Percalços Nos Caminhos Da Tradução: Entrelaçando Ideias.
Percalços Nos Caminhos Da Tradução: Entrelaçando Ideias.
Percalços Nos Caminhos Da Tradução: Entrelaçando Ideias.
entrelaçando ideias
P428
ISBN: 978-85-5581-037-4
Inclui bibliografia
Livro eletrônico
Modo de acesso:
https://spapget2017.wixsite.com/spapget
CDU 801=03
COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO
ORGANIZAÇÃO DO E-BOOK
Juliana de Abreu (PGET/UFSC)
Rodrigo D'Avila Braga Silva (PGET/UFSC)
Paulo Roberto Kloeppel (PGET/UFSC)
Morgana Aparecida de Matos (PGET/UFSC)
DIAGRAMAÇÃO
Rodrigo D'Avila Braga Silva (PGET/UFSC)
APRESENTAÇÃO 9
9
Com essa breve apresentação e cientes de que o sucesso de um evento está nas parcerias
estabelecidas, nos cabe agradecer aos professores Dra. Adja Balbino de Amorim Barbieri
Durão, Dra. Alinne Fernandes, Dra. Andréa Cesco, Dra. Dirce Waltrick do Amarante, Dr. Gilles
Jean Abes, Dra. Karine Simoni, Dra. Maria Lúcia Vasconcelos, Dra. Marie-Hélène Catherine
Torres, Dra. Martha Pulido, Dra. Rachel Sutton-Spence e Dra. Rosvitha Friesen Blume pela
disponibilidade e engajamento na coordenação das apresentações das sessões temáticas e das
mesas-redondas, especialmente, aos professores Dra. Andréa Cesco, Dra. Adja Balbino de
Amorim Barbieri Durão, Dra. Martha Pulido, Dr. Werner Heidermann, e aos colegas da
Comissão Organizadora do X SPA pelo apoio financeiro, o qual nos proporcionou a
oportunidade de oferecer um evento diferenciado aos colegas da PGET, bem como possibilitou
a publicação do Caderno de Resumos do evento e do presente e-Book.
É com satisfação que oferecemos, à você leitor e a você leitora, os diferentes olhares da
tradução por meio dos 20 trabalhos aqui publicados. Desejamos uma boa leitura!
Juliana de Abreu
Rodrigo D’Avila Braga Silva
Paulo Roberto Kloeppel
Morgana Aparecida de Matos
10
Capítulo 1
ROBERTO ARLT IN SCENE: ANALYSIS AND TRANSLATION OF THE PLAY “THE ISLAND DESERT”
Introdução
A partir dos anos 2000, o estudo sobre as obras teatrais do dramaturgo argentino Roberto
Emilio Gofredo Arlt (1900 – 1942), nome de batismo, conhecido por Roberto Arlt, ganharam
força no meio acadêmico tornando-se objeto de estudo no que diz respeito a sua produção
enquanto jornalista e escritor. A maioria dos trabalhos acadêmicos são voltados para sua
carreira como jornalista ou novelista, em que procuram discutir a respeito do lunfardo, gíria em
que existe a mescla do italiano com espanhol, usada em Buenos Aires. Entretanto, pode-se
abordar muitas outras temáticas como a presença de elementos de vanguardas em suas obras,
as temáticas urbanas e/ou a presença de personagens marginalizados.
O escritor nasceu em Buenos Aires, filho de imigrantes, o pai era alemão de nome Karl
Arlt e a mãe italiana Ekatherine Iostraibitzer, viveu em meio a três culturas, autodidata, leitor
voraz de traduções. Sua vida profissional começou cedo ao ser expulso por seu pai teve de fazer
diversos ofícios como lavador de pratos, ajudante em livrarias até conseguir se tornar jornalista.
Trabalho que o dará meios para chegar ao campo literário. A vida do literato sempre teve um
tom provocativo, sua própria imagem era vista como de alguém marginalizado, ficção incentiva
por ele.
Arlt apresenta em seus textos e em sua vida um questionamento entre o que é real ou
imaginário. Esse icônico dramaturgo joga com sua própria história. Um exemplo disso são os
textos apresentados por ele como autobiográficos, onde ele altera os seus próprios dados como
o dia em que nasceu, o ano, o mês e seu nome. A seguir apresento alguns desses textos:
Entre sua longa lista de textos, me voltarei para a escrita dramatúrgica. A peça de interesse
é a La isla desierta, uma das suas três obras teatrais tituladas pelo escritor de burlería; os outros
dois títulos são: Un hombre sensible e La juerga de los polichinelas. Na literatura, ao se referir
a burlería trata-se de um texto narrativo que contém elementos fabulosos, enquanto, nas peças
o escritor busca criar uma forma de ironia para apresentar uma farsa em forma de relato
fabuloso. O assunto da peça mostra um dia no escritório onde trabalham funcionários de uma
empresa localizada na região portuária de Buenos Aires.
A trama se desenvolve a partir dos relatos fantasiosos de uma das personagens, o mulato
Cipriano, que leva o Manuel, protagonista, e outros funcionários a querer viver em uma ilha
paradisíaca.
Há uma mescla de humor com a tragédia e pesar na vida desses personagens que agem
de forma irônica e com sarcasmo para sobreviver a sua rotina. Percebe-se a ideia de uma
farsa/engano como se tratasse de um conto fabuloso. Os funcionários da empresa fazem uma
viagem imaginária à ilha deserta, um paraíso em meio ao caos que vivem. Durante esse breve
“sonho” as personagens ficam felizes com a ideia ao se levarem pelo ritmo das batucadas do
mulato e suas histórias fabulosas, deixando de lado sua vida medíocre. Essa ilusão se esvai
quando o chefe retorna com o diretor geral e são devolvidos a triste realidade com a demissão
em massa de todos os funcionários.
O intuito desse artigo é fazer um comentário tradutório e uma análise da peça do
dramaturgo argentino. Um dos procedimentos utilizados na tradução foi a domesticação
baseada na teoria de Venuti (1995), a tradução direta e oblíqua, apresentadas por Vinay e
Darbelnet (1995), entre outros. Através desse trabalho busco incentivar futuras investigações
acerca da produção teatral do escritor argentino que conseguiu mesclar os desejos das
vanguardas com uma literatura popular, tornando acessível a literatura e o teatro para o povo.
Análise da peça
O estudo se inicia com a estrutura da peça, que possui um só ato, o texto dramático trata-
se de um texto curto descrito pelo autor como burlería, e é composto por cento e cinquenta e
seis diálogos. O termo burlería é empregado, pois, a peça tem características fabulosas e as
personagens vivem um engano, geralmente, essa nomenclatura é usada para contos. O texto
apresenta ações normais onde se encontram enganos ou situações fabulosas. O dicionário da
Real Academia Española (RAE) define o termo como engano, conto fabuloso, ilusão ou irrisão.
12
A temática da peça gira em torno de trabalhadores discute a escravização mostrando a
questão da liberdade de expressão, as personagens dão a ideia de agirem maquinalmente. O
enredo ocorre no centro urbano em que se acompanha a vida urbana e questiona a cidade real e
a imaginária. Em que por momentos durante a rotina da vida no escritório sonham com uma
cidade imaginária.
Outra questão é o próprio título La isla desierta, a imagem retratada indicaria ao leitor
que o enredo se passará numa ilha deserta, entretanto, encontramos um cenário bem diferente.
O cenário é um escritório na região portuária de Buenos Aires, a maioria das personagens não
possui nomes, e as personagens que representam os “chefes” são definidas por suas profissões
como o Chefe e Diretor. As personagens subalternas são nomeadas como 1ª empregada, 2ª
empregada, 3ª empregada, 1º empregado e 2º empregado e contador. Apenas três personagens
possuem nome o protagonista Manuel, a Maria, uma das empregas e Cipriano o mulato, porém
ao ser referido no texto é mencionado como mulato e poucas vezes por seu nome.
O trecho acima ilustra a maneira como são apresentadas algumas dessas personagens, de
certa forma, generalizando suas características e tornando-as comuns. Talvez, um mecanismo
para fazer uma crítica à sociedade e o abuso de poder dentro de um sistema laboral. A peça
curta começa com a descrição de um cenário claustrofóbico em que mostra homens
mecanizados, todos na mesma posição agindo como máquinas.
1
EMPLEADA 1.ª- Hace siete años. EMPLEADO 1.º.- ¿Ya han pasado siete años? EMPLEADO 2.º.- Claro
que han pasado. TENEDOR DE LIBROS.- Yo creo, jefe, que estos buques, yendo y viniendo, son perjudiciales
para la contabilidad. EL JEFE.- ¿Lo creen?
2
Oficina rectangular blanquísima, con ventanal a todo lo ancho del salón, enmarcando un cielo infinito caldeado
en azul. Frente a las mesas escritorios, ispuestos en hilera como reclutas, trabajan, inclinados sobre las máquinas
de escribir, los EMPLEADOS. En el centro y en el fondo del salón, la mesa del JEFE, emboscado tras unas gafas
negras y con el pelo cortado como la pelambre de un cepillo. Son las dos de la tarde, y una extrema
luminosidad pesa sobre estos desdichados simultáneamente encorvados y recortados en el espacio por la desolada
simetría de este salón de un décimo piso.
13
Uma figura central para a trama é o mulato que fará com que os outros funcionários
esqueçam por breves momentos a opressão vivida todos os dias. A imagem de Cipriano é
estereotipada como se perceber com sua apresentação “Entra o faz-tudo CIPRIANO, com um
uniforme de cor canela e um copo de água gelada. É MULATO, simples e complicado, esquisito e brutal,
e sua voz por momentos persuasiva.”
Pode-se compará-lo a figura do pícaro, de origem espanhola. O romance picaresco surgiu
na Espanha nos séculos XVI e XVII que tinha como protagonista a personagem do pícaro. Este,
era sempre uma personagem com uma condição social baixa que buscava se dar bem em cima
dos outros. Suas formas de ação eram a trapaça, engano, entre outras coisas. Na peça A ilha
deserta Cipriano usa seus relatos fictícios para “enganar” os outros funcionários do escritório.
Um cenário similar ocorre na peça de Arlt, porém, de forma um pouco mais positiva. Os
funcionários são retirados do subsolo e levados para um andar superior onde a luminosidade do
sol ofusca suas visões e a janela os deixa ver tudo o que acontece do lado de fora. No entanto,
não sabem exatamente o que, simplesmente conversam sobre suas impressões do mundo real.
14
com a janela diante do porto. Em ambos os casos, eles, sejam prisioneiros ou empregados,
apenas podem observam o que acontece do lado de fora sem poder “provar” ou “vivenciar”
essas sensações. A realidade a qual enxergam são sombras deformadas da realidade. Ao invés
de sombras, os infelizes funcionários percebem a imagem ao longe dos navios, os sons que os
chegam de longe. Em seu diálogo comentam a presença constante do mundo exterior que serve
de distração para o trabalho.
As sombras projetadas pela fogueira são as imagens que podem ver através da janela do
escritório. Em outras palavras, os navios e a cidade que fervilha embaixo dos olhos deles. O
alvoroço, o barulho, de uma cidade movimentada vivendo tudo o que eles sempre quiseram
experimentar.
MANUEL – Como não errarmos? Estamos aqui de sol a sol, e pela janela não
fazem nada além de passar barcos que vão a outras terras. (Pausa.) A outras
terras que nunca vimos. E que quando éramos jovens pensávamos visitar.
(ARLT, 2007, tradução nossa).
Essa impressão levada pelas sombras junto a conversa, dessas imagens é exatamente
como funciona a imagem desses navios que passam e os ruídos da região portuária sempre a
distância de sua realidade. Experiências que eles não podem entender ou viver. O mulato
Cipriano e o prisioneiro da caverna liberto possuem a mesma função. São eles quem trará a luz
a “verdade” do mundo exterior.
A figura próxima a esse prisioneiro seria o Cipriano, que surge no escritório, e parece não
ser “escravizado” e conhecer o mundo de uma forma diferente dos demais. A situação de ser
retirado de um lugar escuro e afastado para sem aviso ser levado para um lugar iluminado onde
consegue observar tudo ao seu redor. O cenário é o mesmo dos funcionários de A ilha deserta.
15
Ao serem tirados do subsolo eles passam a ter uma nova visão do mundo. Como o prisioneiro
que percebe tudo pela primeira vez.
A postura dos prisioneiros que permanecem presos à caverna é exatamente igual a reação
das personagens em A ilha deserta diante dos relatos do mulato. Suas falas mostram o descaso
e a incredulidade as aventuras vividas por ele.
Portanto, a intenção da tradução é levar o texto para outra contextualização, ou seja, levar
os leitores do século XX de Buenos Aires ao Brasil do século XXI. Ainda a respeito disso, outro
teórico aborda a temática, dessa vez, é Umberto Eco. A problemática do termo ao pensar em
dizer “a mesma coisa” em outro idioma. Isso significaria buscar alguma palavra ou expressão
capaz de representar o mesmo valor ou o mais próximo possível.
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O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser:
dizer a mesma coisa em outra língua. Só que, em primeiro lugar, temos muitos
problemas para estabelecer o que significa "dizer a mesma coisa" e não
sabermos bem o que isso significa por causa daquelas operações que
chamamos de paráfrase, definição, explicação, reformulação, para não falar
das supostas substituições sinonímicas. Em segundo lugar, porque, diante de
um texto a ser traduzido, não sabemos também o que é a coisa. E, enfim, em
certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer. (ECO, 2007, p. 9).
Na tradução, a questão de buscar uma solução para “dizer” exatamente o mesmo é muito
complicado, por isso, as vezes é preciso tentar dizer o mesmo. No enredo se percebe um
vocabulário específico para a contabilidade. A seguir, apresento algumas dessas questões como
o “debe y haber” “de cajá y mayor” e “de pérdidas y ganancias”. Os significados desses termos
são: “debe” registra tudo o que a empresa ou uma conta recebe, “haber” registra tudo o que a
empresa ou conta retira, “libro caja” registra a entrada e saída do dinheiro (pagamentos e gastos)
e “libro mayor” seria o livro onde contadores dividem as finanças por categorias (ganhos,
perdas, etc.)
Uma das maiores preocupações ao longo do processo tradutório foi dizer “quase a mesma
coisa”, para isso, busquei palavras, expressões ou gírias que fossem pertinentes e mantivessem
o mesmo significado do texto a ser traduzido. Outra medida foi ao selecionar a palavra pelo
contexto da peça quando não existia uma opção óbvia para a escolha. Assim, um dos
procedimentos utilizados na tradução foi a domesticação baseada na teoria de Venuti. Essa linha
de pensamento ocorreu para aproximar o leitor brasileiro da obra, pois, existe a distância de
tempo, quando foi escrito o texto, e a realidade de Buenos Aires na região portuária.
Durante a tradução usei esse procedimento para algumas palavras como “sampanes”,
“bergantines” e “paquebotes”. Em relação a primeira palavra, trata-se de uma embarcação
rápida chinesa, a segunda, navio de dois mastros, a última, um navio de comércio que transporta
correspondência, passageiros e mercadorias. Como se lê abaixo:
17
Alguns procedimentos tradutórios também foram explicados por Vinay e Darbelnet, uns
deles são fundamentais para a tradução, seriam os referentes a tradução direta. A tradução direta
seria a tradução que equivalência da palavra do texto originário para o texto de língua alvo,
onde não é necessário alterar sua forma. Esse seria basicamente o mecanismo de traduzir
palavra por palavra. Esse tipo de tradução permite os seguintes procedimentos: empréstimo,
decalque e tradução literal. Ao longo do texto, usei o mecanismo do empréstimo ao reproduzir
a palavra idêntica ao termo original, pois, as palavras são iguais e possuem o mesmo
significado. Outro foi o decalque, quando adaptei a palavra a língua de chegada como no caso
dos vocabulários de contabilidade.
Ambos os procedimentos foram usados porque nem sempre um resolve todos os
problemas. Por exemplo, o decalque às vezes pode ser usado somente em determinadas
palavras, enquanto o decalque poderia ser usado ao tratar de frases ou expressões ou estruturas.
Em alguns momentos como no título optei por usar a tradução literal, terceiro e último
procedimento da tradução direta. Quanto a tradução oblíqua, nesse caso seria a tradução que
não pode ser resolvida através dos procedimentos da tradução direta.
Conclusão
O cenário literário referido a obras dramatúrgicas possui alguns nomes que são
conhecidos, entretanto, o de Roberto Arlt representam materiais até o momento pouco
estudados que são de grande importância para os estudos tradutórios e literários ao mostrar uma
faceta do escritor argentino e o teatro moderno. Seus textos apresentam desafios ao usar gírias
do século XX e seu estilo próprio. A peça de um ato só A ilha deserta pretende incentivar a
tradução das obras arltianas, principalmente, de teatro que foram desprestigiadas a partir desse
artigo. Ademais, ilustrar o resultado da tradução através de comentários para abordar os
procedimentos usados para elaborar a tradução junto com a análise da peça, baseado em
experiências pessoas.
Afinal, traduzir é algo sempre único, cada texto pedirá determinada medida e
procedimentos, assim como seu autor. Assim, o intuito é mostrar a possibilidade de usar mais
de um procedimento para alcançar uma tradução satisfatória, pois, definir uma tradução como
“boa” ou “ruim” é complicado. Busco simplesmente apresentar as dificuldades e soluções
encontradas ao longo do caminho para talvez auxiliar em novos projetos e abordar uma nova
maneira para se traduzir. Dessa forma, contribuir com os desafios da empreitada e apresentar
as possibilidades, ampliando as opções no campo de estudo.
Referências
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Tradução Eliana Aguiar.
São Paulo: Editora Record, 2007.
PLATÃO. A república. Tradução Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997.
18
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. London/ New
York: Routledge, 1995.
Resumo: No final de sua carreira o dramaturgo argentino Roberto Arlt dedicou-se mais estreitamente a escrita de
textos dramatúrgicos que foram representados pelo Teatro del Pueblo, um grupo de teatro independente do qual o
autor é considerado como um dos fundadores e que surgiu no dia 30 de novembro de 1930, após ter adaptado para
o palco um dos capítulos de seu livro Los siete locos. A obra de Arlt é repleta de crítica social e personagens não-
convencionais. No teatro, Arlt sai dos padrões estabelecidos valendo-se de temas provocativos e questionando a
realidade do país, e, principalmente, de sua cidade. A proposta do presente trabalho é analisar a peça La isla
desierta (2007), de Roberto Arlt, e sua tradução, que é objeto de estudo de minha tese de doutorado com base nas
obras de Peter Szonzi, Jean-Jacquese Roubine e Noé Jitrik. A decisão de estudar e traduzir a peça se deu pelo fato
da obra reunir elementos propostos em outros textos dramatúrgicos do autor, permitindo que se tenha um panorama
geral de seu teatro, além de não haver ainda uma tradução desse texto para o português. É, ainda, uma peça que
recebeu poucas críticas apesar de ter diversas encenações.
Palavras-chave: Análise. Tradução. Roberto Arlt. Teatro.
Abstract: At the end of his career the Argentine playwright Roberto Arlt devoted himself to the writing of
dramaturgical texts that were represented by Teatro del Pueblo, an independent theater group, of which the author
is considered as one of the founders and which appeared on the 30th of November 1930, after having adapted to
the stage one of the chapters of his book Los siete locos. Arlt's work is replete with social criticism and
unconventional characters. In the theater, Arlt leaves the established standards using provocative themes and
questioning the reality of the country, and, especially, of his country. The proposal of the present work is to analyze
the play La isla desierta, by Roberto Arlt, and his translation, which is the object of my doctoral thesis based on
the works of Peter Szonzi, Jean-Jacquese Roubine and Noé Jitrik. The decision to study and translate the play was
due to the fact that the work brings together elements proposed in other dramaturgical texts of the author, allowing
an overview of his theater, and there is still no translation of this text into Portuguese. It is still a play that received
few criticisms despite having several stagings.
Keywords: Analysis. Translation. Roberto Arlt. Theater.
19
20
Capítulo 2
Introdução
A História da Tradução é uma disciplina cada vez mais privilegiada nos Estudos da
Tradução (PINILLA, 2006, p. 1), o que nos permite caminhar em direção a uma maior
ampliação das pesquisas acadêmicas. Neste sentido, este artigo tem por objetivo apresentar ao
leitor um levantamento historiográfico da presença de intérpretes nas colônias espanholas e
portuguesas nas Américas durante o século XVI a partir da base de dados oferecida pela Vérsila
Biblioteca Digital (disponível em: http://biblioteca.versila.com). No intuito de cumprir o
objetivo, proponho mapear os artigos científicos, as dissertações e as teses produzidas entre os
anos de 2000-2015 sobre os intérpretes coloniais na base de dados da Vérsila Biblioteca Digital;
selecionar e coletar os artigos científicos, as dissertações e as teses da base de dados da
Biblioteca Digital Vérsila a partir das seguintes entradas: Os línguas no século XVI; intérprete;
intérpretes na tradução; intérpretes na história e intérpretes no século XVI; e, difundir uma lista
de artigos científicos, dissertações e teses publicadas nos últimos quinze anos que se relacionam
com a área de Ciências Humanas, especificamente, História Colonial e História da Tradução
Latino-Americana. Não pretendo ser exaustivo nem minucioso, porém, sociabilizar
informações que podem contribuir para futuras pesquisas acadêmicas.
Inicialmente, faço um balanço dos fatores históricos que impulsionaram os contatos entre
os intérpretes e/ou línguas e os colonizadores europeus. Para isso, reflito como as relações de
poder e as intenções mercantilistas influenciaram na tomada de decisão por parte dos
colonizadores no momento de escolher a utilização de serviços desses transmissores de
mensagens (GRANDUQUE, J. 2011, p. 13). Vale ressaltar que no decorrer da pesquisa, foi
possível encontrar um conjunto de termos para identificar a palavra intérprete. Na colônia
espanhola era frequente o uso de ladino, lenguas, lenguas indígenas, intérpretes, lenguaraces,
guarango e farautes, dependendo do espaço geográfico estudado. No caso da colônia
portuguesa, a literatura de época atesta os registros de intérpretes, índios línguas e/ou línguas.
Na segunda parte do trabalho, a abordagem concentra-se os aspectos teóricos e
metodológicos que norteiam a pesquisa. Por não procurar descrever os significados dos
fenômenos das traduções em si mesmas, mas suas funções na situação político-sócio-cultural
receptora de época, o presente trabalho se enquadra aos estudos descritivos da tradução focados
à função (HOLMES, 1998). Se, por um lado busco aproximar-me da proposta teórica de
Lépinette (1997) para refletir sobre os estudos parciais da história da tradução, por outro
inspiro-me nos trabalhos metodológicos de Pagano e Vasconcellos (2003) para apresentar a
abrangência e natureza do mapeamento proposto. O recorte feito para desenvolver este artigo
privilegia um mapeamento realizado em bases cronológicas e temáticas. Pretende-se, desta
maneira, levar em conta, o período estudado, as respectivas datas de publicação dos artigos, as
datas das defesas das dissertações e das teses e o tema central da busca, sempre vinculado ao
21
objeto de estudo proposto, o que permite sustentar os aspectos teóricos e metodológicos que
nortearam esta pesquisa.
Por último, proponho um exercício comparativo e contextualizado a partir das análises
quantitativas e qualitativas dos instrumentos levantados durante a última etapa da pesquisa,
concernentes às ocorrências sobre os intérpretes do século XVI. Como conclusão, apresento os
possíveis caminhos a serem trilhados por aqueles pesquisadores que porventura se interessarem
em investigar a história da interpretação latino-americana em Estudos da Tradução.
Antecedentes históricos
Desde que os seres humanos começaram a fazer uso da palavra falada, desde
que se teve as primeiras notícias da existência do homem político e do homem
econômico sobre o mundo, desde que diferentes povos falando diferentes
línguas entraram em contato para troca de ideias ou interesses mútuos, pode-
se afirmar que houve a necessidade da utilização de intérpretes. (ROMÃO,
1998, p. 104).
3
Dentre as fontes historiográficas disponíveis do período colonial latino-americano que registram a presença de
intérpretes, cito algumas: Las leyes de Indias (1889); História da Companhia de Jesus (Leite, Serafim. 1939); as
cartas de comércio no século XVIII (Barbosa, Afrânio Gonçalves, 1981); Guia de Fontes para a História Indígena
e do Indigenismo (Monteiro, John M. (Org.)), 1994); Primeira Visitação do Santo Oficio às Partes do Brasil:
Confissões da Bahia/1591-1592 (Mendonça, H. 1931), Cartas y cronistas del descubrimiento y la conquista
(Carrillo, F. 1987); Historia de las Indias (Las Casas, Bartolomé de.,1986); Carta de Hernando Pizarro a la
Audiencia de Santo Domingo (Pizzarro, H. (1524-1543), 1959 [1533]).
22
língua portuguesa e a língua tupi no território brasileiro (CASTILHO, 2003, p. 190). Mesmo
considerando as relações de poder assimétricas entre colonizadores europeus e os nativos
americanos, é evidente que apropriar-se das línguas locais favoreceriam os trâmites comerciais
e ainda abririam novos espaços fronteiriços. Entretanto, pensar a linguagem como realidade
colonial de fronteira implica um exercício de negociação entre o europeu e os nativos. Neste
sentido, concordo com Payàs ao afirmar que:
Nos cenários supracitados, faz-se necessário refletir em torno das seguintes questões: (i)
de que maneira os intérpretes das colônias espanholas e portuguesas colaboraram para uma
nova narrativa historiográfica do período colonial latino-americano? (ii) como os intérpretes
passaram a ser vistos na América colonial: homens fiéis aos povos europeus ou homens
traidores aos povos nativos? E, (iii) é possível construir uma nova história da tradução através
dessa dualidade: fidelidade x infidelidade? A proposta dessa pesquisa é apresentar à
comunidade acadêmica o privilégio que a disciplina História da Tradução nos oferece ao
resgatar do esquecimento as vozes dos autênticos sujeitos históricos da tradução representados
por esses intérpretes coloniais. Portanto, comparto com a opinião de Berman (1985) quando
afirma ser impossível separar a história da história das línguas, das culturas e das literaturas.
4
O acervo de Vérsila Biblioteca Digital é composto de 7.685 universidades, centros de ensinos, grupos e unidades
de pesquisa; 284.988 documentos disponibilizados por publicadores; 29.431.892 documentos disponibilizados por
autores e contribuidores. O acervo é constituído de documentos nos formatos resenhas de livros, revistas
científicas, anais de congressos, coleções científicas, trabalhos de conclusão de cursos, dissertações e teses. Além
de, representar um espaço de atuação regido por 63 países e territórios integrados.
23
produzidos entre os anos de 2000-2015 no que tange os intérpretes das colônias americanas do
século XVI.
Por corresponder a um estudo bibliográfico curto, de âmbito regional e linguístico, em
função de um duplo eixo (cronológico e espacial) e numa época específica (CARY, 1963, p.
12), considero que este artigo está metodologicamente direcionado aos estudos históricos
parciais em História da Tradução, como enfatiza Lépinette (1997). A seguir, apresento, sem ser
exaustivo, a exploração dos dados levantados, tanto em seus aspectos quantitativos quanto
qualitativos a partir das seguintes categorias de análise: os “línguas”, intérpretes, intérpretes na
tradução, intérprete na história e intérpretes no século XVI. Vale ressaltar que as análises
apresentadas nesta pesquisa foram inspiradas nos trabalhos realizados por Pagano e
Vasconcellos (2003, 2006), profissionais que contribuíram significativamente para entender a
evolução dos Estudos da Tradução em contexto brasileiro.
Análise quantitativa
Análise qualitativa
A análise qualitativa é baseada nas seguintes definições: (i) exame dos títulos dos artigos,
dissertações e teses; (ii) das palavras-chave apresentadas em cada pesquisa e (iii) na análise dos
conteúdos oferecidos nos resumos.
5
Disponível em: http://biblioteca.versila.com/. Data de acesso: 21/03/2016.
24
A análise dos instrumentos
No decorrer desta etapa, procurou-se estabelecer uma observação dos títulos dos artigos,
dissertações e teses, assim como, as relações estabelecidas entre os títulos, os resumos e as
palavras-chave. A seguir, é feita uma exploração dos dados levantados sem ser muito
abrangente, levando em conta alguns exemplos encontrados no decorrer da pesquisa.
Exemplo:
Autoria: Laraia, Roque de Barros
Instituição: Universidade de Brasília (UNB)
Tipo: Artigo
Origem: Revista Brasileira de Linguística Antropológica
Data: 12/2009
Língua: Portuguesa
Título: Karuara: a persistência de uma crença Tupinambá.
Resumo: A partir dos significados expressos pela palavra karuara do Tupinambá, tal qual
registrada no século XVI, pesquiso, por um lado, os vários significados que essa palavra
adquiriu durante a formação da cultura brasileira e, por outro lado, os significados de palavras
cognatas encontradas em outras línguas Tupí, concluindo pela persistência não apenas dos
significados básicos da palavra através dos povos Tupí-Guaraní, mas também pela manutenção
da crença comum em karuara.
Palavras-chave: Karuara; línguas e culturas Tupí-Guaraní; significados simbólicos;
persistência de crenças; etnografia Tupí.
Referência: http://biblioteca.versila.com/51521939
b) Ocorrência: Intérprete
6
Vale ressaltar que a velocidade empregada para fazer a busca da palavra-chave é extremamente importante para
o estudo presente. O tempo que o buscador leva para fornecer uma resposta corresponde ao número de dados.
25
Exemplo:
Autoria: Vanessa Regina de Oliveira Martins
Instituição: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Tipo: Dissertação de Mestrado
Origem: Repositório de teses da UNICAMP
Data: 08/08/2008
Língua: Portuguesa
Título: Educação de surdos no paradoxo da inclusão com intérprete de língua de sinais: relações
de poder e (re)criação do sujeito.
Resumo: O presente trabalho propõe uma análise das relações de saber e poder na inserção do
intérprete de língua de sinais na inclusão escolar dos surdos no ensino superior, com o objetivo
de deslocar a atuação, usualmente técnica, do intérprete educacional, apostando no processo de
encontro pedagógico e não somente instrumental, numa relação educativa entre o intérprete e o
estudante surdo.
Palavras-chave: Surdos e educação; recriação; intérprete para surdos; relações de poder.
Referência: http://biblioteca.versila.com/2591894
Exemplo:
Autoria: Veras, Viviane
Instituição: Universidade de São Paulo (USP).
Tipo: Artigo
Origem: Revista do Centro Interdepartamental de Tradução e Terminologia (TRADFERM)
Data: 04/08/2013
Língua (s): Portuguesa e inglesa
Título: Quando traduzir é (re)escrever (um)a história: o papel dos intérpretes na Comissão da
Verdade na África do Sul. (re)writing a story: the role of interpreters at the Truth Commission
in South).
Resumo: A Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul tem por objetivo fazer,
com palavras, uma transição pacífica do regime do apartheid para a democracia, buscando no
relato das vítimas/sobreviventes e dos autores de graves crimes contra a humanidade, uma
verdade e uma possibilidade de reconciliação. Este trabalho discute o papel dos tradutores e
intérpretes na (re)escrita da história do povo sul-africano.
Palavras-chave: intérprete tradução história comissão da verdade e reconciliação da África do
Sul; (translation interpreter south african truth and reconciliation commission history).
Referência: http://biblioteca.versila.com/51457320
26
Na ocorrência mencionada, voltou-se a registrar um número significativo de registros
derivados de pesquisas relacionadas aos estudos de Libras e formação de intérprete de Libras.
O crescimento do estudo mencionado é justificado pela proliferação de novos cursos de
graduação em Libras, promovidos pelas universidades federais tanto nas grandes capitais
quanto no interior do Brasil. Entretanto, o exemplo selecionado demonstra que há uma demanda
cada vez maior por intérpretes de Libras especializados em determinada área do saber. No caso
exemplificado, o intérprete de direito púbico assume um papel relevante nas mediações de casos
direcionados às relações internacionais contemporâneas.
Exemplo:
Autoria: Silva, Rayssa Alves
Instituição: Universidade Católica de Brasília (UCB)
Tipo: Dissertação de Mestrado
Origem: Repositório de dissertações e teses da UCB
Data: 20/05/2015
Língua: Portuguesa
Título: O professor no atendimento bilíngue às crianças surdas em uma escola do ensino
fundamental.
Resumo: O presente trabalho tentou verificar como o professor que ensina na proposta bilíngue
consegue ensinar o estudante surdo, analisando, assim, as práticas de ensino/aprendizado desses
professores, as suas estratégias e também o perfil de professores para atender as crianças surdas.
Primeiramente, apresentou-se as leis e um pouco da história da educação dos surdos no Brasil.
Caracterizou-se o Atendimento Educacional Especializado – AEE para alunos surdos para, em
seguida, tratarmos das questões do bilinguismo, inclusão escolar, formação de professores e a
atuação do intérprete na educação bilíngue. Foi utilizada a pesquisa de campo em caráter
qualitativo, por meio de observações e entrevistas com os professores que atendiam crianças
surdas na modalidade bilíngue. [...]. Ficou evidente a falta do aprendizado de Libras do
estudante surdo, antes de ingressar na escola, e a importância do ensino precoce da Língua
Brasileira de Sinais.
Palavras-chave: bilinguismo; formação de professores; crianças surdas; ensino; aprendizado.
Referência: http://biblioteca.versila.com/25881350
27
e) Ocorrência: Intérpretes no século XVI
Ocorrência I:
Autoria: Bôas, Luciana Villas
Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Tipo: Artigo
Origem: Revista Cadernos de Tradução – UFSC/PGET
Data: 30/10/2014
Língua: Portuguesa e inglesa
Título: A língua de Hércules: força e eloquência no Brasil do século XVI; (Hercules’s tongue:
force and eloquence in sixteenth-century Brazil).
Resumo: Seguindo a antiga tradição retórica do corpo como metáfora para representar o reino
e o Estado que governa, a palavra portuguesa língua estabelece-se no século XVI para designar
os intérpretes do além-mar, os “línguas” do reino. Enquanto vários estudos tratam da interseção
entre imaginário político e anatômico do período, poucos se detém em conceitos e contextos
discursivos específicos. Com base em uma variedade de materiais oriundos de experiências
coloniais no Brasil, este trabalho estabelece um nexo entre a semântica histórica da palavra
língua e diferentes modelos de governo colonial.
Palavras-chave: política; retórica; colonialismo; anonimato.
Referência: http://biblioteca.versila.com/51501654
Ocorrência II:
Autoria: José, Maria Emília Granduque
Instituição: Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Tipo: Dissertação/Mestrado
Origem: Repositório de dissertações e teses da UNESP
Data: 20/05/2011
Língua: Portuguesa
Título: A presença de Malinche nas crônicas de Índias do século XVI.
Resumo: Este trabalho se propõe a analisar porque a intérprete Malinche foi descrita com tanta
intensidade nas Crônicas de Índias do século XVI. Considerando que a história nessa época era
entendida segundo o preceito de “mestra da vida” –, em que os feitos positivos do passado
deveriam servir como exemplos para o homem do presente – a escrita dos fatos centrava-se nos
acontecimentos grandiosos e nos personagens masculinos como atores principais. Desse modo,
a história da conquista espanhola ganhou destaque pela importância no cenário europeu e o
conquistador Hernán Cortés se tornou o grande responsável pela vitória sobre os índios, dada a
sua coragem e façanha, virtudes exaltadas nessa época. Atentando para esse padrão masculino
da escrita da história, o questionamento que se faz a partir dessa explicação é saber o que levou
os cronistas de Índias a inserir Malinche em seus relatos ao lado de Cortés? Levando em conta
o lugar secundário que as mulheres, os intérpretes e os escravos ocupavam na conquista e nas
crônicas, por que, então, uma figura que representa tudo isso esteve centrada nesses textos como
uma das protagonistas desse evento?
Palavras-chave: América espanhola; México conquista espanhola; História del México.
Referência: http://biblioteca.versila.com/2545387
28
Ocorrência III:
Autoria: Damas, Carlos Alexandre Mourão de Carvalho & José, Maria Emília Granduque.
Instituição: Universidade Nova de Lisboa.
Tipo: Dissertação de Mestrado em Artes Musicais – Estudos em Música e Tecnologias.
Origem: Repositório de dissertações e teses da Universidade Nova de Lisboa
Ano: 2012
Língua: Portuguesa
Título: Violino e tecnologia: origem e evolução tecnológica entre os séculos XV e XXI.
Resumo: A evolução tecnológica que o violino foi sofrendo ao longo dos séculos, poderá ser
justificada por necessidades artísticas e técnicas dos intérpretes, o fator estético e a beleza do
instrumento, foram também, focos de interesse para colecionadores e fabricantes. No presente
trabalho, consideramos que o violino é um instrumento de corda friccionada com arco, assim,
teremos em consideração não só a origem do violino em si, mas também a origem do arco -
visto que, no contexto que definimos para este trabalho, só com o aparecimento do arco
podemos determinar a origem do violino [...].
Palavras-chave: Violino; Evolução tecnológica; Instrumento de corda.
Referência: http://biblioteca.versila.com/3349758
Fonte: Adaptada pelo autor a partir do quadro proposto por Pulido em 2016, durante o Seminário “História da
Tradução”, ministrado na Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET) - UFSC
O resultado de um único processo histórico agregado a uma sociedade global que dialoga
entre si, permite-nos defender a tese que as sociedades coloniais latino-americanas foram
configuradas a partir de uma estrutura supraétnica justamente para não visibilizar as vozes
subalternas das etnias locais e valorizar de sobremaneira o sentido etnocêntrico proposto pelos
colonizadores. Entretanto, essa perspectiva eurocêntrica esbarra em um processo de resistência,
luta e valentia dos povos originários. Neste sentido, retomando os dados apresentados no quadro
comparativo, percebe-se que a chamada sociedade “aparentemente” estratificada e dependente
das ações colonizadoras se transforma em um espaço mediado pelas relações de poder e intensas
negociações. Os intérpretes coloniais cumprem suas funções de mediadores de comunicação
desde que não se sintam apropriados pelos sistemas políticos. Eles acabam transitando nas
diversas esferas políticas e sociais da época, transformando os espaços estratificados em
contextos híbridos. Assim que, resgatando a pergunta central deste trabalho, afirmo que os
intérpretes colaboraram para uma nova narrativa historiográfica do período colonial latino-
americano porque foram capazes de reduzir o sentido de apropriação dos aspectos da cultura
etnocêntrica de chegada e valorizaram as condições periféricas das culturas de partida,
representadas pelas diversas nações indígenas existentes no início do século XVI na América
Latina.
Reflexões finais
Percebe-se que o interesse pela pesquisa em história da tradução vem crescendo nas
últimas décadas, principalmente a partir do momento que a disciplina ganhou maior autonomia
dentro dos Estudos da Tradução. Entretanto, é preciso traçar novas metas para os estudos em
História da Tradução desde uma nova cartografia mundial (LAMBERT, 2014). Repensar a
História da Tradução desde uma perspectiva Sul-Sul, construindo assim, uma nova
epistemologia para os Estudos da Tradução, principalmente, em uma maior perspectiva
América Latina.
Conforme foi visto no percurso desta pesquisa, o levantamento historiográfico da
presença de intérpretes nas colônias de Portugal e Espanha na América durante o século XVI
resultou em uma chamada incessante ao diálogo com outras disciplinas e outros objetos de
pesquisa. O exercício dialógico transdisciplinar proposto com a História, a Geografia, as Artes,
a Sociologia, a Pedagogia e a Linguística permite ampliar ainda mais o horizonte teórico e
metodológico na área, tornando-se assim, os estudos em História da Tradução um campo fértil
para futuras pesquisas interdisciplinares, capazes de propor novos paradigmas para os estudos
em questão. Sendo assim, espera-se que este levantamento historiográfico a partir da base de
dados Vérsila Biblioteca Digital sirva como estímulo aos novos pesquisadores na busca por
informações relevantes na construção de novos horizontes investigativos para os estudos em
História da Tradução da América Latina.
31
Referências
BERMAN, A. Les Tours de Babel: Essais sur la Traduction. Maurezin: Editions Trans-
Europ-Repress, 1985.
HOLMES, J. S. The Name and Nature of Translation Studies. In: Translated! Papers on
Literary Translation and Translation Studies. Amsterdam: Rodopi, 1988.
LAMBET, J. Does Ranking Rhyme with Banking ? Academic Communities and Their
Approach to Language(s) in the Age of Globalization. In: LAMBET, J.; GHEORGHIU, C. I.
(Ed.). Universe-cities as problematic global villages: continuities and shifts in our
academic worlds. Tubarão: Editora Copiart, PGET/UFSC, 2014.
32
PINILLA, J. A. La metodologia en Historia de la traducción: estado de la cuestión. Rev.
Sendebar, n. 17, p. 21-47, 2006. Disponível em:
<http://revistaseug.ugr.es/index.php/sendebar/article/view/1007>. Acesso em: 18 nov. 2017
Resumo: Este artigo se propõe a fazer um levantamento historiográfico da presença de intérpretes nas colônias
americanas durante o século XVI a partir da base de dados Vérsila Biblioteca Digital. Pretende-se entender a
importância desses intérpretes enquanto mediadores “das línguas” na configuração espacial do novo mundo,
principalmente nos espaços político-administrativos configurados a partir do início do século XVI. Neste sentido,
o percurso desta pesquisa espera responder a seguinte pergunta: de que maneira os intérpretes colaboraram para
uma nova narrativa historiográfica do período colonial latino-americano? Para levantar algumas discussões acerca
dos desdobramentos desses intérpretes no processo de apropriação e/ou resistência à colonização europeia,
discutirei a partir do conceito de fidelidade, as múltiplas representações apresentadas pelos intérpretes durante os
serviços prestados aos estados nacionais europeus. No que tange os aspectos metodológicos, trago ao debate a
possibilidade de desenvolver uma pesquisa historiográfica com base nos dados fornecidos pelo localizador Vérsila
Biblioteca Digital a fim de mapear, coletar e selecionar artigos científicos, dissertações e teses produzidos entre
os anos de 2000-2015. Espera-se que este levantamento bibliográfico introdutório dessa base de dados estimule
novos pesquisadores na busca por informações relevantes da história colonial e amplie os horizontes investigativos
para os estudos da História da Tradução na América Latina.
Palavras-chave: História da tradução; mapeamento digital; intérpretes coloniais; fidelidade; línguas em contato;
Multilinguismo; Estudos decoloniais.
Abstract: This mini-project aims to make a historiographical mapping of the presence of interpreters in the
colonies in America during the 16th century. It seeks to fathom out the importance of these interpreters as
“language” mediators in the new world space configuration, especially, in the political and administrative spaces
shaped at the commencement of the 16th century. In that vein, I look – throughout this research – to unfold the
following question: how did interpreters aid to build a new historiographical narrative of the Latin-American
colonial period? In order to arouse some discussions around the participation of those interpreters in the
appropriation and/or resistance process to the European colonization, I set to approach, based the concept of
fidelity, the multiple representations interpreters incarnated while working for European nation-states. With regard
to the methodological aspects, I bring in the possibility of carrying a historiographical research based on the data
provided by the localization browser Vérsila Biblioteca Digital, in order to make an inventory, collect and select
the scientific articles, dissertations and theses produced between 2000 and 2015. One hopes this bibliographical
mapping will stimulate new researches for relevant information on the history of colonization, and broaden the
horizons of the investigations for the studies of the history of translation in Latin-America.
Keywords: History of translation. Digital mapping. Colonial interpreters. Languages. Fidelity. Multilingualism.
Decolonial studies.
33
34
Capítulo 3
Antonia E. M. Gehin
(Mestranda- PGET)
Introdução
De acordo com Dixon e Foster (2008), de 1923 a 1927 a indústria cinematográfica resistiu
a introdução do som no cinema por receio de que esta transição resultaria em profundas
mudanças tecnológicas e econômicas. Apesar disso, a Warner Bros produziu o primeiro filme
falado The Jazz Singer (1927), marcando uma nova era na história do cinema. De fato, o advento
do cinema falado transformou a forma como filmes são produzidos e distribuídos, e foi
responsável pelo surgimento da tradução multimídia, sem a qual a distribuição internacional de
filmes não teria sido possível. Assim, “desde os primórdios do cinema, com o intuito de tornar
os programas audiovisuais compreensíveis para audiências que desconhecem a linguagem do
original, formas diferentes de transferência linguística se tornaram necessárias” (CINTAS;
ANDERMAN, 2009, p. 4, tradução nossa). Para atender a necessidade de transferência de
textos multimodais para outra língua e cultura, a tradução audiovisual surgiu, mais tarde, como
uma subárea do campo Estudos da Tradução.
Coincidentemente, a era de ouro da tradução audiovisual aconteceu na década de 1990,
quando uma intensa atividade resultou numa crescente sistematização da pesquisa, de um ponto
35
de vista acadêmico e educacional (CINTAS, 2009, p.3). É interessante notar que apenas alguns
anos antes, no meio acadêmico, a disciplina estudos da tradução passou por intensas
transformações que acarretaram na tradução cultural como uma nova abordagem que
compreende a cultura como elemento essencial do processo tradutório (BASNETT;
LEFEVERE, 1998). Ainda que as consequências da reestruturação proposta por Bassnett e
Lefevere (1998, p. 123) tenham sido mais fortemente percebidas no campo da tradução literária,
questões ideológicas e relações de poder comprometem a tradução cinematográfica desde a
escolha entre dublagem e legendagem – predominante em determinados países – até limitações
técnicas de espaço que podem ser utilizadas como estratégias para eliminar informações
consideradas inadequadas para a cultura de chegada (BASSNETT; LEFEVERE, 1998, p. 136).
Ao mesmo tempo em que os estudos da tradução passavam por transformações e a
tradução audiovisual ganhava espaço no universo acadêmico, a revolução digital marcada pela
chegada da internet, representou uma mudança radical na comunicação social e interpessoal.
Por volta de 1992, a primeira world wide web (www.) foi liberada para o público em geral.
Apenas sete anos mais tarde a internet estava disponível em quase todos os países, provocando
um crescimento súbito da produção de material audiovisual e aumentando a demanda por
profissionais de dublagem e legendagem.
“Tradução entre mídias é impossível (ninguém pode traduzir da forma falada para a forma
escrita de um texto ou vice versa)”7 escreve, J.C. Catford (1965, p. 53, tradução nossa). No
entanto, a tecnologia parece ter-se encarregado de provar que a afirmação de Catford está
equivocada e transformou a legendagem — tradução de um texto falado para a forma escrita
— em um dos métodos de tradução mais praticados nos dias de hoje.
Enquanto a dublagem pode ser definida como um processo de substituição do áudio
original por sua versão traduzida, a legendagem é o processo de transferência do áudio original
para a forma de texto, exibido na tela juntamente com a imagem. A passagem de um código
oral para outro escrito não é somente o modo de tradução mais comum, como é o mais complexo
e restrito. Legendagem não permite notas de rodapé ou textos explicativos e frequentemente
não dispõe de tempo e espaço suficiente para a transcrição literal do áudio.
Assim, a legendagem pode ser definida como:
Legendagem pode ser definida como uma prática de tradução que consiste na
apresentação de um texto escrito, geralmente na parte inferior da tela, que se
empenha em narrar o diálogo original dos personagens, assim como os
elementos discursivos que aparecem na imagem (letras, encartes, rótulos,
cartazes, e outros itens semelhantes), e a informação que está contida na trilha
sonora (música, voice-over). Todos os programas legendados são constituídos
por três componentes principais: a palavra falada, a imagem e as legendas. A
interação desses três componentes, juntamente com a habilidade do
telespectador de ler ambos o texto escrito e a imagem a uma certa velocidade,
além do tamanho da tela, determinam as características básicas do meio
audiovisual. (CINTAS; REMAEL, 2014, p. 8-9, tradução nossa)8.
7
Translation between media is impossible (i.e. one cannot 'translate' from the spoken to the written form of a text
or vice-versa). (CATFORD, 1965, p. 53).
