileiros (FICAB), a Federação
criação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Cultural Paraibana de Umbanda, Candomblé e
Indígenas (NEABI) da Universidade Estadual da Jurema (FCPUMCANJU), Grupos de Hip Hop,
Paraíba, com sede em Campina Grande, vem Grupos de Capoeira, o Movimento Negro do Va-
atuando em uma perspectiva ampla direcionada lentina de Figueiredo (MNVF), o Movimento de
à temática, com a elaboração de projetos voltados Ação Negra (MOVANE), a Associação Recreativa
para a sala de aula e para comunidades quilom- Escola de Samba Malandros do Morro (ARESM-
bolas, estruturação de cursos de pós-graduação MO) e o Fórum de Educadores (as) Negros (as)
(Especialização e Mestrado), execução de cursos e Não negros (as) da Paraíba (FOREDUNE) PB.
de extensão e realização de eventos científicos A luta política para evidenciar a questão ra-
abertos para a participação de toda a sociedade. cial foi sendo fortalecida, especialmente em João
Assim, percebemos que, desde os anos de Pessoa, e uma das conquistas foi a instituição
1980, “aos trancos e aos barrancos”, as guer- do serviço do Disque Racismo, antes de cuja
reiras e os guerreiros “botaram prá moer”2 e, na implantação, muitas pessoas recorriam ao Movi-
Paraíba, a história da resistência negra se fez nos mento Negro para buscar atendimento em casos
moldes de movimento social negro. Com a es- de discriminação racial. Para a criação do Disque
truturação do Movimento Negro da Paraíba, a Racismo, relatou João Balula, então Presidente
luta antirracista passou a ser articulada e, das do Movimento Negro4, aliaram-se ao Movimento
ações deflagradas, o Movimento Negro inicia a a Pastoral do Negro (APN), o Conselho de Psi-
realização de eventos, com o caráter político rei- cologia e o Ministério Público (MP), através da
vindicatório, em cidades paraibanas, das quais Curadoria de Direitos do Cidadão.
evidenciamos Sousa, Campina Grande, Catolé Administrado por uma frente, no Disque Ra-
do Rocha e João Pessoa. cismo, o Movimento Negro acompanhava os (as)
As questões levantadas, inicialmente, pelo Queixantes, em reuniões, para dirimir dúvidas so-
Movimento Negro da Paraíba foram direcionadas bre crime de racismo ou outras ofensas; os APNs,
para as áreas de remanescentes de quilombos e através da estrutura do Disque Racismo, colhiam
para as áreas periféricas das zonas urbanas. O as queixas e as repassavam ao MP - Curadoria
Talhado, área de remanescentes de quilombo, no de Direitos do Cidadão - para instrumentalização
município de Santa Luzia, foi eleito como sím- de processos necessários, e o Conselho de Psico-
bolo da luta étnica na Paraíba. Essa ação seguia logia, em última instância, daria apoio psicológi-
a linha adotada pelo MNU, ao eleger o quilom- co às pessoas envolvidas, quer fossem agressores
bo (nesse caso, o de Palmares) como modelo do (as) ou agredidos (as) carentes de atenção.
ideal brasileiro de uma sociedade justa e igualitá- O Movimento Negro Paraibano ingressou no
ria (FÉLIX, 1996, p. 213). Século XXI com proposições para a formulação
O Movimento Negro paraibano questionava e das políticas públicas e, em 2003, construiu, com
continua questionando sobre a infraestrutura das a militância, diretrizes para o governo estadual5,
localidades periféricas e rurais, sobretudo a área conforme observamos na documentação seguinte:
dos remanescentes de quilombos, sobre o merca-
do de trabalho, e tece críticas reiteradas à Univer- 3
O IRÊ, originariamente, era o Grupo de Estudos do Negro (GEN)
sidade por ser um “espaço pernicioso ao negro”, formado por alunas (os), professoras (es) dos extintos Cursos de
História, Geografia e do Curso de Educação Física do Centro
no sentido de que desenvolvia uma produção Universitário de João Pessoa – UNIPÊ .
4
João Silva de Carvalho Filho – João Balula – faleceu no dia 20 de
2
A expressão é recorrente na linguagem paraibana e era empre- fevereiro de 2008.
gada frequentemente pelo líder negro, João Balula, para indicar 5
O estado da Paraíba, em 2003, estava sob o comando do Sr.
movimento, ação, realização. Cássio da Cunha Lima.

56 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Registros sobre o movimento negro da Paraíba

Desde setembro de 2002 (“V Encontro Estadu- nas diretrizes e nas proposições, realizou eventos
al do MNPB” Catolé do Rocha-PB), que esse que discutiram as cotas raciais para o ingresso
Movimento vem arregimentando seus Mem- de pessoas negras no ensino superior e partici-
bros, Grupos/Entidades e provendo esforços pou deles. Algumas vezes, a função de monito-
para efetivar esse “DOCUMENTO DE DI‑
rar ações desenvolvidas na educação formal, por
RETRIZES PARA POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA O POVO NEGRO DO ESTADO DA
parte do Movimento Negro, foi bem sucedida.
PARAÍBA”, que ora chega às vossas mãos, Um exemplo disso é a implementação da Lei
por nossa vontade de também contribuir com 10639/03, no município de João Pessoa.
Vossa Excelência no difícil processo de admi-
nistração estatal. – Nossa escalada oficial, na Registros finais
busca de Políticas Públicas para o Povo Negro,
na Paraíba, começou a 11 de janeiro desse, O motivo que gerou a organização política da
quando nos reunimos em João Pessoa –PB,
população negra está presente desde o início da
no “Fórum do Litoral”, para a primeira rodada
formação do Brasil, mediante o eixo agregador
de conversas e propostas para esse documento
final; adentramos ao estado, quando em Cam- da atividade recreativa, religiosa ou da educação.
pina Grande – PB, em 18/01/2003, reunimos A desigualdade social atravessa os séculos e, ain-
o “Fórum do Brejo”, para abalizar tudo aqui- da no Século XXI, muitas reivindicações de ou-
lo que o Litoral houvera pensado ou sugeri- trora ainda são feitas pelos diversos movimentos
do. Ainda fomos ao sertão, em Sousa-PB, em negros espalhados pelo país, haja vista os obje-
26/01/2003, quando juntamos as contribui- tivos das irmandades religiosas, da Frente Negra
ções do Litoral e Brejo, para que os sertanejos Brasileira, da imprensa negra e do MNU.
também pudessem abalizá-las, no Fórum do A leitura da Carta de Princípios do MNU per-
Sertão.- Finalizando essa busca, ultimamen-
mite visualizarmos que as reivindicações e as
te, reunimo-nos em “Seminário Interno do
denúncias incidem sobre a discriminação racial,
MNPB”, nos próximos - passados dia 08/05
(UFPB – “debate sobre Políticas Públicas p/Ne- a marginalização racial, política, econômica, so-
gros”) e dia 10/05 (Sindicato dos Comerciários cial e cultural do povo negro, sobre as péssimas
de João Pessoa – “Formulação de Políticas Pú- condições de vida, o desemprego, o subempre-
blicas para o Povo negro da Paraíba”) de maio go, a discriminação, no processo de admissão em
desse, para finalizarmos esse Documento que empregos e a perseguição racial no trabalho, as
nesse momento repassamos à V. Excia., com condições subumanas dos presidiários, a perma-
absoluta certeza de que sobremaneira have- nente repressão, a perseguição e a violência po-
remos contribuído com o desenvolvimento de licial, a exploração sexual, econômica e social da
Ações Afirmativas, Medidas em Transversalida-
mulher negra, o abandono e o mau tratamento
de e mais Cidadania para a Comunidade Ne-
dado aos menores e à maioria dos negros, a des-
gra do nosso Estado, através do Governo de
Vossa Senhoria. Saudações de Povo Negro. caracterização, o esmagamento e a comercializa-
Diretoria Executiva – MNPB (Movimento ção da cultura negra e a falácia da democracia
Negro da Paraíba, 2003). racial. O estatuto do MNU/PB apresenta simila-
ridades.
As diretrizes contemplam os diversos aspectos O Movimento Negro da Paraíba é uma estraté-
da vida, como educação, religião, arte/cultura, gia de luta da população oprimida que, segundo
ecologia/meio ambiente/desporto, recreação e dados oficiais do IBGE/20006, 56,2% da popu-
turismo e reitera a defesa em prol do Conselho lação paraibana é negra. A organização e a exis-
da Comunidade Negra. tência do Movimento Negro, nesse estado, são
No âmbito municipal, as proposições avança- um mecanismo de resistência, pois, em outros es-
ram quando, no ano de 2005, foi pleiteada a Se- tados do Brasil e na Paraíba, apesar de continuar
cretaria Municipal para a população negra e, de- denunciando o racismo, com base nas condições
pois de embates, foi criada uma Assessoria para sociais e econômicas dos negros, o MNU vem di-
a Diversidade Humana, assumida por Tânia Ma- recionando as ações para o campo das políticas
ria Correia da Silva. Nessa pasta, são assumidos públicas, sobretudo, por estabelecerem conexão
os assuntos relacionados às chamadas minorias com o contexto internacional, a exemplo da par-
e, nessas, o segmento negro. ticipação de militantes negros nas Conferências
Considerando que o caminho da educação 6
O censo do IBGE do ano 2000 registra a população total na Pa-
formal tem uma importância ímpar para a eleva- raíba em 3.444.794, nas categorias pardo, 1.801.166, e preto,
ção social, o Movimento Negro, além de inseri-la 136.577, perfazendo 1.937,738 de pessoas negras.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 57