8
Subtitling may be defined as a translation practice that consists of presenting a written text, generally on the
lower part of the screen, that endeavours to recount the original dialogue of the speakers, as well as the discursive
elements that appear in the image (letters, inserts, graffiti, inscriptions, placards, and the like), and the information
that is contained on the soundtrack (songs, voices off). All subtitled programmes are made up of three main
components: the spoken word, the image and the subtitles. The interaction of these three components, along with
36
Durante uma entrevista para o jornal online IndieWire (2012) o jornalista crítico de
cinema e legendador francês Henri Baher afirmou que o desafio de criar legendas eficazes é
torná-las invisíveis para a audiência, e que esse objetivo demanda mais do que extrema
humildade. A noção de invisibilidade do texto em legendagem também é defendida por teóricos
como Cintas e Remael (2014). Legendas devem ser “invisíveis” para que sua leitura na tela seja
quase imperceptível pela audiência e não atrapalhe a compreensão da informação transmitida
pela imagem. O termo “poluir” a imagem é frequentemente usado para descrever esse fenômeno
(CINTAS; REMAEL, 2014, p. 87). Esta argumentação teórica baseia-se na ideia de que
legendas longas acabam por cobrir parte da imagem, prejudicando a visibilidade de elementos
essenciais mostrados na tela. Com isso, pretende-se que o espectador leia a legenda sem se dar
conta de que o está fazendo. A tradução para legendagem está submetida a diversas regras como
número de linhas por legenda; número de caracteres por linha; tempo de exposição de cada
legenda na tela e sincronização com o áudio original.
O número máximo de caracteres por linha varia de acordo com o alfabeto, é comum
permitir 35 para idiomas cirílicos como o búlgaro macedônio e o russo, 34 36 para o grego e o
árabe, 12 a 14 para o japonês e o coreano, e entre 14 e 16 para o chinês (CINTAS; REMAEL,
2014, p. 85, tradução nossa)9.
Dessas restrições derivam limitações textuais, linguísticas e extralinguísticas em meio as
quais o tradutor é obrigado a recorrer a estratégias específicas que, normalmente, não são
adequadas para outros modos de tradução. A dublagem, por exemplo, que consiste na
substituição do áudio original por sua versão traduzida, não necessita dividir a atenção do
espectador entre dois modos de comunicação distintos, como no caso da legendagem. Assim, o
tradutor para legendas se encontra numa situação realmente desafiadora, na qual precisa decidir
o que deve substituir, adaptar ou até mesmo omitir para transferir, dentro de um espaço limitado,
o sentido de um diálogo audiovisual.
Dirigido pelo escocês Peter Mullan, o filme The Magdalene Sisters (2002), ganhador do
prêmio de melhor filme no festival de Veneza do mesmo ano, conta a história de quatro jovens
encarceradas em instituições católicas denominadas Asilos de Madalenas, na Irlanda. O filme
é baseado no documentário Sex in a Cold Climate (1997), produzido e dirigido por Steve
Humphries para expor o que viria a ser um dos maiores escândalos da sociedade irlandesa do
século XX. Conhecidas também como Lavanderias de Madalenas, essas instituições religiosas
dirigidas por freiras são acusadas de terem explorado e abusado física e psicologicamente de
milhares de mulheres entre 1900 e 1996 na Irlanda, segundo diversos testemunhos citados no
documento oficial Report of the Inter-Departmental Committee to establish the facts of State
involvement with the Magdalen Laundries. No entanto, como surgiram e em quais ideologias
estão fundamentadas essas instituições projetadas para oprimir mulheres em situação
vulnerável?
Para melhor compreender como surgiram e com que finalidade foram criados os Asilos
ou Lavanderias de Madalenas faz-se necessário investigar as ideologias religiosas que
motivaram sua fundação e determinaram o estilo de vida de seus membros. Diversos estudos
indicam que os asilos surgiram no século XVII em um contexto monástico medieval.
the viewer’s ability to read both the images and the written text at a particular speed, and the actual size of the
screen, determine the basic characteristics of the audiovisual medium. (CINTAS; REMAEL, 2014, p. 8-9).
9
The maximum number of characters per line varies according to alphabets, and it is normal to allow 35 for Cyrillic
languages like Bulgarian, Macedonian and Russian, 34 to 36 for Greek and Arabic, 12 to 14 for Japanese and
Korean and between 14 and 16 for Chinese. (CINTAS; REMAEL, 2014, p. 85)
37
No século XVII, época marcada por eventos que intensificaram a marginalização da
mulher na Europa como a peste negra, padre João Eudes (1601-1680) movido de compaixão
por prostitutas que viviam nas ruas da França, percebeu que a melhor maneira de lidar com elas
era formando uma ordem de “mulheres santas” (virgens consagradas). Assim, em 1641 Eudes
fundou a ordem Irmãs de Nossa Senhora da Caridade em Caen, Normandia. As “mulheres
santas” que aderiram a esta ordem eram chamadas a “reformar” – segundo a doutrina católica
– uma classe inferior de mulheres: prostitutas ou mulheres “caídas” rejeitadas pela sociedade.
Além de prostitutas, a ordem também recebia meninas em situação vulnerável, correndo o risco
de se perderem ou caírem na prostituição, como um meio de prevenção. Com o estabelecimento
da ordem, reformatórios do governo também foram incorporados aos mosteiros. Nasciam os
primeiros Asilos de Madalenas operados por freiras que, algum tempo depois, se expandiram
na Irlanda e outras regiões da Europa. Porém, sua relação com o nome da figura bíblica Maria
Madalena se deu oficialmente somente dois séculos depois, quando Maria Eufrásia Pelletier
(1796-1868) foi eleita superiora desta ordem em Tours, França. Eufrásia estava insatisfeita com
o fato de as penitentes que viviam nos refúgios não serem aceitas em sua ordem10. Este princípio
demonstra que o fato de terem abandonado a prostituição não mudava a condição social que as
tornava inadequadas para a vida consagrada, por terem crescido ou vivido em um ambiente
desfavorável. Essas mulheres eram apenas objeto da caridade que a Igreja lhes dedicava.
Diante dessa realidade, Eufrásia começou a idealizar uma ordem onde penitentes que
aspiravam à vida religiosa pudessem se tornar freiras. Seu desejo se concretizou em 1825 com
a fundação da ordem Irmãs de Madalena (The Magdalene Sisters), tendo como padroeira Maria
Madalena, a prostituta arrependida do Novo Testamento que foi perdoada por Jesus (Lucas 7,
36-50). Eufrásia determinou que este instituto formado por mulheres “caídas” que aspiravam a
conversão não seria autônomo, mas dirigido por outra ordem formada por mulheres de uma
classe superior (mulheres santas). Quando em 1835, divergências entre Eufrásia e as Irmãs de
Nossa Senhora da Caridade a levaram a se desligar desta ordem, Eufrásia fundou sua própria
congregação a qual deu o nome de Irmãs de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. Com
isso, O instituto Irmãs de Madalena passou a ser governado pela nova congregação, assim como
os refúgios de penitentes fundados por Eufrásia11, de modo que uma ordem estava incorporada
e era dependente de outra.
Com o passar do tempo, os refúgios criados por Eudes e Eufrásia se expandiram por
diversos países, porém perderam sua motivação original e foram transformados em instituições
lucrativas que ficaram conhecidas como lavanderias de madalenas. Na Irlanda, registros dos
primeiros asilos operados por freiras datam de 1837, enquanto o último encerrou suas atividades
somente em 1996.
Se considerarmos o processo de cristianização da Irlanda e o papel da Igreja Católica na
formação do Estado irlandês, poderíamos argumentar que a Irlanda foi uma espécie de terreno
fértil, propício à evolução da cultura do confinamento, levando ao encarceramento de milhares
de mulheres em Asilos de Madalenas, como resultado da cooperação entre Estado e Igreja,
detentores da moral na recém proclamada república irlandesa (SMITH, 2004, p. 208).
The Magdalene Sisters é um filme baseado em fatos reais idealizado pelo diretor Peter
Mullan para dar voz às mulheres silenciadas por um sistema patriarcal opressor dentro e fora
dos conventos. The Magdalene Sisters denuncia desigualdade de gênero, violação de direitos
humanos, manipulação religiosa e controle social numa sociedade em que a moralidade católica
impunha punição física e moral sobre mulheres com a finalidade de gerar lucro.
10
http://catholicpamphlets.net/pamphlets/St%20Mary%20Euphrasia.pdf
11
Ibidem.
38
Referências culturais em The Magdalene Sisters
12
Specific places of any city or country; aspects related to the history, the art and the customs of a given society
and age (songs, literature, aesthetic concepts); very popular characters, mythology; gastronomy, institutions,
currencies, systems of weight and measurement. (CANÓS, 1999, tradução de Irene Ranzato).
13
Culture-bound terms are extralinguistic references to items that are tied up with a country‟s culture, history, or
geography, and tend therefore to pose serious translation challenges. They are also referred to as cultural
references, realia, and, more recently, ECRs or extralinguistic cultural- bound references. (CINTAS; REMAEL,
2014, p. 200).
39
relevância (CINTAS; REMAEL, 2014, p. 163), especialmente em casos de referências culturais
que não possuem um equivalente na língua de chegada. Nesse sentido, a omissão é uma
estratégia válida que consiste em não traduzir parte do diálogo.
Frequentemente utilizada para a tradução de legendas, a substituição é necessária quando
restrições de espaço não permitem o uso de frases longas, ainda que equivalentes sejam
encontrados na cultura de chegada (CINTAS; REMAEL, 2014, p. 204). Para Pedersen (2005),
substituição consiste na troca de uma referência específica da cultura de partida por outra da
cultura de chegada.
– You spend all your time hanging around playgrounds, do you? – Vocês ficam o tempo todo aí é?
– Which one of us do you like? – De qual de nós você gostou?
– She fancies me. – De mim.
– How could she fancy you with this stomach on you? – De você! Seu barrigudo!
– Through the powers of prayer, cleanliness and hard – Mediante o poder da oração, da hygiene e do
work, the fallen may find their way back to Jesus trabalho árduo, as perdidas podem voltar a Jesus
Christ. Cristo.
No exemplo acima, o termo “fallen” que traduzido literalmente para o português possui
o equivalente “caídas”, foi substituído pelo termo “perdidas”, já que em português é comum
utilizar o eufemismo “mulher perdida” para se referir a prostituta. Assim, a estratégia
substituição pareceu mais adequada para o tradutor ou tradutora por manter o sentido da frase.
No entanto, a expressão “fallen women” também possui conotação religiosa. “Fallen women”
remete a mulheres que perderam a graça divina pelo pecado do sexo. Ao mesmo tempo, remete
ao anjo caído, aquele que caiu em pecado, que perdeu a graça. Nesse sentido, a tradução de
“fallen” para “perdidas” não mantém o real sentido da expressão, de modo que o termo
“decaído” seria mais apropriado para esse contexto.
40
Na transferência da frase seguinte observa-se a utilização da estratégia transposição. O
conceito cultural “with this stomach on you” foi substituído pela expressão popular “seu
barrigudo”. Ainda segundo Cintas e Remael (2014, p. 204), transposição é uma estratégia usada
para casos nos quais um conceito cultural de determinada cultura é substituído por um conceito
cultural de outra.
– That all men are sinners and, therefore, all men are open – Todos os homens são pecadores, portanto,
to temptation. abertos a tentação.
– In any God-fearing country, if you want to save men from – Num país católico, para salvá-los de si
themselves, you’ll remove that temptation. próprios, remove-se a tentação.
Neste diálogo, o equivalente mais apropriado para a frase “God-fearing country” seria
“país temente a Deus”, uma frase mais longa que contém dezesseis caracteres e foi substituída
pela frase “país católico”, que contém apenas doze caracteres. No entanto, no contexto histórico
de The Magdalene Sisters (Irlanda, 1965), a frase “God-fearing country” descreve o papel da
Igreja católica enquanto principal autoridade moral e religiosa da época. Nesse contexto, o
verbo temer está marcado por uma posição ideológica que não é transmitida através da tradução
“país católico”. Esta escolha também pode fazer com que membros de outras religiões se sintam
excluídos do sentido que a fala original “país temente a Deus” representa.
Considerações finais
41
Referências
BAHER, Henri. How Do You Subtitle a Movie at Cannes? Henri Behar Explains All.
Disponível em: <http://www.indiewire.com/2012/05/how-do-you-subtitle-a-movie-at-cannes-
henri-behar-explains-all-47138/>. Acesso em 21 maio 2017.
CINTAS, Jorge Díaz (Ed.). New Trends in Audiovisual Translation. Bristol: Multilingual
Matters, 2009.
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Brunswick/New Jersey: Rutgers University Press, 2008.
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THE MAGDALENE SISTERS. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Escócia
(UK). Momentum Pictures. 2002. 1 DVD.
42
Resumo: Tradução audiovisual, de modo particular tradução para o cinema, é constituída por diversas restrições
que a tornam uma atividade peculiar e complexa, sobretudo quando componentes próprios de uma cultura ou suas
especificidades culturais, representam um desafio para o tradutor e exigem a utilização de estratégias distintas.
Partindo desse pressuposto, este artigo se propõe analisar as principais restrições técnicas que caracterizam a
legendagem para o cinema enquanto mídia composta por relações intersemióticas e tida como uma poderosa
ferramenta de representação nacional e comunicação intercultural. Ao mesmo tempo, este estudo procura
investigar o conceito de referências culturais em legendagem e as principais estratégias disponíveis para solucionar
problemas de tradução de referências culturais, utilizando como exemplo diálogos do filme The Magdalene Sisters
(2002) do diretor escocês Peter Mullan. A análise teórica será realizada, principalmente, a partir de concepções
desenvolvidas por Jorge Díaz Cintas e Aline Remael (2009, 2014), que abordam diversos aspectos da tradução
audiovisual.
Palavras-chave: Tradução audiovisual. Referências culturais. Restrições em legendagem. Estratégias de tradução.
Abstract: Audiovisual translation, particularly translation for the cinema, is a peculiar and complex activity
formed by several constraints that represent a great challenge for the translator, especially when specific
components of a culture require the use of distinct strategies. Based on this assumption, this article proposes the
analysis of the main technical constraints that characterize subtitling for the cinema as a media composed by
intersemiotic relations and seen as a powerful tool of national representation and intercultural communication. At
the same time, this study intends to investigate the concept of cultural references, also known as culture-bound
items in subtitling. In addition, it intends to investigate the most common translation strategies available to solve
translation problems of culture-bound references through the analysis of dialogues presented in The Magdalene
Sisters film, directed by scotch actor and director Peter Mullan. The theoretical approach is mainly based on
conceptions developed by Jorge Díaz Cintas e Aline Remael (2009, 2014) who cover several aspects of audiovisual
translation.
Keywords: Audiovisual translation; Cultural references; Constraints in subtitling; Translation strategies.
43
44
Capítulo 4
Beatrice Távora
(Doutoranda – PGET)
Introdução
A tradução pode ser considerada um profundo e contínuo ato de leitura. Antoine Berman
é taxativo ao expressar que a deficiência de um tradutor reside na ausência de leituras e que
somente através de leituras vastas e diversificadas se opera o “escoramento do ato tradutório”
(BERMAN, 1995, p.68). Esse aspecto é corroborado por Paulo Henriques Britto, que considera
a tradução “a operação de leitura mais cuidadosa que se pode imaginar” (BRITTO, 2012, p. 51)
e também por Ítalo Calvino quando afirma que “traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto”
(CALVINO, 2009, p. 87).
No campo da tradução literária, a questão da leitura se agiganta, uma vez que esta
atividade é caracterizada por captar e condensar o espaço polilinguístico de uma comunidade,
segundo Berman (2013, p. 65) e na qual se espera dos tradutores estratégias para criar ou
preservar as intenções estéticas ou os efeitos perceptíveis no texto de partida, como explicita
Dirk Delabastita (2011, p.69). A concretização dessas estratégias, por sua vez, implica uma
série de decisões com vistas a atender a determinados propósitos, dentre os quais tornar
conhecida uma obra tida como essencial ou transpor de uma língua para outra a intransigência
especial de determinados textos, de acordo com Susan Sontag (2008, p. 168).
Em razão da complexidade das obras literárias, Berman afirma que toda tradução
literária é levada por “um projeto ou finalidade articulada, determinado pela posição tradutória
e por exigências específicas postas pela obra a traduzir” (BERMAN, 1995, p. 76), entendendo-
se posição tradutória como uma espécie de convicção íntima do tradutor, o resultado de sua
reflexão sobre a obra a ser traduzida.
A esta convicção íntima soma-se o estudo das teorias da tradução, recursos valiosos, no
entender de Anthony Pym, não somente para que os tradutores defendam suas posturas, mas
também porque permitem descobrir outras cujo conhecimento pode auxiliar no processo mesmo
da tradução ampliando a possibilidade de soluções. Para Pym (2012), as reflexões sobre a ética
e a finalidade fundamental da tradução se destacam, sobretudo, no momento de selecionar uma
solução, quando é preciso tomar decisões e escolher entre as alternativas possíveis.
A partir desse entendimento, nos propomos no presente trabalho a discutir alguns
aspectos em torno da tradução da obra satírica do escritor espanhol do Século de Ouro,
Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645) ao português brasileiro, sobretudo os que se
relacionam à elaboração do humor.
De acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Quevedo é “o mais
importante prosador espanhol do século XVII, possuidor de uma obra ampla em prosa e em
verso, que apresenta grande variedade de temas” (FERREIRA; RÓNAI, 1979, p. 138). Apesar
de ser considerado um clássico, elencado por Ítalo Calvino (2007, p. 16) ao lado de Montaigne,
Erasmo, Proust e Valery e de ter influenciado a poética de Octávio Paz, Jorge Luis Borges e
Rubén Darío, dentre outros, tem sua obra no Brasil pouco conhecida, dada a ausência de
traduções.
45
A leitura de Quevedo no contexto hispânico
46
Além disso, no cenário hispanofalante, não apenas a leitura das obras, mas do próprio
escritor passou a mimetizar-se no inconsciente coletivo ou individual, para usar as palavras de
Calvino, associado ao humor. Esse fenômeno identificado por Pedrosa (2003) tipifica a
metamorfose pela qual passou o autor, e que transformou Quevedo em personagem de contos
e ditos populares dada sua popularidade. Nesse sentido, Jiménez Montalvo afirma ter sido
Quevedo
Quevedo está presente também em outros elementos da cultura hispânica. Assim, foi
efígie das notas de cem pesetas na Espanha até o ano de 1999, data da introdução do euro; na
filatelia, está estampado em selos comemorativos, com destaque para a recente edição de maio
de 201614 em homenagem ao humor gráfico através de personagens históricos; possui eventos
anuais em diversas cidades que resgatam aspectos históricos de sua vida e de sua obra15; nomeia
o “Instituto Quevedo del Humor”, entidade fundada em 2014 com apoio da Universidade
Alcalá de Henares que visa investigar, estudar e difundir o humor16; é personagem de
animações infantis17 e produções cinematográficas18; designa um tipo específico de óculos
reconhecido naquela cultura pela associação ao modelo por ele utilizado ao longo de sua vida
e que aparece retratado pelo pintor Velázquez (1599-1660).
Todos estes elementos podem ser entendidos como releituras que conformam um
discurso crítico sobre a obra quevediana e seu autor, de tal forma reverberado no tempo e em
distintos contextos que passam a se ocultar nas dobras da memória, reforçando a noção de
clássico, como destacado por Calvino.
14
Disponível em: <https://www.correos.es/ss/Satellite/site/info_corporativa-1363191778760-sala_prensa/detalle
_noticia-sidioma=es_ES>.
15
A exemplo das “Jornadas Quevedianas”, evento cultural promovido na Cidade de Cetina, Zaragoza, que em
2016 se realizou no período de 15 a 17 de julho conforme <http://www.cetina.es/quevedianas.html>. Acesso em
27 jun. 2017.
16
Disponível em: <https://www.elimparcial.es/noticia/97973/opinion/bienvenida-al-instituto-quevedo-del-humor
.html>. Acesso 27 jun. 2017.
17
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=miuSGkM8ZOY>. Acesso em 27 jun. 2017.
18
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=69atIee61jQ>. Acesso em 27 jun. 2017.
19
Além disso, data de 2013 a recente edição de Ernani Ssó, pela editora Penguin/Companhia das Letras.
47
espanhol das universidades brasileiras. Esta constatação colabora para o estabelecimento de um
cânone que merece ser discutido, pois, como afirma André Lefevere:
20
Disponível em <http://tede.ufsc.br/teses/PGET0333-D.pdf>. Acesso 13.11.2017.
48
um crítico) põe à prova, em alguns casos, os talentos mais adestrados no estudo do castelhano”
(FERREIRA; RÓNAI, 1979, p. 138).
O conjunto destes aspectos merece uma leitura aprofundada, não apenas do texto de
partida, mas leituras colaterais que viabilizem o acesso ao panorama histórico, político, social
e de evolução da língua, operação de per si inerente a todo ato tradutório, conforme exposto
anteriormente. Mas esta leitura talvez deva ir além, considerando soluções condizentes não
apenas com as que se encontram no texto de partida, mas que dialoguem com a noção de
clássico, acima mencionada, a exemplo do que discute Cavalli (2016, s/p) sobre a tradução de
Shakespeare para o italiano. Ao referir-se às suas traduções deste clássico autor inglês, a poeta
comenta as várias fases de abordagem do texto ao longo dos trinta anos que separam as
traduções das primeiras obras: A tempestade e Sonho de uma noite de verão, das últimas: Otelo
e A duodécima noite. Cavalli afirma que sua postura inicial era “passiva”, permitindo que a
língua inglesa penetrasse a estrutura das frases, a gramática e a semântica do italiano, etapa que
foi gradativamente substituída por um olhar mais “ativo”, voltado para outros aspectos da língua
de Shakespeare, tais como sons, tons, subtextos e dimensões que a tornavam “viva” no período
em que os textos foram escritos. Estes aspectos foram considerados para superar a tendência a
imitar a língua antiga que, em seu entender, gerava traduções artificiais dentro da proposta de
um projeto tradutório elaborado para a encenação, sem intenções filológicas.
Ao expor a evolução e o amadurecimento de sua posição tradutória, Cavalli explicita ao
público as “regras do jogo” da tradução. Essa atitude é preconizada por Berman (2013), quando
afirma que a exposição de um projeto e de uma posição tradutória, configuram uma visada ética
ao trabalho tradutório. No mesmo sentido, Cavalli também exemplifica o que afirma Pym
(2012), uma vez que, ao realizar uma reflexão sobre as soluções cabíveis e sobre as decisões
tomadas diante das escolhas possíveis, apresenta de maneira ética sua proposta construída
naquilo que, em seu entender, é a finalidade fundamental da tradução. Ao manifestar sua
reflexão, a poetisa italiana parece contribuir igualmente com a construção teórica dos estudos
da tradução, demonstrando como a noção de clássico foi sendo por ela interiorizada ao longo
do tempo, incorporada em sua leitura particular e manifestada no texto final traduzido.
No caso do texto quevediano, a apresentação de projeto semelhante evitaria ou justificaria
o afastamento do texto de partida, tal como no exemplo a seguir, extraído da tradução de Chwat:
Y si fueres cruel y no pío, perdona, que este epíteto, Se fores cruel e não pio, perdoa, pois este epíteto
natural del pollo, has heredado de Eneas. herdaste de Eneas.
Considerações finais
Este trabalho procurou evidenciar o papel da leitura como elemento fundamental do fazer
tradutório, aspecto amplamente ressaltado por tradutores e estudiosos da tradução.
Através da apresentação das diversas formas de leitura realizadas sobre a obra de
Francisco de Quevedo ao longo do tempo e em diferentes contextos, as reflexões aqui
apresentadas procuraram discutir em que medida a leitura converge para a tomada de decisões
no ato tradutório.
Foram discutidas diferentes abordagens de leitura, tomadas não apenas no sentido estrito
de decodificação da linguagem, mas em sentido mais amplo para abarcar a noção de clássico,
que se relaciona aos discursos críticos realizados em diferentes épocas e cenários e que, por sua
vez, colabora com a constituição de determinado cânone. Foram expostos também alguns
elementos da escrita quevediana que, em razão de sua complexidade, exigem não apenas a
leitura do texto de partida, mas leituras colaterais relacionadas ao momento de produção, como
forma de possibilitar o acesso às várias camadas textuais e ampliar a possibilidade de soluções
para o texto de chegada.
Assim, buscou-se destacar que a elaboração de um projeto tradutório implica que sejam
considerados não apenas os aspectos textuais, mas uma série de outros elementos relevantes
relacionados às noções de clássico e de cânone, uma vez que eles podem definir a forma de
aproximação a uma obra, colaborando na eleição de parâmetros para a seleção léxica e sintática,
aspectos que, por sua vez, precisam ser explicitados ao leitor.
Referências
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Gallimard, 1995.
21
Diccionario de La Real Academia Española. Disponível em: <http://dle.rae.es/?id=T6Li1tV|T6QbqG1|T6VG
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50
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In: _____. Ao mesmo tempo. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras,
2008, p. 167-189.
Resumo: Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645) é um dos maiores representantes da literatura do Século
de Ouro espanhol, período compreendido entre os séculos XV e XVII e no qual as artes e a cultura atingiram um
apogeu. Ao longo do tempo sua obra foi lida e estudada sob variados prismas e seus ecos repercutiram e repercutem
ainda na atualidade de diversas maneiras em distintos sistemas literário-culturais, sobretudo hispanofalantes.
Apesar de ser considerado um clássico, elencado por Ítalo Calvino (2007) ao lado de Montaigne, Erasmo, Proust
e Valery e de ter influenciado a poética de Octávio Paz, Jorge Luis Borges e Rubén Darío, dentre outros, sua obra
no Brasil é pouco conhecida, dada a ausência de traduções. A partir do entendimento da tradução como ato de
leitura crítica (BRITTO, 2012) este artigo objetiva problematizar as diversas leituras que fizeram deste autor um
clássico, tais como sua mimetização no inconsciente coletivo associado ao humor (PEDROSA, 2003), tomando-
as como elementos a serem considerados na busca por soluções tradutórias ao português brasileiro.
Palavras-chave: Tradução; Leitura; Século de Ouro; Quevedo y Villegas.
Abstract: Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645) is one of the major representative of the literature of the
Spanish Golden Age, a period between the fifteenth and seventeenth centuries, and in which the arts and culture
reached and apogee. Over the time his work was read and studied under varied prisms and its echoes reverberated
and still have repercussions in the present time in different ways in different literary-cultural systems, mainly
Spanish-speaking. Despite being considered a classic, listed by Italo Calvino (2007) alongside Montaigne, Erasmo,
Proust and Valery and to have influenced the poetics of Octávio Paz, Jorge Luis Borges and Rubén Darío, among
others, his work in Brazil is little known, given the absence of translations. From the understanding of translation
as an act of critical reading (BRITTO, 2012), the aim of this paper is to discuss the various readings that made this
author a classic, such as its mimicry in the collective unconscious associated with humor (PEDROSA, 2003) taking
them as elements to be considered in the search for translation solution to Brazilian Portuguese.
Keywords: Translation; Reading; Spanish Golden Age; Quevedo y Villegas.
52
Capítulo 5
22
O termo “Okie” designa os emigrantes dos estados norte-americanos de Oklahoma e Texas e tinha conotação
pejorativa na época da depressão econômica das décadas de 1920 e 1930.
53
correspondência com o pesquisador Alan Lomax, de 1940, é totalmente escrita na norma-
padrão do inglês. Além disso, lia muito, era bem-informado e defendia políticas dos grupos
com os quais se associou (BLAKE, 2010, p. 192). Guthrie vinha de uma família de classe-
média, que posteriormente empobreceu durante a Grande Depressão.
A obra do norte-americano foi impulsionada postumamente por alguns artistas que o
viam como fonte inspiração, como Bob Dylan e Bruce Springsteen. Assim, Bound For Glory
acabou sendo traduzido para diversos idiomas, como o espanhol, e o italiano. Não há traduções
da autobiografia para o português publicadas até o presente momento.
A pesquisa leva em conta a profusão de marcadores linguísticos de variedades sub-padrão
do inglês no texto-fonte de Guthrie para analisar um trecho da tradução italiana de Bound For
Glory, e confirmar características de sua cultura de chegada em relação à tradução de variedades
linguísticas. Em seguida, a investigação considera a mesma questão em relação ao Brasil, e
oferece uma tradução para o português do mesmo trecho, produzida de acordo com os
parâmetros detectados em pesquisa anterior (FAGUNDES, 2016) no polissistema brasileiro de
tradução literária acerca de variedades linguísticas.
O autor relata que, como leitor bilíngue desde a infância, notou cedo que havia uma
grande diferença entre os textos de ficção em português e inglês: os diálogos na língua
estrangeira soavam mais naturais do que nos livros e traduções brasileiras (BRITTO, 2012, p.
81). A menor distância entre o escrito e o falado na língua inglesa permitiu que um autor como
Mark Twain representasse diferentes variedades do Inglês norte-americano em livros como The
Adventures of Huckleberry Finn (1884) sem grandes problemas. No Brasil, mesmo depois de o
Modernismo ter se utilizado da oralidade brasileira para renovar sua literatura, um de seus
expoentes, Mário de Andrade, condenou em carta a Manuel Bandeira o uso do pronome sujeito
como complemento (como em “encontrei ele doente”) (MORAES, 2000, p. 184).
O uso citado é um traço gradual da oralidade brasileira utilizado em todo o país. Sua
utilização poderia conferir aos diálogos de uma tradução do livro de Twain mais
verossimilhança, mas não é o que aconteceu em boa parte de suas traduções brasileiras. Na de
Monteiro Lobato, se,
[...] o Huck Finn de Twain falava como um garoto analfabeto do interior dos
Estados Unidos, [...] o protagonista da tradução usava palavras como
‘convescote’ e formas verbais – como o futuro do pretérito sintético – que as
pessoas no Brasil só empregavam na escrita. (BRITTO, 2012, p. 82).
Interessante notar que, mesmo depois de as telenovelas brasileiras terem usado por
décadas representações de variedades estigmatizadas da oralidade, continuou a pouca aceitação
dessas variedades no português escrito. Sobre isso, podemos nos basear em Pym (2000, p. 72)
para argumentar que no caso das telenovelas, a representação das variedades servia como
paródia: o emissor (a telenovela) e o receptor (o telespectador) se uniam para se distanciar de
um terceiro (o falante de uma variedade nordestina, por exemplo). O alto status do texto escrito
no Brasil não permitia esse tipo de representações paródicas, ou nem mesmo as “autênticas”.
Dessa forma, a estratificação do português brasileiro fez com que a verossimilhança de
diálogos na ficção nacional e estrangeira traduzida fosse severamente afetada.
Contudo, essa tendência começou a mudar progressivamente nas últimas décadas.
Milton já notara em 1994 que, entre outras, a A Cor Púrpura (1986) tradução brasileira para
The Color Purple (1982), de Alice Walker, usava elementos de variedades do português
brasileiro para representar as variedades estrangeiras do texto-fonte. E no começo do século
XXI, houve um notável crescimento do número de traduções que tentavam de alguma forma
marcar a alteridade dos textos de partida.
O viés sistêmico nos leva à busca de forças no polissistema que tenham causado tal
transformação. A primeira delas pode ser um processo que se iniciou há ao menos cinquenta
anos: o nivelamento sociolinguístico. O processo de urbanização do país levou ao inchaço das
grandes cidades. Em 2000, ao menos 80% dos brasileiros viviam em zonas urbanas. As grandes
periferias das cidades se tornaram campo fértil para a preservação e expansão de uma “norma
popular brasileira”, e interações entre habitantes de origem rural e urbana promoveram
transformações na malha sociolinguística do país. Mesmo persistindo uma fronteira linguística
entre variedades urbanas de prestígio e variedades urbanas e rurais estigmatizadas, há hoje
maior trânsito de características linguísticas entre elas (BAGNO, 2012, p. 48).
55
Outra causa dessa mudança seria um maior acesso dos leitores a informações em relação
aos textos-fonte, e uma maior profissionalização do mercado editorial brasileiro. Sobre isso, a
editora Larissa Helena (Record, Rocco, Objetiva, Sextante, etc.) escreveu, em entrevista por
email:
[...] como editora sempre esperei que os meus tradutores dessem conta das
variedades linguísticas na hora de verter os textos para o português. Todas as
editoras com as quais já trabalhei também, apesar de isso não ser claramente
definido ou padronizado, já que a demanda de cada livro é diferente.
Felizmente, todas as editoras compreendem como é desafiador dar conta dessas
variedades. (FAGUNDES, 2017b).
Essa recente maior preocupação das editoras com a consideração das variedades
linguísticas dos textos-fonte reflete um cuidado renovado em relação a alguns princípios da
tradução literária. Britto (2012, p. 67) destacou a ideia de se traduzir “o marcado pelo marcado,
o não marcado pelo não marcado” (MESCHONNIC, 1973, p. 343). E Pym lembra que o que
há para ser traduzido não é exatamente a variedade linguística, mas a “alteração sintagmática
de distância, o desvio relativo à norma” (PYM, 2000, p. 74). Se em um texto-fonte,
representações de variedades linguísticas são elementos importantes na caracterização de
personagens, ou no estabelecimento de correlações de forma e sentido contextual, no nível
comunicativo e sócio-semiótico, as editoras brasileiras parecem estar mais atentas a elas nas
traduções que publicam.
Com base em pesquisa anterior de Fagundes (2016), e na classificação de estratégias e
procedimentos de tradução de variedades literárias, proposta por Alexandra Assis Rosa (2012),
concluiu-se que a estratégia adotada anteriormente por tradutores brasileiros era a de
Normalização, e o procedimento era o de Omissão, que seria a não consideração de marcadores
linguísticos sinalizando caracterização de discurso sub-padrão com menos prestígio no texto-
fonte.
Já nas traduções posteriores a 2002, ano em que Milton publicou sua última atualização
sobre o tema, a estratégia mais comum é a de Centralização, na qual se substitui as variedades
estigmatizadas do texto-fonte por representações que aludam a variedades estigmatizadas mais
próximas da língua normativa, ainda que denotem algum desvio da norma. O procedimento
mais comum nessas traduções é o de Manutenção de marcadores linguísticos sinalizando
caracterização de discurso sub-padrão com menos prestígio no texto-fonte, com manutenção de
dimensões comunicativas e sócio- semióticas de contexto.
Concluindo: como atesta Hanes (2015), ainda não se pode dizer que tal estratégia e
procedimento são majoritários ou que sinalizam um novo paradigma em relação à tradução de
representações literárias de variedades linguísticas, mas eles apontam para uma mudança
relevante dentro do polissistema brasileiro de literatura traduzida em relação à questão.
23
Todas as traduções deste artigo são do autor. Em italiano: “[...] a me importa di aver sempre fatto del mio meglio
per capire quello che i miei autori avevano cercato di dire, magari al di là delle loro parole, nei libri che stavo
traducendo”.
56
de escritores norte-americanos para o italiano, introduzindo no país europeu autores como
Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, e
muitos outros. Pode-se dizer que foi uma das principais responsáveis pela renovação daquele
polissistema literário através da importação de gêneros e estéticas, em uma época em que a
Itália olhava para os Estados Unidos como modelo cultural e econômico.
A frase do parágrafo anterior diz muito sobre a maneira de Pivano traduzir. Ela rejeitava,
por exemplo, a heterogeneidade linguística de alguns autores, normalizando-a. Sua visão de
literatura era populista, no sentido de transformá-la em um veículo de experiência comunicável
(RICHARDS, 2014, p. 39). Na prática, isso significava uma falta de compromisso tradutório
para com o que Berman (2013) chamaria de “fidelidade à letra”. Tinha, assim, “fidelidade ao
‘tom’ do texto24” (RICHARDS, 2014, p. 47).
De qualquer forma, a normalização de Pivano está de acordo com uma questão
complexa ligada à língua italiana, estratificada em dialetos muito distintos e marcada na
literatura por um conflito entre o regionalismo e o cosmopolitismo. A questione della lingua
diz respeito a uma língua nacional que não era realmente usada, e que Pasolini chamou de um
“artifício burguês que reforça o status quo25” (RICHARDS, 2014, p. 6). Essa língua literária
certamente contrastava de alguma forma com o vernáculo utilizado nos grandes centros urbanos
italianos, e essa diferença pode ser explorada na tradução. Já a existência de dialetos
regionalmente muito marcados limita o uso de seus traços descontínuos, situação bem diferente
da brasileira.
O pesquisador, autor e tradutor Alessandro Portelli é responsável pela primeira pesquisa
acadêmica sobre Woody Guthrie no mundo. Também escreveu a introdução da tradução de
Cristina Bertea para Bound For Glory. Ele confirma a tendência italiana de não se considerar
variedades linguísticas em traduções:
A tradução de Cristina Bertea para Bound For Glory [1943] (1983) não recriou
marcadores representando variedade linguística divergente da norma-padrão do inglês, como
veremos em mais detalhes adiante. Em 1977, a editora Savelli a publicou pela coleção Il Pane
e Le Rose, dedicada à cultura popular. Fato marcante desta primeira publicação é o título do
livro: Questa Terra È La Mia Terra27, tradução do segundo verso da canção mais famosa de
Guthrie, This land is your land, e que é bem diferente de Verso La Gloria, tradução
semanticamente e formalmente mais adequada para Bound For Glory, e que em português
poderia ser “Em Direção à Glória”, ou “Rumo à Glória”. A escolha italiana diz respeito a uma
deliberada associação com a obra musical de Guthrie, já mais conhecida no país naquele
momento.
24
Em italiano: “fedeltà al ‘tono’ del testo”.
25
Em inglês: “[...] a bourgeois artifice that reinforces the status quo”.
26
Em inglês: “All Italian translations do not attempt to reproduce dialect or idiosyncratic spelling. It would just
not make sense to have someone, say, from Georgia sound like someone, say, from Calabria. So the usual strategy
is to aim for some colloquial, spoken Italian, but no dialect rendering. […] Bertea was not trying to create an Italian
reproduction of Western US speech, but simply aiming for colloquial, oral linguistic registers”.
27
Em Português: Essa Terra É A Minha Terra.
57
A tradução de Bound For Glory foi reeditada em 1997, pela editora Marcos Y Marcos.
Em seguida, mais quatro edições idênticas seriam publicadas, em 2011, 2012, 2013 e 2014.
Nesta última, há um posfácio do editor Claudio Galuzzi, que explica que, apesar de acreditar
que haveria uma razão para Guthrie chamar sua autobiografia de Bound For Glory, optou por
manter o nome Questa Terra È La Mia Terra por uma questão de afeição ao título da tradução
de Bertea. Também revela que a edição da Marcos Y Marcos trazia as cerca de trinta páginas
da tradução que haviam sido suprimidas na primeira edição da Savelli, de 1977, por razões
editoriais. As edições da Marcos Y Marcos também trazem a introdução de Alessandro Portelli,
que é uma atualização da que abre a primeira edição da Savelli, e trata da importância cultural
de Guthrie e de seu ativismo político.
Para traduzir a autobiografia do artista, Cristina Bertea se valeu da estratégia de
Centralização: ao invés de incluir marcadores sub-padrão na consideração das representações
das variedades do texto-fonte, usou um italiano mais informal, de registro mais baixo. Já em
relação a procedimentos, pode se dizer que utilizou o de Mudança de marcadores mais
estigmatizados do texto-fonte por marcadores menos estigmatizados da língua de chegada. A
seguir, um trecho exemplifica tal estratégia e procedimento:
Quadro 1 – Trecho de Questa Terra È La Mia Terra (1977).
Tradução de Cristina Bertea (1977) Bound For Glory [1943] (1983), de Woody Guthrie.
<<Di tutto il treno proprio l’unico porco vagone "We would hafta git th' only goddam flat wheeler
rompiculo ci doveva toccare!>> sentenziò un on th' whole dam train!" A heavy-set boy with a big-
ragazzo ben piantato che, a giudicare dal modo di city accent was rocking along beside me and fishing
esprimersi, doveva venire da una grande città. Mi through his overhauls for his tobacco sack.
ondeggiava acanto frugandosi nelle tasche della
tuta alla ricerca del sacchetto di tabacco.
<<Meglio che farsela a piedi!>> Mi sistemai "Beats walkin'!" I was setting down beside him.
vicino a lui. <<Ti scoccia se il manico della mia "Bother you fer my guitar handle ta stick up here in
chitarra ti sta davanti al muso?>> yer face?"
<<No. Basta che ci fai sentire qualcosa. Che razza "Naw. Just long as yuh keep up th' music. Kinda
di canzoni suoni? Li sai gli ultimi successi?>> songs ya sing? Juke-box stuff?"
<<Grazie, ho appena fumato>> risposi scuotendo "Much oblige, just smoked." I shook my head. "No. I'm
la testa. <<No, e sono convinto che la musica da 'fraid that there soap-box music ain't th' kind ta win a
jukebox non sia la più adatta per vincere una war on!"
guerra>>.
<<Roba da femminucce, eh?>> Leccò il bordo "Little too sissy?" He licked up the side of his cigaret.
della sigaretta. <<O da checche>>. "Wisecracky, huh?"
<<Sì, per Dio>>. Imbracciai la chitarra. <<Ci "Hell yes." I pulled my guitar up on my lap and told
vuole qualcosa di più di quattro canzonette him, "Gonna take somethin' more'n a dam bunch of
spiritose da rammolliti per vincere questa guerra! silly wisecracks ta ever win this war! Gonna take
Ci vuole gente che lavora!>> (p. 44). work!" (p. 19).
O diálogo faz parte do início do primeiro capítulo do livro, no qual Guthrie viaja
clandestinamente de trem ao lado de mendigos, trabalhadores migrantes e desempregados. Na
coluna da direita, os elementos em negrito que marcam o desvio à norma, ou o inglês sub-
padrão, podem ser agrupados da seguinte forma:
58
1 – Marcas fonéticas: hafta (para have to), git (para get), th’ (para the), goddam (para
god damned), dam (para damned), walkin’ (para walking), setting (para sitting), fer (para
for), naw (para no), yuh (para you), kinda (para kind of), etc.
2 – Marcas lexicais: fishing (para searching), stuff (para kind), oblige (para thanks), sissy
(para effeminate), wisecracks (para clever), soap-box music (para comercial music), hell
yes (para surely), etc.
3 – Marcas morfossintáticas: just long as (para just as long as), just smoked (para I’ve
just smoked), there soap-box music (para that soap-box music), etc.
Pode-se dizer que os marcadores sinalizando discurso sub-padrão mais comuns no trecho
do texto-fonte são fonéticos. Isso contrasta com o uso tradicional de marcadores de variedades
estigmatizadas na literatura brasileira:
Contudo, como foi demonstrado aqui, marcas fonéticas já estão sendo mais usadas por
tradutores brasileiros, o que contradiz a observação de Britto. Em relação ao polissistema
italiano de literatura e de literatura traduzida, tudo leva a crer que marcas fonéticas seguem
sendo evitadas.
Na tradução italiana do trecho, há alguns elementos lexicais que apontam a estratégia
de Centralização:
59
Quadro 2 – Elementos da língua inglesa na tradução de Bertea.
Tradução de Cristina Bertea (1977) Bound For Glory [1943] (1983), de Woody Guthrie.
<<Ci riesci davvero a strimpellare quell’aggeggio “Kin ya really beat it out on dat jitter box dere,
là, mister?>> (p. 67). mister?” (p. 32).
<<Uno! Due! Wow! Wow! Cinque! Caricare! “One! Two! Wow! Wow! Fire! Load! Aim! Fire!” (p.
Puntare! Fuoco!>> (p. 237). 128).
Li buttava in slot-machine e in whiskey. (p. 305). Whooped it off on slot machines and whiskey. (p. 166).
Mas Britto não se atentou para o fato de que a apócope do “r”, por exemplo, é um traço
gradual comum da oralidade geral do português brasileiro, chamada por Marcos Bagno (2012)
de “Vernáculo Geral Brasileiro”. Outro elemento comum à fala brasileira em virtualmente todo
o território do país é o som [E] para ditongo “ei”, como em “intero”. Assim, apesar de o uso de
elementos fonéticos ser supostamente raro na literatura, e por extensão, na tradução literária
brasileira, sua frequência na oralidade do Brasil justificaria o seu uso. Além disso, elementos
fonéticos já vêm sendo usados na tradução nacional há alguns anos, como se pode atestar no
Quadro 2. Portanto, aqui, optou-se por se utilizar os três elementos (fonéticos, lexicais e
morfossintáticos), de acordo com a necessidade requerida no procedimento de Manutenção de
marcadores linguísticos do texto-fonte sinalizando discurso sub-padrão.
A seguir, a proposta de tradução do trecho:
60
Quadro 3 – Proposta de tradução de trecho com diálogo em Bound For Glory [1943] (1983).
Tradução de Cristina Bertea (1977) Bound For Glory [1943] (1983), de Woody Guthrie.
- A gente tinha que pegá a porcaria do único "We would hafta git th' only goddam flat wheeler
vagão quebra-bunda desse trem desgracento on th' whole dam train!" A heavy-set boy with a big-
intero”. Um garoto corpulento com um sotaque de city accent was rocking along beside me and fishing
cidade grande balançava e vasculhava sua through his overhauls for his tobacco sack.
jardineira em busca de seu pacote de tabaco.
– Mas é melhor que gastá sola! Eu tava sentado ao "Beats walkin'!" I was setting down beside him.
lado dele. - O braço da minha viola na tua cara tá "Bother you fer my guitar handle ta stick up here in
te atrapalhando? yer face?"
- Não, si você tocá música, tudo bem. Que tipo de "Naw. Just long as yuh keep up th' music. Kinda
música que canta? De Juke-box? songs ya sing? Juke-box stuff?"
- Agradeço, mas acabei de fumar um – respondi, "Much oblige, just smoked." I shook my head. "No. I'm
balançando a cabeça. – Não. Acho que essa música 'fraid that there soap-box music ain't th' kind ta win a
de máquina não ganha guerra ninhuma! war on!"
Fresca demais? – disse, ao usar a língua para "Little too sissy?" He licked up the side of his cigaret.
umedecer o cigarro. – Sem graça, né? "Wisecracky, huh?"
- Certeza! - Coloquei meu violão no colo. - Vai "Hell yes." I pulled my guitar up on my lap and told
precisá de bem mais que um monte de música sem him, "Gonna take somethin' more'n a dam bunch of
graça pra ganhá essa guerra! Vai dá trabalho! silly wisecracks ta ever win this war! Gonna take
work!" (p. 19).
1. Fonéticos: “pegá”, “intero”, “tá”, “tocá”, “ninhuma”, “tava”, “gastá”, “precisá”, etc.
2. Lexicais: “porcaria”, “quebra-bunda”, “desgracento” (esta, um traço descontínuo de
variedades do interior do Sudeste, que seriam, segundo Britto (2012, p. 91), uma boa
fonte linguística por sua utilização na mídia), “fresca”, “certeza”, “viola”.
3. Morfossintáticos: “a gente tinha”, “monte de música”, etc.
Conclusão
Referências
GUTHRIE, Woody. Bound for glory. New York: Penguin/Putnam, [1943] 1983.
______. Questa terra è la mia terra. Tradução Cristina Bertea. Roma: Savelli, 1977.
______. Questa terra è la mia terra. Tradução Cristina Bertea. Milão: Marcos Y Marcos,
2014.
PYM, Anthony. Translating linguistic variation: parody and the creation of authenticity. In:
VEGA, Miguel A. ; MARTÍN-GAITERO, Rafael (Ed.). Traducción, metrópoli y diáspora.
Madrid: Universidade Complutense de Madrid, 2000. p. 69-75. Disponível em:
<http://goo.gl/kb0fZa> Acesso em: 4 set. 2013.
RICHARDSON, T. The rise of youth counter culture after World War II and the
popularization of historical knowledge: then and now. 2012. In: THE HISTORICAL
SOCIETY ANNUAL MEETING, 2012, POPULARIZING HISTORICAL KNOWLEDGE:
PRACTICE, PROSPECTS, AND PERILS, 2012, Columbia. Anais. Columbia: University of
South Carolina, 2012. Disponível em: <https://www.bu.edu/historic/conf2012/Richardson
.doc>. Acesso em: 1 nov. 2017.
ROSA, Alexandra Assis. Translating place: linguistic variation in translation. Word and text
- a journal of literary studies and linguistics. Bucareste. v. 2, p. 75-97, 2012.
TWAIN, Mark. As aventuras de Huckleberry Finn. Tradução Monteiro Lobato. São Paulo:
Brasiliense, 1957.
WALKER, Alice. A Cor púrpura. Tradução Peg Bodelson, Betúlia Machado e M. José
Silveira. São Paulo: Marco Zero, 1986.
WORSTER, Donald. Dust Bowl: the southern plains in the 1930s. Oxford: Oxford University
Press, 1979.