Ivonildes da Silva Fonseca

Internacionais de Durban (2000) e nos Fóruns da Universidade, a realizar ações mobilizadoras


Sociais Mundiais, e no contexto nacional, com as em via pública, a interferir na gestão municipal,
conferências municipais, estaduais e nacionais. a participar de organizações em âmbito nacional
Atualmente, no cenário nacional, algumas e eventos internacionais, enfim, continuando as
ações públicas foram propostas, como a criação lutaspela valorização e pelo respeito aos direitos
de secretarias municipais e estaduais de políticas das pessoas negras.
para o povo negro, em São Paulo, Maceió e Sal-
vador, e a criação de uma pasta com a função de
Ministério no âmbito federal, em 2003 – a Secre- Referências
taria Especial de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial – SEPPIR. No campo educacional, foi ANDRADE, José Cristóvão. Movimento negro
institucionalizada a Lei 10.639/03, ampliada pela na Paraíba. [mensagem pessoal]. Mensagem re-
Lei 11.645/08, para legitimar a revisão da história cebida em 10 de maio de 2007.
do Brasil e o ensino da história e da cultura afro-
-brasileira, africana e indígena. Essas ações são ASSOCIAÇÃO CULTURAL BLOCO CARNAVA-
resultantes de uma luta permanente. LESCO ILÊ AIYÊ. Caderno de educação do
Na Paraíba, entretanto, os avanços, em ter- Ilê Ayê. Salvador, 1995. Vol.1 – Organizações
mos institucionais, não têm a mesma dimensão de Resistência Negra.
de outros estados em virtude de os gestores mini- BALULA, João. Movimento negro na Paraí‑
mizarem a importância de políticas públicas com ba. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida
corte étnico-racial. Todavia, o Poder Executivo em 02 de junho de 2007.
Estadual atual, através da Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Humano (SEDH), e as orga- COMISSÃO Campinense do Centenário da Abo-
nizações negras paraibanas estão dialogando, o lição. 100 anos de libertação fictícia. 1988-
que já resultou, até o presente momento, março 1988. Campina Grande, 1988. Cartilha elabora-
de 2010, na criação do Fórum Estadual de Edu- da pela Comissão Campinense do Centenário da
cação e Diversidade Étnico-racial e da criação Abolição.
formal do Conselho Estadual da Promoção da
CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento
Igualdade Racial. Este último envolve todos os
negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo
segmentos étnico-raciais: negros, ciganos, indí-
Horizonte: Mazza Edições, 2002.
genas e comunidades tradicionais (quilombolas e
povo de terreiro). No contexto da educação, con- FARIAS,Melânia Nóbrega Pereira de. Sou, por
vém ressaltar, especificamente na lei 10.639/03, isso somos e por sermos, sou. Campina
a conquista da militância negra da formulação Grande, Monografia de Graduação em Ciências
das diretrizes municipais em João Pessoa para o Sociais, Universidade Federal da Paraíba, 2001.
ensino de história e cultura afro-brasileira e afri-
cana, no ano de 2006. FÉLIX, João Batista de Jesus. Pequeno histórico
Em dias atuais, a atuação do Movimento do movimento negro contemporâneo. In: SCH-
Negro, em João Pessoa, atravessa um momento WARCZ, Lília Moritz; REIS, Letícia Vidor de Sou-
delicado, sobretudo, por causa da perda do líder sa (Orgs.). Negras imagens: ensaios sobre cul-
João Balula. Hoje a continuidade do movimen- tura e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUSP,
1996. p. 211-216
to obedece a um compromisso: um, com a me-
mória do líder, cujo desempenho, durante toda GONZÁLEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lu‑
a sua existência de homem militante, foi ligado gar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
à comunidade negra; e outro com a necessidade
de manter o processo de afirmação e valorização JOAQUIM, Maria Salete. Universo simbólico e
do povo negro na Paraíba. O sentimento coletivo lideranças. In:________. O papel da liderança
se fez e se faz presente nas pessoas negras que religiosa feminina na construção da identi‑
sempre lutaram e atuaram, em forma doméstica, dade negra. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
no dizer de Elisa Nascimento, ou em forma mais MELO,Josemir Camilo de. [Mensagem pessoal].
institucionalizada. Assim é que, conforme o texto Mensagem recebida em 02 de maio de 2008.
ora em conclusão, vimos que, das reuniões no
quintal da casa de uma família, o grupo de aguer- MOURA, Clóvis. Formas de resistência do negro
ridas pessoas negras passou a atuar no âmbito escravizado e do afro-descendente. In: MUNAN-

58 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Registros sobre o movimento negro da Paraíba

GA, Kabengele. O negro na sociedade bra‑ SCHWARCZ, Lília Moritz. Questão racial no Bra-
sileira: resistência, participação, contribuição. sil. In: SCHWARCZ, Lília Moritz; REIS, Letícia Vi-
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004. dor de Sousa (orgs). Negras imagens: ensaios
sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo:
MOVIMENTO NEGRO DA PARAÍBA. Docu- EDUSP, 1996.
mentos não publicados, 2003. Panfletos e pro-
gramação de eventos. SILVA, Jônatas Conceição da. História de lutas ne-
gras: memórias do surgimento do movimento ne-
________. Estatuto. 1999. gro na Bahia. In: Movimento Negro Unificado.
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. 1978- 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo.São
1988. 10 anos de luta contra o racismo. Paulo: Confraria do livro, 1988. p. 7- 17.
São Paulo: Confraria do livro, 1988. SILVA, Tânia Maria Correia da. LembaOdu:
NASCIMENTO, Elisa Larkin. A luta afro-brasilei- práticas informacionais no contexto do Movi-
ra pós-abolição. In: ________. Pan-africanismo mento Negro na cidade de João Pessoa - PB.
na América do Sul: emergência de uma rebe- João Pessoa, 1999. Dissertação de Mestrado
lião negra. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 178-220. em Ciência da Informação da Universidade Fe-
deral da Paraíba, 1999.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 59


MULHERES NEGRAS EM AÇÃO: TRAJETÓRIAS DO MOVIMENTO
DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Rayssa Andrade

Introdução

No Brasil, na década de 1980, surge um novo cialmente no que diz respeito ao trabalho, à saú-
sujeito político no cenário dos movimentos so- de e à educação. Contudo, o movimento feminis-
ciais. As mulheres negras organizaram-se poli- ta não considerava em seu discurso as diferenças
ticamente, com o objetivo de dar visibilidade a existentes entre as mulheres, e as categorias de
uma significativa parcela da população brasileira raça, classe, etnia e orientação sexual não eram
a quem os direitos básicos eram negligenciados inseridas. Portanto, o movimento feminista afir-
e negados. Entretanto, a trajetória de luta des- mava que as mulheres estariam unidas em uma
sas mulheres negras não se desenvolveu apenas só categoria, pois a opressão que as atingia esta-
nessas últimas décadas, porque suas ações in- va no fato de serem do sexo feminino.
dividuais e coletivas começam a ser registradas
Assim, elas buscaram elaborar o Feminismo
em estudos históricos, o que indica que, desde
Negro, um conceito que se utiliza da teoria fe-
o período colonial, mulheres africanas e afrodes-
minista inserindo o recorte racial e de classe,
cendentes, anônimas ou não, são protagonistas
visando abarcar as demandas específicas das
de uma história.
Muitas foram as mulheres negras que atuaram mulheres negras. Nesse contexto, o movimento
em conjunto com seus familiares - de sangue ou de mulheres negras organizou-se durante a dé-
espirituais. Nesse sentido, pesquisadores e pes- cada de 1980, pois era urgente mobilizar essas
quisadoras, como Joselina da Silva, destacam mulheres de forma autônoma no espaço públi-
inúmeras personagens negras que deixaram um co. Desse modo, o movimento articulou as lutas
legado para as gerações posteriores, por meio de contra o sexismo e o racismo, duas visões cons-
suas lutas que fortaleceram a identidade negra. truídas com fundamento em noções de inferiori-
Entre elas, estão Luiza Mahin, Aqualtune, Preta dade e superioridade estabelecidas nas relações
Zeferina, Felipa do Pará, Eugênia Ana dos San- de poder.
tos, Maria Nascimento, Maria de Lourdes Vale No Brasil, muitos grupos de mulheres negras
Nascimento, Laudelina de Campos Mello, Lélia vêm se formando desde o final da década de
Gonzalez e muitas outras. 1970. Os primeiros surgiram na Região Sudeste,
Assim, depois da abolição, as mulheres negras mas, a partir da metade de 1980, o número de
estiveram presentes, juntamente com os homens organizações cresceu e surgiram diversos grupos
negros, na luta do movimento negro, que se for- de mulheres negras que agiam em outras regiões
mou em fins do Século XIX, contra o racismo e
do país. Dentre eles, destaca-se a Bamidelê – Or-
pela inserção da população negra na sociedade
ganização de Mulheres Negras na Paraíba - for-
brasileira, tendo em vista que essa parcela foi
mada em 2001, que vem atuando, politicamen-
excluída dos processos de desenvolvimento dos
setores social, econômico e político do país, sem te, no combate às desigualdades sociais, raciais e
o pleno exercício da cidadania. de gênero, e cujas atividades são desenvolvidas
Na década de 1970, as mulheres negras, mui- nas áreas de educação, saúde e identidade racial,
tas ativistas de movimentos sociais, começaram a visando construir e afirmar a identidade e a au-
se inserir no movimento feminista e absorver os toestima, principalmente das mulheres negras, e
conceitos feministas, mas logo perceberam que estimulá-las a participarem efetivamente da luta
as concepções feministas não davam conta das por seus direitos básicos e por políticas públicas
questões específicas das mulheres negras, espe- que contemplem suas demandas.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 61


Rayssa Andrade

Lutas e estratégias de mulheres negras no Em fins do Século XIX, as mulheres negras,


período colonial e imperial escravista muitas libertas em 1888, começavam a se inserir,
juntamente com os homens negros, em associa-
Desde o início do período colonial, Século ções de diversos tipos, que foram fundadas pela
XVI, passando por todo o momento da escravi- população negra. O período da criação das asso-
dão no Brasil, as mulheres negras escravizadas, ciações das “pessoas de cor” e da imprensa negra
libertas e livres criaram uma série de estratégias se constitui como a primeira fase do movimento
cotidianas de luta para resistir às condições co- negro na República. As associações objetivavam
locadas pela sociedade escravista e conquistar mobilizar e conscientizar a população negra, pro-
suas liberdades. Assim, cabe ressaltar de que for- curando mostrar-lhe o seu valor e os seus direitos
ma essas mulheres conseguiram agir e burlar as de cidadão brasileiro na nova ordem social.
limitações impostas pela escravidão. As mulheres desempenhavam papéis secun-
Muitas pesquisas vêm sendo feitas, desde a dários nas associações e na imprensa negra,
década de 1980, sobre os espaços de resistên- como auxiliares nas ações dos homens. Entre-
cia criados pela população negra, especialmente tanto, na primeira fase do movimento negro
pelas mulheres negras, no período escravista. En- (1989-1937), havia departamentos de mulheres
tre eles, estão as irmandades religiosas, as casas chamados de “Quadro de Damas” e até orga-
religiosas de matriz africana, os quilombos e os nizações formadas apenas de mulheres negras,
próprios espaços públicos das vilas e das cidades, como o Grupo das Margaridas, em São Paulo,
que eram frequentados cotidianamente por mu- e a Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do
lheres negras que exerciam seus trabalhos ven- Sul, no Rio Grande do Sul. Essa última, uma das
dendo quitutes em tabuleiros. Desse modo, essas mais antigas associações autônomas de mulheres
mulheres, seja nas condições de escravas, liber- negras que se conhece no Brasil republicano, foi
tas ou livres, utilizaram os meios e os espaços que fundada em 1908.
tinham para forjar estratégias de luta, para con- Nesse contexto, algumas ativistas negras se
quistar suas cartas de alforria, em muitos casos, sobressaíram, nas primeiras décadas do Século
pela compra, ou pela fuga para os quilombos, ou XX, pois já discutiam a questão racial numa pers-
outras formas de resistência. pectiva política, como Benedita Correia Leite,
Nosso objetivo não é de tratar em minúcias Maria de Lourdes Souza, Lavínia Horta, Maria
essas estratégias, devido à dimensão e à com- de Lourdes Bodine e Benta de Oliveira. Nesse
plexidade do tema, mas de, com base nessas período, surge a Frente Negra Brasileira (1931-
afirmações, mostrar que as mulheres negras ini- 1937), uma das primeiras organizações do mo-
ciaram seu protagonismo e luta desde que chega- vimento negro que esteve presente nas diversas
ram à América. Nessa perspectiva, destacamos, regiões do país e que tratou explicitamente da
de acordo com as autoras Rocha (2001) e Silva discriminação racial e da exclusão da população
(2010), personagens paraibanas como Gertrudes negra e da economia nacional. A FNB procurou
Maria, Juliana, Salustia, Tereza de Angola, Vicên- incluir as mulheres negras em suas lutas, com
cia, Adélia de França, Chica Barrosa, Joana Pé a criação de espaços como a “Sala Feminina”.
de Chita e Rita Maria do Peixe. Todavia elas eram afastadas dos cargos nas ins-
Assim, as mulheres negras foram atingidas tâncias decisórias, pois o contexto social das rela-
diretamente pelas formas de opressão da socie- ções de gênero era de que à mulher cabia o pa-
dade - o racismo e o sexismo. Nesse sentido, pel de mãe e de esposa e a ela eram reservadas
destacamos o “estupro colonial” empreendido atividades no âmbito recreativo e de assistência
contra as mulheres negras por homens brancos, social nessas organizações.
que utilizaram o discurso de que eram mulheres No período compreendido por pesquisado-
dadas para o prazer, pois tinham uma sensuali- res/as como a segunda fase do movimento ne-
dade exacerbada. Além disso, a prática das tare- gro (1945-1964), percebemos a participação
fas subalternas por essas mulheres, estigmas que das mulheres negras nos cargos de comando da
permaneceram até o período contemporâneo e União dos Homens de Cor (UHC), uma organi-
que continuam sendo combatidos pelas mulhe- zação que atuou entre os anos de 1940 a 1950.
res negras organizadas. Dessa forma, no Teatro Experimental do Negro
(TEN), nos anos de 1940 a 1960, as mulheres
A participação das mulheres negras no negras participaram ativamente de várias ativi-
Movimento Negro Brasileiro dades e não ficaram indiferentes ao grupo. O

62 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Mulheres negras em ação: trajetórias do movimento de mulheres negras no Brasil contemporâneo