63
Resumo: A tradução de representações literárias de variedades linguísticas é sujeita a normas e características
socioculturais e sociolinguísticas de uma determinada cultura de chegada. As constrições que regulam tais práticas
também podem variar diacronicamente. No Brasil, por exemplo, a prática mais comum era a de se normalizar
qualquer desvio da norma-padrão em diálogos do texto-fonte, fato atestado por John Milton (1994, 2002). Mais
recentemente, traduções literárias começaram a se valer de estratégias e procedimentos com o intuito de considerar
a variação linguística (HANES, 2015) e (FAGUNDES, 2016). O presente estudo analisa um trecho da tradução
italiana de Bound For Glory ([1943] 1983), de Woody Guthrie, com o intuito de identificar e comparar suas
estratégias e procedimentos que os regem, com a situação brasileira. Em seguida, com base nas observações de
Paulo Henriques Britto (2012) sobre o tema, a pesquisa oferece uma tradução para o português do mesmo trecho
com o intuito de se discutir a tradução da alteridade no polissistema brasileiro de tradução literária de hoje.
Palavras-chave: Tradução Literária. Woody Guthrie Variedades Linguísticas Teoria dos Polissistemas. Ideologia.
Abstract: The translation of literary representations of linguistic varieties is subject to sociocultural and
sociolinguistic norms and characteristics of a particular target culture. The constraints that regulate such practices
may also vary diachronically. In Brazil, for example, the most common practice was to normalize any deviation
from the standard norm in dialogues of the source text, a fact attested by John Milton (1994, 2002). More recently,
literary translations have begun to use strategies and procedures to consider linguistic variation (HANES, 2015)
and (FAGUNDES, 2016). The present study analyzes an excerpt from the Italian translation of Woody Guthrie's
Bound For Glory ([1943] 1983), with the aim of identifying and comparing its strategies and procedures that
influenced them, with the Brazilian situation. Then, based on the observations of Paulo Henriques Britto (2012)
on the subject, the research offers a Portuguese translation of the same passage with the intention of discussing the
translation of otherness in the current Brazilian polysystem of literary translation.
Keywords: Literary Translation. Woody Guthrie. Linguistic Varieties. Polysystem Theory. Ideology.
64
Capítulo 6
Daiana Lohn
(Mestranda-PGET)
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo principal, desenvolver uma análise léxico-
semântica em um corpus formado por canções de rock ‘n’ roll dentre os anos de 1950 e 1960.
Para tal finalidade, é feito o uso de preceitos da Linguística de Corpus, doravante denominada
LC, e de um programa de computador com o fim de auxiliar a extrair os agrupamentos mais
frequentes dentro deste corpus, o WordSmith Tools.
Para desenvolver esta pesquisa, utiliza-se um corpus paralelo bilíngue de pequena
dimensão, composto pelos textos originais de sessenta canções de rock ‘n’ roll e suas versões
traduzidas - por profissionais da época - para a língua portuguesa. Dentre as canções
selecionados, estão as de maior sucesso durante o período. Sendo assim destacadas, pelo maior
meio de comunicação do qual grande parte da população tinha acesso na época: o rádio. Em
um Brasil sem quase nenhuma televisão, tanto na área urbana como na rural, as canções mais
frequentemente tocadas nas rádios eram as que emplacavam junto ao público.
O processamento do corpus ocorreu no programa computacional de análise linguística
WordSmith Tools (1999) (WST) versão 6.0, escrito por Mike Scott, e publicado pela Oxford
University Press, planejado para a análise de corpus, tendo em vista fins de pesquisa. Assim
sendo, o programa faz a extração por meios digitais, cabendo ao pesquisador a tarefa manual
de analisar as escolhas das incidências e tentar interpretar o que tais palavras podem vir a dizer
sobre a sua importância no texto como um todo.
A motivação para este trabalho teve como pontapé inicial as aulas de Estudos de Corpora
e Tradução, ministradas pelo Prof. Marco Antônio Esteves da Rocha, no curso de Pós-
Graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina.
A fim de melhor descrever os experimentos, este trabalho está estruturado nas seguintes
seções das quais são apresentados os seguintes conteúdos: seção 2- fundamentação teórica sobre
a LC e as EMs; na seção 3 – metodologia; 4 – desenvolvimento; na seção 5 - a conclusão.
Fundamentação teórica
65
Ex.: o c. da poética camoniana; 3. Rubrica: fisiologia. Estrutura com características ou funções
especiais no corpo de um homem ou de um animal; 4. Rubrica: linguística. Conjunto de
enunciados numa determinada língua, ger. colhidos de atos reais da fala, que servem como
material para análise linguística; 5. Rubrica: linguística, semiologia. conjunto de enunciados
(que são indefinidamente possíveis, i.é., inesgotáveis), constituído por amostras significativas
da gramática de determinada língua. Ex.: o c. sintagmático da língua portuguesa
Com isso, vemos que a LC analisa dados de forma empirista, lado a lado com a visão de
linguagem proposta por Halliday, para quem a linguagem é definida como um sistema de
probabilidades (SARDINHA, 2004, p. 30). Por outra vertente temos o racionalismo de
Chomsky que estuda a linguagem por meio da introspecção, vendo-a como um sistema de
possibilidades.
Isso significa dizer que Chomsky vê os mais diversos usos de uma mesma palavra em
diferentes contextos como um sistema de possibilidades infinitas dada a criatividade do escritor
em produzir sentenças. Simultaneamente, a linguística hallidayana vê a linguagem sob outra
perspectiva, a da probabilidade de determinada sentença ser produzida em determinado
contexto ou não.
“Dentro da visão racionalista da língua, Chomsky sugere que um corpus não poderia ser
uma ferramenta útil para um linguista uma vez que o corpus deveria descrever a língua através
da competência e não de performance”. (ALMEIDA 2010, p. 26).
Logo, o presente estudo está atrelado às definições hallidayanas de linguagem, pois a
“visão de linguagem como sistema probabilístico pressupõe que, embora muitos traços
linguísticos sejam possíveis teoricamente, (esses traços) não ocorrem com a mesma frequência”
(SARDINHA, 2004, p. 30).
Este estudo considera que a LC, ou análise eletrônica de textos segundo alguns autores é
uma metodologia em si, pois ela ditará o caminho de análise a ser seguido. “A LC traz consigo
algo mais do que simplesmente o instrumental computacional. Aqui se encaixam as
investigações do comportamento do léxico” (SARDINHA, 2004, p. 36).
Quanto à extensão ou dimensão do corpus Sardinha (1999), propõe que se classifique o
corpus segundo o número de palavras contidas:
Shepherd (2012, p. 15) afirma que a LC enquanto método e a habilidade dos programas
concordanciadores de extraírem e organizarem grandes quantidades de dados tornaram
evidentes a inseparabilidade do léxico e da gramática, materializando hipóteses como a
colocação das palavras. Muito antes de o computador poder mostrar tal fato, o linguista Firth já
dizia que “devemos julgar uma palavra pela companhia que ela tem”.
Segundo Sarmento (2006), o texto não é um simples amontoado de aleatório de palavras.
A ordem da colocação das palavras no texto é que produz o sentido do qual nos apropriamos.
Portanto, o estudo da co-ocorrência de palavras traz consigo importantes informações.
Em seu artigo Modes of meaning, Firth (1951, apud KRISHNAMURTHY, 1996, p. 33),
publicou a frase “diga-me com quem a palavra anda e eu te direi quem ela é”, criando o termo
66
collocation ao pronunciar: “[...] proponho antecipar um termo técnico, chamado “colocação”,
e aplicar o teste da colocabilidade". A partir de então surgem outras definições para o termo
colocação. O quadro seguinte (Quadro 2) demonstra, em ordem cronológica, os autores e suas
respectivas definições para o termo colocação:
Autor Definição
Sinclair (1991, p. 170) “A ocorrência de duas ou mais palavras dentro de um curto espaço no texto.”
“A tendência de duas palavras para coocorrer ou a tendência de uma palavra
Hunston (2002, p. 68)
atrair uma outra”.
“[...] certas palavras parecem combinar-se de forma natural, não havendo,
via de regra, explicação para o fato. Em certos casos as palavras se associam
Tagnin (2005, p. 37)
por terem uma ligação na vida real: cão e gato. Entretanto, não ocorre
cachorro e gato.”
Fonte: Sinclair (1991, p. 170), Hunston (2002, p. 68) e Tagnin (2005, p. 37)
Conforme indicado por Zhang (2009), a capacidade de uma palavra de expressar sentido
está atrelada as demais palavras que a acompanham. Quando uma palavra aparece
acompanhada por um conjunto de termos, maiores são as chances deste conjunto conter um
significado importante. É a partir desta linha de pensamento que pesquisas sobre EMs são
motivadas.
Apesar de existirem diversos trabalhos publicados sobre este tema, não existe uma
definição consensual formal na literatura sobre EM. Neste trabalho consideram-se as definições
de estudiosos como Aline Villavicencio:
67
construções, tais como: expressões fixas, compostos nominais e construções
verbo-partícula. (VILLAVICENCIO, 2010, p. 16).
Para Moon (1998) não há um fenômeno unificado que se possa descrever como EM, mas
sim um complexo de atributos que interagem de formas diversas, muitas vezes desordenadas, e
que representam um amplo contínuo entre o não-composicional (ou idiomático) e grupos
composicionais de palavras. Outros autores utilizam a noção de frequência e definem EM como
sequencias ou grupos de palavras que co-ocorrem com mais frequência do que seria esperado
por acaso, e podem ultrapassar fronteiras sintagmáticas (EVERT, 2005). Isso incluiria também
fórmulas de saudação como “Tudo bem?”, “Como você vai?” e sequencias lexicais, como “eu
não sei se”.
A identificação das EMs no corpus, terá seu aporte teórico nos estudos realizados por Sag
(2002, p. 4), que afirma que as EMs podem ser classificadas em:
✓ Expressões Fixas: são aquelas que não apresentam flexões morfossintáticas e não
permitem modificações internas. Exemplos deste tipo incluem expressões como “Porto
Alegre” e ad hoc. Elas desafiam as convenções da gramática e interpretação
composicional, pois ao tratá-las na forma de palavra por palavra não teriam a
representação da expressão composta, que tem um sentido próprio dado pela composição.
✓ Expressões Semi-Fixas: são aquelas que possuem restrições na ordem das palavras e
composição, mas admitem eventuais variações léxicas na flexão, na forma reflexiva e na
escolha de determinantes. Incluem-se nesta categoria substantivos compostos como
“colher de pau” e expressões idiomáticas fixas como “bater as botas”. Esse tipo de EM é
categorizada em três subgrupos: as expressões não-decomponíveis; os compostos
nominais; e os nomes próprios. A primeira categoria, termo em inglês non decomposable
idioms, ocorre quando se juntam duas ou mais palavras para formar uma expressão que
possui um novo significado, distinto daquele obtido pelas palavras de forma isolada.
Exemplo “chutar o balde”, que tem como significado composto a ideia de “desistir”.
Nesse caso há variabilidade da expressão idiomática. A segunda categoria, a dos
compostos nominais, do inglês compound nominals, são similares às expressões não-
decomponíveis sendo unidades sintaticamente inalteráveis que na maioria dos casos
podem ser flexionadas em número. Vejamos como exemplo as expressões “presidente da
república” e “deputado federal”, na primeira expressão somente presidente pode ser
flexionado, enquanto que, na segunda, ambas as palavras são passíveis de flexão. A
terceira categoria os nomes próprios, do inglês pro-per names, são sintaticamente
altamente idiossincráticos. Vejamos por exemplo o composto “Espírito Santo”, pode estar
relacionado ao estado federativo do Brasil, pode ser um sobrenome, etc.
✓ Expressões Sintaticamente Flexíveis: são expressões que admitem variações
sintáticas na posição de seus componentes. Os tipos de variação possível são: construções
verbo-partícula que consistem de construções de um verbo e uma ou mais partículas que
podem ser semanticamente idiossincráticos ou composicional; expressões idiomáticas
decomponíveis. Um exemplo é “tirar o cavalinho da chuva”. O termo decomponível é
utilizado por que nesse caso o significado “desistir da ideia” pode ser decomposto em
“tirar” (desistir de), “o cavalinho da chuva” (a ideia); construções verbo-leve, do inglês
light-verbs, é um verbo considerado semanticamente fraco estando sujeito à variabilidade
sintática completa, incluindo a passivação. Eles são altamente idiossincráticos, pois existe
uma notória dificuldade em predizer qual verbo-leve combina com qual substantivo.
✓ Expressões Institucionalizadas: São expressões composicionais, do inglês
collocation, que podem variar morfológica ou sintaticamente e que normalmente
68
possuem alta ocorrência estatística. Como a expressão “sal e pimenta”. Ainda que
“pimenta e sal” seja uma construção correta e compreensível, não é usada desta forma.
De tal forma, através da pesquisa com base em corpus, fica claro que a palavra mais
frequente é uma EM classificada como uma expressão semi-fixa. Tal afirmação pode ser feita
com base nas definições de Sag acima citadas. O fator que favoreceu esta conclusão foi o uso
do programa computacional WST.
Metodologia
Desenvolvimento
Não tendo mais questionamentos sobre a contribuição dos estudos baseados em corpus
para a Linguística, tal campo vem ganhando proporções bem maiores com o passar do tempo.
Estando cada vez mais presente como ferramenta de estudo no desenvolvimento de pesquisas
acadêmicas nas áreas de Linguística, em especial no ramo da Tradução Automática (TA).
Este trabalho investigou no corpus bilíngue, considerado de tamanho reduzido, nas letras
das sessenta principais canções de rock ‘n’ roll das décadas de 50 e 60 do século passado
cantadas em Inglês e suas respectivas versões para o Português, qual é a palavra mais frequente
dentre as demais.
69
Com todos os dados coletados, iniciamos a utilização do programa WST. Lembramos que
todos os textos que estamos manipulando no programa se encontram no formato de texto sem
formatação (txt).
Iniciamos gerando uma wordlist com o conjunto de frequência dos termos que compõe
o corpus. Essa busca gera uma lista que nos mostra as palavras utilizadas no corpus de estudo
com uma frequência mínima de um, composta a partir de uma letra, igual aos artigos definidos
que possuem apenas uma letra (-a e -o) até a composta de várias letras. Assim, fui até a interface
do programa no botão do wordlist e configurei de forma que selecionasse palavras constituídas
a partir de uma só letra até 50, partindo da frequência 1 até o limite do programa.
A figura a seguir ilustra a busca do wordlist das palavras por ordem de frequência,
mostrando a quantidade de vezes que cada palavra apareceu no presente corpus de estudo.
70
Figura 2 ‐ Wordlist das palavras por ordem de frequência
A partir desta lista de frequência, como era de se esperar, podemos confirmar que as
palavras mais recorrentes são pronomes pessoais e oblíquos, artigos, conjunção e preposição.
Ambos não sendo, a meu ver, de tamanha relevância para uma análise em um trabalho desta
proporção. O que me fez focar na palavra seguinte, o termo “love”.
Ainda no wordlist, a Figura 3 é uma representação da lista de dimensões do corpus e
densidade lexical, em outras palavras, é uma exposição das características estatística descritivas
do corpus. Apresenta muitas possibilidades de informação sobre os corpora, tais como: o
tamanho e itens (tokens) e formas (types), a densidade lexical simples e em intervalos. O que
nos apresentou um complemento numérico de 69.285 palavras e 1.355 palavras únicas ou types.
71
Após esse primeiro momento no Wordlist, para apresentar as informações quantitativas
do corpus com a intenção de mostrar a relevância em utilizar o programa WST, passamos a
explorar a ferramenta Concord. Este, é um programa que produz concordâncias. Essas
concordâncias por sua vez são listagens de ocorrências de um item específico indicado pelo
pesquisador. Esse item de busca também pode ser conhecido como “termo de busca ou nódulo”
e pode ser formado por mais de uma palavra (SARDINHA, 2009, p.87).
Em decorrência da lista de frequência gerada no Wordlist, que demonstra o termo love
com significativa importância no corpus através de 206 ocorrências, início a busca pela sua
concordância a fim de identificar em quais contextos e com quais palavras o mesmo se relaciona
dentro do corpus.
Tradução, Adaptação ou
Canção-fonte EM Canção-alvo
substituição
1. Twilight time fall in love Crepúsculo Eterno anoitecer
2. Stupid cupid in love Estúpido cupido Amei
3. Oh! Carol in love Oh! Carol Pena
4. Step by step fell in love Passo a passo Chego
be in love Formos casar
5. I love you baby in love Gosto de você, meu bem Pra mim
6. Hello Mary Lou in love Olá Marilu Longe
7. Tonight fall in love Esta noite Teu carinho
8. The wha-watusi fall in love wha-watusi Dançar
72
9. I knew right a way fell in love Um grande amor Vivendo
10. Hang os sloopy in love Pobre menina Te quero
Conclusão
Este trabalho buscou fazer uma breve ilustração de preceitos da LC, mostrando como o
WST 6 pode ser usado para investigar questões de áreas centrais da Linguística e da Linguística
Aplicada. Este programa colocou à disposição do pesquisador ferramentas úteis nas etapas
fundamentais de um projeto de pesquisa, especialmente nas fases de levantamento dos dados,
triagem e análise de casos relevantes. O programa não é gratuito, porém, para desenvolver essa
pesquisa ele foi usado de maneira livre através da sua versão demo.
Segundo definição defendida por Sardinha (2004) a LC ocupa-se da coleta e da
exploração dos corpora, ou conjuntos de dados linguísticos textuais coletados criteriosamente,
com a finalidade de servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Dedicando
-se à exploração da linguagem por meio de evidências empíricas, extraídas pelo computador.
Objetivando responder a primeira questão da pesquisa, através da ferramenta Wordlist
iniciou-se a busca pela palavra mais comum no corpus em estudo. O programa forneceu uma
lista de palavras demonstrando que as mais recorrentes são pronomes pessoais e oblíquos,
artigos, conjunção e preposição. Fornecendo como palavra seguinte, o termo “love”.
Em seguida, visando responder a segunda questão da pesquisa: qual idiossincrasia o
termo mais recorrente no presente corpus apresenta? Através da ferramenta Concord extraiu-
se as linhas de concordâncias relacionadas a palavra selecionada, love.
Assim, em conformidade com a LC, com o uso do programa computacional de análise
linguística WST foi possível identificar que no corpus formado pelas primeiras canções de rock
de sucesso, que introduziram o ritmo no Brasil nas décadas de 50 e 60 do século passado, a
palavra love aparece como EM.
Referências
EVERT, S.; KRENN, B.. Using small random samples for the manual evaluation of
statistical association measures. Computer Speech and Language, p. 450–466, 2005.
73
SAG, I. A. et al. Multiword expressions: a pain in the neck for nlp. In Proceedings of the
Third International Conference on Computational Linguistics and Intelligent Text Processing.
London: Springer-Verlag, 2002
SINCLAIR, John. Corpus, concordance and collocation. Oxford: Oxford University Press,
1991.
Resumo: Este estudo tem como objetivo principal investigar, através da análise linguística computacional com
base em corpus, a palavra mais frequente em sua base de dados. Para tanto, foram analisadas letras de canções de
rock ‘n’ roll, entre o seu lançamento no Brasil, dentre as décadas de 50 e 60 do século passado em Inglês (língua-
fonte) e suas respectivas versões para o Português (língua-alvo). Através do sistema computacional de análise
linguística WordSmith Tools, foi possível concluir que, dentre tais canções selecionadas como as principais pelos
registros de depoimentos históricos da época - através do site Jovem Guarda - a serem traduzidas para o Português,
a palavra mais frequente após pronomes pessoais e oblíquos, artigos, conjunção é o termo love. Porém, a incidência
com que a palavra não aparece isolada, mas sim como Expressões Multipalavra (EM) é muito alta. Para que a
pesquisa tenha seu ancoramento teórico se fez necessária a introdução do que se tem pesquisado sobre a linguística
com base corpus, bem como as EMs.
Palavras-chave: Expressões Multipalavra. Linguística de Corpus. WordSmith Tools.
Abstract: This study has as main objective to investigate, through the computational linguistic analysis based on
corpus, the most frequent word in its database. To that end, lyrics of rock 'n' roll songs were analyzed, between
their launching in Brazil, between the decades of 50 and 60 of the last century in English (source language) and
their respective versions for Portuguese (target language). Through the computational system of linguistic analysis
WordSmith Tools, it was possible to conclude that, among such selected songs as the main ones by the records of
historical testimonies of the time - through the Jovem Guarda website to be translated into Portuguese, the most
frequent word after personal pronouns and oblique, articles, conjunction is the term love. However, the incidence
with which the word does not appear isolated, but as Multi-Word Expressions (MWE) is very high. In order for
the research to have its theoretical anchoring, it became necessary to introduce what has been researched about
linguistics based on corpus, as well as MWEs.
Keywords: Multiword Expression. Corpus Linguistic. WordSmith Tools.
74
Capítulo 7
75
As ideias propostas por Zuluaga (1980), ainda segundo Timofeeva (2008), são a
continuação da proposta de Casares. Segundo a investigadora, para Zuluaga, a ocorrência em
grande escala e consequente cristalização seria a base da unidade fraseológica. Tal concepção
demonstra a ênfase que essa proposta dá ao aspecto fixo dos fraseologismos. Em outras
palavras, o foco dessa proposta recai, do ponto de vista da estrutura, sobre o aspecto
paradigmático das unidades fixas, que permite pouca ou nenhuma substituição. Para
Timofeeva, esses aspectos excluem a característica denotativa dessas expressões.
As propostas de Corpas Pastor (1996) e Ruiz Gurillo (1997) são respectivamente uma
concepção ampla e uma concepção estreita de fraseologia. A primeira delas se trata de uma
concepção ampla porque permite que ocupem o mesmo estatuto de unidade fraseológica, tanto
locuções como unidades léxicas maiores, tais como os provérbios. Por outro lado, a concepção
de Ruiz Gurillo é descrita como uma concepção estreita porque se interessa apenas pelas
locuções, alguns tipos de frases proverbiais e as unidades sintagmáticas da língua.
Além dos diferentes matizes que cada pesquisador coloca sobre as fraseologias, outra
questão bastante importante na área é a vasta terminologia que se emprega. De forma geral, o
que se percebe são nomenclaturas diferentes para elementos bastante semelhantes. Sobre isso,
Jorge, (2012, p. 61) afirma que:
Permitiu-se uma citação tão longa porque se entende que ela deixa transparecer dois
aspectos importantes dos estudos sobre as unidades fraseológicas: (i) a vasta terminologia na
área e (ii) a tentativa de alguns estudiosos em estabelecer os estudos em fraseologia como
disciplina autônoma.28
Com relação à vasta terminologia fraseológica, Jorge (2012, p. 65) aponta os trabalhos
de Bardosi (1990 apud JORGE, 2012) e Pavel (1995 apud JORGE, 2012) como estudos que
reúnem a terminologia mais usual na fraseologia das línguas francesa e portuguesa,
evidenciando a existência de dezenas de nomenclaturas. Uma demonstração disso é a presença
de diversos termos para classificar os diferentes tipos de expressões, o que leva à divisão deste
grande grupo em: expressão corrente, expressão familiar, expressão figurada, expressão fixa,
expressão literária, expressão popular, expressão proverbial, expressão imagética, expressão
idiomática, expressão lexicalizada e expressão idiomática-metafórica, ao mesmo tempo em que
fala em forma idiomática, por exemplo. Concomitantemente, o grande grupo das locuções se
divide na teoria geral analisada em: locução, locução familiar, locução figurada, locução
figurada adverbial, locução fixa, locução idiomática, locução metalinguística, locução
proverbial, locução verbal, locução verbal figurada e verbal fraseológica, locução sentenciosa
e locução figurativa. Dessa forma, o que se percebe é uma vastíssima nomenclatura que designa
se não os mesmos elementos, pelo menos unidades fraseológicas muito semelhantes.
28
Nesse sentido, a fraseologia, como disciplina autônoma, daria origem à paremiologia, um subdomínio a ela
pertencente. Essa demanda teórica é reforçada pela existência de instituições interessadas em estudar integralmente
e exclusivamente as fraseologias das línguas, tal como a EUROPHRAS, e a existência de congressos nacionais e
internacionais que trazem como escopo único o estudo das fraseologias e paremiologias de diferentes línguas.
76
Frente a esses aspectos, faz-se necessário esclarecer, portanto, que se adotará para essa
discussão o conceito amplo de fraseologia proposto por Corpas Pastor, por entender-se que essa
proposta permitirá pensar os diferentes desafios que o tradutor enfrenta na tradução do que,
segundo este arcabouço teórico, é denominado Unidade fraseológica – UF, de agora em diante.
Como já dito antes, cabem no escopo dessa proposta todas as manifestações linguísticas com
aspecto de unidade semântica, de locuções a provérbios.29
Para fins didáticos, pode-se empregar a proposta de Jorge (2012, p. 61-62) para UF. Em
uma tentativa de compilar o que é consenso entre a maioria dos pesquisadores, a investigadora
propõe alguns aspectos gerais das fraseologias. Segundo ela:
Fraseologia e Tradutologia
29
Grosso modo, algumas tentativas de classificar as UF das línguas as classificam segundo seu “tamanho” ou, em
outras palavras, segundo sua possível caracterização como sintagma ou enunciado.
77
conhecimento que o tradutor detenha destas unidades o amparará na atividade tradutória, o
contrário também acontece. A fraseologia, pois, tem na tradução destas expressões, um estudo
comparativo, que permite observar um dos paradigmas dos estudos das unidades fraseológicas
das línguas, a saber, o caráter universal frente ao aspecto cultural. Fato que está demonstrado
pela existência de alguns conceitos subjacentes às unidades fraseológicas e que parecem se
repetir nas línguas. Tal aspecto tem sido amplamente estudado sob a ótica da Semântica
Cognitiva.
Para além da tradução como atividade laboral, há ainda os Estudos da Tradução ou
Tradutologia que, como disciplina, se ocupa da teoria e da prática da tradução. Como está
demonstrado por vários estudos que relacionam os dois campos, também existe um interesse
pelas unidades fraseológicas. Sobre isso, Chacoto (2012, p. 215) aponta que:
Ainda para Chacoto, o confronto sistemático do texto na língua fonte e na língua alvo é
uma ferramenta de auxílio na compreensão do processo de tradução que permite analisar o jogo
criativo e a resolução de problemas empregados pelo tradutor.
A citação acima conduz a duas discussões concernentes à tradução. A primeira delas,
relaciona-se à questão da equivalência e a segunda ao prescritivismo nessa área de estudos. Na
sequência, se tecerá algumas considerações gerais com relação a essas duas questões.
Historicamente, a noção de equivalência se relaciona ao conceito de fidelidade na
tradução. No entanto, a discussão que atualmente vigora é no sentido de entender a equivalência
a partir de uma noção dinâmica e funcional, guiada pela finalidade e o contexto de tradução,
superando, assim, a noção prescritiva e notadamente linguística de equivalência. Com relação
à visão funcional de tradução, Nord (2016, p. 53) afirma que: “Em uma visão funcional de
tradução, a equivalência entre texto fonte e texto alvo é encarada como sendo subordinada a
todo skopos de tradução possível e não como um princípio de tradução válido ‘de uma vez por
todas’”.
Considera-se que a visão funcionalista da tradução acrescenta valor para a tradução de
fraseologias porque põe em evidência o aspecto multifacetado das fraseologias e a sua
subordinação ao contexto, tendo em conta que demonstram a dificuldade em estabelecer
estratégias rígidas na tradução de unidades fraseológicas. Por outro lado, isso não impede que
valorosos estudiosos da tradução fraseológica estabeleçam aspectos gerais da tradução nessa
área.
Xatara (2002) sugere, por exemplo, a tradução de um idiomatismo por outro equivalente
quando existe tal ocorrência no par de línguas. Seria o caso de expressões como A quién
madruga, Diós le ayuda – Deus ajuda quem cedo madruga, Morder el anzuelo – Morder a isca,
Por la boca muere el pez – O peixe morre pela boca, Quién te ha visto y quién te ve – Quem te
viu, quem te vê etc, nas línguas espanhola e portuguesa; o emprego do recurso de compensação
quando não há uma correspondência idêntica, mas existe um equivalente semântico, como em
Tal palo, tal astilla – Tal pai, tal filho, Diós aprieta, pero no ahoga – Deus falha, mas não
tarda, Estar como un pulpo en un garaje – Mais perdido que cachorro em feira, Navegar con
bandera de tonto – Dar uma de João-sem-braço etc; e a tradução por uma paráfrase quando
não existir nenhuma correspondência como as demonstradas anteriormente.
A proposta descrita há pouco, em alguma medida, dá à tradução uma tonalidade
pragmática, que torna possível a sua realização dentro de um número determinado de contextos
78
e para um número bastante amplo de ocorrências. Por outro lado, a tradução por um equivalente
semântico, conforme sugerido por Xatara, revela um aspecto essencial das línguas em contraste
e que também é objeto de estudos da fraseologia, a saber, a conceitualização subjacente às
expressões idiomáticas. Como dito há pouco, os estudos cognitivistas e sociocognitivistas em
Semântica Cognitiva têm observado o aspecto mais idiossincrático das expressões idiomáticas,
aquele que revela um conceito particular e metafórico como base de uma expressão. Em termos
mais filosóficos, significa dizer que há nas expressões de cada língua uma forma particular de
conceituar seres, objetos, emoções etc.
Alousque (2010) analisa algumas UF da língua inglesa com o propósito de evidenciar
as motivações culturais emergentes de ditos elementos. Segundo a pesquisadora, “As
expressões idiomáticas constituem uma categoria de unidades léxicas marcadas culturalmente,
e são, portanto, fonte indiscutível de inequivalências tradutológicas que revelam problemas na
hora de serem transpostas para outra língua” (ALOUSQUE, 2010, p. 133, tradução nossa).
Segundo a autora, a motivação de muitas UF provém de três fontes: (i) a alusão a costumes,
fatos históricos, obras artísticas, lendas, mitos e crenças; (ii) a referência a áreas de cultura ou,
em outras palavras, áreas da realidade que refletem as idiossincrasias culturais; e (iii) expressões
idiomáticas baseadas em metáforas.
A primeira fonte citada por Alousque diz respeito às UF que evocam elementos que
conformam o acervo cultural de cada povo, dele fazem parte os costumes e tradições, as obras
literárias, os acontecimentos ou personagens que são prototípicos de uma situação ou qualidade,
associações a partir das quais se interpreta a realidade e as crenças. Como exemplo da língua
portuguesa, o ditado “Inês é morta” exemplifica como um acontecimento ou personagem pode
originar uma UF.
Com relação à segunda fonte motivadora das UF, Alousque demonstra que alguns
campos culturais como a gastronomia e esportes como equitação, caça e críquete são domínios-
fonte na cultura inglesa, formando parte de um grande número de UF da língua inglesa na sua
variedade britânica. Se fosse possível traçar um paralelo com a cultura brasileira, poder-se-ia
afirmar que com relação aos esportes ocorre o mesmo no Brasil, com a diferença que o esporte
é outro, possivelmente o futebol.
Por último, com relação à terceira fonte motivadora, como já se falou neste trabalho, se
tratam das expressões de cunho metafórico e que explicam determinados termos a partir de
aspectos prototípicos de outros, que demonstra, entre outras coisas, uma forma particular de
conceitualização.
A mesma investigadora também propõe que existam três técnicas para a tradução de
expressões idiomáticas marcadas culturalmente, a saber, a tradução literal, a substituição
cultural ou adaptação, e a paráfrase ou explicação. E assim como Xatara, sugere que a paráfrase
é um recurso último, pois, segundo a autora, “a paráfrase sempre gera uma perda de valor
figurativo da expressão que produz uma perda estilística” (ALOUSQUE, 2010, p. 138 tradução
nossa). Para ela, a maioria da UF metafóricas se traduz por paráfrases, dado que cada língua
possui um inventário metafórico sustentado pela importância de determinado campo léxico no
contexto cultural e linguístico em questão. Por último:
Acredita-se que a citação de Alousque elucida alguns pontos importantes para o debate
que se instaurou nesta pesquisa. O primeiro deles diz respeito ao que a autora nomeia vazios
semânticos, que podem ser de tipo referencial ou linguístico. De tal posicionamento se origina
um aspecto duplo da tradução de fraseologias, pois se por um lado sabe-se das diferenças
inerente às línguas e às UF que as compõem, por outro, assume-se uma postura pragmático-
comunicativa, que prioriza o valor funcionalista da tradução. Em outras palavras, apesar dos
vazios semânticos, é possível descrever e compreender a trajetória tradutora implicada no
processo de versão de uma fraseologia. O que tanto pesquisadores têm feito, portanto, é
descrever o processo e guiar as alternativas que se pode empregar na tradução de UF.
Outro aspecto importante e que vale a pena chamar a atenção, é que a inequivalência
translinguística pode existir até mesmo em culturas próximas, o que entende-se valer também
para línguas próximas, uma vez que a relação língua-cultura é indissociável. Neste trabalho,
nos detemos justamente em um par de línguas bastante próximas, o português e o espanhol.
Apesar disso, as características intrínsecas a cada uma dessas línguas é única e podem ser um
desafio para o tradutor caso este não detenha uma “habilidade fraseológica” bem consolidada.
A tradução de tais elementos inicia-se, por certo, por sua leitura e identificação. Dessa forma,
é bom que o tradutor esteja atento a todos os enunciados fixos/compostos presentes no texto-
fonte.
Por último, um aspecto que deve ser lembrado é que a modalidade de tradução implicada
na tarefa vai reger sobremaneira as estratégias tradutoras disponíveis. Isso porque na TAV
(Tradução Audiovisual), por exemplo, não existe muito espaço para que o tradutor parafraseie
as unidades fraseológicas com as quais se encontre. Por ser um espaço limitado, o da linha de
legenda ou da fala de algum personagem, como no caso da dublagem, o tradutor está, nesses
contextos, restrito. Na dublagem, por exemplo, é verdadeiramente impossível parafrasear de
maneira explicativa uma expressão idiomática, pois a necessidade de sincronização (lip-sync)
não permite que nada seja dito fora do contexto de dublagem. Nesses contextos, geralmente se
procede de forma a adaptar a UF para um enunciado que esteja sincronizado com os
movimentos labiais do personagem e imagens na tela e que seja possível no contexto em que a
tradução está inserida.
Conclusão
80
Referências
JORGE, Guilhermina. A tradução nos estudos fraseológicos. In: ALVAREZ, María Luisa
Ortiz (Org.). Tendências atuais na pesquisa descritiva e aplicada em fraseologia e
paremiologia. Campinas: Pontes Editores, 2012. p. 59-84
Resumo: As pesquisas sobre as fraseologias e paremiologias fazem parte da grande área de estudos do léxico e
são formadas por uma vasta terminologia. Dessa forma, uma das diferenciações comumente adotadas para
diferenciar as fraseologias e as parêmias é, por um lado, o valor de unidade significativa frente à multiplicidade
léxica demonstrada nos idiomatismos e locuções de uma língua. Por outro lado, as parêmias seriam as unidades
maiores, representadas pelas frases feitas, provérbios e ditos populares e caracterizadas, entre outras coisas, por
um cunho moral. De qualquer forma, essas estruturas representam um desafio para a pesquisa e prática tradutória,
pois são mecanismos da língua carregados de fatores metafóricos, metonímicos, culturais, históricos e
idiossincráticos, evidenciando uma parte da tradução que implica uma série de fatores externos e que dizem
respeito às escolhas tradutórias e ao sujeito tradutor. Considerando isso, se empregará neste estudo o conceito
amplo de fraseologia de Pastor (1996), com o objetivo de observar o condicionamento de tradução das Unidades
Fraseológicas com relação à estrutura interna da fraseologia, ao contexto de tradução e à modalidade tradutora.
Buscou-se tecer algumas observações acerca da tradução de Unidades Fraseológicas, mais especificamente sobre
a tradução de Unidades Fraseológicas no par linguístico português-espanhol. Para tanto, se procedeu a uma breve
fundamentação teórica sobre o campo de estudos da Fraseologia, seguida da sua relação com os Estudos da
Tradução e a reflexão acerca das categorias externas que influenciam a tradução de Unidades Fraseológicas em
determinado par linguístico.
Palavras-chave: Fraseologia. Tradução. Língua espanhola. Língua portuguesa.
Abstract: Research on the phraseologies and paremiologies are part of the great area of studies of the lexicon, and
it is formed by a vast terminology. Thus, one of the differentiation commonly used to describe the phraseologies
is its value as a meaningful unit, represented by the lexical multiplicity, an act that would be demonstrated by the
idioms and utterances of a language. On the other hand, the paroemias would be the larger units, represented by
phrases, proverbs, and popular sayings. In any case, these structures represent a challenge for translation research
and practice, since language mechanisms are loaded with metaphorical, metonymic, cultural, historical and
81
idiosyncratic factors, evidencing a part of the translation that implies a series of external factors that concern to
the translation choices and to the translator subject. Considering this, the broad concept of phraseology by Corpas-
Pastor (1996) will be used in this study, aiming to observe the conditioning of translation of the Phraseological
Units regarding the internal structure of the phraseology, the translation context, and the translator modality. We
sought to make some observations about the translation of Phraseological Units, more specifically on the
translation of Phraseological Units into the Portuguese-Spanish linguistic pair. For that, a brief theoretical
foundation was made on the field of studies of the Phraseology, followed by its relation with the Translation
Studies and the reflection on the external categories that influence the translation of Phraseological Units in a
certain linguistic pair.
Keywords: Phraseology. Translation. Spanish Language. Portuguese language.
82
Capítulo 8
Diogo Berns
(Mestrando-PGET)
Introdução
Georges Méliès foi um cineasta que se destacou nos primeiros anos da história do cinema.
Responsável por trazer um novo viés às produções fílmicas inspirou diversas gerações de
profissionais que trabalharam no campo cinematográfico. Em 2007, o público conheceu a
história de Méliès ao ler a narrativa da obra literária The Invention of Hugo Cabret, escrita e
ilustrada por Brian Selznick. Quatro anos depois, Martin Scorsese apresentou a adaptação
cinematográfica, intitulada Hugo, com novas perspectivas acerca da história de Méliès,
valendo-se dos recursos cinematográficos para homenageá-lo.
A homenagem a Georges Méliès por meio da adaptação cinematográfica trouxe um novo
olhar sobre a vida e personalidade do cineasta. Os recursos cinematográficos e a atuação de Ben
Kingsley possibilitaram que o público apreciasse a narrativa com detalhes diferentes da obra
literária de Selznick e ampliasse o conhecimento acerca da importância desse cineasta para o
cinema. A tradução intersemiótica possibilitou que a história literária fosse transposta ao
cinema, adequando-se ao novo meio artístico.
Georges Méliès
No final do século XIX e início do século XX, o cinema era apenas uma mera atração em
meio a tantas outras apresentadas em espetáculos populares. Muitos o consideravam como algo
marginal, acessório e passageiro (COSTA, 2005, p. 29). A arte cinematográfica não apresentava
uma linguagem narrativa estruturada. Os filmes possuíam uma estética documental: cenas
corriqueiras ou simples filmagens do cotidiano sem a pretensão de discutir fatos importantes
daquele período histórico.
O cineasta Georges Méliès, porém, trouxe novas perspectivas às produções fílmicas.
Obteve êxito nos primeiros anos do cinema, conseguindo compreender o que chamava a atenção
dos espectadores daquela época. É considerado o pai dos efeitos especiais e do cinema de ficção
em virtude das narrativas lúdicas e fantásticas que criava, como o filme Le Voyage dans la lune
(Viagem à Lua), produzido em 1902 (SILVA, 2012, p. 300). Adaptado das obras literárias De
la Terre à la Lune (Da Terra à Lua), escrito por Júlio Verne, publicado em 1865 e The First
Men in the Moon (Os primeiros Homens da Lua), de 1901, escrito por Herbert Georges Wells,
é a obra fílmica mais conhecida do referido cineasta.
83
Figura 1 – À esquerda, frame do filme Le Voyage dans la lune; à direita, cineasta Georges Méliès
Fonte: https://sempreumfilme.wordpress.com/2012/07/19/as-invencoes-de-georges-melies/
A relevância de Georges Méliès para o cinema não é por acaso. Ele ficou conhecido pela
manipulação de imagens (COSTA, 2005, p. 102). Méliès era mágico e trouxe o ilusionismo ao
cinema em uma época em que não havia uma hierarquia tão expressiva na realização dos filmes.
A mesma pessoa escrevia, dirigia, produzia e poderia também atuar, como foi o caso do cineasta
em questão. Nas obras fílmicas que produziu, utilizava a edição para substituições e
transformações mágicas e modificava as coordenadas do tempo e do espaço (STAM, 2008, p.
32). Méliès valeu-se da maquiagem e da cenografia para compor o universo fílmico de centenas
de obras cinematográficas (PIOVEZAN, 2012, p. 73). É o cineasta responsável pelo
entretenimento, a magia, o mundo dos sonhos através das inúmeras trucagens, da teatralidade
e do espírito vivificante que se nota nas obras dele.
84
The Invention of Hugo Cabret – obra literária e adaptação cinematográfica
The Invention of Hugo Cabret (A Invenção de Hugo Cabret) é uma obra literária
estadunidense, escrita e ilustrada por Brian Selznick, publicada em 2007 pela editora Scholastic
Press, localizada em New York. A obra literária contém 536 páginas, sendo que 318 são de
ilustrações, frames de filmes, desenhos do cineasta Georges Méliès e fotos de arquivos. Elas
são apresentadas em preto e branco, remetendo os primórdios do cinema em que naquela época
não era possível utilizar as demais cores, a não ser que se pintasse à mão cada frame. As imagens
contam trechos da narrativa sem o auxílio de palavras. Elas descrevem os acontecimentos
visualmente enquanto que o texto continua a contar a narrativa sem precisar reforçar o que as
imagens evidenciaram e sem ele ser explicado, ilustrado ou ressaltado pelas imagens.
Fonte: Obra literária The Invention of Hugo Cabret (SELZNICK, 2007, p. 34 - 35)
The Invention of Hugo Cabret apresenta uma linguagem visual que lembra as narrativas
apresentadas no cinema, pois faz o leitor adentrar no enredo através de trechos que instigam a
imaginação. Além disso, apresenta diálogos curtos como se fossem legendas de filmes. Selznick
faz uma homenagem ao cinema, especialmente ao cineasta Georges Méliès pela contribuição
que teve para com essa arte. Inspirando-se em Méliès, desenvolveu a obra literária em questão,
valendo-se de uma estética que lembra as produções cinematográficas.
A narrativa acontece em 1931, em Paris. Hugo é um menino órfão de doze anos que vive
escondido em uma estação de trem mantendo os relógios do local em funcionamento. Ele possui
um robô mecânico, chamado de autômato, que está incompleto devido à falta de algumas peças.
O autômato fora achado abandonado pelo pai do menino no sótão de um museu enquanto
trabalhava no local. Hugo acredita que o robô possa conter alguma mensagem do pai e que,
quando consertá-lo, será possível desvendá-la. Para isso, o menino rouba peças da loja de
brinquedos da estação de trem que pertence a Georges Méliès, localizada na mesma estação em
85
que Hugo vive. Sendo apanhado pelo vendedor e tendo de trabalhar para pagar pelo que roubou,
Hugo conhece Isabelle, da mesma idade dele, que é afilhada de Méliès. Os dois se tornam
amigos e conseguem consertar o autômato que desenha um frame do filme Le Voyage dans la
lune de 1902, dirigido por Georges Méliès, fato que os redimensiona a descobrir o passado do
cineasta e o porquê de ele trabalhar agora naquela estação.
Figura 3 – Ilustração de um frame do filme Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès, desenhado pelo autômato.
Fonte: Obra literária The Invention of Hugo Cabret (SELZNICK, 2007, p. 252 - 253)
A narrativa começou a ser escrita após Brian Selznick ler o livro Edison’s Eve: A Magical
History of the Quest for Mechanical Life, de Gaby Wood, em que a autora faz um estudo sobre
autômatos e androides. Nele, Georges Méliès e o cinema são mencionados em um dos capítulos,
o que fez Selznick pesquisar acerca da história da arte cinematográfica e do referido cineasta.
It all began with A Trip to the Moon (Le Voyage dans la Lune). I can’t
remember exactly when I first saw the mesmerizing 1902 film by Georges
Méliès, but I was very young […] I saw A Trip to the Moon, and the rocket
that flew into the eye of the man in the moon lodged itself firmly in my
imagination. I wanted to write a story about a kid who meets Méliès, but I
didn’t know what the plot would be. The years passed. I wrote and illustrated
over twenty other books. Then, sometime in 2003, I happened to pick up a
book called Edison’s Eve by Gaby Wood. It’s a history of automatons, and to
my surprise, one chapter was about Méliès. I learned that he had owned a
collection of automatons that were donated to a museum at the end of his life.
The museum put them in the attic, where they were all destroyed by rain and
thrown again. I instantly imagined a boy climbing through the garbage and
finding one of those broken machines30. (SELZNICK, 2011, p. 12 –13, grifo
do autor deste artigo).
Brian Selznick utilizou fatos da vida de Georges Méliès na narrativa da obra literária em
questão: o cineasta vendeu, durante a primeira guerra mundial, diversos filmes produzidos ao
30
M. T: Tudo começou com A Trip to the Moon. Eu não lembro exatamente quando assisti ao fantástico filme de
Georges Méliès de 1902, mas eu era muito jovem [...] Eu vi A Trip to the Moon, e o foguete que voou para o olho
do homem na lua hospedou-se firmemente na minha imaginação. Eu queria escrever uma história sobre um menino
que encontra Méliès, mas eu não sabia o que seria a narrativa. Os anos passaram. Eu escrevi e ilustrei quase vinte
livros. Então, em algum momento de 2003, eu li um livro chamado Edison’s Eve by Gaby Wood. É uma história
de autômatos, e para minha surpresa, um capítulo era sobre Georges Méliès. Aprendi que ele tinha uma coleção
de autômatos que foram doados a um museu no fim da vida dele. O museu os colocou no sótão, onde eles foram
destruídos pela chuva e jogados no lixo. Instantaneamente, imaginei um menino subindo no lixo e encontrando
um desses autômatos quebrados.
86
longo da carreira para uma fábrica de sapatos que os transformou em salto alto; trabalhou na
loja de brinquedos de uma estação de trem para sobreviver após não ter conseguido manter o
estúdio de produção; viveu em Paris, o que contribuiu para a cidade ser o cenário da narrativa.
Selznick viajou à cidade e encontrou o apartamento onde o cineasta morou e fotografou-o para
fazer as ilustrações do livro. O trabalho de pesquisa do autor e ilustrador resultou em uma
meticulosa homenagem ao cineasta através do texto e das imagens.
Logo que a obra literária foi lançada, o diretor Martin Scorsese recebeu uma cópia de
um dos produtores da obra cinematográfica. A narrativa fez com que ele se conectasse ao
passado e tivesse a ideia de produzir uma versão para o cinema. Ela o fez conectar-se ao que
chamou de obsessão pelas imagens em movimento (SELZNICK, 2011, p. 30). Scorsese, então,
resolveu adaptar a obra literária para o cinema, tornando-se o primeiro filme infantil e o
primeiro com a tecnologia 3D que dirigiu.
Em 2011, a adaptação cinematográfica da obra literária, intitulada Hugo, foi lançada nos
Estados Unidos, e em 2012, no Brasil, mantendo o título traduzido do livro. O filme é colorido,
sonoro, de 126 minutos, do gênero aventura, foi produzido com o orçamento de R$ 170 milhões
de dólares pela companhia GK Films e Infinitum Nihil, distribuído pela Paramount Pictures.
John Logan foi o responsável pelo roteiro. Asa Butterfield atuou no papel de Hugo, Chloë Grace
Moretz interpretou Isabelle e Ben Kingsley, Georges Méliès.
Assim como Selznick, Martin Scorsese também fez uma homenagem a Georges Méliès.
Com Ben Kingsley, ator que interpretou o cineasta, ele apresenta as relações com os
personagens Hugo, Isabelle e Jeanne, a esposa. No longa-metragem, Méliès é um vendedor
aborrecido, por vezes, impetuoso, deixando-se levar pelas emoções, especialmente as dores que
desabrocham à medida que possui contato com objetos que remetem ao passado dele. No
entanto, ao final, Méliès é “consertado” por Hugo e Isabelle ao saber que o autômato ainda
existe e ter noção da importância para a história da arte cinematográfica, sendo homenageado
pela academia de cinema francesa.