Jornal Quilombo (1948-1951), publicado pelo foram colocadas em pauta nos centros de luta e
TEN, foi amplamente utilizado pela ativista ne- tratadas nos documentos aprovados nos congres-
gra, Maria de Lourdes Vale Nascimento, que sos. O MNU passou a reconhecer, no Programa
se dirigia às mulheres negras através da coluna de Ação de 1982, que as mulheres tinham ques-
“Fala Mulher”, no qual as suscitava a assumir a tões específicas a serem tratadas. No entanto, o
luta político-partidária para superar as desigual- discurso do movimento situou-se muito distante
dades raciais e sexistas, articulando as questões da prática, e as mulheres negras não eram repre-
de raça e de sexo em seu discurso. sentadas nas instâncias de poder/decisão. Dessa
Em 1950, foi criado o Conselho Nacional das forma, as mulheres passaram a questionar o seu
Mulheres Negras, cujas fundadoras eram mulhe- papel dentro e fora do movimento. A partir des-
res vinculadas ao TEN, mas a maior parte das se momento, as mulheres negras começaram a
propostas elaboradas pelo Conselho não se efe- compreender, de forma mais madura, que eram
tivaram. Nessa segunda fase, entre as principais prejudicadas pelo machismo de homens brancos
lutas, estava a defesa de direitos das empregadas e negros, inclusive de militantes. Então, devido
domésticas, profissão exercida, em sua maioria, à falta de espaço, dentro do movimento negro,
por mulheres negras. Essa luta que contou com para tratar de suas questões, algumas delas cria-
grande contribuição de ativistas como Laudelina ram os próprios grupos.
de Campos Mello (1904-1991). Entretanto, mes- Nessa fase, o autor Petrônio Domingues
mo conseguindo mais espaços nesse período, (2009) diz que surgiram os primeiros grupos de
principalmente na imprensa negra e em cargos mulheres negras: o Aqualtune (RJ), de 1978, um
de comando em algumas organizações, as mu- grupo de estudos vinculado ao Instituto de Pes-
lheres negras continuaram marginalizadas, exer- quisa da Cultura Negra (IPCN); o Luiza Mahin,
cendo, de maneira geral, as tarefas de apoio den- de 1980; o Nzinga - Coletivo de Mulheres Ne-
tro das organizações ou as atividades recreativas gras (RJ), e o Coletivo de Mulheres Negras (SP),
e assistenciais, que eram vistas pelos homens do ambos criados em 1983. Durante seus diversos
movimento como pouco importantes. Assim, momentos, o movimento negro compreendeu o
é nesse momento em que as mulheres negras racismo como um problema social que atingia
passam a unir, num discurso mais politizado, as mulheres e homens negros da mesma forma, en-
questões raciais e de gênero e entender que as tretanto, a condição da mulher negra, na socie-
mulheres negras tinham questões específicas que dade, abarca uma série maior de conflitos que
mereciam ser discutidas no âmbito político. articulam várias formas de opressão.
Na década de 1970, o movimento negro co-
meçou a se reorganizar nacionalmente, pois ha- Feminismo negro: as mulheres negras como
via sido reprimido no período da ditadura no sujeito político autônomo
Brasil (1964-1985), quando as organizações an-
tirracistas passaram a ser vistas com desconfian- Em fins da década de 1970 e início de 1980,
ça pelos órgãos de repressão. Mas, no final da feministas e ativistas negras começaram a orga-
década de 1970, o movimento negro consegue nizar o Feminismo Negro, um conceito que bus-
se organizar juntamente com outros movimentos cou desenvolver e aplicar a teoria feminista às
sociais, que passaram a figurar novamente no questões e às demandas específicas das mulhe-
cenário político nacional. Essa retomada deu- res negras. No entanto, as feministas negras, que
-se em resposta a atos de violência racial que começaram a se inserir no Movimento Feminista
aconteceram em todo o Brasil durante o regime que se reorganizou nesse período, não conse-
militar. Nesse contexto, foi criado, em 1978, por guiam debater suas questões específicas no in-
ativistas negros o Movimento Unificado Contra terior do pensamento e do movimento feminista.
a Discriminação Racial (MUCDR). Em sua pri- Assim, romperam com o discurso identitário do
meira Assembleia Nacional de Organização e Es- feminismo tradicional, com base na perspectiva
truturação, foi acrescentada a palavra ‘negro’. No europeia e na estadunidense, que afirmava uma
primeiro congresso desse movimento, em 1979, única identidade feminina, apoiada na afirma-
o nome foi simplificado para Movimento Negro ção de que a opressão às mulheres estava cen-
Unificado, pois o objetivo central era o de com- trada na questão de gênero. Porém, as reflexões
bater a discriminação racial. e as discussões em torno da formulação do femi-
Dentro do Movimento Negro Unificado nismo negro que vinham sendo feitas por grupos
(MNU), as questões referentes às mulheres negras de mulheres negras, nos Estados Unidos, no Ca-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 63


Rayssa Andrade

nadá e na Inglaterra, vão repercutir tardiamente Movimento de Mulheres Negras: ações


no Brasil. da Bamidelê – Organização de Mulheres
Nessa perspectiva, a autora Sueli Carneiro, Negras na Paraíba
importante ativista e intelectual negra, discute,
em seus estudos, os estereótipos que foram cons- A partir da década de 1980, o Movimento de
truídos em representações da mulher negra no Mulheres Negras, no Brasil, centrou suas ações
Brasil, desde o período colonial, e a formação de em diversos tipos de grupos (coletivos, associa-
um conceito que articulasse gênero e raça. Assim, ções, centros de estudo, comissões, institutos,
desprezar o recorte racial, na temática de gênero, ONGs) que, nas últimas três décadas, formaram-
compromete o aprofundamento da compreensão -se em vários estados do país e ainda continuam
dos fatores culturais racistas e preconceituosos se formando novos grupos de mulheres negras,
que são determinantes nas violações dos direitos como o Odara – Instituto da Mulher Negra - fun-
humanos das mulheres no Brasil. Essa intersec- dado no ano de 2010, no estado da Bahia.
ção entre categorias como raça, gênero e classe Dentro dessa rede de organizações, a Bami-
tornou-se essencial para se compreenderem as delê foi fundada no ano de 2001 e surgiu imersa
condições específicas das mulheres negras em no contexto da instituição do Ano Internacional
nossa sociedade multifacetada, que se caracteri- de Mobilização Contra o Racismo, pela Organi-
za como portadora de um racismo que, durante zação das Nações Unidas (ONU). Em 2001, foi
muito tempo, não foi declarado oficialmente e realizada a III Conferência Mundial Contra o Ra-
que, ainda hoje, é omitido pela sociedade brasi- cismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as
leira em geral. Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África
Destarte, a partir das reflexões propostas pelo do Sul. Portanto, esses eventos, em esfera inter-
Feminismo Negro, foi constituído o Movimen- nacional, mobilizaram intensamente o Movimen-
to de Mulheres Negras, em âmbito nacional, pois
to de Mulheres Negras no Brasil, na década de
uma série de debates foi realizada, meses antes
1980, que centrou seus debates e ações em gru-
da conferência, que resultaram na elaboração de
pos de mulheres negras formados, desde fins da
documentos e articulações que tiveram o obje-
década de 1970, em todo o território nacional.
tivo de garantir a participação efetiva das mu-
Esse movimento social foi formado num contex-
lheres negras brasileiras, que apresentaram suas
to de relações de poder entre as mulheres negras
reivindicações na conferência.
e os Movimentos Negro e Feminista, pois ambos
Ressalte-se, entretanto, que, antes da formali-
afirmavam que as questões relativas às mulheres
zação da Bamidelê, em 2001, havia, na Paraíba,
negras deveriam estar dentro de suas agendas
um Grupo de Mulheres Negras, formado desde
políticas, entretanto, colocavam as demandas 1998, de cujas reuniões, realizadas no Mosteiro
desses sujeitos como secundárias. Assim, essas de São Bento, participavam cerca de 15 mulhe-
mulheres buscaram sua autonomia e construí- res. O grupo foi criado em 1998, por algumas
ram um novo sujeito político no cenário público mulheres que participavam dos Agentes da
brasileiro. Esse processo de constituição do mo- Pastoral Negros – APNs - organismos de cons-
vimento de mulheres negras se desenvolveu no cientização e valorização da mulher negra e do
decorrer da década de 1980, com destaque para homem negro em suas respectivas comunidades
alguns marcos políticos, como o III Encontro Fe- de fé e fora delas, que agem na luta contra o ra-
minista Latino-americano, realizado em Bertioga cismo e a discriminação racial, e entre cujos ob-
(SP), em 1985. jetivos estão resgatar a história e os valores cultu-
Assim, o principal objetivo do Movimento rais e religiosos do povo negro, com o intuito de
de Mulheres Negras é de lutar contra o racismo construir uma identidade positiva e desenvolver
e o sexismo, empreendidos por meio de ações ações políticas efetivas na inclusão da população
políticas em diversas áreas, principalmente, na negra na sociedade.
educação, na saúde, na cultura, no combate a Essas ativistas perceberam que seria preciso
todos os tipos de violência e discriminação ra- fazer um trabalho específico com mulheres ne-
cial, e focam nas reflexões sobre as questões re- gras no estado. Passados alguns anos, três dessas
lativas ao pertencimento racial, o que contribuiu mulheres, que iniciaram o trabalho grupal, de-
diretamente para a elevação da autoestima das cidiram institucionalizá-lo, com a fundação, em
mulheres negras e o respeito à sua ancestralida- 2001, do Grupo de Mulheres Negras da Paraíba
de africana. – Bamidelê. Assim, firmou uma organização com

64 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Mulheres negras em ação: trajetórias do movimento de mulheres negras no Brasil contemporâneo

identidade própria, que objetivava, principal- mar sobre as doenças que atingem a população
mente, desenvolver trabalhos com mulheres ne- feminina, especificamente, as mulheres negras e
gras, nas zonas rural e urbana, para conscientizá- desenvolver ações que tratassem das temáticas
-las sobre a discriminação racial e trabalhar com referentes a gênero, saúde em geral, saúde e di-
jovens negras, através de artes, com o intuito de reitos reprodutivos, identidade e prevenção às
trazer os valores da cultura e de criar um trabalho drogas.
de educação com crianças e adolescentes. De tal modo, as oficinas com os grupos de
Assim, é dentro dessa conjuntura que a Bami- mulheres atuaram na construção e na afirmação
delê – OMN - inicia suas ações na Paraíba, um da identidade negra e de gênero. Nesse sentido,
estado em que, segundo os dados do Instituto citamos a oficina “Arte e vida”, que utilizava a
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos dança e o teatro, semanalmente, com quatro
censos de 2000 e 2010, os níveis de desigual- grupos de adolescentes na cidade de Santa Rita,
dade social, analisados de acordo com a raça, com, aproximadamente, 120 jovens. A oficina
o gênero e a classe, indicam as mulheres negras “Arte e vida” tinha como objetivo valorizar a cul-
como o segmento social com alta vulnerabilida- tura afro-brasileira e a beleza da mulher negra
de. e estimulá-las a conhecer seus corpos, a desper-
Nesse contexto, o primeiro projeto desenvol- tar-lhes o respeito próprio e, ao mesmo tempo,
vido pela organização foi Redes de Solidarieda- capacitar as jovens em atividades profissionais,
de: saúde reprodutiva, gênero, etnia e cidadania dando destaque à cultura e à estética afro e, da
na Paraíba. Os recursos para a concretização das mesma forma, para o exercício da cidadania.
ações vieram da Fundação Ford, uma organiza- No decorrer do ano de 2002, as jovens do
ção privada, sem fins lucrativos, que apoia insti- grupo “Arte e vida” realizaram a “Festa da pipo-
tuições comprometidas com a consolidação da ca” e o “Show Beleza Negra”, este último reali-
democracia, assim como para o fim das injustiças zado como uma das atividades da Semana de
sociais e o desenvolvimento humano. Consciência Negra, no mês de novembro. Esses
Portanto, o projeto “Redes de Solidariedade” dois eventos estimularam a participação e o inte-
objetivava superar as desigualdades sociais, os resse da comunidade pela cultura afro-brasileira,
estigmas e preconceitos, que afetam as mulheres assim como a sensibilização para as questões da
e as jovens negras na Paraíba. Para isso, realizou discriminação racial e de gênero.
a formação e a capacitação de mulheres e jovens Nos anos de 2002 e 2003, a Bamidelê reali-
negras sobre questões referentes à saúde e aos zou o I e o II Seminários de Políticas Afirmativas
direitos reprodutivos, identidade étnico-racial, para Afro-descendentes. As ações afirmativas são
autoestima e direitos humanos. A reflexão sobre políticas públicas que têm o objetivo de reparar
esses temas teve a finalidade de levar esses su- danos causados a grupos sociais discriminados,
jeitos a compreenderem a luta contra o racismo com o objetivo de proporcionar a inclusão desse
e o sexismo, de atuarem na luta contra eles e de grupo e a prática da cidadania. Esses seminá-
exigir do poder público a ampliação de direitos e rios foram muito importantes, pois contribuíram
a garantia do acesso aos já conquistados. para o debate sobre as ações afirmativas, que já
Em seus projetos, a Bamidelê desenvolveu as estava sendo empreendido na Paraíba. Nesse
atividades dentro dos eixos de trabalho – educa- sentido, a Bamidelê promoveu, nos anos poste-
ção, saúde e identidade racial – no projeto “Re- riores, mesas redondas e oficinas para discutir as
des de solidariedade”. Essas atividades envolve- políticas de ações afirmativas, sempre destacan-
ram grupos de mulheres e adolescentes negras do as questões das mulheres negras. Assim, teve
de três municípios paraibanos: Santa Rita, João participação efetiva durante todo o período de
Pessoa e Alagoa Grande, especificamente em discussão sobre a implementação das cotas na
Caiana dos Crioulos, um remanescente de qui- Universidade Federal da Paraíba.
lombo. Assim, as oficinas, uma das atividades do Nesse sentido, a organização feminista negra
projeto, eram realizadas regularmente com cerca participou como integrante da execução de pro-
de 55 mulheres - 15 do Bairro de Marcos Moura, jetos de extensão, desenvolvidos entre os anos de
em Santa Rita, e 40, de Caiana dos Crioulos, em 2005 e 2011, juntamente com grupos da Univer-
Alagoa Grande. As oficinas realizadas, entre os sidade Federal da Paraíba. No que diz respeito
anos de 2002 e 2003, abordaram temas que ti- às ações na implementação da Lei 10.639/03,
nham como objetivos norteadores: resgatar e va- que institui a obrigação do Ensino de História da
lorizar a história e a cultura afro-brasileiras; infor- África e Cultura Afro-brasileira, a Bamidelê parti-

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 65


Rayssa Andrade

cipou da vice-coordenação da organização e efe- mentos sociais, para fortalecer as ações no com-
tivação do Curso de Extensão População Negra e bate às desigualdades sociais, raciais e de gênero
Direitos Humanos: educação das relações étnico- na Paraíba.
-raciais com discentes da UFPB, professores/as, No que se refere ao trabalho com a identida-
ativistas da sociedade civil, realizado no ano de de negra na Paraíba, destacamos a campanha
2009. Todavia, somente em 2010, aprovaram-se “No Censo 2010, afirme sua negritude. Moren@
as ações afirmativas na UFPB, porém predomi- não, eu sou negr@!”, iniciada em 2009, que teve
nam as cotas sociais com recorte racial. como objetivo promover a afirmação da iden-
No ano de 2011, organizou-se o Seminário tidade de negros e negras, de todas as idades,
Acesso e Permanência na UFPB: ações afirma- no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
tivas e assistência estudantil, em parceria com o Estatística (IBGE), realizado em 2010. Essa cam-
DCE/UFPB, para discutir as questões ligadas à panha foi veiculada, principalmente, no meio
permanência dos ingressos pelas cotas na univer- eletrônico e através de panfletos e de camisetas
sidade. Também, destacamos, no mesmo ano, a produzidas com o título da campanha, uma das
parceria no desenvolvimento do Programa de ações políticas da Bamidelê – OMN, visando en-
Promoção da Igualdade Racial e Valorização da frentar o racismo e promover a igualdade racial
Matriz Cultural Africana no Estado da Paraíba/ no Estado.
Nordeste/Brasil (PROAFRO), organizado pelo Em suma, as ações e os debates realizados
Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e pela Bamidelê, na Paraíba, desde o ano de
Indígenas (NEABI/UFPB). 2001, deram visibilidade às questões específicas
Nos anos de 2003 a 2005, a organização deu das mulheres negras paraibanas e fortaleceram
continuidade às ações iniciadas com o projeto a construção e a afirmação das identidades ra-
“Redes de Solidariedade”, e finalizando-o em cial e de gênero dessas mulheres, ou seja, elas
2004, deu início ao projeto Mulher negra, saú- se reconheceram como mulheres negras e com-
de reprodutiva e direitos sexuais: construindo preenderam a opressão que as atingia, com a ar-
caminhos para a felicidade de viver. Além dos
ticulação das duas condições. Partindo desse re-
objetivos estabelecidos no projeto anterior, fo-
conhecimento identitário e da formação recebida
ram acrescidos os de capacitação de lideranças
através das atividades desenvolvidas dentro dos
dos grupos de mulheres e jovens para reivindicar
projetos, as mulheres e as jovens negras atuaram
políticas públicas e intervir na elaboração delas.
no controle social, principalmente no campo da
Ainda se começou um trabalho com parteiras
saúde, em suas comunidades, e entenderam a
tradicionais de Caiana dos Crioulos. Nesse senti-
importância da participação efetiva da popula-
do, a Bamidelê estabeleceu parcerias com orga-
ção na exigência e na criação de políticas públi-
nismos do Movimento Negro e Feminista. Entre
cas que atendam às suas demandas.
as diversas articulações, destacamos as parcerias
Assim, no Brasil, o Movimento de Mulheres
com o Instituto de Referência Étnica (IRÊ) e com
Negras vem atuando, desde a década de 1980,
a Cunhã – Coletivo Feminista. Ambas são orga-
nizações que atuam na Paraíba. através das diversas organizações, formadas em
Assim, entre 2001 e 2005, a Bamidelê promo- todas as regiões do território nacional, no sen-
veu uma série de atividades e debates públicos, tido de transformar as desigualdades sociais, as
com o intuito de dar visibilidade às questões das raciais e as de gênero, que atingem as mulheres
mulheres negras paraibanas. Dos vários eventos negras no atendimento de suas questões especí-
realizados, ressaltamos as comemorações do Dia ficas e na efetivação dos direitos humanos, com
Internacional da Mulher Negra Latino-americana vistas a elevar os níveis sociais na educação, na
e Caribenha, em 25 de julho. Essa data foi insti- saúde, na cultura e na participação nas decisões
tuída, em 1992, na ocasião do I Encontro de Mu- políticas do país.
lheres Afro-latino-americanas e afro-caribenhas,
realizado em Santo Domingos, de modo que foi
criada como marco internacional da luta e da Referências
resistência das mulheres negras. Dessa forma, a
Bamidelê realizou eventos todos os anos, des- CARNEIRO. Sueli. Gênero e raça. In: BRUSCHI-
de 2001, em comemoração ao dia 25 de julho, NI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra G. Gênero
com o objetivo de visibilizar a luta das mulheres (Orgs.), Democracia e Sociedade Brasileira.
negras e estabelecer parcerias com outros movi- Rio de Janeiro: Editora 34, 2002, p. 167-193.