Para compor The Invention of Hugo Cabret em imagens, Scorsese teve de repensar a
estrutura da narrativa criada por Brian Selznick. Em parceria com o roteirista, John Logan,
transpôs o enredo literário em roteiro, adequando a história ao ritmo, estrutura e características
do meio audiovisual. Depois, durante as filmagens e o período de pós-produção, utilizou a
linguagem cinematográfica, a fim de potencializar o enredo com o intuito de atrair o público.
87
processo de transposição de uma narrativa a um novo meio que possui recursos diferenciados
em relação ao primeiro para apresentar o enredo ao público.
Na passagem de um signo para outro é necessário emitir uma imagem para comunicar a
história, porém essa comunicação exige um trabalho que requer escolhas (ECO, 1997, p. 131).
Cada pessoa lida de forma diferente com a representação e simbologia que a imagem oferece
ao público. O modo com que o diretor irá transpor um acontecimento, fato ou história por meio
dela requer sensibilidade, atrevimento, experimentações, conhecimento e domínio da técnica.
É nela que residem as maiores informações das narrativas, pois têm o poder de comunicar,
através das luzes e sombras, objetos de cena, enquadramentos e demais detalhes que a compõe.
A imagem é o recurso que transmite os fatos ao espectador, fazendo-o imergir na narrativa. Ele,
consequentemente, identifica-se com ela ou repudia-a, em alguns casos, quando não concorda
com a temática ou quando esta tem tal intenção.
Em Hugo, Scorsese e Ben Kinsley apresentam Méliès como um senhor cansado, já idoso,
abatido, aborrecido. A maquiagem nos revela o rosto de uma pessoa que sofreu e foi duramente
marcada pela tristeza. O modo como Méliès anda demonstra o cansaço, a dor que sente pelo
fracasso. O tom da voz evidencia o amargor, a raiva e decepção que carrega consigo. O olhar
diante do caderno de Hugo quando flagra o menino roubando algumas peças da loja dele
expressa o quão doloroso é ver a ilustração de um autômato. No entanto, Scorsese não deixa de
mostrar Méliès sorridente após contar a Hugo e Isabelle o que lhe aconteceu durante a primeira
guerra mundial. O público vê um personagem radiante, que vibra ao assistir às antigas
produções sendo exibidas diante dele e de centenas de pessoas que o homenageiam pela
contribuição que deu ao cinema.
O cinema necessita apresentar a narrativa de modo verossímil para que o público se
envolva ao que está sendo contado. O som faz parte dessa construção. Ele aponta, indica,
expressa o emocional de Méliès, por exemplo. O silêncio diante dos desenhos espalhados pelo
quarto quando Hugo e Isabelle encontram uma caixa escondida no armário e a derrubam,
acidentalmente, no chão expressa o impacto ao ver o passado tão presente. Não há som, fala
alguma que pode imprimir na tela tamanha dor que sente ao ver uma parte do passado diante
dele.
Ao contrário da literatura, o cinema precisa mostrar ao público como os personagens
interagem uns com os outros e com o ambiente. A tradução do texto de Selznick para o cinema
optou por expressar Méliès, muitas vezes, petrificado em meio aos diversos brinquedos na loja;
sem vontade de estar naquele lugar, imerso em um mundo que encontrou pra se proteger da dor,
um mundo que construiu para esconder o passado triunfal que se perdeu ao longo do tempo.
A tradução de um signo para outro, portanto, não é uma mera transferência entre sistemas
(PLAZA, 2001, p. 72). Ela compreende tantas escolhas, sejam elas técnicas ou estéticas, como
qual será a câmera, os enquadramentos, o figurino dos personagens em determinada cena. É
preciso pensar nas possibilidades que a imagem e todos os recursos cinematográficos oferecem
para contar uma narrativa ao público quando a transformará em cinematográfica. Através dela
e dos diálogos, por exemplo, diversas referências a outras obras audiovisuais mencionadas no
texto de Selznick são citadas na versão de Scorsese, além de outras que o diretor incluiu, como
filmes da época dos primeiros anos do cinema e desenhos de Georges Méliès
88
Figura 5 – Cenas do filme Hugo com referência: acima: à esquerda, desenho de Georges Méliès; no meio, frame do filme
Les quatre cents farces du diable; à direita, cena do filme Hugo fazendo intertexto ao filme Safety Last; Abaixo: à direita,
cartazes de algumas produções do início do cinema; no meio, Georges Méliès e Jeanne assistindo à primeira apresentação
pública do cinema; à direita, desenho feito pelo autômato do filme Le Voyage dans la Lune.
As escolhas de Scorsese possibilitaram que a narrativa pudesse ser vista por milhares de
pessoas ao redor do mundo. O contato que o público tem para com o cinema é diferente da
relação do leitor com o livro. Isso faz com que o diretor seja desafiado a repensar a narrativa e
recriá-la para o cinema. Os adaptadores, em primeiro momento, são intérpretes e depois se
tornam criadores (HUTCHEON, 2013, p. 43). Na leitura do texto, Scorsese necessitou pensar
de que forma a narrativa de Selznick poderia ser apresentada no cinema, afinal
Considerações finais
Assim como The Invention of Hugo Cabret, a adaptação cinematográfica Hugo faz uma
homenagem aos primórdios do cinema, sobretudo ao cineasta Georges Méliès. Através dela, o
público tem a possibilidade de conhecer um pouco daquele período e a importância que Méliès
e os artistas que trabalharam naquela época tiveram para a história do cinema. A adaptação
cinematográfica de Martin Scorsese é um retorno ao início da cinematografia, contada de forma
ficcional e romantizada, valendo-se da imagem, som, atores, figurinos, maquiagem, cenários e
montagem para apresentar ao espectador o enredo de um menino que, na tentativa de roubar
peças para consertar um autômato, descobriu a grande magia existente no cinema desde os
primeiros filmes.
A adaptação cinematográfica poderia ser dotada de outra atmosfera e até mesmo Méliès
ser representado com uma personalidade totalmente oposta a que Scorsese atribuiu ao
personagem se outro diretor tivesse adaptado a obra de Selznick para o cinema. Através dos
recursos cinematográficos e da atuação de Bem Kingsley, a versão cinematográfica de Scorsese
tornou-se uma nova forma de ver, ouvir, pensar, refletir, vislumbrar e homenagear Georges
Méliès com a mesma arte com a qual obteve notoriedade do público e da crítica
cinematográfica.
Referências
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interfaces semióticas. In: CARELLI, Fabiana; BUENO, Fátima; CUNHA; Maria Zilda da
(org). Texto e tela: ensaios sobre cinema e literatura. São Paulo: FFLCH/USP, 2014. p.
49–63.
ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. Tradução Antônio de Pádua Danesi e Gilson
Cesar Cardoso de Souza. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. 282 p.
GUBERN, Roman. Historia del Cine. 2. ed. Barcelona: Edições Danae, 1971. 479 p.
HUGO (A Invenção de Hugo Cabret). Produção: Martin Scorsese, Jony Depp, Tim
Headington e Graham King. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan. Intérpretes: Ben
Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Jude Law e outros.
Estados Unidos, Paramount Pictures, 2011. DVD, 126 min, Son., color. Legendado.
Produzido por GK Films e Infinitum Nihil.
90
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução Isidoro Blikstein e José Paulo
Paes. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1969. 162 p.
LE VOYAGE dans la lune (Viagem à Lua). Produção, Direção e Roteiro: Georges Méliès.
Intérpretes: Bleuette Bernon, François Lallement, Georges Méliès, Henri Delannoy e outros.
França, Georges Méliès, 1902, 13 min, mudo, preto e branco. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=rttJC8B1aMM>
SELZNICK, Brian. The Invention of Hugo Cabret. New York: Scholastic Press, 2007. 536
p.
______. The Hugo Movie Companion: a behind the scenes look at how a beloved book
became a major motion picture. New York: Scholastic Press, 2011. 256 p.
SUETU, Cláudio Yutaka; RAMOS, Thais Saraiva; MATSUZAWA, Ricardo Tsumotu. 'A
invenção de Hugo Cabret' e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para a
linguagem audiovisual por meio da estereoscopia. In: 6th AVANCA CINEMA
INTERNACIONAL CONFERENCE: ART, TECHNOLOGY, COMUNICATION, 2015,
Avanca - Portugal. Avanca | Cinema 2015. Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca, 2015. v.
1. p. 399-405.
WOOD, Gaby. Edison’s Eve: a magical history of quest for mechanical life. New York:
Alfred A. Kinopf. 2002. 304 p.
Resumo: Georges Méliès (1861 – 1938) foi um dos cineastas mais influentes do início do século XX. A notável
importância dele para a arte cinematográfica teve destaque no longa-metragem Hugo (2011), de Martin Scorsese,
quando foi representado pelo ator Ben Kingsley como um vendedor que trabalha em uma estação de trem de Paris
na década de 1930 por não ter conseguido manter a produção dos filmes durante a primeira guerra mundial. O
filme é uma adaptação da obra literária The Invention of Hugo Cabret (2007), escrita por Brian Selznick. A
pesquisa tem o propósito de debater as escolhas utilizadas por Scorsese para traduzir, através dos recursos
cinematográficos, a homenagem que Selznick fez ao cineasta. As análises acerca da caracterização do personagem,
baseada nos registros históricos, como fotografias, desenhos e frames de filmes, além da percepção do diretor
estadunidense na leitura da referida obra literária, demonstram que a tradução intersemiótica, isto é, a passagem
de uma narrativa verbal para um meio não verbal como o cinema (JAKOBSON, 1969), não se trata de uma mera
ilustração de um texto, mas de interpretações e escolhas tradutórias que irão compor a versão cinematográfica.
Desse modo, o estudo enfatiza que a adaptação fílmica apresenta de modo diferenciado uma história em relação à
literatura, tal como Robert Stam (2008) definiu: uma nova forma de ver, ouvir e pensar uma história, e, neste caso,
91
de homenagear Georges Méliès com a mesma arte com a qual obteve notoriedade do público e da crítica
cinematográfica.
Palavras-chave: Georges Méliès. The Invention of Hugo Cabret. Adaptação Cinematográfica; História do cinema.
Abstract: Georges Méliès (1861 - 1938) was one of the most influential filmmakers of twentieth century’s first
years. His remarkable importance to cinema was prominent in Martin Scorsese’s Hugo (2011), a movie in which
the filmmaker was performed by Ben Kingsley. In Hugo, Méliès is a salesman who works at a Paris’ train station
in the 1930’s for having failed to produce films during the First World War period. The film is an adaptation of
the literary work The Invention of Hugo Cabret (2007), written by Brian Selznick. The research discusses the
choices used by Scorsese to translate Selznick's homage to the filmmaker through cinematographic resources. The
character’s characterization was based on historical records such as photographs, drawings and film frames, as
well as the perception of the American director in reading this literary work. The intersemiotic translation, that is,
the passage of a verbal narrative for a non-verbal system such as cinema (JAKOBSON, 1969), should not be
considered merely an illustration of a text, but also an interpretation and translation choices that compose the film
version as the analysis of character’s characterization demonstrates. Thus, this research emphasizes that the film
adaptation presents a narrative in a differentiated way in relation to literature, as Robert Stam (2008) defined: a
new way of seeing, hearing and thinking a story, and, in this case, to pay homage to Georges Méliès the same art
with which he obtained public notoriety and cinematographic critics.
Keywords: Georges Méliès. The Invention of Hugo Cabret. Film Adaptation. History of Cinema.
92
Capítulo 9
Dóris Lutz
(Mestranda-PGET)
Introdução
31
Viveiros de Castro faz uso ao longo de seu trabalho de conceitos como: humanos, animais, espíritos, brancos e
índios. Quando ele se refere aos não-humanos, inclui neste grupo animais e espíritos. Apesar de esta pesquisa
optar por trabalhar com os conceitos de humanos e não-humanos, explicita-se em muitos casos os termos usados
pelo autor, na intenção de não gerar dubiedade na compreensão.
93
significativos para que se entenda como é possível traduzir concepções sobre a “animalidade”
de forma diversa, que abranja de maneira mais ampla a visão dos animais.
Ao abordar a discussão a respeito do ponto de vista de quem traduz e da não neutralidade
nas escolhas tradutórias, os estudos de Viveiros de Castro podem influenciar na forma de se
pensar uma tradução que se pretenda não especista e não antropocêntrica. Isso é possível a partir
da maneira de compreensão da vida social dos ameríndios, uma vez que essa interpreta as
fronteiras entre humanos e não-humanos de uma forma diferente daquela praticada usualmente
pela tradição ocidental, conforme discute o antropólogo.
A proposta de Viveiros de Castro vem no sentido de romper com essas hierarquias de
valores. O pensamento do autor se desenvolve a partir da crítica ao estruturalismo, quando então
fornece uma interpretação pragmática da linguagem ameríndia. Depois disso, conclui a
distinção entre antropocentrismo e antropomorfismo, demonstrando que essa segunda
designação exprime melhor o comportamento e a linguagem ameríndia. Essa contribuição
conclusiva de Viveiros de Castro concede critérios de base para a tradução, não simplesmente
evitando os preconceitos éticos e políticos anunciados pelo autor ao longo de sua discussão com
a antropologia, mas expondo em que sentido e medida a tradução pode ultrapassar os limites
culturais até então dominantes e colaborar para a visibilidade de outras perspectivas, até então
marginalizadas, aqui mais precisamente aquela dos animais.
32
O autor se refere mais especificamente aos índios e brancos. Contudo, esse pensamento pode ser estendido para
outras etnias e outras áreas, como gêneros e classes, por exemplo.
94
Em segundo lugar, a conclusão de Viveiros de Castro dependerá do seguinte par de
conceitos: por um lado, o conceito de antropocentrismo, pelo qual se entende a concepção da
tradição ocidental a qual afirma que tanto a relação entre humanos e animais quanto à relação
entre etnias diferentes são descritíveis a partir de uma projeção do modo humano (ocidental) de
ver o mundo. É esta a concepção criticada pelo autor, tendo em vista que ela é a causa da
exclusão entre grupos de humanos e da exclusão dos animais da vida social. Aqui se presume
que é também a concepção antropocêntrica, unida à visão utilitarista acerca dos animais que
intensifica a baixa divulgação e discussão a respeito da ética animal e dos direitos dos animais,
motivando assim também o consequente desinteresse por traduções ligadas a esses temas. Por
outro lado, o conceito de antropomorfismo, pelo qual se entende algo diferente do conceito
anterior e cuja distinção Viveiros de Castro considera de suma importância: o antropomorfismo
corresponde à concepção ameríndia, a qual entende que seres humanos, espécies animais e
entidades espirituais são todos modos de ser e perceber o mundo, igualmente fundados numa
pessoalidade partilhada, que os ameríndios chamam “humanidade”. Por isso o termo
“antropomorfismo” deve significar que a chamada “humanidade” é a forma comum de todos
os seres animados perceberem o mundo e os demais seres, e não a forma da espécie humana e
do homem branco impor sua interpretação particular sobre “as/os outras/os”.
Por fim, Viveiros de Castro explica que a compreensão da cosmologia ameríndia não
corresponde a um “multiculturalismo”, mas sim a um “multinaturalismo”. Enquanto aquele
conceito designa que há um relativismo de culturas entre grupos humanos, cada qual vendo o
mundo da sua maneira, este conceito concebe que todos os grupos (humanos e não-humanos)
possuem uma mesma cultura geral (ter uma perspectiva do mundo), porém percebendo mundos
ou naturezas múltiplas. Por isso o autor afirma ao longo do seu texto que o multinaturalismo
exige interpretar as diversas formas de percepção de mundo no interior da cultura comum de
brancos, indígenas e animais.
33
Como não-humanos, entende-se em Viveiros de Castro animais e espíritos.
95
que beneficiem outros ângulos e aspectos no que diz respeito à compreensão e tradução de
textos que trazem a perspectiva tanto dos animais quanto da relação destes com os humanos.
Logo, animais e humanos podem ser pensados sem distinções antinômicas propostas ao
longo da história pela tradição ocidental. A distinção entre tais entidades é não antinômica
quando a diferença entre elas não parte da animalidade ou do relativismo materialista. Uma
epistemologia que conceba a relação e a diferença entre humano e animal desde a humanidade
é capaz de superar uma razão antinômica, o que mereceria o nome de perspectivismo. Se uma
dicotomia é a distinção que estabelece separação de tipos (de forma categorial ou material) e se
uma antinomia é a separação entre conceitos ou juízos contraditórios entre si e incompossíveis
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 235-250), então duas serão as distinções não antinômicas
a serem consideradas: (i) o perspectivismo, irredutível ao relativismo, o que torna insuficiente
a ontologia natureza/cultura e demais dicotomias; e (ii) o multinaturalismo, unidade do espírito
e diversidade dos corpos, oposto ao multiculturalismo – conceito moderno da unidade de
natureza (corpo) e multiplicidade cultural (dos significados) (VIVEIROS DE CASTRO, 2004,
p. 238). Enquanto o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndios possuem a vantagem de
incluírem o lado oposto da dicotomia, o multiculturalismo e o relativismo possuem o vício de
excluírem e tratarem como antinomias aquelas duas categorias ameríndias.
A antinomia natureza/cultura é desfeita pelo autor a partir da reinterpretação
perspectivista da relação humano e animal segundo um princípio e um corolário que aqui
argumento também serem capazes de fornecer o critério para uma teoria da tradução: (i)
Princípio: o critério fundamental são os não-humanos perceberem a si mesmos como cultura
humana ou que todos (humanos e não-humanos) recaem sob a categoria de humanos; (ii)
Corolário: então, conhecer é traduzir eventos “naturais” (ditos assim pelo ocidental) como
cultura comum de todos os seres animados (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 233). Como
exemplifica o próprio autor, o que chamamos “sangue” é a cerveja do jaguar, os artefatos são
objetos e também apontam necessariamente a um sujeito, matéria de alguma intencionalidade,
e o que se chama “natureza” pode ser cultura. Teremos o esquema das características
natureza/cultura: a cultura é a perspectiva do agente como alma e a natureza é o corpo como
afecção e perspectiva. Cultura é a natureza do sujeito e natureza é o Outro como corpo para
outrem. Cultura tem forma de pronome “eu”, natureza tem a forma de “não-pessoa” no
impessoal “ele”34 (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 241).
Neste artigo, no qual entendo a tradução como forma política que busca a inclusão das
diferenças também no que tange à relação social entre animais e humanos, o objeto de
investigação depende do esclarecimento do princípio e corolário acima citados, ou seja, da
explicação do que vem a ser um Antropomorfismo Perspectivista35. Assim reconhecido,
percebe-se que o modo como humanos e animais veem a si mesmos e uns aos outros é diferente:
os humanos veem os humanos como humanos, bem como os animais e espíritos se veem como
humanos também, antropomorfos em sua própria casa; e veem sua cultura como humana. A
consequência desse raciocínio está no fato de que, tanto humanos quanto animais se veem como
pessoas.
Perspectivismo é o termo utilizado por Viveiros de Castro para exprimir o conhecimento
do mundo ameríndio na forma de um “ver-como”: “Vendo-nos como não-humanos, é a si
mesmos que os animais e espíritos veem como humanos” (2004, p. 227). Este “ver-como” deve
ser entendido como perceptivo e não por analogia, ou seja, como o ponto de vista perceptivo
34
“eu” significa a perspectiva de quem está vendo, a quem o ameríndio entende como sujeito, “ele” é a perspectiva
pela qual o outro me olha, a qual designa a natureza; existe tantas naturezas quanto perspectivas.
35
Termo sugerido pelo autor ao longo de seu texto.
96
ou experimental de um sujeito animal ou humano36 se sustenta na própria pragmática do signo
e não em relações de metáfora. Isso significa que a interpretação pragmática das perspectivas
diz respeito aos usos e percepções do contexto social e não às representações e significações
cognitivas.
Para que os estudos da tradução possam se ocupar das questões que permeiam a
interpretação cultural, ética e política indicadas pelo autor, é condição indispensável
compreender como o status de pessoa consiste em atribuir a categoria de “humanidade”
igualmente a animais e humanos. Segundo Viveiros de Castro (2004, p. 228), a cosmologia
ameríndia entende que há uma dupla estrutura para a distinção entre pessoas interespécies: os
animais são pessoas e cada espécie manifesta é um envoltório de forma humana; tal forma só é
visível à própria espécie e aos xamãs; a forma é uma intencionalidade idêntica à consciência
humana. Logo, há duas estruturas: (i) a essência humana comum aos seres animados e (ii) a
aparência corporal trocável (o corpo como função de roupa) – metamorfose entre os seres
animados.
Deste modo, Viveiros de Castro demonstra que o perspectivismo é a forma adequada de
compreender o conhecimento ameríndio, e para que a pessoalidade perspectiva do cosmos
ameríndio seja corretamente entendida no que tange ao seu valor para os estudos da tradução,
tanto o setor mitológico quanto o cosmológico precisam ser considerados. Isso ocorre porque a
mitologia ameríndia define um tempo primordial de indiferenciação entre humano e não
humano (2004, p. 229), noção indispensável para o processo tradutório – que se ocupa de termos
referentes à animalidade e das relações sociais entre humanos e animais – poder lograr uma
tradução politizada, que contribua para a percepção e expansão de outros pontos de vista, de
outros sujeitos.
Assim, por um lado, o perspectivismo faz coincidir o sujeito e seu ponto de vista sobre o
mundo, por outro lado, anula a hierarquia de valores entre os pontos de vista: cada espécie
aparece para a outra como aparece para si mesma (como humana) e também manifesta um ponto
de vista particular. Tal mito é um discurso “só sujeito” e não “sem sujeito” (como pensou Levi-
Strauss, segundo a interpretação de Viveiros de Castro, 2004, p. 229). Conforme Viveiros de
Castro,
Todo ser a que se atribui um ponto de vista será então sujeito, [...] ali onde
estiver o ponto de vista, também estará a posição de sujeito. Enquanto nossa
cosmologia construcionista pode ser resumida na fórmula saussureana: o
ponto de vista cria o objeto – o sujeito sendo a condição originária fixa de
onde emana o ponto de vista –, o perspectivismo ameríndio procede segundo
o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito quem se
encontrar ativado ou 'agenciado' pelo ponto de vista. (2002, p. 358).
36
De modo a valer tanto para as concepções categoriais da mitologia ameríndia quanto para suas experiências
fenomenais no seu mundo social (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 227).
97
uma reformulação pragmática da linguagem ameríndia, cuja contribuição aqui discutida diz
respeito à pessoalidade compartilhada por humanos e animais.
Para ser possível responder a essa questão, o autor mostra também em que sentido o
perspectivismo ameríndio é um multinaturalismo e porque se pode falar em antropomorfismo
sem confundi-lo com um antropocentrismo. O perspectivismo ameríndio é um multinaturalismo
como política cósmica, mas o multiculturalismo ocidental é um relativismo como política
pública (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 231). Além disso, o xamanismo é um ideal de
conhecimento em oposição ao objetivismo ocidental: enquanto o objetivismo visa desubjetivar,
tratando o Outro como coisa, no xamanismo conhecer é personificar, tomar perspectiva daquilo
a ser conhecido, tratando o Outro como pessoa. Logo, o xamanismo universaliza a atitude
intencional, visando o oposto da objetivação do mundo, uma revelação do máximo de
subjetivação. Ver cada evento como ação intencional significa que um ente sem relação social
com o xamã é insignificante. Diversamente, para o ocidente a “atitude intencional” é ficção e
fracasso epistêmico, por não exercer redução causal (2004, p. 231). Torna-se evidente, com
isso, que a pessoalidade comum a humanos e animais, capaz de permitir uma tradução que a
ambos inclua, somente pode ser sustentada sob a crítica epistemológica assim descrita.
Como ficou dito, outro passo relevante para lidar com a questão levantada é a
diferenciação entre antropocentrismo e antropomorfismo, capaz não apenas de afastar certos
preconceitos ainda presentes no estruturalismo (o etnocentrismo), mas fornecer condições para
a tradução crítica politicamente, que pretenda dar visibilidade a olhares mantidos à margem.
Com efeito, muitos entenderam que a humanidade limita-se ao grupo, que o estrangeiro é extra-
humano e, sendo assim, o etnocentrismo seria ideologia comum aos grupos humanos. Enquanto
o branco conceberia a humanidade desde as ciências sociais, o índio desde as ciências naturais,
concluindo respectivamente que índios são animais e brancos são divindades (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004, p. 233-234). Da mesma forma, o etnocentrismo indígena pressuporia a
diferença entre cultura e natureza como universal para toda a percepção social. Assim se pensou
porque o método de Lévi-Strauss para demonstrar a humanidade dos índios consistiu em
mostrar que faziam as mesmas distinções que os brancos, que também distinguem
natureza/cultura e consideram o outro bárbaro (2004, p. 234). Mas Viveiros de Castro observa
que atualmente não há mais razões para não mudar de critério: não o etnocentrismo, mas o
cosmocentrismo, para o qual natureza/cultura são parte de um “sociocosmo”, não fazendo
sentido demonstrar a diferença entre animalidade e humanidade (2004, p. 234). O ameríndio
teria antecipado a concepção social do cosmos fundamental à ecologia, ao entender os
predicados de humanidade além da espécie, perdendo a relevância de excluírem o predicado
aos “bárbaros”. Com isso fica evidente a questão do processo de tradução aqui discutido.
A partir disso, é possível passar à pragmática dos signos ameríndios exposta pelo autor,
especialmente quanto aos designadores coletivos e pronominais (VIVEIROS DE CASTRO,
2004, p. 236). Tais designadores são importantes porque permitem entender diretamente como
traduzir termos referentes a animais e humanos sem que se adote uma concepção
antropocêntrica. Essa consideração que segue deve-se a necessidade de demonstrar o não
etnocentrismo acima referido. O argumento de Viveiros de Castro para sustentar uma
concepção não etnocêntrica da cosmologia ameríndia baseia-se no uso pragmático da
linguagem ameríndia livre das afirmações antropocêntricas excludentes aqui já discutidas.
Deste modo, os termos indígenas para “ser humano”, que supostamente denotariam um
etnocentrismo, não têm sentido de espécie, mas exprime a condição social de pessoa, e são
enfatizados mais como pronomes do que como substantivos; nomes perspectivos (“a gente”) e
não gerais (“gente”). As categorias de identidade coletiva são como pronomes, indo do “eu” até
todo ser consciente. Coletivos como “gente” significam “pessoas” e não “membros da espécie”.
São pronomes pessoais (ponto de vista do sujeito que fala) e não nomes próprios (uma coisa
sob o ponto de vista de alguém). Então, dizer que animais e espíritos são “gente” é dizer que
98
são pessoas – atribuir intencionalidade e agência (humanidade). É justamente essa
particularidade perspectivista quanto ao uso do termo “pessoa” que gera outra percepção para
a tradução, uma vez que contribui para o questionamento a respeito dos pontos de vistas a serem
traduzidos, propiciando maior discussão acerca de apagamentos e realces realizados sem a
devida reflexão e/ou contestação ao longo do processo tradutório.
O perspectivismo ameríndio poderá contribuir com os estudos da tradução caso se
entenda que as análises de Viveiros de Castro se ocupam dos usos dos signos da linguagem
ameríndia, isto é, de uma pragmática desta linguagem social e mítica, em sentido intencional.
Assim se pode reconhecer tais categorias ameríndias de “pessoa” e “gente” ou compreender
como os termos coletivos, pronominais e dêiticos revelam uma forma mais abrangente de
tradução sobre entidades animadas humanas e não-humanas. Por exemplo, ter alma é ser sujeito
e ter um ponto de vista: categoria perspectiva, dêiticos em sentido cosmológico. Onde há
sujeito, há ponto de vista (pessoa) que cria o sujeito, e não o ponto de vista do sujeito, o qual
cria o objeto. Assim, “gente” se refere aos homens se ditos por estes, ou se referem aos castores
se ditos por estes últimos (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 236-237).
O antropólogo sustenta que as formas corporais perceptivas e as pronominais são
atributos tanto da espécie humana quanto de demais espécies e não predicados da espécie
humana projetados metaforicamente aos não-humanos. Essas formas são atributos imanentes à
perspectiva de todos os seres animados, do qual o humano também se inclui como os demais.
Por isso, a cultura é a natureza do sujeito, seu modo de experimentar a própria natureza, de
maneira que o animismo não é projeção humana figurada, mas equivalência real entre humanos
e não-humanos (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 237).
Para exprimir as contribuições descritas até aqui, pode-se dizer que a relação social entre
humanos e animais é compreensível não tanto em termos relativistas (cada espécie tem um
mundo particular relativo às suas condições naturais), mas antes relacional (ambas as espécies
se relacionam através de condições comuns de perspectiva). Isso significa que o relacionismo
não é um relativismo, mas o perspectivismo é um relacionismo (VIVEIROS DE CASTRO,
2004, p. 240).
Quanto ao status dos animais e seus critérios categóricos para a tradução, tal relacionismo
se confirma nos usos relacionais dos signos ameríndios. Isso é demonstrado pelo autor (2004
p. 243) a partir dos termos de parentesco, que são relatores (operadores lógicos abertos) e
definem algo por relações (predicados de dois lugares), diferente dos substantivos que são
próprios ou fechados. Por exemplo, o termo “pai” somente faz sentido em relação a “filho”.
Contudo, entre os ameríndios, os termos substantivos são também usados como relatores, algo
entre nome e pronome, substantivo e dêitico. Algo é “peixe” porque existe outro para o qual é
peixe, como exemplifica o autor (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 243). Tal relação não é
representacional nem subjetiva, mas relação real, como nos parentescos, pois um ponto de vista
não é uma opinião e há tantos mundos quanto pontos de vistas, sempre necessariamente em
relação. Não há pontos de vista sobre as coisas, elas mesmas são perspectivas. Não importa
como os macacos veem o mundo, mas um mundo só se exprime através da perspectiva dos
macacos (2004, p. 244). Assim como dois seres são irmãos porque tem o mesmo pai, dois seres
são co-específicos porque tem o mesmo peixe, canoa, etc. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.
243). Estamos diante de uma concepção relacional, o indivíduo não é a realidade última.
Traduzir, portanto, deve significar exprimir essa percepção relacional de mundo.
O mesmo pode ser mostrado quanto aos pronomes. Viveiros de Castro (2004, p. 250)
mostra que os usos que os ameríndios fazem dos pronomes provam seu valor relacional e
perspectivista: dizer “eu” não significaria referir-se a alguém individualizado, mas expressaria
um modo de ação deste indivíduo, sua forma de ver o mundo ou a perspectiva através da qual
ele apreenderia e agiria sobre este mundo. A cultura é a forma genérica do “eu”, a natureza do
“ele”, e a objetivação do sujeito é a singularização do corpo (incorpora a cultura expressa no
99
“tu”). Isso significa que “eu” não é propriamente um pronome, mas designa a maneira genérica
dos seres existirem: ser a perspectiva pela qual o mundo aparece. Da mesma forma, o pronome
“tu” exprime a perspectiva pela qual outrem me vê em seu mundo, e o termo “ele” estaria a
designar a forma impessoal em que alguém vê todos os outros em seu mundo. Deste modo, os
pronomes “eu”, “tu” e “ele” são também termos relacionais. E, como ficou dito, se a
humanidade serve de critério para a unidade multinatural de humanos e animais, então, a
unidade do espírito tem função cosmológica para “eu”, “tu” e “ele”. Isso permite também
compreender a concepção de sobrenatural ao mesmo tempo que as relações sociais entre
humanos e animais.
Com isso, ficam explicitadas duas condições de traduzibilidade relevantes para a relação
com animais. Os dois pontos de vista, ocidental e ameríndio, diz o autor, parecem
incompossíveis para a tradição ocidental, que gira a cultura em torno da natureza e não pode
incluir a concepção ameríndia (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 250). Inversamente, esta
última admite um compasso com ambos os casos. Certamente o mito indígena se articula entre
os extremos natureza/cultura comuns ao ocidente, mas sem tornar as diferenças irreconciliáveis.
Para o ameríndio, as duas concepções não são questão cultural ou mental, mas de percepção do
mundo sob perspectivas diversas. Por isso, o contraste entre multiculturalismo e
multinaturalismo discutido por Viveiros de Castro precisa ser lido não desde o relativismo, mas
desde o perspectivismo, onde a diferença será de mundos e não de pensamentos. Estar em uma
perspectiva não é pensar o mundo de uma certa maneira, mas ser um mundo próprio. É este
mundo próprio que o processo de tradução pretende alcançar quando não separa a animalidade
em um conceito particular. Do mesmo modo, a distinção entre animais e humanos é respondida
pela inclusão de ambos na “humanidade originária” e não na exclusão dos animais seguida da
divisão do humano em corpo animal e espírito metafísico. Este preconceito, que não é sem
consequências relevantes, revela-se através das investigações de Viveiros de Castro também
como motivo de críticas de posições éticas e políticas nas práticas tradutórias sobre os animais.
Considerações finais
Referências
VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.
Resumo: Este artigo propõe uma discussão a respeito do status de pessoa e da condição de humanidade atribuídos
também aos animais na teoria do Perspectivismo Ameríndio de Viveiros de Castro (2004) e como a concepção
ameríndia pode contribuir para uma interpretação cultural, ética e política no campo dos Estudos da Tradução. O
objetivo da reflexão é enriquecer a pesquisa voltada à descentralização do antropocentrismo e favorecer a
visibilidade dos animais como sujeitos também no processo tradutório, uma vez que as relações sociais dos povos
ameríndios compreendem também os animais. O perspectivismo faz coincidir o sujeito e seu ponto de vista sobre
o mundo, expandindo, assim, a percepção ocidental do significado de sujeito e anulando hierarquias de valores
entre seres de espécies diferentes: cada espécie aparece para a outra como aparece para si mesma (como humana).
Neste pensamento, a condição original comum para os seres passa a ser a humanidade e não a animalidade.
Desconstruir as fronteiras entre humano e não humano permite agregar outras perspectivas também para a tradução
e questionar com olhar crítico certas relações categorizantes e ideologias mantidas e legitimadas como neutras.
Palavras-chave: Estudos da Tradução. Perspectivismo ameríndio. Animais como sujeitos. Relações
interespecíficas.
Abstract: This article proposes a discussion about the status of person and the condition of humanity attributed
also to animals in the theory of Amerindian Perspectivism of Viveiros de Castro (2004), and how the Amerindian
conception can contribute to a cultural, ethical and political interpretation in the field of Translation Studies. The
aim of this reflection is to enrich the researches focused on the decentralization of anthropocentrism and to favor
the visibility of animals as subjects also in the translation process, since the social relations of Amerindian peoples
also include animals. Perspectivism makes the subject and his point of view coincide about the world, thus
expanding the Western perception of the meaning of the concept of subject, as well as canceling hierarchies of
values between beings of different species: each species appears to the other as it appears to itself (as human). In
this line of thought, the original condition for beings becomes that of humanity and not that of animality. The
process of deconstruction of the boundaries between human and non-human allows us to add other perspectives to
the process of translation and to question with a critical outlook, certain categorizing relations and ideologies
maintained and legitimized as neutral.
Keywords: Translation Studies. Amerindian perspective. Animals as subjects. Interspecific relations.
101
102
Capítulo 10
Introdução
Este artigo tem como foco a apresentação do material didático desenvolvido durante meu
Estágio Docência no primeiro semestre de 2017. Este material foi desenhado com o intuito de
corroborar minha hipótese de que é relevante ensinar a metalinguagem dos Estudos da Tradução
para aprendizes, principalmente em um contato inicial com a disciplina, ou seja, nos primeiros
semestres de formação.
A disciplina em que o material foi pilotado faz parte do currículo do curso de Letras
Língua e Literatura Estrangeira (LLE) da UFSC e é intitulada Estudos da Tradução I (sob o
código LLE7031). Trata-se da segunda disciplina de tradução cursada pelos alunos no terceiro
semestre do curso e configura-se como uma disciplina do tronco comum, ou seja, pode ser
frequentada por alunos de qualquer curso do LLE, a saber, alemão, espanhol, francês, inglês e
italiano. A turma 03423A estava sob responsabilidade da professora Maria Lúcia Barbosa de
Vasconcellos.
O material foi planejado para um ambiente de ensino-aprendizagem especial, com aulas
sempre no Laboratório de informática do Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC,
sala 007. A carga horária prevista é de quatro horas/aula por semana, divididas em dois dias:
segundas às 8 horas e 20 minutos e quartas às 10 horas e 10 minutos, totalizando 30 encontros
no semestre. O uso do laboratório de informática permite um ambiente de aprendizagem
descrito como blended learning37, com o uso constante do Ambiente Virtual de Ensino e
Aprendizagem (AVEA) Moodle.
A fim de demonstrar a relevância desse projeto, justificando a proposta, indico que as
Unidades Didáticas desenhadas para essa disciplina (Estudos da Tradução I) foram utilizadas
em outra turma do LLE, (T03425), a qual estava a cargo da professora Alinne Balduino Pires
Fernandes, entretanto, os dados obtidos com essa disciplina não farão parte da minha base de
dados, pois não acompanhei os procedimentos de pilotagem do material.
Plano de Ensino
37
O blended learning é um ambiente de aprendizagem caracterizado pela semipresencialidade, onde o aluno
interage tanto com o AVEA quanto em sala de aula com o professor. Assim, a parte mais importante do processo
pedagógico se dá de modo presencial e as atividades de apoio e reforço à distância (GALÁN-MAÑAS, 2011).
103
do tradutor. Situação dos textos traduzidos em diferentes países e momentos
históricos38.
Essa ementa promove mormente discussões teóricas sobre a tradução, criando uma cisão
entre teoria e prática. Considerando, então, a reestruturação que está ocorrendo na atual grade
curricular dos cursos do LLE, a professora Maria Lúcia, como membro da comissão de
reestruturação das disciplinas de tradução, propôs alterações no atual plano de ensino, com o
intuito de promover uma metodologia que levasse em conta objetivos de aprendizagem, que,
segundo Delisle (1993, p.38), “descrevem a intenção de uma atividade pedagógica e
determinam as mudanças de comportamento que ocorreram no aluno”, e a competência
tradutória, que, conforme apresentado pelo grupo de pesquisa espanhol PACTE (2003), refere-
se a um “sistema subjacente de conhecimentos necessários para traduzir. Inclui conhecimentos
declarativos e procedimentais, sendo os procedimentais predominantes”39.
A ementa da disciplina foi reelaborada levando em conta os seguintes pontos norteadores:
i) mapear o campo disciplinar Estudos da Tradução, a fim de dinamizar o conhecimento dos
alunos sobre a disciplina; ii) apresentar uma concepção de tradução; iii) partindo da concepção
de tradução, introduzir o conceito de competência tradutória, principalmente da
subcompetência de conhecimentos sobre tradução, tendo em vista o caráter mais teórico do que
prático do curso; iv) estabelecer uma relação direta entre teoria e prática, promovendo a
autorregulação como estratégia de aprendizagem. Um tema transversal da disciplina é o
incentivo à pesquisa em Estudos da Tradução, ou seja, essa é uma discussão que perpassa as
aulas.
A partir da ementa reestruturada, foram elaborados objetivos de ensino, ou seja, objetivos
elaborados a partir do ponto de vista do professor, quais sejam:
Unidades Didáticas
A disciplina foi estruturada tendo como base o conceito de Unidade Didática (UD),
proposto por Hurtado Albir (1999). As UDs são organizadas em torno das Tarefas de Tradução,
as quais são definidas como “unidades de trabalho em sala de aula, representativas da prática
tradutória, que se dirige intencionalmente para a aprendizagem de tradução com objetivo
concreto, estrutura e sequência de trabalho” (HURTADO ALBIR, 2005, p.43-4). As tarefas das
UDs levam a uma tarefa final, que procura, por meio das atividades propostas, fazer com que o
aluno demonstre ter adquirido a competência proposta para o nível de progressão do ensino em
que se encontra.
A seguir apresento as cinco UDs que foram desenhadas para a disciplina LLE7031 e a
UD de autoavaliação e avaliação do curso.
A Unidade Didática 1, intitulada “Mapeamento do campo disciplinar” tratou
especificamente de apresentar o campo disciplinar Estudos da Tradução, uma vez que os alunos
já haviam discutido questões relativas à história da tradução na disciplina Introdução aos
Estudos da Tradução (LLE7030) no primeiro semestre do curso. Essa UD tinha como objetivos
de aprendizagem:
105
1. Identificar e descrever as propostas de mapeamento de Holmes (1988) e sua releitura
feita por Hurtado Albir (1999);
2. Identificar e descrever a proposta de mapeamento de Williams & Chesterman (2002);
3. Comparar e contrastar as três propostas, refletindo criticamente sobre possíveis causas
da configuração de cada modelo.
Figura 1 - Estrutura da UD 1
106
Figura 2 - Estrutura da UD 1-B
40
A competence is a complex know how to act resulting from integration, mobilization and organization of a
combination of capabilities and skills (which can be cognitive, affective, psycho-motor or social) and knowledge
(declarative knowledge) used efficiently in situations with common characteristics (Lasnier, 2000 apud Hurtado
Albir, 2007, p.166).
108
1. Fazer uma distinção entre os contextos de aquisição de CT: fora ou dentro do sistema
educacional;
2. Entender a aquisição da CT como um processo de aprendizagem dinâmico, gradual e
cíclico que consiste no desenvolvimento integrado das subcompetências e componentes
psicofisiológicos que compõem a CT;
3. Conhecer a história da aquisição da CT de tradutores profissionais, através de pesquisa
(tipo survey), usando questionário como meio de coleta de dados.
A Tarefa 1 é caracterizada pelos dois contextos em que se pode adquirir a CT. Por um
lado, temos a aquisição fora do sistema educacional, onde o tradutor adquire sua competência
de modo autodidata, ou através de mentorias com tradutores mais experientes. Por outro lado,
temos o contexto de aquisição dentro do sistema educacional, nesse sentido, a ACT ocorre no
meio acadêmico e institucionalizado, dando-se de maneira sistematizada, ou seja, por meio de
uma intervenção social programada. A Tarefa 2 apresenta um conceito de ACT a partir do
modelo cíclico de reestruturação de conhecimento desenvolvido pelo grupo PACTE (2000).
Esse modelo argumenta que a ACT se dá de maneira iterativa e gradual, partindo de um
conhecimento novato (ou pré-tradutório) até um conhecimento especializado (a competência
tradutória). Salienta-se a relevância das estratégias de aprendizagem na aquisição do
conhecimento novo. Essa Tarefa procura fazer com que os alunos entendam que a ACT é um
processo de aprendizagem, dinâmico, gradual e cíclico. Finalmente, a Tarefa Final, prepara os
alunos para realizarem uma pesquisa de campo com tradutores profissionais, para tanto, é
desenvolvido um tutorial que os ensina a montar formulários online por meio da ferramenta
disponibilizada pelo Google Docs41. A pesquisa procura estabelecer a história individual da
aquisição de CT de tradutores profissionais. Após construírem seus formulários, os alunos
foram instruídos a enviarem os questionários a tradutores profissionais atuantes no mercado por
quaisquer meios disponíveis. Ao final de duas semanas, os alunos apresentaram os resultados
das pesquisas. Um total de 125 respostas foram obtidas e a grande maioria dos tradutores
respondeu que adquiriu a competência tradutória dentro do sistema educacional, ou seja, por
meio de cursos de curta e longa duração na academia. Pensando no modelo de CT, acredito que
a subcompetência desenvolvida ao longo dessa UD foi a de conhecimentos sobre tradução,
ligada ao mercado de trabalho.
A sexta UD desenhada foi a UD 5 - Mobilização da metalinguagem correspondente para
reflexão crítica e justificativa de soluções tradutórias. O conceito de mobilização de
conhecimento foi retirado de Scallon (2015, p.143) cuja definição é: “apropriação e utilização
intencional de conteúdos nocionais, de habilidades intelectuais e sociais”, e vai além, “trata-se
de um saber-agir que vai além do reflexo ou do automatismo”.
Esta UD busca verificar a capacidade dos alunos de mobilizar, de forma consciente, a
metalinguagem da tradução que foi aprendida ao longo da disciplina. Para que isso ocorra, os
41
Disponível em < https://docs.google.com/>
109
alunos precisam, primeiramente, acessar toda a metalinguagem apresentada ao longo das UDs.
Assim, uma pré-tarefa (para ser realizada em casa) foi proposta. A atividade consistia em fazer
um levantamento de termos e conceitos próprios da tradução que haviam sido vistos ao longo
das UDs anteriores. Os alunos percorreram as UDs anotando termos e definições para
realizarem a tarefa. A UD 5 possui três objetivos de aprendizagem, conforme segue:
Considerações finais
111
Referências
HOLMES, James. The Name and the Nature of Translation. In: VENUTI, Lawrence (Org.).
The Translation Studies Reader. New York: Routledge, 2000.
______. Competence-based Curriculum Design for Training translators. The Interpreter and
Translator Trainer Journal, v.1, n.2, p.163-195, fev. 2007.
WILLIAMS, Jenny; CHESTERMAN, Andrew. The Map. New York: St. Jerome Publishing,
2002.
Resumo: Com vistas a discutir a relevância da metalinguagem dos Estudos da Tradução no processo de aquisição
da competência tradutória e no desenvolvimento metacognitivo do aprendiz de tradução, principalmente em
relação ao seu comportamento autorregulatório, o resultado do meu projeto de doutorado será um modelo de
material didático para a disciplina de Estudos da Tradução I do curso de Letras da UFSC. Nesta comunicação,
trago mostras do que foi desenvolvido ao longo do meu Estágio Docência na supracitada disciplina sob
responsabilidade da professora Maria Lúcia Barbosa de Vasconcellos. A pilotagem do material foi realizada no
primeiro semestre de 2017 e, após análise dos resultados, a primeira versão, aqui apresentada, sofrerá alterações
para integrar o modelo final da tese. Partiu-se de uma fundamentação tríplice para desenhar a proposta. O marco
112
conceitual fundamentou-se em uma concepção integradora de tradução (atividade textual, ato comunicativo e
processo mental), na noção de competência tradutória e em sua aquisição (HURTADO ALBIR, 2011). O marco
pedagógico constitui-se de teorias de ensino e aprendizagem vinculadas ao espaço teórico-pedagógico da
Formação por Competências e dos Objetivos de Aprendizagem. O marco metodológico foi baseado na proposta
de Hurtado Albir (1999) e tem como elemento central as Tarefas de Tradução, as quais possibilitam que o aluno
desenvolva as subcompetências específicas da Competência Tradutória. Por fim, é preciso deixar claro que a
metalinguagem trabalhada ao longo da disciplina está associada à aquisição da Competência Tradutória e a
conceitos da Didática da tradução de natureza cognitivo-construtivista.
Palavras-chave: Desenho de material didático. Metalinguagem. Competência Tradutória. Tarefas de tradução.
Abstract: In order to discuss the relevance of the metalanguage of Translation Studies in the acquisition of
translation competence and metacognitive development of the translation apprentice, especially in relation to their
auto-regulatory behavior, the result of my PhD project is going to be a teaching material model for the discipline
of Translation Studies I from the Letras undergraduate course at UFSC. In this talk, I bring samples of what has
been developed throughout my Internship Teaching period in the aforementioned course under Professor Maria
Lúcia Barbosa de Vasconcellos responsibility. The pilot analysis of the material was carried out in the first half of
2017 and, after analyzing the results, the first version here presented will be modified to integrate the dissertation’s
final model. It was drawn from a threefold rationale for designing the proposal. The conceptual framework was
based on an integrative translation concept (textual activity, communicative act and mental process), on the notion
of translation competence and on its acquisition (HURTADO ALBIR, 2001). The pedagogical framework consists
of teaching and learning theories linked to the theoretical and pedagogical space of Training Skills and Learning
Objectives. The methodological framework was based on Hurtado Albir’s (1999) proposal having Translation
Tasks as its main component, which enables students to develop the specific sub-competencies of Translation
Competence. Finally, it must be clear that the metalanguage used throughout the semester is associated with the
acquisition of Translation Competence and Translation Didactic concepts of a cognitive-constructivist nature.
Keywords: Teaching Material Design. Metalanguage. Translation Competence. Translation Tasks.
113
114
Capítulo 11
Gabriela Hessmann
(Doutoranda-PGET)
Introdução
42
Para psicanálise Junguiana catarse é provocar em outra pessoa, de forma controlada, o despertar de emoções
contidas e omitidas, que precisam ser despertas e expostas, para a liberação de bloqueios emocionais.