66 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Mulheres negras em ação: trajetórias do movimento de mulheres negras no Brasil contemporâneo

DOMINGUES, Petrônio. Entre Dandaras e Lui- ROLAND, Edna. O movimento de mulheres ne-
zasMahins: mulheres negras e anti-racismo no gras brasileiras: desafios e perspectivas. In: GUI-
Brasil. In: PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, MARÃES, Antônio Sérgio A.; HUNTLEY, Lynn
Joselina da. Movimento Negro Brasileiro: (Orgs.). Tirando a máscara: ensaios sobre o
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2001.

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 67


LIDERANÇA FEMININA NO CANDOMBLÉ PESSOENSE

Ivana Silva Bastos

O real e o vivido se organizam e se estruturam DO, 2005), as mulheres, especialmente entre os


em binarismos como feminino e masculino. Tais iorubas, eram grandes negociantes, e no mercado,
binarismos demonstram rivalidades no campo eram maioria. Veremos o que isso tem a ver com
do poder onde está inserido o universo das re- o poder feminino na religião.
ligiosidades. Entre as mulheres iorubas, há o costume de as
Nossa proposta, nesta pesquisa, é articular o jovens se separarem “prematuramente” de suas
tema das religiões afro-brasileiras às discussões famílias. Portanto, deixam seus lares para comer-
levantadas pelas questões de gênero, com vistas cializar produtos em mercados distantes. Quan-
a perceber como esse intercâmbio pode demons- do idosas, continuam a tradição enviando suas
trar o complexo tratamento dos temas em foco. filhas para as feiras importantes. Quanto a elas,
O interesse pelo estudo foi despertado pela ficam perto de suas casas, com seus tabuleiros,
presença e pela autoridade das mulheres nas reli- ou abrem pequenas vendas. Bernardo (2005) diz
giões afro-brasileiras, em especial, no candomblé que essas trocas comerciais realizadas nas feiras
e na umbanda, algo visto no campo de pesquisa1 tanto podem ser para a subsistência quanto para
e na literatura. Chamam a atenção as caracte- acumulação. Notamos, aqui, a autonomia da
rísticas do papel desempenhado pelas mulheres mulher ioruba.
(mães de santo, mães pequenas, equedes, sida- No Brasil, onde esses hábitos e costumes não
gãs etc.), quando comparadas aos papéis que foram suprimidos, é possível encontrar paralelos
lhes são destinados em outras denominações entre o mundo das mulheres africanas e o mun-
religiosas fora do campo religioso afro-brasileiro. do das escravas brasileiras e suas descendentes.
O universo feminino ganha destaque pela Bernardo (2005) fala das “negras ganhadeiras”
superioridade numérica nos terreiros (LANDES, do Brasil. São as “feirantes”, que lembram bas-
1967; BARBARA, 2002) e pela notória “auto- tante as mulheres africanas que comercializavam
ridade” nesses espaços onde elas fazem seus em feiras e mercados africanos.
trabalhos e alcançam elevados graus na hierar- Esse comportamento das “negras ganhadei-
quia religiosa (VERGER, 1986; WOORTMANN, ras” modificou e interferiu no processo escravista
1987; ABIODUN, 1989, BERNARDO, 1986). e pós-escravista, pois as escravas conseguiram se
Essa é uma diferença importante, pois, “em todas alforriar com mais facilidade que os homens. Isso
as sociedades conhecidas, é o homem que detém porque elas eram ótimas comerciantes e costu-
o poder religioso. É ele quem faz a mediação en- mavam vender alimentos. Assim, conseguiam o
tre os ‘outros’ e os deuses. Em outras palavras, sustento financeiro para si e para seus filhos, sem
somente alguns homens, de uma determinada mencionar a compra de suas cartas de alforria.
sociedade, têm o poder de conversar e ouvir as Atrelados à independência financeira, soma-
vozes divinas” (BERNARDO, 2005, p. 1). ram-se outros fatores que favoreciam a autono-
De alguma forma, essa posição de destaque fe- mia feminina. As mulheres acima descritas, “in-
minina, no contexto das religiões afro-brasileiras, dependentes” financeiramente, negavam-se a
está ligada ao modo de vida e à cultura das africa- casar com homens que, na maioria dos casos,
nas que vieram para o Brasil. Na África, apesar de seriam uma carga para elas. Para eles, era bem
os homens deterem o poder religioso (BERNAR- mais difícil conseguir se alforriar – já que eram
mais necessários à produção na qual o sistema
1
Dissertação de Mestrado publicada em 2011, resultado de pesqui- escravista estava baseado – e, mesmo após a es-
sa realizada no Terreiro Tata do Axé, localizado na cidade de João
Pessoa. Pesquisa de Iniciação Científica realizada em 2007/2008
cravidão, sofreram bastante porque foram conde-
nos terreiros da referida cidade. nados ao desemprego e, muitas vezes, expulsos

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 69


Ivana Silva Bastos

dos trabalhos que executaram por tanto tempo, iorubas de origem feminina, mas não foram, se-
para serem substituídos pelos imigrantes. gundo Bernardo (2005), os únicos no Brasil fun-
Percebe-se, portanto, que a estrutura familiar dados por mulheres. Em São Luís do Maranhão,
entre os descendentes de escravos diferenciou-se tanto a Casa das Minas quanto a Casa de Nagô
da predominante na época, tradicionalmente nu- detêm o feminino em suas origens. O primeiro foi
clear – pai, mãe e filhos. Entre os afro-brasileiros, fundado por Maria Jesuína, africana do Benin.
muitas famílias eram formadas somente pelas Josefa e Joana, de Abeokuta, fundaram a Casa
mães e seus filhos, sem a presença do pai como de Nagô.
autoridade. Essa função era desempenhada pela Rosamaria Barbara (2002) realizou uma pes-
mãe. quisa em Salvador, em um desses terreiros tra-
Tais razões histórico-sociais influenciaram a dicionais, o Ilê Opô Afonjá, e confirma que a
centralidade da mulher no candomblé. Isso por- liderança da casa tem sido ocupada sempre por
que, como já mencionado, as mulheres africanas mulheres, desde o tempo da fundadora, Mãe
tiveram uma postura diferenciada da predomi- Aninha Obabií – o mesmo ocorre nos outros ter-
nante na sociedade brasileira da época e, em reiros acima mencionados.
função disso, tiveram acesso a papéis centrais
nessas casas de culto. Por exemplo, no tocante Na Casa Branca do Engenho Velho, o terrei-
ao fato de as escravas serem ótimas comercian- ro mais antigo de tradição queto na Bahia, a
tes, elas podiam comprar, mais facilmente, suas iniciação para receber o orixá em transe per-
alforrias e eram mais numerosas do que os ho- manece ainda exclusiva para as mulheres, e,
mens, em relação à conquista da liberdade e ao em outros terreiros, como o de Oxumaré, a
entrada na roda é proibida aos homens, como
dinheiro necessário à prática dos cultos africa-
pudemos observar in loco e nos foi explicado
nos. Esse é um dos motivos que podem explicar no próprio terreiro (BARBARA, 2002, p. 8-9 –
o papel central da mulher nessas religiões, mas grifo da autora).
não o único – embora todos estejam, de alguma
forma, relacionados. Como podemos perceber, a restrição aos ho-
Nesse contexto, é relevante lembrar que, pro- mens não é uma prática somente das três casas
vavelmente pelos aspectos já mencionados, foi de santo referidas, porquanto, em outros terrei-
de iniciativa feminina o surgimento das primeiras ros, somente as mulheres podem incorporar os
casas de candomblé na Bahia (os outros tipos de orixás.
religião afro-brasileira, como a umbanda, surgi- Outro elemento característico das religiões
ram depois, com o correr do tempo) e da heran- afro-brasileiras, que merece atenção na análise
ça de mantê-las como lideranças nesses espaços do papel de destaque da mulher no candomblé,
tidos como os mais antigos do país. Trata-se das é a mitologia, pois é base que estrutura e fun-
seguintes casas: Terreiro Ilê IyáNassô (Casa de damenta parte importante do funcionamento da
Mãe Nassô), conhecido como Casa Branca, o Ilê supracitada religião. Ela está presente nas expli-
Opô Afonjá e o Ilê IyáOmin Axé IyáMassé (Casa cações da criação do mundo e dos homens, na
da Mãe D’água, força sagrada de IyáMassé, que constituição dos atributos dos orixás, na justifi-
quer dizer Iemanjá), o famoso e popularmente cativa dos tabus, no sentido das danças rituais,
conhecido terreiro do Gantois. enfim, a mitologia continua exercendo função
Podemos notar como nos próprios nomes de indispensável no ritual e no dia a dia do terrei-
tais terreiros há uma inegável ênfase na imagem ro, principalmente nos arquétipos ou modelos de
feminina: comportamento dos filhos e das filhas de santo,
que lembram, no cotidiano, as características mí-
Terreiro Ilê IyáNassô (Casa de Mãe Nassô), co-
ticas dos orixás dos quais cada um acredita des-
nhecido popularmente como Casa Branca do
Engenho Velho, localizado em Salvador. Esse
cender.
terreiro, até onde se sabe, foi fundado no Sécu- O principal mito de criação exposto por Pran-
lo passado por três ex-escravas iorubas, cujos di (2001), em seu conhecido livro, “Mitologia dos
nomes africanos eram Adetá, Iyakala e Iyanas- Orixás”, conta que foi Oxum – orixá feminino – a
sô, vindas da cidade de Keto(SILVA, 1994, p. grande responsável pela invenção do candom-
59). blé. A “mulher”, na religião dos orixás, teve pa-
pel crucial na mitologia, não só na criação, mas
Esses são os primeiros terreiros de que se tem também na harmonia entre deuses, deusas e hu-
notícia e datam do Século XIX. São candomblés manos. Vários mitos demonstram que as iabás