116
De acordo com Lima (2013), o texto escrito, por sua vez, oferece a possibilidade de
releituras, paradas, paratextualizações, remissões e demais sucedâneos em geral, existem
questões ideológicas envolvidas, uma vez que as artes influenciam diretamente nas formas de
pensar e conceber as realidades. Nas tradições literárias em que a oralidade registrada no código
escrito ficou documentada, como nos trabalhos de Charles Perrault, ainda é possível verificar
essa transposição em estudos antropológicos.
[...] conto popular e conto literário ou conto oral e conto escrito em forma
erudita, onde a primeira ocupa o lugar de origem ou ancestral da segunda.
Dessa forma, por força de uma série de transformações literárias e/ou
mudanças nas configurações sociais, o conto literário pode iniciar a sua
história tanto com as coletâneas orientais, como As Mil e Uma Noites, quanto
com os contos de fadas de Perrault ou dos irmãos Grimm, passando, na
maioria das vezes, pelo Decameron de Bocaccio. (COSSON, 2006, p. 143).
Alguns teóricos, podemos citar o russo Vladmir Propp (2002), buscam responder quais
são as raízes e as razões pelas quais as histórias populares foram inventadas, recolhidas e
catalogadas, traduzidas e retraduzidas, suas pesquisas auxiliaram para a compreensão da
história das civilizações. A descoberta do étimo subjacente aos contos, ou seja, das raízes do
conto maravilhoso, pode ser realizada por meio do estudo genético de ritos, mitos e outras
formas de pensamento primitivo.
No caso dos contos, as fontes primárias das narrativas folclóricas – quase sempre
baseadas na persistência de rituais – precisam ser pesquisadas a partir de estudos sociais,
políticos, culturais e antropológico. O conto não está necessariamente condicionado ao sistema
social a que pertence. No entanto, o fato mais intrigante, neste intrínseco mundo destas
narrativas de tradição oral, é o poder de encantamento que elas contêm e a sua capacidade de
orientar adultos e crianças em seus questionamentos.
Na literatura, identificar o mito significa refletir sobre a condição humana. Com o passar
do tempo, o mito nos permite compreender as características específicas e próprias nas
diferentes culturas. Os mitos são arquetípicos e simbólicos configurações dinâmicas que
refletem a universalidade de certos comportamentos humanos. Pode-se compreender que os
mitos são configurações arquetípicas e simbólicas que testemunham a universalidade de
determinados comportamentos humanos.
Para Coelho (1985), desde a antiguidade, a literatura de contos, exerce forte magnetismo
entre adultos e crianças das mais variadas culturas, independente do local e da época que estão
sendo contadas. Tal êxito pode ser atribuído ao fato de que essas histórias estão repletas de
imagens primordiais, denominadas por Platão e posteriormente por Jung (2008) de arquétipos.
Na literatura de contos encontramos com frequência os arquétipos de transcendência que
revelam o momento que o herói encontra a vitória. Alguns pesquisadores da área de psicologia
analítica atribuem a função transcendente aqueles arquétipos que expressam a superação, a
travessia, a vitória. Nos contos os arquétipos de transcendência estão sempre presentes
representando a conquista da libertação do herói.
Fazendo uma breve retrospectiva histórica sobre o surgimento dos contos, encontramos
alguns indícios que apontam para os contos dos mágicos — são os mais antigos: devem ter
aparecido por volta de 4 mil a.C. Alguns autores, como Hisada (1998), recorrem aos escritos
de Platão, no qual mulheres maduras contavam suas histórias carregadas de simbolismos para
a educação das crianças. Já no Egito, nos papiros dos irmãos Anúbis e Bata, encontram-se
registros de alguns contos de fadas. De acordo com Schneider existem nos contos, no qual seu
enredo era confeccionado por refinadas matrizes do imaginário dos homens, dotado de uma
117
linguagem carregada de significados capazes de fazer uma ponte entre o consciente e o
inconsciente.
Histórias como Cinderela são numerosas e sem fim. Tem-se a impressão de que uma
nova história/tradução emerge de tempos em tempos e que a cada nova história traz consigo
algumas características únicas. O conto sofre algumas alterações para se adequar às normas
sociais e crenças da região em que a história está sendo recontada. O fato que chama a atenção
e que deve ser estudado com afinco é que a base do conto Cinderela permanece intocável desde
as versões mais antigas até as modernas e atuais. A bela jovem que cresce em um ambiente
hostil, que tem na maior parte do tempo outras mulheres que a detestam, a personagem principal
tem o auxílio de grandes forças sejam elas da natureza ou provenientes de figuras mágicas para
sair sua difícil realidade e esposar-se com um belo príncipe. A figura masculina aparece quase
sempre como o herói que salva Cinderela, ou qualquer que seja seu nome dependendo da época
ou local que a historiador narrada ou escrita. Cinderela, conto popular e muito conhecido em
diversas partes do mundo, passou a ser alvo de críticas do movimento feminista pela mensagem
que é deixada para as jovens mulheres: Mesmo que a circunstâncias da sua vida não sejam as
melhores, não se preocupe, seja gentil, amável e virtuosa que inevitavelmente alguém virá
salvar-te. Mesmo com as fortes críticas, com as mudanças sociais, o progresso da história das
mulheres e da humanidade em geral, a mensagem acima está ancorada no conto e nas versões
mais modernas.
A história da Cinderela moderna está alicerçada nos séculos de narração. Fazendo uma
pesquisa histórica encontramos registros de contos similares na Grécia ( I século antes de
Cristo) encontramos o conto denominado Rhodopis (Grimal, 1993, p.407), na China (século
IX) encontramos o conto denominado Ye Xian, na Corèia (1392-1897) encontramos o conto
denominado Kong-ji e Pat-ji, na Itália (1630) encontramos o conto denominado Cenerentola
(Basille, 1995) , na França (1697) encontramos o conto denominado Cendrillon ou la petite
pantoufle de verre, na Alemanha (1812) encontramos o conto denominado Aschenputtel e
Brasil (século XIX e XX) encontramos algumas traduções do conto denominado Cinderela. É
evidente que existem versões mais populares que outras como podemos citar a obra de Charles
Perrault (1697), e versões mais modernas e amplamente difundidas como é o caso da versão de
Walt Disney.
No I século antes de Cristo, na Grécia antiga43, existe uma história intitulada Rhodopis,
trata-se de um conto que foi fixado por um historiador denominado Strabo, esta é considerada
a versão grega de Cinderela e a mais antiga que se tem acesso.
O topônimo Rhodopes refere-se ao maciço montanhoso dos Balkans, situado entre o sul
da atual Bulgária e o nordeste da atual Grécia. Uma parte dos Rhodopes se encontra sobre
território búlgaro, enquanto que sua outra parcela está sobre território grego. A região serviu de
palco para diferentes fatos históricos e, por extensão, para diferentes composições mitológicas.
Por sua riqueza em cenas referencialmente históricas, se tornou local de culto desde a
Antiguidade, tendo sido cantada em verso e prosa por autores conhecidos, como Estrabão (de
estrábico). As influências culturais na região sobrepõem passado grego, romano, bizantino,
otomano e turco. A presença de rios e florestas fez com que a região adquirisse bases rurais e
produzisse cenas literárias ligadas à vida no campo. O topônimo Rhodopes é de origem trácia.
Rod-opa constitui a base primitiva para nominar um dos rios da região, que se caracteriza, ainda
hoje, por suas águas avermelhadas, resultado da diluição do óxido de ferro, presente nas rochas,
lavadas pelas águas do rio44. Rodprovém da mesma raiz indo européia que em búlgaro (ruda)
43
(Strabo, ed.Rhodopisandahes little Gilded Sandals (an Egyptian tale).
44
Um outro exemplo refere-se à Côte-d’Azur, ou Costa Azul. Os rios que desembocam na Provence, sul da França,
carregam para o oceano uma substância presente nas rochas, chamada de Azur. Essa substância é responsável pelo
118
quer dizer “ferrugem” ou “ruivo”. Em língua alemã rod significa vermelho, em francês, rouille,
roux, quer dizer “ferrugem” ou “ruivo”, assim como em inglês, red e rust. Um dos contos da
Antiguidade que pode, eventualmente, ter oferecido subsídios para a manutenção do ícone
Cinderela está justamente ligado à história de uma jovem, habitante de um dos vales do rio
Rodhopes, ou seja, o Conto da “Menina de Rodhopes”. Assim como no conto Cinderela e no
contoRodhopes, a origem do nome é oriunda de uma característica de cor relacionado a um
elemento externo que impregna o corpo da personagem, no caso as cinzas e óxido de ferro, que
sujam a personagem caracterizando-a.
Estrabão, ou Estrabo (63 a.C/64 a.C – 24 d.C), foi um historiador, geógrafo e filósofo
grego, autor de um tratado composto de 17 livros de geografia. Estrabão também registrou fatos
ligados à história e à descrição de povos conhecidos à sua época. Os romanos tinham o hábito
de apelidar pessoas por suas marcas físicas. Assim, o indivíduo que claudicava (mancava), era
chamado de Cláudio45. Estrabão era um codinome usado para se referir a pessoas com
problemas nos globos oculares, entre os quais incluíam-se os estrábicos (ou vesgos). Em um de
seus escritos (cf. Geographica, Livro 17, 1.33) o grego Estrabão, registrou o conto conhecido
por Menina Rhodopis. Como a palavra remete à cor vermelha da oxidação. Estrabão descreveu
a garota por seus traços, em sendo nativa do vale do Rhodope, tinha a face rubra.
Num determinado dia (Upononce a time...), a garota ruiva, serva de uma rica Senhora, foi
se banhar nas águas do rio Rhodope quando de repente apareceu uma águia que roubou uma de
suas sandálias. O pássaro voou com o calçado até Memphis. Ao sobrevoar um povoado, passou
sobre um Rei, em pleno exercício de suas funções. Então, ao vento, o pássaro deixou cair a
sandália em queda livre. A peça de calçado foi parar diretamente sobre a manta do Rei. O jovem
e belo monarca ficou altamente intrigado e também excitado com aquela linda peça caída do
céu. Encantado com o formato e aparência da peça e com o modo inusitado como o objeto
chegou até ele, atingindo sua túnica, não deixou de imaginar que algo extraordinário iria
acontecer. A dona do outro par deveria ser uma mulher muito especial. A partir de então, passou
a enviar seus comandados às mais recônditas regiões do reino em busca da dona daquela do
outro par daquela sandália. Depois de muito buscar, a garota foi encontrada na cidade de
Náucratis e imediatamente conduzida à Memphis, vindo a se tornar a esposa do jovem Rei.
Pela grande importância de Estrabão no campo da Geografia, a ante Menina de Rodhopis,
que viria a se tornar a Rainha de Náucratis, provavelmente contribuiu para reforçar o mito e
atualizar o ícone Cinderela. Sua representação se tornou inclusive uma espécie de metáfora em
ciências como a Paleontologia, a Arqueologia, a Geografia, entre outras. Kimble (2008), em
sua obra intitulada A geografia na Idade Média, por exemplo, considera a própria Geografia
como “a Cinderela das ciências”, uma vez que a partir dessa metáfora pedagógica é possível
aludir ao trabalho de reconstituição de diferentes passagens da história, ou recompor diferentes
objetos. A metáfora consiste em considerar que a partir de um fragmento extraído determinada
entidade seria possível projetar como seria seu conjunto, ou seja, a totalidade do qual foi sacado.
Em outras palavras, a partir da relação <parte_de>, a integridade de uma dada composição
poderia ser calculada a partir de um fragmento conhecido, subtraído do desconhecido.
Naturalmente, uma parte de algo que a compunha e que denunciava suas particularidades. Um
simples pedaço de algo viabilizaria delinear tanto sua totalidade quando suas funções nas
circunscrições em que exerce – ou que exerceu – suas funcionalidades. Um belo calçado
pressupõe seu par, assim como as qualidades dos pés que as vestem. Belos pés, induzem uma
bela garota, igualmente, projetam um belo cônjuge.
tom fortemente azulado (anil) das águas do mar. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico-Etimológico da
Língua Portuguesa
45
José Pedro Machado, Dicionário Onomástico-Etimológico da Língua Portuguesa
119
De forma similar, a menção a relação com componentes de outros campos do saber,
permitem, através de análise do discurso, encontrar a entidade aludida a partir do exame dos
modos de enunciação. Neste sentido, a Garota de Rhodopis, ou a Rainha de Neucrátis, enquanto
personagem de um conto no qual A Bela, inicialmente opacizada sob a roupagem de uma serva,
é desvelada por um jovem Rei ao mesmo tempo encantado: (i) e pela beleza do calçado e
suposição do conjunto; (ii) e pelo misterioso fato a ser desvelado.
Fato e objetos insólitos desembocam na composição da intriga e inquietação próprios ao
sobrenatural, levando a crer que na catalisação das fórmulas se encontraria a excentricidade e a
“sorte grande”. E de fato, eis o desenlace, tal como o pote de outro que se encontra na ponta do
arco-íris, à espera de um bem-aventurado. Como nos fatos da vida, estatisticamente, a seleção
de um ganhador, em um imenso universo. E apesar da ínfima possibilidade, quase todos um dia
acreditam ou acreditaram. A isto, Jung chama de arquétipo.
Tais relações me permitem relacionar a história registrada por Estrabão com o ícone
Cinderela. Mesmo que os detalhes que compõem a versão mais moderna de Cinderela – como
é o caso da versão de Perrault – ultrapassem a simples questão de <encontrar alguém através
de uma peça de calçado que se perdeu, mas cujas propriedades dizem algo sobre o todo...>,
torna-se bastante singular considerar que o registro de Estrabão pode ter sido um, entre tantos
outros registros escritos e orais (desconhecidos) –que viriam a inspirar poeticamente não
somente artistas do universo literário como Charles Perrault em suas fixações escritas e
publicadas, mas também estudiosos da Geografia, da Arqueologia, da Paleontologia, e afins46,
cujos escopos visam reconstituições a partir de rastros pistas e fragmentos.
Conclusão
Referências
46
Nos anos 1960 surgiram diferentes abordagens científicas que passaram a considerar que rastros, pistas e
fragmentos são peças-chave para o estudo da gênese de objetos cuja recomposição é complexa. Em termos de
Estudos da Tradução, cabe citar a Crítica Genética, bastante adequada para o estudo de manuscritos.
120
CANTOM, Kátia. Conversa de Madame – Perrault nos salões franceses. São Paulo: SPEd.
DCL, 2005.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo, SP: Contexto, 2006.
DARNON Robert . O grande massacre dos gatos. Tradução Sonia Coutinho. 2. Ed. [S.l]:
Ed. Graal. 1986.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. [S.l]: Ed. Bertrand Brasil,
1993.
JUNG, Gustav Carl. O homem e seus símbolos. Tradução Maria Lúcia Pinho. São Paulo: Ed.
Nova Fronteira, 2008.
PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé avec des moralité. Paris:
Ed. Chez C. Barbin, 1697.
PERRAULT, Charles Les contes de fées de Charles Perrault. Paris : Ed. Alphonse
Desesserts, 1845.
Resumo: O presente trabalho é uma parte da pesquisa de doutoramento intitulada: Cinderelas- interpretação e
análise na tradução dos traços arquetípicos e culturais. A literatura de contos, seja ela na modalidade oral ou escrita,
exerce, desde os tempos mais remotos, um forte entusiasmo sobre adultos e crianças das mais diferentes culturas,
ultrapassando fronteiras e diferentes períodos históricos. O conto Cinderela foi reescrito e traduzido para centenas
de línguas, no entanto experimentou imenso sucesso, sobretudo a partir de sua fixação por Charles Perrault, em
data 1697. As bases arquetípicas do conto são numerosas e variadas, fazendo com que novas histórias surjam de
tempos em tempos. Cada nova versão traz consigo características singulares culturalmente marcadas. As diferentes
variações do mesmo conto sofrem alterações para se adequarem às normas socioculturais, históricas, políticas e
crenças dos lugares em que são reformuladas. Vale ressaltar que as estruturas narrativas profundas permaneceram
intocadas nas versões traduzidas, tal como os percursos clássicos apontados por Propp (2002), Vogler (2015) e
Campbell (1995). A presente pesquisa objetiva fazer uma retrospectiva histórica, com o intuito de encontrar a
primeira obra literária que inspirou o conto Cinderela.
Palavras-chave: Cinderela. Tradução. Contos.
Abstract: This paper is a part of the PhD research entitled Cinderella’s: Interpretation and Analysis in the
translation of the archetypal and cultural traits. The literature of tales, whether in the oral or written mode exerts
121
from the most distant times, strong enthusiasm about adults and children of the most diverse cultures, crossing
borders and different historical periods. The Cinderella’s tale was rewritten and translated into hundreds of
languages, however it experience dimmense success, especially from its fixation by Charles Perrault in 1697. The
archetypal bases ofthe tale are numerousand varied, causing new stories to emerge from time to time. Each new
version brings with it unique features culturally marked. The different variations of the same tale suffer changes
to suit the socio-cultural, historical, political and beliefs of the places where they are reformulated. It is worth
pointing out that the profound narrative structures remained un touched in the translated versions, such as classical
pathways pointed out by Propp (2002), Vogler (2015) and Campbell (1995). This research aims to do a historical
retrospective, in order to find the first literary work that inspired the Cinderella’s tale.
Keywords: Cinderella. Translation. Tales.
122
Capítulo 12
Simone Forti é uma coreógrafa e bailarina nascida em Florença na Itália. Aos 21 anos se
mudou para os Estados Unidos para estudar dança. O treinamento tardio de Forti acabou
influenciando sua obra, pois, muitas de suas coreografias não utilizavam uma técnica especifica
e recusavam a ideia de virtuosidade. Segundo Meredith Morse (2016), o corpo “natural” de
Forti se relacionava com a complexidade do movimento aleatório. Esse corpo era produto da
psicologia original corporal e da impulsividade que era revelada através das provocações de
suas Dance Constructions. Ao propor uma forma de fazer dança através de corpos mais livres,
Forti conseguia se desprender de técnicas e desconstruir padrões por meio de sua dança. A
artista investigava movimentações abstratas e complexas através desses corpos relaxados e
abertos para explorações criativas. Essa ideia se torna presente nas suas obras.
Um dos marcos da carreira de Simone Forti foi a sua participação no Judson Dance
Theatre, um círculo artístico que produziu mais de 300 peças de dança em quatro anos de
existência. A importância desse grupo foi significativa para a construção do movimento da
dança contemporânea. Para comprovar a relevância desse grupo para dança pode-se citar
algumas ideias compartilhadas pelos artistas desse círculo:
47
Judson artists shared an anarchic commitment to upending the governing rules of concert dance. They distrusted
physical virtuosity for its own sake and instead utilized tasks, chance, and everyday movement forms (sometimes
performed by non-dancers) in an effort to bring dance closer to everyday life. They discarded other elements they
felt only added artifice to stage […].
123
absorveu as ideias de Halprin na sua carreira. Para exemplificar, podemos citar o uso da
improvisação. Segundo Ramsay Burt:
48
It was while improvising with Halprin that Forti discovered the sensitivity that she wanted dancers and audiences
to discover in the kinds of movement qualities she created through these conceptual structures in her dance
constructions.
124
padrões que as incluíam em uma contínua dinâmica para tocarem juntas.49
(FORTI, 1997, p.15, tradução nossa).
Esse fragmento do livro não está se referindo a nenhuma criação dançante da artista. O
foco desse excerto é apenas a recuperação da experiência vivida pela coreógrafa em um festival
de música. Mesmo não estando falando de dança, nessa parte é possível perceber sua relação
com o corpo em movimento e com a música. Através dessas poucas palavras é nítida a sua ideia
de consciência corporal e como a sua massa orgânica se relaciona com elementos externos.
Através da leitura de Handbook in Motion: An Account of an Ongoing Personal Discourse and
Its Manifestations in Dance, então, conhece-se as inspirações, as ideias e os olhares de Simone
Forti para a dança contemporânea. Uma obra dessas é interessante para investigar a dança
através da visão do seu próprio criador. Ao analisar esse trabalho, conhece-se mais amplamente
a visão da artista para a sua obra e isso pode enriquecer a pesquisa sobre seus trabalhos.
Além de apontar o seu livro de origem, cabe aqui a análise do texto que é objeto desse
estudo. O escrito foi nomeado Huddle e tem por objetivo descrever a coreografia de mesmo
nome. Mas, além de registrar a dança, essas palavras tentam transmitir a dança. Como se o texto
fosse capaz de comunicar a dança que é uma arte multissensorial. Por meio do estudo desse
escrito, é possível identificar instrumentos da dança. Para exemplificar, pode-se pensar em dois
elementos: minimalismo e a interação com o público.
A presença de princípios da estética minimalista no texto é perceptível através do seguinte
trecho: “Ele se levanta, calmamente se movendo entre o topo do amontoado até a parte de baixo
do outro lado.”50 (FORTI, 1997, p.59, tradução nossa). O minimalismo está aqui presente por
causa da descrição do único gesto da coreografia: escalar o amontoado de pessoas. A estética
minimalista está presente também no uso as regras para a realização desse movimento. De
acordo com Spivey (2009), a confiança de Forti em utilizar suportes e regras pré-determinadas
para criar coreografias corresponde ao desejo entre os artistas minimalistas de encontrar um
método objetivo e sistemático, e o interesse dela pela percepção espacial e a pela experiência
do espectador antecipam interpretações utilizadas para explicar o minimalismo. É nítida, a forte
presença da estética minimalista na construção das danças de Forti. No texto Huddle, essa ideia
se torna aparente porque as suas palavras refletem como essa estética é utilizada na coreografia
de mesmo nome.
Por outro lado, ao utilizar instrumentos do minimalismo em sua obra, a coreógrafa
italiana está aproximando seus trabalhos dos elementos das artes visuais. Segundo Burt:
Um dos aspectos intrigantes das primeiras peças que Forti criou em 1960 e
1961 era suas conexões com as artes visuais. Isso não era apenas porque ela
estava casada com o artista visual Robert Morris, mas porque ela se enxergava
como uma pintora de arte abstrata antes de começar a trabalhar com Halprin.51
(BURT, 2006, p.57, tradução nossa).
49
I was running and dancing up and down the field, approaching diferents musics that I would hear more loudly
as other music faded into the distance and still other became closer. The different musics were already somewhat
integrated because they were within earshot of each other. If you were in one small group you’d manly hear your
own music. But you’d also hear the music coming from down the hill, or from across a small canyon. And as I
danced, my body was enough on some kind of automatic pilot that all these music came together, somehow merged
into a pattern that included them all in a dynamic, rolling kind of falling together.
50
He pulls himself up, calmly moves across the top of the huddle, and down the other side.
51
One of the intriguing aspects of the early pieces that Forti created in 1960 and 1961 was their connection with
the visual arts. This is not only because she was at the time married to the visual artist Robert Morris but because
she had initially seen herself as an abstract painter before she started work with Halprin. (BURT, p.57).
125
Antes de se dedicar a dança, Forti era pintora, consequentemente, as artes visuais
estiveram presentes algumas de suas criações. Ao falarmos de Huddle e a presença da estética
minimalista é importante citar as Dance Cosntructions idealizadas pela coreógrafa italiana.
Dance Constructions (construções na dança) é o nome criado por Forti para um ciclo de criações
onde as coreografias são idealizadas como se fossem esculturas minimalistas. Para pensarmos
sobre esses experimentos, podemos citar a ideia de Burt (2006), que aponta que o primeiro
concerto de Forti foi em maio de 1961, como uma parte de um conjunto de apresentações
organizadas por La Monte Young no loft de Yoko Ono. As apresentações de Forti foram
denominadas: Five Dance Constructions and Some Other Things. Forti pensava essas peças
como Dance Constructions porque o público podia andar envolto dessas coreografias e essas
criações eram organizadas como se fossem esculturas em uma galeria de arte. Em outras
palavras, as Dance Constructions de Simone Forti foram inovadoras ideias para construir
coreografias porque as movimentações eram desenvolvidas como esculturas e se aproximavam
das artes visuais.
Portanto, através da dança, Forti manteve a sua essência como artista visual que se
preocupava com as questões visuais e estéticas de suas obras. A coreografia Huddle faz parte
desse ciclo de peças e pode-se pensar através da análise do escrito Huddle, como Forti
conseguiu manter essas questões através da linguagem verbal. Por exemplo, ao descrever a
estrutura da sua coreografia que se assemelha a uma escultura corporal, a artista cita: “Eles
formam um amontoado dobrado para frente, tornozelos um pouco dobrados, braços em torno
dos ombros e da cintura de cada um, criando uma forte estrutura52 (FORTI, 1997, p.59, tradução
nossa)”. Por meio desse fragmento, a coreógrafa tenta descrever os “desenhos” formados pelos
bailarinos ao se unirem para a edificação da escultura corporal. Além da preocupação com os
movimentos, a importância da construção da escultura e as indicações visuais se tornam nítidas
nessas palavras do texto verbal. Por outro lado, podemos apontar mais alguns detalhes sobre as
Dance Constructions de Simone Forti:
Através das Dance Constructions, Forti conseguia trabalhar as suas ideias sobre dança e
sobre o corpo em movimento, como por exemplo, o uso de corpos relaxados e preparados para
se “comunicar” com outros corpos. Ideias importantes para o desenvolvimento das peças de
dança como esculturas minimalistas.
52
The form a hudldle by bending forwards, knees a little bent, arms around wach other’s shoulders and waist,
meshing as a Strong structure.
53
While Forti’s dance constructions relied upon awkwardness or stress [...], dance constructions such as Huddle
and Platforms (1961), and Forti’s first Works in the New York context, See-Saw and Rollers, also suggested the
necessity of a more fluid responsiveness, one that might well improve with practice, like the elegantly timed routine
of the boy pivoting on the floor to meet his tossed ball. [...] The movement and timing of the climbing performer
on Huddle would be a function of both her body’s relationship to gravity as she ascended and descended the
“huddle”, and of the gradual shifts and gentle allowances of the performers supporting her traversal.
126
Outro instrumento da dança presente no texto Huddle é a interação com o público: “A
peça também foi criada de uma forma que, assim que acaba, casa um dos performers encontra
seis outras pessoas da plateia para montar uma segunda geração de amontoados [...].”54 (FORTI,
1997, p. 59, tradução nossa). Através desse trecho, percebe-se a ousadia da coreógrafa em
convidar o seu público para participar de sua performance. Segundo Sally Banes (1994), nos
anos 60, uma nova modalidade de dança estava surgindo e experimentando com os limites do
que poderia ser considerado como dança. O Judson dance theatre, por exemplo, era um centro
para jovens artistas de diversas áreas que redefinam as formas de se fazer dança.
Esses talentos construíam coreografias através de gestos do cotidiano, alteravam a noção
de técnica, também desenvolviam novas relações com o público e com o espaço de
apresentação. Logo, a relação do público com o performer da dança acabou se alterando e
audiência que era passiva acabou se tornando parte do próprio experimento artístico. Essa ideia
não era utilizada apenas for Simone Forti, mas por muitos dos artistas do Judson Dance Theatre.
Em Huddle, o público não apenas assiste à apresentação, mas a audiência é convidada a
participar do experimento artístico. Desconstruindo a ideia de um público passivo que apenas
observa a coreografia de dança.
Além de apontar elementos da dança contemporânea presentes no texto Huddle, é
interessante discutir como os instrumentos dessa arte cênica conseguiram se transformar em
linguagem verbal. Para pensarmos nos elementos da dança que foram transmitidos no texto
podemos considerar a dança como uma linguagem. Segundo Hanna (1987), a dança pode ser
pensada como um meio comunicativo que utiliza o corpo como ferramenta para transmissão de
ideias que não seriam efetivamente transmitidas pela linguagem verbal.
A linguagem da dança apresenta, portanto, características diferentes da linguagem verbal,
o que acaba dificuldade a transmissão do texto corporal para o verbal. É quase impossível
transmitir todas as características da dança através das limitações dos signos verbais. Para
exemplificar, podem-se imaginar as imagens presentes nas coreografias, os ritmos e as
movimentações que são pontos extremamente complicados de serem transformados em textos.
Ampliando essa discussão, é possível pensar na capacidade comunicativa dessa linguagem do
corpo:
54
The piece has also been formed in such way that, as it ended, each of the performers found six other people from
audience to get a second-generation huddle going [...].
55
Nonverbal communication is used where there is a lack of verbal coding, for example, in the case of shapes,
emotions, and interpersonal atitudes. Dance is a effective communication médium- it functions as a
multidimensional phenomenon codifying experience and capturing the sensory modalities: the sight of performers
moving in time and space, the sounds of physical movement, the smell of physical exertion, the feeling of
kinesthetic activity or empathy, the touch of body to body and/or performing area, and the proxemic sense.
(HANNA, 1987, p.25- 26).
127
transforma em um conjunto de palavras que tentam reproduzir a dança, mas acaba limitando
toda a sua vivência.
O texto Huddle, por exemplo, se propõe a descrever a coreografia de mesmo nome, mas
esse escrito descreve apenas uma ideia coreográfica. O leitor pode ter uma ideia dessa criação,
mas esse sujeito não consegue vivenciar essa coreografia. Para a melhor discussão dessa ideia,
temos o trecho onde Simone Forti tenta supor os movimentos que serão realizados por seus
dançarinos: “Uma pessoa se desprende e começa a escalar a parte externa do amontoado, talvez
colocando um pé na coxa de alguém, uma mão na curvatura do pescoço de alguém, e outra mão
no braço de alguém56”. (FORTI, 1997, p.59, tradução nossa). Nesse fragmento, a coreógrafa
tenta imaginar como os corpos dos bailarinos iriam se deslocar para a concretização da
movimentação principal que é a escalada do amontoado de pessoas.
A artista italiana tenta transpor para o texto verbal a subjetividade da improvisação
presentes nesses gestuais. Como se fosse possível imaginar como os corpos iriam se portar
durante o desenvolvimento dessas movimentações. Esses instrumentos indeterminados acabam
dificultando a transformação da dança em outra materialidade.
A dança só foi possível de ser transmitida para a linguagem verbal através do processo de
tradução intersemiótica. Para Jakobson (1959), a tradução intersemiótica ou transmutação
consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. Em
outras palavras, essa metodologia tradutória analisa como a linguagem verbal pode se
transformar em outros meios não-verbais. No caso estudado, o processo é de tradução da
linguagem não-verbal da dança para a verbal.
Pensando no texto de Huddle cabe o questionamento se é possível a transmissão de todos
os elementos da dança para um texto verbal, ou seja, quais os elementos da dança são
transformados em linguagem verbal, ao mesmo tempo que se pensa em quais instrumentos
dançantes não conseguiram se encaixar no sistema de signos verbal. Para ampliar a discussão
sobre tradução Intersemiótica, podemos utilizar as ideias de Julio Plaza:
56
One person detaches and begins to climb up the outside of the huddle, perhaps placing a foot on someone’s
thigh, a hand in the crook of someone’s neck, and another hand on someone’s arm.
128
Apesar das dificuldades em transmitir a dança para a linguagem verbal, Forti consegue
idealizar um registro de sua coreografia. Mesmo que o texto não se transforme em dança, alguns
pontos coreográficos conseguem ser materializados através do texto escrito. Para exemplificar,
o uso de elementos da estética minimalista e a interação com o público, instrumentos da dança
que são aparentes na leitura do texto. O que faz com que os leitores do texto tenham uma ideia
da coreografia, mesmo sem visualizá-la pessoalmente.
A leitura e a análise de Huddle também auxiliam na descoberta das visões sobre dança
contemporânea de Simone Forti. Por mais que a coreógrafa italiana procure se concentrar
apenas na transmissão da coreografia para as palavras, a sua opinião sobre aquele trabalho acaba
aparecendo. Como se o texto fosse uma fotografia da coreografia realizada através do ângulo
escolhido por Forti. Tanto que esse texto foi criado duas décadas após a edificação das
movimentações de dança.
Desta forma, mesmo que indiretamente, a visão da artista perante a coreografia se torna
aparente, principalmente nas suas suposições sobre o tempo correto para toda a movimentação,
ideia visível através do seguinte trecho: “A duração deve ser adequada para o público observar,
andar envolta e ter uma sensação de seu comportamento. Dez minutos são suficientes57 (FORTI,
1997, p. 59, tradução nossa).” Dessa forma, ao supor um tempo, percebe-se a ideia da
coreógrafa para aqueles gestuais que não devem ser longos, mas suficientes para o
desenvolvimento de suas ideias. Consequentemente, o texto Huddle se torna uma ferramenta
para se compreender e vivenciar um pouco da arte dançante de Simone Forti.
Referências
BURT, Ramsay. Judson Dance Theater: Performative traces. Nova Iorque: Routledge, 2006
ELEEY, Peter. Trisha Brown: so that the audience does not know whether I have stopped
dancing. Minneapolis: Walker Art Center, 2008.
MORSE, Meredith. Soft is Fast: Simone Forti in the 1960s and After. Londres: The Mit
Press, 2016.
57
The duration should be adequate for the viewers to observe it, walk around it, get a feel of it in behaviour. Ten
Minutes is good.
129
SPIVEY, Virginia B. The Minimal Presence of Simone Forti. Woman's Art Journal, v. 30,
n. 1. 2009. p. 11-18.
Resumo: Esse artigo tem por objetivo analisar o texto Huddle escrito pela coreógrafa Simone Forti (1997), no
qual a artista descreve a coreografia de mesmo nome. Portanto, as palavras desse texto pretendem idealizar os
instrumentos dançantes. Como se esses verbetes substituíssem a experiência dos bailarinos e do seu público. Pode-
se pensar essa obra não apenas como um texto, mas como uma coreografia de dança traduzida para a linguagem
verbal. Utilizando o conceito de tradução intersemiótica de Jakobson (1959), é possível pensar nas dificuldades da
transposição da coreografia de Forti para os verbetes, pois, alguns elementos da linguagem da dança para o texto
podem se perder durante a operação tradutória.
Palavras-chave: Dança Contemporânea. Tradução Intersemiótica. Simone Forti.
Abstract: This paper aims to analyze Huddle written by the choreographer Simone Forti (1997), in which the artist
describes the choreography of the same title. Therefore, the words of this text are intended to idealize the dancing
instruments. As if these words could replace the experience of the dancers and their audience. We can think of this
work not only as a text, but as a choreography translated into verbal language. Using the concept of Intersemiotic
Translation by Jakobson (1959), it is possible to think about the difficulties of transposing Forti's choreography to
words because some elements of the dance language text could be lost during the translation.
Keywords: Contemporary Dance. Intersemiotic Translation. Simone Forti
130
Capítulo 13
Embora o escritor irlandês James Joyce (1882-1941) tenha uma posição de destaque no
cânone literário atual, sendo considerado como um dos nomes mais importantes do modernismo
de língua inglesa, sua trajetória como escritor foi marcada pela rejeição. A princípio, a rejeição
partiu dos editores, depois, com a publicação de obras mais vanguardistas, ela se estendeu aos
leitores. A maioria dos livros de Joyce passou por um processo lento e extenuante até o
momento da publicação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Dubliners (1914), seu livro de
contos. Foi enviado para uma editora a primeira vez em 1905, mas só conseguiu ser publicado
em 1914, ano de início da Primeira Guerra Mundial, o que fez Joyce suspeitar que seu livro não
seria lido. Ter suas obras lidas e traduzidas, a tradução garantiria um número maior de leitores,
era uma das principais preocupações de Joyce, que voltou a ter a mesma inquietação em 1939,
ano de publicação do Finngenas Wake, apenas dois meses antes da eclosão da Segunda Guerra
Mundial.
A constante recusa, cada vez que Joyce enviava uma nova obra aos editores, trazia
consigo diferentes argumentos para justificar as razões pelas quais as obras eram julgadas
inadequadas para a publicação. No caso de Dubliners, as razões divergiam consideravelmente
daquelas que os editores poderiam alegar, por exemplo, no caso de Ulysses ou Finnegans Wake.
Dubliners foi escrito em um período que a Irlanda estava passando por um momento de
renascimento literário para tentar reconstruir a ideia de uma identidade nacional, uma vez que
ainda estava enfrentando um longo processo de colonização. Esse período foi marcado pelo
engajamento de muitos escritores e poetas. Através do resgate de histórias presentes no folclore
irlandês e nas lendas celtas, os escritores/as e intelectuais passaram a exaltar tudo que fosse
nacional, inclusive houve um movimento de resgate da língua irlandesa, que apesar de ainda
ser falada em algumas regiões, estava perdendo espaço cada vez mais, sendo frequentemente
considerada uma língua de pessoas incultas. O resgate, tanto da língua quanto das lendas,
possuía o objetivo de reestabelecer o orgulho nacional, e fazer com que fosse fomentada a ideia
de uma identidade nacional consolidada, para que a partir daí, fosse possível se pensar em ações
mais organizadas e concretas rumo à independência.
Tendo esse objetivo em mente, muitos professores, poetas, escritores, escritoras e
intelectuais se engajaram nesse projeto, inclusive, contemporâneos de Joyce, como Yeats, Lady
Gregory, Synge, Pearse, entre outros. Nesse período também é inaugurado o célebre Abbey
theatre, onde eram encenadas peças de cunho nacionalista. Através da escrita de Dubliners,
Joyce vai contra a corrente do que estava sendo realizado na Irlanda nesse período. Se o
renascimento literário irlandês tinha o intuído de mostrar a parte gloriosa da identidade
irlandesa, os grandes feitos e a bravura dos heróis presentes no folclore, Joyce apresentava,
através dos personagens do seu livro de contos, o contraponto dessa ideia romantizada de
identidade nacional. Entretanto, apesar de ser possível apontar algumas contradições presentes
no movimento, é inegável a sua colaboração para uma série de ações que posteriormente
levaram à independência. O próprio Levante de Páscoa de 1916, foi articulado e posto em
prática por muitos dos participantes das ações que envolviam a construção do renascimento
131
literário irlandês. No entanto, Joyce tinha o intuito de falar sobre a identidade irlandesa através
de outro ponto de vista, revelando a “paralisia” e o “lixo” presentes na sociedade irlandesa
daquela época.
O livro de contos busca, entre outras coisas, tocar em algumas questões sensíveis da
sociedade irlandesa. Richard Ellmann traz essa noção pelas próprias palavras de Joyce,
presentes em sua biografia. Joyce acusava o governo britânico de ser responsável por trazer as
piores mazelas para a ilha: “A Irlanda é um país excelente. É chamado de Ilha Esmeralda. O
governo metropolitano, depois de séculos de estrangulamento, o deixou destruído. Agora é um
campo aberto. O governo semeou fome, sífilis, superstição e alcoolismo lá; surgiram puritanos,
jesuítas e fanáticos (ELLMANN, 1959, p. 2017, tradução minha)58. Os problemas citados por
Joyce, que tiveram sua origem através do processo de colonização, são trazidos para uma obra
que se vale da noção de epifania, teoria que visava a criação de uma nova forma de percepção,
para vislumbrar alguma possibilidade de mudança.
Dubliners é uma obra que ainda não apresenta as inovações linguísticas como aquelas
presentes em obras posteriores, porém, traz consigo a materialização, ainda que de forma
inicial, da sua teoria da epifania. Foi no manuscrito intitulado Stephen Hero(1944), escrito no
início de sua carreira, mas apenas publicado postumamente, que Joyce desenvolveu a sua teoria
da epifania. O livro que traz o registro da elaboração da sua teoria estética foi lançado ao fogo
pelo próprio autor, após enfrentar a vigésima recusa por parte dos editores. Parcialmente
resgatado do fogo por Nora Joyce, o manuscrito foi posteriormente doado à Silvia Beach,
editora da Shakespeare and Company. O ímpeto de destruir o longo manuscrito, que depois
entraria parcialmente em A Portrait of the Artist as a Young Man, era oriundo da frustração
decorrente das constantes recusas dos editores. Esse lamentável episódio é mencionado na
introdução de Stephen Hero, manuscrito que, embora tenha tido muitas de suas páginas
destruídas pelo fogo, foi publicado após a morte de Joyce. Sem a publicação de Stephen Hero,
o acesso a elaboração da teoria da epifania, que ocupa um lugar central na obra de Joyce, não
seria possível. Suas ideias inovadoras sobre a teoria da epifania são aplicadas tanto em
Dubliners quanto em Finnegans Wake, obras escolhidas como foco de discussão principal desse
ensaio. Embora a noção da epifania joyciana apresente novas possibilidades para os
personagens que se encontram presos nos mecanismos paralisadores, presentes na sociedade
irlandesa, dentro da perspectiva literária que Joyce nos apresenta, os editores irlandeses não se
sentiam à vontade para apresentar um contraponto à imagem idealizada que frequentemente
estava sendo veiculada pelos participantes do renascimento literário irlandês.
Além de escrever na contra corrente do momento que a Irlanda estava vivenciando, no
que se refere às criações literárias, Joyce recusa se filiar a esse tipo de movimento. Ele
acreditava que o artista não deveria submeter a sua produção literária a outras motivações que
não a da própria arte, pensamento que levou muitos críticos a apontarem Joyce como apolítico,
uma vez que se recusava a fazer parte do movimento literário irlandês e ainda fazia críticas a
aqueles que agora pareciam submeter suas qualidades artísticas uma causa supostamente menos
nobre. No entanto, estudos posteriores argumentam que Joyce consegue apontar as falhas do
movimento, e que sua ação política, por assim dizer, ou seu ato de revolta contra a colonização,
apresenta-se através da sua produção literária, principalmente no Finnegans Wake, onde Joyce
consegue destruir a língua do colonizador, tirando completamente a noção de superioridade da
língua inglesa no momento em que, através de jogos de palavras e trocadilhos com outras
línguas, faz com que essa língua não se mostre superior a nenhuma outra.
58
Ireland is a great country. It is called the Emerald Isle. The metropolitan government, after centuries of strangling
it, has laid it waste. It's now an untilled field. The government sowed hunger, syphilis, superstition, and alcoholism
there; puritans, Jesuits, and bigots have sprung up.
132
Vale mencionar as implicações das constantes recusas dos editores na própria produção
literária de Joyce, uma vez que ele menciona esse fato em sua obra. Existe, inclusive, um célebre
poema intitulado “Gas from a Burner” (1912) que foi escrito após um dos encontros
malsucedidos com seu editor na Irlanda. Neste poema, que foi escrito no verso do contrato em
sua volta para a Itália, Joyce expressa seu forte desagrado pela espécie de censura que sua obra
estava enfrentando. No longo poema em uma estrofe apenas, contendo noventa e oito versos,
Joyce expressa à hipocrisia que estava contida nas constantes queixas por parte dos editores,
que constantemente reivindicavam a exclusão de certos trechos dos seus contos, e por vezes,
exigia a retirada de contos inteiros, sob a alegação de que continuam um vocabulário
inadequado, ou que o tema era demasiado escandaloso. Joyce se utiliza desse momento, no qual
enfrenta mais uma vez a rejeição, para fazer uma crítica mordaz à Irlanda, terra que segundo
ele, rejeitava seus artistas.
A crítica em relação a Irlanda, no que se refere a falta de acolhimento dos seus filhos,
aparece a partir do verso treze do poema, Joyce escreve: “But I owe a duty to Ireland:/ I hold
her honour in my hand, / This lovely land that always sent / Her writers to banishment / And in
a spirit of Irish fun / Betrayed her own leaders one by one” (JOYCE, 1992, p. 107). Joyce cria
um paralelo da rejeição que sofria por parte das editoras irlandesas com a rejeição ou abandono
dos líderes que lutaram pela independência da Irlanda. Nos versos citados, Joyce se refere
principalmente a Parnell, um dos líderes nacionalista que levou a Irlanda mais perto da
independência do que ela jamais havia chegado. No entanto, por conta de um escândalo que
dizia respeito a sua vida pessoal, Parnell possuía um relacionamento com uma mulher casada,
Catherine O’Shea, a população irlandesa e muitos políticos recusaram a comando do líder
nacionalista. Vale sublinhar que na Irlanda moralista dessa época, o divórcio era proibido. Na
sequência do poema, Joyce fala, ironicamente, pela voz do editor, fazendo uma lista de vários
livros que já haviam sido publicados anteriormente. Livros que, sob a mesma alegação,
poderiam ser considerados impróprios para a publicação, expondo, dessa maneira, uma série de
contradições dentro do âmbito editorial irlandês.
Em decorrência das inúmeras recusas, Joyce passa a tentar publicar suas obras no
continente. Em relação aos problemas enfrentados após a publicação, será destacado aqui o
Finnegans Wake. Também seria possível tratar dos problemas de recepção de Ulysses, que
inclusive foi censurado nos Estados Unidos, fazendo com que a obra fosse levada a julgamento
pelo tribunal norte-americano. No entanto, a escolha de abordar o processo de publicação e
recepção do Finnegans Wake se justifica na medida em que este consegue tocar em alguns dos
problemas enfrentados pelo Ulysses, e ainda apresentar mais alguns que são seus.
Finnegans Wake é provavelmente a obra mais vanguardista da literatura ocidental, e nem
sempre as editoras estiveram preparadas para esse tipo de escrita. Após uma série de recusas
por parte de outros editores, Joyce contou com a completa aceitação da sua criação literária,
primeiro por Silvia Beach, na publicação de Ulysses, e em seguida, para a publicação de
Finnegans Wake, contou com o apoio de Eugene Jolas, poeta e crítico americano, editor da
revista de vanguarda intitulada Transition, que tinha sua sede em Paris. A revista foi fundada
em 1927 e já em sua primeira edição, contou com um capítulo do Work in Progress, nome
escolhido por Joyce durante todo seu processo de escrita para designar o Finnegans Wake.
Joyce deixou o título em segredo até a publicação integral da obra. Antes disso, o livro foi
publicado de forma serializada pela revista Transition, quase que em sua íntegra, dezenove
capítulos, perfazendo noventa por cento da obra.
Embora a publicação de Work in Progress tenha sido feita em uma revista de vanguarda,
a reação de grande parte dos leitores foi de reprovação. Inclusive pessoas próximas a Joyce,
que admiravam seu trabalho e o consideravam detentor de um distinto talento, como era o caso
do seu irmão Stanislaus Joyce e Harriet Shaw Weaver, sua mecenas, graças a quem Joyce, por
muitos anos, teve tranquilidade financeira para produzir sua obra. Mesmo estas pessoas que
133
estavam sempre tão envolvidas com a sua produção literária, não conseguiam entender o intuito
daquele novo trabalho. Ao ler trechos da obra, alegavam se perder em um mar de trocadilhos.
Joyce se mostrava ofendido com a falta de compreensão dos leitores, o que gerou uma série de
conflitos. Em alguns casos, as desavenças foram capazes de provocar um lamentável
afastamento, principalmente entre Joyce e Weaver. No entanto, Joyce contou com alguns
entusiastas do Finnegans Wake, que escreviam ensaios elogiosos sobre sua última obra. Foi o
caso, por exemplo, de Samuel Beckett, que escreveu um texto intitulado: “Dante… Bruno.
Vico… Joyce”, publicado em 1929, onde estabeleceu uma complexa argumentação a respeito
das influências que ajudaram a construir a estrutura que sustentou o último livro de Joyce. No
ensaio, Beckett traz considerações sobre a Scienza Nuova de Giambatistta Vico, na qual a teoria
da progressão circular da sociedade é apresentada, embora, de acordo com Beckett, o germe
dessa teoria já estivesse presente na teoria dos contrários identificáveis proposta pelo também
italiano Giordano Bruno, Vico elabora e aplica a teoria de maneira inovadora.
Não foi apenas Beckett que se dedicou a escrever um texto para tentar demonstrar o
quanto aquela nova obra, tão impenetrável e perturbadora para muitos leitores, era genial e
revolucionária. Outros ensaios, com objetivos similares, também apareceram na revista
Transition, a medida que o Work in Progress estava sendo publicado. Em seguida, todos os
artigos foram recolhidos e publicados em um livro que, ganhou um título no mínimo curioso,
escolhido pelo próprio Joyce: Our Exagmination Round his Factification for Incamination of
Work in Progress (1929). Edição que contou com a colaboração de escritores como Marcel
Brion, Frank Budgen, Stuart Gilbert, Eugene Jolas, Victor Llona, Robert McAlmon, Thomas
McGreevy, Elliot Paul, John Rodker, Robert Sage, William Carlos Williams. Eugene Jolas,
editor da revista e que assina o ensaio que tem como título “The Revolution of Language and
James Joyce”, inicia sua discussão colocando a palavra como o real problema metafísico da
atualidade. E aponta que os novos artistas da palavra reconhecem a autonomia da linguagem, e
estão conscientes da universalidade que a linguagem adquiriu no século XX. Essa
universalidade seria a tentativa possível de acabar com as noções de tempo e espaço dentro da
obra. Justamente o que propunha o trabalho de Joyce e que estava sendo incompreendido pelos
seus contemporâneos. Jolas argumenta em seu ensaio que Joyce é uma dessas pessoas que está
desmantelando a tradição e subvertendo o significado fixo das palavras.