70 Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012


Liderança feminina no candomblé pessoense

(orixás femininos) são poderosas e, em muitas do se deu em função de situações que vivenciou
situações, desafiam e enfrentam o poder das dentro do próprio terreiro. Depois da criação da
deidades masculinas2. Com isso, não queremos mencionada rede, cuja coordenadora é a Ialori-
dizer que, no candomblé, não haja diferença de xá, já aconteceram vários eventos em que se dis-
tratamento entre homens e mulheres, no que tan- cutiram questões de gênero dentro dos terreiros.
ge à hierarquia de gêneros. Entretanto, há mais Como funcionária pública, a sacerdotisa tra-
elementos – quando comparada com outras reli- balha na Secretaria de Desenvolvimento Social
giões ocidentais – que relativizam a hierarquia e do Município, na gestão do atual prefeito da ci-
a estabilidade dada aos gêneros. dade de João Pessoa. Trabalha também no Cen-
Após verificarmos as influências histórico-so- tro de Cidadania, onde forma rodas de diálogo
ciais e mitológicas que nos auxiliam a compreen- para debater sobre religião, sempre discutindo as
der o poder feminino nas religiões afro-brasilei- questões das religiões de matriz africana.
ras, apresentamos um pouco da rotina de uma Outro meio encontrado pela mãe de santo
mãe de santo3pessoense, observando sua rotina para falar de sua religião são as ondas do rádio.
no Ilê Tata do Axé e na Comunidade de Cruz das Ela é radialista e apresenta um programa na Rá-
Armas, onde ela nasceu e cresceu, e onde esteve dio Tabajara AM – Programa Afro Brasil – onde
localizado o terreiro até pouco tempo4. fala sobre o candomblé, seus/suas deuses/as, mi-
A referida Ialorixá foi iniciada na umbanda tos e rituais.
aos quatorze anos de idade – só depois, mudou Como líder religiosa, considera-se responsável
sua denominação para o candomblé, Jeje. Este- não só por seus filhos e filhas de santo, mas tam-
ve envolvida, de forma indireta e direta, respec- bém por toda a comunidade e pelos adeptos da
tivamente, na criação das primeiras federações religião. A visão que a Iyá tem de liderança religio-
paraibanas: Federação dos Cultos Africanos do sa acaba ultrapassando essa esfera e espalhando-
Estado da Paraíba, Cruzada Federativa de Um- -se pela comunidade. Devido ao seu envolvimen-
banda e Federação Independente dos Cultos to com o bairro, numa ligação de solidariedade
Afro-brasileiros da Paraíba – a FICAB. e de compromisso com seu povo, à iniciativa de
Toda essa articulação só comprovava uma ca- formar grupos de conversa entre as mulheres de
racterística muito peculiar à sacerdotisa, a vonta- terreiro – pela influência de sua proximidade com
de de lutar não só em prol de sua religião, porque o movimento de mulheres – e à sua relação com a
esse caráter articulador da mãe de santo acabou Federação Independente dos Cultos Afro-brasilei-
se expandindo em maiores dimensões. Ela co- ros da Paraíba e com a prefeitura, a Ialorixá findou
meçou a se unir a movimentos sociais, como o por se destacar na atuação comunitária.
Movimento Negro, por exemplo, em que atua há A sacerdotisa sempre procurou instituições –
mais de 30 anos, e do Movimento de Mulheres, como a Companhia Nacional de Abastecimento
sempre reivindicando os direitos de “seu povo”. (CONAB), por exemplo – para arrecadar alimen-
Começou também a procurar os órgãos públicos, tos, fazer cestas básicas e distribuir para as pessoas
aos quais solicitava ajuda para efetivar melhorias mais carentes do bairro. O ilê conta, ainda, com
e, dessa forma, acabou ganhando muita visibili- o auxílio do Governo Federal, com o Programa
dade não só no Bairro de Cruz das Armas, mas Fome Zero5 – já que os terreiros foram escolhidos
também em toda a cidade de João Pessoa. como pontos de distribuição das cestas básicas
A mãe de santo aprendeu a se associar a re- – e de outras instituições como a Prefeitura e a
des de apoio, passou a integrar a Marcha Mun- Federação Independente dos Cultos Afro-brasi-
dial das Mulheres e foi personagem importante leiros da Paraíba – a FICAB, através da qual a
na criação da Rede Mulheres de Terreiro da Pa- Ialorixá desenvolve uma assistência voltada para
raíba. Seu envolvimento e interesse pela criação a saúde pública do bairro, organizando palestras
de uma Rede de Mulheres específica para o Esta- e eventos para discutir temas como sexualidade,
doenças sexualmente transmissíveis, auxílio às
2
A pesquisa constata que o comportamento mitológico dos orixás
femininos influencia, de alguma maneira, as atitudes das mulheres pessoas que precisam de serviços médicos pú-
de terreiro. blicos, entre outras coisas. A mãe de santo tem
3
Mãe Renilda Bezerra de Albuquerque. Ela autorizou a autora
deste artigo a utilizar seu verdadeiro nome.
plena consciência da dificuldade de acesso da
4
A mudança ocorreu, de acordo com Mãe Renilda, por solicitação
do Orixá da casa, Oxóssi, através do jogo de búzios. O motivo se- 5
O Programa Fome Zero é operacionalizado através de parceria
ria o espaço, já pequeno e insuficiente para comportar os adeptos. entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
O terreiro está localizado, atualmente, no Bairro de Mangabeira, (MDS) e a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial
em João Pessoa. do Governo Federal (SEPPIR).