Jolas traz ainda os diversos epítetos que foram atribuídos a Joyce, demonstrando que a
recepção da obra não foi a mais acolhedora, mas que essa visão dos leitores desagradados, não
passava de um grande equívoco. Uma falta de compressão do leitor que estava acostumado com
uma linguagem engessada. Jolas demonstra tanto o seu reconhecimento da escrita
revolucionária de Joyce, quanto os tipos de comentários que estavam circulando sobre a obra:
59
James Joyce, in his new work published serially in transition, has given a body blow to the traditionalists. As he
subverts the orthodox meaning of words, the upholders of the norm are seized by panic, and all those who regard
the English language as a static thing, sacrosanct in its position, and dogmatically defended by a crumbling
hierarchy of philologists and pedagogues, are afraid. Epithets such as "the book is a nightmare," "disgusting,
134
A dessacralização da língua inglesa que Joyce propõe no Finnegans Wake, ou a própria
“destruição” da língua, como parece ser o caso, não agradou a todos os leitores. Na edição de
junho de 1930 da revista Transition, Jolas comenta o que significa publicar e apoiar Joyce e o
Work in Progress em sua revista. Para ele, tratava-se de uma espécie de insurreição como ele
comenta na introdução da edição:
distorted rubbish," “a red— nosed comedian," "senile decay of the intellect,” "utterly bad," etc., have been poured
on the author and his work
60
By publishing and defending Work in Progress, the new creation of James Joyce, transition established a basis
for a literary insurrection that included a radically new conception of the process of the consciousness and of the
development of language. Like the second Faust, Work in Progress will, I am sure, continue to baffle the non-
visionary minds, although the immensity of its plan and execution as well as the magnificence of its humor and
cosmic imagination cannot fail to interest those who do not see in creative expression merely a means for
communication.
61
And if you don’t understand it, Ladies and Gentlemen, it is because you are too decadent to receive it. You are
not satisfied unless form is so strictly divorced from content that you can comprehend the one almost without
bothering to read the other.
135
espécie de mapa, mais no estilo de um quebra-cabeça, para que aos poucos, o aventureiro leitor
possa se aproximar de novas descobertas. No que diz respeito ao campo da tradução, a obra
joyceana se mostra uma fonte inesgotável de inspiração para a realização de novos trabalhos,
uma vez que frequentemente leva os tradutores a enfrentarem grandes desafios, mas não sem a
recompensa de um grande aprendizado.
Considerações finais
Esse ensaio buscou demonstrar que apesar de James Joyce estar em um lugar de destaque
no cânone da literatura ocidental, tendo sua obra traduzida para as mais diversas línguas, o
processo inicial de publicação de sua obra passou por diversos problemas. Primeiro, foram
destacadas algumas questões a respeito da publicação de Dubliners, sua primeira obra em prosa
publicada, que passou por certa censura, já que os editores constantemente criticavam o
conteúdo dos contos. Em seguida, foi destacada a última obra de Joyce, Finnegans Wake, que
além de ser recusada pelos editores, foi recebida pelos leitores de maneira muito hostil. Restou
aos admiradores de Joyce o trabalho de quase “propaganda”, publicando artigos onde
procuravam demonstrar a genialidade do escritor irlandês. Ainda nesses artigos, que eram
publicados na mesma revista onde o Finnegans Wake foi serializado, os autores apontavam os
leitores como culpados por não compreender a obra, uma vez que estes estavam acostumados
a dissociar a forma do conteúdo. A partir da junção da forma e do conteúdo, estabelecida por
Joyce em Finnegans Wake, foi necessário que um novo leitor também nascesse. Um leitor que
conseguisse se desvencilhar das normas tradicionais que regiam o processo de leitura. O que
conseguimos notar com a quantidade de trabalhos críticos sobre a obra de Joyce, e o
reconhecimento de sua importância, principalmente para o modernismo de língua inglesa, que
teria sido inaugurado por ele, é que os leitores e leitoras, pelo menos em um número
considerável, se levado em consideração o vasto trabalho de crítica, finalmente conseguiram
quebrar os paradigmas das concepções tradicionais de leitura. Assim, não só o número de
leitores cresceu, mas também o número de traduções, para as mais diversas línguas.
Referências
BECKETT, Samuel. Dante… Bruno. Vico… Joyce. In: BECKETT, Samuel; et al. Our
Exagmination Round his Factification for Incamination of Work in Progress. Paris:
Faber & Faber, 1958.
BRION, Marcel. The Idea of Time in the Work of James Joyce. In: BECKETT, Samuel; et al.
Our Exagmination Round his Factification for Incamination of Work in Progress. Paris:
Faber & Faber, 1958.
ELLMANN, Richard. James Joyce. New York: Oxford University Press, 1982.
JOLAS, Eugene, The Revolution of Language and James Joyce. In: BECKETT, Samuel; et al.
Our Exagmination Round his Factification for Incamination of Work in Progress. Paris:
Faber & Faber, 1958.
______. Literature and the New Man. Transition. Paris, v. 1, n. 2, p. 13-19. 1930.
136
______. Finnegans Wake. Dublin: Wordsworth Classics, 2012 [1939].
Resumo: Este ensaio tem o objetivo de apresentar e discutir os problemas enfrentados pelo escritor irlandês James
Joyce na divulgação de sua obra. A questão da publicação da obra Joyceana, que envolveu uma série de recusas
por parte dos editores, começou desde o início de sua carreira, com as inúmeras tentativas de publicar Dubliners,
seu livro de contos que já estava pronto em 1905, mas que só foi publicado em 1914, após uma série de exaustivas
negociações com editores. Problemas semelhantes e ainda mais graves também aconteceram com as tentativas de
publicação de Ulysses (1921), obra que atualmente é considerada pela crítica como uma das mais emblemáticas
do modernismo, e Finnegans Wake (1939), que uma vez iniciado o processo de publicação de forma serializada,
ainda como Work in Progress, foi duramente criticado até mesmo por seus amigos e parentes, sem mencionar os
editores, que recusaram publicar a última obra do escritor que se tornaria um dos mais aclamados da literatura
ocidental. A obra joyceana também ocupa um lugar de destaque no campo da tradução, não apenas com a tradução
de sua produção literária para as mais diversas línguas, mas também pelos inúmeros trabalhos de crítica de
tradução, que se voltam principalmente para as obra consideradas por alguns críticos como “intraduzíveis”. Assim,
esse ensaio propõe apresentar um pequeno panorama das questões mencionadas acima.
Palavras-chave: James Joyce. Dubliners. Finnegans Wake.
Abstract: This essay aims to present and discuss the problems faced by the Irish writer James Joyce in the
dissemination of his work. The troubles related to the publication of his work, which involved a series of refusals
on the part of the editors, started at the beginning of his career with his attempts to publish Dubliners, his collection
of short stories which was ready in 1905, but only published in 1914, after a series of exhaustive negotiations with
publishers. Similar and even more serious problems took place with his attempts to publish Ulysses (1921), a work
that is currently regarded by critics as one of the most emblematic of Modernism, and Finnegans Wake (1939),
which, during his serialization, still known as Work in Progress, was harshly criticized even by his friends and
relatives, not to mention the editors, who refused to publish the last work of the writer that would become one of
the most acclaimed writers of Western literature. Joyce’s work also occupies a prominent place in the field of
translation, not only with the translation of its literary production for many languages, but also by the numerous
works of translation criticism, which focus mainly on works considered by some critics as “untranslatable”. Thus,
this essay proposes to present a small panorama of the issues mentioned above.
Keywords: James Joyce. Dubliners. Finnegans Wake.
137
138
Capítulo 14
Introdução
Literatura Argelina
62
BOURAOUI, Nina. Garçon manqué. Paris: Éditions Stock, 2000.
139
jeune fille d'Algérie (1947), foram as primeiras escritoras a se emancipar desta tendência.
Todavia, a literatura francesa da Argélia começa a se modernizar depois da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945) e sobretudo depois do massacre de maio de 194563.
No artigo Écritures francophones de l’histoire algérienne (2008) Catherine Milkovitch-
Rioux, mestre de conferência em literatura contemporânea de língua francesa da Universidade
Blaise Pascal – Clermont-Ferrand II, afirma que, há relatos entre a produção literária em língua
francesa e o contexto político:
A escritora Yasmina Bouraoui nasceu em Rennes, França. Ainda pequena, foi morar em
Argel, onde permaneceu até os seus 14 anos. Seu pai é argelino de Petite Kabylie e sua mãe,
francesa, nasceu na Bretagne. Nina Bouraoui e sua irmã, portanto, tem um duplo pertencimento
cultural (franco-argelino) e são consideradas mestiças tanto pelos franceses, quanto pelos
argelinos. (BIERRY, 2011).
Numa entrevista feita pelo jornalista Tewfik Hakem, da emissora A plus d'un titre, France
Culture (2011), a escritora Nina Bouraoui afirma que as suas obras têm por tema o amor, a
violência, o desejo, a identidade estrangeira, a identidade sexual, a sexualidade e a morte. A
autora ressalta ainda que sua narrativa tem como pano de fundo paisagens, cores e sensações
ligadas à nostalgia e à magia da infância passada na Argélia.
O duplo pertencimento cultural é o tema central do romance Garçon manqué (2000), no
qual a escritora mescla realidade e ficção. Particularmente neste romance a identidade
problemática da protagonista Nina é o fio condutor do enredo, num contexto em que os
argelinos a consideram francesa, enquanto os franceses a vêem como argelina. A este conflito
de identidade de nacionalidade se junta um outro: sua identidade de menina ou menino. Desta
forma, a autora estabelece um paralelo entre a identidade de gênero e a identidade cultural, o
que leva a personagem principal (Nina) a se perguntar se é argelina ou francesa, homem ou
mulher.
Conforme entrevista do jornalista Tewfik Hakem (2011), a escritora Nina Bouraoui viveu
na Argélia de 1967 a 1981, período de pós-independência em que vivencia relatos do processo
63
“Le 8 mai 1945 signifie la fin du nazisme. Il correspond aussi à l’un des moments les plus sanglants de l’histoire
nationale. La répression colonialiste venait d’y faire ses premiers accrocs face à une population farouchement
déterminée à se promouvoir aux nobles idéaux de paix et d’indépendance. Le 8 mai 1945 fut un mardi pas comme
les autres en Algérie. Les gens massacrés ne l’étaient pas pour diversité d’avis, mais à cause d’un idéal. La liberté”.
Fonte: http://rebellyon.info/8-Mai-1945-Massacre-de-Setif.html último acesso em 29 de novembro de 2017.
140
político e social que transforma o país a partir de 1962. Este momento histórico marcou a
personalidade da escritora e consequentemente os seus textos de ficção.
Dois fatos históricos tiveram forte influência no desenvolvimento de uma crise de
identidade de gênero descrita no romance. O primeiro, ocorrido em 8 de maio de 1945, é o
massacre do povo argelino pelas tropas francesas. O segundo, em 1962, é marcado pelo
morticínio de milhares de mulheres argelinas pela OAS (Organização da Armada Secreta
Francesa), degoladas à luz do dia pelos soldados colonialistas contrários à independência do
país africano.
Garçon manqué (2000) é uma das obras de Nina Bouraoui, que, segundo Chamkhi's
(2008), a escritora retornou aos seus 7 anos. Trata-se de um romance autobiográfico de 196
páginas dividido em quatro capítulos (Alger, Rennes, Tivoli, Amine). O romance é escrito em
primeira pessoa, com frases curtas e fragmentadas. Há dez personagens: Nina (personagem
principal e narradora), Amine (amigo de Nina), Maryvonne (mãe), Rachid (pai), Jami (irmã),
Rabiâ e Bachir (avós argelinos), os avós franceses, Marion (amiga francesa).
O primeiro capítulo se desenvolve em Argel. Nina está sobre a praia de Chenoua com seu
amigo Amine. Nesta parte, a autora descreve o mar de Argel, as ondas, o sal, o deserto, o odor,
as montanhas e o clima quente da região. Nina e Amine são crianças de origem argelina e
francesa e por isso elas são consideradas mestiças. Com a descrição do cenário argelino, a
autora utiliza elementos da guerra como canhões, tanques e armas. Na primeira parte do
romance, se coloca a questão da identidade estrangeira: ‘Je reste entre les deux pays. Je reste
entre deux identités’. (BOURAOUI, 2000, p. 26)64 e na segunda parte do romance a identidade
estrangeira e de gênero. “J'ai quatre problèmes : Française ? Algérienne ? Fille ? Garçon ?”
(BOURAOUI, 2000, p. 167). A personagem Nina diz que ela e seu amigo Amine não são nem
argelinos e nem franceses: eles são estrangeiros. A ambiguidade sexual de Nina aparece quando
seu pai Rachid cria um personagem masculino para Nina chamado Brio. Para ele, somente os
homens têm chance de sobreviver na Argélia.
Na segunda parte do romance, a família se muda para Rennes. Nina sente falta de seu
amigo Amine por conta disso adoece. A protagonista tem febre alta e nenhum médico pode
compreender o que se passa com ela. Sua avó materna decide levar Nina para as proximidades
do mar. Lá, ela se reestabelece e se acostuma com a vida na França.
A terceira parte se desenvolve numa cidade da Itália chamada Tivoli. Neste capítulo, a
personagem Nina esquece da Argélia e começa a descobrir uma nova identidade. O quarto
capítulo e último é uma carta de adeus à Amine.
A análise de Garçon manqué (2000), Nina Bouraoui, foi organizada em dois tempos. Na
primeira parte, proponho uma visão geral do romance à partir das cinco categorias estabelecidas
pela professora e pesquisadora Cândida Vilares Gancho na obra Como analisar narrativas
(2006), a saber: intriga, narrador, espaço, personagens e o tempo. A segunda parte é consagrada
por questões identitárias, à partir dos teóricos Amin Maalouf, Erik Hobsbawm, e ainda Julia
Kristeva.
Garçon manqué (2000) conta a história de uma família composta por uma mãe, de
nacionalidade francesa, Maryvonne, e um pai de nacionalidade argelina, Rachid, e suas duas
64
Passagens da obra Garçon manqué (2000).
141
filhas mestiças, Yasmina et Jasmine. A família Bouraoui vive na Argélia, mas todos os anos as
duas filhas passam o verão com seus avós em Rennes na França.
Em Garçon manqué (2000) a narradora-personagem aparece no texto na primeira pessoa
do singular e participa diretamente da intriga. O campo de visão da narradora-personagem,
Nina, está limitado por que ela não é nem onipresente e nem onisciente.
Na Argélia o espaço é de grandes rochedos (monte Chenoua), do mar (a praia de Chenoua,
de Moretti, de Zeralda), o deserto do Atlas, a areia e o calor sufocante, as planícieis de Mitidja,
as laranjeiras e a floresta de pinheiros. O ambiente é de guerra, tenso, hostil, e perigoso. No
segundo capítulo, na França, o tempo é de prazer, da abundância, e do amor. Há também a
atmosfera do mar de Saint-Malo, de Rennes e depois Paris, Tivoli e Roma. Em Tivoli reina a
paz, a tranquilidade, a aceitação e a assimilação da cultura ocidental.
O conflito que regi a intriga é a identidade problemática de Nina, pois os argelinos a
consideram como francesa e os franceses a vêem como uma “pieds-noirs de la deuxième
génération” (BOURAOUI, 2000, p. 74). A protagonista-narradora se sente francesa na Argélia
e argelina na França.
A este conflito se junta um outro: aquele de sua identidade de menina ou menino, como
deixa entender o título do romance. Se em uma sociedade que dá pouco espaço às mulheres, tal
como a sociedade argelina dos anos 1960-1970, Nina se vê obrigada a adotar comportamentos
masculinos, a fim de desfrutar de uma certa independência, durante a sua estada em Rennes,
sua avó materna a encoraja de ser feminina: “C’est votre petit-fils ? Dans ces cas-là je ne regarde
pas ma grand-mère. Je sais qu’elle n’aime pas cette ambigüité-là” (BOURAOUI, 2000, p. 183-
184).
Em Argel, Amine, um amigo de Yasmina, a ajuda a se disfarçar de menino. O pai de Nina
também a estimula a agir como um garoto, com a intenção de fazê-la escapar da repressão da
sociedade argelina. Ele chega a chamá-la pelo nome masculino, Brio:
Nina compara os seus atributos físicos aos de sua mãe em busca de sua identidade. “Je
deviens une étrangère par ma mère. Par sa seule présence à mes côtés. Par ses cheveux blonds,
ses yeux bleus, sa peau blanche” (BOUAROUI, 2000, p. 14).
Numa entrevista feita por Tewfik Hakem (2011) a escritora Nina Bouraoui diz que Argel
não é mais a mesma cidade que aquela de 1967 e nem de 2000, data da publicação da obra, pois
Argel foi inteiramente reconstruída. No romance, Argel é o resultado da memória e do
imaginário da autora criança. O romance compreende o período dos anos de 1960 até os anos
de 1990. A guerra da independência da Argélia, os tanques blindados (BOUAROUI, 2000, p.
9), os soldados (BOURAOUI, 2000, p. 18), as agressões aos argelinos (BOURAOUI, 2000, p.
33, 104, 134) e as hostilidades aos franceses (BOUAROUI, 2000, p. 82-83) ocupam um lugar
importante na narrativa.
Embora os títulos dos três primeiros capítulos retornem as cidades (Argel, Rennes, Tivoli
et Amine) ao longo do romance o tempo não segue uma linearidade cronológica. O tempo da
obra apresenta muitos episódios prolépticos e analépticos.
142
Os flashbacks introduzem sempre episódios dolorosos da história argelina, que seja uma
catastrofe natural ou atrocidades humanas: “Le 10 octobre 1980, la terre tremble en Algérie”
(BOUAROUI, 2000, p. 85).
Mas eles transmitem também agradáveis lembranças da infância, na casa dos avós em
Rennes: “Demain je regarderai vos quenotte. Les dents de la chance, Nina” (BOUAROUI,
2000, p. 110). “J’y fête mes anniversaires. Jusqu’à l’âge de dix-huit ans” (BOUAROUI, 2000,
p. 150).
Assim como os flashbacks, a alternância dos tempos verbais merece ser destacada. No
prólogo, quando Nina fala de Argel, a autora utiliza o tempo verbal presente. Contrariamente,
tudo o que diz respeito a França se expressa no futuro: “Je cours sur la plage du Chenoua”
(BOURAOUI, 2000, p. 9). “Je longe les vages […]” (BOURAOUI, 2000, p. 9). “Je tombe sur
le sable” (BOURAOUI, 2000, p. 9). “Qui serai-je en France ? […]. Quels seront leurs regards
?” (BOURAOUI, 2000, p. 22). “Nous ne serons jamais comme les autres” (BOURAOUI, 2000,
p. 25). No segundo capítulo, quando Nina abandona Argel em direção à Rennes para se juntar
aos seus avós maternos, a narradora continua a utilizar o presente para falar de Argel e o futuro
para falar de Rennes: “Je quitte Alger […]” (BOURAOUI, 2000, p. 95). “On sera les seules
filles d’Alger […]” (BOURAOUI, 2000, p. 97). Depois, pouco a pouco, ela emprega o tempo
no presente para evocar a identidade francesa que começa a germinar no momento em que a
protagonista se distancia da Argélia. “Je me sens très loin de l’Algérie soudain” (BOURAOUI,
2000, p. 113). “Je profite de ce dépaysement. Je me sens libre” (BOURAOUI, 2000, p. 113).
Nos dois últimos capítulos, a narradora utiliza o passado para falar da Argélia: “C’est
arrivé à Tivoli” (BOURAOUI, 2000, p. 189). “Nous avons oublié Alger” (BOURAOUI, 2000,
p. 190). “Je n’étais plus algérienne” (BOURAOUI, 2000, p. 190). O passado continua no último
capítulo, em que Nina escreve uma carta de adeus para Amine para dizer que está feliz: “À mon
retour de Rome, tu as changé” (BOURAOUI, 2000, p. 195). “Tu ne m’as pas reconnue”
(BOURAOUI, 2000, p. 195). “Ta mère m’a trouvée belle” (BOURAOUI, 2000, p. 195). “Mon
corps avait changé dans cet été étrange et romain” (BOURAOUI, 2000, p. 195). Nina s’est enfin
retrouvée. Segundo Julia Kristeva “le bonheur semble l’emporter malgré tout, parce que
quelque chose a été définitivement dépassé : c’est un bonheur de l’arrachement, de la course,
espace d’un infini promis” (KRISTEVA, 1988, p. 13).
Em Garçon manqué, Nina mostra o conflito de identidade nas seguintes passagens: “Je
ne sais plus qui je suis au jardin de Maurepas. Une fille ? Un garçon ? L’arrière-petite-fille de
Marie ? La petite-fille de Rabiâ ? L’enfant de Méré ? Le fils de Rachid ? Qui ? La Française ?
65
“L'Organisation de l'armée secrète OAS, appelée aussi organisation armée secrète, était une organisation
politico-militaire clandestine française créée le 11 février 1961, hostile à l'indépendance de l'Algérie. Elle était une
manifestation des plus radicales d'une partie de l'armée et des civils qui voulaient que l'Algérie reste française,
alors que le général de Gaulle se ralliait de plus en plus manifestement au processus d'indépendance. À la fois en
lutte contre les algériens favorables à l'indépendance et contre l'armée française, l'OAS a cherché à légitimer sa
violence aveugle par la violence du FLN et en faisant un parallèle avec la lutte armée menée par la Résistance”.
Disponível em: <http://www.toupie.org/Dictionnaire/Sigles_oa.htm> último acesso 27 de novembro de 2017.
143
L’Algérienne ? L’Algéro-Française ? De quel côté de la barrière ?” (BOURAOUI, 2000, p.
145).
Embora ela resida na Argélia e tenha estudado árabe durante um longo tempo, Nina não
domina bem o idioma. “Je ne parle pas arabe. Ma voix dit les lettres de l’alphabet, â, bâ, tâ, thâ
puis s’efface. C’est une voix affamée. C’est une voix étrangère à la langue qu’elle émet. Je dis
sans compreendre” (BOURAOUI, 2000, p. 13).
Apesar disso, no início do romance, sua identidade é mais argelina do que francesa: “La
France est en dehors de moi. Je m’échappe. Je reviens toujours en Algérie. Je sais mon lieu, ses
ruines romaines. Ma solitude est ici, avec ces pierres. La France reste blanche et impossible.
Elle porte ma naissance puis mon départ” (BOURAOUI, 2000, p. 24).
No entanto, o contexto argelino é extremamente hostil as mulheres. Quando Rachid se
ausenta para fazer viagens de negócios, sua mulher e suas duas filhas se fecham no apartamento,
pois os guerrilheiros da OAS tocam na porta, a fim de provocar pânico na população. “[…] mon
pére est économiste. Il voyage beaucoup” (BOURAOUI, 2000, p. 109). “Les hommes de l’OAS
reviennent à chaque départ de mon pére. Trois femmes seules dans l’appartement. Trois
mémoires. Trois fragilités” (BOURAOUI, 2000, p. 66).
O episódio do massacre das mulheres pela OAS está associada ao nascimento de Jamille,
nascida em 1962 : “Ma soeur naît en 1962. Au temps du crime. L’année du massacre des
femmes algériennes de la Résidence” (BOURAOUI, 2000, p. 62). “Vivre avec l’image de ces
femmes égorgées” (BOURAOUI, 2000, p. 63).
Em Argel, Nina foi agredida com um saco de urina quando saia da sua casa (BOURAOUI,
2000, p. 83). Para reduzir a angústia e o pânico de viver num país em guerra, a personagem-
narradora crê que se ela fosse um homem poderia proteger sua mãe e sua irmã. Com o intuito
de escapar a esta repressão, ela nega seu corpo e seu comportamento de mulher:
Non, je ne veux pas me marier. Non, je ne laisserai pas mes cheveux longs.
Non, je ne marcherai pas comme une fille. Non, je ne suis pas française. Je
deviens algérien. Yahya l’Algérie. Oui, je veux encore les chaususures de mon
père. Celles qui traversent l’Amérique. Celles qui nous séparent toujours
(BOURAOUI, 2000, p. 53).
Ela decide então se comportar como um homem a fim de “venger [s]on corps fragile”
(BOURAOUI, 2000, p. 48) : “Amine et moi remplançons nos pères. Là, nous sommes deux
vrais Algériens”. (BOURAOUI, 2000, p. 15).
Je prends un autre prénom, Ahmed. Je jette mes robes. Je coupe mes cheveux.
Je me fais disparaître. J’intègre le pays des hommes. Je suis effrontée. Je
soutiens leur regard. Je vole leurs manières. J’apprends vite. Je casse ma voix.
[…]. J’ajuste mon maillot, une éponge bleue. Je marche les jambes ouvertes.
Je suis fascine (BOURAOUI, 2000, p. 17).
Quando Nina chega à França em Rennes, ela esconde o seu lado masculino: “Ma façon
de marcher steve-mcqueen. Une scoliose, docteur ? Non, L’Affaire Thomas Crown. Steve sans
Faye. L’esprit de Steve. Le désir de Steve. Sur un corps de fille” (BOURAOUI, 2000, p. 126).
Dans cet été français je cache profondément Ahmed. Je ne réponds pas aux
voix qui disent: petit, jeune homme, monsieur-dame. C’est votre petit-fils ?
Dans ces cas-là je ne regarde pas ma grand-mère. Je sais qu’elle n’aime pas
cette ambiguïté-là. Mes vêtements. Ma façon de marcher. Ma coupe de
cheveux. Mais le plus grave n’est pas là. Tous les enfants se ressemblent. Et
se confondent. L’important c’est cette volonté de cacher. De dissimuler. De
144
se transformer. De se fuir. D’être hors la loi. Et hors de soi (BOURAOUI,
2000, p. 183-184).
No segundo capítulo, quando Nina viaja para Rennes, ela é confrontada por uma outra
cultura. À partir disso, se sente estranha por comparar suas características físicas aos dos
franceses.
A protagonista tenta se acostumar ao seu segundo país na casa dos seus avós maternos.
Lá ela conhece o prazer, a riqueza e a paz que ela não possuía em Argel. Na França Nina usufrui
de uma facilidade e de uma tranquilidade desconhecida na Argélia (BOURAOUI, 2000, p. 106,
120). “C’est l’inverse de l’Algérie. C’est ma seconde terre. C’est ma double vie. C’est l’endroit
à pénétrer. Ici je dois être française. M’intégrer. Me sentir bien. Me faire des amis”
(BOURAOUI, 2000, p. 164). “Je m’habitue à la vie française. À cette tranquillité. À la
découverte de Marion. À son visage. À ses yeux bleus. À sa voix. À ses promesses”
(BOURAOUI, 2000, p. 173).
A dupla identidade, segundo Kristeva é “la marque ambigüe d’une cicatrice”
(KRISTEVA, 1998, p. 13). Segundo a entrevista realizada pelo historiador inglês Eric
Hobsbawm com o jornalista italiano Antonio Polito O novo século - entrevista a Antonio Polito
(2010) quando há um confrontamento dos modelos e valores tradicionais, há também uma perda
de identidade que causa um sentimento doloroso de tristeza deixando o estrangeiro sem chão.
Quando a personagem Nina sai dos dois ambientes, Argel-Rennes, e passa um tempo na
Itália, ela começa a descobrir e admirar as particularidades do corpo feminino e a se deslumbrar
com ela mesma.
Como sublinha Kristeva, o reencontro do Outro permite repensar: o Outro está ligado a
tomada de consciência da sua própria diferença. Ela fala da condição dos estrangeiros de aceitar
a alteridade: “[…] l’étranger nous habite : il est la face cachée de notre identité […]. […]
l’étranger commence lorque surgit la conscience de ma différence et s’achève lorsque nous
145
nous reconnaissons tous étrangers, rebelles aux liens et aux communautés” (KRISTEVA, 1994,
p. 9).
Nesta perspectiva, é necessário salientar que quando Nina abandona a França e parte para
a Itália, ela começa a aceitar e a apreciar seu corpo feminino.
Quando a personagem principal Nina retorna à Rennes tendo enfim reinventado a sua
identidade e um novo corpo, ela pode amar qualquer um: “Voilà, j’ai rencontré un garçon. Il
est étudiant à la faculté. Il est algérien. Enfin, français mulsuman, comme ils disent. Je l’aime.
Je veux l’épouser” (BOURAOUI, 2000, p. 113-114).
Enfim, a identidade fragmentada causa grande sofrimento em pessoas que pertencem a
mais de duas regiões e duas ou mais culturas. Segundo as palavras do escritor libanês Amin
Maalouf,
Amin Maalouf (1998) fala da sua experiência quando abandonou o Líbano e passou a
viver na França. O escritor diz que encontrar a identidade de tal ou tal cultura não conduz a uma
resposta uma vez que a mistura das culturas é o que nos permite ser único:
Depuis que j’ai quitté le Liban en 1976 pour m’installer en France, que de fois
m’a-t-on demandé, avec les meilleures intentions du monde, si je me sentais
‘plutôt français’ ou ‘plutôt libanais’. Je réponds invariablement : ‘L’un et
l’autre !’ Non par quelque souci d’équilibre ou d’équité, mais parce qu’en
répondant différemment, je mentirais. Ce qui fait que je suis moi-même et pas
un autre, c’est que je suis ainsi à la lisière de deux pays, de deux ou trois
langues, de plusieurs traditions culturelles. C’est précisément cela qui définit
mon identité. Serais-je plus authentique si je m’amputais d’une partie de moi-
même ? (MAALOUF, 1998, p. 7).
Conclusão
A partir de teóricos como Amin Maalouf (Les Identités meurtrières, 1998), Eric
Hobsbawn (O novo século – entrevista a Antonio Polito, 2010), Julia Kristeva (Étrangers à
nous-mêmes, 1988) e Cândida Vilares Gancho (Como analisar narrativas, 2006), constatou-se
no percurso de Nina, a personagem-narradora (argelina-francesa), o desconforto característico
daqueles que têm um duplo pertencimento cultural, que se sentem estrangeiros na terra onde
nasceram e habitam.
Escritores com dupla identidade que vivem em países em situação de guerra civil
costumam reinventar uma nova identidade, como é o caso, constata-se, de Nina Bouraoui, no
seu incomum e celebrado romance Garçon manqué (2000).
146
Outro aspecto analisado no romance é com relação à alternância dos tempos verbais. A
narradora alterna os tempos verbais. No início, o presente remete o leitor a Argel, enquanto o
futuro é usado para se referir à França.
Foi possível ver, igualmente, que sua ambiguidade sexual está ligada ao espaço da
narrativa. Enquanto permanece em Argel, Nina se comporta como um garoto, numa tentativa
de fazer frente à situação de guerra em que as mulheres são submetidas à repressão. Em Rennes,
ela deve ser uma garota porque sua avó materna a encoraja a tal comportamento. Mas é somente
quando está na Itália, ou seja, quando sai dessa dicotomia Argel-Rennes, que Nina encontra a
atmosfera apropriada para que ela possa reinventar um novo corpo e desfragmentar sua
identidade sexual.
Além de investigarmos a questão da ambiguidade sexual que está ligada ao espaço do
romance. Pretende-se examinar os fatos históricos de 8 de maio de 1945 e de 1962, o morticínio
de milhares de mulheres argelinas pela OAS (Organização da Armada Secreta Francesa) para
enfim concluirmos com a tradução comentada de Garçon manqué (2000) para o português do
Brasil que está sendo desenvolvida nesta tese.
Referências
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<http://www.magazine-litteraire.com/content/critique-fiction/article?id=19641>. Acesso em:
16 jun. 2012.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Editora Ática,
2006.
HAKEM, Tewfik. Littérature: Nina Bouraoui et Kaouther Adimi. France Culture, Paris, 26
mai. 2011. Disponível em: <http://www.franceculture.fr/emission-a-plus-d-un-titre-litterature-
nina-bouraoui-essais-sylvie-brieu-2011-05-26.html>. Acesso em: 28 nov. 2017.
HOBSBAWN, Eric. O novo século – entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
8 MAI 1945 : Massacre de Sétif! Rebellyon.info. Lyon, 2017. Mémoire. Disponível em:
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147
MILKOVITCH-RIOUX, Catherine. Écritures francophones de l’histoire algérienne.
Université Blaise Pascal - Clermont-Ferrand II, 2008. Disponível em:
<http://www.unil.ch/webdav/site/fra/shared/Formation_continue/Programme_Milkovitch.pd>.
Acesso em: 29 nov. 2017.
SARI, Mohamed. Dix escales dans la littérature algérienne moderne. Festival International
de la Litterature et du livre de jeunesse, 2012. Disponível em:
<https://www.echoroukonline.com/ara/articles/132398.html>. Acesso em: 29 nov. 201.
Resumo: A pesquisa, em andamento no Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, tem como objetivo
elaborar a tradução comentada da obra Garçon manqué (2000) da escritora franco-argelina Nina Bouraoui. Para
isso, um dos requisitos é pesquisar de maneira ampla as influências sociais, políticas, ideológicas e culturais que
insidem no romance. Analisaremos, a partir daí, os seguintes sistemas, balisados na Teoria dos Polissistemas, de
Even-Zohar: (a) contexto político e histórico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945); (b) processo de
colonização e descolonização da Argélia; (c) história, política e cultura da região do Magreb; (d) as questões
editoriais sugeridas por Gérard Genette; (e) o movimento literário Negritude. Além disso, para a reescritura em
língua portuguesa, estão previstas quatro etapas de trabalho. São elas: (i) investigar elementos da narrativa: intriga,
narrador, espaço, personagens, tempo, ritmo, estilo da autora; (ii) pesquisar os tempos verbais nos quatro capítulos
da obra (Alger, Rennes, Tivoli, Amine); (iii) delimitar o leitor brasileiro das obras de Nina Bouraoui; (iv) estudar a
intertextualidade de Garçon manqué (2000): (1) na tradução para o inglês Tomboy (2007), (2) na premiada obra
La Voyeuse Interdite (1991) e (3) nos textos de Marguerite Duras; (v) relacionar o texto de partida e de chegada
ao contexto sócio-histórico do Brasil. Transversalmente, abordaremos ainda questões identitárias decorrentes da
análise da personagem principal, Nina, dentro do gênero de autoficção.
Palavras-chave: Tradução comentada. Nina Bouraoui. Garçon Manqué. Teoria dos Polissistemas. Identidades.
Literatura Francófona.
Abstract: The research, underway in the Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, aims to elaborate
the commented translation of Garçon Manqué (2000) by Nina Bouraoui writer french-algerian. For this, one of
the requirements is to search extensively for the social, political, ideological and cultural influences that insinuate
the novel. We will analyze the following systems, blasted in the Theory of Polysystems, from Even-Zohar: (a) the
political and historical context of World War II (1939-1945); (b) the process of colonization and decolonization
of Algeria; (c) history, politics and culture of the Maghreb region; (d) the editorial issues suggested by Gérard
Genette; (e) the literary movement Negritude. In addition, for rewriting in portuguese, four stages of work are
planned. They are: (i) to investigate elements of the narrative: intrigue, narrator, space, characters, time, rhythm,
author's style; (ii) researching the verbal tenses in the four chapters of the work (Alger, Rennes, Tivoli, Amine);
(iii) delimit the brazilian reader of the works of Nina Bouraoui; (iv) to study the intertextuality of Garçon manqué
(2000): (1) in the english translation Tomboy (2007), (2) in the award-winning work La Voyeuse Interdite (1991)
and (3) in the texts by Marguerite Duras; (v) relate the text of departure and arrival to the socio-historical context
of Brazil. Transversal, we will also address identity issues arising from the analysis of the main character, Nina,
within the genre of autofiction.
Keywords: Commented Translation. Nina Bouraoui. Garçon manqué. Theory of Polysystems. Identities. French
Literature.
148
Capítulo 15
Introdução
A história dos Estudos da Tradução abarca, em grande parte, a história das traduções da
Bíblia, pois este foi um dos fatores que impulsionou as reflexões quanto ao processo tradutório
e ao papel do tradutor. Tal livro, que perpassou pelos milênios e gerações, é reconhecido por
grande parcela da população mundial como livro sagrado, e tem servido como base de fé e de
conduta moral dentro do cristianismo.
White (2007) explica que antes que os primeiros escritos fossem registrados, as histórias
bíblicas foram passadas oralmente pelas gerações, até que os primeiros registros fossem feitos
com Moisés – autor dos cinco primeiros livros da Bíblia. Ademais, percebe-se, a partir do
trabalho de Delisle e Woodsworth (2003) que as traduções da Bíblia levaram certo tempo até
serem aceitas. De acordo com os autores, havia o senso comum de que, como a Bíblia havia
sido dada e inspirada em língua hebraica, ela só poderia ser compreendida em seu sentido
absoluto nessa língua, o que ocorreu, de forma semelhante, dentro da cultura árabe, com as
proibições de traduções do Alcorão e do Hadith por um longo período. Contudo, tendo em vista
as traduções da Bíblia, verifica-se que estas começaram a ocorrer mesmo dentro das próprias
histórias bíblicas.
Nos livros de Neemias e Ester, por exemplo, é possível encontrar relatos de traduções
orais da Bíblia Hebraica – que diz respeito à Tora, ou seja, os cinco primeiros livros da Bíblia
– nos quais, pessoas que já não falavam mais a língua hebraica, e sim a língua aramaica, queriam
compreender os escritos bíblicos. Desta maneira, de acordo com Delisle e Woodsworth (2003),
permitia-se que fossem feitas traduções orais. Tais traduções, datadas por volta de 500 anos
a.C, eram rigorosamente ponderadas, nas quais um orador lia os excertos bíblicos em voz alta
e um tradutor traduzia, trecho a trecho o que era lido da Torá. Quanto às traduções escritas da
Bíblia, estas são datadas, em seus primeiros registros, pelo menos 3 séculos a.C. A partir de
então, inúmeras traduções foram feitas ao redor do mundo e para as mais diversas línguas.
Como aponta a United Bible Societies, já são catalogadas mais de 3000 línguas com traduções
totais ou parciais da Bíblia.
A partir dos relatos bíblicos, pode-se perceber que o rigor quanto às traduções desse texto
ocorre desde seu fundamento. Por entender-se que se tratava de escritos inspirados por um ser
superior – Deus –, presumia-se que tais textos mereciam um cuidado especial, com
interferências nulas do sujeito que traduzia. Tal posicionamento se perpetuou ao longo da
história e permanece em graus variados nos dias de hoje.
Na antiguidade e na idade média existiram diversas tentativas de tradução e traduções
completas da Bíblia. Delisle e Woodsworth (2003) explicam, a partir seu panorama histórico
mundial das traduções, que as traduções da Bíblia tiveram e ainda têm um papel importante no
desenvolvimento das línguas e suas respectivas culturas. Todavia, por um longo período da
história, as traduções da Bíblia foram desencorajadas ou até mesmo proibidas, visto o receio da
149
Igreja Católica quanto à disseminação de heresias a partir das traduções dos textos bíblicos.
Assim sendo, muitos tradutores foram perseguidos, presos e mortos, e suas traduções
queimadas e consideradas como material herético. Entretanto, a datar da Reforma Protestante,
é possível notar um grande impulso quanto à tradução e a disseminação do texto bíblico, tendo
em vista o caráter reformista que incentivava o exame atento das escrituras. Além disso, com o
advento da imprensa, se tornou possível uma divulgação mais ampla das traduções da Bíblia e,
consequentemente, sua maior acessibilidade.
Delisle e Woodsworth (2003, p. 187) explicam que “durante o século XIX, um total de
quinhentas línguas e dialetos receberam as Escrituras pela primeira vez, chegando ao total de
571 idiomas no fim do século”. Como consequência dessa vasta expansão, o século XX
começaria a se deparar com um novo viés das traduções bíblicas. Ao passo que ainda havia – e
há – trabalhos de traduções da Bíblia para idiomas específicos que ainda não a possuíam, inicia-
se um movimento de atualização da linguagem das escrituras sagradas. Foi neste período que
diversas discussões a respeito da Bíblia em linguagem moderna surgiram. Congruente a esses
debates, movimentos tradicionais defensores de traduções específicas foram estabelecidos,
todavia, ocorreram também conferências em determinadas denominações religiosas que
consideraram as novas traduções da Bíblia efetivas e colaboradoras na compreensão do texto
bíblico como um todo.
É possível constatar a partir de documentos oficiais e artigos publicados por diferentes
denominações, que tal assunto se tornou polêmico e não possui uma perspectiva unânime, pois
ainda existe o senso comum predominante de que a Bíblia traduzida a partir uma linguagem
mais rebuscada e, de certa forma, ultrapassada, está mais próxima dos escritos originais, o que
faz com que muitos rejeitem traduções que se utilizem de termos e expressões modernas. Além
disso, muitos se veem intrigados com a linguagem complexa da Bíblia e acreditam que essa
forma menos compreensível e mais complexa das escrituras denota o caráter divino nos textos.
Desta forma, considerando o percurso da história das traduções da Bíblia e as novas
tendências de tradução bíblica, iniciadas a partir do século passado, este estudo tem por objetivo
apresentar, brevemente, traduções bíblicas ao longo da história e traçar este percurso até a
tradução da Bíblia em Linguagem Contemporânea: A Mensagem. Além disso, este artigo visa
discutir a aceitabilidade e a validade das traduções modernas da Bíblia baseadas em declarações
específicas.
Desde a antiguidade até os dias de hoje, a Bíblia possuiu caráter sensível para
determinadas parcelas da sociedade. Isso fez com que, por algum tempo, não fossem permitidas
traduções bíblicas. Todavia, no Antigo Testamento encontram-se relatos específicos de
traduções orais que foram permitidas para que o povo judeu, que já não mais falava a língua
hebraica, pudesse compreender os escritos da Torá. Raupp (2015) explica que esta tarefa é
denominada de targum, que em hebraico significa “interpretação”, e ocorreu em diferentes
ocasiões nas quais a Bíblia era traduzida oralmente para o aramaico. Delisle e Woodsworth
(2003, p. 172) explanam claramente tais episódios.
À medida que a Torá ia sendo lida, um intérprete traduzia cada parte, verso
por verso, na língua comum do povo, usualmente o aramaico. Esse ritual foi
característico especialmente do período talmúdico, entre os séculos II e IV da
Era Cristã. A preeminência do texto escrito em hebraico era dramatizada. O
leitor não podia levantar os olhos do texto, para que o público não tivesse a
impressão de que estava improvisando. Não podia repetir de memória, para
evitar algum erro e não dar a impressão de que era o autor do que estava
dizendo. O texto só podia ser transmitido pela leitura, porque a Torá tinha sido
150
recebida de Deus por Moisés por escrito. O meturgeman, ou intérprete, ouvia
e traduzia oralmente, sem olhar para o texto, para ficar claro que não estava
repetindo o texto escrito. Da mesma forma, o leitor não podia ajudar o
tradutor, para evitar qualquer confusão entre as palavras escritas e as que eram
pronunciadas. Por isso, era preciso a participação de duas pessoas. Além disso,
o intérprete devia permanecer de pé, afastado da Torá, e normalmente em um
nível um pouco mais baixo, para denotar a subordinação da palavra falada à
palavra escrita; não podia falar mais alto do que o leitor, e as duas vozes não
podiam ser ouvidas ao mesmo tempo.
A partir destes relatos é notória a extrema cautela com que submetiam a Bíblia para
traduções, ou seja, existiam critérios bastante rigorosos e precisos pelos quais se pretendia
alcançar, na língua alvo, o mesmo sentido expressado na língua original.
Com a difusão dos preceitos da Bíblia Hebraica, a primeira tradução escrita da Bíblia foi
encomendada e traduzida para a língua grega entre os anos 308-246 a.C. Esse encargo foi dado
pelo rei do Egito, Ptolomeu Filadelfus que pretendia enriquecer a biblioteca de Alexandria. Tal
tradução ficou conhecida como Septuaginta e, referente a essa obra são conhecidas duas
histórias. Conforme Delisle e Woodswoth (2003, p. 173)
Aristeas relata que foi enviado a Jerusalém para apresentar a ideia ao sumo
sacerdote Eleazar. Este escolheu setenta (ou 72) eruditos de grande reputação,
que eram sábios, piedosos e conheciam os ensinamentos da Torá; e estavam
também familiarizados com a cultura helênica. Narrada, com algumas
variantes, no século I da nossa era por dois outros escritores judeus, Filo de
Alexandria e Flavius Josephus, a lenda tem sido transmitida de século para
século. Embora a tradução pretendesse ser um esforço coletivo, uma outra
lenda afirma que os tradutores tinham alojamentos separados e não podiam
comunicar-se uns com os outros; contudo, produziram versões idênticas,
prova de que agiam sob inspiração divina.
Como explicam os autores, tal lenda se difundiu pelo fato de inferir que a mesma
inspiração divina que guiou os autores da Bíblia havia dirigido o trabalho daqueles tradutores.
Delisle e Woodsworth (2003) explicam que a tradução da Septuaginta diz respeito ao
Pentateuco, ou seja, os cinco primeiros livros da Bíblia e que, posteriormente, o restante dos
livros que hoje compõem o Antigo Testamento foi traduzido por outros tradutores e em épocas
distintas, todavia, toda a compilação do Antigo Testamento para a língua grega ficou conhecida
com Septuaginta.
Apesar da lendária história referente à Septuaginta, a tradução da Bíblia Hebraica foi de
fato realizada durante o reinado de Ptolomeu Filadelfus e foi bem aceita pela Igreja cristã na
antiguidade. Quanto a esta tradução, Aslanov (2015) pontua que a qualidade da Septuaginta é
bastante irregular e questionável, e a descreve como “um dos textos mais proteiformes e
inapreensíveis da história da literatura” (p. 66), fato este que faz o autor questionar a grande
importância dada pela Igreja ao texto grego em detrimento aos manuscritos em Hebraico nos
primórdios do cristianismo.
Posteriormente à Septuaginta, Raupp (2015) aborda a Peshitta, uma tradução feita para o
siríaco entre os séculos I d.C e IV d.C. O compilado de traduções para o siríaco feitas neste
período dá “origem ao volume hoje conhecido como Peshitta, termo siríaco que significa
‘simples’ empregado possivelmente para aludir ao estilo simples da sua linguagem.” (Raupp,
2015, p. 53)
A Vetus Latina, pontua Raupp (2015), é a mais antiga tradução da Bíblia para o latim,
datada por volta do século II d.C. Todavia, esta foi feita a partir da Septuaginta e não dos
escritos hebraicos.
151
Além destas traduções, em seu panorama histórico, Raupp (2015) aborda as traduções
para o copta (200 d.C.), o gótico (meados dos anos 350 d.C.), o etíope (678 d.C.), o armênio
(século V d.C.), o georgiano (século IV d.C.), o árabe (a partir do século VII d.C.), o eslavônico
(entre 869 e 885) e o provençal (século XII), uma língua falada na França da época. Esta
tradução foi encomendada por Pierre Valdès (1140 – 1218), líder do movimento pré-reforma
que, posteriormente, ficaria conhecido como os valdenses. Este movimento já disseminava
conceitos reformadores que seriam defendidos por Lutero dois séculos depois.
Dentre estas traduções, se encontra também a tradução de São Jerônimo (331 – 410 d.C).
Considerado o santo patrono dos tradutores, São Jerônimo foi encarregado de traduzir a Bíblia
para o latim no ano de 383. Delisle e Woordsworth (2003) afirmam que, primeiramente,
Jerônimo traduziu o Antigo Testamento a partir da Septuaginta e, posteriormente, voltou a
traduzi-lo a partir do hebraico. Quanto ao Novo Testamento, que já havia sido escrito em língua
grega, foi traduzido do grego para o latim. Ao final do século IV, o cristianismo contaria com
essa nova tradução que se tornou muito bem aceita pela Igreja Católica. Como pontuam Delisle
e Woodsworth (2003), a tradução de Jerônimo, que ficou conhecida como Vulgata “foi usada
durante séculos pela Igreja Católica Romana e, em 1546, declarada a versão oficial da Igreja
pelo Concílio de Trento.” (p. 179) O nome Vulgata diz respeito a um nome latino que significa
“divulgado”, “comum”. Cabe ressaltar que a Bíblia de São Jerônimo foi a Bíblia impressa por
Gutenberg em 1455.
Já na Idade Média, o cristianismo contaria com inúmeras novas traduções da Bíblia para
diversos idiomas. Na língua inglesa, destacam-se as traduções de John Wycliffe (1329 – 1384),
Willian Tyndale (1494 – 1536) e a Bíblia King James (1611).
John Wycliffe era teólogo e assim como Pierre Valdès, foi um dos precursores da
Reforma Protestante. Ele defendia o retorno às escrituras sagradas – e isso implicava na
necessidade de traduções para que o povo pudesse ler em suas próprias línguas –, condenava as
indulgências vendidas pela Igreja Católica bem como outras práticas da igreja romana.
Juntamente com um grupo de tradutores, Wycliffe produziu a primeira Bíblia em língua inglesa,
por volta dos anos 1382. Raupp (2015) pontua que, para esta tradução, Wycliffe e seus
colaboradores utilizaram a Vulgata de Jerônimo, pois não conheciam as línguas originais –
hebraico e grego. Contudo, esta foi reprovada pela Igreja Católica que, 45 anos após a morte de
Wycliffe, exumou seus restos mortais, os queimou e suas cinzas foram jogadas no rio Swift.
A tradução de Willian Tyndale é a primeira tradução da Bíblia para língua inglesa feita a
partir das línguas originais. Tyndale era teólogo e teve fortes influências das ideologias de
Martinho Lutero (1483 – 1546) ao traduzir sua Bíblia, o qual acreditava que a Bíblia deveria
ser escrita em linguagem acessível para os leitores. Durante seu percurso de tradução da Bíblia,
Tyndale foi considerado herege pela Igreja Católica, foi perseguido, se refugiou em Antuérpia
e conseguiu finalizar sua tradução, mas mesmo assim foi preso e morto por ordem da Igreja em
1536. Delisle e Woodsworth (2003) explicam que após a morte de Tyndale, duas novas versões
da Bíblia foram lançadas por Miles Covardale e John Rogers e estas possuíam grande parte das
traduções realizadas por Tyndale.
Anos mais tarde, o Rei Jaime (1566 – 1625) comissionou 54 eruditos que deveriam reunir
o que de melhor já havia sido traduzido da Bíblia para a língua inglesa. Esta revisão ficaria
conhecida como King James ou Authorized Version (1611). Delisle e Woodsworth (2003)
pontuam que pelo menos 80% do Novo Testamento desta Bíblia é de Tyndale. Além disso, os
autores explicam que esta Bíblia se tornaria referência no mundo de língua Inglesa, o que ainda
é um fato na atualidade.
Martinho Lutero viveu em um período semelhante ao de Tyndale. Na Alemanha, Lutero
estudava direito e, posteriormente, decidiu deixar o campo para se dedicar a Teologia. Tornou-
se padre, mas ao investigar atentamente a Bíblia, rebelou-se contra a Igreja Católica e a criticou
duramente. Foi excomungado e precisou refugiar-se. Então, entre os anos de 1521 e 1534,
152
Lutero traduziu a Bíblia para a língua alemã, a qual é reconhecida como “a primeira Bíblia
completa em língua moderna traduzida a partir das línguas originais.” (DELISLE;
WOODSWORTH 2003, p. 182) Além das 95 teses que ampararam a Reforma Protestante,
Lutero deixou outro importante legado que diz respeito à linguagem da Bíblia. Como explica
em sua Carta Aberta sobre Tradução:
não se tem que perguntar às letras na língua latina como se deve falar alemão,
como fazem os asnos, mas sim há que se perguntar à mãe em casa, às crianças
na rua, ao homem comum no mercado, e olhá-los na boca para ver como falam
e depois traduzir; aí então eles vão entender e perceber que se está falando em
alemão com eles. (LUTERO, 2006, p.4).
153
A Bíblia A Mensagem é um projeto feito em língua inglesa pelo professor e pastor Eugene
Peterson que foi lançada nos Estados Unidos no ano de 2002 e no Brasil, em 2011. O prefácio
da Bíblia indica que o projeto em língua inglesa foi feito tendo em vista as línguas originais e
levou cerca de dez anos para ser concluído. No Brasil, a tradução foi feita a partir do texto em
inglês, de Peterson, para o português.
Tendo em vista as Bíblias com traduções mais modernas, verifica-se que os paratextos de
Bíblias como A Nova Tradução na Linguagem de Hoje ou a Nova Versão Internacional
apontam que se utilizaram da Equivalência Dinâmica para suas traduções, tentando aproximar
mais o texto bíblico da realidade dos falantes. Todavia, tais traduções não abarcam
coloquialismos e expressões idiomáticas. Este conceito foi esboçado por Nida (1964) que
distinguiu a Equivalência Dinâmica e a Equivalência Formal. Ao considerar as línguas
equivalentes entre si, Nida (1964) defende a Equivalência Dinâmica para traduções bíblicas,
pois esta propõe adequar o texto de partida ao novo contexto linguístico e cultural. A
Equivalência Dinâmica se diferencia da Formal por estar mais focada no público de chegada,
enquanto que a Equivalência Formal foca sua atenção na forma do texto de partida e em
reproduzi-lo no texto de chegada. Tendo em vista tais conceitos, é possível compreender as
explanações dadas nos paratextos das Bíblias em linguagem contemporânea – já que estas
propõem uma linguagem mais próxima do público de chegada.
A Bíblia A Mensagem tem a mesma base teórica – a Equivalência Dinâmica – focando-
se no novo leitor e na compreensão facilitada do texto bíblico. Entretanto, ela vai além por
contar com expressões idiomáticas e coloquialismos. Alguns exemplos dessa linguagem
seriam: “um pássaro na mão e dois voando” (Eclesiastes 4:6), “não faz a menor ideia”
(Provérbios 29:7), “bando de falsos” (Salmos 120:3), “vão entrar numa fria, é uma grande
roubada!” (Provérbios 9:17), dentre inúmeras outras ocorrências de linguagem extremamente
informal e coloquial.
Quanto a este registro de linguagem, pode-se constatar, a partir do prefácio desta
tradução, que seu tradutor, Eugene Peterson, possui um discurso parecido com de Lutero ao
defender a transformação da
linguagem da Bíblia que Deus usa para nos criar e salvar, curar e abençoar,
julgar e governar na linguagem moderna que usamos para comentar sobre a
vida e contar histórias, das instruções, fazer negócios e cantar músicas para os
nossos filhos. (PETERSON, 2011, p. 9-10).
De fato, assim como na Idade Média alguns tradutores já se preocupavam com uma
linguagem mais acessível da Bíblia para que o povo pudesse compreendê-la melhor,
atualmente, tal posição tem ganhado mais força e se tornado cada vez mais comum no meio
cristão.
154
utilizava versões modernas da Bíblia correntes em sua época, pois, de acordo com ela, as
mensagens contidas na Bíblia deveriam ser mais compreensíveis para que o povo pudesse
entender os acontecimentos vindouros.
Considerando as declarações de tal autora e a denominação a qual pertencia – A Igreja
Adventista do Sétimo Dia – tem-se que, em 1954, uma Conferência Geral foi organizada pelos
líderes desta denominação a fim de discutir a legitimidade das novas traduções que surgiam
naquele contexto. Na época, havia a discussão quanto às traduções em língua inglesa American
Standard Version (1901) e Revised Standard Version (1946-1952) em detrimento de outras
mais tradicionais como a King James Version (1611). Quanto a esta temática, e tendo em vista
que movimentos defendendo a exclusividade das Bíblias tradicionais se levantavam, a Igreja
Adventista do Sétimo Dia se posicionou da seguinte maneira:
Através das explanações dadas ao longo deste documento, pode-se perceber que a igreja
se posiciona favorável ao uso de diferentes versões, aconselhando que estas sejam utilizadas
como ferramentas no processo de compreensão dos textos bíblicos.
Cada uma das grandes traduções possui pontos fortes e pontos fracos, e sua
contribuição a fazer para o estudo da Palavra Sagrada. É importante
familiarizar-se com o valor relativo de cada uma e usá-las, ponderando cada
uma de acordo com seu valor intrínseco. (1954, p. 100, tradução nossa).
Tal discussão surgiu devido ao advento de movimentos como o King James Version
Onlyism, que tem como um de seus precursores o pastor Jack Moorman, autor do livro Modern
Bibles – The Dark Secret (1995) que aponta, principalmente, a diferença no número de palavras
das traduções da Bíblia em Língua Inglesa.
Moorman (1995) defende que a KJV se trata da Bíblia padrão a ser utilizada e que foi
divinamente inspirada:
Tudo indica que a KJV seria a Bíblia que Deus deixaria para Seu povo nestes
últimos dias antes da Segunda Vinda de Cristo. Deus preservou Sua obra
inspirada originalmente na versão da King James. (1995, tradução nossa).
155
1681, etc.: a ACF-2011 (Almeida Corrigida Fiel) e a LTT (Literal do Texto
Tradicional) [...].66.
É importante ressaltar que o autor de Sola Scriptura isenta a denominação a qual pertence
de suas opiniões publicadas no blog.67
Por outro lado, a Sociedade Bíblica do Brasil (2013), uma das principais difusoras da
Bíblia no Brasil, defende que “ler diferentes traduções enriquece o estudo e a compreensão da
Bíblia Sagrada.”68 Como principal publicadora e detentora dos direitos das traduções Nova
Almeida Atualizada (NAA), Almeida Revista e Atualizada (ARA), Almeida Revista e
Corrigida (ARC), Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) e da Tradução Brasileira
(TB), a SBB se posiciona favorável às diferentes traduções da Bíblia.
Aconselho que você tenha mais que uma Bíblia em várias traduções (em nossa
igreja muitas vezes leem a Bíblia em português e inglês) e tente variar a sua
leitura bíblica com traduções diferentes. [...] Alguns de vocês gostam de
traduções mais contemporâneas e talvez seja a hora de ler uma tradução mais
antiga. Vai ser mais difícil? Vai. Vai valer a pena? VAI! Alguns de vocês já
estão tão acostumados com traduções mais antigas que ler a Bíblia numa mais
contemporânea parece até pecado. [...] Talvez você está colocando mais
confiança na sua tradução e conforto do que deveria. Com uma geração nova
crescendo com traduções novas, é importante que você esteja avaliando como
estas traduções estão influenciando essa geração tal como a sua tradução te
influenciou (positiva e negativamente). [...] Cabe a nós usarmos estes recursos
que muitos quiseram ter e não puderam, e que hoje estão ao nosso dispor.70
(IGREJA BATISTA BRASILEIRA NA FLÓRIDA, 2009).
Pode-se perceber a partir desta declaração que, assim como outros pareceres similares,
a Igreja Batista se mostra favorável ao uso de diferentes traduções da Bíblia – inclusive
traduções modernas – e compreende que o uso de todos os recursos disponíveis na atualidade é
benéfico para o estudo das escrituras sagradas.
66
Ver: http://solascriptura-tt.org/Bibliologia-Traducoes/TheMessage-AMensagem-Crossroads.htm
67
Ver: http://solascriptura-tt.org/IsentandoAutores.MinhaIgreja.MeusAmados-Helio.htm
68
Ver: http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/compare-as-traducoes/
69
Ver: http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/compare-as-traducoes/
70
Ver: http://brazilianbaptist.org/a-biblia-e-as-suas-traducoes:37684
156
Considerações finais
Ao traçar um breve panorama histórico das traduções da Bíblia, pode-se perceber que
estas ocorreram em maior escala a partir da Reforma Protestante. Além disso, é importante
destacar que o advento da imprensa e o trabalho de difusão da Bíblia feito pelas Sociedades
Bíblicas ao redor do mundo contribuíram e contribuem para que novas traduções surjam e se
tornem acessíveis para o maior número de pessoas.
Congruente à disseminação da Bíblia, novos registros de linguagem são introduzidos aos
textos bíblicos, o que faz com que surjam novas traduções da Bíblia e novas revisões de
traduções já existentes. Todo este material enriquece não só o meio cristão que tem a Bíblia
como livro sagrado, como também os Estudos da Tradução, que dispõe de maiores recursos
para investigação e análise. Todavia, cabe ressaltar que a defesa por uma linguagem acessível
não é algo moderno, visto que já era defendido por tradutores da antiguidade – como São
Jerônimo – e da Idade Média – como Lutero e Tyndale.
Quanto aos posicionamentos relativos às traduções contemporâneas da Bíblia, pôde-se
perceber, a partir de alguns exemplos, que esse assunto não é unânime e dificilmente será, visto
o senso comum ainda predominante no meio cristão que prega que a Bíblia com linguagem
altamente rebuscada e até mesmo ultrapassada apresenta melhor as ideias descritas nos
manuscritos originais. Todavia, existem documentos oficiais de determinadas denominações e
líderes religiosos que se posicionam favoráveis a tais traduções, o que se mostra vantajoso para
o meio cristão, que pode compreender que a disposição de uma gama maior de recursos facilita
sua caminhada na compreensão dos textos bíblicos.
Referências
ASLANOV, Cyril. A tradução como manipulação. São Paulo: Perspectiva: Casa Guilherme
de Almeida, 2015.
LUTERO, Martinho. Carta aberta sobre a Tradução. Traduzido por: Mauri Furlan. Título
original: Sendbrief vom dolmetschen In: HEIDERMANN, Werner (Org.). Clássicos da
Teoria da Tradução. Antologia bilíngue. v. 4. Florianópolis: NUPLITT, 2006. p. 95-115.
157
PETERSON, Eugene H. A Mensagem: Bíblia em Linguagem Contemporânea. São Paulo:
Editora Vida, 2011.
SILVA, Hélio Menezes. Isentando minha igreja, meus amados, e os autores que cito/
publico. 2011. Disponível em: <http://solascriptura-tt.org/IsentandoAutores.MinhaIgreja.
MeusAmados-Helio.htm>. Acesso em: 29 out. 2017.
UNITED Bible Societies. Key facts about the Bible access. Disponível em:
<https://www.unitedbiblesocieties.org/key-facts-bible-access/>. Acesso em: 1 nov. 2017.
WHITE, Ellen G. Eventos finais: como enfrentar a última e maior crise da terra. Tradução
Isolina Waldvogel. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2014.
Resumo: A tradução da Bíblia é um fator de extrema relevância dentro dos Estudos da Tradução visto que essa
tarefa impulsionou a discussão quanto ao processo tradutório e a tarefa do tradutor. Com o passar das gerações,
diversas novas traduções da Bíblia foram surgindo e, principalmente devido à Reforma Protestante, os cristãos
dispõem, hoje, de um vasto número de traduções do texto sagrado. Além do surgimento de diferentes traduções,
atualizações da linguagem bíblica começaram a ser feitas e esta nova abordagem causou divergências entre os
cristãos. Ao considerar que o texto bíblico se trata de mensagens inspiradas por Deus, muitos creem que a
linguagem rebuscada e muitas vezes incompreensível denota o caráter sobrenatural da obra e, em suas traduções,
demonstra maior proximidade com os manuscritos originais. Tendo em vista tais fatos, este estudo pretende
esboçar um breve percurso das traduções bíblicas na história, destacando algumas traduções por seu caráter
pioneiro e sua importância em determinadas línguas, e traçar esta trajetória até a Bíblia em Linguagem
Contemporânea: A Mensagem. Além disso, este artigo visa discutir a aceitabilidade e a legitimidade de traduções
modernas da Bíblia visto alguns posicionamentos específicos expostos em documentos oficiais, blogs e sites
cristãos. Para tanto, este trabalho fundamenta-se em Delisle e Woodsworth (2003), Pohling (2009) e Raupp (2015).
A partir de tais análises é possível verificar que este assunto é altamente divergente, tendo em vista o senso comum
que permanece no meio cristão de que a Bíblia deve soar arcaica e complexa.
Palavras-chave: Tradução da Bíblia. Linguagem contemporânea. Aceitabilidade.
Abstract: Bible translation is extremely relevant in translation studies due to the fact that this task promoted the
discussion concerning translation process and translator task. Over time, mainly because of Protestant
158
Reformation, several new Bible translations emerged and because of it, Christians have a huge number of the
sacred scripture translations nowadays. Besides the emergence of different translations, revisions of Bible
language arose and this new approach has generated divergence among believers. For considering Bible texts as
God’s inspired messages, a lot of people believe that complicated or even incomprehensible language means a
supernatural character within the writings and in its translations, it demonstrates more similarity with the original
manuscripts. Considering this, the following study aims to outline a brief course of Bible translations in history,
highlighting some translations for its pioneer character and its importance within specific languages, and also to
describe this course until the Bible in Contemporary Language: The Message. Furthermore, this research intends
to discuss the acceptability and authenticity of the Bible modern translations due to some specific viewpoints in
official documents, blogs and Christian websites. Therefore, this paper is justified through Delisle and
Woodsworth (2003), Pohling (2009) and Raupp (2015). Through such analysis it is possible to find that this
discussion is highly devious due to the common sense that still remains among Christians that Bible might sound
archaic and complex.
Keywords: Bible translations. Contemporary language. Acceptability.
159
160
Capítulo 16
CHILE AND BRAZIL IN THE NEWSPAPER A MANHÃ: THE CHILE AN POETRY IN THE BRAZILIAN PRESS
IN THE 1940S
Introdução
Este trabalho tem como foco de interesse a década de 40 e o objeto de estudo é o jornal
A manhã (1941-1953). O contexto histórico remete ao governo de Getúlio Vargas, na etapa do
Estado Novo, localizada entre 1937 e 1945. Para a imprensa é um período de regras impostas
pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), entidade que tinha o papel de fiscalizar e
censurar. Segundo Lopes (2008), costumava haver um censor em cada jornal, e a presença de
um sujeito fiscalizador entre jornalistas e donos de jornais, muitas vezes, resultava em
negociações e subornos.
O periódico A manhã se enquadrava como jornal governista, lançado no mesmo ano que
o escritor Monteiro Lobato71 foi preso devido a uma carta escrita no ano anterior, na qual
confronta Getúlio Vargas, criticando a política do Petróleo do governo72. Em 1942 o Brasil
ingressa na Segunda Guerra e, ao apoiar os Estados Unidos, o governo de Vargas coloca o
Brasil na guerra contra a Itália e a Alemanha. Pode-se notar, com esse posicionamento, que
havia a intenção de manter boa relação com os EUA e com seus governantes. Na imprensa, um
dos exemplos dessa nova configuração é o lançamento da revista Seleções, veículo onde
começaram a ser divulgados no Brasil “valores e modos de vida norte-americanos” (LUCA,
2008, p. 129). Esses são alguns dos fatos que ajudam a compor o contexto histórico-político da
imprensa da década de 40 no Brasil. Nosso objetivo é analisar os textos selecionados no
periódico A manhã, para iniciar a pesquisa de elementos que colaboram para uma aproximação
ao texto poético de autores chilenos.
Cabe ressaltar que existiram outros dois periódicos, que aludem a esse mesmo nome, o A
manhã lançado em 1925, dirigido por Mário Rodrigues (1885-1930) com o qual Monteiro
Lobato colaborava, e o jornal, de nome A manha73, sem o til, que contém alto teor de humor em
suas páginas e, de acordo com Bruno Brasil, “foi o primeiro jornal humorístico a fazer uso de
fotomontagens para ridicularizar as autoridades74” (BRASIL, 2014). O mesmo autor (2014)
aponta, citando Sodré (1999), essa dualidade de nomes:
71
José Bento Monteiro Lobato (1882-1948). Foi um importante editor de livros inéditos e autor de importantes
traduções.
72
No final da década de 40 Monteiro Lobato vai liderar a campanha “O petróleo é nosso”. Mais informações em:
<http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/campanha-petroleo-nosso-mobilizou-brasil-no-final-da-decada-
de-40-10401791>
73
<https://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-manha-2/>
74
No link da BN, edição de 1930, em suas primeiras páginas aparece ilustração satirizando uma visita de Getúlio
Vargas: <http://memoria.bn.br/DocReader/720984/303>
161
em 1941, um terceiro jornal com o título A Manhã apareceu no cenário
editorial brasileiro. Era, porém, uma folha governista dirigida por Cassiano
Ricardo na época em que o governo de Vargas começava a se preocupar com
a propaganda política. Esse novo jornal não lembrava em nada o oposicionista
A Manhã, da década de 1920. Não há nada que ligue o jornal de 1941 ao de
1925. (BRASIL, 201475).
O nosso objeto de estudo é o jornal dirigido inicialmente por Cassiano Ricardo (1895-
1974), periódico que atuou sob a proteção do governo de Vargas. Consta no Dicionário
Biográfico Brasileiro que esse diretor tinha pensamentos que convergiam com o Estado Novo,
sua posição política era contra o fascismo e o comunismo e via como terceira opção a
democracia social76 (BRASIL, 2015). Na mesma edição que encontramos poemas chilenos no
ano de 1943, encontramos artigos que se posicionam contrários ao fascismo, ao visualizar todo
o jornal, para compreender o contexto em que estão publicados os poemas chilenos que nos
interessam, somos confrontados com o ambiente cultural e político do momento. Desse modo,
é construído um cenário para esses textos, ilustrações e composições da edição. A página é vista
como fonte de pesquisa e contribui para ampliar a análise do texto poético que queremos
evidenciar.
No âmbito da literatura, em especial para a poesia latino-americana, os anos quarenta
estão marcados pela premiação de Gabriela Mistral, que em 1945 recebeu o primeiro Nobel de
Literatura77. Era a época em que Mistral desempenhava o cargo de consulesa do Chile no Brasil
e residia na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Nessa mesma década, foi a amizade entre
Cecília Meireles e Gabriela Mistral, que desempenhou um importante papel para a aproximação
do leitor do jornal A manhã com a poesia chilena, uma vez que a relação entre ambas, promovia
um diálogo intelectual e intercultural entre essas nações latino-americanas.
Tendo o jornal A manhã como fonte de registro histórico para esse período, acedemos a
uma intenção política de aproximação entre o Brasil e o Chile, uma vez que, nessas páginas de
jornal, são noticiadas, entre outras informações político-econômicas, a visita do Ministro das
Relações Exteriores Oswaldo Aranha ao Chile, plasmada em um titular do dia 10 de novembro
de 1941: “A excepcional significação americana da visita do nosso chanceler ao Chile,
tradicionalmente amigo do Brasil”. Na mesma página de jornal, no dia 18 de novembro de 1941,
é noticiado o convênio comercial entre esses dois países, assinado por Oswaldo Aranha (1903-
1976) e Juan Rosseti (1903-1976), que era Ministro das Relações Exteriores no Chile (A
MANHÃ, 1941, p. 8)78. Chama a atenção, o fato de que Rosseti fundou o Partido Radical
Socialista chileno e era membro deste partido, enquanto Oswaldo Aranha, em 1941,
representava o governo de Getúlio Vargas. Em virtude da visita do ministro brasileiro ao Chile,
Gabriela Mistral concedeu entrevista ao A manhã, esse artigo não foi assinado, e aparece como
sendo texto dos editores. No fragmento abaixo reproduzido, estão sinalizadas as percepções da
poetisa:
75
Mais informações em: <http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-manha/>
76
Mais informações em: <http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-manha-rio-de-janeiro-1941/>
77
No acervo histórico da obra da poetisa consta que no dia 16 de novembro de 1945 Carlos Drummond de Andrade
envia-lhe um telegrama como gesto de felicitação por essa premiação (ANDRADE, 1945). Imagem do telegrama
disponível no site Memória Chilena da Biblioteca Nacional do Chile: <http://www.memoriachilena.cl/602/w3-
article-132028.html> Acesso em 10 de maio de 2017.
78
Mais informações em: <http://memoria.bn.br/DocReader/116408/13404>
162
Em a História dos, nos e por meio dos periódicos, de Tânia Regina de Luca (2008), na
seção “O conteúdo e os idealizadores”, se remete à discussão sobre a objetividade e a
neutralidade na imprensa. São analisados os aspectos que envolvem o trabalho do pesquisador
que utiliza o jornal como objeto de estudo. Para a leitura da notícia, caberá ter em conta a
materialidade, condições de edição, impressão e divulgação, assim como o entorno político e
social e as redes que envolvem o veículo estudado (LUCA, 2008, p. 138-140). Vemos, na
página do jornal, a interface entre o político e o literário, quando os interesses econômicos vão
a par dos benefícios culturais e da divulgação da poesia.
No Chile, o ambiente político entre os anos 1936 até o ano de 1941 foi de evolução do
partido socialista Frente Popular, que representava uma coalizão de centro-esquerda. Gabriela
Mistral e Pablo Neruda faziam parte desse projeto político que, se bem não esteve no poder ao
longo da década de 40, sim, marcou presença e interferiu no âmbito da cultura. É esse o período
histórico político que marca no Chile “a geração literária de 38”.
Nas páginas de A manhã são noticiados vários eventos que deixam ver uma relação
diplomática amistosa entre o Brasil e o Chile. Um exemplo é o registro de viagem do ministro
Oswaldo Aranha ao Chile, e o encontro com o vice-presidente chileno Jerónimo Mendez
Arancibia (1887-1959). O contexto era propício para incentivar um maior interesse tanto nas
questões econômicas quanto culturais que envolviam relações internacionais entre esses países.
O jornal A manhã, foi lançado em 1941 e teve suas últimas publicações em 1953. No
período de 1940 até 1944, esteve sob a direção do escritor e poeta Cassiano Ricardo79, que
publicou vários livros, foi jornalista, poeta e ensaísta.
O posicionamento político do A manhã era explicitamente contra o comunismo e
declaradamente a favor do governo de Getúlio Vargas. Inserto nesse posicionamento pró
Vargas, suas páginas oferecem material importante para a pesquisa da expressão da literatura
na imprensa daquela época. Tania Regina de Luca, comenta sobre o trabalho de homens das
letras nas páginas do jornal: “As várias tarefas desempenhadas por esses intelectuais
subordinavam-se não raro, às demandas políticas das facções oligárquicas proprietárias dos
jornais e que igualmente detinham as chaves que controlavam o acesso ao cenário da política”
(LUCA, 2008 p. 124). O primeiro diretor do periódico A manhã, Cassiano Ricardo, teve
envolvimento político com movimentos que convergiam com as políticas de Vargas. No que se
refere às publicações que remetem a poesia chilena, encontramos várias ocorrências nos
suplementos culturais de A manhã. O periódico contava com a publicação semanal do
suplemento cultural “Pensamento da América” sobre a orientação de Ribeiro Couto (1898-
1963), da Academia de Letras.
79
Mais informações em: < http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-manha-rio-de-janeiro-1941/>
163
Ribeiro Couto, em 1958, recebeu o prêmio internacional de poesia, outorgado na França
aos poetas estrangeiros cuja obra honra a França. Os responsáveis pelos suplementos
relacionados a cultura e literatura de A manhã eram especialistas qualificados, escritores e
poetas. O suplemento “Pensamento da América”, em sua edição de 23 de outubro de 1941,
apresentou um artigo que esclarece que a “América” do título incluía os Estados Unidos e
apresenta o seguinte título para um de seus artigos: “A literatura brasileira precisa ser mais
conhecida nos Estados Unidos”. No artigo é entrevistado Eduardo Neale Silva (1906-1989),
que nasceu na cidade de Talca, no Chile. Neale Silva ingressou, aos 19 anos, na Universidade
de Wisconsin, onde obteve o título de mestre em 1928, e obteve o seu PhD em 1935. Este
escritor chileno que residiu e faleceu em Madison, Wisconsin, dedicou-se ao estudo da literatura
e cultura da América Hispânica.80 No artigo de A manhã, Neale é entrevistado e diz estar sendo
muito bem recepcionado no Brasil. Nessa visita, o pesquisador desenvolveu sua investigação
sobre a literatura brasileira.
No artigo informa-se que, a visita do Prof. Neale, já há um mês no Brasil, na data da
entrevista, é enriquecida através de um intercâmbio cultural com escritores, jornalistas e
instituições culturais e universitárias. Quando é interpelado pelo A manhã sobre a literatura
brasileira nos Estados Unidos, responde:
80
Mais informações em: <https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/
viewFile/4738/4899>.
81
Artigo completo com a entrevista em: < http://memoria.bn.br/DocReader/116408/13024>.
82
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/116408/13024>. Acesso em: 10 ago. 2017.
164
Recordamos que esse espaço do jornal estava destinado a um projeto cultural e que os
organizadores dos suplementos, assim como o diretor do jornal nos primeiros anos de A manhã,
eram escritores conectados ao mundo intelectual e das artes. O periódico também contou com
“O Suplemento Literário Autores e Livros”, sob a orientação de Mucio Leão (1898-1969).83
Nas primeiras páginas deste suplemento, na apresentação do projeto editorial, registram-se
reflexões e ideais dos seus fundadores e colaboradores, nelas se explicita o interesse dos
editores na publicação de textos poéticos. Esse mesmo suplemento foi objeto de pesquisa de
Angela de Castro Gomes, para pensar a política cultural no estado novo. Deste modo, podemos
ter acesso ao trabalho de pesquisa que toma as páginas de “Autores e Livros” para resgatar a
história fazendo enlace com o cultural e o político (LUCA, 2005, p. 129).
83
Informação no site da Biblioteca Nacional: Autores e livros: Suplemento Literário de A manhã: Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=066559&pesq= >. Acesso em: 6 jun.2017.
84
Mais informações em: <http://www.memoriachilena.cl/602/w3-article-100734.html#presentacion>.
165
poetas contemporâneos. Tão bons podem haver, melhores não. Ao nome de
Pablo Neruda, Gabriela Mistral e Vicente Huidobro, que há muito
transpuseram a fronteira, devemos agregar os de Rosamel del Valle, Juvencio
Valle, Pablo de Rocca, Julio Barrinechea. Este é o grupo dos consagrados.
Entretanto a rapaziada é formidável. Já Cecilia Meireles se preocupou de
alguns deles em dois números deste jornal. Nomearemos a Nicanor Parra,
Oscar Castro, Luiz Oyarzún, Guillermo Quiñones Alvear, Omar Cáceres,
Vitoriano Vicário, André Sabella, Olga Acevedo, Rita Walker e tantos outros.
(URIBE ECHEVARRÍA, 1943, p. 8)85
Percebemos nessa lista a menção de Nicanor Parra entre os poetas Pablo Neruda e Vicente
Huidobro. Parra, anos depois, com a publicação de Poemas y Antipoemas (1954), será
reconhecido pela crítica internacional por uma poesia que vai desvincular-se da poesia de
Huidobro, Mistral e Neruda. Uribe, como estudioso da poesia, também menciona em sua
entrevista seus poetas brasileiros favoritos, entre eles está Cecília Meireles e Carlos Drummond
de Andrade. Sobre a literatura brasileira comenta: “No Chile tem-se um conhecimento precário
e escasso do que significa a poesia do Brasil, especialmente em literatura” (URIBE
ECHEVARRÍA, 1943, p.8).
85
Publicado no Jornal A manhã em 1943, artigo completo página 3 e página 8.
86
Está disponível a página digitalizada de A manhã no site da Biblioteca Nacional do Chile:
<http://www.biblioteca nacionaldigital.cl/bnd/623/w3-article-148238.html>.
166
Um exemplo contrário, no mesmo jornal, é o da apresentação de um poema de Mistral
traduzido em A manhã, com apenas a apresentação do texto traduzido e sem comentário crítico.
No “Suplemento Pensamento da América” desse mesmo jornal, se apresentou o poema “País
da ausência”87 traduzido por Ribeiro Couto, organizador responsável pela publicação semanal
que se dedicava ao intercâmbio com países americanos (COUTO, 1941, p.17). A configuração
dessa página era para apresentação do texto poético ao leitor no idioma português, sem
apresentação do texto fonte ou comentários.
Sobre “8 poetas” no Chile, a publicação na revista da Universidad de Chile continha
poemas organizados e prolongados por Tomás Lago (1903-1975), poeta, pesquisador e gestor
cultural chileno, que chegou a visitar o Brasil em 1951. Dessa visita, ficou o registro de uma
entrevista que Lago concedeu ao jornal chileno La Nación88. Na apresentação da antologia
poética no artigo “8 nuevos poetas chilenos”. Segue um fragmento, no qual Lago refere-se às
premissas de uma nova concepção de poesia, e afirma:
La atmósfera de una época será luego más rica o más pobre, según aparezca
nutrida o desmantelada de todos sus elementos documentales. Si sabemos todo
lo que pasa se perderá enseguida menos en experiencia vanas; si hay
constancia de todos los esfuerzos de hoy, los esfuerzos de mañana serán
dirigidos con más provecho y mayores posibilidades de un estilo. (LAGO
apud PARRA, 2006, p.1013).
O título “8 poetas” se refere aos poetas chilenos: Oscar Castro (1910-1947), Victoriano
Vicario (1911-1966), Omar Cerda (1914-2003), Jorge Milllas (1917-1982), Luis Oyarzún
(1920-1972), Alberto Baeza Flores (1914-1998), Hernán Cañas (1910-1991), Nicanor Parra
(1914-), e ao título publicado no Chile: “8 nuevos poetas chilenos”(1939).
Cecília Meireles adverte, no artigo de A manhã, que o primeiro contato que teve com a
poesia de Nicanor Parra, o único dos poetas citados que ainda está vivo atualmente, foram peças
de “romanceros” – onde personagens históricos como Miguel Carrera e Manuel Rodriguez, são
aludidos. A primeira publicação de Parra foi Cancionero sin nombre (1937)89, livro que lhe
outorgou o Prêmio Municipal de Poesia e que dedicou a quatro dos poetas citados acima.
Quando ganhou o prêmio pelo livro, dedicou essa condecoração aos sete companheiros da sua
geração que estavam na antologia publicada em revista “8 nuevos poetas chilenos”. Para Cecília
Meireles os versos de Cancionero, o primeiro livro de Parra, tinham “toda técnica tradicional”
e adverte que na publicação sob o título de “8 poetas” o tom é outro e acontece uma renovação
poética. Sobre os outros sete poetas citados por Meireles no artigo, cabe mencionar que faziam
parte do movimento literário: “Poesia de la Claridad”. Parra se refere a esse projeto em uma
conferência proferida em 1958 na Universidad de Chile e, fazendo uma retrospectiva, com um
olhar desde a distância do tempo, se refere ao grupo de oito poetas antologados por Lago:
[...] representábamos un tipo de poetas espontáneos, naturales, al alcance del
grueso público. Oscar Castro, el más afortunado del grupo, figuraba en los
repertorios de todas las recitadoras profesionales y privadas. Hernán Cañas,
Omar Cerda y el que habla habíamos sido poetas laureados en los Concursos
Primaverales de los Estudiantes. Claro que no traíamos nada nuevo a la poesía
chilena. Significábamos, en general, un paso atrás, a excepción de Millas y de
87
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/116408/12018>.
88
Pro arte. Santiago : E. Bello, 1948-1956 (Santiago : Talls. Graf. La Nación) 3 v., n° 121, (9 de enero de 1951),
p. 8.
89
Cancionero sin nombre tem elementos da poesia de García Lorca, como ele mesmo explica: “Yo comencé como
un poeta garcialorquiano. Mi plan de trabajo fue en este tiempo aplicar a Chile el método que Lorca había hecho
suyo en España” (PARRA, 2006, p. 1009).
167
Oyarzún, que, según mi modo de ver, eran ya unos poetas perfectamente
vertebrados. Nos hallábamos más cerca de Cruchaga, que era el poeta menos
atrevido de nuestros mayores, que de los innovadores realmente significativos.
(PARRA, 195890).
Os poetas citados no artigo de Meireles publicado em A manhã são poetas que marcaram
a literatura chilena e que, através de um corredor literário fomentado em parte por
personalidades importantes como as de Mistral e Meireles, e por outra parte por agentes
culturais que, apesar de não terem tanta evidência no mundo da literatura, participaram na
divulgação da poesia chilena. Os fatores políticos contribuíram para que os laços interculturais
fossem ampliados e se abriu espaço na imprensa para poesia chilena através de um jornal
simpatizante de um governo que teve na censura uma forma de atuar.
Considerações finais
Referências
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janeiro-1941/>. Acesso em: 10 mai. 2017.
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10 ago. 2017.
90
A transcrição dessa conferência de 1958 está disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_
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168
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LOPES, Dirceu Fernandes. Contra o arbítrio, pela liberdade. Jornal da USP, São Paulo, ano
XXIII, n. 831, 2-6 de jun. 2008. Disponível em:
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LUCA, Tânia de. História dos, nos e por meio dos periódicos. São Paulo: Editora Contexto,
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MISTRAL, Gabriela. O Ministro Oswaldo Aranha visto pela grande poetisa Gabriela Mistral:
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1941. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/116408/12336>. Acesso em: 10 jun.
2017.
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.
169
Resumo: Este artigo faz um recorte das publicações no jornal A manhã as quais remetem a uma ponte cultural
entre o Brasil e o Chile, no que se refere à poesia nos anos 40. Entre outros textos, analisam-se os poemas citados
no artigo “8 poetas”, publicado em 1943, no qual Cecília Meireles insere e comenta a poesia antologada por Tomás
Lago em 1939. Para nossa reflexão sobre essa relação intercultural, temos as considerações do jornalista e
pesquisador Juan Uribe Echevarría, publicadas nesse mesmo periódico. Para pensar o jornal como suporte e
veículo, nos remetemos a História dos, nos e por meio dos periódicos (2008) de Tânia Regina de Luca. A página
do jornal configura-se como instrumento para a pesquisa e reflexão da recepção da poesia chilena no Brasil.
Palavras-chave: Imprensa. Poesia. A manhã. Cecília Meireles. Gabriela Mistral.
Abstract: This work presents a selection of publications in the newspaper called A Manhã, related to cultural
associations between Brazil and Chile in relation to poetry in the 1940s. We analyze the poems in the article
entitled “8 poetas” published in 1943, in which Cecília Meireles presents and comments about the poetry
anthologized by Tomás Lago in 1939. We also make explicit some considerations by the journalist and researcher
Juan Uribe Echevarría published in the same newspaper, in order to induce reflections about this intercultural
relationship. Thinking about the newspaper as support and vehicle, we refer to História dos, nos e por meio
dos periódicos (2008) by Tânia Regina de Luca. The newspaper page constitutes an instrument for the research
and reflection about the reception of the Chilean poetry in Brazil.
Keywords: Press. Poetry. A manhã. Cecília Meireles. Gabriela Mistral
170
Capítulo 17
Introdução
Fundamentação teórica
De acordo com Campos (1986, p. 8), traduzir é “fazer passar, de uma língua para outra,
um texto escrito na primeira delas”, ele ainda define o papel do tradutor como sendo de “levar
o leitor de uma língua para o lado da língua do autor estrangeiro, ou, inversamente, trazer o
autor de uma língua estrangeira para o lado da língua do leitor”. O autor destaca adiante que
“não se traduz afinal de uma língua para outra, e sim de uma cultura para outra” (p. 27). Tendo
171
tais conceitos a respeito da tradução e do ato de traduzir, o presente trabalho está apoiado na
teoria Funcionalista de Christiane Nord, para ela:
• Emissor;
• Intenção;
• Público;
• Meio;
• Lugar;
• Tempo;
• Motivo;
• Função.
Os fatores intratextuais são analisados mediante informações sobre o próprio texto, são
eles:
• Assunto;
• Conteúdo;
• Pressuposições;
• Estruturação;
• Elementos não verbais;
• Léxico;
• Sintaxe;
• Elementos suprassegmentais.
172
Ao final da análise dos fatores a autora reserva um espaço para o quesito ‘função’, que
mostra a interdependência dos fatores extratextuais e intratextuais no texto. (NORD, 2016,
p.75)
Sendo assim, podemos concluir que a proposta teórica funcionalista permite ao tradutor,
seja ele profissional ou ainda em formação, ter uma visão paralelamente ampla e detalhada das
variáveis existentes no processo tradutório, sendo o processo determinante para as tomadas de
decisão do tradutor, e que podem influenciar no produto final. O tradutor, então, precisa ter
clareza para quem escreve e todo contexto sócio histórico cultural que ancora os elementos
intratextuais do texto fonte, e que consequentemente dialogam com seu público final, para
poder analisar quais informações serão relevantes ou não para o mesmo. Essa concepção de
tradução caracteriza o tradutor como um negociador de sentido, que lida com um processo
dinâmico de análise constante sobre os elementos envolvidos no processo, e que possa gerar
um texto que promova um diálogo à construção de sentido por parte do leitor ou ouvinte.
Contextualização Profissional
A autora conclui dizendo que “o e-mail assume função de suporte quando se presta a
veicular, em anexo, ou no espaço fornecido pelos programas para a produção de textos,
qualquer tipo de gênero textual”. (DA CRUZ, 2005, p. 46). Fato este que torna o e-mail suporte
tão importante quanto o e-mail gênero, pois o Secretário Executivo precisa estar apto a
manusear ambos sendo que são imprescindíveis para o desenvolvimento de muitas tarefas no
dia a dia do profissional.
Olhando para essa transição do e-mail de suporte para gênero textual cabe a colocação de
Bronckart (2003, p. 73, 74) de que “alguns gêneros tendem a desaparecer, mas podem, às vezes,
reaparecer sob formas parcialmente diferentes; alguns gêneros modificam-se; gêneros novos
aparecem; em suma, os gêneros estão em perpétuo movimento.”
Quanto a sua estrutura, Paiva (2004) observa que é similar à da carta, com vocativo, texto,
despedida e assinatura, e ainda permite anexos e links. Os dados cronológicos (dia/hora) são
automaticamente inseridos pelo programa on-line, e sua linguagem varia de acordo com o grau
de intimidade estabelecido entre os interlocutores e com a finalidade a que se destina a
comunicação.
Por fim, quando nos posicionamos com um novo olhar considerando todas as reflexões
acima citadas podemos perceber que no dia-a-dia da prática profissional do Secretário
Executivo, o e-mail tanto enquanto suporte quanto como gênero textual é de suma importância
para o desenvolvimento da comunicação tanto pessoal quanto profissional do mesmo. E ainda
ter conhecimentos específicos sobre cada uma de suas respectivas peculiaridades.
Procedimento metodológico
O procedimento escolhido para dar apoio à pesquisa foi o de sequência didática (SD), que
segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 82, 83) “é um conjunto de atividades escolares
organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”, os autores
ainda acrescentam que sua finalidade é “de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de
texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada
situação de comunicação”.
174
A organização de uma sequência didática ocorre conforme os próprios autores
descrevem:
Refletindo sobre a proposta metodológica de sequência didática, sugerida por Dolz et al.
(2004), planejamos uma proposta de implementação de uma sequência didática na sala de aula
de ‘tradução’, no curso de Secretariado Executivo, para que pudéssemos ampliar o olhar sobre
questões teóricas que servem como suporte para o processo de ensino/ aprendizagem do fazer
tradutório, assim como proporcionar aos participantes uma conscientização sobre o processo de
tradução, levando-os a perceber que não se trata apenas de uma questão de transposição
linguística, além de também colaborar com a consolidação da interface de ensino de tradução e
Secretariado Executivo, visando contribuir para futuras pesquisas nesta área. Somada a esses
fatores, tal escolha se deu pelo fato de os gêneros textuais estarem presentes nas nossas práticas
sociais, materializando situações reais comunicacionais, principalmente na atuação diária do
profissional de Secretariado Executivo. E em se tratando de tradução, o objetivo da aplicação
da SD é levar o aluno a pensar na produção como um processo, e não unicamente como produto.
Cada momento da SD tem um elemento a ser trabalhado, que são os módulos, e cada elemento
modular vai trabalhar aspectos específicos para prepara-los melhor para a produção final.
Baseando-nos nessa proposta metodológica, nos pressupostos teóricos apresentados de
antemão e considerando o contexto de formação dos participantes, pudemos elaborar uma
sequência didática com o propósito de desenvolvê-la durante esta pesquisa para obtenção do
corpus. Segue:
175
Figura 2 – Sequência Didática elaborada pela autora.
Sendo assim, apresentamos aqui as etapas preparadas para aplicação, pensando nas possíveis
necessidades de abordagem durante o desenvolvimento da SD, e na seção de ‘Apresentação e
análise de resultados” o desenvolvimento destes momentos serão apresentados.
‘Você é Secretário (a) Executivo (a) em uma empresa de organização de eventos e está
envolvido no planejamento de uma feira de intercâmbio do sul do país, onde
universidades da Europa vêm expor seus cursos com o intuito de atrair estudantes
brasileiros. Seu encargo é de entrar em contato com os representantes das
universidades solicitando seus materiais para divulgação, e enviá-los a proposta de
programação do evento para ser aprovada. Sendo assim, você escolherá uma
universidade que seja de uma região onde sua língua de estudo é falada, e produzirá
um e-mail atendendo aos requisitos acima citados.’
QP 01:
● Tem conhecimentos do gênero textual e-mail em sua língua estrangeira de estudo?
● Quais as dificuldades tradutórias encontradas?
● Qual a solução encontrada?
QP 02:
● Neste momento, como você conceituaria Gênero Textual?
● Com as atividades realizadas sobre o GT e-mail, que elementos você destacaria que
ampliaram seus conhecimentos sobre este gênero?
QP 03:
● De acordo com a teoria funcionalista você pode elencar quais elementos o fez refletir
sobre o processo tradutório?
QP 04:
● Refletindo sobre os elementos elencados da teoria funcionalista, o que pode ser
ressaltado como benefício para a produção textual do gênero textual e-mail?
● Você acredita que a sequência didática aplicada trouxe benefícios em sua formação, no
âmbito da tradução, como profissional de Secretariado?
178
Considerações finais
O presente artigo não apresenta análises e resultados, uma vez que os mesmos ainda estão
sendo processados pela pesquisadora e serão colocados à disposição dos leitores após a defesa
de sua dissertação.
Ao final da aplicação dessa SD proposta, espera-se que os participantes possam se
conscientizar de que a tradução não é unicamente uma atividade de transposição linguística,
identificando as principais dificuldades encontradas durante as atividades desenvolvidas,
analisando os diversos elementos sócio histórico culturais que podem influenciar suas
produções e cientes de que as introduções teóricas apresentadas podem servir de apoio para o
processo tradutório.
Ainda, se espera poder colaborar para a consolidação da interface entre ensino de tradução
e Secretariado Executivo, bem como contribuir para futuras pesquisas nesta área. Por fim, pode
se considerar que a presente proposta de implementação de Sequência Didática pode servir de
modelo e inspiração para outras futuras serem desenvolvidas.
Referências
COLINA, Sonia. Ensino de tradução: da pesquisa à sala de aula. Tradução Marileide Dias
Esqueda, Paula Godoi Arbex, Sandra Aparecida Faria de Almeida, Silvana Maria de Jesus e
Stéfano Pascchoal. Uberlândia: EDUFU, 2015.
179
NORD, Christiane. Análise textual em tradução: bases teóricas, métodos e aplicação
didática. Tradução e Adaptação coordenadas por Meta Elisabeth Zipser. São Paulo: Rafael
Coppeti Editor, 2016.
PAIVA, V.L.M.O. E-mail: um novo gênero textual. In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A.
C. (Org.) Hipertextos e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2004. p. 68-90.
Resumo: Com o perfil de assessor e facilitador de comunicação, o profissional de Secretariado Executivo tem a
função, dentre outras, de ser intérprete e fazer versões e traduções nas diferentes práticas sociais de seu contexto
profissional. Durante sua formação, grande parte dos estudos se volta para o estudo de ensino e aprendizagem de
línguas estrangeiras, e ao campo da tradução, que é uma função muito importante do profissional da área. O
principal objetivo de uma disciplina de tradução na formação de tradutores é de levar o aprendiz a adquirir
competência tradutória. Sendo assim, percebe-se a necessidade de um preparo específico aos estudantes que atuam
nessa área, e com este trabalho acredita-se que a formação desses estudantes pode ser mais qualificada através da
abordagem funcionalista de Christiane Nord (2016), que propõe um Modelo de Análise Textual para o
ensino/aprendizagem de profissionais da tradução. Nele se presa principalmente pela figura determinante do leitor
e ou ouvinte-meta, seu diálogo na construção do sentido e sua ancoragem nos elementos culturais, históricos,
econômicos e políticos do contexto comunicacional. Como procedimento metodológico utiliza-se da
implementação de uma Sequência Didática (DOLZ, NOVERRAZ; SCHNEUWLY 2004, p. 82) que é “um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou
escrito".
Palavras-chave: Tradução. Funcionalismo. Secretariado Executivo. Sequência Didática.