Cadernos Afro-Paraibanos II - João Pessoa, Dezembro 2012 71


Ivana Silva Bastos

população – não só de Cruz das Armas, mas de porque o objetivo da candidatura foi de eleger
toda a população carente – aos serviços de saúde um representante do meio, o que não aconteceu.
pública e tenta facilitar esse acesso. Esse serviço é De fato, nada mudou em caráter de representati-
prestado, principalmente, às mulheres. vidade porque o povo de santo continua sem um
Em relação à política, a mãe de santo atua político que defenda seus interesses. Todavia, a
no Partido dos Trabalhadores (PT) desde 1972. Ialorixá defende que seu intuito se realizou, por
Depois, muda de partido indo para o PSB, do ter iniciado algo que nenhum pai ou mãe de san-
qual ainda faz parte agindo na Secretaria de Mu- to fizera até então. Em outras palavras, nenhum
lheres. Essa articulação ultrapassa os espaços do sacerdote ou sacerdotisa da religião, até outubro
terreiro, como observamos, pois, além da liga- de 2008, havia se candidatado a algum cargo
ção com as diversas instituições mencionadas, público em João Pessoa, e ela o fizera.
ela inicia uma aproximação com a prefeitura Isso parece fazer parte do “empoderamento”
do município. Essa participação política acabou vivido pela Ialorixá. Conforme Deere e León
envolvendo-a ainda mais. Como participante do (2002), é o processo pelo qual ela passa a adqui-
Movimento Negro, seu nome começou a ser co- rir controle pela própria vida e definir a própria
gitado para uma possível candidatura. agenda. Portanto, o “empoderamento” atrela-
O “espírito político” da Iyá revela-se com cla- -se aos interesses dos que não têm poder, nesse
reza quando menciona que o terreiro não é só caso, o povo de santo, tanto no que tange à prá-
espaço de culto, mas também de reivindicação tica de sua religiosidade quanto ao acesso aos
e de luta pelos direitos. É perceptível que ela bens públicos, assumindo uma ideia de mudança
emprega estratégias – como a participação nos desejada. Averiguamos, então, que, nesse con-
movimentos e nos partidos políticos – para criar texto, a sacerdotisa busca espaços institucionais
redes de articulação e ganhar reconhecimento e de negociação e articulação com o poder públi-
legitimidade. Esse discurso em busca de autenti- co, através da busca por representatividade, re-
cidade e de fidedignidade já foi incorporado às conhecimento, reivindicação de direitos e de po-
redes discursivas dos adeptos, como constatado líticas públicas para os adeptos. Tais influências
nas falas da mãe e das filhas de santo. Essas ar- denotam uma transformação social promovida
ticulações demarcam uma estratégia de constru- pelo contexto sociocultural que se caracteriza
ção de identidade que tem o poder público como por diversas mudanças, conquistas e expansão
um de seus principais destinatários. Gonçalves de movimentos feministas e a aproximação deles
e Oliveira dizem que há uma interligação entre com os terreiros. Tudo isso vivenciado de manei-
dois movimentos: “a entrada, de forma coletiva e ra bem próxima pelo Terreiro Tata do Axé.
articulada, das religiões afro-brasileiras na esfera A proposta é dar ao candomblé uma compa-
pública, e o processo de afirmação do candom- tibilidade maior com o tempo atual, tornando o
blé como religião autônoma” (2010, p. 10). discurso coerente com o meio em que se vive.
Quando questionada a respeito de sua can- São posturas que são tomadas no sentido de afir-
didatura a vereadora, a sacerdotisa diz que as mar e dar visibilidade a determinados conteúdos
pessoas do Movimento Negro começaram a falar e valores.
com frequência da possibilidade de sua candida- A sacerdotisa é, portanto, exemplo do que
tura ao cargo, como aconteceu na Secretaria de vem ocorrendo em maior escala, num fluxo de
Mulheres do PSB, que precisava fechar a cota de valorização da cultura afro-brasileira - conscienti-
mulheres candidatas6. O resultado dessas discus- zação e circulação de estímulos na reivindicação
sões e sugestões foi a candidatura da Ialorixá, de igualdade de direitos e inserção social. No Ilê
embora não tenha conseguido êxito no final do Tata do Axé, presenciamos a existência e a in-
processo eleitoral7. Mas há aí um contrassenso sistência – já com alguns resultados positivos –
desse processo reivindicatório e acompanhamos
6
“Em 29 de setembro de 1995, foi aprovada a Lei nº 9.100, que mudanças à medida que as relações sociais vão
determinou uma cota mínima de 20% para as mulheres ([...] Pre-
feituras e Câmaras Municipais). Em 1997, depois da primeira ex- mudando. Isso indica que esse caminho que está
periência eleitoral com cotas, a Lei nº 9.504 amplia a medida para sendo trilhado é um espaço democrático e par-
os demais cargos eleitos por voto proporcional e estende a cota
mínima para 30%” (GROSSI e MIGUEL, 2001, p. 169).
ticipativo que está sendo criado e facilitado pela
7
A campanha foi realizada através de doações de amigos de Mãe sacerdotisa, com a ajuda da melhor organização
Renilda - professores/as das Universidades Federal e Estadual da das mulheres e do povo de santo.
Paraíba, assim como de alguns filhos/as de santo. Ela obteve 368
votos, e o nome do slogan da campanha foi “Mãe Renilda na luta Vimos aqui, refletida na postura da sacerdo-
pela diversidade”. tisa, atitudes de mulheres modernas que traba-

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Liderança feminina no candomblé pessoense

lham, estudam, educam seus filhos, relacionam- der masculino. As mulheres estão cada vez mais
-se, vivem e interagem com outras pessoas. Não conscientes de sua importância na sociedade, e
as percebemos – mãe e filhas de santo – com com as mulheres de terreiro acontece o mesmo.
ênfase numa submissão ou dominação pelos ho-
mens, mas como mulheres capazes de batalhar
por suas necessidades e desejos particulares, mu- Referências
lheres detentoras de poder. O propósito não é de
subjugar o masculino, nem de dizer que já não ABIODUN, Rowland. Women in Yorùbá Reli-
há mais hierarquias no que tange ao gênero – gious Images.African Languages and Cul‑
porque elas existem – mas de mostrar que as reli- tures, p. 1-18. 1989.
giões já foram mais “femininas” e que, como em
BARBARA, Rosamaria. A dança das aiabás:
outras instâncias sociais, a perspectiva da mulher
dança, corpo e cotidiano das mulheres de candom-
foi desvalorizada. Agora, com o intuito de am-
blé. 2002. 201 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
pliar as informações obtidas sobre a história das
– Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2002.
mulheres, optamos por contá-la por outro viés
e mostrar que, por trás dessas mudanças, existe BASTOS, Ivana Silva. “Mulheres Iabas”: li-
uma transformação cultural em processo, que é derança, sexualidade e “transgressão” no can-
refletida nos espaços religiosos. domblé. 2011. 158 f. Dissertação (Mestrado em
Nas falas das mulheres de terreiro, notamos o Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba,
que podemos chamar de “consciência feminis- João Pessoa, PB, 2011.
ta”, que está, vez por outra, indiretamente pre-
sente nos discursos. Há um orgulho em falar de BERNARDO, Teresinha. A mulher no candom‑
temas afins ao feminismo, e essas mudanças, es- blé e na umbanda. 1986. Dissertação (Mestra-
ses comportamentos são, como nos tempo remo- do em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade
tos, passados da mãe para as filhas de santo. Mas Católica de São Paulo, São Paulo, 1986.
aí existe uma diferença crucial: hoje esse panora- ______. O candomblé e o poder feminino. Re‑
ma é influenciado pela forma mais rápida e efi- vista de Estudos da Religião – REVER, São
ciente de acesso a informações facilitadas pelas Paulo, SP, n. 2, ano 5, 2005. Disponível em:
tecnologias e pelos meios de comunicação que <http://www.pucsp.br/rever/rv2_2005/t_bernar-
reforçam, mesmo que lentamente, novas formas do.htm>. Acesso em: maio 2011.
de se ver a mulher. Essas novas informações es-
tão sendo incorporadas nos discursos das adep- DEERE, Carmen Diana; LEÓN, Magdalena. O
tas. As mulheres com as quais conversamos têm empoderamento da mulher: direitos a terra e
uma imagem positiva delas mesmas, estimulam- direitos de propriedade na América Latina. Porto
-se com as mudanças constantes em suas vidas Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
e, a cada dia, inserem em seu cotidiano os novos
conhecimentos adquiridos. FERRETTI, Mundicarmo. A mulher no Tambor
No contexto do terreiro de candomblé de de Mina. São Paulo, Mandrágora, nº 3, ano 3,
João Pessoa e na literatura existente, percebe- 1996.
mos que há uma representação simbólica femi- GONÇALVES, A. G. Boaes; OLIVEIRA, Rosali-
nina como sujeito de poder. Isso reflete uma mu- ra dos S. Relatório final de pesquisa. KOSSI
dança – entre outras – no âmbito das religiões EWE, KOSSI ORIXÁ: percepções sobre a nature-
afro-brasileiras em busca de reconhecimento e za entre adeptos das religiões afro-brasileiras em
legitimação – somando o discurso com o de ou- Recife e João Pessoa. Recife, PE; João Pessoa,
tras minorias. PB, 2010. 149 p.
Assim, os resultados apontam que as mulhe-
res tendem fortemente a não mais se definir em GROSSI, Míriam Pillar; MIGUEL Sônia Malhei-
relação aos homens nem às funções sociais ou ros. Transformando a diferença: as mulheres na
psicológicas que lhes estariam reservadas – de política. Revista Estudos Feministas, Floria-
maneira geral e, em especial, no contexto das re- nópolis, SC, v. 9, n. 1, p. 167-206, 2º semestre
feridas religiões. Percebe-se que as mulheres es- 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scie-
tão mais voltadas para elas mesmas, e se fazem lo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X200
isso, é porque querem se afirmar como sujeito 1000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:
livre e responsável, e não, como produto do po- maio 2011.

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Ivana Silva Bastos

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio VERGER, Pierre. A contribuição especial das
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do originalmente em 1947. São Paulo: Editora nas. São Paulo: UNESCO, 1986.
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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. res. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.
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Paulo: Ática, 1994.

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