Abstract: With the aide profile and facilitator of communication, the Executive Secretary has the function, among
others, to be an interpreter and make versions and translations in different social practices of their professional
context. During their studies, most of the subjects are back to the study of learning and teaching foreign language,
and to the field of translation, which is a very important function of this area of work. Thus, is perceived the need
for a specific preparation for the students who work in this area, and with this work, it is believed that the training
of these students can be more qualified through the functionalist approach of Christiane Nord (1991), who proposes
a ‘Model of textual analysis’ for the teaching/learning of translation professionals. It is mainly determined by the
determining figure of the reader and/or listener-goal, its dialogue in the construction of meaning and its anchoring
in the cultural, historical, economic and political elements of the communicational context. As a methodological
procedure, is used the implementation of a Didactic Sequence (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY 2004, p.
82), which is "a set of school activities organized systematically around a verbal or written textual genre."
Keywords: Translation. Functionalism. Executive Secretariat. Didactic Sequence.
180
Capítulo 18
Introdução
Pouco tempo depois das primeiras publicações dos livros de Clarice Lispector no Brasil,
já começaram a surgir suas traduções para vários idiomas. Aproximadamente quinze países
receberam traduções dos livros da autora em suas línguas. Segundo o site do Instituto Moreira
Salles houve traduções para o tcheco, finlandês, sueco, holandês, norueguês, japonês,
dinamarquês, hebraico, polonês, coreano, inglês, alemão, francês, italiano, espanhol e catalão.
181
A novela A hora da estrela (1977) foi seu livro mais traduzido. Sua primeira tradução
foi para o tcheco em 1981, depois para o francês em 1984, tendo uma segunda edição em 1985.
Em 1985 também saiu a primeira tradução alemã, a segunda edição da qual foi editada em 1992.
Em 1986 o livro foi traduzido para o inglês e em 2011 retraduzido pelo biógrafo de Clarice
Lispector, Benjamim Moser que em 2009 havia publicado o livro Clarice, uma biografia, com
tradução para o português de José Geraldo Couto. Os outros idiomas para os quais A hora da
estrela foi traduzido foram polonês em 1987, holandês em 1988, finlandês em 1996 e coreano
em 2007. Para o espanhol o livro foi traduzido primeiro em Madrid em 1989 com novas edições
em 1992, 2000 e 2011. Em Buenos Aires em 1989 também surgiu uma tradução do livro, que
foi retraduzido em 2010.
O segundo livro mais traduzido foi A paixão segundo G. H (1964). A primeira tradução
foi para o inglês em 1977, retraduzido em 1988 e 2012. Em seguida uma tradução para o francês
em 1978, italiano em 1982, alemão e japonês em 1984, norueguês em 1989, dinamarquês em
1992 e catalão 2006. Para o espanhol, a primeira tradução foi realizada em 1969 na Venezuela
pelo tradutor Juan García Gayó. Nos anos 1988, 2000 e 2010 surgiram novas retraduções na
Espanha e Argentina. O terceiro livro mais publicado fora do Brasil foi Perto do coração
selvagem (1944), traduzido pela primeira vez para o francês em 1954, seguido do tcheco em
1973, alemão em 1981, italiano em 1987, inglês em 1990 e finlandês em 2008. A primeira
tradução para o espanhol foi realizada em 1977 por Basílio Losada. O livro recebeu mais cinco
edições e em 2011 foi publicada uma retradução por Bárbara Belloc e Teresa Arijón na
Argentina.
A seguir vem Água Viva (1973) traduzido para sete idiomas, espanhol (1975), italiano
(1980), francês (1980), alemão (1987), inglês (1989), tcheco (2000) e sueco (2007). Depois
segue Laços de família (1960) com as traduções para o sueco (1963), inglês (1972), italiano
(1986), francês e holandês (1989), espanhol na Argentina em 1973 e Espanha em 1988. A maça
no escuro (1961) foi traduzida pela primeira vez para o inglês em 1961 e recebeu
aproximadamente cinco novas edições. A segunda tradução foi para o alemão em 1964,
seguindo o francês em 1970 e italiano em 1988. Juan García Gayó publicou para o espanhol a
primeira tradução em 1974 em Buenos Aires. Em Madrid a obra foi traduzida por Elena Losada
em 2003.
A primeira tradução para o espanhol de um dos livros de Clarice Lispector surgiu na
Venezuela pela Monte Ávila Editores. La pasión según G.H, traduzido por Juan García Gayó e
publicado pela editora em 1969 foi seguido por La legión extranjera, traduzido e publicado pela
mesma editora e tradutor em 1971. Na década de 1970 em Buenos Aires, pelas editoras
argentinas Editorial Sudamericana, Ediciones de la flor e Santiago Rueda, foram traduzidos
Lazos de familia (1973); La manzana en la oscuridad (1974); El misterio del conejo que sabía
pensar (1974); Agua viva (1975); El via crucis del cuerpo (1975); Un aprendizaje o el libro de
los placeres (1975). Em 1977 temos a primeira tradução de um livro completo de Clarice
Lispector na Espanha. Pela editora Alfaguara em Madrid, Basílio Losada, um dos principais
pesquisadores da autora brasileira na Espanha, traduziu Cerca del corazón salvaje.
Na década de 1980 em Buenos Aires saiu a segunda edição de El misterio del conejo
que sabía pensar em 1985 e a primeira tradução de La hora de la estrella em 1989 pela editora
Biblos, tradução de Irene Silva e Mônica Serra. No mesmo ano o livro foi lançado em Madrid
pela editora Siruela e tradução de Ana Poljak. Em Barcelona no ano de 1988 as editoras
Montesinos e Grijalbo Mondadori publicaram Felicidad clandestina; La pasión según G.H;
Lazos de familia e Silencio. A partir da década de 1990 houve uma “explosão” na demanda
pelas traduções de Clarice Lispector em idioma espanhol. Em Buenos Aires, Madrid e
Barcelona foram surgindo traduções de todos os seus livros, algumas reedições como o caso de
La hora de la estrella em 1992 e algumas retraduções como Un aprendizaje o el libro de los
placeres. Na Argentina, as principais editoras a publicarem os livros de Clarice Lispector foram
182
El Cuenco del Plata e Corregidor, ambas em Buenos Aires. Na Espanha os direitos autorais
pelas obras da autora foram adquiridos pela editora Siruela que possui uma coleção especial de
seus livros intitulada “Biblioteca Clarice Lispector”.
Dado o grande número de traduções para o espanhol, alguns livros foram também
traduzidos para o catalão, segundo idioma mais falado na Espanha. Em Barcelona nos anos de
2006, 2007 e 2008, foram traduzidos: Aigua viva, tradução de Núria Prats, editora Pagès
Editors; La passió segons G.H. e L’hora de l’estrella pela mesma tradutora, porém para a
editora Empúries; E os livros infantis La dona que va matar els peixos e El misteri del conill
que pensava pela editora Cruilla com tradução de Natàlia Tomàs Anguera e Enric Tudó.
Em galego foi publicado em 1996 A paixão segundo G.H., sob a coordenação e tradução
de Benedito Nunes e da Editorial/es: Association Archives de la Littérature Latino-américaine
des Caraïbes et Africaine du XXe siècle. Amis de M. A. Asturias - ALLCA XX-Colección
Archivos (ARF, 2015, p. 24). O mesmo movimento de se traduzir para idiomas co-oficiais de
alguns países como aconteceu na Espanha com o catalão e o galego, se repete no Perú com a
tradução de alguns escritores latino-americanos para o quéchua. Segundo o jornal El País
formarão parte de uma coleção chamada “coleção de clássicos latino-americanos”. No volume
haverá tradução dos contos de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Juan Carlos
Onetti, Adolfo Bioy Casares e Clarice Lispector. Ainda segundo El País, o projeto começou
em 2014 com a aliança entre o governo com a editorial peruana independente Estruendomudo.
Todos os autores pertencem a agência literaria Carmen Balcells, que concedeu os direitos por
se tratar da “primeira tradução a um idioma originário da América Latina”. O motivo foi
impulsionar o uso da língua e lutar contra a discriminação. O conto de Clarice traduzido foi
“Melhor que arder” (em espanhol: “Mejor que arder”. Em quéchua: “Kañakuymantaqa chayqa
allichkanmi”) (RODRIGUEZ, 2015).
186
Traduzir Clarice Lispector sob a perspectiva da tradução literária
Conclusão
Referências
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189
LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Bauru: Edusc,
2007.
Resumo: O presente documento mostra algumas informações sobre a recepção das traduções das obras de Clarice
Lispector na Espanha e na América Latina. Considerando que todos os livros escritos por esta autora brasileira
foram traduzidos para o espanhol, o objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos dos processos editoriais das
traduções, bem como abordar o seu papel na divulgação da literatura brasileira dentro da diversidade cultural
hispânica. Visando esses objetivos, realizei uma extensa pesquisa sobre: (I) os editores hispânicos que publicaram
as traduções dos livros de Lispector; (II) os países que receberam as traduções; (III) os anos em que foram
publicados; (IV) e as traduções reemitidas. A pesquisa tornou possível concluir que a popularidade de Clarice
Lispector no Brasil se espalhou pelos territórios latino-americanos e espanhóis e também contribuiu para o
surgimento de traduções em línguas cooficiais como Quechua no Peru e catalão na Espanha. A partir disto pode-
se concluir que Clarice Lispector é um dos maiores expoentes da literatura brasileira. Além disso, pode-se concluir
que o interesse por suas obras também alcançou os círculos acadêmicos, dando origem à pesquisa científica em
diferentes universidades espanholas, bem como estimulou o estudo da cultura brasileira e língua portuguesa nas
escolas.
Palavras-chave: Tradução. Literatura brasileira. Clarice Lispector. Língua Espanhola.
Abstract: The present paper shows some information on the reception of the translations of Clarice Lispector’s
works in Spain and Latin America. Considering that all books written by this Brazilian author have been translated
into Spanish, the objective of this paper is to discuss some aspects of the editorial processes of the translations as
well as to approach their role in the dissemination of the Brazilian literature within the Hispanic cultural diversity.
Aiming at these targets, I have carried out an extensive research concerning: (i) the Hispanic publishers that
published the translations of Lispector’s books; (ii) the countries that have received the translations; (iii) the years
they were published; (iv) and the reissued translations. The research has been making it possible to notice that
Clarice Lispector's popularity in Brazil has spread across the Latin American and Spanish territories and it also
has contributed to the emergence of translations into co-official languages such as Quechua in Peru and Catalan
in Spain. From this one can conclude that Clarice Lispector is one of the greatest exponents of the Brazilian
literature. Besides, one can notice that the interest in her works has also reached the academic circles, giving rise
to scientific research in different Spanish universities, as well as stimulating the study of Brazilian culture and
Portuguese language in schools.
Keywords: Translation. Brazilian literature. Clarice Lispector. Spanish language.
190
Capítulo 19
Introdução
191
De fato, trata-se de uma monumental e arriscada aventura editorial, uma vez que envolve
uma equipe de tradutores e, consequentemente, exige tempo e um grande investimento
financeiro a ser despendido. Aliás, Henrot Sostero discorre sobre os riscos implicados nesse
projeto, apontando os casos em que editoras foram à falência por conta desse empreendimento:
Não obstante, os editores da Globo, com sede em Porto Alegre, decidem encarar os
desafios envolvidos nesse projeto e montam uma seleta equipe de tradutores que atuariam
individualmente em cada volume que compõe a Recherche em sua divisão clássica em sete
livros. Para tal, contratam Mario Quintana, um dos tradutores mais atuantes da editora, que
ficara responsável pela tradução de grande parte da obra, a saber, dos quatro primeiros volumes,
Du côté de chez Swann (1919), intitulado No caminho de Swann (1948), À l'ombre des jeunes
filles en fleurs (1919), À sombra das raparigas em flor (1951), Le côté de Guermantes (1920-
1921), O caminho de Guermantes (1953), e Sodome et Gomorrhe (1922), Sodoma e Gomorra
(1954); já o quinto livro, La prisonnière (1923), A prisioneira (1954), foge à regra praticada
nos demais pelo fato de ter sido traduzido concomitantemente por duas pessoas, Manuel
Bandeira e sua companheira Lourdes Souza de Alencar; o sexto livro, Albertine disparue
(1925), A fugitiva (1956), é traduzido por Carlos Drummond de Andrade e o sétimo, Le temps
retrouvé (1927), por Lúcia Miguel Pereira, sob o título de O tempo redescoberto (1957).
Ora, uma tradução de natureza coletiva requer alguns cuidados específicos que uma
tradução realizada por um único tradutor não prevê, tais como a atenção à unidade do discurso,
ou seja, no que tange à homogeneidade da obra. De modo que é importante que algumas normas
sejam estabelecidas e seguidas por todos, em nome da legibilidade do texto, tais como a decisão
pela tradução ou manutenção dos antropônimos e topônimos do texto-fonte. Porém, não é
somente com relação a um tema tão objetivo quanto este que os tradutores têm de lidar ao
realizar uma tradução coletiva, existem aspectos textuais que são mais subjetivos e demandam
maior atenção por parte dos envolvidos, como é o caso do ritmo da obra e, consequentemente,
da pontuação, aspectos que por vezes são negligenciados até mesmo em uma tradução realizada
por um único tradutor. Sobretudo, se pensarmos no caso da prosa, gênero cuja forma é
erroneamente desvalorizada em nome de um pretenso conteúdo, conforme denuncia
Meschonnic91.
De acordo com Meschonnic (1982, p. 71), o ritmo é a organização do sentido no discurso,
e sendo o sentido uma atividade do sujeito, o ritmo é necessariamente uma organização do
sujeito no discurso. Destarte, tenciono com este trabalho analisar como o ritmo proustiano foi
91
O autor assinala a oposição entre prosa e poesia como responsável pelos problemas teóricos e políticos da escrita
literária, dentre os quais encontra-se a questão do ritmo: "Prose, poésie: tous les problèmes théoriques et politiques
de l'écriture, son historicité, sont en jeu dans cette opposition. Autant la notion logique et historique de genre y
mettait une rhétorique culturelle, autant le rejet moderne de cet ordre a tendu à en faire des absolus hors histoire,
hors théorie, mystifiés mystificateurs. L'opposition entre prose et poésie se reconnaît à trois repères: le vers,
l'"image", la fiction. Critères d'usage. Le premier qui définit la poésie par le vers, et le rythme par le mètre, fait
que la prose est le reste; l'autre caractérise la poésie par l'image, la prose étant la rationalité, la représentation
intellectuelle. Dans les deux cas, la poésie est marquée: la prose est le sans rythme, le sans image"
(MESCHONNIC, 1982, p. 395).
192
traduzido por Carlos Drummond de Andrade, escritor-tradutor responsável por A fugitiva
(1956), sexto livro de Em busca do tempo perdido (1948-1957).
De acordo com Meschonnic (1982, p. 70), o ritmo de uma obra pode ter mais sentido que
as palavras que a compõem. Segundo sua visão não dicotômica, que se opõe ao pensamento
binário sígnico, são consideradas categorias partícipes do ritmo a entonação e a prosódia, por
exemplo, até então excluídas da análise rítmica tradicionalmente praticada, cuja maior atenção
é direcionada à métrica do verso. Destarte, tal mudança promove uma subjetivação do ritmo,
uma vez que este deixa de ser analisado apenas em termos gramaticais, atrelado ao nível
sintático da frase, limitado à forma e dissociado do sentido, e passa a ser visto como elemento
antropológico capital da linguagem, como a manifestação mais acabada do sujeito no discurso.
De modo que pareceu-me pertinente pensar o ritmo proustiano segundo tal perspectiva,
uma vez que este escritor possui uma visão distante da concepção de ritmo praticada no século
XX, a qual seguia princípios métricos em sua análise. Afinal, o ritmo poético proustiano possui
a particularidade de ser constituído sob um ponto de vista oral, voltado, portanto, a aspectos
prosódicos. Para tanto, Proust faz uso de uma pontuação atípica, que não segue normas
sintáticas, posto que não é pautada pela gramática, e sim pela oralidade.
Sabe-se através das cartas trocadas entre Proust e seus editores que o escritor era
extremamente preocupado com a forma do seu texto, sobretudo no que concerne à disposição
do texto na página. O autor tinha discussões infindáveis com os seus editores sobre
diagramação, a estrutura dos diálogos e, sobretudo, no que concerne à manipulação da
pontuação, constantemente denunciada por Proust nas revisões do texto que antecediam a
publicação.
A intenção inicial de Proust era publicar sua obra maior em um único volume, um
calhamaço de cerca de três mil páginas, sem capítulos, sem espaços em branco, mas ele foi
obrigado a cortar seu romance em diversos tomos, por conta de uma imposição da editora,
motivada, sobretudo, por questões econômicas, uma vez que a mesma poderia lucrar mais com
a venda dos livros separadamente.
Portanto, em uma tradução coletiva, é importante que os tradutores estejam atentos a esse
aspecto da obra, que ocupa um espaço central na construção da narrativa proustiana. Por se
tratar de um autor canônico, extremamente estudado no âmbito acadêmico, algumas
características da escrita proustiana são conhecidas até mesmo entre aqueles que não leram sua
obra, como é caso das famosas frases longas, pelas quais Proust é conhecido, assim como a
memória involuntária, as madeleines etc. Destarte, considerando o ritmo uma parte essencial
na composição da Recherche, analisarei a forma como Carlos Drummond de Andrade lidou
com esse aspecto da obra em sua tradução. Para tal, serão dispostos trechos do texto-fonte e da
respectiva tradução seguidos de comentários:
O trecho citado diz respeito ao incipit do sexto volume, que narra o momento em que o
Narrador descobre a fuga de Albertine de sua casa. A partir desse excerto é possível discorrer
acerca de uma série de questões relativas ao ritmo proustiano traduzido, à utilização particular
que o autor faz da pontuação, bem como à forma do texto em si. Primeiramente, tem-se a
questão da estruturação do texto, à composição dos diálogos, bem como à apresentação das
falas das personagens em primeira pessoa. A Recherche é narrada por Marcel, um narrador
autodiegético que, por vezes, concede o direito à palavra direta às personagens do romance.
Contudo, a forma como essas personagens se expressam na primeira pessoa, mesmo
quando estabelecem um diálogo direto com o Narrador, não é feita da maneira tradicional,
através de um diálogo estruturado com o uso do travessão, e sim por meio de aspas, itálicos ou
parênteses, conforme recorda Serça ao apontar que os "Guillemets, italique et parenthèses sont
ainsi les moyens par lesquels Proust fait entendre les paroles des personnages dans une écriture
à la première personne" (SERÇA, 2012, p. 115). Porém, como é possível notar no quadro
acima, a estrutura do texto é totalmente modificada por Drummond, que retira aleatoriamente
as aspas do incipit "Mademoiselle Albertine est partie!", excluindo o elo que havia sido
previamente estabelecido entre a fala de Françoise e a do Narrador. O mesmo ocorre no segundo
trecho destacado no excerto em negrito, em que o Narrador, novamente, repete a fala direta de
Françoise anunciando a partida de Albertine: "Mais ces mots: « Mademoiselle Albertine est
partie » venaient de traduire dans mon cœur […]", a qual é, mais uma vez, modificada por
Drummond e passa a ser apresentada sem as aspas indicando a fala direta de Françoise que,
nesta ocasião, é substituída por itálico: "Mas estas palavras A srta. Albertina foi-se embora
acabavam de produzir-me […]".
Em segundo lugar, há a questão da pontuação, que influencia diretamente no ritmo da
obra. Como é possível destacar, entre o texto-fonte e a tradução há um aumento de oito para
quatorze vírgulas no trecho selecionado. Ora, essa diferença notável se dá, sobretudo, por conta
da modificação da perspectiva adotada por cada autor no que tange à pontuação da obra. Isabelle
Serça, autora da obra Esthétique de la ponctuation (2012), defende que a pontuação é um objeto
estético que se liga, concomitantemente, à escrita e à oralidade. Quando vista pelo viés oral, a
pontuação assume uma função respiratória que é, com frequência, confundida com uma
transcrição imperfeita da prosódia, a qual passa a ser identificada à voz do escritor. Nesse
sentido, a pontuação de Proust é extremamente significativa, uma vez que seu uso é único, pois
não se encaixa nos padrões gramaticais praticados e tende a ser vista como uma reprodução
da condição asmática do autor, portanto, ligada à voz do escritor Proust. Aliás, a autora
defende, assim como outros estudiosos, que a leitura da obra de Proust deva ser feita em voz
alta92, com atenção particular à pontuação, atentando, sobretudo, para o seu efeito sonoro, e não
seu efeito gramatical. Afinal, a pontuação proustiana não segue princípios gramaticais, ou seja,
sua função não é separar elementos sintáticos, e sim auxiliar a leitura da obra.
92
"Pour certains qui ont connu Proust, l'écrivain a un style oral, fait pour être lu à haute voix" (SERÇA, 2012, p.
116).
194
Ademais, no final do excerto precitado há o primeiro corte de parágrafo realizado por
Carlos Drummond de Andrade, no qual o trecho "Il fallait faire cesser immédiatement ma
souffrance" é, na tradução de Drummond, transformado em um novo parágrafo. Tal
procedimento é extremamente recorrente na tradução de Drummond, que corta dezenas de
parágrafos julgados excessivamente longos pelo escritor-tradutor, inserindo da Recherche
parágrafos de três, ou quatro linhas, raramente encontrados no texto francês. Portanto, é
importante ressaltar que as frases longas são constitutivas da escrita proustiana, conforme dito
anteriormente, portanto, ao traduzir uma obra com tal particularidade, o tradutor deve ser
sensível ao efeito causado pela forma atípica do texto, bem como o uso irregular da pontuação,
recurso utilizado para construir suas frases longas.
No trecho abaixo, é possível perceber de maneira mais explícita a transformação do ritmo
proustiano na tradução:
Neste caso, a pontuação é o aspecto mais modificado por Drummond, responsável pela
transformação do ritmo do sexto volume. Conforme é possível destacar, o número de vírgulas
passa de cinco para nove na tradução, evidenciando a passagem de uma pontuação oral à escrita.
Além disso, o autor transforma a pontuação trecho final, em que a frase "On cherche à voir ce
qu’on aime, on devrait chercher à ne pas le voir, l’oubli seul finit par amener l’extinction du
désir" é vertida por "Procuramos ver o objeto de nosso amor; devíamos procurar não vê-lo: só
o esquecimento acaba trazendo a extinção do desejo". Aqui, as duas vírgulas do texto-fonte
desaparecem, dando lugar a um ponto-e-vírgula, seguido de dois-pontos. No primeiro caso, a
transformação da vírgula em ponto-e-vírgula desacelera o texto ainda mais, uma vez que esta
pontuação sugere uma pausa mais longa que a vírgula. Já no segundo caso, a transformação da
vírgula em dois-pontos, além da pausa mais longa implicada, prenuncia a explicação que antes
encontrava-se implícita, mascarada pela vírgula.
No excerto abaixo, novamente, a pontuação sofre profundas alterações, como é possível
perceber pela quantidade de vírgulas do texto-fonte em comparação com sua tradução.
Enquanto o texto francês não possui nenhuma vírgula, a tradução de Drummond conta com seis
para o mesmo trecho. Ora, esse aumento exacerbado da pontuação modifica o ritmo fluído da
obra como um todo, uma vez que não se trata de uma alteração pontual, e sim de um
procedimento utilizado sistematicamente, conforme pode-se deduzir a partir dos outros trechos
analisados. Neste caso, se tomarmos a pontuação como indicadora de pausa, a leitura torna-se
fragmentada, reflexo de um texto despedaçado em pequenos grupos sintáticos:
195
Quadro 3 – Trecho de La fugitive e de A fugitiva para discussão sobre a pontuação.
Conforme afirma Pedro Luft, "A nossa pontuação – a pontuação em língua portuguesa
– obedece a critérios sintáticos, e não prosódicos" (2002, p. 7, grifos do autor), o gramático
ainda denuncia que "Essa ligação entre pausa e vírgula deve ser a responsável pela maioria dos
erros de pontuação" (LUFT, 2002, p. 7), ao que defende enfático que "Está mais do que na hora
de desligar as duas coisas" (LUFT, 2002, p. 7). Todavia, parece-me falacioso traduzir um texto
estrangeiro, que possui sua própria historicidade, fruto de outro tempo e espaço, com uma
construção poética que lhe é única, pautada em princípios estéticos outros, por um viés
contemporâneo. Afinal, ao traduzir a obra de Proust, escritor francês do século XX, porém que
fazia uso de uma pontuação oral típica do século XVII, a partir de uma perspectiva
contemporânea, que enxerga a pontuação oral como um "erro de pontuação", conforme ressalta
Luft, Drummond desestrutura a obra, através de uma leitura anacrônica, que busca "corrigir" o
que considera no texto-fonte um defeito de época.
Conforme dito anteriormente, a obra de Proust foi feita para ser lida em voz alta,
respeitando as pausas indicadas pela pontuação atípica engendrada pelo autor. Contudo, na
tradução tal aspecto da obra é perdido com a transformação da pontuação oral em escrita. Com
isso, a leitura – se realizada em consonância com a pontuação indicada na tradução – torna-se
fragmentária, travada, uma vez que a pontuação gramatical não corresponde a pausas, portanto,
não ampara a leitura, e sim destaca elementos sintáticos. Portanto, essa mudança de perspectiva,
da pontuação oral pela escrita, altera significativamente o ritmo da obra, além de implicar uma
transformação na abordagem do leitor perante o livro, uma vez que a leitura em voz alta perde
o sentido na tradução.
Considerações finais
Busquei, com este trabalho, discorrer sobre a tradução da pontuação proustiana, que
possui como característica principal uma construção voltada para a oralidade, ao contrário da
perspectiva gramatical tradicionalmente difundida a partir do século XX. No que concerne à
tradução de Drummond, ocorre uma mudança na perspectiva adotada com relação à pontuação,
uma vez que a pontuação prosódica proustiana que, muitas vezes, tende a ser vista como uma
reprodução da fala do autor em sua condição asmática, ligada, portanto, à voz do escritor Proust,
é normatizada e passa a ser vista pelo viés gramatical, com isso, o ritmo da obra é totalmente
transformado.
Soma-se a isso o fato de se tratar de uma tradução coletiva, particularidade que merece a
atenção dos tradutores envolvidos, pois desse cuidado depende a unidade textual, a
homogeneidade do discurso. Afinal, conforme defende Meschonnic, "on ne traduit plus de la
langue, mais un texte" (1999, p. 43), e esse texto, embora dividido em tomos e distribuído entre
vários tradutores, é único em sua essência, ou seja, suas partes não podem ser dissociadas umas
das outras sem prejuízo da unidade textual. Contudo, no caso da Recherche brasileira (1948-
1957), as abordagens perante o ritmo, e outros aspectos constitutivos da obra, são adotadas
individualmente pelos escritores-tradutores, o que afeta a unidade do discurso, conforme
196
defendo na minha tese93, na qual analiso a integralidade da obra e de sua primeira tradução
brasileira, em busca da voz do escritor-tradutor presente no texto proustiano, atentando para a
polifonia desse novo texto.
Finalmente, ao analisar a forma como Drummond lidou com a pontuação proustiana na
tradução de A fugitiva (1956), foi possível identificar uma mudança na perspectiva adotada em
relação a esse objeto estético, que passa de um viés prosódico a uma pontuação sintática. Tal
transformação, além de afetar o ritmo poético do texto, elimina a possibilidade de uma leitura
em voz alta, aspecto relevante do texto-fonte.
Referências
LUFT, Celso Pedro. A vírgula: considerações sobre o seu ensino e o seu emprego. São Paulo:
Editora Ática, 2002.
PROUST, Marcel. Du côté de chez Swann: tome I. Paris: Nouvelle Revue Française, 1919.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução Mario Quintana. Porto Alegre: Globo,
1948.
PROUST, Marcel. A l'ombre des jeunes filles en fleurs: tome II. Paris: Nouvelle Revue
Française, 1919.
PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Tradução Mario Quintana. Porto Alegre:
Globo, 1951.
PROUST, Marcel. Le côté de Guermantes I: tome III. Paris: Nouvelle Revue Française, 1920.
PROUST, Marcel. Le côté de Guermantes II; Sodome et Gomorrhe I: tome IV. Paris:
Nouvelle Revue Française, 1921.
PROUST, Marcel. Sodome et Gomorrhe II: tome V. Paris: Nouvelle Revue Française, 1922.
PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. Tradução Mario Quintana. Porto Alegre, Globo, 1954.
93
Tese Intitulada (Des)aparecer no texto: o escritor-tradutor na tradução coletiva de À la Recherche du temps
perdu de Marcel Proust. Orientada pelo Prof. Dr. Berthold Zilly, em andamento, vinculada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos da Tradução (PPGET), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
197
PROUST, Marcel. La Prisonnière: Sodome et Gomorrhe III: tome VI. Vol. 1. Paris: Nouvelle
Revue Française, 1923.
PROUST, Marcel. La Prisonnière: Sodome et Gomorrhe III: tome VI. Vol. 2. Paris: Nouvelle
Revue Française, 1923.
PROUST, Marcel. Albertine Disparue: tome VII. Vol. 1. Paris: Nouvelle Revue Française,
1925.
PROUST, Marcel. Albertine Disparue: tome VII. Vol. 2. Paris: Nouvelle Revue Française,
1925.
PROUST, Marcel. A fugitiva. Tradução Carlos Drummond de Andrade. Porto Alegre: Globo,
1956.
PROUST, Marcel. Le temps retrouvé: tome VIII. Vol. 1. Paris: Nouvelle Revue Française,
1927.
PROUST, Marcel. Le temps retrouvé: tome VIII. Vol. 2. Paris: Nouvelle Revue Française,
1927.
PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Tradução Lucia Miguel Pereira. Porto Alegre:
Globo, 1957.
VERISSIMO, Erico. Um certo Henrique Bertaso: artigos diversos. São Paulo: Globo, 1996.
Resumo: De acordo com Isabelle Serça, autora da obra Esthétique de la ponctuation (2012), a pontuação é um
objeto estético que se liga, concomitantemente, à escrita e à oralidade. Quando vista pelo viés oral, a pontuação
assume uma função respiratória que é, com frequência, confundida com uma transcrição imperfeita da prosódia, a
qual passa a ser identificada à voz do escritor. Nesse sentido, a pontuação de Proust é extremamente significativa,
uma vez que seu uso é único, pois não se encaixa nos padrões gramaticais praticados e tende a ser vista como uma
reprodução da condição asmática do autor, portanto, ligada à voz do escritor Proust. Ao traduzir uma obra com tal
particularidade, o tradutor deve ser sensível ao efeito causado pelo uso irregular da pontuação. Tendo em vista tais
fatos, e tomando como base teórica a contribuição de Serça (2012), este trabalho pretende analisar a forma como
Carlos Drummond de Andrade, tradutor do sexto livro da Recherche, em português, A fugitiva (1956), lidou com
a pontuação proustiana.
Palavras-chave: Pontuação. Tradução literária. Marcel Proust. Carlos Drummond de Andrade.
Abstract: According to Isabelle Serça, author of Esthétique de la ponctuation (2012), punctuation is an aesthetic
object that connects, concomitantly, to writing and orality. When viewed by oral bias, punctuation assumes a
respiratory function that is often confused with an imperfect transcription of prosody, which is then identified with
the writer's voice. In this sense, Proust's punctuation is extremely significant, since its use is unique, and since it
198
does not fit the grammatical patterns practiced and tends to be seen as a reproduction of the author's asthmatic
condition, therefore, linked to Proust's voice. When translating a work with such particularity, the translator must
be sensitive to the effect caused by the irregular use of punctuation. This paper intends to analyze the way Carlos
Drummond de Andrade, translator of Recherche's sixth book, A fugitiva (1956), dealt with the proustian
punctuation.
Keywords: Punctuation. Literary translation. Marcel Proust. Carlos Drummond de Andrade.
199
200
Capítulo 20
Talita Portilho
(Mestrando-PGET)
Introdução
94
Pesquisa em andamento intitulada “A avaliação de traduções profissionais como ferramenta didática” sob
orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia Vasconcellos, Programa de Pós-Graduação de Estudos da Tradução (PGET),
UFSC.
201
que evolve centralmente a dinâmica de feedback, indispensável para o aprendizado tanto no
ambiente pedagógico, quanto no ambiente profissional.
Referencial teórico
O referencial teórico que embasa este artigo se enquadra em uma perspectiva cognitivo-
construtivista da aprendizagem e em uma linha pedagógica de formação por competências. A
seguir são apresentados brevemente cada um desses conceitos teóricos e o modo como a
avaliação é abordada em cada um deles.
Nos anos 1980, o teórico canadense Jean Delisle, em sua obra L’analyse du discours
comme méthode de traduction (1980, teve o grande mérito de apresentar à comunidade
acadêmica dos Estudos da Tradução a proposta de formação de tradutores por objetivos de
aprendizagem, trazendo para a área de tradução a premissa educacional básica de estabelecer
objetivos claros para qualquer processo de ensino/aprendizagem (KELLY, 2005, p. 11). Delisle
(1993, p. 38)95 define o objetivo de aprendizagem como uma descrição da intenção pretendida
por uma atividade pedagógica com especificação das mudanças de comportamento que deverão
ocorrer no estudante ao final de um período de ensino/aprendizagem96. Inspirando-se nesse
conceito de objetivo de aprendizagem, Hurtado Albir e o grupo PACTE desenvolveram um
95
As citações em língua estrangeira serão traduzidas pelas autoras e as os trechos originais estarão transcritos em
nota de rodapé.
96
“Description de l’intention visée par une activité pédagogique et précisant les changements durables de
comportement devant s’opérer chez l’étudiant” (p. 38).
202
modelo de ensino de orientação cognitivo-construtivista no qual os objetivos de aprendizagem
são definidos com base em competências necessárias para o bom desempenho do tradutor
(HURTADO ALBIR, 2015), a partir dos resultados das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
PACTE a respeito da competência tradutória (CT) e sua aquisição.
Segundo Hurtado Albir (2007 p. 165) “a Formação por Competência (FPC) é uma
continuação lógica da aprendizagem por objetivos de aprendizagem, desenvolvida desde os ano
1960”97 e os programas que estabelecem esse tipo de competência ao nível das intenções de
formação são caracterizados como programas de formação por competências (SCALLON,
2015).
Considerando a competência um “saber atuar complexo que se apoia na mobilização e
combinação eficaz de uma variedade de recursos internos e externos em de uma família de
situações” (TARDIF, 2006, p.22 apud FERNÁNDEZ MARCH, 2010), a avaliação de
aprendizagem na formação por competências deve ser contínua e deve ser feita por meio de
tarefas complexas semelhantes à realidade profissional, tanto no conteúdo quanto nas condições
em que serão executadas.
Nessa linha pedagógica, o ensino é centrado no aluno e busca “alinhar, de maneira
sistemática, as atividades de ensino/aprendizagem e as tarefas de avaliação aos objetivos de
aprendizagem”98 (BIGGS; TANG, 2007 p. 7) com o propósito de acompanhar o processo de
aquisição das competências e dos objetivos de aprendizagem.
A figura a seguir, adaptada de Biggs e Tang (ibid.), mostra as perspectivas do professor
e do aluno em relação à avaliação. Segundo esses autores, o ponto de partida para o professor
são os objetivos de aprendizagem pretendidos e, a partir deles, o professor elabora as atividades
de ensino e os instrumentos de avaliação. Por outro lado, para o aluno, o ponto de partida é a
avaliação, ou seja, o estudante aprenderá com base naquilo que acha que será considerado na
avaliação.
Na figura, a seta vertical entre “objetivos pretendidos” e “avaliação” representa o
alinhamento da avaliação e do ensino que, segundo Biggs e Tang (ibid.), resulta em um
aprendizado mais efetivo. Isso ocorre porque, se a avaliação refletir os objetivos de
aprendizagem, os esforços de ensino do professor e os esforços de aprendizagem dos estudantes
estarão voltados para a mesma meta.
Figura 1 – Perspectivas do professor e do aluno em relação à avaliação
97
“Competence-based training (CBT) is a logical continuation of objectives-based learning, the later developed
since the 1960s”
98
“(...) systematically align the teaching/ learning activities, and the assessment tasks to the intended learning
outcomes (...)”
203
O avaliador pode ser: o próprio estudante (autoavaliação), algum colega (avaliação por
pares) ou alguém com mais conhecimento ou habilidades que os estudantes, preferivelmente
um profissional atuante no mercado (heteroavaliação) ou o professor.
Os momentos em que a avaliação ocorre podem ser antes do processo de aprendizagem
(inicial), ao longo do processo de aprendizagem (contínua), ou após a conclusão de um processo
de aprendizagem, com objetivo de verificar os conhecimentos adquiridos pelos estudantes em
um momento determinado (final).
Por fim, em relação ao objetivo, a avaliação pode ser diagnóstica, formativa ou somativa.
A avaliação diagnóstica, por meio de instrumentos como questionários, tarefas rápidas ou
discussões em sala de aula, permite que o professor conheça melhor o perfil dos alunos antes
de iniciar o processo de aprendizagem, além disso, permite identificar as competências que
estudantes já possuem, de modo que o professor possa adaptar as atividades de
ensino/aprendizagem às necessidades e ao nível específico dos estudantes.
A avaliação somativa é usada principalmente para atribuição de notas e permite avaliar
as competências adquiridas pelos estudantes em um período de ensino específico. Se usada
apenas no final do processo de aprendizagem, a avaliação somativa oferecerá apenas uma
imagem estática do conhecimento dos estudantes naquele momento específico. Por outro lado,
se for usada ao longo do processo de aprendizagem, permite avaliar o processo de aquisição de
conhecimentos.
Por fim, a avaliação formativa é usada para regular o processo de aprendizagem, tanto
para o professor quanto para o aluno, permitindo que ambos tomem consciência do progresso
da aquisição de conhecimentos e competências por parte dos estudantes. Ao professor, permite
avaliar suas escolhas quanto aos objetivos de aprendizagem e atividades de ensino. Para que
seja eficiente, a avaliação formativa deve ocorrer ao longo de todo o processo de aprendizagem.
Para que seja possível trazer ao ambiente de formação de tradutores atividades de
ensino/aprendizagem e de avaliação autênticas e semelhantes ao mercado de trabalho, conforme
sugerem Kiraly (2000) e Fernández March (2010), é importante que sejam disponibilizadas
informações sobre as práticas adotadas no mercado de trabalho. Nesse sentido, apresento na
subseção 3 a seguir informações sobre processos de gerenciamento de qualidade adotados no
setor de traduções especializadas.
204
Figura 2 – Processos de qualidade em agências de tradução
A TQA está no centro desses processos e oferece um parecer, ou uma classificação, sobre
a conformidade da tradução com as especificações de qualidade definidas pelo cliente.
O QC é um processo de decisão usado para verificar se produtos e serviços atendem a
especificações de qualidade definidas. No âmbito do mercado de tradução, o QC baseia‐se nos
resultados da TQA e tem o objetivo de garantir a qualidade do texto final por meio de
verificações específicas.
O processo de QA é mais amplo que o QC e inclui a adoção, pelas empresas, de etapas e
processos para evitar erros ou problemas de qualidade em qualquer estágio de um projeto de
tradução. A QA abrange todos os aspectos voltados a medir e alcançar os níveis desejados de
qualidade, e isso inclui planejamento, QC e TQA, ou seja, envolve não apenas o trabalho de
tradutores, mas de toda a equipe de uma agência de tradução.
A seguir apresento brevemente as etapas dos processos de TQA, QC e QA que são
adotadas no mercado de trabalho de tradução.
206
Figura 3 – Critérios do modelo MQM
Para agências de tradução ou para órgãos multinacionais que dependem da tradução para
desempenhar suas funções, o processo de avaliação de qualidade da tradução tem o importante
objetivo de oferecer um parecer, ou uma classificação, sobre a conformidade dos serviços de
tradução às especificações de qualidade estabelecidas em conjunto com o(s) cliente(s)
(DRUGAN, ibid.).
Em um projeto de tradução, a TQA pode ser realizada durante a etapa de revisão bilíngue
ou durante uma etapa específica conhecida como LQA (Language Quality Assessment,
avaliação de qualidade linguística).
Atualmente, muitas ferramentas de auxílio à tradução (CAT, Computer-Aided
Translation) contam com recursos de TQA integrados à sua interface, permitindo que o revisor
classifique as alterações feitas ao mesmo tempo em que corrige o arquivo bilíngue na
ferramenta CAT. Essa abordagem demanda mais tempo do revisor e pode não ser viável em
projetos de tradução com prazos ou orçamentos reduzidos.
A avaliação de qualidade feita durante a LQA acontece geralmente após o término do
projeto de tradução e, nesse caso, a avaliação de qualidade baseia-se geralmente em uma
amostra do texto traduzido.
207
● Revisão bilíngue (revision, segundo o padrão ISO 17100): nessa etapa, o revisor deve
comparar o texto traduzido com do texto original e deve verificar a adequação do
texto traduzido para os propósitos pretendidos.
● Verificação de consistência com terminologia e o estilo do cliente: essa etapa pode
ser realizada com ajuda de softwares específicos para verificação de qualidade, como
Verifika, XBench, Déjà Vu, QA Distiller etc. (“UK Translator Survey: Final Report”,
2017), que permitem configurar e realizar inúmeras verificações automatizadas.
● Edição ou revisão monolíngue (review, segundo o padrão ISO 17100): para garantir
maior fluência do texto traduzido na língua de chegada e avaliar a adequação do texto
traduzido para os propósitos pretendidos, um revisor com as competências
necessárias deve fazer uma revisão apenas do texto traduzido, consultando o texto
original apenas quando necessário.
● Revisão por especialista local (ICR, In‐Country Review,): o texto traduzido pode ser
revisado por um especialista que seja falante nativo do idioma de chegada, ou por
algum representante direto do cliente final que tenha domínio do assunto.
● Teste funcional: verificação da funcionalidade de recursos de um software, jogo ou
página da web traduzida. O teste baseia-se em um script fornecido pelo cliente, que
detalha as etapas que o testador deve seguir. Os possíveis erros encontrados nesta
etapa devem ser registrados de modo a permitir que o cliente identifique ou reproduza
o mesmo erro a fim de corrigi-los.
● Teste linguístico: assim como o teste funcional verifica o bom funcionamento de um
produto traduzido, o teste linguístico deve verificar a tradução no contexto da página
da web ou da interface do software ou jogo traduzido.
● Verificação do produto final: concluídas as etapas de tradução e revisão, o documento
traduzido é formatado (pela equipe de diagramação de uma agência de terceiros ou
do próprio cliente) e o documento formatado pode ser enviado à equipe de tradução
para verificação linguística final do documento formatado.
● Revisão final (proofreading, segundo o padrão ISO 17100): releitura monolíngue do
texto final traduzido, antes de ser enviado para impressão ou publicação.
● Revisão por amostragem: revisão bilíngue de uma amostra da tradução para
avaliação da qualidade da tradução.
● Spot‐checking: revisão bilíngue de trechos aleatórios para avaliação da qualidade da
tradução.
De acordo com o padrão ASTM F 2575 (AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND
MATERIALS, 2006), ao avaliar a qualidade de uma tradução, não é possível considerar que
exista uma única tradução de alta qualidade para um texto de partida específico, um tradutor
pode fazer diversas escolhas tradutórias corretas (ou incorretas), mas no mercado de trabalho,
o nível de qualidade de uma tradução depende em grande parte do grau de conformidade às
especificações combinadas com o cliente.
Faz parte do processo de QA, portanto, definir um conjunto de parâmetros que devem ser
documentados como especificações claras e que podem ser usadas para avaliar a qualidade de
uma tradução em particular. O processo de QA deve também garantir que a noção de qualidade
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permeie todos os aspectos de um projeto de tradução, do início ao fim. Para isso, é preciso
adotar processos ou tomar medidas que visem garantir a qualidade em todas as etapas de um
projeto de tradução.
Nas etapas anteriores à tradução, ou pré-produção, as seguintes medidas são tomadas
visando garantir a qualidade:
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Considerações finais
Referências
AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS. F 2575 – 06: Standard Guide
for Quality Assurance in Translation. West Conshohocken. 2006.
BIGGS, J.; TANG, C. Teaching for Quality Learning at University Third Edition
Teaching for Quality Learning at University. 3. ed. New York: Open University Press,
2007.
GÖRÖG, A. The 8 most used standards and metrics for Translation Quality Evaluation.
TAUS Blog, [S.l.: s.n.], 2017. Disponível em: <http://blog.taus.net/how-to-improve-
automatic-mt-quality-evaluation-metrics>. Acesso em: 11 nov. 2017.
LOMMEL, A. et al. Multidimensional Quality Metrics (MQM) Issue types. QT21: Quality
Translation 21, [S.l.], 2015. Disponível em: <http://www.qt21.eu/mqm-definition/issues-list-
2015-05-27.html>. Acesso em: 19 nov. 2017.
211
SALDANA, G.; O’BRIEN, S. Research Methodologies in Translation Studies. New York:
Routledge, 2014.
Resumo: Desde que a tradução se estabeleceu como profissão e como disciplina acadêmica, a questão da avaliação
tem evoluído e se tornado cada vez mais complexa devido às mudanças rápidas e significativas que afetam o
mercado (DRUGAN, 2013), bem como à emergência de novas abordagens para a avaliação na formação de
tradutores (GALÁN-MAÑAS; HURTADO ALBIR, 2015; SALDANA; O’BRIEN, 2014). A avaliação de
profissionais e a avaliação de aprendizagem no contexto de formação de tradutores têm seguido rumos diferentes
(MARTÍNEZ MELIS; HURTADO ALBIR, 2001), o que têm provocado uma lacuna entre a academia e o mercado
de trabalho. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo apresentar processos de avaliação, controle e garantia
de qualidade no mercado de trabalho de traduções especializadas, com o propósito de refletir sobre tais processos
à luz de teorias de ensino/aprendizagem de tradução, que se localizam em uma orientação construtivista da
aprendizagem e em uma linha pedagógica da formação por competência. A coleta de informações sobre tais
processos foi feita por (i) pesquisa bibliográfica e (ii) levantamento documental em organizações internacionais
vinculadas ao setor de tradução especializada. Trata-se de um recorte de pesquisa em andamento que visa
investigar os critérios de avaliação de qualidade, adotados no mercado de trabalho, com vistas a propor
instrumentos e tarefas para avaliação pedagógica e colaborar para remediar a situação de ruptura entre o
ensino/aprendizagem de tradução e o mercado de trabalho.
Palavras-chave: Processos de Qualidade no Mercado de Tradução. Modelos de Avaliação de Qualidade de
Tradução. Avaliação de Tradução no Mercado de Trabalho. Avaliação de Aprendizagem na Formação de
Tradutores. Avaliação Pedagógica.
Abstract: Discussions about assessment in translator education have evolved and become increasingly complex
due to quick and significant changes in the translation marketplace (DRUGAN, 2013), as well as due to new
approaches to assessment in translator education (GALÁN-MAÑAS; HURTADO ALBIR, 2015; SALDANA;
O’BRIEN, 2014). The assessment of professional translators and the assessment of learning in the field of
translator education have taken different directions (MARTÍNEZ MELIS; HURTADO ALBIR, 2001) resulting in
a gap between academic and professional practices. In this context, the purpose of this paper is to present processes
for quality assessment, quality control, and quality assurance currently used in the translation industry. The purpose
is to analyse those processes in light of theories of translation teaching and learning from a cognitive-constructivist
perspective in translator training and a pedagogical line of competence-based training. Information about the
aforementioned processes was collected though (i) bibliographic research and (ii) documental research in
international organizations connected to the translation industry such as TAUS and Quality Translation 21. This
paper is part of an ongoing master’s research that aims to investigate quality assessment criteria used in the
marketplace in order to propose instruments and activities for pedagogical assessment and to collaborate to remedy
the rupture between translation teaching/learning and the translation industry.
Keywords: Quality Processes in the Translation Industry. Models for Translation Quality Assessment. Translation
Assessment in the Translation Industry. Learning Assessment in Translator Education. Pedagogical Assessment.
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SOBRE OS ORGANIZADORES
Juliana de Abreu
Licenciada em Letras Alemão, Mestra em Estudos da Tradução, atualmente é doutoranda pelo
mesmo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, e
desde 2012 é membro do Grupo de Pesquisa TRAC - Tradução e Cultura. Utilizando-se do
gênero textual receitas culinárias, pesquisa as variedades nacionais alemã e austríaca da língua
alemã. Desde 2009 dedica-se à área da Tradução quando ingressou no curso de bacharelado em
Trankulturelle Kommunication da Universidade de Viena - UniWien, na Áustria.
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